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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

www.uern.br

DE EVA A DORCAS: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA DAS


PROTAGONISTAS DAS NARRATIVAS BÍBLICAS

DINÁ MENDES DE SOUZA OLIVEIRA

PAU DOS FERROS


2020
DINÁ MENDES DE SOUZA OLIVEIRA

DE EVA A DORCAS: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA DAS


PROTAGONISTAS DAS NARRATIVAS BÍBLICAS

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, Campus
Avançado de Pau dos Ferros - CAPF, como
requisito para a obtenção do título de Doutora
em Letras, na área de concentração Estudos do
Discurso e do Texto. Linha de pesquisa:
Memória, discurso e identidade.

ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Edileuza


da Costa.

PAU DOS FERROS


2020
A tese intitulada de “De Eva a Dorcas: A construção da identidade
feminina das protagonistas das narrativas bíblicas, de autoria de Diná
Mendes de Souza, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo
PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à obtenção do grau de
Doutora em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte – UERN.
Tese defendida e aprovada em 05/AGOSTO/2020

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria Edileuza da Costa - UERN


(PRESIDENTE DA BANCA)

Prof. Dr. Everton Nery Carneiro - UEBA


(EXAMINADOR EXTERNO)

Profa. Dra. Maria Eliane Souza da Silva – UERN


(EXAMINADORA INTERNA)

Raimundo Leontino Leite Gondim Filho


Prof. Dr. Raimundo Leontino Leite Gondim Filho – UERN
(EXAMINADOR EXTERNO)

Profa. Dra. Larissa Cristina Viana Lopes – SEETEC/PB


(EXAMINADORA EXTERNA)

Profa. Dr. Manuel Freire Rodrigues – UERN


(SUPLENTE INTERNO)

Prof. Dra. Mona Lisa Bezerra Teixeira (Pesquisadora)


(SUPLENTE EXTERNO)

PAU DOS FERROS


2020
A Deus, Criador de todos e de tudo, a família, aos
meus quatro homens (marido e filhos), aos amigos,
aos irmãos de fé, aos irmãos pesquisadores, a mim
mesma!
AGRADECIMENTOS

Agradecer...palavra bonita, um gesto de um coração pleno de reconhecimento.

Começo agradecendo a DEUS, que é tudo de bom que há no mundo e no céu também. Ele está
comigo, como força e vida, na imanência do Espírito. Mas quando quis se materializar ele deu
o seu jeito. Eu entendo agora como Ele esteve comigo nesse caminhar, Ele me encontrou na
solidão das madrugadas e me abraçou! Mas Deus não tem braços e nem mãos aqui na terra, não
que eu possa alcançar em minha limitada visão. Então ele me encontrou por mãos humanas, ele
se fez braço de gente para o abraço, e muitas mãos me alcançaram como presença divina na
hora em que mais precisei.

Agradeço a primeira mão e braço de Deus que conheci na vida, minha mãe Salete. Você é a
certeza de um colo divino. Ao meu pai Pastor Antônio por ter me mostrado as narrativas
Bíblicas e as minhas irmãs e amigas Dimone e Dayse, seu esposo Katson e sua filhinha Kemilly,
minha sobrinha de sangue. Porque tenho Carla, Sobrinho, Sabrina, Adriano (in memoriam),
João Ítalo, Marcos, Jéssica e Júlia, meus sobrinhos do coração.

Agradeço a outro braço divino, meu marido Eduardo, você me fez mulher e tem aprendido a
conviver comigo, cada vez que me refaço outra mulher. Sou grata pelos nossos filhos: John,
“um feminista”, James e Josh, meus pequenos guardiões. Obrigada, Eduardo, por muitas vezes
assumir a casa, o papel de pai e mãe em minhas ocupações. Também por ouvir atento minhas
colocações e ajudar nas discussões, até quando se opunha gerava conteúdo para enriquecimento
do trabalho. Obrigada pelo amor em forma de cuscuz quentinho com café que, no fim da tarde,
você fazia e vinha deixar perto dos livros! Aos meus filhos e a você, obrigada. Vocês foram
pacientes, compreensivos ao entenderem minhas ausências, são meus principais apoiadores e
eu nada seria sem vocês.

Agradeço a minha sogra Julia, uma mulher protagonista. Sendo viúva, criou sozinha cinco
filhos: Eliana, Elizon, Eunice, Ezivan e Eduardo. Vocês são especiais.
Agradeço a todos os que fazem o Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus de Pau dos Ferros, pelo excelente
trabalho com qualidade acadêmica a nível nacional.

Agradeço aos meus professores do doutorado, o conhecimento vem das lutas e conquistas
alcançadas em mergulhos no mundo dos livros, a sabedoria vem de Deus, ela é Deus, e eu o
encontrei em vocês: Dr. Sebastião Marques, Dr. Charles Pontes, Dr. Gilton Sampaio, Dra.
Monalisa, Dra. Socorro Maia, Dra. Edileuza (minha orientadora, a você, um tópico específico);

Minha orientadora, Dra. Edileuza Maria da Costa, você é toda abraço, colo, mãos e afagos
divinos. Impossível não me emocionar lembrando das vezes que lhe procurei e lhe achei
transpassada de dor e preocupações, pelas perdas de seus amados irmãos nesse período de nossa
escrita. Mas você sempre tinha orientação, calma para minhas pressas, ideias para minhas
desilusões com a escrita. “Deus é bom em todo tempo” é o seu lema. Assim a gente caminhou
e fomos longe, entre versos, lágrimas, risos e canções. Muito agradecida.

Agradeço aos amigos do Doutorado, Professores e companheiros de estudo: Cleonildo Costa,


pelas discussões sobre o feminino que gerou o tema dessa pesquisa, Evandro Leite, Gildemar
Pontes, Iandra Fernandes, Leandro, Irio, Redson, um amigo especial das discussões. Ainda aos
amigos de leituras: a Professora Rosa Leite, pelas conversas e ajudas sobre os textos acadêmico,
o apoio sempre. Aos amigos que leram e apontaram caminhos: Dr. Stalone – IFRN, Pastora
Helia Galdino, Eliene Pedrosa, Mestre Cleferson, Pr. Alberione, Pr. Netinho, Pr. Claudio, Pr, e
Historiador Dr. Esdras, Profa. Disneylândia, Profa. Ofélia, Dra. Abigail -IFRN – Natal e tantos
outros amigos que por infortúnio de não ter mais memória eu possa ter esquecido – Perdão. A
vocês meu carinho.

Agradeço aos professores que aceitaram participar da Banca da Qualificação: Dra. Maria
Edileuza da Costa, Dra. Eliana, Dr. Everton Nery. A este, meu amigo, agradeço as palavras de
orientação, as discussões literárias e teológicas, o acompanhamento da escrita, as infindáveis
discussões e teimosias maravilhosas. Everton foi um coorientador, desses que se faz bem
presente. Sua presença foi Deus presente para mim.

Ao amigo, Dr. Paulo Freitas, Promotor de Justiça da nossa cidade de Pau dos Ferros, além de
um excelente operador jurídico, é também do mundo das Letras, escritor e poeta. Nesse
caminho dos Júris nos encontramos e sua amizade me foi presença e providência de Deus para
mim, pois das nossas boas discussões, inclusive no Grupo dos Tamoios – Revolta Literária,
uma idealização Literária sua, discutimos o feminino, as narrativas bíblicas e as discussões da
Psicologia da emoção do Dr. Marston - teoria DISC, que incorporei a minha Tese. Obrigada
pelas leituras que contribuíram para novos direcionamentos de meu trabalho e por seu olhar
vigilante ao feminino. Sempre grata pela leveza da poesia e pelo peso das discussões e
aprendizagens. Em seu nome saúdo, os Tamoios: Poeta Carol Castro (Manaus), Poeta Dayse,
Poeta Mirian, Poeta Claudio, meu amigo particular (Luís Gomes), o Poeta Robson Renato (Pau
dos Ferros), o Poeta Everton Nery (Salvador), o Poeta João José Viana e o poeta Wildergundes
Martins, ambos amigos do coração (Fortaleza -CE).

Agradeço ainda, e com muito amor, a todas as mulheres da minha congregação Galileia, minhas
intercessoras, oramos juntas e guerreamos as lutas uma das outras. Agradeço ao Departamento
feminino da Sede – Assembleia de Deus, na pessoa de minha Pastora Girlany Gomes. Agradeço
a todos os irmãos e companheiros de fé, da Galileia, de todas as congregações e sede. Ao meu
Pastor amado, ele é diferente, tem uma palavra adequada às mulheres de sua Igreja: Pastor
Rilton Peixoto e Girlany formam um par perfeito.

Agradeço aos colegas de trabalho pelo carinho e compreensão. Amigos da 15 DIREC (Diretoria
Regional de Educação e Cultura) na Pessoa de Diretora Profa. Maria Aparecida Vieira Diógenes
e a Secretaria Municipal de Educação na pessoa da Profa. Maria Eliesse Queiroz. Agradeço
também a todas as escolas pelas quais caminhei.

Agradeço, por fim, a todos que tem aguardado esse trabalho para ler e tecer comentários e aos
que o encontrarão nos bancos de pesquisas. Espero que dele surjam novas pesquisas.
Quem me dera agora, que as minhas palavras
fossem escritas!

Quem me dera, fossem gravadas num livro!

(Jó 19:23, ARA)


RESUMO

Nos estudos culturais e de gênero, torna-se relevante revisitar os textos bíblicos, na perspectiva
de compreender como se dá a construção da identidade da mulher nas narrativas bíblica, a
definição do papel social da mulher, visto que a Bíblia é o referencial de diversas religiões que
se utilizam de seus textos para explicar a origem da mulher no mundo e o seu lugar nele. E no
âmbito da discussão sobre a identidade feminina, faz-se necessário um revisar dessas narrativas,
escritas pelo viés masculino, pela relevância da Bíblia como cânon da literatura mundial, e por
ser ela, um referencial teológico, literário e imaginativo, uma obra basilar à Literatura do
ocidente. Nesta perspectiva, nosso trabalho intitulado “De Eva a Dorca: a construção da
identidade feminina das protagonistas das narrativas bíblicas”, busca ler a Bíblia como
literatura, propondo uma análise literária das narrativas em que as mulheres são protagonistas,
compreendendo como elas, mesmo sendo desenhadas na perspectiva de narradores masculinos,
constroem suas identidades, tornando-se um novo referencial feminino, no rompimento com o
desenho do “ser mulher” proposto. À luz de autores como Zabatiero e Leonel (2011), Auerbach,
(1998), Robert Alter,(2007), Carneiro (2018), que trazem abordagens literárias da Bíblia,
caminhamos na perspectiva de discutir a identidade em Silva (2014), Woodward (2014), bem
como sobre a identidade e a diferença com Hall (2007) e Bauman (2005). Autores como
Marston (2014), conduz o nosso olhar ao comportamento das seis protagonistas escolhidas, a
saber: Débora, Jael, Ester, personagens do Primeiro Testamento e Maria de Nazaré, Maria
Madalena e Dorcas, as protagonistas do Segundo Testamento. As ações dessas personagens,
frente aos desafios propostos, são interpretadas, a partir da hermenêutica de Paul Ricouer, como
ações e atitudes imbuídas de empoderamento, que as leva de um lugar de submissão e
apagamento ao protagonismo.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade feminina. Mulheres. Bíblia. Literatura. Protagonismo.
ABSTRACT

In cultural and gender studies, it is relevant to revisit biblical texts, in order to understand how
the construction of women's identity in biblical narratives takes place, the definition of the
social role of women, since the Bible is the reference of several religions that use their texts to
explain the origin of women in the world and their place in it. And in the context of this
discussion on female identity, it is necessary to revise these narratives, written by the male bias,
by the relevance of the Bible as a canon of world literature, and because it is a theological,
literary and imaginative reference, a basic work to Western literature. In this perspective, our
work entitled: “ FROM EVA TO DORCA : THE CONSTRUCTION OF THE FEMALE
IDENTITY OF THE BIBLICAL NARRATIVES PROTAGONISTS: ”, seeks to read the Bible
as literature, proposing a literary analysis of the narratives in which women are protagonists,
understanding how they, even being drawn from the perspective of male narrators, they build
their identities, becoming a new female reference, breaking with the design of the “being a
woman” proposed. In the light of authors such as Zabatiero and Leonel (2011), Auerbach,
(1998), Robert Alter, (2007), Carneiro (2018) who bring literary approaches to the Bible, and
in the perspective of discussing identity, we bring Silva (2014), Woodward (2014), on identity
and differentiates it, Hall (2007), and still Bauman (2005). Authors like Marston (2014), take
our look at the behavior of the six chosen protagonists, namely: Débora, Jael, Ester, characters
from the First Testament and Maria de Nazaré, Maria Madalena and Dorcas, the protagonists
of the Second Testament. The actions of these characters, facing the proposed challenges, are
interpreted, based on Paul Ricouer's hermeneutics, as actions and attitudes imbued with
empowerment, which takes them from a place of submission and erasure to protagonism.
KEYWORDS: Female identity, Bible, Literature, Protagonism
RESUMEN

En los estudios culturales y de género, es relevante volver a visitar los textos bíblicos, para
comprender cómo se produce la construcción de la identidad de la mujer en las narraciones
bíblicas, la definición del papel social de la mujer, ya que la Biblia es la referencia de varios
religiones que usan sus textos para explicar el origen de las mujeres en el mundo y su lugar en
él. Y dentro del alcance de esta discusión sobre la identidad femenina, es necesario revisar estas
narrativas, escritas por el prejuicio masculino, por la relevancia de la Biblia como canon de la
literatura mundial, y porque es una referencia teológica, literaria e imaginativa, un trabajo
básico para Literatura occidental. En esta perspectiva, nuestro trabajo titulado: " DE EVA A
DORCA LA CONSTRUCCIÓN DE LA IDENTIDAD FEMENINA DE LOS
PROTAGONISTAS NARRATIVOS BÍBLICOS", busca leer la Biblia como literatura,
proponiendo un análisis literario de las narrativas en las que las mujeres son protagonistas,
entendiendo cómo ellas, incluso Desde la perspectiva de los narradores masculinos, construyen
sus identidades, convirtiéndose en una nueva referencia femenina, rompiendo con el diseño del
"ser mujer" propuesto. A la luz de autores como Zabatiero y Leonel (2011), Auerbach, (1998),
Robert Alter, (2007), Carneiro (2018) que aportan enfoques literarios a la Biblia, y en la
perspectiva de discutir la identidad, traemos a Silva (2014), Woodward (2014), sobre identidad
y lo diferencia, Hall (2007) y aún Bauman (2005). Autores como Marston (2014) dirigen
nuestra mirada al comportamiento de los seis protagonistas elegidos, a saber: Débora, Jael,
Ester, personajes del Primer Testamento y María de Nazaré, María Madalena y Dorcas, los
protagonistas del Segundo Testamento. Las acciones de estos personajes, frente a los desafíos
propuestos, se interpretan, en base a la hermenéutica de Paul Ricouer, como acciones y actitudes
imbuidas de empoderamiento, que los lleva de un lugar de sumisión y borrado al protagonismo.
PALABRAS CLAVE: identidad femenina, Biblia, literatura, protagonismo.
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 14

2 A BÍBLIA NUMA PERSPECTIVA LITERÁRIA 41

2.1 UMA PROSA SOBRE A BÍBLIA: AS NARRATIVAS BÍBLICAS 64


2.2 A BÍBLIA DA MULHER E A LITERATURA COR DE ROSA 84

3 A MULHER NA LITERATURA BÍBLICA: PERSONAGENS 97


BÍBLICAS

3.1 AS MULHERES DO PRIMEIRO TESTAMENTO 98


3.2 AS MULHERES DO SEGUNDO TESTAMENTO 135
3.3 A CONCEPÇÃO DO FEMININO NA CULTURA ORIENTAL 142
3.4 CONTEXTUALIZAÇÃO DO FEMININO NO TEXTO BÍBLICO: QUE 157
PERFIL ELAS TÊM?

4 COMPORTAMENTO, IDENTIDADE E O PROTAGONISMO 170


FEMININO NO PRIMEIRO E SEGUNDO TESTAMENTOS: O
DESENHO DO “SER MULHER”

4.1 CONCEITUANDO COMPORTAMENTO, IDENTIDADE E 172


PROTAGONISMO
4.2 AS MULEHRES DO PRIMEIRO TESTAMENTO: COMPORTAMENTO, 195
IDENTIDADE E PROTAGONISMO DE DÉBORA, JAEL E ESTER
4.2.1 A apresentação de Débora, Jael e Ester no texto bíblico 202
4.2.2 A nacionalidade de Débora, Jael e Ester no texto bíblico 209
4.2.3 Os nomes das personagens e seus significados 212
4.2.4 Débora, Jael e Ester: conflitos e situações imediatas 217

4.3 AS MULEHRES DO SEGUNDO TESTAMENTO: COMPORTAMENTO, 223


IDENTIDADE E PROTAGONSISMO DE MARIA DE NAZARÉ, MARIA
MADALENA E DORCAS
4.3.1 A apresentação de Maria de Nazaré, Maria Madalena e Dorca no texto 224
bíblico
4.3.2 A nacionalidade de Maria Nazaré, Maria Madalena e Dorcas no texto 228
bíblico
4.3.3 Os nomes e significados de Maria de Nazaré, Maria Madalena e Dorcas 230
4.3.4 Maria de Nazaré, Maria Madalena e Dorcas: conflitos ou situações 231
imediatas

5 AS PROTAGONISTAS: UMA RELEITURA FEMININA DAS 235


NARRATIVAS BÍBLICAS
5.1 DÉBORA, JAEL E ESTER: PROTAGONISMO NO PRIMEIRO 238
TESTAMENTO
5.1.1 Débora: um zumbido de abelha no patriarcalismo 240
5.1.2 Jael: guerreira, heroica e irônica 245
5.1.3 Ester: O feminino entre a submissão à dominação 250
5.2 MARIA DE NAZARÉ, MARIA MADALENA E DORCAS: 258
PROTAGONISMOS NO SEGUNDO TESTAMENTO
5.2.1 Maria de Nazaré: de transgressora à precursora de um novo tempo 264
5.2.2 Maria Madalena: a discípula possessa de amor 271
5.2.3 Dorcas: a introdução legítima de um ministério feminino 276

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 282

REFERÊNCIAS 286
14

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A literatura como representação da vida real, traz em suas diferentes épocas, “o perfil
da mulher”, em grande parte, na perspectiva de homens que, tanto na ficção como na sociedade,
persiste limitar a ação social autônoma das mulheres, criar mitos para justificar essas
“limitações”, fundamentando uma ideologia dominante que atribuiu à mulher um lugar de
inferioridade, de coadjuvante, levando-a até mesmo, à irrelevância ou a uma espécie de
invisibilidade. Esta supremacia do masculino submeteu as mulheres a um papel secundário ao
longo da história ou da ficção, alcançando os espaços da religião, de onde, alguns discursos,
frutos de uma má interpretação dos textos bíblicos, legitimam a inferioridade da mulher e, em
muitas situações, fomentam a violência física ou simbólica1, bem como o deslocamento do
sujeito, o estranhamento deste diante de um sistema que parece não o acolher e com o qual ele
não se identifica.
Neste contexto, consideramos relevante os estudos dos textos bíblicos, principalmente
no sentido de examinar e compreender como se dá a construção da identidade da mulher nas
narrativas bíblica, e como essa construção se dá no início da definição do papel social da
mulher, direcionando nosso olhar para a Bíblia como texto referencial de diversas religiões, que
a tomam para explicar a origem da mulher no mundo e o seu lugar nele. Assim, no âmbito dessa
discussão faz-se necessário uma revisão dessas narrativas, pela relevância da Bíblia como cânon
da literatura mundial e, também, por ela ser um referencial teológico, literário e imaginativo ao
longo dos séculos.
De fato, pouco se sabe sobre as personagens femininas bíblicas. Em geral, elas não são
citadas e quando são, é pelo destaque da visão negativa do seu caráter, como é o caso de Eva,
a primeira mulher bíblica. Eva é usada para justificar o início e a função do feminino no mundo.
Discussões de alguns exegetas, pregadores religiosos sobre o jardim do Éden, mais
precisamente sobre “a queda do homem”, registrado em todo o capítulo 3 de Gênesis, costuma
ser um momento de angústia para as mulheres, que ouvem tais interpretações de vozes
pertencentes a algumas instituições religiosas que se apropriam dessa narrativa, para justificar
seus pensamentos arraigados de preconceitos. O texto de Gênesis (3, 1 -9) diz-nos assim:

1
BOURDIEU (1989) traz o conceito de violência simbólica como coação que se apoia no reconhecimento de
uma imposição determinada, seja esta econômica, social ou simbólica foi apresentado em “O corpo como capital:
para compreender a cultura brasileira” (PDF) Arquivos em Movimento 9 pp. 116 a 123
15

Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o


SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não
comereis de toda árvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das
árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio
do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não
morrais. Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. 5 Porque
Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como
Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. Vendo a mulher que a árvore era
boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar
entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele
comeu. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus,
coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si (MUNYON, 2008, p.245)

Este texto intitulado “A queda do homem” refere-se a toda perda da inocência, da


comunhão da humanidade com Deus, entretanto, o termo “homem” é usado para simbolizar o
humano, homens e mulheres. É exatamente a presença marcante do androcentrismo, constante
em alguns textos eruditos, e os textos bíblicos também têm essa característica, quando
apresentam narrativas são reveladores da cultura e dos costumes orientais.
Considerando o patriarcado como o padrão das sociedades desde muito tempo, tanto o
androcentrismo como a misoginia são marcas desse sistema em que o masculino é endeusado,
enquanto a crença na inferioridade da mulher se promove e, cada vez mais, as experiências
femininas são desconsideradas. O Androcentrismo é um termo do grego aner, andrós + kétron
+ ismo, usado pelo sociólogo Lester F. Ward2 em 1903, como uma das principais características
dessa sociedade. Inicia-se com a consideração do homem como a figura central da criação,
postura segundo a qual todos os estudos, análises, investigações, narrações e propostas são
enfocadas, a partir de uma perspectiva unicamente masculina, e tomadas como válidas para a
generalidade dos seres humanos, tanto homens como mulheres. O sociólogo em questão foi um
árduo crítico da forma como as mulheres eram tratadas na sociedade. Ward (1993.p 364)
afirmava3:

2
WARD, Lester F. "Sociologia pura: um tratado sobre a origem e o desenvolvimento espontâneo da sociedade.
Vol II. 1903, p. 364
3
The series of influences which we have been describing had the effect to fasten upon the human mind the habit
of thought which I call the androcentric world view, and this has persistently clung to the race until it forms to-
day the substratum of all thought and action. So universal is this attitude that a presentation of the real and
fundamental relation of the sexes is something new to those who are able to see it, and something preposterous to
those who are not. The idea that the female is naturally and really the superior sex seems incredible, and only the
most liberal and emancipated minds, possessed of a large store of biological information, are capable of realizing
it. At the beginning of the historical period woman was under complete subjection to man. She had so long been
a mere slave and drudge that she had lost all the higher attributes that she originally possessed, and in order to
furnish an excuse for degrading and abusing her men had imputed to her a great array of false evil qualities that
tended to make her despise herself. All Oriental literature, all the ancient sacred books and books of law, all the
traditional epics, all the literature of Greek and Roman antiquity, and in fact all that was written during the middle
ages, and much of the literature of the fifteenth, sixteenth, and seventeenth centuries, teem with epithets, slurs,
16

A série de influências que descrevemos teve o efeito de fixar na mente humana


o hábito de pensamento que eu chamo de visão de mundo androcêntrica, e isso
se apegou persistentemente à raça até formar hoje o substrato de todo
pensamento e ação. Tão universal é essa atitude que uma apresentação da
relação real e fundamental do sexo é algo novo para quem é capaz de vê-lo e
algo absurdo para quem não é. A ideia de que a mulher é natural e realmente
o sexo superior parece incrível, e apenas as mentes mais liberais e
emancipadas, possuidor de uma grande reserva de recursos biológicos
informações, são capazes de realizá-las.

Para o sociólogo, o androcentrismo tornou-se um sistema convencionado, a partir da


ideia da inferioridade feminina, incutida de tal forma pelas instituições, fazendo as mulheres
aceitarem pela total submissão, cedendo às pressões psicológicas, oferecendo à sociedade uma
visão, naturalmente, inferior. Para Ward (1903, p. 364):

No início do período histórico, a mulher estava sob completa sujeição ao


homem. Por tanto tempo ela era uma mera escrava na labuta que tinha que
perdeu todos os atributos mais elevados que ela originalmente possuía e, a fim
de fornecer uma desculpa para degradar e abusar de seus serviços, homens
havia imputado a ela uma grande variedade de falsas más qualidades que
tendia a fazê-la desprezar a si mesma. Toda a literatura oriental, todos os
antigos livros sagrados e livros de direito, todos os épicos tradicionais, toda a
literatura da antiguidade grega e romana e, de fato, tudo o que foi escrito
durante a idade média e grande parte da literatura dos séculos XV, XVI,
séculos XVII, está repleta de epítetos, insultos, arremessos e condenações
abertas de mulheres como seres de alguma maneira vis e odiosos, muitas vezes
maliciosos e mal dispostos, e geralmente dotado de algum poder supersticioso
para o mal.

Toda essa literatura escrita sobre as mulheres oferece um entendimento do quanto a


mulher foi inferiorizada ao longo da história humana. Na perspectiva de Kate Millett (1964), o
patriarcado foi visto como instituição, um modo social de dar ao homem o domínio sobre todas
as formas políticas, sociais ou econômicas.
Dentro desse pensamento, procuramos, neste trabalho, significar o androcentrismo a
partir destes autores, considerando (Androcentrismo – Andro, relativo à homem + centro +
ismo) como uma visão do mundo centrada no ponto de vista masculino, observando como tal,
todas as formas e situações em que se coloque o homem no centro, seja na política, na economia,
na religião ou na linguagem, seja por quaisquer viés que se pretenda sobrepor o masculino ao
feminino. Assim, a misoginia, também de origem grega (do grego transl. miseó, ódio e gyné,

flings, and open condemnations of women as beings in some manner vile and hateful, often malicious and evil
disposed, and usually
endowed with some superstitious power for evil. (our translation).
17

mulher), seria o ódio ou desprezo pelo sexo feminino, embora, ambos os termos têm em
comum, a legitimação da crença da inferioridade da mulher.
Neste sentido, a escrita androcêntrica das narrativas bíblicas está atrelada ao modo que
os escritores hebreus viam o feminino, porém, não justifica uma leitura e interpretação que não
saiba fazer a diferença entre as características dos textos clássicos, a cultura de pôr em foco a
figura masculina. Por esse motivo, faz-se necessário uma leitura cuidadosa para não deixar
despercebida as personagens femininas, nem tampouco reproduzir interpretações
preconceituosas, em que pesem o pensamento machista e equivocado como este, a partir da
leitura e interpretação de Gênesis 3. Esse pensamento produz uma visão deturpada da
personagem Eva como a primeira Mulher, tal qual fazem os que insistem em promover o
discurso equivocado em que recai sobre ela toda a culpa.
Nesse sentido, muitos oradores analisam o comportamento de Eva como um desvio de
conduta, elucidando como ela trouxe a tentação a Adão e as desgraças a todos os homens.
Segundo eles, a serpente como a personificação do diabo dirigiu-se exatamente à Eva, por saber
que ela era mais fraca, por não ter ouvido diretamente de Deus a ordem de não tocar ou comer
o fruto do meio do jardim. Sagaz e astuta, a serpente convence Eva de que não haveria morte e
que os humanos seriam conhecedores do bem e do mal. Aos que interpretam essa narrativa
assim, pela curiosidade e pela desatenção da mulher, Eva parece ter sido convencida pela
serpente a comer do fruto e dar aos seu marido e, assim, para se redimir teria que ter filhos.
Esse pensamento sobre o feminino estereotipado em Eva, tido como algo perigoso ao
mundo dos homens foi disseminado por muitos anos, especificamente no período medieval, por
padres e pensadores como Santo Agostinho, Odão de Cluny, que associavam a mulher ao
pecado do orgulho, da luxuria, sendo capaz de esconder sobre a beleza, a feiura da alma e das
intenções maléficas (DUBY, 2001, p. 54). Esse pensamento ainda se perpetua socialmente no
sentido de que a mulher seduz, induz o homem ao pecado, fundamentados em textos como em
1Rs (11,1-6). Nesse texto, as mulheres de Salomão lhe perverteram o coração e, por isso, muitos
acreditam que a mulher influencia o homem para o mal.
Desse modo, no Primeiro Testamento, o coração é o centro da razão e não da emoção,
em diversas passagens o termo coração está se referindo a mente, ao intelecto do humano.
Timothy Munyon afirma que:

Em hebraico, a palavra ‘coração’ (lev. levav) era usada no tocante ao órgão


físico, porém frequentemente (sic) no sentido abstrato, para descrever a
natureza interior, a mente ou pensamentos íntimos, os sentimentos ou
emoções, os impulsos profundos e até mesmo a vontade. No Novo
18

Testamento, ‘coração’ (kardia) também significa o órgão físico, mas


primariamente a vida interior com suas emoções, pensamentos e vontade.

Era algo comum na cultura judaica acreditar que a mulher tinha o poder de desviar o
coração do homem e as mulheres seriam valorizadas, exaltadas por sua capacidade de gerar
filhos, o que as redimiria do pecado. Por outro lado, não ter filhos era considerado maldição, já
que tê-los, era uma compensação de Deus, como vemos em Gênesis (29,31): “Vendo, pois, o
SENHOR que Léia era aborrecida, abriu a sua madre; porém Raquel era estéril”. Ainda em
Deuteronômio (25, 5-10), a mulher tem em suas mãos o destino do nome do marido, como
também dos cunhados, trazendo com os filhos, a honra para toda a família, resgatando o nome
destes, já que morrer sem deixar filhos é desonroso ao homem em Israel:

5. Quando alguns irmãos morarem juntos, e algum deles morrer e não tiver
filho, então, a mulher do defunto não se casará com homem estranho de fora;
seu cunhado entrará a ela, e a tomará por mulher, e fará a obrigação de
cunhado para com ela.
6. E será que o primogênito que ela der à luz estará em nome de seu irmão
defunto, para que o seu nome se não apague em Israel.
7. Porém, se o tal homem não quiser tomar sua cunhada, subirá, então, sua
cunhada à porta dos anciãos e dirá: Meu cunhado recusa suscitar a seu irmão
nome em Israel; não quer fazer para comigo o dever de cunhado.
8. Então, os anciãos da sua cidade o chamarão e com ele falarão; e, se ele ficar
nisto e disser: Não quero tomá-la;
9. então, sua cunhada se chegará a ele aos olhos dos anciãos, e lhe descalçará
o sapato do pé, e lhe cuspirá no rosto, e protestará, e dirá: Assim se fará ao
homem que não edificar a casa de seu irmão;
10. e o seu nome se chamará em Israel: A casa do descalçado.

Como podemos notar, o texto permite-nos a interpretação de que a mulher deve cumprir
a maternidade como condição para honrar o marido, perpetuando sua descendência, não
prevalecendo sua própria vontade ou escolha. Este texto, alia-se ao texto citado anteriormente
de Gênesis 3. Em sua continuidade, no verso16, o narrador apresenta o diálogo entre Deus e a
mulher. “À mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos a tua gravidez; em meio de
dores darás à luz filhos; o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará”. Está dito, assim,
o castigo divino à mulher.
Sem espaço frente a esses discursos para questionamentos, nos perguntamos por muito
tempo: se à mulher foi atribuído o castigo de ter filhos com dores, ser submissa ao marido e
sentir, mesmo assim, desejo por ele, será somente essa a sua função no mundo? E por que se os
dois pecaram, a ela lhe coube a submissão? Como ao homem foi atribuído o trabalho como
19

meio de lhe dar sobrevivência e contrições, somente ao homem cabe o trabalho? É a partir da
leitura e interpretação de textos como esse citado, em que o feminino é desenhado na Bíblia,
que começa a via dolorosa para as mulheres, sobretudo cristãs, que submetem a compreender-
se culpadas, devedoras de obediência, submissão, agradando a seus maridos com filhos e
cuidados femininos.
Nesse sentido, é de fundamental importância ler a Bíblia em busca de compreender de
que modo, interpretações como essas tem fundamento e encontram consistência dentro dos
textos bíblicos. Se somos ambos criação de Deus “homem e mulher ele os criou” (GÊNESIS 1,
27), em algum momento da história das religiões vinculadas à Bíblia, as mesmas práticas
culturais machistas se incorporaram ao modo de ver o feminino, e os discursos de muitos
revelam que a mulher foi enclausurada no âmbito do lar, discriminada socialmente e reprimida
quanto a sua feminilidade. Isso fica evidente nas organizações culturais e religiosas como nos
diz Pierre Bourdieu (2002, p. 22) “A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela
dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se
enunciar em discursos que visem a legitimá-la”. O autor diz ainda que a dominação masculina
é como uma ‘máquina simbólica” que justifica e se encarrega de manter as estruturas que as
assegura perpetuação, as bases são as ideias de que tudo está na ordem natural das coisas, os
fatores biológicos, a divisão do trabalho que dá atribuições restritas aos dois sexos,
diferenciando-o na distribuição de atividades e ainda nos discursos religiosos, que legitimam
todas essas organizações convencionais como a vontade divina.
No entanto, existe uma necessidade de revisar as interpretações existentes dos textos
considerados sagrados, propondo novas interpretações das doutrinas das organizações
institucionais, a exemplo de leituras de teólogas feministas, ou mesmo de leitoras femininas.
Para Ivone Gebara (2000)4, até a teologia tradicional tem deixado a desejar, pois apresenta os
relatos, na maioria das vezes, deixando um pouco à margem o feminino e apresenta os relatos
bíblicos por um olhar masculino, ressaltando-o em detrimento das ações femininas e de sua
participação efetiva no percurso histórico da humanidade. A autora propõe que a Teologia
Feminista (TF), a corrente feminista que interpreta os textos bíblicos e o papel da mulher, a
partir de um olhar e da experiência da própria mulher, torna possível compreender a condição
da mulher na Bíblia e no contexto social, levando em consideração as suas demandas. Gebara,
numa entrevista dada a Rosado- Nunes (2006, p. 295) diz que:

4
doutora em Filosofia e Ciências Religiosas e uma das expoentes da Teologia Feminista (TF) brasileira.
20

A maior contribuição para a teologia feminista brasileira vem certamente do


movimento feminista (...) quando essa teologia acompanha as questões
quotidianas das mulheres, produz uma ruptura que a afasta do pensamento
institucional e a separa também da Teologia da Libertação, que é ainda
patriarcal e está repleta de imagens masculinas de Deus.

Neste pensar, a Teologia Feminista proposta por Gebara, ganhou espaço no sentido de
problematizar e desconstruir os discursos hegemônicos androcêntricos. E, apesar de nosso
trabalho buscar fazer uma análise literária das narrativas bíblicas, dialogando com a
hermenêutica de Ricouer, as discussões de Gebara fortalecem nossas análises sobre o feminino,
na perspectiva da desconstrução de uma visão androcêntrica da Bíblia.
E não é difícil concordar que há muito mais conhecimento sobre os personagens
masculinos bíblicos, seu papel de protagonistas, heróis, em detrimento das personagens
femininas. A quantidade de personagens femininas citadas na Bíblia é inquietante, se
considerarmos a quantidade superior de homens, no centro das narrativas. Porém, as mulheres
estão colocadas em situações tão significativas para a continuidade da história do povo israelita,
na busca pela realização das promessas para o povo, feitas pelo próprio Yahweh5, quanto os
homens. É preciso direcionar para elas um alvo de estudo, em seus comportamentos e atitudes,
reveladores de um protagonismo em tempos árduos para “o ser mulher”.
No entanto, as matriarcas6, por exemplo, quase não são ressaltadas. Não no mesmo
protagonismo de Abraão, Isaac e Jacó, homens citados como exemplos para o povo Israelita e
às igrejas embasadas nos princípios judaico-cristãos. “O Deus de Abrão, Isaac e Jacó” é assim
que, na maioria das vezes, Deus é apresentado entre os judeus e cristãos pelo mundo todo.
Como coloca Chalier7, não se concebe completude na origem do povo de Israel, na história dos
patriarcas sem considerar a presença de suas mulheres e o desempenho de seus papeis como
cruciais na realização da promessa. Essas mulheres zelaram pelo cumprimento das promessas

5
A grafia mais próxima do original hebraico é Yahweh. forma vocalizada de um dos três grandes nomes hebraicos
de Deus, originalmente expresso pelo tetragrammation, YHWH. Muito usado no Primeiro Testamento, advindo
das traduções da Septuaginta, da Torá. YHWH é o Tetragrama (em grego clássico), consistindo de quatro letras
para representar o Nome Sagrado de Deus ‫יהוה‬. Fonte: Dicionário Bíblico Wicliffe.
Neste trabalho, chamaremos de Primeiro e Segundo Testamentos, os dois grupos de livros chamados de Antigo
Testamento e Novo Testamento, pois não traria nenhuma conotação pejorativa. Os judeus ortodoxos não gostam
deste modo de chamar a Bíblia Hebraica de Antigo Testamento, pois a palavra “antigo” carrega valores de algo
ultrapassado, e “Novo” seria algo recente. Evitando essa carga de uma valoração negativa com os adjetivos (Velho
ou antigo/novo). Assim, pela visão objetiva/científica que constitui esse trabalho, nos utilizaremos dos numerais
para ressaltar que um Testamento veio primeiro e o outro o sucede.
6
Atribuímos o título de matriarca, conforme faz Chalier (1992), as mulheres dos patriarcas citados na Bíblia: Sara,
Rebeca, Raquel e Lia, esposas respectivamente de Abraão, Isaque e Jacó. Para reconhecer suas autoridades e
protagonismo, é preciso uma (re)leitura na perspectiva de Gênero, interpretando suas ações e participações de
fundamental importância para a história do Israel bíblico, como faz a autora.
7
CHALIER, Catherine. As matriarcas: Sara, Rebeca, Raquel e Lia. Prefácio: Emmanuel Levinas. Petrópolis:
Vozes, 1992
21

e, por muitas vezes, discerniram melhor o direcionamento delas para os fins propostos pelo
próprio Deus.
Nesse raciocínio, se Deus criou o homem e a mulher como representação do humano,
este se dá na reciprocidade entre o masculino e o feminino e não há outra forma de se conceber
a humanidade. Estudar o feminino se torna extremamente necessário para os questionamentos
que há muito os fazemos: qual a importância da mulher nas narrativas bíblicas? Quem são elas
por trás do estereótipo sempre presente nas definições e nos discursos de alguns oradores?
Mulher de quem? Mãe de quem? Mas o que realmente elas fizeram, além de “ser mulher de”,
“mãe de”, e de que modo podemos conhecê-las mais amiúde?
Todos esses questionamentos nos desafiaram a buscar uma leitura atenta dos textos
bíblicos, em busca de compreender a construção identitária feminina bíblica. O gênero é um
elemento de identidade, pois conforme diz Joan Scott (1990), o gênero é constitutivo das
relações sociais fundamentadas sobre as diferenças percebidas ente os sexos, e é também o
primeiro modo de dar significado às relações de poder. E, assim, há definições sobre o que é
ser mulher e atribuições que nos são impostas.
Torna-se ainda necessário compreender de que modo os textos bíblicos, tão lidos e
interpretados ao longo da história, tem contribuído para a formação identitária e o desenho do
“ser mulher”. É sob essas inquietações que surge essa Tese de doutorado em Letras - PPGL,
inserida na linha de pesquisa “Discurso, Memória e Identidade”, como a possibilidade de trazer,
à tona, questionamentos sobre o feminino, a necessidade de resgatar a presença e a importância
das mulheres bíblicas, desde o Primeiro Testamento, até as mulheres do Segundo Testamento,
em que, possivelmente, teremos um outro contexto social. A presença destas personagens, no
decorrer das narrativas, foi contada pela ótica predominantemente masculina e silenciadas, e
podem permanecerem ainda invisíveis, se não buscarmos (re)ler numa outra perspectiva.
Nesse sentido, a pesquisa está atenta às narrativas bíblicas, procurando ver a produção
de sentido nos diferentes contextos sócio históricos de produção dos textos em que estas
personagens aparecem, de modo que, em muitos momentos, nesses textos, elas são
protagonistas de narrativas importantes para o seu contexto. Partimos e partilhamos da ideia de
que, para compreender o texto bíblico, é preciso voltar em tentativas múltiplas, aos possíveis
momentos das produções, compreender o ambiente histórico e cultural, social, político,
alinhando uma análise da cultura, dos costumes a uma leitura atenta e diversa, para uma
interpretação mais aproximada do cotidiano feminino, evitando os equívocos, alguns tão
acentuados ainda nos dias atuais.
22

O que nos deixa bastante feliz é perceber que não estamos sozinhas nessa busca de uma
(re) leitura da Bíblia, na perspectiva de acender as mulheres bíblicas. Nosso olhar se volta para
as narrativas bíblicas em que as personagens são apresentadas por suas ações incomuns, além
daquelas previstas pela cultura e tradição judaica, pela organização moral e cultural da
sociedade do seu tempo. Elas são protagonistas de histórias8 marcantes, tanto para essas tais
mulheres, como para seu povo. Assim, procuramos atentar para o “como se dá a construção da
identidade feminina dentro do texto”, observando, principalmente, as estratégias utilizadas pelo
narrador para construir as personagens, convocando à contínua participação do leitor para
produzir interpretações dentro de um horizonte hermenêutico. Dentro desses textos vão se
constituindo a identidade, o perfil dessas personagens que se tornam notáveis, mesmo quando
o contexto histórico, político e social não lhe são favoráveis.
Partimos da ideia de que a identidade dessas personagens foi construída a partir da visão
de um narrador masculino, atrelado aos moldes criados para encaixar as mulheres dentro das
convenções sociais da época. Por isso, cabe reconhecer no texto, as pistas que ele nos traz, as
estratégias utilizadas para a construção das personagens, observando que, a presença e a ação
das personagens no desenrolar das tramas, revelam que emerge do texto outros “perfis do ser
mulher” que rompem com as normas estabelecidas como uma espécie de ruptura social destas
mulheres para com o sistema patriarcal, a partir das situações vivenciadas por essas personagens
que vão moldando suas identidades nas lutas e pela resistência.
É nesse processo de construção de perfis femininos, das identidades destas personagens
que essa pesquisa se debruça: o perfil feminino construído por um narrador masculino em
contraponto ao perfil que surge na narrativa, pela posição dessas mulheres enquanto
“protagonistas” que mobilizam a construção do feminino nos textos bíblicos. Para Bauman
(2005) a constituição da identidade se dá fora do sujeito, ou seja, a identidade não se constitui
em si, mas nas lutas, nos embates a qual o ser é exposto, permitindo que se vá além do que está
estabelecido, pois o ser social busca atender suas necessidades imediatas.
No entanto, Bauman (2005) debruça sobre as questões da modernidade líquida, nome
que ele dá a pós-modernidade, discutindo que esse processo, em que o capitalismo forçou o
mundo a se redefinir, desde as noções de felicidade, os propósitos para a vida, até uma busca
acirrada pelo pertencimento, o se “incluir” enquanto sujeito que busca sua identidade, marca as

8
Mesmo estando trabalhando com o conceito de narrativas, o termo história está atrelado aos fatos ligados à
construção de Israel, da própria construção da história/estória pessoal da personagem que muitas vezes não
protagoniza, na escolha do narrador, a narrativa.
23

escolhas, as ações dos indivíduos que começam a se redefinir dentro dos espaços em que eles
vão se inserindo. Não seria essa fluidez, a definição mais adequada às personagens bíblicas.
Porém, esse processo de redefinição do que somos, a partir dos embates, das situações
as quais somos expostos, pode também ser visto como o fator que desencadeia a nova identidade
das personagens bíblicas, uma vez que elas não se limitam à identidade herdada, mas alcançam
sua própria identidade em contextos nos quais se inserem. Vale dizer que não está em discussão
a fluidez ou instabilidade da identidade, a partir da fragmentação desse sujeito moderno que
agora, “problemático e conflituoso”, não tem a identidade como um elemento fixo e estável,
mas a formação de uma identidade que atrela de forma representativa, a subjetividade e o modo
como o sujeito lida com as situações e assume novos papeis dentro da esfera social da qual faz
parte.
Neste aspecto, as discussões de Silva (2014), Woodward (1997), Hall (1997) sobre a
estreita relação da identidade e a diferença, nos leva a refletir sobre a construção da identidade,
na perspectiva de perceber que ela é marcada pela diferença e se constitui no âmbito da
simbologia e do social, tornando-se representatividade simbólica do mundo e das suas relações
no seu interior. Assim, a identidade adquire sentido por meio da linguagem e dos sistemas de
representação e seus símbolos que vão gerando significados e constituindo os sujeitos, sendo
construída, uma produção, um efeito, um processo, um elemento relacional, performático. Por
isso, a identidade torna-se um elemento instável, com aspectos inacabados, marcados pelas
contradições, fragmentações e até inconsistências, ligadas às estruturas discursivas e narrativas,
bem como a sistemas de representação e de poder. Como afirma Silva (2014. p.76): “A
identidade e a diferença são criações sociais e culturais”. São, portanto, o resultado de atos de
criação linguística.
Desse modo, cremos que uma leitura atenta e alinhada ao conhecimento do contexto
histórico, propondo uma interpretação sob uma ótica de gênero, se constituirá o caminho
metodológico que nos permitirá uma (re) leitura mais adequada aos interesses das mulheres
leitoras, levando em consideração o texto e o contexto histórico. Acreditamos que os fatores de
construção da identidade como genealogia da personagem, nacionalidade, gênero, condição de
mulher, esposa, mãe, sua narrativa pessoal e a linguagem, podem ser encontrados dentro das
narrativas como subsidio para compreender a construção do feminino no texto bíblico. É isso
que buscamos nessa proposta de leitura da Bíblia, quando nos referimos às personagens
femininas: ver como se dá a construção da identidade destas personagens dentro do texto.
Nessa medida, propomos que a leitura dessas narrativas seja feita como um processo de
comunicação, de interação entre leitor e o texto, participando de um diálogo que, à medida que
24

se intensifica, trará o envolvimento e a curiosidade leitora em conhecer as narrativas e suas


personagens, como fazemos ao ler qualquer outro texto. Para Ricoeur (1989, p. 143):

Às vezes, gosto de dizer que ler um livro é considerar o seu autor como já
morto e o livro como póstumo. De fato, é quando o autor está morto que a
relação com o livro se torna completa e, de certo modo, intacta; o autor já não
pode responder, resta apenas ler a sua obra.

É essa autonomia que se estabelece ao ler uma obra, autonomia de interpretar, de pensar
novos caminhos que torna possível partir do texto para novos mundos. Carneiro (2018) atenta
para a relação entre leitor e texto, no sentido de uma nova possibilidade de interpretação,
favorecendo novas perspectivas de leitura, favorecendo-o numa visão diferenciada da que nos
foi proposta pelo “autor/narrador do texto”. Como diz Barthes, o texto é amplo, diverso em
interpretações, a partir de como queremos ver, o que queremos buscar nele. O texto deve ser o
foco, podendo ser o pretexto para o novo texto. A ideia de pouca presença do autor ou morte
deste, restando apenas o leitor e o texto, tornará possível a (re) leitura proposta neste trabalho
(BARTHES apud Carneiro 2018, p. 29).
Dentro desse raciocínio, a leitura da Bíblia neste trabalho propõe um caminho
hermenêutico, na perspectiva de Paul Ricoeur, nos permitindo promover uma aproximação
literária das narrativas bíblicas e uma abordagem interpretativa desta, numa relação dialética
com o texto. Para Ricouer (2008), o texto e os sujeitos são constituídos na e pela linguagem e
símbolos, de modo que a hermenêutica explicita o ser no mundo do texto, pelo texto e por ele
revelado. Seu conceito de “mundo do texto” é válido para nossa proposta de fazer a “decifração
da vida no espelho do texto”, buscando os sujeitos no texto, “mundo habitável”, nas narrativas
bíblicas, que estão agindo e sofrendo ações, dispostas em uma temporalidade narrada. Ricouer
(2008) ainda coloca que o mundo do texto é um mundo proposto pelo texto, e nele o leitor pode
habitar, compreender seus sujeitos e projetar as possibilidades de interpretações cabíveis ou
mais próximas, seguindo as pistas oferecidas pelo texto. Assim, propomos ler as narrativas,
buscando, além do perfil de mulher que delas emergem, os recursos literários constitutivos, os
elementos estratégicos do narrador para a criação das personagens e a construção identitária
dessas mulheres e de suas vozes.
Discussões como as de Zabatiero e Leonel (2011), Auerbach, (2011), Robert Alter,
(2007), enfatizam a Bíblia pela visão literária, enfatizando sua destreza em prender o leitor,
convencê-los de suas histórias com a mesma ou maior destreza que grandes nomes da literatura
clássica.
25

Com esse pensamento, propomos uma análise literária a partir das teorias literárias,
atentando para trama, para as personagens, para a estrutura da narrativa, sobre o pressuposto
hermenêutico feminino que se distancia de concepções teológicas que usam o texto bíblico para
confirmar suas crenças.
Desse modo, o foco dessa análise se concentra nas protagonistas femininas, a sua
construção identitária dentro das narrativas, propondo ainda um passeio por esses textos, com
toda a atenção devida para se compreender o feminino, a partir da perspectiva de
autores/narradores masculinos. Embora existam crenças por vezes machistas e preconceituosas,
que pretendem controlar o comportamento feminino, limitando-a em diversos espaços sociais
ou intelectuais, sobre o feminino há sempre muito o que refletir sem gastar o assunto e sem
resposta definitiva. Bourdieu (2016), em sua obra Dominação Masculina nos leva a refletir
como as condições femininas atreladas a um ciclo de violência simbólica legitimada como
natural, nas sutilezas das ideias e ações sociais, desde a separação dos papeis sociais e da divisão
dos sexos, firmadas como uma simples ordem natural e social do mundo.
No entanto, as constantes e invariáveis se fundamentam entre o mito9 do feminino, e a
naturalização do que não é natural, de modo que essa dominação masculina é validada e
propagada nos mecanismos e nas instituições histórica. Nelas se revelam e nelas se escondem
tentando apagar os rastros dessa reação de força material e simbólica entre os sexos.
Sabido é que temos nossa especificidade biológica, o corpo da mulher é algo inerente a
sua identidade física. Entretanto, partindo para experiência de ser mulher, a vivência dentro de
uma cultura machista, patriarcal, fica mais complexa, por tratar-se de toda uma conjectura
invisível e difícil de detectar até que ponto algo é inerente a nossa natureza feminina ou
culturalmente determinado por um sistema que regerá o comportamento ou as características e
que determinará o que é “ser mulher” para e nessa própria sociedade.
Nesse ponto, há um papel social construído, a partir de crenças e comportamentos tão
naturalizados e legitimados que nos leva a ser vistas como “mulher feminina” ou não. Por todos
esses aspectos, além de uma filosofia política nos termos que está posta, ou como propõe Garcia
(2011), além de um movimento social. O contexto social de luta pela igualdade e a realidade
que se desenha para as mulheres é muito mais complexo do que podemos restringir a “ismos”.

9
Como coloca Bourdieu (2002) são as diferenças sociais construídas entre os gêneros: convencionalismo feminino.
Tal visão social que principia pelas diferenças anatômicas e segue nas diferenças sociais tão articuladas como
naturais, verdadeiras que se não percebem enquanto estruturas construídas, sobre o que é ser mulher, em detrimento
de ser homem, por vezes em esquemas de dominação.
26

Mas, partindo de uma tomada de consciência dessa condição social da mulher e análise
das condições humanas, numa ótica de gênero, o feminismo passa a ser a luta da mulher por
uma sociedade justa e igualitária, na qual a mulher deve se inserir trazendo todas as suas
idiossincrasias. A luta feminista que começou pela busca de emancipação da mulher contra os
domínios dos homens, a luta por não ser propriedade, para ter direitos a educação, a escola, às
demais instituições como cidadãs, e ainda por votar e serem livres para tomar suas próprias
decisões, sobretudo para casar ou não, ser mãe ou não, deu início ao que seria depois
denominado de Feminismo, mas é muito mais que isso, porque são princípios femininos sobre
o que é ser um sujeito de direitos. O Feminino é então, algo mais amplo e implica em manter a
presença da mulher numa sociedade machista, assegurando-lhes seus direitos, enquanto sujeito
social, em detrimento de ser mulher.
Nesse contexto, as diferentes ondas feministas e suas vertentes10 são a prova de que o
Feminismo é influenciado pelo tempo, pela conjuntura, pelos sujeitos e suas reinvindicações,
de forma que a ideia de sujeitos iguais desde a Revolução Francesa, que mobilizou as mulheres,
imbuídas pelo pensamento iluminista a buscar os direitos de todos, foi barrada quando tais
direitos conseguidos foram favoráveis apenas aos homens. O Sufragismo foi a luta mais
acirrada para além dos textos escritos, a exemplo do texto elaborado em setembro de 1791 pela
escritora Marie Gouze conhecida por Olympe de Gouges, sobre o modelo da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, que fora proclamada em 27 de agosto de 1789, mas
totalmente ignorado por todo o sistema por muito tempo.
Entretanto, o Sufragismo como primeiro grande movimento organizado, em sua
maioria, por mulheres brancas, letradas, de classe média ou alta, apesar da participação das
mulheres negras, não deu conta da pauta e das demandas de todas as mulheres, diferenciadas
por sua cor e classe social. A opressão de cada sujeito se faz por viés diferenciado nessa
sociedade envolta em tantos preconceitos, além da misoginia.
Ao longo do tempo ainda permanece o embate feminista na difícil tarefa de abarcar as
diferentes demandas sociais que envolvem as questões femininas, sobretudo pela variedade de
sujeitos que emanam das diferentes categorias de mulheres: negras, brancas, héteros,
homossexuais, religiosas, e as advindas das mais diferentes camadas sociais. Suzan Okin,
filósofa política feminista liberal e autora, percebe também essa dispersão entre as mulheres e

10
As diferentes vertentes no feminismo surgiram para tratar as pautas de cada grupo separadamente, uma vez que
cada mulher branca, negra, trans., religiosa por exemplo, possuem necessidades diferentes. As principais vertentes
são: feminismo socialista, feminismo negro, o feminismo radical e o feminismo interseccional, feminismo liberal.
Ler http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v18n36/03.pdf e O que é Feminismo, Coleção Primeiros Passos, Branca
Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy.
27

convoca a união, compreendendo que as definições e associações ao feminismo se dá a partir


da identificação de cada mulher, enquanto sujeito que atrela sua luta às suas crenças e vivências.
Para Okin (1991), o feminismo é a crença de que as mulheres não devem estar em desvantagem
devido a seu sexo. Por essa razão, elas devem ter oportunidade de viver de forma completa e
livres para fazerem suas escolhas da mesma forma que os homens podem. A igualdade, a
liberdade devem sustentar a luta pela construção de uma identidade coletiva para o feminismo.
Gebara (2006, p. 333) diz que:

Cada uma de nós está em algum lugar ou em muitos lugares atuando conforme
as suas convicções. Cada lugar é marcado pela ambiguidade, por contradições
e por diferentes limites. No momento não encontro razões para deixar esses
lugares, visto que em outros poderia estar sofrendo das mesmas ou de outras
contradições e pressões. O importante é que não me impeçam de pensar e de
tentar afirmar nossa vocação à liberdade através de coisas pequenas e grandes
que constituem o nosso dia-a-dia.

Essa afirmação nos leva a entender que fazemos parte de múltiplos espaços, sempre com
a motivação de pertencer por afinidade, trazendo nossas experiências e vivências como
orientações para nossas ações e escolhas, procurando ser transformada por esses espaços novos,
mas transformar também os espaços onde nos situamos, onde percebemos as necessidades de
mudanças, pois são lá onde vivemos os limites, as contradições e pressões.
Nesse contexto, não concebemos o feminismo por um viés radical, fazendo da luta
feminina uma busca por uma masculinidade fantasiada, de modo que a igualdade de direitos se
confunde, por vezes, com a inversão da sexualidade. Para Stuart Hall (2002), o deslocamento
da identidade e a descentralização do indivíduo pelos avanços das teorias sociais e das ciências
humanas, desconstroem a noção do sujeito cartesiano, de forma que o movimento feminista
como representação do descentramento do sujeito, a partir do questionamento que levou a fazer-
se distinção entre público e privado, contestações politicamente à vida social, põe em xeque
conceitos sobre a subjetividade, a identidade e o processo de identificação.
Na obra Sejamos todos feminista, a escritora nigeriana Chimmanda Ngozi Adichie
reflete sobre como é justa a luta da mulher pela igualdade de Gênero em direitos, pela liberdade
de ser, de ir e de vir, de trabalhar e receber de igual modo pelo serviço que presta, pela formação
que tem, pela liberdade de ser humano, independentemente do sexo com o qual se tenha
nascido, essa pessoa é feminista. A autora fala que foi bastante questionada por se declarar
feminista sendo nigeriana, porque pertence a uma cultura divergente da cultura ocidental e por
até gostar de ser feminina, como se feminista, não pudesse assumir sua feminilidade. Desse
28

modo, é necessário tomar consciência de que ainda existe um problema de gênero e que juntos
podemos repará-lo. Qual termo se identifica melhor com essa luta, se é no conceber do gênero
feminino que essa desigualdade se estabelece? Assim, por muitos anos, a sociedade foi
estabelecida por padrões patriarcais, privilegiando os homens em detrimento das mulheres e,
na luta da mulher por seus direitos, a mulher sempre foi vista como um sujeito inferior, de forma
que a condição de igualdade seria a de alcançar o lugar do homem na sociedade.
Nesse contexto, nos opomos a essa ideia, no sentido de que a mulher deva ser aceita,
respeitada e inserida socialmente por ser exatamente diferente, capaz de gerar, de ser mãe, mas
também de contribuir com a sociedade em todos os aspectos. Se fomos criados a semelhança
divina, somos especiais nessa criação, além da racionalidade, concebemos a discussão do
feminino como uma forma de resgate deste feminino na humanidade. Com suas dúvidas, medos,
virtudes e defeitos, o sentimento aflorado vivido intensamente pelo humano, refletido em ações,
condutas e comportamentos, por vezes necessárias à toda coletividade, por serem inerentes à
conduta humana.
Desse modo, discutimos o feminino, considerando que esse termo abrange todas as áreas
do ser mulher, inclusive, as suas lutas por igualdade de gêneros. Acreditamos ser diferente o
modo de se fazer uma leitura de um determinado texto, desde seu interesse no que busca achar
no texto ou achar-se nele, ou como se apropria da linguagem e a interpreta, buscando encontrar
dentro das narrativas como as personagens são construídas, como seus perfis femininos
postulados dentro da cultura e moldes sociais de um determinado tempo e num espaço
específicos emergem do texto. Procuramos ainda observar como essas personagens vão se
movimentando em busca de construir a sua própria identidade, a partir do enfrentamento das
situações vividas por elas e como elas se destacam por suas ações, nem sempre de acordo com
o padrão estabelecido.
Acreditamos que a construção da identidade do feminino no texto bíblico perpassa pelas
ações das personagens, e na medida em que elas vão vivenciando suas histórias, nos interessa
saber sobre esses perfis que emergem dessas narrativas. Na (re)leitura que propomos, o
feminino é o nosso foco, por percebermos que tais personagens precisam ser acesas e
revisitadas, a partir da interpretação de suas ações, numa perspectiva de gênero, no sentido de
compreender como essas mulheres protagonizaram feitos, nos tempos em que jamais se pensava
em lutas feministas ou em termos como protagonismo ou empoderamento feminino. Podemos
assim buscar reconstruir a história dessas mulheres, evidenciando como elas são parte desta
história, com toda a sua complexidade e (in) completude.
29

Se partimos do conceito de que a identidade é construída tanto no social como através


da linguagem, do poder das representações e dos símbolos que as constituem, seja a identidade
social ou subjetiva, e que é através do enfrentamento dos sujeitos às situações propostas que a
identidade se define, cabe-nos observar, além de buscar o perfil identitário destas mulheres, o
comportamento das personagens, na perspectiva de compreender como suas ações as tornam
ou não, protagonistas das suas histórias.
Numa época em que a mulher não tinha papéis sociais definidos, além do de filha,
esposa e mãe, ficava difícil provar que algumas delas tiveram comportamentos não muito
peculiares a sua época, sem que não estabelecêssemos um diálogo com outras Ciências, no
tocante a análise do comportamento, nos estudos destas mulheres bíblicas, atentando para uma
discussão feminina, sobre o ângulo da psicologia, como também da filosofia.
É preciso levar em consideração os aspectos sociais, em relação ao comportamento
imposto pela sociedade da época, observando em quais pontos, posicionamentos ou escolhas
destas mulheres frentes às situações vivenciadas, há uma aproximação ou distanciamento do
comportamento proposto naquela sociedade. Para isso, utilizamo-nos da teoria do
Comportamento do Psicólogo Dr. Marston Moulton, na sua obra: Emotion of Normal People,
com base na teoria DISC: (Dominance (Dominância), Influence (Influência), Stability
(Estabilidade), Compliance (Conformidade). Essa teoria contribui no sentido de ser possível
uma discussão psicológica da dominância feminina, considerando que a Dominância lida com
problemas e desafios; a Influência está relacionada a como a pessoa lida com pessoas e
influencia os outros; a Estabilidade é relativo a como a pessoa lida com mudanças e seu ritmo;
e a Conformidade é relativo a como a pessoa lida com regras e procedimentos estabelecidos por
outros. Assim, as discussões desse autor, sobre comportamento humano, nos conduzem
compreender o comportamento destas mulheres e de que forma seu comportamento atua na
formação de sua própria identidade, constituindo-se protagonistas dentro das narrativas e de
suas próprias vidas.
Além disso, procuramos compreender como tais embates entre a identidade moldada,
fixa, culturalmente criada e as novas situações e escolhas, conduzem estas personagens a se
constituírem sujeito de ação e protagonizarem suas histórias. É importante refletir como as
instituições legitimam as normas de conduta, fundamenta leis e regras que regem e dominam,
controlam os sujeitos, enquadrando-os em padrões determinados, controlando-os para uma
subjetividade fictícia, pois ela é tão coletiva, tão social, quanto aos demais numa sociedade sob
o domínio do estado. A identidade passa a ser constituída, codificada, estabelecida pelo estado,
de modo que o feminino é moldado segundo às normas sociais, e também existem as forças que
30

são pura desestabilização da identidade, o que provoca uma espécie de “ruptura do sujeito
feminino” com os modelos para ele programado por uma sociedade que foi pensada pelos
homens e para os homens.
Assim é possível pensar sobre o contexto das narrativas bíblicas, é preciso considerar
que suas personagens seguem por essa ruptura, rompendo com os modelos estabelecidos para
o “ser mulher” e abrindo novos caminhos, novas subjetividades não ainda postas, de forma que
ela quebram o poder do estado patriarcal e religioso, criando sua própria identidade, não mais
atadas, mas transformadoras, novas referências para o feminino. Para Silva (2014), Woodward
(2014) e Marston (2014), há em comum, mesmo no entrelaçado de teorias e saberes entre a
Sociologia e a Psicologia, a ideia de que a diferença pode ser pensada por diversos, como
constituinte da identidade, como propulsora da subjetividade, do movimentar-se enquanto
sujeito, do tornar-se, do transformar-se.
Assim, buscamos pensar a diferença como a parte do humano capaz de constituir-se
diferente, aquilo que é, o que não é, e o que pode vir a ser. A diferença é posta como a
possibilidade de estranhamento e de campo de luta nas produções de significados na e para
existência humana.
Apesar de considerar o impacto da presença de todas (as matriarcas, as anônimas,
estrangeiras, prostitutas e as virtuosas) numa visão panorâmica, escolhemos para analisar, a
construção da identidade de algumas mulheres que se destacaram por exercerem papeis
importantes, cargos de destaques, alguns essencialmente assumidos apenas por homens.
Mulheres que foram relevantes em dois períodos bastante distintos: Primeiro e Segundo
Testamento.
Nestes períodos, as noções ideológicas que definiam comportamentos, a ética e a própria
noção de protagonismo são diferentes. Enquanto o Primeiro Testamento traz um forte apelo
bélico às guerras travadas, a resistência por meio da força, das conquistas de territórios, mesmo
implicando em atitudes violentas e opressoras, o Segundo Testamento traz uma nova forma de
resistência, marcos fundamentais da presença do Cristo na humanidade, ensinando uma nova
forma de conviver com as diferenças, exercendo a tolerância e o amor fraternal sem medida.
Desse modo, no Primeiro Testamento, os personagens masculinos se destacam pelos
cargos que ocupam, pelo poder como guerreiros, pelas estratégias, guerras e vitórias alcançadas,
mesmo deixando um rastro de violência. No Segundo Testamento, as ideias, o sentimento de
entrega pelo outro será a diferença que constituirá os personagens. Por essa razão, as
personagens escolhidas para análise estarão amparadas nessas categorias, constituindo-se
pontos de aproximação/afastamento para a constituição da identidade destas personagens.
31

Nesse sentido, estabelecemos essas categorias de acordo com o Primeiro Testamento


(cargos civis e religiosos, guerreiras/ transgressoras), com destaque para Ester, Débora e Jael.
No Segundo Testamento (Maternidade, Discípulas, sustentadoras), com destaque para Maria de
Nazaré, Maria Madalena e Dorcas. Essa escolha justifica nossa atenção às mulheres da Bíblia,
essencialmente as que foram “protagonistas” de suas histórias, mesmo que não contadas por
elas, nem para elas, pois algumas delas aparecem secundárias às narrativas de algum homem
importante como é o caso de Dorcas.
Escolhemos essas seis mulheres para análise, primeiro porque precisamos delimitar um
número palpável, para que possamos dar conta, em seguida, porque essas mulheres aproximam-
se mais de protagonistas no sentido literal do termo: as narrativas são sobre elas. Somente Ester
e Rute possuem livros com seus nomes, entre as duas, escolhemos Ester por, além de ser
protagonista da narrativa com seu nome, diferir-se de Rute por ocupar um cargo político em
seu tempo: Rainha da Mesopotâmia. A despeito de Débora, juíza de Israel, mesmo sua narrativa
sendo mais curta, desdobra-se em dois capítulos do livro de Juízes, destinado a registrar os
feitos dos homens que ocuparam esse cargo. Débora foi a única mulher a ser juíza. Jael se
destaca por ser uma guerreira nômade, heroína pelo mesmo viés dos heróis masculinos bíblicos
como Josué, Sansão, Davi, que tiveram vitórias atreladas às lutas e ações violentas para alcançar
êxito para seu povo. Juntas, Débora, Jael e Ester são representações do protagonismo feminino
no Primeiro Testamento. Do Segundo Testamento, escolhemos Maria Madalena, Maria mãe de
Jesus e Dorcas, numa perspectiva comparativa, sobre a constituição da identidade destas
mulheres bíblicas, a formação do perfil identitário das mulheres antes e depois de Cristo.
Hoje ainda, muitas mulheres cristãs são influenciadas pela maneira como o cristianismo
constrói a identidade feminina, ou como oradores religiosos, estudiosos da Bíblia, muitas vezes,
fazendo leituras equivocadas sobre o papel da mulher, reforçam o apagamento das mulheres
bíblicas.
Desse modo, apresentamos incialmente, um panorama de todas as figuras femininas que
aparecem nas narrativas bíblicas, situando cada personagem citada ou apresentada na Bíblia
como parte do texto. Em seguida, destacamos as que são protagonistas, no sentido de perceber
a relevância delas para o texto, o protagonismo em suas atitudes que ultrapassam os limites
impostos por uma cultura machista predominante e persistente da época.
Esse estudo se justifica por ser um tema vigente nas discussões atuais, o papel da mulher
na sociedade, suas características, sua identidade numa sociedade ainda machista, na qual as
mulheres buscam se estabelecer, a fim de garantir sua inclusão, permanência e sua
sobrevivência frente aos desafios diariamente impostos a elas. Porém, bem mais do que essa
32

pertinência social do tema, justifica-se ainda por permitir estudar o processo de formação
identitária de sujeitos constituídos historicamente, dentro de um universo tão amplo como é o
bíblico e que muitas vezes é analisado apenas pelo âmbito religioso.
É nesse contexto que nosso trabalho aponta como um diferencial dentro do panorama
atual das pesquisas sobre a identidade feminina, sobretudo quando esse estudo é de personagens
bíblicas. Numa visão panorâmica dos trabalhos já feitos sobre narrativas bíblicas, observamos
que as de maior destaques são de autores estrangeiros. É bem verdade que a Bíblia faz parte do
acervo de tradições literárias e culturais de outros países da Europa como a Inglaterra e nos
Estados Unidos, considerando que, muitas pesquisas foram feitas por universidade norte-
americanas e europeias. Leonel e Zabatiero (2011), colocam que as pesquisas sobre a Bíblia,
em sua maioria, foram feitas por biblistas dentro dos estudos da Ciência da Religião, alguns
estudos teológicos e outros fundamentalistas que evidenciam o caráter sagrado dos textos,
vistos como preceitos e dogmas religiosos. Em menor proporção, inclusive no Brasil, alguns
autores procuraram estudar a Bíblia numa perspectiva crítico-literária, examinando o discurso
religioso na intenção de estudar o discurso pelo viés da linguagem e suas imbricações como
texto literário.
Tanto no estudo exegético da Bíblia, estudos em perspectivas histórico-crítico ou
estudos que se utilizam das teorias literárias, realizados por teórico e críticos literários ao longo
desses últimos 10 anos, somente agora é que essas pesquisas estão ganhando corpo na literatura.
Na perspectiva de estudar a Bíblia como texto e discurso literários, o pontapé inicial das
pesquisas acadêmicas deve-se a autores como Erich Auerbach, Northrop Frye (2014), Robert
Alter que contribuíram para que as academias passassem a ver e a dar a devida importância do
tratamento literário aos textos bíblicos. Um devido destaque dar-se ao alemão Auerbach, 1998,
ao seu livro: Mimeses: a representação da realidade na literatura ocidental por apresentar uma
proposta de comparação dos textos bíblicos com textos da literatura mundial, elucidando as
qualidades literárias da Bíblia, por vezes superando narrativas clássicas como a Odisseia de
Homero. Também outra pesquisa sobre Bíblia é a de Northrop Frye (2014) que a estuda do
ponto de vista crítico em seu livro O código dos Códigos: a Bíblia e a literatura, traduzido para
o português por Flávio Aguiar. Nele, apresenta a Bíblia como “um elemento da maior grandeza
na tradição imaginativa”, como uma obra de grande influência para escritos e escritores do
mundo inteiro, influenciando até à textos mais modernos. Em A anatomia da Crítica, Frye
afirma que a Bíblia seria uma fonte de inspiração à tradição clássica. Desse modo, esses autores
trouxeram uma contribuição da crítica literária à análise da Bíblia, revelando que ela tem
prestígio e subsídios não só para uma abordagem religiosa, mas literária e estilística:
33

A literatura ocidental tem sido mais influenciada pela Bíblia do que por
qualquer outro livro, mas, com todo o seu respeito por “fontes”, o crítico não
sabe muito sobre mais sobre essa influência do que o fato de que ela existe. A
tipologia bíblica é hoje uma linguagem tão morta que a maioria dos leitores,
incluindo os acadêmicos, não é capaz de interpretar o sentido superficial de
qualquer poema que a empregue. (FRYE, 2014, p. 124)

No contexto brasileiro, essa perspectiva dos estudos da Bíblia como texto literário ainda
é muito tímida e pouco explorada. Alguns trabalhos produzidos aqui, ao contrário da interação
que ocorre na Inglaterra entre biblistas e teórico da literatura, claro, por se tratar de um pais
protestante, ainda ressaltam total separação entre os estudos religiosos e literários da Bíblia e
muito do que se tem produzido revela a inconsistência de uma linha de pesquisa voltada para a
Bíblia como literatura. Há discussões negativas sobre a Bíblia que não parte de um estudo
crítico do texto, mas muitas vezes pautadas em interpretações equivocadas, ou ainda pesquisas
que perpetuam a Bíblia numa visão fundamentalista e ideológica. O trabalho de Ferreira (2008),
Zabatiero e Leonel (2011) seguem na perspectiva da Bíblia como livro literário e é um grande
destaque para o cenário da pesquisa brasileira. Este livro é estudado por esses autores, a partir
dos estudos da linguagem, ressaltando as contribuições das teorias linguísticas discursivas e
semióticas, como é o exemplo da obra Bíblia, Literatura e Linguagem, de Zabatiero e Leonel.
Nessa obra, os autores destacam os gêneros literários da Bíblia, entretanto dá ênfase às
narrativas dialogando com outros autores como Auerbach, Frye e Alter, com textos dos
Primeiro e Segundo Testamentos. Os apontamentos vão desde os elementos da narrativa, a
construção de sentido, a partir das escolhas destes, o papel discursivo do narrador, a construção
da narrativa como um todo, como uma obra que além de bela, traz inúmeros recursos para
envolver o leitor.
No cenário mundial da literatura, apresentamos a obra de Alice L. Laffey Introdução ao
Antigo testamento – perspectiva feminista, lançado em 1986. O livro traz um avanço para os
estudos das mulheres bíblicas, mesmo sendo uma análise sistemática de textos do Segundo
Testamento feitas pela a autora, não estejam diretamente voltado às mulheres, mas a análise que
ela faz sobre o contexto da escrita dos textos nos permite, à luz de ideias feministas,
compreender a construção do texto e as conotações influenciadas por concepções patriarcais.
Sua pesquisa é de fundamental importância para os estudos do Primeiro Testamento numa ótica
de gênero, sobretudo porque apresenta um estudo crítico feminista sobre estes livros da Bíblia.
Como sugere Laffey, a necessidade de reescrever as histórias dessas mulheres, é fundamental
para compreender a importância destas, nas narrativas bíblicas.
34

As pesquisas vão se desenhando e aqui no Brasil, algumas em evidência, são da


Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Metodista, em sua maioria dissertações
de Mestrado em Teologia, Ciências da Religião ou em Língua Hebraica, que foram publicados
entre 2010 e 2014, inseridas nos bancos de dados da CAPES, embora o número de teses de
doutorados seja mínimo.
Nesse contexto, o trabalho de Mestrado da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de
Leni Soares Vieira Fernandes, intitulado de “A imagens da mulher no evangelho de Mateus: a
construção de personagens femininas” (2014) traz uma visão da Bíblia como literatura,
analisando as narrativas de Mateus, livro do Segundo Testamento, com destaque para a imagem
feminina nesse evangelho. A autora faz uma análise estudando as estratégias usadas pelo
narrador para apresentar e desenvolver várias personagens femininas e sua relação com Jesus,
o protagonista da narrativa. A autora estuda todos os elementos da narrativa - personagens,
tempo, cenário e enredo e ressalta que todos estão alinhados para que Jesus seja o foco da
narrativa. Nessa relação, as identidades e a busca da definição de características que fornecem
identificação às personagens vão emergindo do texto. Contudo, o trabalho centra-se apenas no
livro de Mateus, não atentando para a construção e possíveis diferenças entre as demais
mulheres da Bíblia, sobretudo, as do Primeiro Testamento, em que a ausência de Jesus, pode
ser viés para se compreender a diferença entre as identidades das mulheres em outros espaços
temporais e culturais.
Seguindo nossa busca, outro trabalho de dissertação, de Creuza Helena da Silva: “A
relação interativa de Jesus e as mulheres, a partir de MC 14-39”, da Escola Superior de
Teologia. A teóloga mostra que no decorrer do Evangelho de Marcos, é estabelecido um padrão
de relação de gênero igualitário através das cenas envolvendo Jesus e as mulheres, retirando as
mulheres de um contexto de doença, opressão e exclusão e dando-lhes caracterização positiva.
São muitos os trabalhos que elucidam o Segundo Testamento, considerando os
ensinamentos de Jesus e seu comportamento com as mulheres, como um período de
emancipação destas, numa sociedade em que elas eram excluídas de quase tudo. Dirce Socorro
Guizzo, em sua dissertação de Mestrado “Maria Madalena: luzes e sombras na urdidura de uma
imagem”, faz um estudo sobre Maria Madalena, uma personagem significativa, por receber em
sua construção identitária, virtudes e pecados angariados ao longo do tempo, na construção de
sua imagem, feita pelos tradicionais leitores. A essa dualidade de Maria, a autora atribui ao
período de Luz e Sombra, lançados sobre a personagem. A autora traz uma discussão de como
o ocidente cristão foi alterando, ao longo dos séculos, descaracterizar o apostolado de mulheres,
disseminando uma má fama sobre uma personagem solícita como Maria, fragilizando as
35

identidades de muitas mulheres e contribuindo para o não empoderamento feminino e baixa


autoestima.
Ainda nessa mesma temática, Eliezer Serra Braga, apresenta em sua dissertação de
mestrado “Santas e sedutoras: as heroínas na Bíblia hebraica – a mulher entre as narrativas
bíblicas e a literatura patrística”, faz uma análise da caracterização que a Bíblia Hebraica faz
de três mulheres, ou grupos de mulheres, personagens de suas narrativas. O autor busca
compreender essas mulheres em seu comportamento sexual e sua moralidade, contrastando com
as exigências feitas sobre a mulher em partes desta mesma Bíblia, considerando-se a
importância da mulher para as tradições da formação de Israel. A pesquisa é inovadora, pois
busca contrastar o julgamento que faz o narrador bíblico, quanto ao comportamento pouco
ortodoxo destas mulheres e os pressupostos do judaísmo rabínico e dos primeiros pensadores
do cristianismo, e sua interpretação quanto a este tipo de comportamento feminino. As mulheres
analisadas são as Filhas de Ló que tiveram relações incestuosas com o pai, Tamar, nora de Judá
e sua prostituição, e a saga de Noemi e Rute no episódio da sedução de Boaz. O autor ressalta
que se essas mulheres são consideradas e ressaltadas nas culturas e religiões orientais como
mulheres importantes para os desfechos de suas histórias enquanto nação, mas, no entanto, a
mesma Bíblia hebraica aponta suas ações como pecados admite-se a dúvida do que realmente
a Bíblia hebraica diz sobre quais devam ser os valores que o fundamentam e que na verdade, o
ocidente pode estar equivocado em fazer de regras e princípios religiosos, certas interpretações
que promovem o preconceito e a injustiça com as mulheres.
Outro trabalho que citamos é o de Tercio Machado Siqueira, “Ela é mais justa do que
eu: estudo de Tamar à luz de Gênesis 38-1-30”, traz uma discussão sobre Tamar, desconstruindo
a ideia de submissão dessa mulher a tantos caprichos masculinos, obedecendo a tradição judaica
do Levirato. A leitura feita pelo autor da história de Tamar contraria a ótica tradicional pelos
elementos que o texto oferece, porém, mais uma vez, o trabalho propõe a releitura de apenas
uma mulher, considerando suas ações, intenções e implicâncias dessas para a história de Israel.
Outro trabalho que citamos é a tese de doutorado “Anseios por dançar diferente: leitura
popular da Bíblia na ótica da hermenêutica feminista”, de Isabel Aparecida Felix, em que,
partindo da ideia de que a leitura popular da Bíblia pode transformar o sujeito, permitindo uma
nova interpretação capaz de mudar a realidades de dominação e opressão, a autora propõe uma
nova leitura da Bíblia, com base na hermenêutica feminista crítica de libertação de Elizabeth
Shüsler Fiorenza, como ferramenta de análise, dialogando com a abordagem de leitura popular,
criada por Carlos Master, adotada posteriormente pelo CEBI (Centro de Estudos Bíblicos).
Acreditamos, contudo, que a autora lança um olhar amplo aos sujeitos dominados ou oprimidos
36

por uma interpretação tradicional ou inadequada do texto bíblico, delimitando-se apenas no


último capítulo, ao contexto do sujeito feminino. Só então ela propõe uma releitura das
mulheres da Bíblia e de suas histórias.
Dentro dessa temática ainda se destaca a dissertação de Mestrado “Migalhas versus
abundancia de pão: um lugar à mesa, uma interpretação feminista de MT 15,21. 28”, de Katia
Rejane Sassi, em que a autora atenta para a personagem da mulher cananeia, investigando-a por
uma ótica feminista. Partindo da metáfora dita por Jesus, em resposta ao pedido de cura da filha
feito pela cananeia, simbolizando ter vindo para os judeus e não para os gentios. A autora
propõe uma reescrita numa perspectiva libertadora e humanizadora que revela as posições
ideológicas, as interpretações androcêntrica ao longo do tempo e que traga uma nova visão,
partindo da análise textual que considera que a relação de Jesus com a mulher cananeia, traz,
além do rompimento de barreiras, uma libertação e empoderamento para o feminino.
Um outro trabalho significativo, e mais recente, pois foi defendido em 2018, merece
destaque por ser pioneiro, na perspectiva do estudo das mulheres bíblicas aqui no Nordeste, é a
dissertação “Marginalizadas e Transgressoras: Um Estudo da Genealogia de Jesus Segundo
Mateus a partir das Personagens Femininas”. Sua proposta é estudar o livro de Mateus, o gênero
genealogia de Jesus, que apresenta muitas particularidades, ressaltando a principal delas que é
a inserção de cinco mulheres no texto. As mulheres aparecem em Gênesis (11,29) e 1Coríntios
(2,18-21), mas não com tanto destaque, como acontece no texto sobre a origem do Messias.
Assim, todas as mulheres citadas, quatro mulheres que antecedem Maria, totalizando cinco
mulheres que estão envolvidas em questões morais, são desabonadas socialmente por suas
ações. São partes da sua história e escolhas sexuais que as condenam, conforme o
comportamento padrão para a época. Tamar, Raabe, Rute e Betsabéia e Maria, noiva de José,
que aparece grávida, sendo virgem, são na verdade, conforme o autor interpreta os textos,
mulheres marginalizadas e transgressoras que estão totalmente associadas a Jesus.
Ao elencarmos as personagens femininas, protagonistas das narrativas bíblicas como
nosso foco de pesquisa, é importante dizer que se trata do primeiro trabalho vinculado ao
Doutorado de Letras, sendo a Tese na Área de Identidade feminina, Linha de Pesquisa:
Discurso, identidade e memória, que busca interpretar, reler ou reavivar as mulheres da Bíblia,
protagonistas bíblicas, compreendendo os processos de formação de suas identidades.
O trabalho se constitui novo nos bancos de tese do PPGL, por trazer a Bíblia como texto
literário, no qual as narrativas serão o gênero em foco, também por trazer um panorama de todas
as mulheres do contexto bíblico e, para análise, as seis protagonistas que serão enfocadas com
maior atenção. Assim, o trabalho é ainda pioneiro, por se tratar de uma pesquisa que participa
37

dela, sujeitos femininos, com uma proposta de (re)leitura sob essa ótica de gênero no qual se
inscrevem. Terá também seu diferencial, por estudar tanto o Primeiro como o Segundo
Testamento, visto que, todos os outros trabalhos citados aqui, optaram por um viés só de
pesquisa ou textos do Pentateuco ou estudo dos evangelhos.
A preocupação com o universo feminino e a construção da identidade das mulheres da
Bíblia é relevante para promover a desconstrução do discurso patriarcal que, de modo
avassalador, tem deixado em segundo plano a influência da mulher dentro da Bíblia, dentro da
sua própria história de mundo e de seu contexto cultural, propagando essa inferioridade ainda,
em discursos preconceituosos, em pleno Século XXI. Através de pressupostos de uma
hermenêutica feminina, tornaremos possível nesse trabalho, discutir temas relevantes como a
definição do sujeito feminino, a observação das práticas culturais que constituem esse sujeito e
as marcas de gênero, partindo do contexto passado dessas mulheres, personagens bíblicas, como
também a influência na constituição das mulheres leitoras da Bíblia no contexto atual.
Desejamos, sobretudo, promover a reflexão, através da literatura, sobre os papeis sociais de
homens e mulheres, a organização da sociedade quanto a demarcação dos limites do “ser
mulher”, a construção da identidade das mulheres e principalmente, como esses pontos se
revelam dentro das narrativas bíblicas.
Para tanto, se faz necessário apresentar do que se constitui a pesquisa, a identidade e a
forma desta, sob o título “A construção da identidade feminina das protagonistas das narrativas
bíblicas: de Eva a Dorca”. Assim, nosso trabalho se constitui das “Considerações Inicias” em
que apresentamos ao leitor os motivos, razões que nos levaram a escolha do tema da pesquisa,
as protagonistas das narrativas bíblicas, para compreender como sua identidade é construída
nestas narrativas. Apresentamos também, os aspectos metodológicos do trabalho, como ainda
o estado da arte, a relevância desta pesquisa para o meio acadêmico onde ela se insere como
uma outra perspectiva de estudo de gênero e identidade feminina, como também os autores que
nos orientarão nas discussões propostas, a saber: Silva (2014), sobre a identidade e a diferencia
Woodward (2014), Hall (2007), Bauman (2005).
Em seguida, no Capítulo intitulado: “A bíblia na perspectiva literária” refletimos sobre
a leitura da Bíblia como uma obra literária, tomando como base as discussões de Zabatiero e
Leonel (2011), Auerbach (1998), Robert Alter(2007), Carneiro (2018) que enfatizam a Bíblia
como uma das grandes obras da literatura e que seu caráter literário se justifica em inúmeros
gêneros, aquelas narrativas que ganham destaque por sua imensa destreza em prender o leitor,
convencê-los de suas histórias com a mesma ou maior destreza que grandes nomes da literatura
clássica. Neste capítulo também evidenciamos a mulher como personagem dentro da literatura
38

bíblica e sua construção, como também a construção do feminino dentro das narrativas em que
elas aparecem. Discutiremos, a literatura e a literariedade bíblica à luz da teoria e crítica
literária, com um olhar atento para a narrativa em que seus elementos constitutivos nos ajudarão
a compreender a grandeza das narrativas bíblicas como a mais forte expressão de literatura.
Ainda no tópico 3.1: “A bíblia da mulher e a literatura cor de rosa”, e no tópico 3.2: “As
mulheres como personagens bíblicas contextualização do feminino no texto bíblico: que perfil
tem elas?”, conversamos sobre os caminhos de apagamentos do feminino ao longo da história,
na literatura, onde menos se espera a discriminação feminina, embora essa negação à mulher,
ao direito de escrita, foi uma forma de exclusão e submissão, uma tentativa de silenciamento e
opressão. As mulheres como personagens bíblicas se inscrevem nesses contextos de silêncio,
dentro de uma cultura muito mais fechada como era a cultura oriental em seu tratamento com
o feminino, como personagens moldadas dentro das histórias, com pouco direito à fala, escritas
por homens, mesmo em contextos em que elas deviam ser autoras de suas histórias. No entanto,
elas extrapolam o silêncio imposto em suas atitudes e falam em seus gestos e atitudes,
escrevendo uma história inapagável.
Nesse raciocínio, o terceiro capítulo “A mulher na literatura bíblica: personagens
bíblicas”, apresenta as personagens que fazem parte do contexto bíblico, buscando compreender
de que forma sua presença é relevante para o desenrolar das narrativas. Situamos ainda os
leitores para que se perceba a presença da mulher na Bíblia e como se desenha o seu perfil
dentro do texto. Buscamos ainda uma análise da construção dessas personagens, atentando para
o contexto cultural, o papel e o lugar das mulheres na sociedade da época, como um dos
caminhos para conhecer, desde a concepção do feminino na cultura oriental, à contextualização
do feminino no texto bíblico. Como essas mulheres aparecem dentro das narrativas? As
contribuições de Hall (2002), Silva (2014), sobre as noções de identidade ajudam nesse
processo de interpretação da construção da identidade a partir de processos de descentração do
sujeito e atentando para esses processos históricos que influenciam nas próprias concepções de
sujeito. Auxiliam-nos também os estudos de Laffey (1994) seu estudo feminista aos textos do
Primeiro Testamento e a releitura proposta, como também Chalier (1992), com maior atenção
a análise das matriarcas.
Na sequência, no quarto capítulo, “Comportamento, identidade e o protagonismo
feminino no primeiro segundo testamentos: o desenho do “ser mulher”, buscamos apresentar
conceitos importantes para a compreensão de nossa pesquisa, definindo-os a partir dos autores
Castells (2018), Woodward (2014) sobre Identidade e seus significados na sociedade, sobre
comportamento trazemos Marston (2014), como também sobre protagonismo/submissão. Esses
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conceitos são explorados no sentido de se fazer entender nas discussões e análises das
personagens e na releitura que lhes permitirão aparecer em seu devido valor dentro do texto. A
partir dos conceitos e da teoria da psicologia do comportamento humano de Marston (2014),
analisaremos alguns personagens buscando compreender se realmente elas são protagonistas e
o que diferencia suas ações nos diversos contextos do Primeiro e Segundo Testamentos. No
tópico “Por que elas foram protagonistas”? apresentamos uma análise do comportamento, da
identidade e do protagonismo, constituindo assim, um capítulo de uma análise prévia das
diferentes mulheres bíblicas. Este capítulo nos embasa para uma interpretação do texto, sob o
viés da hermenêutica de Ricoeur (2000), em que buscaremos tecer nossas análises das
personagens, interpretando-as, a partir de um viés feminino.
Em seguida, no quinto capítulo, “As protagonistas e uma releitura feminina das
narrativas bíblicas” propomos uma releitura das narrativas bíblicas, a partir do estudo das
personagens Debora, Ester, Jael, observando como suas ações podem ser interpretadas como
“protagonismo” no Primeiro Testamento. Além disso, como podemos compreender suas ações
e as suas identidades não traduzidas, interpretadas por homens dispensando todos os
preconceitos e as visões sobre a mulher imbuídas de machismos, sem levar em consideração os
aspectos do texto e o seu contexto. Contudo, uma leitura sob uma ótica de gênero, numa visão
feminina da história, abordando o texto por uma perspectiva crítica e considerando suas nuances
de texto literário, cheio de riquezas que nos convidam a mergulhar em seus detalhes. Nessa
mesma perspectiva de análise, mas sob um diferente viés de protagonismos, as personagens:
Maria Madalena, Maria mãe de Jesus e Dorcas serão analisadas considerando a diversidade
histórica, política, social e cultural que se constitui o contexto dessas mulheres no Segundo
Testamento. Ainda neste capítulo, fazemos um contraponto entre os livros bíblicos,
personagens e seus diferentes contextos.
Por fim, nas “Considerações finais”, retomaremos as discussões teóricas, os autores e
suas contribuições, nossos avanços em relação aos nossos objetivos propostos, tendo
respondido a principal questão que nos moveu a realizar esse trabalho: como é construída a
identidade feminina dentro das narrativas bíblicas em que as mulheres são personagens das
protagonistas?. Discutiremos também, de que modo a leitura da Bíblia como texto literário nos
permitiu avançar nas análises do texto, a partir da interação com o texto, de seu contexto,
autores, narradores e as possibilidades de enxergar a mulher por um outro viés que não seja a
ótica masculina, contribuindo com a formação de identidade das leitoras da Bíblia, da mulher
nas comunidades religiosas e na sociedade como um todo. Assim, é isso que esperamos, que
esta pesquisa contribua para a ampliação do acervo das pesquisas literárias, mas que inquiete a
40

outros a produzirem outros trabalhos, outras leituras sobre a Bíblia, que desperte o interesse e
atice a curiosidade sobre essas tão belas personagens femininas bíblicas e que sobre esse tema,
sejam somados às contribuições para o ensino de Literatura, na área de Identidade Feminina e
que venham para tornar mais amplas essas discussões sobre a importância da mulher e sua
valorização na sociedade.
41

2 A BÍBLIA NUMA PERSPECTIVA LITERÁRIA

“... a melhor razão para o estudo sério da Bíblia,


para aprender como lê-la bem, está escrita ao longo
da História da cultura ocidental: que se veja o que
ocorre quando as pessoas a leem equivocadamente,
a leem mal ou a leem com falsas suposições”.

Robert Alter

A Bíblia é o termo que o cristianismo utiliza para nomear o conjunto de livros sagrados
em que se tem tanto as escrituras canônicas do judaísmo como a literatura especifica do
cristianismo. No grego, Bíblia quer dizer livros e, por isso, os diferentes livros passaram ao
longo dos tempos, a constituir um único livro chamado Bíblia. Aproximadamente no Século II
d.C., os cristãos usavam a palavra Bíblia como significado de escritos sagrados. Entretanto,
vistos em suas particularidades são livros literários e possuem características especificas que os
diferenciam, escritos por 40 autores diferentes, mas os livros se unem enquanto um conjunto de
obras literárias, conforme Russell Norman Champlin (2001).
O primeiro passo para compreender a Bíblia como literatura, é atentar para essa
pluralidade que se inicia na diversidade de livros que a compõem. Concordamos com Fábio
Durão (2016, p 50) que a considera a uma biblioteca:

Suas diversas partes abrangem várias formas de composição e entre seus


gêneros encontramos narrativas de mitos e lendas, códigos legais e normas de
conduta (incluindo restrições alimentares), genealogia, anais, profecias, odes,
poesia lírica e amorosa, orações, provérbios, parábolas, epístolas e homilias
dentre outros. Cada um deles desempenhava uma função específica na vida
cotidiana das comunidades judaicas e cristãs do passado; a separação entre a
religião de um lado, estado, ciência e lei, de outro, não existia.

Fábio Durão quer nos dizer que a leitura da Bíblia requer a participação do leitor para
compreendê-la como um aparato de livros. Sua unidade e coerência sobressai posteriormente
ao texto, a partir de uma leitura atenta que vise observar e discutir o caráter das escolhas dos
livros e os diversos problemas intertextuais, numa busca pela coesão que está dentro do próprio
texto e que se revela como ferramenta privilegiada para introduzir questões como a
42

interpretação. Toda a obra pede esse movimento interpretativo para alcançar essa unidade e
coerência, internos ou inerentes ao texto bíblico, de modo que o texto requer interpretação e
essa relação de interpretação se dá entre o texto e o leitor, para que Bíblia se constituía uma
obra coerente. Assim, a Bíblia que é um processo de construção como diz o crítico literário,
“pela variedade de suporte e fontes e a notável heterogeneidade textual”, torna-se, um conjunto
de livros que requer um modo próprio de leitura e interpretação. Fábio Durão (2016, p.51)
escreve que:

Tudo fica mais intrigante quando percebemos que esse movimento


interpretativo já é interno ao texto bíblico, como se ele lesse a si próprio e em
alguma medida antecipasse o que fazemos com ele. Em certo sentido isso é
natural: a Bíblia Hebraica engloba escritos compostos de aproximadamente
1000 a. E.C. a 160 a. E.C.; o Novo Testamento surgiu no Século I E. C. Com
um período tão extenso não é de espantar que os livros mais antigos viessem
a adquirir certa enigmaticidade.

