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Cinema Queer: Cenários para além da heteronormatividade

Alfredo Taunay
Universidade da Beira Interior, Portugal
Ana Catarina Pereira
Universidade da Beira Interior / LabCom.IFP, Portugal

Abstract heterossexual, à medida em que


enfatizavam as ideias pré-estabelecidas de
The concept of queer cinema emerged in the
early 1990s and it refers to a series of films gênero. Apenas com o surgimento da Teoria
that would take the spectator to question the Queer estas normas vinculadas à
gender rules. Thus, the aim of our study is to
analyse the deconstruction of heterossexualidade começaram a ser
heteronormativity vision through some film questionadas. Richard Miskolci, um dos
characters, presented mainly in some
literary texts of Virginia Woolf, adapted to the principais teóricos queer do Brasil, afirma
cinema. In order to analyse these transitions, que:
the concepts of identity in Amartya Sen, and
heteronormativity, in the Queer Theory,
were central to our task. Looking through O diálogo entre a Teoria Queer e a
society's evolution, as Orlando's may Sociologia foi marcado pelo
provide, “masculine” and “feminine” are estranhamento, mas também pela
questionable and flexible concepts. What afinidade na compreensão da
today is representative of a genre can sexualidade como construção social e
represent both or precisely “the other” one a histórica. O estranhamento queer
few years later. com relação à teoria social derivava
do fato de que, ao menos até a
Key-words: década de 1990, as ciências sociais
queer cinema, identity, heteronormativity, tratavam a ordem social como
Virginia Woolf. sinônimo de heterossexualidade
(Miskolci 2009, 151)
Quando se deu início aos estudos da
Diversos autores indagaram sobre essas
sexualidade e de gênero os cientistas
questões sociais relativas à sexualidade e
consideravam apenas a heterossexualidade
aos papéis sociais de homens e mulheres
como sendo natural e, portanto, concebida
tão reforçadas pelas pesquisas científicas.
como praticada pela maioria. Prevalecia
Dois deles se destacaram: Michel Foucault
também a ideia de identidade de gênero
e Simone de Beauvoir. As obras História da
masculino e feminino inserida no contexto
Sexualidade e O Segundo Sexo serviram de
desta sexualidade ponderada como
base para o que, nos anos 1980, foi
predominante. Portanto, durante muitos
intitulado de Teoria Queer, tendo como
anos, pelo menos até finais dos anos 1980
marco a publicação do livro Gender Trouble
e início dos anos 1990, antes do surgimento
(Problemas de Gênero), da filósofa Judith
da Teoria Queer, os pesquisadores
Butler. Segundo Miskolci, “os primeiros
consideravam homossexuais, gays,
teóricos queer rejeitaram a lógica
lésbicas, transexuais, travestis e tantas
minorizante dos estudos
outras identidades de gênero como minorias
socioantropológicos em favor de uma teoria
em seus estudos. Tais pesquisas acabavam
que questionasse os pressupostos
por reforçar a concepção de norma
normalizadores que marcavam a Sociologia
canônica” (2009, 151). O autor afirma ainda Sufragista, iniciado no Reino Unido, em
que “o que hoje chamamos de queer, em finais do século 19. Ele foi responsável por
termos tanto políticos quanto teóricos, uma série de mudanças sociais que se
surgiu como um impulso crítico em relação refletiram na vida de mulheres no mundo
à ordem sexual contemporânea, inteiro. Numa época em que mulheres não
possivelmente associado à contracultura e tinham direitos sobre seus filhos em caso de
às demandas daqueles que, na década de divórcio, não podiam votar (mas sofriam as
1960, eram chamados de novos consequências do voto dos homens, uma
movimentos sociais.” (Miskolci 2012, 21) vez que as leis também eram para elas), e
não tinham direitos trabalhistas, elas foram
Estes novos movimentos sociais a que às ruas enfrentando a repressão da polícia
Miskolci se refere são o movimento pelos para exigir direitos iguais aos dos homens e,
direitos civis da população negra no Sul dos principalmente o direito ao voto, pois não
Estados Unidos, o movimento feminista da admitiam que as leis as atingissem sem que
chamada segunda onda e o então chamado fizessem parte do processo de escolha dos
movimento homossexual. Segundo o autor, políticos que formulariam estas leis.
a importância destes movimentos para o
surgimento da Teoria Queer está no fato Outro exemplo é a rebelião ocorrida em
deles, através das suas reivindicações, Stonewall1, no dia 28 de junho de 1969, que
permitirem um questionamento sobre se tornou um marco para o movimento
padrões morais fortemente enraizados na LGBT mundial e, consequentemente, para
sociedade. Os movimentos sociais citados os estudos de gênero e queer. Após a
têm grande relevância para os estudos rebelião, que durou cinco dias, os
feministas, de gênero e queer visto que, a homossexuais conseguiram visibilidade e
partir de seus manifestos, induzem a começaram uma série de manifestações
população civil, acadêmicos e políticos a onde reivindicavam direitos como a
refletirem sobre a ordem social instaurada, anulação da lei que previa, pelo Código
modificando pensamentos que de tão Penal, a prisão de homossexuais 2, bem
cristalizados haviam sido tomados como como a retirada da homossexualidade da
verdades absolutas. lista de doenças consideradas pela
Organização Mundial de Saúde (OMS).
Um exemplo destes movimentos sociais
despoleta-se em torno do sufrágio feminino, São do conhecimento público, casos como
sendo também conhecido como Movimento o do escritor Oscar Wilde que, por ser

