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Beauvoir, Butler e Preciado: um debate sobre o

conceito de gênero
Beauvoir, Butler and Preciado: a debate about the
concept of gender
Sanmanth do Nascimento Araújo1

Resumo: Falar sobre o conceito gênero é, inevitavelmente, falar do feminismo por um


viés pós-moderno. O objetivo deste artigo é perceber as principais diferentes situações
pelas quais o conceito de gênero passou dentro do movimento feminista e observar
como ele se comporta no mundo pós-moderno e se é possível falar de um sujeito central
do movimento feminista.

Palavras-chave: Gênero; Feminismo; Simone de Beauvoir; Judith Butler; Beatriz


Preciado.

Abstract: Speaking of the concept of gender is bound to speak of feminism in a post-


modern way. This article aims to notice the main different situations that the concept of
gender went through inside the feminist movement and observe how it behaves in a
post-modern world and if it is possible to talk about a central character for the feminist
movement.

Key-words: Gender; Feminism; Simone de Beauvoir, Judith Butler, Beatriz Preciado.

Introdução

Muito debatido desde o século XIX, as questões de gênero ainda trazem dúvidas
e desinformação a muitas pessoas. Aliado erroneamente a tentativa de impor uma
supremacia feminina ou LGBT, as discussões sobre gênero são tomadas por muitos
como busca da afirmação e legitimação de um modelo obrigatório de prática subjetiva e
sexual. Apesar do fato que o termo gênero também vem sendo discutido em várias áreas

¹Curriculum Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4230989Y9


Mestranda do PPGL/UESPI – Linha de Pesquisa: Literatura, Memória e Gênero. Contato:
sanmanth@yahoo.com.br
como filosofia, antropologia e sociologia, torna-se ainda complicado chegar a um
consenso.

Vindo da gramática, o termo gênero é utilizado para classificação de palavras em


grupos como masculino, feminino e neutro. A troca da desinência final de gênero faz
toda a diferença dentro do discurso, principalmente, em sociedades androcêntricas.

O conceito de identidade de gênero foi utilizado a princípio por psicólogos


estadunidenses na década de 1960. Stoller, Money e Ehrhardt traçavam elementos
culturais que eram associados a elementos naturais ou biológicos. Ao verificar em seus
pacientes o não reconhecimento com o próprio sexo ou em pessoas com mais de um
sexo (hermafrodita), esses psicólogos traçaram essa identidade de gênero diversa que
poderia se associar a qualquer corpo. Essa visão pioneira ampliada às relações entre
masculino/feminino, heterossexualidade/homossexualidade e transexualidade, abriu
caminhos para um novo entendimento acerca do assunto.

Identidade sexual é a persistência, unidade e continuidade da


individualidade de uma pessoa como homem, mulher ou ambivalente, em
maior ou menor grau, especialmente como é vivenciada em termos de
autoconsciência e comportamento. Papel sexual é tudo que uma pessoa diz e
faz, para indicar aos outros ou a si mesma o grau em que é homem, mulher
ou ambivalente; inclui, mas não se limita à excitação e resposta sexual; o
papel sexual é a expressão pública da identidade sexual, e a identidade sexual
é a experiência particular do papel sexual (Money e Ehrhardt, 1972 apud
Money e Tuker, 1981, p. 12).

Essa visão binária dividida em biológico/cultural deu às feministas americanas


dos anos 70 mais um foco para sua luta que a partir de então consistia em
desnaturalização do sexo. Assim, o sexo seria a base ou esqueleto onde as atribuições
culturais e marcações de masculinidade e feminilidade se inscreveriam. De forma
acrítica, as feministas não verificavam a insuficiência que essa dicotomia proporcionava
ao avanço da resolução dos problemas relacionados à dominação androcêntrica.

