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Livre Docente em História Moderna ,

Professor Titular da Universidade Federal Fluminense e
Professor Associado da
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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ·

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• 4! edição
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· ·· Direção.- . . • •

Benjamin Abdala Junior
• · Samlra Youssef: Campedelll

Sumário
Preparação de texto •

José Antonino de Andrade


Arte
1. Por que o llumlnlsmo?------ 5
Coordenação e
projeto gnflco (miolo) • 2. O jogo das palavras: ''Iluminismo''
Antônio do Amaral Rocha ••
ou ''llustração''?----------9
Arte-final •

René Etlene Ardanuy
A hora e a vez dos dicionários 9
· · Capa · · · · ··
A vez dos historiadores 12
••
~ry A. Normanha
Antonio U. Domlenclo 3. O espaço-tempo do l luminismo e suas
bases sociais----------20
1

.f

O espaço-tempo do movimento ilustrado 20
l'
A dimensão cronológica 20
• O espaço geográfico do Iluminismo 23
! As bases sociais das "Luzesn 24
!
l•

4. Secularização e racionalismo---31
1
A falsà antítese 31
Cft/0 FECILCAM '
í A razão iluminista - a illiminação secular 35
'1
FIS,/;_, BIBLI.O TECA •••
5. Dilemas da razão iluminista----44
~
J,/.J.el. N.º REG.: {{.()i,J -'f
• O lugar do sentimento - a sensibilidade ·· 44
A natureza das concepções racionalistas 45
. DAI · ,_q / b I f/i,9
(
1
•. As reações do público receptor 47
;

' A consciência da historicidade so


.'•
l
Natureza e características da historiografia
1

• iluminista . SI
f; As valorações da h.istoriografia iluminista 53

, A visão iluminista da historicidade e seus
ISBN 85 ,08 01513 5 F
~
problemas 54 ·
f
t
6. As bases do pensamento iluminista 56
1994 . A antropologia das ''Luzes,, 56
'
• A antropologia - seus eternas e vai.ores 59
Todos os direitos reservados .. •
Editora Atlca S.A.
\ •
• Humanidade, 59; Civilização e cultura, 60; •
Rua Barão de lguape, 110 - CEP 01507-900 Progresso, 61. .

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End, T~legráfioo "Bomllvro" - Fax: (011) 277-4146 f
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l

·Jtf1 7. O pragmatismo das ''Luzes'-'....______ 65 •

n.
J

f TolerânGia
', I . ' •' •' • Humanitarismo
Otimismo jurídico ·
::
68
1
'
• ,.• Filantropia · 1 •
• 70 ••

Servidão e escravidão, 71; Doença e fome, po-
breza e desemprego, 73; Guerra e patriotismo. 74.
l
l Por que o Ilum.inlsmo?
Ben.eficênciç 76 i. •

8. O enciclopedismo das ''Luzes~-'___ 79 \


••
A enciclopédia ·· 79 J •
•t
9. Iluminismo e revolução------ss !
1

10. Vocabulário crítico-------89 t


! •


1
1 11 . Bibliografia comentada------92
' · ~- : ,o.........'""'___.__.,~
ÍlllaE.I;· • ··-· • ..,.. . •. ' Iluminismo e Despotismo Esclarecido,
. temas• coetâ-
:4 ~.....~....·-- .• , , '\ . -~ -· ..
neos que remetem a um mesmo espaço-tempo - o sete-
centos europeu. Todavia, destinos históricos diferentes:
enquanto o Iluminismo permanece atual, o ·'l)espotismo
LJV.
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...
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Esclarecido é apen~assad~ um tema cri_stalizado. A
. . .. .... .. ... ,... .
•.. V•
este dedicamos um livrónesta mesma série 1 ; tratemos por-
FITA~ ' L; .. ,. \ !f . ; ... ~ •
,. : ; t:
' 1 tanto do primeiro.
1 Em que consiste a atualidade do Iluminismo? Do fato
. Maringf · :.· •
1 de ser um assunto obrigatório nos compêndios e programas

Rua Sa ' . .... .·.~·.,.
;.
. .,
de História Moderna? Julgamos que não. Afinal, o tipo de

.

• tratamento dispensado ao Iluminismo nesses casos, com
o('

e

raras exceções, prima pela superficialidade. O lluminismÕ\
'•.•• é aí reduzido a uma espécie de recitativo dos nomes de 1
i LIVROS . REVISTAS· Lu 1~_.:= ~:; ·1 ·

"grandes pensadores" e das ·suas obras principais,

ficando 1

FITAS DE VÍDEO· PLAYB0~ . \,· \ sua importância histórica reduzida ao caráter de manifes-
tação intelectual que expressa as idéias de uma "burguesia
9
,. . á· (44) 269-8424 Londrin~
Mar1ng . 3 R B nJa··,n.
Rua Santos Dumont, 3.03 ua e ~,. ·.. .
.' \ ., em ascensão,,. Estudado desse ângulo, o Iluminismo é ape-
nas uma das "causas,, da Revolução Francesa, um de- seus _

1 FALC:ON, F. J. C. O despotismo esclarecido. São Paulo, Atica, 1986.


li 6 • 1
.
anteéed:nt?s o~· !atores . detêrnