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Dourados-2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS
Dourados-2020
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).
ELEMIR SOARE MARTINS
BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador
2º Examinador
3º Examinador
4º Examinador
Mesmo que eu esteja cansado, “derrotado”, sempre busco resistir através dos
jára e passar por cima das adversidades... até porque os meus antepassados me
ensinaram que, mesmo sofrendo silenciamentos e perseguições, temos que lutar
incansavelmente pelo nosso povo indígena, que antes não tinha nem mesmo chance de
entrar numa universidade... “Nós indígenas, não roubamos nada de ninguém, até
porque estamos no nosso território”, disse para mim um líder indígena. “Não somos
demônios, ao mesmo tempo, ndorojukai ore ryke’y guasúpe”, comenta um rezador.
Encerro esse ciclo tendo a mais plena certeza de que o bem vencerá, os
indígenas não serão sucumbidos. Tive o privilégio de conhecer pessoas que lutam pela
ciência, pela Universidade Pública de qualidade para tod@s, não permitindo ao
governo sucateá-la. Por isso mesmo, não houve uma só vez que pensei em desistir de
pesquisar, escrever, reescrever, ler artigos, teses, livros, etc. Depois que passei por
várias dificuldades, senti a força de Marçal de Souza para ser “mais indígena” e a
certeza de que posso ir bem mais longe. Agradeço aos rezadores por tudo! Obrigado
por rezarem por mim. Obrigado por tudo!
Ao professor Levi Marques Pereira segue a mensagem que escrevi a ele via
Whatsapp: “Quero agradecer imensamente a você... em deixar eu sentir o gosto de
vencer os obstáculos, ao mesmo tempo aprender com eles. Sei que, por ser um pouco
imaturo, talvez eu não consiga ser aquilo que se espera de mim. Neste caso, procurarei
manter essa humildade que tanto preza. Mais uma vez: meu muito obrigado!”
Aos meus três irmãos e irmã: Juninho, Jorginho, Renato e Juliana Martins,
meu cunhado Edimar de Sousa. Por fim, a toda minha família.
Aos meus primos Crispim Soares Martins e Alécio Soares Martins, por
contribuírem para este trabalho ser possível.
This research aims to analyze the transformations in the roles played by traditional
religious leaders in the indigenous reserve of Caarapó, from the presence of indigenous
evangelicals, graduates of the indigenous reserve of Dourados. For this, research
instruments with oral sources were used, such as testimonials, interviews and photos,
provided by the research interlocutors. In 1950, the Caiuá Mission was established
alongside the reserve, with the purpose of evangelizing the indigenous people and
providing services in the area of education and health. The Caiuá Mission, maintained
by Presbyterian churches, accommodated the presence of traditional religious leaders,
while the prayers gradually lost their prestige. In the late 1980s several neo-Pentecostal
evangelical churches were installed in the Caarapó Indian Reserve. From that moment
on the Pentecostal churches underwent major expansion, and most traditional leaders
interrupted their practices and rituals. During the field research questionnaires were
elaborated as doubts arose about the research theme. The research describes how
churches have gained ground as they have been in tune with the demands of indigenous
people and are appropriate for them in producing their kin groups and in solving a range
of problems. At the same time, indigenous people who have not converted recognize
that evangelical churches cause a lot of damage to the community, since the doctrines
coming from the city do not know the history of the Kaiowá and Guarani, imposing
heavy doctrines that promote the curtailment of their forms. proper to being indigenous.
However, even living with the limitations imposed by the churches, the Guarani and
Kaiowá exerted their resilience, transforming the reserve into a possible living space, in
an effort to produce their way of being, or retekoharizar the reserve. Nowadays,
traditional practices are rarely carried out in the daily life of the village, a topic that is
widely discussed in the community, with positions that praise the growth of
evangelicals and, on the other hand, a minority resents the little space occupied by
traditional leaders. This clash gave rise to two categories of Kaiowá and Guarani, the
so-called "evangelicals" and the so-called "traditional" ones. Understanding these
transformations, from the perspective of the residents themselves, is what this research
proposes. In addition, the paper intends to record how indigenous people appropriate
and resignify the contents and values brought by the Pentecostal mission and churches
in the Reserve to continue their attempt to re-space the space.
Keywords: Indigenous Evangelicals; Guarani and Kaiowá; Pentecostal indigenous
churches, reservation.
ÑEMOMBYKY
Esta investigación tiene por objetivo analizar las transformaciones en los roles desempeñados
por los líderes religiosos tradicionales en la reserva indígena Caarapó, desde la entrada de los
pueblos indígenas evangélicos pentecostales, que habían abandonado la reserva indígena
Dourados. Para ello, se utilizaron instrumentos de investigación con fuentes orales, como
testimonios, entrevistas y documentos de registros fotográficos, proporcionados por los
interlocutores de la investigación. También en términos metodológicos, se elaboraron
cuestionarios a medida que surgieron dudas sobre el tema de la investigación. En 1950, la
Misión Caiuá se estableció junto a la reserva Caarapó, con el propósito de evangelizar a los
pueblos indígenas y brindar servicios en el área de educación y salud. La Misión Caiuá de
Caarapó, patrocinada por iglesias presbiterianas de Dourados, de evangelismo histórico /
misionero, trató de acomodar la presencia de líderes tradicionales, pero, gradualmente, los
rezadores perdieron prestigio para convertirse en líderes alfabetizados o comprometidos en las
nuevas formas de relación y trabajo con la sociedad nacional. A fines de la década de 1980, se
instalaron varias iglesias evangélicas neopentecostales en la Reserva indígena de Caarapó. A
partir de ese momento, las iglesias pentecostales experimentaron una gran expansión, y la
mayoría de los líderes tradicionales enfrentaron varias dificultades para seguir con sus prácticas
y rituales. La investigación describe cómo las iglesias ganaron espacio al estar en sintonía con
las demandas de los pueblos indígenas, siendo apropiadas por ellos en la producción de sus
grupos de parentesco y en la resolución de una serie de problemas. Al mismo tiempo, los
indígenas que no se convirtieron reconocen que las iglesias evangélicas causan una serie de
pérdidas a la comunidad, porque las doctrinas, provenientes de la ciudad, ignoran la historia de
los kaiowá y guarani, imponiendo fuertes doctrinas que promueven la restricción de sus formas
de ser indígena. Sin embargo, aun viviendo con las limitaciones impuestas por las iglesias, los
guarani y los kaiowá ejercieron su capacidad de resistencia y resilencia, transformando la
reserva en un posible espacio para vivir, en un esfuerzo por producir su forma de ser o
retekoharizar la reserva. Actualmente, las prácticas tradicionales se realizan poco en la vida
diaria de la aldea, un tema ampliamente discutido en la comunidad, con posiciones que elogian
el crecimiento de los evangélicos y, por otro lado, una minoría que resiente el poco espacio
ocupado por los líderes tradicionales. Este choque dio lugar a dos categorías de Kaiowá y
Guarani los llamados "evangélicos" y los llamados "tradicionales". Comprender estas
transformaciones, desde la perspectiva de los propios residentes, es lo que propone esta
investigación. Además, el trabajo pretende registrar cómo los pueblos indígenas se apropian y
resignifican los contenidos y valores aportados por la misión y, más tarde, por las iglesias
pentecostales en la Reserva, para continuar en un intento de retekoharizar el espacio y
promover su propia forma de ser. -Ava reko
Lista de Figuras
Lista de fotos
PY – Paraguay
SP – São Paulo
KM – Quilômetro
Fonte:ftp://geoftp.ibge.gov.br/cartas_e_mapas/bases_cartograficas_continuas/bc250/versao2019 Acesso
em: 04/12/2019.
1
Como o primeiro posto indígena foi instalado no centro da Te’yikue, conhecido oficialmente
como Posto Indígena Jose Bonifácio, essa reserva ficou conhecida com vários nomes, tais como
Reserva Indígena Te’yikue, Reserva Te’yikue, Reserva Indígena de Caarapó ou Reserva
Te’yikue. Por outro lado, os indígenas que moram em outras aldeias, ou até mesmo quem mora
nessa reserva, já colocam outro nome, por exemplo: aldeia de Caarapó, reserva de Caarapó,
reserva Te’yikue ou aldeia Te’yikue. Portanto, ao longo do texto, usarei Reserva de Caarapó,
Reserva Te’yikue, ou, simplesmente, Te’yikue, para, assim, priorizar os termos utilizados não
apenas por pesquisadores, mas por indígenas e não indígenas.
17
Mapa 2: Mapas da reserva indígena Te’yikue ou Reserva de Caarapó
Fonte: Atlas socioambiental terra indígena Te’ýikue. Org. Smaniotto C. R., Ramires L. C., Skowronski,
L. – Campo Grande: UCBD, 2009.
Em 1950, na Te’yikue, foi implantada a Missão Caiuá, com o propósito de
evangelizar os indígenas e prestar serviços na área da educação e saúde. A Missão
Caiuá, mantida por igrejas presbiterianas de Dourados e com o apoio de alguns líderes
indígenas dessa época, iniciou o trabalho de evangelização de indígenas, ao mesmo
tempo tentou acomodar as lideranças tradicionais religiosas. Enquanto isso, na visão
do rezador Angelo Guarani, os rezadores foram temporariamente dominados, contudo
não dominados completamente. Nesse sentido, a instituição não teve preocupação em
expandir, ou seja, em construir igreja nas diferentes regiões da aldeia, mas, por outro
lado, atendia interesses da colonização, que era evangelizar os indígenas. De certa
forma, mesmo não confrontando muito os rezadores tradicionais, a Missão conforme
Floriano Escobar - um dos adeptos mais antigos dessa instituição - facilitou a entrada
18
das demais instituições religiosas, pentecostais ou neopentecostais, a partir da década
de 1980, pois pregavam um Deus que salvava e, ao mesmo tempo, poderia resolver
quaisquer problemas sociais.
2
Rezadores Guarani e Kaiowá, considerados também como líderes religiosos indígenas e
espirituais.
3
“Monte”, na linguagem evangélica, é um lugar isolado, para orar, pedir perdão ou para
adquirir algum dom espiritual, através da oração.
19
escolhas, de seus problemas, de seus dilemas, dos métodos de conversão etc.,
principalmente quando o pesquisador é indígena. Há uma enorme desconfiança por
parte dos crentes indígenas, quando nos apresentamos como pesquisadores indígenas,
principalmente quando levamos gravador, caderno e outros objetos que possam
registrar suas falas e imagens. Temos que esclarecer bem para eles o real objetivo da
conversa, para depois registrar as suas falas e gravá-los. Em alguns casos, os registros
têm de ficar apenas no diálogo - ñemongeta -, sem levar caderno de campo, tampouco
gravador. Nessas ocasiões, eles sempre convidam para visitá-los na igreja, então, a
conversa flui mais.
20
consegui entender, mesmo que de forma superficial, sobre suas escolhas em aderir à
vida evangélica ou continuar com práticas culturais indígenas.
Como a maioria dos meus parentes consanguíneos são crentes, não tive
muito problema em conversar com eles a respeito do tema da minha pesquisa. Alguns
não quiseram que seus nomes aparecessem neste trabalho, por isso, quando cito as
falas deles, coloco apenas suas etnias, idades e ano de entrevista. Como este trabalho é
de História, as fontes orais também foram priorizadas por mim e considerando que
meus interlocutores e eu somos falantes da língua Guarani, procurei analisar com
cuidado e não exclui a “subjetividade dos fatos narrados” (BRINGMANN, 2012, p.
14).
4
“Capitão” é o título dado à liderança política da aldeia ou reserva, entre os Guarani e Kaiowá,
em MS, desde a época do SPI.
21
brancos (karai). Para ter essa informação, conversei (añemongeta) com alguns
moradores antigos da Reserva, Severiana Vera, Florencio Barbosa, Maurilio, Lauriana
Escobar, Mariana Martins e Hipólito Martins. Os primeiros pentecostais, com suas
igrejas, passaram a provocar pequenas mudanças na vida de alguns grupos indígenas,
e a maior parte dos líderes tradicionais se sentiram incomodados e, mesmo que o
evangelho pentecostal tenha entrado timidamente, os rezadores perceberam que suas
práticas e rituais precisariam ser protegidas. Ainda que na década de 1980, a igreja
pentecostal não tenha se firmado completamente, conforme Floriano Escobar, ela
deixou a possibilidade de se buscar a vida melhor com a conversão.
5
De acordo com informações obtidas de dois pastores indígenas, da Reserva de Caarapó, o
“ministério” se constitui quando uma igreja começa a receber “católicos” (os que não são
crentes) e, por conseguinte, a convertê-los. Segundo eles, cada ministério cria sua identidade
específica na comunidade indígena. Isso depende muito da habilidade e do histórico do
responsável pela igreja e, por fim, do fluxo de pessoas que transitam por ela. Às vezes, os fiéis
utilizam a expressão, por exemplo, “cheko Cornelio ministério pegua” (“sou do ministério do
Cornélio”), ou seja, ele referencia seu ministério ao nome do dirigente/pastor. Sabedores da
ampla diversidade de problemas, os pastores maximizam sua igreja; assim “a gente formava um
ministério que atendesse a nossa demanda espiritual e a necessidade da vida. Por outro lado, a
gente foi criando o nosso próprio ministério. Quando alguém via um novo convertido bem-
comportado, com cabelo bem raspado, educado, atencioso, sempre sorridente e parceiro,
geralmente, as pessoas logo já falavam que esse convertido era da nossa igreja. Foi assim que
caminhamos com o nosso ministério aqui na aldeia” (Cornelio Rosa, Te’yíkue, 2019). Do
mesmo modo, ao analisar o processo de expansão dos ministérios produzidos na Te’yikue,
Severo Martins, da Deus é Amor, propõe a reflexão sobre vários ministérios na aldeia, a partir
da liberdade que os pastores brancos têm de manipularem os indígenas. Ele explica que:
22
alguns dirigentes, atuais pastores indígenas, investiram na construção de templos
(“casa de Deus”). Primeiramente firmou-se a Igreja Pentecostal Último Tempo, desde
1994; a segunda foi a Igreja Deus é Amor, sobretudo a partir da metade de 1994 e, por
fim, a Primeira Igreja Deus Pentecostal, no início de 2005.
Meu interesse em estudar esse tema deriva do fato de que, desde 1994,
segundo alguns rezadores da Te’yikue, as práticas tradicionais sofreram perseguições
“Quando tinha pouco ministério a gente conseguia ter controle de muitas coisas, nesse caso, a
Igreja Deus é Amor tinha papel fundamental. Por isso, considero ministério aquelas igrejas que
têm estruturas adequadas, por exemplo, do Silvio Paulo, do Cornelio Rosa, de outros que não
recordo agora. Para se ter ministério é necessário que o responsável passe pelo teste de
revelação. Caso isso não ocorra, o escândalo é sempre maior. Hoje, nós somos diferentes um do
outro, isso depende de como a gente orienta a ovelhinha de Deus e do nosso comportamento”.
Nesse sentido, o ministério, como dom de Deus, conforme o meu interlocutor, requer a
revelação, que pressupõe um contato direto do fundador do ministério com a própria
divindidade, reveladora dessa graça
23
violentas e acusações, sendo que muitos rezadores foram expulsos da aldeia, tema
bastante comentado na comunidade, inclusive pelos próprios rezadores. Os que
permaneceram foram obrigados a parar de rezar, ou fazê-lo escondidos. Entender essas
transformações, a partir das perspectivas dos próprios moradores, é o que esse
trabalho pretende. Além disso, o trabalho registrou como os indígenas se apropriam e
ressignificam os conteúdos e os valores trazidos pela Missão e pelas igrejas
pentecostais na Reserva, para continuar na tentativa de “retekoharizar” o espaço, na
tentativa de tornar-se “crente indígena”, mostrando a habilidade de resolver problema
das pessoas convertendo-lhes, a gente pode resolver muitos problemas do nosso
parente, irmão, por exemplo, você pode se tornar crente, não tem problema, só que se
você for a noite jerokyhápe é mais perigoso do que ir na igreja6.
7
Quando fecha a estrada para reivindicar algumas demandas por parte dos órgãos municipal,
estadual e federal, ou para manifestar a sua indignação, no Encontro de Professores Indígenas
Guarani e Kaiowá, nas Universidades, etc.
25
Nesta transição são avaliadas várias situações distintas, começando com o
desempenho dos rezadores, com a vida e com as competências deles nesses espaços
que ocupam. Do mesmo modo, são avaliadas as atribuições dos líderes evangélicos
indígenas atuais. Em paralelo a essas constatações, um olhar sobre minha aldeia me
fez logo perceber o acentuado número de igrejas, de dirigentes indígenas (atuais
pastores), ministérios e templos, nas mais diversas regiões, e pontos de pregação e
oração em diferentes lugares, sejam próximos às casas de rezadores ou mesmo bem
próximos ao centro da aldeia, onde estão escolas, posto de saúde, CRAS, FUNAI,
local de grande circulação de pessoas. As igrejas parecem assumir o centro da vida na
Reserva, mas a pesquisa mostra, através das falas de rezadores e da atuação deles
frente à escola indígena e no processo de formação de professores indígenas, que o
protagonismo dos rezadores está se fortalecendo.
Colocando mais alguns exemplos que são utilizados pelos evangélicos para
ganharem prestígios na comunidade, é o caso de quando um ex-usuário de droga se
converte, o mesmo consegue, através do testemunho, converter muitos parceiros, dito
por eles de “amigo do mundo”. Na visão dos crentes indígenas, a conversão dessas
pessoas é positiva, pois diminui a violência na aldeia, como analisa o pastor
Claudemir, da igreja Deus é Amor.
8
Na visão de um pastor Kaiowá, é tirar as pessoas da vaidade do mundo, por exemplo da bebida
alcoólica, tornando-as mais preparadas para viver de novo na comunidade.
9
Com 566 votos, Agripino Benites (PT) foi eleito com votação maciça na aldeia Te’yikue.
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Marcado pela atuação das igrejas mais tradicionais, como Deus é a Verdade,
Deus é Amor, Último Tempo e Primeiro Deus Pentecostal, o espaço religioso na
Reserva Indígena de Caarapó assistiu a uma vertiginosa expansão da atuação dos
chamados, por muitos indígenas, evangélicos pentecostais. Por outro lado, as igrejas
Pentecostal Indígena de Jesus Cristo, Visão Missionária, Estrela da Manhã, Primeira
Igreja Deus Pentecostal e Deus Proverá são as maiores nesse gradiente religioso.
Todavia, a partir de 2000, como aconteceu em diversas periferias da cidade de
Caarapó, muitos ministérios neopentecostais entraram e saíram, alguns se
fortaleceram e adquiriram espaços e expressiva visibilidade no meio da parentela
guarani e kaiowá.
27
colonizador requer muita atenção, esforço, reflexão, dedicação e, sobretudo, ética 10,
pois muitas histórias ricas foram silenciadas ao longo das décadas, devido ao contato
com a sociedade envolvente, nesse caso, os karai ou mbaíry (homem branco).
10
A discussão sobre ética tem uma vasta conceituação na história da cultura ocidental, assim
também gostaria de abordar conceitos sobre ética a partir da epistemologia guarani, no decorrer
do desenvolvimento deste trabalho de pesquisa.
28
colonizadoras. O Estado, que produz leis e controle sobre a sociedade, procurou, de
toda forma, incluir os indígenas nesta ordem de coisas. Contudo, como o mundo
indígena se forma através de amplo processo ativo de formação cultural, não foi
possível aniquilar a sua organização social diferenciada e resistência. O Estado e as
igrejas pentecostais muitas vezes falam que “a cultura já foi, já acabou, ninguém mais
sabe rezar, só falam o Guarani porque necessitamos parecer ser como indígena para
ter direito, tendo e reproduzindo o medo de pertencimento à cultura11”.
11
Fonte: Memórias autobiográficas da minha experiência como indígena das leituras e
declarações midiáticas sobre meu povo.
29
Algumas obras e situações, como mencionado antes, desde o início da
pesquisa em 2017, despertaram o interesse para o tema e já se configuravam como
levantamento de fontes.
30
A participação em alguns eventos acadêmicos, seja como ouvinte ou
palestrante, apresentando trabalho, também promoveu ponderações indispensáveis
para esta pesquisa. Destaco a minha primeira participação como debatedor sobre
Povos Ameríndios e a Política do Bem Viver, no Encontro Formativo dos Núcleos
NEABI (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas) e NUGS (Núcleo de Estudos
Sobre Gênero e Sexualidade), do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo), realizado nos dias 13 a 16 de agosto de 2018, Unisal,
campus Pio XI, São Paulo; na Audiência Pública sobre Desafios Frente à Intolerância
Religiosa, cujo tema foi “DIÁLOGO E PLURARIDADE: DESAFIOS FRENTE À
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA”, realizada na Câmara Municipal de Dourados, no dia
07 de junho de 2018; no XIV ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ANPUH/MS (cujo
simpósio temático foi coordenado por Éder e Protásio Langer, ambos docentes da
UFGD), entre outros.
31
convertido e a postura diferenciada dos seus parentes indígenas “católicos12”, ou seja,
não convertidos. Os dados que estao neste capítulo mostram o quanto a formação
social indígena tem se diversificado.
12
Há várias formas de refletir sobre o conceito “católico”, mas aqui priorizo o ponto de vista
dos crentes pentecostais indígenas. Para eles, católico é alguém que nunca “levantou a mão para
Jesus”, tampouco pisou numa igreja, esse tipo de pessoa é considerado “católico ete” que pode
ser considerada católico puro, alguns indígenas que só visitam a igreja são considerados “irmãos
católicos”. Segundo o pastor indígena Severo, estes já fazem parte da igreja, porque já se sentem
familiarizados com os obreiros, etc. Na maioria das vezes, os “irmãos católicos” são parentes de
alguns crentes da igreja. Em algumas igrejas, o “desviado” pode ser considerado também apenas
“católico”, porque, na ocasião, o pregador faz pressão para a pessoa voltar à igreja, humilhar-se
novamente. Tratarei disso no capítulo II.
32
CAPÍTULO 1
1.1 Trajetória do pesquisador e a relação com as igrejas
O “mundo real”, que muitos imaginam ser dos indígenas, é de que eles só
têm de viver apenas como “índio”, longe da civilização, e apenas aceitar que pertence
a um povo inferior. Ao contrário, deparei-me com algumas narrativas indígenas sobre
as táticas que ajudaram no fortalecimento das culturas indígenas e das lutas contra o
preconceito, as quais ocorrem inesperadamente opostas às leis da realidade almejada
pela sociedade ocidental. Muitos Guarani e Kaiowá que fazem parte do fortalecimento
da cultura ancestral do povo já experimentaram/viveram diferentes teko (jeitos/modo
de ser e de viver), constituindo, assim, dentro de uma comunidade indígena várias
histórias e experiências de vida. Vivemos realidades e espaços que contêm vários
elementos – visíveis e invisíveis - que os compõem. É uma realidade carregada de
histórias de luta e de superação, segundo o professor indígena Nilton Ferreira, pois só
quem passou/passa por ela sabe o quanto a resistência é fundamental e continua sendo.
33
Os espaços13 que foram diminuídos com a chegada das fazendas e das cercas nos
remetem a replanejar as táticas e ampliar as possibilidades de luta.
13
Refiro-me ao território indígena ou tekoha guarani e kaiowá.
14
ORE é o pronome pessoal de 1ª pessoa do plural (NÓS - excludente), ou seja, exclui os que
não lhe são próximos; ao contrário de NHANDE (também NÓS - includente), ou seja, inclui um
coletivo maior, os que são próximos e também os outros. (Explicação oral da Prof. Veronice L.
Rossato)
34
comportamentos reprováveis). Estes dois exemplos não resumem a legitimação de
vários teko laja existentes nas aldeias. Há vários outros.
35
ação do princípio pavêm sobre a estrutura social quebra a hegemonia e
a exclusividade das formas de mutualidade restritas a um pequeno
número de pessoas ou fogos. Para isto, institui mecanismos que
permitem reunir um número maior de pessoas, fogos e parentelas
relacionados como parceiros políticos e cerimoniais. De qualquer
forma, o principio pavêm aciona valores religiosos que procuram
romper os interesses exclusivistas dominantes nos horizontes da
convivência social. (PEREIRA, 2004, p.134-135)
Priorizo o termo nativo ore para deixar claro como a minha trajetória se
constituiu desde a minha infância até a vida adulta, ou seja, até me tornar
acadêmico/pesquisador, fazendo parte da comunidade indígena e da sociedade
ocidental, para quebrar esse paradigma de que o Estado “reservou” completamente a
coletividade de ore kuéra que existe na região, mas que, através do surgimento de
novos modos de vida, a resistência indígena se fortificou. Portanto, também fiz parte
disso, quando ore se dividiu entre família não crente e crente. Ore kuéra utilizo pois
tem várias famílias, que se constituem de vários teko laja, digo que vivi vários teko
laja, ao mesmo tempo passei por vários ore, de não crente, de crente, de acadêmico,
etc.
36
Fonte: produzido pelo autor, MARTINS (2020).
37
Logo, ore demonstra as articulações, forças e organizações que este
ore apresenta. Ao citar este termo, em seguida é necessário comprovar
a força e o poder que essa coletividade fabrica e produz. Ore é
sinônimo de autonomia, exaltação, organização, fortalecimento que a
parentela almeja divulgar. (VALIENTE, 2018, p. 146).
Portanto, o questionamento que deixo é: Se há possibilidade de diferentes ore
se estabelecer dentro da mesma pessoa? Aqui estou entrando no ambiente da
psicologia ou da psiquiatria, que estuda o psiquismo da pessoa, tendo em vista a
influencia que tive na formação individual e coletivamente, pelo lugar social, familia,
religioso que ocupei e ocupo, pelo meu sofrimento, traumas, heranças psicológicas,
familiares, etc. A reserva indígena ganha força através da constituição do ore? A
seguir descrevo a minha trajetória de vida e de pesquisador para responder às questões
abordadas.
15
Segundo o que eu consegui entender, da conversa que tive com liderança de uma área
retomada, senhor Nardo, os elementos são: o fortalecimento de saberes indígenas, língua
materna, escola diferenciada de qualidade, a valorização e o fortalecimento dos papeis dos
rezadores e das rezadoras da aldeia, a construção de casas de rezas (óga pysy) e, por fim,
fortificar o diálogo sobre a intolerância religiosa.
38
conforme meu tio Hipolito Martins, “quando morávamos perto da região de Juti/MS,
os peões dos fazendeiros não quiseram mais nos respeitar e nos expulsaram quando
recusávamos trabalhar no dia de domingo e nos ameaçavam com arma de fogo”.
De acordo com o que foi narrado para mim, durante a pesquisa, várias
transformações ocorreram na Reserva de Caarapó, em diferentes momentos. Segundo
o atual vereador indígena Alécio Soares Martins, a sociedade caarapoense não tem
muito conhecimento sobre a Reserva indígena. Entende que ela foi criada para
resolver os problemas dos índios e, por conseguinte, para torná-los “obedientes”, ao
mesmo tempo, “civilizados e trabalhadores”. Coloco entre aspas esses dois conceitos,
pois, na prática, não é isso. Conforme a pesquisa etnográfica, a comunidade se
organizou, buscou a sobrevivência em constante negociação com algumas instituições,
entre as quais a Missão Caiuá, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a FUNAI
(Fundação Nacional do Índio), a Escola e as Igrejas Evangélicas Pentecostais. Como
explanado acima, mesmo sendo breve, a sociedade não indígena (karai) de Caarapó,
imagina essa área como o único lugar de “índio”; onde as duas etnias Guarani e
Kaiowá podem viver adequadamente, como no paraíso escrito na Bíblia. Segundo o
professor militante da causa indígena, Otoniel Ricardo,
Acharam várias justificativas para nos colocar como povos inferiores
em nosso próprio território, não queriam saber nada sobre a cultura
indígena, tampouco nos enxergar como gente. Vivemos as histórias
narradas pelos brancos, nas quais as imagens de indígenas aparecem
nos livros didáticos como selvagens, língua ignóbil, pelados, como
indivíduos incapazes etc. Todas essas histórias transcorridas pela
sociedade ocidental reiteraram injustiças em relação aos nativos (ava).
