Você está na página 1de 14

Drª Bertine Carlos Bezerra

Médica Psiquiatra e Psicanalista

Setembro/2019

1
SONHO – SONHAR

Uma arte!
Acho que escutei uma voz gritar: “Nunca mais
dormirás! Macbeth assassinou o sono!”.
Shakespeare

O amor é dar o que não se tem.


Jacques Lacan

Sonhar pode ser visto como um processo de se inventar a si mesmo, tendo o


sonho como caminho. É uma experiência emocional vívida. O sonho pode ser contado,
pode ser escrito mas ele é o que é.

Quero lhes contar um sonho – um sonho – um sonho do qual surgiu uma obra
literária fantástica, conhecida em todo o mundo – e que nem sempre lembramos que
essa obra literária veio de um sonho! A Divina Comédia de Dante, seu autor que não é
cristão e sim poeta. Ele tem uma visão (naquele tempo visão = sonho).

A Divina Comédia é uma viagem para Deus.

A Divina Comédia é uma poética da conversão – é uma viagem (sonho – visão)


que trás uma medida de mudança para além da própria viagem – Dante – vê o rosto de
Deus – com toda potência – toda a sua visão é manifesta.

No século 14 predomina a visão e a Divina Comédia era uma visão, um sonho.


O sonho era colocado como sub judice e no sonho, Dante vai encontrando personagens
com encontros: Virgílio e Beatriz, Homero, Aristóteles e vários outros.

Naquela época a Terra era para Dante redonda e Lúcifer o anjo mais velho
divide a Terra e ela se abre – faz-se um abismo. E o sonho vai nos levar para círculos, já
que a terra foi dividida e faz-se um abismo, aparecem aqui círculos que indicam
pecados, gula, luxúria, e aí Dante sonha com o Inferno – Purgatório e Paraíso, onde esse
ato de queda da Terra é de redenção.

Parece com a Odisseia de Ulisses, mais esse texto da Odisseia não é cristão, mas
Dante que também não é cristão mas sim poeta, traz uma leitura esotérica para os dias
de hoje.

“Seu sonho o assustou e o perturbou porque, quando nele apareci,


o senhor achou que eu era uma pessoa real que sua mente
engolira, e perdia enquanto o senhor dormia. Isso o fez pensar que no
decorrer da análise o senhor tinha destruído vorazmente uma pessoa real
e não apenas uma coisa”. De imediato passou a falar muito
racionalmente de uma visita que pretendia fazer ao irmão. Chamei-lhe a
atenção para sua mudança de comportamento a partir da interpretação
que fiz do sonho. Respondeu: “Que sonho?”

Fragmento da análise de Bion com um paciente psicótico, 1958.

2
Tanto para Odisseia como para a Divina Comédia não há tempo – são todos
jovens.

Na Divina Comédia – há existência de um casal histórico (amantes) – encontros


imagináveis – São Francisco – amor que se inflama e no exercício do amor é a liberdade
que ganha. Mil anos após – Virgílio e Dante se encontram como também Rumi, São
Paulo e Enéas. Purgatório são montanhas onde Catão – recebe as almas que chegam em
círculos (são sete) – essa montanha é a da Purgação e não da Punição. E ... quando
chegamos na Terra - há dois rios:

1) Do esquecimento / do perdão – que corre flutuante.

2) Fatos que te levam a nova vida – Jerusalém.

Inferno = magnífico

Purgatório = purgação

Paraíso = chatíssimo

Vários autores escrevem sobre a Divina Comédia, mas Jorge Luiz Borges – diz
que Dante estava apaixonado por Beatriz, pelo rosto dela (que nunca ninguém sabe
como é). E que nos leva a crer que seria o rosto de Deus!

No Paraíso é a luz como elemento principal – e quanto mais se sabe e se vê,


ficamos cegos – Por quê? Por que Deus é a luz e posso ficar cego com a luz – coisa
fanática.

Na Odisseia é a surdez – cuidado porque há uma música – de anjos, arcanjos que


vão cantando e me deixando surdo – cuidado!

Como Dante representou Deus? A vida são tantos nãos (não posso, não sei) e o
homem (ser) é tomado pelos sonhos. Sim, Dante apresentou Deus, através do sonho.

Sonhos são resíduos – quando um homem volta de um sonho é a sua memória


como a neve que se dissolve ao sol é uma memória líquida e aí vê Deus – quando Dante
vê os centauros e olha com profundidade, vê um livro que tem a palavra AMOR Deus é
calígrafo (no mundo ocidental). Dante diz que o indivíduo é produto de Deus – é uma
unidade conjugada pelo AMOR.