1 Stonewall Inn era um bar frequentado por multidão. No entanto os presentes decidiram
homossexuais, travestis, transexuais, drag enfrentar a polícia numa rebelião que durou 5
queens e transgêneros em Nova York. No dia da dias. A partir de então homossexuais
morte da atriz Judy Garland milhares de começaram a se organizar pela luta de seus
frequentadores do bar aparecerem para prestar direitos.
homenagem à atriz (que se tornou o primeiro 2 Nos EUA e em vários outros países do mundo a

ícone gay da história). Na época existia uma lei homossexualidade foi considerada por muitos
anti-homossexuais nos EUA o que levou à anos um crime pelo código penal.
polícia comparecer ao local para dispersar a
homossexual, foi condenado à prisão, e o do prevenir, assinalando perigos em
toda parte, despertando as atenções,
criptoanalista britânico Alan Turing que,
solicitando diagnósticos, acumulando
apesar de ter salvo a vida de milhões de relatórios, organizando terapêuticas;
em torno do sexo eles irradiaram os
pessoas ao conseguir decifrar os códigos de
discursos, intensificando a
uma máquina de mensagens secretas consciência de um perigo incessante
que constitui, por sua vez, incitação a
utilizada pelos nazistas, também foi
se falar dele. (Foucault 1988, 32)
condenado à prisão e a tratamentos
hormonais forçados. Este caso é retratado Tendo em conta as considerações de