Fábio Durão (2016) diz que a Bíblia se inclui no conjunto de obras que nos desperta
para o sentido, da relação da Literatura com o tempo histórico e a sociedade, o conflito de
temporalidades complexas que se revelam dentro das obras literárias, sendo estas enigmas para
decifração de pesquisadores que as desafiam e as desbravam.
Escrita durante cerca de mil e seiscentos anos, do ano 1000 a. C até o fim do primeiro
século da era cristã, a Bíblia já foi vista também como um documento histórico e cultural, pois
faz parte de nosso passado, do imaginário coletivo, como uma possibilidade para que se reflita
sobre diversos aspectos da natureza humana. Algumas manifestações do homem no tempo e no
espaço apresentadas na Bíblia, podem ser comparadas com outros livros de histórias, no tocante
aos fatos e aos comportamentos de muitos povos, especificamente, da nação Israelita, a história
dos Judeus. Para termos noção da influência desse livro, basta atentar para o fato de que, ao
longo do tempo, ele foi e continua sendo um dos livros mais lidos.
Nesse sentido, discutir sobre um livro tão lido e, consideravelmente analisado, tanto por
leitores estudiosos, religiosos ou não, como por pesquisadores do meio acadêmico, é um grande
desafio, sobretudo, quando é possível pensar os textos bíblicos, essencialmente as narrativas,
no campo dos estudos teórico-literários e fazer uso desses elementos literários para
compreender que não se trata apenas de uma literatura restrita ao cristianismo, mas se relaciona
com demais textos clássicos, outras narrativas da literatura greco-romana, chegando a ter uma
ralação de proximidade de temas, feitos e características dos personagens.
43

Por essa razão, cremos que tal perspectiva não lhe diminui o sagrado do livro, visto por
muitos. Sob o argumento de que a Bíblia é a palavra de Deus, inspirada por Ele a homens que
a escreveram, alguns excluem totalmente a ideia de que ela possa ter sido fruto da imaginação
humana. Não tendo a pretensão de nos opormos ou desconstruir tal argumento, apresentamos a
perspectiva de ler, considerando que a Bíblia é a palavra de Deus em palavras humanas, o
sagrado de Deus escritos por homens, de modo que os escritos destes homens pertencem a um
tempo, a um contexto histórico, cultural, político e social.
Para compreendermos a Bíblia como manifestação de Deus para um povo, é preciso
compreendê-la em sua condição de texto literário, dirigido a sujeitos concretos e situados. É
preciso também considerar enquanto literatura, que a Bíblia tem um contexto literário e faz
parte do universo literário do seu tempo. É preciso considerar ainda que as interpretações
humanas são campos de ambiguidades e múltiplas visões sobre os textos e, nem sempre,
correspondem as verdadeiras palavras de Deus. Ou seja, se são exatamente o que Deus quis
dizer.
Consideramos então, que a ótica diversa, diferentes modos de ler o texto, nos permitirá
ver de modo autêntico o que realmente queremos encontrar. Segundo Cassio Murilo Dias Silva
(2004), para um mesmo texto, surgem muitas interpretações, algumas legítimas, outras
questionáveis, outras descartáveis. Tudo depende do modo, ou melhor do método com que
lemos a Bíblia. Os estudos da Bíblia como literatura é recente, assim como ainda é recente o
próprio termo "literatura", do final do século XVIII para cá. Ainda não há consenso entre
biblistas, pesquisadores bíblicos, mas é válido considerar que as narrativas bíblicas, ao serem
lidas numa outra perspectiva, permitem as revisões, e na perspectiva teórico-literárias é preciso
se apropriar de outras teorias literárias. Leonel (2011. p 21) diz que:

Nenhum texto é o fato que narra ou a situação da qual testemunha. Ele é uma
representação do evento através de um meio de comunicação que possui leis
próprias. Em outras palavras, o processo de acesso a uma realidade do passado
através da literatura é mediado por alguém que escreve sobre tal situação,
expressando seu modo de vê-la ou determinado ângulo de entendimento.

Desse modo, o texto bíblico não perde sua inspiração divina, no sentido de que Deus se
utiliza das experiências humanas, suas vivências e modo de ver para inspirá-los a escrever os
textos bíblicos. O que implica em compreender também que os escritores, homens em um
contexto social definido, escrevem as manifestações divinas, a partir de seu conhecimento de
mundo.
44

Ao tomar as narrativas bíblicas em que as mulheres são protagonistas, observamos que,


dentro da questão estética, a realidade foi apresentada a partir de uma visão particular do
narrador, explorando a subjetividade, expondo os sentimentos, as emoções, as experiências e
traumas vivenciadas pelas personagens, há uma recriação desta realidade.
De certo, isto não tira a autenticidade das histórias bíblicas, mas ela se insere numa visão
ficcional, por se constituir uma recriação da realidade. Não por ser uma história inventada, mas
11
construída ou reconstruída por um autor que usa a verdade com a sua linguagem, sua
estilística e estética. É exatamente a concepção de literatura como mimesis, imitação e
representação da realidade e como poiesis, criação e transformação da realidade, conceitos
aristotélicos.
Mas como conceber que o texto sagrado e inspirado por Deus pode ser a representação
da realidade? É preciso ter em consideração de que o conceito de verdade, desde que construído
por Aristóteles, vem sendo amplamente discutido ao longo dos tempos pela humanidade e na
filosofia, a verdade está ligada a relatividade. Para um judeu fundamentalista, esse conceito de
verdade se difere, no sentido de que está atrelado a sua fé, crendo em uma só verdade: Deus é
único e eterno e por isso a verdade dele é única e imutável e o ser humano poderá alcançar até
certo ponto.
O Talmud afirma que "o selo de D'us é a verdade". Jesus ao seu tempo, buscando ser
aceito pelos fariseus, afirmava ser “a verdade”, substituindo todos os dogmas que seus irmãos
atribuíam como a verdade de Deus. Ele seria o cumprimento da lei, a verdade entre os homens.
No entanto, a resistência em aceitar a certeza de verdade, de se ter achado a verdade, trouxe a
descrença e o desprezo àquele que ofertava um novo conceito de verdade. Certamente, é difícil,
aceitar a exatidão para o conceito de verdade, até mesmo entre quem a julgue existir como
única.
Nesse sentido, tanto a noção de verdade, como da realidade, é muito mais uma questão
de interpretação, como coloca Everton Nery Carneiro (2018), a partir do conceito de Hans-
Georg Gadamer sobre verdade (aletheia), a verdade como o ato de trazer para a luz, algo que
estava na escuridão. Entretanto, essa construção de verdade pode se dá através da linguagem,
pois essa leva-nos ao encontro da verdade, mesmo que muitas vezes revelando ou ocultando
fatos. O autor conclui que toda verdade se dá sempre na interpretação, de modo que a verdade

11
O Conceito de verdade aqui se relaciona com a ideia de crenças pessoais ou de um coletivo, entretanto atrelada
a um conceito pessoal de verdade, levando em consideração o relativismo moral. O que difere muito do conceito
de verdade para a tradição judaica: As mentiras são inumeráveis, mas a verdade é uma só. Rabi Nahman in
Princípios da vida: tradição judaica (2004).
45

“se reduz ao conhecimento científico, mas como um encontro com a tradição que pressupõe a
experiência pessoal de estar no mundo”. (CARNEIRO, 2018, p. 31). Assim, interpretar,
entender, compreender o texto como “verdade” no sentido de trazer a luz, pressupor o dito e o
não dito em um enunciado, perpassa por uma questão de escolha de querer crer, encontrar no
que está posto, aquilo que o permite recriar. Utilizamo-nos desse conceito de verdade para
compreender que as narrativas bíblicas nos permitem, a partir da relação com o texto, nos afinar
enquanto leitores com seus pressupostos, optando segundo nosso lugar no mundo, compreendê-
las enquanto verdade.
Esta perspectiva de crer, nos é possível, ao fazer uma leitura da Bíblia como propõem
autores como Erick Auerbach, Northrop Frye e Robert Alter, seguidos por Júlio Paulo Zabatiero
e João Leonel. É possível olhar para a Bíblia na perspectiva de texto e discurso, no sentido de
estudar sua linguagem, a variedade de gêneros e estilos literários como caráter fundamental
para identificação e compreensão dos seus textos, sobretudo, levando em consideração o
contexto sociocultural e literário de cada um deles.
Nesse pensamento, vale dizer que ver a Bíblia como texto literário precede qualquer
outra forma de lê-la, principalmente, observando os diferentes gêneros literários, pois, nessa
abordagem dá-se a eles o espaço para se projetarem, quanto ao seu estilo, tempo, contexto e
realidade, ferramentas necessárias para os compreender com mais propriedade. Júlio Zabatiero
e João Leonel (2011), ao apontar razões que dificultaram o estudo da Bíblia como literatura,
principalmente aqui no Brasil, cita o distanciamento entre o teórico literário para com a Bíblia
e em contraponto, o ceticismo dos biblistas para com os elementos da teoria. Nos Estados
Unidos e também em países da Europa, a Bíblia é vista como os demais livros da literatura
mundial.
Essa aversão a Bíblia por parte dos estudiosos brasileiros pode ser uma questão cultural,
pois enquanto em outros países protestantes, a Bíblia faz parte do cotidiano comum de leituras,
aqui, por muito tempo, ela foi trelada a um livro religioso e distante do universo cultural e
tradição literária, não fazendo parte dos livros indicados para leitura nas universidades, como
se não pertencesse ao cânone ocidental. Northrop Frye (2004, p. 10) coloca que a Literatura
inglesa é tão influenciada pela Bíblia que não é possível compreender a literatura, alguns poetas
ingleses se não tiver conhecimento bíblico. Paulo Zabatiero e João Leonel (2011, p. 21)
colocam que não há o mesmo diálogo no Brasil, pois aqui, os biblistas se consideram detentores
do texto bíblico em suas leituras religiosas, considerando-a inapropriada para estudos literários
pelas razões que apontam Robert Alter (2007, p 34):
46

Uma razão óbvia para a ausência de interesse científico na análise literária da


Bíblia reside no fato de que, ao contrário da literatura grega e latina, a Bíblia
foi considerada durante muitos séculos, por cristãos e judeus, como fonte
primordial e única da verdade divina revelada. Essa crença ainda tem
influência profunda, tanto naqueles que a refutam como naqueles que a
perpetuam.

É certo que não se pode negar a visão religiosa que os colonizadores nos apresentaram
essa obra, mas quando se faz uma leitura desprovida dessas amarras, pode se dar conta de sua
grandeza literária e do quanto os diversos estilos literários podem ampliar nossa percepção
leitora, como também a escrita. Para assimilar a ideia de que a Bíblia pode ser vista como obra
literária, a discussão nos faz caminhar para alguns pontos que nos inquietam a discutir conceitos
de literatura, de obra literária, de literariedade e perceber como se constitui os escritos bíblicos
dentro destes conceitos.
Sabemos que não é simples conceituar Literatura, pois trata-se de uma discussão desde
o início do Século XX, iniciada pelos formalistas russos, estudando métodos científicos e, ainda
hoje, continuamos em busca de definir o que é literariedade, também a composição do cânon
literário no ocidente. Não esqueçamos também de que o modo que nos atemos ao texto, o olhar
que se lança sobre ele, até mesmo o tempo em que os textos são lançados a esses olhares atentos
do leitor, do crítico literário pode variar no conceito do ser ou não literário. Dizendo de outro
modo, diversos autores em seu tempo foram incompreendidos e suas obras não tratadas como
literárias, por não se adequarem as expectativas dos leitores e críticos de um determinado
tempo.
Entretanto, existem ideias e discussões estabelecidas por alguns autores que nos
direcionam a perceber a literariedade de um texto. Vale a pena conhecer alguns conceitos,
sobretudo de literatura, para criarmos o nosso próprio sobre as coisas, sobre o mundo. Para
Carneiro (2018), conceituar, conceber conceitos é uma ação de criação que comporta inventar
novos jeitos de pensamento, de sentimento, de visão, de concepção e percepção, do
compreender aquilo que é incompreensível.
Dentro dessa lógica, discutir conceitos de Literatura, literariedade do texto, nos remete
a Aristóteles, a partir de sua obra Poética, escritos em torno do ano de 335 a.C. em que traz
noções fundamentais e com muita praticidade, sobre a poética, a linguagem literária e o estudo
dos gêneros em evidências em seu tempo como tragédia e comédia. Entretanto, mesmo sua
obra se atendo mais a análise da tragédia, ainda perduram seus conceitos e noções como
referenciais para os estudos literários, para a compreensão de textos narrativos. Ao lançar o
conceito de mimesis, a ideia de imitação, de representação da realidade, Aristóteles, ao tratar
47

sobre a natureza da poesia e a estrutura, associava todos os gêneros12 estudados em seu tempo,
às ações do homem e tudo era criação artística, a imitação do mundo e da natureza. Para
Aristóteles (2003, p.30), “imitar é uma qualidade congênita dos homens, e que estes “apreciam
as imitações”. Assim, é próprio do humano imitar desde cedo e aprender a partir da imitação.
As crianças imitam os adultos que também imitam e apreciam a arte da imitação. Assim,
Literatura é na compreensão de Aristóteles, a arte de imitar o mundo, a realidade,
compreendendo-a, a partir da mimesis e sendo, ela mesma, o grau de aproximação ou
diferenciação entre os textos.
Na compreensão de Aristóteles, a literatura é uma maneira de enfatizar o homem em
ação, suas características, sentimentos e ações, considerando que para os gregos, a linguagem
era utilizada explorando seus recursos literários, rítmico, a sonoridade, uma vez que a própria
narrativa não se constituía em prosa, mas distinguia-se em modos. No caso da narrativa, o
narrador estava totalmente envolto numa correlação com os elementos que a compõem,
personagem, tempo e espaço e no dramático as ações humanas são diretamente apresentadas
pelos personagens, sem quase intervenção de um narrador. É a partir das ações do homem a
serem enfocadas, que se determina o gênero literários que será utilizado, para que o artista imite,
crie, fantasiando ou mentindo por vezes, baseado em fatores do mundo real. (ARISTÓTELES
2003).
Faz-se necessário tomar esse conceito de mimesis e ampliá-lo além da ideia de repetição
da realidade. É preciso entender a relação estabelecida por Aristóteles, entre o poeta e o
historiador:

O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro


escrever em prosa e o segundo em verso (pois, se a obra de Heródoto (30) fora
composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, figurando
ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu
e o outro o que poderia ter acontecido (ARISTÓTELES, 2003, p. 43).

Aristóteles já observava que as variadas ações humanas trariam também a diversidade


de criação literária, e que essa ideia da mimesis na poesia e nas artes em geral, estaria justamente
atrelada a criação dos mitos, das histórias ficcionais, sem, contudo, estabelecer uma relação tão
estrita dos conteúdos com a verdade do seu objeto. Era a representatividade do fato,

12
Aristóteles como os gregos em seu tempo, não fazia distinção entre as artes, uma vez que tudo estava imbricado:
poesia, música, teatro e, portanto, os gêneros drama, comédia, tragédia, poesia lírica e épica, apesar de serem
classificados diferentes em aspectos estruturais e fatores como meio, objeto e modo, estavam todos associados a
arte em geral. A poesia era apresentada nos teatros e acompanhada da música com instrumentos musicais.
48

verossimilhança do mundo numa perspectiva criadora do poeta. Aristóteles (2003, p. 111).


escreve:

Ora o mito é imitação de acções; e, por “mito”, entendo a composição dos


actos; por “carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas tem tal ou
tal qualidade; e por “pensamento”, tudo quanto digam as personagens para
demonstrar o quer que seja ou para manifestar sua decisão.

Na contemporaneidade de Aristóteles, a mimesis até parecia estar atrelada apenas ao


sentido da cópia, mas era na verdade, um modo de observação do real, pois não apenas reproduz
o real, mas recriava e o modificava, fazendo novas correlações entre o real e o imaginário. Mais
tarde, essa ideia seria ampliada literatura como a possibilidade de representação e interpretação
do mundo.
Assim, utilizamo-nos da noção de literatura como representação e recriação do real para
compreender que a Bíblia como literatura é mediada por autores que escreveram sobre situações
das quais ouviram falar, recontadas oralmente por seus antepassados, ou mesmo vivenciando-
as, mas se utilizaram de um determinado modo de ver e compreender e narrar. Isso se constitui
mimesis. Existe nisso toda uma complexidade na construção artística desses textos, técnicas
narrativas, escolhas de gêneros, peculiar a literalidade bíblica.
Nesse sentido, a literatura pode ser permeada de experiências humanas, reconstruindo
seus dramas e sua vivência, numa imbricada relação com a arte, com a criatividade capaz de
conectar o vivido e o imaginado, de modo que ambos passam a ser a realidade inseparável que
o constitui e ao passo que revela seus valores e sentidos. Essa é também a noção de literatura
de Antônio Candido (1989), importante para nossa compreensão da Bíblia como literatura. Para
ele, a literatura é tudo aquilo que tem toque poético, ficcional ou dramático nos mais distintos
níveis de uma sociedade, em todas as culturas, desde o folclore, a lenda, as anedotas e até as
formas complexas de produção escritas das grandes civilizações.
Partindo dessa concepção de Cândido, a literatura como arte literária, que não só observa
e interpreta o mundo, mas se utiliza da linguagem para expressar o pensamento, e faz isso como
modo particular de conceber a própria língua, conhecendo sua estrutura linguística, entretanto,
usa essa estrutura de modo subjetivo e associado a criatividade, a motivação.
Neste sentido, a Bíblia utiliza-se da arte literária e usa a linguagem para criar seu texto,
sua expressão artística, e espera que o leitor use também a linguagem para ressignificá-la,
moldando-a, pelo seu desejo, seus sentimentos e modo peculiar de ver o mundo, de senti-lo, de
compreendê-lo.
49

Essa compreensão de literatura, a partir de Aristóteles e Candido, nos permite quebrar


poderes, paradigmas que nos destituía na condição de leitor, de aproximar-se do texto, de
interpretá-lo com a liberdade de por si só, compreender aquilo que o texto pode nos dizer, sem
a interferência de outros. A literatura é o acesso ao uso da linguagem de forma livre, permitindo
a criação de novas realidades, partindo da subjetividade, do modo particular de conceber o
texto, o mundo no/do texto, a partir da interpretação que se pode fazer da experiência criativa,
subjetiva de um autor.
Essa é também um outro modo de conceituar literatura, apresentado por Roland Barthes
(2012), bastante conveniente ao nosso modo de ver a Bíblia como texto literário. Para Barthes,
a literatura é a utilização da linguagem não submetida ao poder, “a linguagem literária não
necessita de seguir regras de estruturação para ser compreendida”. A liberdade que permeia o
autor e o instiga a usar a linguagem para expressar seu pensamento de forma clara e expressiva
confere a seu texto, a condição de novo com valor artístico, poder e a autoridade de se fazer
vivo, autêntico e existir como representação e ressignificação de um tempo, de uma cultura e
de uma experiência.
Neste contexto, a Bíblia é literatura, por ser a representação de um tempo passado, seus
personagens são tipos humanos que vivenciaram experiências num dado momento, num dado
contexto e que nos permitem hoje, através da literatura, da linguagem, penetrar em seu texto e
ressignificá-la, interpretá-la, reconhecendo seu valor artístico e cultural. É literatura porque
representa o mundo e as vivências dos seus autores, as palavras se revestem de significações e
valores, sentidos múltiplos e até ambíguos que estão para serem apreendidos, interpretados pelo
leitor.
Assim é possível compreender o texto bíblico, levando em consideração um modo
particular de leitura, pois trata-se de um conjunto de livros e sua coerência se dá nesse processo
de leitura. Retomando Fábio Durão (2016), ele coloca que as palavras não precisam ser apenas
o que são, quando se refere a hermenêutica bíblica, observando que para se ler um texto literário
é preciso estar atento a interpretação que se pode fazer para buscar a coerência e a unidade do
que se ler. “As palavras são o que são e podem ser outra coisa, sem deixar de ser o que são”
(DURAO 2016, p. 59). É um completo mergulho no mundo do texto, no que este propõe e
permite ser compreendido, numa relação profunda de busca de sentidos, da coerência e da
representatividade que se esconde e se revela no texto. A literatura se vincula ao seu receptor
e, enquanto texto escrito, depende da interpretação do leitor que rompe com o tempo em que a
obra foi produzida, resiste a época e dialoga com o texto que vai além de um discurso falado,
de sentido estabelecido, mas ele o ressignifica, interpreta-o. Assim, a Bíblia requer essa leitura
50

das entrelinhas, pois enquanto literatura, está permeada de contradições, na medida em que lida
com a liberdade de criação, a subjetividade de um escritor que aflora e se utiliza da linguagem
para materializar seu pensamento criativo, porém essa liberdade de criação é permeada de
conexões com a realidade, com a cultura, com o tempo, em que a obra está atrelada.
Ler a Bíblia requer contemplar um conjunto de livros, de autores diversos que beberam
em outras fontes, se enlaçaram em gêneros diversos e diálogos com outros textos, cada um com
seu modo particular de ser, de utilizar a linguagem e seus recursos-artísticos literários, e para
conhecê-los, interpretá-los é preciso lê-la considerando sua pluralidade. Plural também são os
personagens envoltos em intensas tramas, em narrativas aparentemente curtas, porém repletas
de detalhes implícitos que vão se revelando num diálogo constante com o leitor.
Neste sentido, ao tomarmos a Literatura como representação do real, a evocação do
mundo através de figuras, sendo a linguagem uma adequação do mundo dos sentidos à
realidade, é preciso pensar também que a contradição entre o real e o representado se faz
presente. Por mais que esteja(m) impresso(s) na obra os comportamentos sociais de uma
determinada época, a cultura e as relações sociais, sempre há o imaginário, a invenção de um
novo mundo, de situações e relações possíveis que a imaginação do autor imprime ao objeto,
como coloca Candido (1975, p. 35) quando falava da importância de ler um texto, buscando
além dos aspectos formais, sociais de uma obra:

Consiste nisso e mais em analisar a visão que a obra exprime do homem, a


posição em face dos temas, através dos quais se manifestam o espírito e a
sociedade. Um poema revela sentimentos, ideias, experiências; um romance
revela isto mesmo, com mais amplitude e menos concentração. Um e outro
valem, todavia, não por copiar a vida como pensaria, no limite, um crítico não-
literário; nem por criar uma expressão sem conteúdo como pensaria também
no limite um formalista radical. Valem porque inventam uma vida nova, que
a imaginação imprime ao seu objeto.

Essa também é uma forma de pensar a literatura, de suportar a rudeza da realidade e de


reinventá-la, “inventar uma vida nova”. A medida que se compreende o texto como uma tomada
de consciência do mundo, que se expressa por meios de signos, faz-se necessário aceitar que
tais significados e valores se modificam, a partir da ação do tempo no qual se inserem as
palavras. Para Ricoeur (1998, p. 116), “é o leitor quase abandonado pela obra que recarrega
sozinho o peso da tessitura da intriga”. É no próprio ato de ler que se percebe a literariedade do
texto, o que nos leva a compreender que o texto literário possui particularidades que o torna
diferente de outros textos. Ele pretende sobretudo, apresentar o universo do autor, como ele
51

empreende o mundo, o imagina, interpreta e recria em seu texto e, a partir do modo como ele
se utiliza da linguagem, que consegue despertar a sensação de pertencimento ou de
estranhamento ao texto. Ou seja, consegue tocar as emoções do leitor e o atiçar a interagir com
o texto.
Então, podemos olhar para o texto bíblico atentando para suas idiossincrasias de texto
literário, sob essas duas afirmações sobre literariedade apresentadas por Candido e Ricoeur: o
sentir profundo do autor, as emoções e valores dos quais se reveste seu modo de ver o mundo,
expressos no texto e o sentir-se tocado, o despertar de emoções no leitor, pelo modo que o autor
se utiliza dos recursos linguísticos, da retórica, da estética para dar ao texto todos os aparatos
que o torna significativamente diferentes nos aspectos pragmáticos.
Ao compreender que no texto literário, o leitor precisa estar atento ao modo como o
autor apresenta, recria e inventa a realidade com expressividade, focado na função estética,
plurissignificativa que o diferencia, podemos compreender como tão necessária é a literatura,
para nossa própria compreensão enquanto sujeito que interpreta, que aguça seu senso crítico,
percebe o mundo e percebe-se nele. Se pudermos resumir a utilidade do texto literário, além de
proporcionar o deleite, o prazer de ler histórias, romances, poemas e se envolver com o mundo
que o texto oferece, mesmo nos casos em que se distanciam do mundo do leitor, diríamos que
o texto literário permite o diálogo e a interação, seja entre o leitor e o texto, entre o leitor e a
sociedade ou com outros leitores. Para Zilberman (2008), a literatura promove o diálogo, que
por sua vez promove trocas, experiências, não sendo, portanto, uma produção egocêntrica.
Nesse sentido, a Bíblia é a pura expressão literária, se pensarmos nessas definições de
literatura aqui discutidas. A Bíblia é literatura, é uma obra literária porque permite, sobretudo,
o diálogo do leitor com o texto, e este pode encontrar dentro dela, mundos a serem desbravados,
interpretados, numa constante revisitação do passado e uma atualização do presente, alcançados
a partir do mergulho nos textos bíblicos, num processo de compreensão e interpretação por
parte do leitor com o texto.
Aliás, essa relação dialógica com textos, com vozes é algo marcante na Bíblia, pois ela
não é unívoca, o diálogo se dá entre as muitas vozes. A Bíblia traz o diálogo de Deus para com
os homens e desses para com Deus, numa espécie de modelo da receptividade, de como se dá
o contato dos homens com esse divino, e essas vozes também penetram o inconsciente do leitor
que delas se utiliza para construir e possibilitar sua compreensão e interpretação, como diz José
Tolentino Mendonça, na obra A leitura infinita a Bíblia e a sua interpretação:
52

A Bíblia surge construída como um drama, não unívoco, mas polifónico (daí
a solicitação que ela faz para que nos avizinhemos dela em vários planos). O
seu é um tecido coral, onde as vozes, a de Deus e as dos homens, se indagam,
desejam e avizinham em cruzamentos cheios de vivacidade e de surpresa.
(MEDONÇA, 2010.p, 173).

Assim, além de trazer o diálogo de Deus com os homens, ela propõe o diálogo,
sobretudo, conosco, com nossos questionamentos, com a nossa humanidade, com o divino, nos
aproximando e nos afastando dos seres que habitam as suas narrativas. São nas suas narrativas
que encontramos os traços literários, a sagacidade dos escritores, da ingênua intenção de contar
histórias sucintas, com personagens, a primeira impressão, não tão bem apresentados, descritos,
mas numa leitura atenta, podemos ver como se revelam complexos, profundos, evolutivos.
Esses personagens povoam a mente dos escritores posteriores a Bíblia e cedem à literatura
ocidental, suas características, seus dramas, suas conquistas, sua trama.
Nessa compreensão, a Bíblia, além de uma obra literária, é digna de ser tratada entre as
que pertencem ao Cânone Universal. Nas definições de autores como Gadamer (2003), Ítalo
Calvino (1993), uma obra faz parte do cânone literário universal quando está no consciente de
todos, no imaginário, utilizada como referência no mundo, tanto no momento presente,
permitindo ser interpretado, quanto no mundo original do aparecimento deste texto escrito. Para
Gadamer (2003, p 228) “É o modo de ser histórico da literatura como tal o que permite que algo
pertença à literatura universal”, não a forma, nem os critérios peculiares a obra, mas o que ela
tem a nos dizer, isso a torna diferente no seu modo de ser.
Neste aspecto, não se deve procurar aspectos formais que delimitem a Bíblia como obra
literária, mas o que ela tem a dizer, pois em cada palavra dos seus textos, há uma vontade de se
revelar, de dialogar, deixar-se ser compreendida, interpretada. Entretanto, também podemos
apresentar, a partir dos critérios de Ítalo Calvino, escritor italiano (nascido em Cuba) do século
passado, que na obra Por que lê os clássicos? apresenta quais seriam os critérios para
compreender a obra como pertencente ao cânone literário universal. Dos 14 critérios
apresentados, em nossa concepção todos se adequam a Bíblia, embora aqui destacamos esses
que, parecem estar realmente falando dela, Calvino (1993.p, 10) diz que:

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se


impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da
memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.
4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.
5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma
releitura. A definição 4 pode ser considerada corolário desta:
53

6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo


que tinha para dizer. Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação
mais explicativa, como:
7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram
na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na
linguagem ou nos costumes).
11. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho
de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.
14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde
predomina a atualidade mais incompatível.

Podemos começar aproximando a Bíblia do primeiro critério como um dos livros que
mais exerce influência sobre outras obras, sobre autores, pois seus personagens povoam o
imaginário de muitos, inclusive na memória popular, público que mais lê ou ouve sobre as
histórias bíblicas. Na verdade, a Bíblia é lida pelos mais diversos tipos de leitores. As narrativas
fantásticas e cheias de aventuras, como o menino Davi que venceu o gigante, Jonas engolido
por um grande peixe, os contos românticos, as histórias de fé e religiosidade dos patriarcas e
matriarcas, os cânticos de Salmos, os poemas de Salomão, são a prova viva de que os textos
bíblicos estão na memória, no inconsciente coletivo ou individual.
Cada vez que o leitor vai à Bíblia, ele se depara com novas formas de interpretar seus
textos. Calvino diz que os verbos “ler e reler” têm o mesmo valor quando se trata de um clássico.
Cada vez que o leitor volta ao texto bíblico, é como se tivesse lendo pela primeira vez, no
sentido de sempre achar algo que ainda não tinha atentado. Parece que nunca se esgota o que
se tem ainda para dizer, basta que o leitor defina seu objeto de leitura e encontrará outros
mundos no texto. Mesmo que o texto bíblico traga marcas culturais e comportamentais de
outros tempos, e que pareça está distante numa relação tempo-espaço, ela rompe essas barreiras
fazendo uma ponte entre o mundo encontrado na leitura e o mundo do leitor.
A literariedade da Bíblia também se evidencia compreendendo-a como um clássico da
literatura, quando atentamos para sua linguagem diversificada e tal qual os gêneros que a
compõe. Candido (1975), citado anteriormente, sobre a literatura ser tudo que tenha toque
poético, ficção, culturas e demais produções do homem, a Bíblia tem toque poético, ficção,
drama, lendas, frutos de uma cultura em seus mais diversos níveis, das tradições orais, do
popular, as formas mais eruditas de escrita. É uma grande produção atrelada a nação judaica
com seus princípios semitas, carregada de religiosidade, moralidade, mas envolta numa forma
particular de pensar e conceber suas ideias e seus escritos.
No entanto, a Bíblia possui linguagem própria e modo particular de ser, discutindo o
religioso, o conflito humano, as complexas formas de existir, com estilos literários próprios,
54

trazendo o contraste dos diferentes modos de conceber o mundo, na percepção do divino e do


humano, sendo literatura, pois não caberia esse modo de ser em nenhuma outra forma, se não
nas narrativas bíblicas. Não saber lê-las, não as interpretar trará sempre a falsa impressão de
estar diante de um texto meramente dogmático, desprezando seu valor literário. Zabatiero e
Leonel (2011, p. 27) afirmam que o texto antigo como o bíblico, dá pistas e o leitor fará
hipóteses de como viveram seus autores, o contexto histórico. Porém, o que mais vai importar
é que o leitor tem um “texto, fruto concreto do período, transmitindo através de processos
retóricos de comunicação, um conteúdo que pode ser lido e assimilado em qualquer época e
lugar”.
Assim se confirma a necessidade de saber ler a Bíblia, reconhecendo-a literária, atrelada
as manifestações artísticas, a literariedade das palavras nas mais diversas formas de expressões
e gêneros diversos que encontramos em seus livros. Há por exemplo, poesia e não se pode
13
pensar em poesia bíblica sem lembrar do livro Cântico dos Cânticos atribuída autoria a
Salomão, em que nele se encontra uma das mais belas histórias de amor, repletos de cantos e
poemas de estética e beleza singular, trazendo aos leitores um misto de encantamento e
estranhamento por encontrar na poesia atribuída a Salomão14, o peso do romantismo e a sutileza
do erotismo presente ente o Pastor e a Sulamita. Apesar da beleza poética, o texto foi construído
como se fosse para o teatro, pois tem alternância de falas, cantos e diálogos entre os
personagens, acompanhados de instrumentos musicais, por essa razão considerado o cântico
superior. O texto começa já revelando o desejo ardente dos amantes, a relação é típica de um
amor em construção que a cada ato ou unidade poética parece mais intensos: o amor e o desejo,
revelados na entrega mútua e prazerosa entre eles. É possível fazer uma relação desse casal com
o ambiente, pois eles estão sempre cercados de mirras, gramas e o frescor da natureza, a
exploração do ambiente, da textura e sabor das frutas, da terra, da natureza enfim, com o próprio
Jardim do Éden e a relação do primeiro casal Eva e Adão. Vejamos o primeiro poema:

1 Cântico dos cânticos de Salomão.


Primeiro cântico
Esposa
2 Beija-me com os beijos de tua boca;
porque melhor é o teu amor do que o vinho.

13
em hebraico: ‫ש ִׁירים הַ ִׁש ִׁירים‬,
ִׁ Šīr HašŠīrīm: Cântico superlativo, Cântico maior, maior beleza e arte do que outros
cânticos.
14
Personagem bíblico, Rei, herdeiro e sucessor do rei Davi, que governou Israel após a morte do pai, por um
período de 40 anos, entre 966 e 926 a.C, aproximadamente. Durante seu reinado, construiu o famoso templo de
Jerusalém, ou templo de Salomão, local onde o povo de Israel fazia seus cultos. Fonte: (Bíblia Almeida, Revista e
Atualizada).
55

3 Suave é o aroma dos teus unguentos,


como unguento derramado é o teu nome;
por isso, as donzelas te amam.
4 Leva-me após ti, apressemo-nos.
O rei me introduziu nas suas recâmaras.

Podemos notar ainda a marcante presença do feminino tanto pelo modo que é louvado
e referenciado pelo poeta, como pela autonomia da personagem feminina, a liberdade de ser e
viver sua sexualidade. A personagem feminina é quem conduz as falas, as ações e também
expõe suas vontades e desejos, de forma livre e desinibida, o que parece uma grande ousadia
do texto para os costumes daquela época. É o que comprovamos nos versos acima. Movida pela
pressa de ter o amado e de se entregar, a esposa inicia o canto, e de um modo particular, ela
revela seu encanto e desejo pelo amante. O Salmo é regado de metáforas, beijo, amor e vinho,
unguento e o nome. São metáforas que se sobrepõem, uma metáfora para explicar outra, numa
construção comprometida com a beleza e a simbologia física, mas também com valores,
virtudes, como no nome comparado ao unguento derramado. Revela-se um estilo poético
bastante original e singular em Cântico dos Cânticos. Alinhamos nosso pensar sobre Cântico,
no tocante a condição da mulher com o pensar de Mendonça (2015, p. 131):

(...) ela aqui alcança um protagonismo que a torna parceira autêntica de seu
par. Nenhum outro texto bíblico dá a palavra à mulher em tal proporção. Há
uma acumulação de verbos na primeira pessoa, com a bem-amada por sujeito.
Ela busca e é buscada. Pede e é pedida. A sua palavra inaugura o cântico. A
mulher olha para o homem e avizinha-se a ele com a mesma impaciência e a
mesma alegria de ele a ela.

Não só ela é protagonista, como segue ainda esse diálogo entre personagens,
intercalando com coros que provavelmente eram cantados por mais pessoas, talvez um coro de
mulheres, já que constantemente, a Sulamita se referia as mulheres de Jerusalém, ou filhas de
Jerusalém. O que também pode ser apenas mais uma metáfora. Mas importa ver que no verso
a seguir, temos um dos momentos de resposta do Esposo, numa atitude de submissão a sua
amada, de aceitação dos seus apelos. Canto 1, verso 18:

Se tu não o sabes, ó mais formosa entre as mulheres,


Sai-te pelas pisadas dos rebanhos
e apascenta os teus cabritos junto às tendas dos pastores.
Às éguas dos carros de Faraó
te comparo, ó querida minha.
56

Há sempre a comparação do homem com a mulher com elementos da natureza, a mulher


é comparada ao jardim “Jardim fechado és tu, minha irmã, noiva minha, manancial recluso,
fonte selada”. (CANTICO 4: 12). Na resposta da esposa, há palavras de duplo sentido, se
levarmos em consideração todo o toque de sensualidade e sexualidade que saltam dos poemas:

Levanta-te, vento norte,


e vem tu, vento sul;
assopra no meu jardim,
para que se derramem os seus aromas.
Ah! Venha o meu amado para o seu jardim
e coma os seus frutos excelentes!

Os verbos “assopram” e “derramem” remetem a ações desenroladas no jardim, sendo o


jardim, metaforicamente, uma alusão ao corpo da amada, de modo que esses verbos, junto a
seus objetos, se transformam em elementos de duplo sentido. Porém, a beleza poética das
palavras, a sutil conotação de sensualidade, perdem força diante da polidez das palavras e das
comparações a elementos tão delicados como o vento, frutos, aromas do jardim, e o termo mirra
que é bastante citado. Mesmo que estes elementos sejam culturalmente e relacionados a tempos
e épocas distantes do leitor, não deixamos de ser tocados pela forma como o escritor trabalha
as palavras e suas significações.
Dessa forma, o leitor é tomado por sensações diversas em que a sinestesia que reveste
as palavras de sentidos e sensações, nos levam a construir as cenas, espaços, tudo através das
palavras e do próprio processo de construção do autor. Essa é uma das demonstrações de que a
Bíblia está tomada de gêneros literários e que a literariedade do texto bíblico requer um olhar
atento e direto ao texto, compreendendo seu próprio modo de ser e se constituir literário,
atentando, sobretudo, para os aspectos que assim o constitui.
De igual valor literário temos o Livro de Jó que é também um dos personagens que faz
parte da memória narrativa, do imaginário de muitos leitores e escritores que se inspiraram
15
neste livro, para moldar seus personagens. Segundo Mendonça (2015), o livro de Jó, é um
panfleto de protesto, de liberdade, e ao mesmo tempo que é um livro de oração. O personagem
de Jó inspirou muitos romances, personagens do cinema. É um clássico absoluto da
humanidade, em que o personagem Jó, impotente diante das situações que lhe sobrevém,

15
Entrevista ao correio Braziliense. Disponível em : https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-
e-arte/2015/08/24/interna_diversao_arte,495815/biblia-e-um-grande-classico-da-literatura-mundial.shtml
57

enfrenta temores e angustiosos questionamentos sobre a existência humana, o sofrimento do


inocente, a resiliência e o recomeço.
Com a composição literária muito próxima do gênero dramático, pois se divide em cenas
como um prólogo e num espaço entre o céu e a terra, a trama se desenrola em diálogos
sapienciais entre Jó e seus amigos e posteriormente entre Deus e Jó. No Capitulo 38, Deus faz
perguntas a Jó, nos levando a pensar filosoficamente na beleza e literariedade do texto, assim
como na inferioridade do humano diante de um criador:

1 Depois disto, o SENHOR, do meio de um redemoinho, respondeu a Jó:


2 Quem é este que escurece os meus desígnios com palavras sem
conhecimento?
3 Cinge, pois, os lombos como homem, pois eu te perguntarei, e tu me farás
saber.
4 Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se
tens entendimento.
5 Quem lhe pôs as medidas, se é que o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o
cordel?
6 Sobre que estão fundadas as suas bases ou quem lhe assentou a pedra
angular,
7 Quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam
todos os filhos de Deus?
8 Ou quem encerrou o mar com portas, quando irrompeu da madre;
9 quando eu lhe pus as nuvens por vestidura e a escuridão por fraldas?
10 Quando eu lhe tracei limites, e lhe pus ferrolhos e portas,
11 e disse: até aqui virás e não mais adiante, e aqui se quebrará o orgulho das
tuas ondas?
12 Acaso, desde que começaram os teus dias, deste ordem à madrugada ou
fizeste a alva saber o seu lugar (...)

É notória a forma particular que o autor se utiliza da linguagem para criar uma
linguagem própria, que transita entre o real e o imaginário, entre o objeto inanimado e sua
personificação, um criador poderoso, ao mesmo tempo paterno, humano, que se utiliza também
da linguagem para dar forma e sentido as suas ações e escolhas.
Citamos apenas esses dois livros, de tantos outros ricos em recursos literários e estilos
muito particular, por serem estes, Cantares e Jó, textos mais conhecidos e estudados, ambos
pertencentes a literatura Sapiencial. Jó é citado por muitos historiadores como um dos livros
mais antigos da Bíblia, pois não se sabe precisar a época que foi escrito, mas ele traz um
diferencial dentro do próprio gênero de sabedoria judaica, que é a presença da prosa que marca
a narrativa do prólogo e epílogos em contraponto com a poesia que preenche os diálogos e
discursos. São essas combinações de gêneros e estilos que tornam esse livro uma obra prima.
58

Poderíamos citar ainda Salmos, os cantos, odes, canções, e ainda passeando pelo
Segundo Testamento temos outras categorias de gêneros e sobretudo o “evangelho” como
gênero peculiar a Bíblia, por sua forma marcante, estilo, sintaxe e estrutura apontados por
alguns críticos como gêneros até então, não conhecidos socialmente, não presentes em outras
obras, antes do Cristianismo.
Porém não é o que nos mostra estudos como o de João Cesário Leonel Ferreira em
“Teoria literária e o evangelho de Mateus, (2011, p. 10-31)”. O autor, através das pesquisas de
Rudolf Bultmann, (1963) propõe, pelo viés da análise formal, que o evangelho é uma criação
original do Cristianismo, um produto da Igreja Helenística”. Entretanto, Leonel evidencia que
não há inferioridade no fato de ser um gênero apenas no contexto do Cristianismo, mas ressalta
a riqueza literária do evangelho que se identifica com a “biografia greco-romana”, porém foram
agregadas características particular dos estilos dos autores, na utilização subjetiva e proposital
de recursos literários que favorecessem a construção do personagem principal, O Cristo,
observando que o evangelho é a sua Biografia.
Nesta mesma linha em defesa da importância das narrativas do evangelho, Mendonça
(2015, p. 32) nos diz: “Nos evangelhos, o escritor encontra todos os elementos da vida: o
mistério, a estranheza, a sugestão, o êxtase, o amor, o apelo à capacidade de espanto que cria
aquela disposição de espírito pela qual sublinha, aqueles podem ser lidos e entendidos”. O Autor
confirma a importância dos Evangelhos citando Wilde (1986, p. 174 in Mendonça 2015, p. 32)
que afirma:

Aos textos bíblicos do evangelho se deve tudo: Catedral de Chartres, o ciclo


das lendas arturianas, a vida de São Francisco de Assis, a arte de Giotto, a
Divina Comédia de Dantes, o Romeu e Julieta e o Conto de Inverno, Os
Miseráveis de Victor Hugo e As Flores do Mal de Baudelaire, os intensíssimos
mármores transparentes de Michelangelo, a nota de piedade dos romances
russos.

Assim é possível perceber que os textos bíblicos têm o seu modo próprio de ser e de
serem lidos e por suas particularidades, têm influenciado ao longo da história, gerações de
escritores e de obras que se espelham em seus gêneros, em sua linguagem, personagens e estilos.
Alguns desses gêneros literários estão completamente ligados e história do cristianismo
primitivo. Dentro do Segundo Testamento encontramos textos analógicos, figurativos,
comparação, exemplos, parábolas, genealogias, cartas, epístolas, e outros gêneros que surgiam
a partir da necessidade de comunicação, de admoestação, doutrinação, ensinamentos, e outros
interesses vários. É possível que essa variedade de gêneros se aplique aos usos e intenções de
59

cunho teológicos, mas muito mais pela diversidade de estilo de seus autores. É possível também
efetivar a literariedade da Bíblia e sua condição de obra clássica, retomando os critérios
apresentados por Calvino (1993.p, 10), em sua terceira definição de Clássicos, quando este
aponta que “livros que exercem uma influência particular na memória dos leitores e das obras,
tornando-se inesquecíveis e sobretudo quando se ocultam nas dobras da memória,
mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. O termo “mimetizando-se” que nos
remete ao conceito de Aristóteles da Literatura como representação da realidade como já
discutimos, retoma e confirma que mimesis, no conceito aristotélico, refere-se a capacidade de
repensar a realidade, de recriá-la, a partir da imaginação e subjetividade com o a qual o escritor
ver o mundo e o interpreta.
Desse modo, conforme Calvino (1993), uma obra cânone dá-se pela perspectiva de
influenciar a própria literatura a se redefinir enquanto tal e, por estar implicitamente ligada a
construção de outras obras, a Bíblia está apta nesse critério, principalmente, por permear o
imaginário do leitor de histórias e de um acervo de personagens, que a torna literatura plena,
exercendo influência em muitos autores e em suas obras como já aponta Wilde (1986).
É preciso levar em consideração como as narrativas bíblicas influenciaram a literatura,
não só apenas por sua estrutura repleta de simbolismo e metáforas, técnica narrativa e retórica
únicas, mas por seu conteúdo, pelo que ela diz sobre Deus, sobre o mundo e a humanidade. É
inegável o papel da Bíblia na literatura, da clássica à contemporânea, pois são muitos os
escritores e as obras que a tem como modelo e objeto de arte e pensamento.
Certamente, inúmeras obras foram influenciadas consciente ou inconscientemente.
Citamos Paraíso Perdido de John Milton que apresenta uma visão da queda humana numa
releitura calvinista, a visão sobre a Eva culpada, e o surgimento de um Satanás cheio de astúcia
e carisma, trazendo a queda, mas em contraste, há em Deus o prenúncio de uma redenção que
salvaria o homem. É notório como em O Som e a Fúria, de Faulkner também se estabelece uma
forte intertextualidade com a Bíblia, o mesmo acontece em A divina Comédia de Dante que, em
seu conteúdo, traz ideias, imagens e espaço inspirados nos princípios judaico-cristãs,
explorando temáticas como pecado, justiça e graça divina para os homens.
De certo, não compreender a Bíblia, suas narrativas como literárias, alegando seu cunho
religioso como um livro dogmático, seria uma forma de preconceito, a mais arbitrária. Quando
lemos atentamente uma obra, a despeito do leitor ser ou não religioso, não deixará de perceber
os recursos literários, a estética, a linguagem nela presentes.
Aqui no Brasil, além de Machado de Assis, grandes autores como Guimaraes Rosa,
Clarice Lispector foram leitores da Bíblia e por ela influenciados, seja nas citações de
60

personagens, nas formas narrativas, no estilo. Citamos, por exemplo, Um sopro de vida
(pulsações), de Clarice Lispector, em que percebemos uma relação muito explicita entre essa
obra e o livro de Gênesis, especificamente, os Capítulos 1 e 2 que retratam a criação do mundo
e dos humanos. Nessa obra, Clarice Lispector cria um cenário, personagens que criam outros
personagens e tudo se constitui através da linguagem, surgindo o narrador-escritor que, ao
escrever sobre Ângela Pralini, tais personagens vão se constituindo dentro do texto: criador e
criatura, numa intrínseca relação com os personagens do Gênesis. Clarice Lispector parece se
apropriar da narrativa bíblica de Gênesis, do seu conhecimento da tradição linguística, estética
da Bíblia, da tradição judaica para dar, em sua narrativa, um poder maior as palavras, que
ganham novo valor, transcendendo o lugar comum. Clarice Lispector parece lançar uma
dimensão criativa incomum, quando manifesta para fora de si, como ela mesmo diz, nas
palavras de um narrador implícito, “(...) é mais que um lamento, um grito de ave de rapina, um
beijo no rosto morto”.
É preciso lembrar que Um sopro de vida foi organizado por Olga Borelli, após a morte
da autora. Os trechos escritos por ela, em aflição, aos poucos e em pedaços, não linear,
característica das narrativas Clariciana, constituindo-se numa liberdade de começar de formas
inusitadas. Clarice Lispector argumenta que não importa se o leitor começar pelo meio, pelo
fim ou começo da narrativa, pela própria desconstrução da noção de tempo, pra ela, diferente
do tempo cronológico, um tempo fictício ou artificial tal qual as narrativas de Gênesis, tanto
pela noção da vida que acontece sempre no presente. São ideias e reflexões sobre a vida, sobre
a morte e sobre Deus, temas tão intrínsecos a natureza humana e, portanto, universais, a partir
de uma visão clariciana da existência. A construção da narrativa de Um sopro de vida, numa
relação muito forte com a narrativa bíblica de Gênesis, retrata não a criação do mundo e da
humanidade, mas a criação do próprio mundo da autora, vivido através de seus personagens
que são em diversos momentos criadores e criaturas, dialogando com o próprio processo de
criação. Todos esses elementos convergem num texto cheio de espiritualidade, expressividade
única das palavras na reinvenção de seus significados.
Machado de Assis, em seus contos, poemas, faz alusão direta a personagens bíblicos,
ou parafraseia citações ou a estrutura das narrativas bíblicas. Muitas histórias foram reescritas
por autores como Saramago e tantos outros, influenciados pelos textos bíblicos, para criação de
histórias ou de personagens. Se para Lispector, as narrativas estavam ligadas a fonte da vida, a
autora considerava a escrita uma ação que distinguia o ato de viver ou de estar viva, do estar
morta, que era seu período em que não narrava. Em Ricoeur, a narrativa também se associa a
vida, as experiências dos seres humanos, organizadas como um discurso organizado num todo
61

temporal, e estas experiências são levadas a uma arena simbólica, onde se dão os processos de
criação e de negociação.
Comecemos a delinear o conceito de narrativa retomando os estudos da narrativa
iniciados com Aristóteles, a partir de seu olhar atento a tragédia, quando nos traz noções da
estrutura da narrativa clássica, ou a forma de se contar história. Em A Poética, ele estuda a
epopeia, a tragédia e a comédia para estabelecer os cânones da narrativa clássica, nos fazendo
compreender a arte de narrar, de contar uma estória de forma envolvente, despertando a emoção
do leitor e seu envolvimento com o texto. Se na concepção de Aristóteles o humano gosta de
imitar, é também inerente a ele a arte de narrar, de contar histórias. Desde sua origem, os
humanos contaram suas histórias/estórias, descrevendo suas atividades, repensando essas
origens e criando mitos que explicassem acontecimentos e fenômenos, conforme suas crenças
e sua fé lhes autorizassem representá-los, através das palavras.
O conceito de narrativa é nessa concepção, a arte de contar bem as histórias,
acontecimentos dados num determinado momento, para um público específico, e segundo o
próprio Aristóteles (2003), a forma de ser apresentada e o modo como os elementos eram
organizados, importava para desenvolver a emoção nos ouvintes, fazendo-os ter uma ideia
perfeita da semelhança com a realidade, constituindo-se verossimilhante a ela. A narrativa se
constitui não somente a mera contação de histórias, seja ela factual ou imaginada, mas é uma
maneira de compreender o mundo, interpretá-lo, recriá-lo através da linguagem, e a própria
linguagem imbricada na organização dos elementos narrativos, permitindo que o narrado seja
interpretado, a partir da perspectiva do leitor em sua interação com o texto. A linguagem é então
o viés autêntico pelo qual se constitui a narrativa, que feita de linguagem, pede que também
pela linguagem ela seja compreendida, interpretada, evocando mundos do texto e do leitor.
Assim, narrar é mimetizar as ações humanas, o mundo, de forma que, no empenho de
representar, convencer, agradar, faz-se mui próximo ao leitor/expectador
Nessa perspectiva, a narrativa é a representação da realidade, a verdade sem ser verdade,
mas sem ser mentira, a possibilidade legítima de representação, de interpretação do que se tem
como mundo real, portanto a verossimilhança da verdade interpretada. Ricoeur (1994), em
Tempo e narrativa, coloca que a narrativa consiste em atividades miméticas que envolvem o
mundo da pré-compreensão e o mundo do texto que, a partir das configurações, da observação
do mundo prático “real” e o mundo do texto, culmina na relação de proximidade entre o mundo
observado e a obra que, a partir da organização dos elementos narrativos, do discurso, da
linguagem em si, serão percebidos pelo leitor que é quem complementa essas atividades de
interpretação.
62

Se para Aristóteles a ação mimética caracteriza-se pela obra de arte que representa, ou
imita a natureza, Ricoeur entende a mimesis numa tripartição: mimesis I, II e III. Elas se
evidenciam na relação entre representar ou imitar os atos humanos, as ações no sentido de ato
pensado que, ao serem compreendidas pelo autor/leitor, este se mune de elementos para sua
produção. Assim, é possível a ficcionalização ou a transfiguração do real, agora transformado
em obra de arte, de acordo com a interpretação do mundo que lhe é referência, o autor/leitor se
apropria desse mundo convencional, de suas ações para reordená-las e a elas dar um novo
sentido, saindo da realidade para o âmbito literário.
Nestas ações entre compreender o mundo e representá-lo, se constitui(?) as primeiras
mimeses. A primeira corresponde ao mundo repleto de prática ainda não narrada, um mundo
repleto de uma pré-narratividade, suscetível ou matéria para construção poética (configuração).
Além da configuração, mas no (mundo do texto), a mimesis seria efetuada no ato de
representação desse mundo, agora narrado e refigurado no ato de ler, o que constitui a terceira
mimesis, o encontro do mundo do texto com o mundo do leitor.
O terceiro momento destas atividades seria essa recepção do leitor, que trará significado
a obra no ato da leitura, tornando essa leitura mais ampla, compreendendo os sentidos múltiplos,
pois dialoga com o contexto do leitor e o contexto do texto, numa relação com o tempo que é
quem promove a coerência e o entendimento frente as divergências de tempo e ações narradas.
A narrativa seria a síntese para a diversidade temporal, mesmo que a narrativa não faça isso de
modo pleno, ela tenta apresentar uma unidade do tempo, fazendo, desde o ato de ler, na
interpretação do leitor, dirimir a discordância entre os tempos, acontecimentos, fazendo
sobressair os aspectos concordantes. É, portanto, dentro da narrativa que o tempo se torna
humano, é ressignificado e transformado de tempo natural para um tempo histórico. Ricoeur
(1994. P. 15), aponta que o tempo se torna tempo humano na medida em que é articulado de
um modo narrativo, ao mesmo tempo que a narrativa atinge seu pleno significado quando se
torna uma condição da existência temporal. É construindo a relação entre o que ele chama de
os três tempos miméticos que ele constitui a mediação entre tempo e narrativa.
Nessa visão, entendemos que as narrativas são a ponte entre três mundos: o mundo real,
o mundo do texto e o mundo do leitor. Por isso, ler essas narrativas, requer atenção a toda
correlação que se revela na linguagem narrativa, entre a atividade de narrar uma história e o
caráter temporal da experiência humana. Somos convidados a estabelece uma coerência que
relaciona os tempos “Humano, histórico”, a partir da experiência humana recriada como
significação nos processos narrativos inerentes à mediação simbólica. É nesse contexto que se
dá a reinvenção da ordem natural dos acontecimentos através de um encadeamento das ações,
63

que repleta de simbolismos, vai além do tempo cronológico. Ricoeur (1994) também vai nos
dizer que, dentro da narrativa serão constituídos os personagens como sujeitos, cuja identidade
se constituirá dentro da narrativa, e estes serão configurados, como representação da cultura,
das práticas e crenças atreladas ao mundo do narrador. São nas ações narrativas que se constitui
a identidade pessoal, coletiva, se o objetivo é evidenciar um personagem ou um povo. A
identidade se constitui nas histórias que narramos seja de nós mesmos, de um personagem ou
de uma nação, entretanto se dará numa intrínseca relação de alteridade, na relação com o outro.
Nesta perspectivas, as narrativas bíblicas são experiências narradas, tentativas de
ascender as evidências de um passado de um povo, revisitado pela interpretação de um narrador
que é responsável pela divulgação dessas experiências entranhadas no imaginário deste,
recriadas de forma tão artisticamente projetadas, que levam o leitor a se envolver com o narrado,
tornando-se capaz de também compreender, interpretar e adaptar-se ao mundo do texto. As
narrativas constituem o gênero predominante em toda Bíblia, tanto no Primeiro como no
Segundo Testamento, elas aparecem sempre mescladas a outros estilos e gêneros. Por mais que
possamos classificar os tipos de narrativas que permeiam o texto bíblico: epopeia, tragédia,
romance, cânticos, odes dentre tantos outros, a perspectiva de termos predominantemente
“narrativas”, nos leva tanto a optar por essa nomenclatura “narrativas bíblicas”, como nos
prender a análise deste gênero, nos textos que nos serão base para nossa pesquisa.
Justamente por essa necessidade de apresentar as ações humanas, as experiências destes
com o divino, com o outro, consigo mesmo, numa recriação destas experiências repletas de
simbolismos, equilibrando-se entre o tempo humano e histórico, reinventando a vida. É o que
nos confirma Mendonça (2010, p.174):

Nem por acaso, a Bíblia é um impressionante documento sobre a condição


humana, uma espécie de grande teatro da humanidade, onde tudo o que é
humano surge exposto, tanto a virtude como a imperfeição, tanto a fragilidade
exígua como o infinito mais extenso, tanto o pessimismo radical como a
formulação crente do absoluto da esperança.

Assim, sigamos para compreender as narrativas bíblicas como um gênero próprio,


expressivo, que tem capacidade de organizar-se em configurações discursivas, documentando
tipos humanos e suas ações mui próximas de nós, das nossas ações, por representar em sua
tessitura nossa própria humanidade. Dentro delas, seus elementos convergem para orientar
leitor, para que esse perceba-a como representação da realidade e seja por ela inundado de
possibilidades de interpretações.
64

2.1 UMA PROSA SOBRE A BÍBLIA: AS NARRATIVAS BÍBLICAS

Dentre os muitos gêneros que constituem a Bíblia, poesias, cantos, odes, cartas,
epístolas, as narrativas bíblicas, desde algum tempo, são alvo de estudos que as constituem
como textos literários16. Neste sentido, são observadas as abordagens literárias, os elementos
constitutivos da literalidade nas narrativas.
Inserimo-nos nesse contexto, visto que tais histórias possuem os elementos constituintes
de uma narrativa. A nossa proposta é compatível com o que propõe Ferreira (2008, p. 20):

Leiamos a Bíblia sincronicamente, procurando entender como suas narrativas


se constroem a partir dos elementos apresentados, conscientes de que suas
histórias trazem consigo um forte teor retórico, buscando convencer os leitores
de seus valores. Somente depois procuremos comentários, dicionários, etc.,
para elucidar questões históricas, filológicas e sociológicas. Agindo assim,
recuperaremos o frescor da leitura bíblica. E olhando para aqueles que
trabalham em comunidades religiosas, poderá haver um enorme ganho ao
ensinar o povo a ler a Bíblia sem que seja necessário o conhecimento de
ferramentas exegéticas e outras tecnicidades. Eles poderão ser ensinados a
identificar a organização das histórias que tanto amam e descobrirão
profundidade e alento para a caminhada de fé em que estão envolvidos.

Essa proposta é válida no contexto desta pesquisa, na perspectiva de uma leitura


interpretativa, levando em consideração o texto, os elementos narrativos, a constituição do texto
em sua conjuntura, firmada nas escolhas intencionais do autor/narrador que utiliza a linguagem
para recriar o mundo conforme sua visão, ao mesmo tempo que possibilita-nos vê-lo por e com
outros olhos. Assim, os textos não são apenas constante recriação do mundo, a partir da visão
de quem escreve e de quem ler, num processo continuo de interação como propõe Bakhtin
(2003).
Nesse pensamento, nos debruçamos sobre as narrativas protagonizadas por mulheres,
como Ester, um dos livros do Primeiro Testamento que traz o nome da personagem e relatos
importantes sobre essa jovem órfã e de como ela se tornou rainha. No entanto, a narrativa é
contada, possivelmente, por um judeu escrivão, quem sabe pelo próprio Mordecai, um dos
personagens, que mescla a sua própria história a de Ester. A história desta moça em muito se

16
No Brasil muitos trabalhos já buscaram evidenciar a Bíblia como narrativa literária como FERREIRA, João
Cesário Leonel Ferreira. Estudos literários aplicados à Bíblia: dificuldades e contribuições para a construção de
uma relação. Theós, Bíblia como Literatura - Lendo as narrativas bíblicas; Fernandes, Leni Soares Vieira –
Imagens femininas no Evangelho de Mateus: a construção de personagens femininas- 2014. entretanto, nenhum
dá conta de analisar este percurso nos dois testamentos da Bíblia da mulher, buscando desenhar as protagonistas
femininas e a construção identitária de cada uma delas.
65

assemelha a um conto de fada17em que uma jovem simples, transforma-se em uma bela rainha
casando-se com um homem da realeza. Na ordem dos acontecimentos narrados, inicialmente,
o decreto que tira a rainha Vasti do posto, lança-se um concurso para a nova rainha para
Assuero, o rei. Ester surge no contexto da narrativa como a moça órfã e simples, uma espécie
de Cinderela, uma plebeia, estrangeira:

(...) Mordecai havia criado Hadassa, que é Ester, filha de seu tio, que era órfã
de pai e mãe. A jovem era bonita e formosa. Depois que o pai e a mãe dela
morreram, Mordecai a adotou como filha. Quando a ordem e o decreto do rei
foram divulgados, muitas moças foram levadas para a cidadela de Susã, sob
os cuidados de Hegai. Levaram também Ester ao palácio real e a entregaram
aos cuidados de Hegai, guarda das mulheres. A moça lhe pareceu formosa e
alcançou favor diante dele (ESTER 2, 5-7).

O desfecho do concurso é encaminhado a partir do trecho acima: Ester se destaca


vencendo as demais mulheres, saindo da posição de simples órfã para a nova rainha da Pérsia.
Ester (2, 17): “O rei amou Ester mais do que todas as mulheres, e ela alcançou diante dele favor
e aprovação mais do que todas as virgens. E o rei pôs a coroa real na cabeça dela e a fez rainha
em lugar de Vasti”.
Se considerarmos que todo narrador expressa seu modo de ver os acontecimentos, traz
suas impressões e, ao recontar uma história, mesmo que verídica, não trata do evento real em
si, mas recontado, revivendo ou recriando a realidade, nisso consiste também a Poiesis, a
criação de um mundo narrativo, como criação e transformação da realidade (LEONEL 2011, p.
21). Assim, o modo como as narrativas são escritas permitem ao narrador não só representar a
realidade, mas também criar uma outra, ou seguir transformando-a.
Para Compagnon (1999, p.127), mimesis é o conhecimento, e não cópia ou réplica
idênticas: designa um conhecimento próprio ao homem, a maneira pela qual ele constrói, habita
o mundo. Outra vez nos sobrevém as noções de mimeses e poiesis dentro da Bíblia, nos levando
a observar, tanto considerando as narrativas como reflexo da realidade, quanto pela diversidade
de gêneros, repletos de criatividade, figuras e simbologias que tais narrativas bíblicas nos
revelam, que alguns escritores/narradores tinham todo um direcionamento a seus leitores,
buscando alcançá-los, a partir de sua cultura, de seu conhecimento e ainda tinham em vista,
possíveis leitores futuros. Isso é dito por Auerbach (1998) retomado por Leonel (2008), ambos

17
Advindo da cultura celta, dos ritos de onde provém a lenda das fadas – com a liturgia pagã entre os séculos VI
e XI de nossa era, os Contos de Fadas tinha essa característica de misturar o fantástico e o imaginário com os
anseios da vida cotidiana. A mocinha pobre que encontra um lindo príncipe e em certos momentos, para ficarem
juntos precisam vencer o antagonista que, muitas vezes está ligado ao sobrenatural.
66

considerando a grandiosidade das narrativas bíblicas, sobretudo como os elementos narrativos,


o narrador essencialmente, vai construindo-os, a partir das articulações desenvolvidas
determinando como a narrativa chega aos leitores, sendo a figura central nesta construção.
Assim, o narrador vai optando todo tempo pelo que informa, pelo que deixa de informar,
deixando lacunas que são preenchidas pelos leitores e que em qualquer tempo são atraídos por
essas narrativas e pelos personagens que também são construídos como tipificações do humano.
Essas escolhas linguísticas, como também esses recursos literários utilizados nas narrativas
bíblicas são estratégias para atrair leitores de qualquer tempo para as narrativas bíblicas, pelo
“seu forte teor teórico e pela forma que procura convencer seus leitores de seus valores” (FRYE,
2004).
Desse modo, não há como não reconhecer que a Bíblia é uma obra literária. Se a
literatura é mimesis, as narrativas bíblicas têm um objetivo mimético. É este o nosso modo de
conceber um texto como literário, a certeza de que ele cumpre esse papel, quando é capaz de
nos fazer concebê-lo, aceitá-lo, a partir do seu modo particular de falar-nos de uma realidade
que emana do imaginário do autor, sendo essa verdade ou ficção, mas nos chega como algo
surpreendente, inusitado. É a verdade que emana daquele modo de contar e que tem relações
com outros textos, mas tem um modo próprio de ser. As situações, as personagens, o assunto,
a estrutura do texto, o gênero textual apresentados dizem-nos de um momento, mas podem nos
dizer muito mais, pois não se esgotam em nossa leitura ou interpretação.
Nesse mesmo pensamento, Ferreira (2008) coloca que o texto literário se caracteriza por
estabelecer uma determinada relação com a realidade e por apresentar certas propriedades de
linguagem. A partir de elementos estéticos, o autor recria não a realidade exata e crua, mas uma
visão particular desta, atribuindo-lhe uma linguagem bela, cheia de recursos, “signos gráficos
e sonoros”, permitindo ao narrador um trabalho artístico que tem como objetivo primordial,
convencer o leitor e torná-lo seu aliado.
Para alcançar esse objetivo, um outro elemento é essencial: o uso da linguagem em sua
propriedade e totalidade de recursos literários que diferenciam o texto de algo comum, cotidiano
e o torna especial, ou surpreendente. Sobre a associação das narrativas bíblicas a um texto
essencialmente literário, Ferreira (2008.p 9) diz:

(...) dizer que são “literatura” implica o reconhecimento que elas guardam
certa relação de proximidade/distância com a realidade, nunca sendo mera
transcrição desta, pelo contrário, representando-a e buscando transformá-la
por intermédio das histórias narradas. Isso se dá, no plano formal, mediante a
utilização de estratégias literárias que definem o caráter estético e retórico
67

junto aos leitores. Igualmente importantes são os elementos linguísticos e de


linguagem utilizados, como a metáfora. Esta, antes de ser uma mera figura de
linguagem, é uma forma de linguagem, aprofundando e gerando indefinições
de entendimento que invocam a colaboração do leitor no processo
interpretativo. Ter como assentadas tais questões é de fundamental
importância para que se leia e interprete literariamente a Bíblia.

Certamente, essa leitura literária da Bíblia vai muito além de uma leitura imaginativa ou
no campo das alegorias de uma mensagem moral. Os gêneros, os personagens, a linguagem nos
levam a explorar o texto, seus recursos e deles extrair muito mais significados e sentires que
nos ajudarão a compreendê-los bem melhor. Auerbach (2011), vendo a literatura como a que
desvela o modo como os seres humanos se veem em um determinado momento e situação
histórica, traz uma abordagem numa comparação com a escrita de Homero. Esta é uma valiosa
contribuição da crítica literária para à análise bíblica. Tratando o trecho sobre a Cicatriz em
Odisseia, numa perspectiva comparativa com a narrativa do sacrifício de Isaque no Primeiro
Testamento, Auerbach (2011) observando o modo como o narrador de Gênesis se coloca no
texto bíblico alusivo a passagem do sacrifício de Abraão, ressalta ainda ser algo comum as
narrativas bíblicas, evidencia então como são sucintas e como o narrador oculta detalhes
propositalmente, como por exemplo, não se alongando nas descrições dos personagens.
No entanto, há uma complexidade nesse modo de narrar. O extremo cuidado dos
escritores bíblicos ao revelar ou ocultar detalhes, situações, o falar e o calar de suas personagens
faz com que o leitor possa buscar diversas significações e interpretações para as atitudes das
personagens que deixam transparecer sua conexão com a realidade (mimesis) e o lado criativo
(poiesis). Auerbach (2011, p. 11), afirma que do enredo, às personagens, à riqueza dos
personagens num segundo plano, a descrição do cenário, a ambientação do contexto, à história
que se quer revelar se comparam a destreza das narrativas de Homero, o que em contraponto,
este o faz com descrições detalhistas e até extensas, buscando explorar os elementos de tensão
como: interpolação e retardamento.
Assim, para deixar o leitor distendido em tensão, as vezes, Homero deixa de lado
revelações e se alonga em assuntos até retomá-lo, retardando o desfecho para que o leitor
consiga se envolver e manter-se atento a toda a narrativa épica. Segundo Auerbach (2011, p. 9)
apesar das descrições sucintas dos personagens nas narrativas bíblicas, “[...] os próprios seres
humanos dos relatos bíblicos são mais ricos em segundos planos do que os homéricos; eles têm
mais profundidade quanto ao tempo, ao destino e à consciência”. Assim, é proposital, para
deixar por conta do leitor suas próprias conjeturas.
68

Outro detalhe importante também ressaltado na análise de Auerbach (2011, p. 11), é a


forma que as narrativas transpõem a intenção de ser apenas ficção, mas adotam a postura de ser
autenticas, com um poder enorme de convencimento, na busca de influenciar o leitor em sua
própria visão de mundo, e isso se torna de fundamental importância para sua aceitação como
verdade absoluta. Em suas palavras o autor afirma:

A pretensão de verdade da Bíblia é não só muito mais urgente que a de


Homero, mas chega a ser tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo
dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser
uma realidade historicamente verdadeira – pretende ser o único mundo
verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo.

Ainda nas páginas seguintes, Auerbach (2011, p. 12) afirma que, enquanto Homero tenta
nos agradar e encantar, “as narrativas bíblicas, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar
– o que querem é nos dominar”. Assim, as primeiras e grandes contribuições para o estudo da
Bíblia como literatura são iniciadas por Auerbach, que muito contribuiu para a abordagem
literária da Bíblia, tornando-se, sua obra, um forte aparato para essa discussão.
Nessa mesma abordagem do texto bíblico, Robert Alter (2007) é outro grande nome que
traz estudos das narrativas como um dos gêneros mais recorrente na Bíblia, em sua obra
intitulada Art of Biblical Narrative, aqui no Brasil, traduzida como A arte das narrativas
bíblicas. Como professor de literatura hebraica e comparada, ele reuniu seus artigos e trouxe
ares novos para o estudo da Bíblia, quando os lançou nos anos 1980, chamando atenção para a
notoriedade com a qual ele destaca a grandeza da narrativa bíblica, sobretudo, as narrativas da
Bíblia hebraicas, especificamente, o que os cristãos chamam de Primeiro Testamento. Assim,
o autor se prende somente as narrativas hebraicas, deixando de fora o Segundo Testamento, pois
admite que para ler e compreender tais narrativas, é necessário atenção dobrada. Assim, o autor
não concebe uma relação tão intrínseca dos dois Testamentos, tanto pela diferença temporal
como em suas temáticas. Alter (2007) afirma que as narrativas bíblicas são artes, tanto pela sua
estrutura, como pelo modo como os autores hebreus escolhiam as palavras, as técnicas próprias,
o modo peculiar de organizar o texto. Isso nos permitiu constitui-lo, a partir da organização
sintática em que se predispõe, em imagens, em analogias, que trazem uma significância para o
texto. Mas ao estudá-las com atenção, como poucos autores se propuseram a fazer, percebe-se
que a literatura judaica tem influenciado a muitos grandes escritores e tem semelhança a textos
antigos eruditos que são considerados canônicos pela literatura mundial. Assim, é necessário
ler a Bíblia com devida atenção para que se veja além do imaginário e perceba, dentro da sua
69

organização, no modo intencional que foram construídas cada narrativa, escolhas cuidadosas e
reveladoras, intenções precisas e meticulosamente pensadas. E isso só será perceptível frente à
uma análise literária mais ampla.
É interessante perceber que a escolha pelo gênero “narrativa” tem alguns aspectos
específicos da cultura judaica. Ressaltamos a prática de contar histórias que faz parte da tradição
deste povo. Há inúmeras passagens no Pentateuco, parte das recomendações divinas de que as
histórias deviam ser passadas de geração em geração, contadas aos filhos, em diversas situações
cotidianas para que não esquecessem dos feitos do Deus de Israel, como vemos em
Deuteronômio: (6 de 1 ao 9), um dos livros do Pentateuco que traz:

1 Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou o


SENHOR, teu Deus, se te ensinassem, para que os cumprisses na terra a que
passas para a possuir;
2 para que temas ao SENHOR, teu Deus, e guardes todos os seus estatutos e
mandamentos que eu te ordeno, tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os
dias da tua vida; e que teus dias sejam prolongados.
3 Ouve, pois, ó Israel, e atenta em os cumprires, para que bem te suceda, e
muito te multipliques na terra que mana leite e mel, como te disse o SENHOR,
Deus de teus pais.
4 Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR.
5 Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua
alma e de toda a tua força.
6 Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração;
7 tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando
pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te.
8 Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os
olhos.
9 E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas.

Do texto emanam ordens claras do Deus que, segundo a tradição judaica, o poderoso
Senhor que teria conversado com Moisés no monte, lhe tinha dado as leis e recomendações para
orientação do povo, durante a peregrinação em busca da terra prometida. Tanto Moisés recebeu
as leis escritas, os 10 mandamentos, quanto as explicações para entendimento da lei e criação
dos demais códigos que trariam os regimentos moral, cívico e religiosos para o povo. Assim,
compreende-se que as tradições orais, a Torá Oral é mais importante do que a Torá Escrita, em
alguns aspectos, para os Rabinos tradicionais que acreditam que Deus deu a Moisés uma
explicação oral da Torá, junto com o texto escrito.
A tradição oral está essencialmente preservada no Talmud e nos Midrashim. A Torá traz
detalhes não incluídos no texto escrito, aludindo a uma tradição oral. Como exemplo de que
teria duas Torá, são os mandamentos como tefillin e tzitzit encontrados na Torá. Mas, não há
70

detalhes sobre eles no texto escrito, pois estão dentro das tradições orais, como também, a
respeito de guardar o Shabat (o sábado), que mesmo sabendo que é um dos Dez Mandamentos,
não se sabe como ele deve ser mantido ou cumprido. Portanto, também está atrelado as tradições
orais. Deus disse, "Santificai o dia de sábado, como ordenei a vossos pais” (JEREMIAS 17:22).
Podemos dizer que a interpretação da lei está na oralidade e, se dependesse apenas das
ordenanças, não era possível compreender e repassar os costumes. As interpretações foram
repassadas de Moisés para seu sucessor e assim por diante. Quando Moisés recebeu de Deus a
lei, também recebeu os detalhes de como os mandamentos deveriam ser observados. Ou seja,
as interpretações e leis “E foi no oitavo dia que Moisés chamou Aarão e a seus filhos, e aos
anciãos de Israel” (LEVÍTICO 9:1). As leis foram transmitidas para todas as pessoas e
revisadas, até que cada pessoa tenha examinando-as cuidadosamente quatro vezes. Afirma-se
entre os Judeus que Moisés revisou novamente a Torá Oral, antes de morrer e esclareceu
quaisquer pontos ambíguos. Assim, está escrito, "Além do Jordão, na terra de Moab, começou
Moisés a explicar esta Lei” (DEUTERONÔMIO, 1:5).
Graças as histórias, as leis orais se perpetuaram, até mesmo quando as academias foram
destruídas nos períodos de perseguições, e até foram incorporadas na Bíblia pelos trabalhos dos
profetas. A tradição foi repassada ao longo dos anos, nas histórias contadas, sempre com a
intenção de manter a tradição, os mandamentos, tendo como principal foco o enaltecimento do
nome de Deus. É notável a importância das narrativas orais, como validação da Torá Escrita,
pois se a origem dos textos é divina, partindo da voz de Deus para Moises, é pela tradição oral,
que, originalmente, foi transmitida a lei e os feitos divinos, repassados de boca em boca, do
mestre para aluno, retirando todas as dúvidas para que não haja má interpretação.
Além dos textos no Pentateuco, dos Livros históricos também encontramos evidências,
tanto desse estilo narrativo, como da tradição de repassar as narrativas históricas, heroicas sobre
os feitos divino, no livro de Salmos. Obviamente, Salmos está entre os livros considerados
poéticos. São escritos antigos, alguns ainda iniciados pelos antigos levitas, alguns são da autoria
de Moisés, no caso do Salmo 78 (Salmo didático de Asafe), é um dos antigos levitas
responsáveis pelos louvores. Era utilizado justamente para esses fins: repassar as tradições,
contar os feitos de Deus e levar as crianças e outras gerações a corrigir seus erros, a partir dos
erros dos antepassados. Assim se tem no Salmos. 78 de 1 a 5:

Escutai, povo meu, a minha lei; prestai ouvidos às palavras da minha


boca. Abrirei os lábios em parábolas e publicarei enigmas dos tempos
antigos. O que ouvimos e aprendemos, o que nos contaram nossos pais,
71

não o encobriremos a seus filhos; contaremos à vindoura geração os louvores


do SENHOR, e o seu poder, e as maravilhas que fez. Penso nos dias de outrora,
trago à lembrança os anos de passados tempos

O texto é dado continuidade apresentando como se deu a saída do povo do Egito até a
entrada na terra de Canaã, ressaltando sempre a bondade divina frente aos erros do povo.
Mesmo assim, o Senhor providencia modos de manter a promessa, mesmo diante da
infidelidade dos antepassados. Todas as formas de se comunicar, de explicar algo entre os
judeus parte de narrativas, de Contação de histórias, que tornam a compreensão dos
acontecimentos narrados mais acessível, inteligível e conseguem prender a atenção, enquanto
traz o ensinamento, desperta o imaginário, por trazer à tona, a própria vivência à memória de
quem escuta. É tanto que Jesus, como judeu e conhecedor dos costumes do seu povo, foi um
exímio contador de histórias, tinha por método o uso das parábolas para explicar as suas ideias
e promover sua pregação e alcançar as pessoas, fazendo analogias com aquilo que lhes era
familiar. Um outro fator interessante ressaltado por Alter é a escolha dos Judeus por narrativa
em prosa, ao invés do poema épico para narrar os feitos de seus antepassados e sua tradição.
Exceto pelos Salmos que tinha as características de um poema hebraico, predominavam nos
demais livros, as narrativas em prosa.
A justificativa para essa escolha do gênero narrativa também está no texto de
Deuteronômio: 6,7 “Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor,
teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu poder”. Assim, o povo de
Israel se destacaria entre as nações politeístas pelo seu amor e zelo ao único Deus e sua escolha
de ser monoteísta traria a benção e a prosperidade, debaixo do cuidado do seu Senhor que zelava
pela integridade, pela santidade alcançadas, a partir da observância dos mandamentos e da
busca pela moralidade, levando o povo a rejeitar todos os costumes pagãos18 dos povos com os
quais se avizinhava.
Segundo as narrativas hebraicas, quando Abraão foi chamado por Deus, das terras
mesopotâmicas para uma caminhada de fé, rumo a terra prometida para ser só sua, ainda naquele
momento, Abrão, seu nome antes de ser pai de uma nação, despreza todos os deuses e culturas

18
Pagão segundo Russel Norman Champlin (Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia – 5. P 10): Um dos usos
da palavra é aquele que declara pagãos todos quantos não seguem as grandes fés monoteístas, o judaísmo, o
islamismo e o cristianismo. Por outro lado, os judeus podem considerar pagãos aos seguidores de todas as outras
religiões; e nisso serem secundados por islamitas e cristãos. Segundo o uso cristão primitivo, um pagão era alguém
envolvido na adoração idólatra. A raiz dessa palavra é latina, pagus, pais, de onde se derivou a ideia de algo cru e
não-civilizado, em contraste com os citadinos sofisticados. Porém, modernamente, esse vocábulo quase sempre
tem reflexos religiosos. Os cristãos antigos usavam o termo latino paganus, (interiorano), aludindo àqueles que se
recusavam a converter-se ao cristianismo, e permaneciam em suas religiões idólatras, grega ou romana.
72

pagãs para servir a um único Deus. Essa ideia de um só Deus, trouxe um diferencial para os
israelitas, numa época em que tanto os gregos, como os egípcios dentre outros povos de
religiões politeístas cultuavam aos seus deuses e heróis através do poema épico. Fazia parte do
ritual desses povos pagãos encenar as histórias e, enquanto cantavam seus poemas épicos,
louvavam aos seus deuses e repetiam as cenas históricas de seus ancestrais, se opondo a essas
práticas, os autores hebreus optaram pelas narrativas em prosa. São narrativas que tem
princípios característicos relevantes de uma literalidade e beleza, que excede as intenções
teológicas e nos ensina muito sobre narrar histórias, sobre a própria arte da narrativa, complexa,
mas cheia de beleza e de diversas estratégias para alcançar o que lhe apraz, envolver o leitor e
levá-lo a perceber a grandeza de Deus e de como se utiliza de homens, mulheres e situações
para sua glória.
Entretanto, é preciso estar atento às configurações linguísticas do texto, pois o modo
como os autores selecionam uma palavra em detrimento de outra, utilizam-se de estratégias
como a repetição, a sonoridade das palavras e o jogo semântico e sintático está entrelaçado no
texto, exigindo devida atenção para essa percepção. Para Alter (2007, p. 11), essas riquezas e
recursos empregados nos textos bíblicos são muito mais perceptíveis quando lidos no idioma
original. Entretanto, é possível perceber como o texto, mesmo em português, pode revelar
outros recursos que comprovam a literalidade dos textos bíblicos.
Chama-nos a atenção, o modo como as personagens são apresentados dentro do texto, e
de como suas poucas descrições se complementam no desenrolar da narrativa, sendo
apresentados detalhes mínimos, muitas vezes concomitantemente a própria ação do
personagem, como justificando a ação com o caráter ou caráter pela ação. Os diálogos também
são minuciosamente pensados, o ritmo da narração e a temática, tudo corresponde a um objetivo
modulado, projetado e quase sempre alcançado pelo narrador que parece ter tudo sob controle.
A marca de literariedade no texto bíblico não anula o fato de que o texto pertence a um
tempo específico, imbuído em um período cultural marcado pelo patriarcalismo, e nessa leitura,
tenho que está atenta a como esse período influencia o modo da escrita e como pode ser
interpretado, de modo que não se propague o apagamento da mulher que porventura esteja
legitimado dentro do texto. Como texto literário, as narrativas bíblicas, nos permitem outra
perspectiva de leitura, levando em consideração o dialogismo e a polifonia de Bakhtin (2010),
no tocante às suas teorias sobre a natureza ideológica do signo linguístico, o dinamismo próprio
de suas significações; a alteridade que constitui a linguagem, o signo como arena da luta de
classes; os fenômenos de enunciação. Segundo o autor, o texto pode ser considerado tanto
objeto de significação quanto objeto de comunicação, isto é, objeto de uma cultura, cujo sentido
73

depende do contexto histórico-social. Dessa forma, ele dá ao texto o lugar de objeto discursivo,
social e histórico. Bakhtin (2010, p. 14) diz que:

Se a fala é o motor das transformações linguísticas ela não concerne os


indivíduos; com efeito, a palavra é a arena onde se confrontam aos valores
sociais contraditórios, os conflitos da língua refletem os conflitos de classe no
interior mesmo do sistema: comunidade semiótica e classe social não se
recobrem. A comunicação verbal, inseparável das outras formas de
comunicação, implicam conflitos, relações de dominação e de resistência,
adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe
dominante para reforçar o seu poder.

Nesse sentido, Bakhtin não desassocia o signo à palavra da ideologia, afirmando que ela
é imbuída de todos os conflitos sociais. Para ele, todo signo é ideológico e a ideologia é um
reflexo das estruturas sociais, assim como a entonação expressiva, a modalidade apreciativa
sem a qual não haveria enunciação, o conteúdo ideológico, o relacionamento com uma situação
social determinada afetam a significação. Para Bakhtin (2010, p. 15) “só a dialética pode
resolver a contradição aparente entre a unicidade e a pluralidade da significação. (...) O signo
é, por natureza, vivo, móvel, plurivalente, entretanto a classe dominante insiste em querer torná-
lo monovalente”. Toda enunciação, fazendo parte de um processo de comunicação ininterrupto,
é um elemento do diálogo, no sentido amplo do termo, englobando as produções escritas. A
enunciação como réplica do diálogo social é a unidade de base da língua, seja discurso interior
(diálogo consigo mesmo) ou exterior. Ela não existe fora de um contexto social, uma vez que
cada locutor tem um horizonte social.
Tomando a ideia de Bakhtin (2010), sobre enunciação como realidade da língua e como
estrutura sócio ideológica e nesse contexto, o signo e a situação social estão indissoluvelmente
ligados, por ser o signo ideológico, o texto bíblico é enquanto texto, repleto de ideologia19 e
traz em si as suas marcas. Bakhtin (20010, p. 16) afirma que “se a língua é determinada pela
ideologia, a consciência, o pensamento, a atividade mental, condicionados pela linguagem, são
modelados pela ideologia”. Ele também faz uma distinção essencial entre a atividade mental do
eu, não modelada ideologicamente, e a atividade mental do nós, forma superior que implica a
consciência de classe:

19
A partir dessa visão Bakhtiniana da linguagem ocupando um lugar central nas relações sociais dos sujeitos e
com as instituições das quais ele faz parte. Em nossa reflexão, a ideologia é um fator determinante das articulações
entre sociedade e religião. A ideologia é, portanto, entendida como um fenômeno que se manifesta por meio de
materiais simbólicos, ou melhor dizendo, por meio de formas de linguagem. Nesse sentido, o texto representa a
produção simbólica resultante dessa interação entre sociedade, cultura e religião.
74

O pensamento não existe fora de sua expressão potencial, fora da orientação


social desta expressão e do próprio pensamento e a língua é a expressão das
relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao
mesmo tempo, de instrumento e de material” (BAKHTIN, 2010, p. 17).

Trazendo essa discussão Bakhtiniana ao contexto desta pesquisa, podemos dizer de que
a Bíblia não é um livro neutro. Ela está condicionada pelas diferentes épocas em que foram
elaborados seus textos e estes estão imbricados às condições sociais, políticas, econômicas e
culturais vividas por aquele povo em diferentes épocas. Vemos que, nos textos protagonizados
por mulheres, os discursos que deles emanam, das escolhas linguísticas dos narradores, refletem
o contexto da época, a orientação social que nelas se manifesta, assim como Bakhtin fez com
citações extraídas de Dostoievski, investigamos quais implicações, interferências do contexto
sociocultural, histórico e religioso puderam acarretar o discurso presentes nesses textos. Há uma
necessidade de ir além do “dito" para identificar aqueles elementos negativos, frutos de uma
cultura patriarcal que subjugaram a mulher. Por essa razão, não se pode ignorar a história no
contexto da organização social de cada grupo, ao analisar o todo de um texto, o seu discurso
dialógico. Para Bakhtin (2010), um discurso é sempre uma maneira social de considerar uma
questão. Ao longo da história, pontos de vista contraditórios/contrários são estabelecidos pela
sociedade, consequentemente, todo discurso é histórico.
É possível fazer uma leitura da Bíblia, desprovida de intenções preconceituosas, mas
pelo simples gosto de lê-la, apreciando-a como literatura, percebendo o texto como histórico,
social e atrelado a um contexto ideológico e cultural, atentando para a perspectiva de que alguns
autores, bem como os revisores e editores bíblicos escreveram numa perspectiva androcêntrica,
o que pode revelar a forma como o homem projeta na escrita e na interpretação, o modo como
ele concebe o seu Deus, aquilo em que ele crer.
Dispensando as leituras preconceituosas direcionadas aos textos bíblicos, por muito
tempo, não se concebe mais ler a Bíblia ou reproduzir suas narrativas sem fazer uma análise
hermenêutica, como é a proposta deste trabalho. Propomos uma leitura, na perspectiva de
compreender os textos bíblicos em fase das novas demandas sociais relacionadas à mulher, em
seus novos contextos sociais.
Sem uma autoria declarada ou realmente confirmada, o livro foi incluído no Pentateuco
como sendo da autoria de Moisés, assim como Êxodo, Números e Deuteronômio. Alguns
historiadores, estudiosos do texto bíblico, afirmam que o autor de Gênesis20 tinha profundo

20
O livro conta da humanidade desde a sua criação até a morte de José. É impossível datar os acontecimentos
relacionados à criação, ao dilúvio e ao repovoamento da terra (Gn 1—11), mas o restante do livro trata da era
75

conhecimento sobre a geografia, a cultura egípcia o que se remete a formação de Moisés como
filho adotivo da filha de Faraó, criado como príncipe egípcio, tendo em vista que os demais
hebreus não teriam acesso ao saber sistematizado, na condição de escravo. Os demais autores
do Primeiro Testamento se referem à uma escrita da lei por Moises, o que se atribui a Torá
como os livros das leis de Moises. Entretanto, historiadores modernos e contemporâneos
questionam a autoria de Moisés, visto que no último livro que compõe o Pentateuco,
Deuteronômio 34, narra a morte de Moisés. Pode ser que esse texto tenha sido incorporado por
outro escritor, em períodos diversos. 21
A narrativa que convidamos a ler e interpretarmos está em Gênesis (2,8 -25), intitulado
“A formação da Mulher”, na Bíblia da Mulher. Sem entrar no âmbito das inúmeras
interpretações e estudos desse texto, é válido dizer dos inúmeros recursos que favorecem
inúmeras discussões quanto a sua estrutura textual e recursos literários. Tomando o texto como
base para essa análise, discutimos como um texto artisticamente escrito, literário, pode sugerir
uma discussão sobre a construção dos personagens, do diálogo, da composição dos elementos.
Acreditamos ainda que delimitar com exatidão o gênero, pode incorrer na perspectiva
de uma leitura técnica, desmotivada, fechada para outras possibilidades de se deleitar e perceber
a beleza da narrativa, tendo em vista a literariedade do texto. Existe no texto, um modo próprio
e particular de narrar os fatos, as vezes, aparentemente contraditórios, ora vazios de detalhes,
ora cheio de sinônimos, palavras pensadas para que alcance as intenções do narrador e intenções
ocultas em belas palavras. Tudo isso pode ser encontrado no modo que lemos.
Contudo, não afirmamos que todas as contradições ou falta de detalhes em alguns
momentos, explicações mais alongadas, sinonimizadas possam ser explicadas em todo tempo,

patriarcal que é, em linhas gerais, a mesma da Idade do Bronze Médio (1950-1550 a.C). Os costumes encontrados
em Gênesis traçam paralelos evidentes com as leis e costumes registrados em outros documentos do segundo
milênio, mais notadamente aqueles encontrados em tábuas descobertas na cidade hurrita de Nuzi, ao nordeste da
Mesopotâmia.
O Pentateuco em sua totalidade foi escrito entre o êxodo e a morte de Moisés (Dt 34). O êxodo tem datas variadas,
sendo 1445 a.C a mais antiga. Tendo por base esta data, a morte de Moisés teria ocorrido em torno de 1400 a.c.
Gênesis foi, então, escrito no final do século XV a.C, alguns séculos após os patriarcas cujas vidas estão nele
descritas. Comentário retirado da Bíblia da mulher: leitura, devocional, estudo. Texto Bíblico: Almeida, Revista e
Atualizada.
Alguns historiadores e teólogos como Champlin acreditam que quanto ao Capítulo 34 de Gênesis, Moisés não o
poderia ter escrito, pois trata de sua morte, seria então acrescido por um outro autor.
21
O relato da origem do universo contido em Gn 1:1-2:4a, segundo alguns historiadores não era de Moisés, mas
foi escrito durante o exílio na Babilônia e procura dar uma classificação lógica e exaustiva dos seres criados
(MALLMANN, 1998, p. 23). No contexto do exílio, os judeus corriam o risco de perder a própria identidade,
cultura e religião e assimilar o ambiente estrangeiro com os seus deuses e crenças.
Gênesis 2, segundo Champlin (2001) as diferenças de estilo e vocabulário que claramente distinguem porções do
livro de Gênesis 1 e 2 são consideráveis e indica que pertence a outro autor. Textos de origens Javistas e Elohístas,
referentes aos períodos diferentes em que Deus foi conhecido pelo nome Elohin, e Yaveh (Jeovah). A fonte £
pertence provavelmente ao século VIII A.C.; e a fonte J, ao século IX A.C. Por fim, um autor teria copilado tudo
na organização do livro do Pentateuco.
76

apenas com uma leitura habilidosa. O texto começa com a afirmação do término da obra do
criador, estando no sétimo dia já para o descanso. No entanto, retoma-se com mais detalhe como
se deu a criação dos humanos, começando pela formação do homem. Somente no versículo 18
é que compreendemos ser a primeira aparição da mulher no mundo e no universo bíblico.
Vejamos o texto tal qual está na Bíblia em estudo:

18. Disse mais o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-
ei uma auxiliadora que lhe seja idônea.
19. Havendo, pois, o SENHOR Deus formado da terra todos os animais do
campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para ver como este lhes
chamaria; e o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o
nome deles.
20. Deu nome ao homem a todos os animais domésticos, às aves dos céus e a
todos os animais selváticos; para o homem, todavia, não se achava uma
auxiliadora que lhe fosse idônea.
21. Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este
adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne.
22. E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa
mulher e lha trouxe.
23. E disse o homem:
Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne;
chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada.
24. Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os
dois uma só carne.
25. Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e não se
envergonhavam.

Numa primeira leitura, chama-nos a atenção para o contexto de Gênesis, toda essa ideia
da criação das coisas, um cenário esplêndido, um ambiente que se constitui a partir da força das
palavras. “E disse Deus haja luz, haja separação entre a terá e as águas e desse modo vemos o
mundo se constituir no “haja de Deus”, pela palavra e com a palavra. A linguagem é de
sobremaneira o material de absoluto poder sobre o qual tudo ganha a forma, cor e existência.
Dentro da narrativa, o tempo, o espaço passam a se constituir como personagens, e se
entrelaçam como os demais que ainda virão a ser. Adão já é em partes, mas ainda parece que
aguarda comandos para ser. Deus analisa sua obra e todo o contexto que a envolve. Nos damos
conta dessa organização da estrutura narrativa, a partir das escolhas linguísticas, das palavras
organizadas para nos conduzir a essas interpretações.
Desse modo, a narrativa se inicia com uma declaração de Deus sobre a condição do
homem, solitário e triste, diante das imagens repetidas dos diversos pares formados por Deus,
dos animais que Adão acabara de nomear um a um. O texto trata de um Deus criador onipotente,
mas preocupado com o bem-estar de sua criatura. Começa-se a desenhar os perfis das
personagens que compõem essa narrativa, mesmo que sutilmente: Deus, Adão e mais à frente
77

Eva. Anteriormente, o perfil de Adão fora desenhado como um ser já dotado da capacidade de
usar a linguagem e coerentemente nomear todos os seres que lhes foram apresentados, com a
garantia de que o nome que fosse dado, este seria validado por Deus. No entanto, diante da
primeira ordem de Deus, de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal
que ficava no meio do jardim, este mesmo homem falante não diz nada, não argumenta, nem
revida a ordem. Sem registro de qualquer diálogo entre Deus e o homem, esse silêncio é
quebrado pelo narrador que traz a fala de Deus, abrindo o verso 18. Alter (2007), coloca que o
narrador já quis fazer um contraponto entre o caráter obediente de Adão e o instinto de saber, a
curiosidade que sua futura mulher traria. “Uma insinuação antecipatória da ligação entre a
futura parceira de Adão e o contato com o conhecimento proibido”. Adão é falante, mas não
argumentativo. E mesmo, segundo o narrador, tendo a autonomia de Deus para nomear os
bichos e a natureza e ter a aceitabilidade de Deus em sua criatividade, Adão não ousou sequer
perguntar sobre a árvore proibida.
No contexto histórico, é notório que todas as civilizações tinham curiosidades de saber
como se deu a origem do mundo, da humanidade e criavam seus mitos, peças de folclores
antigas. Os autores hebreus conheciam muitas das mitologias, das ideias e crenças de outros
povos. A ideia de um mundo perdido, de um paraíso, ou um lugar de delicias, foi associada ao
Jardim do Éden em algumas traduções do texto hebraico, traduzido primeiramente para o grego
da Septuaginta, depois para o latim da Vulgata. Em Gn 2.8. o texto está simplesmente que Deus
plantou um jardim no Éden, ou seja, o termo paraíso, “um paraíso no Éden, indica que o uso
dessa palavra mostra uma transformação do termo jardim para paraíso que vai chegar perto das
narrativas míticas de outras civilizações.
Ainda quando traduzido para o latim, paradisum voluptatis, o Éden passa a ser traduzido
por um “lugar de delícias”, um paraíso de delícias”. Mesmo com essas nuances da Palavra
Jardim e as diferentes possibilidades em outra língua, permanece até hoje essa ideia de um lugar
paradisíaco, um paraíso terrestre, onde tudo era perfeito e encaixado, diferente do mundo em
caos que se compreende o ambiente em extremas dificuldades e escassez tanto do povo
semítico, como o mundo atual marcado por suas mazelas sociais.
Os sentidos mudados em cada tradução, revelam que tais mudanças se atrelam à
interpretação, às transformações semânticas atreladas as mudanças de pensamento,
influenciadas por suas culturas. Entretanto, o narrador traz com destreza o pensamento hebreu
de como se concebeu o início do mundo, o surgimento do homem e da mulher, e trazer também
personagens tão plurais e fortes, capazes de marcar para sempre todas as tradições e mexer com
o imaginário de muitas outras histórias, e influenciar tantos outros personagens.
78

Desse modo, a partir de como o leitor se aproxima do texto, pode aproveitar-se das
aberturas ou das sutis manipulações da linguagem que essa narrativa traz em si. É preciso
compreender que nas escolhas das palavras, o narrador trabalha para que se tornem claros como
se deu esse processo criatório da humanidade, zelando para que prevaleçam as intenções do
narrador, como também sua preocupação em apresentar, no interior da história, os conceitos
interligados ao pensamento do oriente, conceitos religiosos, e os conflitos que tais relatos sobre
essa criação da humanidade pode vir a acarretar, pelo teor de seu conteúdo moralista e pelas
posições ideológicas contrastantes, por vezes ambíguas, que o texto propicia. Revela-se mais
profundo do que um texto folclórico, com formas literárias próprias, tanto em aspectos
estruturais como em valores. Alter (2007, p. 53), faz uma comparação do Enuma elish, poema
épico mesopotâmico sobre a criação do mundo e o texto de Gênesis e sobre suas associações e
paradoxos, mostra que no poema, depois de derrotar a mãe primordial Tiamat, o deus Marduk
usa a expressão:

Juntarei sangue e criarei ossos.


Farei um selvagem, “homem” será seu nome.
Verdadeiramente, criarei um selvagem-homem,
Ele será encarregado do culto dos deuses
para que estes possam descansar*22

Demasiadamente próximo a declaração de Adão, ao ver a mulher quando criada e


entregue por Deus a ele, verso 23, “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne de minha carne”.
No entanto, esse não é o texto do Criador. Tanto Deus como Marduk tem o poder de transformar
elementos em outras formas, mas esse (sangue, osso e carne) não foi o material usado pelo Deus
dos hebreus para criar o homem, e no poema mesopotâmico não se refere a criação da mulher.
Nessas circunstancias, já observamos nas escolhas do narrador hebreu, uma nova esfera
narrativa, uma implicação moral diferenciada, e isso vai ficando mais notável, quando percebe-
se que o Senhor Criador em Gênesis, não tem os traços egoístas de criar o homem para ser um
objeto da ação ou um ser para suprir as necessidades materiais dos deuses, como é o caso de
Marduk. Com a intenção de revelar sua crença monoteísta em um Deus superior que é criador,
mas próximo a sua criatura, o narrador vai construindo essa parceria entre o divino e o humano,
um Deus que dá ao homem domínio, poder e saber. Antes de ter qualquer conhecimento que
pudesse ter vindo do fruto do conhecimento, Adão já era capaz de catalogar as espécies e

22
Cf.J.B. Pritchard (org.), Ancient near eastern texts relating to the Old Testament (Princeton, 1969, p. 68 in Alter,
2007, p. 53).
79

nomear a todos. Mesmo assim, Deus vê a necessidade do homem em não o deixar sozinho e lhe
prepara um presente: sua companheira, no caso a mulher que surgiria para preencher o vazio
existencial do homem.
Observamos que as narrativas bíblicas quebram as formas, pois não tem a “rigidez” dos
demais gêneros (mito, folclore, prosa de ficção, narrativa sagrada) com os quais ela já foi
comparada e, pelo seu teor teológico diferenciado, pela vigente necessidade de expor e impor
suas crenças, cria seu próprio modo de dizer e de fixar-se na mente humana. Para Ater (2007),
não é fácil pensar numa síntese para a heterogeneidade discursiva do texto bíblico. O texto é
persuasivo e numa abordagem crítica, é possível perceber quase sempre um jogo entre a vontade
de um Deus onipotente e a liberdade das ações morais dos homens na história. É uma narrativa
que não estabelece um lugar predeterminado para o homem na ordem cósmica do mundo,
rompendo o quadro estrito de um gênero épico. Mas ao mesmo tempo, esse Senhor compreende
os homens e se utiliza dele para os grandes feitos. São, portanto, narrativas artisticamente
criadas, a partir de uma realidade pensada e estruturada de forma tal como verdade, que penetra
nos seus leitores e estes já não se importam em diferenciar se são verídicas ou não. Os diálogos
são envolventes, a história contigua e os personagens ganham vida e são intensos em sua
existência na literatura bíblica.
Em continuidade a análise da narrativa, observamos que até o versículo 21, o leitor
vivencia uma tensão, na espera da realização do feito prometido por Deus para suprir a carência
do homem. É preciso que o homem tenha contato com toda a criação e a observe, percebendo
os reinos animais e vegetais, reconhecendo que, apesar de todas as coisas, ele estava incompleto
e o jardim inteiro e toda a criação não preencheria seu vazio. Deus então viu em sua soberania,
o pensar de sua criatura, o sentir-se incompleto, sem que nada o confortasse. Assim, entendemos
que Adão sentiu-se cansado em sua enorme tarefa de nomear e organizar tantas coisas e sentiu
necessidade de um ser tal qual ele, capaz de falar, raciocinar, compreender a criação e também
zelar por ela. Talvez, ao ver cada par, cada bicho integrado ao seu mundo, seus habitats, o
homem sentiu a enorme solidão e um vazio existencial. Mal tinha vindo ele a existência e lhe
faltava não apenas completude, mas semelhança, a existência que se concretiza no outro. Todas
essas inquietações do leitor se aquietam ou se conformam no final do versículo 20: (...) para o
homem, todavia, não se achava uma auxiliadora 23que lhe fosse idônea. O homem precisava de
companheira, pela solidão sentida de alguém com racionalidade e semelhança para partilhar o

23
Na Bíblia escolhida para análise (ARA – Almeida Revista e Atualizada) – o termo é auxiliadora para a expressão
em hebraico: ezer, que se refere a alguém que dá ajuda ao outro no dia de batalha, ajudadora. Assim outras versões
bíblicas como a Almeida Corrigida Fiel: ajudadora idônea.
80

ambiente, uma criatura divina, de humanidade partilhada, em igualdade de raciocínio,


inteligência e Sabedoria.
Claro que essa interpretação fica a cargo do leitor e na perspectiva de uma leitura
feminina, é possível interpretar que, se Deus tinha por princípio criar seres para que eles lhe
fossem companhia na semelhança, à sua imagem, macho e fêmea os criou, e se também o
propósito era que o homem o louvasse, que enchesse a terra, não estava previsto a presença da
mulher na criação. Ela foi feita em detrimento da solidão do homem ou da necessidade da
reprodução, da comunhão e completude entre os humanos e desses com o divino?
Nesse propósito, o narrador apresenta a sequência de ações do Senhor criador, para
trazer à existência a mulher. Para Alter (2007, p.55),“o homem anestesiado, torna-se inerte, e
num sono profundo, não se dá conta de que Deus pega o material coletado do homem, uma de
suas “costelas”.
Porém, quando a mulher está pronta, Deus acorda Adão, que desperta com todo o vigor
e volta a ser o senhor da linguagem, dando nome àquela que acabou de nascer. Nomear Eva, é
também como nomear os bichos e as coisas? Sobre as criaturas o homem teria o domínio, teria
também domínio sobre a mulher? Nos versículos seguintes, o narrador terá a missão fazer-se
entendido quanto a legitimação do casamento, a constituição da família, valores fundamentais
para os hebreus e mais à frente, à cultura judaica. Antes no versículo 23, Adão em meio a sua
alegria e deslumbramento, emite palavras ou versos poéticos: “Esta afinal, é osso dos meus
ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada”. Na expressão
poética de Adão, é possível compreender que a submissão, a desigualdade está descartada, na
semelhança do homem e da mulher em ser ambos iguais e a completude do outro: osso e carne
de um mesmo espaço.
O narrador enfatiza essa completude, a partir do verso 24, consciente ou inconsciente,
a origem, a explicação do casamento, texto que ainda hoje faz parte das liturgias de casamento
em muitas comunidades judaicas-cristãs: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua
mulher, tornando-se os dois uma só carne”. Essa afirmação de que serão ambos uma só carne,
que se dá somente com o casamento, é ainda hoje difundida entre os judeus que: um homem
sem esposa é incompleto. Se do homem originou-se da mulher, há dentro dele essa necessidade
de completude. A ideia de igualdade ainda é confirmada nas palavras finais do narrador: “Ora,
um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam.”. Alter (2007, p. 57)
nos diz que:
81

O primeiro homem e a primeira mulher são agora dois seres vulneráveis, em


sua dualidade, à tentação da serpente, que conseguirá seduzir primeiro um e,
por meio deste, o outro: nus (‘arumim), livres da vergonha, eles estão prestes
a ser expostos ao animal mais astucioso (‘arum), que lhes dará motivo para
sentirem vergonha.

Como vemos, o narrador parece estar convicto do que sabe, do que ouviu e do que pode
criar, a partir de sua vivência e contato com a cultura constante e por isso é capaz de nos colocar
diante de um texto curioso, envolvente tal qual ficamos diante de uma narrativa de ficção. Adão
e Eva nos são personagens emblemáticos, representantes da raça humana a ponto de utilizarmos
esses modelos para definir, a partir daí qual seja o papel do homem, da mulher, os propósitos
pelos quais foram criados e assegurar, mediante a vontade divina, a continuidade dessa
organização no decorrer da história da humanidade. A forma como o escritor se posiciona,
narrando e criando diálogos, reproduzindo com muita certeza o pensamento divino, torna sutil
a sua liberdade de criar e de se utilizar de recursos orais, histórias de um Deus que tem desígnios
para seu povo Israel e os personagens, heróis, fatos convergem para a realização desses
desígnios e que isso interfere em toda a humanidade.
Cabe-nos dizer que as narrativas bíblicas se constituem num gênero próprio, por vezes,
aproximados do épico ou do mito e ainda das ficções, mas são específicas quanto a linguagem,
a estrutura, a forma como se constituem texto, pois são muito particulares. Para Champlin
(2001, p.662), essas narrativas apresentam desígnios e propósitos mais do que em quaisquer
outras narrativas.
Outro aspecto também presente nas narrativas bíblicas é a “artificialidade” do tempo, a
noção não cronológica de quando tais relatos se sucedem. O modo de referendar o tempo é,
quase sempre, com outra narrativa paralela com a ideia imprecisa aos leitores atuais, entretanto,
parece fazer sentido para a comunidade à qual foi destinada no momento da escrita. Basta
lembramos de Gênesis 1, em que o narrador começa falando de um “princípio” que não nos
leva a precisão desse início, mas a ideia de um determinado começo. No princípio antes do
existir da terra, da natureza, da humanidade. Essas narrativas abstraem espaços utilizados pelos
escritores hebreus para revelar em seus processos narrativos, a vontade divina nos
acontecimentos históricos, mas como afirma Alter (2007), a vontade divina é constantemente
impactada pelas fraquezas humanas. São sempre paralelas a promessa divina e a limitação do
homem. Entretanto, os hebreus acreditam que o humano é parte fundamental para que o enredo
divino se desenrole e por misericórdia, Deus sempre estará providenciando meios para que sua
promessa seja alcançada.
82

Percebemos também a linha ideológica de explicação sobre a origem, o destino da


humanidade, numa história intercalada por fatos e circunstancias que iniciam com um Gênesis
e termina no Apocalipse. É como diz Frye (2004) em O Código dos códigos, analisando a
retórica da religião, tanto no aspecto da linguagem, a estrutura da narrativa construída através
dos diversos textos bíblicos do Primeiro e do Segundo Testamento, como a tipologia da Bíblia.
Segundo Frye (2004), as narrativas bíblicas buscam, sobretudo, antever o futuro dando um
sentido para a história da humanidade, traça o destino do ser humano dentro dos textos bíblicos,
construindo toda a sua trajetória, que tem seu surgimento no Paraíso Perdido, seguido da sua
queda até a sua redenção no Apocalipse.
É notável a capacidade dos escritores hebreus em aproximar fatos considerados por eles
históricos, datas importantes de suas tradições à feitos de seus personagens, que são homens e
mulheres memoráveis, e mais que isso, agentes humanos envolvidos em experiências divinas.
E nesse contexto, suas características pessoais, suas histórias de vida são confrontadas com o
querer de Deus e, ao mesmo tempo, convergem para a realização desse querer divino. (...) Tudo
contribui para o bem dos que temem a Deus e o bem do seu povo. (...) daqueles que são
chamados para a salvação.” (RM 8, 28).
Os escritores hebraicos manejam com liberdade e riqueza seu aparato de mitos, seu
material cultural que nos convence de sua verdade e essa se reveste de sentido, associada aos
aspectos simbólicos e representativos da linguagem. A noções de que tudo se constitui
metáforas como afirma Nietzsche (2008), inclusive a própria noção de verdade, nos faz pensar
sobre a linguagem como esse emaranhado de palavras e sentidos criados pela humanidade,
numa tentativa de compreender o mundo e compreender-se, compreender as verdade das coisas,
a partir de suas vivências. Neste sentido, as narrativas bíblicas seriam essa oscilação entre o real
e o imaginário, a verossimilhança, capaz de convencer a muitos como verdade. Partilhamos da
concepção que Champlin (2001) nos apresenta, sobre verdade:

A verdade pode ser como uma mina de ouro que precisa ser trabalhada. O
homem que se esforça em descobrir a verdade é aquele que recebe a
recompensa dos tesouros de sabedoria e conhecimento. A verdade é uma
aventura. Não devemos ter medo de nos aventurar, porque esta aventura é
gloriosa. Não devemos permitir que os dogmas impeçam a nossa busca.

Buscar conhecer e interpretar o texto, requer que a própria noção de verdade seja vista
como uma aventura, em que importa muito mais a busca, o aventurar-se a ver de formas
diferentes, para assim descobrir o que não está posto, nem tão exposto e requer nosso empenho
83

em achar. Há de se admitir que o texto é permeado por um contexto, pela forma de pensar de
uma época, pelos valores em que acreditam seus escritores, que usam da liberdade criacional e
do seu poder que a escrita lhe fornece em ter acesso a ela, para contribuir com a propagação do
seu pensamento, ou de uma sociedade, validando-o nas escolhas linguísticas e semânticas
dentro do texto. Dá-nos então a impressão de que, tanto podem ser relatos retirados dos escritos,
das tradições orais, como se baseiam noutros textos das tradições de outros povos, para criarem
a sua própria tradição. Se são personagens fictícios, baseados em nomes comum à cultura
judaica, a história de seus fundadores que ganham histórias fantásticas e feitos notáveis, ou se
são personagens humanos, reais recontados nas narrativas fantásticas, sinceramente não altera
a literariedade que emana do texto, da beleza desses personagens que povoam nossa mente e
habitam nosso cotidiano. Eles se perpetuam no tempo, tornando-se modelos humanos de
virtudes, defeitos, pois são cheios de humanidade.
Personagens como Abrão, Isaac, Esaú, Jacó, José, Moises, Josué, Sansão, Davi, Samuel
são figuras conhecidas e inspiram outros personagens da literatura mundial. No entanto, as
mulheres também precisam ser evidenciadas, principalmente, além dos estereótipos pelo os
quais elas nos foram apresentadas. Podemos ver que Sara, Raquel, Débora, Ester, Ruth, tantas
outras personagens tem vida própria, são nomes conhecidos dentro da tradição judaica, dentro
da literatura bíblica e devem povoar também as nossas leituras sobre elas. Elas são mulheres-
personagens, que por longo tempo foram atreladas a arquétipos24 e também se tornaram para
muitos, arquétipos, no âmbito das virtudes e dos pecados. Virtuosas são as virgens, depois
mulheres mães de homens importantes, submissas. As pecadoras são mulheres sedutoras,
desobedientes e vaidosas. Para os israelitas a mãe Sara, por exemplo, é citada para que as demais
mulheres seguissem seu exemplo de mulher idônea, ressaltando sua obediência e submissão em
tudo a seu marido, chamando-o de Senhor. Já Eva, Jezabel, Dalila são vistas como símbolos da
sensualidade, do pecado, da sedução para o mal. Ambas desencaminharam os homens do seu
caminho reto, causando-lhe a desgraça. É sempre nesses dois polos, entre a virtude e o pecado,
santas, pecadoras que se estabelecem o perfil das personagens bíblicas. E assim, deixam de lado
o todo que nos faz humano: com virtudes e defeitos, erros e acertos.

24
O conceito do arquétipo aqui é o utilizado por Jung em sua análise sobre a psique humana. São míticos
personagens universais que residem no inconsciente coletivo das pessoas. Por sua vez, o inconsciente coletivo é
formado por um conjunto de aspectos individuais e coletivos que ficam armazenados em uma parte secreta da
nossa mente, responsável pela nossa percepção e interpretação dos acontecimentos e sua influência em nossas
vivências. Jung, Carl Gustav, 1875-1961. Os arquétipos e o inconsciente coletivo; [tradução Maria Luíza Appy,
Dora Mariana R. Ferreira da Silva]. - Perrópolis, RJ: Vozes, 2000.
84

2.2 A BÍBLIA DA MULHER E A LITERATURA COR DE ROSA

“Não há qualquer marca na parede para medir a


altura exata das mulheres”.
Virginia Woolf

A nossa escolha da Bíblia da Mulher: leitura, devocional e estudo como corpus desta
pesquisa, está ligada ao fato de delimitar, entre as mais diversas traduções ou versões bíblicas
existentes, uma para nos determos nas leituras. Tendo que escolher uma tradução, fomos
movidas a escolher a Bíblia da mulher, exemplar da Bíblia que nos chamou a atenção por ser
voltada ao gênero feminino.
Em um primeiro momento, a Bíblia da mulher nos interessou e lemos na perspectiva de
observar como essa obra, que se propõe como espaço de leitura e encontro da mulher com o
texto bíblico, faz essa distinção entre leitores femininos e masculinos da Bíblia, que temas e
assuntos são privilegiados e de que modo implica em um novo método de leitura e interpretação
dos textos, na tentativa de adequá-los aos olhos da mulher leitora. Além disso, pensamos nessa
edição da bíblia como uma necessidade para o público feminino, no sentido de que se trata de
uma edição voltada paras as mulheres, que muitas vezes estiveram atreladas apenas ao discurso
masculino. Nos moveu ainda o desejo de conhecer mais a fundo, as personagens femininas
selecionadas para a essa análise.
Entretanto, percebemos que a Bíblia direcionada às mulheres, que propõe um espaço
para acomodação das leitoras, trata-se do texto bíblico tradicional, num formato novo do livro
para as mulheres, mas a versão é ainda a Almeida Renovada e Atualizada, traduzida por João
Ferreira de Almeida. O que se diferencia nessa edição bíblica são os elementos pré-textuais
como o prefácio, a apresentação, um acréscimo de páginas como artigos sobre arqueologia,
dicas para as mulheres se portarem equilibrando a fé e o cotidiano, mas o conteúdo do texto não
é alterado. Ainda nas notas de rodapé ou em espaços em destaques, as editoras dão destaques
às narrativas em que as personagens femininas aparecem, tentando dar relevo aos assuntos
femininos, trazendo para o contexto das leitoras em notas de rodapé.
Na verdade, ter uma Bíblia própria para mulheres evoca-nos duas situações diferentes:
primeiro, a Bíblia da Mulher traz uma (re) leitura dos textos, numa perspectiva feminina ou até
mesmo feminista, numa possibilidade de reacender a presença feminina nos textos bíblicos ou
se limita a evidenciar papeis sociais, definir espaços ou acentuá-los nos mesmos aspectos
semânticos que a sociedade e seu sistema os define; segundo, a Bíblia da mulher se coloca como
85

uma versão editada por mulheres e para mulher, como uma tentativa de chamamento às
mulheres para lerem a Bíblia. Porém, apesar de ter uma estrutura chamativa às mulheres, com
cores diversas, inclusive nos vários tons de rosa, a Bíblia traz a tradução com de João Ferreira
de Almeida, Edição Revista e Atualizada (ARA), numa edição para as mulheres, conforme o
prefácio de Anne Graham Lotz, complementado pela editora:

(...)Minha oração sincera é no sentido de que, ao ouvir a voz de Deus através


da Bíblia, este guia de estudos seja um instrumento para orientá-la.
(...)preparamos essa edição, totalmente revisada e atualizada. A revisão dos
recursos e das notas de estudo resultou na permanência dos mesmos materiais
de estudo e na condensação de alguns poucos artigos e notas, a fim de oferecer
um conjunto mais eficiente e de fácil utilização. Acrescentamos novos
recursos chamado ponto de vista, escritos por autoras de renome, as quais
abordam a importância de ler e estudar a Bíblia. Deixe que a Bíblia da mulher
seja seu guia.

A intenção é oferecer a mulher um guia de leitura, acrescentando as páginas da Bíblia,


notas e comentários, temas e discussões sobre o feminino, de modo que trata-se de uma Bíblia
Temática que se caracteriza pela combinação do texto bíblico com paratextos, comentários,
notas, com o intuito de favorecer, ajudar a leitora na interpretação e compreensão de
determinados textos. Na apresentação da Bíblia da mulher (RA), Dorothy Kelley Patterson,
justifica que ela, junto a 80 mulheres, foram responsáveis pela revisão e edição dessa Bíblia, na
intenção de produzir uma ferramenta de estudo, para suprir a necessidade da mulher frente as
suas dificuldades seja junto a família, seja nas injustiças sociais ou nas dificuldades da vida
diária. Assim, percebemos que são acrescentados textos e comentários das editoras como
Dorothy Kelley Patterson, Eleonore Stump.
Diferente do que propôs Elisabeth Candy Station, quando editou a primeira Bíblia da
mulher numa perspectiva feminista, afirmando fazer isso em defesa do desenvolvimento
pessoal da mulher e promovendo o que chamou de uma teologia libertadora radical. Station,
junto a 26 mulheres, interpretando e promovendo uma (re)leitura da Bíblia, combatendo a
valorização masculina, a supremacia dos homens em relação as mulheres, acreditando que o
texto bíblico, assim como as leis daquele período em que a Bíblia feminista foi lançada, dentre
os anos de 1895 a 1898, perpetuavam a condição de inferioridade das mulheres e sua
desvalorização perante às leis que as desabrigavam e a sociedade que as subjugavam. Station
quis fazer justiça às mulheres que via ser maltratadas desde sua infância, e pelas quais já se
indignava quando via seu pai, Juiz de direito, julgar as causas das mulheres e não poder fazer
86

nada por elas, alegando que as leis não as aparavam, sejam elas viúvas ou desquitadas de seus
maridos, sendo somente eles sujeitos de direitos.
A Bíblia da mulher, não assume uma postura feminista, mesmo que alguns de seus
artigos, despertem nas leitoras seu senso crítico, a partir de uma análise cuidadosa às
características e atitudes de cada mulher bíblica. Mas a postura de seus textos oscila por vezes,
entre a perspectiva de interpretações tradicionais cristãs e uma tímida ou nova abordagem
crítica sobre protagonismo feminino. Assim, na perspectiva de considerar a influência da leitura
da Bíblia para a formação da identidade das leitoras, os comentários das autoras, editoras,
comentaristas deste livro serão importantes para nossa análise. Entretanto, salientamos, que
nossa pesquisa não trará essa perspectiva de comparação desta versão com outras,
compreendendo as possíveis contradições sobre o que ela propõe e o que realmente ela oferece
para o estudo do feminino no texto bíblico. Mesmo assim, vale dizer que, em alguns momentos,
os comentários assumem a mesma postura androcêntrica que apagam ou diminuem as mulheres
ou as julgam por viés machistas, repetindo preconceitos que não condizem com a real atitude e
intenção das personagens, quando visto por um olhar feminino. A leitura da mulher deve ser
um ato de diferenciação, de forma que ela perceba os traços de uma interpretação atrelada a
tradição patriarcal, em que o sujeito masculino é o centro, cuja ideologia rejeita a mulher,
deixando-a às margens, como vozes silenciadas e excluídas.
É uma Bíblia de cor rosa, ressaltando o pensamento preconceituoso de que, por sua
feminilidade, a mulher delicada e doce será atraída pelos modelos de comportamentos, em que
a cor rosa reflete a delicadeza e a sensibilidade feminina, um elemento bastante presente na
cultura do ocidente desde o início do Séc. XX.
Contudo, a perspectiva de acolhimento e incentivo às mulheres na luta por sua
igualdade, não devia ser prioridade nos comentários dos textos em notas de rodapé, uma vez
que não se trata de um projeto ousado de tentar mudar a constituição da Bíblia enquanto obra.
E não se podia esperar que nas narrativas Bíblicas atreladas a contextos tão diversos dos atuais,
a mulher fosse vista por viés diferentes dos que podemos encontrar na constituição das
personagens.
Desse modo, numa proposta de releitura feita por mulheres estudiosas e pensadoras
contemporâneas, a Bíblia podia nos comentários dos textos, nas interpretações sobre as ações
das personagens, dirimir as possíveis situações narrativas que geram ambiguidade e a
necessidade de foco no contexto cultural, para não repetir práticas, costumes e concepções de
discriminações com a mulher. As mulheres devem ler as personagens da Bíblia buscando
colocar-se no lugar de fala e dar a elas espaço para exercerem sua identidade, dando-lhes voz
87

para serem constituídas através da linguagem. Refletir sobre a permanente necessidade de


ascender o feminino nos textos bíblicos, nos remete a pensar como este foi constituído, tanto o
texto bíblico como o feminino que nele se desenha, por um olhar masculino que reflete a
univocidade de seu raciocínio, de compreender o mundo excluído da pluralidade, pois exclui o
pensar da outra parte da humanidade, como discute Marcos Camargo na sua obra Formas
diabólicas: um ensaio sobre cognição e estética.
Aliás, se atentarmos a qualquer um dos momentos e espaços da Literatura, podermos
perceber a prioridade dos espaços abertos para os homens e não para as mulheres. Na produção
da literatura mundial, também aqui no Brasil, saltam nomes de grandes escritores dos mais
diversos gêneros literários, em que os homens e sobressaem. É muito recente a presença da
mulher como escritora, autora de suas obras ou reconhecidas como tal.
Por muito tempo, a mulher foi personagem, a causa de muitas produções masculinas, às
suas musas inspiradoras, desde as trovas, canções, poemas, contos, romances, novelas. E sobre
as mulheres se desenhou diferentes perfis que emergem em cada tempo, a partir sempre, das
concepções masculinas e sobre suas impressões do “ser mulher”. O perfil da mulher sempre foi
moldado por uma sociedade de homens, o sistema patriarcal que instituiu o silêncio à mulher,
oprimindo a sua voz.
De todo, o que vimos, na grande maioria das vezes, foi uma mulher incapaz de ser
intelectual, de produzir conhecimento, de modo que a escola não foi um ambiente frequentado
por mulheres. A elas lhes foi reservado o interior da casa, onde podiam aprender e tornarem-se
prendadas nas atividades domésticas, alienadas sobre o mundo ao seu redor. Limitadas e
enclausuradas dentro dos lares, as mulheres foram vítimas de uma tradição cultural machista,
que por muito tempo escondeu qualquer possibilidade de autonomia feminina e exposição
social, como se elas fossem um grande risco para os homens.
Talvez essa forma de classificar a literatura não seja algo aberto, mas está implícito nas
intenções e nos tipos de produções destinadas ao público feminino. Basta lembramos das
revistas que traziam receitas culinárias, dicas de tricô e bordados, como leituras pedagógicas e
instrutivas para as futuras e atuais donas de casa, dos folhetins, das novelas previsíveis em que,
variando as formas e a trama, o mocinho e a mocinha sempre ficariam juntos, das crônicas e
romances produzidos para as poucas moças da classe média que tinham acesso à leitura.
É oportuna a discussão sobre a maneira como a mulher é vista também na Literatura,
espaço em que ela teve seu papel limitado a objeto da literatura, inspiração poética, tema e o
assunto mais discutido e estudado nas produções literárias, ao longo da história. No entanto,
por muito tempo foi impedida de apropriar-se da Literatura, pois sem estudar, ler e mais tarde
88

mesmo quando lhe foi permitido escrever, sua produção foi vista de forma recessiva à grande
produção ou aos cânones definidos pelo mundo masculino, a grande maioria que constitui a
literatura, em termos de produção. Essa situação parte do pressuposto de que a figura masculina,
desde os mitos mais antigos foi visto como o criador, como aquele que gera a literatura. A
mulher é a procriadora, portanto, ler e escrever não era o foco da formação feminina.
Vale salientar que, há também, não só o silenciamento do feminino, mas um
silenciamento sobre esse período obscuro em que as mulheres não frequentavam a escola e de
como eram restritas ao interior de suas casas, condicionadas a aprender os trabalhos manuais e
domésticos. Poucos são os registros de suas atividades de leitura e muitas são as inferências
sobre esse período que vai do início da mulher alfabetizada, como leitora, à sua presença como
escritora, participante da literatura ainda que em minoria. Para Zinani e Polesso (2010), a
subjetividade feminina foi violentada numa sociedade de arranjos patriarcais, de modo que essa
situação requer um olhar para à margem, pois nas relações de gênero, o que não é masculino
assume uma posição marginal. “Portanto, um olhar a partir da margem é urgente. E o que seria
essa margem? Nas relações de gênero, assimétricas e de dominação, o que não é masculino
assume uma posição marginal” (ZINANI e POLESSO, 2010, p. 100).
Na sociedade androcêntrica do Século XX, ainda persistam esses sintomas, reforçando
a ideia da inferioridade intelectual feminina e, por isso, ela não tinha nem sequer acesso ao
saber, quanto mais o direito de ser autora ou de participar do mundo acadêmico, das ciências,
das artes ou da literatura. Perrot (2005) aponta que a alfabetização era restrita a poucas meninas
ainda no período oitocentista, pois a elas cabiam a tarefa de escreverem cartas. Mesmo depois
que as mulheres começaram a ler e a escrever, ainda se fazia a diferenciação entre o que seria
acessível a mulher e restrito somente aos homens, a literatura da/para mulheres e de/para
homens.
Nesse sentido, elas vivenciam o esmagamento e o encolhimento que as obrigam a ficar
às sombras, legitimando-se nessas ações, preconceitos tão aceitos socialmente, que se tornam
comuns, como a crença de que as mulheres não são capazes de gostar de ciências, de
Matemática ou de liderar pesquisas fundamentais para o mundo. Suas ideias são apresentadas
por homens, às vezes cedidas, às vezes até roubadas, mas são alternativas apresentadas como
sendo o portal de entrada no contexto social, até então de homens, para que sejam validadas e
aceitas, e não por sua capacidade. Assim, a literatura também se constitui espaço de restrição
para as mulheres, sendo recente sua inserção nesse âmbito, além da condição de personagem,
mas escrevendo nas páginas da história.
89

Ironicamente, o primeiro romance de que se tem notícia foi escrito por uma mulher. Seu
nome, pouco conhecido ainda hoje por muitos, Morraçai Shikibu25, conhecida no ocidente
como Lady Murasaki, entre os anos 973 a 1014 aproximadamente, viveu entre os membros da
corte, tendo alguns privilégios, claro, em detrimento de outras mulheres de classes inferiores.
Cercada de limites e regras sociais, mas que não a impediu de ser uma romancista japonesa,
poeta durante o período Heian, Murasaki26 teve acesso a língua erudita e sua obra, mesmo anos
depois, não teve como ser contestada por sua grandeza, comparada com outros clássicos da
literatura mundial, por seu estilo narrativo comparado a Proust, pela fluência e pela precisão
psicológica sobre os fatos, sobre os personagens. Para Bloom (1992), encontra-se na sua obra,
traços do Dom Juan de Lord Byron, o intimismo, a ironia que tornam a leitura excitante, tanto
quanto ler Jane Austen e Virginia Woolf.
Mesmo estando enclausuradas no interior das suas casas, as mulheres foram, aos poucos,
encontrando maneiras de revelar-se tão solícita pela sua história, por contribuir e receber a
devida valorização pelos seus feitos, pelos seus valores. Nos quatro séculos de submissão, a
inclusão da mulher como escritora e as poucas que foram reconhecidas na Literatura universal,
deu-se, mesmo que tardia. Quando se lê a obra Cânone Ocidental do crítico Harold Bloom,
pensamos encontrar muitas mulheres que abrilhantaram a Literatura, entretanto três nomes
femininos estão entre os clássicos mundiais: Jane Austen, Emily Dickinson e Virginia Woolf,
em contraponto a vinte e três homens que são reconhecidos como autores essenciais para o
conhecimento da literatura ocidental.
Sob a crença da inferioridade das mulheres para ler e escrever com a mesma qualidade
literária dos homens, muitas mulheres, apesar de excelentes escritoras, não tinham visibilidade
e quando tinham a possibilidade de publicar suas obras, eram levadas a usar pseudônimos ou
ficarem restrita aos conhecidos ou ainda no anonimato. Como se fosse possível. Pois quando a
obra é boa, transcende os limites impostos por uma sociedade marcada pelo preconceito, pela
misoginia, exatamente como sucedeu com o romance Frankenstein; or, The Modern
Prometheus - “Frankenstein ou Prometeu moderno”, da escritora Mary Shelley, lançado em
1918. Essa obra foi lançada apenas com o nome Shelley e, por muito tempo, se atribuiu ao

25
Fontes: https://www.britannica.com/
https://www.britannica.com/biography/Shikibu-Murasaki
26
Na obra Genji Monogatari - A História dos Genji, escrito aproximadamente entre 1000 e 1012, no Diário da
Corte de 1007, ela é citada como uma dama de companhia imperial que sabia ler e escrever, mas na verdade ela
foi muito além de ler e escrever. Apesar da imprecisão devastadora de informações sobre essa escritora, sua
condição de mulher ofuscou o brilho que teve sua produção literária e até o fato de ter lançado ao mundo, um
gênero textual tão significativo e que trouxe a muitos homens muito status, poder e reconhecimento consagrados
em prêmios pelas produções de Romances.
90

marido de Mary, ao poeta e escritor Percy Shelley. Em 1931, é que a obra trouxe o nome da
autora completo. É surpreendente como a autora mudou completamente o modo de ver o
mundo, inaugurando o gênero de ficção científica na literatura mundial, pois enquanto o
movimento romântico se opunha à ideia do Universo concebido como máquina, reagindo no
campo dos sentimentos, Mary consegue trazer uma crítica a esse novo cientificismo que tinha
uma explicação para tudo, dominando e sujeitando todas as coisas a racionalidade. A autora
criou uma obra que questiona a moralidade e a responsabilidade da ciência.
Desse modo, percebemos que o acesso à leitura e a escrita, e mais tarde, a inserção da
mulher na literatura foi um longo processo histórico e social. No Brasil do final do século XIX,
as mulheres burguesas e das classes sociais mais elevadas começaram a ter acesso a espaços
sociais, as festas e chás, e cuidavam de suas imagens e de seus maridos. Era interessante para o
homem que a imagem da sua esposa estivesse atrelada ao bom comportamento, a um leve toque
de cultura e polidez, ambos com a moderação, somente para que ele não fosse envergonhado
em público com uma mulher sem dotes. Para Priore e Pinsk (2017), o romance sentimental de
ficção urbana, ganhou espaço, levando as mulheres de elites à literatura como leitoras assíduas,
e aquelas com tempo livre se dedicavam além da leitura, às aulas de pianos, de danças,
intercalando com as aulas de costura, bordados.
Assim, a primeira mulher que concorreu a uma cadeira da Academia Brasileira de
Letras, foi a sertaneja pernambucana, Amélia Maria de Freitas27, filha de um homem de grande
nome, o Governador das províncias do Maranhão e do Ceará, José Manoel de Freitas. Amélia
só foi reconhecida pelo casamento influente, pois muitas mulheres, mesmo ricas e instruídas,
passaram despercebidas pela história, restritas as esferas do espaço privado. Essa realidade das
mulheres alcançava desde o sertão nordestino aos demais estados do Brasil. Segundo Falci
(2010, p. 251):

Raramente aprenderam a ler e, quando o fizeram, foi com professores


particulares, contratados pelos pais para ministrar aulas em casa. Muitas
apenas conheceram as primeiras letras e aprenderam a assinar o nome.
Enquanto seus irmãos e primos do sexo masculino liam Cícero, em latim, ou
Virgílio, recebiam noções de grego e do pensamento de Platão e Aristóteles,
aprendiam ciências naturais, filosofia, geografia e francês, elas aprendiam a

27
D’Incao (2010. P. 223) Amélia foi a redatora de uma revista literária exclusivamente feminina, em Recife, nos
anos 1902-1904. Na revista O Lyrio escrevia somente mulheres, como Cândida Duarte Barros, Maria Augusta
Meira de Vasconcelos Freire e Lúcia Ramalho. São de Amélia de Freitas os romances Alcyone, Açucena e
Jeannette, além de contos e artigos. Algumas vezes foi interlocutora de Clóvis Beviláqua, o autor do Código Civil
Brasileiro (1916), com quem foi casada por 63 anos e colaborou na revista Ciências e Letras. 12 Deixou-nos ainda
um interessante trabalho sobre a infância: Instrução e educação da infância, publicado em Recife, nos finais do
século passado, em que incorpora concepções sobre educação e infância em vigor na época.
91

arte de bordar em branco, o crochê, o matiz, a costura e a música. Apenas


27.776 pessoas na província, de um total de 202.222 habitantes, eram
alfabetizadas, e dessas 27, pouco mais de 10 mil eram mulheres.

Mesmo numa realidade tão desigual para a mulher, muitas desafiavam essas limitações
tornando-se escritoras, poetas, compositoras, professoras, passando a lutar pelas ideias
feministas, pelo direito de serem cidadãs dignas também de serem valoradas pelo seu potencial
intelectual. Nos meados do século XVIII, havia mais leitoras dos romances e novelas francesas,
espetáculos e Teatros lotados, a moda dos folhetins havia tomado o mundo e no Brasil não era
diferente. No Século XIX, para início do XX, os romances mexiam com a sociedade
representando-as, mas também induzindo as leitoras a assumirem novas posturas sociais, ou
mais precisamente, os papeis sociais da mulher iam sendo definidos através da literatura, seja
nos romances ou nos jornais e periódicos da época, que se portavam como mantenedores dos
costumes e dos modelos sociais. Era um controle do sistema, na tentativa de manter segura as
relações de poder. Do contrário, as mulheres que não se encaixavam nesse perfil eram tidas
como pecadoras, traidoras, de fidelidade questionável e, por isso, vigiadas e controladas.
Surgem os jornais que publicavam regras de comportamento para as mulheres. Era
comum tanto notícias como piadas e quadrinhas escarnecendo da mulher e questionando o seu
caráter. O Jornal República publicou em 1893:

Quando Eva Deus criou


Do homem pra companheira
E aquela mulher pecou
Ao mundo a culpa primeira
Por seu pecado largou
Por uma mulher então
Foi o mundo de uma vez
Arrastado à perdição
E se a primeira isto fez,
O que mais as outras farão?
(História das mulheres do Brasil, p. 310)

Esse era um dos muitos textos publicados e que virava motivos de risos e piadas,
reproduzindo o pensamento machista, como se o sexo feminino representasse o perigo,
ressaltando ainda a tradição judaico-cristã de que o pecado entrou no mundo pela mulher, e que
esta é difícil de controlar, em sua sexualidade. Nos mandamentos da Lei de Deus, dentre eles,
a mulher deve amar o marido acima de tudo, não jurar falso a eles, preparar-lhes dia de festa,
não enganar e não gastar dinheiro à toa. Assim, a ideia da inclusão da mulher era muito mais
92

uma condição de consumidora das obras, leitora, nos ambientes em que a escrita circulava eram
vistos como oportunos para discutir os papeis, a função social e comportamental das mulheres.
Desse modo, o saber, na mesma qualidade do que era oferecido aos homens, o acesso
ao acervo de leitura e a apropriação da escrita não veio gratuito a mulher, pelo contrário, as
práticas de saber, ler e escrever estava atrelado ao poder e funcionaram como formas de
dominação, como descreve Telles (2010), na medida que descrevia modos de ser e estar em
sociedade, para as mulheres.
Em contraponto, alguns autores masculinos se destacam por já assumirem uma postura
diferenciada quando escreviam sobre e para as mulheres. Joaquim Manuel de Macedo, com a
obra A Moreninha, trazia a ideia de um amor que se sobrepõe ao tempo e as pressões sociais,
prevalecendo a vontade do casal, não o machismo nem a força do patriarcalismo no conduzir
dos relacionamentos que arranjavam as famílias. José de Alencar também discute essas relações
ao passo que critica os contratos sociais e os interesses por trás dessa conjuntura da constituição
da família e demais instituições, mostrando em Senhora, como o amor vencia essas tramas
sociais. Outra voz imponente a favor das mulheres foi a de Lima Barreto, com textos em jornais
que se opunham à sociedade, às leis e à justiça que aceitava defesas de assassinos das mulheres,
justificativas para o crime como “lavar a honra”, uma punição às mulheres adúlteras.
Constantemente casos de assassinatos de namoradas, noivas e esposas eram divulgados e Lima
escrevia crônicas, pareceres em que se opunha e exigia a justiça à morte das mulheres.
As personagens femininas e protagonistas desses autores, sobretudo de José de Alencar,
são prenúncios de um novo feminino moldado dentro da literatura e que vai se efetivar de forma
mais precisa em Machado de Assis, a quem destacamos como o ápice do destaque ao feminino,
pois estudou e observou cuidadosamente as mulheres, trazendo-as em seus contos e romances,
como personagens emblemáticas que referenciavam a alma feminina, seu modo de ser e
conceber o mundo, numa época de tanto silêncio para as mulheres. Nos contos28de Machado de
Assis, a condição do ser mulher entre os Séculos XIX e XX estava presente nas intrínsecas
relações que se estabeleciam entre as personagens, seus contextos revelados nas diferentes
situações, tão bem observadas pelo autor, quanto representados nas diferentes personalidades
femininas, em sua vasta produção literária de contos. Algumas dessas personagens não são as

28
No artigo: Força e atitudes das mulheres machadianas nos contos: “A parasita azul”, “As confissões de uma
viúva moça”, “Missa do galo”, “O caso da vara”, propomos a leitura de três contos distintos: Contos Fluminenses:
“Confissões de uma viúva moça”, e da coletânea Histórias da meia noite: “A parasita azul” e a outra coletânea do
autor de sua fase mais madura :Páginas Recolhidas, contos: “A missa do Galo” e “O caso da Vara”. As
personagens são respectivamente: Eugênia, Isabel, Conceição e Sinhá Rita. Disponível em
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-literatura/6800447
93

protagonistas das narrativas, mas sua construção evidenciava o interesse machadiano de mostrar
o perfil dessas mulheres, a ponto de as atitudes, escolhas tomadas por elas, além de mudar a
trama, o desenrolar do texto, também revelavam o poder da mulher, suas armas e artimanhas
para lutar e resistir numa sociedade onde seu espaço e seu papel ainda não estavam definidos.
Machado de Assis deu destaque as personagens femininas em toda a sua escrita, em suas mais
diversas fases, escrevendo em jornais e periódicos em que seu público leitor era
predominantemente feminino, fazendo refletir sobre as relações sociais, as instituições que
legitimavam a dominação masculina, mas emergindo o perfil feminino que extrapolava os
consensos e as caixinhas nas quais tentavam enformar as mulheres. Machado parece anteceder
a Freud, ao absorver as minucias do comportamento humano, sobretudo das mulheres, as
sutilezas do discurso que revela o inconsciente, de onde emerge o desejo que modula as ações.
Entretanto, mesmo com um olhar diferenciado desses autores masculinos, faltou a
presença das mulheres, sua escrita instigadora na formação da Literatura Brasileira. Mesmo
assim não podemos negar que nesse processo de reafirmação da mulher e sua lenta inserção na
Literatura, o despertar dessa nova mulher desenhada, partindo muito mais da observação do
modo de ser mulher feita por esses autores, faziam algumas mulheres fervilharem com a ideias
de liberdade e igualdade, começando mesmo que timidamente a surgir as revistas e jornais
dirigidas por mulheres, tomando novos rumos a escrita feminina e as tentativas de lutas sociais
organizadas.
Segundo Telles (2010), houve até assinaturas de manifestos por parte das paraibanas,
reivindicando os direitos usurpados e o direito de usufruir da glória do Brasil. A literatura
feminina começava a se inserir não como forma recessiva, preconceituosa, de definir uma
literatura própria para as mulheres, como se não fossem capazes de competir ou contribuir com
a literatura posta, porém, por conter elementos, valores e características próprias, a identidade
feminina, o lugar de fala, a partir dela mesma, e do que tem interesse de falar, moldando e
mudando a Literatura e a Cultura, em geral. Como disse mais tarde Lígia Fagundes Telles em
sua obra: As meninas (1975), “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora
somos nós que vamos dizer o que somos”.
Desse modo, a partir do Século XX, as mulheres deixaram definitivamente seu lugar de
leitora de folhetins, para autoras de suas histórias, reivindicando seu espaço e lugar de fala,
trazendo em sua escrita mudanças significativas de estilo, de aprofundamento psicológico na
poesia e na prosa, quebrando a ideia de que mulher escreveria amenidades, literatura cor-de-
rosa, como esperava muitos homens em seus encontros periódicos de bar. Poderíamos destacar
diversas mulheres emblemáticas que mostraram que o lugar da mulher é mais amplo do que se
94

pode ditar uma sociedade e que a literatura não se condiciona ao gênero, mas é condição de
humano, sendo-lhes um direito.
Neste contexto, as mulheres, tomando noção do poder do saber, da leitura e
principalmente da escrita, começaram também a se apropriar desses instrumentos de poder e
transformação para promover seu pensar, seu modo de compreender as estruturas patriarcais e
lutar pelos seus direitos, principalmente o direito de ser sujeito de sua escrita e escrever nas
páginas da literatura, o modo feminino de escrever o mundo, a si e suas próprias vivências.
Advindas das influências das escritoras europeias como Mary Wollstonecraft (1758 – 1797),
uma das que há muito discutia e se engajava nas lutas das mulheres, Nísia Floresta, leitora das
obras de Mary, traduziu uma de suas obras, sendo também umas das primeiras poetas, escritoras
no Brasil a se engajar na luta pelos direitos das mulheres. Em seu livro O direito das mulheres
e injustiça dos homens, Nísia Floresta (1853), escritora nordestina, norte-rio-grandense, dizia
que a escrita era uma forma de reivindicar a igualdade e a educação para as mulheres, direitos
negados pelos homens sobre o pretexto consonante entre todos eles de que:

Nós somos próprias se não para procriar e nutrir nossos filhos na infância,
reger uma casa, servir, obedecer e aprazer aos nossos amos, isto é, a eles
homens [...] Entretanto, eu não posso considerar esse raciocínio senão como
grandes palavras, expressões ridículas e empoladas, que é mais fácil dizer do
que provar.

Nísia Floresta também professora, abriu uma escola para moças no Rio de Janeiro, e o
ensino e a cultura tinham espaço maior no currículo para instruir as moças, muito mais que as
ensinar tarefas domésticas. Ela também reivindicava da sociedade o apoio a emancipação das
mulheres juntos a sociedade e ao governo ditos liberais, pedindo: “educai as mulheres”
(CONSTÂNCIA, 2010, p. 11). Não foi difícil perceber, quando por lutas e concessões, os
espaços começaram a se abrir para as mulheres e como bem fez Virginia Woolf em Um Teto
Todo Seu (1928), a mulher podia exercer com autonomia sua escrita, buscar a autonomia em
todos os aspectos, não se conformando com espaços limitados, mas tendo todos os direitos de
ser e exercer sua cidadania plena. Destacam-se nesse cenário, os nomes mais relevantes como
Katherine Mansfield, Virginia Woolf, como grandes prosaístas da literatura inglesa, Marguerite
Duras, Jane Austen. Na poesia destaca-se Florbela Espanca e Hilda Hilst, ainda hoje amadas,
lidas por sua escrita tão íntima, profunda e espirituosa. Mas em nada inferior a escrita
masculina, pois essas mulheres conseguiam extrapolar tais limites e pôr a própria humanidade
despida em temas tão universais, ao mesmo tempo, que a linguagem lhes era tão particular.
95

No Brasil, nomes como Raquel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na Academia


Brasileira de Letras (1977), e que também recebeu prêmios como Prêmio Machado de Assis
por toda a conjuntura de sua obra, seu modo particular de suas narrativas em que ela discute
temas sociais e expõe, de forma dramática, a realidade e as lutas do povo nordestino contra a
miséria e a seca. Não esqueçamos de Clarice Lispector, com suas personagens femininas tão
profundas e emblemáticas que discutiam temas universais, de um modo particular, o sentir e o
interpretar do mundo por diferentes tipos femininos. Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles,
ambas poetas, prosaístas, escritoras que se apropriaram das palavras para produzir uma
literatura de excelência e de enorme contribuição para a conjuntura da literatura nacional,
sobretudo para a luta e engajamento pelo reconhecimento da mulher no mundo das letras.
Aos poucos, percebemos que o reconhecimento da presença feminina na literatura, seja
como leitora, como personagem ou escritora foi, ao longo da história, mediada inicialmente
pelo masculino, sempre às margens da história convencional. Daí a necessidade de um olhar
atento, buscando as lutas e as conquistas que não permitiram o afastamento nem o silenciamento
das mulheres em busca de seu espaço.
Nesse sentido, as personagens bíblicas, diferentes em sua condição de mulher, se
inscrevem na narrativa bíblica, indo além do moldado, do desenho feito por esses escritores. À
medida que eles vão escrevendo, constituindo as circunstâncias que propiciam a presença
dessas personagens, elas tomam emprestado a linguagem e os recursos de seus autores, para
construírem suas identidades, seu modo peculiar de ver o mundo. Assim, as personagens
bíblicas são tipos humanos, um feminino que não se rende, fortes, capazes de lutar pelos
princípios que acreditam, sem se submeter as imposições de ordem social, econômica ou
cultural, ainda sem perder a feminilidade, a leveza e o peso de ser mulher.
De certo, se dentro da história da literatura mundial, a literatura se constitui também
um campo de lutas travadas pela mulher em busca de seu espaço e de reconhecimento pelo
valor que ela lhe tem agregado há anos, embora mantida às sombras dos homens, e se mesmo
com as lutas travadas desde o Século XX até os dias atuais, ainda encontra-se resistências de
um poder patriarcal que resiste ao tempo, o que dizer do universo literário, no qual as mulheres
estão inseridas e guardadas dentro das narrativas bíblicas?
Desse modo, podemos comparar as ações, as atitudes e as lutas das mulheres ao longo
da história por emancipação, para alcançar seu espaço, aprendendo, sobretudo, a se utilizar da
linguagem e se inscreverem como sujeitos de direitos como a educação, e aos demais espaços
sociais, aquém dos bastidores, as personagens bíblicas também assim o fazem. Entretanto, elas
não se constituem protagonistas de suas histórias da mesma forma destas mulheres
96

anteriormente citadas. Pois, enquanto as escritoras tomaram as rédeas de suas vivências e


registraram através de sua escrita, seu nome nas páginas da literatura, as protagonistas bíblicas,
deixam-se ser a escritura, o próprio texto, sendo seus próprios corpos a caneta e o papel, a
linguagem que emana de suas decisões e escolhas, são, pois, as suas ações de enfrentamento
que as inscrevem como autoras de suas vidas. Se as mulheres que povoam hoje a literatura e
tem seus nomes como marcos para escrita feminina romperam com as estruturas de uma
literatura limitante, que permitiu-se ser também lugar de recriminação e opressão, as mulheres
da Bíblia povoam a literatura bíblica, rompendo com uma narrativa em que o foco é o
masculino, para se tornarem a escritas desses autores bíblicos.
Há um rompimento com essa literatura cor de rosa, e mulheres escritoras e as
personagens bíblicas têm em comum, a rejeição a esse sistema masculino, rompendo com esse
processo de submissão cega e opressora. Saem da condição de meras personagens expectadoras
e inerentes a uma narrativa masculina que perpetuavam seu lugar de apagamento e a condição
de aprendiz de boas esposas, moldadas por costumes sociais que visava apenas agradar o
masculino, para tornarem-se autoras de novas narrativas. Assim, as mulheres leitoras, escritoras
deixaram de ser adornos para buscar conhecimento e seu lugar de autoras, dando forma a uma
literatura não de mulheres, pois elas mostraram está a altura da escrita de homens tidos como
grandes escritores, porém uma literatura com identidade, com a liberdade e coerência de uma
escrita feminina. As mulheres, personagens bíblicas, fizeram antes, essa revolução, também
ansiando o saber, o conhecimento, a linguagem e o poder que lhes foi negado. Elas saltam das
mãos do escritor, saem do seu controle e se inscrevem como textos, como a própria escrita, uma
vez que elas não são escritoras.
Débora, Jael, Ester, Maria, Madalena e Dorcas, despertam-nos para uma revisão da
problemática da linguagem, tanto na escrita como na leitura sobre o feminino, sendo necessária
uma leitura hermenêutica do texto, para desconstrução do domínio masculino, da ideologia
patriarcalista nele inserido e se não atentarmos para esse modo de ler, pouco saberemos sobre
essas personagens. É exatamente por essa necessidade de conhecer essas personagens tão pouco
exploradas, o universo dessas mulheres e como elas se tornaram um novo modo de conceber o
feminino, que lançamos o convite para que se conheçam mais sobre cada personagem bíblica,
conhecer o feminino, nas entrelinhas das narrativas em que elas aparecem. E só é possível
conhecê-las se mergulharmos no texto.
97

3 A MULHER NA LITERATURA BÍBLICA: PERSONAGENS BÍBLICAS

Jornada feminina

Mergulhar no oceano profundo


Perscrutar segredos pelo mundo
Não duvidar da nobreza feminina
Encarar o desafio com adrenalina

Prostrar-se com denodo, nobreza


Num gesto sincero e bem curial
Render-se diante de tanta beleza
feminil força, alcácer universal

Embriagar-se de tanta exultação


na empreitada, rumo ao inescrutável
Descortinar - lhe o denso coração

Viver mergulhando no infinito


Na jornada heurística abissal
Descobrir-lhe o transcendental

(Paulo Tamoio, Revolta Literária: Tamoio)

Mergulhar no universo feminino bíblico, buscando compreender essas mulheres


personagens e figuras emblemáticas, (in)completas e complexas. Neste capítulo, deixamos esse
espaço para apresentar todas as personagens femininas que aparecem na Bíblia, de Gênesis a
Atos dos Apóstolos, demarcando os espaços narrativos do Primeiro Testamento, iniciando-se
com a personagem Eva, seguindo até o livro de Atos, Segundo Testamento, encerrando com a
personagem Dorcas.
Nesse percurso, de Eva a Dorcas, situaremos cada personagem, atentando para ordem
cronológica da organização dos livros da Bíblia, situando os contextos em que as personagens
aparecem, suas delineações, promovendo o conhecimento de tantas personagens apagadas no
contexto bíblico. De todas elas, nos debruçamos nas seis mulheres selecionadas para o corpus
98

desta pesquisa. Essas personagens servirão como ponto de equilíbrio para que compreendamos
as diferentes opções de comportamento, de enfrentamento, de modos de inscrição destas como
protagonistas ou não de suas narrativas.
Se acreditamos que é pela linguagem que perpassam os discursos machistas e patriarcais
que definem o comportamento feminino, fomentam as redes de dominação, é por ela também
que se fomentam as condições para que a mulher possa ser vista, ouvida com suas vivências,
experiências diversas, trazendo à sociedade uma nova concepção do “ser mulher”, dentro dessa
nova ordem social e simbólica. É então através da literatura que se torna possível desvelar o
universo feminino, estudá-lo com a devida atenção, utilizando-se desse estudo para se não o
transformar, pelo menos questioná-lo
É nessa proposta que adentramos o universo bíblico, na perspectiva de leitura de seus
textos como literários, observando as narrativas em que as personagens femininas aparecem
dentro delas. Situando a mulher nesse contexto universal, que por anos elas estiveram
silenciadas e apagadas ao longo da história, não se pode esperar que no contexto bíblico a
realidade seja amena para as mulheres.
Não se tem informação de que existam, provas, documentos comprobatórios da autoria
de textos ou dos livros como sendo feitos por mulheres. Até os livros da tradição judaica, alguns
inseridos na Bíblia, que até trazem o nome de uma mulher como Ester, Rute, Judite, não nos
permite sequer comprovar se foram escritos, pelo menos com a participação dessas mulheres.
São escritores homens, que recontam as narrativas delas, tendo-as, em algumas narrativas, como
personagens secundárias que aparecem por suas ações e não por serem apresentadas como
heroínas ou protagonistas.

3.1 AS MULHERES DO PRIMEIRO TESTAMENTO

A presença da mulher no texto bíblico será sempre como personagem e nunca como
autora, à medida que são personagens diversas, de histórias marcantes, narrativas em que elas
aparecem como filhas, esposas, mães, anônimas, estrangeiras, prostitutas, profetisas,
sacerdotisas, juízas, rainhas, guerreiras nômades, parteiras, mulheres marcadas pela coragem,
pela resistência às mais diversas circunstâncias, movidas pela fé, e pelo amor à sua pátria, às
suas famílias, às suas convicções.
Assim, o número de mulheres que aparecem no Pentateuco é muito inferior a quantidade
de homens citados ao longo dos textos do Primeiro Testamento. Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números, Deuteronômio trazem pouquíssimas mulheres. Considerando que a história de Israel
99

contada na Bíblia, inicialmente, em Gênesis, traz uma galeria de homens patriarcas, heróis,
sempre em evidência, escolhidos por Deus para liderar a história, as mulheres são suas
adjutoras, auxiliares em funções menores, mas fazem tudo pela missão dos homens.
Dar-se a entender que se segue o mesmo modelo dado no Éden, Deus fez o homem e
com ele trata das proibições, dos planos, das ações conjuntas para nomear os seres, enquanto
que com a mulher, tirada do homem, trata o próprio homem, a quem ela foi dada como
companheira. Não é de se estranhar que o pensamento de que as mulheres são propriedades dos
homens tome conta das interpretações de muitos, sobre a vontade divina. Apesar de as mulheres
serem personagens em menor quantidade, são intensas e seguras, decisiva presença para o
desenvolvimento da narrativa, de modo que surgem de repente, com propósitos diversos, mas
em detrimento de uma missão ou ação masculina, e permanecem o tempo necessário para que
seja alcançado o propósito. Na maioria das vezes, sua aparição está aliada a uma necessidade
de pôr em evidência um personagem masculino, e elas são retiradas de cena, na mesma
proporção que se tornam desnecessárias, saem de cena com a mesma rapidez que entraram.
Parece que elas não estão mais na narrativa, mas elas fazem parte de toda a trama, mesmo que
ocultas, e quando menos se espera, temos notícia de algumas que precisam retornar.
Tais personagens são solicitadas dentro das narrativas e entram em cena sempre
vinculadas a contextos que revelam seu lugar de fala, aliás, fala, diálogos não são o forte das
narrativas em que elas aparecem. Os diálogos são sempre entre duplas, não sendo muitas vezes
possível saber simultaneamente como todos os personagens envolvidos na história pensam ou
se sentem, sobretudo, quando se trata de personagens femininas. Um exemplo disso está no
primeiro diálogo que está em Gênesis (3, 1- 10), que se dá primeiro entre a serpente e Eva,
depois entre Deus e Adão, entre Deus e a serpente e, por fim, entre Deus e a mulher. Parece que
somente Deus tem a autoridade de falar e ouvir a todos.
Na maioria das vezes, não podemos saber como essas mulheres se sentem, ao longo das
experiências que vivenciadas, mesmo que seja possível presumir suas sensações,
principalmente, quando atentamos para a ação do homem. As ações masculinas vão refratando
e refletindo, nos permitindo inferir, quais sensações, seja de afago, carinho, conforto, ou
violência, estão sendo vivenciadas pela mulher. É pela ação do outro, pela clareza das ações
masculinas que é possível compreender o impacto desta sobre a mulher, em muitos contextos.
Tanto as personagens mais representativas, que ocupam um lugar de destaque no texto, por
serem pertencentes a classe superior, como as mais simples, as servas, as mulheres concubinas,
as estrangeiras, todas são inseridas no texto de forma semelhantes: de repente, sem muitas
apresentações, sem avisos ou prenúncios. O que as fazem entrar na história é a necessidade de
100

dar continuidade ao tema central de toda a narrativa bíblica, que envolve toda a verdade bíblica:
Deus é o Senhor e precisa ser exaltado em seus feitos por e para Israel, através de seus servos.
Assim os personagens masculinos vão surgindo no texto solicitando a presença de
algumas mulheres que são importantes para o desenrolar da trama e dos fatos. O lugar dessas
personagens é definido pelo lugar que seus pais ou maridos ocupam na sociedade e isso também
é um reflexo da cultura patriarcal que norteava a tradicional comunidade judaica. Assim, aos
poucos, somos apresentados a essas personagens femininas. Vamos então ao Pentateuco, ao
Gênesis.
No princípio era Eva, a primeira personagem feminina no Gênesis, segundo o texto
bíblico. Ela nasce ou surge após Adão, retirada dele, o varão, e passa a ser a primeira “varoa”
no mundo, conforme Gênesis 2. Eva é apresentada como uma mulher desatenta, que deixou-se
iludir pela astuta serpente e comeu o fruto da árvore do conhecimento, proibido por Deus. Eva
também deu a fruta a Adão e o convenceu de que era boa e de que nada lhes aconteceria. Dá-
se a desobediência, a queda e as consequências desse pecado para os três à princípio, depois
estendido a toda humanidade. Do surgimento de Eva, até o capítulo 4 de Gênesis, não se tem
mais nada referente a outras mulheres, entretanto, aparece no texto a esposa de Caim, filho de
Eva, (Gn: 4,17). Ela não tem nome, nem origem, nem sequer é possível imaginar, pois a
narrativa não nos oferece esses detalhes, de onde ela surgiu, visto que só havia até então Adão
e Eva.
Segue-se essa tendência das introduções de personagens, suas respectivas mulheres
como o inusitado caso de Lameque (pai de Noé) e suas duas mulheres Ada e Zilá. Um curioso
caso de quebra do princípio da monogamia estabelecido no Gênesis 2. Ele e suas duas mulheres
inauguram o primeiro triangulo amoroso na história de Israel. Aparece também Naamá que
surge no texto como irmã de Tubalcaim, filho de Lameque e Zilá. Abrimos um parêntese para
chamar a atenção da recorrência do gênero genealogia como uma constante nos textos em
Gênesis. Esses textos aparecem com o objetivo de apresentar a linhagem das famílias dos
homens mais significativos à história: Adão e Abrão. No Segundo Testamento, tem-se somente
a genealogia de Jesus, que traz cinco personagens mulheres dentre os nomes dos homens.
Porém, no Primeiro Testamento, é uma forma de identificar as famílias para que se fizesse jus
ao cumprimento das leis, como a lei do Levirato e tantas outras.
Era também o registro da existência de muitos nomes que só se conhece nesses textos.
Um exemplo disso é o próprio Abraão, o pai de Israel que só aparece na Bíblia, não se tendo
outro registro desse homem em livros históricos. Porém em Gênesis temos não só a origem de
Abraão, como também sua trajetória sobre a terra. Narrativas que tornam esse livro bíblico
101

exclusivo, por seus registros na literatura antiga. Nessas genealogias, os nomes dos filhos
homens, primogênitos, pois eram eles que recebiam a benção da primogenitura, mesmo se
nascessem depois de uma irmã, elas não contavam como primogênitas. As mulheres são
mencionadas ocasionalmente nos registros genealógicos, quando havia um motivo histórico,
como no caso de Naamá de quem nunca saberemos nada a respeito, a não ser que ela era irmã
de Tubalcaim.
Outras mulheres estarão em evidência em outros momentos, como Sara mulher de
Abraão, Gênesis (11,29-30), por ser ela a que gerou Isaac, a Semente prometida a Abraão,
Quetura, para mostrar a virilidade de Abraão, que depois da morte de Sara, casou-se com ela e
teve filhos, e ainda Rebeca para provar que ela era parente de Abraão. É o que se pode ir
inferindo, já que algumas mulheres são inseridas em detrimento de muitas outras que são
esquecidas e outras personagens como Tamar, Rute, que era estrangeira e Raabe, são inseridas.
Na verdade, a história dessas cinco mulheres que aparecem na genealogia de Jesus, tem histórias
que se cruzam e convergem para o nascimento do Messias, portanto, elas seriam personagens
de grande importância para o cumprimento da promessa de nascimento do Salvador.
Comprovam que toda a existência das personagens bíblicas está atrelada a história dos homens.
Mas não deixa de ser um fato inusitado que a genealogia de Jesus traga 05 personagens
femininas: Tamar, Raabe, Ruth, Bate-Seba e Maria.
Seguindo a ordem em que as personagens vão aparecendo, em Gênesis, temos uma
quantidade significativa de mulheres sem nomes, sem nenhuma descrição ou identidade que
seja significativa para as conhecer ou reconhecer sua significação. São as nômades, mulheres
de tribos, possivelmente, descendente de Caim conhecidas como as “filhas dos homens” e as
mulheres chamadas das “filhas de Deus”, seria possivelmente, as descendentes de Sete, Enos,
homens que cultuavam a Deus.
Continuando a inserção de personagens femininas tem-se a Esposa de Noé, as Esposas
de Sem, Cam e Jafé e as Semitas. Tanto a esposa de Noé, como as suas noras, não tem nomes,
nem origens, nem função determinada nessa história. Noé é conhecido por profetizar o dilúvio,
construir uma arca, pôr dentro dela a família e espécies diversas de animais, mas as mulheres
da família não têm nome, nem história. São, nessa narrativa, apenas personagens figurativas,
mas se houve um dilúvio, essas mulheres não são as sobreviventes que darão continuidade as
gerações da terra? Não se devia ter destaques pelo menos para essas que seriam as novas mães
da humanidade? Assim também são as semitas, apenas citadas na genealogia do pai. Elas são
as filhas de Sem e isso é tudo que sabemos.
102

As próximas personagens a entrarem na história, a partir do capítulo 12, são as


matriarcas, obviamente com os intervalos entre um patriarca e outro, ocorrem fatos e outras
personagens femininas ligadas a essas mulheres, esposas dos patriarcas, vão surgindo, à medida
em que os fatos se desenrolam. Inicialmente, o texto apresenta Sarai/Sara, esposa de Abrão, o
primeiro patriarca. Este tem bastante recursos financeiros, e sendo assim, ela também tem um
certo status social. Os nomes de Abrão e Sarai eram mudados por Deus para fazer jus ao
cumprimento de sua promessa, de que por meio deles existiria uma grande nação. Passando
então a ser Abraão e Sara (pai e mãe de multidões). Sarai é a primeira personagem descrita com
mais detalhes como a beleza incomum que possuía, pois era mui formosa. A beleza é algo muito
elucidado em Sara, de modo que ela, por duas vezes, teve que salvar a pele do marido, dizendo
que era apenas sua irmã. Abraão, em Gênesis (12, 13), considerando a beleza de sua mulher aos
65 anos, temeu por sua vida diante do Rei do Egito. A segunda vez se dá no Capítulo 20, quando
nas terras de Gerar, Sara foi dada a Abimeleque.
De Sara também sabemos o grau de parentesco com Abraão, principalmente, pelas
situações citadas acima, a idade dela e as servas que tinha, dentre elas a egípcia Agar, aquela
que futuramente dará a Abrão, com o consentimento de Sarai, o primeiro filho do patriarca,
visto que Sarai era estéril. Agar é apresentada como uma serva que, fará parte da família e talvez
por não ter escolha, deita-se com o seu Senhor. Era um costume (mesopotâmico) que as
mulheres judias, israelitas que não tinha filhos, dessem suas servas aos maridos, para que esse
pudesse ter descendência. Entretanto, após engravidar, Agar não parece querer ceder seus
direitos maternos a Sarai e começam os desentendimentos entre as duas personagens. Após o
nascimento de Isaque, aos 90 anos de idade, Sara expulsa Agar e o filho Ismael do convívio de
Abraão.
A impossibilidade dessas mulheres não poder gerar filhos é tema constante nas
narrativas bíblicas de Gênesis. Parece irônico, mas no caminho da construção da nação Israelita,
algumas matriarcas, fundamentais na importância para continuidade da formação do povo
judeu, são estéreis e precisam da intervenção divina para exercer seu principal papel que é ser
mãe. É uma espécie de trama, em que a impossibilidade de gerar filho, quando esse é tão
necessário, vem problematizar o enredo, uma estratégia que mantem o leitor atento e envolto
numa sensação de suspense, num clímax que se prolonga até descobrir-se como essas mulheres
poderão alcançar seu desejo de ser mãe e a necessidade social de dar, ao marido, herdeiros.
As matriarcas sempre enfrentam esse contratempo e precisam apelar as crendices e a
Deus a quem elas atribuem a dificuldade de gerar. Foi Assim com Sara, Rebeca e Raquel.
Somente Leia foi agraciada com a maternidade da parte de Deus, como compensação do
103

desprezo que Jacó sentia por ela, por muito amar a Raquel. Entretanto, a vida destas duas irmãs
é marcada por disputas, guerras entre si e concubinas para gerar filhos e obter a atenção do
marido e o respeito social. Bem mais à frente essa temática da esterilidade é retomada com a
mulher de Manoá, mãe de Sansão em Juízes e com Ana, no livro de I Samuel. A mãe de Sansão
não tem retratada na Bíblia, nenhum questionamento seu sobre sua esterilidade, no entanto, um
anjo a visita e lhe concede a maternidade. Ana, por sua vez, conhecendo as histórias das
matriarcas vai, tal qual elas, buscar a solução em Deus, através de preces e votos para que possa
ser atendida.
Paralela a apresentação de Sarai, Gênesis (11, 29), aparece também Milca, esposa de
Naor, irmão de Abrão, portanto, concunhada de Sara. Milca era casada com o tio, assim como
Sara que também era casada com um meio irmão Abrão. Milca some por um tempo, e enquanto
Abrão e Sara viajam pelas terras saindo da Mesopotâmia para as terras de Canaã, Milca tem
mais filhos, inclusive Betuel, pai de Rebeca (matriarca que dará continuidade ao legado de
Sara), a que veio a ser a esposa de Isaque, filho de Sara e Abraão.
Encontra-se também Reumá como uma segunda esposa de Naor, ou mais provavelmente
uma concubina, uma escrava com função de esposa, pois Milca havia demorado a dar filhos a
Naor. As concubinas não eram rejeitadas, nem seus filhos bastardos.
Outras personagens enigmáticas, de suma importância para história, mas também
apresentadas sem muita descrição e sem nomes são a mulher de Ló, e suas duas filhas. Ló era
sobrinho de Abraão que tinha vindo na caravana deste, em busca da nova vida e da terra
prometida. Em Gênesis (14,1-16) e em (19, 15,16-26), conhecemos essa esposa de Ló por
intermédio do dia trágico de sua morte. Ela ficou conhecida como a mulher que olhou para traz
e virou uma estátua de sal. Provavelmente, num período entre 1957 – 1868 a.C. essa mulher
viveu com o esposo Ló, e numa possibilidade de interpretação do texto, numa vida confortável
e feliz. Ela parecia gostar de sua cidade, da casa, indiferente aos costumes, a vida profana dos
que estavam ao seu redor. Na destruição de Sodoma e Gomorra, ela foi atingida.
Essa ideia do comodismo em que ela vivia foi ressaltada pelo próprio Jesus que alertou
aos que pregavam certa vez, sobre a displicência da mulher de Ló, que amou mais o mundo do
que a salvação preparada para sua vida. Ainda hoje ela é citada nas discussões religiosas e
interpretações bíblicas como um não exemplo a ser seguido. Em consequência da sua morte,
nos relatos do capítulo 19, as filhas de Ló são apresentadas anteriormente, quando seu pai, as
entrega aos homens da cidade que queriam ter relações sexuais com os hospedes de Ló. Sem se
importar com as filhas virgens, elas são entregues a eles, que não as aceitam. Depois que partem
sem a mãe, morando em cavernas com seu pai, essas moças entram num consenso de que sem
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homens naquelas terras, a descendência de seu pai seria apagada. Então decidiram deitar-se
com seu pai, embriagando-o e fazendo-o seu homem, cada uma em dias diferentes.
Numa relação providencial, mas oscilante entre o certo e o errado, essas moças
comentem um ato profano e desonroso, entretanto, no texto não há nenhuma censura, ou
julgamento. Exceto pelo termo “conceberam do próprio pai”. Mas em consequência, duas etnias
surgiram como confirma o texto: Delas surgem os moabitas e amonitas.
Em detrimento da descendência de Isaac, esses povos não são adoradores de Deus e
serão tidos como profanos. Nesta narrativa, há uma projeção para que se perceba a trama dessas
duas mulheres, os passos para conseguir seus objetivos, sem que caia nenhuma culpa sobre Ló.
Este é embriagado e não percebe que esteve com suas filhas em duas noites consecutivas. Fica
implícito como ele foi deixando-se ser embriagado a ponto de deitar-se com as filhas, sem se
dar conta.
Ainda entre as anônimas estão a mulher e as servas de Abimeleque. Esses personagens
surgem na passagem de Abraão e Sara pelas terras de Gerar (Sul de Gaza). Provavelmente,
essas servas eram suas esposas. Ele, Abimeleque, ao ver Sara, sua beleza sem igual, atentou em
tê-la e pela segunda vez, Abraão pede a Sara para dizer que ela era sua irmã. Levada ao Palácio
para ser mulher de Abimeleque, antes de que ele a tivesse, Deus salva Sara, mostrando em
sonho ao rei que Sara tinha marido e que feriria com esterilidade todas as suas mulheres.
As mulheres nessa narrativa são vulneráveis aos desejos e caprichos masculinos. Elas
são vitimizadas e indefesas, parecem aceitar suas condições de objeto e propriedade dos
homens. Segundo o narrador, o fato de Abimeleque ser castigado deve-se ao fator de Sara ser a
esposa de Abraão e não pelo fato deste Rei se apropriar de uma mulher estrangeira que mal
conheceu e já a queria possuir, o fato de ter muitas mulheres, uma rainha não é relevante.
Eram séculos marcados pelo patriarcalismo, e o reconhecimento e valorização dessas
mulheres se davam mediantes a sua submissão ao marido, sua contribuição na manutenção do
lar, nas tarefas domésticas desempenhadas e na geração de filhos. Não estão envolvidas em
atividade fora dos seus lares, são dadas a pouco diálogos e pouco sabemos sobre suas
características, sua vida pessoal e externa. Toda vez que essas mulheres não conseguem cumprir
suas atividades, definidas a partir da delimitação de seu papel dentro da estrutura social
estabelecidas, ou cada vez que seus comportamentos se diferem, são tachadas de adúlteras
carnal ou espiritual, pecadoras, imprudentes ou aquelas que foram castigadas por Deus.
Não há uma preocupação por partes dos escritores, em introduzir essas personagens
numa ordem cronológica, de forma linear, de forma que pudéssemos ter clareza de quem são
elas, quais os nomes, origem, características pessoais ou psicológicas, elas simplesmente
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surgem e desaparecem, de forma natural e até espontânea. Não há nenhuma culpa por isso. As
vezes, a própria nacionalidade ou etnia da qual faz parte, é tudo que sabemos sobre essas
personagens, como é o caso das Hebreias (descendem de Eber), e as cananeias (descendentes
de Cam). Elas existem ou são citadas por causa de algum homem que está sendo citado, ou
elucidado no texto.
Rebeca é a segunda matriarca, e sua história começa com o desejo de Abraão em casar
Isaac com alguém de suas terras, seus parentes. Eliezer, servo de Abraão vai em busca dessa
mulher para que seu Senhor Isaac seja consolado pela perda da mãe. Como a existência das
mulheres se consolidava nos seus papeis de filha, esposa e depois mãe, Rebeca como filha,
presta serviços domésticos e é num poço que ela aparece enquanto ia buscar água com seu
cântaro. A moça é apresentada de forma inusitada, porém reveladora dos valores que se prezava
numa mulher:

A moça era mui formosa de aparência, virgem, a quem nenhum homem havia
possuído; ela desceu à fonte, encheu o seu cântaro e subiu. Então, o servo saiu-lhe ao
encontro e disse: Dá-me de beber um pouco da água do teu cântaro. Ela respondeu:
Bebe, meu senhor. E, prontamente, baixando o cântaro para a mão, lhe deu de beber.
Acabando ela de dar a beber, disse: Tirarei água também para os teus camelos, até que
todos bebam. E, apressando-se em despejar o cântaro no bebedouro, correu outra vez
ao poço para tirar mais água; tirou-a e deu-a a todos os camelos. O homem a
observava, em silêncio, atentamente, para saber se teria o SENHOR levado a bom
termo a sua jornada ou não. (GÊNESIS 24, 16 - 21).

No trecho temos uma rápida descrição da formosura de Rebeca, o fato de ser virgem,
não havendo sido “possuída” por nenhum homem. Rebeca nem se deu conta que estava sendo
observada enquanto desempenhava suas tarefas e que os olhos do Servo de Abraão estavam
aprovando-a ou como diz o narrador esperando a aprovação divina para torná-la esposa de
Isaac, filho de Abraão. As personagens são apresentadas no texto, as mulheres são identificadas
de igual modo como são vistas pela sociedade daquela época patriarcal, com o mesmo valor
dentro do texto que têm para aquela época. Não afirmaria que não tem valor, entretanto, tais
valores, se voltam as funções que elas desempenham como mulheres bem prendadas,
conservadas virgens para um só homem, e estas deviam ser dadas a servir, a cuidar da casa, dos
filhos e do esposo. Rebeca, deixa tudo e todos e segue para sua nova vida, ao encontro de um
noivo que nunca viu, sabendo apenas que é seu primo.
Já em casa de Betuel, pai de Rebeca, o servo Eliezer é apresentado, enquanto diz o seu
propósito de estar ali. O servo conta como Deus o guiou até aquele lugar. A família, o irmão,
106

talvez por interesse, 29


justifica dar a filha para aquele “quase estranho” dizendo compreender
como a vontade de Deus, e o casamento é arranjado. Entretanto, quanto ao adiantamento da
partida de Eliezer, a família exista e pede mais tempo. Então, se dá um fato inusitado para
aquele contexto, no qual os casamentos são arranjados sem consultar as filhas, no entanto,
Raquel é consultada e aceita partir em busca do desconhecido.
A coragem dessa moça a leva ao cenário do encontro com o noivo e o casamento é
realizado. No capítulo 24, verso 67, diz que Isaque toma a Raquel por esposa, ele a amou e foi
consolado da morte de sua mãe. Não sabemos, porém, como Rebeca se sentiu, o que pensou e
como encarou sua nova vida. Sua aparição só se dará no capítulo 25 e verso 20, quando o
narrador retoma a idade em que Isaque a tomou por mulher, sua origem ressaltada pelo nome
do pai e do irmão, a região onde morava, o fato de ser estéril que também só sabemos, porque
se evidencia que Isaque orou por Rebeca e ela concebeu gêmeos.
Assim, a presença das personagens femininas vai sendo introduzidas no texto, a partir
da presença masculina. No entanto, a presença masculina também é seletiva, tem a ver com o
propósito de Deus para cumprimento da promessa feita a Abraão, sendo o destaque para aqueles
a quem julgam que Deus escolheu. Portanto, dos filhos de Abraão, somente Isaque dará
continuidade ao legado do pai. O filho legítimo de Abraão e Sara. Nem Ismael, nem os filhos
de Quetura, mulher com a qual Abraão se casou depois da morte de Sara, fazem parte da
promessa e não conviverão com Isaque. Dos filhos de Isaque com Rebeca, aliás Rebeca foi a
única mulher de Isaque, e tendo ela lhe dado filhos gêmeos: Esaú e Jacó, o escolhido, portanto,
é o mais novo, Jacó, que governaria sobre seu irmão. Rebeca retorna à história como a mãe que
enganou junto com o filho, o seu marido Isaque que, agora cego, precisaria abençoar seus filhos,
ante a morte que se anunciava. Da estratégia de Rebeca para que Jacó recebesse a benção de
primogênito, resultou na fuga de Jacó para as terras de Labão onde conheceria suas esposas.
É assim que entra na história mais duas matriarcas que comporão a história das mães de
Israel: Raquel e Lia ou Leia. As duas irmãs que dividirão o mesmo marido, numa rivalidade
sutil, mas intensa. Enquanto haverá uma maior ênfase para Jacó e suas esposas, Esaú ficará em
segundo plano junto com suas esposas Judite e Basemate que são heteias, estrangeiras, não tem
os mesmos costumes que os Hebreus. Eram povos que habitavam a antiga Canaã e segundo o

29
No capítulo 24 e verso 29 o irmão de Rebeca Labão, ao ver os presentes (pendente e pulseiras de ouro), após
ouvir Rebeca foi ao encontro do homem. Pode ser que queria somente saber quem era o desconhecido. Porém,
mais a frente conheceremos em detalhe o caráter de Labão, quando tentará enganar e lucrar do trabalho do seu
sobrinho Jacó, conforme vemos no Capítulo 29 de Gênesis.
107

narrador, Esaú as tomou por mulher e elas trouxeram desgostos a Isaque e a Rebeca. Não há
nenhum detalhe sobre essas personagens.
No entanto, a mesma condição de heteu encontra-se em Urias no livro de Reis e ele era
um soldado virtuoso, marido de Batsebá, e o Rei Davi judeu, comente o despautério de deitar-
se com ela e para encobrir a gravidez, pede a Urias que este deixe a guerra e deite-se com sua
mulher. Urias não aceita viver esse prazer enquanto os soldados estão na batalha e como último
recurso para encobrir seu erro, Davi manda Joabe, seu comandante, colar o soldado Urias na
linha de frente, onde certamente morreria.
Fica assim um questionamento, se pela etnia de um povo pode julgar seu caráter, ou se
pelos seus costumes. Esaú sabedor de que seus pais queriam que Jacó casasse com as parentes,
também se casa com Maalate, filha de Ismael, o irmão de Isaque. É tudo que se sabe sobre essa
mulher. No entanto, de Raquel e Leia, as mulheres de Jacó do novo patriarca, sabemos alguns
fatos interessantes. Jacó é o foco da narrativa e até chegar ao ponto em que Raquel aparece,
sabe-se primeiro que, no caminho para Padã-Arã, ele encontrou-se com Deus em um sonho e
lhes consagra a vida e o lugar chamando-o de Betel (Casa de Deus). Agora já no poço de Harã,
surge a bela Raquel que era Pastora de Ovelhas, cuidando do rebanho de seu pai. Segundo o
narrador, o poço tinha uma grande pedra e que era preciso todos se juntarem para removê-la ao
meio dia e dar de beber as ovelhas.
A paixão à primeira vista de Jacó por Raquel o faz remover a pedra sozinho e dar de
beber aos seus animais. Depois de um rápido diálogo seguido de choro, Jacó beija Raquel e
conta-lhe sua história. Raquel o apresenta ao pai, e por amor a Raquel acordam que Jacó
trabalhará por sete anos para casar-se com Raquel. Em Gênesis (29, 6 -17) temos a seguinte
descrição das filhas de Labão: “Ora Labão tinha duas filhas: Lia, a mais velha, Raquel a mais
moça. Lia tinha olhos baços, porém Raquel era formosa de porte e de semblante.
Por esperteza de Labão, ele dá, no dia das bodas, sua filha mais velha Lia, a moça dos
olhos meigos, parecendo mais um castigo de Deus sobre o enganador Jacó que, somente pela
manhã, se dá conta da troca. Ao abordar seu sogro, este pede mais sete anos para que Raquel
lhe seja esposa também. Tanto Leia como Raquel tinham amas, servas (Bila e Zilpa) e estas
também foram dadas a Jacó, nessas circunstancia de rivalidade e disputa que essas mulheres
travaram, elas darão a Jacó seus 12 filhos e uma filha chamada Diná.
Essa personagem, segundo o narrador, no Capítulo 34, foi vítima de um estupro,
cometido pelo príncipe Síquem. Após deitar-se com Diná, o príncipe apaixonado pede que seu
pai Hamor a tomasse por mulher junto a Jacó, Pai de Diná. Em acordo, os irmãos de Diná,
108

lembrando do pacto da circuncisão, pede para que Hamor, seu filho e todos os homens do seu
reino, fossem circuncidados para poder fazerem parte da família e do pacto divino.
A Circuncisão foi o pacto entre Deus e Abraão de que todo macho devia ser
circuncidado no 8º dia de nascido. Hamor e Síquem aceitaram as condições, porém, no terceiro
dia quando estavam todos os homens sem forças pela dor, os irmãos de Diná, Simeão e Levi,
mataram todos os homens do reino, incluindo o príncipe e seu pai, trazendo Diná de volta para
sua casa. Não é possível saber se Diná amava o príncipe, se tinha desejos de conhecer outra
cultura, se ela consentiu em casar-se de maneira diferenciada dos costumes de Israel, se ela
queria voltar a casa do pai, ou coisa do gênero. Ela aparece no texto e some sem nenhuma outra
aparição na Bíblia, sem diálogo, sem memórias ou participação na eleição das 12 tribos, de toda
a simbologia que traz o nome dos 12 filhos homens de Jacó.
As personagens aparecem numa linha de sucessão, acompanhada de homens e sendo
por eles identificadas, por meio do pai, irmão ou marido. Em Gênesis, principalmente, a
descendência de Abraão é o foco, portanto, as personagens femininas estão ligadas aos homens
dessa família. As próximas personagens são a mulher de Judá, um dos filhos de Jacó, e sua nora
Tamar. A mulher de Judá não tem nome e nenhuma identificação, sendo apenas a filha de Sua.
Desse casamento surge os seus filhos Er, Onã e Selá.
Tamar surge na história como a mulher do primogênito de Judá, trazida pelo próprio
para ser mulher de seu filho. Tamar fica viúva de Er, sem ter tido filho com ele e pela Lei de
Moisés, a Lei do Levirato, o cunhado devia casar-se com a mulher de seu irmão para constituir
com ele, o herdeiro do seu marido. Tamar passa a ser a mulher de Onã que também não lhe dar
filhos, e esse é morto por Deus. Tamar, viúva e sozinha, sem amparo social, volta a casa dos
pais, sob a promessa de Judá de dá seu filho que ainda é pequeno, para seu futuro marido.
Contudo, os anos se passam e Judá não cumpre a promessa. Tamar usa uma estratégia para que
se cumpra a lei de Moisés. Ela disfarça-se de prostituta sagrada e deita-se com o sogro, agora
viúvo, pedindo a ele uma garantia pelo ato, para que depois receba o pagamento. Judá entrega
o sinete, um cordão e o cajado. Da relação com o sogro, Tamar engravida e a comunidade dar
a notícia a Judá que a nora profanou ou prostituiu-se, manchando o nome dele. Imediatamente
Judá manda a apedrejarem, porém, Tamar revela de quem são os objetos que ela tinha. Judá
reconhece os objetos e dar a Tamar a justiça devida.
Outras personagens que aparecem ligadas a história de José, o filho de Jacó vendido
pelos irmãos como escravo às terras do Egito, é a mulher de Potifar, Senhor de José. Ela
apaixonou-se pelo escravo e o tentou para terem relações. Porém, José não quis tocá-la, pois
era esposa de seu dono e de todas as coisas que ele podia governar e tocar, ela não era
109

propriedade permitida a ele. Numa das tentativas, José corre e a mulher, ficando com as vestes
dele na mão, simula um abuso sexual e José é preso. Mais tarde, já governador do Egito,
conhece-se a personagem Asenate, dada pelo Rei a José como esposa. Essa é a última
personagem de Gênesis.
No segundo livro do pentateuco, Êxodo, encontra-se as seguintes personagens: as
parteiras egípcias Sefra e Fuá, mulheres hebreias que desobedeceram às ordens do Faraó, no
tocante a morte dos filhos, homens dos Israelitas, em detrimento das mulheres que seriam tidas
como servas, adaptadas a cultura egípcias, tomadas por servas ou esposas. Essas parteiras
temeram e alegaram ao rei que as hebreias já tinham os filhos sozinhas, antes que elas
chegassem. Na sequência, aparece Joquebede, a mãe de Moisés que, curiosamente, é descrita
como uma descendente de Levi. Somente no capítulo 6 e verso 14, na genealogia de Moisés e
Arão é que sabemos que se trata de Joquebede, filha de Levi, que casou-se com seu sobrinho
Anrão e tiveram Arão, Moisés e Mirian que é narrada em Êxodo 2 como a irmã do menino que
acompanhava o cesto colocado no rio por Joquebede, como tentativa de salvar o pequeno
Moisés da fúria do Faraó. Surge outra personagem, a Princesa egípcia, e suas servas que se
banhavam no rio quando ouviram o choro do menino.
Aqui surgem também as sete filhas de Jetro, o sacerdote Midianita e sogro de Moisés.
As mulheres aparecem quando Moisés, após matar um egípcio, foge da fúria do Rei para o
deserto. Semelhante ao encontro de Jacó e Raquel no poço, Moisés sedento, ajuda as mulheres
a se livrarem de pastores embusteiros e dá água as ovelhas de Jetro. Também é convidado a
morar com Jetro e ganha Zípora como esposa. De certo modo, ela é citada pelo nome por causa
de seu casamento com Moisés, o libertador do povo israelita do Egito.
Há alguns casos de muitas personagens citadas apenas nas genealogias dos homens aos
quais elas estão ligadas como a esposa cananeia de Simeão (Êxodo 6, 15), Joquebede (v. 20),
Eliseba, mulher de Arão irmão de Moises (v.23) e no v. 25, a esposa de Eleazar, filho de Arão.
No capítulo 10, as mulheres são citadas como filhas, Moisés argumenta com o rei dizendo que
todos sairiam do Egito, filhos e filhas. Pode ser um modo de inclusão diante da resistência do
Faraó. Mas também pode ser uma das raras vezes que as mulheres são incluídas independente
de homens, ou junto aos homens. Tem -se ainda em Êxodo 15, uma festa promovida por Mirian,
a profetisa, irmã de Moisés que, após passar o mar vermelho e ouvirem o canto de Moisés a
Deus, elas e as mulheres dançaram e cantaram uma antífona que exaltava a Deus.
A partir do verso 20, Moisés recebe as tábuas das leis e o ensino de Deus para a conduta
moral, cívica e religiosa do povo. Somente no próximo tópico é que vamos discutir os termos
da lei referente à mulher e sua situação entre o povo de Israel. Ainda em Êxodo (35, 22-29),
110

aparecem as mulheres que doaram joias e ofertas voluntariamente para o Tabernáculo; (Ex. 25-
26) mulheres tecelãs, mulheres que serviam à porta do Tabernáculo e doam espelhos de bronze
que serviram para a base da bacia de bronze.
A próxima personagem só surgirá em Levítico (24, 11), Selomite é o seu nome e entra
em cena porque seu filho é acusado de blasfêmia contra Deus, e é trazido pelo povo para ser
julgado por Moisés. Em seguida, dizem que é o filho de Selomite. Após julgado, o rapaz é
apedrejado. Não se encontra nenhuma razão aparente para a citação da mãe do rapaz. Seria ela
uma mulher influente? Seria alguém de quem não se espera que o filho tenha tal
comportamento? Ou uma maneira de acusar a mãe pela má criação de um filho? Entretanto,
nada mais é dito sobre ela.
No livro de Números temos menos personagens femininas ainda. No capítulo 12
intitulado, “O castigo de Mirian”, tem -se a irmã de Moisés, aquela citada como a menina que
olhava o cesto do bebê jogado no rio, aquela que, timidamente, faz refrão ao Cântico de Moisés,
a profetisa, é nomeada nesse capítulo. Aparece também no mesmo texto, verso primeiro a
mulher Cuxita (outras traduções Cusitas), uma mulher com a qual Moisés se casara. Aliás, esse
é o motivo da confusão entre os três. Não é possível afirmar, mas conforme já apresentamos
anteriormente, a mulher de Moisés era Zípora, a Midianita filha de Jetro, no entanto, não se tem
certeza se se trata da mesma pessoa, ou seria a Cuxita, uma segunda mulher de Moisés.
O fato narrado é de que Miram e Arão falam mal de Moisés pondo em dúvida o seu
ministério de profeta em detrimento do deles próprios. Moisés, talvez por ter casado com uma
mulher estranha, e tendo não relutado frente as acusações, Deus ouvindo os comentários, não
gostou e chamou-os, os três, fora da tenda e depois de repreender a Arão e Miriam, mostrando
o quanto a sua intimidade era maior com Moisés do que com qualquer profeta, Deus retira-se
da tenda e Miriam é acometida de Lepra.
Curioso como nesse texto, o narrador se empenhou em pôr sempre Miriam em destaque.
O fato de só ela ter sido punida, desperta interpretações diversas. Parece ficar evidente a leve
rivalidade entre os irmãos, problemas familiares, mas Miriam parece ser de fundamental
importância, pois o povo só caminha quando ela sai do castigo dos sete dias leprosa. Miriam
era aquela que olhou o bebê Moisés e só se aquietou quando o menino foi achado pela princesa.
Depois Miriam intermediou a vinda de Moisés para a mãe. Assim, no capítulo 20, é citada o
fim dessa personagem na trama da ida a terra prometida. Morre Miriam e é sepultada sem choro
nem velas. Ainda são citadas as mulheres de Corá, Datã e Abirão, três homens que se
levantaram contra Moisés e forma engolidos pela terra. Dentre os capítulos 24 e 25 de Números,
as filhas de Moabe são citadas como filhas da perdição, mulheres que induziam os homens a se
111

prostituírem e adorarem aos seus deuses30. Segue-se nesse capítulo a presença de uma mulher
e sua chocante morte, inicialmente, conhecida apenas como uma mulher moabitas, mas ao fim
do texto, descobrimos que se tratava de Cosbi, uma princesa ou sacerdotisa dos moabitas.
Personagens interessantes são as filhas de Zelofeade: Macla, Noa, Hogla, Milca e Tirza.
Elas são cinco mulheres herdeiras, pois seu pai não teve filhos homens. Na divisão de terras,
registrada no Capítulo 26 e verso 33, Moisés pede que seja feito o senso do povo e é justificado
o fato de Zelofeade não ter filhos. De certo, as mulheres não eram contadas nos censos. Assim,
na divisão de terra, tudo parecia que elas não poderiam herdar. Elas vão até Moisés, o sacerdote
Eleazar, e demais homens do conselho na porta da tenda e reivindicam seus direitos,
justificando que seu Pai estava entre os que lutaram pela conquista da terra e elas deviam ter
parte. Moisés consulta Deus, que lhe diz que elas devem herdar a terra, e a partir daquele
momento, todo homem que não tiver filho homem, suas filhas terão direito a herança.
Entretanto, deviam se casar entre família, com membros da própria tribo.
Outras personagens ainda em Número são as mulheres e as crianças midianita tomadas
como despojo na guerra contra os reis e sacerdotes midianita. (Nm: 31,9 -18).
Fechando os livros do Pentateuco, em Deuteronômio não se encontra personagens
específicas, mas leis a respeito da conduta feminina, determinações sobre viúvas, estrangeiras,
são citadas como filhas, virgens, apresentando direitos ou castigos em detrimento dos
comportamentos nos eventos e ritos culturais, sociais e religiosos. As mulheres são citadas
como mortas em guerras e as que são de outras nações, mesmo sendo despojos eram impuras
para esposas. Ressaltam as mulheres férteis como abençoadas e, por fim, as delimitam sempre
levando em consideração os homens, a quem se referem quase sempre, garantindo o direito e o
bem-estar deles.

30
Números (25, 1-12) (...) começou o povo a prostituir-se com as filhas dos moabitas. Estas convidaram o povo
aos sacrifícios dos seus deuses, e o povo comeu e inclinou-se aos deuses delas. Habitando Israel em Sitim, começou
o povo a prostituir-se com as filhas dos moabitas. Juntando-se Israel a Baal-Peor, a ira do SENHOR se acendeu
contra Israel. Disse o SENHOR a Moisés: Toma todos os cabeças do povo e enforca-os ao SENHOR ao ar livre,
e a ardente ira do SENHOR se retirará de Israel. Então, Moisés disse aos juízes de Israel: Cada um mate os homens
da sua tribo que se juntaram a Baal-Peor. Eis que um homem dos filhos de Israel veio e trouxe a seus irmãos uma
midianita perante os olhos de Moisés e de toda a congregação dos filhos de Israel, enquanto eles choravam diante
da tenda da congregação. Vendo isso Finéias, filho de Eleazar, o filho de Arão, o sacerdote, levantou-se do meio
da congregação, e, pegando uma lança, foi após o homem israelita até ao interior da tenda, e os atravessou, ao
homem israelita e à mulher, a ambos pelo ventre; então, a praga cessou de sobre os filhos de Israel.
9 Os que morreram da praga foram vinte e quatro mil. Então, disse o SENHOR a Moisés: Finéias, filho de Eleazar,
filho de Arão, o sacerdote, desviou a minha ira de sobre os filhos de Israel, pois estava animado com o meu zelo
entre eles; de sorte que, no meu zelo, não consumi os filhos de Israel. Portanto, dize: Eis que lhe dou a minha
aliança de paz.
112

A intenção em apresentar aqui os contextos de cada personagem feminina no


Pentateuco, seguindo os livros, é para que fique claro como a atuação da mulher no Primeiro
Testamento e seu papel na sociedade é representada. A vida dessas mulheres é explanada para
mostrar qual foi a influência e atuação que tiveram na sociedade em que viveram e como essa
sociedade as via, e instituíam seu papel em sua estrutura. Numa sequência de acontecimentos,
cercados de relatos tão significativos, podemos vivenciar as diferentes situações que as
mulheres da Bíblia viveram, cercadas por normas, ritos e concepções equivocadas sobre o
feminino. Entretanto, muitas delas rompem as amarras e vão além do que se estipula para um
comportamento de mulher. Elas protagonizaram suas histórias e mudaram a história de seu
povo.
Assim, feita a apresentação das personagens femininas que compõem o Pentateuco ou
a Torá, partimos em busca de mapear as personagens nos livros históricos, compostos por 12
livros que relatam toda a história de Israel, desde a entrada até a conquista da terra prometida:
Josué, Juízes, Rute I e II Samuel, I e II Reis, I e II Crônicas, Esdras, Neemias e Ester. Esta
organização está na Bíblia cristã, inclusive na Bíblia corpus desse trabalho, pois acreditam ser
relatos fidedignos da história passada dos Judeus.
No entanto, a comunidade Judaica os chama de livro dos Profetas, que iriam de Josué a
Reis, considerando os homens que anunciaram fatos, profetizaram tempos e acontecimentos e
introduziram costumes, que vão desde a conquista da terra, até a instauração de reinos e
sucessores, a construção do templo e de tantos fatos marcantes à tradição. Alice Laffey traz em
seu livro Introdução ao Antigo Testamento -perspectiva feminista, considerações interessantes
sobre uma abordagem histórica Deuteronomista levantada pelo Exegeta Alemão Martin Noth.
Segundo ele, um historiador Deuteronomista usou o acervo antigas fontes de histórias,
narrativas antigas e crônicas dos reis de Israel, e de Judá, arquivos de feitos reais e imaginários,
narrativas de milagres e demais acervo cultural dos antigos escribas e os compilou,
organizadamente numa saga do passado de Israel, sua fidelidade e infidelidade à aliança com
Deus e a sua lei, conforme está escrito em Deuteronômio. Ainda existe a ideia de que há dois
relatos, antes e depois do exilio da Babilônia. Porém, é difícil precisar a data e o lugar de onde
os textos foram escritos. Sobre essa hipótese Laffey (1994, p .102) nos traz a seguinte suposição
que é bem possível:

Supõe-se que o historiador Deuteronomista realizou seus projetos-unificação


das fontes e uma teologia dominante-compondo ele próprio textos
apropriados. Entre estes incluem-se os “discursos de despedidas”, como o de
Moises em Dt 31, o de Josué em Js. 23 e o de Samuel em 1Sm 12. Incluem-se
113

também segmentos de textos interpretativos, como os que explicam a ruina de


Samaria (2Rs 17) e a de Judá (2Rs 24 -25), versículos acrescentados a textos
que relatam acontecimentos particulares críticos, p. ex., o papel de Salomão
na construção do templo em 2Sm 7 e a interpretação posterior do templo em
1Rs 8. Acham-se disseminadas no meio da história certas palavras e frases
fundamentais, que dirigem a atenção do leitor para a teologia que comanda a
história, segundo o parecer do historiador Deuteronomista.

Desse modo, imaginamos que os textos se organizam em torno de uma temática que
intenciona mostrar Israel e seus heróis, rumo as conquistas prometidas por Deus, em gêneros
propícios, para que seu conteúdo histórico seja composto de forma que não se tenha dúvida da
veracidade dos fatos. Nesse contexto, em que a mulher não pratica heroísmos, ela surge
raramente nas histórias, sem nomes e identificações próprias, mas são, na maioria das vezes,
anônimas, com características simbólicas e também ligadas a homens. Em Juízes
principalmente, temos concubinas, filhas, esposas, mães, vítimas de estupros, feiticeiras, servas,
escravas, todas anônimas, mesmo ligadas a homens importantes na comunidade judaica.
No livro de Josué (Cap. 2.1 a 11), a primeira personagem é Raabe, descrita apenas como
uma prostituta que morava nas muralhas de Jerico. Os espias, enviados por Josué,
“secretamente” estão em sua casa. De um modo espantoso, a cidade fica sabendo dos espias, e
o Rei manda seus servos dizer a Raabe que entregue os homens estrangeiros que estão em sua
casa. Ela, porém, os escondeu no telhado e mente aos oficiais do Rei, dizendo que eles
realmente estiveram lá, sem que ela soubesse quem eram e, ao anoitecer, eles haviam ido
embora, sem que ela soubesse para onde. Ela ainda os incitou a seguirem atrás deles, alegando
que talvez os encontrariam, conseguindo livrar os Israelitas de serem presos e abortarem a
missão. Em troca de seu favor, Raabe propõem um acordo: quando os Israelitas vierem invadir
Jerico, salvaria a ela e toda a sua família. os homens assim o prometem e pede que ela lhes dê
um sinal por um fio de escarlate na porta, como sinal de que seria a casa ser livre da destruição.
No capítulo 6, verso 22 de Josué, tem-se a salvação de Raabe e toda a sua família conforme
haviam combinado.
A próxima personagem é Acsa, filha de Calebe, que a dá como prêmio para qualquer
homem que ferisse e conquistasse a cidade de Quiriate-Sefer (Js. 15:16 ao 19). Ela foi dada ao
seu tio, Otniel que conquistou a cidade. No Capítulo 17, versos 3, as filhas de Zelofeade são
citadas outras vez, como as herdeiras mulheres de Israel, pela falta de filhos homens.
Novamente, as mulheres dos povos em redor são más influências para os filhos de Israel: são
as filhas dos cananeus, hititas, amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus com as quais os israelitas
acabaram se casando e servindo aos deuses delas.
114

Em Juízes, começamos a observar um período31 bastante turbulento em Israel, pois era


estabelecia a Era dos líderes militares, conhecidos como juízes. Surge então o primeiro juiz, de
uma sucessão de muitos que viriam, conquistando as terras e conduzindo o povo a servir a Deus.
Até quando esse juiz morresse e outro surgisse, pois, foram repetidas as vezes essa mesma
história: durante o período daquele juiz, o povo “se volta para Deus”, entretanto, sem um líder
o povo se volta ao pecado, a cultuar a outros deuses. Numa dessas sucessões ao cargo, sem
nenhum aviso, conhecemos Débora, a profetisa que se transforma em Juíza, nos alertando de o
quarto Juiz é uma mulher. O levantamento do contexto, apresentado pelo narrador que nos leva
a observar a degradação moral do povo, as repetidas quedas dos homens, apostasias, ciclos de
violências e imoralidades, parece nos querer fazer acreditar de que não é um espaço para a
mulher transitar, nem tão pouco ter alguma participação social, e menos ainda governar, atuar
tendo poder e destaque. Curiosamente, Débora é apresentada por seu nome, apesar do narrador
ressaltar que era mulher de Lapidote, ela é apresentada como profetisa, a mulher que era
consultada pelas tribos do norte e sul, em meio à crise moral e espiritual que assolava as tribos,
ela se torna juíza das causas do povo.
No mesmo capítulo 4, encontramos Jael, versículo 28, era uma beduína, casada com
Héber, da tribo do Queneu, seminômade do deserto, uma estrangeira que, mesmo assim, aceitou
a luta de Israel e matou a Sísera, o general inimigo de Israel, mas conhecido de seu marido. Por
essa razão, o general que fugia, entrou em sua tenda e lá foi morto por Jael, de forma violenta.
Outra personagem que surge no Canto de Débora é a mãe de Sísera que aparece no
versículo 29 e 30, também as damas da mãe de Sísera, chorando pelo filho morto por Jael.
Débora surge sem alarde, os fatos são apresentados numa normalidade, como se fosse realmente
comum, mulheres se inserirem nesses espaços da justiça, da liderança de algo que não seja sua
cozinha. Tais personagens, Débora e Jael, sem detalhe são heroínas, em meios a tantos outros
guerreiros, heróis e libertadores da tribo de Israel. Estas duas personagens analisaremos mais
a frente, neste trabalho.
Ainda em Juízes são citadas (Jz 8, 30-31), as esposas e concubinas de Gideão, dentro da
apresentação do próprio Gideão, conhecido por ser um dos juízes que venceu uma famosa
guerra de Israel, com trezentos homens, contra os midianitas. Em virtude da sua história,
sabemos que teve setenta filhos, das muitas esposas e concubinas. Dessas concubinas, uma das

31
Após o cativeiro do povo israelita no Egito, a travessia no deserto com o líder Moisés, o povo segue em busca
da sonhada terra prometida. Somente após a morte de Moises que seu sucessor Josué alcança a terra e já assentados
em Canaã, as tribos de Israel tem que enfrentar inúmeras guerras para permanecer em suas terras. Após a morte
de Josué começam os diversos mandatos dos juízes, entretanto, mesmo que muitos deles alcancem êxitos, há
entraves e problemas constantes por causa do afastamento do povo israelita de Deus.
115

terras de Siquém, nasce Abimeleque, ao que tudo indica, sua mãe não teria ido morar com
Gideão, portanto, Abimeleque seria filho ilegítimo. Porém, o povo queria tornar Gideão rei, que
rejeitou e, por isso, Abimeleque quis tomar o reino rejeitado de seu pai, matando todos os filhos
de Gideão, seu pai. Justifica-se a razão de aparecer tantas vezes a “mãe de Abimeleque e seus
parentes, no que parecia uma guerra travada de famílias pelo poder. Após tornar-se líder do
povo e agir com tirania, Abimeleque destrói seu próprio povo de Siquém.
Nesse contexto, surge em Juízes 9, as mulheres de Siquém (cidade) que junto com os
homens enfrentam o governo tirano de Abimeleque, morrendo queimados. No verso 52 do
capítulo 9, surgem mulheres de Tebes, que por medo da guerra instaurada de Abimeleque contra
Siquém, se resguardam em uma torre que ficava no centro da cidade. Homens e mulheres se
abrigaram e trancaram as portas. No cerco, Abimeleque chega a entrada da torre e enquanto os
homens defendiam-na atirando flechas, as mulheres atiravam utensílios domésticos, mas
ironicamente, uma mulher atirou uma pedra que acertou o crânio de Abimeleque que, ferido de
morte, implorou ao seu escudeiro que o matasse a espada para não sofrer a vergonha de ser
morto por uma mulher32. Isso é curioso, porque observarmos como as personagens femininas
realizam feitos grandiosos, mas não são evidenciados, como também seus nomes são ocultados
propositalmente ou revelados quando é conveniente ao narrador. Entretanto, ambas estão
sempre interligadas a homens, nas histórias deles.
No capítulo 10 aparece nos relatos da história de Jefté, uma narrativa inusitada e cheia
de surpresas, a presença de uma personagem apresentada como a mãe de Jefté, uma prostituta.
Mesmo não tendo nenhuma descrição ou identificação desta mulher, o fato dela ser uma
prostituta é citado para dar uma conotação negativa as credenciais do futuro líder. Vejamos esse
trecho em Juízes (10,1- 3):

Era, então, Jefté, o gileadita, homem valente, porém filho de uma prostituta;
Gileade gerara a Jefté. Também a mulher de Gileade lhe deu filhos, os quais,
quando já grandes, expulsaram Jefté e lhe disseram: Não herdarás em casa de
nosso pai, porque és filho doutra mulher. Então, Jefté fugiu da presença de
seus irmãos e habitou na terra de Tobe; e homens levianos se ajuntaram com
ele e com ele saíam.

Como observamos, as duas personagens que se relacionaram com Gileade, ambas não
têm nome, mas uma é legítima e a outra prostituta. Em consequência, os filhos da legítima é

32
No antigo oriente, ser morto por uma mulher representava uma maldição e desonra para um guerreiro. Nota
tirada da Bíblia da mulher: juízes (9,4).
116

bem quisto, são príncipes, mas o filho da prostituta é rejeitado e passou a morar distante, se
tornando um delinquente ou vivia com homens de má fama. Entretanto, esse homem torna-se
líder pela coragem de enfrentar os amonitas que dominavam Israel e, a convite dos anciões de
Israel, chamaram e constituíram Jefté seu líder. Surgem então, em torno da história de Jefté uma
outra personagem anônima, conhecida apenas pela filha de Jefté. A personagem nos é
apresentada no verso 29 do Capítulo 11. Jefté, diante das ameaças dos amonitas, vota a Deus
que, se vencer seus inimigos, ao voltar para casa, a primeira coisa que saísse ao seu encontro
ele sacrificaria a Deus em holocausto. Jefté tinha uma filha moça, e esta sai, feliz dançando e
cantando, comemorando a vitória e o regresso do pai que, ao vê-la, se desespera, pois, sabia do
voto e da obrigação de cumpri-lo. Ao notificar a moça sobre seu voto, resignada, ela o aceita,
pede dois meses para “chorar sua virgindade33” com as moças de sua companhia e, ao término
do tempo, entregou-se para ser sacrificada. Champlin (2001) relata que os amonitas foram
totalmente derrotados, mas com tremendas perdas para Jefté que voltou vitorioso para casa:
“Houve música e danças em celebração à vitória. Mas Jefté sentia-se tão derrotado quanto os
amonitas” (CHAMPLIN, 2001, p. 686).
Na verdade, os sacrifícios humanos eram proibidos por Deus na lei dada a Moises, sendo
essa uma prática dos Cananeus, por isso, era um voto precipitado e sem necessidade de ser. A
moça sem nome foi, como Isaque, entregue em sacrifício e, sem livramento, foi sacrificada.
Dentre essas mulheres, temos ainda as 30 filhas de Ibsã, como as cotadas entre os 60
filhos desse juiz. O pai arranjou os trinta casamentos delas com homens de fora. No Capítulo
13, temos a personagem mãe de Sansão. Observemos que do verso 2 ao 24, o narrador se referirá
a ela, mesmo sendo a bem-aventurada que dantes estéril, tal qual as matriarcas, agora vê um
anjo e ouve dele, por duas vezes, de que será mãe, tendo a sorte mudada por essa visita. Mesmo
assim, a personagem é apresentada depois de ser citado seu marido, nome, linhagem, como uma
mulher estéril: “havia um homem de Zorá, da linhagem de Dã, chamado Manoá, cuja mulher
era estéril e não tinha filhos”. (JUÍZES 13,2).
Assim, ao passo que a história de Sansão avança, outras mulheres também sem nomes
são citadas. Nos versos. 2-20 a primeira esposa de Sansão aparece como a mulher de Timna,
cidade Filisteia. Sansão, ao ver a moça, deseja ela como esposa, que é trazida pelos pais de

33
Segundo a tradição judaica, uma mulher nasceu para ser de um homem, ter filhos. Ela não tivera tido
oportunidade de ter filhos, o que era considerado uma desgraça em Israel. Outrossim, sendo ela morta, isso
significaria que Jefté não teria quem lhe continuasse o nome, visto que ela era filha única. E isso também era
considerado uma calamidade em Israel. Retirado do Dicionário Vol 6 de Champlin (2001. P 786).
117

Sansão e, mesmo relutante por ser uma estrangeira, aceitam o casamento. No dia da festa,
Sansão diz um enigma a seus companheiros de casamento, que consistia numa espécie de
protetores do noivo, e foi acordado que, se não decifrassem o enigma, eles teriam que arcar com
as despesas da festa. Temendo terem tamanho prejuízo, ameaçaram de matar a noiva e de punir
também seus pais, forçaram-na a pedir a Sansão a resposta. Por medo, descobre o significado e
conta aos protetores, porém Sansão, depois de matar 30 homens, paga a aposta, mas despreza a
sua noiva e não entra nos seus aposentos34, que é dada a outro homem.
A segunda personagem feminina ligada a Sansão é uma prostituta, com quem se deita
em Gaza. A terceira mulher é a famosa Dalila. Esta tem nome próprio, lugar onde morava (Vale
de Soreque), ao contrário da primeira esposa e da prostituta que não tem nomes. Sansão se
afeiçoa a Dalila, conhecida como sinônimo de traição, pois, segundo o narrador ela, por dinheiro
e influencia entre seu povo filisteu, vai aos poucos engodando Sansão para que lhes conte o
segredo da força. Na terceira tentativa, ao descobrir que sua força estava nos cabelos, o faz
dormir em seu colo, cortando seus cabelos e o entregando aos seus inimigos, os príncipes
filisteus. Quando acorda, Sansão vê que foi traído e se depara com seu triste fim: preso,
torturado e levado ao templo da Dagom e, por fim, suicida-se, matando também seus inimigos
no dia da sua morte. De Dalila, não se sabe mais nada.
A próxima personagem também é muito interessante, em Juízes (17, 1 - 4). A mãe de
Mica, segundo o relato, também sem nome, mas, possivelmente pertencia a uma religião ou
crença pagã que acreditava nas maldições lançadas sobre objetos ou pessoas. Assim ela tinha
uma quantidade de dinheiro que lhes foi roubada e lança a maldição sem saber que era seu filho
o ladrão. Mica confessa e devolve o dinheiro, e sua mãe o dar definitivamente para que ele
fizesse um deus. Não se ouve mais sobre essa personagem, mas o deus e o sacerdócio
comprados de Mica, atrai pessoa para sua tenda. Assim vem levitas, e a tribo de Dã para
guerrear e tomar posse de terras.
Surge no Capítulo 19, uma chocante narrativa que traz uma personagem muito
marcante, apesar de não ter nome, nem origem, sendo tratada apenas como uma concubina,
mulher do Levita. Não fica claro se se trata de um mesmo levita que vem para morar com Mica
e torna-se seu sacerdote assalariado. A concubina aparece na narrativa indo embora, morar com
seus pais. Ao que parece já não era bem tratada, por isso foge. O levita a persegue, e pela

34
Segundo comentário de Juízes 14: 10 e 11, na Bíblia da mulher, havia sido feito um acordo matrimonial em que
a mulher ficava na casa do Pai e o marido a visitaria periodicamente. Dos filhos nascidos da relação, eles
pertenciam a família da mãe. Por essa razão o banquete era na casa do pai da moça, feito pelo noivo. No caso
Sansão.
118

insistência do pai em que o genro demore em suas terras, temia pela vida da filha. Entretanto
ela é dada de volta, e ambos seguem para casa. No caminho, o homem persiste em andar sem
descanso e caminhando por terras perigosas, até que, pela insistência dos servos, descansam na
praça de Gibeá. No meio da rua e sem acolhimento, um Senhor convida-os a sua casa, mas na
alta noite, os homens da cidade desejam visitá-los. Para acalmar os homens, o Senhor dono da
casa, oferece sua filha virgem e a concubina do Levita. Mas somente a concubina foi posta para
fora de casa e entregue cruelmente aos homens. Essa mulher foi abusada a noite inteira, e pela
manhã deixaram-na caída a porta da casa onde estava seu marido. O marido só a viu pela manhã,
sem fala, quase morta e a esquartejou, enviando partes dela para as tribos. Tal estupro e morte
desta personagem, foi repugnante aos olhos de quem via ou ouvia falar dessa história. Porém,
mesmo se instaurando uma guerra entre israelitas e a tribo de Benjamim, nada foi feito aos
homens que a entregaram nas mãos de bandidos, sem que ninguém as protegesse.
Aparecem, por fim, no texto de Juízes (20, 21), as mulheres Benjamitas viúvas, como
também devido ao voto de não darem filhas de outras tribos aos homens de Benjamim, os filhos
de Israel, ao resolverem perdoar a tribo de Benjamim, queriam conseguir esposas de fora de
suas tribos para os Benjamitas. Por isso, decidiram ir a Jarbes-Gileade, por ter sido uma tribo
que não participou da guerra. Faltando ainda mulheres para os seiscentos homens, foram ainda
a Siló, onde estavam comemorando as festas religiosas, quando foram também atacadas e
levadas para serem esposas dos Benjamitas solteiros, afim de serem salvos da extinção. As
dançarinas de Siló, nem imaginavam que suas danças e alegrias seriam interrompidas por
atitudes violenta e imorais.
Em Rute temos algumas personagens femininas, como a própria Rute, uma estrangeira
que se torna povo de Israel por opção e vontade pessoal. O livro é de Rute, mas ela não escreveu
sua história, tão pouco é o foco principal da narrativa, não por intenção do autor. Mas, é notável
que, mesmo assim, as mulheres têm um lugar especial nesse livro, sendo responsáveis pelas
ações e andamento da história. A narrativa inicia trazendo o anonimato para o homem e sua
mulher, mas no verso dois, ambos são nomeados: Noemi, a esposa será o nome mais forte, pois
saem todos peregrinando em busca de terras melhores do que as de Belém de Judá, passando a
morar em Moabe. Lá, os filhos se casam e os três, marido e os dois filhos de Noemi, morrem,
restando as três mulheres viúvas: Noemi e suas duas noras: Orfa e Rute. O livro gira em torno
destas três personagens, saindo logo de cena a nora Orfa, pois desiste de acompanhar a sogra,
ficando só Rute que cuida da sogra e atende seus conselhos. Vai trabalhar com Boaz, um homem
rico e influente, parente de Noemi. Era época das colheitas, Rute apanha as espigas nas terras
119

e, com base nos conselhos da sogra, deita-se aos pés 35de Boaz, observando onde ele se deitasse
e pedir-lhes que jogue sobre ela a capa de proteção. Assim, já atraído por Rute, Boaz promete-
lhe casamento. Contudo, identificamos mais um clímax que se trata de um remidor mais
próximo de Noemi, e é necessário que ele decida se quer casar-se com Rute. Porém, para a
felicidade do romance, o remidor abre mão de seu direito e Boaz assume-a diante dos anciões
de Israel e a torna sua esposa. Rute resgata o nome da família de Noemi e tem um filho que ela
o chama de Obede, futuro avô do Rei Davi, que dará continuidade a descendência de Jesus.
Assim, Rute é parte da genealogia de Jesus por sua fidelidade e dinamismo para lutar pelo que
acredita, pelo que poderia salvar sua vida e a de sua sogra. Da condição de viúva, para uma
mulher redimida.
Em I Samuel, aparecem logo no capítulo 1, duas personagens femininas, Ana, a mãe do
profeta Samuel, autor do livro, e Penina a segunda mulher de Elcana, pai de Samuel. Ana era
estéril e sofria muito, pois Penina tinha dado filhos a Elcana, mas Ana era a mais amada e, por
isso, era odiada por Penina. Ana faz oração a Deus no templo, e é interessante que é uma das
personagens que nos é possível saber de sua angustia, pois o narrador se preocupa em descrevê-
la; Ela orava e chorava, a ponto de ser confundida pelo sacerdote, com uma bêbada. Ana ganha
fala e expõe que sendo uma mulher angustiada de espírito estava orando a Deus. O sacerdote
abençoa Ana, que havia pedido um filho varão a Deus e votado que, se fosse atendida, daria o
filho de volta a Deus para viver no templo. Nascem então, Samuel e mais sete filhos, mas
consagrado a Deus, Samuel, quando tinha por volta de 6 anos, foi levado ao templo para ser
sacerdote. Ana representa bem a angústia que era ser mulher em Israel, numa relação bígama e
ainda não podendo gerar filhos. A exemplo das matriarcas, ela apela para Deus e pede para ser
mãe, que lhe premiou com um filho que seria um sacerdote e profeta importante em Israel, em
tempos de uma sucessão de atos cruéis, violentos que demonstrava a degradação desse povo.
No verso 4, as filhas de Penina e Elcana são citadas. O capítulo dois traz um belo cântico de
Ana.

35
O livro apresenta a lei do levirato, nos fazendo compreender sua aplicação. Portanto, Rute, na condição de
estrangeira convertida, seguindo os conselhos de sua sogra, deita-se aos pés de Boaz como era de costume em
Israel, quando se queria alcançar proteção de alguém, que se tornaria o remidor. Os escravos tinham essa prática,
portanto Noemi, usou a estratégia para chamar a atenção de Boaz para Rute. Talvez percebendo a atração entre os
dois. No levirato, o cunhado ou parente mais próximo se casa com a viúva, afim de dar continuidade ao nome do
falecido, tendo filhos com a viúva, como se fosse do falecido. Entretanto, outras interpretações querem dizer que
o momento na eira de Rute e
Boaz tem conotação sexual. Partilhamos visão de Champlin (2001) que diz que Rute foi sedutora e feminina, sem
ser vulgar. Portanto, deitar-se aos pés foi um ato literal, mas simbólico. Assim como o remidor primeiro de Rute,
abre mão do direito retirando a sandália do pé, na presença dos anciões.
120

As próximas personagens são as duas filhas de Ana e Elcana, as 22 mulheres que


serviam à entrada do Tabernáculo e se deitavam com os filhos do sacerdote, a esposa de Finéias
um dos filhos de Eli. Essa mulher sabe também da notícia, que ainda tinham levado a Arca do
Conserto do templo e, grávida, apressou-se com dores e teve a criança prematura, com a ajuda
das parteiras. A moça morreu no parto, mas enquanto agonizava, as mulheres perguntaram
como chamariam o bebê, que foi chamado de Icabô (hebraico literal: foi-se a gloria de Israel).
Para ela, o sagrado era tão importante que as perdas pessoais se inferiorizaram diante da perda
do objeto sagrado e a glória de sua nação. Do capítulo 4 ao 8 não há personagens, mais uma
citação rápida a umas moças que tiravam água e deram informação a Saul, futuro rei de Israel,
sobre a casa de um vidente.
Seguem-se todas as narrativas em Samuel, com a predominância das histórias de
homens, de forma que as mulheres são citadas aleatoriamente, pelo curso das ações em que elas
são meras coadjuvantes, sem nome, sem origem, sem aparentemente, importância para a
narração. Assim, citamos as duas filhas do rei, apresentadas no capítulo 14 e verso 49 como a
mais velha, Merabe, e a mais moça, Mical. Ainda Ainoã, a mulher do Rei Saul, que não é
chamada de Rainha e Merabe, a moça oferecida por seu pai, Saul, para o homem que vencesse
o gigante Golias. Ao longo do texto de Samuel, à medida que vamos conhecendo a história de
Davi, vamos nos deparando com a histórias dessas moças, marcadas pela própria história
desajustada de seu pai, Saul. Quando Davi venceu a Golias, ele se recusou casar com a filha do
Rei, dizendo não ter dote. Não fica claro, se Davi, já queria a Mical, irmã de Merabe, já que
Mical já demostrava uma paixão por Davi (Sl.18:20). Essa foi a primeira esposa dele, pois ele
para ser seu marido, aceitou o pedido de Saul, para que o dote fosse 100 prepúcios dos filisteus.
Saul intentava se desfazer de Davi, pois tinha inveja dele. Por isso acreditava que Davi
não conseguiria o feito e morreria em batalha, mas Davi lhe traz 200 prepúcios. Mical ama a
Davi e o salva várias vezes da morte pelas mãos de seu pai. No Capítulo19, verso 12, Mical dá
fuga a Davi, mas não o vê mais. Ela é dada a outro homem em casamento. Somente no segundo
livro de Samuel, Mical reaparece. O romance conturbado de Davi e Mical não ganha um espaço
só dentro do texto. Davi, durante todo esse tempo, não procura sua esposa e não a livra de ser
dada a outro homem. O guerreiro que arranca duzentos prepúcios de filisteus, não é capaz de
retomar sua esposa de um único homem? E onde ficam os feitos e risco que por amor, Mical
enfrentou para salvar a vida do futuro Rei de Israel?
No Capítulo 2 de II Samuel, Davi após derrotar Isbosete, irmão de Mical, em acordo
político e econômico com Abner, exige que ele devolva Mical sua mulher. Essa situação revela
121

como a vida de Mical, mesmo sendo uma princesa foi tumultuada, cheia de traumas e tristezas
por causa das atitudes machistas de seu pai, de seu marido Davi, de seu irmão.
Em Samuel 3 e 13, ao ser tomada do marido, este veio chorando atrás da carruagem até
quase a casa de Davi. Mical também voltou amarga, parecia ter passado sua paixão e admiração
por Davi. Assim como vemos no Capítulo 6 de Segundo Samuel, ela o detestar, a ponto de até
suas ações diante da arca sagrada a incomodar.
Na verdade, como se costuma interpretar entre homens e mulheres machistas, que Mical
despreza o sagrado, Mical despreza a conduta dupla de Davi, que louva e fica feliz diante das
pessoas, sobre as coisas de Deus, mas procede com dureza e desumanidade com sua esposa.
Davi também é responsável pela vida amarga de Mical. No verso 23, Davi se mostra mais
insensível a Mical quando ouve dizer que ele não tem postura de Rei diante das servas, Ele
ressalta que mesmo assim foi escolhido e o pai dela não. O texto encerra a história de Mical
como estéril, como se quisesse nos dizer que ela foi castigada. Assim, Davi não a tocava
enquanto mulher. A ternura de uma jovem apaixonada, transforma-se em repulsa e solidão
diante das incompreensões de um homem poderoso, mas fraco em atitudes para com seus
relacionamentos.
Continuando com nossa descrição, as próximas personagens são as mulheres dançarinas
que cantavam e elogiavam as vitórias de Saul e Davi, fundamentais na trama que se sucede no
livro, pela inimizade que se faz entre Saul e Davi, porque as mulheres dançavam e cantavam,
dando destaque para Davi, suscitando a inveja em Saul. Ainda vemos a mãe de Davi, pela qual
ele pede proteção ao rei de Moabe, as mulheres de Nobe, são personagens de uma chacina,
quando Saul mata os sacerdotes de Nobe, mata também todas as mulheres. (cap. 22: 19). No
capítulo 25, conhecemos uma personagem significativa, Abigail, esposa de Nabal. Após a morte
de Samuel, Davi se retira da cidade temendo ser mais perseguido pelo rei Saul. Nas terras de
Nabal, em Maon, Davi fica uns dias nessas extremidades, propondo a Nabal uma troca de
favores. Nabal daria alimento para ele e sua tropa e Davi lhes concederia homens para sua
guarnição. Ao que indica, Nabal já possuía um pequeno exército, era rico e influente. Porém,
não era generoso, mas dominador e extremamente ignorante. Ao receber o recado de Davi,
Nabal foi bastante áspero e não quis acordo. Quando Abigail soube do fato, apressou-se e junto
com o seu servo, aprontou todo o alimento e foi ao encontro de Davi. Ela aplacou a sua ira, pois
Davi já vinha com todos os homens para matar a todos. Abigail, dócil e sábia, conquista o
coração de Davi. Este segue seu caminho, enquanto Abigail retorna a sua casa. Dias depois,
Nabal enfarta e morre e, viúva, Abigail é tomada por Davi como esposa. Esta segue com suas
cinco moças acompanhantes ao encontro de Davi.
122

De fato, a grandeza desta mulher se faz em oposição ao seu marido, mas em relação a
Davi, ela é só mais uma mulher em seu harém. Depois dela, ele se casou com muitas outras e,
ao mesmo tempo que casou com ela, casou-se também com Ainoã (v. 43 do Capítulo 25). A
médium de En-Dor era uma personagem interessante, pois era uma das pouquíssimas mulheres
que exercia a feitiçaria, prática proibida em Israel. Muitas tinha sido morta. Saul se disfarçava
e ia consultá-la.
Nesse sentido, o livro de Samuel, originalmente, é formado por um único livro. Na
realidade, no Cânone hebraico formavam um livro só Samuel e Reis. Assim, tanto a Septuaginta
grega como a Vulgata latina chamam I e II Samuel de "I e II Reis" foram divisões posteriores.
A primeira parte teria sido escrita por Samuel e após sua morte, Natã e Gade deram continuidade
aos relatos do livro do Reino. Da mesma forma que antes, há referências ao feminino, citações
rápidas de nomes de mulheres de homens importantes, na lista de filhos do Rei Davi, por
exemplo, no capítulo 3. Verso 2 temos: Ainoã, Abigail, Maaca, Hagite e Abital, Eglá, Rispa e
Mical e seus respectivos filhos para o Rei Davi.
No capítulo 4 e verso 4, surge a ama de Mefibosete. Apesar de não ter nome ela tem
uma importância no texto, pois salva o único descendente do Rei Saul, no momento da morte
deste e do pai de Mefibosete, Jônatas, grande amigo de Davi. O menino acaba coxo, na angustia
da fuga, a ama o deixa cair e ele fica aleijado. Mesmo assim ela o salvou e cuidou dele.
Aparecem ainda em Samuel as concubinas e filhas de Davi. Não há nome das mulheres.
No capítulo 6 de 2 Samuel, consta o retorno de Mical ao texto. No capítulo 11, conhecemos
mais uma personagem que sofre diretamente as incoerências do Rei Davi. Bate-Seba, esposa
de Urias, um oficial do Rei, que está em campo de batalha. No verso 1, o narrador nos dá uma
informação importante: “No tempo em que os reis costumam sair para a guerra, enviou Davi a
Joabe, e seus servos, com ele, e a todo Israel, que destruíram os filhos de Amom e sitiaram
Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém”. Assim, o Rei ocioso e distante de seus compromissos,
enquanto estão na guerra, ele passeia pelo seu palácio e de sua varanda, ele vê a bela Bete-Seba,
que se banhava, e a deseja, pondo em seguida o adultério em ação. Os mensageiros, a mando
de Davi, vão a casa de Bete-Seba e a trazem. O texto é claro. No verso 3, Davi pergunta quem
é a mulher e os informam que é filha de Eliã, esposa de Urias, o heteu. Mesmo assim, ele a
manda buscar. É difícil imaginar que uma mulher pudesse se negar a um rei. Veja que para
fugir da morte, Abraão pede a Sara para dizer que é irmã dele, pois sabia que era costume
naquelas terras orientais, chefes poderosos, machistas, escolherem as mulheres e tê-las ao seu
bel prazer.
123

Por isso, interpretações que alegam que Bate-Seba estava exposta, nua, com má
intenção, pode ter viés de machismo e de misoginia, uma vez que o palácio de Davi era alto e
bem colocado entre montes, sendo possível ver o que estava situado abaixo do palácio. Bate-
Seba fica grávida e avisa a Davi e este comete o segundo crime: tenta convencer a Urias a ir
para casa deitar-se com a mulher, afim de ocultar a paternidade. Assim, o soldado luta por uma
pátria que não é sua, e se recusa a se deleitar e ter prazeres com sua esposa, enquanto os seus
compatriotas estão na guerra. Vendo que não conseguiria seu intento, Davi passa de adúltero a
assassino, pois premedita a morte de Urias e, em acordo com o General de seu exército, põe
Urias onde a batalha era mais intensa. Bete-Seba, pranteia seu marido, grávida, após o luto é
levada ao Palácio, perde o filho e acumula-se de decepções, pois sente na pele a dor de perder
seu marido, o filho e a paz de espírito. A prova é tanta de que os atos de Davi inquietaram a
Deus, que este o repreende através de Natã, e faz o próprio Davi ler sua sentença.
Desse modo, nos consolamos em saber que Bete-Seba tem outros filhos e usa a sua
desgraça como oportunidade de mudar os fatos. Ela treina Salomão para assumir o trono do pai,
e com apoio do Sacerdote e do General, ela alcança esses tempos e se torna a rainha-mãe. Os
conflitos continuam em torno de Davi. Segundo a profecia de Natã, a espada com a qual Davi
matou Urias, não se apartaria de sua casa.
A próxima personagem no Capítulo 13 de Samuel é a princesa Tamar, estuprada pelo
seu meio irmão o primogênito de Davi, Amnom. Ele usou de estratégia, dizendo ao pai estar
doente e queria comer das mãos de Tamar, sua irmã. Davi concedeu seu desejo e no quarto,
sozinhos, Amnom estupra sua irmã, mesmo diante dos rogos da moça, ele não se sensibiliza e
após o ato, a joga para fora de seu quarto, com nojo da pobre princesa. Esta passou a ser uma
jovem amargurada, pelos traumas de um abuso dentro de casa e mais ainda, pelo silêncio de
seu pai que não tinha moral para falar contra sua casa, devido suas condutas com as mulheres.
Tamar foi vingada por Absalão seu irmão germano, este matou a Amnom, seu irmão sanguíneo.
O sofrimento de Tamar só se tornava maior, pois era obrigada a ver seu pai chorar pela morte
de Amnom, seu primogênito, todos os dias, querendo vingar a sua morte, mantando Absalão,
sem considerar o mal que fizera a sua própria filha.
A próxima personagem também está ligada a história dos filhos de Davi, pois foi uma
mulher conhecida como a sábia de Tecoa que, a pedido de Joabe, armam uma situação para que
o Rei jugue a causa da mulher, idêntica a situação de seus filhos, perdoando Absalão que havia
fugido da presença do rei. Absalão retoma as terras do pai e sua irmã Tamar, mora com ele,
como uma viúva. Ao nascer-lhe uma filha, Absalão dá a ela o nome da tia. Aparecem ainda em
Samuel, as concubinas de Davi, que são obrigadas a deitar-se com Absalão, numa tenda armada
124

no meio da praça, para afrontar seu Pai Davi, quando ele retorna ao seu reino, após a morte de
Absalão, as deixa enclausuradas em uma casa e nunca mais teve relações com elas.
Temos ainda uma outra personagem que aparece apenas como informante de Davi, em
En-Rogel, a mulher de Baurim que ajuda Davi a se esconder num poço, na fuga, Abigail e
Zeruia, mulheres ligadas a Joabe. No capítulo 20 e verso. 16-22, outra vez, temos uma
personagem conhecida como a mulher sábia de Abel-Bete-Maaca que, vendo que um inimigo
do rei entrou em sua cidade, percebeu que todo os homens de Israel, junto ao general, iam
invadir a cidade e matar a todos até encontrar Seba. A mulher chamou o general e disse que
aguardasse que ela junto com seu povo ia jogar a cabeça do procurado por cima do muro e
assim ela o fez. É impressionante como ela é considerada sábia ao extremo por convencer o
povo a matar o inimigo de Israel.
Outra personagem que chama a atenção é conhecida como Rispa, concubina de Saul que
tinha tido com ele dois filhos. Por um contrato de Josué com os gibeonitas, eles moravam em
Israel, mas fariam trabalhos braçais para o povo. Saul havia quebrado a promessa e matado
alguns deles. Anos depois, Davi acredita que os três anos de fome em Israel seria culpa do
sangue de Saul. Em acordo com os gibeonitas, estes pediram sete homens descendentes de Saul.
Assim foram dados entre os netos de Saul, seus dois filhos com Rispa. Ela como mãe, chorou
seus filhos e, sozinha, os guardou por dias para que os corvos não comessem seus corpos. Ela
os cobria e enxotava os pássaros. Quando avisaram a Davi, este se compadeceu de todos e fez
um túmulo para os mortos, incluindo os dois filhos de Rispa. Infelizmente o Rei não se
compadeceu de suas vidas e quebrou uma lei de Deus dada a Moisés que dizia que os pais não
deviam morrer pelos erros dos filhos e nem os filhos pagarem pelos erros dos pais.
No livro do Reis, encontramos algumas mulheres que já havia aparecido em Samuel,
confirmando a teoria de que eram antes um só livro, separado para facilitar o uso. Assim, inicia
o livro com as articulações para o Reinado de Salomão, uma vez que Davi está velho e
morrendo. No verso 2 a 4, a Jovem Abisague é descrita como uma virgem formosa que vem ao
palácio para aquecer o Rei, pois sentia frio e nenhum cobertor o aquecia.
Flavio Josef diz que ela era uma enfermeira e que o ajudava numa pratica antiga contra
a hipotermia, aquecendo com o próprio corpo jovem e saudável. Josef afirma que ela foi
considerada sua concubina, mesmo o texto bíblico dizendo que ele não a tocou como mulher.
Hagite, era concubina de Davi, mãe de Adonias, A filha de faraó, primeira esposa do Rei
Salomão, um acordo político, no verso 16 do Capítulo 3, aparecem as famosas personagens
prostitutas que tinha filho e dormindo uma delas por cima do bebê, matou-o e o trocou pelo
filho da companheira.
125

O caso resolvido por Salomão atesta a sabedoria que ele tinha recebido de Deus.
Aparecem também as filhas de Salomão, Tafate e Basemate, casadas com dois oficiais que
serviam ao Rei. Outra personagem que surge no texto de Reis é a Rainha de Sabá, uma mulher
influente, pois era a Soberana da região hoje conhecida como Iêmen (Reino de Sabá), tinha
interesses comerciais e diplomáticos, também desejava ouvir e comprovar se o Rei era sábio.
As esposas e concubinas de Salomão também são apresentadas como símbolo de sua
riqueza, capítulo 10 e 11, todas as suas posses são descritas, como também sua enorme
inteligência e encerra-se com as mil mulheres que o Rei tinha em seu Harém. Eram 700 esposas
e 300 concubinas dos mais diversos países, de nações condenáveis à nação israelita, por Deus,
segundo a Lei de Moisés, a egípcia, amonitas, edomitas, sidônias e heteias. Entretanto, recai
para as mulheres, a culpa do Rei se entregar em adoração os seus deuses. Em um contexto que
as mulheres, mesmo sendo rainhas, concubinas, não tinham poder nem autonomia para fazerem
suas vontades. Elas tinham, porém, o poder de desnortear o coração de um “pobre” Rei. Seguem
aparecendo algumas mulheres, mães de homens importantes: Esposa de Jeroboão, Naamá,
Maaca, ao que parece era uma prostituta cultual, (p. 466 Bíblia, A. R.A), mãe de Abias e avó
de Asa. No capítulo 16: 31, surge Jezabel, uma rainha de origem estrangeira (Sidônias), que
dividiu o trono de Israel com seu marido. Isto porque ela o dominava, tinha estratégias, pulso
firme e era fiel a seu deus Baal. Jezabel era uma espécie de sacerdotisa e viu na oportunidade
do acordo entre seu pai e o Rei Acabe, a possibilidade de estabelecer o seu reinado. Jezabel
tinha tudo para ser odiada, pois além de estrangeira, se opunha abertamente as práticas de
adoração de Israel, levando seu marido a construir altares aos seus deuses. Ela era dominadora
e gostava de se arrumar, era vaidosa e cuidava da beleza, até mesmo diante da crise em seu
reino, prestes a morrer, ela se adorna, pois aprendera a resistir e se impor, em um período em
que somente os homens tinham espaço. Jezabel não negou a sua crença e, ao contrário de seu
marido, não cedeu até a morte.
Assim, Jezabel representava a mulher no poder e com autoridade. Isso no contexto de
Israel era inadmissível. Jezabel age como agiram os homens daquele período, os reis
antepassados. Assim, Jezabel era rainha em Israel, o profeta Elias a enfrentou-a e aos
quatrocentos profetas dela. Ele conseguiu vencê-los em um desafio entre o Deus de Israel e
Baal, porém, empolgado com sua vitória, Elias matou todos os profetas de Jezabel, e ela o
ameaçou de morte. Diante da ameaça, Elias temeu o poder e a determinação da rainha e retirou-
se para viver, um período, numa região chamada Sarepta.
Ironicamente, ele é enviado por Deus para a casa de uma viúva, a quem Deus diz que a
ela já ordenou dar de comer a Elias. Ao ser abordada, a mulher diz está preparando a última
126

refeição para ela e para o filho. O profeta pede que primeiro seja feito um para ele, e ela aceita
o desafio de fé, debaixo da palavra de multiplicação.
Seguindo esse raciocínio, destacamos personagens de rápida aparição como as mulheres
de Samaria, quando em ameaça, o Rei Ben-Hadade, quer sitiar a cidade e levá-las cativas. A
partir do capítulo 4 de Reis, entra em evidência a vida do profeta Eliseu, seus milagres
realizados. Portanto, as próximas personagens estão ligadas a ele. A primeira é a viúva que o
marido tinha deixado dívida e o credor ia levar os filhos. Ao procurar o profeta, ele tem coragem
de dizer que seu marido tinha serviços prestado a Deus. Eliseu ora e a providência divina e
milagrosa faz de um pouco de azeite, a fonte de renda daquela família. A segunda é a Sunamita:
era uma mulher rica que apoiou o ministério de Eliseu, lhe preparando um quarto para hospedá-
lo. Um dia seu filho, que estava com o pai, adoeceu e morreu ao chegar em casa, no colo da
mãe que o deixa e vai atrás do profeta. A mulher com sua força e determinação quando
perguntada pelo servo de Eliseu se tinha havido algo, ela responde que tudo estava bem. Porém,
disse a Eliseu que assim como não tinha pedido um filho, agora morto, ela não o queria morto.
Segundo Champlin (2001), as mulheres nas regiões mais afastadas das cidades grandes,
em pequenos povoados ou no campo, tinham mais autonomia e transitavam mais livres que as
de grandes centros. Mais à frente, ela retoma ao texto lutando por suas propriedades que vai
perder no período da fome e miséria que toma aquela região. Outra personagem marcante é a
menina cativa de Israel. Nos cercos constantes do rei da Síria, muitos judeus eram levados
cativos. Nesse dia, o General Naamã levou somente essa mocinha anônima. Este a deu para
servir a sua esposa. Em terras distantes, sozinha ela começa a falar de sua terra e fala sobre o
profeta Eliseu. Na intimidade com sua senhora, ela descobre que o grande General é um leproso.
Desse modo, nos capítulos seguintes, encontramos uma alusão as mães canibais, devido
uma fome grande na região de Samaria, as mulheres se reuniam para comerem os filhos, e na
situação, uma delas tinha dados seu filho, cozeram o menino e comeram. Porém, no dia seguinte
a outra se recusava a fazer na sua vez.
A próxima personagem se chama Atalia, filha de Jezabel. Assim como a mãe, ela era
determinada e obcecada pelo poder, de forma que quando seu filho Acazias morreu, ela
exterminou todos os herdeiros, seus netos. Ela era poderosa e tão articulosa como sua mãe.
Assim, quando o menino tinha oito anos de idade, destituíram a Rainha coroando o menino real
em seu lugar. O sacerdote Joiada, junto com os militares deram o golpe que destituíram a
Rainha, morta em seguida. No livro de Reis ainda encontramos os nomes das mães dos reis ou
dos capitães: Zíbia, Simeate e Somer, Jeoadã, Jecolias (seu filho, Menaem abria o ventre das
grávidas e matava seus filhos), Jerusa, Abia, Hefzibáv, Mesulemete e Jedida. Todas essas
127

personagens aparecem em virtude dos filhos, citadas uma só vez, cada um em seu período de
reinado, mas é insistente citar de quem eram filhos.
A última personagem do livro é a profetisa Hulda, que aparece somente essa vez, citada
como a mulher do guarda-roupa (cuidava das vestes reais) do Rei Josias. Ela era uma profetisa
contemporânea a Jeremias e Sofonias, mesmo afastada do palácio, na condição de mulher não
é vista, porém foi ela quem foi solicitada a saber sobre o livro da lei encontrado pelo Sacerdote
Hiquias. Sua profecia foi ouvida, pois transmitia ordens divinas para o arrependimento e
conversão a lei, restituindo a nação israelita a fé e uma renovação espiritual.
O livro de Crônicas na tradição judaica, tal qual Samuel, Reis, trata de um só livro que
foram divididos posteriormente. Na Bíblia hebraica é chamado de “Os acontecimentos dos
Dias”. É resumo de Samuel e Reis, retomando os nomes dos reis, seus feitos, suas mulheres e
filhos. Acrescentou-se dados sobre sacerdotes e levitas. Não sabemos exatamente quem é o
autor, chamado apenas como o Cronista. Alguns estudiosos atribuem a Esdras. O livro foi
escrito depois que os judeus voltaram do exílio, possivelmente no Séc. V (a. C.). Há no primeiro
livro 63 menções às mulheres, e quarenta e duas no segundo livro. No entanto, elas já foram
citadas anteriormente.
Neste livro muitas mulheres, desde a genealogia de Adão, são inclusas nas
descendências, também aparece em vários momentos, mulheres fazendo parte dos rituais e
cultos, (Capítulo 20 e 35), ouvindo a palavra junto aos homens e também participavam dos
louvores como cantoras, e cita também as mães de cada rei. O autor visava trazer à tona os atos
do passado, na intenção de promover esperança e a reafirmação de que os judeus não deviam
descuidar da adoração no Templo de Jerusalém, e assim como nos tempos de Davi e Salomão,
era preciso reafirmar a aliança com Deus. Entretanto, não há espaços para o feminino, não há
narrativas expressivas de nenhum feito ou participação mais ativa das mulheres.
No livro de Esdras e Neemias, estavam unidos antes na versão da Bíblia hebraica, e na
septuaginta, chamado Esdras B, mas tinha como autor, Esdras. No entanto, alguns historiadores
afirmam que Neemias escreveu o livro com seu nome, tratando-se de memórias pessoais. O
objetivo dos dois livros é ressaltar o retorno dos cativos e a retomada às suas terras, cultura,
tradições e leis divinas.
A prosperidade estava ligada a obediência e os castigos vieram e viriam para os que não
seguissem a lei. A participação feminina é muito pequena em Esdras, há sete menções as
mulheres, e a mais marcante são no Capítulo 10, quando depois de ouvir a leitura da Lei feita
pelo sacerdote, em que este mostrava que a mistura do povo de Israel com mulheres estranhas
128

tinham causado a prevaricação e elas teriam levado o povo a pecar, os homens comovidos com
o discurso, expulsaram todas as mulheres estrangeiras, suas esposas e os seus filhos.
Foi feito um censo, uma pesquisa para ver quem dos homens de Israel havia casado com
estrangeiras e todas foram mandadas embora, sobre muito choro. “E com um aperto de mão,
prometeram despedir suas mulheres e, por serem culpados, ofereceram um carneiro do rebanho
pela sua culpa”. Em Neemias, os relatos de sua missão de reerguer Jerusalém, segundo o decreto
do Rei Ciro, no ano 536 a.C., permite que um grupo de judeus retorne a Jerusalém, a fim de
construir os muros da cidade e reerguer o santo templo tem como foco principal, tal qual Esdras,
relatar como se deu esse período.
Da mesma forma, há uma união muito grande por parte do povo, para reerguer a cidade.
Em Neemias, 3 e verso 12: “Ao lado dele reparou Salum, filho de Haloés, maioral da outra meia
parte de Jerusalém, ele e suas filhas”. Assim, algumas poucas mulheres são citadas, dentro dos
relatos de Neemias, sem muita contextualização, pois o narrador por vezes, ora a Deus enquanto
vai trazendo os fatos, nomes a sua memória.
No livro de Ester, também de autoria duvidosa, pois alguns historiadores e a própria
tradição judaica acredita que foi um judeu que conhecia Susã, o palácio real e os costumes
persas. Outros atribuem a Mardecai, tio da própria rainha Ester, que parece narrar sua própria
história em consonância com o reinado de Ester. As personagens femininas são Vasti, a rainha
esposa do rei Assuero, que logo de início é destituída do cargo de rainha por não querer
comparecer ao banquete do Rei, seu marido, pois este já estava a quase três meses de festas
constantes e embriagado, queria mostrar sua beleza aos súditos.
Assim, com a negação da Rainha, ele toma a sua coroa e por conselho dos anciões ele
faz um concurso entre as moças do reino, a fim de escolher uma nova esposa. Ester se torna a
nova rainha em lugar de Vasti, enfrentando a ira do príncipe Hamã, que não gosta dos Judeus e
deseja destruí-los. Pelas ações e estratégias da Rainha Ester, ela salva o povo do extermínio.
Outra personagem citada é a mulher de Hamã, Zeres e as servas de Ester.
Desse modo, o livro de Jó, leva o nome de seu personagem principal e tem também
autoria duvidosa, mas a Bíblia da mulher aponta alguns possíveis autores: o próprio Jó,
posteriormente a sua restauração, Moisés, Salomão, Ezequias, Isaias ou Esdras. Considerado
Literatura de Sabedoria. Para Alter (2007), uma fábula filosófica, entretanto, a beleza da escrita
e a diversidade de assuntos referentes a diversas áreas e a literariedade só pode ser atribuída a
um sábio antigo. É uma narrativa patriarcal que mostra o sofrimento, a paciência e a fé deste
homem provado e a narrativa gira em torno de diálogos entre Jó e seus amigos, entre Deus e Jó.
129

Como observamos, a mulher em Jó é vista como uma personagem impaciente que não
suporta as provas e quase abandona seu marido. Ela aparece somente no capítulo 2 e versículo
9, em um único momento de fala que a relegou para sempre ao lugar de louca e insana, que
assim como os amigos de Jó, não teve paciência de suportar a prova com ele. Ela não tem nome,
nem tem espaço para argumentar e diz apenas que: “amaldiçoa esse Deus e morre”. No entanto,
o verbo no hebraico que aparece é o verbo Barak que quer dizer abençoar.
Assim, esquecem de que a mulher de Jó passa pelas mesmas aflições de seu marido,
exceto pela dor física gerada pela doença na pele do marido. Mas também não se pode tirar a
razão de que, é compreensível diante de tanta dor. Em Jó aparece também e não tem nome, as
três primeiras filhas que morrem, e na sua fase de prosperidade, Deus restaura a sua família
sendo as três personagens, as novas filhas de Jó, Jemima, Quézia, Querén-Hapuque, as moças
mais lindas da época. Há também referências em Jó ao feminino. O narrador atribui falas a Jó,
em que ele se refere a mãe, ao ventre, e deseja constantemente ser um aborto. Neste trecho de
Jó 3,11 a 14, fica evidente como o narrador é sensível a esses assuntos tão femininos:

Pois não fechou as portas do ventre de minha mãe, nem escondeu dos meus
olhos o sofrimento. Por que não morri eu na madre? Por que não expirei ao
sair dela? Por que houve regaço que me acolhesse? E por que peitos, para que
eu mamasse? Porque já agora repousaria tranqüilo; dormiria, e, então, haveria
para mim descanso, com os reis e conselheiros da terra que para si edificaram
mausoléus; ou com os príncipes que tinham ouro e encheram de prata as suas
casas; ou, como aborto oculto, eu não existiria, como crianças que nunca
‘viram a luz. Ali, os maus cessam de perturbar, e, ali, repousam os cansados.

Como vemos, o personagem Jó, diante do sofrimento, admite querer ter sido vítima de
um aborto espontâneo ou provocado, como um meio de evitar os sofrimentos dos
desventurados. Melhor não nascer do que sofrer desse modo. Há também no livro uma ideia de
monogamia. Mesmo o narrador dizendo, Capítulo 41, que Deus deu a Jó tudo em dobro,
restituindo-lhe seus bens, ficando em um estado melhor que o primeiro, ele não tem uma nova
mulher.
Nos Salmos, há uma coletânea de textos poéticos, cânticos cantados ou recitados, ao longo
da história de Israel, acompanhando os diferentes ritos religiosos. O foco do livro, é homenagear
a Deus, louvá-lo pelos feitos. Alguns são de autoria individual, um cantor, outros são
composições de grupos. Alguns são narrativas poéticas que retomam o passado e as
experiências israelitas no deserto, no exílio, outros são súplicas e testemunhos pessoais,
portanto impossível datar o livro.
130

Por essa estrutura, nos Salmos, a presença de personagens femininas é mínima, e na


autoria de composições ela é inexistente. Mesmo tendo em Êxodo, a profetisa Miriam que
salmodia com as mulheres. Mas é possível encontrar algumas menções ao feminino, a mulher
vista em seus aspectos materno, ressaltando termos como seio, ventre, dores de parto, filhos,
fertilidade, a partir do Salmo 22 de 150 Salmos.
No Salmo 45, trata-se de um casamento entre um grande rei e sua noiva estrangeira, ele
induz a submissão e o esquecimento de suas origens para ter o amor, a cobiça e a admiração do
Rei. Verso 11: “então o rei cobiçará a tua formosura; pois ele é o teu Senhor, inclina-te perante
ele”. Champlin (2001) também vê esse Salmo, como referência ao Messias e o seu casamento
com a igreja. Do 48 a 51, pequenas referências a maternidade, a mulher como mãe, as dores de
partos e no 68, Deus posto como protetor das órfãs e viúvas; no 107, o povo é recriminado por
sacrificar as filhas a ídolos; no 113, exalta a Deus por fazer da estéril, alegre mãe de filhos,
reforça o pensamento da plenitude e da reafirmação da mulher na sociedade, a partir de filhos.
No Salmo 128, as bênçãos de Deus são sobre o Homem, reforçando a cultura da mulher
no espaço do lar. No Verso 3: “tua esposa no interior de tua casa será como a videira frutífera;
teus filhos, como rebanho da oliveira à roda da tua mesa”. Certamente, esse é o pensamento
judaico de homem abençoado que, por temer ao Senhor, ele tem trabalho, fartura, posses, esposa
dentro de casa e muitos filhos. As metáforas videira, rebanho, remete a mulher que produz
filhos, muitos filhos.
Ainda dentro do mesmo raciocínio, encontramos em Provérbios36, muitas menções às
mulheres, embora não exista personagens, mas um perfil ideal para o autor, do feminino
disseminado nas ideias de Salomão, filho de Davi e Bate-Seba, considerado na Bíblia, como um
dos homens mais sábio de seu tempo, sucessor do trono de seu pai. De suas muitas mulheres,
talvez, Salomão se considera experiente para analisar as mulheres de forma a achar pontos
positivos e negativos no relacionamento com uma mulher.
No entanto, ela, a mulher, parece não ser vista em sua totalidade, nas possibilidades de
virtudes e defeitos, talvez, pelo fato de Salomão ter convivido com muitas e não tenha tido a
possibilidade de conhecê-las verdadeiramente e, por isso, não são apresentadas pelas
características predominantes. Nos primeiros Provérbios a mulher é a mãe que instrui o filho a

36
O nome do livro enuncia seu estilo literário. Um “proverbio” (heb. Mashal, lit. “ser como ou ser comparado a”)
é uma declaração que faz uma comparação, geralmente na forma de uma breve afirmação em poucas palavras. São
declarações breves, mas vividas, pinçadas da vida; apresentam normas práticas para uma vida de sucesso. O
proverbio não argumenta; ele afirma. Seu objetivo básico, não é explicar o assunto, mas expressar uma ideia de
forma contundente. A maioria das máximas conhecidas devem ser consideradas como linhas gerais, não como
postulados absolutos. O que foi afirmado é, muitas vezes, verdade, embora haja exceções. (Retirada. Nota de pano
de fundo do livro de provérbio. Bíblia da Mulher: leitura, devocional, estudo. 2003).
131

ser sábio, a fugir dos males e da mulher “imoral, adúltera37”. Constantemente, a mulher adúltera
ou imoral é tema. A estrangeira pode ser vista como aquela de outra nação ou de outro homem.
Para Salomão a poligamia não era problema moral, uma vez que legitimava o poder de possuir
sexualmente aquela mulher. Assim, eles não seriam imorais, nem adúlteros.
Desse modo, os Provérbios também apresentam a mulher como aquela que não reclama
e nem se queixa, não é inoportuna, nem rixosa, nem briguenta, sempre disponível, serviçal e
sorridente, como em Provérbio 14: “a mulher sábia edifica a sua casa, mas a tola à insensata a
destrói com as próprias mãos”. Assim, Salomão vai traçando o papel da mulher considerada
sábia e não tola, não insensata, quieta e não inquieta, conformada e não reclamona, rixosa, do
lar e não da rua, discreta e não exagerada.
Em Eclesiastes, o autor continua no mesmo estilo de Literatura de Sapiência, sabedoria,
e envolto em literalidade e filosofias, tal qual Jó, Provérbios e Cântico dos Cânticos. Por essa
semelhança de estilo e temática, alguns atribuem a autoria desses três livros a Salomão, pois
neste livro também não há personagens femininas, mas algumas reflexões em torno do
feminino. Nas ideias de uma vida passageira e enganosa vaidade, o autor tenta nos fazer
entender que a real sabedoria está em Deus, no relacionamento com ele e no aproveitamento do
presente, comendo e bebendo e usufruindo do amor da juventude. Parece que as muitas riquezas
e mulheres não saciaram o filósofo: “Tive servas, cantoras, mulheres e mulheres). As citações
ao feminino ocorrem em capítulos distantes”. Agora no Cap. 5 e verso 15, há uma
intertextualidade com Jó quando diz que o homem sai nu do ventre de sua mãe, assim nu voltará,
indo-se como veio. No capítulo 7. Verso 23, o autor fala da mulher enganosa como coisa mais
amarga que a morte: “a mulher cujo o coração são laços e cuja as mãos são grilhões. O bom
homem diante de Deus foge dela, mas o pecador é preso”. Assim, o pregador vai vendo com
pessimismo a vida, os fatos e especificamente a mulher. Vejamos os versos 26 a 29 do Capítulo
7:

Achei coisa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração são redes e
laços e cujas mãos são grilhões; quem for bom diante de Deus fugirá dela, mas
o pecador virá a ser seu prisioneiro. Eis o que achei, diz o Pregador, conferindo
uma coisa com outra, para a respeito delas formar o meu juízo, juízo que ainda
procuro e não o achei: entre mil homens achei um como esperava, mas entre

37
Pelas descrições de imoral e adultera tem-se a mulher estrangeira, de palavras de lisonja, infiel ao marido. (Pv.
2: 16 ao 19). Tema retomado em provérbio 5, 7 no verso 10 ao 23, esta mulher é vestida diferentemente, anda
pelas ruas, é inquieta e apaixonada. Contrariando o perfil da mulher que deve ficar sempre em casa, vestida
totalmente. Lembrando, que o conceito de má conduta feminina é bem diferenciado no oriente, para nós do
ocidente.
132

tantas mulheres não achei nem sequer uma. Eis o que tão-somente achei: que
Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias.

Podemos observar certo pensamento machista que dignifica o homem, enquanto aponta
as mulheres como algo muito ruim, pois não existe alguma como ele “esperava”. Há um certo
temor da figura feminina. No verso 29, ele diz que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu
em astúcia. É possível os traços do machismo, ainda que no Capítulo 9, ele diga: “Goza a vida
com a mulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz, os quais Deus te deu debaixo do sol;
porque esta é a tua porção nesta vida pelo trabalho com que te afadigaste debaixo do sol.”
Em Cântico dos Cânticos, em “O Cântico” 38
atribuído também a Salomão, há uma
mudança considerável da forma como o autor trata o feminino. A história retrata o amor muito
intenso entre um homem e uma mulher que vivem a plenitude do amor, aquele amor deixado
para trás em Gênesis, por Adão e Eva. Para alguns estudiosos e teólogos, trata-se de um texto
figurativo, que representa o relacionamento de Jesus e a igreja. Entretanto, outros estudiosos
acreditam que fala sobre a sexualidade humana como algo de fundamental importância para
Deus.
No nosso entender, toda a sexualidade já estava em Gênesis, mesmo no período de
inocência, mas tudo já convergia para o relacionamento homem e mulher, sexualidade. No
texto, há diálogos entre o casal, que exploram a beleza através de elogios um ao outro, como se
evocasse uma plateia, um público formado pelos amados, amadas, filhos e filhas de Israel. O
amor fraterno, a paixão, o amor anda lado a lado nesse casal, formando um relacionamento
cheio de cumplicidade. Embora no fim do texto eles se desencontrem, não existe relação de
superioridade, de forma que a inferioridade, a sexualidade e o erotismo são intensos, tanto o
homem como a mulher os expressam. Mas também há desentendimentos, desencontros.
Reparamos que ambos falam dentro do texto, tem o direito a voz, e encerra-se o texto com a
voz da esposa, esperando pelo regresso do amado.
A mulher é comparada com as coisas da natureza, com o jardim. A esposa o compara
com a arquitetura, com construções que relembrem a força, o concreto e a firmeza do homem.
Entretanto, isso não parece sexismo, pois as vezes a mulher é comparada a um exército, como
se ela conduzisse todas as cenas. A esposa expõe e manifesta um domínio sobre as ações de
forma livre e espontânea, fugindo ao perfil do tempo, pois o padrão adotado é da mulher
comportada e cheia de pudor. A Sunamita é uma espécie de visão libertadora do feminino.

38
A supremacia desse canto, pois segundo a tradição judaica, seria acima dos cânticos só para ser cantado ou só
para ser tocado com instrumento.
133

Deste ponto em diante do Primeiro Testamento, inicia-se os livros conhecidos como os


Profetas Maiores e menores, ao todo, 16 livros. Divididos pelo tamanho dos livros e não pela
hierarquia dos profetas, os livros recebem o nome dos autores, mesmo que em alguns momentos
tenha sido questionado a autoria destes. É interessante perceber que todos, apesar de seus estilos
diferenciados, pessoais, e por serem escritos, alguns em diferentes períodos, (séc. VIII a. C até
o período pós-exílio), eles adotam características que os aproximam, ao invés das narrativas
como predominou no Pentateuco e nos livros Deuteronomista, como coloca Laffey (1994).
No período da construção dessa literatura, ou poesia profética, predominava da mesma
forma que nos outros períodos, o patriarcalismo, em que a figura feminina, na maioria das vezes,
estava associada às metáforas, às citações em alguns livros que trarão a noção da mulher
recriminada, julgada por suas atitudes pecaminosas, altivas. A comparação direta do pecado de
Israel e de Judá como a traição ao marido, a troca de parceiros ricos, poderosos, fogosos é
constante e, o culto a outros deuses, é comparado ao adultério feminino.
Assim como no livro do profeta Isaias, provavelmente, escrito no Séc. VIII. a .C,
Jeremias também, trazia uma mensagem de juízo para Judá, falando contra a falsa religiosidade
que tomava aquele povo, ritos e costumes, que não empatavam de pecar sem temor e
dissimuladamente contra a ética e a moral de seu tempo, considerando as leis divinas como
padrão para a ética e a moral.
Em Isaías, o povo era descrito como oprimido pelo pecado e iniquidade, perversão,
deformidade moral que, de certo modo também gerava uma conduta opressora principalmente
atribuídos às mulheres e às crianças. O profeta criticava aqueles que se preocupavam em
cultuar, jejuar, mas não sentia a importância de amar, cuidar e agir com justiça para com o
outro.
Por isso, tanto Isaias quanto Jeremias profetizaram um castigo, anunciando um tempo
de esperança para os exilados da Babilônia, com o nascimento do Messias como solução para
o fim de um período marcado pela opressão. Por essa razão, a mulher será muito citada dentro
do livro, ora como protegida, cuidada com justiça, ora criticada por sua postura, vestimentas,
comportamento e em vários momentos, as metáforas farão também alusão ao feminino. Citamos
o capítulo primeiro, verso 17, em que o narrador pede que se atente em justiça, para as viúvas,
os órfãos, pedindo proteção, mas no verso 21 do mesmo texto, ele compara o pecado de Israel
a uma prostituta, apontando um tempo de opróbio e juízo em que sete mulheres serão esposa
de um homem, somente para terem um nome como algo que as resgatará, entretanto, elas se
sustentariam, comparando o pecado, a imundície das filhas de Sião, fazendo alusão a
menstruação das mulheres, dita em Levítico, como imundície.
134

No capítulo 7, há uma alusão a virgem que conceberá e dará à luz a um filho, já


profetizando sobre Maria, que seria o exemplo de virtude feminina, pois sendo virgem, é pura
e seu filho o Salvador. Assim, Isaías e Jeremias profetizam um tempo em que Deus permitirá,
por castigo, que as mulheres grávidas e as virgens sejam violentadas, o opressor não pouparia
o fruto do ventre. As mulheres são avisadas de sua viuvez. No texto, também, homens com
medo são comparados com as mulheres medrosas, pois a terra de Sião é comparada em diversas
metáforas: a mulher em trabalho de parto, “Deus dará carta de divórcio”. De igual modo, o
feminino é visto em Jeremias e em Lamentações.
Da mesma forma, em Ezequiel, escrito antes e durante o exilio, alguns textos narram as
visões de Ezequiel dentro da Babilônia, na condição de exilado como os demais judeus, assim
ele também profetiza tempos difíceis e a esperança do retorno de Israel. Ezequiel se utiliza tanto
da prosa como da poesia, com parábolas, alegorias. O velho Bentinho em sua dúvida mortal
sempre alega esse aposto ao Ezequiel, o filho do homem. Quanto as mulheres, de igual modo,
aos profetas que o antecedem, Ezequiel faz alusão as falsas profetisas, Israel é uma prostituta,
adúltera, tal qual a “mulher que tendo marido, procura um estranho”. No capítulo 23, Ezequiel
cita uma parábola sobre duas meretrizes Oolá e Oolibá, simbolizando as duas cidades de
Samaria e Jerusalém. Usando termos como prostituir-se, seio, devassidão e lascívia, atribui às
mulheres apenas esse tipo de comportamento.
Assim, para o profeta, sua própria vida torna-se uma alegoria do que Deus fará a Israel
quando morre sua mulher também Deus tiraria as delícias dos olhos de Israel. A vergonha que
Israel sentirá diante do opróbio e do castigo será tal qual a vergonha de uma “mulher exposta
nua diante dos amantes”. Daniel foi contemporâneo de Ezequiel e Jeremias, porém seu livro se
diferencia por apresentar narrativas de experiências pessoal, seu exílio na Babilônia. Daniel
também recebe de Deus revelações sobre o futuro da humanidade e sobre seu fim na terra.
Quase não há menção as mulheres, alguns poucos casos referindo-se as esposas de alguns
homens da realeza onde Daniel servia ao Rei como conselheiro.
Nos livros dos profetas Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas (autoria indefinida),
Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias, ambos ressaltam o castigo
que viria, o arrependimento, a adoração somente a Deus, o exílio e a benção no período pós
exílico. Exceto por Jonas que não tem nenhuma citação ao feminino, os demais retomam a
temática da prostituição e do adultério feminino, referindo-se à nação corrompida.
Em Oseias, a história impactante está na própria relação entre Oseias e uma prostituta
chamada Gômer. Era como se fosse um grande teatro da vida real. Oseias 1:2: “Quando, pela
primeira vez, falou o SENHOR por intermédio de Oséias, então, o SENHOR lhe disse: Vai,
135

toma uma mulher de prostituições e terás filhos de prostituição, porque a terra se prostituiu,
desviando-se do SENHOR”. No capítulo: 2:5, Oseias, por ordem divina, vai em busca de sua
mulher. “Então o SENHOR me disse: Vá e ame a sua esposa outra vez, embora ela cometa
adultério com um amante.” Oseias diz no Capítulo 3:1ª: “Então ele a comprou e a trouxe de
volta para casa”. Nessa metáfora do relacionamento de Deus com Israel, Deus se revelava como
aquele que ama incondicionalmente, tal qual o marido, Oseias amava Gômer.
Desse modo, em todo o percurso do Primeiro Testamento, do Pentateuco aos Profetas
menores, a relação com o feminino se dá pelo apagamento do feminino e a luz que se dá sobre
a mulher como pecadora, disseminadora de maus costumes e da malícia, útil apenas no interior
do lar, para geração de filhos e se for submissa, discreta e modesta destaca-se como modelo de
virtudes, pois sabe servir e obedecer. Retirada aos poucos dos espaços públicos, a mulher não
se destaca como os homens, pelas virtudes, fidelidade, inteligência ou heroísmo. Quando elas
conseguem interagir com o meio, colocar-se no mundo masculino, são diminuídas e silenciadas
com pouca ênfase naquilo em que foram destaques. O homem comanda, o homem executa, ao
homem pertence a força, a riqueza e o poder. As mulheres são propriedades suas, e os muitos
filhos a glória do homem.

3.2 AS MULHERES DO SEGUNDO TESTAMENTO

No Segundo Testamento, a divisão dos livros é diferenciada, com um grande


crescimento do cristianismo, após a morte de Jesus e a divulgação do evangelho39, de seus
feitos, através dos discípulos e discípulas. Fazia-se necessário, além de atender a necessidade
de fundamentar os novos cristãos, novos receptores dos textos, também a produção criativa que
aliava os fatos históricos e as situações vivenciadas ao lado de Jesus. Trata-se de um contexto
marcado pelas influências do helenismo, a necessidade de dar continuidade aos escritos e textos

39
Etimologia. "evangelho" significa "boa mensagem", "boa notícia" ou "boas-novas", derivando da palavra grega
ευαγγέλιον, euangelion (eu, bom, -angelion, mensagem). A palavra grega "euangelion" deu também origem ao
termo "evangelista" da língua portuguesa.
Segundo Moule (1979), os evangelhos formariam um tipo de texto sem paralelo na literatura, sendo esta
compilação dos textos feitas pelos evangelistas, um gênero propriamente bíblico, característico do novo
testamento, sendo textos sem precedentes em toda cultura, portanto se constitui gêneros por seu conteúdo, função
social e originalidade de estilo.
Keener (2004) diz que: De forma distinta das cartas de Paulo, as atribuições de autoria dos Evangelhos em geral
se baseiam mais na tradição da igreja do que nas evidências apresentadas pelo próprio texto bíblico. Embora as
tradições referentes à autoria dos Evangelhos se tornem públicas no segundo século em diferentes partes do
império, parece haver unanimidade quanto à sua autoria, indicando, assim, que as tradições remontam a um período
anterior. Obras da extensão dos Evangelhos eram raramente publicadas de maneira anônima; portanto, essas
tradições foram, provavelmente, preservadas e transmitidas de modo fiel pela primeira geração.
136

das tradições judaicas, os escritores, profundo conhecedores dessas tradições, tentam em


gêneros diversos, associar o novo tempo, à novos gêneros e em contínua inovação, busca a
manutenção da qualidade narrativa das histórias bíblicas.
Nesse raciocínio, os Evangelhos e as cartas de Paulo, primeiros textos, fundamentam a
igreja a partir do testemunho da vida de Cristo, seus feitos, e as novas doutrinas que
diferenciariam das crenças existentes. As personagens femininas continuam circulando nas
histórias bíblicas, apesar de ainda serem anônimas, entretanto, aparecem em torno de Cristo,
desde seu nascimento, ao seu ministério, ganhando destaque nos textos. Diversas personagens
são apresentadas ao longo da trajetória de Jesus, e entram nas histórias, mesmo que ainda
tratadas como anônimas, com poucas informações sobre elas.
Nesse sentido, o feminino ganha, mesmo limitado, um espaço maior dentro dos
Evangelhos. Mateus, Marcos, Lucas, João, em que são testemunhas ocular de muitos dos
relatos que descrevem. Noutros momentos eles apresentam suas reflexões sobre os fatos,
embora, em determinados momentos, ainda temos fatos importantes que envolvem mulheres
nomes, mesmo em situações em que Jesus evidenciava a necessidade de que essas personagens
fossem citadas, como é o caso da mulher (Maria de Betânia) que derramou um perfume de
nardo, uma essência caríssima, guardada em um vidro de alabastro, sobre os pés de Jesus e o
adorou. Ela era grata pelo mestre a ter acolhido em amizade, ter ressuscitado seu irmão Lázaro.
No entanto, somente João registrou que se tratava de Maria. Os demais Evangelhos só
registram como uma mulher. As ações de Jesus em valorizar as mulheres e inseri-las na
sociedade, vai de encontro ao pensamento machista de sua época e contesta a legitimidade dos
poderes estabelecidos, submetido a reprovação de um coletivo. “Se ele fosse profeta saberia
quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é pecadora” (LUCAS 7,39).
Em Mateus, as personagens iniciais são as mulheres que aparecem na genealogia de
Jesus: Tamar, Raabe, Rute, Bate-Seba e Maria, mãe de Jesus. Elas estão associadas aos
nascimentos de seus filhos, dos quais Jesus descende. A escolha de Maria se dá por ser a esposa
de José que tinha descendência de Davi, a quem tinha sido dado a promessa de que o seu trono
seria eterno em Israel, e dele nasceria o Messias. Mesmo assim, Maria é a representatividade
do resgate do feminino, pois tem em si todas as virtudes para ser a mãe do Salvador. Maria é a
mulher em sua pureza, santa, casta, virgem. Notamos ainda a presença da sogra de Pedro, uma
mulher enferma, curada do fluxo de sangue, por Jesus, numa de suas visitas à sua casa.
Outra personagem é Herodias, astuta e decidida em seus desígnio, casada anteriormente
com Felipe, apaixonou-se por Herodes e casaram-se em seguida. Herodias não aceitou a
repreensão do profeta João Batista que havia falado contra seu casamento com o cunhado,
137

considerado incestuoso para os judeus. Entra na história mais uma personagem, Salomé, filha
de Herodias v. 6-11, uma dançarina. A mando da mãe, quando o rei pede que ela dance, ela
pede em troca a cabeça de João Batista em uma bandeja. E assim foi feito. Outra personagem
citada é a mulher Cananeia, ou a mulher Siro-fenícia que veio falar com Jesus para que sua filha
fosse liberta de uma possessão maligna que a despreza, deixando-a muito tempo sem resposta,
a ponto dos discípulos se incomodarem e intercederem por ela. Jesus diz que não veio, senão
para as ovelhas perdidas da casa do pai. A Siro-fenícia continua rogando e ainda se prostra
diante de Jesus que, ao vê-la assim, Jesus diz que não é certo que se dê o pão dos filhos aos
cachorrinhos, numa espécie de teste. A mulher retruca que os cachorrinhos também se
alimentam das migalhas que caem da mesa do dono. Nesse ato de humilhação e fé, Jesus dá a
libertação não só a filha da mulher como a ela própria. Pois se desprende de suas próprias
crenças em busca de uma solução para sua filha.
Essa era mesmo a intenção de Jesus, quebrar paradigmas religiosos, conversar com
mulheres em público e atender suas necessidades. A atitude de Jesus, neste caso, era refletir nos
discípulos que sua vinda tinha um caráter de juntar, agregar pessoas sem distinção de cor, raça,
gênero ou idade. Não haveria mais a separação entre gentis e judeus, homem ou mulher. No
capítulo 20, surge outra personagem, a mãe de Tiago e João, discípulos de Jesus, que pediu ao
Mestre que seus filhos sentassem um à direita e outro à esquerda no reino dele. Inocente em
relação aos requisitos básicos que se deveria pagar para assumir tal posição, ela estava movida
pelo carinho e amor pelos filhos, querendo garantir que estes tivessem visibilidades no reino de
Jesus.
Nessa lógica, outra personagem é tratada por Mateus, apenas como a mulher de Betânia,
porém, João ressalta que ela era Maria irmã de Lázaro e Marta, amigos de Jesus. Esta derrama
sobre o Cristo um perfume caro e o adora na sala, diante de todos. Jesus reconhece seu ato como
memorial, por preparar seu corpo para o túmulo. Ele a exalta e diz que ela deve ser citada em
todo espaço, for pregado a palavra. Maria se tornará conhecida nos evangelhos como aquela
mulher que tem ansiedade de estar perto de Jesus, e ele permite que ela esteja aos seus pés,
aprendendo e se comunicando como somente os homens podiam fazer. Ao contrário dos Judeus,
que mantinham as mulheres afastadas das mesas de banquetes, das negociações e conversas nas
salas, por acreditar que elas ouviam as conversas e não guardariam segredos, Jesus queria elas
por perto, junto a ele, mostrando que a mulher podia transitar livremente em todos os espaços
que desejasse.
Desse modo, em Mateus (27), encontramos diversas personagens marcantes nos últimos
momentos de Jesus na terra. Eram elas, a esposa de Pilatos, uma mulher corajosa que, em meio
138

ao julgamento de Jesus, revela ao marido que muito havia sofrido na noite anterior por causa
de Jesus. As mulheres no Calvário, servas e seguidoras de Jesus, seguiam-no e chorava em seu
cortejo, a morte de alguém que as ouviu, que as compreendeu, que as amou quando muitos as
desprezavam, as tratou como iguais, quando todos as inferiorizavam. Enquanto os homens,
discípulos olhavam afastados, elas de perto seguiam na via crucis, era Maria Madalena, Salomé,
Maria mãe de Tiago e José, e outras Marias. Eram prostitutas, estrangeiras, mulheres discípulas,
mulheres de homens influentes, ambas unidas pela dor de perder seu amigo e mestre Jesus.
Nesse sentido, são muitos os temas voltados ao feminino em Mateus, abordados
diretamente por Jesus: O divórcio antes banalizados pelos homens, depois proibido a ambos e,
em seguida, permitido em caso de traição, o adultério passava também a ser considerado quando
homens cobiçava uma mulher, pois Jesus observava que, mesmo vestida de roupas que cobriam
todo o seu corpo, vestes impostas pelos homens, mesmo assim ele as olhavam com olhar de
desejo sexual.
Nessa sequência, em Marcos, todas as personagens reaparecem, porém, há algumas que
só são citadas por ele. A viúva que oferta moedinhas no templo e é ressaltada como a melhor
ofertante, pois deu tudo que tinha; a criada que interpela a Pedro, quando esse está negando a
Jesus. Em Lucas, outras personagens aparecem como Isabel, prima de Maria, a mãe de João
Batista, que já era idosa quando engravidou. Ana, a profetisa também idosa e viúva, que servia
no templo e viu Jesus chegar para ser apresentado, a viúva de Naim, que havia perdido o marido
e em seguida o único filho. Ela ia enterrá-lo quando Jesus apareceu e, aproximando-se dela,
disse não chorasse, ressuscitando seu filho.
É interessante perceber que no Segundo Testamento ainda continua o modo de narrar a
história, desconsiderando a descrição dos sentimentos, das expressões e do modo como se
sentem as personagens. Lucas cita também uma mulher pecadora que ungiu os pés de Jesus
com lágrimas, com unguento e o adorou, secando seus pés com o próprio cabelo. Ignorada por
todos, a mulher, talvez uma prostituta conhecida de todos, ou jugada por todos como uma
perdida, foi mais terna e mais receptiva a Jesus que o próprio anfitrião, Simão, que foi
indiferente a presença de Jesus em sua casa, tratando-o com frieza. Outra personagem que nos
chama bastante atenção, como também a narrativa em que ela está inserida, registrada em Lucas
(13,17):

Ora, ensinava Jesus no sábado numa das sinagogas. E veio ali uma mulher
possessa de um espírito de enfermidade, havia já dezoito anos; andava ela
encurvada, sem de modo algum poder endireitar-se. Vendo-a Jesus, chamou-
a e disse-lhe: Mulher, estás livre da tua enfermidade; e, impondo-lhe as mãos,
139

ela imediatamente se endireitou e dava glória a Deus. O chefe da sinagoga,


indignado de ver que Jesus curava no sábado, disse à multidão: Seis dias há
em que se deve trabalhar; vinde, pois, nesses dias para serdes curados e não
no sábado. Disse-lhe, porém, o Senhor: Hipócritas, cada um de vós não
desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou o seu jumento, para levá-
lo a beber? Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro, em dia de
sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?
Tendo ele dito estas palavras, todos os seus adversários se envergonharam.
Entretanto, o povo se alegrava por todos os gloriosos feitos que Jesus
realizava.

Como vemos, o narrador inicia o texto elucidando que era um sábado e Jesus estava a
ensinar na Sinagoga. De repente, a mulher encurvada, corcunda, aparece entre os demais. Ao
vê-la, Jesus percebe seu olhar para baixo, sua coluna envergada e a opressão maligna que a
tomava. Jesus disse a ela que estava a partir daquele momento livre e isso choca ou inquieta o
chefe da Sinagoga. Percebendo que estava sendo questionado, Jesus completa a obra de
libertação daquela mulher a chamando de filha de Abraão e a colocando como centro da
atenção, como maior importância do que as propriedades das quais os homens tinham zelo,
mesmo em dias de Sábados. Jesus, ao considerar a mulher de filha de Abraão, também quebra
o protocolo de somente os homens serem considerados filhos e herdeiros. Incomoda a libertação
de uma mulher que se curvou diante do Mestre, cheia de opressão e cargas impostas por uma
sociedade de homens, insensíveis aos problemas de uma mulher.
Lucas cita também algumas personagens que eram discípulas de Jesus, e o seguia pelas
cidades, pregando e testemunhando. Suzana, que também tinha sido curada, e Joana, ambas
mulheres de posses. Madalena também era uma dessas discípulas restaurada por Jesus, junto
com muitas outras mulheres que compunham este grupo de discípulas. Outras personagens
aparecem nas parábolas de Jesus. A mulher da dracma perdida, que varre toda a casa para achar
a sua dracma. Ela é personagem de uma parábola que retrata, numa comparação com o amor de
Deus para com aqueles que se afastam dele, o próprio Deus que não desiste de quem ama.
Também simboliza alguém que se perdeu pelos caminhos e precisa se achar, precisa voltar atrás
de seus sonhos e princípios. Há também a viúva persistente que consegue alcançar sua causa
com um juiz insensato, por causa de sua insistência em importuná-lo.
Em João, duas personagens se destacam; a mulher Samaritana e a mulher adúltera.
Somente em João essas duas histórias foram registradas. Em Sicar, terras antigas de Jacó, onde
ele havia cavado um poço, Jesus para e pede que seus discípulos sigam a cidade, a fim de
comprarem alimentos e ele fica sozinho, à espera de uma mulher que vem ao meio dia pegar
água no poço. Jesus conversa com ela, o que a deixa atônita pois, havia impedimentos diante
140

da sociedade, para se aproximar de Jesus, pela sua raça, pois eram inimigos judeus e
samaritanos, e ainda, por ser uma mulher e de vários maridos. O diálogo é um dos mais longos
registrado no evangelho. Jesus e a Samaritana discutem sobre a alma, a sede, a vida eterna e a
redenção divina. Após o encontro, Jesus a transforma em missionária. Depois de ser ouvida, de
poder dialogar, questionar e compreender a Jesus como profeta, ela sai convicta de que sua
história, a partir daquele dia havia mudado.
Quanto à mulher adúltera, seu encontro com Jesus não foi numa situação muito
confortável, pois ela vinha correndo de um julgamento com veredito de morte. Havia sido pega
em adultério e tinha de ser apedrejada. Entretanto, não havia testemunhas, nem o homem estava
no banco dos réus como ela. Vejamos a beleza desse texto em João 8: 3 a 3:

Os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher surpreendida em


adultério e, fazendo-a ficar de pé no meio de todos, disseram a Jesus: Mestre,
esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. E na lei nos mandou Moisés
que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes? Isto diziam eles
tentando-o, para terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia na
terra com o dedo. Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes
disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire
pedra.

Esse trecho nos mostra um momento decisivo em que se encontra Jesus e a Lei de
Moisés. Interrogado sobre a pena da lei de Moisés, Jesus, escrevendo no chão, nem levanta a
cabeça diante da pergunta: tu, pois, que dizes? Ou seja, e então mestre, devemos matá-la? Jesus
não responde com palavras, porém seu gesto revelador, faz aqueles presentes reconhecerem a
gravidade de querer julgar os outros, antes de julgar a si mesmos. Jesus responde que quem não
tem pecado pode atirar a primeira pedra. Assim, ninguém foi achado sem pecado, e não
puderam atirar a primeira pedra. Há ainda em João, as irmãs Marta e Maria, irmãs também de
Lázaro, uma família muito intima de Jesus. Maria conseguiu estabelecer uma relação muito
forte com Jesus, já provadas em bastantes momentos nos evangelhos. Entretanto, somente aqui
João retrata a morte de Lázaro, e a sua ressureição após 4 dias. Marta se preocupa com os
afazeres de casa, Maria gosta de aprender e aprende mesmo com Jesus. Em Atos dos Apóstolos,
livro possivelmente, escrito por Lucas, traz algumas personagens femininas citadas como
discípulas, mulheres de fé como Eunice, Rode, mulheres de Filipo, Lídia dentre outras. Há
também, no meio das histórias missionárias de Paulo e de Pedro, citações às mulheres que
haviam se abrigado no cristianismo
141

Nesse contexto, muitas mulheres ajudavam na organização das igrejas, como Drusila,
Berenice, Priscila que é citada, outras cediam suas casas para os trabalhos, e outras ajudavam
com seus bens, com suas obras. Mulheres gregas, romanas, em diversas regiões iam se
convertendo e tonando-se divulgadoras do Evangelho, ganhando direitos e visibilidade no
início da igreja primitiva. Muitas também foram presas, e enfrentavam com resistência as
perseguições por parte das autoridades religiosas e civis.
Assim, apresentamos a última personagem situada no livro de Atos, Capítulo 9 e verso
32, Dorcas, a mulher que conhecemos de repente, a partir de umas das viagens de Pedro que de
Lida é levado a Jope, cidade da discípula Tabita – Dorcas seria a tradução. Pedro é chamado
pelos irmãos de fé dali, em virtude da morte de Tabita. Só então é que sabemos no texto, que
esta era uma mulher amada por demais mulheres de Jope que eram amparadas por Dorcas e por
suas obras. Verso 39: “(...) e todas as viúvas o cercavam chorando e mostrando-lhes túnicas e
vestidos que Dorcas fizera enquanto estava com elas”. Diante do fato, Pedro, pede que todos
saiam e ora por Dorcas e essa retorna a vida, Pedro a entrega outra vez às viúvas. Vemos o
tamanho dessa personagem e de sua importância para o texto, como ela é intrépida e sabe dar-
se pelo outro, ser discípula na essência, amada e respeitada por todos.
A partir de Atos, seguem-se as cartas de Paulo aos Romanos, Coríntios, Gálatas,
Efésios, Filipenses, Colossenses, Tessalonicenses. Nessas, além de doutrinações sobre a
conduta cristã de homens e mulheres, Paulo cita muitas mulheres que marcaram a história da
Igreja, ressalta a consideração com estas. Quanto as recomendações ao casamento, divórcio,
relacionamento marido e mulher, pais e filhos, Paulo, apesar das controvérsias sobre seu
posicionamento, ele traz noções importantes sobre sua visão da mulher e de todos esses temas
que a envolve. No entanto, as recomendações de Paulo devem ser encaradas não como um
tratado teológico, mas como cartas específicas a comunidades com situações, problemas e
necessidades específicas. Para Paulo, a submissão feminina devia ser em amor, devendo ela
receber do marido, amor e respeito, tal qual Cristo havia dado a igreja. Paulo partilhava do
pensamento de que as mulheres eram secundarias aos homens na hierarquia da criação, assim
como os homens inferiores a Cristo, na condição de Igreja. Entretanto, algumas de suas
afirmações sobre a submissão constante aos maridos, sobre o silêncio das mulheres na igreja
são pretextos para más interpretações e aplicações em contextos que não servem, a não ser para
gerar a inferioridade das mulheres e revolta frente as novas demandas.
Indubitavelmente, Paulo manifestou pensamentos afetados pelos princípios judaicos e
por toda a filosofia de sua época, que não era em nada favorável as mulheres, como um homem
142

de grande acervo cultural, fariseu, escriba, estudado aos pés de Gamaliel, com conhecimento
da Lei, sendo constituído Rabi (mestre da lei), tinha um pensamento formado sobre o feminino.
Entretanto, Saulo fazia parte do Sinédrio de Jerusalém (Atos 26,10), a quem coube a
missão de prender os cristãos em Jerusalém e em seguida ir até a Damasco com a mesma
finalidade. Ia com os soldados, quando foi encontrado por uma luz que o derrubou do cavalo,
dizendo-se Jesus, converteu-o em Paulo, sua nova missão era fundamentar o cristianismo, ao
invés de extingui-lo:

Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos
quantos fostes batizados em cristo de cristo vos revestistes. Dessarte, não pode
haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher;
porque todas vós sois um em cristo jesus. E, se sois de cristo, também sois
descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa.

Desse modo, em Cristo, as concepções sobre tudo, inclusive, sobre as mulheres deviam
se pautar na igualdade e em suas posições em relação aos homens e a submissão passa a ser um
dever de todo cristão, seja qual for o sexo, para poder, a exemplo de Cristo que veio servir e
não ser servido, entregar-se pelo o outro, pelo amor ao próximo. Nesse aspecto, a mulher já
havia atingindo o modelo supremo da vontade divina.

3.3 A CONCEPÇÃO DO FEMININO NA CULTURA ORIENTAL

Deus fez cair um sono pesado sobre o homem, e este


adormeceu. Pegando uma de suas costelas, Deus com
ela formou a mulher.
Gênesis 2, 21- 22

Deus perguntou-se de que parte do corpo do homem


ele formaria a mulher. “Não escolherei a cabeça
para isso, a fim de que ela não erga orgulhosamente
a própria cabeça; nem o olho, para que ela não seja
muito curiosa; nem a orelha, para que ela não fique
escutando atrás da porta; nem da boca, para que ela
não saia muito de casa. Vou tirá-la de uma parte do
143

corpo que fica escondida, para que ela se torne muito


modesta”.

Comentário sobre Gênesis, no Talmud (Pierre


Itshak -Tradição Judaica).

É possível imaginar o constrangimento de uma mulher, filha, esposa que todas as


manhãs é obrigada a ouvir a seguinte oração encontrada no Talmud de Babilônia - Tratado
"Menachot" 43 B: “Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que não me fizeste
mulher”. Essa oração é chamada de Benção Matinal - BIRKOT ASHACHAR, feita pelos judeus
ortodoxos, desde o período de reconstrução do 2º templo.
É bem verdade que muitas falas que revelam modo particular de pensar a mulher, ditas
ao longo da história, inclusive, por homens considerados grandes pensadores, revelam-nos que
a mulher tem sido vista de modo injusto há muito tempo.
O silenciamento da mulher, a visão de um feminino idealizado, foram caminhos
utilizados para a dominação do feminino, numa tentativa de domesticá-la de usufruir de seus
serviços, numa propagação de pensamentos preconceituosos, embasados em achismos que
perpetuavam a condição de inferioridade da mulher. No artigo “A mulher na filosofia
ocidental”, Camargo (2017, p. 290): nos complementa quando diz categoricamente:

Uma das curiosidades mais espantosas que assombra o mundo da Filosofia é


o completo e suspeito silêncio acerca do pensamento feminino e da mulher
como pensadora. Todos os filósofos centrais da história oficial do pensamento
são homens e tratam os temas femininos exatamente como o senso comum e
vulgar de sua época, sem empreender qualquer reflexão mais ampla sobre o
pensamento da mulher ou sobre a mulher como objeto de reflexão. É certo que
grande parte desse desprezo para com o pensamento feminino tem fundo
religioso, devido à incestuosa promiscuidade entre a Filosofia ocidental e a
Teologia judaico-cristã, desde o princípio desta Era.

Infelizmente, salvos os excessos e as exceções, Camargo segue mostrando o pensamento


de alguns filósofos relevantes como Aristóteles (384 a. C.-322 a. C.), que ressaltava, com base
em seu contexto cultural, “a natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens”. Assim,
a mulher era um humano defeituoso e inferior. Relatando um pensamento de Tomás de Aquino
(1225-1274), Camargo (2017, p. 292) diz que “a mulher é defeituosa e bastarda, pois o princípio
ativo da semente masculina tende a produzir homens gerados à sua perfeita semelhança. A
144

geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio ativo”. Complementando esse


pensamento, Immanuel Kant (1724-1804) disse que a mulher podia reinar sobre o lar, uma
afirmação que reflete o pensamento do senso comum. Georg W. F. Hegel (1770-1831), no livro
Princípios da Filosofia do Direito (1821), declara que a diferença entre homens e mulheres é a
mesma que se dá entre um animal e uma planta, sendo que o temperamento animal é masculino,
e o da planta, feminino. Ele se referia ao modo de ver e pensar da mulher como indeterminado
pela sensibilidade, e perigoso, quando ela o usasse com inclinações emocionais. Já o homem,
age segundo a universalidade exigida pelo governo do Estado. (KANT, 2006, p. 106 in
Camargo, 2017, p. 292).
Reforçando essa ideia de que a filosofia não retrata bem a mulher, resgatamos o
pensamento de Friedrich Nietzsche, citado por Camargo (2017, p. 293):

Friedrich Nietzsche (1844-1900), que rompe com a filosofia socrática,


desmonta toda a tradição metafísica platônica e dá início à mais radical de
todas as revisões epistemológicas da Filosofia ocidental, não consegue
ultrapassar o mais venal senso comum acerca do mundo feminino. Segundo o
criador de Zaratustra, a mulher “aprende a odiar à medida que desaprende a
fascinar. [...] Onde não está em jogo nem o amor nem o ódio, as mulheres são
medíocres artistas”. Este filósofo também acredita que o pensamento é
incompatível com a maternidade, e quando uma “mulher tem veleidades
literárias, eis um índice de qualquer afecção da sensualidade. A esterilidade
predispõe a uma certa virilidade do gosto. (NIETZSCHE, 1977, pp. 90,94 –
99 in Camargo 2017).

Assim também são as rezas, orações, atitudes machistas legitimadas nas liturgias
religiosas. Nenhum deles, nem filósofos, nem religiosos se assumem antifeministas, misóginos
ou preconceituosos, pois têm sempre as origens de seus pensamentos ou de suas repetições,
justificadas com palavras bonitas e autorizadas por divindades, partilhando da crença da
inferiorização da mulher em relação ao homem.
A Rabina Sandra Kochmann em seu texto: “O Lugar da Mulher no Judaísmo” diz, com
base no Talmud de Babilônia - Tratado Menachot, está posto “que o homem deve recitar três
bênçãos cada dia, agradecendo por ter sido feito (do povo de) Israel e não gentil, por ter sido
feito homem e não mulher, por ter o saber em virtude dos que são ignorantes, por ser livre e
não escravo”. A mulher está equiparada aos gentios, aos ignorantes e aos escravos. Essa oração,
diz Kahan (1999), apud Kochmann (2005, p. 36):

(...) essa bênção se originou do dito helênico popular, citado por Platão e
Sócrates, que diz: Há três bênçãos para agradecer o destino: A primeira - que
145

nasci ser humano e não animal; A segunda - que nasci homem e não mulher;
A terceira - que nasci grego e não bárbaro. Mesmo que a ordem não seja
exatamente a mesma - e os gregos agradeciam ao destino e os judeus, a Deus
-, a semelhança é flagrante: o agradecimento grego pelo fato de ser humano"
tem seu paralelo judaico em "não ser ignorante"; "não ser bárbaro" era para os
gregos tão importante quanto para os judeus agradecer por ser parte do povo
de Israel; e "ser homem e não mulher" era central em ambas as culturas, onde
a mulher ocupava um lugar secundário, especialmente na vida pública.

Como vemos, é possível fazer uma relação entre o dito popular e a oração, uma vez que
ambos colocam a mulher ligada a características determinadas por vontade divinas ou do acaso,
que envergonham a classe masculina, a raça e a supremacia de gêneros, as quais eles julgavam
ter. Gratos por serem homens e não serem nem animais nem bárbaro, o que desqualificaria um
grego, nem ser gentil nem ignorante ou escravo. A condição do “ser mulher”, algo inferiorizante
e medíocre. Ser mulher para o mundo oriental, especificamente dentro da cultura judaica, não
é algo de muito prestígio, sabendo ainda que esse prestígio pode variar em diferentes contextos,
o que se faz tão relevante compreender esses contextos, para compreender também a
participação feminina dentro das esferas social, cultural, e religiosa na formação do povo judeu.
Um simples direito como praticar a sua fé de igual modo como os homens, não é visto com
bons olhos para a sociedade de Israel. A mulher não podia ouvir a leitura da Torá, não fazia
oração em público e não podia se aproximar do muro das lamentações, espaços onde os Judeus
oram, sobre os destroços do templo de Salomão.
Alguns movimentos feministas das judias, de outros grupos orientais como as ativistas
em France Presse, que no dia 10 de junho de 2013, depois de muitas lutas, conseguiram orar
em público pela primeira vez, em frente ao Muro das Lamentações em Jerusalém, significou a
quebra de anos de tradições, em que as mulheres só podiam orar em silêncio e longe dos
homens. Foi preciso que policiais escoltassem o grupo de ativistas feministas durante o ritual,
direito alcançado graças a decisão judicial, mesmo assim, elas foram abordadas por
ultraortodoxos que tentaram se opor a sua ação, jogando objetos e lixos contra elas e contra os
policiais.
Escrever sobre a condição da mulher é uma tarefa complexa, em relação a organização
dos fatos e dos tempos dentro do contexto histórico de um povo que, por muito tempo, esteve
à margem da história e suas guerras e conquistas, comportamentos culturais e religiosos foram
muito mais conhecidos nos textos bíblicos. Segundo Feldman (2007, p. 255):
146

O encontro do Judaísmo e do Helenismo resultou em diversas influências


mútuas e originou, entre outros resultados, o Cristianismo. Os efeitos no seio
da sociedade judaica não foram poucos e, sem dúvida, um destes foi na visão
da mulher. As duas culturas influenciaram-se e causaram mutações no status
das mulheres, em ambas as culturas.

Assim, tanto o Judaísmo como o Helenismo tinham concepções de um feminino às


sombras do masculino. Propagou no tempo os atos heroicos do masculino, enquanto as
mulheres foram cada vez mais conduzidas ao esquecimento. Esses conceitos sobre o feminino
que povoou a cultura e a filosofia do oriente antigo, também se reflete nas concepções de alguns
pensadores que fundamentaram os pressupostos teológicos do cristianismo. Em determinada
época bíblica, a mulher participa ativamente de todas as manifestações da vida social, na
política, econômica e religiosa. Entretanto, em outros momentos, a mulher vive um apagamento
do cenário público, passando a fazer parte apenas das atividades do interior da casa, a partir do
período talmúdico (século III a século VI da Era Comum), como coloca Kochmann (2005. p
37):

Essa concepção do lugar da mulher na sociedade judaica na época


do Talmud] - época na qual foram estabelecidas as regras do dia-a-dia judaico,
baseadas na interpretação e análise dos textos bíblicos pelos rabinos
(exclusivamente homens) -, recebe influência direta da antiga sociedade grega
em que estava inserida. Nela, a mulher praticamente não tinha vida social, já
que estava afastada dos lugares e acontecimentos públicos, entre eles, os
religiosos.

Não se pode precisar quando se deu início do sistema patriarcal, a cultura hierárquica,
mesmo sabendo que o termo “Patriarcalismo” é recente. O sistema pode ter dado início em
3500 a. C, (4º milênio), quando as primeiras civilizações mesopotâmicas e egípcias, começaram
a formar as primeiras sociedades agrícolas, surgindo assim, as primeiras formas de desigualdade
entre homens e mulheres. Antes nômades, pequenos grupos de coletores, caçadores, a sociedade
humana até 12000 a.C, mantinha uma certa igualdade entre os homens e mulheres, quanto a
organização das tarefas, atividades para a sobrevivência do bando, segundo Evelyn Reed (2008,
p. 40) e Heleiete Saffioti (2004). Para essas autoras, não foi somente a organização do trabalho
que trouxe as divisões de tarefas: homens para atividades como caça, plantação e as mulheres
para as atividades domésticas e, com o aparecimento dos filhos, coube a elas o cuidar e até
mesmo a educação destes. Contudo, “a transição das sociedades igualitárias para as patriarcais
teve início a partir da produção de excedente econômico e da descoberta de que o homem era
imprescindível para gerar uma nova vida” (SAFFIOTI 2004, p. 59).
147

No Oriente Médio, o patriarcalismo se insere de forma muito veemente, pois o domínio


dos pais e maridos foram aprofundados e legitimados em crenças e nas religiões e, à medida
que essas civilizações avançavam e suas instituições eram ampliadas, as relações de gêneros
foram sendo definidas pela estrutura cultural e institucional particular a cada uma delas. O
patriarcalismo marcante na cultura do antigo Israel se caracteriza por ser uma forma de
organização social, na qual o pai ocupa o primeiro lugar e está intrinsicamente ligada à
hierarquia. Definindo Patriarcalismo (pater -pai + arché -começo ou primeiro) está associado
a um sistema em que o PAI ocupa o primeiro lugar. Segundo Laffey (1994), no antigo Israel,
durante os séculos em que o Pentateuco foi composto, a cultura era patriarcal e hierárquica
(hieros -sacerdotes), categoria mais elevada da comunidade. Tal sistema é comprovado pelo
número pequeno de referências às mulheres, pelo modo que são apresentadas, em contraste ao
modo que são apresentados os homens, e pela ordem dos nomes das pessoas.
O livro de Juízes, mesmo sendo o 7º livro da Bíblia, livros históricos, apresenta histórias
embasadas em relatos orais muito anterior a sua escrita, de tempo remotos, e revelam as relações
sexistas marcadas pelas diferenças dos papeis entre o homem e a mulher na comunidade,
legitimadas pelas crenças. A cultura patriarcal é muito presente em todo o Primeiro Testamento,
da composição do Pentateuco, escritos no Séc. XII a.C, passando pelos livros históricos, dos
profetas maiores e menores, trazendo desde a história da origem e organização do povo, as
promessas de Deus para estes e castigos para àqueles.
Assim, o plano da salvação ainda que repleto de simbolismo, aparece como uma forte
ideia de um Deus masculino, que priorizava o homem como seu instrumento principal a ser
usado para o alcance dos seus feitos vitoriosos, para louvor do seu nome. À mulher, é relegado
o segundo lugar ou os serviços que assegurassem o bem-estar e a desenvoltura dos homens. As
esposas e filhas eram apenas para o interior das suas casas, ocupadas nas atividades domésticas.
Eram proibidas de estarem na sala com visitas, de participarem de qualquer negociação, não
tinham direitos a heranças e ainda podiam ser repudiadas por qualquer motivo fútil.
Dentro desse raciocínio, as mulheres eram despojos de guerra, a tribo vencida perdia
mulheres e filhas para os conquistadores. (NÚMEROS 31,9: DEUTERONÔMIO 21, 11-13)
Sendo propriedade de homens, “a filha de”, “a esposa de”, eram desprezíveis aos olhos da
comunidade quando não tinha filhos, pois era como se sua única utilidade fosse invalidada. A
mulher jamais seria cotada para cargos públicos ainda mais na dimensão de profetisa, juíza e
oficial do exército israelita.
Há uma forma comum em diversos textos do pentateuco em que Deus é apresentado
como o Deus dos Patriarcas: “Eu sou o Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. (ÊXODO: 3,3-6). Essa
148

apresentação foi feita quando Deus ia falar com homens escolhidos para grandes feitos. A honra
é aos patriarcas e segue-se a homens de diferentes gerações. Não há o chamado para mulheres,
nem suas esposas recebem funções importantes, elas são apenas as mulheres destes homens,
algumas estéreis, que precisam de intervenção divina para fazer valer sua função de mãe e
esposa. Nesse contexto de desigualdade social, de machismo imperante no povo judeu, ainda
hoje perduram maus-tratos às mulheres tanto no Islamismo como no Judaísmo40. Masi (2002),
menciona que:

Segundo as regras do islã ortodoxo, as mulheres devem ser monogâmicas e


podem se casar apenas com muçulmanos; a poligamia é reservada aos homens,
que podem ter ao mesmo tempo até quatro mulheres. O marido pode repudiar
a mulher quando quiser; a mulher pode deixá-lo apenas em poucos casos bem
específicos. O adultério feminino é punido com penas que, ainda hoje, em
algumas regiões, chegam à morte. (MASI, 2002, versão para Kindle,
localização 4377 in Garcia 2019, p.35)

As personagens femininas já pontuadas no tópico anterior, revelam muito da estrutura


daquela sociedade. A partir do relato da criação, as mulheres são apresentadas como inferiores,
submissas por sua estrutura física e mental, e ainda tendenciosas a pecar, a promover a
sensualidade e, por isso, devem ser modestas, castas, vestidas sempre para não despertar desejos
ou para não serem responsáveis por sofrer males e castigos divinos ou dos homens.
Assim, é possível fazer uma análise da condição da mulher na cultura oriental, a partir
dos textos bíblicos, das situações em que as personagens surgem nos textos, salvo por algumas
conquistas, a realidade se perpetua nas práticas machistas e na visão depreciativa do feminino.
Mesmo tendo conhecimento de que Deus fez homens e mulheres de igual modo, as
interpretações equivocadas sobre as relações de gêneros, revelam que a inferioridade da mulher
ainda é o pensamento que move as organizações sociais do oriente, afetando também a
sociedade ocidental.
Aliás, a noção de criação da humanidade para esses países e para aqueles que adotam
suas crenças religiosas fundamentalistas, é de que a desigualdade e a submissão de um dos
gêneros se deram desde a criação. Portanto, não guiados por códigos civis como o ocidente, as
leis religiosas assumem também o caráter moral, civil e religioso. A participação das mulheres
na história de Israel, é de certo modo apagada, validando-as apenas na parição e educação de
filhos, destinadas ao interior das casas, propriedades dos homens, comparadas e contadas junto

40
http://fathomjournal.org/women-and-feminism-in-israel-women-in-israel-a-revolution-halted/
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as terras, animais e bens de um homem. Assim, como propriedade, as mulheres virgens têm
muito mais valor do que as demais, e, por isso, eram poupadas nas guerras e invasões. As
estrangeiras são profanas e indignas e só são aceitas pela convenção às leis do país, assim como
foi com Rute, Raabe, Jael e tantas outras estrangeiras, enxertadas nas raízes judaica. As estéreis
perdem seu papel e valor social, uma vez que a mulher existe para gerar, pois a procriação
sempre foi a maior importância ou a única das mulheres e, talvez, por essa razão, elas sofram
tanto quando não tem filhos. Vale ressaltar que sempre lhe é atribuída a culpa quando não
conseguem gerar. Quanto as prostitutas, estas são totalmente desprezadas, as adúlteras punidas
com morte de apedrejamento, segundo as leis de Moisés. Levítico (21, 8-9):

Não tomarão mulher prostituta ou desonrada, nem tomarão mulher repudiada


de seu marido, pois o sacerdote é santo a seu Deus. Portanto, o consagrarás,
porque oferece o pão do teu Deus. Ele vos será santo, pois eu, o Senhor que
vos santifico, sou santo. Se a filha de um sacerdote se desonra, prostituindo-
se, profana a seu pai; será queimada.

Além de ser considerada desonrada, por ter se deitado com um homem sem ser casada
com ele, o castigo poderia ser morrer queimada. A profanação da filha mancharia o seu pai.
Quanto aos homens, a poligamia era aceita, uma alternativa somente masculina, foi adotada
entre estes os Judeus, mesmo o Gênesis instituindo o casamento com uma só mulher. No
entanto, o homem casava-se com tantas mulheres pudesse manter. Quanto mais poder
econômico, mais esposas eles tinham. Era destaque nos textos, nas genealogias, a quantidade
de filhos que um homem tinha.
Desse modo, havia uma estereotipagem da função da mulher na comunidade que surgia
sempre pelo viés da discriminação sexual. As leis de Moisés, por exemplo, mesmo quando
parecia proteger a mulher, tinha sempre como foco manter integridade, a imagem dos homens.
Assim, quando se tinha um mandamento como em Êxodo (20, 17): “Não cobiçarás a casa do
teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o
seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo”. É destaque o
desconforto para o homem que tinha a sua mulher cobiçada, assim como os outros bens: casa,
animais e servos. Quando violadas, sempre estava em evidência a violação do pai, ou do marido
em detrimento da própria mulher.
Ainda outro mandamento em Levítico (20,17), seguem-se algumas recomendações que,
de certo modo, parece proteger a mulher, mas fica evidente a preocupação maior com o homem,
a qual ela pertence, portanto devem ser evitados casos em que se deite com a mulher do
150

próximo, as servas do pai, a mulher do tio, a mulher do irmão, até mesmo em caso de ver essas
mulheres nuas. A nudez simboliza um ato de relação sexual. Levítico (18, 8-9): “Não
descobrirás a nudez da mulher de teu pai; é nudez de teu pai. A nudez da tua irmã, filha de teu
pai ou filha de tua mãe, nascida em casa ou fora de casa, a sua nudez não descobrirás”. E ainda
em Deuteronômio (22, 23-24), fica claro que está em questão a honra do masculino, mesmo
que a violência seja contra a mulher:

Se houver moça virgem, desposada, e um homem a achar na cidade e se deitar


com ela, então, trareis ambos à porta daquela cidade e os apedrejareis até que
morram; a moça, porque não gritou na cidade, e o homem, porque humilhou
a mulher do seu próximo; assim, eliminarás o mal do meio de ti.

A mulher era considerada imunda diante da menstruação. O homem não podia tocá-la.
Isso favorecia o conforto da mulher durante aquele período, pois não seria usada sexualmente.
Entretanto, uma função natural e dada pelo próprio Deus, não poderia ser considerado
imundície. Levítico (15, 26): “Toda cama sobre que se deitar durante os dias do seu fluxo ser-
lhe-á como a cama da sua menstruação; e toda coisa sobre que se assentar será imunda,
conforme a impureza da sua menstruação”. No capítulo 18, a proibição é mais expressa, pois
diz expressamente: “Não te chegarás à mulher, para lhe descobrir a nudez, durante a sua
menstruação”. (LEVÍTICO 18, 19).
No período pós-parto também, como encontra-se em Levítico (12,1), a mulher, se tivesse
filho homem, ficaria imunda sete dias, no oitavo seria a circuncisão do menino. A conjunção
adversativa, “mas” que introduz a recomendação em caso de ser menina, já nos traz a ideia de
que há algo que diferencia o sexo feminino, pois nesse caso a mulher se torna imunda 14 dias,
sendo o dobro do tempo também para o sacrifício de purificação.
São nesses passeios pela lei de Moisés que nos é revelado como era o status feminino
no Pentateuco. Podemos observar que as mulheres eram propriedades dos homens, cabendo ao
pai e ao marido estabelecer seu comportamento, seu destino e até os seus votos perante Deus.
Em Êxodo (21, 7), fica claro que o pai poderia vender sua filha como serva, para fins de serviço
de casa ou sexuais. Mesmo fazendo ressalva sobre o tipo de relacionamento, em que o senhor
devia garantir a segurança e a afetividade quanto a moça, ainda assim, não apaga o fato de que
a mulher podia ser negociada. A mulher não era contada como primícias, somente os machos
inclusive dos animais era considerado primogênito, o que implica dizer que não herdavam
bênçãos, nem bens, nem terras, nem o direito de perpetuar sua família. Em caso de estupro, a
151

mulher ainda podia ser culpada caso gritasse ou não gritasse caso fosse ouvida ou não, no
momento de sua violação. Vejamos o texto em Deuteronômio (22, 23 -30):

Se houver moça virgem desposada e um homem a achar na cidade, e se deitar


com ela, trareis ambos à porta daquela cidade, e os apedrejareis até que
morram: a moça, porquanto não gritou na cidade, e o homem, porquanto
humilhou a mulher do seu próximo. Assim exterminarás o mal do meio de ti.
Mas se for no campo que o homem achar a moça que é desposada, e o homem
a forçar, e se deitar com ela, morrerá somente o homem que se deitou com ela;
porém, à moça não farás nada. Não há na moça pecado digno de morte;
porque, como no caso de um homem que se levanta contra o seu próximo e
lhe tira a vida, assim é este caso; pois ele a achou no campo; a moça desposada
gritou, mas não houve quem a livrasse. Em juízo, entre sangue. Se um homem
achar uma moça virgem não desposada e, pegando nela, deitar-se com ela, e
forem apanhados, O homem que se deitou com a moça dará ao pai dela
cinqüenta siclos de prata, e porquanto a humilhou, ela ficará sendo sua mulher;
não a poderá repudiar por todos os seus dias. Nenhum homem tomará a mulher
de seu pai, e não levantará a cobertura de seu pai.

Como podemos observar, não é clara a punição para todo e qualquer tipo de abuso sexual
às mulheres, e constatamos isso no texto bíblico, quando, anteriormente, consideramos sobre a
concubina do levita, texto que se encontra em Juízes (19, 22), em que a mulher é posta pelo
dono da casa onde se hospedara, sem qualquer reação de seu marido, para os homens que
estavam fora, a usarem e esta é estuprada até a morte. Sem se fazer menção se esta gritou ou
não, seu marido continuou dentro de casa enquanto ela era abusada. E nada aconteceu aos
homens que não a protegeram. Assim também foi feito a Tamar, princesa filha do Rei Davi,
pelo seu próprio irmão Amon, enquanto seu Pai Davi, permaneceu em total silêncio. As
mulheres eram despojos de guerra, sendo virgens principalmente. Muitas foram sequestradas
para serem esposas dos sequestradores.
A sociedade, distante de saber realmente a vontade divina, agia com total violência e
desatenção às mulheres, justificando seus atos, na lei e na vontade de Deus. Dentro de uma
família patriarcal e poligâmica, apesar do modelo dado por Deus no Éden ser monogâmico, os
homens esbanjavam riqueza e poderio adquirindo esposas, concubinas e muitos filhos, mas a
mulher não poderia ter outro homem se não seu Senhor. As mulheres que adulterassem seriam
mortas por apedrejamento. Cabia a elas estabelecerem a ordem da casa e o agendamento com
seu marido, sendo despejadas ou divorciadas por não gerarem ou se promovessem brigas. Outro
ponto importante era a valorização extrema da beleza, ao mesmo passo que tais mulheres
deviam ser vestidas com total pudor e absoluta descrição para não instigar o pecado e nem a
cobiça dos homens.
152

No Oriente, as mulheres se vestem inteiras, com burcas, véus, de modo que são sensuais
os cabelos, o rosto, todo seu corpo envolto em sensualidade, espalhando malícia e pecado, na
concepção dos homens. Por essa razão, eles mesmos assim as julgam e determinam que seus
corpos devem ser cobertos, e expostos apenas para o seu marido. As mulheres não são
consultadas sobre como devem se vestir, não são donas nem mesmo de seus corpos.
Situação mais difícil ainda era a das mulheres viúvas, que se tivessem herdado filho
homem, estariam amparadas pelos direitos que cabia ao primogênito e este tinha que cuidar de
sua mãe. A mulher ficava obrigada a nova relação, na obrigatoriedade de ter filho. Tanto para
cumprir a lei, como para garantir sua sobrevivência. Vemos o caso de Tamar que usou da
estratégia de cumprir a lei, deitando com seu sogro Judá.
Se as mulheres no Pentateuco não gozavam de liberdade e valorização em igualdade
com os homens como devia, pelo menos tinham alguma autonomia para decisões importantes
como no período das matriarcas. Porém, no período pós-exílio, a discriminação sexual e a
estereotipagem de funções tornaram-se muito mais complexa e inferiorizante.
Segundo Brenner em seu livro A mulher Israelita: papeis sociais e modelo literário na
narrativa bíblica, na leitura das narrativas do Segundo Testamento é possível conhecer a
posição da mulher totalmente regulamentada e expressa na coleção de leis da Torá. Por essa
razão, devido as leis não favorecer espaço de igualdade às mulheres, poucas se destacavam ou
tinham coragem de galgar posições fora das suas atividades domésticas. Enquanto que nas
civilizações vizinhas, como na Mesopotâmia, muitas mulheres tornavam-se rainhas,
sacerdotisas. (BRENNER, 2001, p. 17). A presença de algumas profetisas como Mirian no
tempo de Moisés, Débora no tempo dos juízes, Hulda, que era contemporânea do famoso
Jeremias, mas não tem muito destaque nem escritos. Entretanto, em 1Reis (22,13), ela é
mencionada em um pequeno relato que demonstra a importância da profetisa, consultada pelo
Rei Josias, que acatou seus conselhos e livrou o povo do cativeiro (castigo divino), nos seus
dias.
Essas narrativas revelam o comportamento ou a participação social da mulher com mais
frequência nesses dias, o que se tornou totalmente escasso no período pós-exílio ou do segundo
templo como afirma no texto “A mulher na religião judaica (período bíblico: primeiro e segundo
Templos)” (FELDMAN, 2006, p. 258). Ele aponta que a presença de mulheres em espaços
públicos era frequente durante o período da peregrinação, a presença dos cantos femininos com
Miriam, no Pentateuco, as profetisas, as mulheres que serviam na porta do templo, mulheres
reivindicavam junto a Moisés, participaram da construção do Tabernáculo, as mulheres pastoras
que iam as fontes: Zípora (Séfora), Rebeca no encontro com Eliezer, Raquel com o próprio
153

Jacó. Ainda nos tempos dos juízes, tinham as profetisas, a juíza Débora, Ana cultuando com o
marido no templo.
Entretanto, no convívio constante com povos de costumes diferentes como os cananeus,
as influências dos ritos e costumes muitas vezes adentraram o contexto de Israel e conforme
profetizou alguns profetas como Ezequiel, Jeremias, Daniel, o exílio viria como um castigo de
Deus ao povo judeu, distante da lei e de fato, em 586 a.C, aproximadamente, começam os
primeiros cercos e deportações de reis e príncipes e no ano de 606 a. C, todo povo é levado para
a Babilônia, nos domínios do Rei Nabucodonosor II.
Após quase 70 anos de cativeiro, o povo retorna a sua terra para reconstruir tanto a
cidade, o templo como sua própria cultura, a história e leis religiosas e civis. Feldman, (2006,
p. 261) afirma que:

Constatamos uma profunda mudança nos padrões morais refletindo-se em um


processo lento, mas contínuo de urbanização e de contatos com o mundo
externo. Os cinquenta anos no Exílio e a manutenção de uma comunidade
babilônica em contato, praticamente ininterrupto com Jerusalém, alteraram os
padrões e os valores. Um crescente ascetismo impregnou as crenças; um senso
de insegurança e culpa aumentou a rigidez das posturas e atitudes.

Aos poucos, os espaços femininos são reduzidos, a participação de ambos os gêneros


nos cultos, nos ritos vão ficando escasso, pois a santidade devida à nação, agora reabilitada com
Deus, requeria a total abstinência dos ritos e de qualquer coisa que os levasse as impurezas,
inclusive sexuais. As mulheres estrangeiras seriam totalmente abolidas do meio do povo, pois
representavam a contaminação com os costumes e adoração a deuses, e as mulheres de Israel
passariam por leis severas e regras para se purificarem. Portanto, Feldman (2006, p. 261) nos
fala que:

Surgem novas leis ou se adotam com mais rigor antigas leis. A ética e a
moralidade do povo santo exigiam um elevado grau de pureza: alimentos
proibidos de acordo as normas da Kashrut (LEVÍTICO, c. 11et seq.); a
preocupação social com os órfãos e as viúvas; o código da guerra.
(DEUTERONÔMIO, c. 20 et seq.). Os exemplos são vários e afetam todo o
cotidiano.

Nesse contexto, o feminino passou a ser visto como algo que devia ser totalmente
domado, contido, para que as liberdades desde os costumes tribais, do antigo Israel, às
influencias dos povos não pudessem mancha a conduta do povo. Assegurar as mulheres nos
154

contextos e nos afazeres domésticos seria uma maneira de manter a pureza, de reorganizar os
papeis socais, de forma que a mulher seria modesta, prudente. Assim, no livro de Provérbios,
há recomendações contra as mulheres, inclusive, as que transitam no contexto público.
Provérbios, 7, atribuído a Salomão, traz uma ideia da mulher que espalha o mal pela rua, em
contraponto com provérbio 31 em que a mulher sábia é apresentada como aquela que cuida de
toda a sua casa, de todos os detalhes para manutenção desta, o bem-estar dos filhos e do marido.
As vestimentas passariam a ser controladas com mais rigor, recriminado a vaidade feminina, os
adornos e, aos poucos, as mulheres são isoladas de todos os espaços públicos e até mesmo as
que desempenharam papeis de liderança, o que era casos muito raros, como o caso de Ester a
rainha, havia limites para sua atuação sendo impedida até mesmo de entrar na sala do Rei sem
que fosse convidada.
No período pré-monárquico e monárquico, as mulheres eram usadas como objeto de
adorno dos reis e príncipes, expostas em festas, guardadas em haréns. Com o início do período
monárquico, com a centralização do poder, a organização dos estados, das monarquias e
impérios, seguindo-se pelo período pós-exílio, muitas foram as transformações sociais que,
influenciadas pelas leis religiosas, acentuaram a exclusão das mulheres da vida pública e dos
rituais religiosos, deixando-as restritas ao convívio doméstico e a criação de filhos.
Essa visão da mulher inferior perdura durante todo o Judaísmo talmúdico, medieval e
persiste até hoje, na lei judaica ortodoxa. Nos livros proféticos, os profetas costumavam
comparar a prostituição do povo judeu, o adultério espiritual com o adultério feminino, expondo
muitas vezes a sexualidade feminina, condenando o desejo sexual, o interesse em homens com
partes íntimas bem-dotadas, o gemido da mulher, em Jeremias temos a expressão “relincho de
sensualidade”, para se referir ao prazer de Israel em pecar com outros deuses. São visões
totalmente atreladas ao contexto cultural, a forma como o homem via o feminino.
É nessa mesma visão e situação sobre o feminino que Jesus encontra a mulher no
Segundo Testamento. Sobre o domínio do Império Romano, todo povo estava subjugado a
Roma. Entretanto, as opressões se davam de forma mais intensa com a mulher, pelos rabinos
judaicos, que excluíam as mulheres dos templos, dos contextos sociais e nesse período já
repetiam as orações matinais que desmereciam o fato de se nascer mulher. Porém, os
evangelhos apresentam um prenúncio do que seria a presença de Jesus para a tradição Judaica.
Já em Mateus, encontramos a genealogia de Jesus que inclui nome de cinco mulheres,
anteriormente situadas enquanto personagens: Tamar, Raabe, Rute, Batseba, Maria. Com
exceção de Maria, as demais mulheres eram, aparentemente indignas, por serem,
respectivamente, a mulher que fingiu ser uma prostituta para ter filhos do sogro, uma prostituta,
155

uma moabita, estrangeira de uma nacionalidade que antes foram proibida até de entrar no
templo, e a mulher de Urias, aquela que se banhava sensualmente no telhado para atrair o Rei
Davi. Ironicamente, estas visões que tinham sobre essas mulheres, como portadoras de defeitos
terríveis e atitudes pecaminosas, convergiram para o plano final de Deus, o nascimento de seu
filho.
Em Lucas (2,22), Jesus menino, levado pelo seus pais ao templo, depois dos dias de
purificação de Maria e do filho homem, 40 dias conforme a lei, Jesus é apresentado por Simeão,
possivelmente o sacerdote. “E eis que havia em Jerusalém um homem cujo nome era Simeão;
e este homem era justo e temente a Deus, e esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo
estava sobre ele” (v.27). O texto diz que, ele viu o menino e alegrou-se, pois já tinha ouvido do
Espírito Santo de que não morreria sem ver o Messias.
No entanto, uma figura feminina chama a atenção, pois era a viúva Ana, profetisa que
servia a Deus no templo. Como vinha todos os dias louvar, chegou na mesma hora em que o
menino estava sendo apresentado. Ana era uma exceção das mulheres que frequentavam o
templo, por sua viuvez, dedicou-se a vida religiosa, mas torna-se, simbolicamente, a imagem
do feminino que seria incluído no ministério de Jesus. Havia um Simeão, mas havia uma Ana,
tão digna quanto, tão necessitada quanto ele “Simeão, o masculino”, de salvação, de ser vista e
de ser igual dentro do Reino. Ana é o feminino que seria incluído, não por suas características41
apresentadas no texto, como virtudes por ser religiosa e não ter vida sexual desde sua juventude
por causa da viuvez. Mas por ser uma mulher marcada pelo tempo, pelas agruras da solidão,
pela vida de profetisa esquecida e apagada num cenário de homens, sendo citada apenas essa
vez, em virtude de conhecer o Cristo. Ana decidiu integrar-se ao Deus em quem cria, num
mundo de homens, ela persiste em esperar dias melhores, e os alcança.
As mulheres foram acolhidas por Jesus e durante todo o seu ministério, elas fizeram
parte. Em várias situações Jesus repreendeu aos homens e os seus conceitos sobre o feminino,
mostrando que a mulher não devia ser responsabilizada pelos pecados e maus pensamentos que
eles tinham em suas mentes, em desejá-las. Mesmo cobertas por vestes longas. (Mt.5, 22).
Quando falou do divórcio, lei que só favorecia aos homens, deixou claro que ambos podiam se
divorciar em caso de traição e nenhum dos dois gêneros podia se divorciar por motivos banais.

41
E estava ali a profetisa Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Esta era já avançada em idade, e tinha vivido com
o marido sete anos, desde a sua virgindade, 37 E era viúva, de quase oitenta e quatro anos, e não se afastava do
templo, servindo a Deus com jejuns e orações, de noite e de dia. 38 E esta, sobrevindo na mesma hora, dava graças
a Deus, e falava dele a todos os que esperavam a redenção em Jerusalém. (Lucas 22: 36 ao 38 Bíblia A. A.C)
156

Jesus alertou também que a permissividade da Lei de Moisés para o divórcio não era
divina e sim do próprio Moisés por causa da dureza do coração dos homens. Jesus também
livrou da morte uma mulher adúltera, conforme o relato de João (8,11), observando que o
julgamento não estava justo seguindo a lei, uma vez que ambos o homem e a mulher deviam
morrer.
Nas atitudes de Jesus, fica evidente que ele não compactuava com o pensamento
machista de seu tempo, dando exemplo de como devia compreender, amar e respeita as
mulheres. Ele as incluiu como discípulas, ajudadoras, divulgadoras de boas novas, suas amigas
pessoais e ainda se revelou a elas primeiramente na sua ressureição. Eram as Marias, Madalena,
Maria irmã de Lázaro, Maria sua mãe e tantas outras anônimas as quais Ele as viu de forma
especial e pessoal.
Há sempre avanços e retrocessos. No Egito, de acordo com a pesquisa divulgada pela
Fundação Thompson Reuters no mês de novembro de 2013, no ranking dos países árabes que
mais oferecem perigos às mulheres em suas sociedades e constituições, o Egito está em primeiro
entre os piores países para a mulher. Segundo o artigo de Rodolfo Pena (2019)42, boa parte das
mulheres sofreram algum tipo de assédio sexual, como estupros, violências domésticas, e o que
se agrava pois e quase nenhuma participação feminina na economia, na política, enfim.
A fundação ainda apresenta o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) feito
em 2019, apontando que um terço de todas as mulheres do mundo foram vítimas de violência
doméstica, e nos países árabes se acentuam essas ocorrências, estimuladas por políticas públicas
que restringem a liberdade e os direitos femininos. São muito restritos os direitos femininos,
sendo impedidas de estudar, de escolherem suas vestes, a aparência, e em piores casos, de
denunciar maus-tratos ou agressões sexuais, caso não consigam provar que foram estupradas,
podem ser responsabilizadas e acusadas de relações ilícitas. Ainda reflete os ideais culturais e
religiosos que orientaram há muito tempo, as separações dos gêneros, os papéis impostos por
uma sociedade machista, envoltos em crenças religiosas que alimentam seus devaneios.
No Oriente, as mulheres na Arábia Saudita, segundo país do ranking para as mulheres
morarem, as ações vão desde separar caminhos, entradas em lojas, restaurantes para homens e
mulheres, a proibição de que estas conversem com homens que não sejam de seu contexto
íntimo. Elas não são dignas de fazer uso da fala, de ir e vir livremente, sob pretextos escusos

42
PENA, Rodolfo F. Alves. "O mundo árabe e o direito das mulheres"; Brasil Escola. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/o-mundo-arabe-direito-das-mulheres.htm. Acesso em 09 de maio de
2020.
157

que só validam a ideia de muito tempo atrás, em que a mulher é vista como ser inferior,
repulsiva e, portanto, deve ser submissa em totalidade ao mundo dos homens. (PENA 2019).

3.4 CONTEXTUALIZAÇÃO DO FEMININO NO TEXTO BÍBLICO: QUE PERFIL ELAS


TÊM?

No tópico anterior, à medida que fomos discutindo sobre como o Oriente Médio vê o
feminino, já nos foi possível contextualizar como a idealização da mulher, dentro da literatura
bíblica pode ser vista em duas óticas: uma no Primeiro Testamento e outra no Segundo
Testamento.
É preciso compreender esses dois momentos dos textos bíblicos, suas diferenças e
aproximações, para perceber o modo como se constitui dentro desses textos, a construção da
identidade feminina, buscando, nesses dois períodos, a constituição do perfil da mulher dentro
da Bíblia. A divisão da Bíblia cristã em Primeiro e Segundo Testamentos, implica pelos escritos
distintos, pelos períodos diferentes, em concepções diferentes sobre os sujeitos. Para Lima
(2007), o Primeiro Testamento se constitui dos livros da tradição Judaica: Torá, os livros
históricos, profetas maiores e menores e livros de Cânticos ou líricos e de sapiência. Tais livros
foram escritos entre 500 a.C. e 450 a.C. Enquanto os livros do Segundo Testamento datam
aproximadamente entre 45 d.C. e 90 d.C. decorrendo quase 1600 anos para que se tenha a
biblioteca completa, conforme conhecemos atualmente.
No Latim, a palavra “Testamento” faz referência à pacto ou aliança. Nesses livros temos
a primeira aliança de Deus para os Homens. O Primeiro Testamento se constitui das
histórias/estórias do povo hebreu/judeu, de sua origem com a Abraão, as promessas para este,
feitas por Deus, as leis de Deus dada a Moisés garantindo as bênçãos e os castigos a eles, como
também as profecias acerca do Messias que viria para salvação do seu povo. O Segundo
Testamento traz o nascimento de Jesus como o acontecimento histórico que marca o início de
uma nova era, tida pelos cristãos como a completude da lei e a abertura do tempo da graça.
Assim, o Primeiro Testamento se resume nas histórias dos hebreus, repassadas de
geração em geração, desde o período dos patriarcas, moldadas por culturas, dialetos diferentes
dos de origem, como também as leis de Deus dadas a Moisés, as profecias sobre a entrada e
permanências na terra prometida, sobre o exílio, até o cativeiro do povo na Babilônia. O
Segundo Testamento surge depois da morte de Jesus, e mesmo que não seja possível precisar
datas, ele é formado por livros que pertencem a um tempo, a um período sociocultural no qual
158

essa obra se insere. Zabatiero e Leonel (2011, p. 43) afirmam que: “Mateus, por exemplo, foi
escrito por volta do ano 85 d.C. para um agrupamento de comunidades cristãs. E os demais
livros, variando o tipo de leitor, tinham a intenção de relembrar os atos, os milagres, a vida de
Jesus Cristo, como também orientar e perpetuar a fé dos novos cristãos”.
Nesse sentido, quem vê a Bíblia como um livro literário, mesmo não anulando a
inspiração divina para os escritos, não tem como não compreender a participação humana nas
escolhas, na organização mediante objetivos e intenções que se faziam necessários para as
sociedades e suas demandas naquela época. É improvável que qualquer atividade humana se dê
fora de uma cultura, de uma história, de um contexto político e social, e que não se deixe ser
influenciada pelos tais.
Neste contexto, é preciso perceber que o perfil da mulher nesses dois períodos requer
conhecer os contextos sociais, observar as atitudes e o comportamento destas mulheres, para só
assim compreendê-las em sua complexidade. As personagens bíblicas são na verdade, intensas
e decididas, sabem compreender a importância de suas ações para o desenrolar da história e
estão nela por motivos óbvios: precisam se deixar ser instrumentos de Deus para que a
realização de seus feitos se dê de forma gloriosa. São pessoas, indivíduos com propósitos certos
para a conjuntura maior. Emana das narrativas, a capacidade dessas personagens de
sobressaírem das mais diversas situações e quando são expostas a atitudes violentas, muitas
delas deixaram exemplos de grandeza humana, como também sua humanidade, por seus erros
e acerto.
No Primeiro Testamento, elas querem ser encaixadas nas leis, por mais que reconheçam
que os lugares que lhes são destinados são de auxiliadora, de submissão a seu pai, a seu marido
e a todo um sistema que ditam estas leis. Assim, elas tentam agir em conformidade com a lei,
com as promessas, mesmo que tenham que agir de maneira inédita ou desconforme com os
padrões. As atitudes das mulheres para fazer valer sua participação no mundo religioso e social,
as levam a assumir uma identidade tal qual nos anuncia Bauman (2005), que nos propicia a agir
mediante a situação, como se por sobrevivência. Elas não estão condicionadas a uma identidade
fixa, imutável. Senão, seriam submissas a todas as vontades masculinas.
É o caso de Tamar nora de Judá, em Gênesis (38,1-39). Ela é apresentada buscando
cumprir a lei do levirato e ter descendentes de seu marido, usa a estratégia que levou Judá a ser
contradito e exposto como descumpridor da lei diante de toda Israel. As filhas de Zelofeade,
escrito em Números (27,1-7) mostra-nos que elas também reivindicaram as terras, das porções
de terra prometida por Moisés, como filhas, passaram a herdar a terra devida ao seu pai, como
159

também em consulta a Deus. Moisés muda a própria lei para que todo homem que só tenha
filhas, possa torná-las herdeiras, com os mesmos direitos de herdar dos filhos homens.
As personagens femininas aparecem no texto, timidamente e às sombras, porém quando
as olhamos com outra ótica, conseguimos captar toda a força e a desenvoltura destas mulheres
nada frágeis, pequenas ou inferiores. Assim, observando a personagem e suas inserções nos
textos, podemos dizer que o androcentrismo dos escritores parece apagar a presença da mulher,
reduzindo-as a filhas, esposas, concubinas, servas, adúlteras, estrangeiras, anônimas, sempre
deixando sobressair um perfil apagado ou marcado por estigmas sociais e preconceitos.
Porém, é necessário ampliar a visão e resgatar o feminino que estas mulheres
representam verdadeiramente como personagens repletas de brilho e resistência. Assim, a visão
sobre Eva, em seu contexto de surgimento, tem todo um roteiro na narrativa que vai nos levando
a perceber as diferenças entre os gêneros homem e mulher. Mesmo os diferindo pela estrutura
corpórea, pela determinação macho e fêmea, mas são seres de igual modo criados por Deus,
iguais em direitos de estarem no paraíso, de serem sujeitos dotados de capacidades. Eva, tal
qual Adão é um ser com poder e raciocínio, com estimulo de explorar o ambiente e se relacionar
com este, e com o homem de igual modo. Parece existir uma ideia universalista do ser, criaturas
divinas, imagens e semelhança de Deus. Porém é preciso haver a queda, uma culpa que recaia
sobre a mulher, para que se comece a pensar, a partir da questão do castigo divino, as primeiras
diferenciações entre os gêneros, suas funções e papeis sociais.
Desse modo, recai sobre a mulher a dominação do Homem. Eva e Adão saem juntos do
Jardim e são levados a enfrentarem a vida dura, árdua e de batalha. Insistir em justificar a
submissão da mulher e sua condição de inferioridade pelo fato de a serpente ter se dirigido a
Eva e não a Adão, é querer isentar o homem de sua culpa, da quebra de compromisso tanto
quanto o fez a mulher.
Ademais, Adão está todo tempo na cena, no diálogo entre a mulher e a serpente. No
Verso 6 do capítulo 3, diz que a mulher tomou43 o fruto, comeu e deu também ao seu marido.
Talvez seja difícil assumir a passividade com a qual Adão ouve a conversa e não interfere, como
fez quando recebeu a ordem de Deus de não comer do fruto da árvore no meio do jardim e não
questionou nem sequer, o porquê da proibição. Retirá-lo da cena é deixar claro a intenção de
julgar danoso, o caráter da mulher, como aquela que põe sempre em risco o masculino.

43
O texto hebraico de Gênesis (3, 6) pode dar a entender que Adão estava com Eva na cena da tentação. A versão
King James, oferece esta tradução palavra por palavra:
“E quando a mulher viu que a árvore era boa para o alimento, e que era agradável aos olhos, e uma árvore a ser
desejada para fazer sábio, ela tomou Do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido com ela; E ele comeu”.
160

Chamamos atenção também para o fato de que, com a expulsão do casal do jardim do
Éden e a perversão da raça humana em continuidade da história da humanidade na narrativa no
Capítulo 6, a partir do verso 8, mostra o arrependimento de Deus de ter criado os humanos, e
por isso, escolhe Noé para cumprir a missão de construir a arca, pois destruiria a terra com
águas diluvianas. No capítulo 7, já nos damos conta de Noé e sua mulher, seus três filhos e três
noras e animais de todas as espécies na arca. Findo os 40 dias, Noé sai com sua família da arca
e faz um sacrifício a Deus. Ali se estabelece uma nova aliança. O mundo estava em paz com
Deus.
Supomos que esse seria um novo gênesis, desfeita então toda a geração de Adão e Eva,
agora seria Noé e sua esposa “anônima”, pois em nenhum momento temos informação alguma
sobre as mulheres sobrevivente do dilúvio. Porém, nesse novo começo, a família de Noé é a
escolhida para repovoar o mundo, pois para eles que Deus manda “crescer e multiplicar”. A
falha e queda, não se dá mais com a mulher, mas é somente entre os homens. Noé bebe vinho
e fica despido dentro de casa e, por causa da embriaguez, seus filhos vem ajudar, porém Cam
olha e comenta com os irmãos sobre o pai, que ao saber do acontecido, o amaldiçoa. Não há
mais Eva, nem se discute o papel da mulher nesse novo começo, pois há um silenciamento
sobre a mulher.
Os perfis das matriarcas também podem ser vistos por uma outra visão: as ações destas
mulheres e seus comportamentos e, assim, contribuir com novos conceitos da atuação da mulher
nos textos bíblicos. Há, nessas personagens mostradas na Bíblia, apenas como esposas dos
patriarcas, uma força extraordinária que a leva a agir em consonância com as promessas divinas
para com o povo de Israel. Segundo Chalier (1992), a submissão de Abraão quando este pediu
para que ela, nas terras do Egito, dissesse que ela era sua irmã. Ainda para a autora, eles são o
casal que estabelece o primeiro diálogo entre marido e mulher, que dar-se no momento em que
Abraão contempla o belo rosto de Sara, percebendo a sua beleza, põe sobre ela, a
responsabilidade por sua vida. Sara opta por entregar-se em detrimento do outro, assim como
mais tarde o próprio Jesus faria. Há uma transcendência, uma grandeza em Sara, uma fé
inabalável de que Deus faria algo pelo seu escolhido, uma vez que Abraão tinha promessas.
Sara, até quando parece ser submissa, o é por grandeza, por escolha e amor pelo próximo, de
tal modo que entrega sua Serva para Abraão ter seu herdeiro.
Quando mais tarde Agar não quer lhes dar o menino, é Sara quem impõe a Abraão que
a escrava seja retirada de suas terras e não herdasse com Isaque. Agar também é uma mulher
corajosa, dos tempos em que era lei, desde a Mesopotâmia, assumida também entre os costumes
judaicos, ser serva, concubina de seu senhor. Ela ousou ir além de sua condição de serva.
161

Desse modo, todas as matriarcas viveram em período de dominação masculina,


entretanto, é possível observá-las e quase visualizá-las lutando por seus ideais. Rebeca, a esposa
de Isaque, rompe o mundo, as fronteiras de suas terras e parte em busca de seu futuro marido,
junto a um estranho, Eliezer servo de Abraão, até então estranho a ela, porém, sua fé, sua
vontade de peregrinar é tal qual a do próprio Abraão, um chamado a ir, por fé, em busca de seu
destino. Quando consultada pela família, Rebeca decide ir. Anos depois, Mãe de gêmeos,
Rebeca, ao saber do oráculo que o filho mais novo dominaria o mais velho, interfere no destino
de seu filho Jacó, e por ele é capaz de ir contra seu outro filho e seu marido. As tramas de
Rebeca fizeram seu filho peregrinar por terras estranhas até que Jacó, se situa nas terras de seu
tio Labão e casa-se com as primas Lia e Raquel, tornando-se o patriarca em evidência. Assim,
Raquel e Lia, bem mais do que parir filhos, são as organizadoras da família, da própria vida do
marido. Era Raquel quem regia, negociava quem deitaria maritalmente com Jacó. Raquel,
porém, padecia por ver sua irmã ter filhos, enquanto ela estava estéril.
Desse modo, Lia era compensada por Deus com filhos. Quando finalmente tem filho,
Raquel morre no parto do segundo, Lia prolonga sua história um pouco mais, tornando-se a
esposa como sonhara e rodeada de filhos e uma filha. Não herda terra, nem nome de tribo, pois
foi a única filha entre tantos homens. Diná é esquecida no decorrer da história, lembrada apenas
pelo seu relacionamento frustrado com o príncipe de Siquém.
Contudo, o desejo do príncipe em casar-se com Diná, submetendo-se a todos os
costumes juntamente com seu povo, pode significar que ambos estavam apaixonados e queria
pertencer a Israel, por amor a Diná. A atitude violenta dos filhos de Jacó em matar a traição o
futuro marido de Diná, não parece uma ação de quem quer reparar a honra de uma mulher
estuprada, uma vez que nenhuma mulher quase das que foram estupradas no contexto bíblico
foram vingadas de tal forma. Mas o patriarca Jacó parece ter adotado uma posição pacífica em
quase todas as situações que lhes foram impostas. Jacó ouvia suas mulheres, ao que parece,
havia também uma submissão nítida e sentida por toda a vida do patriarca. Principalmente, pelo
luto tão sentido pela morte de Raquel.
Como vemos, é difícil separar de que forma a realidade judaica é representada nos textos
bíblicos, e de como o judaísmo extra bíblico se apoderou das tradições e costumes adotados
como estilo de vida. Se noutras religiões pagãs, a vida moralista se confrontava com os rituais
pagãos em que a sexualidade estava atrelada a religião, como na cultura helenista, entre os
cananeus em que os cultos as deusas, a semeadura e a colheita, a fartura estavam ligadas ao
sémen, a relação sexual, a visão da mulher faz também esse paradoxo entre “santa e pecadora”.
162

Assim, a prostituta Raabe, por exemplo, redimiu-se de seu pecado e de seu passado de
prostituição, servindo a Israel, aliando-se aos seus preceitos.
Rute também alcança esse patamar de mulher virtuosa, aliada a descendência de Jesus,
por também se converter. Ao passo que Jezabel sempre será a prostituta que desencaminhava o
Rei Acabe, ela é sempre sinônimo de pecado, vaidade e insubmissão. A relação Ester e Vasti,
ambas mulheres do Rei Assuero (Xerxes I ou Artaxerxes I, como no Midrash de Ester Rabá, I,
3), também segue essa interpretação paradoxal entre o feminino insubmisso e rebelde e a boa
mulher. Vasti é o oposto de Ester que é simples, sem maquiagens, sem usos de artefatos para
conquistar o rei. Vastir é a desvairada, somente porque não quis ser objeto de adorno de seu
marido.
Nesse sentido, observamos uma total incoerência, uma vez que o rei, bêbado há muitos
dias, de quase 180 dias de festa, manda chamar sua mulher, a rainha, a fim de mostrar aos
homens a sua beleza. Porém, a certa altura da festa, ele resolve exibir sua esposa, a rainha, como
propriedade sua, a outros homens, para que testemunhassem a beleza de Vasti. Desobedecer às
ordens de um homem, marido, senhor e ainda por cima Rei, por negar-se ser objeto de cobiça
ou propriedade masculina, era uma atitude mui forte para os costumes e tal ação da rainha foi
considerada como um abuso, um despautério por parte dos conselheiros do Rei Assuero.
Segundo os sábios, essa atitude se constituía em uma nova organização social em que
as mulheres se revoltariam contra seus maridos, a exemplo da Rainha Vasti. A incoerência está
justamente na segunda atitude tão machista quanto a destituição da Rainha. Um concurso para
escolha de uma nova esposa. Como em um conto de fada, a menina simples e órfã, Ester, sem
a devida beleza que o rei tanto gostava de exibir em Vasti, ganha o concurso e se torna a nova
Rainha. Ester, porém, não é tão ingênua assim, ela tem a delicadeza e a beleza natural, mas sabe
esconder e revelar detalhes importantes da sua vida. Ela é a jovem escolhida por Deus, segundo
Mardoqueu seu tio, para livrar futuramente, seu povo até então desconhecido de um plano de
destruição que seria futuramente organizado e posto em prática. Num reino em que a mulher
não tinha autoridade nenhuma, mesmo sendo a rainha, ela nada podia.
Numa leitura desavisada, muitos intérpretes da Bíblia, inclusive mulheres, repetem essa
visão machista e preconceituosa de que Vasti é o mau exemplo de mulher que não deve ser
seguido. Entretanto, esquecem que ela estava sendo vítima do domínio masculino, ao ser tratada
como um troféu, exposta aos destemperos de um rei e sua corte, bêbado e talvez sem decoro. O
que mais influenciou a atitude precipitada do rei foram seus conselheiros. Ninguém o
aconselhou dizendo: “ora Rei, estavas bêbado, sem saber o que querias, dissimula o ocorrido”.
163

No Primeiro Testamento, o feminino buscava fazer parte da lei, participar das atividades
sociais, pois mesmo à entrada do tabernáculo, elas estavam mais presentes nos ambientes
públicos, participando de alguns ritos religiosos e das tradições da comunidade, mesmos
estigmatizadas, as mulheres se encontravam na posição de esposas, mães, profetisas. Em raras
exceções, encontramos as personagens que se destacam agindo com intrepidez, podendo ser
consideradas heroínas dos Israelitas, por suas atitudes inusitadas que garantiram vitórias e
conquistas ao povo judeu como Ester, Débora, Jael, Hulda.
Como nesse período em que elas viveram, as guerras constantes para a tomada das terras
e permanência nelas foram frequentes, elas também agem com a mesma violência e de igual
modo aos homens como Moisés, Josué, Samuel, Sansão ou Davi. Quando Esdras e Neemias
surgiram no período persa 538-333 a.C, a Palestina, sob o comando de Neemias (445-533) e
Esdras (398), nesse período de reorganização do povo e restruturação da lei judaica, ficou aos
critérios de Esdras, sacerdote.
Entretanto, a partir da implantação da lei, das lembranças do cativeiro e da necessidade
de santificação a Deus, tais fatores levaram ao judaísmo, implantado de forma veemente por
Esdras, a excluir a mulher totalmente do convívio público e religioso com os homens. Não
existirá profetisas nem ministérios de louvores, nem heroína alguma nesse período pós-exílio,
nem no período da dominação grega ou o conhecido período dos Macabeus (helenização) 333-
63 a.C, e até a chegada do Império Romano, quando Herodes, o Grande (40-4 a.C) obtém de
Roma o título de rei, as mulheres são retraídas ao contexto do lar.
No Segundo Testamento, as influências de outros povos, sobretudo do domínio romano,
que influenciava tanto na linguagem quanto nos costumes diversos, como também os mentiam
sob domínio e forte opressão. Os Judeus necessitavam de uma reconstrução de valores,
mediante as crises que surgiam, trazendo também novas crenças, novas oportunidades e
alternativas, e fazia-se necessário reavaliar o passado, considerar tudo que havia sido feito tanto
por Deus, como também pelo povo que estava, assim como no êxodo, a espera de um salvador,
de um líder tal qual Moisés. Eles criam numa nova esperança de serem outra vez libertos
daquela opressão não mais egípcia, mas romana. É nesse contexto do reinado de Herodes, por
volta do ano 6 a.C. que Jesus nasceu.
Neste período, as mulheres faziam parte dos grupos marginalizados, junto dos escravos,
servos, doentes, leprosos, pobres que viviam excluídos, assim também eram as mulheres. Para
elas o tempo parecia não ter passado, sua condição de inferioridade estava muito mais agravada,
pois não tinham um papel social definido, não tinham também identidade, viviam a sombra dos
homens, sem direito à vida pública, isoladas dentro de casa, sem o direito de ir e vir ou o tinham
164

totalmente limitado. Bastava nascer mulher para não ter acesso à educação, pois era um direito
exclusivo dos homens, e nem as leis elas podiam estudar, sequer ouvir a sua leitura. Não tardou
para que Jesus começasse a ver o tratamento que as mulheres recebiam na sociedade judaica.
Elas eram expostas a humilhações públicas como no caso da mulher adúltera que se encontrou
com Jesus, quando ia ser apedrejada sozinha, contrariando a lei que dizia que em caso de
adultério, os dois homem e mulher deviam ser mortos.
Jesus não a condena e após dar um choque de consciência naqueles que estavam
esquecendo de sua condição de também pecador, ele a acolhe, libertando-a da culpa e do erro.
A sociedade continuava recriminando o feminino, pois uma mulher podia ser acusada de
adultério por pouca coisa, sem provas, e protegendo o masculino, dissimulando seus abusos. A
mulher samaritana, (LUCAS 4,1 - 30), vinha a fonte ao meio dia, horário que lhes era permitido,
para não se misturar com outras mulheres ditas de honra que vinham cedo a fonte e homens
também com os quais ela não podia ter contato. A samaritana sofria duplamente por ser mulher
e por ser de uma nacionalidade considerada impura e indigna para os judeus. Entretanto, a
reação dos discípulos revela como a sociedade via o absurdo do diálogo com uma mulher em
lugar público. Verso 27: “Nesse ponto chegaram seus discípulos e se admiraram de que
estivesse falando com uma mulher”.
A mulher do fluxo de sangue também era considerada imunda por sua permanente
condição de hemorragia. O texto nos evangelhos (MARCOS 5, 25), a apresenta como quem já
tinha gastado todos os recursos, o que implica dizer que anteriormente essa mulher pertencia a
uma classe social elevada, pois teve acesso a médicos, a tratamentos que não a curaram. No
entanto, nessas três situações, Jesus demonstra que seu olhar para as mulheres seria diferenciado
de toda a tradição posta. Ele não recriminou ou se omitiu de falar, convencer e transformar a
vida destas mulheres.
A mulher não podia ser nem sequer testemunha em julgamentos, pois não havia valor
em sua palavra, nem eram ouvidas, pois segundo a sociedade sua palavra não era digna de
confiança. No entanto, encerrando o seu ministério terreno, morto e ressuscitado, Jesus aparece
primeiramente às mulheres, Maria Madalena, que saiu por todos que ela avistava
testemunhando a ressurreição de Jesus e muitos não quiseram acreditar.
Neste contexto, observamos que a questão da identidade feminina será uma zona de
conflitos, pois elas não as tem socialmente, não conseguem definir-se por nem serem
reconhecidas sujeito, mas em contato com Jesus, elas enxergam nele, a possibilidade de serem
vistas, valorizadas, restauradas, a partir de uma relação de reconhecimento de suas limitações e
165

potencialidades, pela possibilidade que Jesus lhes apresenta de ser socialmente inserida numa
causa, o evangelho.
Daí por diante, estas mulheres adotam atitudes que entram em desalinho com as ações
propostas pela condição do ser mulher, pelas leis machistas da sociedade patriarcal, para a
manutenção do bem-estar do qual agora desfrutam e pela promoção deste, para os demais
através do apoio a Jesus e da propagação do evangelho. Assim, as mulheres, através de Jesus,
enfrentavam os desafios históricos e culturais que geravam a grande exclusão e a violência
também contra crianças, mulheres, doentes, estrangeiros. Essas mulheres foram alcançadas pelo
amor e valorização que quebrava barreiras de exclusão e extinguia toda forma de violência e
intolerância. Conhecer essas personagens que compõe o Segundo Testamento, é também
conhecer novos comportamentos sociais, que partem tanto da personagem central dos
evangelhos, Jesus, como dessas mulheres que serão impactadas pelas as ações deles.
Vejamos como se deu em casa de Pedro, quando Jesus e seus discípulos, conforme
Mateus (8,14 -15) nos mostra: “Tendo Jesus chegado à casa de Pedro, viu a sogra deste acamada
e ardendo em febre. Mas Jesus tomou-a pela mão, e a febre a deixou. Ela se levantou e passou
a servi-lo”. Jesus tem atitudes completamente diferente dos demais homens: se comove e vai
ao encontro, a toma pela mão e a febre a deixou. Jesus a deixou bem. Aquela mulher grata,
serviu a Jesus à mesa, o que não era comum, pois as mulheres nem participavam dos ambientes
onde os homens sentavam a comer e conversar.
Outra situação incomum se deu na casa de Lázaro e suas duas irmãs Marta e Maria,
narrativa que somente Lucas escreveu (10, 38-42), Jesus nos dá uma lição que nos leva a
perceber uma mudança nos paradigmas sociais em relação ao comportamento feminino por ela
determinado. Marta, representando a tradição do papel feminino, atarefada de lutas domésticas,
entregue aos ambientes domésticos, preparava a recepção a Jesus, enquanto Maria estava
desejosa de estar perto de Jesus, ouvindo, aprendendo aos seus pés. Cristo, quando interpelado
por Marta, para que este mandasse Maria para seu lugar nos afazeres domésticos, que Maria
compreendesse seu lugar de Mulher, foi repreendida por Jesus, quando este se referindo a
Marta, diz que ela está acomodada com muitas lutas e afazeres, enquanto Maria escolheu a
melhor parte.
Das muitas leituras que esse momento nos permite, observamos que Maria tinha desejo
de exercer outros papeis, em outros espaços, junto a Jesus, como se dissesse que ele nos
autorizava a isso, buscar mais do que uma vida delimitada como impunham à mulher. Jesus
tinha outras demandas para as mulheres e por isso as queria por perto e não como seus serviçais,
como assim queriam os homens. A mulher podia com Jesus, está entre os homens, participar
166

dos diálogos, aprender e interagir, conhecer sobre o sagrado, o plano de amor que a incluía.
Assim, as mulheres iam rompendo com as suas amarras, encontrando uma nova identidade,
numa necessidade imensa de encontrar-se naquele contexto tão opressor.
Nesse contexto, uma atitude também louvável foi a da mulher pecadora, como assim é
apresentada, sem nome e por sua condição de desajuste social. Para Alter (2007), “as
personagens destemidas se comportam de maneira inédita "desfrutando ou suportando as
consequências da liberdade humana". Desse modo, elas levavam “os leitores a refletirem sobre
seu caráter” (ALTER, 2007, p.43 grifo nosso). Simão e os demais senhores da sala,
representantes da tradição judaica, ficaram perplexos pelo atrevimento daquela mulher, muito
mais pela forma como Jesus aceitou a presença e a ação dela. Ela chorava aos seus pés,
limpando-os com seus cabelos. Verso 39: “Ao ver isto, o fariseu que o convidara disse consigo
mesmo: Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, porque é
pecadora”.
Na visão masculina, a condição de pecadora atribui-se somente a mulher. Jesus, porém,
revela que a mulher tinha tido mais atitude, mais leveza de coração do que todos os que estavam
ali. A mulher tinha compreendido a essência de receber bem, cuidar bem de um convidado, de
acordo com a tradição, porém ao seu modo, o melhor modo. Ela humilhou-se e serviu a Jesus
como talvez tenha feito tantas vezes outros serviços para homens, sem jamais ser gratificada
daquela forma. Ela foi acolhida, exaltada entre os demais, alcançando a liberdade e perdão de
seus erros. Diante do templo repleto de homens cheio de seus egoísmos, ostentações, os fariseus
ofertavam com fartura, aquilo que lhe sobrara, ela vem diante deles, trazendo tão pouco entre
as mãos. Lucas (21,1- 4), conta de uma viúva, outra categoria de mulher que enfrentava sérios
problemas, porque não havia leis que as desse amparo, principalmente se elas não tivessem
filhos.
A mulher oferta moedas, mas Jesus sabendo das condições daquela mulher, reconhece
como a maior oferta dentre todas. Numa sociedade excludente, qualquer ação feminina no
sentido de incluir-se, converge para a liberdade da mulher, das amarras sociais que as
descriminavam e as tolhiam, grande era o espaço dos homens na sociedade, à mulher lhe
sobrava moedinha, migalhas que lhes sobravam.
Desse modo, a todas as categorias femininas cotadas nos textos bíblico nos evangelhos
existente naquela época, Jesus tratou de uma forma especial: as bem-quistas socialmente
(Marta, Maria, a Sogra de Pedro), as pecadoras (Maria Madalena, as prostitutas, a mulher
anônima na casa de Simeão, a mulher samaritana), as viúvas (a da oferta no templo, a que vivia
encurvada, a viúva da Naim que ele ressuscitara o filho). Ele as incluiu no seu ministério e as
167

fez discípulas, apoiadoras financeiramente, pois algumas mulheres da sociedade também


ajudavam com seus bens.
Assim, o Cristianismo, que se iniciaria com a presença do Cristo, morte e continuidade
por parte dos discípulos e discipulas, tinha esse viés de inclusão sem diferenciação do Gênero,
da raça. Era para homens e mulheres, para gentis e judeus. A tradição judaica aceitou aquele
novo modelo de relação com Deus e com o próximo que Jesus representava. E como qualquer
manifestação que propunha libertação de oprimidos, para um sistema opressor e costumado
com suas regras justificadas e legitimadas em religiosidade, ao se sentir ameaçado, reagiria.
Após a morte de Jesus, o padrão que se segue na sociedade judaica e no oriente como
um todo, são as velhas práticas da lei e o asseguramento da tradição fundamentada em Moisés.
Até para os novos cristãos se faz necessária a devida orientação das cartas paulinas, mas
especificamente a carta de autoria duvidosa dirigida aos hebreus que eram aos cristãos que
estavam em Roma e que insistiam em considerar a antiga aliança e práticas da lei.
No entanto, nas primeiras comunidades cristãs, todos participavam e juntos propagavam
as boas novas. Por mais que se elucidem nomes dos apóstolos, havia entre a comunidade as
mulheres e até diaconisas que Paulo cita em suas cartas. Entretanto, as influências do judaísmo,
as más interpretações das cartas dos apóstolos como Paulo e Pedro sobre a condição da mulher,
retoma a velha questão da participação da mulher nos cultos, ritos, ministérios, propagando-se
outra vez a ideia do silenciamento, da submissão que oprime, da diferenciação de gênero, sob
o preconceito da inferioridade, da fragilidade feminina.
Assim, parece contraditório certas afirmações descontextualizadas atribuídas a Paulo,
quando vemos em suas cartas mulheres que trabalhavam com ele nas organizações das
comunidades religiosas: Priscila, líder da igreja na casa dela e Áquila, seu marido, citado em
segundo lugar, o que não era comum para o costume dos tempos de Paulo. Romanos (16, 7),
fala também de Andrônico e Júnia como sendo apóstolos.
Outro exemplo é Febe de Cencréia que exercia um ministério peculiar na igreja. Vemos
que o apóstolo Paulo, na carta aos Romanos (16.1), recomenda e destaca o nome dessa mulher,
encarregando de entregar pessoalmente a epístola aos irmãos de Roma, um ofício de grande
responsabilidade que não era dado a qualquer pessoa. Possivelmente era mais uma cooperadora.
O Cristianismo primitivo pode ser considerado como um movimento de mulheres
cristãs, atuando publicamente em comunidades. Paulo citava e elogiava o trabalho de Síntique,
Evódia, organizadoras da comunidade de Filipos, Priscila, como também trabalhadoras e
membros de outras igrejas: Maria, Trifena e Trifosa, Pérside, a mãe de Rufo, Júlia e a irmã de
168

Nereu, Cláudia, Ápia, as filhas de Filipe, Maria e Rosa de Jerusalém e ainda mulheres da
aristocracia judaica como Berenice e Drusila.
O que se deve levar em consideração é que na ótica de Deus, na criação, não existe
diferenças entre os gêneros que justifique a inferiorização da mulher, o que não é provado no
Segundo Testamento: Jesus, Deus entre os homens, deixa muito claro que tudo não passou de
um mal entendido dos homens: “Pela dureza de coração deles”. Jesus enfrentou a resistência do
judaísmo oficial, quebrando todo o protocolo e as tradições que inferiorizavam a mulher e dá a
elas espaços para os trabalhos sociais, assistenciais, de evangelismo e liderança.
Nesse pensar, Jesus atribui aos discípulos, suas ações: “Em meu nome farão maiores
obras44”. Em outros contextos, jamais pela cultura oriental judaica, principalmente, se admitiria
as mulheres em cargos eclesiásticos, porque também não se admitia em espaços que não fosse
o privado, o interior do lar entre os afazeres domésticos.
Para justificar a adequação às normas sociais e a ética da predominância do masculino,
Paulo apelou para a ordem da criação e a autoridade masculina, o que não define e nem se
confunde com a capacidade de liderança, de diálogo que Débora mostrou ter quando juíza, Ester
enquanto rainha, e tantas outras personagens ao longo da história. Mesmo assim, Paulo esteve
rodeado de mulheres que não lhes eram apenas auxiliares de atividade domésticas, mas
patrocinadoras, empreendedoras, diaconisas, obreiras que cuidavam de igrejas, departamentos
e demonstravam ter liderança e organização para lidar com a igreja.
Esse argumento é baseado na interpretação de Paulo de que o homem foi feito primeiro,
culturalmente o homem domina, não são palavras divinas, mas o fato de o homem ter sido feito
primeiro, não lhe dá a soberania sobre o outro, pois ambos são obras divinas. Portanto, não
limita a mulher a ser recessiva ao primeiro gênero, pois, se Deus tinha a ideia do “crescer e
multiplicar” como projeto humano, numa questão de tempo, o outro gênero devia fazer-se real.
Na leitura do texto não tem expressa essa ideia de que Deus resolveu criar a mulher depois,
para o homem e sim para sua ideia, segundo o próprio pensamento judaico, para a expansão da
vida na terra, a união do homem e da mulher.
Na mesma tradição judaica, muitos primogênitos foram rejeitados como o caso de Esaú,
de Ismael, que os segundos filhos é quem herdaram a promessa. No contexto de Paulo, sua
formação na tradição judaica não o permitia ver diferente essa questão da dominação do
homem, o que agora nos contextos atuais, introduzido pelo próprio Paulo, há entre homem e

44
Digo-lhes a verdade: Aquele que crê em mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda
maiores do que estas, porque eu estou indo para o Pai. E eu farei o que vocês pedirem em meu nome, para que o
Pai seja glorificado no Filho. O que vocês pedirem em meu nome, eu farei". João 14:12-14
169

mulher a cooperação, de submissão, amor e sacrifício de ambos para manter a família e a igreja
em comunhão. Essa ideia da supremacia de um ser em relação ao outro nunca devia encontrar
respaldo religioso, amparado no querer divino, uma vez que se atrela muito mais a questões de
foro humano, cultural, social.
170

4 COMPORTAMENTO, IDENTIDADE E O PROTAGONISMO FEMININO NO


PRIMEIRO E SEGUNDO TESTAMENTOS: O DESENHO DO “SER MULHER”

"Desde que ficasse encaminhada, a vida ia dar ao


mesmo. Os homens eram todos iguais. Só as mulheres
podiam aceder à diferença".

Valter Hugo Mãe: O filho de mil Homens.

Numa visão mais profunda acerca das personagens femininas das narrativas bíblicas,
buscamos compreender como se dá a construção do feminino dentro dos textos e a construção
da identidade delas, observando o perfil que emerge dessas personagens em ação, e como se dá
o seu protagonismo, a partir destas ações dentro do texto nos dois Testamentos.
Para isso, situamos todas as personagens femininas que aparecem na Bíblia, seus
contextos sociais, o mundo do texto que as contém, percebendo como os narradores as
apresentam nas narrativas. Trouxemos uma visão panorâmica de todas as personagens
femininas que povoam o texto bíblico, muitas poucas ou totalmente desconhecidas.
Nossa intenção foi compreender como essas personagens são narradas de diferentes
formas, mediante o contexto, a importância de sua presença para a narrativa, ligadas a
personagens masculinos. Algumas das personagens são apenas citadas, outras apresentadas,
quase sempre com o mínimo de palavras, de modo que apenas poucas delas rompem com os
limites impostos por aqueles que detém a linguagem. Nas narrativas, as personagens ganham
forma, corpo, dialogam com seus criadores e ganham vida própria.
Para um olhar mais detalhado, é necessário buscar além do que está posto no texto, pois
elas estão veladas e reveladas por palavras de homens. De acordo com a hermenêutica de Paul
Ricouer (1969,1989), a medida que vamos nos apropriando do modo de ser que o texto tem, os
tipos que o habita e o mundo que dele fazem parte. Podemos nos constituir como sujeito que
dialoga com outros sujeitos e compreende sua existência, compreende o mundo e compreende-
se.
Dentro desse contexto, para compreender o desenho do “ser mulher na perspectiva dos
narradores bíblicos, é necessário perceber como o texto contém essas personagens,
compreendendo a dinâmica de construção através da linguagem e também o discurso como
produção de sentidos. Essas personagens estão envoltas em representações e ao longo de seu
171

aparecimento no texto, elas refletem pensamentos, comportamentos, estereótipos de um


feminino constituído, não por elas próprias, mas atravessadas pelo imaginário masculino e que
as constitui ao longo da narrativa como modelos, de virtude ou de pecados, pensando um
feminino idealizado.
Numa visão panorâmica, as personagens femininas bíblicas raramente têm um texto
específico para elas, não aparecem seus nomes, genealogias, são apresentadas a partir dos seus
pais ou maridos ou apenas citadas pelo nome aquelas que tem marido importante. Além disso,
elas são louvadas por serem mães de filhos famosos ou fundamentais na trajetória da construção
da nação israelita, citadas junto aos nomes de reis ou homens importantes como identificação
para os filhos de condutas questionáveis. Até mesmo personagens como Ester e Rute que
possuem livros com seus nomes não são enfocadas como protagonista de suas histórias.
Desse modo, desde Eva, percebemos uma proposta de um feminino controlado pela
figura masculina, demonstrando a submissão da mulher, silenciosa, contrita em sua posição de
esposa e mãe. Fugir desse estereótipo de um feminino sob controle, era perigoso para a mulher,
de modo que as personagens bíblicas sentem na pele o poder desse controle, através de regras
e imposições sociais que as tornavam inferiores. Assim, é uma tarefa delicada seguir a dinâmica
dos narradores, para compreender o comportamento das personagens, sobretudo, suas
identidades, uma vez que não parece ser esse o propósito do narrador.
Na Bíblia, encontramos personagens femininas estereotipadas desde cedo, que sofrem
restrições dos espaços públicos, religiosos, impuras desde o nascimento, levando mais tempo
para o ritual de purificação do que os homens, seguindo a sua impureza nos períodos menstruais
em que ela era separada do convívio de todos, evitando ser tocada como também era imundo
qualquer coisa tocada por ela. Assim, nos ritos de consagração, o valor estipulado para a mulher
era sempre menor, conforme Levítico (27,1 - 7), consideradas propriedade dos homens.
Esse modo de apresentar as personagens se prolonga também no Segundo Testamento,
embora nesse contexto, o espaço narrativo cedido para as personagens é menor ainda, e sua
identificação é mínima. São conhecidas pelas situações em que elas aparecem como “uma
mulher”, a mulher Cananeia, a samaritana, a mulher do fluxo de sangue, a mulher encurvada, a
sogra de Pedro, a viúva pobre. Apesar de estarem juntas com Jesus, elas permanecem anônimas,
numa sociedade que dava privilégios aos homens.
Importa agora analisá-las por suas ações e seu comportamento diante das situações
impostas, de forma que é preciso aprofundar-se em seus contextos, para compreender a
identidade dessas personagens femininas a partir das categorias elencadas: protagonismo,
comportamento e identidade.
172

Falar em protagonismo feminino parece incoerente quando falamos de textos antigos


como é o caso das narrativas bíblicas. Poderia ser um risco, tendo em vista uma época que não
existiam lutas sociais com esse teor, organização das mulheres em inquirir direitos, nem sequer
um despertar de ideias feministas, e mais ainda, quando o texto em análise trata-se de narrativas
bíblicas, imbricadas de costumes e conceitos sociais da cultura oriental e de seu modo de ver o
feminino.
O narrador, ao apresentar as personagens femininas e as ações narrativas sobre elas, não
teve a pretensão de suscitar discussões como essa, visto que não há criação das protagonistas
femininas de forma intensa, com a intenção de mostrar o lado profundo dessas personagens.
São mulheres que se revelam como diferentes, de atitude, de resistência, mas deixam para o
leitor, sua interpretação, a profundidade, o íntimo, seus anseios e constituição feminina. Cabe-
nos questionar, até que ponto elas são protagonistas.
Se queremos compreender qual a identidade das personagens das narrativas bíblicas, o
perfil feminino que se desenha, a partir dos movimentos destas personagens na trama do texto,
precisamos estar atentos ao seu comportamento, a forma como essas personagens se posicionam
na sociedade e como lidam com as situações impostas. Só assim compreendemos de que forma
esses comportamentos se relacionam ou definem a identidade dessas mulheres e,
consequentemente, se elas são protagonistas das suas histórias ou não.
Para isso, se faz necessário compreender e definir esses termos: comportamento,
identidade e protagonismo, para então atribuirmos os nossos significados a esses e discutirmos
o feminino dentro da Bíblia.

4.1 CONCEITUANDO COMPORTAMENTO, IDENTIDADE E PROTAGONISMO

Estudos sobre o comportamento humano foram vistos desde muito tempo como um
campo amplo para estudos diversos, em culturas também diversas e por diferentes linhas de
pensamentos, como possibilidade de compreender como nossa maneira de agir pode influenciar
nossas vidas. Na verdade, a necessidade de se conhecer, de responder a alguns anseios e tentar
preencher algumas lacunas existenciais, foi o que levou os humanos a se observarem, no intuito
de entender a sua própria atuação no mundo e nas coisas.
Assim, a psicologia parte em busca dos tipos humanos, da análise das características
que definem os perfis, e esse olhar do comportamento nos leva a considerar porque um
determinado indivíduo é capaz de agir no mundo que habita.
173

Neste contexto, nos interessa o estudo do comportamento na perspectiva da psicologia


da emoção como denominava a sua teoria, o psicólogo William Moulton Marston, em seu livro
As Emoções das Pessoas Normais. Nesta obra, o autor aborda como o autoconhecimento é uma
forma de conhecer e dominar as emoções, chamando atenção como é possível, a partir do
conhecimento das características dos indivíduos e suas relações, desempenhar a capacidade de
se adaptar ao ambiente, para ter a plenitude de sua vida, sendo todas as pessoas capazes de
alcançar o sucesso, desempenhando papeis que estejam de acordo com seus perfis.
Apesar de observar a todos os seres humanos, Dr. Marston se debruçou sobre o mundo
das mulheres, observando como seu comportamento era afetado pelas imposições machistas
que regiam a sociedade da época e de como elas conseguiam interagir nesse mundo, buscando
seu espaço e mostrando-se em sua essência. Assim Marston desenvolve a Teoria DISC
(dominação, submissão e Conformidade). Com foco no autoconhecimento, o comportamento
humano para Marston está relacionado ao modo como as pessoas vivenciam as experiências, o
domínio consciente das emoções, utilizando-se de forças e características que interagem e se
sobrepõe nas relações entre os indivíduos. Essas características são utilizadas para expressar
domínio, influência, submissão e complacência ou conformidade.
As emoções nos humanos, os sentimentos subjetivos, assim como expressões ou
manifestações somáticas ou autonômicas que as pessoas vivenciam, seus sentimentos, ações,
excitação fisiológica, são geradas pela força da mente, anunciadas no corpo, nas sensações. Os
comportamentos são condicionados a partir destas emoções. Para Marston (2014, p. 72), elas
estão atreladas ao cognitivo e, inconsciente ou consciente, elas coordenam os comportamentos,
e não são atividade do sistema fisiológico, pois não é suficiente para provocar uma emoção.
Elas são apenas interpretadas, a partir das atividades das pessoas.
Desse modo, na psicologia das emoções, conceitos como normal e anormal, relativos ao
comportamento regido pelas emoções, ganham novos significados. O próprio termo “emoções”
é redimensionado pelo autor. A emoção seria a sensação ou percepção das mudanças corporais,
depois do contato com o ambiente que, de algum modo, levou o sujeito a sair de sua zona de
conforto, reagindo desse ou daquele modo. Marston (2014, p.72 diz: “Nós sentimos de
determinada maneira porque agimos de determinado modo. E a percepção que temos de nossa
reação, enquanto ela ocorre, é a emoção”.
Existe uma relatividade entre o sujeito e o modo como ele se percebe em relação ao que
sente ou reprime. É o grau de consciência, o nível de autoconhecimento que leva o sujeito a
exercer, sobre o meio, a influência. Obviamente o ambiente trará o primeiro impacto para o
sujeito em contato com ele, porém, a partir de suas emoções é possível que o indivíduo, a partir
174

do seu comportamento, reaja sobre o meio. Marston chama de consciência motora, a


consciência afetiva, emocional, que acontece por meio da introspecção. Pode se tornar evidente,
a partir de relatos verbais ou pelas atitudes, ou disposições motoras observadas nos sujeitos.
(MARSTON 2014, p.75).
No sentido de entender o comportamento feminino a partir das ideias de Marston, é
preciso considerar que as mulheres da Bíblia oscilam por vezes em compreender suas emoções,
e a partir da percepção do meio, das relações desse meio com o corpo delas e de como seu corpo
se sente nesta relação como o ambiente, criando condições de exercer a sua consciência para
compreender o normal ou anormal, e modular pela consciência, as suas escolhas. Assim, o que
é considerado anormal para os padrões estabelecidos, em algum momento, corresponde ao
ímpeto, a necessidade de ação que independe do gênero.
São mulheres que, em determinado momento, quebram essa definição de papeis, com
as limitações de espaços, atendendo aos ímpetos de sua consciência, tomando por base as
emoções que as impelem a reconhecer o que as incomodam. Elas se compreendem sujeitos de
ação, quando percebem que suas atitudes podem alterar as situações que lhes causam
desconforto. Assim, o corpo para o feminino na Bíblia, é uma ligação entre o mundo e sua
consciência, um caminho para sua individuação. Camargo (2017, p. 34), nos relata que:

Temos em nossa composição física, da qual participa a estrutura cerebral, um


conjunto de sistemas que atua aproximadamente de modo harmônico. A
vontade é a força gravitacional que junta os pedaços quando precisamos
executar uma tarefa, fazer um plano ou pensar sobre algo que sustente nossa
vida. O corpo também se encarrega de registrar em suas memórias afetiva e
intelectual as sensações individuais e as interpretações que compartilha com a
comunidade, de modo a relacionarmo-nos com os outros.

Por esse pensar, concordamos com o dizer de Camargo sobre a leitura do corpo como
algo fundamental para norteamento do sujeito feminino, uma vez que a ele é negado a liberdade
de, por si só, pensar e estipular os limites para suas ações, seja no âmbito das funções sociais
ou intelectuais. Definem por elas, o modo de comportar-se e este comportamento tem como
referência o masculino, elemento definidor dessas normas. Porém, é através do
autoconhecimento que se inicia, a partir da percepção do sujeito no mundo, através do corpo,
que se pode dominar as emoções e as atitudes frente aos desafios.
Consideramos tal Marston (2014) que o nível de consciência de um sujeito pode ser
evidenciado a partir de relatos verbais ou pelas atitudes, ou disposições motoras observadas nos
sujeitos. Entretanto, as personagens bíblicas em análises não são as narradoras das suas
175

histórias, mas trata-se de um narrador masculino que tudo conta. É através das atitudes destas
mulheres que conhecemos suas escolhas, o seu modo de ver o mundo a sua volta e de reagir a
ele.
Dentro das narrativas bíblicas do Primeiro Testamento, referenciamos este processo de
conscientização sobre o meio, a mediação das emoções para definir um novo comportamento
feminino nas personagens Débora, Jael e Ester, inicialmente, ligadas as estruturas sociais, sob
suas convenções, a partir de lugares pré-definidos de filha, de esposa, do lar, de mãe. Entretanto,
elas se impõem as delineações sociais que as detém, de modo que, no contexto bíblico, suas
vidas seguiriam como as demais mulheres ao longo da história do Israel bíblico, a mesma
trajetória das que nascem para arrumarem maridos, para dar a eles filhos, sofrerem
amargamente quando não os podiam ter e sentirem vergonha pela inutilidade social. Como as
outras, elas podiam acostumar-se com a vida distante das práticas religiosas, dos cargos
públicos cívicos-religiosos, dos embates de guerra ou de qualquer movimento social em prol de
suas comunidades.
As seis personagens bíblicas sentem-se incomodadas, inquietas, a partir daquilo que
suas emoções provocam: um grau de consciência que lhes conferem poder para irem além das
inquietações, dando a elas, uma enorme vontade de agir em prol do que acreditam. Elas
interpretam suas emoções como um apelo do corpo a utilizarem-se do momento, para adotarem
um posicionamento diferente e agir por algo pelo qual elas deviam lutar, a despeito do que
compreendiam como normal.
Mas isso se dá processualmente. Os sentimentos de medo, de indignação, são
interpretados por elas, como oposições do ambiente e, indiferente às normas para seu gênero,
elas têm atitudes inusitadas, compreendendo a importância da liberdade, frente aos controles
culturais e ideológicos.
No Segundo Testamento, outra vez, as Protagonistas Maria de Nazaré, Maria Madalena
e Dorcas, são também inquietadas pelas suas emoções, elas se deixam ser guiadas por aquilo
que lhes trazem contentamento. Suas atividades estão aquém do casamento, do cuidado com os
filhos. São mulheres empenhadas em atividades sociais, envolvidas com as suas comunidades,
passando por um processo de individuação, que as tornam diferentes das demais, são novas
pessoas, mas tudo começa num processo psicológico, interno e consciente, para depois ganhar
forma em suas ações.
Marston (2014) propõe que o ser deve ser visto em sua totalidade, corpo e mente, pois
não só respondia a estímulos, de forma que, na psicologia das emoções, tudo está atrelado ao
modo como se vivencia as emoções, como se reage e supera, considerado normal ou anormal.
176

O próprio Marston diz que não é possível definir o que é normal sem antes saber o que seria
anormal. O que incomoda como o medo, a raiva, mentir e trapacear não são atitudes normais,
porém o que está por traz dessas emoções, provocando-as, talvez seja o que é normal ao
humano, mas não convencional ou socialmente aceito. Para Marston (2014), o comportamento
é o modo como o humano reage as diferentes emoções, como se comporta diante das diferentes
relações. A partir das observações feitas da natureza e de como a terra reage a gravidade, como
os rios se moldam as paisagens e os animais reagem uns aos outros, os humanos também reagem
as forças e se adaptam as situações. (MARTON, 2014, p. 128).
Desse modo, Marston, com sua psicologia das emoções, analisa o comportamento
humano, compreendendo como essas forças estão em interação e de como o sujeito se utiliza
delas com profundidade e consciência, gerando o autoconhecimento que o fará perceber quais
característica se sobrepõem as demais. Perceber que emoções como medo, raiva, excitação,
desejos, são comuns ao humano, pensando no quanto é desigual tentar diferenciar o homem
como corajoso, destemido, e a mulher como frágil, nos faz entender às definições culturais dos
gêneros, as reações dos sujeitos perante as situações impostas.
Nesse contexto, as personagens femininas das narrativas bíblicas, do Primeiro ou do
Segundo Testamento, têm em comum uma espécie de omissão de elementos verbais que possam
nos dá a ideia de como as mulheres se sentem, como se não houvesse necessidade de explicar
as ações. Entretanto, são ações das personagens que nos servem de base para a interpretação.
Alter (2017, p. 27 diz que:

De fato, um dos objetivos fundamentais das inovações técnicas promovidas


pelos antigos escritores hebreus consistiu em promover certa indeterminação
de sentido, especialmente quanto às causas da ação, às qualidades morais e à
psicologia dos personagens.

É possível também fazer uma associação nas relações que as personagens estabelecem
com outros personagens dentro do texto, nos permitindo inferir o que elas estão sentindo ou
pensando.
Na narrativa de Débora, o fato dela aparecer como uma mulher juíza entre os homens,
só pode ser compreendida, quando lemos trechos que sucedem sua entrada na narrativa que se
dá no capítulo 4. Somente no capítulo (5, 7), no Cântico de Débora, é que ela ganha voz,
dizendo: “até que eu, Débora, me levantei, levantei como mãe em Israel”. Em algum momento,
observando o ambiente, percebendo que as situações em seu contexto, exigia atitude, Débora
muda seu comportamento e começa um processo de criação de um novo “estar no mundo”. É
177

nesse contexto que a personagem bíblica Débora, sai da condição de dona de casa, para ser
profetisa e juíza, cargo ocupado por homens e, ainda em tempos de ameaças para o seu povo,
ela rompe o medo, sem medo das dificuldades, ela parte para a guerra e segue com o general
Baraque. Em Juízes (4, 6, 7-8) temos o seguinte relato:

Mandou ela chamar a Baraque, filho de Abinoão, de Quedes de Naftali, e


disse-lhe: Porventura, o Senhor, Deus de Israel, não deu ordem, dizendo: Vai,
e leva gente ao monte Tabor, e toma contigo dez mil homens dos filhos de
Naftali e dos filhos de Zebulom? E farei ir a ti para o ribeiro Quisom a Sísera,
comandante do exército de Jabim, com os seus carros e as suas tropas; e o
darei nas tuas mãos. Então, lhe disse Baraque: Se fores comigo, irei; porém,
se não fores comigo, não irei.

Como vemos, a postura de Débora se opõe aos costumes do seu tempo, quando ela
assume papéis, determinadamente masculinos, profetisa e conselheira, agora estrategista de
guerra e general. Baraque reconhece o potencial de Débora e aceita com normalidade sentir
medo, ao passo que com a presença de Débora, sente-se destemido.
Numa relação próxima com a teoria psicológica de Marston, que observou um grupo de
mulheres durante suas aulas e, ao longo de suas pesquisas, detectou que na constituição do perfil
feminino, a delicadeza, a maciez, a submissão foram sempre vistas como fraquezas femininas,
alvo fácil para a dominação dos homens, é fácil observar como Débora é uma mulher bíblica a
frente do seu tempo, uma vez assumiu um lugar que não era seu, mas sempre dos homens.
Nesse sentido, Marston contribuiu muito com os estudos do feminino, criando junto
com a esposa, uma personagem de revistas em quadrinhos; a Mulher Maravilha. A teoria DISC
diz respeito a forma como as pessoas podem ser analisadas por meio de quatro características:
dominância, o sujeito exerce controle e consegue se sobrepor ou predominar sobre o outro;
influência, o sujeito age utilizando ações ou a linguagem afim de influenciar, persuadir o outro;
estabilidade, que é a habilidade de manter-se estável, a forma como se adapta às situações ou
às atitudes do outro; e conformidade, que se atrela a aceitar a ação do outro e por não conseguir
reagir, aceita que o outro domine.
Para Marston (2014), as respostas emocionais são normais quando resultam em prazer
e harmonia, e os comportamentos que destoam disso remetem a situações de desiquilíbrio entre
o que sentimos e o fazer. Neste aspecto, observou que os humanos podem agir de forma passiva
ou ativa, dependendo da percepção do indivíduo sobre seu ambiente como favorável ou
antagônico. Marston defendia a supremacia feminina, sua habilidade de lidar com o meio, com
178

as situações impostas caminhando com agilidade de um extremo a outro, do polo da submissão


ao domínio, utilizando a influência e a conformidade com mais precisão.
Apesar de em alguns pontos fazer comparação de igualdade entre os gêneros quando se
refere ao desejo de poder, de controle, ele afirma que as mulheres tem visão diferenciada do
poder e o usa de maneira diferente do homem, pois consegue agir com mais honestidade sobre
o que sentem e desejam, tem mais autodomínio em determinadas situações, trabalhando com
mais rapidez e agilidade e precisão. Contudo, faz isso movida pelo amor, pela compaixão e
capacidade de dialogar, sem o extremismo e arrogância que leva os seres humanos à guerra.
Quando voltamos a personagem Débora, vemos uma semelhança com a Mulher
Maravilha. Por esse viés proposto por Marston, quando aponta que a mulher quer moldar o
mundo através do amor, e através dessa noção de liderar juntos, de dividir o poder e o lugar de
autoridade visando o bem comum. Não há autoritarismo em Débora, ela primeiro convoca
Baraque, lhe dá ordens expressas, um oráculo divino que garantia a vitória sobre o povo. Mesmo
diante da fraqueza e recuo de Baraque, Débora segue com ele a Batalha, para apoiá-lo e luta
pelo bem maior da sua nação. Assim, Débora tem um lugar de dominação que não lhe coloca
acima dos homens, mas a torna diferente das outras mulheres do seu tempo, pois ela divide a
honra da vitória com Baraque e com Jael.
Neste sentido, o comportamento de Jael, dá-se diferente do de Débora, pois enquanto a
Juíza está numa posição que lhe permite tomar atitudes, liderar, julgar, Jael é apenas uma
estrangeira, numa pequena tribo que, aparentemente, estaria mais propensa a se aliar a Sísera,
conhecido de seu marido. Jael podia também ser dominada, porém o inesperado acontece.
Aparentemente seu diálogo com Sísera revela-se como uma total inversão de perspectiva entre
o feminino e o masculino, mas a relação das personagens Jael e o General inimigo Sísera, no
texto narrado em Juízes (4, 18 -21), mostra uma mulher totalmente submissa, dócil, e excelente
anfitriã para o General, que vinha fugindo de Baraque e Débora. Ao influenciar o general a
ceder, entrar na tenda, deitar-se, Jael o mata e livra o povo israelita de seu inimigo.
É num espaço curto de tempo que ela caminha da conformidade, quando aceita que o
general entre e lhe peça repouso, água, vigilância, submissão, quando esta finge estar feliz em
servir. Jael influencia negociando a confiança e necessidade de Sísera e, por fim, o domina e o
extermina. Neste caso, diante do apoio de Jael a Israel e não ao General, a personagem passa
pelo autoconhecimento de si, pela consciência de que melhor seria ajudar a Débora e a sua
causa. Assim, o conceito de um comportamento submisso ou do próprio termo submissão para
Marston, assume um viés diferente da posição masculina, pois é muito mais uma adequação a
uma autoridade amorosa, estado alcançado pelo entendimento de que tal posição dará prazer e
179

satisfação ao que nos submetemos. É diferente da conformidade, que já passa pelo viés da
“forçação da barra”, uma imposição de inferioridade que pode até causar dor, constrangimento
e apagamento. É nesse ponto em que a violência se estabelece, por se forjar um comportamento
que não condiz com o perfil do outro.
Já para compreendermos a diferenciação que Marston vê entre a submissão e a
conformidade, podemos citar a relação de Vasti, Ester e Assuero. Vasti era a primeira Rainha e
esposa de Assuero, antes de Ester. Na rápida passagem pela narrativa escrita em Ester (1, 10-
11), vemos que:

Ao sétimo dia, estando já o coração do rei alegre do vinho, mandou a Meumã,


Bizta, Harbona, Bigtá, Abagta, Zetar e Carcas, os sete eunucos que serviam
na presença do rei Assuero, 11que introduzissem à presença do rei a rainha
Vasti, com a coroa real, para mostrar aos povos e aos príncipes a formosura
dela, pois era em extremo formosa. 12Porém a rainha Vasti recusou vir por
intermédio dos eunucos, segundo a palavra do rei; pelo que o rei muito se
enfureceu e se inflamou de ira.

No contexto, a proposta indecente e machista do rei põe em situação bastante delicada


a integridade da rainha, já que representava a atitude de dominação masculina em que a mulher
é propriedade e a beleza é considerada também mercadoria, posse, propriedade do homem. Se
tivesse aceitado o convite, Vasti estaria agindo em conformidade. Por essa razão, ela não aceita
se submeter a tal constrangimento, pois o rei a queria nua, apenas com a coroa sobre seu corpo.
Vasti preferiu perder seu posto de rainha, deixando o caminho aberto para Ester.
É a sensação e a consciência juntas, numa relação de autoconhecimento que fará
perceber o ambiente como favorável ou antagônico (MARSTON, 2014). O autoconhecimento
faz com que o sujeito assuma comportamentos ativos ou passivos. Conseguir compreender suas
sensações, controlando e mediando os conflitos e as demandas que surgem, constitui Vasti
como sujeito de suas ações sobre o ambiente. Para Marston (2014, p. 121), o patriarcado era
nocivo ao mundo, a noção de liberdade masculina era anárquica e violenta e a noção feminina
era baseada no amor, pois somente por amor a mulher consegue submeter-se a pessoa amada
ou que a ama, ou ainda fazer outros submeter-se a ela: “Uma obediência voluntária aos
comandos da pessoa com autoridade.
É uma rendição passiva, prazerosa, mas culturalmente, não foi vista assim, sobretudo,
na imposição da submissão feminina ao homem. A imposição de comportamentos sociais
padronizados que não leva em consideração o indivíduo, nem as suas emoções primárias, o que
180

Marston atribui ao prazer e ao desprazer como gerenciadores das sensações, é que levam o
sujeito a adquirir esse ou aquele comportamento, em aliança, conflito ou antagonismo.
Desse modo, o comportamento feminino vai além dos moldes e das instituições que
legitimam como a mulher deve se comportar socialmente. Olhando para a teoria de Marston,
percebemos que é humano sentir emoções, e elas podem entrar em conflito ou em consonância
com o meio ambiente. As reações dos gêneros, os comportamentos estão muito mais
condicionados a processos culturais do que biológicos. Portanto, tanto os homens quanto as
mulheres podem desenvolver comportamentos dominantes, submissos, conformistas e
influenciadores, se assim forem se autoconhecendo e agindo de acordo com suas consciências.
A maneira que reagimos a essas emoções diz sobre o nosso perfil. O estímulo é de
fundamental importância para reconhecer o tipo de comportamento que mais se adequa ao ser
ativo ou passivo, prevalecendo a dominância ou a submissão. Os homens são desde cedo
estimulados a atitudes de dominação, pelas atividades sociais em que se envolvem, sejam nos
jogos competitivos, no mercado de trabalho, na condução social de domínio da casa, dos filhos,
dos negócios, e da própria mulher. Marston (2014, p 145) diz:

Pode-se dizer que a dominância constitui, de longe, o elemento emocional


mais importante influenciando o comportamento das crianças, nos primeiros
três a cinco anos de vida, e da grande maioria dos homens desde o nascimento
até a morte. Como nossa civilização é feita pelo homem, a dominância é
provavelmente a emoção mais universalmente admirada por ambos os sexos.

Se ambos os sexos admiram a dominação, ambos são capazes de lutar por ela, exercê-
la e usufruir com destreza, mas é preciso a consciência da necessidade e importância de reagir
ao ambiente e lidar com os estímulos. É interessante também a ideia que Marston tem sobre a
dominação passiva e ativa. Segundo ele, podemos exercer dominação de modo ativo quando
reagimos com agressividade e extrema competição, e a dominação passiva se dá por meio da
autoafirmação, da resistência sobre aquilo que nos impõe. Pode até não se tomar uma atitude
mais radical sobre o que nos é antagônico, porém é possível resistir, utilizar-se de outros meios
para se autoafirmar, o que também se constitui dominação.
Na narrativa de Ester, temos um exemplo desse pensamento. Na substituição da Rainha
Vasti, pelo mesmo viés da beleza que destitui Vasti Ester é escolhida. A submissão de Ester aos
padrões do Rei, sua exposição como a moça virgem e mais bela, simples e órfã, são elementos
que a tornam candidata perfeita ao cargo. Ester não questiona as regras, transita pelo palácio de
forma prudente e atenciosa:
181

O rei amou a Ester mais do que a todas as mulheres, e ela alcançou perante ele
favor e benevolência mais do que todas as virgens; o rei pôs-lhe na cabeça a
coroa real e a fez rainha em lugar de Vasti. Então, o rei deu um grande
banquete a todos os seus príncipes e aos seus servos; era o banquete de Ester;
concedeu alívio às províncias e fez presentes segundo a generosidade real.
Quando, pela segunda vez, se reuniram as virgens, Mordecai estava assentado
à porta do rei. Ester não havia declarado ainda a sua linhagem e o seu povo,
como Mordecai lhe ordenara; porque Ester cumpria o mandado de Mordecai
como quando a criava (ESTER, 2,17-20).

Ester participava sem questionar dos banquetes, obediente ao pai adotivo, ao rei e
gozava de boas relações com todos no palácio. Ester cresce dentro de sua concepção de sujeito,
reconhecendo que sua vida e a do seu povo estava em riscos. Assim, Ester se utiliza de
estratégias e negocia, constantemente, sua posição de inferior ao rei. Na posição de rainha do
palácio, vai resistindo as contrariedades e domina.
De fato, as personagens bíblicas em análise ganham formas de se autoafirmar como
atitudes de protagonismo que, em alguns momentos, se dará de forma ativa, outras de forma
passiva, porém essas mulheres adotam comportamentos diferenciados da maioria, destacando-
se por suas reações ao meio em que vivem, por suas atitudes que que lhes garante a posição de
dominação, de liderança, de resistência, mesmo quando parecem submissas. São mulheres
definidoras de suas ações, visando alcançar objetivos precisos que por vezes, beneficiará a si,
ao outro, ao seu povo. Marston (2014. p.253), assegura que “a atitude feminina comum a relação
aos homens, ao pai ou ao amado, embora bastante caracterizada pela resposta de submissão, é
mais marcada pela influência”. Em seus estudos ele comprova que as mulheres são mais
influenciadoras. O verdadeiro caráter de influência da resposta emocional controladora das
meninas, revela-se em suas posturas de liderança durante a adolescência. Os homens não
conseguem ser influenciadores e tendem logo a dominação, pois seus organismos não são
adequados para influenciar, sobretudo, outros homens.
Nesse sentido, acreditamos que é culturalmente cultivado no homem, o poder e o
domínio, de modo que eles preferem usar esse poder ao invés de influenciar, de conquistar
pacificamente o outro. Marston observou que os homens consideravam um erro as mulheres
inferiores, sexo mais frágil, pela inferioridade da força física e pelo menor poder emocional nos
relacionamentos entre casais. Os homens, como dominadores naquele momento, deixavam as
mulheres em desvantagens, pela falta de estímulo e pelas imposições sociais de atribuir às
mulheres, as atividades domésticas, nas divisões de trabalho dos gêneros, deixando para os
homens os negócios, os espaços públicos e sociais. Marston (2014. p.253) acreditava que:
182

Verdadeiros relacionamentos (à exceção dos profissionais) dependem mais


das respostas de influência e de amor do que das relações de dominância e
apetite, há poucas razões para duvidar de que o sexo feminino esteja muito
mais bem equipado para assumir liderança emocional do que o sexo
masculino. Na realidade, as mulheres vêm há muito exercendo essa liderança
emocional ao controlar, em grau considerável, a vida familiar e a educação
das crianças. Mas por sua vez, elas têm sido controladas no exercício dessas
funções pelas compulsões dominantes e apetitivas exercidas sobre elas por
uma civilização predominantemente masculina. A situação em que as
mulheres se encontram – mantidas sob status de fragilidade imposto de forma
dominante- as tem obrigado a usar a influência (e também a submissão) como
meio de obter proteção e benefícios apetitivos.

É pelo deslocamento dessas personagens dos seus lugares de submissão, de construções


que pretendem naturalizar atitudes de apagamento e desvalorização do feminino, expressões
concretas de empoderamento, uma quebra de paradigmas, um protagonismo feminino frente as
demandas sociais, tornando necessários seus novos comportamentos. Como observou Marston,
as mulheres já vinham liderando com destreza suas vidas, casas e filhos, mostrando que
poderiam liderar outros espaços se lhes dessem oportunidade. De igual modo, as personagens
bíblicas, mesmo antes, sem haver organizações e movimentos de luta pelo feminino, já estavam
se impondo e lutando para serem incluídas, guerreando suas guerras, lutando ao longo das
décadas até os dias atuais, por seus direitos de igualdade social. Marston leva-nos a pensar que
o comportamento feminino é definido, legitimado pela sociedade e pelas instituições, assim
como suas atitudes e ações são julgadas adequadas ou não por um masculino que também as
define. A partir das regras estabelecidas, os padrões de comportamento definem o desenho do
que é ser mulher, moldando sua identidade.
A análise dos comportamentos naturais e não convencionais revelam que ambos os
gêneros são de igual modo movido por emoções normais, humanas. No entanto, o fato do
feminino ser mais controlado, revela que as mulheres tem uma força, habilidade de adaptar-se
ao meio e transformá-lo a seu favor e a favor dos outros. É muito mais uma questão de
oportunizar aos gêneros a igualdade em participar dos mesmos espaços e de garantir a liberdade,
para que se prove a capacidade das mulheres e a suas habilidades.
O comportamento das seis personagens femininas escolhidas como recorte do corpus
desse trabalho, revela que são mulheres comuns, mas que representam com mais intensidade
essa mudança no comportamento feminino, rompendo com a perspectiva de definir o
comportamento e a identidade da mulher numa visão essencialista. É preciso ver que as
diferenças femininas eram vistas apenas por fatores biológicos e não sociais, persistindo num
183

modelo de comportamento feminino marcado por estereótipos que fazia das atribuições físicas
femininas recessivas, associadas a sensibilidade, a fraqueza, sempre dadas às mulheres.
De fato, no Primeiro Testamento, as mulheres buscavam atender aos padrões do seu
tempo. Só pra citar algumas, Sara, estéril, doa sua serva o marido Abraão, para que este a
retribuísse com um filho (GÊNESIS, 16, 21); Ana votou a Deus para doar seu filho ao templo,
porque não queria mais ser humilhada por não ter filho (I SAMUEL, 1,10-12); Raquel e Lia
negociaram e dividiram o marido, o patriarca Jacó, em troca de ervas afrodisíacas
(mandrágoras) para terem filhos (GÊNESIS 30, 14-15 ). Lia já tinha os seus, porém Raquel,
mesmo sendo a esposa preferida de Jacó, era estéril e chorava pedindo filhos ao marido,
sentindo-se morrendo cada vez que não engravidava.
Por outro lado, em Débora, Jael e Ester, não encontramos essa mesma necessidade de
definição dos seus papeis sociais de esposa e mãe. Elas aparecem agindo em lugares diferentes,
públicos, não condicionadas ao lar, nem cuidando dos filhos. Maria Madalena e Dorcas, no
Segundo Testamento também não são mães e nem se destacam por essas funções. Seus
comportamentos estão atrelados ao perfil de um feminino atípico à sua época, evocando uma
redefinição de suas identidades. Estas personagens buscaram atender suas vontades, mediante
as suas emoções e, mesmo inconscientemente, não se deixaram amarrar pelos impedimentos
que pudessem encontrar, fugindo a normalidade de seus tempos.
Nesse aspecto, pensar o comportamento, a construção da identidade feminina nessa
concepção do que “é normal”, mostra-nos que, até definir o termo normal, não é simples e que
é necessário pensar sobre essa construção do gênero feminino no aspecto da normalidade.
Pensando normalidade como “estado padrão, normal, que é considerado correto, o que não é
anormal, e num conceito mais social aquilo que se dá de maneira mais comum ou conforme a
maioria” (WIKIPÉDIA, 2015). É preciso pensar a partir do princípio de que as definições de
padrões de comportamento, atribuídos como padrão, pelas repetições de uso e aceitação, podem
estar embasadas em conceitos confusos, descriminantes e até excludentes.
Desse ponto em diante, adentramos numa questão de suma importância que se inicia por
essa ideia de perceber-se no mundo, além do comportamento adotado pela sociedade, mas pela
ideia do reconhecimento de si, do seu eu, do que sente e porque sente assim, de que maneira o
indivíduo reconhece o que lhe motiva e interessa, de como suas experiências de vida lhe
constrói como sujeito e nos espaços por onde ele circula, quais são as escolhas que lhe constitui.
A ideia da consciência de si, da normalidade das emoções que movem as pessoas a
compreender-se no mundo de Marston, vai ao encontro da compreensão de Woodward (2014),
184

sobre a construção da identidade, a partir da construção da própria subjetividade: “a


subjetividade sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu” (WOODWARD, 2014, p. 55).
Neste aspecto, a formação da identidade envolve sentimentos, escolhas que nos
representam, decisões que envolve o racional ou o irracional, na perspectiva de construir nossa
subjetivação. Para isso, o sujeito busca dentro de seu contexto no acervo cultural, religioso,
social, a identificação com aquilo que melhor lhe representa, lhe identifica, de forma que a
subjetividade é atravessada pelos discursos que nos rodeiam e a maneira como eles nos inclui,
enquanto sujeito, nos constituindo, nos acomodando no/pelo discurso é que nos leva a construir
a identidade.
Discurso nesse contexto, diz respeito ao uso da linguagem constituídas socio-
historicamente, atravessada por vozes com as quais o sujeito se identifica e as utiliza como
modo de expressão. Ele se utiliza da linguagem e significa suas práticas discursivas pelas quais
ele é constituído e constitui seu discurso. Diante dos conflitos, das lutas sociais, através da
linguagem, o sujeito que é atravessado por muitos sentidos, ressignifica seu posicionamento, a
partir da sua enunciação. “São a partir dessas posições que assumimos e com as quais nos
identificamos que se constituem nossas identidades”. (WODWARD, 2014, p. 55).
Nesses espaços de apropriação do discurso, valores e conceitos, alguns são
incorporados, outros modificados e até mesmo recusados. Entretanto, pode ocorrer de não nos
identificarmos com as práticas culturais que tentam nos definir, e opera então as marcações
simbólicas que estabelecem as diferenças e a relativação entre as identidades, entre o que se
inclui ou se exclui na construção ou manutenção dessas.
Perceber a formação da identidade como um processo que se inicia desde o nascimento,
nos primeiros contatos com a mãe ou cuidador, em que a criança começa a ter consciência do
existir, do sentir e de quem ela é, nos remete a ideia de que essa conscientização é construída
levando em consideração o outro, percebendo-se a partir da interação com este, constituindo-
se até alcançar sua autonomia. Assim, o sujeito será capaz de começar a fazer suas escolhas, a
partir das opções que lhe são ofertadas. Nesse aspecto, a alteridade será um forte aliado na
constituição da sua identidade. Para Woodward (2014, p. 9) a identidade é marcada pela
diferença, sendo possível fazer considerações, associações entre os iguais e diferentes,
baseando-se em relações binárias que legitimam a identidade de um sujeito, a partir do outro.
Entretanto, Woodward (2014), alerta que algumas vezes será pela exclusão e pela falta
de relação, de similaridade com o outro que representará sempre um outro grupo, que poderá
se estabelecer relações de exclusão, classificação por essa posição binária que traz ao primeiro
185

termo o prestígio e a legitimação e ao outro o desprestígio, deixando à margem. Assim


Woodward (2014, p. 54 nos reforça:

Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de


representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade,
pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença. Nas
relações sociais, essas formas de diferença – a simbólica e a social - são
estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatórios. Um
sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população de
uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em
ao menos dois grupos opostos – nós/eles (por exemplo, sérvios e croatas);
eu/outro.

Embora não seja simples chegar a esse consenso do que somos, caminharemos sempre
nessa ideia contínua do que nos identifica ou não, compreendendo no outro, em que nos
parecemos ou nos afastamos, afirmando a identidade pela diferença.
No contexto das personagens femininas bíblicas, em muitos processos de constituição
dessas personagens, o narrador as define nesta perspectiva da diferenciação do que seja “ser o
homem” em o seu papel social, e o “ser mulher” em total divergência do que constitui o
masculino. Como mulher, não terá os mesmos direitos desde o nascimento, nem o mesmo
acesso aos espaços garantidos aos homens como os espaços sagrados. Assim, na formação de
suas identidades, as personagens vão se adaptando, se constituindo no acervo limitado de
atribuições e delimitações simbólicas já admitidas como inerentes a elas. Elas precisam o
tempo inteiro lutar para irem se compreendendo além de seus papeis e constituições em
detrimento do outro, no caso de um sujeito masculino.
Nesse sentido, são mulheres que relutam no interior do texto, tentando constituir por
elas mesmas as suas identidades. A ideia de uma narrativa dita por homens nos faz refletir sobre
o processo de construção de identidade dessas mulheres, de modo que as personagens
selecionadas para análise ainda estão em processo de definições de suas identidades, num
conflito entre o que lhes apresentam e o que elas mesmas buscam.
Nas discussões atuais sobre identidade, entendemos sua constituição como uma busca
constante de compreensão, que nos define, e esse processo leva tempo, requer maturação. A
identidade não é fixa e nem imutável, mas processual. Para Castells (2014, p. 55):

A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história,


geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória
coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de
cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos
186

indivíduos, grupos sociais e sociedades, que organizam seu significado em


função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura
social, bem como em sua visão tempo/espaço (CASTELLS 2014, P. 55).

A subjetividade se efetiva a partir do autoconhecimento daquilo que nos faz diferentes,


tornando-se o nosso “eu”, pois se aproxima de nossas idiossincrasias. O indivíduo se constitui
pelos significados que lhe são favoráveis ou coniventes com seus projetos, seus objetivos. Ele
investe em sua identificação, levando em consideração sentimentos, decisões e escolhas
pessoais. Na concepção de Castells (2014, p. 54), a identidade é a fonte de significado e
experiência de um povo e se determina a partir da necessidade de estabelecer distinção entre os
indivíduos, separando aquilo que é de todos e o que caracteriza a individualidade do sujeito.
Nesse processo, a autoidentificação é fundamental para se apropriar da cultura ou conjunto de
culturas do qual faz parte, dando a ela novos significados, visando sua autoconstrução ou a
individuação. Mas a identidade pode ser formada a partir das instituições dominantes, e os
atores sociais assumem a condição de sujeito, internalizando as normas, construindo novos
significados. Em algumas situações, o sujeito desempenha diversos papeis e, por vezes tende a
confundir identidade múltipla com estes diversos papeis sociais e até pode tentar definir a
identidade, a partir de um dos papeis que acaba por legitimá-lo enquanto sujeito.
Quando as instituições definem nossa identidade, elas visam a dominação e os papeis
sociais devem passar por negociações e estruturações, normas de controles legitimados por
essas instituições que as perpetuam. Não é sempre que as nossas escolhas prevalecem na
formação de nossa identidade, sobretudo quando diz respeito as inserções em grupos sociais,
no coletivo. Nossa subjetividade é atravessada por forças normalizadoras antagônicas que, ora
vai incluir e ora vai excluir a subjetividade e legitimando a identidade do grupo. Assim, as
instituições definem nossa identidade, visando a dominação e os papeis sociais passam por
negociações e estruturações, normas de controles legitimados por essas instituições.
(CASTELLS 2014, p. 55).
Neste aspecto, a construção da identidade não se dá de forma harmoniosa e estável, não
é coesa e facilmente reconhecida no/pelo comportamento do sujeito. A ambiguidade do
comportamento reforça a instabilidade, as constantes transformações e transições pelo qual o
ser passa, à medida que vai se construindo, desconstruindo-se para finalmente se reconstruir e
vivenciar uma fase de acomodação do ser à sua identidade. Woodward (2014) reflete sobre a
identidade individual, constituída a partir da subjetividade que constitui essa identidade.
Entretanto, vivemos essa subjetividade num contexto social em que a linguagem e a cultura
ressignificará nossas predileções. Já em Castells (2014, p. 55) o autor reforça a discussão da
187

identidade coletiva e que essa última se dá dentro de um processo de construção social movido
por relações de poder entre formas e origens.
É possível existir resultantes dessa construção, identidades que Castells (2014, p. 56) as
denomina de: “legitimadoras, de resistência e de projeto”. A legitimadora se dá quando
prevalece o interesse de uma intuição dominante visando sua expansão e também a
racionalização da sua dominação por parte dos atores sociais. Quando tais atores não aceitam
as imposições das instituições legitimadoras, abre-se o espaço para construção de identidades
de resistência em que os atores sociais prevalecem, resistem, mesmo sendo desfavorecidos ou
desvalorizados. Sob a lógica da dominação, eles constroem trincheiras de resistência e
sobrevivência para si.
Um terceiro processo de formação de identidade é responsável pela criação de
identidades de projeto em que os atores sociais constroem novas bases para redefinirem suas
posições na sociedade, provocando transformações sociais. São exemplo disso os movimentos
sociais e ideológicos que buscam direitos iguais e reafirmação social. Os conflitos se
estabelecem dentro do processo de construção da identidade, entre o subjetivo e o coletivo,
entre o que o sujeito se identifica e o que as estruturas de dominação, como o Estado, que é um
dos principais órgão de controle que perpetuam as identidades que os represente e lhe permita
alcançar um controle, sob pretexto de uma homogeneização, mesmo que não haja nenhum
modelo eficiente de formação de identidade, tanto individual como social que produza
indivíduos ou grupos homogêneos. Até mesmo dentro destas instituições mais fechadas como
as consolidadas, as identidades são heterogêneas (CASTELLS, p. 58).
Ao pensar a identidade das personagens femininas da Bíblia, nos remete primeiro a
compreender que, na perspectiva de suas narrativas, as identidades são pensadas, impostas pela
ótica da homogeneização, do essencialismo que consiste em atribuir identidades baseadas no
biológico, na história, na tentativa de assegurar a rigidez, a sustentabilidade de uma identidades
fixa, estável, imutável até. Sua condição de gênero feminino, corpo biologicamente apto a
maternidade, e em alguns momentos sua etnia-racial, ou sua conversão às normas da nação,
poder agregar a construção de suas identidades, na perspectiva de inclui-las como sujeito da
coletividade.
Nas seis personagens analisadas, há uma oscilação entre a imposição da identidade ou
o abandono dessa identidade, como resultados de uma relação de poder e dominação por parte
de um narrador masculino, que se apropria do discurso e fala em nome dessas mulheres-
personagens, atribui a elas, a verdade sobre elas. As personagens não escrevem suas histórias e
saem do interior das práticas discursivas do outro que elas têm a sua identidade constituídas ou
188

apagadas. No entanto, são elas que ressignificam sua identidade, a partir de seus
posicionamentos que se refletem em suas ações. Assim, a identidade é imposta, ajustada
mediante os interesses do poder que controlam os sujeitos e suas relações sociais, implicando
em incitar os sujeitos em suas escolhas, na construção de uma subjetividade, muitas vezes,
induzidas pelas opções sociais já determinadas pelo estado ou instituições normalizadoras, que
apropriam-se de um imaginário, sendo a via de regra para os sujeitos se relacionarem com as
imagens de certas identidades já predeterminadas socialmente ou por outros sujeitos.
No contexto do Primeiro Testamento, a construção da identidade das personagens
femininas parece não ser a prioridade do narrador. Ele não parece defini-las, mas deixa para
que o leitor preencha as lacunas. Aos personagens masculinos, embora seja um estilo dos
narradores bíblicos, mas há muito mais detalhes sobre eles, suas genealogias, suas raízes, lugar
de origem, posição social, cargos que ocupam, o que não acontece com as personagens
femininas. No entanto, é preciso atentar para as estratégias literárias, que o narrador utiliza para
construir as identidades a partir das ações das personagens. São nas estratégias linguísticas do
narrador que podemos compreender o conflito entre as identidades do feminino.
É assim que vamos conhecendo a nacionalidade das personagens em destaque na
narrativa. Débora, é da tribo de Efraim no antigo Israel, Jael da tribo dos Queneus e Ester, uma
judia em cativeiro na Pérsia. Maria, mãe de Jesus, é Israelita de Nazaré, é a exceção em aparecer
numa genealogia. Madalena, tal como Maria de Nazaré, é associada ao nome de sua cidade:
Magdala, Dorcas parece ter dupla cidadania, sendo judia e grega. A nacionalidade é umas das
formas inusitadas de agregar à identidade nacional, àqueles que de certo modo, colaboram com
essa reorganização das memórias que buscam retomar o passado nas narrativas. Bauman (2005,
p. 26-27), evidencia que:

A ficção da “natividade do nascimento” desempenhou o papel principal entre


as formulas empregadas pelo nascente Estado moderno para legitimar a
exigência de subordinação incondicional de seus indivíduos (de alguma
forma, curiosamente, desprezada por Max Weber em sua tipologia das
legitimações). Estado e nação precisavam um do outro. Seu casamento,
alguém poderia dizer, foi oficiado no céu...Estado buscava a obediência de
seus indivíduos representando-se como concretização do futuro da nação e a
garantia de sua continuidade. Por outro lado, uma nação sem estado estaria
destinada a ser insegura sobre o seu passado, incerta sobre seu presente e
duvidosa de seu futuro, e assim fadada a uma existência precária. Não fosse o
poder do Estado de definir, classificar, segregar, separar e selecionar, o
agregado de tradição, dialetos, leis consuetudinárias e modos de vida locais,
dificilmente seria remodelado em algo como os requisitos de unidade e coesão
da comunidade nacional.
189

Essa noção de unidade da nação busca atribuir identidades legitimadas e regularizadas


pelo estado, como também justifica-se pela garantia da manutenção do passado, organização
do presente e confirmação do futuro. Os narradores agregam as personagens protagonistas a
condição de pertencentes a história do Israel bíblico, independentemente de serem ou não
nascidas no território. Importa que os feitos destas personagens colaborem com a manutenção
da identidade da nação, no sentido de manter essa identidade de nação religiosa, com leis civis
e morais que garantam os valores sociais desta. Ser estrangeiro e não estar em conformidade
com essas leis, requer ser excluído e morto como o caso da mulher midianita que foi morta por
ser estrangeira, conforme já expusemos anteriormente (ver nota de rodapé p, 120 sobre Número
25:6-12). Se a mulher estrangeira colabora para a continuidade dos costumes e se identifica
com a cultura, essa será agregada, mesmo que seu “pertencimento” seja sempre ressaltado.
Assim Jael, a heroína de Israel que não é israelita, mas da tribo dos Queneus, (JUÍZES 4, 17-
22), como também Raabe, a prostituta cananeia que livrou os espias de Josué na invasão de
Jerico.
Outro elemento que é utilizado para a formação da identidade coletiva é a constituição
das famílias e os papeis sociais definidos dentro dela, a partir da figura paterna, em seguida a
esposa e os filhos que esta agrega. No caso das personagens femininas, elas estão, em sua
maioria, ligadas ao homem, junto a eles. Débora, possivelmente, é casada, mas a informação é
ambígua; Jael também tem um marido, mas não se fala de filhos; Ester é uma jovem solteira
que casa depois, tornando-se esposa do Rei; Madalena não tem marido nem filhos; Maria, mãe
de Jesus torna-se mãe por viés diferenciado do socialmente admitido; Dorcas nem é mãe e nem
esposa. São personagens identificadas como donas de casa, exceto por Maria, mãe de Jesus,
também não se identificam como mães de filhos.
Todas essas relações são constituídas por meio do discurso, de modo que é importante
reconhecer, dentro das narrativas, de quem são as vozes que legitimam a identidade das
personagens femininas e as induz a agir de forma conivente com essas vozes ou em oposição a
elas. No caso das mulheres bíblicas em estudo, essa relação de incitação a modelos de
identidade já predeterminadas fica evidente nas entrelinhas dos textos. A identidade feminina,
como também o seu espaço, foi desde muito tempo, imposta pelo jogo social em que o sistema
conservador, discriminador do patriarcalismo, coloca os homens como dominantes, superiores
e as mulheres como o outro, o objeto, o ser dominado, silenciado e excluído.
Essa relação de diferenças entre o “eu e o “outro”, acaba por fornecer bases que se
diferem, a partir do gênero do sujeito. No caso da identidade da mulher, se distingue por aquilo
que ela não é: ser mulher é não ser homem e essa diferença marcada tem símbolos concretos
190

que ajudam a identificar, nas relações sociais, quem é mulher e como deve se identificar e quem
não é. Por isso, a construção da identidade feminina, tanto é simbólica, quanto social.
Woodward (2014, p. 10) coloca que a luta para afirmar uma ou outra identidade, ou as
diferenças que as cercam tem causas e consequências materiais: “os homens tendem a construir
posições-de-sujeito para as mulheres, tomando a si próprios como ponto de referência”.
Desse modo, para construção da identidade alguns significantes constituirão as bases
comuns para a formação da identidade em alguns pontos e momentos históricos, para a
construção da identidade nacional. Woodward (2014, p.11) assegura que “a identidade é
marcada pela diferença, mas parece que algumas diferenças – neste caso entre grupos étnicos –
são vistas como mais importantes que outras, especialmente em lugares particulares e em
momentos particulares”. Hall (1997) revela que a identidade é construída a partir de fatores
externos ao sujeito e a cultura tem um grande poder de influência. O estudioso fala sobre a
importância de observar a relação entre cultura e significado, para poder perceber como tal
relação embasa os sistemas de representações.
Desse modo, é necessário compreender como os significados produzidos pelos sistemas
geram e influenciam a identidade, analisando as questões sociais e materiais, que fomentam tais
sistemas classificatórios, compreendendo o que os movem no processo de definição de uma ou
outra identidade. Assim, o conceito de identidade é importante para examinar a forma como ela
se insere no “círculo da cultura” bem como a forma que a identidade e a diferença se relacionam
com o discurso sobre a representação. Para Woodward (2014.p 18), “é por meio dos
significados produzidos pelas representações, que damos sentido à nossa experiência e aquilo
que somos”. Isso nos faz compreender que os sistemas simbólicos é quem permeiam o que
somos, como também o que podemos nos tornar. Assim, os sujeitos assumem posições de
identidade e se identificam com elas, as vezes parcialmente, porém influenciados pelos
discursos de identidade oferecidos a estes, pelas possibilidades asseguradas pelos sistemas de
representação. Assim:

A representação compreendida como um processo cultural, estabelece


identidades individuais, coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se
baseia fornecem as possíveis respostas às questões: quem sou eu? O que eu
poderia ser? Quem quero ser? Os discursos e os sistemas de representação
constroem os lugares a partir dos quais podem se posicionar e a partir dos
quais os indivíduos podem falar. (WOODWARD 2014, p.)

Como vemos, o feminino é atravessado por muitas indagações enquanto sujeito


constituído pelas práticas culturais e as marcas que seu gênero recebe e traz para sua
191

constituição. A constituição da identidade feminina é atravessada também pelo imaginário,


presente nos mitos, nos símbolos que relacionam a condição humana, biológica e cultural à
formação da identidade feminina. O sujeito feminino precisa de consciência de sua posição e
condição para romper com as crenças impostas, com as heranças do sangue e das práticas
sociais e culturais que as acomodam.
Nesse aspecto, verificar a situação cultural da mulher marcada pela diferença, nos
permite perceber como esse sujeito vê o outro, como ele vê a si próprio e vê as imagens sociais
que emergem de seu contato com o coletivo. O sujeito feminino que se estrutura na
contrapartida daquilo que o masculino é, incide no risco de compreender-se pela falta, pelo
espaço negado, pela incapacidade em relação ao que é institucionalizado dominante,
privilegiado, sob o qual o outro gênero deve conformar-se com o que ele não é e podendo ser
num contraponto, o segundo, o recessivo, o dominado.
Essa visão da supremacia masculina habitou por muito tempo os discursos através de
modelos linguísticos que asseguravam as marcas de gêneros, e que gerou muitas identidades
femininas, produtos culturais representativos na literatura, na mitologia. Trata-se de arquétipos
tal qual as imagens que permeiam o imaginário das sociedades, permitindo a manutenção da
hierarquia do gênero masculino sobre o feminino, lançando à mulher o desafio de assumir
papeis predeterminados. Assim, a construção da identidade das personagens femininas Bíblica
respondem a critérios de identidade (nacional, étnica, religiosa, nação/pátria, gênero, família e
maternidades), marcada pelo simbolismo que constitui a formação dessas identidade, pelas
divisões sociais dos papeis atribuídos aos gêneros e pelos discursos e crenças das instituições
legitimadoras envolvidas primordialmente com a propagação do sistema patriarcal, atrelada e
justificada como a vontade divina. Entretanto, a construção da identidade feminina das seis
protagonistas, perpassa pela construção de uma subjetividade que rompe com as crenças
legitimadas por essas instituições, e as ideias persistentes de um sujeito concreto que representa
um mundo objetivo.
Nesse sentido, o feminino se vê constantemente atravessado pelos múltiplos discursos
que provocam deslocamentos ao sujeito e a sua percepção de mundo, sobretudo quando o
sujeito feminino toma consciência do processo de construção social em que se dá as relações
de gênero. Assim se dá o comportamento de Débora, Jael, Ester, Maria de Nazaré, Maria
Madalena e Dorcas, pois são mulheres que instauram uma ruptura com os modelos
estabelecidos, uma quebra de paradigmas do modelo tradicional, criando vínculos, a seu modo,
com aspectos afetivos, cognitivos e sociais. As ações e atitudes das mulheres bíblicas caminham
nessa direção, pois promovem a desconstrução dos parâmetros patriarcais e estabelecem novas
192

bases para a formação de uma nova identidade. Assim, elas são mulheres atravessadas por
diferentes relações de dominação estabelecidas pelos discursos que perpetuam e legitimam a
supremacia masculina. Elas convivem com essa classificação que cataloga, seleciona e exclui
as espécies, mas essas personagens rompem com todas as formas que se estruturam para
engessar suas identidades, criando uma nova forma de ver o feminino e de ser também.
Se elas rompem com as estruturas sociais e estabelecem novos caminhos frente ao
sistema patriarcal que as condicionam a um lugar de coadjuvante, deslocam, na estrutura
religiosa, para o lugar de liderança e orientação. Elas se reorganizam dentro das instituições
legalizadoras, partindo de uma posição de dominada para percorrer novas posições, transitando
em novos espaços sociais, para enfim assumirem, portanto, as rédeas de sua história e as
escreverem por novas linhas. O comportamento delas vai sendo modificado ao longo do texto,
e de como suas atitudes revelam que estas personagens vão se constituindo enquanto sujeitos
de ação dentro da narrativa.
É nesse contexto que a hermenêutica ricoeuriana, fundamenta as análises das
personagens, para compreender como elas rompem com a estrutura do enredo engendrado pelo
próprio narrador e se locomovem de um lugar de expectação da vida, para moldar suas próprias
identidades, tomando as rédeas de suas vidas. Quando Ricoeur (1990) discute a constituição da
identidade, ele traz a ideia de que o sujeito não se constitui como propõe a percepção egoísta
do “eu”, do o cogito cartesiano, com sua concepção de consciência imediata, centrada em si
mesma e autossuficiente. A constituição do sujeito se dá numa relação de alteridade, de
mediação, em que o reconhecimento pessoal acontece na interação com o outro, com a cultura,
com o mundo real e o da ficção que se constituem nos discursos, nas narrativas, nas estórias
que contamos de nós e nas interpretações que outros fazem de nosso perfil narrativo. Fonseca
(2009, p. 4) coloca que:

O homem só pode conhecer-se através das suas expressões, no jogo contínuo


e sempre inacabado da sua figuração, re-figuração e reconfiguração, ou, dito
de outro modo, toda a compreensão é sempre o resultado de uma mediação ou
de uma interpretação, ela própria também sempre mediada. De facto, o homem
não é transparente para si mesmo ou não teria sentido esta pergunta que
continuamente pomos a nós próprios: Quem sou? Qual o sentido da minha
existência e da vida?

Nesse caminhar, importa o que dizemos de nós, em virtude do outro, da percepção que
temos do “si”, que se constitui nas relações, nas interações sociais. Para Ricoeur, não vai
importar tanto o “dizer”, esse seria inconstante, não permanente, porém importa o dito, “aquilo
193

que ele diz sobre nós: “le dit du dire”. Este é o que nos constitui sujeito, agente do dito, do que
assumimos, a partir de nossas narrativas. Porque ao dizer, narrar, compreendemos o mundo, os
homens e a nós mesmos, como parte desta humanidade. Assim, é possível desvendar o sujeito
através da mediação, do contato com o outro, do que o outro é em face de nós. É também um
modo de nos colocarmos enquanto outro, para compreender-nos com mais propriedade. É nesse
sentido que se cria uma extrema relação entre o sujeito e o texto, na perspectiva hermenêutica
de Ricoeur, ambos podem ser interpretados, porque se constituem na linguagem e são por ela
constituídos, numa relação intrínseca com os signos, tudo é semântico e significativo. Fonseca
(2009, p. 8) os esclarece que:

A hermenêutica de Ricoeur não consiste tanto na construção/captação do


sentido dos símbolos, dos mitos e das metáforas, num primeiro momento, pelo
seu excesso de sentido ou pelo seu potencial de sentido, ou seja, porque
contêm sempre mais sentido do que aquele que exprimem verbal e
literalmente e por isso mesmo necessitam de ser interpretados, e,
posteriormente, sobre a narrativa, na qual salienta o seu carácter inventivo e
criador, mas no esforço efectivo de compreensão de nós próprios e do mundo.
É que a narração permite a compreensão de nós próprios numa dimensão
temporal, isto é, histórica, mas, mais que isso, permite a compreensão de nós
próprios na nossa historicidade.

Nesse sentido, o sujeito é constituído nas relações com o outro, reafirma sua identidade
pela narrativa, na e pela sua história. A ideia de que, ao narrar suas vivências, a apresentar-se
para o outro em seu texto, o sujeito se torna autor de suas ações e, portanto, protagoniza sua
história, e assume as características que converge na formação de seu perfil. Ricoeur (1990) se
referia, sobretudo, ao texto autobiográfico, escrito pelo sujeito-narrador. Tomamos dele a ideia
de constituição do sujeito dentro da narrativa, para discutir as noções de constituição de
identidade das mulheres bíblicas nas narrativas, no contraponto, não no sentido literal de serem
as autoras/narradoras de seus textos, uma vez que, elas são desenhadas por um narrador
masculino. Mas é preciso reconhecer que na verdade, está constituindo a história de outros
sujeitos. E por que não dizer a história de uma nação, pois como o próprio Ricoeur aponta: a
constituição da identidade narrativa também se dá para comunidades e o Israel bíblico é um
exemplo claro disso: se constitui nas narrativas que conta de si e que os outros contam dele.
No entanto, isso não impede de que essas personagens escrevam suas histórias de vida,
apropriando-se do texto do narrador, da oportunidade de ser por ele desenhada e se inscrevem
enquanto corpos de escrita. Através das suas ações, elas permitem a própria ruptura e se
194

constituem sujeitos protagonistas de suas histórias de vida, ganhando vez e voz, pelos seus
comportamentos dentro das narrativas.
É a partir da interpretação dessas personagens, da narrativa que elas escrevem no
contraponto da narrativa do narrador que somente o leitor atento buscará compreender suas
ações e perceberá, que dentro da conjuntura em que essas personagens se inserem, elas agem
de forma diferenciada e se constituem sujeitos de ação dentro do texto.
Essa percepção, do protagonismo destas mulheres se dá justamente pelas brechas que o
narrador vai deixando, na ambiguidade que mora nas palavras, no duplo sentido do dizer do
outro sobre o sujeito narrador. Ricoeur nos diz que somente a palavra do sujeito que se constitui
na narrativa recebe o status de “inquestionável”, validado pelas certezas de quem viveu as
estórias, portanto, surge então a oportunidade de compreendermos a narrativa na versão dessas
mulheres.
No sentido de compreender o termo protagonismo, recorremos a Carneiro (2018, p.
245), em que o conceito de personagens como agentes das ações é a condição vital para o
desenrolar destas. Antônio Candido fala sobre a significância das personagens, pois são elas
que causam ao leitor, a identificação ou estranhamento: "não espanta, portanto, que a
personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura deste dependa
basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor" (CANDIDO, 1998, p.
52). Seguindo esse pensamento, Todorov (2006), coloca que a personagem é uma história
virtual que é a história de sua vida. Toda nova personagem significa uma nova intriga. Estamos
no reino dos homens-narrativas. Nesse contexto, as personagens nem sempre são as
responsáveis pelas ações:

A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a interrupção da


história precedente, para que unia nova história, a que explica o “eu estou aqui
agora” da nova personagem, nos seja contada. Uma história segunda é
englobada na primeira; esse processo se chama encaixe (TODOROV 2006, p.
122 e 123).

Nesse sentido, a personagem se constitui na sua aparição e destaca-se por suas ações,
mudando o curso do enredo, tonando-se inevitavelmente a personagem central na intriga. É,
portanto, no processo de leitura e compreensão das personagens e consequentemente do enredo,
que se dá dentro do texto, a possibilidade da categorização destes em protagonistas e
antagonistas, mediante as suas funções dentro do texto. A personagem protagonista é aquele
sobre quem o foco das ações está sobre seus ombros, na posição de “personagem principal”,
195

como definiu Aristóteles dentro de suas análises das tragédias gregas. Assim, protagonismo
para ele é a qualidade da pessoa que se destaca numa situação.
Entendemos protagonismo tanto na linguagem da arte, como um personagem que é
construído no texto, na peça teatral, como a mais importante, com mais ações e, cujo o enredo,
é sobre suas ações, sua história de vida, como podemos está falando de alguém que se destaca
por suas ações, mesmo quando não é a personagem principal, escolhida ou enfocada pelo autor
ou narrador. Protagonismo origina-se do latim protos, entendido como primeiro ou principal e
agon, entendido como competidor ou lutador. Assim, etimologicamente, protagonista é o
principal lutador, o competidor mais importante, entendido aqui como movimento que destaca
uma pessoa ou uma categoria, no caso o feminino, que se torna evidente por agir com destreza
e destacar-se em atitudes e atividades além das demais. Homens e mulheres que realizam feitos
notáveis. O termo protagonismo é mais utilizado no âmbito da dramaturgia, como referência ao
personagem principal de uma peça, novela ou filme.
Nesta linha, de raciocínio, protagonismo diz respeito ao novo comportamento assumido
pelas personagens femininas, através de escolhas e atitudes que as destacam das demais, na
condução de suas histórias, na tomada de decisão por si, embasadas em suas crenças e na
autoconfiança, na fé que as movem, tomando decisões fundamentais para transformarem suas
vidas.

4.2 AS MULEHRES DO PRIMEIRO TESTAMENTO: COMPORTAMENTO, IDENTIDADE


E PROTAGONISMO DE DÉBORA, JAEL E ESTER

É preciso primeiro pensar que a construção das personagens Débora, Jael, Ester, Maria
de Nazaré, Madalena e Dorcas, como a do próprio feminino na Bíblia, é atravessada por
alicerces sociais, estruturas que insistem em definir, ou de forma mais agressiva, impor regras
de comportamento, de normatização que dificultam as escolhas e atitudes das personagens.
Ao questionarmos sobre o que é ser mulher, tem-se logo a ideia de que as opções de
escolhas, se é que elas existiram, se limitam a instituir cultural e socialmente o feminino. De
modo que “O ser mulher” é marcado pelo “Não pode”, termo representativo que revela uma
série de costumes ligados as hierarquias sociais naturalizadas, sobre o que se pensa ser inerente
aos gêneros. É uma perigosa confusão que se faz sobre a implicância da importante constituição
biológica que define o sexo: macho, fêmea, homem e mulher, e as implicâncias sociais que
participam da construção dos gêneros, sobretudo sobre o comportamento devido a estes,
delimitados socialmente.
196

Simone de Beauvoir (1970), bem reparou nesse ideal feminino, em que as relações entre
o biológico e o cultural tornam-se aparatos na construção do gênero feminino, de modo que nos
tornamos mulher mediante escolhas definidas pelo masculino. Por mais que soe negativamente
para os leitores da Bíblia por viés radical e fundamentalista, essa ideia da construção social dos
gêneros, discussões das quais não se pode negar a evidência de que se aprende a ser mulher
socialmente, nos discursos constituídos pelos pais, pela escola e pelas comunidades e demais
espaços aos quais vamos tendo acesso ao longo de nossa vida.
É fato, que ainda hoje, ser “do gênero feminino”, implica em saber que nem todos os
espaços nos são permitidos em muitas culturas e se são, não são bem vistos ou adequados a
todas as mulheres. Do contrário, os homens são livres para transitarem por todos estes espaços
e usam essa liberdade para definir o que pode ser feito por eles, homens, mas não pelas
mulheres.
Desse modo, o olhar feminino às personagens bíblicas, provoca uma sensação de
similaridade, obviamente, respeitando que os tempos e a implicância deste, nos tipos de
dominação ou controle imposto às personagens bíblicas vão diferir. Mas é nesse contexto que
as narrativas podem ser reinterpretadas, ressignificadas, quando conseguimos reconhecer que
as personagens são muito próximas das nossas experiências ou as de nosso mundo real. É como
se elas deixassem de ser ficcionais e se tornassem parte da nossa história. O feminino seja na
ficção ou na vida real tem passado por esses processos de construção do gênero.
Segundo Heloisa Buarque de Almeida, professora pesquisadora de Antropologia na
USP (Universidade de São Paulo), o processo de naturalização de violações de direitos, que
desde sempre foram legitimadas pelas instituições, começando de coisas aparentes como a
contenção de emoção para o masculino e o cultivo da feminilidade, da fragilidade da mulher,
delimitam lugares fixos aos gêneros. A delimitação desses lugares permite normas que agem
como fortes barreiras para a efetivação de direitos, e em pior caso, traz a um dos gêneros, no
caso do feminino a coibição, a submissão desta que é vista como mais frágil, em relação ao
masculino instigado a ter mais liberdade, a ter mais força e liberdade de transitar por demais
espaços sociais do que a mulher. Ela afirma que:

A construção de comportamentos legitimados socialmente para homens e


mulheres cria e perpetua espaços para que as violências aconteçam sempre
que uma pessoa não se encaixa nos padrões esperados. Diferenças, assim, são
transformadas em desigualdades e não em pluralidade. (ALMEIDA, 2013,
sem página.) 45

45
Disponível em https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/cultura-e-raizes-da-violencia/#
197

Nessa divisão dos papéis do gênero sem a compreensão que estamos gerando muitas
vezes a desigualdades, as relações de poder que são construídas junto aos papéis associados ao
gênero masculino e feminino, leva à negação de direitos e diferentes níveis de tolerância social
à violência. De modo que, O “Não pode” começa nas coisas simples como os tipos de
brincadeiras que as meninas podem brincar, objetos, brinquedos, as cores adequadas, a
linguagem, as palavras que podem ser ditas, atividades que podem ser realizadas. Antes era
proibido assoviar, pois isso faziam os machos, andar de bicicleta, pois retirava a honra da
menina, todas essas crenças permeiam o imaginário e definem essas e outras atividades
marcadas pelo “não pode”.
Depois o “não pode” se estende a abrir mão de amizades, de posturas que são
importantes para a mulher enquanto sujeito, abrir mão de frequentar certos lugares que a mulher
gostaria de frequentar, desempenhar papeis sociais, profissões ditas masculinas sem sofrer
preconceitos, e para fugir desses desconfortos que somos levadas a assumir determinadas
posturas que produzem muitas vezes, desacordo entre a vontade do “eu” e as imposições sociais.
Estas proibições estão ligadas as gerações e implicam em alterações a cada época, mudanças
numa relação tempo-espaço do que pode ou não pode para o feminino, porém, vão ficando mais
acirradas, à medida que a menina vai crescendo e ganhando consciência do seu “eu, de sua
subjetividade. À medida que alguns (pre)conceitos vão ganhando espaços nas determinações
dos comportamentos dos gêneros, vão se estabelecendo as diferenças no modo de criação do
masculino e do feminino, de maneira que, desde cedo, os meninos passam a ser incentivados a
ter mais liberdade, autonomia, conhecimento que os desenvolvem na perspectiva de buscar, ter
e utilizar o poder, a autoconfiança. Em contraponto, as mulheres são levadas a serem
comedidas, acompanhadas em suas decisões, o que implica em não desenvolver do mesmo
modo a autoconfiança, a autonomia que as levariam a tomar decisões por si só.
Assim, no mundo do texto bíblico, Débora, Jael e Ester, situadas no Primeiro
Testamento, em meio a tantas outras mulheres, viveram nesse espaço porque elas são atípicas
ao modelo do comportamento feminino desse período. As personagens femininas, desde Eva,
são definidas pela sua condição biológica como “seres que possuem úteros e toda aparelhagem
necessária para a procriação”. O valor das mulheres estava em dar filhos, na capacidade de
gerar, para assim ter um lugar, um papel na sociedade patriarcal em que os homens dominavam
as mulheres (LAFFEY, 1994, p. 40).
O papel de ser mãe que se relacionava ao verbo cuidar, proteger, se estendia para cuidar
do marido, de toda a casa, do lar e até dos outros e do mundo. Há sempre implícita a ideia de
198

que o feminino é responsável por cuidar, proteger, preparar os espaços para condicionar o
homem, a ser, a ir, a ousar. Segundo Mathews (2015, p. 124), o subdesenvolvimento, a negação
do “eu”, subestima a capacidade própria de ser e de se exercer em plenitude, o feminino
autêntico, as verdadeiras características enquanto pessoa, que não está condicionada ao gênero
que esta tem. Se tomarmos as atitudes de alguns personagens como Sara, por exemplo, ela cuida
de dar filhos a Abraão, mesmo sendo estéril, culpa-se e cede sua serva Agar para parir um filho
que seria como se fosse dela (Sara) e de Abraão (GÊNESIS 16,18). Ana é outra personagem
que vive em constante depressão por não ter filhos, e quando tem, o entrega ao templo para que
ele seja um grande sacerdote (1SAMUEL 4). Em sua maioria, as personagens bíblicas, vivem
as limitações de suas capacidades de ser além de esposas e mães, entretanto, com um olhar
atento, vamos percebendo suas manifestações buscando romper esse “não pode social” que lhes
assegura um controle e uma submissão desmedida, bloqueando qualquer manifestação de
empoderamento.
Débora, Jael, Ester, Maria, Madalena e Dorcas, não são levadas por esse “Não pode”
que limita as ações femininas e também não são apresentadas como mães de ninguém
importante. Aliás, essa informação o narrador nem a traz. Nas seis narrativas bíblicas que
abordam as seis personagens femininas analisadas, há traços em comum, mesmo estando
situadas em diferentes contextos, e numa relação tempo-espaços, nas suas constituições dentro
do texto. Exceto Maria mãe de Jesus, as demais não são apresentadas como mães.
É preciso atentar para a constituição das narrativas bíblicas, em que estas personagens
se constituem e ressignificá-la. Convém analisarmos a constituição dessas personagens, quanto
as suas formas dentro do texto, levando em consideração os elementos constitutivos da
identidade pela linguagem, as escolhas do narrador, para construir cada uma delas. Assim, as
personagens serão analisadas, sendo primeiro as três personagens do Primeiro Testamento, para
em seguida analisarmos as três do Segundo Testamento.
Observamos que para a constituição dos personagens masculinos, a genealogia é de
fundamental importância para que conheçamos sua origem, descendência, a linhagem de sua
família. Eles aparecem, a partir de Adão, na genealogia deste, gênero em que o narrador
apresenta os nomes dos antepassados, escolhendo os nomes que serão destacados, e dentro dos
destacados ainda se retira aquele que terá sua narrativa, por suas ações estarem diretamente
ligadas a continuidade da história da humanidade e mais especificamente, da história da nação
israelita. Na genealogia de Adão, ganha destaque Enoque, Matusalém, Lameque e Noé, que
será o personagem que desenvolverá o enredo seguinte ao de Adão. Assim segue-se num
processo continuo de retomadas, a partir sempre do masculino. De Abraão em diante, começa
199

a organização do povo judeu. Essa será uma característica constante nas narrativas bíblicas que
o sucede, pois trará o foco nos personagens importantes para a história da nação, para a
continuidade das gerações oriundas deste Patriarca.
Os textos são marcados pelos nomes dos personagens como título ou resumo do que
será narrado, e somente dentro do texto ele começa a ser enfocado pelas ações, pelas descrições
do caráter ou do físico, das roupas e caracteriza-se muito mais pelas inferências, as
possibilidades que delineia um determinado personagem, levando o leitor a perceber quem
protagoniza a história. Carneiro (2018) diz que o narrador deixa por conta do leitor, levando-o
a compreender os rudimentos que ele tem em posse para delinear as personagens de maneira a
diferenciar quem é a protagonista ou antagonista: “O narrador faz de tudo para nos colocar ao
lado de quem ele ambiciona e para abandonarmos quem ele quer que seja abandonado”.
(CARNEIRO 2018 p.247). É também o que diz Alter (2007, p. 127) sobre como o narrador
bíblico vai delineando os personagens:

(...) há uma escala ascendente (quanto a explicitação e à certeza) de meios para


a comunicação de informação sobre as motivações, as atitudes e o caráter
moral dos personagens. Sua índole pode ser revelada pelo relato de ações, da
aparências, dos gestos, da postura e da roupa que usam; por intermédio dos
comentários de outros personagens; pelo discurso direto, pelo monólogo
narrado ou pelo monólogo interior; ou ainda pelas afirmações do narrador
sobre o modo de ser e as intenções dos personagens, que podem ser feitas de
maneira categórica ou motivada pelo contexto.

Essa é uma característica percebida por diversos autores nas narrativas bíblicas, como
também coloca Auerbach (2011), o narrador bíblico usa como recurso literário esse jogo de
ocultar e revelar detalhes de forma comedida, à medida que delineia os personagens. Assim são
constituídos os próprios seres humanos com possibilidade de compreendê-los em seus detalhes,
em sua profundidade, a partir de suas ações. Entretanto, nenhum desses autores apresentou
análises às personagens femininas.
Nesse contexto, observamos que há menos informações sobre as personagens estudadas,
menos investimento em sua caracterização do que no caso dos personagens masculinos,
sobretudo, porque elas não são apresentadas, em sua maioria, em genealogias, nem em títulos,
salvo as mulheres de homens importantes, cuja presença, era determinante para continuidade
da história desse homem.
Outra questão, diz respeito aos cargos, as profissões. As mulheres sempre restritas ao
contexto doméstico, não participavam de atividades fora deste, e as restrições tornaram-se
200

maior no período pós-exílio. No antigo Israel, havia as profetisas, as parteiras. No Primeiro


Testamento, as altas posições desde a autoridade religiosa como sacerdotes e levitas, as
autoridades civis como reis, juízes e oficiais, generais, capitães, os guerreiros e heróis, ou seja,
todas as lideranças eram exercidas pelo masculino, cargos eram ocupados exclusivamente por
homens. No Segundo Testamento, poucas comerciantes.
Desse modo, as personagens que destacamos se tornam exceção também nesse aspecto.
Assim categorizamos Débora, Jael e Ester, em autoridades civil-religiosa, guerreira-heroína,
autoridade monárquica, respectivamente. Como afirma Brenner (2001, pag. 11):

Não somente em Israel, mas também em outras sociedades da época, as


posições de poder pertenciam aos homens sábios, sendo assim os anciãos que
regiam a liderança como juízes administradores, líderes militares e religiosos.
Com a instituição da monarquia posteriormente a figura do rei assume a
posição no topo da hierarquia social.

Podemos perceber que essas três mulheres são notáveis, pois seu protagonismo se dá
pelos mesmos viés que o masculino, ocupando cargos importantes, são líderes que se
constituem ou são constituídas por suas ações, nos espaços marcados pelas batalhas e conflitos
civis e religiosos, espaços também demarcado pela autoridade masculina que se concretiza e
submete as mulheres a essa autoridade. Assim, essas mulheres se impõem e têm seus papeis
sociais definidos a partir do homem e das instituições patriarcais como a família, o clã e o
templo, elas extrapolam as regras impostas ao feminino e tornam-se novo modelo de “ser
mulher”. Medir o comportamento dessas mulheres e o seu protagonismo no mesmo viés das
ações que só homens estariam autorizados a realizar, não significa apenas que eles são para
estas personagens o padrão, mas que elas são capazes de fazer as mesmas ações que eles, porém
não do mesmo jeito. Elas têm um modo particular de ser. São mulheres que se tornam
representações de um feminino que não se encaixa nos perfis traçados pelas sociedades
patriarcais.
No Primeiro Testamento, é preciso atentar para as estratégias que o autor utiliza para a
formação da personagem feminina. O gênero era o primeiro elemento definidor das identidades,
pois a partir dele eram definidos os demais critérios que contribuem para uma identidade
legitimada. Assim, sendo mulher, importa a nacionalidade, a família, se ela era solteira,
importava saber a casa do pai, o nome e a origem dele, se casada, o nome do marido e ainda se
tinham sido agraciados com a maternidade. São eleitos como elementos importantes para a
identidade de um judeu, o seu nome e o significado, a identidade nacional, de qual tribo, se é
201

estrangeiro, de como o sujeito se relaciona com sua nação, como a pátria é amada e respeitada,
na valorização de suas práticas e crenças. Ser de uma etnia não israelita consiste no desprezo,
na ideia de que os estrangeiros, os gentios, são impuros e representam o pecado e a abominação
do povo, trazendo consequências para a nação. A etnia também garante o status social e a
validação do prestígio.
Compreendemos que cada personagem tem sua narrativa, em tempos e contextos
diversos, porém Débora e Jael estão no mesmo contexto, enquanto Ester faz parte de outra
narrativa, de outro tempo. Entretanto tais narrativas terão diferenças consideráveis e
semelhanças também que as tornarão muito específicas, pelas intenções do narrador e pelas
ações das personagens.
A narrativa de Débora e Jael acontece em dois capítulos, 4 e 5 de Números. O capítulo
4 é uma epopeia, a trajetória de um herói, no caso de heroínas como se confirma no capítulo 5,
tem-se a retomada da história, na perspectiva do Cântico de Débora. Em ambos, a intenção é
contar e cantar feitos heroicos, gênero comum nos livros Deuteronomista, atrelando-se a uma
necessidade de se afirmar o passado heroico do Israel bíblico. A narrativa de Ester está posta
em um livro com seu nome e aborda a vida judaica num período de dominação estrangeira, em
especial quando os judeus vivem fora de Judá, segundo Ferreira, (2013).
Os narradores também se diferem atendendo o estilo das narrativas. Mas há uma
característica que lhe é comun: do ponto de vista narrativo eles são oniscientes, sabem de todos
os detalhes que lhes interessam contar. Utilizam-se de alternância entre os discursos diretos
para apresentar alguns diálogos fundamentais na compreensão dos textos e nas constituições
das personagens. Eles também dão liberdade para que as personagens se apresentem em suas
ações, enfrentem as consequências de seus atos, utilizando-se de estratégias para que, ao mesmo
tempo que tentam apresentar as personagens como comuns, moldadas, adequadas aos costumes,
eles as permitem ir aos poucos mostrando seus valores, sua extensão dentro do texto. É como
coloca Alter (2017, p. 136):

Todo tipo humano deve ter a liberdade de lutar com seu destino por seus
próprios atos e palavras. Do ponto de vista formal, isso significa que o escritor
deve permitir que cada personagem se manifeste e se revele pelo diálogo e
também, é claro, pela ação, livre da imposição de um aparato intrusivo de
julgamento e interpretação autoral. O narrador hebreu, não se mistura
abertamente com os personagens que apresenta, assim como Deus cria em
cada personalidade humana um terrível emaranhado de intenções, emoções e
maquinações que a linguagem capta com a sua rede transparente e que
compete a cada indivíduo extricar no prazo efêmero de uma vida.
202

Por essa razão, é preciso ler atento as estratégias literárias, os recursos linguísticos e
técnicas utilizadas para a construção das personagens dentro do texto. É justamente pela
linguagem que o narrador vai mantendo a narrativa atrelada à cultura, seguindo os moldes
sociais que se encarrega de perpetuar os modelos de um feminino ligado ao masculino,
apresentada, a partir de uma figura masculina, e “distinção entre os sexos que se dá tanto por
critérios biológicos como pelos sociais. Tudo é definido, as vestimentas, as profissões, a
conduta, os comportamentos e nos são conhecidos pela voz e fala do narrador. (LAFEY1994,
p. 32). Assim, as narrativas ou trechos narrativos trazem pistas de que o narrador foi induzido
a escolher novas estratégias narrativas que o levasse a manter tradição, dando conta das
personagens que se insurgem às demais. É como se o narrador estivesse diante de um fato que
não pudesse alterar: o herói, o protagonista da vez não é um homem, mas uma mulher, levando
em consideração que as narrativas retratam os feitos e os heróis que constituem o Israel bíblico.
E isso não é algo comum. O narrador se utiliza de artimanhas da linguagem para convocar os
leitores/intérpretes a preencher as lacunas que ele vai deixando, recurso que nos permite
reconhecer que ele está nos oferecendo caminhos interpretativos para compreender as
protagonistas femininas, além do narrado, mas pela amplitude das ações dessas personagens.
Observamos que o narrador se utiliza de quatro critérios para constituir as personagens
moldando-as, porém não tem aparentemente a intenção de pensar a identidade destas. Assim,
identificamos os seguintes critérios: apresentação das personagens no texto (o modo como elas
são introduzidas nas narrativas/descrição, caracterização); a nacionalidade (nascimento,
pertencimento, etnia) e a implicância dessa para a narrativa; o nome das personagens e o
significado destes; e por último, o conflito (necessidade imediata) a situação que as levam a
agirem de modo diferente. As personagens serão aqui apresentadas na ordem de suas narrativas
na Bíblia. Assim, para melhor compreensão das nossas ideias, optamos por analisá-las de
acordo com cada critério estabelecido, como vemos nos subtópicos seguintes.

4.2.1 A apresentação de Débora, Jael e Ester no texto bíblico

Começando por Débora, o relato em que ela aparece está em Juízes (4,4-5) que diz:
“Débora, profetisa, mulher de Lapidote, julgava a Israel naquele tempo. Ela atendia debaixo da
palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na região montanhosa de Efraim; e os filhos de Israel
subiam a ela a juízo.”. O narrador, após falar sobre a servidão do Rei Jabim, de Canaã, inicia
o texto dando sequência a uma história cíclica, pois já vem sendo narrada, descrevendo as
contínuas situações vivenciadas, bem marcada pela presença do verbo: “tornaram”. “E os filhos
203

de Israel tornaram a fazer o que era mau perante ao Senhor”. Segue-se o texto até o versículo
4, em que após falar do castigo de Deus para o povo, depois da morte do antigo juiz.
Sob o subtítulo: “Débora e Baraque livram-nos”, vem o texto introduzindo a
personagem: “Débora, profetisa, mulher de Lapidote, julgava a Israel naquele tempo. Ela
atendia debaixo da palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na região montanhosa de Efraim;
e os filhos de Israel subiam a ela a juízo” (JUIZES 4, 4). Notamos que Débora é apresentada
sem nenhuma prévia, e parecendo estar conversando com um leitor que vem acompanhando os
fatos, o narrador deixa por conta deste, a junção das informações contidas, mas já impactantes.
O assíndeto que inicia o verso alivia o acontecimento da personagem ter sido introduzida sem
muita ênfase no texto já em adiantamento, porque enfatiza ou chama a atenção para a
personagem: “Débora, profetisa, mulher de Lapidote, julgava (...)”. A escolha do tempo verbal,
pretérito imperfeito, dos verbos de ação referentes a Débora “jugava, atendia”, e “subiam”,
referindo-se aos filhos de Israel, remete-nos que não é de agora que essas coisas estavam
acontecendo: há um certo tempo, existia uma mulher, por nome Débora, e esta era profetisa,
mulher de Lapidote, e que julgava a Israel em um determinado tempo, “naquele tempo”, tempo
que não havia reis mas juízes que eram homens. Havia um espaço onde ela atendia os que a
procurava, “nas palmeiras de Débora”. As palmeiras devia ser um lugar sagrado, podia ser
árvores ou ainda um templo em que Débora jugava a todos, das diversas tribos.
Apesar de ambígua, a expressão: mulher de “Lapidote” (‫ מלוטש‬- tochas acesas no
hebraico), pode ser entendida como um adjetivo ou um substantivo próprio. Pode ser mulher de
brilho ou de fogo, ou mulher ardente, características atribuídas a Débora. Mas como não é
comum esse tipo de caracterização dentro das narrativas, acreditamos que se trata do marido de
Débora, já que era o modo mais comum de apresentar uma personagem feminina, indicando de
quem ela era filha ou esposa de um homem importante. Entretanto, a expressão fica
propositalmente em sentido duplo.
Concomitante, a apresentação de Jael também se dá de forma inusitada. Se Débora
aparece de repente entre os juízes de Israel, o que dizer da moça nômade, a “bendita Jael”, como
é considerada por Débora e Baraque no Cântico. Aliás, a batalha foi imortalizada nos versos,
no Cântico em louvor aos heróis que livraram a nação. É nele que se sabe mais sobre como se
deu a batalha e sobre a atuação das personagens. É através do Cântico de Débora 46 que sabemos
de mais detalhes do que dentro da narrativa.

46
Provavelmente tenha sido escrito por Débora, como era de costume, os heróis que venciam guerras pela nação,
compunha um hino e cânticos. O canto de Débora é um dos textos mais antigos da Bíblia e trata da aliança de Deus
com seu povo. (Bíblia Sagrada -nota de rodapé 5.1 referente ao capítulo 5 de juízes).
204

Mas a narrativa em que Jael aparece tem um título “Jael mata a Sísera”. Parece ser
chegado o momento do desfecho do enredo, e o modo como o narrador antecipa o desfecho,
enfatiza o cumprimento da profecia de Débora, quando esta convoca e incita o povo a batalhar,
sob o comando de Baraque, dando-lhes o oráculo, a profecia mandada por Deus pela boca de
Débora. A profecia dizia que Deus daria o exército e seu comandante a Sísera nas mãos de
Baraque, porém a morte do comandante inimigo seria por mãos de uma mulher. De modo que
o título do texto, prepara-nos para esse momento. Até então se infere que a mulher vencedora
seria Débora, mas Jael aparece como se encenassem uma peça. Jael entra providencialmente
em cena. Sua apresentação no texto se dá sempre seguida da expressão “mulher de Héber,
Queneu”. Ficamos sabendo sua origem através do título de seu marido, como também de que
esse era amigo do rei Jabim, portanto a favor de Sísera.
Desse modo, o narrador dá uma pausa nas cenas com Debora e Baraque e traz primeiro
a fuga de Sísera, após seu exército ter sido derrotado, conforme Débora profetizou. Em Juízes
(4,17-18), o narrador diz que:

Mas Baraque perseguiu os carros e os exércitos até Harosete-Hagoim; e todo


o exército de Sísera caiu a fio de espada, sem escapar nem sequer um. Porém
Sísera fugiu a pé para a tenda de Jael, mulher de Héber, queneu; porquanto
havia paz entre Jabim, rei de Hazor, e a casa de Héber, queneu. Saindo Jael ao
encontro de Sísera, disse-lhe: Entra, senhor meu, entra na minha tenda, não
temas.

É desse modo que Jael é introduzida no texto: “saindo Jael ao encontro de Sísera”. Há
uma ligeira relação com a ideia de um destino traçado pelo oráculo, Jael saindo ao encontro de
sua sina, uma tentativa de o narrador nos fazer crer na predestinação do evento. Uma mulher
que surge no meio da fuga do general, o encontra, o cativa, recebe em casa e lhe trata bem,
ganhando sua confiança, hospedando-o com denodo, oferecendo o melhor de sua cabana. Se
não tivesse havido antecipação sobre o desfecho do enredo no título, a morte de Sísera seria um
elemento totalmente surpresa para o leitor que é levado o tempo todo pelo narrador e pelas
ações de Jael nos faz acreditar que Sísera havia achado refúgio e salvação na casa de aliados.
Entretanto, é nesse momento que para a vitória da nação de Débora, Jael sai do anonimato para
ter seu nome na galeria dos heróis. Vejamos no Cântico de Débora: (Jz. 5, 24-27):

Bendita seja sobre as mulheres Jael, mulher de Héber, o queneu; bendita seja
sobre as mulheres que vivem em tendas. Água pediu ele, leite lhe deu ela; em
taça de príncipes lhe ofereceu nata. À estaca estendeu a mão e, ao maço dos
trabalhadores, a direita; e deu o golpe em Sísera, rachou-lhe a cabeça, furou e
205

traspassou-lhe as fontes. Aos pés dela se encurvou, caiu e ficou estirado; a


seus pés se encurvou e caiu; onde se encurvou, ali caiu morto.

Jael é apresentada pelo narrador como a mulher de Héber, mas este mostra seus feitos,
mesmo de forma diferente de Débora. No trecho acima, Débora apresenta Jael com mais ênfase
e reforça sua atitude de coragem e de extrema importância para sua nação. Jael é o cumprimento
do oráculo. É assim que ela é apresentada.
Já apresentação de Ester, tem mais destaque e são acrescentadas características físicas
o que é raro para os narradores bíblicos. O fato de Ester ter um livro com seu nome, apesar de
não se saber ao certo quem escreveu esse livro, não serve de pista para ter sido ela que o
escreveu. Não existe no texto nenhum aspecto que revele a pessoalidade, os traços de uma
escrita feminina, levando em consideração que sua vida e feitos não são o foco da narrativa e
sim uma história de redenção e livramento do povo judeu, e a instituição de uma festa cultural
e religiosa desse povo ( A origem de Purim47, um feriado judeu ou a festa das Sortes). Vamos
ao texto de sua apresentação conforme Ester (2, 5-9):

Ora, na cidadela de Susã havia certo homem judeu, benjamita, chamado


Mordecai, filho de Jair, filho de Simei, filho de Quis, que fora transportado de
Jerusalém com os exilados que foram deportados com Jeconias, rei de Judá, a
quem Nabucodonosor, rei da Babilônia, havia transportado. Ele criara a
Hadassa, que é Ester, filha de seu tio, a qual não tinha pai nem mãe; e era
jovem bela, de boa aparência e formosura. Tendo-lhe morrido o pai e a mãe,
Mordecai a tomara por filha. Em se divulgando, pois, o mandado do rei e a
sua lei, ao serem ajuntadas muitas moças na cidadela de Susã, sob as vistas de
Hegai, levaram também Ester à casa do rei, sob os cuidados de Hegai, guarda
das mulheres. A moça lhe pareceu formosa e alcançou favor perante ele; pelo
que se apressou em dar-lhe os unguentos e os devidos alimentos, como
também sete jovens escolhidas da casa do rei; e a fez passar com as suas jovens
para os melhores aposentos da casa das mulheres.

Há em primeiro lugar a apresentação de Mordecai, e sua ação que define o grau de


relação com Ester. Através do pronome “ele”, percebemos o foco da narrativa. Em seguida é
que o narrador apresenta Hadassa, a sobrinha órfã de Mardoqueu. É nesse contexto que Ester
entra no enredo, a partir do capítulo 2 sob o título “Ester é feita rainha”. Então conhecemos
Ester, Hadassa, a filha adotiva de Mordecai. Ester é seu nome Babilônico. Primeiro conhecemos
seu pai adotivo, pois o narrador descreve sua nacionalidade, judeu, da tribo de Benjamim, seu
Bisavô Jair, avô Simei e o pai Quis, sua condição de exilado, vindo de Jerusalém para o exílio

47
O nome Purim deriva da palavra “pur” — sorteio em persa —, pelo qual Hamã estabeleceu a data para aniquilar
todo o povo judeu.
206

em Susã. De Ester, o narrador diz que ela era órfã de pai e mãe, sendo seu pai tio de Mordecai,
dando algumas características físicas de Ester: era jovem bela, de boa aparência e formosura.
(ESTER 2,7).
É de fundamental importância ressaltar a beleza feminina nos contextos do Primeiro
Testamento. A beleza da mulher fundamenta a importância desta para o marido. “Agradar, cair
no agrado”, a partir da exposição do corpo, revela a mulher como uma boa propriedade
adquirida. Reforçar essa beleza e a influência desta serve até para justificar atitudes masculinas
com relação a sua mulher, ou até mesmo outros homens. As matriarcas eram destacadas pela
beleza, sobretudo Sara, para justificar a cobiça do rei do Egito e a negociação de Abraão com
ela, “que dissesse ser sua irmã”, para não ser morto pelo rei que não resistiria a sua beleza.
Rebeca era mui bela, Raquel mais que sua irmã Leia, que por ter apenas olhos bonitos,
justificava-se o desprezo de Jacó e o seu amor por Raquel que era toda bela. Depois das
matriarcas, esta questão da beleza só volta a ser exaltada em Ester.
O narrador faz questão de ressaltar essas características na moça, e acreditamos que seja
para dar-nos as pistas, criarmos um certo suspense sobre a possibilidade de Ester, encaixar-se
nos critérios deste concurso. A beleza de Ester em determinados momentos, lhe garantirá
abertura de alguns espaços, pela sua beleza, juventude e graça, segundo o narrador ia se
sobressaindo e depois dos tratamentos em seis meses, cumpridos ritos de beleza, as moças
começaram a ser levadas a presença do Rei Assuero. Ester (2, 16):

Assim, foi levada Ester ao rei Assuero, à casa real, no décimo mês, que é o
mês de tebete, no sétimo ano do seu reinado. O rei amou a Ester mais do que
a todas as mulheres, e ela alcançou perante ele favor e benevolência mais do
que todas as virgens; o rei pôs-lhe na cabeça a coroa real e a fez rainha em
lugar de Vasti.

Ester é uma moça bela, jovem, formosa que alcança êxito diante das demais virgens
sendo levada da condição de órfã à rainha da Pérsia. Nesse primeiro momento a intenção do
narrador em fazer o contraponto entre Ester e Vastir, Ester e as demais mulheres nas mesmas
condições que ela, torna-se muito evidente: “o rei amou a Ester mais do que a todas as
mulheres”. O narrador vai revelar a principal característica de Ester que parece agradar e moldar
a construção do feminino desejado por toda aquela conjuntura:

Então, o rei deu um grande banquete a todos os seus príncipes e aos seus
servos; era o banquete de Ester; concedeu alívio às províncias e fez presentes
segundo a generosidade real. Quando, pela segunda vez, se reuniram as
207

virgens, Mordecai estava assentado à porta do rei. Ester não havia declarado
ainda a sua linhagem e o seu povo, como Mordecai lhe ordenara; porque Ester
cumpria o mandado de Mordecai como quando a criava.

Segue-se a narrativa com o recolhimento de Ester e as demais virgens da província para


que fossem levadas a primeira casa das mulheres, conforme Ester (2, 8 -10):

Em se divulgando, pois, o mandado do rei e a sua lei, ao serem ajuntadas


muitas moças na cidadela de Susã, sob as vistas de Hegai, levaram também
Ester à casa do rei, sob os cuidados de Hegai, guarda das mulheres. A moça
lhe pareceu formosa e alcançou favor perante ele; pelo que se apressou em
dar-lhe os unguentos e os devidos alimentos, como também sete jovens
escolhidas da casa do rei; e a fez passar com as suas jovens para os melhores
aposentos da casa das mulheres.

Vemos então que o narrador destaca que a beleza natural, a boa presença de Ester
encanta a todos, uma vez que fora escolhida pelos que tratavam as mulheres com diferença das
demais. Segundo a cultura do oriente e daquela região da Pérsia, principalmente, as mulheres
do rei ainda virgem ficavam na primeira casa, a disposição do rei, e somente quando fossem
desvirginadas eram levadas a segunda casa, onde se juntavam aos filhos do Rei e as suas esposas
e só podiam sair de lá quando o rei as chamasse pelo nome. Mesmo que não fossem solicitadas
pelo rei, essas mulheres não seriam mais de nenhum outro homem e ficariam para sempre no
harém do rei. Ester, porém, pela sua beleza, juventude e graça, se sobressai e, depois dos
tratamentos em seis meses, cumpridos ritos de beleza, as moças começaram a ser levadas a
presença do Rei Assuero. Ester (2, 16): Assim,

foi levada Ester ao rei Assuero, à casa real, no décimo mês, que é o mês de
tebete, no sétimo ano do seu reinado. O rei amou a Ester mais do que a todas
as mulheres, e ela alcançou perante ele favor e benevolência mais do que todas
as virgens; o rei pôs-lhe na cabeça a coroa real e a fez rainha em lugar de Vasti.
(ESTER, 2 – 16, p. 211).

Ester é uma mulher formosa que alcança êxito diante das demais virgem, sendo levada
da condição de órfã à rainha da Pérsia. Nesse primeiro momento a intenção do narrador em
fazer o contraponto entre Ester e Vastir, Ester e as demais mulheres nas mesmas condições que
ela, torna-se muito evidente: “o rei amou a Ester mais do que” e em seguida vem a nossa
confirmação “do que a todas as mulheres” Ela alcança o lugar de Rainha. Assim, o narrador
208

revela a principal característica de Ester que parece agradar e moldar a construção do feminino
desejado por toda aquela conjuntura:

Então, o rei deu um grande banquete a todos os seus príncipes e aos seus
servos; era o banquete de Ester; concedeu alívio às províncias e fez presentes
segundo a generosidade real. Quando, pela segunda vez, se reuniram as
virgens, Mordecai estava assentado à porta do rei. Ester não havia declarado
ainda a sua linhagem e o seu povo, como Mordecai lhe ordenara; porque Ester
cumpria o mandado de Mordecai como quando a criava (ESTER, 2 – 16, p.
211)..

Percebemos que as três personagens vão sendo construídas no imaginário do leitor, à


medida que o narrador as introduz dentro do texto, de modo discreto, mas intenso, seguindo
estratégias literárias que fazem elas ganhar espaço, crescendo dentro da narrativa, ao mesmo
tempo em que o enredo vai tomando forma, numa proporção ajustada para que o leitor possa ir
se acomodando a trama, ora presumindo, ora se surpreendendo com ela. O narrador tem o
domínio do que pretende revelar, o que deseja esconder, levando as personagens por veredas
que lhes permitem revelar-se, mesmo quando parece não ser a intenção dele, favorecendo a
interpretação das ações das personagens.
As personagens foram levadas a desafios desde do repensar “o quem eu sou”, a definir
sua identificação com a pátria, com a desconstrução de seus papeis sociais e estas vão nos
inquietar, justamente porque, em alguns momentos, suas reações são imprevisíveis, frente à
estes desafios e é isto que as tornam protagonistas destas narrativas. Alter (2007, p, 43), nos diz
que essas personagens nos fazem refletir sobre o nosso próprio caráter, pois se comportam
diferentemente das demais "desfrutando ou suportando as consequências da liberdade humana".
Os elementos que constituem fortemente a identidade das personagens até aqui
apresentadas, são as origens pessoais dessas mulheres. Débora e Jael são esposas, mulheres
casadas, não sabemos se são mães e Ester é uma moça virgem, órfã, mas filha adotiva de
Mordecai. Este último homem tem forte influência sobre Ester, até quando esta já se tornou
esposa do Rei. Já Lapidote e Héber, não são enfatizados no texto. Sabemos pouco sobre essa
relação. Ester aparece sempre como uma filha grata, obediente, que guarda junto com seu pai
um segredo, sua identidade nacional. E este é o segundo elemento que analisamos como muito
importante na definição e constituição das personagens: sua identidade nacional.
209

4.2.2 A nacionalidade de Débora, Jael e Ester no texto bíblico

Para a narrativa, a tribo ou nação dessas mulheres influencia no desenrolar das ações e
no prestígio que estas mulheres podem ter, sobretudo, como as atitudes delas em relação a nação
israelita, favorece a própria nação. Embora quando se trata de uma personagem feminina, o
narrador não se preocupa em narrar sua árvore genealógica, porque não é costume a mulher
nem sequer aparecer em genealogias, sua origem é lembrada quando convém ou, a partir do
homem a que se liga, sendo comum o narrador situar o território, o lugar de onde elas são, se
pertencentes ao povo judeu, pois isso é algo muito definidor, para a aceitação desta personagem.
Na narrativa de Juízes 4 e 5, em que aparece a vida de Débora, há uma relação simbólica
da identidade nacional do própria Israel com a narrativa dessa personagem. Zabatiero (2016)
faz uma relação desta personagem, no Cântico de Débora, como a constante luta de Israel (pré-
estado) em se emancipar contra os outros estados, construindo sua identidade, em oposição às
cidades-estados presentes no texto apenas na forma de “reis”, “reis de Canaã” (Juízes 5,19).
Essa relação está presente de forma simbólica em todo cântico, expressando a fundamentação
da identidade no critério da diferenciação entre o nós/eles, conforme vemos em Woodward
(20214, p. 40):

Um sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população


de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características)
em ao menos dois grupos opostos - nós/eles ... eu/outro. ... dão ordem à vida
social, sendo afirmados nas falas e nos rituais.

Essa relação se percebe no texto, nas constantes vezes que Débora faz essa relação do
que é o outro e o que lhe identifica nessa oposição. Assim como ressalta o Israel em detrimento
da outra nação, de como Deus se revela e salva o seu povo em detrimento de entregar a morte
outro. No cântico também temos a ideia de que o pertencimento se dá na entrega e pela defesa
da nação, uma vez que Débora separa os que participam da guerra e os que não participam,
mesmo sendo tribos não se tornam o nós. Jael, no entanto é incorporada no grupo, pela adesão
por Israel na batalha, quando mata Sísera. Assim, Débora é a figura da mulher emancipada, fora
dos domínios masculinos, seu conceito de maternidade é ampliado para um contexto social e
amplo, suas convocações a guerra visa a libertação do seu povo e unificação de todos pela causa
comum que é combater os inimigos. Ela se faz mãe de Israel, torna-se a figura da própria pátria
que protege, juga, cuida, mas convoca à luta. Nesse contexto, as tribos são vistas numa
perspectiva do todo, da ideia de uma nação, híbrida, mas que se une pelo bem comum e pela
210

honra de Javé como vimos em todo cântico de Débora. Ela exalta as tribos que participa e
pragueja as que não se une em prol da manutenção da liberdade da nação.
Nesse pensamento, diferente de Débora, que era israelita da tribo de Efraim e Ester
judia, Jael não pertencia a esses povos, mas aos queneus. Porém, enquanto seu marido tinha
aliança com Jabim, rei de Hazor e inimigo de Israel, Jael decide ser leal a este povo que nem
era seu, seguindo num caminho oposto a seu marido, gerando uma ideia de pertencimento.
Bauman (2005, p. 17) diz-nos que:

o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são


garantidos para toda vida, são bastantes negociáveis e revogáveis, e de que as
decisões que o próprio individuo toma, os caminhos que percorre, a maneira
como agem – e a determinação de se manter firme a tudo isso-são fatores
cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para identidade”. Em outras
palavras, a ideia de “ter uma identidade” não vai ocorrer as pessoas enquanto
o “pertencimento” continuar sendo seu destino, “uma condição sem
alternativa.

Jael não pertence a Israel, mas era uma mulher estrangeira e nômade, cujo marido era
aliado do rei inimigo. Agora é bendita por se aliar ao povo judeu, por definir-se contra os aliados
do seu marido. Bauman (2005) e Hall (2014) colocam que as bases sólidas e valores nos quais
antes o sujeito se apoiava, tendo a impressão de que a identidade era imutável, não mais se
sustenta, tendo em vista as inúmeras tentativas de identificação, de pertencimento serem
frustradas pelas diversidades de práticas discursivas que exigem múltiplas posições dos sujeitos
e em muitos casos se alinham ou se antagonizam.
Entretanto, as mulheres Bíblicas não são sujeitos modernos, nesses tempos, a identidade
se definia imutável, a partir do lugar de nascimento, do gênero, das relações sociais limitadas a
este gênero e em se tratando da mulher, sua identidade era uma construção, a partir das
definições do sistema e de instituições dos homens. Jael é uma mulher perspicaz, que se difere
de outras mulheres do seu tempo, mas idêntica em outras questões a nós, aos humanos e por
isso podem nos confrontar ou se identificar conosco. O ser diferente é benéfico, é “como
encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de
imediato, pois cada ação tem o ponto de vista do seu autor.” É o que nos diz Todorov (2009. p,
80). As diferenças das personagens da nossa personalidade ou modo de pensar ampliam
horizonte e enriquece nosso universo.
Voltando a identidade, a questão de se perceber por teorias modernas, a ideia de que a
identidade é um processo de construção, e que essas personagens revelam-se como fugas das
211

crenças legitimadas, dessas certezas até então incontestáveis, ecoa como a ideia de que, somente
agora podemos compreender que a identidade está sujeita a uma historicização e ligada a
processos de mudanças e transformações como aponta Hall (2014). Para Jael, seu lugar de
nascimento não é determinante para que ela se descubra e aceite-se enquanto tal. Bauman
(2005) quando faz uma ponte entre os elementos determinantes da antiguidade antes da
modernidade e durante este período, afirma que “nos estados pré-modernos, a identidade era
determinada pelo nascimento e assim proporcionavam poucas oportunidades para que surgisse
a questão do “quem sou?” (BAUMAN, 2005, p.55).
Neste contexto, Jael parece quebrar essa expectativa, pois ela se decide, pelo menos
temporariamente, a assumir a responsabilidade pela continuidade da história da nação israelita,
em detrimento dos acordos que podiam favorecer seu bem-estar com sua tribo, com seu marido,
com os possíveis aliados. Sua identidade se define, se movimenta, se desestabiliza e se acomoda
frente ao desafio e é modificada por essa situação de enfrentamento. Ela não aceita que a decisão
de seu marido prevaleça como se fosse dela, ou seja, não serve para ela o que ele decidiu.
Para Débora, esta identificação com sua terra, sua relação com a tribo é forte e tão
acirrada a lutar por ela, por seu território, tal qual os modelos masculinos, ela convoca a guerra,
ela impulsiona e encoraja ao enfrentamento. A identidade se dá nas práticas discursivas, no
interior do discurso e em algumas situações, seu processo de formação ou constituição se dá na
“repressão, como coloca Laclau (1990) apud (WOODWARD, 2014), o sujeito se afirma diante
daquilo que lhe ameaça”, na desejo de se assumir, de ser levada a constituir-se diante da
necessidade da ação. Débora diz em seu canto: “eu me levantei como mãe em Israel”. Ela se
constitui, não uma mãe nos moldes convencionais, mas como uma protetora, uma guia,
consultora para o povo.
Em Ester, há de início uma alienação em relação aos perigos que seu povo está correndo.
Ester vive intensas situações para quais não está antes preparada. Na condição de rainha, nos
moldes desenhado pelo narrador, de um rei dado às mulheres, que as tinha para ostentar e
escolhia a que vinha em sua presença, havia destituído a rainha por simplesmente se negar se
expor diante de seus convidados. Ester ainda observava o ambiente, estava diante de situações
que lhe exigia atitude muito pensadas para alcançar um espaço que ainda não era seu, pois sua
posição não lhe delegava autoridade, não tem a força de uma rainha com poderes. Aliás, ser
rainha nem sempre dava a mulher força e protagonismo. Apenas a rainha-mãe, status dado a
mãe do rei, tinha influência no reino, nas decisões do filho.
Ester é marcada por situações que lhe desestabiliza e exige que ele refaça a rota, é órfã,
estrangeira, cativa e servil em uma pátria que não é a sua. Através de Mordecai ela ganha
212

consciência de sua identidade étnica, de quem é, de sua nação e a grande responsabilidade que
tem, em defender seu povo, defender sua própria vida.
Desse modo, no Primeiro Testamento, há uma necessidade de validar a história do povo
judeus, da nação israelita, todo o contexto narrativo volta-se a reconstrução de um passado que
valida e constitui a grandeza da pátria. Para isso, o narrador e os personagens convergem para
garantir a identidade nacional desse povo. São heróis e heroínas que, segundo o narrador, na
direção divina, são usados para dar procedimento a história do povo descendente de Abraão.
Neste contexto, ressaltar a origem do personagem é fundamental, pois valida a posição
do sujeito dentro da conjuntura. Se é judeu, judia, valida o heroísmo do personagem que luta
pela sua pátria, nesse caso contra o outro, o estrangeiro. Porém se é estrangeiro, mas se alia, se
aceita as leis e práticas culturais do povo judeu, também gozará dos favores e será bendito nas
bênçãos destinadas a Israel. Woodward (2014, p. 26) afirma que: “os conflitos nacionais e
étnicos parecem ser caracterizados por tentativas de recuperar e reescrever a história”. É o que
também diz Bauman (2005, p. 26): “a ideia de “identidade nacional”, não foi naturalmente
gestada e incubada na experiência humana, não emergiu dessa experiência como um fato da
vida autoevidente”. A nação se vê ameaçada por alguma questão e, por isso, projeta suas ficções
para fundamentar a sua identidade.
Por essa razão Débora, Jael e Ester, são situadas como pertencentes as tribos de Israel
por naturalidade, no caso de Débora e Ester, e Jael, é estrangeira que se sentiu pertença. Já em
Ester, ela mesmo estando em condição de estrangeira no outro país, não perde a identidade com
seu povo, garantido todo tempo a constituição e perpetuação do povo judeu. É um recriar a
realidade, a partir da ideia que se tem enquanto nação.
Há nas três personagens formas distintas de identificação com seu povo e sua origem,
apesar de, culturalmente, uma mulher não precisaria ter tanta responsabilidade de defender seus
espaços, seu território, sua identidade. Elas precisavam de homens que o fizesse. É justamente
esse modo de ser, de se comportar no mundo, que as tornam diferentes, elas vão além do que
se espera, contestam, procuram meios para alcançar os fins que as movem a ser a diferença.

4.2.3 Os nomes das personagens e seus significados

Um outro ponto bastante característico dos narradores bíblicos está na ênfase que dão
ao significado dos nomes dos personagens. Isto está ligado a tradição do povo hebreu,
prosseguindo durante toda a história do povo judeu, a associação do nome a própria alma e
essência do ser. Nomear um filho é semelhante a uma arte ou a uma atitude profética que
213

assegura a trajetória do nomeado sobre a terra. Num artigo sobre mudança de nome, mudança
de destino, a pesquisadora judia Chana Weisberg afirma:

Os nomes são considerados muito significativos no Judaísmo. Seu nome


judaico é o canal pelo qual a vida chega a você vinda do Alto. Na verdade, os
cabalistas dizem que quando os pais dão nome a um filho, o destino daquela
criança está envolto na combinação das letras hebraicas que formam o nome.
Os sábios do Midrash recomendam que “deve-se dar a um filho o nome de um
justo, pois às vezes o nome influencia o comportamento da pessoa e seu
destino.” (Midrash Tanchuma, Haazinu 7).48

Como podemos ver, os textos bíblicos refletem a cultura nas diversas crenças que
compõem o comportamento religioso deste povo. Entretanto, essa significação é maior em torno
dos nomes masculinos. Não é comum na Bíblia, ser narrado ou descrito o nascimento das filhas
mulheres.
Em maioria, nas narrativas bíblicas, os filhos dos personagens são meninos e seus
nomes são dados na cerimônia de circuncisão (brit milá), pois é quando entram no pacto de
Abraão (Avraham Avinu). Esta é uma cultura do povo Hebreu, parte da tradição israelita,
mantida até mesmo no período do cativeiro do povo judeu: escolher os nomes de forma
cuidadosa e sagrada, afim de ser ético, coerente com os desígnios de Deus para aquele homem.
Sendo homens, os nomes de meninos são escolhidos ou por revelação divina, avisados por anjos
(João Batista, Jesus Cristo,) ou pelas circunstâncias em que nascem, revelando o estado de
espírito de sua mãe, pois são elas quem nomeiam seus filhos.
É de suma importância um nome judaico, pois está totalmente ligado aos caracteres,
seus traços particulares de caráter e os dons concedidos por Deus, a identidade do ser com sua
cultura judaica, a conexão com o espiritual, um vínculo entre a alma e o corpo e destes com
Deus. Relaciona-se também com o chamado espiritual, ou a missão da pessoa na terra. Não
existe separação, para os Hebreus, entre a pessoa e o nome, ou ainda entre a coisa e o dito sobre
a coisa (CARNEIRO 2018, p. 222). Os significados dos nomes têm a unidade entre a pessoa,
sua alma, seu destino e o divino. Desse modo a escolha do nome não pode ser aleatória, pois
ele também se dá numa atitude de fé, é profético, como se determinasse ou se já soubesse o
futuro da pessoa.
Percebemos que o mundo do texto bíblico está arraigado de elementos que evocam a
mentalidade semítica que estruturam a cultura, a língua, os símbolos e tradições do mundo

48
Disponível em https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/3516609/jewish/Mudana-de-Nome-Mudana-no-
Destino.htm
214

judaico-cristã. As narrativas bíblicas relembram, ascendem esses elementos e proporcionam ao


leitor a oportunidade de, não só conhecer o mundo do texto que nelas se revelam, mas
interpretá-lo, fazendo-o compreender tanto o mundo das personagens, como também as
próprias personagens como tipos humanos, desenhados pelo narrador, a partir do acervo cultural
que lhe subsidia. Os nomes no mundo do texto bíblico serão ressaltados, constantemente, como
aparato para compreender o modo de ser do personagem, como também seu posicionamento no
mundo, suas ações e reações.
Na narrativa de Abrão e Sarai, nomes naturais de batismo, depois transformados em
Abraão e Sara, há uma ideia muito forte de que há um caminho ético traçado, a partir da escolha
do nome, em que todo o destino do ser é alterado, a partir também da mudança do nome. Antes
Abrão era apenas pai exaltado, tornando-se Abraão, ele estaria coerente com seu futuro
prometido por Deus como pai de uma grande nação. Sarai, por sua vez, significava minha
princesa, na repressão de uma letra, seu nome se equilibra e se amplia em uma dupla benção:
Deus a tornaria abençoada, porque seria retirada dela a maldição da esterilidade e dela ia nascer
uma grande nação. Assim, segundo o Talmud, na escrita hebraica, D'us substituiu a letra Yud
pela letra Hê. Assim, ela deixa de ser Sarai, “minha princesa”, e passa a ser Sara, uma princesa
de todos. Chalier (1992, p. 43) complementa essa ideia quando diz que: “Este cancelamento
dos nomes originais, este acesso a novos vocábulos, se constituem uma sequência do primeiro
diálogo, efetuam também uma operação de distanciamento da naturalidade, significam também
outro jeito de ser”. Os nomes definem, portanto, a troca, as alternâncias de destino nas novas
experiências.
Envolta nessas crenças, raízes fincadas na cultura semítica, as narrativas bíblicas
buscam explicar as coisas, pondo sentido e organizando o mundo, ajustando as pontas,
engendrando a seu modo de crer e conceber a vida, o humano, à sua própria crença, validando
seus símbolos, mitos. É um modo particular de naturalizar a fé individual, que se torna concreta,
é o sagrado que se humaniza, e torna-se como se fosse inerente a razão. É a verdade que vai
além da razão, da ciência, pois envolve o ser humano e o deixa vivenciar o seu mais profundo
estado de experimentação.
Há uma correspondência entre significante e o significado, entre o que é posto no plano
físico e o espiritual, uma ligação intrínseca entre o humano e o divino. Carneiro (2018, p. 97),
diz que as narrativas míticas, nas quais ele classifica as narrativas judaico-cristãs, são símbolos
do encontro do divino com o humano. Ele faz uma relação da linguagem da narrativa mítica,
como sendo a linguagem da religião, e nessa correlação, elas são um aparato de crenças e
práticas relacionadas ao sagrado. Esse sagrado e essas crenças tornam-se intrínsecos e são
215

compartilhadas por uma comunidade moral e aos que a ela se acheguem. Assim, dentro da
narrativa, o nome é um elemento simbólico pois aponta para a possibilidade do “vir a ser”, do
devir que perpassa pelo conceito aristotélico, do movimento do ato em potência, mas que se
concretiza em Deleuze e Guattari49. Segundo D&G, Mil Platôs (4, p. 112): “Que o devir
funcione sempre a dois, que aquilo que se devém devenha tanto quanto aquele que devém, é
isso que faz um bloco, essencialmente móvel, jamais em equilíbrio”. Nesse contexto, o devir
está na ideia da transformação que ocorre no encontro com o outro, com algo que nos provoque
a mudar, a ser outra coisa, a experimentar a vida, o mundo por outra maneira que dantes não
fizera o sujeito. O que essas personagens podem se tornar está atrelado as possibilidades de
acontecimentos, movimentos, situações que as levem a agir de forma que venha a ser coerente
com as possibilidades do ser diferente.
Observamos como os nomes das seis personagens são simbólicos, são representações
do que estas trazem em si, os costumes, as crenças, a expressão cultural de seu povo, que
perpetuam suas histórias. Seus nomes que complementam suas características, seu caráter, tão
pouco explorado e justificam suas escolhas, suas ações frente a vida. Cada personagem está
intrinsicamente em comunhão com o seu nome, porém elas precisam lutar, agirem imbuídas de
coragem, fé e amor para alcançarem seus propósitos.
Assim, teremos no Primeiro Testamento três mulheres, dentre as quais destacamos duas
líderes femininas, à frente do povo de Deus: Débora, líder em Israel e Ester, líder do povo judeu,
cativos na Pérsia. O nome de Debora: “Devora” (‫בֹורה‬
ָ ‫)ד‬ְּ significa abelha, é possível conjecturar
inúmeras características em comum entre essa guerreira e uma abelha. Há um simbolismo nessa
comparação, por traz desta simples tradução. Aliás, uma das opções dos hebreus era associar a
pessoa a um animal que estimasse. A abelha é trabalhadora, sabe está em equipe, é também a
única comunidade regida por uma rainha. A abelha possui o ferrão e defende sua vida, sua
colmeia com ele, é aparentemente frágil, mas tem muita força e produtividade.
Em Débora, essa ideia do trabalho, da intrepidez em agir e organizar as coisas em seu
meio tem forte relação com seu nome. Em defesa de seu povo, convoca a guerra, o ferrão é a
coragem com a qual enfrenta os imprevistos. Foi assim que ela ferrou seus inimigos, na batalha
travada contra os canaanitas, no Vale de Jezreel. Débora levanta-se em Israel para aconselhar
os seus pares, para guiá-los e fazer uma ponte entre Deus, as leis e o povo, ela não descansa
ajudando aos seus. Neste aspecto, a julgamos alinhada com seu propósito, com sua natureza de
liderar, trabalhar e prover o bem-estar dos demais. Jael, por sua vez não é um nome hebraico,

49
– Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica – Cartografias do Desejo, p. 50 disponível em
https://razaoinadequada.com/filosofos/deleuze/etica-dos-devires/
216

mas recebe a versão de seu nome em hebraico com o correspondente Yael e significa: “cabra
das selvas”, “cabra dos montes”.
Mais uma vez a atribuição do nome se dá numa das características em comum dos
termos associados. Assim como Débora é associada a abelha, e pode ser interpretada como uma
mulher trabalhadora, Jael é uma mulher corajosa, destemida, que ganhou, que é ousada. Assim
como as cabras monteses, Jael que era seminômade, habitava em regiões difíceis, em tendas e
sabia lidar com esses espaços, andava em bandos entre homens e mulheres, apesar de estar
afastados da sua tribo. Jael também tinha em consonância com o seu nome, a força, a trepidez,
disfarçada em elegância e beleza, assim como são as cabras-selvagens nos perigosos penhascos
em que se deslocam com total segurança, graças à peculiaridade das suas patas, cada uma das
quais com uma sola áspera e antiderrapante, porém elas são elegantes e graciosas, mesmo sendo
ariscas, exibem-se exuberante.
Quanto a Ester ela possuía um nome hebraico e outro persa. Como judia ela é Hadassa,
que quer dizer: Mirta, uma bela flor de raro perfume. No hebraico, a constituição da palavra
Mirta é muito próxima da raiz do termo que designa tanto “estrela”, inclusive a flor tem a forma
parecida com uma estrela, como o nome da flor. Talvez por essa razão, os medo-persas lhe
chamaram de Ester. No Targum, Ester se associa a estrela pela sua beleza e brilho pessoal. Uma
outra associação possível seria ao nome da deusa Ishtar, deusa da Babilônia referendada como
a deusa da guerra, do amor, da fertilidade, conhecida entre os judeus como Ashtoreth. O
Midrash interpreta o nome Ester em hebraico como tendo o sentido de "escondido": Estrela
escondida, ou secreta que representa a simbologia de uma mulher divina, brilhante, que sabe se
revelar, surgir e brilhar na hora certa, com sensualidade e brilho, mas sua discrição e
objetividade a faz caminhar com prudência, estrategicamente, para ser vista no momento
propício, a revelar seu esplendor, como assim também é vista a estrela da manhã.
Ressaltamos que Ester escondeu sua nacionalidade, escondeu sua identidade de judia,
reinava num espaço em que seus patriotas serviam ao rei. Ela se revelou na ocasião certa,
transitou com inteligência e descrição no palácio, porém foi estratégica para virar o jogo contra
o príncipe Hamã.
Todas essas características convertem, a partir do conhecimento sobre o nome e seu
significado, como se validássemos a descrição dos fatos narrados, do desenho feito pelo
narrador sobre essas personagens, mesmo que de vez enquanto, ele não revele muito, nem
entregue de graça seu personagem, nem suas intenções ou seu caráter. Mas vamos inferindo e
imprimindo o caráter, o modo de ser dessas mulheres, a partir da junção de seu todo, de sua
vivência completa no mundo do texto, pois é preciso que elas vivam tudo, que aconteçam, que
217

se manifestem, para que as conheçamos em cena, em ação. Somente debruçados sobre suas
ações, poderemos interpretar e conhecer pelo dito e pelo não dito, pelo feito e pelo não feito.

4.2.4 Débora, Jael e Ester: conflitos e situações imediatas

Quando pensamos as personagens femininas bíblicas, pelo viés do narrador, podemos


ter uma ideia do seu desenho, a partir dos caminhos que ele nos oferece, apresentando-as no
texto, de forma sutil e silenciosa elas se inserem, mas aos poucos elas vão tomando pé das
situações e vão tomando outros contornos. Conhecemos sua origem, mesmo que a informação
se resguarde a sua nacionalidade, uma noção de seu nome e das poucas características que o
narrador vai nos cedendo pouco a pouco. Porém nessa ideia de incompletude, Alter (2007, p.
192) diz que alguns personagens bíblicos se transformam ao longo do tempo, são imprevisíveis
e mutáveis (...)suas características são determinadas pelas necessidades imediatas.
De modo que a incompletude reside em todos os aspectos dos personagens, na própria
construção da identidade que ainda é um caminho a ser trilhado, está em formação, num
processo que se inicia na conscientização de si no mundo, do corpo no ambiente, do seu “eu”
com o outro. Essa compreensão será mediada pela linguagem, pela cultura e todos os símbolos,
pela busca de individuação que acontece no momento do conflito, da situação imediata a qual
cada uma delas é posta a vivenciar dentro do texto.
Definir essa experiência que se dá entre a estabilidade da personagem e a situação
imediata, requer compreender o que se entende por conflito narrativo, ao qual as seis
personagens são submetidas no texto. O conflito narrativo se atrela ao que Ricouer (1998,
p.128) chama de intriga, a ação seja ela de um indivíduo, de uma comunidade. E esta ação que
consistirá na própria narrativa. Para a ideia de texto que Ricouer traz como a unidade linguística
que permite a mediação entre o tempo vivido e o ato narrativo, o texto acontece a partir da
organização da intriga, incorporada através das ações. É pela interpretação que distinguimos a
ação contada e a que podemos interpretar na narrativa. A intriga organiza, portanto, o que
constitui a narrativa.
Nesse contexto, as personagens femininas bíblicas constituem através de suas ações a
própria narrativa e não só isso, nos enfretamentos das situações em que elas são levadas a
tomarem decisões, elas alteram seus comportamentos e recriam suas identidades, tornando-se
a própria narrativa. É nesse sentido que Alter (2017, p. 85) fala sobre o recurso artístico utilizado
pelo narrador bíblico na constituição das personagens. Segundo o autor:
218

(...) a narrativa geralmente flagra seus protagonistas em momentos críticos e


reveladores de suas vidas, a cena-padrão bíblica não transcorre na prática dos
rituais da existência cotidiana, mas em situações críticas da vida dos heróis,
da concepção ao nascimento, do compromisso de casamento à morte.

Segundo Alter, a narrativa bíblica possui convenções que se dão no uso de cenas-
padrões, e se tratam de certas situações predeterminadas, introduzidas na narrativa e que devem
cumprir uma ordem fixa de tópicos. Estas cenas sempre são cruciais para a narrativa, na
sequência que culmina sempre com uma mudança significativa. São momentos críticos e
reveladores. Vejamos no texto como as três personagens femininas do Primeiro Testamento
Débora, Jael e Ester vivenciam situações imediatas e que comportamento adotam diante de suas
escolhas e de que modo elas são impactadas por estas escolhas.
Débora aparece no texto de Juízes (4) já diante de um conflito, que só será revelado no
capítulo 5, no meio de um tempo de guerras e dificuldades, ninguém para liderar o povo, depois
da morte do Juiz Eúde. Débora se ergue e sai, apesar da condição social de mulher e começa a
julgar as tribos. Ela é profetisa e certamente bem-conceituada. Este primeiro conflito parece
mediado no texto, mas somente no Cântico de Débora o descobrimos. O conflito que aparece
no texto é porque a profetisa recebeu um oráculo de que Deus estaria com o povo no
enfretamento e a vitória já certa sobre os cananeus, reino de Jabim e seu exército comandado
pelo general Sísera. O narrador introduz a cena que precede o diálogo entre Débora e Baraque,
general do Exército de Israel:

Mandou ela chamar a Baraque, filho de Abinoão, de Quedes de Naftali, e


disse-lhe: Porventura, o Senhor, Deus de Israel, não deu ordem, dizendo: Vai,
e leva gente ao monte Tabor, e toma contigo dez mil homens dos filhos de
Naftali e dos filhos de Zebulom?
E farei ir a ti para o ribeiro Quisom a Sísera, comandante do exército de Jabim,
com os seus carros e as suas tropas; e o darei nas tuas mãos. Então, lhe disse
Baraque: Se fores comigo, irei; porém, se não fores comigo, não irei.
(JUIZES 4, 6-9). Ela respondeu: Certamente, irei contigo, porém não
será tua a honra da investida que empreendes; pois às mãos de uma
mulher o Senhor entregará a Sísera. E saiu Débora e se foi com Baraque
para Quedes.

Débora dá a mensagem divina, traça o plano de ação e, em contraponto, Baraque diz


que não irá. Reparamos que os diálogos nas narrativas bíblicas sempre se dão entre duas
pessoas, sendo de discórdia ou concórdia, de aprovação, ou ainda o silenciamento do outro.
Débora é contrastada por Baraque e essa é obrigada a reestruturar sua ação. Percebemos uma
219

mudança nas emoções de Débora quando esta muda da posição de quem domina para um
instante de submissão quando esta ouve e aceita o que Baraque propõe “que ela vá com ele a
guerra”, mas retoma o domínio quando reafirma a vitória do povo e a grande novidade de que
uma mulher levaria a honra da vitória sobre Sísera. Débora percebe que sua presença é
necessária e sobe a guerra, destemida e companheira, líder e convicta de que as palavras de
Deus na sua boca seriam validadas. Essa é a única personagem que vai a guerra e sai como
heroína da batalha.
Nesse sentido, Jael está ao lado de Débora dividindo a mesma vitória. Jael também (?)

uma sequência de ações que converge à trama, o desfecho da narrativa. Observamos que o
conflito de Jael, a intriga se dá a partir de Juízes (4, 17): “Porém Sísera fugiu a pé para a tenda
de Jael, mulher de Héber, queneu; porquanto havia paz entre Jabim, rei de Hazor, e a casa de
Héber, queneu”. Um general forte e destemido vem fugindo da guerra ao encontro da tenda de
Jael. Esta começa a agir, numa sequência de ações definitivas para a mudança da trama. Seria
essa a cena-padrão da heroína Jael, conforme Alter (2017). Em juízes (4,18-21) o texto traz:

Saindo Jael ao encontro de Sísera, disse-lhe: Entra, senhor meu, entra na


minha tenda, não temas. Retirou-se para a sua tenda, e ela pôs sobre ele uma
coberta. Então, ele lhe disse: Dá-me, peço-te, de beber um pouco de água,
porque tenho sede. Ela abriu um odre de leite, e deu-lhe de beber, e o cobriu.
E ele lhe disse mais: Põe-te à porta da tenda; e há de ser que, se vier alguém e
te perguntar: Há aqui alguém? responde: Não. Então, Jael, mulher de Héber,
tomou uma estaca da tenda, e lançou mão de um martelo, e foi-se mansamente
a ele, e lhe cravou a estaca na fonte, de sorte que penetrou na terra, estando
ele em profundo sono e mui exausto; e, assim, morreu.

Repare na sequência de verbos de ações que indicam os passos de Jael, parecendo já


algo tramado, mas é tão inusitado quanto o desfecho da narrativa. Jael saiu ao encontro de
Sísera, disse-lhe: Entra, senhor meu, na minha tenda, não temas. Repare que Jael influencia
para alcançar a adesão do outro. Sísera retirou-se para a tenda dela e ela pôs sobre ele uma
coberta. Então, ele lhe disse: Dá-me, peço-te, de beber um pouco de água, porque tenho sede.
Ela abriu um odre de leite, e deu-lhe de beber, e o cobriu. Jael age com muita calma e
persuasão, pois o general já estava bastante acomodado e fazendo pedidos como quem estava
inteiramente confiante. “E ele lhe disse mais: Põe-te à porta da tenda; e há de ser que, se vier
alguém e te perguntar: Há aqui alguém? responde: Não”. Jael acolhe as ordens superficialmente,
pois é neste momento que ela toma a sua decisão: Jael tomou uma estaca da tenda, e lançou
mão de um martelo, e foi-se mansamente a ele, e lhe cravou a estaca na fonte, de sorte que
penetrou na terra, estando ele em profundo sono e mui exausto; e, assim, morreu. Jael depois
220

de ganhar a confiança de Sísera e o fazer crer que estava seguro o mata de forma violenta. O
general jamais imaginou que confiaria sua vida a mulher e ela seria capaz de matar.
Essa estratégia do narrador bíblico em ocultar os motivos que levaram as personagens a
agirem desse ou daquele modo, nos leva a inferir as razões e atitudes destas mulheres, porém
como diz Alter (2007), as vezes por meio dos discursos diretos, das falas e expressões as
personagens nos dão pistas. A narrativa de Débora e Jael, nos leva a compreender bem esse
jogo do narrador em esconder e revelar as razões das personagens, neste caso, na ação de Jael,
seguida do discurso. Jael, após matar Sísera, se aproxima de Baraque e diz: “Vem, e mostrar-
te-ei o homem que procuras. Ele a seguiu; e eis que Sísera jazia morto, e a estaca na fonte.”
(JUÍZES 4, 22).
Nesse sentido, nos damos conta de que, possivelmente, Jael estava atenta a situação que
envolvia o contexto desses dois povos e ela optou por definir-se pelos israelitas. Ela
identificava-se com o povo de Israel? Ela ouviu seu instinto que pedia para matar aquele
general? Seria a voz do divino cumprindo os seus desígnios? Tudo são possibilidades.
Ester, por sua vez, já enfrentou muitos conflitos até a sua entrada no palácio. Perdeu os
pais e se adapta a vida com o tio, perde a pátria e vive exilada na Pérsia. Na sua entrada na
narrativa, é forçada a participar de um concurso para substituir a rainha Vasti. Ela vence o
concurso e se torna uma bela rainha, amada e respeitada. Seu conflito se torna intenso e a intriga
se dá quando ela se vê diante do inesperado. É curioso que a narrativa de Ester é dividida entre
as ações dela e as de seu pai adotivo, Mordecai. Por vezes se entrelaçando as narrativas, as
ações de personagem interferem no outro. Nesse caso, o personagem masculino parece querer
todo tempo ser o centro das atenções: Mordecai aparece num pano de fundo, dividindo o espaço
com Ester. Seria ele o escritor do livro? Ou o narrador foi intencional a destacar no livro de
Ester, uma figura masculina?
Mesmo diante da ascensão de Mordecai, Ester se revela uma mulher incomum naquele
período, especialmente, pelo fato de se tornar rainha. O conflito de Ester ser inicia com
Mordecai no texto com epígrafe: “Mordecai descobre uma conspiração”, é apresentado como
pelo narrador, como Mordecai salvou, junto com Ester, a vida do rei. No capítulo 3, o narrador
ressalta que o pivô da ira do príncipe Hamã era o próprio Mordecai, pois este não se dobrava
em reverência ao príncipe Hamã que era o preferido do Rei Assuero. (ESTER 3,5-6). Vendo,
pois, Hamã que Mordecai não se inclinava, nem se prostrava diante dele, encheu-se de furor e
por isso, procurou Hamã destruir todos os judeus, povo de Mordecai, que havia em todo o reino
de Assuero.
221

Quanto a Ester, ela não havia revelado a sua origem para ninguém, e mesmo sabendo
que Mordecai foi quem a orientou, isso se constituirá irônica situação, o péssimo desfecho do
plano de Hamã. Ester vai utilizar na hora certa, a informação de que pertence ao povo que Hamã
quer destruir, revelando só depois ao próprio rei, seu marido, de que pertence ao povo judeu.
Ela vai fazendo um jogo, um suspense, convidando consecutivamente o Rei e o príncipe
inimigo, até revelar tudo ao rei. Esse é o ponto alto do protagonismo de Ester, no capítulo 4,
quando Hamã já conseguiu seduzir o rei a assinar um decreto para que se executasse o povo
judeu, através da doação para os cofres do rei, altos valores, alegando que o povo não devia ser
tolerado por não dá lucro e nem obedeciam as leis, os costumes da Pérsia. Cartas já haviam sido
enviadas a todo reino e o rei já tinha assinado com seus símbolos reais. Não havia aparentemente
nada a ser feito e o extermínio dos judeus era certo. Ester é avisada que Mordecai está no pátio
do palácio, usando panos de saco e chorando, clamando. Ela se sensibiliza e pede que lhe deem
roupas novas. Este não aceita e revela seus motivos de estar daquele jeito a Ester:

Mordecai lhe fez saber tudo quanto lhe tinha sucedido; como também a
quantia certa da prata que Hamã prometera pagar aos tesouros do rei pelo
aniquilamento dos judeus. Também lhe deu o traslado do decreto escrito que
se publicara em Susã para os destruir, para que o mostrasse a Ester e a fizesse
saber, a fim de que fosse ter com o rei, e lhe pedisse misericórdia, e, na sua
presença, lhe suplicasse pelo povo dela. (ESTER 4,7 - 8).

Nesse momento recai sobre Ester uma enorme responsabilidade, o fato dela estar diante
de uma situação completamente inusitada e que a sua vida está em perigo, como também a vida
do seu povo. A primeira atitude de Ester é moldada pela postura a qual ela é condicionada, ou
melhor dizendo, para qual ela foi preparada: ser elegante, bonita, modesta, obediente e recatada.
Agora a situação lhe exige uma postura nova, não lhe ofertada antes. Ester responde a Mordecai
através de seus servos. Ester (4,10 -11):

Então, respondeu Ester a Hataque e mandou-lhe dizer a Mordecai: Todos os


servos do rei e o povo das províncias do rei sabem que, para qualquer homem
ou mulher que, sem ser chamado, entrar no pátio interior para avistar-se com
o rei, não há senão uma sentença, a de morte, salvo se o rei estender para ele
o cetro de ouro, para que viva; e eu, nestes trinta dias, não fui chamada para
entrar ao rei.

Ester se referia a uma lei para evitar expor o rei a tentativas de assassinatos. Quem
desejasse ver o rei, mesmo sendo familiar, não o podia fazer se o monarca não marcasse uma
audiência ou consentisse em receber tal pessoa. Se era urgente para o rei a presença, como no
222

caso das suas mulheres, ele as chamava pelo nome. Ester estava a um mês sem receber um
convite do rei para entrar em sua presença. Se alguém tentasse ir ao rei sem chamado o próprio
rei apontasse seu cetro real para tal súdito, este seria imediatamente enforcado. Quando
Mardecai recebeu o recado ele diz taxativamente a Ester (4,13-14):

Então, lhes disse Mordecai que respondessem a Ester: Não imagines que, por
estares na casa do rei, só tu escaparás entre todos os judeus. Porque, se de todo
te calares agora, de outra parte se levantará para os judeus socorro e
livramento, mas tu e a casa de teu pai perecereis; e quem sabe se para
conjuntura como esta é que foste elevada a rainha?

Até então, Ester transitava entre a sua submissão e a conformidade. Era chegado o
momento de mudança de atitude. As palavras de Mordecai revela que, aos olhos da sociedade,
a presença de Ester como rainha, havia de ter um propósito. Aqui se inscreve a necessidade de
se justificar uma menina judia, órfã e exilada vir a ser a rainha de um outro povo que não era o
seu. Uma mulher com poderes entre os homens, o que consagra Ester como uma grande
protagonista. A utilidade de Ester no cenário real, mostra, ao contrário de Baraque, que acredita
totalmente em Débora e nela espera segurança, que isso não ocorre em Mordecai, inicialmente,
pois a postura de Ester ainda não lhe passava tal segurança. Assim, Ester é impactada por essas
palavras e sua resposta ao seu pai adotivo revela a mudança em seu comportamento, pois,
apelando a fé, não recebe mais ordens, ao contrário, passa a dá-las, orientando seu tutor, que a
obedece, como vemos no trecho abaixo:

Então, disse Ester que respondessem a Mordecai: Vai, ajunta a todos os judeus
que se acharem em Susã, e jejuai por mim, e não comais, nem bebais por três
dias, nem de noite nem de dia; eu e as minhas servas também jejuaremos.
Depois, irei ter com o rei, ainda que é contra a lei; se perecer, pereci. Então,
se foi Mordecai e tudo fez segundo Ester lhe havia ordenado (ESTER, 4, 16-
17).

Nesse contraponto, a identidade de Ester se constitui não mais como uma moça delicada
e temerosa, mas como uma mulher que lutará pelo seu povo, nem que isso lhe custe a vida.
Dizemos tal qual Costa e Oliveira50: “Diante da necessidade de sua ação, Ester deixa-se se
envolver de ousadia e, esquecendo sua condição de mulher bela, que adorna, que é solicitada

50
COSTA, M. E. da; OLIVEIRA, D.M.S.O.
Identidade! | São Leopoldo | v. 21 n. 2 | p. 245-264 | jul.-dez. 2016 | ISSN 2178-0437X Disponível em:
http://periodicos.est.edu.br/identidade
223

apenas para satisfazer os desejos do rei, seu marido, para se tornar uma líder, a protagonista do
seu destino e do seu povo”. Ester se põe a jejuar e sua liderança aflora a ponto de unir todo o
seu povo judeu, como também seus servos e servas, mesmo que estes não comungassem suas
crenças, são de certo, influenciados por sua determinação em cumprir seu compromisso. Diante
do Rei, a moça que dantes, entrara em sua presença sem enfeites, sem exigir nenhum tipo de
artefato, agora se utiliza de sua majestade, de suas vestes de rainha, enfeites e toda a sua postura
de autoridade, de alguém que naquele momento, não tinha nada a perder, sua sentença de morte
já estava decretada, mas sua fé e coragem a levava a tentar uma saída.
Como vemos, as três personagens protagonistas do Primeiro Testamento se estabelecem
dentro do texto, mesmo não tendo descrições profundas sobre suas personalidades, não havendo
descrições, exceto pela beleza de Ester. São personagens que vão tomando forma dentro do
texto, saindo da concepção de uma simples personagem para protagonizar suas histórias e
definir-se, constituir-se a partir das situações que lhes são impostas. Elas saem da condição de
personagens comuns para uma personagem mais complexa, sem a qual a trama não se
desenvolve, se tornando sujeitos que sabem o que quer e que evoluem a cada ação, outras
mulheres reconfigurada dentro do texto, de modo que, somente com o desfecho da narrativa, é
que podemos ter uma ideia do todo (CARNEIRO 2018 P. 252).

4.3 AS MULEHRES DO SEGUNDO TESTAMENTO: COMPORTAMENTO, IDENTIDADE


E PROTAGONSISMO DE MARIA DE NAZARÉ, MARIA MADALENA E DORCAS

No Segundo Testamento duas Marias nos farão compreender a construção de uma nova
identidade para um feminino que numa condição de opressão, não muito distante das
personagens do Primeiro Testamento, ousaram desafiar a sociedade e viver a plenitude do amor
e da entrega pelos ideais nos quais acreditavam. Depois, Dorca, uma mulher que segue o
exemplo das Marias, tão resumida enquanto personagem dentro da narrativa que não é sua, se
constitui protagonista de feitos admiráveis. Elas constituem suas identidades, a despeito do que
dizem delas.
Se dentre os elementos da narrativa, as personagens são fundamentais para a construção
desta, no contexto em que essas personagens são constituídas, a atenção as suas ações, suas
falas, os insights dados pelo narrador à narrativa são primordiais para a compreensão destas
personagens. É no desenrolar das narrativas que compreendemos seus papeis, suas posições
dentro dos textos.
224

Desse modo, nos Evangelhos Mateus, Marcos, Lucas e João, há uma intercalação entre
as narrativas de Jesus e diversas mulheres, vivências do próprio Jesus, dos seus encontros com
essas mulheres que revelam o modo como ele as tratava e como elas o seguiam. Nossas
personagens se situam nesses textos, cada um a seu modo, contando, acrescentando ou
ocultando detalhes conforme seu modo de narrar os acontecimentos. Entretanto, incluímos
ainda os Atos dos Apóstolos, onde encontra-se a narrativa em que Dorca aparece.
A condição das mulheres no Segundo Testamento era de total opressão, pois sua atuação
dava-se principalmente no âmbito doméstico, no interior da casa, espaço no qual ela podia
transitar e exercer suas atividades. No âmbito religioso e social eram proibidas de estarem entre
os homens.
É nesse espaço que surge a nossa primeira personagem, Maria de Nazaré. Sendo Jesus
Cristo a figura central nos evangelhos e é em torno dele que circulam essas três personagens,
Maria é o começo, pois é dela que nascerá Jesus. Em seguida, veremos Maria de Magdala, ou
Madalena que, mais tarde tem um encontro com Jesus e, a partir disso, define sua nova
identidade. Por último, repousamos em Dorca

4.3.1 A apresentação de Maria de Nazaré, Maria Madalena e Dorca no texto bíblico

As personagens em estudo aparecem em mais de um livro no Segundo Testamento, de


modo que vamos transitar entre esses livros procurando consenso ou divergências: Mateus,
Marcos, Lucas e João, bem como Atos dos Apóstolos, em que encontramos a narrativa de
Dorcas.
Desse modo, Maria de Nazaré aparece no livro de Mateus, logo após o narrador
apresentar a genealogia de Jesus, na perspectiva de fazer uma ponte entre as antigas profecias
do Primeiro Testamento, sobretudo, as que se referiam ao Messias, mostrando a linhagem de
Jesus, o que era de suma importância para os judeus: saber as origens de homens em destaque.
Por essa razão, o narrador se preocupa em fazer cuidadosamente exposição das raízes de Jesus,
ligando-o de Abraão ao rei Davi, para dar veracidade ao cumprimento da profecia de que, da
linhagem real de Davi sairia o Messias.
Nesse contexto, o que começa a surpreender é o fato de que a descendência de Davi está
em José, e por mais que se pense que um homem judeu, pela recomendação de Moisés não pode
casar-se com uma mulher de outra tribo, ele não a considera como descendente real de Davi. O
narrador prepara o caminho para a chegada de Maria no texto. Mateus (1,16): “E Jacó gerou
José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo”. Maria é apresentada como
225

a mulher de José, a mãe de Jesus. No verso 18, o narrador segue apresenta o nascimento de
Jesus, percurso no qual ficamos sabendo que: “Maria, sua mãe, desposada51 com José, sem que
tivesse antes coabitado, achou-se grávida pelo Espírito Santo”. Apesar da falta de detalhes na
descrição de Maria, sabemos que ela é uma moça, noiva e que nunca tivera relações com seu
noivo. Mesmo assim, Maria, estava grávida por obra divina, mesmo sendo virgem.
Nesse raciocínio, no Evangelho de Marcos, Maria não aparece no início. João Batista
avisa a chegada de Jesus que já aparece para ser batizado por João. Porém, em Marcos (3,31-
35 e Mc 6, 3-4), respectivamente, ela está com os irmãos de Jesus o ouvindo e na outra ocasião
Jesus é rejeitado em Nazaré, terra de sua mãe. A presença de Maria pode ter sido a razão da
descrença do povo na história de nascimento do seu filho.
Em Lucas, nos primeiros capítulos, encontramos mais detalhes de como se deu a
concepção de Jesus. O narrador faz uma aproximação entre gestação das duas personagens:
Isabel e Maria, a fim de aproximar também o profeta anunciador do Messias e o próprio
Messias, sendo possível compreender melhor o que aconteceu na trajetória de Maria. Lucas (1,
26 -29):

No sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado, da parte de Deus, para uma cidade
da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com certo homem da
casa de Davi, cujo nome era José; a virgem chamava-se Maria. E, entrando o
anjo aonde ela estava, disse: Alegra-te, muito favorecida! O Senhor é contigo.
Mas o anjo lhe disse: Maria, não temas; porque achaste graça diante de Deus.
Ela, porém, ao ouvir esta palavra, perturbou-se muito e pôs-se a pensar no que
significaria esta saudação.

Maria é referenciada pela sua condição feminina, uma moça virgem desenhada como
uma moça ingênua que, mesmo pobre e simples, recebe a visita de um anjo, que a deixa confusa.
Mesmo assim, Maria compreende o que o anjo lhe diz e, como serva fiel a Deus, aceita ser parte
de toda essa conjuntura. No relato de Lucas, Maria recebe o anjo e a mensagem: “Eis que
conceberás e darás à luz um filho, a quem chamarás pelo nome de Jesus. Este será grande e será
chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; Então, disse
Maria ao anjo”. Maria, é agora enfática: “Como será isto, pois não tenho relação com homem
algum?”. Nesse momento fica clara a pureza de Maria, pelas palavras do anjo Gabriel:

51
O Desposório, ia além de uma promessa recíproca de casamento entre jovens atraídos. Era um contrato de
casamento firmado entre famílias, que consistia em pagar o dote e organização do casamento. Esse noivado devia
durar um ano. Ao contrário da cultura ocidental, em Israel, não podia ser desfeito, não se mediante um divórcio.
Conjecturamos que ter a certeza da virgindade da noiva e de que esta não estaria grávida de um outro homem, era
motivo da atenção do noivo e de sua família. (Bíblia ARA - 1489).
226

Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a


sua sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado
Filho de Deus. ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado
não terá fim”.

Em Mateus, Maria é apresentada como uma mulher agraciada por Deus, tênue e pura,
suas virtudes são desenhadas na virgindade, na submissão, na aceitação sem questionar. Porém,
é possível ver emanar do texto, uma Maria que tem esse primeiro despertar para descobrir-se
enquanto aquela que agrada a Deus, esse pensar sobre quem realmente é.
Nesse sentido, a apresentação da próxima personagem, Maria Madalena, vai se dá de
forma mais simplória ainda, como também o modo que Dorcas é posta ao leitor. Elas não têm
uma narrativa específica, mas são citadas. Embora Maria Madalena tenha diversas passagens
bíblicas em todos os evangelhos, a conhecemos como se fosse por acaso, uma citação sem
objetivo de se estender muito, mas que muito se revela, se instiga a saber sobre essa Maria de
Magdala.
A primeira vez que ela aparece na Bíblia é na narrativa de Mateus (27, 55-56): “Estavam
ali muitas mulheres, observando de longe; eram as que vinham seguindo a Jesus desde a
Galileia, para o servirem; entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José,
e a mulher de Zebedeu”. A personagem é apresentada como uma seguidora de Jesus, que desde
a Galileia vem o acompanhando quando do primeiro encontro com ele. Quando? Onde? No
entanto, não é revelado como isso se deu, mas os narradores dizem que dela Jesus expulsou sete
Espíritos. Agora essa mulher devotou-se em amor e o segue também no momento mais delicado
da vida deste mestre, a quem ela tanto admira. Ela acompanhou todo o cortejo que o levaria a
crucificação. Lucas (8 ,2) diz que ela foi uma das mulheres curadas pelo Senhor, como também
em Marcos (16,9), ela é citada como “aquela” de quem Jesus expulsou demônios.
Nessa leitura, cabe-nos questionar: Madalena estava possuída de quê? Qual era a sua
conduta? Como um fato tão marcante como esse não foi descrito na Bíblia? Lucas registrou
muitos milagres que favoreceram mulheres, como aquela mulher de quem Jesus expulsou um
espírito de enfermidade que a deixava encurvada (LUCAS 13,10 -17). Porém, há muito pouco
sobre Madalena, mesmo compreendendo que se trata de uma personagem tão marcante. Maria
de Magdala, talvez por isso Madalena é uma referência ao seu local de origem, uma pequena
aldeia perto da Galileia. Juntamos o revelado: Madalena era uma seguidora de Jesus, contribuía
com o seu ministério itinerante junto a outras mulheres que o acompanhavam, doavam seus
bens, casas, serviços e testemunhos com suas próprias vidas.
227

Quanto a Dorcas, o começo do trecho que a narra começa com ela já morta. Somente
em Atos encontramos referência a essa personagem. Tendo o livro de Atos a intenção de
apresentar a formação e costumes da igreja primitiva, o narrador apresenta fatos que julgou
importantes para que o leitor soubesse de como o evangelho se espalhou, desde as raízes
judaicas em Jerusalém à Roma, como os apóstolos se espalharam e foram fundando os trabalhos
e congregações.
Possivelmente atribuído ao Historiador Lucas, este teria feito o livro como uma só
narrativa em que os fatos e personagens são apresentados a Teófilo que pode ser o nome de
alguém importante. O que sabemos é que conta toda a trajetória do antes e depois de Jesus,
como se tivesse organizando para o leitor a trajetória dos ensinos cristãos, relatando também a
promessa do Pentecoste, a continuidade do discipulado, a escolha do discípulo substituto de
Judas e por fim introduz Pedro, um dos fundadores das comunidades cristãs que se estabeleciam
a partir das evangelizações. Pedro é um dos protagonistas das histórias, dividindo-as com Paulo
que se converterá no capítulo 9 e será o próximo apóstolo em destaque. É exatamente no
capítulo 9 intitulado: “A conversão de Saulo” em que todo o processo de sua conversão é
apresentado, que a narrativa se intercala com as andanças de Pedro nas comunidades da região
de Lida, Jope, espaços em que o narrador vai apontando os milagres que aconteciam por onde
Pedro passava.
Dorcas é introduzida no texto em Atos (36 -43), temos a pequena narrativa sobre ela: “A
ressurreição de Dorcas”. E novamente o narrador nos surpreende com uma informação direta e
reveladora, pois parece que começamos pelo final do texto. Desse ponto em diante o narrador
apresenta Dorca como uma discípula e é o único texto bíblico que faz referência a uma mulher
como discípula (ATOS, 9,36 -37) temos:

Havia em Jope uma discípula por nome Tabita, nome este que, traduzido, quer
dizer Dorcas; era ela notável pelas boas obras e esmolas que fazia. Ora,
aconteceu, naqueles dias, que ela adoeceu e veio a morrer; e, depois de a
lavarem, puseram-na no cenáculo.

É preciso lembrar que as narrativas bíblicas não costumam apresentar as mulheres com
tanta clareza. Além da profetisa Ana, no Segundo Testamento, não havia mulheres em cargos
eclesiásticos como “discípula, diaconisa, apóstolas, Dorcas por certo, era uma mulher notável,
a qual não foi possível apagar, mesmo que o intuito fosse somente registrar que Pedro
ressuscitou uma mulher, seria dito apena “uma mulher”, anônima como outras que apareceram
assim: a mulher do fluxo de sangue, a mulher encurvada, a mulher pecadora.
228

No Segundo Testamento, a apresentação das personagens possui uma formatação


narrativa aproximada do Primeiro Testamento, pois elas entram no texto de formas inusitadas,
sem preparação, ou de fato uma apresentação consistente e detalhista. Porém elas entram para
mudar o curso da narrativa. O narrador deixa as lacunas como espaços para o leitor participar
da construção dessas personagens.

4.3.2 A nacionalidade de Maria Nazaré, Maria Madalena e Dorcas no texto bíblico

No Segundo Testamento não há tanto essa noção de elucidar o povo e a pátria, apesar
de que, mesmo o Cristo vindo inaugurar o tempo da graça, há sempre uma afirmação às leis e
a cultura mosaica que referencia o judaísmo. Porém é a forma de reafirmar que em Cristo se
cumpre a lei e se começa um novo tempo. Nesse novo tempo, costumes antigos, culturas
ultrapassadas e preconceituosas serão questionadas. A intenção do Segundo Testamento é
mostrar o cumprimento das profecias anunciadas no Primeiro Testamento, sobre a chegada do
Messias e referendar Jesus como esse Messias, o cumprimento destas palavras. Importa então
que sua doutrina, suas ideias de resistência pelo amor, o combate a violência pela a adesão à
tolerância, a pregação dos tempos de libertação e salvação fossem divulgadas e se espalhassem
por todos os cantos.
Nesse sentido, as personagens aqui apresentadas, compreendem essas ideias e são a
representação desse novo tempo: Elas constituem sua identidade a partir dos ideais que
acreditam e Jesus é esse referencial que lhes dá autonomia para ser, constituindo-se numa nova
identidade.
Maria de Nazaré é tomada de fé, amor e pela coragem que desafia o legitimado e se
afirma no milagre da vida, da junção do humano com o divino, apostando em algo que ela ainda
vai conhecer. É através dela que esse novo modo de identidade e empoderamento feminino será
possível e alcançado por Madalena e Dorcas, é nelas que vemos os primeiros impactos da
coragem de Maria.
Assim, depois que Maria de Nazaré recebe a visita do anjo e engravida, ela é deixada
um pouco à parte e já reencontramos o casal indo para o recenseamento: José levando sua
esposa. Maria, na condição de mulher, não precisaria ir essa viagem, pois não entraria na
contagem do censo, uma vez que apenas os homens eram contados. Porém o narrador em Lucas
deixa implícita a ideia de que “todos’ deviam se alistar. Mateus mesmo estando fazendo um
paralelo entre o Primeiro e Segundo Testamento não cita esse censo. Assim, o narrador em
Mateus (2,4) ressalta: “José também subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, para a Judeia, a
229

cidade de Davi, chamada Belém e por ser ele da casa de Davi e família de Davi”. Acreditamos
que a ideia do narrador está em consonância com a profecia de que o Salvador nascia em Belém,
por isso o casal se desloca.
Nesta compreensão, não está em questão a identificação com o lugar de origem, não se
atrela a uma viagem feita por legítima vontade, pois pela distância de que ficava Belém da
Galileia, seria uma viagem desconfortante. Talvez essa era a única opção de Maria, não é difícil
acreditar que ela estava sozinha naquela sociedade. É possível perceber como o narrador faz
uso da linguagem como instrumento de manipulação e se utiliza desses recursos como quem já
estava prevendo a necessidade da interpretação do leitor, para construir ou finalizar suas
personagens. Cada uma dessas mulheres nos permite diferentes leituras sobre suas condições e,
sobretudo, sobre suas ações frente à vida, ao inesperado.
Nesse processo de revelação e ocultamento dos sentimentos, das motivações, das
escolhas das personagens, são reveladas na linguagem, nas ações inesperadas, nas estratégias
de convencimento que elas adotam, nos recursos linguísticos e discursivos do texto. Esses
recursos textuais existem em função do discurso, e seus propósitos são justamente validá-lo. Há
repetição, enfatizando que é de José a descendência de Davi. Não era na mulher que estava essa
perspectiva de cumprir a profecia, mesmo que José fosse, apenas o pai adotivo, é nele que se
dá, na perspectiva do narrador, o cumprimento que tornará a nacionalidade do bebê compatível
a de Cristo. Entretanto, é em Maria que vai acontecer todo esse processo, ela é a agraciada, a
favorita, a escolhida, para tal propósito.
Nenhuma das três personagens são estrangeiras, são israelitas/judias. As cidades de
Maria de Nazaré e de Madalena constituem seus nomes, elas são identificadas por essa
cidadania, muito mais ainda Madalena do que Maria, pois esta torna-se mais conhecida como a
mãe de Jesus. Dorcas parece ter dupla cidadania, pelos nomes que agrega e a cidade que mora
Jope, uma cidade cananeia. Assim, sob a ótica de opressão, em que essas mulheres bíblicas
viviam, nem mesmo a nação tinha uma identidade sob o domínio e as imposições do império
romano, os judeus aguardavam o Messias para retomar o domínio do poder, a reorganização
sociocultural da pátria e restaurar a nacionalidade.
Nesse contexto, o feminino está em completo apagamento e sofre mais ainda os
sintomas da opressão porque ela se dá por todos os lados. São mulheres submetidas ao império
romano e da sua própria nação regida e direcionada por um olhar masculino também opressor
e desconcertante. Para Shlomo Sand (2008), o povo judeu é uma invenção e uma anulação da
identidade Israelita: “a identidade nacional é uma necessidade do Estado estruturar uma
população diversa e o ajuda a se perceber como sujeito histórico específico”. Assim, a
230

identidade nacional é um conflito em busca de solução para todos, as mulheres não sentem
pertenças, não são inclusas nesse projeto.

4.3.3 Os nomes e significados de Maria de Nazaré, Maria Madalena e Dorcas

As junções das personagens a seus nomes, sua identidade construída nas escolhas destes,
segue também na proposta dos narradores do Segundo Testamento. Vale salientar que em
nenhuma narrativa o significado do nome destas mulheres se apresenta junto ao texto. É preciso
que se compreenda a importância do nome na cultura judaica, a partir de outros exemplos
bíblicos em que foi evidente a validação desse costume semítico, para se pesquisar o nome
destas mulheres e assim associar às suas histórias e adicionar como constituinte da identidade
feminina.
Nesse sentido, a Bíblia da mulher tem esse cuidado de, nos comentários, sempre validar
o significado do nome das personagens mais favorecidas no texto bíblico. Assim veremos os
nomes de Marias de Nazaré e de Magdala, a Madalena e o nome de Dorcas, compreendendo
que no Segundo Testamento também vai haver essa correlação do nome da personagem com
sua constituição. Comecemos, pois, por Maria de Nazaré.
Maria é um nome que descende de Miriam, que no hebraico significa Senhora soberana
ou vidente. Lembramos de Miriam, irmã de Moisés, que era profetisa e assim foi citada no
Primeiro Testamento. Alguns estudiosos atribuem também os termos Mry a um termo egípcio
que significa amor. Dessa junção pode ter surgido o nome Maria, como também parece estar
associado a outros radicais semíticos etimologicamente ligados ao aramaico- assírio, ao
hebraico e ao árabe. Assim, quando significa “Senhora soberana, senhora que tem domínio”,
não é possível associar o nome da personagem aquela Maria de Nazaré, menina-moça, virgem
e ingênua que nos é apresentada pelo narrador. O nome é profético, pois vê a Maria futura, a
Senhora que ela se tornaria, a partir de seu processo de ascensão de uma moça pobre e anônima,
para um ícone da religião cristã. Se no viés do sagrado, Maria de Nazaré alcança o status de
Senhora soberana, Santa Maria, pelas virtudes e pela exaltação a sua virgindade, mantida num
eterno estado de pureza, Maria Madalena é então um contraponto, ela é também Maria, porém
sua relação com o nome não se dará pelo viés do sagrado. Maria é a possessa, e ronda o seu
nome, a maldade do pecado, agregaram-lhe títulos que até então não a dignificavam enquanto
senhora. Maria Madalena ou de Magdala, a torre de Deus.
Desse modo, a identidade de Madalena passa então por mudanças à medida que essa se
entrelaça com o Jesus, após esse encontro não relatado em que ela passa a ser sua discípula e,
231

demonstra sua força, sua coragem, apoiando o ministério de Jesus e indo com ele, nos arredores
da Galileia, de Jerusalém, da cruz ao sepulcro e do sepulcro à glória. Os nomes funcionam como
um jogo de construção das identidades destas personagens, pois revelam além do texto, uma
identidade das personagens, não apresentada de graça, facilmente, mas que vai se desenhando,
como possibilidades, perspectivas para essas personagens descobrirem, assumirem-se a si, ou a
outra de si, reveladas no enfrentamento da vida, dos acontecimentos.
Nesse pensamento, Ricoeur (1986), diz que só a narração fornece ao nome próprio de
um indivíduo um suporte permanente para o conjunto de sua vida. Para responder à questão:
quem? é preciso narrar uma história. O narrador assegura o nome da personagem e conta sua
história que sempre é coerente ao significado, validado pelo modo que as mulheres enfrentam
seus destinos.
Desse modo, Dorcas é a última das personagens. Tal qual Ester, ela tem dois nomes.
Dorcas é o seu nome grego, a tradução de Tabita que é de origem aramaica, ambos significam
“gazela”. Tal qual Jael, o nome deve ser entendido e interpretado numa relação metafórica, pois
carrega a simbologia do animal e, dentro das características, podemos inicialmente, pensar na
agilidade, na rapidez com o qual esse animal se move, age. Tal qual seu nome, Dorcas deve ser
compreendida como uma mulher de ação, ágil, rápida, com habilidades, tanto de observar a
situação ao seu redor e interferir como podia, como era mulher de ação, pois com seus atos,
entregou-se a vida cristã, desenvolvendo trabalhos de caridade que transformou a realidade das
viúvas de Jope. A apresentação, a identificação das personagens no espaço, tempo de sua época,
o pertencimento, a relação com seus nomes e suas ações são todas estratégias narrativas que
nos permitem perceber como essas personagens são desenhadas.

4.3.4 Maria de Nazaré, Maria Madalena e Dorcas: conflitos ou situações imediatas

Já sabemos que a construção dessas personagens perpassa pelo olhar do outro e esse
outro é um sujeito masculino. Por isso, muitas possibilidades de construção desse protagonismo
feminino são limitadas, visto que, na perspectiva do narrador, a ideia do “quem é ela”, “Quem
faz a ação”, está condicionada a visão do homem. Ele é quem controla o que quer e o que não
quer revelar sobre elas. No entanto, são mulheres que se diferenciam, pois procuram meios para
alcançar os fins que almejam. O processo de ação nas personagens femininas do Segundo
Testamento vai além das situações imediatas que elas precisam vivenciar e tomar atitudes, num
processo de individuação interno, consistente e impulsionado pela presença de um outro que as
instigam a perceber-se sujeitos.
232

A partir de Maria de Nazaré, observamos que seu conflito e processo de maturação se


dá pela gestação, incomum aos padrões da época. Maria se vê diante de uma gravidez, que
causa espanto e desconfiança, uma vez que fica grávida, não exatamente do noivo. Mas Maria
se torna a mulher mãe do divino e seu filho é de Deus, o que, para muitos, parece não fazer
sentido. Assim, o desafio de Maria é compreender e continuar a crer no que a moveu a iniciar
toda a história. Seu filho mudaria o modo de ver as coisas tanto nela, como em toda a geração,
inclusive na vida de outras mulheres. Maria habita no ventre aquele que vai nascer, crescer,
ganhar forma e ser crucificado, de modo que Maria suporta todas essas situações e conflitos,
como uma mulher virtuosa e cheia do espírito santo, se diferenciando de todas as mulheres do
seu tempo.
Nessa mesma visão, Maria Madalena também se vê atravessada por uma situação
imediata e pelo mesmo processo de identificação com o outro, que tanto impacta Maria de
Nazaré e Maria Madalena é o próprio Jesus. Jesus também é um ser em busca de sua identidade
e como foi rejeitado e discriminado, desenvolveu em seu cerne a capacidade de se colocar no
lugar do outro. No contexto da narrativa, sua divindade é posta à prova na vivência humana e
na experimentação de suas dores. Jesus estimula nelas um processo psicológico de
desenvolvimento interior que as leva a perceber-se além dos estereótipos, das limitações ao
gênero, perceber-se no outro e dar-se pelo outro em amor e solidariedade.
É interessante perceber que no contato com os outros homens, as personagens ou
criavam suas identidades nos moldes da diferenciação, sendo o outro a norma, o privilegiado,
o padrão que levavam essas personagens às margens ou a não identificação com nada, nenhuma
referência para sua construção. Sem estímulo a pensar no “ser”, no estar no mundo, elas se
apagavam, eram excluídas. No contato com Jesus, elas não se sentiam diferentes no aspecto
negativo da oposição binária, mas havia uma identificação e uma busca mútua de construção
de suas imagens. Ambos estão repletos de amor e libertos da normatização.
Maria Madalena, após o encontro com Jesus e seu processo de cura, passa a ser sua
discípula, andando com ele, o acompanhando nos diversos espaços, permanecendo com ele até
a morte na cruz. Sensível, mas forte, ela aguarda a sua ressureição, de forma que sua narrativa
é a escrita do novo tempo, a ressureição do feminino.
Por sua vez, Dorcas apareceu inerte no texto, morta conforme a narrativa, mas ainda
assim seu corpo fala. A vida de Dorcas ultrapassa a sua morte. “era ela notável pelas boas obras
e esmolas que fazia”. Ela era tão notável que é citada tanto seu nome judeu como o grego. As
ações de Dorcas estão vivas, elas vêm à tona, pois haviam muitas pessoas aflitas com sua morte,
especificamente as viúvas as quais Dorcas cuidava, ajudando-as com vestidos e túnicas. Atos
233

(9, 39) descreve o impacto que Pedro, o apóstolo tem no cenário: “Tendo chegado, conduziram-
no para o cenáculo; e todas as viúvas o cercaram, chorando e mostrando-lhe túnicas e vestidos
que Dorcas fizera enquanto estava com elas”.
É a partir dessa revelação, das mulheres que choravam e mostravam as peças de roupas
criadas por aquela discípula que conjecturamos a força, que surge o protagonismo de Dorcas,
movido pelo amor ao próximo, da entrega pelo outro, tal qual fizera Jesus, em quem ela cria.
Dorcas era uma mulher de ação, de prática efetiva que beneficiava muitos em seu entorno, de
forma ativa, cuidando de uma comunidade, com trabalho direto com as mulheres. Assim,
Dorcas ganhou prestígio entre a comunidade, sua vida foi de entrega a causa do evangelho de
fé e de obras, na condição de uma verdadeira discípula, e sua morte testemunhava a falta que a
aquela figura feminina faria para as demais mulheres que nela se espelhavam e necessitavam
de seus cuidados e apoio:

Mas Pedro, tendo feito sair a todos, pondo-se de joelhos, orou; e, voltando-se
para o corpo, disse: Tabita, levanta-te! Ela abriu os olhos e, vendo a Pedro,
sentou-se. Ele, dando-lhe a mão, levantou-a; e, chamando os santos,
especialmente as viúvas, apresentou-a viva. Isto se tornou conhecido por toda
Jope, e muitos creram no Senhor. (ATOS 9: 39 ao 42).

Chamando especialmente as viúvas, apresentou-a viva. Dorcas também fez discípulos e


discipulas, até no dia de sua morte e, como Cristo ressuscitado, acorda para continuar exercendo
sua liderança feminina. Há aqui uma passagem repleta de simbolismo. O feminino ressuscita
para continuar ativo. Se Maria Madalena viu Jesus ressuscitado, e passa a ser testemunha ocular
da reinvenção da vida, da nova vida, Dorcas é a própria experiência de ressurgir.
Assim como Maria Madalena, além da cidade destas mulheres, não há registro de suas
famílias, nem de suas condições civis. Não existe um homem responsável por Dorcas: pai,
marido ou irmão. Decorre daí a curiosidade de uma mulher que se mantém, e adquirindo
tecidos, fazia as peças e doava às viúvas de sua região.
Para Ricouer, a narrativa é o laboratório em que o narrador vai construindo personagens.
Elas vão sendo situadas no texto, pois fazem parte dele como propósito narrativo maior, como
Débora e Jael que livram o povo de Israel dos amalequitas; Ester livra os judeus do extermínio
na Pérsia; Maria é a mãe de Jesus; Maria Madalena representa as mulheres que seguiam Jesus,
porque é a primeira a vê-lo ressuscitado; e Dorcas é a mulher ressuscitada por Pedro, um grande
destaque da igreja primitiva.
234

São mulheres que contam suas histórias. Para Ricoeur (1991, p. 138) “descrever, narrar
e prescrever, tríade que implica numa relação específica entre constituição da ação e
constituição do si”. Elas são a escrita, a ação narrativa e a narrativa em ação, a trama, a intriga,
pois se inscrevem, porém com seus próprios corpos, e se deixam ir além do moldado, do
revelado, do prescrito. Assim, elas querem ser achadas, interpretadas, reinventadas: “sem
narrador não há narrativa e sem personagem não há ação narrativa. Elas são configuradas pelo
narrador com objetivos retóricos e exercem a função de protagonistas (herói, anti-herói) ou
antagonistas” (ZABATIEIRO E LEONEL 2011, p. 136).
Se as nossas personagens aqui analisadas por seus comportamentos diferenciados, se
são reconhecidas como protagonistas, elas devem ser interpretadas no sentido de perceber que
as suas incompletudes é que as tornam interessantes e convidativas, permitindo, através da
leitura, um olhar diferente sobre o feminino na Bíblia.
No próximo e último capítulo, buscamos adentrar no mundo destas seis personagens e
deixar que elas se revelem diante de nossas palavras, embora saibamos que elas são inesgotáveis
fontes de interpretação, e que a cada um, de forma diferente, num misto de experiências
apaixonantes e intrínseca a cada leitor ou leitora. Partimos da ideia de que não se pode
aproximar-se de um texto e nem com pretensão de tornar determinante. Ricoeur (1978, p. 344)
diz que devemos nos “expor ao texto e receber dele um eu mais vasto”. Assim, situados,
marcados pela ânsia de conhecer, compreender em sua intensa vontade, como a palavra pode
se revelar a ele ou a ela, incluindo-os, aceitando-os, adotando-os, mas também provocando
mudanças, transformações, transportando-os a um lugar de desconforto, ocasionado pela
necessidade de ir além do achado.
235

5 AS PROTAGONISTAS: UMA RELEITURA FEMININA DAS NARRATIVAS


BÍBLICAS

Se é verdade que sempre há mais de uma forma de


interpretar um texto, não é verdade que todas as
interpretações são iguais.
Paul Ricoeur

Nossa discussão, a partir desse ponto, Ricouer (1969, p. 32), coloca que podemos
estabelecer com uma obra, com seus múltiplos sentidos, a partir da mediação que se estabelece
entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Maria de Jesus Martins da Fonseca, no texto:
“Introdução à Hermenêutica de Paul Ricoeur” nos traz um panorama sobre essa proposta de
discussão:

A hermenêutica de Ricoeur não consiste tanto na construção/captação do


sentido dos símbolos, dos mitos e das metáforas, num primeiro momento, pelo
seu excesso de sentido ou pelo seu potencial de sentido, ou seja, porque
contêm sempre mais sentido do que aquele que exprimem verbal e
literalmente e por isso mesmo necessitam de ser interpretados, e,
posteriormente, sobre a narrativa, na qual salienta o seu carácter inventivo e
criador, mas no esforço efectivo de compreensão de nós próprios e do mundo.
É que a narração permite a compreensão de nós próprios numa dimensão
temporal, isto é, histórica, mas, mais que isso, permite a compreensão de nós
próprios na nossa historicidade. (FONSECA, 2009, p. 2).

É uma proposta de compreensão de nós e do mundo em que vivemos, a partir das


personagens, de suas narrativas, atentando para como essas personagens se estabelecem dentro
do mundo do texto que habitam. Compreender dialogando, ampliando a visão para além dos
moldes culturais presentes em signos, símbolos e representações que constituem o texto,
sobretudo, o tem muito mais a nos dizer.
No diálogo que construímos com as personagens Débora, Jael, Ester, Maria de Nazaré,
Maria Madalena e Dorcas, percebemos um rompimento das distâncias e as diferenças culturais,
entre os mundos envoltos na leitura, os possíveis sentidos que requer essa interação para serem
compreendidos.
Dentro dessa discussão, compreender um texto é muito mais do que saber o que ele diz,
é uma busca constante de saber compreendê-lo, saber o que ele pode significar. E todo texto
236

está imbricado em signos, símbolos e representações que encontram na linguagem, o aporte


para se constituírem, mas também para serem interpretados. É essa ideia de interpretar, mas
também de (re) ler, de entrar na encantadora ação de ler, numas das infinitas possibilidades de
leitura de um texto. Ricoeur (1978, p.364) diz que “ao ler, eu irrealizo-me. A leitura introduz-
me nas variações imaginativas do ego”. Partilhamos da ideia de Mendonça (2019. p, 18) em
dizer que a arte de ler não é, senão uma arte de amar. Essa é a mais nobre das intenções de um
diálogo. É a arte de interpretar, de compreender senão as vozes, mas pelo menos reconhecer
que a Bíblia está permeada delas, mesmo quando parecem estar em silêncio, mas lá estão a voz
de Deus, dos anjos, voz dos homens, das mulheres, o celeste e o terreno, o humano e o divino,
numa misteriosa combinação.
Olhamos atentamente cada personagem e o modo como elas são desenhadas dentro das
narrativas, constituídas em suas ações e numa diversidade, como expõe Auerbach (2017). Um
quadro social plural, assim também são as personagens femininas. Profetisas, rainhas, servas,
escravas, discípulas, parteiras, comerciantes, de diferentes esferas sociais e todas elas, mesmo
silenciadas nos textos, falam muito e nos contam histórias.
Nos debruçando nos espaços vazios, na incompletude que habita a face do texto, e essa
necessidade de ser lido e ressignificado, entendemos essa cumplicidade de negociação entre ele
e o texto: ler e compreender um ao outro, pois a medida que o leitor se entrega ao texto, se
permite ser lido, penetrado, invadido pelas atrevidas palavras que saltam do texto para a vida
do leitor. Ao mesmo tempo, o texto se deixa lido, se entrega aos olhos ávidos do leitor e de sua
mente ansiosa por essa troca. Para Mendonça (2019. p, 39), “compreender é compreender-se
diante do texto. Lendo o livro que temos diante de nós, potenciamos o mergulho dentro de nós
próprios, num processo de autodecifração”. É também o que nos diz Ricoeur (1986, p. 52):

assim, interpretamos e atualizamos um texto quando nos apropriamos de sua


proposição de mundo, sem, contudo, conceber a apropriação como posse, mas
sim como despojamento: a hermenêutica convida a fazer da subjetividade a
última e não a primeira categoria de uma teoria da compreensão... Então, troco
o eu, dono de si mesmo, pelo si, discípulo do texto.

Aceitamos o convite feito pelo texto bíblico para nos entregarmos ao mundo do texto e
as personagens femininas. Elas foram escolhidas com muita atenção, tentando não sermos
injustos, por nossa admiração a todas as personagens bíblicas, mas como são muitas e diversas,
elencamos as protagonistas das narrativas bíblicas, categorizando-as com um olhar atento às
suas características, às ações ao longo de suas existências dentro do texto, percebendo como
237

elas se destacam e representam o feminino dento da Bíblia. Buscamos compreender as possíveis


motivações, atentando às disposições destas narrativas em que elas aparecem. Ricoeur (1969,
p. 18) nos aponta um caminho que vemos como fundamental para o fim a que esse capítulo se
propõe:

Ao superar esta distância, ao tornar-se contemporâneo do texto, o exegeta


pode apropriar-se do sentido: de estranho ele quer torná-lo próprio, isto é,
fazê-lo seu; é, portanto, o engrandecimento da própria compreensão de si
mesmo que ele persegue através da compreensão do outro. Toda a
hermenêutica é assim, explícita ou implicitamente, compreensão de si mesmo
através do desvio da compreensão do outro.

Assim é que pensamos agir, vencendo o afastamento e a distância do texto bíblico, das
demandas atuais em que se situa esse trabalho, entendendo, sobretudo, que essas personagens
femininas bíblicas são tipos humanos muito próximos da nossa realidade e, ao interpretá-las,
compreendê-las, estaremos buscando nossa própria compreensão.
Desse modo, nossa metodologia que se caminhou procurando fazer uma análise das
narrativas em que as personagens femininas aparecem, atentando para o narrador e
compreendendo como este foi construindo as personagens. Mesmo considerando os elementos
da narrativa, neste momento estamos voltados à perspectiva hermenêutica, pois faremos uma
(re) leitura, tendo o texto como o foco entendendo-o como inacabado, compreendendo seu
ressignificado.
É um aproximar-se para beber da fonte inesgotável de sentidos. É o que nos confirma
Mendonça (2019. p, 35) ler é perder o texto e o sentido idealizado, para aceder ao texto tal como
ele se dá a ler, no dinamismo revelatório que lhes é inerente. Sem isso não há leitura, nem
interpretação. Sigamos então, nessa proposta como Ricoeur (1969, p. 6) diz:

(...) se um texto pode ter vários sentidos, por exemplo, um sentido histórico e
um sentido espiritual, é preciso recorrer a uma noção de significação muito
mais complexa do que a dos signos ditos unívocos que uma lógica da
argumentação requer. Enfim, o próprio trabalho da interpretação revela um
desígnio profundo, o de vencer uma distância, um afastamento cultural, de
tornar o leitor igual a um texto tornado estranho, e, assim, de incorporar o seu
sentido à compreensão presente que um homem pode ter de si mesmo.

É preciso compreender os caminhos traçados pelo narrador, ao moldar cada


personagem, seguir as pistas dadas, nesse jogo do ocultar/revelar de que se revestem as
narrativas bíblicas, mediadas por símbolos da cultura, do social, da ideologia. O que
238

apresentaremos a seguir. O texto bíblico é o véu do templo rasgado, sem intermédio do


sacerdote, ele se abre para quem desejar se apropriar de suas possibilidades. Se descortina,
porque nos permite entrar, porém não se desvenda o mistério, o sentido, pois este é plural e
repleto de significados.

5.1 DÉBORA, JAEL E ESTER: PROTAGONISMO NO PRIMEIRO TESTAMENTO

Uma profetiza que intermedeia o contato de Deus com os homens, juíza que apazigua
as contendas e aconselha o povo, uma mulher que chama para guerra, convoca um exército, o
seu general e garante a vitória? Quem fez essas ações? Quem é ela? E uma guerreira,
seminômade, que habita em tendas, em terras desertas, que caça, conhece peças e técnicas para
a montagem de sua própria tenda, vive livremente distante de sua comunidade, ao lado de seu
marido. Capaz de tratar bem, recepcionar com grandeza um homem e depois matá-lo enquanto
dorme, ele dormia? Ou descansava? Quem fez essas ações? Quem é ela? E ainda uma órfã
tímida e ingênua, uma moça distante de casa, uma cativa em terras alheias, chega ao palácio em
situações não muito favoráveis, torna-se rainha e mulher de um rei Persa, sendo ela judia. Quem
fez essas ações? Quem é ela? Elas são respectivamente, Débora, Jael e Ester e essas personagens
protagonizaram o Primeiro Testamento, mostrando que o feminino que emana dessas ações,
foge dos conceitos de gênero pretendidos pelo narrador, pela cultura e contextos sociais dos
quais elas fazem parte, pois não é o mesmo modelo desenhado em outras narrativas.
Quando falamos sobre essas personagens e seus feitos, surge imediatamente, discursos
oriundos de machistas, pois ainda existem muitas mulheres condicionadas a assumirem
posturas antiética, frente aos seus caminhos de experiência, “experiência feminina”, situações
que se vive enquanto mulher, sob a exploração e dominação masculina e passam a querer apagar
o brilho dessas três personagens. (FIORENZA, 1992, p. 192). A autora coloca que é a partir das
experiências de vida, do lugar de fala, do olhar da mulher que se pode partir para as personagens
bíblicas esquecidas e desconstruindo narrativas androcêntrica.
Diante do protagonismo feminino nas narrativas bíblicas, o primeiro passo de quem não
olha com bons olhos o feminino, é atribuir a essas personagens, o lugar da exceção, em seguida,
apagar sua caminhada de ascensão de um lugar de conformidade para dominação, como propõe
Marston (2014), quando diz que elas não referenciam o feminino, não estão desempenhando o
papel segundo a vontade divina. Outro contra-argumento ao protagonismo destas personagens,
é afirmar que seu destaque está em serem mulheres submissas a Deus e a seus maridos, elas
eram instrumentos divinos que Deus precisava para aquele momento, havia a certeza da vitória,
239

e os homens estavam em todo tempo intermediando as ações dessas mulheres, ajudando-as.


‘Não haveria essas mulheres se não fossem seus maridos, ou homens lhes dando autonomia’, é
o que diz esse grupo. Assim como pensar que foram mulheres utilizadas por Deus, porque não
havia homens capacitados para serem eles os escolhidos, sobretudo, quanto a Débora e Jael que
estão no contexto da época dos juízes em Israel, compreendido por tempos de desordens, erros,
pecados e por essa razão as tribos sofriam castigos divinos por causa da deploração dos homens
e dos costumes.
Nesses discursos, há argumentos o suficiente para crer que o feminino, nesse momento,
era a escolha e a determinação divina e não seria possível que outra pessoa fosse tão apropriada
mais do que essas mulheres, para que se realizasse o que essas protagonistas fizeram,
principalmente pelo sucesso das ações e os resultados benéficos ao Israel Bíblico.
Desse modo, foram mulheres exceção e suas ações permitem a salvação do povo e a
continuidade da história e, portanto, não tinha outra opção senão registrar. Se outras
personagens, outros fatos foram retirados, esses não eram possíveis, mesmo com a ausência de
muitos detalhes, mas se sobressaem as ações destas três personagens. Pacheco (2015, p. 24) diz
que a narrativa acerca de Débora:

destoava do modelo de relação de gêneros pretendido pelos autores bíblicos,


que produziram e editaram o Livro dos Juízes. Neste sentido, a batalha descrita
poeticamente em Juízes 5 representa uma tradição cara demais aos antigos
israelitas para ser simplesmente descartada pelos deuteronomistas.
Consideramos que, se os autores bíblicos e algumas interpretações rabínicas
posteriores demonstraram polêmica no tocante a Débora, sua narrativa permite
reflexões acerca de experiências e práticas da fé nas quais a mulher ocupe
papel de destaque e possa assumir posições normalmente tidas como
exclusivamente masculinas.

É muito visível que o narrador traz a história de Débora no capítulo 4 e no capitulo 5,


em que se trata de um Cântico heroico, possivelmente, feito por Débora e Baraque, há uma
nova forma de narrar, com mais detalhe e riqueza de material linguístico, para se ampliar a força
e o protagonismo desta personagem. Nesse espaço, ela se constitui e se identifica, através de
seu relato, de uma voz dada a ela com muita propriedade. Débora também louva e destaca a
Jael e a considera uma heroína, por ter tido a coragem de matar o inimigo de Israel e
possibilitado o livramento a sua tribo e outras vitórias que se desencadeiam, a partir de Israel
livres do general Sísera e de seu poder.
Se em tempos de decadência dos homens, uma mulher se levanta e nela é encontrada as
qualidades para que Deus ajude o seu povo, isso é prova de que as mulheres estão preparadas
240

para tempos difíceis e, mesmo no anonimato, elas estão vivendo experiências de fé muito forte,
capaz de mostrar excelentes resultados. Ser a exceção não seria o problema, uma vez que vem
provar o protagonismo dessas personagens, por desempenharem um comportamento
diferenciado das demais, a questão é quando esse comportamento é visto como algo a ser
ignorado, apagado e não perpetuado. Quando o sucesso das experiências dessas mulheres não
é seguido como exemplo ou como definidor de um feminino pleno e instituído pelo divino.
Quanto a mediação masculina como definidora dos papeis destas mulheres, enquanto
heroínas, líderes de cargos civis, religioso, veremos que em todos os casos destas três
protagonistas femininas do Primeiro Testamento, os homens não tem espaço em suas narrativas,
não são a figura mais importante, e se dividem os espaços como no caso de Débora e Ester, eles
dependem da ação, da atitude destas mulheres para sua subsistência e do seu povo. Portanto,
não se trata de desprezar a figura masculina, mas a atuação das mulheres vai além do proposto,
do previsto do instigado, pois são elas as figuram centrais da ação e irrompem contra qualquer
amarra que as tente deter ou borracha que as tente apagá-las.

5.1.1 Débora: um zumbido de abelha no patriarcalismo

Ouvi, reis, dai ouvidos, príncipes; eu, eu mesma


cantarei ao Senhor;
Ficaram desertas as aldeias em Israel, repousaram,
até que eu, Débora, me levantei, levantei-me por mãe
em Israel.
Desperta, Débora, desperta, desperta, acorda,
acorda, entoa um Cântico;

O Cântico de Débora52

Acostumamos a ver nos relatos bíblicos, Moisés seguir para guerra, na condição de
profeta e comandante de guerra com Arão seu irmão, sacerdote. Ainda na condição de sacerdote
e profeta, tínhamos Samuel, o último juiz em Israel, depois dele se instaura a monarquia. Os
demais generais ou homens, heróis de guerra, ao partir para a batalha, consultavam a Deus,
através de um sacerdote ou profeta.

A Bíblia (ARA) Juízes capítulo 5 (juntamos os versículos 3,7 - 9), para compor o poema acima.
241

Quebrando esse ciclo masculino encontramos Débora, que além de profetisa e juíza,
atua como general que desce a guerra, convocada pelo chefe do exército de Israel. Ela não é
instituída sacerdote, seria impossível naquela sociedade em que ser homem era a condição
essencial de ser sacerdote. Porém Débora exercia em seu tempo, uma função aproximada de
uma sacerdotisa, atendendo as tribos do Norte, profetizando e aconselhando e tinha a admiração
de todos em sua época. Débora não estava em templos, mas debaixo das Palmeiras de Débora
e era justamente essa total independência que trazia um incômodo aos escritores
deuteronomistas, na edição dos textos, no período pós-exílio, não pelo fato de ser uma mulher
que profetiza, pois outras já haviam sido citadas na Bíblia, como Miriam (ÊXODO 15,20-21),
e Hulda (2 REIS 22, 14). Mas Débora acumula funções que eram estritamente masculinas.
Nesse pensamento, Pacheco (2015, p. 30) nos leva a refletir sobre algumas questões que
tornaram conflituoso admitir a liderança de Débora e tornaram propício o seu apagamento como
líder feminina, o que incomodava a aceitação de seu protagonismo:

Uma mulher é descrita exercendo a função na guerra que deveria ser dos
sacerdotes: declarar de que Javé iria a frente delas (Dt 20:2-4), elevando,
assim, o moral. Ou seja, “não havia rei em Israel” no tempo de Débora, porém,
como a elite sacerdotal levítica pós-exílica pretendeu transmitir, haveria
sacerdotes, e ela teria exercido uma atribuição que era deles. (...)Não
obstante, fica claro que, dentro da perspectiva de poder e sociedade
construída pelo judaísmo pós-exílico, uma heroína como Débora
constitui-se num incômodo. Seu cântico recorda, em forma de loa, um
período onde as relações de gênero eram mais flexíveis, com maior
espaço de exercício de poder por parte de mulheres ou, no mínimo, de
uma grande mulher do passado. E, indiferente da Palmeira de Débora
ser ou não parte de um Lugar Alto, falamos de uma profetisa que não
estava ligada nem ao Templo, nem a Jerusalém, nem aos Sacerdotes: os
únicos paradigmas de autoridade considerados legítimos pelos autores
bíblicos dos períodos monárquico, exílico e pós-exílio.

Primeiro, a submissão feminina é entendida tanto pela tradição judaica, como pelos
autores deuteronomistas e outros autores, intérpretes da Bíblia, na história de alguns
representantes do Cristianismo, que toda mulher a herdou da queda causada por Eva a
humanidade. A submissão vem como total diminuição do papel feminino, frente á cargos, a
projetos ou qualquer tipo de trabalho que não seja dentro do lar, ou que não passe pela
supervisão masculina. É o castigo divino para a mulher, constituindo-se a vontade divina para
com elas. Assim, em todo tempo a mulher dever está submissa ao homem não exercendo
qualquer destaque sobre ele. Não há nenhuma referência além do nome ambíguo, Lapidote que
242

pode ser o nome do marido de Débora. Mas ele não exerce influência sobre ela, não há no texto,
nenhum momento em que ele seja retomado, nem no cântico de Débora.
Inferir que ela seja mulher submissa, que Lapidote seja um homem de grande liderança,
ou bondade estrema que permitia que a mulher fosse a líder que fosse, são apenas inferências,
mais atreladas aos costumes do que possibilidade interpretativa do texto. É como se não se
pudesse ser uma mulher, a escolhida por Deus, a quem ele lhe deu dons de profetizar,
entendimento para liderar a ação para num momento de crise se dispor a ser quem poderia
mudar a realidade de seu povo e ficam, assim, buscando formas de apagar o feminino.
Mas, mesmo assim, compreender que a escolha para ser profeta era divina e ia além do
gênero, tornava aceitável que a mulher e não seu marido fosse escolhida por Deus, no entanto,
segundo Pacheco (2015, p. 34), a situação vai ficar tensa, quando no projeto de reorganização
da história e na tentativa de recuperar a identidade de povo judeu, o monoteísmo devia ser
priorizado, e todas as práticas que levassem a adoração de outros deuses deviam ser abolidas
do meio do povo.
Na cultura babilônica, muitos cultos eram feitos a outros deuses e sobretudo, a deusa
Asherá, que na sua totalidade tinham como sacerdotisa mulheres. O povo de Israel também
adotou esse costume de nos Lugares Altos, embaixo de árvores, construírem post-ídolos como
é citado muitas vezes na Bíblia e combatido desde o Pentateuco. Eles adoraram vários deuses
como também a Yaveh. Os bebedouros também eram lugares sagrados, e são citados no Cântico
de Débora. Estes especificamente eram lugares de cultos efetuados pelas mulheres.
Toda essa conjuntura parece fornecer o ambiente adequado, para perceber que Débora
era a autoridade maior, acima dela não havia outro a não ser o Deus de Israel a quem ela
cultuava. Ela, porém, confunde-se com uma das sacerdotisas que adorava nos Lugares Altos,
embaixo das Palmeiras e lá ela recebe as instruções e a profecia da vitória sobre os cananeus.
Pacheco (2015, p. 27) nos diz:

Também independente de gênero, qualquer autoridade exercida a partir de um


espaço que não Jerusalém - fosse ela religiosa, militar, política ou social –
seria um problema para a normatização cultica e política pretendida pelos
deuteronomistas desde a fase final da monarquia. Principalmente se falamos
dos territórios pretendidos ao norte – onde se localizaria a Palmeira de Débora
- e de teofanias nas quais a divindade se manifestava da montanha de um povo
rival, como Javé vindo do monte Seir (Jz 5:4), lar dos edomitas.

Nesse contexto, Débora torna-se mais grandiosa ainda em seus feitos, em sua coragem
e autonomia para ser e viver plenamente, um feminino diferenciado. Débora tinha um contexto
243

cultural extremamente adverso para uma mulher exercer qualquer função fora do lar, tinha um
contexto social preocupante, pois os Israelitas ignoravam as leis mosaicas e os princípios
religiosos, estavam há 20 anos sob o domínio dos cananeus, Jabim o rei, Sísera um importante
general. Sem nenhum acesso a espiritualidade, Sacerdotes representantes de uma teocracia em
crise, impotentes, as fronteiras das terras expostas, o sistema civil insuficiente, Débora diz: “até
que eu Débora, me levantei, levantei-me por mãe em Israel”.
Débora se incomoda com a situação e seus instintos de ajudar e de cuidar tornam-se
semelhantes ao colo materno. Ela estava mais preocupada com os filhos adotivos, uma nação
aos seus cuidados, do que criar seus filhos. Pode ser que ela os tivesse, mas cremos que o
narrador se importaria em dizer. Ela não se molda aos costumes, porque tem algo maior para
realizar, atender, acolher e encaminhar seu povo. Débora se assemelha a figura de Moisés, ela
cuida dos que a procura e se deixa gastar nessa função. Como se não bastasse, ela ainda pensa
na liberdade, na autonomia do seu povo. Ela é o feminino diante do poder, mas que não se volta
egoisticamente ao seu próprio bem-estar. Débora tem a estratégia e os caminhos pensados. Eles
convocam as tribos e vão juntos a guerra. Débora é a força que acalma, é a presença do divino
que garante a vitória, é a profetisa e a mãe que anima homens em plena guerra. Quando Baraque
afirma ir somente com Débora, esta complementa a profecia que dantes tinha dado, de que Deus
entregaria todo o exército nas mãos de Baraque, porém a honra de matar a Sísera não seria dele.
Alguns argumentam de que isso se daria para castigo a Baraque, por sua covardia de só
ter ido com a presença de Débora. Porém essa questão é também um modo de se sentir
incomodado com a liderança feminina. Tanto para diminuir a importância da palavra profética
de Débora, como a ação de Jael em matar o Sísera. Baraque não parece se entristecer por essa
profecia, não é covardia dele querer o apoio de alguém que há anos era um suporte para todo
Israel. Ele não foi desonrado por não ter matado Sísera, uma vez que a profecia de que ele
venceria o exército inimigo havia sido cumprida. O general também fugiu desamparado e
vulnerável. Baraque é citado ainda como herói por Débora, quando o louva e também a Jael.
Ele também é citado na tradição judaica como tal. A desonra é para Sísera que foi morto por
uma mulher.
Na tentativa de apagamento de Débora, ela é apresentada sem muitos detalhes, porém
em seu cântico de guerra, já posto como vitoriosa, Débora mostra que estava com a razão sobre
tudo que falou e escolheu fazer. Diante da vitória e da aprovação divina, sua palavra é validada
e sua atuação lhe garantia um nome na história, uma líder nata que, independente de atuar fora
de Jerusalém, nas tribos distantes, embaixo de Palmeiras ou templos, ela era uma grande
conciliadora, era destemida e corajosa e sua vocação a validava diante de todo um sistema
244

patriarcal. Dizer que Débora só foi a guerra porque Baraque impôs a condição, é tentar invalidar
sua coragem e a força que ela representava. É a inquietação que traz a figura de uma mulher,
entre homens, além dos muros de casa. Porém, não é o que traz o Cântico de Débora em seu
original. Ao longe, montada em seu cavalo, gritos de uma mulher guerreira e de fé ecoam. São
os gritos de Débora: despertem, homens, vamos à luta e Deus pelejará conosco”. E Deus
pelejou.
A vitória do exército de Israel comprova a fé e a coragem de Débora, sua certeza diante
do que cria e a confirmação de seus dons proféticos. O exército de Israel era pequeno e
despreparado, por essa razão nenhum homem foi corajoso o bastante para enfrentá-lo. Em
contraponto, o exército de Sísera era formado por grande poder bélico e só de carros de ferros
haviam 900 (JUÍZES 4,13), eles desceram ao Ribeiro Quison, conforme Débora havia dito, que
eles desceriam. No capítulo 4, não diz como se deu a derrota desse exército cananeu, diz apenas
que o Senhor derrotou Sísera. É no cântico de Débora que vamos ter a ideia de como se deu
tamanho evento. Ela vê o Deus de Israel indo adiante de Baraque, ela o vê descendo do monte
Seir, como ela canta53 e conta depois:

Saindo tu, ó Senhor, de Seir,


marchando desde o campo de Edom,
a terra estremeceu;
os céus gotejaram,
sim, até as nuvens gotejaram águas.
Os montes vacilaram diante do Senhor,
e até o Sinai diante do Senhor, Deus de Israel.

A batalha se tornou favorável aos aldeões, que se aproveitaram do constrangimento dos


inimigos e atacaram o que ocasionou a derrota e a fuga do General Sísera. Pacheco (2015, p.
34) diz que:

As tropas cananeias dispunham de organização militar mais sofisticada, bem


como a tecnologia superior na forma dos temíveis carros de ferro. A própria
passagem bíblica ressalta esta vantagem do inimigo, valorizando o feito de
Israel (Jz 4: 3, 7, 13, 15). Do lado israelita, a descrição das tropas demonstra-
as compostas de aldeões (perãzõnô) e foragidos (sârîd), provavelmente
munidos com armamento inferior e improvisado - ferramentas agrícolas,
fundas, etc.

53
Juízes 5: 4 a 5 – O Cântico de Débora
245

É sem dúvida um grande feito para uma mulher, de quem só esperam que estejam em
casa cuidando dos filhos, Débora estava cuidando de uma nação e sobre a sua palavra, as
palavras de Deus ganhavam materialidade. A ela deve-se um cântico de heroína, pois seus feitos
não puderam ser apagados na tradição judaica, nem deve ser entre os leitores da Bíblia. Uma
personagem a ser lembrada como referência de um feminino em conformidade com o querer
divino:

O Cântico de Débora*

Narra a história sem precedentes


Personagens ganham força e cores
Antes disformes, inconsequentes
Agora, ornado com garra e flores

Onde rugia um triste leão


Julgou com prudência, a fina abelha
A dura espada apaziguava o coração:
- A luz que precisa da fiel centelha!

Sejam como o sol os que amam a verdade


Bem-aventurados os que pregam a justiça
Um cântico entoa a tenacidade
E exalta a vida ante a cobiça

Nunca esquecida, a mãe da coragem


Fina roupagem, no real sentido
Estando presente em toda linguagem
O gênero forte do mundo oprimido

A música entoa a felicidade


A rima apregoa a sinceridade
A cabra selvagem faz pouco da guerra
E faz do amor o húmus da terra

(uma homenagem a Débora e a Jael por Paulo Freitas)

5.1.2 Jael: guerreira, heroica e irônica

Entra, Senhor meu, entra na minha tenda, não temas!


Juízes (4,18)

As palavras de Jael ao ver de longe o General, confortaram o coração daquele guerreiro


fugitivo e cansado. Estava diante de uma fuga e todo cuidado era pouco, pois estava em terras
inimigas. O chamado de Jael o fez olhar para quem era que falava e não lhe foi difícil perceber
246

que estava diante de uma mulher, a mulher de um Heteu: Héber, amigo do rei Jabim, o seu
Senhor. De qualquer forma, não era tão simples aceitar o convite e entrar, mas o General entrou
e Jael o recebeu com muita hospitalidade. Jael, parecia ser conhecida do General, seu marido
era pacífico e parecia ter boas relações entre os dois povos. Eram heteus, mas tanto tinham paz
com Jabim, como habitava próximo as tribos do Norte, terra de Débora e Baraque.
As poucas informações que o narrador nos concede sobre Jael, de polidez e ocultamento
que não nos deixa ter a certeza de como se deram os acontecimentos. Porém, se era um tempo
de muita chuva, de atoleiro e o general tinha deram caminhado sobre esse tempo, ao chegar na
cabana devia estar encharcado, com frio e cansado, por isso, o texto diz que ela lhe trouxe uma
toalha. Ele parece mais confiante e lhe pede água, Jael lhe dá qualhada, leite fermentado
guardado em odres de couro, que é semelhante a uma iguaria, é algo que só se dá a convidados
ilustres. “Água pediu ele, leite lhe deu ela; em taça de príncipes lhe ofereceu nata”. (JUIZES
5):
Estando completamente acolhido, o general se entrega ao descanso, coberto ou
escondido por um tapete. Ele pede a Jael para que guarde a porta, e minta se perguntarem se há
alguém na tenda. É neste momento que Jael pensou muito sobre o que ia fazer, ficou dividida
entre a quem seria leal, se ao amigo do seu marido ou ao seus parentes israelitas, mesmo distante
naquele momento, ao ver deitado e inerte, um inimigo dos israelitas, ela estendeu a mão e o
matou com um prego que segurava sua cabana e um martelo. Assim, cravou-os na fronte e
prendeu a sua cabeça ao chão com a estaca, deixando-o morto, não se sabe por quanto tempo,
até que Baraque procurando, foi achado também por Jael que entregou a ele o corpo do Sísera.
É essa nossa concepção de como se deu a morte, no narrar do narrador do capítulo 4. Pois no
Capítulo 5, encontramos outra possibilidade de como se deu a morte. A ação de Jael é louvada
no Cântico de Débora, o assassinato que cometeu não é julgado profano em Israel, por se tratar
de um inimigo. Jael, transgrediu a lei da hospitalidade, matando seu hospede, e também o 6º
mandamento: Não matarás! “Bendita seja sobre as mulheres Jael, mulher de Héber, o queneu;
bendita seja sobre as mulheres que vivem em tendas”. Jael, mesmo não sendo pertencente ao
povo Israelita, passa agora a ser uma heroína, aquela de quem Débora predisse que abateria
Sísera e ele realmente foi morto por ela.
A narrativa de Jael não é a única que tem como enredo, uma mulher matar um general.
Na tradição judaica temos três mulheres: Jael, Juízes (4,17), uma mulher anônima que mata
Abimeleque com uma pedra no crânio, quando esse ia tomar a torre de Tebes, Juízes (9,53), e
Judite que está apenas na Bíblia de tradição católica, pois apresenta, segundo Conselho ter
247

heresias, ou ações indevidas que o constitua como inspirados por Deus, justamente por se dizer
abertamente que Judite seduziu Holofernes, esteve com ele na intimidade e depois o decapitou.
No caso de Judite, ela é a única que maneja a espada, e esta é da própria vítima. A
mulher anônima usa como instrumento uma pedra de mó, que é jogada do alto, e Jael, mesmo
o general tendo fugido com a arma, ela o mata com os instrumentos da sua barraca. Em ambas
histórias, há cantos de louvores a essas mulheres, por terem salvo o povo de Israel, sido
instrumentos divinos para a justiça a homens perversos. No caso da anônima que matou
Abimeleque, não há um hino, mas o narrador ressalta no verso 57, que Deus havia feito cair o
mal que o próprio Abimeleque havia causado aos seus irmãos, visto que ele os tinha matado.
Um feminino que é capaz de seduzir, agradar, convencer, surpreender e matar a quem
julgue merecer. Jael se difere das outras mulheres, seu instinto maternal é premeditado, pois
tem coragem de matar com crueldade, ver sua vítima, entregar seu corpo e se fazer parte de um
povo, escolhendo seu destino, seu pertencimento, sua escolha de vida pessoal, movida talvez
pelo encantamento às tradições e fé do povo de Débora e de Baraque. Jael é a ironia em pessoa,
pois para Sísera ela parecia favorável, não podemos afirmar, mas não duvidamos que ela lhe
foi agradável aos olhos. Parece um providencial socorro dos seus deuses: achou no deserto uma
bela mulher, e se não lhe foi possível recordar quem ela era, em meio a tanto cansaço e medo,
ele foi convencido pela forma que o tratou e se mostrou cordial. Jael usou a influência que a
leva do lugar de submissão a dominação total da situação.
A morte de Sísera é cercada por algumas contradições que nos faz perceber a diferença
entre o capítulo 4 e o 5 em que esse último, trata-se do Cântico de Débora. O narrador diz que
Sísera adormeceu e só então Jael o matou enquanto dormia. Porém, no Cântico de Débora,
afirma que ele caiu aos seus pés, dando a ideia de que ele apenas estava descuidado. Lá
encontramos uma possibilidade de interpretar que pode ter sido ocultado qualquer insinuação
de sensualidade, ou de uma possível relação sexual entre eles, como se fosse a forma de Jael
fazê-lo entrar na tenda confiante e depois ficar sonolento. Mesmo sabendo em relação a tudo
que se refira a sexualidade, sempre usarão termos eufemistas, amenos e nunca vulgar, para se
referir a uma relação por exemplo, mas editores deuteronomistas tiveram um cuidado em editar
o texto, retirando possibilidades de duplo sentido. Porém Débora diz:

Aos pés dela se encurvou,


caiu e ficou estirado;
a seus pés se encurvou e caiu;
onde se encurvou, ali caiu morto.
248

No original da Bíblia hebraica o verbo “curvou-se” está representado pelo verbo kâra
que significa tanto dobrar o joelho, prostrar-se, baixar-se, abater, cair, ferir, subjugar. Pode
também curvar-se de joelho, cansaço, encurva-se para relação sexual, para o parto, ou ainda se
encurvar ferido, por ferimento. Por essa razão, o mesmo verbo designa diferentes situações de
uso em que o contexto define o significado.
Débora dá a entender que ele não estava dormindo deitado simplesmente. E disso pode
decorrer significâncias que convém apurar, como realmente se as ações entre eles. Ela vai mais
além quando apresenta as outras mulheres num contraponto entre Jael e a própria Débora que
estão na guerra, enquanto elas esperam passivamente seus homens:

A mãe de Sísera olhava pela janela


e exclamava pela grade:
Por que tarda em vir o seu carro?
Por que se demoram os passos dos seus cavalos?
As mais sábias das suas damas respondem,
e até ela a si mesma respondia:
Porventura, não achariam e repartiriam despojos?
Uma ou duas moças, a cada homem?
Para Sísera, estofos de várias cores,
estofos de várias cores de bordados;
um ou dois estofos bordados, para o pescoço da esposa?

As mulheres em casa, a mãe de Sísera, as damas de companhia relembram os costumes


dos soldados em usufruírem dos bens de seus cativos, no caso de suas filhas e mulheres, que
também eram despojos de guerra. Elas eram imediatamente abusadas, repartidas entre os
homens e levadas presas. Teria Jael dado ao general o seu pago? Usado o seu corpo e depois o
matado? Encurvou-se para um ato sexual e foi abatido por Jael. Possivelmente, Jael, com toda
sua sedução, faz ele entrar numa tenda, o que não era permitido aos homens, também para
deixá-lo em total confiança, é possível que Jael tenha deixado transparecer essa intenção e
depois o abateu. Há um silenciamento, um ocultar de detalhes, contradições evidentes e
propositais que nos permitem entender como espaços adequado ao leitor para fazer suas
conjecturas. O que não se pode é negar que Jael não permitiu que Sísera voltasse para sua mãe
e naquele dia não houve despojos para serem repartidos.
Tanto a descrição de Jael, sua origem, características, o modo como agiu para alcançar
seu objetivo de exterminar Sísera e ajudar a Israel, tudo fica por conta do leitor, das inferências
que o texto permite e da liberdade inerente a interpretação que se queira dar ao texto, buscar no
texto, ou no além texto, nas infinitas possibilidades. É difícil admitir essa possibilidade, porque
249

Jael é louvada pela virtude de ter livrado o povo e sua figura passa a ser de uma heroína com
virtudes, mesmo sabendo que tanto Rute, como Batsebá, Tamar, Raabe, são louvadas pelos
israelitas, embora saibamos que suas condutas e condição moral perante eles não era de
mulheres quistas. Mas elas são louvadas pelas suas conquistas que beneficiam o povo e passam
a ser exemplos dentro da comunidade.
Assim, a mesma sensualidade, o corpo feminino tão censurado, controlado, passa a ser
louvado quando se justifica os meios para os fins. Tanto em Débora como em Jael estão
presentes as significações da cultura judaica, elas simbolizam o Deus da luta, da guerra, que se
manifesta nas atividades marcadas pelas batalhas em favor de seu povo. Assim como os homens
guerreiros que defendem a terra e o povo dos inimigos, se tornando defensores de Deus como
Moisés, Josué, Gideão e Sansão; Débora e Jael se revestem também desse mesmo “modo de
ser” heroínas, guerreiras, que indo ou não a guerra, não foge da luta, nem da batalha, quando
esta é pelos seus ideais ou do seu povo. São as que coordenam, lideram, matam e defendem
suas vidas, os interesses divinos, mesmo que os meios não sejam assim, tão nobres, mas assim
se tornam, se o fim for a continuidade do povo israelita, ou mais tarde, dos judeus.
Se a constituição dos papeis de gênero se dá na diferença como afirma Woodward
(2014), no que se refere ao que o homem ou mulher podem fazer, o que lhe compete
socialmente, essas personagens mostram que são capazes de agir com os mesmos parâmetros
sociais que agem os homens, elas fazem tal qual eles, salvo pelas suas peculiaridades. E se esse
feminino é louvado, se suas atitudes são aprovadas, elas nos deixam lições importantes sobre o
papel da mulher dentro das camadas sociais e modelos para as organizações destas novas
sociedades. Será que atribuir ao feminino, espaço limitantes, é de fato a vontade divina? Assim,
o desfecho da história destas duas heroínas está posto no próprio final do Cântico de Débora:

Assim, ó Senhor, pereçam todos os teus inimigos!


Porém os que te amam sejam como o sol quando sai na sua força.
E sossegou a terra quarenta anos.