Dante nos diz que é uma tentativa de voltar para casa materna. Dante dizia que o
amor é o ponto de partida e de chegada.

O AMOR é o grande motor da vida – a terra se move porque nos movemos pelo
amor.

O sonho de Dante – é um sonho eterno – redenção do AMOR é uma viagem de


encontro para Deus!

3
Entendendo que o sonho é algo singular e subjetivo de cada um – o sonho
contém uma das mais valiosas descobertas – sonhar como um dos espaços fundamentais
da condição humana. O sonho é um filme, onde surgem imagens oníricas, é o cinema
em nossa mente – é magia, e um espaço de produção de sentidos.
O sonhar é também um espaço intersubjetivo e intergeracional – o sonho tem
também a função de restaurar.
Winicott chama de terceira zona da experiência humana – o sonhar -
sujeito/objeto e SER psíquico/ambiente e o sonhar/brincar.
Há entretanto um autor Jung que trás contribuições importantes e que nos diz:
“O sonho como uma porta estreita, com o conteúdo do que a alma tem de mais obscuro
e íntimo; essa porta se abre para a noite cósmica original, que contém a alma muito
antes da consciência do eu e que a perpetuará muito além daquilo que o individual
poderá atingir”.
Os sonhos não são invenções, são fenômenos naturais que não diferem daquilo
que representam. Não utilizam subterfúgios ou artifícios de espécie alguma para
comunicar seu contexto. Sejam originais ou difíceis sempre exprimem algo.
E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia
prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as
satisfações antes da consciência das necessidades.
Guimarães Rosa, “As margens da alegria”.

Jung nos trouxe conceitos que com o decorrer do tempo fomos nos apropriando
e usando para entendimento dos sonhos – são conceitos utilizados não só para com os
sonhos, mas também nos ajudam em sua compreensão.
Arquétipos, Mandalas, Sincronicidade, Sombra, Persona, Numinoso, Anima
Animus.
Arquétipos - Para Jung esse conceito deriva de observação reiterada de que os
mitos e os contos da literatura universal encerram temas bem definidos que reaparecem
sempre e por toda parte. Encontramos nas fantasias, nos sonhos, nas ideias delirantes e
ilusões dos indivíduos que vivem atualmente. Quanto mais nítidos, mas são
acompanhados de tonalidades afetivas nítidas.
Sincronicidade – Termo criado por Jung, que exprime uma consciência
significativa ou uma coincidência significativa ou uma correspondência. Ambas
parecem ter relação com os poemas arquétipos do inconsciente. Jung além do processo
de causalidade – diz “escolhi o termo “sincronicidade” porque a aparição simultânea
dos dois acontecimentos ligados pela significação, mas sem relação causal”, me
autorizo a empregar esse conceito geral da sincronicidade no sentido especial de
coincidência, no tempo, de dois ou vários elementos, sem relação causal e que tem o
nosso conteúdo significativo ou um sentido similar. Sua “inexplicabilidade” não é
devido à ignorância de sua causa, mas do fato de que nosso intelecto é incapaz de
pensa-la.

4
Anina – é o arquétipo da vida. Seria o encontro do feminino e masculino em
cada um de nós.

Mandala – Em sânscrito é círculo-mágico. Na obra de Jung – símbolo do centro,


da meta e do si mesmo – enquanto totalidade psíquica. É simbolicamente representada
por um círculo, um quadrado ou um quatérnio – meu dispositivo simétrico do número
quatro (4) e de seus múltiplos. A mandala também pode ser um instrumento de
contemplação, lugar de nascimento dos deuses. As mandalas nos sonhos aparecem mais
em situações perturbadoras e de indecisões – mas trazem em si um esquema ordenado
que venha se colocar acima do caos psíquico.

Numinoso – é o sagrado – significa o inexprimível, misterioso, o “totalmente


outro” – propriedades que possibilitam a experiência imediata do divino.

Persona – designa originalmente do teatro antigo - a máscara usada pelos atores,


para Jung: “a persona é aquilo que não é verdadeiramente, mas o que nós mesmos e os
outros pensam que somos”.

Sombra – A sombra para Jung é aquela personalidade oculta, recalcada, que


engloba todo o aspecto histórico inconsciente, mas sabemos também que ela não é só
negativa, é criadora de certas qualidades positivas e portanto de impulsos criadores.

