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Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
ll:I Autores

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido


por qualquer meio sem a autorização da editora.
r SUMÁRIO

PREFÁCIO 7
As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores
e não expressam necessariamente a posição da editora.
1 MÚSICA NA IRMANDADE DA PADROEIRA DO OURO PRETO: A NOVENA DE

NOSSA SENHORA DO PILAR. DE FRANCISCO GOMES,DA ROCHA (C.1754-1808) 13

Fábio Henrique Viana


CIP -Brasil Catalogação-na-Fonte I Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ

2 A IGREJA DE NOSSA SENHORA DO PILAR DE VILA RICA. MATRIZ DO BAIRRO

OURO PRETO: O MECENATO CONFRARIAL E A ORNAMENTAÇÃO DOS

SACRÁRIOS 31

Sabrina Mara Santllnna

3 A ICONOGRAFIA TRlDENTINA NA IGREJA DO PILAR: UMA EXPRESSÃO DE FÉ E


1. Religiosidade. 2. Vida espiritual - Igr~a Católica. 3. Igreja católica - Ouro Preto ARTE 55
(MG) - História. 4. Arquitetura barroca. Ouro Preto (MG). 5. Festas religiosas _Brasil-
Leandro Gonçalves de Rezende
História. I. Campos. Adalgisa Arantes. lI. Série.

13-00646 4 MORRER EM MAJESTADE NAS MINAS: ARTISTAS. OFICIAIS MECÂNICOS E OS


CDD; 261.50981
CDU; 261.6;34(81) APARATOS EFÊMEROS DAS EXÉQUIAS DE D. JOÃO V EM VILA RICA 73
30/0412013 30/0412013 Jeaneth Xavier de Araújo

5 OURO PRETO EM QUATRO TETOS: A EVOLUÇÃO DA PINTURA DECORATIVA 95

CONSELHO EDITORIAL COLEÇÃO HISTÓRIA


Mateus Alves Silva

Alexandre Mansur Barata I UFJF 6 Os MISSAIS OURO-PRETANOS: CIRCULAÇÃO E USO DE GRAVURAS EUROPElAS
Andréa Lisly Gonçalves I UFOP NA ARTE MINEIRA 111
Betânia Gonçalves Figueiredo 1 UFMG
Alex Bohrer
In. Kantor 1 USP
Marcelo Badaró Mattos I UFF 7 Os TESTAMENTOS E A SALVAÇÃO: AS ATITUDES FRENTE À MORTE NA
Paulo Miceli I UniGamp
FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DO PILAR DO OURO PRETO NA PRIMEIRA
Rosângela Patriota Ramos I UFU
METADE XVln 131
DO SÉCULO

FINO TRAÇO EDITORA LTDA. Denise Aparecida Sousa Duarte

Av. do Contorno, 9317 A 12° andar I Prado 8 ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE: AS PRÁTICAS OBITUÁRIAS EM OURO
Belo Horizonte. MG. Brasil
PRETO. NO sÉCULO XIX 149
Telefax: (31) 32129444
www.finotracoeditora.com.br Mirian Moura Lott
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6.

OS MISSAIS OURO-PRETANOS: CIRCULAÇÃO E USO DE GRAVURAS


EUROPEIAS NA ARTE MINEIRA
\
Alex Bohrer
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HISTÓRICO GERAL, COMPOSIÇÃO E REPERTÓRIO'

\ Após o Concílio Tridentino houve a publicação do mais persistente e


, controverso missal de todos os tempos. editado no papado de Pio y'2 De perfeito
espírito contra-reformista, o Missal de Pio - ou Missal de São Pio - foi usado
durante séculos e revisto por alguns outros pontífices (como Clemente VIII
e Urbano VIII). A ideia central de Pio V e seus cardeais era padronizar o rito
romano e difundi-lo por todas as partes, homogeneizando comportamentos

\
litúrgicos díspares e evitando a marcha protestante.] O cerimonial de culto que
não possuísse tradição longeva devia ser extirpado para não permitir confusão
entre ritos católicos e reformistas (nesse momento ainda muito semelhantes). Pio
I
acabou por abolir os missais que possuíssem menos de duzentos anos de tradição,
aqueles'acima de dois séculos, todavia, seriam considerados livres da influência
! "malévola" do protestantismo.
I Tomemos o exemplo de um destes missais pós-tridentinos, publicado em
I
1726: Missale Romanum Ex Decreto Sacrossancti Concilii Tridentini Restitutum

PII v: Ponto Max. /ussu Editum, Et Clementis VIII Primum. Nuc Denuo. Urbani
Papae Octavi Auctoritate Recognitum. Antverpiae. Ex Typographia Plantiniana.
M.DCC.XXVI. (Mariana. Biblioteca dos Bispos de Mariana. Código 035/ Estante
011 Prateleira 02). O título se compõe de uma apresentação (Missale RomanumEx
Decreto Sacrossancti Concilii Tridentini Restitutum PII v: Pont. Max. /ussu Editum
\ - Mi~sal Romano por Decreto Sacrossanto do Concílio Tridentino restituído por
Pio V, Pontífice Máximo, [por] ordem de publicação), um aditivo explicativo (Et

1. O texto constante aqui é fruto de estudo orientado pela Profa. Dra. Adalgisa Arantes Campos,
de quem partiu a ideia original de pesquisar as gravuras presentes nos missais (Ver Bohrer, 2.007).
2.. Apesar do Concilio de Trento ter terminado em 1563, algumas recomendações conciliares,
pelos longoS estudos que despendiam, foram publicadas somente em 1570por Pio V; o Catecismo
Romano, o Breviário Romano e o novo Missal Romano.
3. O Missal de São Pio foi revisto em 1604, 1634. 1888, 192.0, 1955 e 1961..

