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1 Ao mesmo tempo, é também verdade que, por falta de explicitação e de clareza conceitual nos próprios escritos de
Bakhtin e também pelo limitado número de estudos a respeito do cronotopo literário — em oposição aos bem conhecidos
conceitos bakhtinianos mais elaborados e aplicados tais como “dialogismo”, “heteroglossia” e “carnavalização” ― ainda
existem alguns “problemas com os cronotopos” (Ladin, 1999: 213-215; veja também Scholz, 2003: 145-148). Enquanto uma
vertente de pesquisadores bakhtinianos reconhece o avanço conceitual dessa teoria e, por vontade própria, se engaja na
elaboração de seu esboço inicial, outros argumentam que o pesquisador russo não foi, de modo algum, um pensador
sistemático, assumindo que a novidade do pensamento de Bakhtin reside ju stamente em sua natureza contraditória (Wall,
2002).
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1. A teoria bakhtiniana do cronotopo literário
2 Em seu recente estudo sobre Bakhtin e gênero, Renfrew ressalta o aspecto da encarnação e da corporeidade na definição
bakhtiniana do cronotopo. FTC, Renfrew afirma, “surge, assim, como uma tentativa mais extensa, em razão do material
literário existente, de classificar os meios de finalização da imagem externa do sujeito humano, inseparável de, mas
irredutível ao corpo que ocupa espaço e se move ao longo do tempo. O princípio dessa classificação será a capacidade de os
valores temporais e espaciais de qualquer ambiente fictício de facilitar a “posse” do evento de ser, de permitir a
representação de uma imagem viva, em oposição àquela que pode ser descrita como “abstrata”, “fixa”, ou “monológica”
(2006: 119).
3 FTC: 84-5. A discussão a seguir é baseada em Holquist (2002: 115-6), Mitterand (1990:181-9), Morson e Emerson (1990:
366-9), Neff (2003), Scholz (2003: 149-56) e Collington (2006: 25-37). Para uma discussão sobre a influência das teorias de
Einstein sobre o pensamento bakhtiniano em geral, ver Stone (2008).
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concepções de tempo e espaço, mas sim no que diz respeito aos seus focos de
interesse. Enquanto Kant empreendeu uma tentativa cientificamente embasada de
desenvolver uma compreensão do sistema universal da percepção humana através do
tempo e espaço, Bakhtin buscava evidências históricas de tal atividade perceptual tal
como manifestada em textos literários:
Avanços de sua época em matemática e física, por sua vez, deram a Bakhtin uma
forte convicção de que a natureza das configurações espaço-temporais nos mundos
narrativos, embora não totalmente idêntica ao tempo-espaço einsteiniano (tempo como
a quarta dimensão do espaço), compartilha um terreno comum com os princípios da
teoria da relatividade. Em primeiro lugar, como já foi observado, tanto no mundo f ísico
quanto no ficcional, pode-se observar uma conexão intrínseca entre tempo e espaço,
porque em ambos os domínios a cronologia não pode ser separada dos eventos e
vice-versa: “Um evento”, escreve Michael Holquist, “é sempre uma unidade dialógica,
tanto quanto uma correlação: algo só acontece quando outra coisa com a qual ele
pode ser comparado revela uma mudança no tempo e no espaço […]” (2002: 116). A
segunda semelhança pode ser encontrada na proposição de que existe uma variedade
de sentidos de tempo e espaço. Em matemática, por exemplo, o suposto sistema
universal da geometria euclidiana, de repente, perdeu seu monopólio quando
Lobachevsky desenvolveu sua geometria multidimensional: “Para Bakhtin, o que é
verdadeiro das geometrias do espaço também é verdadeiro dos cronotopos” (Morson e
Emerson, 1990: 368). Como Morson e Emerson observaram, segue-se, então, que
“diferentes aspectos ou sequências do universo não podem supostamente operar com
o mesmo cronotopo” (ibid.). Um exemplo representativo das ciências exatas pode ser
encontrado nos diferentes ritmos segundo os quais organismos biológicos e corpos
celestes evoluem. Na história literária, temos o exemplo dos cronotopos pelos quais
diferentes aspectos da experiência humana, tais como a eterna alternância das
4 Outras pesquisas ligam as ideias de Bakhtin sobre o nexo temporal e espacial com as noções do filósofo alemão
neokantiano Ernst Cassirer, que, em sua A filosofia das formas simbólicas, distingue entre as estratégias artísticas, mitológicas e
científicas de conhecimento (cf. Brandist 1997 e 2002; Poole 1998; Tihanov 2000a). Em FTC (251), Bakhtin admite ter sido
influenciado pelas ideias de Cassirer sobre a natureza cronotópica da linguagem (ver o primeiro volume de A filosofia das
formas simbólicas), mas, provavelmente, ele também foi inspirado pelo tratamento mitológico do tempo e do espaço analisado
no segundo volume da magnum opus de Cassirer.