O Sonhar é:

1) Situação acabada

2) Situação inacabada

Tem que ter:

*Elementos da natureza

*Elementos que reúnam pessoas, animais e objetos.

O mundo dos sonhos

O sono e os sonhos

Até a ciência moderna, que aprendeu a importância dos estágios de sono profundo para
o organismo e dos estágios de sonhos (o “sono paradoxal” ou “sono REM”) para nossa
evolução psicológica, continua tendo dificuldade para explicar cientificamente o mundo
dos sonhos. Hoje em dia, a única coisa que se sabe com certeza é o tipo de ondas
cerebrais que acompanham os sonhos noturnos. Mas as ondas Beta do sono REM são
quase idênticas ás da vigília. Por outro lado, todos nós, por experiência própria,
acreditamos saber o que são os sonhos. Mas além dos sonhos da noite, existem também
os devaneios durante o dia ou as “viagens” de sonho em estado de transe dirigido.
Desejos intensos também são chamados “sonhos”.

5
A outra realidade da alma

A falta de lógica dos sonhos é evidente à primeira vista. Nos sonhos, as leis normais da
lógica se revitalizam e, passo a passo, são completamente revogadas. A dimensão
temporal também costuma ter pouca importância. Num sonho, podemos entrar numa
igreja no século XIX, assistir a um casamento no século XVIII e sair da igreja no século
XX. No mundo onírico, o Tempo concebido como Cronos (nome grego) ou Saturno
(nome latino) não tem poder sobre nós. De certa forma, nós regredimos para o plano
paradisíaco de um tempo arcaico em que o mundo ainda era uma realidade.

Os sonhos se orientam pela realidade da alma, que não obedece às dimensões de


tempo e espaço. Segundo a visão de mundo oriental, tempo e espaço cobrem o mundo
com o véu da rainha Maia, criando uma ilusão (em sânscrito, maya quer dizer “ilusão”).
Os antigos egípcios chamavam essa ilusão de “véu de Ísis”.

O cabalista Friedrich Weinreb (a “cabala” é um conjunto de crenças ocultas da


tradição judaica) diz o seguinte sobre o mundo dos sonhos e do sono: “Vemos nessa
palavra [dormir] que o mundo do sono tem grande importância e talvez seja até mais
importante do que o mundo da vigília. De alguma maneira, no mundo do sono duas
coisas distintas podem coexistir.” Weinreb se refere ao fato de que, em hebraico, a
palavra sono significa o dobro ou o duplo, enquanto vigília provém de pele, que
simboliza limite ou demarcação. Quando o ser humano sonha, ele se encontra no outro
mundo, um mundo em que se pode vivenciar uma realidade dupla. Não é o mundo
normal, mas é a realidade. É interessante constatar que, em hebraico antigo, a palavra
normal tem a mesma raiz de doente, enquanto as palavras saúde e criação têm em
comum a mesma raiz.

Os aborígines, habitantes primitivos da Austrália, não dão muito valor aos


sonhos (devaneios) de dia, mas tentam orientar suas vidas pelos sonhos noturnos, que
encaram com grande respeito. Segundo essa concepção, o sonho é um território de
processos criativos atemporais (isto é, eternos), fonte inexaurível de todo potencial
criativo. Para os aborígines, os sonhos permitem atingir este plano primitivo e
importante da vida. As “viagens de sonho” levam a um outro mundo ao qual só a alma
tem acesso, mas não ao corpo.

Assim, toda excursão ao mundo dos sonhos é uma preparação para o futuro, pois
o futuro do corpo é limitado em comparação com o da alma. Nos sonhos de todas as
noites, nós nos preparamos para o império da alma. Portanto, é nos sonhos que podemos
aprender as leis da dimensão espiritual.

Caminhos do autoconhecimento e da percepção do mundo

Mas os sonhos são também uma chave de nossos conflitos mais profundos e ocultos.

Francisco Varela, professor de biologia chileno e precursor da moderna ciência da


cognição, define os sonhos da seguinte maneira: “Se [...] definirmos os ‘sonhos’ como
imagens espontâneas criadas pela mente humana”.

