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! SEGISMUNDO SPINA ! SEGISMUNDO SPINA
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(Da Universidade de Säo Paulo)
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POETICA CLASSICA
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j -.. . ,fl; R. do Lavapes, 1.023 - C.P. 30.402 - Fon es: 37-7928 e 37-4603
Säo Paulo (12) - S.P. - Brasil
Sao Paulo
1967
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ERRATA
Solicitamos a benevolencia do Leitor para as seguintes correcsöes:

Pag. 19, linha 20, onde esta: escritos, ler: escritores


" 31, eliminar o ultimo verso da passagem de Horacio e
substitui-Io por: praesectum deciens non castigavit ad
unguem.
" 32, linha 12, eliminar a linha ate a palavra desprovidos
" 40, linha 19, onde esta: enfim proprios, Ier: enfim siio
proprios
" 51, linha l, recuar o titulo A Poetica na Franr;a para o
inicio do ultimo paragrafo da pagina anterior.
" 67, linha 23, onde esta: dotados com, !er: dotados (com
" 91, linha 20, onde esta: escritos gregos, ler: escritores
gregos
" 93, linha 1, onde esta: politicos, !er: poeticos
" 108. a La Iinha do ultimo paragrafo, onde esta: das obje<;öes,
!er: duas objer;öes
" 129, linha 15/16, onde esta: exemplificar;iio, Ier: explicar;iio.
" 142, linha 30: onde esta meros, ler: menos
" 148, linha 37: onde esta: e o tempo, ler: e para o tempo

Obrigado.
Ao Josi: LAZZARINI JliNIOR,
DE U:\1 POET.-\. SE:\! ESCOLA:
uma amizade autentica e permanente;
'·Parce que Ia forme est contraignante, l'idee jaillit intense ...
Avez-vous remarque qu'un morceau de ciel aperc,:u par un soupirail. ou
Ao ANTÖNIO CA.Numo,
entre deux cheminePs, deux rochers. ou par une arcadt·. donnait une
um paradigma de mestre, dificil de imitar. idee plus profonde de l'infini quP le grand panorama vu du haut d'une
montagne".
( Baudelain·. a Armund Frui.m', 1860).

DE U:\I 1'1:\TOR RO:\!A'iTICO:

"'L'art n'est pas ... ce que le croit Je vulgairc. une


sorte d'inspiration qui viPnt de je ne sais ou, qui marche au basard.
et nc prespnte que I'Pxterieur pittoresque des choses. Cest Ia raison
elle-meme, ornee par Je genir. mais suiYanl une marche necPs:"aire et
contenue par des lois superieures".
( Delacroix, ]ou mal, 189:1, I, 365).

--
ainda que pela sua mediocridade, sig:nificaria mutilar a aulenticidade
dc uma experiencia quP felizmenle culminou corn exilo. A
des!a Carta, mas principalmente a nPia for-
mulados, ressenle-se de qualquer profundidade; prPil'ndemos ape·
!JaS criar, num tom puramente didiitico e despretensioso. um clima
Yt•stibular ao aluno quP deseja ing:ressar no conhecimento dos g:randes
e complexos principios da doulrina eliissica. Estes. sim. mereccram um
tratamento com niwl diferente.

EXPLICM;Ao NECESSAlUA SPria de esperar tambcm que numa exposi<.;iio introdut(Jria da


doutrina diissica se incluisse um capitulo dedicado aos generos e as
formas literiirias. Entretanto. com o intuito de niio assoberbar o,- limi-
!t',; de um mmmal. fon;ado que seriamos a resumir uma malcria täo
f:stPf' apontamPntos nasceram de um curso sPmPstral, ministrado
complexa e tiio ampla. rPserYamos o tratamento desse campo para uma
a titulo de expt>rieneia, nos 3. 0 s anos dos Cursos de Letras da Fa-
futura publica<.;iio. Esta lacuna permitiu-nos. 110 enlanto. alargar o es-
euldade dt> Filosofia da Univt>rsidadt> de Siio Paulo, no periodo lt'tivo
tudo das reg:ras cliissicas para alem das frontPiras planejadas.
de 1965.
E absolutamenle escusado dizer qup o nosso curso niio e uma
E notorio o desconhccimenlo que os Pstudantes de letras tem. -
no\ idadP: a maleria lPm os seus tratadi,-tas consagrados e näo siio
J<l niio diriamos dt> certas no<,;ÖPs dt> filosofia, dt> his-
pmwo": o ünico merito talwz consisliria t•m meler a coisa em lingua
toria da cultura e de filosofia da artP, mas dos problemas fundamen-
porlug:uesa, ;.;!'!t'cionando 0 t'S:'l'llCia] a St'r a,.;simiJado llUilla epoca t•m
tais da estetica literaria. Ern nossos cursos a prop!Jsito da pm·sia
quP tudo se pauta pelo criterio da wlocidadt', Nao prelrndt·mos origi-
camoniana, nunca pudemos Pnlender que o aluno em
nalidade: portanlo. l' aprnas. de uma arruma<.;iio tanlo quanlo
de pureza quase absoluta, falto dt> uma nas grandes ques-
pos"i'el didiitica daquilo qut· anda. de forma sistrmiitica r maci .. a. 11a
töcs do formalismo classico. A si-stemiitica que re\'Plam os
hihliografia autorizada qtH' wm ao firn de:<te trahalho. 0 seu püblico,
de letras. a qua,.:c pela literatura clilssica, explica-se
poi,.;, sao OS de ll'lra".
pnfeitamenlt' por lacuna dt• sua forma((iio intclectual; mas vimos
ohservando ('!)In profundo prazer que, a mt>dida que l!algam 0." um-
hrai,.; da do Classicismo, CamoPs sc lhes torna um molivo de Sao Paulo, dezemhro de 1966.
alra((iio, dt· ren·la((iio t' de ent·ontro. Qut' isto succda t·om os oulros
t•snilort•s cJiissicos C 0 llOSSO objetivo.
Dai explicar-se quP, a falta de uma hihliografia Pspecializada SO·
hre o campo em lingua portuguesa, imaginiissPmos. muito modcsla-
mcnlc, esho<;ar uma Pxposi<;iio dos mais importantPs principios do for-
mali:-mo cla;;;sico ( 1). Corno 0 nosso C\m;o St' desf'll\Oiwu a volta da
Carta XI I de Antonio Fern·ira a Diogo lkrnardes. cm quc se contem
a,.; rPgras fundamPnlais formalismo, haseadas na poelit'a hora-
f'iana, consideramos de grande utilidade manter a epistola fnrPiriana
como pretexto P molivat;iio de llüi'i'a cxpoi'i<;iio tc<lrica. Eliminii-la.

1) A tese de Vitor Pires dc .\guiar c Sih·a. Para urna interpretac:ao


do Classicismo ( Sep. da Revista de Hist6ria Literaria de Portugal, 1 : 1O() 2,
1-167), o prinlE'iro trabalho serio crn nossa lingua siibrc o espirito do
Classicismo litcrario,e. como o proprio titulo indica, uma «interpreta(am>,
nao prOpriarnente 0 que dcseja ser 0 Ulll 111(111llal did[ltico c
pn·tensiles acGrca clos principim fundamcntais cla cst{·tica ci{rssica. Con-
tudo no capitulo 1\-T de scu cnsaio eiH'OHtra-:-;e utna discussao tnuito intc-
ligcnte c litil st,brc os fundanwntos da cloutrina cl{rssica I p. CJ'i-1
8

7
A quem os deixa, e foge, quiio sobejos
Lhe parecem mais bens, que os que so bastam
30 Desviar da virtude os cegos pejos.
Quantos as vidas, quantos almas gastarn
Ern buscar seu perigo, e sua morte,
E träs ela seus j ogos c:rueis arrastam!
Aqueles vivem so, a que coube em sorte
35 Ao som da frauta, que dos ombros pende,
0 mundo desprezar com esprito forte.
Toda minh'alma em desejar se estende
A doce vida, que täo doce cantas,
Que quase a fOn;a quebra, que me prende.
40 Mas ajunta a estas outras tantas,
Todas quebraria eu, se asas tivesse,
Com que chegasse onde me tu levantas.
Se eu pudesse, Bernardes, se eu pudesse
Ser senhor so de mim, eu voaria
45 Onde do vulgo mais Ionge estivesse.
Ali quäo livremente me riria

0
De quanto agora choro! Ali meu canto
Livre por ares Iivre soltaria.
Enquanto me ves preso, amigo, enquanto
50 Sem esprito, sPm niio me chames
Com teus versos, que a ti s() honram tanto.
Por mais que me desejes, mais que me ames,
Niio empregues em mim tao cegamente
Teu canto, com quP e hem que herbis afames.
55 tratan·i contigo amigamente
Do c:onselho, qut> pedes; juizo, e lima
·-S. <t:c

Tem em si todo humilde, t> diligente.


-;
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Quem tanto a si mesmo ama, tanto amima,


Que a si se favorect>, e se perdoa,
60 Que esprito mostrara em pro,;a, ou rima?
II':

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Tais siio alguns, a que triste a Hera coroa


Roubada do vao povo ao daro esprito,
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Que esconder·sP trabalha, e cntiio mais soa.


Aquele da de si pühlico grito:
65 f:stP cala, e se encolhe: o tcmpo enfim
Um apaga; imortal faz doutro o esrrito.
A primeira Iei minha e, qut> de mim
Primeiro me guarde eu, e a mim niio crew,
Nem os que levementt> se me rim.
70 ConhP<;a-me a mim mPsmo; siga a veia
Natural, niio o juizo quNo
De qut>m com juizo, e sem paixao me leia.
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10
Corta o vai anescentando
0 l{Ut' falta, o baixo l'If!UP, o alto modera.
Na boa imitac;;äo, e uso, que o fero 120 Tudo a uma igual rqrra conformando.
Engenho abranda, ao inculto da arte, Ao Pscuro da luz, e ao que pudera
75 No conselho do amigo douto espero. Fazer duvida. aclara; do ornamento
Muito, 6 Poeta, o engenho pode dar-te. Ou tira, ou pöe; co dPcoro o tempera.
Mas muito mais que o t>ngenho, o tt'mpo, e rstudo; Sirva pr6pria palavra ao bom intenlo,
Nao queiras dt> ti logo contentar-te. 125 Haja juizo. e regra, e diferen<;a
E necessiirio ser um tempo mudo! Da pratica comum ao pensamPnlo.
20 Ouvir, e !er somente: que aproveita Dana ao estilo as vezes a senten<;a.
Sem armas, com fervor cometer tudo? Tiio igual venha tudo, e tiio conforme
Caminha por aqui. Esta e a direita Que em duvida este ver qual deles w11<;a.
Estrada dos qut> sobem ao alto monte 1::\0 l\las diligenlf' assi a lima reforme
Ao brando Apolo, as nove lrmäs aceita. Teu verso, que nao Clltre pt>lo sao,
25 Do bom escrever, saber primeiro e fonte. Tornando-o, em vez de orna-lo, t>ntiio disforme.
Enriquece a memoria de doutrina 0 vicio, que se da ao pintor, que a miio
Do que um cante, outro ensinr, oulro lt' conte. l\"ao sabe erguer da tabua, fuge: a gra<;a
Isto me disse srmpre uma divina I:\5 Tiram, quando alguns cuidam que a mais dao.
Voz a orelha; isto entrndo, crrio. Hot·ndo o triste verso, como tra<;a,
90 Isto ora me castig·a, ora mt• t>nsina. Sem sangue o deixam, sem esprito. e vida;
Ca da um para St'U firn busca St'U meio:
Outro o parto sem forma traz a prar;a.
Quem näo sabe do oficio, niio o trata. Ha nas cousas um fim, ha tal medida.
Dos qur sem salwr escrrn·m o mundo e cheio. 11{) QtH' quanto Oll falta de\a, e vicio:
Se ornares de fino ouro a branca prata E m·cessaria a emenda bem regida.
59 Quanto mais, e mclhor ja rt>splandece, e, confesso, 0 artificio:
Tanto mais val o rngcnho, St' a arte se ata,
afeitado; empece a tenra planta
Nao prende logo a planta, näo florece.
0 mllito mimo, o rnllito benrficio.
Sem st'r da destra miio limpa, e regada,
115 As vezes o qlle wm primeiro, tanta
Co tempo, t' arte flor, fruto part'Ct'.
I\atural gra<;a traz, que llma das nove
100 Questäo foi jit dt' muitos disputada
Deusas parece qlle o inspira, e canta.
Se obra rm n•rso arte mais, se a natureza.
Qual e a lirna cruel. qlle inda OliSe, e prove
l'ma sem outra val ou pouco, ou nada. Ern viio ali seus fios? Deixe inteiro
::\las eu tomaria anles a dureza 150 0 bern nascido n·rso, o mau renove.
DaquPlr. que o trahalho, e artt' abrandou, Niio rnude, Oll tire, ou ponha, sem prirnriro
105 Qut' dcstoulro a correnlc. e vii prestrza. Vir aos ouvidos do prudente experto
Vence o trabalho tudo: o que cansou Arnigo, nao inwjoso, Oll lisonjeiro.
Sru esprito, e O'eus olhos, alguma hora Engana-se o amor pr6prio, falso, e incerto,
.\1o-strara parte alguma do que achou 155 Tarnbem se engana o medo de aprazer-se,
A palavra, que saiu uma \ez fora, Ern ambos erro ha quasr igual. e certo.
110 Mal se sabe tornar: e mais seguro Por isto e horn rernedio as vezes ler-se
Näo le-la. que escusar a rulpa agora. A dois Oll tres amigos; o bom pejo
Vejo Ieu Yerso brando, estilo puro, Honesto ajuda entiio melhor a ver-se.
Engenho, arte, doutrina; so qu!'fia 160 Ali como jlliz entao me wjo.
Tempo. e lima de inwja forte muro. Sinto qllando igual vou, qllando descaio,
115 Ensina muito, e muda um ano, e um dia Quando doutra rnaneira me desrjo.
Corno t>m pintura os erros Yai mo5lrando
DqJOis o tt·mpo, qu<' o ülho antes niio \ ia.
12
11
Quando eu meus versos lia ao meu Sampaio,
Muda ( dizia) e tira: ia, e tornava:
165 lnda, diz, na bem niio caio.
0 que mais docemente me s·Java,
0 que me enchia o espirito, por mau tinha,
0 que me desprazia me louvava.
Enlao conheci eu a dita minha
170 Em Iai amigo, täo desenganado
Juizo, e certo, em que eu confiado vinha.
Quem d'olhos tantos Iido, quem julgado
De tanto imigo as vzes hii de ser,
Convem tempo esperar, e ir bem armado.
175 lslo me faz, Bernardes meu, temer
No Ieu, como no meu: niio vai escusa.
Doi muilo ver meu erro, e arrepender:
Quem louva o bom? Quem bom, e mau niio acusa?
Mas tu näo tens razao de Ierner muito,
180 Assim le e te leva a branda Musa.
Deixa so madurar o doce fruto
Um pouco; ·deixa a lima contenlar-se:
lnventa e escolhe entao o melhor do muilo.
Eu vejo cada dia acrescentar·se
185 Ern ti fogo mais claro, e o engenho teu
Cada dia mais vivo levantar·se.
Enlao dariis com gloria tua o seu
GraJ premio as Musas, que te tal criaram,
Vida a teu nome, qual a fama deu
190 A muilos, que da morte triunfaram.

Antonio Ferreira, (POEMAS LUSITANOS)

13
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samento [ 49-51]. Por maiores que sejam a admirac;;ao e o amor que


me devotas, näo dissipes täo cegamente o teu canto comigo: emprega-o
no louvor e fama dos her6is [52-54]. Contudo tratarei contigo dos
conselhos que me pedes; usa da razäo e da lima, com humildade e
diligencia [55-57]. Que espirito podeni revelar, na sua prosa ou nos
seus versos, quem a si mesmo tanto ama e tanto amima, vivendo a mer-
ce dos seus pr6prios recursos e perdoando as pr6prias falhas [58-60]?
Entre estes se contam alguns poetas, que infelizmente se coroam com
a hera que o vulgo ignaro arrebatou aqueles que tem merecimento,
PARAFRASE
os quais, näo obstante proeurem a obscuridade, se tornam mais not6-
rios [ 61-63]. Os primeiros fazem de si a pr6pria propaganda; um
cala, o outro se esconde: o tempo enfim se incumbe de apagar o nome
A leitura de tua poesia, suave e terna, Bernardes, inspirou-me a de um e tornar imortal os escritos do outro [64-66]. 0 meu princi-
escrever: deu-me növo alento, despertou-me nova [1-3]; mas pio fundamental consiste em que eu aguarde a oportunidade e näo
como queres que um espirito, que vive sujeito a tantos outros, nao se creia na minha suficiencia, tampouco no sorriso superficial da apro-
acautele contra o riso [ dos criticos] e contra a carranca [ dos inquisi- vac;;äo alheia [67-69]. Conhec;;a-me a mim mesmo; atenda aos impul-
dores [ 4-6] ? Quanto mais a me acode, mais me por sos naturais da criac;;ao liteniria, sem forc;;a-la: s6 me interessa o jul-
conte-la: sabe-se depois o do silencio [7 -9]. Vivo, escrevo e falo gamento daquele que com a razao e isento de afeic;;öes me leia [70-72].
sob a do medo; e receio inclusive de falar com os meus pröprios
Confio na boa imitac;;äo, no habito permanente (da leitura dos bons
botöes: portanto 0 medo nao so persegue 0 meu pensamento como 0
modelos), que abranda OS impu)sos da cega imaginac;;ao e da arte as
meu silencio [10-12]. A cada passo encontro pela frente um inimigo
criac;;öes incultas; confio tambem no conselho do amigo esclarecido
dos bons espiritos: [ tao perigoso] que faz temer-me de mim mesmo
e dos pröprios amigos [ 13-15]. Se quiseres viver em paz, nestes tem-
[73-75]. Ö Poeta, a imaginac;;äo criadora pode dar-te muito; mas, muito
pos tao cheios de surpresas, e necessario simular mediocridade [16-18]. mais do que ela, dar-te-äo o tempo e o estudo; näo te contentes ime-
Vida com tantos cuidados, tanta quando haveras de deixar- diatamente de tuas criac;;öes [76-78]. E necessario que vivas muito
-me? Quando poderei ver um rosto e um sorriso isentos de maldade tempo sem publicidade! Ouvir e ler somente: pois, que resultado podes
[19-21]? 0 dia em que eu för digno de e em todos eu de- alcanc;;ar se, sem armas, te arremetes com furor dseenfreado contra tudo
positar a minha, isenta de duvidas, de e falsidade, nesse dia [79-81] ? Trilha este caminho. Esta e a estrada segura dos que pre-
terei soberana liberdade [22-24] ! Ah! Quantos dias tristes, quantos tendem subir o alto monte do reino da Poesia; esta e a estrada ben-
embalados por bens enganadores, por ilusöes que sao a nossa quista pelas nove musas [82-84]. 0 saber e a fonte primordial da-
[25-27]! Aquele que os bens abandona, quao superfluos lhe parecem queles que querem escrever bem. Enriquece o teu espirito com a dou-
OS bens que VaO alem dos necessarios, preservando a virtude dos peri- trina dos poetas, dos prosadores e dos cultos [85-87]. Uma divina
gosos [28-30]! Quantos sao OS que consomem a vida a VOZ sempre ditou na minha consciencia estes principios; e assim que
busca de perigos e da morte, arrastando nessa busca crueis desas- entendo, e nestes principios que COnfio; e por e)es que SOU advertido,
sossegos [31-33]? Aqueles (os pastöres) vivem na solidao, e a eles coube por eles que SOU orientado [88-90]. Cada qua], para OS seus fins, lance
por destino cantar, com espirito forte, ao som da flauta pendente dos mäos dos verdadeiros meios; quem do oficio nao e, nele näo se meta:
ombros, o desprezo do mundo [34-36]. Töda minha alma se desfaz o mundo ja esta infestado por aqueles que escrevem sem o conheci-
no desejo daquela doce vida ( do campo) que tao suavemente cantas mento dos principios artisticos [91-93]. Se ornares a cändida prata
(em teus versos), e por pouco nao rompe os grilhoes que me acorren- de tua inspirac;;äo com o fino ouro de teus conhecimentos, ela tanto
tam [37-39]. Para chegar, (Bernardes), ao ponto em que colocas a mais resplandece quanto melhor se harmonizam; a imaginac;;äo cria-
minha poesia, se eu tivesse liberdade de espirito haveria de quebrar dora e tanto mais valiosa quanto mais se alia aos preceitos da arte
estes grilhoes e muitos mais [ 40-42]. Se eu pudesse, Bernardes, ser [94-96]). A planta que näo for regada e podada pela mäo cuidadosa,
dono de mim mesmo, eu ficaria do vulgo o mais distante possivel näo se firma no solo e nao Horesee; as flores e os frutos s6 aparecerao
[ 43-45]. La entao me haveria de rir destas minhas lamenta«<oes! La com o tempo e com o desvelo permanente [97-99]. E questäo ja muito
meu canto poderia soltar Iivre pelos ares [ 46-48]. E assim, enquant(} controvertida saber se e mais a natureza ou a arte que faz os grandes
nao me incitas COm teus Versos, amigo, COm estes Versos que tanta poetas. 0 genio nada vale, ou pouco vale sem o conhecimento da arte
glöria te dao, vou eu acorrentado, sem för«<as e sem liberdade de pen-
16
15

""''"''
[100-102]. Entretanto, prefiro a poesia dura - mas castigada pelo
C'Sl<!ll1ü5 CC'flOS; na Yt'rdade, t'ill amhas as alitudes 0 erro e quase 0
mt··,;mo l154-156J. Por isso e hoa norma lermos
duas ou tres de
escritos a
a humildadc hem intencio-
I
I

esfön;;o artistico - , aquela que brota com enganadora nada ajuda a wrificar o que fica melhor [157-159]. SCJ assim posso
[103-105]. 0 vence tödas as dificuldades: quem fez trabalhar exncn sobre mim meu proprio espirito critico: percPbo quando estou
seu espirito e seus olhos, um dia colhera frutos de suas cerlo, quando nao, ou ate que ponto preciso modificar-me [160-162].
[106-108]. Os escritos publicados, logo ä primeira vista, nao poderao Quando eu lia mcus versos ao meu caro Sampaio, dizia elr: modifique
mais ser emendados: e mais seguro nao redigi-los ( ou nao divulga- aqui. suprima acolä; eu refundia e voltava a consultä-lo: '·Voce -
-los) do que desculpar--se das suas [109-111]. Vejo, Ber- dizia elr - ainda näo percebeu a minha [163-165J.
nardes, quao suave e a tua poesia; como e puro 0 teu estilo; näo lhe Aqurla-s passagens que me parrciam soar harmoniosamente e me con-
f alta a capacidade de criar, o conhecimento da arte, e ciencia; apenas tentavam o espirito, o Sampaio as considrrava mas; e aquelas que
seriam de desejar a e o perfeito acabamento, que sao as nw de,-praziam, ele as lom•ava [166-168]. Tive entao a felicidade de
armas de defesa contra os zoilos [112-114]. Procura retocar bastante, conlwct>r nesse amigo um julgamrnto tao sincrro, tao seguro, que nele
melhorar constantemente; assim como sucede na pintura, as imperfei- manlinha a minha [169-171]. Quem vai 5er Iido c julgado
que os olhos no primeiro relance näo percebiam, o tempo vai pos- por muilos inimigos, convem aguardar a oportunidade, a firn de ir
teriormente pondo em evidencia [ 115-117]. Elimina os excessos, vai hcm armado fl72-174J. Isto faz, Bernardes. com que eu tema a pu-
acrescentando o que falta, evita a vulgaridade mas modera os arrou- blicidade de trus versos como a dos meus: a desculpa näo procede.
bos: tudo deve reger-se pela justa medida (pela Iei das Pesa-me muilo perceber mru erro e arrqwnder-me publicamPntc
harmoniosas [118-120]. Torna claro ao entendimento aquilo que possa dele [175-177]. Näo falta qucm lomt· o hom; mas tambem näo falta
ser ininteligivel ou criar ambiguidades: usa moderadamente dos oma- aquele que acusa tanto as obra,; !was como as imperfritas. Todavia,
tos da linguagem: tempera-os com o decöro [121-123]. As ideias e Bnnardes, näo trns molivo para grandes lt·mon·s; pois a doce Musa
os sentimentos bons devem vir expressos por palavras adequadas; o impiradora te conduz o genio e lc elna o pensamento Jl78-180 ]. Deixa
pensamento deve revelar bom-senso e medida, bem como ser expresso apenas amadurecer melhor a tua suavc pot•sia; deixa a lima cxercer a
por linguagem propria, diferente portanto da linguagem coloquial vonlade o seu paprl: cria uma multidao dP coisas belas c cscolhc denlrc
[124.-126]. As vezes o tema compromete o estilo; convem que ambos elas a melhor l181-18:1J. A cada dia que pa,;sa pPrcebo que teu eslro
se adaptem e se harmonizem ( tema e estilo), a ponto de näo saber- 5t' torna mais ilustre. e o leu enl!enho :-;uhlimar-se progressivamente
mos qual deles e o melhor [127-129]. A busca da do verso J U1 !.-] g6J. E assim a tua 1-!](Jria seri1 um P"'celso 1-!alardao das :Musas,
deve ser perseverante; porem a lima niio deve atingir os versos que rlas que tanto te inspiraram; lrr[t:.; a imortalidade do Ieu nome, como
ja estiio perfeitos, tornando-os assim disformes ao de orna-los aquele que a Fama dt>u a muitos que ·:'ouheram Iranspor com triunfo
[B0-132]. Evita fazer como faz o pintor que näo ergue do quadro a dura morte [187-190J.
o pincel (para ver se esta perfeito) ; muitas vezes se destroi a beleza
realizada supondo aumenta-la com a revisäo [133-135]. lnfelizmente,
roido continuamente como o verso acaba por tornar-se vazio,
sangue e sem esplrito: outros, ao contrario, publicam suas ob ras
como sairam ä primeira [136-138]. Nas coisas ha um firn,
um sentimento das que o minimo pormenor que se lhe
acrescente ou se lhe retire, e vicio: e necessaria a emenda feita com
hom-senso [ 139-141]. Confesso que o enfeite e necessario; mas näo
o seu abuso: o excesso de cuidado pode impedir o bom crescimento da
tenra planta [14.2-14,1.]. As vezes a beleza pode vir de um jacto, tao
C"-pontaneamente, como se föra inspirada por uma das nove Musas
[145-147]. Näo e necessario o exercicio da lima em versos que ja
saem perfeitos; so os maus devem ser revistos [148-150]. Näo re-
fundir os versos, modificando-os, suprimindo ou acrescentando, sem
antes serem Iidos äqueles que possuam prudencia e experiencia, e näo
sejam invejosos ou louvaminheiros [151-1531. Nos nunca somos bons
criticos de nos mesmos; da mesma forma e ilusoria a de que
18
17
I .. !4,U .... '"' .. ""- ·rr ' > ' '• }::.i,.t" "'':: • ·' ,. J'· :e:l\

"Do bem escrever . .. ) ; o ver so 101 ( "S'obra em verso arte mais, se


a natureza") näo vem seguido (como na l.a ed. de 1598, na 2a de
1771, e ate na 3.a de 1829, Rolandiana) do o
mesmo sucede com o verso 114, que em Candido Lusitano aparece
"Tempo, e lima, d'inveja forte escudo", e uaquelas "Tempo, e
lima, d'inveja forte muro." Ainda bem que o sentido näo se altera
com a
Relativameute ao verso 148 ("Qual e a lingua cruel, que inda ouse,
AO TEXTO DA CARTA e prove"), coustaute nas primeiras edic,;oes dos Poemas Lusitanos,
supomos tratar-se de erro tipogräfico: onde se le lingua deveria ler-se
lima; o verso seguinte esclarrce, dizendo "Ern väo ali seus jios?". E
Corno na Epistula ad Pisones de Horacio, - e talvez nesta mais evidente que o Poeta se refere aos fios da lima, ao recomendar cuidado
freqüentemente - encontramos na de Antönio Ferreira alguns versos com ela a firn de näo arruinar o n·rso que ja saiu perfeito, e ao reuo,·ar
sem clareza ou palavras de acep9iio duvidosa, bem como ate possiveis os que sairam maus.
erros tipograficos. Partimos, por nos parecer a melhor, da 2.a edi9iio
Finalmeute: o terc-eto ( vv. 169-171) näo oferece possibilidade de
dos Poemas Lusitanos (Lisboa, 1771, 2 v.). Ainda assim nos permiti-
analise, a menos que nele trnha ocorrido alguma anacolutia ou
mos alterar, uma vez ou outra, a pontua9iio, mais para adapta-la ao
sistema atual do que por imposi9oes de sentido. Entiio conheci cu a dita minha
No verso 182, por exemplo, em que o Poeta aconselha: "deixa a em tal amigo, tiio descnganado
lima contentar-se", o verbo deve estar empregado na acep9iio de "exer- jui;:;o, c certo, em que cu confiado vinha,
cer plenamente o seu oficio", como se dissesse: deixa que a lima reto-
que o verso ate alcam;ar a sua mais perfeita forma; mas em outros cuja ordern direta eliminaria o elemeuto "a dita minha": Eu conheci
Iugares (v. 56-57 e v. 130) recomenda o emprego cuidadoso da lima: entiio jui;:;o tiio desenganado e certo em tal amigo, em que eu t·inha
nao ha contradi9iio, portanto. 0 emprego intransitivo do verbo "ensi- confiado. Ou os dois membros (eu, a dita minha) interferiram no es-
nar" no v. 115, ainda que os dieionarios näo registrem a acep9iio, pode pirito do Poeta como sujeitos, ou ocorreu anacolutia com o primeiro;
explicar-se: esta ai, com o sentido de retocar, subentendendo-se as mar- ou ainda o segundo membro ( a dita minha) interveio como elemento
cas (lat. signa) que os escoliatas costumavam apor aos versos conde- apositivo do sujeito eu.
nados de um texto ou passiveis de modifica9ao. Seria a acep9ao pri-
mitiva do verbo ensinar, que procede do baixo latim insignare, colocar De passageus ininteligiveis ou controvertidas tambem näo esta line
marcas, cujo emprego nao conhecemos em outros escritos portugueses a Arte Poetica de Horacio, que deu pasto aos seus mais abalizado-s co-
da epoca. Horacio procedeu da mesma forma com a palavra: grega mentadores, desde Pedro Nanio Alcmaniano, Jasäo de Nores, Aquiles
, que significa por obelos, isto e, uma marca, representada Estacio e Andre Da-ssier, ate Otto lmmish e Augusto Rostagni, - para
por um tra9o preto horizontal ao lado esquerdo do verso (-) que näo referir Richard Bentley, que acabou por fazer da Epistola de Ho-
deveria ser eliminado (expungi) totalmente ou substituido por outros. racio uma Poetica Lotalmente diferente, tantas as cmendas que introdu-
0 obelo ( ou obelisco) foi empregado por Aristarco na edi9ao das ob ras ziu no texto.
de Homero. Horacio contornou a falta do termo grego em latim com a
belissima perifrase allinere atrum signum transverso calamo = com o
corte da pena lan9ar um tra9o preto (na margem esquerda, junto ao
principio do verso).
Tambem nao sabemos a edi9iiO de que se utilizou Francisco Jose
Freire ( Cändido Lusitano), que em varios dos seus comentarios a
Arte Poetica de Horacio invoca passagens da Carta XII a Bernardes,
e cujo texto nao confere com o das edi9oes surgidas ate ao seu tempo.
Assim o verso 85 ("Do bom escrever, saber primeiro e fonte") aparece:

20
19
..

A) Do Artista:
a) uso da Ra::Jio (com humildade) e da lima (com diligencia)
[56-57 j;
b) condenagiio da auto-suficiencia [ 58-60] ; nela coloca a medio-
cridade triunfante [61-63];
c) o Tempo incumbe-se do esquecimento dos maus e da imortali-
ANALISE DA CARTA XII dade dos bons ( 64-66 J (e eJe que fixa OS vaJores) ; Jogo:

L aguardar a oportunidade [67];


Ainda que Antonio Ferreira escreva ao seu camarada das letras 2. descrer da critica imediata [68-69];
num certo a vontade, como a de Horacio pode a Carta XII ser dividida
em partes mais ou menos distintas: 1) ANTEL6QUIO; 2) POETICA: 3. conhecer a si mesmo; atender aos imperativos naturais da
a) Do Artista; b) Do poema; CONCLUSÄO. Na contextura da Carta inspiragiio (niio forga-la) [70-71];
ficariam assim distribuidas as partes que a compoem:
d) 'confiar na boa imitac;iio e leitura dos modelos e nos c,mselhas
1. ANTEL6QUIO [1-55] dos amigos cultos [73-75] ;
e) muito vale o engenho; muito mais o tempo e o estudo [76-78] :
2. POETICA:
ouvir bastante e !er apenas [79-81];
y,
A) Das qualidades {inatas e adquiridas) do ARTISTA e do
exercido delas [ 56-117] ;
f) o saber ea fonte do escrever bem [85-87];
J
.l

l
g) adequagiio dos meios aos fins [90-91];
B) Das regras da e sua ao POEMA
[118-177]; h) Perfeiqiio = Harmonia do engenho e arte [93-96].
C) Da Mimese ou da ideal [181-183]. i) niio ha poeta sem esta mas pode haver poesia fruto
da espontaneidade criadora [100-102] (Ferreira prefere a Be-
1. ANTELOQU/0: leza artistica imperfeita a Beleza natural perfeita) [103-1051;
0 preiimbulo da epistola e constituida de um sereno libelo c.:lntra j) a criagao literiiria deve, pois, reunir os seguintes requisitos:
o estado de coisas de seu tempo: engenlw + arte + ciencia + perseveranqa (tempo) [112-117].
a) a falta de liberdade de espirito [4-15];
b) a da mediocridade [16-18] ; B) Do Pofma: (ou cuidados com a elocu<;iio)

c) a falta de sinceridade intelectual [19-21]; conseqüentemente e a perseuranqa deve aplicar-se na elimina<;äo dos t>xcessos, no
levado ao: provimento do que falta, na fuga a vulgaridade e na m:ode-
d) elogio da vida simples do campo [22-39]; ragiio do arroubo [118-120] (ne quid nimis);

e) deserc;ao do vulgo cego [ 43-48]. clareza (fuga a ambiguidade) [121-122];

:.:!. POET/CA:
adequagäo -da linguagem ao as-sunto a btuVOLa [124-126];

Nao obstante essa atmosfera de asfixia da verdadeira vida inte- (mas a lima deve ser utilizada com cautela [ 131]), pois do seu
lectual, o missivista tratarä dos principios solicitados por Diogo Ber- uso podem advir os vicios da perseveranqa: a) def-ormar, com
nardes [55] :
22
21
a lima, os versos ja perfeitos [132-1351; b) exaurir, com o
exce<Sso de revisao, o conteudo do verso [136-1:37].

Toda<S estas na elocw,;iio dewm ser controladas pela opi-


niao dos criticos sinceros e cloutos somos bons juizes de nos
mesmos [151-177].

3. CONCLUSAO:

e aconselhavel criar livremente uma rnultidiio de coisas belas


para <Selecionar delas o melhor [181-183];
s6 a perseverant:a podera conduzir 0 artista a imortalidade
[183 ... ].

23
go de Teive, to·da ela repassada de reminiscencias horacianas, confes-
sa esta luta pessoal nos momentos da cria«<äo poetica:
Eu, meu Teive, niio sei que estrela, ou maga
A lingua me ata; niio sou de toda hora.
Em fim esta e a desculpa da ma paga.
Por um mom.ento, que em mim F ebo mora,
Mil dias se me esconde, e desampara.
E inda bem me niio chega, ja vai fora.
ANTöNIO FERREIRA
(II, vv. 58-63)
Te6rico do Classicismo
E por isso que confessa ostensivamente, na Cart•a XII a Vasco da Sil-
vezra, que
ser chamado Poeta niio merer;o.
Todos sabemos da de Arrtorrio Ferreira como critico orierr-
tador do primeiro grupo chissico em Portugal e das suas ideias acerca
A sua poesia e, portanto, - e como ele prega - fruto da "lima
da missiio pedag6gica da poesia; de Arrtorrio Ferreira a pregar aos
diligente". Talvez por isso se explique a sua posi«<äo perante a con-
seus corrtemporärreos a de um poema epico, e a deferrder trovertida questäo em torno do belo natural e do belo artistico, dizen-
apaixorradamerrte as virtudes da lirrgua portuguesa; como humarrista do preferir a dureza do verso trabalhado ä suavidade da poesia espon-
ortodoxo a repelir as formas e os temas medievais, e como o mais tänea.
alto represerrtarrte, portarrto, de uma da vida baseada rra
cultura classica (1). Porem, de Arrtorrio Ferreira como te6rico da es- Ainda que nos deixasse sonetos bem realizados, uma ou outra
tetica classica, sabemos aperras que formulou, baseado rra poetica ho- passagem das odes e das cartas harmoniosa e marcada de fina sensi-
bilidade, a importäncia liteniria de Ferreira reside na sua excepcional
raciarra, algurrs dos seus prirrcipios furrdamerrtais rra Carta XII dirigida
cria«<äo dramatica A Castro, e no seu tirocinio de critico e de precep-
a Diogo Bernardes - o mavioso lirico do Lima; e que com a epistola tor do classicismo Iiterario no sec. XVI. A sua educa«<äo humanistica,
X a D. Simiio da Silveira o marrifesto da escola classica italiarra talvez a mais completa que houve entre os escritores do seu tempo,
em Portugal. Um estudo completo e sistematico de suas se lhe tolheu os voos da inspira«<äo poetica, favoreceu-lhe o exercicio
te6ricas e criticas airrda esta por ser feito. Com o exame de sua da critica e a missäo orientadora dos seus contemporäneos.
prirrcipal que e a Carta XII a Diogo Bernardes preterrdemos aperras
oferecer uma para o estudo defirritivo da preceptiva clas- A Carta XII e evidentemente uma tentativa de poetica, nos mol-
des da Epistula ad Pisones de Horacio; mas, procedendo inversamente
sica de Arrtorrio Ferreira.
ao modelo, Antönio Ferreira tratou primeiramente dos principios liga-
0 autor dos Poemas Lusitanos jamais escorrdeu o acerrdrado culto das ao Artista, depois das regras aconselhaveis ao Poema. Identifica-os
da poesia e do perrsamerrto te6rico de Horacio, irrvocado e imitado fre- o ä vontade na exposi«<äo da materia, explicavel evidentemente por tra-
qüerrtemerrte em seus poemas. Poeta de dificil, tirrha Arr- tar-se de uma epistola. A Epistula ad Pisones e intencionalmente uma
"' arte poetica, com 476 versos; a Carta XII e apenas uma siimula de
torrio Ferreira corrscierrcia de que os seus momerrtos de estro, airrda
conselhos solicitados por Diogo Bernardes, com 190 versos, portanto
que elegesse Horacio como seu modelo ["E seja o meu Horacio, a
pouco mais de um ter«<o da pe«<a horaciana. E evidente näo ser täo
quem eram raros e muito passageiros. Na Carta IV a Dio-
completa como a do lirico latino, nem recheada de exemplos e com-
para«<Ües. Semelhante relagäo existe tambem entre a Arte Poetica de
Horacio e a Poetica de Aristoteles: esta e mais sistematica, mais filo-
sOfica, mas menos didatica e menos pratica que a de Horacio; mas a
1) V. Fidelino de Figueiredo, Hist6ria da critica literiiria em Portugal, 2. • ed., Epistula ad Pisones contem apenas o essencial da doutrina exposta por
p. 9-21; Antonio Jose Saraiva, Hist6ria da cultura em Portugal, li, p. Aristoteles. Entretanto, como Horacio nas Epistolas e nas Satiras, An-
634-658.

a.4lü •• ... [. ... .. 26


25
tonio Ferreira H'fsou esparsamente problemas de doutrina estellca em
outras cartas e em algumas de suas odes, que permitiriam, somadas a
exposi«ao feita na Carta X ll, um ]eyantammto completo da preceptiva
cliissica do Autor.
Vimos ja os principios que expoe nessa Carta a Diogo Bernardes,
e que podem assim ser !.'squematizados:
l) o aristocratismo intelectual;
2) a eficacia das qua Iidades do Artista: genio, conhecimento artis-
tico, ciencia;
3) o papel da Razao no Artista e no Critico;
4) a busca da Perfeic;;ao atraves da persewranc;;a;
5) a Imitac;;ao dos Antigos;
6) o Formalismo e a Liberdade criadora;
7) o sentido da medida, da justa proporc;;ao;
8) as conveniencias: a) entre o tema e o estilo; b) entre a lin-
guagem e o tema;
9) a Critica literiiria.
Antonio Ferrc·ira nao tratou, nesta epistola:
l) das rela«Öes entre a Arte e a Moral (da func;;ao moralizante
da Poesia);
2) dos generos literarios;
3) da N atureza;
4) da Mimese e dos seus principios fundamentais (a Vewssimi-
lhanc;;a, o maravilhoso e as unidades) ;
5) do Homt'm como tt'ma fundamental da arte c!.issica; e
6) ( como um classico do Renascimento), do tt'ma Marle- Apolo.
Antonio Ferreira apenas nao tratou, t'm parte alguma de sua obra, dos
generos literarios; mas falou da Natureza e da Filosofia Moral (saber)
na Carta XI a Diogo Betancor; do firn moralizante da Poesia, na Carta
ao Cardeal lnfante D. Henrique, Regente; de que a Poesia nao admite,
artisticamente, meio-termo, na Carta a Pero de Andrade; e da alianga
do valor guerreiro a cultura do espirito, em intimeras passagens d.e
sua obra ( l).

l) Na Carta I a ei-Rei D. Joäo 111; na Carta II a Pero de Car-


neiro; na Carta 111 a Luis da Camara; na Carta V a Antonio
de Sa de Meneses; na Carta VII a Joäo Lopes Leitäo; na Carta X a
D. Simiio da Silveira.

27
Lernente da prolifera<;iio da medionidade; da mediocridadc que se com-
praz na auto-suficiencia e 110 muluo l)-

***
Se reservarmos para a 3.a Parte as tres colunas mestras da dou-
Principios expostos na trina clässica a que alude Antönio Ferreira na sua Carta XII, isto e, a
Ra:::ao, a lmitar;iio dos Antigos, o engenho-arte-ciencia, restam-nos inu-
CARTA XII meros problemas ligados a estetica do classicismo e versados 11a refe-
rida Carta. Antö11io Ferreira vv. 56-57). atento a eonsecu<;iio
da Belt>za Absoluta, prt>gou o ewrcicio dilige11Le da lima, eo11denou
110 poeta o sentimento de auto-suficiencia e inslituiu o tempo ( perse-
A) Limae Iabor et mora.
veran<;a) como mPstrp supremo da realizac,;iio artistica - recomt>ndan-
do ao poeta aguardar a oportunidadt' para publicar os seus escritos,
Ern varias oportunidades lamenta-se Antonio Ferreira da atmos- dt>sconfiar da critiea imediata e lison j ei ra e busrar um conheeimento
fera adversa a inteligencia no seu tempo, onde a mediocridade exercia dt> si mrsmo. Rdativamt'l1te aos cuidados com a Plocu<;iio, o tt'orieo
o seu imperio e os homens cultos escreviam a medo. Sem denun-
pös cm evidencia a fuga a ambiguidadt> e adequa<;iio da linguag:em ao
ciar com clareza as condic;;öes reinantes que o levam a esse protesto,
tema; advertiu söhre os perigos do uso i11dcvido da lima r recommdou
parece evidente que tais queixas aludam a perseguic;;öes feitas aos hu-
a colabora<;iio sincera do juizo allwio. E söhre estes principios que
manistas e livres pensadores. Entre 1541, ano em que a Censura In-
pretendPmos fazer algumas ohservac,;oes.
quisitorial inicia as suas gestöes contra a liberdade de pensamento proi-
bindo a obra de Damiao de Gois söhre os etiopes, e 1561 quando sai Horacio, apos fazer um esboc;o hist!n·ico da arte dram<itica na
publicado o 2. 0 indice de obras proibidas, Antönio Ferreira deve ter Grecia, passa a historia do drama latino. acentuando as fases da in-
assistido com muita amargura nestes 20 anos a uma verdadeira su· fluencia do tt'atro grego sobre 0 romano - imitar;iio - in-
cessao de fatos e medidas que vieram asfixiar a autonomia mental e renr;iio) e a inferioridadt> deste pelo fato de os romanos. por Indole,
literaria, reprimir o curso triunfante dos estudos humanisticos e impe- niio perdert>m tempo, eomo os 110 Iabor da lima e na publica<;iio
dir a penetrac;;ao em Portugal de obras estrangeiras. Ern 1547 e ela- de suas cria<;Ües: limae Labor et mora (A.P .. 291). A aversao ao
borado o primeiro rol de livros defesos; em 1551 sai publicado o pri· trabalho de emendar, polir e aperfei<;oar o estilo, bem como o dt>srjo
meiro lndice expurgat6rio, que amplia de 161 obras para 495 e em de tornar imediatame11tt' publieo o frulo de suas eria<;Ües, eram para
que sete autos de Gil Vicente e as pec;;as de Jorge Ferreira de Vasean- Horacio as duas circunstii11eias determinantes da inferioridade dos dra-
celos sao vitimas do crivo; erri 1555 se consolida a perseguic;;äo aos
maturgos latinos em rela<;iio aos gregos, eomo atestam as produc,;oes
professöres do Colegio das Artes sob a alegac;;äo de heterodoxia; em
primitiYas de :E':nio, Plauto, Aeio e Lueilio. Para Horaeio os eseritos,
1561 se publica a 2." edic;;äo do lndice (Rol dos livros defesos nestes
reilWs e senhorios de Portugal) em que a relac;;äo anterior, de 495 ti- alem de eonsta11temente relocados, dt>wm repousar por muito tempo
tulos, foi consideravelmente ampliada para mais de mil. Nesta altura, antes de Yirem a publieo, a firn de que, passado o ardor inieial da
em que Antönio Ferreira se encontra no auge de sua produc;;äo litera- composic;iio, possa ela em outra ocasiiio st'r aprrciada pelo autor eom
ria, a compra ou venda de livros, bem como a leitura, a impressäo, a
importac;;äo de obras, passam a ser controladas pelos inquisidores, que
inclusive exercem a sua fiscalizac;;äo vasculhando livrarias e exigindo 1) Yejam-se outras passagens em que o Poeta alude a esse estaclo de coisas:
a leitura previa de manuscritos destinados a publicac;;äo. «Desejo falar Iivre, mas nao posso» (Carta IX a D. Joao de Lencastro,
V. 64) ; «an;o e trerno, I com medo dos perigos, que ci vejo» ( Carta X a

E neste ambiente confrangedor, de repressäo aos "bons engenhos", Manuel de Sampaio, vv. 4-5); «olha o rnedo, senhor, olha o perigo ... »
( Carta XII a Vasco da Silveira, v. 70); «Sobe o rnais vil, mil bons
que Antonio Ferreira parece redigir muitas de suas poesias, entre elas mete no fundo» ( Carta V a Antonio de Sii de Meneses, v. 8 7) ; e söbre
a Carta XII a Diogo Bernardes, cujo anteloquio e um testemunho do o triunfo da rnediocridade ( Carta IV a Diogo de Teive, vv. 29-36) e
amordac;;amento a que esta sujeita a liberdade intelectual e conseqüen- dos hip6critas - a que Sä de Miranda chamava «rostos de tintoreiros»
( Carta IX a D. Joao de Lencastro, vv. 12 e ss.)