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Clernentis VIII Primum, Nuc Denuo. Urbani Papae Octavi Auctoritate Recognitum longa persistência no imaginário criativo mineiro, tendo variadas representações
- e Clemente VIII primeiramente, e [depois] Papa Urbano VIII, com revisão em diversos lugares e épocas.
autorizada), a cidade de impressão (Antverpiae - Antuérpia) e a tipografia (Ex ." ..• As cenas da Assunção da Virgem, tema predileto de vários artistas e comitentes,
Typographia Piantiniana - pela Tipografia Plantiniana). geralmente cobriam forros (de capela-mor ou nave) e foram concebidas em grandes
Seguia-se uma contracapa (muito semelhante à capa), uma apresentação em dimensões. Localizamos entre os missais vinte e uma gravuras representando a
latim (feita por um ou mais papas), textos litúrgicos (também em latim), partituras Assunção, sendo dez destas gravuras formalmente diferentes entre si. As onze
de músicas sacras, pequenas ilustrações. tudo entremeado por gravuras principais. gravuras restantes são repetições (das dez primeiras) e foram encontradas em
Nos séculos XVII, XVIII e parte do século XIX, estas gravuras principais eram, em edições diferentes de um mesmo missal.
geral, de boa lavra, executadas por gravadores europeus. Os desenhos variavam As cenas da Ascensão de Cristo também são muito comuns. Entre os missais
de tema conforme a liturgia vivida pela igreja católica durante determinadas localizamos vinte e duas gravuras representando o Cristo ascendendo aos céus.
épocas do ano. Destas, nove tem formas diferenciadas, as outras treze são repetições.
Foi com o intuito de identificar e catalogar estas gravuras que pesquisamos A Ressurreição de Cristo, menos utilizada que as outras duas temáticas,
os velhos arquivos de algumas paróquias de Minas Gerais: em praticamente todas também teve, todavia, papel importante no acervo iconográfico dos mineiros.
que possuíam arquivos conservados (mesmo não inventariados) encontramos Encontramos vinte e oito gravuras com este motivo nos arquivos, dentre as quais
missais do século XVIII e XIX. Pelo estado de organização e facilidade do acesso, doze são diferentes entre si e dezesseis estão repetidas.
escolhemos duas paróquias ouro-pretanas, para estudo detalhado de acervo: Entre os temas prediletos dos artistas montanheses, presente quase sempre
a Paróquia de Nossa Senhora do Pilar e a de Nossa Senhora da Conceição de na capela-mor (nas ilhargas ou forro), está a Santa Ceia. Encontramos, nos missais,
Antônio Dias, cujos acervos foram microfilmados pelo Centro de Estudos do Ciclo vinte e sete representações da última refeição de Jesus. Destas, dez são gravuras
do Ouro (Casa dos Contos - Ouro Preto). Nos arquivos do Pilar encontramos diferentes e dezessete se repetem.
a maior quantidade de missais (trinta peças); nos arquivos de Nossa Senhora da Apesar de não ser o tema preferido dos pintores mineiros, a Crucificaçao é
Conceição somente nove estavam catalogados. Para facilitar a identificação dos talvez a maior temática artística do mundo cristão. Nos missais encontramos vinte
missais conforme o interesse da pesquisa, atribuímos um número a cada impresso e nove gravuras representando este tema máximo. Destas, doze são diferentes e
constante nos inventários realizados pelo Centro de Estudos do Ciclo do Ouro .• dezessete se repetem.
Representadas quase sempre em caixotões ou painéis móveis (telas, por
exemplo), as Anunciações também tinham lugar de destaque na iconografia
TEMAS RECORRENTES NA ICONOGRAFIA MINEIRA: USOS E DESUSOS religiosa mineira. Localizamos vinte e sete representações da passagem de Maria
DOS MISSAIS com o Anjo Gabriel. Destas. nove gravuras são diferenciadas formalmente e
dezoito são repetidas.
Das dez gravuras mais comuns encontradas nos missais - Anunciação, O episódio da Natividade postergou interessantes representações. Encontramos
Natividade, Epifania (Adoração dos Magos], Crucificação, Ressurreição, Ascensão vinte e sete gravados com este tema, sendo que oito se apresentam de forma
de Cristo, Pentecostes, Santa-Ceia, Assunção da Virgem, Santíssima Trindade (e diferenciada e dezenove se repetem.
Todos os Santos) - somente dois temas podem ser declarados de pouco uso na A trama da Epijania,s na qual estão concebidos os Três Reis Magos com
iconografia mineira: o Pentecostes e a Santíssima Trindade com Todos os Santos. A presentes para o Menino Deus, teve representação expressiva em painéis móveis
Santlssima Trindade foi, contudo, bastante representada em conexão com a Vugem e caixotões. Localizamos dezessete gravados deste tipo nos missais. Destes, oito
e com coros angélicos. Se o tema específico de Todos os Santos não encontrou tem formato diferente e nove se repetem.
terreno propício na Capitania das Minas, a tipologia que a cena exigia - esta O Pentecostes foi encontrado vinte e seis vezes. sendo nov~ gravuras de
sim - teve paralelo importante nas Gerais: as revoadas angélicas. o gosto pelas formalidade diferenciada e dezessete repetidas.
multidões, a presença de instrumentos musicais etc. Os outros oito temas tiveram A cena de Todos os Santos foi encontrada dezessete vezes, sendo oito ilustrações
. de formato diferenciado e nove repetições das anteriores.

4. Os missais serão doravante referidos somente pelo número de catalogação que geramos por 5. Epifania (do Grego: epiphaneia) quer dizer manifestação, revelação. A princípio se aplica a
ocasião da pesquisa (Missal 34. Missal 30, Missal 37 etc.), não havendo espaço aqui para listar qualquer tipo de manifestação, mas para a Igreja significa. especialmente, a revelação do nasci-
todos os livros encontrados, com suas respectivas fichas. me,lto de Jesus aos Reis Magos. guiados até a manjedoura por uma estrela.

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~

Ao todo localizamos 241 gravuras nos missais, com 95 estampas diferentes


e 146 repetidas (ver Tabela 1). Esses números nos revelam dois pontos básicos:
o primeiro lugar, como se percebe, é ocupado pela Natividade. Não é sem
motivo que wna cena específica com este tema influenciou três representações
primeiro, 95 estampas diferentes perfaziam um volume considerável à disposição
diferentes (como será demonstrado). É curioso observar também que a grande
dos artistas e encomendantes - 95 estampas emprestariam motivos e estrutura temática mineira, a Assunção, ocupa um modesto oitavo lugar. Esta antepenúltima
a, no mínimo. 95 criações diversas; segundo, o número de estampas recorrentes colocação nos demonstra que, mesmo não tendo circulado tanto pelo uso dos
demonstra a abrangência das imagens que podiam ser repetidas e "copiadas" em missais, este tema foi certamente apropriado de outras fontes iconográficas Vá
locais e épocas diversos. que a Assunção estava profundamente arraigada ao panorama criativo mineiro,
conforme modismos internacionais).
Estas são somente algumas questões que podem ser levantadas tendo em
TABELA I - RELAÇÃO: GRAVURAS DIFERENTES X GRAVURAS
vista os usos e desusos das gravuras de missal. Passemos agora à análise destes
REPETIDAS
gravados e suas relações com a produção artística mineira, propriamente dita.