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estações (ciclicicidade), em oposição à descrição de verdadeiros eventos históricos
(historicidade), assumem forma narrativa. Em suma, “[…] a relação do ‘cronotopo’ com
o ‘espaço-tempo’ einsteiniano é algo menos que identidade, mas mais forte do que
mera metáfora ou analogia” (ibid.: 367)5.
2. Reflexões
Essa falta de precisão analítica nos ensaios de Bakhtin levou a uma proliferação
5 O próprio Bakhtin legitima a introdução deste neologismo nos estudos literários da seguinte maneira: “O significado
especial que ele tem na teoria da relatividade não é importante para os nossos propósitos ; transferimos o conceito para a
crítica literária quase como uma metáfora (quase, mas não totalmen te). O que nos importa é o fato de que ele expressa a
inseparabilidade do espaço e do tempo (o tempo como a quarta dimensão de espaço)” (FTC: 84). De fato, o uso bakhtiniano
do termo cronotopo pode ser caracterizado como quase-metafórico na medida em que ele faz uso de uma metáfora já
existente (que por sua vez estabelece linguisticamente a fórmula matemática abstrata E = MC²) (Collington , 2006: 25-31)
como um organon cognitivo para melhor compreensão dos dados a partir de um campo qualitativamente diferent e: para a
transição do tempo-espaço da física para a narrativa é, obviamente, necessário levar em consideração outros fatores
determinantes, como a trama e os personagens.
6 O mesmo acontece com os estudiosos brasileiros. Para mais informações, ver “Bakhtin e o cronotopo: uma análise crítica”.
cronotopos no próprio ensaio e mais três nas “Observações finais”, e Vlasov confiantemente afirma que em FTC “Bakhtin
apresenta seu sistema catalogado [sic] de vários cronotopos na história do romance. Segundo ele, há oito cronotopos
básicos do romance” (1995: 42).
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de abordagens heterogêneas do cronotopo na literatura e, mais amplamente, na
cultura. Essa proliferação já está presente no próprio FTC. No item “Observações
finais”, que Bakhtin adicionou em 1973 como um décimo capítulo, ele situa “o
significado de todos esses cronotopos” em pelo menos quatro níveis diferentes:
Falamos até agora só dos cronotopos principais, aqueles que são mais
8Interessante a esse respeito é a interpretação de Tihanov do FTC como uma participação indire ta de Bakhtin na discussão
de Lukács sobre o gênero do romance em The Historical Novel (Tihanov, 2000b: 59-61).
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fundamentais e abrangentes. Mas cada um desses cronotopos pode incluir no seu
interior um número ilimitado de cronotopos menores, na verdade […] qualquer
motivo pode ter um cronotopo específico próprio. Dentro dos limites de um trabalho
único e dentro da produção literária total de um único autor podemos notar um
número de diferentes cronotopos e interações complexas entre eles, específicos de
determinado trabalho ou autor; além disso, é comum um desses cronotopos
envolver ou dominar os outros (principalmente, por exemplo, aqueles que tenho
analisado neste ensaio) […] (FTC: 252; grifos nossos).
