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Alfredo Taunay
Universidade da Beira Interior, Portugal
Ana Catarina Pereira
Universidade da Beira Interior / LabCom.IFP, Portugal
1 Stonewall Inn era um bar frequentado por multidão. No entanto os presentes decidiram
homossexuais, travestis, transexuais, drag enfrentar a polícia numa rebelião que durou 5
queens e transgêneros em Nova York. No dia da dias. A partir de então homossexuais
morte da atriz Judy Garland milhares de começaram a se organizar pela luta de seus
frequentadores do bar aparecerem para prestar direitos.
homenagem à atriz (que se tornou o primeiro 2 Nos EUA e em vários outros países do mundo a
ícone gay da história). Na época existia uma lei homossexualidade foi considerada por muitos
anti-homossexuais nos EUA o que levou à anos um crime pelo código penal.
polícia comparecer ao local para dispersar a
homossexual, foi condenado à prisão, e o do prevenir, assinalando perigos em
toda parte, despertando as atenções,
criptoanalista britânico Alan Turing que,
solicitando diagnósticos, acumulando
apesar de ter salvo a vida de milhões de relatórios, organizando terapêuticas;
em torno do sexo eles irradiaram os
pessoas ao conseguir decifrar os códigos de
discursos, intensificando a
uma máquina de mensagens secretas consciência de um perigo incessante
que constitui, por sua vez, incitação a
utilizada pelos nazistas, também foi
se falar dele. (Foucault 1988, 32)
condenado à prisão e a tratamentos
hormonais forçados. Este caso é retratado Tendo em conta as considerações de
Game, 2014), do realizador Morten Tyldum. sexualidade como forma de poder, podemos
conjeturar que, na sociedade em que
Além dos movimentos sociais, filósofos vivemos, os homens têm poder sobre as
como Michael Foucault e Simone de mulheres, e heterossexuais têm poder sobre
Beauvoir refletiram sobre a sexualidade e o homossexuais. Isto pode ser notado quando
gênero na sociedade de sua época. pensamos que, em vários países, as
Foucault, no livro A História da Sexualidade mulheres foram por muito tempo impedidas
(1988), indaga sobre como o sexo foi de votar e exercer cargos políticos, portanto,
utilizado como forma de poder de uns sobre eram os homens que legislavam para si e
outros. Ele fala sobre como a igreja, a para as mulheres o que lhes dava total
medicina e o poder judiciário utilizaram o poder sobre o sexo feminino. No Reino
sexo para fortalecer a estrutura de entidades Unido, por exemplo, os homens criaram leis
e pessoas. que impediam as mães de ficarem com seus
filhos em caso de divórcio e impediam
[...] inicialmente a medicina, por mulheres de protestarem sobre as péssimas
intermédio das “doenças dos nervos”;
em seguida, a psiquiatria, quando condições de trabalho.
começa a procurar – do lado da
“extravagância”, depois do onanismo,
No filme As Sufragistas (Suffragette, Sarah
mais tarde da insatisfação e das
“fraudes contra a procriação”, a Gavron, 2015) a situação é muito bem
etiologia das doenças mentais e,
retratada. A protagonista, Maud Watts
sobretudo, quando anexa ao seu
domínio exclusivo, o conjunto das (interpretada por Carey Mulligan), é
perversões sexuais; também a justiça
funcionária de uma lavanderia desde os 14
penal, que por muito tempo ocupou-
se da sexualidade, sobretudo sob a anos de idade, com salário inferior aos dos
forma de crimes “crapulosos” e
homens que desempenham trabalhos bem
antinaturais, mas que,
aproximadamente na metade do menos arriscados que o dela e das demais
século XIX se abriu à jurisdição miúda
mulheres. Constantemente ela e as demais
dos pequenos atentados, dos ultrajes
de pouca monta, das perversões sem funcionárias são vítimas de assédios
importância, enfim, todos esses
sexuais e morais por seu patrão. Quando ela
controles sociais que se
desenvolveram no final do século decide participar das manifestações em prol
passado e filtram a sexualidade dos
do voto para as mulheres e é presa, não só
casais, dos pais e dos filhos, dos
adolescentes perigosos e em perigo – é demitida como expulsa de casa pelo seu
tratando de proteger, separar e
