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POR QUE SAI DA


ORDEM ROSA-CRUZ

Do Misticismo ao Ceticismo

SUMÁRIO
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Introdução
Parte I – As características da Ordem Rosa-Cruz
1. Como cheguei na Ordem Rosa-Cruz e minha relação com o
ceticismo
2. O que a Ordem Rosa-Cruz tem de bom e por que me filiei
3. A Ordem Rosa-Cruz é uma religião, uma seita ou uma escola?
4. Faz sentido a Ordem Rosa-Cruz ser secreta ou discreta?
5. A psicologia dos membros das Ordens e suas sombras
6. O público-alvo da Ordem Rosa-Cruz seu elitismo
7. A relação da Ordem Rosa-Cruz com as religiões
8. A Ordem Rosa-Cruz é completa?
9. Reflexões sobre o material de ensino da Ordem Rosa-Cruz
10. As origens históricas e tradicionais da Ordem Rosa-Cruz e
suas contradições

Parte II – A cosmovisão rosa-cruz


11. Misticismo e esoterismo: As suas bases e seus problemas
estruturais
12. Considerações acerca da espiritualidade e do mundo
espiritual
13. A cosmovisão rosa-cruz
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14. Notas sobre a ideia rosa-cruz de Deus


15. O panteísmo místico
16. A Inteligência Cósmica e sua Perfeição
17. O conceito de natureza e de natural e sua relação com o
mundo espiritual
18. A ideia de lei
19. A ideia de ordem
20. Deus e o mundo moderno

Parte III – A visão rosa-cruz do ser humano


21. Como os rosa-cruzes veem os seres humanos
22. Sobre a existência da alma e do mundo espiritual
23. Reflexões sobre o subconsciente místico
24. Os poderes paranormais dos rosa-cruzes – uma reflexão
honesta
25. Os poderes mentais e o mundo da Tecnologia
26. Métodos de cura e terapêutica rosa-cruz
27. A construção da personalidade humana
28. A ideia de evolução individual
29. Evolução coletiva

Parte IV – Outros conceitos esotéricos e místicos


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30. Críticas sobre a Cabala


31. As leis herméticas
32. Os Mestres Cósmicos e os fundadores das religiões
33. Os horizontes espirituais rosa-cruzes
34. Valores da Ordem Rosa-Cruz
35. As Ordens Iniciáticas e a política
36. A Ordem Rosa-Cruz e o casamento homoafetivo
37. Conclusões

Referências
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"Se um homem tiver realmente muita fé, pode dar-se ao luxo de


ser cético."
Friedrich Nietzsche
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INTRODUÇÃO

Ao contrário de tempos passados onde se acreditava que as


religiões iam acabar, elas ainda têm forte presença no mundo
contemporâneo. Mas embora este seja um fato inegável, não
podemos desconsiderar que, no Brasil, as pessoas sem religião
correspondem a cerca de 10% da população. Isso não é muito,
mas é um número considerável. Em alguns países essa taxa é
ainda maior e apresenta um crescimento ano após ano. Esta
pequena porcentagem da população inclui aquilo que chamo
pelo acrônimo ACA – ateus, céticos e agnósticos.

De forma bem resumida e compreendendo as nuances que


existem nas definições e nas identidades pessoais, os ateus são
indivíduos que não acreditam em Deus. Agnósticos são os que
acreditam em alguma coisa, mas sem vinculação a uma
instituição ou organização. Os céticos, por sua vez, são aquelas
pessoas partidárias do ceticismo e elas nem acreditam e nem
desacreditam em uma crença metafísica, se mantendo
desconfiados sobre o mundo espiritual. Atualmente, eu me
encontro nesta última categoria.
Grosso modo, o ceticismo se caracteriza por uma atitude
prudente com relação às crenças. A mente cética faz perguntas,
põe dúvidas e, na medida em que não encontra respostas, torna-
se cautelosa. Assim, os céticos não descreem nas coisas
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espirituais, mas na falta de evidências mais substanciais sobre a


existência de uma alegada realidade imaterial, não embarcam
nela facilmente. Eles também sabem conviver muito bem com a
não resposta, algo que boa parte das pessoas parece não
conseguir.
Durante minha infância eu fui católico, na adolescência
frequentei o espiritismo kardecista e no início da idade adulta
conheci a Ordem Rosa-Cruz e a ela me filiei. Vivi intensamente
cada organização que participei e, quando nelas, acreditava que
a Verdade estava ali. Mas foi a partir da experiência dentro da
chamada filosofia rosa-cruz que fui deixando de acreditar em
alguma coisa. Após uma longa vivência de corpo e alma na
espiritualidade, começaram a surgir em mim certas inquietações.
Elas não me fizeram migrar para um ateísmo absoluto, mas para
uma descrença bastante acentuada.
Muitas pessoas não conhecem a Ordem Rosa-Cruz e, portanto,
não sabem o que se ensina lá dentro. Na cultura popular costuma
se pensar que ela faz parte do que se chama de Ordens secretas,
mas este não é um termo adequado. Isso porque muitas destas
organizações ditas secretas estão abertas a qualquer um que
deseje ingressar, embora seus ensinamentos sejam reservados a
membros. Isso faz com que Ordens dessa natureza sejam mais
discretas do que secretas. Por isso as chamaremos também de
‘Ordens discretas’. Mas apesar deste caráter mais ou menos
reservado, muitas coisas ali são de conhecimento do grande
público por meios indiretos.
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De forma genérica, podemos dizer que os estudos rosa-cruzes


ensinam basicamente o que se chama de misticismo ou de
esoterismo, palavras que serão usadas como sinônimas neste
livro. Isso faz com que muitas das ideias e conceitos do
rosacrucianismo estejam presentes em várias religiões,
pensadores, filósofos e até na sabedoria popular, embora a
Ordem Rosa-Cruz dê uma abordagem própria àquilo que ensina.
Assim, mesmo que o leitor nunca tenha frequentado esta
organização específica é possível mergulhar em seus
ensinamentos e pensá-los criticamente, pois eles tangenciam
muitas outras linhas de pensamento.
Eu passei mais de doze longos anos imerso na Ordem Rosa-
Cruz. Eu estudava, praticava o que me era proposto e realmente
acreditava que aqueles ensinamentos eram válidos. A partir de
um determinado momento, contudo, comecei a me colocar
diversas questões e não havia um canal de diálogo no qual eu
pudesse compartilhar minhas angústias existenciais. Eu me
ressentia de um lugar onde fosse possível abrir meu coração e
compartilhar as minhas dúvidas mais sinceras. Mas mais do que
isso, pouco a pouco, notei como elementos do misticismo e do
esoterismo podiam ser deletérios para indivíduos e sociedades e
euprecisava discutir isso com outras pessoas. Foi então que me
surgiu a ideia de escrever um livro no qual eu pudesse expor as
ideias e questionamentos que me iam surgindo.
Assumi essa empreitada não com o objetivo de “destruir” a
Ordem Rosa-Cruz e nem seus ensinamentos, mas tão somente
com o fito de fazer ponderações críticas sobre o rosacrucianismo
em geral. Ao ver o título desta obra, muita gente pode pensar
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que se trata de um trabalho exclusivamente sobre a Ordem Rosa-


Cruz em si, mas não é este o caso. Trata-se de uma história de
como os ensinamentos rosa-cruzes me levaram ao ceticismo. O
que eu busco aqui é compartilhar um pouco da minha trajetória e
experiência dentro deste mundo esotérico e místico
desenvolvido nessas Ordens secretas ou discretas.
Este livro é apenas uma série de ensaios críticos no melhor
sentido da palavra. Até porque a crítica, quando construtiva,
ajuda as pessoas e instituições a melhorarem, a pensarem
respostas coletivas para os problemas e a corrigir o que pode ser
corrigido. Este é também um outro objetivo com esta obra –
estimular o debate e o pensamento. Tudo o que eu disser aqui, eu
posso acordar no dia seguinte pensando diferente e com todas as
respostas que me faltam. Mas este é o ponto em que me
encontro atualmente devido à minha natureza de sempre se
dispor a fazer perguntas. Pode ser que as respostas venham com
o tempo naturalmente dentro de mim, mas por hora, preciso de
ajuda para responde-las. Nesse sentido, este livro é
essencialmente um pedido de ajuda.
Nos espaços mais públicos de discussão como as redes sociais,
os jornais, os livros, entre outros, costumamos ver ateus radicais,
fanáticos religiosos ou crentes de toda sorte querendo irradiar a
sua fé, mas raramente vemos um cético convidando ao diálogo.
Em especial o Brasil parece ser um lugar que sempre foi muito
pouco afeito ao diálogo civilizado de ideias. Não é demais
esquecer que vivemos em um país que se acostumou à ideia de
que política, futebol e religião não se discutem. Em função
disso, o debate público por aqui é sempre muito tomado por
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paixões e falta um espírito crítico, racional e ponderado. Já nos


lugares intelectualmente mais elevados e onde o ceticismo
sempre encontrou algum espaço, como entre acadêmicos e
eruditos, estamos bastante acostumados a ver críticas às
religiões e à sua influência, mas essas organizações esotéricas
costumam passar desapercebidas das discussões. Por se tratar de
um conhecimento mais discreto, ele tende a ser mais protegido
da crítica pública. Contudo, assim como as religiões têm coisas
lamentáveis, o esoterismo também tem elementos que considero
problemáticos e pouca atenção é dada a isso pelos pensadores da
sociedade. Caso o leitor procure na internet, verá que há várias
organizações rosa-cruzes diferentes. Neste livro, não
especificarei qual Ordem eu fiz parte, embora pela leitura dos
capítulos seja fácil depreender isso para aqueles que têm alguma
familiaridade com o tema. Tomo esta postura para evitar a
sensação de que meu objetivo é atacar organizações. Esta obra
se dedica apenas a alimentar o espírito da dúvida para aqueles
que são um ponto de interrogação ambulante. Certamente eu
posso estar errado em muitas dos questionamentos que vou
apresentar a seguir por falta de experiência de vida, de
pensamentos mais apurados ou por simples erro de apreciação
mesmo. Não quero, contudo, oferecer uma “Verdade” que vai
aniquilar a Ordem Rosa-Cruz e seus ensinamentos. Espero
apenas poder tirar um pouco do véu que cobre estes
conhecimentos e apresentar algumas reflexões críticas sobre eles
para que o próprio leitor as continue internamente, construindo
um debate de ideias. Inclusive, críticas construtivas a esta obra
são mais do que bem vindas.
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Antes de continuar, porém, permitam-me fazer um adendo.


Sempre que procuramos sobre Ordem Rosa-Cruz na internet,
vemos um monte de sites criticando esta organização. Alguns
têm críticas ponderadas, mas a maioria não passa de lixo de
fanáticos religiosos que dizem que os rosa-cruzes têm pacto com
demônio, fazem bruxaria, controle mental etc. Os rosa-cruzes
não fazem nada disso e nem sequer o demônio existe. Afinal, se
Deus é onipotente, por que ele não destrói o demônio? E se Ele
não pode destruí-lo, logo não é onipotente. Portanto, o demônio
não existe e não devemos dar atenção para este tipo de
desinformação veiculada por fundamentalistas. As críticas que
desenvolverei aqui são mais densas e profundas do que este
monte de patacoada.
Feitos estes esclarecimentos, este livro está dividido em quatro
partes. Na primeira parte falaremos sobre as características da
Ordem Rosa-Cruz e também de outras organizações discretas.
Nela, trago à luz um universo que é bastante desconhecido do
grande público e que tem elementos muito problemáticos. Na
segunda parte apresento a cosmovisão dos rosa-cruzes; em
outras palavras, como esta linha de pensamento enxerga o
universo. Na terceira parte falo da abordagem rosa-cruz dos
seres humanos. Os rosa-cruzes têm uma forma diferente de
enxergar a natureza humana e isso possui diversas implicações.
Na quarta e última parte discuto alguns conceitos da
espiritualidade rosa-cruz e do misticismo em geral.
Como o leitor poderá observar, os textos a seguir são uma
narrativa meio dissertativa e meio biográfica. Isso significa que
conforme vou apresentando cada assunto, vou também
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colocando as minhas vivências, observações e impressões sobre


aquele tema para que os leitores possam refletir junto comigo.
Escolhi este modo de escrever para demostrar o decorrer do
desenvolvimento do meu ceticismo. Processo este que foi
intensificado a partir de certas crenças místicas. Convido-os,
assim, a tomar parte no mundo do rosacrucianismo para que
pensemos sobre seus pontos fortes e fracos e vejamos que
efeitos o esoterismo pode ter para indivíduos e sociedade.
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PARTE I

AS CARACTERÍSTICAS
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1. COMO CHEGUEI NA ORDEM ROSACRUZ E


MINHA RELAÇÃO COM O CETISIMO

Antes de compartilhar minhas vivências no mundo do


misticismo, primeiramente gostaria de contar como cheguei
à Ordem Rosa-Cruz. Para tal, se faz mister falar
rapidamente sobre a minha trajetória intelectual. Esta etapa
é necessária que o leitor compreenda como junto de uma fé
pura e sincera, o ceticismo sempre permeou a minha vida.
Ademais, para aqueles que têm filhos ou ainda pretenda tê-
los, deixo registrado minha história para que se entenda a
importância do acesso dos jovens à Ciência. Quando
criança, eu morava numa enorme casa no subúrbio do Rio
de Janeiro. Meu pai era formado em Química e me dava
jogos de experiências químicas. Passávamos tardes com ele
lendo para mim a enciclopédia Conhecer e outras revistas e
livros científicos. Minha tia era bióloga e tinha caixas com
insetos reais pregados por alfinetes e que eu passava horas
olhando. Conforme fui desenvolvendo a leitura, passei eu
mesmo fuçar os livros dela de Biologia. A minha avó era
enfermeira e uma pessoa extremamente ativa e inteligente.
Ela desmontava os eletrodomésticos que quebravam e ia
sozinha tentando descobrir como eles funcionavam para
consertá-los. Eu observava tudo o que ela fazia.
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A minha mãe era pedagoga, tinha obras de Psicologia em


casa e me dava livros infantis que contavam histórias
fantásticas. Ela também me estimulava na criatividade e eu
criava jogos, brinquedos e armas em papel, plástico etc.
Também aprendi a jogar xadrez aos seis anos de idade
ensinado por um namorado da minha tia. Isso tudo significa
que eu cresci em um ambiente intelectualmente estimulante
e em meio a uma forte cultura científica. Graças à
exposição à literatura infantojuvenil, com os meus bonecos
eu criava histórias profundas baseadas nos livros que eu lia.
Eu tinha ânsia de conhecer como as coisas eram por dentro
e de observar a natureza. Desde muito cedo eu fui exposto a
conceitos como átomos, dinossauros, inconsciente, história
geológica etc. Ainda criança eu já sabia da existência de
outras religiões, de outros deuses e de outras formas de se
organizar o mundo.

Algo que me marcou muito nessa jornada foi aos seis anos
de idade ter ganhado um álbum de figurinhas chamado
Monstros da Pré-História. Isso fez com que desde novinho
eu tivesse consciência de que a vida surgira de um ser
primitivo e primordial, hoje chamado de LUCA (Last
Universal Common Ancestor), que as espécies foram
evoluindo em milhões de anos e que houve outras espécies
de seres humanos como australopitecos, neandertais, homo
habilis, homo sapiens etc. Depois desse álbum, colecionei
encartes científicos como a enciclopédia Descobrir: Uma
Aventura no Mundo da Ciência. Meu programa familiar
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predileto era ir ao Museu Nacional no Rio de Janeiro ver


múmias e dinossauros. Isso tudo significa que a cultura
científica chegou em mim antes da religião.

Como toda criança brasileira até um tempo atrás,


estimulado pela família, aos dez anos entrei no catecismo
da Igreja Católica. Mas apesar de gostar da religião e das
igrejas – da mística e da estética das catedrais – sempre tive
muita desconfiança das crenças religiosas como um todo,
talvez influenciado pela Ciência que havia ao meu redor.
Quando eu ouvia a Igreja dizer que os seres humanos
surgiram de Adão e Eva, logo me perguntava “Mas de qual
espécie humana teriam sido Adão e Eva?”. A criação do
mundo narrada pela Bíblia simplesmente não se casava
muito bem com a história do mundo natural tal como me
apresentavam meu álbum de figurinhas e as enciclopédias.
A diferença era que eu via dinossauros no museu, mas não
via anjos e nem Deus. Eu nem sabia direito o que era
evolução das espécies, mas sentia que aquilo era
verdadeiro, pois eu podia encontrar ossos de dinossauros e
homens primitivos nas galerias museológicas. Esse conflito
de visões de mundo, portanto, fez germinar em mim o
pensamento crítico desde muito cedo.

Todo esse percurso significa que mesmo sendo doutrinado


pela religião católica, eu me colocava perguntas como: “Se
Deus é amor, como ele permite que algo como o inferno
exista? Uma pessoa que vai pro inferno, ela vai arder por
toda a eternidade mesmo se pedir perdão depois de dois
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milhões de anos por lá? Se só Jesus salva, o que aconteceu


com as pessoas que vieram antes de Cristo? Aliás, se Jesus
veio para mandar as pessoas pro inferno, por que ele veio?
Se Noé colocou todos os animais do mundo em uma arca,
como eles se alimentavam?”. Estes são só alguns exemplos
de como o pensamento científico instilado desde cedo em
mim criou uma mente inquiridora e crítica. Naturalmente,
quando criança, eu não me definia como ateu ou sem
religião, mas sempre fui muito desconfiado daquilo tudo,
mesmo que gostasse da Igreja. Em função disso, apesar de
ter apreço pela espiritualidade, o discurso religioso nunca
me convenceu muito. A ideia de simplesmente acreditar em
algo “porque sim” não ressoava dentro de mim, uma vez
que a Ciência me explicava o como e o porquê das coisas.
Além disso, os Bíblia sempre me pareceram livros
enfadonhos e difíceis para jovens e nunca despertaram meu
interesse.

Aos quatorze anos houve uma mudança nessa trajetória.


Tomei contato pela primeira vez com o espiritismo
kardecista e li quase toda a obra de Kardec. Era uma leitura
mais leve e racional e que me apresentava uma cosmovisão
diferente, onde deveríamos evoluir, reencarnando
sucessivamente, burilando nossa consciência para, enfim,
nos libertarmos. Embora hoje eu tenha críticas a essas
ideias, na época, elas me pareceram mais acertadas e menos
obscurantistas do que o catolicismo no qual eu havia sido
criado. Além disso, a visão espírita era mais afinada com a
racionalidade científica que me fora estimulada. Afinal, se a
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vida está evoluindo, junto com ela também estaria a nossa


alma. Passei, então, a me identificar com o kardecismo.

Aos quinze anos eu fui convidado para ingressar na Ordem


Demolay, uma organização paramaçônica para jovens de
treze a vinte e um anos. Neste espaço eu tive contato com
um universo mais amplo de Ordens afins e comecei a me
interessar pela literatura mística. Li sobre religiões
orientais, maçonaria, rosacrucianismo, teosofia, druidismo,
wicca, cabala, tarô, astrologia etc. O conhecimento místico
me pareceu mais rico do que o espiritismo, que era racional
demais. O esoterismo tinha símbolos, estudava o
inconsciente, dizia que tínhamos poderes latentes e este
universo foi pouco a pouco me atraindo.

Aos dezessete anos, durante uma aula na escola, uma


professora falou sobre a existência da Ordem Rosa-Cruz.
Mesmo sem saber direito do que se tratava, fiquei bastante
curioso e fui investigar se havia algum templo rosa-cruz no
meu bairro. Para a minha surpresa, encontrei um perto da
minha casa e fui até lá. Logo de início vi que a organização
defendia uma união entre as descobertas científicas e o
mundo da espiritualidade, algo que me encantou. Ao ver
isso, me filiei imediatamente à Ordem. Eu me senti
bastante acolhido, mas falaremos sobre essa história com
mais detalhes no próximo capítulo.

Quando fiz dezenove anos, entrei no curso de História na


Universidade Federal Fluminense, famosa por ser um dos
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melhores cursos da área no país. De fato, o curso faz jus à


fama. Na prática, eu entrei na faculdade tentando conciliar
tudo o que eu aprendia na Ordem Rosa-Cruz com o
conhecimento acadêmico e científico que eu recebia.
Afinal, era essa proposta da Ordem. Em outras palavras,
tentei juntar crenças religiosas e místicas com um mundo
visceralmente não espiritualizado e que via a religião com
desconfiança. Este movimento durou alguns anos dentro de
mim, mas a partir de um determinado momento a balança
pendeu para um ceticismo mordaz.

Conforme eu fui estudando a história das ideias e das


religiões, Antropologia, Sociologia etc, comecei a
desenvolver um olhar extremamente crítico sobre toda e
qualquer forma de espiritualidade. Isso não significa que eu
rompi totalmente com o mundo da fé e da religião, mas as
coisas que eu estava aprendendo somadas com a percepção
do método científico desenvolveram em mim uma postura
mais cautelosa.

Ao longo dos anos deixei a vida espiritual e acadêmica um


pouco de lado e fui me dedicar à vida profissional. Neste
ínterim, eu era uma pessoa cuja espiritualidade era uma
chama bruxuleante, mas que ainda estava acesa. Eu
meditava, lia coisas esotéricas, fazia exercícios de
respiração, mas quando encontrei alguma estabilidade no
mercado de trabalho, aos vinte e oito anos, fiz uma Pós-
Graduação na Faculdade São Bento no Rio de Janeiro e
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cujo tema era História das Religiões. Retomei, portanto,


meus diálogos internos entre vida espiritual e Ciência.

Junto de tudo isso veio o processo de amadurecimento


etário com seus diversos desafios afetivos, financeiros,
profissionais, familiares etc. Como diz a velha sabedoria
popular, “Quando você acha que encontrou todas as
respostas, vem a vida e muda as perguntas”. Em um certo
ponto da minha vida, tudo o que eu aprendi nas religiões e
no misticismo começou a não fazer mais sentido dentro da
minha cabeça e desenvolvi uma robusta reflexão sobre
vários aspectos da chamada espiritualidade. Num
determinado ponto, eu me perguntei “Será que eu
realmente acredito em alguma coisa espiritual?”. Mas se até
então o que eu aprendia na Ordem Rosa-Cruz era tido como
a Verdade, como pode acontecer uma virada tão grande
rumo à descrença? Contarei essa história nos próximos
capítulos.
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2. O QUE A ORDEM ROSA-CRUZ TEM DE BOM E


POR QUE ME FILIEI
Quando visitei pela primeira vez uma Loja Rosa-Cruz (‘Loja’ é
o termo pelo qual os rosa-cruzes chamam seus templos físicos)
recebi um livreto explicativo. Nele era dito no que consistia a
Ordem Rosa-Cruz e que aquele que ingressasse na organização
iria receber um conhecimento esotérico que seria capaz de lhe
trazer bem estar, felicidade e prosperidade. O opúsculo também
dizia que dentro da Ordem era possível desenvolver uma série
de poderes e habilidades mentais a fim de obter uma espécie de
domínio da vida. Lembro-me que tudo aquilo me encantou. Um
detalhe, contudo, me chamou a atenção. Em vários momentos
daquelas páginas se fazia críticas frontais ao dogmatismo da
religião. A Ordem Rosa-Cruz dizia que ela própria já tinha sido
perseguida por governantes tirânicos ou sistemas religiosos
dogmáticos. Ela afirmava ser uma sabedoria que se antecipou
em muitos pontos à Ciência e à Filosofia oficiais, uma vez que
os rosa-cruzes nunca estiveram presos a dogmas. Ao final, a
organização dava a entender que o Misticismo, por estar livre de
dogmas, sejam religiosos ou científicos, era mais iluminado do
que outros sistemas de pensamento. Lembro-me claramente que
todas aqueles críticas aos dogmas das religiões me atraíram
demais.
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A sensação final que eu tive aquela obra explicativa foi a de que


as religiões eram espaços de obscurantismo, algo que, em
função da minha formação científica, concordei prontamente.
No entanto, o livro de apresentação da Ordem Rosa-Cruz me
dizia ainda que havia uma espiritualidade não obscura e
esclarecedora. Tratava-se do misticismo rosa-cruz. Ao me
deparar com a proposta da organização, eu senti que a Verdade
estava naquele lugar. Para o meio adolescente e meio adulto que
eu era, tratava-se de um produto novo e revolucionário. Bastava
estudar o rosacrucianismo que eu ia entrar num mundo de uma
espiritualidade superior. Foi preciso muito tempo para que eu
começasse a ver criticamente as coisas e entendesse que o
mundo não era bem assim.
Antes de continuarmos na Ordem Rosa-Cruz, permitam-me
fazer um adendo. A título de curiosidade, o mundo do
esoterismo possui muitas ramificações, como maçonaria,
teosofia, cabala, rosacrucianismo, martinismo, thelema,
druidismo etc. Cada uma dessas correntes abrange dezenas de
organizações afins. Caso o leitor procure na internet sobre
Ordens secretas, encontrará uma plêiade delas como a Ordem
Golden Dawn, a Ordem dos Iluminati, a Irmandade Pitagórica, a
Ordem Martinista, a Ordem Martinista Cabalística, a Ordo
Templis Orienti, a Ordem do Templo Solar, a Sociedade do
Thule, a Ordem de Queroneia etc. São tantas organizações
dentro de cada grupo específico que é muito fácil se perder.
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O chamado rosacrucianismo também possui várias organizações


diferentes dentro dele e o termo ‘rosa-cruz’ não é propriedade de
nenhuma delas. Neste campo, temos a Confraternidade da
Rosa+Cruz (CR+C), Escola Espiritual da Rosa-Cruz Áurea,
Fraternidade Dourada da Rosa-Cruz, Ordem Rosa-Cruz
AMORC, Fraternitas Rosae Crucis, Rosa-Cruz do Oriente,
Cenobita Crístico da Rosa-Cruz etc. Há também organizações
que não são propriamente rosacruzes, mas que lhe são
correlatas, como a Soberana Ordem do Templo Iniciático, bem
como organizações de natureza templária.

Estes são apenas alguns exemplos de algo que é um universo


muito grande. Naturalmente, cada uma dessas Ordens alega ser a
mais válida, legítima ou correta, mas todas elas são diferentes
representações dos rosacrucianismos, assim como as diferentes
igrejas e denominações cristãs compõem os cristianismos. No
entanto, quando eu usar o termo ‘rosacrucianismo’, tenha em
mente o leitor que estarei me guiando pela Ordem que eu fiz
parte, a qual eu preferi não especificar aqui.

A Ordem Rosa-Cruz que eu entrei não se define como uma


religião, mas como uma organização místico-filosófica. Ela
possui um sistema de estudo onde o afiliado recebe monografias
para estudar em casa, meditar e fazer exercícios mentais e
espirituais. Se o membro desejar, pode frequentar os espaços
físicos dessa organização, as Lojas. Nelas são realizados rituais
ordinários semanais, palestras, festas, entre outras atividades de
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interação entre rosa-cruzes. Se a pessoa não quiser frequentar o


templo físico, pode permanecer estudando apenas à distância,
devendo montar um altar em sua casa chamado de ‘Santuário’.
Estes são os chamados ‘membros de Santuário’.

As Lojas Rosa-Cruzes que existem nos bairros ou nas cidades


estão submetidas a uma Grande Loja relacionada a um idioma.
Há, portanto, uma Grande Loja de Língua Portuguesa, Inglesa,
Francesa, Espanhola etc. Estas Grandes Lojas, por sua vez, estão
submetidas a uma instituição máxima chamada Superior Grande
Loja. No que se refere à liderança, cada Loja é dirigida por um
‘Mestre de Loja’, que é um membro escolhido anualmente para
ocupar o cargo. As Grandes Lojas são comandadas por um cargo
chamado ‘Grandioso Mestre’. A Superior Grande Loja é
chefiada por um cargo chamado ‘Imperador’. A organização,
portanto, é disposta numa hierarquia de comando de modo
semelhante ao que ocorre na Igreja Católica com o Vaticano e
suas igrejas.

Quando tomei contato com a Ordem, comecei a frequentar


imediatamente a Loja Rosa-Cruz do meu bairro, mas ao mesmo
tempo fiquei encantado com a possibilidade de estudar em casa.
A não obrigação de ter que ir toda semana a uma instituição me
dava uma sensação de liberdade. Ao mesmo tempo, esse sistema
me chamava à responsabilidade devido ao estudo das
monografias, cujos horários eu podia controlar. Era tudo muito
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diferente das religiões que eu tinha frequentado até então, onde


havia uma relativa obrigação de ir à igreja ou ao centro.

Acerca das origens de sua filosofia, a Ordem Rosa-Cruz alega


ser uma herança das chamadas escolas de mistério da
Antiguidade. Muita gente não sabe do que se trata isso, pois a
natureza histórica dessas instituições não é tão conhecida.
Resumidamente, elas foram grupos espiritualistas que tiveram
presença no Egito, Grécia e Roma Antigos e eram basicamente
escolas onde se ensinavam certos princípios místicos e
filosóficos.

Por meio de iniciações, que eram rituais dramatizados, se


transmitia aos postulantes determinados conhecimentos. Muitas
Ordens secretas ou discretas alegam ser herdeiras diretas dessas
instituições do Mundo Antigo porque elas mantém a ideia de
transmissão de ensinamentos por meio de rituais de iniciação
exclusivos paraos seus membros. Esta é a razão pela qual essas
organizações são também chamadas de ‘Ordens iniciáticas’,
termo que também usaremos no decorrer deste livro.

Com relação ao que a Ordem Rosa-Cruz ensina ou ao conteúdo


das monografias, muita gente se pergunta o que se aprende ali e
esta é uma pergunta bastante natural. Na medida em que tais
ensinamentos são restritos aos membros, há toda uma aura de
mistério em volta deste tema. Falaremos sobre os ensinamentos
27

da Ordem Rosa-Cruz com detalhes no decorrer deste livro, mas


desde já eu gostaria de adiantar um ponto. Muitas pessoas
acham que se trata de um conhecimento absolutamente especial
que lhe dá poderes diferenciados e não podem ser
compartilhados com o público por se tratar de algo muito
poderoso. Quando olhamos com atenção para os ensinamentos
rosa-cruzes, contudo, não é bem assim.

Falando de forma muito genérica, o que o rosacrucianismo


oferece é uma visão mística de mundo acerca do universo, do
ser-humano, da natureza e sobre supostas leis naturais e
espirituais que governariam o mundo. A Ordem que eu
frequentei dispõe esses ensinamentos por meio um sistema de
ensino em graus. Há os graus iniciais, os medianos e os
superiores. Cada grau aborda assuntos como os átomos, o
fenômeno da vida, a consciência, a saúde humana, os filósofos
gregos, a alma humana, entre outros temas. Embora muitas das
coisas que se ensina por lá sejam partilhadas por várias outras
correntes de pensamento, a organização dá uma abordagem
própria ao misticismo apresentado nas monografias.

Quando estudamos certos conceitos metafísicos da Ordem Rosa-


Cruz, podemos identificar que ela é uma miscelânia de um
conhecimento místico oriundo de várias religiões e filosofias.
Há ali ensinamentos do Oriente e do Ocidente de vários períodos
históricos. Eles começam na Antiguidade, mas também
envolvem a alquimia medieval, místicos modernos, entre outros.
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Para quem olha de fora pode parecer meio confuso, mas quando
você segue certa linha de pensamento, faz sentido.

Sobre isso, muita gente acusa a Ordem Rosa-Cruz de ser uma


salada de várias correntes de pensamento e, no final das contas,
não ser nada específico. Sempre considerei essas críticas meio
bobas. Afinal, toda religião é também uma mistura de muitas
crenças. Os cristianismos absorveram elementos pagãos, os
islamismos copiaram ideias judaicas e os budismos possuem
elementos dos hinduísmos. Com o ensinamentos das Ordens
secretas não seria diferente. Do meu ponto de vista, essa
universalidade dos ensinamentos rosa-cruzes que não se atém a
uma religião específica sempre me deu a sensação de pertencer a
uma linha de pensamento global e não a uma seita ou a um
grupo de fanáticos religiosos. As únicas crenças que realmente
podem ser originais talvez sejam as dos aborígenes da Austrália,
embora mesmo nesse caso eu tenha as minhas dúvidas.

Outro elemento dos ensinamentos rosa-cruzes que me atraiu


logo de início e que eram citados já no livro de apresentação da
Ordem foram os exercícios mentais que a organização propunha
aos seus membros. Trata-se de atividades para estimular a
concentração, a memorização, a imaginação e também técnicas
de meditação e relaxamento. A proposta, contudo, ia além destes
exercícios para fortalecer certas habilidades mentais.
29

Havia também a ideia de que os seres humanos possuem poderes


mentais latentes e que podem ser desenvolvidos por meio de
exercícios espirituais. Entre estes poderes estão coisas como
telepatia, criação mental, projeção da consciência,
materialização de objetos, vibroturgia, telecinese, entre outras
coisas. A organização, portanto, era um sistema de ensino
prático. Isso a diferenciava em muito das religiões, cujo objetivo
era apenas crer. Sobre estes temas, teremos um capítulo só para
falarmos desses “poderes mágicos”.

Essa questão dos exercícios e poderes mentais sempre foi uma


marca da Ordem Rosa-Cruz que eu frequentava. Eles, contudo,
se inserem numa discussão mais ampla, pois são uma tentativa
da Ordem de explicitar que seus ensinamentos “funcionam”.
Nesse sentido, o que a organização faz é trazer para o campo da
espiritualidade a ideia da empiria científica. Segundo os rosa-
cruzes, é necessário experimentar e vivenciar aquilo que se
ensina e não acreditar em algo porque alguém disse.

A Ordem Rosa-Cruz tinha coisas que até então eu nunca havia


encontrado em lugar algum. Além de todos os pontos que
elenquei até aqui, a organização afirmava que dentro de sua
filosofia era possível ser um livre pensador. Ela até dizia que um
verdadeiro rosa-cruz é um ponto interrogação ambulante. Além
disso, a Ordem se consagrava à busca pela Verdade. Isso
significa que os ensinamentos rosa-cruzes deviam se adaptar à
Ciência conforme novas descobertas iam aparecendo. Eu nunca
30

tinha encontrado uma organização espiritualista tão aberta e


dedicada à busca pelo aperfeiçoamento como aquela.

Fato é que quando cheguei naquele mundo, senti que finalmente


havia encontrado um lugar longe do dogmatismo religioso. Eu
estava em um espaço que valorizava a iluminação do questionar
e do livre pensar, próprios da minha herança científica. Quando
eu vi o que o rosacrucianismo me propunha, senti que era
exatamente aquilo o que eu queria para a minha vida! Aquela
proposta tocou profundamente meu coração. Também pesou o
fato de eu encontrar na organização pessoas cultas, inteligentes e
críticas do ponto de vista social, algo que fez meu intelecto se
sentir acolhido.

O leitor pode estar se perguntando “Mas se a Ordem Rosa-Cruz


era tão boa, por que eu saí dela?”. Para explicar como isso se
sucedeu, vamos começar falando sobre as outras características
desta organização e que escapam de um olhar mais superficial.
Com o tempo, eu fui percebendo que por debaixo de toda aquela
maravilha, as coisas não eram tão iluminadas assim. Havia
muitas sombras naquele lugar.
31

3.A ORDEM ROSA-CRUZ É UMA RELIGIÃO, UMA


SEITA OU UMA ESCOLA?
O primeiro ponto a partir do qual se iniciou minha jornada rumo
ao ceticismo dentro da Ordem Rosa-Cruz foi uma simples
conversa sobre a natureza da organização. No mundo rosa-cruz
se costuma dar muita ênfase ao fato de a Ordem não ser uma
religião, mas uma organização místico-filosófica. Isso faz com
que os membros se sintam diferentes em relação aos religiosos.
Lembro-me de um dia em que, durante um ritual, foi aberta a
palavra aos membros. Uma irmã rosa-cruz (os rosa-cruzes se
chamam de irmãos e irmãs) disse que o rosacrucianismo era a
religião que ela nunca tinha encontrado na vida. Isso causou
certo mal-estar entre os membros.

Pessoalmente, sempre achei essa autodefinição da Ordem Rosa-


Cruz bastante interessante. Isso porque, dentro da organização,
eu me via como uma pessoa diferente do resto da humanidade.
Na minha cabeça, eu não estava em uma religião, coisa de gente
“fanática e burra”, mas em uma escola de pensamento, o que era
qualitativamente superior. Certa vez, no entanto, ocorreu um
32

fato que me levou a refletir mais detidamente sobre o modo


como a organização se definia.

Na época da faculdade eu fiz uma amiga francesa. Ela se


interessava muito pelo Brasil e veio estudar na mesma faculdade
que eu durante dois anos para aprender samba e cultura
brasileira. Tratava-se de uma francesa clássica – feminista,
totalmente ateia, anticatólica e de esquerda. Eu e minha amiga
conversávamos amiúde sobre as diferenças culturais entre Brasil
e França e, um belo dia, entramos no tema religião. Comentei
com ela que eu era rosa-cruz e ela me disse que isso era uma
seita. Naquela época, a Ordem Rosa-Cruz que eu fazia parte
estava sofrendo perseguição do governo francês por diversas
razões. Uma delas era porque o governo a via como uma seita
religiosa.

Ao ouvir aquilo, eu respeitei a opinião da minha amiga, mas lhe


respondi que, a meu ver, não era uma seita e a vida seguiu. Nos
dias seguintes, contudo, aquela conversa ficou na minha cabeça.
Afinal, o que era uma seita? Quais eram as características de
uma? Mais ainda: O que diferenciava uma seita, uma religião,
uma organização místico-filosófica ou uma filosofia de vida?
Essas coisas começaram a fermentar dentro de mim e comecei a
me indagar quais eram as fronteiras entre essas coisas.
33

Na época eu estava tendo contato com uma leitura mais


acadêmica do fenômeno religioso e mergulhei mais detidamente
nessas questões. Durante este processo, pude perceber que a
diferença entre religião, seita, corrente de pensamento, escola,
filosofia etc é muito sinuosa mesmo do ponto de vista
acadêmico. Antropólogos, sociólogos e cientistas da religião em
geral tentam dar algumas definições técnicas, mas esta é uma
refrega contínua. Nenhuma definição parece abarcar todos os
fenômenos religiosos possíveis.
No caso específico das seitas, elas tendem a ter algumas
características muito bem demarcadas. Trata-se de um grupo
com uma forte visão maniqueísta de mundo, onde os de fora são
endemoniados ou impuros. Seitas costumam ter punições
severas a quem desvia da ordem, criam mecanismos para
impedir as pessoas de saírem e não deixam os membros terem
contato com uma literatura de fora delas. Outrossim costumam
ter um forte culto à personalidade. Nada disso se verificava
dessa maneira na Ordem Rosa-Cruz que eu era afiliado, logo eu
tinha certeza de que eu não estava num movimento sectário.
Mas eu fui descobrindo vários ‘poréns’ nessa discussão.

No mundo real, as coisas são muito mais turbulentas do que


qualquer definição técnica. Os cristianismos, por exemplo,
começaram como uma seita dos judaísmos, mas hoje são vistos
como uma religião. Em função disso, a partir de que momento
uma seita se transforma em uma religião? Tem a ver com o
número de membros? Inclusive, muitas igrejas cristãs ainda
34

mantém um caráter visivelmente bastante sectário. Por que elas


são consideradas religiões e não seitas?
No Brasil se convencionou usar o termo ‘religiões evangélicas’,
mas a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), por exemplo,
é uma instituição controversa. Para muitos evangélicos mais
antigos, esta instituição é uma seita. Para quem tá de fora deste
mundo, trata-se de uma corrente do evangelismo como qualquer
outra. Para a Igreja Católica, contudo, muitas igrejas evangélicas
que chamam a IURD de seita também seriam elas próprias uma
espécie de seita por não estarem vinculadas à tradição dos
cristianismos mais primitivos. Entre os judeus já vi brincadeiras
como “se uma religião tem menos de mil anos, trata-se de uma
seita”.

Neste debate, o que dizer das diferentes correntes dentro de uma


mesma instituição? O catolicismo, por exemplo, tem o clero
secular e as Ordens monásticas, estas últimas com diferentes
práticas e ideais religiosos. Dentre o clero secular há os mais
conservadores e reacionários e os que defendem abertamente os
ideais comunistas e progressistas. Isso são correntes de
pensamento, filosofias, escolas ou grupos políticos dentro do
catolicismo?

A diferença entre religião e filosofia de vida é igualmente uma


discussão clássica. Muitos dizem, por exemplo, que os budismos
não são uma religião, mas sim uma filosofia de vida. Isso porque
seus ideais e seus horizontes são muito diferentes daquilo que
35

nós, ocidentais, estamos acostumados a identificar como uma


religião. Os budismos não se preocupam tanto com a ideia de
Deus como os judaísmos, os cristianismos e os islamismos.
Logo não é uma religião, certo? Bem, depende de qual corrente
dos budismos se está falando, pois há dezenas delas. Igualmente,
muitos chamam os confucionismos chineses de religião, mas
eles claramente não o são. Até onde estudei, não há
preocupações metafísicas nessa linha de pensamento.
pensamento. Ao menos não da mesma maneira do que
entendemos como religião.

Nesta discussão, o que dizer das práticas religiosas dos povos


indígenas? Aquilo é uma religião, uma filosofia, uma escola de
pensamento ou é apenas uma cultura que não se separa daquele
povo? Bater na madeira três vezes para afastar o mal ou receber
as bênçãos de uma benzedeira é uma religião ou é uma crença
popular? Tomar ayahuasca é religião ou é seita? E o que dizer
dos espiritismos de Kardec que todo mundo chama de religião,
mas que os espíritas chamam de Ciência? Nesse caso, a
autoidentificação vale?

Nós poderíamos ficar horas identificando situações de grupos


religiosos e “brincando” de classificá-los como seita, religião,
escola de pensamento, filosofia de vida ou práticas religiosas e,
ao final, talvez não chegássemos à conclusão
alguma. Conforme eu fui me embrenhando no mundo
acadêmico, vi que a definição do que cada grupo religioso é ou
36

deixa de ser é um debate que basicamente não tem fim. Pode até
haver critérios técnicos que diferencie essas coisas nas suas
filigranas, mas no final das contas, tudo é classificação e,
classificar, é sempre uma relação de poder.

Como historiador, posso afirmar que quando um grupo quer


deslegitimar o outro costuma chamá-lo de seita e ver a si próprio
como o mais legítimo. A partir destes conhecimentos, tentei
associar toda esta discussão com o rosacrucianismo. Afinal, o
que a Ordem Rosa-Cruz era – seita, escola, organização, religião
ou o quê? Como não era possível responder objetivamente a essa
questão, eu comecei a tomar certo cuidado com a Ordem, mas
não por causa dela em si. Fiz isso porque comecei a desconfiar
das próprias palavras e de suas definições. O mesmo cuidado
que passei a ter como rosacrucianismo, passei também a ter com
as religiões em geral.

Ainda hoje não acho que a Ordem Rosa-Cruz seja seita e nem
religião, mas fui percebendo que ela não é muito diferente de
nenhum outro grupo que lida com a existência de um mundo
espiritual. Isso foi pouco a pouco despertando em mim um
espírito cético global. Simplesmente não há uma autoridade
central que vai definir o que é uma religião, seita, filosofia,
ciência, escola etc. Há certa mixórdia nessas classificações.
37

Conforme essas reflexões foram se desenvolvendo, eu notei que


meu problema não era classificar o que a Ordem era ou não era.
Minha questão era que começou a surgir em mim a necessidade
de achar um nome que conectava todos esses fenômenos que
chamamos de ‘espiritualidade’ ou ‘religiosidade’. Eu senti que
precisava buscar uma definição que fosse mais universal e que
estivesse acima de embates políticos. Assim, cheguei à
conclusão de que todos os sistemas de pensamento que lidam
com a existência de um mundo espiritual podem ser chamados
de ‘ideologias metafísicas’ ou ‘sistemas de pensamento
metafísicos’. Estas duas expressões são importantes, pois vamos
utilizá-las várias vezes em outros momentos.

Sei que o termo ‘ideologia’, por vezes, evoca grupos políticos


tais como o comunismo e o nazismo, mas para mim ideologia é
simplesmente um conjunto de ideias ou um sistema de
pensamento mais ou menos fechado. Hoje, se uma organização
fala em mundo espiritual, em vez de tentar classificá-la
“corretamente” eu a chamo simplesmente pelo termo ‘ideologia
metafísica’ ou ‘sistema de pensamento metafísico’. E foi assim
que deixei de lado a discussão sobre a Ordem Rosa-Cruz ser
seita ou não e passei a vê-la como um sistema de pensamento
metafísico como qualquer outro.

Este movimento foi muito valioso para mim, pois foi o primeiro
passo para enxergar o rosacrucianismo em terceira pessoa. Em
outras palavras, para analisá-lo de fora. Ao tomar essa postura,
38

comecei a observar mais de perto algumas características da


Ordem Rosa-Cruz enquanto instituição. Nesse sentido, passei a
notar que há certas características desta organização que a
aproximam demais de um movimento sectário de acordo com as
definições acadêmicas de uma seita. A maioria dos membros,
contudo, não consegue enxergar isso e talvez nem as próprias
organizações se deem conta. Vamos discutir essas características
nos próximos capítulos.

3. FAZ SENTIDO A ORDEM ROSA-CRUZ SER


SECRETA OU DISCRETA?

Saindo do debate sobre seita ou nao seita, gostaria de trazer à


discussão a questão da publicidade dos ensinamentos rosa-
cruzes. Isso porque este tema orienta o leito que exatamente
essas Ordens são discretas. Isso porque a existência delas está na
internet, nos livros e vemos até propaganda de algumas delas na
TV, no rádio etc, conquanto essa “nota vibratória” de algo
reservado possa ser sentida nas instituições como um todo.

Podemos dizer que a natureza discreta dessas organizações está


no fato de que muito do seu material é reservado a membros, a
filiação à organização é condicionada à aceitação de instâncias
superiores, o ingresso aos rituais é vinculado à filiação, não se
pratica um proselitismo agressivo, entre outros elementos. Fato é
que existe uma diferença grande entre igrejas em geral, muitas
39

delas com uma prédica agressiva, e estas Ordens iniciáticas.


Ainda que todas sejam instituições que busquem membros,
tenham existência pública e estejam abertas a qualquer um.

Do meu ponto de vista, sempre senti essa esfera discreta como


agradável. Dentro da Loja Rosa-Cruz que eu frequentava eu me
sentia protegido, embora não soubesse explicar bem este
sentimento. Este caráter reservado tornava a Ordem menos
ruidosas do que as religiões, por exemplo. A partir de um
determinado momento, contudo, comecei a me indagar sobre
toda essa discrição e algumas perguntas me vieram à cabeça. 1-
Em que se fundamenta essa postura? 2- Afinal, por que essas
Ordens não podem ser iguais a uma igreja onde qualquer um
pode entrar e ter acesso à literatura lá produzida e aos seus
rituais? 3- Por que no mundo aberto e livre de hoje diversas
organizações ainda mantém esse caráter reservado? 4- Que
impactos a natureza discreta dessas organizações possui?

Vamos começar tentando responder às perguntas 1, 2 e 3 ao


mesmo tempo. A meu ver, há algumas respostas para essas
indagações e elas parecem estar ligadas principalmente à
História. Durante muito tempo, a Igreja Católica na Europa se
voltou violentamente contra hereges, críticos e quaisquer
correntes de pensamento que diziam algo oposto ao que ela
pensava. Historicamente, a Igreja perseguiu os gnósticos, os
cátaros, os albigenses e várias outras correntes cristãs que
tinham uma perspectiva mais mística sobre a o cristianismo.
40

Protestantes também não foram exatamente conhecidos pelo seu


caráter tolerante. Logo, o primeiro fator que explica este estado
de coisas é a proteção contra ataques em um mundo que era – e
em certa medida ainda é – bastante hostil.

A segunda razão talvez seja econômica. Ao preservar certos


ensinamentos para membros, as Ordens impedem que outras
pessoas roubem seus conhecimentos para construir outras
organizações e, com isso, roubar seus membros. Isso é mais ou
menos o que acontece com as religiões cristãs. O protestantismo
roubou “clientes” do catolicismo; o neopentecostalismo roubou
clientes do protestantismo etc. Logo, a discrição de certos
conhecimento seria uma autoproteção financeira.

Na história da minha organização específica, esse roubo já


aconteceu em algumas ocasiões. Já soube de um caso no Rio de
Janeiro em que uma irmã rosa-cruz, convertida à igreja
evangélica, entregou todo o material da Ordem para o pastor de
sua igreja a fim de “se livrar do demônio”. Algum tempo depois
a igreja em questão começou a oferecer trabalhos ditos
espirituais baseados na visualização da rosa de Jesus. Apesar
dessas explicações mais materiais para a natureza discreta dessas
Ordens, dentro dessas organizações, no entanto, sempre ouvi
que haveria duas outras justificativas mais “esotéricas” para tal
postura. A primeira delas seria o fato de que determinados
conhecimentos são tão sagrados e augustos que eles não podem
ser vulgarizadas. Assim, isso seria uma forma de se protegê-los
41

espiritualmente. A segunda justificativa é a ideia de que os


místicos servem à humanidade em meio ao silêncio e à
discrição. Dessarte, a própria natureza do misticismo seria algo
mais discreto como um todo comparativamente às religiões
histriônicas e boquirrotas.

Embora eu sempre tenha respeitado essas justificativas de cariz


mais místico, com o tempo comecei a me questionar sobre elas,
principalmente quando entrei na discussão sobre a natureza
sectária do rosacrucianismo. Inicialmente, do meu ponto de
vista, tendo a concordar com a ideia de que quando certas coisas
caem no domínio público e na boca de gente sem a necessária
instrução, elas podem ser distorcidas de tal forma que ganham
ares burlescos.

Para que o leitor tenha uma ideia do quão isso pode se tornar
verdadeiro, algumas organizações ensinam, por exemplo, que da
mão esquerda emana uma energia de polaridade negativa. Esta
qualidade, contudo, nada teria a ver com o mal, mas sim com
uma suposta natureza vibratória que se irradia desta mão e que
seria mais receptiva do que penetrante. Em função disso, muitas
pessoas até hoje acham que a mão esquerda é amaldiçoada e por
isso as pessoas se cumprimentam com a mão direita.

Outra história não tão engraçada, mas igualmente peculiar é a de


uma organização análoga à Ordem que eu participava e que
42

criou um exercício mental para enviar pensamentos de paz,


inspiração e iluminação para líderes mundiais. Este exercício foi
chamado de ‘Medifocus’. Quando isso veio ao conhecimento do
público, as pessoas acharam que esta Ordem estava fazendo
magia contra figuras públicas e tiveram que abortar a missão.
Logo, a discrição dessas Ordens é também para que seus
ensinamentos não sejam vulgarizados.

Em função de todas essas coisas, eu até entendo as razões de


toda essa discrição dentro de uma lógica e uma narrativa
internas, mas eu comecei a reparar que isso possui certos efeitos
que começaram a me incomodar. Neste ponto, entramos na
quarta pergunta: Que impactos a natureza discreta dessas
organizações possui.

O primeiro deles é o reduzidíssimo número de pessoas que


pertencem à Ordem Rosa-Cruz. Embora este seja um número
difícil de precisar, pois há os membros que deixam de
frequentar, os inativos, e tantos outros que já faleceram, alguns
irmãos rosa-cruzes me disseram que o número médio de
membros ativos da minha Ordem seria de 38.000. Ora, a
população brasileira é de 212 milhões de pessoas. A proporção é
muito pouca e isso me deixou reflexivo. Afinal, qual o impacto
que a Ordem Rosa-Cruz que eu pertencia tinha ou tem na
sociedade onde vivo? A maioria dos indivíduos nem sequer sabe
que rosacrucianismo existe.
43

Um dos argumentos que a organização usa para justificar tão


poucos membros é que a maior parte da humanidade é pouco
evoluída e não está preparada para a “iluminação” que a Ordem
seria capaz de oferecer. Em um outro momento vamos discutir o
conceito de evolução e ver se isso faz sentido, mas por hora, este
argumento sempre me pareceu meio modorrento. Mas mais do
que isso, esta ideia sempre me soou tangenciar muito fortemente
o aspecto de seita que discutimos anteriormente. Ela
basicamente afirma que aqueles que estão fora do meu grupo são
inferiores a mim por serem menos evoluídos.

Seja como for, quando olhamos para o passado, quem escreveu


efetivamente a história humana foram as religiões organizadas e
abertas a todos. Elas fundaram civilizações, criaram inúmeros
pensadores e uma cultura global que bilhões de pessoas seguem.
Instilaram subjetividades, cosmovisões, laços de solidariedade
entre as pessoas, templos suntuosos e magníficos etc. Elas
também mudaram povos e culturas inteiros, criaram leis, entre
outras coisas. Em função disso, com exceção da Maçonaria, que
efetivam que efetivamente marcou a história do Ocidente desde
a Revolução Francesa, o que essas organizações iniciáticas vem
deixando para a humanidade? Qual o legado das Ordens Rosa-
Cruzes, Martinistas, Teosóficas, da Golden Dawn etc no mundo?

O catolicismo, por exemplo, produziu obras impactantes que


atravessam os séculos. Pensadores como São Tomás de Aquino,
Santo Agostinho, Santo Inácio de Loyola etc, escreveram
44

pensamentos que influenciaram toda uma civilização. Seus


trabalhos foram amplamente lidos, divulgados, repensados,
criticados, atualizados, ressignificados etc. Em outras palavras,
ao submeter-se ao escrutínio público, certas obras tiveram ampla
repercussão na transformação das consciências. Qual pensador
rosa-cruz publicamente vinculado à Ordem Rosa-Cruz é
largamente estudado por aí?

O leitor pode me redarguir dizendo que o objetivo das Ordens


secretas ou discretas não é o mesmo das religiões, o que até faz
sentido, mas então qual seria o objetivo delas, afinal? É fazer
evoluir seus membros. Ok, mas qual deles tem grande destaque
na história humana a ponto de ser representante dessa evolução?
A minha Ordem Rosa-Cruz em especial sempre afirmou que
certas personalidades do passado estavam vinculadas a ela.
Nomes como Shakespeare ou Francis Bacon são citados como
tendo sido rosa-cruzes e isso provaria a grande contribuição
dada pelo rosacrucianismo ao mundo.

Mesmo respeitando a Ordem em que eu estava e suas narrativas,


sempre achei essas afirmações meio folclóricas. Até porque a
organização da qual eu era membro tinha surgido
institucionalmente no século XX e certos personagens viveram
bem antes disso. Mas mesmo que algumas personalidades do
passado tenham sido efetivamente rosa-cruzes, eles não o foram
publicamente, tal qual judeus se definem como judeus, por
exemplo. Além disso, suas contribuições à humanidade foram
45

iniciativas individuais e supostos rosa-cruzes do passado não


fizeram isso em nome dessas organizações, tal qual católicos
fizeram coisas em nome da Igreja Católica. Nessa discussão, o
máximo que se pode afirmar é que certos personagens do
passado possivelmente tiveram contato com certo pensamento
esotérico e místico de sua época. Newton, por exemplo, era
cientista e também astrólogo. Mas daí a dizer que eles
pertenceram a qualquer organização rosa-cruz sempre foi uma
asserção controversa. Muito provavelmente, essas afirmações
são ‘tradições inventadas’, termo empresado do historiador
inglês Eric Hobsbawn (1997).

Seja como for, este apelo a personagens ilustres do passado


sempre me pareceu uma tentativa de florear os tempos d
´antanho, já que o presente dessas Ordens parecia ser tão pouco
prolífico. Ainda que haja muitos membros de organizações
secretas ou discretas que realmente ajudaram a humanidade em
determinados momentos, o que eu quero chamar a atenção é
para o fato de que, comparativamente às religiões, a influência
política, econômica, cultural e social não só da Ordem Rosa-
Cruz como de Ordens iniciáticas em geral é muito limitada.
Ainda, se certos rosa-cruzes fazem determinadas ações no
presente sem dizerem publicamente sua vinculação institucional,
a influência dessas organizações pode ser considerada
basicamente estéril. O padre Júlio Lancellotti em São Paulo, por
exemplo, faz várias ações de caridade e sabemos que ele é
publicamente vinculado à Igreja Católica.
46

Neste campo, o que podemos afirmar com alguma certeza é que


muitos ensinamentos esotéricos chegaram inclusive a contribuir
para os ideais nazistas, um assunto que é pouco discutido no
debate público e que é ignorado nas Ordens. Arrisco a dizer que
bem poucas pessoas sabem por exemplo, que a ideia nazista de
uma raça ariana superior provém de alguns textos da teosofia e o
próprio símbolo usado por Hitler e seus asseclas, a cruz suástica,
é tirado de um contexto esotérico. Logo, alguns conhecimentos
místicos têm sim uma contribuição para a humanidade. Uma
contribuição para o mal (Bělíček; KURLANDER, 2022).

Entrementes estes questionamentos, ao me aprofundar na


faculdade, fazer trabalhos científicos, escrever artigos e
participar dos debates, um belo dia eu me dei conta de que o
conhecimento produzido nas universidades tem um alcance
muito maior justamente porque não é secreto, discreto ou
reservado a membros. Na Ciência, quando produzimos alguma
coisa, submetemos nosso trabalho aos pares, à crítica e qualquer
um pode consultar, revisar nossas conclusões etc. Na Ordem em
que eu estava, a organização simplesmente escrevia uma
“Verdade” em uma monografia que pouca gente tinha acesso e
fim. Você mesmo é que tinha que testar ou acreditar no que
estava sendo dito.

Nesse sentido, pude perceber que o material de estudo do


rosacrucianismo simplesmente não se submete à crítica e nem ao
47

escrutínio público tal qual as obras produzidas pelas religiões e


pela Ciência. Se por um lado se evoca “razões místicas” para tal
postura, por outro lado isso torna este tipo de conhecimento
meio marginal. Ademais, é muito fácil defender ideias sem que
elas sejam publicamente criticadas. Em um determinado
momento, me indaguei se toda essa discrição era “proteção
esotérica” ou se era apenas uma proteção psicológica infantil
para os membros não submeterem o seu raciocínio ao
contraditório do debate público.

Sobre isso, é verdade que a minha Ordem Rosa-Cruz específica


tem alguma presença no mundo político e ela é homenageada
em várias cerimônias públicas. Isso, contudo, não é a mesma
coisa do que expor seus ensinamentos ao escrutínio público.
Quando me refiro a submeter o pensamento ao contraditório,
falo em permitir que qualquer pessoa leia e critique o que está
ali escrito. Este simplesmente não era o caso da organização que
eu pertencia e nem o de várias outras Ordens. É verdade que eu
compreendo e até gosto da discrição dessas organizações, mas
isso não me impede de elucubrar sobre alguns de seus efeitos.

Seja como for, a tomada de consciência desse fato me levou a


cotejar mais profundamente o universo dessas organizações
iniciáticas com o das religiões. No que se refere à desculpa das
perseguições, por exemplo, os cristãos começaram como uma
seita e foram perseguidos pelo Império Romano, pessoas foram
torturadas, mas conseguiram se firmar e construíram uma
48

grandiosa civilização. Os terreiros de candomblé e umbanda


sofrem com violência e vandalismo de seus templos e ainda
assim lutam para ter uma existência e se consolidar no espaço
público. No século passado, quando o Brasil era católico, igrejas
protestantes eram vandalizadas por aí. Enquanto isso,
organizações como a Ordem Rosa-Cruz levam uma vida discreta
longe dos olhares públicos sem se submeter a nenhum revés
social.

Naturalmente, ser perseguido, torturado, profanado ou sofrer


violência é ruim e ninguém quer isso. Essa postura discreta,
portanto, é compreensível. No entanto, durante minha vivência
na Ordem Rosa-Cruz, percebi que se por um lado essa discrição
pode ter alguma vantagem, por outro lado, hoje eu me pergunto
se esta não é uma atitude boba. As religiões, com seu suposto
obscurantismo, dogmatismo e fanatismo alegados pelo
Misticismo, parecem ter muito mais envergadura existencial e
solidez histórica do que as tais Ordens discretas, ditas mais
esclarecidas e iluminadas. Frente a tudo o que os candomblés
sofrem na sociedade em termos de perseguição e luta por
afirmação, essas desculpas das Ordens iniciáticas para toda essa
discrição começou a me parecer covarde e medricas.

Neste ponto, lembrei-me de uma das principais críticas que as


religiões cristãs, em especial o catolicismo, sempre fizeram
contra esses conhecimentos místicos e esotéricos reservados a
membros. As igrejas costumam dizer que essa ideia seria a
49

negação da própria proposta cristã da Revelação Divina aberta a


todos os homens. Quando se admite que apenas um clube de
selecionados ou escolhidos é que pode receber o conhecimento
“verdadeiro”, o que se está dizendo é que o plano espiritual
escolheu uns poucos em detrimento de todo o resto da
humanidade. Conforme eu fui pensando em todas as questões
supracitadas, eu comecei a me indagar: “Quem está certo em
suas posturas? A Ordem Rosa-Cruz ou a Igreja Católica?”.

Na medida em que fui aprofundando meu pensamento, eu


comecei a perceber que a espiritualidade universalista,
ecumênica e global que eu acreditava viver era uma miragem.
Ainda que a Ordem Rosa-Cruz que eu estava fosse muito bem
estruturadas e possuísse templos e membros no mundo inteiro,
com o tempo, notei que o mundo era muito maior e as coisas
eram bem mais complexas do que eu supunha. Com isso em
mente, comecei a notar que a natureza discreta dessas
organizações também tinha um impacto na psicologia profunda
dos seus membros, como veremos a seguir.
50

4. A PSICOLOGIA DOS MEMBROS DAS ORDENS E


SUAS SOMBRAS
Ao pensar sobre os impactos de certas posturas da Ordem Rosa-
Cruz, percebi que havia traços psicológicos nos rosa-cruzes que
se costuravam a uma natureza sectária. Estes elementos,
contudo, se estendiam também para membros de outras
organizações iniciáticas. Conforme eu fui percebendo isso, meu
espírito cético foi se aprofundando. Mas de que se trata esses
traços psicológicos?

Antes de falarmos deste tema, permitam-me uma observação.


Quando falamos de um elemento abstrato – os cristãos, os
judeus, os brasileiros, os maçons, as mulheres, os negros etc –
nunca estamos falando de como todas as pessoas desses grupos
são individualmente. Para usarmos as ideias do sociólogo Émilie
Durkheim, quando falamos de grupos, estamos usando um
conceito chamado de ‘tipo ideal (MOCELIN, 2020).
51

Tipos ideais são aproximações abstratas e subjetivas de


características gerais de determinados grupos e não afirmações
contundentes sobre como todas as pessoas são. Quando falamos
em “os brasileiros”, por exemplo, falamos de forma genérica e
aproximada, um movimento popularmente chamado de
‘generalização’. As próximas linhas, portanto, não são uma
afirmação peremptória de como todos os rosa-cruzes são, mas
sim um relato genérico das minhas experiências e observações a
partir de contatos que tive com rosa-cruzes e membros de outras
Ordens.

Comecemos esta discussão falando do modo como as pessoas


chegam nessas organizações secretas ou discretas. A maior parte
dos indivíduos que buscam uma espiritualidade procura uma
instituição que se identifica, começa a frequentar e pronto. O
mundo das Ordens iniciáticas funciona um pouco diferente. No
caso da Ordem Rosa-Cruz que frequentei, o postulante ao
ingresso deve demonstrar suas intenções por meio de uma carta
e passar por uma avaliação de instâncias superiores. Além disso,
ele deve pagar um valor mensal para se filiar. Esta quantia não é
muito alta, mas representa um valor a ser gasto.

Há outras organizações que funcionam de maneira diferente.


Para ingressar nelas é preciso ser convidado por algum membro
e aprovado por todos os outros membros da Loja. Só para iniciar
é preciso pagar uma quantia que, em alguns casos, é
considerável. Segundo relatos que ouvi, em algumas
52

organizações, para o membro chegar ao último grau é necessário


desembolsar valores que são quase o preço de um apartamento.
Eu sei dessas informações porque muitos rosa-cruzes da minha
Loja eram membros de outras Ordens e eu ficava sabendo do
que acontecia nelas.

Em geral, estes padrões de ingresso – convite por pares,


avaliação por instâncias verticais ou horizontais e pagamento –
são muito similares para quase todas as Ordens secretas ou
discretas. Não basta simplesmente entrar. É necessário passar
por certa burocracia para ser um membro do grupo. Este
pequeno grande detalhe faz toda a diferença na construção de
uma psicologia muito própria relacionada aos membros deste
universo.

Na prática, a ideia de que você é avaliado ou escolhido para


pertencer a um grupo seleto de pessoas com conhecimento
especiais que só você e seus pares detém faz com que muitas
organizações sejam pequenos microcosmos de Egos inflados e
de percepções bastante distorcidas da realidade. Muitos rosa-
cruzes realmente pareciam se achar pertencentes a um pequeno
grupo de uma elite de iluminados escolhidos. Basicamente se
viam como superiores ao resto da humanidade apenas por
pertencer a certas organizações.
53

Outro aspecto que sempre me chamou a atenção foi com relação


à Maçonaria, na medida em que muitos rosa-cruzes eram
maçons. Nesta organização, o mundo não-maçônico é chamado
de ‘mundo profano’. Este conceito é muito tóxico porque faz
muitas pessoas a verem os de fora como alguém profanado.
Ademais, a Maçonaria em especial sempre se disse que é uma
organização para homens livres e de bons costumes. Na prática,
isso é quase um clube dos bons e velhos “cidadãos de bem”. Eu
já encontrei maçons que se sentiam o próprio pedreiro do
Grande Arquiteto do Universo (o modo como eles chamam
Deus), tamanho o orgulho que tinham por simplesmente terem
sido convidados a ingressar nessa organização.

Quando estudamos técnicas de lavagem cerebral feitas por


seitas, vemos que uma das coisas que mais funcionam neste tipo
de prática é quando uma instituição ou um grupo vendem a ideia
de que seus adeptos são seres especiais, iluminados, escolhidos e
selecionados. Ao saber disso, lembrei-me da minha amiga
francesa dizendo que a Ordem Rosa-Cruz é uma seita. Eu não
consegui concordar com ela imediatamente, mas no passar dos
anos não pude deixar de notar, novamente, certa semelhança
entre o que acontece dentro das Ordens e as seitas.

Em função de toda a aura de mistério e reserva que existe em


torno dos ensinamentos dessas organizações, não é muito difícil
achar membros delas que são deslumbrados consigo mesmos por
acreditarem que eles têm posse de uma Verdade oculta ao resto
54

do mundo e que só eles sabem. O resultado disso


frequentemente é um sentimento de diferenciação que essas
pessoas têm em relação àqueles de fora ou ao “mundo profano”.
Eu olhava aquilo e me perguntava: “Em que essas pessoas são
melhores do que a Dona Maria, moradora de comunidade, que
cruza a cidade diariamente para trabalhar como doméstica e
sustentar dignamente seus três filhos em meio a violência e a
dificuldades inimagináveis? É só porque essas pessoas estudam
cabala e têm dinheiro para frequentar esses espaços?”.

No mundo das Ordens secretas, em geral, há também elementos


outros que multiplicam à enésima potência esse Ego tão elevado.
Algumas organizações possuem galeria de ex-mestres, o que faz
com que as presidência momentânea de algumas Lojas seja uma
verdadeira corrida eleitoral e disputa interna para ver quem terá
a sua foto gravada na parede da Loja. Outras Ordens distribuem
dezenas de medalhas e diplomas para os seus membros, o que
faz com quem alguns, ao adentrar o ritual, tenham tantas
medalhas presas nas roupas que o corpo chega a morgar para
frente. Muitos se envaidecem apenas por ocupar um alto cargo
dentro dessas organizações. No mundo real, a vaidade por esse
tipo de coisa é tão real quanto ser rico no jogo Banco
Imobiliário.

É importante pontuar que a própria ideia de iniciação traz


consigo os gérmens de uma diferenciação egocêntrica. Quando o
indivíduo se olha no espelho e diz “sou iniciado”, parece que ele
55

está em um estado existencial superior aos que não são


iniciados. No entanto, eu olhava para aquilo e me perguntava
“Tá, mas o que você contribui para a sociedade?” No fundo, eu
tinha a sensação de que muitas pessoas eram fracassadas em
vários aspectos da vida, mas a ideia de “ser iniciado na Ordem
tal” era uma forma de compensar alguma questão interna.

Naturalmente, estes elementos não se aplicam a todos, mas vi


muitos casos assim.

No mundo rosa-cruz em especial é muito comum ouvir frases


como “muitos serão os chamados, mas poucos serão os
escolhidos”. A ideia subjacente aí é que se você deixa de
pertencer à Ordem Rosa-Cruz ou de estudar o rosacrucianismo,
você não fora “escolhido” pelas forças do mundo espiritual. Não
precisamos ir muito longe para imaginar como este tipo de
pensamento entorpece a autopercepção de muitos rosa-cruzes.
Trata-se de uma coerção psicológica sutil para fazer a pessoa a
permanecer pagando a organização.

A partir de um determinado momento dessa jornada, eu comecei


a olhar para o lado e vi que havia muito mais pulsão de vida nas
pessoas não iniciadas nessas Ordens iniciáticas do que nos
iniciados propriamente ditos. Havia muito mais luz em meio às
pessoas simples ou a artistas cujas vozes podiam influenciar
milhares do que naqueles que se criam especiais simplesmente
56

por ser membro de determinada organização. Conforme eu


olhava mais profundamente para a mente dos rosa-cruzes,
comecei a notar que a cabeça deles era extremamente quadrada e
cheia de verdades fechadas e legitimadas pelo privilégio de ser
um “escolhido”.

Com relação especificamente à Ordem Rosa-Cruz que


frequentei, para ser justo na minha crítica, vi muita gente
humilde, rosa-cruzes dedicados e que não tinham nenhuma
vaidade por estarem ali. A Ordem fazia grande esforço para
neutralizar este sentimento. Muitos membros entravam se
achando iluminados e, com o tempo, percebiam que eram
humildes estudantes como quaisquer outra pessoa no mundo. Na
verdade, essa postura vaidosa era mais iniciativa dos membros
individualmente do que algo que a organização incentivava. E
foi por essa razão que eu continuei no rosacrucianismo, embora
viesse desenvolvendo uma postura mais crítica com relação a
toda aquela cultura espiritual.

Por fim, mesmo considerando o esforço que muitas Ordens


fazem para neutralizar este cariz sectário e egóico, a estrutura
sob a qual as Ordens iniciáticas foram erigidas, muitas vezes,
leva os membros a uma clivagem interna com relação ao mundo
de fora. A ideia básica que vai fermentando nos indivíduos que
frequentam essas instituições é que os outros são uns ignorantes,
ao passo que rosa-cruzes, maçons, martinistas, teósofos, magos
etc é que deteriam uma espécie de iluminação por serem
57

iniciados. Mas que tipo de pessoa se submete a isso? É o que


veremos a seguir.

6. O PÚBLICO-ALVO DA ORDEM ROSA-CRUZ, SEU


ELITISMO

No começo da minha afiliação à Ordem Rosa-Cruz, ouvi de


muita gente de fora e dos próprios rosa-cruzes que a organização
era elitista. Eu sempre respeitei essa crítica, mas tinha uma
opinião muito bem formada sobre este tema. Eu defendia a
Ordem com unhas e dentes neste aspecto. Como disse no
capítulo anterior, os membros devem desembolsar uma quantia
por mês para receber as monografias e pagar a mensalidade da
Loja, caso desejem frequentar uma, mas essa quantia não é tão
alta assim.

É verdade que muitas pessoas mais carentes não dispõem desse


dinheiro, mas os 10% do salário direcionado ao dízimo que
muitos pobres dão para as igrejas, por vezes, é maior do que
toda a despesa da Ordem Rosa-Cruz. Logo, nunca comprei a
ideia de que a Ordem que eu frequentava era elitista. Algumas
outras organizações secretas são muito mais elitistas, pois
arrisco a dizer que os preços para se iniciar nelas são proibitivos
para a maioria dos indivíduos. A Ordem Rosa-Cruz que eu
58

frequentava era uma das organizações mais acessíveis e


populares que eu conheci. No entanto, ao longo do tempo,
algumas coisas foram acontecendo que me levaram a um certo
estranhamento.

Durante minha Pós-Graduação em Ciência da Religião, tive


contato com os estudos de Sociologia da Religião. Neles,
descobri que religiões possuem recortes demográficos e de renda
que são mais ou menos bem demarcados. Quando tomei
consciência disso, olhei para dentro da Ordem Rosa-Cruz e
confirmei certas coisas que os estudiosos das religiosos sempre
afirmaram. Inicialmente, notei que o público-alvo da
organização era essencialmente branco e de classe média. A
organização tinha basicamente o mesmo recorte demográfico do
espiritismo, por exemplo. Não que não houvesse pobres ou
negros, mas eles eram uma minoria. Fato é que o público-alvo
da Ordem tinha uma nítida faixa de renda e nível de
escolaridade predominante. Mas faz sentido dizer que a
organização é elitista? Vejamos isso com mais detalhes.

A partir de um determinado momento da minha afiliação, a


Ordem Rosa-Cruz começou a oferecer viagens ao Egito para
iniciações especiais dentro da pirâmide de Quéops pela
“bagatela” de alguns mil euros. É verdade que este pode não ser
um valor absurdo para muitas pessoas, mas é bastante alto para a
maioria dos rosa-cruzes que conheci. Naturalmente, viagens ao
Egito são muito caras e acredito que a organização cobra o que
59

deve ser cobrado para dar uma experiência com conforto e


qualidade aos membros. No entanto, este tipo de produto sendo
ofertado começou a causar certo constrangimento e burburinho
entre os rosa-cruzes que eu convivia. Até porque ele criava certa
diferenciação social e espiritual entre aqueles que receberam a
iniciação na pirâmide e aqueles que não receberam.

Conforme o mundo digital foi se desenvolvendo, a Grande


Loja da minha Ordem passou a vender certos cursos, assinatura
de plataformas digitais com filmes de temática mística e
filosófica e mais um par de coisas como broches, livros,
incensos etc. Além disso, a organização oferecia de tempos em
tempos convenções que aconteciam em outros países. Neste
caso, se algum membro quisesse participar, teria que
desembolsar uma viagem internacional. O resultado disso foi
que onde antes se pagava uma mensalidade razoável mais a
mensalidade da Loja, pouco a pouco, se transformou numa fonte
de venda de produtos.
Não posso criticar a Ordem Rosa-Cruz por vender produtos que,
inclusive, são de alta qualidade, mas do meu ponto de vista,
aquela sensação de Ordem na qual eu me sentia acolhido
espiritualmente e onde os membros eram todos iguais foi se
esvanecendo. Aos poucos, eu vi o minha fortaleza espiritual se
transformar quase em um shopping, algo que acontece em
muitas igrejas. Antigamente eu ia toda sexta-feira para as
palestras na minha Loja Rosa-Cruz e eram de graça. Depois de
60

um tempo, eu deveria pagar para assistir palestras online. Isso


começou a incomodar muita gente.

Muita gente pode argumentar que a organização não obriga


ninguém a comprar nada e que todos os produtos adicionais que
ela vende são apenas um “a mais”. Isso é verdade, mas o que a
administração da Ordem Rosa-Cruz talvez não percebesse é que
este aspecto da organização começou a reforçar ainda mais um
recorte sociodemográfico dos membros com todas as
consequências que isso tem.

As pessoas mais pobres simplesmente não dispõem de tantos


recursos para pagar mensalidade da Ordem, da Loja,
deslocamento de ônibus, cursos online, livros, convenções etc.
Além disso, oferecer viagens ao Egito por valores em euros
constrange os mais humildes. É um sentimento que aqueles que
nunca estiveram embaixo das camadas sociais talvez nunca
venha a alcançar. Quando as pessoas são constantemente
lembradas das suas impossibilidades financeiras sendo expostas
a produtos pelos quais elas não podem pagar, elas simplesmente
vão para outros lugares. Nem estou dizendo que a Ordem não
deveria oferecer esses produtos. Só estou apontando que certas
posturas tem efeitos diversos.

Pouco a pouco, este cariz cada vez mais comercial da


organização fez aprofundar um certo desconforto não só comigo,
mas também com outros rosa-cruzes. Não que a Ordem não
61

tivesse nada de interessante para ensinar só por causa da venda


desses produtos, mas muitas pessoas começaram a achar
excessivo. Na minha experiência, pude notar que os rosa-cruzes
mais jovens, que ainda estavam começando sua vida e tinham
empregos menos remunerados, estavam saindo por não poderem
arcar com tudo aquilo ou por se sentirem diferenciados. Na
prática, isso reforçou ainda mais uma característica que sempre
foi muito marcante nas Lojas Rosa-Cruzes: uma acentuada
presença de idosos. É verdade que em todas as Lojas havia gente
de todas as idades, mas a quantidade de idosos era enorme. Eu
ingressei na Ordem com 17 anos e, inicialmente, isso nunca foi
um problema para mim. Na verdade, aprendi muito com meus
irmãos e irmãs rosa-cruzes de todas as idades e os velhos com
quem tive contato foram verdadeiros mestres de vida. No
entanto, com o tempo, ir todo domingo para a Loja e ver sempre
as mesmas pessoas começou a deixar tudo muito enfadonho.

A falta de dinamismo na organização foi me afastando das Lojas


físicas e comecei a ser apenas membro de Santuário, ou seja, em
casa. As Lojas nunca eram arejadas. Apesar da organização fazer
grande esforço para atrair um público jovem, fato é que a
estrutura da Ordem demanda estudo, disciplina e gastos
financeiros diretos ou indiretos, o que a torna muito adaptada
para quem tem tempo e dinheiro. Neste caso, os idosos. Outra
coisa que me chamou a atenção com relação ao público-alvo
foram as motivações pelas quais as pessoas iam para a Ordem
Rosa-Cruz ou mesmo para outras organizações. Neste caso,
junto de pessoas que tinham uma espiritualidade sincera,
62

encontrei as mais diversas razões pelas quais as pessoas


ingressavam naquele universo de Ordens secretas e discretas. Vi
homens que iam para certas organizações para fugir da esposa,
para obter vantagens financeiras, para ter amigos para ir a
prostíbulos e outras coisas menos “espirituais”. Já soube até de
casos de homens que eram ligados ao crime e que ingressavam
em certa organização apenas para conhecer pessoas do Direito e
obter decisões favoráveis na Justiça caso eles tivessem
problemas.

Neste mundo, já vi até velhinhas que ingressavam na Ordem


Rosa-Cruz só para “arrumar namorado”, segundo elas próprias
diziam. Também vi indivíduos que ingressavam na Ordem para
aprender uma magia séria, a fim de destruir seus inimigos. Este
ponto, inclusive, nunca fez parte da proposta da organização que
eu frequentava e eu realmente não sei de onde as pessoas
tiravam certas ideias.

Não é meu objetivo aqui julgar as motivações de cada um, pois


só Deus, se é que existe algum, pode julgar o coração das
pessoas. O meu problema com tudo isso é que este “filtro” de
ingresso nas Ordens, seja por instâncias superiores, como no
caso da Ordem Rosa-Cruz, seja por avaliação dos pares, como
no caso da Maçonaria, por exemplo, sempre me pareceu risível.
Se a intenção era selecionar os melhores ou os mais puros, tenho
sérias dúvidas sobre a funcionalidade disso.
63

Este sistema de ingresso nas Ordens iniciáticas parece nunca ter


sido efetivo. Na prática, encontrei pessoas com as mais diversas
motivações dentro dessas organizações. Algumas delas
legítimas, outras bobas e outras duvidosas. Ao ver isso, eu me
lembrei das religiões, que estão abertas a qualquer pessoa.
Afinal, qual é o melhor sistema de ingresso? O das igrejas ou o
das Ordens iniciáticas?

Outro aspecto da Ordem Rosa-Cruz que com o tempo eu


comecei a refletir foi a relação entre espiritualidade e dinheiro.
Certa vez, eu encontrei um amigo na faixa dos 25 anos e que
tinha ingressado na Ordem. Ele estava muito feliz no seu novo
caminho de vida. Cerca de um ano e meio depois eu o encontrei
novamente e ele me disse que tinha saído da organização.
Perguntei-lhe o que tinha acontecido e ele me disse que na
Ordem Rosa-Cruz, você só é irmão se pagar. Aquela constatação
me deixou pensativo. Se a pessoa não paga, ela não recebe nada
para estudar e nem sequer pode frequentar a Loja.

Neste caso, é verdade que a Grande Loja de Língua Portuguesa


da Ordem que eu frequentava mantém algum espaço de diálogo
e negociação para rosa-cruzes que estão desempregados ou que
por qualquer outra razão não possam pagar a mensalidade. No
entanto, isso não apaga a evidente vinculação entre ter dinheiro
e ser rosa-cruz. É um sistema que, pouco a pouco, foi me
causando um sentimento de estranhamento.
64

Seja a Ordem Rosa-Cruz elitista ou não, fato é que eu encontrei


muito poucas pessoas pobres nela. E ainda tem um detalhe que
pode ser abjeto para algumas pessoas. Nas Lojas Rosa-Cruzes,
os administradores me diziam que se um membro morava em
um determinado bairro, ele tinha que frequentar a Loja do seu
bairro. Ele só podia visitar outros organismos afiliados no
máximo três vezes. Eu não sei se o objetivo da organização era
impedir o esvaziamento das Lojas, mas fato é que essa postura
basicamente segregava as pessoas por faixa de renda. A ideia era
de que se você mora num bairro pobre, não deve se misturar
com rosa-cruzes de bairros mais ricos.

Talvez não fosse esse o objetivo da Grande Loja com essa


postura, mas por vezes, as coisas têm efeitos secundários que
não nos apercebemos. No entanto, nem o elitismo da Ordem
Rosa-Cruz, nem a faixa etária predominante e nem as diferentes
motivações das pessoas me incomodavam de per se. O que
começou a me incomodar foram certos questionamentos com
relação à universalidade e validade dos ensinamentos rosa-
cruzes. Será que as alegadas brilhantes verdades que eu recebia
por correio eram destinadas apenas a uma parcela da
humanidade que tem recursos disponíveis para isso? Será que o
que eu recebia eram verdades espirituais ou eram um produto
adaptado para uma determinada faixa de renda e classe social?
Como é possível uma verdade espiritual e divina estar
disponível apenas a quem pode pagar?
65

Tudo aquilo começou a não fazer mais sentido, principalmente


quando comecei a cotejar rosacrucianismo e religiões. Muitas
igrejas e centros espíritas, por exemplo, estão abertos a todos e
cada um dá conforme o seu coração e suas possibilidades. Tanto
é que as igrejas acolhem os mais humildes. Nas Ordens secretas
há uma mensalidade fixa a ser paga todo mês, mais cursos, mais
Loja, mais uma série de outras coisas. Além disso, as igrejas, os
terreiros e os centros espíritas, por exemplo, nunca tiveram
pretensão de ser um clube onde se seleciona os melhores ou os
mais puros tal qual muitas organizações esotéricas. No final,
quem faz um melhor trabalho para a humanidade: as Ordens
místicas ou as instituições religiosas?
66

7. A RELAÇÃO DA ORDEM ROSA-CRUZ COM AS


RELIGIÕES

Nessa comparação entre as características das Ordens iniciáticas,


em especial a Ordem Rosa-Cruz, com as religiões, a relação
entre essas duas coisas merece um capítulo especial. Isso porque
este tema que também contribuiu gradativamente para o meu
afastamento da organização e também para o de outros rosa-
cruzes que conheci.
Do ponto de vista histórico, as Ordens místicas e esotéricas
sempre procuraram manter boas relações com as religiões, mas o
contrário nem sempre foi verdadeiro. A Igreja Católica, por
exemplo, até hoje proíbe que seus adeptos frequentem a
Maçonaria. Há também revistas católicas e textos na internet que
explicam por que não devemos ser rosa-cruzes (ESTEVÃO,
2020). As razões disso parecem ser teológicas e econômicas.

Para além do fato de que a proposta mística de um


conhecimento secreto se opõe à noção de uma revelação
universal, teologicamente, muitas religiões sempre associaram o
misticismo a certa magia e bruxaria, coisas que condenam.
Igualmente, muitas organizações esotéricas se opõem às
interpretações mais tradicionais que as religiões dão aos livros
67

sagrados, mais voltadas para um literalismo. O misticismo em


geral e a própria Ordem Rosa-Cruz costumam afirmar que muita

coisa na Bíblia é simbólica e/ ou um contexto da época e nem


tudo é para ser levado ao pé da letra. Nem é preciso ir muito
longe para constatar que estes ensinamentos esotéricos sempre
foram uma ameaça às igrejas.

Além disso, o modus vivendi místico é diferente do religioso. A


espiritualidade rosa-cruz em especial sempre foi mais
individualista e exorta os membros a buscarem respostas dentro
deles próprios, principalmente no que se refere às interpretações
dos textos bíblicos. Isso rompe a dependência que as pessoas
têm da palavra do pastor ou da igreja. Neste ponto, entram as
razões econômicas para a hostilidade das religiões com o
misticismo. A conjunção de todos esses fatores nos leva à
compreensão de que as Ordens têm alto potencial de tirar
membros/ clientes das igrejas e isso explica em boa parte os
ataques que as religiões fazem contra essas organizações
secretas e discretas.

Do lado das Ordens iniciáticas, por sua vez, quase todas elas
costumam dizer que a religião do membro não importa e todos
são bem vindos. Com a Ordem Rosa-Cruz que eu estava não era
diferente. Seja o indivíduo cristão, budista, muçulmano ou
judeu, todos podem pedir afiliação. No entanto, apesar de achar
68

bonita essa política da boa vizinhança, eu sempre vi essa postura


com certa desconfiança e isso por várias razões. Vamos
conversar um pouco sobre isso.

No mundo das Ordens secretas, há organizações que são quase


agremiações ou clubes para senhores de meia idade, cujos rituais
são simbólicos e falam sobre princípios alegadamente
universais. Neste caso, a religião do membro realmente pode
não importar muito. No caso específico da Ordem Rosa-Cruz,
contudo, trata-se de uma linha de pensamento com conceitos
metafísicos muito bem delimitados e que são bastante diferentes
do que as religiões ensinam. Logo, dizer que é possível conciliar
ser rosa-cruz com sua religião de origem sempre me despertou
estranhamento.

Ademais, quando conversamos com pessoas que ingressam na


Ordem Rosa-Cruz, embora muitos deles tenham uma matriz
religiosa bem nítida, observamos que uma parte significativa
tem uma visão crítica à religião. Até porque, para ter vontade de
ingressar numa organização mística que fala coisas diferentes
daquilo que se aprendeu a vida toda, é porque o que a religião
ensina não os preenche interiormente. Do contrário,
permaneceriam onde estão e não procurariam outros caminhos.
Assim, o próprio processo de procurar a Ordem Rosa-Cruz
indica que a pessoa começou a criticar a religião onde estava.
69

Naturalmente, essa boa vontade de dizer que os membros podem


ser religiosos e rosa-cruzes sempre pareceu representar certa
estratégia filosófica e econômica. No fundo, eu sempre senti que
a Ordem mantém essa postura para que os membros religiosos
sejam tocados pelos seus ensinamentos e gradativamente vá
acontecendo uma alquimia interior. Realmente, muitos rosa-
cruzes entram evangélicos ou católicos e pouco a pouco vão
virando mais “rosa-cruzes”. Se a organização exigisse que os
membros abandonassem suas religiões logo de início, isso
afastaria muitas pessoas. Mas apesar de compreender a
grandiosidade desta postura, há vários aspectos dessa relação
entre Ordem Rosa-Cruz e religião que merecem alguma
consideração.

Em um certo momento da minha afiliação, eu tive a curiosidade


de ler os livros mais antigos da Ordem, que datam do seu
começo nos Estados Unidos no início do século XX. O que eu vi
me deixou um bastante reflexivo. Naturalmente, a Ordem Rosa-
Cruz daquele tempo possuía o mesmo espírito aberto às
religiões, mas os materiais antigos traziam críticas frontais à
ideia de demônio, inferno, ao poder da igreja, à manipulação da
religião etc. Comparativamente, a Ordem Rosa-Cruz do meu
tempo parecia muito mais benevolente com o pensamento
religioso do que a de tempos d´antanho.

A impressão que tive ao comparar estes materiais de diferentes


períodos era que a literatura mais antiga refletia um espírito
70

iluminista ocidental próprio do século XVIII e cujo objetivo era


libertar o povo do obscurantismo da religião. Eu olhava pra
literatura rosa-cruz contemporânea que eu recebia em casa e me
perguntava “Onde foi parar aquele espírito combativo contra o
dogmatismo?”. Essa discussão, contudo, se insere num debate
maior sobre a intelectualidade ocidental.

Mais ou menos no final do século XX e início do XXI, talvez


influenciados pela pós-modernidade, a intelligentsia no Ocidente
parece ter desistido desta grande batalha pela iluminação das
consciências própria do século XVIII e adotado uma postura de
“vamos respeitar todas as religiões”. O próprio comunismo
ateísta dos soviéticos havia ruído e com ele se foi toda uma
pulsão intelectual. A mudança desse zeitgeist parece ter feito se
sentir no material que a Ordem Rosa-Cruz passou a produzir
mais recentemente. Se antes havia críticas abertas à religião,
hoje o material que eu recebia era algo do nível “não é nosso
objetivo contradizer a Igreja Católica, mas nós pensamos isso ou
aquilo”; “Todas as religiões são caminhos válidos, mas nós isso
e aquilo”.

A tomada de consciência deste fato foi provocando um


incômodo em mim. Se durante um tempo eu compreendia a
ideia de que um rosa-cruz pode conciliar sua religião com os
ensinamentos rosa-cruzes, com o tempo, isso passou a me irritar.
Isso porque eu comecei a perceber que a Ordem Rosa-Cruz, ao
ser benevolente demais com as crenças religiosas, abriu espaço
71

para a importação de dogmas religiosos para dentro das Lojas


Rosa-Cruzes.

Ao serem incentivados a conciliarem religião e misticismo e em


nenhum momento serem convidados a criticar a sua religião,
muitos membros não seguiam nem a sua religião e nem o
misticismo, mas um amálgama de ideias exóticas que sempre me
pareceram estranhas. Havia rosa-cruzes, por exemplo, que
defendiam castidade para ter uma vida pura, sendo que a Ordem
Rosa-Cruz nunca defendeu isso. Suas conclusões eram com base
em princípios bíblicos.

Comecei a ver gente que queria juntar monografias rosa-cruzes


com Bíblia, pessoas que tentavam conciliar os islamismos com
os ensinos místicos etc. Houve até caso de um judeu de alto grau
na Ordem que disse que Israel ganha as guerras contra palestinos
porque havia anjos ajudando o exército a matar pessoas e que
isso seria comprovado por relatos de soldados israelenses. Pouco
a pouco, eu notei que o rosacrucianismo foi se descaracterizando
por dentro graças a essa postura excessivamente conciliadora.
Eu olhava ao meu redor e onde antes havia pessoas críticas ao
dogmatismo religioso, agora eu via que os rosa-cruzes estavam
ficando cada vez mais religiosos. A coisa se inverteu de tal
forma que se antes você ser rosacruz era sinônimo de ser crítico
às religiões, agora, ser crítico às religiões era sinônimo de ser
intolerante e pouco evoluído.
72

A partir de um determinado momento, o que antes apenas me


incomodava, passou a me irritar. Na internet eu via muitas
pessoas perguntando se podiam ser cristãs e rosa-cruzes e todo
mundo dizendo que não tinha nenhum problema nisso. A Ordem
Rosa-Cruz fala, por exemplo, em reencarnação, em evolução da
alma, na existência de um corpo intermediário entre corpo físico
e a alma, em carma, em poderes paranormais, em meditação etc.
Ora, estes e muitos outros ensinamentos não fazem parte de
nenhuma igreja cristã. Muitas delas abominam a ideia de
reencarnação e acreditam que vamos para o céu ou para o
inferno.

Então como dizer que é possível conciliar ser rosa-cruz com ser
cristão? Só com muito cinismo e boa vontade, pois é óbvio que
existe incompatibilidade entre as coisas. O fingimento das
pessoas e a incapacidade delas de tomar posturas firmes na
definição de suas crenças e de suas identidades passou a me
gerar um profundo desagrado. Ademais, se os cristianismos
parecem suficiente para alguns, pra que procurar outra filosofia
de vida? Vejam bem leitores, não estou dizendo que seja
impossível conciliar as duas coisas, mas acho que muitos
membros poderiam ser convidados a serem mais críticas com
relação às suas crenças religiosas.

Além dessa mudança perceptível com relação a uma postura


mais global da Ordem para com as religiões, uma série de
atitudes covardes também entraram no processo de
73

arrefecimento do meu espírito esotérico. As Lojas Rosa-Cruzes


começaram a receber avisos da Grande Loja de que seria melhor
não pintar os prédios com símbolos egípcios e místicos para não
atrair intolerantes religiosos que não compreendiam essas coisas.

Eu entendo as razões sinceras deste tipo de instrução, pois se


trata de uma preocupação com a segurança física das Lojas e dos
membros. No entanto, começou a surgir em mim uma percepção
de capitulação para a ignorância dentro de uma organização que
defendia o esclarecimento. A administração da Ordem parecia
ter concluído de que o Brasil era um país de intolerante
religiosos e violentos e tudo ia ficar assim mesmo. A meu ver,
essas conclusões da Grande Loja me pareciam francamente
exageradas, mas sequer davam espaço para vozes contrárias.

A coisa chegou num tal nível que, certa vez, durante uma
palestra online, um irmão rosa-cruz que estava assistindo me
disse que o Grandioso Mestre da Ordem (o líder da Grande Loja
de Língua Portuguesa) fez questão de dizer que era cristão. De
acordo com relatos que chegaram até mim, aquilo causou
engulho e constrangimento generalizado em vários membros,
muitos dos quais que sofreram lavagem cerebral em igrejas e se
libertaram graças aos ensinamentos da Ordem. Todo mundo se
perguntou “Para que o Grandioso Mestre se disse cristão? Se a
religião cristã é válida, por que eu devo estar na Ordem Rosa-
Cruz?”. Aliás, será que o Grandioso Mestre é realmente cristão?
74

Primeiramente é preciso definir o que é “ser cristão”. Além de


todas os elementos acima, a maioria das igrejas cristãs acha que
Jesus é o próprio Deus. O dogma da Santíssima Trindade,
inclusive – a ideia de que Deus, Jesus e o Espírito Santo são uma
coisa só – é o que vai tradicionalmente dizer se uma igreja é
cristã ou não. A Ordem Rosa-Cruz, contudo, não crê neste
dogma. Logo, o Grandioso Mestre da Ordem Rosa-Cruz, ao se
dizer cristão, ele passa a representar princípios metafísicos que
estão em oposição ao que ensinava a organização que ele lidera.

A postura do Grande Mestre, possivelmente, era a de exercer a


política da boa vizinhança. Ele deve ter pensado que, como
vivemos num país cristão com grande intolerância, é bom não
bater de frente com essa galera e criar “laços de afinidade”.
Embora eu entenda esta provável linha de pensamento, tal
postura me pareceu tão covarde e pusilânime que chegou a me
dar náuseas. Custava ele dizer “Eu respeito todas as religiões,
mas não tenho nenhuma afiliação religiosa. Sou rosa-cruz.”? E
ponto final. Era simples. No entanto, o líder de uma organização
usou a identidade de uma linha de pensamento diferente daquela
que ele representa apenas por um receio imaginário. Aquilo tudo
começou a não caber mais na minha vida.

O mais engraçado é que o mesmo Grandioso Mestre que


alegadamente se disse cristão em uma live na internet, meses
antes enviara uma carta para todos os membros. Nela, ele
alertava que as pessoas estavam fazendo “coleção” de Ordens
75

secretas se filiando a várias delas e estavam se desviando do


caminho rosa-cruz. Ele ainda garantiu aos membros que a
Ordem Rosa-Cruz que ele presidia teria todos os recursos para
dar aos seus membros a iluminação necessária para que as
pessoas seguissem firmes num único caminho.

Ora, se é assim, por que então ele é cristão? Isso significa que a
Ordem Rosa-Cruz não é suficiente e ele precisa de uma igreja
para se complementar? Se é possível conciliar rosacrucianismo
com religião, por que não se podia conciliar a Ordem Rosa-Cruz
com outras organizações? Contradição evidente.

Nessa discussão, outro evento merece ser registrado. Um irmão


rosa-cruz certa vez me disse que a Ordem ofereceu uma live na
internet sobre o sufismo, um ramo místico do islamismo. Houve
muitos comentários de vários membros sobre o modo como o
mundo muçulmano trata as mulheres e as minorias
afetivossexuais e de gênero, mas nenhum deles foi respondido
pelo palestrante e pela Grande Loja. Foram todos ignorados.
Inclusive, soube que os moderadores filtravam as perguntas.
Logo, a política da boa vizinhança era feita com base no silêncio
obsequioso e em certa desfaçatez.

Ao ver o rosacrucianismo falando de islamismo, me perguntei


em qual país islâmico existe Ordem Rosa-Cruz. Nenhum. Não
existe sequer jurisdição de língua árabe. No final, a organização
76

estava praticamente propagando de um sistema de pensamento


que nem a tolera, pois em nenhum país de maioria islâmica o
rosacrucianismo pode atuar livremente. Se a ideia era fazer um
diálogo entre sistemas de pensamento, a organização parecia não
perceber que essas coisas estavam sendo usadas como
plataforma de propaganda para ideias opostas a tudo o que ela
ensina.

Por fim, a Ordem Rosa-Cruz sempre buscou manter uma política


de boa vizinhança com as religiões, o que faz muito bem. Mas
pouco a pouco, eu percebi que algumas posturas não eram
tolerância, mas covardia. Posições cada vez mais
constrangedoras e acanhadas pareciam ter levado a certa
contaminação dos ensinamentos rosa-cruzes. Ademais, certos
discursos da organização pareciam transmitir a mensagem de
que haveria duas organizações: uma pública e outra interna.

Naturalmente, a Ordem Rosa-Cruz tem todo o direito de adotar a


postura que melhor lhe convém, mas isso começou a incomodar
a muita gente. A organização parecia não perceber que o seu
principal público-alvo era de pessoas críticas às religiões. Mas
ela adotou uma postura de tentar absorver as pessoas religiosas,
algo que eu tenho sérias dúvidas sobre a viabilidade.

Todos esses elementos foram desenvolvendo em mim um certo


afastamento. Será que eu realmente queria estar num espaço que
77

um dia me libertou da religião, mas que agora virava uma


espécie parasitária das religiões? Aquilo ali já não me preenchia
tanto. Ou as religiões eram instrumentos de obscurantismo, ou
não eram. Graças à minha formação científica, eu sempre tive
clareza do que eram as religiões, mas a Ordem Rosa-Cruz
parecia ter perdido essa noção ao longo do caminho. Muita
condescendência com o pensamento religioso é pavimentar o
caminho para a própriadestruição da Ordem. Como diz a
sabedoria popular, cria cuervos y te sacarán los ojos.
78

8. A ORDEM ROSA-CRUZ É COMPLETA?

Nessa questão da Ordem Rosa-Cruz e das religiões, a relação do


rosacrucianismo com as espiritualidades ao seu redor foi se
impondo em mim conforme fui me aproximando do ceticismo.
Isso porque todo mundo que se dispõe a seguir um caminho
espiritual parte do pressuposto de que aquilo que lhe é ensinado
é verdadeiro. Do contrário, ninguém creria em algo que supõe
ser falso (ao menos em teoria). A questão é que durante minha
faculdade aprendi muito mais sobre a religião na qual eu tinha
sido criado, o catolicismo, e isso reverberou na minha cabeça em
múltiplas direções.

