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TEMPO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

DA COMUNICAÇÃO. UM PASSEIO
TEÓRICO EM TORNO DE
PAUL RICOEUR
TIME, MEMORY AND HISTORY OF COMMUNICATION. A THEORY RIDE
AROUND PAUL RICOEUR
TIEMPO, MEMORIA E HISTORIA DE LA COMUNICACIÓN. UM PASEO
TEÓRICO POR PAUL RICOEUR

Ana Regina Barros Rego Leal


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Jornalista. Professora Associada do PPGCOM-UFPI. Presidenta
SOCICOM. Publicou recentemente: Os desafios da pesquisa em
história da Comunicação (2019).

E-mail: anareginarego@gmail.com

Marialva Carlos Barbosa


Jornalista. Professora Titular da ECO-UFRJ. Publicou recentemente:
Os manuscritos do Brasil (2019).E-mail: marialva153@gmail.com
Jornalista. Professora Titular da ECO-UFRJ. Publicou recentemente: Os
manuscritos do Brasil (2019).
E-mail: marialva153@gmail.com
RESUMO
Este ensaio apresenta reflexões teóricas-filosóficas sobre as fenomenologias do tempo
e da memória, ambas propostas por Paul Ricoeur (2010, 2012), com o intuito de
contribuir para repensar a historiografia da comunicação, a partir do desvelar da
historicidade dos fenômenos comunicacionais tendo como fio condutor a compreensão
da potencialidade do tempo e da memória na construção das narrativas históricas sobre
a comunicação.
PALAVRAS-CHAVE: TEMPO; MEMÓRIA; HISTÓRIA; COMUNICAÇÃO.

ABSTRACT
This essay presents theoretical and philosophical reflections on the phenomenologies
of time and memory, both proposed by Paul Ricoeur (2010, 2012), in order to help
rethink the historiography of communication, from the unveiling of the historicity
of communicational phenomena, having as guiding thread the understanding of the
potentiality of time and memory in the construction of historical narratives about
communication.
KEYWORDS: TIME; MEMORY; HISTORY; COMMUNICATION.