TOTAL GERAL DE GRAVURAS 241 (100%) MISSAIS E PLANOS ICONOGRÁFICOS: ESTUDOS DE CASO
TOTAL DE GRAVURAS DIFERENTES 95 (39,42 %)
TOTAL DE GRAVURAS REPETIDAS 146 (60,58%) Do conjunto analisado, um missal se destaca pela quantidade de exemplares
encontrados: o Missal 34 (dez edições, de 1781 a 1818). A qualidade artística dos
gravados deste missal lisboeta é indiscutível, pelo menos duas de suas gr~vuras
Na Tabela 2 dispomos, em esquema geral, as temáticas em ordem decrescente
mereceram até uma regravação por Francesco Bartolozzi (1728-1815). famoso
conforme as repetições:
florentino encarregado de revigorar a Imprensa Régia Portuguesa a partir
de 1802. Parece que o primor de sua decoração provocou maior demanda e,
TABELA 2 - TEMÁTICAS EM ORDEM DECRESCENTE TOMANDO POR consequentemente, maior tiragem, ingresso e "cópia" nas Minas.
BASE GRAVURAS REPETIDAS Curiosamente este impresso confeccionado na "Typographia Régia" é um
dos poucos em que as ilustrações trazem assinaturas. Cruzando as informações
contidas nas várias edições (na maioria dos missais falta uma ou outra gravura)
chegamos ao seguinte quadro:
Tema Total de Gravuras Gravuras Diferentes Gravuras Repetidas
1 - Natividade 27 8 19 1- Anunciação - N./.Cordeiro / Seulp.1781
I': 2 - Anunciação 27 9 18 2- Natividade - C.EMaehado / Seu/p. In Typ.Reg.A. MDCCLXXVIl
3 - Crucificação 12 3- Crucificação - ].C.Silva
29 17
4- Ressurreição - Silva F.
4 - Ceia 27 10 17 5- Ascensão de Cristo - Silva E / Queiroz Sc.1725 (1)
5 - Pentecostes 26 9 17 6- Pentecostes - Queiras (1725?)
6 - Resurreição 28 12 16 7- Santa-Ceia - Silva F.
8- Assunção da Virgem - Silva F.
7 - Ascensão 22 9 13
8 - Assunção 21 10 11
9 - Epif'ania Dos cinco nomes citados, pelo menos quatro são de gravadores. São eles:N.
17 8 9
]. Cordeiro, G. F.Machado, Queiroz 6 (conforme se conclui pelo termo abreviado
10 - Todos os "Sculp:: de "esculpido",em cada um destes nomes - alusão ao artista que <esculpiu'
17 8 9
Santos
a gravura) e). C. Silva (iniciais de Joaquim Carneiro da Silva [1727-1818], artista