no filme Jogo da Imitação (The Imitation Foucault sobre o uso do sexo e da

Game, 2014), do realizador Morten Tyldum. sexualidade como forma de poder, podemos
conjeturar que, na sociedade em que
Além dos movimentos sociais, filósofos vivemos, os homens têm poder sobre as
como Michael Foucault e Simone de mulheres, e heterossexuais têm poder sobre
Beauvoir refletiram sobre a sexualidade e o homossexuais. Isto pode ser notado quando
gênero na sociedade de sua época. pensamos que, em vários países, as
Foucault, no livro A História da Sexualidade mulheres foram por muito tempo impedidas
(1988), indaga sobre como o sexo foi de votar e exercer cargos políticos, portanto,
utilizado como forma de poder de uns sobre eram os homens que legislavam para si e
outros. Ele fala sobre como a igreja, a para as mulheres o que lhes dava total
medicina e o poder judiciário utilizaram o poder sobre o sexo feminino. No Reino
sexo para fortalecer a estrutura de entidades Unido, por exemplo, os homens criaram leis
e pessoas. que impediam as mães de ficarem com seus
filhos em caso de divórcio e impediam
[...] inicialmente a medicina, por mulheres de protestarem sobre as péssimas
intermédio das “doenças dos nervos”;
em seguida, a psiquiatria, quando condições de trabalho.
começa a procurar – do lado da
“extravagância”, depois do onanismo,
No filme As Sufragistas (Suffragette, Sarah
mais tarde da insatisfação e das
“fraudes contra a procriação”, a Gavron, 2015) a situação é muito bem
etiologia das doenças mentais e,
retratada. A protagonista, Maud Watts
sobretudo, quando anexa ao seu
domínio exclusivo, o conjunto das (interpretada por Carey Mulligan), é
perversões sexuais; também a justiça
funcionária de uma lavanderia desde os 14
penal, que por muito tempo ocupou-
se da sexualidade, sobretudo sob a anos de idade, com salário inferior aos dos
forma de crimes “crapulosos” e
homens que desempenham trabalhos bem
antinaturais, mas que,
aproximadamente na metade do menos arriscados que o dela e das demais
século XIX se abriu à jurisdição miúda
mulheres. Constantemente ela e as demais
dos pequenos atentados, dos ultrajes
de pouca monta, das perversões sem funcionárias são vítimas de assédios
importância, enfim, todos esses
sexuais e morais por seu patrão. Quando ela
controles sociais que se
desenvolveram no final do século decide participar das manifestações em prol
passado e filtram a sexualidade dos
do voto para as mulheres e é presa, não só
casais, dos pais e dos filhos, dos
adolescentes perigosos e em perigo – é demitida como expulsa de casa pelo seu
tratando de proteger, separar e
marido. Ela perde o direito de guarda do filho
e é impossibilitada de vê-lo, visto que quem lo zelosamente, o modelo nunca foi
registado. Descrevem-na de bom
tem o direito sobre a criança é o pai. O filme
grado em termos vagos e
mostra que ser mulher naquela época era mirabolantes que parecem tirados do
vocabulário das videntes. (Beauvoir
permanecer calada diante das injustiças
1976, 10)
sofridas por elas, cuidar de seus filhos, da
casa e do marido mesmo depois de Contudo, os escritos de Simone de Beauvoir

trabalhar incansáveis horas. faziam referência apenas às que nasceram


biologicamente mulheres, excluindo
Por discordar com esta imagem social da travestis, transexuais e transgêneros. Além
mulher é que Simone de Beauvoir, no ano disso, a filósofa não questiona a educação
de 1949, publica seu livro O Segundo Sexo, heteronormativa que condiciona “homens” e
para expressar suas reflexões acerca do “mulheres” a terem determinadas
sexo feminino e a construção da imagem características. Entretanto, ao afirmar que
deste na sociedade. É desta obra a célebre as características da feminilidade são
frase: “Não se nasce mulher, torna-se” ensinadas, repassadas de geração a
(Beauvoir, 1976) em que a autora fala sobre geração e que elas variam culturalmente
a construção social da mulher (e do nos diversos países, Beauvoir permite que
feminino) baseado no sexo biológico. Ela outros pensadores, a partir de seus
esclarece que ser mulher não é determinado pensamentos, façam novos
apenas pela genitália, mas que muitas questionamentos.
características comuns a este gênero são
ensinadas durante a vida social, inclusive a É a partir das reflexões dela que, em finais

sua submissão ao homem, sendo que cada dos anos 1980, a filósofa Judith Butler, lança

comunidade, sociedade, e período histórico ainda mais perguntas sobre o que determina