(4) Por outro lado, é possível afirmar que narrativas que, no decurso do processo
de leitura, produzem uma impressão semelhante em relação a seu mundo ficcional,
partilham um cronotopo principal semelhante; cronotopos principais podem assim ser
divididos em classes ainda mais abstratas de cronotopos genéricos. Esses cronotopos
são aqueles a que Ladin se refere como “cronotopos que […] podem ser abstraídos a
9 Bom exemplo de análise hermenêutica dos cronotopos motívicos pode ser encontrado em Deltcheva e Vlasov (1997). Uma
utilização criativa do cronotopo motívico no contexto da arquitetura da paisagem é oferecido por Potteiger e Purinton
(1998).
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partir de trabalhos individuais em que aparecem e servem de base para a
categorização e comparação para aqueles trabalhos” (1999: 232). Nesse nível
particular, o conceito deve ser entendido como aquilo que Bakhtin chama de “categoria
literária formalmente constitutiva” (FTC: 84).
(5) Por último, Keunen (2011) propôs recentemente um quadro sistemático que
permite dividir cronotopos genéricos em classes ainda mais abstratas. Central em seu
quadro é a divisão em dois tipos diferentes de “cronotopos de enredo-espaço” que
ilustram dois tipos diferentes de desenvolvimento temporal na totalidade abstrata do
mundo ficcional. Cronotopos teleológicos — ou monológicos — caracterizam narrativas
tradicionais, nas quais toda a trama se move em direção ao momento final (o
“éschaton”10). Aqui, a curva do suspense é construída como uma alternância entre
cronotopos de equilíbrio e conflito. Conflitos, nessas narrativas, são simplesmente
obstáculos externos durante a jornada do herói rumo a um estado de equilíbrio.
Baseado na posição do conflito dentro da narrativa, Keunen distingue três subtipos: o
cronotopo da missão (onde o conflito se põe entre dois estados de equilíbrio; por
exemplo: o romance de aventura, o conto de fadas, histórias de fantasia), o cronotopo
da regeneração (em que uma série de conflitos é superada num equilíbrio final; por
exemplo: o romance picaresco, o romance gótico, o romance popular) e o cronotopo
da degradação (onde o equilíbrio inicial se perde em um conflito não resolvido; por
exemplo: as tragédias de Sófocles ou de Shakespeare)11. Em cronotopos dialógicos,
por outro lado, a narrativa não é direcionada para um momento final, para um “telos”,
mas se constitui em uma rede de situações conflitantes e entrecruzadas que se
comunicam umas com as outras — daí o termo “dialógicos”. Aqui, os cronotopos em
conflito são predominantemente de natureza psicológica, e o que importa não é o telos
para o qual as narrativas mais tradicionais estão dirigidas, mas o “kairós”: os críticos e
decisivos momentos característicos do romance moderno desde o século XIX.
Novamente, Keunen distingue três subtipos de cronotopos dialógicos, a saber: o
cronotopo trágico (onde personagens conflitivos predominam), o cronotopo cômico
(onde personagens equilibrados predominam) e o cronotopo tragicômico (sem
personagens dominantes).
10 A palavra se originou do grego eskhatos, que significa último. É também um ramo da teologia que se refere ao fim do
mundo ou da humanidade. (N. do T.)
11 A partir da noção de “composição do enredo”, que, desde a influente obra Meta-história de Hayden White (1973 [ed. br.:
2008]), tem sido considerada uma característica da historiografia geral, De Dobbeleer mostrou recentemente como a
classificação de Keunen de cronotopos teleológicos pode ser útil na determinação de uma “visão de mundo ideologizada”
particular subjacente a textos historiográficos pré-modernos (e a textos épicos). Assim, comparando a estrutura da trama de
três diferentes “testemunhos” da Queda de Constantinopla (1453), ele observa que diferentes “visões” ideológicas (por
exemplo, vencedores vs. perdedores) possibilitou diferentes “cronotopos de enredo-espaço” (e seus respectivos tipos de
herói) para representar o mesmo evento histórico (2008a). Em outra ocasião, De Dobbeleer analisa a estrutura narrativa do
cronotopo da missão em um relato épico e historiográfico da tomada de Kazan (1552), em termos das respectivas ideologias
expansionistas que eles deveriam representar (2008b).