6. Não é o mesmo Gregório de Francisco Queiroz, gravador e discfpulo de Francesco Bartolozzi.

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e gravador português conhecido pela competência, antigo aluno na Imprensa residem em pequenos pormenores. como a ausência do cajado na Capela de Belo
Régia). O outro Silva (o Silva E) assina a Ascensão juntamente com Queiroz (cujo Vale(que. na gravura, jaz no chão em primeiro plano) e a êspessura e profundidade
nome vem registrado com wn "Sc~ de "escultor': o que nos leva a crer que este das caneluras nas colunas. É esta obra, pois, uma transposição de outra cena de
Silva era um editor tipográfico. não um gravador). missal. Como na Ceia de São Francisco, a interpretação do artista flui no colorido
Das dez edições encontradas do Missal 34. três pertenciam à Irmandade e no feitio 'mestiçado' dos personagens.
de Nossa Senhora do Pilar, três à de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, Percebe-se por esses exemplos a importância que gravadores e pintores
duas à Ordem Terceira do Carmo, uma à Irmandade do Patriarca São José dos europeus tiveram na construção do imaginário pictórico das Gerais setecentistas.
Homens Pardos e uma à de Nossa Senhora das Mercês e Perdões. Estes números Cidades como Antuérpia (de onde procediam vários missais) prestaram grande
demonstram: a importância e a abrangência deste missal; que ele era um objeto serviço à nossa arte. Isso não significa que os artistas mineiros reproduzissem
comum na devoção; e que atingia membros de classessodais distintas (possuído por estas gravuras, isentos de criatividade pessoal.
diversas irmandades). Portanto, suas gravrnas teriam se tornado bem conhecidas Obviamente, as estampas que aportavam na colônia já haviam percorrido
por uma gama variada de pessoas. caminhos múltiplos. Eram dotadas de uma história própria - cheia de interações e
O Missal34circulou nas duas últimas décadas do séculoXVIII e duas primeiras outras apropriações - que teve lugar ainda na Europa. Os gravadores produziam as
do XIX.justamente a época da pujança da pintura rococó, do fortalecimento das ilustrações de dois modos diferenciados, pelo menos: usavam pinturas originais ou
ordens terceiras, do florescimento da obra de Manuel da Costa Ataíde. Os quarenta utilizavam gravuras confeccionadas por colegas. Esta prática gerava uma 'ciranda
anos de circularidade deste missal coincidem. pois, com os anos de atividade criativa' retomada e impulsionada no ultramar por um novo vigor criativo. Esta
do ilustre artista. Quarenta anos é tempo suficiente para as ilustrações serem 'ciranda criativa: consequência da inventividade dos artistas (tanto gravadores,
difundidas, conhecidas, reconhecidas, apreciadas e "copiadas". Mas, teria Ataíde quanto pintores mineiros), promoveu a existência de um grande número de
lançado mão de alguma destas gravrnas? Primeiramente, citemos dois exemplos imagens 'aparentadas' - imagens circulantes (impressos, quadros etc.) e fixas
de uso do Missal 34 ligado, de alguma fonna, à obra do pintor mariancnse. (igrejas, capelas etc.) - encontradas nas Minas.
A Santa-Ceia assinada por Silva F. (Figura 1) foi reproduzida por AtaIde Em toda reprodução, por mais fiel que fosse,haveria sempre de se introduzir
em pelo menos um lugar: em um painel lateral da capela-mor da Igreja de São uma reinterpretação. Em primeiro lugar, as gravuras não possuíam colorido.
Francisco de Assis de Ouro Preto (Figura 2). Detalhes como a disposição dos As nuances barrocas e rococós, pois, se encarregaram de "preencher" estas
apóstolos, dos talheres e das iguarias pascoais são fielmente reproduzidos. Até figuras. Outra particularidade interessante estava na compleição mestiça de
mesmo a serviçal, cuja inserção é tão realçada nesta obra de Ouro Preto, já está algumas produções. Em certos aspectos as gravuras também tiveram seu traçado
presente na gravura impressa, na mesma posição e atitude. O que muda do original reinventado, o que poderia ser feito de várias formas: modificando os planos de
para a famosa pintura? Além da feição mestiçada de vários personagens. Ataíde fundo, alterando ou anexando personagens, retirando ou inserindo objetos etc.
substituiu o ambiente de fundo, de vocabulário 'clássico: por um ambiente mais Outro fator interessante de releitora residia na construção do entorno da cena que,
'colonial', com uma porta de verga arqueada por onde sai a serviçaJ.7 conforme permitisse o suporte material, produzia reorganizações interessantes_
O referido missal teria inspirado outra obra. Na Capela da Fazenda da Boa Assim toma importância o uso de molduras artísticas e. no caso das pinturas de
Esperança, em Belo Vale.há um curioso painel: uma Natividade atribuída a Ataíde forro, a representação de tramas arquitetônicas caracterizadas pela presença de
que. se não for obra sua, certamente é inspirada pelo seu pincel. Vê-se facilmente colunas, triblUlas.rocalhas e florais, bem como, em vários casos, por uma revoada
que esta pintura é uma reprodução da Natividade de G. E Machado de 1777, a de anjos emoldurando a cena central. Este tipo de pintura esteve"muito em voga
segunda gravura do Missal 34.8 São representados de igual forma na gravura e na segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do XIX.Aliás, aspinturas
no painel mineiro: o posicionamento de cada personagem e as duas colunas de de forro - via de regra abobadado - apresentavam um problema (insolúvel para
fundo (envolvidas por nuvens onde se sobressai, ao centro, a figura de anjos alguns artistas mineiros): a dificuldade da superfície curva. Pozz9 recomendava,
sustentando um fJlactério). Até mesmo detalhes minuciosos foram reproduzidos, em seu tratado, alguns artifícios para se lidar com este empecilho. Todavia, como
como a feição dos animais (com destaque para um carneiro de estranho focinho acentua Magno Mello (1998:195)em seu estudo sobre a pintura perspectivista
afunilado, que um pastor segura, em primeiro plano), as trepadeiras observadas portuguesa, não é de todo certo que os métodos lusitanos seguissem ao pé da
à direita e a base da coluna onde se apoia São José. As mudanças introduzidas letra as sugestões do tratadista. Tal é O caso, ao que parece, da Capitania de Minas.
Passemos agora a mais alguns exemplos. A relação entre comitentes, artistas e
7. Esta Santa-Ceia foi regravada por Francesco Bartolozzi em 1810.
fontes nos leva novamente à Capela da Boa Esperança. Cobre o forro desta capela
8. Esta Natividade foi regravada por Francesco Bartolozzi entre 1802 e 1815. uma interessante Ascensão de Cristo. Outra gravura do Missal 34foi utilizada pelo