RESUMEN
Este artículo presenta reflexiones teórico-filosóficas sobre las fenomenologías del 97
tiempo y de la memoria, ambas propuestas por Paul Ricoeur (2010, 2012), con el
fin de contribuir a repensar la historia de la comunicación, a partir de la revelación
de la historicidad de los fenómenos comunicacionales, teniendo como cable guía, el
entendimiento de la potencialidad del tiempo y la memoria en la construcción de
narrativas históricas sobre la comunicación.
PALABRAS CLAVE: TIEMPO; MEMORIA; HISTORIA; COMUNICACIÓN.
1. Introdução ressar na construção de uma historiografia da
A historiografia da mídia tem privilegiado em comunicação. Inicialmente, o foco recai sobre a
grande medida a trajetória de personagens e de fenomenologia do tempo em seus primeiros mo-
instituições, destacando, por vezes, os contextos mentos em que Agostinho e Aristóteles são con-
descritos, pressupondo, portanto, que ao narrar frontados. Num segundo momento emergirão os
fatos e acontecimentos de um outro tempo esta- gestos de memória que influem nesse processo, e,
ria construindo a verdade histórica do passado1. por fim, detalhamos os usos e apropriações que
A ausência de investigações que congreguem os pesquisadores em historiografia da comunica-
tanto o caráter histórico, como a procura pela ção podem fazer do pensamento ricoeuriano.
historicidade dos fenômenos, tem prejudicado a
compreensão dos modos de atuação vigentes da 2. O Tempo no tempo
mídia em sua configuração holística. O tempo foi objeto da filosofia e de várias ciên-
Nesse texto propomos pensar não somente as cias ao longo dos séculos. E também foi um dos
relações possíveis entre os campos da filosofia, temas de Paul Ricoeur em seu clássico Tempo e
da história e da comunicação, mas repensar as Narrativa. Na quarta parte do livro localizada no
formas de construção de uma historiografia da terceiro volume, o foco de sua reflexão recai so-
comunicação tendo como ponto de partida as bre o tempo narrado. Nesse último movimento
proposições de Paul Ricoeur, filósofo do sentido que faz Ricoeur (2010, v.3, p. 3), procurando ex-
(Barbosa, 2006), que teve a história como campo plicitar a sua hipótese de que toda configuração
privilegiado de observação e estudo. narrativa carrega em si uma refiguração da expe-
O campo comunicacional, enquanto lugar de riência temporal, duas temáticas são exploradas.
reflexividade de fala do político e de fabricação Primeiramente, a aporética da temporalidade sur-
de um olhar sobre o histórico, vem também so- ge em três confrontos em que a fenomenologia do
frendo um processo de crise que se reverbera tempo é analisada: entre Agostinho e Aristóteles;
98 nas narrativas historiográficas acerca de si e dos posteriormente, entre Kant e Husserl; e por fim,
campos com os quais se relaciona. Narrativas do a fenomenologia de Heidegger com foco no tem-
passado da comunicação se colocam de forma po vulgar. A segunda temática trata da poética da
objetiva e muitas vezes atendem a uma inten- narrativa. Nesse ambiente, o tempo histórico sur-
cionalidade funcional, esquecendo que entre os ge, a partir de uma digressão entre a intentio e a
tempos vividos e os que estão por viver, há mais distentio em confronto com a cosmologia, assim
que linearidade e cronologia. Essa linearidade como o relacionamento entre a ficção e as varia-
narrativa da história do campo da comunicação ções imaginativas do tempo, o passado histórico, o
nem sempre permite compreender os espaços mundo texto e o mundo do leitor, as intersecções
de experiência (Kosselleck, 2014) sobre os quais entre história e ficção, até chegar à proposição de
se constrói um relato, tanto no que concerne às uma hermenêutica da consciência histórica.
próprias transformações inerentes ao campo co- Ricoeur trabalha no limite entre uma aporética
municacional, quanto aos espaços e contextos vi- temporal agostiniana e uma poética da narrativa
venciados e narrados. aristoteliana, desde o primeiro volume, em que
Apresentamos nas próximas páginas enxertos as aporias da experiência do tempo a partir de
da obra Ricoeur que podem efetivamente inte- Agostinho, são apresentadas, assim como a com-
1 Um balanço da produção historiográfica brasileira sobre mídia posição da intriga na narrativa, que tem lugar na
pode ser encontrado em Barbosa, 2019. poética de Aristóteles. É, portanto, no desenrolar
de suas ponderações sobre os possíveis encontros Nesse sentido, procura, a partir da análise das
entre a aporética temporal e a poética narrativa aporias temporais, um viés que possa ser explora-
que surge o círculo hermenêutico, proposto em do em sua hipótese de que toda narrativa neces-
três momentos miméticos: prefiguração, confi- sita da experiência temporal, assim como de que
guração e refiguração. tempo só se torna humano através da narrativa.
Neste texto, duas proposições de entradas na Tempo vivido e tempo universal fornecem, cada