marido. Ela perde o direito de guarda do filho
e é impossibilitada de vê-lo, visto que quem lo zelosamente, o modelo nunca foi
registado. Descrevem-na de bom
tem o direito sobre a criança é o pai. O filme
grado em termos vagos e
mostra que ser mulher naquela época era mirabolantes que parecem tirados do
vocabulário das videntes. (Beauvoir
permanecer calada diante das injustiças
1976, 10)
sofridas por elas, cuidar de seus filhos, da
casa e do marido mesmo depois de Contudo, os escritos de Simone de Beauvoir
sua submissão ao homem, sendo que cada dos anos 1980, a filósofa Judith Butler, lança
comunidade, sociedade, e período histórico ainda mais perguntas sobre o que determina
«Tota mulier in útero: é uma matriz», Butler, nos textos feministas fala-se em
diz alguém. Entretanto, falando de mulher dentro apenas do contexto da
certas mulheres, os conhecedores
decretam: «Não são mulheres», heterossexualidade. Lésbicas, travestis e
embora tenham um útero como as transexuais sequer eram consideradas.
outras. Todo a gente reconhece que
há fêmeas na espécie humana; Segundo a autora isto aconteceu porque,
constituem, hoje, como outrora, mais para a teoria feminista, foi necessário
ou menos metade da humanidade; e
contudo dizem-nos que a feminilidade desenvolver uma linguagem capaz de
«corre perigo»; e exortam-nas: representar as mulheres completa ou
«Sejam mulheres, permaneçam
mulheres, tornem-se mulheres.» adequadamente, a fim de promover a sua
Todo o ser humano do sexo feminino visibilidade política. Ou seja, a preocupação
não é, portanto, necessariamente
mulher; cumpre-lhe participar dessa inicial era muito mais lutar por um lugar da
realidade misteriosa e ameaçada que mulher na sociedade ao invés de questionar
é a feminilidade. Será esta segregada
pelos ovários? Ou estará cristalizada a concepção de gênero naquela época. Mas
no fundo de um céu platónico? podemos afirmar que os textos de Beauvoir
Bastará um saiote de folhos para
fazê-la descer à terra? Embora certas permitiram novos questionamentos sobre “o
mulheres se esforcem para encarná- que é ser mulher” dando início a uma
discussão muito mais abrangente sobre os independentemente do nosso sexo
biológico. No fundo, o gênero é
gêneros e as normas heterossexuais.
relacionado a normas e convenções
culturais que variam no tempo e de
Li Beauvoir que explicava que ser sociedade para sociedade. (Miskolci
mulher nos termos de uma cultura 2012, 31)
masculinista é ser uma fonte de
mistério e de incognoscibilidade para Durante longos séculos predominou a ideia
os homens (…) Perguntei-me então:
de que homens eram apenas aqueles que
que configuração de poder constrói o
sujeito e o Outro, essa relação binária nasciam biologicamente homem, ou seja,
entre “homens” e “mulheres”, e a
com pênis, e mulheres apenas as que
estabilidade interna desses termos?
(…) A tarefa dessa investigação é nasciam biologicamente mulheres, ou seja,
centrar-se – e descentrar-se – nessas
com vagina. E que, portanto, o “normal” e
instituições definidoras: o
falocentrismo e a heterossexualidade “aceitável” era apenas homens se
compulsória. A genealogia toma
relacionarem com mulheres e vice-versa. E
como foco o gênero e a análise
relacional por ele sugerida cada um destes gêneros deviam
precisamente porque o “feminino” já
corresponder aos padrões determinados há
não parece mais uma noção estável,
sendo seu significado tão séculos. Esta concepção de gênero serviu
problemático e errático quanto o de
como “dispositivo histórico de poder”
“mulher” (…). Além disso, já não está
claro que a teoria feminista tenha que (Foucault 1988, 99 - 100). Baseando-se
tentar resolver as questões da
neste ponto de vista, a Organização Mundial
identidade primária para dar
continuidade à tarefa política.” (Butler de Saúde (OMS) considerou a
2009, 7- 9)
homossexualidade como doença,
O exposto acima serve para exemplificar constando ainda a não identificação com o
como distinguir funções, tarefas, cargos e gênero biológico no Manual Diagnóstico e
outras possibilidades a partir das distinções Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).
