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Introdução à
Obra Cinematográfica Completa
de Guy Debord
Após sairmos dessa bagunça e criarmos uma sociedade sadia, livre, as gerações futuras
olharão para trás e verão Guy Debord como a personalidade do século XX que mais
contribuiu para essa libertação.
Isto ocorreu pela dificuldade em acessá-los. Mesmo com os primeiros três filmes sendo
raramente exibidos, o primeiro deles provocou alguns escândalos nos anos cinqüenta.
Os três posteriores foram mostrados um pouco mais amplamente em Paris nos anos
setenta e no início dos anos oitenta, mas poucas pessoas em outros lugares tiveram
qualquer chance de vê-los. Em 1984 Gérard Lebovici, amigo e editor de Debord (que
também tinha financiado seus últimos três filmes), foi assassinado. Enfurecido com a
imprensa francesa que espalhou rumores sobre Lebovici e seus «sócios sombrios»
insinuando em alguns casos que Debord eventualmente teria algo a ver com o
assassinato de seu amigo, Debord retirou todos os seus filmes de circulação. Com
exceção de algumas exibições privadas ninguém mais viu qualquer um deles novamente
até o ano de 1995, quando dois dos filmes (junto com um vídeo recentemente acabado)
foram exibidos em um canal de TV a cabo francês logo após a morte de Debord. Cópias
pirateadas de vídeo dessas três obras tem circulado desde aquele tempo, mas os filmes
originais permaneceram inacessíveis até 2001, quando Alice, a viúva de Debord, tomou
a iniciativa de novamente trazê-los ao público.
A obra de Debord não está nem para torre de marfim de discurso filosófico nem para
porra-louquice de protesto militante, trata-se de um implacável e lúcido exame das
tendências mais fundamentais e das contradições da sociedade em que vivemos. Isto
significa que ela precisa ser relida (ou no caso dos filmes, revista) muitas vezes, mas
também significa que enquanto incontaveis e passageiros modismos radicais e
intelectuais vem e vão, a obra de Debord permanece inteiramente pertinente. Desde a
publicação original de A Sociedade do Espetáculo (1967), já se passaram várias
décadas. O espetáculo tornou-se ainda mais penetrante. E ao ponto de virtualmente
reprimir qualquer consciência da história do pré-espetáculo ou das possibilidades do
anti-espetáculo. «A dominação espetacular teve tal sucesso que submeteu e moldou toda
uma geração às suas leis» (Comentários da Sociedade do Espetáculo).
Nossos agitadores disseminaram idéias que uma sociedade de classes jamais engoliria.
Os intelectuais a serviço do sistema — eles mesmos mais decadentes que o próprio
sistema — estão agora cuidadosamente investigando esses venenos na esperança de
descobrir alguns antídotos; mas não terão sucesso. Eles fizeram de tudo que puderam
para ignorá-los — mas em vão, pois grande é o poder da verdade dita em seu tempo. . . .
Não venha nos dizer agora quão boas foram as armas que usamos: elas permanecem
atravessadas na garganta do sistema reinante de mentiras. [In girum]
Ouso dizer que o mesmo se provará verdadeiro no que diz respeito aos filmes de
Debord, apesar de todas as tentativas de neutralizá-los.
Como autor do diagnóstico mais penetrante da presente era, não é de surpreender essa
crescente notoriedade de Debord, mesmo quando esta notoriedade consiste em grande
parte de rumores hostis sobre sua vida pessoal e de absurdas e errôneas concepções
sobre seus projetos e perspectivas. Felizmente, ele mesmo foi suficientemente capaz
explicar-se e defender-se, assim eu acredito que não há qualquer necessidade aqui de
tentar fazer por ele algo nesse sentido.
Porém, tomo a liberdade de citá-lo uma vez mais para refutar uma das falsificações mais
totais e prevalecentes que o apresentam como artista ou estilista literário que atravessou
uma fase radical para depois, supostamente, desiludir-se e resignar-se:
Não reivindico aqui que Debord esteja acima de qualquer crítica, reivindico, isto sim,
que a maioria das críticas feitas a ele foram folgadamente errôneas ou irrelevantes. E
digo mais, aqueles que passivamente o veneraram foram contrários a tudo aquilo que ele
fez. A questão é assimilar o que ele disse, fazer uso daquilo que pareceu pertinente, e
ignorar o resto. A questão real em torno desses filmes não é mostrar o que Debord fez
com a vida dele, mas mostrar o que você está fazendo com a tua.
***
A edição francesa original destes manuscritos do filme não contém nenhuma nota ou
outros textos. Para a presente edição eu adicionei alguns documentos (todos escritos por
Debord) e outros materiais relacionados. Em termos gerais, evitando tecer comentários
interpretativos, incluí uma boa quantidade de notas informativas, inclusive das fontes da
maioria das referências e détournements de meu conhecimento, e todas as anotações do
próprio Debord em Im girum. Eu apreciaria se trouxessem ao meu conhecimento
qualquer erro ou omissão nas notas e que me enviassem sugestões no sentido de
melhorar as traduções.
Estas traduções também serão usadas para legendar os filmes. Apesar deste livro, tanto
a cronometragem como algumas outras particularidades da legenda e posicionamento
ainda precisam ser acertadas, mas se tudo correr bem é provável que as versões
legendadas em inglês dos filmes estarão disponíveis em 2004. Informações atualizadas
podem ser encontradas em meu site «Bureau of Public Secrets»: www.bopsecrets.org.
Meus agradecimentos a Alice Debord que pediu-me para traduzir os filmes (uma honra)
e que tomou a acertada decisão de relançar os filmes; a Michèle Bernstein, James
Brook, Daniel Daligand, Alice Debord, e Mateusz Kwaterko que proveram
informações, críticas e sugestões; a Jeanne Smith pelo livro soberbo, pelo desenho da
capa, pela ajuda técnica implementada no planejamento do layout; e para o pessoal do
AK Press por assumir esse desafio, esse projeto extraordinário e excitante. Uma
saudação também para os tradutores anteriores e outros que ajudaram disseminar os
manuscritos e cópias de vídeo quando os filmes estavam indisponíveis e virtualmente
desconhecidos.
KEN KNABB
Abril de 2003