refiguração do tempo narrado nos interessam um a seu modo, possibilidades de entrada para
potencialmente: em primeiro lugar, a aporética o círculo hermenêutico em que ação e interpre-
do tempo agostiniano confrontada com as pro- tação da narrativa se consolidam na refiguração
posições cosmológicas aristotelianas, como tam- da experiência temporal. E é esse o ponto prin-
bém, a fenomenologia da memória que nos for- cipal para Ricoeur, sobretudo quando considera
nece vieses para compreensão da temporalidade os processos de construção das narrativas histo-
das narrativas. riográficas e ficcionais, às quais acrescentamos as
narrativas da comunicação.
2.1 A fenomenologia do Tempo por Ricoeur No terceiro volume de Tempo e narrativa, o
A tradição cosmológica à qual se filia Aristó- Tempo narrado, Ricoeur mantém Agostinho
teles trata o tempo como algo onipresente, que como seu principal guia no processo analítico no
tanto nos envolve como nos ultrapassa, “[...] sem que concerne às dúvidas sobre o tempo, embo-
que a alma tenha a potência para produzi-lo” ra pontue que reconhece o valor dos pensadores
(idem). Essa tradição prioriza o movimento so- que o sucederam e que também compõem o es-
bre o tempo e não considera o envolvimento da copo analítico da aporética temporal. Para nosso
alma na relação/compreensão entre o ser e o tem- presente exercício reflexivo, entretanto, só traba-
po, ou o tempo enquanto ser. É nesse ponto que lharemos com a primeira parte da aporética, que
Agostinho fornece uma primeira solução, visto tem como foco Agostinho e Aristóteles.
que, para ele, o tempo não possui natureza física2 De certo modo, Ricoeur (2010, v. 3, p. 15-18) 99
que move e faz mover os astros, mas está ligado considera que Agostinho fracassa quando analisa
a uma distensão da alma que leva a percepções a extensão e possibilidades de medida do tem-
temporais distintas. po somente pelo viés da alma, portanto, de uma
Ricoeur (2010, v. 3, p. 15), de certa forma, con- distensão do espírito. Para Agostinho, tanto os
testa a proposição agostiniana, visto que para processos de divisão do tempo quanto as diversas
ele a dialética entre a intentio e a distentio ani- possibilidades de sua medição não são proprie-
mi, não favorece a onipresença da experiência dades inerentes ao tempo. A própria distensão
temporal, podendo, inclusive, levar, de certo da alma se mostra como uma possibilidade de
modo, a um silenciamento. Por outro lado, medida do tempo e se configura como uma re-
também compreende que a lacuna deixada por futação à cosmologia aristoteliana. Todavia, para
Aristóteles, ao não considerar a interação entre Ricoeur, a concepção agostiniana, embora legíti-
o espírito e o tempo, se resolve em certa medida ma e credora por ter sanado uma lacuna na teoria
com Agostinho. do tempo, começou a ser desenhada por Agos-
2 “Ouvi dizer de um homem instruído que o tempo não é mais que tinho de forma equivocada, pois os argumentos
o movimento do sol, da lua e dos astros. Não concordei. Por que não
que utiliza para procurar na distentio animi a ex-
seria antes o movimentos de todos os corpos? Se os astros parassem
e continuasse a mover-se a roda do oleiro, deixaria de haver tempo
tensão do tempo não possuem um base sólida,
para medirmos as suas voltas?” (Agostinho, 2014, p. 304). visto que sua hipótese de que os astros poderiam
ter movimentos espaciais e temporais variados o tempo é algo relativo ao movimento, mas não
de acordo com a percepção temporal interior é se confunde com este. Já o segundo argumento
impensável, ainda que hoje saibamos que os mo- afirma que tempo não existe sem o movimento,
vimentos celestiais são variáveis e não lineares. pois para Aristóteles percebemos o movimento
Para Ricoeur (2010, v. 1, p. 34), a aporia tem- e o tempo juntos. Esse argumento, para Ricoeur,
poral de Agostinho, entre o tempo da alma e as termina por combater a visão agostiniana de fun-
coisas exteriores, em que a intentio e a distentio dar a medida do tempo na distensão do espírito.
animi são chamadas, somente se aproxima da A conclusão de Aristóteles é, portanto, que o
solução quando surgem em seus argumentos a tempo não é movimento, mas também não acon-
memória e a expectativa, enquanto elementos tece sem o movimento. É aqui que Ricoeur se vê
catalizadores da experiência no tempo. “A aporia diante de uma nova dificuldade, qual seja: inserir
se resolve se falamos, não das sílabas que já não a distensão do espírito agostiniano numa concep-
são ou ainda não são, mas de seus vestígios na ção temporal que define o tempo como algo do
memória e de seus sinais na expectativa”. movimento. Esse argumento segue envolvendo
De modo sintético, para Agostinho, “a expecta- três entidades pontuadas por Aristóteles: a gran-
tiva encolhe quando as coisas esperadas se apro- deza, o movimento e o tempo, cuja relação im-
