Você está na página 1de 229

UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ELEMIR SOARE MARTINS

Transformações nos papeis desempenhados pelas lideranças tradicionais na Reserva


Indígena de Caarapó, a partir da entrada de líderes evangélicos (1980-2017)

Dourados-2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ELEMIR SOARE MARTINS

Transformações nos papeis desempenhados pelas lideranças tradicionais na Reserva


Indígena de Caarapó, a partir da entrada de líderes evangélicos (1980-2017)

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História, da Faculdade
de Ciências Humanas, da Universidade
Federal da Grande Dourados, como parte
dos requisitos para obtenção do título de
Mestre em História.

Área de Concentração: História, Região e


Identidades.

Orientador: Prof. Dr. Levi Marques


Pereira.

Dourados-2020
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).
ELEMIR SOARE MARTINS

Transformações nos papeis desempenhados pelas lideranças tradicionais na Reserva


Indígena de Caarapó, a partir da entrada de líderes evangélicos (1980-2017)

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em 29 de maio de 2020.

BANCA EXAMINADORA:

Presidente e orientador

Levi Marques Pereira (Dr., UFGD)

2º Examinador

Aline Castilho Crespe (Dr., UFGD)

3º Examinador

Cássio Knapp (Dr., UFGD)

4º Examinador

Thiago Leandro Vieira Cavalcante (Dr., UFGD)


A minha eterna irmã Ariane Soares Martins e ao
che ra’y, Davi, e a todos os meus amigos, que
tiveram e ainda estão comigo na caminhada.

Ao amor e desamor, e pensar que eles sabiam do


meu dia a dia e eu do deles... E pensar que eu já
estive dentro deles e que eles já me acolheram
tantas vezes… E se tornaram amigos em comum.
AGRADECIMENTOS

Mesmo que eu esteja cansado, “derrotado”, sempre busco resistir através dos
jára e passar por cima das adversidades... até porque os meus antepassados me
ensinaram que, mesmo sofrendo silenciamentos e perseguições, temos que lutar
incansavelmente pelo nosso povo indígena, que antes não tinha nem mesmo chance de
entrar numa universidade... “Nós indígenas, não roubamos nada de ninguém, até
porque estamos no nosso território”, disse para mim um líder indígena. “Não somos
demônios, ao mesmo tempo, ndorojukai ore ryke’y guasúpe”, comenta um rezador.

Sou um menino que continua tentando ser um jekoha para os acadêmicos


indígenas e lutando pelo meu povo. Com base na minha história de vida na reserva e
como um ser resistente, busquei enfatizar a minha trajetória até chegar ao mestrado.
Toda essa experiência que continuo construindo vai me ensinando a enxergar o meu
papel na comunidade e no movimento indígena. Portanto, superar o preconceito não é
uma tarefa fácil, ainda mais agora que os “bolsonaristas” vangloriam o ódio e a
violência, mas, através do esforço, não deixei apagar a chama do desejo de estudar, a
fim de entender os conceitos ocidentais e seus contextos históricos, e, por conseguinte,
não desistir da minha epistemologia tradicional indígena.

Encerro esse ciclo tendo a mais plena certeza de que o bem vencerá, os
indígenas não serão sucumbidos. Tive o privilégio de conhecer pessoas que lutam pela
ciência, pela Universidade Pública de qualidade para tod@s, não permitindo ao
governo sucateá-la. Por isso mesmo, não houve uma só vez que pensei em desistir de
pesquisar, escrever, reescrever, ler artigos, teses, livros, etc. Depois que passei por
várias dificuldades, senti a força de Marçal de Souza para ser “mais indígena” e a
certeza de que posso ir bem mais longe. Agradeço aos rezadores por tudo! Obrigado
por rezarem por mim. Obrigado por tudo!

Aos pastores indígenas da minha aldeia por terem aceitado conversar


(ñemongueta) comigo. Suas falas me ajudaram a refletir sobre a nossa realidade atual.

Ao professor Levi Marques Pereira segue a mensagem que escrevi a ele via
Whatsapp: “Quero agradecer imensamente a você... em deixar eu sentir o gosto de
vencer os obstáculos, ao mesmo tempo aprender com eles. Sei que, por ser um pouco
imaturo, talvez eu não consiga ser aquilo que se espera de mim. Neste caso, procurarei
manter essa humildade que tanto preza. Mais uma vez: meu muito obrigado!”

Ao professor Tiago Leandro Cavalcante e a Aline Crespe, por terem aceitado


contribuir com este trabalho.

Às pessoas que fazem parte desta conquista, em especial Mara, Fidelia


Aquino, Davi, Pastor Isaias Rosa, José Lescano e Junior.

Aos meus três irmãos e irmã: Juninho, Jorginho, Renato e Juliana Martins,
meu cunhado Edimar de Sousa. Por fim, a toda minha família.

Aos meus primos Crispim Soares Martins e Alécio Soares Martins, por
contribuírem para este trabalho ser possível.

Lembrando aqui que eu tive apoio de gente muito importante, agradeço ao


professor Cássio Knapp e Andérbio Martins, por terem sido parceiros durante a
graduação; em especial cito também a professora querida Fabi Medina (che reindy),
Angélica, professora Paula Sampaio, professores da NEABI de São Paulo, da UCDB.

Ao professor Eduardo Gomes da Universidade de Roraima, por ser um


parceiro, ao mesmo tempo companheiro, que me abriu a oportunidade de publicar o
meu primeiro capítulo de livro. Isso me deixou mais fortalecido.

Aos professores do PPGH/UFGD (Pós-Graduação em História da UFGD),


em especial aos professores Eudes Fernando Leite, Fernando Perli, Protásio Langer,
Leandro Seawright Alonso, que ajudaram a me tornar um pesquisador e, ao mesmo
tempo, a saber o meu papel na sociedade.

À Nisia e à Cris Almeida, parceiras do curso, por ajudarem a construção da


casa de reza na área retomada. Enfim, a todos, meu muito obrigado!

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior),


por ajudar a formar um historiador indígena através da bolsa de estudo.

Finalmente, a todos e a todas, ava oñairõva mba’e porãre ha ndohejái


hapicha tapykuéri. Upéicha ñañombarete jevy mba’e porã oñondive.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a
nossa alma. O sonho é o que temos de
realmente nosso, de impenetravelmente e
inexpugnavelmente nosso. (Fernando
Pessoa)
RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar as transformações nos papeis


desempenhados pelas lideranças tradicionais religiosas na Reserva Indígena de
Caarapó, a partir da entrada de indígenas evangélicos pentecostais, egressos da
Reserva Indígena de Dourados. Para tanto, foram utilizados instrumentos de pesquisa
como fontes orais, tais como depoimentos e entrevistas, além de documentos e
registros fotográficos, cedidos pelos interlocutores da pesquisa. Ainda em termos
metodológicos, foram elaborados questionários na medida em que surgiam dúvidas
sobre o tema da pesquisa. Em 1950 foi implantada a Missão Caiuá ao lado da reserva
de Caarapó, com o propósito de evangelizar os indígenas e prestar serviços na área da
educação e saúde. A Missão Caiuá de Caarapó, mantida por igrejas presbiterianas de
Dourados, de evangelismo histórico/missionário, tentou acomodar a presença de
lideranças tradicionais, mas, gradativamente, os rezadores foram perdendo prestígio
para os líderes letrados ou engajados nas novas formas de relação e trabalho com a
sociedade nacional. No final da década de 1980, várias igrejas evangélicas
neopentecostais foram instaladas na Reserva Indígena de Caarapó, seguindo, daí em
diante, em grande expansão. Com isso, a maior parte dos líderes tradicionais passou a
enfrentar várias dificuldades para seguir com suas práticas e rituais. A pesquisa
descreve como as igrejas ganharam espaços conforme foram se sintonizando com as
demandas dos indígenas, sendo por eles apropriadas na produção de seus coletivos de
parentela e na resolução de uma série de problemas. Ao mesmo tempo, os indígenas
que não se converteram reconhecem que as igrejas evangélicas causam uma série de
prejuízos à comunidade, pois as doutrinas, vindas da cidade, desconhecem a história
dos Kaiowá e Guarani, impondo regras pesadas que promovem o cerceamento às suas
formas próprias de ser indígena. Porém, mesmo convivendo com as limitações
impostas pelas igrejas, os Guarani e os Kaiowá exercem sua capacidade de resistência
e resiliência, transformando a Reserva em espaço possível para se viver, no esforço de
produzir seu modo de ser, ou retekoharizar a reserva. Atualmente, as práticas
tradicionais são pouco realizadas no dia a dia da aldeia, tema bastante discutido na
comunidade, com posições que enaltecem o crescimento dos evangélicos e, por outro
lado, uma minoria que se ressente do pouco espaço ocupado pelos líderes tradicionais.
Esse embate fez surgir duas categorias de Kaiowá e Guarani, os denominados
“evangélicos” e os denominados “tradicionais”. Entender essas transformações, a
partir das perspectivas dos próprios moradores, é o que esta pesquisa se propõe. Além
disso, o trabalho pretende registrar como os indígenas se apropriam e ressignificam os
conteúdos e os valores trazidos pela Missão e, posteriormente, pelas igrejas
pentecostais na Reserva, para continuar na tentativa de retekoharizar o espaço e
produzir seu modo próprio de ser – ava reko.
Palavras-Chave: Evangélicos indígenas; Guarani e Kaiowá; igrejas indígenas
pentecostais; reserva.
ABSTRATC

Transformations in the roles played by traditional leaders in the Caarapó indigenous


reserve, following the entry of evangelical leaders (1980-2017)

This research aims to analyze the transformations in the roles played by traditional
religious leaders in the indigenous reserve of Caarapó, from the presence of indigenous
evangelicals, graduates of the indigenous reserve of Dourados. For this, research
instruments with oral sources were used, such as testimonials, interviews and photos,
provided by the research interlocutors. In 1950, the Caiuá Mission was established
alongside the reserve, with the purpose of evangelizing the indigenous people and
providing services in the area of education and health. The Caiuá Mission, maintained
by Presbyterian churches, accommodated the presence of traditional religious leaders,
while the prayers gradually lost their prestige. In the late 1980s several neo-Pentecostal
evangelical churches were installed in the Caarapó Indian Reserve. From that moment
on the Pentecostal churches underwent major expansion, and most traditional leaders
interrupted their practices and rituals. During the field research questionnaires were
elaborated as doubts arose about the research theme. The research describes how
churches have gained ground as they have been in tune with the demands of indigenous
people and are appropriate for them in producing their kin groups and in solving a range
of problems. At the same time, indigenous people who have not converted recognize
that evangelical churches cause a lot of damage to the community, since the doctrines
coming from the city do not know the history of the Kaiowá and Guarani, imposing
heavy doctrines that promote the curtailment of their forms. proper to being indigenous.
However, even living with the limitations imposed by the churches, the Guarani and
Kaiowá exerted their resilience, transforming the reserve into a possible living space, in
an effort to produce their way of being, or retekoharizar the reserve. Nowadays,
traditional practices are rarely carried out in the daily life of the village, a topic that is
widely discussed in the community, with positions that praise the growth of
evangelicals and, on the other hand, a minority resents the little space occupied by
traditional leaders. This clash gave rise to two categories of Kaiowá and Guarani, the
so-called "evangelicals" and the so-called "traditional" ones. Understanding these
transformations, from the perspective of the residents themselves, is what this research
proposes. In addition, the paper intends to record how indigenous people appropriate
and resignify the contents and values brought by the Pentecostal mission and churches
in the Reserve to continue their attempt to re-space the space.
Keywords: Indigenous Evangelicals; Guarani and Kaiowá; Pentecostal indigenous
churches, reservation.
ÑEMOMBYKY

Ko jeporekápe oñeñamindu'u mba'éichapa iñambue raka'e ñanderu rembiapo tee pe Tekoha


Ka'arapópe, oguahẽ guive umi ava oikóva evangélico pentecostais rekópe, oheja rire Tekoha
Dourados pegua. Upevarã ojeporavo pytyvorã umi oñemombe'u pyre, hechahare remi'andu,
oñeñemongeta hendive kuéra ha umi ta'anga ñongatupyre, ome'ẽ va'ekue oréve umi tapicha
roñomongeta hague ko'ã mba'e rehe. Tembipuru rehe ñañe'ẽtarõ katu ja'e kuaa oñembosako'i
hague avei porandurã nguéra oĩ jave iñypytũva ore hegui, oñemyesakãve haguã. 1950-pe
oñemboja Misión Caiuá Tekoha Ka'arapo ypýpe, omoherakuã haguã umi kaiowa apytépe
evangelio rehegua ha oipytyvõvo educación ha tesãi rekávo. Misión Caiuá Ka'arapo pegua,
okarúva umi iglesia prebisteriana Dourados-gua pógui, hérava avei evangelismo misionero
ymaguare, oñeha'ã va'ekue omohenda umi ñanderu ymagua reko teépe oikóvape, sa'i sa'ípe katu
naherakuã porãvéima hikuái ha oiko chugui kuéra mburuvicha omoñe'ẽkuaáva kuatia ha
ojepytasóva pe jeiko pyahu ha tembiapo karai kuéra remimbo'épe, tetã guasu ryepýpe guarãicha.
1980 opa potávo oñemopyenda Tekoha Ka'aropópe heta evangelio iglesia, neopentecostais
oje'eha. Upe guive iñasãi pya'evéntema umi pentecostais, ha ñanderu kuéra maymáva nunga
ohasa heta mba'e hasýva oñembo'e ha oiko haguã ñande reko teépe. Ko jeporeka ohechauka
mba'éichapa umi iglesia ojasuru ava jepokuahápe oipuru rupi hekovẽita ohasáva hikuái upe
jave, ha umi indígena kuéra omoañete ikente kuéra ombyaty haguã ha omyatyrõ heta mba'e
noiporãmba'ekue oikóvo. Upéicha avei umi indigena ndoikéiva evangelio kuéra ndive ohecha
kuaa mba'éichaitépa oñehundipa raka'e teko yma, pe teko mbo'e oúva karai távagui nomomba'éi
kaiowá ha guarani reko tee, ojopy chupe kuéra oiko haguã evangelio rekombo'épe ha
ndohejáiva juruja ojeiko haguã indigena reko teépe. Upéicharamo jepe guarani ha kaiowá
ojapyhara umi iglesia remimbo'e ári, ojetyvyro ha oñemopyatã pe tenda pyahúpe ohekávo
mba'éichapa omombarete jevýta heko tee, omoingove jevývo pe Tekoha tee. Ko'ãga rupi sa'i
oiko ñembo'e yma pe tekohápe, upéicha avei nomoĩri hikuái peteĩ ñe'ẽme upe mba'épe. Oĩ
oguerohorý evangelio heta hetave haguére ha oime umi ndohecha porãiva ñanderu tee kuéra
ndaijavéma rehe ohóvo pe tekohápe, noñeme'ẽ guasuvéi chupe kuéra juruja. Péicha rupi osẽ
mokõi aty ndaikatúiva omba'apo oñondive, umi kaiowá evangéliova ha umi oikóva teko
ymaguarépe. Ko jeporeka oikuaukaporãse mba'éichapa ha mba'éicha rupípa iñambue raka'e
ohóvo teko ymaguare ha mba'éicha ohecha umi upépe oikóva. Ko tembiapo rupive
ojehechaukase avei mba'éichapa kaiowá ha guaraní oñemomba'e ha omoinge hekovépe umi
iporãmíva ogueru va'ekue misionero kuéra, ha upe rire umi pentecostais, oñeha'ãvo ombohape
jevy tekoha yma upe tendápe ha oporomoakãraku ojehayhu jevy haguã Ava Reko.

Mba’emba’érepa oñeñe’ẽ: Indígena iñevangéliova; Guarani ha kaiowá; ava pentecostais


tupao; tekoha.
Resumen

Esta investigación tiene por objetivo analizar las transformaciones en los roles desempeñados
por los líderes religiosos tradicionales en la reserva indígena Caarapó, desde la entrada de los
pueblos indígenas evangélicos pentecostales, que habían abandonado la reserva indígena
Dourados. Para ello, se utilizaron instrumentos de investigación con fuentes orales, como
testimonios, entrevistas y documentos de registros fotográficos, proporcionados por los
interlocutores de la investigación. También en términos metodológicos, se elaboraron
cuestionarios a medida que surgieron dudas sobre el tema de la investigación. En 1950, la
Misión Caiuá se estableció junto a la reserva Caarapó, con el propósito de evangelizar a los
pueblos indígenas y brindar servicios en el área de educación y salud. La Misión Caiuá de
Caarapó, patrocinada por iglesias presbiterianas de Dourados, de evangelismo histórico /
misionero, trató de acomodar la presencia de líderes tradicionales, pero, gradualmente, los
rezadores perdieron prestigio para convertirse en líderes alfabetizados o comprometidos en las
nuevas formas de relación y trabajo con la sociedad nacional. A fines de la década de 1980, se
instalaron varias iglesias evangélicas neopentecostales en la Reserva indígena de Caarapó. A
partir de ese momento, las iglesias pentecostales experimentaron una gran expansión, y la
mayoría de los líderes tradicionales enfrentaron varias dificultades para seguir con sus prácticas
y rituales. La investigación describe cómo las iglesias ganaron espacio al estar en sintonía con
las demandas de los pueblos indígenas, siendo apropiadas por ellos en la producción de sus
grupos de parentesco y en la resolución de una serie de problemas. Al mismo tiempo, los
indígenas que no se convirtieron reconocen que las iglesias evangélicas causan una serie de
pérdidas a la comunidad, porque las doctrinas, provenientes de la ciudad, ignoran la historia de
los kaiowá y guarani, imponiendo fuertes doctrinas que promueven la restricción de sus formas
de ser indígena. Sin embargo, aun viviendo con las limitaciones impuestas por las iglesias, los
guarani y los kaiowá ejercieron su capacidad de resistencia y resilencia, transformando la
reserva en un posible espacio para vivir, en un esfuerzo por producir su forma de ser o
retekoharizar la reserva. Actualmente, las prácticas tradicionales se realizan poco en la vida
diaria de la aldea, un tema ampliamente discutido en la comunidad, con posiciones que elogian
el crecimiento de los evangélicos y, por otro lado, una minoría que resiente el poco espacio
ocupado por los líderes tradicionales. Este choque dio lugar a dos categorías de Kaiowá y
Guarani los llamados "evangélicos" y los llamados "tradicionales". Comprender estas
transformaciones, desde la perspectiva de los propios residentes, es lo que propone esta
investigación. Además, el trabajo pretende registrar cómo los pueblos indígenas se apropian y
resignifican los contenidos y valores aportados por la misión y, más tarde, por las iglesias
pentecostales en la Reserva, para continuar en un intento de retekoharizar el espacio y
promover su propia forma de ser. -Ava reko

Palabras clave: Evangélicos indígenas; Guarani y Kaiowá; iglesias indígenas pentecostales;


reserva.
Lista de Mapas

Mapa 1: Reservas indígenas guarani e kaiowá e terras indígenas reconhecidas ........... 79


Mapa 2: Reservas Indígenas criadas pelo SPI em MS. ............................................... 100
Mapa 3: Regiões Reserva indígena de Caarapó .......................................................... 112
Mapa 4: Recursos naturais atuais na Reserva Indígena de Caarapó ........................... 120

Lista de Figuras

Figura 1: Um ore numa família indígena ...................................................................... 35


Figura 2. O ore crente guarani e kaiowá........................................................................ 36
Figura 3: Pehengue (família) Seferina Escobar, reindy (irmã) da Lauriana Escobar da
Reserva Te’yikue, Região Mbokaja ............................................................................... 43
Figura 4: Casa do Floriano Escobar, região Centro, Te’yikue ...................................... 44
Figura 5: Casa da Lauriana Escobar, região Mbokaja da Reserva Te’yikue ................ 44
Figura 6: Região Mbokaja da Te’yikue......................................................................... 46
Figura 7: Reserva indígena na época da criação (1925)................................................ 47
Figura 8: Notícia da aldeia de Caarapó ....................................................................... 109
Figura 9: Notícia da aldeia de Caarapó ....................................................................... 109
Figura 10: Postinho de saúde indígena da região centro da aldeia Reserva indígena de
Caarapó ......................................................................................................................... 142
Figura 11: Postinho de saúde da região Savera ........................................................... 142
Figura 12: Jornal O Expositor Cristão de 1928 ........................................................... 149

Lista de fotos

Foto 1: Pesquisador dentro da igreja pentecostal ......................................................... 58


Foto 2: Primeira escola da região Mbokaja feita de sapé .............................................. 64
Foto 3: Rezadores na Escola Municipal Indígena Nãndejara Polo. ............................... 89
Foto 4: Rezadores guarani e kaiowá na retomada Pindo Roky, Caarapó/MS ............... 90
Foto 5: Pesquisador Elemir Soare Martins na área retomada Te’yi Juçu, Caarapó/MS
2018. ............................................................................................................................... 90
Foto 6: Pessoas indígenas, por tronco linguístico, família linguística e etnia ou povo a
que pertence, 2010 .......................................................................................................... 97
Foto 7: Primeira Igreja Deus é Amor, da região Mbokaja ........................................... 172
Foto 8: Maior Templo da Deus é Amor na Reserva de Caarapó ................................. 187
Foto 9: Primeiro batismo de indígenas realizado pela Igreja Deus é Amor ................ 187
Foto 10: Regiões Missão, Sãka Pytã e Mbokaja .......................................................... 191
Foto 11: Localização das igrejas da região Sãka Pytã e Mbokaja ............................... 191
Foto 12: Localização das igrejas nas regiões Missão, Sãka Pytã e Mbokaja .............. 192
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados

SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena

IFSP – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo

NEABI – Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-Brasileiros e Indígenas

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

CIMI – Conselho Indigenista Missionário

AISAN – Agente Indígena de Saneamento

AIS – Agente Indígena de Saúde

MS – Mato Grosso do Sul

NUGS – Núcleo de Estudos Sobre Gênero e Sexualidade

ANPUH – Associação Nacional de História

UCDB – Universidade Católica Dom Bosco

RANI – Registro Administrativo de Nascimento de Indígena

FAIND – Faculdade Intercultural Indígena

ENEI – Encontro Nacional de Estudantes Indígenas

SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais

SIASI – Sistema de Informação de Atenção à Saúde Indígena

ONGs – Organizações não Governamentais

DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena

EJA – Educação de Jovens e Adultos

PY – Paraguay

SP – São Paulo

KM – Quilômetro

MPF – Ministério Público Federal

CRAS – Centro de Referência de Assistência Social


SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................17
CAPÍTULO 1 ...........................................................................................................................33
1.1 Trajetória do pesquisador e a relação com as igrejas ............................................................33
1.2 Os diferentes “ore” dentro da mesma pessoa .......................................................................33
1.2.1 Os parentes Guarani Nhandéva na Reserva de Caarapó ...................................................46
1.2.2 Meu nascimento: resistência e a construção de protagonismo ...........................................50
1.2.3 Vida escolar: subjetividade no meio de vários “ore” .........................................................62
Capítulo 2..................................................................................................................................79
2.1 Histórico dos rezadores guarani e kaiowá e da Reserva Indígena de Caarapó ......................79
2.1.2 –ñanderu e ñandesy lideranças espirituais e religiosas ......................................................82
2.1.3 Criação da Reserva ............................................................................................................96
2.3 Configuração da Reserva a partir do recolhimento de parentelas e famílias: sarambi e
confinamento ............................................................................................................................112
2.4 Introdução aos serviços de saúde, educação e seguridade social ........................................129
Capítulo 3................................................................................................................................146
Introdução das religiões evangélicas e neopentecostais .......................................................146
3.1 Missão Evangélica Caiuá ...................................................................................................146
3.2 Entrada e expansão dos neopentecostais ............................................................................159
3.2.1 Diferenças e semelhanças do movimento pentecostal e neopentecostal ..........................161
3.4 Segunda igreja aliada com Capitão e cabeçante indígena da Usina ....................................169
3.4.1Terceira entrada da igreja pentecostal Deus é Amor.........................................................171
3.4.2 Igreja Indígena Pentecostal Último Tempo .....................................................................175
3.4.3 Mudança da região da igreja Deus é Amor (1999) ..........................................................177
3.5 Práticas litúrgicas da Deus é Amor e suas diferenças .........................................................182
3.5.1 A expansão das igrejas que permaneceram até hoje ........................................................186
CONCLUSÃO ........................................................................................................................199
Referências..............................................................................................................................205
ANEXOS .................................................................................................................................210
INTRODUÇÃO
O projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-Graduação stricto
sensu em História da Universidade Federal da Grande Dourados, na linha de História
Indígena, intitulado Transformações nos papeis desempenhados pelas lideranças
tradicionais na Reserva indígena de Caarapó1, a partir da presença de líderes
evangélicos (1980-2017), é a continuação da pesquisa de TCC, na qual discuti a
caracterização da reserva indígena desde a década de 1980 e o impacto que a religião
ocidental trouxe para a vida dos Guarani e Kaiowá. A Reserva localiza-se no
município de Caarapó, no Estado de Mato Grosso do Sul, e foi demarcada em 20 de
novembro de 1924 pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Naquele momento,
como descrevem os meus parentes da Te’yikue, com os quais sustentei diálogo ao
longo da graduação e durante a presente pesquisa, ainda não havia presença
evangélica na região.
Mapa 1: Localização do Município de Caarapó

Fonte:ftp://geoftp.ibge.gov.br/cartas_e_mapas/bases_cartograficas_continuas/bc250/versao2019 Acesso
em: 04/12/2019.

1
Como o primeiro posto indígena foi instalado no centro da Te’yikue, conhecido oficialmente
como Posto Indígena Jose Bonifácio, essa reserva ficou conhecida com vários nomes, tais como
Reserva Indígena Te’yikue, Reserva Te’yikue, Reserva Indígena de Caarapó ou Reserva
Te’yikue. Por outro lado, os indígenas que moram em outras aldeias, ou até mesmo quem mora
nessa reserva, já colocam outro nome, por exemplo: aldeia de Caarapó, reserva de Caarapó,
reserva Te’yikue ou aldeia Te’yikue. Portanto, ao longo do texto, usarei Reserva de Caarapó,
Reserva Te’yikue, ou, simplesmente, Te’yikue, para, assim, priorizar os termos utilizados não
apenas por pesquisadores, mas por indígenas e não indígenas.
17
Mapa 2: Mapas da reserva indígena Te’yikue ou Reserva de Caarapó

Fonte: https://terrasindigenas.org.br/en/terras-indigenas/3627#direitos. Acesso em:


05/12/2019.

Fonte: Atlas socioambiental terra indígena Te’ýikue. Org. Smaniotto C. R., Ramires L. C., Skowronski,
L. – Campo Grande: UCBD, 2009.
Em 1950, na Te’yikue, foi implantada a Missão Caiuá, com o propósito de
evangelizar os indígenas e prestar serviços na área da educação e saúde. A Missão
Caiuá, mantida por igrejas presbiterianas de Dourados e com o apoio de alguns líderes
indígenas dessa época, iniciou o trabalho de evangelização de indígenas, ao mesmo
tempo tentou acomodar as lideranças tradicionais religiosas. Enquanto isso, na visão
do rezador Angelo Guarani, os rezadores foram temporariamente dominados, contudo
não dominados completamente. Nesse sentido, a instituição não teve preocupação em
expandir, ou seja, em construir igreja nas diferentes regiões da aldeia, mas, por outro
lado, atendia interesses da colonização, que era evangelizar os indígenas. De certa
forma, mesmo não confrontando muito os rezadores tradicionais, a Missão conforme
Floriano Escobar - um dos adeptos mais antigos dessa instituição - facilitou a entrada

18
das demais instituições religiosas, pentecostais ou neopentecostais, a partir da década
de 1980, pois pregavam um Deus que salvava e, ao mesmo tempo, poderia resolver
quaisquer problemas sociais.

Nesta pesquisa apresento o processo histórico de entrada e de expansão das


igrejas pentecostais pelas regiões da aldeia e as implicações que trouxeram em relação
aos rezadores, com o objetivo de descrever e analisar as transformações dos papeis
desempenhados pela liderança tradicional na Reserva Indígena de Caarapó diante da
presença de líderes evangélicos, a partir da década de 1980, como já foi mencionado,
agenciada pela Missão Caiuá. Os objetivos específicos da investigação, sobretudo no
enfoque etno-histórico, foram: 1) apresentar o histórico das igrejas protestantes e
neopentecostais a partir dos dirigentes indígenas; e 2) compreender as tensões, os
conflitos e as mediações entre as lideranças tradicionais e os indígenas crentes: alguns
aspectos das transformações nos modos de vida na Reserva Indígena de Caarapó.

Neste sentido, durante a investigação, fui questionando meus parentes sobre


as funções dos rezadores que, segundo eles - por exemplo, Lauriana Escobar e
Hipolito Martins -, mesmo sendo evangélicos, percebem que a continuidade do
trabalho dos rezadores é imprescindível para manter a religião indígena viva e, assim,
fortalecer a identidade, a organização social etc. Através das práticas rituais indígenas,
conforme a explicação dos ñanderu2, busca-se o apoio espiritual ou a aproximação
com as divindades. De certa forma, os fiéis pentecostais mais tradicionais se
apropriam também dessas práticas tradicionais, seja na consagração, quando vão ao
“monte”3 orar, seja na organização de sua casa e espaço, seja na construção da igreja,
do altar sagrado etc. No início, esforcei-me em manter diálogo com o grupo
(evangélico) de diferentes regiões da Reserva. Aliás, muitos deles conhecem bem a
minha família e sempre que podem visitam a igreja Deus é a Verdade e fazem um
grande culto, ocasião em que convidam os enfermos e pessoas com dificuldades de
resolver seus problemas, etc. Assim também fiz com os rezadores que praticam seus
rituais e suas rezas.

Esse esforço de manter relação boa com os evangélicos se deve ao fato de


serem grupos mais fechados e com dificuldade de falar de suas histórias, de suas

2
Rezadores Guarani e Kaiowá, considerados também como líderes religiosos indígenas e
espirituais.
3
“Monte”, na linguagem evangélica, é um lugar isolado, para orar, pedir perdão ou para
adquirir algum dom espiritual, através da oração.
19
escolhas, de seus problemas, de seus dilemas, dos métodos de conversão etc.,
principalmente quando o pesquisador é indígena. Há uma enorme desconfiança por
parte dos crentes indígenas, quando nos apresentamos como pesquisadores indígenas,
principalmente quando levamos gravador, caderno e outros objetos que possam
registrar suas falas e imagens. Temos que esclarecer bem para eles o real objetivo da
conversa, para depois registrar as suas falas e gravá-los. Em alguns casos, os registros
têm de ficar apenas no diálogo - ñemongeta -, sem levar caderno de campo, tampouco
gravador. Nessas ocasiões, eles sempre convidam para visitá-los na igreja, então, a
conversa flui mais.

Visitas constantes foram necessárias para obter as entrevistas e os dados,


como, por exemplo, o número de crentes na igreja, ano de conversão, etc. Portanto, é
um desafio muito grande para nós, estudantes indígenas, estudar esta temática, porque
“a sociedade nacional apresentou-se aos povos indígenas de maneiras profundamente
diversas, movida por diferentes interesses e motivações, com destaque para as
compulsões econômicas e para os engajamentos religiosos” (BRINGMANN, 2012, p.
9). Por outro lado, abrem-se possibilidades para discutirmos sobre a nossa própria
metodologia de pesquisa, uma delas é o ñemongeta, que facilita o processo de diálogo
com os indígenas sobre determinados assuntos.

O método do ñemongeta ameniza a desconfiança dos indígenas em relação ao


pesquisador, pois prioriza ouvir a real necessidade do povo, por entender que há um
vínculo histórico de indígena para indígena e, ao mesmo tempo, o diálogo na língua.
Rompe-se, assim, o estereótipo colonialista de que o indivíduo só pode expressar seus
pensamentos acadêmicos na língua ocidental, fortalecendo-se, também, o processo de
protagonismo dos indivíduos indígenas, por exemplo dos rezadores. Propicia-se,
igualmente, várias questões em relação à pesquisa, sobretudo por se abordar o tema
bastante complexo.

Como esse trabalho é pioneiro em Te’yikue, alguns pastores que se desviaram


da igreja (pentecostal) não quiseram falar comigo, até porque eu os conhecia bem e
também os acompanhei durantes alguns anos na mesma igreja, assisti-lhes fazendo
oração, orando pela divina revelação, cantando hinow, sentindo a presença do Espírito
Santo, etc. Portanto, mesmo me esforçando em ouvi-los, não consegui. Neste caso
usei outro tipo de estratégia para conhecer mais sobre suas histórias: comecei a me
aproximar mais dos seus parentes que conviviam com eles nas igrejas. Assim

20
consegui entender, mesmo que de forma superficial, sobre suas escolhas em aderir à
vida evangélica ou continuar com práticas culturais indígenas.

Geralmente, esses pastores ‘desviados’ se tornam líderes capitães4; sendo


assim, mesmo que timidamente, começam a reavivar os saberes e rezas tradicionais
que aprenderam, geralmente na infância, participando de reuniões com cocar e
pintura, rezando juntos aos rezadores das demais aldeias. “Dessa forma, um projeto de
pesquisa em história que envolva a utilização de fontes orais, no estudo de populações
indígenas, deve levar em conta uma série de especificidades de cada etnia ou, até
mesmo, de cada aldeia” (SILVA; JOSE DA SILVA, p. 38). Sendo assim, a pesquisa
iniciou tendo contato com algumas famílias da região Mbokaja, onde a maioria dos
meus parentes consanguíneos residem e resistem. Ao mesmo tempo procurei dialogar
com os demais grupos, por exemplo, os da etnia kaiowá, justamente para diferenciar a
especificidade étnica.

Como a maioria dos meus parentes consanguíneos são crentes, não tive
muito problema em conversar com eles a respeito do tema da minha pesquisa. Alguns
não quiseram que seus nomes aparecessem neste trabalho, por isso, quando cito as
falas deles, coloco apenas suas etnias, idades e ano de entrevista. Como este trabalho é
de História, as fontes orais também foram priorizadas por mim e considerando que
meus interlocutores e eu somos falantes da língua Guarani, procurei analisar com
cuidado e não exclui a “subjetividade dos fatos narrados” (BRINGMANN, 2012, p.
14).

O recorte temporal proposto é de 1980 a 2017, porque, no final de ano de


1980, algumas igrejas evangélicas neopentecostais foram instaladas na Reserva de
Dourados, por exemplo, a Igreja Deus é Amor e, posteriormente, na Reserva Indígena
de Caarapó. Essa igreja chegou na reserva indígena, como me disse o rezador
Florencio Barbosa, exatamente para tentar enfraquecer a cultura indígena, aniquilar os
saberes e as práticas religiosas indígenas, sobretudo através da bíblia e das doutrinas.

Posteriormente esta igreja estabeleceu estratégias para fazer frente aos


rezadores ñanderu e ñandesy e levar adiante a evangelização, junto à intolerância
religiosa. Neste sentido, a pesquisa descreveu como foi sua primeira instalação na
comunidade da aldeia de Caarapó, trazida por um novo convertido Kaiowá e pelos

4
“Capitão” é o título dado à liderança política da aldeia ou reserva, entre os Guarani e Kaiowá,
em MS, desde a época do SPI.
21
brancos (karai). Para ter essa informação, conversei (añemongeta) com alguns
moradores antigos da Reserva, Severiana Vera, Florencio Barbosa, Maurilio, Lauriana
Escobar, Mariana Martins e Hipólito Martins. Os primeiros pentecostais, com suas
igrejas, passaram a provocar pequenas mudanças na vida de alguns grupos indígenas,
e a maior parte dos líderes tradicionais se sentiram incomodados e, mesmo que o
evangelho pentecostal tenha entrado timidamente, os rezadores perceberam que suas
práticas e rituais precisariam ser protegidas. Ainda que na década de 1980, a igreja
pentecostal não tenha se firmado completamente, conforme Floriano Escobar, ela
deixou a possibilidade de se buscar a vida melhor com a conversão.

Na visão do Sr. Floriano, a Missão já havia instituído esse tipo de vida. A


primeira igreja Deus é Amor que adentrou na Reserva Indígena de Caarapó, em 1980,
não conseguiu permanecer muito tempo. Alguns meses depois de instalada, a família
que abriu esta igreja, mudou-se para a Reserva de Amambai; sendo assim, demorou
alguns anos para ser implantada de novo e reavivada.

Portanto, neste recorte temporal descrevo como a Missão Caiuá se comportou


com a presença dessas igrejas pentecostais e, por fim, como tem planejado seu
trabalho para não ser invisibilizada.

A partir de 1986, um morador antigo da aldeia começou a aderir, novamente,


à igreja evangélica e, assim, conseguiu se firmar, impulsionando, também, um marco
significativo para a conversão indígena, pois, simultaneamente foi viabilizando a
possibilidade de sobrevivência de outros por meio da igreja. Dessa forma, muitos
ministérios5 entraram e saíram da Reserva. Através dessa transição de ministério,

5
De acordo com informações obtidas de dois pastores indígenas, da Reserva de Caarapó, o
“ministério” se constitui quando uma igreja começa a receber “católicos” (os que não são
crentes) e, por conseguinte, a convertê-los. Segundo eles, cada ministério cria sua identidade
específica na comunidade indígena. Isso depende muito da habilidade e do histórico do
responsável pela igreja e, por fim, do fluxo de pessoas que transitam por ela. Às vezes, os fiéis
utilizam a expressão, por exemplo, “cheko Cornelio ministério pegua” (“sou do ministério do
Cornélio”), ou seja, ele referencia seu ministério ao nome do dirigente/pastor. Sabedores da
ampla diversidade de problemas, os pastores maximizam sua igreja; assim “a gente formava um
ministério que atendesse a nossa demanda espiritual e a necessidade da vida. Por outro lado, a
gente foi criando o nosso próprio ministério. Quando alguém via um novo convertido bem-
comportado, com cabelo bem raspado, educado, atencioso, sempre sorridente e parceiro,
geralmente, as pessoas logo já falavam que esse convertido era da nossa igreja. Foi assim que
caminhamos com o nosso ministério aqui na aldeia” (Cornelio Rosa, Te’yíkue, 2019). Do
mesmo modo, ao analisar o processo de expansão dos ministérios produzidos na Te’yikue,
Severo Martins, da Deus é Amor, propõe a reflexão sobre vários ministérios na aldeia, a partir
da liberdade que os pastores brancos têm de manipularem os indígenas. Ele explica que:
22
alguns dirigentes, atuais pastores indígenas, investiram na construção de templos
(“casa de Deus”). Primeiramente firmou-se a Igreja Pentecostal Último Tempo, desde
1994; a segunda foi a Igreja Deus é Amor, sobretudo a partir da metade de 1994 e, por
fim, a Primeira Igreja Deus Pentecostal, no início de 2005.

Até a metade de 2017 houve investimentos, por parte de líderes evangélicos,


na construção de igrejas, para atrair os fiéis dos demais ministérios. Na visão de
alguns rezadores, como Angelo Guarani, essa ocupação de espaço pelos religiosos
pentecostais indígenas foi reduzindo os espaços para os rezadores atuarem e
transitarem, pois os evangélicos buscavam excluir a existência dos ñanderu, atacando-
os e praticando violência contra eles. Após a entrada da segunda igreja (Deus é
Amor), determinados indígenas que haviam exercitado rezas tradicionais se sentiram
excluídos do meio social, sobretudo, fora da aldeia. Nesse momento, conforme o
rezador Lidio Sanches, começaram a “abandonar” temporariamente essa religião
tradicional e, por conseguinte, se iniciou a divisão e o enfraquecimento dos ritos
tradicionais, como ele observou. A divisão e o enfraquecimento da importância do
rezador e dos demais aspectos da cultura se consolidaram com a entrada da Igreja
Deus é Amor, em 1994, com sua doutrina considerada pesada, pois se posiciona em
confronto direto com as práticas tradicionais.

Esses motivos explicam o recorte temporal aqui defendido, pois procurou-se,


de certa forma, demonstrar como foi se consolidando a conversão indígena,
impulsionada pela expansão das igrejas, assim tentando achar os “culpados” dos
problemas sociais que se estendiam, com a oposição entre evangélicos e rezadores, até
chegar ao momento atual, quando se intenta equilibrar um pouco essa convivência,
ainda tensa.

Meu interesse em estudar esse tema deriva do fato de que, desde 1994,
segundo alguns rezadores da Te’yikue, as práticas tradicionais sofreram perseguições

“Quando tinha pouco ministério a gente conseguia ter controle de muitas coisas, nesse caso, a
Igreja Deus é Amor tinha papel fundamental. Por isso, considero ministério aquelas igrejas que
têm estruturas adequadas, por exemplo, do Silvio Paulo, do Cornelio Rosa, de outros que não
recordo agora. Para se ter ministério é necessário que o responsável passe pelo teste de
revelação. Caso isso não ocorra, o escândalo é sempre maior. Hoje, nós somos diferentes um do
outro, isso depende de como a gente orienta a ovelhinha de Deus e do nosso comportamento”.
Nesse sentido, o ministério, como dom de Deus, conforme o meu interlocutor, requer a
revelação, que pressupõe um contato direto do fundador do ministério com a própria
divindidade, reveladora dessa graça

23
violentas e acusações, sendo que muitos rezadores foram expulsos da aldeia, tema
bastante comentado na comunidade, inclusive pelos próprios rezadores. Os que
permaneceram foram obrigados a parar de rezar, ou fazê-lo escondidos. Entender essas
transformações, a partir das perspectivas dos próprios moradores, é o que esse
trabalho pretende. Além disso, o trabalho registrou como os indígenas se apropriam e
ressignificam os conteúdos e os valores trazidos pela Missão e pelas igrejas
pentecostais na Reserva, para continuar na tentativa de “retekoharizar” o espaço, na
tentativa de tornar-se “crente indígena”, mostrando a habilidade de resolver problema
das pessoas convertendo-lhes, a gente pode resolver muitos problemas do nosso
parente, irmão, por exemplo, você pode se tornar crente, não tem problema, só que se
você for a noite jerokyhápe é mais perigoso do que ir na igreja6.

A palavra re-tekoha-rização, deve ser entendida como um neologismo,


configurado como uma categoria composta pelo substantivo “tekoha”, que, na língua
Guarani, significa o lugar em que se vive de acordo com o modo próprio de ser
Guarani ou Kaiowá. Esse substantivo é flexionado na língua portuguesa, pela
aplicação do prefixo “re”, que expressa a ideia de repetição, e pelo sufixo “rização”,
que indica a ação que se realiza. Aqui são dois sufixos e não apenas um só. Re-tekoha-
riza-ção, em tese, trata-se de um substantivo proveniente de um verbo (retekoharizar).
Ou seja: “Voltar a viver no lugar onde se possa viver o modo próprio de ser Guarani
ou Kaiowá”. Especialmente para mostrar o quanto os indígenas lutam por
protagonismo, para superar o preconceito, no intento de compreender as variações que
transformaram as estruturas sociais indígenas. Esse conceito da língua nativa
possibilita várias reflexões sobre a reserva, pois, durante décadas, essa área recebeu
várias instituições e experimentou suas doutrinas e, assim, se apropriou delas.
Exemplos são a Missão Caiuá, as Igrejas Pentecostais, a Escola etc.

As mudanças que ocorreram no âmbito das religiões indígenas (ava


jeroviapy), em 37 anos na Reserva Indígena de Caarapó, oferecem grandes desafios
para serem compreendidos, até porque os modos como diferentes práticas de rituais,
6
Essa fala registrei durante a pesquisa de campo, no mês de novembro de 2018. Pedi
autorização para colocar o seu nome nesse trabalho, mas vi que ele não se sentiu bem com a
minha indagação em relação a isso, por isso, coloco apenas sua fala, idade e cargo que ele
ocupa. Ele se converteu em 1996, na igreja Deus é Amor, onde está até hoje. Ocupou vários
cargos que fazem parte das igrejas indígenas, como obreiro, cooperador, porteiro, evangelista,
vice-dirigente ou segundo dirigente. Há alguns anos tornou-se pastor da principal sede. Já o
ouvi pregando na Campanha da Prosperidade, Cura e Libertação, Volta Filho Meu, Sangue de
Jesus, etc.
24
cantos e rezas produzem e representam sua relação com o divino ainda permanecem
conectados a vivências religiosas anteriores, modos tradicionais. A academia desafia-
me a refletir historicamente sobre a minha comunidade do presente, o que direcionou
minha percepção para tratar não apenas sobre processos de transformações e
diversificação religiosa na reserva, mas também para a percepção de que tais
processos criam vários desafios aos moradores da Te’yikue. São dilemas de vida.
Alguns testemunhos que ouvi durante cultos de que participava e ainda participo
afirmam que depois que as pessoas chegaram à igreja conseguiram encontrar o
“caminho certo” e ajeitaram suas vidas, deixaram as drogas, a bebida alcoólica, a
violência (teko pochy), entre outros teko vai – forma imperfeita de viver.

Como tem ocorrido em várias aldeias indígenas no Estado de Mato Grosso do


Sul e, particularmente, na Reserva Indígena de Caarapó, houve e ainda há
transformações significativas no âmbito da diversidade e práticas religiosas. Os dados
que levantei com cinco cinco líderes evangélicos, em 2014 havia aproximadamente
2000 crentes que frequentavam culto, o que apontava uma sensível diminuição do
crescimento do número de praticantes de rezas indígenas, um aumento significativo de
“crentes indígenas” e igrejas neopentecostais no interior da Reserva, bem como do
número daqueles que afirmam não aderir à igreja e estão esperando o momento certo
para decidir quais caminhos seguir. Como os evangélicos naturalizaram as igrejas, por
isso falavam que não havia mais muitos rezadores, pois veem o decréscimo no número
de casas de reza (oga pysy). Buscando decidir se aderem à conversão (cristã),
geralmente as pessoas transitam por vários ministérios espalhados pelas regiões da
Reserva, procurando uma igreja que possa atender suas necessidades específicas.

A apresentação cultural ao público maior, como são denominadas as


apresentações públicas de rezas e outras práticas culturais consideradas tradicionais,
são realizadas em ocasiões especiais, como nas datas cívicas, normalmente no espaço
da escola, e “acontece apenas quando tem manifestação7. Também estão presentes no
Fórum Indígena local, no dia 19 de abril, e, por fim, na retomada tradicional, onde se
apresenta cultura indígena”, segundo um pastor Guarani. Tais constatações indicam
um deslocamento das atribuições dos rezadores, com os rituais assumindo novas
funções, dentro do contexto de vida atual na Reserva de Caarapó.

7
Quando fecha a estrada para reivindicar algumas demandas por parte dos órgãos municipal,
estadual e federal, ou para manifestar a sua indignação, no Encontro de Professores Indígenas
Guarani e Kaiowá, nas Universidades, etc.
25
Nesta transição são avaliadas várias situações distintas, começando com o
desempenho dos rezadores, com a vida e com as competências deles nesses espaços
que ocupam. Do mesmo modo, são avaliadas as atribuições dos líderes evangélicos
indígenas atuais. Em paralelo a essas constatações, um olhar sobre minha aldeia me
fez logo perceber o acentuado número de igrejas, de dirigentes indígenas (atuais
pastores), ministérios e templos, nas mais diversas regiões, e pontos de pregação e
oração em diferentes lugares, sejam próximos às casas de rezadores ou mesmo bem
próximos ao centro da aldeia, onde estão escolas, posto de saúde, CRAS, FUNAI,
local de grande circulação de pessoas. As igrejas parecem assumir o centro da vida na
Reserva, mas a pesquisa mostra, através das falas de rezadores e da atuação deles
frente à escola indígena e no processo de formação de professores indígenas, que o
protagonismo dos rezadores está se fortalecendo.

Extrapolando os territórios tradicionais dos líderes espirituais indígenas,


saberes tradicionais, religiões tradicionais, essas igrejas alcançam a maior
popularidade atualmente e disputam espaços e representação política, endireitando 8 a
vida das pessoas no grupo e negociando espaços e atuação na administração política
na Reserva Indígena de Caarapó. Um dos exemplos disso é o fortalecimento da figura
do capitão, de tal maneira que, em 20049, foi eleito um pastor indígena como
vereador. A campanha eleitoral do pastor se mostrava atuante, e ele conseguia
converter, a partir de sua pregação, um grande número de fiéis. A maioria conseguia
vê-lo como referência, por isso obteve muitos votos, cada dirigente de igreja da
Reserva o apoiava e, ao mesmo tempo, pedia aos seus adeptos que fizessem o mesmo
movimento político em suas parentelas.

Colocando mais alguns exemplos que são utilizados pelos evangélicos para
ganharem prestígios na comunidade, é o caso de quando um ex-usuário de droga se
converte, o mesmo consegue, através do testemunho, converter muitos parceiros, dito
por eles de “amigo do mundo”. Na visão dos crentes indígenas, a conversão dessas
pessoas é positiva, pois diminui a violência na aldeia, como analisa o pastor
Claudemir, da igreja Deus é Amor.

8
Na visão de um pastor Kaiowá, é tirar as pessoas da vaidade do mundo, por exemplo da bebida
alcoólica, tornando-as mais preparadas para viver de novo na comunidade.
9
Com 566 votos, Agripino Benites (PT) foi eleito com votação maciça na aldeia Te’yikue.

26
Marcado pela atuação das igrejas mais tradicionais, como Deus é a Verdade,
Deus é Amor, Último Tempo e Primeiro Deus Pentecostal, o espaço religioso na
Reserva Indígena de Caarapó assistiu a uma vertiginosa expansão da atuação dos
chamados, por muitos indígenas, evangélicos pentecostais. Por outro lado, as igrejas
Pentecostal Indígena de Jesus Cristo, Visão Missionária, Estrela da Manhã, Primeira
Igreja Deus Pentecostal e Deus Proverá são as maiores nesse gradiente religioso.
Todavia, a partir de 2000, como aconteceu em diversas periferias da cidade de
Caarapó, muitos ministérios neopentecostais entraram e saíram, alguns se
fortaleceram e adquiriram espaços e expressiva visibilidade no meio da parentela
guarani e kaiowá.

A pesquisa procurou explicar os complexos processos de diversificação,


apropriação, negociação da evangelização pentecostal por indígenas da etnia guarani e
kaiowá da reserva Reserva Indígena de Caarapó, de modo que esses elementos se
tornaram contextos inspiradores das questões que norteiam este trabalho. Ao mesmo
tempo, foram analisadas e estudadas as mudanças que ocorreram em relação aos
papeis desempenhados pelas lideranças tradicionais religiosas a partir da chegada
desses “novos” líderes evangélicos.

Como referenciais teóricos da pesquisa, principalmente do ponto de vista da


antropologia e da etno-história, estão as pesquisas de Pereira (2004), Cavalcante
(2011) e Chamorro (2015), que me ajudaram e foram de fundamental importância
durante a elaboração deste texto. Outros livros que me levaram também a refletir e
discutir este tema, são os trabalhos elaborados por Wright (1999) e por Paula
Monteiro (2006). Esses estudos trazem importantes descrições a respeito do modo de
transformação das religiões e práticas de rituais nas aldeias indígenas.

Os ava pesquisadores, moradores desta aldeia, também contribuíram para


este trabalho, especialmente Eliel Benites (2014) e Lídio Cavanha Ramires (2016).
Este foi o desafio de entender, pesquisar, escrever e refletir sobre um tekoha
específico, a partir de um olhar confinado. Chamo assim porque, durante algumas
décadas nos colonizaram e, ao mesmo tempo, tentaram nos proibir de refletir sobre
nossa própria história. Nesse sentido, confinaram nosso olhar temporiamente através
de preconceitos e negação dos nossos direitos. Assim, descolonizar o fruto do projeto

27
colonizador requer muita atenção, esforço, reflexão, dedicação e, sobretudo, ética 10,
pois muitas histórias ricas foram silenciadas ao longo das décadas, devido ao contato
com a sociedade envolvente, nesse caso, os karai ou mbaíry (homem branco).

Sendo assim, os pesquisadores indígenas supracitados estão preocupados em


mostrar o quanto a escola indígena tem lutado contra a visão eurocêntrica que, há
muito tempo, tem nos limitado a entender, a pesquisar e a problematizar as
transformações da religião indígena, e também sobre a atuação das igrejas
pentecostais na adeia. Estes trabalhos contribuem com a possibilidade de buscarmos
amenizar esse silêncio pelo medo de questionar as mudanças, no que se refere às
práticas de rezas, danças e cultura tradicional indígena. O esforço foi trazer esses
atores (rezadores) para o centro da discussão, privilegiando o ponto de vista deles, já
que normalmente as pesquisas indígenas sobre isso ignoram esses sujeitos sociais,
mesmo quando tratam de questões que lhes afetam diretamente.

Diante do exposto, sigo as pistas produzidas pelos próprios indígenas para


entender as transformações de sua religião. Durante a pesquisa, fixei a ideia de
história indígena e etno-história como uma perspectiva de pesquisa que me levou por
esse caminho, justamente por considerar, no método do tratamento das fontes, a
acepção dos próprios povos indígenas sobre sua história. Sobre isso, Eremite de
Oliveira argumenta da seguinte forma:
Entendo que a etno-história não deve ser reduzida à noção de uma
história anacrônica, exótica, êmica e essencialista dos povos
indígenas, tampouco percebida como uma proposta restrita aos povos
indígenas outrora estudados quase que exclusivamente por etnólogos.
Deve ser compreendida para muito mais além, inclusive como uma
perspectiva metodológica interdisciplinar – ou disciplina híbrida como
alguns a defendem – que tem por objetivo estudar a história e a cultura
de povos e comunidades tradicionais, como os indígenas,
quilombolas, ribeirinhos etc. (EREMITE DE OLIVEIRA, 2012,
p.191).
As histórias que ouvi desde a minha juventude e durante a minha pesquisa
me proporcionaram a oportunidade de perceber a dificuldade histórica enfrentada por
nós indígenas, a partir do momento em que o Estado e a Sociedade, de toda forma,
encontraram meios de violar os direitos indígenas e passaram a ter argumentos para
essa finalidade no arsenal das igrejas missionárias que atuaram com agências

10
A discussão sobre ética tem uma vasta conceituação na história da cultura ocidental, assim
também gostaria de abordar conceitos sobre ética a partir da epistemologia guarani, no decorrer
do desenvolvimento deste trabalho de pesquisa.

28
colonizadoras. O Estado, que produz leis e controle sobre a sociedade, procurou, de
toda forma, incluir os indígenas nesta ordem de coisas. Contudo, como o mundo
indígena se forma através de amplo processo ativo de formação cultural, não foi
possível aniquilar a sua organização social diferenciada e resistência. O Estado e as
igrejas pentecostais muitas vezes falam que “a cultura já foi, já acabou, ninguém mais
sabe rezar, só falam o Guarani porque necessitamos parecer ser como indígena para
ter direito, tendo e reproduzindo o medo de pertencimento à cultura11”.

Sobre o papel dos rezadores e os motivos para o seu silenciamento, para a


sequência da pesquisa elaborei questões que foram levantadas no decorrer do trabalho,
como por exemplo: Os ñanderu e as ñandesy apresentam comportamento e costumes
diferentes para a comunidade? São vistos positivamente? Na situação de conflito nas
áreas retomadas, o que significaram seus papeis? E o que significam esses papeis nas
conquistas e na proteção das demais pessoas? As igrejas da aldeia incorporam esses
costumes? Como as igrejas se posicionam frente à cultura ancestral guarani e kaiowá e
a partir dos conhecimentos adquiridos dos rezadores?

Enfim, esses são questionamentos que, de alguma forma, estão explicitados


no texto, cujo objetivo é perceber os atores desse recorte, os mais velhos, homens e
mulheres, ñanderu e ñandesy, além dos jovens, como agentes sociais capazes de
participar ativamente da produção e distribuição de conhecimentos válidos para o
fortalecimento de uma sociedade.

Para buscar tais informações foi necessária a aproximação junto aos


rezadores e às rezadoras, anciãs, anciões, pastores indígenas, fiéis e a liderança
Capitão, para conhecer suas percepções a respeito da história da Reserva Indígena de
Caarapó, da cultura, da religião indígena e sobre a entrada das igrejas e da nova
configuração social e da família e como vivenciam esta intervenção. Convidei os
rezadores mais destacados da aldeia para conversar, num total de cinco; as anciãs que
participaram deste trabalho foram oito; além dos pastores indígenas e fiéis, num total
de 20 pessoas de diferentes congregações.

11
Fonte: Memórias autobiográficas da minha experiência como indígena das leituras e
declarações midiáticas sobre meu povo.

29
Algumas obras e situações, como mencionado antes, desde o início da
pesquisa em 2017, despertaram o interesse para o tema e já se configuravam como
levantamento de fontes.

Dados e problemas, utilizados como escopo metodológico para estruturar


esse texto, fazem parte desse levantamento, bem como o diálogo com os professores
do curso de graduação da Faculdade Intercultural Indígena da UFGD, desde 2012,
entre os quais estão: Cássio Knapp, Levi Marques Pereira, Antonio Dari Ramos,
Neimar Machado de Sousa, Rosa Colman, etc. E também com os professores da Pós-
graduação, iniciada em 2018, com os quais tive contato e aulas: Eudes Fernando Leite,
Fernando, Protasio Langer, etc.

Tive contato direto com rezadores e rezadoras, desde a graduação, como


Tereza Martins, Getulio e Alda, Jorge e Floriza, da reserva de Dourados, os quais
participavam e participam mais ativamente da comunidade acadêmica, exercendo
papel fundamental na formação de professores indígenas de várias aldeias. Dessa
forma, o presente trabalho lida com fontes orais e etnografia, com algumas referências
bibliográficas, que discutem sobre as lideranças tradicionais, incluindo, entre eles, a
liderança por capitania, os ñanderu e as ñandesy, lideranças tradicionais da cultura
kaiowá e guarani, e os Xamãs Pentecostais, ou pastores indígenas, que foram
formados a partir da entrada das igrejas pentecostais e de fortalecimento de pastores
nas sociedades indígenas. Assim,
fortemente enraizados na tradição oral, os povos indígenas, sobretudo
na América do Sul, elaboraram ao longo dos tempos, complexos
sistemas políticos e hierárquicos que têm na oratória a sua mola
mestra. As palavras têm força da lei e são sinônimos de poder político
e religioso. (BRINGMANN, 2012, p. 11).
Trabalhei na pesquisa com os recursos da memória, através da oralidade, por
meio de entrevistas com membros mais idosos, lideranças tradicionais e capitão, bem
como com Agentes de Saúde da comunidade, que forneceram informações sobre o
modo como viveram sua própria vida quando ainda não havia a expansão das igrejas
pentecostais na aldeia, e o modo como percebem as mudanças na sua vida e na vida
das demais pessoas. Também busquei junto às igrejas e os rezadores entender o modo
como eles vivem sua indiferença atualmente na aldeia, a partir da observação das
mudanças culturais, língua, suas manifestações no convívio familiar e social.

30
A participação em alguns eventos acadêmicos, seja como ouvinte ou
palestrante, apresentando trabalho, também promoveu ponderações indispensáveis
para esta pesquisa. Destaco a minha primeira participação como debatedor sobre
Povos Ameríndios e a Política do Bem Viver, no Encontro Formativo dos Núcleos
NEABI (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas) e NUGS (Núcleo de Estudos
Sobre Gênero e Sexualidade), do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo), realizado nos dias 13 a 16 de agosto de 2018, Unisal,
campus Pio XI, São Paulo; na Audiência Pública sobre Desafios Frente à Intolerância
Religiosa, cujo tema foi “DIÁLOGO E PLURARIDADE: DESAFIOS FRENTE À
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA”, realizada na Câmara Municipal de Dourados, no dia
07 de junho de 2018; no XIV ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ANPUH/MS (cujo
simpósio temático foi coordenado por Éder e Protásio Langer, ambos docentes da
UFGD), entre outros.

A presente dissertação está organizada em três capítulos. O capítulo I abre o


texto contextualizando algumas partes da história da Reserva indígena de Caarapó,
com objetivo de mostrar as realidades dos indígenas – inclusive a minha história
familiar, que retrata bem o contexto analisado - nos 37 anos que compõem o marco
temporal desta pesquisa. Discute também, do ponto de vista indígena, o conceito de
reserva, sobre o recolhimento da parentela dos demais tekoha. Em vista disso, o
capítulo intitula-se Histórico da Reserva Indígena de Caarapó, através do qual procuro
priorizar alguns acontecimentos que levaram os indígenas a se converter às religiões
cristãs presentes na reserva. No tópico sobre saúde, seguridade social e educação,
abordo as doenças e suas consequências para a comunidade e, por conseguinte, analiso
como as lideranças tradicionais são vistas diante desse problema. Nisso também entra
o papel importante da escola indígena, priorizando a educação escolar indígena e
procurando planejar o fortalecimento da cultura e dos saberes tradicionais.

No capítulo II, intitulado Introdução das religiões evangélicas e


neopentecostais, apresento e descrevo, a partir do ponto de vista de moradores da
Reserva, um breve histórico da Missão Caiuá e suas consequências para os Guarani e
Kaiowá. Também descrevo a implantação das igrejas neopentecostais e a conversão
indígena ao pentecostalismo, e analiso o processo de expansão das igrejas pelas
regiões da aldeia e suas principais ferramentas de conversão, o primeiro grupo

31
convertido e a postura diferenciada dos seus parentes indígenas “católicos12”, ou seja,
não convertidos. Os dados que estao neste capítulo mostram o quanto a formação
social indígena tem se diversificado.

O capítulo III, Lideranças tradicionais e líderes neopetentecostais:


transformações de exercício da liderança, tem como objetivo descrever e analisar as
novas lideranças que surgiram com a expansão das igrejas neopentecostais,
demonstrar como essa problemática vem ocorrendo dentro da Reserva, como os
líderes tradicionais promovem resistência diante disso e, paralelamente, evidenciar
negociações que permanecem entre eles e a comunidade.

12
Há várias formas de refletir sobre o conceito “católico”, mas aqui priorizo o ponto de vista
dos crentes pentecostais indígenas. Para eles, católico é alguém que nunca “levantou a mão para
Jesus”, tampouco pisou numa igreja, esse tipo de pessoa é considerado “católico ete” que pode
ser considerada católico puro, alguns indígenas que só visitam a igreja são considerados “irmãos
católicos”. Segundo o pastor indígena Severo, estes já fazem parte da igreja, porque já se sentem
familiarizados com os obreiros, etc. Na maioria das vezes, os “irmãos católicos” são parentes de
alguns crentes da igreja. Em algumas igrejas, o “desviado” pode ser considerado também apenas
“católico”, porque, na ocasião, o pregador faz pressão para a pessoa voltar à igreja, humilhar-se
novamente. Tratarei disso no capítulo II.
32
CAPÍTULO 1
1.1 Trajetória do pesquisador e a relação com as igrejas

1.2 Os diferentes “ore” dentro da mesma pessoa


Estamos nos defrontando com a realidade contemporânea que nos torna
pessoa “dividida”. Referencio-me à obra de Italo Calvino, “O Visconde partido ao
meio” (2011). Esta realidade possibilita ao indivíduo indígena contemporâneo
experimentar vários meios em busca de sobrevivência, tanto culturalmente quanto
religiosamente. Diante de situações de “estranhamento” que nos causam inquietude e
medo, não conseguimos explicar o momento em que acontecem, perguntamo-nos se o
que está acontecendo é verdadeiro, se o que nos cerca, se o que nos confronta por
sermos diferentes é, de fato, a realidade, ou se se trata apenas de um momento
complexo ou de uma fase árdua que a modernidade apresenta. Por outro lado,
sabemos que determinadas situações permanecem inexplicáveis por parte de uma
sociedade que nega a existência de povos diferentes, sendo que os mesmos fazem
parte desta mesma sociedade, onde constroem/reconstroem suas vidas, na medida em
que as transformações ocorrem, ou seja, sempre que for necessário, uma vez que o
“índio” é composto também por várias identidades, imagens e práticas culturais, entre
outros.

O “mundo real”, que muitos imaginam ser dos indígenas, é de que eles só
têm de viver apenas como “índio”, longe da civilização, e apenas aceitar que pertence
a um povo inferior. Ao contrário, deparei-me com algumas narrativas indígenas sobre
as táticas que ajudaram no fortalecimento das culturas indígenas e das lutas contra o
preconceito, as quais ocorrem inesperadamente opostas às leis da realidade almejada
pela sociedade ocidental. Muitos Guarani e Kaiowá que fazem parte do fortalecimento
da cultura ancestral do povo já experimentaram/viveram diferentes teko (jeitos/modo
de ser e de viver), constituindo, assim, dentro de uma comunidade indígena várias
histórias e experiências de vida. Vivemos realidades e espaços que contêm vários
elementos – visíveis e invisíveis - que os compõem. É uma realidade carregada de
histórias de luta e de superação, segundo o professor indígena Nilton Ferreira, pois só
quem passou/passa por ela sabe o quanto a resistência é fundamental e continua sendo.

33
Os espaços13 que foram diminuídos com a chegada das fazendas e das cercas nos
remetem a replanejar as táticas e ampliar as possibilidades de luta.