29
30
Para Quintiliano o Iabor da lima consistia em adjicne, detrahere,
mutare, isto e, ajuntar, eliminar, mudar, ou mais claramente: suprir 0
mais serenidade como 5e föra obra alheia (l). Horacio ja havia que falta, remover o excesso ... , atenuar o enfatico, levantar o que
tambem recomendado na sua satira X do liYro I: näo tem classificar o que esta desordenado, compor o que
esta difuso, ligar o que esta sölto, reprimir o que e excessivo, - eis
Saepe stylum verlas, iterum quae digna sint a tarefa que cumpre ao escritor, pois Cle deve sacrificar o que de inicio
Scripturus... (2) lhe pareceu belo, e em seguida descobrir o que lhe havia escapado ( l).
Eliminar os versos ociosos ( que Horacio chama inertes), que nada
Conta-se que o grande orador grego ls6crate5 limou 14 anos o acreseentarn ao pensamento e a harmonia do texto, ou porque a sua
Panegirico, um de seus discursos; que Platäo ainda aos oitenta reto- tematica e longinqua, o seu sentido pode violentar o conjunto, ou
cava os seu5 dialogos, e que o poeta Cina gastou 9 anos na composic;;äo a sua metrica apresentar-se inarmönica ( versos duros, desprovidos de
de sua tragedia Smyrna. Sannazzaro consumiu 20 anos para compor metrica apresentar-se inarmönica ( versos duros, desprovidos de beleza
e limar o seu poema De partu Virginis; Ängelo Bergeo comec;;ou na sua poetica, prosaicos (incompti, isto e semelhante a prosa).
mocidade a composic;;äo dos poemas De Venatione e Syriada, mas so Os escoliastas alexandrinos, que costumavam assinalar oom um asteris-
os publicou aos 70 anos. co os versos excrescentes, intrusos, denominavam-nos
isto e, versos que' deviam ser olhados de lado ( desprezados) como cs-
Dentre OS poetas portugueses mais torturados pela ansia de perfei- piirios. Ajuntar o que falta, como a luz as passagens pouco claras, am-
c;;äo, que o fazia castigar ininterruptamente as suas obras, conta-se Sä biguas ou anfibologicas. Horacio censurava a linguagem que peln
de Miranda: da sua egloga Basto existem nada menos de 14 redac;;öes obscuridade fazia lembrar os oriiculos de Delfos (Sortilegis non / dis-
diferentes. Todo5 se Iernbram do seu soneto a Pero de Andrade Ca- crepuit sententia Delphi, A. P., v. 219); que lembra Diogo
minha, em que compara a obsessäo infatigavel da lima que retoca com Bernardes aos poetas de seu tempo:
a löba que Jambe continuamente os seus filhotes:
Nunca de escuros versos fiz estima;
Os meus, se nunca acabo de os lamber, Sempre, por que me entendam, falo claro;
Como ursa os filhos mal proporcionados . .. Preze-se, quem quiser, de ser enigma.

Horacio concita veementemente aos Pisöes a que censurem todo e qual- Eu Li ja versos, que para entende-los,
quer poema que näo tenha sido aperfeic;;oado pelo tempo e por conti- Cumpria ser Merlin, ou nigromante,
nua5 emendas, e que, depois de retalhado por dez vezes, näo för cas- Ou andar com Apolo aos cabelos.
tigado ate ao cabo:
(Carta XXVII, vv. 7-9, 43-45).
..................... . Vos, o
Pompilius sanguis, carmen reprehendite quod non Os processos da säo muito mais faceis que os da modifi-
multa dies et multa litura coercuit ,atque do verso; esta no fundo, consiste em condenar aquilo
Pompilius sanguis, carmen reprehendite quad non que nos pareceu agradiivel e descobrir aquilo que nos escapou. Na
sua Carta XXVII a D. Gont;alo Coutinho, Diogo Bernardes recomen-
(A. P., YV. 291-204) dava näo nos contentarmos de nossas
Quem tanto de seus versos se contenta
Que ouida que näo ha que emendar neles,
1) Ver Quintiliano, lnst. Orat., X, 4: Nec dubium est optimum esse emen- Afronta as suas faltas acrescenta (vv. 37·39)
dandi genus, si scripta in aliquod tempus reponuntur, ut ad ea post inter-
vallum, velut nova atque aliena, redeamus, ne nobis scripta nostra, tanquam
recentes fetus, blandiantur. 1) lbidem. Boileau, na esteira de Horacio, recomendava:
2) Para que teus escritos ler-se devam, Polissez-le [a obra] sans cesse, et le repolissez.
A pena volve e emanda-os muitas vezes. Ajouter quelquefois, et souvent effacez.
(A. Poet., I, vv. 173-174).
(Ap. Cardoso Borges de Figueiredo, lnstituic;öes
Elementares de Retorica, p. [I)).
32
31
Para Quintiliano o Iabor da lima consistia em adjicere, detrahere, Entretanto - adverte Quintiliano - "sirvamo-nos da lima para polir,
mutare, isto e, ajuntar, eliminar, mudar, ou mais claramente: suprir o niio para desgastar" (ut opus poliat lima, non exterat), pois o traba-
que falta, remoYer o excesso ... , atenuar o enfatico, levantar o que lho excessivo da lima pode conduzir a dois vicios perigosos, segundo
niio tem eleva'<iio, classificar o que esta desordenado, compor o que Antonio Ferreira: drforma'<iio dos versos ja perfeitos; exaustiio do
esta difuso, ligar o que esta sölto, reprimir o que e excrssivo, - eis conteiido do verso. Horacio diz que a obsessiio do polimento pode
a tarefa que cumpre ao escritor, pois ele dew sacrificar o que de inicio tornar o verso desfibrado na sua estrutura e desfalecido no seu conteii·
lhe pareceu belo, e em seguida descobrir o que lhe havia escapado ( l). do emocional: Sectantem leria, nervi I Deficiunt, animique (A. P. vv.
Eliminar os ver5os ociosos ( que Horacio chama inertes), que nada 26-27). 0 excessivo cuidado, chamado pelos gregos JreQLEQy[a , pode
acreseentarn ao pensamento e a harmonia do texto, ou porque a sua portanto enfraquecer o verso, relaxando-lhe os nervos e diminuindo-lhe
rela'<iio tematica e longinqua, o seu sentido pode violentar o conjunto, ou a for'<a expressiva ( l).
a sua metrica apresentar-se inarmonica ( versos duros, desprovidos de
metrica apresentar-se inarmonica ( rersos duros, desprovidos de beleza A proposito da dmeza do verso Antonio Ferreira entretanto assu-
poetica, prosaicos ( incompti, , isto e semeJhante a prosa). me uma posi'<iio que nos parece compativel com a sua propria arte,
Os escoliastas alexandrinos, que costumavam assinalar com um asteris- poeta que e de inspira"iio dificil. Consideram OS teoricos como duros
co os versos excrescentes, intrusos, denominavam-nos os versos que pela estrutura siio inarmonicos, isto e, com sinalefas depois
isto e, versos que deviam ser olhados de lado ( desprezados) como es- de consoantes, ou ausentes de pausa no seu devido lugar. Os versos
piirios. Ajuntar o que falta, como a luz as passagens pouco claras, am- decassilabos seguintes exemplificam os dois casos respectivamente:
biguas ou anfibologicas. Horacio censurava a linguagem que pela Niio ves um ajuntamento de estrangeiros.
obscuridade fazia lembrar OS oraculos de Delfos (Sortilegis non I dis- (Camöes, Os Lus., VIII, 18)
crepuit sententia Delphi, A. P., v. 219); condena'<iio que lembra Diogo
Bernardes aos poetas de seu tempo: Cujo pomo contra o venen.o u.rgente.
(ld. lbid., X, 136). (2).
Nunca de escuros t·ersos fiz estima;
Sempre, por que me entendam, falo claro; A dureza tambem, pode consistir no 'Conteiido, quer dizer, pelo sentido
Preze-se, quem quiser, de ser enigma. o verso pode ter um nexo muito distaute com o do contexto, ou ainda
violentar o sentido do conjunto. No primeiro caso, muitos seriam os
Eu li ja versos, que para entende-los, versos a serem condenados, niio so de Antönio Ferreira, mas de Diogo
Cumpria ser Merlin, ou nigromante, Bernardes e do proprio Camoes.
Ou andar com Apolo aos cabelos.
(Carta XXVII, vv. 7-9, 43-45). B) Ne quid nimis

Os processos da elimina'<iio siio muito mais faceis que os da modifi- Vimos que a perseveranqa, para A. Ferreira, deve aplicar-se na eli-
ca'<iio do wrso; esta opera'<ao, no fundo, consiste em condenar aquilo mina'<iio dos excessos, no provimento do que falta, na fuga a vulgari-
que nos pareceu agradavel e descobrir aquilo que nos escapou. Na dade e na condena'<iio do arroubo (vv. 118-120).
sua Carta XXVII a D. Gonqalo Coutinho, Diogo Bernardes recomen-
dava nao nos contentarmos de nossas cria'<oes:
1) Jason de Nores, na sua edic;ao da A.P. de Horicio (ap. C. Lusitano,
Quem tanto de s·eus versos se contenta p. 17-18) menciona duas odes de Petrarca para exemplificar, com a
Que ouida que niio ha que emendar neles, primeira (Amor m'ha posto como segno a strale ... , CXXXIII) uma
Afronta as suas faltas acrescenta (vv. 37-39) composic;ao desprovida de espirito e substancia, vitima que foi do obsessivo
polimento; e com a segunda (Rott'e I'alta colonna e'l verde lauro,
CCLXIX), uma composic;ao em que o trabalho da lima nao lhe retirou
1) lbidem. Boileau, na esteira de Horicio, recomendava: a grac;a e a elevac;ao.
Polissez-le [a obra] sans cesse, et le repolissez. 2) A estes versos chamaria Horacio male tornatos incudi versus (A.P., v.
Ajouter quelquefois, et souvent effacez. 440), mal torneados a bigorna. A diligencia da lima poderia sem duvida
(A. Poet., I, vv. 173-174). salva-los da censura.

32 33
0 pensamento do teorico quinhentista entronca imediatamente no ciana foi uma das sobrevivencias mais caracteristicas do genio helenico,
principio horaciano de que a virtude nao se situa nos extremos ( vul- e sempre vigente como um dos fundamentos da arte classica. 0 ne quid
garidade, exac;ao, indiferenc;a - excepcionalidade, sonho, arrebatamen- nimis e a tradu'<aO romana do ftl]{)EV ayav (nada em demasia) dos
to), mas no meio. As paixoes extremas sao argurnentos podados pela gregos; estes, nos dominios da imagina'<äo - e portanto nas cria'<oes
razao classica. :E este principio, que se traduz na ansia do equilibrio, da literatura - revelaram sempre uma nitidez plastica na concep'<ao
da serenidade, da conten'<ao e da harmonia, o fundamento do ideal e um senso obsessivo da medida. Clareza e conten'<ao. A infinitude, o
classico. Por outras palavras: o princfpio do ne quid nimis, isto e, sonho, a embriaguez, o impreciso e o obscuro recuam para dar lugar
fuga ao excesso. Se para um classico - como veremos - a obra de- a uma visa.:> apolinea das coisas. Os gregos - dizem Alfred e Maurice
pende da razao, a faculdade ordenadora, disciplinadora, portanto a fa- Croiset - talvez pelo habito de viverem s.:>b um ceu constantemente
culdade critica, segue-se que a obra deye ser organicamente perfeita, puro e de terem sob os olhos horizontes quase sempre nitidamente limi-
quer dizer, apresentar unidade, integridade e justa pruporc;ao entre as tados, revelaram desde cedo nas cria'<oes do seu espirit.:> esta qualidade
partes. Tudo que e indice de aventura, de desordern espiritual, de vago, verdadeiramente nacional - o sentimento da medida ( 1) .
impreciso e misterioso, deve ser banido. Para os classicos do Renas-
cimento o götico foi considerado uma arte barbara, pois fugia comple- Nas artes plasticas do Renascimento, a chama·da "gravidade clas-
tamente as normas da contenc;ao que a arte classica exprimia. 0 gotico sica" e o resultado do equilibrio entre duas for'<as: por um lado - o
caracteriza-se por uma profunda expressividade espiritual e por um in- desejo de ampliar a forma, visivel no gosto de apresentar o corpo
tenso dinamismo das formas. Arte inquieta, cu j as linhas verticais bus- humano em grandes propor'<oes (revestido de um porte poderoso, sole·
cam ultrapassar o infinito, foi logo repudiada pelos classicos, cuja arte ne, majestatico) ; por outro - uma tendencia deliberada em moderar
procurava a justa medida, o sentido da ponderac;ao, a contenc;ao espa- a expressäo do sentimento. Säo exemplos as Madonas de Rafael, de
cial. Dai a impressäo que se tem ·da "serena medida" quando contem- Fra Bartolomeo, a Pieta de Miguel Angelo. Baldessare Castiglione dis·
plamos uma obra classica ou lemos um poema: a preferencia pela sime- sertara sobre a gravita riposata em seu manual de elegäncia classica,
tria, a distribuic;ä·.J arquitetonica de massas (na arquitetura, na clau- ll Libro del Cortigiano (2).
sula ciceroniana), as linhas fechadas e h.:>riwntais ( a limitarem como Ca:mOes, na paradisiaca descric;ao da Ilha Enamorada, realiza os
perpendiculares a dinämica inquieta das linhas verticais) . preceitos classicos que visam infundir·nos uma de tranqüili·
Corta o sobejo, vai acrescentando dade, de equilibrio e de clareza. Uma estrofe como a de n. 54, do
0 qUJe falta, o baixo ergue, o alto modera canto IX, constitui um exemplo admiravel:
Tudo a ua igual regra conformando,
Tres formosos outeiros se mostravam
diz o nosso teorico, inspirado numa passagem freqüente em Horacio, Erguidos com soberba graciosa,,
que se tornou quase proverbial: est modus in rebus ( reprodu'<äo quase Q:ue de gramineo esmalte se adornavam,
li<eral da de Pindaro na sua XIII Olimpica: EJtELat ö'iv ix;aatrp ftEtQOV Na formosa ilha alegre deleitosa.
47): Claras fontes e limpidas ma.navam
Est modus in rebus, sunt certi denique fines Do cume que a verdura tem viqosa;
Quos ultra citraque nequit consistere rectum, Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa jugitiva.
isto e: ha uma medida nas coisas; ha, enfim, certos limites, aquem
Oll alem dos quais 0 bem nao pode subsistir ( 1). A maxima hora-
,-?
1) Histoire de Ia Iitterature grecque, I, p. 11. A prop6sito da clareza, do
1) Sat. 1, 1. I,. vv. 106-107. A recomendac,;ao de Horacio entronca, pois, no sentimento da medida, da harmonia e do meio termo, ver Rodolfo Mon-
velho conceito da mesotes ( ) peripatetica: veja-se a Etica a dolfo, «0 genio helenico», in Panorama do Pensamento Filos6fico, II,
Nicomaco, a prop6sito da virtude como um meio entre dois extremos p. 20-33, 48 ss.; Lewis Mumford, A condic;ao de homem, p. 40-42; Al-
( 1106 b27); Horacio em varios pontos da sua obra prega o principio da fonso Reyes, La critica en Ia edad ateniense, p. 325-326.
justa medida (V. Odes, II, 10, 5; Epist., I, 18, 9). Ver tambem Cicero, 2) Sobre os novos sentimentos artisticos do segundo Renascimento, ver as
De Oficiis, I, 89, Brutus, 149. paginas magistrais de H. Wölfflin, EI arte clasico, p. 253 ss.

34
35
Eis o cenario introdutorio da Ilha, comprometido naturalmente pela procurassem censores fiiceis e louvaminheiros, via de regra parasitas
tradi'<ao do locus amoenus ( l) l em que o sitio ideal e sublinhado por e gente endividada, e os reunissem em Iugares improprios ( como nos
tres suaves eleva'<öes, a quebrarem a monotonia do terreno, por fontes ceniiculos, nas pras;as e nos banhos), para, a custa de diidivas e festins,
limpidas e puras e um arroio a derivar suave pelas pedras. Por "so- obterem deles os votos da proclamas;iio. Horiicio condena-os acerba-
be.rba graciosa" entende-se a eleva'<ao aprazivel, a refletir a dos;ura mente na sua Siitira IV, I. I, e na Epistola XIX do livro I (I). An-
feminina das ninfas habitantes; a visao apolinea da llha e quase obses- tönio Ferreira, na esteira do seu querido Horiicio, que dava suas com-
siva - claras fvntes e limpidas, pedras alvas, ilha alegre; a mansue- posis;öes para corrigir ao severo Quintilio V aro de Cremona, acon-
tude dos verbos oomo manavam e se deriva completa a impressiio final selhava-se com seu condiscipulo Manuel de Sampaio (a quem dirige
de amenidade. Nem montanhas vertiginosas, nem planicie a se perder a sua Carta X, livro I), censor prudente, imparcial e dotado de muita
de vista; nem fontes jorrando em borbotöes, nem rio em cachoeira a experiencia na poesia. Submetia-lhe os escritos duas e mais vezes, e
rebentar-se nas pedras num ruido estrvndoso. Aos prazeres dos olhos, a cada leitura Sampaio lhe sugeria as corres;öes necessiirias; niio raro
na contempla'<ao das belezas plasticas da llha, o prazer do ouvido em- o que parecia ao Poeta soar bem, Sampaio condenava; e louvava os
balado pelo murmiirio suave da linfa fugitiva. 0 proprio niimero tres, versos que ao Poeta despraziam. Antönio Ferreira aconselhava ainda
tao querido dos cliissicos porque e 0 simbolo da integridade e do equi- que se ouvisse a mais de dois criticos, antes de levar a piiblico as suas
librio, foi aqui invocado convenientemente. E curioso observar ainda poesias. A auto-suficiencia so poderia conduzir a mediocridade, e esta
que nesta estrofe nao hii uma so virgula a interromper a fluencia dos - diz ele amargamente - vicejava sobejamente no seu tempo. Niio
Versos, como a acompanhar o ambiente de serenidade e paralso que obstante o honesto estudo que o poeta deve ter, misturado com longa
o Poeta foi mansamente debuxando. experiencia, doutrina e capacidade criadora ( engenho), nunca somos
bons criticos de nos mesmos. Precisamos ter a humildade intelectual de
/ ouvir as recomendas;öes de criticos sinceros, que com exa'<ao e liberdade
C) Poetas e Censores
repreendem as imperfeis;öes de nossas obras. Esta docilidade em receber
as censuras de juizos alheios e a marca dos grandes escritores cliis-
Se 0 teorico institui que so 0 tempo e 0 mestre soberano das le-
gitimas cria'<öes do espirito, explica-se a que faz a critica sicos. Diogo Bernardes lamenta-se, numa Carta a Pedro de Andrade
imediata Oll a critica Jouvaminheira de censores incapazes e inescrupu- Caminha, dos poetas presun'<osos que o procuravam, nao para ouvir-lhe
losos. Horiicio aconselhava aos Pisöes, se um dia pretendessem escre- a opiniiio critica, mas desejosos do louvor:
ver poemas, submete-los a criticos honestos e inteligentes, como Mecio E o que sobre tudo mais me ofende
Tarpa, o pai dos Pisöes e o proprio Horiicio. Ao tempo do lirico latino E tratar com poetas que me pedem
Augusto instituira a proclama'<äo das obras poeticas merecedoras de Que suas obras veja, e lhas emende.
figurarem na Biblioteca de Apolo Palatino ou serem representadas nos Que- mude, ou risque os versos que procedem
teatros. Tais certames se realizavam no proprio templo de Apolo, tm Sem arte, e sem medida, livremente,
que os poetas recitavam as suas composi'<öes em presen'<a de cinco cen- Que poder para tudo me concedem.
sores autorizados - entre eles Mecio Tarpa - , que julgavam do me- Sendo a sua tenf$iio mui diferente,
rito das obras. Corno premio, podia o poeta colocar ao lado da obra Que niio querem emenda mas louvor,
incorporada na biblioteca do templo o seu retrato; ou ver representadas Que d' emenda niio ha quem se contente.
as suas pe'<as dramiiticas a expensas do piiblico. Ao lado destes con-
cursos oficiais, costumavam tambem os poetas recitar as suas compo- (vv. 82-90)
si'<öes em piiblico, ou, reunidos em casa dos proprios autores, declamar
diante de amigos convidados. Plinio em suas Cartas ainda aludia a 1) Diz naquela que muitos ha que recitam seus escritos diante do foro e
esse costume. Sucedeu que em breve esta priitica degenerou nos seus outros no banho, porque e nos ambientes fechados que a voz soa mais
doce. . . in medio qui I Scripta foro recitent, sunt multi, quique lavantes:
objetivos, dando ensejo a que pessoas ricas, prodigas em banquetes, ou I Suave locus voci resonata conclusus (vv. 73-75). Seneca tambem se
detentoras de cargos importantes, querendo ostentar o titulo de poetas, refere a voz de um cantor, que no banho se tornava agradavel: cui vox
in baineo placet. Na Epistola XIX, em que Hor:icio censura os poetas
imitadores, faltos de originalidade, diz que nunca procurou o sufr:igio da
plebe va, pagando-lhe o favor com festins e roupa usada: Non ego ventosae
1) A prop6sito do Jocus amoenus, consultar a obra de E. R. Curtius, Litera- piebis suffragia venor I lmpensis cenerum et tritae munere vestis (vv.
tura europea y Edad Media latina, I, p. 280-286. 37-38).

36 37
D)
,
A conveniencia na elocur;iio
relativas a que infelizmente exorbitam OS modestos limites
destas Todo o extensissimo capitulo IV do Livro IX das
De maneira sumäria, Antonio Ferreira abordou as regras da con- Institutiones Oratoriae de Quintiliano dedica-se apenas a das
veniencia na literäria. Dos versos 124-129 se depreendem tres palavras, lembrando que niio houve uma parte da orat6ria que niio
fundamentais:
tivesse sido tiio versada por Cicero como a e que ao tra-
1.
8
) a linguagem literäria deve ser diferente da linguagem colo- tamento dado por Cicero a materia Quintiliano iria ajuntar as suas ob-
quial (isto e: da "prätica comum"); ainda que niio ousasse secundar o mestre ( de compositione
non equidem post M arcum Tullium scribere auderem).
2.
8
) a palavra deve ser adequada a ideia;
8
No vasto campo das questoes pertinentes a as artes poe-
3. ) o estilo deve ser adequado ao assunto. ticas e as retoricas versaram com particular interesse os problemas da
expressividade, isto e, da dos metros a realidade expressa ( 1).
Horäcio (A. P., 46-127), bem como os demais teoricos da Anti-
guidade clässica - Aristotoles (na Retorica, 111, 7, e na Poetica, Referindo-se a elocutio no drama satirico, em que a linguagem dos
XXII), Cicero (no De Oratore, 111) e Quintiliano (nas Institutiones, deuses e dos herois deve manter a dignidade compativel com estas per-
IX, 4) trataram com certo desenvolvimento das regras da sonagens; em que a linguagem do aio Sileno deve diferir da dos
literäria. 0 teorico latino manteve-se, bem como o autor portugues, fiel escravos da comedia; e a linguagem do coro dos Faunos niio deve asse-
as normas tradicionais previstas nos tratados de retorica: uma vez melhar-se a da arraia miuda nem tampouco a da gente elegante da
escolhido e bem ordenado rias suas partes o argumento (inventio - cidade, Horäcio entra a falar das entre os versos e o signi-
ordo ou dispositio, EÜQEO'tt;, öui&ot.; ou ) , parte o poeta em ficado ( vv. 251-262) nos tres generos literarios - a tragedia, a co-
husca da expressäo ( elooutio, facundia, ) • Esta deve primar pela media e o drama satirico. E na estrutura ritmica do verso que reside
elegancia e diferir da comum. Apos a escolha das palavras o "elemento supremo e definitive em que atua a formal" -
adequadas a ideia ( OVOJ!UT<OV)' cuja se denominava diz Rostagni (2). Por isso mesmo Horäcio considerava inarmonicos
singula verba (isto e, as palavras consideradas isoladamente), seguia- os versos dos tnigicos primitives tnio e Acio, que substituiam freqüen-
·se a fase do tratamento das palavras em conjunto (conjuncta verba. temente pelo espondeu os metros jiimbicos dos gregos, tornando assim
0'1lv&ot; OVOJ!UT<OV ) ; a ultima etapa, a dos verboro.m colores pesados os seus versos. Aristotoles tambem condenou o trägico at.e-
xaQax-rijQE; -rij; consistia no estilo, ist.) e, no colorido do niense Queremon, que em suas tragedias, feitas mais para serem lidas
complexo expressivo (I). do que representadas, misturava metros indiscriminadamente - como
fez na sua Centaura ( 3). Queremon associara, na sua o verso
Diz Aristoteles que a virtude fundamental do estilo consiste na heroico (proprio da epopeia) ao trimetro jiimbico (que convem a dan-
clareza; e o que comunica clareza ao estilo säo os termos proprios (2). e ao trimetro trocaico (adequado para a No cap. VIII
Mas o estilo so "terä a oonveniencia desejada ( Jt(>E:n:ov ) se exprimir
de sua Retorica tratou inclusive dos ritmos adequades ao estilo orato-
as paixoes e os caracteres e estiver intimamente relacionado com o as-
rio, mais tarde desenvolvidos por Cicero no seu De Oratore (-1.) e
sunto" ( 3). Dai censurar ao poeta trägico ateniense, Cleofonte, pelo
por Quintiliano nas I nst. Orat. ( 5) . 0 uso indiscriminado de certos
fato de näo respeitar a conveniencia das palavras e dizer entre outras
ritmos na prosa era condenado: Quintiliano censurava, por exemplo,
expressoes desse tipo, "venerävel figueira". A persuasiio, que e o ob-
o excesso de melodia e de cadencia na linguagem prosaica, como fizera
jeto fundamental da arte oratoria, so se consegue com a
do estilo ao assunto. Salustio no frase prologal da Guerra ]ugurtina: Falsa queritur de

Os teoricos da oratoria, hoje completamente olvidados como espec-


tros da estilistica tradicional, tem päginas magistrais sobre as questöes 1) Consultar, sobre o assunto, as obras dos te6ricos classicos referidas no
inicio deste capitulo.
2) Obra cit., p. 72, 251-274.
1) Ver Auguste Rostagni, Orazio- Arte Poetica, p. 12-13. 3) Poet., 144 7b e 1460a.
2) Ret., Ill, 2 (Ao termo pr6prio opüe Arist6teles o t. metaf6rico). 4) I II, 17 3 e ss.
3) Ibid., 111, 7.
5) IX, cap. IV.

38
39
natura sua, pois a prosa, ainda que circunscrita a Iris, deve manter um guintes questoes: l) a formagiio e a instrugiio do Poeta; 2) os fins
ar de liberdade (soluta videri debet oratio). Condenou tambem ao pro· a serem atingidos pelo Poeta; 3) qua! seja o Poeta prrfeito.
prio Platao pelo fato de desde o inicio do seu Timeu praticar uma su· Ecletico em relagiio aos graudes latinistas ( que tanto discutiram
ccs-siio de metros - um comego de hexämetro, um verso anacreöntico a conceituagiio do sapere horaciano), Rost.agni atribui duas acepgoes
e ate um trimetro e um verso pentemimero - , tudo isso em poucas fundamentais ao termo, empregando-o tanto no sentido generico de "ter
palavras. Aristoteles presqeve que a forma ( axfJfla ) da linguagem juizo, bom senso", como no espedfico de "ter uma instrugiio filosOfica"
prusaica na..J sej a nem metrica ( EflflETQO; ) , nem arritmica ( UQQU{}f!o:;; ) , ( que para Honicio sempre foi a filoso fia pratica e moral ( l) . E assim
poi,; a prosa deve ter ritmo, nao metro ( l) 0

tambem entendia Antönio Ferreira, cujo trato com a obra do teorico


Nas linguas romänicas niio sucede o que ocorria com as linguas latino era constante. Antes de mais recomenda a Diogo Bernardes
classicas: nestas OS pes metricos tinham 0 SlU carater ( 1'j{}o:; ) , istJ e: jui:.o e lima ( v. 56), fazendo corresponder ao primeiro o cstudo, ao
o jambo, proprio do dialogo por ser um ritmo movimentado; o tro· segundo a perseveranga, o tempo:
queu, metro coxo, muito vivo, adequado ä danga; o datilo, por ser o
mai,; calmo e o mais amplo dos ritmos, conveniente para a metafora e Muito, 6 Poeta, o engenlw podc dar-te.
paru a linguagem epica; o espondeu, ritmo extremamente Iento e pesa- !'.Jas muito mais que o engenlzo, o tempo, e estudo
do pela sucessiio de silabas longas, ideal para a expressao da libagiio,
da eternidade etc., etc.; ao passo que nas linguas romänicas sömente (w. 76-77) (2).
o verso apresenta adequagao entre a sua extensiio e o seu carater. As-
sim, os versos curtos de tipo redondilho se prestam para a expressao dos
Horacio niio deixou de censurar a tmdencia francamente pragma·
fatos ,;imples, das emogoes superficiais, enfim proprios da poesia ligeira
tica da educagiio romana, que ao conlrario da escola grega dava pre-
e circunstancial; o decassilabo, pela sua solenidade e gravidade, ade-
ferencia aos aspectos praticos e materialistas da vida, sobrepondo por-
quado ä expressiio dos sentimentos eievados - como o heroico e o tanto a aritmetica ao estudo da arte e da filosofia. A verdadeira subs-
elegiaro; o alexandrino, pelo tom retorico e pomposo, apropriado ä
tancia da poesia deve o doulo busca-la nos modelos ideais da vida
poesia social e ao estilo oratorio etc., etc.
exemplaria vitae) e dos costumes dos homens; para isso e nrcessario
que jovens se preparem desde cedo na escola da sabedoria - ou nos
E) 0 saber - fonte da Poesia '·escritos socraticos" porque foi S<>crates a ensinar ao homem o conhe-
I cimento de si mesmo, ou entiio na leitura de poetas como Homcro.
0 aristocratismo de Antönio Ferreira niio poderia furtar-se ä de- dc cujas obras se pode extrair uma filosofia da vida mais clara e mais
fesa do saber, do conhecimento, como fonte do escrever bem: Da bom rira do que aquela que ensinam os filosofos da Acadrmia Crantor e
escrerer, saber primeiro e
fonte ( v. 85). E saber, para o teorico qui- Crisipo ( 3). Aristoteles, naturalmente com o pensamento voltado para
nhentista, e a armazenagem de cerla ordern de conhecimentos - como Platiio - que combatia os poetas e afirmaYa ser a insania o estado ideal
veremos: para a criagao poetica - , procurou mostrar que a Poesia e eminen·
Iernente filosOfica, pois enquanto a Historia procura fixar o particular,
Enriquece a mem6ria de doutrina
o individual, o homem como foi e os fatos como sucederam, a Poesia
Do que um cante, outro ensine, outro te conte
busca o universal, os homrns como deYeriam ou teriam podido ser,
(vv. 86-87); como deveriio ou poderao ser ( 4). Busca, portanto, o homem mode-

Ferreira reproduzia o preceito horaciano: Scribendi recte sapere est et 1) Obra cit., p. 89-90.
principium et fons (A. P., v. 309). em Horacio este verso inicia a
3.a parte de sua poetica, isto e, refere-se ä teoria do Poeta (Ars, Poema, 2) A. Ferreira refere-se a filosofia moral, na sua Carta XI a Diogo Betancor,
mas aqui como fonte de bons preceitos ,-isando o amor e a paz ( n-.
Poeta, :rrohj<il:;, :rtOLl]f!U, e :rroLTlj; ) , que por sua vez compreende as se- 136-138).
3) Ver a Epistula 2, 1. I a Maximo Lolio, \V. 1-31.
1) Poet., 1448 b. 4) Poet., 1451 b.

40 41
\.

lico, arquetipico. 0 Poeta deve ser - pontifica Horacio - näo um 0 poeta do Lima, a quem e enderec;ada a Carta XII de A. Ferreira,
copista material do que ve, mas um imitador filosofo do que deve confessava ao seu amigo D. Gonc;alo Coutinho haver iniciado a sua
ser ( doctum irnitatorern). Homero, Euripides, SOfocles, AristOfanes, criac;äo poetica numa altura em que poderia ser bisavo:
J\lenandro, antes de se entregarem as suas criac;oes poeticas, aprenderam
Eu, Senhor, ja poderia ter bisnetos
muito a observar os homens, nas suas paixoes e nos seus atos; raros
Depois que comecei a fa::er trovas,
foram os graudes poetas que niio estudaram Iongarnente na escola da E ainda bem nuo caio nos sonetos.
vida e nas lic;oes dos filosofos, antes de comporem as suas obras. Ver- E rejo muitos que znda as penas nows
gilio, aos 18 anos, encontra-se em Roma estudando retorica com Epidio Com que saem do ninho, nuo mudaram,
e logo a seguir filosofia com Siräo Epiciireo; Horacio, depois de haver E querem de Poetas fa::er prou·as.
aprendido em Roma com Orbilio Pupilo as normas da moral e da
sabedoria pratica, segue para a Grecia "em busca da verdade", e Ia (Carta XXVII, vv.19-54)
estudara filosofia na escola de Platäo aos pes do rio Cefiso, inter silras
Acaderni quaerere verum ( 1). F) Poesis ut Pictura
0 objeto fundamental da Poesia era pois a pintura das ac;oes, dos
costumes e das paixoes dos homens; mas o conhecimento dele so a Nos dois versos (116-117):
Filosofia Moral podia ministrar. 0 conceito aristotelico de que a imi- Como em pintura os erros vai mostrando
tac;a·.:> poetica tem por objeto o homem em ac;äo ( EJtEt Depois o tempo, que o olho antes niio via,
ot JtQchrov-tE;, Poet, 1448 b1) tornou-se vigente no periodo
helenistico, em que a esseneia da Poesia consistia numa imitac;iio da lrlembra A. Ferreira a discutida passagem horaciana a prop6sito do
vida ( !ll!lf]m.; ['3iou ) • A Filosofia Moral do periodo helenistico era simile Pintura-Poesia, que fez correr muita tinta aos editores de sua
visceralmente socratica; Horario respirava em cheio as auras dessa Arte Poetica. Escusa lembrar aqui por superflua a polemica que se
escola. estendeu desde o Renascimento arerca da analogia entre a arte poetica
Daqui se deprt'mdP quP sPja o HomPm o tema fundamPntal das e a arte pictorica; seu iinico resultado positivo foi suscitar o extraor-
dinario Laocoonte de onde o grande critico alemäo procurou
obras dassicas, conceito quP permaneceu de pe entre os escritores clas-
combater os falsos juizos advindos da perniciosa identificac;äo de Pin-
sicos do Renascimento. Aristoteles, que ensinou este principio funda-
tura e Poesia e finalmente estabelecer as frontriras entre as duas arles.
mental da arte classica, näo eonsiderava assuntos convenientes a poesia Tanto o simile horaciano como a passagem do teorico portugues siio
tudo que se dpsviasse da ac;äo humana ( uma das razoes por muito claros, ainda que utilizados com acepc;öes diversas. Com o ut
que a poesia lirica näo lhe mereceu estudo (2). pictura poesis quis dizer o poeta latino que o julgamento de uma obra
Se a arte para os classicos era, como diz Camoes, niio sömente pict6rica e de uma obra poetica e uma questiio de perspectiva: quadros
engenho, mas arima de tudo honesto estudo corn longa experiencia mis- ha que pelo jögo das tintas e pela förc;a do colorido deYem 5er con-
turado, segue-se que uma obra classica näo podia ser fruto da juwn- templados de perto, ou de Ionge, no es euro Oll a luz do dia; alguns
tude - como sucede com os romänticos - , mas fruto da idade ma- devem ser Yistos superficialmente e tah·ez uma so vez; outros, a luz
dura. :\finguem compoe antes de um longo e fecundo aprendizado. meridiana e muitas vezes. Poemas h<'t que, pela perfeic;iio, podem ser
examinadas de todos OS anguJos peJo oJho arguto dos criticos ( iudicis
Horario ja condPnava a tendencia no seu tempo de os jovens procla-
argutum acumen), e quanto mais se leem mais agradam ( deciens repe-
marPm a excelencia de suas proprias criac;oes, avesso ao preceito clas-
tita placebit). Niio ha, portanto, misterio na passagem horaciana, näo
sico da perseveranc;a e da profunda meditac;iio da vida: Ego mira poe-
obstante o poeta latino näo desconhecesse a tradic;iio aristotelica da
nzata pango (A. P., v. 416).
analogia entre as duas artes ( 1). Soares Barbosa exemplificou o con-
ceito horaciano com dois belissimos exemplos: "As duas estatuas de
Minerva, feitas para se colocarem sohre uma coluna alta pelos dois
1) Epist. II, 2, 45.
2) Söbre a negligencia da critica grega com a lirica, ver Alfronso Reyes,
La critica en Ia edad ateniense, parag. 38-48, 393. l) Poet., 144 7 a 18 e ss., 1448 a 50 e ss., mas sobretudo 1460 b 8 e ss.

42 43
,
ce!ebres estatuarios, Fidias e Alcamenes, quando foram vistas no chäo, e onde a mediania näo era tolerada, nem pelos deuses, nem pelos homens,
ao pe, a de Alcamenes agradou mais pela sua maior que a de tampouco nas prateleiras dos livreiros ( 1).
Fidias que pareceu feia e grosseira. Porem, logo que se puseram no
seu lugar, as belezas da de Alcamenes desapareceram, e as de Fidias Ferreira tinha presente no espirito o conceito de Horacio quando
fizeram todo o bom efeito. As figuras, que ornam o zimborio de Säo afirmou em sua Carta a Pero de Andrade:
Pedro de Roma, e que vistas do pavimento säo proporcionadas e belas, Niio sofrem as altas Musas meiimente
olhadas ao pe parecem uns borröes informes e umas pinturas mons· Serem tratadas: tanto que do extremo
truosas" ( 1) .
Um pouco desqo, caio baixamente (vv. 112-114).
Ern Antonio Ferreira o paralelo tem outra o que sucede
com a pintura de um quadro cujas väo aparecendo a me- Se a Poesia näo a que e o primeiro grau, pode
dida que a contemplamos sucessivamente, ocorre com a poesia, a cuja cair na vulgaridade - que e o ultimo: Si paulum a summo decessit,
leitura vamos acrescentando, suprimindo ou substituin:do ate culminar- vergit ad imum (2). Boileau tambem reproduz a
mos na sua
Mais dans l' Art dangereux de rimer et d' ecrire,
Camöes näo desconheceu o velho simile de Simonides de Ceos entre Jl n'est point de degrez du mediocre au pire ( 3).
a Poesia e a Pintura, conservado pelo testemunho de Plutarco: a Pin-
tura e poesia muda ( :rtOLl]<Hv OLO:rtwoav ) , como a Poesia uma Cicero, no De Oratore, ja distinguia as artes da atividade pratica
Pintura que fala ( /..a/.oiloav ) (2). Quando Paulo da (como a Eloqüencia e a Jurisprudencia) das artes que visam exclusi-
Gama recebe a bordo da capitänia o Catual, este deslumbra-se com as vamente uma Iivre do espirito (animi libera quaedam oblec-
figuras pintadas nas bandeiras das naus; e o seu intento foi saber os tatio), para dizer que nas primeiras se admitia a mediocridade, pois os
maus advogados nos suportamos ate o firn; porem, nunca tolerariamos,
Feitos dos homens que, em retrato breve, no teatro, os maus atöres ( 4) .
A muda poesia ali descreve (VII, 76) ;
Tanto Horacio como Antönio Ferreira aparecem movidos pelo mes-
e quando se refere aqueles individuos grandes e abastados que repelem mo sentimento de contra a massa de poetas de agua doce
a poesia porque näo teria cores para celebrar uma ascendencia humilde que vegetava no seu tempo. "Quem nao - sa be do of'ICIO
. nao
- o trata" ,
e sem gloria, diz: diz Ferreira; pois uma obra, antes que veja a luz da puhlicidade, deve
repousar em rolos de pergaminho durante nove anos, diz Horacio;
Crendo que cores viis lhe niio convenham, uma vez a palavra a lume, näo pode mais voltar - afirmam
A pintura que fala querem mal (VIII, 41). ambos.
G) Poesia e mediocridade
Se havia entre os classicos, te6ricos e poetas, um conceito que se
furtava completamente a do meio-termo era o da Beleza. Ainda
que muitos poetas näo tivessem consciencia da frouxidäo da sua poesia,
o conceito de era absoluto: em poesia e inadmissivel a medio-
cridade - apregoavam eles; a poesia näo admite meio-termo. Se se
busca a Beleza Absoluta, esta claro que o poeta näo pode ser mediocre.
Se podiam entender que houvesse oradores e jurisperitos que näo
possuiam os dotes do fecundo Messala nem o saber do grande juris-
consulto Aulo Caselio, eram absolutamente intransigentes com a Poesia,
1) Horacio, A. Poet., vv. 369-373.
2) A. Poet., v. 378.
1) Pat\tica de Horacio, p. 198. 3) Art Poetique, IV, 31-32.
2) Plut., De gloria Atheniensium, 346 F. 4) I, 118.

44 45
SEGUNDA PARTE
PO.ETICA DE ARJST6TELES

Ate ao Renascimento

0 texto da Poetica aristotelica nao den· ter tido muita difusao na


Antiguidade. 0 proprio Honicio, cuja Ars Poetica e visivelmente ins-
pirada na do fil6sofo grego, nao demonstra haver conhecido direta-
mente a Poetica de Arist6teles, mas atraves de um peripatetico do sec.
III, o gramiitico de Paros, Neoptolemo, figura mal conhecida, pois co-
nhecemos apenas alguns titulos de suas obras. E o escoliasta Porphy-
4 rion (sec. 111 d.C.) que faz alusao ao conhecimento que Horiicio teria
tido da obra de Neoptolemo, numa passagem que muito tem intrigado os
conhecedores do teorico latino: N am et ipse Piso poeta fuit et studiorum
liberalium antistes; in quem librum congessit praecepta Neoptolemi
-rou II U(!Lavov de arte poetica non quidem omnia sed eminentissima ( l).

Esquecida durante viirios seculos, a Poetica de Aristoteles e tra-


duzida para o siriaco no sec. VI, numa altura em que jii ·se havia na-
turalmente perdido a sua 2.a parte. que devia, segundo tödas as pro-
babilidade, ser constituida por uma teoria da comedia (pois a Poetica
que chegou ate nos versa apenas a prob!Pmiitica da tragedia e aciden-
talmente a do poema epico) . Söhre esta siriaca ( de que co-
nhecemos um minusculo fragmento) foi feita a versao iirabe do sec. XI,
tida como de Abu Bishr Matta (2). Enquanto as ideias de Platao söhre
a poesia e a respeito de Homero sao freqüentemente mencionadas e

1) Ad!rca das rela<;Öes entre Horacio e Neopt6Iemo, ver a tese de V an dick


Londres da N6brega, A «Arte Poetica» de Honicio, p. 27-33; mais re-
centemente, a da Arte Poetica feita pelo prof. Rosado Fernandes,
p. 30-36.
2) Diz entretanto Egger que Abou-Baschar 1\fatthieu, filho de Jonas, cristao
nestoriano, viveu entre 320 e 330 da Hegira, por conseguinte nas proxi-
midades do ano 935 da era cristä (Essai sur l'histoire de Ia critique chez
!es grecs, p. 556).

47
arte na antiguidade chissica, procurando extrair dai as normas a serem
discutidas pelos teöricos da Antiguidade, o livro de Aristoteles aparece seguidas pelos escritores de seu tempo. Escrita em latim, 110 ano se-
citado tres ou quatro vezes 110 intervalo de seis seculos ( 1). guinte Bernardo Segni imagi11ou facilitar a divulga«iio da ohra rohor-
Samente no Renascimento a Poetica se tornou ohjeto de curiosi- telliana, oferece11do ao puhlico uma tradu«iio em vulgar toscano da ohra
dade, de edi«öes, estudos e tradu«öes. Georgius Valla e quem puhlica teörica de Aristöteles, a firn de que se pudessem ilustrar os comentiirios
em Veneza, no ano de 1498, a primeira tradu«iio latina do original daquele huma11ista: Rhetorica e Poetica d'Aristotcle tradotte di greco in
grego: Aristotelis Ars Poetica G. V. interprete; mas s6 em 1508 Aldo lingua valgare da B. Segni, Firenze, 1549.
Manuzio puhlica pela primeira vez o texto grego. Os textos da Poetica As discussöes em törno dos prohlemas levantados por Rohortello
que chegaram ate nös apresentam, como fontes manuscritas, o Riccardia- chegam ao auge nas decadas de 1550 a 1570, em que a Poetica de Aris-
nus 46 e o Parisinus 1741, este ultimo datavel do sec. X ou XI, e con- töteles e largamente traduzida, comel1tada e ilustrada, nas ohras de
siderado por Jean Vahlen como a unica fonte, da qua! teriam derivado Vincenzo Maggi, de Minturno, Fracastoro, Giraldi Cintio, Vettori, Mu-
os 17 manuscritos que se conhecem (2). Todavia, posteriormente as tio, Escaligero e - entre os mais importantes.
investiga«Öes de Vahlen ficou demonstrada a independencia do Riccar-
dianus 46, outra fonte manuscrita da Poetica, que, com a tradu«iio ara- Jii soh a influencia do movimento co11tra-reformista, tentando por-
he, forma a5 tres fontes primordiais da ohra aristotelica. tanto uma interpreta«iio crista e catölica da estetica aristotelica, surge
em 1550, em Veneza, a edi«iio de Vincenzo Maggi: In Aristotelis librum
de Poetica communes explicationes; menos tendenciosa, aparece em
A Poetica na ltalia 1563, a poetica toscana feita por Minturno, em que Petrarca e a poesia
sao explicados segundo OS principios aristotelicos e horacianos. Mas 0
E a Itiilia o her«o das investiga«Öes filolögicas e das discussöes
ponto de chegada deste movimento critico e representado pela Poetica
teöricas a volta da Poetica de Aristöteles, que resultaram na constru«iio de Julio Cesar Escaligero, que em 1561 puhlica a sua Poeticae setem
do grande edificio classico. A estetica classica elahorada ao longo do libri, um verdadeiro tratado em que sistematiza definitivamente a este-
seculo XVI na ltalia por uma legiiio de teöricos e comentadores tem tica italiana. Muitas vezes reeditada, foi esta ohra que exerceu uma
seu fundamento no pequenino cödigo aristote!ico, cuja importancia se influencia extraordiniiria no estrangeiro, especialmente na Fran«a, di-
impös soheranamente söhre a Epistula ad Pisones do lirico latino. Mas fundil1do OS resuJtados da especuJa«iio itaJiana a VOlta dos prohJemas
o prestigio do filösofo grego s6 se afirmou apös o movimento humanis- esteticos do classicismo. E na sua Poetica que se funda o movime11to
tico, na segunda metade do sec. XV e nas primeiras decadas do critico e estetico na Fran«a do sec. XVII, ainda que Escaligero sus-
sec. XT,tl domina triunfante a figura de Platiio, culto esse trazido pelos tentasse a superioridade dos latinos söhre os gregos, de Vergilio söhre
gregos fugitivos quando da tomada de Constantinopla pelos turcos Homero. A filia«iio da Arte Poetica de Boileau a ohra de Escaligero
( 11.53). e posta em relevo por varios autores; todavia, Rene Bray, suhestimando
0 primeiro trahalho a fixar a importancia da ohra de Aristöteles a erudi«iio do teörico frances ,do classicismo, chega a dizer que "11 est
e a suscitar um amplo movimento critico e estetico de conseqüencias incapahle de dechifrer !'enorme ouvrage de Scaliger et de tracer son
decisivas na forma«iio do pensamento Iiterario da Europa do Renas- chemi11 dans u11e matiere aussi ingrate" ( 1).
cimento, foi o do humanista Francesco Rohortelli, professor de Pisa Com a ohra de Escaliger.:> esta a de Ludovico Castelvetro - Poe-
( tambem chamado Rohertello), que em 1548 puhlica em Floren«a llca d'Aristotele rulgari;:,zata e sposta, impressa em Vie11a no ano de
uma interpreta«iio da Poetica, vertida para o latim e amplamente co- 1570 ( a 2.a ed. e de Bille, 1576), cuja repercussao tamhem atravessou
mentada: In librum Aristotelis de arte poetica explicationes. Rohor- fronteiras, pela sua originalidade e pela independencia de seu pensa-
tello procura estahelecer as linhas fundamentais que regulam a ohra de mento estetico. F oram J ulio Cesar Escaligero e Ludovico Castelvetro
(e ate certo ponto Jerönimo Vida com a sua De Arte Poetica puhlicada
em 1527) os teöricos responsaveis pcla forma«iio da doutrina classica
1) Ver Egger, obra cit., p. 554, no seu capitulo sobre a Poetica de Arist6teles na Fran«a (2).
na ldade Media, p. 554-560.
2) De arte poetica liber, recensuit, Berlim, 1868 (2.• ed. 1874 e 3.a ed.,
Leipzig, 1885), ap. J. Hardy, Aristote - Poetique, p. 23. J ean Hardy I) Boileau - L'homme et l'ceuvre, p. 75.
considera as tres edi<;öes da obra de Jean Vahlen «un des monuments 2) Rene Bray, La formation de Ia doctrine classique en France, p. 37.
le plus durables de la philologie au XIXe. siede».

