Lê atentamente o excerto de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.
A verdade é algumas vezes o escolho de um romance.
Na vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos ou da lógica implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que o autor, se inventa, não invente melhor; e, se copia, não minta por amor da arte. [...] 5 A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!? A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de ferro que o prendem ao barro donde saiu, ou pesam nele e o submergem no charco da culpa primitiva, para que é emergi-lo, retratá-lo ou pô-lo à venda!? Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu perdi o meu a estudar a 10 verdade, já agora a desforra que tenho é pintá-la como ela é, feia e repugnante. A desgraça afervora ou quebranta o amor? Isso é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Factos e não teses é o que eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funções óticas do aparelho visual. Ao cabo de dezanove meses de cárcere, Simão Botelho almejava um raio de sol, uma lufada 15 de ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu, que o da abóbada do seu cubículo pesava- -lhe sobre o peito. Ânsia de viver era a sua; não era já a ânsia de amar. Seis meses de sobressaltos diante da forca deviam distender-lhe as fibras do coração; e o coração para o amor quer-se forte e tenso, de uma certa rijeza, que se ganha com o bom 20 sangue, com os anseios das esperanças, e com as alegrias que o enchem e reforçam para os reveses. Caiu a forca pavorosa aos olhos de Simão; mas os pulsos ficaram em ferros, o pulmão ao ar mortal das cadeias, o espírito entanguido na glacial estupidez dumas paredes salitrosas, e dum pavimento que ressoa os derradeiros passos do último padecente, e dum teto que filtra a morte 25 a gotas de água. O que é o coração, o coração dos dezoito anos, o coração sem remorsos, o espírito anelante de glórias, ao cabo de dezoito meses de estagnação da vida? [...] Ao deslaçar da garganta a corda da justiça, Simão Botelho teve uma hora de desafogo [...]. Depois, a passo igual, a esperança fugia-lhe para as areias da Ásia, e o coração entumecia- 30 -se de fel, o amor afogava-se nele, morte inevitável, quando não há abertura por onde a esperança entre a luzir na escuridão íntima. CASTELO BRANCO, Camilo, 2021. Amor de Perdição. Porto: Porto Editora (pp. 169-170)
1. Contextualiza os acontecimentos narrados no excerto.
2. Explica a relação entre a verdade e a ficção, tal como é apresentada pelo narrador.
Letras em dia, Português, 11.° ano Sugestões de resolução
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, p. 69
1. No excerto, refere-se que Simão está preso há dezanove meses (l. 14). A sua prisão é consequência do homicídio de Baltasar e de se ter confessado culpado. Tivera «Seis meses de sobressaltos diante da forca» (l. 18), mas, entretanto, soubera que fora condenado a dez anos de degredo na Índia, por isso o excerto apresenta as seguintes referências: «Caiu a forca pavorosa aos olhos de Simão» (l. 21); «Ao deslaçar da garganta a corda da justiça» (l. 27); «a esperança fugia-lhe para as areias da Ásia» (l. 28). 2. O narrador inicia o excerto com uma reflexão sobre a importância da verdade e a sua relação com a ficção. Começa por se referir à verdade como «o escolho de um romance» (l. 1), trazendo-lhe agruras e obstáculos. Ainda que possamos aceitar a verdade na vida real, na literatura essa aceitação não acontece, pois o que é feio e duro não deve ser exposto («A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!?», l. 5; «para que é emergi-lo, retratá-lo e pô-lo à venda!?», ll. 7-8). Para o narrador, essa é a opção de quem «tem o juízo no seu lugar» (l. 9), mas para ele a única opção é retratar a verdade, ainda que «feia e repugnante» (l. 10), pois afirma que perdeu o seu juízo a estudá-la («pois que eu perdi o meu a estudar a verdade», ll. 9-10). 3. Depois de «dezanove meses de cárcere» (l. 14), Simão sente necessidade de liberdade («almejava um raio de sol, uma lufada de ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu», ll. 14-15). O narrador sugere que a sua necessidade de liberdade e de sobreviver se sobrepõe à sua necessidade de amar («Ânsia de viver era a sua; não era já ânsia de amar», l. 17), pois a experiência que tivera, a possibilidade de morrer na forca, a ausência de alegria e de esperança, o enfraqueceram (ll. 18-20). Ainda que livre da forca, Simão está agrilhoado, a sua mente estagna e o seu corpo fraqueja, morre lentamente (ll. 21-24). Nem o amor parece sobreviver («o amor afogava-se nele, morte inevitável», l. 29).