Sabendo disso, esse trabalho se propõe a uma análise sobre as principais teorias a
cerca do assunto, tendo como foco uma escritora norte-americana e duas europeias.
Sabe-se da importância de várias teóricas de diversas nacionalidades, mas faz-se
necessário um recorte dada a limitação de espaço do trabalho. Visto que a discussão
sobre gênero surge dentro dos estudos feministas, mostra-se fundamental discorrer um
pouco sobre o movimento feminista para que seja possível verificar a partir de quando a
problematização das estruturas dadas como naturais do binarismo homem/mulher
passaram a acontecer e evoluir até chegar ao emprego do termo gênero para, em
seguida, aplicar a negação do mesmo.

A primeira e a segunda onda do feminismo: Simone de


Beauvoir

Sabe-se que até o Renascimento, não existia um estudo sobre o órgão sexual
feminino. Achava-se que tanto as mulheres como os homens possuíam a mesma
genitália, sendo que a feminina era tida como inverso da masculina. A partir do século
XVIII, surgiu a necessidade da verificação da veracidade dessas teorias, onde foi
possível confirmar a diferença biológica entre os sexos. Com a evolução dos estudos
anatômicos, observou-se a diferença entre os sexos como não apenas o feminino para o
interior e o masculino para o exterior. Observou-se mais uma série de diferenças que
garantiram, de acordo com o discurso dominador, a opressão das mulheres, como o fato
de que as mulheres tinham o crânio menor que o do homem, por exemplo. Assim, as
diferenças biológicas davam premissa para a justificativa necessária para as diferenças
sociais. Bourdieu (2010) mostra que a diferença biológica entre os corpos masculinos e
femininos, marcada excepcionalmente pelos órgãos sexuais, é tida como justificativa
natural para a diferença construída entre os gêneros masculinos e femininos, atuando na
divisão social do trabalho e na diferenciação de subjetividades, aparentemente,
essencializadas.

A chamada “primeira onda do feminismo”, que aconteceu durante o século XIX


e início do século XX, preocupava-se com a situação da mulher na sociedade de forma
política. A busca por mais espaço, direitos e oportunidades foi o foco central do
movimento. Apoiando-se na teoria marxista, acreditava-se, de acordo com NYE (1995),
que com o fim do capitalismo e da propriedade privada, a condição das mulheres
mudaria. Lutava-se por mais direitos no casamento, já que como as mulheres não
tinham direitos a propriedade, elas precisavam casar para viver e assim aceitavam
quaisquer condições que lhes fossem oferecidas. Lutava-se também pelo direito ao voto,
pois se acreditava que conseguiriam dar espaço a quem pudesse lhes oferecer salários
iguais aos dos homens, uma maior liberdade sexual e direito a propriedade privada. As
mulheres operárias não se identificavam com as lutas feministas, pois, pertencentes a
uma classe economicamente inferior à das britânicas e americanas que lutavam pelo
direito de voto, seus problemas aconteciam nos locais de trabalho. Essas mulheres eram
mal pagas, assediadas pelos colegas e patrões e tinham uma jornada laboral subumana.

Com a “segunda onda do feminismo”, procurou-se desnaturalizar a subordinação


masculina buscando sua origem histórica. A partir do século XX, procurou-se
problematizar as causas desse binarismo existente, debruçando-se sobre questões como
sexualidade, direitos reprodutivos, mercado de trabalho etc. Foi na segunda onda
feminista que essa dicotomia sexo/gênero começaria a ser problematizada.

Um dos nomes de grande representatividade dessa época é o da filósofa francesa


Simone de Beauvoir. Para esta filósofa, o grande problema das feministas até então era
o de acreditar nas “ilusões” do marxismo. Beauvoir (2009) afirmava que a mulher
deveria se preocupar consigo, já que nem o capitalismo ou o socialismo foram capazes
de oferecer uma mudança na condição das mulheres. Beauvoir ainda afirmava que uma
análise puramente fisiológica, psicológica ou econômica não seria suficiente para
mostrar como a mulher foi determinada como o Outro. Assim, ela propõe uma
discussão dos pontos de vista da biologia, psicanálise e materialismo histórico. A
primeira parte de seu livro O Segundo Sexo, considerado um marco na teoria feminista,
é toda dedicada ao estudo dessas três áreas, onde por fim, Beauvoir conclui que não há,
de acordo com esses campos, nenhuma justificativa imutável para que as mulheres
sejam inferiores aos homens, pois de acordo com ela

não recusaremos certas contribuições da biologia, da psicanálise, do


materialismo histórico, mas consideraremos que o corpo, a vida sexual, as
técnicas só existem concretamente para o homem na medida em que os
apreende dentro da perspectiva global de sua existência. (BEAUVOIR, 2009,
p 95).