49
48
A Poetica na Espanha A Poetica na Fram;a
As primeiras tradm;öes da Poetica de Aristoteles na Espanha säo a Italia oferecia inumeras da Poetica, tradu"öes latinas e ita-
tardias, isto e, dos principios do sec. XVII. Na primeira metade deste lianas e fartos comentarios a respeito de sua problemiitica literaria. Du-
seculo apareceram, quase simultfmeamente, as tres tradu"öes da obra raute o sec. XVI surge apenas a edi"äo francesa de Guillaume Moul:
atistotelica em castelhano: 1) a de Vicente Mariner, publicada em Aristotelis de arte poetica liber, grece cum variis lectionibus (Paris,
1630: La Arte de Rhetorica · de Aristoteles. La Rhetorica que Aristo- 1555), cuja impressäo terminou quatro anos depois, em 1559. As duas
teles dedic6 a Alexandre Magno. Ellibro de la Poetica de Aristoteles; ,,I primeiras francesas so aparecem no seculo seguinte: a de
2) a do galego D. Alonso Ordonez das Seixas y Tobar, saida pouco Norville, publicada em 1671: La Poetique d' Aristote, traduite du grec
antes: La Poetica de A ristoteles dada a nuestra lengua castellana (Paris, Th. Moette) ; e a de Andre Dacier, saida em 1692, intitulada
por . .. , 1626. Cheia de defeitos, de tradu"äo e de interpreta"äo, no La Poetique traduite en fraru;ais, avec des remarques critiques (Amster-
firn do sec. XVIII ( 1778) foi feita uma reedi"äo da obra do helenista dam-Paris). Fora dai, o movimento critico acerca dos problemas da
galego pelo catednitico de grego dos Reais Estudos de Santo Isidro, poesia esta ligado a grande influencia exercida pelos teoricos italianos
D. Casimiro Florez Cansenco, que lhe ajunt.:>u o texto grego, bastante do Renascimento. Quase töda a gera"äo de 1630, cujä principal figura
correto, com a cita"äo das variantes, a versäo latina de Daniel Heinsius foi Andre Chapelain, prestou fervoroso culto a doutrina de
com as suas anota"Öes, e as do abade Charles Lebardeaux, professor A polemica em törno do Cid corneliano foi dirigida por essa devo"äo
de retorica em Reims e em Paris, cujo livro, Quatre Poetiques (a de incondicional a religiiio aristotelica: Chapelain, em sua Lettre sur les
Aristoteles, a de Honicio, a de Vida e a de Boileau) , publicado no vingt-quatre heures e em seus Sentiments de l' Academie sur le Cid,
ano de 1771 (2 volumes), teve grande repercussäo na epoca; 3) e a bem como Georges de · Scudery em suas Observations sur le Cid
de Juan Pablo Martir Rizo, que se encontra inedita na Biblioteca Na- ( 1673), apoiam-se fanaticamente na autoridade do filosofo grego para
cional de Madri, manuscrito original de 64 fölhas e com de o exame impiedoso da de Corneille. Tal fanatismo atingiu o seu
.}
impressäo datada de 14 de fevereiro de 1623. Tal como a climax com Jules de Mesnardiere, medico e confidente de Richelieu .
primeira da Poetica de Aristoteles em portugues realizada por A morte do Rei Soberano e de outra ordern impediram
Manuel Pires de. Almeida em 164... (ainda inedita) foi feita direta- que Mesnardiere realizasse o seu grande plano de superar os tratadis-
mente da tradu"äo latina de Daniel Heinsius ( 1611), e a sua impor- tas italianos com uma poetica monumental e definitiva, cujas linhas
täncia reside particularmente nas suas gerais aparecem esbo"adas no prefacio de sua La Poetique, 1. 0 e unico
0 ponto mais alto da estetica literaria espanhola no sec. XVI e volume publicado (Paris, Ant. de Sommaville, 1639), no qua! versa os
representado pela preceptiva de Alonso Lopez Pinciano, que em 1596 problemas da poesia dramiitica. 0 culto de Aristoteles colocava-se em
publica em Madri a sua Philosophia Antigua Poetica, fruto de conhe- termos de fanatismo religioso: "Quand je fais reflexion sur le peu de
cimento direto da Poetica aristotelica, dos comentaristas latinos e ita- connaissances que j'ai acquises par l'etude, et que je vois luire sur
lianos, desde Robortello a Julio Cesar Escaligero, desde Vidal a Castel- moi les eclatantes lumieres de ce miraculeux genie qui me semble
vetro. Ligada, mais as doutrinas platönicas da poesia e ja rebelde ao etre dans le ciel et confiner divinement avec ces Intelligences qu'il nous
dogmatism.:> aristotelico das regras, esta o Cisne de Apolo, d.J clerigo a si bien figurees, alors certes je ressens une veneration profonde pour
asturiano Luis Alf.onso de Carvallo, cuja ao pensamento platö- ce prodige de science et je le crois illumine au-dessus de tous !es
nico vem send.J posta em relevo ultimamente. Os quatro dialogos de hommes" ( 1) .
que se compöe a sua poetica (tida como precursora de Lope de Vega
Menos devotos e mais convictos de que muitas vezes a doutrina
no seu Arte nuevo de hacer comedias) versam problemas de metrifi-
aristotelica ja se encontra um pouco inaplicavel as condi"öes literarias
ca"äo, sendo que o 4. 0 , ao tratar do decöro na poesia e do problema dos novos tempos, figuram outros dois afamados teoricos do sec. XVII:
do furor poetico, acaba numa parafrase das ideias platönicas söhre a o abade D' Aubignac e o proprio Pierre Corneille. Entretanto a
questiio, versadas no Fedro e no Ion. 0 Cisne de Apolo e a primeira
critica deste ultimo niio foi muito nitida e segura, pois, de adversario
preceptiva espanhola em verso, composta de 64 estrofes em oitava real,
de em 1632, derivou para devoto do filosofo grego em 1673.
o que a torna de leitura fatigante pela secura didatica dos versos.
Na do sec. XVI a Poetica de Aristoteles niio suscitou, como
na ltalia, um vivo interesse por edita-la, traduzi-la ou comenta-la, pois 1) Poet., p. 178, ap. Rene Bray, La formation ... , p. 54.

50 51
os humanistas italianos de seu tempo (Paulo Manutio, Robortello e o
frances Marco Antonio Mureto que vivia na Itiilia), publicou, em 1553,
em Antuerpia, a sua edi«äo comentada da poetica latina: In Horatii
Artem Poeticam Comentarium. Diz dele Candido Lusitano no exame
critico que faz de todas as edi«Öes da Arte Poetica de Horiicio compul-
sadas para elaborar a sua: "he geralmente respeitado pela sua exposi-
«iio a esta Poetica. Horiicio deve-lhe muito, particularmente emendan-
Arist6teles e Honicio tl
do-o de muitos erros, causados pelas diversas copias; no que teve gran-
de trabalho, conferindo muitos, e exactos m.s [ manuscritos]. Nao lhe
na deve menos, em provar com os Poetas Gregos, especialmente Dramma-
Peninsula Iberica ticos, e COffi OS antigos, que escreverao sobre OS preceitos poeticos, todas
as regras, que aponta Horiicio neste seu Opiisculo. So quem assim
faz (diz Dacier no firn das suas Notas) he que sabe dignamente in-
terpretar ao Lyrico Latino" ( l).
Ern Portugal nao temos elementos que configurem uma tradi<:iio
de curiosidade pela Poetica aristotelica. Por isso mesmo diz Eudoro Alguns anos ap6s a morte de Antonio Ferreira, surge a edi«iio de
de Sousa na sua excelente edi«iio da obra de Arist6teles: "Quem se Pedro da Veiga, publicada em Antuerpia em 1578, nas oficinas de Cris-
proponha extrair dos catiilogos das bibliotecas piiblicas as indica«Öes tiano Hauwel, e a edi«iio comentada do grande humanista portugues,
bibliogriificas que repute necessiirias ao estudo da Antiguidade greco- de Coimbra, Tome Correa, que havia professado humanidades nas uni-
-latina, hii de observar que o interesse dos portugueses, especialmente versidades de Roma, de Palermo e de Bolonha, saida em Veneza no
no que se refere a autores gregos, parece concentrado no seculo XVIII" ano de 1587: In librum de Arte Poetica Horatii explanationes (apud
( 1). E realmente no sec. XVIII que se verifica um amplo movimento Franciscum de Frauciscis). A esta edi«iio refere-se tambem Francisco
teorico e critico da literatura, com base nas preceptivas cliissicas, espe- Jose Freire ( Candido Lusitano) na mesma obra, dizendo que "expla-
cialmente na Arte Poetica de Horiicio. A afirma«iio de Eudoro de Sousa nou com grande louvor a Horiicio, como testificiio os melhores Criticos,
niio exclui a existencia, embora esporiidica, de certo interesse pela e o mesmo Mureh> seu emulo o chegou a confessar, como refere o Apa-
obra de Arist6teles, cuja primeira tradu«äo em lingua portuguesa parece tista no tomo 3 dos seus Progynasmi Poetici, e Spachio no seu Nomen-
ter sido a do Licenciado Manuel Pires de Almeida na primeira metade etat. Philosof. Contudo comparada esta ilustra«iio com a de Esta«o,
do sec. XVII, ainda inedita, mas feita sobre a tradu«iio latina de Daniel da-se a este a primazia do merecimento, se houveramos de estar pela
Heinsius publicada em 1611. So no sec. XVIII surge uma tradu<:iio authoridade do citado Apatista" (2).
portuguesa da Poetica de Arist6teles, anonima e de cujo parco valor
filologico fala o mesmo Eudoro de Sousa (2). Na Espanha, ainda que Horacio ja fosse Iido pelo Marques de
Santilhana, so em 1571 aparece a primeira exposi«iio da Arte Poetica
Por outro lado, um Iargo e direto conhecimento da Arte Poetica de Horacio, da autoria do grande humanista Francisco Sanchez de las
horaciana e atestado desde 0 sec. XVI entre OS autores cliissicos por- Brozas ( el Broncense), catedriitico de retorica e lingua grega na Uni-
tugueses, especialmente Antonio Ferreira, cuja Carta XII a Diogo Ber- versidade de Salamanca. Impressa em Amberes, e intitulada De aucto-
nardes e uma transposi«iio dos principios fundamentais da Epistula ad ribus interpretandis sive de exercitatoone poetica praecepta, vem ela
Pisones. Ainda que Antonio Ferreira fizesse profissao de fe ao teorico apensa ao seu tratado De arte dicendi. Pelayo refere, desta exposi«iio,
latino ( ... o meu Honicio a quem obeder;o), denunciando pois conhe- uma edi«iio que lhe parece indubitavelmente a primeira, saida em Sa-
cer a poetica horaciana diretamente, e de admitir que compulsasse a lamanca no ano de 1558, impressa por Matias Gats, portanto 11 anos
edi«iio portuguesa de Aquiles Estiicio ( 1524-1581), o grande humanista antes da morte de Antonio Ferreira ( 3). Ern 1591 sai uma segunda
que fora discipulo de Andre de Resende em Evora e de Pedro Na-
nio em Lovaina. Aquiles Estiicio, que privava de estreita com
1) C. Lus., Arte Poetica de 0. Horacio Flacco, Lisboa, 1778, no «Discurso
Preliminar», sem indicac;;ao de pagina.
1) Aristoteles - Poetica, p. XV. 2) Ibidem.
2) lbid., p. 3) Horacio en Espana, I, p. 76, n. 1.

52 53
da preceptiva horaciana, pelo mesmo autor, estampada em (Lisboa, 1794), o Prof. Rosado Fernandes refere outras e
Salamanca com o titulo de In artem poeticam Horatii annotationes ... comentadas da poetioa horaciana em Portugal, conhecidas ape-
( apud ]oannem et Andream Renaut fratres). Francisco Sanchez, que nas por da autoria do jesuita Bento Pereira, do Conego Re-
considerava a Epistula ad Pisones um verdadeiro tratado poetico, niio grante D. Frutuoso de Siio Joäo, de Gaspar Pinto Correia (com notas
resistiu a de ordenar a seu modo as partes da poetica, trans· copiosas ao texto horaciano), e do jesuita Peixoto Correia (esta em
pondo a de certos versos; e, como os teoricos portugueses do manuscrito) ( 1).
sec. XVIII, dividiu o texto horaciano por preceitos, seguidos da para-
fra,se e por firn das suas •.'
Neste mesmo ano de 1591, e no ano seguinte, apareceram duas tra-
em verso da poetica horaciana: uma, da autoria de D. Luiz
Zapata, cujo exito foi escaso, tornando-se desde logo muito rara. 0 \

exemplar, existente na Biblioteca Nacional de Paris, traz o seguinte


f10ntispicio: El Arte Poetica de Horacio, traduzida de Latin em Espa-
nol por don Luiz f;apata senor de las vülas y Iugares de Celu!l etc. 0
verso do rosto traz a dada em Lisboa a 17 de outubro de 1592,
com a de Bartolomeu Ferreira (l) . A de 1591, mais co-
nhecida e apreciada, e de Vicente Espinel, saida em Madri, em versos
brancos. Candido Lusitano diz que nunca viu "pior da poe-
tica horaciana, referindo-se a de Espinel ( 2). Menendez 'Pelayo, niio
obstante. considere a de Vicente Espinel um trabalho de estu-
dante mais que o de um filologo, reconhece-lhe a utilidade as letras
,..
espanholas, que näo possuiam ainda uma Epistula ad Pisones. Ainda
que Espinel fizesse letra morta dos 60 ou 80 comentadores da Arte
havidos antes dele, Pelayo julga injusto o juizo do teorico por-
tugues do sec. XVIII.
Depois destas versöes, e da feita por Thomas Tamayo
de Vargas (que permanece inedita), so em 1616 se publicam as Tablas
Poeticas do humanista Francisco de Cascales, onde, a par dos prin-
cipios de Aristoteles, de Jerönimo Vida, Minturno, Robortello e Pin-
ciano, o licenciado faz uma ampla da doutrina poetica de
Horacio (3).
Antönio Ferreira, portanto, alem do conhecimento direto que tinha
da obra do teorico latino, deveria ter compulsado, no seu tempo, dentre
as da poetica horaciana, a portuguesa feita por
Aquiles Estacio em 1553, e a do Brocense publicada em Sa-
lamanca em 1558. Baseado nas de Joaquim Jose da Costa
e Sa na sua Arte Poetica ou Ep. de Q. Horacio Flacco aos Pisoes
1) R. M. Rosado Femandes, Horacio - Arte Poetica, Lisboa, Liv. Classica
Editora, s/d, p. 37.
Aos interessados no conhecimento da hist6ria da Poetica aristotelica
1) Cf. M. Pelayo, obra cit., p. 113. depois do Renascimento, ate aos trabalhos recentes e monumentais de
2) V. a sua edi<;ao da Poetica, Discurso Preliminar. Valgimigli, Rostagni, Galati Mosella, Russo, Bignami, recomenda-se a lei-
tura da obra de Ferdinando Albeggiani, La Poetica, no capitulo intitulado
3) V. Pelayo, obra cit., p. 130. .:La Poetica nella storia della cultura», p. CXIX-CXXIX.
A problematica estetica
do
Ranascimento

Quais os grandes problemas esteticos versados, discutidos e contro-


vertidos pelos preceptistas, tradutores e comentadores das duas poeticas
da antiguidade classica no Renascimento? A Poetica de Arist6teles,
mais metodica, mais filos6fica que a de Horacio ( este mais inclinado
a oferecer com certo a vontade preceitos de composic;äo literaria), sus-
citou aos te6ricos do Renascimento discussäo acerca dos problemas
transcendentes da Poesia: a Mimese com os seus principios
fundamentais: a verossimilhanqa, a conveniencia ( bienseance), o ma-
ravilhoso e as unidades ( de Iu gar, de tempo e de ac;äo) ; a catarse, ou
da func;äo purgadora da tragedia; a poetica e a tecnioa, a Poesia em
suas relac;öes com a Filosofia e a Hist6ria etc., etc. Horacio, mais pra-
tico e menos ligado aos aspectos ontologicos da criac;äo Iiteraria, preo-
cupou-se preferentemente com a formac;äo intelectual do Artista, a quem
oferece, na primeira parte, os preceitos gerais de composic;äo literaria
e um esböc;o hist6rico da poesia dramatica. Entretanto, problemas es-
teticos de certa transcendencia mereceram, aqui e ali, näo de forma
sistematica, a atenc;äo do teorico latino: a natureza dos generos litera-
rios, os fins da poesia, o temperamento poetico (se a verdadeira causa
pficiente da poesia e a inspirm;iio (engenho) ou a arte ( doutrina)' 0
suposto simile ut pictura poesias etc.
As questöes esteticas que mais tinta fizeram derramar aos teoricos
renascentistas foram sem duvida a mimese, a catarse, a verossimilhanqa,
a conveniencia, as unidades, as relac;öes entre a Poesia e a Moral e a
p1imasia do genio söhre a arte ou vice-versa na criac;äo artistica.
Cooper e Gudeman, na sua A bibliography of Aristotle (New Haven,
1928) apontam, desde o sec. XVI ate 1928, nada menos que 1271 po-
assumidas pelos comentadort's e teoricos ante os problemas ofe-
recidos pela poetica aristotelica, sendo que 150 em törno da catarse (!)
( 1). E daqui se deduz a extrema complexidade dessa problematica lile-

1) Ap. Eudoro de Sousa, obra cit., p. 55.

57
räria, e as dificuldades que deve enfrentar hoje quem pretenda oferecer vallo foi - como vimos - um teorico de inspirar;äo platönica. Näo
uma sumula da doutrina clässica. raro a Contra-Reforma tambem exerceu influencia nas discussoes este-
ticas, renegando francamente as posir;oes humanisticas e retornando,
Afora as diferentes posir;oes assumidas pelos teoricos do Renasci- assim, ao pensamento estetico medieval. Vincenzo Maggi, por exemplo,
mento perante as questoes suscitadas pelas duas poeticas ciässicas, em no seu In Aristotelis librum de Poetica communes explicationes (Vene-
que alguns se manifestam mais devotos de Aristoteles ou de Horäcio, za, 1550) e um representante da estetica contra-reformista, quando de-
muitos chegaram a extremar as suas posir;oes no culto das duas autori- forma a interpretar;äo da catarse aristotetica para ehegar a uma dou-
dades, bem como outros tentaram conciliar;äo entre o filosofo grego e trina estritamente moralistica da arte. A Arte Poetica de Minturno
o lirico latino; näo raro alguns foram contaminados pelo pensamento estä tambem ligada a nova estetica; a participar;äo no Concilio de Tren-
estetico de Platäo, cujas obras (o Ion, o Fedro, a Republica) ajuda- to modificou a primitiva posir;äo humanistica de Minturno, que acabou
ram a complicar mais as discusües acerca da artistica. Esca- aderindo a um aristotelismo temperado.
ligero, por exemplo, o grande teorico italiano da segunda fase quinhen-
tista, pregava, baseado substancialmente na doutrina aristotelica, a in- Atraves de aristotelistas extremados, horacianistas incondicionais,
discutivel superioridade dos latinos söhre os gregos, de Vergilio söhre conciliadores da Poetica de Aristoteles e do pensamento estetico platö-
Homero; mas, com relar;äo a Arte Poetica de Horärio, dizia ele que nico, teoricos independentes e comentadores dirigidos pela ideologia
se tratava de uma arte sem arte, ou melhor, de uma poetica que apenas tridentina, a doutrina clässica acabou por constituir-se num verdadeiro
poderia agradar a meninos, pois dela pouco proveito se poderia corpo, em que as questües mais sutis e mais intrincadas foram disse-
tirar. Contra os afeir;oados da poetica aristotelica do Renascimento cadas minuciosamente. Söhre elas falaremos logo a seguir.
italiano surge uma linha de comentadores e teoricos que procuram
libertar-se da autoridade do filosofo grego; Castelvetro, Giraldo Cin-
tio, Francesco Patrizzi. tste ultimo, em seu tratado Della Poetica,
profundamente inspirado em principios platönicos, afirma que a Poetica
de Aristoteles, tanto historica como racionalmente, e desprovida de Va-
lor. Giraldo Cintio, bem como seu discipulo Giovanni Battista Pigna,
cujas obras teoricas tem hoje interesse para o estudo das origens
do romance moderno, assumiram com relar;iio a Poetica de Aristoteles
uma posir;iio curiosa, de feir;äo polemica. Havendo Giangiorgio Tris-
sino publicado o seu poema epico ltalia liberata dai Goti (1547-1548)
com o propüsito de exemplificar a aplicar;iio dos ciinones aristotelicos
e a imitar;iio de Homero, - insinuando assim o desrespeito de Ariosto
as referidas regras com o seu Orlando Furioso - , sairam simultiinea-
mente em campo os dois teoricos, Giraldo e Pigna ( 1554), o primeiro
com um Discotso intJorno al comporre de'romanzi, o segundo com a obra
I romanzi ( e dizendo tratar-se o Discorso de um plägio desta sua obra) .
Ambos tentam mostrar a inaplicabilidade das formulas de Aristoteles a
nova forma epica, a poesia cavaleiresca ("romanzo"), cuja tecnica se
opoe a unidade de ar;äo e de heroi prevista pela poetica tradicional ( 1) .
Se Pinciano, na Espanha, chegou a ser um verdadeiro filosofo
da criar;äo artistica, inspirado de corpo e alma na Poetica de Aristo-
teles, por outro lado o autor do Cisne de Apolo, Luiz Alfonso de Car-

1) Para melhores a respeito, consultar a obra monumental de


Bernard Weimberg, A history of literary Criticism in the Italian Renais-
sance, I, p. 433-452 et passim; II, 957-971, ver ainda Belloni, 11 poema
epico e mitologico, p. 126-129.
TERCEIRA PARTE
PRINCiPIOS DO FORMALISMO CLASSICO

Corno nas artes plasticas, tres säo os elementos que compoem o fato
Iiterario: o Poeta ( criador), a Obra ( criatura) e o Piiblico ( receptor).
0 processo criador coloca em de dependencia os tres compo-
nentes: o artista cria com as suas faculdades inatas e adquiridas; aten-
de as exigencias esteticas de sua escola e dirige-se a um piiblico deter-
minado. 0 receptor da obra literaria tem dupla fruir dela e
coloca-la numa escala de valores.
Vejamos, no caso da literatura cla5sica, o trinomio em toda a sua
problematica:

lnaltacio da Nat11resa

Arie e
t
mlmese

lmltaclo dos
(recriac;lo de uma
realldade ja imitada)
RAZl.O. (ellte
Faculdade• { Imaginal)lo
Emoc;lo Critt!rlo
Manla (furla) : Platlo
tema: o Homem·
Genlo (engenho; estro, potbcla crladora) tecnlca (regras para a
Doutrlna (conhecimento da sua arte) realizac;ll.o da mimese):
a. Verossimllhanc;a
Ciencia (saber) b. ConvenH!ncia
Experlencla (Camöes) c. Maravilhoso
d. Unidades
Instintos: a) Imital;ll.o genero: estruturas fixas, distintas,
: Arist6teles prt!-estabelecidas ou pre-existentes.
b) Harmonia fim: Moral-: Platll.o (BEM, VERDADE
e BELEZA).'
Arist6teles: a mimese do feio pode
ser bela em si mesma.

A) A RAZA.O.
Todos aprendemos que as faculdades criadoras, numa obra de arte
classica, säo: a I nteligencia, a I maginfl{iiö e a Sensibilidade ( ou emo-
. Ü5 classicos falam na raziio, mas nao a confundiam com a inte-

61
ligencia: sabiam que a razao, assim como o julgamento, a ideia, o pen- gundo predomine a a raziio ou a sensibilidade. Litera-
samento, o raciocinio, constitui apenas um aspecto da inteligencia. A turas hä, como a francesa, em que o racionalismo classico parece uma
razäo näo e uma fonte criadora, senäo a inteligencia; ela e uma facul- constante, uma virtude inata. Daniel Mornet, que fixou magistral-
dade critica, nao poetica: sob a forma reflexiva de bom-senso, julga- mente a historia da "clarte" francesa, diz que "cette clarte n'est pas
mento, o papel da razäo consiste na supervisäo, na escolha e na orde- rechechee par un instint aveugle, par une impulsion cachee de Ia "race".
dos achados esteticos da da sensibilidade e da pro- On I' acquiert par un effort reflechi" ( l) . A das ideias,
pria inteligencia. Para OS clässicos somente a Raziio constitui a via esse na precisiio e clareza no pensamento, e fruto da influencia
possivel para atingir a Beleza Ahsoluta. Se ela so concebe verdades da disciplina escolästica, da onipotencia da retorica tradicional e do
universalmente välidas (porque a Razao e sempre a mesma em todos pensamento teorico italiano codificado nas poeticas do Renascimento
nos)' segue-se que apenas ela pode levar-nos a daquela beleza e mais tarde assimilado violentamente em a partir de 1630 (2).
universal, eterna e iinica que e 0 objetivo de uma obra clässica. 0 0 exito da filosofia cartesiana no sec. XVII, que alguns pretenderam
ver e ate exagerar como responsavel pelo racionalismo clässico frances,
ideal clässico consiste em criar obras que ultrapassem o seu tempo,
s jam eternas e universais. Corno hä uma Verdade e um Bem absolutos, pouco ou nada influiu na literatura classica da epoca. Gustave Lanson
hä tambem um Belo umversal, eterno, independente das contingencias estudou de forma definitiva a hipotese dessa influencia, concluindo que
individuais ou nacionais; e so a Raza<O poderä atingir essa Beleza pe- ela foi nula em escritores como Racine, Moliere, La Rochefoucauld, La
rene, como faculdade que nada tem de individual ou perecivel, igual Fontaine e Mme. Sevigne. As grandes obras clässicas estiio Ionge de
em todos os homens e inaltenivel em todos os tempos. Dai falar-se no ser explicadas por qualquer influxo da filosofia cartesiana ( 3) . 0 certo
racionalismo da arte clässica. e que nao se pode negar, na historia da cultura francesa, essa paixao
obstinada pela clareza, pela ordenada, geometrica, pela ordern
0 racionalismo leva conseqüentemente ao universalismo: preo- intelectual e artistica, pela disciplina do pensamento e da litera-
cupa-se com a essencia da realidade, com a sua natureza profunda e ria, pelo gösto da analise e horror as formas imprecisas, a impedir
permanente, com as qualidades comuns e imutäveis da natureza huma- conseqüentemente o triunfo das chamadas formas barröcas. t Jean
na. As caracteristicas individuais da realidade, o seu tipismo, seus tra- Chapelain quem no momento da eclosiio da polemica do
pitorescos, suas qualidades transitorias, enfim, tudo aquilo que e Cid corneliano apregoa a razäo como guia soberano da arte, instituin-
particular ou singular nas coisas, nos homens e nos fatos, näo e objeto do as formulas precisas de uma teoria da razao. Para ele a Espanha
de uma obra classica; conduz tambem ao ideslismo, pois a razäo reduz nada produziu que valesse, porque ela nao tem nenhuma "idee de Ia
a realidade a conceitos, a ideias, a imagtms, a mentais. raison". Nos escritores classicos franceses do sec. XVII, bem como
0 seu papel exerce-se nos minimos detalhes da artistica, nos teoricos, a raziio e sinönima de bom-senso, senso comum. E qual
desde 0 vocabulario a estrutura da frase, desde a analise do mundo fösse a desta razäo bom-senso, di-lo Mornet: "Elle est de choisir,
interior a conduta dialetica do pensamento. t ela que cerceia OS VOOS de tirer, d'eliminer tout ce qui est individuel, local, momentane. Mais
vertiginosos e as monstruosas da - faculdade eile est aussi, comme l'esprit de reglementation, de fixer a toutes choses
ctiadora por excelencia; e ela que impede as demen- un sens immediat et clair, de limiter toute pensee a des sens commodes
ciais da sensibilidade; e ela que opera o equilibrio na et evidents" ( 4). A do culto da raziio chega a Boileau,
artistica, limitando, niio so o papel das outras faculdades, como a que ja escreve depois das grandes obras de Racine:
sua propria atividade; pois, se a sem contröle da raziio Aimez donc Ia raison: que vos ecrits
cria monstros ou descamba para o absurdo, e a sensibilidade desen- Empruntent d' elle seule et leur lustre et leur prix.
freada resvala nas formas alucinatorias da arte, o exercicio exclusivo (Art. Poet., I, 37-38)
da razäo so poderia criar ohras de filosofia, nao literatura. "Le classi-
cisme est un equilibre entre Ia raison et son reste" - diz Saulnier ( 1). 1) Histoire de Ia clarte p. 8.
Dentro deste esquema, qualquer desequilibrio na atividade criadora, 2) Etienne Gilson, naturalmente sob o impacto da obra de Daniel Mornet
favorecendo 0 predominio desta ou daquela faculdade, levar-nos-ä as (Histoire de Ia clarte acha viavel a hip6tese do pensamento
formas efemeras da arte - gongorismo, conceptismo, romantismo, se- escolastico como uma das fontes do espirito classico do sec. XVII (V.
«Scolastique et esprit classique», in Les idees et Ies lettres, p. 250).
3) V. «L'influence de Ia philosophie cartesienne», in Essais de methode de
critique et d'histoire litteraire, p. 211-242.
1) La Iitterature du siede classique, p. 58. 4) Obra cit., p. 58.

62 63
E evidente que esta hegemonia da raziio ou do bom-senso fösse compreensiio dos estados contradit6rios da alma, no estabelecimento das
obra mais dos teoricos do que dos proprios escritores cliissicos. 0 causas e da sintomiitica amorosa, ja se encontra em Petrarca e antes
papel soberano da raziio niio pode ser discricioniirio, sob pena de exau- dele na poesia dos trovadorcs e dos poetas estilnovistas. Estes tambem
rir a criadora e esterilizar a sensibilidade, conseqüentemente gostavam de analisar os seus sentimentos nas de amor. Dai
arruinar os direitos da poesia. 0 proprio Saint-Evremond notava essa explicar-se que Andre Berry procurasse assinalar as caracteristicas cliis-
incompatibilidade entre o culto do bom-senso e o reino da poesia: "La sicas da poesia do trovadores e dentre elas a aniilise da
poesie demande un genie particulier que ne s'acommode pas trop awc paixäo como fundamental ( 1). Mas o que sucede com os poetas cliis-
le bon sens. Tantöt c'est Je Iangage des dieux, tantöt c'est Je Iangage sicos e que neles encontramos modelos mais puros, mais acabados de
des fous, rarerneut celui d'un honnete homme. Elle se plait dans lt>s aniilises psicol6gicas. Os herois de Corneille se analisam inflexinl-
fictions, dans les figures, toujours hors de Ia realite des choses"; dai mente em seus momentos de incerteza e inquietudes, e o mesmo sucede
condenar a poesia em nome da raziio, pois "c'est cette realite qui peut com as personagens de Racine nos momentos mais culminantes de sua
satisfaire un entendement bien sain" ( 1). Por isso mesmo deliraute paixao ou da cegueira dos seus sentidos:
Ogier niio concebe o furor poetico seniio sob a forma de uma "desor-
dre regulier" e de uma "folie raisonnable" (2). Esta seria uma das Ah.' ne puis-je savoir si j'aime ou si je hais? - pergunta a si mes-
razöes por que Vergilio se tornou um poeta admirado; Chapelain con- ma Hermione na Andromaca de Recine; Fedra, na furia do seu ciume,
siderava-o "le seul pocte qui conserve Je jugement dans la fureur" (3). grita:
Que fais-je? ou ma raison se ra-t-elle egarer? (2).
A raziio, considerada entiio a fundamental de todo o edificio
cliissico, estii presente niio so no movimento teorico ( estabelecendo as
E nisto que consiste o valor do racionalismo - diz Rene Bray:
regras que os teoricos consideravam infaliveis para a da
ter conduzido a arte para o estudo do homem; te-la feito visar a um
Beleza Absoluta), como na ( dirigindo o exercicio da fantasia
realismo psicol6gico. Foi ele que fez dos escritores cliissicos franceses
e da sensibilidade), e ainda na critica {que em nome dela analisa e
dramaturgos e moralistas, pois o seu teatro e antes de mais nada e
julga as obras literiirias).
acima de tudo um estudo dos sentimentos. E e este estudo dos sen-
Henri Peire prefere, ao termo racionalismo, que considera dema- timentos que ocupa töda a literatura cliissica ( 3).
siado simplista, o termo intelectualidade, para designar uma das mais
Arte intelectualista, arte com exigencias de eternidade, visando os
profundas tendencias da literatura cliissica ( 4). 0 gösto pela com-
caracteres permanentes do homem e como tal proscrevendo "as modas
preensäo, pela aniilise psicologica, e 0 que mais interessa num escritor
passageiras, as fugidias, os estados de alma intimos, pes-
cliissico, voltado como sempre estii para o mundo das ideias, para o
conhecimento ultimo das coisas, da realidade intima do ser. Camöes soais e incomuniciiveis" (Saulnier), o Classicismo instituiu o culto da
e eminenterneute um poeta cliissico quando nos seus sonetos filos6ficos Raziio porque so ela poderia conduzir o artista ao reino da beleza uni-
se pöe a analisar o amor, preocupado como estii por determinar as versal, de uma beleza que estii acima do gösto de cada um, das ape-
causas do seu sofrimento, ou os deitos contradit6rios do amor na alma. tencias esteticas de determinada epoca Oll Jugar. Ü certo e que, arte
E uma aniilise consciente; o poeta, como um cirurgiäo, disseca a reali- dirigida a um publico eminenterneute aristocriitico, a uma elite intelec-
dade que estii dentro de si - mas que e uma realidade objetiva. Reflete tual ( como pregaram os te6ricos da Pleiade no sec. XVI), a uma
söhre o seu drama passional, mas com certa impassibilidade. Dizemos "honnete gens" ( como quiseram OS cliissicos do sec. XVII)' 0 racio-
"com certa impassibilidade" porque a atitude de um cliissico perante a nalismo cliissico levado as ultimas conseqüencias no sec. XVIII acabou
realidade niio pode ser - como jii vimos - absolutamente racionalista, por matar a grande poesia. Seculo viscenilmente racionalista, em que
fria, seca, como a de um fil6sofo: do contriirio a obra deixaria de ser a filosofia cartesiana se impöe soberanamente e prepara o espirito filo-
arte. Poder-se-ia objetar: essa aniilise minuciosa do mundo interior, essa
psocologica, que se compraz na de conceitos, na
I) Le florilege des troubadours, Pref., p. XVII.

1) «De Ia poesie», Oevres, III, p. 45, ap. R. Bray, La formation, p. 121. 2) Ver Henri Peire, na 2.' ed. francesa de Qu'est-ce que le classicisme, p.
53, e na ed. novaiorquina Le classicisme p. 70 ( ed. espanhola,
2) Ap. R. Bray, lbid., p. 130. p. 80-81).
3) Preface de La Pucelle, ap. R. Bray, lbid., p. 130.
4) Le classicisme fram;ais, p. 68 ( na ed. espanhola, p. 51). 3) V. «L'esthetique classique», in Revue de cours et conferences, 1929, p. 218.

64 65
sOfico da epoca, a poesia e 0 pröprio teatro dcscambam verticalmentE' mento em que o poeta deixa de ser um simples mortal para ser o in-
na mediocridadc, para so no crepusculo do sec. XVIII se reabilitarem terprete dos deuses. A Idadc Media, ainda que desconhecesse Platäo,
com os escritores que tentam o retörno do homem a natureza e ao manteve viva a ideia da "loucura divina": Santo Isidoro de Sevilha
sentimento. E o adwnto do Romantismo. Entra em declinio a "Ida- imaginou para o termo carmen duas fantasiosas etimologias, entre elas
de da Razäo". a que fazia deriva-la de carere mente, porque os que cantavam se su-
punham loucos ( l) . Antes de Platäo ja Democrito de Ahdera exage-
rava a eficacia do Juror sagrado, dizendo que sem ele nao era possivel
B) G:El\'10 AHTE o grande poeta. Cicero, no De Oratore, reproduz a opiniäo de Demo-
crito como sentimento comum nos homens cloutos de seu tempo: "Pois
Entre os problemas levantados pelos teöricos do classicismo figu- eu st>mpre ouvi dizer ( e tal opiniäo pa-ssa por haver sido transmitida
ravam estes: quais as relac;oes t>ntre a arte e o genio? Quais as por Democrito e Platäo em seus escritos) que näo ha verdadeiro poeta
relac;öes entre a arte e a moral? l'm poeta perfeito pode dispt>nsar sem o acompanhamento do entusiasmo e de certa inspirac;äo quc se
o genio? Da mesma forma: a ciencia e indispensavel ao pot>ta? as5emelha ao delirio" (2). Tal teoria conduziu Horacio a defender a
E evidente que arte e ciencia säo qualidades que se adquirem; o importiincia da arte no talento poetico ( 3). Aristoteles, numa passagem
genio so pode ser uma aptidäo, uma qualidade inata (l). Se parlimos um pouco controwrtida, parece fazer distinc;ao entre as duas categorias
do principio de que a obra classica e fruto do equilibrio de nossas fa- que para nos corresponderiam aos termos talento e genio; ou simples-
culdades criadoras equilibrio estabt>lecido pela Razäo e se en- menie ao temo genio nas suas duas acepc;öes possiveis a de disposi-
tendermos por genio a capacidadt> extraordinariamt>ntc criadora da ima- r;iio natural (e portanto capacidade para a ficc;äo) e a de loucura ou
ginac;äo, auxiliada por uma sensibilidade tambem poderosa, segue-se extase ( Capaeidade para 0 transporte, isto e, para evadir-se de si mes-
que o genio poderia tornar-se um fator dt> subversäo do equilibrio mo) : "a arte da poesia e propria Oll dos bem dotados ( fU<ptJoiJr; )
classico. Ocorre ainda o genio considPrado como inspirac;äo, como ou dos inspirados ( 11 1-l<XVLY.Oii) ; daqueles por sua bela plasticidade;
transportt>, e portanto mais um dom divino qut> propriamente um dote destes, pela potencia do seu arrebatamento" ( 4). Donde: poetas bem
natural. St>ja como för, a gcnialidade ineontrolavel pela razäo dt>scamba dotados com talento, potencia imaginativa), e poetas inspirados ou
para a loucura; os cliissicos nunca pensaram 110 genio como alucinac;äo, maniacos ( com genio, potencia de extase).
como 11t>vrose. Tinharn consciencia de que o simples conhecimento dos Os teoricos do sec. XVII estäo de acördo em que o genio e ne-
meios de realizac;äo artistica näo eriava a grande obra; que o genio cessario para a grande poesia; sem ele 0 poeta näo ultrapassa a grau
( ou fösse essa aptidäo natural, que tambem chamavam Juror; ou fösse de versejador: "Poesie e-st un don de naturt> perfectionne de l'art"
inspirac;äo divi11a, que tambem ehamavam "loucura" ou "insii11ia") era (Pierre de Deimier); "L'art n'est pas ce qui fait Ia beaute" (Jean Cha-
nect>ssario para as gra11des criac;öes da arte. 0 genio sem a artE', pelain). Balzac, de perfeito acördo com o respeitavel Chapelain, chega
se pode criar, näo chega a execuc;äo; a arte sem o ge11io, se chega a a tentar uma definic;äo do genio: "Les regles s' apprennent par le temps,
execuc;iio, so nos pode oft>recer uma obra fria, mediocre, sem o grande et l'etudt> donne l'art aux moins heureuses naissances. II n'y a quc
timbre. Os poetas cliissicos a11tigos julgavam indtspt>nsavel a inspira- CPtte force secrete clont }es paroJes SOllt animees, qui vienne immedia-
c;iio no momento da criac;iio artistica. Apolo, JVIi11erva, as Musas, como
as fo11tes de Hipocrene e de Castiilia, figuravam formalmenie E'ssa 1) Etymol., I, XXXIX, 4). Sobre a vesania divina dos poetas durante a
CTPnc;a no podt>r da inspirac;äo. Platiio, em varias de suas ob ras ( no Idade l\Iedia, ver Curtius, Literatura europea y edad media latina, II,
Ion, no Menon, na Apologia, 110 Protagoras, no Fedro, no Cratilo e no P- 66i-668.
Banquete) abordou com certo desenvolvimento ( cmbora as vezes de 2) Saepe enim poetam bonum neminem - id quod a Democrito et Platone
in scriptis relictum esse dicunt - sine inflammatione animorum existere
forma contraditoria ou irönica) o problema da dwsa moira ( {}E[a posse et sine quodam adflatu quasi furoris (De Orat., II, 194).
!-lOlQU), isto e, da i11spirac;aa divina, desse Oll deJirio 3) Horacio levou aquela opiniao de Dem6crito as ultimas conseqü.encias, na
poetico de que se se11te possuido o artista no momento da criac;äo, mo- sua Arte Poetica, querendo com isso evidenciar o desprezo da arte nos
poetas de seu tempo: Dem6crito fechara as portas do Helicon aos poetas
de juizo, e os partidarios de sua teoria poetica deixavam entäo crescer
as unhas e a barba, afetando com isso a impressao de «loucura» - a
1) Para a conceituac;ao de genio, palavra tao diab6lica como as suas irmas qualidade primordial do bom poeta (A. P., v. 295-305).
talento e espirito, consultar R. P. Longhaye em sua obra Theorie des 4) 1\to n:ot YJTLXlJ E<rttv 11 !-t<XVL'Xoii, 'to{rrwv yaQ ot !AEV
belles-Iettres, I'äme et les choses dans Ia parole, p. 60-67. dlrr/.aa'tot, ot ()/, Ex<J'tattxo[ dmv (Poet. 1455 a 33).

66 67
temente du Ciel, d' ou vient avec eile la grandeur et la ma jeste" ( 1). franceses do seculo seguinte: sim, porque no sec. XVI, se excetuarmos
f:stes e outros testemunhos semelhantes atestam a improcedencia da Du BeHay, a superi01·idade do genio e proclamada; no sec. XVII pende
opiniäo de que os te6ricos acreditassem apenas nas regras como infa- o prato da balan«<a que sustenta a arte. Guillaume Colletet vai ate mais
liveis instrumentos para a cria«<iio do grande poema. Ern 1674 Boileau Ionge: "Le travail assidu peut faire obtenir au poete ce que Ia nature
ainda preambulava a sua Art Poetique defendendo a condi«<iio primor· lui denie" ( 1).
dial do bom poeta:
Soares Barbosa colocou em termos muito claros o papel da Arte
C'est en vain qu'au Parnasse un temeraire auteur, no binömio com a Natureza, partindo da posi«<iio horaciana de que nem
Pense de l'Art des Vers atteindre la hauteur, a arte sem o engenho. nem o engenho sem a arte säo capazes de produzir
S'il ne sent point du Ciel l'injluence secrete, um poema digno de louYor. Primeiramente, 0 genio e 0 que da 0 ser
Si son Astre en naissant ne l' a forme poete.
ao poeta; a arte lhe da a forma; as propriedades essenciais do genio
estäo: 1. 0 ) na extensäo de espirito, pela qua! o Poeta percebe nos
(1, V. 1-4) objetos da natureza coisas, e rela«<Öes que escapam ao comum dos ho-
mens; 2. o) na för«<a de imagina«<iio, pela qua! o Poeta traz a fantasia
A era classica admite, pois, como virtudes necessanas, tanto a arte as ideias com um sentimento mais vivo do que aquele com que as rece-
como o genio; os te6ricos dividem-se, porem, quando o problema con- beu; 3. 0 ) nesta mesma atividade e na extrema sensibilidade da alma,
siste em saber a relaC<aO entre as duas, isto e, qua} de!as e mais eficaz pela qua!, no silencio ou na solidäo do gabinete o Poeta concebe
na cria«<iio das graudes obras. Vimos que o nosso Antönio Ferreira, todos os transportes das paixöes como se estivesse presente aos
ainda que pensando no seu caso pessoal de poeta de inspira«<iio dificil, sucessos Oll estes 0 interessassem imediatamente (2). E qua! a funC<iiO
colocava em termos claros a pendencia: da arte? E preparar o genio e dirigi-lo nas suas composiC<Öes; formar o
bom-gösto para o poeta aperfei«<oar as suas cria«<Öes, e o publico julgar
Questiio foi ja de muitos disputada
das mesmas. 0 genio, porem, näo se comporta de maneira homogenea
S' obra em vers•o arte mais, se a natureza.
na execu«<iio da sua obra. Nesta "ha momentos de transporte, e interva-
los de sossego. Os primeiros estiio sujeitos ao exame, mas näo a dire«<iio
(vv. 100-lül);
da arte: os segundos sim. A arte e a reflexäo pertence a destreza em
nos fazer sofrer, e ainda esquecer da ausencia do genio, semeando de
ainda que para ele "ua sem outra val ou pouco, ou nada" - reprodu- flöres os intervalos, e passagens de uma beleza a outra, entretendo o
zindo quase textualmente a opiniäo de Horacio (A. P., v. 408-411), a espirito e a imagina«<iio por detalhes de prazer, e de gösto ate o mo-
sua ortodoxa posi«<iio racionalista niio titubeia em conceder primazia a mento em que o genio torne a apoderar-se da alma para a perturbar,
educa«<iio artistica söhre o estro: aturdir, transportar e elevar. Para ver estas alternativas do genio e
liJas eu tomaria antes a dureza da arte, basta !er Homero e Vergilio, em os quais se distingue facil·
Daquele, que o trabalho, e arte abrandou, mente o Genio que os eleva de quando em quando; e a Arte, que sem·
Que estoutro a corrente, e vii presteza. pre os sustem e nunca os deixa" ( 3). E assim se explica por que as
ob ras de grande extensiio necessitam do concurso do genio e da arte:
(vv. 103-105). esta supre aquele nos momentos de sua ausencia. Por isso mesmo
alguns te6ricos chegaram a pensar na dispensabilidade da arte no caso
de poemas curtos, de uma ode, de um soneto, em que o genio fösse
Explica-se a sua preferencia: a natureza e cega; a arte e fruto da razäo. por si so condi«<iio suficiente.
Um poema bem trabalhado, fruto de uma requintada educa«<iio artistica,
vale mais que outro onde o genio, desapoiado de um profundo conhe-
cimento artistico, se espraia numa enganadora espontaneidade. Eis o
I) Discours de l'eloquence et de !'Imitation des Anciens, p. 48, ap. R. Bray,
ponto de vista de Ferreira, que poderia ser perfilhado pelos te6ricos obra cit., p. 93.
2) Poetica de Honicio, p. 226.
1) Ap. Rene Bray, La formation ... , p.87. 3) Obra cit., p. 227.