de gênero origina transtornos em nossa Ou seja, todos aqueles que não se
sociedade, permitindo, de acordo com os encaixam no padrão social estabelecido são
pensamentos de Foucault e Buter, que julgados pelos ditos “normais” e têm sua
alguns sintam-se com poder sobre outros, felicidade nas mãos destes. O que a Teoria
baseados na visão de que um gênero é Queer tenta fazer é lançar a discussão sobre
superior ao outro. O que a Teoria Queer vem estas questões para que nenhum gênero ou
fazer é desconstruir estes estereótipos nenhuma pessoa se julgue superior à outra
lutando para que as diferenças sejam por ter uma sexualidade e identidade
toleradas e respeitadas. Na perspectiva de diferentes do convencional.
Miskolci:
Virginia Woolf e o queer
A Teoria Queer lida com o gênero
como algo cultural, assim, o Na nossa comunicação, por outro lado,
masculino e o feminino estão em
homens e mulheres, nos dois. Cada pretendemos ainda aprofundar este
um de nós – homem ou mulher – tem conceito de “identidade”, seguindo a
gestuais, formas de fazer e pensar
que a sociedade pode qualificar como perspectiva de Amartya Sen, bem como a
masculinos ou femininos natureza difusa, ecléctica e complementar
da definição que propõe. Na opinião do sentirá alguma empatia ou possibilidade de
prémio Nobel da Economia, conflito e identificação com os temas e debates
violência são hoje sustentados pela ilusão propostos? Por outro lado, como poderá o
de que os seres humanos se podem definir feminismo cumprir esses mesmos
a partir de uma única identidade. O objectivos sem ser acusado de
pressuposto segundo o qual o mundo é etnocentrismo? Para efeitos práticos, será
constituído por uma federação de religiões, irrelevante que um discurso feminista seja
culturas ou civilizações, implica, no seu proferido por uma mulher branca e
entender, ignorar a relevância de aspectos heterossexual ou por uma mulher negra e
como o género, a profissão, a língua, a homossexual?
ciência ou a política. No quotidiano, cada ser
A resposta a esta questão surge
humano será membro de diversos grupos e
precisamente nesta era designada como
pertencente a todos eles:
“pós-feminista” — na qual vulgarmente se
O facto de uma pessoa ser mulher considera ter atingido a igualdade de direitos
não entra em conflito com o facto de e abolido o sistema patriarcal, enquanto um
ser vegetariana ou advogada, não a
impede de ser amante de jazz, progressivo hibridismo de géneros suscita
heterossexual ou defensora dos dúvidas na rígida atribuição de tarefas,
direitos dos homossexuais. Qualquer
pessoa faz parte de muitos grupos objectivos e obrigações a mulheres e
diferentes (sem que isso implique homens. O mesmo hibridismo ou relativa
qualquer espécie de contradição) e
cada uma destas colectividades a que androgenia que Virginia Woolf denuncia,
simultaneamente pertence confere- ainda no início do século passado, em obras
lhe uma identidade potencial que –
dependendo do contexto – pode como Orlando (1928) e Um quarto só para si
tornar-se bastante importante. (Sen (1929). Relembremos que, aquando da
2007, 79)
adaptação do primeiro romance, Sally Potter
(Orlando: 1992) recria esta personagem que
A definição proposta pelo autor lança um muda repentinamente de sexo, sem sequer
inclusivos? De que forma, uma mulher que de ver sangue ou de participar numa
se define a si própria primeiramente como batalha) e outras tantas a lutar pelo direito a
mãe, esposa, cristã, socialista, cabeleireira, uma casa própria, naturalmente vedado ao
Filmografia
Orlando.1992. Sally Poter. Reino Unido: Sony
Pictures Classics. DVD.