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3. Aplicações
12 Renfrew (2006, 118-130) apresenta uma discussão muito interessante sobre a complexa relação e a continuidade entre o
trabalho de Medvedev sobre gênero e a teoria de Bakhtin nos ensaios sobre o cronotopo FTC e RFHR.
13 Outros estudiosos de Bakhtin que definem o cronotopo dessa forma são: Roderick Beaton, cuja caracterização do
cronotopo como “a configuração distintiva de tempo e espaço que define a ‘realidade’ no mundo de um texto, como
conceitualizado nesse próprio mundo”(2000: 181; grifo no original) é muito esclarecedor a esse respeito; Tzvetan Todorov,
que o caracteriza como “a representação do mundo” (1981: 140) e Bart Keunen, que usa o equivalente holandês de visão de
mundo (“wereldbeeld”) nos títulos de dois de seus livros (2000b, 2005).
14 Seegundo Tihanov, a diferença mais substancial entre Lukács e Bakhtin reside na natureza ativa atribuída por Bakhtin aos
gêneros literários (e, portanto, ao cronotopo). Para Lukács, “gêneros literários são entidades que refletem o mundo, cada
um deles a partir de um ponto de vista único, em uma forma não mediada”. Para Bakhtin, por outro lado, “gêneros não
refletem mais o mundo, em vez disso, eles o representam e o modelam” (Tihanov, 2000b: 59, grifo no original).
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espaço, a fim de adequar-se ao modelo exterior de realidade 15, ou ainda como
evidência narrativa da existência de padrões cognitivos supostamente universais
baseados na alternância entre regularidade e contingência (Keunen, 2005, 2011). Por
outro lado, Borghart e De Temmerman (2010) mostraram como três manifestações
diacrônicas do mesmo gênero — a saber, o antigo, o bizantino e o moderno romance
grego de aventura e provação — podem ser plausivelmente ligadas a tentativas
contemporâneas de estabelecer uma identidade helênica comum.
oculta, potencialmente, e ser revelados somente em contextos semântico-culturais de épocas subsequentes favoráveis a tal
divulgação” (Bakhtin, 2002b: 5; grifo no original). Ver as análises de Borghart e De Temmerman sobre o reaparecimento do
romance grego antigo de aventura nos tempos bizantino e moderno (2010).
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exibiram um sentido pleno de tempo (por exemplo, o tempo com significado biográfico
embrionário no romance de aventura romano da vida cotidiana e na biografia antiga),
para, finalmente, chegar ao ideal do realismo do século XIX e à concepção de tempo
histórico real, internalizada pelo seu respectivo cronotopo: “Tais são os cronotopos
específicos […] que servem para a assimilação da realidade atual (inclusive
historicamente), que permitem que os aspectos essenciais dessa realidade sejam
refletidos e incorporados no espaço artístico do romance” (FTC: 251-2)18. Não
obstante a filosofia geral de Bakhtin sobre a criatividade e a abertura humanas, sua
visão teleológica da evolução literária parece equivalente à ideia de esgotamento
genérico. Tal consideração, moldada ou não pela ideologia stalinista do materialismo
histórico (Mitterand, 1990: 83), é, naturalmente, insustentável. Posteriormente, alguns
estudiosos levantaram a hipótese de que algumas configurações cronotópicas
subjazem a todo tipo de narrativa, ainda que mínima, incluindo piadas, tirinhas, contos
de fadas, histórias de animais, poesia narrativa e similares (veja abaixo). Portanto, em
vez de aderir a um sistema de gênero fechado e virtualmente normativo, seria melhor
assumir um sistema aberto de inúmeros cronotopos genéricos, cuja natureza e história
precisa ainda tem de ser determinada 19. Reconhecidamente, entre eles, várias e
complexas construções de mundo — que, em certa medida, coincidem com a tipologia
estabelecida por Bakhtin — parecem ser tão produtivas que não só se criam
verdadeiros tipos de narrativa literária, mas também, em última análise,
frequentemente enriquecem o campo da cultura popular.