6
Até surgirem os trabalhos de Sigmund Freud (1856-1939), os sonhos eram quase
totalmente ignorados pela ciência médica. Freud postulou claramente o que a ciência sói
descobriu meio século mais tarde: os sonhos e o estado normal de sono são duas coisas
distintas, e as leis de espaço e tempo não governam os sonhos, mas sim as leis do
inconsciente, que Freud considerava “atemporais”. Ele descreveu os sonhos como
“ferramentas para explorar o inconsciente”, mas atribuiu-lhes um papel limitado. Para
Freud, os sonhos são os “guardiães do sono”. Ele acreditava que a principal função dos
sonhos era inibir o despertar. Quando determinadas mensagens (que, com seu teor
explosivo, poderiam perturbar o sono) emergem do subconsciente ou do inconsciente,
os sonhos se encarregam de reelaborá-las e dissimulá-las, tornando-as menos
ameaçadoras. Freud era um homem de seu tempo e encarava as mensagens não-
censuradas da esfera atemporal do inconsciente, que ele havia descoberto em seus
trabalhos pioneiros, como uma ameaça para a sobrevivência do mundo burguês e
conservador. Assim, a função de censura dos sonhos lhe pareceu conveniente.

Mas os olhos são mais que do que isso. Eles podem nos levar do mundo
das oposições em direção à experiência da unidade, como mostram claramente os
sonhos lúcidos em estado de transe. Sem os sonhos, o inconsciente não tem “válvulas de
escape” para aliviar sobrecargas e elaborar temas urgentes. Como “guardiães do sono”,
os sonhos são tão importantes para a saúde mental quanto o sono profundo para a saúde
do organismo.

Companheiro de sonho e trabalho xamânico com os sonhos

No plano do “outro mundo” das imagens psíquicas, os aborígines australianos – como


quase todos os povos arcaicos ou primitivos – procuram seus companheiros de sonho,
isto é, seus acompanhantes (por exemplo, animais totêmicos) para a viagem da vida. Os
xamãs (feiticeiro ou sacerdote de povos primitivos) usam os sonhos de maneira concreta
para orientar a vida e encontrar soluções para os problemas.

Em 1999 comemoramos os 100 anos de publicação de “A interpretação


dos sonhos” data marcante para a comunidade terapêutica. Nesse texto Freud nos diz
que se tratava de um insight que só acontecia na vida de uma pessoa – e para isso
estudou, e nos levou a realidade dos desejos, e é através dessa concepção – desejo –
sonho - faz essa obra e nos lança em meio ao sonhar como um dos espaços
fundamentais da condição humana.

Significado e interpretação dos sonhos

Na minha opinião, a grande vantagem da psicanálise ocidental está na importância que


ela atribui aos sonhos e no papel decisivo da interpretação dos sonhos no longo
processo da análise. Em princípio, a interpretação dos sonhos tem muito em comum
com a interpretação das doenças. A importância dos sonhos foi demonstrada nos
resultados dos testes em laboratórios do sono, mesmo para aqueles que não acreditam
muito em psicologia. Freud ainda partia do princípio de que os sonhos exprimem
somente desejos recalcados inconscientes, apetites e ânsias aos quais não temos acesso

7
consciente. Mas seu colega Carl Gustav Jung (1875-1961) e seu discípulo Erich Fromm
(1900-1980) ampliaram essa concepção, a ponto de incluir as experiências de culturas
xamânicas que dão grande importância aos sonhos. Segundo os xamãs, os sonhos
podem ser avisos de perigo, podem nos mostrar tarefas importantes ou nos levar de
volta ao nosso caminho. Nós, ocidentais, devemos, sobretudo, a Jung o papel que a
religião – no sentido de religio ou “religação” com nossa origem primitiva – passou a
ter na interpretação dos sonhos.

Um psicanalista como Boris Luban-Plozza chega ao território da filosofia


hermética na avaliação dos sonhos, quando diz: “Nada acontece por acaso; o acaso não
existe, pois tudo tem um sentido, mesmo quando sua compreensão parece difícil.”

Os arquétipos como instrumento de interpretação dos sonhos

Interpretar as mensagens dos sonhos não é tão difícil como diz esse psicanalista – se nos
orientarmos pelos arquétipos ou imagens primitivas da psique.

A pessoa que entra no reino do sono e dos sonhos se depara com Cronos (em grego) ou
Saturno (em latim), guardião da fronteira entre os mundos e um dos arquétipos mais
importantes. Então, ela transpõe o limite de espaço e tempo. As leis do mundo material
são abolidas em grande parte e substituídas pelas leis do mundo psíquico. A pessoa que
dorme tem acesso a um mundo “metafísico”, isto é, que existe além do plano físico.
Toda experiência de sonho é uma expansão da consciência em direção a uma dimensão
mais profunda da realidade. Os conteúdos oníricos ganham forma de acordo com a
situação de vida e o estágio evolutivo e espiritual da pessoa que sonha.