Convivemos num mundo onde os indígenas foram mutilados e, assim, as


fronteiras de eliminações sociais se tornam cada vez mais fortalecidas em todas as
comunidades, principalmente no atual governo do presidente Bolsonaro, onde a
política negacionista fica evidente. Nesse contexto, a experiência da personagem de
Italo Calvino, do livro “O visconde partido ao meio” (2011), me faz refletir sobre a
condição do indivíduo na modernidade, onde “as questões étnicas adquirem caráter
catalisador de uma multiplicidade de problemas, gerados e agravados pela crescente
marginalização e exclusão social” (BRAND, 2001, p. 39), imposto pelo
desenvolvimento e aprimoramento do capitalismo.

Nesse sentido, seguindo a reflexão de Calvino e Brand, asseguro que é no


meio deste preconceito, marginalização e exclusão que se adquire mais forças de
resistência e de luta pelos direitos fundamentais, pela terra, contra intolerância
religiosa, pelo fortalecimento de saberes ancestrais, etc.

Tendo em vista a realidade da Reserva, na qual cresci e construí minha


trajetória de vida, tive momentos bons, onde o ore pertencia ao coletivo maior
(nhande)14 (ou pavẽ), em que se incluía também os parentes de distintos modos de se
comportar, segundo Tonico Benites (2014), ou Teko Laja. Por exemplo, quando tinha
um tio que fazia uso de muita bebida alcoólica ou que era briguento, a atenção da
família se desdobrava bastante sobre nele. Assim, só na minha família se constituíam
vários laja (modos de ser distintos). Portanto, cada família indígena guarani ou kaiowá
se constitui de distinto teko lája das demais famílias de diferentes regiões, dentro da
mesma reserva ou aldeia indígena, bem como nas demais aldeias. Neste sentido, há
vários termos utilizados pelos indígenas para diferenciar os variados coletivos
constituídos atualmente. Por exemplo: Umi familia kuéra ilája porãmi (refere-se a
uma família exemplar, pessoas boas, com comportamento bom); Umía kuéra ilája vai
(neste caso refere-se a um grupo ou coletivo como negativo, onde há pessoas com

13
Refiro-me ao território indígena ou tekoha guarani e kaiowá.
14
ORE é o pronome pessoal de 1ª pessoa do plural (NÓS - excludente), ou seja, exclui os que
não lhe são próximos; ao contrário de NHANDE (também NÓS - includente), ou seja, inclui um
coletivo maior, os que são próximos e também os outros. (Explicação oral da Prof. Veronice L.
Rossato)
34
comportamentos reprováveis). Estes dois exemplos não resumem a legitimação de
vários teko laja existentes nas aldeias. Há vários outros.

Na imagem a seguir pode-se compreender como minha família se fortalecia


antes da chegada da igreja pentecostal.
Figura 1: Um ore numa família indígena

Fonte: Elaborado pelo próprio autor, 2019


Nessa imagem, jari (anciã – avó) está no centro, pois ela sempre foi essencial
para a formação da família. Através dela conseguimos enxergar o que é bom e ruim
para obter teko laja porã (comportamento positivo e saudável no meio social). Nesse
sentido:
O princípio ore se refere a uma força centrífuga que acentua e
intensifica as relações entre pessoas consideradas próximas, em
detrimento das relações com as pessoas consideradas mais distantes,
de acordo com os gradientes de proximidade e distância social
postulados pelo modelo da estrutura social kaiowá. O princípio ore
teria como característica principal a forte ênfase na exclusividade das
relações entre pessoas que se consideram parentes próximos e
compõem unidades com profunda identidade social, cuja expressão
máxima seria o fogo doméstico. A sobrevalorização das relações
sociais próximas tem como implicação direta o afrouxamento das
relações mais distantes. O princípio ore em seu movimento exclui a
exterioridade, ou seja, enfantiza ou condensa a interioridade, que se
expressa nas formas de convivência livre das disputas e tensões
sociais características da vida social fora do círculo de mutualidade. A

35
ação do princípio pavêm sobre a estrutura social quebra a hegemonia e
a exclusividade das formas de mutualidade restritas a um pequeno
número de pessoas ou fogos. Para isto, institui mecanismos que
permitem reunir um número maior de pessoas, fogos e parentelas
relacionados como parceiros políticos e cerimoniais. De qualquer
forma, o principio pavêm aciona valores religiosos que procuram
romper os interesses exclusivistas dominantes nos horizontes da
convivência social. (PEREIRA, 2004, p.134-135)
Priorizo o termo nativo ore para deixar claro como a minha trajetória se
constituiu desde a minha infância até a vida adulta, ou seja, até me tornar
acadêmico/pesquisador, fazendo parte da comunidade indígena e da sociedade
ocidental, para quebrar esse paradigma de que o Estado “reservou” completamente a
coletividade de ore kuéra que existe na região, mas que, através do surgimento de
novos modos de vida, a resistência indígena se fortificou. Portanto, também fiz parte
disso, quando ore se dividiu entre família não crente e crente. Ore kuéra utilizo pois
tem várias famílias, que se constituem de vários teko laja, digo que vivi vários teko
laja, ao mesmo tempo passei por vários ore, de não crente, de crente, de acadêmico,
etc.

Faço essa análise a partir da experiência familiar e através da pesquisa com


algumas famílias crentes e não crentes do interior da Reserva Indígena de Caarapó. O
levamento de dados ocorreu com algumas visitas em três regiões da reserva, a saber,
região Mbokaja, Missão e Centro, pois nestas regiões moram tios, tias, primos e
primas. Por isso, algumas perguntas foram elaboradas no caderno de campo a fim de
nortear o caminho do ñemongueta (conversa). Através da análise das minhas falas,
elaborei alguns exemplos dos muitos ore que existem na reserva indígena. Na
primeira e na segunda imagem, o leitor vai perceber a divisão que houve no interior da
minha família, quando a igreja evangélica pentecostal foi instalada pelos pastores não
indígena e indígena. Localizei-me na minha família mais pentecostal do que na
família onde cabia mais gente, primos, primas, tias, tios, rezadores, rezadoras, pessoas
de distintos comportamentos.
Figura 2. O ore crente guarani e kaiowá

36
Fonte: produzido pelo autor, MARTINS (2020).

Este esquema se consolidava na medida em que novos crentes eram


conquistados do meio da família. Assim se estabelecia o grupo de “crentes indígenas”
fortes e organizados de grande prestígio. No estudo do antropólogo ava Kaiowá
Celuniel Aquino, fica evidente a diversidades de ore em várias aldeias. Este
pesquisador indígena foi o pioneiro a elaborar a discussão mais teórica em relação ao
ore no meio das comunidades indígenas. Neste sentido:
Se houver um ore em qualquer região, logo existe um coletivo com
organização e estilo próprio que o diferencia do Outro. Ele está no
interior do coletivo, e é neste interior que se usa este termo. Por
exemplo, quando ore estou me referindo ao meu grupo, me colocando
em seu interior. Um ore é uma parentela, dois ore são duas parentelas,
três ore quer dizer três parentelas. Sendo assim, a reserva constitui
múltiplos ore kuéra, ou seja, múltiplas e diferentes parentelas. É
importante salientar que existe ore se houver o outro; ore somos nós
organizados e o outro pode ser outra parentela, nós (familiar e
parentesco) ou estranhos (outra parentela, karai e jára kuéra); estes
são essenciais para a existência da parentela. O outro não se encaixa
em nossa idéia e nem em nosso pressuposto. Para se diferenciar, ore
desenvolve idéias e organizações para distinguir ou agregar o estranho
em sua rede parental. Ore deve ser uma relação como exemplo, e
ainda convencer o estranho a reconhecer que ore do ore é mais
adequado do que ore deles. Se existir um ore existirá um coletivo.

37
Logo, ore demonstra as articulações, forças e organizações que este
ore apresenta. Ao citar este termo, em seguida é necessário comprovar
a força e o poder que essa coletividade fabrica e produz. Ore é
sinônimo de autonomia, exaltação, organização, fortalecimento que a
parentela almeja divulgar. (VALIENTE, 2018, p. 146).
Portanto, o questionamento que deixo é: Se há possibilidade de diferentes ore
se estabelecer dentro da mesma pessoa? Aqui estou entrando no ambiente da
psicologia ou da psiquiatria, que estuda o psiquismo da pessoa, tendo em vista a
influencia que tive na formação individual e coletivamente, pelo lugar social, familia,
religioso que ocupei e ocupo, pelo meu sofrimento, traumas, heranças psicológicas,
familiares, etc. A reserva indígena ganha força através da constituição do ore? A
seguir descrevo a minha trajetória de vida e de pesquisador para responder às questões
abordadas.

Sou ava (indígena) da etnia Guarani Nhandeva/Kaiowá, pertenço à parentela


Escobar, Martins, Vera, Soares. Nasci numa reserva indígena onde, desde 1924, os
meus parentes indígenas construíram várias formas de resistência e de sobrevivência.
Eles precisavam buscar acessar os recursos que haviam pela região Mbokaja e, ao
mesmo tempo, conciliar com o processo político já existente na reserva, por exemplo,
com capitão, chefe do posto, Ongs, Funai e outras instituições. Pertenço a uma família
que, segundo meu pai, Virginio Soares, seus membros preferiram aderir ao evangelho
e, ao mesmo tempo, continuar adquirindo saberes ancestrais e com eles superar vários
problemas históricos mas, acima de tudo, “sentir a luz do protagonismo caminhando
junto deles”. Ele diz que “os brancos tentaram de toda forma nos intimidar e matar a
nossa força, acho que conseguiram por um tempo fazer isso, por isso foi difícil a vida
por aqui, as dificuldades na maioria das vezes eram desanimadoras”. Conforme a
análise do rezador Lidio Sanche, a Reserva Indígena de Caarapó é um tekoha que
espera por elementos tradicionais essenciais15 para poder continuar descortinando
características negativas impostas pela colonização.

Como muitas parentelas, a família a qual pertenço passou muitas


adversidades, provocadas pelo processo de colonização e pelas várias tentativas de
dizimação dos povos nativos. Uma das ações violentas que ocorreu com eles,

15
Segundo o que eu consegui entender, da conversa que tive com liderança de uma área
retomada, senhor Nardo, os elementos são: o fortalecimento de saberes indígenas, língua
materna, escola diferenciada de qualidade, a valorização e o fortalecimento dos papeis dos
rezadores e das rezadoras da aldeia, a construção de casas de rezas (óga pysy) e, por fim,
fortificar o diálogo sobre a intolerância religiosa.
38
conforme meu tio Hipolito Martins, “quando morávamos perto da região de Juti/MS,
os peões dos fazendeiros não quiseram mais nos respeitar e nos expulsaram quando
recusávamos trabalhar no dia de domingo e nos ameaçavam com arma de fogo”.

De acordo com o que foi narrado para mim, durante a pesquisa, várias
transformações ocorreram na Reserva de Caarapó, em diferentes momentos. Segundo
o atual vereador indígena Alécio Soares Martins, a sociedade caarapoense não tem
muito conhecimento sobre a Reserva indígena. Entende que ela foi criada para
resolver os problemas dos índios e, por conseguinte, para torná-los “obedientes”, ao
mesmo tempo, “civilizados e trabalhadores”. Coloco entre aspas esses dois conceitos,
pois, na prática, não é isso. Conforme a pesquisa etnográfica, a comunidade se
organizou, buscou a sobrevivência em constante negociação com algumas instituições,
entre as quais a Missão Caiuá, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a FUNAI
(Fundação Nacional do Índio), a Escola e as Igrejas Evangélicas Pentecostais. Como
explanado acima, mesmo sendo breve, a sociedade não indígena (karai) de Caarapó,
imagina essa área como o único lugar de “índio”; onde as duas etnias Guarani e
Kaiowá podem viver adequadamente, como no paraíso escrito na Bíblia. Segundo o
professor militante da causa indígena, Otoniel Ricardo,
Acharam várias justificativas para nos colocar como povos inferiores
em nosso próprio território, não queriam saber nada sobre a cultura
indígena, tampouco nos enxergar como gente. Vivemos as histórias
narradas pelos brancos, nas quais as imagens de indígenas aparecem
nos livros didáticos como selvagens, língua ignóbil, pelados, como
indivíduos incapazes etc. Todas essas histórias transcorridas pela
sociedade ocidental reiteraram injustiças em relação aos nativos (ava).
(RICARDO, 2019).
Como indígena e estudante pesquisador, junto às narrativas de primos, tias e
tios e alguns parentes das regiões da reserva (Mbokaja e Missão), arrisco em dizer que
no “tempo da conversão”, os meus parentes enxergaram uma nova forma de superar e
resolver, de certa forma, seus problemas. Para meu tio Roberto Soares, “nessa época
era difícil achar um serviço, a gente ia pedir mesmo as coisas pela cidade, a minha
mãe sempre levava a gente com ela”. Conforme a fala de Roberto Soares, para
algumas famílias indígenas, a conversão deu certo. O exemplo disso foi o caso da
minha família, tanto por parte do meu pai e da minha mãe. Por outro lado, causaram
impactos na vida dos detentores de saberes ancestrais, pois os primeiros convertidos à
igreja pentecostal, através das doutrinas interpretadas da bíblia, começaram a
demonizar a cultura tradicional, as rezas e a língua indígena. Essa escolha das pessoas

39
por se converterem, conforme a observação de Lauriana Escobar, deu-se porque
“chegou num ponto que não deu mais certo; mesmo que tentássemos, não fazia mais
efeito a reza, acho que por causa que o nosso destino era para ser crente..., mas nem
todos os rezadores que conheço deixaram de ser o que eram”. No caso dela, pelo que
observei, a adesão à igreja ocorreu estrategicamente: “Eu vi que estava dando certo
para minha família; então, para eu não me sentir excluída do meio, tive que seguir
também, só assim, vou me fortalecendo”. Desde que passou a frequentar a igreja
pentecostal, quase não pratica mais a reza que aprendeu na juventude, pois, para ela, o
respeito pelo Deus cristão deve ser prioritário, exceto quando está chovendo muito
forte e quando as crianças precisam de um ritual específico, ou quando o pesquisador
indígena a procura. No caso dela, a conversão deu certo para não haver dispersão e
distanciamento familiar, mas procura sempre passar a sabedoria indígena aos
membros da família. Neste caso há a estratégia de fortalecimento de saberes ancestrais
também diante da intolerância que foi impregnada no meio dos adeptos pentecostais.
Há o caso também de muitos rezadores, que haviam se convertido ao pentecostalismo,
retornarem a praticar as rezas e, neste retorno ao ambiente cultural, conseguiram
formar novos grupos de rezadores (oñembo’ea kuéra).

Meus avós maternos transitavam pela região do Paraguai e trabalharam na


Companhia Mate Laranjeira, executando atividades de colheita de erva mate, entre
outras. Meus avós paternos vieram da região de Juti/Naviraí, por eles conhecidos por
Santiakue/Kurupi, conforme a memória da minha avó Severiana Vera, de 83 anos,
cujos pais também trabalharam nos ervais da mesma Companhia. Nessa época, entre
1950-197016, havia constante presença de paraguaios e colonos, que tentavam
expulsar os Guarani dessa região. A pesquisadora Junia Fior Santos deixa claro
comoos indígenas viveram o processo de territorialidade antes de os colonos
estragarem essa área.
Para os Guarani e Kaiowa da comunidade Kurupi de Santiago Kue, o
processo de territorialidade mais significativo foi aquele que se
desenvolveu no tempo em que permaneceram ocupando o seu
território tradicional, com solo fértil, animais e mata em abundância,

16
Como meu objetivo é escrever sobre a trajetória da minha família, de forma resumida, deixo
essa parte da temporalidade para uma próxima discussão. Mencionei essa década, pois na
conversa com minha avó e tio, eles lembraram de como se organizavam entre os parentes
consanguíneos. Vieram para Te’yikue porque sentiam a ameaça da presença dos colonos
brancos na região. Chegava a notícia para eles através dos parentes que os visitavam, e eles já
tinham conhecimento de que na Reserva havia “ajuda”, onde poderiam morar e viver com
“segurança”.
40
nas décadas de 1960 e 1970. Foi justamente nesse período e nesse
lugar que os integrantes da geração que hoje tem maior influência
social e política dentro do acampamento viveram momentos
significativos de sua infância e juventude, experiências que lhes
marcaram profundamente e que permanecem na memória com uma
boa dose de saudosismo. (SANTOS, 2019, p. 25-26)
Com o término das atividades na Companhia e do processo de esbulho que
estava se estabelecendo, foi necessário procurar outra alternativa para garantir sua
sobrevivência como indígena, sendo assim, foram à Reserva Indígena de Caarapó e se
estabeleceram por lá. No primeiro momento, ou seja, no tempo da Reserva, dividiam
sua política organizacional com as demais famílias, nesse sentido, foi necessário
estabelecer aliança e constante negociação.
Igualmente a outros casos, durante o processo de expansão
agropecuária que se deu no MS, os Guarani e Kaiowa de Santiago
Kue foram removidos gradativamente de suas terras, espalhando-se
pelas reservas e fazendas próximas em busca de um lugar para morar.
Durante o tempo que permaneceram longe de seu território,
percorreram muitos lugares, dentre esses, as reservas indígenas de
Dourados, Juti e por último Caarapó, local em que se organizaram
para reivindicar suas terras de ocupação tradicional, tendo como
primeira via a entrada na fazenda que compreende um segmento do
tekoha. (SANTOS, 2019, p. 36).
Conforme a narrativa da minha avó Lauriana Escobar, de 84 anos, os pais
dela vieram após a demarcação da Reserva Indígena de Caarapó, pois foram
obrigados a deixar o local de trabalho. A família Escobar veio nesta aldeia/reserva
desde o início da demarcação, no final de 1925. Antes disso passou por vários tekoha
tradicionais, tentando fugir da colonização.

A Reserva Indígena de Caarapó, desde sua criação, tem forçado os indígenas


das duas etnias (Guarani e Kaiowá) a conviverem no mesmo espaço, mesmo
intensificando o conflito. Estabeleceram-se diferentes modos de vida (teko joavy17),
impostas pelos brancos, principalmente a partir da violação dos direitos tradicionais,
entre os quais estão o território, a prática xamânica, a língua, as artes, etc.
Aliás, também defino, temporariamente, teko joavy como o jeito de ser indígena
em reconstrução, até porque a vida da maioria dos indígenas foi mutilada através do
preconceito na Reserva, acusando-os de que suas práticas de reza, língua, dança e
outras práticas pertenciam ao “demônio”, e assim não poderiam evoluir. O teko joavy18

17
Teko joavy, em tradução livre, significa “modo de ser diferente”.
18
Sobre o teko joavy, as igrejas pentecostais da Te’yikue se apoderaram da expressão, pois elas
trabalham em cima da “imperfeição da vida”. Elas falam que não existe mais saída para um
41
que se fez presente na vida indígena, foi deteriorada pelos brancos, mas aos poucos foi
sendo restaurada, pois os sábios, nessa época, procuravam ensinar e transmitir saberes
ancestrais. Sendo assim, conseguiam preparar os parentes para os desafios que
estavam por vir.
Discutir essa etapa de preparação para os dois mundos (ocidental e indígena)
demanda tempo. Portanto, refletir sobre os indígenas, acerca da Reserva, requer
bastante pesquisa. Neste tópico procuro mostrar os desafios que a área demarcada pelo
SPI proporcionou e proporciona até hoje. A seguir detalho mais sobre isso.

Destaco ainda a etnia da minha avó materna. Durante algumas décadas, entre
1980-1993, ela, junto à família na Reserva indígena de Caarapó, não revelava sua
origem étnica. Talvez seja por isso que não teve muito problema com a liderança e o
chefe do posto: “Nessa década, a gente não podia se autoafirmar como Guarani
mesmo, porque a liderança, como capitão e chefe, não tolerava a nossa presença,
sempre tentava negar a nossa existência; mesmo tendo parentesco kaiowá” (Lauriana
Escobar). Da família dela, os que ainda hoje estão vivos são: Floriano Escobar,
Seferina Escobar, Epitácio e José que, atualmente, moram em Dourados/Bororo. A
maioria desses meus parentes casaram-se com homem ou mulher Kaiowá, e criaram
grande aliança política. Dessa forma, espalharam-se por várias regiões.

Sempre que seja necessário, esses parentes se autodenominam de Kaiowá, até


porque Floriano e Epitácio, atualmente, moram nas regiões onde a maioria são da
etnia supracitada. Assim adquiriram, ao longo dos anos, o teko dessa parentela, a
língua, o jeito de ser, o sistema organizacional, os hábitos, etc.

No mapa a seguir, coloco a localização da irmã de Lauriana, para mostrar


como se compõe a organização dos parentes consanguíneos da mesma aldeia, mas
seguindo padrões sociais indígenas (morando sempre perto dos filhos, das filhas, das
noras e dos netos). Embora morando um pouco distantes uma da outra, se reconhecem
como parentes, mas seguem organizando sua parentela em núcleos, sendo que a
cabeça da parentela sempre é alguém de idade (jari, tamõi, sy, tua, etc), e hoje são os
líderes evangélicos que, na maioria das vezes, não têm muito estudo, mas possuem
força no meio da parentela, como descreverei no decorrer do texto.

indivíduo que é alcoólatra, usuário de droga, “católico”, no que se refere à cultura indígena e a
prática de reza indígena.

42
Figura 3: Pehengue (família) Seferina Escobar, reindy (irmã) da Lauriana Escobar
da Reserva Te’yikue, Região Mbokaja

Fonte: Google Earth


Na imagem acima está exposto o local de Seferina Escobar, irmã da minha
avó. Essa região se chama Mbokaja, onde moram suas filhas, netas, netos, sobrinhos,
sobrinhas, professor, como é o caso do professor Lídio Cavanha e Heliodoro Almeida.

Assim como o irmão da minha avó, a sua irmã Seferina também se casou
com um kaiowá, conhecido por Minério Cavanha, todavia sempre manteve em sigilo
sua identidade étnica. Ela, do mesmo modo tradicional de organizar família, manteve
essa organização. Ao redor dela (ijere rehe), como já comentei acima, moram alguns
filhos, netos e outros parentes, como primos e primas, etc. É interessante notar que ela
nunca participou ativamente de nenhuma denominação religiosa ocidental. Do lado
direito do mapa localiza-se a casa da sua filha Edina e as demais parentelas da mesma
família. A estrada que as divide chama-se MS-280, que liga o Município de Caarapó a
Laguna Caarapã. A referência de localização também foi e continua sendo uma mina
d’água conhecida por “Yvy ku’i veve” (areia que voa).

Como está exposta na imagem anterior, esses meus parentes estão localizados
na região que a maioria chama de Mbokaja, utilizada como pasto de gado, até meados
de 1978, ocasionando o desmatamento de muitas árvores nativas19. Perto desta região
há dois cemitérios familiares, que hoje estão cobertos de árvores, sendo que um fica

19
Sobre esse processo histórico, no ano de 2019 conversei com senhor Fernando Peralta, ex-
funcionário do SPI, Florencio Barbosa e Lauriana Escobar. Como Lauriana e Florencio foram
alguns dos moradores mais antigos desta região, optei por añomongeta (conversar) com eles
sobre isso. Então narraram que essa região tinha muitas árvores nativas, havia poucos
moradores, por isso mesmo o chefe Didi do SPI criou pasto de gado. Conforme os meus
interlocutores, havia aproximadamente 1.800 cabeças de gado. Logo depois resolveram vender a
madeira. Sobre isso conversei bastante com Peralta, em sua casa, o que talvez tenha facilitado o
diálogo.
43
logo na entrada de Mbokaja, coberto pelo capim braquiária, usado pelo gado. Nesses
cemitérios estão enterrados muitos parentes meus.
Figura 4: Casa do Floriano Escobar, região Centro, Te’yikue

Fonte: Google Earth

A figura mostra o lugar do irmão da Lauriana Escobar, que se casou com


uma Kaiowá e, por conseguinte, foi morar na região hoje conhecida como Centro. A
fim de manter aliança política com os Kaiowá, ele decidiu criar sua família neste
local, mas reconhece sua etnia. Ao questioná-lo sobre isso, já conta sua trajetória de
vida na Reserva, com seus pais. Embora ele não deixe explícita a sua etnia, considera-
se Guarani e, quando necessário, se apresenta como Kaiowá/Guarani. Nesse lugar
residem suas filhas, seus filhos, as noras e os genros, exceto a filha Magalena, que se
casou e foi morar em Dourados. Percebe-se que Floriano continuou como grande
cabeça de parentela, assim conseguiu organizar sua família no molde tradicional, onde
é considerado, pela maioria dos familiares, como um líder. Conforme seu genro
Dejanir, um kaiowá crente da igreja Deus é Amor,
Ele é meu sogro mesmo. Ele nunca se meteu em briga por aí, sempre
se comportou bem para nós, por isso a gente o considera como um pai
também, até porque antigamente o sogro era pai para o genro. Então, o
exemplo dele vai ficar pra gente e nunca esqueceremos dele. Quando
eu vou levar turma na usina de álcool, sempre gosto de pedir a opinião
dele ou quando há alguns problemas na nossa família, tentamos
resolver seguindo os conselhos dele.

Figura 5: Casa da Lauriana Escobar, região Mbokaja da Reserva Te’yikue

44
Fonte: Google Earth

Assim como os seus irmãos, Lauriana formou sua família na região Mbokaja,
onde morou com seu primeiro esposo da etnia kaiowá, Paulo Martins. Como mentora
do casamento, ela foi a organizadora do seu grupo familiar. Em seguida, foi criando
mecanismos de convivência com as demais parentelas da região. Por outro lado, havia
sempre conflito, porque o marido como “dominador” tentava impor o seu sistema e
fazia toda possivel para mudá-la, mas, como ava kuña (mulher indígena), ela sempre
mostrou habilidade em contornar os problemas cotidianos. Conforme a fala de Katia
Martins (minha tia), as mulheres indígenas conquistaram seus espaços dentro da
família, mostrando que têm capacidade de cuidar dos filhos, da casa, “até mesmo da
roça, sempre nessa tentativa de romper essa ideia de que as mulheres não são
capazes”.

Descrevi um pouco do histórico da minha avó materna, para mostrar como a


mulher Guarani resistiu também ao conflito étnico. Esse conflito se intensificou, pois
“não ocupamos os espaços do nosso jeito, fomos trazidos aqui para dividirmos a
aldeia com os Kaiowá, então, é evidente que eles não iam nos aceitar bem, essas
coisas que os brancos fizeram com a gente reflete nisso” (Lauriana Escobar). Desde
que nasceu, ela sempre morou na região Mbokaja, teve contato com os seus parentes
guarani e kaiowá. A fim de não ser encoberta por ser da etnia “inferiorizada”, sempre
manteve convivência negociada com outra etnia. Essa inferiorização ocorre “creio que
por sermos minoria em número de pessoas nessa reserva, ao mesmo tempo, por não
ocuparmos muito espaço político já existente antes de chegarmos aqui” (Virginio
Soares).

45
Do casamento kaiowá e guarani entre a minha avó Lauriana Escobar e Paulo
Martins nasceram minha mãe e minha tia Kátia Martins e os outros tios, os quais
cresceram adquirindo os conhecimentos das duas etnias. No decorrer desta reflexão,
irei delineando sobre minha apresentação da “etnia Guarani Nhandéva/Kaiowá”, logo
no início deste parágrafo.

1.2.1 Os parentes Guarani Nhandéva na Reserva de Caarapó


A minha família Guarani Nhandéva chegou à Reserva de Caarapó em
meados de 1965. Vieram da região Santiago Kue, o território tradicional, que engloba
vários tekoha do município de Juti/MS e Naviraí/MS, trazendo Hipolito Martins,
Claudia Martins, Senõ, Cola’i, Miguel Fernandes, Avelino Quinhone, Severiana Vera,
Vicente Soares, entre outros. Eles chegaram na reserva “já sabendo que não íamos
mais viver do nosso jeito, sabe, aqui já existia a política que os Kaiowá queriam e
acharam relevantes para suas existências, nós erámos apenas novos [moradores]”
(Hipolito Martins).

Fernando Peralta Kaiowá conta que eles vieram em grupo. Então, antes de
chegarem, de fato, na Reserva, a liderança “capitão” logo já barraram, tentando saber
o motivo da mudança de lugar. Ainda segundo Peralta, alguns grupos de policiais
indígenas já os acusavam de serem feiticeiros, e esse seria o motivo da mudança. Mas
com a habilidade guarani, um dos líderes espirituais da família explicou o verdadeiro
motivo. Um dos argumentos utilizado consistia em que só na Reserva poderiam obter
ajuda e sobreviver, como afirma Hipolito Martins: “nos convenceram bem de que só
na reserva tinha coisa boa para sobrevivência”. Portanto, ao longo dessas décadas, os
meus parentes guarani nhandéva conseguiram se estabelecer na região Mbokaja. Esta
região era conhecida por “guarani’i kuéra lugar” (lugar dos guaranizinhos), termo
utilizado por sermos de uma etnia de “fora”.
Figura 6: Região Mbokaja da Te’yikue

46
Fonte: Google Earth

Por parte do meu pai, Virginio Soares, a maioria dos meus parentes
concentram-se nessa região. Por outro lado, há alguns que moram nas demais regiões,
já que se casaram com Kaiowá e, por isso, foram morar com a parentela da mulher,
constituindo assim outro ore guarani/kaiowá.

Na região Mbokaja mora a maioria dos meus parentes. Como disse Hipolito
Martins, “nunca confrontamos os nossos parentes na base da violência, aprendemos a
respeitar às pessoas do jeito que elas são”. Essa fala registrei durante uma reunião que
teve na escola extensão Mbokaja, onde essa liderança falou em relação ao preconceito
que alguns alunos sofriam por serem de etnia diferente.

Esse lugar era cheio de peroba, conhecido como ka’aguyhũ. No mapa a


seguir, podemos notar o quanto esta região tinha floresta, o que facilitava as práticas
tradicionais indígenas e mantinha relações mais próximas com os jára (donos da mata,
dos animais, etc.).
Figura 7: Reserva indígena na época da criação (1925)

Fonte: Atlas socioambiental terra indígena Te’ýikue. Org. Smaniotto C. R., Ramires L. C.,
Skowronski, L. – Campo Grande: UCBD, 2009.
Há idosos/as, meus tios e tias, que conhecem bem a região, como é o caso de
Ramona, 88 anos; Oracio Soares, 85 anos; Tereza e Felipa, etc. Essa região ficou
conhecida como “Guarani kuéra lugar” (Lugar dos Guarani). Os homens dessa
região, sempre que possível, casam-se com mulheres Kaiowá das outras regiões, mas
nem todos conseguem morar perto da família, pois as mulheres fixam moradia junto à
sua própria família de origem. Igualmente acontece com as mulheres Guarani que,

47
quando se casam, trazem homens para morarem perto da família, constituindo uma
espécie de identidade composta, guarani e kaiowá. A minha intenção não é dizer que
todos que vão morar nas famílias kaiowá tornam-se kaiowá, assim também acontece
com essa etnia quando vem morar na família Guarani. Possivelmente, através disso
temos resistido à aniquilação e ainda continuamos resistindo e nos fortalecendo,
porque algumas táticas de resistência acontecem nesta dinâmica descrita.

Essa área de reserva indígena, durante décadas, foi considerada “ilha


imaginária20”, sobre a qual se imaginava tanta pobreza e, por isso, o “civilizado” devia
intervir, começando pela catequização, como o início do tempo de conhecer o
“caminho de Jesus Cristo”. Assim se investia muito para tornar o ava obediente ao
processo de cristianização, porque se idealizava o que a historiografia ocidental dizia.
Na perspectiva do rezador Florencio Barbosa, “fomos considerados selvagens,
miseráveis, sem cultura, pobre índio, sem Deus, até mesmo de demônios”, entre
outros. “Parecia que estes só existiam no descobrimento do Brasil ou antes da criação
da reserva indígena em MS” (professor indígena Nilton Ferreira).

Os pais da minha mãe e do meu pai, conforme informações que me foram


relatadas, tiveram contato com a atividade religiosa presbiteriana já nesta Reserva,
antes não tiveram muitos problemas sociais e dificuldades de construírem suas vidas.
Ao longo de 1970 sentiram seus espaços se transformarem com a chegada de novos
moradores oriundos de vários tekoha, que, aos poucos, se transformavam em
indígenas reservados.

Em meio a tantos problemas, transformações, ressignificações, negociações,


preconceitos, invisibilização, minha mãe, Mariana Martins, me trouxe a este mundo
cheio de desafios e colorido por saberes dos meus ancestrais, os quais também se
mantêm, porque ainda há mba’e mohenduha (“coisas para serem ouvidas”). Neste
caso, a existência dos xamãs/rezadores (ñanderu e ñandesy), que ainda praticam suas
rezas tradicionais, mesmo sofrendo transformações, conseguem apropriar-se,
ressignificar, quando é necessário, suas práticas religiosas (ava jerovia).

Diante dos problemas que aumentavam - por exemplo, a entrada da bebida


alcoólica, violência cada vez maior na reserva, anga jára (dono da alma) me fez
conhecer esse mundo, mesmo que as florestas estivessem em colapso - os nossos

20
Utilizei esse termo inspirando-me em Marshall Sahlins, Ilhas de História. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 2004.
48
líderes espirituais (ñanderu e ñandesy) ainda convenciam o Tupã Rusu em manter este
mundo, e nós indígenas podíamos fortalecer nossa língua, nossa espiritualidade e
nossa sabedoria, etc. Quando nasce um ava, geralmente espera-se que ele tenha
sabedoria nativa para não ter dificuldade em transitar neste universo. Para que isso
seja possível, dependemos muito da pessoa capacitada, que delineará o jeito certo de
ser indígena. Os nossos ancestrais rezadores e rezadoras intercediam pelo nosso
futuro, de modo que, ao crescermos, os espíritos, os jára possam nos atender quando
os invocamos.

Durante o meu desenvolvimento no ventre da minha mãe, minha avó


Lauriana Escobar cuidava de todo o processo de gestação, trazia remédio tradicional
desde o mba’e tirõja (antídoto indígena contra mau agouro), para que nenhum espírito
mau, conhecido como mba’e jepotaja, se aproximasse dela e, ao mesmo tempo, para
não causar problema de saúde a ela e a mim. Segundo Mariana Martins foi necessário
seguir todos os procedimentos para que eu chegasse saudável. A alimentação dela era
controlada pela parteira, não podia consumir qualquer peixe, carne de animais,
tampouco algumas aves comestíveis.

Assim como minha mãe, as mulheres indígenas sempre moram separadas das
suas mães (nde sy), mesmo assim, na maioria das vezes, dependem delas para
questões peculiares. As mulheres, para Pereira (1999), têm o papel marcante para
atração de parentes: quando elas estão gestantes recebem visitas, recebem cuidados
das primas, das tias, quando é necessário alguns parentes moram com elas durante a
gestação. Além da geração de filhos, de cuidar das filhas grávidas, e cuidar de outras
mulheres grávidas, podem “adotar” crianças, como “sobrinhos”, como é o caso de
Chopim, que a Lauriana considera como sobrinho. Vejo esta colaboração intensa entre
Guarani e Kaiowá da região Mbokaja.

Há uma diversidade de espíritos na nossa cosmologia que contribuem para o


bem-estar das famílias e da comunidade, por isso foi importante, segundo a rezadora
Tereza Martins, seguir todo o procedimento durante a gestação da minha mãe. Caso
não se cumpra o procedimento essencial do/a rezador/a, o Jepota chega até o espaço
dos humanos que não é comum. Isso acontece porque alguns espíritos ou animais que
transitam pela mata percebem a vulnerabilidade de cuidados e, assim, se aproxima
para causar problemas ao longo da gestação à mulher e à criança ao nascer, pois estes
não querem se sentir fracos no universo dos mortais.

49
Há o mba’e jepota que, na perspectiva dos rezadores, é o espírito que causa
vários problemas na vida das pessoas, seja espiritual seja físico. Só o rezador ou a
rezadora, através da reza, conseguem mba’e tirõja (antídoto indígena contra mau
agouro), na maioria das vezes, são plantas, por exemplo, ñandyta’y, etc. Há várias
plantas medicinais específicas para proteger os indivíduos desse espírito mau (aña
rembiguai). As plantas mais conhecidas atualmente são: pikati͂ , yryvu ka’a, ysy kamby,
folha de cedro, ñandy ta’y, entre outras. Algumas podem ser encontradas nas regiões
da aldeia mesmo, enquanto outras só podem ser encontradas nas terras dos
fazendeiros.

A criança recém-nascida (mitã michi͂ ), em alguns casos, vem com som da


alma provisório, e só com a habilidade do rezador descobre qual será o verdadeiro
som da alma para utilizar aqui na terra. Daí o nome da criança da criança inspirado
pelo som da alma. Até hoje, quando uma criança fica doente, o rezador que vai fazer o
ritual, logo pergunta aos pais se sabem sobre anga ayvu; e, quando eles não sabem,
esse líder espiritual faz uma reza longa para descobrir, e assim facilitar o trabalho de
cura. Algumas crianças têm como som (ayvu) o da arara, da cachoeira, etc. Desde que
as mulheres grávidas sigam as orientações das parteiras, livram os filhos recém-
nascidos dos espíritos maus (mba’e jepota) e facilitam o bom desenvolvimento da
criança.

Esse item, contém aspectos etnográficos, pois mesmo diante dos impactos
negativos causados pelo processo de evangelização, procurei mostrar que, apesar de
eu ter formação evangélica, conheço profundamente estes saberes ancenstrais e suas
praticas, os vivis junto a minha família. E isso é compartilhado pela grande maioria
dos membros da minha família extensa. Do mesmo modo, tanto a minha família e as
demais famílias indígenas procuram resistir, se reorganizar neste novo cenário na
reserva, tanto pela sobrevivência dos saberes ancestrais, do grupo tradicional para manter
a continuidade da formação e do fortalecimento do papel das lideranças tradicionais e
espirituais.

1.2.2 Meu nascimento: resistência e a construção de protagonismo


Para Paul Veyne (2008), o historiador chega a um acontecimento pelos
vestígios que dele sobraram, ou seja, conhecemos a história sempre em parte, por um
conhecimento mutilado, pois sem vestígios não se pode escrever história. Mas essa

50
seleção intencional que perpassa o tempo, não é aceita passivamente pelo historiador,
que, através do rigor da crítica, interroga e narra esse passado.

Para que seja possível escrever e abordar minha história junto à história da
Reserva ao mesmo tempo, como um lugar de espaços e produção de coletivos, as
teorias e as metodologias da etno-história abrem a possibilidade de um indígena falar
do lugar ao qual pertence. Este foi o meu caso. As reflexões sobre a etno-história e os
registros de um “olhar sobre si” apresentam-se, atualmente, como importantes partes
constitutivas de qualquer trabalho na área de História. Michel de Certeau, em “Fazer
História” (1982), discorre acerca desta prática que se tornou tão comum a partir do
século XX. Sendo assim, descrevo como se sucedeu meu nascimento na Reserva de
Caarapó.

Nasci numa noite de chuva, aproximadamente 23:00 horas, sob os cuidados


da minha avó, com iluminação tradicional (lamparina feita de araity - cera de mel).
Nossa casa era de sapé e tinha dois quartos. Nasci num parto tradicional; deste modo,
fiquei por sete dias sem ter nenhum contato com os demais parentes, exceto meus pais
e a parteira. Esse procedimento foi necessário, caso contrário me causaria problemas,
como já explanei no tópico anterior, já que todas as crianças ao nascer têm o que
chamamos de “tesa poti͂ ” (alma limpa, visão limpa, e não podem ser “contaminadas”).
Refiro-me a não ter nenhum contato com os parentes, pois, segundo minha tia Luiza
Rosa, outras pessoas geralmente não estão preparadas espiritualmente para ver uma
criança recém-nascida. Ainda segundo ela, é uma regra necessária para que as crianças
não venham a ter problemas de saúde física e espiritual.

Após seguir todos os procedimentos básicos tradicionais, prepararam-me


para passar pelo ritual de batismo - ñemongarai. No meu caso, aconteceu depois de
seis meses. Reuniram-se vários parentes para participar, na casa do meu tio Hipolito
Martins, na região Mbokaja. Na ocasião participaram os principais rezadores mais
conhecidos da região, entre eles, Avelino Quinhone, Porfirio e Angela, da etnia
Guarani; Dirto e Jorge Paulo, da etnia Kaiowá. De acordo com o pesquisador ava
Izaque João, no ritual de ñemongarai,
Esta reza define a permanência do pássaro guardião definitivamente
com a pessoa, integrando-a na sociedade e interagindo com a natureza
onde vive. O ritual de nhemongarai, por outro lado, é entendido como
ato de nominar a criança, para garantir seu status físico e torná-la apta
para desenvolver atividades no decorrer de sua vida (JOÃO, Izaque,
2011, p. 55).

51
Durante três dias teve grande reza na região onde eu moro. Nessa etapa de
preparação do batismo de crianças, havia porahéi ñemoiru͂, que funciona como “rezas
partilhadas”, durante as quais os rezadores demonstram respeito, compartilhando seus
conhecimentos espirituais para afastar os espíritos perversos. Todavia, “quem olhasse
sem conhecer a realidade nesta época, não entenderia esse tipo de reza, porque sempre
havia acusação de macumba de ambos os lados, pois passávamos por uma situação
muito difícil” (Lauriana Escobar, 2019). Esse porahéi ñemoiru͂ é constante hoje em
dia, por exemplo, nas áreas retomadas, nas Aty Guasu, no Fórum local, etc, onde se
reúnem os rezadores da etnia Guarani e Kaiowá de várias regiões. Portanto, alguns
rezadores da Reserva Indígena de Caarapó estabelecem o que eu chamo de
reciprocidade espiritual21, em que fortalecem os saberes indígenas, sobretudo na
questão da espiritualidade.

Nos ambientes detalhados acima é onde se torna mais visível a religiosidade


própria deste povo, utilizada para unificar e encorajar a espiritualidade indígena,
fundamentando o seu modo próprio de vida (Ava Reko - Ñande Reko). A sensibilidade
das rezas compartilhadas estão relacionadas com os vários donos (jára) da natureza,
provenientes dessa conexão coletiva, de modo que os demais agem seguindo a
intuição e a afetividade, sendo o py’a porã (coração tolerável e bondoso) considerado
o fundamento de sua ação, assim expressando o verdadeiro coletivo dos Guarani e
Kaiowá. As palavras das rezas são sagradas, inspiradas pelas palavras guarani do
mediador entre o mundo terreno e o mundo sobrenatural.

Assim sendo, no penúltimo dia, passando por três processos de rezas, com o
ritual do batismo dos Kaiowá e dos Guarani, não faltou também as rezas das mulheres,
entre as quais estavam a Angela e a Tereza Martins. Quando Jorge Paulo, Kaiowá,
iniciou sua reza, as mães permaneciam sentadas e, nas rezas Guarani, as mães ficavam
em pé. Neste ritual usavam folhas de cedro e, para iluminar o espaço, utilizavam
araity. A minha madrinha, que me tomou em seus braços, era uma senhora chamada
Leonilda (kuña morotĩ). Foi necessário, ainda, a participação do meu pai para que o
teko resãi (vida saudável) viesse me acompanhar desde então. O processo de saúde, na
nossa concepção, está ligado fortemente com o espaço que ocupamos na natureza e

21
Uns dos exemplos que destaco aqui é quando um rezador fica doente ou enfrentando
problemas espirituais, incluem-se aí sonhos incomuns, dor de cabeça ou quando é perseguido
pelos espíritos adversários. Nesses casos, ele sempre procura ajuda de outro rezador para ter
força e sabedoria para vencer.
52
nas relações recíprocas com os jára, que sempre são restabelecidos conforme as
conjunturas sociais nas quais desenvolvemos a nossa resistência cultural, linguística e
xamânica, experimentando vários teko, baseados no nosso conhecimento.

Assim, o rezador Avelino Quinhone colocou-me o nome indígena de Kunumi


Jeguaka’i, que, em tradução livre, significa “menino com pequeno cocar” ou “menino
pequeno cocar”, como resultado de uma construção espiritual com Tupã Rusu, com o
qual, a partir das rezas, dos pactos, das invocações, pediram para que a minha vida
fosse repleta de teko porã (à procura pelo bom modo de ser e de compartilhar), que
ocorreria conforme a minha ligação com os vários modos que os meus parentes
indígenas expressassem e vivenciassem. Esse equilíbrio social eu iria aprender, de
acordo com os ensinamentos dos meus pais, mas antes eles já recebiam várias
orientações de como poderia ser o meu processo educacional indígena.

Segundo a nossa concepção espiritual, os indígenas ava precisam de uma


alma com bom som (ánga ayvu porã), tanto no corpo como na alma. O guyra é um
guardião da vida aqui na terra, e antes de revelar o nome indígena da pessoa, ele
precisa conhecer o caminhar, a realidade, o espaço social22 e, sendo assim, manifesta
nela um trajeto seguro, na alma se configura toda trajetória de um indivíduo. Esse
guardião (pássaro) por vezes se distancia para antecipar o futuro, por isso o sonho. Os
animais que não são bem-vindos em nosso meio são essenciais para descobrirmos as
profecias negativas, pois, através deles, conseguimos compreender e resolver algumas
questões que poderiam acarretar problemas insolúveis.

Seguindo com a explicação dos meus parentes, deixo claro que não é a única
explicação sobre ayvu: há várias formas de recebê-lo na vida e no corpo. No meu
caso, como foi narrado por minha mãe, eu o recebi desde o meu nascimento, mas
precisava de orientação e preparação para que o ayvu se assentasse em mim com
qualidade. Há muitos casos que as crianças recebem ayvu provisório; por isso é
fundamental que recebam o batismo tradicional (mitã ñemongarai), em que os
rezadores, através das rezas, conseguem descobrir o téra ka’aguy (nome indígena),
para assentá-lo nas pessoas com segurança. Como foi descrito acima, é um processo
complexo, mas seguindo toda a orientação, sempre se consegue ter êxito.

22
Aqui me refiro o espaço da reserva indígena.
53
Portanto, cresci sendo cultivado na cultura tradicional guarani, como conta a
minha mãe. Na maioria das vezes recebia visita dos parentes Nhandéva que vinham da
Reserva Porto Lindo. Neste caso, ela recebia orientação dessas pessoas em relação a
remédio tradicional, educação indígena, língua e jeito de lidar com a criança, entre
outras. Da mesma forma acontece com a visita dos parentes Kaiowá. Assim, ela foi
adquirindo vários saberes, tanto dos Guarani Kaiowá da Reserva de Caarapó, quanto
dos Guarani Nhandéva de Porto Lindo.

Particularmente gostaria de registar que os Guarani da Reserva Te’ýikue


quase não aparecem nas pesquisas acadêmicas, tanto na graduação como na pós-
graduação. Somos invisíveis ou encobertos, e nossa história quase não aparece na
história desta região e desta Reserva. Mesmo que, neste trabalho, a minha intenção
não seja estudar a fundo sobre isso, quero deixar claro de onde vim, assim
problematizando sobre o meu processo educacional tradicional, que foi fruto de
grande experiência. Fica evidente que nunca tivemos destaque ao longo das décadas
da discussão acadêmica. Entretanto, estávamos na Reserva, criando novas
possibilidades de sobrevivência e de fortalecimento, na tentativa de facilitar o bem
viver (teko porã) em nosso meio.

No processo histórico construído, principalmente da Reserva de Caarapó, os


Guarani Nhandéva, que em sua maioria mora na região Mbokaja, não foram estudados
como deveriam, ressaltando o processo de resistência dentro da reserva, da identidade,
da dinâmica política, da língua e da reza. Existem alguns estudos, como por exemplo,
de Eliel Benites, Lídio Cavanha e alguns TCC (Trabalho de Conclusão de Curso)
feitos por acadêmicos guarani. Na atualidade, muitos desses meus parentes indígenas
nhandéva, que vivem nesta região, estão enfrentando problemas em relação ao espaço
físico, pois, desde 1965, a família vem aumentando, principalmente a família de
Hipolito Martins. Conforme o professor Alécio Martins, desde que chegaram em
Te’yikue, os Guarani Nhandéva mostraram grande resistência ao problema de negar
sua existência, algo que desonraria sua identidade e cultura.

Aprendi, na minha educação familiar, que devemos ter orgulho de quem


somos, mas também respeitar os diferentes, junto à apropriação de saberes, das
práticas tradicionais, do jeito de ser. E agora, como pesquisadores indígenas, cabe-nos
refletir mais sobre a nossa identidade étnica. O caminho é a reflexão acadêmica
constante, a pesquisa, o diálogo com os mais idosos Guarani e Kaiowá, e hoje também

54
com os pastores indígenas e os crentes. Sendo um pesquisador comprometido com a
questão indígena, não podemos entender quem somos, sem conhecer nosso histórico
familiar no contexto do histórico da Reserva. A seguir escrevo sobre minha trajetória
como ava.

Fizeram meu registro de nascimento, conhecido hoje por RANI (Registro


Administrativo de Nascimento de Indígena), com o nome de Elemir, para os brancos
me conhecerem. Nessa época, o chefe do Posto (da Funai) não colocou a minha etnia
Guarani no documento, na opinião do professor guarani Alécio Soares Martins, para
invisibilizar a existência da etnia. Na observação do rezador guarani Angelo, a
intimidação ocorria “só porque não ocupávamos a gestão da aldeia, por sermos a
minoria e por não sermos considerados [reconhecidos] pela instituição que estava
entrando na aldeia”. Por conta desta dificuldade, o chefe me registrou como Kaiowá.
Meu pai conta que, na época, para não ter problemas com os parentes, aceitou me
registrar desta forma. Se um pesquisador chegar na região onde morei e cresci, com
certeza ouvirá queixa em relação a esta questão. Havia intimidação e represália por
parte do chefe do posto, juntamente com o capitão e a polícia indígena.
O chefe que nessa época já era indígena kaiowá, mas continuava com
ação negacionista do chefe karai, falava na nossa cara que nossa raça
não prestava tampouco para trabalhar, e as polícias do capitão sempre
tentavam achar desculpa para expulsar os nossos parentes, eram na
base de pancadaria mesmo. (Virginio Soares Guarani)
Minha infância se deu em duas etapas. No meu primeiro ano de idade, os
meus pais frequentaram rezas, jeroky e rituais tradicionais, que aconteciam
frequentemente na região Mbokaja, onde o Sr. Avelino, rezador guarani, era muito
respeitado, e sua parentela o reconhecia como verdadeiro rezador. A segunda etapa foi
a adesão da minha família à igreja pentecostal e, obviamente, eu junto. Portanto, nesta
fase, vivi entre minha cultura e a nova forma ser indígena: de família crente, de igreja.

O grande rezador que me batizou, conhecia bem a realidade da minha família


e das demais famílias da região Mbokaja. Em 1994, o rezador guarani Avelino
Quinhones sofreu uma doença até então desconhecida, que ocasionou a sua morte.
Conforme sua ex-esposa, Tereza Martins, ele morreu na sua cama, sem nenhum
sofrimento. Além do Seno (meu parente), Avelino era considerado grande líder
espiritual. Há hipótese, por parte de Hipolito Martins e de Katia Martins, de que ele
morreu por ficar muito triste vendo seus parentes aderir ao evangelho cristão, ou seja,
seguir outro caminho oposto ao da cultura indígena.

55
Volto agora um pouco no tempo para descrever as andanças da minha
parentela até chegar à Reserva Te’ýikue. Faço parte de uma família que, em boa parte,
se conformou com a Reserva, mas que também está lutando para retomar o antigo
local de ocupação tradicional da parentela, que é o Kurupi Santiago Kue de Santiago
Kue, localizado no município de Naviraí/MS. Boa parte desse processo histórico pode
ser recuperado através da senhora Veronica Martins Veron, ex-esposa do falecido Ivo
Martins, que faz parte da parentela Martins, do meu tio Hipolito Martins. Portanto,
minha família, por parte do meu pai, cuja parentela é Guarani, habitava “um extenso
território que era composto por uma população resistente ao esbulho. Porém, se
manter na luta foi ficando cada vez mais difícil” (SANTOS, 2019, p. 34). Por isso
veio primeiro a família da kuñatai, que seria esposa do Hipolito Martins, pertencente à
família Soares, Vera e outras. Pelo que ela me falou, numa conversa em sua
residência, em 2018, eles vieram andando horas e horas pela estrada (que hoje seria a
BR 163) que liga Caarapó a Navirai/MS. “Viemos porque a gente sofria pressão
também por parte dos brancos, que estavam entrando em nossas áreas; ao mesmo
tempo, nós meninas, também, quase que sofremos violências. Então meus pais
resolveram vim pra cá [Te’yikue], nossa família que chegou primeiro aqui” (Veronica
Martins). Nesse sentido, Junia Santos ressalta:
No que diz respeito ao esbulho territorial de Kurupi de Santiago Kue,
este se consolidou a partir de um processo de intimidação, coação,
convencimento e expulsão praticados pelos ditos brancos. Lideranças
eram perseguidas e criminalizadas, muitos atos de violência eram
praticados em função de conflitos pela posse territorial. Em
consequência das omissões do Poder Público foram cometidas várias
violações de direitos, por carência de assistência oficial, por descaso e
deficiência de políticas sociais voltadas para a população indígena
(SANTOS, 2019, p. 34).
Como bem esclarece a autora sobre a situação da família expulsa dessa
região, e alojados na Reserva de Caarapó, eles chegaram divididos em dois núcleos
familiares: a família Soares/Vera chegou primeiro, depois veio a família Martins que
pertence referencialmente, hoje, a Hipolito Martins. É evidente que as famílias dessa
região se espalharam pelas outras reservas e aldeias, tanto que hoje, como a pesquisa
da Junia Santos demonstra, a família da senhora Veronica Martins Veron continua
lutando pela recuperação de seu antigo território. Portanto, como meu objetivo é
mostrar que, apesar de minha família se conformar com a Reserva, a ligação histórica
e a memória coletiva continuam ativas e atuantes.

56
Feita esta contextualização histórica, volto a 1994, na região do Mbokaja,
quando ainda éramos seguidores do teko marangatu (modo de ser religioso segundo a
espiritualidade ancestral), orientados pelo grande rezador guarani Avelino Quinhones.
Nesse caso, a perda deste rezador, que era muito atuante e respeitado, ocasionou uma
grande tristeza nos Guarani da região Mbokaja, pois “ele era grande pessoa, rezador e
conselheiro da família; não media esforço para ajudar alguns doentes e para buscar os
remédios” (Katia Martins, 2019). Desde então, houve algumas mudanças em minha
família. No início de 1994, meu pai viajou a Campo Grande e, nesta cidade, participou
de um culto com pessoas da igreja Deus é Amor. Ali conheceu o pastor Carlinho, que
morava na cidade de Caarapó. Virginio Soares conta que me levou para receber o que
ele chama de “milagre”, porque, nessa época, eu estava doente. Então, ele decidiu se
converter, como ele mesmo diz, “entregando a alma pra Jesus” e teve a ideia de
instalar um ponto de oração naquela região da reserva. Primeiramente tentava
“organizar o evangelho”, ou seja, a igreja, na casa de Hipolito Martins, que no
primeiro momento aceitou. Mas, segundo Soares, logo depois de um mês, por um
desentendimento, mudou o ponto para a casa do casal Mariana Martins, que ficava a
cerca de 250 metros do local anterior.

Nesse ambiente, onde o pastor conduzia pregação e oração, constituíam-se os


crentes indígenas. A liderança capitão23 dessa época já permitia a entrada de alguns
pastores brancos para fazerem atividades religiosas nas casas das pessoas, com a
permição delas. Nesse primeiro momento, converteram-se ao pentecostalismo o casal
Mariana Martins, Lauriana Escobar, Felipa Soares, Kátia Martins, Roberto Soares,
Vitoria Rosa, Oracio Soares e Luiza Rosa. É interessante notar que só se convertiam
os parentes. Como os meus parentes enfrentavam muitas dificuldades, sejam
espirituais, financeiras e outras, viram na conversão uma saída para superar isso.

Como o pastor branco insistia em batizá-los, fizeram o primeiro batismo


desses novos convertidos crentes no mês de abril de 1994, na represa24 que havia perto
da cidade de Caarapó. Nessa época, o grupo já havia conseguido converter muita
gente. Conforme o levantamento que fiz, passava de 200 pessoas convertidas. Como a

23
Na opinião de Rosenildo Isnard (in memoriam), a liderança não tinha mais muita força para
solucionar alguns problemas que estavam se agravando na Reserva Indígena, principalmente a
violência e a bebida alcóolica. Por isso, segundo ele, permitindo a entrada da igreja, solucionaria
estes dois problemas.
24
Essa represa ficou conhecida por Airton Senna, que, em 2015, foi destruída pelas chuvas.
57
maioria dessas pessoas não tinha estudos, ninguém se preocupou em anotar num
caderno os nomes nem o número dos fiéis. O pastor que atuara com eles também não
conseguiu me passar algumas fontes, portanto, fiz contagem de acordo com as
recordações da parentela.

Após esse batismo, todos os parentes com os quais eu tinha proximidade se


tornaram “crentes”: minha avó, por parte da minha mãe, tia, tio e alguns primos; e, por
parte do meu pai, a outra avó, tias, tios e alguns primos e primas. Por isso, este foi o
segundo momento da minha infância, a partir de 4 anos de idade, que denominei de
“infância pentecostal”, em que meus pais me criaram conforme esta doutrina religiosa.
Tradicionalmente os Guarani já têm educação indígena muito rígida, e com as
doutrinas pentecostais, conforme a observação de um professor indígena da Reserva
de Caarapó, essa educação ficou mais complexa, pois pregava-se aos fieis indígenas
para cuidarem de sua família, educando-os de acordo com os preceitos da Bíblia.

Foto 1: Pesquisador dentro da igreja pentecostal

Fonte: Mariana Martins

Para deixar mais clara a minha trajetória, coloco-me em imagem neste


trabalho, a fim de mostrar como foi a minha infância. Nesta foto está o irmão Simão,
sua esposa Claudia e a criança que está no braço dela é o meu irmão.

Como se pode notar na foto, a igreja sempre foi uma oga kapi’i (casa de
sapé), onde se construía coletivamente pelos novos membros que chegavam. Toda
informação eu tive conversando com minha mãe Mariana Martins, minha tia Kátia
Martins, meu pai Virginio Soare, Hipolito Martins, algumas vezes com minha tia

58
Luiza Rosa, tio Roberto Soares, tia Felipa Soares, ex-crente, como no caso do Simão,
e outros.

Na imagem também pode ser notado como era o púlpito25 naquela época,
construído com madeira, usado para colocar a Bíblia em cima, o óleo da unção26 e, ao
mesmo tempo, para facilitar a leitura. Na hora do culto só podiam ficar no púlpito o
pregador, o violeiro e alguns obreiros27 com autorização do dirigente, pois
considerava-se esse espaço como sagrado, por isso não podia entrar qualquer pessoa.
Usava-se pano branco para destacá-lo como lugar sagrado, onde aconteciam os
milagres, oração fervorosa, onde se conseguia conectar com as divindades
representativas da religião (Jesus e Espírito Santo). De acordo com a campanha em
vigor, o pregador chamava todos os obreiros para fazerem oração de mãos dadas;
assim, conforme a explicação de Virginio, conseguia-se invocar o espírito de Deus
para resolver os problemas das pessoas, batizá-las e para abençoar o local.

Os cartazes que aparecem ao redor do púlpito foram elaborados por membros


da igreja que conseguiam dominar a escrita, pois estudaram na Missão Caiuá. Nos
cartazes colocavam o nome da Campanha semanal, do organizador do culto, dos
obreiros responsáveis pela campanha, tudo escrito na língua portuguesa.

Essa foto retrata um pouco a minha recuperação depois de alguns meses com
catapora, que quase tirou a minha vida. Minha avó Lauriana Escobar conta que fiquei
muitos meses com essa doença, com dificuldades para me movimentar e me
comunicar com as pessoas. Por isso, meus pais pleitearam ser evangélicos verdadeiros
e se dedicaram a me tornar um bom crente, pregador, violeiro e cantor.

Depois que me recuperei da catapora, meus pais me falavam para ser


obediente a Deus e segui-lo. Para que isso fosse possível, seria necessário me afastar
“das coisas do mundo28”, não podendo praticar esporte e proibindo-me de manter
contato com as famílias de rezadores. Aprendi, nessa época, a ser um bom filho de
crente: como me vestir, me comportar na igreja e fora dela, ajudar meus pais na roça,
orar, entre outras regras. Aprendi que era necessário seguir todas essas normas, para
entender o processo traumático de castigo que sofre dos pais, das doutrinas sobre o

25
Púlpito é uma espécie de balcão, ou uma plataforma mais elevada, na frente dos fieis.
26
Unção é o ato de benzer as pessoas, com óleo bento.
27
Obreiro é o auxiliar do pastor.
28
Expressão usada pelos crentes indígenas, principalmente ao dar testemunhos nos cultos.
59
inferno, etcque qualquer criança pode sofrer. Isso corrobora a afirmação de Pereira
(2004, p. 110) de que “as relações entre as pessoas no interior da parentela têm
importante papel na socialização das crianças, pois proporcionam uma série de
situações que levam as crianças a incorporar padrões de comportamento tidos como
apropriados entre pessoas consideradas parentes”.

Sempre que podíamos, eu e os meus irmãos jogávamos bola no pátio da


nossa casa. Almejávamos brincar e viver como qualquer criança indígena, que
pudéssemos sair pela mata, caçar passarinhos, pescar, tomar banho nos lugares
diferentes, ouvir uma boa reza e dançar, mas a nossa alegria e vida eram limitadas.
Pude perceber isso através das regras estabelecidas pelos evangélicos, principalmente
da minha fampilia.

Ao consultar os rezadores, me falaram que “desviei” do meu caminho, o qual


já tinha sido abençoado pelos nhanderu no meu batismo, por isso, essa doença se
manifestou tão rápido em meu corpo. Tive uma infância bastante árdua, e, segundo
meu pai, toda cura que alcancei foi fruto da dedicação dele à nova religião, em que ele
fazia campanhas de sete dias, de jejum, e ganhava “almas para Jesus” e oração.

Na minha juventude tive muito temor pelas palavras bíblicas repassadas nos
cultos. Meus pais me educavam, segundo eles, mesmo que isso não tenha na Bíblia,
estava nos ensinando de acordo com a Bíblia, cuja doutrina era bem pesada: raspavam
meu cabelo, faziam-me participar todo dia de culto e vestir roupas adequadas de
família pentecostal. Além disso, nessa fase ouvia muita pregação sobre salvação
divina, cura, libertação, demônio, dilúvio, macumba, fim do mundo e outros temas.

Sobre as roupas, vale salientar que, até os 7 anos, podíamos ainda vestir
calção e qualquer camisa. Entretanto, não era permitido aos filhos dos crentes,
principalmente meninos, ficarem sem camisa, tampouco jogar futebol, frequentar as
atividades xamânicas dos parentes indígenas. Tentavam afastar-nos de tudo que,
segundo os crentes, era considerado negativo.

Entretanto, os grandes conhecimentos da sabedoria tradicional que meus pais


adquiriram ao longo da vida fizeram com que eles me apresentassem e ensinassem
como funciona a vida na comunidade, o respeito e a importância de ouvir, me fizeram
entender que a presença é importante. Tudo isso configurou minha maneira própria de
ser guarani também na convivência com a religião ocidental, e vivenciando

60
coletivamente, com as pessoas da comunidade, as experiências do teko (vida, jeito de
ser coletivamente). Mesmo tentando me distanciar da cultura tradicional,
preocuparam-se também em me contar muitos aspectos relacionados a ela, mas não
deixaram que a praticasse, tampouco a valorizasse. Falaram-me que muita coisa
mudou na Reserva e, por isso, precisaria que seguíssemos o evangelho, para não
sofrermos e sermos influenciados pela maldade do mundo.

Sempre ouvi, nos testemunhos da igreja, que não havia mais rezador, que só
existia rezador gua’u ka’u (rezador de mentira, bêbado ou sem habilidade), os quais só
praticavam suas rezas para enganar o povo, também para causar mal às pessoas que os
confrontassem. Neste caso, sempre conseguiam me convencer. Nunca me atrevi a
desrespeitar os meus pais. Ao encontrar alguns rezadores na estrada, perto da roça, ou
quando os recebíamos na nossa casa, logo os cumprimentava com respeito e já dava
benção, com as duas mãos fechadas. Acreditava que eles iam me causar algo negativo;
o temor era muito grande.

Na região Sãka Pytã da Te’yikue morava um rezador que causava medo nas
pessoas da comunidade. Ele foi considerado o “maior feiticeiro” da aldeia, embora
apresentasse um comportamento positivo em seu espaço de convivência. Por outro
lado, sofria muita perseguição. Quando caía um raio na casa de algum indígena,
quando morriam alguns parentes, ou até mesmo quando acontecia algo inexplicável,
do ponto de vista da comunidade, da liderança capitão ou dos evangélicos, já o
acusavam de ser o responsável pela tragédia. Então, todo investimento negativo, por
parte da comunidade evangélica em relação à função do rezador, focava muito em
feitiçaria, e usava-se o exemplo deste xamã mencionado para convencer os fieis de
que havia mais rezadores com essa habilidade negativa.