Ao ler sobre história das religiões, teologias comparadas e sobre


como certas ideias foram historicamente construídas, minha
mente se expandiu. Vi com mais nitidez aquilo que historiadores
e sociólogos sempre disseram – que as espiritualidades são
construções humanas. Conceitos que sempre cri naturais foram
pouco a pouco sendo desmontados. A virgindade de Maria e a
ideia de inferno, por exemplo, foram decisões da Igreja Católica
e, por conseguinte, de seres humanos iguais a mim. A ideia que
eu tinha desenvolvido de ‘ideologias metafísicas’ foi se
consolidando ainda mais.

Conforme eu ia me aprofundando, começou a ficar mais claro


que existem diversas correntes que carregam o mesmo nome da
79

nossa linha de pensamento. Nesse sentido, devemos até evitar


usar certas palavras no singular. Há os budismos, os islamismos,
os judaísmos, os cristianismos etc, sempre no plural. Com o
rosacrucianismo não seria diferente. Já até vimos o nome de
outras Ordens Rosa-Cruzes em um capítulo anterior.

Sobre este movimento, permitam-me um adendo. Quando


tomamos consciência da pluralidade das experiências religiosas,
tendemos a desenvolver uma fé menos fanática do que quando
somos criados em uma bolha onde acreditamos que só a
instituição que estamos é que tem a Verdade Absoluta. O
problema é que este movimento nos traz duas sensações: “Quem
tem a Verdade?” e “O lugar que eu estou é completo ou eu
preciso de outras fontes de formação espiritual?” Eu comecei a
me colocar essas mesmas questões para a Ordem Rosa-Cruz que
eu estava.

No mundo do misticismo em especial, essas duas perguntas são


muito importantes, embora poucos se deem conta disso. Isso
porque nas Ordens secretas ou discretas existe o que chamo de
‘membro salada’. Estes são basicamente aqueles que fazem
coleção de Ordens. Eles são rosa-cruzes, martinistas, maçons,
cabalistas, druidas, teósofos, tarólogos, bruxos, magos,
candomblecistas, astrólogos e tudo isso ao mesmo tempo.
Muitos enchem a boca para dizer que são igualmente maçons e
rosa-cruzes, como se eles fossem superiores por pertencerem às
duas organizações.
80

Há até quem diga que a Ordem Rosa-Cruz e a Maçonaria seriam


complementares, sugerindo que quem pertence apenas a uma
Ordem ou a outra seria um ser pela metade. Muitas vezes, essa
coleção de Ordens permite às pessoas darem uma espécie de
“carteirada espiritual”, legitimando suas opiniões com base no
número de organizações às quais são afiliadas.

É justamente para evitar isso que, conforme apontei no capítulo


anterior, o Grandioso Mestre da minha Ordem Rosa-Cruz enviou
uma carta para os seus membros alertando sobre essa coleção de
Ordens. Ele ainda disse que a Ordem Rosa-Cruz que ele presidia
seria espiritualmente completa e capaz de dar ao membro tudo o
que ele precisaria para sua evolução e desenvolvimento
espiritual. O Grandioso Mestre também alertou para o fato de
que quando seguimos muitas linhas de pensamento, é alta a
probabilidade de nos perdermos pelo meio do caminho e não
irmos a lugar algum. Logo, a Verdade estaria na minha Ordem
Rosa-Cruz.
Naturalmente, parece haver uma preocupação financeira na
carta do Grande Mestre. Afinal de contas, quando as pessoas
investem seus recursos financeiros e mentais em várias
organizações, elas não se dedicam bem a quase nada. No final, a
Ordem Rosa-Cruz acabava sendo prejudicada com falta de
membros ou com a falta de constância dos rosa-cruzes. Mas em
paralelo a isso, eu tendo a concordar com a mensagem do
Grandioso Mestre de que quem tudo quer, nada tem.
81

Quando absorvemos muitas fontes de informação ao mesmo


tempo, tendemos a ficar parados e não nos dedicamos a nada.
Mas apesar de eu aquiescer com essa postura, a ideia do
rosacrucianismo ser um sistema de pensamento completo, pouco
a pouco, começou a me inquietar. Afinal, o que significa isso?
Significa que eu não devo me informar por outras fontes de
conhecimento? A formação acadêmica que eu estava recebendo
me apontava que o caminho não é por aí. Aprender sobre
filosofia indiana me ajudou a entender mais sobre os próprios
cristianismos, por exemplo.

Inicialmente, posso afirmar que a Ordem Rosa-Cruz que eu


estava nunca proibiu os rosa-cruzes de lerem outras obras; pelo
contrário. Ela nos incentivava a isso. As suas monografias até
possuem uma parte intitulada ‘Concordância’, onde ela expõe
textos de autores que pensam similarmente aos seus
ensinamentos. A mentalidade rosa-cruz, ao menos em termos
ideais, é essencialmente cosmopolita. No entanto, havia algo aí e
que se tratava mais de uma questão individual minha do que
com relação à Ordem em si. Se eu devo ler outras obras, como
me manter firme em um caminho, como o Grandioso Mestre
recomendara, sem “contaminar” meus pensamentos com outras
ideias?

O leitor pode pensar que esta pergunta é muito fácil de


responder, pois “múltiplos são os caminhos que levam ao
82

mesmo fim – Deus, espiritualidade e iluminação”. No entanto,


não é bem assim que as coisas acontecem. A Ordem Rosa-Cruz
ensina técnicas específicas de respiração, a Yoga e o taoísmo
ensinam técnicas diferentes. O Vedismo indiano trabalha com a
ideia de chacras, centros de energia espalhados ao longo da
coluna vertebral, ao passo que o rosacrucianismo opera com a
ideia de centros psíquicos ligados às glândulas humanas.
Algumas correntes da Cabala dizem que só judeus étnicos,
homens, casados e com mais de 40 anos podem estuda-la,
enquanto o rosacrucianismo afirma que qualquer um pode
estudar a Cabala.

Logo, por mais que a ideia de que múltiplos são os caminhos


evoque certa boa vontade para com essas visões de mundo
diferentes, se estamos procurando uma espiritualidade
verdadeira, não tem como dizer que tudo é o certo. Não é
possível admitir que linhas de pensamento distintas levam aos
mesmos caminhos quando elas dizem coisas diferentes. Essa
contaminação de pensamento realmente acontece. Assim,
conforme eu lia outras obras, eu ficava confuso sobre qual
caminho seguir. Outrossim, como disse no capítulo anterior, não
é difícil achar rosa-cruzes que misturam misticismo com o mais
fanático das igrejas neopentecostais.

Para evitar este dilema, com o tempo, eu passei não só a focar


apenas nos ensinamentos rosa-cruzes, como a ter medo de ler
literatura fora dele. O meu receio era o de me desviar do
83

“caminho correto”. O problema é que, pouco a pouco, eu


percebi que isso estava me gerando um bitolamento intelectual.
No final, a ideia de que a Ordem Rosa-Cruz seria um sistema de
ensino completo tinha um efeito avestruz nos seus membros.
Eles só olhavam para o chão imediato à sua frente. Por mais que
este não fosse o objetivo da organização, como já disse, por
vezes, as ideias têm efeitos que não conseguimos prever.

Até então eu dava gargalhadas dos religiosos “imbecis” que


acreditavam que só a sua igreja tinha a Verdade. Eu os achava
uns ignorantes. No entanto, eu estava seguindo o mesmo
caminho que eles sem me aperceber – ter medo de sair do meu
confortável mundo de verdades prontas. Comecei a rir de mim
mesmo pela facilidade com que eu chamava as pessoas ao meu
lado de estúpidas, enquanto eu mesmo estava sendo tão estúpido
quanto elas! Às vezes a vida é acerbamente irônica.

Esta postura de “a Verdade está aqui”, mas “você deve procurar


outras fontes” começou a gerar em mim um sentimento
paralisante. Além disso, quando defrontado com um assunto que
eu desconhecia, eu imediatamente me perguntava qual seria a
postura da minha Ordem com relação àquela. A organização,
contudo, não abordava diversos assuntos afins ao misticismo
como astrologia, cristais, sexualidade etc. Só porque ela não
falava disso não era legítimo estudar essas coisas? Mas se eu
estudasse, estaria me desviando do caminho? Afinal, como agir?
84

No mundo da espiritualidade, há centenas de milhares de livros


falando várias coisas sobre o mundo espiritual e aí temos um
dilema. Se seguimos um caminho, corremos o risco de ficarmos
bitolados e fanáticos. Se seguirmos várias linhas de pensamento,
expandimos nosso pensamento, mas não vamos a lugar nenhum.
Dizer que “a verdade está dentro de você” sempre me pareceu
um argumento blasé. Afinal, quantas vezes não estamos errados
em nossos raciocínios e conclusões?

Na prática, as fronteiras entre expandir a minha mente com


outras fontes de informação e me perder sempre foram muito
porosas e por isso eu preferia me manter na minha zona de
conforto. Este sentimento, contudo, foi me incomodando. Mas
eu percebi que o meu problema não eram as religiões ou as
Ordens iniciáticas. Foi nascendo em mim um estranhamento
com relação a todas as ideologias metafísicas. Simplesmente não
há como saber se, para atingirmos uma espiritualidade real e
verdadeira, devemos ficar só onde estamos ou viajar por outros
caminhos. Qualquer postura que tomemos tem efeitos positivos
e negativos.

Quando estudamos as religiões e o misticismo, vemos que elas


são muito similares a uma universidade. Há embates, visões
divergentes, conclusões diferentes e linhas de pensamento
opostas. A diferença é que o conhecimento acadêmico possui
meios de verificação daquilo que afirma, ao passo que a
espiritualidade não. Isso não me levou a uma descrença
85

imediata, mas trouxe ainda mais cautela na minha relação com o


suposto mundo espiritual.
86

9. REFLEXÕES SOBRE O MATERIAL DE ENSINO DA


ORDEM ROSA-CRUZ

Na esteira das discussões sobre quão completa é a Ordem Rosa-


Cruz, gostaria de trazer para o debate uma reflexão sobre o
material de ensino da organização. O principal meio pelo qual os
rosa-cruzes transmitem seus conhecimentos são as famosas
monografias. Para quem é ou já foi estudante rosa-cruz, sabe que
há toda uma aura mágica e mística em torno deste material.
Afinal, são principalmente essas monografias que são o material
reservado a membros. Logo, elas são tratadas com muito
respeito por todos.

Esse respeito pode ser tão exagerado que, por vezes, não é raro
encontrar rosa-cruzes que trocam a Bíblia pelas monografias.
Muitos deixam de ver o livro sagrado de suas religiões como “a
Palavra de Deus” e transferem este sentimento para os estudos
rosa-cruzes. Sobre isso, é bom ressaltar que a Ordem sempre
desencorajou esta postura. Ela nunca disse, até onde eu sei, que
o conteúdo das monografias é a Verdade final sobre as coisas.
Pelo contrário, pois ela encoraja seus membros a refletirem e
meditarem sobre seu conteúdo e a formarem suas próprias
opiniões.
87

Pessoalmente, eu sempre considerei essa postura da Ordem


Rosa-Cruz muito positiva. Não era uma organização de
fanáticos que dizia que a Verdade final estava ali. Mas havia
muitas pontas soltas no assunto das monografias rosa-cruzes que
foram pouco a pouco me despertando certo ceticismo para com
aquele material. Vamos falar um pouco sobre isso.

Nesse sistema de estudo rosa-cruz baseado em monografias


parece haver o que podemos chamar de diferentes gerações de
monografias. Isso porque elas são revisadas de tempos em
tempos e, conforme novos membros vão chegando, eles vão
recebendo uma nova leva de monografias que podem ser
relativamente diferentes das monografias que os membros mais
antigos receberam.

Durante toda a minha afiliação na Ordem eu ouvi dos membros


que tinham mais anos de afiliação do que eu que as monografias
antigas eram muito melhores do que as atuais e que a atual
administração da organização tinha estragado o
rosacrucianismo. Eu ouvia esses argumentos respeitosamente,
mas sempre achei essa coisa meio idealização de um passado
feita por gente idosa, algo muito comum na sociedade. No
entanto, com o tempo, isso começou a despertar em mim certa
curiosidade. Afinal, o que havia nessas monografias antigas de
tão melhor assim?
88

Eu tentei localizar esse material mais antigo nas Lojas, pois


quase todas elas possuem uma biblioteca. Queria estudá-lo para
tirar minhas próprias conclusões, mas eu fui informado de que
havia uma ordem expressa da Grande Loja de destruir todo
material antigo de membros que morriam. Eu entendo que a
destruição do material é para que ele não se extravie, parando
em sebos e sendo acessado por “profanos”, mas eu comecei a
me indagar “Poxa, eles não guardam uma única cópia para
estudo? Por que nem os membros mais novos podem ter acesso
a esse material?”.
No entanto, a coisa não parou por aí. Eu comecei a sentir, talvez
equivocadamente, que havia uma espécie de paranoia na Grande
Loja para que os membros mais novos não lessem de jeito
nenhum este material antigo. Isso pode ser apenas uma
impressão errada da minha parte, mas aquilo tudo começou a
instigar ainda mais a curiosidade não só em mim como em
muitos outros membros. Afinal, será que as monografias antigas
eram tão melhores assim? O que elas tinham de tão secretas que
não podiam ser vistas pelos membros mais novos?

Ao longo dos meus anos de estudo, cheguei no último grau da


Ordem sempre com essa curiosidade sobre este material do
passado. Um belo dia, eu estava conversando com um irmão
rosa-cruz muito vetusto e compartilhei com ele a curiosidade
que eu tinha acerca do material mais antigo. Ele, então,
gentilmente me franqueou as suas monografias oriundas daquela
época para que eu pudesse estudá-las.
89

Li tudo em um espaço de três meses e pude tirar minhas próprias


conclusões. As monografias antigas tinham coisas que as novas
não tinham, mas eram muito enfadonhas e tinham informações
científicas desatualizadas. Assim, cheguei à conclusão de que
dizer que as monografias novas tinham estragado o
rosacrucianismo era apenas um exagero. De fato, idealização de
gente idosa. Mas apesar disso, encontrei coisas que me fizeram
refletir.

A título de exemplo, o rosacrucianismo ensina uma espécie de


sons terapêuticos que chamarei pelo nome de mantras. As
monografias antigas tinham mantras que não existiam nas novas.
Elas também continham explicações e detalhes que não
apareciam mais. O material antigo continha documentos que as
novas monografias não possuíam. Eram pequenos detalhes, mas
que instigavam. Neste processo, houve também o movimento
inverso. Eu emprestei minhas monografias novas para o mesmo
irmão rosa-cruz que havia me emprestado o seu material antigo.
Ele tinha mais de trinta anos de afiliação e disse que ficou
chocado com o que vira.

A Ordem Rosa-Cruz ensina, por exemplo, que o ser humano


possui centros de energia espiritual que se acumulam nas
glândulas do corpo. Estes são os chamados ‘centros psíquicos’ e
haveria sete centros principais e cinto centros secundários. De
acordo com esse irmão rosa-cruz, no passado, os centros
90

psíquicos principais começavam nas gônadas sexuais e iam até a


glândula pineal. No presente, os centros psíquicos principais
começam no chamado plexo solar e vão até a pineal. As gônadas
sexuais passaram a ser vistas como centros secundários. As
cores usadas para ativar esses centros de energia igualmente
pareciam ter mudado, segundo o que me foi relatado.

Tudo isso pode parecer detalhes triviais para quem está de fora,
mas para quem está de dentro não é. Eu comecei a me indagar
por que as gônadas sexuais foram tiradas dos centros psíquicos
principais. Teriam elas “poderes” especiais? Ou seria moralismo
da organização? E se eles têm um moralismo tão besta a ponto
de considerar sujos e secundários os órgãos genitais naturais de
cada ser humano, imagina o resto! Mas a principal questão ainda
era outra. Se as monografias da Ordem ensinam verdades
espirituais, como essas verdades podem mudar? Logo, não são
verdades. Ademais, o que me garante que eu aprendo como
verdade hoje, não mudará amanhã?

A partir destas experiências, eu comecei a me indagar: “Quem


decide o que aparece nas monografias? E com base em quê?”.
Tal qual a construção dos textos bíblicos, seria a construção das
monografias baseada em decisões políticas? Seria possível
confiar o desenvolvimento da minha alma a decisões cujos
fundamentos que eu sequer conheço? Neste processo, voltei meu
pensamento para a alegada tradição espiritual que a Ordem
Rosa-Cruz dizia preservar. Ora, se essa tradição muda de acordo
91

com diferentes entendimentos da Grande Loja, então não é


tradição! E mais: Se mudaram isso, o que mais mudou, por que e
em função de que conclusões?

Por mais que essas coisas possam não ser lá muito graves e nem
diminua os benefícios da espiritualidade rosa-cruz como um
todo, essas reflexões começaram a criar rachaduras em todo um
edifício. Elas foram fermentando em mim e comecei a ter
um olhar desconfiado sobre o material de estudo que eu estava
recebendo e sobre a própria Grande Loja. Esta, por sua vez,
nunca deu muitos esclarecimentos públicos acerca de todo este
imbróglio entre as monografias antigas e novas. Pelo menos não
até onde eu sei.

Apesar desta crescente desconfiança, eu segui a vida. Afinal, a


Ordem era muito mais do que essas pequenas questões. No
entanto, conforme eu estudava o rosacrucianismo naquelas
monografias atuais para a minha época, fui percebendo uma
série de outros problemas que me chamaram a atenção. Um belo
dia eu estava no meu altar caseiro, o Santuário, estudando
monografias dedicadas aos filósofos gregos. Ao apresentar a
biografia de um deles, a Ordem fez referência ao fato dele ser
casado com uma mulher e ter vivido com ela durante muitos
anos. Até aí, nada demais. No entanto, com relação a outros
filósofos, alguns tinham reconhecidamente relacionamentos
homoafetivos e há amplos registros disso. Nas monografias,
92

constava o heterossexualismo de uns, mas não a


homoafetividade de outros.

Não pude deixar de notar este tratamento diferenciado para com


orientações afetivossexuais distintas. Como aprendi no meu
curso de História, tão importante quanto o texto, é o subtexto.
Mais importante do que o que está escrito é o que não está
escrito. Essa discriminação para com casais homoafetivos não
era aleatória ou um simples detalhe. Eu percebi que a tal
“Verdade” que a Ordem dizia propagar era uma Verdade filtrada.
Naturalmente, é um direito da organização contar a história dos
filósofos como melhor lhe apraz, mas daí eu voltei a me indagar:
“Quem escreve essas monografias? Que interesses essas pessoas
têm? Quais são suas visões de mundo? Em quem elas votam?”.

Outro fato curioso que merece alguma menção foi uma


monografia onde aprendi sobre o número 3. Segundo o texto,
este número possuiria um lugar especial na Criação divina, de
modo que haveria uma divisão tripartite em vários fenômenos da
natureza. Para sustentar isso, a Ordem Rosa-Cruz deu o exemplo
de que a humanidade seria dividida em três: homens, mulheres e
crianças.

Eu lembro que na época eu achei essa afirmação tão engraçada


quanto boba. Criança não tem sexo? Criança não é nem homem
e nem mulher? A partir de que idade um menino ou uma menina
93

deixa de ser este terceiro sexo chamado ‘criança’ e passa a


ocupar a categoria homem ou mulher? Naquele período eu
estava estudando Antropologia muito a fundo e sabia que havia
sociedades diferentes no que se refere à divisão de sexos e
gêneros. Na Índia e no Paquistão, por exemplo, transgêneros são
vistos como um terceiro sexo nesses países. Há até registro na
carteira de identidade como ‘3º sexo’. Na ilha de Sulawesi na
Indonésia há cinco gêneros e em algumas tribos indígenas norte-
americanas havia até nove gêneros.

Nesta discussão, o que dizer dos hermafroditas? Aliás, segundo


o biólogo Átila Iamarino, em um vídeo intitulado “O problema
das mulheres nos jogos Olímpicos”, a própria definição de
mulher é mais complicada do que parece (CANAL ÁTILA
IAMARINO, s.d.). Parece haver muitas variações biológicas na
categoria ‘mulher’. Tudo isso pode parecer apenas detalhes sem
importância, mas não são. A partir daí eu comecei a me indagar
até que ponto o conteúdo das monografias eram “verdades
divinas” ou eram a reprodução de certas visões de mundo
baseadas em determinadas culturas. No caso, a cultura ocidental.

Em outra situação peculiar, na esteira destes ensinos sobre o


número três, há uma monografia rosa-cruz que ensina sobre uma
suposta lei do triângulo. De acordo com o rosacrucianismo, um
fenômeno só ocorre quando duas condições de natureza oposta,
positivo e negativo, estão reunidas. Num exemplo muito trivial,
a Ordem usa o exemplo do nascimento de uma criança para
94

mostrar a universalidade da lei do triângulo. Afinal, uma criança


é gerada pela união do homem, positivo e que penetra, e da
mulher, negativo e que é penetrado.

Até aí nada demais, mas este exemplo deixava no ar uma


sensação de que qualquer coisa fora disso seria algo fora da
natureza ou das leis espirituais. As relações homoafetivas, as
mulheres que gostam de penetrar os homens, os homens
heterossexuais que gostam de ser penetrados ou a poligamia
seriam elementos fora de um enquadramento cósmico-
legislativo.

Não estou afirmando que o objetivo da Ordem Rosa-Cruz fosse


reforçar preconceitos. Afinal, ela estava falando especificamente
do fenômeno da reprodução e não da sexualidade humana em
geral. Mas certas coisas, quando são ensinadas sem muito
aprofundamento, problematização ou contraditório, elas
sedimentam percepções sutis nas pessoas. Por trás de “leis
espirituais” supostamente neutras, o que havia na verdade eram
visões de mundo de base moral que passavam desapercebidas do
olhar mais superficial.

Todas essas questões não são nada demais quando olhadas de


soslaio. Afinal, as monografias rosa-cruzes, como a própria
Ordem diz, não são a verdade final das coisas. Elas são apenas
um ponto de partida a partir do qual o rosa-cruz deve refletir e
95

criar suas próprias reflexões e conclusões. Eu entendo e acho até


legal essa postura, mas estes pequenos exemplos me levaram a
me indagar ainda mais sobre quem escreve aquele material e
quais visões de mundo essas pessoas trazem. O segredo em
torno das monografias traz uma aura de veracidade àquilo que
elas ensinam, quando na verdade aquele texto não é neutro. Eles
também carregam visões de mundo específicas.

Num determinado momento, notei que as monografias não


contém assinatura e nem nos é dito em momento algum quem as
escreve, cabendo ao membro apenas ler o que está escrito ali.
Elas são assinadas com “Um Mestre”. A justificativa que se dá
para este tipo de postura é o princípio da impessoalidade. Isso
faz com que as pessoas foquem na mensagem e não no autor,
protegendo-o contra os ataques da ignorância. No entanto, ainda
que eu compreenda as razões dessa postura, eu notei que talvez
eu estivesse dando confiança demais para pessoas que eu nem
sequer conhecia.

Seja como for, nesta questão das monografias, havia críticas


justas e injustas. Quando eu frequentava as Lojas, eu ouvia
também muitos membros reclamando que as monografias que a
gente recebia eram muito “água com açúcar” e que eles queriam
coisas mais “pesadas”, como ensinamentos relacionados à magia
etc. Esta sempre me pareceu uma crítica delirante de quem acha
que o objetivo da Ordem era ensinar coisas que ela nunca se
propôs (se é que magia funciona).
96

Outro tema que gostaria de compartilhar com os leitores e que


alimentava meu espírito cético era entendimento muito peculiar
que havia na cultura espiritual rosa-cruz. Trata-se da ideia de
que as monografias da Ordem seriam todas cifradas, com
mensagens nas entrelinhas, e que cabia ao membro, em função
da sua suposta evolução espiritual, perceber.

Em posse dessas informações, havia monografias que eu


efetivamente até encontrava coisas que eram subentendidas e
que não estavam claramente ditas, cabendo certa perspicácia de
raciocínio para entender. Outras vezes, contudo, eu não via nada
demais no que estava escrito e me sentia um idiota por não
perceber “o grande segredo” que ocultaram naquelas frases. E
daí eu me perguntava: “Será que eu sou pouco evoluído
espiritualmente?”.

Havia também monografias que eu tinha alguma dificuldade


para compreender o que estava escrito e eu ficava na dúvida:
“Será que está me faltando perspicácia ou a Ordem não está
sabendo se explicar direito?”. No meio destes questionamentos,
eu lembrava dos rosa-cruzes antigos dizendo que a Ordem Rosa-
Cruz tinha alterado o conteúdo das monografias e mudado o
entendimento de certos conceitos. Eu realmente encontrei textos
que eu não entendia muito bem e não parecia haver nada oculto
ali.
97

No final das contas, eu comecei a perceber que essa ideia de que


certas coisas foram escritas para quem “tinha olhos para ver”
tornava o rosacrucianismo ainda mais marginal. A Ordem já
tinha tão poucos membros comparativamente às religiões, suas
monografias já eram reservadas e agora, para entender o que ela
realmente queria dizer, a pessoa ainda tinha que ser
espiritualmente iluminada e sagaz? Quão profunda é essa
mensagem cuja natureza é tão restrita que atinge um grupo tão
exíguo de pessoas? – Indagava-me.

Neste debate sobre o material de ensino da Ordem Rosa-Cruz,


não posso deixar de citar a alegada alquimia espiritual que as
monografias seriam capazes de oferecer aos seus membros.
Conforme vamos evoluindo nossa alma, nós seríamos capazes
de olhar as mesmas monografias anos depois e ver coisas que
estavam ocultas aos nossos olhos por não estarmos evoluídos
suficientemente. Eu sempre acreditei nisso e, de fato, ao longo
dos anos, eu voltava àquele material e conseguia enxergar coisas
que antes eu não via. Com o tempo, meu arco de reflexões
realmente se expandiu. No entanto, eu comecei a me indagar se
esse fenômeno teria a ver com uma evolução da alma ou com
uma transformação et

ária, conhecida popularmente pelo nome de amadurecimento. A


capacidade de olhar as mesmas coisas por novos ângulos é algo
que se relaciona a qualquer pessoa que tenha certa trajetória de
98

vida. Livros que lemos aos 18 anos vamos ver completamente


diferente quando temos 34 ou 65 anos, seja a pessoa rosa-cruz
ou não. Logo, será que haveria mesmo essa alquimia espiritual
proporcionada pelas monografias? Comecei a me questionar
sobre isso. Naturalmente, essa discussão não quer dizer que as
monografias rosa-cruzes não tenham ensinamentos belíssimos
capaz de ampliar nosso pensamento. Mas também livros de
literatura e de outras religiões também o têm.

Por fim, atualmente, eu ainda tenho muito respeito pelas


monografias rosa-cruzes, as quais guardo com muito carinho.
Elas fizeram parte de um período muito importante da minha
vida e me ajudaram em vários momentos. Todas as reflexões
acima, contudo, me trouxeram certo ceticismo para com aquilo
tudo. Onde antes eu via como um mar no qual eu mergulhava
com a minha alma, depois de um tempo, era como se eu ficasse
na beiradinha, só me refrescando.
99

10. AS ORIGENS HISTÓRICAS E TRADICIONAIS DA


ORDEM ROSA-CRUZ E SUAS CONTRADIÇÕES

Em momentos anteriores eu falei que há várias organizações que


carregam o nome ‘Rosa-Cruz’. Uma pessoa que contemple essa
realidade imediatamente vai se perguntar: Como saber qual é a
verdadeira ou a mais válida? Ainda, por que eu deveria
frequentar uma Ordem Rosa-Cruz e não outras? Para responder
a esta pergunta e se legitimar dentro do mercado espiritual, essas
diferentes organizações vão lançar mão de diferentes narrativas
e argumentos. Vamos ver isso com mais detalhes para entender
como esses estratagemas de legitimação alimentam as chamas
da desconfiança nas mentalidades mais céticas.

10.1. A Ordem Rosa-Cruz mais correta


Inicialmente, devemos pontuar que nesta disputa pelo mercado
espiritual, as organizações, sejam elas religiões ou Ordens
iniciáticas, vão se comportar de acordo com a sua natureza mais
profunda. Se estamos em uma instituição mais agressiva,
geralmente ela vai dizer que ela própria é a verdadeira e as
outras são falsas. Se estamos lidando com uma instituição mais
espirituosa, ouvimos que múltiplos são os caminhos para a
mesma Verdade.

A Ordem Rosa-Cruz que eu estava adotava claramente a


segunda postura. Ela nunca atacou organizações similares. Na
100

cultura rosa-cruz há, inclusive, uma visão muito acentuada de


que as veredas espirituais são variadas, mas que todos estamos
indo em direção ao mesmo centro, que seria Deus e a
espiritualidade. Nesse sentido, há o respeito às escolhas de vida
de cada um. No entanto, já vimos que a afirmação de que todos
os caminhos levam ao mesmo fim parece não se sustentar. Além
disso, essa postura não resolve o problema do porquê eu deveria
frequentar aquela Ordem Rosa-Cruz e não outras.

Para resolver este problema, a minha Ordem Rosa-Cruz se


legitima por meio da manutenção de uma natureza tradicional.
Isso significa que as outras organizações rosa-cruzes não seriam
necessariamente falsas, mas a Ordem em que eu estava seria
mais legítima do que as outras. Como já vimos anteriormente,
esta tradição e legitimidade começariam nas escolas de mistérios
que remontariam ao Antigo Egito e viriam até os dias de hoje.
Vemos, portanto a seguinte equação: Mito fundador +
preservação de uma tradição começada neste mito. Esta fórmula
é muito estudada na historiografia e há vasta literatura sobre
como isso é aplicado aos mais diferentes grupos religiosos,
políticos, culturais etc.

Fato é que essa proposta de buscar legitimação por meio de um


mito fundador não é estranha à nossa cultura ocidental e ela é
muito comum particularmente no universo das espiritualidades.
Os judaísmos relatam ser uma continuidade tradicional desde os
tempos de Moisés. Os cristianismos dizem que seus evangelhos
101

foram escritos pelos próprios apóstolos que testemunharam


Jesus. Os budismos possuem toda uma narrativa de divinização
da existência de Sidarta Gautama e assim sucessivamente. As
diferentes correntes dentro de uma mesma religião se dizem
mais legítimas do que as outras com base na continuação de um
suposto evento mítico que aconteceu séculos atrás.

No caso específico das Ordens iniciáticas, outra instituição que


carrega a bandeira da tradição é a Maçonaria, por exemplo. Tem
aquelas que são só para homens, outras que são só para mulheres
e as que são mistas. A Maçonaria só para homens alega que ela
seria herdeira dos verdadeiros pedreiros medievais que
construíram as catedrais e que por isso as outras maçonarias não
seriam tradicionais. Logo, as mistas e as só para mulheres
seriam menos verdadeiras ou não genuínas.

Para construir a sua legitimidade, no entanto, a minha Ordem


Rosa-Cruz não apela somente ao Egito. Ela também se agarra ao
fato dela alegadamente ter posse de documentos oriundos de
grupos rosa-cruzes da Idade Moderna (1453 a 1789 d.C.). Estes
documentos, que segundo a organização estariam guardados
num cofre a sete chaves, confeririam a ela uma filiação
espiritual que faz com que ela seja a herdeira do verdadeiro
rosacrucianismo. Além disso, a Ordem afirma ser a continuação
de um conjunto de Ordens que se uniram em finais do século
XIX e início do XX.
102

Como vemos, há um tripé de legitimação usado pela Ordem


Rosa-Cruz que eu estava para se destacar frente a outras
organizações rosa-cruzes: Egito + Documentos Medievais +
Ordens contemporâneas. Mas o que isso tem a ver com o
ceticismo? Pessoalmente, sempre respeitei esse argumento da
minha Ordem ser mais legítima do que outras organizações rosa-
cruzes, mas confesso que toda essa discussão sempre me deu
muito sono. Graças ao meu espírito cético, eu me perguntava:
“Desde quando a posse de documentos antigos e secretos dá
legitimidade ao que uma organização ensina ou diz?”.

Historicamente falando, a Igreja Católica sempre se disse a


corrente mais legítima dos cristianismos com base num
documento chamado doação de Constantino, onde o imperador
romano Constantino teria dado à Igreja a posse do império
romano. Posteriormente, este documento se provou falso, mas
mesmo que fosse verdadeiro, isso por algum acaso confere à
Igreja legitimidade sobre o que ela faz e diz? Tenho minhas
dúvidas. No final das contas, o que torna um ensinamento
espiritual válido ou não?

Ainda nessa discussão, vale ressaltar que, até onde eu sei, a


Ordem nunca chegou a mostrar estes documentos antigos que
supostamente lhe conferem uma tradição, pedindo apenas para
que os membros acreditem nela. Mas mesmo que ela mostrasse
esses alegados papeis, para mim, isso não faria a menor
diferença. Algo deve ser verdadeiro porque o é e não porque
103

alguém que supostamente veio do Egito ou da Idade Média o


disse. Antigamente as pessoas não tomavam banho por questões
de saúde. Isso significa que os indivíduos que escreveram
documentos dessa época muito provavelmente também não
tomavam banho e acreditavam que terremotos eram causados
por um Deus furioso.

Do meu ponto de vista, a validade de um conhecimento


espiritual sempre esteve baseada na aplicabilidade prática dele.
Os ensinamentos rosa-cruzes que eu recebia deveriam ser
válidos por serem simplesmente honestos, reais e funcionais e
não porque eles estão vinculado a documentos que ninguém
nunca viu ou a uma escola de milênios atrás. Em função disso,
eu nunca dei muita bola para esse papo sobre qual seria a Ordem
Rosa-Cruz mais tradicional, legítima ou correta.

Acerca deste tema, é sempre bom lembrar qua esta discussão


traz consigo o debate de quem é o “verdadeiro” rosa-cruz. Ora,
se eu sou o verdadeiro em função da minha Ordem ser mais
legítima, isso significa que os outros rosa-cruzes de outras
organizações são falsos. Será que eu tenho uma régua moral e
espiritual para fazer esse julgamento? – indagava-me.

Feita essa discussão sobre como a Ordem Rosa-Cruz se legitima


dentro do universo de outras Ordens Rosa-Cruzes, vamos
discutir agora a história sobre a qual a tradição rosa-cruz se
104

assenta. Trata-se de uma narrativa fantástica que facilmente


envolve os incautos. Quando eu me permiti interiormente a fazer
perguntas sobre ela, um novo mundo de reflexões e
desconfiança se abriu em minha cabeça.

10.2. A tradição das origens “tradicionais” da Ordem Rosa-


Cruz
Como foi dito, a Ordem Rosa-Cruz assenta a sua tradição numa
suposta origem nas escolas de mistério do Antigo Egito. Essas
escolas também tiveram presença na Grécia e em Roma. O que
eu não contei naquele momento, contudo, é que segundo a
Ordem, estas escolas egípcias teriam uma origem ainda mais
antiga: o continente perdido da Atlântida.

De acordo com a tradição mística perpetuada pela Ordem Rosa-


Cruz, este antigo continente ficava no oceano Atlântico, entre a
América e a Europa (daí viria o nome do oceano). A região dos
Açores em Portugal, teria sido uma montanha da Atlântida, mas
que, ao afundar, se transformara numa ilha. Inclusive, algumas
publicações rosa-cruzes afirmam que a vegetação dos Açores
teria traços muito únicos quando comparada ao resto da Europa.
Isso “provaria” que aquele território teria uma origem diferente.
Também já vi pessoas dizendo que o povo basco da Espanha,
por ter uma língua que não tem parentesco com nenhum outro
idioma europeu, teria alguma relação com a suposta língua
atlante.
105

Os atlantes teriam sido um povo que atingiu um elevado nível de


evolução espiritual e tecnológico, mas que devido ao mau uso
dos seus poderes mentais e espirituais teria sido atingido por um
cataclisma. Antes de isso ocorrer, alguns sábios deste continente
teriam fugido para várias partes do mundo. Foi especialmente no
Egito que eles se concentraram e deram um enorme impulso
àquela civilização, compartilhando sua avançada Tecnologia
com o povo do norte da África. Segundo relatam os místicos,
seria este fato, inclusive, que explicaria a existência de
pirâmides em várias partes do mundo. Isso seria uma Tecnologia
atlante que se espalhou por aí.

Como todos sabem ou devem saber, esse mito surgiu com


Platão, mas muitas outras histórias de outros povos falam de
uma super inundação mítica que houve em tempos primordiais
na humanidade. A própria história bíblica de Noé seria um eco
inconsciente desta lembrança histórica. Adiciono também que
enquanto no Ocidente a história da Atlântida se faz presente, no
Oriente haveria o continente perdido de Mu, que seria ainda
mais antigo. Na internet há muitos textos sobre estes temas que
o leitor certamente já deve ter encontrado.

As Ordens esotéricas em geral, em especial o rosacrucianismo,


perpetuam a lenda da Atlântida como sendo o ponto de partida
de suas alegadas tradições. A Ordem Rosa-Cruz, contudo, afirma
que o conhecimento total dos atlantes se perdeu e que os
conhecimentos místicos preservados por ela seriam apenas ecos
106

desta suposta sabedoria primordial e ancestral. Aparentemente,


apesar da história ter origem em Platão, foi principalmente a
partir dos textos da teosofia, cuja principal representante seria a
famosa Madame Blavatsky, que se difundiu a ideia de que o
Misticismo estaria vinculada a este continente perdido.

Enquanto eu era rosa-cruz, eu sempre respeitei esta narrativa.


Afinal, todas as espiritualidades possuem certos mitos
fundadores, geralmente ligados a um passado mitificado. Do
meu ponto de vista, contudo, em meu imo, essa história nunca
me seduziu. Em função da minha formação de historiador, eu
sempre vi tudo isso com muita desconfiança. Inclusive, lembro-
me de uma aula na faculdade onde o professor citou os rosa-
cruzes e ridicularizou toda essa história do continente perdido.
Na época eu ainda era estudante rosa-cruz e fiquei bastante sem
graça, embora tenha dado razão ao professor. Mas será que a
existência da Atlântida faz algum sentido?

Por mais que as pessoas tenham o direito às suas crenças, não


podemos negar a verdade dos fatos, por mais que isso fira a
sensibilidade de alguns. E o fato é que não há nenhuma
evidência da existência deste continente. Equipamentos de alta
tecnologia já sondaram todos os cantos dos mares e nunca nada
foi encontrado. Neste ponto, é preciso lembrarmos da frase do
astrônomo Carl Sagan: “Afirmações extraordinárias exigem
evidências extraordinárias” e, até o momento, nenhuma dessas
organizações místicas foi capaz de nos dar isso.
107

A mitologia diz que a Atlântida era um continente com alta


tecnologia. Mas se isso é verdade, como pode toda essa
avançada civilização não ter deixado um único vestígio, osso ou
qualquer coisa? Nem um pedacinho de prédio, construção antiga
ou qualquer outra coisa foi encontrado. A Ordem Rosa-Cruz que
eu fazia parte chega até a ensinar um suposto alfabeto atlante
que, para quem observar com atenção, é muito parecido com as
nossas letras ocidentais cuja origem é a Fenícia, no norte da
África.

O leitor pode contra-argumentar que os fenícios ficavam perto


dos egípcios, logo isso seria uma “prova” de que o nosso
alfabeto tem origem atlante. O problema é que se assim o for,
por que os próprios egípcios usavam os hieróglifos, um sistema
alfabético complexo e pouco funcional comparativamente a
outros sistemas, e não adotaram os nossos fonogramas
ocidentais, muito mais simples e rápidos? Logo, algo não se
encaixa nessa matemática.

Naturalmente, isso não significa que a Atlântida não tenha


existido. Não posso dizer que ela não existiu, bem como que não
haja vida extraterrestre ou pessoas morando no centro da Terra,
mas posso afirmar que, até o presente momento, nada foi
encontrado. Caso o leitor seja antenado com notícias científicas,
toda horas vemos informações de que cientistas descobrem um
super continente embaixo da América, da Europa, da Ásia etc
108

(DEMARTINI, 2017). No mar do Japão, por exemplo, há


construções muito estranhas na costa das ilhas Ryukyu que se
parecem com escadas e castelos e que ninguém sabe ao certo se
foram feitas pelos seres humanos ou se são naturais.

De fato, a história geológica da Terra talvez ainda tenha muitos


mistérios a serem revelados. Contudo, até agora, nadinha de
nada sobre a Atlântida. E ressalto que não estamos falando de
um simples pedaço de terra engolido pelas intempéries do
tempo, mas sim de uma suposta civilização avançada que deve
ter deixado construções. Baseado nessas reflexões, nas minhas
jornadas interiores, comecei a brincar com essa ideia.

Vamos supor que a Atlântida tenha realmente existido e deixado


como legado os ensinamentos da Ordem Rosa-Cruz. O que essa
tradição primordial surgida na Atlântida e que supostamente
seria a própria Verdade do mundo teria a dizer para combater a
desigualdade social? O que os brilhantes atlantes desenvolveram
em termos de sistema econômico e político? O que eles teriam a
dizer sobre a homofobia, o racismo, o machismo, o capitalismo
etc? Será que tudo o que esses alegados ensinamentos atlantes
nos deram foram certos mantras e práticas místicas? Mais nada?
Os atlantes não desenvolveram nenhum sistema que possa nos
inspirar a resolver boa parte de nossos problemas atuais? Eles
conheciam buracos negros e bactérias? Os casais homoafetivos
podiam se casar na Atlântida? Havia papéis estabelecidos para
109

homens e mulheres ou as pessoas eram livres para fazer o que


queriam?

Além de toda essa falta de evidências sobre a existência da


Atlântida, havia outra coisa que sempre me incomodou em toda
essa história. Trata-se da ideia de que esse continente de pessoas
evoluídas afundou por causa do comportamento errado dos seus
membros. Esta é uma ideia que associa os fenômenos climáticos
ao modo como os seres humanos se comportam, pois isso
afetaria o humor dos deuses ou das forças espirituais que
governariam o mundo material. Este é um pensamento bastante
primitivo. E primitivo aqui tanto em termos de tempo quanto em
termos de juízo de valor.

A ideia de que o mundo espiritual se volta contra as pessoas por


meio de intempéries em função do comportamento das pessoas é
um pensamento que já foi usado para perseguir milhares de
pessoas ao longo da história. Bruxas, judeus e sodomitas foram
as vítimas prediletas da teologia cristã que segue esta linha de
raciocínio. Povos mesoamericanos também sacrificavam
pessoas, arrancando-lhes o coração ainda vivas, para que os
deuses não mandassem cataclismas para o plano terreno. Para
quem observa com atenção, a história da Atlântida tem fortes
semelhanças com o mito de Sodoma e Gomorra, onde Deus
supostamente destruiu essas duas cidades por causa do ânus dos
cidadãos.
110

Outro pano de fundo de toda essa discussão e que é levantado


por certos setores do movimento negro, é o racismo implícito na
historieta da Atlântida. Dizer que os egípcios só se
desenvolveram em função do conhecimento que os povos perto
da Europa (brancos) lhes deram é o mesmo que considerar que
os africanos seriam incapazes de avançar tecnologicamente por
si próprios. Como não sou ligado ao movimento negro, nunca
tive muita opinião formada sobre essa discussão, mas acho
importante deixá-la registrada. De fato, quando os europeus
constroem belos prédios, é porque são capazes disso. Mas
quando pessoas da África constroem coisas monumentais,
precisaram de ajuda de atlantes ou de extraterrestres.

Em função de todas esses pontos de interrogação no ar, essa


mitologia mística sempre desafiou demais o meu bom senso.
Enquanto eu me esforçava para ser rosa-cruz e acreditar nas
coisas que a Ordem Rosa-Cruz me dizia, eu até tentava conciliar
essas mitologias com meu curso de graduação em História.
Chegou um determinado momento, contudo, que eu aceitei
dentro de mim que essa história, aparentemente, não tem pé e
nem cabeça. Se algum dia acharem algum vestígio físico da
Atlântida, nós todos voltaremos para essa conversa, mas por
hora, nada temos.

Na esteira da discussão sobre a Atlântida, voltemos ao Egito. A


Ordem Rosa-Cruz que eu fazia parte possui especial vinculação
com o antigo império do Nilo. Inclusive, muito da estética da
111

organização é inspirada nessa civilização. Segundo o


rosacrucianismo, os egípcios teriam atingido um notável nível
de desenvolvimento civilizacional e seriam admiráveis em
função do seu conhecimento. Todas essas afirmações, contudo,
merecem algumas ponderações.

Inicialmente, posso dizer que tenho total respeito pelos egípcios


do passado, sua Tecnologia e sua cultura. Eles realmente
desenvolveram uma civilização notável. No entanto, apesar de
seu brilhantismo, tenho dúvidas sobre até que ponto a cultura
egípcia era tão admirável assim. Em primeiro lugar, o faraó era
considerado um ser divino cujos súditos tinham que olhar para
baixo enquanto ele passava. Igualmente, eles criam que os
espíritos dos mortos comiam certos alimentos deixados em suas
tumbas, o que é uma crença sem qualquer fundamento.
Mulheres egípcias usavam excrementos de crocodilo como
anticoncepcionais e havia vários outros hábitos que nos causam
constrangimento à luz do conhecimento científico
contemporâneo.

Fato é que por mais que o Egito Antigo tenha tido muitos
avanços em diversas áreas, qualquer olhada mais honesta nos
permite perceber que eles eram basicamente povos antigos que
habitavam o deserto e que tinham todas as limitações do
conhecimento humano próprias daquela época. Por mais que a
Ordem Rosa-Cruz tente florear certos aspectos, o Antigo Egito
era um império como outro qualquer, onde não havia noções de
112

Direitos Humanos ou coisas que hoje consideramos básicas


como a separação entre Estado e Igreja. Vale lembrar também
que na sociedade egípcia havia trabalho escravo.

Isso tudo não significa que a Ordem Rosa-Cruz defenda essas


coisas, pois é evidente que não. Mas significa que devemos
olhar para o passado com certa cautela e sem divinizá-lo. A ideia
de que os egípcios seriam brilhantes por terem uma vinculação
direta com a Atlântida acaba por criar uma aura mágica em torno
de uma civilização que era apenas fruto de seu tempo, a despeito
de seus avanços. No que se refere à vinculação da Ordem Rosa-
Cruz com o Antigo Egito, contudo, há várias questões aí.

Lembro-me de que certa vez um membro da Ordem postou em


uma rede social a foto de Nerfetiti com Akhenaton, alegando
estar defendendo uma “família tradicional” heterossexual. O
objetivo dele era “mitar” e atacar as famílias homoafetivas. Daí
eu lhe perguntei se ele era a favor do incesto e ele ficou sem
responder. Isso porque as famílias reais egípcias eram
essencialmente incestuosas. Pais faziam sexo com as próprias
filhas, mãe com filho, avô com neta etc e tudo isso para manter a
pureza de um suposto sangue real. Aliás, a ideia de que um
grupo de pessoas no mundo possui uma espécie de sangue
especial, inclusive, tem um fundo indiscutivelmente racista. Se o
objetivo do irmão rosa-cruz era discriminar as famílias
homoafetivas, o tiro saiu pela culatra. Ele fez papel de idiota.
113

Além desses aspectos, não podemos negar que a cultura


politeísta egípcia foi totalmente substituída pelo monoteísmo
semita. Ora, se essa cultura era tão brilhante assim, por que seus
deuses e sua cultura espiritual estão basicamente mortos? Por
que ninguém consegue ou tenta resgatá-los?

Nesta discussão, podemos citar também a figura da virgem


Vestal das escolas de mistério da Roma Antiga. Esta era uma
menina que deveria permanecer virgem, servindo em papéis
ritualísticos, até a chegada do seu casamento, A Ordem Rosa-
Cruz e outras organizações ainda preservam esta ideia em sua
ritualística, usando uma menina para um cargo especial durante
o ritual, embora não seja mais necessário que ela se mantenha
virgem (novamente aí uma tradição que deixou de ser
tradicional).

Do ponto de vista histórico, esse culto à virgindade feminina,


materializado no conceito de Maria, mãe de Jesus, só deixou
sofrimento. Os meninos sempre puderam fazer sexo com
qualquer um, enquanto para as meninas se criou uma cultura de
vigilância sobre os seus corpos. No decorrer da História, pais
chegaram a matar suas filhas por terem perdido a virgindade
antes do casamento, a fim de salvar a honra da família. Era
como se sob os ombros da mulher repousasse a responsabilidade
de honrar todas as pessoas de sua família. Logo, devemos
admirar sim o Egito, Grécia e Roma, mas sem endeusar essas
civilizações, seus ritos ou seus hábitos.
114

Além dessas considerações mais abstratas e filosóficas, a ideia


de que a Ordem Rosa-Cruz preserva um vínculo tradicional e
institucional com escolas do passado simplesmente parece não
ter lastro histórico. A Igreja Católica, esta sim, preserva uma
continuidade institucional com o seu passado desde sua origem.
Em seus dois mil anos de história, ela nunca deixou de existir e
nem se transformou em alguma outra coisa. A Maçonaria
igualmente existe como uma mesma instituição há muito tempo.
A Ordem Rosa-Cruz que eu era afiliado fora criada no século
XX nos Estados Unidos.

Por mais que a minha Ordem argumentasse que a organização


jurídica fosse o resultado de grupos rosa-cruzes diversos que
existiam na Europa e que se reorganizaram na América do
Norte, a ideia de que esses grupos rosa-cruzes teriam origem no
Egito esbarra em alguns desafios temporais. Como exemplo, a
organização possui um grau dedicado aos filósofos gregos.
Como no Antigo Egito podia haver ensinamentos sobre os
filósofos gregos se os egípcios são anteriores aos gregos e seus
ensinamentos?

Sobre isso, o Misticismo costuma afirmar que muitos filósofos e


sábios do passado foram ao Egito absorver certos ensinamentos
e esse seria até o caso de Jesus. Ora, mas há muito poucas
evidências históricas disso. Além disso, se eles foram ao Egito e
o que eles aprenderam lá foi a Verdade, por que os próprios
115

egípcios não desenvolveram filósofos, líderes e pensadores


como Platão, Heráclito ou mesmo Jesus? Isso é o mesmo que eu
ir para uma universidade de Biologia em São Paulo e voltar para
o Rio de Janeiro para abrir um curso de Ciências Biológicas.
Ora, mas eu seria inovador nas minhas ideias ou estaria
reproduzindo o que aprendi em São Paulo?

Falando com muita boa vontade, ao que parece, o vínculo entre


a Ordem Rosa-Cruz e as escolas de mistério egípcias parece
estar mais no plano das ideias do que em qualquer outra coisa. A
Ordem busca a “Verdade” das leis espirituais do mundo tal qual
as escolas egípcias talvez buscassem. Naturalmente, esse
vínculo no plano das ideias e dos ideais não é nenhum problema
em si mesmo, mas é bom estar atento para não ficarmos presos a
histórias muito fantasiosas. E tampouco cairmos em idealizações
de um passado egípcio que, se tinha grande conquistas, já não
cabe no mundo em que vivemos. Ao menos não na minha
opinião.

Finalmente, todas essas histórias de vínculos com a Atlântida,


Egito, Grécia e Roma parecem existir em função do peso que
esse mundo das espiritualidades dá à palavra “tradição”. Durante
minha jornada mística, contudo, comecei a me deter mais
atentamente sobre este termo. Afinal, será que uma instituição só
tem valor ou algo a oferecer se ela for “tradicional”? Por que
tanto peso é dado para a chamada tradição? Parece que quanto
116

mais antigo/ tradicional uma linha de pensamento é, mais


validade ela parece ter! Mas seria isso verdade?

Com o tempo eu percebi que esse apego a uma tradição possui


um valor psicológico. A noção de tradição implica na venda de
uma confiança no mercado da espiritualidade. Ora, se algo é
tradicional é porque é praticado há muitos anos e se assim o é,
certamente é porque esses ensinamentos têm alguma validade.
No caso, muitas Ordens iniciáticas surgiram no mercado
espiritual, digamos assim, tendo que competir com religiões que
tinham pelo menos mil anos de existência.

Pouco a pouco, fui percebendo que essa alegada tradição


mística, mais do que estabelecer qualquer verdade histórica, era
essencialmente uma narrativa para transmitir certa
confiabilidade a estes ensinamentos – a ideia de que certas
Ordens são muito antigas e seus ensinamentos estão aí desde
sempre. Trata-se de uma questão puramente de marketing e de
segurança psicológica. Pessoalmente, apesar de compreender as
razões desse apelo à autoridade da tradição, com o tempo, eu fui
me questionando cada vez mais sobre isso.

Em primeiro lugar, aquilo que é novo não me assusta. Pelo


contrário. Algumas crenças antigas me dão arrepios na espinha.
Certas religiões, por exemplo, até hoje criam uma separação
espacial entre homens e mulheres e creem que deuses podem
117

punir as pessoas em função do seu comportamento. Será que só


porque algo é muito antigo, tem validade? Durante séculos as
pessoas acreditavam que a origem da doença, bem como sua
cura, estava na magia. Não é o fato de que muitas pessoas
acreditaram nisso durante milênios que isso está correto.

Qualquer um que analise racionalmente as religiões pode


perceber que a antiguidade de uma ideia não necessariamente
significa a sua validade em termos absolutos. Algumas ideias
podem servir para uns determinados contextos, mas a maioria
das tradições religiosas é simplesmente a petrificação de um
contexto social que já não existe mais. Neste ponto, não temos
como deixar de citar a Maçonaria dita tradicional, que não aceita
mulheres. Isso é certo? A ideia de algo ser tradicional, muitas
vezes, se resume a uma paralisação das consciências. Neste
caso, admito que o fato de muitas pessoas praticarem algo
durante muito tempo representa que certas crenças possuem
algum valor. Mas isso não significa que elas sejam absolutas,
tenham contradições e ambiguidades e não possam ser
aperfeiçoadas.

Além dessas reflexões, eu fui cada vez mais percebendo que o


apelo a tradição da Ordem Rosa-Cruz era em si mesmo um
ponto contraditório. Isso porque a organização defende a ideia
de que estamos constantemente evoluindo. E evolução significa
mudança, transformação e movimento. Ora, é inegável que as
ideias de ‘tradição’ e ‘evolução’ apresentam certa tensão. Até
118

que ponto a defesa dessa suposta e imaginária tradição é


saudável e até que ponto elas nos mantém presos ao passado e
nos impede de abraçar o novo? É verdade que algumas
organizações tentam conciliar o passado com as novas ideias
que surgem no mundo, mas não sei até que ponto elas são bem
sucedidas. Nessa indefinição de se apegar ao passado e ir para
frente, às vezes elas não vão para lugar nenhum.

Por fim, neste capítulo, terminamos essa discussão sobre


características da Ordem Rosa-Cruz que foram despertando em
mim certa desconfiança com o universo das Ordens iniciáticas.
Como o leitor pode observar, e espero que isso tenha ficado
claro, meu objetivo não foi atacar a Ordem Rosa-Cruz e nem
qualquer outra organização. Quis apenas conversar sobre
algumas de suas características e compartilhar algumas
impressões. Meu desejo foi de dividir sentimentos que foram
surgindo em mim durante essa jornada. No próximo capítulo
começaremos a discutir aspectos filosóficos e teológicos do
rosacrucianismo e também do misticismo em geral.
119

PARTE II

A COSMOVISÃO
ROSA-CRUZ
120

11. MISTICISMO E ESOTERISMO: AS SUAS BASES E


SEUS PROBLEMAS ESTRUTURAIS

Todas as questões expostas até aqui fizeram surgir em mim um


sentimento de estranhamento com relação à Ordem Rosa-Cruz
que eu estava, mas elas ainda não tinham me levado a duvidar
totalmente daquela espiritualidade que eu recebia. Surgia uma
desconfiança aqui e outra ali, mas ainda me considerava um
buscador do mundo espiritual. A partir de um determinado
momento, contudo, o que começou a balançar foi a minha fé no
misticismo e, por conseguinte, na própria espiritualidade. Depois
de passar pelas ideologias católica e espírita e ter desenvolvido
críticas a elas, o rosacrucianismo ainda era o último bastião
espiritualista que existia em mim.

Conforme certas características da Ordem Rosa-Cruz foram me


despertando em direção ao ceticismo, eu comecei a refletir mais
detidamente sobre ideias espirituais que me estavam sendo
ensinadas. A partir daí comecei uma longuíssima viagem interna
de ponderações profundas acerca do que eu realmente
acreditava. De forma genérica, essa jornada tem um início
simbólico (pois as coisas não foram tão lineares assim) quando
eu me voltei para pensar a natureza de uma das palavras mais
basilares do rosacrucianismo. Uma vez que a Ordem se definia
como uma organização místico-filosófica, afinal, o que viria a
ser ‘misticismo’?
121

Um dia, absorto em meus solilóquios interiores, pensei no fato


que a Biologia estuda os seres vivos, a Química os átomos, a
Física as forças da natureza, a Geografia a Terra e assim
sucessivamente para cada disciplina do conhecimento humano.
E daí eu me indaguei: “O Misticismo e o Esoterismo estudam
exatamente o quê?”. Mais ainda: “O que vem a ser misticismo e
esoterismo?” Essas perguntas são mais profundas do que
parecem.

Etimologicamente, a palavra ‘místico’ vem do grego e significa


“aquilo que não pode ser traduzido por palavras”. O misticismo
se refere, assim, a um sentimento de maravilhamento e
estupefação perante a natureza, o universo e a vida e que não
seria possível colocá-lo a termo, cabendo ao adepto místico a
vivência direta desta conexão com o sagrado. A palavra,
portanto, se refere a uma dimensão de transcendência que deve
ser apreendida mais pela emoção e pela intuição do que pela
razão e racionalidade.

Traduzindo de outra maneira, o sentimento místico é o que está


oculto aos olhos objetivos e só está aberto aos olhos da alma,
representando uma percepção alterada da consciência.
Encontramos elementos esotéricos em diferentes graus nos mais
distintos sistemas de crença ocidentais e orientais, antigos ou
modernos. Existe algo de místico nos estados de transe do
candomblé, nos belíssimos cânticos gregorianos católicos, nos
122

textos cabalísticos, nas danças sufis, nas crenças taoístas e em


quase todas as religiões organizadas.

Mas apesar da beleza na definição do termo, ela não diz nada


objetivamente sobre qual o seu objeto de estudo do Misticismo.
Em função disso, precisei ir um pouco mais além no
entendimento do conceito. Assim, percebi que o misticismo com
o qual eu estava tendo contato não residia apenas na
contemplação de uma força transcendente e misteriosa e de um
sentimento de conectividade com o Todo. Durante meus estudos,
percebi que o misticismo rosa-cruz, e talvez todo o pensamento
esotérico em si, enseja uma visão de mundo que possui três
características muito próprias e bem demarcadas em suas bases.
Ei-las: o ocultismo, a conectividade e o simbolismo. Vamos
analisá-los um pouco mais de perto.

Com relação ao primeiro aspecto, o ocultismo, este pode ser


resumido na ideia de que existe uma plêiade de forças, energias
e realidades invisíveis dentro de nós e no mundo ao nosso redor.
Por serem invisíveis, estas coisas estão ocultas e daí vem o
termo ‘ocultismo’. A título de exemplo, muitas correntes
esotéricas afirmam que existe uma energia espiritual que emana
do Sol e que podemos absorvê-la e controlá-la para atingirmos
estados de consciência mais profundos. Também haveria uma
energia espiritual que emana de nossas mãos e que somos
capazes de canalizá-la para curar pessoas. Igualmente,
poderíamos mover objetos com o poder do nosso pensamento,
123

pois da nossa mente emana certa energia que tem propriedades


físicas.

O ocultismo, contudo, não se refere apenas a forças e energias


ocultas. Ele também envolve o ensino de leis e princípios que
estariam escondidos na natureza. Já vimos, por exemplo, que o
rosacrucianismo afirma que a ocorrência de todo fenômeno
obedeceria a uma espécie de lei do triângulo, que seria a união
de duas condições opostas. A Cabala judaica também diz que as
letras hebraicas representam princípios espirituais escondidos do
comum das pessoas. Aqui, cabe lembrar que o filósofo grego
Heráclito foi um dos primeiros a afirmar que a natureza ama se
ocultar, de modo que talvez ele tenha sido o iniciador dessa
forma de pensar que afirma que o mundo natural guarda
segredos ocultos.

Como o leitor certamente imagina, nenhuma dessas coisas é


visível ou mensurável, constituindo uma suposta realidade
oculta aos nossos sentidos. Vale destacar também que o termo
‘ocultismo’ é socialmente muito mal visto por ser historicamente
associado a satanismo, bruxaria ou magia negra, mas o
significado desta palavra é bem menos fantasioso. Ele apenas
evoca a existência de forças ocultas que adviriam de planos mais
sutis para além da matéria e que a Ciência ainda não seria capaz
de detectar.
124

Neste ponto, entramos na segunda característica do misticismo –


a conectividade. De acordo com o esoterismo, toda a Realidade
seria composta por uma espécie de Mente Cósmica, a partir da
qual todos estaríamos conectados uns aos outros e também às
coisas por meio de uma teia de forças invisíveis. É nisso que se
situa, por exemplo, o poder da astrologia, dos cristais, da
telepatia, da visualização de nossos desejos, da magia etc.

Quando fazemos um ritual de magia para atingirmos


determinado objetivo, partimos do pressuposto de que nossas
ações mentais podem afetar outras realidades por meio dessa
conexão invisível e espiritual que existe entre as coisas e os
seres vivos. Igualmente, a telepatia, ao propor que os
pensamentos podem ser transmitidos entre os seres humanos, se
assenta sobre essa mesma base. No Oriente, escolas como o feng
shui – que ensina a posicionar os objetos de um ambiente de
forma a melhor fluir a energia – também parece pressupor que as
coisas estão interconectadas por fios invisíveis.

O terceiro e último aspecto da cosmovisão mística – o


simbolismo – está no pressuposto de que há um significado
oculto em símbolos herméticos e alquímicos, nas histórias
bíblicas, nos contos de fadas e em toda mitologia em geral. Esse
significado místico dos símbolos se refere principalmente à
consciência humana, seus movimentos, sua condição e seus
mistérios. Sobre este ponto específico, isso não é caraterístico
das Ordens místicas. Autores da Psicologia como Freud, Jung e
125

antropólogos como Joseph Campbell e vários outros intelectuais


afirmaram que símbolos e mitos contém significados que são
metáforas próprias da mente humana.

Como o leitor deve imaginar, o misticismo é um campo de


pensamento muito rico e diversificado, mas eu comecei a
perceber que é justamente aí que mora o problema. Como disse
anteriormente, não vejo muitos problemas de as Ordens místicas
e esotéricas serem um compilado de diferentes linhas de
pensamento. A questão é que como o esoterismo fala
basicamente de um mundo invisível e que ninguém sabe com
certeza se existe, basicamente, qualquer um pode falar qualquer
coisa sobre ele. Isso cria uma cultura entre os adeptos dessas
ideias que pode resultar numa verdadeira salada de frutas com
gosto amargo e foram esses pontos que começaram a acender a
minha descrença.

Vamos começar problematizando o ocultismo. No passar dos


anos, eu percebi que como estamos falando de coisas ocultas, o
bate papo em torno disso era sempre fruto de muita especulação
e de afirmações muito fantasiosas. Conheci, por exemplo, um
irmão rosa-cruz que dizia ser capaz de expandir sua aura para
atrair mulheres. Outro dizia que seria capaz de criar uma forma-
pensamento espiritual por meio da masturbação para atrair
mulheres, as chamadas larvas astrais. Também encontrei irmãos
rosa-cruzes dizendo que homossexuais teriam o perispírito
distorcido e por isso eles seriam desse jeito.
126

Convém dizer que a Ordem Rosa-Cruz que eu estava nunca


confirmou nenhum desses pontos e que isso eram experiências
ou conclusões individuais dos rosa-cruzes. O problema é que ela
também nunca negou essas informações. Mas por quê? Eu
conclui que é porque se é relativamente “possível” afirmar o que
existe no mundo oculto, simplesmente não é possível afirmar o
que não existe nele. Afinal, se ele está oculto, ninguém pode
dizer com certeza o que está ou não ali. Assim, notei que o
campo de especulação do misticismo era amplo demais; quase
próximo da literatura imaginativa.

O leitor pode argumentar que o mesmo se aplica às religiões, o


que é essencialmente verdadeiro, mas há um porém. Parece-me
haver mais estabilidade no pensamento religiosos do que no
misticismo. Nos cristianismos, islamismos, judaísmos etc, há
certos livros básicos que guiam a mente dos fiéis. Isso não
resolve o problema das múltiplas interpretações desses livros,
mas torna o campo menos aberto. No esoterismo, qualquer coisa
cabe. O arco de possíveis realidades inefáveis é muito maior.

Para que o leitor possa visualizar este ponto, certa vez, em uma
conversa, um conhecido rosa-cruz me disse que os ocultistas
sabem que existem pelo menos três forças independentes e
distintas emanadas do Sol e que chegam ao nosso planeta.
Seriam elas fohat ou eletricidade, prâna ou vitalidade e
kundalini ou fogo serpentino. Ele também falava sobre Sete
127

Raios espirituais, cada um de uma cor diferente e onde cada um


deles estaria sob a responsabilidade de um mestre espiritual
específico. Essas coisas podem não parecer nada demais, mas na
Ciência, para fazermos afirmações como essas, precisamos da
empiria, de dados e de evidências robustas. No caso do
misticismo, como é possível dizer que essas coisas existem ou
não existem se não há nenhum meio de verificá-las?

Outro ponto de reflexão é a suposta conectividade que existe


entre essas diferentes forças, energias e leis espirituais. O físico
Marcelo Gleiser, no livro Criação Imperfeita (2010), afirma que
antes da emergência da Ciência ocidental o mundo era pautado
por misteriosas conectividades que existiam entre as coisas. A
base deste pensamento é a noção de que todos estamos
conectados por meio de um fio invisível e espiritual, pois todos
somos um. Esta ideia pode ser linda, mas ela é quase pueril e
tem implicações importantes. Se estamos todos conectados e
somos vítimas de influências invisíveis diversas (bem como
agentes delas), onde entra a nossa autonomia no meio dessa
rede?

Na prática, sob a condução dessas ideias, eu vi pessoas dentro


do universo das Ordens esotéricas que estavam com dor de
cabeça e diziam que tinham sofrido um ataque astral. Encontrei
homens que disseram que não conseguiam conquistar
determinada mulher devido a um bloqueio de energia espiritual.
Conheci uma pessoa que acreditava que tinha perdido um filho
128

em um acidente de carro devido a um carma da última


encarnação. Nesse caso, estamos invariavelmente conectados a
um passado que sequer lembramos.

Repare o leitor que a ideia de que devemos nos afastar de


pessoas invejosas porque a energia que emanaria delas nos faz
mal tem por base essa conexão invisível que existe entre as
pessoas. Na cultura brasileira há até mecanismos espirituais para
afastar a inveja alheia, como colocar uma pimenteira ou a planta
espada de São Jorge na porta das casas. Também já encontrei
indivíduos que estavam com câncer e criam que essa doença se
desenvolvera em função de um suposto trabalho espiritual que
tinham feito contra eles.

Vamos voltar a vários desses problemas nos capítulos vindouros


sob outros ângulos, mas por hora, o que eu gostaria que o leitor
percebesse é que a ideia de que existem forças ocultas e sua
consequente conectividade pode nos levar não só a um caráter
delirante. Também podemos resvalar em uma interpretação
bastante equivocada dos fatos, principalmente quando olhamos
certas coisas à luz da Ciência. A identificação de uma suposta
relação de causa e efeito, onde um dos atores deste processo é
coisas ligadas a um mundo oculto ou espiritual pode nos levar a
criarmos realidades imaginárias sem qualquer fundamento e
muito próximas do burlesco.
129

No que se refere ao terceiro ponto – o simbolismo – ao longo


dos anos, encontrei muitas pessoas dizendo que sabiam o
verdadeiro significado do símbolo da maçonaria, da rosa-cruz,
da espada etc. O problema é que toda interpretação é
essencialmente individual. Essa é, inclusive, um dos mais belos
atributos humanos: a capacidade de imaginar e interpretar. Ela
nos leva ao reino do abstrato e ao desenvolvimento de uma
consciência sensível e prolífica. Em função disso, a ideia de que
existe uma interpretação verdadeira dos símbolos é, em si
mesma, um oxímoro.

Pouco a pouco, comecei a notar que no mundo do misticismo e


das Ordens iniciáticas a interpretação dos símbolos era
essencialmente uma disputa de poder. Ademais, se toda
interpretação é subjetiva, não tem como uma interpretação ser
“verdadeira” num mundo com oito bilhões de pessoas. Nessa
linha, como confiar em alguém que interprete corretamente os
meus sonhos, a minha carta de tarô ou os acontecimentos ao
meu redor, práticas muito comuns no universo místico?

Cada vez que eu pergunto para um rosa-cruz diferente a


interpretação de um símbolo, obterei uma resposta igualmente
diferente. Isso é o mesmo que acontece com alegadas entidades
do candomblé que “descem” nas pessoas para nos dar conselhos.
Ora, se formos em outro terreiro, a mesma entidade pode nos dar
informações completamente distintas. Os diferentes
130

cristianismos também possuem uma plêiade de interpretações


diferentes sobe os mais diferentes assuntos.

Em função de todos estes problemas, no decorrer do tempo, eu


fui percebendo que o misticismo é essencialmente um lugar
onde qualquer coisa cabe nele. Embora a Ordem Rosa-Cruz
tivesse uma linha de pensamento própria, ela não podia negar
outras coisas que outras pessoas afirmavam sobre o mundo
espiritual. O engraçado é que, por vezes, a Ordem que eu
participava dizia que certos autores místicos tinham uma
péssima compreensão sobre determinados assuntos. Por outro
lado, rosa-cruzes de outras organizações diziam o mesmo sobre
a minha organização! No final, como estamos diante de coisas
que nunca foram evidenciadas pela Ciência, ficamos rodando
em círculos.

Talvez a resposta para estes problemas estivesse em livros


canônicos, tais como os Bíblia estão para os cristianismos. O
problema é que embora o universo místico também tenha alguns
livros de referência, as suas bases são muito movediças.
Podemos citar, por exemplo, o livro Dogma e Ritual da Alta
Magia, do Eliphas Levy (2000) ou o famoso grimório de São
Cipriano (2006), atribuído a São Cipriano de Antióquia, um
suposto feiticeiro que se converteu ao cristianismo. Quando
lemos esses livros, contudo, eles são um chorrilho de afirmações
que nunca foram confirmadas por experimentações ou pelo
método empírico. Inclusive, até onde eu estudei, a Ordem Rosa-
131

Cruz que eu participava não fazia referência a estas obras. Eu


deveria lê-las ou deveria focar-me somente no que a Ordem me
ensinava?

Em função de todas essas questões, no mundo do esoterismo


parece existir uma questão que chamo de o problema filosófico
da autoridade - Quem tem autoridade para falar sobre o quê?
Este problema, na verdade, é ancestral e mesmo as religiões
estão sujeitas a ele. Nelas, há grande dificuldade de estabelecer
quem tem a autoridade para interpretar corretamente a Bíblia, o
Alcorão ou a Torá..

Como não há meios de se verificar isso empiricamente, na


prática, isto dá origem às mais diferentes religiões, igrejas,
correntes de pensamento etc, cada um advogando para si a
verdadeira interpretação dos textos sagrados. Na Ciência, o
problema da autoridade foi parcialmente resolvido pela
submissão aos pares e por um trabalho coletivo de
experimentação e de coleta e análise de dados. Mas mesmo nela
há problemas. Além de haver muitos artigos de pouca qualidade
no meio científico e lançados com base no interesse financeiro,
há muitas correntes interpretativas entre os cientistas, o que nos
faz perceber que a ideia de “Verdade” não é tão simples. Já
quando lidamos com o mundo espiritual, nada disso existe.
132

Por fim, há muita coisa interessante no mundo místico, mas


também há uma profusão de ideias desconexas que podem dar
origem a muitas coisas ruins, charlatanismo e crendices diversas.
No fim das contas, fica uma sensação de: Qual seria a diferença
entre um conhecimento místico sério (se é que isso existe) e um
charlatanismo? Qual é a distinção entre uma ordem esotérica
respeitável e uma seita? Mesmo que haja excelentes iniciativas
para decupar melhor todas essas noções e perguntas, ainda há
muitas incertezas que ficam pelo caminho. Quando percebi isso,
passei a colocar o pé no freio nos meus estudos místicos e a ter
muito cuidado com as minhas crenças esotéricas.
133

12. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA


ESPIRITUALIDADE E DO MUNDO MATERIAL

Na esteira das reflexões do capítulo anterior, gostaria de


continuar essa discussão sob um outro ângulo. Uma vez que
adentrei na natureza do misticismo, quero conversar com o leitor
sobre a ideia de espiritualidade e sobre o próprio mundo
espiritual. Afinal de contas, o misticismo e a religião podem ter
pressupostos diferentes, mas ambos compartilham o tronco em
comum de que existe um mundo invisível para além da matéria,
a chamada realidade metafísica. Mas afinal o que é uma
‘espiritualidade’? Ela é tão importante assim?

Muita gente fala que é necessário termos uma vida espiritual ou


que é importante cuidarmos da nossa espiritualidade para termos
um equilíbrio mental. Estudos apontam que, de fato, quando
temos algum sentido de transcendência na vida, isso pode nos
ajudar a termos uma melhor saúde mental e um senso de
propósito (ainda que isso não seja uma lei absoluta). Igualmente,
a Ordem Rosa-Cruz que eu fazia parte, em várias de suas
publicações, sugere que um dos problemas do mundo
contemporâneo seria o excesso de materialismo e a falta de uma
espiritualidade.

Num certo momento da minha trajetória, comecei a refletir mais


detidamente sobre a noção de espiritualidade. Será que ela é tão
134

saudável assim? Será que ela é necessária? Baseado nos meus


estudos em Antropologia e História, pouco a pouco, fui fazendo
uma varredura mental de todas as práticas espirituais que eu
conhecia e notei que simplesmente qualquer coisa cabe quando
falamos na existência de um mundo espiritual. Em função da
onda cética que crescia em mim, certos questionamentos foram
ganhando corpo. Permita-me o leitor compartilhar algumas
observações pessoais acerca deste tema.

No seio das religiões, não é muito difícil encontrarmos correntes


de pensamento que associam a busca pela espiritualidade como
algo associado à ascese e à negação do mundo material. Ainda
hoje na Índia há quem acredite que para termos uma vida
espiritual plena devemos largar tudo do

mundo material. Esses são os chamados saddhus, que andam


inteiramente nus pelas ruas, vivem de esmolas, não tomam
banho e praticam regularmente a meditação.

Em Portugal, no período medieval, havia as chamadas monjas


emparedadas, que eram mulheres que eram literalmente presas à
parede, só se alimentando por uma fresta e passavam o dia
inteiro rezando até morrer. Mesmo a meditação dos monges
budistas tibetanos, por exemplo, é extremamente pesada, pois
você se alimenta de chá e biscoitos por longos períodos.
135

Também há monges que fazem votos de silêncio para o resto da


vida.

Naturalmente, estes são apenas alguns exemplos de posturas


extremas na busca pelo mundo espiritual, mas que demonstram
como a noção de espiritualidade, por vezes, se associa à negação
total da matéria. Mas mesmo quando não se trata de vidas
monásticas, algumas práticas religiosas também podem ser
extremas. Na Igreja Católica, por exemplo, correntes como a
Opus Dei, ao menos até um tempo atrás, pregava mortificações e
flagelações na própria carne como forma de buscar o sagrado.

Nas Filipinas há um festival cristão onde as pessoas crucificam a


si próprias em nome de um vínculo com o mundo espiritual. Na
Ashura islâmica as pessoas se flagelam até sair sangue. Assim,
sofrimento físico com cortes feitos por espadas e chicotes são
encontrados em vários grupos religiosos ao redor do mundo. A
ideia aí é que suplantar a dor física dá ao seu adepto maior força
espiritual.

Algumas seitas religiosas também instam seus membros a fazer


coisas terríveis em nome do mundo espiritual. Entre os séculos
XVII e até o XX, havia uma seita na Rússia chamada skoptsy
onde seus partidários acreditavam que só podiam alcançar a
espiritualidade por meio da mutilação de seus órgãos genitais
(TORTAMANO, 2020). A base teológica para isso seria a
136

passagem bíblica que diz que há eunucos que se fizeram


eunucos por causa do reino dos céus. Cerca de cem mil pessoas
acreditavam que a negação total do sexo era o caminho correto
de espiritualidade. Mais contemporaneamente, encontramos
seitas que pregavam até o suicídio em nome da espiritualidade,
como ocorreu há uns anos no Japão e nos EUA.

Para além desses exageros que naturalmente são exceções na


busca espiritual, há também outras questões que são moralmente
polêmicas. Nas chamadas religiões xamânicas, há quem diga
que espiritualidade é usar ervas/ entorpecentes que alteram a
consciência. Também há formas de espiritualidade cujas bases é
uma oferenda que custa alguns mil reais e sacrificar animais. Há
até pessoas que enxerguem o sexo como uma porta para a
espiritualidade, como os adeptos do tantra.

O povo asteca sacrificava pessoas em nome de deuses. Na


religião grega havia pitonisas, meninas jovens drogadas e que
eram forçadas a ter relações sexuais com homens muito mais
velhos do que elas. O mundo árabe-islâmico impôs os
islamismos a vários povos pela força espada e em nome de
Deus. O mesmo vale também para os cristianismos. Até hoje os
países de maioria muçulmana não são exatamente conhecidos
pelo seu apreço aos Direitos Humanos. A religião hindu criou
um sistema de castas terrível e viúvas eram queimadas vivas
quando o marido morria e isso para não dar despesa à família.
137

Mais presentemente, no Brasil, o que várias igrejas evangélicas


fazem por aí é absurdo atrás de absurdo. Há pastores que
convencem fiéis a fazer sexo oral nele, pois o pênis dele seria
ungido. Há líderes de seitas que estupram jovens mulheres
emocionalmente vulneráveis como o caso do médium João de
Deus. Também já encontrei caso de pessoas muito pobres que
deram tudo o que tinha em nome da promessa de que Deus lhes
daria em dobro e ficaram na miséria. Conheço religiosos
brasileiros que pautam suas vidas com base na espera de um
suposto Apocalipse que nunca vem. Há até seitas ligadas à
magia negra que sequestram crianças para sacrificá-las.

Para além dessas práticas absurdas, o pressuposto de que existe


um mundo espiritual que seria a origem dos acontecimentos
materiais tem deixado um mar de sangue na História. Como já
vimos, mulheres “bruxas”, judeus e “sodomitas” já foram
acusados de serem a causa de terremotos e de pestes diversas.
Tem gente que acredita que alguém é rico ou é pobre em função
do poder divino, por exemplo, desconhecendo a influência que o
Estado, os políticos, as leis e as instituições exercem na
distribuição geral da riqueza pela sociedade. Em outras palavras,
a leitura do mundo pela chave da espiritualidade, por vezes,
entorpece nosso entendimento sobre como as coisas realmente
funcionam.

Arrolei todos estes exemplos para demonstrar que, se por um


lado estamos acostumados a ver as religiões como coisas boas,
138

por outro lado não podemos negar que este universo da


espiritualidade, desde tempos imemoriais, está ligado a um
amplo campo de práticas controversas. Isso sem falar no medo
psicológico que certas teologias provocam nas pessoas,
tolhendo-lhes a vida e a liberdade. O mundo dos horrores das
religiões é tão extenso que o tema daria um livro com alguns
tomos.

O leitor pode argumentar que estou confundindo as coisas, pois


religião é diferente de espiritualidade. Este argumento cliché
parte do pressuposto que há uma diferença entre essas duas
coisas, onde a religião seria algo mais “pesado”, enquanto a
espiritualidade seria algo mais “leve”. O problema é que
ninguém tem referência do que é pesado ou leve e isso é muito
subjetivo. No fundo, essa tentativa de separar religião de
espiritualidade é tão inútil quanto tentar definir a diferença entre
comida e refeição. Uma só é mais bonitinha do que a outra, mas
em essência, os dois são a mesma coisa. Todas as ideologias ou
sistemas de pensamento metafísicos, de certa maneira, são
formas de espiritualidade, mesmo que não concordemos com
elas.

O que desejo aqui é chamar a atenção para o fato de que


qualquer coisa cabe no mundo espiritual e, muitas vezes, as
afirmações são contraditórias. Algumas espiritualidades
estimulam o uso de drogas para se chegar a Deus e outras falam
para seus adeptos não beberem nem uma gota de álcool.
139

Algumas religiões exaltam a dor física e outras não. Algumas


religiões dizem que a espiritualidade está no sexo e outras
exigem de seus monges e sacerdotes, homens na flor da idade,
um total celibato. Algumas espiritualidade falam em oferendas e
outras dizem que isso não é necessário. Certas religiões falam
estamos predestinados quando nascemos e outras dizem que
podemos alterar o nosso destino. Algumas religiões falam que
depois da morte vamos ficar eternamente no céu ou no inferno e
outras falam que vamos reencarnar sucessivamente.

Com o tempo, percebi que como ninguém nunca viu ou provou a


existência do mundo espiritual, qualquer coisa pode ser afirmada
tendo como horizonte uma espiritualidade. Como resolver esse
problema? A Ordem Rosa-Cruz que eu estava tinha uma solução
para isso. Ela dizia que as diferentes espiritualidades no mundo
existem em função do grau de evolução espiritual da pessoa.
Indivíduos menos evoluídos manifestariam uma espiritualidade
mais primitiva, digamos assim. Seres mais evoluídos teriam uma
espiritualidade mais “superior”.

O problema deste argumento é que é muito difícil ter algum tipo


de norte que nos permita pontuar adequadamente o que é
superior ou primitivo, mas vamos falar sobre isso mais
detidamente quando discutirmos o conceito de evolução da
alma. Por hora, o que chamo a atenção é para o fato de que
sempre que alguém evoca a existência de um mundo invisível ou
espiritual, qualquer coisa cabe ali. Como não temos como provar
140

nada, este universo sempre foi fruto de muita especulação. E aí


temos um dilema.

Esse tal mundo espiritual, de onde supostamente emana amor e


proteção divinos, nos escondeu sua natureza e sua existência de
forma tão profunda que nos tornou sujeitos a todo tipo de
manipulação psicológica, charlatanismo e atrocidades em nome
dele. Será que isso tudo faz sentido? Com o tempo, a minha
mente cética começou a ficar consternado com o absoluto non
sense que pode ser a crença na existência de qualquer coisa
espiritual. Será que o bem que supostamente dele advém
compensa todo tipo de coisa errada que se faz em nome dele?
Afinal, pessoas que praticam todos os absurdos anteriores
sempre dizem estar inspiradas por esse mesmo mundo espiritual.

Por fim, gostaria de terminar esta conversa discutindo sobre o


cliché de que a falta de espiritualidade faria mal ao mundo, uma
ideia muito repetida pela Ordem Rosa-Cruz e outras instituições.
Embora eu sempre tenha procurado respeitar este pensamento,
hoje, ele me parece ingênuo demais. Contudo, esta ideia não é só
ingênua. Ela pode ser essencialmente perigosa. Quando olhamos
para o passado, onde mais teve espiritualidade foi onde mais
teve perseguição, fanatismo, intolerância, miséria e sangue.

Atualmente, os países mais atrasados, intolerantes,


antidemocráticos, ditatoriais e que vivem em pobreza extrema
141

são também os mais religiosos e “espiritualizados”. A única


exceção talvez seja os Estados Unidos, mas ali há instituições
sólidas que garantem a separação entre Estado e Igreja. Na
verdade, foi justamente a partir do Iluminismo e de sua tentativa
de tirar a religião da esfera pública que a humanidade conheceu
mais progresso, pensamento crítico e criou sociedades mais
inclusivas e humanistas.

Embora muitos argumentem que os regimes comunistas ateus


mataram milhões, eles mataram não em nome do ateísmo, mas
sim em nome de um projeto político. Entendo que assassinatos
não dependem de orientação política ou religiosa e isso é uma
verdade inconteste. No entanto, no cômpito geral, a humanidade
se mostra mais pacífica e humana em um mundo onde a religião
e a espiritualidade não dão dominam as sociedades e isso
também parece ser um fato.

Finalmente, quando a Ordem Rosa-Cruz dizia que um dos


principais problemas do mundo seria a falta de espiritualidade,
aquilo começou a me causar incômodo. Tudo bem que a
espiritualidade rosa-cruz não era tão radical ou extremista, mas
como a própria organização dizia que seu objetivo não era ser
um movimento de massas, mas sim de elite, sua espiritualidade
nunca iria se difundir para o mundo inteiro. Ora, se o
rosacrucianismo nunca iria abarcar as massas, então qual era a
espiritualidade que deveria fazê-lo?
142

O leitor pode dizer que espiritualidade é apenas a crença no


mundo espiritual sem uma religião específica. A questão é que
como espiritualidade é qualquer coisa, dizer que faltava
espiritualidade no mundo começou a me dar frio na espinha. No
Brasil em especial o excesso de espiritualidade pode eleger os
políticos mais execráveis. Por outro lado, há quem diga que isso
ocorre por falta de uma “verdadeira” espiritualidade. No final
das contas, o mundo moderno pode ter muitos problemas, mas
fato é que o materialismo da era científica nos deu um nível de
paz, harmonia social, bonança e qualidade da vida que a
humanidade jamais viu em tempos de hesterno.
143

13. A COSMOVISÃO ROSA-CRUZ

A partir deste capítulo vamos entrar nos conceitos metafísicos da


espiritualidade rosa-cruz propriamente dita. Como o leitor vai
reparar, muitas dessas ideias não são exclusivamente rosa-
cruzes. Elas também são compartilhadas por outras linhas de
pensamento. No entanto, vamos analisar a abordagem que a
Ordem Rosa-Cruz especificamente dá a certas ideias. Pretendo
mostrar como que por detrás de certas noções bonitas e que
julgamos sem perigo algum, há uma plêiade de questões que são
deixadas de lado para que o edifício se sustente.

Conforme expus nos dois capítulos anteriores, a partir de um


determinado momento me foram surgindo reflexões sobre a
natureza do misticismo e do mundo espiritual. Mas em vez de
sair da Ordem Rosa-Cruz e abandonar de vez toda
espiritualidade, o que eu fiz foi me voltar com mais
profundidade para as monografias rosa-cruzes.

No meio daquele turbilhão de ideias, eu busquei o caminho da


espiritualidade com ainda mais ardor. Afinal, eu entendia que a
Ordem era uma escola de pensamento sólida e com
ensinamentos tradicionais. Nessa busca, comecei a observar com
mais atenção a cosmovisão rosa-cruz. A questão é que antes de
entrarmos nessa discussão, eu preciso explicar para o leitor
144

como funciona essa cosmovisão para que ele possa aterrissar em


alguns conceitos e ideias e é isso que faremos neste capítulo.

Ao menos no Ocidente, toda vez que falamos em cosmovisões


espirituais, quase imediatamente direcionamos nossa mente para
Deus e com a Ordem Rosa-Cruz não seria diferente. Num
determinado ponto, contudo, eu notei que a Ordem dava muito
pouca atenção para Deus. A divindade quase não era
mencionada nas monografias. E isso era até paradoxal, pois ao
mesmo tempo em que Deus estava presente em todo o espírito
do rosacrucianismo, quase não se falava sobre Ele. Como isso
funciona?

Em linhas gerais, nas religiões, a noção de Deus gravita ao redor


da ideia de um Criador homem com feições antropomórficas,
que criou tudo o que existe e que mais ou menos controla os
acontecimentos terrestres. Por meio do pedido dos humanos,
Deus pode, em tese, nos proteger contra os perigos, curar uma
doença, nos ajudar a ter um bom casamento, nos auxiliar a
superar as tribulações, a ter riqueza etc. Em outras palavras,
Deus criou o mundo, mas ele permanece pairando por sua
Criação e tem vários poderes para atuar nas questões humanas.
Em teologia, esta é o que se chama de concepção teísta, ideia na
qual Deus ainda interfere na Criação, de modo que nenhuma
folha cairia sem que fosse expressão de sua vontade.
145

Do ponto de vista rosa-cruz, por sua vez, Deus não é visto


exatamente da mesma maneira do que nas religiões. Ele seria
uma espécie de força transcendente que possui certos atributos.
Um desses atributos seria uma Inteligência Divina ou Cósmica.
Isso porque ela estaria presente em todo o universo. Esta força e
sua inteligência se manifestam na Criação por meio de leis
naturais, cósmicas e divinas. Isso cria uma espécie de legislação
espiritual que seria virtualmente Perfeita e, em função disso, ela
geraria uma certa ordem no mundo. Nessa linha argumentativa,
a natureza seria a principal expressão dessas leis divinas. Trata-
se daquilo que gosto de chamar de visão cósmico-legislativa do
universo (ou cosmolegislativa).

Para facilitar a compreensão, a minha Ordem Rosa-Cruz


costuma resumir essa equação ‘Inteligência Divina + leis
cósmicas, naturais e espirituais’ pelo conceito de ‘Cósmico’. O
Cósmico, portanto, seria a totalidade de leis e dos fenômenos
que se manifestam no homem e na natureza – as forças, as
energias e os poderes responsáveis pelos reinos finito e infinito.
Nesse sentido, haveria Deus e o Cósmico, onde este último seria
o conjunto das leis emanadas de Deus. De certa forma, esta é
uma visão deísta, que crê que a Divindade criou o mundo, mas
não interfere nele, deixando suas leis impessoais atuarem.

A Ordem Rosa-Cruz que eu participei dava muito mais


importância ao estudo do Cósmico e de suas leis do que à figura
de Deus propriamente dita. Uma vez que este último sempre foi
146

envolvido em inúmeras especulações, a resposta sobre Deus era


individual, ao passo que o estudo do Cósmico e de suas leis era
coletivo. De certa forma, isso é muito semelhante ao que a
própria Ciência faz – estudar o que pode ser cientificamente
observado. A proposta da Ordem, portanto, estava em
consonância com meu espírito científico.

Do meu ponto de vista, a cosmovisão rosa-cruz sempre me


pareceu muito acertada. Isso porque se preocupar em estudar as
leis de funcionamento do Cósmico me parecia muito mais
inteligente do que especular sobre Deus. Em uma só tacada, a
Ordem Rosa-Cruz deixava a especulação teológica de lado e
focava no que havia de prático no campo da espiritualidade. Em
função disso, a organização sempre me pareceu muito mais
interessante e superior comparativamente às religiões. O
problema é que, como diria o poeta brasileiro Carlos Drummond
de Andrade, havia algumas pedras no meio do caminho.

Durante muito tempo, eu achava que a ideia de ‘Cósmico’ era


essencialmente correta e não via a necessidade de questioná-la.
Até que um dia eu decidi me debruçar mais sobre ela e sobre o
que eu chamo de seus ‘acompanhantes filosóficos’. Como foi
dito, no rosacrucianismo, o Cósmico seria um conjunto de leis
perfeitas que engendram o Homem e a natureza. Em outras
palavras, ele seria uma espécie de inteligência transcendental
que traria lei e ordem ao universo. Dessa maneira, cada vez que
era feita uma referência à ideia de Cósmico, vinha com ela as
147

ideias de Inteligência Cósmica, natureza/ natural, Perfeição, Lei


e Ordem.

Aqui, vale notar que isso não quer dizer que na visão religiosa
não haja essas mesmas noções subjacentes; elas existem, mas
nas religiões não é dado a mesma abordagem a elas que se dá no
misticismo. Além disso, como veremos mais à frente, o que os
religiosos chamam de ‘lei’ e ‘ordem’ não são exatamente a
mesma coisa que os místicos entendem por essas noções,
embora, por vezes, as coisas se confundam.

Com o tempo, ao me aprofundar em pensamento em certos


conceitos, percebi que havia coisas no ar que causavam bastante
constrangimento. Para muita gente, é “óbvio” que Deus e seus
desdobramentos – Natureza, Perfeição, Inteligência Divina, Lei
e Ordem – existem. Mas embora estes conceitos possam ser
naturais para muitos e a maioria ache que não há nada de errado
com eles, eles possuem algumas falhas profundas e limites que
colocam à prova a sua veracidade. Ao me permitir fazer certas
perguntas sobre estas noções, meu ceticismo começou a crescer
com ainda mais força. Nos próximos capítulos, portanto,
gostaria de dividir com os leitores algumas reflexões sobre os
pilares do rosacrucianismo acerca do mundo metafísico.
148

14. NOTAS SOBRE A IDEIA ROSA-CRUZ DE DEUS

Para iniciar esta viagem-reflexão sobre conceitos básicos da


cosmovisão rosa-cruz, comecemos por uma das figuras mais
basilares de toda a espiritualidade ocidental e das religiões
monoteístas: Deus. No caso das Ordens místicas e esotéricas,
como elas são uma ramificação dos monoteísmos, elas também
têm especial reverência a Ele. Na minha Ordem Rosa-Cruz, se
um indivíduo é ateu, ele sequer pode ingressar na organização.
Aquele que não crê não pode ser parte do grupo.

Muitos dizem que a ideia de Deus é ancestral e encontra ecos em


muitas culturas ao redor do mundo, mas não é bem assim. O que
é ancestral na humanidade é a crença em um mundo espiritual,
mas as entidades que habitam nele, bem como sua configuração
e seus atributos, variam enormemente. Alguns enxergam este
plano espiritual como sendo povoado por vários deuses, por
entidades míticas como os orixás, por criaturas como seres
mágicos diversos, por almas evoluídas etc. Logo, a configuração
que as diferentes culturas dão para o hipotético plano espiritual é
diferente conforme a linha de pensamento.

Vale destacar também que quem acredita em Deus geralmente


crê na existência de um mundo espiritual, mas o contrário não
necessariamente é verdadeiro. A crença em um plano espiritual
não automaticamente implica na presença de um demiurgo
149

criador tal como concebemos na cultura ocidental. Muitas


correntes budistas têm toda uma espiritualidade onde a ideia de
Deus é secundária ou nem existe nos moldes que entendemos
nos cristianismos. Há igualmente indivíduos ateus, mas que
acreditam em várias questões espirituais, como astrologia ou
cura pelas mãos, por exemplo.

Quando eu era católico e espírita, Deus era uma entidade


antropomórfica que sempre esteve no plano espiritual. Ele criara
tudo o que existe e deveríamos buscá-lo para nos
aperfeiçoarmos e termos diversas benesses. Foi somente a partir
dos estudos rosa-cruzes que fui informado que havia vários
entendimentos sobre o que é Deus. Assim, fui tendo contato com
outras concepções da Divindade, como as noções panteístas,
monistas,

monoteístas, dualistas, pluralistas, deístas, politeístas,


maniqueístas etc e que cada uma dessas têm dezenas de escolas
e ramificações.

Em algumas dessas crenças, Deus está fora da Criação, mas


ainda cuida dos seres humanos, intervindo nos seus destinos. Em
outras, Deus não intervém nas questões humanas e deixou os
seres humanos à sua própria sorte. Caso o leitor deseje saber
mais sobre este assunto, sugiro uma consulta em uma obra de
referência sobre o que diz cada uma dessas correntes. Não farei
150

isso aqui porque iria desviar muito de nosso assunto. Seja como
for, nesse mundo de diferentes concepções do divino, havia até
quem dissesse que o mundo fora criado por um Deus mal e que
por isso deveríamos abandonar totalmente a matéria, como os
gnósticos primitivos, por exemplo.

Esse primeiro contato com essas informações me mostrou como


diferentes teologias e religiões entendiam Deus de forma
distinta. Isso pode parecer óbvio para muitos, mas para um rapaz
de dezoito anos era uma grande novidade e abriu muito a minha
mente. Isso significa que uma ideia que até então me era tão
natural – Deus – a partir de um determinado momento, vi que
havia muitas questões históricas relacionadas à construção
intelectual daquilo que se dizia sobre a Divindade.

Em função dessas muitas crenças relacionadas ao Divino, a


Ordem Rosa-Cruz nunca impôs uma determinada visão sobre
ele. Isso porque a organização dizia que Deus era
essencialmente uma concepção individual. Em função disso, ao
se referir à Ele, a Ordem usava a expressão “Deus do meu
coração, Deus da minha compreensão”. Nessa linha de
pensamento, cada um deveria buscar a imagem de Deus que
existia dentro da sua mais íntima esfera.

Essa postura em relação a Deus sempre me deixou extasiado


com a Ordem. Eu estava em uma organização que abandonou
151

qualquer tipo de definições coletivas e totalizantes sobre a


Divindade e deixava a consciência de cada um livre para suas
buscas individuais. Era tudo o que eu sempre quis na vida. Uma
espiritualidade que não impusesse Deus a ninguém. Durante
muito tempo, a organização era o único local que fazia meu
coração vibrar, tamanha a sua tolerância e inclusão com relação
aos diferentes entendimentos sobre Deus.

Como curiosidade, posteriormente, descobri que esta expressão


eu acreditava que fosse uma invenção da Ordem Rosa-Cruz –
Deus do meu coração e da minha compreensão – muito
provavelmente fora inspirada na passagem bíblica de
Lucas10:27: "Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração,
de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu
entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo". Logo, a ideia
tinha uma origem na religião cristã e não no misticismo rosa-
cruz, embora tivesse sido perdida pelos religiosos.

Era tudo muito lindo e muito bonito e durante muito tempo eu


segui a proposta rosa-cruz com ardor. A cada dia que eu
acordava, eu buscava o Deus do meu coração e da minha
compreensão. Um belo dia, porém, eu me concentrei nessa tão
bela expressão do pensamento rosa-cruz e me indaguei: “Afinal,
qual é a imagem que eu tenho de Deus dentro do meu coração e
da minha compreensão? Quais ideias eu associo a Deus?”. Foi
então que eu olhei para dentro de mim mesmo e encontrei um
absoluto silêncio.
152

Para buscar respostas, eu me voltei aos estudos rosa-cruzes


sobre as diferentes ideias de Deus e analisei cada uma delas
mais detidamente, vendo suas fraquezas e suas vantagens, mas
vi que nenhuma delas podia ser provada. Tudo era fruto de
infinitas especulações que vêm desde a Antiguidade e ninguém
nunca chegou à resposta alguma. Tal qual a existência do mundo
espiritual, o tema era, portanto, essencialmente uma questão de
fé. Nesse momento, eu entrei naquilo que podemos chamar
filosófica e teologicamente de “o silêncio de Deus”. Eu olhava
para o lado e vi que eu não tinha nenhuma imagem de Deus
porque simplesmente não havia nenhuma evidência da
existência Dele.

Naquele período, lembrei-me da reflexão de Clarice Lispector


sobre a Divindade. “Se algum dia Deus vier à Terra, haverá um
silêncio grande. O silêncio é tal que nem o pensamento pensa”.
Trata-se de uma provocação da escritora no sentido de que Deus,
desde tempos imemoriais, nos deixou no mais absoluto silêncio
e que, quando Ele vier à Terra, quem vai ficar em silêncio serão
os seres humanos!