68 69
Eis ai as bases psicologicas do poeta: genialidade, talento; eis as as artes liberais ( 1). No sec. V da nossa era e Macrohio quem
hases pedagogicas e intelectuais: artitica, conhecimento da aplica a alegorica a Vergilio, cuja obra revela um poeta
Filosofia Moral ( de que ja tratamos). Outra se tornou ne- douto em tödas as formas da sabedoria: "nullius disciplinae expers
cessaria para o bom poeta, e esta conceblda pelos classicos do Renas- plene", "disciplinarum omnium peritissimus", "omnium disciplinarum
cimento: 0 poeta deve ter ciencia, isto e, vir apetrechado por uma soma peritus" etc. (2). Na do sec. XII e vigente o conceito da
razoavel de conhecimentos. 0 preconceito do poeta sabio e considerado de poesia e filosofia: Lucano e elogiado por haver-se
como um legado do movimento humanistico dos seculos XV e XV I. ocupado de "questöes filos6ficas", como o caso das mares altas e da
Assim pensa Rene Bray. Reproduzindo a advertencia de Marolles: "Le baixa mar. Da mesma forma e admirado Dante como "sumo poeta
genie n'est pas toujours sur avec les connaissances de l'art s'il n'est ac- e filosofo" por haver tratado de questöes de fisica quando fez digressöes
compagne de Ia science", R. Bray afirma tratar-se de "un legs de l'hu- a respeito das manchas da lua, da embriologia e da das
manisme, qui melait erudition et poesie, qui admirait dans Virgile Ia chuvas. Dante mesmo respeitava Vergilio pela sua sahedoria, que em
science plus que son art, qui voulait faire de I' epopee une somme des varias oportunidades enalteceu: "quel savio gentil ehe tutto seppe",
connaissances humaines. On exigeait du poete epique qu'il connut "tu ehe onori ogni scienza ed arte" etc. ( 3) . E evidente que o movi-
l'astrologie, Ia cosmographie, Ia geometrie, Ia physique, toute la phi- mento humanistico dos seculos XV e XVI conservasse e ate acentuasse
losophie, l'art de Ia guerre, l'art nautique, les arts mecaniques, Ia me- o conceito da poesia-sabedoria; ainda que avesos ao conhecimento da
decine, le droit, et j'en oublie" ( 1). Ern outra obra sua, porem, Rene Natureza porque viviam os humanistas obstinadamente voltados apenas
Bray confessa desconhecer as origens dessas entre a poesia e para a natureza humana, as ciencias naturais, ou melhor, o descohri-
os conhecimentos cientificos no Renascimento, pois nada de semelhante mento e o estudo da natureza fisica vieram alargar as fronleiras do co-
encontra em Aristoteles, em Horacio e nos Italianos do sec. XVI (2). nhecimento durante a - sacudida violentamente pelas des-
0 Renascimento parece-nos todavia o ponto de chegada de todo um cobertas maritimas.
processo, o momento culminante das rela!;Oes entre a poesia e a sabe- Para que os primeiros teoricos classicos franceses - um J acques
Joria, conceito que vem evoluindo desde a mais alta antiguidade clas- Pelletier (em sua L' Art Poetique, 1555), um Pierre de Laudum (L' Art
sica ( 3) . Ainda que em Homero näo existisse, em Hesiodo o prohlema poetique fraru;aise, 1598), um Vauquelin de Ia Fresnaye ( L' Art poeti-
ja se coloca, preocupado como esteve com a fun!;io pedagogica da que, 1605) - apregoassem a necessidade de conhecimentos enciclope-
poesia, procurando substituir as homericas pela "verdade"; dicos ao poeta, - espt>cialmente no caso da poesia heroica - , e por-
mas o pensamento de Hesiodo niio ultrapassava ainda as fronteiras do que a ideia do poeta sabio ja tinha a sua literaria desde a an-
mito; e quando a filosofia natural da Jonia a sua triunfante apa- tiguidade classica. Assim a . exigencia na primeira
rigio, tanto Homero como Hesiodo säo julgados perante o tribunal da de teoricos do sec. XVI, OS sucessores do seculo seguinte niio fizeram
Filosofia. A condenagio da poesia culmina com a expulsiio dos poetas senäo confirma-la e proclama-la ate enfiiticamente. De Grenaille, no
da repuhlica ideal imaginada por Platiio. Mas logo inicia-se entre prefacio a tragedia L'I nnocent malheureux ( 1639), chega ao ponto de
os gregos a reabilita!;äo do poeta, desde Homero, cuja alegoria era exigir para a tragicomedia a mesma soma de conhecimentos que devia
a cobertura estilistica de suas ideias (4) . Quintiliano chegou a afirmar ter o poeta epico: "Ce beau corps comprend une infinite de beaux
que Homero conhecia todas as ciencias (/nJst. Orat., XII, ll, 21). membres. II ernbrasse Ia politique pour faire tenir les conseils et pren-
Pseudo-Piutarco - diz Werner Jaeger - propöe-se demoostrar que dre de bonnes resolutions aux grands monarques. La morale y est em-
Homero possuia niio somente o conhecimento de todas as regras da ploYee pour emouvoir les passions ... L'eloquence y regne, pour pro·
arte retorica, mas que dominava tambem plenamente a filosofia e duire tous !es Sentiments du coeur. . . La logique y est necessaire ...
La connaissance de l'art militaire s'y mele ... La musique meme est
requise. . . Je ne parle point ici de l'histoire" (4).
1) Cf. «L'esthetique classique», (Le genie et !es Regles), p. 108.
Genio, arte e ciencia, eis a trilogia das qualidades de que deve
2) V. La formation ... , p. 95.
estar munido o poeta para criar a grande obra e com ela ingressar na
3) Ver os dois luminosos capitulos de E. R. Curtius - «Homero y Ia
alegoria», «Poesia y filosofia», obra cit., p. 290-297, de onde se coligem
estes apontamentos. 1) Cf. Paideia, p. 766-767 e nota 13.
4) «Homero transformou em quadros vivos e perceptiveis as especula<;;oes 2) V. Domenico Comparetti, Virgilio nel medio evo, I, p. 77, 78 e nota 1.
filos6ficas e tambem a hist6ria e a ciencia natural» - dh: Winckelmann, 3) V. D. Comparetti, obra cit., I, p. 274-275.
Versuch einer Allegorie, ap. Curtius, I, p. 293. 4) Cf. Rene Bray, La formation ... , p. 96.

70 71

i!

imortalidade. Camöes teve consciencia - como jii vimos - da for- d6rios e frigios; aos pintores e escultores eram vedadas as represen-
ma<;;iio ideal do poeta que aspire a uniYersalidade: engenho, fwnesto ta<;;Öes de uma natureza degradada. A regra fundamental consistia na
estudo e longa experiencia. Antes de o Romantismo por em c:rise o con- indissolubilidade entre a Belrza e a Bondade. Corno Platao acreditava
c:eito da poesia-erudiqao, jii em fins do sec. XVIL na o gosto que para 0 legislador a estabiJidade e melhor do que a mudan<;;a, OS
da c:iencia come<;;a a ser suplantado por outra exigencia, suscitada pela modelos poeticos a serem instituidos deviam ser como os tipos tradi-
vida dos salöes: a do homem c:ortes; e conseqüentemente o poeta deve cionais da arquitetura egipcia. isto e, imutaveis, a firn de que nao pu·
ser, agora, nao o siibio, mas o virtuoso, o galante, o honnete homme. dessem transgredir os limites impunemente. Paul Vicaire observa que
o duro verbo "constranger, amarrar, sujeitar" aparece fre·
qüentemente na Republica e nas Leis ( l). Tanto naquela como nesta obra
C) ARTE E MORAL Platao subordina impiedosamente a poesia a educa<;;iio; nas Leis, mais
indulgente para com a humanidade, Platao reconhece que siio os deuses
Estii fora de nossos objetivos examinar as relagöes entre a Arte e que, movidos pelos nossos males e desejosos de trazer-nos um remedio
a a subordinagao de uma a outra, por se tratar de uma das para eles, enviam para di Musas, Apolo e Baco; como a crian<;;a tem
questöes gerais da Estetica, e como tal probiema que atinge as artes necessidade de movimento e o instinto do ritmo distingue o homem dos
em geral e problema que tem sido coloc:ado em todos os tempos. lnte- animais, a musica visa a excitar esse instinto; mas tal exercicio deve ser
apenas um angulo da questao: o compromisso moral da lite- simultäneamente prazer·entretenimento ( Jtatbtci ) e ( Jtatbüa )
ratura cliissica. Desde Platao se discute acerca das possiveis rela<;;Öes (2). Platao institui, assim, a "literatura dirigida ... " Na sua deliciosa
entre a arte liteniria e o seu papel pt>dag6gico, questao que tem dividido c:omedia As riis, Arist6fanes ressuscita, atraves de Dionisio, os dois ex-
te6ricos e literatos atraves dos tempos, consoante as posigöes e as esco- celsos dramaturgos gregos - Esquilo e Euripedes - , cuja arte difere
las literiirias. Se a beleza e o firn supremo da arte, segue-se que fazer Pm ambos: Esquilo com suas tragedias informadas pela mais sä moral;
dela um instrumento apologetico e negar a sua pr6pria natureza, e re- Euripedes divorciado dos ideais religiosos e eticos, considerados como
baixar a sua dignidade intrinseca. A Moral tem a sua soberania como fundamentos da felicidade do Estado. Postos os dois em contenda,
a tt'm a Arte; se, numa axiologia de valores, sobrepomos os valores e numa discussao qut> revela o pensamento contemporäneo acerca da
eticos aos valores esteticos, isto nao significa que estes devam estar SU· e da da poesia, as respectivas respostas sao colocadas
bordinados aqueles, nem que uma obra de arte seja inferior a um tra- 110s pratos da de cujo resultado sai vencedor o primitivo trii-
tado de moral. Cada um tem seu plano, sua autonomia. 0 firn da gico ( Esquilo), em virtude dos estreitos compromissos que sua arte ma-
arte consiste essencialmente em suscitar a emogao estetica, em agradar, nifestou com a civil e religiosa dos homens.
nada mais; a sua caracteristica fundamental consiste, portanto, na gra-
Desde os prim6rdios da literatura grega a poesia andou compro-
tuidade, na inutilidade; 0 que sucede e que ela pode, acidentalmente ou
metida com esse papel educativo: a pr6pria legislagao de Solon estava
intencionalmente, instruir, ensinar ou propor paradigmas de compor-
em poesia; Tirteu, Calino e Pindaro fizeram dela a expressao dos sen-
tamento. A arte cliissica sempre foi tida c:omo uma arte c:om finalida- timmhJs da comunidade. Ao chegarmos a Arist6teles, mas sobretudo a
des moralizantes, nao obstante entre alguns escritores e te6ricos cliis- partir do periodo barroe.J, helenistico, o individualismo se afirma e a
sicos esse papel lhe fosse negado. Quando Platao com seu conceito da pot>sia se benefic:ia com isso desvencilhando-se do seu papel educ:ativo.
kalokagathia ensinava que siio da mesma essencia o Belo Absoluto, o Com Arist6teles, que na·,) nega a fungao subsidiiiria da poesia CJIDO
Bem Absoluto e a Verdade Absoluta. e que estas categorias sao indis- f'ducadora. o prazer erige-se como finalidade primordial da criatura
soci<'iYeis e atendem äs mais profundas e legitimas aspira<;;Öes do ho- poetica. Os romanos, sempre inclinados ao sentido pragmiitico das coi-
mem, vimos desde logo a arte comprometida pela atividade etica. A sas. proc:uram conciliar os dois objetivos da poesia: o prazer e a utili-
sua filosofia explica, assim, as suas posigöes te6ric:as perante o feno- dade; agradar e instruir. E Honicio, na sua Arte Poetica, deu-lhe a
meno estetico em geral e Iiterario em particular, fazendo do poeta um f6rmula: lectorem delectando pariterque monendo, indusiYe sem optar
pedagogo, considerando Homero como o "instiluidor da Grecia" (Prot.,
:1::18 E) ou expulsando da republic:a ideal os pooetas que em suas cria-
goes sc esquecem da verdade e da justiga (Republ., X). Platao regula 1) V. Platon cirtique litteraire, p. 367.
minuciosamente a atividade aristica na sua cidade idealizada: a pr6pria
2) Cf. Egger, Histoire de Ia critique, p. 155-156. A p10p6sito do julgamento
harmonia e o ritmo dcviam adequar·se aos textos poeticos; logo, seriam da poesia pelos doutores cristaos, e do problema da mentira na orat6ria,
admitidos apenas os acentos masculinos e as harmonias Yiris dos modos ver a mesma obra, p. 524-529.

72 n
T

prla primazia do deieile söhre a ou desta söbre aquele. F oi cuidado, ao espalhar pelas suas odes pindaricas conceitos e max1mas,
esta a posigiio teorica que preveleceu ate ao sec. XVIII. Ainda que o cle que estas näo se transformassem em pot.'mas pedagiigicos. E ver,
Romantismo tenlasse uma ruplura total dos padroes esteticos do clas- por exemplo, o Hymne de l'Or, o HYmne de la /ustice, onde o timbre
sicismo, a fungiio social da literalura vigeu duranle a epoca romantica; do genio esta em permanecer pot.'ta ainda que versando assuntos mo-
OS parnasianos e que nas SUaS ansias de regreSSO ao heJenismo. tenlam rais; ao contrario do que sucedeu com Ba1L cujos lllimes niio passam
purgar totalmenie a poesia do seu ohjetivo pedag6gico, instituindo a cle "ennuyeux recueil de poesie gnomique" (1) . No sec. XVII quase
"arte pela arte". E ao ponto de Theophile Gautier dizer, no prefiicio todos estiio de acördo em que a poesia deva estar a servigo de uma
da Mademoiselle de Maupilz: "Niio sei quem disse, niio sei onde, quc a causa social: aperfeigoar o homem, elevar o nivel moral da sociedade.
literatura e as artes influem söhre os costumes. Seja quem för, trata- Corneille, que muitas vezes para justificar 'as suas posigoes te6ricas in-
-se induhitihelmente de um grande tolo; e como se dissessemos: as vocou falsamente o testemunho de Horacio e de Arist6teles, confessa
ervilhas produzem a primavera" ( 1). gostar dos escritores que misturavam o util ao agradavel, mas para
ele, desde que se tivesse encontrado na ohra o meio de agradar, o es-
0 certo e que no Renascimento o primado horaciano neste Jlre- critor estava quite com a sua arte. Ja no seu Discours du poeme dra-
ceito pös de Iado a posigäo aristotelica. Acresee notar que as ideia,- de matique, onde versa largamente a questäo, inclina-se a admitir a uti-
Arist6teles ligadas ao problema näo säo muito claras; os teoricos do lidade, como necessidade secundaria a arte, mas tal utilidade seria uma
classicismo näo puderam ehegar a um acördo na interpretagäo das conseqüencia do pr6prio deleite - 0 unico e verdadeiro ohjetivo do
passagens aristotelicas a proposito da catarse ou do papel purificador poeta tragico (2). D' Auhignac advoga posigäo semelhante: niio nega
da tragedia. Ainda hoje o prohlt>ma continua de pe e conta com uma a grande utilidade social do teatro, mas considera que o poeta se em-
hihliografia interminavel. Curioso tamhem que outra passagem da poe- penhe em agradar aos espectadores, näo em fazer pregagäo: o efeito
tica de Arist6teles que implica conceitos de ordem etica e passive! de moralizante constitui apenas uma conseqüencia ( 3) . E ambos acaham
controversia: quando o Filosofo fala da bondade dos caracteres, söhre por ahordar um prohlema muito serio, que foi largamente discutido
que voltaremos a falar no capitulo das conveniencias (2). 0 que nos pelos te6ricos do Classicismo: como entäo moralizar pda poesia? No
parece e que, se Aristoteles näo estahelecia em termos claros e ohjetivos caso do teatro, por exemplo, devia o autor rechear a sua pega de ma-
0 sentido etico da ohra poetica ao lado da fungäo estrltamente esletiea ximas e preceitos? Punir os maus no desfecho da agäo, e premiar os
que ele apregoava, se subentendia o papel educativo da poesia. Fa- hons? Purgar nos espectadores certas paixoes fazendo-os familiariza-
lando de como alcangar o efeito proprio da tragedia (P., cap. 13), Aris- rem-se com paixoes identicas tratadas na representagäo? Pelo cöro -
tiiteles parece ampliar as suas ideias a respeito da bondade e aclarar a chamar a raziio ou a advertir das conseqüencias morais a persona-
um pouco a sua definigäo de lragedia, aconselhando que o poeta evite gern conturbada ou alucinada? Pela simples pintura das paixoes huma-
certas mutagoes de fortuna - como os varoes hons tornando-st> infe- nas, represrntando o conflito entre a virtude e o vicio? Pela escolha
lizes, OS maus passando de ma para hoa ventura, OU ainda OS perver- do pr6prio assunto? Ou ainda pela alegoria? 0 autor anönimo do
50S mais requintados com a mesma sorte (P., 1453 a). D1:scours a Cliton, em 16:12, chegou a recomendar: "si Ir poele wut
donner qualque instruction morale, il le doit faire subtilerneute et comme
;\;a Italia do Renascimento a maior parte dos te6ricos advogou a
causa da fungäo educativa. moraliz>adora da poesia. Se excetuarmos en passant, par le jeu et par le recit de ses acteurs, rt non par une
Robortello, Castelwtro e Bernardo Tasso, os outras todos - desde Es- legon etudiee et par un choeur attache sa piece" ( 4).
caligero a Heinsius. desde Fracastor a Giraldi Cintio, desde Muzio a A arte de moralizar em poesia consiste em niio tornar evidente
Torquato Tasso, defendnam a trsc:> da utilidade como um alto ahjeti\o qualquer prop6sito dP moralizagiio. Ou a obra nao realizaria os seus
da poesia. Na formagäo da doutrina dassica em Franga teve um papel verdadeiros fins. Üamoes, por exemplo, deixou demais aparente os seus
destacado a poetica de Julio Cesar Escaligero, que havia instituido a intuitos moralizantes ao longo do seu poema epico: nos finais dos can-
formula "docere cum delectatione". A poesia ensinava deleitando; pela
instrugao (seu meio) atingia o seu firn: o pra=:er. Ainda que o gru:1o 1) Cf. H. Chamard, Histoire de Ia Pleiade, IV, p. 173.
da Pielade näo dessa naturpza, Ronsard tivera o 2) Cf. Oeuvres, I, p. 1 7. Corneille trata, nesta dissertac;ao, com certa ampli-
tude, da controvertida questao das conveniencias.
3) Ver, acerca da utilidade nas representac;:öes dramaticas, o seu capitulo
«Des Discours Didactiques ou Instructions», in La pratique du theatre,
1) Apud Denis Huismans, A p. 112. p. 313-322.
2) Ver adiante, p. I 05 e ss. 4) Ap. R. Bray, La formation ... , p. 77.

74 75
tos, que os poetas necessariamente reservam para fixar Iernbreies de
De rerum natura de Lucrecio, as Satiras de Horiicio, Juvenal e Persio,
muitas cartas de Sa de Miranda. No segundo caso, em que a fic<.;ii.o
liga<.;äo da narrativa poetica, Camoes se poe freqüentemente a mo-
ralizar sobre os efeitos maleficos do amor, da ambi<.;äo e do dinheiro, da
e 0 elemento fundamental e a instru<.;ii.o se encontra subjacente, temos
o Telemaco de Fenelon, ou o Quixote de Cervantes: por tras das fic-
aventura temeriiria e da iinsia de conquista ( sii.o os chamados epifone-
<.;Ücs se escondem li<.;oes importantissimas a um rei mo<.;o ( no caso de
mas) ( l) ; em outros Iugares essas digressoes se tornam tambem osten-
T elemaco), e juizos severissimos contra uma literatura ociosa e per-
sivas, quando o epico censura os religiosos metidos na administra<.;ao
niciosa para a fidalguia Pspanhola, as novelas de cavalaria (no caso do
do reino, os nobres divorciados da realidade contemporiinea, portado-
res dt' uma erudi<.;ao livresca e sem experiencia alguma da arte de
Quixote). Estas duas cat<'gorias - e nisso Horacio culmina a sua
Arte Poetica com preceitos sPguros para a critica literaria - corres-
guerrear; quando disserta acerca do exercicio da soberania, propondo
pondem aos graus iniciais do Belo Perfeito, pois este s6 se consegue
ao monarca normas de conduta para com os povos conquistados (2).
quando o poeta realiza a uniiio do iitil ao agradavel scm prevalencia
Ou o poema epico devia propor grandes modelos, paradigmas per- de um sobre o outro. Ao Belo lmperfeito corresponde a fic<.;ii.o pura,
feitos de her6is e de principes; ou a tragedia devia transmitir ao pii-
blico espectador uma certa tranqüilidade moral atraves da puni<.;äo dos
" isto e, aquelas ohras em que a fic<.;iio e dominante e exclui portanto
qualquer veleidade pedag6gica: e o caso das novelas de cavalaria,
maus caracteres e da recompensa dos bons; ou a comedia corrigir os ·cuja atra<.;iio consiste apenas no maravilhoso, no inverossimil, nas aven-
costumes atraves do riso ( ridendo castigat mores) ; ou a egloga ensi- turas militares e amoro-sas, nos filtros e no fantastico. Na terceira ca-
nar as virtudes privadas; ou a pr6pria hist6ria ser - como queria tegoria, a dos poemas perfeitamente belos, situam·se as obras epicas
Cicero - a "mestra da vida" - ; ou •ainda o romance, tido como "uma e dramaticas, porque siio, as primeiras, "livros nacionais, que contem
floresta de exemplos", o certo e que a utilidade social da obra classica a hist6ria principal do est·ado, e espirito do governo, os principios
se tornou um dogma duranie o Classicismo. Sem perder de vista que fundamentais da moral, os dogmas capitais da religiii.o do pais, e todas
a f6rmula ideal consistia na combina<.;iio do deleite com a utilidade, a as obriga<.;Ües da sociedade, tudo isso revestido do que a arte tem de
dosagem entretanto era •a pedra de toque na realiza<.;iio da grande obra. mais maravilhoso nas fic<.;Ües, de mais belo e rico na expressii.o, e de
Foi Horacio mesmo que, ao legislar sobre a materia, prescreveu as re- mais tocante nos movimentos; as poesias dramaticas, ainda que nos
comt'nda<.;Ües necessarias ao artista. Diz ele que e pr6prio dos velhos oferegam um campo tiio vasto de li<.;ües, oferece cada uma a sua para
censurar os poemas desprovidos de intru<.;ii.o; que o e dos mo<.;os os conter as paixoes desordenadas e emendar os vicios" ( l).
poemas austeros; e quem deseja garantir os votos da opiniii.o piiblica,
deve unir 0 iitil ao agradavel ( miscuit utile dulci), isto e, deleitar 0 :E assim que o sec. XVIII entende o preceituario horaciano. Pela
Ieitor e ensinar ao mesmo tempo (lectorem delectando pariterque mo- boca de Gil, Correia Gar<.;iio confirma tambem a finalidade morali-
nendo). S6 assim a obra podera dar dinheiro aos S6cios (familia de zante do tealro, quando diz no seu Teatro N ovo:
livreiros celebres de Roma), ultrapassar os mares e conferir •ao escritor GIL: Errado vaz: quem julga que o teatro
imortalidade. So para dirertir o povo ru.de
Esta associa<.;ii.o da utilidade e do deleite - comenta Soares Bar- Das antigos poetas foi achado.
bosa, invocando o testemunho da Poetica de Escaligero - pode ser
realizada de tres modos gradualmente: ou o conteiido de um poema Pode nele ensinar-se a mocidade
e a verdade, a instru<.;ii.o, e a fic<.;iio o elemento acess6rio ( aut addit Guardar as sanlas leis, a je devida
ficta reris - diz Escaligero) ; ou, ·ao contrario, a fic<.;ii.o, imitando a A cara patria, ao principe, aos amigos.
Pode nele mostrar-se quanto e feio
verdade, encontra-se em primeiro plano ( aut fictis 1:era imitatur) ; ou
0 palido semblante da cobiqa,
enfim a verdade e a fic<.;ao se juntam sem que uma prevale<.;a sobre
Da avareza infeliz, da triste inveja (2).
a outra. No primeiro caso, em que o iitil predomina e o deleite e
subsidiiirio, temos como exemplos as Georgicas de Vergilio, o poema
Pedro Jose da Fonseca tem uma pagina que merece transcrita
·quase integralmente: "0 poema epico com 0 exemplo dos her6is e ho-
I) \'er, por ex., Lus., I, I05-I06; IV, 94-I04; V, 92-IOO; VI, 95-99; VII,
77-87; VIII, 96-99; IX, 92-95; X, I46-I56.
I) Soares Barbosa, Tratado da Arte Poetica de Horiicio, p. I86-193.
2) A respeito do car;iter suas6rio do poema camoniano, ver as inteligentes
2) Obras completas, II, p. 27.
paginas de Jose Filgueiras Val\'erde, Camoens, p. 253-256.

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mens famosos acende nos espiritos dos capitäes e guerreiros o amor problematica: que se entende por imita'<äo (rnirnese) ? de
da gloria e das empresas ilustres. Os chefes dos exercitos vendo os que? Platäo e Aristoteles dizern que o ob j eto da rnirnese e a "praxis"
perniciosos efeitos da discordia entre Agamenäo e Aquiles aprendem hurnana: mas ern que sentido a rnusica e a pintura ( urna natureza
a teme-Ia dos danos que a ausencia de Ulisses causou aos seus, apren- ;rnorta, por exemplo) podern ser a representa'<äo de a'<öes humanas?
dern os pais de farnilias a evitar os prejuizos que de certo rnodo se Se a "praxis" humana e o objeto da arte, por que fala Aristoteles,
podern seguir as suas oasas; e o exernplo da constante Penelope inspira no inicio da Poetica, que as artes se distinguern tarnbern pelo seu
a tödas as rnulheres a observancia e desejo da fidelidade conjugal. ob jeto? E a mimese: trata-se de copia servil da natureza existente?
da natureza visivel ( emo'<Öes, paixöes, costumes, nosso rnundo interior
"A tragedia enfreia a soberba dos principes, dos poderosos e enfim) ? Ou de urna forrna especial de representa'<äo da realidade?
dos ricos, expondo-lhes os atrozes sucessos pelos quais os da sua igual- Urna representa'<äo do particular, ou urna capta'<äo do universal? A
dade, que pareciam superiores a todos os reveses da fortuna, ficaram rnirnese entende-se corno irnit·a'<äo direta da realidade, ou pode ser
sujeitos as desgra'<as, sendo castigados do brai<O da divina e hurnana r tambfun indireta como no caso dos classicos do Renascirnento, que
Quern estirnarii corno infaliveis e verdadeiros os bens da vida, irnitavarn modelos, isto e, a realidade ja criada?
tendo diante dos olhos o lastirnoso firn da real familia de Priamo?
Quern vendo um Orestes combatido dos remorsos da propria conscien- Foram, tödas, questoes que fizeram os teoricos e cornentadores se
cia, e publicarnente agitado do seu furor, deixarii de respeitar e terner deblu'<arern durante 'Os dois milenios que se seguirarn. Foi a Renas-
a vingativa justi'<a do Ceu? cenga, porern, que mais discutiu esses problernas ( 1).
"Ü baixo e grosseiro pOVO aprende da comedia a refletir sÖhre OS Socrates ja havia colocado o problema da mirnese, bem como o
proprios defeitos, conhecendo pelo ridiculo dos alheios que se lhe re- da utilidade da arte e do seu objeto, quando, nos seus dialogos com
presentam bem imitados, o quanto tem de odioso qualquer vicio. Que o pintor Parriisio, carn o escultor Cliton, com Aristipo e Eutidemo,
avarento näo terii por uma detestavel paixäo e enfermidade da alma colocou serias quest5es acerca da belez>a. Ao primeiro, certa vez, in·
o seu vicio, logo que observar o Eucliäo de Plauto perseguido de in· dagou:
continuas, de cuidados extravagantes e de uma indigencia
voluntaria no meio de suas riquezas? Credes que a pintura e representa<;oo de coisas visiveis
por meio de cores? Vejo que quando v6s, OS art'ifices,
"Da lirica, da sätira, da egloga e de outros semelhantes poemas imitais uma forma formosa, oomo niio e possivel encontrar
ninguem ha que deixe de tirar suma utilidade. Daqui os louvores de um homem perfeito em todas as suas partes, elegeis de
Deus, dos herois e homens virtuosos; daqui o horror do vicio e dos cada um o que mais belo vos parece, e formais assim um
malvados; daqui enfim a inclina'<äo a inocencia representada na sin· corpo formosissimo.
gela vida do campo, e o amor a todo genero de virtudes" (1).
- Verdade dizes - respondeu Pamisio.
D) IMITA<;A.O DA NATUREZA (Mimese) - Entiio imitais tambem uma alma carinhosa, dulds-
sima e amavel, ou porventura esta alma niio e susceptivel
1. A MIMESE hetenica: de imita<;iio?
As primeiras especula'<OeS teoricas acerca da arte entre OS filoso- - Mas como lui de ser imitavel, 6 Socrates!, o que
fos gregos - Socrates, Platäo, Aristoteles - constituern ainda hoje 000 tem proporqiio nem cor, nem de modo algum e visivel?
temas controvertidos: as origens entusiasticas da arte, a sua finalidade - Niio acontece que o homem olha de um modo doce
pedagogica ou catartioa, a arte como imita'<äo (Mimese), seus rneios- ou de um modo hostil a outros homens?
objetos-modos de realiza'<äo, suas rela'<oes com o fenömeno religioso,
De fato.
politico e com a ciencia etc., etc. 0 tema capital permariece a sua
a essencia da arte. Para esses pensadores a arte e mimese. Logo isto podera expressar-se nos olhos.
Mas esta conceitua'<äo, por sua vez, suscita töda uma cornplexissirna

1) Para OS interessados na discussäo desses problemas, e altamente util a


l) Elementos da poetica, p. 19-21. leitura da obra de Ernesto Grassi, Arte e Mito.

78 7!}
Sim, por certo. construi e uma aproxima'<iio, um reflexo, uma sombra, do leito que
Entäo tambem se podem representar os afetos do existe como realidade supra-sensivel, que e a iinica verdadeira. 0 leito
criado pelo artista e portanto uma copia em terceiro grau; e por esta
unimo. razao que Platao, na sua repiiblica ideal, considera mais importante
I ndubitavelmente - disse Pamisio ( 1). um sapateiro do que um pintor de sapatos. A poesia acaba por ser
uma imagem bem empobrecida do real, e por isso o Filösofo coloca
os imitadores (poetas e pintores) no sexto grau da hierarquia dos
Desta pasagem se infere que Söcrates nao so amplificava o ob- valores (Fedro, 248 E). Entretanto, em dialogos como o Sofista e o
jeto da imita'<ao ( o mundo visivel e o mundo interior), como aludia Filebo, a ideia de mimese em Platao sofre algumas modifica'<öes. No
a chamada "mimese seletiva", isto e, a cria'<ao de uma supra-realidade primeiro ( 236 D) refere-se ele a duas maneiras fundamentais de pra-
formosissima composta de belezas parciais. Söhre ela falaremos adian- ticar a mimese: uma, a El:xaanxlj (eioa<Stike), "arte da cöpia",
te. Outra questäo que o texto sugere, e com a qual Söcrates se apro- que ele considera boa porque tal processo respeita as rela'<Öes internas
ximava de Platao e Aristöteles, era a do homem como objeto da arte: pröprias do objeto imitado e supöe uma ciencia ( 1) ; outra - que
Söcrates näo se referiu explicitamente a "praxis" humana, ao homem seria Certarnente ma - a <pavtaO'tLXlJ (phantastike), que pode criar
em a'<ao, mas deixou entrever que alem do homem na sua expressao imagens sedutoras, mas que, atendendo as aparencias, trai a essencia
etica, a lllrte podia fixar 0 homem no seu comportamento psicolögico dos seus modelos. No Filebo esbo'<a-se uma possibilidade de valori-
- desde que a expressao desse comportamento fösse visivel. za'<ao da e conseqüentemente a salva'<ao do artista. Na "ar-
Ern Platäo o conceito da mimese flutua, e se quisermos estabe- te da copia", em que 0 poeta deve respeitar a essencia do objeto a
lecer as acep'<öes fundamentais que a mimese apresenta na sua obra, ser reproduzido, todo poeta em principio deve ter um conhecimento
teremos que vincula-las a sua filosofia. No Cratilo, onde se esbo'<a preliminar dos modelos que vai imitar; com uma forma'<iio teoretioo
a primeira analise da mimese, Platäo sugere a impossibilidade da imi- suficiente para descobrir, entiio, a unicidade da ideia atras da mul-
ta'<äo como copia fiel da realidade, afirmando que 0 decalque perfeito tiplicidade cintilante das aparencias, ele se aproximaria assim do filo-
so e possivel a um deus, nunca ao homem. So um deus demiurgo sofo. Portadora, portanto, do conhecimento, a "Musa filosüfica" seria
poderia reproduzir um segundo Cratilo, rigorosamente identico ao pri- criadora de ilusöes puras, e suas obras seriam belas porque sob sua
meiro - näo so retratando-lhe a cör e a forma ( como fazem os pin- inspira'<iio 0 artista tentaria 0 maximo possivel uma aproxima'<äo, näo
tores), mas o proprio interior de sua pessoa, com o seu carater de das formas ou das aparencias, mas da estrutura essencial das reali-
ternura e calor, o movimento, a alma e o pensamento ( 432 BC). Por- dades (2). Dai a conclusao de Ernesto Grassi: "Que sera entao a
tanto: a imita'<iio poetica nunca pode ser uma copia propriamente arte para Platao? Nao e mimese, reflexo dos aspectos acidentais e
dita do objeto imitado, mas uma imagem aproximada. No livro X da variaveis do mundo sensivel, e reprodu'<ao da realidade superior, uni-
Repiiblica, obra da naturidade do filosofo, Platiio retoma o problema versal, imutavel, e, portanto, niio historica, em cujo seio esta o sentido
da mimese tentando situa-la na sua ontologia: tres sao os criadores, mais profundo da nossa existencia humana" ( 3). A medida da beleza
t1 es as realidades criadas, isto e: Deus, o artesao e o artista. Deus e o esta na carga de absoluto que a coisa representada contenha; esta na
autor da primeira realidade ( o arquetipo) ; o artesao, autor da se- maior ou menor aproxima'<ao do transcendente, do mundo inteligivel.
gunda, que se inspira no arquetipo; e o artista, autor da terceira,
que se inspira na realidade criada pelo artesao. Assim: ha tres espe- Da Poetica de Aristöteles se depreende que sao artes imitativas
cies de leito - diz Platao exemplificando: um existe na natureza (mimeticas), a Poesia, a Escultura, ,a Pintura (Aristoteles chama poe-
das coisas - e e Deus o seu autor (esse e o leito real) ; o outro, tas aos pintores Zeuxis e Polignoto), a Musica e a Dan'<a (1447 a);
construido pelo artifice, e copia do primeiro; 0 artista produz 0 ter- que elas se diferenciam de tres modos: 1.0 ) pelos meios imitativos; 2.q)
ceiro, copia do segundo. De sorte que a cria'<äo artistica vai, cada pelos ob je tos imitados; 3. 0 ) pela maneira como se imita.
vez mais, se distanciando da realidade absoluta. 0 leito que o artesäo

1) V. Paul Vicaire, Platon critique litteraire, p. 230.


1) In Xenofonte, Os memoraveis ( AltO!J.VlJ!..I.OVEUf.laTa)' c. X, 1. III, ap.
M. Menendez Pelayo, Historia de las ideas esteticas en Espaiia, I, p. 2) Cf. ainda P. Vicaire, lbid., p. 231.
15 ( Pelayo traduz o titulo da obra de Xenofonte para Recuerdos socraticos). 3) Arte e mito, p. 130.

80 81
gesto e movimento - DAN(.:A carater - como faz Homero - ou conservando o mesmo sem modi-
a) Visuais fica-lo, ou representando aos imitados como se fossem atores e ge-
{ linhas e cores Pll\TVRA reutes de tudo" ( A o Po 1448 a 3) o Portanto: ou o poeta usa do dis-
l . M eios imi-
curso di reto e pöe assim as personagens em ac,;iio ( e desta forma o
tativos (Volume - ESCFLTUlA
poeta se retira de cena), e temos a dramatica; ou o poeta se pöe em
Espac,;o - ARQtTITETUHA) (l)
cena, e temos a narrativa. Homero combina os dois processos: ora
b) Auditiros: (Voz = som e palavras) - 1\WSICA narra, ora pöe seus caracteres operando e agindo como se fOssem ato-
e POESlA (2). res. A teoria parece proceder de Platäo, que na Republica ( 393-394)
considera a poesia epica como uma forma literaria intermediaria en-
Os antigos classificavam as formas literarias pela forma, niio pelo tre a dramatica e a puramente narrativa. Do ponto de vista do poeta
conteudo - como fazemos hoje. Portanto: a elegia assim se chamava temos entäo tres formas literarias fundamentais: a dramatica, que
porque a sua caracteristica estava em utilizar-se do distico ( hexämetro consiste exclusivamente na ar;iio pois o poeta se oculta completamente;
e penlämetro) ; a epopeia, porque estava desligada da musica, ser- a ditirambica, que e eminenternenie narrativa, pois s6 o poeta fala; e a
via-se apenas da palavra; a lirica, por estar vinculada ao acompanha- epopeia, que associa a ac,;iio a narrac,;äo, ora falando o poeta, ora agin-
instrumental etc. do as personagenso

2. A prop6sito dos ob jetos a serem imitados, Arist6teles re- Isto e o que Arist6teles ensina nos primeiros capitulos de sua
fere-se apenas a Poesia e a Dam,;a: esta imita caracteres, estados de Poetica. Mais adiante, a prop6sito da verossimilhanc,;a, novas conside-
änimo e ac,;öes; aquela, ac,;öes humanas ( "praxis") ( 3). Mas, imitando ras;öes faz o Fil6sofo acerca da poesia como imitac,;iio do universal, ao
"homens em ac,;ao" ( :t(HlHOVtE:;), portanto caracteres eticos, podiam contrario do que sucede na hist6ria - que procura reproduzir o aci-
estes ser: l.?) melhores do que säo na realidade 2. 0 ) dental, o particular. Ainda que Arist6teles niio defina explieitamente
a poesia e a mimese, poderemos deduzir-lhes o conceito atraves destas
tais como säo na realidade (realismo); 3. 9 ) piores do que säo (defor-
passagens da p,oeticao Desde que para ele o oficio da Poesia eonsiste
mismo). Assim: Homero pinta, nos seus poemas, os homens melhores
do que siio; Cleofonte ( autor desconhecido) OS pinta como sao; e em niio contar as eoisas eomo sucederam (tal eomo faz a Hist6ria),
senäo como desejariamos que houvessem sueedido, segue-se que a Poe-
Heguemon de Tasa ( o primeiro a compor par6dias epicas), bem como
sia e um meio termo entre a Hist6ria e a Filosofia: aquela se ocupa
Nicoxares, piores do que säo ( 4) Entre os pintores: Polignoto imita
0

do real acontecido, e portanto da realidade contingente e particular;


aos melhores; Pauson, aos piores ( 5) ; e Dionisio de Colofäo, que os
imita como tais. esta procura descobrir-nos as coisas eternas, imutaveis; a Poesia, ain-
da que partindo do real hist6rico, procura criar um mundo optativo,
3. Maneiras de imitar. Aqui tambem Aristoteles niio se mostra um universo como desejariamos que existisse. Neste sentido Arist6teles
claro. Ouc,;amo-lo: "podem-se imitar as mesmas C'Oisas com os mrsmos niio se opöe a Platiio - como pretendem muitos: Platiio condenou a
meios, s6 que umas vezes em forma narrativa, outras alterando o mimese do acidental como Arist6teles; neste a mimese e uma idealiza-
s;iio da realidade; naquele, a "boa" mimese deve ser uma tentativa de
aproximac,;äo da essencia do objeto. l'\a concepc,;iio platonica intervem
1) Arist6teles nao se refere, todavia, aos meios corn que se realizam a Escul- o fator moral: o objeto a ser imitado deve ser belo e bom ( e o seu
tura e a Arquiteturao conceito da kalokagathia) ; Arist6teles admite qualquer objeto como
2) 0 canto e a associac;ao da Musica e a Poesia; estas se diferenciam em
que a Musica tem como meio o som puro, a Poesia - a palavrao argumento artistico, pois a imitac,;äo do feio pode ser bela em si mes-
3) Se Arist6teles tivesse dito que a Poesia tambem imita estados de animo, ma. Para Platäoo porem, o prazer estetico situaose no objeto; para
teria ele considerado a poesia liricao Esta, como veremos, nao foi objeto Aristoteles, na pr6pria imitac,;äo, isto e, no processo artistico de estili-
de considerac;ao para o Fil6sofoo zac,;iio da realidade. No fundo, a estetica aristotelica niio e mais do
4) Nic6xares, como Cleofonte, e autor desconhecidoo Nesta passagern Aris-
t6tt>les refere-se a sua obra Deiliada; ainda que SC 0 poema
que uma amplificac,;äo da estetica do mestre; e tanto ele como S6cra-
de Nic6xares, parce tratar-se de uma par6dia em que o Autor, em opo- tes fizeram da idealizac,;äo a coluna mestra do pensamento estetico da
si<;ao a Homero que na Iliada pinta caracteres ele\·ados, na Deiliada pöe HeJ.adeo
em ac;ao homens covardes ( bEt/.6; ) o
5) Xa Politica os quadros deste pintor säo considerados perniciosos para a A doutrina aristoteliea da mimese, que considera fundamental-
juventude (1340 a 36)0 menie o drama como sua forma suprema, explica eYidentemente por

82 83
que a dramaturgia classica foi o ponto mais alto da criar;;äo literaria acordo com as suas faculdades intelectuais ( dianoia), formando, no
helenica; e como o homem em ar;;äo, o homem etic<>, a "praxis" se tor- conjunto, uma expressäo moral ( ethos); no Renascimento a natureza
nou o objeto fundamental da imitar;;ao, seguiu-se que para Aristoteles a suscita novos problemas, ainda que no fundo conserve o preceito aris-
reprodur;;äo do mundo fisico ( uma paisagem, uma planta, os animais totelico. Quando o sec. XIX proclamou o Romantismo como um "re-
etc.), bem como do homem nos seus estados de alma ou em reflexäo torno a natureza", foi porque se entendia a literatura classica como di-
filosOfica, näo era assunto conveniente a poesia. Dai a pobreza da pro- vorciada da natureza; reabilitou-se o disforme, o grotesco, o pinturesco,
dur;;äo essencialmente lirica dos gregos. a paisagem individual, os homens anormais, o enfatico, o excentrico, o
inconsciente, o irracional etc., que adquiriram foros de tema Iiterario
com os romanticos, com os realistas, com os naturalistas e com os
2. A MIMESE na Renascenr;;a surrealistas. Todos os movimentos literarios discutiram as suas preten-
söes de reahilitar a realidade, acentuando a hostilidade e o desdem dos
Aristoteles ja havia aberto o caminho para a interpretar;;äo da mi- classicoo ao mundo exterior e a natureza feia. Ainda que Brunetiere
mese como transposir;;äo da natureza. Nos capitulos finais da Poetica, tentasse prodigiosamente a reabilitar;;äo do classicismo contra esse con-
relatiV OS ao USO <do impossivel ( a<IUVUTOV ) , dv absurd.:> ( W.oy[a ) e ceito despicativo do sec. XIX, e o dassicismo chegasse ao ponto de
da maldade Oll baixeza ( ltOVl](>tll ) na poesia, diz e}e que "talvez seja ser considerado o verdadeiro "naturalismo", o certo e que a arte clas-
impossive} que haja homens tais COIDO leuxis OS pintou; esses, porem, sica - concluiu Rene Bray - "com ·a aparencia do naturalismo, e
correspondem ao melhor, pois o artista deve superar o modelo" (Poet., toda ela um puro idealismo" ( 1). E certo que Boileau, e antes dele
1461 b9) (I). Portanto, o artista idealiza, näo reproduz fotografica- uma multidäo de teoricos, proclamou solenemente que /amais de la na-
mente a natureza. Isso näo quer dizer que, transpondo a natureza, ture il ne faut s' ecarter (A. Poet., III, V. 414). Um seculo antes Esca-
deixe de representarla como tal. Ainda que respeitando a natureza de ligero ahria a sua Poetica dizendo que o poeta e um imitador da reali-
Aquiles na lliada, cuja vinganr;;a contra Agamenäo estava pondo a per- dade (rerum est poeta imitator); no sec. XVII todos estäo de acordo
der o exercito grego no cerco de Troia, Homero näo deixou de fazer em que se reserve ao poeta o direito de retocar e completar• a natureza:
dele um paradigma de grandeza, um verdadeiro heroi. "0 poeta, ao "li faut que le poete corrige les defauts de Ia nature et qu'il acheve
reproduzir por imitar;;ao a violentos, covardes e outros de caracteres ce qu'elle n'a fait qu'ebaucher ... " (Pierre le Moyne, 1641); e preciso
parecidos, ha de faze-los, sem que deixem de ser tais, notaveis" (lbid., ir "um pouco mais Ionge do que a natureza" - dira o Conde de Bussy
1454 biS). Quando Aristoteles f,aJa dos fatos ( que e o mesmo que em sua correspondencia a proposito da arte incomparavel de Moliere
dizer OS homens em ar;;iio), diz tambem que esses devem ser reprodu- (2). Muitas vezes, em nome da natureza, oo teoricos franceses comha-
zidos näo CQIDO sucederam ( o real), mas como poderiam ter sucedido, teram o uso do enfatico e da afetar;;äo praticado pelos escritores ante-
ou como desejariamos que tivessem sucedido ( o verossimil). "0 ve- riores a 1630. Nesse caso a natureza, para eles, empregava-se na acep-
rossimil, fundando-se embora na realidade, na coisa representada, su- r;;äo de naturalidade, em oposir;;äo ao arrehique e a preciosidde. E o
pera o empirico, magnificando-o e universalizando-o" (2). Partindo do caso de La Mesnardiere na sua Poetica: "Cette espece de discours ...
fato historico, o artista recria-o segundo as leis da coerencia artistica, doit etre simple, naturelle, droite e sans affetation. Plus eile imite la
tambem prescritas na sua Poetica. Mas, para o filosofo grego, a na- nature, plus eile approche de l'art" (3). Säo iniimeros tamhem aqueles
tureza reduzia-se ·ao homem em ar;;äo, isto e, ao homem agindo ("pra- que proclamaram como ideal supremo da arte a fidelidade a natureza
xis") de acordo com a sua vontade, as suas paixöes ( pathos) e de ( Deimier, Chapelain, Godeau, Desmarets etc.) . Näo obstante estas pro-
clamar;;öes dos teoricos, divididos em apostolos da arte d·a copia e ap6s-
tolos da arte recriadora, o classicismo manteve a concepr;;äo aristotelica
1) A da frase final corresponde a de I. Bywater, Arist. on da mimese ( como arte transposir;;äo do modelo) e do objeto da mimese
the Art of Poetry. A revised texte with critical introduction, translation (o homem moral) . 0 mundo exterior interessa pouco para os das-
and commentary. Oxford, 1909, que faz paradigma ( ) objeto
direto de UltEQEXEW . Outros traduzem para: «e preciso que o modelo
supere o real» (J. G. Bacca); «O ideal deve ser precisamente superior
a realidade» (Valgimigli); «a c6pia deve ultrapassar o modelo» (Emil 1) La formation ... , p. 158. Ver, de F. Brunetiere, o ensaio «Le Naturalisme
Egger) etc., tödas autorizadissimas e que nao modificam a com- au XVIIe. siede», in Etudes critiques sur l'histoire de Ia Iitterature fran-
preensao da passagem. !;aise, 1896 1. 8 serie, p. 305-336.
2) V. Rene Bray, obra cit., p. 151.
2) Aguiar e Silva, Para uma do classicismo, p. 102. 3) Ap. Rene Bray, lbid., p. 149-150.