(RICARDO, 2019).
Como indígena e estudante pesquisador, junto às narrativas de primos, tias e
tios e alguns parentes das regiões da reserva (Mbokaja e Missão), arrisco em dizer que
no “tempo da conversão”, os meus parentes enxergaram uma nova forma de superar e
resolver, de certa forma, seus problemas. Para meu tio Roberto Soares, “nessa época
era difícil achar um serviço, a gente ia pedir mesmo as coisas pela cidade, a minha
mãe sempre levava a gente com ela”. Conforme a fala de Roberto Soares, para
algumas famílias indígenas, a conversão deu certo. O exemplo disso foi o caso da
minha família, tanto por parte do meu pai e da minha mãe. Por outro lado, causaram
impactos na vida dos detentores de saberes ancestrais, pois os primeiros convertidos à
igreja pentecostal, através das doutrinas interpretadas da bíblia, começaram a
demonizar a cultura tradicional, as rezas e a língua indígena. Essa escolha das pessoas
39
por se converterem, conforme a observação de Lauriana Escobar, deu-se porque
“chegou num ponto que não deu mais certo; mesmo que tentássemos, não fazia mais
efeito a reza, acho que por causa que o nosso destino era para ser crente..., mas nem
todos os rezadores que conheço deixaram de ser o que eram”. No caso dela, pelo que
observei, a adesão à igreja ocorreu estrategicamente: “Eu vi que estava dando certo
para minha família; então, para eu não me sentir excluída do meio, tive que seguir
também, só assim, vou me fortalecendo”. Desde que passou a frequentar a igreja
pentecostal, quase não pratica mais a reza que aprendeu na juventude, pois, para ela, o
respeito pelo Deus cristão deve ser prioritário, exceto quando está chovendo muito
forte e quando as crianças precisam de um ritual específico, ou quando o pesquisador
indígena a procura. No caso dela, a conversão deu certo para não haver dispersão e
distanciamento familiar, mas procura sempre passar a sabedoria indígena aos
membros da família. Neste caso há a estratégia de fortalecimento de saberes ancestrais
também diante da intolerância que foi impregnada no meio dos adeptos pentecostais.
Há o caso também de muitos rezadores, que haviam se convertido ao pentecostalismo,
retornarem a praticar as rezas e, neste retorno ao ambiente cultural, conseguiram
formar novos grupos de rezadores (oñembo’ea kuéra).
16
Como meu objetivo é escrever sobre a trajetória da minha família, de forma resumida, deixo
essa parte da temporalidade para uma próxima discussão. Mencionei essa década, pois na
conversa com minha avó e tio, eles lembraram de como se organizavam entre os parentes
consanguíneos. Vieram para Te’yikue porque sentiam a ameaça da presença dos colonos
brancos na região. Chegava a notícia para eles através dos parentes que os visitavam, e eles já
tinham conhecimento de que na Reserva havia “ajuda”, onde poderiam morar e viver com
“segurança”.
40
nas décadas de 1960 e 1970. Foi justamente nesse período e nesse
lugar que os integrantes da geração que hoje tem maior influência
social e política dentro do acampamento viveram momentos
significativos de sua infância e juventude, experiências que lhes
marcaram profundamente e que permanecem na memória com uma
boa dose de saudosismo. (SANTOS, 2019, p. 25-26)
Com o término das atividades na Companhia e do processo de esbulho que
estava se estabelecendo, foi necessário procurar outra alternativa para garantir sua
sobrevivência como indígena, sendo assim, foram à Reserva Indígena de Caarapó e se
estabeleceram por lá. No primeiro momento, ou seja, no tempo da Reserva, dividiam
sua política organizacional com as demais famílias, nesse sentido, foi necessário
estabelecer aliança e constante negociação.
Igualmente a outros casos, durante o processo de expansão
agropecuária que se deu no MS, os Guarani e Kaiowa de Santiago
Kue foram removidos gradativamente de suas terras, espalhando-se
pelas reservas e fazendas próximas em busca de um lugar para morar.
Durante o tempo que permaneceram longe de seu território,
percorreram muitos lugares, dentre esses, as reservas indígenas de
Dourados, Juti e por último Caarapó, local em que se organizaram
para reivindicar suas terras de ocupação tradicional, tendo como
primeira via a entrada na fazenda que compreende um segmento do
tekoha. (SANTOS, 2019, p. 36).
Conforme a narrativa da minha avó Lauriana Escobar, de 84 anos, os pais
dela vieram após a demarcação da Reserva Indígena de Caarapó, pois foram
obrigados a deixar o local de trabalho. A família Escobar veio nesta aldeia/reserva
desde o início da demarcação, no final de 1925. Antes disso passou por vários tekoha
tradicionais, tentando fugir da colonização.
17
Teko joavy, em tradução livre, significa “modo de ser diferente”.
18
Sobre o teko joavy, as igrejas pentecostais da Te’yikue se apoderaram da expressão, pois elas
trabalham em cima da “imperfeição da vida”. Elas falam que não existe mais saída para um
41
que se fez presente na vida indígena, foi deteriorada pelos brancos, mas aos poucos foi
sendo restaurada, pois os sábios, nessa época, procuravam ensinar e transmitir saberes
ancestrais. Sendo assim, conseguiam preparar os parentes para os desafios que
estavam por vir.
Discutir essa etapa de preparação para os dois mundos (ocidental e indígena)
demanda tempo. Portanto, refletir sobre os indígenas, acerca da Reserva, requer
bastante pesquisa. Neste tópico procuro mostrar os desafios que a área demarcada pelo
SPI proporcionou e proporciona até hoje. A seguir detalho mais sobre isso.
Destaco ainda a etnia da minha avó materna. Durante algumas décadas, entre
1980-1993, ela, junto à família na Reserva indígena de Caarapó, não revelava sua
origem étnica. Talvez seja por isso que não teve muito problema com a liderança e o
chefe do posto: “Nessa década, a gente não podia se autoafirmar como Guarani
mesmo, porque a liderança, como capitão e chefe, não tolerava a nossa presença,
sempre tentava negar a nossa existência; mesmo tendo parentesco kaiowá” (Lauriana
Escobar). Da família dela, os que ainda hoje estão vivos são: Floriano Escobar,
Seferina Escobar, Epitácio e José que, atualmente, moram em Dourados/Bororo. A
maioria desses meus parentes casaram-se com homem ou mulher Kaiowá, e criaram
grande aliança política. Dessa forma, espalharam-se por várias regiões.
indivíduo que é alcoólatra, usuário de droga, “católico”, no que se refere à cultura indígena e a
prática de reza indígena.
42
Figura 3: Pehengue (família) Seferina Escobar, reindy (irmã) da Lauriana Escobar
da Reserva Te’yikue, Região Mbokaja
Assim como o irmão da minha avó, a sua irmã Seferina também se casou
com um kaiowá, conhecido por Minério Cavanha, todavia sempre manteve em sigilo
sua identidade étnica. Ela, do mesmo modo tradicional de organizar família, manteve
essa organização. Ao redor dela (ijere rehe), como já comentei acima, moram alguns
filhos, netos e outros parentes, como primos e primas, etc. É interessante notar que ela
nunca participou ativamente de nenhuma denominação religiosa ocidental. Do lado
direito do mapa localiza-se a casa da sua filha Edina e as demais parentelas da mesma
família. A estrada que as divide chama-se MS-280, que liga o Município de Caarapó a
Laguna Caarapã. A referência de localização também foi e continua sendo uma mina
d’água conhecida por “Yvy ku’i veve” (areia que voa).
Como está exposta na imagem anterior, esses meus parentes estão localizados
na região que a maioria chama de Mbokaja, utilizada como pasto de gado, até meados
de 1978, ocasionando o desmatamento de muitas árvores nativas19. Perto desta região
há dois cemitérios familiares, que hoje estão cobertos de árvores, sendo que um fica
19
Sobre esse processo histórico, no ano de 2019 conversei com senhor Fernando Peralta, ex-
funcionário do SPI, Florencio Barbosa e Lauriana Escobar. Como Lauriana e Florencio foram
alguns dos moradores mais antigos desta região, optei por añomongeta (conversar) com eles
sobre isso. Então narraram que essa região tinha muitas árvores nativas, havia poucos
moradores, por isso mesmo o chefe Didi do SPI criou pasto de gado. Conforme os meus
interlocutores, havia aproximadamente 1.800 cabeças de gado. Logo depois resolveram vender a
madeira. Sobre isso conversei bastante com Peralta, em sua casa, o que talvez tenha facilitado o
diálogo.
43
logo na entrada de Mbokaja, coberto pelo capim braquiária, usado pelo gado. Nesses
cemitérios estão enterrados muitos parentes meus.
Figura 4: Casa do Floriano Escobar, região Centro, Te’yikue
44
Fonte: Google Earth
Assim como os seus irmãos, Lauriana formou sua família na região Mbokaja,
onde morou com seu primeiro esposo da etnia kaiowá, Paulo Martins. Como mentora
do casamento, ela foi a organizadora do seu grupo familiar. Em seguida, foi criando
mecanismos de convivência com as demais parentelas da região. Por outro lado, havia
sempre conflito, porque o marido como “dominador” tentava impor o seu sistema e
fazia toda possivel para mudá-la, mas, como ava kuña (mulher indígena), ela sempre
mostrou habilidade em contornar os problemas cotidianos. Conforme a fala de Katia
Martins (minha tia), as mulheres indígenas conquistaram seus espaços dentro da
família, mostrando que têm capacidade de cuidar dos filhos, da casa, “até mesmo da
roça, sempre nessa tentativa de romper essa ideia de que as mulheres não são
capazes”.
45
Do casamento kaiowá e guarani entre a minha avó Lauriana Escobar e Paulo
Martins nasceram minha mãe e minha tia Kátia Martins e os outros tios, os quais
cresceram adquirindo os conhecimentos das duas etnias. No decorrer desta reflexão,
irei delineando sobre minha apresentação da “etnia Guarani Nhandéva/Kaiowá”, logo
no início deste parágrafo.
Fernando Peralta Kaiowá conta que eles vieram em grupo. Então, antes de
chegarem, de fato, na Reserva, a liderança “capitão” logo já barraram, tentando saber
o motivo da mudança de lugar. Ainda segundo Peralta, alguns grupos de policiais
indígenas já os acusavam de serem feiticeiros, e esse seria o motivo da mudança. Mas
com a habilidade guarani, um dos líderes espirituais da família explicou o verdadeiro
motivo. Um dos argumentos utilizado consistia em que só na Reserva poderiam obter
ajuda e sobreviver, como afirma Hipolito Martins: “nos convenceram bem de que só
na reserva tinha coisa boa para sobrevivência”. Portanto, ao longo dessas décadas, os
meus parentes guarani nhandéva conseguiram se estabelecer na região Mbokaja. Esta
região era conhecida por “guarani’i kuéra lugar” (lugar dos guaranizinhos), termo
utilizado por sermos de uma etnia de “fora”.
Figura 6: Região Mbokaja da Te’yikue
46
Fonte: Google Earth
Por parte do meu pai, Virginio Soares, a maioria dos meus parentes
concentram-se nessa região. Por outro lado, há alguns que moram nas demais regiões,
já que se casaram com Kaiowá e, por isso, foram morar com a parentela da mulher,
constituindo assim outro ore guarani/kaiowá.
Na região Mbokaja mora a maioria dos meus parentes. Como disse Hipolito
Martins, “nunca confrontamos os nossos parentes na base da violência, aprendemos a
respeitar às pessoas do jeito que elas são”. Essa fala registrei durante uma reunião que
teve na escola extensão Mbokaja, onde essa liderança falou em relação ao preconceito
que alguns alunos sofriam por serem de etnia diferente.
Fonte: Atlas socioambiental terra indígena Te’ýikue. Org. Smaniotto C. R., Ramires L. C.,
Skowronski, L. – Campo Grande: UCBD, 2009.
Há idosos/as, meus tios e tias, que conhecem bem a região, como é o caso de
Ramona, 88 anos; Oracio Soares, 85 anos; Tereza e Felipa, etc. Essa região ficou
conhecida como “Guarani kuéra lugar” (Lugar dos Guarani). Os homens dessa
região, sempre que possível, casam-se com mulheres Kaiowá das outras regiões, mas
nem todos conseguem morar perto da família, pois as mulheres fixam moradia junto à
sua própria família de origem. Igualmente acontece com as mulheres Guarani que,
47
quando se casam, trazem homens para morarem perto da família, constituindo uma
espécie de identidade composta, guarani e kaiowá. A minha intenção não é dizer que
todos que vão morar nas famílias kaiowá tornam-se kaiowá, assim também acontece
com essa etnia quando vem morar na família Guarani. Possivelmente, através disso
temos resistido à aniquilação e ainda continuamos resistindo e nos fortalecendo,
porque algumas táticas de resistência acontecem nesta dinâmica descrita.
20
Utilizei esse termo inspirando-me em Marshall Sahlins, Ilhas de História. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 2004.
48
líderes espirituais (ñanderu e ñandesy) ainda convenciam o Tupã Rusu em manter este
mundo, e nós indígenas podíamos fortalecer nossa língua, nossa espiritualidade e
nossa sabedoria, etc. Quando nasce um ava, geralmente espera-se que ele tenha
sabedoria nativa para não ter dificuldade em transitar neste universo. Para que isso
seja possível, dependemos muito da pessoa capacitada, que delineará o jeito certo de
ser indígena. Os nossos ancestrais rezadores e rezadoras intercediam pelo nosso
futuro, de modo que, ao crescermos, os espíritos, os jára possam nos atender quando
os invocamos.
Assim como minha mãe, as mulheres indígenas sempre moram separadas das
suas mães (nde sy), mesmo assim, na maioria das vezes, dependem delas para
questões peculiares. As mulheres, para Pereira (1999), têm o papel marcante para
atração de parentes: quando elas estão gestantes recebem visitas, recebem cuidados
das primas, das tias, quando é necessário alguns parentes moram com elas durante a
gestação. Além da geração de filhos, de cuidar das filhas grávidas, e cuidar de outras
mulheres grávidas, podem “adotar” crianças, como “sobrinhos”, como é o caso de
Chopim, que a Lauriana considera como sobrinho. Vejo esta colaboração intensa entre
Guarani e Kaiowá da região Mbokaja.
49
Há o mba’e jepota que, na perspectiva dos rezadores, é o espírito que causa
vários problemas na vida das pessoas, seja espiritual seja físico. Só o rezador ou a
rezadora, através da reza, conseguem mba’e tirõja (antídoto indígena contra mau
agouro), na maioria das vezes, são plantas, por exemplo, ñandyta’y, etc. Há várias
plantas medicinais específicas para proteger os indivíduos desse espírito mau (aña
rembiguai). As plantas mais conhecidas atualmente são: pikati͂ , yryvu ka’a, ysy kamby,
folha de cedro, ñandy ta’y, entre outras. Algumas podem ser encontradas nas regiões
da aldeia mesmo, enquanto outras só podem ser encontradas nas terras dos
fazendeiros.
Esse item, contém aspectos etnográficos, pois mesmo diante dos impactos
negativos causados pelo processo de evangelização, procurei mostrar que, apesar de
eu ter formação evangélica, conheço profundamente estes saberes ancenstrais e suas
praticas, os vivis junto a minha família. E isso é compartilhado pela grande maioria
dos membros da minha família extensa. Do mesmo modo, tanto a minha família e as
demais famílias indígenas procuram resistir, se reorganizar neste novo cenário na
reserva, tanto pela sobrevivência dos saberes ancestrais, do grupo tradicional para manter
a continuidade da formação e do fortalecimento do papel das lideranças tradicionais e
espirituais.
50
seleção intencional que perpassa o tempo, não é aceita passivamente pelo historiador,
que, através do rigor da crítica, interroga e narra esse passado.
Para que seja possível escrever e abordar minha história junto à história da
Reserva ao mesmo tempo, como um lugar de espaços e produção de coletivos, as
teorias e as metodologias da etno-história abrem a possibilidade de um indígena falar
do lugar ao qual pertence. Este foi o meu caso. As reflexões sobre a etno-história e os
registros de um “olhar sobre si” apresentam-se, atualmente, como importantes partes
constitutivas de qualquer trabalho na área de História. Michel de Certeau, em “Fazer
História” (1982), discorre acerca desta prática que se tornou tão comum a partir do
século XX. Sendo assim, descrevo como se sucedeu meu nascimento na Reserva de
Caarapó.
51
Durante três dias teve grande reza na região onde eu moro. Nessa etapa de
preparação do batismo de crianças, havia porahéi ñemoiru͂, que funciona como “rezas
partilhadas”, durante as quais os rezadores demonstram respeito, compartilhando seus
conhecimentos espirituais para afastar os espíritos perversos. Todavia, “quem olhasse
sem conhecer a realidade nesta época, não entenderia esse tipo de reza, porque sempre
havia acusação de macumba de ambos os lados, pois passávamos por uma situação
muito difícil” (Lauriana Escobar, 2019). Esse porahéi ñemoiru͂ é constante hoje em
dia, por exemplo, nas áreas retomadas, nas Aty Guasu, no Fórum local, etc, onde se
reúnem os rezadores da etnia Guarani e Kaiowá de várias regiões. Portanto, alguns
rezadores da Reserva Indígena de Caarapó estabelecem o que eu chamo de
reciprocidade espiritual21, em que fortalecem os saberes indígenas, sobretudo na
questão da espiritualidade.
Assim sendo, no penúltimo dia, passando por três processos de rezas, com o
ritual do batismo dos Kaiowá e dos Guarani, não faltou também as rezas das mulheres,
entre as quais estavam a Angela e a Tereza Martins. Quando Jorge Paulo, Kaiowá,
iniciou sua reza, as mães permaneciam sentadas e, nas rezas Guarani, as mães ficavam
em pé. Neste ritual usavam folhas de cedro e, para iluminar o espaço, utilizavam
araity. A minha madrinha, que me tomou em seus braços, era uma senhora chamada
Leonilda (kuña morotĩ). Foi necessário, ainda, a participação do meu pai para que o
teko resãi (vida saudável) viesse me acompanhar desde então. O processo de saúde, na
nossa concepção, está ligado fortemente com o espaço que ocupamos na natureza e
21
Uns dos exemplos que destaco aqui é quando um rezador fica doente ou enfrentando
problemas espirituais, incluem-se aí sonhos incomuns, dor de cabeça ou quando é perseguido
pelos espíritos adversários. Nesses casos, ele sempre procura ajuda de outro rezador para ter
força e sabedoria para vencer.
52
nas relações recíprocas com os jára, que sempre são restabelecidos conforme as
conjunturas sociais nas quais desenvolvemos a nossa resistência cultural, linguística e
xamânica, experimentando vários teko, baseados no nosso conhecimento.
Seguindo com a explicação dos meus parentes, deixo claro que não é a única
explicação sobre ayvu: há várias formas de recebê-lo na vida e no corpo. No meu
caso, como foi narrado por minha mãe, eu o recebi desde o meu nascimento, mas
precisava de orientação e preparação para que o ayvu se assentasse em mim com
qualidade. Há muitos casos que as crianças recebem ayvu provisório; por isso é
fundamental que recebam o batismo tradicional (mitã ñemongarai), em que os
rezadores, através das rezas, conseguem descobrir o téra ka’aguy (nome indígena),
para assentá-lo nas pessoas com segurança. Como foi descrito acima, é um processo
complexo, mas seguindo toda a orientação, sempre se consegue ter êxito.
22
Aqui me refiro o espaço da reserva indígena.
53
Portanto, cresci sendo cultivado na cultura tradicional guarani, como conta a
minha mãe. Na maioria das vezes recebia visita dos parentes Nhandéva que vinham da
Reserva Porto Lindo. Neste caso, ela recebia orientação dessas pessoas em relação a
remédio tradicional, educação indígena, língua e jeito de lidar com a criança, entre
outras. Da mesma forma acontece com a visita dos parentes Kaiowá. Assim, ela foi
adquirindo vários saberes, tanto dos Guarani Kaiowá da Reserva de Caarapó, quanto
dos Guarani Nhandéva de Porto Lindo.
54
com os pastores indígenas e os crentes. Sendo um pesquisador comprometido com a
questão indígena, não podemos entender quem somos, sem conhecer nosso histórico
familiar no contexto do histórico da Reserva. A seguir escrevo sobre minha trajetória
como ava.
55
Volto agora um pouco no tempo para descrever as andanças da minha
parentela até chegar à Reserva Te’ýikue. Faço parte de uma família que, em boa parte,
se conformou com a Reserva, mas que também está lutando para retomar o antigo
local de ocupação tradicional da parentela, que é o Kurupi Santiago Kue de Santiago
Kue, localizado no município de Naviraí/MS. Boa parte desse processo histórico pode
ser recuperado através da senhora Veronica Martins Veron, ex-esposa do falecido Ivo
Martins, que faz parte da parentela Martins, do meu tio Hipolito Martins. Portanto,
minha família, por parte do meu pai, cuja parentela é Guarani, habitava “um extenso
território que era composto por uma população resistente ao esbulho. Porém, se
manter na luta foi ficando cada vez mais difícil” (SANTOS, 2019, p. 34). Por isso
veio primeiro a família da kuñatai, que seria esposa do Hipolito Martins, pertencente à
família Soares, Vera e outras. Pelo que ela me falou, numa conversa em sua
residência, em 2018, eles vieram andando horas e horas pela estrada (que hoje seria a
BR 163) que liga Caarapó a Navirai/MS. “Viemos porque a gente sofria pressão
também por parte dos brancos, que estavam entrando em nossas áreas; ao mesmo
tempo, nós meninas, também, quase que sofremos violências. Então meus pais
resolveram vim pra cá [Te’yikue], nossa família que chegou primeiro aqui” (Veronica
Martins). Nesse sentido, Junia Santos ressalta:
No que diz respeito ao esbulho territorial de Kurupi de Santiago Kue,
este se consolidou a partir de um processo de intimidação, coação,
convencimento e expulsão praticados pelos ditos brancos. Lideranças
eram perseguidas e criminalizadas, muitos atos de violência eram
praticados em função de conflitos pela posse territorial. Em
consequência das omissões do Poder Público foram cometidas várias
violações de direitos, por carência de assistência oficial, por descaso e
deficiência de políticas sociais voltadas para a população indígena
(SANTOS, 2019, p. 34).
Como bem esclarece a autora sobre a situação da família expulsa dessa
região, e alojados na Reserva de Caarapó, eles chegaram divididos em dois núcleos
familiares: a família Soares/Vera chegou primeiro, depois veio a família Martins que
pertence referencialmente, hoje, a Hipolito Martins. É evidente que as famílias dessa
região se espalharam pelas outras reservas e aldeias, tanto que hoje, como a pesquisa
da Junia Santos demonstra, a família da senhora Veronica Martins Veron continua
lutando pela recuperação de seu antigo território. Portanto, como meu objetivo é
mostrar que, apesar de minha família se conformar com a Reserva, a ligação histórica
e a memória coletiva continuam ativas e atuantes.
56
Feita esta contextualização histórica, volto a 1994, na região do Mbokaja,
quando ainda éramos seguidores do teko marangatu (modo de ser religioso segundo a
espiritualidade ancestral), orientados pelo grande rezador guarani Avelino Quinhones.
Nesse caso, a perda deste rezador, que era muito atuante e respeitado, ocasionou uma
grande tristeza nos Guarani da região Mbokaja, pois “ele era grande pessoa, rezador e
conselheiro da família; não media esforço para ajudar alguns doentes e para buscar os
remédios” (Katia Martins, 2019). Desde então, houve algumas mudanças em minha
família. No início de 1994, meu pai viajou a Campo Grande e, nesta cidade, participou
de um culto com pessoas da igreja Deus é Amor. Ali conheceu o pastor Carlinho, que
morava na cidade de Caarapó. Virginio Soares conta que me levou para receber o que
ele chama de “milagre”, porque, nessa época, eu estava doente. Então, ele decidiu se
converter, como ele mesmo diz, “entregando a alma pra Jesus” e teve a ideia de
instalar um ponto de oração naquela região da reserva. Primeiramente tentava
“organizar o evangelho”, ou seja, a igreja, na casa de Hipolito Martins, que no
primeiro momento aceitou. Mas, segundo Soares, logo depois de um mês, por um
desentendimento, mudou o ponto para a casa do casal Mariana Martins, que ficava a
cerca de 250 metros do local anterior.
23
Na opinião de Rosenildo Isnard (in memoriam), a liderança não tinha mais muita força para
solucionar alguns problemas que estavam se agravando na Reserva Indígena, principalmente a
violência e a bebida alcóolica. Por isso, segundo ele, permitindo a entrada da igreja, solucionaria
estes dois problemas.
24
Essa represa ficou conhecida por Airton Senna, que, em 2015, foi destruída pelas chuvas.
57
maioria dessas pessoas não tinha estudos, ninguém se preocupou em anotar num
caderno os nomes nem o número dos fiéis. O pastor que atuara com eles também não
conseguiu me passar algumas fontes, portanto, fiz contagem de acordo com as
recordações da parentela.
Como se pode notar na foto, a igreja sempre foi uma oga kapi’i (casa de
sapé), onde se construía coletivamente pelos novos membros que chegavam. Toda
informação eu tive conversando com minha mãe Mariana Martins, minha tia Kátia
Martins, meu pai Virginio Soare, Hipolito Martins, algumas vezes com minha tia
58
Luiza Rosa, tio Roberto Soares, tia Felipa Soares, ex-crente, como no caso do Simão,
e outros.
Na imagem também pode ser notado como era o púlpito25 naquela época,
construído com madeira, usado para colocar a Bíblia em cima, o óleo da unção26 e, ao
mesmo tempo, para facilitar a leitura. Na hora do culto só podiam ficar no púlpito o
pregador, o violeiro e alguns obreiros27 com autorização do dirigente, pois
considerava-se esse espaço como sagrado, por isso não podia entrar qualquer pessoa.
Usava-se pano branco para destacá-lo como lugar sagrado, onde aconteciam os
milagres, oração fervorosa, onde se conseguia conectar com as divindades
representativas da religião (Jesus e Espírito Santo). De acordo com a campanha em
vigor, o pregador chamava todos os obreiros para fazerem oração de mãos dadas;
assim, conforme a explicação de Virginio, conseguia-se invocar o espírito de Deus
para resolver os problemas das pessoas, batizá-las e para abençoar o local.
Essa foto retrata um pouco a minha recuperação depois de alguns meses com
catapora, que quase tirou a minha vida. Minha avó Lauriana Escobar conta que fiquei
muitos meses com essa doença, com dificuldades para me movimentar e me
comunicar com as pessoas. Por isso, meus pais pleitearam ser evangélicos verdadeiros
e se dedicaram a me tornar um bom crente, pregador, violeiro e cantor.
25
Púlpito é uma espécie de balcão, ou uma plataforma mais elevada, na frente dos fieis.
26
Unção é o ato de benzer as pessoas, com óleo bento.
27
Obreiro é o auxiliar do pastor.
28
Expressão usada pelos crentes indígenas, principalmente ao dar testemunhos nos cultos.
59
inferno, etcque qualquer criança pode sofrer. Isso corrobora a afirmação de Pereira
(2004, p. 110) de que “as relações entre as pessoas no interior da parentela têm
importante papel na socialização das crianças, pois proporcionam uma série de
situações que levam as crianças a incorporar padrões de comportamento tidos como
apropriados entre pessoas consideradas parentes”.
Na minha juventude tive muito temor pelas palavras bíblicas repassadas nos
cultos. Meus pais me educavam, segundo eles, mesmo que isso não tenha na Bíblia,
estava nos ensinando de acordo com a Bíblia, cuja doutrina era bem pesada: raspavam
meu cabelo, faziam-me participar todo dia de culto e vestir roupas adequadas de
família pentecostal. Além disso, nessa fase ouvia muita pregação sobre salvação
divina, cura, libertação, demônio, dilúvio, macumba, fim do mundo e outros temas.