A Yoga tibetana dos sonhos descreve, sobretudo, dois grandes tipos de sonhos.
Existem os sonhos de iluminação, que dão acesso a uma realidade para além das
necessidades da pessoa que sonha. Os índios falam aqui em “grandes sonhos”. Eles
podem nos dar noções das leis que regulam o cosmos e até da Verdade última. De outro
lado, existem sonhos baseados nas impressões do dia anterior. Isso inclui todos os
conteúdos relacionados com nossa estrutura de personalidade e nosso padrão
psicológico, aos quais estamos presos em maior ou menor grau.

Enquanto os “grandes sonhos” geralmente não precisam de interpretação, pois


seu efeito sobre nós é o de uma revelação divina, nos “pequenos sonhos” podemos
aprender muitas coisas úteis para o nosso dia-a-dia. Os psicólogos Whitmont e Perera
condensam este pensamento da seguinte maneira: “Como uma radiografia, ou melhor,
como um quadro pintado por um grande mestre, o sonho desvela uma mensagem de
vários níveis sobre a situação atual da pessoa que sonha, mostrando uma perspectiva até
então desconhecida e inconsciente.”

A linguagem dos sonhos é a linguagem da alma. Ela usa imagens e símbolos


muito complexos que são expressão de nossa totalidade. Isso inclui padrões primitivos
do imaginário humano na forma de personagens arquétipos e mitológicos. Alguns
arquétipos nos acompanham a vida toda, outros só se manifestam por algum tempo. O

8
modo e a frequência com que esses arquétipos surgem em nossos sonhos dependem de
uma análise detalhada de suas qualidades principais. Eles são, portanto, uma referência
no caminho de nossa evolução interior e exterior e ajudam a integrar manifestações
inconscientes no plano da consciência.

Os sonhos são mensagens diárias do inconsciente que tentam chamar nossa


atenção. Pessoas sensíveis que têm familiaridade com os mitos sabem que seus sonhos
estão relacionados com eles e que cumprem uma função em seu roteiro de vida, tal
como se exprime no horóscopo.

O arquétipo de Saturno

Como já sabemos, temos de atravessar um limiar para passar da consciência da vigília


para o mundo do sono. Na mitologia grega, Cronos, ou Saturno em latim, é o guardião
dessa fronteira. Ele impõe limites e exige grande cuidado ao lidarmos com todos os
limites – nossas limitações interiores e exteriores, mas também as dos outros. A energia
de Saturno nos obriga a uma atitude de responsabilidade em nossos atos. Ela exige
disciplina para termos controle sobre a nossa vida, e assim nos conduz ao essencial.

Os temas relacionados com Saturno se manifestam, por exemplo, nos sonhos de


exame, isto é, sonhos nos quais temos de enfrentar uma prova ou falhamos
repetidamente num exame. Cronos/ Saturno também é o deus do Tempo, como se vê
ainda hoje em palavras como “cronologia” e “cronômetro”.

Sonhos sobre a morte também estão subordinados ao reino de Saturno.

Sonhos sobre enterros e casamentos apontam numa direção parecida.

Sonhos assustadores ou nos quais sentimos medo também têm relação com
Saturno, pois tematizam os dilemas da vida e nossa dependência do mundo material,
que nos amedronta.

O arquétipo do Sol

Hélios, o Deus-Sol da antiguidade clássica, atravessa o céu todos os dias numa


carruagem dourada, trazendo luz e calor para o mundo. Ele é visível para todas as
pessoas e gosta de se mostrar em todo o esplendor do seu brilho. Hélios é o astro
principal do nosso sistema solar.

Sonhos nos quais somos admirados e aplaudidos, estamos no centro das


atenções ou brilhamos no palco da vida têm relação com este arquétipo. Nos sonhos, o
papel de herói mostra o efeito desta energia. O arquétipo do Sol simboliza a
abundância, encarnando no plano psicológico nossa coragem e determinação e nossa
capacidade de realização. Isso nos dá uma ideia do modo como nos relacionamos com
nossa individualidade.

Este arquétipo inclui os sonhos sobre a viagem do herói, que os gregos


chamavam “odisseia” (as viagens de Odisseus ou Ulisses).