ximam e a lembrança se alonga quando as coisas plica que o antes e o depois sejam vivenciados no
rememoradas se afastam” (Ricoeur,2010, v.3, p. tempo, pelo viés do movimento que, por sua vez,
18). A solução agostiniana, no entanto, pondera só se concretiza por meio da grandeza. A conclu-
Ricoeur, não é completa, visto que não se conse- são desse argumento, segundo Ricoeur (2010, v.
gue perceber qual o acesso direto que podemos 3, p. 21), é definitiva, visto que o antes e o depois
ter para as impressões temporais da alma, nem no tempo vêm de uma “analogia, de uma relação
tampouco como essas impressões podem fornecer de ordem que é no mundo antes de ser na alma”.
meios de medição para o movimento dos astros. Na terceira parte da definição do tempo por
100 É por isso que Ricoeur procura dar visibilida- Aristóteles surge a relação numérica. O número
de aos problemas detectados nas aporias agosti- passa a representar o antes e o depois, ou entre o
nianas, como também considera que Agostinho antes e o depois. Para Aristóteles (apud Ricoeur,
manteve de algum modo, ainda que pouco, algu- idem, p. 22) é o que é “[...] determinado pelo ins-
ma referência à cosmologia, visto que considera tante que nos parece como a essência do tempo”.
o movimento como motor para medição dos in- De modo sucinto, para Aristóteles, a definição
tervalos temporais, ponderando que o movimen- de tempo está relacionada com a possibilidade
to e tempo são articulados em relação ao espaço. de enumerar aquilo que procede do movimento.
Essa visão diverge de Aristóteles para quem o Desse modo, existir no tempo é ser um número
tempo é algo do movimento. Agostinho, na con- entre o antes e o depois (idem, p. 26).
cepção de Ricoeur, não consegue desenvolver o Esse confronto entre as concepções de tempo
argumento tempo-movimento. Nesse sentido é díspares localizadas em Aristóteles e Agostinho
que Ricoeur (idem, p. 18) declara ser necessário faz com que Ricoeur perceba que Agostinho não
acolher e abordar o problema do tempo pelo viés chegou a refutar completamente os argumentos
da cosmologia aristoteliana. aristotelianos e que sua visão subjetiva não chegou
No livro IV da Física, Aristóteles lança o argu- a substituir a cosmologia do filósofo grego. Para Ri-
mento sobre a natureza do tempo em três etapas. coeur (2010, v. 3, p. 28), Aristóteles resiste a Agos-
O primeiro argumento, aqui já reportado, fala que tinho tanto pela força de seus argumentos como
pelas aporias que surgem nesses argumentos. a sucessão objetiva para tonar mais urgente a in-
Ricoeur (idem) pondera ainda que se “[...] a ex- vestigação das mediações narrativas”. A interpre-
tensão do tempo físico não se deixa derivar da tação das narrativas situadas em qualquer campo
distensão da alma, a recíproca se impõe como o do conhecimento passa pela refiguração da ex-
mesmo caráter impositivo”. Assim é que um abis- periência temporal que interfere diretamente no
mo se coloca a partir das concepções de instante par interpretação/compreensão. O tempo narra-
em Aristóteles e de presente em Agostinho, visto do carrega em si tanto a temporalidade externa
que o instante aristoteliano se manifesta enquan- quanto a interna, configuradas pelo narrador e
to possibilidade do que é enumerável, podendo refiguradas em novas perspectivas pelo leitor/ex-
inclusive ser presente. Já o presente agostiniano pectador em terceira mímesis, como atores que se
é o “agora” da enunciação, de uma operação de alternam no círculo hermenêutico.
sentido, e possui três dimensões: o presente do A refiguração da experiência temporal continua
passado como memória, o presente do presente a ser analisada por Ricoeur e nesse caminho ele
como visão e o presente do futuro como esperan- trabalha as entradas do tempo pelos gestos de me-
ça/expectativa. mória, sobre os quais nos debruçamos a seguir.
Mas, em Aristóteles, o instante também se ma-
nifesta como uma aporia temporal, pois, graças 3.Memória e refiguração do tempo
ao instante, o tempo é contínuo e também dividi- Na primeira das Advertências que Ricoeur
do ou, como diz Ricoeur (2010, v. 3, p. 32), o ins- (2012, p. 17) faz em A memória, a história, o
tante tem uma dupla função: ao mesmo tempo esquecimento, percebe-se o tom imperativo da
distingue e une o continuum temporal. Isso reve- justificativa que cerca a construção e a escrita do
la, por outro lado, que a relação entre grandeza, livro, pautadas em três pontos de preocupação: o
movimento e tempo pode se dissociar, visto que primeiro de ordem pessoal, visto que o autor visa
a potência da grandeza e o próprio movimento sanar o que considera como lacuna na problemá-
podem parar; já o tempo não para. tica da trilogia Tempo e Narrativa, como também 101
Ricoeur propõe analisar as concepções de Aris- de O si mesmo como outro, em que a experiência