116 117
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artista. Além de reafirmar a importância deste livro sacro nas Minas, esta pintura modelo: a Virgem assentada, lendo, Gabriel suspenso em nuvens, o anjinho que
é relevante em mais dois aspectos: primeiro, faz-nos pensar sobre o papel de fontes acompanha a cena ao lado direito e o Espírito Santo, representado pela pomba,
impressas específicas na execução de planos iconográficos precisos, sobressaindo, cujo resplendor, em direção à Virgem, tem seu ângulo de inclinação aumentado
no caso de Belo Vale, o interesse dos mecenas ou artífices no Missal 34; segundo, (artifício empregado para preencher os espaços devido ao alongamento da trama
realça a criatividade e a interpretação do pintor. que vai além do colorido <alegre' imposto pelo suporte).
da cena. Exemplificando: os personagens presentes no missal são substituídos, Esta mesma gravura do Missal 34 inspirou também outra obra, distante
na pintura, por um aro de nuvens e anjos. Há, portanto, o deslocamento de um espacialmente da supracitada: sob o coro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
'ambiente terreno' para um 'ambiente celestial', conservando somente o Cristo - dos Pretos de Santa Rita Durão, arredores de Mariana, acha~se representada
resplendoroso e envolto em um manto esvoaçante. Completa a inventividade uma Anunciação'o que, por utilizar a mesma fonte, se assemelha com aquela de
do artista a representação, nas laterais. de um muro-parapeito entremeado de Itapanhoacanga (Figura 4).
florais e rocalhas (sem, contudo, estabelecer qualquer elo com a trama principal). Vrmos, portanto, vários usos e interpretações distintas do mesmo modelo.
Em outra composição, bastante diferenciada da Capela da Boa Esperança, A apropriação do Missal 34 se reduz, nos diversos casos, ao interesse dos tipos
encontramos mais exemplos do possível uso de missais como fontes iconográficas. diferenciados de mecenas e espectadores e nas suas diversas interações. No caso
Trata-se da pintura que cobre a nave da Matriz de São José de Nova Era: uma dos comitentes, encontramos a encomenda particular (Capela da Boa Esperança),
Ressurreição de Cristo, basicamente uma reprodução da Ressurreição assinada por a ordem terceira comitente (Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto) e a
Silva F.no mesmo Missal 34. Detalhes como o panejamento do Cristo ressurrecto irmandade encomendante (São José de Nova Era e de Itapanhoacanga e Rosário
e triunfante, a sua mão direita erguida, a esquerda voltada para trás, O anjo abrindo de Santa Rita Durão). Em relação aos espectadores distinguem-se um público
o túmulo, um soldado deitado, outro abaixado com uma lança, tudo foi "copiado" ligado ao circuito particular, um público delimitado pelos membros da ordem
da gravura citada. A mudança introduzida pelo artista em sua reinterpretação, afora terceira, um público mais heterogêneo, congregado numa Igreja Matriz, e um
o colorido característico, reside no espaço que emoldura o arranjo: o entablamento, público de irmandade.
as rocalhas e as tribunas típicas do rococó (dispostos, porém, numa tipologia Convém notar que a existência destes diferentes comitentes e públicos não
diferente da capelinha de Belo Vale - neste caso, a cena não se encontra 'solta' excluia circulação do visitante/observador, que pode, hipoteticamente, ser membro
da arquitetura fingida das laterais, mas articula-se com ela por meio de quatro da Ordem Terceira de São Francisco de Assis e frequentador de alguma rede
colunas, num artifício compositivo que lembra os esquemas ataidianos). ligada ao comitente da Capela da Boa Esperança, por exemplo. Os vários tipos
Para compreender melhor o uso diferenciado das mesmas fontes cabe citar de movimentação (do encomendanle, do público e do próprio missal) promovem
mais dois exemplos. Há uma curiosa Anunciação representada no forro da nave uma circularidade maior: a expansão de um universo visual comum, que migra
da Igreja de São José de Itapanhoacanga, nas proximidades da região diamantífera, de um lugar a outro e que intercambia diferentes artistas.
executada por Manuel Antônio da Fonseca em 1787.9 A fonte desta obra é o A circularidade cultural propicia, assim, trocas imagéticas pautadas na
mesmo Missal 34 que, neste caso, serviu a um artista de caráter mais popular existência de impressos servidos como modelos. A movimentação física do missal
(Figura 3). Com esta pintura temos oportunidade de acompanhar os passos pode proporcionar interessantes ligações sociais, aproximando várias regiões.
criativos do pintor, limitado por um lado pela técnica e, por outro, pelo suporte Para exemplificar a construção desta iconografia prosaica e a intercessão de um
(a gravura original é menos larga e tem maior altura proporcionalmente à pintura imaginário irmanado pelo uso das mesmas fontes, podemos citar pelo menos mais
de Itapanhoacanga, que é mais larga). Vejamos as mudanças inseridas: três anjos, dois casos nos quais identificamos mais uma adaptação da Natividade do Missal
ocupando as extremidades superiores, circundam a cena original no impresso 34: um dos caixotões do forro da nave da Igreja de São José de Itapanhoacanga
(os dois da direita têm feições mais infantis e o da esquerda tem aparência mais (de autoria do já citado Manuel Antônio da Fonseca) e um dos painéis laterais
'adulta); na obra em questão estes anjos são suprimidos, deixando à mostra, do da capela-mor da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos do Serro (atribuído a
lado esquerdo. somente o cortinado e, do lado direito, um fundo bege, do qual Silvestre de Almeida Lopes)." Duas comarcas diferentes, três locais distantes
sobressai o piso quadriculado (representado de forma diferente da gravura, numa
simplificação que mostra o pouco domínio de perspectiva do artífice). São fiéis ao 10. Certamente esta Anunciação é obra do mesmo pintor dos forros da nave e capela-mor, João
Batista de Figueiredo. '£ nítido o traçado titubeante das figuras humanas deste conjunto, em
contraposição com as rocalhas e molduras, de melhor concepção.
11. n interessante notar que as criações de Itapanhoacanga e de Belo Vale suprimiram o homem
9. Em uma das pinturas, Manuel Antõnio da Fonseca explicita a data (1787). Se levarmos em
com o instrumento parecido a uma gaita de fole - que na gravura aparece à direita. O artista do
conta que a edição mais antiga do Missal 34 é de 1781,podemos ver quanto esse artista estava a
Serro, contudo, conservou-o no seu lugar original, em confusa trama (os braços parecem estar
par de modismos recentes e intuir qual a velocidade de absorção das gravuras deste impresso.