A família desse nhanderu sofria muito na escola. Muitos alunos indígenas se


afastavam de seus filhos, por serem “filhos do feiticeiro”. Mesmo tendo receio dele,
conseguimos nos aproximar e nos tornamos amigos. Durante o recreio, sempre o
procurava para andarmos no corredor da escola e para jogarmos bola. Sempre foi bom
comigo e me ajudava a entender sobre “ponde”, que significa amuleto de proteção e
para dar sorte. Claro que aprendi isso escondido de meus pais, pois se eles
descobrissem, eu ficaria de castigo por um bom tempo. Como meus pais não tinham
muita rama de mandioca, começaram a se aproximar deste rezador para fazer trocas.
Por outro lado, conforme apurei, essa aproximação exigia muita cautela. Não

61
tomavam muito terere, tampouco almoçavam com eles. Estas são algumas das
experiências que me deixavam com medo.

Raramente participei, desde que fui batizado, dos rituais indígenas, de rezas
e danças que aconteciam pelas regiões da aldeia. Investiam na minha formação, com
base na educação religiosa pentecostal e no sistema guarani de educar. Portanto,
misturaram esses dois sistemas educacionais para barrar, segundo os evangélicos
indígenas, o teko vai (imperfeição da vida). E ainda, de acordo com eles, com o teko
vai, o indivíduo pode se tornar um criminoso, um maluko’i (vida com drogas e
violências). Aliás, falavam que alguém que sai de casa à noite tem maior chance de se
“perder na vida”, porque poderia encontrar os “maloqueiros” da noite, e estes lhe
roubariam a vida e o levariam à “perdição”.

Na hora da pregação na igreja, o dirigente falava muito para os membros


trazerem seus filhos para a igreja, pois, segundo ele, “participar da festa dos rezadores
é o mesmo que entregar os jovens à perdição, por exemplo, na cachaça, na violência”,
o que poderia ocasionar a morte e outros problemas. Do mesmo modo, os pais eram
pressionados a ser exemplo na educação dos filhos, tornando-os crentes. Os problemas
que aconteciam na aldeia foram utilizados também para convencer os fiéis a chamar
os seus parentes à igreja.

Algumas famílias, que residiam há alguns anos na região, preferiram mudar


para outra aldeia, porque “não quiseram aderir ao evangelho”, ou vê-lo como “única
solução ou saída”.

1.2.3 Vida escolar: subjetividade no meio de vários “ore”


Iniciei minha vida de estudante depois dos 6 anos de idade, até porque, nessa
época, os pais não mandavam seus filhos à escola tão cedo, pois fazia parte do
ñeñangareko (cuidar da infância das crianças). Não tão diferente das demais crianças
guarani, transitei nos dois mundos religiosos: ao mesmo tempo em que frequentava
culto pentecostal, também ouvia sempre os cantos ao longo da noite. Esses cantos
vinham da redondeza da minha casa, onde minhas tias Claudia Martins e a Tereza
Martins cantavam toda noite. Na maioria das vezes, elas organizavam jeroky (dança
religiosa), quando os Guarani e Kaiowá se juntavam para celebrar a vida e a colheita
de plantações. Isso acontecia entre os anos de 1999 a 2005.Vi algumas crianças da
minha idade enfrentando a mesma epidemia de catapora que eu havia enfrentado, que,
segundo a minha vó Lauriana Escobar, quase me levou ao óbito. Assim como meus
62
pais, eu vi também os pais de algumas crianças chegarem à igreja desesperados, mas
com esperança de buscar cura para tais doenças. Minha tia Luiza Rosa conta que eles
recebiam oração dos fiéis, e também recomendações de plantas medicinais por parte
das mulheres da igreja e de alguns homens. “Mas o nosso líder da igreja pedia para
essas pessoas frequentarem a igreja, bem como para se arrepender dos seus pecados,
para as doenças não chegarem mais deles” (Luiza Rosa). Ela também contou que os
crentes sempre demonstraram dedicação ao recém-chegado na igreja.

Lembro-me bem dos cantos indígenas que ecoavam em meus pensamentos,


que surgiam dos quatros cantos da região Mbokaja, durante a noite, depois que o culto
da igreja terminava. Respeitavam os evangélicos, e não faziam seus rituais durante o
culto pentecostal. Por outro lado, nessa época eu já presenciava intolerância religiosa
por parte dos crentes. Na igreja havia bateria e caixa de som, com microfone, para
“facilitar a evangelização”, os líderes evangélicos gritavam falando dos demônios que
existem entre o que não são frequentam a igreja. Esse investimento em aparelho de
som, segundo Virginio, facilitou muito o trabalho de evangelização, pois, segundo ele,
“as pessoas ouviam sobre a pregação dos crentes, bem como os testemunhos que Jesus
Cristo salva e cura”. Quando tinha “pregação poderosa”, como os evangélicos
denominam, geralmente toda sexta-feira da semana, o tema da oração e da pregação
era sempre sobre feitiçaria, demônio, idolatria. A prece dizia assim: “Jesus Cristo,
venha queimar a obra da bruxaria, feitiçaria, onde esteja que o Senhor venha
queimar todos eles com teu fogo divino. Que essas pessoas perdidas nas trevas
venham aceitar o Senhor Jesus, venha libertar todos e faça seu milagre...”. Essa
invocação chegava, pelo som nas alturas, até as casas dos rezadores, deixando-os
profundamente intimidados. Por isso mesmo, eles se mudavam para longe das igrejas.
Assim falou o rezador Maurilio, da Te’yikue (2019): “A gente, né, ouvia tudo que eles
falavam, a gente fica como negativo mesmo, as palavras são de ameaças e de
intimidação; isso acontece por sermos rezadores ou sabedores da cultura indígena”.

Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo com minha cultura,
nem sabia o que era cultura. Sem que soubéssemos, os não indígenas já haviam
destruído o nosso território, transformando-o em pasto de gado e plantação de soja. Na
reserva, com toda influência por parte dos evangélicos e do preconceito que se
enraizava em relação aos indígenas, quiseram me dar uma cultura que me deixaria
mais forte espiritualmente. Mas foi o contrário: eu não sabia que me tornaria mais

63
pobre espiritualmente e que eu iria odiar falar na minha língua materna, odiar os
rezadores e desprezar minha essência indígena. O momento em que voltei a me
reconhecer e me fortalecer, foi na época em que comecei a frequentar a escola
indígena e me reaproximar dos mais idosos, sobretudo dos rezadores. Na escola, o
professor indígena trabalhava sobre a nossa realidade, aprendíamos sobre a
importância das árvores, dos rios, dos animais e dos seus guardiões, e também sobre a
importância de fortalecer a nossa língua indígena.

A escola onde estudei foi construída de sapé, denominado pelos Guarani e


Kaiowá de óga kapi’i (casa de sapê). Essa escola, além de oferecer espaço não tão
diferente da realidade do aluno, também ofertava uma educação escolar diferenciada.
Conforme o professor Alécio, “a gente buscava trabalhar diferenciado com os alunos,
aliás, a própria escola refletia isso nos alunos, onde eles chegavam sem medo, com
pezinhos empoeirados, roupas humildes e nós professores indígenas os recebendo bem
para que se sintam acolhidos”. Nessa sala cabiam 15 ou, no máximo, 20 alunos. Atrás
da sala foi instalada, provisoriamente, uma cozinha onde os alunos lanchavam.
As aulas começaram embaixo da casa de sape. Foi construída entre
1997-1998, onde muitas pessoas da região Mbokaja fizeram multirão
(pucherõ – trabalho coletivo) para levantar escola. Foi meio difícil no
início, segundo a minha observação, até porque esperamos alguns
anos para termos escola de tijolo, outro problema que enfretamos em
relação a construção da escola foi parte de alguns parentes que não
aceitavam muito, pois falavam que a escola ficaria apenas pra família
da região. Mas aos poucos eles mais ou menos aceitaram. Então, a
escola Mbokaja é visto ainda até hoje como se fosse só da família,
porém não bem assim, porque aqui tem alunos das duas etnias tanto
Guarani e Kaiowá e assim fomos fortalecendo a nossa identidade e
mostrando o quanto nossa etnia é importante para o coletivo maior,
sobretudo para quebrar o paradigma em relação aos Guarani
Nhandéva do Mbokaja. Vejo que precisamos trabalhar mais a nossa
cultura, investir mais nisso. Começando pela presença contínua dos
rezadores na escola e no espaço, para que os alunos se sintam à
vontade em interagir com eles e aprender. (Professor Guarani Crispim
Soares Martins, 2020).
A imagem a seguir mostra a estrutura do interior da sala de aula.
Foto 2: Primeira escola da região Mbokaja feita de sapé

64
Fonte: Alécio Soares Martins

O primeiro professor que tive foi Alécio Soares Martins, que me alfabetizou
em Guarani, dentro de uma escola de sapé, onde aprendi a ler e a escrever como ava
(indígena). Como meu pai era da igreja pentecostal, não quis que eu frequentasse a
escola da Missão, por causa da distância e para não sofrer por ser de família
pentecostal.

Como já mencionei, fui alfabetizado na língua materna Guarani. As primeiras


palavras que consegui escrever foram: yvy, ysyry, ygua, yvyra, ysy, ama, ava, avati,
entre outras. O professor trabalhava com os nomes dos animais, das plantas, dos rios,
do nosso cotidiano. Não trabalhava as vogais em sequência, pois, como indígena,
gosto muito da vogal “y”, e eu tentava sempre me lembrar das palavras pronunciadas
no dia a dia das pessoas, até porque são palavras que os espíritos nos deram.

Ser de uma família pentecostal requer resistência também, pois algumas


famílias consideradas pelos crentes indígenas como “católicos”, zombavam, imitavam
a oração que os meus pais faziam só para me intimidar. Para mim, foi um pouco
difícil, porque eu não conseguia entender bem o que estava acontecendo. Na escola, as
crianças da minha idade riam muito do meu cabelo, do meu estilo, que minha mãe
fazia questão de me diferenciar como filho de crente. Ela falava que o filho de um
crente tem que ter comportamento diferente do das demais crianças, por exemplo, não
jogar futebol, não conversar com filho do rezador e com a família do “católico”. Para
meus pais, “católicos” são os que não frequentam culto e possuem vaidades do
mundo. Antes de ir à escola, meus pais já conversavam comigo, proibindo-me de

65
jogar futebol e me orientando para ser um exemplo de criança no molde pentecostal.
Entretanto, sempre que surgia oportunidade para jogar com os colegas, eu aproveitava.
Como a escola ficava perto de nossa casa, optaram em me colocar ali, pois para eles
eu não teria muitos problemas relacionados às restrições impostas pela igreja.

Além do ensino religioso, através do kokue (roça) meus pais me ensinavam


também sobre o teko porã (o bem viver indígena), para que eu pudesse priorizar a
reciprocidade e o respeito pela natureza, conhecendo mais sobre ela, sobre os animais
e os cuidados que eu, como indígena, deveria ter. A roça foi importante para entender
sobre o espírito coletivo dos Guarani e Kaiowá. Através do puxerõ, juntavam-se
vários homens para preparar a terra para a roça e plantar. Certo dia, eu estava meio
emburrado com meu pai, e ele queria me levar para carpir com ele, mas, como eu
estava com esse comportamento, não podia, pois a plantação de arroz é bem delicada,
pois isso possibilitaria um mau agouro e poderia afetar a plantação. Assim, eu fui
aprendendo e fortalecendo os conhecimentos sobre os cuidados, na perspectiva
indígena.

Como se pode ver, minha vida adulta iniciou cedo, na roça, onde me
transmitiram e me ensinaram as práticas coletivas e a importância dos princípios
guarani, sendo um lugar de educação indígena e do modus vivendi indígena (teko),
onde os laços familiares são fortalecidos também. Na hora da capina ou do tereré,
conversávamos sobre a história dos mais velhos, dos parentes que faziam parte da
formação do lugar e sobre os preceitos culturais. Enquanto isso, minha mãe fazia a
colheita do milho e dos demais alimentos que havíamos plantado e me explicava sobre
as sementes. Nossa família tinha duas roças, sendo que uma ficava perto da nossa casa
e a outra ficava um pouco mais longe.

Aos poucos esta atividade tradicional foi enfraquecendo no meio da minha


família, porque meu pai saía muito para fazer seu trabalho de pastor nas demais
aldeias e para trabalhar na usina, e minha mãe cuidava de uma filha com necessidade
especial, situação que transformou muita coisa. Sozinha em casa, ela ficava
sobrecarregada de responsabilidades: ao mesmo tempo em que se preocupava com a
nossa educação, também se preocupava em cuidar da igreja. Isso exigiu dela muita
resistência, mas conseguiu equilibrar sua responsabilidade, porque contou também
com a ajuda de alguns membros da igreja.

66
Mesmo com dificuldade, minha mãe sempre me mandava para a escola. Na
terceira série estudei com Lidio Cavanha Ramires, um professor que sempre focava na
questão da nossa cultura ancestral, falava para nós sobre nossas artes, rezas, aldeias,
rios, pesca, conto, poesia, entre outros assuntos. Isto me despertava interesse em
conhecer mais, aprender de novo, reavivar dentro de mim a minha espiritualidade
indígena e a minha cultura.

Na medida em que a escola indígena diferenciada estava se firmando na


Reserva Indígena de Caarapó, por outro lado houve resistência por parte dos crentes
indígenas para não reavivar a cultura indígena. Por exemplo, na minha família não se
falava muito das histórias antigas guarani e kaiowá (marandeko ymaguarẽ - mitos de
origem), raramente se conversava sobre isso. Meu pai falava que só assim poderíamos
ser “abençoados por Deus e receber dom de curar, dom de revelação, dom de
avivamento, dom de cantar, dom para tocar instrumento, dom para liderar”. Lembro-
me que os dons mais almejados nessa época eram o dom de curar, o dom de expulsar
demônio e o de revelar, principalmente pelos líderes da igreja (dirigentes da igreja),
que ficavam muitas horas fazendo oração, jejum e frequentando o “monte”29. Por isso,
muitas vezes, pediam para “apagar” alguns saberes e habilidades tradicionais
adquiridas do xamã da parentela.

Faço um parêntese no assunto da escola, para mostrar um pouco como era a


metodologia usada para a doutrinação, que não poupava nem os anciãos. Mesmo não
dominando bem o Português, os pastores e ‘obreiros’ iniciavam sua oração da
seguinte maneira: “Senhor Jesus, venha tirar toda a vaidade da minha vida e da minha
alma, quero ser teu servo, preciso da sua benção na minha vida, arranca de mim coisa
do mundo, me liberta, Senhor. Entrego a minha alma para o Senhor, preciso do seu
dom.” Esse tipo de oração foi apropriado do pastor branco, quando vinha para fazer
seu culto, que iniciava assim: “Venha abençoar esse povo, tire ele do mundo das
trevas, transforme ele em teu servo e tua serva, purifique com seu poder”. Assim,
alguns ‘obreiros’ ouviam com atenção e a decoravam. Na visita, os pastores brancos
ensinavam a eles as regras da oração. Foi assim que meus parentes aprenderam a orar
e cantar na língua não indígena. O pastor da cidade trazia um livro em que havia hinos
e, no culto, ensaiava-se muito para todos decorarem, desenvolvendo, assim, o gosto

29
É um lugar que fica isolado, geralmente no mato, onde segundo pastor Cornelio, se busca a
presença de Deus com mais liberdade e pedir ajuda, onde há momento de se confessar, pedir
perdão e pedir dons espirituais.
67
pela música gospel. Tinha música com harpa e os pastores de fora cantavam durante
os cultos na aldeia.

Lauriana Escobar, membro da igreja, contribuiu muito com minha educação,


aperfeiçoando meus conhecimentos indígenas; sempre falava dos seus antepassados,
das rezas, dos principais rezadores que se destacavam pela região. Ela me ensinava
sobre as armadilhas tradicionais (monde) para pegar alguns animais; dos cuidados que
devemos ter com a natureza, com os jára e outras coisas. Ao mesmo tempo em que
sofríamos com a doutrina da igreja, através da qual os líderes evangélicos tentavam,
de toda forma, demonizar as práticas tradicionais, as rezas, os cantos, as pinturas, as
histórias indígenas e os remédios tradicionais, sempre conseguíamos aprender sobre a
nossa cultura e a vida indígena. Às vezes ela recebia punição do dirigente indígena,
mas sabia da importância de passar o conhecimento para nós: “Nós indígenas
precisamos saber dos acontecimentos e das coisas boas que os nossos antepassados
faziam, a rezas e as vidas indígenas sempre terão forças se conhecerem bem dos seus
lugares e das forças que têm”. (Lauriana Escobar)

A punição tinha várias formas, dentre as quais destaco: “pegar banco” por um
mês ou mais, sem poder cantar; contar testemunho e frequentar o culto todos os dias;
não tomar “santa ceia”30; mas também dependia de cada dirigente da igreja, até porque
ele determinava as regras. “Pegar banco”, segundo a explicação deVirginio Soares, “é
uma das formas da gente se endireitar no caminho de Deus, mas sempre tem gente que
não respeita mesmo levando punição de 3 meses ou mais; principalmente os mais
idosos e idosas que fazem parte da família de rezadores”. Para a minha avó, Luiza
Rosa, que fez parte da geração dos rezadores, era sofrido: “Eu sei de muita coisa, sei
das rezas de que minha vó cantava e fazia a gente ouvir, sei também sobre os
remédios nossos, por isso, eu acho que é importante passar aos nossos filhos, netos e
netas, então mesmo sendo crente, isso não impede de eu passar esse conhecimento e
ensinar as pessoas que querem saber disso”.

Mesmo fazendo parte do grupo pentecostal, os anciões e anciãs sempre


buscavam narrar aos netos sobre as histórias de lutas indígenas, sobre as rezas e seus
significados, as pinturas, a importância da natureza e das plantas medicinais, sobre os
cuidados que as crianças, os jovens, as gestantes indígenas e todos devem ter com

30
Santa Ceia é um ritual da igreja, durante o qual se oferece pão, para relembrar a ceia de
Cristo.
68
animais que trazem notícias ruins (guyra mbora’u, mymba mbora’u). Alguns animais,
como o lobo-guará, não são comuns aparecerem para os indígenas na estrada, na mata
ou na aldeia, pois traz notícia anunciando a morte de alguém. Neste caso, a reza e o
benzimento dos mais antigos ou rezadores são importantes para afastar essa notícia
desagradável.

Voltando ao ambiente escolar na minha vida, apesar de não ter muita


habilidade no estudo, fui aluno esforçado, porque eu conseguia fazer minhas tarefas,
decifrando os códigos da língua Guarani, tentando escrevê-la e aprimorá-la. No
primeiro momento sofri muito para ler e também para escrever. Na minha casa, eu
tinha muitos afazeres, então, não fui incentivado a estudar, sempre nos
preocupávamos em trabalhar para não passarmos dificuldades. Entretanto, mesmo
assim, eu conseguia ler e me esforçar para passar de ano.

Lembro-me da primeira vez que consegui escrever duas linhas de frases


sobre as árvores, e vi como era importante para mim. Como naquela época não tinha
muitos cartazes com alfabeto na minha língua, foi difícil decifrá-los, parecia-me que
era impossível chegar ao nível que o professor esperava. Por outro lado, havia outro
tipo de ensinamento que eu precisava seguir e que limitavam meus pensamentos sobre
o mundo. Meu movimento era da escola para casa e para igreja. Todos os dias
participava do culto. Destaco o pensamento limitado e o espaço limitado em que me
colocavam, para regar o meu medo com a ignorância e o abscurantismo, com objetivo
mais explícito de destruir meu caminho indígena. Posto isso, percebo as regras
familiares e das igrejas pentecostais como movimentos para tornar-me ore evangélico,
como sendo um único ore, sem poder receber os que não pertencem a ele, ou seja, não
pertencentes ao grupo dos crentes pentecostais.

Além da minha avó, desde o primeiro ano escolar, só o professor passava


alguma coisa relacionada à cultura indígena. Como o processo da educação escolar
indígena estava em construção na aldeia, a comunidade ficava dividida entre os
saberes tradicionais e os saberes dos brancos (karai), porque a igreja influenciava
nessa questão. Sobre isso, Virginio Soares comenta da seguinte maneira: “A gente não
queria ser diminuído por sermos crentes, tentávamos ser respeitado aqui na aldeia e lá
fora, pra isso precisávamos que os nossos filhos aprendessem também a língua dos
brancos. Eu sabia que a igreja conseguiria despertar muita coisa boa nas pessoas”.
Conforme esta fala, fica claro também o empenho dos indígenas pentecostais em

69
romper a exclusão que sofriam da sociedade não indígena e da Reserva. Para isso
cobravam dos professores o ensino da língua portuguesa desde a alfabetização.
Conforme a análise de Soares, por meio da escola as pessoas conheceram mais a
realidade e como cobrar os seus direitos. Essa problemática perdurou até 2005, pois se
aceitava mais o ensino da língua Guarani, com exceção de outras práticas culturais.

Quando os pais pentecostais descobriam que os filhos estavam sendo


influenciados pelos professores a aprenderem as rezas e danças, logo tiravam da
escola ou proibiam os filhos de participar destas atividades escolares, entre as quais se
incluía também a Educação Física. “Eu não deixava mesmo, pois eu tinha medo do
castigo de Deus, e com ele não se brinca, temos que seguir ele com toda força, creio
que só assim pode alcançar a misericórdia dele”, me disse Virginio Soares. Faziam
questão que seus filhos e alunos se vestissem com camisa e calça sociais, para os
professores não os obrigarem a participar das atividades culturais, que passaram a
fazer parte do currículo da escola indígena. Nessa situação, os professores buscavam
resolver o impasse na base do diálogo com os pais, explicando-lhes sobre a
importância de os filhos interagirem com o mundo escolar, principalmente em relação
às práticas culturais.

Assim cheguei na quarta série, com o professor Alécio, momento em que ele
viu meu empenho e me aplicou uma prova para ir direto para a quinta série. Consegui
ser aprovado e cheguei à Escola Ñandejara, localizada no centro da aldeia. Portanto,
meus professores das séries iniciais foram Alécio, Ladio e Lidio.

Na quinta série foi mais difícil, já que a maioria dos professores eram da
cidade e o meu Português estava abaixo dos demais da turma. Ficava no canto da sala
para não ser questionado. Esse tipo de comportamento adquiri na igreja, porque ali as
crianças sentavam no canto e não podiam falar, nem brincar, só podiam ir ao banheiro
e beber água; na maioria das vezes o ‘obreiro’ ficava responsável por elas. Na hora da
pregação, ficávamos assistindo o pregador falar.

Mesmo com esse comportamento adquirido da igreja, esforcei-me bastante


para ler na outra língua, ficava horas e horas lendo a Bíblia dos meus pais, porque,
nessa época, não fui autorizado e os demais alunos para pegarem livro da escola.
Lembro-me da primeira vez que li sobre o nascimento do mundo, no livro de Gênesis,
na Bíblia. Copiava as palavras no meu caderno para pronunciá-las. Assim, conseguia
aprender palavras novas e também ouvindo os colegas falar, por exemplo, para pedir
70
licença, para agradecer. Aliás, a professora de língua portuguesa fazia questão de nos
ensinar cada palavra para esquecermos da nossa. Ela explicitava isso. Todavia,
sabendo transitar nestas duas realidades distintas, superei alguns obstáculos,
conseguindo ler e escrever em Português e, ao mesmo tempo, não me esquecendo da
minha língua mãe.

Portanto, minha relação com a igreja pentecostal começou desde o primeiro


ano de idade. Presenciei muitas transformações, sobretudo no que diz respeito aos
líderes evangélicos, durante esses anos. Participei de muitas “concentrações”, que são
ocasiões nas quais os indígenas se reunem para “orar, louvar a Deus, pregar cura
divina, libertação”. O termo “concentração” é muito utilizado pelos pentecostais
indígenas da aldeia, e para eles significa o “momento de união do povo de Deus”,
onde se reúnem crentes de várias igrejas, com pregadores convidados de outra aldeia,
geralmente.
Na concentração a gente consegue mostrar ao povo da aldeia o quanto
nosso Deus é poderoso e da nossa existência. Às vezes eu sento na
igreja pensando nos problemas que acontecem por aqui, casal
brigando, se machucando, os funcionários se perseguindo, as crianças
adoecendo e os jovens não sabendo mais o que fazer da vida. Então,
eu dava ideia para os irmãos de outras igrejas para fazermos culto no
pátio da escola mesmo, lá na quadra mesmo...quando a gente
conseguiu fazer foi muita gente, até os professores da escola estavam
lá recebendo bênçãos de Deus. O culto se organizava primeiramente
com oração de uma hora mais ou menos, onde o cooperador apresenta
a Deus o seu povo e os católicos da aldeia e pedindo para que Ele
venha fazer milagre e abençoar os participantes em geral. Depois abria
para os cantores mais destacados de outras igrejas para louvarem. Pra
isso já tinha alguém nos ajudando, pegando os nomes de quem vai
cantar. Aí o servo de Deus que distribui a oportunidade já os chama
para cantarem. Nessa hora, o Espírito Santo se manifesta na vida dos
crentes. Assim o servo de Deus que vai pregar a palavra do Salvador
já sente que Ele está no meio da multidão, então ele já começa
revelando as pessoas doentes, perturbados, macumbados, nesse caso o
pregador é livre para revelar, cantar, pregar, sentir o Espírito Santo.
Então aos poucos a gente vai organizando de novo essa concentração
do povo de Deus. (SEVERIANO MARTINS, 2019)
Conforme um pastor indígena, esse momento de união depende muito da
coletividade, sobretudo para “ganhar alma”, ou seja, para conseguir novos membros
para a igreja. A estratégia é fazer esse movimento no centro da aldeia, pois é nesse
local que o fluxo de gente é grande. O tema da pregação sempre é focado na cura e na

71
“libertação”31. Para ter a liberação do pátio da escola depende muito dos membros da
igreja que têm proximidade com o diretor ou com alguém que é responsável pela
escola ou com o capitão.

Antes de eu “levantar minha mão” na igreja, alguns mambros não me davam


a “paz do Senhor”, que era uma saudação de respeito e reconhecimento. Chamavam-
me apenas de “visitante” ou de “católico”, pois eu apenas tocava violão na igreja, e
não me davam oportunidade para eu cantar, dar testemunho, tampouco para orar e
vestir capa ou paletó e gravata.

Com a idade de 13 anos “levantei minha mão”, para que todos me


considerassem “irmão da igreja”. Decidi fazer isso porque eu queria muito alcançar o
mundo que tanto ouvia na pregação dos pastores. Mesmo não sabendo fazer isso, fiz o
esforço de ser o que nunca conseguiria ser. Pareceu-me ter ido à guerra sem ter
treinamento, quando o canhão da responsabilidade me acertou e me dividiu ao meio, e
cada uma de minhas metades ganhou vida independente da outra. Calvino (2011),
através de seu protagonista, me fez questionar sobre os aspectos da minha realidade e
do meu próprio “eu”, sobre coisas que quem está fora da realidade consegue explicar
muito melhor. O autor mostra, com o Visconde, a possibilidade de nos questionar
sobre o que nos torna hente (humanos) e como procurar viver e nos adaptar a um
coletivo diferente.

Essa procura pela metade que nos falta é continua, até porque essa exigência
por parte dos crentes pentecostais requer cada vez mais distanciamento de nós
mesmos. O pastor, que era meu próprio parente, durante os cultos, sempre pregava
sobre a morte de Jesus Cristo, quando salientava a importância de reconhecermos “o
sacrifício que ele fez, principalmente para salvar a humanidade do pecado”.

Quando se “levanta a mão” diante dos demais crentes da igreja, geralmente,


todos o reconhecem como pertencente ao “mundo do evangelho”. O pregador sabe
conquistar os visitantes e usava de estratégia psicológica. Na maioria das vezes sabia
da realidade da pessoa; assim sendo, começava a falar indiretamente dos problemas,
dizia dos “planos de Deus”, que ele também é “a única solução para os problemas” e
cantava hino muito deprimido para tocar nas pessoas. Assim, a maioria dos

31
Libertação da doença, dos espíritos maus, da feitiçaria, da vaidade do mundo, etc. Um dos
exemplos é quando alguém se converte na igreja, ou seja, aceita a seguir o caminho de Jesus. Aí
o pastor fala que essa pessoa foi libertada do mundo pecaminoso...
72
“católicos” (não evangélicos) que estavam na igreja se “convertiam”, ou seja, aderiam
à igreja, pois acreditavam que seus problemas desapareceriam. E isso aconteceu
comigo também.

Mesmo sendo pentecostal atuante, me dedicando dia a dia, não consegui


alcançar os dons que almejei ter. E quando eu tinha pesadelo ou sonhava com espíritos
maldosos, sempre conseguia fazer reza a respeito. Outras pessoas da igreja falavam
que, quando sonhavam com esses espíritos, invocavam o nome de Deus ou
simplesmente “sangue de Jesus tem poder”. Mas comigo acontecia o contrário.
Comecei a orar mais, pedindo para que tirasse de mim a “vaidade do mundo”, e o
pastor, quando lhe contava meu sonho, ele me dizia para eu ter mais dedicação à vida
religiosa. Entretanto, até hoje não consegui “repreender os espíritos com o nome de
Jesus Cristo”, mas consigo com a reza tradicional.

Certa vez eu estava na vigília até cinco horas da manhã, pois a oração durava
cerca de três horas por etapa: a primeira era das 21h30 até 00h30; após essa oração, as
pessoas cantam músicas de louvor até 01h30; logo começa outra etapa até 03h30 da
manhã, pois, segundo alguns pastores indígenas, “só assim o Deus ouviria o clamor
dos seus filhos”. Assim, eu estava orando numa igreja e dormi; sonhei que havia um
ser sobrenatural me atacando e tentando me matar. Nesta hora lembrei de uma reza e
da música da dança indígena, cuja letra é a seguinte: Yvyra’ija che mbojeroky,
yvyra’ija che mbojeroky; e outra: Koake ha’e arupi ra’e, koake ha’e arupi ra’e...
Então comecei a cantar a reza, afastando o ser, que parecia não ter força para me fazer
mal. Ao acordar me assustei e pedi para o pregador dessa madrugada para contar meu
testemunho, mas as outras pessoas presentes começaram a me reeprender, usando
expressão “sangue de Jesus tem poder, tem misericórdia, Senhor”.

Participei também inúmeras vezes das orações no “monte”, onde fazíamos


oração de 3 a 4 horas seguidas. Após a vigília, o responsável pela pregação escolhia
um capítulo da Bíblia para falar, durante uns 25 minutos, em seguida dava
oportunidade para as pessoas cantarem ou narrarem testemunhos de vida ou de
“milagre”. Neste caso, a pessoas crente com dom de “revelação”, interrompia a
qualquer momento para passar “recado do Espírito Santo”. Ali ficávamos até
amanhecer, no mato (ka’aguy), acreditando que só assim poderíamos “alcançar a
misericórdia do Senhor”, vencer as dificuldades da vida e, por conseguinte, ajudar as
pessoas através da oração ou convencendo-as a entrar na igreja.

73
Durante as férias escolares, acompanhava também o grupo das “obreiras” em
outra aldeia, por exemplo, em Amambaí. Nesta atividade ou “missão religiosa”, elas
faziam visitas nas casas das pessoas, em outras igrejas, oravam por elas, convidavam
para participar do culto e deixavam óleo de unção, “ungido” (abençoado) durante
alguns dias na campanha. Estas campanhas duravam dois dias, quando visitavam
igrejas de outra denominação. Quando se referem a outra igreja, a maioria dos
pentecostais indígenas a consideram “ministério diferente” ou “outro ministério”, por
saber que pertence a outro tipo de gestão, de outra aldeia e doutrina.

Uma “campanha”, segundo o dicionário Aurélio, é “um grande esforço para


obter um fim”. A primeira ideia sobre a “campanha” adveio depois que alguns
pastores não indígenas pregaram sobre ela durante cultos pelas regiões da aldeia.
Conforme Isaias Rosa, pastor de uma igreja pentecostal, fica claro que “há luta,
batalha e guerra para vencer, principalmente contra os inimigos espirituais” e para
ajudar a igreja a se fortalecer cada vez mais. Ele explica como funciona uma
“campanha”:
Primeiramente o dono da campanha tem que ser obreira ou obreiro,
pois eles já têm experiências e intimidades com o Espírito Santo de
Deus. Eles se preparam com a oração para levantar a campanha, que
pode ser de 3 dias ou 7. Cada campanha tem um propósito, pode ser
para ganhar alma para Jesus, para expulsar o demônio da vida das
pessoas, para ganhar ajuda para igreja ou para fortalecer o povo de
Deus. A campanha da vigília é só para aqueles crentes que já
conseguiram terminar bem pelo menos 3 campanhas na igreja de 7
dias.
O pastor Rosa contou que busca inspiração para os temas das
campanhas nas igrejas da cidade, mas que nem sempre consegue juntar muita gente:
Uma vez fiz campanha só de prosperidade de 7 dias, onde na minha
pregação durante culto sempre preguei sobre bêncão de Deus, muita
gente da cidade ia na igreja para ser abençoada. Às vezes no terceiro
dia da campanha tem pouca gente, e o Senhor Jesus Cristo demora
para responder a oração, mas com esforço a gente consegue atrair
gente para culto.
Uma campanha tem por objetivo também alcançar resultados práticos
para as pessoas e para arrecadar algum recurso:
É muito bom ouvir no último dia da campanha os irmãos contando
que receberam bênçãos, livramento, cura, prosperidade material ou os
filhos se convertendo. Agora quando estamos em campanha é
importante termos óleo da unção e votos, onde a gente distribui no
primeiro dia para que eles entreguem no final, às vezes eu coloco o
valor e às vezes não, aí depende muito da fé das pessoas. (ISAIAS
ROSA, 2018).

74
Sobre a questão do “voto”, trata-se de dar o dinheiro na igreja, pois o pastor
fala que essa ajuda é para a obra de Deus, e através desse voto se alcança cura,
milagre, livramento, etc. Geralmente, o valor é estipulado pelos líderes evangélicos e,
ao mesmo tempo o prazo para entrega desse voto na igreja. Os que não são
evangélicos, conforme o líder evangélico Isaias Rosa, escreve no voto os nomes das
pessoas, por fim fazendo o seu pedido a Deus. Já os evangélicos recebem orientações
para apresentarem cada meia noite esse voto a Deus, “esse sacrifício é para os crentes.
Eles sempre buscarão algo melhor para a obra”. (Isaias Rosa). Cabe ressaltar que a
ideia foi trazida pelos próprios karai no primeiro momento em que a igreja era
organizada entre os indígenas na aldeia. Como a maioria dos dirigentes era pouco
letrada, não conseguia entender bem a questão da gestão da igreja, por isso, os
pastores brancos se aproveitavam e levavam uma porcentagem maior de “votos”.
Distribuíam os votos com objetivo de arrecadar dinheiro para ajudar a custear as
despesas dos pastores da cidade, usando como argumento que, com as doações, “Jesus
Cristo resolveria qualquer problema ocasionado pelo demônio das trevas”.

Na maioria das vezes, o próprio indígena inventava uma maneira de adquirir


recurso para sua igreja. As “obreiras” que saíam com a “missão de evangelizar”
pediam voto especial, que não necessitava de envelope (para colocar o dinheiro) no
culto. As pessoas, que de alguma forma são motivadas pela pregação, levam dinheiro
até o púlpito, e, neste caso, são chamadas à frente para receberem “oração de bênção”.
Portanto, esse dinheiro, que teoricamente “pertence a Deus ou à obra”, sempre fica
com o pastor para investir na igreja, para comprar aparelho de som, carregar bateria,
ou botijão de gás, indispensáveis no culto.

Ao concluir o Ensino Fundamental, eu era violeiro da igreja da família, mas


não me considerava “crente”. Depois de compreender o medo que os líderes
evangélicos me colocavam, preferi transitar entre os ore, sabendo da importância de
aprender mais sobre a minha cultura tradicional e lutar pelos direitos indígenas, ao
mesmo tempo ser parceiro dos rezadores, bem como ajuda-los a se fortalecer em seu
protagonismo.

Essa vivência possibilitou-me várias reflexões sobre a luta dos Guarani e


Kaiowá. Digo que fui preparado para o Ensino Médio e, desde então, me interessei em
estudar o fenômeno da entrada e da expansão das igrejas pentecostais na minha aldeia
Te’yikue. Minha trajetória constituiu-se através de vários ore, e me possibilitou, como

75
indígena, a perceber e refazer o ava reko (jeito indígena de ser), mesmo com toda
influência dos colonizadores – neste caso, através do pentecostalismo – contra o próprio
modo de ser dos Guarani e Kaiowá. Por isso vejo a importância do fortalecimento da
escola indígena, priorizando o currículo próprio e a formação do professor indígena, pois
“espera-se que o professor indígena não seja agente destinado a fortalecer o projeto
colonizador, mas, com a sua prática pedagógica e formação inicial e continuada, defina
sua identidade no universo da educação indígena na aldeia” (BENITES, 2014, p. 27).

Depois que terminei o Ensino Médio, optei por fazer o curso Teko Arandu,
ressaltando que terminei na aldeia sem nenhum professor indígena dando aula.
Pretendia cursar História regular, mas eu não tinha muito recurso para sair da minha
aldeia. Mas fiz vestibular para a Licenciatura Intercultural em 2012 e fui aprovado na
décima colocação. Desde então, comecei a estudar e ampliar o meu conhecimento
tradicional com pesquisa e me conectando de novo com o meu mundo, do qual me
distanciei, talvez por medo, ou por não entender bem o que havia acontecido com os
meus parentes indígenas, e também comigo. Frequentei esse curso até meados de
2017, pois o curso tem a duração de 4 anos e meio. Escolhi a terminalidade de
Ciências Humanas. Estudamos a história de Mato Grosso do Sul, textos de Melià,
León Cadogan, Schaden, etc., com ênfase na história da colonização dos indígenas e
da luta dos povos frente à violência, à perda de suas terras, ao confinamento territorial
e cultural, à perda de direitos.

Transitando nestas duas realidades, como acadêmico da área de ciências


humanas, ao estudar o tema, tive de mergulhar muito nas pesquisas. Tornando-me um
pesquisador indígena, aprendi a dialogar com vários parentes e com as demais pessoas
da comunidade. Tive necessidade de conhecer melhor a minha realidade familiar e a
da minha aldeia; por isso, me aproximei mais dos rezadores e dos pentecostais
indígenas, principalmente dos meus familiares, quando eles me contavam suas ideias
sobre a reserva, a evangelização, cultura e, sobretudo, os rezadores/ñanderu/ñandesy.
Participei de várias reuniões na aldeia e na escola, onde os pais reivindicavam seus
direitos e criavam várias possibilidades aos professores indígenas de pensar solução
para os problemas apresentados.

Na graduação os professores trabalharam vários textos, com pesquisas já


publicadas sobre o povo da minha etnia Guarani Nhandéva e da etnia Kaiowá, sobre
educação escolar indígena, SPI, invasão dos colonos, colonização, entre outros.

76
Portanto, nesse período de estudo, eu já sabia o que queria para continuidade da minha
formação. Todos os textos me ajudaram a entender mais sobre a minha realidade e a
dos Guarani e Kaiowá; isso me estimulou a fazer um TCC sobre a realidade da
reserva, na qual procurei entender qual era a percepção da comunidade acerca da
“reserva indígena”, o que me instigou a continuar por este tema de pesquisa.

Optei em cursar o Mestrado em História porque precisava entender o


processo histórico do meu povo Guarani e Kaiowá, a realidade da reserva e, assim,
estudar um tema pouco explorado pelos pesquisadores indígenas. Escolhi o tema sobre
as igrejas instaladas na reserva de Caarapó e sobre os rezadores que, no ponto de
vista de muitos pentecostais, estariam sendo dominados e silenciados. Por outro lado,
os ñanderu e as ñandesy mostraram que não estavam dominados completamente, pois
eles conseguiram resistir a vários problemas e às violências advindas do processo de
colonização e de evangelização dos indígenas.

A tradicionalização da igreja pentecostal e sua doutrina acontece também,


pois, conforme alguns pastores mais antigos me falaram, “nossa igreja já virou
tradição entre nós aqui na aldeia, ela também já é nossa cultura; ser irmão de uma
igreja já faz parte da gente indígena, igual rezador quando lembramos dele já falamos
que é tradicional”. Portanto, pensar o conceito do termo “tradicional” entre os
indígenas da minha aldeia requer cuidado e muita pesquisa. Para a maioria dos não
indígenas, a tradição indígena só pode ser a festa de chícha, as rezas, as danças de
guachire, guahu e kotyhu32, pinturas, vestir cocar, morar em maloca, viver da caça e
da pesca, andar nu. O imaginário deles é no sentido de “classificar para discriminar,
discriminar para normalizar, normalizar para controlar, controlar para dominar,
dominar classificando...Este é o círculo vicioso e asfixiante que produz qualquer
classificação” (RUIZ, 2003, p. 21). Os indígenas guarani e kaiowá, portanto,
tradicionalizam o que vem de fora quando lhes convêm. Cito mais um exemplo de
quebra dos paradigmas de homogeneização social e cultural e contra o preconceito:
quando o rezador utiliza caixa de som para “rezar” nas reuniões e nas Grandes
Assembleias Indígenas.

Sendo assim, todas essas fases descritas auxiliam-me a pensar as


transformações que ocorrem na minha comunidade. Ser pesquisador dessa temática
não é uma tarefa fácil, todavia, é importante que nós pesquisadores indígenas
32
Diferentes tipos de danças, para diferentes ocasiões.
77
tenhamos compromisso em problematizar essa realidade, sobretudo no que diz à
expansão religiosa na aldeia.

Até aqui explanei a minha história para mostrar como foi minha formação
indígena dentro da reserva, onde tive muitas experiências. Entendo que foi necessário,
entretanto, também foi problemático, pois me causou bastante conflito e medo. Com
meu envolvimento na igreja, tive a oportunidade de conhecer muitos lugares e pessoas
(dirigentes indígenas, grupo de “obreiras”, grupo de jovens, evangélicos, “desviados”,
ex-rezador que se tornou pentecostal, entre outros). Ao mesmo tempo que eu conhecia
as pessoas das igrejas, elas também me conheciam.

O contato mais direto que tive com rezadores foi depois que entrei na
graduação, participando dos Encontros dos Acadêmicos, dos Encontros de Professores
e das Aty Guasu, lendo textos de alguns pesquisadores não indígenas, entre os quais
destaco Melià, Brand, Pereira e Cavalcante. Assim posso refletir sobre teko reta que
os indígenas apresentam e que, no meu caso, se constituiu de quatro etapas, sendo
uma delas a de “desviado”, que é também um dos teko que os Guarani apresentam.
Portanto, ao longo da minha reflexão, mostrarei o distanciamento e, ao mesmo tempo,
a negociação que os rezadores fazem, tanto com liderança capitão, como com pastores
indígenas.

78
Capítulo 2
2.1 Histórico dos rezadores guarani e kaiowá e da Reserva Indígena de Caarapó
O objetivo deste capítulo é apresentar reflexões e contextualizações sobre a
história da Reserva Indígena de Caarapó e como os rezadores - ñanderu e ñandesy -
constituíram processos de resistência, com suas estratégias.

O Serviço de Proteção aos Índios (SPI - órgão criado em 1910), que se


transformou na atual Fundação do Índio (FUNAI), em 1967, desde o seu princípio,
teve ampla atuação entre os Guarani e Kaiowá. Sua principal medida fundiária, que
deixou marcas muito fortes, foi a criação de oito pequenas reservas e/ou áreas de
acomodação indígena, entre 1915-1928. Segundo Smanioto (2009) e Cavalcante
(2013), nos respectivos estudos, apontam a medida de 3.600 ha, diminuída para 3.594
ha para a Reserva Indígena de Caarapó, a terceira das maiores áreas demarcadas,
entre as oito, que hoje têm uma população de 5.172 habitantes (DSEI Mato Grosso do
Sul, 2017)33, acirrando vários tipos de conflitos, incontáveis problemas sociais e
graves violações de direitos humanos por parte da sociedade karai, que relega a
comunidade indígena quanto ao planejamento de políticas públicas, nos deixando à
desassistência dentro da área confinada.

No mapa a seguir destacamos em verde as reservas demarcadas no Estado e


as áreas reconhecidas. A este mapa tive acesso em 2012, na primeira semana de aula,
na graduação do Teko Arandu da FAIND/UFGD (Faculdade Intercultural Indígena),
na aula de professor Levi Marques Pereira, de Antropologia. Nessa aula conheci mais
sobre a criação da Reserva e comecei a entender o seu resultado degradante. Esse
mapa pode ser encontrado no site e na dissertação de mestrado de Cariaga (2012, p.
39).

Mapa 1: Reservas indígenas guarani e kaiowá e terras indígenas


reconhecidas

33
Para mais detalhes sobre os dados da população distribuídos por Municípios/UF, Polos Bases,
Aldeias e Etnias. Acessar: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2017/dezembro/08/Anexo-
1659355-dsei-ms.pdf.
79
Fonte: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/mato_grosso_do_sul/guarani.htm, acessado de novo
em 26/12/2018 e na dissertação de mestrado de Cariaga (p. 39, 2012).
No mapa acima está claro como o Estado criou as oito reservas para liberar o
território aos grandes fazendeiros. Por isso os indígenas foram retirados forçadamente
dos seus lugares de origens – denominados por eles de tekoha e tekoha guasu (lugar e
território tradicional). Por exemplo, havia famílias que moravam na região de Porto
Lindo, mas, como o órgão oficial não entendia da organização social das etnias
presentes na região, traziam a parentela para a região de Caarapó, enquanto que as
outras famílias eram levadas às demais reservas. Então, o processo de retomada foi
ocorrendo na medida em que os indígenas resolveram retornar para seus respectivos
locais de origem.

Após instituir os Postos34 Indígenas nas reservas, inclusive na Reserva de


Caarapó, o SPI planejou persuadir os indígenas a transitarem apenas dentro dos

34
Foi um lugar contruído para o chefe do SPI ocupar, trabalhar, etc. O posto indígena da
Reserva de Caaraopo chamava-se de Posto Indígena José Bonifácio. Os chefes de posto
exerciam um poder abusivo, impedindo o livre trânsito dos índios, impondo-lhes detenções em
celas ilegais, castigos e até tortura no tronco. Enriqueciam com o arrendamento do trabalho dos
índios em estabelecimentos agrícolas, vendendo madeira e arrendando terras. O Relatório
Figueiredo evidenciou essas torturas, maus tratos, prisões abusivas, apropriação forçada de
trabalho indígena e apropriação indébita das riquezas de territórios indígenas por funcionários
de diversos níveis do órgão de proteção aos índios, o SPI, fundado em 1910. Atestou não só a
corrupção generalizada, também nos altos escalões dos governos estaduais, como a omissão do
sistema judiciário (CNV, 2014: p.207).
80
limites das áreas criadas. Na fala do Ancelmo Lescano (morador antigo da Te’yikue),
na 2ª Sessão de Audiência realizada em Dourados, entre os dias 25 e 26 de abril, pela
Comissão Nacional da Verdade, ficou clara essa ação por parte dos agentes do Estado
brasileiro. Ele relatou sobre o processo de esbulho que os Guarani e Kaiowá sofreram,
dando exemplo da luta das lideranças indígenas frente à colonização 35. Por isso, os
nativos dessas regiões foram obrigados a procurar outras formas para superar os
reservamentos e lutar pelos seus direitos à vida. Exigiu deles a mudança de seus
padrões de convivência, sobretudo na questão da moradia, religião, mudança em
relação à cabeça da parentela, aos hábitos de pesca e caça. Portanto, “o SPI criou um
modelo de assentamento e de sociabilidade que não condiziam com as práticas
anteriores de ocupação do espaço” (CRESPE, 2015, p.113).

Há vastos trabalhos produzidos sobre as histórias das reservas e suas


consequências para os povos indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul. Para melhor
entendermos essa ação negativa do Estado brasileiro e a realidade atual dos indígenas,
contamos com os estudos de Brand (1993 -1997), Pereira (2004), Vietta (2007),
Cariaga (2012), Cavalcante (2013-2015), Benites (2014) e Crespe (2009-2015), entre
outros. Segundo os estudos destes pesquisadores, o projeto das reservas e/ou de
acomodações resultou em transformações imediatas no espaço e na sociedade dos
Kaiowá e Guarani.

Os indígenas trazidos para a Reserva Indígena de Caarapó, como Ancelmo


Lescano já havia pontuado na 2ª Sessão de Audiência da Comissão da Verdade,
encontraram uma região diferente do seu lugar de origem e, desde que foi criada, não
teve mais condições de oferecer a manutenção e o fortalecimento do modo de
organização tradicional. Nesse sentido, conforme a fala deste indígena e dos autores
supracitados, ao ser executado esse projeto de colonização, os grupos
confinados/acomodados se depararam com uma realidade que não se afinava ao modo
tradicional de ser, nem tampouco garantiria a sua sobrevivência.

No próximo tópico discorro sobre os rezadores indígenas guarani e kaiowá,


como foi sua caminhada de resistência e superação, e quais são suas funções no meio
social do nosso povo.

35
A fala de Ancelmo Lescano e das demais lideranças indígenas guarani e kaiowá pode ser
acessada pelo youtube: https://youtu.be/cb9TVDB5t4w
81
2.1.2 –ñanderu e ñandesy lideranças espirituais e religiosas
Conforme os pesquisadores indígenas e não indígenas Tonico Benites (2015),
Izaque João (2011), Eliel Benites (2014), Levi Marques Pereira (2004) e Antonio
Brand (1997), em todos os movimentos indígenas, esses líderes espirituais e religiosos
participam e são responsáveis de levantar o grupo para ir à luta, também para
fortalecer a cultura e mostrar o quanto os indígenas são capazes de vencer quaisquer
problemas e desafios. Qualquer decisão em relação à defesa de seus territórios, essas
lideranças sempre tomam à frente. Para os indígenas Guarani e Kaiowá, o rezador:

É aquele que conhece tudo porque tudo vê, sendo denominado de


rechakára, cuja significação aproximada seria “o dono da visão”. O
conhecimento está assim associado à visão - quem vê conhece -, sendo
o domínio correto da aplicação do sentido da visão, a forma sublime
do conhecimento. A visão permite lidar com concepções subjetivas
extraídas do mundo das divindades e espíritos, inacessíveis ou
perigosas para as pessoas não iniciadas. (PEREIRA, 2004, p. 363)
A caracterização do autor sobre o rezador mostra o quanto eles são
indispensáveis para a comunidade indígena. Quando algum integrante da parentela
sonha algo estranho, sempre o procura para conseguir uma explicação e sugestões
sobre os cuidados que deve ter. Ele busca uma outra alternativa para garantir o bem-
estar, mas isso também depende de a pessoa seguir as orientações. Cito aqui alguns
exemplos sobre o sonho não positivo para os indígenas: quando sonha com dente
caindo, cabelo caindo, sapo, lobo-guará, entre outros. Para o rezador Maurilio, da
Reserva de Caarapó:

Há vários sonhos que precisam ser interpretados. Isso só é possível


através das pessoas que têm experiências e conhecimentos espirituais
indígenas, estou falando de rezadores e das rezadoras, das avozinhas
que ouviram rezas e foram orientadas para se protegerem e
protegerem seu povo. Essas pessoas que conseguem realmente evitar
as tragédias que os espíritos ruins querem causar. Então, quando a
pessoa sonha com dente caindo, a gente reza por ela, ao mesmo
tempo, pela sua família e por fim pedimos que essa pessoa converse
com seus familiares para evitar várias coisas durante sete dias, só
assim esses espíritos não terão êxitos de causar morte de algumas
pessoas.
A formação de rezador, ou como o antropólogo Levi Marques Pereira
caracteriza – para o xamanismo, exige uma preparação bem objetiva e, como ressalta
o rezador Maurilio, o compromisso com o seu papel, até porque são eles os
responsáveis por manter contato com a divindade e ajudar no que for necessário para
seu povo. Posto isto,

82
O xamanismo entre os Kaiowá requer formação e aprendizado por um
período relativamente longo. Esse discipulado deve ser realizado junto
a outro xamã, caracterizando o perfil sacerdotal do modelo religioso,
pois os xamãs de destaque formam escolas para assegurar a
reprodução da modalidade de reza por ele herdada ou “desenvolvida”.
O exercício do xamanismo está, assim, sempre associado ao grupo de
reza, geralmente composto por parentes ou por aliados, no caso de não
parentes. Entretanto, só o aprendizado não garante a formação do
xamã, este deve ter um evento extraordinário em sua vida que marque
a apropriação do poder legitimador do exercício da profissão. Esse
evento é geralmente narrado como uma experiência pessoal de
interação com determinado ente sobrenatural, evento que seria fatal
para um não-xamã, e do qual se escapa justamente por ser portador
dessa atribuição. (PEREIRA, 2004, p. 364).
Como principais protetores do teko yma ou ava reko (modo de ser ancestral
ou modo de ser indígena), os rezadores compõem a verdadeira riqueza dos Guarani e
Kaiowá na atualidade, pois eles passaram por essa preparação que Pereira descreveu.
Os rezadores que estão atuando pelas aldeias tiveram essas aulas e mostraram aos seus
mestres, no momento oportuno, suas habilidades como, por exemplo, ocorreu na
Reserva de Caarapó, com Hipolito Martins, na década de 1980. Ele teve várias aulas
com os rezadores, ao mesmo tempo, adquiraram habilidades descrito por ele de
ñembo’e kuaa rape (o caminho da reza ou a reza que caminha); os seus mestres
“numa noite de lua cheia pediram-me para conduzir a cerimônia de reza para o
batismo de milho, isso aconteceu aqui mesmo em casa. Então, comecei a rezar (aha’ã)
tudo que me ensinaram até amanhecer, creio que fui aprovado” (Hipolito Martins).
Em 2018, no mês de setembro, estive na casa do rezador Getulio, em Dourados, e ele
me falou que toda a sabedoria adquirida durante sua caminhada já garante ensinar e
preparar o futuro rezador. Na mesma linha, o rezador Florencio Barbosa, de Caarapó,
falou sobre o momento oportuno de se aprender com o rezador: “Agora vejo que
vocês estão interessados em aprender de novo isso, acho que é bom aprender de novo,
porque sem nós vocês não conseguiriam mais reavivar nossa cultura.” E ainda reforça:
“Só lembrando que nossa reza não acabou, ela se fortalece cada vez mais, mesmo que
alguns não enxerguem, mas a gente está sempre se fortalecendo”.

Como bem sabemos, continuamos resistindo enquanto ava (indígena), porque


a oralidade se fortifica na medida em que é desafiada. O sistema religioso cristão
implantado na Reserva, por mais que tentasse impedir os mais velhos de nos transmitir
os conhecimentos/ensinamentos ancestrais, que alguns chamam de mitos - mas nesse

83
caso não seria mito36; sendo assim, vou chamá-los de conhecimentos/ - ou narrativas
sagradas - , a transmissão ocorreu, inclusive porque tais ensinamentos referenciais são
fundamentais para orientar a vida dos coletivos. Os rezadores mais detacados, na
atualidade, na Reserva indígena de Caarapó, como Florencio Barbosa e Lidio Sanches,
afirmam que a ordem neste mundo depende das práticas xamânicas com seus
componentes naturais e sobrenaturais (jára).

Os conhecimentos/ensinsamentos possuem vários elementos que são


fundamentais para a educação indígena. Por exemplo, quando um arco-íris cai perto
da aldeia, algumas idosas já contam aos seus netos sobre o perigo que ele oferece.
Geralmente, elas iniciam suas falas contando histórias que aconteciam nas décadas
anteriores. Assim, garantem a segurança da vida, ao mesmo tempo em que
demonstram respeito ao fenômeno, que tem um jára.

As afirmações dos rezadores kaiowá Getulio e de Florencio Barbosa, kaiowá,


apontam a importância das rezas e das práticas culturais para o fortalecimento da
religião indígena, “como sendo, ainda, a característica mais importante do modo-de-
ser dos antigos, em que a reza e o canto emergem como o centro” (BRAND, p. 241).

Ainda segundo os líderes religiosos Getulio e Florencio Barbosa, todas as


coisas que os indígenas faziam e comiam eram abençoados, principalmente o batismo
da criança e das sementes: “antes de plantar é ainda lembrada por todos e indicada
como fator decisivo para uma boa colheita e para manter afastadas as pragas da
lavoura” (BRAND, 1997, p. 242). Para este mesmo autor:

36
Mito. Do grego mythos significa discurso, narrativa. (...) Entre nós, é frequentemente utilizada
com o sentido pejorativo: uma narração fabulosa e fictícia, contrária à verdade. Nesse sentido,
"mito" equivale a engano, falsidade. Essa interpretação corresponde a uma mentalidade
racionalista, para qual somente a razão é capaz de expressar a verdade. Hoje, no entanto, essa
visão simplista está inteiramente superada, pois sabemos que muitos dos conhecimentos mais
profundos e misteriosos são de tipo inconsciente e simbólico. Em sentido mais profundo,
entende-se por "mitos" as descrições religiosas antigas, que expressam os modelos, os
arquétipos da ação humana através dos atos originários dos "deuses" nos diversos campos.
Nesse sentido, os mitos são narrações sagradas primitivas, dotadas de grande autoridade e
normatividade para a vida humana. (GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E
BRASILEIRA. Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, [s.d. p.])
https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/mito
- A Filosofia surgiu como uma forma de busca a uma compreensão racional do que aconteceu
na Grécia Antiga; uma história disseminada para o mundo através da mitologia grega. Nesse
contexto, a palavra mito deriva do grego mythos e significa contar ou narrar algo para alguém.
www.significadosbr.com.br › mito

84
O teko yma, (o modo-de-ser dos antepassados), continua presente na
memória dos Kaiowá/Guarani contemporâneos, como muito bem
atestam os diversos depoimentos. É lembrado com muita emoção por
caciques e moradores adultos. Paulito Aquino chora quando descreve
as belezas que seu pai, cacique, viu quando foi levado aos céus. O
mesmo aconteceu com Júlio Lopez, durante a Aty Guasu, de Limão
Verde, quando descrevia como era a vida dos Kaiowá (BRAND,
1997, p. 242).
O rezador Angelo Guarani, da região Mbokaja da Reserva de Caarapó, disse-
me que teko yma não significa que os demais rezadores sejam atrasados, muito menos
sem conhecimentos, pois “através de muitos rezadores que ainda há em muitos
lugares, nossa cultura e língua permanecem vivas e atuantes, temos conhecimentos de
muitas coisas, rezamos pra tudo, mesmo que as igrejas tentem nos impedir, mas na
nossa memória essas rezas atuam”. Portanto, mesmo que provisoriamente, digo que o
teko yma, utilizado por alguns evangélicos e jovens para menosprezar a existência
dos líderes espirituais da religião “antiga”, é também uma das formas que esses
rezadores acharam para se destacar no meio social, uma vez que

O xamã interpreta situações sociais a partir de parâmetros e princípios


do modo correto de se viver - teko katu, yma guare. Isto, mais uma
vez, é feito através do uso das boas palavras ou das palavras bonitas -
ñe'e͂ porã -, como dizem em guarani. A palavra inspirada não é
retirada exclusivamente da capacidade inventiva ou dos recursos
retóricos e literários do xamã, ela está estruturada em um sistema.
(PEREIRA, 2004, p. 372)
Segundo os rezadores João Serrano e Florencio Barbosa, até 1994, na
Reserva de Caarapó, fazia-se muita festa espiritual indígena, onde se batizava a
colheita, batizava a criança e “o rito de iniciação dos meninos” (BRAND, 1997, p.
244). Na língua materna Guarani esse rito chama-se ñepyrũ mitã karia’y e kuña taĩ.

Desde a década de 1980, colocaram vários nomes para os atuais ñanderu e


ñandesy. Alguns pesquisadores os chamavam de tekoharuvicha, enquanto que os
demais não indígenas conservadores os chamavam de cacique. Mas, mesmo não
sendo letrados, eles não eram manipulados facilmente, como destaca o professor
Nilton Ferreira Lima, numa conversa que tive com ele, em 2019. Como vou abordar
no último tópico, o termo cacique mudou. Como o SPI instituiu o cargo de “Capitão”
para reservas indígenas, alguns grupos de rezadores começaram a buscar outros meios
para resistir como líder, enquanto “Capitão”, na administração das aldeias. Enquanto
isso, mais recentemente, os evangélicos também começaram a se apoderar do espaço
negado aos rezadores. Estes líderes, que eram chefes de aldeia, hoje ocupam um

85
espaço não favorável para atuarem na Reserva, foram dominados, mas não
completamente, pois as estratégias deles foram buscar parcerias com várias
instituições, com objetivo de se fortalecerem de novo, sobretudo fora da aldeia, para
lutar pela garantia dos direitos indígenas, pelas terras e para mostrar a existência
indígena. No próximo tópico contextualizarei melhor sobre isso.

Para o rezador Maurílio, o termo ñanderu deixa claro que existe um pai
cuidando da espiritualidade indígena e que demonstra à comunidade indígena a
existência de seus guardiões (jára). Ele reflete o rezador de hoje em dia, tentando
manter uma relação mais próxima com as divindades. Assim “nós conseguimos
manter nossa reza viva atuante, eu vivo assim mesmo aqui na minha casa, como você
está vendo...não importa se tenho energia ou não, o que importa para mim é manter
esse meu pensamento e reza atualizados”, afirma Maurilio.

De acordo com suas funções, os rezadores são líderes espirituais e religiosos,


pois, segundo o professor Crispim Soares Martins, através deles se consegue
fortalecer cada vez mais a identidade, os saberes, as histórias e os conhecimentos em
relação aos territórios tradicionais.

A mudança do meio ambiente, ocasionada pelo processo de


desterritorialização, pelo avanço de agropecuária e do agronegócio nos territórios
tradicionais guarani e kaiowá, desde a década de 1950 (BRAND, 1997), trouxe-lhes
uma série de prejuízos, sobretudo para manterem a proximidade com os guardiões da
floresta (os jára) e organizarem suas parentelas, pois esses guardiões também
sofreram com o processo de expulsão dos indígenas de seus territórios tradicionais.
“Assim como a gente cuida floresta, eles também cuidam da gente; é um respeito que
temos por eles, só assim conseguimos proteger a mãe terra”, esclareceu o rezador
Florencio Barbosa. Mesmo que esses jára sejam considerados intangíveis pelo
ocidental, para os indígenas guarani e kaiowá, eles também produzem tekoha (pode
ser considerado a aldeia dos guardiões), pois, nesses tekoha, esses guardiões
produzem alimentos, cuidam das plantas, dos animais, oferecem plantas medicinais.
Então, segundo o rezador Lidio Sanches, da Reserva de Caarapó, a expulsão dos
indígenas de seus territórios e o confinamento nas reservas trouxe mudanças, por
exemplo, nos hábitos alimentares, nas atitudes comportamentais. Ele esclarece que
“aqui mesmo em Te’yikue, em algumas regiões não dá para plantar milho, por
exemplo, a terra é fraca para isso, então, por isso alguns rezadores que são

86
acostumados com a chícha, tinham que se acostumar com algumas bebidas dos
brancos, mesmo assim somos fortes e conseguimos ser essenciais para o nosso povo”.

As rezas indígenas guarani e kaiowá se fortificam na medida em que os seus


conhecedores são desafiados, por exemplo, pelo sistema do governo, pelo preconceito,
pelos ataques dos evangélicos e outros. Rezador guarani Dirta faz um contraponto
entre as rezas e as orações pentecostais: “as rezas não precisam ser gritadas”, disse ela,
e, em alguns lugares ou momentos não propícios, eles rezam em silêncio (oha’ã kirĩrĩ
hápe). Para ela, os evangélicos indígenas não sabem rezar como como indígenas.
Ainda segundo ela, entre os evangélicos não há uma estratégia específica para
diferentes ocasiões; por exemplo, “nós [os rezadores], quando vai se encontrar com os
políticos já iniciamos a reza antes mesmo de pegar na mão dele, então para cada
situação temos reza específica” (idem). Os rezadores com os quais conversei foram
objetivos quanto à liderança espiritual. O poder espiritual, para esses rezadores, só
ganha força se for praticado de forma correta, sobre a base social e coletiva, com
justiça e honestidade.
Por exemplo, a gente ganha terra para o nosso parente, para todos
morarem. Não é vender para eles um pedacinho, a gente nunca faz
isso; até porque na nossa reza pedimos constantemente para
conquistarmos o território, por isso não praticamos a injustiça e muito
menos nos beneficiar dela. A gente abençoa tudo antes mesmo da
pessoa chegar e morar, romombiro’y. Tem muito espírito que luta para
que isso não seja possível. Então a reza nos ajuda a fazer tudo que é
necessário. (MAURÍLIO, 2019)
Os Ñanderu foram ganhando prestígio na luta contra a opressão, por serem
guardiões dos saberes, por isso são considerados por muitos indígenas como principais
líderes religiosos. São também identificados por órgãos do governo e pela população
brasileira como “caciques”, haja vista que as principais funções deles são as práticas
religiosas tradicionais.

A geração de rezadores que está hoje na luta passou por período de


preparação, durante o qual participavam ativamente de toda atividade religiosa dos
antigos líderes espirituais indígenas, pois estes sabiam o que estava por vir. Neste
sentido, apostavam na preparação dos futuros rezadores.