18 Ver também FTC (84, 85) e RFHR (19, 21, 43). Para uma discussão mais detalhada da concepção teleológica de Bakhtin da
história literária, ver Mitterand (1990: 183-5), Morson e Emerson (1990: 372, 384, 388, 392), Morson (1991: 1082) e
Collington (2006: 39-40).
19 Ladin é menos otimista, concluindo que qualquer tentativa de estabelecer uma tipologia de cronotopos — em qualquer
nível de abstração — será em vão, pois tal abordagem reducionista, argumenta-se, necessariamente exclui todo um espectro
de possibilidades e variações: “Para encarnar o cronotopo […] devemos abandonar a tentadora visão bakhtiniana de uma
taxonomia completa de cronotopos, toda uma lista de diferentes espaços -tempos com implicações genéricas, históricas e
ontológicas específicas” (1990: 230).
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narrativas cujos relatos de leitura causam impressões semelhantes, porque seus
mundos ficcionais podem, hipoteticamente, compartilhar o mesmo cronotopo genérico.
Isso implica, por sua vez, a possibilidade de categorizar um texto narrativo
(representamen) apenas com base em sua exibição de um número suficiente de
estratégias textuais (representans) conhecidas por serem características de um
cronotopo genérico particular. Alguns estudiosos defensores da virada cognitiva da
narratologia contemporânea (Ibsch, 1990) têm tentado alinhar a determinação de
cronotopos genéricos de acordo com as conquistas da psicologia cognitiva (Keunen,
2000a, veja abaixo), enquanto abordagens narratológicas e temáticas mais tradicionais
também têm sido propostas (Borghart, 2006; Bemong, 2007).
A discussão acima nos leva a uma segunda disciplina dentro da teoria literária em
que o conceito bakhtiniano de cronotopo tem sido algumas vezes, mas fecundamente
aplicado: narratologia. A base para essa conexão é uma qualidade inerente raramente
notada, mais muito importante para qualquer cronotopo. Mais de uma década antes de
a teoria de Bakhtin ter-se tornado objeto de análise sistemática, o especialista em
ficção científica, Darko Suvin (1986, 1989), demonstrou amplamente que o conceito de
cronotopo poderia ser concebido como a differentia generica da narratividade. Ele
chega a essa conclusão através da comparação detalhada entre a parábola bíblica do
grão de mostarda e a metáfora de onde os evangelhos derivaram essa narrativa, uma
comparação em que são realçadas tanto suas qualidades, enquanto organons
cognitivos transportando sentidos antes inexistentes, quanto suas semelhanças
formais, que envolvem determinado mundo possível. Consequentemente, Suvin
argumenta: “[…] as principais diferenças entre uma metáfora singular e um texto
ficcional teriam de ser correlativas à articulação bastante diferente do texto” (1986: 57).
Ao longo de sua argumentação, Suvin esboça convincentemente uma conexão entre
esta “articulação diferente” e a presença de um cronotopo: “A tese central deste
capítulo é que a ‘differentia generica’ necessária e, acredito, suficiente “entre textos
metafóricos e narrativos pode ser mais bem compreendida em termos do cronotopo
bakhtiniano” (ibid.: 58, grifo no original).
A tese de Suvin abre uma excelente oportunidade para introduzir a teoria literária
bakhtiniana no debate em curso entre os narratologistas sobre as principais
características da narratividade. Uma tentativa recente de definir a diferença genérica
de narratividade pode ser encontrada em Towards a ‘Natural’ Narratology (1996), da
conhecida narratologista Monika Fludernik. Levando em conta as narrativas pós-
modernas, caracterizadas pela ausência de qualquer padrão significativo de enredo,
ela argumenta, com razão, contra a tradição estruturalista, que reduz a narratividade a
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mera sequência de dois ou mais eventos (sequencialidade). Em vez disso, Fludernik
propõe uma forma mínima da experiência humana momentânea (experiencialidade)
como denominador comum do gênero narrativo (1996: 20-43). Na sua monografia
seguinte, Time and Imagination: Chronotopes in Western Narrative Culture, no entanto,
Keunen demonstra como mitos sobre deuses e sobre a criação do mundo, cujo tema é
bastante desconectado da contingência da experiência humana, dão forma narrativa a
vários princípios a-históricos. Ele chega, consequentemente, à conclusão de que tais
histórias míticas exibem uma construção de mundo ou cronotopo altamente específica.