No decorrer do tempo, a ideia de que cada um tem um Deus do


seu coração e da sua compreensão começou a não fazer muito
sentido tanto quanto a ideia de “múltiplos são os caminhos”. A
noção de que “cada um tem seu Deus”, pouco a pouco, passou a
ser confrontada com a chamada realidade dos fatos. Se há oito
bilhões de seres humanos na Terra, há diferentes compreensões
153

da divindade em oito bilhões de corações e oito bilhões de


compreensões. Quem tem a Verdade? Se tudo é Verdade, logo
nada é a Verdade.

Ao final, numa espécie de grande loteria cósmica, somente uma


pessoa ou um punhado delas terão sido “sorteadas” de descobrir
uma verdade sobre a qual todos os outros estão errados. Isso nos
remete ao filme intitulado ‘Deus’ do humorístico Porta dos
Fundos (2013). Nele, os atores fazem troça do fato de que de
todos os povos da Terra, quem estava certo era o povo da
Polinésia. Ao me dar conta dessas reflexões, eu comecei a ficar
um pouco melancólico. Apesar de bonita, a ideia de que cada um
tem sua própria concepção de Deus leva a um caos
epistemológico e ontológico.

Por mais que a posição da Ordem Rosa-Cruz fosse tolerante e


compassiva no que se refere às diferentes compreensões da
Divindade, dando a cada um o seu próprio tempo, isso não
resolvia os grandes problemas do silêncio de Deus e da falta de
evidências de qualquer plano espiritual. Neste ponto, voltei-me
para o que os estudos em História poderiam me oferecer. Já que
a espiritualidade não me dizia muita coisa, o que poderiam me
dizer os estudos acadêmicos? Eles basicamente mostravam que
Deus era uma construção social feita por seres humanos.
154

Um autor conservador e dedicado à Ciência Política – João


Carlos Espada – escreve regularmente para o jornal luso O
Observador e o pensamento dele sempre me chamou muita
atenção. Em vários dos seus textos ele aponta que a civilização
ocidental é o encontro de Jerusalém, Athenas e Roma (ESPADA,
2010). Nessa linha, os próprios cristianismos nada mais seriam
do que o resultado desta convergência de civilizações. Um
trabalho da revista Super Interessante intitulado “Deus – Uma
Biografia”, confirma este ponto e mostra como o personagem
‘Deus’ foi sendo construído ao longo do tempo e como ele é
resultado das culturas onde ele apareceu (LOPES, 2016).

A título de curiosidade e falando de forma bem resumida, a ideia


de Deus tal como a entendemos hoje – a de uma Divindade
única e universal – começou a ser gestada a partir de Josué, um
autor de um dos livros bíblicos. Antes dele, o deus dos Bíblia,
ora chamado de Elohim, ora de Javé, era um deus tido como o
maior de todos no meio de um monte de outros deuses. Em
outras palavras, havia um caldo mental que era essencialmente
politeísta. Segundo estudiosos, foi no decorrer do tempo que a
Divindade foi ganhando essa conotação mais cósmica.

Em paralelo a isso, na Grécia Antiga, desenvolveu-se a ideia de


que o mundo seria criado e regido por uma força inteligente que
controla o funcionamento das coisas por meio de leis da
natureza, principalmente por leis relacionadas à matemática.
155

Essa força criadora e inteligente era chamada de Logos por


Aristóteles e de Nous por Anaxágoras.

Sobre estes termos, um adendo. Muitos estudiosos dizem que há


uma diferença técnica entre os conceitos de Logos e Nous no
pensamento grego, mas embora possa haver algumas distinções
entre eles em suas filigranas, a título de simplificação, neste
trabalho consideraremos que eles são a mesma noção metafísica
e filosófica.

Nesse sentido, como os cristianismos seriam o encontro entre


gregos e judeus, a noção de Deus único e maior própria do
pensamento bíblico foi gradativamente se unindo a essa noção
helênica de Logos e isso me parece bastante visível. Se o leitor
observar atentamente, a média do pensamento cristão ora fala de
Deus como um Criador que pune as pessoas pelo seu
comportamento, ora como uma Inteligência que organizou tudo
o que existe na natureza. Isso nada mais é do que a união entre o
helenismo e a cultura hebreia.

Não vamos entrar nos meandros históricos deste processo, mas


para nós cabe apenas deixar registrado que a noção que temos de
Deus foi sendo gestada ao longo dos séculos. E os Bíblia não
são os únicos responsáveis por isso. Pensadores posteriores ao
surgimento destes livros, como São Tomás de Aquino, Santo
Agostinho, entre outros, também tiveram importante papel na
156

construção deste processo. O que chamamos de Deus, portanto,


é uma ideia fruto da metafísica abraâmica e helênica e de
desenvolvimentos intelectuais posteriores.

Em função de todas essas informações, quando me dei conta,


Deus foi gradativamente deixando de ser aquela entidade
espiritual, pai de todos, o grande criador, o demiurgo que sempre
existiu. Tais pensamentos que me foram passados pela cultura
espiritual que eu recebera até então. Após estudar
academicamente este assunto, Deus passou a ser o que ele
realmente é: uma ideia, tal qual a ideia de ‘democracia’. Ideia
essa que fora historicamente construída por seres humanos em
um determinado tempo e espaço e que veio sendo burilada no
decorrer da História. A única diferença é que os rosa-cruzes
“puxam” a ideia de Deus mais para o lado helênico da coisa, ao
passo que as religiões a levam mais para o lado judaico.

Isso reforça a noção de que nada é mais perigoso para crenças


do que um estudo acadêmico sério e honesto. Este estudo não
necessariamente destrói as crenças, como atestam vários
acadêmicos religiosos. No entanto, ele nos ajuda a relativizar
verdades que até então achávamos naturais. A compreensão de
como surgiram as ideias que usamos cotidianamente faz
balançar a base de muitas de nossas certezas.
157

Todas essas reflexões não querem dizer necessariamente que


Deus não exista. Pelo contrário. Afinal, democracia também é
uma ideia e bilhões de pessoas seguem suas vidas em volta dela.
Aparentemente, as ideias têm uma existência essencialmente
dentro de nossa consciência. O problema é que não podemos
dizer com certeza que elas existem fora de nós. Antes dos seres
humanos surgirem na Terra, ideias como Deus, democracia,
liberdade ou anjos simplesmente não existiam. A tomada de
consciência disso foi um pouco angustiante para mim porque foi
a partir daí que uma série de outras reflexões foram surgindo.
Elas seriam tal qual um trem em alta velocidade e muito difícil
de ser parado.
158

15. O PANTEÍSMO MÍSTICO


Apesar de a Ordem Rosa-Cruz ensinar aos seus membros que há
várias concepções da Divindade e que cada um deve
desenvolver um Deus do seu coração e da sua concepção, havia
certa ambiguidade no tratamento desta questão. Isso porque o
rosacrucianismo enquanto uma linha de pensamento defende
uma visão própria sobre Deus (ainda que não imponha isso a
ninguém). De acordo com a organização que eu estava, de todas
as concepções de Deus, o panteísmo seria o mais alinhado aos
ideais rosa-cruzes. Mas o que venha a ser isso?

Para quem não conhece, o panteísmo é um sistema de


pensamento que afirma que Deus está em todas as coisas e de
forma imanente, permeando toda a sua Criação. A Ordem Rosa-
Cruz, portanto, não vê a Divindade como um ser antropomórfico
tal qual as religiões abraâmicas a concebem, mas como uma
espécie de força ou energia que se esconde em tudo o que existe
(novamente aí a ideia de ocultismo que vimos no capítulo onze).

Para o leitor que toma contato com essa noção pela primeira vez,
a visão panteísta é muito bonita e busca resgatar certos laços dos
seres humanos com a natureza. Enquanto na concepção cristã
Deus está fora do mundo, no céu, no panteísmo místico a
Divindade estaria em coisas como rios, animais, florestas etc.
Este olhar impinge em nós um respeito pelo mundo natural.
Também ele nos inspira a termos uma vida harmônica com o
meio-ambiente e com o planeta Terra.
159

Eu lembro que a primeira vez que eu ouvi falar no panteísmo,


meu coração bateu forte, meus olhos se abriram e meu
pensamento se ampliou profundamente. Parecia que em todos os
anos de busca espiritual, eu estava acreditando em uma ideia
obtusa – a de um Deus macho antropomórfico e autoritário – e
agora eu finalmente havia encontrado a Verdade. E ela era o
panteísmo! Deus descia de um céu distante e misterioso e
passava a estar em todas as coisas de forma imanente e ao meu
lado! Na minha cabeça, os rosa-cruzes é que tinham a Verdade e
os religiosos eram todos uns boçais ignorantes!

A título de curiosidade, do ponto de vista histórico, alguns


autores defendem que um dos precursores do pensamento
panteísta no Ocidente foi o autor Baruch de Spinoza (1632 –
1677). Teria sido ele o primeiro pensador a nos apresentar a
ideia de uma Divindade imanente e que está em todas as coisas.
A palavra ‘panteísta’, contudo, foi utilizada originalmente por
John Toland, em 1705. Algum tempo depois, porém, esta
denominação foi rebatizada de ‘panteísmo’, expressão até hoje
adotada por quem se refere a este corpo teórico (SANTANA,
s.d.).

Os panteístas não necessariamente pregam a crença em um Deus


que criou o Cosmos, nem obrigatoriamente veem nele um Ser
que em tudo intervém. Eles apenas percebem na Realidade a
expressão divina. Vale ressaltar que há vários tipos de
160

panteísmo, como o cósmico, acósmico, hilozoísta, imanentista,


monista absolutista, monista relativista etc. Não vamos detalhar
cada um deles, pois meu objetivo é apenas deixar registrado a
existência de diferentes correntes dentro dessa linha de
pensamento. Também destaco que, de acordo com alguns
autores, o panteísmo tem forte presença em filosofias orientais
como os budismos, os jainismos, os taoismos, os
confucionismos, entre outros.

Do meu ponto de vista, durante anos eu tentei fazer com que o


Deus do meu coração e da minha compreensão se encaixasse no
panteísmo. Afinal, a Ordem que eu estava dizia que este era o
caminho. No entanto, eu sempre tive perguntas incômodas que
faziam com que eu simplesmente não conseguisse embarcar tão
facilmente nessa proposta. Será que o panteísmo é realmente a
correta visão de Deus? Será que ele não tem nenhum ponto de
crítica? Gostaria de dividir com os leitores algumas reflexões
que fizeram com que esse Deus panteísta que a Ordem Rosa-
Cruz ensinava não fosse tão óbvio assim.

Conforme eu ia tentando penetrar no panteísmo, duas perguntas


me vieram à mente. A primeira delas é: “Se Deus está em todas
as coisas, o que é afinal, ‘todas as coisas’”?. A segunda é: “Se
essa visão é tão maravilhosa, bela e verdadeira, por que ela não é
mais difundida, sendo tão somente uma crença de nicho de meia
dúzia de místicos intelectuais no Ocidente?”. Comecemos pela
primeira pergunta – o que são todas as coisas.
161

Superficialmente, a ideia de que Deus está em tudo pode ser


linda, mas se nos dermos ao trabalho de nos aprofundarmos só
um pouco neste pensamento, logo encontramos alguns
obstáculos. Ora, se Deus está em tudo, Ele está no crack e na
cocaína? No tsunami e no terremoto? Ele está nas secas que
destroem alimentos? Deus está em Plutão e no petróleo? Ele está
nos vírus e nas bactérias que ceifam milhares de vida? Deus está
no câncer e nos defeitos genéticos? Ele está nas armas dos
traficantes e dos exércitos? Deus está nas enchentes e nos
incêndios?

Em função disso, dizer que Deus tá em “tudo” é uma afirmação


que suscita uma série de perguntas para todo aquele que se
dispõe a fazê-las honestamente. Por outro lado, dizer que Ele
está apenas nas coisas boas não resolve muito os nossos
problemas, pois não basta ignorarmos as coisas ruins para que
elas desapareçam. Inclusive, eu fiz essas perguntas para rosa-
cruzes na internet e eles, em vez de me responderem, me
ofenderam. Isso mostra que as resistências psicológicas com
relação à fé costumam ser violentas mesmo em filosofias que se
autointitulam abertas ao diálogo.

Um caminho que os místicos tomam para resolver essas


questões é o de se dizer que o Deus panteísta não está nas coisas
ruins feitas pelos seres humanos como armas e drogas, mas sim
na natureza e nas coisas naturais. No entanto, há dois problemas
162

neste raciocínio. Um deles é que hoje em dia, mais da metade do


mundo não é feito de natureza “natural”, mas de construções
urbanas ou de natureza transformada pelos humanos, como
jardins e plantações.

Os materiais utilizados para essas coisas são retirados da


natureza, mas eles não são “natureza” propriamente dita. Isso
significa que se esse Deus panteísta só está na natureza
“natural”, então Ele não está em boa parte do planeta. Com
relação ao outro problema, é evidente que nem tudo que é
natural ou parte da natureza é “do bem”. Câncer é tão natural
quanto um terremoto que mata milhares de pessoas.

Assim, tanto do ponto de vista das coisas exclusivamente


naturais quanto do ponto de vista das coisas criadas pelos seres
humanos, o panteísmo nunca pareceu me dar todas as respostas
para as perguntas que eu ia me colocando. Apesar de ser lindo
olhar para um rio, as árvores, as girafas e ver Deus, o mundo é
bem mais complexo do que isso. Assim como as religiões que
creem que um Deus Onipresente, Onisciente e Onipotente que
criou tudo o que existe têm dificuldade de lidar com o mal que
existe no mundo, o panteísmo também não me parece saber lidar
muito bem com ele e nem com as coisas ruins que há ao nosso
redor. A diferença é que no caso das religiões mais tradicionais,
Deus pelo menos está fora das coisas ruins e nem sempre é
responsável por elas. No panteísmo Ele estaria dentro delas e em
alguns casos o próprio Deus seria responsável por essas coisas
163

malfazejas, o que pode tornar esse pensamento bastante


constrangedor.
Com o tempo, algumas outras coisas também começaram a me
incomodar nesta crença panteísta. Se Deus está nas árvores e nos
rios, se a árvore morre e o rio fica poluído, Deus deixa de estar
ali? Se um rio está poluído, Deus ainda está lá? Ora, se a
Divindade está no rio independentemente de ele estar sujo ou
poluído, então tanto faz o modo como o rio é tratado e podemos
entender que um rio cheio de dejetos químicos é igualmente
divino. Aliás, sob o ponto de vista panteísta, os próprios dejetos
poluentes também conteriam Deus. Por outro lado, se Deus não
está em um rio poluído, logo a noção de que Deus está em todas
as coisas é essencialmente falsa. Se Deus pode não estar em
algum lugar, logo o panteísmo não é verdadeiro.

Conforme eu me aprofundava na primeira pergunta, eu fui


conseguindo responder a segunda pergunta – o porquê certas
crenças são mais difundidas do que outras. Nisso, o curso de
História das Religiões me ajudou muito. Ao tomar contato com
a Sociologia da Religião, pude perceber que para uma classe
média que tem dinheiro para viajar ou para morar em lugares
bons, o panteísmo que busca ver uma divinização do mundo
natural se encaixa muito bem. Pessoas de mais alta renda vivem
ou podem viver mais em contato com a natureza e com tudo de
bom que o mundo pode oferecer. O problema é que boa parte da
humanidade vive acabrunhada pela miséria e dificuldades de
sobrevivência do cotidiano.
164

O mundo em que essas pessoas mais pobres vivem é triste e


pesado demais. Como dizer para uma pessoa que mora em
favelas feias, sujas e poluídas, ao som de tiro e ameaçada por
traficantes, que Deus está em todas as coisas? Ele também está
no ambiente sofrido ao seu redor? Foi daí que eu compreendi
que para este público, a ideia de um Deus Todo Poderoso que
vai resolver nossos problemas por milagres é muito mais
sedutora do que a contemplação mística do panteísmo. Mais
ainda, a ideia de que Deus estaria no céu, fora de tanto
sofrimento e de todo aquele ordálio, parece muito mais acertada
para essas pessoas.

Em função de todas essas reflexões, percebi que a concepção


panteísta era principalmente uma questão de classe social.
Enquanto algumas pessoas podem contemplar o belo da vida e
ter acesso ao que de melhor a civilização produziu, talvez a
maior parte da humanidade viva em um mundo onde o espaço
ao seu redor é hostil. Neste caso, é até melhor que Deus esteja
no céu e não no traficante que oprime a ela e seus filhos.

Além dessas questões, na medida em que eu tentava abraçar o


panteísmo, eu me ressentia de algum ponto de referência para eu
estacionar o meu pensamento. Como estaria esse Deus imanente
dentro das coisas? Seria possível “caçá-lo” ao nosso redor?
Faltava-me principalmente uma imagem que eu pudesse associar
à Divindade. Permita-me o leitor dar um exemplo. Vamos
165

contemplar uma simples televisão produzida por alguma fábrica.


Ela é feita de elementos químicos e usa a física para funcionar.
Os elementos químicos são compostos de átomos que são feitos
de partículas subatômicas. Se Deus está em todas as coisas, cadê
Ele dentro da televisão?

Uma possível resposta a isso seria a ideia de que a Divindade


panteísta estaria nas leis físico-químicas que fazem os materiais
da televisão se combinarem, bem como nos mecanismos que
fazem a informação que ela carrega aparecer e ser transmitida.
Outros ainda dizem que Deus seria uma vibração de alta
frequência que seria a responsável pelo vibrar dos átomos em
seu nível mais primevo. Nessa toada, Deus seria uma espécie de
vibração, força ou energia que se irradiam pela Criação nos seus
níveis mais elementares e se expressa por meio das leis naturais
que a Ciência já identificou.

O problema é que apesar de eu não ter muitas críticas a este


argumento, ainda assim eu me ressentia de um norte no
pensamento. Deus seria um conjunto de leis físico-químicas?
Mas aí não há nada de espiritual nele. Sob esta lógica, nas
faculdades de Ciências se estudaria religião tanto quanto na
Ordem Rosa-Cruz. Além disso, qual seria a imagem que meu
coração e minha compreensão podia ter de um conjunto de leis
físico-químicas? Ademais, as mesmas leis físico-químicas que
fazem maravilhas tecnológicas como televisão e computadores
166

são as mesmas leis que fazem bombas atômicas e armas


diversas.

Inclui-se a essa discussão o fato de que rezar para uma


divindade que se resume a um conjunto de leis físico-químicos
sempre me pareceu algo melancólico demais e sem muita
“vida”. Sobre isso, vale dizer que há algumas correntes
teológicas que pontuam que Deus seria algo tão transcendente
que seria impossível você falar sobre ele ou ter qualquer tipo de
experiência com a Divindade. Nessa perspectiva, Deus é total
escuridão. Quando você joga luz sobre ela, já deixou de ser
Deus.

Ora, este olhar é até bonitinho, mas nos joga para um mundo
onde Deus é incognoscível. Ora se é impossível conhecê-lo, para
que eu vou ficar correndo atrás Dele? E mais: Quem pode falar
em nome Dele já que ninguém O conhece? Se Ele próprio não
quer ser conhecido, Ele que se dane! Por que vou correr atrás de
quem não me dá atenção?

Neste debate, muita gente apela para uma irracionalidade na


busca de Deus por meio do misticismo. A base deste raciocínio é
que para chegarmos ao sagrado deveríamos abandonar nossa
racionalidade, pois a mente humana não dá conta de
compreender a Divindade. Este pensamento também pode ser
pulcro, mas fato é que ele nos leva ao limite das crenças
irracionais. E quando a irracionalidade impera na espiritualidade
167

temos um mundo de fanatismo acrítico que pode resultar em


diversos perigos. Se alguém acredita numa ideia absolutamente
estúpida e uma pessoa põe um contra-argumento, sempre se
pode argumentar que “a razão humana não explica tudo”. E aí
qualquer crença pode ser legitimada. Aliás, se o Deus criador
nos dotou de uma racionalidade que não é capaz de compreendê-
lo, para que devemos usar nossa racionalidade, então?

Em função dessas reflexões, o panteísmo foi pouco a pouco me


parecendo limitado e até meio bobinho. Ele não só não sabia
como lidar com o problema do mal, como ele não oferecia
nenhuma imagem acolhedora e transcendente da Divindade.
Ademais, dizer que um Deus panteísta se irradia na natureza
desconsidera que a própria natureza, por vezes, é hostil. O
mundo natural pode ser belo, mas é uma besta fera que devora a
si mesmo de forma permanente. Dizer que um Deus panteísta
está nos átomos e nas leis físico-químicas sempre foi algo que
me deu sono porque isso não diz basicamente nada sobre como
podemos usar o Divino para transcender.

Finalmente, o panteísmo rosa-cruz está intimamente associado à


ideia de que um dos atributos desse Deus imanente seria uma
espécie de Inteligência Divina que está presente em todas as
coisas. No decorrer da minha jornada espiritual, apesar de ter
dúvidas sobre a ideia de Deus, intimamente, eu cria que se não
podemos alcançar Deus, pelo menos a sua inteligência era algo
mais ou menos evidente. Conforme eu fui me aprofundando nas
168

reflexões, no entanto, eu comecei também a me perguntar: “Será


que isso faz sentido? Será que realmente existe uma inteligência
no universo?”. Este será o nosso tema a seguir.
169

16. A INTELIGÊNCIA CÓSMICA E A SUA PERFEIÇÃO

A cosmovisão rosa-cruz é herança de uma filosofia que deve boa


parte de sua gênese aos filósofos pré-socráticos. A partir da
observação que alguns antigos gregos fizeram das formas do
mundo natural e das leis da matemática que estariam na base de
todos os fenômenos naturais, concluíram que haveria uma
Inteligência imanente ao mundo.

Como já vimos, a religião cristã absorveu muito dessa proposta


grega de pensamento, mas deu-lhes outras roupagens.
Aristóteles, por exemplo, dizia que como tudo possui uma causa,
a criação do mundo teria sido fruto de uma ‘causa primeira’. O
pensamento dos nascentes cristianismos associou essa causa
primeira, uma noção essencialmente abstrata para os gregos, ao
Javé único e mais poderoso dos judeus. Foi deste encontro que
nasceu o que hoje entendemos como o Deus cristão.

Seja como for, eu ousaria afirmar que foram principalmente as


Ordens iniciáticas que preservaram o aspecto helênico dos
debates ocidentais sobre Deus. Na Maçonaria, por exemplo, usa-
se amiúde a noção de Grande Arquiteto do Universo, o GADU,
para se referir à Divindade. Esta noção encontra suas bases
justamente na ideia grega de uma Inteligência transcendente que
arquitetou o mundo por meio da matemática. Na cultura
170

maçônica, o Divino é também chamado de ‘o Grande


Geômetra’.

No caso dos rosa-cruzes, existiria uma Inteligência que permeia


o universo por meio de um Deus panteísta. Esta é chamada de
Inteligência Cósmica ou Divina. Essa cosmovisão, portanto,
reproduz as propostas do pensamento pré-socrático. A noção aí é
que a natureza é perfeita demais em seus mínimos detalhes e por
isso teria sido forjada por uma espécie de transcendência
inteligente. Afinal, basta olharmos para os cristais de gelo, para
a incrível beleza das ligações atômicas e para as mais diferentes
formas de vida que é praticamente impossível que não haja nada
de inteligente do universo, certo? Durante muitos anos eu não
via absolutamente nada de errado nessa proposta de pensamento,
mas conforme eu ia estudando a Ciência e me colocando
perguntas, essa ideia foi me causando algum estranhamento.

No meu afã de buscar a Deus, eu me debrucei mais atentamente


sobre essa tal Inteligência Cósmica para que eu pudesse me
harmonizar totalmente com ela e atingir essa espiritualidade
transcendente dos místicos. Ao olhar para o mundo ao meu
redor, contudo, eu comecei a reparar que junto da beleza da
natureza, também havia nela certo caos, confusão e muitas
coisas ruins. Se tudo é construído por essa Inteligência Cósmica,
tal qual o Deus panteísta, como lidar com terremotos,
pandemias, erros genéticos e uma natureza que é bastante hostil
171

aos seres humanos? Será que foi a própria Inteligência Divina


que criou essas coisas?

Na medida em que eu me permitia fazer perguntas, comecei a


me indagar sobre a própria noção de inteligência. O que é isso,
afinal? Para responder a esta pergunta, fui procurar na Ciência
uma resposta e encontrei vários artigos científicos que diziam
quão difícil é definir este conceito. Para que o leitor possa
visualizar a dificuldade da situação, foquemos nos seres
humanos.

Uma das maneiras mais usuais para definir a inteligência de


alguém é os testes de Quociente de Inteligência (QI), mas eles
andam sendo bastante questionados ultimamente. Isso porque a
determinação do quão uma pessoa é inteligente por meio de um
simples teste sempre traz a pergunta sobre se a pessoa que sai
bem neste tipo de atividade é realmente mais inteligente do que
os demais ou se ela tem maior habilidade para fazer
especificamente esse tipo de teste.

Além disso, sempre houve alguns questionamentos acerca dessa


aferição de QI. São relativamente bem conhecidas algumas
pesquisas feitas nos EUA que mostram que pessoas brancas e
asiáticas se saem melhor nestes testes de QI do que negros
(DÁVILA, 2007). Isso quase nos permite concluir que negros
têm um quociente de inteligência inferior aos brancos. No
172

entanto, sempre se questionou sobre até que ponto este fato não
estaria associado a contextos sociais. Negros, por terem menos
chances educacionais do que brancos e por não terem uma
cultura que valorize o estudo tanto quanto a cultura asiática,
podem se sair pior nestes testes por razões sociais e não por uma
característica inerentes à sua genética e à sua biologia.

Nesta toada, durante muito tempo associamos “ser inteligente” a


ter habilidades em matemática, mas essa noção não é uma
unanimidade. Hoje em dia, o conceito de inteligência é
absolutamente elástico na Ciência. Há pessoas que não têm
muita habilidade com a ciência dos números e mesmo assim têm
alto grau de inteligência para Ciências Humanas, Medicina entre
outros. Há pessoas que não têm muita inteligência científica,
mas têm grande sensibilidade artística. Há também indivíduos
inteligentíssimos sem nenhum grau de inteligência emocional,
trato social, empatia ou humanidade. Logo, o que ou quem é
mais inteligente? Inteligente é só quem produz dinheiro, por
exemplo?

Em função disso, se é difícil definir inteligência de um ponto de


vista mais científico, como dizer que existe uma Inteligência a
partir do mundo metafísico? E ela é inteligente em relação a
quê? A qual aspecto? – Racional, emocional, artístico? Em
função de todas essas reflexões, se durante muito tempo as
coisas eram “óbvias” para mim, conforme eu me permiti fazer
certas perguntas, as coisas foram deixando de ser tão fáceis. Seja
173

como for, vale fazer uma viagem pela história do pensamento


para entender mais essa noção de Inteligência Cósmica ou
Divina e ver se isso faz sentido.

16.1. O surgimento da vida

Para aterrissar o leitor nessa complexa discussão, comecemos


pelo surgimento da vida. Um dos principais argumentos usados
para sustentar que existe uma Inteligência Cósmica
transcendente é a origem do fenômeno dos seres viventes.
Conquanto seja difícil definir vida, de forma bem resumida,
vamos entendê-la essencialmente como matéria animada e que
se reproduz. Essa definição não é completa, mas dá conta do
recado para fins de argumentação. Portanto, quando falo em
surgimento da vida, me refiro aos primeiros seres unicelulares
que apareceram.

A primeira hipótese para o surgimento dos seres viventes é uma


corrente religiosa que eu gosto de chamar de fiatluxista. Esse
nome fui eu quem atribui e é baseado na expressão bíblica Fiat
Lux, que significa literalmente “Faça-se a Luz”. Isso se dá
porque essa perspectiva tende a acreditar que Deus criou todas
as coisas por meio de uma geração espontânea mágica alguns
milhares de anos atrás. Para eles, a Divindade criou as criaturas
já prontas e elas não estão evoluindo. Alguns chegam a pontuar
174

que os dinossauros não existem mais porque morreram no


dilúvio no qual Noé supostamente construiu uma arca.

Por razões evidentes, essa visão fiatluxista não encontra bases


científicas e ela depende exclusivamente da fé. Por isso não
vamos considera-la aqui, na medida em que ela não demanda
muitas explicações. Deus criou e pronto. Os cientistas, contudo,
possuem uma outra abordagem para essa questão. Do ponto de
vista científico, já se sabe que no início do planeta Terra, antes
da vida surgir, ele era apenas pedra e terra, água, lava e ar. Não
havia absolutamente nada por aqui, tal qual não há nada vivo
hoje em dia em Marte ou em Júpiter (pelo menos não até o
presente momento da pesquisa científica). Com o passar do
tempo, uma porcentagem minúscula dessa massa inicial de
matéria se combinou e se tornou consciente e viva.

É mais ou menos acordado entre os cientistas que essa forma de


vida primeva que surgiu a partir de uma combinação físico-
química muito particular de átomos de carbono, fósforo, entre
outros, deu origem a um ser primordial chamado LUCA (Last
Universal Common Ancestor). De forma bastante resumida, ao
longo das Eras, LUCA foi sofrendo mutações que foram se
adaptando e evoluindo no sentido darwinista do termo. Isso
originou os seres unicelulares que se transformaram em seres
pluricelulares e daí em seres cada vez mais complexos, gerando
as mais diferentes formas e criaturas. Naturalmente, como não
175

sou biólogo, trata-se de uma explicação bem resumida, mas que


é suficiente para ilustrarmos este processo.

É verdade que os cientistas não sabem exatamente como este


processo da evolução dos seres vivos se deu e nem conseguem
decifrar todas as suas variáveis (e talvez nunca venham a
conseguir). Afinal, até o presente momento, este fenômeno da
passagem da matéria não viva para a matéria viva ainda não foi
reproduzido em laboratório. Mas em função dos dados
científicos disponíveis e usando o raciocínio indutivo, a
existência de LUCA e sua posterior evolução são o que de mais
seguro temos para afirmar sobre a origem da vida. E é neste
ponto que cientistas e religiosos se dividem.

Nessa discussão, se faz mister lembrar que nem todos os


religiosos são adeptos da hipótese fiatluxista e muitos admitem a
existência de LUCA e da própria evolução biológica dos seres
vivos. A questão é que para esses religiosos, a vida surgiu a
partir da vontade Divina, ainda que tenha evoluído
biologicamente. Os primeiros átomos e moléculas que deram
origem à vida teriam se combinado por meio da volição de
Deus. O misticismo rosa-cruz, por sua vez, apesar de não ser
religioso, tende a compartilhar essa visão com os religiosos.

Para os rosa-cruzes, a vida surgiu a partir de um imperativo ou


decreto cósmicos. Inclusive, do ponto de vista do
176

rosacrucianismo, a evolução biológica seguiria a evolução das


almas individuais dos seres humanos e das almas coletivas dos
outros seres vivos. Logo, a ideia de LUCA e a subsequente
complexificação da vida nunca foram ideias opostas aos
ensinamentos da Ordem Rosa-Cruz. Mas o que os cientistas
pensam acerca deste tema?

Sobre isso, é importante ressaltar que os cientistas não


necessariamente negam a existência de Deus. O problema é que
Ele é uma hipótese que não é verificável pelo método científico.
Já vimos, inclusive, que Deus é essencialmente uma ideia. Como
provar que uma ideia abstrata existe? Logo, os cientistas que não
seguem a linha religiosa evitam abordar Deus não por
desacreditarem nele, mas sim porque a Divindade não passa pela
empiria. Não é possível evidenciar um dedo divino neste
processo. Trata-se de uma questão de fé e subjetividade. Mas
então como a Ciência explica a origem da vida?

Como Deus não é passível de verificação, os cientistas não


religiosos tendem a ir para o caminho de que a Vida surgiu do
acaso da combinação aleatória de uma “sopa” físico-química
primordial. Portanto, LUCA teria surgido do acaso. Este foi se
adaptando por meio de uma evolução cega e gerando seres cada
vez mais complexos. Filosoficamente, isso significa que não há
um Criador conduzindo este processo. Esta conclusão é o que é
mais possível de se dizer do ponto de vista científico.
177

Caso o leitor não tenha reparado, temos uma tensão entre duas
correntes de entendimento e quiçá duas maneiras de encarar a
própria Realidade. A primeira delas é que o mundo está
submetido à condução de um princípio inteligente organizador e
condutor, a tal Inteligência Cósmica. A segunda delas encara que
os fenômenos podem ser frutos de um acaso sem muitas
explicações. Neste caso, a vida pode ser um fenômeno
randômico e único sem a bênção de uma entidade supra-
humana.

Quem está certo nessa discussão – a ideia de Inteligência


Cósmica ou de acaso?

Para sustentar a hipótese de uma força transcendente, os


religiosos evolucionistas argumentam que, estatisticamente, é
bastante ínfima a probabilidade dessa sopa primordial de
elementos químicos ter se combinado da maneira exata para dar
origem ao que chamamos de Vida e às suas múltiplas
combinações. É como se pegássemos todos os átomos do
universo que existiam na época do surgimento da Terra,
jogássemos aleatoriamente da maneira correta no nível mais
subatômico possível e a vida surgisse. Parece improvável, não?
Eles também usam argumentos milagreiros e de fundo quase
poético, dizendo que a “areia se tornou consciente de si mesma”.
Como isso é possível senão por uma Inteligência superior?
178

Do meu ponto de vista, o problema desse argumento de fundo


meio racional e meio emocional que sugere uma “prova
científica” para a ideia de uma força transcendente no
surgimento da vida é que ela ignora uma coisa básica chamada
Lei dos Grandes Números das ciências estatísticas. Essa lei
indica que se o mesmo teste for realizado repetidamente (por
exemplo, jogar uma moeda, uma roleta, etc.), a frequência com
que um determinado evento se repetirá se aproximará de uma
constante. Essa, por sua vez, será a probabilidade desse evento
ocorrer.

Em função disso, dentro de uma sopa cósmica de incontáveis


átomos e moléculas no universo primordial, talvez não seja
improvável que em algum lugar eles possam ter se combinado
de modo exato a surgir este fenômeno que chamamos de vida.
Isso não significa que não devamos nos maravilhar e nem nos
assoberbar com tamanho mistério e magia. A passagem da
matéria não viva para a matéria viva é um fenômeno
incrivelmente belo e quase inefável.

Eu olho para o mundo da biologia primitiva e sua subsequente


evolução e fico sem palavras, contemplando um profundo
mistério. Mas ainda assim, não necessariamente é possível
afirmar que haja uma Divindade transcendente neste processo.
Isso depende de fé. As estatísticas nos provam que combinações
aleatórias não são tão improváveis assim. Isso posto sobre o
179

surgimento da vida, sigamos para a próxima camada de


argumentação acerca dessa Inteligência Cósmica.

16.2. A complexidade e a diversidade da vida


Dentro das diferentes concepções sobre como a vida apareceu na
Terra, as linhas metafísicas que admitem um Criador afirmam
que o processo da evolução biológica dos seres vivos foi
conduzido por essa mesma Inteligência transcendental. Neste
ponto, misticismo e religião parecem caminhar juntos, ainda que
sobre bases metafísicas diferentes. Mas será que isso faz
sentido?

Inicialmente, podemos considerar que se levarmos a sério o


argumento de que o surgimento da vida tem um dedo divino,
necessariamente devemos nos perguntar por que o Deus judaico-
cristão é aquele que seria o responsável por criar a Vida e não
outros deuses como Shiva, Vishnu, Brahma, Zeus, Quezacoatl
ou Olodumaré. Como não é possível provar qual divindade é a
verdadeira responsável, ficaríamos rodando em círculos. Aliás,
não podemos nem sequer provar que divindades existem. Neste
caso, como faz?

Para tentar escapar deste problema, os religiosos costumam


dizer que a natureza possuiria uma espécie de Design Inteligente
(DI). A ideia aí é que a Criação seria tão perfeita e complexa que
não poderia ter surgido e se desenvolvido do acaso. Em função
180

disso, haveria uma força transcendente e inteligente nas coisas


vivas e também nas não vivas, dando a entender que toda essa
perfeição no desenho das coisas teria sido originada por uma
realidade espiritual ou metafísica.

Naturalmente, esta teoria do DI é só a ideia do Deus cristão


disfarçada, mas muita gente acredita nela e lhe dá ares
científicos. O rosa-cruzes, por sua vez, caminham por bases
similares, mas eles trabalham com o conceito de Inteligência
Cósmica (IC). Embora possa haver algumas diferenças aqui e
ali, as duas propostas são essencialmente a mesma coisa.

Tanto a hipótese do Design Inteligente quanto a da Inteligência


Cósmica sustentam que quando olhamos para o corpo humano,
vemos que ele é praticamente perfeito. Há os órgãos, cada um
com sua função, trabalhando automaticamente e tudo parece se
encaixar. Há os sistemas nervoso, digestivo, sanguíneo, excretor;
temos os ossos, músculos e a pele... tudo funcionando
perfeitamente. Logo, deve haver alguma coisa transcendental no
mundo e na Criação.

Outro argumento usado pelos religiosos e místicos é a


diversidade existente nos diferentes reinos da natureza. Há
diversos tipos de minerais e de espécies vegetais e animais que
expressam beleza e uma organização química e biológica
indescritíveis, nos dando uma sensação de uma ordem cósmica
181

onde cada coisa está no seu lugar. Nessa diversidade biológica,


tudo parece ter um papel no mundo.

Durante longos anos, eu acreditei firmemente na hipótese de um


Inteligência Divina na base de tudo que existe, mas conforme eu
fui estudado Biologia, comecei a me fazer perguntas que
questionavam a validade disso. Será mesmo que o mundo
natural pode ser um indicativo seguro para “provarmos” a
existência de uma força transcendente e de um princípio
organizador? Mesmo que acreditemos nisso, temos
necessariamente que lidar com perguntas incômodas se
quisermos sermos minimamente honestos em nossa busca
intelectual. Vamos começar essa discussão pela complexidade
dos organismos vivos.

Se por um lado nós efetivamente não podemos negar que há


certa funcionalidade e pulcritude nos organismos,
particularmente nos dos seres humanos, por outro lado, temos
que lidar com alguns questionamentos. Para afirmar que nosso
corpo é perfeito, precisamos necessariamente definir o que é
perfeição. Há muitas pessoas que naturalmente têm certas
deficiências visuais e auditivas. Alguns indivíduos têm mais
habilidades para atividades físicas do que outros. Não
conseguimos ficar muito tempo sem beber água ou nos
alimentar, ao passo que há animais que conseguem resistir
bastante tempo sem essas coisas.
182

Além desses argumentos, há uma ampla gama de cores e sons


que não conseguimos ver e nem ouvir. Pouco a pouco, certas
partes do nosso corpo estão caindo em desuso, como os dentes
do siso, usados ancestralmente para mastigar carnes duras, e
alguns pontuam que o órgão do apêndice também se encaixa
neste caso (embora haja visões divergentes acerca disso).
Igualmente, nossos sentidos nos enganam o tempo todo. Nosso
raciocínio e julgamento sobre as coisas é extremamente falho
em diversas situações e nosso conhecimento sobre o mundo
sempre será limitado. Afinal, o que é ser “perfeito”?

Em função do nosso humanocentrismo, nós estamos tão


acostumados a nos olhar no espelho e vermos o reflexo da
perfeição de uma suposta Inteligência Divina que esquecemos
de problematizar certas coisas. Se por um lado nosso corpo é
realmente uma máquina complexa funcional e bela, por outro
lado, somos extremamente frágeis. A vida é um sopro.
Antigamente, antes das inovações trazidas pela Ciência e
Tecnologia, as pessoas morriam por motivos que hoje
consideramos simples por serem facilmente tratáveis. Logo, a
suposta perfeição dos organismos humanos é bela porque
Ciência e Tecnologia conseguiram dar uma ajudinha.

No que se refere à diversidade dos seres vivos, quando olhamos


para o passado da vida, vemos que diversas espécies
desapareceram, como os dinossauros, por exemplo. Cientistas
calculam que este é o caso de mais de 90% das espécies de seres
183

vivos que já estiveram sobre a Terra. É verdade que os seres


humanos têm algum papel nisso, como no caso de alguns
grandes mamíferos das Américas que foram extintos após a
chegada de nossa espécie a este continente, mas isso se aplica
apenas a uma pequena parcela da fauna. Boa parte dos animais
extintos desapareceram por causas naturais.

Nessa discussão também há espécies endêmicas de determinadas


regiões e que evidenciam a evolução biológica dos seres vivos e
sua adaptação ao ambiente e não um processo de uma
Inteligência Divina conduzindo seu surgimento. Espécies estão
surgindo e desaparecendo o tempo todo. Todos estes elementos
nos indicam que tanto a complexidade dos organismos humanos
quanto a diversidade dos seres vivos muito provavelmente são
mais o resultado de uma evolução darwinista fruto de um
movimento aleatório da natureza do que da condução de uma IC
ou DI. No entanto, ainda há quem tente associar essa evolução
dos organismos com a crença numa força transcendente
apelando para o chamado ‘princípio antrópico’.

Este princípio afirma que todo o Universo foi ou veio sendo


preparado para a nossa existência humana específica, pois
pequenas mudanças nas constantes físicas não permitiriam a
existência da vida ou da natureza como a conhecemos. Logo,
certamente há um Deus ou uma Inteligência neste processo. Há
três problemas nesse raciocínio. O primeiro deles é que esta
linha de pensamento é extremamente egocêntrica no sentido
184

mais etimológico possível da palavra. O argumento coloca todo


o mundo, dos dinossauros aos átomos, como tendo uma
existência gravitando em torno do Ego humano. O segundo
problema é de ordem mais técnica. Embora isso seja uma
questão de fé, as evidências apontam que talvez não tenha sido o
mundo que foi preparado para os seres humanos. Muito
provavelmente fomos nós que nos adaptamos a ele por meio de
uma evolução cega e não o contrário.

O terceiro obstáculo para essa argumentação é: Qual é, afinal, o


objetivo dessa Inteligência Cósmica ao criar seres que ela sabia
que não iriam se adaptar, uma vez que a Divindade é
Onisciente? Para que os dinossauros existiram? Eles foram
criados pela Inteligência Divina com o objetivo exclusivo de
gerar galinhas para os atuais seres humanos comessem? (Isso
porque, de acordo com pesquisas científicas, as galinhas de hoje
seriam descendentes diretas dos dinossauros).

Como vemos, não podemos dizer que não exista uma


Inteligência Cósmica que produziu a complexidade dos
organismos e a diversidade dos seres vivos. O problema é que
essa ideia não só é relativizada por estudos científicos, como ela
tem alguns problemas filosóficos a se defrontar. Vamos supor
que essa Inteligência Cósmica tenha realmente organizado um
punhado de matéria no mundo para dar origem a LUCA, à
complexidade dos organismos e à diversidade dos seres vivos.
Qual foi o objetivo dela com isso? Uns dizem que o objetivo da
185

vida é evoluir a alma; outros dizem que é servir a Deus e se


comportar bem para não ir pro inferno. Mas e os animais, eles
vão pro inferno? O inferno ficou desocupado durante milhões de
anos até surgirem os primeiros seres humanos? Por mais que eu
entenda a fé subjacente às crenças que sustentam uma IC ou um
DI em toda a complexidade e diversidade da vida, o que
podemos afirmar com algum grau de certeza é que a vida veio se
adaptando, se modificando e evoluindo (no sentido biológico do
termo) até chegar aos seres humanos que temos hoje. Por meio
de um processo de tentativa e erro, os mais aptos foram se
adaptando ao seu meio ambiente, sobrevivendo e se
reproduzindo, dando origem a novas espécies até chegar aos
seres humanos tal como somos hoje. Até porque, pretender o
contrário seria admitir que essa mesma Inteligência criou seres
predestinados a desaparecerem. E não só animais, mas também
humanos. Afinal, a nossa espécie foi a que sobreviveu entre
outras espécies de seres humanos, como os neandertais,
australopitecos, entre outros. No entanto, há dois contrapontos
que devemos trazer a essa discussão.

Em primeiro lugar, o darwinismo tem alguns pontos fracos


enquanto narrativa explicativa do mundo. Não sou biólogo e
também não vamos entrar em todos os meandros dessa
discussão para não fugirmos do assunto, mas as ideias de
Darwin ainda têm muitas coisas a serem esclarecidas e
debatidas. A evolução biológica dos seres vivos, por exemplo,
reduz a existência ao aspecto reprodutivo. Se formos levar muito
a sério a ideia de que existimos para transmitir genes para as
186

próximas gerações isso significa que pessoas que por diversas


razões não puderam ter filhos ou cujos filhos morreram antes
deles, basicamente tem um significado existencial reduzido a
nada. Ora, a vida humana tem um significado bem mais
complexo do que isso.

Ademais, certas noções em torno da sobrevivência das espécies


associadas à ideia de que os mais fortes ou os mais adaptados
sobrevivem também já foram usadas para ideologias políticas
violentas. Algumas delas foram a base para a ideia de uma
superioridade racial. Se os brancos têm Tecnologia para dominar
tribos indígenas “primitivas”, isso seria um processo natural de
domínio de uma espécie sobre a outra. Assim, não podemos
deixar de registrar que o darwinismo não tem todas as respostas
para nossas perguntas e pode ter desdobramentos diversos. Mas
a teoria da Inteligência Cósmica ou do Design Inteligente
também sofrem do mesmo problema.

Em segundo lugar, o fato de a evolução biológica ser real não


significa dizer que a Ciência conheça todos os detalhes deste
processo. Pelo contrário. Do ponto de vista da evolução
darwinista, a complexificação dos organismos vivos até o
surgimento dos seres humanos permanece em grande parte
misteriosa. O que se afirma sobre isso, contudo, é baseado em
evidências e dados sólidos. Quer a pessoa acredite ou não na
evolução biológica, ela existe e a vida microbiana está aí para
provar que sim. Não só as bactérias estão pouco a pouco se
187

tornando mais resistentes a antibióticos, como os seres humanos


também estão se tornando mais adaptados a certos vírus. Em
especial o vírus HIV, por exemplo, inicialmente era mortal, mas
hoje sua letalidade vem diminuindo. Isso é a própria evolução
agindo.

Em função disso, com muito boa vontade, talvez seja até


possível juntar a evolução darwinista com a Inteligência Divina,
mas eu apenas quis apresentar um contraponto à ideia de que a
vida é necessariamente fruto de uma Inteligência Divina
perfeita. E dei apenas alguns exemplos. Biólogos podem trazer
argumentos muito mais poderosos contra essa proposta
metafísica. Certas transformações biológicas parecem advir de
um acaso caótico relacionado mais ao modo como certos
organismos se relacionam com o ambiente do que com a
condução de uma Inteligência Divina.

Nessas discussões, ainda sobra um dilema que eu chamo de


‘problema filosófico dos deficientes’. Dentro do conjunto de
ocorrência dos fenômenos biológicos, há um grupo de
indivíduos que nascem com deficiências físicas e mentais. Sem a
ajuda de outras pessoas, a sobrevivência desses indivíduos é
muito improvável. Hoje já se sabe que boa parte dessas
deficiências ocorrem devido a combinações genéticas aleatórias.
Novamente aí a tensão entre acaso e uma força transcendental
conduzindo tudo.
188

Assim, como dizer para uma pessoa que nasceu com uma
deficiência física e tem uma vida cheia de limitações que ela é
fruto de uma Inteligência Divina? Como explicar essa ideia para
gêmeos xifópagos que nasceram com o corpo atrelado um ao
outro? Deus errou nos cálculos? Como explicar o fenômeno da
transexualidade, onde indivíduos são submetidos ao drama de
sentirem que não pertencem ao corpo com o qual nasceram? O
que dizer de uma pessoa que nasceu cega por problemas
genéticos? A simples contemplação destes fenômenos gera um
constrangimento na ideia de que existe uma Inteligência
Cósmica na base dos fenômenos naturais.

Como resposta a isso, muitos místicos e religiosos tentam


atribuir estes fenômenos a um carma da outra encarnação, de
modo que as pessoas que nascem sob essas condições estariam a
pagar por erros no passado. Falaremos sobre o carma mais à
frente, mas por hora, isso coloca nas costas da própria pessoa a
responsabilidade pelo seu sofrimento, ao passo que “limpa a
barra” dessa Inteligência Cósmica. E pior: tenta explicar o
sofrimento dos outros com base em algo que eles nem sequer
têm lembranças.

A ideia subjacente é “A Inteligência Cósmica é inteligente sim,


mas se algo sai errado no corpo das pessoas é porque o próprio
indivíduo foi responsável por isso em uma encarnação anterior”.
Em outras palavras, as pessoas arrumam um mecanismo
psicológico para sustentar a sua crença em uma Inteligência
189

Cósmica e caso algo a desafie, elas tiram a responsabilidade da


Inteligência e coloca nos seres humanos. Durante muito tempo
eu acreditei nisso, mas hoje eu creio que se trata de uma ideia
francamente imbecil. Mas além disso, e se tentássemos corrigir
certos erros genéticos ainda no útero, estaríamos indo contra os
desígnios divinos?

Por fim, tentar enfiar uma Inteligência Transcendental nos


fenômenos do surgimento da vida, da complexidade dos
organismos e da diversidade das formas de vida é um caminho
possível, mas cheio de pedras e obstáculos. Se essa força é a
própria perfeição Divina, por que ela nos fez com tantos defeitos
em alguns casos? Alguns sugerem que o objetivo de Deus era
fazer com que evoluamos por nosso próprio mérito e por isso a
Criação seria tão imperfeita. O problema é que essa afirmação,
hoje em dia, me parece essencialmente contraditória.

Se existe uma Inteligência Cósmica perfeita que nos criou, por


que ela nos criou tão imperfeitos a ponto de continuarmos
evoluindo tanto do ponto de vista biológico quanto do ponto de
vista espiritual? Não seria mais fácil ela ter criado os seres
humanos perfeitos? Com que fim ela criou os dinossauros? Não
sei o que o leitor acha disso tudo, mas pra mim, essa proposta
não faz muito sentido. Em função disso, internamente, nunca
consegui conciliar a noção de uma Inteligência Cósmica
conduzindo o fenômeno da Vida com o que a Biologia afirma
sobre seu campo de estudo.
190

O mais engraçado deste processo é que durante meu período na


universidade, eu ridicularizava a teoria do Design Inteligente
como sem fundamento. Isso porque este conceito era coisa de
crente fanático e “burro”. No entanto, ao olhar com atenção, eu
percebi que os ensinamentos rosa-cruzes sobre a Inteligência
Cósmica eram exatamente a teoria religiosa do Design
Inteligente. A diferença era que um tinha um fundamento
místico e outro tinha um fundamento religioso. Eu, que sempre
debochava dos religiosos, não percebia o quão próximo eu
estava deles! Isso reforça a ideia de que aquilo que muito
apontamos nos outros de alguma forma se relaciona a nós
mesmos, ainda que de forma não plenamente consciente.

16.3. A inteligência humana


Outro argumento usado para sustentar a ideia de que existe uma
Inteligência Divina no mundo é o apelo para a inteligência e a
razão humanas. Nós, seres humanos, seríamos tão inteligentes
comparativamente aos outros animais, que certamente somos
frutos de uma força transcendente. Novamente aí nos
defrontamos com a necessidade de definir o que seria
inteligência de um ponto de vista humano. Mas ignoremos este
debate e admitamos que estamos falando da capacidade humana
de autoconsciência, de raciocinar e de pensar abstratamente. Isso
nos leva necessariamente à Inteligência Cósmica?
191

Inicialmente, é preciso reconhecer que os seres humanos são, de


fato, muito diferentes comparativamente a uma ameba. Por outro
lado, nem é preciso ir muito longe nessa discussão para
encontrarmos o fato de que uma parte considerável dos humanos
utiliza a sua inteligência para o mal. Além disso, sabemos que a
grande massa dos seres humanos não raciocina muito bem.
Somos facilmente manipulados por fake news que estimulam
ódio e medo e milhões de pessoas enganadas podem mudar o
destino de todo um país com base em mentiras.

Em função dessas coisas, do meu ponto de vista, dizer que existe


uma Inteligência Cósmica tendo como base unicamente a tal
inteligência humana sempre me pareceu ser um pensamento
meio constrangedor. Se essa Inteligência é tão inteligente assim,
por que somos tão burros em relação a milhares de aspectos?
Assim, este argumento de usar a inteligência humana para
sustentar a Inteligência Cósmica sempre me pareceu uma
proposta que funciona até a página dois da discussão.

A maioria da humanidade sempre teve um intelecto


extremamente limitado. Dizem, por exemplo que escolaridade
pode aprimorar o raciocínio. Isso pode ter algum grau de
verdade, mas nem sempre isso se sustenta. Há muitas pessoas
muito estudadas que acreditam em coisas estupendas e absurdas,
o que evidencia que nem o estudo formal e escolar é capaz de
fazer os seres humanos mais inteligentes. Pessoas estudadas
192

podem ser inteligentes para algumas coisas, mas não para


milhares de outras coisas.

Em função disso, essa tal inteligência humana criada pela


Inteligência Cósmica parece ser bem limitada. Certamente os
humanos têm uma cognição e uma capacidade mental que se
pode dizer que é superior à dos animais, mas ver a nossa
inteligência como sendo o resultado de uma Criação Divina é
algo que foi pouco a pouco me trazendo certo desconforto.

O leitor pode argumentar que a inteligência humana foi sim


construída por um força transcendente porque foi graças a ela
que conseguimos superar as limitações de nosso meio ambiente
e viver com conforto e qualidade de vida. Eu poderia ponderar
sobre se nossa vida moderna é tão melhor assim
comparativamente à vida de quando não havia tantas inovações
tecnológicas produzidas pelo intelecto humano, mas vou deixar
essa discussão de lado. Quero entrar em uma dimensão
filosófica de toda este debate.

Para quem tem um olhar atento, toda a evolução tecnológica que


nos fez dominar as deficiências e hostilidades da natureza se dá
em função de uma permanente luta contra o modo como essa
própria Inteligência Cósmica construiu as coisas. Criamos
antibióticos para lutar contra o modo como o tal Design
Inteligente nos criou e nos deixou sobrevivendo aqui na Terra.
193

Este fato nos coloca a seguinte dúvida: A quem deveríamos


cultuar ou divinizar – A Inteligência Cósmica ou a Inteligência
humana que criou essas coisas? A partir daí vem duas outras
perguntas: “Os humanos criaram essas coisas influenciados por
essa tal Inteligência Cósmica ou pelo seu próprio esforço? E se
foram influenciados pela Inteligência Divina, por que ela nos
criou tantos problemas na vida?”. Um dos argumentos para
responder a esta última pergunta é o fato de que precisávamos
evoluir por nosso próprio esforço. Mas será que isso faz sentido?

Para que o leitor entenda como tudo isso não faz muito sentido,
analisemos um documento histórico intitulado "Relato de Paris
de uma operação terrível". Trata-se de uma carta escrita pela
senhora Burney que relata uma das primeiras descrições em
primeira pessoa de uma mastectomia antes da invenção da
anestesia.
"Mas, quando o aço terrível penetrou no peito, cortando as
veias, as artérias, a carne, os nervos das suas entranhas,
irrompeu "um grito que perdurou ininterruptamente durante
todo o tempo da incisão (...) de tão insuportável foi a agonia.
(...) Senti a faca contra o esterno, raspando-o!" (VENTURA,
2022).

Este pequeno trecho de como era a vida antes dos anestésicos


mostra que a tal Inteligência Cósmica nos criou de tal forma que
194

o simples fato de estarmos vivos significava que estaríamos


submetidos a uma dor física lancinante caso acontecesse
qualquer coisa com a nossa saúde. Mesmo que acreditemos que
foi a Divindade quem inspirou os homens a criar os anestésicos,
isso aconteceu basicamente “ontem” na história da humanidade.
Durante a maior parte da existência da nossa espécie, a tal
Inteligência Cósmica nos deixou sofrendo dores terríveis. Ora,
por que ela não nos inspirou a criarmos anestesias que
funcionassem desde quando os seres humanos surgiram na
Terra? Como vemos, tudo depende de fé e boa vontade.

Certamente sempre existe um meio de se contra-argumentar e


enfiar a Inteligência Divina em tudo quanto é canto, mas hoje
em dia eu prefiro

desconfiar dessa Inteligência transcendente que comanda o


mundo e admitir o fato de que os fenômenos naturais podem
cometer erros e produzir alguns “defeitos”. Igualmente, gosto de
admitir que nós, seres humanos, somos essencialmente
limitados. Se todas essas limitações e falhas foram
mefistofelicamente calculadas por essa Inteligência Divina para
que pudéssemos superá-las ou se elas surgem do acaso e da
aleatoriedade do mundo, é uma questão de crença. Mas a
depender da resposta que tentemos dar a isso, surgem vários
desdobramentos.
195

16.4. A Inteligência Cósmica no mundo social


Como o leitor pode observar, a ideia de uma Inteligência
Cósmica está essencialmente na base dos fenômenos biológicos.
Embora ela também se
relacione aos fenômenos não vivos, como as paisagens e os
elementos químicos, é essencialmente no campo da vida, um
fenômeno muito próprio de nosso planeta até o presente
momento, que esta noção metafísica ganha corpo. A questão é
que essa ideia muitas vezes não é aplicada apenas à Biologia.
Muitos a usam também para explicar o mundo humano. A noção
subjacente é que haveria também uma Inteligência Cósmica
conduzindo nosso destino. Mas será que isso faz sentido?

De um ponto de vista histórico e teológico, a ideia de Deus


sempre esteve associada àquilo que nos é bom. Quando um
exército vence uma batalha, uma colheita é bem sucedida,
vencemos alguma doença ou superamos algum obstáculo, quase
sempre associamos essas coisas ao poder de Deus. Já quando há
eventos que não nos são favoráveis, a mente religiosa costuma
ter que fazer alguns malabarismos.

Sob o ponto de vista religioso, as respostas para aquilo que nos é


mal ou hostil é que Deus nos puniu, o demônio está nos
influenciando, Deus nos abandonou etc. No entanto, gostaria de
196

chamar a atenção do leitor para um detalhe no que se refere à


psicologia daqueles que acreditam muito intensamente no
conceito de Inteligência Cósmica em detrimento da ideia de um
Deus antropomórfico próprio das religiões. Diante de uma
situação que nos é malfazeja, as pessoas que acreditam que
existe algo inteligente conduzindo todos os fenômenos e
acontecimentos do mundo costumam ter uma postura muito
particular.

Neste caso, trata-se da capacidade de enxergar lições nas coisas


que nos são hostis. Quando uma pessoa morre de uma doença,
aquele que crê na Inteligência Divina quase sempre diz que
“Deus sabe o que faz e devemos aceitar suas lições”. Quando
alguém perde o emprego, muitos alegam que Deus quis assim,
pois era o melhor a ser feito. Quando alguém termina um
relacionamento, foi livramento! Quando um país é acometido
por uma tragédia, os adeptos da Inteligência Cósmica apelam
para ideia de que a Divindade quer ensinar alguma coisa para
aquele povo.

Neste caso, a ideia de Inteligência Cósmica tenta trazer algum


significado para o decorrer dos eventos não só da nossa vida
individual quanto da nossa vida coletiva. Em todos os exemplos
acima temos a percepção de que existe uma Inteligência atuando
no mundo, fazendo o melhor possível com o objetivo de nos
ensinar alguma lição e auxiliar a nossa evolução. Assim, embora
as noções de Deus e de Inteligência Cósmica por vezes se
197

confundam, elas têm efeitos bastante distintos na psique


humana.

A meu ver, esta crença traz uma perspectiva menos obscurantista


do que a do Deus bíblico vigilante e punitivista. Sob esta última
perspectiva, se algo ruim nos acontece é porque Deus nos puniu.
No caso da Inteligência Cósmica, se algo de ruim nos acomete é
porque a Divindade está nos ensinando algo para o nosso
melhor. Aquele que tá lá em cima sabe o que está fazendo e
devemos aceitar. Mas qual é o problema dessa ideia? Na minha
humilde opinião, a ideia de uma Inteligência transcendental
conduzindo os destinos humanos, apesar de bonita, ela tem
efeitos controversos e pode nos levar a imbróglios filosóficos.
Vamos ver isso com mais detalhes.

Durante minha vida no rosacrucianismo, certa vez, um judeu


estudante de Cabala me disse que embora o Holocausto da
Alemanha nazista tenha sido horrível, ele foi necessário para que
anos depois se criasse o Estado de Israel que servisse de lar para
milhões de judeus. Vamos supor por um momento que ele esteja
certo. Sabem o que isso significa? Que os nazistas e sua matança
de milhares de pessoas não foram assassinos criminosos
necessariamente, mas agentes da Inteligência Divina para que
Israel pudesse existir.
198

Nesta linha de pensamento, os portugueses e espanhóis que


mataram e escravizaram indígenas e africanos foram agentes do
Divino para que surgissem sociedades multiculturais e
multiétnicas nas Américas. Os americanos que lançaram a
bomba atômica sobre o Japão matando milhares de crianças
foram agentes da Divindade para que a humanidade conhecesse
um período sem precedente de paz e prosperidade que sucedeu a
Segunda Guerra Mundial. O bandido que cometeu latrocínio
contra o ente querido de uma pessoa estaria sob o controle de
uma Inteligência que quer ensinar alguma coisa para alguém.

Estes são só alguns tipos de conclusões que podemos chegar


quando admitimos que existe uma espécie de Inteligência
Cósmica conduzindo o destino humano sobre a Terra. No final
das contas, se não cai uma folha da árvore se Deus não permitir,
a bomba atômica caiu sobre Hiroshima e Nagazaki porque Deus
permitiu. Mas por que ele permitiu? Ou porque ele queria nos
ensinar uma lição ou porque ele estava punindo o Japão. Os
americanos foram só agentes de Deus e de sua Inteligência
Cósmica para ensinar algo aos japoneses ou à humanidade.
Alguém realmente tem estômago para essas conclusões?

Quando eu tomei consciência deste tipo de coisa, passei a ter


muita resistência a essa ideia de uma Inteligência Cósmica. O
mundo me pareceu muito mais caótico e contingente do que um
todo ordenado por uma entidade transcendental que nos guia.
Foi então que, pouco a pouco, eu me percebi gradativamente
199

abandonando a proposta de uma força transcendente conduzindo


todas as coisas que existem e acontecem. Passei a acreditar que
as coisas boas que se sucedem na humanidade (bem como as
ruins) são mais fruto da capacidade humana de acertar, errar e de
aprender com os erros do que da atuação de uma Inteligência
Divina.

Inclusive, com o passar do tempo, notei que a ideia de dar aos


seres humanos total responsabilidade sobre suas ações traz
muito mais amadurecimento do que a crença numa Inteligência
transcendente que é responsável por tanto sangue derramado. Ao
perceber isso, me lembrei das aulas de História e do conceito de
‘materialismo histórico’ do marxismo. Embora esta noção tenha
muitos significados, ela basicamente tira Deus do controle do
destino humano. Ao problematizar a ideia de Inteligência
Cósmica, notei quão Marx estava certo nas suas reflexões.

Outro aspecto que traz ainda mais constrangimento à ideia de


Inteligência Cósmica aplicada ao mundo humano é a intercessão
entre fenômenos sociais e naturais. Quando ocorrem tsunamis,
terremotos ou outras tragédias naturais, muitos religiosos e
místicos correm para tirar a responsabilidade da Inteligência
Divina sobre essas coisas e a colocam nas ações do homem
sobre o meio ambiente. Estes eventos trágicos aconteceriam em
função dos danos que o Homem causa à natureza ou até mesmo
em função do seu comportamento moral errado.
200

Embora repetida amiúde, essa ideia é cientificamente bastante


bobinha. Coisas como tragédias naturais sempre existiram na
história da Terra, mesmo quando os humanos não estavam por
aqui. Os dinossauros exterminados pelos dinossauros nada
fizeram além de existir. Isso não significa dizer que as ações
humanas não têm responsabilidade alguma. Se construirmos
casas nas encostas dos morros e não fizermos obras de
contenção, a probabilidade de uma chuva forte destruir isso tudo
e matar várias pessoas é bastante alta. Se poluirmos o meio
ambiente, a probabilidade de enfrentarmos alterações climáticas
é igualmente grande.

No entanto, dizer que coisas naturais que sempre existiram à


revelia dos seres humanos são fruto de uma Inteligência
Cósmica que está querendo nos ensinar alguma coisa é bastante
constrangedor. Se você mora em uma área onde naturalmente
ocorrem terremotos, sabe que está sujeito a isso,
independentemente dos planos que a Inteligência Divina
supostamente tenha para você. Como adendo, repare o leitor
como a ideia religiosa de que “Deus tem um plano para você”
dialoga bastante com a noção metafísica de uma Inteligência
Cósmica e parece ser igualmente constrangedora. Há milhares de
pessoas vivendo e morrendo em extrema miséria no mundo.
Qual o plano divino para elas?

Hoje em dia, eu acho que ver os seres humanos como


responsáveis pelo seu destino e a natureza como sendo em
201

grande parte o resultado de um agir cego e aleatório é realmente


a única forma de salvar a ideia de Deus e a própria sensação de
uma Inteligência Cósmica. Acreditar que tudo o que acontece no
mundo é condução de uma Força Inteligente é uma proposta que
só quem nunca se debruçou atentamente sobre História, Biologia
e Geografia é que embarca nela de forma tão acrítica.

Mesmo que acreditemos que as coisas que nos beneficiam sejam


efetivamente frutos de um Deus ou de uma Inteligência
Cósmica, um bom estudo acadêmico sobre como as coisas ao
nosso redor são construídas nos faz ponderar sobre esta ideia.
Como exemplo, vamos supor que uma pessoa arranjou um
emprego em uma multinacional. Ela imediatamente acha que
quem “deu” o emprego a ela foi essa tal Inteligência Divina
conduzindo seu destino. Ora, pra quem tem um pouco de estudo,
multinacionais vão para certos países porque as leis desses
lugares dão a elas possibilidades de lucro, direito de
propriedade, segurança jurídica etc. E tudo isso é em função da
constituição e das leis que uma sociedade constrói. Nada a ver
com Deus ou Inteligência Cósmica.

Claro que sempre se pode alegar que essas coisas são


construídas em função ou sob inspiração dessa tal Inteligência,
mas aí é uma questão de fé. Sempre é possível enfiar um Deus
inteligente na argumentação, bastando ter boa retórica para isso.
Seja como for, para que uma sociedade prospere, é necessário
mais ações humanas do que fé nessa tal Inteligência.
202

Se você estiver diante de um bife com babatas fritas em sua


mesa, você pode até agradecer a Deus ou à sua Inteligência
Cósmica por lhe proporcionar o alimento, mas essas coisas só
foram parar na sua mesa em função de muita Ciência,
Tecnologia, investimento em infraestrutura, leis e ações políticas
e empresariais para produzi-las. Foram esses elementos que
transformaram vacas e batatas em alimentos que podemos
comprar no super mercado.

Sobre isso, vale fazer o adendo de que como são muitas as


variáveis para darmos conta no processamento da nossa
compreensão sobre como o mundo funciona, a nossa mente não
dá conta. Ninguém consegue entender tudo sobre produção de
batatas e de carne, agronomia, engenharia, infraestrutura, leis,
livre mercado etc. Como não conseguimos apreender tudo isso,
temos a sensação de que existe uma Inteligência Cósmica
invisível no mundo guiando a construção dessas coisas. Essa
noção parece ser uma forma que a consciência tem para se
harmonizar com aquilo que garante nossa sobrevivência.

O problema é que quando as variáveis não dão certo e há


inflação ou carestia, por exemplo, não sabemos muito o que
fazer com essa tal Inteligência. A meu ver, as ações humanas são
mais efetivas do que uma Inteligência mágica que atua no
mundo e distribui recursos de sobrevivência. Afinal de contas,
neste exato momento em que o leitor lê essas palavras, há
203

milhares de pessoas no mundo que passam fome e que parecem


ter sido completamente abandonadas por essa tal Inteligência
Cósmica.

Por fim, o leitor pode argumentar que por mais que haja críticas
à ideia de uma Inteligência transcendente aplicada ao
surgimento da vida, conduzindo a evolução dos seres e
capitaneando o destino dos seres humanos, ainda assim, a
natureza tem uma perfeição indescritível. Nosso organismo
trabalhando em perfeita sintonia, o movimento dos astros e dos
seres vivos – tudo isso parece ser tão encaixado que pressupõe
uma Inteligência atuando. Mas será mesmo que podemos captar
alguma perfeição nessa tal de natureza? É o que veremos a
seguir.

16.5. A imperfeição imanente das coisas


Ao longo dos meus anos no rosacrucianismo, eu percebi que as
pessoas que trabalhavam com a ideia de uma Inteligência
Cósmica imanente na Criação tinham uma estranha obsessão
com a ideia de Perfeição. Já vimos que o mundo natural não é
exatamente aquilo que podemos chamar de perfeito (ao menos
não na forma como gostaríamos que esta palavra fosse). A
questão é que existe um outro elemento que se impõe nessa
discussão. Trata-se da ideia de simetria das formas. Na nossa
cultura, a noção de que as coisas são simétricas está muito
vinculada à ideia de perfeição. Este ponto merece uma reflexão
mais detida.
204

Geralmente, quando olhamos para a natureza, vemos alguma


simetria nas coisas. A partir daí muitos concluem que existe uma
Inteligência Divina como princípio formador na base das formas
naturais. Contudo, o físico brasileiro Marcelo Gleiser, em seu
livro Criação Imperfeita (2010), traz um interessante
contraponto a esta forma de enxergar o mundo. Segundo ele, boa
parte do mundo natural, que foi supostamente criado
por essa força inteligente, não é perfeitamente simétrico. Nosso
rosto, por exemplo, não é 100% simétrico, nem nossos corpos e
nem muitas coisas na natureza. Além disso, o próprio Gleiser
ressalta o fato de que toda a dinâmica do mundo natural advém
da assimetria. No nível mais primordial da alegada Criação, o
próprio universo surgiu da assimetria entre matéria e
antimatéria.

O físico também chama a atenção para o fato de que essa ideia


que associa perfeição à simetria está muito ligada à cultura
grecorromana, o que nos leva a idealizar corpos e modelos
esculturais e perfeitamente simétricos. Não à toa, boa parte
dessa metafísica de uma Inteligência Cósmica tem origem nos
filósofos gregos. No entanto, na cultura anglo-saxã, há o
conceito de beauty mark, que são os sinais, marcas ou manchas
que uma pessoa tem, geralmente de nascença.
205

Em um eco cultural certamente proveniente dos germânicos,


uma cultura diferente da grega, esta ideia afirma que as marcas
que uma pessoa tem, em outras palavras, as suas imperfeições e
assimetrias, é justamente o que as torna belas. Isso já demonstra
como diferentes percepções culturais possuem uma diferente
noção de beleza e perfeição. Podemos citar também algumas
culturas ao redor do mundo nas quais pessoas obesas
representam opulência e poder, logo são vistas como mais
bonitas.

Toda essa discussão evidencia que a noção metafísica de uma


Inteligência Divina associada à simetria e à perfeição das formas
esbarra na própria natureza, que é assimétrica e bastante
imperfeita em muitos graus. Em função disso, temos dois
caminhos a adotar. O primeiro deles é entender que, em função
da imperfeição e assimetria do mundo, não existe Inteligência
Cósmica nenhuma na

base do mundo. Outro caminho possível é incluir a imperfeição


e a assimetria na própria noção de Inteligência.

O problema é que essa última postura nos traz insegurança e nos


força a lidar com as coisas feias, ruins e imperfeitas do mundo
como sendo criadas por essa própria Inteligência Transcendente.
Diante de algo distorcido e imperfeito, será que a gente
consegue enxergar o dedo de um Deus perfeito e organizador?
206

Essa é uma pergunta que nem místicos e religiosos me parecem


nunca terem conseguido responder.

Nessa discussão, vale trazer o pensamento de Platão. O filósofo


grego percebeu que as formas naturais podiam ser reduzidas a
padrões geométricos que expressam formas perfeitas, como o
quadrado, o círculo, o cilindro etc. Uma árvore nada mais é do
de uma casa nada mais seria do que um quadrado. Da estrutura
dos cristais de gelo à forma circular dos corpos celestes, para
Platão, tudo parecia estar submetido a uma espécie de
geometria. No entanto, o filósofo muito provavelmente sacou
que o mundo natural era essencialmente imperfeito, embora
pudesse ser reduzido a formas geométricas simétricas e
perfeitas.

A partir daí o pensamento platônico concluiu que as coisas


materiais, apesar da sua beleza e simetria potenciais, seriam
sempre formas imperfeitas de uma ideia perfeita dessa coisa que
existiria em algum plano metafísico, o chamado ‘mundo das
ideias’. A esfera, por exemplo, existiria em estado perfeito
apenas em um alegado mundo das ideias, ao passo que os
planetas seriam necessariamente esferas imperfeitas. O mesmo
se aplica à ideia de árvore, cachorro etc. Nós nunca
conseguiríamos encontrar nada totalmente perfeito no plano
material, embora talvez devêssemos buscar essa perfeição.
207

Caso o leitor não tenha percebido, provavelmente foi a proposta


de que existe um mundo das ideias onde as coisas seriam
perfeitas que nos trouxe a noção de que há modelos perfeitos
para as nossas ideias. Esta percepção até hoje afeta as nossas
concepções de muitas formas. Quando dizemos, por exemplo, o
que é ser o católico ideal, o alemão correto ou o brasileiro
perfeito talvez estejamos influenciados por essas percepções de
Platão de que em algum lugar existe um modelo ideal do
conceito que estamos trabalhando. Mas será que isso faz
sentido?

Em um olhar superficial, essa proposta platônica não tem


problema nenhum, mas quando olhamos mais atentamente para
ela, é possível perceber alguns perigos implícitos. Se por um
lado dizer que existe a ideia de um círculo perfeito de 360º num
suposto plano das ideias não traz nenhum óbice para ninguém,
quando transportamos essa proposta para outros campos da vida,
a coisa fica mais complicada. Há, por exemplo, uma ideia ideal
do que seja um ‘homem’?

Se pegarmos a ideia de homem e tentar imaginarmos como ela


seria no Mundo das ideias, como seria este homem perfeito
idealizado pela Inteligência Cósmica? Ele é branco, negro,
indígena, asiático ou azul? Ele tem cabelo curto ou longo? Qual
o tamanho e o formato do pênis dele? Ele é gordo, magro ou
forte? Peludo ou liso? Eles “mais masculino” ou “menos
masculino”? Nem é preciso ir muito longe para demonstrar
208

como este tipo de discussão tem inúmeras implicações


filosóficas e políticas. Isso porque ao elencarmos o modelo de
homem ideal, as pessoas que estão longe deste modelo seriam
facilmente classificadas como “menos homens” ou “não
homens”. Isso existe?

As ideias de Platão, apesar de bonitas, elas possuem falhas até


mesmo no mundo natural. Imaginemos duas árvores por
exemplo. A mangueira e o jambeiro. Há duas formas perfeitas
para as ideias de mangueira e de jambeiro? Ou as duas são
formas imperfeitas para a ideia global de árvore? E como essa
árvore perfeita seria, uma vez que há milhares de espécies de
árvores? E o que dizer das espécies de cachorro que os próprios
seres humanos criam por meio de cruzamentos? Os cães da raça
pug, por exemplo, foram os seres humanos que criaram. Como é
possível dizer que a Inteligência Cósmica criou uma ideia
perfeita de um pug, uma espécie não natural?

Não podemos esquecer que regimes totalitários criaram e ainda


criam a ideia do que é ser um alemão ideal, um chinês perfeito
ou um muçulmano correto. Isso implica em apagar tudo aquilo
que é diferente, esmagando as diferenças e homogeneizando à
força a pluralidade das existências humanas. A própria noção
junguiana de ‘Arquétipos Primordiais’ parece trazer um eco
desta percepção de que existem modelos ideais das coisas no
mundo das ideias. Eu ousaria até a afirmar que a apropriação
parcial e irresponsável de certas ideias de Platão ligadas às
209

formas ideais são o substrato perfeito para o autoritarismo e a


obscuridade. Os déspotas usam a perfeição como horizonte, mas
se esquecem de que o próprio Platão dizia que o mundo material
é imperfeito.

Trouxe este debate para demonstrar como a ideia de uma


Inteligência Cósmica tem enorme dificuldade de conviver com a
imperfeição, assimetria das coisas e o relativo caos que existe no
mundo. A noção platônica de mundo das ideias parece que cria
mais problemas do que traz soluções. É inegável que a ideia de
ver uma força transcendental como elemento motriz de toda a
natureza parece encontrar muitos obstáculos pelo caminho. Isso
não significa, até aqui, que não haja nenhum princípio
metafísico organizador do mundo. Mas significa que não
devemos embarcar tão acriticamente em certas ideias.

No próximo capítulo vamos discutir um outro aspecto da


cosmovisão rosa-cruz. Até aqui, falei sobre como os rosa-cruzes
enxergam um Deus panteísta e sua inteligência em todos os
fenômenos, particularmente na natureza. Aliás, o próprio mundo
natural seria expressão da Inteligência Cósmica. Mas vocês já
pararam para pensar no que é natureza? Ademais, será que a
gente pode olhar pra ela e realmente ver a impressão espiritual
de uma inteligência transcendente? Será mesmo? É o que
veremos a seguir.
210

17. O CONCEITO DE NATUREZA E DE NATURAL E


SUA RELAÇÃO COM O MUNDO ESPIRITUAL

No pensamento rosa-cruz, embora a natureza não seja


exatamente cultuada ou divinizada, é dada uma especial atenção
a ela. O mundo natural é visto como a mais bela expressão do
Deus panteísta, de sua Inteligência Cósmica e de suas leis. Há
até exercícios mentais que envolvem harmonização com os
princípios básicos da natureza como a terra, a água, o ar e o
fogo. Nesse sentido, a cosmovisão rosa-cruz possui uma relação
muito especial com a natureza.
211

Sobre isso, vale fazer um adendo e explicar o que os rosa-cruzes


entendem por ‘natureza’. Enquanto para os cientistas essa
palavra se refere basicamente ao mundo natural, para os
místicos, ela também envolve as leis e as realidades do alegado
mundo espiritual. Nesse sentido, o rosacrucianismo trabalha
com uma concepção ampliada da noção de natureza. Em outras
palavras, o mundo natural conteria um aspecto invisível e
metafísico.

Durante muito tempo eu não via nada de errado nessa proposta


de pensamento, pelo contrário. Achava que a natureza era
realmente o reflexo da uma Inteligência Divina transcendente.
No entanto, conforme o ceticismo crescia em mim, algumas
questões me foram surgindo. Em um primeiro momento,
comecei a questionar a noção ampliada de natureza que o
misticismo rosa-cruz tinha e que inclui nela elementos
espirituais. Ora, se não é possível provar que exista qualquer
coisa espiritual, como posso dizer que essas coisas fazem parte
da natureza?

Num segundo momento, conforme fui me aprofundando no


pensamento, comecei a ter certo estranhamento com a noção de
que a natureza seria expressão de uma Inteligência Divina. Ora,
o mundo natural sempre foi uma besta fera que devora a si
mesmo. Para sobreviver, os animais precisam capturar a energia
uns dos outros por meio da alimentação por toda a sua vida. o
que já demonstra uma crueza pantagruélica. E cruel aqui não só
212

com o animal caçado como também com aqueles que morrem de


inanição por falta de alimentos. Por onde quer que olhemos, a
estrutura sobre a qual a natureza se criou é essencialmente
perversa e indiferente. Onde está toda essa Inteligência
Cósmica? Nesse caso, precisamos voltar a discutir o que é
inteligência.

Mas o terceiro e principal ponto que me fez questionar todo esse


discurso foi com relação à própria noção de natureza. O leitor
pode se surpreender com essa afirmação, pois pode achar que
essa é uma pergunta que sequer cabe – O que é natureza? – mas
não é bem assim. A definição do que é ‘natureza’ ou ‘natural’ é
mais complicada do que parece. Neste capítulo vamos discutir
essas definições, mas antes vamos passar um pouco pela história
do pensamento.

17.1. A história da relação dos seres humanos com a


natureza

Hoje em dia, quando falamos em natureza, temos uma ideia


bastante respeitosa desta “entidade”, mas nem sempre foi assim.
Durante muito tempo no pensamento ocidental, a natureza era
algo visto como um elemento essencialmente vil e a ser
superado. E isso tanto no aspecto do espaço físico como no
aspecto mental. No que se refere à fisicalidade, lugares com
muitas árvores e terra eram vistos (e talvez ainda o sejam) como
213

primitivos em detrimento de belas construções. Animais eram


caçados por prazer, árvores eram derrubadas sem nenhum pudor,
rios eram poluídos sem qualquer constrangimento etc. Tanto é
que a concepção que temos de cidade é basicamente a de um
local que substituiu completamente o mundo natural.

Com relação ao aspecto mental, ‘selvagem’ ou ‘bestial’,


adjetivos usados para se referir àqueles que habitavam as selvas
ou eram parecidos com animais, ainda hoje são xingamentos
usados amiúde. A associação com o que é próprio do mundo
natural sempre teve algo de inferior ou primitivo. Esta ideia-
chave serviu até para sustentar o imperialismo europeu na África
e na Ásia, pois os povos que habitavam estes continentes eram
vistos basicamente como selvagens que deveriam ser
civilizados. Mas de onde veio essa concepção tão ruim de
natureza? Muito provavelmente ela veio da metafísica judaico-
cristã (incluindo aí o islã).

Primeiramente, a noção de pecado original própria da teologia


cristã tende a considerar que nós já nascemos pecadores. Assim,
todos os impulsos que nos são naturais são automaticamente
associados ao ato de pecar. Nesse sentido, é somente a educação
cristã que pode fazer com que controlemos nossos instintos
primitivos e adentremos numa esfera superior de existência. Em
outras palavras, a visão que os cristianismos têm dos seres
humanos não é muito amistosa para com elementos que nos são
mais orgânicos e instintivos. O simples pensar em sexo, por
214

exemplo, sob a perspectiva cristã, já seria um pecado a depender


de como é este pensamento.

Para além dessa teologia mais complexa, na Bíblia há muitas


passagens que sugerem que a natureza foi criada por Deus para
servir o homem e não o contrário. O homem não deve servir em
nada à natureza, pois ele deve servir somente a Deus. Além
disso, na perspectiva judaico-cristã, Deus está fora da sua
Criação, no céu. Nesse sentido, mesmo que a natureza seja
bonita e criada por um Deus perfeito, ainda assim não há nada
de divino nela, pois a Divindade não está nela. Nessa
cosmovisão, Deus está de um lado, a natureza do outro e o ser
humano se encontra no meio dos dois.

Em função dessa construção metafísica muito particular,


qualquer um que leia os Bíblia pode reparar que tudo ali gira em
torno dos seres humanos e pouca atenção é dada à natureza. A
palavra ‘natureza’ nem sequer é mencionada no Antigo
Testamento. Assim, a relação do pensamento judaico-cristão
com o mundo natural nunca foi lá muito amistoso. Ademais,
uma vez que os cristianismos são também parte do mundo grego
e estes reproduziam seus deuses em formas humanas, temos uma
noção de Deus muito próxima da ideia de Zeus, um homem
vetusto. Nossos anjos igualmente possuem formas humanas e
não animais.
215

Repare o leitor que nem toda ideologia metafísica tem essa


mesma relação com o mundo natural. Os egípcios tinham deuses
antropozoomórficos que fundiam humanos com animais. Os
povos indígenas também tinham ou têm crenças xamânicas que
reverenciam a totens e animais divinizados. Muitas crenças ao
redor do mundo tinham espíritos que podiam ser de animais ou
de plantas. Os astecas, por exemplo, divinizavam uma espécie
de serpente chamada Quetzalcoatl. Os chineses possuem
especial admiração por animais mitológicos como os dragões.
Trata-se de metafísicas bem diferentes do humanocentrismo do
pensamento judaico-cristão.

Nessa discussão, certas corretes dos budismos e dos hinduísmos


têm também especial reverência ao mundo animal, pois
acreditam que as almas humanas podem se reencarnar em seres
primitivos. Na Índia há vários animais sagrados como vacas e
elefantes, ao passo não há qualquer animal sagrado nos
cristianismos, judaísmos e islamismos. Repare o leitor como
muitos templos budistas, por exemplo, sempre têm várias
árvores, terra e convivem bem com animais, ao passo que a
maioria dos templos cristãos não contém natureza alguma. São
só cimento e pedra construídos. Um dos poucos que trouxe a
discussão da natureza para o centro do debate teológico no
catolicismo talvez tenha sido São Francisco de Assis, com seu
respeito aos animais. Nos islamismos e nos judaísmos,
desconheço qualquer debate semelhante, embora certamente
exista alguma coisa nesse sentido.
216

Na esteira dessa teologia judaico-cristã que tirou a natureza de


qualquer aspecto sagrado veio também a chamada Modernidade
com suas fábricas e seu capitalismo. Eles substituíram ainda
mais o mundo natural em prol de fazê-lo produzir dinheiro, uma
lógica que permanece até hoje. Estes são só alguns exemplos
para demostrar que apesar de hoje em dia termos uma certa
relação de respeito com a natureza, não só nem sempre foi
assim, como também há muitas ideologias, metafísicas ou não,
que não a tratam com respeito, pois a veem como serva dos
seres humanos.

Neste debate, é bom ressaltar que ao longo da história ocidental


houve contrapontos a essa perspectiva tão negativa do mundo
natural. Podemos encontrar essa discussão desde os gregos, mas
modernamente encontramos intelectuais como Rousseau
trazendo este tópico pro debate público. Com seu mito do bom
selvagem, este pensador dizia que os índios viviam em estado de
natureza e por isso seriam inocentes e puros. A ideia aí era
romper com a noção de que esses povos seriam selvagens no
sentido qualitativo do termo. Trata-se de uma tentativa de
valorizar a natureza construindo uma visão idílica sobre ela. A
partir do século XVIII, outros movimentos literários e artísticos,
particularmente o Romantismo, também começaram a valorizar
a natureza e a buscar nela uma fonte de contemplação.
217

No campo da espiritualidade, a onda New Age dos anos de 1960


buscou resgatar um certo vínculo entre espiritualidade e
natureza. Os movimentos ambientalistas também tiveram um
importante papel nessa discussão. Estes são só alguns exemplos
de um complexo movimento que teve várias ramificações no
debate público do mundo ocidental. E ocidental aqui não me
refiro a uma oposição essencialista ao mundo oriental. Apenas
foco no chamado Ocidente cristão porque outras civilizações e
culturas têm trajetórias tão diferentes que não daríamos conta de
abordar neste livro.

Nessa discussão sobre o modo como a natureza é vista, começou


também a haver uma valorização de tudo aquilo que era natural
sob um ponto de vista econômico. As coisas naturais passaram a
ser mais valorizadas em oposição ao que era industrial e
artificial. Ecos desse movimento podem ser encontrados até hoje
quando vamos à praia e ouvimos as vendedoras oferecendo
‘sanduíche natural’ que, supostamente, seriam mais saudáveis do
que os sanduíches artificiais ou industrializados. Ou quando
vemos na televisão propagandas apelando para o caráter natural
dos seus produtos (e portanto, para um caráter mais saudável).
Em outras palavras, o próprio capitalismo se apropriou dessas
bandeiras.

Como vemos, o debate sobre o papel da natureza e daquilo que é


natural em nossas vidas é ancestral e neste ponto entram as
Ordens esotéricas, particularmente a Ordem Rosa-Cruz que eu
218

pertenci. Isso porque como a cosmovisão rosa-cruz é mais


puxada para o lado grego do que judaico da concepção de Deus,
a valorização da natureza como expressão da Inteligência
Cósmica que atua por meio de leis perfeitas é parte da
engrenagem do pensamento. Especialmente durante a onda New
Age, a Ordem Rosa-Cruz ganhou forte impulso, embora a
organização seja anterior a ela.

Ademais, enquanto na cosmovisão religiosa toda a Verdade do


mundo está em alguns livros compilados, os Bíblia, os rosa-
cruzes acreditam que existe um chamado ‘livro da natureza’. É
por meio da observação do mundo natural e de seus segredos
que poderíamos extrair certas lições e ensinamentos que vão nos
permitir compreender e dominar as leis divinas e, com isso,
atingir uma espécie de estado existencial superior.

Isso posto, durante muito tempo, eu pensei que ‘natureza’ e


‘natural’ eram palavras lindas demais e achava que era óbvio
que deveríamos valorizar essas coisas. Considerando o fato de
que a natureza seria expressão de uma Inteligência Divina, ao
respeitarmos e nos harmonizarmos com ela, poderíamos extrair
os ensinamentos do próprio Deus. No entanto, conforme eu ia
me aprofundando na ideia de Inteligência Cósmica, eu comecei
a perceber que havia algo errado em toda essa discussão. Notei
que eu não sabia exatamente o que era natureza e nem natural. E
se eu, como rosa-cruz, deveria respeitar e venerar essas coisas,
219

como podia fazê-lo se eu sequer sabia do que se tratava este


objeto de adoração?

Eu tenho certeza que muitos leitores vão gargalhar da simples


pergunta ‘O que é natureza?’ por acharem que ela é estúpida ou
fácil demais. No entanto, convido-lhes a ler com atenção as
próximas linhas. Prometo mostrar-lhes que a definição do que é
natureza ou natural não é tão simples assim e isso tem inúmeras
implicações filosóficas.

17.1. A definição de ‘natureza’


Definir o que é natureza parece uma pergunta fácil, mas ela não
é. Se o leitor reparar com atenção, esta palavra possui várias
definições distintas em nosso cotidiano e a maioria de nós
convive com elas sem se dar conta de estar falando de coisas
diferentes quando usa esta palavra. Vamos dissecar isso um
pouco melhor.

Inicialmente, gostaria de lhes oferecer um desafio intelectual:


Onde está a natureza? O leitor pode dizer que essa pergunta não
faz sentido, pois basta irmos a um lugar com árvores, rios e
animais para encontrarmos a natureza. Isso, contudo, é uma
miragem de nosso cérebro. Quando nossos sentidos entram em
220

contato com as árvores, os rios e os animais, estamos


interagindo sensorialmente com essas coisas especificamente,
mas onde está exatamente a chamada ‘natureza’? Isso é uma
entidade?

Como analogia, se formos em uma universidade, podemos ir ao


prédio de Ciências Humanas, ao laboratório de Física, aos
setores administrativos, mas onde está exatamente a
universidade em si? A palavra ‘universidade’ é uma ideia
abstrata que associamos às formas físicas que estão conectadas a
esta ideia. No caso, a tudo aquilo que pertence a um espaço
físico que convencionamos chamar de universidade.

Se o leitor analisar com atenção, essa mesma lógica se aplica à


natureza. Para sermos mais objetivos, o que chamamos por esse
nome parece ser um substantivo coletivo para um conjunto de
fenômenos que englobam os seres vivos, fenômenos
atmosféricos, geográficos e físico-químicos. E este é o primeiro
significado do termo: “um substantivo coletivo que inclui
conjunto de tudo o que existe no mundo e que não foi feito pelos
seres humanos”.

Mas mesmo esta definição inicial não é tão satisfatória assim. Se


olharmos para uns peixes no mar, podemos facilmente chamar
isso de natureza, mas e uma pedra somente? Ela é natureza? E
um punhado de átomos? Se for assim, a cadeira na qual eu estou
221

sentado é pura natureza, uma vez que ela é feita de átomos. A lei
da gravidade é natureza junto com as leis da ótica? Mas do que é
feito uma ‘lei da natureza’? Posso pegar em uma lei da ótica?
Nesse sentido, se podemos tocar em alegadas partes da natureza,
a própria natureza parece não existir enquanto um substantivo
próprio. Além disso, essa noção inegavelmente tem partes
intangíveis e áreas de fronteiras.

Repare o leitor que mesmo no estudo acadêmico esta discussão


não é fácil. Tradicionalmente, as universidades criaram uma
divisão chamada de Ciências da Natureza x Ciências Humanas.
As primeiras englobariam Física, Química, Biologia, Geologia,
entre outras. No entanto, Matemática é algo da natureza ou é
uma criação humana? E o que dizer da Engenharia Ambiental?
Se é Engenharia pode ser definido como algo próprio da
natureza? Ademais, como estudar a influência que o meio
ambiente exerce nos seres humanos? Isso é ciências naturais ou
humanas?

Há muitas considerações filosóficas para as fronteiras de cada


uma dessas áreas, mas o que quero chamar a atenção aqui é o
fato de que não basta olharmos os rinocerontes na África e
chamar essas coisas de natureza. Esta palavra engloba de Plutão
às galinhas, dos rios às plantas venenosas, dos animais
peçonhentos aos desertos escaldantes, do câncer às ligações
atômicas. E, em sendo muita coisa, ao final das contas, natureza
não é nada, ao mesmo tempo em que é quase tudo.
222

Aqui entra um elemento curioso da nossa relação com a ideia de


natureza como um coletivo de tudo aquilo que não feito por
seres humanos. Muitas vezes achamos que a natureza está se
movimentando pelo mundo por meio dos ventos, do fogo, dos
mares e da terra, mas em corpos celestes sem atmosfera,
praticamente não existe o chamado “poder da natureza”. Em
vários lugares do universo há muito pouco das atividades
geológicas e atmosféricas que associamos ao mundo natural. Na
Lua, por exemplo, tudo é bem estático. Logo, o que a gente
chama de natureza, muitas vezes, nada mais é do que
características próprias da atmosfera terrestre e de sua
constituição geológica, não tendo um caráter universal. E aí fica
a pergunta: na Lua não tem natureza ou ela própria é a
natureza?

Em função disso, é preciso reconhecermos que ‘natureza’ é uma


noção bastante abstrata. Não podemos pegar, tocar, ouvir,
cheirar ou degustar uma natureza. O que fazemos é interagirmos
com elementos daquilo que consideramos como parte deste
conceito. Embora tenhamos a sensação de que a natureza é mais
material do que a noção de Deus, quando olhamos com atenção
e temos na mente todas as questões que elencamos até aqui,
vemos que a essência da natureza é a abstração. Ainda que
consideremos os leões da África e as árvores da Amazônia como
expressões ou partes dela, a natureza em si é uma ideia
imaterial.
223

Essa ideia abstrata, contudo, não raramente, ganha certo ar de


entidade autoconsciente tal qual entendemos Deus e aqui entra o
segundo significado que damos a este termo. Quem nunca ouviu
as pessoas dizendo que “a natureza toma de volta tudo aquilo
que tiram dela”, ou “a natureza se vinga”, “a natureza está
irritada” etc? Nestas frases as pessoas geralmente atribuem a
essa entidade abstrata uma certa consciência para agir no
mundo.

Se eu ainda não convenci o leitor sobre quão incerto é o conceito


de natureza, permita-me convidá-lo a olhar essa ideia sobre um
outro aspecto. Vamos supor que natureza é aquele mundo natural
com florestas, rios, montanhas, animais e que não há nada de
errado nisso. Ok, mas se pode ser fácil definirmos o que é
natureza, será que podemos definir o que não é natureza? Afinal,
quando a natureza deixa de ser natureza?

O leitor pode achar que esta pergunta é estúpida, pois é fácil


olharmos para um navio gigantesco feito com muitos elementos
artificiais e dizermos que aquilo não é natureza. Ok, mas e uma
piroga, uma canoa feita a partir de um tronco de árvore, ela é
natureza? Tudo aquilo que é feito pelos seres humanos deixa de
ser natureza?
224

O problema é que o navio que os seres humanos constroem não


é ele mesmo constituído de átomos e elementos tirados da
própria natureza? Afinal, a natureza se refere à forma externa
das coisas ou ao conteúdo interno delas, como os átomos e
ligações químicas? Neste ponto há também um desdobramento
filosófico de todos estes questionamentos: Se foi a própria
natureza quem nos fez, como é possível que os seres humanos e
aquilo que eles fazem sejam apartados dessa mesma natureza?
Não seriam as construções humanas expressões da natureza?

Essa discussão nos remete ao problema filosófico do barco de


Teseu, elaborado na Grécia Antiga. Para quem não conhece,
imaginem que um homem usa vários materiais para construir um
barco. Ao viajar pelos mares, uma peça se quebra e ele a troca.
Em seguida, outra peça se quebra e ele vai trocando. Ao final da
viagem, ele trocou todas as peças do barco. A pergunta é: Este
ainda é o barco de Teseu?

O leitor pode dizer que não, pois tudo foi trocado. Mas se assim
o for, a partir de que momento ele deixa de ser o barco de Teseu
efetivamente? A partir da troca da primeira peça? Se seguirmos
nessa linha, quando o barco perde apenas uma lasca de seu casco
já deixa de ser o barco de Teseu? Afinal, quando uma coisa se
torna exatamente outra coisa? Convém também lembrar que as
células de nosso corpo também se renovam de tempos em
225

tempos. Logo, nós deixamos de ser nós mesmos quando isso


acontece?

Teseu nos ajuda a pensar a seguinte questão: Se eu tiro uma


árvore para fazer um barco, a partir de que momento essa árvore
deixa de ser natureza? A partir de que momento a madeira usada
deixa de ser natural? Nessa toada, o mesmo raciocínio se aplica
a navios enormes usados com ferro e aço retirados da natureza.
Se eu minero o ferro para fazer o casco de um navio, a partir de
que momento este ferro deixa de ser natureza?

A questão é que se seguirmos na linha de que a natureza é


apenas aquilo formado sem intervenção humana, logo vemos
que as coisas não são tão simples assim. Desde as árvores
frutíferas das quais nos alimentamos até diversas espécies
animais que convivem conosco são fruto de uma intervenção
genética humana por meio de cruzamentos e melhoramentos.
Muitos rios que hoje achamos lindos são o resultado de ações
humanas de desvio de sua corrente. Ademais, boa parte do
mundo natural já foi transformado pelo Homem. Logo, se
formos pelo caminho de que natureza é aquilo que não foi
tocado pelos seres humanos, muito pouca coisa seria natureza
hoje em dia.

Ademais, existem muitas nuances nessa discussão. Quando


adentramos em uma floresta, é fácil percebermos que estamos
226

em meio a um mundo cujas formas são parte da natureza.


Quando estamos em uma grande cidade, é fácil percebermos que
aquilo ali não é exatamente natureza. Mas e um jardim e uma
fazenda, por exemplo? Ali, temos elementos da natureza e ao
mesmo tempo temos intervenções humanas que construíram
esses lugares. Afinal, jardins e fazendas são da natureza ou não?

Para resolvermos esta questão, gosto de pensar em graus. Uma


floresta com um chalé, por exemplo, é um espaço 95% de
natureza e 5% de construções humanas. Uma cidade cheia de
prédios e um parque natural no meio é um espaço 95% de não-
natureza e 5% de natureza. Já um jardim ou uma fazenda são
50% natureza e 50% não natureza. Assim, para mapearmos o
que é ou não é natureza, é possível apelarmos para a noção de
gradação. Isso, no entanto, ainda não resolve nossa questão
fundamental: quando natureza deixa de ser natureza?

O problema é que a própria ideia de que algo deixa de ser


natureza é uma contradição lógica. Se natureza é tudo, como ela
pode não estar em algum lugar? Acho que mais do que criticar a
ideia de natureza, o que nos falta mesmo é um vocabulário
próprio para definir as nuances dos diferentes estados nos quais
a natureza se manifesta. O que a gente chama de natureza é
essencialmente uma interrelação entre os seres humanos e todo
os resto do quadro existencial que nós somos submetidos e que
inclui outros seres vivos, mas também fenômenos geológicos,
atmosféricos etc.
227

Como vimos, a ideia de natureza é repetida por aí amiúde, mas


ela não é de tão fácil apreensão. Definir o que é ou o que não é
natureza é mais complicado do que parece tanto de um ponto de
vista prático quanto de um ponto de vista filosófico. Seja como
for, neste debate, esbarramos necessariamente na questão
daquilo que é natural. Isso existe?