determinam estas características. um ser humano como mulher. Segundo

«Tota mulier in útero: é uma matriz», Butler, nos textos feministas fala-se em
diz alguém. Entretanto, falando de mulher dentro apenas do contexto da
certas mulheres, os conhecedores
decretam: «Não são mulheres», heterossexualidade. Lésbicas, travestis e
embora tenham um útero como as transexuais sequer eram consideradas.
outras. Todo a gente reconhece que
há fêmeas na espécie humana; Segundo a autora isto aconteceu porque,
constituem, hoje, como outrora, mais para a teoria feminista, foi necessário
ou menos metade da humanidade; e
contudo dizem-nos que a feminilidade desenvolver uma linguagem capaz de
«corre perigo»; e exortam-nas: representar as mulheres completa ou
«Sejam mulheres, permaneçam
mulheres, tornem-se mulheres.» adequadamente, a fim de promover a sua
Todo o ser humano do sexo feminino visibilidade política. Ou seja, a preocupação
não é, portanto, necessariamente
mulher; cumpre-lhe participar dessa inicial era muito mais lutar por um lugar da
realidade misteriosa e ameaçada que mulher na sociedade ao invés de questionar
é a feminilidade. Será esta segregada
pelos ovários? Ou estará cristalizada a concepção de gênero naquela época. Mas
no fundo de um céu platónico? podemos afirmar que os textos de Beauvoir
Bastará um saiote de folhos para
fazê-la descer à terra? Embora certas permitiram novos questionamentos sobre “o
mulheres se esforcem para encarná- que é ser mulher” dando início a uma
discussão muito mais abrangente sobre os independentemente do nosso sexo
biológico. No fundo, o gênero é
gêneros e as normas heterossexuais.
relacionado a normas e convenções
culturais que variam no tempo e de
Li Beauvoir que explicava que ser sociedade para sociedade. (Miskolci
mulher nos termos de uma cultura 2012, 31)
masculinista é ser uma fonte de
mistério e de incognoscibilidade para Durante longos séculos predominou a ideia
os homens (…) Perguntei-me então:
de que homens eram apenas aqueles que
que configuração de poder constrói o
sujeito e o Outro, essa relação binária nasciam biologicamente homem, ou seja,
entre “homens” e “mulheres”, e a
com pênis, e mulheres apenas as que
estabilidade interna desses termos?
(…) A tarefa dessa investigação é nasciam biologicamente mulheres, ou seja,
centrar-se – e descentrar-se – nessas
com vagina. E que, portanto, o “normal” e
instituições definidoras: o
falocentrismo e a heterossexualidade “aceitável” era apenas homens se
compulsória. A genealogia toma
relacionarem com mulheres e vice-versa. E
como foco o gênero e a análise
relacional por ele sugerida cada um destes gêneros deviam
precisamente porque o “feminino” já
corresponder aos padrões determinados há
não parece mais uma noção estável,
sendo seu significado tão séculos. Esta concepção de gênero serviu
problemático e errático quanto o de
como “dispositivo histórico de poder”
“mulher” (…). Além disso, já não está
claro que a teoria feminista tenha que (Foucault 1988, 99 - 100). Baseando-se
tentar resolver as questões da
neste ponto de vista, a Organização Mundial
identidade primária para dar
continuidade à tarefa política.” (Butler de Saúde (OMS) considerou a
2009, 7- 9)
homossexualidade como doença,
O exposto acima serve para exemplificar constando ainda a não identificação com o