84 85
sicos; a natureza para eles e a natureza humana. Isto nao equivale teörico do sec. XVIII: Jerönimo Soares Barbosa, que na sua tradut>iio
dizer que o mundo fora do hoonem nao fat>a aparic;;ao numa obra clas- da Arte Poetica de Horiicio examinou com muita clareza a mimese do
sica; mas a natureza, entendida como paisagem, niio in- ponto de vista tecnico ( l). A natureza, fisica ou moral, oferecc os
tervem como tema exclusivo, sim como decorat>iio, pretPxto, ou modelos a serem imitados; a poesia tem preferencia pelos modelos
propicio para a mPditat;iio. Nos sonetos camonianos, em que o p]cmcn- morais porque, relacionados com o homcm, sao mais interessantes e
to plastico parece dominante ( descric;;ao da natureza e retrato da mulhPr agradiiveis. Se a poesia procura reproduzir a natureza com fidelidade,
amada), ainda que a pintura ocupe a quase Iotalidade do espac;;o do isto e, sem modificii-la (ajuntando, combinando, transpondo ou abstrain-
poema, o elemento humano esta sempre presente, ou no fecho do so- do), esta operat>iio nao passa de uma imitat>iio pura e simples, uma imi-
neto (A formosura desta fresca serra), ou diluido nele (Aquela triste tat>iio no seu primeiro grau. As artes rcalizam assim parcialmente
e leda madrugada, ou Esta-se a Primarera transladando) l). o seu objetivo, pois a mera reprodut>iio dos objetos suscita cnto prazer
nos espectadores ou Ieitores: o prazer de comparar os detalhes do ori-
Se o mundo exterior pode, acidentalmente, intervir numa obra ginal com a copia, o prazer de reconhecer os detalhes do objeto repre-
classica, deve o poeta escolher dele aquilo que nos agrada, portanlo sentado, o prazer enfim de identificar a realidade ausente com a sua
as coisas belas; o few, o repelente, desaconselhaveis, podem contudo imagem (2). E evidentequese trata de uma forma rudimentar de sa-
ser materia poetica desde que estilizados pela arte. Boileau mcsmo tisfat>iio estetica a contemplat>iio da pura semelhant>a. Porem, sucede
•afirma que nao existe serpente ou monstro odioso que, imitado pela que a imitat>iio servil, a reprodut>iio fiel, nao aumenta a esfera dos nos-
arte, nao agrade aos nossos olhos (A. Poet., 111, v. l). E o caso dos sos conhecimentos, nem por conseqüencia satisfaz as nossas mais ele-
Tritöes, do Adamastor, de Polifemo. Ainda assim, teoricos houve vadas exigencias. Amamos a novidade, grande e maravilhosa, e o mais
que pretenderam assinalar o que do mundo horrivel devia ser objeto possivel vizinha da perfeic;;ao. Daqui se segue que o poeta, para cum-
de representac;;ao artistica. La Mesnardiere, elegendo, como realidades prir 0 mais cabalmente 0 seu objetivo - que e deleitar - , deva pro-
capazes de agradar, o ardor de uma batalha, a violencia de uma tem- por-se por modelo nao apenas a nature:::a simples e existente, mas de
pestade, •a desgrac;;a de um naufrägio, o furor de um ciiime, a inquie- preferencia a natureza bela e possivel. No primeiro caso a operat>iio
tude de uma ambic;;ao ou um filtro amoroso, condena como materia de poetica se denomina imitaqiio icastica; no segundo, em que o poeta re-
poesia a pintura exagerada da abje-;;äo 'a que pode ehegar a avareza, a presenta a natureza nao como ela e, mas como poderia e deveria ser,
infamia de uma covardia, da atrocidade de uma perfidia, do horror isto e, a natureza bela, a operac;;ao se denomina ficqiio ( ou imitaqiio
de uma crueldade, enfim tödas estas vilanias odiosas e aflitivas as almas fantastica) . Dai podermos definir a ficr,;iio poetica: operac;;ao pelo qual
bem nascidas (2). 0 poeta, tendo presentes a sua imaginac;;ao todos OS objetos da mesma

Portanto: a natureza hUJillana, o mundo interior na sua expressao especie, ou aniilogos, escolhe deles o que hii de mais helo (mimese se-
moral, o homem no palco da vida, mais nos seus momentos de gran- letira), para, atraves de certos artificios (a abstraqiio, a combinm;äo,
deza do que nas suas horas de baixeza ou vilania, eis o grande tema o aumento e a transformar,;iio), formar das belez.as parciais e existentes
da literatura cliissica. um todo perfeito, que nao existe, mas poderia ou deveria existir.
No exercicio, porem, da transfigurac;;ao da realidade, o poeta nao
3. A MIMESE e seus processos se comporta inteiramente Iivre, entregue aos caprichos de sua fantasia
e das suas predilcc;;öes pessoais: quatro sao as permissöes conce-
Compreendida a mimese como estilizac;;ao da realidade, vejamos didas pela ficc;;ao poetica: l. a Abstraqiio; 2. a Combinar,;iio; 3.
agora quais eram as possibilidades que ela permitia ao poeta na trans- a 4. a Transformar,;iio.
figurac;;ao da natureza. Ainda aqui seguiremos de perto o preceituario
aristotelico, da retorica tradicional, glosado admiravelmente por um
1) PatStica de Horacio, p. 22-26.
2) Para Arist6teles o nascimento da poesia explica-se por duas razoes inatas:
1.' porque desde crian<;a reproduzimos imitativamente; 2.• porque todos
1) Um soneto como De quantas tinha a Natureza, em que ha apenas se comprazem no imitado. . . E acrescenta a seguir: «coisas ha que, vistas,
descri<;äo pura, destituida completamente de implicao;oes de ordern moral, nos desagradam; mas agrada-nos contemplar a representao;äo delas, e tanto
ja se situa fora das balisas classicas, para anunciar a estetica dos poetas mais quanto mais exatas sejam. Por exemplo: a representa<;äo dos animais
seiscentistas. ferocissimos e a dos cadaveres» (Poet., 1448 b4). Logo: o homem se
2) Poet., p. 314, ap. R. Bray, p. 155. compraz - diz ainda - na contempla<;ao de semelhan<;as.

86 87
l. Pela abstraqiio o poeta, e o pintor tambem, suprime da rt>alida- 4. Pela transformaqiio, processso que faculta ao poeta uma liber-
de aquilo que, por ser defeituoso ou imperfeito, nii.o deve figurar no dade quase ilimitada, permite-se:
conjunto ideal da natureza bela. Os poetas epicos, sobretudo Homero
a) transferir para OS seres incorporeos as propriedades sensiveis
e Virgilio mais do que Camoes, omitem na pintura dos seus ht>r6is e
( corpo, figura, movimento). Tal a descric:;ii.o da Fama feita
de suas a<;Öcs crrtos pormrnorrs qur, nii.o obstantr sucrdidos P verda-
por Vergilio ( 1) ;
dPiros, empanariam o brilho do objeto imitado. E o preceito hora-
ciano: et quae /desperat tractata nitescere passe relinquit ( A. Poet., b) transferir para as coisas inanimadas as propriedades dos seres
YV. U9-150), isto e, abandonar aqueles fatos que nao esperamos que animadas ( alma, vida, ac:;iio). Tal a descric:;iio dos rios Indo
brilhem, quando tratados. Alias Horacio sempre chamou a att>n<;iio e Ganges em Camoes, no sonho de D. Manuel (Lus., IV, 68),
para o processo: aquele qut> se decidP a escrewr um poema deve pre- representados sob a figura de dois velhos.
ferir uma ideia e desprezar outras, hoc amct, hoc spernat promissi car-
c) transferencia de objetos ou sucessos. no tt>mpo e no espac:;o,
minis auctor (ibid., v. 45). Camoes, mais preocupado com a verdadP,
fingindo suceder agora o que se realizou ha muitos anos; su-
preferiu nao recorrer a ahstra<;ii.o quando pintou certos caracteres: e 0 ceder na Grecia o que teria sucedido em Roma. Camoes achou
caso de D. Teresa, amante de FPrnando Perez de Trava ( Lus., lll. conveniente transferir para o final da viagern do Gama, entre
:-n-:12); e o caso de Sam·ho IL "manso e descuidado" t IIT. 91); o de Mt>linde e Calecut, uma tempestade que havia ocorrido no mes-
D. Fernando, "'remisso e sem cuidado algum" ( 111, 1:38) ; e a refe- mo local mas quando do regresso. Vergilio fez Dido viver
rencia depreciativa aos capitaPs portugueses que, ao contrario dos da tres seenlos antes, para torna-la contemporanea de Eneas.
Grec:ia, do Lacio e das nac:;oes barbaras, niio aliavam aos conhecimentos
da guerra a cultura intelectual (V, 97). l\'a pintura, a mesma coisa: d) transferencia de objetos para Iugares onde nii.o existem. Ver-
Apeles pintou Antigono de pnfil, para ocultar o ölho dl' que era cego. gilio transferiu para os Campos Elisios o so! e as estrelas,
quando Ia esteve em visita de seu pai Anquises (Eneida, VI,
2. Pela temos a chamada "mime-se sclPtiva" propria- 6'H). Camöes dt>screve, no fundo do mar, o palacio de Ne-
mente dita: o poeta associa as belczas parciais dispersas nos objetos da tuno (Lus., VI, 8-14). A ficc:;ao da Ilha Enamorada, no canto
me-sma especie, para a cstilizac:;iio da belPza ideal. Tal e a formosa IX, e outro exemplo.
dama do poeta do Mondego, cu j o rctrato a natureza compös associan-
do as partes mais belas das mulheres formosas que ela gerou:
Enfim: pela abstraqiio o poeta torna a realidade mais bela, depuran-
Criou a Nature:;a damas belas, do-a das suas imperfeic:;oes; pela combinaqiio cria realidades novas; pPla
Que joram de altos plectros celebradas; amplificaqiio faz a realidade maior, extraordiniiria; e pela transformaqiio,
Delas tomou as partes mais prezadas, maravilhosa. 0 verdadeiro deleite so pode ser fruto de-stas altas ope-
E a v6s, Senhora, Je= do melhor delas. rac:;oes da criac:;ao artistica. Mas, se ao poeta se facultam essas po-ssi-
bilidades artisticas, a sua liberdade criadora tem limites. A abstrac:;iio
niio podP suprimir o que e caracteristico da especie, do fato e do in-
1'\a pintura e not6rio o exemplo de Zeuxis, que, para compor o retrato
dividuo. mas apt>nas aquelas partes imperfeitas e menos essenciais. Na
de Helena, se serviu das diferentes partes belas das donzelas mais for-
mimese seletiYa, em que o poeta associa belezas parciais para formar
mosas de Crotona ( 1) .
3. Pela amplificaqiio o poeta engrandece e multiplica as belezas na-
turais, a ponto de fazer delas melhores e mais belas do que siio. Os 1) «a Fama, a mais veloz de todas as pragas: sua mobilidade lhe da vigor
her6is epicos de Homero e de Vergilio evidenciam o processo, engran- e o correr redobra suas fürc;as. Ao principio e pequena e timida, logo
decidos que sao nas suas qualidades fisicas ( porte avanta jado, förc:;a remonta pelos ares, passeia pelo solo e esconde a cabec;a entre as nuvens ...
Seus pes säo ligeiros e rapidas suas asas; e um monstro horrivel e des-
descomunal e grande velocidade) e na sua expres-sao moral ( dotados comunal: quantas penas tem no corpo, tantos olhos vigiam por debaixo
de virtudes raras e extraordinarias). delas, oh maravilha! e tantas linguas, tantas bocas falam, e aguc;a outras
tantas orelhas. De noite voa atraves do ceu e da sombra da terra re-
chinando, sem entregar os olhos ao doce sono. De dia esta parada como
sentinela, ou no cume de um alto teto, ou nas torres elevadas, aterrorizando
I) Cf. Cicero, De lnventione, II, I. as grandes cidades ... (Eneida, IV, 174-187).

88 89·
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um todo ideal, esta claro que estas belezas parciais se referem a objetos Töda hipotese poetica deYe, portanto, ser possirel; as impossiveis
da mesma especie. Se o artista confunde especies diferentes, cai na cha- näo se admitem senäo como alegorias. Mas alem de possiveis as fic-
mada ficr;iio monstruto.m: tal que procurasse ajuntar a poeticas devem srr verossimeis, ist-.:> e, confvrmes as leis do mundo
de uma mulher ao corpo de um cavalo, as penas das aves com a cauda fisico e moral. As poeticas possiveis tem como fundamento
de um peixe, ou fizesse sair de uma flor a de um homem. Os a verdade metafisica; as impossiveis, - como e o cas0 das
Centauros ( monstros mitol6gicos formados de e corpo de ho. monstruJsas e fantasticas - , tem como fundamento a verdade aleg6-
mem com corpo e patas de cavalo), o Tritiio (semideus marinho. que rica; as baseadas no mundo fisico e moral, a verdade fisica;
tinha a figura de homem ate a cintura e de peixe na parte infC'rior)' Desta forma, a wrdade e o fundamento de töda ( l).
as Sereias ( seres C'stranhos, com corpo de an·, peito e de mu-
lher), os Sr.itiros ( divindades campestres, homens incompletos tambem,
com cornos e patas de cabra), as Es finges ( monstros com asas e corpo E) A li\IITA(:ÄO DOS ANTIGOS
de leoa) etc., etc., pertencem a chamada ficr;iio monstruosa, e o seu
uso se desculpa por ter a como principio e a alegoria como
Ate aqui examinamos a sob uma de suas formas; como
objeto. A mitologia oferece-nos tambem os casos de de direta da natureza. Porem, desde que surgiu a consciencia
um genero para outro, como e o caso das metamorfoses: a transfor- de que escritores houve que se tornaram consagrados pela
de uma Dafne num loureiro, das naus em ninfas (Verg., Eneida, como maximas da artistica, estes mesmos passaram
IX, 120), do Gigante Adamastor num promont6rio. Denominarn-se, a ser imitados, erigiram-se em modelos das posteriores. Tal
estas, jiCf;oes fantr.isticas. fenömeno, tipico na historia da cultura ocidental, e responsavel pela
Vimos que o poeta pode transferir a realidade de um lugar para continuidade espiritual greco-latina no hemisferio, näo e exclusivo do
or.tro; mas ninguem faria um javali viver no mar e os golfinhos no Renascimento ( epoca em que a dos modelos chegou a ser for-
mato junto as feras; como seria absurdo fazer um poema em que mulada como um dos principios essenciais da arte), mas verificou-se
desde a alta antiguidade, mesmo antes de Horacio recomendar aos
Carlos :Magno tivesse que viver na China. Se o poeta pode transferir
as qualidade;; de um ser ou um objeto para outro, jamais faria de poetas latinos a leitura acurada dos escritos gregos, que, ao contrario
um cordeiro um animal feroz ou vice-versa. Na o poeta dos romanos, näo necessitavam da lima para atingir os degraus da
devia observar tambem certos Jimites, impostos peJa coerencia Oll pe\a beleza suprema. E muito conhecida a 'passagem de sua Arte Poetica,
So o Polifemo, com a sua extraordinaria, era em que aconselha aos seus eontemporiineos a diurna e no-
turna dos modelos gregos: Vos exemplaria Craeca nocturna rersate ma-
capaz de remover a pedra que servia de porta a sua gruta; porem,
nu, versate diurna ( vv. 268-269), parecendo uma resposta indireta ao
jamais o poeta figuraria o gigante Ciclope com a estatura täo alta
dito chistoso de Catäo o Velho, que votava um drsprezo sistematico pela
que atravessaria as nuvens, ou que metido no mar as aguas näo lhe
helenidade, recomendando ao filho Marcos illorum [ Craecorum] lit-
atingissem a cintura. No seu poema epico Tebaida (I), narra Estacio
teras inspicere non perdiscere, isto e, Jer OS gregos, mas nao estuda-los
a proeza de um homem que, atocaiado por 50 homens, conseguiu sa- profundamente ... Antes de Horacio, o intuito dos fil6logos alexandri-
far-se da matando 49 e perdoando a vida ao deiTadeiro. Ern nos ao instituirem os famosos ciinones ou listas dos melhores autores
Pindaro a por e levada ao absurdo: re- gregos, nao era OUtTO srnao 0 de propor as futuras OS para-
fere ele, na ode 4 de suas Nemeias, que Alcinoo, ignorante em pe!Pjar, digmas da literaria. :E:stes mesmos comentadores ( escoliastas),
eom apenas uma pedra conseguiu doze carros e matar Yinte preocupados em determinar ate emde a dos literatos e fil6sofos
e quatro dos mais famosos guerreiros de Alcides ( l). era original e ate onde era fruto de aparencias, muitas vezes, com
uma diligencia quase pueril, procuravam determinar os furtos prati-
cados. Arist6fanes de Biziincio chegou a estabelecer, com as de
:\lenandro, quadros sistematicos entre as passagens deste autor e as
1) Ver P. J. da Fonseca, Elementos da Poetica, p. 86. Pindaro parece,
todaYia, ter tido consciencia da da passagem, quando
acrescentou, procurando justificar a Yeracidade do fato: «Quem se sur-
preenda deste desastre, demonstrara näo conhecer os azarcs clos combates; 1) Ate aqui - corno ja aclvertimos - limitamo-nos a glosar, arnplianclo e
pois quem Jeya a termo grancles fa<;anhas de\·e terner tambem grandes sistematizando, as observac;öes de Jerönimo Soares Barbosa a prop6sito
f racassos». da imitac;ao.

90 91
correspondentes de seus modelos; na filosofia Platäo foi censurado mos - passa por näo haver praticado os processos politicos tradicionais
por aproveitar-se de pensadores egipcios e pitagoricos, e Epicuro como e jamais haver composto um poema em metro redondilho ( l). Mas
plagiador de Homero. Entre os romanos e conhecido o caso de Pe- em Portugal a ruptura com as formas literarias medievais foi, como no
rellius Faustus que escreveu Sobre os plagios de Vergilio ( l). caso de Ferreira, mais atitude do que a das formas
A ldade Media niio rompeu totalmente corn a cultura classica, e a tradicionais näo permitiu a de um movimento Iiterario orga-
extraordinaria obra de Ernest Robert Curtius, Europäische Literatur nizado e inspirado na literatura dos Antigos. 0 teatro popular de Gil
und lateinisches Mittelalter e um monumental testemunho da perma- Vicente, o gosto renitente pelas novelas de cavalaria, uma literatura re-
nencia da cultura literaria greco-latina durante OS dez secuJos que pre- ligiosa de tridentina, a poesia de entretenimento ou de folgar
cederam o movimento humanistico italiano; e do que foi a prodigiosa ( do Cancioneiro Geral, a manter a continuidade da poetica
da mesma cultura depois do Renascimento, e elo- luso-galaica) , o romance erotico-sentimental de ascendencia bocaciana
qüente o trabalho magistral de Gilbert Highet, The Classical tradition. (Menina e mOl.<a), niio permitiram o florescimento de uma literatura
Ja na baixa latinidade Quintiliano instituia a como principio inspirada nos Antigos (2). Neste sentido o sec. XVIII foi mais cons-
fundamental da arte ( neque enim dubitare polest, quin artis pars magna ciente, mais organizado e mais rigoroso na sua ortodoxia.
contineatur imitatione), estabelecendo as cautelas e o discernimento ne- Na ltalia como na do Renascimento, o regresso ä antigui-
cassarios na dos paradigmas (2). Na a arte propöe .dade classica assumiu aspectos de idolatria. A näo era ape-
apenas dois caminhos: ou procuramos a similitude com aqueles que nas das formas e dos temas, mas dos processos, dos topicos, do ingre-
se realizaram com dos modelos), ou procuramos diente mitologico, das imagens e ate da lingua. Do ponto de vista
ser diferentes da natureza) - aut similes, aut dissimiles bo- lingüistico, näo uma do latim, mas uma ä lingua
nis simus. A atraves da direta da natureza raramente latina, criando uma sintaxe mais orgiinica, uma frase estilisticamente
nos torna semelhantes aos outros artistas; mas pela indireta, mais retorica ( o periodo ciceroniano) e sobretudo um enriquecimento
isto e, dos modelos, freqüentemente nos aproximamos (similem raro vocabular. A adesiio a Antiguidade, nos primeiros tempos, chegou ao
natura praestat, frequenter imitatio). A do modelo e sempre servilismo. A Pleiade, desde a Dejfence de du Bellay, instituiu os
inferior a direta; uma tem sempre muito menos vida los greco-latinos como principio de arte, e a Franciade de Ronsard
e vigor do que um discurso. Devemos levar em que as passa como simbolo dessa humilde, pastiche como e do poe-
maiores qualidades de um orad6r siio precisamente aquelas que näo se ma epico vergiliano. A esta dos modelos clässicos antigos du
podem imitar: o espirito, a a energia, a facilidade, e geral. , Bellay acrescenta a dos autores italianos, aos quais se refere,
mente tudo o que a arte näo ensina ( adde quod ea, quae in oratore na Dejjence et illustration de la Langue jra!5oyse, nada menos de onze
maxima su.nt, imieabüia non sunt, ingenium, inventio, vis, facüitas, e vezes ( 3). Proclamando assim como principio fundamental da arte a
quidquid arte non traditur) . Quintiliano passa, entiio, a formular as re- dos modelos gregos e romanos de um lado, e de outro a imi-
necessarias ao orador que inventa e aquele que recria. dos mais luibeis entre os modernos - os italianos - , a Pleiade
instaura na a doutrina do classicismo literario. Ainda que na
No Renascimneto, que formulou um conceito pejorativo contra a Deffence du Bellay fizesse do principio um dogma de primeira gran-
Idade Media, a dos modelos antigos tornou-se um principio deza, teoricos da Pleiade houve que näo partilharam integralmente da
artistico näo somente porque se criou a de que os classicos sua foi o caso de Guillaume des Autelzs no seu Quintil
antigos haviam-se aproximado da beleza absoluta, mas ainda porque,
inspirados agora numa cultura literaria estrangeira, se opunham assim
a rudeza da linguagem, a indisciplina das formas e ao carater popular
da literatura nacional de raizes medievais. Antonio Ferreira - ja vi- 1) Os dois sonetos escritos em portugues do sec. XIII ou XIV, a ele atri-
buidos (II, son. XXXIII e XXXIV) sao ainda hoje de autoria discutivel.
. Ver, a respeito, Carolina Michaelis, Canc. da Ajuda, 11, p. 124-128, e o
inteligente artigo do Dr. Mario Masagao, «Ü problema dos dois sonetos»,
1) Ver Wilhelm Kroll, Historia de Ia filologia clisica, p. 42. A prop6sito da in Suplemento Iiterario de 0 Estado de Säo Paulo, n. 483: 25 jun. 1966,
p. 6.
imitac;ao como processo artistico e nas suas relac;öes com o pragio, ver
nosso estudo «A critica de fontes», in Da ldade Media e outras idades, 2) Ver nossa Presenc;a da literatura portuguesa. Era medieval, 2.• ed., Sao
p. 7-25.
Paulo, Difusao Europeia do Livro, 1966, p. 181-228.
2) lnstit. Orat., X. cap. II. 3) Cf. H. Chamard, Historie de Ia Pleiade, I, p. 186, nota 3.

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93
Hor.atian, e Pelletier na sua Art Poetique. Dizia o primeiro que Pe- ce qui se peut accommoder a notre temps et a l'humeur de notre nation"
trarca nao havia "specialement imite aucun auteur Grec nY Latin: pour- (1). lmitar, mas atender sempre as regras da conveniencia e da ve-
quoy desperans nous d'en faire autant ou plus?". Ponderava o se- Condenando a servil, tanto teoricos como es-
gundo: "II ne faut pas que le poete qui doet exceler, seulemant de critores formam partido para defesa da liberal. A mesma
pouvoer ajouter du sien, mes ancores de pouver fere miens an plusieurs Iivre pregava antes Fernando de Herrera em suas Anotaciones,
poinz". Depois disso du Bellay atenuou a sua ortodoxa do aconselhando a simultanes dos modelos cliissicos antigos e
principio, aconselhando agora, nao a sistemiitica, mas a prii- dos poetas italianos (Petrarca, Ariosto, Bembo) : "Yo, si deseara nom-
tica da reminiscencia involuntiiria e natural, uma especie de em bre en estos estudios, por no ver envegecida i muerta en pocos dias la
dois tempos: primeiro, da leitura dos modelos; depois, gloria, que piensan eterna los nuestros; no pusiera el cui-
deixar correr a pena Iivremeute - processo criador a que Faguet de- dado en ser imitador suYo [ de Petrarca e Ariosto], si no
nominou com o engenhoso termo de innutrition. Chamard observou el camino en seguimiento de los mejores antiguos, i juntando en una
certa ausencia de criterio da Pleiade na dos modelos da an- mezcla a estos con los Italianos, hiziera mi lengua copiosa i rica de
tiguidade classica, pois eJa nao distinguia OS autores aJexandrinos dos aquellos admirables despojos, osara pensar, que con diligencia i cuida-
da epoca iitica, OS poetas do seculo de Augusto dos poetas ulteriores; do pudiera arribar a donde nunca llegariin los que no llevan este
e ainda que Ronsard tentasse estabelecer uma hierarquia de valores paso" (2).
para os modelos antigos, proclamando a superioridade dos gregos söhre Ern Portugal, D. Francisco Manuel de Melo julgava superior o esti-
OS latinos, ele mesmo imitou indiscriminadamente Aratos, Pindaro, Ver-
lo dos cultos ä. linguagem dos cliissicos: "se conferirmos os estilos
gilio, Horiicio, o neo-latino Marulle, o pseudo-Anacreonte etc. (l).
dos Poetas antigos, & modernos, estes farao muyta vantagem ä.quelles,
Enriquecida a lingua, no vocabuliirio, na expressao e na sintaxe; porque a argentaria, & lentijuela, que hoje se gasta, he sem duvida
disciplinada em formas distinlas a poetica, - o que denota uma mais brilhante, & agradavel, que a melancolica fraze dos antigos" (3).
puramente formal DOS primeiros tempos - , 0 sec. XVII Para D. Francisco a grandeza poetica do artista reside na "organiza·
parte para a CJiadora, apelando para a originalidade. Novas e compostura humana"; se a grandeza nao e propria, nao serii
formas de vida e novos horizontes p()em em crise a tutela dos Antigos: "pela doutrina Oll pelo exempJo" (isto e, peJa que 0 poeta
o movimento religioso anti-pagio iniciado pela Contra-Reform·a, o es· chega a adquiri-la. Corno a poesia, para ele, consiste "nas palavras
pirito cientifico com o seu desdem pelo passado, e o ideal do homem boas e em boa ordern", e o seu lema e fazer "cada um poema confor· •
bonrado (lwtmete lwmme) e de cortesia que tornou ridiculos e pe- me Deus lhe ajudar", explica-se que D. Francisco Manuel de Melo, nu·
dantes os gramaticos humanistas, foram os fatöres detertninantes das ma solene afirmac;iio de liberdade intelectual, condene ·a servil
graudes no comportamento do sec. XVII em a
an· dos Antigos e a ortodoxa obediencia aos canones poeticos, ao "poetis-
tiguidade classica - na opiniäo de Henri Peire ( 2) . Chapelain pro· mo" - como ele diz: ". . . tambem he cousa dura, que tendo Homero
clama a nova formula: colorir as "luzes da antiguidade" com as "gta· liberdade para pintar o seu Ryo deytado, nao possa outro Poeta sob
dos modernos": "je suis bien certain que Ia nouveaute en sera pena da excomunhao dos Criticos por o seu Ryo encöqueras: quando
d'autant plus estimable que les lumieres de l'antiquite y seront partout chego a cuydar nisto näo sey absterme sem reprehender, & ä.s vezes
et que toutes les graces des modernes le coloreront" ( 3). A rebeldia, a impertinente seyta do Poetismo" ( 4). Essa aversäo aos
ainda que timida e respeitosa, desponta nos escritores e nos teoricos do
sec. XVII. A assume, agora, uma mais nacionalista
tambem: imitar OS Antigos, sim, mas adapta-los as exigencias do gösto
1) «Pref. de Tyr et Sidom>, ap. R. Bray, obra cit., p. 166.
de seu seculo. 0 Apologista de Balzac, Ogier, que passava por
adversiirio da Antiguidade, protestava contra a alucinada, re· 2) Ap. Antonio Vilanova, Hist. generat de las literaturas hispänicas, III,
comendando: "II faut que le jugement opere, choisissant des Anciens p. 582.
3) «Hospital das letras», Apologos dialogais, p. 316.
4) lbid., p. 333. A do exemplo homerico do rio deitado e rio de
1) Cf. Chamard, obra cit., IV, p. 157-158. c6coras deve ligar-se a acesa polemica mantida no seu tempo entre Joäo
Soares de Brito e Manuel Pires de Almeida a prop6sito das
2) Cf. Le classicisme p. 113. camonianas dos poemas classicos (V. Fidelino de Figueiredo, Hist. da
3) «Preface de I'Adone du Marin», Opuscules critiques, p. 82. critica lit. em Portugal, p. 3 3) .

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principios pre-estabelecidos culmina com a poesia epica, que para ele sempre ex1stiu, inclusive entre os classicos ( l). Esta claro que a imi-
e um reposit6rio ilimitado de regras, verdadeira escravatura da crias;äo ta«äo consciente, sem denunciar a respectiva fonte, esteve sempre incursa
poetica: "Senhores, a Poezia Epica he carreyra, que poucos no mundo no c6digo penal da cria«äo artistica. Mas ha apropria«äo e apropria-
tem acertado, porque säo tantas, & täo varias as leys, & preceitos de «Öes. Os te6ricos do classicismo legislaram minuciosamente a respeito
que consta, que vem a ser quasi impossivel ao juizo humano sua ob- dos processos viaveis e validos da imita«äo literaria, cujas normas seria
servanci?" ( l). fastidioso relatar aqui. A Pleiade, desde inicio, isto e, desde a procla-
ma«äo da Deffence·, procurou impor o principio de que a imita«äo de
No sec. XVIII, na Fran«a como em Portugal, ja e evidente o es- autores contemporaneos era condenavel. Assim parece entender-se de
förs;o de recompor a volta ao mundo antigo. Correia Gars;äo apresen- uma pRssagem de du Bellay em que prescreve "se garder d'imiter dans
tou-se na Arcadia Lusitana, a 7 de novembro de 1757, para proclamar la memb langue", pois logo depois Vauquelin, Deimier, Colletet, Scude-
o regresso a imitas;äo dos Antigos, näo a volta servil, mas temperada ry, confirmaram a recomenda«äo de du Bellay. Scudery era de opiniao
por certos processos que visassem salvaguardar a obra da incriminas;äo que a imitas;äo, se constituira estudo entre os Antigos, näo passava de
de plagio. "Os Gregos e Latinos, que dia e noite näo devemos largar furto entre OS Modernos. E ainda ao firn do sec. XVII Boileau näo
das mäos, estes soberbos originais, säo a unica fonte de que manam faz outra coisa senäo confirmar a proscris;äo dos modernos: "Quand
boas odes, boas tragedias e excelentes rpopeias" - pregava Gar«äo,
je fais des vers, je songe toujours a dire ce qui ne s'est point encore
inspirado na Arte Poetica dr Horacio. "Muito pode o espirito huma-
dit en notre langue" (2). Todavia o principio no sec. XVII apenas
no! Mas nunca tera förf<a para subir täo alto se näo för pela cstrada
teve seus partidarios entre esses te6ricos, que estäo muito compromis-
que trilham os antigos poetas e oradores" ( 2). Porem, como atender ao
principio da imitaf<äo? Hesponde Garf<aO: ". . . segui-lo dr modo que sados com o espirito do sec. XVI; no grande seculo classico a proi-
bis;äo näo foi levada a serio. Ern Portugal, no circulo dos poetas que
mais paref<a que o rejeitamos, isto e, imitando e näo traduzindo. Os
poetas devrm ser imitados nas fabulas, nas imagens, nos pensamentos, no sec. XVI formavam o grupo classico, näo raro se encontram con-
no estilo; mas quem imita deve fazer seu o que imita. Se imito a fissöes pessoais de discipul.ato literario a este ou aquele. E entre eles
fabula, drvo conservar a Uf<ao, ou a alma da fabula; mas devo variar de ja se tinha firmado a convicf<ao de que a imitaf<äo dos Antigos era
forma os rpisodios qur pares;a outra nova e minha. Se imito as pin- principio fundamental da arte neo-classica: o epigrama de Pero de An-
turas, näo devo no meu poema introduzir um Polifemo, mas do painel drade Caminha näo s6 e testemunho dessa consciencia doutrinaria, como
deste gigante posso tirar as cöres para um Adamastor. Sr imito o
estilo, näo drvo senir-me das palavras dos Antigos, mas achar na lin-
guagem portuguesa termos equivalentes, energicos e majestosos, sem
torcer as frases, nem adotar barbarismos" ( 3). Estäo ai, em sintesr, Curiasa, ainda que cantroversa, a etimalagia de pliigio, que para alguns
1)
as recomendaf<Öes fundamentais aqueles que, inspirados nos classicos, pracede da Ia tim plagium, cuja raiz ( que esta tambem no termo plaga
näo devem perder o timbre da originalidade. No fundo säo as mesmas ( port. praga), significa pancada, golpe. Plagium, entre os ramanos, em-
advertenci.as aos oradorrs, fritas havia dezessete seculos prlo te6rico das pregava-se para denaminar o crime que consistia na venda ou campra,
I nstituiqoes orat6rias. como escravo, de pessaa que se sabia ser de candi.;aa Iivre. A pratica
estendeu-se tambem aqueles que roubavam crianc;as para vende-las. Pla-
0 principio da imitac;ao, que envolve questöes serias e intrincadas giarius eta o autar das referidas crimes, e sua pena consistia em serem
ac;oitados, punidas com pancadas. Marcial emprega o termo figurada-
como a da originalidade, a da influencia e conseqüentemente a do
mente (Hoc si terque quaterque clamitaris impones plagiario pudarem
plagio - , desde cedo colocou o problema do furto literario. Ainda (I 52, 8-9) para denominar com ele aqueles que se apropriam das pen-
que com acrps;öes um pouco diferentes que hoje temos da pratica do samentas au expressöes literarias alheias [e vendem cama seus]. No seu
plagio, a consciencia da aproprias;ao indebita no campo da literatura epigrama 67 recamendava, cama castigo ao plagiario, praclamar o crime
praticado, tres au quatro vezes. (Ver Cruz Malpique, Filasofia do pliigio,
p. 10-11). Entretanto o etimo preferivel e a grega :rr/,aytot;, ista e,
abliquo, naa por linha direita. Escritares cama Pindara, Euripedes, Po-
1) lbid., p. 332. libio, empregam o terma no sentido figurada de «por vias escusas»,
2) Dissert. 111, p. 132. equivocas, fraudulentas.

3) lbid., p. 134-135. .2) Cf. Rene Bray, obra cit., p. 177.

97
96
.

ainda do proprio preconceito de que a dos modernos era alem de tratar-se de um poema de artistica (portanto di-
pratica condenavel. Diz ele: ferente das epopeias homericas, frutos de espontiinea), tor-
nou-se o paradigma da poesia epica. Camoes estii nessa linha. Na
A I mita<;iio tem sua autoridade dramaturgia Seneca torna-se o modelo para os tragicos, näo ohstante a
Em seguir so o antigo, e escolJU.do; tragedia esteja menos sujeita a dos modelos do que a ()hedien-
GanluJ assim melhor T/iOme, e gravidade, cia as regras aristotelicas; na comedia, Plauto e Terencio.
E com raziio lhe e mais louvor devido:
Mas s'alguem se igualar a antiguidaJe, 0 culto dos antigos classicos, como se sabe, desencadeou na
Porque imitado rwm serci, e seguido? em fins do sec. XVII, a famosa Querelle des Anciens et des Modernes,
Eu a so meu FERREIRA sempre imito que se manteve acesa ate principios do sec. XVIII, em que aos parti-
I gual em tudo a todo antigo esprito ( 1) . diirios da dos modelos gregos e latinos se opuseram os -adeptos
da da tutela dos Antigos. Fundamentados estes em que o
Caminha era partidario da dos contemporiineos desde que o progresso Iiterario e uma Iei do espirito ·humano a que näo pode
estes se houvessem igualado a atingida pelos classicos antigos. furtar-se a poesi·a; em que esta e mais autentica quando inspirada na
Diogo Bernardes, na sua Carta I a 5a de Miranda, näo se pejava de religiäo cristä - superior a religiäo dos classicos; e em que as tec-
dizer que nicas de artistica tambem evoluem, os Modernos mantive-
ram luta fechada contra a idolatria da antiguidade classica, ainda que
0 doce estüo teu tomo por guia;
näo chegassem definir com clareza o seu programa estetico.
e o mesmo autor, na Carta XII a Antonio Ferreira: Cada epoca, enfim, tem seus modelos. Processo inevitavel de ela-
literaria, a niio e exclusiva dos movimentos classicos:
Confesso clever tudo aquela. rara
o Romantismo, o Parnasianismo, o Simbolismo, todos instituem, expli-
Doutrina tua .••
cita ou täcitamente, os seus prototipos literarios. Se o Romantismo
mergulhou a sua na literatura medieval, oa sua divida para
T.ais confissöes näo passam de atitudes literarias suscitadas por simpa-
com a cultura literaria classica e bastante ponderavel; e como ele as
tias pessoais. No fundo näo se tratava de uma da poesia de
esteticas ulteriores - o Parnasianismo e o Simbolismo. Para se ter
Anronio Ferreira, mas de uma profissio de fe como adeptos fervorosos
uma ideia da prodigiosa dos classicos nos escritores romiin-
das ideias teorioas do orientador do primeiro grupo classico.
ticos, ainda que niio fizessem dessa um principio do seu for-
A dos modelos antigos pelos teoricos do classicismo repe- malismo e ainda que elegessem a liberdade cri-adora como norma fun-
tiu o problema dos criticos alexandrinos, ao estabelecerem a dos damental de sua estetica, e so consultar a bibliografia a respeito: Emile
paradigmas. A da Grecia sobre Roma ou desta sobre aquela Egger, L'Hellenisme en France, P-aris, Didier, 1869, 2 v.; Rene Ca-
oscilou entre eles e entre os proprios escritores classicos. Homero tanto nat, La Renaissance de la Grece antique, Hogu, R. H. L., 1912; L'Hel-
e considerado a expressäo maxima da poetica como e censu- lenisme des Ro.mantiques (La Grece retrouvee), Paris, Didier, [1951].
rado pelas suas su.as inconveniencias, pela vulgari- Rene Canat, em 1904, ja havia apresentado tese de doutoramento a
dade de certos quadros, ou pela etica da mitologica. Com proposito de Madame de Stael e sua pela antiguidade clas-
Vergilio a mesma coisa: a sua foi ate ao paroxismo, mas sica: Qooe Mme. de Stael scripserit de Grecis; Pierre Moureau, Le clas-
as suas a ortodoxia criadora näo deixaram de ser acerbamente sicisme des romantiques, Paris, Pion, 1932; F. E. Pierce, "The Hellenie
assinaladas. Ronsard mesmo chega -a hesitar nas suas simpatias pelo current in English nineteenth-centurY poetry", in Journal of English
poeta grego e pelo epico latino. Na Italia as preferencias por um ou and Germanie Philology, XVI, 1917, p. 103-135; Henri Peire, L'in-
outro tambem se dividem: para Escaligero Vergilio e superior a Ho- fluence des Litteratures antiques sur f;a Litterature fran<;aise moderne·;
mero; para Castelvetro a arte deste ultrapassa a de Vergilio. Todavia etats des travaux, New Haven, Yale University Press, 1941, a obra
a Eneir.M, por estar mais proxima das nossas exigencias esteticas e ser de Gilbert Highet, The Classical tradition. Creek and Roman influences
ma1s compativel com o espirito clasico dos seculos XVI e XVII, on Western Literature, Oxford, Univ. Press, 1949 ( de que hii trad. es-
panhola, por Antonio Alatorre, Mexico, F. C. E. [1954] 2 v. - para
näo citar senäo os titulos mais conhecidos.
1) Epigr. CLXIII, Poezias de Pedro de Andrade Caminha, p. 359.

98 :- 99
REGRAS GERAIS

Säo quatro as regras gerais do formalismo clässico, atraves das


quais se realiza a da naturez·a: a verossimilhanr;a, a conve-
niencia, o maravilhoso e as unidades. complexas, foram estas
regras largamente discutidas pelos teoricos do Renascimento e do neo-
classicismo do sec. XVIII, que as encontraram de forma sumäria e äs
vezes pouco clara nas duas grandes poeticas da antiguidade clässica:
a de Aristoteles e a de Horäcio. 0 grande edificio clässico, cujos fun-
damentos assentam no artista (a raziio, o genw, a ciencia, a imitar;iio
da natureza, o instinto da harmonia etc.), apresenta a verossimilham;a
como Iei que rege a sua a conveniencia como expressäo har-
mönica de suas linhas, o maravillwso como e as unidades
como singularidade no tempo e no Quem mora neste edificio
e o Homem, em todas as suas dimensöes interiores e nas formas do
seu comportamento: o homem na sua verdade psicologica e moral. E
como estrutura arquitetonioa, toda essa visa dois fins para
ser arte: deleitar como de beleza, e colaborar na da
sociedade.

A) A VEROSSIMILHANC";A

A dä-nos, äs vezel", a de ser a pedra


de toque de toda a doutrina criada pelo Classicismo. E ela um dos
achados teoricos mais extraordinärios da poetica, e Aris-
toteles, ainda que nem sempre claro ( talvez porque a sua Poetica nos
chegasse mutilada), parece haver com esta o ponto
mais alto da ciencia literäria, pois com ela acabou por Iegar-nos a mais
perfeita do fenomeno literärio. Se näo, vejamos.
E no capitulo IX da Poetica que Aristoteles coloca o problema
da quando, estabelecendo a entre a Historia
e a Poesia, diz que niio e oficio do poeta contar as coisas como sucede-
ram, mas oomo desejariamos que houvessem sucedido, e tratar o possi-
vel segundo a verossimilhanr;a ou segundo a necessidade. A
entre um poeta e um historiador näo reside em que o primeiro use do

101
verso e o segundo näo, mas em que o historiador expöe as coisas tal vez atender as leis da coerencia, isto e, da necessidade: OS elementos que
como aconteceram, e o poeta - oxala como tivessem acontecido. Por no seu conjunto compöem o fato poetico (mito, fabula criada) devem ser
essa razäo conclui Aristoteles: a Poesia e mais filosofica e mais elevada necessarios entre si, isto e, apresentar um liame de coerencia e concen-
do que a Historia. 0 Filosofo acaba por considerar a Poesia como um tra'<äo, interna e extemamente; do contrario o poeta cairia no absurdo.
termo medio entre a Historia e a Filosofia: nao e Historia porque o Vossius ilustra, com um exemplo, a passagem aristotelica: conta-nos Te-
seu objeto näo consiste em dizer o que sucedeu ( o REAL), mas o rencio que Crisis morre assim que chega a Atenas; a morte sucede se-
que poderia e gostariamos que tivesse sucedido ( o POSSfVEL) ; näo gundo as leis da necessidade ( pois um dia Crisis haveria de morrer) ;
e Filosofia porque o campo desta e o mundo das coisas eternas, imu- porem a sua morte logo apos ehegar a Atenas ocorre conforme a verossi-
taveis, necessarias ( como disse Platäo na Republica, VI, 484B). A Poe- milhan'<a, pois era verossimil que ela morresse nesse momento. Para
sia evade-se dos dois extremos - do particular e contingente ( dominio ele entäo - conclui Rene Bray - o necessario e o que deve acontecer
da Historia) e do universal, abstrato ( territorio da Filosofia) ; o sitio segundo as leis naturais; o verossimil o que deve ocorrer segundo as
da Poesia e ahistorico e ametafisico - opina Juan Garci•a Bacca, dedu- circunstäncias ( 1). Outros interpretam o necessario como sendo a inven-
zindo dai uma defini'<äo do termo medio: "interpreta'<äo e vivencia '<äo de acontencimentos fora da verdade historica e inclusive fora da ve-
optativa do universo", isto e, 0 poeta imita a realidade, nao com seus rossimilhan'<a, para completar, rematar o proprio fato; e o caso entäo de
afetos, paixöes e sentimentos ( porque estas faculdades nos permitem circunstäncias falsas exigidas pelo proprio fato. A interpreta'<äo de Vos-
perceber apenas a realidade individual e contingente) ; nem com a sius, todavia, coaduna-se com o pensamento filosOfico de Aristoteles, pois
razäo ( porque com ela ingressaria no reino do universal absoluto), o Filosofo, em outros Iugares de sua obra, definiu ·o verossimil como o
mas com a opr;iio, com o seu desejo ( que escolhe um mundo criado pela que sucede normalmente, na maior parte dos casos ( El'[L t'O l'[OAU -
sua imagina'<äo, uma supra-realidade) ( 1). Analiticos, 70 a3, Ret., 1357 a4, 1402 b14), e o necessario como o que
näo pode ser de outra forma ( t'O yaQ avayY.aiov oux EVÖEXEt'(lt (i)).or;
Vejamos o segundo termo da proposi'<äo aristotelica: o poeta deve
xal EXEtv- Metaf., 1010 b28), isto e, aquilo que e imutavel
tratar o possivel segurulo a verossimilhanr;a ou segundo a necessidade.
( ÖOXEL 1] avayxl] U!J.Et'UXEL<Jt'OV t'l Elvat - Metaf., 1015 a33).
0 possivel segurulo a verossimilhanqa entende-se; mas segundo a neces-
sidade, a interpreta'<äo tem sido largamente controvertida entre os tt>o- No dominio da poesia, porem, o necessario poderia assumir intime-
ricos de vez que Aristoteles em parte alguma da Poetica volte a falar ras acep'<öes; uma acep'<äo mais ampla, alem daquela que fixou na
söhre o assunto - a näo ser para repetir a frase. 0 possivel e o reino sua filosofia. Ern nao poucas circunstäncias se encontra o poeta pe-
da Poesia; näo o possivel como reflexo dos fatos ( t'U yEVO!lEVa ) , mas rante 0 int>vitavel, independente de que esse inevitavel seja de ordern
0 possivel verossimil e necessario: 0 possivel como reflexo dos fatos e
universal ou conforme as leis naturais: diante do fato, da personagem,
uma cientifica, pois tem como fundamento a verdade ( com este ou do objeto a ser imitado, o poeta dispöe, para isso, de dois caminhos
conjunto de caracteristicas teriamos indubitavelmente tal conseqüencia); possiveis para representa-lo poeticamente: ou pela verossimiliwnqa,
aos sabios competiria verificar a rela'<äo verdadeira entre as circunslan· modificando-o para torna-lo crivel; ou atendendo a necessidade ine-
cias e a conseqüencia. Fazer de Dido uma personagern contemporänea vitavel de representa-lo sem modifica'<äo - a firn de näo violentar
de Eneas e impossivel historicamente porque ambos estäo distantes cro- a opiniao ou a expectativa do seu piiblico. No caso, por exemplo, da
nologicamente um do outro tres seculos. Acontece que a arte näo se pintura de fatos recentes, minuciosamente conhecidos pelo piiblico, e
destina aos sabios, mas aos homens de bom gÖSto; e estt>S nao interYern necessario que o poeta os respeite na sua realidade historica, sob pena
no exame dos fatos para julgar da possibilidade ou impossibilidade de tornar-se inverossimil. Quando uma personagern historica e por de-
verdadeira dos mesmos: eles apenas, baseados na opiniiio ( verdade sub- mais conhecida no seu carat<>r, o poeta näo lhe pode alterar os cos-
jetiva) se limitam a ver se tais fatos sao aceitaveis ( isto e, verossimeis). tumes; do contrario, cairia no inverossimil. Nesse caso, a necessidade
A verossimilhan'<a passa a ser entäo uma possibilidade subjetiva, isto e, nao seria mais do que um aspecto da verossimilhan'<a.
uma possibilidade conforme a opiniiio comum dos homens de gosto, näo
a possibilidade verificavel pela ciencia. Acontece que o mundo imagi- A necessidade, pois, consistiria no respeito inevitavel da realidade
nado pelo poeta - e que nos aceitamos como verossimil - deve por sua como e ou como deve ser; logo: que Crisis moresse um dia era ne-
cessario; que 0 poeta näo altere 0 desfecho da porque 0 fatum

1) Ver a interpreta<;ao de ]. G. Bacca na sua edi<;ao da Poetica de Arist6teles,


p. LIX-LXII. 1) Poeticarum institutionum libri tres, ap. R. Bray, La formation, p. 204.