17.2. A definição de natural


Na esteira das discussões sobre o que é natureza,
obrigatoriamente caminhamos para aquilo que é natural. Este
debate é essencialmente importante porque na cosmovisão rosa-
cruz se repete a todo momento que devemos seguir as “leis
naturais”. Muitos textos rosa-cruzes também sugerem que
devemos apelar para um estilo de vida mais natural, sem tantas
coisas artificiais. Ora, mas se é difícil definir o que é natureza,
será que é fácil definir o que é natural?

Como indivíduo que está no mundo, eu sempre achei a ideia de


levar uma vida mais natural uma proposta bela e tentadora.
Afinal, é muito lindo passarmos um tempo no campo e ver os
animaizinhos e as plantinhas. Por outro lado, eu sempre tive
algum cuidado com essa proposta. Desde quando eu frequentava
a Igreja Católica eu era desconfiado de coisas “naturais”. Um
dos primeiros elementos que me fizeram despertar essa
228

desconfiança foram os Bíblia, particularmente as cartas de Paulo


aos romanos.

Neste texto, Paulo afirma que a homossexualidade é algo


antinatural. Só existe um probleminha nessa afirmação. A
homossexualidade é encontrada em centenas de espécies de
animais. Pinguins chegam a formar casais do sexo semelhante
para chocar ovos e cuidar dos filhotes. Isso significa que nem
tudo o que os Bíblia ensinam está essencialmente correto.
Inclusive, é por causa deste fato que a ideia de que os Bíblia
seriam a Palavra inerrante de Deus nunca conquistou meu
coração.

E o engraçado é que os mesmos cristãos que dizem que


determinado comportamento seria antinatural, sugerindo que
deveríamos levar uma vida natural, são os mesmos que
maldizem a natureza em sua teologia. Em função disso, ver as
pessoas usando a palavra ‘natural’ sempre me gerou certa
cautela. Durante minha jornada rosa-cruz, contudo, eu fui
convidado a refletir sobre as tais “leis naturais” e voltei a este
conceito. O problema é que já entrei na Ordem Rosa-Cruz com
um pé atrás com relação a esta palavra. A discussão, no entanto,
vai além da sexualidade. Vamos ver um pouco como a definição
de coisas “naturais” é completamente movediça.
229

Vamos começar este debate discutindo a questão de um estilo de


vida natural em oposição a uma vida artificial ou não natural.
Pessoalmente, sempre considerei essa ideia de que os seres
humanos deveriam ter uma vida mais natural ou que eles
romperam com um equilíbrio com a natureza meio bobinha. Em
primeiro lugar, quando foi que os seres humanos viveram uma
vida natural? Quando tivemos todo esse equilíbrio todo com a
natureza? Se nós pensamos nos índios, há vários problemas aí.
Essa associação entre índio e harmonia com a natureza é
bastante ingênua e historicamente falsa.

Os índios também desmatavam, estavam submetidos à escassez


e às intempéries do ambiente e tinham doenças diversas.
Ademais, pesquisas antropológicas recentes apontam que os
chamados povos primitivos que viviam diretamente no mundo
natural eram muito mais violentos do que o homem moderno.
Os chamados ‘povos da natureza’ não tinham certas doenças que
nos eram ou são comuns, mas tinham outras doenças que eram
comuns a eles. Outrossim, se o objetivo de termos uma vida
natural é vivermos como os índios, eu queria saber como oito
bilhões de seres humanos querendo ser felizes com conforto e
qualidade de vida podem viver em harmonia com a natureza.

Nessa linha, qualquer pessoa que analise a História com um


mínimo de honestidade verá que a vida pré-moderna antes da
eletricidade e dos confortos da Tecnologia era simplesmente
dura demais. Morríamos muito e muito cedo. Antigamente, as
230

crianças sequer recebiam nome antes de completarem um ano.


Isso era para ver se o bebê ia “vingar”, ou seja, sobreviver. Não
tínhamos água encanada, eletricidade, vivíamos num
permanente silêncio e tédio o dia inteiro. Logo, dizer que o
homem se afastou de um modo de vida natural e por isso ele
sofre é uma ideia tão bobinha que hoje em dia ela me dá um
pouco de sono. Só quem nunca leu sobre como era a vida na
Idade Média é que acha graça nesse tipo de coisa.

Parece existir uma miragem em toda essa construção intelectual


que busca um resgate daquilo que é natural em oposição ao que
é artificial ou industrial e isso merece uma profunda
consideração. Foi a revolução agrícola e industrial que nos deu
abundância de alimentos que permitiu alimentar bilhões de seres
humanos. Foram os conhecimentos químicos que nos deram
anestesia e remédios que nos permitem cirurgias complexas e
curas para doenças que dizimavam a população até algumas
décadas atrás. Foram técnicas industriais e químicas que
permitiram a conservação de alimentos e criaram os chamados
alimentos artificiais, permitindo milhões de pessoas terem
acesso à comida. Logo, foi justamente a oposição ao que era
natural que impulsionou nossas vidas pra frente.

O leitor pode argumentar que os fertilizantes químicos, bem


como substâncias químicas que fazem remédios, anestesias e
alimentos em conserva nada mais são do que a manipulação de
leis naturais. O problema é: se estamos manipulando as leis
231

naturais para construir essas coisas, por que isso é ruim? Em que
uma vida “natural” é melhor do que a chamada “artificial”
baseada na manipulação da natureza que nos dá vários confortos
e facilidades? Todas essas questões, contudo, ainda não
resolvem algo muito básico: o que é natural?

Na tradição jurídica ocidental há até quem fale em um alegado


‘direito natural’. O problema é que se olharmos para a natureza
para buscar algum tipo de inspiração existencial vemos que há
peixes que trocam de sexo, animais hermafroditas, animais que
canibalizam seus filhotes, fêmeas que matam seus maridos após
a cópula, incesto, poligamia etc. A natureza é essencialmente
disputa por recursos, eliminação dos mais fracos, indiferença e
comportamentos que não tem nada de éticos ou morais.
Inclusive, câncer, derrame, defeitos genéticos e pandemias são
naturais. Nesse sentido, até que ponto o que é natural é base para
alguma inspiração comportamental humana, seja para o bem ou
para o mal?

Nessa discussão também entra a questão dos instintos naturais


dos seres humanos. Quando levados às últimas consequências e
deixados para atuar livremente, alguns dos impulsos mais
instintivos dos seres humanos são eles próprios bastantes
infensos à vida em sociedade. Muitos homens, por exemplo,
possuem uma natureza voltada ao domínio das fêmea de uma
forma agressiva, ao assassinato, ao roubo e à violência de forma
232

geral. Alguns associam essa característica a uma acentuada


presença natural de testosterona no sangue. Ora, o fato dessas
coisas serem naturais de um ponto de vista biológico não
significa que sejam boas.

Ora, se devemos suplantar esses instintos naturais em prol de


uma consciência mais elevada, estamos admitindo que nossos
aspectos naturais são deletérios. Como falar em nos adaptar
àquilo que é natural e ao mesmo tempo bloquear a natureza
humana por meio de leis e educação? Esta perspectiva já parte
do pressuposto de que aquilo que é natural pode ser hostil e
ruim, ao mesmo tempo que busca na natureza a inspiração para
agir. Outrossim, é engraçado que os religiosos dizem que a
homossexualidade é antinatural, mas se alguém quiser praticar o
poliamor, como os leões que copulam com várias fêmeas, aí é
pecado. É tanta contradição nessa ideia de ‘natural’ que ela me
parece simplesmente desonesta logo em sua base.

Isso prova que, muitas vezes, a gente repete acriticamente certas


palavras como se fossem dados imutáveis da Realidade, mas que
quando paramos para analisá-las com atenção, vemos que elas se
desvanecem no ar. Mas para além dessas questões filosóficas, há
questões práticas. O que seria um estilo de vida natural? Usar
roupas, maquiagem, fazer cirurgia plástica, óculos (escuros
principalmente), ver televisão, nada disso é natural.
233

Por que algumas coisas dentro daquilo que é natural são


aceitáveis e outras não? Dizem, por exemplo, que fazer uma
cirurgia de redesignação sexual é ir contra a natureza. Ora, mas
se assim o for, fazer plástica também não o é? E o que dizer de
cirurgias para retirar um câncer? Se devemos aceitar as leis
naturais agindo em nós, não deveríamos aceitar a naturalidade
do câncer? Usar antibiótico é se opor a uma lei da natureza (as
bactérias que nos causam infecção) ou é usá-la em nosso
benefício (a manipulação dos elementos químicos que fabricam
os remédios)? Nada é mais contra a natureza do que antibióticos
industriais.

Caso o leitor não tenha reparado, quando usamos a palavra


‘natural’, caminhamos na mesma imprecisão epistemológica do
que nos usos da palavra natureza. Afinal, quando algo deixa de
ser natural e passa ser artificial? Nessa discussão caminhamos
nos mesmos debates do ponto anterior. Se os próprios seres
humanos são um advento da natureza, por que o que eles fazem
não seria natural? Adiciono também que essa visão que separa
os seres humanos da natureza é proveniente dos gregos. Outras
culturas enxergam os homens como parte do mundo natural.

A maior dificuldade nesta discussão talvez nem seja definir o


que são natureza ou natural, mas sim definir o que não é. E isso
traz um desafio ontológico aos rosa-cruzes. Isso porque a Ordem
Rosa-Cruz, ao exortar os seus membros a não se oporem às leis
234

naturais, cria uma contradição. Se tudo só acontece ou existe no


mundo por causa das leis naturais, como algo pode ser contrário
a essas mesmas leis? Isso é o mesmo que dizer que em um
mundo onde tudo é azul, não devemos usar vermelho. Ora, mas
se nesse mundo existe algo vermelho, necessariamente nem tudo
nele é azul. Assim, se algo se opõe às leis naturais, esse algo
sequer deveria existir, uma vez que essas leis regem o mundo
inteiro.

Com base em todas essas questões eu passei a entender a


possível razão das religiões abraâmicas abandonarem o culto à
natureza. Muito provavelmente é em função de todas essas
nuances, ambiguidades e imprecisões que o mundo natural
carrega. Estas religiões levaram o pensamento diretamente para
o plano espiritual. Os elementos naturais presentes nos
cristianismos, como o cordeiro, a acácia etc foram
transformados apenas em símbolos, mas nunca foram objeto de
culto propriamente dito. Se isso é bom ou ruim, eu deixo ao
leitor a resposta.

Para encerrarmos este debate, quero chamar a atenção para o


fato de que, ao adentrarmos nesta discussão, mais do que
destruir a noção de natureza, o que temos que ter em mente é a
ambiguidade à qual a nossa mente é submetida com relação a
este tema. A beleza e suposta perfeição da natureza vive
concomitantemente com certa crueldade e indiferença para com
os seres e assim é a vida. Se hoje a natureza nos parece bonita
235

em meio a jardins, resorts turísticos e tudo mais, é porque ela é


uma natureza domada pelo Homem. Essas mesmas “leis
naturais” não são nem um pouco amigas dos seres humanos se
deixadas “ao natural”.

Por fim, tanto a palavra ‘natureza’ quanto ‘natural’ me parecem


miragens que falam muito, mas dizem muito pouco. A natureza é
realmente de uma beleza indescritível, mas a relação que os
seres humanos devem ter com ela nunca foi muito clara e isso
vem desde os gregos. A Filosofia grega, por exemplo, tinha duas
correntes de pensamento: a órfica e a prometeica. A primeira
dizia que devemos apenas contemplar o que é natural e deixar a
natureza em seus segredos. Já os prometeicos diziam que
devemos intervir na natureza e extrair dela o que precisamos
para viver bem (Canal Jornalismo TV Cultura, 2022).

Do ponto de vista histórico, os movimentos New Age e


ambientalistas são muito mais órficos, mas quem parece ter
vencido o debate histórico foram os prometeicos. Foram eles
que nos deram vacinas, carros, televisores, celulares etc.
Ninguém quer nem ficar contemplando a natureza e nem ficar
vivendo um estilo de vida natural o tempo todo.

Ao ponderar sobre essas questões, no decorrer da minha vida


mística, percebi que a ideia de ver a natureza como expressão da
Inteligência Cósmica era algo muito problemático. Havia muitas
236

pontas soltas nesse raciocínio (como ainda há e talvez sempre


haverá). E se a “naturalidade” daquilo que os rosa-cruzes
chamam de ‘lei natural’ sempre foi algo controverso na minha
cabeça, a própria ideia de lei começou a me parece questionável.
Será mesmo que existem leis que regem o mundo? Vamos
discutir sobre isso a seguir.

18. A IDEIA DE LEI

Uma das mais marcantes características do pensamento rosa-


cruz é a ideia de que Deus se manifesta no mundo por meio de
leis naturais, cósmicas ou espirituais. Essa é uma perspectiva
que trata o universo como se fosse um todo ordenado. Como
pontuei em um momento anterior, trata-se daquilo que chamo de
visão cósmico-legislativa da Realidade. Os estudantes rosa-
cruzes, ao estudar as leis de funcionamento de todas as coisas,
poderiam dominar essas mesmas leis e, com isso, atingir uma
espécie de domínio da vida.

Durante muito tempo, eu achava absolutamente normal essa


proposta de pensamento rosa-cruz. Não via nada demais em ver
o mundo como sendo regido por leis. Afinal, a própria Ciência
nos dá uma ideia parecida ao estudar as leis da natureza. Logo,
237

na minha cabeça, o rosacrucianismo seria uma espécie de


espiritualidade científica. Com o tempo, contudo, a ideia de lei
começou a ser trabalhada de minha cabeça. Isso porque a Ordem
Rosa-Cruz sempre dizia para não nos opormos às leis naturais e
cósmicas, pois isso teria consequências.

O problema é que assim como a ideia de se opor à natureza é


contraditória, a ideia de que é possível nos opormos a certas leis
também começou a me parecer tosca. Como pontuei
anteriormente, se algo se opõe às leis que fazem o universo
funcionar, como esse algo pode existir? Além disso, segundo o
misticismo, essas leis estavam ocultas. Ora, como Deus poderia
ter sido tão burro a ponto de criar uma legislação escondida que
só uns poucos tinham acesso e ao mesmo tempo exigir que
nenhum ser humano se opusesse a ela?

A ideia é a de que nossos erros nos fariam sofrer e tomar


consciência da legislação que rege o mundo. Ora, primeiro que
nada na vida é tão fácil a ponto de sabermos claramente o que é
um erro. Há pessoas que erram muito e nada acontece com elas.
Segundo que a consciência cósmica poderia ter sido mais
benevolente conosco em vez de colocar o sofrimento como
condição necessária para evoluirmos.

Mas para além dessas discussões, outra coisa começou a me


chamar a atenção. Do ponto de vista filosófico, a definição de
238

uma lei é “uma relação constante entre causa e efeito”. Apesar


de não parecer haver nada demais nessa ideia, com o tempo, eu
comecei a me questionar sobre se o mundo seria uma relação tão
constante assim de causa e efeito. Em outras palavras, essa visão
cosmolegislativa do rosacrucianismo passou a despertar em mim
alguns questionamentos muito profundos. Vamos ver um pouco
sobre isso.

18.1. Uma abordagem histórica, filosófica e científica sobre a


ideia de lei

Vamos começar essa discussão falando um pouco sobre a


história da ideia de ‘lei’. Apesar de repetida amiúde na teologia,
há dois significados para esta palavra. Na perspectiva grega do
Grande Arquiteto, o que se chama de lei é basicamente as leis de
funcionamento da natureza, principalmente por meio da
matemática. Na cultura judaica, contudo, a palavra tem uma
noção diferente. No Antigo Testamento (AT), a chamada lei
mosaica é um conjunto jurídico de leis de regras de
comportamento, hábitos e costumes do povo hebreu.

Uma vez que os cristianismos são a união entre o pensamento


grego e judaico, quando um cristão usa a palavra ‘lei’, o leitor
pode reparar que ele alterna o significado desta palavra
conforme as noções acima. Boa parte deles pensa que as leis do
239

magnetismo ou da gravidade etc são leis criadas por Deus, ao


mesmo tempo em que pensam que não fazer sexo fora do
casamento, não ver pornografia, não desonrar seus pais etc
também são leis criadas pelo mesmo Deus.

Quando se fala em “leis de Deus”, portanto, o termo engloba


coisas distintas. Ele só passa a se qualificar melhor quanto
recebe um adjunto adnominal – leis da natureza, leis cósmicas,
leis penais, leis talmúdicas etc. Sem isso, o significado
da palavra fica muito solto no ar e pode significar tanto leis
morais quanto leis naturais.

Do ponto de vista científico, durante muito tempo, a busca pelas


leis da natureza se confundia com a especulação teológica.
Muitos cientistas eram também religiosos. Na Idade Média, com
o fim da cultura clássica e a emergência do monopólio da Igreja
Católica, certas descobertas científicas tinham que estar alinhada
com o que diziam os livros bíblicos. Ideias como a Terra ser
plana ou que o Sol gira em torno da Terra tinham base em certas
interpretações bíblicas e foram normalizadas por parte da
intelligentsia. A partir da Revolução Científica ocorrida no
Ocidente em meados do século XVII, Ciência e Religião foram
gradativamente se separando. Neste ponto, a Ciência passou a
focar os seus estudos nas chamadas leis da natureza e a deixar
gradativamente de lado as discussões teológicas.
240

Em um determinado momento, alguns filósofos criaram as bases


do que seria chamado de método científico, onde um dos seus
pressupostos é a reprodutibilidade dos fenômenos. Isso significa
que para eu afirmar alguma coisa, eu tenho que testar isso ou ter
fortes evidências a favor deste ponto. E outro cientista tem que
obter os mesmos resultados fazendo as mesmas coisas. Quando
isso ocorre, estamos diante de uma lei da natureza. De forma
bastante resumida, esta é a essência da descobertas das
chamadas leis.

Para exemplificar este pensamento, vamos imaginar o seguinte


experimento. Se eu aqueço a água a 100º C e ela entra em
ebulição, logo temos uma lei. A água é um composto químico
que ferve a determinada temperatura. Qualquer pessoa em
qualquer lugar do mundo pode reproduzir este fenômeno. Logo,
o estudo das leis da natureza é também o estudo da regularidade
e da reprodutibilidade dos fenômenos.

Ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, a Ciência foi


descobrindo inúmeras leis naturais, principalmente no que se
refere à Física. Leis do eletromagnetismo, lei da gravidade, leis
da ótica, leis do movimento, entre outras foram sendo reveladas
e tendo fortes índices de acerto e sucesso. A Biologia, por sua
vez, descobriu a lei da evolução, a Química descobriu as leis de
Lavoisier, de Proust, de Dalton etc.
241

Repare o leitor a noção filosófica por detrás dessas coisas. Por


mais que teologia e Ciência tenham se separado, a Ciência é um
eco do que os gregos disseram lá atrás. Há uma legislação que
rege o mundo, a qual os cientistas podem e devem descobrir.
Assim, apesar de estarmos no campo da Ciência, essa visão tem
uma base metafísica, quase místico-religiosa.

Sob o ímpeto dessas descobertas científicas acerca da legislação


que regeria o mundo, alguns cientistas chegaram até a pontuar
que o universo seria uma espécie de relógio, onde cada peça
estaria no seu lugar e se moveria regularmente por meio de leis
totalmente previsíveis. Nesse sentido, Deus foi transformado de
um Arquiteto para um grande Relojoeiro cósmico.

Para muitas pessoas é “óbvio” que existem leis que regem o


mundo e não há motivo algum para questionar isso. Mas afinal,
há algum problema prática ou filosófico na ideia de lei?
Conforme eu fui estudando filosofia da ciência, eu pude
perceber que as coisas eram mais complicadas do que parecem.
Mesmo na Ciência, a ideia pura e simples de ‘lei da natureza’
possui várias críticas e implicações filosóficas. Ao notar isso,
comecei a envolver o rosacrucianismo na discussão. Isso porque
o misticismo rosa-cruz reproduz o pressuposto de que existe
uma legislação no mundo. A diferença é que para os rosa-cruzes
existiriam também leis ocultas e leis espirituais. Mas será que
242

isso faz sentido? Vamos ver um pouco sobre essa discussão nos
concentrando primeiramente no aspecto científico dela.

18.2. A visão cósmico-legislativa de mundo

Inicialmente, a ideia de ‘leis naturais’ é fortemente calcada nas


chamadas Ciências Exatas. Num primeiro momento, não há
problema nenhum nisso, mas a questão é que estas ciências não
são tão exatas assim. Para ilustrar este ponto, permitam-me dar
um exemplo. Imaginemos a distância entre a Terra e o Sol.
Parece fácil contá-la nos dias de hoje, certo? Mais ou menos.
Podemos até saber qual é a distância entre o Sol e a Terra, mas
se vamos contá-la em quilômetros, milhas, pés, jardas ou
metros, é uma escolha que, muitas vezes, possui critérios
subjetivos e políticos. Além disso, de qual ponto da Terra até o
Sol estamos falando? Do centro do nosso planeta, dos polos ou
do Everest?

Nós temos uma noção muito arraigada de que é na frieza dos


números da matemática que se encontra a exatidão da Ciência,
mas frequentemente nos esquecemos que apesar de ter um grau
de objetividade maior, o uso da matemática possui alguns
critérios subjetivos. Mas a própria realidade nunca é tão exata
assim. Na escola, nas aulas de Física e Química, geralmente
fazemos os cálculos dessas disciplinas desconsiderando coisas
243

como a resistência do ar ou levando em consideração a CNTP –


Condições Normais de Temperatura e Pressão. O problema é
que na vida real, não só a resistência do ar existe, como as
CNTP precisam do controle de muitas variáveis para serem
alcançadas.

Isso significa que os cientistas nem sempre conseguem prever as


variáveis de um fenômeno por meio de complexos cálculos. Na
vida real, erros, imprevistos ou situações anômalas podem
ocorrer. Hoje já se sabe, por exemplo, que a atmosfera acima do
Atlântico Sul possui uma anomalia magnética que afeta satélites
e outras coisas.

O leitor pode argumentar que por mais que haja essas anomalias
nos fenômenos físico-químicos, é possível prevê-los e calculá-
los, dando aos cientistas um maior controle sobre os fenômenos.

Aqui, cabe lembrar que a água ferve a 100º sob determinada


altitude. Conforme ela varia, varia também a temperatura de
ebulição. Logo, mesmo quando as leis saem de certa ordem,
ainda assim seria possível prever seu funcionamento e seus
mecanismos.
244

Este argumento é essencialmente verdadeiro, mas o problema é


que estes fatos começaram a causar uma rachadura no edifício
cósmico-legislativo que o rosacrucianismo construíra em mim. A
ideia de que o mundo é regido por leis que pressupõem uma
relação constante de causa e efeito começou a ser relativizada
em minhas reflexões. De fato, quanto mais baixo estamos na
escala dos fenômenos (ou seja, no universo das ligações
químicas e dos fenômenos físicos), mais previsíveis eles tendem
a ser. Mas quando vamos “subindo”, saindo da físico-química e
entrando na biologia e na psicologia humanas, aquilo que
chamamos de lei fica mais complicado e isso foi me chamando a
atenção.

No darwinismo, por exemplo, há muitas afirmações que


sugerem certas leis de comportamento humano no que se refere
ao acasalamento. Muitos cientistas dizem que homens preferem
mulheres com quadris mais largos porque eles sugerem maior
fertilidade e filhos mais fortes. Mulheres também tenderiam a
preferir homens fortes e potentes porque isso daria a elas um
maior sentido de proteção da prole. Até aí nada demais, certo?
Errado.

Na vida real, as coisas são mais confusas. Se o que o


darwinismo fala fosse uma “lei”, nenhuma mulher magra ou
homem mirrado conseguiria acasalar. Sabemos, contudo, que a
dinâmica existencial é bem mais complexa do que isso e que
padrões de beleza e gostos sexuais variam enormemente tanto
245

do ponto de vista coletivo quanto do ponto de vista individual. É


tanta variedade que fica até difícil mapear “leis” do
comportamento humano.

Mesmo no campo da Medicina, que muitos acreditam ser uma


ciência exata movida por leis constantes de causa e efeito, não é
bem assim. Há tratamentos que funcionam em determinados
pacientes e não em outros. Alguns se curam com certos métodos
tradicionais e outros morrem. Há pessoas que fumam e comem
alimentos fritados em banha de porco a vida toda e morrem aos
cem anos e há pessoas que se exercitam diariamente, têm câncer
de pulmão e vêm a falecer muito jovens.

Sobre isso, vale pontuar que no século XIX, o sucesso da


descoberta das leis do mundo natural era tanto que certos
pesquisadores começaram a se indagar sobre se não haveria leis
que regulam não só a mente humana como a própria sociedade.
Daí surgiram disciplinas como a Psicologia, a Sociologia, a
Economia. entre outros. O problema é que mesmo nessas
disciplinas há muito poucas leis no sentido clássico do termo. A
interpretação dos dados varia enormemente segundo as correntes
teóricas e interpretativas em questão, de modo que apesar dos
grandes avanços nessas áreas, elas não são Ciência da mesma
maneira que a Física.
246

A Psicologia em especial é muito significativa dessa tentativa de


decifrar as leis da mente humana. Quem nunca ouviu a
correlação entre “ele foi abusado quando criança e virou
psicopata”? Ou ainda “Ele teve um pai ausente e uma mãe
superprotetora e por isso virou homossexual”; “Ele tem
problemas com a sua sexualidade e por isso usa armas e carros
potentes”. Todas essas frases fazem sentido em alguns casos
para algumas pessoas, mas elas estão longe de ser uma lei. Nem
todo mundo que foi abusado vira psicopata, nem todo mundo
que teve um pai ausente vira homossexual e nem todo mundo
que gosta de armas tem problemas com a sexualidade ou o
tamanho do pênis. Isso se aplica para alguns, mas não para
todos.

A Economia também é um campo do conhecimento onde a ideia


de lei encontra muitas limitações. Muito se fala, por exemplo,
que os economistas são capazes de prever os rumos da economia
nos próximos meses, mas isso simplesmente não é verdade. Em
uma reunião com três economistas, teremos pelo menos cinco
opiniões diferentes sobre um mesmo assunto. A economia de um
país é um sistema caótico no sentido clássico do termo, onde não
podemos prever com exatidão a relação entre causa e efeito das
coisas. O que funciona como remédio econômico em uma
cultura, pode não funcionar para outras. Além disso, cálculos
econômicos sempre estão sujeitos ao imprevisto.
247

Neste debate, o que dizer da ciência da Nutrição, que ora diz


uma coisa sobre o ovo e ora diz outra coisa? Um dia o tomate
faz bem ao coração e no outro dia ele pode fazer mal. Isso
ocorre porque é muito difícil isolar as variáveis da nossa
alimentação porque ninguém pode comer uma única coisa
durante longos períodos de tempo para avaliarmos com precisão
os efeitos de determinados alimentos.

Mas o que isso tudo significa? Todas essas questões significam


que a noção de lei que pressupõe um mundo regularizado, de
causa e efeito, onde tudo é enfadonhamente encaixado, talvez
não seja tão absoluta assim. A ideia por detrás disso é nos
convencer que estamos sob a égide e proteção de uma
Inteligência Cósmica ou de um Arquiteto do Universo que nos
dá regularidade e previsibilidade existencial. Basta-nos
descobrir as leis da natureza para dominá-las que tudo fica bem.

Essa proposta é muito linda, mas só tem um problema. O mundo


parece muito mais baseado em probabilidades e tendências do
que na ideia filosófica de ‘lei’ enquanto uma relação constante
de causa e efeito. Se é bem verdade que uma parte dos
fenômenos têm uma regularidade que é possível prever e
organizar, outra parte do mundo parece não ter toda essa
regularidade para enxergarmos essa dimensão constante de
causa e efeito.
248

Outro bom exemplo bom para ilustrar essa discussão sobre a


amplitude da ideia de lei são os debates sobre a mente dos
nazistas. Após a derrota de Hitler, enquanto seus asseclas eram
julgados por tribunais internacionais, muitos pesquisadores
correram para investigar membros do partido nazista. A ideia era
saber se havia alguma coisa de diferente na psicologia ou na
biologia deles. Muitas teorias foram lançadas, hipóteses
levantadas, mas ao final, o que se descobriu era que os nazistas
eram pessoas comuns iguais a nós. Isso significa que a ideia
legislativa de que “as pessoas são assim ou assado” em função
de uma “causa” biológica, psicológica ou social simplesmente
parece não se aplicar em todos os casos.

Em especial a física quântica tem algo a nos dizer sobre isso. O


mundo quântico estuda o universo atômico em seus mínimos
detalhes. Estes estudos trouxeram uma visão de mundo
totalmente nova: a ideia de que não podemos prever exatamente
onde o elétron estará, mas apenas calcular sua probabilidade.
Esta conclusão traz uma nova e pouco explorada perspectiva de
mundo. Trata-se da ideia de que embora haja no mundo certa
previsibilidade gerada por meio de leis naturais, existe também
uma outra dimensão onde a imprevisibilidade e a contingência
são parte integrante dos fenômenos.

Quando fui tomando contato com essas reflexões acerca da ideia


de lei dentro da própria Ciência, esses pensamentos pouco a
pouco foram sendo transferidos para o misticismo rosa-cruz,
249

base da minha espiritualidade. Mas como essa discussão impacta


o rosacrucianismo? – O leitor pode se perguntar. Para explicar
essa relação, usemos o Usemos o exemplo da ideia de que o
número três possui um papel muito particular na mente divina e
que por isso a humanidade seria dividida entre homem, mulher e
criança.

Entre o homem e a mulher, existem os hermafroditas, as pessoas


andróginas, modernamente chamadas de não-binárias, as
pessoas transgêneros e mesmo os homens e mulheres cisgêneros
trazem uma certa gradação em expressões de masculinidade e
feminilidade. Dizer que o mundo é dividido apenas entre
homens, mulheres e crianças é muito mais um desejo de alguns
do que a realidade dos fatos.

Nessa linha de pensamento, poderíamos dizer que o número três


está na base da Criação divina porque existem, por exemplo três
estados físicos da matéria: sólido, líquido e gasoso. Certo? Mais
ou menos. Eu já vi físicos diversos falando que também haveria
o estado coloidal (a gelatina), o estado ígneo e há até quem fale
em estado plasmático da matéria. Isso colocaria seis estados
físicos. Isso prova que a Ciência, que muitos pensam que é o
simples desvelar da Verdade, possui graus de subjetividade em
cada área e interpretações diferentes dos fatos.
250

Tanto a diversidade em termos de masculino e feminino quanto


de estados físicos da matéria provam que o mundo é mais
colorido do que a ingênua compreensão de que as coisas se
encaixam tão belamente em uma “lei” cósmica, natural ou
espiritual, como na lei do número 3. Isso nada mais é do que o
desejo ingênuo das pessoas de achar que compreendem a
realidade ou de forçar esta última a se adaptar às suas crenças.
Este movimento cria uma segurança psicológica de
pertencimento e previsibilidade com relação ao mundo. Mas
nada é mais caótico, imprevisível e ilógico do que a Realidade.
A lógica, inclusive, é um instrumento para entender o mundo,
mas o mundo não é inteiramente lógico, como a ideia de lei nos
leva a pensar. Se assim o fosse, o mamífero ornitorrinco não
colocava ovo.

Ao tomar consciência de todas essas problemáticas, a proposta


do Misticismo de que era preciso estudar as leis naturais e
divinas para então obter o domínio da vida começou a me
parecer estranhamente delirante, uma vez que nem a Ciência
consegue fazer isso com absoluta exatidão. O pensamento rosa-
cruz, contudo, tem ainda alguns outros aspectos que merecem
alguma consideração mais aprofundada.
18.3. As leis aplicadas à mente humana

Assim como certos campos do conhecimento tentaram decifrar


as leis que regulam a mente humana, o misticismo tem uma
visão muito particular sobre isso. No rosacrucianismo há uma
251

informação não dita nas monografias, algo que é sugerido e


deixado no ar para que as pessoas captem. Trata-se da ideia de
que certas leis que atuam no funcionamento da matéria também
se aplicariam ao funcionamento da mente humana. A base para
este pensamento está nas chamadas leis herméticas,
particularmente naquela que diz que “Tudo o que está em cima é
como o que está embaixo”.

Sobre isso, é bom salientar que não é só o rosacrucianismo que


caminha nessa seara. No mercado editorial há muitas obras que
falam sobre leis que regulam a mente humana tendo um enfoque
mais esotérico, como se estivessem descobrindo leis que
ninguém nunca descobriu, mas que aquele autor específico vai
revelar como se fosse um grande conhecimento. Por exemplo,
há certos livros com os seguintes títulos: Como fazer amigos e
influenciar pessoas, As 48 leis do poder, Pai rico e pai pobre
etc. Repare o leitor como estas obras evocam a ideia de um
mecanismo regulatório na mente humana que pode ser
manipulado para fazermos amigos, termos poder e dinheiro. Mas
será que a mente humana possui leis tal qual reações químicas?
Especificamente no rosacrucianismo, as monografias rosa-
cruzes nos ensinam ligações atômicas. O leitor pode se
perguntar o que isso tem a ver com espiritualidade e,
aparentemente, não faz sentido algum essa associação entre
átomos e mente humana. Mas quando olhamos os átomos, por
exemplo, existem as chamadas forças de atração, repulsão,
coesão e adesão.
252

O segredo dessas informações é que sob uma perspectiva


mística e esotérica, essas “forças” também existiriam em nossas
mentes. Quando uma pessoa adere a uma religião, será que
existe nessa religião uma força de adesão que pode ser forte ou
fraca, a depender das ideias que existem ali? Igualmente, quando
um indivíduo escolhe um livro específico em uma livraria ou vê
um filme de seu interesse, não haveria ali uma força de atração
que pode ser mais ou menos intensa? Outrossim, quando um
grupo militar permanece unido até o fim da campanha ou um
grupo de trabalhadores fica junto em um protesto, não parece ser
essa uma força de coesão? Por fim, quando uma pessoa olha
algo que lhe dá repulsa e que lhe gera raiva, haveria em sua
mente uma força de repulsão?

Aparentemente, não há nada de errado nessas ideias. Pelo


contrário. Para o leitor que tem contato com elas pela primeira
vez, ele pode ficar maravilhado. O problema é que, durante
minha jornada, eu comecei a perceber como essas ideias podem
ser problemáticas. O livro O Segredo (BYRNE, 2015), por
exemplo, ajudou a impulsionar a noção de que a mente humana
seria responsável pelos eventos que nos acontecem em função
da chamada lei da atração. Em outras palavras, as coisas
acontecem com a gente conforme as atraímos. Mas qual é o
problema dessa ideia? Todos.
253

Nessa linha de pensamento, a mulher que foi estuprada, é porque


atraiu isso. O LGBT espancado na rua ou expulso de casa, é
porque não soube vibrar positivamente. Os judeus mortos no
holocausto criaram essa forma no pensamento deles. Os negros
escravizados e seus descendentes que ainda sofrem racismo
atraíram e atraem isso para eles. Os índios assassinados são
responsáveis pela sua própria morte por não saberem criar o seu
futuro. Faz sentido tudo isso?

Outra coisa muito engraçada sobre essa ideia de ver leis na


consciência humana é a coisa de “nas leis da Química os opostos
se atraem”. Primeiramente essa visão automaticamente sugere
que as relações homossexuais são contrárias a essa legislação
cósmica. Mas mesmo assim, o que significa “opostos”? Um
homem e uma mulher que tenham gostos completamente
diferentes entre si podem ter um casamento saudável? Vizinhos
que vivem brigando por terem opiniões diferentes deveriam se
atrair? Isso simplesmente não faz sentido. Na vida real e no
nível mental, os semelhantes se atraem muito mais do que os
chamados opostos.

Também podemos analisar essa questão por outro ângulo. No


mundo da físico-química, dois ímãs de polos iguais se repelem.
Se aplicarmos isso à mente humana, o que temos? Alguém que
odeia bandidos, pedófilos ou assaltantes é igual a essas pessoas
que lhes causa repulsa por serem polos semelhantes? É verdade
que, em muitos casos, aquilo que condenamos nos outros é
254

porque existe em nós mesmos, como no caso dos homofóbicos


que possuem desejos homoeróticos reprimidos, mas isso não se
aplica a tudo.

Mas então o que isso significa? Significa que a mente humana é


mais complexa do que parece e que talvez não seja possível
reduzir tudo de forma tão simplista a leis que podem ser
facilmente controláveis e manipuláveis. Essa coisa de leis
espirituais aplicadas ao pensamento é quase a mesma coisa que
dizer que a mulher foi estuprada porque não estava vestida de
forma adequada. Ou seja, culpa-se a vítima em função da sua
roupa ou da “força de atração” dos seus pensamentos ou do seu
comportamento.

18.4. O obscurantismo da ideia de lei

Pouco a pouco, a ideia de leis, principalmente quando


vinculadas a um mundo espiritual ou a um universo místico
deixaram de ser uma proposta inocente de ver o mundo. As
reflexões próprias da Ciência, bem como o tipo de conclusões
que poderíamos chegar quando pressupomos uma relação de
causa e efeito nas coisas, onde a causa pode ser algo espiritual,
começou a me parecer delirante. Mas mais do que isso, eu
255

comecei a sentir que a visão cósmico-legislativa de mundo tinha


algo de muito obscuro.

No rosacrucianismo é feito inúmeras referências à ideia de que


devemos conhecer as leis naturais e espirituais, dominá-las e que
nunca devemos nos opor a essas leis se quisermos ter uma vida
harmônica. Além da ideia de oposição a uma lei natural ser
colocada em xeque quando alguém usa um simples óculos, havia
outra discussão aí. Com o tempo, fui percebendo que essa visão
construía uma díade. Trata-se da oposição entre aquilo que está
“dentro da lei” e aquilo que está “fora da lei”. Vamos começar
essa falando sobre um tema que sempre foi objeto de debate
científico, filosófico e teológico: a sexualidade.

Imaginemos que alguém diga que o objetivo da sexualidade é a


reprodução e que isto é uma lei natural. Ora, se uma mulher tem
vários parceiros ou não quer ter filhos, ela automaticamente é
uma criminosa espiritual. Se alguém diz que o ânus não foi feito
para ser usado no sexo, um homem heterossexual que aprecie
que a esposa estimule a sua próstata, automaticamente é um
fora-da-lei. Ora, mas não foi a própria lei natural que criou a
próstata com terminações nervosas que dão prazer a alguns
homens? Não foi a própria natureza que criou algumas pessoas
com instintos sexuais mais intensos, de forma que a monogamia
não lhes satisfaz?
256

O leitor pode dizer que cada um tem uma natureza que lhe é
própria e que esses argumentos não se sustentam. De fato, não
se sustentam e sabemos que cada pessoas tem necessidades
sexuais muito próprias. No entanto, isso não elimina o dilema
filosófico. Afinal, se existem várias naturezas em cada
indivíduo, cada uma dessas naturezas possui leis próprias de
funcionamento? Isso derruba a ideia de um mundo regulado por
leis fixas, gerais e universais.

A ideia rosa-cruz de “se opor às leis naturais”, pouco a pouco,


foi me lembrando algo do fundamentalismo religioso. Sob esta
ótica, se a pessoa fica doente ou tem um grande infortúnio,
muitas vezes os senhores místicos da lei diziam que isso ocorreu
porque a pessoa se “opôs às leis naturais”. Mas será isso
efetivamente uma verdade? Se olharmos para nossa vida
cotidiana, veremos um mundo de altos e baixos. Temos
momentos de alegria e de tristeza, de realizações e perdas, de
saúde e doença, de facilidades e dificuldades etc. Isso tudo é
simplesmente parte da vida humana ou só existe porque estamos
nos “opondo” a alguma lei da natureza?

Também há os que usam a ideia filosófica de se opor às leis


naturais para explicar fenômenos que são eles próprios naturais.
Este é o caso de pessoas que dizem as árvores derrubadas na
Amazônia faz acontecer terremotos no Nepal, pois o
desmatamento provocaria uma espécie de “revolta” da natureza.
A ideia é “Tá vendo? Os seres-humanos estão contra a natureza
257

e as leis naturais e depois acontecem tragédias.” Este raciocínio,


como já vimos, não possui empiria ou meios de comprovação e
denotam uma espécie de humanização da natureza, atribuindo a
ela sentimentos humanos como vingança.

Outro exemplo de quão relativa é a ideia de nos opormos às leis


naturais é o fumo. Alguns textos rosa-cruzes até sugerem que
este hábito viola as leis naturais. Mas será isso verdade? Isso
porque é o nosso cérebro que se torna facilmente dependente de
substâncias químicas nocivas. Ora, neste caso, como é que o
órgão responsável por nos manter vivos seria ele próprio o
violador da lei natural? Mas mais do que isso, a tal Inteligência
Cósmica que nos criou fez nossos cérebros altamente
dependentes de coisas que, muitas vezes, nos causam mal. Isso
mostra que a IC pode não ser tão inteligente quanto acreditamos.

Indo mais além, é possível pensarmos que a prática de esportes,


por exemplo, nos mantém saudáveis, logo, praticar atividade
física seria seguir a lei natural. O problema é que quando vemos
alguns atletas, muitos vão aos limites do seu corpo e têm
contusões, problemas musculares e realizam treinos extenuantes
para obter um alto rendimento. Ora, qual é o limite da prática da
lei natural e uma violação delas? Afinal, fazer certos esforços
com alto rendimento não tem nada de natural, sendo tão somente
o estudo e a aplicação de técnicas para turbinar o corpo. Então
os atletas estão violando as leis da natureza?
258

A ideia de oposição às leis naturais traz questões filosóficas


profundas e aqui começamos uma articulação com os capítulos
anteriores. O envelhecimento, por exemplo, é uma lei natural do
corpo. Mas ao fazermos tratamentos para rejuvenescer nossa
pele e retardar o processo de envelhecer, estamos violando as
leis da natureza? Por outro lado, ao dominarmos as leis da
química que permitem o rejuvenescimento, não estamos
aplicando essas próprias leis a nosso favor?

Eu poderia citar milhares de exemplos de como essa ideia de


violar leis naturais são contraditórias e criam problemas difíceis
de resolver, além de criar a figura do “fora-da-lei” espiritual,
mas creio que estes exemplos são suficientes. Com o tempo, a
base do pensamento rosa-cruz começou a não fazer mais
sentido. A ideia de um domínio da existência por meio do
entendimento das leis que regem o mundo começou a me
parecer ilusória frente à contingência que se coloca na vida
humana. A noção de um mundo regulado por lei e ordem me
parece o oposto da própria essência da vida – imprevisível,
contingente e aleatória – e que nos convida a vivenciá-la em
toda a sua dor e alegria.

Ademais essas reflexões, o pensamento rosa-cruz de uma


relação de causa e efeito entre as coisas pode ser questionado
quando contemplamos o simples fato de que todo e qualquer
fenômeno parece ser bastante pluricausal. A violência urbana,
por exemplo, possui várias causas, bem como efeitos diversos.
259

Como é possível pensar que as coisas no mundo só acontecem


em função da existência ou da violação de uma única lei?

Obviamente, não é possível dizer que não haja leis naturais no


mundo. É evidente que há uma grande legislação no livro da
natureza e que podemos manipular essas leis a nosso favor. Esta
verdade inconteste, no entanto, não resolve os muitos desafios
filosóficos que elenquei neste capítulo. Quando tentamos
articular estas noções com a espiritualidade que o
rosacrucianismo e outras escolas de pensamento oferecem, as
coisas parecem ficar bastante obnubiladas.

A ideia rosa-cruz de que existe no universo certas “leis naturais”


sempre construtivas e que basta o ser humano segui-las para
encontrar felicidade esbarra em questões muito práticas. Trata-se
de uma visão quase infantil do destino humano. É como se a
vida tivesse um simples manual que basta você seguir que
encontrará um pote de ouro ao final do arco-íris. Ora, se fosse
tão fácil assim, o mundo teria milhões de rosa-cruzes e não
milhões de cristãos, judeus e muçulmanos.

Por fim, a visão cósmico-legislativa impinge nos rosa-cruzes


uma outra noção muito importante. Trata-se da ideia de que
existe uma ordem no mundo, a chamada ordo mundi. Este
princípio de um Deus imanente cuja inteligência engendra o
mundo por meio de leis seria responsável por uma ordem natural
260

e cósmica que existe no universo. Mas será que existe mesmo


uma ordem imanente em tudo o que existe? Veremos a seguir.

19. A IDEIA DE ORDEM


261

Depois de termos abordado o Deus panteísta, a sua Inteligência


Cósmica, a natureza e a noção de lei natural, vamos conversar
sobre a última dessas ideias macro apresentadas pelo
rosacrucianismo que tive contato. Todas essas três ideias
conjugadas vão fincando raízes na consciência, se entrelaçando
e criando uma quarta e última noção que dá sustentação à
cosmovisão mística: a ideia de ‘ordem’.

Reparem que o próprio conceito de ‘Ordem Rosa-Cruz’ já traz


intrínseco certa deferência à noção de ordem. A proposta é de
que existiria uma ordenação intrínseca no universo e que os
místicos deteriam o conhecimento sobre ela. Nas Lojas Rosa-
Cruzes também é muito comum ouvirmos a expressão “sistema
e ordem”, apelando para a disciplina das pessoas. Igualmente, a
organização, ao ser pautada por regulamentos e regras, estaria
emulando este princípio organizador que existe no mundo.

Embora a Ordem Rosa-Cruz pouco usasse especificamente a


palavra ‘ordem’ em suas monografias, em função dos seus
ensinamentos, esta noção emerge na consciência dos rosa-cruzes
quase de forma natural e espontânea. Em função das leis
espirituais, cósmicas e naturais proporcionadas por um Deus
panteísta que tudo penetra por meio de sua inteligência, quase se
pode afirmar que haveria uma espécie de ordem em tudo o que
existe. A própria ideia de inteligência cósmica já está atrelada à
262

essa noção, na medida em que kosmos em grego antigo significa


ordem.

Podemos pontuar também que a proposta de uma ordem


engendrada pela inteligência de Deus alcança muitas camadas:
ordo mundi (ordem do mundo), ordem divina, ordem cósmica,
ordem do universo, ordem natural, ordem moral etc. Tudo isso
ordenado pela grande Inteligência Cósmica/ Arquiteto do
Universo. A maioria dos problemas do mundo, inclusive, teriam
origem no fato de os seres humanos romperem com essa ordo
mundi.

Assim como ocorreu com as outras ideias, durante muito tempo


eu fui um admirador sincero da ordem que existiria no mundo.
Olhava para a natureza ao meu redor e via uma ordenação divina
em tudo. No entanto, como o leitor deve imaginar, todas as
reflexões que apresentei até aqui pouco a pouco ajudaram a
soçobrar essa percepção. A ideia de ordem, contudo, merece
algumas considerações mais aprofundadas e específicas pois as
suas consequências podem ser mais nefastas do que parecem.

Do ponto de vista histórico, as primeiras metafísicas a


perceberem uma ordem no mundo talvez tenham sido as bases
para o início do processo civilizador. A percepção de uma
regularidade na natureza e, por conseguinte, de uma ordem no
mundo natural, permitiu o desenvolvimento da agricultura. Ou
263

talvez tenha sido o contrário. O processo de sedentarismo e a


construção das primeiras civilizações é que tenham sido as bases
para o desenvolvimento de metafísicas que pensavam que existia
uma ordem no mundo. Fato é que a maioria das religiões atuais
se assentam sob esta ideia.

Vale destacar que não é todo sistema de pensamento que entende


que o mundo é inteiramente organizado por um princípio
inteligente da mesma forma como no pensamento ocidental.
Para muitas crenças primitivas o mundo se pautava por uma
espécie de caos que era controlado pelo arbítrio do deuses e das
divindades. Não à toa, estas crenças eram atinentes
principalmente a sociedades nômades.

Do ponto de vista do misticismo rosa-cruz, existe uma ideia


ampla de ordenação dos mundos material e espiritual. Como
exemplo, o rosacrucianismo afirma que há uma estreita
correlação entre os órgãos humanos, as letras hebraicas e os
planetas. Também é dito que certas cores podem influenciar
certos centros psíquicos em nosso corpo e que os números
carregariam um simbolismo próprio. Em outras palavras, para os
místicos, há uma estreita relação entre as diferentes partes da
Criação, onde as coisas se influenciam mutuamente.

Esta tal ordem das coisas seria o resultado da atuação de Deus,


da sua Inteligência e da suposta legislação que regula nossos
264

corpos, a natureza e o mundo espiritual. Nós literalmente


estaríamos conectados a todo o universo, do micro ao macro,
numa espécie de teia invisível. Mas será que as coisas são
exatamente assim? Será que realmente existe uma ordem no
mundo que evidenciaria a existência de Deus e do plano
espiritual? Vamos conversar um pouco sobre isso.

19.1. A ordem natural


Em função do reinado que a Inteligência Cósmica exerceria
sobre o mundo, os místicos, bem como quase todos os
religiosos, acreditam que há uma ordem no mundo natural. A
regularidade dos fenômenos naturais, a disposição dos seres
vivos de acordo com diferentes reinos (mineral, vegetal,
fúngico, animal etc) e os graus de evolução destes seres de
acordo com uma hierarquia etc, tudo isso refletiria uma espécie
de ordem.

Outrossim, quando olhamos para a natureza, vemos a Terra girar


ao redor do Sol, as estações do ano, o ciclo da vida dos animais,
o movimento dos oceanos cujas águas percorrem todo o globo
ciclicamente, a relação entre os diferentes reinos da natureza por
meio da cadeia alimentar e tudo o mais. Ao contemplar a beleza
de tudo isso, não tem como não imaginarmos que existe uma
ordem na natureza e no universo.
265

Do ponto de vista científico, a Ciência realmente parece


referendar a existência de uma certa organização e ordenamento
no funcionamento das coisas. Deciframos as leis da física e da
química que acontecem com certa regularidade e que podemos
prever e dominar para moldá-las a nosso favor. Se não houvesse
uma ordem, tudo seria caos e o dia que hoje tem 24 horas,
amanhã poderia ter 32 horas. Humanos poderiam botar ovos e os
oceanos poderiam simplesmente parar de se mexer. Mas então
qual é o problema dessa crença?

Se é verdade que não podemos negar a existência de alguma


regularidade e ordenação na natureza e no mundo, também não
podemos deixar de lado as discussões que já foram colocadas
nos capítulos anteriores sobre tudo aquilo que foge dessa ordem.
As deficiências mentais e físicas, as limitações do intelecto
humano, as tragédias naturais que sempre aconteceram
independentemente das ações humanas, as espécies que
desaparecem naturalmente, as doenças cíclicas que nos
acometem, as mutações que ocorrem em nosso DNA e a
crueldade e indiferença da natureza – tudo isso desafia a ideia de
ordem. E aí temos a questão: Ou essas coisas estão fora da
ordem natural ou elas são parte dessa ordem. Por outro lado, se
esse caos inerente ao mundo é parte integrante da ordo mundi,
precisamos repensar o que é exatamente que estamos chamando
de uma ordem pensada por uma Inteligência Cósmica.
266

No entanto, ainda há outros elementos a serem discutidos no que


se refere à natureza. Quando olhamos mais de perto, vemos que
a noção de ordem está intimamente ligada à ideia de
estabilidade, mas esta perspectiva também traz problemas. Isso
porque tudo na natureza está em constante mutação. Nem sequer
o nosso dia terrestre sempre teve 24 horas. No início do planeta
ele já teve 4 horas e conforme a Lua se afasta de nós, nossos
dias serão mais longos. Espécies aparecem e desaparecem o
tempo todo. As camadas do solo estão sendo o tempo todo
rearranjadas. A química da atmosfera hoje também não é a
mesma do período cambriano.

Além disso, a própria ordem regular das formas de vida sempre


tem fronteiras. Os vírus, por exemplo, existe uma ampla
discussão sobre se eles podem ou não serem considerados seres
vivos. O planeta vivencia Eras Glaciais ciclicamente. Há pontos
na Terra nos quais a gravidade é um pouco menor ou possuem
anomalias magnéticas. Isso significa que junto com uma certa
ordem, parte do mundo natural é baseado em mudanças, em
áreas de fronteiras entre as coisas e uma diversidade de
fenômenos que não só é difícil de prever e compreender, como
põe em xeque a noção de uma estabilidade no mundo.

Em função de todos esses pontos, se essa ordem existe, como


explicar o caos cíclico, a imprevisibilidade e a imperfeição das
coisas? A ideia de ordem pressupõe uma regularidade eterna que
simplesmente não existe no mundo. É verdade que podemos
267

admitir que as mudanças que ocorrem na existência fazem elas


próprias parte da ordem, mas aí temos o problema de admitir
que a tal da ordem possui uma natureza plástica.

A principal saída que teólogos e místicos intelectuais encontram


para esse fluir das coisas é entender que existe uma ordem no
mundo e que mudanças gradativas acontecem. A própria ideia
mística de evolução pressupõe uma mudança gradativa das
coisas. No entanto, eles ainda não sabem como explicar
fenômenos que fogem muito à expectativa que temos sobre a o
funcionamento das coisas. Mas os problemas não param por aí.
Muitas vezes, essa noção de ordem é transferida para o mundo
espiritual.

19.2. A ordem espiritual


Junto do pressuposto de que existe uma ordem natural, quase
sempre veio a ideia de que existe uma ordem espiritual. Nos
cristianismos, quase todo mundo conhece a noção de que Jesus
habita à direita do Deus Pai. A ideia aí é que o Deus Pai estaria
em um trono, reproduzindo no mundo espiritual certas estruturas
sociais próprias da cultura de um determinado tempo e espaço,
como a monarquia. Neste reino, haveria também uma hierarquia
de seres celestiais que seriam os arcanjos, os anjos, os homens
santos etc.
268

Nos budismos, o plano espiritual também teria planos de


consciência habitado por diferentes seres que exercem diferentes
funções, mas que basicamente ajudam as pessoas na Terra a
atingirem a iluminação. Nos candomblés africanos cada orixá
cuida de uma determinada área do plano material. Há os orixás
das matas, dos rios, dos mares etc. Percebam o leitor como a
noção de ordem é transferida para o mundo espiritual por meio
de complexas metafísicas.

No que se refere ao rosacrucianismo também se acredita que há


uma ordem no plano espiritual. Os rosa-cruzes creem que o
mundo metafísico possui certas camadas que chamam de ‘planos
cósmicos’, nos quais haveria uma hierarquia de seres espirituais,
alguns governando a Terra. Inclusive, é daí que vem as ideias de
alto, médio e baixo astral, muito comum na cultura brasileira. As
almas menos evoluídas habitariam o baixo astral, ao passo que
as mais evoluídas estariam no alto astral.

Nessa discussão, também vale destacar que o clero de muitas


religiões quase sempre se dispõe hierarquicamente conforme o
entendimento de como funciona o reino espiritual. Muitos
líderes religiosos se consideram ungidos pelos “oficiais
superiores” do plano espiritual, o que reveste o que eles falam
com uma aura de autoridade e respeitabilidade.
269

Mas qual é exatamente o problema de se pensar que existe uma


ordem espiritual? Bem, primeiramente, a ideia de que uma
hierarquia espiritual legitima o poder e as ideias que emanam de
um clero sempre foi um pensamento bastante tétrico. Milhares
de líderes religiosos ao redor do globo alimentam o que de pior
existe nas pessoas, exploram financeiramente a fé pura de
milhões de indivíduos e são seres moralmente bastante
questionáveis. Muitos escondem suas piores falhas de caráter e
comportamentais atrás da identidade de “ungido de Deus”.

Só este primeiro detalhe já serve para tomarmos algum cuidado


com a noção de uma ordem espiritual, mas essa ideia não é
exclusiva das religiões. A Ordem Rosa-Cruz que eu participei
afirma que existe uma hierarquia espiritual de Mestres Cósmicos
e a própria organização seria legitimada por essa hierarquia. Seu
cargo máximo, o Imperador, estaria sob a influência direta de
um dos maiores Mestres Cósmicos que habitam o plano
espiritual.

Eu confesso que sempre olhei essa ideia com um sentimento


entre cautela e desprezo. Isso porque, sob esta ótica, as opiniões
do Imperador automaticamente ganhariam a chancela do plano
espiritual e eu simplesmente sempre tive resistência a este
pensamento. No entanto, as coisas vão mais além. Como vimos
no capítulo doze, tudo o que se afirma sobre o mundo espiritual
é extremamente especulativo. Além do que, como cada cultura e
religião pensa essa questão de forma diferente, não é possível
270

fazer muitas afirmações contundentes sobre hierarquias


espirituais. Na realidade, o mundo espiritual parece ser um
verdadeiro mapa da Idade Média com vários reinos, onde cada
um deles funciona de maneira diferente.

Tudo isso poderia ser uma questão unicamente de crença e


ninguém tem nada a ver com isso. Afinal, cada um acredita no
que quiser. Mas seria tudo muito simples se os problemas
parassem por aí. Meu ceticismo sempre foi levando meu
pensamento à frente. A questão é que o pressuposto de uma
ordem espiritual quase sempre resvala no mundo material e
social e isso também tem inúmeras implicações.

19.3. A ordem social


Do ponto de vista histórico, a noção abstrata de que existe uma
ordem no mundo natural quase sempre foi manipulada para
identificar, estruturar e reproduzir também uma ordem social.
Junta-se a isso a noção de que o plano espiritual também é
regulado por uma espécie de ordenamento que o plano material
deveria obedecer, o resultado quase nunca foi dos mais
amistosos para as sociedades humanas. Vejamos exemplos
concretos sobre isso.

No Egito, por exemplo, acreditava-se que o faraó seria o próprio


deus encarnado. Na China Antiga se pensava que a tal Cidade
Proibida refletia uma espécie de ordem cósmica. Na Europa
271

Medieval, inúmeros pensadores disseram que os Reis tinham um


direito legitimado por Deus, o que dava legitimidade aos
absurdos e perversões que os monarcas submetiam os seus
governados. Até hoje na Índia, aquela sociedade reproduz um
sistema de castas no qual algumas pessoas seriam superiores em
função de sua condição de nascimento e outras sequer poderiam
ser tocadas devido ao fato de estarem numa camada tão baixa de
existência.

São muitos os exemplos de como a crença de que existe uma


ordem natural e espiritual gera também um entendimento de que
há uma ordem social que sempre foi usada para referendar
hierarquias e criar injustiças sociais. Afinal, aqueles que estão no
topo quase nunca prestaram muitas satisfações a noções
mínimas de justiça. Os imperadores chineses legitimados pelo
reino celestial se divertiam chicoteando eunucos. Muitos reis
europeus designados pelo próprio Deus violavam donzelas ou
assassinavam pessoas para seu próprio prazer e nada acontecia
com eles.

Além desses elementos trágicos advindos da crença de uma


ordem social advinda do mundo espiritual, podemos citar a
noção de imutabilidade que associamos à ideia de ordem. Esta
quase sempre teve como consequência a imobilidade social de
quem estava mais abaixo na cadeia social. Em muitas culturas,
ainda hoje, se você nasce de um jeito permanecerá desse jeito
eternamente porque o plano espiritual assim teria decidido.
272

Dentro destes debates sobre a existência de ordens natural,


espiritual e social, ainda tem uma última noção que se liga a
estes três campos de ordenação do pensamento. Trata-se da
ordem comportamental das pessoas. Essa noção abstrata de
ordem sempre foi usada normatizar o modo como as pessoas
vivem e, por conseguinte, a sua consciência.

19.4. A ordem comportamental


Quase sempre que lidamos com a noção de uma ordem nos
diferentes mundos que existem ou existiriam, resvalamos para o
modo como as pessoas são ou devem viver. Mas qual é o
problema disso? O problema é que a partir daí temos a criação
daquilo que é “ordenado” e, por conseguinte, de toda uma
filosofia que se pretende à normatização e homogeneização do
comportamento e da existência humanos. Em outras palavras,
criamos também a figura social do “desordenado”. E o pior é
quando essa normalização dos outros atinge aspectos
transcendentais.

O problema inicial desta perspectiva é que toda pessoa um


pouco mais estudada sabe que não existe nenhuma normalidade
comportamental humana. Há até uma piada comum entre
psicólogos que dizem que “de perto ninguém é normal”. Nós
somos cheios de falhas, manias, desejos inconfessáveis e
contraditórios, não sabemos o que queremos direito etc. Nem
273

nossos corpos e nem nossas mentes têm as mesmas habilidades


do que as das pessoas ao nosso redor. Neste ponto temos um
problema: as idiossincrasias de cada um fazem parte desta
ordem ou elas são uma violação da ordenação do mundo? Para
esta discussão não ficar muito abstrata, vamos vê-la aplicada em
nosso cotidiano.

No século XIX muitos médicos e cientistas diziam que a função


natural da mulher era ser esposa e mãe, quase um adendo da
vida do marido, e que a ordem natural do sexo era
exclusivamente a procriação. Além disso, a monogamia e a
virgindade até o casamento seriam o ordenamento das coisas.
Assim, conforme já vimos na discussão sobre a obscuridade da
ideia de lei, mulheres que não queriam ter filhos e se casar ou
que desejavam simplesmente fazer um sexo ocasional
(fornicação), elas estariam fora da ordem das coisas. Mas será
que existe uma ordem universal do que é ser mulher? Todas as
pessoas que nascem com vagina se identificam com essa
normatização para as suas vidas?

Tudo isso parece uma discussão inocente, mas não é. Na Ordem


Rosa-Cruz que eu fazia parte havia um livro sobre o
funcionamento das glândulas humanas e sua relação com certos
centros psíquicos. Nele havia uma série de recomendações para
ensinar como “consertar” as pessoas por meio do estímulo
mental e psíquico das glândulas, ajustando-as a um
comportamento considerado “normal” e, por conseguinte,
274

saudável. Há uma passagem específica em que o autor conclama


que a Ciência algum dia descubra como consertar homossexuais
por meio de terapias hormonais para torná-los “normais”.

Ora, as mulheres que têm diferentes usos da sua sexualidade, as


pessoas homossexuais, os homens heterossexuais que sentem
prazer no estímulo da próstata ou aqueles que são adeptos do
poliamor, por exemplo, essas pessoas estão fora da ordem
cósmica e natural ou são elas próprias parte da ordem das
coisas? A ideia rosa-cruz de que devemos nos harmonizar com
leis naturais e cósmicas esbarra na própria realidade da
diversidade inerente dos fenômenos naturais.

Para dizermos que alguém está fora da ordem e, portanto, é um


desajustado, deveríamos pressupor de que existe uma ordem nas
coisas. Mas será que existe uma única ordem no mundo ou a
diversidade existencial humana é parte integrante das coisas?
Em outras palavras, a mensagem que quero transmitir ao leitor é
como é difícil conciliar o pressuposto da existência de uma
ordenação no mundo com a diversidade de gostos, experiências
e individualidades que existem sem hierarquizar ou excluir as
pessoas.

Como vemos, a ideia de ‘ordem’, quando aplicada ao


comportamento humano, quase sempre puxa a ideia de ‘normal’.
Sabemos, contudo, que nada é mais anormal, esquisito e
275

diferente do que os seres humanos e suas personalidades. Nós


nem somos “nós mesmos” o tempo todo. No trabalho, somos
um. Na família, somos outro. Sozinhos somos outra pessoa.
Entre amigos íntimos somos um tipo diferente. Ao estar na
presença de pessoas que não conhecemos, somos totalmente
distintos do nosso “normal”. Esses diferentes “eus” coabitam o
mesmo corpo e vêm à tona em diferentes momentos. Logo, a
ideia de uma ordem associada ao comportamento humano nunca
foi muito amistosa para com a nossa própria natureza mais
intrínseca.

19.5. Aspectos filosóficos da noção de ordem


Em função de tudo o que foi dito até aqui, nós já poderíamos
relativizar a noção de que existe uma ordem natural, espiritual,
social e comportamental proporcionada por uma espécie de
Inteligência Cósmica. Mas ainda existe algumas discussões
filosóficas que cabem neste debate. Estas se referem ao modo
como devemos lidar com essa suposta ordem existente no
mundo. Isso porque dependendo dos pressupostos que
admitimos, resvalamos para uma perspectiva absolutamente
ingênua. Comecemos pela natureza.

Um dos debates contemporâneos que pressupõem que os seres


humanos estão rompendo com uma suposta ordem natural e por
isso estariam sendo punidos são as tais mudanças climáticas. A
ideia aí é que haveria uma ordem no mundo que sustenta a
temperatura do planeta sob determinada regularidade, mas que
276

esta ordem estaria sendo rompida graças às ações humanas. Será


que isso faz sentido?

Eu não tenho conhecimento técnico para afirmar ou negar a


influência humana sob o clima, mas eu tenho conhecimento de
que a temperatura da Terra sempre teve variações. Igualmente,
ninguém está “destruindo” o planeta porque quer. Todas as
alterações que fazemos no globo terrestre, fazemos em função
de uma melhor qualidade de vida para uma quantidade de
pessoas que não para de crescer.

Ora, se mudanças na tal ordem da natureza estão acontecendo


em função do aumento da população, então ter muitos filhos é
“ferir a ordem natural”? Mas aí qual é o número ideal de pessoas
que o planeta deveria ter para que vivêssemos uma vida
harmônica com o nosso clima e meio ambiente? Quantas
pessoas o planeta deveria ter para não alterar o clima? Ninguém
tem essa resposta.

Dizer, por exemplo, que deveríamos mudar o modo como


vivemos para que o planeta sobreviva é uma ideia boba. Isso
porque se mudássemos nossa economia que estimula o consumo
e a produção de coisas (e por conseguinte a exploração
predatória da natureza), provavelmente teríamos uma massa de
desempregados vivendo em condições miseráveis. O que fazer
com esse contingente? Deveríamos aceitá-los em nome de salvar
277

a “ordem climática” do planeta? Aliás, vale perguntar também:


quando que a natureza foi esse todo ordenado de clima perfeito?
Diferentes áreas do globo terrestre sempre tiveram climas muito
dificultosos à sobrevivência humana e isso não era um problema
até atingir a Europa e os Estados Unidos.

Em outro exemplo, milhões de anos atrás, algumas espécies


animais e vegetais chegavam a alguma região e substituíam
certas espécies nativas, reorganizando aquele meio ambiente.
Esta dinâmica é completamente natural e existe desde o
surgimento da Vida. Hoje em dia, no entanto, há uma
globalização e um fluxo de espécies mundo afora que, ao serem
jogadas em ambientes selvagens e naturais de um ambiente
diferente do seu “natural”, realizam o mesmo fenômeno.

Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, muitas pessoas se


encantam em ver micos pela cidade. No entanto, trata-se de uma
espécie exótica que prejudica demais as aves da região, pois
come os ovos delas e impede sua reprodução. A pergunta é: ao
colocar espécies “invasoras”, estamos alterando a ordem das
coisas ou estamos dando continuidade a um fenômeno natural?
Deveríamos caçar esses micos ou deixar a natureza ser natureza
e se adaptar?

O leitor pode dizer que não se trata da mesma coisa, pois neste
caso é o homem que está fazendo isso e não a natureza. O
278

problema é que basicamente toda a nossa alimentação é feita


deste deslocamento de espécies animais e vegetais de um ponto
do globo a outro. Nem a África tinha milho e mandioca e nem as
Américas tinham vacas e cavalos. Se seguirmos determinada
lógica, para respeitar a “ordem natural” do mundo, deveríamos
levar todas as plantações de milho mundo afora de volta para a
América e proibir o resto do mundo de plantar este vegetal para
se alimentar. Igualmente, nem os cachorros deveriam estar no
Brasil e este território deveria voltar a ser povoado
exclusivamente por tamanduás e outras espécies nativas.

A rigor, até lançar um satélite na órbita da Terra também pode


ser interpretado como uma oposição ou violação da ordem
natural das coisas. Toda essa discussão evidencia que mesmo
que haja uma ordem no mundo natural, isso não nos exime de
questões filosóficas difíceis de operar. Assim como a ideia de se
“submeter à lei natural para uma vida plena e feliz”
imediatamente é relativizada quando essa mesma lei natural
produz câncer e problemas de vista, ninguém quer saber da
“ordem natural” quando se trata de nos trazer confortos e
facilidades.

No que se refere à ordem comportamental, o que dizer do


celibato dos padres? Isso é uma violação da ordem natural das
coisas? Mas o que dizer dos homens polígamos? Muitos poucos
animais, por exemplo, são adeptos da monogamia. Logo, esse
modelo é uma violação da ordem? Dizem que comer muito faz
279

mal à saúde. No entanto, uma grande reserva de gordura ajuda


os animais a sobreviver por mais tempo caso haja escassez de
alimentos. Logo, qual é a “ordem” das coisas? Comer muito ou
comer pouco? Como vemos, muitas pessoas acham que têm as
respostas para todas as perguntas, mas qualquer um que se
permita duvidar de suas próprias certezas, percebe que nada é
tão fácil do que parece.

19.6. Aspectos obscuros da ideia de ordem


Ao longo da minha vida mística, eu comecei a observar de perto
os rosa-cruzes com quem eu convivia e passei a notar certos
padrões. Eu via uma quantidade absurda de rosa-cruzes e
maçons apoiarem ditaduras e a homogeneização
comportamental e do pensamento humano. No ano de 2018 eu
vi membros de várias Ordens falando com brilho nos olhos
sobre o seu apoio a um candidato à presidência do Brasil que
exaltava a tortura, tinha como herói um torturador colocava
baratas e ratos na vagina de mulheres e que convocava seus
adeptos a fuzilar os outros. Aquelas pessoas acharam que este
homem era melhor do que um professor universitário altamente
graduado. Mas por que isso?

Eu percebi que essa obsessão esotérica com a ideia de ordem ia


ressoando em um nível mais “denso” e se materializando na
crença do herói salvador que iria por “ordem na casa”. Ele
280

acabaria com essa bagunça da corrupção, com essa “palhaçada”


de vários gêneros, de liberdade sexual e iria restaurar a ordem
que deveria existir no mundo e nas coisas, mas que foi perdida.
Neste ponto, vale fazer um adendo a essa discussão.

No desenvolvimento de todas as sociedades parece haver duas


forças “cósmicas”, se é que podemos chamar poeticamente
assim, e que estão em permanente disputa. Trata-se da tensão
entre liberdade e segurança. Nas democracias, as pessoas têm
menor segurança relativa, mas mais liberdade. Isso porque como
a democracia permite o livre fluxo de ideias e informações, os
cidadãos estão constantemente sendo testados, desafiados e
contrapostos com visões de mundo que contradizem as suas
certezas. Isso permite que as sociedades testem novas ideias,
aparem as velhas e avencem de maneira geral. Mas é mais
cansativo viver nelas.

Já nas ditaduras, as pessoas não têm tanta liberdade, mas elas


têm maior segurança e talvez até conforto. Isso porque suas
mentes não são expostas a ideias diferentes. Logo, as pessoas
vivem sob a reprodução eterna da tradição e das coisas como
elas sempre foram. Além disso, a suspensão de direitos e
garantias faz com que os crimes sejam mais facilmente
resolvidos, o que parece diminuir a criminalidade. As
democracias são mais prósperas e mais criativas do que
ditaduras, mas talvez sejam mais inseguras e desafiadoras. No
entanto, há algo que se impõe a essa discussão.
281

A sensação de segurança proporcionada pelas ditaduras é


essencialmente falsa. Se por um lado é possível relativamente
andar em segurança à noite na rua porque bandidos são presos e
julgados sumariamente, por outro lado, existe muita injustiça
neste processo. Ademais, não há jornais que criticam os
governos, denunciam a corrupção etc. Logo, a sensação geral de
se viver nas ditaduras é que tudo está no seu lugar. Isso, no
entanto, é uma miragem coletiva. A sensação de segurança que
ditaduras transmitem advém do controle da informação, o que é
um alto preço a se pagar. Mesmo no Brasil, foi na ditadura
militar que as favelas mais cresceram e o crime aprendeu a se
organizar.

Não é preciso ser muito inteligente para concluirmos que a ideia


de ordem proporcionada por muitas organizações iniciáticas é
muito mais afinada com a ideia de segurança. A liberdade quase
sempre é vista como um mundo desordenado e inseguro e isso
tem implicações no próprio misticismo. Ao longo da minha
vivência na Ordem Rosa-Cruz, eu percebi que muitos místicos
que se achavam evoluidíssimos facilmente trocavam a liberdade
pela segurança, apoiando governos ditatoriais ou candidatos que
eram protoditadores. E isso talvez se dê muito em função dessa
noção filosófica emanada pelo rosacrucianismo de que existe
uma ordem natural, espiritual, social e comportamental.
282

Neste processo, me surpreendia como as pessoas não percebiam


a contradição em seu pensamento. Isso porque a segurança
proporcionada por uma ordem imposta à manu militari é
basicamente uma força estacionária, ao passo que muitas dessas
Ordens iniciáticas defendem a ideia de uma evolução. Ora,
como evoluir sem a liberdade – liberdade inclusive de errar? É
verdade que nem todos os rosa-cruzes aderiram a este caminho,
mas pelo menos 60% dos rosa-cruzes que eu conheci quase
brilhavam os olhos ao ouvir as propostas do líder messiânico
que iria restaurar a ordem no Brasil.

Neste ponto, para mim, a ideia filosófica de uma ordo mundi


proporcionada por uma Inteligência Cósmica deixou de ser
apenas uma proposta filosófica de se enxergar o mundo e passou
a ser o que ela realmente é: uma ferramenta perigosa que pode
ser manipulada de inúmeras maneiras. E que se torna ainda mais
tóxica e virulenta quando é preenchida com um discurso que
coloca o mundo espiritual no meio. Viver bem e bem viver
pressupõe que lidemos um pouco com a desordem imanente que
existe no mundo.

19.7. Conclusões
Por fim, a ideia de ordem cósmica, universal ou divina é fofa e
dá certo conforto psicológico às pessoas por estarem ligadas a
algo maior do que elas mesmas. Hoje, contudo, em função de
todos os desdobramentos que expus acerca desta ideia, tenho
profundas desconfianças sobre ela. Ademais, ainda que
283

reconheçamos a beleza do mundo e a existência de uma certa


ordenação no sentido de regularidade dos fenômenos, a vida é
cheia de ambiguidades, plasticidades e imprevisibilidades
múltiplas que desafia essa noção de ordem.

No que se refere à Ordem Rosa-Cruz, não que ela seja


especialmente obscurantistas em função das ideias que ela
defende. É preciso reconhecer que conheci muita gente legal e
socialmente crítica na organização. No entanto, fato é que a
visão cósmico-legislativa alicerçada na ideia de uma ordem no
mundo sempre representou, a meu ver, uma tensão com o
diferente, o caótico, o questionamento, a ruptura e o incomum.
Isso porque as pessoas que acreditam numa ordem cósmica
quase sempre raciocinam de forma binária e creem que aquilo
que foge do comum é a desordem ou uma violação da lei.

Embora os místicos tendam a ser tolerantes, seu mundo mental


muitas vezes é permeado de julgamentos negativos sobre muitas
coisas, sempre buscando a causa da “punição” por violação da
ordem. Neste caso, eles só são diferentes de pastores cristãos e
de imãs islâmicos que julgam estar falando em nome de uma
ordem divina por uma linha muito tênue. Tudo isso fez crescer
em mim um saudável ceticismo. A fé pura que eu sempre tive no
rosacrucianismo foi aos poucos cedendo lugar à ponderação e a
uma reflexão mais detida sobre as coisas.
284

Não acho, contudo, que não haja uma possível ordem inerente
no cosmos, na natureza, na vida e nos seres humanos. Qualquer
pessoa que já tenha estabelecido uma disciplina no seu
comportamento sabe como é importante sermos organizados e
como isso enriquece a mente. A natureza igualmente não é um
completo caos. Mas é preciso reconhecer as consequências
controversas deste pensamento e que muitas vezes não são
percebidas. Atualmente, penso que a ideia de “ordem” pode ser
substituída pela noção de “relativa regularidade” do universo,
ideia essa que convive com a contingência das coisas.

Por mais que possamos olhar para a natureza e ver certa


ordenação nela, é preciso reconhecer também que muito da
ordem que temos hoje em dia no mundo se deve mais à Ciência
e à Tecnologia humanas do que ao suposto poder divino. O
mundo hoje pode estar sofrendo com o aquecimento global por
uma “punição” por violações à ordem, mas antes da
industrialização, crianças morriam de tétano, raiva e rubéola. Ou
seja, não tínhamos os problemas de hoje, mas tínhamos outros.
Será que é possível chegar a um tal estado de respeito à ordem
divina e natural, de modo que não haja mais nenhum problema
no mundo? Acho essa visão pueril.
285

20. DEUS E O MUNDO MODERNO

Durante minha jornada no rosacrucianismo, conforme o tempo


foi passando e reflexões me foram surgindo, eu percebi que as
bases da cosmovisão rosa-cruz não eram simplesmente “a
Verdade” que a Ordem tanto propagava. Certas ideias podiam
ser bonitas quando olhadas da superfície, mas conforme eu me
aprofundava nelas, via que todas as ideologias metafísicas
possuem limitações e dilemas filosóficos comuns à existência de
todo mundo na Terra. Nós achamos que temos “a Verdade”
apenas quando não somos firmes o suficiente para nos
permitirmos colocar certas perguntas.
286

Mas ainda havia outra coisa que intensificou ainda mais o meu
desvinculamento com o mundo espiritual. Trata-se de um
processo que os historiadores costumam chamar pelo nome de
Modernidade. Em linhas gerais, este é um fenômeno social que
começou no século XVI na Europa, com a Revolução Científica,
e abarca uma série de outras revoluções que mudaram o
pensamento dos seres humanos, principalmente na civilização
ocidental. Um dos principais impactos que a Modernidade
trouxe à humanidade foi uma profunda mudança que esta tinha
na relação com Deus e o sagrado. Vamos falar um pouco sobre
isso.

Desde o século XVI, inúmeros pensadores vêm repensando a


imagem que o Ocidente tem de Deus, bem como seu papel no
mundo. Um dos primeiros deles talvez tenha sido o filósofo
Baruch de Spinoza, já citado anteriormente. Ele fez duras
críticas ao Deus bíblico, a ponto de ser excomungado pelo grupo
de judeus ao qual estava ligado.

Ao longo das décadas vindouras, as noções religiosas relativas a


Deus foram sendo cada vez mais tensionadas, de modo que
muitos pensadores chegaram a dizer que a Ciência poderia
responder todas as questões humanas e a religião não seria mais
necessária. Tal conclusão deu origem até a correntes de
pensamento que mudaram a história do Brasil, por exemplo,
como o positivismo. Esta escola dizia que as sociedades estão
evoluindo e haveria três estágios dessa evolução: o pensamento
287

mágico, o religioso e o científico. Este último seria o apogeu do


desenvolvimento humano, quando as sociedades teriam se
livrado da magia e da religião.

Durante o século XIX, filósofos como Max Weber afirmaram


que o mundo havia passado por um processo de
‘desencantamento’. Uma das interpretações disso é que o mundo
deixara de ser concebido como permeado por forças ocultas que
podem ser manipuladas magicamente ou por meio de orações,
para ser controlado apenas através da Ciência e da Tecnologia. O
pensador Karl Marx também desenvolveu ideias que levaram
muitos a concluir que não existe nenhum Deus no comando do
destino humano, sendo que os seres humanos seriam os únicos
responsáveis pela sua própria sina. O filósofo niilista Nietzsche
chegou a declarar que Deus estaria morto. Mas será que tudo
isso faz sentido?

Primeiramente, o que está em questão aqui não é se Deus


morreu ou se o mundo da espiritualidade desapareceu. É
evidente que essas coisas não foram destruídas e continuam por
aí firmes e fortes. Ainda hoje encontramos pessoas que têm uma
relação com Deus iguais aos medievais. No entanto, a relação
que a intelligentsia do mundo ocidental (bem como uma parcela
significativa da população) tem com Deus, parece ter mudado
bastante.
288

Para entendermos mais profundamente este processo, tenhamos


em mente que do ponto de vista histórico, sociológico e
teológico, a ideia de Deus sempre teve basicamente dois usos: o
explicativo e o utilitário. Cada um deles tem funções e
consequências diferentes conforme eles são operados pelas
pessoas. Vejamos um pouco mais sobre isso para que eu possa
aterrissar o leitor na discussão sobre como o meu ceticismo
encontrou o misticismo.

O uso explicativo de Deus é aquele que busca explicar os


fenômenos do mundo por meio da atuação deste Deus que seria
o Criador e, portanto, o controlador da Criação. Assim, se
acontece um terremoto, uma doença, uma colheita ruim, um
surto de vírus etc, muitos explicam isso por meio da atuação
divina. As coisas boas também costumam ser explicadas em
função do agir de Deus. Se algo benfazejo nos ocorre, é porque
nosso Pai nos deu. Essa dimensão explicativa da divindade
também se encontra em indagações filosóficas complexas como
a morte, o surgimento da vida, o nascimento de uma criança, a
complexidade da natureza etc

A função utilitária, por sua vez, faz de Deus um instrumento


para a solução de nossos problemas. Esta função é usada no caso
de preces e na organização de todo um modo de vida e quiçá de
uma civilização. Este é o caso da pessoa que recorre a Deus
antes de passar por uma cirurgia, de viajar, para ter sucesso num
empreendimento etc. Aqui, não é só a prece o instrumento pelo
289

qual as pessoas apelam ao mundo espiritual. Oferendas, mantras


etc, tudo isso são ferramentas que atuam para que o divino
venha em nosso socorro.

Certamente o leitor pode imaginar que em muitos casos, as


fronteiras entre os usos explicativo e utilitário de Deus não são
nítidas. Uma mãe pode entrar em trabalho de parto no hospital e
fazer uma oração pedindo a Deus para que tudo dê certo
(aspecto utilitário: Deus é uma ferramenta mental). Caso o seu
bebê morra de uma doença, ela pode aceitar aquilo dizendo que
“foi a vontade de Deus” (aspecto explicativo: Deus explica os
fenômenos). Em outras palavras, Deus assume funções
utilitárias e explicativas ao mesmo tempo em diversos
momentos.

Quando eu era religioso e místico, Deus tinha para mim essas


mesmas funções que Ele tem para a maioria das pessoas. Eu
buscava explicações para a minha vida baseado no que Deus e
sua Inteligência Cósmica queriam para mim. Igualmente, o
mundo espiritual era a principal ferramenta pela qual eu buscava
soluções para os meus problemas. Eu pedia a intervenção divina
por meio da prece e da meditação. O problema é que além de
todas as reflexões que expus até aqui sobre certos conceitos
metafísicos que sustentam a noção de Deus, eu também era fruto
da Modernidade. A graduação em História criou ainda mais
ruídos nessa relação. Pouco a pouco, percebi como o mundo
290

moderno realmente tirou Deus de muitas questões humanas.


Vamos ver um pouco mais sobre isso.

20.1. O gradativo desaparecimento de Deus


No passado, antes da descoberta dos micro-organismos, muitas
mulheres morriam no parto de forma inexplicável. A justificativa
corrente era porque Deus quis assim. Num determinado
momento percebeu-se que quando o médico lavava as mãos
antes do parto, o número de óbitos diminuía. Em um
determinado momento se descobriu que isso acontecia porque a
higienização das mãos eliminava agentes infecciosos, que eram
desconhecidos da humanidade até então.

Em outras palavras, aquilo que antes recebia uma explicação


espiritual – a morte de mulheres após o parto – passou a ter uma
causa física identificada e que era possível controlá-la. E o que é
verdade para este tipo de óbito também se aplica a várias outras
técnicas médicas que tiraram Deus das explicações. Graças à
identificação científica de elementos como fator RH do sangue,
cadeia de DNA, vírus e bactérias etc, certas coisas deixaram de
serem explicadas unicamente com base na vontade divina e
passaram a ter uma explicação de ordem técnica.

O que vale para a saúde humana também se encaixa nos


acidentes e fenômenos naturais. Antigamente, tsunamis e
terremotos eram explicados exclusivamente pela volição de
291

Deus. Hoje, já se sabe que coisas assim ocorrem por causa do


movimento das placas tectônicas – relativamente aleatórios e
imprevisíveis. Pode-se, inclusive, monitorá-los com aparelhos,
de modo que quando qualquer movimentação é registrada, os
sistemas públicos de defesa contra acidentes são acionadas.
Igualmente, prédios e casas, graças a técnicas de engenharia,
podem ser construídos de modo a neutralizar os efeitos de um
terremoto. Mas o que isso significa?

Isso significa que a controle humano foi gradativamente


tomando o lugar do que antes era exclusivo da proteção ou dos
desígnios divinos. As tradicionais preces, amuletos e técnicas
mágicas foram substituídas pela Defesa Civil, cursos de
Medicina, campanhas de educação da população, técnicas de
engenharia etc. Em outras palavras, as ações humanas
substituíram em grande medida a “vontade de Deus” que
operava sobre o mundo. Nesse sentido, a função utilitária de
Deus, aquela que faz dele um instrumento para a solução dos
problemas humanos, veio sofrendo cada vez mais a concorrência
das ações coletivas promovidas pela engenhosidade humana.

Naturalmente, isso não significa que Deus morreu por completo.


Afinal, a Ciência identificou o como as coisas ocorrem, desde
doenças até terremotos, mas ela não explica o porquê das coisas.
E ainda há muitas pessoas que, apesar de saberem as causas
técnicas de uma doença, um acidente ou um fenômeno natural,
ainda colocam Deus na equação.
292

Isso é verdade e talvez este modo de pensar nunca vá


desaparecer. A questão é que os avanços tecnológicos e
científicos criaram um constrangimento naquela sensação de que
Deus controlava todo o mundo. A Modernidade deu aos seres
humanos a capacidade de exercer certo domínio sobre coisas
que antes eles não tinham a menor ideia de como controlar.

Muitos podem pensar que estou exagerando, pois é evidente que


os seres humanos não controlam tudo e que, portanto, Deus
ainda está no controle das coisas. Primeiramente, é evidente que
a engenhosidade humana não controla tudo e nem nunca vai
controlar. Até porque, como já vimos, o imprevisível faz parte
da ordem do mundo. Acidentes, terremotos não previstos,
doenças difíceis de curar ou pandemias imprevistas sempre vão
ocorrer. Além disso, as pessoas sempre morrerão de um jeito ou
de outro, pois isso é um imperativo biológico. No entanto, a
ideia de que Deus sempre está no controle é também
constrangida pela capacidade humana de resolver problemas.

Para quem ainda não entendeu como isso funciona, se uma


chuva forte acontece e causa deslizamento de terra em um
morro, matando centenas de pessoas, podemos dizer que isso é
um desígnio da natureza ou de Deus. O problema é que se
governos e sociedade civil tivessem feito obras adequadas para
contenção de encostas ou se as pessoas simplesmente não
ocupassem esses espaços, essas mortes não aconteceriam. Em
293

outras palavras, a tal vontade de Deus parece só agir quando não


há ações humanas efetivas. Não à toa, toda vez que acontecem
acidentes, sejam por causas humanas ou naturais, quase sempre
culpamos a incompetência dos governos. Deus entra na equação
apenas como elemento para nos resignarmos diante daquilo que
não podemos mudar.

Essas reflexões vieram ao encontro daquela sensação


melancólica que tive ao tentar identificar o Deus panteísta. Uma
vez que o Homem pode neutralizar os problemas técnicos em
seus corpos e em seu ambiente, onde está Deus, afinal? No
crescente sentimento cético que surgia em mim, apesar de eu
reconhecer que os seres humanos nunca vão controlar tudo, a
ideia de que Deus está somente naquilo que nós não controlamos
começou a me causar constrangimento. Será que essa falta de
controle sobre certas coisas eram a vontade de Deus ou eram a
própria vida, que nunca teve muitas explicações mesmo,
independentemente de nossas crenças religiosas?

Expandindo o pensamento para além dos acidentes e das


contingências, por mais que se acredite na Divindade e em seu
poder hoje em dia, fato é que ninguém fica sem um bom médico,
advogado, especialista etc. Acreditamos mais na capacidade
humana de resolver os problemas e menos no poder de Deus.
Isso só parece ser uma exceção em comunidades carentes onde
os serviços do Estado não alcançam e as pessoas também não
294

têm acesso a serviços privados de qualidade. Não à toa, é nesses


lugares onde mais prospera a ideologia neopentecostal com sua
divindade milagreira e toda poderosa.

Além da substituição da função utilitária de Deus pela


Tecnologia, a Modernidade também parece ter substituído a
função explicativa do Divino. Vamos dar um exemplo sobre
isso. Antigamente acreditava-se que uma planta crescia e dava
bons frutos por causa de forças espirituais ou divinas que
atuavam ali. Na Idade Média, muitos camponeses pegavam a
hóstia dada pelo padre e em vez de engoli-la, escondiam-na,
trituravam e jogavam nas plantações para obterem boa colheita.
Inclusive, essa é a razão pela qual a Igreja Católica passou a
colocar a hóstia diretamente na boca dos fiéis em vez de dá-la na
mão deles.

Hoje, por meio da pesquisa científica, já se sabe que uma


plantação é boa por causa de determinados nutrientes do solo,
temperatura, características químicas etc. Se um solo é ruim, não
é porque Deus não está ali. Basta fazer um processo de
engenharia para torná-lo frutífero. O mesmo se aplica ao gado
ou a outros meios de subsistência.

Analogamente, muitos fenômenos psicológicos também eram


explicados através de Deus. Hoje já se sabe que as ações dos
hormônios e dos fatores genéticos e ambientais influenciam no
295

estado mental das pessoas. Também se pensava que o processo


de crescimento de um feto era obra divina. Atualmente, já
conhecemos os mecanismos que regulam isso e pode-se até
corrigir algo no feto antes que o bebê nasça. Pouco a pouco, a
Ciência foi desvelando como o mundo funciona e atuando nele.
Não que certos intelectuais, pensadores e cientistas já não
soubessem ou intuíssem essas coisas antes do mundo moderno,
mas com a Ciência ocidental conseguimos decifrar essas coisas
e seus mecanismos de forma muito mais precisa.

Dessa forma, é verdade que não podemos dizer que Deus deixou
de existir com o avanço da Ciência e da Tecnologia, pois Ele
ainda existe e aparentemente prospera em muitos lugares. Mas a
Divindade hoje, de muitas formas, é mais uma ideia fruto de um
legado cultural do que a ferramenta que já foi antigamente.
Mesmo entre o mais fanático dos religiosos, são raros os que
confiam mais em Deus do que nos médicos e, quando isso
acontece, geralmente ele se dá mal, como é o caso dos
movimentos antivacina que existem por aí.

Nesta equação, é verdade que muitos acreditam que advogados,


médicos. engenheiros e especialistas sejam “instrumentos de
Deus”. Ainda que eu respeite esta visão, ela é apenas uma
resposta teológica para um problema complexo. E ainda assim, a
meu ver, questionável. Isso porque se Deus usou o médico como
instrumento para curar a sua doença especificamente, por que
ele não usou instrumentos para curar a vida de milhares de
296

crianças e mães ao redor do mundo que morrem das mais


variadas doenças? Por que há lugares na África onde faltam
médicos? É por que Deus não olha para eles ou porque o Estado
desses países é corrupto e ineficiente? Como vemos, tudo é uma
questão de fé.

Para o ser humano moderno vivendo numa sociedade complexa,


não é mais Deus quem organiza a vida de nossas sociedades
tecnológicas, multiculturais e multirreligiosas. Quem organiza
nossas vidas é a técnica. Na epidemia de covid no ano de 2021
não foram preces que controlaram as infecções, mas sim bilhões
de dólares investidos em Ciência, Tecnologia, campanhas
educativas etc.

Nessa discussão é importante salientar o caso daqueles que não


creem em um Deus pessoal, mas o vestem com outras
roupagens. Esse é o caso dos que acreditam no “Universo”,
numa “Luz” ou numa “Força Maior”. Essas coisas nada mais
são do que nomes diferentes para a mesma ideia. Não é difícil
para o leitor imaginar que muitas Ordens místicas e esotéricas se
situam neste âmbito. Assim, os avanços científicos não
eliminaram a busca por uma transcendência, mas do meu ponto
de vista, comecei a sentir como era difícil encontrá-la ou estar
em harmonia com ela no meu dia a dia.
297

Quase sem nos apercebermos, deixamos Deus de lado em boa


parte das nossas situações cotidianas. A maioria de nós só o
enxerga em situações-limite como a perda de alguém, uma
doença ou quando está precisando de alguma coisa como
emprego ou passar em provas. Há também os que lembram dele
quando passam por alguma situação boa como viajar. Daí
agradecem e postam no Instagram. Fato é que as promessas da
Ciência de nos explicar o mundo e da Tecnologia em tornar
nossa vida melhor competem cada vez mais com o “poder de
Deus”.

20.2. A Ciência explica tudo?


Como contraponto às discussões levantadas até aqui, muitos
podem se perguntar: mas será que a Ciência explica tudo? Aí
cabe outra discussão filosófica difícil. Podemos entender como
funciona a fotossíntese, a expansão do universo, o nascimento
de uma criança e a morte de uma estrela, mas até que ponto a
Ciência nos dá o porquê das coisas? Um raciocínio apressado
pode nos levar à seguinte conclusão: a Ciência e a Tecnologia
nos dão muitas coisas, mas não nos explicam o porquê o mundo
é como é e nem o seu propósito. Logo, ainda precisamos de
Deus como resposta.

Esse raciocínio é sedutor, mas a minha mente cética guarda


algumas ponderações sobre ele. Isso porque embora a Ciência e
a Tecnologia não respondam a tudo, elas possuem meios de
verificação de suas premissas. A explicação de um porquê das
298

coisas não tem meios de verificação. Ele é fruto unicamente de


uma especulação subjetiva.

Como exemplo, podemos dizer que uma criança de três meses


morreu de uma infecção no hospital porque Deus quis, por causa
do carma da outra encarnação, porque a mãe dela precisava
passar por isso para evoluir ou porque era a hora daquela alma
desencarnar. Seja qual for a conclusão que cheguemos, ela é
simplesmente um entendimento de ordem subjetiva. E estes
entendimentos variam bastante entre pessoas, instituições e
correntes religiosas. E ao final, há também a explicação
científica: morreu porque o hospital foi negligente na assepsia
do ambiente e isso trouxe infecção para a criança. Quem tem a
verdade?

Dessa forma, a Ciência pode até não ter o porquê filosófico final
da vida, mas suas explicações técnicas das coisas satisfazem de
muitas formas as perguntas que fazemos. O problema das
religiões é que como são diversas ideologias metafísicas, cada
uma delas produzirá respostas variadas e, ao final, não temos
solução e nem meios para saber quem tem a verdade.

Por fim, é preciso reconhecer que ainda há muitos mistérios que


nosso conhecimento não atinge. Qual a origem da consciência?
Como a vida surgiu? Se o universo se expande, o que tem além
dele? Para onde a Humanidade caminha? Por que as pessoas
299

agem dessa forma e não daquela? Fato é que não sabemos tudo.
Mas, será que operar com a ideia de Deus é a resposta para esses
problemas e desafios? Hoje em dia eu tenho minhas dúvidas.

Em função de todas essas reflexões que fui desenvolvendo,


pouco a pouco, a ideia de Deus foi soçobrando em mim e isso
teve impacto direto na minha relação com a Ordem Rosa-Cruz.
Afinal, ela se assenta na crença na Divindade. Mas o meu maior
problema não era o que a Ordem ensinava. A minha mente
estava submetida a um debate que era muito maior do que o
rosacrucianismo em si e que envolve o processo de
modernização das sociedades. Acho que ainda precisaremos de
mais quinhentos anos para avaliar o impacto que as inovações da
Ciência e da Tecnologia trouxeram para a nossa relação com o
mundo metafísico.

Neste capítulo encerro as considerações sobre a metafísica rosa-


cruz. Como o leitor pode observar e gostaria novamente de
reforçar, em nenhum momento eu quis atacar a Ordem Rosa-
Cruz gratuitamente. O que tentei aqui vou externar dúvidas
sinceras que surgiram em meu coração e na minha mente sobre
coisas relacionadas a todo o mundo espiritual. Afinal, ideias
como Inteligência Cósmica, ordem divina, panteísmo etc, são
noções metafísicas que transcendem o rosacrucianismo.
300

Humildemente, espero ter oferecido algumas reflexões para que


o próprio leitor as continue e as melhore na medida do possível.
Posso estar errado em várias questões que coloquei aqui e o
debate público é para isso mesmo: para conversarmos sem medo
do erro, pois ele faz parte.

Com base em tudo em tudo o que expus, às vezes tenho a


sensação de que nossa mente e cultura metafísicas ainda estão
muito presas a conceitos e ideias surgidos na Antiguidade. De lá
pra cá parece que ninguém desenvolveu nada de novo no campo
da metafísica. Só o que fazemos é repensar o que já foi pensado.
No entanto, cabe lembrar que as pessoas que viveram três mil
anos atrás e criaram certos conceitos que nos são usuais sequer
sabiam da existência de vírus e bactérias, não tinham noções
básicas de higiene, não conheciam as profundezas dos átomos e
do universo e não conheciam a estrutura de nosso planeta.

Aqueles indivíduos sequer conheciam a totalidade do planeta


Terra e suas múltiplas espécies. Eles não sabiam da existência
dos dinossauros e nem da evolução. Isso significa que existe um
universo de distância entre o nosso conhecimento e o
conhecimento das pessoas que inventaram conceitos como
Nous, Logos, Deus, natureza, Inteligência Cósmica etc. Será que
a partir do conhecimento que temos hoje, nada mais pode ser
pensado em termos de metafísica para aqueles que vierem nos
próximos três mil anos?
301

É possível que haja sim uma dimensão transcendente no mundo.


O nosso único problema talvez seja não pensar sobre ela de
forma honesta, considerando de peito abertos todos os
contrapontos e contradições que colocam nossas crenças em
xeque, principalmente à luz da Ciência. Mas este desafio está
lançado. Se não existem Deus, Inteligência Cósmica, ordem, leis
naturais ou natureza, será que não podemos criar novos
conceitos espirituais e/ ou metafísicos? Deixo ao leitor o desafio.

PARTE III

A VISAO ROSA-CRUZ
DO SER HUMANO
302

21. COMO OS ROSA-CRUZES


VEEM OS SERES HUMANOS

Anteriormente falamos sobre como o rosacrucianismo enxerga o


macrocosmos do universo. Nesta terceira parte, falaremos sobre
303

o microcosmos rosa-cruz, incluindo-se aí os seres humanos, seu


corpo, sua suposta alma e sua mente. No entanto, como se trata
de um entendimento que provavelmente é novo e desconhecido
para muitos, algumas noções podem ser difíceis de apreender
quando lidas pela primeira vez. É por isso que peço ao leitor que
tenha total atenção neste capítulo em especial, pois é onde
assentaremos as bases daquilo que será pensado durante toda
esta terceira parte.

Para a maioria das pessoas que possuem uma religião ou


espiritualidade, os seres humanos são compostos de um corpo
material e de uma alma. Quando o corpo morre, a alma se separa
de seu envoltório físico e vai para uma espécie de mundo
espiritual. A partir daí há quem diga que ela vai para o céu ou
para o inferno ou se dirige para algum plano para aguardar a sua
próxima encarnação.