A cosmologia guarani e kaiowá, segundo os rezadores, se fortalece a partir da


força da reza e da sabedoria indígena. Existem vários jára que atuam diretamente com
eles, entre os quais estão: yvy jára (dono da terra), y jára (dono rio), ama jára (dono
da chuva), mymba jára (dono dos animais), pytũ jára (dono da noite), ka’aguy jára

87
(dono da floresta) e muitos outros. Para tanto, os mais sábios, que hoje em dia são
conhecidos por muitos indígenas como os “mais velhos” da comunidade, são pessoas
de idade que têm amplos conhecimentos, além de ter a experiência máxima sobre a
história de sua parentela e do ambiente no qual fortaleceram sua resistência e
aprimoraram suas estratégias de sobrevivência. Os pesquisadores não indígenas os
consideram “sábios tradicionais” ou “mestres tradicionais”, por outro lado, as pessoas
da comunidade os consideram como ava yma, tuja, jari, ñamõi, pois são os pilares dos
saberes indígenas, das histórias, da medicina. Por isso, esses agentes são/serão
fundamentais para entendermos vários mecanismos históricos nativos e seus
significativos no meio coletivo, sobretudo, para analisar as reservas indígenas em
geral. Embora hoje esse prestígio esteja bastante diminuído, por outro lado permanece
bastante ativo e ocupando espaço na escola, no processo de formação de professores
indígenas e de acadêmicos indígenas, em eventos externos, além de sua presença
fundamental nas retomadas de terra.

A resistência dos rezadores guarani e kaiowá frente à evangelização se


revigora cada vez mais, pois os jára os ouvem e, ao mesmo tempo, há entre eles um
respeito muito grande, rezas específicas e regras a serem seguidas, pois acredita-se
que quando um indivíduo desrespeita as regras narradas pelo xamã, ele sofre graves
consequências. Só os rezadores conseguem resolver o problema quando os guardiões
colocam algumas doenças na pessoa. Quando eu estava conversando com um rezador
sobre essas regras que os indígenas devem seguir, chegou um líder evangélico
pedindo-me terere, e percebi que ele queria ouvir mais da nossa conversa. Então, eu
continuei com a conversa e, de repente, ele falou que gostaria de compartilhar uma
experiência não tão boa que ele teve por desrespeitar algumas regras indígenas.
Uma vez eu parei de ir na igreja e comecei a beber de novo. Minha
mãe que era rezadora nessa época, agora convertida, sempre falava
para mim não sair muito a noite, pois teria anguery, o espírito que
procura um caminho para sair do espaço do humano vivo, mas que
poderia nos prejudicar e deixando-nos doente. Então, isso que
aconteceu comigo. Eu estava muito chapado mesmo quando vi um
vulto vindo na minha direção e eu meio louco comecei a atacá-lo e
esse vulto me derrubou no chão. Quando vi que não era pessoa
humana, comecei a correr e clamei a Deus pra me salvar. Depois
comecei a me reconciliar de novo com Deus na mesma igreja que
frequentava. Achei que, sendo fiel e não pensando em desviar, eu ia
ficar bem. Mas depois de uma semana, comecei a ter pesadelo,
perdendo apetite, adoecendo mesmo. Tentei ir me consultar, mas não
dava em nada. Mesmo sendo fiel não tive força para suportar. Então, a
minha família teve que chamar um rezador para rezar por mim.

88
Quando ele veio em casa e rezou por mim, na mesma noite tive um
sonho que alguém tinha ido me buscar de um lugar escuro, essa
pessoa com o som do mbaraka me guiava até me tirar desse lugar
escuro. Aí que vi o quanto o rezador sabe das coisas, pois eu fiz
campanha e mais campanha na igreja, e recebendo oração de todas as
pessoas da minha igreja, mesmo assim não tive êxito. (Fala de um
líder evangélico da Te’yikue).
O depoimento desse líder ressalta a importância dos rezadores diante das
situações adversas que os indígenas enfrentam. Com os vastos conhecimentos e
habilidades, os rezadores resistiram à evangelização pelas aldeias, pois os mesmos se
mostravam respeitosos com os líderes evangélicos, ao contrário destes, que foram
extremamente violentos com eles, atacando-os como se fossem responsáveis pelas
coisas negativas que acontecem nas comunidades. A fala desse líder evangélico
mostra o quanto os rezadores estão dispostos a ajudar os seus parentes indígenas, ao
mesmo tempo ensinando-lhes o verdadeiro espírito de um líder e mostrando, também,
a existências e a força das rezas.

Mesmo que este trabalho não tenha por finalidade discutir todas as regras e
rezas, vale salientar que alguns acontecimentos são utilizados como exemplo até hoje.
Cito mais um exemplo de regras que devem ser cumpridas: quando uma mulher
engravida, não anda muito sozinha e muito menos se ausenta muito de sua casa; tem
alimentação balanceada, se benze sempre que é necessário. Para isso, conta com a
experiência da parteira, pois só ela sabe dos remédios específicos para cada situação.
Os rezadores sempre passam os seus conhecimentos, para que os maus presságios não
cheguem a estragar o bem viver indígena. Por isso é necessário que haja respeito e
comunicação entre eles, e só é possível por meio das rezas.
Foto 3: Rezadores na Escola Municipal Indígena Nãndejara Polo.

89
Fonte: https://web.facebook.com/nandejarapolo

Foto 4: Rezadores guarani e kaiowá na retomada Pindo Roky, Caarapó/MS

Fonte: https://web.facebook.com/nandejarapolo

Foto 5: Pesquisador Elemir Soare Martins na área retomada Te’yi Juçu,


Caarapó/MS 2018.

90
Fonte: https://web.facebook.com/elemir.s.martins.1/

As três imagens apresentadas demonstram que os rezadores e as rezadoras


estão atuantes nas comunidades indígenas. Neste tópico contextualizo melhor quem
são os rezadores e as rezadoras (ñanderu e ñandesy), quais são suas funções principais
para as comunidades indígenas, sobretudo para a cultura, o território e o
fortalecimento da espiritualidade indígena. Também procuro discutir os desafios que
eles enfrentam atualmente.

Antes de mais nada é fundamental lembrar que a luta dos líderes religiosos
guarani e kaiowá sempre foram pela recuperação de seus territórios e pela efetivação
de seus direitos fundamentais, como atesta o estudo de Brand (1997). Eles se
destacaram sempre por conseguirem movimentar os grupos de várias aldeias para lutar
em prol da retomada de seu tekoha. O exemplo disso ocorreu na retomada das terras
tradicionais Rancho Jacaré e Guaimbé (localizadas no município de Laguna Carapã,
MS), como foi relatado pelos indígenas na 2ª Sessão de Audiência Pública realizada
pela Comissão Nacional da Verdade, em Dourados-MS (2014). O que importava para
esses indígenas era recuperar os seus territórios, mesmo tendo vivido um processo
violento de despejo, entre os anos de 1976 e 1979. Os rezadores envolvidos com esse
tipo de luta afirmam que fortalecendo o modo de vida dos antigos, a reorganização
familiar para a retomada de seu território terá mais êxito.

91
Segundo o líder religioso (ñanderu) Lidio Sanche, os rezadores superam
muitas perseguições por parte dos brancos e dos líderes evangélicos e assim seguem
mostrando a sua importância para a comunidade: “Nós sempre rezamos, benzemos,
livramos muita gente dos problemas, sabemos lidar com isso, por isso, sabemos a hora
certa de agir”, afirma o rezador. Para se construir ou retomar um tekoha, segundo o
rezador Maurilio, da Te’ýikue, é necessário pedir permissão, orientação, bençãos aos
deuses, aos jára kuéra. Para isso é imprescindível que “nós rezadores sejamos capazes
de rezar muito, onde a gente consegue acessar a sabedoria verdadeira para orientar o
nosso grupo” (rezador Maurilio, 2019). Portanto, sem ñanderu e ñandesy não há como
ter um lugar de paz, abençoado e longe da pobreza. Pereira (1999, p.189) enfatiza que
“a existência do tekoha depende diretamente da presença dos líderes religiosos e
políticos com reconhecida habilidade para reunir pessoas”.

Esses líderes espirituais exerciam essas duas funções juntas, sem


comprometer o equilíbrio social de sua parentela. Afinal, eles eram responsáveis por
cuidar de seus grupos, bem como pelo bom comportamento das pessoas com os jára.
Por isso, os jára davam-lhes sabedoria para saber sobreviver, onde pudessem caçar,
pescar, criar roça, sem prejudicar a natureza.

Existem vários tipos de rezadores/as. Alguns deles, que destaco aqui, têm
habilidade só para rezar, aconselhar e organizar o grupo; outros têm habilidade de
rezar, de conhecer remédios tradicionais (pohã ñana) e de ser parteiro/as.

Os remédios tradicionais foram sendo descobertos na medida em que os


rezadores demonstravam sua capacidade ética e respeito para com o dono da mata e
com os deuses. Tudo está relacionado com o mundo espiritual e físico. Ka’i kyse,
como é conhecida hoje em dia, veio da sabedoria de macaco; essa planta é útil para
quem levou facada ou sofreu ferimentos graves. Segundo Florencio Barbosa, ela ajuda
o ferimento a cicatrizar melhor. Geralmente é encontrada na mata, é tem
características diferentes das demais plantas, mas nem todos conseguem distingui-la
bem, só com os ensinamentos dos rezadores ou dos raizeiros como são conhecidos os
karai. Há várias plantas nativas (pohã ñana) pertencentes aos animais, pois é assim
que os ñanderu e as ñandesy as conhecem. Alguns nomes de plantas hoje conhecidas
pelos indígenas da Reserva de Caarapó são: yryvu ka’a, jaguarete ka’a, mborevi ka’a,
anguja ruguai, tapiti pohã, vurro nambi ou vurro ka’a, ysau ka’a, jagua paje,

92
mbarakaja pyapẽ, jakare ka’a, pato ka’a, jatevu ka’a, lorito ka’a, ynambu ka’a,
ynambu guasu ka’a, ka’i ka’ygua, mberu ka’a, jatevu ka’a, e outras.

Yryvu ka’a é geralmente utilizada para afastar os espíritos ruins da noite, para
dor de cabeça; jaguarete ka’a é bom para reumatismo e para dor no corpo; anguja
ruguai é bom para bronquite; tapiti pohã é bom para infecção urinária (remédio
específico para as mulheres); vurro nambi ou ka’a é utilizado para machucadura; ysau
ka’a serve para banhar as crianças com cólica e para tomar no chimarrão; jagua paje é
para ser utilizada no ritual específico; mbarakaja pyape͂ é bom para criança recém-
nascida, geralmente colocada no banho da criança; jakare ka’a é bom para dor de
barriga, azia, cólica; pato ka’a e lorito ka’a são utilizadas para ritual específico; jatevu
ka’a é bom para bronquite, gripe e outras doenças respiratórias; ynambu ka’a e
ynambu guasu ka’a são utilizadas para banhar as crianças e como enfeite da casa
indígena; mberu ka’a é utilizada para combater conjuntivite. Todos esses
conhecimentos em relação aos remédios tradicionais estão ainda intensos na memória
das mulheres, idosos/as, rezadores/as, pastores indígenas, professores e Agentes
Comunitários de Saúde Indígena (AIS). Todos esses elementos de sabedoria foram
adquiridos com os rezadores.

Os ñanderu contam que a sabedoria em relação às plantas medicinais é


fundamental aos jovens e às mulheres, afinal, como eles mesmos falam, “precisamos
nos proteger do mal social e dos maus presságios e, ao mesmo tempo, serem criativos
para manter o bem-viver (teko porã)”. Por isso, todos os ensinamentos espirituais são
prestigiosos. Para que esses preceitos nativos tenham êxito, é necessário as crianças
receberem ñemongarai (batismo de criança indígena) e seguirem sempre os conselhos
dos mais “velhos”, que seriam os rezadores e os demais intregrantes da família,
principalmente a avó (machu, jari).

Os Guarani e Kaiowá sustentam boa relação com os jára da mata, do


córrego, dos animais silvestres, entre outros. Para que isso seja possível, as rezas,
jevohasa, são essenciais, porque, por meio delas, manifestava-se o respeito. Entendo
isso como reciprocidade espiritual. As rezas são práticas muito relevantes ao mundo
Kaiowá e Guarani. A natureza, a vida, os animais, os rios são divinos. Cada um(a)
pertence a uma divindade específica. Para Eliel Benites:
Efetivamente, somente os ñanderu (líderes espirituais) realizam este
feito de transitar entre o mundo físico (que conhecemos) e o mundo
espiritual. Assim também alguns animais místicos, como as onças

93
(jaguarete), urubu (yryvu) e outros. Os cantos são meios para
visualizar o caminho iluminado (tape rendy) que leva à morada dos
deuses para adquirir conhecimento na condução do seu povo. É a
maneira, também, de entoar versos que contenham as belas palavras
que expressam, de forma harmoniosa, as belezas da natureza, do
homem, da mulher, das crianças e de toda a comunidade. Estes são
momentos de transe, que vivenciam o passado, o mundo espiritual, no
momento presente, na busca da construção do futuro. Portanto, a
religiosidade kaiowá e guarani é fonte inspiradora do conhecimento, a
partir das revelações e da relação com o ambiente. (BENITES, 2014,
p. 38).
Enquanto os indígenas cuidam das matas, dos animais, dos rios, o ka’aguy
jára (dono da mata) fica responsável por cuidar dos tekoha para que os maus não se
aproximem desses lugares. Esse cuidado por parte do ka’aguy jára vai além do mundo
físico. O dono da mata atende sempre o chamado de um ñanderu, o que talvez se
enquadre na ideia de Benites (2014), quando afirma que “a religiosidade kaiowá e
guarani é fonte inspiradora do conhecimento, a partir das revelações e da relação com
o ambiente”. A partir da sabedoria da mata se consegue acessar vários tipos de
remédios tradicionais e dos demais conhecimentos.

A primeira grande organização indígena guarani e kaiowá, conhecida por Aty


Guasu, foi inspirada na organização das lideranças religiosas, que ocorreu a partir da
década de 1980. Primeiramente essa organização se chamava Jeroky Guasu, onde se
organizava o processo de retomada e também se cobrava a participação efetiva dos
rezadores (ñanderu e ñandesy) em qualquer movimento de luta política. Desde então,
a atuação indispensável destas pessoas foi se fortalecendo. Quando a professora
Veronice Lovato Rossato, voltava do Jarará, com Hipolito Martins, foi a primeira que
eles conveseram sobre em fazer um encontro de rezadores, ao mesmo tempi, para
envolvê-los na luta pela terra. Segundo a professora, esses encontros era jeroky guasu,
ou encontro dos rezadaores.

No caso da Reserva Indígena Te’ýikue, o principal rezador que se destacou


foi Jorge Paulo. Como havia se preocupado em deixar a geração futura de rezador,
começou a ensinar as seguintes pessoas: Florencio Barbosa, João Vilhalva - Kui’ĩ (in
memoriam), Dona Irda, Lídio Sanches, Siriaco Acosta, Isaura (in memorian), João
Serrano, Lauriana Escobar, Dorcinda Paulo, Ponciano Paulo, Siriaco Mendes,
Severina Escobar, Cicero’i e Cristina. Todos esses rezadores e rezadoras atuaram
diretamente com seu mestre, aprendendo várias formas de se comunicar com os
deuses e, assim, ajudar os demais parentes com essa sabedoria. Foram eles que

94
movimentaram muitas assembleias de rezas pelas regiões da aldeia, embora ocupando
o espaço diminuído por dividir sua função de líder com o Capitão, “a gente acreditava
sempre em conquistar coisa que seria importante para nossa aldeia, por exemplo,
escola, parente professor, assim para fortalecer o que a gente sempre protegeu e tanto
lutamos para não deixar morrer” (Cicero’i, 2019).

As principais conquistas que destaco aqui, oriundas do envolvimento dos


rezadores atuais da Reseva Te’yikue, foi a construção da escola indígena, quando os
primeiros professores indígenas contaram permanentemente com a ajuda deles, com
objetivo de refletir e planejar o currículo da escola, inserindo e valorizando a cultura
guarani e kaiowá. Assim foram ganhando espaço e orientando os professores no
processo de formação. Considero um dos fatores fundamentais que, seguramente,
esses rezadores desenvolveram foi também a participaçao efetiva na criação e
acompanhamento do Movimento dos Professores Kaiowá e Guarani do MS,
conquistando e apoiando espiritual e politicamente o Curso Ára Verá (Magistério
Específico, diferenciado, intercultural e bilíngue), em 1999, para formação de
professores indígenas e, em 2006, a implantação de Curso de Licenciatura Indígena
Intercultural Teko Arandu, na UFGD.

Fecho esse tópico, portanto, dizendo que as funções e atuações dos rezadores
não são apenas “rezar”, eles ocupam seus lugares em diferentes meios, seja como
conselheiros de família, como intermediador de professores indígenas, como
integrantes de Movimento de Professores indígenas, das Mulheres, dos Jovens, da
Universidade, são porta-vozes da luta indígena e da história. Eles transitam pela aldeia
como pessoas comuns, mas quando são acionados, colocam seu cocar, adornos, se
pintam, pegam seu mbaraka e vão para luta. Na Reserva de Caarapó, os rezadores
ocupam seus espaços principalmente na escola, quando tem mostra cultural, reunião
pedagógica, no Fórum Indígena, formação de professores, entre várias outras
oportunidades. Nesse sentido, a escola tem empoderado essas pessoas, pois através
delas se consegue conquistar muitos projetos e direitos fundamentais. Outro espaço
que eles ocupam mais é nas retomadas (reocupação de área tradicional), onde,
segundo o rezador do Pindo Roky, há mais liberdade para rezar e se fortalecer. Cabe
destacar aqui que a primeira retomada de terra, partindo da Reserva de Caarapó,
ocorreu depois que o jovem indígena Denilson Barbosa foi assassinado pelo
fazendeiro, em 17 de fevereiro de 2013, onde hoje ficou conhecida como tekoha

95
Pindo Roky. A atuação de rezadores foi fundamental para confortar a família do jovem
e, ao mesmo tempo, levantar o grupo para iniciar o processo de retomada e mostrar o
quanto é importante lutar contra a injustiça, a opressão, a violência, ocasionadas pelo
Estado brasileiro e pela sociedade ocidental.

2.1.3 Criação da Reserva


O presente tópico tem por finalidade descrever e discutir a caracterização
histórica e a criação das oitos reservas indígenas, em especial sua configuração social
depois que foram criadas. As novas áreas reservadas para acomodar os índios
facilitaram o agravamento dos problemas dos Guarani e Kaiowá. Para que seja
possível a discussão, recorro às bibliografias disponíveis para facilitar a reflexão a
respeito do tema, que visa, principalmente, descrever a realidade indígena da Reserva
de Caarapó, para ficar mais clara sobre a abordagem que farei sobre as
mudanças/transformações que ocorreram com os papeis desempenhados pelas
lideranças tradicionais desta localidade. Há algumas décadas, os indígenas kaiowá e
guarani buscam encontrar mecanismos para superar preconceitos, violências, exclusão
e violação de direitos contra eles. A comunidade que pesquiso não pretende mais
aceitar a exclusão e todo tipo de atrocidade. As visões, as ponderações, os planos, os
sonhos do povo, no qual me incluo, vão além do que a sociedade não-indígena pensa
sobre e para eles.

O atual Estado de Mato Grosso do Sul tem a segunda maior concentração de


população indígena do Brasil, cuja maioria é das etnias guarani e kaiowá. Esse grupo é
subdividido em três subgrupos, sendo o Guarani (Ñandeva), Kaiowá (Paï-Tavyterã) e
Mbya, todos pertencentes à família linguística Tupi-Guarani (PIMENTEL, 2012). Em
número de população indígena, como podemos perceber através dos dados, MS perde
apenas para o Estado de Amazonas. Segundo os dados do Censo 2010, a população
indígena em Mato Grosso do Sul era de 77.025 indígenas, distribuídos nas seguintes
etnias: Guarani e Kaiowá, Terena, Kadiwéu, Guató, Ofaié, Kinikinau e Atikun.
Imagem 1: Pessoas indígenas, por localização do domicílio, Mato Grosso do Sul

96
Ainda segundo o IBGE (2010), no território brasileiro, o número da
população guarani é de 67.523 pessoas. Sendo assim, podemos atestar que a maioria
dos indígenas Kaiowá se agrupam no sul de Mato Grosso do Sul. O número de
pessoas destas etnias era de 43.556 (2010), tendo em vista a tabela na imagem a
seguir:
Foto 6: Pessoas indígenas, por tronco linguístico, família linguística e etnia ou povo
a que pertence, 2010

No livro intitulado “POVOS INDÍGENAS EM MATO GROSSO DO SUL


História, cultura e transformações sociais”, organizado por Graciela Chamorro &
Isabelle Combès, podemos perceber o quanto a população sul-mato-grossense precisa
conhecer sobre a população indígena desse Estado. Bartomeu Melià S. J., no prefácio
do volume, exemplifica da seguinte forma sobre a insistência, por parte da população
não indígena, de negar a história do povo indígena, morador antigo desta região.
Há uma história de Mato Grosso do Sul que insiste repetidamente que
não há história de povos indígenas na região, ou seja, que essas
populações, se alguma vez existiram, ou já não estão ali, ou delas só
ficaram alguns restos cujo destino seria sua dissolução num conjunto
maior que se chama população sul-mato-grossense. Estariam
condenados a não ser. De outro lado, os povos indígenas afirmam o
contrário: que querem ser o que são e que precisamente por isso ainda
o são. (MELIÀ, 2015, p. 16).

97
Seguindo a reflexão deste autor, podemos pontuar a tentativa de aniquilação
dos povos originários e suas políticas de gestão da vida, da história do seu próprio
lugar de morada. É uma história que insiste em colocar esses povos como sem
história, para convertê-los em população nacional, assimilá-los e torná-los brancos.
Como descrito por Melià (2015, p. 16), para os não indígenas, “[...] o índio era aquele
que devia morrer, não necessariamente como indivíduo, mas como pessoa, como ser
diferente e livre. Negá-lo como povo implica sua destruição como homem e mulher
diferentes”.

Os Guarani e Kaiowá da Reserva Indígena de Caarapó não querem mais se


isolar da sociedade caarapoense. Para que isso seja possível, segundo os rezadores
deste local, acionam os conhecimentos ancestrais; e os líderes pentecostais indígenas
buscam informação no arcabouço religioso ocidental, para entender, planejar,
consertar o seu mundo e a sua realidade. Muitos desses conhecimentos tradicionais
ganharam prestígio e ressignificações, porque os ajudaram a sobreviver no meio da
violência e dos ataques por serem “diferentes”, e nem por isso eles deixaram de ser
índios numa reserva. É importante ressaltar que o povo não tinha voz e nem apoio por
parte do órgão do Estado para manter suas práticas tradicionais e planejar seu futuro.
Várias parentelas foram colocadas na Reserva para atender as expectativas do Estado
brasileiro, ou seja, de torná-los “brancos”, para, assim, exercerem os trabalhos que os
“verdadeiros brancos” não fazem, como por exemplo, cortar cana, derrubar mata,
colher maçã, catar milho, arrancar feijão, entre outras atividades subalternas. As
mulheres indígenas também não ficavam de fora dessa atividade exploradora, elas
colhiam muito algodão pela redondeza da reserva, trabalhavam como boia-fria,
arrancando feijão, para sustentar seus filhos e família. Enfim, esperava-se que este
povo desaparecesse de vez, como povo diferente. Entretanto, as mudanças ocorreram,
mas, ao contrário do que se esperava, os Guarani e Kaiowá perceberam várias
alternativas para continuar resistindo como indígenas, mesmo sofrendo muitas
influências da cultura dominante.

As pesquisas do historiador Antonio Brand (1993, 1997 e 2004) facilitam a


compreensão a respeito do tema. Retomo a discussão para mostrar, a partir das
pesquisas já feitas, como os coletivos indígenas se adaptaram à reserva e continuaram
renovando suas estratégias de resistências e criando novas alternativas para sua
sobrevivência. A escolha de autores ocorreram na medida em que fiz as leituras. A

98
título de relevância da pesquisa, Brand, por exemplo, apresenta dados muito
importantes sobre as populações indígenas de MS, sobretudo do processo histórico de
luta dos Guarani e Kaiowá. Por esse motivo, me ative, com mais profundidade, na
leitura dos textos deste importante autor para embasar meu trabalho.

As populações indígenas que permaneceram até os dias atuais resistindo e se


reorganizando em constante negociação com o entorno. Mesmo tendo sido negados
pela historiografia tradicional elitista, lembram-se muito bem dos seus tekoha guasu
(território ou território amplo) ocupados por eles há séculos, situados entre o rio Apa,
serra de Maracaju, rio Brilhante, rio Ivinhema, rio Paraná, rio Iguatemi e fronteira
com o Paraguai, no atual Estado de Mato Grosso Sul (Vietta, 2007). Nesse tekoha
guasu, agrupavam-se, especialmente em áreas de ka’aguy guasu (mata fechada) e ao
longo dos ysyry (córregos) e ysyry guasu (rios), em pequenos grupos de parentela,
integrados por uma, duas ou mais te’yi tuicha (famílias extensas), que cultivavam
entre si inúmeras relações de casamento. As lideranças de família eram os
tekoharuvicha (chefes do tekoha) ou ñanderu (nosso pai-mestre). As lideranças
daquela época apoiavam-se em suas experiências, suas responsabilidades e nas
atribuições das esferas política e religiosa.

Segundo Rodrigues (2006), o povo estudado nesta pesquisa pertence ao


tronco linguístico Tupí, da família linguística Tupi-Guarani e costumam ser
genericamente denominados de Guarani. As semelhanças linguísticas entre essas
línguas podem ser estendidas para mais outras 7 do mesmo subconjunto de línguas de
dentro da família linguística Tupi-Guarani. Por esse motivo, o uso genérico do termo
Guarani deve ter nascido fora das ideias linguísticas, deve ser algo do senso comum
mesmo, ou por pesquisadores sem qualquer proximidade com os estudos linguísticos
das línguas desses povos.

A pesquisadora Aline Crespe (2009) discorre, em seu estudo, sobre o período


em que os Kaiowá e os Guarani sentiram a presença do branco. De acordo com ela:
No sul do Mato Grosso do Sul, antigo território Paraguaio, os Kaiowá
e Guarani sentiram a presença do branco principalmente a partir do
final do século XIX, quando começam a ser explorados os ervais de
erva mate. Após a chegada das frentes colonizadoras começam as
fundações das primeiras reservas indígenas, instituídas na região após
a segunda década do século XX. As reservas visavam estabelecer os
Kaiowá e Guarani em pequenos territórios que não ofereciam, e
continuam a não oferecer, as condições necessárias para a manutenção

99
do modo de vida tradicional, denominado por eles ñande reko.
(CRESPE, 2009, p. 20).
Continuando o processo de ocupação do tekoha guasu (território) indígena
pelos karai kuéra (não índios), em 1943, o presidente Getúlio Vargas criou a Colônia
Agrícola Nacional de Dourados (CAND), no contexto da política de “marcha para
Oeste”, com a finalidade de ampliar as fronteiras agrícolas mediante a integração de
novos espaços. O objetivo era possibilitar o acesso à terra a milhares de famílias de
colonos, vindos de outras regiões do país37.

Na época em que as Reservas Indígenas foram instituídas pelo Serviço de


Proteção aos Índios (SPI),38 no atual Estado de Mato Grosso do Sul, os Guarani e
Kaiowá passaram a sofrer o processo de redução de seus territórios tradicionais. O
órgão oficial, segundo Benites (2014), desconhecendo o modo de viver dos Guarani e
Kaiowá e o modo de ocuparem os seus tekoha guasu (territórios), instituiu, entre 1915
e 1928, oito minúsculas Reservas: Jagua Piru e Bororo, em Dourados (Francisco Horta
Barbosa); Reserva Indígena de Caarapó, em Caarapó (José Bonifácio); Guapo’y
(Benjamim Constat) e Limão Verde em Amambai; Pirajui, em Paranhos; Ramada ou
Sassoro, em Tacuru; Taquaperi, em Coronel Sapucaia; Jakare’y ou Porto Lindo,
atualmente em Japorã. A área máxima prevista era de 3.600 hectares, mas, na maioria
dos casos, a área demarcada foi ainda menor (BRAND, 1993 & 1997).
Mapa 2: Reservas Indígenas criadas pelo SPI em MS.

37
Para saber mais sobre esse contexto histórico, consultar o trabalho de Brand (1997).
38
Em 20 de junho de 1910, pelo Decreto lei nº 8.072, foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI).
Brand (1997).

100
Fonte: MORAIS (2016, 48).

A criação destas reservas foi, portanto, reflexo de política anti-indígena que


se estabeleceu e se fortificou por aqui. Por meio das pesquisas e estudos, a situação
dos Guarani e Kaiowá de MS se tornou conhecida. Essas áreas reservadas para os
Guarani e Kaiowá “territorializaria os indígenas, obrigando-os a residir em espaços
restritos, com fronteiras fixas. Tal processo, obviamente tinha como corolário a
liberação de terras para a colonização da região” (BARBOSA DA SILVA, 2007, p.
46).

Os colonos da sociedade ocidental não conseguiram entender ainda a vida


dos povos indígenas, porque, na opinião do professor indígena Otoniel Ricardo, desde
que os expulsaram do seu território, ensaiavam roubar-lhes a memória, a história, a
língua, a religião, por fim, o ava reko (jeito de ser indígena). Os karai “chegaram por
aqui e não demonstravam nenhum tipo de respeito e muito menos nos enxergavam
como gente”, disse uma rezadora da Te’ýikue. Para eles, escravizando, aniquilando a
religião indígena, destruindo a natureza, impondo outra língua, destruindo a vida e,
por fim, “oferecendo” trabalhos desprezíveis, numa minúscula área que não oferecia
sobrevivência digna. Esperava-se que o povo se submetesse a essa ideologia.
Entretanto, como venho percebendo em alguns trabalhos de pesquisa e observando a
comunidade onde eu moro, os Guarani e Kaiowá não se submeteram passivamente à
dominação ocidental. Nesse sentido, a tese de doutorado da Katia Vietta me ajudou a

101
perceber que os indígenas aceitaram estrategicamente essa ideia. Segundo um líder
indígena, os “brancos” “chegaram por aqui destruindo o que tinha de abundante,
usaram sua religião em prol do progresso, por outro lado destruíram e mataram muitas
vidas, mas mesmo assim, não conseguiram matar a nossa resistência”39.

A pobreza, os traumas, as violências e as mortes foram eficazes para o


progresso agropastoril. A estratégia de aceitação por parte dos indígenas foi um
processo de experiência para depois planejarem uma nova tática de resistência e de
sobrevivência. As táticas foram entender mais os comportamentos de colonizadores,
dos fazendeiros, dos políticos, procurando fazer aliança com os pesquisadores não
indígenas de vários estados brasileiros, com algumas Organizações Não
Governamentais (ONGs), com alguns políticos, ao mesmo tempo, fortalecendo a
organização interna, por exemplo, lutando pela escola indígena, etc.

Conforme a pesquisa de alguns autores, como Brand (1997) e Pereira (2004),


na década de 1970, o Estado de Mato Grosso do Sul sofreu grande desmatamento,
reflexo da ação de latifundiários e grileiros, para aumentar suas produções de soja e
cana de açúcar. Nessa década, também, muitas famílias indígenas tentaram resistir e
permanecer nas pequenas áreas de matas que ainda restaram, muitas vezes vivendo
escondidos dos fazendeiros, mas, quando não dava mais, tentaram manter vínculos de
trabalho com eles. Exemplo claro disso é a parentela das aldeias Rancho Jakare e
Guaimbe Peri, localizadas perto da uma das maiores fazendas do Estado, Campanário,
e do município de Laguna Carapã. Essas famílias foram conhecidas como “moradores
de fundo de fazenda” (BRAND, 1997, PEREIRA, 2004).
Circular pelas imediações do seu antigo território era uma
possibilidade de manter viva a esperança de retorno ao seu lugar.
Acontece que o desmatamento quase total do sul do MS completou o
processo de “expulsão dos índios das suas terras tradicionais,
intensificando o confinamento nas reservas”. (BRAND, 1997, p. 88)

Portanto, as transformações que ocorreram na vida dos Guarani e Kaiowá


estão ligadas com o processo de desrespeito e violência que os colonizadores fizeram
cpm eles, bem como ocasionando-lhes pobreza, trauma e morte. Essas ações ilícitas
ampararam-se por um discurso de que havia “muita terra para pouco índio”, e eles não

39
Fala de uma liderança indígena da etnia kaiowá, durante um ato de manifestação na Praça
Antônio João, Dourados, MS. Esse ato aconteceu durante o Evento do Encontro Nacional de
Estudante Indígena, da Aldeia Jaguapiru (2018).

102
poderiam ajudar o progresso do Estado, isto é, as estratégias políticas sempre foram
focadas para acabar com qualquer tipo de direito indígena.

É evidente que a colonização instituiu várias estratégias para silenciar a


memória coletiva dos indígenas. Contudo, muitos karai não sabiam da forma como
esse povo ensina a geração futura sobre sua história. A oralidade, nesse sentido,
prevaleceu e, por meio dela, fortaleceu-se o que a historiografia menos conservadora
chama de consciência histórica. Os testemunhos históricos, vivências articuladas,
caminhos e articulações de resistência do povo guarani e kaiowá, nos dias atuais, se
localizam e se entrelaçam em temporalidades e subjetividades, para além das
temporalidades dos não índios. Com efeito, autores como Roger Chartier, afirmam o
que segue:
[...] a especificidade da história dentro das ciências humanas e sociais
é sua capacidade de distinguir os diferentes tempos que se acham
superpostos em cada momento histórico. Aqui se deve voltar à
construção temporal que sustentava todo o edifício da história global,
e, mais além, da ciência social, tal como as definia Braudel [...].
(CHARTIER, 2009, p. 65).
Delinear a consciência histórica indígena não é tarefa fácil. Para muitos
karai, a nossa história iniciou-se só quando chegaram os colonos no atual Sul de Mato
Grosso do Sul. Na interpretação de senso comum, os “índios” fazem parte da história
a partir do momento em que os “brancos” os descobrem e colonizam. Isso foi-lhes útil
para justificarem o roubo das terras e de seus territórios.

Na Aty Guasu, por exemplo, o ñanderu Jorge, do Pirakua, município de Bela


Vista, falava que, para os karai, é da escrita que emana a verdade. A crítica vem
exatamente porque na época em que se estabeleceu a colonização, os colonos
registravam apenas o que era favoravel aos seus interesses. Tentaram vencer a
memória indígena pela escrita. Durante séculos esse esforço prevaleceu. A
consciência histórica indígena transita entre dois mundos (entre o mundo espiritual e o
mundo físico). No caso dos Guarani e Kaiowá, o investimento na reza foi de extrema
importância para manter a memória e a oralidade fortificadas e atuantes.

A experiência de Crespe, uma pesquisadora não indígena, delineia muito bem


a transcrição da narrativa de um professor indígena sobre a história da luta pela terra, a
história de luta dos seus parentes. Isso nos auxilia a legitimar as narrativas dos
indígenas. Sobre o ouvir e o transcrever uma narrativa indígena, a pesquisadora utiliza
a seguinte argumentação:

103
Ouvir e transcrever a narrativa de Delfino foi um momento de
amadurecimento da pesquisa. A partir da narrativa de Delfino a
temporalidade e a mobilidade kaiowá passaram a ter novos atores,
novos agentes e novos caminhos a serem percorridos. A narrativa teve
um impacto positivo na tese, na medida em que me permitiu
aproximar do pensamento indígena sobre os fatos da história e efeitos
das situações de contato. (CRESPE, 2015, p. 330).
Conforme a explanação da autora, a partir de uma narrativa, pode-se acessar
novos atores, novos agentes e novos caminhos. Isso ocorre porque, na medida em que
um interlocutor narra sua história, começa a se lembrar das demais pessoas que
fizeram parte deste contexto histórico.

Para dar mais algum exemplo sobre o amaradurecimento da pesquisa, quando


conversei com o sábio Ricardo Almeida40, da Reserva Te’yikue, logo já se lembrava
de seus avós, de seus pais e também do seu mestre rezador. Ele se lembra de como era
a realidade dos seus parentes que passavam seus conhecimentos para os interessados.
Através da narrativa de Ricardo, fui conseguindo entender várias passagens históricas
que os indígenas viveram. Compreendo, assim, a percepção de Crespe acerca da
transcrição e do surgimento de novos atores e novos caminhos. Desse modo percebo
que o trabalho de historiadores indígenas exige bastante cautela, ética,
comprometimento com suas fontes, com a transcrição e a etnografia, principalmente
quando se trata da pesquisa indígena.

O pesquisador indígena falante da língua materna, ao questionar seu parente,


sempre vai ouvir a narrativa na língua nativa (Guarani), acessando outras histórias,
podendo, assim, enriquecer sua pesquisa e reflexão. Claro que isso depende também
da escolha e do diálogo com a teoria do seu respectivo campo de estudo.

Regressando ao contexto histórico, na concepção de muitos karai41, os


indígenas que habitavam o território tradicional eram considerados nômades, por isso
criaram um paradigma ideológico inadequado que perdura até os dias atuais. Para eles,
os nativos não tinham capacidade de se organizar e tampouco de planejar o seu futuro,
por causa de seus frequentes deslocamentos. Sobre essa estratégia dos nativos, cujo
conceito é oguata (caminhar), desconhecido pela sociedade ocidental, Brand (1998, p.
28) esclarece que a mudança ocorria “dentro do [mesmo] território toda vez que

40
Ele é um sábio indígena, rezador, raizeiro e conheceu o grande rezador e sábio Jorge Paulo.
41
Não indígenas pertencentes à sociedade ocidental.

104
determinadas condições tornavam indesejável a permanência naquele local”, como
brigas, doenças, entre outras. Exemplo disso, foi quando a minha família se mudou
para a reserva de Porto Lindo por um tempo e depois voltou para região Mbokaja da
Reserva indígena de Caarapó. O bem-viver dependia sempre do respeito aos
ensinamentos dos seus antepassados. Dito isso, portanto, a busca sempre era por um
espaço que preenchesse a cultura e as características do tekoha tradicional.

O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) é o primeiro órgão indigenista


projetado pelo Engenheiro Militar Cândido Mariano da Silva Rondon, em 1910, a fim
de dar sua contribuição ao “Progresso do Brasil”, no sentido de unificar e assimilar os
indígenas à sociedade nacional, mais um projeto positivista aprovado para legitimar
um etnocídio para com as diversidades do modo de viver de cada grupo étnico. Sua
fundação se deu em um período altamente crítico e violento para os povos indígenas.
Diversas frentes de expansão do projeto de dominação, ao longo de todo o país,
praticavam violências contra os indígenas. O então diretor do Museu Paulista, Von
Ihering42, defendia o extermínio dos índios que resistissem ao avanço da civilização,
promovendo grande revolta em diversos setores da sociedade. Em 1908, o Brasil foi
publicamente acusado de massacre aos índios, no XVI Congresso dos Americanistas
ocorrido em Viena43. Vale lembrar que essa ideia defendida pelo diretor do Museu
Paulista perdura até hoje em vários setores da sociedade.

Para resolver algumas questões necessárias foi criado um Órgão conhecido


por muitos pesquisadores e indígenas como Serviço de Proteção aos Índios e
Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) que, na teoria, garantiria tanto a
proteção e a integração dos índios quanto a fundação de colônias agrícolas que se
utilizariam da mão de obra encontrada pelas expedições oficiais (Decreto nº. 8.072, de

42
Para deixar mais claro publicamente sua ideia, publicou um artigo defendendo sua ideia de
que os índios não contribuiriam ao desenvolvimento econômico de São Paulo: “Os atuais índios
do estado de S. Paulo não representam um elemento de trabalho e de progresso. Como também
nos outros estados do Brasil, não se pode esperar trabalho sério e continuado dos índios
civilizados e como os Kaingang selvagens são um empecilho para a colonização das regiões do
sertão que habitam, parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão, senão seu
extermínio”. (Revista do Museu Paulista, 1907, v. VII, p. 215).
43
Para conhecer mais acessar:
https://www.google.com/search?q=XVI+Congresso+dos+Americanistas+ocorrido+em+Viena&
oq=XVI+Congresso+dos+Americanistas+ocorrido+em+Viena&aqs=chrome..69i57.1710j0j4&s
ourceid=chrome&ie=UTF-8

105
20 de junho de 1910)44. A base para assimilação destas funções estava a
pressuposição de que a condição de “índio” era um ser em estado transitório. O seu
único destino seria tornar-se trabalhador rural ou proletário urbano.

O formato da política de administração dos índios pela União foi inserido no


Código Civil de 1916 e na lei nº 5.484 de 27 de junho de 1928, que afirmavam sua
relativa incapacidade jurídica e o poder de tutela ao SPI. Tais mecanismos, no entanto,
partiam de uma noção extremamente negativa e genérica de “índio”45. De fato, não
foram formulados critérios objetivos diferenciados que pudessem dar conta de atender
a diversidade de situações problemáticas vividas pelos povos indígenas do Brasil
nessa época. Por um lado, visava proteger as terras e as culturas indígenas, por outro,
tinha por objetivo a transferência territorial dos “indígenas nativos” para liberar áreas
destinadas à colonização e a imposição cruel de alterações em seus modos de vida.
Esta situação foi chamada pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira (1987) de
“paradoxo da tutela”.

Sobre a prática histórica colonial institucionalizada no SPI, Oliveira afirma


que:
Os poderes e os saberes/fazeres, de ordem colonial, que se
condensaram em torno da prática indigenista no início do século XX,
institucionalizando-se no SPI, têm origens históricas distintas,
conquanto coetâneas. É indiscutível, porém, que têm como ponto de
partida a invasão europeia das terras dos povos indígenas do
continente americano. Para fins de esboçar uma genealogia dos
poderes que se articulam desde então, remeto essa reflexão à empresa
da guerra de conquista ou, simplesmente, à conquista. É importante
destacar que a narrativa da conquista, com seu aspecto cruento e
genocida, foi pouquíssimo acionada no caso da construção da história
do Brasil. O topo da descoberta da América assola ainda hoje em larga
medida a historiografia brasileira (e a latinoamericana). Junte-se a isso
os vários estereótipos acerca dos povos autóctones, em especial os que
reduzem complexas formas políticas à reflexão do seu suposto (e
muitas vezes tomado como genérico) caráter (não) (anti)estatal – os

44
Para mais informação, acessar: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-
1919/decreto-8072-20-junho-1910-504520-publicacaooriginal-58095-pe.html
45
Índio: termo racista para delimitar um povo por estereótipos do senso comum atribuídas
perversamente. Entre a significação do termo (coletado do senso comum), encontramos as
correspondências: bêbado, preguiçoso, burro, traiçoeiro, insolente, porco, miserável, indigente.
E outros arsenais de termos pejorativos que recolhemos dos enunciados que articulam índio
dentro de uma frase. Quase todos esses enunciados já foram atribuídos a mim ou a alguém da
minha família.

106
“sem fé, nem lei, nem rei” – dessa porção das Américas. (OLIVEIRA,
2013, p.788-789).
Como descrito pelo autor, no Brasil a colonização obteve sucesso após
consolidar todo seu interesse na dominação, colocando os povos indígenas como
incapazes, excluindo-os de qualquer plano de protagonismo. O conhecimento que
vinha surgindo favorecia principalmente os colonos e, para não atrapalhar sua
eficácia, foi preciso criar mecanismos que pudessem controlar os povos. Por meio
desse mecanismo (projeto de colonização) produzido pelo Estado, posto em ação pelo
SPI, foi possível excluir temporariamente toda importância dos Kaiowá e Guarani,
sendo assim, foi se mantendo controle sobre a vida, cultura, religião, língua, etc.,
sobretudo, nos aspectos diversos da vida cotidiana da população
colonizada/confinada/acomodada.

O ponto de vista mais negativo que esse órgão praticou contra os índios foi o
de propagar que os povos nativos não são capazes de discutir e planejar seu futuro,
portanto, seria importante impor regime de tutela como proteção, negando-lhes
protagonismo, lugar de fala, etc. Embora esses “representantes indígenas”
apresentassem trabalho interessante, todavia fortaleciam a exclusão e, ao mesmo
tempo, revigorando a ideia de que os indígenas são incapazes. Isso tudo serviu para a
liberação de territórios indígenas para colonização, ao mesmo tempo em que reprimia
práticas tradicionais e colocava uma imposição violenta que alterava o sistema
produtivo coletivo indígena. Essa imposição perceptível impôs aos indígenas a
necessidade de reforçar cada vez mais suas práticas tradicionais. De acordo com
Cavalcante:
Inserida na política indigenista assimilacionista do Estado brasileiro, a
criação das reservas tinha como objetivo declarado o de garantir aos
índios um espaço para que vivessem até que o seu processo de
assimilação à sociedade nacional fosse concluído – considerava-se que
a condição indígena era transitória e que eles rapidamente seriam
assimilados pela sociedade envolvente. Na prática, as reservas
funcionaram e, em boa medida ainda funcionam, como espaços de
depósitos de indígenas e reservas de mão de obra barata. As famílias
eram levadas para ali, liberando assim suas terras tradicionais para a
colonização. Lá permaneciam sob o julgo tutelar do Estado e à mercê
de desvantajosos contratos de trabalho mediados pelos funcionários do
SPI com ruralistas da região. (CAVALCANTE, 2013, p. 23).
A colonização, desde o princípio, usou como fio condutor pacificação,
integração, assimilação de comunidades indígenas. Os principais Estados onde
progressivamente foram instaladas equipes de apoio e postos indígenas foram São

107
Paulo, Paraná, Espírito Santo e Mato Grosso. Desde então, buscou-se apoio para que
juntos pudessem garantir reservas de terras para sobrevivência cultural, religiosa e
física dos indígenas. Muitas tentativas de pacificações foram realizadas, como o caso
da comunidade indígena kaingang em São Paulo e no Paraná, e dos índios Urubu-
Kaapor no Maranhão e aqui em MS.

Muitos índios morreram no pós-contato, sobretudo para se criaram as oito


reservas, por doença, fome e falta de assistência. Exemplo disso é o que ocorreu
também com os Kayapo do Pará, após as atrações negativas violentas comandadas
pelo sertanista Francisco Meirelles, no final da década de 195046, conforme o estudo
de Carlos Augusto Rocha Freire.

É necessário compreender que a formação do SPI foi para dar continuidade


às alegações negativas coloniais ou dos legados projetados coloniais. Sua metodologia
de atuação, formada a partir de doutrinas positivistas, incorporou técnicas
missionárias, tais como: distribuir presentes, vestir os índios e ensinar-lhes a tocar
instrumentos musicais ocidentais, depois ensinar a Bíblia, com intuito de “levar a
palavra de Jesus” nas comunidades tradicionais. Isso também aconteceu em várias
regiões indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul, especificamente na Reserva de
Caarapó, onde a Missão Caiuá foi a precursora dessa atividade agonizante, preparando
e abrindo um caminho para as igrejas pentecostais entrarem nessa localidade.

Cabe observar que, segundo Benites (2009), o SPI buscou mecanismos sem
respeitar a organização da parentela da Reserva: só alguns grupos eram escolhidos
para esse diálogo de negociação. Entretanto, as famílias que moram na periferia da
aldeia também tinham seus anseios específicos e políticas diferentes; portanto, nesta
situação importaria prevalecer um diálogo maior, como sempre acontecia entre a
parentela.

Essa situação de “confinamento”, como define Brand (1993), gera enormes


dificuldades de convivência que se expressam em conflitos políticos, econômicos e
religiosos, na exaustão dos recursos naturais e na dificuldade de colocar em operação
as formas de sociabilidade próprias à cultura indígena. Nas condições de vida
encontradas na Reserva, muitas famílias perderam a cabeça de parentela, com a morte
dos anciãos e das anciãs, ou Ñanderu e Ñandesy. Esse mesmo autor explica o

46
Para saber mais, ler artigo de Carlos Augusto Rocha Freire.

108
problema: “o que caracteriza a situação desses povos em nosso Estado é o seu
confinamento em áreas de terras insuficientes para a sua sobrevivência física e
cultural” (BRAND, 2000, p.1).

Antes de mais nada, como problematizei no decorrer deste capítulo, o Estado


brasileiro não tem atendido o pedido das lideranças indígenas em dermarcar suas
terras, bem como garantir investimento para a sobrevivência do povo Guarani e
Kaiowá. Muitos jovens desistem de estudar e perdem a esperança por não terem
condições econômicas. Segundo um jovem de 16 anos, da Reserva de Caarapó, a
realidade atual reflete muito a omissão do governo do Estado, até porque a Reserva de
onde ele fala, há poucos recursos naturais e lugares de lazer diferenciados, que os
indígenas sempre gostaram de praticar.
Nós gostaríamos de ter lugar onde pudéssemos pescar, caçar, tomar
banho, fazer artesanatos e ser um indígena normal. Onde ninguém
pudesse dizer o que devíamos fazer e nos intimidar. Já somos muitos
aqui. Não é bom a gente se matar enquanto que os brancos estão
ficando mais ricos com as nossas terras. Tudo que esses karai quer é a
gente se perdendo na reserva, sem condição de pensar e conhecer mais
sobre a nossa história, entendo que a nossa vida indígena é difícil,
muita gente morre porque se perde na cachaça, porque não vê mais
futuro, tampouco uma saída por aqui. Acho que devíamos lutar pelo
que é nosso.

Figura 8: Notícia da aldeia de Caarapó

Fonte: CaarapoNews o número 1 de Caarapó –MS, dia 02 de julho de 2018.

Figura 9: Notícia da aldeia de Caarapó

Fonte: CaarapoNews o número 1 de Caarapó –MS, dia 24 de fevereiro de 2018.

Essa comunidade historicamente tem produzido resistência muito


significativa. No entanto, como tenho analisado, muitas de suas histórias foram
silenciadas. Perto de 100 anos do município, o povo caarapoense pouco sabe sobre os

109
Guarani e Kaiowá da Reserva Te’ýikue. Em vista disso, fortalece-se o preconceito, a
discriminação e, por conseguinte, as violações dos direitos indígenas. No imaginário
do senso comum, há a ideia de que o governo deu essa área para o indígena de graça,
isto é, ele não teria mérito em ocupá-la. É nesse sentido que são reforçados
estereótipos difíceis de serem superados, de tal forma que a população da cidade
chama o lugar apenas de “aldeia”, num sentido pejorativo, entendido como único
lugar de “índio”. Dessa maneira, transforma-a em um lugar de segregação social e
espacial, o que corrobora com o conceito estabelecido pelos autores da escola de
análise da situação cultural e espacial guarani e kaiowá (BRAND et al, 1997) como
sendo uma situação de confinamento.

Particularmente, gostaria de discutir o termo “confinamento” enquanto


conceito ou categoria de análise da situação de “acomodação” (PEREIRA, 2016) das
populações indígenas nas reservas criadas pelo SPI, já que, no meu modo de entender,
é um termo significativo criado dentro da história regional que, inclusive, baliza os
textos e discursos do movimento indigenista local. Entretanto, não deixa de assumir
uma acepção pejorativa no sentido de que, apesar de pertinente, pontua a política
aplicada pelo Estado nacional aos povos originários dessa região de cerrado, a qual,
sem dúvidas, guarda comparação com o modo de produção principal das elites
latifundiárias locais de pecuária e criação de gado de corte, ou seja, com a política de
confinamento47. O termo também aproxima a desumanidade da pessoa indígena e
reforça a noção de reserva ecológica, isto é, de agrupamento da fauna e flora local, a
qual, nós, indígenas, viemos paulatinamente contestando ao longo desses prolongados
anos da colonização e, ultimamente, iniciamos uma campanha mais enfática de
desassociação da nossa subjetividade e representatividade cívica e política de
conceitos que nos aproximem da falta de humanidade, mesmo que esta seja uma
forma de crítica ao Estado brasileiro em sua política anti-indígena.

Desse modo, mesmo concordando que o termo “confinamento” utilizado na


bibliografia, a partir do conceituado trabalho de Brand, serve como anedota para
mostrar o quanto a ação do governo nacional tratou de limitar uma área de vida para a
população indígena em tamanhos estabelecidos de modo exterior às necessidades da
própria população. Associa-o também à limitação da humanidade das pessoas

47
Ver Embrapa, Gado de Corte: confinamento de bovinos, 1996.

110
indígenas aplicadas por essas mesmas políticas assimilacionistas do Estado brasileiro,
uma vez que compara o modo de vida dos Guarani e Kaiowá com o ato de produção e
criação de gado de corte. Acredito que seja pertinente desarticular esse modo de
representar a vida das pessoas nas reservas indígenas, tornando esse espaço
artificialmente criado para a nossa habitação num espaço digno de vida. Falta à
comunidade, neste caso, discutir medidas para incrementar o modo de gestão desse
território que, para as novas gerações, é o modo único de vida indígena que eles
conhecem. Diante do exposto, acredito ser necessário uma revalorização do conceito,
tanto quanto do espaço Reserva indígena, posto que as pessoas que moram neste lugar
carecem, fundamentalmente, de respeito à sua identidade indígena e à valorização de
suas vidas enquanto seres humanos e cidadãos deste país, com todos os direitos e
deveres de todos os outros cidadãos.

Com tudo isso queremos chamar a atenção para o fato de que o preconceito
da sociedade que mora na cidade para com a aldeia e a comunidade indígena deveria
ser melhor observado, pois há traços fortes da presença indígena na localidade. Por
exemplo, o próprio nome do município – Caarapó - recebeu este nome da língua
guarani - ka’a - que significa erva-mate, - rapo - raiz (raiz de erva-mate). Assim
sendo, de acordo com a anciã Lauriana Escobar, Caarapó traz em seu nome o que
tinha de mais valorizado pelas frentes de expansão nesta região, os ervais nativos, um
produto que enriqueceu muitas famílias e que hoje querem expulsar a população
indígena do local. Sem contar ainda a mão de obra indígena que foi extensamente
utilizada na coleta desta mesma erva-mate, numa condição similar à da escravidão.

De acordo com Lauriana, esta terra sempre foi habitada pelos Guarani
Ñandeva e os Kaiowá. O pesquisador ava Kaiowá, Lidio Cavanha Ramires, confirma
a narrativa ancestral de Lauriana, quando aponta, em sua pesquisa, trechos da história
da família da minha interlocutora.

Segundo o autor:
As famílias da minha avó, Seferina Escobar, na década de 20, vieram
do Paraguai, esparramaram-se na Reserva Indígena Te’ýikue, Reserva
Indígena de Dourados e no Tekoha Korralito, na atual Fazenda São
Paulo. Quando as famílias foram expulsas do Tekoha Korralito,
vieram morar na Reserva Indígena Te’ýikue. Ela já nasceu na Reserva
Indígena Te’ýikue onde construiu a família com meu avô, ainda muito
jovem. Ele sempre trabalhou nas fazendas nos ervais, posteriormente
roçando e derrubando matas, plantando sementes de colonião e
braquiária para formar pastagem de gado. (RAMIRES, 2016, p.17)

111
Conforme Lauriana, como os pais e avó lhe contaram, Caarapó era
passagem para os carreteiros e viajantes como parada para preparar alimento ou
repousar. A seguir começo a descrever e discutir a transformação que ocorreu a partir do
aumento do número de famílias na Reserva.

2.3 Configuração da Reserva a partir do recolhimento de parentelas e famílias:


sarambi e confinamento

Mapa 3: Regiões Reserva indígena de Caarapó

Fonte: Atlas socioambiental terra indígena Te’ýikue. Org. Smaniotto C. R., Ramires L. C.,
Skowronski, L. – Campo Grande: UCBD, 2009

Neste tópico procuro contextualizar a caracterização histórica da


configuração da Reserva Indígena de Caarapó a partir da chegada de inúmeras
comunidades deslocadas de seus territórios tradicionais, com a discussão sobre a
organização social, o sarambi e o confinamento. A reflexão que foi se delineando
ocorreu a partir da vivência, do diálogo e das pesquisas.

Como se pode observar no mapa acima, ao longo dos 95 anos da criação da


Reserva Indígena de Caarapó, os Guarani e os Kaiowá tentaram se organizar neste
espaço, que já não oferecia mais os recursos naturais para garantir sua sobrevivência
nem fortalecer suas práticas culturais. Neste sentido, o Estado e as missões religiosas
se esforçaram por implantar políticas públicas, catequização, criação de única
liderança, com o objetivo de assimilar e desestruturar a organização dos coletivos
indígenas e, assim, transformá-los em trabalhadores baratos e guiá-los ao “modelo” da
sociedade não indígena.

112
Na descrição histórica do pesquisador ava Kaiowá, Eliel Benites (2014),
antes da Reserva receber várias famílias indígenas expulsas de seus tekoha, algumas
parentelas que já residiam no local se organizavam conforme o modelo organizacional
tradicional. A partir da década de 1968 (Cariaga, 2012), principalmente, a Reserva foi
recebendo várias parentelas da etnia guarani e kaiowá expulsa de seus tekoha
originais, e foram dividindo o espaço com os demais grupos familiares. Importante
ressaltar que a identidade foi se delineando conforme a transição étnica e as relações
de parentesco foram acontecendo. Os povos sempre tentaram manter os espaços da
Reserva como eram os tekoha tradicionais (organização religiosa, cultural, social,
política, econômica e produção do ser indígena), por outro lado, não deixam de marcar
suas diferenças como indígenas “reservados”. Cada reserva indígena demarcada pelo
SPI tem um modo diferente de organização social e política de resistência, de
problemas. Uma das situações históricas que marcaram a Reserva de Caarapó foi a
criação de um “líder geral” da aldeia, que pudesse estar a serviço do SPI, sobretudo
para “responder” pela comunidade. Sobre o histórico da liderança geral da Reserva
que ocupou esse cargo, Benites (2014), conforme o seu interlocutor, descreve da
seguinte maneira:
O meu avô Cassimiro Fernandes (em 17 de março de 2013) relatou
que, quando chegou à aldeia, a liderança geral era Menério, além de
João Mbokoto, que era liderança na região do Mbokaja, e João Dalo
na região do Saverá. Posteriormente, a liderança passou para João
Aquino; na sequência, este passou o cargo para o seu irmão mais
novo, Cassiano Aquino, que ficou na chefia da aldeia durante 23 anos,
e o senhor Chalô que ficou como lider na região do Saverá. Com o
falecimento de Cassiano, assumiu a função um senhor chamado Icho
(João Martins), que foi expulso para Dourados pela comunidade, pois
não era deste Tekoha, tendo assumido, então, o senhor Hermes
Araújo, assassinado durante uma festa no Saverá. Depois assumiu o
senhor Urbano Isnarde que, com seu temperamento forte, também foi
assassinado por um morador da aldeia, de forma bastante violenta. Na
sequência, Florêncio Marque tornou-se líder, o qual, no final, acabou
se suicidando; após, Agripino Benites assumiu a liderança da aldeia.
(BENITES, 2014, p. 44).
Como registrado pelo pesquisador indígena, o período em que cada liderança
ficou na gestão da aldeia, como me falou Fernando Peralta, cada um desses líderes
indígenas também marcou um modelo de gestão específico, pois cada um precisava
criar uma política que se diferenciasse dos demais. Ou seja, como foi colocado por
Benites (2014), houve momentos complexos que esses líderes enfrentaram, que
acabou até na morte de alguns. Aos que Benites chama de “liderança geral” era quem
respondia pela comunidade e, ao mesmo tempo, colocava em ação a demanda do
113
chefe do SPI/FUNAI e demais instituições públicas e privadas, que passaram a atuar
na Reserva e requeriam a figura de um líder reconhecido como “representante” de
toda a população reservada, afinal, como expressa o senso comum regional, “índio
tem de ter chefe”. Desse modo foi se caracterizando um modelo de gestão na Reserva,
pois, quando se criou a figura do “Capitão”, o objetivo era “unificar toda
representatividade da família em uma só pessoa, e isso é uma característica de modelo
que os brancos seguem, mas a nossa comunidade não podia fugir disso, então
permaneceu até hoje” (Professor indígena da Te’yikue, 2019). Assim, “os elementos
sociais tradicionais da antiga aldeia foram sendo, aos poucos, deixados de lado pela
sua inviabilidade em um novo contexto. Surgem, assim, novos arranjos sociais,
constituindo-se outras estratégias políticas e negociações entre as famílias extensas”
(BENITES, 2014, p. 45). Importante destacar que essas “estratégias políticas e
negociação” se dão num contexto de imposição da centralização política na figura do
“Capitão”. Assim, muitas parentelas são excluídas da participação nessa nova
configuração e, até certo ponto, enquadradas e dominadas por arranjos políticos
organizados pelas parentelas mais fortes e com vínculos e pactuação com instituições
que atuam na Reserva. Isso gerou, e ainda gera, muitos conflitos entre parentelas,
como expressam os casos dos assassinatos de “capitães”, conforme destacado por
Eliel Benites (2014), citados anteriormente.

Sobre o novo contexto que vinha surgindo, destaco aqui a participação ativa
dos rezadores. Menciono a época de Cassiano Aquino que, segundo alguns moradores
antigos da Te’yikue, na época dele, as igrejas não tinham muita força como têm hoje
pelas regiões da Reserva. EsTe líder atuava sempre como rezador, principalmente para
fortalecer a luta e o direito indígena, portanto, na medida em que a Reserva foi
recebendo as famílias indígenas recolhidas de várias aldeias tradicionais se
espalharam pelas regiões para “[...] viver como parente entre parentes”
(PEREIRA,2014, p. 60). Nessa composição organizacional, cada parentela buscou
vários formatos de sobrevivência, planejou sua resistência e aliou-se com o “Capitão”,
com o intuito de vencer todas as adversidades e organizar suas vidas.

Refletir sobre a configuração da Reserva e, ao mesmo tempo, sobre o esforço


dos indígenas de retomarem sua autonomia só foi possível com a leitura dos textos
produzidos pelos pesquisadores indígenas, dentre eles os textos de Eliel Benites
(2014), Tonico Benites (2009-2015), Izaque João (2011), Lídio Cavanha (2016) e

114
Claudemiro Pereira Lescano (2016). Segundo esses pesquisadores indígenas (ava), o
SPI, junto com o Governo brasileiro não adotou procedimentos de identificação dos
espaços de ocupação tradicional, tampouco manifestou preocupações com o futuro
dos Guarani e Kaiowá. Sendo assim, a demarcação se constituía em procedimento
administrativo sem a necessária participação indígena.

Mesmo que a Reserva Te’yikue tenha sido criada num modelo estratégico
para o Estado controlar os indígenas, surgia cada vez mais resistência por parte das
lideranças religiosas, mesmo não tendo espaço suficiente para atuar como
articuladores do teko porã (harmonia interna/ bom modo de viver). Conforme alguns
moradores da Reserva, um jekoha48, na luta pela preservação da memória coletiva, dos
saberes, danças e rezas, mostram o quanto é importante manter a identidade indígena
(ava reko porã). Os rezadores, as rezadoras, os anciões e as anciãs (ñanderu kuéra ha
ñandesy kuéra) tiveram participações diretas na luta contra a política assimilacionista
e colonialista e também na preservação cultural. Contudo, isso foi interrompido, em
parte pela grande influência da cultura ocidental, pelo descaso por parte dos órgãos
públicos sobre o investimento na cultura indígena e pela forte presença das igrejas
pentecostais na cosmologia indígena e no tekoha, fato que requer bastante cautela e
atenção em nossas pesquisas.

A partir da pesquisa entendemos como a Reserva foi atraindo vários


elementos que tentaram impor aos indígenas, por meio de um modelo social ocidental
específico, como é o caso do karai reko49, que abordaremos ao longo deste trabalho. A
identidade indígena da Reserva, conforme Benites (2014, p. 21), é construída a partir
de posições radicais, das polaridades de famílias sobrepostas, de diferentes percepções
dos signos representados pelos discursos coloniais hegemônicos e das posições
fundamentalistas dos vários segmentos religiosos, das quais emerge o sujeito kaiowá e

48
A figura do jekoha oferece às pessoas do tekoha apoio espiritual, político, filosófico e
esperança. Há hoje variabilidade de jekoha nas aldeias, entre os quais estão os rezadores e as
rezadoras, anciões (jari, tuja kuéra), Capitão, professores, agentes de saúde, pastores indígenas,
vereador. Destaco os papeis fundamentais desses agentes tradicionais na Reserva. Entre as
atividades desenvolvidas por eles estão: aconselhamento, orientação sobre o “bom viver” (jeiko
porã), remédio tradicional, e outras, sem esperar recompensa. De todo modo, compartilha o que
eu conceituo, a partir dos saberes que me ensinaram da minha cultura, de “reciprocidade
espiritual”, um elemento forte e muito importante da agregação social e étnica entre nós
“parentes”, os membros da comunidade indígena. Ocupar-me-ei disso no próximo capítulo.
49
Vida do branco e sistema do branco.

115
guarani atual, que procura resistir criando vários modos de ser quando os convêm, e
fortalecendo suas histórias, as línguas, os saberes, os conhecimentos territoriais, etc.