tóteles e Agostinho como complementares, visto temporal e a operação narrativa “[...] se enfren-
que não é possível chegar ao problema do tempo tam ao preço de impasse sobre a memória [...]”.
e solucioná-lo em sua relação com a configuração O segundo seria de ordem profissional e o tercei-
narrativa somente por meio de uma das visões, ro seria uma preocupação pública voltada para
seja ela cosmológica ou da alma. Portanto, os uma política de uma justa memória. Na primei-
dois extremos são considerados como entradas ra parte do livro, Ricoeur trabalha o percurso de
para refiguração da experiência temporal no pro- construção de uma fenomenologia da memória,
cesso de interpretação da narrativa. Reiterando, tendo como inspiração a abordagem husserliana
portanto, o que já foi situado anteriormente, Ri- e como ponto de partida duas inquietações: “De
coeur (2010, v. 3, p. 35-36) afirma que não é pos- que há lembrança?” e “De quem é a memória?”.
sível a distensão da alma, sozinha, produzir uma Na sequência, desenvolve seus argumentos a par-
extensão temporal, como também não é possível tir de um passeio pelos pensamentos de outros
que o movimento isolado possa produzir uma filósofos e, inicialmente, trabalha a dualidade
dialética do triplo presente. A “poética da nar- Memória e imaginação, momento em que propõe
rativa necessita tanto da cumplicidade como do um primeiro esboço de uma fenomenologia da
contraste entre a consciência interna do tempo e memória a partir de uma aproximação cogniti-
va. Posteriormente, se debruça sobre A memória A principal contribuição da obra de Aristóteles
exercitada: usos e abusos, em que se dedica a uma para uma fenomenologia da memória é, segundo
pragmática dos fenômenos da memória e, por Ricoeur, a distinção entre mnémé e anamnésis. Ao
fim, entrelaça, polemiza e, de certa forma, encon- “traçar, então, uma linha entre a simples presença
tra o caminho para uma dialética a seu modo, en- da lembrança e o ato de recordação, Aristóteles
tre memória pessoal e memória coletiva, em que preservou para sempre um espaço de discussão
se concentra na lembrança tendo como foco o digno da aporia fundamental trazida à luz pelo
sujeito que tem a capacidade do lembrar. Aqui a Teeteto, a da presença do ausente” (Ricoeur, 2012,
figura central é o Quem. p. 38). Entretanto, a contribuição de Aristóteles,
Nesse sentido e dada a extensão da obra e as ao tempo em que “aguçou a ponta do enigma”, ao
inúmeras abordagens e enfrentamentos que faz inserir a questão temporal como distinção para
o autor em torno da temática da memória, assim o ato de lembrar no campo da imaginação, por
como das relações mnemônicas com a história e outro lado, manteve a aporia originalmente pla-
o esquecimento, é que no presente tópico e com tônica3, em um impasse que termina por guiar
vistas a atender ao nosso objetivo neste texto - a investigação de Ricoeur, pois trata-se de saber
deixar clara a percepção de Ricoeur sobre os ges- se “[...] entre imagem-lembrança e a impressão
tos de memória que interferem na compreensão original, a relação é de semelhança, até mesmo
das narrativas de comunicação na refiguração de cópia” (idem). De todo modo, ao colocar a
do tempo -, nos dedicaremos especificamente ao lembrança sob a égide de uma anterioridade, não
primeiro capítulo da primeira parte do livro A se tem a certeza da veracidade da memória, nem
memória, a história, o esquecimento. Considera- de sua fidelidade ao ausente que representa, visto
mos que é, principalmente, nesse momento que o que a separação temporal termina por distinguir
autor se dedica a sanar a lacuna que confessa ter o ausente-presente pela memória, do presente
deixado em Tempo e Narrativa e em O Si mesmo anterior em um presente do passado.
102 como outro. Ao traçar um esboço fenomenológico da me-
Entre a memória e a imaginação surgem circui- mória, Ricoeur procura abordar os fenômenos
tos interagentes que têm provocado debates no mnemônicos a partir do que denomina de capa-
campo filosófico há séculos, visto que, em deter- cidades ou poderes básicos que levam ao sucesso
minadas visões, memória equivale à imaginação do fenômeno. Para tanto, se dedica a detalhar os
e Ricoeur trabalha no sentido de desconstruir fenômenos que, na esfera do comum, dentro da
essa identificação que desqualifica a memória cotidianidade, são atribuídos à memória. Nesse
enquanto lugar de uma certa verdade. primeiro momento, portanto, o filósofo francês
Aristóteles, companheiro de Ricoeur em mui- procura se dedicar às potências da memória e
tas obras, é convocado, através de seu tratado De não às deficiências que cercam o fenômeno, tanto
memoria et reminiscentia, para sustentar os ar- do ponto de vista patológico como social. A feno-
gumentos do filósofo na exploração da memória menologia da memória emerge então de forma
como experiência temporal. Aristóteles destaca a fragmentada. Entre memória e lembrança, surge