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(Serro, Itapanhoacanga e Belo Vale) nas quais a presença da mesma fonte impressa o tema requer: Gabriel, alado e imponente. e Maria. resignada e orando. É nítido
produziu wn ambiente visual comum em três artistas que. ao que tudo indica, não o caráter estático de Maria e o movimento "barroco" do anjo anunciado!. Parte
se conheciam. Esta repetição nos faz intuir, até mesmo, que planos iconográficos dessa diferença é explicada pelo uso de, pelo menos, duas fontes iconográficas
amplos podiam ser pautados pelo uso dos missais. numa mesma composição.
A gravura da Ressurreição - empregada em Nova Era - foi utilizada em outra Podemos identificar a gravura que inspirou a concepção do Gabriel. Trata-se
criação mineira do período: no teto da Capela de Santana dos Montes, antigo de uma Anunciação presente nas duas reedições encontradas do Missal 30 (de
Morro do Chapéu. nas proximidades de Conselheiro Lafaietc. A disposição é 1724e 1758).Todos os detalhes foram preservados, com exceção da nuvem que.
exatamente a mesma. Deve~se salientar, neste caso, a perícia técnica do artista, na gravura, serve de apoio para a perna direita do anjo. escondendo parte de sua
mais destro que o de Nova Era. O espaço de recriação se aprofunda, neste exemplo, panturrilha. Ao suprimir esta nuvem na pintura final. o pintor de Antônio Dias
na moldura arrocalhada que circunda a cena, de excelente concepção,lO. teve dificuldade de representar a perna e o pé do anjo. Poderíamos dizer que.
Na mesma Igreja de Itapanhoacanga encontramos, entre os painéis da nave, neste caso, tratava-se de produtor que necessitava do uso de modelos, os quais,
uma cena da Epifania cuja fonte é uma estampa de missal citada por Hannah quando modificados. transformavam-no em artífice canhestro.
Levy (1944:56, VaI. 8). O artista - Manuel Antônio da Fonseca - novamente Curiosamente encontramos gravura semelhante à Virgem de Antônio Dias
teve dificuldades de transpor desenho tão elaborado para o forro mineiro: o em outro missal, temporalmente distante do Missal 30. É provável que a fonte
fundo, rebuscado na estampa europeia, é totalmente apagado no caixotão de desta concepção seja uma gravura oitocentista da Anunciação. difundida pelo
ltapanhoacanga. Deste fundo somente se conserva o personagem que surge na Missal 37,circulante entre 1851e 1889.Tudo do desenho original é respeitado: a
janela (estratagema usado, sem dúvida, para justificar a monotonia do segundo postura da Senhora. a colocação das mãos, o véu e as vestes etc. Fizemos uma
plano, transformado, desta forma, em parede lisa). montagem com as duas gravuras para compará-las com a pintura de Antônio
As gravuras dos missais não inspiraram somente forros ou painéis de grandes Dias (Figura 6)." O provável uso de duas ilustrações distintas provindas de épocas
proporções. Um interessante exemplo de uso de modelos em obras menores vem diferentes em uma mesma criação é, no mínimo. instigante. Conclui-se, entre
do antigo Tejuco. hoje cidade de Diamantina: no atual Instituto Von Eschwege, outras coisas, que esta pintura deve datar de meados do século XIX. periodo de
nas proximidades da desembocadura do famoso Passadiço da Glória, repousa circulação do missal mais novo (Missal 37).A datação de obras de arte tendo por
uma cena da Anunciação, obra de cavalete inserida em moldura trabalhada. base o uso de fontes iconográficas é somente uma das muitas assertivas que este
Localizamos a fonte específica desta tela: a Anunciação do missal de número 55 tipo de estudo proporciona.
IJ _ o todo da composição foi respeitado, conservando-se a feição da Virgem e a Podemos deduzir uma infinidade de outras possíveis superposições de
posição de Gabriel. A recriação do artista diamantino permanece, novamente, modelos. Citemos mais uma: sob o coro da Igreja Matriz de Nossa Senhora da
no colorido e na escala. Conceição de Sabará existe outra Anunciação. O anjo desta pintura é semelhante
I ao encontrado na cena congênere do Missal 34 e possui a mesma gesticulação e
I, OUTROS USOS DOS MISSAIS: "PINTURAS RECORTADAS" E CAPAS DE
formato. A Virgem. por outro lado, é praticamente idêntica àquela encontrada
na Anunciação da Capela da Boa Esperança de Belo Vale.Sejuntarmos o Gabriel
MISSAL do gravado e a Virgem de Belo Vale e espelharmos a montagem. teremos uma
composição próxima ao quadro da Matriz da Conceição. Fez o artista de Sabará
Outra forma de apropriação das gravuras consistia no uso de detalhes uma montagem com gravuras advindas do Missal 34 e de outra fonte (a mesma
específicos, importados dos impressos. Temos exemplo disso no forro da sacristia que teria servido à Boa Esperança)? Ou teria um gravador europeu se inspirado
da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. guardiã de em várias "anunciações': compondo, por fim, uma estampa que chegou até Sabará?
vários missais. Recobre painel da dependência uma Anunciação (Figura 5).A cena As duas hipóteses são viáveis.
- de colorido claro e vibrante, com predominância do amarelo - possui tudo que Os missais foram importantes não só pelo uso das gravuras principais; eram
livros detalhados. ornamentados como os modismos requeriam. Muitas vezes as
deslocados e a cabeça muito virada). capas dos impressos reproduziam uma cena religiosa específica ou apresentavam
12. £ bom que se note que a mesma gravura foi usada também em diferentes. estados, como acon- símbolos piedosos. Entre os arranjos mais comuns está a Estigmatização de São
tece, por exemplo, no forro da Capela dos Passos da Catedral de Taubaté, São Paulo, conforme
achado de Hannah Levy.
13.Comparando-a com o gravado com a pintura. cabe frisar que a gravura encontrada no Missal 14. A figura da Virgem foi espelhada (invertida horizontalmente) na montagem. Deve-se salien-
55 está invertida horizontalmente em relação à pintura. tar que este artifício do giro da imagem pode facilmente ter sido usado pelo pintor.