9
O arquétipo da Lua

As deusas da Lua são uniformes como as várias faces da lua. Assim como o satélite da
terra comanda as marés, as deusas lunares representam os movimentos de fluxo e
refluxo no plano psicológico. Além disso, elas comandam os ciclos da vida natural.
Têm relação com todas as manifestações da fertilidade. A água que torna a terra fértil é
o elemento das deusas lunares.
Sonhos sobre fontes, rios, poços e sobre água em geral mostram que precisamos
esclarecer nossos sentimentos e emoções, encarar a vida como fluxo contínuo e lidar
com as profundezas de nossa alma, na qual podemos encontrar forças para seguir em
frente.
Sonhos sobre a infância ou sobre os pais também têm relação com a Lua e
representam o ventre materno psicológico no qual tivemos origem.

O arquétipo de Marte

Ares, ou Marte em latim, é o deus da guerra e do conflito. Heráclito (filósofo grego, c.


540-480 a.C.) descreveu-o como o “pai de todas as coisas”. Ele nos põe em contato com
a energia da agressão (que aqui não tem conotação negativa) e da conquista de novos
territórios. No nascimento, nossa vida começa com um ato agressivo e doloroso,
necessário para chegarmos ao mundo (novo) e sermos capazes de sobreviver. Assim,
desde o início aprendemos que a vida é uma luta.
Sonhos sobre lutas, guerras, agressão e energia fálica são expressões dessa
força vital, que temos de esclarecer de maneira consciente e satisfatória se não
quisermos ser vítimas dela. O arquétipo de Marte também está presente em sonhos que
tratam da tomada de decisões, nos quais temos de mostrar coragem ou impor nossa
força de vontade.

O arquétipo de Vênus

A deusa da beleza e do Amor, que os gregos chamavam de Afrodite e os romanos


chamavam de Vênus, é um arquétipo agradável. Mas – como todos os outros arquétipos
– também é uma personagem ambivalente do Olimpo. Vênus não representa só o amor e
as vivências amorosas, mas também medo e pavor na figura de seus filhos Deimos (o
Terror) e Fobos (o Medo), que ela concebeu junto com Ares/Marte. Eros, seu terceiro
filho com o deus da Guerra, fere o coração das pessoas com a flecha do amor, untada
com a doçura do mel ou também com o amargor da bílis.
Sonhos eróticos podem ser muito prazerosos, mas também podem se referir ao
“outro lado” do amor. No sentido lato, eles mostram um envolvimento com a energia
amorosa ou libido (do latim libido, “desejo violento” ou “paixão”). O ato sexual
também se baseia em oposições. A tensão entre os dois pólos (encarnados por homem e
mulher) é necessária para alcançar a sensação de felicidade e alívio do orgasmo. Da
mesma maneira, a flor de Afrodite/Vênus é a rosa, que tem beleza e perfume, mas
também espinhos.

10
Sonhos sobre a harmonia ou situações harmoniosas também se relacionam com
o reino de Vênus, pois a deusa Harmonia é o quarto filho que Vênus concebeu com o
deus da Guerra. Mas Harmonia também representa o mundo das oposições, pois seu
colar é feito de pérolas brancas e pretas.

O arquétipo de Mercúrio

Hermes (Mercúrio para os romanos) é o mensageiro dos deuses. Ele percorre


eternamente todos os caminhos, os antigos e os novos, os largos e os estreitos. Para ele,
(quase) tudo é possível. Sempre encontra uma solução para todos os problemas, e seu
reino é o dos pensamentos livres e sem fronteiras. Em suas viagens, ele costuma entrar
em contato com coisas novas – novas pessoas, novos acontecimentos, novas visões do
mundo e da vida – e está sempre aprendendo ou ampliando seus conhecimentos.

Sonhos sobre os tempos de escola e sobre aprendizado refletem esta energia e


mostram uma elaboração da característica deste arquétipo: o desejo de aprender coisas
novas e estar sempre em movimento. Aqui se incluem os sonhos sobre encontros com
pessoas, animais e outras criaturas de sonho. O contato com outras pessoas amplia
nossos horizontes e nos torna mais abertos, flexíveis e sábios. Nossa própria dimensão e
nossa visão de mundo se tornam relativas. Se existem tantas outras coisas neste mundo,
porque voltarmos as costas para elas?

O arquétipo de Júpiter

Zeus, ou Júpiter para os romanos, é o pai dos deuses e principal deus do Olimpo. Com
seus raios, ele simboliza a luz do conhecimento e os lampejos da inteligência. É o deus
da visão e da compreensão – por exemplo, do sentido da vida. Mostra a existência como
uma estrutura que tem sentido nos mínimos detalhes e o mundo como um cosmos
governado por um princípio superior. Seu segundo símbolo é a águia, que ao voar pelos
céus tem uma visão do alto e paira acima das coisas mesquinhas da vida.