Naturalmente, as explicações acima são apenas um resumo das


muitas teorias sobre a vida após a morte, mas ela dá conta do
recado. A maioria das pessoas crentes, inclusive, se contenta
com essas explicações mais suscintas sem se preocupar em obter
mais informações. No entanto, a literatura mística tem muito
mais a dizer sobre os seres humanos e é este algo a mais que nos
interessa.
304

Para a Ordem Rosa-Cruz que eu participava, existe uma alma


universal que emana diretamente de Deus. Embora essa alma
seja virtualmente perfeita, ela é inconsciente de sua perfeição e
de sua natureza divina. Para tomar consciência dessa sua
realidade, a alma precisa se reencarnar na matéria e passar por
diversas experiências necessárias a essa tomada de consciência.
Em outras palavras, para os rosa-cruzes, a alma está num
movimento permanente de evolução, onde esta seria uma
espécie de retorno a Deus. A cultura rosa-cruz, portanto, é
essencialmente reencarnacionista.

É neste ponto que entra o fenômeno da vida. Sob o ponto de


vista rosa-cruz, a vida existe para que a alma passe pelas
experiências devidas para a expansão de sua consciência e/ ou
evolução. Ainda nesta seara, haveria uma diferença entre a alma
dos seres humanos e a de outros seres vivos. Estes últimos
teriam almas coletivas em diferentes níveis. Por exemplo,
haveria a alma coletiva dos animais, dos cachorros e dos
pastores alemães. Também teríamos a alma coletiva das plantas
e das bromélias e assim sucessivamente. Os seres vivos mais
primitivos teriam almas coletivas menos evoluídas, ao passo que
os seres mais complexos seriam almas mais evoluídas. Vale
lembrar também que até o reino mineral teria uma alma coletiva.

No que se refere aos seres humanos, embora eles estejam


conectados pela alma coletiva humana, cada pessoa teria uma
alma individual. A minha Ordem Rosa-Cruz chama essa
305

individualidade das pessoas pelo conceito de ‘personalidade


alma’. Esta estaria evoluindo de reencarnação em reencarnação.
Em parte, seria esta evolução que explicaria a diferença
profunda que existe entre os seres humanos em termos de
interesses, caráter e envergadura moral na sua personalidade.

Até aqui, é possível que tenha ficado um pouco confuso e difícil


para o leitor que tenha tomado contato com essas ideias pela
primeira vez, mas há um jeito que ajuda a compreender melhor
essas noções. Sob o ponto de vista rosa-cruz, um dos principais
atributos da alma seria a consciência. Seríamos conscientes
porque temos uma alma. Logo, quando falo em alma coletiva
dos vegetais, dos animais, dos cachorros etc, o leitor pode reler
isso tendo em mente algo como “uma forma de energia
espiritual que tem a consciência de um nível vegetal, animal,
canino etc”. Um cachorro da raça pastor alemão, por exemplo,
não teria três almas dentro dele – a de animal, de cachorro e de
pastor alemão. A sua alma teria esses três níveis de consciência
habitando aquele corpo.

Sobre a consciência, os rosa-cruzes acreditam que ela é um


fluxo constante que emana diretamente da alma universal e,
portanto, de Deus. Ao se reencarnar, contudo, a consciência vai
“descendo de nível”, digamos assim. Este pode ser um assunto
bastante difícil, mas vou tentar explicar bem didaticamente e
peço que o leitor tenha total atenção às palavras a seguir.
306

Quando estamos despertos, estamos sob o domínio da


consciência objetiva. Neste nível, são os nossos sentidos e nossa
racionalidade os maiores geradores daquilo que aparece na tela
de nossa mente. Quando estamos pensativos ou reflexivos, num
estado mais interiorizado, estamos sob o domínio da
consciência subjetiva. É a nossa subjetividade que domina a tela
mental. Quando estamos dormindo ou em uma meditação
profunda, atingimos o que os rosa-cruzes chamam de
subconsciente. Esta camada de consciência é onde residem os
sonhos, certos poderes latentes e habilidades mentais. É somente
quando desencarnamos que atingiríamos o nosso nível mental
mais profundo, que seria um estado de consciência próprio da
alma.

Em outras palavras, para os rosa-cruzes, existe uma mente fora


da matéria e do nosso cérebro, mas enquanto encarnados nunca
vamos atingir este nível. No entanto, exercícios rosa-cruzes
como a visualização, a prece, a meditação, entre outros, nos
ensinam a atingir o nível do subconsciente e a extrair os
ensinamentos e a sabedoria própria desta camada de
consciência. Pode-se até dizer que boa parte dos ensinamentos
místicos se situa na criação de um vínculo permanente com
nossos níveis mais profundos de consciência. É neles que se
situam a “magia” do ser humano. Num estado meditativo, por
exemplo, as imagens e sensações que tomam conta da nossa tela
mental teriam origem diretamente no nosso subconsciente.
307

Ainda do ponto de vista rosa-cruz, quando a alma encarna na


matéria, o encontro dessas duas forças geraria uma terceira
forma de energia. A minha Ordem chama isso de ‘corpo
psíquico’. Este seria um duplo etéreo de nosso corpo e seria uma
forma de energia cuja frequência vibratória estaria entre a
matéria e a alma. Este encontro das três alegadas formas de
energia ainda gerariam uma aura nos seres humanos, que nada
mais seria do que um halo de energia à sua volta.

Vale ressaltar que de um ponto de vista da nossa fisiologia,


embora todo o nosso corpo esteja animado pela personalidade
alma, o sistema nervoso somático seria responsável pela
consciência objetiva. O sistema nervoso autônomo estaria mais
vinculado ao nosso subconsciente. Uma vez que nosso corpo
possui uma dimensão espiritual, nesse sistema nervoso circularia
uma energia nervosa de natureza mais etérea. Esta energia
também emanaria de nossas mãos, principalmente através dos
dedos. Na filosofia rosa-cruz, podemos canalizar essa energia
dactilar para curar as pessoas de diversos males.

Também não podemos deixar de citar que, segundo a Ordem


Rosa-Cruz, há uma energia espiritual que emana do Sol e
preenche toda a atmosfera terrestre. Ela é chamada de ‘força
vital’. Ao inspirarmos, nosso corpo psíquico se alimenta dessa
energia e até podemos canalizá-la para certos glândulas. Os
rosa-cruzes acreditam que as glândulas humanas teriam uma
contraparte espiritual chamada de ‘centros psíquicos’. Estes
308

acumulariam essa energia emanada do Sol e, ao serem


despertados, nos dariam novas percepções e poderes mentais.
Igualmente, a ideia de um corpo intermediário entre alma e
corpo físico também é encontrada em várias culturas. A religião
espírita kardecista, o hinduísmo, a teosofia e até os egípcios
antigos por meio dos conceitos de Ka, Ba e Akh acreditavam
nesta realidade

Eu acredito que o leitor pode perceber facilmente que muitas


dessas ideias rosa-cruzes que descrevi aqui não são exclusivas
da minha Ordem Rosa-Cruz. A ideia de uma alma universal, por
exemplo, os hindus já falavam isso e a chamavam de Atman. A
noção de que temos pontos em nosso corpo que acumulam uma
espécie de energia espiritual é compartilhada pelas medicinas
chinesa e indiana. Aquilo que os rosa-cruzes chamam de energia
vital, os chineses chamam de Qi, os indianos chamam de prana e
os índios norte-americanos chamavam de orenda.

A ideia de que temos um fluxo de consciência que se manifesta


em diferentes níveis é dita pelo pensamento védico há milênios,
embora com outros conceitos. Outrossim, a noção de que nossas
mãos emanam uma espécie de energia espiritual também é
partilhada por muitas filosofias, como o reiki e a acupuntura.
Também a doutrina da reencarnação é seguida por várias outras
religiões ao redor do globo.
309

Em função de tudo isso, é possível dizer que o que chamamos de


Ordem Rosa-Cruz é efetivamente a união de muitas linhas de
pensamento orientais e ocidentais, antigas e modernas. Mas será
que todos esses conceitos e ensinamentos rosa-cruzes fazem
sentido? Vamos ver um pouco sobre estes assuntos ponto a
ponto nos próximos capítulos.

22. SOBRE A EXISTÊNCIA DA ALMA


E DO MUNDO ESPIRITUAL

Pode-se dizer que a alma é uma crença praticamente comum a


quase todas as ideologias metafísicas. Durante anos eu mesmo
acreditei firmemente que havia uma força ou uma realidade
espiritual dentro de nós. Mas será que isso realmente existe? O
que os rosa-cruzes dizem sobre ela? Antes de começarmos esta
conversa, permita-me o leitor fazer um esclarecimento acerca do
ponto de vista rosa-cruz.
Em nossa cultura, os termos ‘alma’ e ‘espírito’ são usados
amiúde como sinônimos, mas a minha Ordem Rosa-Cruz tem
um entendimento diferente sobre eles. Segundo a organização, a
alma seria a nossa essência anímica que nos dá consciência e
vida. Já o espírito seria uma forma de energia primeva que teria
dado origem à matéria tal como a conhecemos. Neste livro não
310

falaremos sobre o conceito rosa-cruz de espírito e abordaremos


exclusivamente a alma. Isso posto, prossigamos.

22.1. A consciência é um atributo da alma?


Um dos mais misteriosos temas com o qual os seres humanos se
defrontam em sua busca existencial é a origem da consciência.
Quase todas as religiões parecem concordar com a ideia de que
nós somos conscientes por haver uma alma em nós. Do ponto de
vista científico, contudo, os cientistas parecem ter uma
abordagem diferente para o fenômeno da consciência. Eles
creem que ela é um atributo do cérebro. Quem está certo?

Os mais céticos e apressados podem logo dizer que alma não


existe e que a consciência é efetivamente um atributo das
atividades cerebrais. Afinal, a pesquisa científica já identificou
boa parte dos processos que relacionam o cérebro à consciência.
Quando estamos estudando, dormindo, praticando esportes ou
até lavando louça, os cientistas já conseguem mapear cada parte
do cérebro que se ativa em determinadas atividades. Logo,
almas não existem, certo? Não é bem assim e a coisa é mais
complicada do que parece.

Uma pessoa que morre de morte natural ainda possui cérebro,


mas não tem consciência. O corpo está morto, mas o que faz
algo estar vivo ou morto? O leitor pode dizer que é quando o
coração para de bater, mas essa é uma resposta tecnicamente
311

limitada. Isso porque há muitos casos em que ocorre a morte


cerebral e a Ciência consegue manter o coração batendo por
meio de aparelhos. Afinal, o que faz o cérebro ficar vivo ou
morto? Qual é a “substância” que faz o cérebro ficar vivo?
Podemos reproduzi-la em laboratório?

Por mais que alguns cientistas digam ter as respostas, de um


ponto de vista filosófico, tanto a vida quanto a consciência são
um mistério. O famoso escritor Yuval Harari, no livro Homo
Deus (2016), aponta para isso. Nós não sabemos tanto sobre o
fenômeno da consciência quanto gostaríamos. Existem muitas
evidências que relacionam atividades cerebrais com a
consciência, mas temos que lembrar que a consciência possui
certas camadas. Há estados mentais como o coma ou uma
meditação profunda, por exemplo, onde temos muito pouca
atividade cerebral, mas ainda assim existe consciência ali. Um
nível muito diferente de consciência, mas consciência.

É nesse vácuo de nosso conhecimento que entram os religiosos,


místicos e espiritualistas de maneira geral. Como não sabemos
exatamente como se dá a consciência, logo existiria uma alma.
O rosacrucianismo está junto com quase todas as religiões neste
ponto. Os adeptos da hipótese da alma também sugerem que as
áreas cerebrais que são ativadas durante certas atividades seriam
o efeito da alma em nós e não a causa exata da consciência.
Essas correntes espiritualistas e esotéricas, contudo, dão
312

informações adicionais sobre o alegado processo de geração de


consciência.

Segundo elas. a matéria seria uma forma dessa energia cuja


vibração seria um pouco mais densa. Já a alma e o corpo
psíquico (a energia produzida do encontro entre alma e a
matéria) seriam energias de altíssima frequência vibratória e que
vão além dos raios cósmicos. Sua natureza seria de ordem tal
que nenhum aparelho material conseguiria detectá-las. Nesse
sentido, o cérebro humano, principalmente por meio da glândula
pineal, seria uma espécie de transformador de energia. Algo
como um aparelho de rádio que usamos para captar as ondas de
rádio que não captamos de forma natural.

Sobre frequências vibratórias, é bom ressaltar que este assunto


não é só misticismo. A matéria ao nosso redor realmente vibra e
emite vibrações que nossa consciência capta por meio de nossos
sentidos. O que a gente vê, degusta, ouve, cheira e toca são
vibrações de certas frequências que nosso cérebro interpreta e
transforma em impressões sensoriais. Também é importante
reforçar que os seres humanos enxergam uma faixa
relativamente pequena do espectro de vibrações que existem na
natureza. Não vemos infravermelho e nem ultravioleta. Não
ouvimos ondas de rádio de forma natural e nem enxergamos
raios-X.
313

É em função de nosso aparelho cognitivo ter muitas limitações


na percepção de toda a realidade ao nosso redor que muitos
espiritualistas, religiosos e místicos sustentam a existência da
alma. Ela seria uma vibração tão elevada que não
conseguiríamos vê-la. Neste ponto, parece existir um pingue
pongue filosófico. Os cientistas sempre argumentam que o
cérebro seria o gerador da consciência. Já o espiritualistas
sempre apelam para a alma dizendo que não conseguimos
decifrar a consciência com as explicações convencionais.

Do meu ponto de vista, durante muito tempo eu acreditei na


proposta mística de ver a alma como sendo a origem de nossa
consciência e o cérebro como um transformador de energia. Até
que um dia eu percebi que o fato de não sabermos como
funciona a consciência ou por que ela existe não
necessariamente nos permite enfiar uma alma nas coisas.
Contudo, se tivermos boa vontade para com a proposta de que
almas existem, será que há algum meio de se prová-la
cientificamente?

Neste debate, é preciso pontuar que o cosmos ainda tem muitos


mistérios a serem desvelados. Se o universo está se expandindo,
o que tem fora dele? Ele tá se expandindo pra onde? Ninguém
sabe, por exemplo, o que existe dentro de um buraco negro.
Também não podemos negar a existência da matéria escura e da
energia escura. Para quem não conhece, essas coisas são formas
de matéria e energia que não exercem qualquer impressão em
314

nossos sentidos e sequer interagem com a matéria comum, ao


menos não de uma forma que conseguimos compreender
totalmente. Mas mesmo assim, ao que parece, essas coisas
existem.

É em função dessas realidades desconhecidas que muitos tentam


enfiar a noção de alma. Afinal, se existe a matéria escura, logo é
possível que haja formas de energia de alta frequência por aí que
ainda não identificamos. Pessoalmente, eu tendo que concordar
com esta afirmação. É possível que exista muita coisa no
universo que ainda não identificamos. Contudo, existem
evidências matemáticas bastante robustas e provas indiretas da
existência de matéria escura e da energia escura. O fato de ainda
não termos detectado essas coisas não significa que elas não
existam. Mas o mesmo não pode ser dito com relação à alma.

Eu também não ousaria afirmar que a alma não existe, mas até o
presente momento não parece haver nenhum cálculo matemático
que nos permite propor a existência de uma energia espiritual no
universo que possamos associar a algo como “energia da alma”.
Chegamos aos confins do universo com poderosos telescópios e
fomos ao coração do átomos explodindo-os em várias partes e
identificando todas as suas subpartículas e, até agora, nadinha da
alma. A única “evidência” que nos faz questionar sobre a
existência de uma energia de alta frequência seria mesmo o
mistério da consciência. No entanto, com o passar dos anos, eu
conclui que isso não necessariamente prova nada.
315

Afinal, onde está essa energia que ninguém sabe, ninguém


nunca viu e ninguém nunca poderá detectar? Que Inteligência
Cósmica é essa que nos deixou tão ignorantes com relação à
nossa própria natureza? Em função dessas perguntas, uma
cautela saudável foi surgindo em mim com a proposta da alma.
Mas mesmo que algum dia consigamos provar sua existência,
isso não resolve muitos de nossos problemas. Na verdade, eles
acabam de começar, como veremos a seguir.

22.2. Os destinos da alma


Vamos supor que algum dia consigamos provar a existência da
alma e identificar que a consciência é efetivamente um atributo
da sua presença no corpo. O que acontece a partir daí? Acontece
que vamos ter que nos preocupar com os destinos de nossa
essência anímica. Como o leitor deve saber, há quatro grandes
correntes explicativas sobre a vida após a morte.

A primeira delas crê que após a morte a alma habita uma espécie
de mundo dos mortos e fica lá sem fazer nada. As religiões
grega e romana, ao que parecem, acreditavam nisso.
A segunda corrente acredita em um julgamento divino que
acontece em função do que fizemos em vida e a partir daí
seremos condenados eternamente ou recebidos em uma espécie
de paraíso. Os cristianismos e os islamismos se situam neste
ponto.
316

A terceira linha de pensamento acredita que a alma se reencarna


ciclicamente para atingir um estado superior de iluminação ou
libertação. Algumas linhas de pensamento também creem que a
alma pode involuir e se reencarnar como animal e outras creem
que isso é impossível. Os budismos, os rosacrucianismos e os
espiritismos kardecistas estão nesta linha.

A quarta grande corrente religiosa não tem uma opinião fechada


ou oficial sobre o destino da alma após a morte e nem está
preocupada com isso. Neste grupo estão os judaísmos e os
candomblés, por exemplo.

As querelas em torno da alma, contudo, não se situam apenas no


que se refere ao seu destino cósmico. Elas estão também na sua
relação com o Eu que habita em nós. No que se refere ao
misticismo e ao esoterismo, algumas correntes acreditam que
após a morte o nosso Eu se dissolve ou desintegra na mente
divina, cósmica ou universal. Outras correntes pensam que o
nosso Eu preserva algumas experiências marcantes que tivemos
em vida e que a alma teria uma espécie de memória e
consciência. O conceito rosa-cruz de personalidade alma,
inclusive, se situa neste campo de reflexões.

Todas essas informações nos levam ao fato de que mesmo que


venhamos a descobrir cientificamente a existência de uma
energia de alta frequência que é a responsável por gerar
317

consciência, ainda assim não teríamos condições de responder a


perguntas sobre nosso destino enquanto almas. Desde o
surgimento das religiões, milhares pessoas têm se debatido sobre
isso e ninguém nunca chegou a uma resposta final.

22.3. A alma dos animais


Outra discussão que se impõe no debate sobre a existência de
almas está na questão da alma animal. Uma vez que essa energia
da alma estaria relacionada à consciência, se os animais têm
consciência, logo eles teriam uma alma. Repare o leitor que na
história do pensamento a discussão sobre a alma animal têm
presença ancestral. Os antigos romanos criam que os animais
não tinham alma, por exemplo. Algumas crenças budistas
afirmam que eles não só têm uma alma como podem ser o nosso
avô reencarnado, uma vez que algumas almas humanas
nasceriam em animais como forma de punição pelo seu carma
passado.
Muitos se chocam com a mera discussão sobre a existência de
uma alma animal, pois para eles isso seria algo evidente. Afinal,
sentem uma emoção e uma pureza inerentes em seus cães e
gatos domésticos e argumentam que “é óbvio que eles possuem
uma alma”. Apesar de eu respeitar a relação sincera e afetuosa
que existe entre pessoas e seus animais, a coisa não é tão
simples assim. Isso porque o próprio conceito de “animal” não é
318

de tão fácil definição. Podemos concluir facilmente que seres


domésticos como cães e gatos são animais, mas será que fungos
também o são? Vírus e bactérias são animais? Tardígrados e
verminoses idem? Plantas carnívoras e corais marinhos são
animais? A palavra ‘animal’ faz referência a tudo aquilo que é
‘animado’, ou seja, possui uma ânima (uma alma).

A questão é que se seguirmos na linha de que animal é tudo


aquilo que se mexe (ou seja, tudo o que é animado), nos
defrontamos com alguns problemas difíceis de se lidar. Se
admitirmos isso, logo podemos concluir que de alguma forma a
alma dos cachorros vai para algum plano espiritual após sua
morte. Mas pra onde vão os mosquitos e formigas, uma vez que
milhões deles morrem a cada minuto pelo mundo? Vírus têm
plano espiritual? E as almas dos animais extintos? Vamos
encontrá-las no post mortem? No céu tem dinossauros? Portanto,
nada é tão simples quanto parece.

Ainda no pensamento rosa-cruz, se os animais possuem uma


alma coletiva de acordo com sua espécie, o que dizer dos
animais híbridos como o ligre, zebroide ou o tigreão? Eles têm
alma coletiva do lince ou do tigre, da zebra ou do asno, do tigre
ou do leão? O fenômeno do hibridismo animal, a meu ver, já
coloca em xeque essa ideia de uma alma coletiva. Mas vamos
ignorar este problema e seguir na linha de que as almas dos
animais estão constantemente evoluindo. O que isso significa na
prática?
319

Isso pode significar que todos os seres vivos estão caminhando


numa direção de uma evolução espiritual, mas qual o destino
disso? Aqui, há duas correntes diferenciadas. A primeira afirma
que no caso dos animais, alguns deles vão se preparando para se
reencarnarem no reino humano por meio de um processo de
individualização. A alma daquele cachorro nosso cachorro
doméstico, por exemplo, e que se comporta de maneira tão
“humana”, estaria pronta para deixar de ser coletiva e se
preparando para virar uma alma individual.

A segunda corrente afirma que a alma dos vegetais não pula para
o reino animal e a alma dos animais não pula para o reino
humano. O que acontece é que dentro de cada espécie há um
ponto ótimo de evolução e que quando esse estado é atingido,
essa alma não precisa mais se reencarnar. O cães da raça golden
retriever, por exemplo, seriam espiritualmente mais evoluídos do
que o lobos, mais dominados por instintos primitivos. Assim
como os seres humanos poderiam atingir o máximo de sua
evolução na figura de Jesus, por exemplo, a alma canina poderia
atingir o máximo de sua evolução em uma determinada espécie
de cachorro.

Como vemos, é tudo bem especulativo, mas certas crenças


possuem alguns desdobramentos filosóficos. Vamos seguir na
linha de que a alma dos animais está evoluindo em direção ao
reino humano. O que isso significa? Se há uma evolução da
320

alma por meio da vida e esta surgiu nas primeiras bactérias e


vem evoluindo desde então, isso significa que os seres humanos
em algum momento já se reencarnaram como dinossauros?
Todas as almas humanas já foram bactérias algum dia? Esta é
uma ideia jocosa, mas que cabe dentro da linha de pensamento
que nos é apresentada.

Caso o leitor não tenha reparado, o conceito de evolução é o fio


que o rosacrucianismo usa para tentar costurar o mundo
espiritual com o mundo biológico. O problema é que ainda
assim sobram desafios filosóficos difíceis de operar. Se o
objetivo da humanidade é evoluir coletivamente e se os animais
estão constantemente evoluindo e entrando no reino humano,
digamos assim, isso significa que por mais que a humanidade
evolua espiritualmente, sempre vai chegar almas novas e pouco
evoluídas. Como elas estão começando a sua jornada no reino
humano, isso necessariamente vai sempre atrasar a evolução
coletiva da humanidade. Como faz?

Para responder a essas perguntas, alguns autores dirão que essas


novas almas evoluirão em outros planos para não atrasar a
evolução do reino humano. Muitos chegam até a afirmar que
como os dinossauros não existem mais, a alma daqueles seres
estaria evoluindo em outro planeta. Neste ponto, o leitor deve
estar notando que apesar de certas crenças trazerem certa
linearidade racionalista, é tudo extremamente especulativo.
321

Para além dessas vãs tentativas de compreender o encadeamento


da biologia dos seres vivos sob uma ótima espiritualista, certas
crenças trazem também certos dilemas morais. Permitam-me dar
um exemplo. Se os animais selvagens são almas pouco
evoluídas, na medida em que destruímos áreas do mundo natural
para construir cidades urbanas e cheios de seres humanos (mais
evoluídos), não estaríamos contribuindo para a evolução
espiritual do planeta? Isso porque abriríamos mais espaço para
as evoluídas almas dos seres humanos em comparação com a
alma coletiva dos animais primitivos. Logo, destruir as áreas
selvagens seria fazer um bem espiritual para o objetivo da
espiritualização do planeta. Afinal, segundo a Inteligência
Cósmica, as almas primitivas continuarão sua evolução em outro
planeta e, quando estiverem prontas, voltam para a Terra como
humanas!

Outro aspecto que merece uma discussão é a extrema


dificuldade de perceber certas “leis do mundo espiritual” em
certas criaturas. Se os animais têm alma, certamente vegetais e
minerais também. Em que momento um mineral encarna ou
desencarna? Quando a alma coletiva de uma planta sai do
corpo? Dizer que ela desencarna quando ela é arrancada da terra
não é tão simples assim. Isso porque eu posso tirar uma
cebolinha da terra, depois de três dias colocá-la na água
novamente e ela continuará crescendo. A alma coletiva das
cebolinhas continua lá?
322

Nessa discussão, o que dizer da alma coletiva das bactérias? Que


tipo de experiências terrenas elas podem ter que as faça evoluir
em direção à perfeição da alma universal? Matar pessoas com
doenças? Como vemos, são tantas perguntas que a ideia de alma
animal nos traz que ficamos rodando em círculos. Este tipo de
especulação infrutífera é onde caímos toda vez que nos
debruçamos para nos perguntar qualquer coisa sobre a suposta
realidade espiritual.

22.4. As almas coletivas


Nestes debates sobre almas, um conceito rosa-cruz que sempre
me chamou a atenção foi a ideia de alma coletiva. Para além da
alma/ consciência coletiva dos animais, segundo o
rosacrucianismo, certos grupos humanos também teriam almas/
consciências relacionadas a estes mesmos grupos. Nesse caso,
haveria almas coletivas de religiões, nações, etnias etc. Alguns
autores místicos, apontam que haveria uma espécie de alma
judaica, por exemplo. Ao que parece, esta opinião é
compartilhada por muitos partidários dos próprios judaísmos.

Sem querer questionar a religião judaica, eu lembro que a


primeira vez que eu vi essa proposta, eu me espantei. Afinal, se
existe uma alma judaica e uma alma cristã, isso significa que
essas duas almas são separadas entre si. Logo, a ideia de
irmandade entre todos os seres humanos se quebra. Afinal,
aquele lá, o outro, tem uma alma diferente da minha. Logo, ele
não é um semelhante. Mas para além deste pequeno detalhe, a
323

ideia de uma alma coletiva para os seres humanos em função de


vários conceitos que nos diferenciam sempre me pareceu um
caminho muito cheio de pedregulhos para pensar. Vamos ver um
pouco sobre isso.

Talvez seja fácil viajarmos ao Japão e imaginarmos que um


povo tão ordeiro e respeitador pode ter uma espécie de
personalidade coletiva proporcionada por uma alma igualmente
coletiva. Mas e os descendentes de japoneses que moram no
Brasil? Eles têm uma alma japonesa ou brasileira? E os filhos de
pai espanhol com mãe japonesa, qual é a alma coletiva deles? E
o que dizer da pessoa cuja família inteira é judia, mas ela não é,
pois sua mãe é católica? A qual alma coletiva esta pessoa
pertence?

Além dessa questão das fronteiras, o conceito de alma coletiva


tem o problema de não saber pontuar exatamente qual é o
conceito coletivo com o qual estamos trabalhando. É a nação, a
tribo, a etnia, a religião, o país, o bloco econômico, o sexo
biológico ou a classe social? Qual exatamente é o ponto de corte
do “coletivo”? Isso porque em cada um destes conceitos existem
tantos pontos fora da curva e áreas intermediárias que fica difícil
imaginar quem é do grupo tal.

Um espanhol que mora no Brasil há três décadas, qual é sua


alma coletiva? Uma pessoa criada no catolicismo, mas que
324

frequenta o candomblé regularmente, qual é sua alma coletiva –


candomblecista ou católica? Um menino que nasceu no México,
mas cujos pais são africanos, qual é sua “alma” - africana ou
mexicana? Aliás, a própria ideia de “México” já é uma mistura
entre indígenas e europeus. Como faz?

Nesse assunto, é importante notar que muitas vezes o que os


místicos chamam de “alma coletiva” pode estar relacionado a
uma influência genética ou geográfica, algo que muitas
pesquisas científicas discutem. O povo japonês, por exemplo,
pode ser ordeiro em função de características genéticas. Países
sem fronteiras naturais nítidas com outros países, como
montanhas e rios, por exemplo, podem ter um caráter mais
belicista. Isso porque eles se sentem mais ameaçados por
vizinhos do que em países como o Brasil, sem inimigos naturais.

Isso significa que a personalidade de um povo pode ter


características genéticas, geográficas ou até mesmo históricas.
Mas o rosacrucianismo vê essa personalidade coletiva como
uma espécie de alma coletiva. Nesse sentido, haveria uma
relação entre o plano espiritual e os genes, a geografia e a
história dos povos e das nações? As pessoas têm uma alma
diferente em função de sua biologia e de sua trajetória no tempo
e no espaço?
325

São dezenas de perguntas que se colocam conforme vamos


avançando no pensamento, mas a ideia de dividir os seres
humanos em almas coletivas sempre me pareceu um delírio.
Quando eu faço um ponto de corte para definir “vocês de um
lado tem um alma diferente do lado de cá”, isso tem tantas
consequências doentias e nefastas que eu nem sei como as
organizações místicas e esotéricas nunca se atentaram para isso.
Isso é a semente do nazismo. Se o outro tem uma alma diferente
de mim, eu não sou obrigado a vê-lo como um semelhante.
Repare o leitor como a ideia católica de que somos todos filhos
de um mesmo Deus é muito mais abrangente e humanista do que
essa ideia de que temos uma essência anímica dividida por
grupos.

Além de todas essas questões, a ideia de alma coletiva dialoga


fortemente com a essencialização dos outros. Isso significa
pressupor nas pessoas uma essência e um comportamento
automático. É o mesmo que dizer que “mulheres” e “africanos”
possuem uma essência em função de uma alma coletiva. Ora, se
por um lado essa essência pode ter características positivas, elas
também podem ter traços bem negativos.

Se uma pessoa negra assalta alguém em função de necessidades


materiais prementes, por exemplo, uma pessoa pode facilmente
dizer que a “essência dos negros” não reconhece a propriedade
privada em função da alma coletiva dessa etnia. Se uma mulher
tem um ataque histérico devido a inúmeras condições que
326

afetam a sua vida, em vez de problematizar essas condições,


podemos reduzir isso a uma “essência feminina” dada à histeria
ou à fofoca, por exemplo. Afinal, essa seria a alma coletiva das
mulheres. Como vemos, quando não muito bem trabalhada, nada
pode ser mais patético e preconceituoso do que essa ideia de
alma coletiva.

22.5. A conexão entre as almas


O mais engraçado da ideia de que os seres humanos possuem
almas coletivas próprias de determinados grupos é que ao
mesmo tempo em que a Ordem Rosa-Cruz afirma isso, ela
também diz que as almas humanas estão intimamente
conectadas entre si. Isso porque elas proviriam da mesma fonte
cósmica, que seria a alma universal. Inicialmente, estas duas
ideias são, de certa forma, contraditórias, a menos que apelemos
para certa abstração de duas realidades que se interpõem. Mas
para além disso, vamos ignorar este aspecto e visualizar como
isso seria.

Sempre que se fala da questão da alma, a Ordem Rosa-Cruz


convida seus membros a visualizar a imagem de várias lâmpadas
conectadas por um mesmo fio. Algumas lâmpadas brilham mais
intensamente e outras menos, mas elas estão ligadas à mesma
energia elétrica. Isso seria as diferentes personalidades alma que
se conectam à alma universal e ao próprio Deus. As lâmpadas
que mais brilham seriam as personalidades alma mais evoluídas.
Do meu ponto de vista, contudo, eu sempre me perguntei o que
327

significa, na prática, a afirmação de que todas as almas estão


conectadas entre si.

Será que as pessoas mortas por regimes ditatoriais mundo agora


formam uma unidade com seus assassinos? Será que mulheres
queimadas por bruxaria formam uma unidade com os
Inquisidores? A mãe de um menino assassinado por bandidos
está vinculada em alma com seus algozes? Os homossexuais
mortos em países como a Arábia Saudita formam uma “unidade”
com seus perseguidores? A filha abusada sexualmente pelo pai
estará unida com a alma dele? E o que dizer dos massacres que
Gengis Kahn realizou na Ásia central? A alma das pessoas
massacradas covardemente estará unida com a dos soldados?

Considerando todo o mal que existiu, existe e existirá no mundo,


a ideia de que todas as pessoas estão unidas por uma espécie de
alma universal sempre me deu um pouco de mal estar. É
chocante saber que minha alma está unida com a alma de certos
políticos odiosos ou de ditadores, bem como a de pessoas
desagradáveis e dissimuladas. Repare o leitor como, novamente,
as crenças metafísica estão relacionadas ao contexto
socioeconômico de seus partidários.

Para quem é classe média e vive na bolha da América do Norte,


dizer que todos estamos unidos formando uma unidade e que
devemos servir à humanidade é lindo. Mas no momento em que
328

escrevo essas palavras, bombas russas estão massacrando


famílias ucranianas. De que adianta dizer para os ucranianos que
a alma deles está conectada com os russos? A ideia de que todos
estamos unidos pela alma universal é fofa porque sugere que
todos os seres humanos são irmãos. Embora eu ache isso uma
percepção razoável, não consigo visualizar na prática como
posso ter laços de irmandade com gente má e de temperamento
sórdido. Se tal proposta pode servir para os russos

verem os ucranianos como irmãos, ela também causa


constrangimento para os ucranianos.

22.6. Que roupa os fantasmas usam


Nesta discussão sobre as almas, há um detalhe que geralmente
nos passa desapercebido, mas que merece alguma consideração.
Em quase todos os lugares do mundo a existência de fantasmas é
descrita pela cultura popular. Eles estão presentes nas lendas e
folclore, na literatura, no cinema ou no relato de crianças e de
pessoas ditas sensitivas que afirmam terem visto ou ouvido
coisas estranhas, quase sempre à noite.

Algumas religiões negam a existência desses fenômenos. Outras


têm um olhar mais condescendente com o tema, ponderando que
talvez as almas possam aparecer. Já outras operam como se
fosse possível conversar até com a alma dos desencarnados. Há
também pesquisadores da área de Parapsicologia ou de
329

Paranormalidade que já tentaram fotografar ou captar sons do


além. Apesar das tentativas, até hoje não foi provado que
fantasmas existem, embora relatos sobre eles sejam parte da
cultura humana em todo lugar. A Ordem Rosa-Cruz, contudo,
afirma que estes fenômenos existem, mas eles não são
exatamente o que as pessoas pensam.

Segundo a Ordem que frequentei, o fenômeno da aparição dos


fantasmas não seria a alma das pessoas propriamente ditas. O
que a gente chama de fantasma seria a aparição daquele corpo
intermediário entre a alma e a matéria e que a minha
organização chama de corpo psíquico. Quando uma pessoa
morre, a alma se desprende do corpo físico junto com este corpo
intermediário.

Depois de um tempo, a alma também se libertaria do corpo


psíquico e realizaria uma viagem astral até o seu plano de
consciência correspondente. Neste momento, o corpo psíquico
ficaria abandonado na Terra como uma concha vazia e se
dissolveria no éter com o tempo. Algumas pessoas seriam
sensitivas o suficiente para perceber essas “conchas psíquicas”,
o que teria originado o fenômeno dos fantasmas.. Algumas
linhas de pensamento afirmam também que algumas almas têm
muita dificuldade de aceitar a morte do corpo físico e ficariam
presas a ele. Elas, então, ficariam perto de onde o corpo físico
foi enterrado para lamentar a sua morte.
330

Com o passar do tempo, a alma aceitaria a sua nova condição, se


libertaria do corpo psíquico e seguiria seu rumo até um plano
espiritual. É por isso muitas religiosidades afirmam que os
cemitérios possuiriam uma energia especial. É porque seria
neles que se concentrariam uma grande quantidade de corpos
psíquicos abandonados por almas atormentadas.

Não é meu objetivo desacreditar essas crenças ou ridicularizá-


las, mas gostaria de dividir com os leitores algumas reflexões
sobre este fenômeno. Se este corpo psíquico realmente existe e
dá origem aos fantasmas, que tipo de roupa os fantasmas usam?
Essa pergunta pode ser interpretada como estúpida, mas ela não
é. Isso porque a minha Ordem Rosa-Cruz afirma que o corpo
intermediário é a união entre o corpo físico e a alma. Ora, se
roupas são tecidos, elas também têm um corpo psíquico? Se sim,
então roupa tem alma. E se não, isso significa que meu fantasma
vai andar por aí pelado?

Há até um meme engraçado nas redes sociais onde as pessoas


dizem que fantasmas sempre assombram casarões mal
assombrados e estão com roupas da nobreza. Nunca assombram
o pobre choupana do seu João numa roupa rasgada. Logo, esses
fantasmas são tudo burguês safado. Apesar de ser uma
brincadeira, não deixa de ser um questionamento razoável. Por
que estes fantasmas habitam apenas casarões nobres e usam
331

roupas da Idade Média europeia e nunca apartamentos de


conjuntos habitacionais?

Seja como for, se os fantasmas aparecem vestidos, isso significa


que tecidos de matéria inerte e sem vida também possuem uma
espécie de energia psíquica? Isso significa que os tecidos
desencarnam? Como o leitor deve imaginar, trata-se de crenças
um pouco delirantes. Por outro lado, elas trazem um debate
muito interessante. A ideia de que os fantasmas necessariamente
vagariam por aí vestidos está ligada a uma concepção cultural.

Nossa cultura ocidental, por exemplo, vê a nudez como algo


ruim. Mas no Japão a nudez é sinônimo de pureza e muitos
fantasmas são retratados como crianças nuas porque refere a um
estado de existência pura. Ora, mas o plano espiritual se adapta a
cada cultura humana? Esta pode parecer uma discussão boba,
mas muita gente tem um receio de que a alma de outras pessoas
nos veja pelados ou que nós vejamos os outros nus em formato
espiritual. De qualquer maneira, a ideia de leis espirituais
universais parece simplesmente não proceder quando
transferimos valores culturais de vergonha com relação à nudez
para o plano metafísico. Ademais, estas ideias são cíclicas. Na
Grécia Antiga, a nudez era um sinal positivo e não de
acanhamento.
332

Este simples detalhe sobre a roupa que os fantasmas usam me


fez ficar extremamente desconfiado da existência desses
fenômenos. É verdade que muitas pessoas afirmam
categoricamente que veem coisas e eu até acredito na
sinceridade e na pureza do relato delas. O que eu me questiono é
se isso é um fenômeno de natureza espiritual ou se tem a ver
com alucinações e enganações de nosso cérebro, bem como
coisas relacionadas à autossugestão.

22.7. A alma dos entes queridos


Em quase todas as correntes espiritualistas ouvimos falar a ideia
de que no pós vida encontraremos nossos entes queridos que já
se foram. Estes ensinamentos também afirmam que a morte não
é o fim, mas um novo começo. A Ordem Rosa-Cruz também
confirma isso de muitas formas, principalmente quando chama a
morte de transição da consciência. Essas crenças são muito
reconfortantes para aqueles que perderam pessoas que amavam.
Embora não seja meu objetivo afetar a fé mais profunda das
pessoas, gostaria de colocar algumas perguntas sinceras sobre
este tema. Podemos começar essa discussão fazendo uma
indagação muito básica: “O que vem a ser um ‘ente querido’?”.

Se quisermos responder rapidamente essa pergunta, podemos


dizer que se trata de pessoas que amamos como nossos pais,
nossos filhos, nossos irmãos etc. Há de se ressaltar, no entanto,
que o que chamamos hoje de entes queridos possui um
significado histórico. Atualmente vivemos nas chamadas
333

famílias nucleares, mas nem sempre foi assim. Ao longo do


tempo, os seres humanos viveram em tribos, clãs e já houve
culturas que sequer existia o conceito de pai e de mãe e as
crianças eram criadas por todos da tribo.

Hoje em dia, porém, o conceito de família está ligado


principalmente aos vínculos sanguíneos que temos com as
pessoas de nossa família imediata. Mas cônjuge é ente querido?
E a mulher que se casou com três homens diferentes? Qual é o
ente querido dela? Mas para além disso, será que encontraremos
todas as pessoas com quem temos vínculos sanguíneos no pós
vida? Além do problema das pessoas que têm famílias pequenas
ou sequer conheceram sua família, como os órfãos, é evidente
que nem todas essas pessoas nos são queridas e isso nos traz
alguns desafios.

O que dizer, por exemplo do pai que abusou sexualmente da


filha de oito anos? Será que a filha vai querer encontrar a alma
dele no além? Pode-se dizer que a personalidade alma da pessoa
que foi abusada pelo pai não o encontrará no além, mas como
lidar com culturas onde a norma é que o próprio pai pague para
um homem mais velho tirar a virgindade da filha como ritual de
purificação? (BUTLER, 2016). Sim, leitor. Essas culturas
existem. Neste caso, as leis do mundo espiritual obedecem a
tabus do mundo ocidental como incesto e pedofilia ou elas se
adaptam a outras culturas?
334

Além disso, o que dizer do filho de um aborto espontâneo? Ele


estará lá nos esperando? Trata-se de um ser humano que nem
sequer veio à luz. Nesta linha, o que dizer da mãe que afogou o
filho na banheira por depressão pós-parto? Ela encontrará a alma
dele? O que dizer da mãe que doou a criança para a adoção por
não poder criá-lo? Um filho adotado encontrará qual mãe após a
morte – a biológica com quem não desenvolveu laços ou a mãe
de criação? E o que falar da avó que expulsou a neta de casa
porque engravidou? Será que ela é um ente querido? Outrossim,
como ficam os filhos oriundos de incesto?

O assunto também demanda nos perguntarmos o que seria um


ente. Será que aquele tio que você nunca conheceu porque mora
longe ou daquele avô que já tinha morrido quando você nasceu
são nossos entes? E aquele padrinho muito querido com o qual
não temos laços sanguíneos ou daquele nosso inseparável amigo
de infância? Será que eles são parte dos entes que
encontraremos? Afinal, eles são praticamente da família. E o que
dizer daquela pessoa escravizada por uma família e que viu os
filhos de sua dona crescerem, cuidando deles e ajudando na sua
criação, as amas de leite? Essas criança e futuros adultos têm
uma vinculação muito especial com sua escrava, mas ainda
assim, se trata de uma pessoa escravizada que fora comprada em
algum mercado. Essas amas de leite podem até ser queridas, mas
são entes?
Há também um problema de ordem prática que se impõe nessa
discussão. Nós encontraremos nossos parentes no além em qual
335

período da vida deles: infância, adolescência, idade adulta ou


velhice? Essa pergunta é importante porque muitas pessoas
morrem em condições abjetas e com o corpo retorcido. Conheci
uma senhora que era avó de sete netos e ela teve micro-AVCs no
cérebro, o que a deixou impossibilitada de se mover e ela foi
literalmente definhando. Será que no plano espiritual seus entes
queridos vão encontrá-la com a última forma física que ela teve?

Além dessa questão, ainda há um outro ponto que torna essa


discussão ainda mais turva. Vamos supor que encontremos
nossos entes queridos como afirma a Ordem Rosa-Cruz. Se nós
reencarnarmos, tudo bem. Mas se não reencarnarmos, ficaremos
faze o quê com essa gente pelo resto da eternidade? Será que
teremos que conviver com aquele tio fascista pelo resto da
existência? Deus me free!

Como vemos, a questão não é de fácil solução. Para responder a


isso, podemos imaginar que o estado espiritual é algo que
desconhecemos e um mistério em si mesmo. Pode-se até dizer
que o post mortem é uma realidade baseada numa espécie de
memória espiritual e não de entidades espirituais como
imaginamos. Essa é uma resposta possível, mas o que eu quero
mostrar para o leitor é que efetivamente não temos todas as
respostas.

22.8. A reencarnação
336

Uma vez que estamos discutindo sobre a existência e a realidade


do mundo espiritual, vale fazer algumas considerações sobre a
reencarnação, um dos pilares do rosacrucianismo. Do meu ponto
de vista, eu sempre achei esta crença muito óbvia e ficava
indignado com o fato de que as pessoas preferiam acreditar em
céu e inferno em vez da ideia de uma vida cósmica da alma. Foi
preciso muito tempo até que eu me permitisse questionar certas
coisas acerca desta ideia. Será que a doutrina reencarnacionista é
tão racional assim? Será que ela faz sentido?

De um ponto de vista mais acadêmico, eu passei a compreender


a doutrina da reencarnação com mais detalhes quando estudei
Sociologia das Religiões. Estes estudos me fizeram entender por
que no Brasil, por exemplo, este pensamento sempre teve mais
penetração nas classes médias do que entre os pobres. Para estes
últimos, a ideia de um paraíso no pós vida no qual nos
libertamos de todos os nossos problemas exerce um poder muito
mais atrativo do que a doutrina da reencarnação. É só na morte
que essas pessoas podem encontrar alguma paz e felicidade.
Para quem é classe média, por sua vez, e que teve acesso a tudo
o que de melhor o mundo pode oferecer, a ideia de termos várias
vidas por meio da reencarnação é muito mais sedutora. Elas
poderão curtir seus resorts e suas viagens várias vezes em outras
existências. Para quem vive no inferno, a ideia de voltar a viver
em um outro corpo nas mesmas condições em que se nasceu
pode ser aterradora.
337

O leitor pode argumentar que na Índia as pessoas são pobres e


largamente partidárias da reencarnação, logo, meu argumento
não procede. Há muitas questões aí que não vamos dar conta
neste livro, mas a doutrina da reencarnação entre os pobres
indianos se impõe por uma questão cultural e por uma elite que
estimula os pobres a aceitarem sua condição sem questionar.
Conforme a democracia se estabeleceu na Índia e a população
teve contato com ideias de outras partes do mundo, a coisa veio
se transformando. Atualmente, os cristianismos e os islamismos
vêm penetrando muito em grandes faixas populacionais neste
país talvez porque suas promessas para um pós vida parecem ser
mais promissoras. Não à toa, muitas pessoas das castas mais
baixas na Índia têm se convertido aos cristianismos.

Seja como for, existem muitos argumentos favoráveis e


contrários à reencarnação e não vamos dar conta de abordar
todos eles, mas podemos discutir alguns pontos sobre esse vasto
assunto. Um argumento contrário seria o de que no processo
reencarnatório nós sofreríamos por coisas que nem sequer
lembramos, o que seria de uma injustiça atroz. No entanto, as
linhas reencarnacionistas costumam dar duas respostas a isso. A
primeiras delas é que nós nos lembramos de vidas passadas por
meio de uma sabedoria subconsciente que guardamos conosco e
que corresponderia ao nosso grau de evolução. Também, certos
traumas, dificuldades ou condições de vida seriam lampejos de
vidas passadas. Falaremos sobre o conceito de subconsciente
mais à frente e, por hora, não entraremos nessa seara.
338

A outra resposta está ligada ao fato de que quando


desencarnamos, teríamos a consciência de todas as vidas que
vivemos e entenderíamos toda a trama de nossa existência. Ora,
mas será que isso é necessariamente bom? Ao longo da história,
podemos ver casos de pessoas condenadas a mortes terríveis
como fogueira, esquartejamento ou torturas atrozes. Na Idade
Média, os que se opunham ao Rei eram enviados aos
calabouços, de onde jamais voltariam ver a luz do sol. Seriam
comidos por ratos ou morreriam de fome. Ora, será que é bom
nos lembrarmos para sempre de todas as nossas vidas no plano
espiritual? Eu não sei o que o leitor acha disso, mas eu não
desejo nem um pouco lembrar de todo o meu possível passado
cósmico considerando o mar de horror que já foi a história da
humanidade.

Neste ponto entra outra discussão muito interessante. Isso


porque quase todos os partidários da doutrina da reencarnação
acreditam que é sim possível termos memórias mais nítidas das
reencarnações passadas na nossa vida atual por meio de certos
exercícios espirituais. A Ordem Rosa-Cruz até ensina exercícios
para trazermos lembranças subconscientes das nossas outras
vidas à nossa mente. O problema é que, ao menos no Ocidente,
quase todos estes exercícios nos trazem a informação de que
fomos nobres europeus em algum reino da Idade Média.
339

Poucas dessas pessoas (ou talvez nenhuma delas, pra sermos


sinceros) voltam às reencarnações passadas e se veem como
tendo sido uma travesti morando no Congo no século IV antes
de Cristo. Eu mesmo presenciei isso na própria Ordem Rosa-
Cruz. Sempre vi rosa-cruzes que tinham reencarnado na Idade
Média. Isso significa que certas “memórias” que temos acerca
das vidas passadas talvez estejam muito mais relacionadas ao
quadro cultural no qual somos criados do que efetivamente a
mensagens advindas do nosso subconsciente.

Os problemas, contudo, não se encerram por aí, pois há questões


matemáticas no horizonte. Os rosa-cruzes em especial acreditam
que a reencarnação é uma lei espiritual que ocorre num ciclo que
dura 144 anos. Isso significa que uma pessoa que morre aos 90
anos, ficaria 54 anos no plano astral para só então reencarnar
numa nova vida. E a partir disso, temos algumas questões.

Admitamos que os parentes que amamos estarão lá no plano


astral nos esperando. Vamos imaginar que nossa avó morreu nos
seus 95 anos enquanto nós tínhamos 10 anos. De acordo com o
ciclo de 144 anos, em 49 anos ela reencarnará. Só que nós
vamos morrer aos 80 anos, ou seja, 70 anos após a morte de
nossa querida e amada avó. Quando chegarmos no plano astral
loucos para matar a saudade, ela estará nos esperando ou já terá
reencarnado?
340

Mas os problemas se avolumam conformam vamos


questionando ainda mais. Se já reencarnamos várias vezes,
tivemos várias famílias. Qual ente querido de qual encarnação
encontraremos? Mesmo que sigamos na linha de que
pertencemos a uma família espiritual de almas afins, a sua mãe
que você ama tanto nessa vida, poderá ter sido o pai de outra
criança em outra vida. Assim, encontraremos a nossa mãe ou o
pai de outra pessoa de três encarnações atrás?

Com o tempo, uma ideia que me parecia tão evidente foi pouco
a pouco sendo questionada e relativizada. Ainda hoje, se eu
tivesse que acreditar em algo espiritual, a ideia de sucessivas
vidas para se atingir um elevado estado de evolução me parece
mais acertada do que as outras propostas de mundo espiritual.
No entanto, a verdade é que nada parece fazer muito sentido.
Todas as explicações que desenvolvemos sobre uma suposta
realidade espiritual parecem se resumir a um mundo de
especulações infrutíferas que não chegam a lugar algum.

22.9. O carma
Nessa discussão sobre alma, vida após a morte e reencarnação,
chegamos necessariamente ao conceito de carma, uma ideia
desenvolvida na Índia há milênios. Para quem não conhece, esta
341

é uma noção que diz que estamos vinculados às ações que


fizemos em vidas passadas. Se fizermos coisas boas, ganhamos
coisas boas. Se fizermos coisas ruins, ganhamos coisas ruins.
Mas qual é o problema desta ideia?

Primeiramente, é preciso ressaltar que em todas as sociedades


onde a noção de carma é parte de uma cultura majoritária, ela
costuma desenvolver um tipo de mente conformista que tende a
aceitar as coisas tal como elas são, em invés de lutar para
transformá-las. Esse é o caso do sistema de castas indiano onde
uma pessoa que nasce como um pária será para sempre um pária
porque é isso o que ela merece em função do que fez na vida
passada. Trata-se de um pensamento que sempre foi muito
polêmico na discussão espiritualista.

O rosacrucianismo, por trabalhar com a ideia de que a alma


evolui de reencarnação em reencarnação, também acredita em
carma, mas reforça que não devemos nos conformar a ele. Pelo
contrário. A Ordem Rosa-Cruz que eu participei sempre nos
instou a participar ativamente do mundo e a transformar as
condições ruins em nossa vida. A organização basicamente usa a
ideia de carma para explicar certas situações em nossas vidas,
sejam positivas ou negativas, mas diz que elas não são
intransponíveis.
342

Repare o leitor que mesmo culturas espirituais que não operam


exatamente com a ideia de carma e nem de reencarnação, ainda
assim creem nas consequências espirituais daquilo que fazemos
ou deixamos de fazer. Nos cristianismos é frequente a referência
à imagem de que colhemos o que plantamos. A ideia aí é que
existe uma espécie de justiça cósmica proporcionada por uma
divindade inteligente. A diferença é que em algumas
espiritualidades essa justiça se distribui ao longo de várias vidas,
ao passo que em outras ela se aplica em nossa vida atual ou no
pós vida, como no julgamento perante Deus.

O problema específico da ideia de carma é que apesar de sua


aparente inofensividade, ela traz uma série de desdobramentos.
Se a gente admitir que carma são situações que acontecem
conosco, ao olharmos nossa vida cotidiana, vemos que todos
têm uma infância mais ou menos feliz ou infeliz, podemos ter
problemas econômicos passageiros, problemas políticos em
nosso país, dificuldade na escola, no relacionamento etc.
Teremos que lidar com problemas do casamento, o
envelhecimento, a perda dos entes queridos, doenças etc. A
questão é: isso tudo faz parte da vida ou necessariamente é fruto
de um carma?

Do meu ponto de vista, sempre achei muito complicado ligar


tudo o que acontece conosco e ao nosso redor a uma espécie de
resultado das vidas passadas. Até porque nem sequer sabemos se
de fato existe uma alma e tampouco se ela se reencarna.
343

Novamente, a tal Inteligência Cósmica nos colocou em situações


de vida da qual não temos a menor consciência de suas causas.
Ela me parece ser tão cruel que sequer nos deu as ferramentas
adequadas para que pudéssemos entender o que se passar com a
gente. No entanto, o debate sobre o carma vai ao encontro das
discussões sobre a Modernidade e seu impacto no mundo
espiritual, algo que discutimos no capítulo vinte.

Podemos dizer que carma seria coisas que não podemos


controlar, como uma doença genética, um fenômeno natural, um
acidente ou uma situação política do país, mas já vimos que a
Ciência e a Tecnologia trazem constrangimentos a essa
percepção. Imaginemos um terremoto no Japão do século XVI
que matou milhares de pessoas. Alguns poderiam dizer que isso
foi o carma daquela sociedade, mas hoje em dia, terremotos no
Japão matam pouquíssimas pessoas graças à Tecnologia. Ora,
por que este tipo de carma ligado a terremotos dominava o
mundo no século XVI, mas não hoje?

Além disso, se passarmos a usar a engenharia genética para


evitar que bebês nasçam com problemas, como fica o carma de
nascimento? Usemos também o exemplo de acidentes, que
muitos associam a certo carma. Se nós seguirmos na linha de
que eles acontecem em função de uma dívida em vidas passadas,
basicamente eliminamos da equação o fator de erro humano ou
da limitação tecnológica. Em outras palavras, existe uma lei
espiritual fazendo com que um controlador de voo com
344

problemas na família tenha se distraído e causado um acidente


que matou trezentas pessoas. A culpa disso é do carma.

Nessa linha, essas discussões acabam por se relacionar à ideia de


leis naturais que regem o mundo. Ora, se nós consertarmos
certos defeitos genéticos ou criamos meios para impedir que
algo aconteça a partir de instrumentos de segurança, isso não
seria intervir nas próprias leis divinas ou espirituais que regem o
mundo? Não seria se opor à vontade de Deus? Por outro lado, eu
tenho que aceitar que a vontade de Deus me quer mal por culpa
do que eu fiz no passado?

Se levado muito ao extremo, o conceito de carma pode ser


materializado no caso da mulher que acha que o filho foi
assassinado por um bandido porque em outra vida ela foi alguém
que tirou a vida do filho de outra pessoa e agora precisa passar
por isso. Em outras palavras, o assassino seria tão somente um
agente espiritual para compensar o carma daquela mulher. O
problema é que este tipo de raciocínio nos leva a um movimento
circular.

Vamos supor que uma mulher de nome Maria perdeu o seu filho
João porque na vida passada Maria tirou a vida do filho de outra
pessoa, a Marcela. Logo Maria teve seu filho assassinado por
causa de um carma do passado. Ora, mas por que não podemos
interpretar que Marcela assassinou o filho de outra pessoa no
345

passado e por isso teve que perder seu filho assassinado por
Maria? E por que não interpretar que essa pessoa cujo filho foi
assassinado por Marcela matou o filho de outra pessoa em um
passado ainda mais distante? Podemos voltar o raciocínio
cármico até os neandertais, onde todo tipo de assassinato que
alguém comete nada mais seria uma justiça redistributiva divina.

Como vemos, a ideia de carma implica em acharmos que


conseguimos identificar as causas de um fenômeno ou um fato
qualquer como tendo uma origem espiritual em outra vida. O
problema é que isso nos leva sempre a um terreno movediço. No
caso do bandido que mata o filho de uma pessoa, essa ação é o
resultado de um carma passado ou é um elemento gerador de um
carma futuro para o criminoso? Sem sabermos as respostas
direito, ficamos num pingue pongue de causa e efeito.

Isso significa que o carma não exista? Bem, pessoalmente


acredito que carma pode existir de uma forma mais racional. Se
você constrói uma casa em cima de um morro sem técnicas de
segurança, está sujeito às chuvas destruírem sua moradia. Se o
governo não investe em vacinas, a sociedade estará passível a
surto de doenças. Se você não estuda para uma prova,
provavelmente não terá sucesso nela.

Com relação ao carma passado, se você liberta um grande


contingente de pessoas escravizadas e não dá a elas condições
346

mínimas de integração na sociedade, terá que lidar com esse


problema lá na frente. Se você investe corretamente no presente,
terá uma consequência no futuro. Assim, há coisas que são
efeitos de determinadas causas muito nítidas e nesse sentido,
creio que é possível falar numa espécie de “carma” ou “lei do
retorno”, mas sempre com um viés histórico, sociológico,
antropológico, econômico etc.

Se por um lado associarmos coisas negativas da vida a um


carma é especulativo, por outro lado temos que reconhecer que
muitas pessoas são agraciadas com a boa fortuna e com uma boa
vida. Isso significa um bom carma referente ao passado?
Naturalmente, é muito fácil pensarmos que quem ganha na
loteria foi agraciado com um bom carma, mas será que isso
necessariamente está ligado ao que fizemos de bom no passado?
É muito difícil saber. Talvez seja simplesmente a aleatoriedade
da vida.

Talvez a randomização dos fenômenos exista e não estamos


sendo conduzidos por uma carga passada e nem por uma
Inteligência Cósmica que nos agracia. Até porque loterias
necessariamente presenteiam pessoas regularmente. Se
associarmos ela a um carma, isso significa que quem inventou a
loteria pode ter sido um agente do plano espiritual. Será? Nós
temos muita dificuldade de lidar com a ideia de que a vida pode
ser conduzida pelo acaso, contingência e aleatoriedade. Sempre
que algo bom nos ocorre, imediatamente associamos isso a
347

forças espirituais, ignorando o quanto essas mesmas forças


podem ser cruéis conosco em outras ocasiões ou totalmente
indiferentes a milhares de seres humanos que vivem em
condições abjetas.

Quer o carma exista ou não, durante minha jornada, eu comecei


a perceber como é infrutífero tentarmos identificar causalidades
com base em qualquer coisa espiritual. Talvez a vida seja
simplesmente o que ela é. Triste ou alegre e com momentos de
altos e baixos. Há coisas que podemos e devemos mudar e há
coisas que talvez não consigamos mudar e só nos cabe nos
adaptarmos. Isso não significa que não devemos refletir sobre
nossas atitudes passadas para evitar novos erros e tampouco
projetar nossa existência no futuro. Só penso que colocar o
carma nessa equação pouco a pouco começou a me pareceu
inútil.

No fim das contas, se as ideias de alma, reencarnação, carma,


alma animal, corpo intermediário e almas coletivas fossem
realmente boas, a Índia não seria a miséria que é. A coisa só
começou a melhorar neste país quando eles deixaram um
pouquinho a religião de lado e adotaram reformas sociais
baseadas na modernidade ocidental que gerou riqueza e
prosperidade para um sem número de pessoas.
348

Por fim, a crença na alma e no mundo espiritual sempre esteve


muito vinculada à ideia de uma vida eterna. Antigamente, a ideia
de que eu vou continuar existindo depois da morte me era
reconfortante. Com o tempo, contudo, passei a me indagar sobre
isso. Ora, quando estou triste ou sofrendo, nada é melhor do que
um bom sono regenerador onde esquecemos de todos os nossos
problemas. Agora imagine o leitor o que é existir para TODO O
SEMPRE, sem nunca poder se libertar de todas as suas dores e
fraquezas, guardando para o resto da eternidade todo o mal que
recebeu, mas também que você fez. Não sei o que o leitor pensa,
mas hoje em dia, a ideia de existir para sempre me dá frio na
espinha.

Nesta parte sobre o carma encerramos a discussão sobre o


mundo espiritual e conceitos metafísicos relacionados a ele,
embora ainda vamos voltar a estes temas de muitas formas. É
evidente que tudo o que eu falei aqui foi de forma bastante
resumida, sendo apenas um apanhado geral de profundas
discussões filosóficas. Nunca vamos dar conta de abordar todas
as questões relativas à espiritualidade. O que quis mostrar ao
leitor é que qualquer debate sobre almas sempre nos leva ao
terreno de uma especulação sempiterna. O problema é que essas
especulações quase sempre geram efeitos sociais reais.

23. REFLEXÕES SOBRE O SUBCONSCIENTE MÍSTICO


349

Como foi dito anteriormente, para muitas linhas de pensamento,


o cérebro humano seria nada mais do que um transformador da
energia da alma. Isso significa que a nossa mente vai
“descendo” de nível, indo da alma, passando por diferentes
níveis de subconsciência e subjetividade até chegar à mente
objetiva, onde operamos inteiramente a partir de nossos sentidos
e raciocínio. A minha Ordem Rosa-Cruz sempre deu uma
especial atenção a essas camadas que podemos chamar de
subconsciente. Isso porque seria por meio delas que podemos
desenvolver certos poderes, mas não somente isso.

O rosacrucianismo crê que como nosso subconsciente está mais


vinculado à alma (e essa estaria vinculada a Deus), é acessando
nossa consciência mais profunda que podemos entrar em
harmonia com a sabedoria divina que reside em nosso Ser. Essa
consciência divina que habitaria em nós é o que os rosa-cruzes
denominam de ‘Mestre Interior’. Em outras palavras, seria
aquilo que muito da literatura espiritualista reconhece como
sendo o nosso “Verdadeiro Eu”. Trata-se de uma voz silente e
sutil que guarda toda a Verdade Divina dentro dela e que os
seres humanos podem se harmonizar para obter respostas para
seus problemas.

Os principais meios para se entrar em contato com nosso


subconsciente, segundo o rosacrucianismo, seriam a prece, a
meditação, os sonhos, entre outros métodos. Seja como for, para
o pensamento rosa-cruz, o subconsciente e a sabedoria que nele
350

reside está o tempo todo tentando se manifestar e ele permanece


em contato com nossa mente objetiva de muitas formas. Seja
numa intuição que temos, numa obra de arte que construímos, na
atração que sentimos por determinados, entre outros.

Enquanto eu era estudante rosa-cruz, achava toda essa proposta


de pensamento muito linda. A ideia de que temos um verdadeiro
Eu, um Mestre Interior, uma voz silenciosa dentro de nós, um
alma divina que habita no mais profundo de nossa consciência é
realmente muito bonita. No entanto, será que existe algum
problema nessa perspectiva? Conforme o ceticismo foi
crescendo em mim, desenvolvi muitas desconfianças acerca
dela. Gostaria de compartilhar com os leitores alguns
questionamentos sobre essa proposta.

23.1. Subconsciente: entre o Misticismo e a Psicologia


É importante salientar que a ideia de que a mente humana se
subdivide em camadas não é propriedade do rosacrucianismo.
Essa percepção é antiquíssima e está presente em vários textos
budistas e hindus, embora usem um vocabulário diferente do
nosso. A prática da meditação, inclusive, se assenta na ideia de
que temos níveis mais profundos de consciência dentro de nós e
não tão usuais. Do ponto de vista científico essa ideia é
igualmente validada, pois muitos psicólogos acreditam seguem
este pensamento. No Ocidente mais recente, talvez possamos
afirmar que foi a partir dos trabalhos de Freud que essa ideia se
difundiu.
351

O psicanalista austríaco criou um quadro que estrutura a mente


humana entre consciente e inconsciente. Este último também
teria três instâncias chamada de Id, nossos desejos mais
primitivos, Superego, nossas regras culturais, e o Ego, que é
quem faz a escolha entre os dois. Vale ressaltar que para os rosa-
cruzes, esses níveis mais profundos de consciência não são
totalmente inconscientes de nós e é por isso que eles preferem
denominá-los de ‘subconsciente’. Também adiciono que as
ideias de Freud hoje em dia são muito criticadas de todos os
lados por especialistas da Psicologia, mas meu objetivo aqui não
é defender o pensamento freudiano, mas sim comparar certas
propostas de pensamento.

Do meu ponto de vista, durante a faculdade, tive aulas de


Psicologia e convivia bem com as ideias de inconsciente que os
psicólogos trabalhavam. Por outro lado, eu tinha muito respeito
pelo modo como os rosa-cruzes entendiam o nosso
subconsciente. Num determinado momento da minha trajetória,
contudo, eu notei que talvez eu estivesse caminhando sobre dois
sistemas de pensamento essencialmente contraditórios. Isso
porque embora o Misticismo e a Psicologia falem que nossa
mente possui camadas mais profundas, o entendimento dessas
duas correntes de pensamento é completamente diferente um do
outro.
352

O rosacrucianismo afirma que o subconsciente humano é cheio


de poderes maravilhosos e de uma sabedoria divina infinita.
Afinal, ele está próximo da alma. Já a Ciência diz que é no
subconsciente que residem traumas, fantasias sexuais
inconfessáveis, instintos assassinos e animais etc. Afinal, o que
há, de fato, dentro dos níveis mais profundos da mente humana?
A gente pode até tentar conciliar essas duas concepções, mas o
fato é que elas são relativamente excludentes. Se tudo fosse tão
simples, bastaria acabar com o atendimento psicológico tão
necessário às pessoas e todos virarem rosacruzes para acessar
seu "Mestre Interior" e resolver seus problemas! Nada é mais
falso.

Neste ponto, eu comecei a duvidar do sistema conceitual rosa-


cruz. Havia até quem diferenciasse o inconsciente da Psicologia,
dizendo que ele se referiria a nossos instintos animais, ao passo
que o subconsciente do misticismo se referiria à nossa alma.
Neste caso, teríamos dois subconscientes. O problema é que
qualquer um que estude a mente humana a sério pode perceber
que as coisas não são tão simples assim. Aliás, nas Ciências há
até quem duvide da própria existência do inconsciente
freudiano.

A partir deste ponto, as coisas começaram a ficar estranhamente


confusas. Ora, como uma dimensão tão divina como a nossa
mente mais profunda pode conviver com tudo o que de
controverso que a Psicologia dizia sobre o inconsciente? Em
353

função disso, pouco a pouco, comecei a ficar mais cauteloso


acerca dessa proposta espiritualista de que temos uma mente
divina em nosso interior. O nosso “Eu profundo”, muitas vezes,
não é tão belo assim.

23.2. O subconsciente como meio de se aferir a Verdade


Outro aspecto da visão que o Misticismo têm do subconsciente e
que merece alguma reflexão é o fato de que ele acredita que é no
subconsciente que reside uma sabedoria universal em cada ser
humano. Ao acessar essa faixa mental por meio da meditação,
podemos encontrar a solução para nossos problemas, obter uma
harmonização mental e ter prosperidade na vida, pois o nosso
subconsciente estaria em contato com a alma universal e com o
próprio Deus. O subconsciente, portanto, seria um meio de
verificação das verdades superiores da vida. Aquilo que viria “da
nossa alma” necessariamente seria a Verdade.

Este ponto traz à tona uma interessantíssima discussão sobre a


validação do conhecimento que os seres humanos são capazes
de produzir. Falando de forma bem resumida, em tempos
primitivos, a Verdade estava em posse dos anciãos das tribos e
do conhecimento passado de geração em geração por meio de
mitos, histórias e lendas. A Verdade também já esteve com
pitonisas e adivinhadores de toda sorte, como na Grécia Antiga.
Nesse sentido, o que os oráculos, as cartas, astrólogos,
quiromancistas etc diziam, era essencialmente verdadeiro
porque vinha dos planos espirituais.
354

Com a chegada da Torá, da Bíblia e do Alcorão na cultura


espiritual da humanidade, se criou o conceito de ‘Verdade
Revelada’. A partir daí a Verdade estaria em um livro
alegadamente ditado ou dado pelo próprio Deus. Nesse sentido,
a Verdade saía da mão de adivinhos e anciãos e passava a estar
em uma única fonte e legitimada por um corpo institucional e
sacerdotal, como as igrejas e seus dirigentes. Neste movimento,
contudo, a Verdade ainda tinha uma inspiração divina.

Todo esse modo de se operar com um conhecimento verdadeiro


teve uma transformação a partir da emergência da ciência
ocidental com seu método científico, sua revisão por pares e seu
modelo analítico. A partir daí a Verdade passou a ser aquilo que
podia ser medido, verificado e era passível de ser questionado,
diferentemente das verdades que tinham uma alegada origem
espiritual.

No entanto, é preciso dizer que a própria ideia de Verdade


passou a ser relativizada pela Ciência. Nesta, o conhecimento
que se produz nunca é o ponto final da busca humana ou a
Verdade Absoluta. A produção científica sempre está sujeita à
revisão e à crítica, de modo que o que é verdadeiro na Ciência
hoje, pode não ser verdadeiro amanhã. Diferentemente das
religiões, os cientistas estão sempre abertos a rever seus
posicionamentos, bastando que alguém traga novos dados
empíricos para sustentar suas afirmações.
355

Outrossim, cada disciplina da Ciência possui diversas


abordagens, linhas teóricas, propostas terapêuticas, soluções
propostas etc. E isso vale para Economia, Psicologia, História,
Geografia etc, de modo que a própria noção de que estas
disciplinas estão desvelando a uma Verdade oculta na natureza
ficou obsoleta. Os estudiosos das mais diversas áreas há muito
tempo já não tem essa perspectiva tão consolidada de uma busca
pela Verdade. Isso posto, voltemos à Ordem Rosa-Cruz.

O método rosa-cruz de busca pelo conhecimento, embora dê


grande validade ao que a Ciência diz, ele ainda tem suas bases
nas antigas formas de busca pela Verdade que a humanidade
desenvolveu. Trata-se do pensamento de buscar as verdades a
partir de uma inspiração espiritual que chega até a nossa
consciência. A diferença é que enquanto algumas culturas
espirituais usam drogas, danças, posições físicas ou outras
maneiras para se atingir esse conhecimento interior, no
rosacrucianismo, meditação e a prece seriam os principais
métodos para isso.

A Ordem Rosa-Cruz em especial sempre incentivou seus


membros a não acreditarem em algo só porque alguém disse.
Baseado na ideia de Deus de seu coração e da sua compreensão,
a organização diz que para algo ser verdadeiro tem que passar
pelo crivo de nossa consciência. Isso é uma forma de se
contrapor ao dogmatismo religioso que insta as pessoas a crer
356

simplesmente porque sim. porque está escrito ou porque algum


líder disse. De acordo com o rosacrucianismo, o nosso Mestre
Interior estaria sempre disposto a nos guiar, bastando sabermos
ouvir. A partir de insights e impulsos que vêm à nossa mente
durante uma meditação, podemos ter certeza de que aquilo é
verdadeiro.
Essa proposta é deveras muito bonita, mas pouco a pouco
começaram a me surgir questões inquietantes. Para sermos
honestos, esse papo de buscarmos dentro de nós mesmos alguma
verdade escondida é bem cliché e existe em várias linhas de
pensamento. Do meu ponto de vista, eu não nego o poder
regenerador e inspirador que pode ter uma meditação (ou, em
outras palavras, um contato com níveis mais profundos de
consciência). Eu mesmo já tive vários insights depois de um
período de meditação. Também é inegável como uma boa
dormida pode nos fazer esquecer certos problemas e nos renovar
física e mentalmente, bem como nos inspirar. A questão é: isso
advém de um subconsciente ou da capacidade do cérebro de se
regenerar?

No entanto, deixemos essas discussões de lado e foquemos no


problema principal. Com o tempo, eu comecei a perceber que a
ideia de que a Verdade está dentro de nós mesmos quase sempre
nos leva a uma miragem. Isso porque esta noção pode nos levar
a uma falsa percepção de que somos capazes de responder por
nós mesmos todas as complexidades existenciais do mundo,
praticamente sem depender de ninguém. Será?
357

Certamente em nossas vidas há uma dimensão individual que só


nós podemos dar uma resposta, mas este movimento não se
aplica a tudo. Qualquer um que já tenha passado pelas
universidades sabe que a construção do conhecimento é um
esforço coletivo de milhares de pessoas ao redor do mundo ao
longo dos séculos. Claro que um indivíduo pode por si só dar
grandes contribuições para o conhecimento humano, mas ele
não é uma ilha isolada.

Nesse sentido, a partir de um determinado momento, quando eu


ouvia alguém dizer que “a Verdade está dentro de nós mesmos”,
eu comecei a sentir que o que se estava fazendo era basicamente
conclamando ao fechamento das universidades. Ora, para que
pesquisas científicas de alta tecnologia e investimentos pesados
em Ciência? Basta que todo mundo vá para casa meditar para ter
acesso ao verdadeiro conhecimento!

Além dessa questão, a ideia de que a Verdade está dentro de nós


mesmos a partir de nosso Mestre Interior começou a me parecer
pretenciosa demais. Filósofos de alta grandeza desde a
Antiguidade tentam buscar respostas para os complexos dilemas
existenciais da vida humana e nunca chegaram a uma verdade
final. Há muitas fronteiras no conhecimento, perguntas sem
respostas, contradições em nosso conhecimento e nada é tão
simples quanto parece. Mas segundo o rosacrucianismo, bastaria
eu acessar meu Mestre Interior para ter a Verdade!
358

Nessa linha de pensamento, por que tantos filósofos e


pensadores não fizeram isso antes? Na realidade, muitos até
fizeram e não chegaram à resposta alguma. Pelo contrário.
Conseguiram mais perguntas do que respostas. Qualquer um que
estude filosofia sabe que a busca pela Verdade é mergulhar em
um oceano de visões de mundo contraditórias e que não existe
uma resposta final para todas as coisas. Pouco a pouco, essa
proposta mística de acessar a Verdade que reside em nosso
interior me pareceu até meio bobinha.

Como forma de defender o subconsciente como um meio de se


atingir a sabedoria ou um conhecimento da Verdade, muitas
Ordens místicas dão exemplos de pessoas que atingiram um
estado particular de iluminação, tiveram grandes ideias ou
elaboraram invenções que mudaram a humanidade. E isso tudo
por meio da meditação. O problema é que para cada exemplo
positivo que encontramos deste movimento, também
encontramos gente que fala barbaridades e diz que isso é a sua
“voz interior”.

Eu já encontrei membros da Ordem Rosa-Cruz, por exemplo,


que disseram que votaram em candidatos fascistas porque isso
era a sua voz interior falando. Já vi rosa-cruzes que defendiam a
pena de morte, diziam que as famílias homoafetivas não tinham
direito a um ritual de matrimônio ou gente que dizia que homens
e mulheres possuem essências diferentes com base nas
359

informações supostamente extraídas desse alegado


subconsciente.

Baseado em todas esses evidentes absurdos, a proposta rosa-cruz


tem um dilema a ser enfrentado. Se a alma que todos temos
dentro de nós está ligada à sabedoria da mesma alma universal,
como pode haver respostas tão diferentes sobre os mesmos? Não
custa lembrar que todos os absurdos ditos acerca do mundo
espiritual e que vimos nos capítulos onze e doze advém de
pessoas que dizem estar em contato com o subconsciente.

Nesse sentido, mesmo que cheguemos à conclusão de que certas


ideias que nos surgem advém de um Mestre Interior, na prática,
isso cria o que eu chamo de caos epistemológico. É muita gente
dizendo coisas diferentes alegando estar sob influência de seus
Mestres Interiores. Como faz? Uma das respostas que a Ordem
Rosa-Cruz costuma dar para isso é que as pessoas têm diferentes
níveis de evolução espiritual, mas isso não responde a uma outra
questão fundamental. Como definir qual opinião é a mais ou
menos evoluída?

Neste ponto entramos também na querela do tal “Verdadeiro


Eu”. Muitas linhas espirituais instam seus membros a
procurarem o seu verdadeiro Eu, seu Eu interior etc. Ora, por
mais que essa busca seja bonita, alguém já viu isso acontecer?
Alguém já encontrou uma pessoa que encontrou o seu
360

verdadeiro Eu interior? Isso porque qualquer olhada sincera


dentro de nós vemos nos permite ver que somos mais
contraditórios do que imaginamos, cheios de desejos ambíguos,
identidades plurais e somos uma pessoa totalmente diferente a
depender do ambiente em que estamos. Logo, existe um
verdadeiro Eu dentro de nós esperando para ser encontrado?
Tenho minhas dúvidas.

Por fim, mesmo que eu respeite a meditação e o acesso a níveis


mais profundos de consciência, há outro elemento que sempre
me incomodou muito nesse processo. Quando estamos
meditamos, muitas vezes somos invadidos por um turbilhão de
ideias, por vezes desconexas. Por outro lado, a proposta de
meditação fala que devemos aquietar o pensamento. Ora, mas se
seguirmos a proposta rosa-cruz de que é na meditação que
advém a inspiração, como saber se essas ideias são visitantes
incômodos que devemos silenciar e como saber se elas são
inspirações de nosso subconsciente?

Neste processo, eu também sempre tive a seguinte dúvida: essas


ideias advém do meu Mestre Interior ou são frutos do meu
raciocínio e da minha imaginação? Elas são efetivamente
inspiradas por um plano divino ou são o resultado da minha
educação? Em outras palavras, eu sempre tive muitas
dificuldades para identificar o que acontecia comigo durante a
meditação: Se era o meu cérebro ou se era a minha alma que
361

estavam falando. Eu nunca consegui responder direito a essas


perguntas.

23.3. Expansão da consciência


Nessa discussão sobre a natureza da consciência e suas
diferentes camadas e potencialidades, um debate que se coloca é
sobre a ideia de “expansão da consciência”. Trata-se de uma
expressão muito bonita e repetida por muitas linhas de
pensamento. No entanto, eu sempre me perguntei: “O que é
expandir a consciência?” Essa pergunta parece fácil, mas ela não
é tão simples assim.

Uma resposta que a Ordem Rosa-Cruz e outras organizações


espiritualistas e iniciáticas costumam dar para esta questão é que
certos exercícios de ver aura e se projetar no plano astral
permitiria aos indivíduos tomar consciência da existência dos
planos espirituais e isso provocaria uma tomada de consciência
que expandiria a mente. No entanto, quem nunca teve essas
experiências tem necessariamente a mente atrofiada? – Indago-
me.

Outro elemento que sempre foi associado a certa “expansão da


consciência” é o uso de certas drogas como álcool, a maconha, o
362

LSD ou coisas mais espirituais como o chá do Santo Daime.


Dizem que essas coisas ajudam a “expandir a mente”. Ora, se
toda expansão da consciência é válida, então o uso de drogas
está valendo na busca mística? E o que eu devo fazer para
atingir a iluminação? Viver o dia inteiro drogado? Aliás, com
todo respeito aos partidários do Santo Daime, o que eles
produziram de impacto para a humanidade em função da sua
expansão de consciência?

Outro ponto que se relaciona a essa discussão é o estudo formal.


Dizem, por exemplo, que a educação serve para expandir a
mente. Mas então pessoas pessoas sem muito estudo formal
necessariamente tem uma mente menor? E o que dizer das
pessoas altamente educadas e com uma mentalidade
cosmopolita, mas que praticam o mal? Expandir a mente é
necessariamente ser uma boa pessoa?

Todas essas perguntas mostram que a ideia de “expansão da


consciência” pode até ser bonita, mas é muito movediça. E estas
são algumas pequenas questões que foram surgindo durante a
minha jornada mística. Há várias outras querelas acerca desse
subconsciente que optei por deixar de fora. Fato é que essas
reflexões foram gradativamente quebrando a coluna sobre a qual
o prédio do rosacrucianismo se sustentava na minha cabeça.
Ora, uma vez que os ensinamentos da Ordem Rosa-Cruz nos
instava a nos conectarmos com nosso subconsciente, como eu
363

poderia me conectar com ele tendo tantas dúvidas acerca de sua


natureza e suas potencialidades?

Finalmente, gostaria de deixar registrado que embora essa ideia


de que a Verdade está dentro de nós mesmos hoje em dia me
pareça boba, ela me é mais acertada do que a ideia de que a
Verdade está nos Bíblia, no que o pastor diz ou no que se ouve
nas igrejas. A ideia de que uma crença deve passar pelo crivo de
nossa consciência sem dúvida alguma desenvolve muito mais
um senso de responsabilidade nos seus partidários do que a
crença acrítica no que alguém diz em função de sua imaginada
autoridade espiritual.

Por outro lado, essa ideia é absolutamente limitada. Um


exemplo disso são os (as) famigerados (as) tios (as) do zap que
acreditam em tudo o que recebem no telefone só porque a
notícia fala aquilo que eles ou elas concordam. Ora, se aquilo
que recebe o aceite de nossa consciência necessariamente fosse
verdadeiro, tudo o que essas criaturas dizem seria válido. Nesse
sentido, embora tal proposta tenha vantagens, devemos ter certo
cuidado com este pensamento para não nos levarmos a sério
demais.

24. OS PODERES PARANORMAIS DOS


ROSA-CRUZES – UMA REFLEXÃO HONESTA
364

Dentro do universo das Ordens místicas e esotéricas, algumas


organizações específicas são particularmente famosas por
oferecer o desenvolvimento de certas habilidades mentais
incomuns aos seus membros. Este era o caso da minha Ordem
Rosa-Cruz. Nota-se que alguns destes poderes/ fenômenos são
citados na cultura espiritual da humanidade desde tempos
imemoriais.

Dentre eles estão as habilidades de ver auras, projeção astral,


materialização de objetos, cura pelas mãos, telepatia, assunção
(influência mental sobre outras pessoas), desenvolvimento da
intuição, da memória e da concentração, a visualização de
nossos desejos, clariaudiência e clarividência (previsões sobre o
futuro), telecinese, vibroturgia etc. Muitas organizações chamam
todo esse conjunto de habilidades extrassensoriais, poderes
paranormais, poderes mentais etc. Neste livro vamos chamá-los
de ‘habilidades paranormais’ ou ‘poderes paranormais’ porque é
a terminologia utilizada pela minha Ordem Rosa-Cruz.

A organização também afirma que esses poderes não possuem


nada de extraordinário ou antinatural. Eles seriam tão somente
habilidades naturais e latentes que residem no mais profundo da
consciência humana, necessitando apenas serem desenvolvidos.
Durante muito tempo eu acreditei que essas habilidades eram
uma possibilidade real. No entanto, ao ler um pouco mais sobre
o que a Ciência diz sobre eles, comecei a me indagar
365

profundamente acerca dessa proposta. Será que estes poderes


paranormais ou habilidades incomuns realmente existem?
Gostaria de propor uma conversa honesta sobre este tema.

Inicialmente, é preciso dizer que essa proposta de exercícios


espirituais para o desenvolvimento da mente em diferentes
vetores são ancestrais. A yoga indiana, bem como exercícios
mentais da espiritualidade taoísta como o tai chi chuan são
exemplos disso. O fundador da Ordem jesuíta Ignácio de Loyola
também tem muitos exercícios físicos para o desenvolvimento
espiritual. Sobre isso, é importante notar que as espiritualidades
ocidental e oriental parecem ter seguido caminhos diferentes.

No Ocidente cristão nós estamos muito acostumados a lidar com


a espiritualidade de uma forma interesseira, achando que Deus é
um provedor de nossos desejos e um protetor contra as mazelas
do mundo. As práticas religiosas ocidentais se baseiam na
oração, nos cânticos, nas leituras de textos e nas crenças em
geral. Não posso afirmar que essas coisas não existam no
Oriente, mas por aquelas bandas, exercícios para o
desenvolvimento de habilidades mentais parecem estar mais
presentes no cenário da espiritualidade.

Isto posto, a primeira vez que que li que a Ordem Rosa-Cruz


propunha o desenvolvimento de poderes mentais, lembro que
fiquei instigado. Eu me indagava “Será mesmo que sou capaz de
366

desenvolver esses poderes?” Havia, contudo, um problema.


Devido à minha formação científica, eu sempre fui
extremamente cético e desconfiado dessas coisas de poderes
paranormais ou psíquicos. Eu me sempre me indaguei sobre até
que ponto essas coisas realmente existiam. No entanto, certos
fenômenos não me eram tão incomuns assim.

Como quase toda criança, durante a infância, eu tive


experiências de ver coisas inusitadas e até hoje eu me lembro
bem disso. Mas a minha relação com estes eventos sempre
gravitou em torno de uma crença pura e da desconfiança de que
aquilo foi apenas um produto do meu cérebro. Isso significa que
quando ingressei na Ordem Rosa-Cruz e me pus a realizar certos
experimentos mentais para o desenvolvimento de certos poderes,
eu já flertava com a desconfiança. Desconfiava não só da
existência dessas habilidades paranormais ou psíquicas, como
também da minha capacidade de desenvolvê-las.

Lembro-me que naquela época, o Padre Quevedo era famoso na


mídia brasileira por desmascarar fenômenos ditos paranormais.
Para muitos cientistas, essas coisas não passavam de crendices,
charlatanismo e pseudociência. Havia, portanto, uma onda de
descrença no ar. Mas ainda assim eu me dei a oportunidade. E se
eu estivesse errado? Permiti-me, então, explorar esse lado do
meu alegado psiquismo dentro da Ordem Rosa-Cruz. Será que
fui bem sucedido?
367

Antes de dizer quais resultados obtive, acho importante


compartilhar com os leitores algumas impressões que tive
convivendo ao longo dos anos com os rosa-cruzes. Nessa
jornada, pude identificar cinco tipos/ categorias de rosa-cruzes e
suas perspectivas relações com esses poderes paranormais. É
importante elencar essas experiências porque a própria ideia de
paranormalidade está muito vinculada ao que vou dizer a seguir.

A primeira categoria que eu consegui identificar é a dos


chamados palhaços esotéricos. Palhaço é a melhor categoria que
encontrei para nomeá-los porque é algo entre a seriedade do
trabalho desses profissionais do circo e a habilidade de fazer
uma graça. Isso porque durante minha jornada, encontrei rosa-
cruzes que falavam abertamente que tinham a habilidade de sair
do corpo para “comer mulher” no plano astral ou que tinham a
capacidade de expandir a aura para atrair mulheres. Vi homens
que diziam ter a habilidade de prender a atenção de mulheres
por meio de uma teia espiritual criada por meio da masturbação
astral. Era o tipo de pessoa que você via que estava querendo
fazer graça com você, aproveitando-se da ingenuidade dos
outros, principalmente de estudantes iniciantes.

A segunda categoria de pessoas que encontrei foi a dos


ingênuos. Este é o caso daqueles indivíduos que estavam
gripados e com dor de cabeça e acreditavam que tinham sido
vítimas de um ataque vindo do plano astral. Outras pessoas viam
o fenômeno do halo da luz do poste com a atmosfera e
368

acreditavam que estavam vendo a aura do poste. São pessoas


puras de coração, mas que acredito que a interpretação que elas
dão a certos fenômenos é meio ingênua e fruto de uma
ignorância científica ou de um pendor individual para acreditar
no mágico mesmo quando há explicações racionais para certas
coisas.

A terceira categoria que vi é a dos fantasiosos. Estas são pessoas


que diziam que viam a barca de Rá durante o ritual rosa-cruz,
que viam Mestres Cósmicos sentados ao lado delas em algum
lugar ou que ouviam mensagens do além e tinham certeza de
que se tratava de um aviso ou uma premonição. Estes indivíduos
não eram necessariamente mentirosos, mas você via ali que eles
estavam na beira de um descolamento da realidade.

Repare o leitor que meu objetivo não é ridicularizar e nem


desacreditar esses relatos. Quero aqui tão somente partilhar a
minha experiência de como pessoas conectadas com esse
universo de experiências metafísicas, psíquicas, paranormais ou
parapsicológicas podem extrapolar os limites de certa
racionalidade. Ademais, quando elas falam abertamente dessas
coisas para todo mundo, elas se submetem à derrisão alheia. E aí
entra a quarta categoria: os sinceros.

Ao longo da minha vida, eu conheci pessoas que tiveram


profundas experiências de sair do corpo, de ver e ouvir coisas
369

etéreas e incomuns, de contatos telepáticos indescritíveis, de


curas espirituais inexplicáveis, de pessoas que sentem a vibração
das coisas e de indivíduos que possuem uma inspiração
admirável. Geralmente essas pessoas costumam ser mais
discretas sobre essas experiências e tratam tudo com muito
respeito. Isso não significa que as experiências que elas relatam
necessariamente provam que essas coisas existem do ponto de
vista científico, mas falaremos sobre isso daqui a pouco.

Por fim, há a última categoria, a dos desempoderados. São


pessoas que apesar de gostarem muito da Ordem Rosa-Cruz,
nunca tiveram experiência extrassensorial ou paranormal
alguma. Eu mesmo, por exemplo, conheci pessoas que
frequentaram por décadas a organização e nunca tiveram uma
chamada experiência psíquica, paranormal ou extrassensorial.
Agora, permita-me o leitor falar sobre as minhas próprias
experiências com estes tais poderes da mente.

24.1. Os exercícios rosa-cruzes para a mente


Inicialmente, é preciso pontuar que existe uma divisão nos
ensinamentos práticos da Ordem Rosa-Cruz que eu participei.
Grosso modo, podemos dividi-los entre exercícios e
experimentos. Os exercícios seriam atividades como técnicas de
respiração, concentração, sons que produzem certos efeitos,
visualização mental, desenvolvimento da memória e da
imaginação, relaxamento, entre outros. Trata-se de atividades
para a mente e que não têm nada de extraordinários, sendo
370

ensinados por muitas outras escolas de pensamento e até


trabalhos científicos.

Já os experimentos seriam coisas mais profundas e estes sim


ligados a um suposto plano psíquico ou da alma. Entre eles
estariam a capacidade de ver auras, a projeção astral, a
materialização de objetos, a cura pelas mãos, a telepatia, a
assunção, o desenvolvimento da intuição, a criação mental de
nossos desejos, a clariaudiência, a clarividência, as previsões do
futuro, a telecinese, a vibroturgia, entre outros.

Do meu ponto de vista, no que se refere aos exercícios


especificamente, posso dizer que eles tiveram grande efeito e
foram bastante eficazes para mim. Desenvolvi a memorização, a
imaginação, a capacidade de relaxamento, técnicas respiratórias,
a concentração, a habilidade de visualizar coisas na mente etc.
Neste ponto, sou extremamente grato à Ordem Rosa-Cruz por
ter concentrado ensinamentos que de outra maneira eu levaria
muito tempo para coletar em diferentes fontes. No entanto, até
aqui, nada de paranormal. Trata-se de habilidades mentais que
qualquer um pode desenvolver e que existem muitos métodos na
internet.

Em função disso, podemos concluir que essas coisas existem,


certo? A coisa talvez seja um pouco mais complexa do que uma
resposta ‘sim’ ou ‘não’. Isso porque conforme eu estudava e me
371

aprofundava sobre os exercícios rosa-cruzes, pude notar várias


contradições que começaram a despertar minha atenção. A
Ordem Rosa-Cruz, por exemplo, ensina que quando estamos
cansados, devemos fazer uma respiração profunda e reter o ar
por alguns instantes para nos reanimar. No entanto, o exercício
de despertar psíquico para se atingir um estado mental mais
profundo também implicava em reter o ar por alguns instantes.
Afinal, inspirar profundamente acalma o corpo ou o estimula
energicamente? Este foi um primeiro ponto de contradição.

Com relação ao desenvolvimento da habilidade de imaginação,


uma das maneiras de desenvolvê-la era deixar a mente divagar e
fazer conexões entre as coisas, criando novas realidades. Isso é a
essência do que é ser uma pessoa imaginativa. No entanto,
outros textos rosa-cruzes ensinavam os membros a não deixar a
mente divagar e, para isso, deveríamos adotar os exercícios de
concentração. Afinal, deixar a mente divagar é bom ou ruim? –
Eis o segundo ponto de contradição.

Para nos elevarmos para níveis superiores de consciência, em


outras palavras para atingirmos o nosso subconsciente, a Ordem
Rosa-Cruz ensinava a visualizar o nosso santuário interior. Este
inclusive, é um exercício muito bonito. No entanto, ela também
dizia que para entrarmos num estado mais profundo, deveríamos
sentir cada parte de nosso corpo. Trata-se de uma prática muito
próxima da meditação Vipashna, uma técnica que se difundiu no
Ocidente pelo conceito de mindfullness. Então como eu faço
372

para atingir níveis mais profundos de consciência – visualização


de nosso santuário interior ou o parente do mindfullness? Eis o
terceiro ponto de contradição.

Todas essas pequenas contradições passam desapercebidas para


a maior parte dos rosa-cruzes, mas para quem olha com atenção,
elas merecem alguma consideração. Pode haver várias técnicas
para se atingir o mesmo objetivo e isso não é nenhum problema.
Mas na vida prática isso tudo me deixava meio confuso. Talvez
eu não fosse evoluído o suficiente, talvez eu não tivesse
estudado o necessário ou talvez a Ordem não estivesse sabendo
se explicar, mas conforme eu lia obras de fora da organização,
eu via que eu não estava tão errado assim. Há inúmeros livros
sobre respiração, meditação, concentração e imaginação que
dizem coisas completamente diferentes entre si. Naturalmente,
não foram estes elementos específicos que me fizeram deixar a
Ordem Rosa-Cruz. Pelo contrário. Digo e repito que os
exercícios rosa-cruzes funcionaram comigo. Possuo uma mente
ativa e um relativo controle mental graças a muita coisa que
aprendi ali, embora muitas dessas técnicas possam ser
encontradas em vários outros lugares. Basta entrar no Google e
digitar “técnicas para desenvolver a memória, a imaginação e o
raciocínio” ou “técnicas para relaxar” que veremos vários
resultados. Essas pequenas contradições, contudo, me deixavam
um pouco confuso. Mas e com relação aos experimentos para o
desenvolvimento de poderes paranormais? O que dizer sobre
eles? É o que veremos a seguir.
373

24.2. Os experimentos rosa-cruzes e os poderes paranormais


Para começarmos essa discussão, gostaria de lembrar que a
Ordem Rosa-Cruz sempre afirmou que procurava seguir as
descobertas científicas. Ela também dizia que seus experimentos
de poderes paranormais foram todos comprovados por
experiência empírica dos membros e que não eram
charlatanismo. Essas afirmações da organização sempre
preencheram o meu coração, mas havia algo que me
incomodava.

Apesar de a Ordem fazer deferência à Ciência, eu nunca


encontrei qualquer pesquisa científica que decididamente
comprovasse a existência de certas habilidades paranormais ou
psíquicas. Pelo contrário. Ao pesquisar sobre o assunto, o que eu

mais encontrei foram trabalhos científicos que além de nunca


conseguirem provar nada do plano espiritual, ainda diziam que
essas coisas eram crendice e charlatanismo. No entanto, eu
confiava na organização que eu pertencia e nos seus
ensinamentos espirituais. Como eu podia proceder, então?
374

A única maneira que eu tinha para distinguir a diferença entre


um ensinamento místico e espiritual sério e charlatanismo era
praticá-los e assim eu fiz. A seguir, vou relatar as minhas
experiências com alguns experimentos que a Ordem Rosa-Cruz
me ensinou e fazer algumas considerações sobre eles. Como o
leitor verá, não pretendo atacar a organização, mas vou elaborar
reflexões honestas sobre estes tais poderes paranormais,
principalmente à luz da Ciência.

24.2.1. A telepatia
A técnica da telepatia é um dos primeiros experimentos
ensinados pela minha Ordem Rosa-Cruz. Eu fiz as técnicas que
me foram ensinadas para transmitir pensamentos com três
amigos rosa-cruzes. Foram várias tentativas e obtive sucesso em
três delas. Nessas ocasiões, os irmãos rosa-cruzes “captaram” o
que eu queria dizer. Mas isso prova que a telepatia funciona?

Para as mentes mais apressadas, é possível dizer que sim e que


eu mesmo tive sucesso em algumas tentativas. O problema é que
nada é tão simples quanto parece. Como se trata de três amigos,
temos assuntos em comum e é bastante provável que dentro
deste universo, em algum momento, nós estaremos pensando as
mesmas coisas. Logo, dizer que a telepatia existe e funciona em
função de três supostos sucessos que obtive é uma afirmação
apressada demais. Isso sequer é metodologia científica.
375

Para a Ciência, este é um número irrisório que se encaixa num


universo de probabilidades. Isso é o mesmo que jogar um dado,
mentalizar que vai dar número 6 e cair o número 6. Ora, isso é
uma probabilidade de ocorrer e nada prova a correlação entre
mente e matéria nesse sentido. Ademais, para cada suposto
sucesso na telepatia, tive várias tentativas infrutíferas. Mas mais
do que isso, a telepatia é algo bastante subjetivo e que pode
gerar efeitos controversos. Isso porque a gente nunca sabe se o
que está em nossa mente é fruto de nossos pensamentos ou se foi
transmitido por alguém. Na prática, o telepata corre o risco de se
distanciar da realidade, acreditando que só porque ele pensa em
uma pessoa, é porque essa pessoa está tentando manter contato
com ela. Será?

24.2.2. A projeção astral


A primeira vez que tentei sozinho o exercício de projeção astral
proposto pela Ordem Rosa-Cruz eu posso dizer que eu senti todo
o meu corpo vibrar. Eu me sentia leve e distante, mas não posso
dizer que tive exatamente o que se chama de projeção. Não senti
minha mente divagar por aí. Tentei várias vezes e nunca me
“projetei” tal como acreditava que isso deveria ocorrer.

Ao longo dos anos, conheci vários rosa-cruzes que diziam que


praticavam este experimento rosa-cruz com certa frequência,
mas que nunca haviam conseguido nada. Por outro lado, conheci
376

um membro muito antigo da Ordem que dizia que conseguia


fazer isso. Um dia este mesmo membro me conduziu no
exercício de projeção da consciência e eu senti minha mente
quase sair do corpo. Era um completo e absoluto estado de
absorção em um vazio, mas ainda assim não era a projeção. Era
próxima a uma meditação profunda.

Este evento me chamou a atenção. Isso porque ele me remeteu à


discussão que vimos no capítulo nove sobre o material de ensino
da Ordem. Os membros formados pelas monografias mais
antigas diziam ter ou pareciam ter mais facilidade com esse
experimento. Dos rosa-cruzes formados pelas novas
monografias, eu nunca encontrei um único membro que tivesse
dito que teve sucesso nessa projeção astral. Mas naturalmente, o
fato de eu não ter encontrado não significa que essas pessoas
não existam.