No desenvolvimento das nossas pesquisas, priorizamos algumas ferramentas


metodológicas, tais como o ñemongueta (conversa/entrevista), a etno-história e a
etnografia. Teve dias que as pesquisas fluiam, chegando na casa dos indígenas sem
caderno ou gravador. Depois de conquistar a confiança das pessoas, aí podia registrar
em áudio e imagem. Dessa forma consegui dados sobre o desmatamento, a
organização entre parentelas pelas regiões da Reserva. Assim percebi o esforço que os
rezadores e as rezadoras fizeram para nos mostrar e nos ensinar sobre nossa cultura e
sobre o difícil caminho que eles trilharam durante o período colonial pós-
reservamento, para continuar sendo ava reko tee kuaaha (verdadeiro/as detentore/as
da cultura e dos saberes indígenas).

Como estratégia de mostrar aos nossos pares a importância da cultura e dos


saberes indígenas, os ñanderu e as ñandesy, pelo que sempre ouço nas minhas visitas
a algumas famílias, esperam que os pesquisadores indígenas apresentem
comportamentos positivos dentro e fora de nossas comunidades. Esses
comportamentos positivos começam com a divulgação de algumas práticas culturais
de seu povo. Nas reuniões e nas Aty Guasu, estas lideranças tradicionais sempre
cobram dos professores, dos jovens e dos estudantes indígenas. Sempre que têm
oportunidade, frisam muito sobre o “jeito certo de ser indígena”, até porque, segundo
estes líderes, os “antigos” respeitavam e seguiam as orientações dos xamãs,
conseguindo, assim, alcançar boa qualidade de vida, sem violência e sem divisão entre
as famílias (teko porã).

Pretendo oferecer uma síntese da discussão sobre a realidade experimentada


desde que as famílias foram acomodadas, destacando, sobretudo, as diversas
possibilidades que os Kaiowá e Guarani buscaram para se organizar. Nesse sentido,
venho mantendo diálogo permanente com algumas lideranças indígenas, como das
famílias Soares, Martins, Vera, Lescano e, algumas vezes, com as famílias Paulo e
Marques. É importante registrar que o acesso às parentelas incluídas na pesquisa
também reflete minha condição de pesquisador indígena pertencente a uma parentela
específica, inserida na configuração da Reserva de Caarapó; ou seja, essa condição
interfere diretamente no leque de minha circulação, no tipo e na qualidade dos dados
acessados.

116
A expectativa dos colaboradores/sujeitos da pesquia é de que os
pesquisadores indígenas analisem, problematizem e consigam trazer reflexão dentro
da perspectiva ideal, para que, futuramente, não seja esvaziado o papel da liderança na
parentela, como aconteceu com a função dos rezadores em algumas reservas
indígenas. Ou seja, buscam uma conexão de fortalecimento de seus papeis enquanto
lideranças e desejam deixar registrado na escrita as razões requeridas para esse
reconhecimento, que parece ser um motivador importante para colaborar com a
pesquisa. Além disso deve-se problematizar algumas questões sobre a Reserva, a
partir da própria experiência de pesquisador indígena, sobretudo na utilização de
inovações metodológicas. Só assim será possível contribuir para uma nova reflexão
sobre a realidade atual apresentada para as parentelas, contemplando suas expectativas
e projetos de futuro.

Como caracteriza o pesquisador ava Kaiowá, Izaque João (2011), as reservas


criadas para os indígenas não apresentavam êxito no que diz respeito a organização
tradicional, desde o princípio, porque o grupo organizava-se conforme as orientações
dos rezadores e, por conseguinte, investia rigorosamente nas rezas. O ritual de kunumi
pepy, apresentado pelo pesquisador em seu estudo, foi se fortalecendo na medida em
que essa parentela sofria perseguição, violência e preconceito. Sobre a mobilização
dos líderes religiosos e políticos para organizarem seus grupos, o autor explica da
seguinte maneira:
Durante o período dos trabalhos de demarcação das reservas
indígenas, ocorrido no estado entre 1915 a 1928, houve grande
mobilização dos líderes religiosos e políticos, procurando organizar
melhor os grupos kaiowá, circulando por vários locais da região.
Mesmo com a perseguição dos agentes do SPI e o confronto com os
colonos, o rezador continuou a realizar kunumi pepy e o batismo de
milho saboró em diversos locais. A realização da festa de kunumi pepy
era entendida como forma de afirmação de identidade e também para
articular melhor os componentes do grupo para o enfretamento com os
nãos índios, confiantemente pela força da reza. Por outro lado, a
perfuração do lábio é uma forma de identificar os Kaiowá
espiritualmente, para serem reconhecidos pela divindade: kunumi =
menino; pepy = marca divina; daí que kunumi pepy é o “registro do
menino” no plano divino. Além disso, com o uso do tembeta, o
Kaiowá executa ações com resultado mais positivo. (IZAQUE JOÃO,
2011, p. 46-47)
Como descrito por esse pesquisador ava, a organização do grupo indígena
dependia diretamente dos rezadores que, por meio da sabedoria divina, procuravam
solução possível aos problemas provenientes dos colonos. Por isso, continuavam

117
praticando rituais tradicionais, dos quais se beneficiava a comunidade. Segundo
Izaque João (2011), os benefícios dos rituais eram ao coletivo, por exemplo, quando
faziam uma grande roça, em seguida conseguiam êxito na colheita. Outro benefício
era formar um cidadão de bem, consciente do seu papel na coletividade, sobretudo na
questão religiosa. Na visão do sábio e rezador Maurilio, havia várias estratégias de
resistências, principalmente na valorização e no fortalecimento da identidade, da
língua materna, das danças, rezas e saberes nativos.

No início, conforme este rezador, muitas pessoas continuavam praticando


seus saberes ancestrais; por exemplo, quando precisavam do batismo para seus filhos,
quando adoeciam, quando estavam enfrentando problemas espirituais. Maurilio alega
que, embora alguns rezadores conseguiam ter contato com os jára, alguns deles
preferiam ficar distante dos seus respectivos lugares. Por isso, algumas doenças foram
se espalhando no interior da Reserva, e certamente foi necessário que todas as crianças
passassem pelo ritual de batismo (mitã ñemongarai) para facilitar o trabalho das
lideranças tradicionais religiosas.

Embora o papel dos rezadores, atualmente, está sendo menos valorizado,


porque eles dividem um espaço com vários líderes indígenas que surgiram, como o
Capitão, o pastor indígena e o representante dos evangelhos, mesmo assim eles
continuam praticando seus rituais e se fortalecendo, apesar de pertencentes à parte dos
dominados, mas não totalmente, pois eles sabem criar estratégias. Portanto, entender a
realidade nativa a partir de sua própria temporalidade é mais propício. Vale ressaltar
que o presente trabalho não será completo sem incluir a posição de todos aqueles que
já se manifestaram sobre a questão. A reflexão do texto procura os mais relevantes
posicionamentos sobre a realidade da reserva/aldeia/tekoha, partindo do ponto de vista
da comunidade indígena.

Sobre o espaço geográfico da aldeia, a maioria da sociedade ocidental (karai)


entende o centro como lugar de progresso, no qual se concentra a segurança, o posto
de saúde, a escola, o maior número de professores, como se todos usufruíssem de
emprego. Mas esquece que, na Reserva, também se configuram as periferias, onde as
famílias se organizam, plantando uma pequena roça, constroem casas feitas com
materiais locais (madeira, sapé), esperando um dia retornar ao seu lugar de origem,
neste caso, seu território tradicional.

118
No entanto, a aldeia não é um vilarejo. Os Guarani e Kaiowá foram
obrigados a morar neste lugar. Segundo seus relatos, antes usufruíam de recursos
naturais de qualidade, se organizavam conforme sua tradicão, mantinham sua religião
viva, fortalecendo, assim, o bem viver. É importante dizer que quando se fala de
“comunidade”, sem entender o contexto histórico, cada vez mais se reforça a
inconsciência histórica. Este conceito, que ao longo dos anos foi ganhando voz por
parte do senso comum, precisa de esclarecimentos, tanto históricos, quanto
sociológicos. O termo comunidade remete à ideia de harmonia e vida em comum. Só
que isso não é possivel quando há um ajuntamento compulsório de muitos ore, cada
um com seu modo próprio de viver e de pensar, com suas histórias e suas origens,
como a história nos mostra.

É a partir de sua trajetória de vida, experiência, resistência e de um lugar


escolhido por ele para morar com a família, que o sábio Maurilio tem observado e
vivido os efeitos das aceleradas transformações ocorridas na Reserva:
Ko’apeko heta pehẽngue kuéra voi ojegueru va’ekue. Oĩva ou ko’anga
hérava Takuaragui, Y pytãgui, javoraigui, São Lucagui. Kazaun
ojegueru ha oñemoĩ akue ko’a rupi. Oĩva oho Savera láo, ore katu ko
ore lugar peguarã kótare voi roikóma akue. Ko tekohápe heta va’ekue
oĩ ka’aguy, yvyra porã ógarã, parederã ha jepe’arã. Upérõ heta va’e
tape po’i oĩ ave. Pe tape po’i ojeguata hag̃ua akue ñopariente rógape.
(Maurilio, 2019)

Esse lugar recebeu muita gente mesmo, muitas famílias foram


colocadas aqui. Tem família que veio de Taquara, Y Pytãgui, Javorai,
São Lucas. Essas pessoas foram trazidas e distribuídas por aqui. Tem
gente que foi morar na região Savera, nós já morávamos por aqui
mesmo. Nessa aldeia tinha muitas árvores (mata), por isso não
tínhamos muitas dificuldades para construirmos casas e não ficávamos
sem lenha. Nessa época também tinha bastante ‘estradinhas’ que
ligavam as casas dos parentes, desse modo facilitavam visita aos
parentes. (Tradução livre)
Maurilio, como é conhecido pelos moradores da região Mbokaja, uma das
diversas pessoas entrevistadas que faz parte da trama deste trabalho e morador antigo
da Reserva Indígena de Caarapó, é sábio, rezador, raizeiro, conselheiro familiar, pai e
esposo. Antes de vir para a Reserva, trabalhou muito na derrubada da mata nas
fazendas, época em que, conforme seu relato, não recebia uma boa diária, a condição
de trabalho era precária, acordava cedo para trabalhar e não havia horário específico
para descansar. A partir desta realidade triste que enfrentou, ele narra sobre a remoção
forçada que sua família sofreu, o que também aconteceu com outras famílias
indígenas e como foram se organizando no interior da Reserva, suas dores e as buscas

119
por sobrevivência. Diante disso e discorrendo sobre sua trajetória de vida, sua vinda
para a Reserva Indígena de Caarapó, as duras condições de sobrevivência, Maurilio
narra sobre as matas que havia naquela época e sobre a organização social indígena.
Uma das formas de entender a conexão entre as parentelas na organização social, ele
se referiu ao tape po’i. Constatamos que, nessa época, não existia estradas como têm
agora. Sua memória reavivada vem do ñemongueta permanente que mantém com sua
esposa, compadres e com alguns filhos. Com olhar crítico em relação à mudança da
paisagem da Reserva, recorda: “Ko tekohape heta va’ekue oĩ ka’aguy, yvyra porã
ógarã, parederã ha jepe’arã”. Ao longo dos anos, as árvores foram alvos de
madeireiros, tendo sido destruídas gradativamente. Conforme o relato dele e através
da figura a seguir, vemos que os recursos naturais foram ficando escassos em várias
regiões da Reserva Te’yikue.
Mapa 4: Recursos naturais atuais na Reserva Indígena de Caarapó

Fonte: Atlas socioambiental terra indígena Te’ýikue. Org. Smaniotto C. R., Ramires L. C.,
Skowronski, L. – Campo Grande: UCBD, 2009

Conforme o mapa 7, é possível verificar como a Reserva tem enfrentado


escassez de recursos naturais. As principais causas destacadas por Fernando Peralta
são: venda ilegal de madeira, queimada ocasionada pelos não indígenas e também
pelos indígenas. Como diversas outras reservas indígenas demarcadas pelo Estado
brasileiro, a Reserva de Caarapó tem trazido acelerado processo de transformação
socio, econômica e cultural.

120
As reservas, consideradas como únicos lugares para os indígenas viverem,
sofreram, ao longo dos anos, superpopulação, pois vieram pessoas de todos os lugares.
Para beneficiar os colonos, o SPI, atual FUNAI, convencia os indígenas de que só nas
reservas se conseguiria viver. Por essa razão, a família da Lauriana Escobar decidiu
escolher esse local. Conforme ela,
Che túa kuérango omba’apomi va’ekue voi ka’atýpe. Che sy
omombe’u há lajango ha’e kuéra ndopytai voi araka’e. Omba’apo
oiko péicha. Omeneko péicharõnte voi oikovéta araka’e. Ha’e kuéra
omba’apo jepe ka’atýpe. Upeguila ojegueru apo láo ko’anga jaiko
haguape. (Lauriana Escobar, ancião da Reserva de Caarapó)

Os meus pais trabalharam um pouco nos ervais. Como minha mãe


contava, eles não paravam mesmo. Trabalhavam assim. Talvez
vivessem assim mesmo, sempre trabalhando. Por trabalhar nos ervais
foram trazidos para esse lugar onde moramos agora. (Tradução livre).
Lauriana Escobar, da etnia Guarani, mãe de dois filhos e de três filhas,
moradora antiga da Reserva Indígena de Caarapó, atualmente está morando na região
Mbokaja desta localidade. Sua história familiar foi narrada por ela: Seus pais
trabalharam nos ervais, talvez na Companhia Matte Laranjeira. Conforme sua
narrativa, constatamos o quanto foi utilizada a mão de obra indígena. Quando o
trabalhador indígena já não era mais necessário, mandavam recolhê-lo para a Reserva.
Esse processo de circulação forçada, quando as parentelas eram expulsas de seus
tekoha e forçadas a buscar meios de subsistência em outros lugares, engajando-se
como trabalhadores temporários volantes, é descrito por Brand (1993 e 1997) e
Pereira (2004) pelo termo sarambi ou esparramo. Trajetórias de vida não se dão num
vácuo social; não havia escolha para os pais de Lauriana em termos de moradia,
tampouco podiam opinar sobre seu destino. Opções e mudanças são influenciadas por
um sistema colonial e também por um conjunto de transformações e demandas que os
agentes do Estado planejavam.

Ao longo dos anos 1980-2017, quando as igrejas pentecostais se instalaram


na Reserva, pude perceber que muitos conhecimentos ancestrais não se perderam
totalmente. Pensar a configuração da Reserva a partir de um único viés certamente não
contribuirá para se compreender o motivo pelo qual muitos ava (indígenas) se
converteram. Por isso, refletir sobre a conversão indígena ao pentecostalismo requer
bastante estudo e pesquisa.

121
Nesse sentido, é relevante mencionar o termo sarambi, que é utilizado por
muitos pesquisadores, o qual foi apresentado pelo historiador Brand para denunciar a
violência que o povo nativo dessa região sofreu depois que perdeu seus tekoha.
Discutir sobre a má interpretação do conceito “sarambi” por parte da sociedade não
indígena é fundamental, pois o conceito só foi conhecido e pesquisado por alguns
pesquisadores da academia, principalmente por Brand (1997). Sarambi foi um termo
que o brand ouviu dos índios e não de brancos. E se refere não à “bagunça” na
reserva, e sim ao esparramo que se deu de seus antigos tekoha. Portanto, uma coisa é o
sarambi, outra coisa é a nova configuração fora do padrão tradicional guarani e
kaiowá – na reserva – que os próprios indígenas interpretam como “chiqueirinho”, e
que o brand nomeou de “confinamento”. Então, o preconceito não está na
interpretação histórica e sim na reação da sociedade que quer que os índios continuem
amontoados nas reservas.

A sociedade envolvente desconhece a organização social guarani e kaiowá e,


por isso, interpreta preconceituosamente o espaço da Reserva como “balbúrdia
social”. Segundo a intepretação de alguns não indígenas, que são: taxistas, vendedores
ambulantes, evangélicos, fazendeiros, sitiantes, donos50 do mercado, marreteiros,
alguns políticos, alguns funcionários públicos. Com os quais conversei durante a
pesquisa, falaram-me de como deveria ser a configuração da Reserva indígena a partir
da presença de várias famílias: a) teria que ter polícia igual da cidade, plantar soja, ter
cadeia para os infratores, alugar os espaços para os fazendeiros plantarem. Estas são
algumas ideias deles que destaco aqui para refletirmos sobre o preconceito que os
indígenas sofrem por serem moradores de uma reserva e por insistirem em praticar seu
modo de ser - ava reko.

Outra ideia deles que destaco é de que deveria evangelizar os índios:


“Parece que vocês precisam de Deus na vida, eu ando pela aldeia para vender as coisas
e vejo que precisa de organização, só através de sabedoria de Deus vocês serão salvos

50
Geralmente, essas pessoas possuem estabelecimentos bem na entrada cidade, nas periferias,
com intuito de facilitar aos clientes indígenas compra de mercadorias, de negociar alguns
objetos de valor, por exemplo, a moto enrolada, carro, etc. Contudo, para isso ser possível - eles
pegam cartões do banco dos indígenas aposentados, das pessoas que recebem Bolsa Família,
dos trabalhadores da Usina de cana, de alguns funcionários públicos, etc. No dia do pagamento,
quem recebe o salário dos indígenas são os donos de mercado, enfim, são algumas das situações
que, as comunidades indígenas guarani e kaiowá enfrentam.
122
e conseguirão organizar melhor seu povo51. Portanto, percebo, através das falas e da
própria experiência pessoal, o quanto a sociedade ocidental precisa conhecer a história
da luta do nosso povo e os problemas enfrentados na atualidade. Até porque, segundo
um professor indígena Kaiowá, “os colonizadores chegaram por aqui com a
espingarda, com seus gados, com suas ideologias de progressos, com a sua “ciência”.
Portanto, o termo “sarambi” ocorreu porque os indígenas foram violentamente
retirados dos seus lugares”. Não é apenas um termo para interpretarmos sem
conhecimento histórico. Em artigo da pesquisadora Graciela Chamorro (2015), o
termo “sarambi” é muito bem analisado:
O agrupamento em reservas dá-se no momento em que ocorrem novas
frentes de espalhamento ou sarambi, ocasionadas pelas
transformações pelas quais passou a Mate Laranjeira, pela abertura
das colônias agrícolas e pela chegada de novos fazendeiros. De modo
que o sarambi aconteceu de diversas formas e em diversos momentos
nos vários lugares. Sarambi significa bagunça e afastamento.
Ñemosarambi é sempre uma ação realizada por outrem, o que vem
indicado pela partícula -mo-, que significa “fazer que” e verbaliza o
nome. À época em que “todas” as famílias indígenas tinham
abandonado ou viviam sob a iminência de abandonar seus tekoha,
costuma-se chamar ñemosarambipa, indicando–pa a vasta abrangência
do espalhamento. (CHAMORRO, 2015, p. 306).
Ñemosarambipa se consolidou com o sucesso que os projetos da colonização
obtiveram por meio do papel e da escrita para legitimar a exploração em território
indígena. Os ava kuéra Kaiowá e Guarani chamam de sarambi a ação violenta de
remoção da família ocasionado pelo Estado brasileiro, para denunciar o motivo pelo
qual sofreram esparramo, bagunçando a sua organização social. Nesse período, os
agentes do SPI, atendendo o protocolo do Estado brasileiro, passaram a aliciar
tumultuosamente as famílias indígenas ou parentelas - pehengue kuéra - para o
interior da Reserva, provocando, segundo Chamorro e Cavalcante, a
“desterritorialização”, dispersão/alteração das famílias, involuntariamente, de seu
lugar tradicional para um lugar dessemelhante, tornando necessário um esforço
intenso de adaptação a uma nova realidade espacial. Sobre o que foi explanado,
Chamorro caracteriza da seguinte forma:
Esse evento foi um divisor de águas na história indígena
contemporânea. A população indígena dos tekoha guasu chamados
Chapiru, Ka’aguy Rusu, Ita Poty, Yvy katu, Guasuty entre outros foi
levada, muitas vezes à força, para as “reservas”, até então muito pouco
habitadas. Funcionários do SPI e, mais tarde, da Fundação Nacional

51
Comerciante da Igreja Mundial do Poder de Deus. Ela sempre frequenta a Reserva vendendo
suas mercadorias.
123
do Índio, FUNAI, assim como os agentes da Missão Caiuá e das
empresas colonizadoras transportaram os indígenas das fazendas às
reservas. (CHAMORRO, 2015, p. 306)

Ainda sobre o sarambi ou esparramo, o historiador karai Cavalcante utiliza-


se da seguinte argumentação:
O já comentado esparramo ou sarambi, a meu ver pode ser
enquadrado como uma espécie de diáspora, que na maioria das vezes
se deu em forma de deslocamentos forçados, pois muitos tekoha
foram desarticulados sendo que seus representantes se espalharam por
várias reservas indígenas e/ou outros locais de assentamento, como
fundos de fazendas, margens de rodovias etc.. Também houve grupos
que foram desterritorializados a partir de migrações reativas a
pressões, ameaças ou por promessas de melhores condições de vida
nas reservas. Segundo Little (1994), grupos desterritorializados em
processo de diáspora congelam o local originário no tempo e fazem do
retorno a este local original sua meta existencial. No caso em questão,
este sentimento em relação ao seu local de origem é um dos principais
fatores que sustenta o mínimo de coesão que pode ser verificado entre
tais grupos inicialmente desarticulados. (CAVALCANTE, 2013, p.
93)
Para dar nitidez ao que o autor analisa acima, descrevo o histórico de
algumas famílias da minha aldeia/reserva indígena, começando pela história da minha
família, que foi retirada do tekoha São Lucas. A parentela do meu pai morava nesta
região, agrupava-se e organizava-se nos moldes tradicionais. Antes de sofrer esbulho e
o posterior sarambi, eles trabalhavam na roça, praticavam sua religião, mantinham
contato recíproco com os jára da natureza. Indagado, meu tio, conhecido como Ulario,
descreveu a vida do indígena nessa época. Segundo ele, depois da chegada à fazenda,
foi difícil continuar com o ava reko. Também os parentes dele foram abrigados a
trabalhar nas fazendas para sobreviverem, a partir do ano de 1945.

O meu interlocutor contou que a família dele morava nessa região, buscava
recurso natural para sobreviver e se organizava de acordo com seu xamã. O Senõ, que
era um rezador bastante respeitado naquela época, foi responsável por dar orientação
espiritual, passando seus conhecimentos ancestrais; rezava para sua família obter
saúde e dava conselhos sobre como deveriam se comportar um Guarani.

Várias famílias (pehengue kuéra) foram colocadas na Reserva desde 1960.


Desde então formou-se uma nova rede de sociabilidade que, ao longo do tempo,
culminou em várias problemáticas. Conforme Lauriana Escobar, no início não havia
problema na Reserva, porque havia poucas pessoas (famílias), por isso não foi tão
difícil movimentar-se dentro e fora desse local. Essas informações me deram uma

124
pista de como era o teko tradicional num tekoha antes do reservamento, pois os grupos
familiares podiam viver mais de acordo com seus jeitos mais tradicionais.

É inegável que os indígenas são vistos pelo governo brasileiro e pela


sociedade nacional, como atraso ao desenvolvimento econômico do país. A maioria
das famílias indígenas se deparou com um futuro incerto por não adotarem e/ou
escolherem terras de ocupação tradicional e por não se preocuparem com a dimensão
das áreas para atendimento das necessidades específicas no futuro, conforme diversos
autores mencionaram. Dentre os autores principais estão: Levi Marques Pereira (1999;
2004; 2007), Antonio Jacob Brand (1997), Jorge Eremites de Oliveira & Levi
Marques Pereira (2009) e Cavalcante (2013).

A tentativa da destruição dos tekoha enquanto espaço tradicional exclusivo


dos grupos sociais, de famílias extensas, como vemos na atualidade, ocasionou uma
série de prejuízos à configuração social e ao sistema social tradicional indígena.
Dentro da configuração social está a sociabilidade entre rezadores de diferentes
organizações, os quais transmitiam e transmitem, conforme a orientação espiritual do
cosmo, o teko porã (o bem viver para viver entre parentela). Neste sistema social
também está incluída a educação pela palavra, orientação permanente para mostrar
respeito entre os seres do cosmo, a variabilidade é perceptível em diferentes famílias
indígenas ou parentelas.

O procedimento adotado pelo SPI quase conseguiu colocar a configuração


social e o sistema social tradicional indígena no esquecimento. Alguns pesquisadores,
em seus trabalhos, colocaram que famílias extensas expulsas de diferentes tekoha,
muitas vezes, eram inimigas entre si. Acredito que teremos pesquisas indígenas
relevantes sobre intrigas que alguns grupos indígenas mantiveram no início da
formação social na Reserva e depois do aumento da população. Segundo Cavalcante,
as famílias eram obrigadas a disputar “parcos recursos disponíveis e se pretendia que,
compulsoriamente, elas vivessem em harmonia sob a administração de um funcionário
do órgão indigenista e de um Capitão (liderança indígena nomeada pelo órgão para
garantir o êxito do projeto governamental )” (CAVALCANTE, 2013, p. 85).

A acomodação compulsória dos Guarani e Kaiowá se intensificou a partir da


década de 1950, provocando uma superpopulação e sobreposição de famílias extensas
na Reserva Indígena de Caarapó, por exemplo. Tais situações trouxeram vários
problemas, dentre os quais estão: diminuição de matas, dos remédios tradicionais, do
125
espaço geográfico, transformação dos papeis dos rezadores. Também, conforme
Cavalcante (2013, p. 86), outra série de graves problemas surgiram, desde altos
índices de alcoolismo, suicídios e desnutrição, até a crescente violência interna .

O aumento numérico da população ao longo da segunda metade do século


XX, que concentrou indígenas de várias comunidades, é explicado pelo nascimento de
novos membros e pela vinda de novos moradores de antigas aldeias tradicionais, que
foram expulsos de suas terras para a abertura de fazendas.

O povoamento dessa região, somado ao extrativismo da madeira e a


intensificação das atividades agropecuárias, como já foi mecionado acima, entre as
décadas de 1960 e 1970, provocaram a degradação ambiental, o enfraquecimento do
solo e a troca de vegetação nativa por uma vegetação exótica (colonião e braqueária)
nas terras indígenas demarcadas. Esses e outros fatores impossibilitaram as práticas
culturais e religiosas dos povos guarani e kaiowá, em especial, o plantio tradicional
das roças52, gerando dificuldades na produção de alimentos e das práticas de rituais.

Conforme os relatos de moradores da Te’yikue, as matas foram devastadas,


os bichos foram embora, as plantas medicinais e a matéria prima para confeccionar o
artesanato indígena precisam ser coletadas nas fazendas da região. Com o meio
ambiente totalmente devastado, sem meios de sobrevivência, as famílias buscam o
sustento como assalariados nas usinas de álcool, localizadas na região ou como
diaristas, boias-frias, nas fazendas do Município, e hoje em fazendas de colheita de
maçã em outro Estado ou na cidade, em serviços da construção civil. Muitas crianças
e jovens deixam de ir à escola para acompanhar os pais nessas atividades de trabalho,
apesar das intensas discussões nas reuniões realizadas na escola e de toda a legislação
que obriga as crianças a frequentarem a escola.

Os homens permanecem afastados de suas famílias por sucessivos períodos


de 60 a 90 dias, trazendo prejuízos para a organização familiar e para a vivência social
na reserva. Hoje em dia, aproximadamente 400 homens acordam todos os dias, às 02
horas da madrugada para irem trabalhar na Usina Nova América. Essa rotina de

52
A alimentação Guarani tem base na produção do milho colorido (avati para). O plantio se
inicia em setembro e se encerra em fevereiro, configura um calendário temporal e cultural
diferente do calendário civil nacional. A alimentação guarani inclui uma série de precrições de
vegetais que não são prestigiados pelo consumo da população. Os anciãos, panteões do
conhecimento da nossa cultura são detentores dos saberes ancestrais também da alimentação
apropriada.

126
homens obriga as mulheres da área indígena a ficarem quase sempre sozinhas em
casa, cuidando dos filhos, das casas, da família em geral. Na Reserva de Caarapó,
quando elas têm oportunidade de falar nas reuniões da escola, no Fórum Indígena
anual e em encontros e oficinas, as queixas são as mesmas: não dão mais conta de
educar os filhos e as filhas sozinhas.

Essa situação também explica o aumento de convertidos jovens ao


pentecostalismo nas igrejas da aldeia, principalmente a partir dos anos de 2003 e
2010. É muita responsabilidade e as crianças e/ou os adolescentes já não querem mais
obedecer aos conselhos dos mais velhos, por isso apresentaram para eles a igreja como
sendo o único caminho do teko porã (bem viver). Vários são os fatores que vêm
agravando a vida dos Kaiowá e Guarani de Caarapó nos últimos tempos. Entre eles
destacam-se a violência, o suicídio, o alcoolismo e as drogas, que passaram a
preocupar a população a partir do ano 2000, atingindo crianças e jovens. Diante dessa
problemática, os Kaiowá e Guarani de Caarapó veem a sua organização social,
política e religiosa cada vez mais prejudicada.

Desde a criação da Reserva foi implantado um subssistema de capitania e


chefia conforme a orientação do Posto, designado pelo SPI, versando sobre a
subordinação política das lideranças tradicionais religiosas ao sistema militarizado no
contexto da criação do SPI. Mas a forma de condução da política na Reserva Te’ýikue
não parou por aí, tanto que, no princípio, o chefe do posto não conseguia atender a
demanda, daí criou-se a figura do Capitão, nomeado em 1920 (BRAND, 2001), de
modo que a função dele era a de articular, coordenar e controlar o conjunto do espaço
geográfico da população de cada reserva indígena. Não foi diferente na Reserva onde
moro, cuja função de poder foi atribuída a ele. Vale lembrar que o Capitão era
escolhido arbitrariamente pelos agentes do Estado e não pela comunidade, como
deveria ser, democraticamente, e investido de autoridade perante os moradores de
cada região. Destaco também que, desde o inicio, o processo de escolha de Capitão
não era bem aceitp por algumas famílias das regiões da Reserva Te’yikue, pois até
então não havia consulta às demais famílias. Mas como já descrevi logo no inicio
deste texto, cada etapa de gestão do Capitão marcava um acontecimento. Ou seja:
cada gestão tinha sua organização especifica; por exemplo, na época de João Martins,
alguns entrevistados me disseram que começou a entrada acentuada de bebida

127
alcoólica e venda ilegal de madeira. Conforme Fernando Peralta, o Capitão gozava e
goza de poder coercitivo, muitas vezes materializados nas temidas polícias indígenas.

A forma como repercutiu essa figura tão temida do Capitão tirou muita
autonomia de muitas famílias e rezadores. Desde então, essa preferência demonstra
que o Capitão era uma figura indígena responsável por impor aos demais a ordem
necessária para que os ideais assimilacionistas da política indigenista oficial pudessem
ser postos em prática. Nesse sentido distanciou-se do diálogo que sempre manteve
junto os ñanderu. Ele planejou o trabalho fora do que era previsto para manter a
cultura e saberes indígenas. Foi realmente uma armadilha dar o poder para a
comunidade que tinha outro tipo de política, e na qual se decidia quais caminhos
seguir para melhorar os problemas em relação à saúde, meio ambiente, prática cultural
e religião. Retomarei essa discussão no terceiro capítulo.

Os espaços para as práticas de rituais indígenas, segundo a análise do rezador


Florencio Barbosa, aos poucos não foram mais considerados tão importantes para a
organização das comunidades, até porque “em cada região já se instalava igreja e o
Capitão ajudava para multiplicar mais, assim surgia mais dificuldade pra gente fazer
jeroky, porque dizia que essa festa nossa era do demônio”. (Fala do rezador da
Te’yikue, Florencio Barbosa).

As atividades econômicas básicas de determinadas famílias indígenas no


interior da Reserva estão relacionadas à agricultura familiar, além dos já citados
acima, fora da Reserva, em decorrência do baixo nível de escolarização e pouco
preparo para o mundo do trabalho em setores mais especializados, a maioria dos
empregos ofertados estão relacionados basicamente aos serviços braçais, em
atividades que caracterizam baixo rendimento e estigmatização do indígena como ser
não culto, não inteligente, servindo apenas aos serviços de força física, sendo-lhes
negado acesso a serviços de aspecto intelectual.

As famílias que procuram sobreviver a partir da agricultura familiar vêm


passando por inúmeras dificuldades, pois o solo tem perdido seus nutrientes em
decorrência do constante uso das queimadas, tratamento com venenos nas lavouras e
secas prolongadas por desconcertos climáticos gerados pelo processo de
industrialização. Como resultado de anos de exploração inadequada, a terra responde
com pouca produtividade agrícola, dificultando o trabalho de produção de alimentos
de forma orgânica.
128
Há famílias com uma renda como funcionários públicos da escola indígena,
trabalhando como professor, faxineira, ajudante de serviço geral, ou na área da saúde
como agente de saúde, faxineira do posto de saúde, executando atividades com ganhos
regulares.

Outro fato que implica diretamente na produção, conforme a explicação do


rezador Maurilio, é a descontinuidade dos rezadores para orientar os agricultores em
relação ao calendário de plantio e controle de pragas, pois o ritual serve para afastar,
por exemplo, grande infestação de formigueiros existentes na aldeia, assim como é
importante conhecer os períodos de plantio e colheita, quais alimentos são adequados
para consumo e outras especificidades observadas em nossa cultura.

2.4 Introdução aos serviços de saúde, educação e seguridade social


Neste tópico descrevo e analiso a implantação dos serviços de saúde, de
educação escolar indígena e de seguridade social na Reserva Indígena de Caarapó a
fim de facilitar a compreensão sobre a realidade da Reserva, discutir a valorização dos
saberes indígenas e entender em quais condições os líderes evangélicos atuam. Vale
salientar que, desde o início de sua atuação, o SPI somente articulou políticas de
atendimento à saúde dos indígenas, na medida em que a doença se manifestava e
matava a população da Te’yikue, segundo análise de Silvio Paulo, que foi ajudante na
área da saúde contratado pelo SPI. A discussão alongada neste texto só foi possível
por meio da escrita etnográfica, da leitura da tese do pesquisador Brand (1997) -
principalmente a partir do capítulo IV, em que ele discute a questão do suicídio entre
os Guarani e Kaiowá - e do uso da técnica da observação participante e de entrevistas
abertas com alguns moradores mais antigos da Reserva, com o chefe do Polo-base de
Caarapó e com Agente Indígena de Saúde (AIS).

A importância desse tópico é, justamente, para mostrar como que foi o


processo de resistência dos rezadores indígenas guarani e kaiowá, a todas as
adversidades dentro de uma reserva indígena, isso é, às doenças, ao desmatamento e
às perseguições por parte dos líderes evangélicos. Longe de desaparecer, as
comunidades indígenas guarani e kaiowá tiveram grande crescimento demográfico,
como pretendo mostrar no decorrer do texto, ampliando ainda mais suas pautas de
reivindicações. De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena
(SESAI/MS), a população indígena de Mato Grosso do Sul soma 80.459 habitantes,

129
presentes em 29 municípios, representados por oito etnias: Guarani, Kaiowá, Terena,
Kadwéu, Kinikinaw, Atikun, Ofaié e Guató53.

Como tratei em tópico anterior, os Guarani e os Kaiowá da Reserva indígena


de Caarapó procuraram mecanismos necessários para sobreviver, ao mesmo tempo
para favorecer seus anseios específicos e para suprir suas demandas emergenciais,
desde que foram violentamente colocados num espaço inadequado para eles. Sendo
morador desta Reserva, cresci ouvindo vários relatos das pessoas sobre as doenças que
quase as dizimaram, inclusive da minha própria família. As opções de enfoques aqui
explicitados consideram, com base histórica nas vivências dos sujeitos, vêm
articulando os complexos processos entre crença ocidental, seus saberes tradicionais e
a experiência social em contextos da Reserva, discussão que retomo no capítulo 3.

A realidade que se vê hoje foi o legado do desmatamento praticado pelos não


indígenas, como se o povo guarani e kaiowá não precisasse dos recursos naturais para
viver. Para compreendermos a realidade da Reserva, teríamos que descortinar toda a
prática negativa executada por colonizadores que almejavam a morte dos indígenas,
não só fisicamente, mas também de sua história e do modo de rearticulação da vida
indígena.

Grünberg, Brand e Pereira analisaram o comprometimento dos recursos


naturais e de suas várias alternativas de saúde e econômicas na vida dos indígenas,
destacando que o avanço das gramíneas sobre a roça de cultivo dos Guarani e dos
Kaiowá não causaram impacto apenas na economia indígena mas, sobretudo,
trouxeram grande problema de saúde e na organização social e religiosa. Nesse
sentido, as funções dos rezadores foram ganhando outra direção, até porque, antes
desse problema surgir, como destaca o rezador Lidio Sanches, os rituais de plantio
representavam momentos importantes, que garantiam o equilíbrio da terra, da saúde
das pessoas e da produção pelas forças espirituais dos jára kuéra. Então, a falta de
recursos naturais, que são as fontes primárias da saúde e da dieta indígena,
comprometeram a religião do povo guarani e kaiowá.

Com a ausência de recursos naturais no interior da Reserva, muitos indígenas


procuraram outros meios para garantir a sua sobrevivência, situações que facilitaram a
exploração da mão de obra, o agravamento da pobreza e os avanços do mal-estar

53
Para mais informações acessar: http://www.secid.ms.gov.br/comunidades-indigenas-2/
130
social. Sobre o trabalho dos indígenas nas fazendas e de como desenvolviam o plantio
da braqueária, o Rezador Florencio conta que:
Yma rupi fazenda og̃uahẽ rõguare, ore ava roikomava voi árupi,
romba’apo akue ichupe kuéra roñoty hag̃uame braquearia. Voi ropu’ã
roho rombyaty hag̃ua, ikatu hag̃uaicha oraitepe isekopa hag̃ua. Uperõ
rombyaty aty arã heta latape braquearia ra’yingue; ikatu hag̃uaicha
ojereraha otro fazendape. Che amoĩ va’ekue ka’aru aja heta
lata...upeicha ha’yingue ou akue ore pratilia kuape ha hoky ko’arupi.
(BARBOSA, 2019).
Tradução livre: Antigamente quando chegou a fazenda, nós índios já
trabalhávamos para eles plantando essa braqueária. Acordávamos bem
cedo, assim íamos juntar para que essa semente secasse na hora certa.
Nessa época teríamos que juntar bastante lata de semente, assim para
levar em outra fazenda. Eu colocava antes do entardecer bastante
lata...assim a semente vinha na nossa prantilha 54 e se espalhou pela
aldeia.
Desde a década de 1980, segundo Barbosa, os indígenas trabalhavam na
fazenda, cuidando de gado, plantando a semente da braquiária, derrubando as matas
para os espaços servirem de pasto para o gado. Ao mesmo tempo, a Reserva atraía
muitos empreiteiros à procura de trabalhadores. Conforme a fala dele, constatamos a
condição de trabalho dos indígenas nas fazendas no entorno da Reserva e nas demais
regiões do Estado. Vários tipos de trabalhos que os indígenas praticavam favoreciam
algumas doenças que chegavam com a colonização e pelas más condições do trabalho
ofertado pelos colonos, conhecidos pela maioria dos indígenas por “fazendeiros”. Haja
vista que, nessa época, não se utilizavam equipamentos adequados, e tampouco se
sabia de sua existência. O entrevistado mencionou o nome de um sapato fabricado
pelo próprio indígena, muito utilizado nessa época: a plantilha/prantilha. O trabalho
árduo que o meu interlocutor exercia facilitava a gripe, a tosse, porque era forçado a
aguentar a poeira e a picada de cobra. Ele me contou que não tinha horário específico
para descansar e tampouco recebia pagamento justo pelo trabalho. Nesse sentido,
percebi que muitos anciãos, com os quais tive mais contato, apresentam o estado de
saúde bastante comprometido.

Vou mais além, a pobreza e as doenças chegaram, conforme alguns


estudantes indígena do Teko Arandu (Curso de Lincenciatura Intercultural Indígena
Teko Arandu – UFGD), não porque os indígenas as evocaram, ainda segundo eles,
essas situações se apresentam gradualmente aos povos indígenas, pois não há muita

54
Era um sapato fabricado manualmente. Utilizava-se um pedaço de pneu e algumas cordas
finas. Barbosa contou que essa prantilha era muito resistente e usava-se para qualquer atividade
de trabalho.

131
política sustentável, ao mesmo tempo, os políticos não fazem questão de garantir os
direitos que estão na Constituição Federal de 1988, etc.Desse modo, foram planejadas
pelo sistema ocidental capitalista, para serem concretizadas na Reserva, afinal, essa
área é rodeada pelas plantações de soja e, desde 2012, de cana-de-açúcar. Os homens
e as mulheres indígenas que trabalharam desde final de1980, como diaristas nas
fazendas e nas usinas de cana, hoje em dia, apresentam o estado de saúde bastante
comprometido. Em cada microárea das 16 Agentes Comunitárias Indígenas de Saúde
(AIS), nas áreas onde pesquiso, há pelos menos 500 trabalhadores rurais que precisam
lutar todos os dias para sobreviver. Geralmente eles acordam às duas horas da
madrugada para esperar o ônibus que os levam até à usina. O descanso deles é de,
aproximadamente, 5 ou seis horas por noite, e trabalham 6 dias por semana. Alguns
ainda conseguem frequentar culto na terça-feira, sexta e sábado.

Conforme caracterizado pelo ex-funcionário do SPI e filho do antigo morador


e líder Zacarias Marques, havia carência de recursos e de profissionais, desde que se
implantara o atendimento à saúde na Reserva de Caarapó. Nesse contexto, como ele
destacou, doenças como febre amarela, gripe, pneumonia, tuberculose, entre outras,
eram constantes e amarguravam cada vez mais a esperança, o sonho e a vida dos
indígenas na Reserva. Segundo a informação que eu tive com minha avó Lauriana
Escobar e com meu tio Hipolito Martins, na família deles, só para dar um exemplo,
morreram mais de 10 pessoas só destas doenças mencionada. É claro que isso não
resume os dados completos desde 1980, na Reserva Indígena de Caarapó, pois isso
demandaria mais tempo para pesquisar. Através dos dados aqui relatados, pode-se
constatar que muitos Guarani e Kaiowá morreram pós-reservamento, conforme a
informação de Fernando Peralta também. Por isso, muitas parentelas procuraram
voltar ao seu lugar de origem para não serem dizimadas pelas doenças. Muitos anciões
morreram na Reserva, vítimas destas doenças, mas não se tem o número exato e,
tampouco, um estudo aprofundado sobre esse tema. Cconforme a fala de muitos
anciões, por exemplo, da Lauriana, Tereza Martins, Severiana Vera, Avelina,
Florencio Barbosa, Maurilio Vilhalva, podemos afirmar que o número de óbitos foi
bastante elevado, sobretudo durante o recorte temporal do presente estudo (década de
1980 em diante).

Esses meus interlocutores me contaram que o serviço de atendimento aos


pacientes da aldeia era bastante precário, haja vista que, nesse período, o atendimento

132
à saúde era ofertado pela FUNAI e Missão Evangélica Caiuá, que ficavam a,
aproximadamente, 75 km de nossa Reserva, na região de Dourados. Para receber a
consulta médica e algum medicamento, os pacientes eram levados de Combi para esse
município. Pela desconfiança e, ao mesmo tempo, por praticar ainda rituais nativos,
algumas parentelas recusavam o atendimento e a inserção de tratamentos médicos, e
escolhiam e apostavam em manter o tratamento com os remédios tradicionais e com
as rezas, contando com a habilidade dos rezadores. Conforme Fernando Peralta, nessa
época, havia bastante remédios tradicionais nas regiões, e os rezadores benziam e
curavam. No entanto, depois que a vegetação nativa sofreu degradação, essas práticas
tradicionais não tiveram mais muito êxito.

O desmatamento ocorria na medida em que os fazendeiros ampliavam o


pasto para o gado e para arrendarem também as terras aos demais fazendeiros
plantarem soja. Nesse momento, muitos recursos naturais, como remédios que os
indígenas sempre iam buscar, se perderam, pois começaram a derrubar muitas árvores
e secaram as nascentes, e até mudaram seus percursos naturais. Estas situações
mataram muitos remédios e deixaram os indígenas sem muitas opções. Algumas
estratégias usadas pelos fazendeiros foram/são: contratar alguns indígenas como
diaristas, dentre os que moravam mais perto da divisa da Reserva e, assim, impedir,
temporariamente, a reação dos demais.

A relação das igrejas com as práticas de cura tradicionais sempre foi


controversa e conflituosa. A Missão Caiuá Presbiteriana e a Pentecostal Deus é Amor,
na opinião de Lauriana Escobar, não incentivavam, em momento algum, o
fortalecimento do conhecimento em relação aos remédios naturais ou a preservação da
natureza: “Se preocupava mais em nos salvar dos pecados e seguir com fé no caminho
de Deus”, destaca ela. Sendo assim, a salvação da alma sempre foi prioridade das
igrejas desde o início, como ela explica. E, para ela, a saúde depende muito da fé das
pessoas e de seguir todas as regras espirituais, e “isso requer a obediência ao
mandamento da Bíblia”, esclarece.

O pastor Isaias da Igreja Primeiro Deus Pentecostal, opina que, nessa Reserva
Indígena: “As tentativas fracassadas de tratamento desenvolvidas pelos ñanderu e
pelas ñandesy muito contribuíram para a queda e para a mudança do prestígio e do
poder que tradicionalmente acumulavam e exerciam com muito êxito”. Alguns
integrantes da família, ainda segundo ele, recorreram a outras práticas de cura,

133
facilitando a conversão massiva dos indígenas à igreja pentecostal. Em muitos casos,
os doentes tiveram que recorrer a Missão Caiuá55 para que recebessem atendimento
médico, contanto que se tornassem membros dessa igreja. Como foi exposto, algumas
famílias que optaram por sair da Reserva, de alguma forma se sentiram pressionadas a
deixar a área na qual já acampavam, sendo que, em algum caso, acampavam na beria
da rodovia, mas perto da sua área tradicional. Pela situação precária em que viviam
nesses locais, algumas famílias decidiram retornar temporariamente à Reserva, como
foi o caso da parentela de Papito, do tekoha tradicional Guyra Roka. Antes de retornar
ao seu lugar de origem, esta família morou bastante tempo na Região Sãka Pytã da
Reserva Indígena de Caarapó.

Sobre o retorno das famílias guarani e kaiowá à Reserva, alguns antropólogos


e historiadores, como Cavalcante (2013) e Pereira (2004), caracterizam que o SPI ou a
FUNAI e a missão religiosa os convenciam de que nessa Reserva receberiam o
atendimento necessário para garantir sua sobrevivência.

Já na Reserva, para ampliar ainda mais a situação de desequilíbrio sofrido


pelos Guarani e Kaiowá, o desconhecimento das causas de algumas doenças levou o
povo a atribuí-las à prática de feitiço, muita perseguição foi travada. Algumas
parentelas se dividiram, porque algumas defendiam a ideia de resistência e de
reagrupamento para retornar ao seu tekoha, outras defendiam a ideia de que era
preciso esquecer as práticas tradicionais. Conforme uma guarani de 89 anos, alguns
rezadores que ousavam continuar praticando suas rezas, benzimentos e ensinando
essas práticas foram expulsos pelo Capitão ou sofriam permanentemente acusações
injustas das parentelas distintas que, antes da instalação das igrejas pentecostais, eram
respeitadas e prestigiadas. Assim, interromperam-se temporariamente os ritos e
cerimoniais e desorganizaram-se as atividades produtivas, resultando em fome e
mortes. Como bom líder espiritual e religioso, os rezadores não confrontaram
diretamente as regras estabelecidas pelo Capitão. Quando a professora Veronice
Lovato Rossato chegou na Reserva de Caarapó, em 1985, “só se ouvia o som do
Mbaraka, tarde da noite, longe. Minha impressão que os rezadores se escondiam56”.

55
Já atuava em Dourados e região desde 1928.

56
Comentário da professora Veronice Lovato Rossato.
134
Assim, essa situação contribuiu para a dispersão da população, pois muitas
famílias se viram forçadas a deixar a localidade devido aos atritos com os demais
parentes. Foi em razão dessa situação que muitas famílias tiveram que procurar o
chefe da FUNAIpara que fosse providenciada sua mudança para outras reservas
demarcadas, também buscando outra alternativa para aproximar os seus parentes
dispersos por conta das situações supracitadas. Aderir às igrejas foi uma das
alternativas. Sobre essa adesão me ocuparei no capítulo seguinte. Além disso, segundo
Fernando Peralta, algumas parentelas não suportavam as acusações internas de outro
grupo, por isso se mudavam para outro lugar e/ou voltavam ao seu lugar de origem, do
qual foram retirados/expulsos. “Então, hoje vejo e consigo entender que era uma
doença, doença mesmo que estava matando o nosso patrício... nessa época não tinha
quase nada para socorrer”, observou ele. Ainda segundo Peralta:
Upérõ oĩ CBT kue. Upeape roraha akue hasýva, ojekutu akue
Caarapópe ndaipóri jave karro oraha arã Zoráope. Romoĩ arã hénte
karro seziape ha roraha. Upéicha ndaipóri ete teri ko ziape
atendimento jarekova rehegua. Kuña róga rupinte voi akue ogana
mitã...uperõ heta teri parteira oĩ akue, upevagui ndojepy’apy guasui
hikuái ogana hag̃ua hospital pe. Ofarta jave pohã ñana ko árupi jeho
va’e ojegueru karai yvýgui.

Tradução livre: Nessa época tinha CBT. Nele a gente carregava os


doentes, os feridos até Caarapó quando não tinha transporte para levá-
los até Dourados. Colocávamos pessoa na carroceria do trator e
levávamos. Então, nessa época não tinha ainda esse tipo de
atendimento que se tem hoje. Mulher dava luz na sua própria casa...até
porque havia muita parteira ainda nessa época, por isso não se
preocupava muito em levar no hospital. Quando faltava remédio por
aqui procurava-se na terra do branco. (ex funcionário do posto da
FUNAI, Fernando Peralta).
Conforme a fala de Fernando, notamos a variedade da situação que a
comunidade enfrentava. Não havia estrutura adequada para atender a demanda e
muitos acontecimentos trouxeram à tona alguns problemas que comprometeram a vida
dos Guarani e Kaiowá. De todo modo, as habilidades de seus morados em resolver as
situações foram responsáveis por manter os problemas equilibrados até certo
momento; na medida em que a população aumentava, os problemas também se
agravavam; por isso os rituais passaram a ter outras demandas e resistências. Assim,
para continuar sendo reavivados com mais efeitos estratégicos, como sempre haviam
sido, algumas situações precisavam do apoio da medicina ocidental, até porque, em
certa medida, a Reserva funcionou como laboratório de experimento sobre a
resistência indígena. A reserva funcionou como laboratório, pois havia

135
conhecimentos, sistema política, cultura, práticas de rezas entre as etnias irmãs, ao
mesmo tempo, estavam transitando entre elas, então, os indígenas com seus rezadores
procuram marcar os territórios da medicina ancestrais. No caso da Reserva Te’yikue,
na maioria das vezes, os guarani e kaiowá se deslocavam para os territórios inimigos
(dos fazendeiros) para procurar os remédios, bem como para plantar no quintal de suas
casas, portanto, essa tentativa acontece até no tempo presente; algumas mudas de
remédios brotam e crescem, mas algumas que são bem mais rígidas não crescem.

Ao refletir sobre essa narrativa dos meus interlocutores, os


reservamentos/confinamentos/acomodações dos Kaiowá e Guarani da Reserva
Indígena de Caarapó combinam uma série de fatores que os levaram a enfrentar
difíceis caminhos de violências e de doenças. Nesse sentido, a área onde eles estão
localizados ofereceu historicamente: a) o surgimento de doenças até então
desconhecidas e para as quais os tratamentos da medicina tradicional e dos papeis dos
rezadores se mostravam pouco eficazes; b) a exploração de mão de obra indígena
estabelecida pelos fazendeiros que compraram as terras ao redor da Reserva e
pressionavam os Kaiowá e Guarani para que se destruíssem e morressem fisicamente,
historicamente e culturalmente; c) a exploração dos recursos naturais existentes que
até então ajudavam a manter a sobrevivência do povo, que hoje permanece apenas na
memória de alguns anciões, o que implica no não reconhecimento dos seus saberes em
relação aos remédios tradicionais, por seus líderes, e no desrespeito aos valores
religiosos e às práticas xamânicas; d) a implantação do atendimento oficial da saúde
na área indígena distanciada dos saberes tradicionais, conforme as exigências e as
pretensões de cada grupo étnico, colocando-os cada vez mais no sistema ocidental.
Portanto, isso abalou profundamente os saberes e as práticas tradicionais até certo
momento.

Por outro lado, uma das alternativas usadas pelos rezadores foi se aliar com
os professores indígenas e com a universidade, certos de que serão valorizados por
eles e sairão fortalecidos. Neste caso, contribuíram bastante no registro dos nomes de
plantas medicinais, das rezas, até na formação de novos detentores de saberes
indígenas, ou seja, de novos conhecedores de remédios e de rezas. Esse foi o caso do
professor Nilton Ferreira Lima, hoje professor da área de Ciências da Natureza e atua
como professor na Unidade Experimental, onde ensina aos alunos várias práticas
agroecológicas na perspectiva sustentável e ancestral.

136
A comunidade dessa localidade foi exposta às mais diversas formas de
exploração, à negação do seu direito e ao preconceito, portanto, ficava quase
impossível reivindicar o reconhecimento e aperfeiçoamento de sua medicina
tradicional ao Estado e ao Município. Podemos definir essa fase da reivindicação dos
indígenas de garantir direito à saúde de qualidade e de construção da escola indígena
como “tesãi reka57”. O movimento foi articulado para garantir primeiramente o
território, a saúde diferenciada e a escola, em contraposição às situações vividas no
passado, quando “o índio não tinha direito”, até porque nós indígenas temos múltiplas
etnias, culturas, línguas, crenças, valores e estruturas próprias de educação.

Como caracterizado pelas falas dos moradores da Reserva Indígena de


Caarapó, na área da saúde, os órgãos indigenistas negaram-lhes vários atendimentos
essenciais, deixando-os perecer com seus problemas. Segundo Adalberto Oliveira, ex-
chefe do polo-base de Caarapó, a falta de suporte técnico e financeiro para o
desenvolvimento das ações sob sua responsabilidade resultou negativamente na
assistência da saúde ofertada nas áreas indígenas.

Conforme Oliveira,
Não posso deixar de mencionar que o SPI não era o único agente que
buscava atender os índios em suas doenças. Havia missões religiosas58
espalhadas por todo o território nacional que mantinham hospitais e
enfermarias em alguns postos ou em suas proximidades. Contudo, as
relações entre o Serviço e estas missões eram tensas, uma vez que
frequentemente os representantes destas instituições denunciavam as
mazelas existentes nos postos e endereçavam acusações aos
funcionários do SPI, particularmente nos jornais. Por outro lado, o
serviço também publicava acusações contra a ação destas igrejas.
Entretanto, em muitos casos vemos que estas instituições religiosas
acabavam preenchendo lacunas em relação ao atendimento médico e
hospitalar aos índios deixada pela ineficiência do SPI. (OLIVEIRA,
2011, p.195)
O cenário de violação de direito e de não investimento da saúde indígena foi
significativamente alterado pela Constituição Federal de 1988, que reconheceu os
direitos dos povos indígenas às suas terras, a políticas sociais diferenciadas e
adequadas à sua especificidade cultural, à autorrepresentação jurídico-política e à
preservação de suas línguas e culturas. No campo da saúde destaca-se a criação de um
subssistema específico para o atendimento a essas minorias. Então, na década de

57
A procura do bem viver e vida sustentável.
58
Grifo meu.
137
1990, um conjunto de decretos da Presidência da República retirou da FUNAI boa
parte de suas atribuições nas áreas de saúde, educação e de preservação cultural.

Outros órgãos que se destacaram na Reserva Indígena de Caarapó foram as


Organizações não Governamentais (Ongs). Também vale destacar a trajetória de
construção da escola indígena na Reserva Indígena de Caarapó que, segundo Benites
(2014), se originou de uma proposta feita pela Secretaria de Educação de Caarapó, em
1997, juntamente com os parceiros e as parceiras das universidades e do CIMI
(Conselho Indigenista Missionário, através da Diocese de Dourados), que priorizaram
as questões indígenas.
Em 1997 eu trabalhava no cimi e fui chamada pelo prefeito Guaracy,
para dar uma consultoria para a Semed de Caarapó, para elaborar
junto com o pessoal da Semed um projeto de educação escolar
indígena, começando pela alfabetização em língua indígena. Depois
disso fui dar uma capacitação para os 7 primeiros alfabetizadores
indígenas, entre os quais: Eliel, Ládio, Renata, Elizabete, Otoniel,
acho que tinha Elizabeth e o Alécio(?), os outros não lembro. Aí a
Anari e a Ucdb entram em Caarapó também. Acho que logo começam
os Fóruns de Caarapó.) (Veronice Rossato Lovato, 2020).
Nesse sentido, o movimento indígena foi ampliando e fortalecendo sua
aliança com as entidades. Por meio dessa aliança se viu o resultado positivo em vários
aspectos da vida social, tais como saúde, educação, direito, desenvolvimento
econômico (sustentável ou não), qualificação técnica profissionalizante e muitas
outras. Tem sido marcante a atuação de algumas Ongs, das universidades, das
secretarias do município e do Estado na Reserva indígena de Caarapó, criando curso
de formação de professores, Programa Kaiowá e Guarani (Universidade Católica Dom
Bosco, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e Diocese de Dourados/CIMI) e
a participação e articulação das lideranças da aldeia. As instituições tiveram muito
respeito pela dinâmica e organização social interna, ouvindo sempre as demandas da
comunidade indígena (BENITES, 2014, p.78-79). Particularmente, para garantir a
educação escolar que atenda às especificidades culturais e às demandas da
comunidade, várias reuniões e ações foram feitas para garantir futuro mais próspero.

Com grande densidade populacional indígena, persistiram, ou mesmo


recrudesceram, ao longo da década de 1990 e anos subsequentes, as doenças que até
então eram desconhecidas. Com a criação do subsistema de saúde indígena, pela Lei
9.836, em 1999, conhecida como Lei Arouca, criou-se o Ministério da Saúde, a
Fundação da Saúde (FUNASA), que recebeu a responsabilidade de coordenar e

138
executar as ações de saúde indígena. Nesse sentido, a escola indígena começou a
fortalecer o papel do Agente de Saúde Indígena. Com a criação do currículo próprio
da escola, inseriu-se também a participação efetiva de Agente Indígena de Saúde
(AIS), com intuito de levar as informações necessárias para as pessoas da
comunidade, orientando-os sempre que necessário.

Por meio dessa Lei, começa a mudar a situação de saúde indígena na


comunidade. Segundo Adalberto, a situação dos pacientes era bastante preocupante,
até porque não tinha muita equipe para atendê-los e, tampouco, a comunidade tinha
esclarecimento sobre tais problemas. Ainda de acordo com ele, havia apenas três
profissionais que atendiam essa região. Entretanto, a partir da parceria com o
município, com a escola e com algumas entidades não governamentais, planejavam-se
ações para priorizar situações mais emergenciais e combater algumas doenças que
estavam se agravando na comunidade indígena.

Inserido oficialmente em 1999, com a responsabilidade de prestar


atendimento a toda população indígena que reside nas terras oficialmente demarcadas
pelo governo, o subsistema organizou suas unidades de ação segundo a proposta dos
Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) 59. Conforme Santos (2008), esses se
planejam como uma rede interconectada de serviços de saúde adequados para oferecer
cuidados de atenção primária à saúde, apropriados às necessidades sanitárias da
maioria da população. Aos distritos sanitários caberia, portanto, oferecer ações
diferenciadas que possam acatar as questões emergenciais, ou seja, preservar os
indígenas de algumas doenças. A vacinação e o saneamento, os cuidados de saúde
dirigida a segmentos populacionais específicos foram fundamentais.
Outras ações possíveis nesses sistemas locais de saúde, foram
monitoramento das condições de alimentação e nutrição dos indígenas
da Reserva indígena de Caarapó, bem como da saúde dos ambientes,
educação em saúde, remoções de emergência e outros serviços que
contribuíram para o bem-estar destes grupos indígenas atendidos no
subsistema. (ADALBERTO, 2019)
Portanto, o DSEI ficou responsável por desenvolver programas diferenciados,
específicos de atenção básica nas comunidades indígenas, para efetivar a prevenção e
o controle na área de saúde. A organização dos trabalhos de saúde segue a
59
Em Mato Grosso do Sul, o DSEI fica em Campo Grande. A distribuição dos distritos
sanitários nas unidades federadas obedeceu às características culturais e distribuição das terras
indígenas, bem como a critérios demográficos que contribuíram para a definição de suas
localizações e áreas de abrangência.

139
hierarquização padronizada: o Posto de Saúde na terra indígena é a primeira referência
e realiza atendimento e ações de atenção básica. O Polo-Base, por meio de um chefe e
de um coordenador, monitora as ações e trabalhos de atenção básica, oferecendo o
suporte necessário nos atendimentos nessas regiões.

De acordo com a Agente de Saúde Indígena, Katia Martins, “demorou muito


para o trabalho na área de saúde melhorar, porque antes havia pouca equipe e não
havia número essencial de AIS”. Além disso, o número de não-letrados era bastante
grande60. Para ser mais exato sobre o seu histórico de trabalho com a comunidade, a
Agente Comunitária de Saúde Katia começou a trabalhar na área de saúde em 2003,
mãe de 4 filhos, enfrentou vários obstáculos para atender, de forma apropriada, a sua
comunidade. Terminou o Ensino Médio na EJA, aprendeu a ser parteira com a mãe
dela, já cuidou e ainda cuida de muitas mulheres indígenas em sua área, atualmente
conhecida como micro-área. Katia relata já ter feito aproximadamente seis partos nas
casas de pacientes, tendo em vista que esse processo de atendimento às mulheres já
acontencia entre indígena, onde as parteiras eram responsáveis em dar todas as
instruções na hora do parto. Ela descreve o histórico da sua atuação na área da saúde e
da mudança que vem acontecendo em 16 anos de trabalho:
Pe aike ronguare amba’apo heta mba’e aifrenta akue saúde areape.
Ndaikuaai lento reheve voi aike akue amba’apo saúdepe; enfermeira
ombohasa hachami ajapo che trabalho. Uperõ heta terei oi akue
hente hasyva ha ndororeretai roime romba’apova teri rojapo porã
hagua ore serviço. Upevagui heta área rojarra akue. Che ajagarra
akue ko mbokaja intero pe missão pezaço ohova ha saka pyta intero.
Omene areko araka’e 170 mitã, kuña hye guasuva omene 50 a 55
rupi, upecha ipiruva mitã areko akue 45 a 50 rupi, areko upero
trezento óga omene. Ituberculoseva areko akue avei...omene 10 rupi
araka’e.

Tradução livre: Quando entrei para trabalhar na área de saúde,


enfrentei várias coisas. Entrei sem saber quase nada, o que a
enfermeira passava para eu fazer, eu fazia no meu trabalho. Nessa
época, tinha bastante gente doente e a gente não estava em maior
número para atender e executar o nosso serviço do jeito que
deveríamos. Por isso, pegávamos área grande. Eu peguei essa área
mbokaja, um pouco da missão e região sakã pytã. Eu tinha mais ou

60
A dissertação de mestrado do pesquisador indígena Eliel Benites (2014) traz dados e, ao
mesmo tempo, o contexto histórico das atuações de professores indígenas para diminuir o
número de não letrados na aldeia. Nesse sentido, o autor explana sobre a articulação da equipe
escolar e das lideranças a partir das quais nasceu o Fórum Indígena. Ainda segundo Benites (p.
93), foi possível, graças à constituição de um espaço de discussão sistemática sobre a educação
escolar indígena, que absorve outras temáticas, em função da chegada das demandas da
comunidade à escola. Assim, a escola tornou-se espaço e ferramenta de lutas.

140
menos 170 crianças, 50 ou 55 gestantes, crianças desnutridas 45 a 50,
tinha mais ou menos 300 casas na minha área. Eu tinha também as
pessoas com tuberculose...mais ou menos 10 pacientes (MARTINS,
2019).
Na fala de Martins ficam claros os desafios que os profissionais indígenas
enfrentaram desde o início do trabalho, até porque a comunidade precisava de
profissionais falantes na língua Guarani para que pudesse orientá-la de forma correta e
esclarecida sobre a saúde. Ainda de acordo com ela, em 2003, as crianças sofriam de
desnutrição, que poderia até levá-las ao óbito. A comunidade contava com poucos
profissionais indígenas, então, cada Agente de Saúde ficava responsável por uma área
grande, com muitas casas para visitar, portanto, executavam os trabalhos com grande
esforço. Vale salientar que havia resistência por parte de alguns pacientes no
tratamento de algumas doenças: “A língua guarani facilitou muito o nosso trabalho... a
gente convencia as pessoas para tomar remédio... eu acordava cedo para levar o
remédio ao paciente e não podia falhar com essa rotina”, diz Katia Martins. As
primeiras profissionais que atuaram na área da saúde foram Neuza Marques, Maria
Celina e Albina.