Sonhos em que estamos voando, alcançando assim uma visão de conjunto das
coisas, sugerem a necessidade de não perder de vista a floresta da vida, mesmo diante
de uma única arvore. Sonhos em que estamos caindo também têm característica
jupiteriana, pois mostram o perigo da “mania de grandeza” ou de colocar objetivos
muito altos na vida. Em sua condição de principal deus do Olimpo, Júpiter exige
respeito. Sonhar com uma queda mostra o perigo da arrogância e de confundir dois
pesos e duas medidas. Como diz o provérbio latino: “Quod licet jovi, non licet bovi” (“o
que é permitido a Júpiter não é permitido a um boi” - ou seja, nem todos têm os mesmos
direitos).

11
O arquétipo de Urano

Urano é o deus do Céu. Por isso está acima de tudo e até acima do Olimpo. Ele sempre
existiu e já existia antes de nossa era. As leis de tempo e espaço não valem para ele.
Urano vai além de todos os limites. As regras e normas do mundo material não o
preocupam, e ele até as despreza. Provavelmente, é também por esse motivo que tentou
empurrar seus filhos (suas criações) de volta para o ventre de Gaia, a Mãe Terra. Tudo o
que pertence ao Céu se torna imperfeito em contato com o mundo das oposições
terrenas.

Como no caso de Zeus/Júpiter, sonhos em que estamos voando também estão


subordinados ao arquétipo de Urano. Mas aqui é a vivência subjetiva que está em jogo –
geralmente, uma sensação eufórica de liberdade e desprendimento (das leis do mundo
terreno). Todas as mudanças radicais e inesperadas da vida podem das uma sensação de
liberdade, por mais que sejam dolorosas no começo. Os pássaros vivem no céu, mas têm
de quebrar a estrutura firme e segura da casca do ovo para poder estender suas asas e
voar. Só assim eles cumprem sua missão. Quando o arquétipo de Urano pede espaço em
nossa vida e nós nos recusamos a segui-lo, a psique pode exprimir sua necessidade de
libertação por meio dos sonhos sobre acidentes, catástrofes, explosões e outras formas
de mudanças radical e repentina.

O arquétipo de Netuno

Posêidon, ou Netuno para os romanos, é aquele que “abraça a Terra” e tampouco


conhece limites. É o deus do oceano infinito, por isso pode ser considerado um símbolo
do inconsciente coletivo que tudo contém – assim como todos os rios do mundo
deságuam no mar. Todas as coisas são recolhidas e dissolvidas no oceano, e talvez ali
encontram também sua remissão.

O oceano não é só uma entidade serena e receptiva, pois também tem seu lado
assustador. Nele vivem monstros estranhos e grotescos nunca vistos por um olho
humano. As profundezas do mar dão medo. A escuridão e pressão da água esmagam a
alma. É natural que as pessoas prefiram fugir deste aspecto de sua realidade interior.
Mas Netuno tenta impedir a fuga – pelo menos no mundo dos sonhos. Assim, sonhos
em que estamos fugindo estão subordinados a este arquétipo. Geralmente, trata-se da
fuga da realidade interior e dos “demônios” da alma. Mas sonhos de fuga também
podem exprimir um desejo de evasão para não ter de enfrentar as dificuldades e
trabalhos da vida.

Sonhos místicos também têm relação com Netuno e, no melhor dos casos,
podem ser expressão de uma experiência de unidade capaz de mudar a vida da pessoa
que sonha. Caso contrário, podem mostrar o desejo de alcançar um mundo perfeito no
“além”. Mas esse mundo não existe. Portanto, o desejo se torna uma armadilha. Nos
sonhos místicos, geralmente é difícil distinguir a verdade da ilusão.

12
O arquétipo de Plutão

Hades, ou Plutão para os romanos, governa o reino das sombras – os Infernos ou


submundo, que também pode esconder os “cadáveres no porão” das histórias policiais.
Por isso, Plutão é um deus malvisto. Mas seu território é justamente o mundo da noite e
dos sonhos.

Na mitologia grega, o reino de Plutão fica abaixo das profundezas do mar. Ali
não vivem só os mortos, mas também os instintos “animalescos”, os animais da lama
humana, que com muito esforço e sofrimento aprendemos a dominar e domesticar para
nossos próprios fins. Não podemos descuidar nenhum minuto, pois nossos “animais”
interiores poderiam escapar num momento de distração. Assim, Hades/Plutão nos
confronta com o dragão interior e a luta permanente contra ele. Plutão nos envia, por
exemplo, sonhos sobre os mortos, atos de crueldade, fantasmas, demônios, situações de
pânico ou que envolvem risco de vida.