Sobre as roupas, vale salientar que, até os 7 anos, podíamos ainda vestir
calção e qualquer camisa. Entretanto, não era permitido aos filhos dos crentes,
principalmente meninos, ficarem sem camisa, tampouco jogar futebol, frequentar as
atividades xamânicas dos parentes indígenas. Tentavam afastar-nos de tudo que,
segundo os crentes, era considerado negativo.
60
coletivamente, com as pessoas da comunidade, as experiências do teko (vida, jeito de
ser coletivamente). Mesmo tentando me distanciar da cultura tradicional,
preocuparam-se também em me contar muitos aspectos relacionados a ela, mas não
deixaram que a praticasse, tampouco a valorizasse. Falaram-me que muita coisa
mudou na Reserva e, por isso, precisaria que seguíssemos o evangelho, para não
sofrermos e sermos influenciados pela maldade do mundo.
Sempre ouvi, nos testemunhos da igreja, que não havia mais rezador, que só
existia rezador gua’u ka’u (rezador de mentira, bêbado ou sem habilidade), os quais só
praticavam suas rezas para enganar o povo, também para causar mal às pessoas que os
confrontassem. Neste caso, sempre conseguiam me convencer. Nunca me atrevi a
desrespeitar os meus pais. Ao encontrar alguns rezadores na estrada, perto da roça, ou
quando os recebíamos na nossa casa, logo os cumprimentava com respeito e já dava
benção, com as duas mãos fechadas. Acreditava que eles iam me causar algo negativo;
o temor era muito grande.
Na região Sãka Pytã da Te’yikue morava um rezador que causava medo nas
pessoas da comunidade. Ele foi considerado o “maior feiticeiro” da aldeia, embora
apresentasse um comportamento positivo em seu espaço de convivência. Por outro
lado, sofria muita perseguição. Quando caía um raio na casa de algum indígena,
quando morriam alguns parentes, ou até mesmo quando acontecia algo inexplicável,
do ponto de vista da comunidade, da liderança capitão ou dos evangélicos, já o
acusavam de ser o responsável pela tragédia. Então, todo investimento negativo, por
parte da comunidade evangélica em relação à função do rezador, focava muito em
feitiçaria, e usava-se o exemplo deste xamã mencionado para convencer os fieis de
que havia mais rezadores com essa habilidade negativa.
61
tomavam muito terere, tampouco almoçavam com eles. Estas são algumas das
experiências que me deixavam com medo.
Raramente participei, desde que fui batizado, dos rituais indígenas, de rezas
e danças que aconteciam pelas regiões da aldeia. Investiam na minha formação, com
base na educação religiosa pentecostal e no sistema guarani de educar. Portanto,
misturaram esses dois sistemas educacionais para barrar, segundo os evangélicos
indígenas, o teko vai (imperfeição da vida). E ainda, de acordo com eles, com o teko
vai, o indivíduo pode se tornar um criminoso, um maluko’i (vida com drogas e
violências). Aliás, falavam que alguém que sai de casa à noite tem maior chance de se
“perder na vida”, porque poderia encontrar os “maloqueiros” da noite, e estes lhe
roubariam a vida e o levariam à “perdição”.
Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo com minha cultura,
nem sabia o que era cultura. Sem que soubéssemos, os não indígenas já haviam
destruído o nosso território, transformando-o em pasto de gado e plantação de soja. Na
reserva, com toda influência por parte dos evangélicos e do preconceito que se
enraizava em relação aos indígenas, quiseram me dar uma cultura que me deixaria
mais forte espiritualmente. Mas foi o contrário: eu não sabia que me tornaria mais
63
pobre espiritualmente e que eu iria odiar falar na minha língua materna, odiar os
rezadores e desprezar minha essência indígena. O momento em que voltei a me
reconhecer e me fortalecer, foi na época em que comecei a frequentar a escola
indígena e me reaproximar dos mais idosos, sobretudo dos rezadores. Na escola, o
professor indígena trabalhava sobre a nossa realidade, aprendíamos sobre a
importância das árvores, dos rios, dos animais e dos seus guardiões, e também sobre a
importância de fortalecer a nossa língua indígena.
64
Fonte: Alécio Soares Martins
O primeiro professor que tive foi Alécio Soares Martins, que me alfabetizou
em Guarani, dentro de uma escola de sapé, onde aprendi a ler e a escrever como ava
(indígena). Como meu pai era da igreja pentecostal, não quis que eu frequentasse a
escola da Missão, por causa da distância e para não sofrer por ser de família
pentecostal.
65
jogar futebol e me orientando para ser um exemplo de criança no molde pentecostal.
Entretanto, sempre que surgia oportunidade para jogar com os colegas, eu aproveitava.
Como a escola ficava perto de nossa casa, optaram em me colocar ali, pois para eles
eu não teria muitos problemas relacionados às restrições impostas pela igreja.
Como se pode ver, minha vida adulta iniciou cedo, na roça, onde me
transmitiram e me ensinaram as práticas coletivas e a importância dos princípios
guarani, sendo um lugar de educação indígena e do modus vivendi indígena (teko),
onde os laços familiares são fortalecidos também. Na hora da capina ou do tereré,
conversávamos sobre a história dos mais velhos, dos parentes que faziam parte da
formação do lugar e sobre os preceitos culturais. Enquanto isso, minha mãe fazia a
colheita do milho e dos demais alimentos que havíamos plantado e me explicava sobre
as sementes. Nossa família tinha duas roças, sendo que uma ficava perto da nossa casa
e a outra ficava um pouco mais longe.
66
Mesmo com dificuldade, minha mãe sempre me mandava para a escola. Na
terceira série estudei com Lidio Cavanha Ramires, um professor que sempre focava na
questão da nossa cultura ancestral, falava para nós sobre nossas artes, rezas, aldeias,
rios, pesca, conto, poesia, entre outros assuntos. Isto me despertava interesse em
conhecer mais, aprender de novo, reavivar dentro de mim a minha espiritualidade
indígena e a minha cultura.
29
É um lugar que fica isolado, geralmente no mato, onde segundo pastor Cornelio, se busca a
presença de Deus com mais liberdade e pedir ajuda, onde há momento de se confessar, pedir
perdão e pedir dons espirituais.
67
pela música gospel. Tinha música com harpa e os pastores de fora cantavam durante
os cultos na aldeia.
A punição tinha várias formas, dentre as quais destaco: “pegar banco” por um
mês ou mais, sem poder cantar; contar testemunho e frequentar o culto todos os dias;
não tomar “santa ceia”30; mas também dependia de cada dirigente da igreja, até porque
ele determinava as regras. “Pegar banco”, segundo a explicação deVirginio Soares, “é
uma das formas da gente se endireitar no caminho de Deus, mas sempre tem gente que
não respeita mesmo levando punição de 3 meses ou mais; principalmente os mais
idosos e idosas que fazem parte da família de rezadores”. Para a minha avó, Luiza
Rosa, que fez parte da geração dos rezadores, era sofrido: “Eu sei de muita coisa, sei
das rezas de que minha vó cantava e fazia a gente ouvir, sei também sobre os
remédios nossos, por isso, eu acho que é importante passar aos nossos filhos, netos e
netas, então mesmo sendo crente, isso não impede de eu passar esse conhecimento e
ensinar as pessoas que querem saber disso”.
30
Santa Ceia é um ritual da igreja, durante o qual se oferece pão, para relembrar a ceia de
Cristo.
68
animais que trazem notícias ruins (guyra mbora’u, mymba mbora’u). Alguns animais,
como o lobo-guará, não são comuns aparecerem para os indígenas na estrada, na mata
ou na aldeia, pois traz notícia anunciando a morte de alguém. Neste caso, a reza e o
benzimento dos mais antigos ou rezadores são importantes para afastar essa notícia
desagradável.
69
romper a exclusão que sofriam da sociedade não indígena e da Reserva. Para isso
cobravam dos professores o ensino da língua portuguesa desde a alfabetização.
Conforme a análise de Soares, por meio da escola as pessoas conheceram mais a
realidade e como cobrar os seus direitos. Essa problemática perdurou até 2005, pois se
aceitava mais o ensino da língua Guarani, com exceção de outras práticas culturais.
Assim cheguei na quarta série, com o professor Alécio, momento em que ele
viu meu empenho e me aplicou uma prova para ir direto para a quinta série. Consegui
ser aprovado e cheguei à Escola Ñandejara, localizada no centro da aldeia. Portanto,
meus professores das séries iniciais foram Alécio, Ladio e Lidio.
Na quinta série foi mais difícil, já que a maioria dos professores eram da
cidade e o meu Português estava abaixo dos demais da turma. Ficava no canto da sala
para não ser questionado. Esse tipo de comportamento adquiri na igreja, porque ali as
crianças sentavam no canto e não podiam falar, nem brincar, só podiam ir ao banheiro
e beber água; na maioria das vezes o ‘obreiro’ ficava responsável por elas. Na hora da
pregação, ficávamos assistindo o pregador falar.
71
“libertação”31. Para ter a liberação do pátio da escola depende muito dos membros da
igreja que têm proximidade com o diretor ou com alguém que é responsável pela
escola ou com o capitão.
Essa procura pela metade que nos falta é continua, até porque essa exigência
por parte dos crentes pentecostais requer cada vez mais distanciamento de nós
mesmos. O pastor, que era meu próprio parente, durante os cultos, sempre pregava
sobre a morte de Jesus Cristo, quando salientava a importância de reconhecermos “o
sacrifício que ele fez, principalmente para salvar a humanidade do pecado”.
31
Libertação da doença, dos espíritos maus, da feitiçaria, da vaidade do mundo, etc. Um dos
exemplos é quando alguém se converte na igreja, ou seja, aceita a seguir o caminho de Jesus. Aí
o pastor fala que essa pessoa foi libertada do mundo pecaminoso...
72
“católicos” (não evangélicos) que estavam na igreja se “convertiam”, ou seja, aderiam
à igreja, pois acreditavam que seus problemas desapareceriam. E isso aconteceu
comigo também.
Certa vez eu estava na vigília até cinco horas da manhã, pois a oração durava
cerca de três horas por etapa: a primeira era das 21h30 até 00h30; após essa oração, as
pessoas cantam músicas de louvor até 01h30; logo começa outra etapa até 03h30 da
manhã, pois, segundo alguns pastores indígenas, “só assim o Deus ouviria o clamor
dos seus filhos”. Assim, eu estava orando numa igreja e dormi; sonhei que havia um
ser sobrenatural me atacando e tentando me matar. Nesta hora lembrei de uma reza e
da música da dança indígena, cuja letra é a seguinte: Yvyra’ija che mbojeroky,
yvyra’ija che mbojeroky; e outra: Koake ha’e arupi ra’e, koake ha’e arupi ra’e...
Então comecei a cantar a reza, afastando o ser, que parecia não ter força para me fazer
mal. Ao acordar me assustei e pedi para o pregador dessa madrugada para contar meu
testemunho, mas as outras pessoas presentes começaram a me reeprender, usando
expressão “sangue de Jesus tem poder, tem misericórdia, Senhor”.
73
Durante as férias escolares, acompanhava também o grupo das “obreiras” em
outra aldeia, por exemplo, em Amambaí. Nesta atividade ou “missão religiosa”, elas
faziam visitas nas casas das pessoas, em outras igrejas, oravam por elas, convidavam
para participar do culto e deixavam óleo de unção, “ungido” (abençoado) durante
alguns dias na campanha. Estas campanhas duravam dois dias, quando visitavam
igrejas de outra denominação. Quando se referem a outra igreja, a maioria dos
pentecostais indígenas a consideram “ministério diferente” ou “outro ministério”, por
saber que pertence a outro tipo de gestão, de outra aldeia e doutrina.
74
Sobre a questão do “voto”, trata-se de dar o dinheiro na igreja, pois o pastor
fala que essa ajuda é para a obra de Deus, e através desse voto se alcança cura,
milagre, livramento, etc. Geralmente, o valor é estipulado pelos líderes evangélicos e,
ao mesmo tempo o prazo para entrega desse voto na igreja. Os que não são
evangélicos, conforme o líder evangélico Isaias Rosa, escreve no voto os nomes das
pessoas, por fim fazendo o seu pedido a Deus. Já os evangélicos recebem orientações
para apresentarem cada meia noite esse voto a Deus, “esse sacrifício é para os crentes.
Eles sempre buscarão algo melhor para a obra”. (Isaias Rosa). Cabe ressaltar que a
ideia foi trazida pelos próprios karai no primeiro momento em que a igreja era
organizada entre os indígenas na aldeia. Como a maioria dos dirigentes era pouco
letrada, não conseguia entender bem a questão da gestão da igreja, por isso, os
pastores brancos se aproveitavam e levavam uma porcentagem maior de “votos”.
Distribuíam os votos com objetivo de arrecadar dinheiro para ajudar a custear as
despesas dos pastores da cidade, usando como argumento que, com as doações, “Jesus
Cristo resolveria qualquer problema ocasionado pelo demônio das trevas”.
75
indígena, a perceber e refazer o ava reko (jeito indígena de ser), mesmo com toda
influência dos colonizadores – neste caso, através do pentecostalismo – contra o próprio
modo de ser dos Guarani e Kaiowá. Por isso vejo a importância do fortalecimento da
escola indígena, priorizando o currículo próprio e a formação do professor indígena, pois
“espera-se que o professor indígena não seja agente destinado a fortalecer o projeto
colonizador, mas, com a sua prática pedagógica e formação inicial e continuada, defina
sua identidade no universo da educação indígena na aldeia” (BENITES, 2014, p. 27).
Depois que terminei o Ensino Médio, optei por fazer o curso Teko Arandu,
ressaltando que terminei na aldeia sem nenhum professor indígena dando aula.
Pretendia cursar História regular, mas eu não tinha muito recurso para sair da minha
aldeia. Mas fiz vestibular para a Licenciatura Intercultural em 2012 e fui aprovado na
décima colocação. Desde então, comecei a estudar e ampliar o meu conhecimento
tradicional com pesquisa e me conectando de novo com o meu mundo, do qual me
distanciei, talvez por medo, ou por não entender bem o que havia acontecido com os
meus parentes indígenas, e também comigo. Frequentei esse curso até meados de
2017, pois o curso tem a duração de 4 anos e meio. Escolhi a terminalidade de
Ciências Humanas. Estudamos a história de Mato Grosso do Sul, textos de Melià,
León Cadogan, Schaden, etc., com ênfase na história da colonização dos indígenas e
da luta dos povos frente à violência, à perda de suas terras, ao confinamento territorial
e cultural, à perda de direitos.
76
Portanto, nesse período de estudo, eu já sabia o que queria para continuidade da minha
formação. Todos os textos me ajudaram a entender mais sobre a minha realidade e a
dos Guarani e Kaiowá; isso me estimulou a fazer um TCC sobre a realidade da
reserva, na qual procurei entender qual era a percepção da comunidade acerca da
“reserva indígena”, o que me instigou a continuar por este tema de pesquisa.
Até aqui explanei a minha história para mostrar como foi minha formação
indígena dentro da reserva, onde tive muitas experiências. Entendo que foi necessário,
entretanto, também foi problemático, pois me causou bastante conflito e medo. Com
meu envolvimento na igreja, tive a oportunidade de conhecer muitos lugares e pessoas
(dirigentes indígenas, grupo de “obreiras”, grupo de jovens, evangélicos, “desviados”,
ex-rezador que se tornou pentecostal, entre outros). Ao mesmo tempo que eu conhecia
as pessoas das igrejas, elas também me conheciam.
O contato mais direto que tive com rezadores foi depois que entrei na
graduação, participando dos Encontros dos Acadêmicos, dos Encontros de Professores
e das Aty Guasu, lendo textos de alguns pesquisadores não indígenas, entre os quais
destaco Melià, Brand, Pereira e Cavalcante. Assim posso refletir sobre teko reta que
os indígenas apresentam e que, no meu caso, se constituiu de quatro etapas, sendo
uma delas a de “desviado”, que é também um dos teko que os Guarani apresentam.
Portanto, ao longo da minha reflexão, mostrarei o distanciamento e, ao mesmo tempo,
a negociação que os rezadores fazem, tanto com liderança capitão, como com pastores
indígenas.
78
Capítulo 2
2.1 Histórico dos rezadores guarani e kaiowá e da Reserva Indígena de Caarapó
O objetivo deste capítulo é apresentar reflexões e contextualizações sobre a
história da Reserva Indígena de Caarapó e como os rezadores - ñanderu e ñandesy -
constituíram processos de resistência, com suas estratégias.
33
Para mais detalhes sobre os dados da população distribuídos por Municípios/UF, Polos Bases,
Aldeias e Etnias. Acessar: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2017/dezembro/08/Anexo-
1659355-dsei-ms.pdf.
79
Fonte: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/mato_grosso_do_sul/guarani.htm, acessado de novo
em 26/12/2018 e na dissertação de mestrado de Cariaga (p. 39, 2012).
No mapa acima está claro como o Estado criou as oito reservas para liberar o
território aos grandes fazendeiros. Por isso os indígenas foram retirados forçadamente
dos seus lugares de origens – denominados por eles de tekoha e tekoha guasu (lugar e
território tradicional). Por exemplo, havia famílias que moravam na região de Porto
Lindo, mas, como o órgão oficial não entendia da organização social das etnias
presentes na região, traziam a parentela para a região de Caarapó, enquanto que as
outras famílias eram levadas às demais reservas. Então, o processo de retomada foi
ocorrendo na medida em que os indígenas resolveram retornar para seus respectivos
locais de origem.
34
Foi um lugar contruído para o chefe do SPI ocupar, trabalhar, etc. O posto indígena da
Reserva de Caaraopo chamava-se de Posto Indígena José Bonifácio. Os chefes de posto
exerciam um poder abusivo, impedindo o livre trânsito dos índios, impondo-lhes detenções em
celas ilegais, castigos e até tortura no tronco. Enriqueciam com o arrendamento do trabalho dos
índios em estabelecimentos agrícolas, vendendo madeira e arrendando terras. O Relatório
Figueiredo evidenciou essas torturas, maus tratos, prisões abusivas, apropriação forçada de
trabalho indígena e apropriação indébita das riquezas de territórios indígenas por funcionários
de diversos níveis do órgão de proteção aos índios, o SPI, fundado em 1910. Atestou não só a
corrupção generalizada, também nos altos escalões dos governos estaduais, como a omissão do
sistema judiciário (CNV, 2014: p.207).
80
limites das áreas criadas. Na fala do Ancelmo Lescano (morador antigo da Te’yikue),
na 2ª Sessão de Audiência realizada em Dourados, entre os dias 25 e 26 de abril, pela
Comissão Nacional da Verdade, ficou clara essa ação por parte dos agentes do Estado
brasileiro. Ele relatou sobre o processo de esbulho que os Guarani e Kaiowá sofreram,
dando exemplo da luta das lideranças indígenas frente à colonização 35. Por isso, os
nativos dessas regiões foram obrigados a procurar outras formas para superar os
reservamentos e lutar pelos seus direitos à vida. Exigiu deles a mudança de seus
padrões de convivência, sobretudo na questão da moradia, religião, mudança em
relação à cabeça da parentela, aos hábitos de pesca e caça. Portanto, “o SPI criou um
modelo de assentamento e de sociabilidade que não condiziam com as práticas
anteriores de ocupação do espaço” (CRESPE, 2015, p.113).
35
A fala de Ancelmo Lescano e das demais lideranças indígenas guarani e kaiowá pode ser
acessada pelo youtube: https://youtu.be/cb9TVDB5t4w
81
2.1.2 –ñanderu e ñandesy lideranças espirituais e religiosas
Conforme os pesquisadores indígenas e não indígenas Tonico Benites (2015),
Izaque João (2011), Eliel Benites (2014), Levi Marques Pereira (2004) e Antonio
Brand (1997), em todos os movimentos indígenas, esses líderes espirituais e religiosos
participam e são responsáveis de levantar o grupo para ir à luta, também para
fortalecer a cultura e mostrar o quanto os indígenas são capazes de vencer quaisquer
problemas e desafios. Qualquer decisão em relação à defesa de seus territórios, essas
lideranças sempre tomam à frente. Para os indígenas Guarani e Kaiowá, o rezador:
82
O xamanismo entre os Kaiowá requer formação e aprendizado por um
período relativamente longo. Esse discipulado deve ser realizado junto
a outro xamã, caracterizando o perfil sacerdotal do modelo religioso,
pois os xamãs de destaque formam escolas para assegurar a
reprodução da modalidade de reza por ele herdada ou “desenvolvida”.
O exercício do xamanismo está, assim, sempre associado ao grupo de
reza, geralmente composto por parentes ou por aliados, no caso de não
parentes. Entretanto, só o aprendizado não garante a formação do
xamã, este deve ter um evento extraordinário em sua vida que marque
a apropriação do poder legitimador do exercício da profissão. Esse
evento é geralmente narrado como uma experiência pessoal de
interação com determinado ente sobrenatural, evento que seria fatal
para um não-xamã, e do qual se escapa justamente por ser portador
dessa atribuição. (PEREIRA, 2004, p. 364).
Como principais protetores do teko yma ou ava reko (modo de ser ancestral
ou modo de ser indígena), os rezadores compõem a verdadeira riqueza dos Guarani e
Kaiowá na atualidade, pois eles passaram por essa preparação que Pereira descreveu.
Os rezadores que estão atuando pelas aldeias tiveram essas aulas e mostraram aos seus
mestres, no momento oportuno, suas habilidades como, por exemplo, ocorreu na
Reserva de Caarapó, com Hipolito Martins, na década de 1980. Ele teve várias aulas
com os rezadores, ao mesmo tempo, adquiraram habilidades descrito por ele de
ñembo’e kuaa rape (o caminho da reza ou a reza que caminha); os seus mestres
“numa noite de lua cheia pediram-me para conduzir a cerimônia de reza para o
batismo de milho, isso aconteceu aqui mesmo em casa. Então, comecei a rezar (aha’ã)
tudo que me ensinaram até amanhecer, creio que fui aprovado” (Hipolito Martins).
Em 2018, no mês de setembro, estive na casa do rezador Getulio, em Dourados, e ele
me falou que toda a sabedoria adquirida durante sua caminhada já garante ensinar e
preparar o futuro rezador. Na mesma linha, o rezador Florencio Barbosa, de Caarapó,
falou sobre o momento oportuno de se aprender com o rezador: “Agora vejo que
vocês estão interessados em aprender de novo isso, acho que é bom aprender de novo,
porque sem nós vocês não conseguiriam mais reavivar nossa cultura.” E ainda reforça:
“Só lembrando que nossa reza não acabou, ela se fortalece cada vez mais, mesmo que
alguns não enxerguem, mas a gente está sempre se fortalecendo”.
83
caso não seria mito36; sendo assim, vou chamá-los de conhecimentos/ - ou narrativas
sagradas - , a transmissão ocorreu, inclusive porque tais ensinamentos referenciais são
fundamentais para orientar a vida dos coletivos. Os rezadores mais detacados, na
atualidade, na Reserva indígena de Caarapó, como Florencio Barbosa e Lidio Sanches,
afirmam que a ordem neste mundo depende das práticas xamânicas com seus
componentes naturais e sobrenaturais (jára).
36
Mito. Do grego mythos significa discurso, narrativa. (...) Entre nós, é frequentemente utilizada
com o sentido pejorativo: uma narração fabulosa e fictícia, contrária à verdade. Nesse sentido,
"mito" equivale a engano, falsidade. Essa interpretação corresponde a uma mentalidade
racionalista, para qual somente a razão é capaz de expressar a verdade. Hoje, no entanto, essa
visão simplista está inteiramente superada, pois sabemos que muitos dos conhecimentos mais
profundos e misteriosos são de tipo inconsciente e simbólico. Em sentido mais profundo,
entende-se por "mitos" as descrições religiosas antigas, que expressam os modelos, os
arquétipos da ação humana através dos atos originários dos "deuses" nos diversos campos.
Nesse sentido, os mitos são narrações sagradas primitivas, dotadas de grande autoridade e
normatividade para a vida humana. (GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E
BRASILEIRA. Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, [s.d. p.])
https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/mito
- A Filosofia surgiu como uma forma de busca a uma compreensão racional do que aconteceu
na Grécia Antiga; uma história disseminada para o mundo através da mitologia grega. Nesse
contexto, a palavra mito deriva do grego mythos e significa contar ou narrar algo para alguém.
www.significadosbr.com.br › mito
84
O teko yma, (o modo-de-ser dos antepassados), continua presente na
memória dos Kaiowá/Guarani contemporâneos, como muito bem
atestam os diversos depoimentos. É lembrado com muita emoção por
caciques e moradores adultos. Paulito Aquino chora quando descreve
as belezas que seu pai, cacique, viu quando foi levado aos céus. O
mesmo aconteceu com Júlio Lopez, durante a Aty Guasu, de Limão
Verde, quando descrevia como era a vida dos Kaiowá (BRAND,
1997, p. 242).
O rezador Angelo Guarani, da região Mbokaja da Reserva de Caarapó, disse-
me que teko yma não significa que os demais rezadores sejam atrasados, muito menos
sem conhecimentos, pois “através de muitos rezadores que ainda há em muitos
lugares, nossa cultura e língua permanecem vivas e atuantes, temos conhecimentos de
muitas coisas, rezamos pra tudo, mesmo que as igrejas tentem nos impedir, mas na
nossa memória essas rezas atuam”. Portanto, mesmo que provisoriamente, digo que o
teko yma, utilizado por alguns evangélicos e jovens para menosprezar a existência
dos líderes espirituais da religião “antiga”, é também uma das formas que esses
rezadores acharam para se destacar no meio social, uma vez que
85
espaço não favorável para atuarem na Reserva, foram dominados, mas não
completamente, pois as estratégias deles foram buscar parcerias com várias
instituições, com objetivo de se fortalecerem de novo, sobretudo fora da aldeia, para
lutar pela garantia dos direitos indígenas, pelas terras e para mostrar a existência
indígena. No próximo tópico contextualizarei melhor sobre isso.
Para o rezador Maurílio, o termo ñanderu deixa claro que existe um pai
cuidando da espiritualidade indígena e que demonstra à comunidade indígena a
existência de seus guardiões (jára). Ele reflete o rezador de hoje em dia, tentando
manter uma relação mais próxima com as divindades. Assim “nós conseguimos
manter nossa reza viva atuante, eu vivo assim mesmo aqui na minha casa, como você
está vendo...não importa se tenho energia ou não, o que importa para mim é manter
esse meu pensamento e reza atualizados”, afirma Maurilio.
86
acostumados com a chícha, tinham que se acostumar com algumas bebidas dos
brancos, mesmo assim somos fortes e conseguimos ser essenciais para o nosso povo”.
87
(dono da floresta) e muitos outros. Para tanto, os mais sábios, que hoje em dia são
conhecidos por muitos indígenas como os “mais velhos” da comunidade, são pessoas
de idade que têm amplos conhecimentos, além de ter a experiência máxima sobre a
história de sua parentela e do ambiente no qual fortaleceram sua resistência e
aprimoraram suas estratégias de sobrevivência. Os pesquisadores não indígenas os
consideram “sábios tradicionais” ou “mestres tradicionais”, por outro lado, as pessoas
da comunidade os consideram como ava yma, tuja, jari, ñamõi, pois são os pilares dos
saberes indígenas, das histórias, da medicina. Por isso, esses agentes são/serão
fundamentais para entendermos vários mecanismos históricos nativos e seus
significativos no meio coletivo, sobretudo, para analisar as reservas indígenas em
geral. Embora hoje esse prestígio esteja bastante diminuído, por outro lado permanece
bastante ativo e ocupando espaço na escola, no processo de formação de professores
indígenas e de acadêmicos indígenas, em eventos externos, além de sua presença
fundamental nas retomadas de terra.
88
Quando ele veio em casa e rezou por mim, na mesma noite tive um
sonho que alguém tinha ido me buscar de um lugar escuro, essa
pessoa com o som do mbaraka me guiava até me tirar desse lugar
escuro. Aí que vi o quanto o rezador sabe das coisas, pois eu fiz
campanha e mais campanha na igreja, e recebendo oração de todas as
pessoas da minha igreja, mesmo assim não tive êxito. (Fala de um
líder evangélico da Te’yikue).