Vale destacar que antes os atendimentos eram feitos no espaço onde agora
funciona o CRAS. Nessa época havia apenas rádio amador como forma de
comunicação entre profissionais da saúde da aldeia e da cidade. A técnica de
enfermagem Carolina Martins ficava responsável por chamar o plantão61 toda vez que
fosse acionada pelo AIS. Katia Martins me contou que, ao ser acionada pelas pessoas
da área, independentemente de ser de madrugada ou não, pegava sua bicicleta e ia até
a casa da Carolina para socorrer os seus pacientes, ou seja, para acionar ajuda dos
profissionais de saúde da cidade. Os motoristas que atuavam há bastante tempo na
aldeia foram Luizinho e Passarinho, como são conhecidos pelos indígenas. Embora o
atendimento aos indígenas tenha melhorando, a FUNASA e a atual SESAI enfrentam
dificuldades com relação ao transporte dos doentes da aldeia para a cidade, até porque
atendem várias aldeias da região, que serão mencionadas mais adiante.

De fato, esse setor de assistência teve muitos avanços, dentre os quais


destaco a entrada do CRAS, com o qual a comunidade é atendida na própria Reserva,
sem precisar se deslocar até a cidade e que conta com profissionais da prefeitura. As

61
Nessa época, tinha um Toyota que socorria os indígenas, levando-os ao hospital São Mateus,
no município de Caarapó.

141
visitas são programadas de acordo com a situação da família pelas regiões. Muitos
procuram a Assistência Social para arrumar a irregularidade da Bolsa Família, arranjar
qualquer tipo de ajuda, por exemplo, roupas, alimentação e outras. O CRAS procura
desenvolver o seu trabalho, como projetos junto à escola, comunidade, professores
indígenas, liderança Capitão e rezador.
Figura 10: Postinho de saúde indígena da região centro da aldeia Reserva indígena
de Caarapó

Localização de posto de saúde do centro, como é conhecido pela comunidade da Reserva indígena de
Caarapó. Localiza-se perto da escola Ñandejara Polo, Escola Estadual Yvy Poty, CRAS, FUNAI, etc.
Vale salientar que esse posto Zacaria Marques conta com maior número de pacientes, regiões, AIS.
Fonte: Google Earth
No que se refere à assistência à saúde na TI de Caarapó, os atendimentos são
realizados por duas equipes multidisciplinares de saúde indígena. Uma equipe fica no
Posto de saúde Zacaria Marques com um médico, uma enfermeira, três auxiliares de
enfermagem, um odontólogo, uma auxiliar de odontólogo, uma nutricionista, dez
agentes indígenas de saúde e dois AISAN.
Figura 11: Postinho de saúde da região Savera

142
Esse postinho de saúde chama-se Jorge Paulo em homenagem ao grande líder tradicional Kaiowá.
Localiza-se na região Savera, perto da escola extensão da Ñandejara Pólo. Fonte: Google Earth
O Posto de Saúde Jorge Paulo foi inaugurado em setembro de 2006 e conta
com uma enfermeira, uma médica, um dentista, uma assistente de dentista, duas
técnicas de enfermagem, um AISAN (Agente Indígena de Saneamento) e seis AIS
(Agente Indígena de Saúde). No período matutino, o profissional médico atende em
média 19 a 25 consultas por dia, priorizando o atendimento às crianças, às gestantes e
aos idosos(as). No período vespertino, realiza atendimentos domiciliares de acordo
com as demandas dos Agentes de Saúde. Os serviços de média e alta complexidade
são encaminhados para a rede de serviços do SUS, ou ao Pronto Atendimento
Municipal.

Hoje, a SESAI de Caarapó conta com um carro, três motoristas indígenas


para deslocar os pacientes de sete aldeias e das retomadas da redondeza da Reserva
Indígena de Caarapó. Conta com uma equipe volante que atende as comunidades fora
da reserva pesquisada, composta por médico, dentista, técnica de enfermagem e
enfermeira.

As áreas retomadas da Reserva Indígena de Caarapó ficam de fora do plano


de trabalho da SESAI, porque entende-se que essas comunidades não estão
legalizadas. Não há nenhum Agente de Saúde atuando nestes espaços. Quando as
pessoas destas localidades são atendidas no postinho de saúde da Reserva, consta em
suas fichas de cadastrados como “tal fulano da retomada”. Portanto, cabe aos órgãos
competentes enxergarem os desafios que os indígenas ainda enfrentam na Reserva, na
retomada e nas demais regiões das aldeias. No hospital do município, por exemplo,
não há nenhum profissional indígena atuando. Portanto, na opinião de alguns AIS,
falta ainda avançar nesse contexto, pois o atendimento de qualidade também se
fortifica a partir da valorização dos profissionais indígenas.

A procura pelo bem viver é uma busca constante nessas comunidades


indígenas. Esse processo desperta a vontade, fortifica a luta, o sonho e desconstrói
estereótipos. Entre 2013 e 2016 tivemos mais uma conquista histórica, porque
algumas parentelas expulsas dos seus tekoha retomaram partes desses lugares
tradicionais. Deve-se levar em conta que esses meus parentes indígenas, embora
sofrendo influência da religião ocidental, continuaram a produzir, mantendo as
características de sua cultura. Na atualidade, existem indígenas ocupando cargos de

143
professores, na capitania, como agentes de saúde, na direção e coordenação da escola,
como merendeiras e outros, além de receberem cestas básicas, aposentadoria por idade
e Bolsa Família. Observamos que isso tem provocado outra forma de organização da
parentela. Ao mesmo tempo em que os rezadores defendem o atendimento
diferenciado e de qualidade por parte da saúde, os evangélicos também começaram a
se preocupar em fortalecer essa luta: conseguiram colocar um representante da
Reserva de Caarapó como conselheiro distrital da saúde indígena, a fim de somar com
a luta de movimento indígena.

Nesse sentido, os grupos de evangélicos passaram a defender esse


movimento de luta, onde os atendimentos teriam de ser diferenciados, ao mesmo
tempo em que se priorize a realidade da comunidade. Portanto, começaram a ter
mudança até mesmo na doutrina de suas igrejas, que obrigavam os seus adeptos a
jejuarem, sem poder beber até mesmo água, fragilizando a saúde destes crentes.

Caberá, portanto, aos gestores da aldeia buscarem os mecanismos necessários


para controlar o teko reta (múltiplas experiências que os indivíduos adquiriram na
Reserva). Nesse sentido, a noção de saúde para os Guarani e Kaiowá só será possível
quando a medicina ocidental começar a respeitar os nossos saberes ancestrais. Como
venho observando, até agora alguns projetos bem interessantes foram elaborados para
fortalecer e recuperar plantas medicinais, sobre as quais os Kaiowá e os Guarani
possuem amplo conhecimento. Mas por outro lado, a comunidade precisa de mais
projetos permanentes, de investimentos, etc.

Essa mudança ocorre também porque surge a figura do professor indígena


dos Agentes Indígena de Saúde (AIS), os quais são é considerados como líderes
intelectuais, agentes de mudanças na aldeia e demonstram habilidades em articular
ações, motivo pelo qual são considerados pessoas de confianças, agente de mudança,
formador de opinião, alguém que busca recursos para a comunidade, e um professor
que busque parceria. No Fórum Indígena da Reserva, esclarecem e planejam projetos
para suprir as demandas da comunidade, tendo em vista que a Constituição Federal
lhes garante direitos fundamentais. Neste trabalho, a língua Guarani é fundamental,
até porque, nessa época, poucas pessoas falavam na língua ocidental (português), por
isso, alguns profissionais não indígenas de saúde que atuaram/atuam tinham
dificuldades em se comunicar com os indígenas e, ao mesmo tempo, elucidar os
procedimentos de tratamentos.

144
Neste tópico busquei situar e discutir, em linhas gerais, como eram os
problemas e as dificuldades que os indígenas enfrentaram na Reserva de Caarapó,
bem como as acusações e as tentativas de esvaziamento da importância dos rezadores
na preservação dos recursos naturais, da cultura tradicional e do processo de cuidado
com os doentes. A trajetória de luta desses rezadores nos mostra o quanto foi difícil
sobreviver à colonização e aos desafios da Reserva que perduram até hoje. O avanço
de alguns problemas de saúde sobre a vida de vários indígenas se intensificou desde a
colonização, os quais foram explorados pelos brancos fazendeiros, pelo Estado
brasileiro, sistemas aniquiladores, donos de usina de cana e da exploração econômica
que eles sofrem. Os desrespeitos que eles sofrem aparecem apenas quando alguém
pesquisa e divulga, por exemplo, o estudo de Brand (1997). Em 2005 morreram
muitos, vítimas de suicídios em Te’yikue, então, alguns evangélicos indígenas
aproveitaram esse momento para atacar as funções e a importância dos
rezadores/ñanderu/xamãs pelas regiões da aldeia. Atualmente, os rezadores estão
tentando se firmar na luta e se adequar aos novos tempos com ferramentas necessárias
para vencer as novas e diversas situações de intolerância religiosa e aos desafios que a
sociedade karai (envolvente) lhes apresenta e, de alguma forma, tenta impor a eles. As
principais ferramentas dos rezadores são, atualmente, rezas, parcerias com as escolas
indígenas, com os professores indígenas, com as universidades, contando também
com os recursos de mídias digitais, etc.

145
Capítulo 3
Introdução das religiões evangélicas e neopentecostais
3.1 Missão Evangélica Caiuá
Desde 1950, quando o missionário da Missão Evangélica Caiuá, filiada à
Igreja Presbiteriana do Brasil, chegou à Reserva Indígena de Caarapó, os Guarani e
Kaiowá se encontravam em grande parte nas reservas ou trabalhando com os
empreiteiros fora do Estado, por exemplo, em Rondônia, Camapuã e na Estância
Lagunita (Paraguai), seja na extração ou na derrubada da mata em fazendas. O senhor
Floriano Escobar é um dos membros mais antigos da Missão Caiuá em Caarapó, ele
conta que os pais dele, sempre procuravam de várias formas se adequar à
evangelização, pois “eles acreditaram que só assim poderiam obter algum tipo de
ajuda e fortalecer suas vidas” (Floriano Escobar).

A instalação da Missão Evangélica Caiuá trouxe algumas mudanças para o


processo religioso dos Guarani e Kaiowá, cujas práticas litúrgicas se apresentavam
para a comunidade como sendo a única e a melhor maneira de encontrar a “salvação”.
Desafiou os indígenas que procuravam, de toda forma, benefícios para o
fortalecimento da cultura, fazendo com que mudassem seus planos de resistência e de
sobrevivência. Alguns aderiram, estrategicamente, à religião presbiteriana e aos novos
jeitos de ser e de viver, e outros a utilizaram conforme suas demandas, acreditando
serem apropriadas como ferramenta de proteção. Os frequentadores mais antigos que
ainda estão vivos na Reserva Indígena de Caarapó são: Floriano Escobar, Lauriana
Escobar, Cristina Barbosa, Chicalo (Ricardo Almeida), Tereza Martins, Cha’api
(Ramona), Sereveriana Vera, com os quais conversei durante a pesquisa.

Considero relevante descrever a diferença da Missão Caiuá de Caarapó da de


Dourados. Até a localização da igreja se diferencia em cada aldeia, enquanto uma fica
onde há mais fluxo de pessoas, em outra, essa igreja fica mais distante do que
podemos chamar de “centro da aldeia”; contudo, isso depende muito também da
aliança do missionário com as famílias indígenas. No caso da Reserva de Caarapó, a
instituição procurou se aliar a uma família grande e, assim, expandir a evangelização
pelas demais regiões da Reserva.

A Missão Caiuá de Dourados procura sempre administrar as demais igrejas


espalhadas pelas aldeias indígenas guarani e kaiowá, enquanto a Missão da Reserva
Te’yikue procura fazer a “conversão” cristã dos indígenas desta localidade. Para isso

146
procura difundir sua doutrina religiosa aliando-se, principalmente, com a família
extensa da Reserva e com a liderança Capitão. “Nossa missão é sempre levar palavras
de Deus e ensinar a esse povo saber das coisas fora de sua realidade, assim
procuramos ser parceiros também” (Marluce Martins, integrante da gestão da Igreja
Missão da Te’yikue).

Floriano Escobar frequenta a igreja Missão Caiuá até hoje. Com 87 anos de
idade, caminha pela aldeia para ir ao culto, na quarta-feira e no domingo. É pai de 7
filhos. Desde que foi batizado pela instituição, segundo ele, nunca a abandonou. Como
sempre acontece na aldeia, essa igreja tornou-se, para alguns dos fiéis com os quais
dialoguei, uma espécie de “aprendizagem sobre a palavra de Deus”, o que faz dela
uma “igreja sem avivamento” como me disse Clementina, esposa de Floriano. Pela
sua fala, depois que se mudou para outra igreja pentecostal, “percebi que essa igreja
Missão Caiuá não tinha o dom de cura, de alegrar a gente, e o hino que cantávamos
era desanimador; então nesta igreja que estou, até aprendi ser crente avivada”.
Atualmente, ela é crente da igreja Deus é Amor, onde participa de culto quase todos
os dias da semana, inclusive “dos ensinamentos e vigília da noite”, como destacou.
Mas, para Escobar, a doutrina da Missão é muito mais “leve” que a da igreja
pentecostal, por isso, na opinião dele, consegue-se aprender o jeito certo de ser crente,
em referência às exigências quanto aos “usos e costumes”, que o tornam homem de
bem, sabendo de suas obrigações na sociedade/comunidade. Ele se refere à doutrina
ou ensinamento como “leve”, pois a Missão “ensina a gente a não buscar o que não
vai ser fácil carregar como, por exemplo, esse dom que eles falam, esses crentes da
igreja pentecostal. Então, eu consigo entender isso”.

A partir do ñemongeta, ele se lembrou dos nomes dos pastores que vieram
para a Reserva Indígena de Caarapó: Daniel, Hilario Martins, Joel, Benedito, entre
outros. Busquei perceber, por meio de sua fala, se havia semelhança de atuação dos
missionários que saíam da igreja para atuar em outra localidade. Os que entravam,
sempre procuravam saber como atuavam os missionários anteriores, só assim
conseguiam ter relacionamento mais agradável com os indígenas, sobretudo com
Capitão e com o chefe do posto, com intuito de lhes dar “liberdade” para fazerem
atividades religiosas e, ao mesmo tempo, facilitar a efetivação de assistência social nas
comunidades indígenas.

147
O fato de ter encontrado esses seguidores da igreja Missão nas próprias
casas, nas regiões onde moram, levou-me a estabelecer relações entre suas trajetórias
religiosas e as condições materiais e culturais nas quais as escolhas de novas
religiões cristãs foram ocorrendo. Para nós indígenas, a entrevista ocorre de outra
forma. Para isso, existe um termo muito utilizado por muitos indígenas que é
“ñemongeta”. Para conquistar a confiança da pessoa a ser entrevistada, o pesquisador
indígena vai lhe falar que quer conversar sobre tal história ou situação. Na ocasião,
aos entrevistados, iniciei o diálogo na minha língua da seguinte forma: Ajungo
ñañomongeta haguã upe ñañe’e͂ akue rehegua (“Eu vim aqui pra gente conversar
sobre aquilo que já havíamos conversado”).

Consegui entrevistar essas pessoas depois de três visitas; por isso sempre usei
“ñemongeta” para eles já terem em mente do que iria ser ser tratado: a observação
atenta de suas escolhas religiosas e dos templos religiosos neles localizados. As visitas
a alguns cultos realizados pela Missão foram possibilitando caracterizar, na ampla
diversidade, o perfil dessas pessoas e, por conseguinte, da igreja por elas frequentada.

Tarefa difícil foi discorrer sobre o processo de evangelização, as atividades


religiosas do pastor, as experiências dos indígenas com as “palavras de Deus”, e da
diversidade dos fiéis que frequentavam esta igreja, dada a diversidade de
temporalidade62 que essas pessoas passaram. Um primeiro aspecto dessa relação entre
conversão e condições socioeconômicas é o fato de que boa parte dos seguidores
entrevistados é formada por não-letrados que tiveram poucas oportunidades de estudar
e que, quando conseguiam aprender, só aprendiam a escrever seus nomes e, na
maioria das vezes, aprendiam mais sobre a Bíblia cristã. Contudo, vale salientar que
esta não é a condição da maior parte dos moradores mais velhos da Reserva. Parece-
me que o seu processo de educação estava ancorado na evangelização cristã. Vale
salientar também que existem os evangelhos apócrifos, não aceitos pela tradição
cristã. Essa instituição religiosa, portanto, tentava alfabetizr conforme seus interesses
e demandas. Devo salientar que essa não é uma característica que os indígenas
esperavam.

62
Estas temporalidades dizem respeito ao processo de reservamento, à criação de Capitão, à
entrada de fazendeiros ao redor da reserva, à entrada da Missão Caiuá, à entrada das igrejas
evangélicas pentecostais e dos atuais pastores indígenas. Vale lembrar que essas temporalidades
que destaquei, não são as únicas, pois existem várias formas de se abordar, contudo isso
depende muito do tema da pesquisa.
148
A presença da missão protestante ocorreu na Reserva Indígena de Dourados a
aproximadamente 70 km da aldeia de Caarapó. A Missão Evangélica Presbiteriana,
mais conhecida como Missão Caiuá, instalou-se em 1928 na aldeia Jaguapiru, no ano
em que se concluía a demarcação das reservas. O pastor americano Albert Maxwel, da
Igreja Presbiteriana Americana, foi fundador da Missão Caiuá, o qual, quando visitou
a região Sul do então Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, percebeu “não haver
presença de igrejas entre os Guarani e os Kaiowá”. Decidiu, então, que era preciso
construir igreja para mostrar aos indígenas a “palavra de Deus”, por meio da Bíblia,
pois acreditava que seria uma “nova forma de seguir e servir o Tupã” (Deus). Assim
também aconteceu na atual Reserva Indígena de Caarapó. Vários estudos sobre essa
temática, como, por exemplo, de Gonçalves (2009) e Moraes (2016), revelam que,
para esse pastor, os indígenas precisavam de Jesus na vida e na alma. Como bem
sabemos, historicamente nós fomos considerados seres sem lei, sem fé, sem alma, sem
estado, conclusão tirada pelo fato de que na língua Tupi-Guarani antiga não havia os
sons do “F” (FÉ), do “L” (LEI), nem do “R” (REI – Estado). Assim, “seguiram-se os
trabalhos do reverendo Maxwell e dos demais envolvidos no projeto de missão aos
índios” (GONÇALVES, 2009, p. 149).

No documento a seguir está explícito o que foi explanado acima.


Figura 12: Jornal O Expositor Cristão de 1928

149
Fonte: O EXPOSITO CRISTÃO, 1928

O jornal acima foi publicado em formato de artigo numa revista O Expositor


Cristão evangélica. Quem lia este artigo provavelmente era o grupo evangélico do
Brasil. Nesse documento está evidente o interesse de evangelizar os indígenas, mas
nota-se o desconhecimento de suas histórias por parte de quem o escreveu. Este texto
publicado no jornal O Expositor Cristão, em 15 de agosto de 1928, demonstra, de

150
maneira preconceituosa, que os índios precisam de Deus, por outro lado reforça a
imagem estereotipada, através da narrativa, que havia a respeito dos indígenas. Quem
lia esta notícia, na maioria das vezes, eram grupos religiosos que tinham aliança
política entre si, conforme o estudo de Gonçalves (2009).

Há muitos nomes atribuídos aos nativos. Logo no título já está um deles:


“bugre” foi nos dado por alguém que desconhecia a nossa realidade e nossa vivência.
Além disso, ao afirmar que “esta questão da missão aos bugres exige que procuremos
uma formula capaz de offerecer-lhe solução rápida, segura (O EXPOSITO
CRISTÃO, 1928), para esses religiosos, a igreja poderia resolver os problemas de uma
forma imediata, por outro lado, alterou a realidade dos indígenas em vários lugares.
Entretanto, como meu objetivo neste trabalho é analisar o histórico da Missão de
Caarapó, por outro lado faz-se necessário dizer que a Missão Caiuá facilitou a entrada
de várias denominações religiosas pentecostais. Mas deixo essa discussão do ponto de
vista indígena para um trabalho futuro.

É importante destacar que o objetivo da Missão Presbiteriana foi incluir


várias atividades religiosas com os indígenas. Quando o Pastor americano Albert
Maxwel visitou o atual Mato Grosso do Sul, na sua lógica parecia não haver presença
de igrejas entre os Guarani e os Kaiowá. Os seguidores mais antigos da Reserva
indígena de Caarapó comentam que a atuação da Missão lhes trouxe muitas
mudanças, porque a “metodologia” usada pelo Pastor em Guarani para pregar, orar e
cantar facilitava muito aos membros entender melhor sobre Deus. Sendo assim, atraía
muitos fiéis para a igreja. Outro fator que influenciava os seguidores indígenas era a
ajuda que a Missão lhes dava, por exemplo, roupas, serviços, escola, assistência à
saúde e oportunidade para socializar-se com a sociedade não indígena. Falo de
socializar-se com os karai, aprendendo falar a língua deles, entre outras estratégias.

Como me disse Floriano Escobar: Ndaikatúi voínte akue ndajahejái oike


Missão jaiko hápe. Ñande mboraihu tereíngo akue, entõse ha’e kuéra ou ogueru
ñandéve ha’e kuéra hápe ikatu haguãicha upe rupi ñamohenda ñande rekove.
Tradução livre: Não dava mesmo para proibir a presença da Missão onde a gente
mora. Nós vivíamos em condição muito complicada, então eles vieram e trouxeram
para os seus caminhos para que possamos através desses caminhos organizarmos
nossas vidas.

151
O trabalho de catequese63 da igreja Presbiteriana realizado entre os Guarani e
os Kaiowá estende-se e se apoia em três suportes: ensino religioso, atendimento à
saúde e ensino escolar. A Missão de Caarapó tornou-se o único local disponível para a
prática religiosa ocidental. Convém ressaltar que, naquele momento, em meados de
1950, a população indígena enfrentava precárias condições na Reserva. Por isso, a
Missão tornou-se referência para os indígenas, representando o único local onde
encontravam assistência.

A seguir transcrevo a fala de Floriano Escobar, que deixa bastante claro o


processo de sua conversão a essa instituição. Destaco que, para alguns, deu muito
certo aderir à doutrina da Missão Caiuá, pois, através desta instituição conseguiram
obter alguns recursos necessários para fortalecer sua família e vencer a invisibilização.
Alguns aspectos de repressão que o Capitão usava talvez tenham sido também
responsáveis por facilitar a conversão à nova religião, ao mesmo tempo por diminuir a
representatividade dos rezadores e das práticas tradicionais indígenas.
Ore rotopa Missãore iporã akue. Umi pastorngo heta mba’e porã
terei akue omombe’u akue oréve. Uperõ ave heta oĩ he’i akue ore rehe
rosẽguise ha karai hápe, pero ndaha’éingo péa. Che jeuperõ ngo ava
ohechante upe rupive omohenda hag͂ua hekove. Pe Capitão kuéra
opeserseguimi akue hénte pyhare ohóva chícha hárupi. Upérõ hetáma
hénte oka’uúva oi͂ , hasýva, upéicha ave oje’e ojejapoha macumba
ojoehe. Peichagui che aheka aha meme voi missãope. Pepe mante
heta ahendu mba’e porã pastorgui, avei ñandejára guiolao, upeicha
amohenda hag͂ua che rekove. Nañe’e͂ reiri umi oñembo’e vare, avei
ndaparticipairi ave ha’e kuéra aty. Entoce, uperupive akakuaa ha che
tuja porã. Nunca mi nañerorairõri hénte ndive, nindajahéiri
mavavevare, ndacheka’úiri ave. Omene chéve ome’e͂ porã missãope
asegui. (ESCOBAR, 2019).
Tradução livre: Nós achamos na Missão uma coisa boa. O pastor
contava muita coisa apropriada para nós. Nessa época tinha bastante
gente que falava que estávamos imitando o caminho dos brancos, mas
era assim. Para mim, o indígena via nela como possibilidade de ajeitar
sua vida, ao mesmo tempo, nesta época, o Capitão perseguia muita
gente à noite que ia na chicha. Também já tinha pessoa que bebia,
ficava doente, assim a macumba era responsável. Por isso eu procurei
frequentar sempre a Missão. Só aí eu conseguia coisa adequada do
pastor, através de Deus, para ajeitar a minha vida. Eu não falo mal dos

63
É um termo usado desde os primeiros tempos do cristianismo, é uma palavra grega, que quer
dizer “ensino dos primeiros princípios da doutrina cristã”.
(www.facebook.com>catequesepresbiteriana>posts). Na wikipédia (“catecismo”) também tem
explicações curtas muito boas. No latim também tem a palavra catechesis. Então, catequese é
diferente da leitura bíblica. Na catequese, a pessoa é instruída à viva voz, tem um instrutor que
ensina o evangelho, a pessoa é iniciada no evangelho. E não é só no catolicismo. Com a reforma
protestante a catequese continuou.

152
rezadores, ao mesmo tempo, nunca fiz parte do grupo deles. Portanto,
através disso cresci bem e envelheci. Nunca briguei com as pessoas,
tampouco feri alguém e bebi. Talvez para mim foi bom seguir a
Missão.
Em 1950, os Guarani e Kaiowá da Te’ýikue enfrentavam muitos problemas
em relação à saúde, às epidemias e à desnutrição, os quais provocaram inúmeras ações
por parte da Igreja Missão Caiuá. A ocupação dos karai (não indígena) também
resultou na rápida proliferação de doenças, como de tuberculose, DSTs, febre amarela,
sarampo, etc. Schaden (1974, p. 9), citado por muitos pesquisadores, afirma que, na
Reserva de Dourados, a população “tem diminuído consideravelmente, sobretudo em
conseqüência da tuberculose pulmonar e de outras doenças”. Então, a Missão Caiuá
procurou de várias formas ajudar os indígenas a vencer essa realidade complexa.

Na Reserva indígena de Caarapó, a Missão instalou-se ao lado da Reserva,


em (1950), numa área da fazenda que hoje é conhecida como fazenda Joha. Conforme
Lauriana Escobar, na Reserva Indígena de Caarapó, os indígenas ajudaram o primeiro
pastor Daniel a construir a igreja. Naquela época, segundo ela, a igreja foi feita de
sapé. Alguns grupos de homens buscavam, no mato, madeira mais viável para
construção de casa, outro grupo arrancava sapé. O trabalho, portanto, foi na base do
coletivo posto pelo próprio indígena, que eles chamam de puxerõ, quando é
organizado um grande almoço para os trabalhadores. Além disso, encontrar madeira
perfeita não era problema, pois nessa época havia muita peroba.

Conforme os indígenas guarani e kaiowá da Reserva Indígena de Caarapó,


como Ricardo Almeida e Floriano Escobar, uma casa de sapé, construída com
qualidade, pode durar aproximadamente 7 a 8 anos, ou mais. Algumas mulheres
guarani e kaiowá trabalhavam como empregadas domésticas na Missão Caiuá,
enquanto que os homens trabalhavam fazendo serviços gerais, segundo Floriano
Escobar, limpando o interior da igreja, ajudando na organização das festas e outras
atividades. O pagamento era um “vale compra”, que era denominado pelos indígenas
daquela época como “ordem”, que eles recebiam para ir a um comércio para pegar
mercadoria.

Conforme a conversa que tive com Lauriana Escobar, ela me falou que
poucas pessoas conseguiam um trabalho com o pastor da igreja, para isso precisava
ser dedicado à atividade religiosa, seguindo toda disciplina e, ao mesmo tempo,
conseguir atrair parentes para frequentar culto.

153
O missionário da Missão Caiuá que chegou em Te’yikue procurou, o mais
rápido possível, criar vínculo com parentes da liderança e com as demais parentelas
espalhadas pelas regiões. Para tanto realizava visitas às casas e reuniões, procurando
ganhar confiança, respeito, e os convidava a participar dos cultos.

As atividades religiosas, segundo a visão de um missionário da Missão


Caiuá, estes foram alguns caminhos para os indígenas aprenderem os valores e sobre a
vida do mundo “civilizado”. Iniciaram essa tarefa em constante negociação com os
seus aliados. Ainda conforme esse missionário que atuou desde 1980 em Te’yikue, os
trabalhos dele, além de realizar evangelização presbiterian na Reserva Indígena de
Caarapó, também se responsabilizava em fortalecer a agricultura de subsistência, dava
instruções necessárias sobre a vida religiosa, oferecia toda “assistência” possível.

A mãe da minha avó, Vitoria Moraes, seu marido e as demais pessoas da


parentela, foram as primeiras pessoas que frequentaram o culto e se batizaram na
igreja Missão Caiuá. Aos domingos, os membros da igreja marcavam presença e
ouviam pregação do pastor. A oração era feita em voz baixa e as canções eram
cantadas por todos. Naquela época, as canções eram em Guarani. Até então, as
famílias indígenas não enfrentavam muitas dificuldades, porque havia muita mata e
animais silvestres para caçar. A maioria plantava e se mantinha com isso. Quando
uma pessoa da comunidade ficava doente, a Missão a levava até Dourados para
receber consulta médica no hospital que esta instituição administrava.

Aos poucos, a organização social tradicional foi mudando. Isso aconteceu


devido ao contato permanente dos indígenas com os karai (não indígenas). As
doenças como desnutrição, catapora, hu’u puku (tuberculose) avançaram muito,
levando ao falecimento de alguns, mesmo com a assistência da Missão, que levava até
Dourados onde poderiam ser tratadas as doenças, “mas não foram suficientes, pois as
demandas eram grandes” (Marluce Martins, 2019). Conforme analisei as falas de
alguns parentes com os quais dialoguei durante a pesquisa, os fiéis retribuíam a ajuda
frequentando os cultos e se mostrando verdadeiros seguidores.

Quando alguns se afastavam da igreja, perdiam ajuda e assistência. Portanto,


muitos indígenas aderiram a esta instituição missionária como possibilidade de
resistência como indígena, com seus modos de ser, com seus saberes ancestrais, etc,
pois notaram a possibilidade de aprender a língua dominante, para assim planejar o
enfrentamento diante do contexto que lhes era imposto. Contudo a realidade que os
154
colonizadores apresentaram aos indígenas, dificultaram o processo de enfretamento,
pois aparentemente, eles iam cedendo a tudo o que a missão exigia deles. Na opinião
da professora indígena da te’yikue, a resistência cultural não foi naquela época. E ela
continua:
Resistência religiosa não foi. Fizeram frente à opressão? Não!
Enfrentaram o capitão? Não! Fizeram frente às condições degradantes
de trabalho? Não! Enfrentaram o governo? Não! Entraram na luta pela
terra? Só recentemente! Aprenderam valores critãos de amor ao
próximo? Não! Aprenderam a não odiar e a respeitar o seu irmão que
é diferente? Não! Aprenderam que jesus não tolerava a injustiça e que
os justos possuirão a terra? Aprenderam que solidariedade não é só
com os de sua igreja? Aprenderam o que significa que a “fé sem obras
é morta”? Aprenderam que a obra não é só pregar a palavra e sim dar
o exemplo de vida? Exemplo: as pessoas do mst são exemplos de
cristãos, pois eles repartem o pouco que produzem com quem tem
menos ainda e não perguntam se são da religião deles.. (Professora
indígena).
Foi assim que, no ano de 1983, a igreja foi construída na região onde é
conhecida hoje por Missão. Localiza-se ao lado da Reserva Indígena. O pastor Cícero
atuou ali durantes dois anos, depois veio o casal Eugenio Martins e Marluce. Desde
então, a evangelização presbiteriana ganhou outro foco, que passou a ser o mais
necessitado. Logo foi se estabelecendo um vínculo com parentelas maiores, como com
as famílias Benites, Martins, Marques e outras. Talvez a dificuldade maior tenha sido
separar os indígenas de seus saberes e práticas tradicionais. Por outro lado, os
missionários, aos poucos, foram colocando regras, preceitos aos seus seguidores, de
acordo com a Bíblia cristã, a fim de colocar os Guarani e Kaiowá no mundo
civilizado. A justificativa usada pelos missionários era de que só assim eles poderiam
“alcançar a salvação eterna”.
Ore mbo’e voi akue kokue rehegua. He’i voi va’e oreve roñoty͂ve
hag͂ua tembi’u pono roiko asy, upecha rojapo upe iñe’e͂ kuéra. Ou
va’e voi ore visita, ombahasa oreve ñandejára ñe’e͂; ore mbyaty ore
hente memete, mombyry lentorõ oiko ore pariente, oñemondo va’ekue
mitã jepe oavisa hag͂ua. Upeaja pastor Eugenio rañe oñe’e͂ kuimba’e
kuéra ndive, he’ila oi͂ ha salvador ikatuva oipytyvõve hente kuéra,
oheja ramo heko vai, heko ky’a, ohaihu ramo chupe hekove guivete.
Entoce ore mbopy’aguy akue upeva. Oho rire heta ropensa arã,
upecha zomingo kue roñembyaty aty arã roho igrejape. Opyta oi
hagua ko’anga peve voi. (Tereza Martins, Reserva Indígena de
Caarapó, 2018).
Tradução livre: Nós ensinávamos mesmo sobre roça. Falava para nós
pra plantar mais alimentação para não sofrermos, assim fazíamos a
fala deles. Sempre visitava a gente, falava para nós sobre a palavra de
Jesus Cristo; ajuntava a gente só da família. Quando nosso parente
morava meio longe, mandávamos criança para avisar. Enquanto isso o
pastor Eugenio começava falar com os homens, falava que havia

155
Salvador que podia ajudar as pessoas se deixar de lado vida errante, se
amá-lo com toda força. Então, a gente sentia paz. Depois que ele ia
embora pensávamos muito, assim no dia de domingo ajuntávamos
pessoas e íamos a igreja. Essa igreja já ficava onde está agora.

Na fala de Tereza Martins, percebe-se como o pastor construía sua atuação


no interior da Reserva. Falava da importância da roça para suprir as necessidades
básicas de alimentação. Por isso, na fala da Tereza fica explícita a obediência: “assim
fazíamos a fala deles”, ou seja, o que era ensinada a fazer. Os principais caminhos
para se ter ajuda de Deus eram apenas aceitá-lo como único salvador e “deixar de lado
vida errante”.

Para facilitar a visita do pastor, geralmente toda a família se reunia em torno


dele e o ouvia. Quando, na primeira visita, alguns dos integrantes da família faltavam,
logo alguém já os avisava para que na próxima participassem.

Esse novo “estilo de vida” “era melhor pra gente, era mais bonito, porque a
gente se sentia valorizado, lá recebíamos oração, cantávamos juntos; [antes], quando a
gente rezava, ninguém valorizava, acho que por isso que muita gente aceitou 64
(mulher kaiowá, pentecostal). Portanto, alguns seguidores dessa instituição eram
considerados superiores às culturas tradicionais. Os planos, as ações dos missionários
estavam, assim, carregados de valores ocidentais excludentes.

Há muito o que se refletir sobre o projeto civilizatório e evangelizador: os


pastores que atuaram e atuam ainda em terra indígena sempre buscaram mudar os
indígenas, começando pelas práticas tradicionais realizados por muitas parentelas. Se
refletirmos sobre as noções de sagrado e de profano para o povo indígenas, iremos
encontrar uma lógica diferente da protestante. Por isso, nas rezas, encontramos nomes
de animais, do vento, dos donos (os jára). Sem querer me alongar nessa discussão,
trago o olhar do pesquisador karai, Jose Augusto Moraes, sobre o que foi mencionado
acima.

Segundo este autor,


Os indígenas, quase que de uma maneira uniforme, possuem uma
relação integral e permanente entre o sagrado e profano, não há
dissociação. A compreensão Kaiowa e Guarani é bastante similar
aquele presente na religião hebraica, o judaísmo antigo, para quem o

64
Entrevista concedida a mim no dia 18/03/2019, por uma senhora kaiowá de 51 anos.
Atualmente ela frequenta uma igreja pentecostal. Fiz tradução da fala dela de Guarani para
Português. Na ocasião, pediu-me para que não colocasse seu nome, para não lhe comprometer.
156
ser humano só existe em sua integralidade. Os efeitos desta confusão
teológica podem ser quantificados na frequência com que os indígenas
mudam de posição religiosa. O que para a teologia
protestante/pentecostal pode significar um ‘desvio da fé’, para os
indígenas, pode simplesmente representar um reencontrar com a sua
espiritualidade. Daí, por incompreensão, a constante crítica sobre a
instabilidade da ‘conversão’ entre os indígenas. (MORAES, 2016, pp.
115-116).
Enquanto que os missionários da Missão Caiuá precisam da Bíblia para
mostrar o “caminho de Jesus” aos seus adeptos, por outro lado, os rezadores, através
desses desafios adquiriram sabedoria, rezas, revelações sobre a vida e os caminhos
que poderiam ser seguidos para resistirem. Portanto, os sábios indígenas continuaram
investindo no ritual coletivo libertador, com canto e dança.

No entanto, o povo Guarani e Kaiowá foi obrigado a se adaptar à nova escala


de valores imposta pelos missionários, através do abandono de suas práticas
tradicionais, enquanto que as demais conseguiam ressignificar muitos de seus saberes
e adotar um novo estilo de ser indígena rezador ou pertecente à família desse
praticante.

Após alguns anos, a Missão Caiuá começa a ampliar sua rede. Em 1985, veio
o pastor Eugenio e a esposa dele, Marluce, que trabalhou como professora de séries
iniciais, também ajudando na área da saúde, entre outras atividades. Para fortalecer
ainda mais a evangelização presbiteriana, chamaram indígenas de outra aldeia, em
1995, para auxiliá-los na igreja e atrair seguidores. Um casal de indígenas - Renata
Castelão e Otoniel Ricardo - que foi para a Reserva, tinha formação de evangelistas e
curso de teologia. Floriano contextualizou da seguinte maneira sobre como eles
faziam o movimento religioso na aldeia:
Ore reta voi akue igrejape. Perõ heta ajuda ogueru oreve, ndohejai
voi movimento opa. Upevagui hente kuéra ijaty voi upepe. Heta avei
jovens kuéra oi akue, oporahéi akue hikuai tendondepe. Jeho hagua
igrejape oñehenoi henoi nte voi akue; upecha zomingo kue henyhe pe
igreja. A vese Eugenio ohenoi va’e pastor mombyrygua ogueru hagua
mensagem oreve, ivuto ñahendu iñe’e kuéra (Floriano Escobar, 2019).
(Tradução livre): Nós erámos muitos na igreja. Nessa época, tinha
muita ajuda oriundo de vários lugares e, por conseguinte, não deixava
o movimento se findar. Através disso, se ajudantava muita gente.
Tinha bastante jovem, cantava na frente do púlpito. Assim o convite
era feito pela estrada mesmo, chamava pessoa para participar do culto
no dia de domingo. Algumas vezes, pastor Eugenio chamava o pastor
de outro lugar para pregar a mensagem de Deus, era muito bom ouvir
a fala deles.

157
Mesmo que a Missão tentasse formar evangelistas indígenas na Reserva
Indígena de Caarapó, não teria sido possível, pois como afirma a Lauriana Escobar,
alguns fiéis tinham outro interesse em se apropriar desses saberes evangelicos – para
depois criarem a figura de “evangelista” que atenda os anseios de alguns grupos
evangelicos. Conforme o relato de Floriano Escobar, havia momentos em que a igreja
conseguia atrair muita gente, especialmente depois que se instalou na região onde está
até agora65. Atraía muitos visitantes e, com isso, vinha muitos recursos. Como um
indígena que mora na região Missão, de 43 anos, descreveu: “A missão não pregava
sobre benção, cura divina, não era avivado, não tinha corinho alegre, nem mesmo a
gente sentia Espírito Santo em nossa vida. Não sei porque se faz esse tipo de
pregação. Acho que por isso que perderam muitos crentes.”

Parece-me que o estilo “crente” da Missão Presbiteriana na Reserva Indígena


de Caarapó não era suficiente aos seus membros indígenas, pois era muito ao estilo
“crente branco” da igreja católica, onde ninguém, segundo eles, podia sentir
“poderosamente o Espírito Santo”. Os crentes indígenas da Missão Caiuá, de acordo
com crentes de igrejas pentecostais, não apresentam características que seriam ideais
para alcançarem a salvação. O pastor de uma igreja pentecostal afirma ser importante
que, para isso, “seja feita a vontade de Deus, e seja avivado para expulsar todo o
demônio do lugar e da vida das pessoas”, então, “essa Missão Caiuá de Caarapó não
tem isso, essa igreja não busca avivamento para nós, por isso não serviu”.

Por isso, alguns pastores, que se destacaram em meados de 2003,


ressignificaram esse “estilo crente” que a instituição tentou formar: o pastor da Missão
gostava muito de pregar sobre o nascimento de Jesus, mas era com estilo diferente,
“sem glorificar”, apenas podia “sentir em silêncio”. Desse modo, com o surgimento da
igreja pentecostal, crente pentecostal, estilo de pregação pentecostal, houve várias
modificações na própria vida do “ex-crente” da Missão. Por outro lado, a Missão abriu
o caminho aos indígenas para aderirem à vida religiosa pentecostal, ou para seguir o
“caminho do Senhor”66.

65
Historicamente a região onde foi instalada a Missão Evangélica Caiuá se chamava de “Jaicha
Syry”, pois entre 1945 e 1950 essa região tinha muita paca e outros animais silvestres.
Entretanto, como as pacas se destacavam mais por haver um corrégo, então, as pessoas
chamaram o lugar de “corrégo da paca”. O nome da região mudou porque a igreja teve
destaque, por isso, passou a ser conhecida como região “Missão”.
66
Senhor é um dos nomes atribuídos a Deus ou a seu filho Jesus, conforme os preceitos cristãos.
Por esse motivo, por se tratar de um nome próprio, vem também em letra maiúscula.

158
Portanto, segundo Pereira (2004, p.17):
O êxito da Missão Caiuá pode ser considerado pequeno quando se
leva em conta apenas o baixo número de freqüentadores [sic] assíduos
nos cultos e dos seguidores fiéis da doutrina. Entretanto, ela se firma
como presença civilizadora e em espaço de sociabilidade entre índios
e missionários, proporcionando aos Kaiowá a oportunidade de
interagir e aprender sobre o comportamento dos brancos. É assim que
a maior parte dos Kaiowá que desempenham funções administrativas
como enfermeiros, capitães, chefes de posto da Funai, professores, etc.
passaram pela igreja e escola da Missão, incorporando uma série de
valores que de alguma forma se expressam em suas práticas. Por outro
lado, a familiaridade com os temas cristãos introduzidos pela Missão
pode ainda ter preparado a receptividade para a mensagem
pentecostal.
Enquanto o pastor desta instituição levava a “palavra de Jesus” até o
conhecimento indígena sem se preocupar muito em organizar a parentela com a
doutrina, o pentecostal ou neopentecostal já entrava com outro método para suprir de
vez a necessidade de vida, até mesmo para deixar as pessoas longe da sua vida
tradicional, que os “fiéis” indígenas denonimam de “transformação total”.

Vale destacar, portanto, que as crianças tinham contato com a vida religiosa
desde que frequentavam a escola, pois ouviam histórias sobre Jesus Cristo, cantavam
música religiosa, entre outras. Constantemente vivenciavam ambiente diferenciado
que oferecia possibilidade de mudança em relação ao ava reko. Por outro lado, havia
famílias que resistiam a essa modalidade educacional, pois acreditavam que
ocasionaria desorganização na vida e no jeito tradicional indígena. Mesmo com tanta
resistência, não foi possivel impedir a adesão e experiência dessa instituição religiosa.

3.2 Entrada e expansão dos neopentecostais


O presente tópico tem por objetivo apresentar e discutir sobre o histórico da
implantação de igreja neopentecostal na Reserva Indígena Te’yikue. Apoio-me nas
fontes orais de alguns dos primeiros “fiéis” indígenas, de algumas bibliografias
produzidas sobre essa temática, as motivações objetivas e subjetivas que levam os
Guarani e Kaiowá desta Reserva a procurar as igrejas pentecostais e a construir igrejas
entre a parentela. Añomongueta (entrevistei) alguns líderes evangélicos indígenas que
se destacaram no início da evangelização pentecostal na reserva. Procurei-os com
objetivo de compreender as eventuais semelhanças e diferenças das práticas de suas
igrejas para “converter” os indígenas. Alguns líderes evangélicos indígenas não
concordaram com a gravação da conversa e em compartilhar documentos das igrejas;

159
menciono-os, apenas, através de algumas informações específicas que foram por eles
fornecidas. Procurei perceber também como esses líderes se sentem e lidam com a
realidade indígena, sobretudo no que diz respeito ao fortalecimento cultural. Para
tanto, entrevistei o primeiro líder evangélico da igreja Deus é Amor, Virginio Soares,
responsável por expandir a “conversão” na aldeia, e também Severo Martins,
representante da geração de crentes mais antigos da mesma igreja. Entrevistei Silvio
Paulo, representante da Igreja Ultimo Tempo, e Mariana Martins, representando a
figura da mulher líder evangélica, além de outras pessoas.

Delimitamos, como universo da pesquisa, três igrejas pentecostais mais


atuantes na Reserva Indígena de Caarapó, além de algumas que entraram em meados
de 2005, entre as quais estão: Deus é a Verdade, Deus é Amor, Último Tempo e
Primeiro Deus Pentecostal. A seguir analiso como ocorreu a entrada e a expansão das
igrejas neopentecostais, cultos dos indígenas no início do contato com essa nova
religião.

Deus é a Verdade é uma igreja que adentrou na Reserva para converter os


indígenas guarani e kaiowá, utilizando-se do apoio da família grande. Segundo
Lauriana Escobar, essa igreja trazia a palavra de Jesus, de que ele salva e, ao mesmo
tempo precisa das pessoas servindo-lhe e o adorando, mas “para isso a gente tinha que
deixar alguns costumes, o pastor branco falava que várias coisas que a gente tem não
agradaria a Deus, então precisaríamos esquecer e se dedicar só no caminho dele”
(Lauriana Escobar).

A igreja Deus é Amor foi a principal que determinou regras de condutas de


um crente indígena. Segundo o Virginio Soares, primeiramente o pastor branco falava
que “para Deus não nada seria impossível desde que um individuo se sacrifique por
ele”, isto é “deixando de ser aquilo que é”, por exemplo “não praticar o jeito indígena
de ser, não usar a pintura na igreja ou em seu cotidiano, não praticar mais a reza, pois
isso não agradaria a Deus, tampouco ele teria boa vontade para abençoar o indivíduo”.
Conforme o meu interlocutor, colocava medo nas pessoas, pois o pastor branco
alegava que o castigo era pesado, e isso os crentes indígenas e os líderes evangélicos
deveriam saber.

A igreja Último Tempo, desde que se instalou, foi realmente para consolidar
o que a igreja Deus é Amor havia pregado e difundido na mente das pessoas, isto
“nessa igreja a gente era índio pregando para outro índio, falávamos de demônio que
160
deixava o outro ir nesse caminho de escuridão, e tentávamos salvá-los desse mundo”
(Virginio Soares).

Enquanto isso, a igreja Primeiro Deus Pentecostal investia em “converter os


malucos desgarrados”, como expressava o líder evangélico, Cornelio Rosa. Essa igreja
iniciou primeiro com a contribuição da igreja Deus é a Verdade, como o pastor Luiz
não conseguia atender mais as 5 igrejas na Reserva de Caarapó, optou por entregar a
outro pastor, pois “para ele ficava complicado em nos atender e, ao mesmo tempo,
oferecer o apoio que precisamos, então, conversamos e ele decidiu indicar outro pastor
para nos dar apoio” (Líder evangélico Cornelio Rosa). Portanto, há diversas formas de
evangelização pentecostal na Reserva, e cada organização de trabalho se diferencia
uma da outra, pois cada pastor não indígena, juntamente com o líder evangélico
indígena, estuda quais métodos de conversão dariam certo em um determinado lugar,
ou seja, em cada região da Reserva.

Possivelmente, uma das formas de compreender a nossa comunidade


indígena atual nas reservas seja estudar suas manifestações religiosas (jerovia kuéra
reru). Como já foi discutido anteriormente, há muitos acontecimentos que precisam
ser analisados e elucidados pelo próprio pesquisador indígena. Em se tratando da
conversão indígena às religiões evangélicas ou pentecostais, com o surgimento do
“crente” pentecostal ou evangélico, a construções de várias igrejas, regras/doutrinas
organizacionais, torna-se cada vez mais desafiador, até porque durante alguns anos
isso não foi estudado e tampouco interrogado pelo próprio ava (indígena). Por outro
lado, é inegável que muitos pesquisadores karai (branco) já discutiram essa temática
em suas pesquisas de mestrado e doutorado brilhantemente, mas nós, enquanto
pesquisadores indígenas, precisamos ainda avançar nessas questões. Algumas
bibliografias de pesquisadores não indígenas estarão nas referências bibliográficas
deste trabalho.

A seguir, para ficar mais claro sobre o movimento pentecostal e


neopentecostal, descrevo e trato das diferenças e semelhanças entre si.

3.2.1 Diferenças e semelhanças do movimento pentecostal e neopentecostal


O processo histórico de instalação do pentecostalismo no Brasil ocorreu no
início do século XX, com o ítalo-americano Luis Francescon (1866-1964), Gunnar
Vingren e Daniel Berg, os quais designaram as duas e maiores denominações
pentecostais do país, Congregação Cristão do Brasil (1910) e Assembleia de Deus
161
(1911) nas cidades de São Paulo e Belém, no Pará, respectivamente. O
Pentecostalismo se dividiu em 3 períodos, também conhecido como ondas, de acordo
com estudo de Paul Freston (1994): pentecostalismo de primeira onda
(pentecostalismo Clássico), Pentecostalismo de segunda onda; e pentecostalismo de
terceira onda (neopentecostalismo). Assim:
(..) As igrejas pentecostais enquanto instituições em evolução
dinâmica (...) não são organizações estáticas que incham
numericamente; estão em constante adaptação, e as mudanças são
frequentemente objeto de lutas. Ademais, o pentecostalismo possui
grande variedade de formas, e cada nova espécie vai enterrando mais
alguns mitos a respeito de o "pentecostalismo". (FRESTON, 1993: 64)
Conforme o autor, as igrejas pentecostais possuem grandes vantagens e
sabem se adaptar em diversas situações. Umas das grandes vantagens do movimento
pentecostalista, por “possuir grande variedade de formas”, foi assimilada e almejada
pelas classes menos favorecidas, uma vez que usam várias táticas; uma delas, por
exemplo, para “converter” os indígenas, é o uso de mensagens de milagres para os
problemas reais pelas quais essas comunidades passam. Sendo assim, alguns pastores
brancos que foram à Reserva de Caarapó, conforme o relato do primeiro convertido
indígena, não usavam linguagem difícil para apresentar o “caminho de Deus”. Neste
caso, faziam cultos embaixo de árvores e no pátio da casa dos indígenas, onde
cantavam hinos na Harpa Cristã e pregavam sobre a morte de Jesus, bem como
faziam cultos de milagres e “libertação”, visando trazer também “consolo” e
“salvação” para as pessoas “perdidas” em diversas crises espirituais, pessoais e no
consumo da cachaça. São essas algumas táticas que me foram relatadas durante a
pesquisa. Contudo, ao longo do texto deste capítulo irei abordar mais algumas táticas.

Os exemplos acima se referem ao pentecostal ou pentecostalismo, a partir da


realidade da Reserva que pesquiso, de como seria a dinâmica de ocupação na família,
para depois se expandir pelas regiões, até porque é um processo histórico em curso,
que motivou também a formação de outro movimento que seria o neopentecostalismo
entre os Guarani e Kaiowá. Mesmo tendo como carro-chefe a teologia da
prosperidade, cujo significado é abrangente, trago algumas situações complicadas na
Reserva, como é o caso do desemprego, que era muito alto entre o ano de 2001 e
2008, e continua sendo até hoje, como me falaram alguns pastores indígenas. Os
indígenas desta Reserva sentiram o impacto da sua exclusão social e econômica,
planejada pelo Estado brasileiro. Neste caso, o movimento neopentecostal levava o

162
exemplo da pessoa abençoada por Deus espiritualmente, e também ganhava bênçãos
materiais e prosperidade, “estabelecendo uma relação direta entre o Espírito Santo” e
as ofertas e dízimos enquanto significados da fé.

Outra característica marcante que consegui observar, a partir das falas dos
crentes mais antigos da Reserva de Caarapó, foram os cultos voltados para processos
de cura, onde se testemunhavam as curas recebidas. Isso acontecia frequentemente
quando se instalou a Igreja Deus é Amor nesta Reserva, onde, além de pregar sobre
cura, também se pregava sobre “libertação”, ancorada constantemente na luta contra
as práticas xamânicas dos Guarani e Kaiowá, consideradas como práticas comandadas
por demônios. Um exemplo claro de igrejas neopentecostais na reserva de Caarapó,
em sua maioria, é o fato de não possuírem nenhuma finalidade teológica bem definida,
como crentes não indígenas, sendo, infelizmente, como me disse um rezador guarani,
apenas “intolerância, exclusão e sempre investindo que, como índio, não se deve mais
viver, pois estamos perdidos”. É importante, nas análises desse fenômeno marcante
nas aldeias, o reconhecimento de que, antes de mais nada, o neopentecostalismo é um
processo histórico ainda em experimento. Aliás, em seu período curto de existência,
tem promovido interesses indígenas em sua transformação, conforme o seu
deslocamento. Conforme o antropólogo e pesquisador do povo Guarani e Kaiowá:
Esta opção é motivada pelo desejo de proximidade com as divindades,
de poder contar com seu auxílio para o enfrentamento dos problemas
cotidianos. Na impossibilidade de buscar esta proximidade no sistema
tradicional, o Kaiowá recorre a práticas situadas fora de sua tradição,
mesmo que isto em alguma medida implique em deixar de ser kaiowá.
A conclusão a que parecem chegar é que é preferível abandonar o
sistema a estar longe das divindades. Assim, a questão que os kaiowá
pentecostais parecem se colocar é: se já não é possível estar próximo
das divindades como kaiowá, porque não buscar outro caminho?
(PEREIRA, 2004, p.25).
O desafio para se entender a realidade indígena exige cautela e um
distanciamento necessário, até porque distanciar-se de um lugar de vivência
proporciona várias reflexões. Isso é possível por meio da pesquisa, do estudo das
obras dos não indígenas, os quais já se esforçavam para entender a nossa vida e, ao
mesmo tempo, colocam-nos numa discussão mais ampla na Etno-história,
Antropologia e Sociologia. Sendo assim, “na impossibilidade de buscar esta
proximidade no sistema tradicional, o Kaiowá recorre a práticas situadas fora de sua
tradição, mesmo que isto em alguma medida implique em deixar de ser kaiowá”
(idem, 2004). Esta é a tentativa de um não índio - karai entender o porquê um kaiowá

163
busca fora do sistema tradicional o que ele poderia buscar dentro. Pereira não está
dizendo que não é possivel buscar dentro, talvez, esteja dizendo que não permitem, e
que na outra religião, o kaiowa encontra os mesmos elementos que ele tinha na sua
antiga religião. Ou seja, troca seis por meia duzia, só que com menos liberdade, mais
ônus. Ou seja, de qualquer modo os Guarani e Kaiowá buscam a mesma coisa sempre,
só que com mais sofrimento e mais perdas. E agora a opressão não vem mais de fora,
vem de dentro mesmo.

Da mesma forma que Pereira (2004) analisou, o pastor indígena Amelio


analisa da seguinte maneira a sua conversão: “A gente foi considerado já como karai
pelo próprio patrício, sempre chamava a gente de crente gua’u [falso], mas pra mim
não deu certo essa cultura, né... então escolhi ser crente e acho que sou indígena, eu
me considero indígena”. Neste caso, esse pastor indígena, morador antigo da Reserva
Indígena de Caarapó buscou “outras práticas situadas fora de sua tradição”, ao
mesmo tempo em que essa busca lhe criou problemas na comunidade, por outro lado
lhe fez bem escolher ser crente, como salienta.

Os Guarani e Kaiowá não conseguem se distanciar tanto tempo das


divindades, pois a própria realidade exige que eles busquem a aproximação com os
jára (seres não humanos, “donos” e cuidadores de cada coisa ou ser vivo na Terra –),
hoje conhecidos pelos crentes indígenas como “espíritos santos”. Então, os
evangélicos guarani e kaiowá utilizam no plural quando se referem ao Espírito Santo,
os quais refletem a relação com os jára, que antes de serem crentes já tinham relação
com eles, os respeitam, e na hora de pedir proteção. Isto se diferencia muito da
tradição bíblica, onde consta a existência de um único Espírito Santo, que forma a
trindade divina com Deus pai e Deus filho.

Na maioria das vezes, o próprio evangélico indígena questiona o motivo pelo


qual os seus parentes constróem muitas igrejas, que ora conseguem converter muita
gente, ora os perdem se não tiverem habilidade de líder. Por isso, trata-se de abrir o
meu olhar indígena enquanto pesquisador e reconhecer essa adesão religiosa
pentecostal pelos indígenas. Segundo Pereira (2004, p.18), a conversão ao
pentecostalismo é encarada pelos Kaiowá e Guarani como uma maneira de recompor
formas de sociabilidade danificadas devido às transformações históricas recentes. É
isso que permite compreender o extraordinário crescimento dessas igrejas nos últimos
anos.

164
Desse modo, o objetivo da pesquisa sobre neopentecostalismo na Reserva
Indígena de Caarapó que aqui faço não é percebido como os brancos o percebem, ou
seja, que todos os crentes indígenas já não são mais indígenas. As opções de
abordagem querem considerar, com base nas vivências religiosas de sujeitos indígenas
concretos, os complexos processos de articulações entre sua crença67 tradicional
arruinada machucada e a experiência social em Reserva.

Destaco os estudos já mencionados dos historiadores Antonio Brand e Katya


Vietta, além de Santos Moraes e do antropólogo Levi Marques Pereira sobre a
presença da Missão Caiuas nas Reservas Indígenas, nos quais esses pesquisadores
analisaram o impacto dessa presença para a ressignificação das tradições de
conhecimento nativas destes grupos sociais. Esta presença ganhou espaço em função
do confinamento que os nativos sofreram.

Os indígenas não só sofreram confinamento de espaço físico, mas também


confinamento espiritual, já que os “brancos dominadores” os convenciam com sua
religião, apresentavam-na como superior à religião deles68. Para ocasionar mais
problemas, o próprio indígena acusava sua religião de ser “impossibilitada” de
resolver seus problemas cotidianos. Por outro lado, mesmo que a prática xamânica
tenha sido invisibilizada, ela continua transitando na memória de muitos anciões e
continua sendo reavivada no cotidiano indígena e entre os jovens. O acelerado
processo de colonização e reservamento dos indígenas atingiram profundamente as
condições objetivas e subjetivas desses coletivos, levando-os a se readequarem à nova

67
A dinâmica de crença que os indígenas experimentaram e experimentam, ao longo da
colonização, liga-se com o processo traumático pelo qual passaram, inclui-se violência
simbólica, cultural e perda territorial. Entretanto, através desses conjuntos de práticas e valores
que lhes foram atribuídas, se agregam não apenas para se submeterem a eles, como muitos
religiosos dominadores pensaram, todavia, também para fortalecer suas dinâmicas ativamente
combinadas com seus conhecimentos e valores, compondo, assim, as trajetórias de resistências
tradicionais e de seus saberes. Sendo assim, fica evidente o imaginário que se tem sobre a
crença indígena, atribuindo-lhe uma explicação sem compreender o processo histórico das
trajetórias religiosas de sujeitos indígenas com as instituições, e sempre se cometerá injustiça,
ao mesmo tempo se fortalecerá preconceito, racismo e violação dos seus direitos.
68
As religiões cristã, judaica e islâmica se colocam como superiores a qualquer religião, pois
creem em um Deus absoluto, maior e mais poderoso que qualquer outro deus que possa existir
no mundo físico e espiritual. Isso porque esse Deus é considerado nessas religiões como autor
do universo e de tudo o que nele há. Fica difícil competir com um Deus onipotente assim. Não
se tem conhecimento de nenhuma outra religião tradicional que sustente ou defenda a ideia de
um ser tão poderoso como os cristãos, os judeus e os mulçumanos creem. O caso dos cristãos é
ainda mais acentuado, pois o Deus deles encaminhou seu único filho para morrer pela
humanidade pecadora. Nenhum outro deus parece ter feito tamanho sacrifício por amor à
humanidade. Por isso, optei em colocar a palavra convencimento.
165
realidade a que se viram submetidos. Nas décadas de 1970 e 1980, os movimentos
indígenas e as organizações das lideranças tradicionais – conhecidos/as como ñanderu
e ñandesy - nasceram, se fortaleceram e cresceram. Nas décadas subsequentes,
constatou-se que eles conseguiram algumas conquistas, entre as quais estão as
retomadas das terras tradicionais Guaimbe Peri e Rancho Jacaré (1984)69 (Laguna
Carapã). Entretanto, essas conquistas não eliminaram as violações de direitos, as
desigualdades sociais, o racismo, os preconceitos, a intolerância religiosa, as
violências e o trabalho escravo, entre outras.

Ao contrário do que o governo brasileiro enxergava em relação ao povo


guarani e kaiowá, o que as lideranças indígenas verificaram e vivenciaram foi o
aumento dos problemas sociais nas reservas, os quais exigiram dessas lideranças
espirituais outros mecanismos de resistência com as suas práticas tradicionais e
vivências. Desse modo, não conseguiram impedir a proliferação dos sujeitos crentes,
os quais demonstraram vivências muito semelhantes aos indígenas antigos de unir as
pessoas. Começaram a experimentar, então, outra forma de se conectar com a
divindade, com a qual pudessem fortificar de novo o teko porã e teko marangatu, os
quais, durante a expulsão de seus territórios tradicionais, foram arruinados. Esses dois
conceitos exigem bastante estudos para serem analisadas, sobretudo no estudo sobre
as igrejas indígenas cristãs.

Como exposto no capítulo anterior, a Reserva não tem suprido a necessidade


das parentelas indígenas; por isso, os Guarani e Kaiowá se tornam alvos de muitas
imposições da sociedade não indígena. Uma delas foi a mudança dos papeis das
lideranças tradicionais, porque os recursos foram sumindo, a vida do não índio foi
adentrando para o interior da Reserva, a pobreza, a doença, o mal-estar social foi se
agravando e despejando ineficiência sobre os papeis dessas lideranças tradicionais.
Assim, os evangélicos indígenas foram ganhando força, impedindo as lideranças
tradicionais de ocupar espaços como antes. Contudo, isso foi temporário, pois estas
tinham outras estratégias: ocuparam o cenário da mídia, espaço político na escola e na
universidade, entre outros.

69
Para mais informação consultar a tese de doutorado de Cavalcante (2013), principalmente
tabelas elaboradas com informações detalhadas a partir da p. 100.
166
3.3 A primeira igreja pentecostal e neopentecostal na Reserva de Caarapó
A primeira igreja de caráter mais neopentecostal que entrou na Te’yikue foi “Deus é a
Verdade” com um pastor não índio, na década de 1980. Digo com característica
“mais” neopentecostal, pois, segundo Mariana Martins, o pastor falava de dons e da
possibilidade de os crentes indígenas falarem em línguas estranhas (glossolalia).
Naquela década, os dois irmãos conhecidos por Enrique Aquino e Davi Aquino
experimentaram aderir à igreja, pois eles tinham certeza de que, a partir da conversão
ao petencostalismo, conseguiriam salvação, vencer a pobreza, conhecer a verdade
(que seria a palavra Deus, segundo a explicação de alguns fiéis indígenas) e também
esquecer o processo traumático pelo que passaram. Os que frequentaram essa igreja
pentecostal foram majoritariamente seus familiares.

Conforme Mariana Martins, os dois “convidaram as pessoas para irem


participar da oração...naquela época pelo que me lembro, era igreja Deus é a Verdade,
foi muito, né..., mas eles conseguiram congregar com essa igreja apenas 1 ano”. Ainda
segundo essa minha interlocutora, eles enfrentaram muitos problemas com os demais
parentes da Reserva, porque alguns grupos não aceitavam a entrada da igreja nessa
localidade. A parentela do Davi e do Henrique morava perto de onde o Sílvio Paulo
mora agora. Ao redor daquele lugar havia bastante rezador, como o próprio Jorge
Paulo. Nesse sentido podemos dizer que conseguiam barrar a proliferação dos “fiéis”
indígenas e das igrejas, mesmo que fosse temporariamente.
Uperõ che michi͂ lento akue, po ahendúma voi oĩ igreja ou imi ha ko
jaiko hápe. Naimbareteguasúi uperõ igreja mba’e mavavéva guasu
ndoikuaái porã akue mba’éicha hina jehóta upépe. Missão ko
oikuaave akue mba’éichapa ava oho arã ñandejára rapepe. Upéicha
heta voi akue oi͂ oikuaáva ñembo’e ha ava arandu. Senõ, Avelino
Quinhone, Jorge Paulo, umiva ojapo akue voi mba’e porã ha ochuka
akue voi ava reko. (Mariana Martins, 2019).