como distinguir funções, tarefas, cargos e gênero biológico no Manual Diagnóstico e
outras possibilidades a partir das distinções Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).
de gênero origina transtornos em nossa Ou seja, todos aqueles que não se
sociedade, permitindo, de acordo com os encaixam no padrão social estabelecido são
pensamentos de Foucault e Buter, que julgados pelos ditos “normais” e têm sua
alguns sintam-se com poder sobre outros, felicidade nas mãos destes. O que a Teoria
baseados na visão de que um gênero é Queer tenta fazer é lançar a discussão sobre
superior ao outro. O que a Teoria Queer vem estas questões para que nenhum gênero ou
fazer é desconstruir estes estereótipos nenhuma pessoa se julgue superior à outra
lutando para que as diferenças sejam por ter uma sexualidade e identidade
toleradas e respeitadas. Na perspectiva de diferentes do convencional.
Miskolci:
Virginia Woolf e o queer
A Teoria Queer lida com o gênero
como algo cultural, assim, o Na nossa comunicação, por outro lado,
masculino e o feminino estão em
homens e mulheres, nos dois. Cada pretendemos ainda aprofundar este
um de nós – homem ou mulher – tem conceito de “identidade”, seguindo a
gestuais, formas de fazer e pensar
que a sociedade pode qualificar como perspectiva de Amartya Sen, bem como a
masculinos ou femininos natureza difusa, ecléctica e complementar
da definição que propõe. Na opinião do sentirá alguma empatia ou possibilidade de
prémio Nobel da Economia, conflito e identificação com os temas e debates
violência são hoje sustentados pela ilusão propostos? Por outro lado, como poderá o
de que os seres humanos se podem definir feminismo cumprir esses mesmos
a partir de uma única identidade. O objectivos sem ser acusado de
pressuposto segundo o qual o mundo é etnocentrismo? Para efeitos práticos, será
constituído por uma federação de religiões, irrelevante que um discurso feminista seja
culturas ou civilizações, implica, no seu proferido por uma mulher branca e
entender, ignorar a relevância de aspectos heterossexual ou por uma mulher negra e
como o género, a profissão, a língua, a homossexual?
ciência ou a política. No quotidiano, cada ser
A resposta a esta questão surge
humano será membro de diversos grupos e
precisamente nesta era designada como
pertencente a todos eles:
“pós-feminista” — na qual vulgarmente se
O facto de uma pessoa ser mulher considera ter atingido a igualdade de direitos
não entra em conflito com o facto de e abolido o sistema patriarcal, enquanto um
ser vegetariana ou advogada, não a
impede de ser amante de jazz, progressivo hibridismo de géneros suscita
heterossexual ou defensora dos dúvidas na rígida atribuição de tarefas,
direitos dos homossexuais. Qualquer
pessoa faz parte de muitos grupos objectivos e obrigações a mulheres e
diferentes (sem que isso implique homens. O mesmo hibridismo ou relativa
qualquer espécie de contradição) e
cada uma destas colectividades a que androgenia que Virginia Woolf denuncia,
simultaneamente pertence confere- ainda no início do século passado, em obras
lhe uma identidade potencial que –
dependendo do contexto – pode como Orlando (1928) e Um quarto só para si
tornar-se bastante importante. (Sen (1929). Relembremos que, aquando da
2007, 79)
adaptação do primeiro romance, Sally Potter
(Orlando: 1992) recria esta personagem que