O grande problema aqui é que a Ciência nunca confirmou o


fenômeno da projeção da consciência. E já foram feitos todos os
tipos de testes para ver se conseguiam comprovar que algo assim
existe, mas ninguém obteve sucesso. Muitos especialistas
afirmam que isso pode ser problemas relacionados ao sono
(SOUZA, 2016). O leitor pode pesquisar esses casos na internet.
Isso não significa que os rosa-cruzes que dizem conseguir
projetar a sua consciência são necessariamente mentirosos.
Significa que talvez o fenômeno seja mais uma habilidade
cerebral não mapeada e desconhecida do que algo espiritual.
377

24.2.3. Ver auras


Junto com a telepatia, o experimento de ver auras também é algo
que aprendemos logo no início. Devemos nos concentrar na
chama de uma vela, por exemplo, e com o tempo iremos ver a
sua aura espiritual. Eu tentei várias vezes esse experimento. Eu
me concentrava, relaxava, focava na vela e fazia tudo o que me
foi proposto, mas nunca vi absolutamente nada. Eu perguntei
para os outros rosa-cruzes se eles conseguiam fazer e obtinha
basicamente dois tipos de resposta. De um lado estava aqueles
que juravam que conseguiam ver auras da vela apenas piscando
o olho. Do outro lado, a maioria, dizia que nunca tinha
conseguido ver nada.

24.2.4. Telecinese
A telecinese é o alegado poder de mover objetos com o poder da
mente. Suas bases seriam o fato de que o pensamento é vibração
e, como toda vibração, interage com a matéria. Assim como o
som“empurra” as coisas fisicamente (basta colocarmos a mão na
frente de uma caixa de som em alto volume para verificarmos
isso), o pensamento, quando concentrado, se tornaria mais denso
e seria capaz de fazer o mesmo. A Ordem Rosa-Cruz ensinava a
colocar uma bola de pingue pongue no centro de um pote com
água e se concentrar nele.
378

Eu fiz este exercício em casa e nada. Em certa ocasião, durante


um ritual rosa-cruz, os irmãos e irmãs rosa-cruzes fizeram este
mesmo exercício. Eram cerca de vinte pessoas se concentrando
em mover a bola sobre a água de uma bacia com o poder da
mente. Nada. Aparentemente, nem o poder concentrado do
pensamento de vinte indivíduos ajudou.

24.2.5. Vibroturgia
A vibroturgia é a capacidade de entrar em contato vibratório
com determinado objeto e extrair informações sobre sua história
por meio de sensações que nos chegam à nossa mente. As bases
teóricas deste tipo de coisa estão no fato de que os átomos que
compõem um objeto guardariam uma espécie de memória.
Nesse experimento, a Ordem Rosa-Cruz sugeria que fôssemos a
uma biblioteca, pegássemos um livro antigo e sentíssemos as
vibrações dele, aguardando as impressões que vinham em nosso
pensamento.

Eu fiz isso. Fui à Biblioteca Nacional na cidade do Rio de


Janeiro, peguei um livro antigo e ao me “conectar” com ele, vi
uma série de imagens em minha mente. Logo vibroturgia existe,
certo? Bem, só para quem tem muita fé. Isso porque é
absolutamente impossível discernir o que é vibração guardada
nos átomos desse objeto e o que é a minha imaginação ativa e
viajando, criando histórias e narrativas. Para comprovar o que eu
estava vendo, eu teria que ir atrás da história do livro, mas isso
não era possível.
379

24.2.6. Criação mental


Um experimento muito importante no rosacrucianismo é a
criação mental. Trata-se da ideia de que podemos visualizar em
nossa mente coisas que gostaríamos que se materializassem no
plano terreno. Em outras palavras, por meio do pensamento,
poderíamos criar formas-pensamento no plano astral que
ficariam lá esperando o momento certo para se adensarem e
acontecerem. Mas será que isso existe?

Do meu ponto de vista, eu fiz várias criações mentais. Obtive


sucesso em algumas, mas não em outras. Quando nosso desejo
não acontecia, a Ordem dizia que era porque o Cósmico não
quis, porque não era a hora, porque eu não merecia ou porque eu
não havia visualizado direito. Ora, mas as criações mentais que
eu obtive provam que este tipo de prática existe? Novamente,
isso é uma questão de fé. Isso porque quando olhamos em
perspectiva, talvez as coisas não sejam exatamente assim.

Eu visualizei coisas como passar no vestibular, arranjar um


amor, resolver problemas de família, conseguir um bom
emprego etc. Obtive sucesso nessas coisas, mas será que isso é
um poder divino e mental ou será que é apenas uma trajetória
normal de vida? Afinal, há muitas pessoas que não visualizam
seus desejos da mesma forma que os rosa-cruzes e obtém as
mesmas coisas que obtive. Será mesmo que há alguma coisa
380

psíquica por detrás deste processo ou isso tem a ver com a nossa
capacidade de conquistarmos as coisas por nós mesmos?

Ademais, nas visualizações que não obtive sucesso, as


explicações da Ordem Rosa-Cruz sempre me intrigaram. Se eu
não visualizei direito, como saber qual era a forma correta?
Quantas vezes eu tinha que ficar visualizando? Como saber se o
Cósmico não queria aquilo para mim ou se eu estava errando no
experimento? Era, é e sempre será impossível saber. Em função
dessas perguntas, eu nunca consegui acreditar plenamente na
capacidade da criação mental enquanto um poder paranormal.
Se a criação mental realmente funciona, não deveria haver
nenhum problema grave na humanidade. Bastaria que todos
visualizassem a sua solução, mas o mundo é bem mais
complexo do que isso. Ainda voltaremos a este tópico em
capítulos vindouros.

24.2.7. Clarividência
Outro exercício proposto pela Ordem é a capacidade de
clarividência. Por esta palavra podemos definir a capacidade de
visualizar tanto o passado quanto o futuro. No que se refere ao
passado, a organização nos ensinava a acessar nosso
subconsciente e ver cenas que aconteceram. Eu fiz este exercício
e realmente me vinham imagens mentais sobre o período que eu
estava visualizando. Logo, isso existe, certo?
381

Primeiramente, a teoria por detrás disso é a ideia de que o nosso


subconsciente está em contato com a alma universal e esta
guarda a memória de todos os acontecimentos da humanidade.
Logo, acessando este subconsciente, acessaríamos essa memória
cósmica. O problema disso é que não dá para saber até que
ponto essas imagens mentais que nos vêm à mente são fruto de
uma memória subconsciente ou são o resultado da nossa
imaginação e da cultura na qual estamos imersos.

Com o passar dos anos eu descobri que muitas afirmações


históricas feitas pela Ordem Rosa-Cruz eram feitas com base
neste tipo de exercício. Sem querer desmerecer tal atitude, o
problema disso é que cada pessoa tem uma interpretação
diferente das mesmas supostas mensagens do subconsciente. As
imagens que nos chegam à mente durante este tipo de exercício
são extremamente subjetivas e variam enormemente de
indivíduo para indivíduo. Afirmar qualquer coisa histórica com
base nisso é simplesmente algo que a Ciência não alcança.
Depende da fé no processo.

Outrossim, a capacidade de ver o futuro merece alguma


consideração. Se por algum acaso fazemos uma previsão de algo
que acontece, logo em seguida muita gente passa a acreditar que
existe uma clariaudiência espiritual ou uma espécie de vidência.
Mas será que isso se sustenta? O problema é que o fenômeno
382

das pessoas que “acertam” o futuro nada mais é do que uma


probabilidade matemática.

Isso é o mesmo que dizer que ano que vem uma pessoa famosa
vai morrer ou que algo de grandes proporções vai mudar o
mundo. Ora, o mundo é gigantesco e a probabilidade dessas
coisas acontecerem é enorme. Não devemos nos esquecer que
para cada vidente que acerta alguma coisa, não só

esses mesmos não acertam tudo, como há milhares de outros


videntes que não acertam nada. Isso significa que num mundo
com oito bilhões de pessoas, certamente haverá alguém que
acertará em alguma coisa relacionada ao futuro. É puramente
matemática.

24.2.8. A intuição e a visão psíquica


A Ordem Rosa-Cruz também ensinava coisas como o
desenvolvimento da intuição e da visão psíquica. Esta última
consistia em observar atentamente as imagens, sons, cheiros,
entre outras impressões que vinham à nossa mente durante
estados de meditação ou harmonização espiritual. Segundo o
rosacrucianismo, estas vibrações viriam diretamente de nossa
mente psíquica. O problema é que embora não possamos negar
383

que exista uma mente subconsciente que nos traz informações


sobre o plano espiritual, tenho dúvidas sobre até que ponto
podemos afirmar isso. Neste experimento, necessariamente
devemos nos perguntar se certas impressões de nossa mente são
fruto de nosso subconsciente e ou se são o resultado da nossa
imaginação ativa.

Neste processo, a proposta de que todas as ideias que advém à


nossa mente num processo meditativo têm uma natureza
psíquica pode nos levar a certo devaneio. Esse é o caso daquela
pessoa que por imaginar um Mestre Cósmico falando com ela,
conclui que há mestres espirituais tentando fazer contato com
ela. Trata-se de um pensamento que pode facilmente resvalar
para a loucura.

Com relação à intuição, se ela fosse um meio de resolver alguma


coisa, não haveria fome, miséria e nem corrupção no mundo.
Todo mundo estaria ouvindo a sua intuição para tornar a vida
melhor. Além disso, muitos criminosos têm sucesso em suas
atividades por estarem supostamente ouvindo a sua intuição.
Ainda que intuição exista, é possível que ela seja o resultado
puramente de uma atividade cerebral. Se admitirmos que ela
advém de um subconsciente espiritual, temos que
necessariamente dizer que este subconsciente ajuda muitos
criminosos a escapar da polícia usando sua intuição, por
exemplo. Logo, a alma universal presente em todos nós ajudam
certos criminosos a prejudicarem os outros.
384

24.2.9. A proteção cósmica e a energização da água e dos


alimentos
O exercício de proteção cósmica consiste em visualizar
mentalmente determinadas coisas para que obtenhamos a
proteção contra certos males. Já a energização da água e dos
alimentos consiste em irradiar certa energia das mãos para que
ambos possam regenerar e bem alimentar o nosso ser.

Eu fazia esses experimentos regularmente e até hoje eu não


tenho nada contra eles especificamente, mas há um problema aí.
Quando eu saia de casa, fazia o exercício de proteção cósmica,
voltava para casa bem e nada acontecia. Logo, essa proteção
espiritual funciona, certo? Não sei. Isso porque quando eu não
fazia este exercício, também nada me acontecia e eu voltava
bem.

Durante a I Guerra Mundial, por exemplo, muitos místicos de


Ordens iniciáticas tradicionais foram para o campo de batalha.
Alguns voltaram e outros não voltaram como tantos outros
indivíduos. Ora, se essa proteção espiritual mística funciona,
eles não deveriam morrer. Além deste fato, soube do caso de
uma irmã rosa-cruz que fez este mesmo exercício de proteção e
foi assaltada duas vezes no mesmo dia, sendo que em um dos
assaltos o bandido estava armado. Isso significa que tudo parece
ser bem relativo e caótico.
385

No caso da energização dos alimentos e da água antes de uma


refeição com a “energia” das mãos, eu me sentia bem quando eu
os comia “energizados”. A questão é que eu também me sentia
muito bem quando eu os comia sem estarem energizados. Será
que essas coisas existem?

24.2.10. A programação subconsciente


Por fim, um experimento rosa-cruz me marcou muito. Trata-se
da programação mental no nível do subconsciente. A Ordem tem
um experimento que nos ensina a programar nossa mente
interior para acordarmos a hora que queremos, por exemplo.
Certo dia, eu falei para meu subconsciente que queria acordar às
15 horas exatamente. Quando acordei, eram exatamente 15
horas. Logo, isso existe, correto? Mais ou menos. Depois desse
dia de sucesso, nunca mais tive tamanho grau de precisão.

24.3. Razões dos insucessos dos experimentos


As explicações que a Ordem Rosa-Cruz, bem como alguns rosa-
cruzes individualmente davam para o insucesso dos
experimentos eram várias. Gostaria de dividir algumas delas
com os leitores para que possamos ponderar sobre elas à luz do
ceticismo.
386

A primeira justificativa é a que colocava nos membros a


responsabilidade pelo insucesso. Isso significa que os próprios
rosa-cruzes erraram em algumas etapas na construção dos
exercícios. Ou por falta de concentração, por falta de um local
tranquilo, por estar fazendo alguma coisa errada etc.
Pessoalmente, eu acreditava muito nessa justificativa de
responsabilidade individual por várias razões.

Eu entrei nessa organização em idade escolar e logo depois


entrei para a faculdade. Naquela época, eu morava com meus
pais e a TV estava sempre ligada, junto com as luzes da casa.
Eram raros os momentos em que eu tinha tranquilidade em casa
para me concentrar o suficiente. Portanto, talvez o insucesso de
alguns poderes mentais e experiências incomuns estivesse
comigo.

A outra justificativa que eu encontrava era que “a egrégora da


Ordem não era mais tão forte como antigamente”. Conforme eu
ia conversando com rosa-cruzes antigos, muitos deles diziam
que os experimentos não funcionavam mais como antes.
Segundo eles, a atual administração da Ordem teria se
desvirtuado. Isso significa que em algum ponto do passado, com
as tais monografias antigas, os membros aparentemente tinham
muito mais sucesso nos experimentos.
387

Eu mesmo percebi que, com o tempo, a Ordem em que eu estava


foi dando cada vez menos ênfase a esses poderes e focando mais
nos aspectos filosóficos da organização. Como eu não era um
membro antigo, não tinha muito o que eu fazer para avaliar.
Minha formação rosa-cruz era com as novas monografias, mas
eu notava que a maioria dos membros novos dizia que não tinha
sucesso em muitos experimentos. No entanto, isso não significa
que estes experimentos funcionavam mais no passado. Afinal, o
relato de alguns poucos membros antigos não é amostra
científica confiável.

A outra explicação para o insucesso no desenvolvimento desses


poderes paranormais estava na suposta evolução espiritual dos
membros. Em algumas de suas publicações, a Ordem Rosa-Cruz
sugere que o desenvolvimento de poderes mentais está ligada ao
nível evolutivo do rosa-cruz. Por outro lado, havia outras
publicações que também diziam que não necessariamente uma
pessoa que não tem sucesso nesses experimentos é pouco
evoluída. Isso porque haveria pessoas extremamente evoluídas
que nunca tiveram sucesso no desenvolvimento desses poderes
paranormais. Eu passei a considerar que talvez eu mesmo não
fosse tão evoluído.

Nesse ínterim, uma experiência me marcou. Certa vez um amigo


que também era membro da Ordem disse que fez o experimento
da vela e conseguiu ver a aura dela por um instante. Era de um
verde brilhante que ele nunca tinha visto na vida. Esse amigo foi
388

muito sincero no seu relato e eu fiquei muito feliz por ele, mas
fiquei triste por mim. Pensei “Poxa, por que eu nunca consegui
ver a aura e ele sim, uma vez que entramos na Ordem no mesmo
período? Será que eu sou menos evoluído?”

Tempos depois, contudo, eu encontrei esse mesmo amigo e ele


me disse que estava inativo na organização, tinha perdido toda a
fé e a espiritualidade e estava descrente de tudo. Eu pensei
“Caramba, mas se ele conseguiu ver a aura da vela, isso não
significa que tem a prova de que existe um mundo espiritual?
Como pode uma pessoa assim perder a fé?”

Com o tempo, eu fui deixando de lado a ideia de que a egrégora


da Ordem estava fraca, de que o fracasso dos experimentos era
minha culpa ou de que eu não era tão evoluído e comecei a me
indagar: “Ora, se esses experimentos e poderes mentais
realmente existem, por que a Ciência nunca os comprovou?”.
Ademais, será que nunca nenhum cientista foi membro da
Ordem e pôs estes experimentos à prova? Por que não há
milhares de pesquisadores nas universidades aplicando aqueles
exercícios rosa-cruzes para provar a existência de coisas como
telepatia, vibroturgia, telecinese e, por conseguinte, do próprio
mundo espiritual?

A Ordem em que eu estava, contudo, dava uma resposta oficial


para este problema. Em um de seus manifestos, o líder máximo
389

da organização, discorrendo sobre a Ciência moderna, disse que


os cientistas eram muito materialistas e o fato de um fenômeno
não poder ser reproduzido em laboratório não significa que ele
não exista. Em outras palavras, segundo a Ordem Rosa-Cruz,
esses poderes paranormais existem, mas a sua não-
reprodutibilidade está ligada à sua própria natureza inconstante.
Outrossim, eles dependem de condições específicas para que
aconteçam.

Este argumento possui dois desdobramentos. O primeiros deles


é que ele nos remete à discussão sobre leis espirituais. Ora, se
algo como poderes paranormais funcionam apenas quando
condições específicas estão reunidas e não estão sujeitos à
mesma reprodutibilidade sistemática dos experimentos
científicos, isso se coloca contrário à noção rosa-cruz de que as
coisas funcionam por meio de leis. Se uma lei é uma relação
constante de causa e efeito, a inconstância da funcionalidade
desses experimentos já os tiram da gravitação em torno da ideia
de lei.

O segundo desdobramento do argumento da Ordem Rosa-Cruz é


que baseado na não reprodutibilidade de um fenômeno, eu posso
afirmar qualquer coisa. Posso dizer, por exemplo, que eu fiz
ouro em casa com o poder do meu pensamento. O fato de
ninguém mais conseguir fazer isso não significa que não seja
possível criar metais com a mente. Isso acontece porque o
390

fenômeno de criação de ouro é assim mesmo. Logo, acredita


quem quer, quem é evoluído ou blá-blá-blá.

A partir de um determinado momento eu me permiti me indagar


se todos os experimentos rosa-cruzes eram, afinal,
pseudociência. Por outro lado, eu me perguntava: “Uma vez que
se trata de uma organização com alguns anos de existência, será
que todas essas pessoas estão mentindo? Por que elas fazem
parte de uma Ordem que ensina exercícios e experimentos que
elas não conseguem praticar?”

Há várias respostas para estas perguntas. Inicialmente, não acho


que todas as pessoas que relatam terem sucesso naqueles
experimentos estejam necessariamente mentindo. Apenas me
indago se eles são o que essas pessoas realmente acham que eles
são ou se são uma espécie de ilusão mental. Ademais, mesmo
aqueles que não tinham sucesso nos experimentos eram
alimentados com a promessa de que um dia eles iriam
desenvolvê-los por meio de uma suposta futura evolução. Essas
explicações parecem razoáveis, mas conforme eu fui insistindo
nas perguntas, as coisas foram ganhando um ar tenebroso.

Ao ler um pouco mais sobre o que a Ciência dizia acerca de


coisas como telepatia, telecinese, projeção astral, entre outras, eu
vi que cada uma delas tinha alguma explicação mecânica,
matemática ou psicológica e que nunca se provou nenhum
391

desses poderes que poderiam constatar uma realidade metafísica


que subjaz ao mundo material. A Ciência está cada vez mais
convencida de que tudo isso se trata de falsa ciência ou
pseudociência.

Eu cheguei a comentar essas minhas indagações com alguns


membros e eles responderam que estes exercícios não eram
cientificamente provados porque haveria uma espécie de
proteção cósmica contra a sua profanação. Isso se dá porque os
planos superiores, a Inteligência Cósmica e os seres de luz
protegem estes exercícios para que o conhecimento sobre o
plano espiritual não seja vulgarizado.

Quando eu ouvi este argumento pela primeira vez, eu ri.


Embora eu respeite a crença das pessoas, esta ideia me pareceu
simplesmente ridícula e, além do mais, é um argumento que
permite que qualquer coisa possa ser afirmada. Eu posso dizer,
por exemplo, que discos voadores, o homem invisível ou seres
mágicos existem, mas ninguém prova porque existe uma
proteção espiritual que não permite que os profanos, os pouco
evoluídos ou o comum das pessoas os veja. Acho que nem é
necessário muitas divagações intelectuais para ver que isso pode
ser um argumento delirante.

Tudo isso começou a me deixar extremamente consternado com


proposta da Ordem Rosa-Cruz. Mas mais do que isso, as
392

ideologias no entorno dessas ideias tinham consequências que


podiam ser nefastas. Por exemplo, a ideia de que os
experimentos não funcionam por nossa responsabilidade nada
mais é do que uma meritocracia espiritual. Se você não se
projeta no astral, é porque você não se esforçou a suficiente, o
que cria uma espécie de culpa permanente.

Já a ideia de que não desenvolvemos certos poderes porque não


somos evoluídos nada mais é do que uma armadilha sórdida cujo
efeito é fazer o membro introjetar certa inferioridade espiritual
perante os outros. Outrossim, a noção de que os experimentos
não têm comprovação científica por serem cosmicamente
protegidos faz com o que os rosa-cruzes sejam muito pouco
críticos com aquilo que estavam sendo ensinados. Fui
concluindo quão absurdos eram estes argumentos.

Nessa discussão, ainda há um quarto e último argumento que


tenta explicar por que esses experimentos não funcionam com
algumas pessoas (se é que funcionam com outras). Trata-se da
ideia de que eles não funcionam porque você não acredita neles.
Para minha mente cética, este argumento sempre me pareceu
absurdo porque ele é auto defensivo. Ora, como eu sou um
desconfiado por natureza, eu nunca terei experiências
extrassensoriais ou paranormais. O problema é que na Ciência
oficial, a água aquece a determinada temperatura
independentemente de eu acreditar nisso ou não. A ideia de que
393

um fenômeno só funciona se eu acreditar nele é uma proposta de


pensamento espúria que leva a todo tipo de autossugestão.

Nesta discussão, vale trazer o assunto da magia negra. Muitas


organizações afirmam que a magia do mal realizada por um
feiticeiro só tem efeito caso a vítima acredite nisso. A explicação
para isso é que a pessoa que recebe o mal emitido pelos outros
só é por ele afetado se ela coloca na mesma frequência
vibratória deste feiticeiro, que supostamente estaria ligado ao
baixo astral. Não vou entrar no mérito se magia negra existe ou
funciona, mas eu gostaria de propor uma inversão deste
raciocínio.

Se nós invertermos a linha argumentativa, podemos concluir


que, de certa forma, certos experimentos paranormais como
projeção astral ou ver auras só funcionariam se vibrarmos em
uma alta frequência espiritual ou atingirmos o alto astral. O
problema é que um fenômeno só é um fenômeno se ele acontece
independentemente da minha crença. Do contrário, o que
podemos ter é autossugestão e uma literatura imaginativa. Se
formos muito nessa seara, isso é o mesmo que dizer que a
pessoa que não conseguiu se curar milagrosamente de sua
doença em uma igreja neopentecostal, em um terreiro de
religiões de matriz africana ou numa Loja Rosa-Cruz é porque
não teve fé o suficiente.
394

Isso culpa as pessoas pelo seu próprio fracasso e ainda por cima
protege os tais poderes espirituais de crítica ou da mera
possibilidade de inexistência. Se alguém diz que eles não
existem, é porque não está vibrando nos altos níveis do plano
astral. Nessa linha, posso afirmar qualquer coisa. Inclusive
posso dizer que é possível soltar um hadouken pelas minhas
mãos, bastando me colocar no nível astral adequado para que
essas coisas aconteçam. Ao estudar como outras organizações
rosa-cruzes lidavam com os tais poderes mentais, identifiquei
uma outra organização cujo líder alegadamente transformou
zinco em ouro com o poder da mente. No entanto, os
ingredientes para essa transmutação nunca foram revelados e foi
explanado que o material necessário para isso era de difícil
obtenção e a relação custo/benefício não compensava a
transmutação. Ora, é muito fácil você fazer afirmações
fantásticas sem submeter isso ao escrutínio científico. Ainda
mais em uma época em que os Estados Unidos e a Europa
estavam mergulhados em fenômenos espíritas que eram claros
truques de ilusionismo.

A partir de todas essas questões na minha cabeça, eu fui me


tornando mais cético ainda. Atualmente, não tenho a ousadia de
afirmar peremptoriamente que essas coisas não existem, mas
com o tempo, tudo começou a me parecer extremamente
delirante. Passei a me indagar, por exemplo, se os próprios
dirigentes da Ordem Rosa-Cruz que eu participava tinham
domínio de todos aqueles poderes mentais que eles ensinavam.
395

Será que algum deles já tinha conseguido materializar algum


punhado de areia usando o poder do pensamento?

Talvez haja muitos mistérios na mente humana e que não


deciframos totalmente, mas nada disso nos permite indicar a
existência de um psiquismo, uma paranormalidade ou um
mundo espiritual. Isso não significa que muitas dessas coisas
não existam. Eles podem dar certo com muitos rosa-cruzes. Mas
qualquer modulação mais racional que façamos sobre estes
poderes nos leva a uma desconfiança deles.

Esses poderes paranormais, devido à sua alegada natural não


passam pelo método empírico. Tudo bem que pode realmente
haver fenômenos no mundo que não podem ser provados
cientificamente, mas a questão é que para quem tem uma mente
cética, não se consegue embarcar muito facilmente neles. A
empiria científica é essencialmente contrária à noção de
paranormalidade. Muitas dessas coisas podem existir, mas talvez
sejam apenas ilusões mentais.

Também gostaria de adicionar que eram tantos exercícios


mentais que eram propostos na Ordem que mal dava tempo para
praticar todos eles. Qualquer pessoa que trabalhe, estude, tenha
uma casa e família para cuidar, verá que é difícil conciliar todos
eles. Ademais, se para ter domínio dessas coisas é preciso certa
regularidade e disciplina, no final das contas, era difícil ser um
396

membro realmente praticante. Em função disso tudo, o leitor


pode se perguntar: Mas se os experimentos da Ordem Rosa-Cruz
não funcionavam com você, o que você estava fazendo na
organização?

Eu era rosa-cruz porque havia ali toda uma formação intelectual


e um conhecimento que me fazia bem. Além disso, havia
experimentos e exercícios que não implicavam necessariamente
no desenvolvimento desses poderes incomuns. Havia rituais para
irradiar paz para a humanidade, visualizar coisas boas
acontecendo, exercícios diversos, sociabilidade com as pessoas e
ensinamentos de aperfeiçoamento espiritual que eu considerava
importantes. Tudo isso era muito prazeroso para mim, embora
eu tenha gradativamente abandonado essa busca por poderes
paranormais.

25. OS PODERES MENTAIS E O MUNDO DA


TECNOLOGIA
397

Seja qual for a validade científica dos tais poderes paranormais,


com o tempo, eu fui percebendo outra discussão no meio disso
tudo. Quer essas coisas existam ou não e sejam quais forem as
causas para o insucesso de alguns experimentos, eu fui
percebendo que havia um problema muito maior neste debate.
Trata-se da Tecnologia e do mundo moderno, um assunto que já
levantamos quando discutimos sobre o papel de Deus no mundo
moderno.

Vamos começar considerando o argumento de que alguns


experimentos não funcionam por culpa dos indivíduos. É preciso
lembrarmos que hoje em dia tendemos a viver em residências
menores do que antigamente. Nestas, geralmente há familiares
assistindo televisão alta, falando ou fazendo qualquer outra
coisa, o que torna difícil termos a tranquilidade necessária.
Soma-se a isso o onipresente celular e a internet, realmente é
difícil termos a tranquilidade que dizem ser necessária para o
desenvolvimento de certas habilidades mentais.

Neste ponto, eu lembrei que alguns membros me disseram que


antigamente os experimentos costumavam funcionar mais e
imediatamente fiz essa associação. Antigamente havia menos
barulho nas casas e nossa mente estava menos conectada na
televisão, no celular e nas milhares de distrações do mundo
moderno. Será que isso tem a ver? Não sei, mas meu ponto com
relação a estes tais “poderes”, no entanto, é outro. Com o tempo
eu fui percebendo que o mundo moderno foi engolindo aquilo
398

que as Ordens místicas e esotéricas, em especial a Ordem Rosa-


Cruz, dizem poder oferecer. Vamos ver um pouco sobre isso.

Quem precisa, por exemplo, de telepatia, quando se tem uma


comunicação instantânea via Telegram e Whatsapp? Mesmo que
a pessoa com quem queremos nos comunicar telepaticamente
esteja sem celular, o tempo em que as pessoas ficam sem este
aparelho é muito pequeno para termos a oportunidade de
desenvolvermos este tipo de comunicação espiritual. Além
disso, mensagens por telepatia tendem a ser subjetivas e não
temos meios concretos de “provar” que recebemos uma
mensagem mental, de modo que as mensagens pelo celular são
muito mais precisas.

Quem precisa de influência mental para enviar pensamentos de


paz e iluminação para líderes políticos quanto temos o Twitter e
outros mecanismos da sociedade civil para pressionar governos?
Quem precisa de intrincados exercícios de concentração para
materializar um punhado de areia quando temos impressoras 3D
que podem imprimir vários objetos que queremos de forma
menos trabalhosa? Quem precisa ver auras para descobrir o
temperamento e a personalidade de alguém quando podemos ver
o Instagram e o Facebook das pessoas, analisar suas postagens e
com isso traçar um perfil psicológico daqueles que conhecemos?
Os algoritmos sabem mais sobre nosso eu profundo do que
pessoas que alegadamente veem nossa aura.
399

Quão necessária é a projeção astral para nos transportarmos para


outros lugares quando temos a internet que nos conecta
objetivamente com pessoas do mundo inteiro, nos permite ver
jornais de outras partes do mundo ou simplesmente visualizar
como são ou estão determinados lugares? Quem precisa de cura
espiritual, mormente pelas mãos, quando temos remédios e
recursos técnicos avançadíssimos? Quão necessária é a
capacidade de prever o futuro quando temos algoritmos e
inteligência artificial de alta tecnologia que fazem a previsão do
tempo e prognósticos sociais e políticos de forma muito mais
precisa?

Antigamente, quando alguém descrevia um cenário em um livro,


éramos forçados a imaginar como era esse lugar, a sentir seus
cheiros, seus gostos etc. Hoje em dia, simplesmente colocamos
no Google para ver como é esta localidade, de modo que
estamos sendo privados até de nossa capacidade de imaginação
por meio de nosso celular. Antes, precisávamos de uma boa
memória para aprender um idioma. Hoje, os celulares traduzem
qualquer coisa. Eles também são despertadores permanentes, o
que torna obsoleto o exercício rosa-cruz de programar nosso
subconsciente para acordarmos determinada hora.

Com relação a poderes mais triviais, como desenvolvemos a


capacidade de memorização quando podemos anotar qualquer
coisa que queremos lembrar em um celular sempre à mão?
Igualmente, a nossa capacidade de concentração parece estar se
400

esvaindo com tantos estímulos visuais e auditivos ao nosso


redor. Estudos apontam que jovens hoje em dia mal conseguem
ler um texto de três parágrafos. Ademais, como desenvolvermos
nossa intuição onde simplesmente podemos checar qual a
melhor decisão tomar por meio de sites de buscas que contam
com um robusto banco de dados?

Neste universo, sobram coisas como telecinese, a capacidade de


sentir a vibração das coisas ou a visualização de nossos desejos,
algo que a Tecnologia parece não poder oferecer. Mas como
disse, além dessas coisas não terem comprovação científica e
serem extremamente subjetivas, essas práticas aparentemente
requerem uma concentração fora do normal. Há, contudo, todo
um mundo radiante lá fora que nos chama e compete com aquilo
que as Ordens têm a oferecer.

Lembro-me de certa vez ler um texto rosa-cruz onde o autor nos


conclamava a largarmos o celular e a focar mais nos exercícios
da organização. Embora eu ache a atitude bonita, trata-se de uma
visão extremamente ingênua. Ninguém vai mergulhar na
incomprovada telepatia quando se pode mandar uma mensagem
de zap. Ninguém vai ficar anos tentando projeção astral pra ir
pro Egito quando se pode estar teclando com pessoas reais desse
país e fazer amigos reais.
401

Outro aspecto mais inusitado das Tecnologias é o fato de que


elas parecem estar esvaziando os espaços físicos de muitas
organizações. Antigamente, para nós socializarmos com outras
pessoas, era necessário ir às instituições e lá conhecer gente,
fazer amizade etc. Hoje em dia, uma parcela significativa de
nossa sociabilidade advém da internet, o que parece ter tornado
muitas pessoas preguiçosas e pouco dispostas a se deslocarem
até locais físicos. Posso estar errado nessa análise, mas este
fenômeno da transferência da vida social para o espaço online
parece estar afetando o dinamismo de muitas organizações,
conforme venho observando ao conversar com as pessoas.

Em função de tudo isso, o que eu passei a perceber é que a


Tecnologia vem vencendo o Misticismo ao longo dos anos. Isso
não significa que a espiritualidade mística perdeu totalmente o
seu valor. Isso significa que a concorrência pela atenção das
pessoas é violenta e, nesta disputa, o poder atrativo de exercícios
e experimentos que nunca tiveram uma comprovação científica
seja lá por quais motivos forem, é muito diminuto. Mediante
tudo o que a Tecnologia nos oferece, o que a Ordem Rosa-Cruz
podia ou pode oferecer parece que vem ficando cada vez mais
para trás.

O mais engraçado deste processo é que conheci inúmeros rosa-


cruzes que defendiam com unhas e dentes da Ordem e seus
supostos poderes paranormais. Diziam que não era
charlatanismo e que aquelas coisas existiam. A questão é que
402

eles não percebiam que eles próprios passavam mais tempo na


internet discutindo rosacrucianismo do que aplicando ou
praticando os tais exercícios e experimentos no Santuário de sua
casa. O celular, o computador e a internet se tornaram um leviatã
que devora seus próprios filhos sem que eles percebam.

Por fim, assim como a Ciência e a Tecnologia substituíram Deus


nas suas funções explicativa e utilitária, elas também parecem
ter abocanhado boa parte da proposta desses poderes mentais.
Ao longo dos meus anos nos rosacrucianismo, eu percebi que
além de muitos desses experimentos não terem a comprovação
científica necessária, fato é que eles simplesmente não me eram
necessários nas minhas atividades cotidianas. Já disse isso
anteriormente, mas vale a pena repetir. Nós ainda precisaremos
de mais quinhentos anos para compreender como as inovações
humanas impactaram o mercado da espiritualidade.

26. MÉTODOS DE CURA E TERAPÊUTICA ROSA-CRUZ


403

De todos os campos onde a espiritualidade penetra, a área da


saúde é uma das mais propícias a toda sorte de charlatanismo e
manipulação. Isso porque além de oferecer atalhos para
processos que podem ser caros e demorados, as curas espirituais
atingem as pessoas nos seus momentos de maior fragilidade.
Qualquer pesquisa no Google nos permite ver inúmeros casos de
indivíduos abusados financeira, sexual, emocional ou de
qualquer outra forma por líderes espirituais milagreiros com
poderes curativos.

A Ordem Rosa-Cruz que eu frequentei tem todo um discurso


sobre a saúde e um método próprio de cura, mas seria uma
injustiça muito grande dizer que ela é charlatã nesse sentido.
Pelo contrário. Ela proíbe os seus membros de cobrarem por
qualquer tipo de atividade de cura espiritual e realiza um
trabalho muito bonito de auxílio espiritual por mentalização. No
entanto, isso não significa que não haja controvérsias acerca dos
seus ensinamentos sobre saúde e doença, conforme veremos a
seguir.

Tanto para a Ordem Rosa-Cruz como para várias outras escolas


de pensamento mundo afora, a doença não é natural nos seres
humanos. Ela é tão somente a quebra ou um rompimento de uma
espécie de equilíbrio energético. A palavra ‘energia’ aqui é
polissêmica e inclui tanto energias sutis que os místicos dizem
existir, como também envolvem certos estados mentais.
404

Para restaurar este equilíbrio, a Ordem que eu participava tinha


um método de aposição das mãos em determinadas partes do
corpo, mas em especial na coluna vertebral. Isso porque cada
parte da coluna estaria relacionada energeticamente a certos
órgãos do corpo. A depender da doença que tivéssemos, nosso
corpo precisaria de uma canalização de energia de polaridade
positiva (emanada da mão direita) ou de polaridade negativa
(emanada da mão esquerda).

Outras organizações ou linhas de pensamento esotéricas


propõem outras formas de se restaurar o equilíbrio energético
responsável pela nossa saúde. Algumas delas ensinam técnicas
de cura com mantras, visualização mental, certos rituais, banho
com ervas, ingestão de determinadas poções, harmonização com
cristais e assim sucessivamente. O campo da cura espiritual é
um universo bem vasto. Mas será que essas coisas fazem
sentido? Vamos analisa-las.

26.1. A perspectiva mística sobre saúde

Do meu ponto de vista, eu não posso negar que nossos estados


mentais de alguma forma influenciam nosso bem estar geral.
Pessoas depressivas ou que vivem a mal dizer a vida podem
atrair estados emocionais que geram inúmeras moléstias. As
doenças psicossomáticas, aquelas onde a nossa psicologia afeta
o nosso corpo, são reais e bastante estudadas pela Ciência. Seria
405

uma ignorância afirmar que não há nenhuma correlação entre


mente e corpo. No entanto, nada na vida é tão simples assim.

Existem pessoas odiosas e verdadeiramente más que são muito


bem de saúde. Algumas chegam a viver muitos anos. Tanto é
que há até a expressão “Vaso ruim não quebra”, mostrando que
algumas pessoas ruins têm saúde de ferro. Também há pessoas
boas que falecem muito cedo. Logo, o mundo não parece ser
esse todo encadeado de causa e efeito baseado em leis
simplistas. Se nós acreditarmos que saúde e doença tem alguma
relação com um plano espiritual ou energético, quase
concluímos que o plano espiritual protege pessoas más, o que
nos gera um sentimento de constrangimento. No entanto, essa
associação também tem outras consequências.

Quando levada muito a sério, essa proposta de uma dimensão


energética/ espiritual da doença basicamente coloca nos
indivíduos a culpa pela suas próprias moléstias. Uma coisa é
você dizer para uma pessoa que fuma, bebe muito ou que é
sedentária que ela deveria se exercitar mais ou abandonar certos
vícios. Outra coisa bem diferente é dizer para uma criança de
seis anos com leucemia ou para uma mãe de trinta e cinco anos
que tem uma doença incurável ou genética que a culpa da
doença é delas, por terem um “desequilíbrio energético” dentro
delas.
406

Durante muitos anos eu acreditei acriticamente nesta proposta,


mas hoje eu pondero sobre até que ponto isso não é de uma
crueldade absurda. E mesmo no caso da pessoa sedentária ou
com vícios, isso pode ter origem em situações de vida que
sequer estão sob seu controle, onde ela é mais vítima do que
responsável por isso.

Com o tempo, eu fui percebendo que essa ideia de dizer que


muitas doenças podem ter como causa um desequilíbrio
energético pode ser perigosa. A própria ideia de viver
equilibradamente o tempo todo pode ser uma miragem, além de
ser algo muito chato. Até porque é a sensação de desequilíbrio,
aquele sentimento de que nos falta alguma coisa que muitas
vezes nos empurra pra frente e nos faz querer viver e sair por aí
para buscar nossos desejos. Imagina uma pessoa que é
“totalmente equilibrada energeticamente”. Essa pessoa
basicamente está morta por dentro.

Nessa discussão, temos o problema das pandemias cíclicas às


quais a humanidade é submetida. Segundo alguns místicos, elas
também teriam origem numa espécie de desequilíbrio energético
coletivo em função do desgastado argumento de que a
humanidade rompeu um equilíbrio com o mundo natural,
principalmente por meio da destruição da natureza.
407

Embora este argumento seja sedutor, na nossa discussão sobre


natureza, já vimos quão boba pode ser esta ideia. Em primeiro
lugar ninguém é exatamente culpado por essa destruição da
natureza. Vivemos em um mundo com oito bilhões de sapiens
querendo ser felizes. Como vamos alimentar todas essas
pessoas, dar casa a elas e uma vida confortável e ao mesmo
tempo preservar a natureza? Não tem muita solução.

Além disso, por séculos, sociedades que viviam em “harmonia”


com a natureza também enfrentavam doenças, pestes cíclicas, as
pessoas também tinham problemas genéticos etc. Na verdade,
por mais que seja um cliché, doenças sempre existiram, mesmo
em sociedades indígenas. Ademais, como é possível dizer que
uma pessoa que viva numa cidade poluída que ela desenvolveu
uma doença por causa de um desequilíbrio energético dela
própria, uma vez que ela não tem culpa de morar naquele lugar?

O leitor pode se perguntar, então, por que doenças existem. Há


várias causas para elas e isso varia muito de indivíduo para
indivíduo. Algumas dessas causas podem até ter uma correlação
com a mente, mas certamente a maioria delas tem a ver com
questões biológicas, geográficas e até culturais. Talvez as
doenças que nos acometem podem simplesmente não ter uma
explicação espiritual e temos que lidar com elas da melhor
maneira possível.
408

Nesta discussão, é importante reforçar que muita coisa na saúde


não necessariamente parece ser uma ‘lei’ no sentido clássico do
termo. Há milhares de pessoas que são sedentárias e enfartam.

Mas há também pessoas sedentárias que não enfartam. Estudos


apontam que há uma correlação entre prática regular de esportes
e uma boa saúde, mas correlação não significa causalidade
absoluta, de modo que nada na saúde parecer ser tão constante
assim.

O outro problema da perspectiva energética da saúde é que ela


abre a porta para muitas coisas tenebrosas. A causa de um
rompimento energético pode estar em um espírito obsessor, na
falta de um dízimo a um líder religioso, no trabalho espiritual
feito por alguém (o famoso ‘encosto’), na presença de uma
pessoa invejosa e todo um mundo de especulações metafísicas.
Estas tem tantos efeitos adversos que não conseguiríamos dar
conta de abordar neste livro, mas que acredito que o leitor mais
cético consegue visualizar como essas ideias podem ser
manipuladas ad infinitum.

Como vemos, essa coisa de ver energias sutis na relação entre


saúde e doença é muito bonitinha, mas é também um
pensamento que pode ter inúmeros desdobramentos. Além de
fazer os indivíduos se sentirem injustamente culpados pela sua
doença, esta noção abre as portas para todo tipo de explicação
409

bizarra sobre a origem das moléstias. No entanto, não é só na


origem das coisas que reside a bizarrice do processo. As
propostas de cura são igualmente perigosas.

26.2. A terapêutica rosa-cruz

Sempre que falamos de cura, é preciso termos em mente que em


muitos casos há uma falsa associação entre causa e efeito. Uma
pessoa gripada, por exemplo, pode colocar um cristal “mágico”
na garganta e dois dias depois ela melhora. Logo, o cristal curou,
certo? Na verdade não. Do ponto de vista biológico, muitas
doenças possuem uma remissão espontânea e natural. Isso
significa que elas se curam sozinhas depois de um tempo. Dessa
forma, por mais que haja um arsenal esotérico à nossa
disposição para a cura – cristais, ervas, visualização, cânticos etc
– muitas doenças se curam com ou sem essas coisas.

Isso posto, o problema de todo método de cura espiritual é que


em muitas vezes ele nos leva a um entorpecimento da
consciência. Em função de uma suposta causa espiritual, o foco
da cura também seria espiritual. Como disse anteriormente, os
rosa-cruzes acreditam que é possível curar as pessoas apondo as
mãos em certas partes da coluna vertebral, transmitindo-lhes
uma espécie de energia para restaurar um equilíbrio energético.
Este método em si não tem nada demais e eu não tenho nenhuma
410

crítica a ele especificamente, mas a sua natureza esotérica, por


vezes, cria algumas situações inusitadas.

Durante minha jornada rosa-cruz, eu vi situações chocantes


dentro da Ordem. Em função desse cariz de “poderes
paranormais” do rosacrucianismo, conheci idosos que, diante de
um quadro grave de câncer, se recusaram a fazer o tratamento
adequado porque acreditaram que os ensinamentos da Ordem
seriam capazes de curá-los. Essa ideia de poderes especiais têm
uma alta potencialidade de levar às pessoas a um caráter
milagreiro.

Sobre isso, é importante frisar que a própria Ordem sempre


desencorajou esta atitude. O problema é que a organização não
controla o que as pessoas trazem dentro delas. A ideia de uma
cura por meio de poderes paranormais e especiais sempre traz
um caráter mágico para o processo. A depender do tipo de
pessoas com as quais estamos lidando, o resultado pode ser um
real fanatismo.

A coisa pode sair do controle de tal modo que a própria Ordem


Rosa-Cruz parece ter mudado alguns conceitos próprios de sua
terminologia. Antigamente, a organização chamava seus
ensinamentos de ‘cura rosa-cruz’, mas posteriormente mudou o
nome para ‘terapêutica rosa-cruz’. Isso talvez tenha ocorrido
411

para evitar que as pessoas achassem que estavam lidando com


algo milagroso.

Esta postura, no entanto, não é apanágio do mundo místico. Nas


igrejas também se vê muitos casos similares de indivíduos que
abandonam a medicina tradicional em prol de medicinas
alternativas ou crenças religiosas. Outrossim, há de se adicionar
que muitos indivíduos vão por esse caminho ou por não terem
recursos para consultarem bons médicos ou porque o sistema
público de saúde é deficitário. Logo, o caminho da magia e da
religião é a única coisa que sobra para essas pessoas tão
acabrunhadas.

Nessa discussão sobre cura, muitas linhas de pensamento


espiritualistas, a Ordem Rosa-Cruz inclusive, não cansam de
criticar a chamada medicina ocidental. Esta crítica se baseia em
toda sorte de clichês, como a acusação de que a nossa medicina
comum seria “materialista”, desconsideraria a dimensão
espiritual da vida e toda uma cantilena que estamos cansados de
ouvir. Sobre isso, façamos algumas considerações.

Em primeiro lugar, a medicina ocidental não é perfeita. Nela, há


discordâncias, diferentes abordagens sobre as doenças, lobbies
financeiros de grandes empresas, decisões políticas
influenciadas por interesses igualmente políticos etc. A
412

pandemia de opioides que por hora está devastando os Estados


Unidos começou por causa do lobby de grandes indústrias
farmacêuticas que forçou os médicos a receitarem essas
substâncias extremamente viciantes como se fossem simples
analgésicos.

Podemos ver o resultado nas milhares de mortes por overdose


nos EUA. Igualmente, durante a pandemia do coronavírus,
vimos que vários médicos lançaram dúvidas sobre remédios e
vacinas e foi uma confusão só. Poderíamos ficar horas
discutindo sobre como o interesse financeiro macula a medicina
ocidental, mas existe um outro aspecto nessa história.

Por mais que haja embates dentro da medicina que nos é mais
usual e ela não esteja alheia às disputas do mercado, foi essa
mesma medicina que eliminou doenças que, por séculos,
assolaram a humanidade. Tétano, raiva, poliomielite, varíola,
febre amarela, hanseníase e várias outras, hoje, só nos
informamos delas por meio dos livros de Biologia ou de
História. É verdade que muitas dessas doenças ainda existem,
mas seus efeitos são bem mais contornáveis do que já foram no
passado.

A medicina ocidental nos deu a anestesia, os transplantes, a


plástica, técnicas cirúrgicas precisas, remédios com alta
tecnologia agregada que podem curar até mesmo doenças
413

genéticas em crianças, retardar a demência, entre outras coisas.


São tantos os benefícios da medicina ocidental que
precisaríamos de um livro só pra isso.

Diante de todo esforço intelectual, tecnológico e financeiro de


países, universidades e pesquisadores ao longo dos séculos para
curar vários tipos de doenças, dizer que a doença tem uma
origem em um “desequilíbrio energético” ou numa “ruptura
espiritual”, me parece um deboche de todo o esforço da
civilização humana em torno da preservação da saúde. Com todo
respeito às medicinas espiritualistas, quem nos deu a cura para
várias moléstias foi a medicina ocidental e não xamãs,
sacerdotes, curandeiros ou místicos com a energia de suas mãos.

Sobre isso, os espiritualistas se defendem que a medicina


tradicional não ataca as causas do problema, mas seus efeitos. O
problema é que sob o ângulo da espiritualidade, essas causas não
possuem uma identificação muito nítida. Dizer que a doença é
causada por um desequilíbrio de energias que sequer
conseguimos mapear e identificar é basicamente caminhar pelo
vazio. Ao final, mesmo que a medicina tradicional apenas cure
os efeitos e não as causas de uma doença, muita gente melhora
com isso. Ademais, é absolutamente controverso achar que uma
morrendo de AIDS tem um desequilíbrio energético que tem
uma causa metafísica. O doente de AIDS fica doente em função
do vírus HIV. Qual é o mal dessa conclusão evidente?
414

Nessa discussão, se a medicina ocidental possui interesses


financeiros escusos, as medicinas alternativas e espiritualistas
também o têm. A diferença é que a medicina tradicional têm
meios de verificação e está submetida a uma grande
responsabilidade científica e jurídica. Já as outras medicinas
podem ter um amplo braço para todo tipo de prática de
charlatanismo e quase nada acontece com elas, na medida em
que “tudo é uma questão de fé”.

Outro aspecto dessa discussão entre espiritualidade, doença e


cura, é a prece. Muita gente afirma que uma oração tem o poder
curativo, mas os estudos científicos sobre isso nunca
referendaram esta crença. É verdade que a oração ajuda muitos
indivíduos a passarem por momentos de tribulação, mas os
efeitos de uma prece na cura das pessoas parecem ter nunca sido
provados pelo método científico. E o mesmo se aplica para a
técnica de visualização mental que os rosa-cruzes utilizam para
curar as pessoas.

Nas Lojas Rosa-Cruzes há inúmeros relatos de pessoas que se


curaram após receber um auxílio metafísico. Logo isso funciona,
certo? O problema é que muitas pessoas também se curam sem
receber este auxílio, o que torna muito difícil a comprovação
científica deste tipo de prática espiritual. A prece pode ter um
efeito regenerador para quem a faz e pode ter um papel de
autossugestão em quem recebe. Certamente muitas doenças têm
uma remissão após os pacientes receberem oração, mas é muito
415

difícil saber se isso é uma remissão natural da doença ou se é


efeito da prece. Até porque ninguém consegue mensurar as
“energias” emanadas pela prece.

Por fim, eu sempre fui muito desconfiado dessas visões


espiritualistas sobre a saúde humana. Há pessoas que fumam,
não se exercitam e comem banha de porco e vivem até os cem
anos. Há pessoas alegres e esportivas e que têm morte súbita.
Neste campo, nada parece ser muito absoluto. Mas mais ainda,
quando eu caía doente, dificilmente eu tinha acesso a um rosa-
cruz que viesse à minha casa para colocar as mãos na minha
coluna vertebral e me curar de alguma coisa. Eu recorria mesmo
era aos médicos e aos fármacos facilmente acessíveis. Nesse
sentido, a terapêutica rosa-cruz, quer ela funcione ou não,
sempre me foi muito pouco utilitária, assim como é para muitos
rosa-cruzes.
416

27. A CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE HUMANA

O debate sobre como a construção da personalidade humana


sempre foi ancestral na humanidade. Em outras palavras, esta
discussão pode ser resumida a por que nós somos do jeito que
somos e não de outra maneira. Para responder a esse mistério,
diferentes campos do conhecimento elaboraram as mais diversas
explicações. Podemos, entretanto, identificar três grandes grupos
explicativos sobre a personalidade humana. Falaremos sobre
eles de forma resumida, mas adianto que todos nós lidamos com
as ideias a seguir cotidianamente em nossas vidas e, por vezes,
de forma contraditória.

O primeiro bloco de conhecimento que tenta identificar e


explicar a personalidade humana é o chamado das Ciências
Metafísicas. Este campo talvez seja onde esta discussão mais
encontra ressonância. Os partidários dessas teorias acreditam
que nossa personalidade é moldada por elementos espirituais ou
etéreos como os signos, a influência de um orixá, as linhas de
nossa mão, a “energia” do nosso nome, a data de nascimento,
nosso animal de poder, o desenvolvimento de nossos chacras ou
centros psíquicos, a influência dos planetas, a presença de
espíritos, o carma da outra encarnação etc.

Cada uma dessas correntes dirá que somos pessoas pacíficas ou


guerreiras, artísticas ou racionais etc com base na influência de
417

algo imaterial. Cotidianamente podemos ouvir várias pessoas


agressivas e vingativas dizendo que são assim porque são,
hipoteticamente, de Áries com ascendente em Escorpião.

O segundo bloco que tenta explicar a personalidade humana é o


chamado bloco das Humanidades. Aqui, somos e pensamos de
um determinado jeito em função de eventos históricos que
aconteceram, da religião que trazemos conosco, da geografia
onde nos localizamos, da família na qual fomos criados, da
cultura na qual nascemos, da sociedade ao nosso redor que nos
molda de uma determinada maneira etc.

Neste campo, costuma se acreditar que as pessoas nascem como


uma tábula rasa e elas vão sendo construídas a partir do seu
meio imediato. Disciplinas como História, Geografia,
Sociologia, Antropologia, Pedagogia e as Ciências Sociais em
geral são os representantes desse bloco de conhecimento que
tenta investigar a personalidade das sociedades e dos indivíduos
e possuem muitas evidências ao seu favor.

Aqui, o elemento cultura humana tem um grande peso,


principalmente ligado à trajetória histórica das sociedades, ainda
que se admita que ela possa ter a influência de elementos
naturais. Cotidianamente, já ouvimos dizer que os povos do
norte da Europa têm um temperamento mais distante devido ao
clima frio e também que o brasileiro é indolente e preguiçoso
418

em função da cultura indígena. Também quando alguém diz que


criminosos são vítimas da sociedade, se está apelando para este
tipo de abordagem humanista que explica o comportamento das
pessoas em função do seu contexto social.

Saliento também que este segundo bloco tende a não ver os


seres humanos como tendo uma personalidade inexorável. Em
função do poder que a cultura exerce, é também por meio da
educação que podemos transformar a cultura e, por conseguinte,
os indivíduos. Nesse sentido, ainda que sob este olhar o livre
arbítrio seja relativizado por forças externas ao indivíduo, o ser
humano tende a ser mais moldável.

O terceiro bloco é o que podemos chamar de Biomédico


(agregando aí a Psicologia). Aqui, as explicações para as
personalidades humanas baseiam-se nos genes, nos hormônios,
na configuração cerebral etc. No campo da Psicologia, há quem
tente explicar a personalidade por meio de traumas do passado,
na criação de nossos pais, em problemas mentais, em questões
do inconsciente etc.

Quem nunca ouviu dizer que “fulano tem medo de se relacionar


com alguém porque tem trauma ligado ao casamento dos pais”?
Também não é muito raro encontrarmos pesquisas que sugerem
que determinado homem agrediu a mulher porque tem muita
testosterona no sangue ou porque a genética masculina
419

influencia seu comportamento. Em outras palavras, se busca na


biologia e na psique as explicações para o mistério do Eu.

Este bloco número três acredita se um indivíduo é hormonal ou


geneticamente moldado para uma coisa, a tendência dele para se
comportar dessa ou daquela maneira é muito maior, embora não
seja impossível mudá-lo. Sob essa perspectiva, a noção de livre-
arbítrio é bastante relativizada, na medida em que os seres
humanos seriam condicionados por forças internas difíceis de se
controlar.

A Ordem Rosa-Cruz que eu pertencia fica um pouco no meio


entre essas três correntes. Ela admite o papel da sociedade, da
psicologia e da biologia na formação da personalidade humana,
mas também afirma que somos o resultado de certas influências
espirituais. Este ponto específico sempre chamou a atenção do
meu ceticismo. Vamos ver um pouco sobre isso.

Segundo o rosacrucianismo, uma dessas principais influências


moldadoras de nossa personalidade seria o caráter profundo que
habita em nós. Em outras palavras, nossa personalidade estaria
vinculada à evolução espiritual de nossa personalidade alma.
Mas será que isso faz sentido? Embora seja inegável que muitos
indivíduos tenham um caráter muito mais elevado do que
420

outros, não podemos negar o contexto social no qual o caráter se


desenvolve. Quando se vive em condições extremas e com
poucas opções ao seu redor, a sua personalidade tem uma maior
probabilidade de se moldar para uma determinada direção e isso
talvez não tenha a ver com a evolução da alma, mas com
necessidade de sobrevivência.

Quando se tem conforto e qualidade de vida, a probabilidade de


desenvolver um caráter altruísta e cosmopolita é muito maior.
Naturalmente, isso não é uma lei. Há pessoas que têm tudo na
vida e são cruéis, ao passo que há indivíduos carentes de quase
tudo e ainda assim são pessoas boas. Isso é um ponto a favor do
ponto de vista rosa-cruz que associa caráter à evolução da alma.
No entanto, não podemos desconsiderar o contexto social no
qual as pessoas vivem.

27.1. Os centros psíquicos e as glândulas.


Outro ponto que a Ordem Rosa-Cruz usa para explicar a
personalidade humana está relacionado ao desenvolvimento dos
centros psíquicos, que seriam a contraparte espiritual de nossas
glândulas orgânicas. Se alguns destes centros estão pouco
desenvolvidos, seríamos pessoas com personalidade irascível ou
pouco humorada. Trata-se de uma proposta muito parecida com
os chacras indianos (embora não sejam a mesma coisa). Mas
será que isso faz sentido? Pessoalmente, eu sempre respeitei essa
proposta, mas sempre houve algo nela que me incomodou.
Vamos ver um pouco sobre isso.
421

Inicialmente, é preciso ressaltar que a Ciência ocidental, até o


momento, parece não compartilhar nem da visão de centro
psíquicos nem de centros energéticos no corpo humano. Para a
Ciência Moderna, não há nada de espiritual no homem e os seres
humanos são apenas o funcionamento mecânico de seus corpos
físicos. Os cientistas, contudo, confirmam a ideia de que as
glândulas exercem um papel vital no desenvolvimento e
manutenção dos seres vivos e também influenciam em nossos
estados mentais.

Uma dúvida que sempre tive sobre este tema, no entanto, é qual
seria exatamente a diferença entre glândulas e centros psíquicos
sob o ponto de vista rosa-cruz. Isso porque em muitas
monografias, a Ordem Rosa-Cruz dá a entender que nossos
hormônios são secretados com base no estímulo e no despertar
de nossos centros psíquicos que fazemos fazemos por meio de
cânticos e da visualização. Só que este pensamento tem
problemas consideráveis.

Como exercício especulativo, vamos partir do pressuposto que


esses centros psíquicos de fato existem e que nossas glândulas
produzem hormônios por meio de seu impulso vibratório e estes
vão constituir o nosso corpo e afetar nosso estado emocional e
nossa personalidade. Aí entra uma questão complicada: o mal
funcionamento de uma glândula, como o hipotireoidismo por
exemplo, é resultado de um problema puramente orgânico e
físico ou tem origem espiritual?
422

Se admitirmos que tem origem espiritual, uma vez que a Ordem


ensina que certos exercícios podem afetar os centros psíquicos e
influenciar na produção de hormônios e na manutenção de boa
saúde, basta fazer estes exercícios para restaurar a saúde de
nossa tireoide, correto? Na minha humilde perspectiva, acho
essa visão perigosa porque ela nos leva a abandonarmos o
tratamento oficial e a ignorar causas médicas reais que podem
afetar o funcionamento de nossas glândulas. Por outro lado, se
admitirmos que o hipotireoidismo tem origem puramente
orgânica, qual a relação, afinal, entre a glândula da tireoide e o
centro psíquico correspondente a esta glândula?

Nesta discussão, podemos citar também a questão da depressão,


tão em voga atualmente. Muitos textos científicos afirmam que
uma produção desregulada de hormônios pode nos levar à
depressão. Assim, esta doença teria uma origem química, ou
seja, em causas orgânicas que independem de nossas emoções.
Sob esta ótica, bastaria usar um remédio para reequilibrar nossos
hormônios que deixaríamos de ter depressão. O problema é que
sob o olhar rosa-cruz, seria a nossa mente que produz a
desregulação de hormônios. Logo somos nós (leia-se: a nossa
mente) que entramos em depressão e isso afeta o nosso corpo ou
é o nosso corpo que nos coloca em depressão tal como uma
gripe?
423

As questões relativas à saúde também influenciam o debate


sobre a nossa personalidade. A Ordem Rosa-Cruz sugere em
seus ensinamentos que o desenvolvimento dos centros psíquicos
influencia aspectos de nossa personalidade, tais como humor, a
inteligência, a intuição, a criatividade etc. O problema é que a
Ordem também sugere que a nossa personalidade influencia o
desenvolvimento de nossos centros psíquicos. No final, eu
ficava com a sensação de “Tostines vende mais porque é mais
fresquinho ou é mais fresquinho porque vende mais?”

Este debate traz toda uma discussão sobre onde está o “eu”. Sou
assim porque os hormônios me fizeram dessa maneira ou é o
meu modo de pensar e de ser que influenciam meus hormônios?
Os centros psíquicos influenciam a nossa mente ou é nossa
mente que influenciam os nossos centros psíquicos? Se o
despertar do centro psíquico influencia a produção das glândulas
e dos hormônios, o mal funcionamento dessas coisas está
vinculado a um problema espiritual? Este é um processo que se
retroalimenta? Se sim, qual a solução? Remédios, meditação e
cânticos espirituais ou alterações em nosso modo de pensar?

Como podem ver, não são questões fáceis de se resolver e isso


começou a alimentar as chamas do meu ceticismo. Ao que
parece, a construção da personalidade humana e a relação entre
mente e corpo ainda permanecem um mistério. Não consigo
acreditar que haja respostas finais para isso nem biológicas, nem
humanas e tampouco espirituais.
424

28. A IDEIA DE EVOLUÇÃO INDIVIDUAL


Uma das principais linhas condutoras de todo o rosacrucianismo
é a ideia de que os indivíduos, particularmente a nossa
personalidade alma, está a caminho de uma evolução individual.
Quase todo rosa-cruz pauta a sua vida em direção a esta crença.
No Ocidente, a própria doutrina de reencarnação se baseia no
pressuposto de uma evolução global. Nesse sentido, devemos
aperfeiçoar nosso comportamento e nossos ideais para atingir
uma espécie de iluminação. A partir daí não precisaríamos mais
encarnar.

Durante muitos anos eu cri nessa proposta de pensamento de


forma totalmente acrítica. Afinal, ela me parecia mais acertada
do que a ideia cristã de que você vai arder pelos próximos
bilhões de anos no inferno sem nenhum tipo de possibilidade de
reconsideração por parte de Deus. Afinal, você já está
condenado. Mediante essa situação tão aterradora, a noção que
estamos vivendo várias vidas em busca de uma evolução sempre
me pareceu muito mais saudável. O problema é que eu demorei
para perceber que embora a proposta cristã me parecesse
absurda, a alternativa a ela talvez não fosse tão melhor assim.

Destaco que de acordo com o pensamento rosa-cruz, uma prova


de que a evolução existiria seria o fato de que haveria indivíduos
que evoluíram mais em relação aos outros e supostamente
425

atingiram a iluminação. Este seria o caso dos fundadores das


religiões, como Jesus, Buda, Maomé etc. Para o
rosacrucianismo, estas pessoas seriam almas evoluidíssimas que
reencarnaram para ajudar a humanidade a se aperfeiçoar.
Supondo que exista uma alma, será que existe uma evolução
individual dela? Que implicações essa ideia têm?

Antes de começarmos essa discussão, gostaria de deixar claro


que não estamos falando da evolução do ponto de vista
darwinista – aquela que acontece em milhares e talvez até
milhões de anos, afetando nossas características físicas. Estamos
falando da percepção de uma evolução da consciência. Em
outras palavras, da tomada de consciência da alma em relação à
sua perfeição divina. Isto posto, vamos aos debates.

28.1. A vaidade
Ao longo da minha jornada, eu percebi que esse conceito de
evolução da alma, apesar de guardar certa beleza, sempre teve
algo egóico naqueles que nela acreditam. Isso porque, além
dessa ideia hierarquizar os seres humanos entre mais e menos
evoluídos, quase sempre quem crê nela se pensa mais evoluído
que os demais. Pouco a pouco fui percebendo essa característica
na psique dos rosa-cruzes e também dos espíritas e isso foi me
incomodando.
426

Se por um lado a ideia de que as pessoas evoluíam me parecia


acertada, por outro, a perspectiva católica de que somos todos
pecadores e iguais perante Deus me parecia mais humilde e
menos egocêntrica. Entre acreditar que somos todos pecadores e
crer que eu posso ser mais evoluído, logo superior à pessoa do
meu lado, algo me dizia que a perspectiva católica era mais
humanista. Quase sempre aquele que crê em evolução é
essencialmente um vaidoso egocêntrico porque dificilmente a
pessoa se percebe como menos evoluída.

28.2. Quais são os critérios para se evoluir?


Outra questão que começou a me incomodar nessa proposta de
pensamento é o fato de que os critérios para alguém evoluir
nunca foram muito claros. Como disse anteriormente, alguns
textos rosa-cruzes diziam que para evoluir era necessário o
desenvolvimento de poderes paranormais, mas outros textos
diziam o contrário. Neste caso, para evoluirmos, seria necessário
o desenvolvimento de certas virtudes de nossa alma. O problema
é que não parece existir uma lista completa de virtudes
necessárias para tal.

Embora algumas virtudes possam ser óbvias, como o amor ao


próximo, outras não são tão claras assim e algumas são até
polêmicas. Ademais, quais são essas virtudes que habitam em
nossa alma? Para que o leitor possa visualizar como esta é uma
questão complicada, tragamos exemplos práticos. Ser
vegetariano, de esquerda, pró-imigração ilimitada, a favor de
427

redistribuição de renda e defender a restrição do porte de armas,


por exemplo, faz com que as pessoas que defendam essas pautas
sejam automaticamente evoluídas? Isso significa que quem
come carne, é de direita, acha que a imigração deve ser limitada,
é contra políticas de distribuição de renda e é a favor do porte de
armas é automaticamente pouco evoluído.

Neste debate, perdi a conta de quantas vezes eu vi rosa-cruzes


que diziam que para evoluir era imprescindível não odiar nada e
nem ninguém, pois um rosa-cruz era apenas amor. Ora, mas será
que isso é real? É possível não odiar ninguém? Eu odeio várias
coisas e pessoas. Odeio a extrema direita, o autoritarismo, a
mentira, crimes atrozes, o fanatismo religioso, a manipulação da
religião em nome do poder político e econômico. Serei eu
menos evoluído por odiar essas coisas? Neste caso, faço questão
de ser pouco evoluído.

Além disso, o que vem a ser amar todas as pessoas? Isso


significa que devemos ajudar todo mundo o tempo todo à revelia
do nosso próprio bem-estar? Se sim, isso não seria o
esvaziamento do nosso eu? Se não, isso não seria egoísmo?
Como vemos, não é tão simples saber quais são as virtudes que
habitam em nossa alma e menos ainda saber qual a medida
correta de aplicá-las no nosso cotidiano.
428

Poder-se-ia argumentar que evoluir é “expandir a consciência”,


mas já vimos que essa noção é bastante abstrata. O que é ter uma
mente expandida? É estudar academicamente? É ser
cosmopolita? É se confrontar com diferentes visões de mundo?
Nada disso implica necessariamente que a pessoa vá ser boa.
Vários nazistas tinham doutorado e conheciam o mundo inteiro.
Pouco a pouco, a ideia de que estamos evoluindo começou a me
parecer uma percepção bonita, mas difícil de operar na prática.

28.3. As contradições da evolução


Quando falamos que uma pessoa é evoluída, logo pensamos que
ela sabe a maneira correta de agir em várias situações. Mas será
que isso existe mesmo? Imaginemos que somos casados há
trinta anos com alguém e nos apaixonamos perdidamente por
outra pessoa. Qual é a atitude correta a tomar? Ficar casado com
uma pessoa com quem vivemos brigando e com a qual já não
existe mais tesão, mas que temos uma história e uma família, ou
nos entregar em um novo e arrebatador amor?

E o que dizer do modo de criarmos os filhos? Se somos duros


demais, criamos crianças com traumas. Se somos liberais
demais, somos acusados de negligência. Se chamamos a atenção
da criança somos acusados de “cortar sua espontaneidade”. Se
deixamos a criança se comportar como quer, estamos mal
educando nossos filhos. Em outras palavras, não importa o que
fizermos. Nós sempre vamos errar em algum ponto.
429

A sabedoria popular também está cheia de virtudes e


ensinamentos que se contradizem entre si. Acreditamos que pau
que nasce torto nunca se endireita, mas também pensamos que é
desde pequenino que se torce o pepino. Fala-se que nunca
devemos abaixar a cabeça para ninguém. Também se diz que
devemos ser humildes. Dizem que os opostos se atraem, mas
que cada um com seu igual.

Ainda, falam que a vingança não compensa, ao mesmo tempo


que dizem que ela é um prato que se come frio. Devemos
mergulhar de cabeça nas coisas ou não ir com muita sede ao
pote? Devemos nos aceitar como somos ou nos aperfeiçoar? E
se devemos nos aperfeiçoar, até onde vai isso? Devemos aceitar
o outro como ele é ou buscar melhorá-lo por meio do estímulo à
virtude?

Em outras palavras, há várias frases que usamos como sabedoria


que não são verdades universais, mas somente peças encaixadas
à conveniência dos fatos. Os critérios para se evoluir, portanto,
quase sempre são contraditórios. Isso mostra que a vida é
caótica e imprecisa, ao passo que a ideia de evolução nos
transmite a noção de que haveria uma receita de bolo para o bem
viver. Será?
430

28.4. Um estado de permanência


A ideia de que existe uma evolução individual pressupõe
também uma percepção linear ascendente de tempo. Isso
significa que o desenvolvimento de nossa consciência está
sempre subindo em direção ao alto de um cume. Nessa linha,
geralmente se acredita que quando evoluímos jamais
regressaremos, pois nossa alma atingiu aquele estado de
permanência e não podemos voltar atrás. Há até uma frase
rosacruz que diz “inúmeras são as perspectivas para aqueles que
atingiram o cume da montanha”.

Em outras palavras, a evolução traz uma sensação de


permanência e constância. A ideia é de que a pessoa é evoluída
como um todo e não está evoluída ou é evoluída apenas em um
determinado campo da existência. O problema dessa perspectiva
é que ela quase sempre coloca a pessoa num pedestal de falsa
superioridade. Vamos ver um exemplo sobre isso.

Em vários momentos da minha vida cheguei em casa cansado,


irritado e às vezes meio explosivo com tantas tarefas e
preocupações e pessoas da família me diziam “Mas você não é
rosa-cruz? Não é evoluído? Para que essas atitudes assim?” A
ideia de que se é evoluído, portanto, pressupõe que você nunca
pode estar num dia ruim, tem sempre que bem agir em todas as
situações e não pode errar nunca, mesmo que o certo e o errado
em cada caso não sejam claros.
431

Ora, se mesmo Jesus teve seu dia de fúria quando quebrou o


templo dos fariseus, por que uma pessoa evoluída não pode ter
seus dias ruins? Até que ponto os “evoluídos” estão fora do
alcance de coisas como depressão, suicídio, anorexia etc? Além
disso, essas coisas significam que todas as pessoas que têm isso
são pessoas pouco evoluídas? O evoluído está sempre bem com
tudo o tempo todo? Isso não lhe parece fantasioso, demagogo e
hipócrita? Ou lhe parece uma possibilidade real e um ideal de
vida? Pouco a pouco, comecei a sentir quão asfixiante essa
noção de evolução poderia ser.

Na definição rosa-cruz da palavra ‘evolução’, está dito que todos


os seres vivos progridem rumo a um arquétipo ideal. Neste
ponto, voltamos à discussão dezesseis sobre a imperfeição
imanente das coisas e como que a noção de perfeição pode ser
esmagadora e asfixiante. Ora, será que é possível alguém atingir
um arquétipo ideal a ponto de apagar todas as suas
imperfeições? Isso não lhes parece uma ideologia extremamente
autoritária e impossível de se atingir?

Com relação à involução, nestes tempos doidos de redes sociais,


quantas pessoas que críamos inteligentes e evoluídas não foram
capturadas por fake news, teorias da conspiração, retórica de
ódio e política de destruição baseadas em mentiras e notícias
falsas? Pessoas que sempre acreditamos amáveis, de repente
revelaram o que de pior havia dentro delas. Será mesmo que
existe uma evolução? E se ela existe, somos incapazes de
432

involuir? No fundo, somos plurais, contraditórios, temos


momentos de altos e baixos e assim é a vida. Será mesmo que
existe um ponto de superioridade ascendente para o qual
estamos o tempo todo caminhando?

28.5. Códigos morais e éticos


Ao longo da História, muitos foram os sistemas de pensamento
que procuraram elaborar códigos de comportamento para seus
adeptos. Os Bíblia, os livros da Torá e o Alcorão estão cheio de
códigos que instam seus partidários a se comportar desta e não
daquela maneira. O leitor apressado pode achar que basta
seguirmos essas regras morais para que evoluamos, mas há um
problema aí. Isso porque essas regras de conduta frequentemente
se contradizem entre si.

Há correntes islâmicas que dizem que é legítimo matar uma


menina que desonrou o nome da família. Há pensadores cristãos
que dizem que pessoas transsexuais e homossexuais não devem
ter os mesmos direitos que as outras pessoas. E há pensadores
judaicos que não querem que fotos de mulheres apareçam em
livros escolares. Será que as pessoas que acreditam nisso são
menos evoluídas, mais evoluídas ou são apenas diferentes?

Para muitos rosa-cruzes, quase sempre se conclui que pessoas


muito religiosas são menos evoluídas. Eu também tenho
simpatia por essa ideia. Mas fica a pergunta: “Afinal, qual é o
433

código de ética e moral que faz alguém ser evoluído?” Isso


porque códigos morais e éticos quase sempre implicam na
exclusão social de algo. Assim, podemos imaginar que uma
mulher fazer sexo com dez homens num único dia é imoral. Mas
seria essa pessoa menos evoluída espiritualmente? Por quê? E
quem disse que uma mulher que tenha feito sexo apenas com um
homem, o seu marido, durante toda a sua vida, é
necessariamente mais evoluída? Como a ideia de evolução se
encaixa com a ideia de moral?

26.6. A diferença entre as pessoas


Outro aspecto que sempre chamou minha atenção na ideia de
evolução é tentar entender a diferença entre as pessoas. Isso
porque o rosacrucianismo afirma que o que diferencia os seres
humanos em seus gostos e aspirações é o nível de evolução de
sua personalidade alma. Mas será que duas pessoas evoluídas
têm que ter os mesmos gostos? Isso pode levar a preconceitos
sociais bastante desagradáveis.

Certa vez, em uma palestra em uma Loja Rosa-Cruz, eu ouvi


uma irmã rosa-cruz dizer que as meninas que gostam de ouvir
funk são menos evoluídas do que aquelas que gostam de ouvir
música clássica. Ela deu até o exemplo de que o corpo de quem
ouve funk é mais sexualmente desenvolvido, dando a entender
que isso seria um indicativo de certa animalidade. Ora, isso
significa que os funkeiros são necessariamente pessoas pouco
evoluídas. Será mesmo que podemos concluir isso de forma tão
434

peremptória? Isso me parece leviano e delirante. Até porque os


nazistas amavam música clássica.

A ideia de evolução quase nos leva na direção de uma


homogeneização dos gostos humanos. Pessoalmente, eu
concordo com a ideia de que as aspirações profundas de uma
pessoa talvez estejam muito ligadas a certo caráter. Mas acho
que a gente tem que ter muito cuidado na condução desse
raciocínio para não cairmos em reduções simplistas. Uma pessoa
que ouve músicas de “baixo nível” não necessariamente é pouco
evoluída, ao passo que pessoas com gostos refinados não
necessariamente são evoluídas. Pelo contrário. A História mostra
que os maiores criminosos da humanidade são pessoas bastante
refinadas e que usa terno e gravata. Existe uma receita geral de
gostos individuais que indicam a evolução de alguém? Tenho
fortes dúvidas sobre isso.

28.7. O papel da escolaridade


No âmbito dessas reflexões, devemos trazer a questão da
escolaridade de diferentes indivíduos. Muita gente acredita que
uma Educação formal tem um papel de libertação das pessoas
rumo à evolução. Essa proposta é até partilhada por muitas
correntes políticas como os iluministas e as esquerdas.
Pessoalmente, eu concordo com o caráter transformador da
Educação, mas será que ela necessariamente indica evolução?
435

Durante a pandemia de covid, as pessoas com apenas o Ensino


Fundamental tomaram mais vacinas do que aquelas com Ensino
Superior. Afinal, se vacinar e confiar no poder público e na
Ciência é indicativo de evolução ou não? Se por um lado
pessoas sem muita escolaridade muitas vezes são marionetes de
pastores e imãs e têm visões de mundo bastante obscurantistas,
por outro lado, ter escolaridade é necessariamente indicativo de
alguma coisa?

Nesse sentido, a evolução das pessoas está vinculada à sua


“alma” ou à escolaridade? O que quero mostrar ao leitor é que
por mais que a ideia de evolução individual seja bonita, tudo é
tão relativo que não tenho mais certeza sobre muita coisa.

Além disso, o próprio conceito de escolaridade é relativo. Qual


área do conhecimento humano dá ao indivíduo mais evolução?
Ademais, para evoluirmos é preciso saber tudo sobre tudo, algo
que é absolutamente impossível?

Na minha experiência, inclusive, a associação entre estudo e


evolução espiritual teve o efeito reverso. Quanto mais eu
estudei, mais a espiritualidade se arrefeceu em mim. Quanto
mais estudo absorvi, menos passei a acreditar na noção de uma
evolução espiritual. Pessoalmente, acredito no poder
transformador e melhorador da escolaridade, mas não acredito
que a fórmula ‘escolaridade = evolução espiritual’ seja uma lei.
436

28.8. A evolução espiritual e a genética


A ideia de que os indivíduos podem evoluir espiritualmente
caminha também perigosamente junto da ideia de um
melhoramento genético via eugenia. Embora gene e alma
possam ser de alguma forma categorias distintas, fato é que
muitos indivíduos parecem possuir determinadas predisposições
genéticas para muitas coisas. É conhecido o estudo que judeus
asquenazis tem um elevado QI em comparação com outros
povos, particularmente os da África Subsaariana. Será que existe
uma relação entre QI e evolução espiritual? Judeus asquenazis
são espiritualmente mais evoluídos do que africanos?

Mesmo na Ciência há estudos que comprovam que certos


indivíduos possuem uma predisposição genética ou mental ao
crime, como no caso dos psicopatas e assassinos em série. Isso
traz uma interessante discussão. Ora, se um psicopata é
necessariamente uma pessoa pouco evoluída espiritualmente e
uma vez que tais tendências podem ser genéticas, há uma
correlação entre gene e evolução espiritual?

Isso pode nos levar a uma corrida eugênica para trazer as “almas
mais evoluídas” para a Terra. Ademais, neste tópico, há as
questões da epigenética, que são memórias ancestrais que
carregamos em nossos genes. Se essas memórias podem estar
ligadas a coisas ruins e nos influenciar de várias maneiras, isso
significa que poderíamos compreender a evolução espiritual de
alguém analisando seus genes. Ora, será? No Brasil, por
437

exemplo, era muito comum as famílias terem um discurso contra


a adoção de crianças em função das “memórias espirituais” que
essas crianças carregariam nos genes ou na alma. Quando eu era
mais novo, eu ouvia muito isso. Será que é assim que funciona?
Como vemos, essa ideia de evolução da alma dos indivíduos
caminha em terrenos minados demais.

28.9. Afinal, não existe indivíduos mais evoluídos?


Por fim, não quero dizer que a evolução das pessoas não exista.
Em defesa da Ordem Rosa-Cruz, a própria organização
reconhece que a evolução é mais difícil de ser observada no
reino humano, diferentemente dos reinos animal, vegetal e
mineral. Pessoalmente, até acredito que nossa mente e nossa
consciência melhore. É só olharmos ao nosso redor e vermos
como há seres humanos cuja interior e pensamento ressoam
certa grandeza e outros que não tem nenhum caráter. Mas isso
não necessariamente pode estar vinculado a uma evolução da
alma, mas sim a vários contextos sociais. Ademais, nada parece
ser muito fácil de se resolver e há questões filosóficas no meio
dessa discussão.

Se um país inimigo invade o seu país, por exemplo, o que uma


pessoa evoluída deve fazer? Deve aceitar pacificamente ou ir
para a guerra? Como conciliar a ideia de evolução com dilemas
morais sobre escolher quem devemos salvar: 20 idosos perto da
morte ou uma criança de 5 anos? Qual é a atitude evoluída a
tomar? A meu ver, a ideia de evolução pode nos levar a uma
438

percepção de que a vida tem uma receita de bolo para se resolver


os problemas, o que é uma noção bastante bobinha da vida.

É como se em função do suposto nível evolutivo de nossa alma,


pudéssemos estar acima dos dilemas existenciais a que todas as
pessoas estão submetidas e fôssemos capaz de ter todas as
respostas. Será que as coisas são tão simples assim? Tenho
dúvidas. Se evolução existe, talvez ela tenha menos a ver com a
personalidade alma do que com a escolaridade, o
amadurecimento biológico, o contexto social, as redes de
relacionamento interpessoal etc. Assim, embora eu seja
simpático à ideia de evolução, ainda há muitas perguntas sem
resposta.
439

29. EVOLUÇÃO COLETIVA


Se existe uma evolução individual, certamente a humanidade
como um todo está também evoluindo espiritualmente, uma
opinião defendida pela Ordem Rosa-Cruz. A organização,
contudo, também afirma que diferentes grupos humanos também
seguem este caminho. Assim, famílias, estados, países, religiões
e instituições, todos os grupamentos coletivos estariam
igualmente evoluindo, pois isso é uma lei espiritual. Ora,
considerando todos os problemas relacionados à ideia de uma
individual, será que existe mesmo uma evolução coletiva?

29.1. A história da ideia de evolução


Etimologicamente, a palavra ‘evolução’ tem origem no latim e
significa “ação de percorrer, de desenrolar”. Embora não seja
meu objetivo dar todos os pormenores do uso do termo,
podemos afirmar que foi principalmente por meio da Ciência, a
partir do darwinismo, que a palavra se difundiu pelo vocabulário
ocidental. Para os biólogos, os animais evoluem de acordo com
a interação com seu ambiente. No entanto, neste contexto, a
palavra ‘evolução’ é sinônimo de mutação e mudança.

A questão é que na cultura popular a ideia de que estamos


evoluindo ganhou traços diferentes daquele que fora
originalmente proposto por Darwin como pontuei anteriormente.
Para muitas pessoas, a palavra ‘evoluir’ tem um significado de
uma linha em movimento ascendente rumo a um estado
440

qualitativa e talvez até ontologicamente superior. E essa


distorção do termo também adveio da própria Ciência. Muitos
cientistas usaram a ideia biológica de evolução para aplicá-la em
termos de progresso e superioridade intelectual e moral. Isso
gerou teorias raciais que dividiam as pessoas em raças evoluídas
ou pouco evoluídas e que foram o material intelectual do
racismo do século XIX.

No que se refere à espiritualidade, a ideia de evolução também


parece ter entrado no cenário espiritual do Ocidente a partir
dessas teorias. O fundador do espiritismo, por exemplo, Allan
Kardec, afirmou em alguns de seus textos que os africanos
seriam pouco evoluídos. Ele também disse que foram os
próprios espíritos que lhe passaram essa informação. O
espiritismo foi talvez um dos principais difusores da ideia de
uma evolução da alma. Por hora, não quero fazer um julgamento
dos espíritas, mas não podemos negar o fato de que a ideia de
que Kardec falava com os próprios espíritos talvez não seja real.

A migração da noção de evolução para o mundo da


espiritualidade certamente adveio da tentativa de juntar Religião
e Ciência. Podemos afirmar também que a ideia de que a alma
está evoluindo casa muito bem com a doutrina da reencarnação,
muito comum no Oriente, mas que praticamente desapareceu no
Ocidente durante muito tempo. No entanto, repare o leitor que
nas religiões orientais o objetivo da reencarnação não é evoluir a
alma tal como entendemos nas espiritualidades ocidentais.
441

Linhas de pensamento como os hinduísmos, por exemplo,


acreditam que as várias vidas que temos servem para limpar o
carma ruim das reencarnações anteriores e não necessariamente
para evoluirmos.

Seja como for, sob a nossa ótica ocidental e contemporânea, os


termos ‘evolução’, ‘evoluído’, ‘evoluir’ etc trazem uma
sensação de melhora qualitativa e um caminhar em direção a um
estado superior de coisas. Mas assim como a ideia de evolução
individual tem vários problemas de ordem prática e teórica, a
ideia de evolução aplicada à coletividade também tem seus
obstáculos. Durante muito tempo eu acreditei nesta proposta de
forma acrítica, mas hoje eu consigo enxergar claramente que
talvez as coisas sejam mais complexas do que parecem, como
veremos a seguir.

29.2. Argumentos a favor da evolução


Se olharmos para trás na história humana, vemos que o ser
humano saiu de um estado completamente selvagem para um
mundo onde há muito mais ordem, cooperação entre as pessoas
e paz. Sei que há antropólogos e historiadores que dizem que o
homem primitivo vivia muito melhor que nós hoje em dia. O
próprio Yuval Harari no livro Sapiens (2016) defende este ponto.
Mas embora eu respeite essa visão, ela me parece controversa.
442

No mundo de hoje vencemos as doenças, temos menos fome e


menos guerras e tudo isso graças à cooperação que milhões de
indivíduos que não se conhecem têm entre si. Boa parte disso é
graças à Ciência e à Tecnologia que melhoraram a nossa vida em
muitos aspectos. Claro que ainda há muitos problemas que a
humanidade enfrenta, mas me parece razoável pensar que houve
alguma evolução na espécie humana principalmente em termos
de conhecimento.

No campo das leis e costumes temos vários exemplos de coisas


que hoje são melhores do que antes. Antigamente, a pena por um
crime transcendia a pessoa do criminoso. Assim, se alguém
cometia um crime de estupro, a família da vítima poderia
estuprar a filha do estuprador, por exemplo. Condenava-se uma
pessoa que nada tinha a ver com o crime. Felizmente, essa
prática acabou. A pena de morte é outro exemplo disso. Sei que
há ainda hoje muitos partidários dela, mas na prática, onde quer
que ela tenha existido, serviu mais para matar pobres e para
governos perseguir opositores e pessoas diferentes do que para
fazer uma justiça propriamente dita. Além disso, os amigos dos
mais fortes nunca eram condenados pelos seus crimes atrozes.

No âmbito dos direitos individuais, os direitos civis dados a


mulheres, negros, minorias sexuais e de gênero são
frequentemente entendidos como uma evolução em relação a
uma condição negativa anterior. Não podemos deixar de lembrar
também de outras conquistas civilizacionais. A Carta Magna da
443

Inglaterra colocou a todos, inclusive o Rei, sob a guarda da lei.


O direito de propriedade protegeu os mais pobres. A liberdade
de expressão permitiu que todos criticassem as ações de
governos e fizesse a sociedade melhorar. O Estado laico passou
a respeitar todas as religiões, entre outros. Assim, muita coisa no
Direito nos leva a um entendimento de que há muitas coisas que
mudaram para melhor na história humana.

No campo moral, ainda que seja um tema controverso, também


podemos nos indagar se não houve certa evolução. Coisas que
antigamente achávamos normais como marido bater em mulher,
espancamento e marginalização social e espiritual de
homossexuais, professor bater em criança, caçar baleias,
submissão ao poder do Rei, violência gratuita nos filmes etc,
hoje em dia não são tão bem vistas. Sobre este tema, podemos
afirmar com algum grau de certeza que há melhoras em muitos
aspectos na sociedade. Mas será que tudo isso é necessariamente
melhor ou sinônimo de uma evolução?

29.3. Argumentos contra a evolução

Ora, se a vida das sociedades hoje teve uma melhora qualitativa


geral, como pode alguém criticar o conceito de evolução? Uma
das principais críticas a essa ideia provém da corrente filosófica
chamada de ‘relativismo’. Para esta corrente, as coisas não são
necessariamente melhores ou piores, mas apenas diferentes.
444

Como argumentos para defender este ponto, alguns dizem que se


por um lado o mundo é melhor hoje em alguns aspectos, por
outro, ele é pior em outros.

Assim, se hoje vivemos em conforto em nossas cidades, também


vivemos em meio ao caos e à poluição. Se hoje há mais
disponibilidade de alimentos, por outro lado, esses alimentos
não são igualmente distribuídos entre toda a população mundial.
Se hoje o Direito avançou em muitas áreas, por outro, novas leis
criaram novos problemas. Se hoje temos conforto em nossas
casas, também há menos vida selvagem.

Neste campo especificamente muitas pessoas citam várias


situações que são tidas como evolução, mas que têm efeitos
controversos. Vamos imaginar um exemplo concreto que muita
gente cita na sociedade brasileira: o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Muitos dizem que ele protegeu as crianças. Outros
dizem que ele passou a proteger bandidos de quatorze anos.
Afinal, este Estatuto foi uma evolução ou uma involução?
Ademais, a meia entrada para estudantes foi uma evolução
humanista ou desequilibrou o mercado? O conceito de nação
uniu as pessoas ou gerou o nacionalismo belicoso?

No campo tecnológico, igualmente, muita gente vai dizer que os


avanços nessa área trouxeram benefícios, mas também outros
malefícios. Entre eles estão o isolamento das pessoas que cada
445

vez mais ficam imersas no celular em invés de conversarem


entre si. Também as pessoas gastam menos energia física do que
antigamente, trazendo diversos problemas de saúde.

Dessa forma, as críticas em torno do conceito de evolução se


baseiam na ideia de que necessariamente as coisas caminham
para frente, sempre melhorando. Na verdade, haveria perdas e
ganhos em todos os processos sociais. É muito comum, por
exemplo, as pessoas pensarem que os cidadãos da Dinamarca
são mais evoluídos do que os da Somália. Mas neste país
africano as pessoas não deixam idosos morrerem sozinhos como
ocorre em países europeus. Igualmente já vi entrevistas de
mulheres sauditas que disseram ter pena das ocidentais porque
estas têm que trabalhar. Assim, o que é mais evoluído? Mulher
trabalhar e deixar os filhos sendo criados por outras pessoas ou
mulheres não trabalharem e poderem se dedicar integralmente
ao lar, mas dependendo inteiramente do marido? Como vemos, o
relativismo tem certo apelo.

Nessa discussão sobre a evolução coletiva e o relativismo,


voltamos às discussões elencadas no capítulo anterior sobre
legalização das drogas, aborto, eutanásia, do porte de armas,
entre outros. Países que criminalizam essas coisas
necessariamente são menos evoluídos, ao passo que aqueles que
as legalizam são mais evoluídos? Os mesmos Estados Unidos
que legalizam as drogas em alguns de seus estados financiam
guerras em outros lugares. Muitos países ao redor do mundo que
446

são contrários à legalização das drogas e do aborto vivem em


miséria, sugerindo pouca evolução espiritual. Aliás,
desenvolvimento econômico está ligado à evolução espiritual
coletiva? Como vemos, mesmo que neguemos o relativismo e
admitamos que exista sim uma evolução na humanidade,
esbarramos com questões que podem ser bem difíceis de
resolver.

Há vários desafios que a vida em sociedade coloca que não dá


para saber tão claramente qual cultura, povo, país ou outra
coletividade é mais evoluída ou não. No entanto, o que quero
chamar a atenção aqui é que se admitirmos que certas ideias
representam uma determinada evolução de almas individuais ou
de uma alma coletiva, necessariamente temos que admitir que
algumas sociedades seriam mais evoluídas do que as outras. Isso
tem milhares de implicações, algumas até de natureza
geopolítica.

29.4. Os perigos da ideia de evolução


Apesar de ser aparentemente inofensiva, a ideia de evolução da
humanidade traz alguns perigos que muitos ignoram. Isso
porque esta crença pode nos levar à ilusão de que nunca haverá
retrocessos ou volta para trás porque os seres humanos já
atingiram um estado superior do qual não há volta. Mas será
mesmo que as coisas funcionam assim?
447

Antes de Hitler ascender ao poder, a República de Weimar era


um lugar com imensa liberdade. Havia democracia e respeito às
instituições. Pouco a pouco, os nazistas foram corroendo as
instituições alemãs e no espaço de uma década eles tomaram o
poder fizeram aquilo tudo. Igualmente, desde a queda da União
Soviética, o Leste Europeu parecia caminhar para um mundo
liberal e democrático com respeito à liberdade de imprensa e à
independência dos poderes. Hoje vemos líderes cada vez mais
autoritários em alguns desses países. A Turquia parecia ser um
exemplo de país islâmico iluminista e hoje seus líderes estão
cada vez mais autoritários e acabando com a laicidade. Assim,
será que efetivamente não há retrocesso?

O conceito de evolução traz consigo o perigo de acharmos que


certas liberdades fundamentais estão garantidas, pois a
humanidade “evoluiu” e nada é mais falso do que este
pensamento. Na verdade, o preço da liberdade é a eterna
vigilância, pois as “forças do mal” sempre estão à espreita.
Como nos dizia o velho militante comunista alemão, Brecht, “a
cadela do fascismo está sempre no cio”. Pensar que existe um
eterno caminhar para frente num sentido sempre melhor pode
nos tornar entorpecidos aos perigos de retrocessos reais em
vários setores da sociedade.

Outro perigo da ideia de evolução é que quase sempre quem


acredita nela, pensa que a evolução se dá por geração
espontânea. Quando uma pessoa fala alguma besteira, os
448

indivíduos que se supõem mais evoluídos tendem a olhar a


situação e não fazer nada. Eles se resignam dizendo que “um dia
essa pessoa vai evoluir”. Eles partem do falso pressuposto de
que uma suposta tomada de consciência vai acontecer
magicamente porque a evolução é uma lei espiritual. Ora, os
diferentes movimentos que sociedades podem tomar rumo a
certo autoritarismo e recrudescimento da violência e dos
preconceitos mostra que essa ideia pode não ser tão verdadeira
assim.

Com o tempo, eu passei a perceber como as pessoas que creem


em um processo evolutivo de transformação das consciências
podem ser absurdamente condescendentes com o mal no mundo.
Isso porque diante de uma situação injusta ou de perigo,
geralmente elas usam o argumento de que “isso talvez seja
necessário para que evoluamos”. Este tipo de pensamento levava
os rosa-cruzes que eu conheci a uma enorme passividade perante
o mundo. Enquanto as Comunidades Eclesiais de Base da Igreja
Católica estavam construindo pensamento crítico na massa da
população na década de 1980, os rosa-cruzes adotavam uma
postura de laissez faire, laissez passez, le monde va a lui meme.
A partir dessa tomada de consciência, eu passei a olhar de forma
bastante crítica o rosacrucianismo e todas essas linhas de
pensamento que defendiam uma evolução da humanidade.

29.5. A evolução e a ideia de ciclos: Uma contradição


449

Dentro do mundo místico é muito comum a noção de que as


coisas se movem por meio de ciclos. A ideia subjacente aí é uma
noção de tempo baseada no círculo. Isso significa que a
humanidade começa lá de baixo e depois vai ascendendo rumo
ao ponto mais alto. A partir daí começa um movimento
descendente até o retorno ao ponto mais baixo e assim
sucessivamente. Essa ideia é presente em muitas espiritualidades
e linhas de pensamento.

Os gregos diziam que existem Eras no mundo e na humanidade,


chamados de Aeons, e acreditavam em quatro grandes ciclos: a
Era do ouro, onde a humanidade alcança grandes realizações e
evolução espiritual, a era da prata, do bronze e finalmente a do
ferro, onde as pessoas mergulham em caos, ignorância e
escuridão. O pensamento védico também sugere isso ao afirmar
que estamos atravessando Eras como o Satia Yuga, Treta
Yuga, Duapara Yuga e o Kali Yuga. Esta última seria a nossa
era atual, também um período de trevas e ignorância. A
Astrologia tamben traz ideias análogas com as noções de Era de
Aquário, Era de Peixes etc.

Note-se que estes ciclos pelos quais a humanidade passa


englobariam muitos anos, de modo que nenhuma pessoa
individualmente seria capaz de ver a diferença entre eles. Para
os hindus, o Kali Yuga teria uma duração de 431.000 anos, ao
passo que o Treta Iuga teria durado 1.296.000 anos. Na
Astrologia, cada Era dura 2.160 anos. Até onde estudei, os
450

gregos não chegaram a determinar com precisão a duração


destes ciclos, mas havia um entendimento de que eles existiam.

Embora o rosacrucianismo não necessariamente divida a


humanidade dessa maneira cíclica, nessa cultura espiritual, tal
ideia encontra algum eco, como observei em inúmeras palestras
nas Lojas Rosa-Cruzes. Mas para além disso, a Ordem Rosa-
Cruz crê que a reencarnação se dá num ciclo de 144 anos, bem
como muitas coisas ocorrem a partir de um ciclo de 7 anos. O
fim da Atlântida, por exemplo, seria o fechamento de um ciclo
na humanidade. A Ordem Rosa-Cruz, ela própria se fecharia e se
abriria para o público a partir de um ciclo de 108 anos.

Repare o leitor como a noção de ciclos se baseia no pensamento


matriz de que o universo foi feito por um geômetra que “rege” o
mundo por meio de leis que podem ser observadas e estudadas
através de matemática, no caso, o movimento do círculo. Seja
como for, o que sempre me chamou a atenção nessa crença
esotérica de ciclos é que se o leitor reparar com atenção, ela
parece ser bastante oposta à noção de uma evolução. Isso porque
na evolução estamos rumando numa linha ascendente, ao passo
que a ideia de ciclos implica que em algum momento vamos
descer. Vejamos isso mais de perto e com mais detalhes.

Inicialmente, cabe trazer a discussão do período de trevas que


estaríamos vivendo, segundo os hindus. o chamado Kali Yuga.
451

Será que isso procede? Ora, hoje em dia somos oito bilhões de
sapiens que vivem em relativa paz em seus países. Conseguimos
alimentar muito mais gente do que a humanidade jamais
conseguiu. Vencemos inúmeras doenças que sempre
acometeram o homem como a varíola, a raiva, a rubéola etc.
Temos muito conforto em nossas casas. Reduzimos a
mortalidade infantil, há liberdade sexual e de afeto, liberdade de
pensamento e de expressão. A internet conecta bilhões de seres
humanos ao redor do mundo. As nações não entram em guerra
entre si há tempos, pois ela se tornou cara e pouco lucrativa.
Será mesmo que estamos num período tão ruim assim?

Mas vamos supor que tudo o que vivemos atualmente na


humanidade é ruim e estamos rumando ao que os gregos
chamavam de Era de Ouro e os hindus chamam de Satya Yuga,
um período em que haverá paz, prosperidade e Verdade. Ora, se
existem ciclos, é porque em algum momento no passado nós já
vivemos Eras de igual iluminação. Ok, mas quando,
exatamente? A Atlântida? Difícil afirmar. De acordo com o
pensamento hindu, o último ciclo teve mais de um milhão de
anos. Ora, nesse período a humanidade era composta
basicamente de alguns poucos hominídeos e animais pré-
históricos.

Se nós tentarmos relacionar o que o pensamento védico afirma


sobre os grandes ciclos humanos com o que a Biologia
descobriu sobre a história da nossa espécie, vemos que as coisas
452

simplesmente não se encaixam em termos temporais. Ademais,


desde o surgimento do homo sapiens na Terra, a humanidade
sempre teve guerras, disputas por alimentos, conflitos políticos,
destruição da natureza etc. Quando foi exatamente este ciclo de
paz, de evolução e iluminação que a Humanidade teve no
passado? Eles não deixaram nenhuma prova arqueológica? Na
historiografia desconheço esse grande período de elevada
espiritualidade. Mesmo no Egito Antigo o mundo não era tão
harmônico como algumas monografias rosa-cruzes podem
sugerir.

A questão é que sob um ponto de vista puramente racional, se


nós seguirmos a ideia de ciclos, vamos ver que a proposta de
uma evolução é sempre uma miragem. Isso porque seja qual for
o rumo que tomamos para evoluir, de acordo com uma
perspectiva circular de tempo, sempre vamos cair e voltar ao
ponto inicial. Para resolver este imbróglio que certamente
muitos místicos do passado repararam, o rosacrucianismo sugere
uma noção de tempo em forma de espiral. Isso significa que a
evolução se daria não por uma linha ascendente, mas por meio
de círculos que vão se expandindo cada vez mais.