O capítulo seguinte, intitulado História, aborda questões desde a Antiguidade até


o momento contemporâneo a ela para traçar de que forma a mulher ocupou esse espaço
oprimido enquanto o homem passou a ser soberano.

[...] quando duas categorias humanas se acham presentes, cada uma


delas quer impor à outra sua soberania; quando ambas estão em estado de
sustentar a reinvidicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na
amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é
privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão.
Compreende-se pois que o homem tenha tido vontade de dominar a mulher
(BEAUVOIR, 2009, p 99).

Desde a Antiguidade, vê-se a mulher de forma passiva no sistema de reprodução.


Ela deve dar a luz de forma a perpetuar a prole do homem. De acordo com Beauvoir,
como não se pode obrigar uma mulher a parir, deve-se enclausura-la em situações onde
a maternidade seja a única saída. Isso acontece com a imposição do casamento,
proibição de medidas anticoncepcionais, aborto e divórcio.

O casamento, discorre Beauvoir, sempre foi apresentado de forma diferente para


homens e mulheres. Os homens são vistos como reprodutores, ativos, indivíduos
autônomos e completos; enquanto que as mulheres são percebidas em seu papel de
reprodutoras e em um ambiente doméstico. Porém, a filósofa afirma que isso não
acontece de forma natural ou biologicamente dada, isso se dá pelo fato de que o homem
precisa que essa seja a estrutura vigente.

A célebre frase de Beauvoir (2009, p. 361) “Não se nasce mulher: torna-se


mulher” resume de fato todo o seu pensamento exposto no livro em questão. Com essa
frase e com o que foi explicitado, a autora mostra que esse caráter artificial do indivíduo
que se torna mulher é construído culturalmente através de repetição de gestos, posturas
e expressões. Com sua verificação da relação da mulher com a sociedade em aspectos
biológicos, psicanalíticos e históricos, ela pôde constatar não haver nenhum dado que
comprove que essa subordinação e que essa estrutura fixa da subjetividade feminina é
naturalmente construída. Ela ainda afirma

Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a


fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que
elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que
qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um
indivíduo como um Outro. (BEAUVOIR, 2009, p 361)

Destarte, ela tenta desconstruir a ideia de que seja da natureza da mulher ser
passiva, dedicada ao lar, mais fraca que o homem e inferior. Isso é na verdade
socialmente construído. Por conseguinte, Beauvoir é considerada por muitos como a
pioneira nessa discussão biológico/cultural. Mesmo sem utilizar o termo gênero, que
ainda não havia sido discutido anteriormente, Beauvoir mostrou que ser mulher ou ser
homem consiste em aprendizagem e não com seu sexo.

A terceira onda do feminismo: Butler e Preciado

A “terceira onda do feminismo” busca afirmar a multiplicidade da categoria


mulheres, já que elas podem ter diferentes nacionalidades, cores, religiões e etnias. Com
uma interpretação mais pós-estruturalista do gênero e da sexualidade, essa nova onda do
feminismo foca em assuntos como teoria queer e estereótipos baseados em gênero.

A filósofa estadunidense Judith Butler pode ser vista como uma das grandes
referências dessa terceira onda feminista, chamada também de pós-feminismo pelo seu
dialogo com o pós-modernismo. De acordo com Butler, o maior erro do feminismo foi
ter a pretensão de falar em nome da mulher. Uma mulher única, uma e que tem a mesma
instituição de dominação: o patriarcado. Assim, o movimento esquecia-se da
multiplicidade de subjetividades, classes sociais, nacionalidades, cores etc. Essa
universalidade da categoria mulher era danosa para a resolução do problema do
machismo e da subjugação da mulher, pois esquecia-se que muitos poderiam ser a causa
da opressão.

Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua


utilização, mas, ao contrário, liberar num futuro de múltiplas significações,
emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e
fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir.
(BUTLER, 1998, p. 25)

Sabendo da incompreensão que o pós-modernismo causa em muitos, e portanto, o


pós feminismo também, Butler argumenta que as categorias de identidade buscam não
apenas descrever, mas elas tem um caráter normativo e exclusivista. Quando as
mulheres negras reclamavam que o “nós” defendido pelas feministas era um “nós”
branco, elas exemplificavam claramente o exclusivismo do movimento.

Querem as mulheres tornar-se sujeitos com base no modelo que exige


e produz uma região anterior de degradação, ou deve o feminismo tornar-se
um processo que é auto-crítico sobre os processos que produzem e
desestabilizam categorias de identidade? [...] Desconstruir não é negar ou
descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais importante, abrir um
termo, como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que
anteriormente não estavam autorizadas. (BUTLER, 1998, p.24)

Butler afirma ainda que não é que o termo “mulher” não deva ser usado ou que a
categoria não deva existir, mas sim que o termo torne-se um lugar aberto para
resignificações. E ela ainda vai além, ela afirma que desconstruir o conceito de corpo
não é nega-lo, mas usá-los subversivamente, fora do ambiente do poder opressor.
Citando Monique Wittig e Michel Foucault, Butler assegura que para os dois a categoria
sexo impõe uma materialidade dos corpos de forma a manter a sexualidade como uma
ordem compulsória.
Em seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Butler
problematiza essa diferenciação entre sexo e gênero, sendo o primeiro natural e o
segundo culturalmente construído. Para Butler, essa dicotomia relacional mostra uma
relação de causa e efeito entre os dois termos, fazendo com que haja uma justificativa
para que o gênero seja, inexoravelmente, ligado ao sexo.

[...] uma divisão se introduz no sujeito feminista por meio da distinção


entre sexo e gênero. Concebida originalmente para questionar a formulação
de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de
que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é
culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado casual do
sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. (BUTLER, 2013,
p 24)

Destarte, Butler problematiza a natureza dada do sexo, questionando se o mesmo


possui uma história. Partindo da afirmação de que não há corpo pré-discursivo, a
filósofa afirma que tanto o sexo quanto o gênero são formas de saber. O sexo também é
um meio discursivo e cultural.

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto


chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor,
talvez o sexo sempre tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre
sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma. (BUTLER, 2013, p 25)

Butler, em sua obra, critica Beauvoir, pois de acordo com sua leitura da filósofa
francesa, Beauvoir ainda está presa a uma metafísica da substância, termo vindo de
Nietzsche, para designar uma noção substancial do ser, que há um sujeito prévio a
escolha do gênero. Para a filósofa estadunidense, a dicotomia Um/Outro utilizado por
Beauvoir, onde esse Um é o que se constitui como sujeito, sendo ele homem, branco,
heterossexual vai construir a identidade do Outro, subjulgado e mulher, apresenta
limitações.

Ao citar a frase “não se nasce mulher, se torna mulher”, Butler afirma que
Beauvoir não deixa claro que esse sujeito que se tornará mulher é uma fêmea. A filósofa
existencialista passa a ideia de que esse se tornar mulher acontece por uma compulsão
cultural por fazê-lo. Butler questiona então como pode isso acontecer já que não existe a
possibilidade de recorrer a um corpo que não foi já interpretado por significados
culturais.
Para Judith Butler, existe uma chamada “heterossexualidade compulsória” que
dita os comportamentos e desejos do sujeito a partir de seu sexo, mesmo antes de
nascer. Uma mãe ao fazer um ultrassom e constatar que o feto possui um pênis, saberá
que o filho é um menino e que sentirá atração por meninas. De acordo com Butler,
(2013, p 45) “essa heterossexualidade institucional exige e produz, a um só tempo, a
univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das
possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional”.