capacidade humana da percepção do movimento a primeira necessidade de distinção no âmbito da
e da marcação entre um antes e um depois. Em linguagem: “memória como visada e a lembrança
Aristóteles, portanto, Ricoeur se apoia para traba- como coisa visada” (ibidem, p. 41). Memória no
lhar a memória como passado a partir da percep- 3 Eikon, problemática apresentada por Platão em O Sofista como re-
ção de tempo vivido, separando-a da imaginação. presentação da aporia do ausente-presente.
singular como potência, lembranças no plural. Para Ricoeur, o esforço de recordação se con-
Para melhor fundamentar sua fenomenologia centra na melhor forma de construir memória do
da memória, Ricoeur elegeu alguns conceitos que foi esquecido ou intencionalmente relegado
opostos para dissecar. O primeiro: memória-há- ao esquecimento. Daí nasce o dever de memória,
bito como presente, memória-lembrança como como um devir mnemônico.
passado representado. Ricoeur prefere conside- A última das polaridades tratadas por Ricoeur
rar o par de oposições hábito/memória como se concentra entre a reflexividade e a mundanida-
uma oportunidade para conquista de uma dis- de. A reflexividade surge como rastro da memó-
tância temporal. “A operação descritiva consiste ria em que as experiências são detectadas pelos
então em classificar as experiências relativas à aparatos do ver. Lembramo-nos de nós e dos ou-
profundidade temporal, desde aquelas em que, tros, do que vemos, vivemos e experienciamos.
de algum modo, o passado adere ao presente, até Reflexividade se liga a mundanidade. Contudo,
aquelas em que o passado é reconhecido em sua como afirma Taylor (apud Ricoeur, 2012, p. 54),
preteridade passada” (Ricoeur, 2012, p. 43). a sobrecarga interpretativa do idealismo subjeti-
Evocação/busca surge como a segunda dupla vista não permite que a reflexividade se ligue de
de conceitos opostos a ser analisada. Evocação forma dialética com a mundanidade.
como lembrança chamada em um momento Por fim, a fenomenologia da memória se de-
atual. “É a esta que Aristóteles destinava o termo dica a tentar compreender o porquê da projeção
mnémé, designando por anamnésis o que cha- imagética da memória. Dentre as inquietações
maremos mais adiante de busca ou recordação” vigentes, Ricoeur dedica-se, por exemplo, a ten-
(idem, p. 45). Para esta dupla de opostos, Ricoeur tar perceber as diferenças e convergências entre
analisa as problemáticas localizadas entre Platão lembrança e imagem, e imagem-lembrança. Hus-
e Aristóteles, e recorre mais uma vez a Bérgson, serl surge novamente com o intuito de propor
com sua diferenciação entre recordação labo- uma compreensão entre apresentação e presenti-
riosa e recordação instantânea, entre um esfor- ficação, a primeira como consciência da existên- 103
ço intelectual e um esforço criativo, que ao final cia presente de uma dada coisa, a segunda como
contribuem para o caráter veritativo da memória representação de algo que se encontra em nível
ou para o esquecimento. E aí Agostinho ressurge de consciência, mas que não está presente.
para contribuir com a fenomenologia da memó- Ricoeur aborda ainda os três modos mnemôni-
ria. Sua célebre aporia sobre memória e esque- cos de Casey, situados entre uma memória cativa
cimento termina por potencializar os paradoxos e uma busca pela memória que se localizaria en-
apontados por Ricoeur para os fenômenos da tre os polos de reflexividade e de mundanidade.
memória. O reminding como lembrar ou pensar em algo.
E mesmo quando falo no esquecimento e co- Reminiscing como o reviver do passado coletiva-
nheço o que pronuncio, como poderia reco- mente, através de memórias e saberes comparti-
nhecê-lo, se dele não me lembrasse [...]. Ora, lhados e, por último, recognizing, compatível com
quando me lembro do esquecimento, estão o reconhecimento como complemento da recor-
ao mesmo tempo presentes o esquecimento e dação (Ricoeur, 2012, p. 55-56).
a memória: a memória que faz com que me Em todo o percurso do esboço de uma feno-
recorde, e o esquecimento que lembro (Agosti- menologia da memória, Ricoeur procura tratar
nho, 2014, p. 247-248). as diferenças entre memória e imaginação, pon-
tuando que possuem funcionalidades e objeti-
vos distintos. A memória se constrói no presente, 4. Tempo e memória na comunicação
mas se revela no futuro sobre um dado presente Como então, a questão do tempo e da memória
já passado. Em seu escopo, a experiência tempo- podem ser pensadas na sua relação com a comu-
ral transcorrida, assim como o seu atrelamento nicação, de tal forma que podemos falar de uma
ao caráter de verdade, são essenciais para o reco- memória midiática que envelopa nossos gestos e
nhecimento social. Por outro lado, a imaginação ações cotidianas?
pode se situar no campo da ficção, todavia é possí- Quando nos referimos à existência de memó-