A esse respeito, a análise de Keunen parece proporcionar um argumento valioso de
adesão à hipótese de Suvin e de rejeição — ou pelo menos de matização — da
proposta de Fludernik.
Assim, evita ter de cortar os laços que ligam determinado enredo, uma estrutura de
enredo particular ou determinado cronotopo literário ao mundo da vida, em cujo
contexto ele foi produzido. Mais interessante ainda, a análise bakhtiniana da
narrativa oferece um meio de conceituar essa ligação sem ter de recorrer […] de
postular homologias espúrias entre estruturas sociais e estruturas de enredo […]
ou, pior, ter de se refugiar numa estética de espelhamento (ibid.: 162).
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Por fim, algumas palavras devem ser dedicadas à utilidade do conceito de
cronotopo literário no campo da teoria da recepção e da hermenêutica. Na verdade,
como Collington acertadamente observou, “o relacionamento entre o mundo do texto e
o mundo do leitor […] é a menos desenvolvida das inter-relações propostas por
Bakhtin, e as descrições do papel do leitor no processo interpretativo permanecem
vagas” (2006: 93). Até o momento, Keunen (2000a) é quem empreendeu a mais
coerente tentativa de explicar o processo mental de leitura de uma narrativa nos
termos de um quadro conceitual bakhtiniano. Os princípios de tal abordagem cognitiva
dos cronotopos podem ser brevemente resumidos como segue: no curso do seu
desenvolvimento cognitivo, os leitores adquirem uma memória de gêneros que
consiste em um conjunto de estruturas mentais equivalentes a diferentes cronotopos
genéricos. Durante o processo de leitura, um desses esquemas de memória será
ativado, permitindo ao leitor reconhecer o cronotopo relevante e seu correspondente
gênero narrativo (Keunen, 2000a: 1-7). No mesmo paradigma, Keunen faz uma
tentativa semelhante de ligar os cronotopos motívicos aos chamados esquemas de
ação, um conceito que em psicologia cognitiva se refere a estruturas mentais
reguladoras do comportamento humano em situações estereotipadas, como visitar um
restaurante ou ir a uma festa de casamento. Da mesma forma, supõe-se que os
cronotopos motívicos ativam o conhecimento armazenado, variando do conhecimento
factual sobre a realidade empírica ao conhecimento literário especializado, incluindo a
intertextualidade. A combinação de ambos resultaria nos chamados pacotes de
organização de memória (memory organizing packets — MOPs), que, acredita
Keunen, direcionam o processo de leitura e interpretação (ibid.: 7-10).
4. Perspectivas
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maioria dos elementos desse cronotopo “derivavam de outros gêneros”, eles
“assumiram um novo caráter e funções especiais neste cronotopo completamente
novo”. Além disso, em sua nova unidade, eles “deixaram de ser o que tinham sido em
outros gêneros” (FTC: 88-89). Essa visão mostra claras afinidades com a afirmação de
Even-Zohar de que “um repertório apropriado não necessariamente mantém as
funções da cultura de origem” (2005: 65).
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estamos convictos de que os dois paradigmas estão destinados a cooperar e a se
enriquecerem mutuamente em um futuro próximo: considerando que os princípios de
construção de mundos ficcionais determinados pela semântica dos mundos possíveis
oferecem ferramentas para descrição mais detalhada e diferenciada das
características dos cronotopos genéricos, as qualidades sintéticas da teoria
bakhtiniana têm potencial para aumentar a aplicabilidade da semântica dos mundos
possíveis nos domínios da teoria do gênero e da história literária.
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