Assim sendo, o gênero traria certa estabilidade para as manifestações do desejo


tratando práticas como homossexualidade, bissexualidade e transexualidade de forma
excludente, são vistos como falhas do desenvolvimento. Mesmo com essa
heteronormatividade, Butler observou que essa forma de fazer gênero está sempre em
continuidade, sempre por fazer. Gênero, então, é algo que fazemos continuadamente e
performaticamente.

Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um


núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por
meio do jogo de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o
princípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e
atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que
a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são
fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios
discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere
que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem
sua realidade. (BUTLER, 2009, p 194)

Gênero para a filósofa americana configura-se, então como esse conjunto de atos
repetidos dentro de uma estrutura reguladora rígida e que produz uma impressão de
substância de uma natural forma de ser. Butler defende gênero como uma categoria
flutuante.

Paul Beatriz Preciado, filósofo(a) espanhol(a), afirmou em diversas entrevistas


que o conceito de performatividade de gênero criado por Butler alterou completamente
sua forma de conceber o gênero e a sexualidade. Preciado usou seu próprio corpo para
testar suas teorias. Usuária esporadicamente de testosterona, mostrando a resistência
possível à normalização da masculinidade e feminilidade, não sendo possível enquadra-
la em nenhuma das duas estruturas.

Preciado, enquadrado(a) por muitos dentro do chamado pós-feminismo, afirma


em seu livro Manifesto Contrassexual que os corpos se reconhecem como corpos
falantes e não como homens e mulheres. Preciado argumenta que já que todas as
tentativas de criação de identidade de gênero caem no que já é socialmente pré-
estabelecido e marginalizam os que fogem à estrutura, ela propõe um rompimento dos
limites identitários impostos pelas “normalidade” e “anormalidade”.

A contrassexualidade é também uma teoria do corpo que se situa


fora das oposições homem/mulher, masculino/feminino,
heterossexualidade/homossexualidade. Ela define a sexualidade como
tecnologia, e considera que os diferentes elementos do sistema sexo/gênero
denominados “homem”, “mulher”, “homossexual”, “heterossexual”,
“transexual”, bem como suas práticas e identidades sexuais, não passam de
máquinas, produtos, instrumentos, aparelhos, truques, próteses, redes,
aplicações, programas, conexões, fluxos de energia e de informação,
interrupções e interruptores, chaves, equipamentos, formatos, acidentes,
detrito, mecanismos, usos, desvios... (PRECIADO, 2015, p 22-23)

A contrassexualidade propiciaria uma desnaturalização e desmitificação do sexo e


do gênero. Para Preciado, assim como para Butler, o sexo não é naturalmente dado, ele
é um construto de heteronormatividade que enclausura o corpo no binarismo do desejo
homem-mulher. O (A) filósofo (a) afirma ainda que a equação natureza =
heterossexualidade é o que rege a produção de masculinidade e feminilidade. Essa
construção é o que assegura, de acordo com Preciado, a exploração de um sexo sobre o
outro, pois essas regulações inscritas nos corpos permitem privilegiar o pênis e colocá-
lo como o produtor de impulso sexual. A heterossexualidade compulsória deve ser
reforçada no corpo repetidas vezes através de diversas estruturas e instituições para que
passem a serem vistos como naturais.

O que Preciado propõe não é um privilégio do feminino ou a criação de marcas


neutras de sexualidade e sim uma desconstrução completa das estruturas de sexo e
gênero. O gênero para o(a) autor(a) é como o dildo, ultrapassa os limites da imitação. É
ao mesmo tempo construído e orgânico.

Afirmando ainda que os órgãos sexuais não existem em si, pois eles já são
produtos discursivos de uma tecnologia que prescreve a significação dos órgãos
reprodutivos como portadores de desejo, Preciado afirma que para uma sociedade
contrassexual, deve-se considerar alguns princípios como abrir mão das categorias
masculino/feminino em relação a homem/mulher de forma institucional, cada novo
corpo terá um contranome que escape das marcas de gênero, uso de dildos por todos os
corpos ou sujeitos falantes, parodiar os efeitos associados ao orgasmo que na verdade
seria uma forma de negar as localizações legitimadas para sentir prazer, separação das
atividades sexuais das atividades de reprodução, as operações de mudança de sexo não
devem ser baseadas em uma coerência corporal masculina ou feminina, criação de
espaços contrassexuais, a prostituição seria reconhecida como uma forma legítima de
trabalho sexual etc.