102 103
ja esta determinado, e necessario (Vergilio näo poderia modificar o Entendida assim a verossimilha.nt;a, vejamos agora onde ela se
destino de Eneas no seu poema); que o poeta acrescente tais e tais aplica:
circunstancias a determinado fato porque as leis de Causa e efeito OS a) a fabula ( denomina'<ao da da pelos Antigos a conduta da a'<ao)
fazem conseqüentes, e tambem neoessario; que 0 poeta se veja na
contingencia algumas vezes de fazer intervir a maquina mitologica para b) ao comportamento moral das personagens ( e aqui estariamos
resolver certas situa'<Öes que seria impossivel por outra solu'<äo artis- no dominio das conveniencias, das bienseances)
tica, e obra da necessidade; que o mesmo poeta se vej a na c) a representa .. ao
teatral, em que 0 verossimil e 0 fundamento
indispensavel de eliminar a personagern em determinado momento da do principio das unidades.
fabula, näo deixa tambem de ser necessidade ( o proprio caso de Crisis
morrendo em Atenas logo apos a sua chegada). Uma necessidade ar-
tistica, portanto. A e, pois, a regra fundamental da tragedia e do
poema epico. E como um fato hist6rico pode ser inverossimil, e um
Portanto: näo e o REAL (aquilo que sucedeu) o objeto da Poesia, absurdo historico pode ser aceitävel poeticamente, segue-se que podemos
mas o VEROSSiMIL (aquilo que esperavamos ou desejavamos que reconhecer ainda - segundo Aristoteles - quatro ordens de fatos:
acontecesse); mas aquilo que desejariamos que tivesse sucedido ontem
Oll que SUCedesse amanha e puramente ideal. So 0 ideal, entao, e poe- a) o passive! verossimit: categoria pröpriamente poetica.
tico. Entretanto o real tambem pode ser poetico, pois o que e pßde b) o possivel inverossimil: inaceitavel poeticamente.
ter sido; diz Aristoteles: Quando, por acaso, [ o poeta] toma para seus
poemas o realmente sucedido deixam de ser as ooisas verossimeis ou c) o impossivel verossimil: aecitavel.
possiveis. Portanto Aristoteles näo exclui o real como poetico; mas en- d) o impossivel inverossimil: inaceitavel.
tenda-se: o real devera ser tratado como possivel ou verossimil. E outra
conclusäo poderiamos extlair daqui: a Poesia näo imita diretamente a
natureza como ela e, mas a natureza que o poeta imagina, a natureza Decorre dai que um fato inverossimel ( como e o caso do casa-
como subjetiva e optativa. mento de Ximena com Rodrigo) nao pode ser um fato poetico, ainda
que possivel. Aristoteles adverte que e preferivel a impossibilidade
Tres säo, pois, as ordens de fatos: a
verossimit possibilidade incrivel (Poet., 1460 a).
a) o REAL-o que sucedeu (objeto da Historia) 0 caso de Medea exemplifica a primeira categoria. Sabemos que
b) o POSStVEL - o que pode suceder ( apoia-se na ciencia) Medea, ao fugir da C6lquida ( regiao situada na costa oriental do Mar
Negro) - por haver traido Etes seu pai, movida pelo amor de Jasäo
c) o VEROSSfMIL (modalidade do POSStVEL) - o que se cre que fora reclamar do pai dela, rei da Colquida, o velocino de ouro
que possa suceder ( ou se deseja que suceda) - levou consigo o irmäo e o matou durante a viagem. Fato possivel
(ap6ia-se na opiniiio). e verossimil: possivel, porque o irmao se encontrava sob seu poder;
verossimil, porque ela possuia poderes para domina-lo, pois praticava
0 verossimit e, portanto, aquilo que 0 publico cre possivel; aquilo com muita pericia a arte da feiti'<aria maligna que havia aprendido
que e normal acontecer; aquilo que habitualmente acontece; aquilo com a av6; verossimil, porque o ato praticado estava em consonancia
que como fato näo choca a opiniäo publica, ainda que seja verdadeiro. com o seu carater; verossimil ainda porque a morte do irmäo se tor-
Ass im: no Cid de Corneille o publico näo esperava ( nao desejava, nem nava uma necessidade, pois, eliminado o unico· testemunho de sua fuga,
cria possivel) que a virtuosa Ximena acabasse por casar-se com Ro- seu pai jamais poderia identificar a rota que tomaram. 0 caso da
drigo - assassino de seu pai; o fato, ainda que admitido como ver- transforma'<ao dos navios de Eneas em ninfas marinhas, quando destro-
dadeiro histöricamente, näo era verossimil, e portanto inaceitavel poe· '<ados por Turno nas praias de Lavinio, foi apontado por Castelvetro
ticamente, razäo por que Corneille foi acerbamente censurado. Ao em sua Poetica d' Aristotele vulgarizzata. e sposta (e seguida por Rene
contriirio, o publico Ieitor da Eneida aceitou como verossimil (isto e, Bray que o transcreve) como um exemplo de impossivel inverossimil:
poetico) a contemporaneidade de Eneas e Dido, impossivei histörica- impossivel transformar um corpo inanimado em ser animado, e inveros-
mente. simil porque nada dentro da narrativa tornou a metamorfose verossi-

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I

mil. Se a passagem f<)sse examinada com cuidado, veriamos que se fiel Acate, fato impossivel mas perfeitamente verossimil, pois tödaiil as
trata, muito pelo contrario, do possivel verossimit: possivel, porque a coisas que ele ai ve eram conformes a opiniiio do vulgo, que as cria
transformar;iio dos navios de Eneas foi providenciada por uma deusa verdadeiras, e como tal verossimil que o heroi tivesse visitado o Infer-
importantissima, Cihele, miie de J iipiter; e verossimil, porque Vergilio no (VI, vv. 125-899). Vergilio tem sempre o cuidado de preparar o
"preparou psicologicamente" o seu Ieitor ( uma das condir;öes da ve- espirito do piihlico, tecnica normalmente exigida pela regra da veros·
. Deslumhrado com a salva'<iio da frota troiana, o pro- similhanr;a. A descida do heroi ao Hades e antecedida pela advertencia
prio poeta interrompe a narrativa com uma veemente apostrofe as Mu- de Sihila, que lemhra a Eneas a sua ascendencia divina: Sate sanguine
sas, para saher das razöes profundas por que estas naus foram trans- divum, I Tros Anchisiade, facilis descensus Averno. E logo mais, exal-
formadas em divindades marinhas e como foram. E segue-se a jus- tando a coragem de Eneas, lemhra-lhe que poucos mortais haviam con-
tifica'<iio: Cibele, por CU ja interven'<iio J iipiter se tornara 0 deus do ceu, seguido ehegar Ia: Pauci, quos aequus amavit I /uppiter aut ardens eve·
suplica ao filho que em reconhecimento lhe salve a frota dos troianos .xit ad aethera virtus I Dis geniti potuere (vv. 129-131). Homero pin-
ancorada nas praias do Lacio; mas quais as razöes que a moviam para ta-nos o caräter dos feacios como povo rude, simples e excessivamente
isso? Diz ela: cume do monte I da ha um hosque de pinhos credulo, com o ohjetivo de fazer-nos crer (verossimil) que ouvissem com
vasto e somhrio, meu lugar predileto porque ali os frigios me ofereciam a maior naturalidade töda a historia fantästica de Circe, de Polifemo, de
sacrificios; ali permiti que o manceho troiano cortasse as arvores para Cila e Carihdes, das sereias, narrada por Ulisses no palacio de Alcino.
construir uma frota, e agora temo pelo seu destino". Depois de J iipiter
fazer um rosario de söhre a exclusividade ou o privilegio Para tornar os fatos e as coisas verossimeis o poeta lan'<ava no
daquela medida ("queres, acaso, os destinos?" - diz Jiipiter; mais das vezes miio do recurso do paralogismo, isto e, dos raciocinios
"queres que as naves de um mortal gozem de imortalidade e que Eneas falsos: de pressupostos ou principios tidos como verdadeiros, tirar ila-
em meio dos perigos niio tenha que temer? Que deus ja pöde alcan'<ar falsas: se os deuses tudo podem, nada nos repugna que Minerva
alguma vez tal privilegio ?") acaha J iipiter por ceder ao rögo da miie concedesse a fala aos cavalos de Aquiles; que Jiipiter metamorfoseas-
- como se uma segunda reflexiio predominasse söhre a primeira: se as naus troianas em ninfas marinhas etc.; ou de tidas como
"Todavia, quando a frota houver penetrado nas praias de Ausönia e ve10ssimeis inferir outras como verdadeiras: imaginar, por exemplo, as
o principe troiano pisar os campos laurentinos, eu transformarei as de uma personagern como resultado de sua paixiio, simplesmente
naus, ja livres do naufragio, em deusas do mar, como Doto e Galatea, porque esta personagern se apresenta palida ( a palidez, como sinal de
que partem as espumosas ondas com seu peito" ( 1) . Os teoricos - pessoa apaixonada, pode ser falsa ou verdadeira). Um exemplo belis-
no caso Castelvetro - costumavam exemplificar suas teorias sem uma simo oferece-nos Homero na Odisseia, canto XIX, assinalado por Aris-
cuidadosa da passagem no contexto. toteles (Poet., 1460 a 20-26), que afirma ter sido Homero, mais do que
Vergilio deu a Eneas uma mais suhstituindo-Ihe o ninguem, eximio em "como dizer 0 falso, isto e, em forma de paralo-
semhlante pelo do filho Asciinio, a firn de inspirar em Dido amor pelo gismo": neste canto, denominado o do Banho ( NbttQil) porque Ulisses
heroi. 0 estratagema usado por Cupido, ainda que possivel porque os e reconhecido pela escrava Euriclea que ao hanhar-lhe os pes o iden-
deuses podem tudo, tonou-se inaceitavel poeticamente, isto e, inveros- tifica por uma cicatriz, Ulisses faz-se passar como cretense a Penelope
simil. 0 que esperava acontecer o Ieitor do seu poema? Que Cupido e hospedeiro de seu esposo quando se dirigia para Troia. Esta entiio,
no de Dido uma de suas cerleiras flexas. Vergilio par atestar a veracidade do relato do "hospede", pergunta-lhe da vesti-
iludiu, assim, a expectativa do piihlico; Vergilio infringiu a verossi- menta que Ulisses na ocasiao levava; esta claro que o hospede lhe des-
saiu do hahitual, do cotidiano. creve com miniicias os vestidos e adornos que trazia, e desta conclusao
verdadeira ( o conseqüente) Penelope deduz um antecedente falso: que
Corno exemplo de impossivel verossimil ja vimos o caso de duas o hospede era realmente um cretense e hospedeiro do marido Ulisses.
personagens historicas distanciadas tres seculos uma da outra, vivendo
juntas: Dido, a fundadora de Cartago, que viveu no sec. VIII a. C.; e A crenr;a tem limites: se era crivel que Polifemo fösse portador
Eneas, foragido da Troia destror;ada pelos aqueus, no sec. XI. Outro de uma förr;a extraordinäria que so ele poderia remover a porta de sua
exemplo, na Eneida ainda, e a descida de Eneas ao Hades, com o seu gruta, ja nao se podia dizer o mesmo do gigante Alcioneu de que fala
Pindaro nas suas Nemeas: e impossivel e inverossimil que esse monstro,
vencido mais tarde pelo valoroso Telanion, lanr;asse uma pedra capaz
1) Eneida, IX, vv. 77-103, edic;ao de Miguel Querol, p. 192-193.
de esmagar doze carros atrelados cada um com quatro cavalos e con·

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duzidos por vinte e quatro guerreiros ( 1). 0 pr6prio Pindaro teve, > lo que sucede como desejamos, mas e tambem verossimil 0 que e habi-
por um instante, consciencia desse desprop6sito, quando acrescentou ao tual, normal, acontecer, inclusive aquilo que vem consagrado pela tra-
relato do epis6dio que "quem se estranhe desse desastre, demostra des·
conhecer os azares dos combates; pois quem leva a termo grandes fa-
deve temer tambem grandes fracassos". 0 REAL, em principio, näo deve ser objeto de poesi .. , -sob pena de
ela cair na mera historica do fato: e o que sucede com
No canto X da Odisseia ocorre uma passagem curiosa como des- certas passagens do poema camoniano, em que a poesia deserta para
respeito as leis da e da possibilidade. Ulisses dorme dar lugar a cronica rimada ( como acontece com muitas estrofes do
justamente no momento em que percebe a de ftaca sua canto IX, em que o Poeta relata as ciladas do Catual ao Gama, impe-
terra ansiosamente desejada. Enquanto dorme seus companheiros con· dindo o seu regresso). Mas o REAL enquanto possivel e admissivel
versam; e Ulisses relata ao curioso rei dos feacios, o hospitaleiro Al-
poeticamente, portanto verossimil: porque aquilo que foi pode ter sido.
cino, e com pormenores, o assunto versado no dialogo de seus compa·
Ocorre, ainda, que o REAL, quando conhecido nos seus menores deta-
nheiros travado durante o seu sono. E impossivel que pudesse Ulisses
lhes (pela proximidade historica em que se realizou o fato) näo pode
narrar o que niio ouviu nem viu; por um lado e perfeitamente possivel
ser modificado pelo poeta, sob pena de chocar a opiniäo piiblica. Nes-
que fosse vencido pelo sono pois havia navegado ininterruptamente du-
rante nove dias e nove noites. Homero tem todavia o cuidado de adver- sas o poeta conserva a integridade historica do fato para
näo se tornar inverossimil. Aqui a entende-se como
tir que Ulisses estava profundamente fatigado. Todavia o sono deixou
de ser verossimil: niio era crivel que depois de quase dez anos de respeito ao conhecimento do piiblico Ieitor ou espectador.
pelos mares, ansioso por regressar a patria querida, rever Para suscitar o amor Cupido habitualmente mäo do expedien-
os seus, recuperar seu reino, se entregasse ao sono exatamente a vista te das flexas venenosas; qualquer outro recurso - como aquele utilizado
da desejada ftaca. Entretanto os teoricos do classicismo foram de certa com Eneas transfigurado em Ascänio para despertar a paixäo de Dido
maneira indulgentes para com os poemas homericos: estas inverossi· - se torna inverossimil porque deixa de ser aquilo que o piiblico es·
estas e falsidades explicam-se por se tratar, niio pera normalmente suceder. A batalha de Ourique, ao tempo de Ca-
so de poemas longos, mas sobretudo pela natureza artistica destas obras, möes, vinha envolvida de um significado religioso que todos conhece-
cuja se baseia na tecnica primitiva da So- mos: Camöes teria infringido o principio da se a tivesse
mente a critica positivista do sec. XIX näo perdoou ao bardo da He- narrado no seu poema desprovida do halo de milagre em que a tra-
lade as suas A Eneida, poema ja de artistica, a envolveu. 0 Gigante Adamastor e a de uma opi-
de tecnica portanto diferente, foi, como foram quase todas as niäo comum ate ao tempo das Seria inverossimil se o poe-
dramaticas da antiguidade classica, vitima da ferula impiedosa dos cri- ta apresenlasse o episodio, como esta concebido, numa epoca anterior
ticos e teoricos. Perdoa-se menos uma ou uma inverossi- as pois a ideia de ultrapassar o Cabo seria uma
em Vergilio do que em Homero. Alias Arist6teles ja havia inaceitavel. (Poderia näo chocar os homens de ciencia, mas violen-
reservado a Homero um lugar de ciipula na literaria: . . . de
taria a opiniäo comum) .
todas as quais cousas [peripecias, reconhecimentos e padecimentos, be-
los discursos em linguagem bela] se serve Homero antes que ninguem Uma terceira ao principio da poderia ser
e com perfeü;iio (1459 b13); e logo a seguir: ajunte-se a isto aquele levantada: se e normal, habitual, acontecer que um gigante um
que a todos os poetas excede em linguagem e em pensamentos (1459 anäo ou que um ingenuo seja enganado por um astuto, o contrario
b16-17). pode ser verossimil desde que o piiblico creia possivel - dadas natu-
ralmente as circunstäncias excepcionais em que o fato ocorra. Aristo-
Nesta altura das a regra da ja se fazem
teles ja chamava a para esses casos extraordinarios mas admis-
possiveis: l.a) se ao poeta compete dizer as coisas como poderiam
sivei-s, dizendo que e verossimit que certas coisas sucedam contra a ve-
acontecer ou desejariamos que acontecessem, segue-se que o REAL
(Poet., 1456 a 24). Nas peripecias, em que se opera uma
(aquilo que sucedeu, o fato hist6rico) jamais poderia ser objeto de arte;
violenta das coisas e por conseguinte a possibilidade de chocar
2.a) a admite duas näo so e verossimil aqui-
a expectativa do piiblico, tambem o poeta deve atender com muita di-
ligencia as leis da Arist6teles chama a para
isso, recomendando que estas inversöes no curso dos acontecimentos
1) Nem., 4, 44 e ss. se operem segundo a probabilidade ou segundo a necessidade (Poet.,

108 109
145 a 22-29). lnfelizmente, nos dois exemplos que cita para ilustrar mente as duas patas direitas; e impossiveJ que uma COrC<a tenha cornos
a sua advertencia, apenas o de SOfocles no Edipo-Rei e conhecido, pois ( e assim aparece em Pindaro, Olimp., 111, 52, e em Homero, Ill.ada,
da tragedia de Teodeto de Faselis, intitulada Linceo, nada sabemos das XV, 271); e impossivel (por anacrönico) a existencia de jogos piti-
duas passagens que na Poetü::a a ela se refere. No Edipo-Rei a peripe- cos na epoca de Eletra ( como aparece na peC<a de Sofocles) porque
cia ocorre com o mensageiro que vem ao palacio de Edipo para tra- estas competiC<Öes foram instituidas posteriormente; e impossivel 'ainda
zer-lhe noticias confortadoras e ä sua "espösa" J.ocasta, quando acaba (empiricamente) que Ulisses permanecesse dormindo todo o tempo que
por reconhecer nele o assassino do pai e de sua mae Jocasta decorre de sua partida do pais dos feacios, conduzido pelos marujos
- conforme os fados haviam decretado. Nesta tragedia, que Aristo- de Alcino, ate ä chegada ä ftaca, em cujas praias foi deixado pelos feii-
teles considerava como modelo de criaC<iio perfeita, todos os lances que cios- que retornaram sem que Ulisses acordasse; e impossivel tam-
ocorrem a partir da chegada do mensageiro ate ao reconhecimento de bem - diz Aristoteles - que nos Misios ( tragedia de Esquilo?) uma
Edipo como o criminoso cumpridor do seu destino, formam uma su- personagern venha de Tegea ate Misia sem proferir uma so palavra ( 1).
cessäo de fatos tao perfeita, que a peripecia se tornou um evento ve- A introduC<iio do absurdo esta su jeita ainda a outra condiC<iio: ou
rossimiL E so ler (1). se realiza dentro do proprio drama, ou fora dele como se fösse alheio
Por conseguinte: erros, anacronismos, coisas impossiveis, irracio- ä peC<a. Edipo ignora as circunstäncias da morte de Laio seu pai, mas
nais, sao admissiveis numa obra poetica desde que verossimeis, desde tal desconhecimento e um fato alheio a a referencia expressa aos
que nao Violentern Oll iludam a opiniao do piiblico ; e Aristoteles admite jogos piticos na Eletra enoontra-se todavia no proprio drama. Os dois
ainda que as mesmas falsidades e inverossimilhanC<as possam intervir na exemplos apontados por Aristoteles ilustram fatos contrarios a razao, e
obra literaria se manejada com arte e conseqüentemente praticada portanto inadmissiveis na poesia; entretanto o Filosofo admite o caso de
pelos grandes artistas. Evidentemente ha graus na aceitaC<iio dos fatos Edipo porque ocorre fora do drama. Mas a posiC<iio de Aristoteles com
como verossimeis, pois a verossimilhanC<a e uma verdade subjetiva; e o relaC<aO ao absurdo nao e ortodoxa, pois logo 'a seguir opina conclusi-
e, nao So em reJaC<äO aos homens, COIDO em reJaC<äO a epoca, pois 0 vamente: primeiramente, niio se deveriam compor fabulas deste genero;
que outrora se considerava verossimil pode nao se-lo depois. 0 im- mas, se lui poetas que as fw;am e de maneira que pare<;am dar um
possivel e o irracional tambem podem ser admitidos consoante o poeta certo ar de verdade, pode-se introduzir nelas o absurdo (Poet., 1460
se utilize deles na tragedia ou na epopeia: esta claro que nesta, cujos a 33-34) . E aqui faz lembrar a recomendaC<iio sumaria de Horacio aos
fatos näo se passam diante dos olhos do ouvinte ou do espectador, o poetas: se queres agradar, torna as suas ficC<Öes semelhantes a verdade
inverossimil e mais aceitavel ou passa quase despercebido. Assim a (Fü::ta voluptatis causa sint proxima veris, A. Poet., v. 338). A admi.-
passagem em que Heitor, filho de Priamo (rei de Troia) e perseguido raC<iio talvez de Homero, de S6focles, de Pindaro, ou a grandeza cria-
por Aquiles, seria inadmissivel ou incrivel aos espectadores de uma dora destes poetas teriam quebrado a rigidez doutrinaria do Filosofo.
tragedia; perfeitamente toleravel no poema epico. 0 fato de so Aqui-
Ern conclusao: as leis que regem a criaC<iio poetica nao sao as
les correr no encalC<o de Heitor para mata-lo ( acenando aos demais
companheiros que permanecessem imoveis onde estavam) tornar-se-ia mesmas que regulam a elaboraC<iio da Historia; se a 'Poesia, algumas
vezes, nao pode recriar o real por imposiC<iio da propria verossimi-
inverossimil se ocorresse numa representaC<iio dramatica; a imobilidade
lhanC<a, isto nao nos permite pensar numa vinculaC<iio entre as duas.
dos gregos, na epopeia, passa como despercebida, atenuada na penum-
Ovidio observava que sempre foi costume consultar os poetas como
bra da narrativa poetica.
testemunho dos fatos: Nec tarnen ut testes mos est audire poetas (Anw-
Ainda que pos,sa haver alguma distinC<äo entre o impossivel e o res, 111, 12 v. 19). Ern nossos dias os criticos que se utilizam da
irracional (sendo impossivel aquilo que jamais sucede na realidade, e poesia como documento historico parecem convencidos do erro dessa
irracional aquilo que o pensamento näo admite), em Aristoteles estas criteriologia. 0 proprio Ovidio ja pontificava que o reino da poesia
categorias oscilam desde a impossibilidade psicologica ate ao absurdo nao tem compromissos com a realidade historica: a liberdade fecunda
absoluto (2). E impossivel que um cavalo ao andar mova simultänea- dos poetas se desenvolve no plano da imensidade, e portanto ·as suas
palavras desconhecem qualquer obrigaC<iio com a fidelidade historica:

1) A partir do verso 924.


2) V. Albeggiani, La PmStica, p. LXV. 1) Poet., 1460 a33.

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Exit in immensum fecunda licentia vatum, tumes por caracteres. Consoante este esquema, jii podemos agrupar
Obligat historica nec sua verba fide. semanticamente 0 vocabuliirio:
(Amores, III, vv. 41-42). l. Caniter - costumes
2. Bondade - dignidade
3. Propriedade - conveniencia
0 distico ovidiano devia ter figurado no p6rtico de todas as igre-
jas da critica literiiria. 4,. Semelhant;a - conformidade
5. Coerencia - constancia - igualdade - consistencia.

B) AS CONVENitNCIAS Ü termo carater apresenta hoje duas Oll empregamo-}o


por personagem ou para significar aquilo que distingue as pessoas pela
Antes de ex•aminarmos esta importantissima regra do formalismo sua singularidade nos costumes. Por costume entende-se o comporta-
diissico, que afinal de contas consiste num aspecto da verossimilham;a, mento da personagem, ou melhor, o que revela um "estilo de decisäo"
julgamos necessiirio estabelecer algumas definil;oes, ou melhor, fixar o do cariiter ( Ö:n:oia ) . Se Eneas, p<>r exemplo, tivesse
seu vocabuliirio. Termos como conveniencia, decoro, bienseance, pro- hesitado na sua obediencia aos deuses (pietas) e cedido aos rogos de
priedade, igualdade, semelharu;;a, constancia, coerencia, carater, costu- Dido (En., VI), Vergilio teria contradito o costume do heroi, pois,
mes, consistencia etc., näo raro se atropelam nos comentadores e te6ri- pelo que sabiamos dele, näo podia ser outra a sua senäo aban·
oos da coisa liteniria, suscitando confusöes nos principiantes. Talvez donar a pobre amante. E aqui nos encontramos diante de novca difi-
devessemos reconhecer que o termo frances bienseance fosse preferivel culdade: o ethos ( ) , co·stume ou carater, corresponde pröpria-
ao de conveniencia, dad·a a sua popularidade e Etimolögi- mente äs qualidades morais das dramatis personae; äs qualidades
camente, alias, bienseance queria dizer "o que assenta bem", "o que intelectuais atribui Aristoteles a filos6fica de dian6ia
( ) Poet., 1450 b12).
e conveniente" (do lat. sedere, fr. seoir) e aperece empregado desde
1539, se bem que seu cognato adjetivo bienseant ja se encontre no sec. Alguns teoricos franceses -:- e entre eles Marmontel na
XIII e malseant no seculo anterior. Ern portugues empregou-se, desde sua Poetique franr;aise ( 1766) ainda fazem uma entre bien-
o sec. XVI, o termo decoro (lat. decorum), com a de conve- seance e convenance. Diz Marmontel que respeitamos as convenances
niencia das e outras formas de comportamento, com o carater quando fazemos a personagern falar e agir como se ela tivesse agido
das pessoas; ou conveniencia das palavras em ä idade, ao sexo, e falado no seu tempo; e que atendemos as bienseances quando pro.-
ä ä religiäo, ä social etc. 0 proprio Antonio Fel.'- cummos acomodar OS COStumes da mesma personagern as exigencias eti-
cas do nosso tempo ( 1) .
reira, ja vimos, o emprega na sua Carta XII a Diogo Bernardes. Os
franceses conheceram tambem •a forma decore, que aparece empregada Com esta terminologia podemos, entäo, fixar o vocabulario essen-
na arte poetica de Pierre de Laudun ( 1598), mas substituida definiti- cial pertinente ä da bienseance, elegendo entretanto o termo
vamente por bienseance, ja utilizada antes daquele por Pelletier em oonveniencia para a generica. E assim teriamos: bondade, pro-
1555 na sua Art Poetique. Ate principios do sec. XIX o termo decoro priedade, conformidade e coerencia.
ainda aparece nos tratados de poetica, em com convenien- Pela passagem de Marmontel pudemos observar que os costumes
cia; mas este ainda näo corresponde ä ampla de bienseance, de uma personagern devem estar de acordo com 0 carater da mesma
sim ä restrita de entre a fala e a da personagem. personagern e com as exigencias eticas do seu tempo: a esta conformi-
A terminologia aristotelica que na Poetica se Iiga ao principio da
... ... ...
bienseance e constituida de quatro palavras fundamentais: XQl]<J'tOV
1) Lorsq'on a fait parler et agir un personnage comme il aurait agi et parle
(bom, virtuoso, nobre), U(l!!Onov ( conveniente, apropriado), Ö!!OWV
dans son temps, on a observe les convenances; mais si les moeurs de ce
( semelhante, c.:mforme), Ö!JaAOv ( igual, c.:>nstante) . Diz Aristoteles temps-la etaient choquantes pour le notre, en les peignant sans les adoucir,
que estas säo as qualidades essenciais dos caracteres ( ) . Corno on aura manque aux bienseances. . . Ainsi, pour mieux observer Ia decence
esta ultima palavra grega significa, por extensäo, costumes, e freqüen- et les bienseances actuelles, on est souvent oblige de s'eioigner des con-
te encontrarmos nos manuais tradicionais de poetioa o emprego de cos- venances, en alterant Ia verite ( Marmontel, Eiemens de litterature, li,
p. 60).

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dade designamos de conveniencias internas; se, porem, modificarmos os Camöes foi censurado por colocar na böca da desgrat;ada lnes de Cas-
costumes da personagern a firn de atendermos as exigencias morais do tro compara-.öes mitologicas num momento inadequado: vendo-se per-
publico de hoje, teremos uma conveniencia externa. Todavia Rene dida e antevendo a desgrat;a que cairia söhre seus filhos e o estremado
Bray denomina de conveniencia interna o acördo entre o comporta· amante (D. Pedro); inteiramente dominada pela dor e pela inevita-
mento da personagern e a sua natureza; e de conveniencia externa a hilidade do destino, pöe-se lnes diante do sogro (Afonso IV) a invo-
conformidade da personagern com as exigencias esteticas e morais do car os casos de Semiramis, de Römulo e de Remo (Lus., 111, 126).
puhlico. De uma forma ou de outra, as conveniencias resultam de 0 mesmo sucede com as outras falas: a de Egas Moniz diante do rei
um jögo de relat;Öes eticas, esteticas e intelectuais entre os costumes e de Castela, a do Velho de Restelo nas margens de Belern e a do pro-
o cariiter, e entre o cariiter e o seu puhlico. As conveniencias internas prio Gama ao regulo de Melinde. Todos os versos que constituem a
constituem töda a preceptiva etica, a ciencia moral. Diz Aristoteles fala de Egas Moniz ao rei castelhano, em present;a do qua! se encon-
- e os teoricos confirmam - que os costumes de uma personagem, tra com espösa e filhos a implorar clemencia ( destinados como estiio
para formarem um con j unto harmönico e verossimil, devem respeitar a a morte), siio pateticos e naturais - diz Jerönimo Soares Barhosa - ,
quatro requisitos: menos o verso "De Scinis e do touro de Perilo" (111, 39). 0 Velho
1) a bondade (Oll dignidade) do Restelo, educado apenas pela experiencia da vida - como diz o
Poeta - , niio teria pecado contra a propriedade se omitisse da sua
2) a propriedade fala os profundas conhecimentos da antiguidade e da mitologia, citando
3) a conjormidade (Oll semelhanr;a) Prometeu, icaro, Faetonte. Se o regulo de Melinde indaga ao Capitiio
4) a coerencia ( ou igualdade, oonstancia, consistencia). da frota portuguesa a sua origem e sua peregrinat;iio pelo oceano, e
porque desconhecia a civilizat;iio europeia - ainda que tivesse algumas
Dos quatro preceitos, o unico que aparece controvertido pelos teoricos noticias das empresas Iusas. Tornou-se impropria a fala do Gama töda
e 0 da bondade, que por essa razao reservamos para 0 final destas de- vez que invocou a mitologia grega e romana, fazendo com ela compa-
fini-.öes. Talvez ate pela ambiguidade do conceito aristotelico Horiicio rat;Öes, imagens e metiiforas. Pecou ainda mais, nao so em rela-.äo ao
nao se referisse a ele em sua Arte Poetica - onde OS tres outros apa- lugar em que estava mas em rela-.äo a pessoa com quem falava: diante
recem mencionados, explicados e exemplificados ( 1). do reisete melindano, de religiäo maometana, e que näo obstante se
1. Por propriedade dos costumes entendemos o comportamento mostrara täo hospitaleiro para com os navegentes portugueses e täo
da personagern adequado a sua idade, a sua na-.äo, ao seu estado, a generoso a ponto de lhes conseguir um adestrado pilöto que os condu-
sua condi-.ao social, inclusive ao seu sexo: seria improprio represen- zisse seguros ate a tndia, Vasco da Gama refere-se a reconquista por-
tar uma mulher metida em negocios politicos ou a falar como homem tuguesa contra os iirabes, falando nos barbaros sequazes de Mafoma,
( tal como a Sofonisba de Corneille) ; improprio um velho a falar co- nefandos, perfidos, infieis, torpes, cegos e ate perras (!). A fala podia
mo crian-.a, um principe com hiihitos grosseiros ou um escravo com estar em consonancia com o cariiter, mas desrespeitava de maneira fla-
requintes de elegancia. Horiicio, a esse proposito, e mais explicito que grante as conveniencias do Iu gar, nesse caso a conveniencia externa ( 1).
o mestre grego :
Euripedes, entre os poetas antigos, foi muito censurado pelas in-
Tem igualmente de levar-se em conta, se quem jala e deus conveniencias em que freqüentemente incorreu. Aristoteles condena a
Oll e heroi; velho sisztdo OU jovem ardenle; matrona poderosa OU fala da möt;a Melanipe na tragedia do mesmo nome, que discorre como
aina carinhosa; vendedora ambulante ou lavrador de campinhos se föra uma mulher sahia, um filosofo naturalista. Pretendendo ocultar
rerdejantes; se e natural da C6lquida Oll da Assiria; se educado o seu crime, Melanipe procura convencer ·o pai, a luz das ideias de
em Tebas ou educado em Argos (2). Anaxiigoras söhre a Fisica, de que as duas criant;as, encontradas no
cural, haviam nascido das proprias vacas. . . ( 2). Aristoteles censura
I) Vv. 144-127, 156-177. ainda Ulisses que chora ( como mulher) no ditirambo de Timoteo de
2) Vv. 114-118. Boileau tambem foi muito feliz nas suas
Conservez a chacun son propre caractere.
Des siecles, des pays etudiez les moeurs:
Les climats font souvent les diverses humeurs. 1) V. Jeronimo Soares Barbosa, Analyse dos Lusiadas de Luiz de Camoes,
Gardez donc de donner, ainsi que dans Clelie, p. 69-73.
L'air, ni l'esprit fran«;ais a l'antique ltalie. 2) Arist6teles, nas Räs, tambem censura Euripedes pelas freqüentes incon-
(Art Poet., III, vv., 112-116). veniencias que surgem em suas pe«;as.

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Mileto intitulado Scila. Aqui o autor näo so desrespeitou a proprie- mas ( 1). Dacier, nos seus comentiirios a Poetica aristote!ica, menciona
dade, como tambem a conformidade, isto e, o caniter que a viirios casos de inconformidade: a de Ulisses um heroi
conservou do heroi homerico ( 1). astuto, caviloso; no entanto Esquilo, no seu Filoctetes, fii-lo uma per-
sonagem grave e severa; o proprio Vergilio näo podia ser justificado
Aristoteles na Ret6rica dissertou acerca dos costumes dos jovens, pelos seus defensores quando fez de Dido, viiiva honestissima e fide-
dos velhos e da idade adulta; e segundo a do cariiter da no- lissima as cinzas de Siqueu seu marido, uma amante perdida. Corneil-
breza, dos homens ricos, dos poderosos e dos favorecidos pela sorte le, que na sua tragedia Agesilas faz de Agesilau e Lisandro ( respecti-
(II, cap. 12-17). Horiicio, na Ars Poetica (vv. 156-178) ofereceu tam- vamente rei e general de Esparta) dois prolixos faladores, tambem des-
bem tiibuas completas a proposito dos costumes em a idade. respeitau a conformidade pelo que sabemos dos lacedemonios, que eram
0 estudo dos caracteres era habitual entre os peripateticos: as obser- muitissimo parcimoniosos no falar ( 2).
de Aristoteles a proposito do cariiter dos ricos coincidem em
viirios pontos com a que faz Platäo do cariiter dos timocra- Podemos entäo perguntar: qual o procedimento do poeta se deseja
tas e oligarcas na Republica (VIII e ss) ; Os Caracteres de Teofrasto, introduzir na sua obra uma personagern nova? Ern que circunstäncias
discipulo de Platäo e de Aristoteles, constituem tambem uma galeria tem direito o poeta de alterar a fama?
de retratos morais (nos quais se inspira mais tarde La Bruyere) (2).
As personagens e OS fatos, ou säo fornecidos pela Historia, isto e,
2- Por conformidade entende-se 0 acordo entre OS costumes da j ii conhecidos ( yvWQL!la, :rraga()E()O!!EVa Arist., 1451 b24-25), e nesse
personagern e o cariiter que lhe da a mitica, historica ou caso o poeta deve obedecer a fama ao reproduzi-los; o fama sequere
artistica. E Horiicio quem exemplifica fartamente esta categoria, pois horaciano e uma glosa da passagem aristotelica que recomenda ao poeta
Aristoteles nem sequer a define e alguns teoricos chegaram a inter- näo desfazer as tramas ou os argurnentos tradicionais (
pretii-Ia do ponto de vista da da natureza. Trata-se, porem, l.lJELV o'Üx itanv , 1453 b22); ou siio inventados, e nesse caso
do fama sequere horaciano: tanto os fatos como as personagens devem atender as leis da verossimi-
e da necessidade; os costumes das personagens imaginadas terao
Se acaso repuseres em cena o glorioso Aquiles, faAo altivo, que respeitar as conveniencias - sibi convenientia finge (Hor., 119).
colerico, 'implacavel e insolente, afrontando as leis da natureza A - se o poeta o desejar - so poderii ser alterada em de-
e confiando exclusivamente na f6rr;a das armas. Se f6r Medeia, terminadas circunstäncias: se ela n00 f6r verossimil, e entiio o poeta
que seja feroz e indomavel; se Ino, lacrimosa; se lxiäo, escolhe outra versäo que o seja. Tal a pindarica de Ulisses,
perfido; se I o, errante e se Orestes, melancolico ( 3). que faz do heroi um sufocador de ursos e leöes quando aos seis anos
de idade andava a se ela f6r controvertida, havendo portanto di-
0 caso que vimos de Timoteo de Mileto fazendo de Ulisses uma per- versidade de opinioes e todas verossimeis; nesse caso o poeta opta pela
sonagem lacrimosa num de seus ditirambos constitui uma a que mais o agradar. Homero deixou de Penelope uma impressäo in-
conformidade; Euripedes näo foi perdoado por duas passagens de sua delevel de esposa pura, a ponto de torna-la um simbolo de fidelidade
Medeia em que a heroina, perversa e indomita, se derrama em liigri- con jugal; todavia Herodoto, Plutarco e os poetas latinos Ovidio, Horii-
cio e Propercio fizeram da esposa de Ulisses uma personagern suspeita;
1)
dai o direito de o poeta representa-la casta 6U adiiltera; e finalmente
Isto nao significa que o her6i näo possa chorar; ate pelo contnirio, o se a tradit;äo dos costumes se modificou. Aqui entende-se a liberdade
her6i epico deve mostrar-se em tödas as suas dimensöes psicol6gicas e
morais. Sucede que os antigos admitiam modalidades do mesmo carater relativa que tem o poeta de modificar certos hiibitos, nos ritos, nos cos-
consoante ao sexo e outras condi<;öes. Ulisses banha-se de lagrimas, no tumes, a firn de acomodii-los as exigencias morais de sua epoca ( do
palacio de Alcino, ao ouvir durante a ceia a musica plangente de Dem6- poeta).
doco a cantar os dolorosos sucessos do cerco de Tr6ia; a triste
o comove tao profundamente que nao consegue conter as lagrimas 3. A coerencia dos costumes consiste em manter em toda a exten-
(Odisseia, VIII, 521-22, 540). Chora virilmente- diria Arist6teles. Tam- säo do poema o mesmo carater com que a personagern se apresentau
bem a mulher pode ter bravura ou ciencia ( &v()gcla, e O"W<pQOüUVY)), mas
diferentes da do homem (Polit., 3-4, 1277 b21).
2) Acerca dos Caracteres de Teofrasto, ver Alfonso Reyes, La critica en Ia
edad atensiense, p. 318-327. 1) Vv. 922, 1005 e ss.
3) Ars Poetica, vv. 119-124. 2) Apud. P. J. da Fonseca, Elementos da Poetica, p. 118.

116 117
desde o principio. Honicio recomenda expressamente para o caso das fazer uma revisiio nos seus propositos e decide-se por imitar o compor-
personagens imaginadas em especial da comedia: que a nova persona. tamento de Miciao. Entretanto, esta mudan'<a nos costumes, resultado
Iidade seja conservada ate ao firn como foi descrita no inicio (l). de uma lenta modifiac'<iio baseada nos fatos, no tempo, e na experien-
Aristoteles, - mas aqui na tragedia - , lembra o caso de pe'<as cujas cia ( res, aetas, usu) foi, se näo repentina, um pouco exagerada, pois
personagens siio todas inventadas ( como no Anteu de Agatao), e em Demea acabou por cair no extremo oposto, desfazendo-se em excessiva
que 0 deleite nao e menor por isso, porque 0 poeta atendeu as leis da indulgencia e prodigalidade, a ponto de provocar o estarrecimento do
conveniencia. Se a personagern e contraditoria no seu comportamento irmiio ( vv. 855 e ss) . Terencio tornou verossimil a modifica'<iio do
- diz ele ainda - , a propria incoerencia deve ser coerente: tal o caso seu carater pela lenta prepara'<iio do auditorio; e o excesso em que
se operou a mesma modifica'<iio näo chega a ser inverossimil visto tra-
de Ajax na Iliada, que se comporta com alternativas de caniter: ora
louco, ora sensato. Sucede que Homero, desde o inicio do poema, tar-se de uma comedia. Numa tragedia, porem, a muta'<iio talvez näo
apresenta o heroi com essa fisionomia moral. Entiio esta salva a coe- fosse admissivel, ainda que seja normal que uma pessoa, tentando al-
terar profundamente o seu carater, caia naturalmente no extremo opos,-
rencia. Todavia Homero niio atendeu ao preceito no carater de Heitor:
to. 0 mesmo niio sucedeu com a personagern da T ebaida de Estacio,
o heroi troiano surge desde o principio descrito com excepcionais qua·
Iidades de coragem, enfrentando animosamente aos gregos, increpando Tideu, que, niio satisfeito com imitar a desumanidade de Aquiles com
Heitor, pos-se a comer a cabe'<a de seu inimigo Melanipo, a beber-lhe
a Paris por sua covardia (1/iada, I li, 38-57), fazendo fugir aos gregos
o sangue que dela escorria e a praticar outras monstruosidades ·que
espantados (VIII, 337-349), rompendo as portas das muralhas aqueias
acabaram por tornar incoerente o seu comportamento por exagerado.
(XII, 442·471), defendendo o cadaver de Sarpediio e matando ao de-
nodado Patroclo (XVI, 537-712), saindo intrepidamente para comba- 4. Finalmente a respeito da bondade do carater, ponto controverso
ter Aquiles ;mas, a vista do heroi aqueu, se pöe a fugir de maneira da Poetica de Aristoteles, diz ele sumariamente que o carater primei-
vergonhosa e vil, tremendo de medo, e - 0 que e mais humilhante - ramente deve ser bom ( )(Qf1CJT6v) ; e em Iu gar algum da obra explica
sob os olhos dos troianos e dos pais, Priamo e Hecuba, que os obser- essa exigencia preliminar, a niio ser quando tratou da miTTIA!se - como
vavam do alto da porta princinal da cidade (XXII, 136-144) _ As ja foi visto. Se por XQfiCJ't6v entendessemos pura e simplesmente "ho-
crian'<as e adolescentes poderiio tambem ser representados com alterna- mem formado, com as suas qualidsdes ja desenvolvidas", isto e, adulto,
tivas de comportamento, pois a idade juvenil se caracteriza por certas entiio o ponto seria pacifico, pois o termo grego admite a acep'<iio de
oscila'<öes na decisiio pessoal. A mudan'<a de carater que se opera em "adulto", e a tragedia como a epopeia devem ser constituidas substan-
Demea, personagern dos Adel/os de Terencio, e tida como coerente por- cialmente de caracteres amadurecidos. Entre os comentadores do pas-
que o poeta lan'<ou miio do recurso da prepara'<iio do auditorio, ar- so aristotelico niio vimos a insinua'<iio desta hipotese, raziio por que nos
tificio - ja vimos - exigido pela verossimilhan'<a. Porem, vejamos faleceu coragem para propo-la. Se, como resolve sumariamente Valgi-
como se passam as coisas. Demea manifesta ao publico esta mudan'<a migli, entendermos por "nobres" a palavra grega, entäo quaisquer du-
na sua decisiio. Corno .3e sabe, na pe'<a terenc1ana, em posi'<iio fron· vidas ou problemas estariam afastados: Aristoteles pretendeu dizer que
tal ao seu irmiio Miciiio, que educa o sobrinho com simpatia e libera- os caracteres fossem "superiores ao normal, e isto relativamente a todas
lidade, Demea procura educar o filho Ctesifonte com a mais brutal as classes de pessoas, como se declara mais adiante" ( 1). E uma in-
severidade a firn de torna-lo um modelo de homem, e os resultados terpreta'<äo que tambem elimina qualquer discussiio, pois Aristoteles ha-
desta educa'<iio acabam sendo funestos, contrarios a expectativa perti- via dito explicitamente no come'<o do seu manual (1448 a1-5) que os
naz e inquebrantavel do inflexivel pai. Demea, pela sua condi'<iio de poetas imitam pessoas em a'<äo, e que "estas pessoas näo podem ser
campones, afeito a rudeza do seu trabalho, vivendo com dificuldade e senäo nobres ou - porque os unicos dois criterios nos quais
parcimonia, apresentava um carater com perfeita conformidade: car- se fundamenta a diversidade dos caracteres podemos dizer que säo sem-
rancudo, avarento, grosseiro no trato, inflexivel nas suas determina'<Öes pre estes, e todos OS homens de fato diferem no carater enquanto SUO
(2). Mas no decurso do tempo, tomando progressiva consciencia de virtuosos OU nao virtuosos - OU homens melhores do que nos Oll pio-
que seus metodos de educa"iio niio surtiam 0 efeito desejado, procura res ou como nos". Logo: os caracteres principais do poema tragico ou
,epico devem ser melhores do que nos, de qualidade acima do normal.
Alias era esse o pensamento de Castelvetro, pois somente um heroi bom
1) ... servetur ad imum / qualis ab incepto processerit et sibi constet ( A. P.,
126-127).
2) Ver a excelente interpretac;ao das personagens desta pec;a feita por Ar-
mando Tonioli, Os Adelfos de Terencio, p. 62-76. 1) Poetica, p. 111, nota 1.