O depoimento desse líder ressalta a importância dos rezadores diante das
situações adversas que os indígenas enfrentam. Com os vastos conhecimentos e
habilidades, os rezadores resistiram à evangelização pelas aldeias, pois os mesmos se
mostravam respeitosos com os líderes evangélicos, ao contrário destes, que foram
extremamente violentos com eles, atacando-os como se fossem responsáveis pelas
coisas negativas que acontecem nas comunidades. A fala desse líder evangélico
mostra o quanto os rezadores estão dispostos a ajudar os seus parentes indígenas, ao
mesmo tempo ensinando-lhes o verdadeiro espírito de um líder e mostrando, também,
a existências e a força das rezas.
Mesmo que este trabalho não tenha por finalidade discutir todas as regras e
rezas, vale salientar que alguns acontecimentos são utilizados como exemplo até hoje.
Cito mais um exemplo de regras que devem ser cumpridas: quando uma mulher
engravida, não anda muito sozinha e muito menos se ausenta muito de sua casa; tem
alimentação balanceada, se benze sempre que é necessário. Para isso, conta com a
experiência da parteira, pois só ela sabe dos remédios específicos para cada situação.
Os rezadores sempre passam os seus conhecimentos, para que os maus presságios não
cheguem a estragar o bem viver indígena. Por isso é necessário que haja respeito e
comunicação entre eles, e só é possível por meio das rezas.
Foto 3: Rezadores na Escola Municipal Indígena Nãndejara Polo.
89
Fonte: https://web.facebook.com/nandejarapolo
Fonte: https://web.facebook.com/nandejarapolo
90
Fonte: https://web.facebook.com/elemir.s.martins.1/
Antes de mais nada é fundamental lembrar que a luta dos líderes religiosos
guarani e kaiowá sempre foram pela recuperação de seus territórios e pela efetivação
de seus direitos fundamentais, como atesta o estudo de Brand (1997). Eles se
destacaram sempre por conseguirem movimentar os grupos de várias aldeias para lutar
em prol da retomada de seu tekoha. O exemplo disso ocorreu na retomada das terras
tradicionais Rancho Jacaré e Guaimbé (localizadas no município de Laguna Carapã,
MS), como foi relatado pelos indígenas na 2ª Sessão de Audiência Pública realizada
pela Comissão Nacional da Verdade, em Dourados-MS (2014). O que importava para
esses indígenas era recuperar os seus territórios, mesmo tendo vivido um processo
violento de despejo, entre os anos de 1976 e 1979. Os rezadores envolvidos com esse
tipo de luta afirmam que fortalecendo o modo de vida dos antigos, a reorganização
familiar para a retomada de seu território terá mais êxito.
91
Segundo o líder religioso (ñanderu) Lidio Sanche, os rezadores superam
muitas perseguições por parte dos brancos e dos líderes evangélicos e assim seguem
mostrando a sua importância para a comunidade: “Nós sempre rezamos, benzemos,
livramos muita gente dos problemas, sabemos lidar com isso, por isso, sabemos a hora
certa de agir”, afirma o rezador. Para se construir ou retomar um tekoha, segundo o
rezador Maurilio, da Te’ýikue, é necessário pedir permissão, orientação, bençãos aos
deuses, aos jára kuéra. Para isso é imprescindível que “nós rezadores sejamos capazes
de rezar muito, onde a gente consegue acessar a sabedoria verdadeira para orientar o
nosso grupo” (rezador Maurilio, 2019). Portanto, sem ñanderu e ñandesy não há como
ter um lugar de paz, abençoado e longe da pobreza. Pereira (1999, p.189) enfatiza que
“a existência do tekoha depende diretamente da presença dos líderes religiosos e
políticos com reconhecida habilidade para reunir pessoas”.
Existem vários tipos de rezadores/as. Alguns deles, que destaco aqui, têm
habilidade só para rezar, aconselhar e organizar o grupo; outros têm habilidade de
rezar, de conhecer remédios tradicionais (pohã ñana) e de ser parteiro/as.
92
mbarakaja pyapẽ, jakare ka’a, pato ka’a, jatevu ka’a, lorito ka’a, ynambu ka’a,
ynambu guasu ka’a, ka’i ka’ygua, mberu ka’a, jatevu ka’a, e outras.
Yryvu ka’a é geralmente utilizada para afastar os espíritos ruins da noite, para
dor de cabeça; jaguarete ka’a é bom para reumatismo e para dor no corpo; anguja
ruguai é bom para bronquite; tapiti pohã é bom para infecção urinária (remédio
específico para as mulheres); vurro nambi ou ka’a é utilizado para machucadura; ysau
ka’a serve para banhar as crianças com cólica e para tomar no chimarrão; jagua paje é
para ser utilizada no ritual específico; mbarakaja pyape͂ é bom para criança recém-
nascida, geralmente colocada no banho da criança; jakare ka’a é bom para dor de
barriga, azia, cólica; pato ka’a e lorito ka’a são utilizadas para ritual específico; jatevu
ka’a é bom para bronquite, gripe e outras doenças respiratórias; ynambu ka’a e
ynambu guasu ka’a são utilizadas para banhar as crianças e como enfeite da casa
indígena; mberu ka’a é utilizada para combater conjuntivite. Todos esses
conhecimentos em relação aos remédios tradicionais estão ainda intensos na memória
das mulheres, idosos/as, rezadores/as, pastores indígenas, professores e Agentes
Comunitários de Saúde Indígena (AIS). Todos esses elementos de sabedoria foram
adquiridos com os rezadores.
93
(jaguarete), urubu (yryvu) e outros. Os cantos são meios para
visualizar o caminho iluminado (tape rendy) que leva à morada dos
deuses para adquirir conhecimento na condução do seu povo. É a
maneira, também, de entoar versos que contenham as belas palavras
que expressam, de forma harmoniosa, as belezas da natureza, do
homem, da mulher, das crianças e de toda a comunidade. Estes são
momentos de transe, que vivenciam o passado, o mundo espiritual, no
momento presente, na busca da construção do futuro. Portanto, a
religiosidade kaiowá e guarani é fonte inspiradora do conhecimento, a
partir das revelações e da relação com o ambiente. (BENITES, 2014,
p. 38).
Enquanto os indígenas cuidam das matas, dos animais, dos rios, o ka’aguy
jára (dono da mata) fica responsável por cuidar dos tekoha para que os maus não se
aproximem desses lugares. Esse cuidado por parte do ka’aguy jára vai além do mundo
físico. O dono da mata atende sempre o chamado de um ñanderu, o que talvez se
enquadre na ideia de Benites (2014), quando afirma que “a religiosidade kaiowá e
guarani é fonte inspiradora do conhecimento, a partir das revelações e da relação com
o ambiente”. A partir da sabedoria da mata se consegue acessar vários tipos de
remédios tradicionais e dos demais conhecimentos.
94
movimentaram muitas assembleias de rezas pelas regiões da aldeia, embora ocupando
o espaço diminuído por dividir sua função de líder com o Capitão, “a gente acreditava
sempre em conquistar coisa que seria importante para nossa aldeia, por exemplo,
escola, parente professor, assim para fortalecer o que a gente sempre protegeu e tanto
lutamos para não deixar morrer” (Cicero’i, 2019).
Fecho esse tópico, portanto, dizendo que as funções e atuações dos rezadores
não são apenas “rezar”, eles ocupam seus lugares em diferentes meios, seja como
conselheiros de família, como intermediador de professores indígenas, como
integrantes de Movimento de Professores indígenas, das Mulheres, dos Jovens, da
Universidade, são porta-vozes da luta indígena e da história. Eles transitam pela aldeia
como pessoas comuns, mas quando são acionados, colocam seu cocar, adornos, se
pintam, pegam seu mbaraka e vão para luta. Na Reserva de Caarapó, os rezadores
ocupam seus espaços principalmente na escola, quando tem mostra cultural, reunião
pedagógica, no Fórum Indígena, formação de professores, entre várias outras
oportunidades. Nesse sentido, a escola tem empoderado essas pessoas, pois através
delas se consegue conquistar muitos projetos e direitos fundamentais. Outro espaço
que eles ocupam mais é nas retomadas (reocupação de área tradicional), onde,
segundo o rezador do Pindo Roky, há mais liberdade para rezar e se fortalecer. Cabe
destacar aqui que a primeira retomada de terra, partindo da Reserva de Caarapó,
ocorreu depois que o jovem indígena Denilson Barbosa foi assassinado pelo
fazendeiro, em 17 de fevereiro de 2013, onde hoje ficou conhecida como tekoha
95
Pindo Roky. A atuação de rezadores foi fundamental para confortar a família do jovem
e, ao mesmo tempo, levantar o grupo para iniciar o processo de retomada e mostrar o
quanto é importante lutar contra a injustiça, a opressão, a violência, ocasionadas pelo
Estado brasileiro e pela sociedade ocidental.
96
Ainda segundo o IBGE (2010), no território brasileiro, o número da
população guarani é de 67.523 pessoas. Sendo assim, podemos atestar que a maioria
dos indígenas Kaiowá se agrupam no sul de Mato Grosso do Sul. O número de
pessoas destas etnias era de 43.556 (2010), tendo em vista a tabela na imagem a
seguir:
Foto 6: Pessoas indígenas, por tronco linguístico, família linguística e etnia ou povo
a que pertence, 2010
97
Seguindo a reflexão deste autor, podemos pontuar a tentativa de aniquilação
dos povos originários e suas políticas de gestão da vida, da história do seu próprio
lugar de morada. É uma história que insiste em colocar esses povos como sem
história, para convertê-los em população nacional, assimilá-los e torná-los brancos.
Como descrito por Melià (2015, p. 16), para os não indígenas, “[...] o índio era aquele
que devia morrer, não necessariamente como indivíduo, mas como pessoa, como ser
diferente e livre. Negá-lo como povo implica sua destruição como homem e mulher
diferentes”.
98
título de relevância da pesquisa, Brand, por exemplo, apresenta dados muito
importantes sobre as populações indígenas de MS, sobretudo do processo histórico de
luta dos Guarani e Kaiowá. Por esse motivo, me ative, com mais profundidade, na
leitura dos textos deste importante autor para embasar meu trabalho.
99
do modo de vida tradicional, denominado por eles ñande reko.
(CRESPE, 2009, p. 20).
Continuando o processo de ocupação do tekoha guasu (território) indígena
pelos karai kuéra (não índios), em 1943, o presidente Getúlio Vargas criou a Colônia
Agrícola Nacional de Dourados (CAND), no contexto da política de “marcha para
Oeste”, com a finalidade de ampliar as fronteiras agrícolas mediante a integração de
novos espaços. O objetivo era possibilitar o acesso à terra a milhares de famílias de
colonos, vindos de outras regiões do país37.
37
Para saber mais sobre esse contexto histórico, consultar o trabalho de Brand (1997).
38
Em 20 de junho de 1910, pelo Decreto lei nº 8.072, foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI).
Brand (1997).
100
Fonte: MORAIS (2016, 48).
101
perceber que os indígenas aceitaram estrategicamente essa ideia. Segundo um líder
indígena, os “brancos” “chegaram por aqui destruindo o que tinha de abundante,
usaram sua religião em prol do progresso, por outro lado destruíram e mataram muitas
vidas, mas mesmo assim, não conseguiram matar a nossa resistência”39.
39
Fala de uma liderança indígena da etnia kaiowá, durante um ato de manifestação na Praça
Antônio João, Dourados, MS. Esse ato aconteceu durante o Evento do Encontro Nacional de
Estudante Indígena, da Aldeia Jaguapiru (2018).
102
poderiam ajudar o progresso do Estado, isto é, as estratégias políticas sempre foram
focadas para acabar com qualquer tipo de direito indígena.
103
Ouvir e transcrever a narrativa de Delfino foi um momento de
amadurecimento da pesquisa. A partir da narrativa de Delfino a
temporalidade e a mobilidade kaiowá passaram a ter novos atores,
novos agentes e novos caminhos a serem percorridos. A narrativa teve
um impacto positivo na tese, na medida em que me permitiu
aproximar do pensamento indígena sobre os fatos da história e efeitos
das situações de contato. (CRESPE, 2015, p. 330).
Conforme a explanação da autora, a partir de uma narrativa, pode-se acessar
novos atores, novos agentes e novos caminhos. Isso ocorre porque, na medida em que
um interlocutor narra sua história, começa a se lembrar das demais pessoas que
fizeram parte deste contexto histórico.
40
Ele é um sábio indígena, rezador, raizeiro e conheceu o grande rezador e sábio Jorge Paulo.
41
Não indígenas pertencentes à sociedade ocidental.
104
determinadas condições tornavam indesejável a permanência naquele local”, como
brigas, doenças, entre outras. Exemplo disso, foi quando a minha família se mudou
para a reserva de Porto Lindo por um tempo e depois voltou para região Mbokaja da
Reserva indígena de Caarapó. O bem-viver dependia sempre do respeito aos
ensinamentos dos seus antepassados. Dito isso, portanto, a busca sempre era por um
espaço que preenchesse a cultura e as características do tekoha tradicional.
42
Para deixar mais claro publicamente sua ideia, publicou um artigo defendendo sua ideia de
que os índios não contribuiriam ao desenvolvimento econômico de São Paulo: “Os atuais índios
do estado de S. Paulo não representam um elemento de trabalho e de progresso. Como também
nos outros estados do Brasil, não se pode esperar trabalho sério e continuado dos índios
civilizados e como os Kaingang selvagens são um empecilho para a colonização das regiões do
sertão que habitam, parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão, senão seu
extermínio”. (Revista do Museu Paulista, 1907, v. VII, p. 215).
43
Para conhecer mais acessar:
https://www.google.com/search?q=XVI+Congresso+dos+Americanistas+ocorrido+em+Viena&
oq=XVI+Congresso+dos+Americanistas+ocorrido+em+Viena&aqs=chrome..69i57.1710j0j4&s
ourceid=chrome&ie=UTF-8
105
20 de junho de 1910)44. A base para assimilação destas funções estava a
pressuposição de que a condição de “índio” era um ser em estado transitório. O seu
único destino seria tornar-se trabalhador rural ou proletário urbano.
44
Para mais informação, acessar: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-
1919/decreto-8072-20-junho-1910-504520-publicacaooriginal-58095-pe.html
45
Índio: termo racista para delimitar um povo por estereótipos do senso comum atribuídas
perversamente. Entre a significação do termo (coletado do senso comum), encontramos as
correspondências: bêbado, preguiçoso, burro, traiçoeiro, insolente, porco, miserável, indigente.
E outros arsenais de termos pejorativos que recolhemos dos enunciados que articulam índio
dentro de uma frase. Quase todos esses enunciados já foram atribuídos a mim ou a alguém da
minha família.
106
“sem fé, nem lei, nem rei” – dessa porção das Américas. (OLIVEIRA,
2013, p.788-789).
Como descrito pelo autor, no Brasil a colonização obteve sucesso após
consolidar todo seu interesse na dominação, colocando os povos indígenas como
incapazes, excluindo-os de qualquer plano de protagonismo. O conhecimento que
vinha surgindo favorecia principalmente os colonos e, para não atrapalhar sua
eficácia, foi preciso criar mecanismos que pudessem controlar os povos. Por meio
desse mecanismo (projeto de colonização) produzido pelo Estado, posto em ação pelo
SPI, foi possível excluir temporariamente toda importância dos Kaiowá e Guarani,
sendo assim, foi se mantendo controle sobre a vida, cultura, religião, língua, etc.,
sobretudo, nos aspectos diversos da vida cotidiana da população
colonizada/confinada/acomodada.
O ponto de vista mais negativo que esse órgão praticou contra os índios foi o
de propagar que os povos nativos não são capazes de discutir e planejar seu futuro,
portanto, seria importante impor regime de tutela como proteção, negando-lhes
protagonismo, lugar de fala, etc. Embora esses “representantes indígenas”
apresentassem trabalho interessante, todavia fortaleciam a exclusão e, ao mesmo
tempo, revigorando a ideia de que os indígenas são incapazes. Isso tudo serviu para a
liberação de territórios indígenas para colonização, ao mesmo tempo em que reprimia
práticas tradicionais e colocava uma imposição violenta que alterava o sistema
produtivo coletivo indígena. Essa imposição perceptível impôs aos indígenas a
necessidade de reforçar cada vez mais suas práticas tradicionais. De acordo com
Cavalcante:
Inserida na política indigenista assimilacionista do Estado brasileiro, a
criação das reservas tinha como objetivo declarado o de garantir aos
índios um espaço para que vivessem até que o seu processo de
assimilação à sociedade nacional fosse concluído – considerava-se que
a condição indígena era transitória e que eles rapidamente seriam
assimilados pela sociedade envolvente. Na prática, as reservas
funcionaram e, em boa medida ainda funcionam, como espaços de
depósitos de indígenas e reservas de mão de obra barata. As famílias
eram levadas para ali, liberando assim suas terras tradicionais para a
colonização. Lá permaneciam sob o julgo tutelar do Estado e à mercê
de desvantajosos contratos de trabalho mediados pelos funcionários do
SPI com ruralistas da região. (CAVALCANTE, 2013, p. 23).
A colonização, desde o princípio, usou como fio condutor pacificação,
integração, assimilação de comunidades indígenas. Os principais Estados onde
progressivamente foram instaladas equipes de apoio e postos indígenas foram São
107
Paulo, Paraná, Espírito Santo e Mato Grosso. Desde então, buscou-se apoio para que
juntos pudessem garantir reservas de terras para sobrevivência cultural, religiosa e
física dos indígenas. Muitas tentativas de pacificações foram realizadas, como o caso
da comunidade indígena kaingang em São Paulo e no Paraná, e dos índios Urubu-
Kaapor no Maranhão e aqui em MS.
Cabe observar que, segundo Benites (2009), o SPI buscou mecanismos sem
respeitar a organização da parentela da Reserva: só alguns grupos eram escolhidos
para esse diálogo de negociação. Entretanto, as famílias que moram na periferia da
aldeia também tinham seus anseios específicos e políticas diferentes; portanto, nesta
situação importaria prevalecer um diálogo maior, como sempre acontecia entre a
parentela.
46
Para saber mais, ler artigo de Carlos Augusto Rocha Freire.
108
problema: “o que caracteriza a situação desses povos em nosso Estado é o seu
confinamento em áreas de terras insuficientes para a sua sobrevivência física e
cultural” (BRAND, 2000, p.1).
109
Guarani e Kaiowá da Reserva Te’ýikue. Em vista disso, fortalece-se o preconceito, a
discriminação e, por conseguinte, as violações dos direitos indígenas. No imaginário
do senso comum, há a ideia de que o governo deu essa área para o indígena de graça,
isto é, ele não teria mérito em ocupá-la. É nesse sentido que são reforçados
estereótipos difíceis de serem superados, de tal forma que a população da cidade
chama o lugar apenas de “aldeia”, num sentido pejorativo, entendido como único
lugar de “índio”. Dessa maneira, transforma-a em um lugar de segregação social e
espacial, o que corrobora com o conceito estabelecido pelos autores da escola de
análise da situação cultural e espacial guarani e kaiowá (BRAND et al, 1997) como
sendo uma situação de confinamento.
47
Ver Embrapa, Gado de Corte: confinamento de bovinos, 1996.
110
indígenas aplicadas por essas mesmas políticas assimilacionistas do Estado brasileiro,
uma vez que compara o modo de vida dos Guarani e Kaiowá com o ato de produção e
criação de gado de corte. Acredito que seja pertinente desarticular esse modo de
representar a vida das pessoas nas reservas indígenas, tornando esse espaço
artificialmente criado para a nossa habitação num espaço digno de vida. Falta à
comunidade, neste caso, discutir medidas para incrementar o modo de gestão desse
território que, para as novas gerações, é o modo único de vida indígena que eles
conhecem. Diante do exposto, acredito ser necessário uma revalorização do conceito,
tanto quanto do espaço Reserva indígena, posto que as pessoas que moram neste lugar
carecem, fundamentalmente, de respeito à sua identidade indígena e à valorização de
suas vidas enquanto seres humanos e cidadãos deste país, com todos os direitos e
deveres de todos os outros cidadãos.
Com tudo isso queremos chamar a atenção para o fato de que o preconceito
da sociedade que mora na cidade para com a aldeia e a comunidade indígena deveria
ser melhor observado, pois há traços fortes da presença indígena na localidade. Por
exemplo, o próprio nome do município – Caarapó - recebeu este nome da língua
guarani - ka’a - que significa erva-mate, - rapo - raiz (raiz de erva-mate). Assim
sendo, de acordo com a anciã Lauriana Escobar, Caarapó traz em seu nome o que
tinha de mais valorizado pelas frentes de expansão nesta região, os ervais nativos, um
produto que enriqueceu muitas famílias e que hoje querem expulsar a população
indígena do local. Sem contar ainda a mão de obra indígena que foi extensamente
utilizada na coleta desta mesma erva-mate, numa condição similar à da escravidão.
De acordo com Lauriana, esta terra sempre foi habitada pelos Guarani
Ñandeva e os Kaiowá. O pesquisador ava Kaiowá, Lidio Cavanha Ramires, confirma
a narrativa ancestral de Lauriana, quando aponta, em sua pesquisa, trechos da história
da família da minha interlocutora.
Segundo o autor:
As famílias da minha avó, Seferina Escobar, na década de 20, vieram
do Paraguai, esparramaram-se na Reserva Indígena Te’ýikue, Reserva
Indígena de Dourados e no Tekoha Korralito, na atual Fazenda São
Paulo. Quando as famílias foram expulsas do Tekoha Korralito,
vieram morar na Reserva Indígena Te’ýikue. Ela já nasceu na Reserva
Indígena Te’ýikue onde construiu a família com meu avô, ainda muito
jovem. Ele sempre trabalhou nas fazendas nos ervais, posteriormente
roçando e derrubando matas, plantando sementes de colonião e
braquiária para formar pastagem de gado. (RAMIRES, 2016, p.17)
111
Conforme Lauriana, como os pais e avó lhe contaram, Caarapó era
passagem para os carreteiros e viajantes como parada para preparar alimento ou
repousar. A seguir começo a descrever e discutir a transformação que ocorreu a partir do
aumento do número de famílias na Reserva.
Fonte: Atlas socioambiental terra indígena Te’ýikue. Org. Smaniotto C. R., Ramires L. C.,
Skowronski, L. – Campo Grande: UCBD, 2009
112
Na descrição histórica do pesquisador ava Kaiowá, Eliel Benites (2014),
antes da Reserva receber várias famílias indígenas expulsas de seus tekoha, algumas
parentelas que já residiam no local se organizavam conforme o modelo organizacional
tradicional. A partir da década de 1968 (Cariaga, 2012), principalmente, a Reserva foi
recebendo várias parentelas da etnia guarani e kaiowá expulsa de seus tekoha
originais, e foram dividindo o espaço com os demais grupos familiares. Importante
ressaltar que a identidade foi se delineando conforme a transição étnica e as relações
de parentesco foram acontecendo. Os povos sempre tentaram manter os espaços da
Reserva como eram os tekoha tradicionais (organização religiosa, cultural, social,
política, econômica e produção do ser indígena), por outro lado, não deixam de marcar
suas diferenças como indígenas “reservados”. Cada reserva indígena demarcada pelo
SPI tem um modo diferente de organização social e política de resistência, de
problemas. Uma das situações históricas que marcaram a Reserva de Caarapó foi a
criação de um “líder geral” da aldeia, que pudesse estar a serviço do SPI, sobretudo
para “responder” pela comunidade. Sobre o histórico da liderança geral da Reserva
que ocupou esse cargo, Benites (2014), conforme o seu interlocutor, descreve da
seguinte maneira:
O meu avô Cassimiro Fernandes (em 17 de março de 2013) relatou
que, quando chegou à aldeia, a liderança geral era Menério, além de
João Mbokoto, que era liderança na região do Mbokaja, e João Dalo
na região do Saverá. Posteriormente, a liderança passou para João
Aquino; na sequência, este passou o cargo para o seu irmão mais
novo, Cassiano Aquino, que ficou na chefia da aldeia durante 23 anos,
e o senhor Chalô que ficou como lider na região do Saverá. Com o
falecimento de Cassiano, assumiu a função um senhor chamado Icho
(João Martins), que foi expulso para Dourados pela comunidade, pois
não era deste Tekoha, tendo assumido, então, o senhor Hermes
Araújo, assassinado durante uma festa no Saverá. Depois assumiu o
senhor Urbano Isnarde que, com seu temperamento forte, também foi
assassinado por um morador da aldeia, de forma bastante violenta. Na
sequência, Florêncio Marque tornou-se líder, o qual, no final, acabou
se suicidando; após, Agripino Benites assumiu a liderança da aldeia.
(BENITES, 2014, p. 44).
Como registrado pelo pesquisador indígena, o período em que cada liderança
ficou na gestão da aldeia, como me falou Fernando Peralta, cada um desses líderes
indígenas também marcou um modelo de gestão específico, pois cada um precisava
criar uma política que se diferenciasse dos demais. Ou seja, como foi colocado por
Benites (2014), houve momentos complexos que esses líderes enfrentaram, que
acabou até na morte de alguns. Aos que Benites chama de “liderança geral” era quem
respondia pela comunidade e, ao mesmo tempo, colocava em ação a demanda do
113
chefe do SPI/FUNAI e demais instituições públicas e privadas, que passaram a atuar
na Reserva e requeriam a figura de um líder reconhecido como “representante” de
toda a população reservada, afinal, como expressa o senso comum regional, “índio
tem de ter chefe”. Desse modo foi se caracterizando um modelo de gestão na Reserva,
pois, quando se criou a figura do “Capitão”, o objetivo era “unificar toda
representatividade da família em uma só pessoa, e isso é uma característica de modelo
que os brancos seguem, mas a nossa comunidade não podia fugir disso, então
permaneceu até hoje” (Professor indígena da Te’yikue, 2019). Assim, “os elementos
sociais tradicionais da antiga aldeia foram sendo, aos poucos, deixados de lado pela
sua inviabilidade em um novo contexto. Surgem, assim, novos arranjos sociais,
constituindo-se outras estratégias políticas e negociações entre as famílias extensas”
(BENITES, 2014, p. 45). Importante destacar que essas “estratégias políticas e
negociação” se dão num contexto de imposição da centralização política na figura do
“Capitão”. Assim, muitas parentelas são excluídas da participação nessa nova
configuração e, até certo ponto, enquadradas e dominadas por arranjos políticos
organizados pelas parentelas mais fortes e com vínculos e pactuação com instituições
que atuam na Reserva. Isso gerou, e ainda gera, muitos conflitos entre parentelas,
como expressam os casos dos assassinatos de “capitães”, conforme destacado por
Eliel Benites (2014), citados anteriormente.
Sobre o novo contexto que vinha surgindo, destaco aqui a participação ativa
dos rezadores. Menciono a época de Cassiano Aquino que, segundo alguns moradores
antigos da Te’yikue, na época dele, as igrejas não tinham muita força como têm hoje
pelas regiões da Reserva. EsTe líder atuava sempre como rezador, principalmente para
fortalecer a luta e o direito indígena, portanto, na medida em que a Reserva foi
recebendo as famílias indígenas recolhidas de várias aldeias tradicionais se
espalharam pelas regiões para “[...] viver como parente entre parentes”
(PEREIRA,2014, p. 60). Nessa composição organizacional, cada parentela buscou
vários formatos de sobrevivência, planejou sua resistência e aliou-se com o “Capitão”,
com o intuito de vencer todas as adversidades e organizar suas vidas.
114
Claudemiro Pereira Lescano (2016). Segundo esses pesquisadores indígenas (ava), o
SPI, junto com o Governo brasileiro não adotou procedimentos de identificação dos
espaços de ocupação tradicional, tampouco manifestou preocupações com o futuro
dos Guarani e Kaiowá. Sendo assim, a demarcação se constituía em procedimento
administrativo sem a necessária participação indígena.
Mesmo que a Reserva Te’yikue tenha sido criada num modelo estratégico
para o Estado controlar os indígenas, surgia cada vez mais resistência por parte das
lideranças religiosas, mesmo não tendo espaço suficiente para atuar como
articuladores do teko porã (harmonia interna/ bom modo de viver). Conforme alguns
moradores da Reserva, um jekoha48, na luta pela preservação da memória coletiva, dos
saberes, danças e rezas, mostram o quanto é importante manter a identidade indígena
(ava reko porã). Os rezadores, as rezadoras, os anciões e as anciãs (ñanderu kuéra ha
ñandesy kuéra) tiveram participações diretas na luta contra a política assimilacionista
e colonialista e também na preservação cultural. Contudo, isso foi interrompido, em
parte pela grande influência da cultura ocidental, pelo descaso por parte dos órgãos
públicos sobre o investimento na cultura indígena e pela forte presença das igrejas
pentecostais na cosmologia indígena e no tekoha, fato que requer bastante cautela e
atenção em nossas pesquisas.
48
A figura do jekoha oferece às pessoas do tekoha apoio espiritual, político, filosófico e
esperança. Há hoje variabilidade de jekoha nas aldeias, entre os quais estão os rezadores e as
rezadoras, anciões (jari, tuja kuéra), Capitão, professores, agentes de saúde, pastores indígenas,
vereador. Destaco os papeis fundamentais desses agentes tradicionais na Reserva. Entre as
atividades desenvolvidas por eles estão: aconselhamento, orientação sobre o “bom viver” (jeiko
porã), remédio tradicional, e outras, sem esperar recompensa. De todo modo, compartilha o que
eu conceituo, a partir dos saberes que me ensinaram da minha cultura, de “reciprocidade
espiritual”, um elemento forte e muito importante da agregação social e étnica entre nós
“parentes”, os membros da comunidade indígena. Ocupar-me-ei disso no próximo capítulo.
49
Vida do branco e sistema do branco.
115
guarani atual, que procura resistir criando vários modos de ser quando os convêm, e
fortalecendo suas histórias, as línguas, os saberes, os conhecimentos territoriais, etc.
116
A expectativa dos colaboradores/sujeitos da pesquia é de que os
pesquisadores indígenas analisem, problematizem e consigam trazer reflexão dentro
da perspectiva ideal, para que, futuramente, não seja esvaziado o papel da liderança na
parentela, como aconteceu com a função dos rezadores em algumas reservas
indígenas. Ou seja, buscam uma conexão de fortalecimento de seus papeis enquanto
lideranças e desejam deixar registrado na escrita as razões requeridas para esse
reconhecimento, que parece ser um motivador importante para colaborar com a
pesquisa. Além disso deve-se problematizar algumas questões sobre a Reserva, a
partir da própria experiência de pesquisador indígena, sobretudo na utilização de
inovações metodológicas. Só assim será possível contribuir para uma nova reflexão
sobre a realidade atual apresentada para as parentelas, contemplando suas expectativas
e projetos de futuro.
117
praticando rituais tradicionais, dos quais se beneficiava a comunidade. Segundo
Izaque João (2011), os benefícios dos rituais eram ao coletivo, por exemplo, quando
faziam uma grande roça, em seguida conseguiam êxito na colheita. Outro benefício
era formar um cidadão de bem, consciente do seu papel na coletividade, sobretudo na
questão religiosa. Na visão do sábio e rezador Maurilio, havia várias estratégias de
resistências, principalmente na valorização e no fortalecimento da identidade, da
língua materna, das danças, rezas e saberes nativos.
118
No entanto, a aldeia não é um vilarejo. Os Guarani e Kaiowá foram
obrigados a morar neste lugar. Segundo seus relatos, antes usufruíam de recursos
naturais de qualidade, se organizavam conforme sua tradicão, mantinham sua religião
viva, fortalecendo, assim, o bem viver. É importante dizer que quando se fala de
“comunidade”, sem entender o contexto histórico, cada vez mais se reforça a
inconsciência histórica. Este conceito, que ao longo dos anos foi ganhando voz por
parte do senso comum, precisa de esclarecimentos, tanto históricos, quanto
sociológicos. O termo comunidade remete à ideia de harmonia e vida em comum. Só
que isso não é possivel quando há um ajuntamento compulsório de muitos ore, cada
um com seu modo próprio de viver e de pensar, com suas histórias e suas origens,
como a história nos mostra.
119
por sobrevivência. Diante disso e discorrendo sobre sua trajetória de vida, sua vinda
para a Reserva Indígena de Caarapó, as duras condições de sobrevivência, Maurilio
narra sobre as matas que havia naquela época e sobre a organização social indígena.
Uma das formas de entender a conexão entre as parentelas na organização social, ele
se referiu ao tape po’i. Constatamos que, nessa época, não existia estradas como têm
agora. Sua memória reavivada vem do ñemongueta permanente que mantém com sua
esposa, compadres e com alguns filhos. Com olhar crítico em relação à mudança da
paisagem da Reserva, recorda: “Ko tekohape heta va’ekue oĩ ka’aguy, yvyra porã
ógarã, parederã ha jepe’arã”. Ao longo dos anos, as árvores foram alvos de
madeireiros, tendo sido destruídas gradativamente. Conforme o relato dele e através
da figura a seguir, vemos que os recursos naturais foram ficando escassos em várias
regiões da Reserva Te’yikue.
Mapa 4: Recursos naturais atuais na Reserva Indígena de Caarapó
Fonte: Atlas socioambiental terra indígena Te’ýikue. Org. Smaniotto C. R., Ramires L. C.,
Skowronski, L. – Campo Grande: UCBD, 2009
120
As reservas, consideradas como únicos lugares para os indígenas viverem,
sofreram, ao longo dos anos, superpopulação, pois vieram pessoas de todos os lugares.
Para beneficiar os colonos, o SPI, atual FUNAI, convencia os indígenas de que só nas
reservas se conseguiria viver. Por essa razão, a família da Lauriana Escobar decidiu
escolher esse local. Conforme ela,
Che túa kuérango omba’apomi va’ekue voi ka’atýpe. Che sy
omombe’u há lajango ha’e kuéra ndopytai voi araka’e. Omba’apo
oiko péicha. Omeneko péicharõnte voi oikovéta araka’e. Ha’e kuéra
omba’apo jepe ka’atýpe. Upeguila ojegueru apo láo ko’anga jaiko
haguape. (Lauriana Escobar, ancião da Reserva de Caarapó)
121
Nesse sentido, é relevante mencionar o termo sarambi, que é utilizado por
muitos pesquisadores, o qual foi apresentado pelo historiador Brand para denunciar a
violência que o povo nativo dessa região sofreu depois que perdeu seus tekoha.
Discutir sobre a má interpretação do conceito “sarambi” por parte da sociedade não
indígena é fundamental, pois o conceito só foi conhecido e pesquisado por alguns
pesquisadores da academia, principalmente por Brand (1997). Sarambi foi um termo
que o brand ouviu dos índios e não de brancos. E se refere não à “bagunça” na
reserva, e sim ao esparramo que se deu de seus antigos tekoha. Portanto, uma coisa é o
sarambi, outra coisa é a nova configuração fora do padrão tradicional guarani e
kaiowá – na reserva – que os próprios indígenas interpretam como “chiqueirinho”, e
que o brand nomeou de “confinamento”. Então, o preconceito não está na
interpretação histórica e sim na reação da sociedade que quer que os índios continuem
amontoados nas reservas.
50
Geralmente, essas pessoas possuem estabelecimentos bem na entrada cidade, nas periferias,
com intuito de facilitar aos clientes indígenas compra de mercadorias, de negociar alguns
objetos de valor, por exemplo, a moto enrolada, carro, etc. Contudo, para isso ser possível - eles
pegam cartões do banco dos indígenas aposentados, das pessoas que recebem Bolsa Família,
dos trabalhadores da Usina de cana, de alguns funcionários públicos, etc. No dia do pagamento,
quem recebe o salário dos indígenas são os donos de mercado, enfim, são algumas das situações
que, as comunidades indígenas guarani e kaiowá enfrentam.
122
e conseguirão organizar melhor seu povo51. Portanto, percebo, através das falas e da
própria experiência pessoal, o quanto a sociedade ocidental precisa conhecer a história
da luta do nosso povo e os problemas enfrentados na atualidade. Até porque, segundo
um professor indígena Kaiowá, “os colonizadores chegaram por aqui com a
espingarda, com seus gados, com suas ideologias de progressos, com a sua “ciência”.
Portanto, o termo “sarambi” ocorreu porque os indígenas foram violentamente
retirados dos seus lugares”. Não é apenas um termo para interpretarmos sem
conhecimento histórico. Em artigo da pesquisadora Graciela Chamorro (2015), o
termo “sarambi” é muito bem analisado:
O agrupamento em reservas dá-se no momento em que ocorrem novas
frentes de espalhamento ou sarambi, ocasionadas pelas
transformações pelas quais passou a Mate Laranjeira, pela abertura
das colônias agrícolas e pela chegada de novos fazendeiros. De modo
que o sarambi aconteceu de diversas formas e em diversos momentos
nos vários lugares. Sarambi significa bagunça e afastamento.
Ñemosarambi é sempre uma ação realizada por outrem, o que vem
indicado pela partícula -mo-, que significa “fazer que” e verbaliza o
nome. À época em que “todas” as famílias indígenas tinham
abandonado ou viviam sob a iminência de abandonar seus tekoha,
costuma-se chamar ñemosarambipa, indicando–pa a vasta abrangência
do espalhamento. (CHAMORRO, 2015, p. 306).
Ñemosarambipa se consolidou com o sucesso que os projetos da colonização
obtiveram por meio do papel e da escrita para legitimar a exploração em território
indígena. Os ava kuéra Kaiowá e Guarani chamam de sarambi a ação violenta de
remoção da família ocasionado pelo Estado brasileiro, para denunciar o motivo pelo
qual sofreram esparramo, bagunçando a sua organização social. Nesse período, os
agentes do SPI, atendendo o protocolo do Estado brasileiro, passaram a aliciar
tumultuosamente as famílias indígenas ou parentelas - pehengue kuéra - para o
interior da Reserva, provocando, segundo Chamorro e Cavalcante, a
“desterritorialização”, dispersão/alteração das famílias, involuntariamente, de seu
lugar tradicional para um lugar dessemelhante, tornando necessário um esforço
intenso de adaptação a uma nova realidade espacial. Sobre o que foi explanado,
Chamorro caracteriza da seguinte forma:
Esse evento foi um divisor de águas na história indígena
contemporânea. A população indígena dos tekoha guasu chamados
Chapiru, Ka’aguy Rusu, Ita Poty, Yvy katu, Guasuty entre outros foi
levada, muitas vezes à força, para as “reservas”, até então muito pouco
habitadas. Funcionários do SPI e, mais tarde, da Fundação Nacional
51
Comerciante da Igreja Mundial do Poder de Deus. Ela sempre frequenta a Reserva vendendo
suas mercadorias.
123
do Índio, FUNAI, assim como os agentes da Missão Caiuá e das
empresas colonizadoras transportaram os indígenas das fazendas às
reservas. (CHAMORRO, 2015, p. 306)
O meu interlocutor contou que a família dele morava nessa região, buscava
recurso natural para sobreviver e se organizava de acordo com seu xamã. O Senõ, que
era um rezador bastante respeitado naquela época, foi responsável por dar orientação
espiritual, passando seus conhecimentos ancestrais; rezava para sua família obter
saúde e dava conselhos sobre como deveriam se comportar um Guarani.
124
pista de como era o teko tradicional num tekoha antes do reservamento, pois os grupos
familiares podiam viver mais de acordo com seus jeitos mais tradicionais.
52
A alimentação Guarani tem base na produção do milho colorido (avati para). O plantio se
inicia em setembro e se encerra em fevereiro, configura um calendário temporal e cultural
diferente do calendário civil nacional. A alimentação guarani inclui uma série de precrições de
vegetais que não são prestigiados pelo consumo da população. Os anciãos, panteões do
conhecimento da nossa cultura são detentores dos saberes ancestrais também da alimentação
apropriada.
126
homens obriga as mulheres da área indígena a ficarem quase sempre sozinhas em
casa, cuidando dos filhos, das casas, da família em geral. Na Reserva de Caarapó,
quando elas têm oportunidade de falar nas reuniões da escola, no Fórum Indígena
anual e em encontros e oficinas, as queixas são as mesmas: não dão mais conta de
educar os filhos e as filhas sozinhas.
127
alcoólica e venda ilegal de madeira. Conforme Fernando Peralta, o Capitão gozava e
goza de poder coercitivo, muitas vezes materializados nas temidas polícias indígenas.
A forma como repercutiu essa figura tão temida do Capitão tirou muita
autonomia de muitas famílias e rezadores. Desde então, essa preferência demonstra
que o Capitão era uma figura indígena responsável por impor aos demais a ordem
necessária para que os ideais assimilacionistas da política indigenista oficial pudessem
ser postos em prática. Nesse sentido distanciou-se do diálogo que sempre manteve
junto os ñanderu. Ele planejou o trabalho fora do que era previsto para manter a
cultura e saberes indígenas. Foi realmente uma armadilha dar o poder para a
comunidade que tinha outro tipo de política, e na qual se decidia quais caminhos
seguir para melhorar os problemas em relação à saúde, meio ambiente, prática cultural
e religião. Retomarei essa discussão no terceiro capítulo.
129
presentes em 29 municípios, representados por oito etnias: Guarani, Kaiowá, Terena,
Kadwéu, Kinikinaw, Atikun, Ofaié e Guató53.
53
Para mais informações acessar: http://www.secid.ms.gov.br/comunidades-indigenas-2/
130
social. Sobre o trabalho dos indígenas nas fazendas e de como desenvolviam o plantio
da braqueária, o Rezador Florencio conta que:
Yma rupi fazenda og̃uahẽ rõguare, ore ava roikomava voi árupi,
romba’apo akue ichupe kuéra roñoty hag̃uame braquearia. Voi ropu’ã
roho rombyaty hag̃ua, ikatu hag̃uaicha oraitepe isekopa hag̃ua. Uperõ
rombyaty aty arã heta latape braquearia ra’yingue; ikatu hag̃uaicha
ojereraha otro fazendape. Che amoĩ va’ekue ka’aru aja heta
lata...upeicha ha’yingue ou akue ore pratilia kuape ha hoky ko’arupi.
(BARBOSA, 2019).
Tradução livre: Antigamente quando chegou a fazenda, nós índios já
trabalhávamos para eles plantando essa braqueária. Acordávamos bem
cedo, assim íamos juntar para que essa semente secasse na hora certa.
Nessa época teríamos que juntar bastante lata de semente, assim para
levar em outra fazenda. Eu colocava antes do entardecer bastante
lata...assim a semente vinha na nossa prantilha 54 e se espalhou pela
aldeia.
Desde a década de 1980, segundo Barbosa, os indígenas trabalhavam na
fazenda, cuidando de gado, plantando a semente da braquiária, derrubando as matas
para os espaços servirem de pasto para o gado. Ao mesmo tempo, a Reserva atraía
muitos empreiteiros à procura de trabalhadores. Conforme a fala dele, constatamos a
condição de trabalho dos indígenas nas fazendas no entorno da Reserva e nas demais
regiões do Estado. Vários tipos de trabalhos que os indígenas praticavam favoreciam
algumas doenças que chegavam com a colonização e pelas más condições do trabalho
ofertado pelos colonos, conhecidos pela maioria dos indígenas por “fazendeiros”. Haja
vista que, nessa época, não se utilizavam equipamentos adequados, e tampouco se
sabia de sua existência. O entrevistado mencionou o nome de um sapato fabricado
pelo próprio indígena, muito utilizado nessa época: a plantilha/prantilha. O trabalho
árduo que o meu interlocutor exercia facilitava a gripe, a tosse, porque era forçado a
aguentar a poeira e a picada de cobra. Ele me contou que não tinha horário específico
para descansar e tampouco recebia pagamento justo pelo trabalho. Nesse sentido,
percebi que muitos anciãos, com os quais tive mais contato, apresentam o estado de
saúde bastante comprometido.
54
Era um sapato fabricado manualmente. Utilizava-se um pedaço de pneu e algumas cordas
finas. Barbosa contou que essa prantilha era muito resistente e usava-se para qualquer atividade
de trabalho.
131
política sustentável, ao mesmo tempo, os políticos não fazem questão de garantir os
direitos que estão na Constituição Federal de 1988, etc.Desse modo, foram planejadas
pelo sistema ocidental capitalista, para serem concretizadas na Reserva, afinal, essa
área é rodeada pelas plantações de soja e, desde 2012, de cana-de-açúcar. Os homens
e as mulheres indígenas que trabalharam desde final de1980, como diaristas nas
fazendas e nas usinas de cana, hoje em dia, apresentam o estado de saúde bastante
comprometido. Em cada microárea das 16 Agentes Comunitárias Indígenas de Saúde
(AIS), nas áreas onde pesquiso, há pelos menos 500 trabalhadores rurais que precisam
lutar todos os dias para sobreviver. Geralmente eles acordam às duas horas da
madrugada para esperar o ônibus que os levam até à usina. O descanso deles é de,
aproximadamente, 5 ou seis horas por noite, e trabalham 6 dias por semana. Alguns
ainda conseguem frequentar culto na terça-feira, sexta e sábado.
132
à saúde era ofertado pela FUNAI e Missão Evangélica Caiuá, que ficavam a,
aproximadamente, 75 km de nossa Reserva, na região de Dourados. Para receber a
consulta médica e algum medicamento, os pacientes eram levados de Combi para esse
município. Pela desconfiança e, ao mesmo tempo, por praticar ainda rituais nativos,
algumas parentelas recusavam o atendimento e a inserção de tratamentos médicos, e
escolhiam e apostavam em manter o tratamento com os remédios tradicionais e com
as rezas, contando com a habilidade dos rezadores. Conforme Fernando Peralta, nessa
época, havia bastante remédios tradicionais nas regiões, e os rezadores benziam e
curavam. No entanto, depois que a vegetação nativa sofreu degradação, essas práticas
tradicionais não tiveram mais muito êxito.
O pastor Isaias da Igreja Primeiro Deus Pentecostal, opina que, nessa Reserva
Indígena: “As tentativas fracassadas de tratamento desenvolvidas pelos ñanderu e
pelas ñandesy muito contribuíram para a queda e para a mudança do prestígio e do
poder que tradicionalmente acumulavam e exerciam com muito êxito”. Alguns
integrantes da família, ainda segundo ele, recorreram a outras práticas de cura,
133
facilitando a conversão massiva dos indígenas à igreja pentecostal. Em muitos casos,
os doentes tiveram que recorrer a Missão Caiuá55 para que recebessem atendimento
médico, contanto que se tornassem membros dessa igreja. Como foi exposto, algumas
famílias que optaram por sair da Reserva, de alguma forma se sentiram pressionadas a
deixar a área na qual já acampavam, sendo que, em algum caso, acampavam na beria
da rodovia, mas perto da sua área tradicional. Pela situação precária em que viviam
nesses locais, algumas famílias decidiram retornar temporariamente à Reserva, como
foi o caso da parentela de Papito, do tekoha tradicional Guyra Roka. Antes de retornar
ao seu lugar de origem, esta família morou bastante tempo na Região Sãka Pytã da
Reserva Indígena de Caarapó.
55
Já atuava em Dourados e região desde 1928.
56
Comentário da professora Veronice Lovato Rossato.
134
Assim, essa situação contribuiu para a dispersão da população, pois muitas
famílias se viram forçadas a deixar a localidade devido aos atritos com os demais
parentes. Foi em razão dessa situação que muitas famílias tiveram que procurar o
chefe da FUNAIpara que fosse providenciada sua mudança para outras reservas
demarcadas, também buscando outra alternativa para aproximar os seus parentes
dispersos por conta das situações supracitadas. Aderir às igrejas foi uma das
alternativas. Sobre essa adesão me ocuparei no capítulo seguinte. Além disso, segundo
Fernando Peralta, algumas parentelas não suportavam as acusações internas de outro
grupo, por isso se mudavam para outro lugar e/ou voltavam ao seu lugar de origem, do
qual foram retirados/expulsos. “Então, hoje vejo e consigo entender que era uma
doença, doença mesmo que estava matando o nosso patrício... nessa época não tinha
quase nada para socorrer”, observou ele. Ainda segundo Peralta:
Upérõ oĩ CBT kue. Upeape roraha akue hasýva, ojekutu akue
Caarapópe ndaipóri jave karro oraha arã Zoráope. Romoĩ arã hénte
karro seziape ha roraha. Upéicha ndaipóri ete teri ko ziape
atendimento jarekova rehegua. Kuña róga rupinte voi akue ogana
mitã...uperõ heta teri parteira oĩ akue, upevagui ndojepy’apy guasui
hikuái ogana hag̃ua hospital pe. Ofarta jave pohã ñana ko árupi jeho
va’e ojegueru karai yvýgui.
135
conhecimentos, sistema política, cultura, práticas de rezas entre as etnias irmãs, ao
mesmo tempo, estavam transitando entre elas, então, os indígenas com seus rezadores
procuram marcar os territórios da medicina ancestrais. No caso da Reserva Te’yikue,
na maioria das vezes, os guarani e kaiowá se deslocavam para os territórios inimigos
(dos fazendeiros) para procurar os remédios, bem como para plantar no quintal de suas
casas, portanto, essa tentativa acontece até no tempo presente; algumas mudas de
remédios brotam e crescem, mas algumas que são bem mais rígidas não crescem.
Por outro lado, uma das alternativas usadas pelos rezadores foi se aliar com
os professores indígenas e com a universidade, certos de que serão valorizados por
eles e sairão fortalecidos. Neste caso, contribuíram bastante no registro dos nomes de
plantas medicinais, das rezas, até na formação de novos detentores de saberes
indígenas, ou seja, de novos conhecedores de remédios e de rezas. Esse foi o caso do
professor Nilton Ferreira Lima, hoje professor da área de Ciências da Natureza e atua
como professor na Unidade Experimental, onde ensina aos alunos várias práticas
agroecológicas na perspectiva sustentável e ancestral.
136
A comunidade dessa localidade foi exposta às mais diversas formas de
exploração, à negação do seu direito e ao preconceito, portanto, ficava quase
impossível reivindicar o reconhecimento e aperfeiçoamento de sua medicina
tradicional ao Estado e ao Município. Podemos definir essa fase da reivindicação dos
indígenas de garantir direito à saúde de qualidade e de construção da escola indígena
como “tesãi reka57”. O movimento foi articulado para garantir primeiramente o
território, a saúde diferenciada e a escola, em contraposição às situações vividas no
passado, quando “o índio não tinha direito”, até porque nós indígenas temos múltiplas
etnias, culturas, línguas, crenças, valores e estruturas próprias de educação.
Conforme Oliveira,
Não posso deixar de mencionar que o SPI não era o único agente que
buscava atender os índios em suas doenças. Havia missões religiosas58
espalhadas por todo o território nacional que mantinham hospitais e
enfermarias em alguns postos ou em suas proximidades. Contudo, as
relações entre o Serviço e estas missões eram tensas, uma vez que
frequentemente os representantes destas instituições denunciavam as
mazelas existentes nos postos e endereçavam acusações aos
funcionários do SPI, particularmente nos jornais. Por outro lado, o
serviço também publicava acusações contra a ação destas igrejas.
Entretanto, em muitos casos vemos que estas instituições religiosas
acabavam preenchendo lacunas em relação ao atendimento médico e
hospitalar aos índios deixada pela ineficiência do SPI. (OLIVEIRA,
2011, p.195)
O cenário de violação de direito e de não investimento da saúde indígena foi
significativamente alterado pela Constituição Federal de 1988, que reconheceu os
direitos dos povos indígenas às suas terras, a políticas sociais diferenciadas e
adequadas à sua especificidade cultural, à autorrepresentação jurídico-política e à
preservação de suas línguas e culturas. No campo da saúde destaca-se a criação de um
subssistema específico para o atendimento a essas minorias. Então, na década de
57
A procura do bem viver e vida sustentável.
58
Grifo meu.
137
1990, um conjunto de decretos da Presidência da República retirou da FUNAI boa
parte de suas atribuições nas áreas de saúde, educação e de preservação cultural.
138
executar as ações de saúde indígena. Nesse sentido, a escola indígena começou a
fortalecer o papel do Agente de Saúde Indígena. Com a criação do currículo próprio
da escola, inseriu-se também a participação efetiva de Agente Indígena de Saúde
(AIS), com intuito de levar as informações necessárias para as pessoas da
comunidade, orientando-os sempre que necessário.
139
hierarquização padronizada: o Posto de Saúde na terra indígena é a primeira referência
e realiza atendimento e ações de atenção básica. O Polo-Base, por meio de um chefe e
de um coordenador, monitora as ações e trabalhos de atenção básica, oferecendo o
suporte necessário nos atendimentos nessas regiões.
60
A dissertação de mestrado do pesquisador indígena Eliel Benites (2014) traz dados e, ao
mesmo tempo, o contexto histórico das atuações de professores indígenas para diminuir o
número de não letrados na aldeia. Nesse sentido, o autor explana sobre a articulação da equipe
escolar e das lideranças a partir das quais nasceu o Fórum Indígena. Ainda segundo Benites (p.
93), foi possível, graças à constituição de um espaço de discussão sistemática sobre a educação
escolar indígena, que absorve outras temáticas, em função da chegada das demandas da
comunidade à escola. Assim, a escola tornou-se espaço e ferramenta de lutas.
140
menos 170 crianças, 50 ou 55 gestantes, crianças desnutridas 45 a 50,
tinha mais ou menos 300 casas na minha área. Eu tinha também as
pessoas com tuberculose...mais ou menos 10 pacientes (MARTINS,
2019).
Na fala de Martins ficam claros os desafios que os profissionais indígenas
enfrentaram desde o início do trabalho, até porque a comunidade precisava de
profissionais falantes na língua Guarani para que pudesse orientá-la de forma correta e
esclarecida sobre a saúde. Ainda de acordo com ela, em 2003, as crianças sofriam de
desnutrição, que poderia até levá-las ao óbito. A comunidade contava com poucos
profissionais indígenas, então, cada Agente de Saúde ficava responsável por uma área
grande, com muitas casas para visitar, portanto, executavam os trabalhos com grande
esforço. Vale salientar que havia resistência por parte de alguns pacientes no
tratamento de algumas doenças: “A língua guarani facilitou muito o nosso trabalho... a
gente convencia as pessoas para tomar remédio... eu acordava cedo para levar o
remédio ao paciente e não podia falhar com essa rotina”, diz Katia Martins. As
primeiras profissionais que atuaram na área da saúde foram Neuza Marques, Maria
Celina e Albina.
Vale destacar que antes os atendimentos eram feitos no espaço onde agora
funciona o CRAS. Nessa época havia apenas rádio amador como forma de
comunicação entre profissionais da saúde da aldeia e da cidade. A técnica de
enfermagem Carolina Martins ficava responsável por chamar o plantão61 toda vez que
fosse acionada pelo AIS. Katia Martins me contou que, ao ser acionada pelas pessoas
da área, independentemente de ser de madrugada ou não, pegava sua bicicleta e ia até
a casa da Carolina para socorrer os seus pacientes, ou seja, para acionar ajuda dos
profissionais de saúde da cidade. Os motoristas que atuavam há bastante tempo na
aldeia foram Luizinho e Passarinho, como são conhecidos pelos indígenas. Embora o
atendimento aos indígenas tenha melhorando, a FUNASA e a atual SESAI enfrentam
dificuldades com relação ao transporte dos doentes da aldeia para a cidade, até porque
atendem várias aldeias da região, que serão mencionadas mais adiante.
61
Nessa época, tinha um Toyota que socorria os indígenas, levando-os ao hospital São Mateus,
no município de Caarapó.
141
visitas são programadas de acordo com a situação da família pelas regiões. Muitos
procuram a Assistência Social para arrumar a irregularidade da Bolsa Família, arranjar
qualquer tipo de ajuda, por exemplo, roupas, alimentação e outras. O CRAS procura
desenvolver o seu trabalho, como projetos junto à escola, comunidade, professores
indígenas, liderança Capitão e rezador.
Figura 10: Postinho de saúde indígena da região centro da aldeia Reserva indígena
de Caarapó
Localização de posto de saúde do centro, como é conhecido pela comunidade da Reserva indígena de
Caarapó. Localiza-se perto da escola Ñandejara Polo, Escola Estadual Yvy Poty, CRAS, FUNAI, etc.
Vale salientar que esse posto Zacaria Marques conta com maior número de pacientes, regiões, AIS.
Fonte: Google Earth
No que se refere à assistência à saúde na TI de Caarapó, os atendimentos são
realizados por duas equipes multidisciplinares de saúde indígena. Uma equipe fica no
Posto de saúde Zacaria Marques com um médico, uma enfermeira, três auxiliares de
enfermagem, um odontólogo, uma auxiliar de odontólogo, uma nutricionista, dez
agentes indígenas de saúde e dois AISAN.
Figura 11: Postinho de saúde da região Savera
142
Esse postinho de saúde chama-se Jorge Paulo em homenagem ao grande líder tradicional Kaiowá.
Localiza-se na região Savera, perto da escola extensão da Ñandejara Pólo. Fonte: Google Earth
O Posto de Saúde Jorge Paulo foi inaugurado em setembro de 2006 e conta
com uma enfermeira, uma médica, um dentista, uma assistente de dentista, duas
técnicas de enfermagem, um AISAN (Agente Indígena de Saneamento) e seis AIS
(Agente Indígena de Saúde). No período matutino, o profissional médico atende em
média 19 a 25 consultas por dia, priorizando o atendimento às crianças, às gestantes e
aos idosos(as). No período vespertino, realiza atendimentos domiciliares de acordo
com as demandas dos Agentes de Saúde. Os serviços de média e alta complexidade
são encaminhados para a rede de serviços do SUS, ou ao Pronto Atendimento
Municipal.
143
professores, na capitania, como agentes de saúde, na direção e coordenação da escola,
como merendeiras e outros, além de receberem cestas básicas, aposentadoria por idade
e Bolsa Família. Observamos que isso tem provocado outra forma de organização da
parentela. Ao mesmo tempo em que os rezadores defendem o atendimento
diferenciado e de qualidade por parte da saúde, os evangélicos também começaram a
se preocupar em fortalecer essa luta: conseguiram colocar um representante da
Reserva de Caarapó como conselheiro distrital da saúde indígena, a fim de somar com
a luta de movimento indígena.
144
Neste tópico busquei situar e discutir, em linhas gerais, como eram os
problemas e as dificuldades que os indígenas enfrentaram na Reserva de Caarapó,
bem como as acusações e as tentativas de esvaziamento da importância dos rezadores
na preservação dos recursos naturais, da cultura tradicional e do processo de cuidado
com os doentes. A trajetória de luta desses rezadores nos mostra o quanto foi difícil
sobreviver à colonização e aos desafios da Reserva que perduram até hoje. O avanço
de alguns problemas de saúde sobre a vida de vários indígenas se intensificou desde a
colonização, os quais foram explorados pelos brancos fazendeiros, pelo Estado
brasileiro, sistemas aniquiladores, donos de usina de cana e da exploração econômica
que eles sofrem. Os desrespeitos que eles sofrem aparecem apenas quando alguém
pesquisa e divulga, por exemplo, o estudo de Brand (1997). Em 2005 morreram
muitos, vítimas de suicídios em Te’yikue, então, alguns evangélicos indígenas
aproveitaram esse momento para atacar as funções e a importância dos
rezadores/ñanderu/xamãs pelas regiões da aldeia. Atualmente, os rezadores estão
tentando se firmar na luta e se adequar aos novos tempos com ferramentas necessárias
para vencer as novas e diversas situações de intolerância religiosa e aos desafios que a
sociedade karai (envolvente) lhes apresenta e, de alguma forma, tenta impor a eles. As
principais ferramentas dos rezadores são, atualmente, rezas, parcerias com as escolas
indígenas, com os professores indígenas, com as universidades, contando também
com os recursos de mídias digitais, etc.
145
Capítulo 3
Introdução das religiões evangélicas e neopentecostais
3.1 Missão Evangélica Caiuá
Desde 1950, quando o missionário da Missão Evangélica Caiuá, filiada à
Igreja Presbiteriana do Brasil, chegou à Reserva Indígena de Caarapó, os Guarani e
Kaiowá se encontravam em grande parte nas reservas ou trabalhando com os
empreiteiros fora do Estado, por exemplo, em Rondônia, Camapuã e na Estância
Lagunita (Paraguai), seja na extração ou na derrubada da mata em fazendas. O senhor
Floriano Escobar é um dos membros mais antigos da Missão Caiuá em Caarapó, ele
conta que os pais dele, sempre procuravam de várias formas se adequar à
evangelização, pois “eles acreditaram que só assim poderiam obter algum tipo de
ajuda e fortalecer suas vidas” (Floriano Escobar).
146
procura difundir sua doutrina religiosa aliando-se, principalmente, com a família
extensa da Reserva e com a liderança Capitão. “Nossa missão é sempre levar palavras
de Deus e ensinar a esse povo saber das coisas fora de sua realidade, assim
procuramos ser parceiros também” (Marluce Martins, integrante da gestão da Igreja
Missão da Te’yikue).
Floriano Escobar frequenta a igreja Missão Caiuá até hoje. Com 87 anos de
idade, caminha pela aldeia para ir ao culto, na quarta-feira e no domingo. É pai de 7
filhos. Desde que foi batizado pela instituição, segundo ele, nunca a abandonou. Como
sempre acontece na aldeia, essa igreja tornou-se, para alguns dos fiéis com os quais
dialoguei, uma espécie de “aprendizagem sobre a palavra de Deus”, o que faz dela
uma “igreja sem avivamento” como me disse Clementina, esposa de Floriano. Pela
sua fala, depois que se mudou para outra igreja pentecostal, “percebi que essa igreja
Missão Caiuá não tinha o dom de cura, de alegrar a gente, e o hino que cantávamos
era desanimador; então nesta igreja que estou, até aprendi ser crente avivada”.
Atualmente, ela é crente da igreja Deus é Amor, onde participa de culto quase todos
os dias da semana, inclusive “dos ensinamentos e vigília da noite”, como destacou.
Mas, para Escobar, a doutrina da Missão é muito mais “leve” que a da igreja
pentecostal, por isso, na opinião dele, consegue-se aprender o jeito certo de ser crente,
em referência às exigências quanto aos “usos e costumes”, que o tornam homem de
bem, sabendo de suas obrigações na sociedade/comunidade. Ele se refere à doutrina
ou ensinamento como “leve”, pois a Missão “ensina a gente a não buscar o que não
vai ser fácil carregar como, por exemplo, esse dom que eles falam, esses crentes da
igreja pentecostal. Então, eu consigo entender isso”.
A partir do ñemongeta, ele se lembrou dos nomes dos pastores que vieram
para a Reserva Indígena de Caarapó: Daniel, Hilario Martins, Joel, Benedito, entre
outros. Busquei perceber, por meio de sua fala, se havia semelhança de atuação dos
missionários que saíam da igreja para atuar em outra localidade. Os que entravam,
sempre procuravam saber como atuavam os missionários anteriores, só assim
conseguiam ter relacionamento mais agradável com os indígenas, sobretudo com
Capitão e com o chefe do posto, com intuito de lhes dar “liberdade” para fazerem
atividades religiosas e, ao mesmo tempo, facilitar a efetivação de assistência social nas
comunidades indígenas.
147
O fato de ter encontrado esses seguidores da igreja Missão nas próprias
casas, nas regiões onde moram, levou-me a estabelecer relações entre suas trajetórias
religiosas e as condições materiais e culturais nas quais as escolhas de novas
religiões cristãs foram ocorrendo. Para nós indígenas, a entrevista ocorre de outra
forma. Para isso, existe um termo muito utilizado por muitos indígenas que é
“ñemongeta”. Para conquistar a confiança da pessoa a ser entrevistada, o pesquisador
indígena vai lhe falar que quer conversar sobre tal história ou situação. Na ocasião,
aos entrevistados, iniciei o diálogo na minha língua da seguinte forma: Ajungo
ñañomongeta haguã upe ñañe’e͂ akue rehegua (“Eu vim aqui pra gente conversar
sobre aquilo que já havíamos conversado”).
Consegui entrevistar essas pessoas depois de três visitas; por isso sempre usei
“ñemongeta” para eles já terem em mente do que iria ser ser tratado: a observação
atenta de suas escolhas religiosas e dos templos religiosos neles localizados. As visitas
a alguns cultos realizados pela Missão foram possibilitando caracterizar, na ampla
diversidade, o perfil dessas pessoas e, por conseguinte, da igreja por elas frequentada.
62
Estas temporalidades dizem respeito ao processo de reservamento, à criação de Capitão, à
entrada de fazendeiros ao redor da reserva, à entrada da Missão Caiuá, à entrada das igrejas
evangélicas pentecostais e dos atuais pastores indígenas. Vale lembrar que essas temporalidades
que destaquei, não são as únicas, pois existem várias formas de se abordar, contudo isso
depende muito do tema da pesquisa.
148
A presença da missão protestante ocorreu na Reserva Indígena de Dourados a
aproximadamente 70 km da aldeia de Caarapó. A Missão Evangélica Presbiteriana,
mais conhecida como Missão Caiuá, instalou-se em 1928 na aldeia Jaguapiru, no ano
em que se concluía a demarcação das reservas. O pastor americano Albert Maxwel, da
Igreja Presbiteriana Americana, foi fundador da Missão Caiuá, o qual, quando visitou
a região Sul do então Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, percebeu “não haver
presença de igrejas entre os Guarani e os Kaiowá”. Decidiu, então, que era preciso
construir igreja para mostrar aos indígenas a “palavra de Deus”, por meio da Bíblia,
pois acreditava que seria uma “nova forma de seguir e servir o Tupã” (Deus). Assim
também aconteceu na atual Reserva Indígena de Caarapó. Vários estudos sobre essa
temática, como, por exemplo, de Gonçalves (2009) e Moraes (2016), revelam que,
para esse pastor, os indígenas precisavam de Jesus na vida e na alma. Como bem
sabemos, historicamente nós fomos considerados seres sem lei, sem fé, sem alma, sem
estado, conclusão tirada pelo fato de que na língua Tupi-Guarani antiga não havia os
sons do “F” (FÉ), do “L” (LEI), nem do “R” (REI – Estado). Assim, “seguiram-se os
trabalhos do reverendo Maxwell e dos demais envolvidos no projeto de missão aos
índios” (GONÇALVES, 2009, p. 149).
149
Fonte: O EXPOSITO CRISTÃO, 1928
150
maneira preconceituosa, que os índios precisam de Deus, por outro lado reforça a
imagem estereotipada, através da narrativa, que havia a respeito dos indígenas. Quem
lia esta notícia, na maioria das vezes, eram grupos religiosos que tinham aliança
política entre si, conforme o estudo de Gonçalves (2009).
151
O trabalho de catequese63 da igreja Presbiteriana realizado entre os Guarani e
os Kaiowá estende-se e se apoia em três suportes: ensino religioso, atendimento à
saúde e ensino escolar. A Missão de Caarapó tornou-se o único local disponível para a
prática religiosa ocidental. Convém ressaltar que, naquele momento, em meados de
1950, a população indígena enfrentava precárias condições na Reserva. Por isso, a
Missão tornou-se referência para os indígenas, representando o único local onde
encontravam assistência.
63
É um termo usado desde os primeiros tempos do cristianismo, é uma palavra grega, que quer
dizer “ensino dos primeiros princípios da doutrina cristã”.
(www.facebook.com>catequesepresbiteriana>posts). Na wikipédia (“catecismo”) também tem
explicações curtas muito boas. No latim também tem a palavra catechesis. Então, catequese é
diferente da leitura bíblica. Na catequese, a pessoa é instruída à viva voz, tem um instrutor que
ensina o evangelho, a pessoa é iniciada no evangelho. E não é só no catolicismo. Com a reforma
protestante a catequese continuou.
152
rezadores, ao mesmo tempo, nunca fiz parte do grupo deles. Portanto,
através disso cresci bem e envelheci. Nunca briguei com as pessoas,
tampouco feri alguém e bebi. Talvez para mim foi bom seguir a
Missão.
Em 1950, os Guarani e Kaiowá da Te’ýikue enfrentavam muitos problemas
em relação à saúde, às epidemias e à desnutrição, os quais provocaram inúmeras ações
por parte da Igreja Missão Caiuá. A ocupação dos karai (não indígena) também
resultou na rápida proliferação de doenças, como de tuberculose, DSTs, febre amarela,
sarampo, etc. Schaden (1974, p. 9), citado por muitos pesquisadores, afirma que, na
Reserva de Dourados, a população “tem diminuído consideravelmente, sobretudo em
conseqüência da tuberculose pulmonar e de outras doenças”. Então, a Missão Caiuá
procurou de várias formas ajudar os indígenas a vencer essa realidade complexa.
Conforme a conversa que tive com Lauriana Escobar, ela me falou que
poucas pessoas conseguiam um trabalho com o pastor da igreja, para isso precisava
ser dedicado à atividade religiosa, seguindo toda disciplina e, ao mesmo tempo,
conseguir atrair parentes para frequentar culto.
153
O missionário da Missão Caiuá que chegou em Te’yikue procurou, o mais
rápido possível, criar vínculo com parentes da liderança e com as demais parentelas
espalhadas pelas regiões. Para tanto realizava visitas às casas e reuniões, procurando
ganhar confiança, respeito, e os convidava a participar dos cultos.
155
Salvador que podia ajudar as pessoas se deixar de lado vida errante, se
amá-lo com toda força. Então, a gente sentia paz. Depois que ele ia
embora pensávamos muito, assim no dia de domingo ajuntávamos
pessoas e íamos a igreja. Essa igreja já ficava onde está agora.
Esse novo “estilo de vida” “era melhor pra gente, era mais bonito, porque a
gente se sentia valorizado, lá recebíamos oração, cantávamos juntos; [antes], quando a
gente rezava, ninguém valorizava, acho que por isso que muita gente aceitou 64
(mulher kaiowá, pentecostal). Portanto, alguns seguidores dessa instituição eram
considerados superiores às culturas tradicionais. Os planos, as ações dos missionários
estavam, assim, carregados de valores ocidentais excludentes.
64
Entrevista concedida a mim no dia 18/03/2019, por uma senhora kaiowá de 51 anos.
Atualmente ela frequenta uma igreja pentecostal. Fiz tradução da fala dela de Guarani para
Português. Na ocasião, pediu-me para que não colocasse seu nome, para não lhe comprometer.
156
ser humano só existe em sua integralidade. Os efeitos desta confusão
teológica podem ser quantificados na frequência com que os indígenas
mudam de posição religiosa. O que para a teologia
protestante/pentecostal pode significar um ‘desvio da fé’, para os
indígenas, pode simplesmente representar um reencontrar com a sua
espiritualidade. Daí, por incompreensão, a constante crítica sobre a
instabilidade da ‘conversão’ entre os indígenas. (MORAES, 2016, pp.
115-116).
Enquanto que os missionários da Missão Caiuá precisam da Bíblia para
mostrar o “caminho de Jesus” aos seus adeptos, por outro lado, os rezadores, através
desses desafios adquiriram sabedoria, rezas, revelações sobre a vida e os caminhos
que poderiam ser seguidos para resistirem. Portanto, os sábios indígenas continuaram
investindo no ritual coletivo libertador, com canto e dança.
Após alguns anos, a Missão Caiuá começa a ampliar sua rede. Em 1985, veio
o pastor Eugenio e a esposa dele, Marluce, que trabalhou como professora de séries
iniciais, também ajudando na área da saúde, entre outras atividades. Para fortalecer
ainda mais a evangelização presbiteriana, chamaram indígenas de outra aldeia, em
1995, para auxiliá-los na igreja e atrair seguidores. Um casal de indígenas - Renata
Castelão e Otoniel Ricardo - que foi para a Reserva, tinha formação de evangelistas e
curso de teologia. Floriano contextualizou da seguinte maneira sobre como eles
faziam o movimento religioso na aldeia:
Ore reta voi akue igrejape. Perõ heta ajuda ogueru oreve, ndohejai
voi movimento opa. Upevagui hente kuéra ijaty voi upepe. Heta avei
jovens kuéra oi akue, oporahéi akue hikuai tendondepe. Jeho hagua
igrejape oñehenoi henoi nte voi akue; upecha zomingo kue henyhe pe
igreja. A vese Eugenio ohenoi va’e pastor mombyrygua ogueru hagua
mensagem oreve, ivuto ñahendu iñe’e kuéra (Floriano Escobar, 2019).
(Tradução livre): Nós erámos muitos na igreja. Nessa época, tinha
muita ajuda oriundo de vários lugares e, por conseguinte, não deixava
o movimento se findar. Através disso, se ajudantava muita gente.
Tinha bastante jovem, cantava na frente do púlpito. Assim o convite
era feito pela estrada mesmo, chamava pessoa para participar do culto
no dia de domingo. Algumas vezes, pastor Eugenio chamava o pastor
de outro lugar para pregar a mensagem de Deus, era muito bom ouvir
a fala deles.
157
Mesmo que a Missão tentasse formar evangelistas indígenas na Reserva
Indígena de Caarapó, não teria sido possível, pois como afirma a Lauriana Escobar,
alguns fiéis tinham outro interesse em se apropriar desses saberes evangelicos – para
depois criarem a figura de “evangelista” que atenda os anseios de alguns grupos
evangelicos. Conforme o relato de Floriano Escobar, havia momentos em que a igreja
conseguia atrair muita gente, especialmente depois que se instalou na região onde está
até agora65. Atraía muitos visitantes e, com isso, vinha muitos recursos. Como um
indígena que mora na região Missão, de 43 anos, descreveu: “A missão não pregava
sobre benção, cura divina, não era avivado, não tinha corinho alegre, nem mesmo a
gente sentia Espírito Santo em nossa vida. Não sei porque se faz esse tipo de
pregação. Acho que por isso que perderam muitos crentes.”
65
Historicamente a região onde foi instalada a Missão Evangélica Caiuá se chamava de “Jaicha
Syry”, pois entre 1945 e 1950 essa região tinha muita paca e outros animais silvestres.
Entretanto, como as pacas se destacavam mais por haver um corrégo, então, as pessoas
chamaram o lugar de “corrégo da paca”. O nome da região mudou porque a igreja teve
destaque, por isso, passou a ser conhecida como região “Missão”.
66
Senhor é um dos nomes atribuídos a Deus ou a seu filho Jesus, conforme os preceitos cristãos.
Por esse motivo, por se tratar de um nome próprio, vem também em letra maiúscula.
158
Portanto, segundo Pereira (2004, p.17):
O êxito da Missão Caiuá pode ser considerado pequeno quando se
leva em conta apenas o baixo número de freqüentadores [sic] assíduos
nos cultos e dos seguidores fiéis da doutrina. Entretanto, ela se firma
como presença civilizadora e em espaço de sociabilidade entre índios
e missionários, proporcionando aos Kaiowá a oportunidade de
interagir e aprender sobre o comportamento dos brancos. É assim que
a maior parte dos Kaiowá que desempenham funções administrativas
como enfermeiros, capitães, chefes de posto da Funai, professores, etc.
passaram pela igreja e escola da Missão, incorporando uma série de
valores que de alguma forma se expressam em suas práticas. Por outro
lado, a familiaridade com os temas cristãos introduzidos pela Missão
pode ainda ter preparado a receptividade para a mensagem
pentecostal.
Enquanto o pastor desta instituição levava a “palavra de Jesus” até o
conhecimento indígena sem se preocupar muito em organizar a parentela com a
doutrina, o pentecostal ou neopentecostal já entrava com outro método para suprir de
vez a necessidade de vida, até mesmo para deixar as pessoas longe da sua vida
tradicional, que os “fiéis” indígenas denonimam de “transformação total”.
Vale destacar, portanto, que as crianças tinham contato com a vida religiosa
desde que frequentavam a escola, pois ouviam histórias sobre Jesus Cristo, cantavam
música religiosa, entre outras. Constantemente vivenciavam ambiente diferenciado
que oferecia possibilidade de mudança em relação ao ava reko. Por outro lado, havia
famílias que resistiam a essa modalidade educacional, pois acreditavam que
ocasionaria desorganização na vida e no jeito tradicional indígena. Mesmo com tanta
resistência, não foi possivel impedir a adesão e experiência dessa instituição religiosa.
159
menciono-os, apenas, através de algumas informações específicas que foram por eles
fornecidas. Procurei perceber também como esses líderes se sentem e lidam com a
realidade indígena, sobretudo no que diz respeito ao fortalecimento cultural. Para
tanto, entrevistei o primeiro líder evangélico da igreja Deus é Amor, Virginio Soares,
responsável por expandir a “conversão” na aldeia, e também Severo Martins,
representante da geração de crentes mais antigos da mesma igreja. Entrevistei Silvio
Paulo, representante da Igreja Ultimo Tempo, e Mariana Martins, representando a
figura da mulher líder evangélica, além de outras pessoas.
A igreja Último Tempo, desde que se instalou, foi realmente para consolidar
o que a igreja Deus é Amor havia pregado e difundido na mente das pessoas, isto
“nessa igreja a gente era índio pregando para outro índio, falávamos de demônio que
160
deixava o outro ir nesse caminho de escuridão, e tentávamos salvá-los desse mundo”
(Virginio Soares).
162
exemplo da pessoa abençoada por Deus espiritualmente, e também ganhava bênçãos
materiais e prosperidade, “estabelecendo uma relação direta entre o Espírito Santo” e
as ofertas e dízimos enquanto significados da fé.
Outra característica marcante que consegui observar, a partir das falas dos
crentes mais antigos da Reserva de Caarapó, foram os cultos voltados para processos
de cura, onde se testemunhavam as curas recebidas. Isso acontecia frequentemente
quando se instalou a Igreja Deus é Amor nesta Reserva, onde, além de pregar sobre
cura, também se pregava sobre “libertação”, ancorada constantemente na luta contra
as práticas xamânicas dos Guarani e Kaiowá, consideradas como práticas comandadas
por demônios. Um exemplo claro de igrejas neopentecostais na reserva de Caarapó,
em sua maioria, é o fato de não possuírem nenhuma finalidade teológica bem definida,
como crentes não indígenas, sendo, infelizmente, como me disse um rezador guarani,
apenas “intolerância, exclusão e sempre investindo que, como índio, não se deve mais
viver, pois estamos perdidos”. É importante, nas análises desse fenômeno marcante
nas aldeias, o reconhecimento de que, antes de mais nada, o neopentecostalismo é um
processo histórico ainda em experimento. Aliás, em seu período curto de existência,
tem promovido interesses indígenas em sua transformação, conforme o seu
deslocamento. Conforme o antropólogo e pesquisador do povo Guarani e Kaiowá:
Esta opção é motivada pelo desejo de proximidade com as divindades,
de poder contar com seu auxílio para o enfrentamento dos problemas
cotidianos. Na impossibilidade de buscar esta proximidade no sistema
tradicional, o Kaiowá recorre a práticas situadas fora de sua tradição,
mesmo que isto em alguma medida implique em deixar de ser kaiowá.
A conclusão a que parecem chegar é que é preferível abandonar o
sistema a estar longe das divindades. Assim, a questão que os kaiowá
pentecostais parecem se colocar é: se já não é possível estar próximo
das divindades como kaiowá, porque não buscar outro caminho?
(PEREIRA, 2004, p.25).
O desafio para se entender a realidade indígena exige cautela e um
distanciamento necessário, até porque distanciar-se de um lugar de vivência
proporciona várias reflexões. Isso é possível por meio da pesquisa, do estudo das
obras dos não indígenas, os quais já se esforçavam para entender a nossa vida e, ao
mesmo tempo, colocam-nos numa discussão mais ampla na Etno-história,
Antropologia e Sociologia. Sendo assim, “na impossibilidade de buscar esta
proximidade no sistema tradicional, o Kaiowá recorre a práticas situadas fora de sua
tradição, mesmo que isto em alguma medida implique em deixar de ser kaiowá”
(idem, 2004). Esta é a tentativa de um não índio - karai entender o porquê um kaiowá
163
busca fora do sistema tradicional o que ele poderia buscar dentro. Pereira não está
dizendo que não é possivel buscar dentro, talvez, esteja dizendo que não permitem, e
que na outra religião, o kaiowa encontra os mesmos elementos que ele tinha na sua
antiga religião. Ou seja, troca seis por meia duzia, só que com menos liberdade, mais
ônus. Ou seja, de qualquer modo os Guarani e Kaiowá buscam a mesma coisa sempre,
só que com mais sofrimento e mais perdas. E agora a opressão não vem mais de fora,
vem de dentro mesmo.
164
Desse modo, o objetivo da pesquisa sobre neopentecostalismo na Reserva
Indígena de Caarapó que aqui faço não é percebido como os brancos o percebem, ou
seja, que todos os crentes indígenas já não são mais indígenas. As opções de
abordagem querem considerar, com base nas vivências religiosas de sujeitos indígenas
concretos, os complexos processos de articulações entre sua crença67 tradicional
arruinada machucada e a experiência social em Reserva.
67
A dinâmica de crença que os indígenas experimentaram e experimentam, ao longo da
colonização, liga-se com o processo traumático pelo qual passaram, inclui-se violência
simbólica, cultural e perda territorial. Entretanto, através desses conjuntos de práticas e valores
que lhes foram atribuídas, se agregam não apenas para se submeterem a eles, como muitos
religiosos dominadores pensaram, todavia, também para fortalecer suas dinâmicas ativamente
combinadas com seus conhecimentos e valores, compondo, assim, as trajetórias de resistências
tradicionais e de seus saberes. Sendo assim, fica evidente o imaginário que se tem sobre a
crença indígena, atribuindo-lhe uma explicação sem compreender o processo histórico das
trajetórias religiosas de sujeitos indígenas com as instituições, e sempre se cometerá injustiça,
ao mesmo tempo se fortalecerá preconceito, racismo e violação dos seus direitos.
68
As religiões cristã, judaica e islâmica se colocam como superiores a qualquer religião, pois
creem em um Deus absoluto, maior e mais poderoso que qualquer outro deus que possa existir
no mundo físico e espiritual. Isso porque esse Deus é considerado nessas religiões como autor
do universo e de tudo o que nele há. Fica difícil competir com um Deus onipotente assim. Não
se tem conhecimento de nenhuma outra religião tradicional que sustente ou defenda a ideia de
um ser tão poderoso como os cristãos, os judeus e os mulçumanos creem. O caso dos cristãos é
ainda mais acentuado, pois o Deus deles encaminhou seu único filho para morrer pela
humanidade pecadora. Nenhum outro deus parece ter feito tamanho sacrifício por amor à
humanidade. Por isso, optei em colocar a palavra convencimento.
165
realidade a que se viram submetidos. Nas décadas de 1970 e 1980, os movimentos
indígenas e as organizações das lideranças tradicionais – conhecidos/as como ñanderu
e ñandesy - nasceram, se fortaleceram e cresceram. Nas décadas subsequentes,
constatou-se que eles conseguiram algumas conquistas, entre as quais estão as
retomadas das terras tradicionais Guaimbe Peri e Rancho Jacaré (1984)69 (Laguna
Carapã). Entretanto, essas conquistas não eliminaram as violações de direitos, as
desigualdades sociais, o racismo, os preconceitos, a intolerância religiosa, as
violências e o trabalho escravo, entre outras.
69
Para mais informação consultar a tese de doutorado de Cavalcante (2013), principalmente
tabelas elaboradas com informações detalhadas a partir da p. 100.
166
3.3 A primeira igreja pentecostal e neopentecostal na Reserva de Caarapó
A primeira igreja de caráter mais neopentecostal que entrou na Te’yikue foi “Deus é a
Verdade” com um pastor não índio, na década de 1980. Digo com característica
“mais” neopentecostal, pois, segundo Mariana Martins, o pastor falava de dons e da
possibilidade de os crentes indígenas falarem em línguas estranhas (glossolalia).