O uso do dildo, tão enfatizado por Preciado, justifica-se pela ideia errônea de que
ele é um substituto do falo. Tem-se a premissa de que toda sexo hetero é fálico e todo
sexo fálico é hetero. Essa premissa valida a ideia de inveja do pênis e que o sexo lésbico
onde há o uso do dildo, não é realmente lésbico. Preciado aponta para o fato de que o
dildo não é o falo e não o representa, pois o falo não existe. O falo é uma realidade
fictícia do pênis. Assim, o dildo é mais um instrumento entre outras máquinas (mãos,
preservativos, línguas etc) e não uma réplica de um membro. “O dildo é a verdade da
heterossexualidade como paródia.” (PRECIADO, 2015, p 84)

A contrassexualidade busca exatamente isso, um distanciamento das práticas


normativas de sexualidade e de construção identitária. Os órgãos genitais carregam uma
significação cultural maior do que espaço no corpo e são por causa deles que os
indivíduos são organizados na sociedade. Preciado busca criar espaços para um anti-
discurso dentro do discurso. E isso é o que se propõe com o uso do dildo. Ele é o fim do
pênis como marcador sexual. Ele não é como o pênis, encontrado em um lugar singular
e marcador de diferença sexual. O dildo é múltiplo, podendo ser qualquer coisa e
significa sexualidade e não diferença sexual.

O que Preciado busca fazer é uma desidentificação que se dá pela negação das
estruturas que definem a existência dos seres. Abalando o sistema heteronormativo, não
existe mais prática heterossexual, homossexual etc. O que existem são os corpos
falantes, como dito anteriormente. Preciado vai além de Butler ao analisar a
(hetero)sexualidade não como origem fundadora, mas como tecnologia social de
produção de corpos e práticas sexuais, já que a heterossexualidade é o que produz a
feminilidade e a masculinidade.

Conclusão

Em suma, observa-se que os estudos de gênero estão em constante


problematização. O que se verifica é uma tentativa de livrar-se das amarras impostas
socialmente para uma cadeia de estruturas múltiplas livres de dicotomias e binarismo.
As identidades de gêneros aprisionam o sujeito, pois elas se tornam estilos normativos
de vida. Desde Simone de Beauvoir, passando por Judith Butler e chegando em Beatriz
Preciado, é possível constatar uma busca por formas de quebra de limites cerceadores.
Com Beauvoir que queria que as mulheres se rebelassem contra os homens, até Preciado
que propunha uma revolução de todos os sujeitos.

O conceito de gênero passou por diversas transformações. Então, deve-se observar


que as identidades não apenas se multiplicaram, elas escoam pelos limites impostos.
Não é mais pertinente categorizar as subjetividades, principalmente em moldes tão
voláteis como os do gênero. Consequentemente, já se faz difícil lidar com as identidades
usando categorias como heterossexualidade, homossexualidade, transexualidade, torna-
se então impossível quando as identidades não possuem categorias definidas e
nomináveis.

O feminismo pós-moderno tem como ponto mais importante a valorização das


diferenças raciais, econômicas, etárias e etc. Tentando criar novos termos e uma
linguagem que reflita melhor as experiências das mulheres, observa-se ser impossível
falar de uma categoria única que possa ser enquadrada como foco do movimento
feminista e como detentora das necessidades principais e lutas a serem combatidas.

REFERENCIA BIBLIOGRAFICA

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-


modernismo”. Cadernos Pagu. 11, 1998, p. 11-28.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

MONEY, John & TUKER, Patricia.Os papéis sexuais. São Paulo: Brasiliense, 1981.

NYE, Andrea. Teorias feministas e as filosofias do homem. Rio de Janeiro: Record:


Rosa dos Tempos, 1995.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2014

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