A definição proposta pelo autor lança um muda repentinamente de sexo, sem sequer

interessante debate sobre as questões da o ter planeado, sendo-lhe assim

inclusão com que o(s) feminismo(s) possibilitada uma existência dualista,

habitualmente se depara(m), e que adiante primeiramente como homem e depois como

pretendemos aprofundar. Não existindo, nas mulher. Orlando, à semelhança do que é

mulheres, uma consciência da sua narrado no romance homónimo de Woolf,

identidade enquanto mulheres (ou, em vive dezenas de anos em conflito com a

certos casos, uma completa rejeição da imposição de uma masculinidade

mesma), como poderá o feminismo cumprir socialmente definida (ao contrário de

os seus objectivos unificadores e qualquer homem do seu tempo, é incapaz

inclusivos? De que forma, uma mulher que de ver sangue ou de participar numa

se define a si própria primeiramente como batalha) e outras tantas a lutar pelo direito a

mãe, esposa, cristã, socialista, cabeleireira, uma casa própria, naturalmente vedado ao

portuguesa e, somente no final da listagem sexo feminino. No filme, Sally Potter

de uma série de características, “mulher”, prolonga a existência da personagem até ao


final do século XX atribuindo a Orlando um Esta observação é importante no sentido de
final feliz, concretizado na possibilidade de clarificar que, uma vez que a linguagem é
assumir a sua androgenia. uma construção social e esta muda com o
tempo, a visão que uma sociedade tem dos
A obra Orlando (1992), de Virgínia Woolf,
sujeitos e seus gêneros também irá sofrer
adaptada por Sally Potter é uma ótima
alterações à medida que a sociedade evoluir
referência para análise da
e mudar seus modos de pensar.
heteronormatividade e como este conceito
se adapta com a evolução da sociedade. Em relação aos aspectos queer da obra de
Isto fica ainda mais claro na adaptação Virgínia Woolf, Fernando Pinto observa:
cinematográfica ao realçar as normas de
O carácter queer quer da novela de
gênero em épocas distintas através do
Woolf quer do filme de Potter reside
personagem Orlando. O filme apresenta exactamente na forma como
enfatizam a multiplicidade, a fluidez, a
como um mesmo personagem, ora
impossibilidade de categorização que
masculino, ora feminino, tem dificuldades minam constantemente o vocabulário
conceptual usado normativamente
para se enquadrar aos padrões de gênero
para atribuir a cada um de nós uma
tanto por características físicas quanto por identidade, minando assim também
os discursos que atribuem aos
situações na vida quotidiana.
indivíduos uma determinada posição
hierárquica segundo a sua categoria
Fernando Pinto (2009) acrescenta ainda a identitária. Assim, o que Potter faz no
seu filme é muito diferente daquilo
importância da linguagem para a
que diz querer fazer e, ao mesmo
compreensão dos sujeitos e das normas de tempo, politicamente mais
interessante e eficaz no plano da
gênero. Segundo o autor:
defesa de todos aqueles cujas
identidades são objecto de actos
Orlando de Woolf não apenas discriminatórios. (Pinto 2009, 24)
demonstra como a linguagem
desempenha um papel fundamental Em Um quarto só para si, por sua vez,
na constituição dos sujeitos,
Virginia Woolf define duas características
demonstra também como o nosso
entendimento do mundo só é possível que julga fundamentais para a autonomia (e
através da linguagem; o que quer que
progressivo desenvolvimento pessoal e
seja que exista no mundo para além
da linguagem, o nosso conhecimento profissional) de uma mulher: a
das coisas está desde logo ligado aos
independência económica e um espaço a
termos que usamos para as
descrever. Para além disso, esses que possa chamar seu. Na sua opinião, as
mesmo termos que usamos
melhores escritoras do século XIX foram
participam na constituição desses
mesmos objectos ou sujeito que aquelas que libertaram a sua escrita da
reconhecemos no mundo. Este
condição escravizante de “ser mulher”. Ao
reconhecimento é, por seu lado,
essencial para compreender o contrário de Jane Austen — que apelida de
processo de produção de sujeitos e
ingenuamente fechada no seu mundo — ou
contestar o valor relativo que
culturalmente é atribuído a cada um, de Charlotte Brontë — exagerada
dependendo da categoria identitária