Naquela década, os dois irmãos conhecidos por Enrique Aquino e Davi Aquino
experimentaram aderir à igreja, pois eles tinham certeza de que, a partir da conversão
ao petencostalismo, conseguiriam salvação, vencer a pobreza, conhecer a verdade
(que seria a palavra Deus, segundo a explicação de alguns fiéis indígenas) e também
esquecer o processo traumático pelo que passaram. Os que frequentaram essa igreja
pentecostal foram majoritariamente seus familiares.
Tradução livre: Nessa época, eu era meio criança ainda, mas já ouvia
que a igreja havia se instalado no lugar onde a gente mora agora. A
igreja não conseguiu se fortalecer significativamente, até porque quase
ninguém conseguia entender como chegar nela e segui-la. A Missão
sabia mais como os indígenas deviam seguir o caminho de Deus.
Assim tinha bastante pessoa que sabia reza e sabedoria indígena.
Senõ, Avelino Quinhone, Jorge Paulo sabiam e faziam coisa boa e
mostravam a vida do indígena.
167
pastor branco ainda eram novidades. Diferentemente, a Missão Caiuá usava outra
estratégia para “convertê-los” à sua religião, pois o pastor paraguaio, que a instituição
trazia para a Te’yikue facilitava o trabalho de evangelização, já que falava a mesma
língua dos Guarani e Kaiowá. Ainda sobre a dificuldade por parte dos indígenas de
“entender” para “seguir o “caminho da igreja”, acontecia exatamente porque havia
orações e pregações diferentes da Missão: “Foi meio que assustador”, afirmou
Lauriana Escobar.
Nessa dinâmica social da reserva, quando não se tem parente ocupando cargo
de capitania, ao mesmo tempo não tendo maior número de parentes consanguíneos,
fica difícil usufruir do apoio das demais parentelas, principalmente do apoio do líder
Capitão. Por essa razão, essa família decidiu retornar onde estava concentrado a
maioria dos seus parentes, na região de Amambaí/MS, no ano de 1887.
168
3.4 Segunda igreja aliada com Capitão e cabeçante indígena da Usina
A primeira igreja “A Palavra de Cristo para o Brasil” foi construída com
ajuda do pastor não indígenaNelson, morador antigo da cidade de Caarapó. Na
ocasião, Silvio Paulo o chamou para ajudar na constituição da igreja e, assim, ajudar
os seus parentes indígenas, ao mesmo tempo trazer “esperança” aos adeptos da igreja.
Como os indígenas transitavam por muitas igrejas, naquela época, conforme o pastor
indígena Silvio, os seguidores do “caminho do Senhor” eram de, aproximadamente,
200 pessoas. Onde em:
1996, quando Silvio, Kaiowá, 42 anos, assume o posto de capitão.
Inicialmente, os cultos eram realizados por um pastor não-índio, mas,
em poucos meses, ele e sua mulher assumem a direção da igreja. A
Palavra de Cristo para o Brasil, em Caarapó, enfrenta uma grande
flutuação no número de adeptos, mudou de nome e de orientação mais
de uma vez, e hoje é uma igreja autônoma, designada Missionária da
Palavra. De acordo com Silvio, em Caarapó, quase uma centena de
fiéis regulares e mais de 400 irregulares frequentam a igreja.
(VIETTA, 2003, p. 121)
Assim, por acessar a gestão da aldeia e ao mesmo tempo em querer resolver
os problemas sociais, esse Capitão e pastor investiram na evangelização de seus
parentes indígenas; a igreja indígena foi construída com madeira e sapé da aldeia, ou
seja, com recursos próprios indígenas. O trabalho coletivo tradicional, que chamamos
de pucherõ, foi fundamental nesta atividade. Os homens trabalharam coletivamente:
enquanto uns arrancavam sapé, os demais cortavam madeira; assim o trabalho fluía
positivamente e a igreja ficava pronta, antes do prazo.
Nesse tempo de “virar crente”, o alvo principal era converter a parentela com
o maior número de pessoas, pois a parentela próxima enfrentava muitos e variados
problemas, dentre os quais estavam bebida alcoólica, violência, suicídio, tristeza (vy’a
re’y͂) e pobreza. A direção da igreja ficava ainda na mão do pastor indígena, como já
foi mencionado por Benites em sua pesquisa de mestrado (2014, p. 47). Esse pastor
ficava responsável por realizar cultos, orações, “revelações” e pelo ritual da Santa
Ceia. Neste sentido podemos destacar a conversão a esta igreja de algumas parentelas,
como Martins, Paulo e Marques. Ao mesmo tempo, o Capitão indígena amedrontava
as pessoas que saíam à noite, as quais tentavam, segundo ele, viver o teko vai e o teko
ahe (vida errante e impetuosa). Assim, as pessoas decidiram se converter com intuito
de mudar de vida.
Conforme Vietta:
169
Desde então, o número de diferentes denominações e de adeptos vem
se ampliando. A princípio, os cultos são dirigidos por pastores não-
índios, porém, gradativamente, os Kaiowá e Guarani se apropriam
desse espaço, e hoje, estão à frente da maioria dos templos. Contudo,
não é fácil precisar números, há muita mobilidade entre os
freqüentadores [sic], alguns já passaram por duas, três ou mais
denominações diferentes. Ao que parece, elas tiveram duas portas
importantes de entrada nas reservas: a participação de famílias nas
igrejas situadas na periferia das áreas e os cultos realizados nas usinas
de álcool, onde pastores índios e não-índios freqüentam[sic]
regularmente, fazendo muitos adeptos. (VIETTA, 2003, p. 120)
Conforme o estudo da Vietta (2003) e trazendo a contribuição de Weber
(1864-1920), consigo entender o conceito de “vocação” para trabalhar nas usinas de
álcool, entendido pelo representante da turma (cabeçante70), como sendo um
“chamado de Deus ou bênção” para exercer esse tipo de trabalho e apresentado aos
demais indígenas trabalhadores rurais como sendo “dignos” do moderno sistema
econômico capitalista. Essas duas portas importantes destacadas pela autora, os torna
fiéis a este trabalho “até a morte”, por isso dão muito valor a ele, mesmo sendo
desprezivel pelos não índios, pois os sistemas religiosos os convencem/ de que tudo
que fazem/faziam produz riqueza, como um dever moral.
70
Um cabeçante de turma de 45 pessoas é sempre escolhido pelo líder Capitão da aldeia e pelo
representante da usina de cana, por ser, geralmente, evangélico. Isso tinha e tem valor até hoje
para ser empregado da usina de álcool.
170
mais pessoas nas atividades religiosas e no trabalho. Nesse sentido, poucos ex-
cabeçantes ocupam papel de cortador de cana-de-açúcar, pois eles conseguem ocupar
cargos de Capitão, representante de Ong’s, chefe do posto, entre outros mais
importantes.
171
Antes da igreja Deus é Amor se firmar como “igreja mesmo” (era assim que
Virginio Soares se referia quando o indagavam sobre isso), havia um rezador bastante
respeitado, o Avelino Quinhone, responsável por resolver situações difíceis que as
pessoas vinham enfrentando. Segundo a esposa dele, Tereza, quando as pessoas da
região ficavam doentes, procuravam-no. Avelino mostrava-se coerente naquilo que
fazia e praticava e foi considerado um grande rezador, pois revelava tudo que a pessoa
tinha e sentia, tentando buscar remédio específico para curar as doenças. Mantinha o
jeito tradicional de participação da reza, da dança e do batismo da criança. Portanto,
consideravam-no um jekoha tee, porque esse rezador se destacava e mostrava
eficiência no que praticava, sendo assim, foi referência para as demais pessoas da
etnia guarani nhandéva.
172
Fonte: Arquivo pessoal da Mariana Martins, cedida ao autor no ano de 2018
Essa foto é de 1997, nela está minha família. Essa foi a primeira igreja
construída pelos fiéis indígenas na região Mbokaja. O pastor Zezinho os ajudou a se
organizarem nessa região. Conta Mariana Martins que o pastor vinha da cidade, de
bicicleta, às sextas-feiras e aos domingos, para fazer culto e outras atividades
religiosas. Dentro da igreja havia um altar, denominado por eles de “altar sagrado”,
onde havia banco de madeira. Usava-se lampião e “com muito esforço o pastor
conseguiu pra gente caixa de som que funcionava com bateria” (Martins, 2019).
Conforme o levantamento que fiz, 30 pessoas frequentavam o culto diariamente, entre
os quais: Luiza Rosa, Felipa, Vitoria, Getulio, Marcia, Severo, Marta, Lauriana,
Tereza Aquino, Aparicio, Roberto Soares, Nicolau, Mariana Martins, Virginio Soares,
Norivaldo Marques, Luisa, Pali (Valdemar), Brigida, Elza, Teodoro e Valdir. Nessa
época também já havia membro da igreja da região Savera, como foi o caso de Pali
(Valdemar), Severo e sua esposa Marta.
173
a perspectiva e a história dos Guarani e Kaiowá que, dias após dia, desde 1980,
adentram ou transitam por vários “ministérios” das igrejas pentecostais e
neopentecostais.
174
Por isso, naquelas décadas, era comum uma igreja ter muitos seguidores.
Conforme os meus levantamentos, a cada dia da semana, o número era entre 100 a
150 pessoas participando das reuniões, ou seja, de cultos.
Sendo assim, começou a se impor algumas regras aos indígenas para que
deixassem suas práticas tradicionais sem sentir “pressão”. O pastor não índio era sua
referência, segundo Severo Martins, pois “a gente respeita muito, né, a gente ouvia
eles falarem, e então buscamos palavra de Deus seguindo essa doutrina”.
175
povos indígenas com a religião dominadora e opressora é histórica. Enquanto
investiam no desaparecimento da figura do xamã/rezador, dos saberes indígenas, da
língua, dos rituais, por outro lado, os Guarani e Kaiowá criavam várias estratégias
para continuar sendo como tal e, com isso, procuravam romper a exclusão e a
invisibilização. Algumas táticas, na visão de Braz Ribeiro, representante do evangelho
cristão, que deram certo foi a adesão às igrejas neopentecostais.
176
No início tentava-se imitar o crente não índio, mas, como Silvio Paulo
percebeu que havia possibilidade de criar o “jeito indígena de ser crente”, começou
uma nova organização de igreja. Esse jeito indígena de ser crente implicava em deixar
de lado as práticas tradicionais, como, por exemplo, as rezas, não pedir mais ajuda aos
rezadores e tampouco frequentar suas casas. Essas regras foram ganhando força na
medida em que os responsáveis as aperfeiçoaram e, para isso, usavam a Bíblia. Por
fim, ainda faltou explorar a tentativa de alguns líderes evangélicos aproximar o
neopentecostalismo da tradição indígena. Como este é um trabalho de mestrado,
ficaria mais denso para discutir essa tentativa, sobretudo se colocasse dados de campo.
Portanto, pretendo explorar mais isso no doutorado.
177
ou de outra localidade, na ausência do pastor não índio responsável pela igreja Deus é
Amor, o primeiro dirigente conduzia o culto e fazia oração e organizava seus adeptos.
178
Conforme a conversa que tive com alguns idosos e idosas, a introdução de
violência, divisão de grupo, cachaça ocorreu devido à má gestão que alguns capitães
configuraram na Reserva. Por exemplo, na época da gestão de João Martins, houve
desmatamento, perseguição e alto índice de consumo da bebida alcoólica (cachaça).
Os desmatamento:
179
Assim esperava-se que a igreja tivesse número expressivo de adeptos
indígenas para receber o batismo pentecostal. O primeiro batismo aconteceu em 1995,
ocasião em que havia ajuda de custo para levar de carro as pessoas à represa da cidade
para o ritual. A partir daquele ano começou a ter pregação sobre a “oferta”
(contribuição econômica) e sobre o dízimo, pois os pastores não indígenas perceberam
que seria possível obter ajuda dos próprios indígenas.
É comum alguns grupos frequentarem a igreja pelo menos dois ou três meses
e depois se “desviarem” (se ausentarem), porque o sistema de vida que lhe foi
atribuído não fazia sentido naquele momento. Na conversa com o pastor Severo, ele
esclareceu que a primeira regra para seguir bem o “caminho de Deus” é “deixar a
vaidade do mundo de lado, esquecer de tudo”. Nesse sentido, como mencionei acima,
os grupos se sentiram forçados a abandonar alguns hábitos importantes para eles, entre
os quais estão: rezas, benzimentos, conhecimentos sobre remédios tradicionais, entre
outros vinculados ao teko ymaguare, teko marangatu ou teko katu.
180
oração” chamavam o pastor da cidade para pregar a “palavra de Deus”, e assim mais
pessoas aderiam à igreja.
Na conversa com Osvaldo Barbosa, ele destacou como tem analisado a sua
vida na Reserva e a dos seus colegas evangélicos:
É... acho que vou falar pra você em Português. Não sei se é bom, mas
vou falar. Meu Guarani é um pouco fraco. Não tenho estudo como
vocês. Eu ia sempre a usina, desde que sou guri, não tinha muita coisa
pra mim fazer aqui, a vida nossa era triste, então, a gente era
perseguido por ser assim. Na usina eu conseguia trabalhar, consegui
ganhar dinheiro...eu voltava na aldeia e gastava com besteira,
né...bebendo, arrumando confusão, pra mim não era vida. Eu me
converti já 18 anos, acho que 18 anos, não lembro muito bem, às
vezes desviei um pouco, sempre volto.
Conforme Osvaldo Barbosa, quando alguns homens indígenas não tinham
perspectiva de vida, sempre procuravam um meio de sobrevivência, neste caso, na
usina de cana. Eles conseguiam se fortalecer desde que o pastor/cabeçante conseguisse
convencê-los a “aceitar Jesus em suas vidas”, expressão usada pelos “crentes”
indígenas.
O centro da aldeia, onde reside a maioria das pessoas das famílias Paulo,
Benites, Marques, foi alvo principal das atividades de “conversão”. Como alguns
homens das demais regiões tinham contato com a igreja na usina, a expansão dos
181
“fiéis” foi em meados de 2000. A região Saverá ganhou destaque por ter sido
considerada a região mais violenta.
182
sempre responsável por iniciar a oração. Após isso, ele entrega a direção para outro
“obreiro”, que distribui tarefas para alguns novos “convertidos” e para outros
membros, que têm a oportunidade de narrar “testemunho”, “milagre” ou “livramento”.
183
“estratégias de conversão”: eles preferiram sair da ideia de que só na igreja poderiam
contar o “testemunho” e a sua história; passaram a “testemunhar” na roda de terere,
quando estão no meio do que eles chamam de “católicos”, ou quando estão entre
membros de outras igrejas da Reserva. A narrativa indígena na hora de “testemunhar”
segue, geralmente, quatro questões básicas, feitas pelos líderes evangélicos: “O que
fazia no mundo antes de se converter? O que te motivou a chegar à igreja? Quais são
as vaidades do mundo? Como está sua vida agora?” Por isso, na hora do culto, a
maioria dos líderes evangélicos já sabem como proceder.
72
Na linguística usa-se o verbo pregar para fixar alguma coisa e também no sentido de alardear,
passar ensinamentos, dizer palavras boas, passar mensagens, dar conselhos, fazer advertências,
pregar justiça, fazer sermão, divulgar o evangelho, e também no sentido negativo: pregar coisas
ruins, pregar o ódio, mentiras/fakenews, o preconceito, a exclusão. (
https://www.dicio.com.br/pregar/ ) Então, uma “pregação” pentecostal tem muito a ver com a
habilidade de usar as palavras com a finalidade de convencer (é o “apelo”) as pessoas a se
envolver pela mensagem evangélica, que é carregada pela força do tom da palavra do pregador.
Isso também é uma habilidade própria da oralidade dos Guarani e Kaiowá, para quem a palavra
é a própria alma que toma assento no corpo da pessoa, quando ela recebe seu nome, ao ser
batizada (ñemongarai). (Informações fornecidas pela professora Veronice Rossato).
184
igreja que tenham o “dom da revelação”. Geralmente o culto da Deus é Amor na
Reserva vai até 21 horas.
73
Expressão usada pelos indígenas pentecostais.
185
diferentes igrejas indígenas que surgiram ou das formas de seguir, que cada dia são
formadas, transformadas e multiplicadas na minha aldeia (che aikohape).
186
culto da semana. Na imagem abaixo está o maior templo da aldeia Reserva Indígena
de Caarapó e conta com um pastor indígena que coordena a sede e 15 pontos.
Foto 8: Maior Templo da Deus é Amor na Reserva de Caarapó
Fonte: https://web.facebook.com/ipdaaldeiateyikue.caarapo
187
Fonte: Mariana Martins
188
Geralmente, quando se conseguia converter um maior número de pessoas, no
caso, os “maluko kuéra”, a igreja passava a ser referência para a comunidade, e o
dirigente conseguia acessar várias informações sobre algumas famílias, “com
pregação e testemunho”. A expansão das igrejas pentecostais pelas regiões da aldeia
iniciou, de fato, em 2010. Já contava com 9 congregações de diferentes denominações.
Só na região Mbokaja, nesse mesmo ano, já havia 4 igrejas de diferentes nomes ou
ministérios e até 2017 já tinha 8 igrejas, sendo que uma é ponto da Deus é Amor. Cito
as igrejas Deus é Amor, Primeira Igreja de Deus, Pentecostal Missão de Deus,
Pentecostal Indígena de Jesus é o Caminho, Pentecostal Indígena de Jesus, Igreja
Batista, Deus a Verdade e Pentecostal de Avivamento.
Assim, até 2017, já havia 15 pontos da Deus é Amor. Somando com mais 17
igrejas, a Reserva de Caarapó já contava 32 denominações. Conforme a pesquisa de
Eliel Benites (2014, p.48), os representantes são:
Cacildo, dirigente da igreja Deus a Verdade; Alécio Ramires,
dirigente da igreja Pentecostal Indígena de Jesus é o Caminho;
Samuel Araújo de Oliveira, dirigente da igreja Monte Sinal de Cristo;
Teodoro Martins, dirigente da igreja Ministério da Palavra de Jesus;
Acário Cavanha, dirigente da igreja Assembleia Madureira; Cornélio
Soares, dirigente da igreja Primeira Igreja de Deus; Genésio Paulo,
dirigente da igreja Pentecostal Igreja de Jesus Cristo; Vanildo
Martins, dirigente da igreja Pentecostal Missão de Deus; Donizete
Ribeiro, dirigente da igreja Pentecostal Arca do Concerto; Silvio
Paulo, dirigente da igreja Pentecostal do Último Tempo; Ligô Sanche,
dirigente da Igreja Pentecostal Jesus é a Luz; Eugenio Martins, pastor
da igreja Presbiteriana Independente, da Missão Evangélica Caiua;
Roberto Soares, dirigente da igreja Pentecostal Indígena de Jesus;
Fabiano de Souza, dirigente da igreja Pentecostal Só o Senhor é Deus;
Mário Morais, dirigente da igreja Pentecostal Amor de Deus; e João
Ávalo, dirigente da igreja Pentecostal de Avivamento.
Como o tempo de pesquisa foi breve, não pude colocar todos os nomes das
igrejas da Reserva que se instalaram e depois se desvincularam, por conta da escolha
de algumas parentelas indígenas. Essa escolha ocorria quando a igreja tinha recurso
para oferecer aos membros da família do líder evangélico, e quando tinha força para
convencer as demais pessoas a se “converter” à igreja. Na explicação do líder
evangélico Cornelio Rosa, “esta força é quando o pastor branco consegue mostrar o
poder de Deus e se fortalecer e, com isso fortalece o líder da igreja”. Ele continuou
dizendo que “isso também ocorre quando se tem uma doutrina definida, então instalar
igreja por instalar sempre não dá certo porque, primeiramente, tem que ter esse
diálogo entre pastor karai e indígena”. Então, descrever todas que entraram na reserva
189
e saíram demandaria mais tempo. Sendo assim, descrevi apenas sobre algumas para
poder dar conta de discutir o tema.
190
A seguir reproduzo as localizações das igrejas das regiões Missão, Sãka Pytã
e Mbokaja.
Foto 10: Regiões Missão, Sãka Pytã e Mbokaja
191
Fonte: Google Earth
192
Fonte: Google Earth
193
Constituiu-se então, um trabalho integrado das instituições com a
participação da comunidade indígena, no processo de discussão da
construção do currículo da educação escolar indígena. Iniciaram-se
discussões intensas entre os anos de 1997 e 1998, por região da aldeia,
tais como Saverá, Ivu, Mbokaja, Missão e Ñandejára, coordenado
pelas lideranças com assessoria dos parceiros. Os parceiros ou
assessores, como eram chamados, ouviam e provocavam a
comunidade, faziam questionamentos que nos levavam a pensar sobre
a realidade e os valores tradicionais. (BENITES, 2014. p. 80)
Diferentemente de muitas aldeias indígenas, desde 1994 não se encontra em
Te’yikue o histórico de um Capitão que não seja evangélico ou que tenha se desviado
da igreja após essa função. É muito comum esse líder ter seu parente ou seu aliado
atuando na escola, seja como professor, coordenador, ou ocupando algumas funções
na escola indígena.
194
responsáveis gostariam que a gente ouvisse e aprendesse. (Fala de um
ex Capitão kaiowá que foi eleito com 500 votos).
Assim, os líderes evangélicos começaram a entender mais sobre a
importância de ocuparem o espaço político da aldeia, e também perceberam que só
assim poderiam dar mais visibilidade ao seu papel:
Para mostrar aos defensores das questões indígenas a nossa existência,
afinal, durante muitos anos, nós não aparecemos na história. Enquanto
que surgiam vários representantes, nós evangélicos ficávamos sempre
para trás, parece que ninguém queria ligar para nossa existência.
Depois que ficamos sabendo de que a gente não deveria apenas salvar
a alma para Deus, mas sim ocupar também o lugar que a gente tinha
medo de ocupar, mas percebemos que só assim também poderemos
nos fortalecer. (Representante evangélica da Te’yikue, Kaiowá).
As igrejas pentecostais possuem força para realização de cultos, para cobrar
dízimos, punir seus membros, criar suas regras diferenciadas das demais e para
espalhar pequenos templos nas regiões em que até então não havia igrejas, desde que
seus representantes ocupem gestão de capitania na Reserva. O interesse dos “crentes”
e de seus líderes pelo cargo de capitania está ligado diretamente ao fortalecimento do
seu grupo e para ocupar o lugar de fala, como aponta a fala do reprentante
entrevistado acima.
195
Conforme este ex-Capitão da aldeia e atual líder de sua igreja, o Capitão
indígena que não se aproximar de rezadores ou procurá-los para entender sobre sua
subjetividade não consegue se fortalecer fora de sua aldeia, por exemplo na reunião
Aty Guasu, no Encontro de Professores Guarani e Kaiowá, no Encontro dos
Acadêmicos Indígenas, no MPF, entre outros espaços. Até porque nessas reuniões e
encontros de luta, geralmente participam lideranças religiosas (rezadores e rezadoras),
que cobram muito os participantes a rezarem e dançarem com eles. Nesse espaço,
quem inicia as atividades sempre são os rezadores e as rezadoras. Deste modo, os
rezadores e as rezadoras da Te’yikue mostraram que não foram dominados
completamente, pois, segundo a ñandesy Leona, sabiam que não demoraria para
ocuparem de novo seus espaços, sobretudo na Reserva.
196
qualquer lugar, o que importa é o respeito que temos pelo nosso Deus,
mostrando esse respeito, eu acho que já suficiente. Quero dizer com
isso que não se pode beber bebida alcoolica, muito menos praticar
algo que não seja agrado de Deus. (Rosenildo Isnard in memoriam)
O que é articulado pelos líderes pentecostais como estratégias de expansão e
poder de atração da igreja é entendido por um rezador kaiowá:
Quando a gente é acionada pela escola, pelo movimento indígena, seja
para ir na retomada, nós nunca nos negamos em comparecer nesses
lugares, até porque a gente sabe que eles dependem de nós e precisam.
Nosso papel é sempre mostrar da nossa existência como indígena
Kaiowá e Guarani, mostrando através da nossa reza, da nossa
sabedoria, da nossa língua, dança. Então, a gente não obriga ninguém
e muito menos amedrontando as pessoas como esse pentecostais
fazem. Hoje eles ocupam a função de capitania, participam da reunião,
mesmo assim nunca terão a força que nós rezadores temos, afinal, o
movimento indígena inicia com a gente, por isso, eles terão que
aprender com a gente, se por porventura quiser aprender realmente a
nossa verdadeira sabedoria.
Portanto, os rezadores da Te’yikue sempre são convidados para participarem
de várias reuniões, de formação de professores indígenas, nas retomadas e quando tem
movimento indígena fora da aldeia. Dessa forma, eles ocupam o lugar de destaque em
qualquer atividade escolar na comunidade Te’yikue. Nesse momento eles procuram
passar os seus conhecimentos aos professores, ensinando-lhes sobre a filosofia kaiowá
e guarani, poesia, língua, reza, dança, educação indígena, ideias inovadoras que os
ajudarão a planejar o futuro de jovem indígena. Vale lembrar também que, algumas
vezes, os rezadores são convidados a participar de atividades culturais no CRAS e no
posto de saúde da Reserva, onde eles falam sobre a saúde indígena, dos desafios da
comunidade, dos jovens, da educação indígena e para mostrar suas rezas e danças.
197
Portanto, o relacionamento de respeito e fortalecimento, conforme essa
pesquisa, está longe de chegar no ideal, pois os evangélicos priorizam mais a
expansão da “conversão”, da igreja, do número de adeptos e, agora, o poder de seus
líderes. Enquanto isso, os rezadores procuram se fortalecer defendendo o
fortalecimento da cultura ancestral, dos saberes indígena, das rezas e do sujeito
indígena. Para isso procuram se aliar com a liderança Capitão, mas não têm o apoio
necessário, pois, na maioria das vezes, esta autoridade é “crente” ou líder evangélico;
sendo assim, se preocupa mais em atender a demanda dos seus “irmãos de fé”. Neste
caso permanece a diversidade de problemas que os pesquisadores não índios e
indígenas, o gestor da escola e os professores indígenas identificam no que diz
respeito à intolerância religiosa e à agressão que os rezadores e as rezadoras sofrem há
muitos anos.
198
CONCLUSÃO
Procurei no texto evidenciar as diferentes formas de transformação dos
papeis das lideranças tradicionais desde o período da acomodação na Reserva de
Caarapó, a partir da pesquisa, da convivência cotidiana e das experiências de um
indígena-historiador. Também apoiando-me, por vezes, em aportes teóricos
necessários à construção do presente texto.
Como já disse, meu olhar indígena, ao transitar entre vários ore, não poderia
deixar de fazê-lo, sobretudo, no meio dos ñanderu e ñandesy – rezadores -, por
possibilitar compreender alteridades de experiências religiosas, pois estes, por um
lado, são pessoas vítimas constantes de humilhações, acusações ou críticas
infundadas; por outro lado, redimensionam e fortalecem as rezas e saberes
tradicionais, despertam e fortalecem os guerreiros, assim como aconteceu comigo,
conforme abordei no primeiro capítulo. Os primeiros anos da minha primeira infância
vivi mergulhado no ambiente familiar onde todos viviam de acordo com o teko
ymaguarẽ (modo de vida ancestral). Mesmo depois de a maioria da família ter aderido
ao pentecostalismo, e eu junto, o contato recorrente com rezadores, rezadoras, anciões
e anciãs da própria família, e também com várias pessoas de outras regiões da
Reserva, foram, aos poucos, desvelando a dinâmica da minha trajetória, identidade,
subjetividade, alteridade e do processo de diversificação do “eu”, no meio de vários
ore.
199
permanentemente, principalmente no que se refere às suas práticas religiosas e
territoriais. A intimidação e o medo que foram se estabelecendo em seu espaço social
ocorreram através de várias imposições da sociedade dominante ocidental, pois esta
“percebeu que esse povo precisava de Deus na vida para superar a pobreza e o
problema social”, justificando a violação dos direitos. Concomitantemente, investia-se
em convencer o povo a deixar de ser indígena, porque ser “índio” simbolizava a
incapacidade, a desconfiança e o atraso. “Era, e ainda é, a famosa política
integracionista, oficial no Brasil até 1988, que a Constituição Federal aboliu,
garantindo o direito à plena autonomia de identidades, culturas, línguas, tradições e às
terras que tradicionalmente ocupam” (ROSSATO, 2020, informação oral).