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Francisco, tema caro aos Terceiros Franciscanos de Minas, representado pelo gravados prediletos ou da moda, organizados por temas. Esta sua espécie de
Aleijadinho em Vila Rica e São João Del-Rei (na portada e no frontão destas pasta, de catálogo, devia possuir tudo o que se requeria numa negociação desse
igrejas, consecutivamente). tipo: motivos iconográficos precisos, posteriormente utilizados na confecção de
Outro desenho bastante difundido pelas "capas" é o que apresenta uma planos imagéticos locais. Não seria descabido aventar a existência de um acervo
mulher, um papa (ambos sentados) e a eucaristia. Interessante e bem detalhada próprio que reunisse várias gravuras arrancadas dos impressos originais, o que
imagem deste tipo é encontrada em uma reedição do Missal 34. A gravura em potencializava uma circularidade iconográfica maior. Além de gravuras, estas
questão é assinada pelo supracitado Silva F. e apresenta, à esquerda, uma mulher pastas deviam conter uma infinidade de desenhos, coloridos ou não, esboços
empunhando uma cruz, com uma serpente a seus pés; à direita, um pontífice, de cenas religiosas corriqueiras nas "igrejasde Minas. Escolhida a cena, devia se
com cruz papal e uma pomba em seu peito; ao centro, empunhados pelos dois apresentar, quase sempre, o debuxo fmal que, após aprovação, seria repassado
personagens, o cálice e a hóstia, símbolos eucarísticos; abaixo está a tábua dos dez para o suporte definitivo, em escala.
mandamentos e dois livros. Ao pé de toda a composição se encontra a inscrição Que o uso de pastas e de papéis avulsos circulantes (em condições de serem
"Olisipone", nome latino de Lisboa. Esta representação apresenta refinado caráter encadernados) ocorreu nas Minas é demonstrado por estas citações de Sílvio
simbólico: a figura feminina é uma alusão à mulher apocalíptica que pisa o dragão, Gabriel: "Livros huns em pasta outros em pergam.o [pergaminho] avaluados em
símbolo católico de Maria (significado reforçado pela presença de uma língua de 54$380" (Diniz, 19S9b:18S); "149 sermoens avulços, por encadernar, também sem
fogo sobre a cabeça da personagem - menção clara ao Pentecostes); o Papa com a valor (...)"(Diniz, 19S9a:342). Portanto, não é descabido imaginar que Ataíde tenha
pomba simboliza a inspiração infalível da Igreja, conduzida pelo Espírito-Santo; realmente composto uma "pasta" ou catálogo "encadernado" como ferramenta'
a Eucaristia representa o sacrifício cristológico; os dez mandamentos mosaicos útil a seu trabalho - tão útil lhe eram estes gravados reunidos que, pelo menos
são referência à antiga Lei do Pacto Abraâmico, substituído pela Nova Aliança uma vez, repetiu toda uma série iconográfica. Nas ilhargas da capela-mor da
de Jesus ("Cristo é o fim da Lei': dizia São Paulo - Romanos 10:4); os dois livros Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto e na Matriz de Santo Antônio em
aludem aos Testamentos, unidos pelo ministério apostólico. Santa Bárbara, Ataíde representou episódios da vida de Abraão, ambos oriundos
Sob o coro da Igreja de Santo Antônio de Itaverava, no Vale do Piranga, da mesma fonte, a Biblia de Demarne.
há um painel nitidamente baseado nesta composição lisboeta. A composição Nas cópias ataidianas de Demarne um pormenor chama atenção: nas duas
de Itaverava, de feição popular, apresenta a mesma disposição, com pequenas ilhargas mineiras (Ouro Preto e Santa Bárbara), as cenas em que anjos anunciam
alterações: a mulher não pisa mais a serpente, nem possui a língua de fogo; os o nascimento de Isaac a Abraão possuem estritamente a mesma estrutura. Todavia,
dois livros se transformam em um só. Mudanças que demonstram, antes de tudo, ao observarmos a gravura original percebemos que o trio de anjos está representado
deslocamentos de significado - sem a serpente e a labareda, a mulher podia ser em posição diversa,com destaque para o anjo central (cujo olhar foicompletamente
várias outras. Mudança intencional ou desconhecimento do pintor? deslocado). O que isto nos sugere?Podemos intuir que Ataídefaziauso de desenhos
Os exemplos estudados aqui demonstram a abrangência geográfica do uso pessoais e que esteseram levados de um lugar a outro para servir como modelo em
das ilustrações de missais ao mesmo tempo em que corroboram a utilização escala. Uma vez alterada a composição original de Demarne, o mestre reproduziu
destes gravados por pintores diferentes, que não se conheciam. Mesmo quando desenho de próprio punho nas duas igrejas citadas, não respeitando o traçado
distantes espacial e temporalmente, estes artífices, por fazer uso de repertórios original europeu. Ataíde, portanto, tornouMs~fonte dele mesmo O), à medida que
semelhantes, compuseram acervos iconográficos bastante corriqueiros. Este devia arquivar seus esboços pessoais.
"método" nos leva a intuir algumas apropriações práticas que pintores como Que os artistas deveriam ter a prática de guardar desenhos de lavra própria
Ataíde faziam com os gravados. é óbvio e não careceria de testemunho documental. Todavia, há registros deste
artifício; o marianense João Nepomuceno Correia e Castro (1744-179S) .legou,ao
morrer, conforme seu testamento, "1bdas as Estampas que tenho, riscos e debuxos
A "PASTA" DE ATAfDE os deixo a FranC'. Xer. e Bernardino meos Aprendizes, digo os deixo a Franco. e
Bernardino de Senna meos Aprendizes" (Martins, 1974:173). É interessante também
Não é difícil imaginar como um pintor colonial compunha seu próprio salientar como o uso de determinadas gravuras popularizou nas Gerais certos
repertório iconográfico. Pensemos em nosso exemplo maior: comprovadamente temas iconográficos e ignorou outros tantos. Neste sentido, as "pastas" circulantes
Ataíde utilizou, em diversas ocasiões, gravuras oriundas de missais e de bíblias. tinham papel fundamental - elas eram, no âmago da questão, uma coletânea dos
Certamente o pintor marianense também usava estas ilustrações em negociações gostos que moviam mecenas e artistas, apanhados de diversos modismos ingressos
na capitania, retratos, no fundo, do cotidiano criativo minerador.
preliminares. Ataíde devia ir e vir das reuniões das "Mesas", portando seus