vel identificar convergências, sobretudo quando a ria midiática não significa considerar tão somen-
lembrança incorporada à memória se personifica te a ação narrativa que os meios de comunicação
como imagem, trazendo para a memória uma de- produzem trazendo o passado para o presente.
pendência da imagem ou de sua representação. Quando falamos de uma memória midiática es-
Para Ricoeur e no que concerne ao caráter veri- tamos considerando também a maneira como na
tativo dos fenômenos da memória, é importante contemporaneidade experimentamos o presente,
considerar as ciladas que a imaginação arma para num movimento paradoxal: ao mesmo tempo
a memória, “[...] pode-se afirmar que uma bus- que a construção de pontes com o passado torna-
ca específica de verdade está implicada na visão -se fundamental para dar sentido à existência, te-
da ‘coisa’ passada, do que anteriormente visto, mos, por outro lado, a exacerbação de um tempo
ouvido, experimentado, aprendido. Essa busca ultra veloz no qual é perceptível uma espécie de
de verdade especifica a memória como grande- eterno presente. Há que se considerar, ainda, a
za cognitiva” (Ricoeur, 2012, p. 70). O mais im- sedução pelo passado, no momento em que esse
portante, no esforço de rememoração de uma presente ultraveloz não deixa pausa para reflexão
experiência temporal, é o reconhecimento que ou para a prospecção de futuros possíveis. Além
conflui para que considere e se aceite uma dada disso, podemos dizer que a própria memória
verdade do passado como tal. Ricoeur denomina contemporânea pode ser qualificada como me-
104 essa busca pela verdade através da memória de mória midiática, já que vivemos não apenas a
verdade-fidelidade. mídia, mas na mídia.
No mesmo livro e nos próximos capítulos so- A distinção entre memória e história torna-se
bre memória, Ricoeur se dedica, como dito, fundamental para a conceituação da dimensão
primeiro ao caráter pragmático da memória, e memorável no campo das mídias. Memória não
depois ao plano político-ético desta, momentos se confunde com história, já que a memória diz
em que desconstrói a positividade do fenômeno respeito ao nível declaratório do testemunho,
mnemônico que procurou priorizar em um pri- enquanto a história relaciona-se ao nível docu-
meiro momento. mental, atestando a verdade presumida presente
Identificada pelo próprio autor como uma la- na epistemologia histórica como discurso verda-
cuna deixada por ele quando da construção de deiro sobre o passado. O documento caracteriza-
Tempo e narrativa, a fenomenologia da memória -se por sua indicialidade, enquanto o testemunho
nos fornece uma visualidade maior quando da baseia-se na confiança outorgada a quem estava
compreensão da refiguração da experiência tem- lá. A segunda diferença entre memória e história
poral nas narrativas, sobretudo quando conside- opõe reminiscência e construção histórica e suas
ramos a entrada para o círculo hermenêutico de explicações por critérios como regularidades,
interpretação das narrativas, pelo viés do tempo causalidades e razões. A operação historiográfi-
agostiniano. ca busca uma explicação para os acontecimentos
passados, enquanto a memória produz o ingresso gias narrativas dos eventos e enredos construídos
no passado a partir de uma reminiscência cons- como fantasmagorias do mundo. Observa-se a
truída como brecha para esse passado a partir do eclosão do falso com valor de verdade e a exacer-
presente. A terceira distinção relaciona reconhe- bação da crença que toma o lugar dos fatos.
cimento e representação do passado, sendo a me- Há que se referir também ao papel do esque-
mória a possibilidade de o reconhecer, enquanto cimento, como um duplo da memória, ocupan-
a história, a partir de documentos, vestígios desse do historicamente lugar central nos meios de
passado, tem a intenção de acessá-lo. Na opera- comunicação. Instaura-se seguidamente, se ob-
ção historiográfica está em jogo a representação servamos o movimento histórico da mídia, uma
do passado, enquanto na operação memorável verdadeira política do esquecimento no seu jogo
figura o enigma do reconhecimento do passado. discursivo dialético. O falseamento da realidade,
As narrativas testemunhais importantes histo- a proliferação da mentira como verdade, que ve-
ricamente para o jornalismo, por exemplo, intro- mos assumir lugar central na cena discursiva mi-
duziam, no passado, a constatação fundamental diática na atualidade, seria, portanto, parte dessa
para as narrativas jornalísticas do “eu estava lá”, longa política do esquecimento, que na contem-
fosse esse “eu” o próprio jornalista ou as testemu- poraneidade permite mesmo a anulação do fato
nhas a que ele recorria para atestar o fato, tão so- em favor da crença. Não seria o fato de as narra-
mente por estarem na cena dos acontecimentos. tivas midiáticas serem geridas por um presente