Tradução livre: Nessa época, eu era meio criança ainda, mas já ouvia
que a igreja havia se instalado no lugar onde a gente mora agora. A
igreja não conseguiu se fortalecer significativamente, até porque quase
ninguém conseguia entender como chegar nela e segui-la. A Missão
sabia mais como os indígenas deviam seguir o caminho de Deus.
Assim tinha bastante pessoa que sabia reza e sabedoria indígena.
Senõ, Avelino Quinhone, Jorge Paulo sabiam e faziam coisa boa e
mostravam a vida do indígena.

De acordo com a fala de Mariana Martins, nesse primeiro momento da


evangelização da igreja pentecostal, muitos indígenas não conseguiam entender muito
bem sobre a vida das pessoas crentes, porque a forma de pregação e a linguagem do

167
pastor branco ainda eram novidades. Diferentemente, a Missão Caiuá usava outra
estratégia para “convertê-los” à sua religião, pois o pastor paraguaio, que a instituição
trazia para a Te’yikue facilitava o trabalho de evangelização, já que falava a mesma
língua dos Guarani e Kaiowá. Ainda sobre a dificuldade por parte dos indígenas de
“entender” para “seguir o “caminho da igreja”, acontecia exatamente porque havia
orações e pregações diferentes da Missão: “Foi meio que assustador”, afirmou
Lauriana Escobar.

Depois de não se entenderem com as demais parentelas indígenas, Enrique e


Davi convencerem sua família a se mudarem para a Reserva de Amambai, pois,
mesmo que eles não conseguissem se firmar na igreja, por outro lado, já despertariam
interesse das pessoas daquela comunidade. Assim que chegaram em Amambai,
conseguiram se estabelecer, inclusive a maioria dos seus parentes moravam nesta
Reserva; sendo assim, conseguiram se aliar à outra igreja e se firmar.

Nessa dinâmica social da reserva, quando não se tem parente ocupando cargo
de capitania, ao mesmo tempo não tendo maior número de parentes consanguíneos,
fica difícil usufruir do apoio das demais parentelas, principalmente do apoio do líder
Capitão. Por essa razão, essa família decidiu retornar onde estava concentrado a
maioria dos seus parentes, na região de Amambaí/MS, no ano de 1887.

Hoje, Henrique continua sendo seguidor da Igreja Deus é Amor, mora na


Reserva Indígena de Amambai, tem igreja de tijolo, com “estrutura bem adequada”
para receber os membros da aldeia. É normal que os indígenas transitem por várias
igrejas diferentes ou “ministérios”, até se estabelecer em uma que tenha proximidade
com a rede política de parentesco.

As denominações religiosas variadas que surgiram na década de 1980, em


algumas reservas, como nas de Dourados e de Caarapó, se instalaram em meio às
dificuldades acarretadas nos campos social, político, econômico, cultural e religioso e
procuraram adequar-se à realidade vivida por seus futuros membros, mas essas
situações foram chegando até o espaço religioso. Foi preciso achar um meio para
facilitar os trabalhos de conversão religiosa. Essa adequação é perceptível porque,
conforme a minha análise, a partir da experiência vivida na aldeia indígena, tais
manifestações aparecem intensas, sendo mescladas e refeitas em processo de
apropriação, hibridação, negociação e adesão.

168
3.4 Segunda igreja aliada com Capitão e cabeçante indígena da Usina
A primeira igreja “A Palavra de Cristo para o Brasil” foi construída com
ajuda do pastor não indígenaNelson, morador antigo da cidade de Caarapó. Na
ocasião, Silvio Paulo o chamou para ajudar na constituição da igreja e, assim, ajudar
os seus parentes indígenas, ao mesmo tempo trazer “esperança” aos adeptos da igreja.
Como os indígenas transitavam por muitas igrejas, naquela época, conforme o pastor
indígena Silvio, os seguidores do “caminho do Senhor” eram de, aproximadamente,
200 pessoas. Onde em:
1996, quando Silvio, Kaiowá, 42 anos, assume o posto de capitão.
Inicialmente, os cultos eram realizados por um pastor não-índio, mas,
em poucos meses, ele e sua mulher assumem a direção da igreja. A
Palavra de Cristo para o Brasil, em Caarapó, enfrenta uma grande
flutuação no número de adeptos, mudou de nome e de orientação mais
de uma vez, e hoje é uma igreja autônoma, designada Missionária da
Palavra. De acordo com Silvio, em Caarapó, quase uma centena de
fiéis regulares e mais de 400 irregulares frequentam a igreja.
(VIETTA, 2003, p. 121)
Assim, por acessar a gestão da aldeia e ao mesmo tempo em querer resolver
os problemas sociais, esse Capitão e pastor investiram na evangelização de seus
parentes indígenas; a igreja indígena foi construída com madeira e sapé da aldeia, ou
seja, com recursos próprios indígenas. O trabalho coletivo tradicional, que chamamos
de pucherõ, foi fundamental nesta atividade. Os homens trabalharam coletivamente:
enquanto uns arrancavam sapé, os demais cortavam madeira; assim o trabalho fluía
positivamente e a igreja ficava pronta, antes do prazo.

Nesse tempo de “virar crente”, o alvo principal era converter a parentela com
o maior número de pessoas, pois a parentela próxima enfrentava muitos e variados
problemas, dentre os quais estavam bebida alcoólica, violência, suicídio, tristeza (vy’a
re’y͂) e pobreza. A direção da igreja ficava ainda na mão do pastor indígena, como já
foi mencionado por Benites em sua pesquisa de mestrado (2014, p. 47). Esse pastor
ficava responsável por realizar cultos, orações, “revelações” e pelo ritual da Santa
Ceia. Neste sentido podemos destacar a conversão a esta igreja de algumas parentelas,
como Martins, Paulo e Marques. Ao mesmo tempo, o Capitão indígena amedrontava
as pessoas que saíam à noite, as quais tentavam, segundo ele, viver o teko vai e o teko
ahe (vida errante e impetuosa). Assim, as pessoas decidiram se converter com intuito
de mudar de vida.

Conforme Vietta:

169
Desde então, o número de diferentes denominações e de adeptos vem
se ampliando. A princípio, os cultos são dirigidos por pastores não-
índios, porém, gradativamente, os Kaiowá e Guarani se apropriam
desse espaço, e hoje, estão à frente da maioria dos templos. Contudo,
não é fácil precisar números, há muita mobilidade entre os
freqüentadores [sic], alguns já passaram por duas, três ou mais
denominações diferentes. Ao que parece, elas tiveram duas portas
importantes de entrada nas reservas: a participação de famílias nas
igrejas situadas na periferia das áreas e os cultos realizados nas usinas
de álcool, onde pastores índios e não-índios freqüentam[sic]
regularmente, fazendo muitos adeptos. (VIETTA, 2003, p. 120)
Conforme o estudo da Vietta (2003) e trazendo a contribuição de Weber
(1864-1920), consigo entender o conceito de “vocação” para trabalhar nas usinas de
álcool, entendido pelo representante da turma (cabeçante70), como sendo um
“chamado de Deus ou bênção” para exercer esse tipo de trabalho e apresentado aos
demais indígenas trabalhadores rurais como sendo “dignos” do moderno sistema
econômico capitalista. Essas duas portas importantes destacadas pela autora, os torna
fiéis a este trabalho “até a morte”, por isso dão muito valor a ele, mesmo sendo
desprezivel pelos não índios, pois os sistemas religiosos os convencem/ de que tudo
que fazem/faziam produz riqueza, como um dever moral.

Esses cabeçantes são/ escalados conforme a produção da turma. Sendo assim,


os trabalhadores que mais produzem merecem destaque na igreja, por darem altos
dízimos e, por isso mesmo, também merecem uma semana de folga ante do contrato
de 90 dias. Entretanto, durante essa semana, eles devem desenvolver um trabalho
“voluntário”, e eles acabam gastando mais do que podem (uma espécie de sacrifício),
pois Deus os “recompensaria” no próximo contrato. Esse trabalho “voluntário” a que
me referi é ajudando na melhoria da igreja, comprando materiais para enfeitar a “casa
de Deus”. Também participando dos cultos de vigília, de domingo que os mesmos
chamam de “jejum e consagração”.

Em Te’yikue, portanto, os dirigentes das igrejas, aliados com o Capitão


sempre ocupavam cargos de “cabeçante” por serem obedientes a Deus e, por
conseguinte, estarem preparados para orientar o grupo no campo de trabalho e
espiritual. Ao mesmo tempo em que fazem essas ações, também poderiam ganhar

70
Um cabeçante de turma de 45 pessoas é sempre escolhido pelo líder Capitão da aldeia e pelo
representante da usina de cana, por ser, geralmente, evangélico. Isso tinha e tem valor até hoje
para ser empregado da usina de álcool.

170
mais pessoas nas atividades religiosas e no trabalho. Nesse sentido, poucos ex-
cabeçantes ocupam papel de cortador de cana-de-açúcar, pois eles conseguem ocupar
cargos de Capitão, representante de Ong’s, chefe do posto, entre outros mais
importantes.

3.4.1Terceira entrada da igreja pentecostal Deus é Amor


Coloco essa igreja no terceiro momento, porque antes de 1996, entre 1994 e
1995, a igreja Palavra de Cristo para o Brasil já estava em ação para ganhar seu
espaço aliado ao Capitão e ao dirigente indígena. Então, a instalação da Igreja
Pentecostal Deus é Amor, na região Mbokaja, ocorreu na metade de 1994, lembrando
que, no início, o pastor não indígena chamava de ponto de pregação e de oração.
Como estava aberta, por parte da liderança, a entrada de alguns pastores não índios
que vinham da cidade, o pastor Carlinho, da Deus é Amor, encontrou essa região com
grandes problemas, situação que mudou a partir da entrada dessa igreja, intermediada
pelo guarani Virginio Soares e sua esposa Mariana Martins. O primeiro contato deles
com os pastores da cidade ocorreu na região majoritariamente ocupada por Guarani.
Eles foram chamados para fazer oração. Soares afirma:
Primeiramente tentamos convencer o Hipolito para fazermos oração
na casa dele, mas ele não deixou por muito tempo, bom, por isso
fomos pra casa mesmo fazer…no começo era só nóis três, eu e minha
esposa Mariana Martins. Aí começamos a chamar os meus parentes,
tia Michï, tia Luiza, minha sogra Lauriana, cunhada Vitoria,
Kátia...assim começamos ouvir o pastor que vinha pregar e nos
ensinar a palavra de Deus...o culto acontecia embaixo de uma ramada
feita de sapé... lá a gente aprendia a ser crente...depois que
aprendemos a palavra de Deus saímos a procura da alma... íamos em
casa em casa conversar e passar a palavra de Deus. (Soares, 2019).
Percebe-se, através da fala deste primeiro dirigente indígena da Igreja Deus é
Amor, como foi o trabalho realizado. No início, ele tentou convencer só os parentes
consanguíneos a aderirem à igreja. Nesse sentido, o trabalho ficou mais simplificado
porque, com os parentes, é possivel um diálogo mais produtivo, facilitando a
catequese. A partir da visita, como se pode perceber na fala de Soares, as pessoas se
sentiam acolhidas, por isso, na maioria das vezes, a família toda aderia à igreja, como
foi o caso dos familiares de Virgínio. Na ocasião, adotaram a nova religião a sogra, as
tias e parentes próximo. Pereira adverte que:
[...] é muito comum que, a partir da decisão do casal de líderes de
aderir à nova religião, todos os integrantes da parentela tomem a
mesma decisão. A rapidez com que ocorre a conversão em massa de
um grupo de parentes evidencia a superficialidade do movimento de
convencimento doutrinário para a adoção da nova fé (2012, p. 185).

171
Antes da igreja Deus é Amor se firmar como “igreja mesmo” (era assim que
Virginio Soares se referia quando o indagavam sobre isso), havia um rezador bastante
respeitado, o Avelino Quinhone, responsável por resolver situações difíceis que as
pessoas vinham enfrentando. Segundo a esposa dele, Tereza, quando as pessoas da
região ficavam doentes, procuravam-no. Avelino mostrava-se coerente naquilo que
fazia e praticava e foi considerado um grande rezador, pois revelava tudo que a pessoa
tinha e sentia, tentando buscar remédio específico para curar as doenças. Mantinha o
jeito tradicional de participação da reza, da dança e do batismo da criança. Portanto,
consideravam-no um jekoha tee, porque esse rezador se destacava e mostrava
eficiência no que praticava, sendo assim, foi referência para as demais pessoas da
etnia guarani nhandéva.

Contudo, depois da morte deste rezador guarani e de outros rezadores, a


configuração social e o sistema social da região Mbokaja ficaram fragilizados, o que
facilitou a entrada de instituições religiosas, como é o caso da Igreja Deus é Amor, a
qual convenceu muita gente a aderir ao pentecostalismo e, assim, buscar cura,
“libertação”, alegria e, acima de tudo, um modo de vida dissonante do teko porã
guarani e kaiowá. Segundo Virginio Soares, nessa época, “muita gente adoecia, seja
na alma, seja no corpo e, por conseguinte, não encontrava mais um rezador referente a
ele”. Conforme lembra ele, “mesmo que o yvyra’ija Hipolito continuasse praticando o
que aprendeu, mesmo assim não convencia mais as pessoas a seguirem na sua
cultura”. Portanto, como elucida meu interlocutor, foi preciso buscar outro meio de
resolver isso.

Nessa época, segundo alguns moradores mais antigos da região Mbokaja, o


número da população estava aumentando e provocou, de forma acelerada, um
adensamento dos problemas sociais e uma diversificação de praticantes de rezas
indígenas, e também da paisagem da aldeia, com a formação de “periferias/regiões”,
centro de diferentes trabalhadores indígenas, analfabetos, pobres e desempregados.
Por outro lado diversificou-se também a composição sociocultural e religiosa das
regiões da aldeia. Portanto, 1994 foi um “divisor de águas” para facilitar a
“conversão” indígena.

Foto 7: Primeira Igreja Deus é Amor, da região Mbokaja

172
Fonte: Arquivo pessoal da Mariana Martins, cedida ao autor no ano de 2018

Essa foto é de 1997, nela está minha família. Essa foi a primeira igreja
construída pelos fiéis indígenas na região Mbokaja. O pastor Zezinho os ajudou a se
organizarem nessa região. Conta Mariana Martins que o pastor vinha da cidade, de
bicicleta, às sextas-feiras e aos domingos, para fazer culto e outras atividades
religiosas. Dentro da igreja havia um altar, denominado por eles de “altar sagrado”,
onde havia banco de madeira. Usava-se lampião e “com muito esforço o pastor
conseguiu pra gente caixa de som que funcionava com bateria” (Martins, 2019).
Conforme o levantamento que fiz, 30 pessoas frequentavam o culto diariamente, entre
os quais: Luiza Rosa, Felipa, Vitoria, Getulio, Marcia, Severo, Marta, Lauriana,
Tereza Aquino, Aparicio, Roberto Soares, Nicolau, Mariana Martins, Virginio Soares,
Norivaldo Marques, Luisa, Pali (Valdemar), Brigida, Elza, Teodoro e Valdir. Nessa
época também já havia membro da igreja da região Savera, como foi o caso de Pali
(Valdemar), Severo e sua esposa Marta.

O responsável pela condução do culto era Virginio Soares, que precisava


aprimorar sua habilidade de líder para conquistar a confiança do grupo. Desse modo,
criou-se a figura do “cooperador”, cuja função era ajudar o responsável pela igreja na
oração e na “campanha espiritual”.

Por meio das pesquisas é possível explicar alguns fenômenos que


permaneceram inexplicáveis do ponto de vista do conhecimento científico. Sem
desqualificar ou menosprezar a “conversão” indígena, é importante não perder de vista

173
a perspectiva e a história dos Guarani e Kaiowá que, dias após dia, desde 1980,
adentram ou transitam por vários “ministérios” das igrejas pentecostais e
neopentecostais.

Ainda sobre a situação de recompor a parentela através da igreja, há várias


maneiras de refletirmos sobre isso. O primeiro que aderia à igreja sempre conseguia
conquistar espaço de liderança na família, pois essa pessoa demonstrava a mudança
em sua vida como sendo boa para as demais, capaz de oferecer almoço, ajudando os
desprovidos, livrando-os das polícias indígenas, proferindo palavras agradáveis,
aconselhando os casais, enfim, sendo um jekoha, do qual se pode obter algum tipo de
ajuda. Esse primeiro “convertido” da família pode ser que tenha tido vida errante,
tenha sido considerado bêbado, violento, sem perspectiva de vida aos olhos da
comunidade; entretanto, ao aderir ao evangelho cristão em sua vida, a mudança é
perceptível.

Nessa descrição histórica da instalação de igrejas na aldeia, podemos refletir


também sobre como foi se configurando a questão da intolerância religiosa, sobretudo
na questão das práticas xamânicas guarani e kaiowá. Tanto os pastores da Missão
Caiuá quanto os das igrejas pentecostais não tinham noção sobre a cultura tradicional
indígena. Nesse sentido, não se esclarecia aos indígenas sobre tais situações, assim,
fortalecia-se o “desprezo” e o preconceito pela própria cultura ancestral.

As décadas de 1990 e 2000 foram de medo, pois se naturalizava a ideia de


que a “macumba/feitiçaria” era a responsável pelos problemas que haviam se
estabelecido no cotidiano dos Guarani e Kaiowá. Os pastores não índios sempre
priorizaram pregaçãoes acerca da “feitiçaria”, onde salientavam que os demônios
sempre usam as pessoas para causarem coisas negativas às pessoas.
Então, a gente acreditava mesmo no poder de Deus, para isso
tínhamos que deixar aquilo que nunca vai dar certo em nossas vidas,
por exemplo, rezar, sair a noite para ir onde está tendo chicha. Mesmo
que exista essa prática e rezadores. Eu, por exemplo, acreditava mais
em ser evangélico do que voltar a ser praticante da cultura, pois sei
que deu certo tanto para mim e para muitos. Deus é Amor nos ensinou
como ser evangélico, apesar de ter ensinamento pesado ou até mesmo
difícil de se entender, por outro lado me ajudou, como dirigente,
converter muita gente e mostrar o caminho de Deus e, ao mesmo
tempo, tirá-los do mundo, onde eles estavam perdidos e buscando algo
que nunca mais daria certo. (Dirigente indígena da igreja pentecostal
Deus é Amor).

174
Por isso, naquelas décadas, era comum uma igreja ter muitos seguidores.
Conforme os meus levantamentos, a cada dia da semana, o número era entre 100 a
150 pessoas participando das reuniões, ou seja, de cultos.

Sendo assim, começou a se impor algumas regras aos indígenas para que
deixassem suas práticas tradicionais sem sentir “pressão”. O pastor não índio era sua
referência, segundo Severo Martins, pois “a gente respeita muito, né, a gente ouvia
eles falarem, e então buscamos palavra de Deus seguindo essa doutrina”.

Algumas famílias que evitavam os problemas, conforme Hipólito, não se


sentiam muito pressionadas a aderir aos ensinamentos da igreja. Na ocasião, ele me
falou que a região Mbokaja não apresentava violência difundida. Na opinião dele, é
“porque a gente conhecia pessoa que morava por aqui, todos conheciam seus vizinhos,
todos parentes mesmo, respeitavam os mais velhos; só quando ia pro lado do posto
que apanhava da polícia, porque levava culpa das outras pessoas”.

3.4.2 Igreja Indígena Pentecostal Último Tempo


Como pastor, Silvio Paulo viu a possibilidade de o próprio indígena levar a
“obra de Deus” adiante e fundou, em 1994, a primeira igreja indígena, com jeito
indígena de organizar o espaço, cantos, pregação, até a sua construção. O nome dado
foi “Igreja Pentecostal Último Tempo”. Após adquirir diversidade de experiências
com a convivência entre aldeia e cidade, e por ser líder político e líder eclasial,
conseguiu estabelecer sua igreja de uma forma respeitosa. No artigo da pesquisadora
Katya Vietta está explícito como ele exercia sua função de capitania.

Ele acredita que reassume a liderança em decorrência das mudanças


de comportamento apresentadas após a conversão. No entanto, no
primeiro ano de exercício como Capitão, esta opinião não é consenso.
Pois, além de trazer a sua igreja, dá sustentação para a entrada de
outras denominações neopentecostais na reserva, suscitando um
grande descontentamento. Parentelas aliadas e de oposição
mobilizam-se para destituí-lo. Contudo, ele apresenta grande
habilidade para encaminhar problemas internos, ao mesmo tempo em
que sedimenta a sua igreja, ampliando o número de adeptos e, assim, a
sua base de sustentação. (VIETTA, 2003, p.121)
Neste sentido, há vários motivos que levaram/levam os indígenas a se
tornarem pentecostais. Não podemos esquecer da prática de catequização projetada
pelos jesuítas nos primeiros tempos da colonização portuguesa, durante os quais
tentava-se tirar dos nativos o que era mais importante na sua vida: rituais tradicionais,
rezas, danças, saberes, instrumentos religiosos, educação. Portanto, a experiência dos

175
povos indígenas com a religião dominadora e opressora é histórica. Enquanto
investiam no desaparecimento da figura do xamã/rezador, dos saberes indígenas, da
língua, dos rituais, por outro lado, os Guarani e Kaiowá criavam várias estratégias
para continuar sendo como tal e, com isso, procuravam romper a exclusão e a
invisibilização. Algumas táticas, na visão de Braz Ribeiro, representante do evangelho
cristão, que deram certo foi a adesão às igrejas neopentecostais.

Seguindo com a discussão que me propus a fazer, os pentecostalismos ou


atuais neopentecostalismos seguiram impondo ao povo uma nova forma de superar os
problemas sociais, a pobreza e, assim, buscar a “salvação eterna”. Podemos refletir
sobre as fases da instalação do neopentecostalismo nas aldeias/reservas guarani e
kaiowá. A primeira fase: a) tornar os nativos como “crentes brancos”; b) a busca pelo
“milagre” para aniquilar a religião indígena; c) afastamento dos pastores não índios da
aldeia; d) “conversão” dos xamãs/rezadores, ou seja, sua adesão à igreja; e) expansão
das igrejas. Estas fases nos ajudam a compreender as experiências dos “crentes”
indígenas mais antigos com as igrejas pentecostais. Conversei com, pelo menos, três
destes crentes. Um deles tornou-se líder Capitão.
Rorantea akue mba’eichapa romoguaheta umi hénte oiko asýva
Ñandejára rógape. Uperõ ndoroikuaa guasúi akue mba’éichapa
rojapóta ore ava portepe, upévagui karai ochuka haícha bíblia pegua
rojapo. Chamo’ako roconseguita ra’e umi karaicha ite roiko. Umíva
voi rohupytyse akue. Iporã terei ningo pe ñe’ẽ oreve...nome’ẽveimarõ
voi pe ñande reko certo voingo rotantea roñemombyry chugui.
Upéicha roaprende rojejua hağua, roora hağua, rojerure hağua
mba’éichapa rocaminhata hapépe. Entonse, che nga’u apilhala ikatu
uperupive aespusala demonio, che oração rupi avei okuerala hasýva.
Heta aconsegui jepe amoguahẽ alma Ñandejárape. (Kaiowá, 47 anos,
aldeia Reserva indígena de Caarapó, 14 de abril de 2018).
De acordo com a fala acima, percebe-se que, no início, o novo “convertido”
tinha dificuldade em lidar com a situação das demais pessoas. Sempre que alguém da
família tinha problema, logo alguém do grupo o convidava para ir à igreja, pois nela
habitava esperança e superação do problema. Como alguns que se convertiam não
sabiam muita coisa, tentavam imitar o “jeito branco de ser crente”, por isso lia na
Bíblia “sobre o pecado e sobre como buscar a salvação”. Assim, “a gente tentava sair
e nos distanciar da cultura indígena, porque a gente já sabia que não ia dar mais certo;
o pecado estava na nossa cultura, porque o próprio rezador já bebia. Na igreja a gente
não bebe, lá buscamos salvação, cura e libertação” (Isaias Rosa, 2019).

176
No início tentava-se imitar o crente não índio, mas, como Silvio Paulo
percebeu que havia possibilidade de criar o “jeito indígena de ser crente”, começou
uma nova organização de igreja. Esse jeito indígena de ser crente implicava em deixar
de lado as práticas tradicionais, como, por exemplo, as rezas, não pedir mais ajuda aos
rezadores e tampouco frequentar suas casas. Essas regras foram ganhando força na
medida em que os responsáveis as aperfeiçoaram e, para isso, usavam a Bíblia. Por
fim, ainda faltou explorar a tentativa de alguns líderes evangélicos aproximar o
neopentecostalismo da tradição indígena. Como este é um trabalho de mestrado,
ficaria mais denso para discutir essa tentativa, sobretudo se colocasse dados de campo.
Portanto, pretendo explorar mais isso no doutorado.

3.4.3 Mudança da região da igreja Deus é Amor (1999)


Uma situação que aconteceu entre o dirigente da igreja e alguns grupos que
tinham interesse de levá-la na região onde moravam, mudou a realidade dela e a forma
de organização no interior da Reserva. A localidade escolhida pelo grupo foi a região
Centro, mais ou menos próximo de onde mora agora o ex-vereador indígena Dario
Ramires, onde se localiza a Escola Indígena Ñandejára. Mesmo que tentasse
fortalecer seus adeptos nessa região, Mariana Martins esclarece que “esse grupo não
conseguiu se fortalecer porque não tinha aliança forte nessa localidade, por isso que
teve mudar onde está agora com irmão Severo”. Conforme essa minha interlocutora,
montou o grupo de Severo para fortalecer a mudança da igreja 500 metros de onde
estava. Portanto, no final de 1999, mudou para o lugar onde permanece até hoje.

O culto acontecia na casa do indígena. O pastor karai se deslocava da cidade


de Caarapó, distante 15 km, e fazia campanha de “milagre de Jesus”, com objetivos
definidos, que podiam ser a favor da comunidade, como “expulsar o demônio,
converter as pessoas, curar os doentes”, entre outros. No culto, cantava-se hinos da
“harpa cristã” e conseguia-se a adesão de muitos indígenas à igreja. O objetivo
principal era converter um número significativo de indígena ao pentecostalismo, por
isso surgiu a segunda unção de “dirigente indígena”, o qual ficava responsável para
fazer oração todo dia, para visitar os seus parentes, convertê-los e transformá-los em
cristãos, por fim, fortalecer a igreja. Por isso, o pastor da cidade não ia com frequência
à aldeia. Conforme o levantamento feito, eles iam à Reserva três vezes por semana,
em cada mês, para distribuir “santa ceia” e, quando tinha pregador vindo de São Paulo

177
ou de outra localidade, na ausência do pastor não índio responsável pela igreja Deus é
Amor, o primeiro dirigente conduzia o culto e fazia oração e organizava seus adeptos.

O dirigente da igreja geralmente era uma pessoa com capacidade de organizar


a atividade religiosa e a “família de Deus”, segundo seus adeptos indígenas. Discorro
sobre isso, pois, a partir da observação direta que fiz, desde a graduação (2012), o
dirigente conseguia manter o grupo unido e organizado. Algumas ferramentas foram
utilizadas para isso: dedicação à vida religiosa, mostrando-se bom, alegre, “avivado”,
ser exemplo de pessoa, o que inclui “não se meter em briga, tampouco xingar os
outros”. Nesse sentido, Moraes (2016) acrescenta:
A autoridade da liderança sustenta uma aceitação muitas vezes tácita,
por parte dos membros de uma Igreja pentecostal, acerca da forma
como são orientados a se comportar moral e socialmente. O líder, via
de regra, é reconhecido como alguém que tem uma capacidade
‘especial’ de se comunicar com Deus, ele é reconhecido como um
‘ungido’ (escolhido). O que lhe confere autoridade sobre os demais.
Faz-se, então, mister uma breve explanação da compreensão de
‘ungido’ (unção), presente historicamente nas várias vertentes do meio
evangélico/pentecostal, com destaque para o pentecostalismo. Ela se
fundamenta, essencialmente, na interpretação teológica de algumas
perícopes do Primeiro Testamento (1Sm 24,1-7, cf. 1Sm 26,7-11; 2Sm
1,11-14; 1Cr 16,15-22; Sl 105,12-15). Apesar de possuir
compreensões que variam de Igreja para Igreja, durante os cultos
pentecostais é mais corrente que esse termo seja utilizado para referir-
se a algum tipo de poder sobrenatural que se manifesta em uma
pessoa. Contudo, a unção não é algo aleatório, por vezes ela está
relacionada a algum tipo de vida espiritual ‘superior’ àquela dos
demais que não a possuem. Essa compreensão é conferida ao
pastor/líder da Igreja. (MORAES, 2016, p. 119)
Inicialmente esse líder era chamado de “dirigente da igreja”, pois ele era
responsável por organizar e resolver os problemas dos adeptos. Através da habilidade
em palavras, muitos fiéis o reconhecem como ungido de Deus. Entre 1994 e 1999,
destacaram-se alguns indígenas na igreja Deus é Amor, entre os quais estavam:
Severo Martins, Virginio Soares, Mariana Martins, Luiza Roza, Norivaldo Marques e
outros.

Esse momento pode ser considerado a divisão dos papeis da cabeça de


parentela, incluindo-se aí o rezador, a rezadora, jari, ñamõi (anciões):
Parece que não dava mais certo a organização do patrício na cultura,
cachaça e outra coisa entrou no meio estragou tudo. Lembro do Senõ
que falava que a gente dividida... que ia mais acreditar em nada sobre
indígena. Isso que aconteceu ao meu ver. Alguns que foram pro canto
da aldeia conseguiam manter forte isso. (Severiana Vera, 2019)

178
Conforme a conversa que tive com alguns idosos e idosas, a introdução de
violência, divisão de grupo, cachaça ocorreu devido à má gestão que alguns capitães
configuraram na Reserva. Por exemplo, na época da gestão de João Martins, houve
desmatamento, perseguição e alto índice de consumo da bebida alcoólica (cachaça).
Os desmatamento:

Começou com o Hermes aquino, que fez um acordo com o madeireiro


– a madeireira ficava em Dourados no trevo da bandeira - para levar a
madeira caída, em troca de fazer casas para as famílias. Que eu saiba,
só o hermes ganhou uma casa e não sei se mais alguém ganhou. A
Funai e o meio ambiente não se importavam. É claro que não levaram
só a madeira caída. Aí começou a serraria geral durante a noite, em
troca de muita bebida, dinheiro e até arma (se não me engano) para os
que se beneficiavam do esquema. (Fernando peralta).

Conforme Fernando Peralta, os não índios, que tinham interesse na madeira,


traziam muita cachaça ao grupo que ficava à frente da gestão da aldeia. Nesse sentido,
esses madeireiros enganaram esse líder e o influenciava a vender tudo o que a
comunidade tinha de recursos naturais, neste caso, a madeira.

Nessa época, também, Amantino e Vamor instalaram um pequeno comércio


pelas redondezas da Reserva, que vendia mantimentos e cachaça. Os indígenas que
trabalhavam na derrubada da mata iam sempre gastar nesse comércio. Há hipótese de
que havia outros pequenos comércios perto da fazenda Joha.

Desse modo, na igreja se enxergava esperança, mesmo que, durante alguns


meses, o indígena dirigente ficasse sem permissão de fazer “apelo”, pois ainda não
tinha batismo no corpo e na alma. Como o pastor Carlinho me falou:
Seus patrícios tinham muito interesse em se converter e conhecer mais
sobre a palavra de Jesus Cristo, na primeira visita a gente conseguia
reunir uns 25, assim aumentava conforme a nossa visita. Deus tem
livrado muita gente da vida errada. Então, a gente tinha que fazer
batismo dessa gente, assim eles escolheram líder.
O “apelo” significa o convite do pastor para “aceitar Jesus”, com grande
eloquência apelativa, além da possibilidade de sair do “mundo de sofrimento”. Para
isso usam-se expressões como: “Deus te ama, Ele tem plano em sua vida, ele
derramou sangue por ti e por nós, entregue sua vida para Jesus, não deixa para última
hora; deixa fazer parte da sua vida”. Deste modo conseguiam converter três a seis
pessoas na mesma noite, durante o culto.

179
Assim esperava-se que a igreja tivesse número expressivo de adeptos
indígenas para receber o batismo pentecostal. O primeiro batismo aconteceu em 1995,
ocasião em que havia ajuda de custo para levar de carro as pessoas à represa da cidade
para o ritual. A partir daquele ano começou a ter pregação sobre a “oferta”
(contribuição econômica) e sobre o dízimo, pois os pastores não indígenas perceberam
que seria possível obter ajuda dos próprios indígenas.

É comum alguns grupos frequentarem a igreja pelo menos dois ou três meses
e depois se “desviarem” (se ausentarem), porque o sistema de vida que lhe foi
atribuído não fazia sentido naquele momento. Na conversa com o pastor Severo, ele
esclareceu que a primeira regra para seguir bem o “caminho de Deus” é “deixar a
vaidade do mundo de lado, esquecer de tudo”. Nesse sentido, como mencionei acima,
os grupos se sentiram forçados a abandonar alguns hábitos importantes para eles, entre
os quais estão: rezas, benzimentos, conhecimentos sobre remédios tradicionais, entre
outros vinculados ao teko ymaguare, teko marangatu ou teko katu.

O “apelo”, conhecido hoje pela maioria, é considerado momento importante


de se fazer, em que se consegue “ganhar alma para Jesus”, dependendo do momento
das pessoas. Como mencionei acima, no início, o indígena dirigente ainda não podia
fazer “apelo” durante o culto; todavia, como ele já se destacava, conseguia atrair
muita gente à sua igreja, o que impressionava o pastor não índio. Mesmo que, naquele
momento, não atingisse a qualidade da “pregação” do pastor de fora, já usufruía da
eloquência indígena - que é característica da oralidade dos Guarani e Kaiowá -
convencendo os ouvintes de que havia um caminho diferente a ser seguido.

A conversão dos indígenas ao pentecostalismo também foi ganhando força,


porque o próprio “dirigente indígena” era “cabeçante” (intermediário de contrato de
mão de obra) que levava 45 homens à usina de álcool, por 70 dias ou 90 dias. Lá ele
aconselhava a turma de acordo com a Bíblia. Como a maioria dos homens, segundo
um pastor kaiowá que foi cabeçante durante muitos anos, “queria muito vencer os
problemas do mundo, então a gente apresentava para eles que só através de Deus
conseguiriam vencer todos esses problemas, por isso eles se convertiam”. Contou que
“começaram a ser converter e faziam culto no próprio alojamento”. A partir daí,
começaram a se espalhar pela Reserva “os pontos de pregação”. Esses homens que se
tornaram pentecostais eram moradores de várias regiões da aldeia. Nos “pontos de

180
oração” chamavam o pastor da cidade para pregar a “palavra de Deus”, e assim mais
pessoas aderiam à igreja.

Na conversa com Osvaldo Barbosa, ele destacou como tem analisado a sua
vida na Reserva e a dos seus colegas evangélicos:
É... acho que vou falar pra você em Português. Não sei se é bom, mas
vou falar. Meu Guarani é um pouco fraco. Não tenho estudo como
vocês. Eu ia sempre a usina, desde que sou guri, não tinha muita coisa
pra mim fazer aqui, a vida nossa era triste, então, a gente era
perseguido por ser assim. Na usina eu conseguia trabalhar, consegui
ganhar dinheiro...eu voltava na aldeia e gastava com besteira,
né...bebendo, arrumando confusão, pra mim não era vida. Eu me
converti já 18 anos, acho que 18 anos, não lembro muito bem, às
vezes desviei um pouco, sempre volto.
Conforme Osvaldo Barbosa, quando alguns homens indígenas não tinham
perspectiva de vida, sempre procuravam um meio de sobrevivência, neste caso, na
usina de cana. Eles conseguiam se fortalecer desde que o pastor/cabeçante conseguisse
convencê-los a “aceitar Jesus em suas vidas”, expressão usada pelos “crentes”
indígenas.

Não demorou muito para a comunidade saber mais sobre o evangelho


pregado pela igreja. Assim facilitou, rapidamente, a proliferação religiosa e se
espalhou pelas regiões da Reserva de Caarapó. A Igreja Deus é Amor, na visão de
alguns adeptos mais antigos, mostrou-lhes o “verdadeiro caminho de Deus”. Isso
fortalecia a intolerância religiosa, levando seus adeptos a queimarem as casas de rezas
e, na maioria das vezes, agrediam os rezadores que continuavam praticando suas rezas
e saberes ancestrais. Portanto, a igreja pentecostal Deus é Amor (e as outras também)
se mostrava coerente e sabia atrair os indígenas às suas regras, mesmo que à custa da
violência contra os próprios parentes ou vizinhos do mesmo povo, incitados por
velhas ideologias coloniais alienígenas que querem nos destruir por dentro e por fora.
Diferentemente das demais aldeias, na Reserva Indígena de Caarapó, a igreja se
instalou no centro, como é considerado hoje pela comunidade.

A localidade escolhida pelos adeptos da Deus é Amor, facilitou a transição de


muitas pessoas que moram em várias regiões da Te’yikue: vinha gente das regiões
Savera, Mbokaja, Missão Loide, Yvu e outras.

O centro da aldeia, onde reside a maioria das pessoas das famílias Paulo,
Benites, Marques, foi alvo principal das atividades de “conversão”. Como alguns
homens das demais regiões tinham contato com a igreja na usina, a expansão dos

181
“fiéis” foi em meados de 2000. A região Saverá ganhou destaque por ter sido
considerada a região mais violenta.

Cada novo “convertido” convidava seus parentes que estavam enfrentando


problemas na vida, os levavam para assistir o culto e não demorava muito para
também se tornarem adeptos desta religião neopentecostal.
No início a gente se sentia mais ativo no evangelho. Queríamos muito
salvar as pessoas da vida errada, da morte, da pobreza. A gente ouvia
pregação sobre Jó, isso fortalecia a gente. Então, a gente convidava os
nossos parentes para chegarem na igreja, íamos de a pé mesmo, daqui
do Saverá até o centro. Não sentimos cansaço. Era só alegria. Quando
conseguimos converter nossos parentes, a felicidade é grande. (Jose
Lescano, 2019).
A seguir descrevo mais sobre as práticas litúrgicas que a igreja Deus é Amor
priorizava durante o culto.

3.5 Práticas litúrgicas da Deus é Amor e suas diferenças


Vale destacar que cada igreja de uma aldeia/reserva diferencia-se uma da
outra, pois cada dirigente prioriza as práticas litúrgicas conforme seu entendimento, e
as aperfeiçoam conforme as demandas dos adeptos. Por exemplo, em 1994, segundo
Mariana Martins, priorizavam-se apenas canções que tocavam na “rádio da voz da
libertação”71. Embora alguns indígenas não tivessem acesso ao rádio, o pastor
conseguiu doar um para o dirigente da igreja ouvir e, assim, aprendeu canções “em
forma de oração” da Deus é Amor. Enquanto nas demais aldeias indígenas era
permitido aos adeptos de outras igrejas usarem canções e orações da Missão Caiuá em
língua Guarani, no caso da Deus é Amor, da Te’yikue, nada era permitido, nem em
Guarani. A justificativa foi que seus adeptos estariam copiando o jeito de ser crente da
Missão Caiuá, pois, afinal, “tínhamos que ter um jeito diferente das demais igrejas,
por exemplo da Missão, somos pentecostais, por isso temos que fazer diferente e
alcançar o poder de Deus” (pastor Kaiowá da Te’yikue, converteu-se em 2000).

Durante o culto, os bancos já estavam organizados para os homens sentarem


de um lado e, de outro, as mulheres sentarem. A organização de bancos, da limpeza e
outros serviços, quem executa são “obreiras” (geralmente mulheres, mas não só).
Como é comum na Deus é Amor, o culto inicia às 5 horas da tarde, com oração de
uma hora e meia, algumas vezes só de uma hora. O “cooperador”, como é chamado
pelos dirigentes da igreja, é um “obreiro” que está em fase de estágio, por isso fica
71
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%A1dio_Deus_%C3%89_Amor. Acesso em: 22 de
fevereiro de 2020...

182
sempre responsável por iniciar a oração. Após isso, ele entrega a direção para outro
“obreiro”, que distribui tarefas para alguns novos “convertidos” e para outros
membros, que têm a oportunidade de narrar “testemunho”, “milagre” ou “livramento”.

Nesta primeira sessão, conforme os depoimentos, os “crentes indígenas têm


liberdade para expressarem sobre suas vidas, chorar, orar, contar o que realmente
sentem depois que receberam as transformações de Deus, visto que já se sentem
libertos de todos os males do mundo e dos pecados”. Uma das falas que registrei
durante a pesquisa, eles ou alguns utilizam as seguintes palavras:
Testemunho 1: Irmão kuéra, meus irmãos, Deus transformou minha
vida, eu não sabia mais o que seria de mim, eu vi a minha vida perdida
nas trevas, sem rumo, sem esperança, mesmo que alguns falassem
para mim que esse jeroky ou rezador ajudava, mas eu vejo que isso é
apenas perdição também, porque hoje só o caminho de Deus pode nos
ajudar a vencer a vaidade do mundo, só ele pode nos curar, dar
riqueza que nunca vai acabar.
(Testemunho 2): Deus livrou minha vida de acidente, onde a feitiçaria
quase que teve força em minha vida e na vida da minha família, esses
dias eu fui na cidade e quase que o carro me atropelou, mesmo que a
feitiçaria desses que rezam tenham força aqui, mas na minha vida e
nas nossas vidas nunca vai ter, porque Deus é maior que eles e a gente
vai orar para queimar todas as obras da bruxaria.
Conforme o “testemunho” de adeptos da igreja Deus é Amor, fica claro como
eles frisam sobre feitiçaria, sempre procuram usar a expressão “queimar com sangue
de Jesus as obras de bruxarias”, sempre abrem oportunidade para esse tipo de
testemunho, pois entendem que só assim poderão “tocar na vida” das demais pessoas
que estão no culto e, quem sabe, convencê-los a “aceitar Jesus”. Também narravam
testemunho sobre o que os adeptos da igreja pentecostal chamam de “prosperidade”,
destacando o sacrifício que as pessoas precisam fazer para alcançá-la, como, por
exemplo, frequentar culto, orar de madrugada, fazer “campanha” (já explicado em
página anterior), ser dizimista, ofertante e, ao mesmo tempo, convencer os parentes de
visitarem a igreja.

Os “testemunhos” para as igrejas indígenas são importantíssimos não apenas


para conseguir mais adeptos, mas para o fortalecimento espiritual das pessoas que
narram, assim provocarão mobilização nas demais pessoas também, como me disse
Isaias Rosa (líder evangélico). “Desde a metade da década de 1980 os pastores
brancos, como conta a minha mãe Luiza Rosa, viram nos indígenas que gostavam de
contar suas histórias, então os instruíam a trabalhar nisso no processo de conversão”
(Isaias Rosa). Hoje, boa parte dos evangélicos indígenas ampliaram suas redes de

183
“estratégias de conversão”: eles preferiram sair da ideia de que só na igreja poderiam
contar o “testemunho” e a sua história; passaram a “testemunhar” na roda de terere,
quando estão no meio do que eles chamam de “católicos”, ou quando estão entre
membros de outras igrejas da Reserva. A narrativa indígena na hora de “testemunhar”
segue, geralmente, quatro questões básicas, feitas pelos líderes evangélicos: “O que
fazia no mundo antes de se converter? O que te motivou a chegar à igreja? Quais são
as vaidades do mundo? Como está sua vida agora?” Por isso, na hora do culto, a
maioria dos líderes evangélicos já sabem como proceder.

Na segunda parte do culto da igreja Deus é Amor é reservado para as pessoas


cantarem. Os adeptos escolhem canções de incentivo “para ganhar almas para Jesus”.
Embora a letra das músicas sejam doutrinárias e disciplinadoras, contudo, sempre
conseguem fazer com que as pessoas da igreja sintam-se preparadas para receber a
mensagem do pregador que vem a seguir.

Ainda nessa segunda sessão de cantos, o “corinho” é sempre mais atrativo


também durante o culto, até porque alguns sempre conseguiam cantar o hino que seria
ideal, por isso que repetia o corinho que já foi cantada por outros. (A terceira sessão
do culto é reservado para o momento da “pregação”72. Dependendo do dia da semana,
as mensagens do pregador indígena são sempre voltadas para a morte de Jesus.
Segundo um pregador da igreja, “Jesus Cristo deu a vida pela humanidade, por isso
mesmo teríamos que entregar a vida para Ele”. Vale lembrar que a mensagem varia
muito cada dia da semana; por exemplo, na sexta-feira, a mensagem sempre se
diferencia dos demais dias da semana, pois nesse dia prega-se sobre feitiçaria, doença,
pecado, quando as pessoas são batizadas de “cura divina” e recebem “cura,
livramento, milagre”. Portanto, o pregador sempre tem a liberdade de “revelar”
durante o culto e a pregação, e ele também dá a oportunidade aos demais membros da

72
Na linguística usa-se o verbo pregar para fixar alguma coisa e também no sentido de alardear,
passar ensinamentos, dizer palavras boas, passar mensagens, dar conselhos, fazer advertências,
pregar justiça, fazer sermão, divulgar o evangelho, e também no sentido negativo: pregar coisas
ruins, pregar o ódio, mentiras/fakenews, o preconceito, a exclusão. (
https://www.dicio.com.br/pregar/ ) Então, uma “pregação” pentecostal tem muito a ver com a
habilidade de usar as palavras com a finalidade de convencer (é o “apelo”) as pessoas a se
envolver pela mensagem evangélica, que é carregada pela força do tom da palavra do pregador.
Isso também é uma habilidade própria da oralidade dos Guarani e Kaiowá, para quem a palavra
é a própria alma que toma assento no corpo da pessoa, quando ela recebe seu nome, ao ser
batizada (ñemongarai). (Informações fornecidas pela professora Veronice Rossato).
184
igreja que tenham o “dom da revelação”. Geralmente o culto da Deus é Amor na
Reserva vai até 21 horas.

E, durante este “sermão”, o pregador tem a liberdade de pedir “voto” e


também a “oferta”. Para ter êxito na arrecadação de dinheiro, sempre falava que Deus
é dono da prata e do ouro, “pois quem doa com bom coração não precisa se
preocupar”. Segundo alguns pregadores indígenas, no futuro essa pessoa poderá
receber em dobro e ficar protegido de toda a maldade do mundo.

Outra organização desta igreja, importante a ser destacada, é sobre as


“campanhas”. Cada “obreiro” fica responsável por “levantar campanha” um dia da
semana, que geralmente é de sete dias. O responsável tem que alcançar os objetivos:
“ganhar a alma para Jesus, convencer de novo os desviados a chegarem à igreja,
trabalhar em prol da prosperidade, dos dons, combater a feitiçaria”, entre outros. Os
dias de sexta-feira e sábado já são reservados para os dirigentes da igreja “levantarem
campanha”, pois são os dias mais importantes para mostrar “poder de Deus e
milagre”73, sendo, então, reservados aos mais experientes.

Alguns pastores passaram a trabalhar em prol da conversão dos Guarani e


Kaiowá, em negociações com o Capitão e com a cabeça da parentela. Naquela época,
os moradores da Reserva buscavam, junto ao Município e ao Estado, melhorias nos
serviços, sobretudo na área da saúde e da educação, para o bem-estar do coletivo, com
transporte coletivo, com postinho de saúde adequado e construção de habitações
populares. Outros que ansiavam por respostas e consolo eram relacionados aos seus
problemas pessoais/comportamentais, familiares, psicológicos e espirituais cotidianos
e, por isso, as igrejas que promoviam celebrações religiosas, com base na emoção e na
oração, foram consideradas como lugar perfeito para acolhê-los.

A história da expansão das igrejas pentecostais nas reservas ou aldeias


indígenas é explicada de várias formas pelo próprio indígena guarani e kaiowá que
conviveu com vários problemas, no mínimo injustos, nessas áreas. Como pesquisador
indígena, sendo morador da Reserva Te’ýikue, tenho me esforçado para entender sobre
a expressão religiosa que surgiu durante esses 37 anos de evangelização cristã neste
local, denominada neopentecostalismo. Não se circunscreve apenas à história das

73
Expressão usada pelos indígenas pentecostais.
185
diferentes igrejas indígenas que surgiram ou das formas de seguir, que cada dia são
formadas, transformadas e multiplicadas na minha aldeia (che aikohape).

3.5.1 A expansão das igrejas que permaneceram até hoje


Como a maioria da comunidade estava enfrentando muita dificuldade,
resolveu se aproximar mais da igreja. O preconceito ficou mais intenso em 2000,
segundo os moradores mais antigos da Reserva, como Lauriana Escobar e Florencio
Barbosa. Conforme eles, o número da população aumentou nessa época, então,
também aumentaram as dificuldades. Neste caso, algumas famílias iam sempre pedir
alimentos pela cidade; portanto, na opinião dos dois, isso fez com que os não índios
pensassem que os Guarani e Kaiowá fossem incapazes de produzir progresso e
também desconheciam suas realidades, de fato. Os indígenas eram vistos como
preguiçosos, incapazes e bêbados. As pessoas tampouco tinham coragem de dar-lhes
algum serviço, pois os viam como “perigosos”. Portanto, raramente se via, entre 1997
a 1999, na cidade Caarapó, homem indígena trabalhando. Era na igreja que, conforme
o pastor Isaia Rosa, os indígenas notavam a possibilidade de ganhar espaço de
visibilidade/reconhecimento, pois alguns evangélicos não índios se aproximavam
deles, conhecendo mais a realidade. Ainda segundo Isaia Rosa, desde então,
começaram a divulgar, durante culto na cidade, que “um povo aderiu ao evangelho”.
Desse modo, despertaram a curiosidade sobre a conversão indígena ao
pentecostalismo.

O ano de 1999 eu chamaria o tempo da divisão, quando alguns com outras


prioridades decidiram levar a igreja para a região central da aldeia, como já descrevi
em tópico anterior. Isso aconteceu porque o dirigente não conseguia mais atender as
demandas de vários grupos indígenas. Segundo Mariana Martins e Severo, nessa
época, o número de fiéis era de, aproximadamente, 400, e vinham de várias regiões da
aldeia. Assim sucedeu-se a divisão de igreja, pois cada família almejava fortalecer o
seu grupo, criando outra aliança com os pastores não índios.

A igreja Deus é Amor, a maior na aldeia, conta com, aproximadamente, 550


adeptos e 15 pontos espalhados pelas regiões. A criação dos pontos iniciou em 2012,
quando Norivaldo Marques decidiu facilitar a transição dos adeptos durante a semana
pelas igrejas. Enquanto os 15 dirigentes trabalhavam “em prol das almas” e, ao
mesmo tempo, agregavam à igreja o maior número de pessoas possível - afinal, o
ponto estratégico sempre foi a família -, facilitava, assim, o fluxo de gente durante o

186
culto da semana. Na imagem abaixo está o maior templo da aldeia Reserva Indígena
de Caarapó e conta com um pastor indígena que coordena a sede e 15 pontos.
Foto 8: Maior Templo da Deus é Amor na Reserva de Caarapó

Fonte: https://web.facebook.com/ipdaaldeiateyikue.caarapo

As demais igrejas começaram também a se proliferar a partir de 1999. O


Isidio, que era da igreja Deus é Amor, começou a trazer outro “ministério” eclesial, a
Assembleia de Deus. Permaneceu poucos meses, pois não conseguiu manter o ritmo
das duas, Último Tempo e Deus é Amor. Conforme a entrevista que fiz com dois
dirigentes mais antigos, as duas igrejas somavam, aproximadamente, 530 integrantes
indígenas.
Foto 9: Primeiro batismo de indígenas realizado pela Igreja Deus é Amor

187
Fonte: Mariana Martins

Naquele ano começaram a receber o “batismo do Espírito Santo”, quando os


indígenas falavam uma língua estranha. “Foi encontro com Deus, eu me sentia mais
fortalecido para ser de Deus” (Severo, 2019). Desde então, os adeptos destas igrejas
fortaleciam mais seus grupos, contando “testemunhos”, em que salientavam o
“encontro espiritual que tiveram com os espíritos de Deus”.

Depois de Isidio, ninguém mais se atrevia muito em aderir a outro


“ministério”. Os fiéis pentecostais frequentavam estas duas igrejas com sacrifício, iam
a pé, de carroça ou de bicicleta e se reuniam em grupo para enfrentar a estrada.

Desse modo, as igrejas que foram mais consideradas e frequentadas se


localizavam entre centro e Mbokaja. Até 2002, só havia as igrejas Deus é Amor e
Igreja Último Tempo, consideradas destaques pelos moradores da Te’yikue. Nesse
mesmo ano, o ponto de pregação da igreja Último Tempo, localizada na região
Mbokaja, foi incendiada. Até hoje não se sabe qual o motivo do incêndio.

Em 2004 instalou-se, com apoio de Cornelio Rosa, a Igreja Pentecostal Deus


é a Verdade, quando o pastor Luiz trouxe grande mudança para a região. No início de
2006, a igreja já contava com, aproximadamente, 260 adeptos. A igreja precisou ser
ampliada fisicamente e os mais jovens se prontificaram a ajudar o dirigente. Vale
salientar que, até então, o responsável pela igreja era chamado de “dirigente”. Assim
construíram uma igreja de sapé. Dessa forma, os dirigentes investiam muito na
conversão dos “malucos”, usuários de drogas, considerados pela comunidade como
“perdidos”. Ele sempre falava na igreja: “temos que orar e chamar esses que eram
nossos parceiros para igreja, parceiros do mundo”. Por meio de “campanha, vigília e
testemunho, conseguiram converter alguns parceiros do mundo” e, assim, essa igreja
foi muito respeitada, pois sempre conseguia “converter pessoas sem esperança e
violentas”.

Depois de 8 anos, essa igreja abriu um “ponto de pregação” na região Savera,


pois conseguiu fortalecer três famílias que não mais frequentavam uma igreja da
Reserva. Dessa forma o pastor indígena determinou que o culto acontecesse só alguns
dias da semana, pois sexta-feira e sábado, os adeptos dos três pontos tinham que ir na
sede, que fica na região Mbokaja, e também no dia da “santa ceia”, que geralmente
acontece no domingo.

188
Geralmente, quando se conseguia converter um maior número de pessoas, no
caso, os “maluko kuéra”, a igreja passava a ser referência para a comunidade, e o
dirigente conseguia acessar várias informações sobre algumas famílias, “com
pregação e testemunho”. A expansão das igrejas pentecostais pelas regiões da aldeia
iniciou, de fato, em 2010. Já contava com 9 congregações de diferentes denominações.
Só na região Mbokaja, nesse mesmo ano, já havia 4 igrejas de diferentes nomes ou
ministérios e até 2017 já tinha 8 igrejas, sendo que uma é ponto da Deus é Amor. Cito
as igrejas Deus é Amor, Primeira Igreja de Deus, Pentecostal Missão de Deus,
Pentecostal Indígena de Jesus é o Caminho, Pentecostal Indígena de Jesus, Igreja
Batista, Deus a Verdade e Pentecostal de Avivamento.

Assim, até 2017, já havia 15 pontos da Deus é Amor. Somando com mais 17
igrejas, a Reserva de Caarapó já contava 32 denominações. Conforme a pesquisa de
Eliel Benites (2014, p.48), os representantes são:
Cacildo, dirigente da igreja Deus a Verdade; Alécio Ramires,
dirigente da igreja Pentecostal Indígena de Jesus é o Caminho;
Samuel Araújo de Oliveira, dirigente da igreja Monte Sinal de Cristo;
Teodoro Martins, dirigente da igreja Ministério da Palavra de Jesus;
Acário Cavanha, dirigente da igreja Assembleia Madureira; Cornélio
Soares, dirigente da igreja Primeira Igreja de Deus; Genésio Paulo,
dirigente da igreja Pentecostal Igreja de Jesus Cristo; Vanildo
Martins, dirigente da igreja Pentecostal Missão de Deus; Donizete
Ribeiro, dirigente da igreja Pentecostal Arca do Concerto; Silvio
Paulo, dirigente da igreja Pentecostal do Último Tempo; Ligô Sanche,
dirigente da Igreja Pentecostal Jesus é a Luz; Eugenio Martins, pastor
da igreja Presbiteriana Independente, da Missão Evangélica Caiua;
Roberto Soares, dirigente da igreja Pentecostal Indígena de Jesus;
Fabiano de Souza, dirigente da igreja Pentecostal Só o Senhor é Deus;
Mário Morais, dirigente da igreja Pentecostal Amor de Deus; e João
Ávalo, dirigente da igreja Pentecostal de Avivamento.
Como o tempo de pesquisa foi breve, não pude colocar todos os nomes das
igrejas da Reserva que se instalaram e depois se desvincularam, por conta da escolha
de algumas parentelas indígenas. Essa escolha ocorria quando a igreja tinha recurso
para oferecer aos membros da família do líder evangélico, e quando tinha força para
convencer as demais pessoas a se “converter” à igreja. Na explicação do líder
evangélico Cornelio Rosa, “esta força é quando o pastor branco consegue mostrar o
poder de Deus e se fortalecer e, com isso fortalece o líder da igreja”. Ele continuou
dizendo que “isso também ocorre quando se tem uma doutrina definida, então instalar
igreja por instalar sempre não dá certo porque, primeiramente, tem que ter esse
diálogo entre pastor karai e indígena”. Então, descrever todas que entraram na reserva

189
e saíram demandaria mais tempo. Sendo assim, descrevi apenas sobre algumas para
poder dar conta de discutir o tema.

Ao considerar a evangelização cristã dos indígenas guarani e kaiowá e a


formação dos crentes pentecostais74 nas oito reservas, entre 1980 e 2017, é difícil
supor que os primeiros pastores não índios que adentraram a Reserva Te’ýikue para
evangelizar, há quase 37 anos, imaginariam a possibilidade de, um dia, a maioria dos
indígenas se tornar evangélicos. Desde 1994 até 2014, o número de “crentes” foram
de 1 a 230, os “desviados” que saíram da igreja foram 398, o número de pessoas que
acreditam nas igrejas pentecostais ou neopentecostais é de 260 pessoas e as que
frequentam sem convicção são cerca de 280 por mês. Esses dados montei conforme as
falas de seis pastores indígenas mais antigos, que se converteram a partir de 1994,
1999 e 2002, das quatro regiões populosas da Reserva. Estes dados até o encerramento
desta pesquisa, já poderão estar desatualizados.

De fato, todo catequizador pentecostal da igreja Deus é Amor, criada em


1960, possui uma pregação expansionista, conforme o que se vê nos dados
demográficos das últimas décadas, indicando o aumento dos adeptos deste segmento
religioso. Mas isto significa que, em pouco tempo, teremos uma maioria “crente”
indígena pentecostal ou ex-crente pentecostal? Essa pergunta me foi feita pelo NEABI
(Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro e Indígena) quando proferi palestra em São Paulo,
em 2018. A princípio, tentei responder de acordo com a pesquisa que eu vinha
fazendo. Considero um exercício arriscado em um contexto cuja característica é a
própria mutação. Creio que as dificuldades e/ou “intempéries” do mundo ocidental
alcançam extensões em todos os territórios indígenas, inclusive no dos Guarani e
Kaiowá, desestruturando âmbitos de trabalho, saúde, educação, segurança, habitação,
cultura, escola, bem-estar, religião própria, espiritualidade, organização, economia,
alimentação, gerando empobrecimento, dependência. Mas, ao mesmo tempo, os
Guarani e Kaiowá são impulsionados a resistir a todo custo, apesar do descontrole do
racismo, da intolerância, do discurso de ódio, da violação de direitos. Mesmo assim, o
povo abraça a readequação de sua benesse histórica e espiritual no âmbito de suas
experiências de resistência, refazendo suas vidas ameaçados.
74
Cabe registrar aqui como a maioria dos evangélicos indígenas se identifica. Ao questionar
homem e mulher sobre se eles são “crentes” ou de como eles se autodenominam, sempre
ouviremos afirmações do tipo: “Che ha’e crente pentecostal...Igreja pentecostal ygua voi che”.
Tradução: Sou crente pentecostal ... Pertenço à igreja pentecostal.

190
A seguir reproduzo as localizações das igrejas das regiões Missão, Sãka Pytã
e Mbokaja.
Foto 10: Regiões Missão, Sãka Pytã e Mbokaja

Fonte: Google Earth

Até 2017, a região Missão, como é conhecida pela comunidade da Reserva,


já contava com mais 11 igrejas de diferentes denominações. Percebe-se que, no mapa
acima, não coloquei a localização de duas igrejas, mas estão localizadas na margem da
rodovia 280. Nessa região localizam-se duas igrejas que pertencem ao grupo maior da
comunidade, mas são frequentadas pela parentela Kaiowá: Missão Caiuá e Ponto 2 da
Deus é Amor (as duas são da Deus é Amor?) que contam com um dirigente). As
demais igrejas já pertencem às parentelas e são frequentadas por elas. Durante cultos
da semana contam com 20 a 45 pessoas. Às sextas-feiras esse número é maior,
podendo chegar a 50 pessoas.

Foto 11: Localização das igrejas da região Sãka Pytã e Mbokaja

191
Fonte: Google Earth

Quero destacar que ainda há famílias indígenas na Reserva de Caarapó que


nunca experimentou o evangelho cristão e tampouco frequentou uma igreja. Por isso é
precipitado pensar que a maioria será um dia “crente”. Mesmo que os Guarani e
Kaiowá tenham aderido a alguma igreja evangélica ou pentecostal, podem se tornar
grandes líderes tradicionais, adquirindo a mesma habilidade de um rezador antigo;
aliás, isso vem ocorrendo na Reserva. Às vezes aquele pastor que sempre atacava o
papel dos rezadores pode se tornar um líder “político”, denominado de Capitão, pode
relembrar as rezas que ouvia durante sua infância ou mesmo na juventude, pintando-se
com pintura tradicional e vestindo roupas típicas dos ñanderu e até participar de rezas.

Essa experiência não é adquirida num vazio social, porém se configura e


altera-se como parte intrínseca da dinâmica social vivida, conforme o pastor Luiz, da
Igreja Deus é a Verdade, adquirindo contornos e modalidades específicas de se
espalhar. Isto se configurou ao longo dos anos, durante as diferentes fases de
“conversão” dos Guarani e Kaiowá na Reserva Indígena de Caarapó. Nesse sentido,
também, as funções e a importância dos ñanderu e das ñandesy se alteravam.

A seguir reproduzo a ampliação da localização das 22 igrejas, das regiões


Missão, Sãka Pytã e Mbokaja. Percebe-se que só há dois pontos da igreja Deus é
Amor, ponto 2 e 3.
Foto 12: Localização das igrejas nas regiões Missão, Sãka Pytã e Mbokaja

192
Fonte: Google Earth

3.5.2 Convivência entre líderes tradicionais e pentecostais: tensionamentos e


cooperação
Pretendo fechar o trabalho desta pesquisa descrevendo como os líderes
pentecostais se relacionam com a escola, com as agências de fora que atuam na
Reserva e com os líderes tradicionais. Discutirei, também, como os líderes tradicionais
se relacionam com as instituições que atuam na Reserva.

Na visão de alguns indígenas evangélicos, os pastores guarani e kaiowá


perceberam que atacando sistematicamente os rezadores e praticando intolerância
religiosa contra eles e também contra a escola não daria certo. Então começaram a se
aproximar mais dos professores indígenas, dos gestores da escola, participando de
reuniões escolares, do Fórum Indígena, que acontece anualmente, e foram abrindo
mão de algumas regras que impediam os alunos de participar de atividades escolares.
Sendo assim, conforme o pastor Isaias Rosa, os líderes pentecostais procuraram
entender o seu real papel na comunidade e melhorar suas doutrinas.

Essa aproximação de líderes evangélicos da escola indígena ocorreu desde


1997, com Silvio Paulo que, na época, era liderança Capitão, justamente quando a
escola começou pelo processo de mudança para escola indígena diferenciada
específica e bilíngue. Os elementos que faziam este líder se aproximar era justamente
para sair da invisibilização e ter reconhecimento, conforme a análise do pesquisador
Eliel Benites (2014), conforme eu também pude notar. Silvio Paulo participava
ativamente da discussão para a construção do currículo da escola indígena, nesse caso:

193
Constituiu-se então, um trabalho integrado das instituições com a
participação da comunidade indígena, no processo de discussão da
construção do currículo da educação escolar indígena. Iniciaram-se
discussões intensas entre os anos de 1997 e 1998, por região da aldeia,
tais como Saverá, Ivu, Mbokaja, Missão e Ñandejára, coordenado
pelas lideranças com assessoria dos parceiros. Os parceiros ou
assessores, como eram chamados, ouviam e provocavam a
comunidade, faziam questionamentos que nos levavam a pensar sobre
a realidade e os valores tradicionais. (BENITES, 2014. p. 80)
Diferentemente de muitas aldeias indígenas, desde 1994 não se encontra em
Te’yikue o histórico de um Capitão que não seja evangélico ou que tenha se desviado
da igreja após essa função. É muito comum esse líder ter seu parente ou seu aliado
atuando na escola, seja como professor, coordenador, ou ocupando algumas funções
na escola indígena.