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É como uma revista de figurinhas da atualidade, repleta de apelos comerciais uma adaptação fugaz. mas plena de significado: do panorama europeu da gravura,
e de heróis da TV: O ato de colecionar estas figuras é retrato, de certa forma, do passamos para um ambiente reconhecível pelos espectadores locais. Para a mesa
tempo e do lugar em que vive o colecionador. Não podemos afirmar que Ataíde diretora da Ordem Terceira era a transposição de gravura difundida através do
ou qualquer outro artista (ou mesmo comitente) tenha tido hábito de colecionar Missal 34 para a sua capela, à vista de todos, com a particularidade da Ceia se
gravuras impressas, até mesmo porque "colecionar': no sentido atual da palavra, passar em um ambiente familiar - uma casa colonial. Identificamos aqui uma
podia não ser uma categoria válida para os mineiros do período. Sem correr interação cultural, uma mudança introduzida pelo artista que ultrapassa o mero
riscos de anacronismos. podemos. entretanto, "construir" mentalmente aquele colorido rococó; temos uma reinvenção do ambiente. wna adaptação ao meio.
agrupamento de gravuras com frns de negociação artística. Se não as colecionavam, Representa, esta obra ataidiana, a sociedade europeia que produziu a gravura?
pelo menos as agrupavam com a fmalidade última da encomenda. Ou a sociedade mineradora? Ou ainda, a sociedade hebraica, na distante ]udeia,
A ideia de "pasta" ilustra o conceito de processo criativo, que, de certa forma, onde se desenrolou a cena canônica? A nosso ver, a obra franciscana é - como
perpassa todo o texto. Em meio ao passo a passo da criação artística, está o uso de toda arte, em sua essência, o é também - um conjunto de apropriações e releituras,
gravuras que são lançadas à mesa para serem negociadas, fundidas, fracionadas amalgamando várias influências, variados lugares, artistas diversos. Na ilharga
ou, quiçá, agrupadas em uma espécie de pasta-catálogo do produtor. franciscana não vemos Europa, Minas ou Judeia, vemos os três.
No antigo Colégio do Caraça encontramos hoje, nos corredores neo-góticos
da igreja local, wna outra interessante Ceia de Ataíde, concebida nos últimos anos
As CEIAS DE ATAÍDE (JUDEIA, EUROPA OU MINAS?) de sua vida. Nela observamos. ao centro, Cristo abençoando os pães ázimos; João
recosta-se à sua direita; ao derredor, em ambos os lados, distribuem-se 05 após~olos,
Como já dito, nas Gerais encontramos expressiva quantidade de "assunções': com destaque. em primeiro plano, para Judas, que lança um desconcertante
representadas em dimensões consideráveis, cobrindo tetos de nave e capela-mor, olhar ao visitante; à esquerda vemos três serviçais, à direita, dois. O colorido.
segundo o gosto perspectivista rococó. Que vemos nestas criações locais? A a musculatura, o panejamento, são típicos de Ataíde, mas, no cerne desta sua
apropriação de um importante assunto católico/teológico, seguindo, em geral, criação, está, sem dúvida. o uso de uma ou mais gravuras europeias. Não é sem
o formalismo iconográfico de antigas gravuras europeias (especialmente de razão que, formalmente, a Ceia do Caraça se ligue com a paleta de famosos
Flandres) - formalismo este que possui, em nwnerosos impressos, contornos mestres do Velho Mundo.
nitidamente barrocos, sob influência da escola de Rubens. Como é típico das Em 1630 Rubens concebeu uma interessante Última Ceia (conservada hoje
regiões periféricas, a absorção anacrÔnica de modismos fez conviver, nas Minas, em Moscou), que em muito lembra a citada ceia mineira: o conjunto equitativo
sinuosas linhas barrocas e o colorido alegre do rococó. Os pintores locais não dos apóstolos em torno da mesa; o Cristo. com olhar piedoso, voltado aos céus; o
hesitaram em preencher as gravuras em preto-e-branco dos missais (e outros ato de abençoar os pães; o olhar indagador do apóstolo à direita, no primeiro plano.
impressos), conforme um novo gosto em voga. É assim que mestres distantes, Em suma: mesmo com diferenças formais e, levando-se em conta o penumbrismo
espacial e temporalmente, se abraçaram em criações estéticas de Minas Gerais: de Rubens, podemos dizer que há um elo entre as concepções do artista europeu
tal foi o caso de Rubens e Ataíde. e o mestre mineiro.
Na Santa-Ceia da capela-mor de São Francisco de Ouro Preto, Atafde fez uso Com este último exemplo cremos ter podido alinhavar nossas muitas
de uma gravura encontrada no Missal 34, obedecendo à colocação e disposição proposições na pesquisa que deu origem a este texto, tendo consciência que
dos apóstolos, dos objetos, das proporções e até da serviçal que se achega para muito há ainda por .se fazer. Neste estudo nos prendemos aos missais católicos.
servir a refeição. A Ceia que serviu de modelo ditou a feição geral da consecução, cujo número de remanescentes ainda se avolurria .nas nossas velhas paróquias.
fornecendo ao pintor subsídio importante para decoração da capela-mor Sabemos, no entanto, que vários outros tipos de impressos ingressaram na capitania
franciscana. Porém, Ataíde não copiou docilmente a gravura, antes a reinventou, de Minas Gerais. Sabemos também que as gravuras aqui referidas como sendo de
tornando-a mais 'palatável' ao público local e bem vista pelos comitentes: a exigente missais podiam vir em outros suportes (e mesmo ser avulsas). Os missais foram,
Ordem Terceira de São Francisco. Duas diferenças denotam a liberdade criativa contudo, uma espécie de coletânea ic"onográfica, oferecendo formas e temas aos
do artista marianense: os rostos. mais arredondados, adocicados, mais cotidianos; encomendantes e artífices.
e o fundo da cena, representado na obra vilarriqucnha por uma porta de verga É claro que existiram outros meios privilegiados de circulação de imagens e
arqueada. simplificada. Na cena original havia um fundo c1assicizante, mais que estes meios variaram temporal e espacialmente. Este alargamento de horizontes,
renascentista. Por que a alteração? A porta de onde sai a serviçal é como tantas apesar das importantes contribuições de outros pesquisadores atuais, merece
outras que se veem nas casas mineradoras - singela, luso-brasileira. Esta é, pois, ainda ser alvo de estudos futuros.

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FIGURA 1 - SANTA CEIA, SILVA F. ('). (GRAVURA DE MISSAL).

Fonte: Paróquia N .Sra. Pilar.

Fonte: Paróquia N.Sra. Pilar.


FIGURA 2 - SANTA CEIA, ATAfDE, MANOEL DA COSTA. IGREJA DE SÃO
FRANCISCO DE ASSIS, OURO PRETO, MG.
FIGURA 4 - ANUNCIAÇÃO, FIGUEIREDO, JOÃO BATISTA. IGREJA DE NOSSA

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SENHORA DO ROSÁRIO. SANTA RITA DURÃO, MG.

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Fonte: Foto Rodrigo Gomes

Fonte: Foto Ala Bohrer.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOHRER, Alex Fernandes. Os Diálogos de renix: Fontes Iconográficas, Mecenato


e Circularidade no Barroco Mineiro. (Dissertação de Mestrado) - Programa
de Pós-Graduação em História, FAFICH/UFMG, Belo Horiwnte, 2007.
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Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Revista do Instituto Histórico
e Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 6. 1959.
DlNIZ, Sílvio Gabriel. "Um Livreiro em Vila Rica no Meado do Século XVIII':
Kriterion. Belo Horizonte, 47-48, 1959.
LEVY, Hannah. "Modelos Europeus na Pintura Colonial': Revista do SPHAN,
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MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos séculos XVIII e XIX em
Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações do IPHAN, 1974, 10 voI.
MELLO. Magno Moraes. A Pintura de Teclos em Perspectiva no Portugal de D.
Fonte: Foto Alex Bohrer. João V. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

FIGURA 6 - ANUNCIAÇÃO. (MONTAGEM).

Fonte: Alex Bohrer.

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