Mas, assim como existem heróis lendários que – depois de muitas experiências –
conseguem sair ilesos dos Infernos de Hades, pode-se encontrar neste arquétipo um lado
mais positivo. Sob o nome Plutão, Hades é ao mesmo tempo o deus da riqueza (interior
e exterior). Por isso, dá presentes muito generosos para os que têm a coragem de medir
o reino dos Infernos e enfrentar sua própria sombra. As experiências de evolução
pessoal que tiramos daí valem para toda a vida. “Desceu aos infernos, ressurgiu dos
mortos ao terceiro dia...” diz a profissão de fé cristã. Assim, sonhos sobre Infernos e
demônios também estão subordinados ao arquétipo de Plutão.

Sonhos sobre destruição e fragmentação mostram os dois lados de Hades/Plutão.


De um lado, todos temos de morrer, ou uma parte de nós morre a todo momento,
mostrando que nada dura para sempre. De outro, encontramos, por exemplo, nos sonhos
xamânicos de iniciação espiritual a necessidade de destruir a existência antiga para
ressurgir numa existência nova e mais perfeita. Na alquimia, este princípio se chama
Solve et coagula (“Dissolve e condensa”) e serve para transmutar os metais comuns em
metais nobres. A fênix (ave fabulosa) é outra metáfora deste processo de renovação,
pois precisa queimar para renascer das próprias cinzas. Aqui também cabem os sonhos
sobre parto e nascimento, no sentido de renovação. O tema central deste arquétipo
poderoso é “Morre e transmuda-te” (“Stirb und werde”, como escreveu Goethe).

Sempre me pergunto que mensagem tem e traz um sonho. Cada sonho traz em si
vivências – interiores despontando o que há de mais pessoal, original de um ser. Cabe a
quem escuta – terapeuta ou não ouvir, e não esquecer que a resolução e o
desencadeamento psíquico é único e singular a cada um e seja qual for a sua mensagem
e (do sonho) é pessoal e intransferível.

O sonho é uma prova viva da história da pessoa.

13
Drª Bertine Carlos Bezerra

CRM – 52.23685-8

1. Médica – formada em 1975


2. Mestranda do Instituto de Medicina Social – UERJ.
3. Diretora clínica do Colibri – escola para crianças excepcionais.
4. Ex Diretora da UHPAB – Centro Psiquiátrico Pedro II.
5. Pesquisadora da UFRJ – Instituto de Psiquiatria em Fitoterapia.
6. Supervisora do Programa de Saúde da Família – Saúde Mental – em Paquetá –RJ.
7. Experiência clínica em consultório desde 1976.
8. Pós graduada em Psiquiatria.
9. Pós graduada em Pediatria.
10. Formação em Homeopatia.
11. Professora convidada – PUC – UFRJ – Psicologia.
12. Graduada em Psicogeriatria.
13. Co-autora do vídeo: Conversa de mulher.
14. Médica psiquiatra da Policlínica Piquet Carneiro.
15. Co-autora da cartilha: Mãe – Mulher. Centro da Mulher Brasileira /CMB.
16. Formação em Psicanálise no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.
17. Formação holística de base pela Universidade Internacional Holística da Paz, Psicoterapia
Transpessoal.
18. Membro da Rede Feminista de Saúde
19. Co-autora do texto – Saúde Mental e Gênero – Conferência Internacional do Cairo.
20. Experiência em supervisão clínica em consultórios.
21. Coordenadora clínica da Estação Laços – Saúde Mental e Cultura.
22. Mãe do Júlio, Joana, Rafael e Leonardo.
23. Avó de Vitória, Luiza e Helena e Matias.

Consultório: Estação Laços


Rua Miguel Lemos, 41 Sl. 311/312 Copacabana – RJ.
Tel: (21) 3816-4838.
E-mail: estacaolacos@gmail.com

Bibliografia:
-O sono como caminho: Dormir bem para viver bem. Rüdiger Dahlke
-A interpretação dos sonhos – Sigmund Freud
-Memória, Ficção e Sonhos – Carl Gustav Jung
-Divina Comédia – Dante Alighieri
-O sonhar restaurado – Tales A. M. Absáber
-Sonhos Criativos – Patricia Garfield

14

Você também pode gostar