Jael é, pois, um sol em sua força, sua atitude, junto ao ímpeto de Débora trouxeram a
paz aos homens e o sossego à terra.
250

5.1.3 Ester: O feminino entre a submissão e à dominação

E depois, ainda que seja contra a lei, irei ao rei;


se eu tiver de morrer, morrerei!”
Ester (4,16)

Uma menina apenas e já tem as primeiras perdas dolorosas de sua vida: fica sem pai e
mãe, resta-lhes apenas o primo Mordecai. Ester parece uma estrela que ainda não brilhou. Outro
golpe é a perda de sua pátria, em terras distantes, ela relembra a vida que não aconteceu. Mas
Ester é meiga, é delicada, a vida não lhe tirou a beleza física nem a de seu espírito observador.
De repente, toda a Susã se movimenta com as notícias semanais que vem do mundo dos
que mandam: o palácio do grande Assuero. Comenta-se que a Rainha Vasti enlouqueceu e
desobedeceu ao rei. A rainha reuniu as mulheres e se recusou a aparecer na festa do rei, onde
todos os homens estavam bebendo e admirando as riquezas que o rei fazia questão de propagar.
Vasti devia vir, nua talvez, somente com a coroa na cabeça, para que todos vissem como era
bela. O rei pediu que: “introduzissem à presença do rei a rainha Vasti, com a coroa real, para
mostrar aos povos e aos príncipes a formosura dela, pois era em extremo formosa”. (ESTER 1,
11). Mas Vasti não se deixou intimidar e comprou uma briga com os conselheiros reais, pois
temendo perderem o domínio sobre suas mulheres, e que elas como a rainha, insurgisse contra
o poder masculino, pediram que o rei destituísse a rainha de seu posto, como lição as demais
mulheres. Segundo Paula (2017, p. 82):

O comportamento arredio da rainha Vasti e sua recusa em servir ao rei criam


um precedente do comportamento feminino inaceitável para a cultura e para a
sociedade ali representada. O que se deve castigar não é só a atitude da rainha
Vasti, mas toda possível insubordinação.

Mas o rei amava Vasti, só depois se deu conta de seus atos, porém, era tarde e a solução
foi dada: o rei precisa de uma nova mulher, uma rainha a sua altura. Ao invés de buscarem no
harém do rei, criaram o concurso “a rainha do ano”, e recrutaram todas as moças virgens do
reino, sem lhes perguntar se desejavam concorrer a vaga.
Ester é levada ao palácio e todos notam que ela é diferente. Bela e graciosa, ganha
vantagem com a comissão que cuidava das moças concorrentes. É uma narrativa lírica e em
alguns momentos poética. Essa é uma narrativa bíblica que traz a origem das comemorações
251

das festas do Purim, mostrando como essa tradição só foi possível pela coragem de
Ester em defender o seu povo.
No começo, o perfil de Ester é de uma moça quieta, submissa que aprendeu desde cedo
a se conformar com as surpresas da vida, a deixar que decidissem sua história, ela nada pediu,
nada quis dos presentes que eram dados às moças: “Ester, filha de Abiail, tio de Mordecai, que
a tomara por filha, quando lhe chegou a vez de ir ao rei, nada pediu além do que disse Hegai,
eunuco do rei, guarda das mulheres. E Ester alcançou favor de todos quantos a viam.” (ESTER
2,15). Ester é amável e comedida, submissa até ao eunuco, segue dócil e delicada. Mas ela
ganha o favor de todos, o Rei também lhe é favorável e ela ganha a coroa, pois instantaneamente
o rei a ama, mais do que a todas as mulheres, sua beleza natural se sobressai às demais. Assim,
a menina de Mordecai, que agora está indo para o palácio ser mais uma esposa de um rei
estranho, se torna Hadassa, a rainha dos Persas.
Desse modo, a Ester não é dada a fala, nem há muitos diálogos em discurso direto que
nos permita ir conhecendo o seu estado de Espírito, o que pensa e como se adapta ao mundo do
palácio. Confinada, a mesma angústia do leitor é confirmada por Mordecai que está sempre às
portas do Palácio, buscando saber sobre ela. Ele a orienta desde sempre, e ordena que ela não
revele sua identidade. Tudo parece ir bem, aos poucos, Ester vai aprendendo a lidar com a nova
vida, se molda e aceita as condições enquanto rainha, um título que não lhe confere poder nem
destaque, uma vez que a figura do rei ainda é a central, e no meio da narrativa transitam outros
nomes masculinos, sobre os quais a intriga vai se desenhando.
O narrador tece os passos, como quem vai movendo as peças de um xadrez para o xeque-
mate, aparentemente não há ainda espaço para Ester aparecer, mostrar seu valor além da beleza
que conforta e cura um homem desolado pelo seu orgulho machista. Ester é mais uma das
esposas, e parece aguardar a sua vez de ser chamada a presença do rei. Mardoqueu é seu contato
com o mundo fora do palácio e dentro do palácio ela parece enclausurada, junto as suas criadas.
Mordecai é alguém que vive próximo ao palácio que, aparentemente tem um cargo inferior,
mas é um funcionário, pois esta “às portas do rei”. Foi assim que Mordecai, descobriu a
conspiração de outros também guardas da porta que tramavam contra o rei como consta em
Ester (2, 21 - 23):

Naqueles dias, estando Mordecai sentado à porta do rei, dois eunucos do rei,
dos guardas da porta, Bigtã e Teres, sobremodo se indignaram e tramaram
atentar contra o rei Assuero. Veio isso ao conhecimento de Mordecai, que o
revelou à rainha Ester, e Ester o disse ao rei, em nome de
252

Mordecai. Investigou-se o caso, e era fato; e ambos foram pendurados numa


forca.

Desse modo, é possível compreender que Mordecai é mais do que um simples homem
que perambula nas portas do palácio, ele não tem ainda reconhecimento perante o rei Assuero,
que enaltece ao cargo de primeiro ministro o príncipe Hamã, o Agagita. E nesse ponto que se
inicia uma trama narrativa mui articulosa. Assim, o narrador retoma um personagem da
linhagem do Rei Saul, e outro parente do rei Agague, Rei dos amalequitas, aquele a quem se
opunha a Saul e segundo as ordens de Samuel, na guerra contra Amaleque, Israel não devia
pegar despojos de guerra, nem deixar vivo o Rei Agague. Saul desobedece e ainda sacrifica ao
Senhor Deus com os despojos, depois da vitória, se apropriando da função de sacerdote sem o
ser.
Segundo o livro de 1Samuel (15, 10), Deus rejeita Saul como rei e ordena a Samuel que
o avise e o castigue. Saul implora que Deus perdoe e que Samuel vá adorar a Deus com ele,
porém Samuel não quer e na insistência, Saul rasga o manto de Samuel, que prediz que o reino
de Saul também será tomado e dado a um de seus compatriotas e seus descendentes não
reinariam em Israel. Agague é morto pelo sacerdote. Tempos depois, lá em Susã, depois dos
reinos de Davi e Salomão, chegado o cativeiro do povo, a nova intriga entre um herdeiro de
Saul e Agague surge. Mordecai é benjamita descendente de Jair, Simei e Quis, o pai de Saul,
o primeiro rei de Israel. E Hamã por sua vez é Agagita, ou seja, descendente do rei Agague. As
diferenças entre eles vêm de muito longe. Embora nesse contexto, durante esse período do
exilio, os hebreus são conhecidos como judeus, os do reino de Judá, o narrador faz questão de
ressaltar que Mordecai é benjamitas, ou da tribo de Benjamim. A mesma tribo da qual era o rei
Saul.
Mesmo em outras terras, Ester está no meio dessa situação e senta no trono da Pérsia,
retomando o reino de Saul, ao invés de Mordecai, a oportunidade surge para Ester, uma mulher.
Mesmo Mordecai e Ester estando cativos na Pérsia, eles têm linhagem real. Ester é diferente
das demais moças, de forma que Mordecai lhe educou com muita presteza. Ela sabia que nos
domínios do palácio, era tão educada e graciosa, tal qual Daniel54 nos domínios da Babilônia.
Se os jovens de Israel se destacavam por saber mais e serem mais preparados do que os demais,
Ester também é. Ela mantém toda descrição, mantinha também sua obediência em guardar sua

54
A Narrativa de Daniel encontra-se no livro que leva seu nome. Daniel era um príncipe judeu levado cativo a
Babilônia, sendo um dos sábios reconhecido por sua cultura, saber e arte de interpretar sonhos. Segundo a tradição
judaica, esse jovem teve as principais revelações apocalíptica. Mas sobre Daniel está no seu livro Bíblico.
253

etnia, caminhando com muito cuidado no chão que pisa, seguindo os conselhos de seu pai
adotivo.
Nessa disputa pela a atenção do Rei, enquanto Mordecai é um simples funcionário, o rei
dá ordens para que Hamã seja venerado e que todos os homens o reverenciem ao vê-lo passar.
Mordecai não o faz. Ele declara que por ser judeu não se prostra a homens e nem a deuses. E
entre as razões pelo qual ele não faz isso, Flavio Josef vai destacar duas: primeiro, porque
enquanto judeu ele vai condenar qualquer ato que lembre a adoração a deuses; segundo porque
ele sabia de que se tratava de um Agagita, parente de Agague. Porém, quando o príncipe percebe
que todos o saúdam, menos Mordecai. Josef 55diz:

Quando Hamã observou isso, ele perguntou de onde veio; e quando ele
entendeu que era judeu, teve indignação e disse dentro de si mesmo que,
enquanto os persas, que eram homens livres, o adoravam, esse homem, que
não era melhor que um escravo, não se responsabiliza por fazer isso, assim. E
quando ele desejou punir Mardoqueu, achou muito pequeno pedir ao rei que
somente ele fosse punido; ele preferiu abolir toda a nação, pois era
naturalmente um inimigo dos judeus, porque a nação dos amalequitas, da qual
ele era; tinha sido destruído por eles.

Desse modo, há uma questão religiosa, mas também nacionalista em Mordecai e Hamã.
Talvez ele soubesse de que se tratava de um parente do rei dos Amalequitas Agague, já que
Hamã era um amalequitas ou Agagita. Era a continuidade de uma questão de família, mas esse
ato de Mordecai vai gerar um problema para toda nação judaica, inclusive para a sua prima
Ester, a rainha. Ester agora tem um problema que vai impactar sua tranquilidade, como vai lhe
exigir muita habilidade para lidar com tão grande conflito. No mundo de homens, ela vai ter
que lutar para pacificar a situação. De um lado seu marido deu poder a Hamã e estipulou a
homenagem a ele. Por outro lado, seu pai não cedeu nem ao rei e nem a Hamã e gera o problema
maior para o povo, provocando o acordo entre o rei e Hamã para extermínio dos judeus. Hamã,
gozando de prestígio e garantido muitos valores aos cofres do rei, consegue a lei que aniquilaria
todos os judeus da Pérsia. O texto Ester (12,13 -15) diz que:

Chamaram, pois, os secretários do rei, no dia treze do primeiro mês, e,


segundo ordenou Hamã, tudo se escreveu aos sátrapas do rei, aos
governadores de todas as províncias e aos príncipes de cada povo; a cada
província no seu próprio modo de escrever e a cada povo na sua própria língua.
Em nome do rei Assuero se escreveu, e com o anel do rei se selou. Enviaram-
se as cartas, por intermédio dos correios, a todas as províncias do rei, para que

55
Josef Antiguidades dos Judeus XI 6: 5
254

se destruíssem, matassem e aniquilassem de vez a todos os judeus, moços e


velhos, crianças e mulheres, em um só dia, no dia treze do duodécimo mês,
que é o mês de adar, e que lhes saqueassem os bens.

Depois de tudo feito e selado, era questão de tempo ou de data para o tal dia. Toda a
região fica sabendo e o Rei e Hamã comemoram o acordo com bebedeira. É nesse contexto que
Mordecai se dá conta de que o conflito havia ido muito longe e somente Ester poderia intervir
nesse momento. Porém quando Ester sabe de que Mordecai está vestido de panos de saco, uma
simbologia de humilhação feitas pelos judeus diante de Deus, imediatamente, pede que seu pai
tome posto no seu trabalho vestido adequadamente. Mordecai lhe revela tudo que está
acontecendo. Ele manda falar para ela:

Também lhe deu o traslado do decreto escrito que se publicara em Susã para
os destruir, para que o mostrasse a Ester e a fizesse saber, a fim de que fosse
ter com o rei, e lhe pedisse misericórdia, e, na sua presença, lhe suplicasse
pelo povo dela. (ESTER 4,8).

Ester, nesse momento, se dá conta de que Mordecai tinha gerado uma situação
desconfortável, mas ele é enfático alertando que não só ele seria atingido, mas o povo judeu e
a própria Ester. Ele a lembra de que Deus pode salvar de qualquer forma, mas era ela quem
estava na posição de salvar o povo. Isso revela a expectativa de Mordecai, porém suas ações se
limitavam até ali. Era Ester quem se movimenta pelo palácio e cabia a ela agora fazer valer sua
posição de rainha. Entretanto, Mordecai e Ester se dão conta de que a situação saía do controle,
uma vez que ela como rainha, não tinha tanto poder, nem acesso ao rei. Hamã nesse caso, era
muito mais bem quisto e solicitado do que a própria rainha. Era a hora de solicitar a ajuda
definitiva através da fé, pois só ela podia dar a Ester as estratégias para a vitória.
Ester agora passa a dar os passos a Mordecai, dizendo que iria jejuar e orar com suas
moças e romperia com a lei de proteção ao rei, pois essa era devido as tentativas de assassinatos
já sofridas, de modo que só entrava ao rei, aquele que ele chamasse e para ele levantasse o seu
cetro. Ester confidencia que já fazia um mês que o rei não a solicitava. Mas Ester promete que
em três dias, para viver ou para morrer iria a presença do rei. Mordecai aceita convocar o povo
e segue também para ajudar Ester com seu sacrifício. Ela segue orando com todos os seus povos,
pois até os seus servos ela influencia para jejuar com ela e interceder pela sua vida. Assim, Ester
vai pensando como proceder e, iluminada, ao término dos três dias, ela encerra o jejum e segue
para o encontro com o rei. Ester que antes tinha ido de forma simples, com poucos apetrechos
ao rei, agora foi vestida com toda a glória de uma rainha.
255

Nesse ponto, é notável como a rainha transita entre a conformidade com as leis do
palácio e a sua ousadia em influenciar, discutir e apresentar uma proposta caso o rei a atendesse.
Ela usufrui de sua condição de rainha e mulher de estrema beleza, como também sua coroa e
os brilhos que o rei admirava, pois ele queria mostrar a grandeza da coroa de Vasti a beleza por
certo chamaria atenção. Ester tinha mais que beleza, tinha ação e dia a dia, nas situações
impostas, aprendia a negociar, a transformar-se de menina ingênua, numa mulher
influenciadora.
Na verdade, Ester é uma personagem com o perfil que segundo Alter, tem capacidade
de transformação e são tratados com a maior minúcia, a par da noção bíblica do indivíduo, como
figuras que se desenvolve e se transforma ao longo do tempo (ALTER 2007, p. 192). São
mutáveis e vão se transformando ao longo do texto, modificando a própria narrativa.
Ao terceiro dia, Ester se aprontou com seus trajes reais e se pôs no pátio interior da casa
do rei, defronte da residência do rei, que estava assentado no seu trono real fronteiro à porta da
residência (ESTER 5,1). O rei estende o cetro para Ester, que diante da surpresa e alegria de ser
recebida, quase cai, ainda fragilizada pelo jejum, mas o rei a sustenta e diz que ela pode pedir
o que quiser. Ester sabia o que queria e assim o faz, convida o rei para um banquete em sua
casa e pede que este leve o príncipe Hamã.
Como vemos, não se trata de apenas usar a beleza para alcançar seu intuito, mas de uma
estratégia de conseguir a atenção do rei para que ela faria depois. As condições começam a ficar
favoráveis para Ester que agora passa a coordenar a situação, dando passos pensados e
meticulosamente programados para o fim que anseia. Para Marston (2014), a mulher tem a
capacidade de negociar, influenciar e mudar de acordo com suas emoções de um perfil de
comportamento para outro. Bauman (2005), fala-nos da identidade constituída fora do sujeito,
nas situações imediata. Ester consegue fazer essa transição entre a figura vulnerável e
obediente, para uma mulher consciente do que quer, sabendo com quem está lutando. É um
ambiente desfavorável e atemorizador, mas ela caminha passo a passo, construindo o seu
espaço. Assim ela dá início ao seu projeto estratégico que nos deixa atentos aos desfechos.
Foram dois banquetes. No primeiro, o rei chega com o orgulhoso príncipe Hamã que
estava todo contente com suas honras, não nos custa acreditar que Hamã tenha confundido as
ações de Ester em bem tratá-lo, com algum interesse amoroso por parte da Rainha. O texto não
nos dá nenhuma ideia nesse aspecto, porque seria desonroso registrar que a rainha estava se
insinuando para um homem. Porém, não fica difícil imaginar o que se passa na cabeça do rei
Assuero quando Ester insiste que ele leve Hamã. Quando indagada sobre o que Ester queira
naquele banquete, ela pede ao rei que junto com Hamã, ele venha a outro. Disse Ester:
256

Se achei favor perante o rei, e se bem parecer ao rei conceder-me a petição e


cumprir o meu desejo, venha o rei com Hamã ao banquete que lhes hei de
preparar amanhã, e, então, farei segundo o rei me concede. Então, saiu Hamã,
naquele dia, alegre e de bom ânimo; (ESTER, 5,8).

Nesse sentido, Ester é gentil, delicada com as palavras, mas seus passos são certeiros.
Tão astuta quanto foi Jael, recebia bem o hospede, mas iria matá-lo em seguida. Ester trata-os
com respeito e submissão, porém ela caminha para o domínio da situação, agindo tal qual Hamã,
estrategicamente, ele prepara o fim de Ester, Mordecai e os judeus, mas Ester prepara-lhes, a
forca certeira. Ester precisava que o rei acreditasse em sua palavra e percebesse quem era Hamã,
e, por isso, ele estando duvidoso sobre Hamã, desconfiado de suas intenções era mui
conveniente. Neste período entre o primeiro e o segundo banquete, o rei não consegue relaxar
nem dormir. Estava muito ansioso, sem dúvida para saber o que se passava com Ester, Hamã,
o que queria, pois, a Rainha.
O narrador vai sempre trazendo o foco para Mordecai, ressaltando que leram para o rei
justamente, a história de como o rei foi salvo por Mordecai. Surge exatamente a narrativa de
como Mordecai havia salvado o Rei. Há de se concordar com Alter (1917, p. 60), quando este
declara que:

Neste contexto, a narrativa que mais se assemelha a uma novela, o livro de


Ester segundo Alter (2017, p. 60): Essa história que se desenrola após o exílio,
e que se apresenta como parte da história política da principal comunidade da
diáspora, consiste na realidade numa espécie de conto de fada-a linda donzela,
guiada por um sábio padrinho, se torna rainha e salva seu povo – ricamente
embelezado pela imaginação satírica; seu aspecto cômico diverge da
verossimilhança histórica de um modo rara vezes encontrado na narrativa
hebraica anterior ao exílio(...).

Pela manhã, ironicamente, o rei consulta Hamã sobre como honrar alguém que o Rei
gosta. Hamã, pensando ser ele, dita um cortejo real, porém o homenageado é Mordecai e Hamã
executa a ação pelas ruas. Numa total humilhação, Hamã prepara uma forca para Mordecai. O
foco vota-se para Ester, e já no banquete, ela quando questionada impacientemente pelo rei
sobre o que ela ia pedir, Ester (7, 2- 7) lhe diz:

Se perante ti, ó rei, achei favor, e se bem parecer ao rei, dê-se-me por minha
petição a minha vida, e, pelo meu desejo, a vida do meu povo. 4Porque fomos
vendidos, eu e o meu povo, para nos destruírem, matarem e aniquilarem de
257

vez; se ainda como servos e como servas nos tivessem vendido, calar-me-ia,
porque o inimigo não merece que eu moleste o rei. 5Então, falou o rei Assuero
e disse à rainha Ester: Quem é esse e onde está esse cujo coração o instigou a
fazer assim? Respondeu Ester: O adversário e inimigo é este mau Hamã.
Então, Hamã se perturbou perante o rei e a rainha. 7O rei, no seu furor, se
levantou do banquete do vinho e passou para o jardim do palácio.

Foi então que Ester pegou Hamã totalmente desprevenido. O rei estava enfurecido e
Ester, convicta da vitória, porém, era apenas um passo dos que ainda tinha que dar para livrar
o povo. Para ruina, Hamã se lança sobre a rainha rogando seu favor. Foi quando:

Tornando o rei do jardim do palácio à casa do banquete do vinho, Hamã tinha


caído sobre o divã em que se achava Ester. Então, disse o rei: Acaso, teria ele
querido forçar a rainha perante mim, na minha casa? Tendo o rei dito estas
palavras, cobriram o rosto de Hamã. Então, disse Harbona, um dos eunucos
que serviam o rei: Eis que existe junto à casa de Hamã a forca de cinquenta
côvados de altura que ele preparou para Mordecai, que falara em defesa do
rei. Então, disse o rei: Enforcai-o nela. Enforcaram, pois, Hamã na forca que
ele tinha preparado para Mordecai. Então, o furor do rei se aplacou. (ESTER
7, 8 - 9).

Hamã estava morto na forca que preparara para Mordecai, sua casa foi dada a Ester e
outra revelação foi feita ao rei: que além de ser Judia, Ester era filha adotiva de Mordecai. É a
Ester que é dado o direito de nomear Mordecai Primeiro ministro do Rei. Entretanto, cartas
feitas e enviadas com o selo do rei contendo a lei de extermínio não seriam revogadas. Ester
ainda corria perigo. Porém sua ação seria vitoriosa por completo.
Nesse momento, a rainha implora por sua vida e de seu povo, e o rei concede uma nova
lei, com direito a resistir, lutar e livrar-se dos ataques. Tudo termina bem com os judeus
vitoriosos e muitos se constituíram judeus pelo orgulho que o povo passou a causar no reino da
Pérsia. Assim, a personagem já alcançou um outro status frente ao leitor. Ester deixa de ser uma
menina delicada e obediente para tornar-se uma mulher consciente de si, de seu papel como
líder de um povo, uma mulher de fibra e coragem, que se arrisca, confia na capacidade de
desenvolver estratégias, aprende a lidar com o mundo dos homens e caminhar com destreza
sobre ele.
Desse modo, percebemos que as três protagonistas do Primeiro Testamento, cada uma
em suas particularidades, uma nas palmeiras, guerra, a outra na tenda e a última no palácio,
executam planos divinos nos moldes que acreditavam os hebreu, israelitas e judeus, num Deus
de guerra, que matava seus inimigos e garantia a sobrevivência do seu povo. São mulheres que
se tornam referências para um novo pensar sobre a atuação do feminino na Bíblia. Suas
258

condutas diferem-se das demais e as tornam personagens que estabelecem uma ruptura com o
patriarcalismo.

5.2 MARIA DE NAZARÉ, MARIA MADALENA E DORCAS: PROTAGONISMOS NO


SEGUNDO TESTAMENTO

Em uma época em que os desejos duram o tempo de


uma estação, amar virou coisa de gente corajosa.

Fernanda Mello

Se existir uma diferença que resume todas as demais, entre as narrativas do Primeiro
Testamento e do Segundo Testamento, são as situações de vida como o foco do enredo. É a vida
que acontece no cotidiano e cada momento é uma oportunidade de encontro, de transformação,
nos fatos que acontecem bem ali, como se fossem na nossa frente, nas mais diversas situações
cotidianas. Uma mulher vê um anjo, outra vai ao poço buscar água, outra está doente, um cego
pede esmola, uma mulher é pega em adultério, e assim o cotidiano acontece, reinventado na
mesma proporção.
Desse modo, o ambiente do Segundo Testamento é marcado por um tempo de opressão
política, cultural, um tempo de exploração sob os domínios dos romanos, e muitas classes são
subjugadas. Escravos, servos, crianças e mulheres, deixados à margem e cada vez menos
incluídos pela cultura da violência, da opressão.
Quanto ao feminino, há pouca diferença da condição das mulheres do Primeiro
Testamento. Em um grau comparativo, são mulheres que perdem ainda mais a liberdade de ir e
vir, de transitar em certos espaços públicos, são reféns das proibições e limitações de acessos,
inclusive, de dialogar com homens, mesmo que fosse o marido, não poderia fazer em público,
sob a total isenção em trabalhos religiosos no templo ou fora dele. Mesmo sabendo que existia
diferença de comportamentos entre as mulheres do campo e as das cidades, em todos os
ambientes, os comportamentos eram mediados por homens e seus sistemas androcêntricos.
Mas é tempo de boas novas, existe entre os homens e mulheres a perspectiva de um
reino inclusivo, em que as prostitutas, as possuídas, as enfermas, as domésticas, mulheres de
diferentes etnias, as senhoras ditas de bens, as ricas, as esposas de homens importantes, as
adulteras, as servas e criadas, poderão ser transformadas a medida que se encontram com essa
boa nova.
259

Dessa forma, no Segundo Testamento, as narrativas dos escritores dos evangelhos são
marcadas por diferentes estilos, técnicas que nos levam a perceber exclusividade das escrituras.
Mendonça, fazendo uma análise do evangelho de João, ele diz que o objetivo do Segundo
Testamento pode ser definido nas palavras do narrador em João 20: 30 e 31, que diz que: “o
texto foi escrito para que creiam que Jesus é o Cristo, o filho de Deus e para que crendo, tenhas
vidas em seu nome”.
Nesse contexto, a história de Jesus será contada, de modo que o leitor aceite, como faz
João. Assim, as histórias dessas mulheres em estudo como protagonistas estão conectadas as
histórias que marcam a passagem de Jesus pela terra. Não importa apenas contar essa história,
mas o modo como ela é contada, pois nesse processo, não se modela pela identidade do narrado,
mas de todos aqueles que vão sendo agregados a sua história. Mendonça (2014, p. 52), sobre
esse modo de narrar diz que:

A narrativa evangélica apresenta-se como uma história aberta. Em vezes de


conclusões dirimentes a trama opta por uma composição paciente: não há
pressa em calar as perguntas, nem dissolver as ambiguidades, nem em impedir
interpretações inconclusivas que, por vezes, até os mais próximos fazem das
palavras de Jesus. A indeterminação instaura entre o texto e o leitor uma
espécie de espaço em branco, um patamar vazio, um tempo que ainda não
começou.

Estas características são atribuídas ao estilo de João, entretanto, apesar de cada um dos
evangelhos sinódicos ter sua peculiaridade, essa indeterminação passeia por todo o texto
bíblico, as vezes num enigma, numa parábola, num mal-entendido, na ironia, na ocultação ou
na revelação de algo.
Assim, são mulheres presentes no texto, ora por insinuações, ora por conta do leitor,
supor, descobrir e interpretar o que está no nível mais profundo da construção das narrativas
destas personagens. É neste diálogo entre o mundo da obra e o mundo do leitor que se
estabelece, pela subjetividade de quem lê, as condições de ressignificar o texto e as
possibilidade de compreender também a si mesmo. (RICOUER, 1991).
As três personagens femininas escolhidas para representar o protagonismo da mulher
no Segundo Testamento, estão envoltas em uma nova forma de conceber o mundo, a fé, a vida
e a si mesmas. Elas são muito autônomas no que representam e querem revelar-se, tanto em
seus comportamentos, suas atitudes, escolhas, como também nas entrelinhas em que elas se
deixam ser vistas, escapando das mãos do narrador, que as desenha com tão pouco traços
revelados.
260

Desse modo, elas constroem suas identidades a partir do encontro com Jesus, nele elas
encontram norteamento para romper, transpassar, transgredir costumes, regras e imposições
daquela sociedade. Elas se diferem das protagonistas analisadas anteriormente, porque elas não
vão seguir os padrões masculinos como parâmetro de suas ações, elas vão apontar um novo
caminho, sendo antes deles, o ideal de Deus, o diferencial entre os homens, o ideal para a
humanidade. Elas são a revolução e suas ações são transgressões, porque vão na contramão dos
ideias políticos, sociais, culturais cultivados naquela época e que se permeiam até hoje,
embasados nos ideias egoístas, nas lutas pelo poder aquisitivo, por cargos e posições que abriam
os caminhos para as práticas marcadas pela violência, pela opressão e desigualdades sociais.
Transgressão, nesse sentido, funciona como como extrapolação do limite estabelecido por um
mandamento, uma lei ou convenção (JENKS, 2003 apud CARNEIRO, 2018, p. 65). Um violar,
infringir, mas também anunciar, aclamar o mandamento, a lei ou a convenção.
Contudo, em Gebara, o termo toma a dimensão específica para nosso modo de ver as
personagens femininas bíblicas. Gebara coloca transgressão na sua obra, rompendo o silêncio,
como sendo o rompimento não só de um silêncio imposto às vozes femininas no âmbito das
instituições religiosas cristãs, mas também o rompimento da naturalização de determinadas
posturas, apontando para a imposição de papéis que são infligidos às mulheres, e naturalizados
pelas práticas teológicas discursivas e não-discursivas, como se fosse um destino inalterável. É
a desconstrução do discurso dominante e patriarcalista que nos remete a viver às margens dos
direitos de viver a plenitude do feminino.
Nesse contexto, assim como Jesus se opõe aos costumes legalistas, a ética moralizante
vigente, que favoreciam leis discriminatórias, instaura uma prática humanizadora
fundamentada no amor, que será a maior das transgressões, sob as quais essas mulheres
fundamentarão suas identidades. Jesus é o amor, essa é uma mensagem forte no evangelho, o
pleno contraste da divindade do Primeiro Testamento. Jesus representa a imagem de um Deus
que ama, e por seu objeto de amor e paixão à humanidade, ele entrega o seu filho, instaurando
um reino de amor que não aceita a exploração, a desigualdade entre gêneros, na qual os homens
são sujeitos de direitos e as mulheres de deveres.
Desse modo, em Jesus, não existe o poder da lei que estabelece a diferenciação das
posições entre superiores e inferiores, mas todos são iguais perante Deus. Jesus se encontra com
as mulheres, deixando claro que não importa seu gênero como condição para o contato, para o
diálogo ou para dar a ela lugar no reino. Em nenhum momento Jesus falou sobre inferioridade,
ou que a mulher devia se recolher ou procurar seus afazeres, ou determinar seu lugar social.
Pelo contrário, na casa de Simão, uma mulher apresentada por Lucas como uma pecadora,
261

quando ela invade um banquete ofertado a Jesus pelo fariseu, como se ela contaminasse. Mas
ela chora aos pés de Jesus, lava-os e enxuga com seus cabelos e sem dizer uma só palavra, é
possível fazer uma varredura da alma daquela mulher e as suas características tão singulares.
Assim, aquela mulher não sai dali como entrou, pois Jesus a enaltece diante dos homens, a
transforma e ela sai salva e em paz. Ela é uma grande pregadora, e observando Jesus como a
diferença, é preciso ver que suas ações são muito importantes.
Ainda em casa de Marta e Maria, Jesus valoriza a presença de Maria na sala,
aprendendo, ouvindo-o, definindo os novos papeis sociais da mulher, causando as inquietações
aquela sociedade judaica, atenta a um Deus em alto nível de santidade que exigia leis que
privilegiavam homens e seus ritos, deixando de fora muitos que não se encaixavam em seus
ditames.
Numa leitura atual, deixando de lado toda essa veia de pessimismo e a crise de valores
que constitui ou caracteriza o modo de ver dos pensadores do Séculos XX e XXI, coloca que
estamos vivendo atualmente a revolução do amor, não nos moldes que já vivemos, durante a
idade média, em que se morria por Deus, pela pátria, pela honra ou pelo ser amado. Assim, seja
pela influência do ceticismo, do constante crescimento das ciências humanas, o positivismo que
deu a ciência, ao método e as verificações o mérito, frente às crenças religiosas, as pessoas
deixaram de crer nos deuses e seu poder de dominar, e começaram a desconstruir muitos valores
e se afastarem dessas bases. Ferry (2012, p. 35) justifica dizendo:

Por isso, insisto na pergunta: vivemos mesmo, como alguns acreditaram, o


desencanto do mundo e a era do vazio, o fim de todos os princípios de sentido,
de todas as figuras do sagrado, de todos os apegos éticos fortes? Não acredito.
E, pensando bem, tudo nesta época mostra o contrário. Não o fim do sagrado,
mas a sacralização do outro; não o desaparecimento de toda espiritualidade,
mas, como se diz na história das ciências, uma mudança radical de paradigma
que provoca o surgimento de novas aspirações a uma sabedoria do amor sem
a qual não existe vida boa.

Desse modo, entendemos que Ferry (2012) traz a ideia de espiritualidade laica para além
do religioso, numa possibilidade de viver a espiritualidade sem as imposições dogmáticas das
religiões. Entretanto, ele resguarda a herança espiritual dessas mesmas tradições,
principalmente, no que concerne à valorização do transcendente, do espiritual, da ideia de
sagrado e de sacrifício e, acima de tudo, do amor. Ele acredita numa reconstrução onde termos
como espiritualidade, sagrado, ganham novos significados e geram novas aspirações.
262

Os indícios de que o amor move o mundo é notório desde que se inventou a ideia de
casar por amor, lutar por construir uma família, o amor aos filhos, ou a uma pessoa amada,
revelando que esse sentimento mudou as formas de relação da sociedade. Obviamente, não se
acredita que tenhamos banido os interesses particulares e escusos de muitas relações, nem o
egoísmo, mas o modo como nos relacionamos com os outros, os avanços nas condições sociais
de sujeitos minoritários, como também a posição da mulher na sociedade hoje, revelam que o
“amor’ movimenta as ações e inquietam as relações sociais.
Neste aspecto, se podemos reconhecer que o amor, somente agora, é visto de forma tão
abrangente e necessária para uma vida, antes, isso não era visto assim. Não se aceitava até há
pouco tempo que se falasse ou vivesse pelo amor. As relações eram movidas pelos acordos,
ajustes, ganhos, lucros, acomodando tudo em leis e regras que garantissem a legitimação e a
legalização das relações, do mundo, dos sujeitos e suas práticas. Segundo Ferry (2012, p. 10),
por mais que tenhamos liberdade de falar de tudo e com propriedade e liberdade que marcam a
desconstrução de muitos tabus, ainda nos limitamos a falar e discutir em público o amor. Porém,

é ele que estimula nossa vida psíquica, moral, espiritual, cultural e até mesmo,
como se verá a seguir, intelectual e política. Sem ele, nada teria significado
para nós. Seria, nesse caso, o verdadeiro desencanto do mundo. Quando ele
nos escapa, quando por uma razão ou por outra ele nos vem a faltar — morte
de um ente querido, separação, rompimento ou simples período de seca
amorosa —, o universo inteiro se torna opaco e sombrio.

Como vemos, o conceito de amor fica confuso, pois não se define de que amor esse
sentimento surge como uma reação a crenças e espiritualidade ligadas a Deus ou a religião. É
o que Ferry chama de espiritualidade laica, que emana do sujeito consciente da finitude, da
morte e da necessidade de em si mesmo manifestar o amor e que esse sentir alcance o outro. E
no outro é que os sujeitos encontram a razão para viver e se sacrificar por ele. O sentido de
“amor” fica ambíguo na obra, porque está se referindo a um modo de experimentar o mundo,
numa nova visão de humanismo em que um sujeito-deus, é capaz de em si, gerar e sentir o
amor.
Nesse aspecto, o amor que pode se dá em diferentes formas, entre homem e mulher,
entre irmãos, o amor intenso e verdadeiro dos filhos, todos esses tipos de amar pode estar
atrelado a nossa concepção de “amor” e, no ímpeto de viver por algo que satisfaça ou de
sacrificar-se por esse sentimento, pode acontecer o desencanto, a decepção de não o termos
encontrado.
263

Perseguir a meta de viver por amor, a partir de nossas próprias concepções é uma faca
de dois gumes, pois em busca desta sensação de estar vivendo o amor, há uma ideia de satisfação
pessoal e egoística de vivenciar o amor. Isso provoca uma inquietação ou revolução em quem
busca esse sentido maior para as experiências, por isso, o aumento dos divórcios e conflitos de
relações, mesmo quando a intenção seja viver o amor, como exemplo de fracassos nessa busca
pela transcendência.
No entanto, se sobressai em sua teoria, o conceito de espiritualidade, diferenciada de
uma religiosidade. Para Ferry (2012), a busca e o encontro com o outro independe de qualquer
dogma, de preceitos religiosos para vivermos a espiritualidade que transcende, pois em nossas
experiências pessoais é que podemos encontrar o sentido da vida.
É por esse pensar na revolução das três personagens Maria, Madalena e Dorcas, como
a revolução do amor que Ferry aponta estar presente no contexto atual, compreendemos que as
personagens femininas bíblicas, no Segundo Testamento, em aceitar muito antes de viver essa
revolução. Viver o amor e por ele deixar-se ser moldada, numa entrega total de seu sentir, de
sua vida, num sacrifício que corrobora com a sua ação de protagonismo.
Porém, não se pode negar que dentro das narrativas, o amor que as impulsiona tem uma
fonte, que é o próprio Jesus. Ele inicia essa revolução pelos evangelhos: Deus humanizou-se, e
amar a Deus, significa amar o humano, o outro, amar seria a arma mais forte contra o sistema,
amar não os bons, os fortes, os legitimados, os homens e os seus paradigmas. Mas amar aos
excluídos, os inimigos, os enfermos, os rejeitados, marginalizados, os dominados e esquecidos.
Nesse contexto, a revolução que elas vivem, mesmo não tendo conotação religiosa, pois
não estava ligada à nenhum sistema dogmático, como o próprio Jesus era rejeitado por esse
sistema, mas tinha a sua fonte e essência nele, a transcendência do amor. Nesse ponto vai
ocorrer o que chamamos de reciprocidade do amor, pois Jesus sacrifica sua reputação e sua vida
por essas mulheres e essas mulheres as suas, por ele. O amor se gera, e é gerado nessa entrega
de um ao outro, nesse processo se dará a construção da identidade dessas mulheres.
A vida delas às margens do sistema religioso, será por ele, constantemente esmagadas,
apagadas, e julgadas, ganha um novo sentido e elas descobre a razão pela qual viver, sacrificar-
se e morrer. Ferry (2012, p. 22) nos complementa neste pensar dizendo: “porque a possibilidade
do sacrifício é sempre indício do que consideramos essencial e que por isso mesmo, como uma
bússola interior, ainda que inconscientemente, dá sentido e valor ao que pensamos, fazemos,
procuramos”.
264

São assim, mulheres protagonistas pelo mesmo percurso do amor que Jesus lhes ofertou
e ensinou a doar-se pelo o outro, elas descobrem em si, o modo de conhecer-se e gerar para o
outro o amor.

5.2.1 Maria de Nazaré: de transgressora à precursora de um novo tempo

Pois, desde agora,


todas as gerações me considerarão bem-
aventurada,
porque o Poderoso me fez grandes coisas.

Maria em Lucas (1,48-49)

O primeiro ponto que levantamos ao falar de Maria é seu nome natural, Maria de Nazaré.
Essa menina simples que habitou as terras de Nazaré vai agregando nomes a partir de suas
vivências. Maria era uma jovem adolescente, anônima, pobre e simples como as demais de sua
época que vivia os sonhos de se tornar algo ou alguém na vida, e era noiva de José. Ao chamá-
la de Maria, mãe de Jesus, nos referimos a um dos seus papéis, de Virgem Maria ou Santa
Maria, atrelada a sua identidade divinizada pelo patriarcalismo, numa eterna visão desse
feminino virginal santo e sem a malícia das outras mulheres.
Mas existe algo de inusitado em Maria. Ela se depara com uma gravidez em tenra idade,
noiva de um homem, sabendo de toda seriedade da lei de Moisés para o adultério e deixar-se
ser posta, desnuda para aquela sociedade. Se o filho fosse de seu noivo, o que não acontecia
naquele período do desposamento, ainda os dois poderiam conseguir resolver a questão. Saber
que o filho não era de José e afirmar de que esteve com Deus, e por milagre dele concebeu, é
algo que traria inúmeras contestações.
Correndo o risco de ser apedrejada, Maria sustenta seu argumento de que seu filho era
do Espírito Santo, de modo que o noivo só não lhe abandona, porque também é visitado e
esclarecido pelo anjo. Sem medir o peso da responsabilidade, sem pensar em mais ninguém,
inclusive, no seu noivo e na sua própria vida, Maria começa sua entrega para o novo, para um
crescimento enquanto moça, mulher, mãe, enfrentando todas as dores e prazeres de suas
escolhas, moldando-se diante das situações impostas.
Lucas é quem melhor nos define Maria em seu evangelho, nos dando caminhos para que
possamos interpretá-la. De repente a pequena Nazaré é tomada de espanto, pois uma de suas
265

jovens, no período do noivado, intervalo em que os noivos reafirmam o seu compromisso e


esperam um ano para construírem suas novas vidas, sem ter acesso ao corpo um do outro, Maria
aparece grávida. As primeiras insinuações seriam de que ela e José não puderam esperar e
tiveram uma noite de amor que culminou na gestação. Porém, Maria sabia que se dissesse que
o menino era de José ele rebateria afirmando que não havia tocado nela. Ela então afirma que
foi visitada por um anjo dizendo que ela seria coberta pela sombra do divino e desse rito, ela
ficaria grávida de seu filho Jesus.
Essa história não foi digerida entre a comunidade, pois até José quando percebeu que
Maria estava grávida, pensou em resolver pela lei, entregando-a como adúltera, mas, segundo
Mateus e Lucas, como era um bom homem, resolveu abandoná-la. Mas não há nenhuma
referência a esse tempo tão difícil para Maria, mas a visita divina se estende a José, que aceita
tudo, sendo a única pessoa com quem Maria pode contar. As acusações são tantas que Lucas
(1, 40 - 44) afirma:

Naqueles dias, dispondo-se Maria, foi apressadamente à região montanhosa,


a uma cidade de Judá, entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. Ouvindo
esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; então, Isabel
ficou possuída do Espírito Santo. E exclamou em alta voz: Bendita és tu entre
as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre. E de onde me provém que me
venha visitar a mãe do meu Senhor? Pois, logo que me chegou aos ouvidos a
voz da tua saudação, a criança estremeceu de alegria dentro de mim.

Como vemos, Maria viaja às pressas para a casa de Isabel e só volta quando Isabel vai
ter o bebê. O narrador tem a preocupação de apresentar como Maria é bem recebida, pois Isabel
valida a sua tese de que está grávida do filho de Deus. Em seguida, Maria retorna para sua
comunidade.
Em Lucas, é possível perceber que Maria fica em primeiro plano na narrativa do
nascimento de Jesus, revelando que tudo se deu por concepção do Espírito Santo, anjos
anunciam tanto a Maria como a José, e Maria aceita sem duvidar a vontade divina. Ela está
mais interessada em viver plenamente esse amor que a impulsiona a esperar um filho, mas bem
mais do que vivenciar uma maternidade repleta de acontecimentos que marcam sua reputação,
seu caráter enquanto mulher, Maria vivencia processos internos de crescimento em que sua
humanidade se entrelaça com a divindade, num misto de emoções que transcende e não pode
ser vivenciada por mais ninguém. Maria é mulher, é mãe sem paternidade terrena e, no íntimo,
acredita que naquele sobrenatural, não crido pelos homens, sua narrativa lhe garantia a verdade,
266

a legitimidade atestada por quem vive a experiência. Ricouer (2000) sobre a experiência diz
que:

Um acontecimento que pertence a uma corrente de consciência não pode


transferir-se como tal para outra corrente de consciência. E, no entanto, algo
se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para outra.
Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua significação.
Eis o milagre. A experiência experienciada, como vivida, permanece privada,
mas o seu sentido, a sua significação, torna-se pública. A comunicação é, deste
modo, a superação da radical não comunicabilidade da experiência vivida
enquanto vivida. (RICOEUR, 2000, p. 27).

Assim, a experiência se dá no interior da personagem, mesmo Maria, nem sempre, tendo


o poder de fala. O narrador impõe a Maria alguns silêncios e ele mesmo justifica que Maria
guardava tudo em seu coração (LUCAS 2,18-19). O narrador é onisciente, sabe muito sobre os
personagens e emite o pensar deles. Somente em alguns momentos opta por deixá-los falar
através do discurso direto. Alter (2007, p. 191) coloca que:

está claro que o narrador bíblico é onisciente, mas ao contrário do narrador


dos poemas de Homero, que cria personagens perfeitamente inteligíveis,
mesmo quando (na Ilíada, por exemplo) enfrentam os impulsos mais obscuros
e irracionais da alma humana, o antigo narrador hebreu demonstra sua
onisciência com economia draconiana. Em certos momentos, opta por nos
conceder privilégios de conhecer o pensamento de Deus sobre determinado
personagem ou determinada ação.

Assim, é preciso que olhemos para dentro do texto, para as relações dos personagens
para compreender o que o narrador está ocultando ou revelando. O pensamento de Deus está
para Maria dentro do contexto narrativo, Deus não consulta José nem o pede para que ele deixe
Maria trazer seu filho a vida. Maria é dona do seu corpo, somente Maria podia autorizar a vida
crescer dentro dela. A vida dela estava diante de Deus independente da de José. Não é que Deus
descartasse o homem, mas depois ele o convence a aceitar Maria.
Mas a escolha de Maria em ser mãe nesses moldes não será fácil. Maria não terá uma
vida tranquila e a sua decisão lhe acarretará dores tanto para si, como para os seus e ainda para
o próprio filho. Logo que a barriga começa a crescer, ela vai encontrar muitos contratempos e
terá muito o que explicar. Seus medos e dores, as frustrações dela, enquanto noiva que parece
ter pulado os ritos do casamento judeu, como também as reações das pessoas, não são enfocados
por nenhum dos narradores, em nenhum dos evangelhos.
267

No entanto, Mateus e Lucas falam das angustias e da dúvida de José, apesar de não
revelar como ele soube do acontecido, ressaltando o bom caráter de José ao saber que sua esposa
estava grávida, e não era ele o pai. Segundo o narrador, José não quis difamá-la ou entregá-la à
lei: Mateus enfoca que, “Mas José seu esposo, sendo justo e não a querendo infamar, resolveu
deixar secretamente”. O narrador não havia dito sobre o anjo ter aparecido a Maria, porém
discorre que um anjo avisou ou explicou a José do que se tratava e então o caráter, a palavra de
Maria foi validada. Lucas, no entanto, não cita esse fato de que José quis partir em silêncio e
que um anjo o visitou em sonho.
Assim, não podemos saber de Maria, seu ponto de vista sobre os fatos. É dentro do texto
e na leitura cuidadosa às pistas, que vamos dando forma a Maria, de como ela é comedida em
suas ações e segue aprendendo a ouvir atentamente, a ponderar e a compreender a si e os
caminhos que devia trilhar. “Maria, porém, guardava todas estas palavras, meditando-as no
coração”, como afirma Lucas (2, 20).
No decorrer da narrativa, José precisa se alistar para o senso organizado por Herodes e
deveria ser cada um em sua cidade de origem. Nesse contexto, Maria como mulher, não
precisaria ir a Belém, pois as mulheres não são contadas no senso, porém Maria preferia está
na companhia de José, talvez porque somente nele não encontra hostilidade das palavras
julgadoras. Desse modo, o narrador consegue encaixar o nascimento de Jesus no cumprimento
da antiga profecia de que Jesus nasceria em Belém, como parecer ser o intuito do narrador em
Mateus.
O nascimento do menino é narrado por todos os evangelhos e se dá num estábulo. A
cena se contrasta entre a rudeza do lugar e a forma fantástica que o narrador coloca sobre anjos
que cantam, estrela que brilha no céu, pastores, reis magos. Mas a vida de Maria e de seu filho
não se dá assim tão fantástica. Maria começa a sofrer mais perseguições junto com seu filho.
Entre idas e vindas, fugas e acolhimento, Maria acompanha de perto o crescimento de seu filho
e torna-se a principal seguidora e acolhedora de seu ministério. Ao longo desse ministério, Jesus
encontrou resistência em Nazaré. Num primeiro momento, Lucas registra no capítulo 4 que,
pelo teor da palavra, Jesus se diz o cumprimento de Isaias (61,1), mas ele foi totalmente
rejeitado quando disse que:

O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para
pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de
coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados;
a apregoar o ano aceitável do Senhor.
268

Tanto pela ousadia de dizer que era o escolhido de Deus, como pelo seu papel na terra:
olhar para os humildes, aquebrantados, rejeitados, cativos, prometendo a libertação. Assim, eles
questionavam que ele era apenas o filho de José, nada além disso e o quiseram matar. Outra
vez, em Nazaré, conforme, Mateus (13,55- 58) ele foi totalmente questionado:

Não é este o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos,
Tiago, José, Simão e Judas? Não vivem entre nós todas as suas irmãs? Donde
lhe vem, pois, tudo isto? E escandalizavam-se nele. Jesus, porém, lhes disse:
Não há profeta sem honra, senão na sua terra e na sua casa. E não fez ali muitos
milagres, por causa da incredulidade deles.

A afirmação de Maria de que estava grávida de Deus, assemelhava a mitos de que deuses
desciam a terra, anjos possuíam mulheres ou duvidavam da integridade da mulher e diziam que
mentia, ou acreditavam no adultério, ou ainda de que ela e José haviam fornicado. Seu conto
não fazia o menor sentido em sua comunidade e, por inúmeras vezes, ainda que não foram todas
registradas pelos evangelistas, alguns textos nos permitem inferir.
Maria sofria cada vez que a paternidade de seu filho era questionada. Sua aceitação a
uma maternidade fora das normas sociais do seu tempo implicou em uma transgressão: ela não
garantiu ao seu filho um lugar legítimo de filho, conforme o pensar daquela sociedade. Umas
das passagens que pode evidenciar o que afirmamos, está num diálogo entre Jesus e os judeus
fariseus, apresentado por João 8, quando Jesus, conhecendo que queriam matá-lo, afirmava ser
filho de Deus e em breve partiria para o seu Pai:

Disseram-lhe eles: Nós não somos bastardos; temos um pai, que é


Deus. Replicou-lhes Jesus: Se Deus fosse, de fato, vosso pai, certamente, me
havíeis de amar; porque eu vim de Deus e aqui estou; pois não vim de mim
mesmo, mas ele me enviou. Qual a razão por que não compreendeis a minha
linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra. Vós sois do
diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida
desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade.

Vejamos, que não hesitaram em chamá-lo de bastardo. Mas quem ama, sacrifica-se pelo
amado. Ferry (2014) diz que: “o amor é a força que move o mundo e que sem ele tudo é
obscuro”. Maria sabe da sua missão de precursora do filho de Deus, mas talvez não soubesse
que nessa condição, sairia de cena quando seu filho começasse o trabalho. Ela sabe que ele tem
uma missão dada por Deus, mas ela também sabe que essa missão depende do seu apoio, no
ensinar e no impulsionar de seus primeiros passos.
269

Maria começa a perceber os caminhos de Jesus florescer quando ela o procura e o


encontra no templo em Jerusalém com doutores, falando sobre os planos de um novo tempo
para o mundo, ele já sabia além do que ela o havia ensinado, ela vê o seu saber, reconhece o
momento do primeiro milagre lá em Canaã da Galileia e, diferentemente de seus parentes,
irmãos e conterrâneos, Maria sabe que ele tem poder e que mudaria a história daquele povo.
Ela tanto o aceita, como o segue ao longo da sua caminhada ministerial. Maria é discípula e
suporte, reconhecendo muito mais do que sua função biológica de família, de mãe, ela faz parte
do grupo de discípulos e de apoio ao ministério de Jesus, como uma família espiritual. Ela
participa de sua vida púbica também.
Na passagem de Lucas (11,27), enquanto Jesus falava, uma mulher com extrema
sensibilidade feminina, grita entre a multidão: “Bem-aventurada aquela que te concebeu, e os
seios que te amamentaram’. A reposta de Jesus é interpretada por alguns, como um descarte a
figura de Maria: “Antes, bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam”
(LUCAS, 11,28). Jesus estava validando que a importância de uma família espiritual era maior
do que a biológica e de que a felicidade de uma mulher não estava apenas em ser mãe, mas sim
discípulas, ou aquela que tem fé em Deus. O termo “bem aventurado” pode ser entendido como
os que ouvem em Mateus, ele que tem a intenção de destacar Jesus mais do que a Maria, na
narrativa do capítulo 12, fundamentando nosso pensar sobre a ideia de Jesus em desconstruir
as relações patriarcais e as intenções de lhe atribuírem somente a ligação a uma família terrena,
mas quando avisam que Maria e os irmãos estão lá fora e querem falar com ele, ele aproveita
outra vez para ressaltar que aqueles que fazem a vontade de Deus e também são sua família.
Maria fica ao lado de Jesus até a sua morte, na cruz, ele fundamenta o valor da família
espiritual, constituída ao longo das vivências. Ele a entrega aos cuidados de João, Maria viúva,
agora sem seu filho. Mas ela permanece firme em seu propósito de segui-lo. Ainda porque,
depois da morte do filho, ela ainda teria que ser forte para continuar junto a sua família
espiritual. Maria guardava tudo no coração e vivia a verdadeira espiritualidade, aquela que se
aflora além das suas crenças, na imanência daquilo que não se explica, mas se alcança numa
experiência pessoal com o divino, com o amor, consigo mesmo.
Desse modo, Maria não é só seguidora, ela é também influência. Sua irmã segue a Jesus,
primos mais restritos, ela vai testificando. Maria foi, no ato da concepção, o meio de mediar o
contato de Deus com o humano, um Deus humano entre a sua humanidade, entranhado nas
carnes de mulher, corações que batem, o mesmo sangue correndo nas veias, uma mulher
nutrindo Deus no ventre. Essa ligação se estende no decorrer da infância de Jesus, no apoio ao
ministério dele. Ela vai constituindo o núcleo das mulheres que o segue. Maria testemunha
270

quem é Jesus mais do que qualquer mulher, ela o conhece em casa, na convivência ela
testemunha seu poder, mas também sua humanidade. As mulheres estão sempre com ela, para
colaborarem com o ministério de Jesus. Mas Maria não é só essa imanência, essa divindade,
semideusa que não tem sexualidade, é virgem ao conceber e parece assim continuar. Patrícia
Bogado (2005, p. 56-57) diz-nos que:

Compreendendo que Maria representa, portanto, ao mesmo tempo a mãe de


Jesus (por extensão e fé) e a mãe de todos, sustentada por esse poderoso
arquétipo de grande mãe, podemos pensar como se dá este “modelo de
maternidade”. Desde a concepção de Jesus e através da maternidade de Maria
temos já instaurado um modelo de amor e sexualidade.

Assim, Maria é concebida porque habitou Jesus em seu ventre, possuidora do corpo
humano sagrado, uma dádiva divina, a supra-humana, assim como deve ser o feminino sem
desejos e sexualidade, um feminino sempre a serviço de Deus. Maria é a mulher frágil que se
tornou forte, a ponte e o caminho para que Deus encontre a humanidade. Não é a virgem que
resgata a condição do feminino decadente no contraponto com o estereótipo da Eva pecadora
na visão machista, mas é a mulher com suas possibilidades de errar e de acertar, de querer a
maçã, o paraíso, o saber, os filhos, o amor, a humanidade, que se completa na imanência com
a divindade. E é divina, na plenitude de sua humanidade.
Não se apaga, portanto, a participação de Maria, nem sua importância nessa conjuntura,
nem esquecendo de sua humanidade, valorizando apenas os aspectos enfocado pelo
patriarcalismo, do feminino santo, puro, da virgindade imaculada, numa necessidade extrema
de redimir o feminino que eles acreditam ter sido. Assim, esquecem que Maria é uma mulher
comum, que conheceu de perto a fraqueza, a rejeição, a dor e o desprezo, venceu com a cabeça
erguida, pois sendo escolhida por Deus, é porque ele sabia de sua fibra e coragem de ir até o
fim, numa entrega de amor pelas ideias que acreditava, pela fé transcendente.
Quando Isabel diz que são benditas as mulheres, é justamente porque, pela sua coragem,
Maria traz ao mundo uma nova perspectiva de ver o feminino, a força da mulher em enfrentar
sem medo, a quebra das regras, da normalidade e traz para o mundo, um novo paradigma para
as mulheres. Há uma desconstrução de valores patriarcais, inclusive do modelo de família,
prevalecendo a identidade de discípula muito mais do que a de mãe, valendo muito mais a
vocação da mulher nesse reino de Deus entre os homens, que propõe um novo modelo de
relação humana, em que primeiramente, as mulheres são incluídas, (FIORENZA 1992)
271

5.2.2 Maria Madalena: a discípula possessa de amor

Então, saiu Maria Madalena anunciando aos


discípulos: Vi o Senhor!
(João 20, 16-18).

Maria de Magdala é a única mulher a ser apresentada nas narrativas bíblicas aliada a
uma cidade e não a um homem. Não é possível saber sobre o pai, os familiares, nem de marido,
não existe nada que confirme nenhum tipo de parentesco. O que sabemos de seu passado é que
ela tinha sete espíritos e foi liberta por Jesus. E nas interpretações, ela também está associada
ao título de pecadora.
Ser possessa de 07 espíritos, característica curiosa para se associar a um nome de
alguém, uma vez que, quase nenhum homem teve agregado ao seu nome, os pecados ou
situações dos quais tenha sido liberto, transformados. Sendo esses momentos de exorcismo
valorizado em outras passagens, nas ações de Jesus, como Lucas (4,31: um homem no templo
em Cafarnaum que reconhece como filho de Deus; Mateus (12,22): o homem surdo e mudo,
Marcos (5), um homem possesso de legião em Gadara, ocasião que os demônios pedem
permissão para possuir os porcos que se lançam no mar, a filha da mulher cananeia e tantos
outros casos registrados.
Porém, a libertação dos setes espíritos que possuíam Maria Madalena não é destacada,
não é narrado em nenhum dos Evangelhos canônicos. Não foram dados detalhes desse evento.
É mais interessante ainda perceber que sete também são os pecados capitais: gula, luxúria, ira,
orgulho, vaidade, preguiça e inveja, o número sete também é conhecido entre os judeus como
o número da perfeição de Deus. Talvez parte daí, a associação de Madalena à pecadora.
Essa associação da imagem de Madalena à pecadora, também se deve ao fato de a
mulher apresentada por Lucas não ter nome. Aquela que entrou na casa de Simão e lavou os
pés de Jesus, quando na ocasião, chamou a atenção de todos, que pareciam já saber que era uma
mulher de má reputação. Pesou mais contra Madalena, quando no Século V, o Papa Gregório
afirmou serem as mesmas, e alguns exegetas defendiam embasados no fato de Jesus ter lhe
perdoado, mesmo sendo muitos seus pecados. Segundo Tommaso (2016, p.83), surge então a
confusão de associarem Maria Madalena a três personagens diversas. Naquela ocasião Jesus
havia expulsado os demônios. Associa-se então que Madalena era a pecadora, era a possessa e
essa junção cooperou, para que alguns estudiosos considerassem Madalena uma prostituta.
272

Entretanto, não passa de uma necessidade de associar a sua imagem de mulher a esses termos
e descaracterizá-la como uma personagem marcante para a história do cristianismo, pois foi
uma discípula capacitada por Jesus e muito contribuiu com seu ministério.
Desse modo, é a falta de informações precisas nos evangelhos canônicos que tem
tornado Madalena uma figura sempre presente no imaginário coletivo, criando-se sobre ela
mitos, histórias fantasiosas, associações indevidas a outras personagens e omissão de sua real
importância, mas todas essas buscas por saber sobre ela é o que a torna uma personagem muito
inusitada.
Magdala (Migdal), a cidade de origem de Madalena, também foi associada a um espaço
de muita prostituição e permissividade, pois se tratava de um grande centro comercial na época
de Jesus. Segundo Tommaso (2016, p. 81) em Magdala havia:

uma rota internacional onde pessoas com religiões e costumes diferentes se


encontravam no mercado. Uma cidade próspera onde era realizado o comércio
de peixe salgado, tecido tingido e diversos produtos agrícolas. Foi para os
padrões da época uma cidade tolerante na qual conviviam as culturas judaica
e helênica. Em 75 d.C. foi destruída por causa da infâmia e da conduta
licenciosa de seus habitantes, este é um fato que pode também ter contribuído
para alterar o nome e a reputação de Maria Madalena.

Percebemos Madalena como uma mulher influente, comerciante talvez, como os demais
de sua cidade, de boas posses, mantenedora do ministério de Jesus. Lucas (8, 1-3) confirma ela
citada entre as mulheres que mantém o ministério de Jesus com bens e serviços:

Aconteceu, depois disto, que andava Jesus de cidade em cidade e de aldeia em


aldeia, pregando e anunciando o evangelho do reino de Deus, e os doze iam
com ele, e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos
malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete
demônios; e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Suzana e muitas
outras, as quais lhe prestavam assistência com os seus bens.

Chama a atenção a independência de Madalena, sua vida até então livre das amarras
como casamento e dependência financeira do marido, pois o fato dela se manter sozinha,
deveria ser motivo de julgamentos. Madalena do arquétipo de esposa, mãe ou irmã de alguém;
Madalena não tem nenhum homem que a represente. Madalena, grata Jesus por tê-la visto,
amado, transformando-a, agora se doava por inteiro, inclusive investindo recursos em seu
273

ministério. Alter (2007), falando sobre a constituição dos personagens no texto bíblico, nos diz
que:

o narrador nos induz a descobrir um personagem e suas razões, a maneira de


certos escritores impressionistas, como Joseph Conrad e Ford Madox Ford,
por meio de um processo de inferência a partir de informações fragmentárias,
muitas vezes tentando estrategicamente a exposição de partes fundamentais
da narrativa, que redunda em impressões variadas e às vezes dúbia sobre os
personagens. Em outras palavras a um mistério persistente nos personagens
concebido pelos escritores bíblicos, que estes incorporam a seus métodos
peculiares de exposição.

É então nessas brechas, nesse jogo do dito e o não dito que inferimos sobre Madalena e
sobre esse mistério que a ronda, e até a dubiedade sobre seu caráter. Madalena, antes pecadora,
passa a ser vista como santa, de forma que parece intencional, por parte do narrador, o
apagamento dessa personagem. Apenas nos é permitido inferir sobre o encontro desta com
Jesus, de como ela sentiu-se tocada pelo modo de Jesus a contemplá-la e despertar em seu
íntimo o desejo de ser além do que estava sendo. Buscar uma identidade, um propósito de vida.
Num trecho do poema de Ana Patrícia, publicado em seu livro Maria Madalena o
feminino na luz e na sombra, ela infere poeticamente sobre Madalena: “Uma mulher ama, tão
loucamente ama, que pulsa pelos desejos do mundo, terra fértil nos ciclos naturais, desejo de
fecundar, céus de mistério, memórias e símbolos: desejo de desvendar”. De certo, o amor foi
despertado no coração de Madalena, um amor que não se acomoda, mas inquieta, que leva a
transgressão, ao afastamento, o que nos impede de crescer, de ir ao encontro daquilo que nos
refaz.
Assim, Madalena seguia Jesus e não o fez somente em bons momentos, mas nos
momentos mais difíceis de perseguição e morte dele. Enquanto Pedro o negava, temendo ser
condenado com ele, enquanto os demais discípulos se escondiam do império romano e de longe
o acompanhavam, ela estava lá, “ao pé da cruz”. Como mulher, se uniu a Maria de Nazaré, e
sofriam juntas a perda de alguém que amavam em comum, mas ela estava como discípula, aos
pés de seu mestre. Sua atenção a Jesus, também não termina quando este é sepultado. Outra vez
em João (20, 11), há um trecho narrativo dedicado a ela com a epígrafe: “Jesus aparece a Maria
Madalena”. Há ainda um detalhe que nos evoca a certeza de sua dedicação a ele. O narrador
coloca que: “Maria, entretanto, permanecia junto a entrada do túmulo, chorando. Enquanto
chorava, abaixou-se, e olhou para dentro do túmulo e viu dois anjos vestidos de branco, sentado
onde o corpo de Jesus fora posto, um à cabeceira e outro aos pés”. É muito significativo esse,
274

“entretanto”, o narrador é detalhista sobre a situação de Madalena. Ela “permanecia”,


“chorava”, ela era “o entretanto”. Onde estavam os outros? Por que ela permanecia?
No diálogo que se segue, João (20, 13-17) nos detalha como se deu esse reencontro de
Jesus e Madalena. Quando ela tem aquela visão gloriosa, Maria vê anjos guardiões. Tomada de
espanto, os anjos percebem sua agonia e então, eles lhe perguntaram:

Mulher, por que choras? Ela lhes respondeu: Porque levaram o meu Senhor, e
não sei onde o puseram. Tendo dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé,
mas não reconheceu que era Jesus. Perguntou-lhe Jesus: Mulher, por que
choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu:
Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.

Madalena enquanto aguardava a resposta, vem um filme em sua cabeça, ela lembra do
primeiro dia que viu seus caminhos cruzaram-se com os de Jesus. Maria possessa, tantas dores,
enfermidades, decepções, traumas e mágoas, iras e guerras internas. Não havia a paz de antes,
não sabia ela de que, tão cheia dos embates da vida, podia ser feliz, podia ser livre. Seus olhos
tocaram os dele, e dele saiu-lhe vida. Ela não tinha mais outra meta, se não o seguir para receber
mais e poder ajudar a outros. Madalena havia percebido que o sentido estava em espalhar em
Magdala, na Galileia, por onde fosse, as boas novas que a ela chegara. Madalena agora estava
possessa, mas de amor e de gratidão. O amor faria a revolução na sua vida e por essa revolução
ela vivera. De repente, como de um sonho ela acorda ouvindo:

(...)Maria! Ela, voltando-se, lhe disse, em hebraico: Raboni (que quer dizer
Mestre)! Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas; porque ainda não subi
para meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai
e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.

O texto acima foi retirado da versão (ARA), nosso corpus, porém queremos mostrar
como fica a expressão ‘Não me detenhas”, na Bíblia Nova versão internacional (NVI) que
possui uma linguagem mais atual, uma das mais recentes traduções, traz a expressão: “Não me
segure”, numa inferência ou quase uma revelação de que Maria quis tocar, abraçar Jesus, como
tinha feito de outras vezes, mas naquele momento pareceu não ser possível e parece também
que ele a lança a uma rejeição, um impedimento.
É possível pensar que o narrador talvez quis evitar que se tivesse pensamentos ambíguos
sobre os dois se encontrando no túmulo, quis deixar claro de que Jesus, agora em corpo de
glória, não pudesse ser tocado. Mas refutando essa ideia da rejeição, o próprio comportamento
275

de Jesus mais adiante mostra que ele pode abraçar as pessoas após ressurreto. Adiante, ele tocará
seus discípulos, eles o adoraram e abraçaram os seus pés, assim também fizera as outras
mulheres. E a Tomé, o discípulo que duvidou, Jesus mesmo o manda tocá-lo.
Assim, Madalena, movida pela emoção, o abraça e quer ficar assim, sem acreditar que
ele estava ali. Porém, Jesus utiliza a expressão em João (20,17), Jesus disse: "Não me segure”,
pois ainda não voltei para o Pai. Vá, porém, a meus irmãos e diga-lhes: Estou voltando para
meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus e Deus de vocês". Na demora de Madalena em soltar
Jesus, ele desejoso de vê-la sendo a primeira mulher a testemunhar, uma divulgadora de sua
ressurreição aos homens, e conhecendo o Senhor de outras passagens bíblicas, como o
diferencial no tratamento das mulheres, ele disse assim:

Não passe mais tempo comigo agora: eu não vou imediatamente para o céu,
você terá várias oportunidades de me ver novamente: mas vá e diga aos meus
discípulos, que eu sou pouco a pouco, para ascender ao meu Pai e Deus, que
é o seu Pai e também Deus. Portanto, que eles tomem coragem.

E ela assim o faz. Corre para dizer a boa notícia, e em outros momentos se reencontram.
Certamente, também estava lá entre os “varões galileus” que o viram ascender aos céus. Na
cultura judaica, uma mulher não podia ser testemunha nos tribunais, diante dos juízes, pois sua
palavra era duvidosa. Jesus quebra esse preconceito, porém há resistência da parte dos
discípulos. Eles não creem. Vejamos que correm ao túmulo, procuram averiguar até vê-lo
também. E os discípulos no caminho de Emaús também continuam sem crer e só quando o
reconhece à mesa, acreditam na ressureição. E ainda em pior caso, Tomé, que nem sequer na
palavra dos homens, que já tinham visto Jesus, creu. Porém, Madalena creu e viu, e o viu
primeiramente.
Se há um apagamento do papel de Madalena enquanto discípula, mantenedora da obra
missionária de Jesus, poucos detalhes sobre essa personagem até mesmo nas narrativas em que
ela aparece junto de Jesus, imagine o silenciamento a qual ela é submetida na continuidade da
história das primeiras comunidades cristãs, após a morte de Jesus. Ela não aparece em Atos dos
Apóstolos, aliás, o título de discípula aparece em Dorcas, mas em Romanos, Carta de Paulo
aos Romanos, a citação de Paulo a uma Maria não identificada nos deixa crer que Maria era a
Madalena, uma missionária que continuou dedicando sua vida a esse chamado. O texto em
Romanos 16 e 6 diz: Saudai Maria, que muito trabalhou por vós. Paulo se referia a uma Maria
que teria contribuindo muito com a comunidade cristã em Roma. Segundo Tommaso, (2016,
p.85), apesar de Maria ser um nome comum, naquela época, mas Madalena era a mais indicada
276

a ser missionária, pois tendo passado a juventude na cidade de Magdala, “estava familiarizada
com a cultura helenística e com as diferentes nacionalidades do império Romano”. Vale
salientar que Paulo não cita mais nenhuma Maria.
Maria parece ser isolada, retirada de contexto como testemunha ocular da ressurreição
e como cooperadora. Porém, o silenciamento sobre ela nas narrativas bíblicas não apaga seu
protagonismo como mulher de coragem, independente, destemida, que esteve ao lado do Deus-
homem na terra e esteve entre os que apoiaram seu trabalho aqui. Maria era torre, forte e
resistente. Era o feminino vivendo sua espiritualidade, sua aventura de amor e entrega por ideias
nobres. Ela recebeu crédito e respeito de Jesus e mesmo assim, não a apresentaram e não a
valorizaram como essa personagem devia ter sido escrita.
Madalena tal qual outros discípulos tivera um passado de erros, acertos, construíram
suas vidas antes, mas decidiram viver a fé, a crença em Jesus, deixando tudo para o seguir. Essa
imagem apenas da Madalena pecadora, Madalena arrependida, não resume a sua identidade.
Ela é o simbolismo do feminino que se destaca e para ser barrado, levanta-se formas dentro da
sociedade patriarcal para manchar sua reputação, desqualificar, apagá-la e de diminuir suas
ações e importância dentro da história. O termo servir, atribuído a homens, é logo levado à ideia
de diaconato, de cargo, de encarregamento de uma missão. Porém se atribuídos às mulheres,
remete-se sempre a serviço braçais e domésticos em prol do bem-estar masculino.
Madalena é, sobretudo, o feminino em igualdade diante de Deus na terra, mostrando
aos homens que ele escolhe e ama as mulheres, por serem capaz de amar, entretanto não amam
apagadas, submissas, sem ação, sem transgressão. Não. Elas amam intensamente e seu amor
domina o mundo por onde semeiam a possibilidade de outras sementes.

5.2.3 Dorcas: a introdução legítima de um ministério feminino

Era ela notável pelas boas obras e esmolas que fazia.

Atos (9, 36)

Uma das narrativas mais curtas da Bíblia nos traz a surpresa da grandeza da personagem
que ela revela. São apenas 07 versículos no Capítulo 9 de Atos, iniciando no v. 36, tendo como
epígrafe “A ressurreição de Dorcas” seguida da narrativa que nos conta:
277

Havia em Jope uma discípula por nome Tabita, nome este que, traduzido, quer
dizer Dorcas; era ela notável pelas boas obras e esmolas que fazia. Ora,
aconteceu, naqueles dias, que ela adoeceu e veio a morrer; e, depois de a
lavarem, puseram-na no cenáculo. Como Lida era perto de Jope, ouvindo os
discípulos que Pedro estava ali, enviaram-lhe dois homens que lhe pedissem:
Não demores em vir ter conosco. Pedro atendeu e foi com eles. Tendo
chegado, conduziram-no para o cenáculo; e todas as viúvas o cercaram,
chorando e mostrando-lhe túnicas e vestidos que Dorcas fizera enquanto
estava com elas. Mas Pedro, tendo feito sair a todos, pondo-se de joelhos,
orou; e, voltando-se para o corpo, disse: Tabita, levanta-te! Ela abriu os olhos
e, vendo a Pedro, sentou-se. Ele, dando-lhe a mão, levantou-a; e, chamando
os santos, especialmente as viúvas, apresentou-a viva. Isto se tornou
conhecido por toda Jope, e muitos creram no Senhor.

De início, já a revelação de que Tabita ou Dorcas, de quem trata o texto, está morta e os
verbos “havia, fazia, era” revelam essa ideia de que, sua narrativa começa pela sua morte, como
que nos obrigando a fazer um flashback, sobre quem é essa moça sem vida. Como nos diz
Northrop Frye (2004, p. 343), a Bíblia inaugurou esse modo de narrar que as vezes surge como
um flashback e outras vezes trazendo antecipações reveladoras. Mas Dorcas é uma personagem
que chama a atenção do leitor que a encontra, quase sem querer, pois, ela se situa dentro de uma
narrativa de outro personagem em um contexto que não parece acolher o feminino.
Mas cumpre-nos interpretar essa última personagem, observando primeiramente, como
ela se situa no livro de Atos dos Apóstolos:

E aqui, acompanhamos o trabalho dos apóstolos que, em suas viagens,


levavam os ensinamentos do Senhor para que as pessoas se arrependessem e
cressem nEle. Além disso, vemos também alguns milagres realizados pelos
apóstolos em Nome de Cristo. Tempos depois, por estarem chamando as
pessoas para que se convertessem a uma vida voltada para Cristo, Paulo é
preso, e mesmo como prisioneiro, continua seu ministério, pregando a palavra
do Senhor. Portanto, neste livro podemos acompanhar o início da igreja e a
vinda do Espírito Santo para guiar os apóstolos e cristãos. Vemos também os
esforços dos apóstolos em chamar as pessoas para que cressem em Cristo, para
que desfrutassem do Seu amor e fossem salvos eternamente por Ele.

Fizemos questão de juntar essas duas citações, uma narrativa sobre Débora em
contraponto com o texto de apresentação, pois eles se contrapõem e nos mostram como
comprovadamente Dorcas requer atenção para que busquemos as ações que constituem a sua
narrativa. Atos destina-se a apresentar os atos dos apóstolos, os protagonistas são Pedro e Paulo,
e ambos trabalham para divulgar Jesus Cristo, implementando igrejas e cuidando das
comunidades já efetivadas. Mas somos contrastados com a informação de que Dorcas, a
primeira mulher a aparecer no livro de Atos, mesmo que a intenção maior do narrador seja
278

apresentar as ações de Pedro, está sendo velada no cenáculo, com honras e muito choro, clamor
das mulheres que estavam com as vestes feitas por Dorcas para elas. É por um motivo de
excelência que essa narrativa, mesmo pequena está neste contexto. É impossível apagar a
história desta personagem: ela é uma discípula também. “Havia em Jope uma discípula por
nome Tabita, nome este que, traduzido, quer dizer Dorcas”.
Se Maria ou Madalena não foram citadas como discípulas, nem seus atos registrados,
Dorcas alcança esse mínimo direito de ser reconhecida: uma discípula notável. Ela abre um
caminho diferente, novo, para muitas outras personagens que precedem outras que virão depois.
Dorcas, ao contrário de Maria de Nazaré e Madalena, não conheceu Jesus, ela o segue por
influência, talvez de outras discípulas que seguiram o exemplo das Marias. No entanto, é a
primeira personagem a quem o escritor bíblico, o narrador de Atos reconhece como discípula.
Dorcas não tem uma narrativa que fale da sua vida, é na sua morte que temos a dimensão
de quem ela foi. Ela é mais uma das personagens que não estão ligadas a nenhum homem, não
é esposa nem mãe de ninguém, nem sequer se sabe se ela era uma das viúvas daquele lugar.
Porém, ela comprava tecidos, fazia as roupas e doava para as mulheres carentes de Jope. Bem
mais do que uma caridosa, Dorcas era conhecida em toda cidade. Era uma figura popular pelo
seu trabalho social. Dorcas morre, não sabemos qual foi o mal que ceifou sua vida, mas o texto
diz que ela já tinha sido preparada: “lavada” e aprontada para ser velada. Mas ela é tão
necessária e a amavam tanto, que contrariando o rito do sepultamento judeu, que após lavar o
corpo deve ser enterrado rapidamente, eles a velam e criam que ela pudesse retornar a vida, por
isso, chamam Pedro e o esperam. Ela realmente precisava voltar e retomar seus atos. Segundo
o dicionário Bíblico Wicliffe (1102):

Jope é uma cidade cananeia na fronteira da tribo de Dã, portanto pertencente


aos gentios, e durante o período do Primeiro Testamento, ela não foi ocupada
pelos israelitas. Ela tinha um único porto entre o Egito e a cordilheira do
Carmelo, de grande importância para aquela região da Palestina. Portanto,
somente no Segundo Testamento, é que os judeus passaram a viver em Jope e
depois a tornaram um lugar de resistência ao Império Romano, havendo
muitas revoluções e mortes naquelas terras.

Desse modo, a cidade de Jope era submetida a constantes massacres e a vida de


portuários em alto mar, traziam muitas perdas as famílias, pois seus homens diariamente
entravam no mar e não mais voltavam, devido a violência das ondas. Por essa razão, havia
muitas mulheres abandonadas à sorte, pois elas eram sustentadas por seus maridos, e na
279

condição de viúva, ficavam a mercê de favores. Dorcas toma parte destes fatos e se empenha
em ajudar essas mulheres.
É possível que o cristianismo tenha entrado em Jope por meio de convertidos itinerantes
que trouxeram aquele povo o conhecimento de Jesus. Os cananeus são conhecidos por sua
religiosidade extremamente diferente aos costumes judaicos ou cristão. De algum modo, não
sabemos precisar se Dorcas tinha dupla nacionalidade, já que aparece dois nomes. Sendo judia,
Tabita, Dorcas provem do grego. Ter as duas cidadanias, implicaria em que Dorcas seria uma
mulher de posses. O mais considerável é que ela era uma judia convertida, cristã, e como outros,
decidiu viver na cidade portuária, muitos resolvem morar lá, vindo de outras regiões.
Assim, entendemos que ela é uma cristã em meio a outras culturas, convertida
anteriormente, e demonstrava na prática a autenticidade de sua crença. Se Pedro evangelizava
a região como estava próximo em Lida, como diz o texto, ele não estava constantemente na
cidade de Jope, portanto, ela estava sempre lá, desenvolvendo um trabalho junto às mulheres.
Muitas comunidades se formaram sem que saibamos quem as fundou. Não se tratava apenas de
fazer roupas e doar às mulheres, pois esse tipo de trabalho não geraria o tipo de vínculo
visivelmente íntimo entre Dorcas e essas mulheres. Ela dava a elas um apoio espiritual,
confortando-as em suas perdas, ouvindo-as e ajudando-as na superação. Dorcas é força e
exemplo, porque se mantém como mulher em uma época difícil para a mulher, contrariamente
àquelas mulheres carentes, pois é ela quem as ajuda de forma significativa. Por isso elas
choravam a sua perda.
Com tão pouca informação, e com a deturpação das poucas que temos, tende-se na
maioria das leituras feitas aos textos, apagar a figura feminina de ministérios, cargos ou
atividades ligadas ao discipulado, ao diaconato, fazendo-se necessário uma busca acirrada de
termos, de uma busca a texto originais para que se confirme que a construção da igreja primitiva
se dá por muitas mãos femininas, que deram suas vidas pela causa. Não se pode considerar o
termo discípula apenas como seguidora, se em outras passagens o termo não aparece, e
nenhuma outra mulher recebe esse título. E se Lucas se refere a todos os cristãos de Jope como
discípulos, a inclusão de uma mulher também é o inusitado. Somente ela, enquanto mulher,
recebe esse título.
Nas cartas de Paulinas o termo diácono (do grego antigo διάκονος), que quer dizer:
ministro, servo, ajudante", foi utilizado em diversas passagens tanto para homens, quanto para
mulheres. Esse termo se refere tanto aos que servem, mas aqueles que especialmente, dentro de
uma comunidade cristã, exercem atividade de auxílio aos trabalhos e anseiam liderar
futuramente. Quando em 1Timótio 3, Paulo fala sobre “o ser bispo e diácono, considerando
280

quase as mesmas condições, ele já começa dizendo que: “Fiel é a palavra: se alguém aspira ao
episcopado, excelente obra almeja”. O pronome indefinido “alguém”, abre o precedente de que
Paulo esteja se referindo tanto a homens, quanto as mulheres que assim desejarem. Em seguida
ele vai mostrando as características que cada um deve ter.
Desse modo, o versículo 2 ao 8, refere-se aos homens, do 9 ao 13, ele recomenda as
características para a mulher. Nas interpretações da igreja, mediada pela cultura da inadequação
do feminino para essas atividades, colocam como características das esposas desses homens,
como se qualquer mulher casada com alguém que tenha interesse em ser bispo ou diácono fosse
obrigada a seguir, a aceitar e ter essas características, como auxiliares de seus maridos. Na
verdade, Paulo constituiu ou reconheceu muitas mulheres que cuidavam de comunidades, não
apenas como serviçais domésticas, mas como diaconisas, companheiras de perseguição,
prisões, engajadas no crescimento do cristianismo. Basta lembrarmos que o mesmo termo
diácono se refere a Febe.
A palavra grega diakonon, utilizada para descrever Febe, é uma forma masculina do
substantivo, que poderia ser traduzido como "diácono" em vez de "diaconisa. Paulo escreve aos
Romanos em 16 e 1: “Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que está servindo à igreja de Cencréia,
para que a recebais no Senhor como convém aos santos e a ajudeis em tudo que de vós vier a
precisar; porque tem sido protetora de muitos e de mim inclusive”. Elas serviam cuidando,
como responsável da comunidade. Assim também, Priscila, a quem ele saúda primeiramente,
antes do marido, revelando a estima dele com as mulheres, refutando seu caráter machista, que
a ele é dada pela leitura de textos isolados e mal interpretados:

Saudai Priscila e Áquila, meus cooperadores em Cristo Jesus, os quais pela


minha vida arriscaram a sua própria cabeça; e isto lhes agradeço, não somente
eu, mas também todas as igrejas dos gentios; saudai igualmente a igreja que
se reúne na casa deles.

Fiorenza (1992, p. 11) nos diz que:

as igrejas ou comunidades domésticas eram muito mais dirigidas por


mulheres, e o caso de Priscila e Áquila, ela era mais ativa do que ele nos
trabalhos missionários, por isso Paulo a destaca. Priscila, Síntique, Evódia,
são as colaboradoras diretas com os ministérios de Paulo, porém insistem em
mantê-las sempre às sombras. Enquanto as histórias e a história de muitas
mulheres dos primórdios do cristianismo primitivo não forem concebidas
teologicamente como partes integrantes da proclamação do evangelho,
continuarão a serem opressivos para as mulheres os textos bíblicos e as
tradições formuladas e codificadas por varões. (...) Uma reconstrução
feminista da história cristã primitiva tem não apenas objetivo teórico, mas
281

também prático. (...). Busca não só minar a legitimação das estruturas


religiosas patriarcais, mas também potenciar as mulheres em sua luta contra
estruturas opressoras.

Assim, tal como a personagem Dorcas, Febe, Priscila, são mulheres que desempenharam
papeis em ministérios femininos, mostrando que nos primórdios da igreja primitiva, a exemplo
do que Jesus ensinou quando as incluiu, de todos são aceitos como iguais e podem ser úteis,
independente do gênero. Discursos que buscam apagar as lideranças, as cooperações do
feminino, alegando que somente o masculino pode estar à frente de cargos eclesiásticos é mais
uma forma de dominação que condiz muito mais com atitudes pagas do que as ditas cristãs.
Dorcas é a iniciação desses ministérios, a notável discípula, como afirma Lucas. Ela,
tanto em vida, doou-se e se desgastou pela causa, movida pela força do feminino que não cruza
os braços frente aos desafios, viveu na prática uma espiritualidade que transcende os ritos, a
religiosidade e até mesmo em sua morte e ressureição, imitou a Jesus, sendo o amor em ação,
ação e protagonismo, numa vida intensa, dedicada ao outro.
Desse modo, tanto Dorcas quanto Maria de Nazaré e Maria Madalena são personagens
que iniciam um processo de construção de suas identidades, no Novo Testamento, tendo como
referencial o próprio Jesus Cristo, tendo em vista de que ele trouxe um novo olhar sobre o
feminino, trazendo para a sociedade patriarcal novos paradigmas que consistia na quebra de
antigos paradigmas, e o principal deles era o amor aos indignos, aos inimigos, amor como
caminho para a revolução. São mulheres que podem ser reconhecidas por estabelecer, em seus
comportamentos, o padrão, a partir das ações de Jesus e se entregam em amor a viverem uma
vida plena, na entrega aos seus ideais.
282

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No mundo do texto que essas personagens povoam e se deslocam em seus contextos,


o(s) narrador(es) que as desenham e as estruturam, constroem-nas e as modulam, numa visão
de um feminino que se constitui a partir do sujeito masculino, estando sempre a ele submisso.
Entretanto, o que parece ser uma não preocupação do(s) narrador(es) em favorecer essas
personagens, nem definir sua identidade, pois em todas as narrativas é percebível que elas não
são o foco do texto, é na verdade, um campo aberto para as interpretações, uma vez que dentro
do texto bíblico tudo é intencional.
O modo de narrar dos hebreus, o tempo e a cultura, como também a ideologia que
atravessa o texto bíblico, levam os narradores a serem coerentes com essas características, ao
mesmo tempo que o texto também é atravessado por esse caráter atemporal, revelando
realidades, sujeitos, tipos humanos que vão nos apresentar novas possibilidades de leitura.
Pensar as personagens femininas requer perceber que no texto, elas estão sempre num
segundo plano, dividindo espaços com as narrativas dos homens, é também em espaços
marcados pela priorização da imagem do Deus masculino que se revela a este gênero como
prioridade. Porém, com um olhar atento às narrativas, percebemos que estão caminhantes, as
diversas possibilidades de interpretação, pelo modo que os narradores costumam artisticamente,
escolherem bem as palavras, os espaços em branco, decidindo o que revelar e o que ocultar.
Deixando demarcado os espações contraditórios que nos servem de amparo para ressignificar a
linguagem.
A identidade dessas personagens femininas caminha também pela incompletude,
vivenciando esse mesmo processo de construção, estão incompletas e em alguns momentos não
é a prioridade do narrador defini-las, mas em outros momentos, eles tentam enquadrar nos
modelos de um feminino idealizado pelo masculino.
Portanto, é necessária uma leitura hermenêutica em que se busque, além das pistas que
o narrador vai nos dando, as entrelinhas e as ações das personagens. Todos esses elementos são
feitos e interpretáveis. Com as personagens podemos pensar a identidade que se contrapõe com
o desenho dado pelo narrador ao feminino no texto. As personagens conquistam a liberdade e
a autonomia para apresentarem suas verdades, a partir de suas ações, do seu modo de agir
Assim, elas quebram e desestabilizam o modelo de feminino proposto pelo narrador
masculino, impondo em suas ações, um novo perfil que vai ganhando forma nas sutilezas e na
força das palavras muito bem escolhidas e pensadas pelo próprio narrador, que nas entrelinhas,
nos chama a participar do processo de interpretação e ressignificação, no aprofundar das
283

entranhas do texto-discurso, vamos tomando pé de que, rompendo a força da cultura, da palavra


como signos carregadas de sentidos, como diz Ricoeur (2001), no simbolismo que a própria
linguagem representa, estão duelando o feminino posto pelo narrador e o feminino que se revela
no próprio “ser” dessas personagens.
As narrativas que as contém, numa literatura interpretativa, revelam-se um campo cheio
de dualidade, a ambiguidade que mora no interior do texto, mediado pelas intenções do
narrador, este mergulhado na cultura, nos discursos legitimadores que vão direcionando o texto,
para que assim ele apareça ao leitor, como um espaço interpretativo. Por essa razão, nos
atentamos aos comportamentos e as atitudes das personagens, observando os enfrentamentos
delas às situações impostas, como elementos de construção de suas novas identidades.
Ao nos aproximarmos das narrativas bíblicas como obras literárias, podemos perceber
as nuances que as tornaram, ao mesmo tempo, uma bela e específica forma de contar sobre
mundos, sobre a vida, numa linha de nós distante, na relação tempo-espaço, mas as vendo
também como a revelação de um mundo permeado de valores, de um povo específico que se
afirmam nessas narrativas e que perpassam de forma artisticamente projetada, sua compreensão
de Deus, do mundo, da humanidade e sobretudo, do feminino.
Entretanto, essas mesmas narrativas tornam-se mundo possíveis cheios de tipos
humanos que se aproximam de nós, pela vivência dos mesmos dilemas existenciais, das lutas
travadas, ambos, seres vivendo a humanidade e em busca de uma transcendência, iguais, nas
dores e prazeres do existir. Somente assim percebemos que, as mulheres tomam a palavras e se
apoderam da mão que as escrevem e se apresentam como protagonistas de suas vidas, decidindo
romper transgredir as normas que as limitam. Elas são movidas pela força, pela coragem, pela
fé, pela resistência e sobretudo, pelo amor, construindo suas identidades como sujeitos de ação
e direitos, e nos trazem um novo modelo do feminino.
Compreendê-las só é possível, quando se faz uma leitura numa perspectiva de gênero,
pois somente na perspectiva de um estudo que priorize olhar para o feminino é que é possível,
significativamente fazer uma (re) releitura das representações e dos discursos simbólicos que
sustentaram o pensamento androcêntrico e legitimaram, tanto na sociedade como nas
comunidades cristãs o apagamento das mulheres.
Era ainda necessária e fundamental que essa discussão aos textos bíblicos fosse lançada,
na perspectiva de ver a construção do feminino na Bíblia, da identidade dessas personagens, a
partir de um narrador masculino, no sentido de perceber a constituição do sujeito feminino,
como também a constituição da identidade como caráter simbólico que mediam a formação,
284

tanto da identidade pessoal, nacional, atreladas a questão do gênero como elemento definidor
dessas identidades.
Ao perceber que as práticas culturais operam na construção do feminino nos textos
bíblicos, já não se concebe mais legitimar uma inferioridade às mulheres, nem condicioná-las
a papeis sociais atrelados á condição biológica do gênero. Como também divisão de trabalho
que legitima a inferioridade, atribuindo a essa condição biológica, toda justificativa das
limitações e das injustiças cometidas ao feminino, quando na verdade, está por traz da definição
dos papeis, crenças improváveis que estão mais atreladas a interpretações equivocadas do texto,
feitas na ótica do masculino, que por vezes confunde as estruturas legitimadoras da opressão e
da violência contra as mulheres, embasadas como a vontade divina.
Assim, propomos que tanto a participação da mulher, no Primeiro Testamento, na
constituição da narrativa do Israel Bíblico, como no Segundo Testamento na participação
efetiva na construção do cristianismo, deve ser vista, na perspectiva de uma revisão da literatura
bíblica, uma (re) leitura, para assim ascendermos o feminino forte e ativo, imbuído de
protagonismo, mas que não é o foco das narrativas, nem das interpretações.
Assim vimos o texto bíblico e, nessa perspectiva, nos foi possível penetrar em seu
mundo e promover uma análise literária, em busca dos elementos textuais que nos permitisse
perceber como as narrativas destas personagens foram construídas por um narrador masculino.
Assim, traçamos diálogos com outras áreas como a hermenêutica de Paul Ricoeur, o que
torna difícil não perceber o caráter teológico do texto, e se analisamos a linguagem do texto,
percebendo a escritura e sua face enquanto discursos religiosos que dela emana. Porém, é no
contato com o mundo do texto, que o leitor vai desconstruindo ou validando os discursos, ao
mesmo passo que se constitui e se compreende também. É desse modo que se torna possível
conhecer a especificidade dos gêneros literários da Bíblia, abrindo novas perspectivas para a
compreensão teológica da linguagem religiosa.
Portanto, a despeito das dificuldades para o desempenho da pesquisa, já que é uma
temática complexa e que exigiu-nos uma investigação intensa sobre o gênero feminino, a
construção das personagens bíblicas e de sua identidade, deleitamo-nos com o resultado
encontrado: as mulheres bíblicas aqui analisadas são protagonistas, são precursoras de um
feminino que não deixa abater frente às dificuldades da vida, são mulheres que desempenharam
papeis fundamentais como líderes, ocuparam cargos civis e religiosos, foram guerreiras,
tornando-se heroínas e vitoriosas, mostrando-se de igual modo que os homens, capazes de
desempenhar qualquer atividades. Mas também se inscreveram como um feminino inovador e
fundamentaram suas identidades como modelos de humanidade.
285

Neste aspecto, é possível compreender que o texto bíblico é todo interpretação, e que é
preciso ao leitor, do contexto patriarcal e machista e compreender as significações que nos
permite ir além do dito, ressignificar fazendo uma relação com o nosso mundo, recriando novas
perspectivas de entender e conceber o texto.
Cabe-nos propagar esse feminino e se apropriar desses novos paradigmas, antes
rompido por essas mulheres, sendo desconstrução de um feminino ultrapassado, que é fruto de
uma leitura inadequada da Bíblia e que não corresponde ao feminino que ela mesmo nos permite
construir, quando mudamos o nosso modo de ler. Mas como diria Camargo (2017), não se trata
de querer igualar as pessoas, a ponto de se perder a identidade sexual ou de gênero, pois:

As diferenças entre os sexos masculino e feminino não devem ser apagadas,


mitigadas ou hostilizadas, de modo a falsificar uma igualdade ideológica, mas
explicitadas com o objetivo de ampliar toda experiência cultural da
humanidade, para que o respeito à diversidade entre os sexos produza
múltiplos olhares, capazes de ampliar os recursos cognitivos a disposição da
humanidade. (CAMARGO, 2017, p. 301).

Trata-se de encontrar nos textos bíblicos e promover um novo modo de pensar a


igualdade de direitos entre os gêneros e não se utilizar das diferenças para promover uma
classificação negativa em que na relação, a mulher seja o não-padrão ou marginalizado.
Enquanto no Primeiro Testamento, o elemento definidor da identidade dessas mulheres
é a cultura e a busca pela acomodação no sistema patriarcal, tendo o masculino como
referencial; no Segundo Testamento, as mulheres insurgem tendo como referencial a figura de
Jesus, e juntos rompem com o sistema, e iniciam a revolução do amor, em que os ideias de vida
se definem no humano, no outro. A mensagem libertadora que Jesus trouxe, quebrou a
antropologia androcêntrica da cultura semítica, e mesmo os passos da história ainda sendo
lentos para a grande mudança que o feminino espera a desconsiderar as lutas e sua continuidade,
aceitando como natural ou divino o que é cultural e ainda precisa ser mudado.
Por fim, essas seis personagens nos revelam que a leitura da Bíblia é significativa e
interessante, pois nos convida a interpretar o mundo, o mundo do texto e a nós mesmo, numa
profunda identificação ou mesmo num afastamento, num desconhecimento de verdade antes
estabelecidas, na inquietação do pensar, através de seus seres repletos de vida, nos ensinado a
buscar novas perspectivas, buscar a ser, a compreender-se.
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