Quanto mais testemunhas tivessem os jornalis- absoluto que renega o passado, esquecendo-se da
tas, mas fidedigna tornava-se a sua narrativa. Era tradicionalidade, que faz eclodir narrativas reple-
preciso igualmente confrontar o que era dito por tas de construções imaginativas?
várias testemunhas para colocar em cena o con- Tomando como parâmetro narrativas do cam-
traditório (na presunção de que ouvir os vários po comunicacional veiculadas exaustivamente
lados envolvidos na trama produziria um texto nas redes sociais nos atuais tempos de intolerân-
com pretensão à isenção). A partir do nível de- cia, vale pensar que o aniquilamento da política 105
claratório do testemunho se produzia uma ver- de verdade e do pacto social que girava em torno
são do acontecimento com pretensão de ser uma da proximidade com o real, e, portanto, com os
espécie de arquivo para a história. fatos, terminou cedendo espaço para outras for-
A crise por que passa o jornalismo na atualida- mas de proximidade e de reconstrução das expe-
de, resultado da dúvida sobre a sua possibilidade riências temporais de grande parte da população
de produzir um discurso verdadeiro, aliada à va- brasileira. A partir de acionamentos de “verda-
loração das crenças em detrimento dos fatos, traz de” tradicionais, enquanto “seres-afetados-pelo-
incertezas para o campo midiático que deixa de -passado”, recebemos narrativas que nos chegam
ser lugar de produção das verdades do mundo. O pela correia da tradicionalidade intimamente
testemunho perde o valor de positividade e não vinculada a um passado naturalizado, acionado
se precisa mais estar na cena do acontecimento pelas tradições, tendo a linguagem e a cognição
para relatá-lo. Aliás, para a produção do relato em simples como guia, trazendo a tradição e o peso
muitos casos, infelizmente, sequer se tem a neces- de uma versão do passado como verdade. Aqui
sidade do fato. A produção documental midiática nos referimos a uma hermenêutica da consciên-
e seu desejo de expressar a verdade no presente cia histórica proposta por Ricoeur (2010). Essa
(fazendo muitas vezes usos do passado) vem sen- releitura do tempo nas narrativas veiculadas se
do colocada em cheque pelas atuais epistemolo- fez presente, por exemplo, pela memória positi-
va da ditadura civil-militar, por mais incoerente matizada pelas diversas aporias do tempo aqui
que isso possa parecer. Falseia-se a história, ou tratadas e potencializadas pela hermenêutica da
melhor, desconsidera-se fatos históricos e cons- consciência histórica (Ricoeur, 2010) terminam
trói-se uma nova narrativa em que documentos, por se revelar com maior vigor e possibilidade de
depoimentos e evidências não são considerados. interpretação e compreensão quando considera-
Emerge uma potência imagética da memória mos os jogos de memória que, como diz Ricoeur,
manipulada, que atua na desconstrução das nar- se manifestam de forma temporal nas experiên-
rativas e em novas construções discursivas que cias presentes ou nas experiências evocadas em
terminam por dissociar memória e história da determinados presentes.
verdade. Por outro lado, observamos a memória- Nossas conclusões, após esse passeio transgres-
-hábito, como presente que se relaciona com o sor pelo pensamento de Ricoeur, nos rementem
passado, acionada para, por exemplo, estender às possibilidades que tal pensamento abre para
do passado ao presente construções de uma ideo- a compreensão das narrativas no campo da co-
logia anticomunista, ou para construir discursos municação em perspectiva histórica, obviamente
de ideologias não existentes, como a de gênero. sem deixar de considerar as demais narrativas
A refiguração da experiência temporal proble- circulantes na sociedade.

REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. Santo. Confissões. Petrópolis: Vozes, 2014. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contrapon-
106 BARBOSA, Marialva. O filósofo do sentido e a comunicação. In: Co- to, 2015.

nexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. RÊGO, Ana Regina e LEAL, Ranielle. Os caminhos da tradição em

139-149, jan./jun. 2006. Ricoeur.IN: RÊGO, Ana Regina et all. Os desafios da pesquisa em his-

BARBOSA, Marialva. História da comunicação no Brasil: um balan- tória da comunicação Porto Alegre: ediPUCRS, 2019

ço historiográfico. In: RÊGO, Ana Regina et all. Os desafios da pesqui- RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. v.1 e v.3. São Paulo: Martins

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KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Rio de Janeiro: Contra- RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo:

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RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Petrópolis: Vozes, 2013.

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