119
podera excitar a compaixao; um heroi mau nao despertaria senao a tödas as siiplicas de Priamo ( l). A colera e tödas as suas conseqüen-
colera ou 0 desprezo, e 0 poema deixaria de atingir 0 seu firn, que e cias näo dominuiram a nohreza do carater. Alias a tendencia dos teo-
a purga-.ao das paixoes pela piedade e pelo terror (l). Nessa linha ricos modernos de Aristoteles e para reduzir o prohlema a interpreta-
de interpreta-.ao situariamos Alfonso Reyes na sua magistral analise -.äo mais simples. Alheggiani, ainda que näo declare discordar de Val-
da Poetica: "0 carater pode ser hom ou mau, pois ja sahemos que a gimigli, afirma que Aristoteles exige essencialmente do heroi tragico
imitac,;ao da fealdade e um hem artistico em si mesma. Porem a con- nao tanto uma superioridade acima do comum dos homens, mas uma
tragica exige que a personagern central seja hoa, e a ma seja elPva-.ao moral, consistente na possessao de virtudes como a coragem, a
somente secundaria ou exigida pela intriga" (2). Dai dizer que a dig- sahedoria, etc., e conciliaveis de resto com os demais defeitos que o
nidadt> externa, isto e,o carater em relac,;ao as exigencias do pi.ihlico, carater possa apresentar (2). Neste caso Mezencio, o heroi e rei dos
aconselha a preferir personagens nohres, adultas e varonis, as unicas etruscos, que comhateu com Turno as tropas de Eneas, seria um exem-
capazes de todo o desenvolvimento patetico da pec,;a. Nesse caso os ca- plo: extremamente cruel e impio, Mezencio comprazia-se em fazer mor-
recteres femininos sao evitados pela sua psicologia inferior, os carac- rer as suas vitimas atando-as a cadaveres. Nem por isso o heroi dei-
teres infantis pela sua dehilidade e os escravos pela ahje-.ao. lsso näo xava de apresentar hondade, pois a sua hravura como comhatente e a
significa que as mulheres e os escravos, um pela inferioridade e outro sua ternura como pai o redimiam de töda a desumanidade.
pela vileza, nao possam ter bondade - diz o mesmo Aristoteles na re- Entre os teoricos italianos do Renascimento vimos a opiniao de
ferida passagem.
Castelvetro, que exigia a hondade no heroi principal do poema; Heinsius
Ainda que numa circunstancia ou noutra, numa qualidade ou nou- tomou como criterio as exigencias do piihlico - ao qua! deve o poeta
tra o carater deixa de ser ideal ou completo, o que dele se exige e atender na medida do possivel, pois, no caso de o argumento do poerna
uma hondade moral acima de tudo. Platao ja havia insistido nisso em ser constituido de personagens rnas, deve o poeta esfor-.ar-se por intro-
varias passagens de sua ohra: o poeta deve imitar apenas os hons ca- duzir nele um niirnero maior de caracteres hons; e lemhra o caso da
racteres, e evitar a descri-.ao da haixeza, do vicio, da incontinencia, tragedia de Euripedes, Orestes, em que corn exce-.äo de Pilades todos
OS caracteres sao perversos ( 3). Scudery, logo depois, esposara a in·
pois a representa-.ao do mal nao so corromperia o poeta como daria
um mau exemplo ao ouvinte ( 3). Tal hondade moral nao exclui por- terpreta-.äo do teorico holandes ao montar as suas rnetralhadoras con·
tra o Cid de Corneille. Para Jean Chapelain, que se dehru-.a com outros
tanto certas fraquezas do comportamento. 0 exemplo de Aquiles seria
olhos nos teoricos italianos, os quatro requisitos exigidos ao carater se
entao edificante: ainda que colerico, suas a-.ües nao foram execraveis
reduziarn a dois: a conforrnidade ou coerencia, a hondade ou proprie·
e a sua grandeza de alma nao deixou de se manifestar. A sua colera,
dade. Mas ern que sentido a hondade e a propriedade sao a rnesma
que chegou as raias da crueldade ao amarrar Heitor as rodas de seu
coisa? Para ele um carater e bom quando este carater convem con-
carro e com ele, tödas as manhas, cevar a sua ira fazendo-o rolar pelas sigo rnesmo, isto e, assenta hern na sua personagern; afasta, desta for-
pedras e pela poeira a volta do tumulo de Patroclo, a sua colera - rna, töda e qualquer irnplica-.ao de ordern rnoral na interpreta-.äo do
diziamos - explica-se pela profunda amizade que devotava a Patroclo, preceito aristotelico. La Mesnardiere, que em sua Poetica retorna corn
morto em circunstancias dolorosas pelo filho de Priamo. E Homero novas perspectivas a interpreta-.ao do prohlema e procura codificar a
i!te parece haver explorado artisticamente o furor sem limites de Aqui- regra das bienseances, termina por reincidir na teoria de Castelvetro:
les, para contrasta-lo com um momento de suprema heleza - o en- com a sua ideia do carater exernplar ( que para o piihlico e sempre
contro de Priamo com Aquiles, que vai a tenda dos mirmidoes implo- um paradigma)' para ele 0 poeta deve apresentar a personagern 0 rnais
rar de joelhos a devoluc,;ao do corpo do infortunado Heitor. Convenci- perfeitamente possivel, ainda que ela corneta certas faltas. 0 geral
do Aquiles pelo anciao troiano ( cu ja fala e um momento artistico deve triunfar söhre o particular, o tipo söhre o individuo. A univer-
inimitavel), a ira desvanece-se e o heroi aqueu acaha enternecido com salidade deve impor-se, portanto.

1) A prop6sito da fala de Priamo para convencer Aquiles em sua tenda,


1) Cf. Rene Bray, obra cit., p. 21 7. talvez o ponto mais alto do poema, ver a belissima analise que faz Cha-
teaubriand em Le genie du Christianisme, Parte li, livro 2, cap. IV.
2) La critica en Ia edad ateniense, p. 276, 430.
2) La Poetica, p. 95-96.
3) Ver Republica, 111, 395 C, 401 B; Leg., 11, 659 C, 660 A.
3) De Tragediae constitutione, p. 169.

120
121
As conveniencias externas, que exigem do poeta - diz Boileau -
um conhecimento dos costumes da epoca, dos palses (A. Poetique,
1. c.) - parecem conduzir-nos a um realismo historico; mas a estetica
classica, baseada na verossimilhan«a e na necessidade, isto e, no uni-
versal poetico, acaba por rejeitar esse realismo histörico. 0 que faz
' Polixena, nas Troianas de Euripides, foi degolada söbre a sepul-
tura de Aquiles, mas a cena aparece narrada a Hecuba por Taltibio;
o sacrificio da sublime Ifigenia, na I figenia em Aulis do mesmo dra-
matuqro, tambem nao se realiza na representa«;ao, e so e conhecido pda
narras;äo. Sabemos que Edipo arrancou os pr6prios olhos e que sua
o escritor e conciliar essa verdade histörica com a ideia que o publico mae e mulher Jocasta SC suicida, mas tais cenas nao leva SMocles para
faz de tal perlodo ou de tal personagem. Os teoricos säo uniinimes o paleo. Nisso difere flagrantemente Seneca, cujo teatro parece com·
em exigir esse dificil equillbrio entre a realidade historica e o gösto prazer-se nas cenas horrorosas, que se descortinam ostensivamente dian-
do publico. "Respeita-se a historia em seus grandes tra«os, OS que sao Ie dos olhos dos e:;pectadores. No ato V da sua Medeia, Seneca re-
familiares ao publico. Fora dai, dao ao passado as cöres do presen- presenta esta terr]veJ maga a trucidar OS proprios fiJhos a Vista de
te" - diz Rene Bray ( 1). As conveniencias se exercem tiränica· J asäo seu marido e diante do auditörio. T odavia, na sua Tiestes, ao
mente, retocando a verdade para nao chocar as exigencias eticas e es· inves de expor aos espectadores Atreu estripando os sobrinhos e co·
teticas do Ieitor ou do auditorio. "As conwniencias externas adquirem zendo-lhes as entranhas para da-las de comer ao irmäo, Seneca da
um domlnio vastissimo e estendem uma apertada rede de proihi«Öes, ciencia desta monstruosidade atraves de um mensageiro ( 1). Na lite·
desde o vocabulario ate as situa«Öes da vida sentimental" ( 2). Hora· ratura classica francesa - afirma Rene Bray - os textos que marcam
cio legislou a respeito, no caso da representa«äo dramatica, lembrando o acordo dos escritores söhre a necessidade de proscrever da poesia os
a superioridade artistica das cenas que säo vistas em rela«;äo as cenas propositos desonestos säo particularmente abundantes a partir de 1635.
narradas; mas que o poeta se via muitas vezes na contingencia de elimi- Ao mesmo tempo que censura os amöres do Cid corneliano, Scudery
nar do palco cerlas cenas por razöes de decöro: in scoenam multaque orgulha-se de escrever romances que as damas podem ler "sans baisser
tolles ex oculis, dizia, recomendando representar nos bastidores certos les yeux et sans rougir". Balzac nao proscreve a descrigäo de amöres
acontecimentos. Ou para exemplificar: obscenos, mas recomenda apresenta-los com palavras honestas. "Cela
s'appelle envelopper !es ordures" - diz ele em suas Lettres (2). Boi-
Que llfedeia nao tmcide OS ji{hos diante do pubfico, nem 0 leau aponta OS extremos em que pode cair 0 genero cÖmico: se e]e
nefas!Jo Atreu co::inhe publicamente entranhas humanas; nem Proc- repele prantos e suspiros bem como as penas tragicas, por outro lado
ne se converta em at•e ou Cadmo em serpente. lncredulo, detes- näo tem o direito de despertar o riso do auditorio com palavras
tarei tudo quanto de tal maneira me mostrares ( 3) .
imundas:
Cenas que podem ser representadas ( agitur), cenas que devem Le Comique ennemi des soupirs et des pleurs,
ser narradas ( refertur) - ou por um mensageiro ( U.yyf). ) , pela N'admet point en ses vers de tragiques douleurs:
recita«äo de um dos atöres, ou por qualquer outro expediente. Aristo· Mais son emploi n' est pas aller dans une place,
teles ja havia recomendado eliminar de cena os casos irracivnais, ab- De mots sales et bas charmer la populace ( 3).
surdos OU impossiveis ( a},oya, aTOJra, aÖuvara ) , CU jo conhecimento
se faria pelo mensageiro ou pela predi«äo do "deus ex machina" (Poet., Racine e considcrado o campeäo das conwniencias pelo seu cuidado
XI, 1454. b; XXIV, 1460 a28; 1461 b14); insinuou tambem o pouco permanente de suprimir do espetaculo tudo que possa chocar a sensi-
valor artistico de cenas passionais como mortes em cena, tormentos, bilidade moral do seu publico. Nele todos os efeitos das paixöes apa-
feridas e cousas semelhantes (1452 110-12; 1453 b1-8). Ern Aristo- recem dissimulados pela narras;ao: Britannicus tinha todos os elenwn·
teles, todavia, o criterio era puramente estetico, nao moral, pois o Fi- tos para ser uma pe«a de grande espetaculo; mas tödas as cenas for-
losofo näo tinha duvidas quanto ao predominio artlstico da a«äo söhre les - como a dos embaixadores, o rapto de Junie, o hanquete, o firn
a paixäo. Os fatos monstruosos, as metamorfoses, nao deviam se ope-
rar diantP dos olhos dos espectadores, e o poeta que narra precisa ter
mais qualidades artlsticas ( para sugerir os fatos) do que o poeta que Sobre a influencia do teatro de Seneca nos dramaturgos do Renascimento,
1)
os representa. que dele assimilaram essa predileo;ao pelos aspectos sombrios, ver G. Highet,
La tradici6n clasica, I, p. 210-211.
I) La Ionnation ... , p. 226. 2) La formation ... , p. 227.
2) Aguiar e Silva, Para uma do classicismo, p. 121.
3) Ars Poetica, vv. 185-188. 3) L'Art poetique, III, vv. 401-404.

1 123

'
122
de Britamiicus etc. - remete-os Racine para a ( 1) . Alias
Racine - conforme as suas nos dois prefacios que escre- popular, väo sendo evitados e suhstituidos pelos correspondentes cultos.
veu para esta - nunca trabalhou tanto uma tragedia com os Antes de 1630, palavras e expressöes como "j'en creve", "putain",
olhos voltados para as conveniencias. 0 proprio Nero que nela aparece "maquerelle", "pucelage", "fornica.tion", "boudin", "louve", "chienne",
näo e o Nero que a tradü;;äo conserva como monstro, mas um Nero "loup-garou" etc., väo sendo evitadas e se confinando ao burlesco.
ainda anterior as suas crueldades, "un monstre naissant" - Palavras designativas das partes do corpo foram logo substituidas:
diz o poeta. f:stes dois prefacios däo-nos a medida exata do imperio "teton" por "sein", "ventre" por "stomac" ( ou por "sein", "flanc")
tiranico das conveniencias na literatura classica: o poeta näo so pro- etc. Golpe mortal recebem tambem certos habitos da vida cotidiana
curava justificar as razöes da e da tönica da como - como o comer, o beber, o dormir (sobretudo o sono seguido de
responder as censuras da critica que näo fazia concessöes ronco ruidoso), o lavar-se, o vestir-se, urinar, as blasfemias etc. etc.,
em materia de decöro. No sec. XVIII Correia profere, na Ar- bem como a visäo de coisas repelentes e - como os
cadia Lusitana, a sua bela Dissertm;iio Primeira, em que, baseado nas vomitos, as iilceras, as hemorragias, os corcundas, os cegos, etc., todos
de Horacio, aconselha a inalterabilidade da regra que atos e vulgares que väo sendo condenados e banidos na se-
proscrevia ensangÜentar 0 teatro, isto e, que as feridas, OS tormentos e gunda metade do sec. XVII. Nesta epoca tambem o dominio da vida
as mortes näo se expusessem aos olhos dos espectadores. Elogiando sentimental e especialmente sexual sofre radicais. A j o-
a Castro de Antönio Ferreira, em que a da desditada lnes vem que se entrega gostosamente ao sedutor; o adulterio, as"
e conhecida pelas do cöro (ato IV, vv. 1526 s.), näo poligamicas, os sentimentos incestuosos (normalmente redimidos pelo
perdoa a Addison a sua famosa tragedia Catiio, cujo suicidio para suicidio como na T)'Tidate do abade Boyer, tragedia publicada em
escapar as mäos de Cesar se faz em pleno palco (2). 1649) sofrem o crivo impiedoso das bienseances. Se ao homem se re-
serva o direito de declarar-se amorosamente a quem quer que seja, o
Seculo da honnetete por excelencia, podemos todavia secciona-lo mesmo nio e permitido ä mulher, a näo ser que ela se sirva de ter·
nas duas metades, em que a primeira, correspondente na ao ceiros, e muito discretamente, e ainda assim e conveniente que ela
pre-classicismo, sancionou e ate exagerou tödas aquelas formas, habi- manifeste ostensivamente consciencia de que esta infringindo as nor-
tos e atos que a segunda metade do seculo considerou indignos, desde mas do decöro. No dominio da sensualidade - as mesmas
a publica confissäo de amor de uma mulher as cenas do amor inces- Se Corneille na original de sua Suivante ( ato I, c. 3) faz Flo·
tuoso. A atitude de Ximena, recehendo a visita do assassino de seu rame ver em sonho Amarante e diz
pai e na mesma noite aceitando a proposta de casamento de Rodrigo
depois de lhe confessar que ainda o amava, foi considerada "impu- Elle entre effrontement jusque dedans ma couche,
dica" por Scudery e oomo "escandalosa", senäo "depravada" pelos Me redit ses propos, me presente sa bouche,
Sentiments de f Academie Frant;aise sur le Cid. A partir dessa epoca
os dramaturgos redobram as cautelas que o principio das convenien- na de 1660 este versos serao suprimidos ( 1). Personagens que se
cias foi impondo com um escrupulo cada vez mais crescente. Routrou despem, travestidos, ou que se deitarn no mesmo leito; o beijo (täo fre-
transforma, em sua comedia Menechmes (1630 ou 1631) a prostituta qüente no teatro pre-classico), as provocadoras dos seios, os
do original de Plauto numa viuva respeitavel, eliminando inclusive ou- suspiros, as histericas, as sexuais, o estupro, a gra-
tras que ja se tornavam chocantes na sua epoca ( 3) . videz em solteira, as venereas, enfim tudo que se relacione
com as formas inferiores da vida sentimental e erotica, vigentes antes
A linguagem tambem acaba por ser policiada pelo codigo das de 1650, vai sendo progressivamente ahandonado, tanto no teatro como
conveniencias. 0 vocabulario grosseiro, a propria palavra de no romence, a partir dessa data. Dentre os atos chocantes abria-se
uma para o suicidio: "considerado gesto nobre e heroico, e o
imico ato sanguinolento que a estetica cliissica admite em cena. Racine
1) Cf. Rene Bray, c:L'esthetique classique», IV, p. 441. remata a maior parte de suas tragedias com suicidios, desde Atalide
2) Catäo e de 1713, tendo sido traduzida em portugues por Manuel de que se apunhala, ate Phedre que se envenena" (2). (0 seculo XVIII,
Figuei'i'edo, em 1776. Desta tradu<;ao nos da conta Garrett no preficio
de sua tragedia do mesmo nome, e a qua! considera ma. Garrett, que
imitou a pe<;a inglesa, tambem faz suicidar-se Catao a vista do audit6rio.
1) Cf. Scherer, obra cit., p. 400.
3) V. J. Scherer, La dramaturgie classique en France, p. 385.
2) V. Aguiar e Silva, obra cit., p. 122.

124
125
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como vimos pela passagem de Correia Gan;ao, foi mais radical ainda, C) 0 M:ARAVILHOSO
pois a pr&pria auto-elimina<;iio aparece condenada). Sobrevivencia da
recomPnda<;iio horaciana, tudo que pudesse ensangüentar o tealro era Convem lemhrar que o maravilhoso niio consistc apenas na inter·
assim os combates, a representa<;ao da morte violenta, os dos deuses no curso dos acontecimentos humanos; tudo que
Os combates ( como o de Rodrigo contra os mouros) apare- se opera de forma estranha, imprt>vista, patetica, surpreendente, seja
cem narrados, niio represPntados; os duelos, freqüenlcs no periodo ela a dc personagens divinas ou a rraliza<;ao de um fato
consPguiram resistir as restri<;Öes das conveniencias che- que ultrapasse as for<;as naturais de um homcm. ou ainda qualquer
gando ate fins do seculo XVII. Toda,ia tomava-se o cuidado de que sucesso que exorbite as leis da natureza, e do dominio do maravilhoso.
os duelos niio fossem travados em presen<;a de parentes idosos, de A presen<;a dos dt>uses da mitologia pagii no plano terreno; a opera-
mulhPres ou do soberano. Richelieu havia proihido os duclos durante <;ao de milagres atraves de santos, de anjos, dt>monios ou da propria
o seu governo; e a apologia que Corneille acaha por fazer do duelo interven<;ao sensivel de Deus; a manifesta<;ao da gra<;a, da inspira<;ao
110 Cid (1637) da-nos ate a imprt>ssiio de um protesto contra aquela rlivina no homem; as formas mais variadas da e da ativi-
interdi<;iio. 0 certo e que OS Sentiments de l' Academie Fram;aise sur darlc imaginativa criando o fantastico dos sortilegios, dos encantamen-
le Cid, formulados sob a propria presidencia do Cardeal Richelieu, to;:, dos sonhos impossivcis e do diabolico; as personifica<;Öes do abs-
admitiram a cPna corneliana invocando razöes de honra e a com- trato atraves dos recursos da alegoria, do mito e da prosopopeia; as
patibilidade do USO de tais duclos com a epoca de D. Rodrigo. manifesta<;Öes visionarias e os estados alucinatorios, enfim tudo aquilo
qup e inexpJicavel pelas leis da fisica, pPrtence ao reino do rnaravi·
Tudo isto nao significa que a literatura classica seja uma litera- lho•o ( l). Ern linhas gerais, o maravilhoso pode classificar-se em ma-
tura Lotalmente pudica, ainda que eminentemente moralisla: ob ras ha ravilhoso di vino (pagao e cristao) ; mararilhoso magico c mararilhoso
em que a licenciosidade da linguagem, a irreverencia e certos sentimen- lwmano.
tos indignos fazem a sua apari<;ao. A poesia satirica de Greg6rio de
Matos e de BocagP, os libelos de Jose Agostinho de Macedo contra Com exee<;ao das formas criadas pelo maravilhoso nistiio ( os mi-
OS St'US contemporaneos. as palavras grosseiras da comedia Anfitriöes
lagrFs, a gra<;a, o diabolico), as obras ortodoxamente classicas conhe-
de Camöes, alguns sermÖPs de Vit>ira ( como o da Nossa Senhora do Ö), ceram todas as outras modalidades de maravilhoso, desdt> a intervFn-
<;iio dos deuses no mundo terreno ate as visÖPS de Orest{'S na Antro-
o Gama a chamar de perras os maometanos na presen<;a do rei de
maca de Racine, que ve sozinho 0 sibilar das Furias {' das SPTjlPlllt'S
l\It>linde que tambem o era, siio testemunhos dc que as obras chissicas
a volta da cabe<;a de todos. 0 maravilhoso miigico ( eomo o epis(Jdio
niio estiio completamente isentas de impurezas vocabulares, de irreve-
de Circe na Odisseia, o encantamento da apaixonada Dido na Eneida)
rencia Oll de incivilidade. Porem, a satira (tao violenta na epoca)
ocupa um lugar secundario entre os poetas antigos. A Iliada. por
constituia uma forma literaria marginal do Classicismo, sem te6ricos
exemplo, desconhece-o totalmente. A Fars1ilia de Lucano (sec. I d. C.)
que sobre ela legislassem; dava a impressao de valvula de escape de
ja esta um pouco fora das coordenadas do mundo classico: nela, a
uma sociedade literiiria que vivia sob o jugo permanente de regras
compensar a ausencia das intt'rwn<;Öt's sohrenaturais. figura com cPrta
constrangedoras e de proibi<;Öes de toda especie. E sintomiitico que freqüencia 0 maravilhoso magico dos montros c da feili<;aria. 0 ines-
a satira flores<;a, e normalmente com certa virulencia, nestes periodos perado, o surpreendPnte nos poemas cl[tssicos e constituido normalmen-
em que o imperio das regras e a norma criadora. te pelas interven<;Öes das divindades e pelas a<;Öes sobrenaturais dos
0 Classicismo e a literatura que procura agradar, muito mais herois. Homero amplifieava a capacidade fisica de sPus her&is: a pe-
quc interessar; e agradar consiste no respeito ilimitado as convenien- dra que Diomedes lan<;ou contra EnPas, mal poderia ser levantada por
cias; o criterio de beleza parecia residir mesmo na conformidade, de dois homens de seu tempo; a mesma pedra que Turno arremessou
um lado - entre a materia da arte e a expressao, de outro - entre contra Eneas, com grande dificuldade poderia ser transporlada por dez
o objeto da arte e o seu piiblico ( l). As convcniencias comandavam, homens seus contemporaneos - diz Vergilio no seu poema.
de fato, a fatura da obra literaria. Desrespeitii-las, bem como a veros- ad\ ntir. todavia, que a presen<;a das divindadPs no campo das a<;Öes
similhan<;a, nao raro punha em cheque o sucesso da cria<;ao artistica.

1) S6bre o maravilhoso, \·er o excelente capitulo da obra dc Jean Suben·ille,


\". Henri Peire, Le classicisme fram;:ais, p. 102-103. Theorie de l'art et des genres litteraires, p. 249-258.

126 127
humanas - tida como irreal desde que apareceu o Cristianismo -
correspondia a um objeto real para Homero e os homens dt> seu tem-
r
I'
c

deixa de ser cre111,:a para se tornar maquina, recurso literario. Ü5 es-


fon:;os sobre-humanos de Augusto para recompor uma religii.io poYoa-
po. Na composi<;äo de seus poemas tinha o poeta consciencia de que I da por mais de trinta mil divindades (segundo o testemunho de Yar-
a participa<;äo dos deuses no plano terrl:'no era inven<;ao poetica; mas räo) sao inüteis. Tiberio inaugura um reinado em quc os
deuses romanos ja estäo desacreditados. A mitologia inicia a sua tra-
estava convl:'ncido de que tais interven<;Ües eram possiveis, porque acre-
jet6ria como recurso de arte, ingressando no reino da irrealidade. E
ditavam nos seus deuses e nos seus poderes sobre o homens ( 1). Po-
assim que ela chega ale aos cliissicos do Renascimento. Compreendc-se,
rem, jii no sec. VI a. C. a filosofia de Xen6fanes inicia o descredito
portanto, que Arist6telrs considerasse a interven<;äo dos deuses na efa-
da cosmogonia de Homero e de Hesiodo, atacando inclusive o culto
bula<;i.io tragica como processo inoportuno, relegando-o a situa<;Ües
das imagens; Protagoras, no sec. V, poe em cheque a existencia dos
secundarias e fora da truma de pe<;a. A apari<;iio dos deuses e her6is no
deuses, impossiwl de comprova<;iio em virtude da obscuridade do pro-
teatro gregu ( !llJZUVll ) fazia-se no ar, ao alto, na parte esquerda da
blema e da brevidadc da vida humana; no mesmo seculo as Nurens
cena; Euripides havia usado e abusado das divinas para
de Arist6fanes tentam estabelecer um contrapeso a nova educa<;äo do
resolver situa<;Öcs que de outro modo seriam insoluveis ( 1). Platiio,
seu tempu posta em voga pelos sofistas; a Rotaqua ( ) acaba
no Cratilo, bem como os poetas comicos, tambem ironizava a exempli-
destronando Zeus como primum mobile (2); Antistenes, discipulo de
fica<;iio de questöes dificeis pela interven<;iio dos deuses a maneira dos
S6crates, no inicio do sec. IV, procura ensinar que Deus e um :-:l"1.
autores tragicos ( -125 d). Para Arist6teles o desfecho da a<;äo drama-
incorp6reo e feito a sua pr6pria semelhan<;a; sofistas, eleatas, cinicos,
toda a classe culta submete a rigoroso exame a validade da mitologia; tica devia brotar da propria composi<;iio da fiibula; e o recurso do
0 ateismo e pecha por que passam todos OS fil6sofos; Arist6teles nao
deus ex machina so podia ser tolerado para esclarecer fatos preceden-
escapa dessa incrimina<;ao. Dai explicar-se a sua posi<;ao na Poetica tes ou subseqüentes da a<;iio dramatica pröpriamente dita, isto e, acon-
com rela<;iio ao elemento religioso na tragedia ( 3). tecimentos extracenicos; nesse caso os deuses operariam como men-
sageiros, ou para de um passado que se perde de vista ou
Com o advento do Cristianismo, e mesmo antes - na epoca de para predi<;ao e anuncio de fatos que Ultrapassam a Capaeidade huma-
Vergilio, por exemplo - a mitologia romana tambem cai num proces- na. Tal o caso do Filoctetes de S6focles, em que Filoctetes aparece
so de esvaziamento; perdendo o seu cariiter sacral, o seu valor divino, admoestado por Hercules a sair de Tr6ia, depois de toda a sua resis-
os deuses adquirem um mero significado artistico; e a literatura pas- tencia perante as suplicas de Neopt6lemo e as amea<;as de Ulisses. No
sa a ver no maravilhoso pagiio uma especie de representa<;iio poetica Orestes de Euripides surge Apolo a revelar fatos ligados ao rapto de
do mundo nos Lernpos primitivos. Helena e desconhecidos de todos. So assim se explicaria a interven-
<;iio dos deuses. No corpo da trama nenhum ato drve ficar sem sua
A filosofia grega por um lado, a introdu<;ao de cultos estrangeiros
devida explica<;äo racional - diz o Fil6sofo (Poet., 1454 b1). Dai
por outro, bem como as modifica<;Ües do estado intelectual e social do
entender-se que condrnasse na Medea. de Euripides o desenlace da fa-
povo, contribuem para as transforam<;Ües das antigas cren<;as religio-
bula fazendo com que Helio, o Sol, aparecrsse com seu carro alado
sas ( J.). Vergilio, ainda representante de uma minoria intelectuaL j [J
e arrebatasse Medea prcstes a cair nas mäos dos inimigos; condenou
niio acredita nos deuses de sua religiiio: a mitologia no seu poema
tambem a passagem em que Homero faz intcrvir a deusa Atena, junta-
mente com Ulisses, a concitar os aqueus que desejavam fugir de Troia
(lliada, II, 155 ss.). Arist6teles, portanto, considerava a maquina um
1) V. Jean Suberville, obra cit., p. 253. expediente al6gico porque ela se afastava de qualquer conexäo causal
2) E a dialetica sofista, segundo o esquema de Arist6fanes, era muito sim- com a a<;iio dramatica. lsso niio impedia que recomendasse o uso de
ples: quem chove näo e Zeus, --- säo as nuvens, pois s6 ha chuva onde coisas inesperadas, imprevistas ( :wga ·n'1v ) para suscitar o es-
elas estäo; quem troa tambem näo e Jupiter porque as nuvens, nos seus panto, entreter 0 interesse dos espectadores, pois 0 estranho e sempre
entrechoques, troam; quem as impele nestes seus entrechoques ainda näo agradavel ( -rov M r1M ,Poet., 1460 a17). Todavia, fm
e Zeus, mas o ton·elinho do etereo ...
atcn<;ao a conexäo causal da a<;iio, as coisas inesperadas devem rcsul-
3) Acerca da religiäo primiti,·a grega nas classes cultas, ver a obra funda-
mental de Persson l\ilsson, Historia de Ia religion griega, cap.
VIII, p. 324-373.
I) Daqui vem o prm·erbio {}Eo; (heb , deus ex machina, para
4) \"er, a respeito a obra de Albert Grenier, EI genio romano, p. 195-:!0i, significar soluc;äo artificial de alguma dificuldade.
464-488.

1
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128
tar uma da OUtra; 11PSSP 0 espanlO e SL'!llpre maior do qup SC 0 tada quanto o heroismo dP Aquiles quP Yai, no momPnlo supremo do
imprPYisto hrotasse Pspo11tanPamPnlP ou por aPaso ( tl'X I} ) ; cntrdan- poema, pör termo a vida do herlli troiano. Pergu11ta Fernand Roberl:
to. ainda que as Poisas sP pa,;sl·m por casualidade, se tornam "Pourquoi cet empressement d' Athena aupres d' Achille, au momrnt Oll
lanto mais surprcendenleo qu:mto mais intPncionais parP<;am suceder; il Ya tuer Hector, ill., XXII, 25-:366) '? 1\'otre gout exigerait que IPs deux
c Ari,ltJtdes kmbra o caso da de l\Iicio rm Argos, erigida em champions fussent aux prises seul a cette renco11tre" ( 1). 0 heroi
honra de \il{nias. e que duranie uma ft:sla ruiu so!Jrp a cabE'<;a troiano e protegido por Apolo, enquanto Aquiles tem Atena como tu-
daqucle que em rm·io a uma havia assassinado l\IIcio. tt-lar. i\" uma luta desigual, incomoda-nos que Aquiles tenha necessida-
de de uma deusa para combater com um adversario mais f raco; e -
Em rdac;iio ao pocma epico. a tragl-dia e IllE'IlOS libPral com 0 0 que e mais humilhanlP - a deusa lai1Ct:' miio de artificios desleais,
marayi]hoso: :;e nda SE' USa 0 admirawJ. 0 pOPillU epico podr ir mais a pn'sen<.;a de Deifoho como companheiro dP Heitor. Pe-
Ionge P utilizar-se inclusiw do ine'>:pliciiwl. E isto rntendP-sP pPlo fato por Zeus os destinos dos dois her6is. Apolo retira a sua prote<;iio:
de que 0 poema epico e narrali\o e a 11UO se drscl1\olw dial1te dos Beitor de\-e morrer em miios do herbi aqueu. Ora, qua! o juizo do
como sucede na lragl;dia. A persegui<.;iio de Heitor, no firn da Ieitor moderno, desprevenido no conhrcimento das ideias religiosas na
1/iadu. acPitavel 110 poema <;pico, seria ridicula na fiibula tragica, pois cpol'a de Homero e do pr6prio espirito do poeta '? Que a presen<;a pro-
o audit<'irio 11ao poderia admitir que os dt'mais gregos pnmanPcessem, tr-tora dos deuses exclui todo 0 merito do herbi; que 0 hu-
por um si11al dP Aquilcs, imovris 110s sPus Iugares a contemplarem a mano e ineficaz. SucedP, porem, que 0 ouvinte da epoca de I-lomero
fuga do beroi lroiano ( fato que passa ao ouvinte ou Ieitor l' do,.; dois Oll tres primeiros secuJos posteriores a eJabora<;ao dos SE'US
do pocma epico) . poemas, aceitava e mesmo aguardava essas interven<;Öes. A moral ho-
merica, na educa<;iio do hrrbi, ensinava que a prote<;iio divina e tal1tO
Horiicio tumbem foi smm'irio em rela<;äo ao maravilhoso, ai11da que
mais fortP quanto mais os her6is cultuam as suas divindades, lembral1-
mais indulgPntP que Aristf1teles, pois admitia o dPus I'X machina Pm
do-:;e delas freqÜPI1tementf', oferecendo-lhPs sacrificios gei1Prosos; so as-
casos de absoluta conve11iencia para soluc;iio 110 110 dramiitico: Nec deus
,oim poderiam assegurar a sua gl6ria pessoal; e sb assim podrremos
intersit, nisi dignus vindice nodus / incidPrit (A. P., 191-192).
<·ompree11der qtw Aquiles sP ja postPriormente morto por Paris, o mais
Do11de se conc-lui que a legisla<;iio do maravilhoso divino nos dois dC·hil dos guerreiros troianos. 0 elemmto epico na luta Pntre Aquiles
tec'n·icos a11tigos e extremamente lacö11ica: as maqui11as so tem Iugar 11a (' Heitor nao residia na viole11cia sobre-humana do herbi grego enfure-
parlP narrativa da tragedia, 11ao 11a parte dramatica; a sua prese11<.;a cido desde a morle de Sl'U gral1dP amigo Patroclo: 0 epico estava 11a
o;(J justifica qua11do elas siio absolutamente 11ecessarias, e a solu«<äo ideia de fatalidade: ''AccumuiPr \es sig11rs qui font naitre en nous pro-
dos nao pode realizar-se de outra forma. Fora destes casos o poeta ;rressivemPnte Ia convil'lion qu'HPrtor va mourir, voilä Oll s'Pmploic
dt'n- esfor<;ar-se por urdir a intriga de modo que a dos 11os lout l'art du poete" (2). Por isso me::mo, pela i11compree11sao da sen-
5P n·alize por mPio de recursos que brotPm da propria fabula drama- sibilidade religiosa dos tPmpos de Homero, e que um teorico como
tica. 1\o JlOt:'illa epico, mais afPitO as coisas extraordi11iirias que a tra- La Mesnardiere votava profundo desprezo pelas "actions ridicules et
gedia. a Jlft'SPI1t;a da miiquina divina e frpqÜente; OS prob\emas que incroyabiPs des diPux de l'lliadr" ( 3).
11a ac;iio se desenrolam parecPm urdir-sp e resolver-sp como se deuses
A prohlematica do maravilhoso como principio surgr desde o mo-
E' hnois estivessem empP11hados Pm lutas de familia. Corno os hrrois,
mcnto cm que partimos da concPitua<.;äo do poetico como imita<.;ao da
JlOl' U!lla Jinha de parel1tl'SCO. mPdiata Oll proxima, SaO descendPnles
natureza sPgundo as !Pis da ou da 11ecessidade. Assim
rhi deusPS ( Eneas e filho de Ve11W:' (' Anquises; FlissPs descPnde dc
como as conve11iencias parccem excluir o realismo hist6rico, a veros-
Zl'Us pelo pai LaerLPs rtc.) e'>:plica-se que as diviwlades intPrvenham similhan<;a parece 11ao admitir o maravilhoso. 0 alogico, o imprevisto,
110 plano terreno. como interessadas no curso dos aconlecimentos huma-
o impossivel ( dl\{,varov ) facilme11te podrm tornar-se inwrossimeis.
nos. Da! a frt:qüencia com quP o plano olimpico e o plano terrPno se
110 poema cpico. Hoje dificill1wnle nos encol1tramos Pl11
condic;öes de compreendPr essa participac;ao. que Pm detPrminados casos
1) \'er a analise que faz desta passagl"m homerica em sua obra Homere,
parece suhtrair do heroi a sua determinac;ao pP,.;i'oal ou as suas qua- p. 1-7.
lidades epicas. A fuga df' H<'itor ao suspeitar a presrll(:a 2) F. Rollert, Obra cit., p. 5.
de Aquiles. 110 final da 1/iada, - e dPpois de haver dado provas de 3' Jules La La Poetiqne, I, p. 14, citado por R. Bray, La
töoa a sua potel1cia her6ica 11as hostrs gn·gas - , e täo mal interpre- formation ... , p. 234.

130 131
Porem, como se trata de recursos indispensäveis para o deleite e para Iivre se precipite, atraves de de intervent;öes
a do interesse, o poeta deve por tornar compa- divinas e de fabulosas torrentes de a firn de que a obra apa-
tiveis o maravilhoso e a do conträrio, ele poderia, antes como o vaticinio de um espirito profetico do que como o
pelo ahsurdo, incidir no riso. Le Bossu, referindo que a tempestade seguro testemunho de uma narrativa escrupulosa (I). Ern Portugal,
promovida por Juno para a de Eneas se realizou na epoca do desde os primeiros anos do sec. XVI, desponta e se acentua a cons-
ano em que elas sao freqüentes, diz que "On ne doit jamais supposer ciencia de que os portugueses jä possuiam uma extraordinäria materia
d'orages pendant les jours d' Alcyon. Ce serait abuser de Ia puissance epica nas empresas navegatorias, cuja apoteose estava a reclamar a ela-
des dieux et leur attribuer une force qui choque Ia vraisemblance poe- de uma epopeia; porem sentiam que apenas o "estilo nacio-
tique" (I). Nao deixa de ser uma da dos proprios nal" ( que consistiria em cantar feitos verdadeiros e näo "väs
deuses, sempre no intuito de näo ferir o soberano principio da fantästicas, fingidas, mentirosas") näo seria suficiente para "alevantar
poetica ( a . Os teoricos do Renascimento, por isso a gloria deste feito no grau que ele merece" - dirä Joao de Barros
mesmo, tentando justificar as circunstiincias excepcionais da fäbula poe- (2). Sim, porque o zeloso cronista do reino, que tambem ensaiou a
tica, classificaram a em ordinaria e extraordinaria; e desse poema epico com a sua Cronica do lmperador Clari-
assim se abria uma välvula inclusive para os partidärios do maravilhoso mundo, era de parecer que esse hino de gloria devia cantar apenas a
cristäo (sob as suas formas de milagre, de divina, da "pureza da verdade"; Camoes teve uma aguda consciencia de que um
ou do demoniaco), explicäveis entao como exemplos da verossimilhan- poema epico sem 0 maravilhoso divino - e pagao, nao cristäo - seria
fa extroordinaria. Teoricos intransigentes näo admitiram semelhante condenar a obra ao esquecimento da posteridade. Ninguem, no seu
argumentando que tais concessöes viriam enfraquecer a tempo, podia compreender que se fizesse uma obra nesse genero des-
a soberana Iei da literäria. Ern os te6- provida do maquinärio olimpico; Homero e Vergilio, e este mais do
ricos do sec. XVII aceitam as de Aristoteles: o maravi- que o primeiro, eram os ditadores da moda; a exigencia estetica do
lhoso e um ingrediente necessario, sobretudo na epica, 0 SeU USO maravilhoso se tornara soberana.
deve atender as exigencias da e respeitar a razao cläs-
sica. Castelvetro proclamara que "o incrivel nao pode ser maravilho- A dificuldade consistia em conciliar o maravilhoso com o prin-
so" (2). A Farsalia nao foi para esses teoricos um poemaa que atin- cipio da credibilidade; da mesma forma como se pregava um ajuste
giu esteticamente o seu objetivo porque a ausencia do maravilhoso di- harmonioso entre as conveniencias e a verdade historica. Le Bossu,
vino tomou a fabula epica seca e desinteressante. 0 maravilhoso mä- cujo Traite de poeme epique (Paris, 1708) teve uma larga repercussäo
gico, entretanto, as orientais e druidicas, a vie- nos teoricos do sec. XVIII, e em Portugal chegou quase a ser glosado
ram atenuar um pouoo as pretensöes historicas e cientificas do poeta por Pedro Jose da Fonseca em seus Elementos da Poetica, lemhrava o
cordoves, que tinha uma especial pelas "formas Iugohres do recurso da psicologica do puhlico como necessario para ate-
misterio, da morte e da profecia" ( 3) . tsse maravilhoso de monstros, nuar os casos em que o maravilhoso poderia chocar a razäo pelo seu
serpentes e e assimilado mais tarde por Dante (lnf., XXIV), abuso. 0 maravilhoso mägico, que foi praticado com certa parcim.Onia
Milton (Paradise lost, X, 52I), Goethe (na noite de Walpurgis), Shelley pelos poetas antigos ( como vimos), adquiriu foros literarios no Renas-
(no Prometeu desencadeado, 111, I, 40, e n'A rebeliiio do Islam, VIII, cimento, como atestam os poemas de Ariosto e de Torquato Tasso;
2I) (4). Petronio, no Satyricon·, alude ao poema inacahado de Lucano, aqui o ingrediente mägico vem compensar a insuficiencia do maravi-
dizendo que para cantar a guerra civil romana e necessärio que uma lhoso cristao cujo emprego pode inclusive descambar para a impie-
dade ou para o ridiculo; a magia se adapta tanto a um poema de ar-
gumento pagao como a um de tema cristäo; ms nao raro o seu ahuso
1) Ap. Rene Bray, «L'esthetique classique», IV, p. 445. Por «dias de Alcion» suscitou a dos teoricos: "Ajouter enchantements a enchante-
entende-se, segundo a lenda, aquele periodo em que esta ave choca seus ments et illusions a illusions, comme a fait I' Arioste, ce n'est pas faire
ovos, compreendido entre sete dias antes e sete dias depois do solisticio
do inverno, e no qua! näo se conhecem tempestades.
2) Poet. vulgar., V, 2, p. 612, ap. R. Bray, La formation ... , p. 233. l) . .. sed per ambages, deorumque ministeria, et fabulosum sententiarium
torrentem, praecipitandus est liber spiritus, ut potius furentis animi vati-
3) Miguel «Literatura hispanorromana», in Hist. general de las literatu- cinatio appareat, quam religiosae orationis sub testibus fides (Sat., CXIX,
ras hispänicas, I, p. 42.
in fine, ed. de M. Rat., Petrone, p. 289).
4) Ver G. Highet, La tradicion clasica, 11, p. 195-196. 2) Decadas, Ia., 1. IV, cap. 11.

I SI·
133
un poeme, c'est faire une rhapsodie de sortileges, pareille a la Vie tempestade que teria ocorrido na segunda viagern de Bartolomeu Dias,
d' Apulee ou a celle du Docteur Faust" - dira Pierre Le l\Ioyne na nao na do Gama) (1).
sua Dissertation du poeme hero"ique ( 1). Outros acabaram por con-
denar 0 USO do maravilhoso magico: 0 proprio Chapelain, que inicial·
mente fora indulgente para com o seu emprego desde que nao fPrisse D) AS UNIDADES
o preceito da verossimilhanc;a, acabou por condena-lo em nome dela e
do bom gosto. Torquato Tasso, e na sua esteira Paulo Beni, censurava a) Terminologia e unidade de
0 poeta epico "troppo Jicenzioso neJ finger Je COSe impossibili, Je ID05·
truose, le prodigiose", recomendando que os magos e nigromantes fos- Corno nas conreniencias, termos ha que apresentarn certo paren-
sem introduzidos com certa verossimilhan<;a ( 2). tesco e possibilidades de serem confundidos - tais como unidade, in-
Camöes reconheceu a impossibilidade da elabora<;ao de um poPma tegridade, simplicidade, dos quais falam Aristoteles e Horacio com mui-
epico despojado da maquina mitologica paga; mas protestar orgulho- ta clareza e objetividade. A unidade - diz Santo Agostinho (Epist.,
samente, em varios momentos do poema, o proposito de cantar apenas 16) - e a forma de toda a beleza ( Omnis porro pulchritudinis unitas
a verdade historica, redundava em agravar mais a irredutibilidade dos est) ; e por ela o artista subordina as ideias particulares a um centro
dois planos: o olimpico e o real. Os homens de seu tempo nao acre- fixo que constitui o eixo do assunto, criando assim uma impressao do-
ditavam nos deuses da antiguidade classica; as cronicas, as fontes de minante. Uma fabula poetica nao e una pelo fato de apresentar um so
informac;ao historica e OS relatos da viagern de Gama nao aludiam as heroi, pois muitos e infinitamente varios podem ser OS acontecimentos
ou ac;öes respeitantes a uma so pessoa (Arist., Poet., 1451 a16). 0
divindades olimpicas; Gama e os seus companheiros permaneciam fieis
elemento fundamental da fabula e a ac;ao, nao 0 homem: muitas a<;Öes
a sua religiao crista; o proprio poeta mantinha-se firme na mesma
variadas, ligadas entre si pela verossimilhan<;a e pela necessidade, podem
religiao; e o poema, alem do mais, destinava-se a glorificar nao so as
formar um todo uno, de tal sorte que a eliminac;ao de um ato parcial
empresas navegatorias e toda a grandeza epica da historia portuguesa,
ou a sua deslocac;ao podem partir ou decompor o todo. E nisto que
mas a dilata<;ao da fe crista. Corno conjugar dois mundos absoluta-
consiste a unidade. Se a primeira regra geral da arte e a unidade, a
mente incompativeis? Foi nisso, entre outras coisas, que se revelou a
segunda e a variedade ( varietas in unitate) ; e a variedade na unidade
extraordinaria personalidade criadora do Poeta. Denunciando no final
se consegue ou diversificando os objetos que constituem a materia
do poema (X, 82) a irrealidade dos deuses greco-romanos (porque sP
do poema, por meio de epis6dios e acess6rios, ou diversificando os ob-
o tivesse feito no inicio talvez suprimisse o interesse do Ieitor e com-
jetos por meio de novas combinac;öes e mudanc;as. Ambos os proeessos
prometesse seriamente o deleite), Camöes pos em pratica um esquema
sao obra da poetica. Epis6dios sao todas as ac;öes particulares e
de processos que permitisse a conjugac;ao dos dois planos sem ofPnder incidentes com que o poeta desenvolve e estende, segundo a lei da vc-
ao principio da verossimilhanc;a: adotou, para toda as intervenc;öes de rossimilhanc;a, as partes componentes da ac;ao central; acess6rios, deno-
Baco, o recurso do disfarce humano ( o deus das forc;as adversas apa-
minada-s TI:!lQc(lyci pelos gregos, sao as representa<;Öes dos objetos inani-
rece sempre sob a figura de um mortal) ; fez Venus e J upiter inter-
mados com que o poeta faz a decorac;ao das cenas, caracterizando assim
vir toda vez que a informac;ao historica aludia a fatores providenriais os seus Iugares e determinando o seu tempo. "Assim, a passagrm de
na soluc;ao dos obstaculos da viagern; utilizou-se do sonho e da ambien- Eneas da Sicilia para a Italia (En., I, 38) e uma parte necessiiria da
tac;ao realista, geralmente para os casos em que tew de modificar a ac;ao da Eneida. 0 incidente com que Juno se opöe a esta passagem,
historia (no sonho D. Manuel, que ocorreu nao com ele mas com o implorando a ajuda a Eolo, e excitando a tempestade, que da com a
lnfante D. Henrique, e no qual o rei teve a visao dos dois rios orien- armada de Eneas na costa da Africa, e um epis6dio. A pintura das
tais personificados - o lndo e o Ganges; no sonho de Gama, em
ilhas e caverna de Eolo, e da enseada na costa da Africa, a que as naus
que lhe aparece Mercurio instigando a prosseguir na viagern inconti- destroc;adas se recolherao, sao acessorios" (1). Logo, alem da ac;ao cen-
nentemente; na aparic;ao do Adamastor sob a forma real de uma nuwm, tral, a fabula pode comportar ac;öes particulares ( que decorrem neces-
e na de Venus para aplacar a tempestade, sob a forma de uma estrela,
sariamente da ideia principal)' episodios e acessorios. :f:stes ultimos,

1) Ver R. Bray, Obra cit., p. 236.