No levantamento empreendido na escola indígena, desde 1999, a liderança


pentecostal e também líder Capitão que iniciou a discussão sobre educação escolar
indígena sofreu duras críticas por partes dos demais líderes das outras igrejas
pentecostais da Reserva. Conforme um inspetor da escola e “ex-crente” de uma igreja
pentecostal, seu papel era considerado escandaloso, pois há dirigentes e atuais
pastores mais conservadores que ainda defendem que “os crentes não podem se meter
em política”. Conforme a conversa que tive com dois destes pastores conservadores da
Te’yikue, eles afirmaram que a igreja desse líder “não tem doutrina, nem obra de
Deus”. Pelo que consegui entender da fala deles, os dois estavam se referindo à
participação do antigo Capitão e pastor nas reuniões e na sua representatividade fora
da igreja. As igrejas evangélicas pentecostais e suas derivadas - Deus é Amor e Igreja
Último Tempo - são as que detêm maiores espaços políticos na Te’yikue, formando
vários líderes que passaram pela gestão principal da aldeia, ou, como se refere a
comunidade, pela “capitania”. A característica mais rígida por parte da igreja Deus é
Amor, fez com que o Capitão, que era desta igreja, se afastasse dela durante sua
gestão. Nesse tempo ele buscou se aliar ao gestor da escola, de algum representante da
educação escolar indígena, do vereador e de algum político de fora da Universidade.
Então quando ganhei para ser Capitão da aldeia que entendi sobre o
meu papel como líder e como cidadão, até porque quando eu estava na
Igreja Deus é Amor, me dedicando cada vez mais a Deus e servindo-
lhe com toda força, eu não conseguia entender como é a gestão da
aldeia, muito menos de como funcionava a política. Vejo que a
própria igreja deixava a gente no escuro, digo escuro porque a gente
ficava sem entender o que estava acontecendo pela nossa aldeia. Lá na
igreja ouvíamos sempre sobre o ensinamento de Deus, só o que os

194
responsáveis gostariam que a gente ouvisse e aprendesse. (Fala de um
ex Capitão kaiowá que foi eleito com 500 votos).
Assim, os líderes evangélicos começaram a entender mais sobre a
importância de ocuparem o espaço político da aldeia, e também perceberam que só
assim poderiam dar mais visibilidade ao seu papel:
Para mostrar aos defensores das questões indígenas a nossa existência,
afinal, durante muitos anos, nós não aparecemos na história. Enquanto
que surgiam vários representantes, nós evangélicos ficávamos sempre
para trás, parece que ninguém queria ligar para nossa existência.
Depois que ficamos sabendo de que a gente não deveria apenas salvar
a alma para Deus, mas sim ocupar também o lugar que a gente tinha
medo de ocupar, mas percebemos que só assim também poderemos
nos fortalecer. (Representante evangélica da Te’yikue, Kaiowá).
As igrejas pentecostais possuem força para realização de cultos, para cobrar
dízimos, punir seus membros, criar suas regras diferenciadas das demais e para
espalhar pequenos templos nas regiões em que até então não havia igrejas, desde que
seus representantes ocupem gestão de capitania na Reserva. O interesse dos “crentes”
e de seus líderes pelo cargo de capitania está ligado diretamente ao fortalecimento do
seu grupo e para ocupar o lugar de fala, como aponta a fala do reprentante
entrevistado acima.

Perante as inúmeras dificuldades e por ter consciência de que o líder Capitão


precisa saber as rezas e os saberes indígenas, um Kaiowá e ex-Capitão procurou várias
vezes os rezadores da aldeia:
Uma vez fui numa Aty Guasu [Assembleia Guarani Kaiowá] e
algumas lideranças das demais aldeias estavam rezando, e eu um
crente pentecostal não sabia nem uma reza e dança, afinal, a minha
dedicação foi sempre para ser crente fiel. Então ali percebi que a gente
tinha que saber ou procurar aprender de novo nossa cultura, por isso
em outras reuniões que eu ia já perguntava aos rezadores que estavam
ali sobre rezas, danças, histórias indígenas, ao mesmo tempo em que
me ensinava já começavam rezar em mim...ouvi dizer que eu estava
precisando me reencontrar de novo com a minha espiritualidade, até
porque ante de me tornar Capitão, eu não atacava muito esse tipo de
coisa, mas quando me tornei Capitão percebi que eu tinha que saber
das coisas....nao adiantava apenas usar cocar e dizer que é
representante indígena, tem que saber pelo menos de alguma coisa.
Desde então tentei de alguma forma procurar mais o rezador que tem
na nossa aldeia e perguntar mais para ele sobre sua aldeia e sonho. Sai
de capitania porque eu acho que ainda preciso me preparar mais, ao
mesmo tempo em que estou procurando amadurecer, estou
trabalhando também na minha igreja sobre isso, pelo menos dentro do
limite que é permitido para mim. (Kaiowá, ex-Capitão da Te’yikue,
líder de sua igreja na aldeia).

195
Conforme este ex-Capitão da aldeia e atual líder de sua igreja, o Capitão
indígena que não se aproximar de rezadores ou procurá-los para entender sobre sua
subjetividade não consegue se fortalecer fora de sua aldeia, por exemplo na reunião
Aty Guasu, no Encontro de Professores Guarani e Kaiowá, no Encontro dos
Acadêmicos Indígenas, no MPF, entre outros espaços. Até porque nessas reuniões e
encontros de luta, geralmente participam lideranças religiosas (rezadores e rezadoras),
que cobram muito os participantes a rezarem e dançarem com eles. Nesse espaço,
quem inicia as atividades sempre são os rezadores e as rezadoras. Deste modo, os
rezadores e as rezadoras da Te’yikue mostraram que não foram dominados
completamente, pois, segundo a ñandesy Leona, sabiam que não demoraria para
ocuparem de novo seus espaços, sobretudo na Reserva.

Para além da ocupação de capitania, os líderes pentecostais indígenas têm sua


organização e se reúnem em suas respectivas igrejas para discutir não apenas sobre
seus membros, dízimos, ofertas e doutrinas, mas também sobre o serviço da saúde
indígena, pesquisadores não indígenas e indígenas, transporte, política interna da
comunidade e escola, uma vez que se trata de questões que igualmente os afetam. Isso
lhes permite obter uma visão bastante ampliada.

Ou seja, a atuação dos pastores ou líderes pentecostais de hoje em dia não


fica apenas no rol da igreja, mas, em se tratando de reunião relacionada às questões
indígenas, lançam mão de diversas práticas para mostrar o quanto seus papeis também
são fundamentais para o movimento indígena.

Um momento forte de visibilidade por parte dos evangélicos indígenas


aconteceu quando participaram de retomada em Te’yikue, que alguns “crentes” dessa
localidade chamam de “cooperação”, na ação de mostrar o que pregam em suas
igrejas, como mecanismo de demonstração de força e capacidade de expansão.

Desde a retomada de Pindo Roky, na Te’yikue, em 2013, os líderes


pentecostais começaram ativamente a participar de retomadas.
A gente não quer ocupar de vez o lugar de rezadores da nossa aldeia,
penso que eu e os demais irmão estamos apenas fazendo o nosso papel
como indígena. Fortalecendo o momento de luta, para mostrar que
nossa vida kaiowá e guarani é sempre no coletivo, assim que nos
ensinaram a até hoje os nossos rezadores, ao mesmo tempo procuram
mostrar para nós isso. Nessa retomada que teve, muitos evangelhos
participaram, principalmente os dirigentes de várias igrejas, claro que
alguns não concordaram, falando de que escandalizamos a igreja, mas
acho que não é isso que fazemos, afinal, somos e seremos crentes em

196
qualquer lugar, o que importa é o respeito que temos pelo nosso Deus,
mostrando esse respeito, eu acho que já suficiente. Quero dizer com
isso que não se pode beber bebida alcoolica, muito menos praticar
algo que não seja agrado de Deus. (Rosenildo Isnard in memoriam)
O que é articulado pelos líderes pentecostais como estratégias de expansão e
poder de atração da igreja é entendido por um rezador kaiowá:
Quando a gente é acionada pela escola, pelo movimento indígena, seja
para ir na retomada, nós nunca nos negamos em comparecer nesses
lugares, até porque a gente sabe que eles dependem de nós e precisam.
Nosso papel é sempre mostrar da nossa existência como indígena
Kaiowá e Guarani, mostrando através da nossa reza, da nossa
sabedoria, da nossa língua, dança. Então, a gente não obriga ninguém
e muito menos amedrontando as pessoas como esse pentecostais
fazem. Hoje eles ocupam a função de capitania, participam da reunião,
mesmo assim nunca terão a força que nós rezadores temos, afinal, o
movimento indígena inicia com a gente, por isso, eles terão que
aprender com a gente, se por porventura quiser aprender realmente a
nossa verdadeira sabedoria.
Portanto, os rezadores da Te’yikue sempre são convidados para participarem
de várias reuniões, de formação de professores indígenas, nas retomadas e quando tem
movimento indígena fora da aldeia. Dessa forma, eles ocupam o lugar de destaque em
qualquer atividade escolar na comunidade Te’yikue. Nesse momento eles procuram
passar os seus conhecimentos aos professores, ensinando-lhes sobre a filosofia kaiowá
e guarani, poesia, língua, reza, dança, educação indígena, ideias inovadoras que os
ajudarão a planejar o futuro de jovem indígena. Vale lembrar também que, algumas
vezes, os rezadores são convidados a participar de atividades culturais no CRAS e no
posto de saúde da Reserva, onde eles falam sobre a saúde indígena, dos desafios da
comunidade, dos jovens, da educação indígena e para mostrar suas rezas e danças.

O relacionamento entre rezadores (ñanderu) e líderes pentecostais na


Te’yikue é bastante estratégico e tenso, pois, na visão de Florencio Barbosa, os
conhecedores da cultura indígena tradicional não atacam os evangélicos. Ele afirma
que respeitando os líderes pentecostais, os rezadores poderão convencê-los de que só
sendo indígena, conhecedores da cultura, “poderemos vencer a guerra”. Por outro
lado, os evangélicos se esforçam em desrespeitar os rezadores, argumentando que
“fica mais difícil, porque a gente segue a Bíblia, onde nos mostra que não se pode
beber e fumar cigarro, então o rezador parece que fortalece isso, por isso é difícil falar
deles na igreja” (líder evangélico da Reserva de Caarapó). Ao mesmo tempo em que
os rezadores se fortalecem nos lugares menos acessados pelos evangélicos, também
enfrentam desafios por parte da família que aderiu à igreja.

197
Portanto, o relacionamento de respeito e fortalecimento, conforme essa
pesquisa, está longe de chegar no ideal, pois os evangélicos priorizam mais a
expansão da “conversão”, da igreja, do número de adeptos e, agora, o poder de seus
líderes. Enquanto isso, os rezadores procuram se fortalecer defendendo o
fortalecimento da cultura ancestral, dos saberes indígena, das rezas e do sujeito
indígena. Para isso procuram se aliar com a liderança Capitão, mas não têm o apoio
necessário, pois, na maioria das vezes, esta autoridade é “crente” ou líder evangélico;
sendo assim, se preocupa mais em atender a demanda dos seus “irmãos de fé”. Neste
caso permanece a diversidade de problemas que os pesquisadores não índios e
indígenas, o gestor da escola e os professores indígenas identificam no que diz
respeito à intolerância religiosa e à agressão que os rezadores e as rezadoras sofrem há
muitos anos.

198
CONCLUSÃO
Procurei no texto evidenciar as diferentes formas de transformação dos
papeis das lideranças tradicionais desde o período da acomodação na Reserva de
Caarapó, a partir da pesquisa, da convivência cotidiana e das experiências de um
indígena-historiador. Também apoiando-me, por vezes, em aportes teóricos
necessários à construção do presente texto.

Através da minha trajetória de vida e de pesquisador indígena falante da


língua mãe Guarani, com a qual estudei desde a alfabetização numa escola indígena,
ao mesmo tempo experimentando vários teko, originou-se esta pesquisa, comportando
sucessivos deslocamentos e inquietações que me fizeram olhar sobre meu povo
guarani e kaiowá. A proximidade e o constante diálogo com pessoas que viveram
várias realidades e vivem experiências de resistir à adesão a outro credo religioso,
levaram-me também a transitar por vários ore, entre pré-conceitos configurados pela
sociedade ocidental, pelo Estado brasileiro, pelo latifúndio, pelas igrejas, pelos
políticos, pela escola, entre outros.

Como já disse, meu olhar indígena, ao transitar entre vários ore, não poderia
deixar de fazê-lo, sobretudo, no meio dos ñanderu e ñandesy – rezadores -, por
possibilitar compreender alteridades de experiências religiosas, pois estes, por um
lado, são pessoas vítimas constantes de humilhações, acusações ou críticas
infundadas; por outro lado, redimensionam e fortalecem as rezas e saberes
tradicionais, despertam e fortalecem os guerreiros, assim como aconteceu comigo,
conforme abordei no primeiro capítulo. Os primeiros anos da minha primeira infância
vivi mergulhado no ambiente familiar onde todos viviam de acordo com o teko
ymaguarẽ (modo de vida ancestral). Mesmo depois de a maioria da família ter aderido
ao pentecostalismo, e eu junto, o contato recorrente com rezadores, rezadoras, anciões
e anciãs da própria família, e também com várias pessoas de outras regiões da
Reserva, foram, aos poucos, desvelando a dinâmica da minha trajetória, identidade,
subjetividade, alteridade e do processo de diversificação do “eu”, no meio de vários
ore.

Num primeiro momento, procurei descrever que, desde a criação da Reserva


Indígena de Caarapó, os Guarani e Kaiowá vivenciam violação de direito

199
permanentemente, principalmente no que se refere às suas práticas religiosas e
territoriais. A intimidação e o medo que foram se estabelecendo em seu espaço social
ocorreram através de várias imposições da sociedade dominante ocidental, pois esta
“percebeu que esse povo precisava de Deus na vida para superar a pobreza e o
problema social”, justificando a violação dos direitos. Concomitantemente, investia-se
em convencer o povo a deixar de ser indígena, porque ser “índio” simbolizava a
incapacidade, a desconfiança e o atraso. “Era, e ainda é, a famosa política
integracionista, oficial no Brasil até 1988, que a Constituição Federal aboliu,
garantindo o direito à plena autonomia de identidades, culturas, línguas, tradições e às
terras que tradicionalmente ocupam” (ROSSATO, 2020, informação oral).
Entretanto, os Guarani e Kaiowá, com habilidades milenares, perceberam que, através
da instituição religiosa poderiam superar algumas adversidades. Sendo assim, a
instituição religiosa Missão Caiuá, teve espaço na Reserva de Caarapó - Te’yikue, na
década de 1950 e, a partir do ano de 1980, as igrejas pentecostais e neopentecostais.

Apoiando-me nas fontes das pesquisas dos indígenas Eliel Benites (2014) e
Lídio Cavanha Ramires (2016), procurei entender mais a realidade existente
atualmente na Reserva de Caarapó. É produto de um longo processo de exclusão,
intervenções e aniquilação das populações indígenas de Caarapó, promovido pela
sociedade não índia. Sobretudo focado em eventos que se deram a partir do final da
década de 1980, busquei averiguar, partindo da perspectiva dos indígenas, os
principais fatores que despertaram interesse das missões religiosas junto à Reserva de
Caarapó.

Como foi abordado no decorrer deste trabalho, a situação histórica da


Reserva, principalmente após 1980, despertou muita resistência e oposição dos
pentecostais aos rezadores, impondo-lhes dificuldades crescentes às práticas de rituais
e rezas tradicionais. Entretanto, mesmo que os Guarani e Kaiowá tenham construído
relações históricas com as igrejas, isso não impendiu a produção de espaços de
fortalecimento de suas identidades e, tampouco, o que muitos indígenas da Reserva
identificam como o “retorno à religião tradicional”. Retomar as práticas rituais
tradicionais é um imperativo, uma determinação de Ñanderu (ou Ñandejára). A
continuidade das rezas depende a continuidade da existência humana na terra. Além
desses aspectos de natureza cosmológica, os rezadores descobrem novas formas de
conexão com agências do Estado e da sociedade civil através das práticas rituais

200
realizadas, inclusive, fora do espaço da Reserva, transpondo seus limites. Assim,
ganham visibilidade, acessam direitos e recursos.

Por outro lado, a igreja continua, como dizem, “servindo” para muita coisa,
auxiliando a organizar a vida pessoal e a produção de coletivos em meio a grande
quantidade de problemas de diversas ordens criados na reserva. Por isso é comum ver
um indígena, em algum momento, sendo pentecostal e, de repente, tornando-se um
líder político, mas vestindo cocar, rezando e procurando um rezador para resolver seus
dilemas. Mas há vários evangélicos indígenas que preferem seguir exclusivamente a
igreja e investir cada vez mais na vida religiosa pentecostal. Estas pessoas geralmente
sofreram violências físicas e simbólicas. Como me contou uma ex-rezadora de 50
anos, “obreira” da igreja Deus é Amor, entre 1993 e 2003 houve muita acusação de
feitiçaria e, por este motivo ela foi intimidada várias vezes para comparecer na
presença de Capitão a fim de exclarecer a acusação. Isso acontecia quando sua família
entrava em conflito com outra família de outra região, e havia morte por doença,
acidente, esfaqueamento ou qualquer outra forma. Mas ela era acusada de feitiçaria.
Tal acusação poderia ter levado a rezadora a sofrer violência física ou mesmo a pena
de morte, como veicularam, recentemente, vários vídeos produzidos pelos próprios
indígenas . Acusações e violências em várias terras guarani e kaiowá têm sido tão
frequentes que o MPF tem procurado manter diálogo com lideranças indígenas e
pesquisadores para encontrar formas de superação desses conflitos.

Outra conclusão preliminar é o fato de que, para muitos evangélicos, as rezas


são feitas por feiticeiros, e os rezadores que as praticam são considerados mentirosos,
estabelecendo assim, sobre eles, intimidação, medo e demonização dos “católicos”.
Como vimos, os “crentes” pentecostais procuram desqualificar a figura do rezador em
vários momentos. Chamam os ñanderu de bêbados, ou identificam outras práticas que
seriam biblicamente condenáveis; para isso procuram um capítulo na Bíblia a fim de
referenciar a vida do rezador com obra do demônio.

Os avanços das frentes de evangelização neopentecostais sobre a vida dos


indígenas Guarani e Kaiowá na Reserva de Caarapó se intensificaram no ano de 2010.
Esses avanços foram atendendo as organizações específicas das parentelas de várias
regiões. Por exemplo, o sistema político organizacional (teko laja) de cada parentela
necessita afirmar seu jeito próprio de ser, e a criação de uma igreja ou ponto de
pregação pode ser um recurso importante para isto, como já apontou Pereira (2004).

201
Por outro lado, as igrejas foram diminuindo o espaço dos rezadores da Reserva de
Caarapó, pois quando se “converte um sujeito que tinha vida errante”, logo já se
prega que a cultura e a religião indígena não tem mais força, para mudar ou
“transformar” a vida da pessoa. Nesse caso, o rezador que convive com a família se
sente isolado, intimidado e sem espaço para visibilizar sua prática tradicional.

A necessidade de transformação se dá pelo “mal-estar social produzido na


situação da Reserva, como costumava afirmar o pesquisador Antônio Brand em suas
aulas na Licenciatura Teko Arandu e em outros espaços de fala. As dificuldades de
vida na Reserva impõem a necessidade de mudança, de busca de alternativas, e é aí
que os pastores se afirmam, trazendo a novidade do evangelho pentecostal e a
promessa de “restaurar vidas danificadas pela obra do demônio”.

Observa-se que cada igreja que surgiu pertence a uma família. Geralmente,
essa família procura um “preceito da Biblia evangélica” que possa manter os
problemas equilibrados, uma vez que, na Reserva, há vários lája (jeito de ser), por isso
se procura o jeito certo de “converter”; por exemplo, os jovens viciados em drogas, os
anciões que tentam resistir à conversão. Na maioria das vezes, essa igreja conta com
um líder que havia sido excluído de outra igreja. Ele vem e fortalece o vínculo com
essa parentela, todavia procura sempre atrair seus parentes para sua nova igreja.
Parentesco e política, do modo como os Kaiowá e Guarani os praticam, estão
intimamente vinculados ao movimento de expansão das igrejas, fenômeno que ainda
requer pesquisa mais aprofundada.

Assim foram retomadas questões já trabalhadas por alguns pesquisadores


indígenas e não índios sobre diversos líderes indígenas que vêm surgindo na
atualidade. Essa postura construiu possibilidade de os líderes religiosos pentecostais
ganharem forças, sobretudo na questão política da aldeia e nas organizações das
igrejas. Em certa medida, esses líderes movimentam muitos parentes com eles, ou
seja, reagrupam parentes que, muitas vezes, estão dispersos por diferentes parentelas.
Este movimento aqui é entendido como “tempo de despertar de líderes pentecostais”.
Por outro lado, eles dependem de novos líderes que surgem para transformar até
mesmo o espaço da igreja e fortalecê-la, e seguidamente contam com os professores,
Agentes de Saúde, Capitão, ex-Capitão, vereador, entre outros.

É importante destacar que essas posturas dos atuais pastores indígenas


causam transformações em vários aspectos na vida dos seus seguidores. Os
202
professores indígenas, nas igrejas, ocupam o papel de mediadores, até porque seus
lados militantes da causa os acompanham, por isso a doutrina se transforma com eles
também. Se, no início, os pastores karai implantaram a igreja nos moldes como ela
funciona na sociedade não índia, aos poucos, os pastores indígenas foram assumindo
os postos de direção, gerando a possibilidade de maior diálogo com a cultura ou
tradição. Esse fenômeno ainda necessita ser aprofundado.

A disposição dos pastores para o diálogo e a negociação com a tradição varia


de acordo com a denominação religiosa, a formação dos pastores e a composição do
corpo de membros. Normalmente identifica-se a igreja Deus é Amor como a de
doutrina mais rígida, a mais refratária ao diálogo e a que mais demoniza os rezadores.
Pastores, como Sílvo Paulo, cujo pai era rezador, parecem muito mais receptivos a
dialogar e a reconhecer a importância, mesmo que pontual, do trabalho dos rezadores.

As reflexões sobre o tema da pesquisa ainda estão em aberto neste trabalho,


uma vez que a pesquisa ainda apresenta muitas lacunas, demandando novas pesquisas.
Todavia, arrisquei algumas considerações norteadas pela pesquisa de campo,
discutindo as transformações dos líderes tradicionais na Reserva de Caarapó/MS.
Aprendi muito sobre o tema e despertei novas curiosidades, o que me impulsiona a
seguir pesquisando sobre o assunto.

203
Fontes

Lista de nomes de pastores indígenas

1. Silvio Paulo.
2. Norivaldo Marques.
3. Virginio Soares (desviado).
4. Cacildo.
5. Severo Martins.
6. Alécio Ramires
7. Biqui.
8. Samuel de Araújo de Oliveira.
9. Roberto Soares.
10. Teodoro Martins.
11. Geraldo’i.
12. Cornelio Rosa e Isaias Rosa.
13. Hipolito Martins.
14. Arcario Cavanha.
15. Daniel.
16. Genesio Paulo.
17. Donizete Ribeiro.
18. Fabiano de Souza.
19. Claudemir.
20. Braz Ribeiro.
21. Zezinho.
22. Valdemar.
23. Augusto.
24. João.
25. Aquino.
26. Guilherme.
27. Anisio.
28. Jobertinho.
29. Nardo.
30. Amelio.
31. Avelino Ramires.
32. Pedro Paulo Martins.
33. Jose Lescano.
34. Tino.
35. Quintana.
36. Elzo.
37. Daniel’i.
I Entrevistas orais com crentes e pastores indígenas e não indígenas

1. Minha mãe Mariana Martins, entrevista concedida ao autor em 20/10/2018,


10/01/2019, 30/04/2019.
2. Virginio Soares, entrevista concedida ao autor em 20/02/2019, 04/03/2019,
16/05/2019, 15/10/2019.
204
3. Isaias Rosa em abril de 2019.
4. Luiz, entrevista concedida em 2019.
5. Carlinho, entrevista concedida ao autor em fevereiro de 2019.
6. Silvio Paulo, entrevista concedida ao autor em março de 2019.
7. Jose Lescano, entrevista concedida ao autor em outubro de 2019.
8. Hipolito Martins, entrevista concedida ao autor em maio de 2019.
9. Lauriana Escobar, entrevista concedida ao autor em março de 2019.
10. Luiza Rosa, entrevista concedida ao autor em abril de 2019.
11. Katia Martins, entrevista concedida ao autor em março de 2019.
12. Felipa Soares, entrevista concedida ao autor em maio de 2019.
13. Vitoria Rosa, entrevista concedida ao autor em maio de 2019.
14. Roberto Soares, entrevista concedida ao autor em agosto de 2019.
Outras entrevistas

15. Rezador Florencio Barbosa, entrevista concedida ao autor em maio de 2018,


fevereiro e outubro de 2019.
16. Rezador Cicero’i, entrevista concedida ao autor em agosto de 2019.
17. Rezador Angelo, entrevista concedida ao autor em maio de 2019.
18. Rezador Lidio Sanches, entrevista concedida em janeiro de 2018 e em janeiro de
2019.
19. Chefe do Pólo Base de Caarapó Adalberto.

Referências
BENITES, Eliel. Oguata Pyahu (Uma nova caminhada) no processo de desconstrução
e construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýikue. 2014. 130f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS,
2014.

BENITES, Tonico. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (rezando e lutando): o


movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela
recuperação de seus tekoha. 2014. 270f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2014.

______. A escola indígena na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações


indígenas. 2009. 106f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2009.

BRAND, Antonio Jacó. Os complexos caminhos da luta pela terra entre os kaiowá e
guarani no MS. Tellus, ano 4, n. 6, abr. 2004, p. 137-50, Campo Grande, MS: UCDB,
2004.

______. O impacto da perda da terra sobre a tradição kaiowá/guarani: os difíceis


caminhos da palavra. 1997. 382f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 1997.

205
______. O confinamento e o seu impacto sobre os Guarani/Kaiowá. 1993. 276f.
Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, 1993.

______. Os Kaiowá/Guarani no Mato Grosso do Sul e o processo de confinamento – a


“entrada de nossos contrários”. In: CONSELHO Indigenista Missionário Regional Mato
Grosso do Sul; Comissão Pró-Índio de São Paulo; Procuradoria Regional da República
da 3ª. Região. Conflitos de direitos sobre as terras Guarani-Kaiowá no Estado do Mato
Grosso do Sul. São Paulo: Palas Athena, 2000. p. 93-131.

BRINGMANN, Sandor Fernando. História Oral e História Indígena: Relevância social


e problemática das pesquisas nas Terras Indígenas brasileiras. Revista Latino-
Americana de História Vol. 1, nº. 4 – Dezembro de 2012.

CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Etno-história e história indígena: questões


sobre conceitos, métodos e relevância da pesquisa. História, São Paulo, n. 30, v. 1, p.
349-71, 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S010190742011000100017
&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 out. 2017.

______. Colonialismo, Território e Territorialidade: a luta pela terra dos Guarani e


Kaiowa em Mato Grosso do Sul. Campo Grande, 2013.

CHAMORRO, Graciela; COMBES, Isabelle (Org.). Povos Indígenas em Mato Grosso


do Sul: história, cultura e transformações sociais. 1. ed. Dourados: UFGD, 2015.
(Especialmente: p. 19-24; 519-534; 745-814). Disponível em:
http://200.129.209.183/arquivos/arquivos/78/EDITORA/catalogo/povos_indigenas_em_
mato_grosso_do_sul.pdf].

SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo:


Pedagógica/USP, 1974.

COLMAN, Rosa Sebastiana. Considerações sobre Território para os kaiowá e guarani.


In: Tellus, ano 8, n. 15, p. 153-174, jul./dez. Campo Grande: UCDB, 2008.

CRESPE, Aline C. Acampamentos indígenas e ocupações: novas modalidades de


organização e territorialização entre os Guarani e os Kaiowa no município de Dourados-
MS (1990 — 2009). 133 f.. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Ciências
Humanas, Universidade Federal da Grande Dourados, 2009.

________. Mobilidade e Temporalidade Kaiowa: do tekoha à reserva, do tekoharã ao


tekoha. 2015. 428 f.. Tese (Doutorado em História), Faculdade de Ciências Humanas,
Universidade Federal da Grande Dourados, 2015.

CARIAGA, Diógenes Egídio. 2012. As transformações no modo de ser criança entre os


Kaiowá em Te’ýikue (1950-2010). Dissertação de Mestrado em História. Dourados,
UFGD.

206
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment.
1993. Tese (Doutorados em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia, Insituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993.

FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. 2005. Sagas sertanistas: práticas e representações


do campo indigenista no século XX. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro, PPGAS/
Museu Nacional-UFRJ.

GONÇALVES, Carlos Barros. Até os confins da terra: o movimento ecumênico


protestante no Brasil e a evangelização dos povos indígenas. Dourados: UFGD, 2011.

JOÃO, Izaque. Jakaira Reko Nheypyru Marangatu Mborahéi: Origem e Fundamentos


do Canto Ritual Jerosy Puku entre os Kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y,
Mato Grosso do Sul. Dissertação de Mestrado em História. Dourados: UFGD, 2011.

LIMA, Antonio Carlos de Souza. O exercício da tutela sobre os povos indígenas:


considerações para o entendimento das políticas indigenistas no Brasil contemporâneo.
Revista de Antropologia, SÃO PAULO, USP, 2012, V. 55 Nº 2.

MARTINS, E. R. (2006). A Terra como chão sagrado e como valor cultural. Tellus/
Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas-NEPPI, ano 6, n. 10, abril.
Campo Grande: UCDB, p.143-145.

MARTINS, Elemir Soare. O papel das lideranças tradicionais na demarcação das terras
indígenas Guarani e Kaiowá. Tellus, Campo Grande, MS, ano 15, n. 29, p. 153-72,
jul./dez. 2015.

MARTINS, Elemir Soare. Reserva de Caarapó: as tentativas passadas e atuais de


retekoharizar o espaço. In: XIV ENCONTRO DE HISTÓRIA DE MATO GROSSO
DO SUL. Anais... Dourados: ANPUH/MS. Ed. UFGD, 2018.

MELLIA, Bartomeu. A terra sem mal dos Guarani: Economia e Profecia. In: Revista de
Antropologia. Vol. 33. P. 31-46. São Paulo: FFLCH/USP, 1990.

MORAES, Jóse Augusto Santos. O pentecostalismo autóctone na Reserva de


Dourados: identidade étnica, implicações sociais e protagonismo (1992 – 2015). 2016.
215 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Grande Dourados,
MS, 2016.

OLIVEIRA, Priscila Enrique. “Transformar o índio em um índio melhor”: saúde e


doença no contexto do indigenismo (1910-1967). FREIRE, Carlos Augusto da Rocha
(org.). Memória do SPI: Textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos
Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio – FUNAI, 2011.

OLIVEIRA, Jorge Eremites de. A História Indígena no Brasil e em Mato Grosso do Sul.
Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 178-218, jul./dez. 2012. [Disponível em:
http://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/31745].

PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1988. “O Nosso Governo”: os Ticuna e o Regime


Tutelar. São Paulo, Marco Zero/MCT-CNPq.

207
PEREIRA, Levi Marques. Imagens Kaiowá do sistema social e seu entorno. 2004. 403f.
Tese. (Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2004.

______. A socialidade da família Kaiowa: relações geracionais e de gênero no


microcosmo da vida social. Temáticas (UNICAMP). Campinas: Editora UNICAMP,
Vol. 31p. 211-232, 2009.

______. O pentecostalismo kaiowá: uma aproximação aos aspectos sociocosmológicos


e históricos. In: Wright, Robin (org.). Transformando os Deuses. Vol. II. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP. 2004.

PIMENTEL, Spensy Kmitta. Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani.
2012. 364f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2012.

RAMIRES, Lidio Cavanha. Processo próprio de ensino-aprendizagem Kaiowá e


Guarani na Escola Municipal Indígena ÑandejaraPólo da Reserva Indígena Te’ýikue:
saberes Kaiowá e Guarani, territorialidade e sustentabilidade. Campo Grande, 2016, 121
p. Dissertação de (Mestrado) Universidade Católica Dom Bosco.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história.Trad. Bárbara Sette. Rio de janeiro: Jorge Zahar
editor, 1990.

SANTO, Junia Fior. A dinâmica de mobilizações dos Guarani e Kaiowa no Estado de


Mato Grosso do Sul: uma etno-história da luta pela terra na comunidade Kurupi de
Santiago Kue, f 207. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da
Grande Dourados, 2019.

SILVA, Alexandra Barbosa da. Mais além da aldeia: Território e Redes Sociais entre os
Guarani de Mato Grosso do Sul. 2007. 255 f. Tese (Doutoramento em Antropologia) -
Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, [2007].

SILVA, Joana A. F.; JOSÉ DA SILVA, Giovani. História indígena, antropologia e


fontes orais: questões teóricas e metodológicas no diálogo com o tempo presente.
História Oral, v. 13, n. 1, p. 33-51, jan.-jun. 2010.

SMANIOTO, C. R.; SKORWRONSKI, L. (orga). Atlas Socioambiental Terras


Indígenas Te’ýikue. Campo Grande: UCDB, 2009.

VIETTA, Katya. Histórias sobre terras e xamãs kaiowa: territorialidade e organização


social na perspectiva dos Kaiowa de Panambizinho (Dourados-MS) após 170 anos de
exploração e povoamento não indígena na faixa entre Brasil e Paraguai. 2007, f. 512.
Tese (Doutorado em Antropologia Social), Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 2007.

VIETTA, Katya. “Pastor dá conselho bom”: missões evangélicas e igrejas


neopentecostais entre os Kaiowá e os Guarani em Mato Grosso do Sul. In: Tellus,
Campo Grande, ano 3, n. 4, p. 109-135, abr. 2003. Disponível em:

208
<http://www.tellus.ucdb.br/index.php/tellus/article/view/ 57/67>. Acesso em: 25 de
agosto. 2018.

VIETTA, Katya; BRAND, Antonio. Missões evangélicas e Igrejas neopentecostais


entre os Kaiowá e os Guarani em Mato Grosso do Sul. In: WRIGHT, Robin M. (Org.).
Transformando os deuses: igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os
povos indígenas no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.

VIETTA, Katya. Histórias sobre terras e xamãs kaiowa: territorialidade e organização


social na perspectiva dos Kaiowa de Panambizinho (Dourados-MS) após 170 anos de
exploração e povoamento não indígena na faixa entre Brasil e Paraguai. 2007, f. 512.
Tese (Doutorado em Antropologia Social), Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 2007.

209
ANEXOS
ANEXO A – MANIFESTAÇÃO RELIGIOSA PELA LIBERDADE RELIGIOSA NA
ALDEIA – VIA FACEBOOK 2020

Liberdade religiosa na Aldeia Algumas considerações - Wilson Matos da Silva*

Nos últimos dias lemos, assistimos e ouvimos nos meios de comunicação, a polêmica da
atuação das igrejas evangélicas na aldeia, que estaria a vilipendiar (Desprezo,
menoscabo; aviltamento), a cultura indígena.
A liberdade religiosa é um dos direitos humanos fundamentais. Proteger essa liberdade
significa proteger algo comum a todos os seres humanos: a santidade da consciência em
termos de verdade final, cultos, rituais e códigos de comportamento. Este direito não foi
criado pelos governos, mas existe desde antes dos governos e das sociedades. "Todos os
homens têm direito à dignidade e à consciência".
Esta liberdade é o direito de todo ser humano, toda religião ou cultura, de seguir as ordens
da sua consciência em termos de verdade fundamental, culto e moralidade, dentro dos limites
estabelecidos pelas normas legais (tais como limites legais para proteger a saúde ou
segurança pública). Isso inclui o direito de, seja individualmente ou em comunidade com os
outros, em público ou de forma privada, manifestar uma religião ou crença em culto,
observação, prática e ensinamento. Prescreve o artigo 18 da Convenção Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos.
Nenhum Governo que deixe de proteger a liberdade de religião e a consciência estará
propenso a valorizar os outros direitos fundamentais, tais como a liberdade contra prisão
arbitrária ou tortura.
A Constituição Federal consagra como direito fundamental a liberdade de religião,
prescrevendo que o Brasil é um país laico. o Estado deve se preocupar em proporcionar a
seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, proscrevendo a intolerância e o
fanatismo. Deve existir uma divisão muito acentuada entre o Estado e a Igreja (religiões em
geral), não podendo existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar
proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões.
A Constituição Federal, no artigo 5º, VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e
de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e as suas liturgias. O inciso VII afirma ser assegurado, nos
termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de
internação coletiva. O inciso VII do artigo 5º, estipula que ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar
para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei.
Por outro lado, é necessário sobre este mesmo prisma de liberdade à expressão de credo,
analisar a proteção às crenças indigenas assegurados no artigo 231 da Constituição Federal,
e limitar a atuação de verdadeira seitas que se instalaram nas aldeias notadamente na
jaguapirú e bororó, e está mais do que na hora de o MPF, movido pela sua função
institucional firmar um TAC (termo de Ajustamento de Conduta), com as igrejas que objetiva
evangelizar os índios, já que para este intento, a liberdade religiosa encontra limites legais
dentro do Estado Democrático de Direito, o que vem sendo ignorado por certas corporações
religiosas.
Não se pode, contudo, fazer de uma rixa entre membros da comunidade, a exemplo do que
ocorreu na Aldeia Panambizinho um cavalo de batalha, onde alguns "lideres" movidos por
seus instrutores pseudos "especialistas" em índios, no caso de declaração dada por um
"cacique" da Aldeia Jaguapirú, de que o Evangelho estaria atrapalhando a Cultura Indígena,
não prospera posto que ele mesmo é um exemplo vivo, já que o mesmo é missionário formado
e por muitos anos viveu às expensas de uma organização religiosa.
Um exemplo vivo de que o Evangelho pode inclusive ajundar índole indígena, e, conviver

210
lado a lado de qualquer Cultura é a pessoa do maior Líder Guarani Marçal de Souza, que
era missionário Evangélico formado veja abaixo a citação de Benedito Prézia em "a voz que
não pode ser esquecida".
"...Era um pregador evangélico. Vendo suas capacidades, os dirigentes da missão o enviaram
para o Instituto Bíblico Dr. Eduardo Lanide, em Patrocínio, MG, onde permaneceu por três
anos. Ali, cresceu em ardor e eloqüência, encontrando no canto a maneira de dar vazão à sua
índole religiosa. Chegou a gravar um disco, coisa rara na época. Voltando para Dourados,
passou a visitar as aldeias. Nos cultos, sempre lia a Bíblia em guarani, tornando-se o grande
intérprete dos pastores. Diante do quadro de miséria e de exploração, Marçal procurava
dirigir mensagens de esperança, com teor evangélico, no qual a resignação ao mundo
terrestre mal e a busca da perfeição pessoal pereciam ser as únicas saídas."
Pode parecer, a primeira vista, contraditório, que um defensor da liberdade religiosa se
incline, aparentemente, pela liberdade de expressão Cultural em detrimento da própria
liberdade religiosa. Todavia, essa opção não foi tomada em nome da irreligião ou, muito
menos, contra a liberdade religiosa. Ocorre que, sem liberdade de expressão Cultural não há
liberdade religiosa na Aldeia. A censura prévia ou, até mesmo judicial, tem um efeito
deletério sobre o livre pensamento e o pluralismo religioso, por isso propomos um TAC
(Termo de Ajustamento de Conduta), para que os maus evangelistas não venham macular os
bons.

*É Índio da Aldeia Jaguapirú, Advogado, Pós-graduado em Direito Constitucional,


Presidente da CEAI/OABMS (Comissão especial de Assuntos Indigenas da Ordem dos
Advogados do Brasil Seccional do MS.

ANEXO B – DENÚNCIA DE UMA LIDERANÇA INDÍGENA MULHER NA


AUDIÊNCIA PÚBLICA

Boa noite, a gente não gostaria assim de usar o termo intolerância religiosa, mas a gente
quer usar o termo violência porque a violência foi uma palavra muito usada na Aty Guassu. E
aqui [aponta para imagem que está projetada] é a Dona Leonarda ela é Kaiowá, ela tem 80
anos, ela é de Taquapiri. Dona Leonarda, nós como Kunhangue Aty Guassu tivemos
acompanhando a situação. Dona Leonarda foi torturada recentemente. Ela e sua filha
Elenilsa [?] de 39 anos e a gente sabe que toda essa violência vem de um processo histórico
de dizimação do nosso povo secular. Nós respeitamos, e isso foi muito dito na Aty Guassu
hoje, nós respeitamos muito cada religião, mas hoje quem está sendo atacado são as
Nhandecy e são os Nhanderu. E como eles estão sendo atacados e por quem? Dentro da
aldeia há uma perseguição muito grande de lideranças ... captania. A Dona Leonarda foi
torturada por sete homens e uma mulher. Ela apanhou de correntes. A Dona Leonarda ela
tem vários hematomas no corpo, a sua filha ela teve o cabelo cortado por faca. O cabelo
dela foi cortado bem na nuca por faca. Tentaram quebrar as pernas dela. A filha dela teve o
corpo perfurado por ponta de faca. Ela tem uma marca bem enorme no meio das costas. A
Dona Leonarda relatou que teve uma tentativa de jogar gasolina no corpo dela e ela disse
que não é a primeira vez. “Não é a primeira vez”. E a gente tem as Nhandecy que estão nos
acompanhando que já passaram pela mesma situação. E quem são as pessoas que estão
fazendo isso dentro da aldeia? Esse discurso de ódio dizimado da igreja, o povo da
pentecostal Deus é Amor. E tem sido um discurso muito forte de demonização do nosso
modo de ser, da nossa cultura, da nossa língua, da nossa oração. Dona Leonarda foi
acusada do que a igreja chama de feiticeira. Seu Nhanderu Ataná [?], que é um dos
Nhanderu mais velhos dos Gaurani Kaiowá, ele disse que a palavra feitiço e a palavra
[inaudível] é uma palavra que vem da igreja, que nós povo Guarani Kaiowá a gente tem que
usar o termo mohã [não sei como escreve], porque ele disse que toda essa cultura é uma falta
de conhecimento dessa geração de hoje também que já cresce com esse discurso dizimador da
igreja que estão dentro das aldeias. A Dona Leonarda ela foi pressionada, e aí tem o vídeo de
4 min que circula nas redes sociais, não sei se vocês já tiveram acesso, onde ela é obrigada a
dizer pra comunidade, e pras pessoas que estavam lá de outras aldeias, inclusive, forma

211
pessoas de outras aldeias na aldeia dela pra ela dizer sobre o feitiço. Nós fizemos os
levantamentos e a pessoa, a suposta vítima que acusa Dona Leonarda de ter feito mohã [não
sei como se escreve] pra ela dá com diabete e é uma diabete muito avançada. E a pessoa por
nome de Mário, se recusa a ter um tratamento com a SESAI e essa pessoa insiste que foi a
Dona Leonarda que fez o mal pra essa pessoa. Então, a Dona Leonarda, inclusive nos passou
o nome das pessoas, depois... eu não quero expor ninguém, mas depois eu gostaria de passar
isso pro Ministério Público. Ela passou o nome das pessoas que torturou. E ela foi expulsa de
Taquapiri. São 11 pessoas [que foram expulsas com ela], o mais novo é um bebe, que tá com
30 dias, o mais velho tá com 92 anos, que é o seu Alcebias. O Seu Alecebias contou pra
gente que o xirú dele, o maracá dele, [outros dois objetos que não entendi] foram
queimados, foram todos queimados por essas pessoas que acusam ela de ter feito um mohã
[não sei como se escreve]. A Dona Leonarda disse e insistiu isso insistentemente, que se eles
acharem ela, ela será morta. Ela foi muito clara no seu depoimento pra nós que ela está
escondida e que ela não tem proteção nenhuma e que a qualquer momento ela pode ser
morta. Então o que eu gostaria de colocar aqui, Marco Antônio [procurador], inclusive a
segurança dessas pessoas que vão depor, porque pra nós é mais fácil ouvi-las, mas elas
terão que voltar pro seus tekohas e é lá que a violência acontece insistentemente e é muito
grave isso. A gente teve na.... a gente ouviu na Aty Guassu vários relatos de tortura, de
violência, contra anciões e anciãs e grande parte da tortura são contra mulheres anciãs que
não saem de suas aldeias, não costumam sair de suas aldeias e não tem proteção nenhuma.
Dona Leonarda disse pra gente que inclusive a SESAI, daí eu quero chamar a atenção do
Ministério Público pra que também chame a SESAI pra que nos ouça, porque a SESAI tem
criminalizado muito o trabalho das parteiras, das Nhandecy, é uma nova gestão que está
entrando na aldeia que diz que, entre aspas ‘tivemos um avanço, hoje todos os partos são
feitos em hospitais’. Esse é o discurso dessa gestão que entrou agora, sendo que nós estamos
aqui com três parteiras que ainda realizam partos na aldeia e são criminalizadas e inclusive
ameaçadas se acontecer algo com a criança elas podem ir presas. Esse é o discurso da
SESAI. Inclusive as pessoas tem procurado as Nhandecy pra fazer alguns [palavra indígena],
que é o remédio tradicional, que é o chá, a massagem, as ervas medicinais, mas a SESAI fala
que aquele remédio tá deixando a pessoa mais doente, então a SESAI tem ignorado bastante
o trabalho das Nhandecy, tá tendo uma perseguição muito forte. A gente está com construção
de duas casas de medicina tradicional em Amambai que antes mesmo de ficarem prontas já
estão sendo perseguidas, então, assim o que eu quero deixar aqui registrado é como a gente
vai fazer com a segurança dessas pessoas, dessas Nhandecy, Nhanderu, dessas mulheres que
estão sendo torturadas e impedidas de ser o que nós somos, um povo com uma cultura, uma
língua, uma tradição. [continua mais alguns minutos]

212
ANEXO C – ÑEPORANDU ÑEMONGUETAHA (QUESTIONÁRIOS DAS
CONVERSAS/PESQUISAS COM 4 REZADORES SOBRE RESERVA INDÍGENA),
TE’YIKUE, CAARAPÓ/MS

1) Heta mba’ema ojehu jaiko harupi. Heta mba’e ohasa ohovo ha upe rupi ou
va’e mba’e ndaha’éiva ñande mba’e, upecha há’esse hina karai ‘jerovia’, upecha
pende pytyvõ ojeheja ñemoihã haícha oiva mba’e yvyra guype. Mba’echa pee
pehecha reserva yma rupi ha ko’anga? Ne mandu’ahacha mba’e ikatune
remombe’u ñañomongueta hagua?
2) Reserva indígena ogueru mba’e porã tapa ogueru mba’e vai? Jaikuaarõ hina,
ñande hina jajeguerupa akue arupi ha upecha ñatantea ñamoingove jevy ava
reko. Ojejeguerupa ronguare mba’echapa umi tekove ojapo oikove hagua?
3) Mba’echapa oiko pehengue kuéra ndaipori ete ronguare hente ko reserva
Te’yikuepe? Mba’epa nde jeuperõ ova ou araka’e ava reko? Jaikuaarõ ñande
reko ha’e oi vointe ovavo. Ko ambueve ro’y (año) hina ñande reko ukatune
ndaha’e veima ko’angacha. Upevare ikatune ñañomongueta.
4) Posto indígena Ocria ronguare mba’e ogueru araka’e? Umi chefe ouva
mba’epeve ogueru pytyvõ ko’ape? Mba’echapa araka’e iñemongueta pee ndive?
5) Mba’echa oorganiza ñemba’apo ha umi mba’e ko’arupi? Ha’ese hina umi
lomitã kuéra rehe, ñemongueta ka’aguy rehegua, yvy, ñemity. Pende jeuperõ
ojepy’a pyiko araka’e tenonderãre?
6) Mba’epa pejene umi ka’anguy jeityre ha ojejapo ronguare lerare (roça criada
pelo SPI)? Umi mba’e ogueru?
7) Ka’aguy jeitype pemba’apo ronguare ko’arupi mba’echa peñeñandu? Ha upéi
ojeitypa rire mba’epa hemby?
8) Umi mba’apo fazenda’i rupiko pene pytyvõ? Mba’e mba’apoko pejapo?
9) Ojepaga jepe peeme? Mba’epa oñeme’e araka’e?
10) Mba’e ikatune pejeve ojehuvare ko reservape pe 80 guive?
11) Mba’epa igreja kuéra ogueru ñande jaiko hape?
12) Missão Caiuá iko moõpete voi oike araka’e?
13) Mba’echa hera pe pastor?
14) Missão ombyai ava jeroviapy?
15) Ha’e rupive pya’eve oike igreja pentecostal?
16) Mba’erepa pende importância michimba oho ko árape ko tekohape?
213
17) Mba’epe pejavy upeva ojehu hagua?
18) Escola ha igreja ha pee mba’echa peñomongueta arã?

214
ANEXO D – QUESTIONÁRIOS DA PESQUISA COM A EQUIPE DA SAÚDE
INDÍGENA TE’YIKUE, CAARAPÓ/MS

1) Quando entrou a equipe da saúde na reserva, como era a realidade das


pessoas?
2) Quais eram as principais dificuldades desse povo?
3) Como foi a discussão sobre atendimento dos pacientes?
4) A língua atrapalhava o atendimento?
5) Quais foram os métodos que a equipe usava para atender os pacientes?
6) A cultura, ou seja, a religião indígena atrapalhava?
7) Quando começou a melhorar o atendimento na reserva indígena?
8) Quando melhorou a qualidade de saúde, o que a comunidade falava?
9) O que foi feito com anciões que enfrentavam problemas de saúde?
10) A família se preocupava com sua saúde?
11) Quando tinha resistência por parte do indígena em tratar sua doença, o
que foi feito?
12) Como foi organizado o trabalho na reserva?
13) E agora, descreva para mim se o avanço supriu a necessidade especifica
da comunidade.
14) Em que parte, precisa de melhoria?

215
ANEXO E – QUESTIONÁRIOS QUE NORTERAM CONVERSA COM A
AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE INDÍGENA, TE’YIKUE, CAARAPÓ/MS

1) Ñepyrümbype mba’echa pee pehecha pende rembiapo?


2) Mba’e pontopa umi hente ndoikuaai araka’e tembiapo?
3) Mba’echapa oñemboja’o araka’e pende árearã?
4) Oiva família iko oaceita porã?
5) Mba’echaiko oñeñatende araka’e umi hente ko aldeiape ha cidadepe?
6) Peguata jave mba’e rehegua peñomongueta umi paciente ndive?
7) Mba’echagua mba’asyiko uperõ oikove?
8) Kuña hye guasuva mba’echa pee pe orienta? Umi mena crenteva
oaceita porã umi pejeva?
9) Oike guive igreja ko tekohape ombojetu’uve tempiapo tapa ofacilita?
10) Uperõ hetama ava igreja pegua araka’e?
11) Mba’echa pee pehecha ko reserva ko’anga ha yma rupi? Jeroviapy
ha’e omuda?
12) Mba’e ponto pe igreja oipytyvõ?
13) Mba’epe ikatune umi crente oiytyvõve pende rembiapo?

216
ANEXO F – QUESTIONÁRIOS LIVRES PARA CONVERSAR COM ALGUNS
PASTORES INDÍGENAS

1) Mba’e ikatune pejeve ojehuvare ko reservape pe 80 guive?


2) Mba’epa igreja kuéra ogueru ñande jaiko hape?
3) Missão Caiuá iko moõ peve oservi?
4) Mba’echa hera pe pastor oike akue ko’arupi ogueru ñandejara ñe’e?
5) Missão ombyai ava jeroviapy?
6) Ha’e rupive pya’eve oike igreja pentecostal?
7) Mba’erechapa tembiapo araka’e ñepyrumbype?
8) Mava mava rañepa araka’e omombarete igreja pentecostal?
9) Mba’epe pejavy ha pejacerta igrejape?
10) Mba’erepa iporã terei igreja ava rekope?
11) Deus é Amor ha’e mba’epeve oservi?
12) Mba’erepa ava oike ha osë igrejagui?
13) Mba’ere heta terei igreja oi? Iporã peva?
14) Há rezador kuéra? Mba’echa pee pehecha umiva?
15) Ikatune ava jerovia ha igreja oguata?
16) Escola ha igreja ha pee mba’echa peñomongueta arã?
17) Mba’ere heta líderes oi ko’anga? Mba’echa pee pehecha umiva?
18) Lideranças hetarõ oipytyvõveta tapa otrapalhata heta mba’e?
19) Mba’echa ñemoiporãta umi ojehuva mba’e reservape?
20) Umi desviado iko mba’echa pee pehecha?

217
ANEXO H – PRIMEIRA ESCOLA DA REGIÃO MBOKAJA FEITA DE SAPÉ

Fonte: Acervo pessoal do professor Guarani Alécio Soares Martins, cedida ao autor no mês de
julho de 2019.

218
ANEXO I – PRIMEIRA APRESENTAÇÃO CULTURAL DOS GUARANI NA CIDADE
DE CAARAPÓ

Fonte: Acervo pessoal do professor Guarani Alécio Soares Martins, cedida ao autor no mês de
julho de 2019.

219
ANEXO J – OS INDÍGENAS GUARANI E KAIOWÁ NA IGREJA MISSÃO CAIUÁ,
CAARAPÓ/MS.

Fonte: Acervo pessoal do professor Guarani Alécio Soares Martins, cedida ao autor no mês de
julho de 2019.

MANIFESTAÇÃO VIA FACEBOOK SOBRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, 2019

220
Números de vizualizações do vídeo sobre a intolerância religiosa nas aldeias, 2019.

221
Página oficial da Igreja Pentecostal Deus da Reserva de Caarapó

Casa de Reza Kaiowá é queimada em Dourados (Reportagem por


Jornalista Livre)

Fonte: https://jornalistaslivres.org/casa-de-reza-kaiowa-e-queimada-em-
dourados/

Não se sabe a causa do incêndio no local, que era a referência cultural da


comunidade indígena do Mato Grosso do Sul

222
Na madrugada dessa segunda-feira, 8, foi incendiada a Casa de Reza, Ongusu, do Ñanderu
Getúlio Juca e da Ñandesy Alda Silva, do povo Kaiowá, em Dourados, no Mato Grosso do
Sul. O espaço sagrado era chamado de Gwyra Nhe’engatu Amba, na língua kaiowá. A casa de
reza (ogapysy ou ongusu) é o lócus principal dos processos de transmissão de conhecimentos
deste povo e abrigo de seus objetos de culto como o Yvyrai, Xiru e Mbaraka.

O fogo queimou toda a estrutura de madeira coberta por capim sapé. Os moradores da aldeia
não tinham ontem conhecimento sobre a origem do fogo. Eles perceberam as chamas no início
da manhã e chamaram o Corpo de Bombeiros, que não conseguiu evitar a destruição do
espaço, considerado sagrado pelos Guarani-Kaiowá. A comunidade está apreensiva porque a
casa era o abrigo do
Xiru, onde os anciãos rezam, cantam e dançam diante dele. O incêndio pode ter implicações
que prejudicam as colheitas, o clima, alimentos e para a saúde deste povo.

O local era referência cultural da comunidade e já recebeu mitos eventos como o


Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, o Kunhangue Jeroky Guasu, além de
receber diariamente crianças para serem batizadas, benzidas, fazerem tratamentos
médicos tradicionais, além de orientação espiritual. O incêndio ocorreu na Aldeia Jaguapiru,
Terra Indígena de Dourados. Estas casas são referência espiritual do povo indígena auto-
denominado Kaiowá.

223
Os Kaiowá são um dos povos que pertencem ao grupo mais abrangente de populações Guarani
residentes no Brasil (composta também pelos Guarani Mbya e pelos Guarani
Ñandeva). A forma tradicional dos kaiowá se organizarem socialmente é formando núcleos
comunitários constituídos por um número variado de parentes e liderados por um casal de mais
idade (ñanderu e ñandesy, que pode ser traduzido para o português como “nosso pai” e “nossa
mãe”). Esta comunidade é formada por varias famílias extensas, sendo o senhor Getúlio e
a senhora Alda dois de seus líderes religiosos tradicionais.

A comunidade mora na Reserva Indígena de Dourados, que consiste num complexo multi-
comunitário, abrigando centenas de outros núcleos familiares. A Reserva é composta por duas
grandes aldeias (Jaguapiru e Bororó) e possui aproximadamente 17 mil habitantes. A área é
reconhecida pelo Estado, mas num tamanho muito menor que o território
tradicional, e em condições que tornam muito difícil a reprodução da cultura. A reserva foi
criada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1917, com 3.600 hectares inicialmente
reservados aos indígenas da etnia kaiowá, que já ocupavam o local e suas imediações.

224
Igreja Pentecostal Deus é Amor

A Igreja Pentecostal Deus é Amor foi fundada dia 03 de Junho de 1962, pelo
Missionário David Martins Miranda; visto que a data e a denominação foram
reveladas ao fundador, por intermédio do Espírito Santo. O ministério iniciou com
apenas três membros: Missionário David Martins Miranda, sua mãe Anália Miranda e
sua irmã Araci Miranda. Sabe-se que muitíssimas almas são salvas pelo Senhor,
através desta grande obra, em cumprimento das promessas dele ao seu servo.
Com confiança e obediência Àquele que o chamou, Jesus Cristo, o saudoso Missionário
David Miranda se empenhou dia a dia nos cultos, evangelizações, vigílias,
consagrações, etc.; resultando em inúmeras IPDAs, presentes nos continentes:
Américas, Europa, África e Ásia. Com isso, hoje, já está com mais de 17 mil igrejas
espalhadas pelo Brasil e em 88 países em todo o mundo.
O fundador partiu para o Senhor em 21/02/2015, sua esposa, Irmã Ereni de Oliveira
Miranda, é atual presidente do ministério. Ela está dando continuidade ao crescimento
espiritual, para que mais pessoas recebam a coroa da Vida Eterna, e isso é o que mais
faz crescer a IPDA: evangelizar, amar, resgatar, zelar e cuidar das almas, a fim de que
se tornem filhas de Deus.“Contudo, aos que o receberam, aos que creram em Seu
Nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (João 1:12).

Templo da Glória de Deus

Fonte: http://www.ipda.com.br/historia-da-ipda-2/

O Templo da Glória de Deus foi inaugurado dia 01 de janeiro de 2004, situado na


Avenida do Estado, 4568, na cidade e município de São Paulo. Caravanas de estados
do Brasil e de outros países marcaram presença nesta data célebre.
O Templo tem a dimensão de 65.000m², quase 50 metros de altura; tem a capacidade
para 60 mil pessoas, um estacionamento para 500 automóveis e 143 ônibus; 400
sanitários, 12 mil metros de escadas, 3 enormes elevadores; toda a área tem ar-
condicionado, 200 vitrais coloniais, com vidros coloridos; 2 belíssimos pórticos; e as
cadeiras da igreja possuem 07 cores, simbolizando as 07 cores do arco-íris.

225
Decerto, é uma obra gigantesca, marcada na história do evangelho, que tende a
crescer mais e mais, porque seu foco é propagar a Palavra de Deus; fazendo com que
se expanda notoriamente e ilumine os passos de todos aqueles que a aceitam.

A Tua Palavra é lâmpada que ilumina os meus passos e luz que clareia o meu
caminho” (Salmos 119:105).

Trajetória da IPDA

A Igreja Pentecostal Deus é Amor foi fundada dia 03 de Junho de 1962 e começou com apenas
três membros: Missionário David Martins Miranda, sua mãe Anália Miranda e sua irmã Araci
Miranda, conforme a orientação do Senhor. Ela cresceu e cresce sobremaneira, por isso
alcançou igrejas/almas em quatro continentes da terra, que são: América, Europa, África e
Ásia.

Ela tem muitas realizações vitoriosas do Senhor: o programa Voz da Libertação; milhares de
conversões, libertações e batismos de muitíssimas almas do mundo inteiro; lançou o Jornal O
Testemunho e as revistas Expressão Jovem e Ide; muitas IPDAs pelo Brasil e mundo; entre
outras.

O número de almas que aceitavam a Jesus Cristo era muito grande, com isso, foi inaugurado o
Templo III, na Avenida do Estado, nº 5000. Em seguida, no decorrer dos anos, pelo crescimento
da obra, foi reconstruída a antiga Sede e inaugurado o novo Templo da Glória de Deus.

Contudo, essa obra que começou com três membros, hoje, pela graça de Deus, superabunda a
cada dia, principalmente por causa da palavra verdadeira que é pregada desde o início de sua
existência. Por intermédio dela, almas foram ganhas para o Reino dos Céus, salvas pelo Senhor
Jesus, através deste ministério, em cumprimento das promessas do Filho de Deus, O qual
prometeu ao Seu filho: missionário David Miranda.

Convite da AUDIÊNCIA PÚBLICA DE 2019

226
REPORTAGEM SOBRE A EVANGELIZAÇÃO PELAS ALDEIAS INDÍGENAS DE
2020

Na era Bolsonaro, evangelização se alastra nas aldeias indígenas

Por Raíssa Ebrahim em 16/03/2020, 10:08. Fonte: https://marcozero.org/na-era-


bolsonaro-evangelizacao-se-alastra-nas-aldeias-indigenas/

O movimento de evangelização vem ganhando força sob o bolsonarismo, com religião,


política e mídia andando de mãos dadas a projetos ultraliberais. Os indígenas já foram
evangelizados por brancos estrangeiros e brasileiros e, no início dos anos 2000, uma
“terceira onda” missionária começou a se formar e agora vem ampliando terreno. São
indígenas que evangelizam indígenas.

A bíblia, seja ela carregada por um pastor (neo)pentecostal indígena ou branco,


encontra na vulnerabilidade social e econômica do país uma porta de entrada para o
argumento da “salvação”.

Dados do Censo, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam


que o percentual de indígenas evangélicos saltou de 14% para 25% entre 1991 e 2010.
Uma pesquisa de 2018 do Datafolha mostra que essa fatia já é de 32%.

O Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei), fundado


em 1991, já reúne, segundo o presidente, Henrique Terena, mais de 2 mil pastores e
lideranças que atuam com a missão de “ver Deus glorificado entre as tribos do Brasil”
e com o lema “Em cada povo uma igreja bíblica genuinamente indígena”.

Os congressos do Conplei, cuja base teórica tem influência na chamada “antropologia


missionária”, reúnem entre 4 mil e 5 mil indígenas. O 9º encontro será em setembro, no
Maranhão.

A Marco Zero Conteúdo conversou, entre fevereiro e março, com lideranças indígenas
de diferentes estados para entender melhor esse cenário e o modus operandi da
evangelização, do contato à conversão.

Toré de um lado, bíblia do outro


Do lado oposto, o argumento que alimenta a luta de resistência defende a manutenção
das tradições culturais e religiosas, muitas vezes demonizadas pela igreja, e acredita
que a imposição evangélica é incompatível com cachimbo, toré e maraca.

Quem resiste são integrantes dos povos originários que se juntam a acadêmicos na
ideia de que abrir terreno para a igreja é abrir terreno para projetos de mineração,
extrativismo, agropecuária e energia, passando por cima de preceitos constitucionais
de proteção de terras e garantia de direitos, inclusive ao isolamento.

Mas, por outro lado, há pessoas que defendem e trabalham pelo “plantio de igrejas”,
acreditam que religiões diferentes podem, sim, conviver dentro de um mesmo território.
Esses indígenas também não veem problema na nomeação do ex-missionário

227
evangélico Ricardo Lopes Dias para a Coordenação-geral de Índios Isolados e Recém-
Contatados da Fundação Nacional do Índio (Funai).

A presidência do órgão, que foi chefiada por evangélicos já no Governo Temer, alterou
o regimento da autarquia, retirando a exigência de que o cargo de uma das áreas mais
sensíveis da Funai fosse ocupado por um servidor de carreira.

Um levantamento publicado no mês passado pelo jornal O Globo, realizado junto ao


Ministério Público Federal (MPF), mostra que missionários evangélicos já atuam junto
a, ao menos, 13 dos 28 povos isolados conhecidos pela Funai. A maioria está no Vale
do Javari (AM), onde há registros confirmados de ameaça a 10 povos.

O contato representa também um risco para a saúde desses indígenas. Na quarta (11),
o MPF recomendou a suspensão imediata da aproximação com indígenas isolados da
comunidade Yanomami Moxihatëtëa após saber que órgãos da saúde indígena
planejavam ações na região.

Os grupos missionários vêm encontrando respaldo no atual cenário político e a


nomeação de Ricardo Lopes Dias é mais um agravante, de acordo com fontes ouvidas
pela MZ. Dias é membro da já denunciada Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) e,
como missionário, atuou junto ao povo Matsés, no Vale do Javari, em missão de
conversão compulsória.

O MNTB também tem na sua história o caso do ex-missionário norte-americano


Warren Scott Kennell, condenado por pedofilia e abuso sexual de menores indígenas no
Acre.

O MNTB é ainda mais agressivo do que as neopentecostais. Relatos como os de


reportagens publicadas nos sites Repórter Brasil e The Intercept, detalham como esse
grupo realiza conversões involuntárias, com uso de violência e coação.

Em fevereiro, o MPF foi à Justiça contra a nomeação de Ricardo numa ação judicial
que aponta evidente conflito de interesses, riscos à política de não contato e ameaça de
genocídio e etnocídio para povos isolados e de recente contato.

228
Autorizo a reprodução deste trabalho.

Dourados, 29 de maio de 2020.

__________________________________________

Elemir Soare Martins

229

Você também pode gostar