Ainda que este possa ser um caminho válido, a sensação que


fica é que por mais que caminhemos rumo a uma evolução,
sempre vamos indo pra algum ponto embaixo do círculo e
sempre vamos ter que conviver com algum retrocesso. Não
importa o quanto nos esforcemos para evoluir. Se existem ciclos,
453

em algum momento vamos cair para o ponto de retorno, ainda


que num círculo maior que o anterior.

Eu não sei o que o leitor acha de tudo isso, mas essas ideias
sempre me pareceram meio esquisitas. Isso, contudo, não quer
dizer que não existam ciclos. Claro que eles existem! Num olhar
sociológico e histórico das sociedades, parece ser possível haver
algum movimento circular nas coisas. Em várias partes do globo
vemos ciclos ditatoriais se alternando com ciclos de liberdade,
ciclos de liberdade sexual com ciclos de repressão, ciclo de
florescer das artes com ciclos de repressão aos artistas. Há até
ciclos econômicos muito bem marcados na história do Brasil.

Também podemos citar a diferença entre o mundo islâmico e


cristão. Na Idade Média, os islamismos eram a fonte de um
conhecimento de onde emanava toda a inventividade e as
descobertas científicas, enquanto o mundo europeu era ignorante
e fundamentalista. Hoje a balança parece ter se invertido e o
mundo ocidental é de onde vem o conhecimento, ao passo que o
mundo islâmico patina em fundamentalismo religioso. Em
função disso, não nego a possibilidade da existência de ciclos.
Eu só acho difícil conciliá-los com a ideia geral de que rumamos
para uma evolução.

29.6. O racismo filosófico do misticismo – um assunto tabu


454

Para encerrarmos essas críticas sobre a ideia de uma evolução


coletiva, gostaria de fazer uma discussão difícil, mas necessária.
Para falarmos em evolução da humanidade, necessariamente
devemos nos voltar para a evolução biológica dos seres
humanos. Do ponto de vista rosa-cruz, admite-se que as teorias
darwinistas de que os seres humanos vieram evoluindo a partir
de um ancestral comum com os macacos são essencialmente
corretas. No entanto, enquanto os biólogos afirmam que esta
evolução ocorreu em nosso cérebro e em nossos corpos por meio
da interação com o nosso meio ambiente, a Ordem Rosa-Cruz dá
uma outra interpretação a este fenômeno.

Para o rosacrucianismo, a evolução biológica da nossa espécie


ocorreu em decorrência da evolução de nossa personalidade
alma. Em outras palavras, não foi o nosso corpo que
transformou a nossa alma, mas a evolução de nossas almas que
fez evoluir o nosso corpo. Naturalmente, trata-se de uma
proposta de pensamento sem comprovação, mas há outras coisas
aí. Isso porque a tradição esotérica ocidental afirma que a
Inteligência Cósmica criou inicialmente quatro raças humanas –
a branca, a vermelha, a amarela e a negra. Cada uma delas teria
seguido um desenvolvimento e uma evolução que lhe foi
própria.

Estas duas informações, contudo, são essencialmente


contraditórias. Afinal, nossa espécie veio evoluindo ou o
Cósmico criou quatro raças por meio de um fiat lux? Mas
455

ignoremos este dilema e foquemos nas implicações filosóficas


que este pensamento tem. Se nós caminharmos nessa

seara, cedo ou tarde esbarramos naquilo que chamo de ‘racismo


filosófico’ das crenças esotéricas. Embora isso seja um assunto
tabu, penso que devemos enfrentá-lo. Antes de continuarmos,
contudo, gostaria de deixar registrado que hoje em dia a Ciência
não tem certeza sobre a ideia de raças humanas tal qual existem
raças de cachorros. Isso posto, sigamos no esoterismo.

Ora, se evolução coletiva existe, será que ela pode ser atrelada
ao desenvolvimento científico e tecnológico de um grupo? Se
sim, isso traz alguns constrangimentos. Isso porque nos últimos
séculos foram majoritariamente os brancos que trouxeram
inúmeras contribuições científicas para a humanidade. Isso vai
desde o cinema até os remédios, da televisão às espaçonaves.
Logo, eles seriam mais evoluídos? Muitos místicos, cientistas e
religiosos acreditaram e talvez ainda hoje acreditem que sim.
Hoje em dia, contudo, este pensamento é amplamente
rechaçado.

Primeiramente, se associarmos que evolução espiritual de um


grupo está vinculada ao desenvolvimento científico e
tecnológico, é preciso pontuar que nem sempre os povos brancos
da Europa estiveram na crista da onda deste desenvolvimento.
Na historiografia sobre a Ciência se costuma relativizar esse
456

pioneirismo branco mostrando que antes dos europeus, indianos,


chineses e árabes já estiveram na frente. Ademais, os europeus
só construíram muitas graças à contribuição de outras culturas
em diversos campos do conhecimento.

No entanto, ainda que isso tenha algum grau de verdade, quem


inventou as melhores coisas da nossa civilização nos últimos
séculos foram os brancos e a cultura que se desenvolveu na
Europa a partir da Revolução Científica. O relativismo não pode
negar este fato. Ademais, embora hoje em dia isso seja
relativizado, durante muito tempo, países de maioria branca da
América do Norte e da Europa foram lugares com melhor
qualidade de vida comparativamente ao resto da humanidade.
Logo, os brancos seriam os mais evoluídos do momento?

Para se contrapor a esta percepção que naturalmente temos


quando olhamos o mundo pelas lentes da evolução espiritual dos
grupos, é preciso lembrar que muito dessa qualidade de vida de
algumas regiões do globo pode ter sido o resultado da
expropriação e exploração de outros povos. Logo, como pessoas
que exploram as outras podem ser mais evoluídas? Ademais, no
contato dos brancos europeus com os vermelhos das Américas,
por exemplo, os primeiros quase dizimaram estes segundos
graças aos seus avanços tecnológicos. E daí fica a pergunta de
quem é mais evoluído - aqueles que desenvolveram uma
Tecnologia mais poderosa (e por isso mataram os outros, como
os brancos) ou aqueles que não desenvolveram uma tecnologia
457

bélica letífera, mas foram praticamente exterminados, como os


índios de pele vermelha?

Para resolver este problema, a gente pode tentar desassociar uma


alegada evolução espiritual coletiva ao desenvolvimento
científico e tecnológico. Ademais, a historiografia e sociologia
apontam que os avanços em Ciência e Tecnologia de povos está
atrelado a contextos políticos, econômicos, geográficos e até
mesmo ao acaso. Nesse sentido, é difícil afirmar que essas
coisas se associam a uma evolução espiritual. Nessa discussão,
podemos até voltar à ideia de uma Inteligência Cósmica
conduzindo a ordem do mundo. Se isso existe, o
desenvolvimento tecnológico europeu que exterminou os povos
indígenas foi conduzido pelo próprio Cósmico.

A questão é que se admitirmos que descobertas científicas e


invenções tecnológicas não estão associadas à evolução
espiritual do povo que os produziu, quais são os critérios para se
aferir a evolução de um povo? A qualidade de vida? O problema
é que a qualidade de vida de um país está muito intimamente
associada ao desenvolvimento de sua Ciência e de sua
Tecnologia.

Do ponto de vista exclusivo da Ordem Rosa-Cruz, lembro-me de


certa vez, em uma monografia, encontrar a ideia de que os
missionários cristãos foram para as tribos indígenas das
458

Américas para fazer evoluir aquelas pessoas. Ora, dizer isso


dessa forma é ignorar toda a violência que foi este processo de
colonização europeia do continente americano. O problema é
que quando se tenta

enxergar movimentos históricos com as lentes da


espiritualidade, tudo cabe. Novamente aí entra o debate sobre
quem escreve aquelas monografias e sob qual ótica - a do
europeu ou a do indígena. Mas a coisa ainda vai além.

Certa vez, um líder da minha Ordem Rosa-Cruz escreveu um


texto comentando que a África estava se “libertando” de certas
crenças primitivas e atrasadas, mas que infelizmente ele tem
visto que os africanos continuam em práticas de pouca evolução
espiritual. Ele dava a entender que práticas de magia negra e
feitiçaria, algo alegadamente tradicional das religiões africanas,
refletiriam uma pouca evolução espiritual. Embora eu entenda
os argumentos, tenho dificuldade em acreditar nisso. Até que
ponto a conversão para os cristianismos, religiões que são
machistas, patriarcais, misóginas, fundamentalistas,
homofóbicas etc faz necessariamente os seus fiéis
espiritualmente mais evoluídos do que pessoas que praticam
religiões xamânicas? Até que ponto fazer magia negra para
matar alguém é necessariamente sinal de menos evolução do que
a pessoa que pede a Deus para destruir seus inimigos? Não sei.
459

Esses fatos já podem nos fazer relativizar a ideia de uma


evolução espiritual coletiva da humanidade ou de grupos. No
entanto, deixando estes debates historiográficos de lado,
voltemo-nos para a realidade contemporânea ao nosso redor.
Quando olhamos para a humanidade hoje, vemos há países
ditatoriais, patriarcais, machistas, homofóbicos, com pouca
institucionalização, extremamente corruptos, com pouca
liberdade e autoritários. Pouquíssimas pessoas querem morar
nesses lugares. Isso não significa dizer que todas as pessoas que
moram nesses países defendam esses valores, mas é inegável
que muitas dessas ideias fazem parte de uma cultura majoritária.

Por outro lado, há países que respeitam os Direitos Humanos,


são democracias sólidas, possuem direitos básicos, liberdades
fundamentais e em função disso são capazes de atrair muitos
imigrantes. Será que há culturas e países mais ou menos
evoluídos? Será que realmente não há uma hierarquia entre os
seres humanos no que se refere a uma evolução? Quando
operamos com esta ideia, necessariamente temos que nos
defrontar com esse problema. E ele não é irrisório.

Pessoalmente, eu tendo a crer que certos países, povos e culturas


são melhores do que outros. Isso não significa dizer que todas as
pessoas de certos países sejam necessariamente evoluídas. Na
Dinamarca há muitas pessoas que cometem suicídio, que
abusam de drogas e álcool, depressivas e que praticam violência
doméstica. Na Somália certamente há muitas pessoas do bem.
460

Mas a gente não pode negar que institucionalmente, a


Dinamarca é um país melhor de se viver do que a Somália. Ao
menos do meu ponto de vista. Negar isso é pura demagogia e
relativismo estéril.

O problema é que a gente associar isso a uma evolução


espiritual de um povo desconsidera completamente as trajetórias
históricas e as condições geográficas que influenciam bastante
as condições sobre as quais as sociedades se constroem. Não me
pretendo me estender muito nesse assunto porque ele traz
inúmeras discussões correlatas e acaloradas.

Apenas quero chamar a atenção para o fato de que ideia de uma


evolução espiritual coletiva no leva facilmente a concluirmos
que as pessoas de países que chamamos de subdesenvolvidos
são espiritualmente pouco evoluídas. Assim, por mais que haja
uma evolução da humanidade, é impossível ignorarmos todos os
embates filosóficos por detrás dessa ideia. Ao contrário do que
ele afirma, o Misticismo não é um sistema de pensamento neutro
ou apolítico. Neutro é só xampu de bebê.

Por fim, gostaria de terminar essa discussão pontuando como


essa ideia de quatro raças básicas humanas é meio boba. Ora, se
existem brancos, vermelhos, negros e amarelos, onde entram os
árabes, os indianos e todo o caleidoscópio de etnias na Ásia e na
África? No final das contas, tanto essa ideia de raças quanto a
461

proposta anterior de que existem ciclos na humanidade parecem


ter sido desenvolvidas em uma época em que a Ciência conhecia
muito pouco sobre o passado humano e a complexidade de nossa
biologia. A questão é que muitas Ordens místicas e iniciáticas
vendem ideias francamente datadas como se fossem um grande
segredo ancestral que elas preservaram e que se trata de uma
Verdade absoluta. Mas essas ideias talvez sejam apenas isso
mesmo: ancestrais, serôdias e ultrapassadas.
462

PARTE IV

OUTROS CONCEITOS
ESOTÉRICOS E MÍSTICOS

30. CRÍTICAS SOBRE A CABALA


Depois de termos discutindo as características da Ordem Rosa-
Cruz e a visão desta sobre o universo e o ser humano, nesta
última parte falaremos sobre conceitos rosa-cruzes mais globais
e que se relacionam ao universo místico de forma geral.
Iniciaremos essa discussão falando sobre uma linha de
pensamento distinta do rosacrucianismo, mas que ao mesmo
tempo lhe é correlata: a Cabala.
463

Também conhecida como misticismo judaico, a Cabala é um


assunto onipresente no esoterismo. A Ordem que eu fiz parte
fala frequentemente deste tema em suas monografias e o próprio
templo rosa-cruz parece seguir princípios cabalísticos. Outras
organizações também falam dela amiúde. Muitos estudantes de
esoterismo até pensam que a Cabala é uma espécie de
conhecimento mágico e sagrado e que, ao acessá-lo, tornar-se-
iam especiais, evoluídos e poderosos.

Apesar de respeitar a presença da Cabala no misticismo, sempre


que eu ouvia histórias sobre os maravilhosos poderes deste tipo
de conhecimento eu me colocava numa posição de desconfiança
saudável. Ao escutar certas coisas, eu imediatamente me
questionava: “Se a Cabala é o conhecimento ‘mágico e secreto’
dos judeus, por que seis milhões deles foram exterminados por
Hitler e milhares deles foram tão perseguidos ao longo da
História?”.

Não é meu objetivo, contudo, desmerecer o pensamento


cabalístico, pois não o conheço profundamente. No entanto,
sempre tive alguns questionamentos muito profundos com
relação à Cabala e gostaria de compartilhá-los com os leitores.
Será essa ciência tem algum fundamento? Será que seus poderes
são válidos? Para que eles servem, aliás? Vamos ver um pouco
dessas questões a seguir.
464

30.1. O que estuda a Cabala?


De forma bem resumida, a Cabala estuda o simbolismo das
passagens do Antigo Testamento, das letras e das palavras em
hebraico e possui certos livros canônicos como o Zohar e o
Sepher Yetzirah. Este misticismo judaico resulta na construção
de uma cosmovisão específica que busca compreender as
correlações que existem entre o mundo material e o mundo
espiritual. Tal conhecimento foi elaborado ao longo dos séculos
por rabinos, especialistas na Torá e místicos de toda sorte.

Talvez um dos principais e mais famosos conceitos metafísicos


cabalísticos seja a chamada Árvore da Vida. Trata-se de um
símbolo que afirma demonstrar como funciona o plano da
Criação, incluindo aí o mundo material e espiritual. Essa árvore
teria dez sephirot, que seriam dez planos de consciência. A
saber, são: Kether (A Coroa), Chokmah (Sabedoria, Binah
(Entendimento), Chesed (Misericórdia), Geburah (Julgamento),
Tipheret (Beleza), Netzach (Vitória), Hod (Esplendor), Yesod
(Fundamento), Malkut (Reino), Daat (Conhecimento).

Uma vez que se trata de um sistema de pensamento cuja fonte é


o hebraico, qualquer um que estude Cabala tem que lidar com
esse idioma. Além de decorar esses nomes muitas vezes
esquisitos, os estudantes de Cabala ainda são convidados a
refletir sobre as letras hebraicas porque elas guardariam um
significado com algum poder inerente capaz de despertar uma
465

potencialidade latente em nós. Ao decifrar esse significado, o


estudante avançaria na sua evolução espiritual.

Do meu ponto de vista, confesso que sempre que eu tinha


contato com qualquer coisa relacionada ao universo cabalístico,
eu achava aquilo tudo difícil e etéreo demais. Eu ficava olhando
para aquelas letras hebraicas e aqueles significados “ocultos” e
dizia “Tá? E daí? Como isso afeta a minha vida?”. Aquilo
sempre me pareceu muito abstrato e sem nenhum tipo de lastro
com a vida prática de pessoas que trabalham o dia inteiro. Eu até
me esforçava para ver valor na Cabala, mas se nunca ninguém
provou a existência do plano espiritual, como é que alguém é
capaz de dizer quais seriam as características dele? Talvez eu
não fosse evoluído o suficiente. Mas havia ainda outras coisas
que me inquietavam nesse assunto.

Diz a tradição que a Cabala seria uma espécie de conhecimento


da Verdade dada pelo próprio Deus. Estas informações teriam
sido extraídas por meio da harmonização mental com os planos
superiores de consciência. O problema é que há milhares de
espiritualidades no mundo que dizem coisas diferentes sobre o
mundo espiritual. Logo, os cabalistas foram os únicos que se
harmonizaram com os verdadeiros planos divinos, ao passo que
outras espiritualidades se harmonizaram com planos falsos?
Então uma espiritualidade é superior à outra? Pode isso?
Sutilmente retornamos aqui à ideia de uma superioridade de
grupos humanos.
466

Outra coisa que eu sempre achei estranho quando eu era rosa-


cruz era o modo como místicos e esotéricos em geral lidavam
com este tema. Lembro-me de uma vez em que a minha Ordem
Rosa-Cruz participou da Bienal de Livros da minha cidade. Eu
fui para este evento com um grupo de irmãos rosa-cruzes para
prestigiar o estande da organização. Ao chegar lá, um irmão viu
exposto ao público um livro da Ordem e que era sobre Cabala.
Ele ficou absolutamente indignado quando viu aquele livro
“secreto” e com um conhecimento “tão profundo” sendo
vendido ali para qualquer um e ao alcance de “profanos”.

Eu confesso que não entendi por que pessoas comuns não


podiam ter acesso àquele conhecimento, mas resolvi não
perguntar. Assim, a relação que rosa-cruzes e outros místicos
têm com a Cabala muitas vezes é uma espécie de reverência
quase próxima do fanatismo religioso, embora sempre
contraposto com certa racionalidade devido ao fato de que o
Misticismo demanda alguma leitura e reflexão. Mas ainda assim,
era muita coisa fantástica e imaginativa que se dizia acerca desta
linha de pensamento e aí entramos no segundo tópico.

30.2. Quem fala pela Cabala e quem pode estudá-la?


Qualquer um que se ponha a estudar um pouco mais
profundamente o conhecimento cabalístico verá que se trata de
um terreno muito movediço. Isso porque há várias escolas que o
467

ensinam, com cada uma delas dizendo coisas diferentes entre si.
Há aquelas que provém dos rabinos ortodoxos, escolas mais
ocidentalizadas como o Kaballah Center e há dezenas de Ordens
Iniciáticas falando sobre Cabala. Assim como toda religião, qual
seria a instituição que teria a Cabala “verdadeira”? Este
conhecimento, portanto, sofre do mesmo problema que todo
pensamento esotérico tem: a falta de instituições de legitimidade
e autoridade.

Naturalmente, quando eu era rosa-cruz, a verdadeira Cabala


estava na Ordem da qual eu era membro. Em função disso, segui
nos estudos que o rosacrucianismo me proporcionava acerca
deste tema, confiando na minha organização. No entanto, no
meio esotérico, eu ouvia muitos judeus dizerem que a verdadeira
Cabala estava apenas no seio do judaísmo, com rabinos. Alguns
até diziam que não judeus não teriam a capacidade de apreender
corretamente seus ensinamentos por não dominarem o hebraico.

Neste âmbito, este verdadeiro espírito cabalístico só poderia ser


penetrado por homens, rabinos com mais de quarenta anos e
casados. Isso significa que mulheres, membros das minorias
afetivossexuais ou pessoas solteiras não teriam a capacidade
espiritual, emocional ou moral para estudar e compreender a
Cabala. Outros judeus, contudo discordavam deste pensamento e
achavam que qualquer um poderia estudá-la.
468

Já entre estudantes de Cabala não judeus, eu ouvia alguns deles


dizendo que certas escolas cabalísticas tinham comercializado
demais estes ensinamentos e eles haviam perdido toda a mística.
Outrossim encontrei indivíduos dizendo que as Ordens
Iniciáticas ensinavam uma Cabala descaracterizada de sua fonte.
Havia até quem dissesse que o estudo desta ciência poderia
deixar as pessoas loucas, tamanha “iluminação” que elas
recebem. Outros diziam que a Cabala dava poderes especiais.
Outros falavam que na verdade a proposta da Cabala era outra e
nada tinha a ver com poderes. Era tipo uma escola de
aperfeiçoamento.

Era tanta gente dizendo tanta coisa sobre o tema que eu tinha
uma sensação meio blasé sempre que ouvia a palavra ‘Cabala’.
O mais engraçado é ver sistemas de pensamento como o
rosacrucianismo render tanta homenagem a uma coisa que nem
os judeus sabem exatamente como lidar. Confesso que como eu
não sou judeu e nem tinha domínio sobre o assunto, ao ouvir
essas discussões, eu ficava meio confuso e perdido. Não se
tratava de um conhecimento puro e neutro. Havia muita
discussão política e teológica em volta dele.

30.3. A relação da Cabala com o judaísmo


De todos os estranhamentos que eu tinha com a Cabala, a
relação desta com a religião judaica sempre foi aquela que me
469

causou mais questionamentos. Isso porque os místicos


pressupõem que os ensinamentos cabalísticos seriam próximo da
Verdade Divina e seriam muito poderoso, a ponto de provocar
uma expansão na mente daquele que o segue. Eu ouvia isso e
lembrava que este conhecimento havia sido elaborado
inicialmente por rabinos judeus e isso sempre me trouxe algum
ruído. Embora este seja um assunto difícil, vou abordá-lo de
maneira franca.

Ainda que eu tenha enorme respeito pelos judeus e pela cultura


judaica, sob o meu ponto de vista, muitos rabinos do judaísmo
ortodoxo não são exatamente conhecidos por serem pessoas
legais. Dentro do universo de correntes que é o judaísmo, há
pessoas que sequer permitem a imagem de mulheres em livros
didáticos infantis porque a mulher seria fonte de tentação para o
homem. Há também grupos judaicos que não interagem com
pessoas de fora (não judeus), criando uma espécie de universo
paralelo dentro das sociedades.

Há judeus ortodoxos que acham que só os judeus têm direito a


ocupar a região de Israel porque aquela terra seria uma espécie
de propriedade de seu povo. Há rabinos que lançam anátemas
sobre as minorias sexuais e um tempo atrás um rabino tentou
matar um casal de mulheres na Parada LGBT de Jerusalém
(DW, 2016). Isso sem contar o fato de que o Deus da Torá é um
Deus exclusivo do povo judeu. Como fica o resto da
humanidade?
470

Reforço que tais posturas não representam o judaísmo em sua


totalidade porque sequer existe “judaísmo”. O que existe são
judaísmos, no plural. Assim como qualquer outra religião, os
judaísmos são um espectro que possui os extremos e o centro.
Mas se tais posturas fundamentalistas não representam o
pensamento judaico em sua totalidade, também não podemos
negar que essas posturas representam uma parte desta religião. E
elas me parecem bem obscurantistas. Em outras palavras, fala-se
tanto do fundamentalismo cristão e islâmico, mas o
fundamentalismo judaico também existe.

Em função dessas coisas, eu sempre me perguntei como um


conhecimento “verdadeiro e de grande iluminação” pode ter se
originado em uma religião que tem ideias que, a meu ver podem
ser tão obtusas, como a ortodoxia judaica? Por que que Deus
escolheu dar um conhecimento tão especial para uma religião
que até hoje segrega homens e mulheres em sua versão mais
ortodoxa, uma ideia com a qual eu não concordo? Talvez eu
esteja errado em minhas reflexões, mas expus de forma sincera o
que tinha em meu coração.

30.4. Qual é a diferença entre Rosa-Cruz e Cabala?


No que se refere às relações entre Cabala e Rosacrucianismo,
este último sempre rendeu muita homenagem à Cabala e durante
471

muito tempo isso criou alguma confusão na minha cabeça. Isso


porque havia algumas coisas contraditórias e que eu
simplesmente não conseguia compreender. A Ordem Rosa-Cruz,
por exemplo, afirma que há doze planos cósmicos no plano
espiritual. A Cabala afirmava que há dez planos de consciência
no mundo espiritual. Afinal, como é o plano espiritual? Ele tem
dez ou doze planos?

O mais impressionante era ver como outros rosa-cruzes não


conseguiam perceber quão contraditórios eram esses
ensinamentos. Ademais esses problemas, no decorrer da minha
vida mística, comecei a notar que a ênfase que a Ordem Rosa-
Cruz dava à Cabala, a ponto de organizar palestras sobre o tema
em suas Lojas, pouco a pouco foi levando a uma contaminação
religiosa nos rosa-cruzes. Já discutimos este tema no capítulo
sete, mas vale a pena voltar a ele.

Em sendo a Cabala um misticismo judaico, há um


entrelaçamento entre este conhecimento e a religião judaica. Em
função disso, na prática, vi muitos rosa-cruzes acharem que o
rosacrucianismo deveria se submeter à Bíblia, em especial ao
Antigo Testamento. Já vi também tal postura gerar situações
esquisitas onde membros da minha Ordem pensavam que o
rosacrucianismo seria uma subespécie das religiões judaica e
cristã.
472

Com o tempo, notei que essa mistura entre Cabala e Rosa-Cruz


fazia com que o rosacrucianismo não se consolidasse como um
sistema próprio de pensamento, mas sim como uma espécie de
linha auxiliar da religião judaica. A questão é que se trata de
coisas diferentes. Isso porque o misticismo judaico sempre me
parece uma propriedade do povo judeu e que fala para judeus. Já
o rosacrucianismo é uma narrativa muito mais voltada para a
humanidade como um todo e que fala para todo mundo.

Essa falta de uma definição clara entre a Ordem Rosa-Cruz e a


Cabala também tinha efeitos financeiros. Cheguei a ver vários
irmãos e irmãs rosa-cruzes largarem a minha Ordem e irem para
o Kaballah Center porque segundo eles, era a mesma coisa.
Inclusive, neste último, o membro não demorava tanto tempo
para evoluir, como no caso do rosacrucianismo, que requer
alguns anos para se chegar ao último grau. Essa situação de não
saber se o rosacrucianismo abarcava toda a Cabala ou se era esta
quem continha o rosacrucianismo sempre me deu a sensação de
não saber o que eu estava estudando, afinal.

30.5. O elitismo da Cabala e a teoria da excepcionalidade


judaica
Em função de todas essas coisas, na minha experiência, eu
nunca tive muita atração por Cabala. Além disso, eu não tinha
tempo, paciência e nem vontade de aprender hebraico. Idiomas
fora do eixo indo-europeu nunca me atraíram. Em outras
palavras, nessa espécie de competição pra ver quem é mais
473

evoluído no estudo dos mistérios cabalísticos, eu sempre estaria


atrás porque não tinha e não tenho interesse no idioma hebreu. E
o judeu praticante que estudou numa escola de elite do Rio de
Janeiro e foi para Israel várias vezes estará sempre na minha
frente nessa corrida pela iluminação. Mas ainda havia algo no ar
dentro de todo esse assunto. Algo elitista e asqueroso.

Se a Cabala é um conhecimento da Verdade Divina, quem não


tem Cabala não tem a Verdade? E o que dizer do cara do meio
da África que nunca leu sobre Cabala? Ela será sempre menos
evoluído? Os outros povos e as outras tradições que não a
desenvolveram estão mais longe da Verdade? E quanto às
pessoas que mal sabem ler e escrever seu próprio idioma e, por
conseguinte, nunca tiveram acesso ao idioma hebraico? Elas são
inferiores?

Havia, no entanto, outro elemento ainda mais profundo nessa


discussão. Isso porque toda essa suposta Verdade que a Cabala
carregaria tem como subtexto a ideia de que os judeus foram
agraciados com um suposto conhecimento especial. Em outras
palavras, eles seria um povo escolhido pelo próprio Deus para
receber uma iluminação própria. Para penetrar nessa Verdade,
todas as pessoas do mundo teriam necessariamente que passar
pela cultura que os judeus produziram. Trata-se da teoria da
excepcionalidade judaica, uma narrativa que sempre foi muito
controversa.
474

Em função disso, eu sempre tive muito cuidado ao caminhar


nessa seara. A ideia de um povo especial escolhido pelo próprio
Deus para receber uma Verdade poderosa e divina sempre me
trouxe um pouco de cautela. Isso lembra as teorias
evolucionistas do século XIX onde se dizia que todos os povos
da Terra deveriam ser iguais aos europeus para serem evoluídos.

Não estou querendo dizer com isso tudo que a Cabala não tenha
valor nenhum e tampouco que seus partidários sejam pessoas do
mal. Pelo contrário. Nos estudos martinistas vemos o valor do
conhecimento cabalístico, seus exercícios etc. Os templos de
muitas organizações rosa-cruzes são inspirados na Cabala e eu
tenho maior respeito por isso, bem como pela cultura judaica e
pelos vários judeus que eu conheço. O que estou
problematizando apenas é que nada nessa vida é tão neutro
quanto parece. Há muitas ideias embutidas em certos sistemas
de pensamento que as mentes mais desatentas não percebem.
Em outras palavras, em toda moeda/ ideia há o verso e o
anverso.

30.6. Esquisitices esotéricas


Do meu ponto de vista, como outro problema da Cabala,
gostaria de citar o que chamo de ‘baboseira esotérica’. Trata-se
de uma ideia cabalística muito comum de que haveria na Bíblia
uma espécie de código secreto porque as letras hebraicas dos
475

textos originais foram cuidadosamente colocadas como forma de


profecias sobre o futuro da humanidade. Assim, nos livros
bíblicos poderíamos encontrar mensagens cifradas acerca do
passado e do futuro da humanidade. Alguns dizem que os Bíblia
previram a existência do vírus HIV, da inteligência artificial e
algumas passagens mencionam a III Guerra Mundial. Vendo isso
tudo, eu tenho que admitir que a Cabala é realmente perigosa –
porque é muita abobrinha junta. Em primeiro lugar, na minha
humilde opinião, só quem nunca leu os Bíblia inteiros de forma
sincera ou só leu determinadas traduções é que pode achar que
haveria um código secreto cabalístico oculto por lá. É até
possível que alguns trechos de alguns livros bíblicos tenham
isso, como o livro do Apocalipse e do Gênesis, cujos números
sugerem alguma interpretação simbólica. Contudo, os livros
com os textos mais originais dos Bíblia são cheios de partes
duplicadas, partes perdidas, traduções ambíguas etc. Achar que
alguém há mais de três milênios tenha tal poder de clarividência
numa época que não se sabia nem a existência de vírus e
bactérias me parece um delírio.

Inclusive, para quem estuda sobre a construção da Bíblia, sabe-


se que muitos livros ali eram tradições orais que em algum
momento foram passadas para o papel. Algumas tradições,
inclusive, têm origem suméria e babilônica e não hebreia.
Alguns trechos se perderam, outros foram removidas e outras
tantas foram adicionadas em diferentes textos. Isso não significa
que toda a Bíblia tenha sido propositalmente alterada. O que
estou dizendo é que existe muita controvérsia acerca daqueles
476

textos para afirmar peremptoriamente que existem códigos


ocultos ali. No fundo, essa narrativa cabalística me parecia mais
uma ferramenta de crentes judeus para reforçar a sua ideia de
que o Antigo Testamento havia sido dado pelo próprio Deus,
uma ideia que leva a todo tipo de fundamentalismo.

Lembro-me que uma vez na minha Loja Rosa-Cruz, havia um


irmão muito famoso que regularmente dava palestras sobre
Cabala. Como ele era judeu, era quase endeusado por todos os
membros da Loja. Aquilo tudo me causava uma certa resistência
porque era óbvio que ele usava aquilo para agraciar o ego dele.
No entanto, um dia ele passou um documentário na Loja que
“provava” os códigos ocultos dos livros bíblicos. Essa atitude
me causou tanto constrangimento que não consegui nem
continuar assistindo à palestra.

Também podemos adicionar a toda essa discussão um problema


histórico. Nessa linha de pensamento que acredita que a Bíblia
teria sido codificada em códigos cabalísticos, eu sempre me
questionei acerca da datação de todo este processo. Isso porque
alguns livros básicos da Cabala, como o Zohar e o Sepher
Yetzirah, apareceram na Europa durante a Idade Média. Ou seja,
séculos depois dos livros dos Bíblia terem sido escritos.

Ora, como é que podem os autores dos livros bíblicos terem


cifrado um conhecimento esotérico que eles nem sequer sabiam
477

da existência? Os caras que escreveram os livros dos Bíblia,


portanto, não teriam como “codificar” o que estavam escrevendo
em termos cabalísticos porque nem sabiam o que alguns livros
da Cabala viriam a ser. Claro que sempre pode haver toda uma
justificativa com base na tradição oral, nisso ou naquilo, mas
fato é que tudo sempre me pareceu confuso e distante demais da
vida prática.

30.7. Para que serve, afinal, a Cabala?


Durante toda a minha trajetória rosa-cruz, vi muitos entusiastas
dos ensinamentos cabalísticos. Depois de anos estudando que
Hochmah rima com Binah, que rima com Daath que representa
o número tal que é secreto e blá-blá-blá, eu olhava para aquelas
pessoas e me perguntava até que ponto elas evoluíram. No que a
vida delas melhorou gastando recursos mentais e financeiros
com o assunto?

A Cabala, com seus diagramas e frases misteriosas em outro


idioma, foi um grande elemento que me levou a questionar sobre
até que ponto toda essa história de misticismo é real. Será que o
conhecimento da Verdade das coisas está tão oculto e intrincado
assim como nos diagramas cabalísticos medievais? Será que ele
está tão secreto a ponto de não ser acessado por qualquer um?

Muitos dizem que o conhecimento “verdadeiro” não está


acessível aos não Iniciados. Hoje, no entanto, eu me pergunto se
478

ele não está acessível aos não Iniciados, ou se ele só tem muito
pouca utilidade prática na humanidade. Como o conhecimento
da Cabala pode ser usado para combater o tráfico de drogas e de
armas ou a fome? Não sei. Reforço que este texto não é um
“ataque” à Cabala, aos judaísmos ou aos rosacrucianismos.
Estou tão somente partilhando tudo aquilo que penso sobre o
tema. Minhas críticas são apenas em termos de ideias, não de
pessoas ou de grupos. Por fim, o pensamento cabalístico sempre
me pareceu um conhecimento de difícil apreensão e tenho
dúvidas se quem o estuda é efetivamente um ser mais iluminado
do que as pessoas simples que vejo na Central do Brasil lutando
pela sua sobrevivência diariamente. É evidente que a Cabala não
é de se jogar fora, pois há muitas coisas bonitas nela, assim
como em várias outras ideologias metafísicas. Mas tenho minhas
desconfianças sobre até que ponto a Verdade está ali (se é que
existe alguma Verdade).
479

31. AS LEIS HERMÉTICAS

Assim como a Cabala é um assunto muito comum no misticismo


e correlato ao rosacrucianismo, as chamadas leis herméticas
também entram nesta linha. Para quem não conhece, essas tais
leis estão em um livro chamado O Caibalion cuja autoria se
desconhece. Sabe-se apenas que ele foi publicado sob o
pseudônimo ‘Os Três iniciados’ (1978). Esta obra estipula que
existem sete leis básicas no universo e que teoricamente foram
trazidas à luz por Hermes Trismegisto. Essas leis seriam: a lei
do mentalismo, da correspondência, da vibração, da
polaridade, do ritmo, do gênero e de causa e efeito. Em função
de sua fonte em Hermes, este conhecimento, por vezes, é
chamado de ‘hermetismo’.

Antes de seguirmos, vale fazer o adendo de que a palavra


‘hermetismo’ é de uma enorme complexidade histórica e há
milhares de livros, correntes de pensamento e grupos dentro do
guarda-chuva teórico que este termo carrega. O hermetismo já
era conhecido e cheio de controvérsias mesmo na Antiguidade e
na Idade Média a confusão era a mesma coisa. Basicamente, o
pensamento hermético é uma tradição filosófica e religiosa
baseado em textos atribuídos a Hermes Trismegistus, um
personagem bastante confuso e que é muito difícil de rastrear
480

historicamente, mas que provavelmente é uma pseudoepígrafe.


Ou seja, vários intelectuais escreviam suas opiniões e assinavam
como Hermes para ter alguma chancela e respeitabilidade
(BOTELHO, 2019).

Resumidamente, esta tradição hermética é uma forma esotérica


de ver o mundo que mistura magia e explicações sobre as
correlações entre o mundo material e espiritual. Há quem diga
que ele seria a fusão entre os misticismos grego e egípcio. Da
forma como já foi um dia, contudo, este conhecimento
basicamente morreu e pouco restou dele. Uma das poucas
expressões da cultura hermética que ainda tem alguma presença
na intelectualidade e espiritualidade ocidentais talvez alguns
poucos livros e, dentre eles, está O Caibalion. Isso posto,
prossigamos.

Embora a Ordem Rosa-Cruz não costume usar especificamente a


expressão ‘leis herméticas’, muitos dos princípios anunciados
por estas leis atravessam os ensinamentos rosa-cruzes de muitas
formas. Repare o leitor como estes ensinamentos se baseiam na
ideia grega de que existe uma cosmo-legislação que permeia o
universo e que isso abarca os mundos material e imaterial.

Sob um olhar mais crítico, é importante notar que embora


muitos creiam que as leis herméticas enunciadas no Caibalion
tenham sido dadas por algum filósofo egípcio ou grego antigos,
481

elas usam uma terminologia muito baseada na Ciência


contemporânea. As ideias de vibração, polaridade e ritmo, por
exemplo, advém da Física Moderna. Isso significa que muito
provavelmente quem escreveu esta obra era bem recente e não
um egípcio qualquer do passado. Mas será que essas leis fazem
algum sentido? Para além de serem uma inocente afirmação
sobre como a realidade se sustenta, talvez elas guardem algum
perigo por detrás delas. Vamos ver um pouco mais sobre isso.

31.1. O princípio do mentalismo


O todo é MENTE; o universo é mental.
Essa ideia de que tudo no universo é mente é muito comum a
várias ideologias metafísicas. Ela significa que no nível
macrocósmico, a Terra, o sistema solar e o próprio universo
seriam organismos vivos. Já no nível microcósmico, há quem
veja mente até nos átomos, atribuindo a eles uma espécie
consciência e memória. É isso que explicaria, por exemplo, a
existência de lugares mal assombrados, pois os átomos de uma
casa guardariam a memória de eventos passados ocorridos
naquele lugar.

Seguindo esta linha de pensamento, muitos místicos afirmam


que a ideia de que o universo é mental estaria alinhada a certas
descobertas da física quântica. Uma prova disso seria aquele
famoso experimento citado amiúde de que a observação de um
482

cientista afeta a posição de um elétron dentro de um átomo.


Além de evidenciar uma natureza mental das partículas
subatômicas, isso nos remeteria novamente à conectividade
entre as coisas. Sob o ponto de vista científico, contudo, essas
conclusões são controversas.

A ideia do mentalismo, contudo, possui uma abrangência um


pouco maior. Trata-se da ideia da conectividade. Sobre isso, os
autores Bruce Rosenblum e Fred Kuttner no livro O enigma
quântico: o encontro da física com a consciência, afirmam que a
Ciência antes de Newton estava repleta de conectividades
misteriosas. Pedras tinham avidez pelo centro cósmico,
sementes buscavam imitar carvalhos próximos e alquimistas
acreditavam que sua pureza pessoal influenciava as reações
químicas em seus tubos de ensaio (KUTTNER, ROSENBLUM,
2017).

Em contraste ao conectivismo dos místicos, na visão de mundo


newtoniana, um naco de matéria, um planeta ou uma pessoa
interage com o resto do mundo apenas por forças fisicamente
reais aplicadas por outros objetos. De outra maneira, é separável
do resto do Universo. Exceto pelas forças físicas aplicadas, um
objeto não tem “conectividade” com o restante do Universo.
Este é o chamado princípio da separabilidade. Isto posto, qual
seria o problema da ideia de que todo o universo é mental?
483

Do ponto de vista hermético, se estamos imersos em uma única


mente cósmica, logo estaríamos todos conectados entre nós. O
problema da defesa da conectividade em oposição à
separabilidade é que a primeira traz a possibilidade de magia
negra, feitiços ou a ideia de que uma simples oração tem poder
real sobre as coisas. No Brasil em especial é muito comum a
cultura de não falarmos sobre nossos planos para ninguém, pois
a inveja dos outros podem nos afetar.

Embora eu não queira ridicularizar ou desmerecer quem acredita


nessas coisas, desconheço estudos científicos que comprovem a
efetividade de feitiços e de práticas mágicas. Igualmente a
oração, embora eu reconheça o seu poder psicológico, quem
cura as pessoas do câncer é a moderna ciência e não preces.
Outrossim, achar que os outros estão nos invejando e por isso
não conseguimos prosperar em alguma atividade pode nos levar
a colocar uma espécie de paranoia espiritual. Ademais, tendemos
a ver causas metafísicas onde pode haver simplesmente uma
causa social. Assim, crer que tudo é mente nos faz ter estranhas
conectividades com as coisas. Embora essa ideia possa ser linda
na superfície, ela traz consequências muitas vezes imprevistas.

31.2. O princípio da correspondência


O que está em cima é como o que está embaixo e o que está
embaixo é como o que está em cima.
484

A ideia de que existe uma correspondência entre o que está em


cima e o que está em baixo é dita e repetida não só na Ordem
Rosa-Cruz como também em várias organizações esotéricas. No
pensamento rosa-cruz também há afirmações que dizem que o
mundo material é o espelho no qual Deus contempla
incessantemente o seu reflexo. Eu sempre olhei este pensamento
com algum grau de ceticismo. Afinal, o que significa isso?

Primeiramente, tomemos a frase “o que está em cima é como o


que está embaixo”. O que os autores querem dizer com “o que
está embaixo”? Ele se referem ao mundo material? Se sim, se
refere à natureza ou às cidades construídas pelos seres humanos?
Se admitirmos que por “o que está embaixo” se refere ao mundo
natural, temos um problema aí.

Isso porque, como já vimos, a natureza é de uma crueldade e


indiferença absurdas. Ao longo das Eras espécies são dizimadas
pelos mais fortes ou por condições ambientais adversas.
Espécies predadoras abocanham filhotes que acabaram de nascer
completamente indiferentes ao sofrimento da mãe. Animais
morrem de doenças diversas e com dores físicas lancinantes.
Ora, o que significa dizer que o mundo lá de cima é igual ao
mundo daqui de baixo? Significa que o mundo espiritual tem as
mesmas barbaridades do que o mundo terreno?
485

Igualmente, se nós entendermos por “o que está embaixo” são as


sociedades humanas, vemos também que elas podem ser cruéis,
competitivas, injustas e despóticas, embora também seja local de
cooperação, fraternidade e de grandes realizações. Ora, se o
mundo que “está em cima” é como o mundo que está
“embaixo”, só posso concluir que esse tal mundo de cima é uma
grande porcaria.

Por outro lado, podemos afirmar que “o que está embaixo” não
se refere nem à natureza e nem à sociedade, mas sim às leis que
o regem. Ora, se for assim, o mundo espiritual é composto de
leis análogas às leis naturais? Já vimos o enorme problema
filosófico que é operar com este conceito de ‘lei da natureza’.
Ademais, câncer e problemas de visão e audição são
extremamente naturais, como já vimos. No mundo espiritual
também há leis que são tão hostis aos seres humanos?

Poder-se-ia afirmar que o que está embaixo se refere à mente


humana. Mas aí temos que lidar com o fato de ela ser imperfeita,
contraditória, sujeita a enganos diversos etc. Será que o mundo
espiritual “reflete” essa mundo mental dos seres humanos? Ora,
se existem pessoas cujas mentes é voltada para o mal, isso
significa elas advém diretamente do mundo espiritual, bom e
criado por Deus. Como faz?
486

Finalmente, a ideia de que “O que está em cima é como o que


está embaixo, e o que está embaixo é como o que está em
cima” tentar impingir um sentido de pertença a um todo, ao
mesmo tempo que tenta imprimir segurança psicológica ao seu

portador. Mas qualquer análise racional deste pensamento vê


que talvez ele não se sustente em pé.

31.3. O princípio da vibração


Nada está parado; tudo se move; tudo vibra

A Ordem Rosa-Cruz opera muito com a ideia de vibração.


Segundo a organização, todas as coisas vibram interna e
externamente e estamos o tempo todo irradiando vibrações e
sendo por elas influenciados, sejam estas de natureza material ou
espiritual. Por incrível que pareça, a ideia de que tudo vibra é
uma das poucas ideias místicas que encontram algum respaldo
na Ciência, ainda que sob diferentes bases.

Com exceção da ideia de que há vibrações de ordem espiritual, a


afirmação de que as coisas vibram é cientificamente verdadeira.
As coisas não só vibram interiormente por meio dos átomos,
como também emitem vibrações que estão no espectro
eletromagnético. Nós, seres humanos, podemos captar algumas
pequenas faixas desses espectro e apreender uma parte daquilo
487

que chamamos de Realidade. Mas então qual é o problema dessa


ideia?

Primeiramente, muitos místicos usam esse pressuposto de que as


coisas vibram para referendar a teoria das supercordas, por
exemplo. Esta teoria defende que os átomos seriam compostos
por cordas infinitamente pequenas que vibram intensamente.
Este pensamento já foi amplamente discutido na comunidade
científica e basicamente caiu por terra por não haver meios de se
prová-lo. A questão é que muitos esotéricos ainda operam com
essa teoria como se fosse verdade para legitimar seus
pressupostos metafísicos. Mas a lei hermética das vibrações
seria um problema trivial se fosse apenas a sua relação com a
hipótese das supercordas. Há outras coisas nessa discussão que
merecem ser trazidas ao debate.

O problema é que no misticismo, essa noção de vibração penetra


outros campos existenciais. Um exemplo disso é a ideia um
pouco infantil que diz que bastaria mentalizarmos a palavra
“milionário” para atrairmos as energias ou vibrações necessárias
para tal (vibração e energia seriam palavras basicamente
sinônimas). Ora, o que faz as pessoas se tornarem ricas é ter
oportunidades, um bom estudo, investimento, uma boa ideia,
viver num país com instituições sólidas e segurança jurídica,
respeito à propriedade etc e não simplesmente “vibrações”.
488

Outro campo onde essas reflexões entram é a ideia de que para


curar uma depressão, basta você “vibrar” de forma diferente.
Ora, é evidente que as coisas não são tão simples assim. Este
tipo de afirmação debocha das centenas de pesquisas científicas
que buscam mapear a depressão e desenvolver medicamentos de
alta tecnologia para minorá-la. Isso mostra que quando
operamos sob a base do pensamento místico, corremos o risco
de ficarmos presos em crendices diversas que, a meu ver, podem
ser deletérias.

É importante notar que a noção de vibrações reforça a ideia de


uma conectividade entre as coisas. É justamente em função de
vibrações que se influenciam e se conectam misteriosamente que
se situam as bases de coisas como curas pelos cristais,
cromoterapia, astrologia, mantras, entre várias outras coisas. A
noção subjacente aí é que um cristal, uma cor, os astros ou
certos cânticos possuem vibrações que têm certos poderes
especiais que podemos manipular. Será mesmo?

Sobre isso, é bom salientar que a ideia de que vibrações têm


poderes e que podemos manipulá-las para nosso benefício não é
de todo errada. Sob um olhar filosófico, se átomos e moléculas
vibram, quando alguém toma um remédio contra a depressão,
por exemplo, uma vez que este remédio é composto de átomos e
moléculas, logo se trata de uma vibração que estamos
manipulando. Quando vemos algo na internet, as ondas pelas
quais as informações chegam aos nossos celulares e
489

computadores são vibrações. Logo, essa ideia não é


simplesmente doida. O problema é quando ela resvala para um
misticismo simplista e sem empiria científica.

No entanto, a questão aqui é que a ideia de vibrações pode ir


ainda mais longe. Como exemplo, se partimos do pressuposto de
que as coisas vibram interior e exteriormente, isso significa que
podemos enxergar notas vibratórias em determinados indivíduos
e seus respectivos grupos sociais. Na prática, isso quase nos
permite dizer que brasileiros, cristãos, japoneses, negros,
mulheres etc vibrariam de uma certa maneira. Isso determinaria
características dessas pessoas e grupos por meio da categoria
filosófica ‘vibração’.

Em um olhar superficial, talvez não haja nada de errado nessa


proposta. Afinal, brasileiros e japoneses, por exemplo, possuem
um temperamento muito diferente. De um ponto de vista
místico, o que explicaria isso seria a vibração desses povos. Mas
o problema deste pensamento é que ele se aproxima muito de
uma espécie de ‘essencialismo filosófico’ das pessoas. Isso
significa que ao olharmos um brasileiro e um japonês, podemos
imediatamente concluir coisas sobre o temperamento deles
unicamente em função de suas alegadas vibrações internas. Mas
será mesmo que funciona assim?
490

O problema deste pensamento de que categorias conceituais


possuem uma essência é que elas são geradoras ambulantes de
preconceitos em potencial. Primeiro que ninguém é apenas
japonês ou brasileiro. Somos atravessados por múltiplas
características sociais e também por nossas personalidades
individuais. Existem milhões de brasileiros que têm uma
personalidade mais “japonesa” voltada para a disciplina e o
comedimento, ao mesmo tempo que há milhares de japoneses
com uma personalidade mais “brasileira” voltada para a
extroversão e a celebração. Logo, ainda que haja tendências
culturais, essas coisas não parecem ser uma lei ou uma essência.

Mas para além disso, o essencialismo nos leva a outros


universos muito perigosos. Se seguirmos nessa ideia, muitas
pessoas podem concluir que “negros tendem ao crime”,
“mulheres são criadas para a maternidade”, “homossexuais têm
uma natureza promíscua”, “brasileiros são malandros”, “alemães
são inteligentes” etc. Em muitos casos, o pensamento que
associa vibrações a certos adjetivos e características dos outros
tende a prender indivíduos em certas qualidades e defeitos que
não necessariamente eles possuem. Tal ideia, portanto, muitas
vezes contribui para preconceitos no sentido mais literal da
palavra.

A questão da vibração também nos coloca o desafio de como


interpretamos culturalmente as coisas. Para ilustrar isso, vamos
imaginar uma sala de aula e uma professora de Português
491

mirradinha que fala baixo e absolutamente mulherzinha. Os


alunos não a respeitam e falam o tempo todo durante sua aula.
Quando sua aula acaba, entra a próxima disciplina, um professor
de Matemática homem, grande, que fala grosso e transmite
autoridade. Os alunos o respeitam imediatamente. A questão é:
por que respeitam o homem e não a mulher?

Há algumas possíveis respostas para essa pergunta. A primeira


delas deve ser porque o professor de Matemática tenha melhor
didática e mais contato com os alunos do que a professora de
Português. Esta é uma possibilidade. Podemos dizer também que
os alunos conhecem mais o professor homem do que a
professora mulher, logo eles têm mais interesse na aula dele do
que da dela. Há também respostas sociológicas, como as que
evocam o machismo estrutural da sociedade, que faz com que a
voz da mulher não seja levada a sério. As pessoas são ensinadas
a verem o feminino e a mulher como algo menor.

Quando operamos com a ideia de vibração, contudo, entramos


em uma explicação esotérica para o problema. Podemos
imaginar que o respeito que as crianças têm para com o
masculino se relaciona ao fato da natureza intrínseca das
“vibrações masculinas”, que transmite mais autoridade do que as
vibrações femininas. E aí, basicamente concluímos que
machismo existe por causa da natureza das “vibrações
femininas”. E daí, cabe a pergunta: as mulheres são menos
respeitadas que os homens por razões culturais ou por questões
492

místicas e vibratórias? O leitor consegue ver como são


problemáticas essas ideias de vibrações?

Por fim, a ideia de vibração, muitas vezes, pode se associar


muito intrinsecamente à toda sorte de superstições. Alguém pode
usar um amuleto mágico, por exemplo, e acreditar que as
vibrações daquele artefato lhe trarão sorte, prosperidade e
proteção. O mais engraçado é que a minha Ordem Rosa-Cruz
sempre foi muito refratária às superstições e alertava seus
membros o perigo que elas representavam. A organização dizia
para os rosa-cruzes não acreditarem no poder de amuletos,
poções, santos da sorte etc. A questão é que os ensinamentos da
Ordem acerca de vibrações são um caldo muito propício para o
desenvolvimento de toda sorte de superstição.

31.4. O princípio de polaridade


Tudo é Duplo; tudo tem polos; tudo tem seu oposto; o igual e o
desigual são a mesma coisa; os opostos são idênticos em
natureza, mas diferentes em grau; os extremos se tocam; todas
as verdades são meias verdades; todos os paradoxos podem ser
reconciliados.
Essa talvez seja uma das mais misteriosas leis herméticas,
embora a ideia de polaridade seja muito repetida em várias
linhas espiritualistas. Mas será que essas coisas existem?
Inicialmente, é importante ressaltar que as pessoas costumam
entender muito mal o que essa proposta representa. Para ilustrar
493

o que os místicos dizem com ‘polaridade’, permitam-me dar um


exemplo

O leitor que está lendo este texto é a polaridade passiva e o texto


é o ativo. O texto penetra no leitor e este é penetrado pelas
informações aqui presentes. Quando o leitor vai pintar um
quadro, ele é o ativo e o papel ou a tela são os elementos
passivos. Quando estamos assistindo aula, somos passivos.
Quando estamos dando aula, somos ativos.

Assim, polaridade nada mais seria do que o papel que você


exerce em um fenômeno. É importante destacar, no entanto, que
em quase nenhuma atividades somos cem por cento passivos ou
ativos. Eu, por exemplo, estou exercendo uma atividade ativa ao
escrever este texto, mas ao mesmo tempo vou lendo-o, sendo
também passivo de alguma forma. Nesse sentido, a própria lei
hermética enuncia que ativo e passivo se alternam em várias
atividades em diferentes graus. Isso significa que quando
falamos de polaridades, estamos nos referindo a polaridades
predominantes e não absolutas.

Até aqui, nenhum problema nessa ideia. Pessoalmente, até


concordo com ela. No entanto, eu sempre me indaguei sobre o
que significa dizer que o igual e o desigual são a mesma coisa.
Um homem e uma mulher são idênticos em natureza? Aliás, eles
são opostos? E um homem e uma mulher transgênero? São o
494

quê? Nessa linha de que igual e desigual são a mesma coisa, se


você é um cidadão que respeita as leis do seu país, você
necessariamente é igual a um criminoso?

No final do enunciado, o princípio da polaridade ainda faz


afirmações sombrias do tipo “todas as verdades são meias
verdades e os paradoxos podem se reconciliar”. Ora, durante
séculos os filósofos de todo o mundo vêm estudando paradoxos
irreconciliáveis. Existem dilemas morais e coisas paradoxais no
conhecimento humano que ninguém sabe ao certo responder.
Por que essas pessoas nunca leram essas leis herméticas antes?
O Misticismo às vezes se vende como uma grande verdade que
ninguém nunca descobriu, mas por tantas vezes ele me parece
bastante bobinho.

31.5. O princípio do ritmo


Tudo tem fluxo e refluxo; tudo tem suas marés; tudo sobe e
desce; tudo se manifesta por oscilações compensadas; a medida
do movimento à direita é a medida do movimento à esquerda; o
ritmo é a compensação.

Embora a ideia de que as coisas possuam um ritmo possa ser


verdadeira, ela vai ao encontro do paradoxo que levantamos
entre as noções filosóficas de ‘evolução’ e ‘ciclo’. Ora, se
estamos evoluindo, como as coisas podem ter refluxos? Isso
495

significa que todo movimento em direção à evolução cedo ou


tarde encontrará um refluxo? Se assim o for, para que devemos
lutar para evoluirmos se cedo ou tarde voltaremos para trás?

Repare o leitor que estas leis herméticas são uma tentativa de


transferir certas descobertas da Ciência para o mundo da
espiritualidade, dando ao esoterismo um aspecto científico. Até
aqui, vibração, polaridade e ritmo são tópicos científicos que
não têm muito como contrapor no nível da Ciência. Mas quando
elas são extrapoladas para o plano espiritual, as coisas começam
a ter certos ruídos.

31.6. O princípio de causa e efeito


Toda Causa tem seu Efeito, todo o Efeito tem sua Causa; tudo
acontece de acordo com a Lei; o acaso é simplesmente um nome
dado a uma Lei não reconhecida; há muitos planos de
causalidade, porém nada escapa à Lei.

Essa perspectiva reforça a visão cosmolegislativa da realidade,


mas ela merece alguma consideração. Como dissemos
anteriormente, a ideia de uma nítida relação de causa e efeito
entre as coisas é um princípio que pode ser bem infantil. Isso
porque o mundo é necessariamente multicausal. Mas para além
disso, essa afirmação que hoje considero boba, ela desconsidera
a própria imprecisão do conhecimento humano. Para ilustrar
496

isso, imaginemos que cientistas tentem responder à seguinte


pergunta: Por que maridos agridem a sua esposa?

Se for um sociólogo, dirá que essas agressões acontecem por


causa do machismo estrutural. Um antropólogo dirá que se trata
de uma relação simbólica de poder. Um historiador dirá que isso
ocorre por causa das relações históricas entre homens e
mulheres que são pautadas pela violência. Um psicólogo talvez
diga que este marido está reproduzindo relações familiares nas
quais este homem foi criado ou que isso se dá por traumas do
passado. Um geneticista talvez diga que a agressividade dos
homens seja um impulso genético. Afinal, qual é a resposta final
para a nossa pergunta? Qual área é a mais certa?

A Verdade, se é que existe alguma, é necessariamente


multifacetada. Mais do que achar uma resposta final, a nossa
compreensão dos fenômenos necessariamente demanda uma
abordagem interdisciplinar. No entanto, ainda há outro elemento
neste princípio de causa e efeito que chama a atenção. Trata-se
da ideia de que não existe acaso e que tudo se dá em função de
uma lei. Será mesmo que não existe acaso e aleatoriedade no
universo?

Será que quem ganha na loteria é porque “a lei se cumpriu”?


Será que uma pessoa que nasça com uma deficiência não
implica na aleatoriedade das combinações genéticas? Ou será
497

que nestes dois casos existe alguma lei divina e espiritual se


cumprindo? Já vimos essas discussões por aqui e não pretendo
voltar nelas, mas a negação do acaso e da aleatoriedade como
princípios condutores do mundo tem implicações filosóficas
profundas.

A ideia de que não existe aleatoriedade e que o acaso é


simplesmente uma lei desconhecida parece advir unicamente de
uma vontade atávica de ver uma grande Mente Cósmica ou
Força Maior nos protegendo e nos conduzindo. Em função de
todas as reflexões que pontuei até aqui, será mesmo que as
coisas são desse jeito?

31.7. O princípio do gênero


O gênero está em tudo; tudo tem o seu princípio masculino e o
seu princípio feminino; o gênero se manifesta em todos os
planos.
Pessoalmente, eu sempre considerei que esta frase se refere a
uma crença bastante antiga no mundo da metafísica e que se
perdeu na cultura contemporânea. Trata-se da ideia de que todos
os seres são em essência masculinos e femininos e, por
conseguinte, haveria uma gradação entre os seres humanos no
que se refere às manifestações de masculinidade e feminilidade.
498

No entanto, no meio esotérico, eu vi amiúde essa frase ser usada


em outro contexto. Foram inúmeros rosa-cruzes que encontrei
usando este pensamento para reforçar o binarismo de gênero e
uma estrutura social heteronormativa. Isso significa que,
segundo eles, essa lei hermética entende que todas as oito
bilhões de pessoas no mundo devem ser apenas homens
masculinizados e mulheres feminilizadas, todos apenas
heterossexuais.

Em outras palavras, quando o livro O Caibalion diz que tudo


tem seu princípio masculino e feminino, muitos utilizam essa
frase para sustentar posições de apagamento existencial das
diferenças. Nesta linha, o hermetismo é utilizado para reforçar
uma hierarquização espiritual entre as pessoas heterossexuais e o
“resto” que não deveria existir porque é contrária à “lei”, mas
que o rosa-cruz faz o favor de tolerar porque é uma pessoa
evoluída. Nesse sentido, não devemos nos esquecer de como o
misticismo e sua ideia de uma ordem cósmica é manipulado sob
múltiplos aspectos, algo já discutido no capítulo dezenove.

31.8. Conclusões
Neste capítulo, fiz uma crítica geral a certas ideias esotéricas
que advém desses princípios herméticos. Naturalmente, os
místicos sempre podem alegar que existem coisas ocultas nessas
frases, que não é bem assim, que se trata de um simbolismo etc.
O problema é que como o significado está oculto, cada um diz
qualquer coisa sobre ele e caminhamos num círculo sem chegar
499

a lugar algum. Este pode até ser um ponto forte do misticismo,


mas também é o seu ponto fraco. No entanto, do meu ponto de
vista cético, gostaria de tecer alguns comentários finais sobre
tudo isso.

Por incrível que pareça, se tem uma ideia das leis herméticas que
ainda tocam meu coração é a ideia de vibrações. Eu senti isso
quando tive a oportunidade de adentrar na catedral de Saint John
the Divine em Nova York. Aquele prédio encheu meu coração de
uma sensação inexplicável. Por outro, quem passa por uma
cracolândia qualquer pelo mundo, quase pode sentir uma coisa
ruim dentro de si.

Igualmente, quando comparamos as esculturas humanas feitas


na Grécia Antiga e aquelas produzidas pelo regime nazista,
quase é possível pressentir que há algo bastante diferente entre
essas coisas. A meu ver, a diferença na “nota vibratória” emitida
parece ser grotescamente visível. Outrossim, o que dizer
daquelas casas que entramos e sentimos uma atmosfera de amor,
família, acolhimento e cuidado, ao passo que em tantas outras
residências sentimos alguma pesada e ruim?

Será que essas diferentes sensações tem a ver com nossos


valores culturais ou tem algo de vibratório nelas? Como um
cético, o que eu posso dizer é que eu não tenho todas as
respostas. Mas o ceticismo também não pode nos levar a um
500

absoluto niilismo no qual negamos sistematicamente a


subjetividade e a poesia da vida. Há muito encantamento nas
coisas não ditas, naquilo que sentimos e que toca o nosso eu
profundo. O fato de eu ter dificuldade em acreditar no mundo
espiritual não significa que podemos negar todo e qualquer
mistério inefável que a vida carrega.
501

32. OS MESTRES CÓSMICOS E OS FUNDADORES DAS


RELIGIÕES

Na Ordem Rosa-Cruz, o conceito de Mestre Cósmico é utilizado


amiúde. Também encontramos referências a ele em outras
organizações místicas, particularmente naquelas ligadas à
teosofia da famosa Madame Blavatsky. Segundo conta a
tradição esotérica, esses Mestres teriam sido personalidades
alma muito evoluídas que atuam principalmente a partir dos
planos espirituais para auxiliar na evolução da humanidade.
Mestres Cósmicos específicos também cuidariam de alguns
assuntos humanos específicos, como o desenvolvimento de
certas nações. Há até relatos de alguns deles que se
reencarnaram na Terra para alguma missão espiritual.

A primeira vez que eu ouvi sobre o conceito de Mestre Cósmico


foi na internet, onde eles também eram chamados de Mestres
Ascensionados. Nos anos 2000 houve um boom de sites
esotéricos e estas figuras ganharam certa projeção e fama.
Segundo muitos sites, haveria no plano metafísico sete raios de
luz espiritual da humanidade, onde cada um desses raios teria
uma cor e um mestre que cuidava deles.

No raio azul estaria o Mestre El Morya. No raio dourado, o


Mestre Lanto. No raio rosa estaria a Mestra Rowena. No raio
branco, o Mestre Seraphis Bay. No raio verde, o Mestre
502

Hilarion. No raio rubi estaria a Mestra Nada. No raio violeta


estava Saint German. Estes seres espirituais também seriam
ajudados por arcanjos como Miguel, Jofiel, Samuel, Gabriel,
Rafael, Uriel e Ezequiel.

Quando eu tomei contato com essas informações, a minha mente


era bastante adolescente, mística e crente, mas eu lembro
claramente que eu nunca abracei essas figuras. Na época eu
ainda não era graduado em História, mas gostava bastante da
matéria. Em função disso, eu ficava me indagando: “De onde
surgiram essas criaturas? Quem as criou?” Isso porque Jesus,
Buda, Maomé, a gente tem informações históricas sobre eles,
mas aqueles mestres tinham simplesmente caído na internet e as
pessoas estavam lidando com eles como se fossem reais.

Em função disso, eu sempre tive receio com essas crenças, mas


havia algo que me chamava atenção para além do modo como
eles tinham surgido no debate da espiritualidade pública. Um
Mestre Cósmico que ficou bem famoso naquela época era o tal
Saint German, líder da chama violeta. Eu via pessoas rendendo
um culto quase doentio a ele.

Para quem olhava com atenção, o tal Saint German era só um


Jesus Cristo melhorado sem tanto sofrimento e dor e sem o peso
histórico das igrejas fundamentalistas. Eu comecei a ter a
sensação de que estes novos personagens eram quase uma
503

espécie de neopanteão para quem sentia falta da espiritualidade,


mas estava cansado dos cristianismos. Imediatamente percebi
que talvez tudo aquilo se tratasse de apenas mais um novo
produto no mercado das ideias espirituais.

Do ponto de vista rosa-cruz, contudo, ao menos até onde eu


estudei, a Ordem Rosa-Cruz era mais cuidadosa neste assunto.
Basicamente, ela rendia homenagem a um Mestre Cósmico em
especial, chamado de Kut Hu Mi. Segundo a organização, ele
teria sido o próprio fundador da organização em algum passado
distante em outra vida. Ele também teria se reencarnado na Terra
durante a formação de algumas religiões.

Há de se ressaltar que no misticismo rosa-cruz, os fundadores


das grandes religiões muitas vezes são encarados como Mestres
Cósmicos, mas não necessariamente todos estes Mestres foram
fundadores de um grande movimento religioso. Assim, a ideia
de Mestres é maior do que os líderes das religiões. Também
adiciono que Madame Blavatsky escreveu muito sobre Kut Hu
Mi em seus livros e segundo relato da própria autora, ela
mantinha contatos regulares com ele por meio de projeção astral
(BOTELHO, 2016).

Do meu ponto de vista, eu sempre respeitei a relação que o


rosacrucianismo tinha com o conceito de Mestre Cósmico, mas
confesso que o assunto nunca despertou muito meu interesse,
504

como também nunca tive repulsão por ele. Simplesmente ouvia


o que me era dito e respeitava. No entanto, ao longo da minha
jornada, testemunhei situações que me fizeram ter certo
afastamento dessa proposta. Isso porque conheci rosa-cruzes que
tinham verdadeira obsessão por encontrar um Mestre Cósmico
andando pelas ruas, prontos para encontrá-los individualmente e
lhes passar alguma mensagem transcendental ou uma grande
revelação. Alguns até afirmavam peremptoriamente que tinham
contatos regulares com eles no plano astral.

Eu procurava respeitar essas visões em consideração às pessoas


que acreditavam nelas, mas comecei a manter certa distância
segura dessas crenças porque sempre achei isso um pouco
exagerado. No Misticismo, as fronteiras entre testemunhos de
pessoas sinceras e certo descolamento da realidade são sempre
muito porosas. O conceito de Mestre Cósmico e a ideia de que
eles reencarnavam ou se contactavam com as pessoas por meio
de sonhos e projeções astrais me parecia se desdobrar em
posturas muito fanáticas. Mas para além disso, durante o meu
despertar cético, percebi que a ideia de Mestre Cósmico tinha
vários outros desdobramentos filosóficos e é sobre eles que
gostaria de discutir.

Inicialmente, podemos dizer que a ideia de que existem


indivíduos que evoluíram espiritualmente e que hoje ajudam a
humanidade a evoluir seja na Terra seja a partir do plano
espiritual não é nova e nem uma propriedade da Ordem Rosa-
505

Cruz ou da teosofia. Algumas tradições budistas chamam essas


pessoas de Boddhisatvas, cuja função seria bastante análoga à
dos Mestres Cósmicos das organizações esotéricas (embora não
sejam a mesma coisa). Aliás, reza a lenda que Madame
Blavatsky teria aprendido sobre os tais Mestres vivendo entre os
monges do Tibet. Em certa medida, essa ideia apresenta alguma
semelhança até com os santos católicos, embora todos estes
personagens tenham horizontes distintos.

Isso posto, pensemos no mundo real. Se há Mestres Cósmicos


guiando a evolução da humanidade, a primeira pergunta que nos
vem à mente é onde esses seres de luz estavam no mar de horror,
sangue e violência que é a história humana. O leitor pode achar
que essa pergunta é muito fácil de responder. Isso porque o mal
seria responsabilidade das pessoas e não dos Mestres. Se a
humanidade tivesse ouvido a inspiração espiritual deles, essa
violência jamais existiria.

Essa é uma resposta cliché para quase todas as religiões,


particularmente nos monoteísmos. Ela também se aplica às
indagações teológicas acerca da relação entre Deus e o mal.
Deus não seria responsável pelo mal que os seres humanos
fazem, pois são as próprias pessoas as responsáveis por isso.
Mas daí eu redarguo: se Deus não é capaz de impedir os seres
humanos de fazerem o mal, qual é a responsabilidade Dele,
afinal? A mesma pergunta se aplica ao conceito de Mestres
506

Cósmicos. Afinal, se eles não são capazes de impedir o mal, qual


seria a responsabilidade deles?

O leitor pode dizer que a função dos Mestres Cósmicos seria


influenciar as pessoas a fazerem o bem, mas elas podem não
escutar. Essa perspectiva, no entanto, sempre me pareceu
indigesta. Isso porque ela esvazia todo o esforço de indivíduos,
empresas e nações na resolução de problemas da humanidade.
Se cada solução pensada para um problema humano é mérito de
um Mestre Cósmico que nos ajuda a partir dos planos
espirituais, onde entra o mérito das pessoas encarnadas? Os
seres humanos são tão somente um receptáculo de forças
espirituais acima deles e não possuem mérito algum em sua
própria razão?

Não sei se o leitor consegue captar, mas entender que as


soluções para os problemas ou a evolução humana advém da
inspiração de seres espirituais desencarnados faz com que as
pessoas de carne e osso sejam capazes apenas de coisas ruins.
Em outras palavras, quando os seres humanos causam duas
guerras mundiais, eles são responsáveis pelo mal. Mas quando
se unem para resolver seus problemas, é porque estão sob a
“inspiração de Mestres”. Essa ideia, portanto, esvazia os seres
humanos de responsabilidade pelo bem que fazem.
507

Pessoalmente, eu sempre achei isso meio esquisito e nunca


consegui aceitar totalmente essa proposta de pensamento. No
final, quando terminaria um humano e começaria um Mestre
Cósmico? Mas os problemas não param por aí. Se há Mestres
que cuidam de nações, como afirma a Ordem Rosa-Cruz, por
que há países totalmente falidos, corruptos, e violentos, ao passo
que há nações muito desenvolvidas? Será que os Mestres não
cuidam dos mais pobres? Será que certos países são de um jeito
porque “não ouvem os Mestres”?

Podemos dar várias respostas a essas perguntas, mas isso não


torna o assunto menos especulativo. O que quero dizer é que por
mais que admitamos que haja mestres desencarnados que
auxiliam a humanidade na sua evolução espiritual, a
humanidade continua tendo problemas insolúveis ou bastante
difíceis de se resolver. Muitas coisas não são resolvidas não é
porque as pessoas não querem ou não ouvem Mestres, mas é
porque a vida é cheia de dilemas e funciona como um cobertor
curto. Você cobre de um lado e falta do outro. Dizer que esses
problemas advém da nossa incapacidade de ouvir entidades
espirituais sempre me pareceu bobo.

Ademais o que aparentemente melhorou a vida de muitas


pessoas ao redor do mundo foi o comércio, a abertura dos
mercados e a Tecnologia. Se isso tudo advém de um “influxo
espiritual” do alto ou se é o resultado da experiência humana
mais material num processo de tentativa e erro, é uma questão
508

de interpretação subjetiva. Igualmente, a percepção de que


Mestres Cósmicos guardam nações e países sempre me lembrou
muito a ideia católica de santo padroeiro. Dessa forma, a
misticismo muitas vezes me parece apenas uma religião com
novas roupagens.

Seja como for, a ideia de que existem Mestres Cósmicos que


estão sempre ajudando a humanidade e os indivíduos de forma
oculta muito frequentemente resvala em certa teoria
conspiratória. A mente que crê nisso, por vezes, passa a acreditar
em mensagens cifradas deixadas por essas entidades espirituais
em alguns eventos da humanidade. Também crê que eles estão
influenciado grandes decisões humanas na ONU, de forma
secreta. Alguns chegam ao ponto de fazer alguma correlação
dessas entidades com alienígenas. A própria ideia dos Iluminati
como um grupo secreto que controla a Terra tem muitos pontos
de convergência com tal proposta de pensamento.

Como vemos, a proposta de Mestres Cósmicos que atuam


secretamente nos assuntos da Terra é um campo no qual se deve
caminhar com cuidado para não sair devaneando por aí. Do meu
ponto de vista cético, a ideia de que existem forças ocultas
guiando o mundo, sejam elas espirituais ou materiais, voltadas
para o bem ou para o mal, quase nunca termina bem.
509

Outro problema da ideia de Mestres Cósmicos que me


incomodava era a sua relação com a Ordem Rosa-Cruz. A
organização dizia que o próprio Kut Hu Mi seria um dos seus
hierofantes e ela estaria diretamente sob sua inspiração. Peço aos
leitores que guardem essa ideia, pois ela será problematizada no
último capítulo deste livro. Por agora, apenas digo que mediante
todas as espiritualidades que existem no mundo, a ideia de que a
minha Ordem específica estava sob a proteção de um Mestre
Cósmico específico sempre me trouxe alguma desconfiança.
Isso significa que todas as outras espiritualidades não têm
nenhum Mestre Cósmico? E se sim, uma vez que estes Mestres
são seres evoluídos, essas organizações também teria a Verdade?
Se sim, por que eu deveria frequentar a minha Ordem Rosa-
Cruzes específica e não outras organizações?

Como o leitor pode perceber, a ideia de que há Mestres em um


plano espiritual nos protegendo e nos guiando tem muitos
desdobramentos. Com o tempo, eu comecei a sentir que a noção
de Mestre Cósmico é quase uma versão coletiva da noção de
anjo da guarda, por exemplo. A diferença é que enquanto o anjo
é um protetor individual, o Mestre Cósmico seria um protetor
comunitário.

Todas essas ideias começaram a me parecer uma tentativa de


minorar a sensação de desamparo cósmico do ser humano que
foi jogado no mundo e não sabe o que está fazendo aqui. Mas a
verdade é que simplesmente não sabemos se há qualquer coisa
510

espiritual nos guiando individual ou coletivamente. Muitos


acreditam nisso, mas certeza, ninguém tem. Para cada situação
que acreditamos sermos protegidos por entidades espirituais, há
milhares de outras situações em que outras pessoas sofrem com
as contingências da vida e tantos os Mestres Cósmicos quanto os
anjos da guarda parecem nada fazer.

32.1. Os fundadores das religiões


Na discussão sobre os Mestres Cósmicos existe outro aspecto
que gostaria de conversar com os leitores. Trata-se da narrativa
que a Ordem Rosa-Cruz desenvolve com relação às religiões.
Segundo a organização, os grandes movimentos religiosos do
planeta teriam sido fundados por seres que atingiram a
iluminação e que reencarnaram na Terra para ajudar a
humanidade a evoluir. Dentro eles estariam Moisés, Buda, Jesus,
Confúcio, Plotino, Maomé etc.

Trata-se de uma narrativa que afirma que todas essas figuras


servem à mesma Luz divina e que, apesar das diferenças
religiosas, todas elas estariam ligados a uma Tradição Primordial
que remontaria à Atlântida. A Ordem Rosa-Cruz chama este
grande movimento global de evolução da humanidade
propiciado por personagens de grande projeção histórica e
espiritual de ‘História da Luz’. Sob esta linha de pensamento,
haveria uma unidade nos ensinamentos desses iluminados. No
entanto, a organização também afirma que boa parte do que
511

estes Mestres ensinaram se perdeu com tempo pela distorção


que as religiões organizadas fizeram do que eles disseram.

Do meu ponto de vista, eu sempre considerei essa história muito


bonita. Trata-se de uma narrativa que procura unir todos os
movimentos espirituais do mundo e dá aos rosa-cruzes certo
senso de pertencimento a uma luz espiritual que haveria no
mundo, luz essa da qual eles seriam fiéis servidores. Também
esta história nos convence de que não estamos sozinhos no
mundo e que somos guiados por uma Inteligência Cósmica que
conduz a evolução da humanidade. Durante anos eu acreditei
nisso piamente. Um dia, porém, eu me indaguei: “Será que toda
essa história faz sentido ou esse discurso beira à ingenuidade?”.

Primeiramente, é preciso pontuar que qualquer um que olhe com


atenção o que esses fundadores das religiões falam, verá que
eles não dizem as mesmas coisas. Eles possuem opiniões muito
distintas sobre a vida após a morte, sobre o que é necessário para
se atingir um caminho de santidade, sobre a relação com a
tradição etc. Maomé, por exemplo, pregou a violência para
impor a sua fé. Confúcio dizia que a vida do indivíduo tem
muito pouco valor e ela deve estar submetida ao Estado, algo
que a cultura ocidental considera um absurdo. Buda disse para
não nos apegarmos muito às coisas materiais, ao passo que os
ensinamentos de Jesus não necessariamente nos ensinam isso.
512

Em função disso, eu comecei a achar que a proposta rosa-cruz


de que a essência dos ensinamentos dessas pessoas era a mesma,
era simplesmente uma narrativa imaginativa. Sua função era
complementar a ideia de que somos guiados por algo
transcendente. Mas para além disso, eu comecei a fazer um
questionamento muito ousado e que é capaz de chocar algumas
pessoas. Comecei a me indagar: “Será que indivíduos que
fundaram grandes religiões foram tão iluminados assim?”.

Se tivermos alguma abertura mental e olharmos com atenção,


personalidades históricas como Jesus, Maomé, Confúcio etc
sequer sabiam da existência dos vírus e bactérias, do átomo, dos
exoplanetas, dos antibióticos etc. Também não foram eles, por
exemplo, que criaram as sanções econômicas como forma de se
evitar a guerra. Qualquer um que olhe para esta questão de
forma honesta saberá que, comparativamente ao que sabemos
hoje, o conhecimento que essas pessoas tinham certamente era
muito limitado. Mas isso traz algumas questões incômodas.

Durante séculos, por exemplo, muitos indivíduos e grupos


inteiros foram acusados de bruxaria e responsabilizados pelo
surgimento de pestes na sociedade, o que resultou em
perseguições e morte. Ora, se esses iluminados eram tão sábios
assim e inspirados pela Inteligência Cósmica, por que no
período em que eles vieram não avisaram a humanidade sobre a
relação entre doenças e os seres microscópicos, evitando a morte
de inocentes? Por que somente séculos depois da vinda de Jesus
513

é que se descobriu os vírus e bactérias, os antibióticos e que


doenças não tinham relação com bruxaria?

Essas perguntas pouco a pouco começaram a me incomodar.


Ademais, a ideia de que as religiões são o resultado de um
impulso espiritual para ajudar a humanidade evoluir começou a
me trazer certo constrangimento. Do ponto de vista histórico, a
contribuição das religiões para a humanidade ainda é algo tema
de muito debate. Os primeiros cristãos e muçulmanos destruíram
a cultura clássica com uma virulência e um fanatismo poucas
vezes vistos na humanidade. Os ensinamentos de Confúcio são
base para um tipo de totalitarismo estatal que sufoca as
individualidades e cria a ditadura chinesa e norte coreana, por
exemplo.

O leitor pode argumentar que essas religiões também trouxeram


ensinamentos de paz, amor, união e tudo o que acontece de mal
nessas religiões é por ignorância dos homens. Neste caso, os
fundadores das religiões em si eram pessoas iluminadas, mas
suas ideias foram desvirtuadas. Esta é uma desculpa usada
amiúde e durante muito tempo eu acreditei nela, mas hoje em
dia eu tenho sérias dúvidas sobre sua veracidade.

Repare o leitor como todo mundo sempre desvirtuou os


ensinamentos desses mestres. Nesses séculos ninguém acertou
nada nos ensinamentos deles? Fato é que este argumento me
514

parece bobo. O que as pessoas fazem das religiões é exatamente


o que está escritos nos seus livros sagrados. Não dá para tapar o
Sol com a peneira. Apesar de todas as coisas boas que elas
podem ter trazido, a história das religiões é também uma história
de violência, fanatismo e ignorância. Não é possível negar que
todos os horrores que se faz em nome da religião é inspirado nos
seus livros-base.

Certamente, os fundadores das religiões não podem ser


responsabilizados pelo que as pessoas fazem em seu nome, mas
se seguirmos o que o rosacrucianismo propõe vemos que há um
problema neste argumento. A Ordem Rosa-Cruz afirma que
estes tais mestres fundadores das religiões tinham uma grande
habilidade de presciência. Em sendo isso verdadeiro, como eles
não previram o que as pessoas fariam com seus ensinamentos no
futuro? Alguns dizem até que personagens como Buda, Maomé,
Jesus, Moisés etc não queriam fundar religiões e que a criação
destas representa um desvirtuamento de seus ensinamentos. Ora,
mas se eles não vieram à Terra para fundar religiões, o que eles
vieram fazer aqui? O que queriam, afinal?

No final das contas, a ideia de todos os iluminados eram pessoas


esclarecidas que trouxeram luz para a humanidade e que foram
os homens que os desvirtuaram é uma narrativa que o
Misticismo desenvolveu para superar as divisões que existem
entre as religiões. A construção dessa história pode até ter
515

alguma validade espiritual, mas não é “a verdade” em si, a


menos que queiramos fazê-la assim.

Por fim, outro argumento que sustenta a narrativa de que os


fundadores das religiões seriam seres iluminados enviados
diretamente da consciência cósmica para fazer a humanidade
evoluir é o fato de que os movimentos religiosos fundados por
esses mestres influenciam bilhões de pessoas ainda hoje. Isso se
daria porque essas religiões foram “cosmicamente inspiradas”.

Realmente, o fato de religiões como os cristianismos e os


islamismos terem mais adeptos do que o xamanismo indígena,
por exemplo, surpreende. Mas é possível que haja outras razões
para isso, como questões políticas, geográficas, históricas e
econômicas. A expansão dos cristianismos, por exemplo,
aconteceu por causa do colonialismo e do imperialismo
europeus. O problema é que não é só isso.

A expansão dessas religiões inspiradas por “mestres” foi um


processo de extrema violência contra povos e culturas
autóctones nas Américas, na África, na Oceania e na Ásia. E aí
voltamos ao cerne da discussão: o tal “Cósmico” do bem, ele
está de acordo com toda ignorância, fanatismo, sectarismo,
violência e sofrimento gerados pelas religiões e seus dogmas?
Culturas e povos inteiros foram exterminados neste processo. A
mente cósmica e os Mestres Cósmicos inspiraram toda essa
516

violência? Lembremo-nos que o pensamento rosa-cruz enxerga


que os missionários cristãos tinham o objetivo de fazer índios
“evoluírem” espiritualmente.

Com o tempo, toda essa história que a Ordem Rosa-Cruz


contava acerca das religiões começou a me dar engulhos. Ela
força a barra no sentido de dar algum significado às
espiritualidades do mundo, mas hoje em dia, tal narrativa me
traz mais perguntas do que respostas. Só com muito boa vontade
podemos acreditar numa unidade primordial entre todas as
religiões. Se fosse assim não havia várias correntes dentro de
uma mesma ideologia metafísica. Bastaria todo mundo se sentar,
conversar e voltar para a tal “tradição primordial” da luz, mas
não é bem assim que as coisas acontecem.
517

33. OS HORIZONTES ESPIRITUAIS


DOS ROSA-CRUZES

Todo sistema de pensamento metafísico possui aquilo que


podemos chamar de horizontes espirituais e mentais tanto no
plano terreno quanto no plano espiritual. Nos cristianismos e nos
islamismos o horizonte é evitar o pecado em vida para então se
atingir o céu quando morrermos. O rosacrucianismo também
possui seus horizontes – um para a vida material e outra para o
pós vida. O primeiro se trata de um conceito chamado ‘domínio
da vida’. O segundo seria a própria iluminação, que faria com
que as personalidades alma não precisassem mais se reencarnar.
Mas será que essas coisas fazem sentido? Vamos ver um pouco
sobre estes conceitos.

33.1. O domínio da vida


Embora a Ordem Rosa-Cruz que eu fazia parte não
necessariamente dissesse que por meio dos seus ensinamentos
todos os membros poderiam virar um Mestre Cósmico, ela fazia
uma promessa ao membro. Trata-se da ideia de que podemos
atingir uma espécie de domínio da vida por meio dos seus
ensinamentos. Durante anos eu me pautava por isso, mas a partir
de um determinado momento eu comecei a problematizar esta
proposta. Afinal, o que seria ter um domínio da vida?
518

Quando queremos responder qualquer pergunta, inicialmente


devemos nos deter sobre o significado das palavras que estamos
usando. Em função disso, qualquer um que se ponha a refletir
sobre o significado das palavras ‘domínio’ e ‘vida’ sabe que as
duas coisas são praticamente antagônicas. Qualquer pessoa que
já tenha atingido certa maturidade etária sabe que o domínio que
temos sobre a vida, seja a nossa ou a dos outros, é muito
relativo. Pessoas morrem, nascem, perdem o emprego, tragédias
acontecem etc e tudo isso totalmente à nossa revelia. Em função
dessas coisas, eu comecei a me indagar o que seria esse tal
domínio da vida.

A Ordem Rosa-Cruz que eu estava não explicitava claramente o


que ela queria dizer com esta proposta e a deixava para os
próprios rosa-cruzes elaborarem. A partir daí eu fui buscar
minhas respostas prestando atenção no ambiente que eu estava.
Ao observar os ensinamentos rosa-cruzes com mais atenção,
notei que a organização dava muita ênfase nas práticas de
criação mental para criarmos a contraparte espiritual de nossos
desejos. Logo, quando eu ouvia a expressão “domínio da vida”,
eu ficava com a sensação de que este domínio poderia ser
atingido por meio deste tipo de exercício. Mas além de todas as
críticas com relação à criação mental que tecemos no capítulo
sobre poderes paranormais, havia outras coisas que me
inquietavam nesta proposta.
519

Durante minha vivência em Lojas Rosa-Cruzes, conheci pessoas


da mais alta espiritualidade e envergadura mística. Eram seres
que só de você se aproximar você sentia uma paz intensa. Eram
velhinhos agradáveis de se conversar. Gente de mente aberta e
de olhos vivos e que eram rosa-cruzes no sentido mais poético
da frase. Aquelas pessoas foram uma inspiração para mim
durante muito tempo. Eram, contudo, seres humanos de carne e
osso, sujeitas a todo o tipo de erro e acerto. Não eram
iluminados propriamente ditos. Mas não era só isso.

Muitos morreram de câncer e outros de forma súbita. Outros


tiveram filhos e netos acometidos por acidentes e doenças
graves. Outros terminaram seu casamento de forma conflituosa
ou ficaram desempregados. Em outras palavras, eram pessoas
que, tais como todas as outras, tinham os mesmos problemas de
todo mundo. Aparentemente, nem os exercícios de criação
mental os tornava imunes às agruras e vicissitudes da vida.
Logo, o que seria dominar a vida?

Talvez essa proposta se baseasse não em controlar as


circunstâncias exteriores por meio de exercícios de criação
mental, mas sim controlar a nossa forma de encarar as coisas às
quais somos submetidos. Assim, talvez não pudéssemos mudar o
fato da perda de um ente querido ou de um acontecimento
trágico, mas pudéssemos mudar nossa relação com esses
fenômenos. Isso significa desenvolver certa serenidade mesmo
quando somos submetidos forçadamente a sofrimentos. Nesse
520

sentido, o dominar a vida passaria necessariamente pelo modo


como encaramos os fatos e pelo desenvolvimento de virtudes de
nossa alma.

Essa segunda proposta me parece bonita e até hoje eu tendo a


concordar com ela. O problema é que caso esta seja a linha
argumentativa, a Ordem Rosa-Cruz se aproximaria muito mais
de uma autoajuda do que de uma Escola de Mistérios. Mas o
problema não é só esse. A ideia de mudar o modo como
encaramos as coisas é positiva, mas eu tenho muitas dúvidas
sobre se podemos ter total controle sobre o furacão cheio de
altos e baixos que é o existir humano na Terra. Será mesmo que
alguém é capaz de sempre dominar as suas reações mediante os
fatos como sugere essa proposta rosa-cruz? Eu passei, então, a
me indagar: “Será que isso não seria exigir demais de nós
mesmos?”.

Fato é que por mais que eu me sentisse bem com a ideia de um


domínio da vida, eu comecei a perceber que nunca tinha
encontrado ninguém que tivesse atingido essa meta. No decorrer
do tempo, este pensamento de que é possível dominar a vida
começou a me dar uma sensação de que podemos ser superiores
às contingências da vida. Não seria isso muita arrogância? Será
que essa proposta da Ordem Rosa-Cruz não seria muita
pretensão?
521

Nessa discussão, meu pensamento retornou às reflexões acerca


do papel da Tecnologia no mundo contemporâneo. Por mais que
o Misticismo nos oferecesse meios de supostamente dominar a
vida, a Ciência e a Tecnologia já vem nos dando essa
possiblidade em diversos setores da existência. Se quisermos
aumentar a sociabilidade, por exemplo, devemos nos harmonizar
mentalmente com o planeta Vênus ou usar aplicativos de
relacionamentos?

É verdade que a Ciência ainda não venceu a morte e tampouco


pode controlar todas as contingências às quais nossa vida é
submetida e talvez nunca haja um controle absoluto sobre isso
tudo. Mas isso serve tanto para o conhecimento científico quanto
para o pensamento rosa-cruz. Ora, se nem os maiores cientistas
dizem que é possível dominar absolutamente tudo na vida, por
que o rosacrucianismo advogava para si essa capacidade?

Ademais, existe toda uma literatura no mercado editorial que é


capaz de nos dar algum domínio maior sobre nós mesmos e que
não passa necessariamente pelo Misticismo. Se quisermos
aumentar nossa liderança, devemos nos inspirar no planeta
Júpiter ou ler livros para aprender a aumentar nossa capacidade
de liderar?

Pouco a pouco, comecei a notar como a ideia de dominar a vida


pode ser um pouco imaginativa, mas também traz perigos. Isso
522

porque caso você não consiga controlar os acontecimentos ao


seu redor e nem dominar as suas emoções perante ele, isso faz
com que você se sinta um rosa-cruz fracassado. Some-se a isso
aquele pressuposto rosa-cruz de que você seria o único
responsável pela sua evolução e o resultado é um sentimento de
inferiorização.

Por fim, não estou duvidando da sinceridade da Ordem Rosa-


Cruz quando ela afirma que seus membros podem atingir o
domínio da vida. Tenho maior respeito por essa proposta e
acredito que podemos influenciar muitos acontecimentos por
meio das condições materiais que criamos ao nosso redor.
Também creio que tentar controlar nossa reação perante os fatos
é bastante válido. Mas a menos que alguém me dê um exemplo
concreto de alguém que atingiu o domínio da vida, essa proposta
começou a me causar profunda desconfiança.

33.2. A iluminação e o dia depois dela


Na discussão sobre se podemos dominar a vida ou não, advém a
ideia de iluminação. A Ordem Rosa-Cruz afirma que Deus seria
a própria Perfeição. No entanto, enquanto seres encarnados, nós
jamais atingiremos este estado. Durante nossa vida, o máximo
que podemos atingir é uma espécie de iluminação, quando não
precisaremos mais reencarnar. Neste ponto continuaríamos
nossa jornada rumo a Deus e à sua Perfeição a partir do plano
espiritual, de uma forma que não compreendemos bem.
523

Seria neste lugar que se encontram Mestres Cósmicos e os


fundadores das religiões, por exemplo. O domínio da vida pode
ser encarado como uma espécie de consequência desse estado
iluminado. Durante muito tempo eu almejei atingir a iluminação,
mas ao longo do tempo algumas perguntas começaram a se
colocar. É realmente possível virar um “iluminado”? O que é ser
um iluminado? Aliás, qual é o roteiro para isso?

Inicialmente, as mesmas questões do tópico anterior podem ser


trazidas para essa discussão. Uma vez que eu nunca tinha visto
nenhum rosa-cruz ter obtido um domínio da vida, também nunca
tinha encontrado ninguém que tivesse atingido a iluminação.
Este “produto” era atinente a desconhecidos e invisíveis Mestres
Cósmicos e a fundadores das religiões. Com exceção destes (que
eu também nunca vi), eu nunca tinha visto alguém ao meu redor
de carne e osso obtendo esse produto que tanto o
rosacrucianismo quanto os budismos, por exemplo, dizem
oferecer.

Na verdade, encontrei rosa-cruzes que eram pessoas cheias de


erro, defeitos de caráter e capacidade de fazer o mal, assim
como em qualquer organização espiritualista. Inclusive, muitos
rosa-cruzes escreviam para a Grande Loja da minha Ordem
reclamando sobre quão difícil era a convivência em Loja e sobre
os conflitos que havia nela. Para se defender, a organização
repetia insistentemente que as Lojas eram compostas por seres
524

humanos falhos e imperfeitos. Deveríamos ver nestes conflitos


uma oportunidade para a nossa evolução interior.

O problema é que embora este seja um argumento bonito,


conforme os anos se passavam, isso acabava por dar uma
sensação de que os ensinamentos rosa-cruzes não funcionavam.
Se o rosa-cruz não necessariamente tinha que desenvolver
poderes paranormais para evoluir e também não
necessariamente evoluía em seu caráter e sua personalidade,
para que servia o rosacrucianismo? Ademais, se por um lado a
Ordem Rosa-Cruz não é responsável pelo que seus membros
fazem nas Lojas e nem pelas dificuldades surgidas no convívio
humano natural, por outro lado, não é pelos seus frutos que se vê
o valor de uma árvore? Ao longo do tempo, o fato de ver tantas
imperfeições nas pessoas que eram membros da Ordem Rosa-
Cruz começou a me deixar um pouco melancólico com essa
ideia de iluminação.

No final, o caráter do rosa-cruz não era melhor e nem pior do


que qualquer pessoa em qualquer outra espiritualidade ou
ideologia metafísica. Aquelas pessoas eram capazes de fazer o
bem ou o mal, errar e acertar como qualquer outros. Mas havia
ainda outras questões acerca do conceito de iluminação que eu
comecei a me colocar. Vamos supor que realmente existe um
estado que podemos chamar de iluminação de consciência. Que
tipo de consequências isso traz?
525

33.2.1. O papel do sofrimento


Conforme eu me detinha mais profundamente na ideia de
evolução, resvalei para o debate sobre o papel que o sofrimento
teria nessa discussão. Embora o rosacrucianismo não faça um
culto a ele como outras ideologias metafísicas, seu símbolo – a
rosa que nasce sobre a cruz – sugere que o sofrimento é parte do
processo rumo à iluminação. A Ordem até afirma que que a cruz
representa as vicissitudes da vida, ao passo que a rosa e seu
desabrochar seria o símbolo do desenvolvimento de nossa alma.

A palavra ‘vicissitude’ não significa exatamente sofrimento, mas


no meu entender, ela sugere que, de alguma forma, ele é parte da
vida. Aqui também podemos pensar que as ideias de ciclos e
carma trazem alguma inexorabilidade do sofrimento. Seja como
for, devemos nos perguntar: “Será que para uma pessoa atingir a
iluminação, ela deve ser feliz o tempo todo?”. E em seguida vem
uma segunda questão.

A ideia de que precisamos das vicissitudes da vida para um dia


atingirmos a iluminação traz algo de contraditório. Isso porque
ao mesmo tempo em que os ensinamentos rosa-cruzes nos
convidam a entrar na vida, ela afirma que o objetivo final é sair
da vida, não precisando mais reencarnar. Nesse sentido, é muito
difícil saber onde está o meio termo entre participar da vida e ao
mesmo tempo interagir com tudo o que de ruim há no mundo.
526

33.2.2. O tédio cósmico


Do meu ponto de vista, a ideia de que rumamos em direção a
uma iluminação da consciência sempre me pareceu muito mais
espirituosa do que a perspectiva cristã de céu e de inferno. Com
o tempo, no entanto, comecei a me indagar o que nós vamos
ficar fazendo no plano espiritual pelo resto da Eternidade depois
que atingirmos a iluminação.

Podemos responder essa pergunta da forma mais cliché possível,


apelando para coisas como “isso é um mistério”, “você deve
buscar a resposta no seu Mestre Interior”, “nosso cérebro não é
capaz de atingir este patamar de entendimento” e outras coisas
do gênero. Falamos isso porque de fato estas são as únicas
respostas que podemos dar. Por mais que tenhamos crenças que
embasam nosso modo de vida e nossa compreensão das coisas,
fato é que a vida, a consciência e o existir são um mistério
mesmo. Não temos a menor ideia exata do que vem depois e
temos que lidar com isso da melhor maneira possível. Mas as
coisas não param por aí.

Ora, se o objetivo das almas é atingir tal estado de consciência


que ninguém mais precisa reencarnar, o que acontecerá quando
o Sol se apagar e a Terra for destruída, algo que vai ocorrer
daqui a alguns bilhões de anos? Para onde irão essas bilhões de
personalidades alma? Ficarão vagando no Nada absoluto? Aliás,
onde estavam todas essas almas antes da Terra e do Sol
surgirem? A resposta para isso é que elas continuarão sua
527

evolução em outros planetas, o que é absolutamente


especulativo. Até o universo um dia vai se apagar. Como ficará a
evolução da alma universal?

33.2.3. É possível toda a Humanidade se iluminar?


Além de todas essas inquietações individuais, havia também
questões coletivas que eu passei a me colocar. Isso porque se
cada indivíduo ruma à iluminação, isso significa que um dia
toda a humanidade irá se iluminar? Alguns textos esotéricos
sugerem que sim e quando isso acontecer, o planeta se
espiritualizará e a matéria não terá mais utilidade. Mas será
possível que TODA a humanidade atinja este objetivo? E a partir
daí o que acontecerá? Ninguém mais terá filho para não
chegarem almas novas e pouco evoluídas?

Além disso, como será o cotidiano de uma humanidade


iluminada? Ficaremos meditando o dia inteiro? Quem vai lavar a
roupa, fazer comida e cuidar dos sistemas de esgoto da cidade?
O mundo atualmente tem oito bilhões de pessoas. Todas essas
pessoas passarão em algum momento para uma iluminação?
Considerando que a espécie sapiens tenha pelo menos um
milhão de anos, quantas pessoas já devem ter atingido a
iluminação? É possível atingir a iluminação trabalhando 12
horas por dia ou só quem é aposentado atinge esse estado
existencial?
528

33.2.4. A eliminação do Ego


Nessa discussão sobre iluminação, entra o papo sobre o Ego. É
particularmente nos budismos que se vê uma ênfase muito
grande nessa luta contra o Ego. Muita gente acha que este tipo
de luta se dá no combate ao egocentrismo e ao egoísmo, mas
não é disso que se trata essa proposta. A ideia de lutar contra o
Ego é que todos os nossos impulsos negativos, naturais e
animais, devem ser controlados. A partir daí estaríamos
exercendo controle sobre nosso Eu e atingindo estados de
consciência mais profundos.