I) Ver, a respeito, a importante conferencia de Antonio Salgado Junior,
2) Apud Belloni, ll poema epico e mitol6gico, p. 179. Os Lusiadas e a viagern do Gama, Porto, Clube Fenianos Portuenses, 1939.

134 135
ainda que näo dependam ·necessariamente da central, säo ingre- possamos justificar a inclusäo de um episodio dessa natureza, de vez que
dientes necessarios para dar extensäo e ornamento a fabula do poema. o poema camoniano näo tem compromissos estritos com as normas tra-
dicionais do poema epico. Poema do mar e poema da terra - porque
Por integridade da fabula se entende quando ela apresenta exalta o heroismo luso em töda a sua historia - , explica-se que em
tronco e membros, ou melhor, principio, meio e firn; e com isso forma alto mar os marinheiros contassem um episodio desse genero. lnclu-
um todo completo e perfeito. 0 principio e 0 que supöe alguma coisa sive o gösto pelas novelas de cavalaria ainda vigia nos fins do sec. XV,
depois de si, nunca antes: num poema epico, por exemplo,o princi- quando Gama realiza o seu notavel feito. Camöes todavia parece ter-se
pio esta no designio do heroi e na de tödas as causas hu- lembrado do principio da simplicidade quando antecipou este relato de
manas e sobrenaturais) e maquinas da 0 meio e 0 que antes de Veloso com a proposta de Leonardo que pretendia narrar contos de
si e depois de si requer sempre alguma coisa; e o meio que constitui amor; ao que responde o Poeta pela böca de Veloso:
pröpriamente 0 enredo do poema; esta representado, no poema epico,
pclos do heroi em pör em o seu designio, vencendo Niio e, disse Veloso, cousa justa
pela astucia, pelo valor, pela prudencia ou pela ajuda celeste, todas Tratar branduras em tanta aspereza;
as dificuldades que se opöem a sua empresa (nascidas de sua ignorän- Que o trabalho do mar, que tanto custa,
cia ou de sua impotencia, ou ainda de sua credulidade - como no Niio sofre amores nem delicadeza;
caso de Gama). 0 fim e o que supöe antes de si alguma coisa, depois Antes de guerra fervida e robusta
de si nada; na fabula epica corresponde a total de tudo que A nossa hist6ria seja ... (VI, 41),
se opos a
A simplicidade e a regra que se opöe ao hibridismo, a duplicidade e acabam por ouvir a historia do torneio. Se esta fosse realmente in-
e a multiplicidade. Por ela () poeta deve manter no seu poema o tom compativel com o espirito dominante do poema, teria entiio o Poeta
que Ihe e proprio. Numa epopeia, cujo firn e contar empresas grandes pecado contra a simplicidade. A simplicidade, aqui, Se contrapöe a
e maravilhosas, tratadas com magnitude e a do co- duplicidade.
mico ou mesmo a de pequeninos ambientes com() um prado, Quando a fabula se carrega de incidentes e acessorios que, pela
arbustos, "as curvas de rapidos ribeiros" (properantis aquae per amoe- sua multiplicidade, gera confusiio ou pela sua extensäo afasta o publico
nus ambitus agros, Hor., A. Poet., 17), ou ainda a pintura de cändi- do espirito do poema, o poeta infringe igualmente a simplicidade. Se
dos amores que seriam proprios de uma egloga), infringiriam 0 pre- um poeta epico desejasse compor um poema sobre a guerra de Troia,
ceito da simplicidade. Ela aqui opöe-se ao hibridismo. Horacio cen- poderia perfeitamente apresenta-Io com unidade, mas desprove-lo-ia de
sura as digressöes que nada tem a ver com o tema poetico, compa- simplicidade. A arte exige a o corte da realidade a ser imita-
rando-as a remendos de purpura num vestido de tecido diferente (pur- da. Diante de um fato tiio complexo como e o de uma guerra de Troia
pureus adsuitor pannus, A Poet. 15-16), tais como as digressöes des- que dura nove anos, o poeta poderia apenas fixar um dos seus grandes
propositadas que fazia Antimaco de Colofiio (sec. IV a.C.) no seu poe- momentos: os acontecimentos que se ligam a sua ao firn do
ma Tebaida. Horacio lembra a curiosa anedota do pintor que, segundo cerco, por exemplo. Homero näo narrou, na Odisseia, töda a historia
alguns escoliastas alexandrinos, so sabia pintar ciprestres; e certa feita, do heroi aqueu, mas apenas aquela fase da vida de Ulisses compreen-
solicitado por um naufrago a representar num quadro a sua desdita no dida entre o regresso de Troia e a chegada triunfante a ftaca. Unidade
mar (pois era comum que quadros dessa natureza se dependurassem e simplicidade.
nos templos como ex-voto), o pintor Ihe perguntou se na pintura niio
desejava tambem um pouco de ciprestre ... (A. P., 19-20). Ora, seria Aristoteles, porem, classifica a fabula do poema dramatico em
incompativel na de um naufragio, do qual se salvou o simples e complexa, querendo dizer com a primeira aquela cujo desen-
navegante, pintar um cipreste, arvore conhecida como simbolo funera- volvimento permanece uno e continuo e na qua! a näo resulta
rio. Censores de Camöes tam.bem quiseram ver como episodio dispa- nem de peripecia, nem de reconhecimento; e com fabula complexa aque-
ratado o dos Doze de lnglaterra, encravado num poema que celebra a la em que a de fortuna resulta de reconhecimento ou de peri-
empresa navegatoria do Gama. Seria verossimit - dizem - que se pecia, ou ainda de ambos conjuntamente (Poet., 1452 a14). Para ele
narrasse uma historia para manter desperta a do barco ; mas a unidade da fabula resulta, näo do fato de se apresentar apenas uma
inverossimil que se tratasse de uma narrativa cavaleiresca, um torneio persoangem principal - como pensaram os autores da Heracleida e
caracteristico da romäntica feudal da velha ldade Media. . . Ho je talvez da Teseida - , mas de uma unica e completa em törno da qua!

136 137
se agrupam todos os outros fatos dela decorrentes. A articula'<iio ou sumaria, deduz-se que o Filosofo apenas se preocupou com a unidade
subordina'<aO de todos OS acontecimentos decorrentes (OS episodios) e de at;iio; a de tempo mereceu-lhe uma alusäo acidental; a de lugar näo
o que constitui a ordern: Aristoteles chama, por isso, de jabulas episo- chegou a ser lembrada. Dada a complexidade a que chegou a teo-
dicas aquelas que apresentarn episodios que niio decorrem verossimil- ria das unidades dramaticas na ltalia do Renascimento e na Fran'<a em
mente ou necessariamente da a'<äo ·predominante. 0 criterio de Aris- meados do sec. XVII, e de ver que a complicada minuncia atingida pelos
toteles para 0 caso da unidade da fabula numa composi'<iio epica e a teoricos do classicismo foi obra de puro pedantismo ( 1).
propria tragedia: enquanto da Odisseia ou da Iliada um dramaturgo
Na literatura moderna Giraldi Cintio ( Giovanni Battista Giraldi)
näo conseguiria extrair mais do que um ou dois argurnentos de tra-
gedia, de poemas como os Cantos Ciprios de Estasino de Chipre ou a
e tido como o primeiro, no seu Discorsi intorno al comporre de i ro-
manzi, delle comedie e delle tragedie ( 1554), a fazer da passagem aris-
Pequena lliada de Lesqueos se poderiam tirar inumeros argurnentos ( 1) ;
totelica söhre a dura'<äo de 24 horas uma regra precisa da represen-
mas o criterio geral para a unidade estetica da fabula e de ordern dia-
ta'<äo dramatica (2). Ern 1548 Robertello, nos comentarios a sua edi-
noetica, isto e, reside na inteligibilidade da propria fabula: a beleza de
da Poetioa de Aristoteles explicava que o autor dela quis dizer com
uma fabula esta na sua grandeza e na sua ordern; mas, se a fabula
a expressäo "periodo solar" o tempo de 12 horas, pois, como o povo
for excessivamente extensa, nos veremos singularmente as suas partes,
esta acostumado a dormir durante a noite, a a'<äo tragica näo podia
sem que possamos abarca-la na sua totalidade e na sua ordern; se for
ultrapassar a dura'<äo normal de 12 horas. Robortello aplicava a sua
excessivamente curta, a sua visäo se torna confusa (pela sua propria
observa'<äo tanto para a tragedia como para a comedia, pois que a
concentra'<äo) ( 2) ; nem uma nem outra podem estimular o prazer, pois
extensiio da fabula nas duas e a mesma. Um ano depois (1549) Ber-
a sua unidade ( ilv ÖAov ) näo foi atingida. Para Aristoteles, portanto,
nardo Segni, na sua tradu'<äo da Poetica de Aristoteles, discorda da
a unidade e o Iimite; se transgredirmos esse principio, cairemos inevi-
opiniäo de Robortello, argumentando que o Filosofo se referia ao dia
tavelmente no UJtELQOV' ( tipeiron)' isto e, na regiiio do indeterminado,
integral de 24 horas, pois que muitos dos assuntos tratados na tragedia
do acidental, do ilimitado. e na comedia sucedem normalmente a noite, como os adulterios, os
Para o Filosofo a tragedia era primitivamente ilimitada no tempo assassinios e temas semelhantes. Ern 1550, ao discutir Vincenzo Maggi
como sucede na epopeia; posteriormente tendeu a confinar-se num pe- em seus comentarios a P>Oetica aristotelica a unidade de tempo, acaba
riodo de sol, ou pouco mais (Poet., 1449 b12), enquanto a epopeia por preparar 0 caminho que conduz a terceira unidade, a de lugar.
permaneceu como era, sem Iimite de tempo. Corno se ve so aciden- Tentando explicar a raziio por que a tragedia esta limitada ao tempo
talmente falou da dura'<äo da fabula tragica em sua Poetica; e ainda e 0 poema epico niio, diz ele que a representa'<iio dramatica desenvolve-se
assim deixando rnargem a hipotese de 12 Oll 24 horas para 0 "periodo diante dos olhos do espectador, e seria inaceitavel pelo publico que em
solar". Relativameute a unidade de lugar da representa'<äo, Aristoteles
teria apenas ro'<ado por ela, procurada como foi pelas entrelinhas do
capitulo XXIV da Poetica, quando diz que "na tragedia niio e possivel
1) Joel Spingarn da-nos um resumo claro e preciso das discussöes a respeito
imitar muitas partes da a'<äo que se desenvolvem no mesmo tempo, se- das unidades dramaticas entre os primeiros te6ricos italianos: A History
näo täo somente a que no cenario esta sendo executada pelos atores" of Literary Criticism in the Renaissance, p. 89-101; Jacques Scherer e
( 1459 b23 SS.), ao Contrario do que sucede llO poema epico, que per- Rene Bray expöem com amplitude as mesmas discussöes no plano da
mite, pelo seu carater narrativo, apresentar muitas a'<Öes contemporä- dramaturgia classica francesa: «L'Esthetique classique», in Rev. de Cours
et Confer, li, p. 673-682; La formation de Ia doctrice classique en France,
neas. Eis ai töda a doutrina aristotelica acerca das unidades: muito p. 240-288; J. Scherer, La dramaturgie classique en France, p. 91-124,
149-195. A nossa baseia-se nestes trabalhos, bem como nos es-
tudos de d'Aubignac, La pratique du theatre, p. 83-127, de Chapelain,
Opuscules critiques, e Corneille, «Discours des trois unites», in Oeuvres,
1) Arist6teles chegou a relacionar dez argurnentos de tragedia possiveis da I, p. 98-122.
Pequena Iliada: 1. 0 juizo das armas; 2. Filoctetes; 3. Neopt6lemo; 4.
Euripilo; 5. Ulisses mendigo; 6. As mulheres de Esparta; 7. 0 saque de 2) Esta afirmac;ao de Spingarn pode parecer-nos errada, pois a obra do
Tr6ia; 8. A partida das naus; 9. Sinon e 10. As Troianas (Poet., 1459 b5). te6rico italiano saiu publicada em 1554, e portanto seis anos depois da
2) Aqui Arist6teles diz que resulta confuso, auyxürat , pelo fato de a edic;ao da Poetica de Arist6teles feita por Francesco Robortello. Entre-
tante, 0 que sucede e que OS discursos de Giraldi Cintio apresentarn cada
decorrer num «tempo imperceptivel», XQOvoc; (Poet., 1451 qua! a sua data de pelo autor; e assim se explica que, embora
a 1). Nesse caso e, a «durac;ao», insuficiente para dar-nos uma ideia publicado s6 em 1554, em 1543 ja Giraldi Cintio formulava o principio
do objeto. da unidade de tempo.

138 139
duas Oll tres horas, isto e, l10 t.empo em que decorre uma representar;;ao,
se dt>senrolassem acontecimentos de um mes inteiro. Seria ridiculo, por
exemplo. que numa tragedia um inensageiro fosse enviado ao Egito e
T
.

na tragedia hä normalmenie uma ar;;ao, niio por inaptidao da f<1bula


em conter mais do que uma ar;;iio, mas porque o espar;;o restrito I no
qua] a ar;;ao e representada) e o Lempo limitado ( doze horas no mii-
dentro de uma hora ja estivesse de volta. Corno o tempo da ar;;äo da per;;a ximo) nao permitem uma infinidade dP ar;;öes" I 1). E Castelntro
dew entao Iimitar-se ao tempo da representar;;ao, insinuava-se que o lu- procura inclusive aplicar tais rcstrir;;oes a poesia epica, considerando
gar da representar;;äo devia Iimitar-se ao lugar da ar;;ao. Foi, portanto, que tanto melhor serii o porma quanto mais a sua ar;;iio se confinP 1mm
baseados nestas considerar;;öes, que Escaligero ( 1563) e Castelwtro pequeno tempo e apenas em alguns lugares. As unidades tornam-se,
( 1570), o primeiro .lOs Poetices libri septem e o segundo na sua edir;;aQ< assim, para Castelvetro, leis invioliiveis para a representar;;ao dramiitica.
da Poetica aristotelica, acabaram por formular a teoria das tres unida- Aristotelicas, italianas ou francesas, apenas a unidade de ar;;äo se pode
des. Castelvetro, porem, nao afirmava que a unidade de lugar tiwsse· <:onsiderar aristotelica; as unidades de tempo e de Iu gar, ainda qut:> Eu-
sido estabelecida por Arist6teles; mas, como para ele o Fil6sofo insis- gene Lintilhac as chamasse "unites scaligeriennes", melhor se dt:>nomi-
tia em que a obra teatral deve ser sempre verossimil, seguia-se que a nariam "unidades italianas" (2). Os te6ricos do sec. XVII e do sec.
cena deixaria de se-lo se mudasse constantemente de lugar. Estabele- XVIII julgaram, erradamente, que as unidades foram primeiramenle
cida assim a famosa trilogia das unidades (da ar;;äo, de tempo e de formuladas em Franr;;a, onde a doutrina italiana s6 penetrou dois anos
lugar)' e quase impossivel hoje sistematizarmos a doutrina ociosa cons- ap6s as formular;;o<'s de Castelvetro, e na Inglaterra doze anos mais
truida a base de polemica, durante um seculo, e a qua! renderam preito tarde.
värias dezenas de te6ricos italianos do Renascimento e te6ricos france-
ses da primeira metade do sec. XVII. Apenas sobre a controvertida Hoje, com uma perspectiva que nos permite confrontar toda a
questäo da unidade do tempo, Paulo Beni, em 1623, mencionava treze produr;;äo dramätica do classicismo do sec. XVI e XVII com as expo-
opiniöes diferentes. sir;;öes te6ricas que se foram desenrolando paralelamente, estamos em
condir;;öes de dizer que a trilogia das unidades dramäticas foi uma
Ainda que Arist6teles näo impusesse Iimite de tempo para o poema pura ilusäo, responsävel inclusive por uma infinidade de mal-entendidos.
epico, Minturno e Vettori (respectivamente em De Poeta (1559) e Co- Se o conjunto trinitiirio dessas categorias esteticas vinha satisfazer ao
ml'ntarii, in primum librum Aristotelis de arte poetarum ( 1560), in- gosto clässico pela simetria e pela integridade, por outro lado a com-
clinaram-se a restringir a durar;;äo dos dois generos: da tragedia e da binar;;äo desses tres principios e puramente artificia], pois OS teoricos
epi!'a. Minturno observa que realmente as melhores per;;as tnigicas näo tinham uma nor;;äo muito precisa da terminologia: "em lugar de
aprPsentam uma ar;;ao que se desenvolve num dia, ou que näo vai alem refletirem sobre a ar;;äo como intriga, discutiu-se acerca da "unidade
de dois; e a ar;;äo do poema epico, embora o seu tempo seja muito de ar;;äo, sem saber muito bem, em muitos casos, o que se entendia por
Iargo, nao deve exceder a durar;;ao de um ano, como se pode deduzir .ar;;äo e sobretudo o que se entendia por unidade" - diz Scherer. Pon-
das pr6p1ias obras de Homero e de Vergilio. A ar;;ao da Iliada inicia- dera ainda o mesmo autor: "o paralelismo entre as "tres unidades" e
·se no decimo ano da guerra de Tr6ia, e sua durar;;ao näo ultrapassa ilus6rio, pois a ac;ao, o tempo e o lugar säo para o autor dramätico
um ano; com a Eneida sucede o mesmo, pois a sua ar;;äo principia no assuntos de reflexäo que se situam em planos diferentes e inclusive in-
setimo ano da mesma guerra e 0 tempo que decorre desde a partida tervem, segundo toda verossimilhanr;;a, em momentos diferentes dc seu
de Eneas ate a sua chegada ao Läcio tambem dura aproximadamPnle trabalho de composic;äo" ( 3). Dai a razäo por que os tratadistas mo-
um ano. Esta durar;;äo mais ampla da ar;;äo epica Pxplica-se pelo fato de dernos procuram dissociar essa triplice unidade, regressando ao prin-
se tratar de poesia narrativa; a poesia cenica, que se desenvolve diante cipio aristotelico da unidade da ar;;ao como norma essencial da com-
dos olhos do espectador, nao tem esse privilegio qup tem 0 poema epico posir;;äo dramätica; a de lugar e a de tempo constituem propriamen te
de permitir a nosso espirito pensar distante no espar;;o e no tempo: ela aspectos decorrentes da unidade de ar;;ao, que deve ter söhre aquelas
tende inevitavelmente a dar uma ilusao perfPita do que, em duas ou duas incontestävel prioridade 16gica.
lres horas de representar;;iio, ocorrp na vida num periodo dP um dia ou
mais. A pr6pria contingencia espacial, limitada quP estä a per;;a a näo Por unidade de ar;;ao entende-se o con j unto da intriga da per;;a;
variar o lugar de sua representar;;äo, impede durar;;ao maior a sua ar;;iio. por isso mesmo uma per;;a pode apresentar mais de uma intriga e näo
A tal ponto o tempo e o lugar condicionam a durar;;ao da ar;;ao, que Cas-
tPh etro chegou a dizer que a unidade de ar;;ao ( que para Arist6teles
1) Apud Spingarn, ohra cit., p. 99-100.
na a essencial na representar;;äo dramiitica) estava inteiramente subor- 2) Apud Spingarn, Ihid., p. 101.
dinarla as unidades de tempo e de lugar. Dizia ele: ":\'a comedia e .3) Ohra cit., p. 91.

i
HO 141
desrespeitar a unidade. Ao que estamos denominando "intriga" se Mas, onde reside a unidade de de tais Para os teo-
chamou na critica classica "episodios", termo entretanto que aplicavam ricos do classicismo, a da dramatica se consegue desde
no caso do poema epico. Corneille e d' Aubignac, bem como os te6ricos que obedecidas quatro
em geral, estavam de acördo em que os diferentes elementos que com- l.a) a inamovibilidade dos elementos da intriga: consiste na im-
punham a da deviam oferecer certa hierarquia, isto e, näo- possibilidade de se remover um acessorio ou uma personagern sem que
tinham o mesmo valor: söhre uma serie de intrigas secundarias devia prejudique o conjunto. 0 Horace corneliano foi censurado porque o seu
pairar uma intriga principal, a qual se subordinavam. Uma tragedia quinto ato poderia, sem prejuizo da ser removido da
seria tanto melhor quanto o conjunto de seus acidentes se subordinas- e constituir uma outra independente. D' Aubignac tambem assinalou
se a nuclear da Sucede que na pratica nem sempre se dis- a superfluidade do papel da lnfanta no Cid.
tinguia, entre varias intrigas, qual era a principal; isto denotava pura e
simplesmente que o autor näo soube ordenar os eierneotos constituti- 2.a) a continuidade dos eierneotos da intriga: para que uma
vos da segundo uma hierarquia muito clara. Dado que o termo- forme um todo, as secundarias podem surgir desde o da
"episodio" se presta a confusäo quando aplicado a tecnica dramatica, e terminar com 0 desenlace da para este desfecho
entre os proprios criticos classicos surgiu o termo "fio", para designar devem contribuir todos os fios; um fio que tenha surgido na expo-
o das acessorias com a central, e com a van- mas näo tenha chegado ao desenlace, bem como um fio que tenha
tagem ainda de implicar a ideia de simultaneidade; antes duas sido ocultado ao espectador e so no final da per;a, tornam a
ligadas conjuntamente do que duas que se sucedem. Isso näo quer da mesma incompleta ou desprovida de unidade.
dizer que a palavra "episodio" designe exclusivamente secundarias 3.a) a necessidade dos eierneotos da intriga ( e aqui remontamos a
sucessivas e a palavra "fio" secundarias simultäneas - adverte o- Aristoteles) : todos os acontecimentos que surgem na devem ser
proprio Scherer. Enteode-se por "fio" - como conceitua com pre- necessarios, niio frutos do azar. Qualquer imprevisto meramente even-
cisäo o autor do Traite de la disposition du poeme dramatique - um tual modificando o desenlace esperado destroi o principio da
assunto inteiro, no primeiro ato, continuado nos outros e con- interna da o que sucede em varias de Moliere - como
cluido no quinto por um efeito que predomine söhre todos os outros, o Avare e L'Ecole des femmes - e em algumas de Corneille - como
que näo säo senäo acidentes ou circunstäncias ( l) . Uma como- em Dom Sanehe d' Aragon, em Sertorius; nesta ultima a morte de Emi-
a Clitandre de Comeille apresenta uma sucessäo de episodios mal liga- lia e a de Sila säo anunciadas, sem ja na cena
dos e sem unidade; a A.ndromaca de Racine, ainda que oferet;a quatro segunda do quinto ato.
personagens principais ativas participando de tres intrigas
apresenta no entanto estas intrigas simultäneamente, ligadas entre si, 4.a) esta refere-se a natureza da das intrigas aces-
como fios segundo a acima vista. lniimeras säo as pet;as sorias com a intriga predominante; tal foi entendida diferen-
com dois fios, bem como as de tres; as de quatro säo meros freqüe- temente conforme a epoca. Dizer pura e simplesmente que as intrigas
tes, e as de cinco, raras. 0 Cid, a Polyeucte, L' Ecole des femmes de secundarias devem estar "subordinadas" a principal, ou que devem
Moliere, a Berenice de Racine säo per;as constituidas de dois fios, pois estar "em ou ainda que devem estar "ligadas", praticamente
se reduzem a historia de dois amöres: o amor de Rodrigo e de Ximena, näo nos auxilia a distinguir uma dramatica com unidade
o da lnfante por Rodrigo - no Cid; ao amor de P.auline e Polyeucte de uma sem ela. Durante o classicismo Irances podemos
vem juntar-se o de Severo por Pauline etc. Corno de tres fios, distinguir uma pre-classica e uma concept;äo classica da uni-
temos o Sertorius de Corneille, a Andromaca de Racine, a Heureuse dade de baseada na ideia de relat;äo: ambas se opu-
Constance de Routrou etc. Entre os assuntos de quatro, mais raros, e nham frontalmente, razäo por que a do Cid, realizada
mais comuns nas tragicomedias, pode-se citar a tragedia Heraclius de numa epoca em que a pre-classica ainda era vigente, desa-
Corneille: a luta de Phocas contra os seus inimigos, o amor de Hera- gradou ao seu piiblico ( 1637) ( 1). Explica-se: os grandes teoricos
contemporäneos de Corneille (e o abade d'Aubignac bem como Scudery
clius e de Eudoxe, o de Pulcherie e de Martian, e a amizade que Iiga
säo os porta-vozes principais), condenaram como excrescente o papel da
este ultimo a Heraclius. Racan, em suas Bergeries, chega ao niimero
de cinco fios.
1) 0 Cid foi representado pela primeira vez em Paris, em fins de dezembro
1) Ap. Scherer, obra cit., p. 96. de 1636, no teatro do Marais; s6 saiu publicado em fins de marc;;o de 1637.

142 143
lnfanta D. Urraca no Cid, tido como intriga secundaria que rompe a - , deviam ser evitadas como modelos de dramätica. 0 certo
unidade de a"ao da pois o seu amor por D. Rodrigo nao tem e que todas as teoricas de Corneille, ora mal fundamen-
conseqüencia alguma no .desenlace do!S acontecimentos; entao tal intriga tadas nos antigos, ora passando em silencio as criticas levantadas con-
poderia ser suprimida sem prejuizo da predominante da composi- tra as suas normalmente se voltam contra as proprias realiza-
pois ela nao converge como linha da circunferencia para o centro. dramäticas do Autor.
A aqui se entende como da predominante a Antoine Houdar de Ia Motte tambem surgira com uma nova förmu-
acessoria. Ern suas posteriores - como em Cinna e Po- la a respeito do problema, dizendo que uma deve apresentar, inde-
lyeucte (ambas de 1640) - , Corneille atendeu as das exi- pendentemente das tres uni da des, a "unidade de interesse" ( 1) : o Cid,
gencias esteticas do publico. A de Mäximo desempenha um pa- para ele, nao apresenta nem unidade de nem unidade de tempo,
pel determinante na da primeira, como a de Severo de- tampouco unidade de lugar, mas que as duas personagens centrais da
cide o ritmo dos acontecimentos na segunda. Aqui a de subor- - Rodrigo e Ximena - mantem a "unidade de interesse". No
se entende como as intrigas secundarias influindo sobre a fundo, esta nao se distingue da unidade de
predominante. No caso do Cid, em que o autor ja atende a
classica da unidade de 0 episodio da lnfanta nao influia sobre Eis, em suas linhas fundamentais, as a respeito da
0 desfecho da fundamental: do desfecho desta, isto e, do casamen- unidade de e os problemas levantados; a dramaturgia se benefi-
to ou niio de D. Rodrigo e Ximena e que dependia a sorte da lnfanta ciou muito mais do que a poesia epica com estas discussöes, de vez
castelhana. que o poema epico e menos compromissado com as leis da concentra-
e da do argumento. 0 aparecimento do Orlando Fu-
Relativamente as unidades dramäticas Corneille surgiu com uma
rioso, entretanto, suscitou serias controversias entre os teüricos italianos,
curiosa acerca da unidade de dizendo ele apresentar
analisado como foi a luz destas ideias (pelos partidarios das regras) e
uma interpretalj;iio da norma a sua maneira, 0 certo e que tais ideias
ja tinham sido formuladas por Castelvetro e Escaligero ( dos quais assi-
a luz das novas teorias acerca do poema epico (pelos teoricos do ro-
mance). Corno vimos no final do capitulo a proposito da problemati-
milou certamente e as pös em voga). Dizia Corneille no seu Discours
ca estetica do Renascimento, o poema de Ariosto (Orlando Furioso,
des trois uniUs: "Eu creio portanto, e ja o disse, que a unidade de
alj;iio consiste, na comedia, na unidade de intriga, ou de obstäculo aos
1516), e antes dele o Orlando lnnarrwrato de Mateo Boiardo (1484)
( cuja historia continuava no poema de Ariosto), despertaram uma
designios dos principais atores, e na unidade de perigo na tragedia,
polemica muito viva em torno de questoes da poesia epica, baseados
quer sucumba o seu heroi, quer se salve dele" ( 1) . Unidade de intriga
ou de obstaculos na comedia, unidade de perigo na tragedia. Isso näo uns nos principios aristotelicos, outros na tradi"ao da tecnica cava-
quer dizer que näo se possa admitir muitos perigos numa e muitas in- leiresca medieval. Entre 1547 e 1548 Giangiorgio Trissino publica a
trigas ou ohstaculos noutra; "a do primeiro perigo näo torna sua ltalia liberata dei Goti, com o proposito de, imitando Homero e
de forma alguma a completa, pois que ela forja da supera"äo um atendendo aos principios da do poema epico legislados na
segundo perigo ; e o esclarecimento de uma intriga näo coloca os ato- Poetica aristotelica, oferecer um modelo de poesia epica; Trissino in-
res em repouso, pois que ele os envolve numa nova". Nesta altura po- sinuava com isso a confusiio estetica inaugurada por Boiardo e Ariosto
der-se-ia objetar que Corneille pretendera dizer "liga"iio dos perigos", em seus poemas. Pretendendo, alem disso, justificar os criterios segui-
niio "unidade de perigo". Ao que parece - e nisto talvez Corneille dos na do seu poema, Trisino infelizmente foi colhido pela
nada devesse aqueles teoricos italianos - , ele visava opor-se a uma morte dois anos depois, em 1550, deixando assim incompleta a sua
tendencia de tradi"iio medieval, visivel niio so nas ohras de seus ante- Poetica,, cujas duas ultimas partes, em que versava com amplitude os
cessores e contemporaneos, como ele tendencia essa que consis- problemas da poesia epica, so seriam publicadas em 1562 (2). 0 certo
tia em conceber a teatral como uma especie de cronica historica,
cuj,as aventuras formam um rosario de "perigos" para o heroi, muito
bem ligados mas que näo decorrem segundo as leis da necessidade (2). 1) Suites des reflexions sur Ia tragedie, ap. Scherer, obra cit., p. 107-109.
Tais - e entre elas se pode situar o proprio Horace de Corneille
2) La Poetica, Vicenza, por Ptolomeo Ianuculo, 1529; La quinta e Ia sesta
divisione della Poetica del Trissino, Venetia, Andrea Arrivabene, 1562.
[Algumas c6pias apresentarn a data de 1563, mas parece tratar-se da
1) Oeuvres, I, p. 98. mesma de 1562 - segundo opiniao de Bernard Weinberg, obra
2) V. Scherer, obra cit., p. 104-105. cit., II, p. 1155].
e que a atitude de Trissino nao ficou sem resposta seis anos depois de personagens episodicas como Egas Muniz, Nun'Alvares e Ma-
publicar o seu poema, quando dois teoricos surgem simultiineamente nenhum deles - diziamos - apresenta as qualidades
em 1554, Giambattista Giraldi Cintio e Giambattista Pigna, o primeiro canonicas do heroi tradicional.
com os seus Discorsi intorno al comporre de i romanzi, delle comedie,
e delle tragedie, o segundo com I romanzi (amhos publicados em Vene- Pigna apresentava uma serie de razöes para justificar a falta de
za). Defendem eles OS direitos que a poesia cavaleiresca ( que eles unidade do Orlando Furioso, todas elas muito fracas ou pouco convin-
chamam "romanzo") tem como genero poetico legitimo, ainda que centes: o fato de versar materia inventada, nao historica como nos
viole as leis aristote!icas. Giraldi frisa, todavia, que ja na Antigui- poemas epicos conhecidos; 0 fato de se facultar ao poeta certa liber-
dade poemas havia que se assemelhavam ao romance pela riqueza de dade; por estar escrito numa lingua nova como o italiano, em novos
a«Öes, e a propria Odisseia era disso um exemplo. Se Aristoteles con- metros e com uma nova religiao, seguia-se que o poema devia ohedecer
denava OS poemas epicos que apresentavam muitas a«;Öes de um heroi a normas diferentes; finalmente, poetas como Boiardo e Ariosto tinham
iinico, nao se seguia que a censura se aplicasse a outros poemas que o direito de legitimar as novas formas poeticas. . . ( l). Tal
apresentarn como aquelas materia heroica. Mas o que sucede com os de direitos devia suscitar, como acabou suscitando, a de outros
poemas de Boiardo e Ariosto e, nao so uma profusao de a«öes, mas teoricos ( como Speroni e Minturno), hem como a discussao de pro-
uma galeria de herois. 0 proprio poeta tinha consciencia disso, quan- blemas relativos ä poesia epica em geral (2).
do na proposi«iio do Orlando expos:
Le donne, i cavallier, l' arme, gli amori, h) U nidade de tempo e unidade de lugar.
le cortesie, l' audaci impresi w conto.
(1, v. 1-2); Corno vimos, söhre estas duas unidades näo houve pronuncia-
mento algum de Aristoteles em sua Poetica. dos teoricos
foi esta liherdade de composi«iio que permitiu a Camöes ir mais Ionge, italianos do Renascimento e dos eruditos franceses do sec. XVII, as
dizendo que cantava as armas, os baröes assinalados que edificaram o unidades de tempo e lugar parecem fruto da classica pela tri-
imperio ultramarino, a historia dos reis que dilataram o Cristianismo logia. Se a unidade de e um principio geral da literäria,
e construiram o mesmo imperio, enfim a vida de todos aqueles que estas duas confinam-se quase exclusivamente ao ambito da represen-
se imortalizaram. Vertehrando todas essas heroicas numa espi- dramatica. Os ecos das discussöes italianas adlrca destas unida-
nha dorsal que e a viagern de Vasco da Gama as indias (mero pretex- des se fizeram ouvir logo em 1552 na quando Jodelle, na sua
to para de toda a historia portuguesa), Camöes ahstratizou Cleopatre cative, diz na primeira cena que Cleopatra morrera "antes
o heroi do poema numa entidade que ele chamou de "peito ilustre Iu· que este sol, que acaba de nascer, se sepulte depois de haver descrito
sitano". Ampliando, entao, a que Cintio e Pigna tornavam a sua jornada". Estava selado o nascimento da tragedia francesa soh o
possivel com a nova estetica do "romanzo", teriamos: signo das uni da des ( 3). E quando em 1582, no seu prologo ao Regu-
lus, Beaubreuil repudia o carater imperativo da unidade de tempo, e
l. Poemas her6icos com unidade de at;äo e de her6i (Exs.: os de Laudun, na sua Art Poetique, fundamenta a sua da mesma
Homero e o de Vergilio) ; norma, declarava-se aherta a controversia que seria alimentada durante
2. Poemas h.er6ioos de um so her6i mas muitas ar;öes ( como a He- todo o classicismo pelos teoricos e pelos proprios dramaturgos.
racleida e a Teseida referidas por Aristoteles) ; A unidade de tempo envolvia apenas um problema fundamental: a
3. Poemas her6icos de muitas ar;öes e muitos herois ( como os dois do tempo real e a sua ao tempo da representa«;äo
poemas italianos de Mateo Boiardo e Ariosto) ;
4. E poemas her6icos de m:uitas ar;öes e muitos homens, tendo 1) Cf. Belloni, II poema epico e mitologico, p. 127.
uma das ar;öes como pretexto e um her6i coletivo ( o caso d'Os 2) Entre eles Giovanni Pietro Capriano, Della vera Poetica, Vinegia, 1555;
Lusiadas) . Aqui nao hä herois no sentido clässico do termo, J ulio Cesar Escaligero, Poetices libri septem, 1561; Castelvetro, Poetica
porque nenhum d{\Ies, desde Gama, Paulo da Gama, Veloso, d'Aristotele vulgarizzata e sposta, 1570; Giovanni Antonio Viperano, Della
Poetica, ms., 1587; Torquato Tasso, Discorsi dell'arte poetica, 1587, Dis-
Leonardo ( que compöem a da "armada") ate as corsi sul poema eroico, 1594 etc. etc.
figuras historicas dos reis portugueses, vice-reis da india e as 3) Cf. Rene Bray, La formation ... , p. 260.

146 147
dramiitica. A unidade de lugar, por sua vez 6 tambem poderia sugerir horas), argumentando que a dura«<iio de um dia ou mais, para ser ve-
simplesmente um problema: o lugar da representa«<iio deve ser apenas rossimil, deveria apresentar as personagens realizando certas necessi-
Uffi para toda a pe«<a, Oll pode apresentar cenarios simultaneos Oll cena·
dades fisiologicas - como comer e dormir - o que retiraria o inte-
rios sucessivos? Ern Fran«<a a moda medieval de dividir a a«<iio da pe«<a resse do auditorio, Oll por outras palavras, infringiria 0 principio das
em "jornadas" para dar uma certa ordern na longa dura«<iio da a«<iio conveniencias. Mas semelhante ideal era praticamente inatingivel. Niio
foi vigente ate o primeiro quartel do seculo XVII. Os Amours de Phi- poucos teoricos chegaram a imagina-lo - como d' Aubignac e o pro-
landreet de Marisee (1619) de Giboin duram mais de trinta anos. Um prio Corneille! ! ! Para se conseguir uma ilusiio perfeita da realidade
so ato de Hardy, o terceiro da Forqa do sangue, nos apresenta a he- imitada, nada melhor que aproximar-se o miiximo possivel da mesma
roina gravida na primeira cena, e com a crian«<a ja na idade de sete
realidade. tsse e o principio com que Corneille, no mesmo Discurso,
anos na cena quarta. Esta desordern estetica, tipicamente medieval, niio
considera o tempo de duas horas o mais ideal para a fabula dramatica,
condizia com o gösto classico que se refinava a partir de principios do isto e, fazer coincidir 0 tempo da a«<iio com 0 tempo da representa«<iio
sec. XVII. Ern novembro de 1630 Andre Chapelain um ver-
(1). So podemos entender a formula«<iio corneliana como um Iimite pu-
dadeiro manifesto pela implanta«<iio das unidades dramaticas, escreven- ramente ideal para 0 qual devia aproximar-se 0 maximo possivel quem
do a famosa Lettre sur la regle des vingt-quatre heures ao seu amigo An-
desejasse alcan«<ar a perfei«<iio. 0 que e curioso e que nesta epoca de
toine Godeau, que o consultou a respeito da unidade de tempo pois
transi«<iio para o gösto cliissico (1620-1640), tödas as pe«<as que obe-
estava em execu«<iio uma pe«<a que havia projetado. A sua curiosidade
decem ao principio das doze ou vinte e quatro horas apresentarn osten-
e bem testemunho de que nesta altura era apenas uma timida novidade
esse principio dramatico. Niio havia raziio para que se aceitassem tödas sivamente e ate insistentemente os sinais materiais dessa limita«<iio do
as "virtudes antigas" em tödas as coisas, e se recusasse a aceitar aque- tempo, fazendo com que o piiblico perceba isso. No proprio Horace
las relativas ao teatro; niio havia raziio para "demeurer encore barbares Corneille insiste, propositadamente, söhre isso, fazendo com que suas
de ce cöte-la seulement" - ponderava Chapelain em sua carta; "chacun personagens sublinhem o espac;o de tempo disponivel em que qualquer
se reveille dans cette louvable ambition et renonce au gothisme apres coisa se realiza. Entre.tanto, para o caso das que näo respeitam
l'avoir reconnu" (1). 0 "goticismo" referia-se a moda de ascendencia as impostas pela regra - como foi o do proprio Cid, -,
medieval e ainda vigente na dramaturgia do tempo, gösto esse que se Corneille chegou a conclusao de que teria sido prudente que o autor
caracterizava pela absoluta liberdade de tempo da fabula dramatica. E nada informasse o piiblico söhre a a firn de que näo o pre-
as duas primeiras do sec. XVII, as Bergeries de Racan (1620) e dispusesse a considerar inverossimil aquilo que seria verossimil se niio
Pyrame et Tisbe de Theophile (1621) ja observam o principio das vin- fössem feitas advertencias. Diz ele: "je voudrai laisser cette duree a
te e quatro horas na sua No seu Discurso söhre as tres uni- l'imagination des auditeurs, et ne determiner jamais le temps qu'elle
dades, Corneille aproveita-se do apendice da frase aristotetica (" ... uma emporte, si le sujet n'en avoit hesoin, principalement quand la vraisem-
revoluc;äo do sol ou pouco mais") para alargar o tempo da fabula ate blance y est un peu forcee comme au Cid, parce qu'alors cela ne sert
trinta horas, argumentando com um aforismo juridioo - odia restrin- qu'a les avertir de cette precipitation" (2). Por conseguinte, "niio ha
genda, favores ampliandi... (2). Corneille lembra o caso das Supli- necessidade de assinalar na abertura da representa«<iio que o sol se le-
cantes de Euripides para ilustrar as operac;öes a que se viam muitas vanta, que e meio-dia no terceiro ato e que ele se deita no final do
vezes constrangidos os escrit<Hes classicos pela categoria de tempo: Te- ultimo".
seu parte de Atenas com uma armada que vai travar uma batalha
Mas o gosto classico, a medida que vamos caminhando para o sec.
diante do muros de Tebas, a doze ou quinze leguas de distancia, e vol-
XVIII, acabou por superar essas incompatibilidades entre o tempo real,
ta vitorioso no ato seguinte; e o tempo que decorre entre a partida de
historico, e o tempo ficticiol da representa«<iio: a tragedia encami-
Teseu e a chegada de um mensageiro que aparece relatando a sua vi-
nhou-se num sentido novo, que permitiu ao autor libertar-se das impo-
toria, Etra e o cöro niio dispoem mais do que trinta e seis versos para
si«<oes constrangedoras da regra: concebida a tragedia como uma "cri-
dizer. Alguns, entretanto, pretenderam reduzir as vinte e quatro horas
se", o fator "dura«<iio" para o desenvolvimento das paixoes deixou de
ou as doze ao tempo que se gasta para a representa«<iio ( duas ou tres
ser problema: ä crise harmonizava perfeitamente os dois tempos - o

1) Cf. Opuscules critiques, p. 124.


1) Cf. Oeuvres, I, p. 113.
2) Cf. Ouevres, I, p. 111-112. 2) .:Discours des trois unites», in Oeuvres, I, p. 113.

148 149
real e o cenico. Ela permitia maior concentnlgiio da pega, e como tal das viagens, das pert>grinagoes, das prisoes, da personagern que se pro-
se desembaragava dos acontecimentos exteriores como naufnigios, bata- cura por töda a cidade, etc.,) ; as separagoes do lugar por biombos
lhas, conspiragoes, raptos f'lc., para se concentrar apenas no problema ou tapegarias, a superposigäo ou simultaneielade de planos como se pra-
humano em questiio ( 1). Vizinha desta solugiio jii havia sido, nos pri- ticaYa no teatro mcdieval, enfim uma infinidade de recursos e tru-
meiros tempos do classicismo, a recomendagäo para iniciar a reprt>sen- ques da cenografia teatral parece-nos materia jii especifica da arte dra-
tagiio 0 mais perto possivel da catiistrofe, isto e, do descnlace, a firn miitica, um pouco fora dos limites de um manual que visou apenas
de se empregar menos tempo cenico na representagäo de certos fatos criar uma atmosfera amena e puramente iniciat6ria para a comprern-
- que poderiio, portanto, ser conhecidos atraves do artificio da infor- säo da pocsia classica. A unidade de lugar, ainda que muitas vezes
magäo ou do relato. Outra solugiio tumbem posta em priitica desde a advirta o escritor no momento da elaboragäo, e propriamente um prin-
epoca corneliana, e que agora se impunha como recurso para atender cipio que se Iiga a estrutura externa da criagäo dramatica. Para C'O·
as novas exigencias do gosto que evoluia, foi a do "tempo a ser con- nhecimento, pois, desses problemas na sua intimidade, recomendamos a
sumido", isto e, do consumo do tempo excedente ( descontado do tempo billiografia especializada qur invocamos no decurso deste capitulo.
cenico) durante OS entreatos. Numa agäo de doze Oll vinte e quatro
horas, o excedente corresponderia a dez ou vinte e duas horas em re-
lagäo ao tempo da representagäo, e seria distribuido ou situado nos
intervalos da pega: na (1642) de Jean de Mairet, tres dias
entre os atos I e II para que Theodose se torne apaixonadamente amo-
roso de Athenais, quatro dias entre os atos III e IV para a conversao
dela ao cristianismo, mais dois dias entre os atos IV e V para satisfa-
zer as suplicas da heroina. A tecnica da transferencia do tempo exce-
dente para os entreatos chegou a descambar para o abuso: o pr6prio
Mairet no segundo entreato da sua Virginie (1635), apresenta nada
menos de cinco acontecimentos diferentes (2).
Com esta tendencia paulatina da tragedia para a concentragiio da
agäo a firn de acomodar-se as eixgencias da regra de tempo, a unida-
de de lugar foi-se impondo como condigiio natural da
0 gösto pelo espectacular ( que nos principios do sec. XVII se desen-
volve com a vida galante dos saloes) e as fabulas que ultrapassavam
OS Jimites da jornada aristoteJica exigiam a mudanga do Jugar cenico
e a substituigiio continua dos cenarios. A medida que avangamos para
meados do sec. XVII, a depuragiio do tema dramatico foi eliminando
os problemas advindos do espago cenico. 0 uso cada vez mais frf.'-
qüente das cortinas trouxe intimeras possibilidades para a encenagäo,
propiciando as modificagof's necessarias do maquinismo cenico. Ern
raziio do prestigio que foi ganhando esse recurso a cortina, as suas pos-
sibilidades suscitaram ao italiano Nicolo Sabbattini um longo capitulo
em sua Pnitica para fabricar cenas e maquinas de teatro, publicado
em 1637.
As modificagoes do cenario com a permanencia do lugar; as mo-
dificagoes possiveis do lugar cenico bem como as impossiveis (no caso

I) V. Rene Bray, «L'esthetique classique», p. 682.


2) V. Scherer, obra cit., p. 119-120.

150 I 151
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ND I CE

Dedicatoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Explicagäo necessaria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
PARTE:
Carta XII a Diogo Bernardes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Paräfrase 15
Observagöes ao texto da Carta .......................... . 19
Anälise da Carta XII ................................. . 21
Antönio Ferreira: tcorico do Classicismo 25
Principios expostos na Carta XII:
a) limae et Iabor; b) ne quid nimis; c) poetas
censores; d) a conveniencia na elocugäo; e) 0 saber -
fonte da Poesia; f) Poesia ut Pictura; g) Poesia e
mediocridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
2.'' PARTE:
Poetica de Aristöteles:
a) Ate ao Renascimento; b) A Poetica na Itälia; c) A
Poetica na Espanha; d) A Poetica na Franga . . . . . . . . 47
Arisloleles e Horacio na Peninsula lberica . . . . . . . . . . . . . . . 52
A problemittica estetica do Renascimento . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
3.'' PARTE:
Principios fundamenlais do formalismo classico:
a) A Razäo; b) Genio - Arte - Ciencia; c) Arte e
Moral; d) lmitagäo da N atureza ( a mimese helenica, a
mimese na Renascenga, a mimese e seus processos) ; e)
lmitagäo dos Antigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Regras Gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
a) A Verossimilhanga ............................. 101
b) As Conveni,encias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
c) 0 Maravilhoso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
d) As Unidades ................................... 135
BIBLIOGRAFIA .......................................... 153

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