Entretanto, os Guarani e Kaiowá, com habilidades milenares, perceberam que, através
da instituição religiosa poderiam superar algumas adversidades. Sendo assim, a
instituição religiosa Missão Caiuá, teve espaço na Reserva de Caarapó - Te’yikue, na
década de 1950 e, a partir do ano de 1980, as igrejas pentecostais e neopentecostais.
Apoiando-me nas fontes das pesquisas dos indígenas Eliel Benites (2014) e
Lídio Cavanha Ramires (2016), procurei entender mais a realidade existente
atualmente na Reserva de Caarapó. É produto de um longo processo de exclusão,
intervenções e aniquilação das populações indígenas de Caarapó, promovido pela
sociedade não índia. Sobretudo focado em eventos que se deram a partir do final da
década de 1980, busquei averiguar, partindo da perspectiva dos indígenas, os
principais fatores que despertaram interesse das missões religiosas junto à Reserva de
Caarapó.
200
realizadas, inclusive, fora do espaço da Reserva, transpondo seus limites. Assim,
ganham visibilidade, acessam direitos e recursos.
Por outro lado, a igreja continua, como dizem, “servindo” para muita coisa,
auxiliando a organizar a vida pessoal e a produção de coletivos em meio a grande
quantidade de problemas de diversas ordens criados na reserva. Por isso é comum ver
um indígena, em algum momento, sendo pentecostal e, de repente, tornando-se um
líder político, mas vestindo cocar, rezando e procurando um rezador para resolver seus
dilemas. Mas há vários evangélicos indígenas que preferem seguir exclusivamente a
igreja e investir cada vez mais na vida religiosa pentecostal. Estas pessoas geralmente
sofreram violências físicas e simbólicas. Como me contou uma ex-rezadora de 50
anos, “obreira” da igreja Deus é Amor, entre 1993 e 2003 houve muita acusação de
feitiçaria e, por este motivo ela foi intimidada várias vezes para comparecer na
presença de Capitão a fim de exclarecer a acusação. Isso acontecia quando sua família
entrava em conflito com outra família de outra região, e havia morte por doença,
acidente, esfaqueamento ou qualquer outra forma. Mas ela era acusada de feitiçaria.
Tal acusação poderia ter levado a rezadora a sofrer violência física ou mesmo a pena
de morte, como veicularam, recentemente, vários vídeos produzidos pelos próprios
indígenas . Acusações e violências em várias terras guarani e kaiowá têm sido tão
frequentes que o MPF tem procurado manter diálogo com lideranças indígenas e
pesquisadores para encontrar formas de superação desses conflitos.
201
Por outro lado, as igrejas foram diminuindo o espaço dos rezadores da Reserva de
Caarapó, pois quando se “converte um sujeito que tinha vida errante”, logo já se
prega que a cultura e a religião indígena não tem mais força, para mudar ou
“transformar” a vida da pessoa. Nesse caso, o rezador que convive com a família se
sente isolado, intimidado e sem espaço para visibilizar sua prática tradicional.
Observa-se que cada igreja que surgiu pertence a uma família. Geralmente,
essa família procura um “preceito da Biblia evangélica” que possa manter os
problemas equilibrados, uma vez que, na Reserva, há vários lája (jeito de ser), por isso
se procura o jeito certo de “converter”; por exemplo, os jovens viciados em drogas, os
anciões que tentam resistir à conversão. Na maioria das vezes, essa igreja conta com
um líder que havia sido excluído de outra igreja. Ele vem e fortalece o vínculo com
essa parentela, todavia procura sempre atrair seus parentes para sua nova igreja.
Parentesco e política, do modo como os Kaiowá e Guarani os praticam, estão
intimamente vinculados ao movimento de expansão das igrejas, fenômeno que ainda
requer pesquisa mais aprofundada.
203
Fontes
1. Silvio Paulo.
2. Norivaldo Marques.
3. Virginio Soares (desviado).
4. Cacildo.
5. Severo Martins.
6. Alécio Ramires
7. Biqui.
8. Samuel de Araújo de Oliveira.
9. Roberto Soares.
10. Teodoro Martins.
11. Geraldo’i.
12. Cornelio Rosa e Isaias Rosa.
13. Hipolito Martins.
14. Arcario Cavanha.
15. Daniel.
16. Genesio Paulo.
17. Donizete Ribeiro.
18. Fabiano de Souza.
19. Claudemir.
20. Braz Ribeiro.
21. Zezinho.
22. Valdemar.
23. Augusto.
24. João.
25. Aquino.
26. Guilherme.
27. Anisio.
28. Jobertinho.
29. Nardo.
30. Amelio.
31. Avelino Ramires.
32. Pedro Paulo Martins.
33. Jose Lescano.
34. Tino.
35. Quintana.
36. Elzo.
37. Daniel’i.
I Entrevistas orais com crentes e pastores indígenas e não indígenas
Referências
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e construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýikue. 2014. 130f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS,
2014.
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2004.
205
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Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, 1993.
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Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, [2007].
208
<http://www.tellus.ucdb.br/index.php/tellus/article/view/ 57/67>. Acesso em: 25 de
agosto. 2018.
209
ANEXOS
ANEXO A – MANIFESTAÇÃO RELIGIOSA PELA LIBERDADE RELIGIOSA NA
ALDEIA – VIA FACEBOOK 2020
Nos últimos dias lemos, assistimos e ouvimos nos meios de comunicação, a polêmica da
atuação das igrejas evangélicas na aldeia, que estaria a vilipendiar (Desprezo,
menoscabo; aviltamento), a cultura indígena.
A liberdade religiosa é um dos direitos humanos fundamentais. Proteger essa liberdade
significa proteger algo comum a todos os seres humanos: a santidade da consciência em
termos de verdade final, cultos, rituais e códigos de comportamento. Este direito não foi
criado pelos governos, mas existe desde antes dos governos e das sociedades. "Todos os
homens têm direito à dignidade e à consciência".
Esta liberdade é o direito de todo ser humano, toda religião ou cultura, de seguir as ordens
da sua consciência em termos de verdade fundamental, culto e moralidade, dentro dos limites
estabelecidos pelas normas legais (tais como limites legais para proteger a saúde ou
segurança pública). Isso inclui o direito de, seja individualmente ou em comunidade com os
outros, em público ou de forma privada, manifestar uma religião ou crença em culto,
observação, prática e ensinamento. Prescreve o artigo 18 da Convenção Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos.
Nenhum Governo que deixe de proteger a liberdade de religião e a consciência estará
propenso a valorizar os outros direitos fundamentais, tais como a liberdade contra prisão
arbitrária ou tortura.
A Constituição Federal consagra como direito fundamental a liberdade de religião,
prescrevendo que o Brasil é um país laico. o Estado deve se preocupar em proporcionar a
seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, proscrevendo a intolerância e o
fanatismo. Deve existir uma divisão muito acentuada entre o Estado e a Igreja (religiões em
geral), não podendo existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar
proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões.
A Constituição Federal, no artigo 5º, VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e
de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e as suas liturgias. O inciso VII afirma ser assegurado, nos
termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de
internação coletiva. O inciso VII do artigo 5º, estipula que ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar
para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei.
Por outro lado, é necessário sobre este mesmo prisma de liberdade à expressão de credo,
analisar a proteção às crenças indigenas assegurados no artigo 231 da Constituição Federal,
e limitar a atuação de verdadeira seitas que se instalaram nas aldeias notadamente na
jaguapirú e bororó, e está mais do que na hora de o MPF, movido pela sua função
institucional firmar um TAC (termo de Ajustamento de Conduta), com as igrejas que objetiva
evangelizar os índios, já que para este intento, a liberdade religiosa encontra limites legais
dentro do Estado Democrático de Direito, o que vem sendo ignorado por certas corporações
religiosas.
Não se pode, contudo, fazer de uma rixa entre membros da comunidade, a exemplo do que
ocorreu na Aldeia Panambizinho um cavalo de batalha, onde alguns "lideres" movidos por
seus instrutores pseudos "especialistas" em índios, no caso de declaração dada por um
"cacique" da Aldeia Jaguapirú, de que o Evangelho estaria atrapalhando a Cultura Indígena,
não prospera posto que ele mesmo é um exemplo vivo, já que o mesmo é missionário formado
e por muitos anos viveu às expensas de uma organização religiosa.
Um exemplo vivo de que o Evangelho pode inclusive ajundar índole indígena, e, conviver
210
lado a lado de qualquer Cultura é a pessoa do maior Líder Guarani Marçal de Souza, que
era missionário Evangélico formado veja abaixo a citação de Benedito Prézia em "a voz que
não pode ser esquecida".
"...Era um pregador evangélico. Vendo suas capacidades, os dirigentes da missão o enviaram
para o Instituto Bíblico Dr. Eduardo Lanide, em Patrocínio, MG, onde permaneceu por três
anos. Ali, cresceu em ardor e eloqüência, encontrando no canto a maneira de dar vazão à sua
índole religiosa. Chegou a gravar um disco, coisa rara na época. Voltando para Dourados,
passou a visitar as aldeias. Nos cultos, sempre lia a Bíblia em guarani, tornando-se o grande
intérprete dos pastores. Diante do quadro de miséria e de exploração, Marçal procurava
dirigir mensagens de esperança, com teor evangélico, no qual a resignação ao mundo
terrestre mal e a busca da perfeição pessoal pereciam ser as únicas saídas."
Pode parecer, a primeira vista, contraditório, que um defensor da liberdade religiosa se
incline, aparentemente, pela liberdade de expressão Cultural em detrimento da própria
liberdade religiosa. Todavia, essa opção não foi tomada em nome da irreligião ou, muito
menos, contra a liberdade religiosa. Ocorre que, sem liberdade de expressão Cultural não há
liberdade religiosa na Aldeia. A censura prévia ou, até mesmo judicial, tem um efeito
deletério sobre o livre pensamento e o pluralismo religioso, por isso propomos um TAC
(Termo de Ajustamento de Conduta), para que os maus evangelistas não venham macular os
bons.
Boa noite, a gente não gostaria assim de usar o termo intolerância religiosa, mas a gente
quer usar o termo violência porque a violência foi uma palavra muito usada na Aty Guassu. E
aqui [aponta para imagem que está projetada] é a Dona Leonarda ela é Kaiowá, ela tem 80
anos, ela é de Taquapiri. Dona Leonarda, nós como Kunhangue Aty Guassu tivemos
acompanhando a situação. Dona Leonarda foi torturada recentemente. Ela e sua filha
Elenilsa [?] de 39 anos e a gente sabe que toda essa violência vem de um processo histórico
de dizimação do nosso povo secular. Nós respeitamos, e isso foi muito dito na Aty Guassu
hoje, nós respeitamos muito cada religião, mas hoje quem está sendo atacado são as
Nhandecy e são os Nhanderu. E como eles estão sendo atacados e por quem? Dentro da
aldeia há uma perseguição muito grande de lideranças ... captania. A Dona Leonarda foi
torturada por sete homens e uma mulher. Ela apanhou de correntes. A Dona Leonarda ela
tem vários hematomas no corpo, a sua filha ela teve o cabelo cortado por faca. O cabelo
dela foi cortado bem na nuca por faca. Tentaram quebrar as pernas dela. A filha dela teve o
corpo perfurado por ponta de faca. Ela tem uma marca bem enorme no meio das costas. A
Dona Leonarda relatou que teve uma tentativa de jogar gasolina no corpo dela e ela disse
que não é a primeira vez. “Não é a primeira vez”. E a gente tem as Nhandecy que estão nos
acompanhando que já passaram pela mesma situação. E quem são as pessoas que estão
fazendo isso dentro da aldeia? Esse discurso de ódio dizimado da igreja, o povo da
pentecostal Deus é Amor. E tem sido um discurso muito forte de demonização do nosso
modo de ser, da nossa cultura, da nossa língua, da nossa oração. Dona Leonarda foi
acusada do que a igreja chama de feiticeira. Seu Nhanderu Ataná [?], que é um dos
Nhanderu mais velhos dos Gaurani Kaiowá, ele disse que a palavra feitiço e a palavra
[inaudível] é uma palavra que vem da igreja, que nós povo Guarani Kaiowá a gente tem que
usar o termo mohã [não sei como escreve], porque ele disse que toda essa cultura é uma falta
de conhecimento dessa geração de hoje também que já cresce com esse discurso dizimador da
igreja que estão dentro das aldeias. A Dona Leonarda ela foi pressionada, e aí tem o vídeo de
4 min que circula nas redes sociais, não sei se vocês já tiveram acesso, onde ela é obrigada a
dizer pra comunidade, e pras pessoas que estavam lá de outras aldeias, inclusive, forma
211
pessoas de outras aldeias na aldeia dela pra ela dizer sobre o feitiço. Nós fizemos os
levantamentos e a pessoa, a suposta vítima que acusa Dona Leonarda de ter feito mohã [não
sei como se escreve] pra ela dá com diabete e é uma diabete muito avançada. E a pessoa por
nome de Mário, se recusa a ter um tratamento com a SESAI e essa pessoa insiste que foi a
Dona Leonarda que fez o mal pra essa pessoa. Então, a Dona Leonarda, inclusive nos passou
o nome das pessoas, depois... eu não quero expor ninguém, mas depois eu gostaria de passar
isso pro Ministério Público. Ela passou o nome das pessoas que torturou. E ela foi expulsa de
Taquapiri. São 11 pessoas [que foram expulsas com ela], o mais novo é um bebe, que tá com
30 dias, o mais velho tá com 92 anos, que é o seu Alcebias. O Seu Alecebias contou pra
gente que o xirú dele, o maracá dele, [outros dois objetos que não entendi] foram
queimados, foram todos queimados por essas pessoas que acusam ela de ter feito um mohã
[não sei como se escreve]. A Dona Leonarda disse e insistiu isso insistentemente, que se eles
acharem ela, ela será morta. Ela foi muito clara no seu depoimento pra nós que ela está
escondida e que ela não tem proteção nenhuma e que a qualquer momento ela pode ser
morta. Então o que eu gostaria de colocar aqui, Marco Antônio [procurador], inclusive a
segurança dessas pessoas que vão depor, porque pra nós é mais fácil ouvi-las, mas elas
terão que voltar pro seus tekohas e é lá que a violência acontece insistentemente e é muito
grave isso. A gente teve na.... a gente ouviu na Aty Guassu vários relatos de tortura, de
violência, contra anciões e anciãs e grande parte da tortura são contra mulheres anciãs que
não saem de suas aldeias, não costumam sair de suas aldeias e não tem proteção nenhuma.
Dona Leonarda disse pra gente que inclusive a SESAI, daí eu quero chamar a atenção do
Ministério Público pra que também chame a SESAI pra que nos ouça, porque a SESAI tem
criminalizado muito o trabalho das parteiras, das Nhandecy, é uma nova gestão que está
entrando na aldeia que diz que, entre aspas ‘tivemos um avanço, hoje todos os partos são
feitos em hospitais’. Esse é o discurso dessa gestão que entrou agora, sendo que nós estamos
aqui com três parteiras que ainda realizam partos na aldeia e são criminalizadas e inclusive
ameaçadas se acontecer algo com a criança elas podem ir presas. Esse é o discurso da
SESAI. Inclusive as pessoas tem procurado as Nhandecy pra fazer alguns [palavra indígena],
que é o remédio tradicional, que é o chá, a massagem, as ervas medicinais, mas a SESAI fala
que aquele remédio tá deixando a pessoa mais doente, então a SESAI tem ignorado bastante
o trabalho das Nhandecy, tá tendo uma perseguição muito forte. A gente está com construção
de duas casas de medicina tradicional em Amambai que antes mesmo de ficarem prontas já
estão sendo perseguidas, então, assim o que eu quero deixar aqui registrado é como a gente
vai fazer com a segurança dessas pessoas, dessas Nhandecy, Nhanderu, dessas mulheres que
estão sendo torturadas e impedidas de ser o que nós somos, um povo com uma cultura, uma
língua, uma tradição. [continua mais alguns minutos]
212
ANEXO C – ÑEPORANDU ÑEMONGUETAHA (QUESTIONÁRIOS DAS
CONVERSAS/PESQUISAS COM 4 REZADORES SOBRE RESERVA INDÍGENA),
TE’YIKUE, CAARAPÓ/MS
1) Heta mba’ema ojehu jaiko harupi. Heta mba’e ohasa ohovo ha upe rupi ou
va’e mba’e ndaha’éiva ñande mba’e, upecha há’esse hina karai ‘jerovia’, upecha
pende pytyvõ ojeheja ñemoihã haícha oiva mba’e yvyra guype. Mba’echa pee
pehecha reserva yma rupi ha ko’anga? Ne mandu’ahacha mba’e ikatune
remombe’u ñañomongueta hagua?
2) Reserva indígena ogueru mba’e porã tapa ogueru mba’e vai? Jaikuaarõ hina,
ñande hina jajeguerupa akue arupi ha upecha ñatantea ñamoingove jevy ava
reko. Ojejeguerupa ronguare mba’echapa umi tekove ojapo oikove hagua?
3) Mba’echapa oiko pehengue kuéra ndaipori ete ronguare hente ko reserva
Te’yikuepe? Mba’epa nde jeuperõ ova ou araka’e ava reko? Jaikuaarõ ñande
reko ha’e oi vointe ovavo. Ko ambueve ro’y (año) hina ñande reko ukatune
ndaha’e veima ko’angacha. Upevare ikatune ñañomongueta.
4) Posto indígena Ocria ronguare mba’e ogueru araka’e? Umi chefe ouva
mba’epeve ogueru pytyvõ ko’ape? Mba’echapa araka’e iñemongueta pee ndive?
5) Mba’echa oorganiza ñemba’apo ha umi mba’e ko’arupi? Ha’ese hina umi
lomitã kuéra rehe, ñemongueta ka’aguy rehegua, yvy, ñemity. Pende jeuperõ
ojepy’a pyiko araka’e tenonderãre?
6) Mba’epa pejene umi ka’anguy jeityre ha ojejapo ronguare lerare (roça criada
pelo SPI)? Umi mba’e ogueru?
7) Ka’aguy jeitype pemba’apo ronguare ko’arupi mba’echa peñeñandu? Ha upéi
ojeitypa rire mba’epa hemby?
8) Umi mba’apo fazenda’i rupiko pene pytyvõ? Mba’e mba’apoko pejapo?
9) Ojepaga jepe peeme? Mba’epa oñeme’e araka’e?
10) Mba’e ikatune pejeve ojehuvare ko reservape pe 80 guive?
11) Mba’epa igreja kuéra ogueru ñande jaiko hape?
12) Missão Caiuá iko moõpete voi oike araka’e?
13) Mba’echa hera pe pastor?
14) Missão ombyai ava jeroviapy?
15) Ha’e rupive pya’eve oike igreja pentecostal?
16) Mba’erepa pende importância michimba oho ko árape ko tekohape?
213
17) Mba’epe pejavy upeva ojehu hagua?
18) Escola ha igreja ha pee mba’echa peñomongueta arã?
214
ANEXO D – QUESTIONÁRIOS DA PESQUISA COM A EQUIPE DA SAÚDE
INDÍGENA TE’YIKUE, CAARAPÓ/MS
215
ANEXO E – QUESTIONÁRIOS QUE NORTERAM CONVERSA COM A
AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE INDÍGENA, TE’YIKUE, CAARAPÓ/MS
216
ANEXO F – QUESTIONÁRIOS LIVRES PARA CONVERSAR COM ALGUNS
PASTORES INDÍGENAS
217
ANEXO H – PRIMEIRA ESCOLA DA REGIÃO MBOKAJA FEITA DE SAPÉ
Fonte: Acervo pessoal do professor Guarani Alécio Soares Martins, cedida ao autor no mês de
julho de 2019.
218
ANEXO I – PRIMEIRA APRESENTAÇÃO CULTURAL DOS GUARANI NA CIDADE
DE CAARAPÓ
Fonte: Acervo pessoal do professor Guarani Alécio Soares Martins, cedida ao autor no mês de
julho de 2019.
219
ANEXO J – OS INDÍGENAS GUARANI E KAIOWÁ NA IGREJA MISSÃO CAIUÁ,
CAARAPÓ/MS.
Fonte: Acervo pessoal do professor Guarani Alécio Soares Martins, cedida ao autor no mês de
julho de 2019.
220
Números de vizualizações do vídeo sobre a intolerância religiosa nas aldeias, 2019.
221
Página oficial da Igreja Pentecostal Deus da Reserva de Caarapó
Fonte: https://jornalistaslivres.org/casa-de-reza-kaiowa-e-queimada-em-
dourados/
222
Na madrugada dessa segunda-feira, 8, foi incendiada a Casa de Reza, Ongusu, do Ñanderu
Getúlio Juca e da Ñandesy Alda Silva, do povo Kaiowá, em Dourados, no Mato Grosso do
Sul. O espaço sagrado era chamado de Gwyra Nhe’engatu Amba, na língua kaiowá. A casa de
reza (ogapysy ou ongusu) é o lócus principal dos processos de transmissão de conhecimentos
deste povo e abrigo de seus objetos de culto como o Yvyrai, Xiru e Mbaraka.
O fogo queimou toda a estrutura de madeira coberta por capim sapé. Os moradores da aldeia
não tinham ontem conhecimento sobre a origem do fogo. Eles perceberam as chamas no início
da manhã e chamaram o Corpo de Bombeiros, que não conseguiu evitar a destruição do
espaço, considerado sagrado pelos Guarani-Kaiowá. A comunidade está apreensiva porque a
casa era o abrigo do
Xiru, onde os anciãos rezam, cantam e dançam diante dele. O incêndio pode ter implicações
que prejudicam as colheitas, o clima, alimentos e para a saúde deste povo.
223
Os Kaiowá são um dos povos que pertencem ao grupo mais abrangente de populações Guarani
residentes no Brasil (composta também pelos Guarani Mbya e pelos Guarani
Ñandeva). A forma tradicional dos kaiowá se organizarem socialmente é formando núcleos
comunitários constituídos por um número variado de parentes e liderados por um casal de mais
idade (ñanderu e ñandesy, que pode ser traduzido para o português como “nosso pai” e “nossa
mãe”). Esta comunidade é formada por varias famílias extensas, sendo o senhor Getúlio e
a senhora Alda dois de seus líderes religiosos tradicionais.
A comunidade mora na Reserva Indígena de Dourados, que consiste num complexo multi-
comunitário, abrigando centenas de outros núcleos familiares. A Reserva é composta por duas
grandes aldeias (Jaguapiru e Bororó) e possui aproximadamente 17 mil habitantes. A área é
reconhecida pelo Estado, mas num tamanho muito menor que o território
tradicional, e em condições que tornam muito difícil a reprodução da cultura. A reserva foi
criada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1917, com 3.600 hectares inicialmente
reservados aos indígenas da etnia kaiowá, que já ocupavam o local e suas imediações.
224
Igreja Pentecostal Deus é Amor
A Igreja Pentecostal Deus é Amor foi fundada dia 03 de Junho de 1962, pelo
Missionário David Martins Miranda; visto que a data e a denominação foram
reveladas ao fundador, por intermédio do Espírito Santo. O ministério iniciou com
apenas três membros: Missionário David Martins Miranda, sua mãe Anália Miranda e
sua irmã Araci Miranda. Sabe-se que muitíssimas almas são salvas pelo Senhor,
através desta grande obra, em cumprimento das promessas dele ao seu servo.
Com confiança e obediência Àquele que o chamou, Jesus Cristo, o saudoso Missionário
David Miranda se empenhou dia a dia nos cultos, evangelizações, vigílias,
consagrações, etc.; resultando em inúmeras IPDAs, presentes nos continentes:
Américas, Europa, África e Ásia. Com isso, hoje, já está com mais de 17 mil igrejas
espalhadas pelo Brasil e em 88 países em todo o mundo.
O fundador partiu para o Senhor em 21/02/2015, sua esposa, Irmã Ereni de Oliveira
Miranda, é atual presidente do ministério. Ela está dando continuidade ao crescimento
espiritual, para que mais pessoas recebam a coroa da Vida Eterna, e isso é o que mais
faz crescer a IPDA: evangelizar, amar, resgatar, zelar e cuidar das almas, a fim de que
se tornem filhas de Deus.“Contudo, aos que o receberam, aos que creram em Seu
Nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (João 1:12).
Fonte: http://www.ipda.com.br/historia-da-ipda-2/
225
Decerto, é uma obra gigantesca, marcada na história do evangelho, que tende a
crescer mais e mais, porque seu foco é propagar a Palavra de Deus; fazendo com que
se expanda notoriamente e ilumine os passos de todos aqueles que a aceitam.
A Tua Palavra é lâmpada que ilumina os meus passos e luz que clareia o meu
caminho” (Salmos 119:105).
Trajetória da IPDA
A Igreja Pentecostal Deus é Amor foi fundada dia 03 de Junho de 1962 e começou com apenas
três membros: Missionário David Martins Miranda, sua mãe Anália Miranda e sua irmã Araci
Miranda, conforme a orientação do Senhor. Ela cresceu e cresce sobremaneira, por isso
alcançou igrejas/almas em quatro continentes da terra, que são: América, Europa, África e
Ásia.
Ela tem muitas realizações vitoriosas do Senhor: o programa Voz da Libertação; milhares de
conversões, libertações e batismos de muitíssimas almas do mundo inteiro; lançou o Jornal O
Testemunho e as revistas Expressão Jovem e Ide; muitas IPDAs pelo Brasil e mundo; entre
outras.
O número de almas que aceitavam a Jesus Cristo era muito grande, com isso, foi inaugurado o
Templo III, na Avenida do Estado, nº 5000. Em seguida, no decorrer dos anos, pelo crescimento
da obra, foi reconstruída a antiga Sede e inaugurado o novo Templo da Glória de Deus.
Contudo, essa obra que começou com três membros, hoje, pela graça de Deus, superabunda a
cada dia, principalmente por causa da palavra verdadeira que é pregada desde o início de sua
existência. Por intermédio dela, almas foram ganhas para o Reino dos Céus, salvas pelo Senhor
Jesus, através deste ministério, em cumprimento das promessas do Filho de Deus, O qual
prometeu ao Seu filho: missionário David Miranda.
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REPORTAGEM SOBRE A EVANGELIZAÇÃO PELAS ALDEIAS INDÍGENAS DE
2020
A Marco Zero Conteúdo conversou, entre fevereiro e março, com lideranças indígenas
de diferentes estados para entender melhor esse cenário e o modus operandi da
evangelização, do contato à conversão.
Quem resiste são integrantes dos povos originários que se juntam a acadêmicos na
ideia de que abrir terreno para a igreja é abrir terreno para projetos de mineração,
extrativismo, agropecuária e energia, passando por cima de preceitos constitucionais
de proteção de terras e garantia de direitos, inclusive ao isolamento.
Mas, por outro lado, há pessoas que defendem e trabalham pelo “plantio de igrejas”,
acreditam que religiões diferentes podem, sim, conviver dentro de um mesmo território.
Esses indígenas também não veem problema na nomeação do ex-missionário
227
evangélico Ricardo Lopes Dias para a Coordenação-geral de Índios Isolados e Recém-
Contatados da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A presidência do órgão, que foi chefiada por evangélicos já no Governo Temer, alterou
o regimento da autarquia, retirando a exigência de que o cargo de uma das áreas mais
sensíveis da Funai fosse ocupado por um servidor de carreira.
O contato representa também um risco para a saúde desses indígenas. Na quarta (11),
o MPF recomendou a suspensão imediata da aproximação com indígenas isolados da
comunidade Yanomami Moxihatëtëa após saber que órgãos da saúde indígena
planejavam ações na região.
Em fevereiro, o MPF foi à Justiça contra a nomeação de Ricardo numa ação judicial
que aponta evidente conflito de interesses, riscos à política de não contato e ameaça de
genocídio e etnocídio para povos isolados e de recente contato.
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Autorizo a reprodução deste trabalho.
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