evocadora de todas as revoltas e injustiças
em que se insere. (Pinto 2009, 24)
que vitimam o sexo feminino —, Woolf
postula que uma escritora que pretenda
legar ao mundo uma obra memorável tivessem sido negados. O medo e o
ódio ou os seus vestígios quase
deverá possuir outro tipo de predicados,
tinham desaparecido ou revelavam
como os que atribui à cientista, pioneira no apenas um ligeiro júbilo pela
liberdade, uma tendência mais para o
desenvolvimento de métodos de
tratamento cáustico e satírico do que
planeamento familiar, Mary Carmichael para o tratamento romântico do outro
sexo. […] ela tinha — comecei a
Stopes. Ao ler o seu primeiro romance, Life’s
pensar — dominado a primeira lição;
adventure, Woolf não pôde deixar de se escrevia como uma mulher, mas
como uma mulher que tivesse
surpreender com a abordagem de temas
esquecido que é mulher, de modo que
invulgares para a época: “ ‘Chloe gostava de as suas páginas estavam cheias
daquela curiosa referência vinda do
Olívia’, li. E, então, descobri como ali a
sexo que surge apenas quando o
mudança era imensa. Chloe gostava de sexo se mantém inconsciente de si
mesmo. Tudo isto era uma vantagem.
Olívia, talvez pela primeira vez na literatura.”
(Woolf 2005, 134 - 135)
(Woolf 2005, 121)
Um certo hibridismo de géneros e uma
A partir do primeiro contacto, as recusa de encarar o sexo oposto como “o
expectativas foram crescendo. Woolf outro” (aqui descritos por Virginia Woolf) são
esperava de Carmichael um manancial de paralelos à combinação de diferentes
originalidades urgentes, exigindo-lhe (como identidades (enumeradas por Amartya Sen),
se à própria se dirigisse) uma concentração pautando o final do século XX e início do
absoluta nos objectivos e uma transposição século XXI. A contemporaneidade (e
constante de obstáculos: “Se paras para obscuridade) destas tendências é
praguejar, estás perdida, disse-lhe eu; o comprovável pela simples observação do
mesmo acontece, se paras para rir. Hesita quotidiano: nos dias que correm, é comum
ou fica atrapalhada e estás liquidada. Pensa cruzarmo-nos com homens vestidos de cor-
apenas em saltar, implorei-lhe, como se de-rosa e mulheres que vibram
tivesse colocado todo o meu dinheiro às intensamente com desafios de futebol,
suas costas; e ela saltou como um pássaro.” situação improvável há escassos 30 ou 40
(Woolf 2005, 136) A coragem e abnegação anos. Poderão estes traços significar que os
seriam assim atributos elogiados por Woolf, homens estão mais femininos e as mulheres
para além de uma identidade própria que mais masculinas? Passará esta mescla de
não cede aos constrangimentos costumes e traços identitários para a
socialmente impostos: realização e interpretação de obras de arte?
Serão “masculino” e “feminino”, na sua
Ela não era um ‘génio’ — isso era
utilização habitual, meras construções
evidente. […] Todavia, tinha certas
vantagens que, há meio século, sociais?
faltavam às mulheres com um talento
muito maior. Para ela os homens já
não eram a ‘facção oposta’; não Bibliografia
precisava de desperdiçar o seu tempo
a invectivá-los; trepar para o telhado Beauvoir, Simone. 1976. O segundo sexo
e arruinar a sua paz de espírito (volumes 1 e 2). Venda Nova: Bertrand Editora.
ansiando por viajar, passar por
experiências, e ter um conhecimento
do mundo e uma reputação que lhe
Butler, Judith. 1999. Gender trouble — Feminism
and the subversion of identity. London:
Routledge.

Foucault, Michel. 1988. História da sexualidade I:


A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.

Miskolci, Richard. 2009. A teoria queer e a


sociologia: O desafio de uma analítica da
normalização. In Revista Sociologias. Porto
Alegre, ano 11 nº 21: 150-182.

Miskolci, Richard. 2012. Teoria Queer: Um


aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte:
Autêntica.

Pinto, Fernando. 2009. Passing Between:


Problemáticas da Identidade em Orlando de
Virginia Woolf e na Adaptação de Sally Potter.
Dissertação de Mestrado, Universidade do Porto.

Sen, Amartya. 2007. Identidade e violência.


Lisboa: Tinta da China.

Woolf, Virginia. 2005. Um quarto só para si.


Lisboa: Relógio d’Água Editores.

Filmografia
Orlando.1992. Sally Poter. Reino Unido: Sony
Pictures Classics. DVD.

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