No caso da Ordem Rosa-Cruz que eu estava, ela também ensina


que conforme vamos evoluindo, nosso Ego vai desaparecendo e
a gente vai se fundindo na alma cósmica. Durante muito tempo
eu acreditei nisso, mas um dia eu me perguntei: “Ora, eliminar o
Ego é deixar de ser Eu mesmo? Onde fica a minha
personalidade individual e meus gostos nessa narrativa?”.

Ademais, comecei a notar que esse discurso de lutar contra


todos os impulsos do Ego sob o argumento de que eles são
negativos, na prática, é muito complicado. Como exemplo,
imaginemos uma esposa que tem um marido que joga vídeo
game o tempo todo. Ela não quer que ele jogue. Ele quer jogar.
Quem tem que eliminar o ego e os seus desejos aí? O marido ou
a esposa? Na vida real, se você elimina totalmente as suas
vontades, isso tem alto potencial de te transformar em um zumbi
que só aceita a vontade dos outros.
529

33.2.5. Conclusões
Para encerrar estas reflexões, não podemos ignorar o fato de que
aparentemente nunca mais surgiram pessoas iluminadas na
humanidade desde a morte de Maomé. Ora, por que a
inteligência cósmica só enviou seres iluminados para nós
quando não havia fotografia, filmadoras, métodos científicos,
telescópios etc? A tradição budista tibetana, por exemplo,
mantém viva a chama de sua mitologia alimentando a ideia de
que os Dalai Lamas seriam seres iluminados que se reencarnam
ciclicamente. Na tradição judaico-cristã, nenhum iluminado
jamais veio à Terra nesses últimos séculos?
Por mais que eu respeite a ideia de que existe uma trama
cósmica que nos leva rumo a uma evolução da humanidade,
talvez a grande expressividade que essas religiões tenham seja
fruto mais de um acaso e de uma construção política e militar do
que da inspiração divina. Esta também é uma possibilidade.
Afinal de contas, por que tão poucas pessoas atingem a
iluminação? Mas as querelas em torno deste conceito não param
por aí.

Nas minhas observações, a noção de iluminação sempre criou


uma cultura de fachada moral nas Lojas Rosa-Cruzes. Isso
porque em muitos desses ambientes as pessoas acabam por
fingir que são iluminadas da mesma maneira como religiosos
fingem ser de Deus dentro das igrejas. Pessoalmente, prefiro as
pessoas que se sabem imperfeitas. Com o tempo, essas pessoas
me pareceram muito melhores do que aquelas que criavam
530

fachadas de Perfeição. Estas últimas passaram a me dar medo,


apesar da sua fala macia e do seu rosto teatralmente sereno. A
meu ver, um coração iluminado, surge da sinceridade, da pureza
e das agruras da vida e não de um fingir-se de luz.

Por fim, se a iluminação existe, quem tem a receita para ela? Por
que tão poucas pessoas a atingem, uma vez que a Inteligência
Cósmica é inteligente? A ideia de iluminação traz uma sensação
de que é fácil evoluir espiritualmente, mas a vida é cheia de
dilemas. Querem um exemplo? Todos ouvimos que devemos nos
melhorar enquanto pessoas. O problema é que também ouvimos
que devemos nos aceitar como somos. Afinal, qual é o caminho
correto? Mudar quem somos ou aceitar como somos?

Em especial a cultura popular está cheia de contradições que


mostram que os caminhos para o bem viver nunca são tão
óbvios assim. Ouvimos que é desde pequenino que se torce o
pepino, ao mesmo tempo que acreditamos que pau que nasce
torto nunca se endireita. Afinal, as pessoas são do jeito que são
ou podem ser mudadas pela educação? Ouvimos dizer que os
opostos se atraem, ao mesmo tempo em que dizemos “cada qual
com seu igual”. Falamos “duas cabeças pensam melhor do que
uma” ao mesmo tempo em que acreditamos que “panela em que
muitos mexem, sempre dá errado”. Conseguem perceber que
nada é tão fácil quanto parece?
531

Com essas reflexões não quero dizer que não possamos nos
aperfeiçoar como seres humanos. Mas ter em mente um
horizonte tão elevado como uma iluminação traz uma série de
consequências. Se você não é um iluminado, automaticamente
você sempre será um apagado. Em outras palavras, alguém
inferior com relação a quem supostamente atingiu essa
iluminação. Se você não domina a vida, você sempre será um
fracassado por não ter controle sobre você mesmo e sobre os
fatos ao seu redor. Ora, será que as coisas são tão simples assim?
Tenho minhas dúvidas...
532

34. VALORES DA ORDEM ROSA-CRUZ


Como vimos, a Ordem Rosa-Cruz possui um sistema de ensino
que abarca os mais diferentes assuntos. Seu conhecimento
abrange desde um entendimento próprio sobre o universo e os
seres humanos até exercícios e experimentos para o
desenvolvimento da mente. No entanto, a organização também
se assenta em determinados valores que ela sempre buscou
irradiar para os seus membros. Esses ideais se relacionam ao
modo como a Ordem se posiciona frente às questões do mundo e
à maneira como os membros devem se comportar
individualmente. Vamos ver um pouco sobre isso.

34.1. O culto ao silêncio e à discrição


O pensamento místico sempre teve especial relação com o
silêncio. Enquanto nas igrejas vemos cânticos, nas mesquitas
encontramos rezas em voz alta, nas religiões africanas
escutamos atabaques, no universo esotérico e especialmente no
rosacrucianismo há um culto muito particular ao silêncio. Isso
porque se acredita que seja por meio dele que podemos calar o
nosso cérebro e ouvir a voz do nosso Mestre Interior. Em outras
palavras, silenciamos a mente objetiva e deixamos a mente
subconsciente falar.

No entanto, a relação da Ordem Rosa-Cruz têm com o silêncio


vai além disso e ela ganha vários contornos dentro desta cultura
533

espiritual. Para os rosa-cruzes, frequentemente, o silenciar


também implica no calar e no ignorar. Eu até ousaria a dizer que
este movimento de ignorar certas coisas talvez seja uma das
principais formas que os rosa-cruzes têm para se proteger do mal
e dos ataques à organização. A ideia aí é que como os rosa-
cruzes creem que as coisas só acontecem por meio de um
triângulo, quando você ignora algo, você romperia uma das
pontas deste triângulo.

Como desdobramento do culto ao silêncio, a Ordem Rosa-Cruz


ensina aos seus membros a importância da discrição. Isso se
aplica não só à própria natureza dos ensinamentos rosa-cruzes –
reservado aos membros – como também ao serviço que
deveríamos prestar à humanidade. Os rosa-cruzes devem ajudar
ao próximo sem alardear suas ações. A base para tal princípio
está na Bíblia, em Mateus 6:3 “Tu, porém, quando deres esmola,
não saiba tua mão esquerda o que faz tua direita, para que tua
esmola fique em segredo” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002). A
ideia aí é auxiliar os outros sem nos envaidecer ou querer
alguma coisa em troca, prestando um serviço abnegado.
Outrossim, seria na natureza discreta de nossas ações que
encontramos proteção contra a ignorância alheia. Mas será que
silêncio e discrição são valores efetivos e reais?

Do meu ponto de vista, durante muito tempo eu apreciei e talvez


até hoje ainda tenho apreço ao silêncio e à discrição como
valores para trazer comigo em determinadas situações. Ademais,
534

o silêncio das catedrais e o serviço abnegado são coisas que


preenchem minha alma (se é que existe alguma alma). O calar
nos impõe certa prudência na hora de falar as coisas. O ignorar
me ajuda a controlar meus impulsos mais destrutivos e a não
trazer para a minha vida coisas que me fazem mal. Para reforçar
esses valores em mim eu sempre lembrava da frase popular que
diz que “a palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro”.

No entanto, um belo dia, olhando para essa mesma cultura


popular, eu percebi que havia frases que contradiziam essa
alegada importância do silêncio e da discrição. Entre elas estão
“Quem tem boca vai à Roma”, “Quem não chora não mama”,
“Quem não é visto não é lembrado” ou “Quem não se comunica,
se trumbica”. Adiciona-se a isso todo o sistema do mercado de
trabalho em que vivemos no qual você deve aparecer, vender seu
nome e se tornar conhecido para valorizar sua mão de obra.
Tudo isso nos mostra a importância que têm o barulho, a
visibilidade e o falar. Esse foi o primeiro ponto que me fez
perceber que o culto ao silêncio e à discrição não eram valores
tão universais assim. E a partir daí vieram várias outras
situações que me ajudaram a ponderar melhor essas coisas.

Durante a minha jornada rosa-cruz, eu também comecei a me


voltar para as atividades e os debates políticos do meu país.
Nesse mundo, falar, se expressar e gritar para fazer sua voz ser
ouvida é extremamente necessário. O problema é que eu estava
dominado pelos valores rosa-cruzes e daí começou a surgir uma
535

tensão dentro de mim. Afinal, mediante os problemas do mundo


eu deveria cultivar o calar, o ignorar e a discrição ou deveria me
posicionar firmemente e arregaçar as mangas? Mediante uma
enxurrada de fake news que aparecem por aí, a gente deve
rebatê-las ou apenas ignorá-las? Nada é tão fácil quanto parece.

No meio deste nascente questionamento com relação a um valor


rosa-cruz tão basilar, de vez em quando me vinha na cabeça a
famosa frase do bispo anglicano Desmond Tutu “Se você fica
neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do
opressor”. Em função de todos esses contrapontos, algumas
indagações me vieram à cabeça. Se por um lado o silêncio é
positivo em alguns aspectos, quando ele é sinônimo de covardia,
pusilanimidade, passividade e ociosidade, principalmente diante
dos males do mundo e das injustiças? Quando a discrição é
importante e quando ela nos leva a um apagamento social e a
uma incapacidade de transformar efetivamente as coisas ao
nosso redor?

Estes questionamentos reforçaram em mim questionamentos que


já discutimos aqui, mas que vale voltar neles. Enquanto as
religiões divulgam a sua mensagem para todo mundo, a Ordem
Rosa-Cruz e outras Ordens iniciáticas focam na discrição
silenciosa. Ao fim, as religiões começaram a me parecer ter
muito mais envergadura moral e coragem do que certas
organizações iniciáticas marginais composta por meia dúzia de
536

nefelibatas. Enquanto o pensamento cristão está construindo o


tecido social, o rosacrucianismo é discreto e silencioso.

Ademais, vale lembrar que quando certos conhecimentos são


tratados de forma silenciosa, eles não passam pelo mecanismo
da autocorreção e do escrutínio público, constituindo um sistema
de pensamento voltado para si mesmo. O resultado disso é que
os rosa-cruzes dependiam demais do que um grupo reduzido de
pessoas (a administração da Grande Loja) têm a ensinar a eles.
Nas religiões é diferente, pois há uma grande circularidade de
pontos e contrapontos, críticas e contra críticas. Será mesmo que
esta atitude de culto ao silêncio e à discrição é algo tão valoroso
assim? – Indago-me.

No passar dos anos eu notei como os rosa-cruzes não eram, na


verdade, pessoas de mente aberta. Eles, na verdade, tinham
extrema dificuldade de operar com um debate público de ideias,
com críticas aos ensinamentos rosa-cruzes e com diálogos entre
visões divergentes. Qualquer crítica à organização, por exemplo,
muitos veem como um ataque e não como um convite a uma
discussão saudável. Na minha humilde percepção, o sistema
rosa-cruz de ensino que envia uma “Verdade” pelo correio na
qual o membro deve refletir sobre ela individualmente cria
pessoas isoladas e que não compartilham ideias.
537

A autodivinização proporcionada pelo rosacrucianismo tendia a


levar os membros para um isolamento da sua mente. A noção de
que você deveria manter segredo, discrição e silêncio sobre suas
reflexões fazia com que os frutos da Ordem Rosa-Cruz fossem
pouco perceptíveis no tecido social. E a culpa aqui nem é da
organização, mas da própria estrutura desses ensinamentos
místicos e esotéricos.

Neste ínterim, eu comecei a perceber que a Ordem Rosa-Cruz


que eu estava fugia de temas polêmicos ou de questionamentos
incômodos que as pessoas colocavam a ela. Qualquer pergunta
mais espinhosa, a administração da organização simplesmente
ignorava e não respondia. Eu comecei a perceber certa
malandragem nessa coisa de silêncio e discrição. Era uma forma
covarde e pusilânime de fugir das questões difíceis e
complicadas e ainda sair como uma organização sábia e séria.
Essa questão do silêncio, contudo, vai atravessar a Ordem Rosa-
Cruz de várias outras formas, como veremos a seguir.

34.2. O serviço à humanidade


Embora a Ordem Rosa-Cruz tenha uma plêiade de valores e
ensinamentos, um dos principais pilares da organização, ao
menos atualmente, talvez seja o serviço à humanidade. Este
serviço possui duas linhas principais. Uma coletiva e outra
individual. A coletiva se refere principalmente à mentalização de
determinadas situações que gostaríamos que ocorressem entre os
seres humanos. A ideia aí é visualizar a paz na Terra ou o planeta
538

envolvido em amor, luz, vida etc. Neste âmbito também entra a


transmissão mental de pensamentos de iluminação e inspiração
para certos líderes mundiais.

A maneira individual de servir à humanidade, por sua vez, seria


irradiar pensamentos de saúde, cura e harmonia para todos os
seres que sofrem ou para aqueles que solicitam uma espécie de
atendimento espiritual. Trata-se da mesma prática que ocorre em
muitas igrejas de colocar o nome das pessoas na mesa de
orações. A única diferença era que enquanto as igrejas usam a
ferramenta da prece, a Ordem Rosa-Cruz utiliza a ferramenta da
visualização mental. No entanto, as duas atividades possuem a
mesma essência – a ajuda ao próximo.

Do meu ponto de vista, eu sempre achei esse serviço à


humanidade algo muito bonito na Ordem Rosa-Cruz e foi isso
que me fez ficar durante muitos anos nela. Gostava de servir ao
meu próximo por meio de exercícios mentais e até hoje eu não
tenho nada contra este tipo de atividade. Apesar de ser um
cético, mentalizar o que se deseja para a humanidade e para o
meu próximo me parece uma atitude bonita e que não prejudica
ninguém, mesmo que ninguém nunca tenha conseguido provar
este poder da mente. No entanto, conforme fui amadurecendo,
alguns questionamentos começaram a entrar no meu coração.
539

Após anos servindo à humanidade mental e silenciosamente


dentro da Ordem Rosa-Cruz, eu comecei a me perguntar: “Ora,
será que o mundo realmente mudou em função de eu visualizar
paz na Terra? Será que a minha visualização acabou com a
fome? Será que minhas atividades mentais tornaram o mundo
menos violento? Será que o que eu faço realmente tem algum
efeito real no planeta?”.

O leitor pode argumentar que sim, pois o mundo hoje é muito


mais pacífico do que antigamente, onde havia mais guerras, mas
já vimos que este argumento não se sustenta em pé. Os
elementos que proporcionam isso são econômicos e sociais e
não espirituais. O pacifismo que por hora reina no mundo tem
muito mais a ver com a globalização, formas de distribuição de
renda, com a relação custo-benefício das guerras e com a bomba
atômica do que com visualização espiritual.

Em função de todas essas questões, com o tempo, essa proposta


rosa-cruz de servir à humanidade por meio do poder mental
começou a me causar um profundo estranhamento. Eu comecei a
olhar para as religiões e vi que muitas delas têm universidades,
escolas, hospitais, orfanatos, centros de caridade, bancam cursos
de formação para as pessoas mais pobres e algumas até
funcionam como agência de emprego. Eu olhava para todas
essas coisas e me perguntava “O que a Ordem Rosa-Cruz tem
além de ficar sentada enviando pensamentos de paz, luz, amor e
vida pro próximo?”.
540

Durante anos frequentando uma Loja Rosa-Cruz, eu só vi uma


vez atitudes de arrecadar alimentos para doar a quem precisa.
Mas já vi várias vezes a Ordem Rosa-Cruz ofertar viagens ao
Egito por altos valores em euros. Vejam bem, leitores, eu não
tenho nada contra o método rosa-cruz de servir à humanidade. A
questão é que dentro de mim, eu comecei a sentir falta de uma
ajuda mais substancial ao meu próximo. O método rosa-cruz de
servir ao outro do ponto de vista mental com base em silêncio e
discrição começou a me parecer estranhamente bobo perto de
religiões que metem a mão na massa. Errando ou acertando, elas
realmente transformar a vida das pessoas de forma muito mais
substancial do que irradiar pensamentos.

Além disso, a proposta de servir à humanidade visualizando e


fazendo criações mentais da Terra envolta em uma aura de luz,
amor e paz começou a me parecer algo infantil. Mas não
somente. Ela começou a me parecer constrangedora. No mundo
real, vemos a Rússia atacando covardemente a Ucrânia. Vemos
os talibãs no Afeganistão impondo um regime de terror à sua
população e várias outras guerras pelo mundo. Ora, voltando à
discussão do capítulo vinte e quatro sobre criação mental, se isso
funcionasse realmente, bastaria os rosa-cruzes ucranianos
visualizarem a Rússia desistindo da guerra para tudo ficar em
paz. No mundo real sabemos que a única que vai derrotar os
russos é o poder das armas. E o que se aplica à Rússia, se aplica
a todas os outros conflitos pelo mundo.
541

A ideia de que criar mentalmente certas coisas têm efeitos no


mundo real começou a me parecer uma infeliz tentativa de
apagar a realidade do mundo. Realidade esta baseada na lei do
mais forte, no poder das armas e da proteção militar.
Nesse caso, ser rosa-cruz é realmente um privilégio. Um
privilégio de morar em uma área longe de conflitos militares.
Esses rosa-cruzes que visualizam paz na Terra podem se dar ao
luxo de ficar sentado numa confortável cadeira meditando,
enquanto outras pessoas devem se submeter aos horrores da
guerra. Mas as coisas são assim desde que o mundo é mundo.

Vejam bem, caros leitores. Não tenho nada contra a proposta de


visualizar a paz na Terra semanalmente. Acho a proposta até
bonitinha. A questão é que a maturidade etária me fez perceber
que o mundo pode ser mais sombrio do que nossos desejos mais
sinceros de paz e amor. O que não significa que não devamos
cultivar esses desejos. O que estou dizendo aqui é que a
realidade do mundo muitas vezes é suja e nos obriga a lidar com
essa sujidade da pior forma possível.

34.3. A Ecologia e seus dilemas


Se durante muito tempo o foco da Ordem Rosa-Cruz era o
desenvolvimento dos poderes paranormais, enquanto eu era
filiado à organização, tive a impressão de testemunhar uma
mutação desse foco. Em vez de vender um produto de que os
membros iriam ter super poderes, a Ordem passou a defender o
542

serviço à humanidade e uma pauta ecológica na linha “vamos


salvar o planeta com valores espirituais”.

Durante muito tempo eu admirava essa ideia. Afinal, os seres


humanos estão transformando rapidamente o meio ambiente,
desnaturalizando-o cada vez mais. Áreas que antes eram verdes
estão virando condomínios, indústrias ou pastagens. A fauna do
mundo está diminuindo, bem como espécies vegetais estão
desaparecendo. As alterações causadas pelos seres humanos são
tão profundas que há até quem diga que estamos em uma nova
camada geológica: o antropoceno. Muitos até dizem que o clima
está se alterando em função da poluição que causamos.

O problema dessas ideias é que embora elas sejam verdadeiras


em algum grau, as reflexões que desenvolvi ao longo desse livro
acerca da natureza começaram a criar dentro de mim um
contrapeso em toda essa narrativa. Mas mais do que isso, será
que é possível para oito bilhões de homo sapiens serem felizes e
ao mesmo tempo manterem o mundo natural com seus animais,
vegetais e minerais? São bilhões de pessoas querendo consumir,
sair da pobreza e ter uma vida digna. Lembremos que o estado
natural dos seres humanos é a miséria. Na África e na Ásia
muitas pessoas têm de seis a oito filhos. Se as sociedades fossem
realmente dar uma vida digna para cada um desses indivíduos,
cada um dos oito filhos teriam direito a uma casa boa. E cada
casa construída é menos espaço para o mundo natural. Isso sem
falarmos na necessidade de alimentação dessa massa vivente.
543

É verdade que há iniciativas que falam em carne artificial ou


aumentar a produção agrícola usando menos terra. Contudo, há
de se ressaltar que tais atividades demandam altíssimo grau de
Tecnologia. E detalhe: Se realmente este tipo de coisa funcionar,
isso aumenta a disponibilidade de alimentos e por conseguinte, a
população. Isso faz a roda girar e aumentar novamente.
Ademais, existem interesses econômicos poderosos atuando na
destruição o mundo natural. Há milhares de empresas de
engenharia e arquitetura no mundo inteiro almejando áreas e
terrenos para seus projetos. Essas empresas geram empregos
para as massas e os parques naturais protegidos pelos governos
são vítimas fáceis do poder econômico desses agentes.

A verdade é que é louvável o esforço da Ordem Rosa-Cruz para


conciliar espiritualidade, humanismo e ecologia, mas na minha
humilde opinião, o problema talvez não tenha solução. É legal
vermos o mundo natural e os seres que o povoam como seres em
evolução e é de suma importância ter reverência pelas formas
vivas e não vivas da natureza. Tem coisas pontuais que podemos
fazer aqui e ali para resolver alguns problemas, mas
honestamente, não sei se podemos resolver tudo.

Talvez alguém possa propor que a humanidade concorde em ter


um estilo de vida com menos consumo, se ater somente ao
necessário e aceitar diminuir a população. O problema é que
mesmo esses valores me parecem relativos. Afinal, o que é
544

necessário para mim, não é para você. Quem vai arbitrar o que é
“viver somente com o necessário”? Os comunistas já tentaram
isso e não conseguiram. Aliás, como obrigar alguém a viver
dessa forma se não for pela mão forte de uma ditadura?

Outrossim, se caminharmos pela ideia de diminuir a população,


logo esbarramos na questão: Quantas pessoas a Terra deve ter
para que vivemos em harmonia com a natureza? Lembro de ver
certa vez o Grandioso Mestre da Jurisdição de Língua Francesa
da Ordem Rosa-Cruz escrever um texto contrário à super
população do planeta. Essa ideologia antirreprodução tem
também várias consequências que não vou abordar aqui, mas
que vale a pena registrar que se trata de um debate complexo.

O mais engraçado sempre foi a contradição do discurso


ecológico. Para irem à congressos e divulgarem suas ideias, os
ecologistas usam aviões, televisões, celulares, internet e tudo o
mais proporcionado por essa industrialização e desenvolvimento
da Tecnologia que destroem o próprio planeta. No já visto
debate entre órficos e prometeicos, aqueles que alteram a
natureza e a submetem para termos conforto e bem estar sempre
vão estar na frente. Ninguém nunca vai deixar de querer viver
numa casa confortável para viver no meio do mato a fim de
“salvar o planeta”.
545

Fato é que os seres humanos criaram uma Tecnologia tal que se


tornaram senhores do mundo. Pessoalmente não vejo solução
para o problema ecológico e a questão me parece sem saída, por
mais que governos, empresas e Ordens místicas finjam que
existe uma saída para conciliar isso tudo com quase oito bilhões
de sapiens querendo qualidade de vida. A verdade é que talvez
tenhamos que conviver com um mundo natural cada mais
exíguo. O que podemos efetivamente fazer é tornar a vida nas
cidades melhores com áreas verde, animais, ar puro, água limpa
etc e certamente há muito mérito nisso. Mas solução talvez não
haja.

34.4. A Paz Profunda dos Rosa-Cruzes


Outro valor que a minha Ordem Rosa-Cruz sempre teve consigo
talvez nem seja um valor exatamente, mas sim um produto a ser
conquistado por esforço individual. Trata-se do sentimento de
Paz Profunda. Este é um estado que adviria de todos os rosa-
cruzes que seguem e praticam os ensinamentos da organização e
daqueles que atingem um estado espiritual elevado. Paz
Profunda é até um comprimento que os membros da minha
Ordem utilizam ao se despedirem.

Do meu ponto de vista, não posso negar o sentimento de paz e


serenidade que vinha em mim após uma meditação. No entanto,
isso não era e nem é apanágio dos ensinamentos rosa-cruzes.
Muitas pessoas sentem isso depois de qualquer prática espiritual
nas igrejas, mesquitas, templos budistas, rituais de candomblé
546

etc. O problema é que os rosa-cruzes pareciam sugerir que era


possível atingir uma espécie permanente de paz profunda e isso
sempre me deixou intrigado.

Ora, a vida é cheia de altos e baixos. Temos momentos de


extrema alegria e serenidade e de irritação e frustração intensos.
Isso tudo é parte do existir. Será que é possível atingir um estado
permanente de Paz Profunda? Se até Jesus se irritou com os
fariseus do templo, por que eu iria ter que viver em paz
profunda? Essa ideia começou a me parecer um grande teatro
para fingir que se atingiu uma iluminação. No entanto, havia
algo ainda mais complexo nessa proposta, mas que vou deixar
para o último capítulo. Peço apenas que o leitor guarde a questão
da teatralidade da Paz Profunda dos rosa-cruzes.
547

35. AS ORDENS INICIÁTICAS E A POLÍTICA

No curso de graduação em História, geralmente se diz que


absolutamente tudo nessa vida é política e o próprio fato de você
se declarar apolítico já é uma decisão política. Isto posto,
quando olhamos para essas Ordens místicas e esotéricas vemos
que a maioria delas adota certo distanciamento da política e se
proclama apolítica. Na prática, isso significa que elas não
defendem oficialmente partidos ou políticos e quase sempre
proíbem proselitismo dessa natureza em suas Lojas ou locais
físicos diversos. Este também era o caso da Ordem Rosa-Cruz
que eu participei.

Em princípio, isso parece ser algo extremamente positivo, pois


evita brigas entre os membros e deixa os ambientes das Ordens
um pouco mais harmônicos. No entanto, com o tempo, uma
série de perguntas acerca desta postura vieram à minha mente.
Será que a organização que eu estava era realmente apolítica? E
mais: será que isso é bom? Vamos desenvolver um pouco mais
essas ideias.

Primeiramente, a relação entre a espiritualidade e a política


sempre foi muito tensa ao longo da História. Em muitas ocasiões
as ideologias metafísicas legitimaram o poder político e vice-
versa, o que causou muita violência e disputa. Ao menos na
548

civilização Ocidental, essa tensão foi parcialmente resolvida


com um grande acordo e pacto civilizacional. Trata-se da
separação entre Estado e Igreja. Embora a Ordem Rosa-Cruz e
outras Ordens não sejam igrejas propriamente ditas, de certa
forma, elas entram nesse pacto por uma questão matemática.

Quando um Estado possui uma religião oficial, isso significa que


outras crenças são muito perseguidas e não podem exercer suas
atividades livremente. Além disso, quando religião e Estado não
são separados, isso faz com que dogmas religiosos de um grupo
passem a governar outros grupos religiosos ou mesmo os
descrentes. Logo, é somente no Estado laico que crenças e
organizações diversas, como a própria Ordem Rosa-Cruz,
podem funcionar sem serem incomodados.

No entanto, este processo também tem um outro lado. Ele é bom


também para a própria religião. Isso porque as espiritualidades
que se aliam a

líderes totalitários ou governos corruptos acabam por perder a


autoridade espiritual. Isso pode levar tanto a um afastamento dos
sequazes como a uma contaminação bastante tóxica do ambiente
das ideologias metafísicas.

Pessoalmente, eu sempre achei esse acordo e esse pacto


civilizacional a coisa mais brilhante que a civilização ocidental
549

desenvolveu. Talvez seja por isso que ela enriqueceu tanto


comparativamente a outros países. Enquanto os outros estão em
querelas religiosas, o Ocidente pôs um fim a guerras com
disputas metafísicas. No entanto, apesar de achar este pacto
bom, especificamente com relação à minha Ordem Rosa-Cruz,
algumas coisas começaram a me incomodar.

Quando olhamos com um olhar mais atento, é possível perceber


que a Ordem que eu estava recebe muitas homenagens em
Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores país afora.
Eu já vi políticos execráveis de partidos duvidosos participando
dessas homenagens. Este primeiro fato já mostra que há sim
certa aproximação da Ordem Rosa-Cruz com a política. Mas a
coisa não para por aí.

Ainda que eu entendesse as razões justas para que a minha


organização especificamente não quisesse se posicionar em
termos políticos, eu comecei a me questionar sobre o outro lado
dessa equação. Quando lidamos com o mundo político, vemos
que uma parte dos países é governada por ditadores, autocratas,
desrespeito sistemático aos Direitos Humanos, ausência de leis e
regras, tráficos diversos, perseguição a presos políticos, tortura,
violência policial etc. São muitos os problemas do mundo.

Em virtude disso, eu comecei a me perguntar: “Se essas Ordens


iniciáticas prezam pelo aperfeiçoamento e evolução dos seres
550

humanos e das sociedades, será que elas realmente não têm nada
a dizer ou não devem dizer nada sobre a política?”. Em outras
palavras, como estudar os átomos, o poder de cura pelas mãos e
a energia vital do Sol podia melhorar a política da minha
sociedade?

Neste ponto, eu não questionava a postura da Ordem Rosa-Cruz


especificamente, pois eu a compreendia. O que eu passei a me
indagar foi sobre o próprio papel da metafísica esotérica no
mundo. Se por um lado eu entendo que a Ordem e outras
organizações não queiram se meter com política para a sua
própria proteção, será que o que elas ensinam deve se manter tão
apartado do mundo político a ponto deste lhe ser indiferente?
Considerando que é na política que parece residir boa parte das
trevas do mundo, talvez fosse nela que a suposta luz das
organizações iniciáticas devesse estar.

A Ordem Rosa-Cruz que eu estava parecia compreender isso de


certa forma, mas preferia não partir para um confronto aberto,
apostando na transformação individual dos membros das
sociedades para que eles próprios exercessem certas
transformações. No entanto, ainda que esta postura seja
compreensível e até louvável, ela começou a me parecer um
pouco covarde. A ideia aí era que a Ordem não queria sujar as
mãos, mas deixava que os outros fizessem o serviço sujo por ela.
Para que o leitor tenha uma ideia da complexidade da relação
entre estas organizações e a política, quando eu frequentava a
551

minha Loja Rosa-Cruz, conheci um membro que disse que se


filiou durante a ditadura militar brasileira. Na verdade ele era
um espião da polícia política e foi colocado na Loja para
espionar o que se passava ali dentro. Pouco tempo depois ele se
apaixonou pela filosofia da instituição e se tornou membro
permanente. Logo, mesmo que a Ordem Rosa-Cruz não se
envolvesse com a política, a política se envolvia com ela.

Ao longo dos anos, mesmo tendo estes questionamentos, eu


compreendia a organização e nela segui. No entanto, tudo
mudou em 2018. Neste ano, no Brasil, um certo candidato à
presidência dizia coisas intragáveis. Destilava machismo,
homofobia, transfobia, racismo, exaltava um torturador, a
ditadura, falava um fuzilar e matar. Ele era envolvido com
milícias, teve uma produção legislativa péssima ao longo de 28
anos de vida pública e foi ovacionado pela população brasileira
como um verdadeiro salvador da pátria.

Algumas Ordens Iniciáticas famosas começaram a emitir


comunicados apoiando este candidato. No caso da minha Ordem
Rosa-Cruz, ao que me consta, ela se manteve oficialmente
distante do debate político, o que talvez fosse bom e tivesse sua
razão de ser. No entanto, no meu íntimo, eu passei a me indagar
se não cabia um aviso da Ordem Rosa-Cruz alertando aos
membros sobre os perigos do totalitarismo e da extrema direita.
Mas naturalmente eu estava esperando demais da minha
organização. Certamente seus administradores pensavam que
552

tudo era um processo evolutivo que a sociedade precisava


passar. Novamente vemos aí como a ideia de evolução pode
gerar atitudes passivas perante o mal iminente.

Os problemas, contudo, não eram somente com relação à


posição oficial da minha Ordem Rosa-Cruz e de outras Ordens
do universo místico e esotérico. Eu comecei a notar uma
quantidade massiva de membros dessas organizações passara a
apoiar cegamente o tal candidato. Um dos seus argumentos era
de que a outra opção política era um partido envolvido em
vários escândalos de corrupção. A questão é que ainda que isso
fosse verdadeiro, o que deveria ter sido feito era buscar outro
candidato e não um apologeta da tortura e da ditadura militar.

Eu percebi, então que eu próprio estava sendo inocente e


bobinho demais tanto com relação a esperar alguma postura da
administração das organizações iniciáticas quanto à mentalidade
dos membros. Com relação aos rosa-cruzes, conforme
discutimos no capítulo dezenove, a metafísica dessas
organizações, que se baseia na ideia de uma Força Inteligente
que ordena o mundo, é um terreno fértil para a adesão dos seus
partidários à proposta de um salvador que vai trazer ordem à
pátria. Junta-se a isso a ideia mística de que tudo o que está em
cima é como o que está embaixo (ou deveria ser), o resultado é
um apoio expressivo de rosa-cruzes, maçons e figuras afins a
líderes que representam essa ordenação paranoica do mundo.
553

A partir daí eu passei a questionar mais fortemente a postura da


Ordem Rosa-Cruz com relação à política. Por mais que ela não
se meta no processo político, eu comecei a me indagar se os
ensinamentos dessas organizações iniciáticas não deveriam ter
antídotos mais potentes contra este tipo de fanatismo e
extremismo político. Se não, para que serve afinal, o que essas
organizações ensinam? Qual é a função do esoterismo no
mundo? Ser suporte ideológico para extremistas? Afinal, a
própria teosofia fora apropriada por Hitler e pelos ideais do
partido nazista. O que é a evolução espiritual que essas
organização preconizam?

No meu humilde entendimento, há valores universais que


garantem o funcionamento saudável de uma sociedade.
Elementos como tripartição de poderes, liberdade de imprensa,
igualdade perante a lei, rotatividade do poder, o não
autoritarismo, o Estado de Direito, entre outros valores, são o
sustentáculo que permite o livre funcionamento dessas próprias
organizações iniciáticas. Será que essas coisas não deveriam
constar nos ensinamentos dessas Ordens como suporte a uma
evolução espiritual das sociedades? – Indago-me.

Há pessoas inocentes que dizem que esses valores não são


universais e sim vinculados a uma cultura específica. Com todo
respeito a estes indivíduos, peço que elas vão catar coquinho.
Esses valores foram os que construíram o mundo moderno,
deram qualidade de vida e uma vida estável para muitas partes
554

do mundo. A meu ver, estes valores devem ser defendidos de


todas as formas. Lembremos também que antes da Modernidade,
a maioria dos Estados eram oficialmente católicos ou
protestantes, o que significa que não havia espaço para outras
religiões e conhecimentos esotéricos e místicos eram
perseguidos.

No meio deste turbilhão de questionamentos, eu me lembrei da


Igreja Católica e sua defesa da Teologia da Libertação. Centenas
de padres participaram da formação política de milhares de
pessoas, criaram intelectuais de peso que pensaram a sociedade
e tentaram propor soluções para os problemas do mundo. Certo
ou errado, ao menos tentaram fazer alguma coisa. Até hoje
muitos líderes católicos no mundo que se opõem a governos
ditatoriais são perseguidos. Trata-se de uma Igreja Católica
atuante no processo de transformação das mentalidades.

Outrossim meu pensamento também se direcionou para a


Maçonaria. Na história do Ocidente, esta organização lutou
abertamente pelos ideais de liberdade política, de consciência,
de religião etc, defendeu os ideais de igualdade de todos perante
a lei e os ideais de fraternidade entre os homens. E daí eu olhava
para a minha Ordem Rosa-Cruz e me perguntava: “O que ela fez
para a humanidade e para o meu país?” Irradiou pensamentos de
paz e visualizou a Terra envolva em uma aura de luz?
Francamente...
555

Neste quadro mental meu pensamento se ampliou para a própria


natureza do rosacrucianismo enquanto uma linha de
pensamento. Uma vez que o Misticismo e o esoterismo nos
ensinam a nos harmonizar com o nosso Mestre Interior
conectado a uma Verdade universal, será que os rosa-cruzes não
são capazes de desenvolver um pensamento político próprio que
traga paz, prosperidade e

harmonia para os seres humanos? Ademais, como é possível


pessoas se dedicarem tantos anos a uma espiritualidade
supostamente superior e evoluída e acabarem com uma
mentalidade tão obtusa, obscurantista e fanática?

Quando eu me coloquei essas questões, eu comecei a perceber o


quão limitado era o esoterismo. Não adianta nada desenvolver
“poderes mentais” sem liberdade e democracia, coisas que eu
considero valores universais. Ainda que a democracia tenha
reconhecidamente vários defeitos, foi ela que nos trouxe uma
paz e uma prosperidade sem precedentes na história da
humanidade. Devemos corrigir seus defeitos, mas sem buscar
soluções últimas que vá resolver todos os problemas do mundo
pela força do autoritarismo estatal. Inclusive, talvez boa parte da
paz que hoje reina no mundo advenha da difusão de Estados
democráticos, pois dificilmente democracias entram em guerras
com democracias.
556

No caso da minha Ordem Rosa-Cruz, seria injusto dizer que ela


nunca se posicionou sobre política. Há um tempo ela lançou um
manifesto que era uma espécie de documento que falava sobre
as questões do mundo contemporâneo. O documento me pareceu
bonito por fora, mas ordinário por dentro. Isso porque ela elenca
uma série de problemas para o mundo e, na minha opinião, não
apresenta solução para nenhum deles. Ele é quase como aquela
pessoa que aponta os problemas, mas também não coloca a mão
na massa para resolver. E mesmo assim, trata-se de uma obra
feita de cima para baixo, sem ouvir as vozes dos membros.
Parece haver muito poucos espaços democráticos na
organização.
Para concluirmos este capítulo, há um outro elemento desta
equação que gostaria de compartilhar com os leitores. Certa vez,
na minha Ordem Rosa-Cruz, vi um documento intitulado
“Declaração Rosa-Cruz dos Deveres do Homem”. Era um
documento produzido pela própria organização onde ela
difundia sua visão de mundo. No artigo três deste material havia
a seguinte frase:

“Todo indivíduo tem o dever de respeitar


os outros, sem distinção de raça, sexo,
religião, classe social, comunidade ou
qualquer outro elemento aparentemente
distintivo.”

Na primeira vez que vi esta frase, eu senti que havia alguma


coisa errada nela, mas ignorei. Tempos depois, contudo, um
557

amigo que conheci na Ordem me disse que tinha abandonado a


organização e entrara em uma Ordem Martinista independente
(uma outra organização iniciática). Ele, então, me mostrou a
declaração de princípios de sua nova organização e lá estava
escrito:

Entendemos ser necessário manter


atenta vigilância para que tais distinções
separatistas não existam no seio da
Ordem e, por consequência lógica, não
entendemos que seja possível alguém
estar verdadeiramente afinado com os
propósitos gerais da Ordem caso trate a
outrem com distinção em razão de seu
sexo, identidade de gênero, orientação
sexual, nacionalidade, raça, condição
social ou credo religioso.

Como vemos, na Ordem Marinista em questão é citado


abertamente ‘identidade de gênero’ e ‘orientação sexual’. Já na
Ordem Rosa-Cruz que eu fazia parte esses elementos eram
explicitamente ignorados. Esse fato me chamou muita atenção e
eu percebi que a afirmação de que a minha organização era
apolítica é simplesmente história pra boi dormir. O fato de estes
termos estarem explicitamente escritos em um texto, mas não
em outro, não era aleatório. Tratava-se de uma postura política
de gente que se diz apolítica. A velha ladainha de sempre que os
historiadores sempre apontaram.
558

O pior, contudo, era que talvez a organização pensasse que as


pessoas não iriam notar este detalhe. Em função disso, eu passei
a notar de que quando a Ordem Rosa-Cruz se dizia apolítica, ela
estava francamente tomando os outros como imbecis. Tal
pensamento era evidentemente desonesto. Inclusive, fica a dica
para os leitores: Fujam de qualquer sistema de pensamento que
se diga apolítico. Nada é mais covarde e mentiroso do que tal
afirmação.

Por fim, quando os rosa-cruzes que conheci começaram a tomar


o rumo das trevas e da boçalidade em 2018 eu já não era mais
um membro ativo, mas acompanhei tudo de longe, como faço
até hoje. Embora eu entenda que essas organizações iniciáticas
precisem se manter um pouco distantes da política,
pessoalmente, creio que ainda tem muitos elementos mal
resolvida nesta relação e outras coisas que poderiam ser
exploradas e repensadas.

Isso não significa que eu estou dizendo como a Ordem deve ser
ou deixar de ser. Ela tem total liberdade para agir conforme acha
correto. A questão passou a ser comigo mesmo. Eu comecei a
sentir falta de agir mais na sociedade, de participar na sociedade
civil, do debate público e de transformar as pessoas de uma
forma mais palpável. Visualizar pensamentos de paz na Terra
começou a me parecer estranhamente bobo, enfadonho e
pusilânime. Aquele lugar foi pouco a pouco deixando de ser para
mim.
559

36. A ORDEM ROSA-CRUZ E O


CASAMENTO HOMOAFETIVO

Como o leitor pode perceber, todas as reflexões expostas até


aqui não foram um ataque à Ordem Rosa-Cruz. Elas foram tão
somente a expressão de dúvidas sinceras que desenvolvi acerca
da espiritualidade como um todo, tendo o Misticismo como fio
condutor dessa discussão. Os meus problemas no decorrer deste
livro sempre foi mais sobre o pensamento místico em si do que
sobre a organização. A questão é que este pensamento chegou
até mim por meio da Ordem, mas nada nela me incomodava
especificamente a ponto de me fazer abandoná-la por um fator
ou outro. Contudo, isso foi até um determinado momento.

Pouco a pouco, esse chorrilho de perguntas que se colocavam


em mim e a ausência de quem ou o que pudesse respondê-las foi
me afastando de toda e qualquer crença. Eu já tinha me afastado
da religião por causa disso e depois de alguns anos, o mesmo
processo ocorreu com o esoterismo. Dizem por aí que a crença
em algo pode ter bases genéticas e talvez eu tenha o gene da
espiritualidade com algum defeito. Tenho uma necessidade
atávica de fazer perguntas que ninguém responde. Tudo bem.
Faz parte. Não somos todos iguais.

Com o tempo, o prédio das crenças metafísicas foi rachando e


rachando, quebrando uma coluna aqui, uma janela ali e quando
560

eu vi, ele já não estava mais habitável para mim. Se a


espiritualidade diz que é no nosso interior que devemos buscar
as respostas, foi no meu próprio interior de onde adveio as
respostas contrárias à espiritualidade. Embora desde as eleições
de 2018 eu já viesse desenvolvendo uma repulsa a tantos rosa-
cruzes que optaram pelo caminho da boçalidade, até então eu
tinha um carinho muito grande pela Ordem Rosa-Cruz que eu
participava.

Por mais que eu não acreditasse mais plenamente no que a


organização dizia, eu aprendi muitas coisas nela. Aprendi a
pensar, a questionar, a duvidar e tive um sólido conhecimento
que foi se formando em mim. Afinal, a própria Ordem falava
para eu ser um ponto de interrogação ambulante, um valor que
trago comigo até hoje. Talvez sem a Ordem Rosa-Cruz eu
continuasse um crente. No entanto, a partir de um determinado
momento, eu passei a ter asco da Ordem e das pessoas que a
administram. A partir deste ponto, o que antes era um prédio
rachado, desabou de vez. Permita-me o leitor compartilhar como
isso se sucedeu. A história poderá lhe surpreender.

O primeiro casamento homoafetivo do mundo moderno ocorreu


na Holanda no ano de 2001. Este também foi o ano em que me
afiliei à Ordem. Pouco tempo depois, Bélgica, Canadá, Espanha
etc aprovaram o casamento civil homoafetivo. Havia no ar uma
sensação de que este seria um trem imparável na História, ao
menos no mundo ocidental. Estas uniões representavam um
561

movimento em direção a uma evolução sincera e honesta das


sociedades. Afinal, nada é mais justo do que incluir na sociedade
as minorias e os mais fracos. Naquele tempo eu frequentava a
Loja e seguia a minha vida rosa-cruz diligentemente. Até que
um dia eu descobri que a Ordem Rosa-Cruz fazia cerimônias de
casamento, chamadas de Ritual de Matrimônio.

Na época, eu pensei “Como a Ordem é livre de dogmas


religiosos, de mente aberta, tolerante e inclusiva, certamente os
casais homoafetivos poderão participar do Ritual de
Matrimônio”. Foi então que eu mandei um e-mail para a Grande
Loja de Língua Portuguesa perguntando acerca desta
possibilidade. Eles me responderam que não tratavam de temas
polêmicos e fim de papo. Eu achei a resposta tão tosca quanto
engraçada. Afinal, quem define o que é polêmico ou não? Aliás,
havia um livro da própria organização que dizia que a mente do
rosa-cruz é aberta e nada é polêmico para ele.

Eu então insisti na pergunta e eles responderam que o Ritual de


Matrimônio Rosa-Cruz só poderia ser realizado até sete dias
depois do casamento

civil. Neste caso, estava explicado. Afinal, ainda não havia


casamento civil homoafetivo no Brasil. Contudo, no ano de 2011
o Supremo Tribunal Federal do Brasil entendeu que os casais
562

homoafetivos estavam cobertos pela lei e estendeu o direito ao


casamento civil a eles.

Foi então que eu enviei novamente à Ordem Rosa-Cruz uma


carta perguntando sobre a questão do Ritual de Matrimônio.
Afinal, se só podia passar por ele quem tivesse o casamento civil
e se o Brasil já tinha casamento civil para as famílias
homoafetivas, logo tudo se resolveria. Mas a partir daí começou
um show de horrores na Ordem Rosa-Cruz composta de seres
que buscam a evolução espiritual e são inspirados pelo Mestre
Cósmico Kut Hu Mi, o alegado hierofante da organização.

Na primeira carta que enviei, a administração da Grande Loja


me respondeu que não seria possível fazer nenhuma alteração no
Ritual de Matrimônio porque ele simbolizaria a reprodução. Eu
perguntei a eles se mulheres estéreis ou que não queriam ter
filhos poderiam passar pelo Ritual de Matrimônio, Daí eles
desdisseram o que disseram e falaram que mulheres nessas
condições podiam ter o Ritual. Ora, então o Ritual na verdade
não simbolizava a reprodução. Aliás, esse argumento é bobo
desde início porque a cerimônia não é um rito de fertilidade
como acontecia na Antiguidade, mas simboliza tão somente a
união entre duas pessoas. Mas então por que os casais
homoafetivos não podiam passar por ele? Não responderam.
563

Enviei um segundo e-mail meses depois e eles responderam que


o Ritual simbolizava a união natural entre um homem e uma
mulher e por isso outras formas de união não poderiam ter parte
nele. Daí eu lhes perguntei se a Ordem considerava as famílias
homoafetivas contrárias à natureza, apresentando-lhes vários
animais que formam casais homoafetivos, como os pinguins e os
leões, por exemplo. Não responderam.

Daí um tempo depois eu perguntei novamente e a resposta dessa


vez foi que o Ritual de Matrimônio simbolizava uma lei
espiritual. E então eu lhes perguntei se sob o ponto de vista
rosacruz os casais homoafetivos seriam uma espécie de
criminosos espirituais. Afinal, eles estariam contra a lei.
Também não responderam.

Novamente, um tempo depois eu enviei outro e-mail para eles


perguntando a mesma questão. Dessa vez, no entanto, eles
pareciam ter melhorado a resposta. Eles disseram que o Ritual
de Matrimônio tinha sido feito exclusivamente para os
heterossexuais e que não era possível alterá-lo. Mas aí eu
mandei outra carta mostrando que os rituais da Ordem Rosa-
Cruz o tempo todo são alterados (o que é verdade).

Na época em que entrei na Ordem, por exemplo, os membros


ficavam um ano estudando em casa antes de poderem
frequentarem o Templo. Hoje em dia isso não se aplica mais.
564

Fora outras pequenas alterações que acontecem de tempos em


tempos ao sabor dos ventos da Grande Loja. A ideia de que os
rituais da Ordem jamais podem ser alterados era simplesmente
mentirosa. Ademais, o Ritual de Matrimônio fazia poucas
referências às palavras ‘homem’ e ‘mulher’. Nada que não
pudesse ser alterado com boa vontade.

Daí eu enviei outra carta para a Ordem pontuando as questões


acima. Dessa vez eles me responderam que qualquer alteração
caberia ao Imperador da Superior Grande Loja. Na época, como
o Imperador era francês e morava na França, embora eu saiba ler
francês, não domino o idioma a ponto de escrever uma carta
para ele. Acho que eles pensaram que a questão se resolveria aí.

Ritual de Matrimônio – O ritual Rosacruz de Matrimônio


é uma cerimônia não-sectaria, fraternal, que deve ser realizada
dentro de uma semana após a cerimônia civil. O ritual é belo
em sua dramatização da união de duas personalidades, que a
instituição do matrimônio representa.

Eu, no entanto, não desisti. Fui procurar na literatura rosa-cruz


alguma coisa que me desse argumentos mais substanciais. Havia
um livro muito antigo da Ordem chamado Manual Rosa-Cruz e
nele, a definição de casamento era “uma união entre duas
personalidades alma”. Ora, se do ponto de vista rosa-cruz a
personalidade alma não tem sexo, logo o Ritual de Matrimônio
deveria abarcar os casais homoafetivos. Enviei este argumento
para a Grande Loja de Língua Portuguesa. Sabe o que eles
fizeram? Nas novas edições alteraram a definição de Ritual de
565

Matrimônio no Manual Rosacruz. Trocaram “entre duas


personalidades alma” alma” para “um homem e uma mulher”.
Eles se deram ao trabalho de alterar o Manual, mas não o Ritual.

Versão do Manual Rosacruz de 1988


Casamento, Cerimônia de: (1) O casamento rosacruz e um compromisso
assumido pelos nubentes sob a égide da Rosa-Cruz; portanto é obrigatorio que as
duas pessoas sejam rosacruzes. Não membros podem participar da cerimônia.
(2) O ritual é elaborado de forma a se dirigir a um casal constituido de um
Rosacruz e uma Rosacruz e nenhuma adptação e possível.
Versão do Manual Rosa-Cruz de 2011

Quando eu vi aquilo, fiquei chocado, triste e decepcionado. Foi


então que eu decidi escrever uma longa carta para o Grandioso
Mestre da Grande Loja de Língua Portuguesa. Isso foi no ano de
2017. Expus todos os argumentos aqui e fiz uma longuíssima
argumentação alinhavando tudo o que eu tinha aprendido na
Ordem durante mais de uma década. Pelo que me lembro, foi
uma carta de dez páginas com profundos argumentos e
discussões filosóficas que me consumiu quase um mês e meio de
trabalho.

Neste processo, pesquisei livros rosa-cruzes, revisitei


monografias, cotejei argumentos e montei tudo bonitinho
pedindo para o que Grandioso Mestre intercedesse junto ao
566

Imperador para que fosse feita uma alteração no Ritual. Afinal,


não tinha argumento plausível que justificasse essa postura além
da homofobia pura e simples. Sabem o que o Grandioso Mestre
me respondeu? Absolutamente nada. Respondeu à maneira rosa-
cruz. Com silêncio e ignorando.

Naquele período eu já tinha deixado de pagar a Ordem Rosa-


Cruz, de frequentar os rituais e muita coisa eu passei a criticar.
Todas as reflexões céticas deste livro foram crescendo comigo
junto deste processo. Mas ainda havia uma esperança de que
algum dia essa situação iria se resolver e eu pudesse restabelecer
a chama da espiritualidade em mim.

Para ser justo, mais ou menos em 2018 eu recebi uma ligação


diretamente da Grande Loja de Língua Portuguesa. Era um
irmão da administração que me disse que o Grandioso Mestre
tinha recebido a carta e ficado muito tocado. Ele próprio tinha
mandado traduzir a carta para o francês e enviado diretamente
para o Imperador para que ele arbitrasse se as famílias
homoafetivas poderiam receber o Ritual de Matrimônio.

Naquele dia, meu coração se encheu de alegria e esperança. Foi


então que eu tinha uma certeza no meu coração de que a
situação seria resolvida. Mesmo que eu estivesse bastante cético
naquele período, algo em mim me dizia que eu pouco a pouco
iria voltar para a espiritualidade. Era só uma questão de tempo.
567

Mas havia um problema aí. Cada vez que eu tentava ler as


monografias, crenças espirituais simplesmente não se colavam
mais em mim em função de todas as críticas que desenvolvi.
Então eu parei de tentar acreditar em alguma coisa e deixei o
tempo falar por si. Tudo estava muito confuso na minha cabeça.
No entanto, os meses foram passando e nada de eu receber uma
resposta oficial do Grandioso Mestre ou uma resposta sobre o
Ritual de Matrimônio.

Até que um dia eu estava em um grupo online com vários


irmãos e irmãs rosa-cruzes do mundo inteiro e alguém colocou a
pergunta sobre como a Ordem lidava com membros
homoafetivos ou do espectro LGBT+. E daí eu respondi que ela
aceitava a presença de todos, mas que era uma Ordem com
certas posturas homofóbicas porque não aceitava que as famílias
homoafetivas passassem pelo Ritual de Matrimônio.

Foi então que uma irmã rosa-cruz dos Estados Unidos e que
pertencia à Grande Loja de Língua Inglesa ficou indignada e me
chamou de ignorante. Ela disse que a Ordem Rosa-Cruz fazia
Rituais de Matrimônio homoafetivos há muitos anos, desde
2002, ao que ela se lembrava. Eu fiquei completamente sem
entender nada. Como uma irmã rosa-cruz de outro país podia me
dar uma informação diferente daquela que a minha própria
Grande Loja dava? Alguém estava mentindo nessa história.
568

Daí eu contatei outro irmão americano e ele também me


confirmou que as famílias homoafetivas podiam participar do
Ritual de Matrimônio há muitos anos na Grande Loja de Língua
Inglesa. Eu confesso que eu fiquei em estado de choque. Ora, se
isso ocorre desde 2002 e o casamento civil homoafetivo foi
aprovado nos Estados Unidos apenas em 2015, isso significa que
a obrigação do casamento civil para a realização do Ritual de
Matrimônio Rosa-Cruz não existia naquele país. E daí eu me
perguntei: “Será que a Grande Loja de Língua Portuguesa tinha
inventado essa regra apenas para excluir as famílias
homoafetivas? Será que ela teve a coragem de fazer isso?”.
Abaixo, segue o diálogo que tive com rosa-cruzes americanos
em uma rede social.

Mensagem de uma irmã rosa-cruz da


Califórnia em uma rede social: Casamentos
Homoafetivos são rotineiramente feitos na
nossa Grande Loja em São José. Nesse exato
momento eventos ao vivo não estão sendo realizados
devido a pandemia. Mas nós estamos esprando reabrir
no Ano Novo Rosa-Cruz se todo ocorrer a Califórnia.

California USA

Same sex Marriages are routinely performed by


our Grand Lodge in San Jose. Right now in person
events are not being held due to the pandemic but
we are expecting re-open on the RC New Year if
all goes well in California.

Continuação do mensagem anterior da irmã


rosacruz da Califórnia: Eu acho que talvez isso
seja feito pelo menos desde 2002. Eu não lembro
a data exata. Seria legal você obter essa informação
569

diretamente com a Grande Loja se você quer uma


informação mais precisa. Eu acho que nenhuma
discussão ou decreto jamais foi sequer feito. Lojas
planejam Casamentos quando são solicitadas e
ninguém jamais considerou acabar com eles.

I think perhaps. It’s been done at


least since 2022. I’m not sure of
the exact date. It would be best to
get this into directly from GL if you
want accuracy. I don’t think any
decree or even discussion was ever
made. Lodges planned Weddings
when requested and no one ever
considered stopping them.

Luis Felipe. Same sex couples


have the right to the RofM in
every region, but in my region,
there are extremely few
Rosicrucian marriages of any
kind. What region are you in, and
who is refusing to conduct the
RofM

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Mensagem de un irmão Rosa-Cruz dos EUA:


Casais homoafetivos tem o direito ao Ritual de
Matrimônio em todas as regiôes, mas na minha
região ha muitos poucos rituais de Matrimônio
de qualquer. De que região é você e quem está
se recusando a conduzir o Ritual de
Matrimônio?

Foi então que eu, insistente como sempre e orientado por uma
irmã rosa-cruz americana, enviei um e-mail para a Grandiosa
Mestre da Grande Loja de Língua Inglesa pedindo
570

esclarecimentos sobre a questão. No dia seguinte eu recebi uma


ligação no meu celular diretamente da Grande Loja de Língua
Portuguesa. O Grandioso Mestre queria pessoalmente falar
comigo. A chefe da Língua Inglesa não respondeu a minha
mensagem e achou por bem reenviá-la para o chefe da Língua
Portuguesa. Afinal, era a minha jurisdição.

Quando eu recebi a ligação do próprio Grandioso Mestre, meu


coração novamente se encheu de alegria. Isso aconteceu em
meados do ano de 2019. Eu finalmente poderia compreender o
que estava acontecendo. Certamente seria uma mensagem que a
alteração no Ritual de Matrimônio Rosa-Cruz iria ser vir ou ao
menos eu teria alguma explicação do que se passava. Eu fiquei
muito feliz. A alegria, no entanto, não durou cinco segundos. O
Grandioso Mestre me ligou simplesmente para pessoalmente me
ameaçar de me expulsar da Ordem porque eu tinha quebrado a
hierarquia da organização. Claro que ele não falou isso
claramente, mas deixou subentendido.

Eu fiquei tão sem chão, tão sem reação que eu mal consegui
manter uma conversa e eu, tonto do jeito que sou, ainda terminei
a ligação pedindo desculpas por qualquer coisa. Eu não
conseguia acreditar que em vez de ele me ligar para me dar uma
palavra de conforto, eu estava sendo ameaçado. Foi então que
ele me explicou que estava vendo o processo de mudança, mas
que queria tomar uma decisão colegiada e teria que decidir isso
571

e a conversa ficou por isso mesmo (de lá para cá, até hoje, ele
continuou sem dar resposta alguma).

Durante a conversa, ele chegou a mencionar um trecho de minha


carta onde eu argumentava que a Ordem Rosa-Cruz se dizia
inspirada por Mestres Cósmicos, particularmente por Kut Hu Mi
e indagava se tal postura discriminatória teria a inspiração dele.
Eu fiz essa pergunta de forma sincera e honesta baseado no meu
coração e no que eu sentia e acreditava na época. O Grandioso
Mestre chegou a debochar deste argumento e ainda sugeriu que
eu não sabia aplicar corretamente meu raciocínio. No entanto, o
fato dele reter esta ideia dois anos depois do envio da carta foi
porque o argumento teve impacto nele. Mas mesmo assim, em
nenhum momento ele explicou por que ele não respondeu nada
durante dois anos. E eu estava aberto a ouvir.

Ele parecia não entender que se eu quebrei a hierarquia da


Ordem contatando outra Grande Loja foi por responsabilidade
da própria Grande Loja de Língua Portuguesa que durante anos,
aparentemente e de acordo com o que estava posto, alimentou
seus membros com mentiras, informações falsas e distorcidas.
Só não sei com qual objetivo. No final da ligação, ele ainda me
disse que eu não tinha compreendido nada da Ordem. Ora, se eu
não compreendi, por que o Grandioso Mestre não me explicava?
Ademais, quem tinha compreendido esse “espírito da Rosa-
Cruz”? A administração da Ordem que estava francamente
mentindo?
572

Quando eu me dei conta do que estava acontecendo, eu me senti


um imbecil. Mas não só isso. O que estava acontecendo era que
a Grande Loja de Língua Portuguesa e seus funcionários eram
abertamente homofóbicos. Eles não viam as famílias
homoafetivas como dignas de um Ritual de Matrimônio. A
diferença é que eles tentavam florear isso com um discurso de
tolerância e inclusão que era simplesmente falso. Eu, então,
compartilhei toda a situação com um irmão rosa-cruz muito
próximo. A questão é que a gente não tinha ainda nenhuma
prova oficial de que a Grande Loja de Língua Inglesa realmente
incluía as famílias homoafetivas no Ritual de Matrimônio. Foi
então que este irmão, em vez de mandar um e-mail para a
Grandiosa Mestre de lá, mandou um e-mail para o pessoal
administrativo acerca dessa questão e eis que eles responderam:
“Sim, o Ritual Rosacruz de Matrimônio é feito para os casais
rosacruzes LGBT na Jurisdição da Grande Loja de Língua
Inglesa das Américas”.

Instruction xxxxxxxx Rosicrucian xxxx


Greetings

Yes, the Rosicrucian marriage ritual is performed for Rosicrucian LGTB couples
in the English Grand Lodge of the Americas jurisdiction.

Esse mesmo irmão rosa-cruz enviou uma carta para a Grande


Loja de Língua Portuguesa perguntando sobre essa questão e a
resposta oficial foi:
Se o irmão estudar o nosso Ritual de
573

Casamento verá que ele foi idealizado


para a união de um Frater e uma Soror.

Reiteramos que o atual Ritual de Casa-


mento Rosacruz, foi concebido misti-
camente para essa união. Não se trata,
portanto de uma questão de aceitação
ou de tolerância e, muito menos, de se
questionar o espírito de fraternidade
que vigora entre membros da Ordem.

A cerimônia tem fundamentação


mística e, como tal, deve ser observada.
Isto, porém, não modifica o espírito fra-
terno e tolerante da Ordem Rosa-Cruz,
em relação à orientação sexual de cada
indivíduo, a qual mantemos o maior
respeito. Daí aceitarmos a inscrição
em nossa Fraternidade independente-
mente da sexualidade.

Homossexuais existiram em todos os


momentos da história. Respeitamos
suas conquistas atuais, mas isso não
nos leva a adaptar nossos Rituais
Tradicionais, para se conformar a essa
situação.

A diversidade é promotora de benefí-


cios em todos os sentidos. O importante
é que cada um procure ser feliz com a
574

opção que adotou, à sua maneira, inde-


pendentemente de estar ou não casado
em nossa Ordem, uma vez que a grande
maioria de estudantes rosa-cruzes não
está.

Como o leitor pode observar, o que a Grande Loja de Língua


Inglesa respondeu em uma frase, a de Língua Portuguesa usou
cinco parágrafos para tentar mostrar que ela não era intolerante,
nem preconceituosa e nem discriminatória. Ora, quem muito se
explica é porque muito deve. É evidente que esta carta é
mentirosa do início ao fim.

Primeiro que é ÓBVIO que se trata de uma questão de aceitação


e tolerância. No caso, de não aceitação e de intolerância.
Segundo, por que a fundamentação mística do Ritual funciona
na Grande Loja de Língua Portuguesa e não na Inglesa? A
“fundamentação mística” muda de país para país? Novamente aí
vemos as questões do capítulo onze. Misticismo é terra de
ninguém epistemologicamente falando. Aparentemente, os
fundamentos místicos não são universais, mas mudam de acordo
com o idioma. Terceiro, é evidente que eles respeitam a
orientação sexual das pessoas desde que as pessoas aceitem ser
discriminadas. Quarto ponto, se a orientação sexual é uma
questão de opção como eles afirmam no final, qualquer um pode
optar pela homossexualidade? Inclusive quem escreveu a carta?

Ao comparar as respostas das duas Grandes Lojas, eu comecei a


ficar tonto e com ânsia. Como é possível uma gente que se acha
tão iluminada mentir dessa forma sem nenhum tipo de
575

constrangimento moral? Como é possível uma gente que


regularmente emana pensamentos de paz e amor para toda a
humanidade mentir para o seu semelhante de uma forma tão
cínica e descarada? Era evidente que o rosacrucianismo não
produzia nas pessoas o que ele se propunha.

Quando eu mostrei para a Grande Loja de Língua Portuguesa


que a resposta da Grande Loja de Língua Inglesa era diferente e
perguntei o porquê dessa atitude tão diferente, eles
simplesmente pararam de responder. Mandei vários e-mails e
eles responderam à maneira da “elevada” espiritualidade rosa-
cruz: ignorando covardemente. Na verdade a partir daí começou
um jogo de pingue pongue. Eu mandava um e-mail, eles diziam
que iam repassar para o Grandioso Mestre e daí ele não
respondiam. Eles deviam achar que as pessoas eram estúpidas o
suficiente para não perceberem.

O engraçado é que eu tenho amigos rosa-cruzes que mandaram


e-mails para a administração da Orcem acerca dessa questão e
tinham a possibilidade de fazer um tracking de movimentação
dessas mensagens. Eles observaram que algumas pessoas da
Grande Loja de Língua Portuguesa abriam esses e-mails com
certa regularidade, mas nunca respondiam. Eu queria realmente
saber o que se passava com aquelas pessoas que ficavam abrindo
toda hora esses documentos e nada faziam com eles.
576

Será que em plena Era das redes sociais, a administração da


Ordem Rosa-Cruz achou realmente que os membros da Grande
Loja de Língua Portuguesa não iriam descobrir a verdade? E
pior. Como eu não sabia da verdade, ainda fiz papel de palhaço
perante os irmãos rosa-cruzes americanos. A Grande Loja estava
fazendo as pessoas de idiotas não só com os argumentos sem
fundamento que ela usava, como pela mentira sistemática. Ela
parecia achar que as pessoas eram burras.

Foi então que eu voltei meu pensamento para alguns


ensinamentos da Ordem Rosa-Cruz. A organização sempre
disse, por exemplo, que sexualidade não é assunto dos seus
ensinamentos e que a orientação afetivossexual do membro não
importa. Ora, não falar sobre algo é também falar sobre esse
algo. Quando eles diziam que os casais heterossexuais eram
parte de uma lei natural ou parte da ordem cósmica das coisas,
sugerindo que a diversidade humana era uma espécie de
criminosa espiritual, é óbvio que eles já estavam falando de
sexualidade. Afinal, nos seus ensinamentos sobre a lei do
triângulo, o exemplo era de casais heterossexuais.

Com relação à orientação afetivossexual do membro não


importar, devemos traduzir melhor essa frase. O que não importa
é o dinheiro dos membros com diferentes orientações
afetivossexuais. Mas é óbvio que a orientação deles importa. Se
não importasse, as famílias homoafetivas poderiam participar do
Ritual de Matrimônio. Em outras palavras, na Ordem Rosa-Cruz
577

todos são bem vindos, desde que algumas pessoas saibam qual é
o lugar delas. É como se eles dissessem “Nós já toleramos a sua
existência, o seu dinheiro e com quem você faz sexo, mas daqui
você não passa. O que você tem não é uma família”.

No meio desse processo eu me lembrei de uma situação que vivi


anos atrás em fóruns de discussão pela internet. Um membro
muito antigo da Ordem me disse que antigamente, na Grande
Loja de Língua Portuguesa, havia uma recomendação de que os
altos dirigentes da organização tirassem fotos com suas esposas
e filhos. Isso era para eles provarem que eram heterossexuais.

Embora isso seja apenas um relato e não tenha comprovação, eu


lembro que quando eu li isso, eu senti um misto de choque com
vontade de rir. Afinal, o fato de uma pessoa precisar provar que
é heterossexual já parte do pressuposto de que existe a
possibilidade dela virar homossexual, mas eu deixei essa
questão de lado. O Brasil antigamente era muito homofóbico
mesmo e isso fazia parte de um mundo que ficara no passado.

A questão é que eu comecei a observar a Ordem no tempo


presente em que eu estava e pude notar que raramente pessoas
abertamente homoafetivas chegavam nos cargos mais altos
como Grandes Conselheiros ou outras funções na Grande Loja.
Isso não se aplica às Lojas Rosa-Cruzes, onde havia muitos
Mestres de Loja que são homoafetivos. Mas nos cargos da
578

Grande Loja, eu comecei a notar que raramente eu via pessoas


do espectro LGBT+. Pode ser que eu estivesse errado nas
minhas observações, mas aquilo que começou a dar um nó na
minha cabeça, pois o caráter tolerante que a Ordem vendia
evidentemente tinha limites.

Foi então que eu comecei a contatar outros membros


homoafetivos da Ordem Rosa-Cruz e ver o que eles tinham a
dizer sobre isso. Dois em especial ficaram tão chocados e tristes
que saíram da organização logo depois que souberam de toda a
verdade. Mas eu posso dizer que essa minha busca foi um pouco
frustrante. Eu descobri como as pessoas homoafetivas gostam de
ser enganadas e serem tratadas como lixo ou inferiores.

Uns rosa-cruzes homoafetivos disseram que não se importavam


com a questão porque eles próprios não queriam se casar. Um
até me disse que ficou impressionado em como eu me importava
com essa questão. Outros falaram que compreendiam a Grande
Loja porque a Ordem era um lugar muito cheio de velho. Outros
responderam que o Brasil era um país com uma cultura
homofóbica. Outros ainda diziam que a coisa estava evoluindo
na Grande Loja de Língua Portuguesa e que um dia iria mudar.
Vamos ver estes argumentos ponto a ponto.

Em primeiro lugar o fato de as pessoas individualmente não


quererem se casar não significa que esta não seja uma questão
579

importante. Há um simbolismo aí. Por mais que rosa-cruzes


homoafetivos não queiram pessoalmente se casar, a mera
possibilidade de que isso possa acontecer significa que a
organização vê os relacionamentos homoafetivos como dignos
da mesma sacralidade à qual os rosa-cruzes heterossexuais têm
direito.

O que me impressiona é como algumas pessoas simplesmente


não conseguiam enxergar isso. O poder da homofobia
internalizada é realmente muito forte. As pessoas se
acostumaram a serem marginais e gostam disso. A maioria dos
rosa-cruzes que eu conheci e que achava a questão importante,
sequer tomava a iniciativa de escrever para a Grande Loja. E
nisso certamente tem a ver com a cultura brasileira. Somos
passivos e cordeais demais. Esperamos os outros resolver os
problemas por nós, geralmente os outros acima da hierarquia.

Em segundo lugar, o fato de a Ordem ter muito velho me parece


argumento risível. Primeiro que há vários outros jovens ali e eles
também têm direito à voz. Segundo que o fato de alguns velhos
não gostarem de ver casamentos interraciais não pode ser uma
desculpa para que casais heterossexuais formados por um negro
e uma branca não sejam realizados. Em terceiro lugar, o Brasil
não é mais homofóbico que os EUA.
580

Os brasileiros descriminalizam a homossexualidade em 1822 e


os americanos só na década de 1960. O Brasil aprovou o
casamento civil homoafetivo em 2011. Os Estados Unidos só em
2015. Logo, isso não se sustenta. Aliás, a ideia de a cultura
brasileira ser homofóbica é simplesmente estúpida. A maior
parte da cultura brasileira é contrária a tudo o que o
rosacrucianismo ensina, pois entende que é coisa do demônio ou
bruxaria. E nem por causa disso a Ordem deixa de ensinar o que
ensina. Ademais, sob essa ótica, a Ordem perde a oportunidade
de criar uma cultura, o que deveria ser o objetivo de toda
ideologia metafísica séria. Os cristianismos são tão poderosos
porque eles CRIAM cultura e modos de pensar e não se adaptam
ao que os outros dizem para eles.

Em quarto lugar entra o argumento de “a Grande Loja está


evoluindo”. Neste ponto voltamos à discussão sobre como o
conceito de evolução é usado para manipular as pessoas.
Alimenta elas com esperanças futuras que nunca vêm. Algo do
tipo “Olha, espere aí sentado a evolução porque ela está vindo,
tá?”. Enquanto isso a pessoa segue alegremente pagando a
organização e sendo tratada como lixo. Se a Grande Loja de
Língua Portuguesa se dá ao direito de mentir tão
descaradamente despreocupada com os efeitos que isso tem na
mente dos seus membros homoafetivos, é porque ela sabe que
eles aceitam isso.
581

Seja como for, a mera ideia de que a Ordem Rosa-Cruz não


permite que as famílias homoafetivas possam participar do
Ritual de Matrimônio por receio do preconceito dos membros
significa muitas coisas. Isso significa que ela não confia na
capacidade do seu próprio sistema de pensamento em criar
valores humanistas nos seus membros. E se a Ordem não confia
nela própria, por que eu confiaria?

Se a organização porventura estivesse com medo de que alguns


membros heterossexuais preconceituosos saíssem da Ordem ao
tomar essa postura, é evidente que outros membros
homoafetivos também sairiam, como de fato saíram. Logo, a
Ordem Rosa-Cruz fez uma opção. Escolheu pela homofobia. De
qualquer forma, o absurdo da coisa foi ver os rosa-cruzes
homoafetivos dando respostas por eles próprios, quando eles
deveriam é exigir da Grande Loja essas respostas. Se a
organização tem medo de ferir suscetibilidades dos
heterossexuais, a suscetibilidade dos membros homoafetivos não
importa? E se for isso, que ela jogue abertamente as informações
para as pessoas decidirem e não faça as pessoas de estúpidas.

Muitos rosa-cruzes homoafetivos eram pessoas tão boas,


sinceras e honestas que se recusavam a acreditar no que estavam
se submetendo. O fato de eles serem bem tratados nas Lojas, o
que de fato ocorre, não significa inclusão. Inclusão real é incluir
as pessoas nos mesmos espaços sagrados que todos os outros
membros têm acesso. Se isso não ocorre, as pessoas não são
582

incluídas; elas são TOLERADAS. Enquanto este grupo social se


contentar só com tolerância e não brigar por inclusão, será
sempre tratados dessa forma, achando que está tudo bem.

A questão é que muitos rosa-cruzes LGBT+ não conseguem a


ver isso, o que me dava um misto de compaixão com desprezo.
Eles acham que o Misticismos como um todo é tolerante ou
mais inclusivo do que as religiões, mas isso simplesmente não é
verdade. Ele é tolerante com relação à presença física e
financeira das minorias afetivossexuais e de gênero em seus
espaços. Mas o pensamento místico é bastante intolerante
porque a base dele é a ideia de que existe uma ordem cósmica
baseada em leis. Sob este quadro mental, tudo aquilo que é
diferente é visto essencialmente como uma violação desta lei e
desta ordem, mesmo que isso não seja dito claramente.

Nesse meio tempo, um irmão rosa-cruz me mostrou o manual


administrativo da minha Grande Loja. Em um determinado
artigo está escrito que assuntos ritualísticos são da alçada do
Grandioso Mestre da Grande Loja. Sabem o que isso significa?
Que a ideia de que a alteração no Ritual de Matrimônio ser
responsabilidade do Imperador também era possivelmente
mentira. E eles sustentaram isso por todo esse tempo. Eu fui
feito de idiota pela milésima vez. A Ordem estava me tomando
por imbecil. Eu percebi que a defesa de uma noção de
“hierarquia espiritual” existe para que a Ordem não seja
583

criticada. Qualquer tipo de crítica faz você ser acusado de


quebrar a hierarquia e seus juramentos.

Sobre os juramentos em especial, há uma iniciação na Ordem


Rosa-Cruz na qual os membros são obrigados a jurar que
confiam nos dirigentes da organização. Eu lembro que quando
eu fui submetido a essa situação, eu quase disse que não poderia
jurar aquilo porque eu achava absurdo demais

demais fazer um juramento de confiança em quem eu sequer


conheço. Mas como fazia parte do jogo, eu jurei assim mesmo e
recebi a minha iniciação.

Após toda essa querela em torno do casamento homoafetivo e


após ver a desonestidade e uma possível postura homofóbica dos
dirigentes, eu conclui que eu estava certo nos meios receios. Se
a administração da organização não se compromete com os
membros, por que eu deveria jurar alguma coisa para eles? Essa
mentira fez com que eles tivessem perdido toda a autoridade
espiritual que diziam ter.

Mesmo que os Rituais de Matrimônio para famílias


homoafetivas não fossem feitos nos Estados Unidos, ainda
assim, as desculpas esfarrapadas e sem fundamento que eles
davam para negar isso eram vergonhosas. Me davam
constrangimento pelo cinismo e desfaçatez com que eles
584

respondiam. Eles nunca responderam os meus contra-


argumentos que, modéstia à parte, eram bem pontuados. A
administração da Ordem parece pensar que se ela tolera as
pessoas homoafetivas, logo não existe homofobia. Trata-se de
um pensamento da década de 1950. De lá para cá, o mundo
mudou bastante.

Foram mentiras atrás de mentiras por anos, quando a Ordem


deveria simplesmente ter dito a verdade. Ela deveria ter
explicado claramente as razões pelas quais famílias
homoafetivas não podem participar do Ritual de Matrimônio. A
Verdade sempre liberta. A questão é que se ela não diz isso
claramente, é porque nem ela própria confia nos valores nos
quais essa postura se sustenta. E se ela não acredita que a
homofobia é um valor social que valha a pena ser clara e
abertamente defendido, por que ela adota essa postura?

Ora, se a Ordem Rosacruz se diz consagrada à busca pela


Verdade, por que aparentemente mentir dessa forma tão
descarada? O que a organização fez foi de uma enorme
irresponsabilidade com a fé de membros como eu que
depositaram sua mais sincera confiança nela. Faltava total
empatia para perceber que eles faziam seus membros sofrerem.
E ainda sugeriam que essa questão era apenas um “mimimi”.
Aliás, todo fascista acha que a dor dos outros é apenas
‘frescura’. A Ordem parecia não perceber que todos os
argumentos sem fundamento dela tocavam a alma das pessoas.
585

Durante um período eu fiquei em depressão por ter perdido a


minhas crenças (embora o Ritual de Matrimônio não tenha sido
o único fator), por ter confiado na Ordem e em pessoas
desrespeitosas que me tinham como inferior quando me diziam
que a minha orientação afetivossexual não importava. Eu fiquei
com raiva de ter dedicado tanto tempo e dinheiro a algo assim.
Passei anos amando a humanidade inteira e eu sequer tinha o
direito a uma resposta honesta.

Naturalmente, é um direito da Grande Loja de Língua


Portuguesa excluir os casais homoafetivos do Ritual de
Matrimônio. O que não é um direito da Ordem é tratar as
pessoas dessa forma. Ademais, por que outra Grande Loja tinha
uma postura diferente? Neste ponto novamente voltei meu
pensamento à comparação entre o Misticismo e as religiões. Nas
religiões homofóbicas, a gente claramente as razões da
homofobia. É porque está na Bíblia e eles teoricamente seguem
o que está ali. Mas na Ordem Rosa-Cruz, que se supunha mais
esclarecida e não dogmática, qual era o fundamento? Sequer ela
tinha dignidade de falar abertamente sobre isso para que os
próprios membros arbitrassem sua filiação de acordo com sua
consciência.

O leitor pode argumentar que estou dando muita importância


para um assunto tão trivial como um simples Ritual de
Matrimônio. Em primeiro lugar, se é um assunto pequeno e sem
586

importância, por que a Ordem Rosa-Cruz não faz essa alteração


tão desimportante e acaba com a questão? No entanto, este
assunto pode ser trivial para heterossexuais ou para rosa-cruzes
homoafetivos com homofobia internalizada e que gostam de
serem tratados como palhaços.

Para quem tem alguma consciência e dignidade própria, ser


discriminado no Ritual de Matrimônio toca no significado que
você e a sua família tem no mundo e no campo da
espiritualidade. Só as pessoas com grandeza de alma conseguem
compreender isso. Para quem é homossexual, ou seja, apenas faz
sexo com pessoas do sexo semelhante, isso não importa. Mas
para quem não é homossexual apenas, sendo também uma
família homoafetiva, isso importa muito.

É impressionante como tantas pessoas naturalizam a homofobia.


Se a Ordem Rosa-Cruz dissesse que o Ritual de Matrimônio era
apenas para pessoas brancas, pois a cor branca representa a
pureza e a luz, ao passo que a cor negra representa a
malignidade e a escuridão, isso seria uma escândalo. Mas muita
gente aceita naturalmente que se diga que apenas os
heterossexuais representem a luz, a lei cósmica, a ordem divina
e que as famílias homoafetivas são criminosas espirituais,
contrárias à natureza ou às leis divinas.
587

Este certamente não é o meu caso. Minha dignidade pessoal não


me permite abaixar a cabeça para esse tipo de coisa. A menos
que tentem me convencer a abandonar o meu Ego. Mas neste
caso, os rosa-cruzes heterossexuais também poderiam abandonar
o Ego deles e cancelar qualquer tipo de Ritual de Matrimônio
(vejam novamente como a ideia de “abandonar o Ego” pode ser
manipulada por gente escroque que se apodera da sua
dignidade).

Convém lembrar que em muitas partes do mundo, igrejas,


algumas bem tradicionais, estão se abrindo cada vez mais para
os casamentos homoafetivos. Na Igreja Católica alemã, esses
casais são abençoados. Várias igrejas protestantes tradicionais
da Europa já fazem esses casamentos. Muitas igrejas
neopentecostais nos Estados Unidos também realizam essas
cerimônias.

E daí eu via a minha Ordem Rosa-Cruz no Brasil, que sempre


acusou as religiões de serem dogmáticas e obscurantistas,
tomando essa postura que, além de discriminatória, era
mentirosa. A questão não era mais o Ritual de Matrimônio em si.
A questão era enganar os membros com uma desfaçatez
acachapante e com argumentos pífios e sem sustentação. E isso
vindo de gente que diz que obtém as grandes Verdades da vida a
partir do Mestre Interior delas.
588

É impossível que a inclusão da diversidade humana no Ritual de


Matrimônio não faça parte dos mais nobres ideais que a Ordem
diz irradiar. Mas se a própria administração da organização não
se sente compelida a seguir os valores que ela mesma defende,
por que eu deveria fazê-lo? Ademais, se os rosa-cruzes
americanos são capazes de não serem homofóbicos, a Grande
Loja de Língua Portuguesa estava partindo do pressuposto que
os irmãos rosa-cruzes brasileiros eram inferiores aos
americanos?

No final das contas, é muito fácil amar toda a humanidade tal


qual os rosa-cruzes propõem. Afinal, a humanidade é
essencialmente uma abstração e é fácil amar ideias abstratas. A
humanidade está “lá”, na África. Mas eu, que dediquei tantos
anos da minha vida para a organização, era tratado dessa forma
absolutamente desrespeitosa pela Grande Loja de Língua
Portuguesa. A Grande Loja parecia não conseguir compreender
como toda essa situação doeu na minha alma. Nesse caso, não
tem como deixar de citar o filósofo Luiz Felipe Pondé “Quem
ama a humanidade detesta o seu semelhante” (PONDÉ, 2010).

Ademais, viver em Paz Profunda ignorando as questões difíceis


é a atitude mais covarde e mesquinha que alguém pode ter. A
Paz Profunda deve advir de rosa-cruzes heterossexuais que
olham seus irmãos homoafetivos e veem que eles têm o mesmo
direito à sacralidade que eles têm. Se eles conseguem fazer isso,
é porque o rosacrucianismo funciona. Se não, é porque a Ordem
589

está falhando naquilo que ela se propõe. Eu só queria ser tratado


com igualdade ou ao menos com verdade. É pedir muito? A
Ordem era o meu porto seguro e eles não foram respeitosos com
o papel que se dispunham a exercer.

Sobre isso, eu verdadeiramente entendo que tudo tem dois lados.


Mas a aura de mistério com a qual a Grande Loja de Língua
Portuguesa da Ordem Rosa-Cruz construiu esse assunto não me
dá todas as informações necessárias sobre o que ocorre por lá
neste processo. No entanto, juntando os pontos a partir do que
foi acontecendo, a única coisa que posso concluir é o que expus
aqui. Embora eu possa estar errado em vários pontos, o que
coloquei é a minha subjetividade que foi construída a partir dos
posicionamentos da própria Ordem.

Neste ponto, todos esses fatores se encontraram com o meu


ceticismo cada vez mais acerbo. A não inclusão das famílias
homoafetivas no Ritual de Matrimônio Rosa-Cruz não era um
simples fato. Isso tem muitos significados que se entrelaçam
com toda a linha de pensamento metafísica do rosacrucianismo
que se diz adogmático. No final, se os dirigentes da organização
não veem essas famílias como dignos dos espaços sagrados, o
gosto amargo que fica na garganta é: Para que serve os
ensinamentos rosa-cruzes, afinal? Se as pessoas se harmonizam
com os elevados planos da consciência cósmica e o resultado é
esse, será que esse negócio de Misticismo funciona mesmo?
590

Para que o leitor tenha uma ideia, todas as perguntas que


fizemos no decorrer deste livro podem ser aplicadas a esta
temática. Perguntas essas que eu acho que seria um gesto de
delicadeza, respeito, integridade e dignidade a Grande Loja de
Língua Portuguesa da minha Ordem Rosa-Cruz responder.

1- Qual é o objetivo da Ordem com essa discriminação? O


que ela ganha atingindo a fé das pessoas dessa forma?

2- Ora, se existe uma inteligência cósmica no mundo, o que


essa inteligência acha dessa postura de discriminar as
famílias homoafetivas?

3- Uma vez que o Deus panteísta está em tudo, Ele se


encontra nas famílias homoafetivas? Se sim, esse Deus
concorda com essa discriminação?

4- As famílias homoafetivas são contrárias às leis cósmicas,


naturais e divinas ao passo que as famílias heterossexuais
as representam? A diversidade que existe entre os seres
humanos não faz parte do sagrado?

5- Se a visualização e a criação mental funcionam, por que


a criação mental que eu fiz para que a Ordem incluísse os
casais homoafetivos não funcionou? Se o Cósmico não
aceita isso, então é por que a homofobia é
responsabilidade do Cósmico e não da Grande Loja?
591

6- Se o Mestre Interior é um meio de se atingir a Verdade,


por que algumas pessoas vão até ele e concluem que
casamento é uma união entre duas personalidades alma e
outras concluem que casamento é apenas entre membros
heterossexuais? Se a Verdade provém da uma mesma alma
universal, por que duas pessoas têm respostas
completamente diferentes para a mesma questão? Como
saber quem tem a Verdade mais verdadeira?

7- Se a Ordem Rosa-Cruz preconiza a evolução, discriminar


as famílias homoafetivas do Ritual de Matrimônio faz
parte dessa evolução? Quem define o que é evoluir? Como
saber qual Grande Loja é a mais evoluída – A de Língua
Inglesa ou Portuguesa?

8- Uma vez que a Ordem Rosa-Cruz afirma ser inspirada


pelos Mestres Cósmicos e que Kut Hu Mi é o seu
hierofante, esta postura discriminatória e mentirosa que a
Grande Loja de Língua Portuguesa tomou durante todos
esses anos tem inspiração dele?

9- Há um exercício em que a Ordem convida os membros a


imaginarem a atitude de seres iluminados como Jesus,
Buda, Maomé etc em determinadas situações. Neste caso,
como a Grande Loja imaginaria que seria a postura deles
diante desta questão?
592

10- A Grande Loja de Língua Portuguesa tem ignorado


sistematicamente perguntas que eu faço, optando por
adotar o silêncio como resposta. Neste caso, quando o
silêncio representa sabedoria e quando ele representa
covardia e pusilanimidade?

11- Se a Ordem Rosa-Cruz se define como não-dogmática e a


palavra ‘dogma’ representa uma verdade que não pode ser
mudada ou contestada, com base em que valores e ideias
ela não faz uma mudança no Ritual de Matrimônio?

12- Mulheres transsexuais que alteraram os seus documentos


podem realizar o Ritual de Matrimônio? Se não, como a
organização vai fazer para verificar se uma pessoa é trans,
uma vez que isso não é evidente? Vai haver salas de
verificação de genitália? E nos países onde se aceita a
poligamia? Um frater heterossexual tem o direito de passar
pelo Ritual de Matrimônio quatro vezes?
593

CONCLUSÕES

Se o leitor chegou até o final deste livro e o leu com bastante


atenção, verá que mais do que uma crítica sistemática ao
rosacrucianismo, ele é um profundo mergulho na Ordem Rosa-
Cruz. Durante anos eu realmente me dediquei ao Misticismo
Rosa-Cruz. Eu estudei, fui aos livros antigos e novos, comparei
autores, me aprofundei em conceitos. Eu posso dizer com
tranquilidade d´alma que eu fui o melhor rosa-cruz que eu pude
e talvez tenha sido isso que me fez voltar para o ceticismo. Ao
longo dos anos na organização, vi dezenas de rosa-cruzes que
mal estudavam as monografias ou dominavam os conceitos que
lhe eram propostos. Era simplesmente membros da Ordem.

Nestas discussões, muita gente relativiza a postura dos


dirigentes de organizações religiosas e espiritualistas diversas
dizendo que “devemos focar nos ensinamentos, mas as pessoas
são falhas e humanas”. É sempre a mesma ladainha. Outros
dizem que “as organizações são perfeitas, mas os seres humanos
são falhos”. Eu respeito estes argumentos, mas eu simplesmente
não concordo com eles. Isso porque se os dirigentes não seguem
aquilo que defendem, não tem por que os membros seguirem.
Isso se chama autoridade moral e espiritual.
594

A Irlanda, por exemplo, era um país extremamente católico, mas


conforme a Igreja foi envolvida em inúmeros escândalos
horrorosos de abusos de crianças, os irlandeses ficaram tão
chocados que a instituição foi perdendo a sua autoridade moral.
As pessoas precisam entender que a instituição é o norte e o
porto seguro das pessoas. Na medida em que ela se desvirtua, as
pessoas também perdem seu ponto de referência.

No meu humilde ponto de vista, não adianta focar apenas no que


organizações diversas dizem e buscar uma transformação
individual ou um caminho pessoal. As instituições importam
sim. Se uma instituição é podre ou tem falhas de caráter muito
sérias, é porque elas não funcionam.

Naturalmente, não foi o casamento homoafetivo que me fez


abandonar o rosacrucianismo, pois quando eu me dei conta de
tudo isso, eu já estava extremamente crítico com relação à
espiritualidade em geral. O ceticismo fincou raízes profundas
profundas em mim. No entanto, essa questão do Ritual de
Matrimônio fez aprofundá-lo ainda mais.

Ao longo dos anos eu percebi que o rosacrucianismo em


especial possui aquilo que chamo de ‘método sórdido de
resposta’. É a ideia de que quando alguém faz alguma crítica
seja à Ordem em si ou aos seus ensinamentos, é porque a pessoa
não entendem nada da Ordem. Essa nada mais é do que uma
595

forma defensiva de se atuar. Ao jogarem a bola para outros, eles


se eximem de responder certas questões. Quem colocava uma
pergunta difícil ou que questionava a organização, era porque
não tinha entendido direito a organização, o que é uma forma
bastante estúpida de agir.

Tal postura lembra os gurus indianos que dizem que ninguém


pode questioná-los. Se a pessoa tem dúvidas, ela deve meditar
sobre isso e não ficar enchendo a paciência do guru. No fundo,
essa é uma ideia malandra porque exime líderes e instituições de
darem respostas e transfere toda a responsabilidade para o
indivíduo. Se você não tem a resposta para uma pergunta, é
porque você não meditou o suficiente. Nesse sentido, o próprio
sistema místico de busca de uma resposta individual é algo que
cria um escudo protetor contra instituições e organizações.

A questão da nossa mente, por exemplo. Nem os maiores sábios,


cientistas e filósofos conseguiram responder adequadamente o
que são mente e consciência. Na Psicologia há diversas
correntes, definições e entendimentos sobre o que sejam essas
coisas. Daí vem uma Ordem esotérica qualquer e diz que “os
outros não compreenderam a Ordem”. Quão boba é essa postura.

Existem conceitos cuja definição é essencialmente filosófica e


há muitas abordagens para eles.
596

Ideias como ‘evolução’, ‘mente’, ‘iluminação’ etc possui


diversas abordagens e é difícil trazer uma definição última para
essas noções a ponto de apontar o dedo para os outros e dizer
que eles não compreenderam o que a organização queria dizer.
Ora, se o Misticismo é um caminho de evolução individual e
com respostas subjetivas, para alguém dizer que uma pessoa não
compreendeu algo, isso significa que essa pessoa deveria estar
no mesmo caminho que aquele alguém. Pode isso?

Ora, se o que a Ordem diz fosse a Verdade final das coisas,


haveria milhares de cientistas na organização absorvendo o que
ela teria a dizer, mas não é este o caso. Pelo contrário. A Ciência
oficial muitas vezes ridiculariza manifestos da organização,
como ela própria atesta em algumas de suas publicações. Vai ver
os cientistas altamente graduados mundo afora não entenderam a
proposta da Ordem.

Nesse meio tempo, eu conheci um canal no Youtube dedicado


aos céticos, intitulado Prof. Daniel Gontijo. Nele, dezenas de
pessoas dão seus testemunhos céticos sobre o que viveram em
diversas instituições religiosas, espiritualistas e esotéricas e é
sempre a mesma coisa. História de pessoas que mentem,
enganam, roubam, abusam etc. Claro que este não era o caso da
Ordem Rosa-Cruz que eu fiz parte (pelo menos não até onde eu
soube). Mas por que raios nenhuma instituição dedicada a uma
ideologia metafísica produz aquilo que diz? Será que essa é a
sina de todas as ideologias metafísicas?
597

Seria absolutamente uma inverdade dizer que não aprendi nada


com a Ordem Rosa-Cruz durante mais de uma década. Inclusive,
todo este livro foi erigido com base no espírito rosa-cruz do livre
pensar e questionar. A ideia de ser um ponto de interrogação
ambulante ainda e ecoa e sempre ecoará dentro de mim. Isso
graças ao rosacrucianismo, mas também ao espírito científico
inculcado em mim quando eu ainda era uma criança.

A questão é que a partir de um determinado momento, aquele


lugar deixou de ser para mim e foi para contar essa história que
escrevi este livro. Eu tentei colocar algumas das perguntas que
elenquei no decorrer deste livro em grupos de rosa-cruzes das
redes sociais para ver se eu conseguia respostas para minhas
inquietações existenciais. Mas o que eu encontrei me deixou
profundamente chocado. Ou as pessoas excluíam minhas
postagens ou eu era expulso dos grupos. Eu soube até que a
Grande Loja da minha Ordem ficava vigiando esses espaços
online. Ora, o tempo e a energia mental que ela gastava
patrulhando o que acontecia nos grupos de internet, ela poderia
estar respondendo todas as perguntas que enviei a ela.

Em um antigo grupo rosa-cruz em uma rede social, certa vez me


disseram que o Imperador criara um espaço de discussão para os
rosa-cruzes. Era tipo um fórum público onde os membros
podiam deixar suas opiniões. Um irmão rosa-cruz me disse que
o Grandioso Mestre da Grande Loja de Língua Portuguesa pediu
598

ao Imperador que este serviço não fosse disponibilizado para os


rosa-cruzes de língua portuguesa ou do Brasil. Eu não sei se essa
história é verdadeira, mas se for, com qual objetivo ele fez isso?
Talvez se tais fóruns existissem, este livro não seria escrito.

Com o tempo, eu percebi que a Ordem Rosa-Cruz tinha deixado


de ser uma escola de livre pensamento (se é que algum dia ela já
o foi). A necessidade de controle da informação, de abafar todo
tipo de troca de ideias e de apagar as divergências foi
transformando a organização. Os grupos rosacruzes nas redes
sociais deixaram de ser um lugar de livre pensar e viraram um
monte de baboseiras com frases de autoajuda e gente dizendo
“Que lindo! Concordo! Paz Profunda”.

A Ordem foi pouco a pouco se tornando uma espécie de religião


New Age onde as pessoas não podiam questionar, repensar ou
sugerir. Elas só podiam concordar. A tal “Paz Profunda” dos
rosacruzes nada mais era do que um grande teatro imposto
forçadamente e apagando as divergências.

A coisa chegou ao ridículo de nas Lojas haver uma proibição de


ir de bermuda, lembrando regras de vestimenta de uma igreja.
Ora, na época em que eu frequentava, eu não tinha carro e o
lugar em que eu morava era bem quente. Afinal, vivemos em um
país tropical. Eu chegava na Loja morto de calor. A ideia de que
calça é mais “respeitoso” do que bermudas é uma ideia
599

essencialmente importada do puritanismo calvinista europeu e


americano e que não se adapta à cultura e ao clima brasileiros.

O pior é que rosa-cruzes obedeciam a essas regras acriticamente,


sem questioná-las. Ora, as regras só existem porque os
subordinados aceitam segui-las. Se todos discordarem, o poder
central não tem muito o que fazer. Até porque se ele expulsar
todo mundo, ele é o próprio prejudicado. Mas certamente eu
estava esperando demais de uma organização cheia de pessoas
que acreditavam estar vivendo numa Ordem inspirada por
Mestres Cósmicos.

Eu considero lamentável essa transformação da Ordem em uma


religião. A Ordem Rosa-Cruz tinha tudo para ser um local de
geração de pensamento. Mas ela preferiu ser um espaço de
reprodução de pensamento. Depois de todo esse turbilhão acerca
do Ritual de Matrimônio Rosa-Cruz, eu me vi indo todo
domingo para a organização irradiando pensamentos de luz, paz
e amor para toda a humanidade, ao passo que eu próprio era
tratado com mentiras e não tinha direito sequer a uma resposta
honesta e verdadeira.

Seja como for, fato é que o rosacrucianismo se estruturou sobre


uma ideia de ordem, o que nos leva a uma intensa verticalidade
das relações. A questão é que o mundo contemporâneo é cada
vez mais horizontalizado. As redes sociais transformaram muito
600

as antigas estruturas de poder onde aqueles que estavam abaixo


apenas obedeciam. A proposta de uma “Ordem” foi me
parecendo cada vez mais ultrapassada.

Hoje em dia, eu acho que se existe algum sentido de


transcendência no mundo, ele está nas franjas da vida. É na
prostituta, no mendigo, nos mais pobres e na luta pela
construção de uma sociedade melhor. É isso que hoje em dia me
traz significado. E não um amor a uma humanidade abstrata a
partir de exercícios da mente. Eu acho que o estrangeiro que vai
para a Ucrânia lutar contra a opressão da Rússia faz mais pela
humanidade do que um rosa-cruz durante toda a sua vida.

Atualmente, a simples ideia de uma busca pela Verdade me


causa constrangimento. Isso porque Verdade e liberdade se
contrapõem. Na liberdade somos livres para criar e moldar. Se
há uma Verdade, logo não há escolha para aquilo que nosso
coração e nossa compreensão nos compele a seguir e a criar.
Temos liberdade até para moldarmos a nossa realidade às nossas
vontades. Se existe uma Verdade, essa liberdade não existe.
Nesse caso, é até bom que não haja uma Verdade absoluta sobre
o mundo espiritual. Certamente seria uma opressão terrível viver
sob ela.

Por fim, este livro não foi um ataque à Ordem Rosa-Cruz, mas a
expressão de um coração sincero. Quis contar uma jornada cheia
601

de altos e baixos no mundo da espiritualidade. O problema


maior das ideologias metafísicas é que qualquer coisa pode ser
dita sobre o mundo espiritual alicerçada numa autoridade
imaginada. Nesse sentido, deixo aos leitores a mensagem para
nunca se submeterem a instituição ou líder algum. E se você for
do espectro LGBT+, jamais aceitem ser tratados dessa forma.
Não admitam amar a humanidade e não terem direito ao
casamento. Vocês estão admitindo que não são vistos como parte
dessa mesma humanidade.

Para qualquer pessoa independentemente da orientação


afetivossexual, tragam sempre um ceticismo saudável com
relação a todas as coisas. Critiquem, questionem, repensem e
não entreguem a sua alma a quem vocês nem conhecem direito.
Nada e nem ninguém neste mundo parecem ter a Verdade. A
sensação de ser humano é de desamparo mesmo. Mas a meu ver,
é isso o que torna a vida maravilhosa.
602

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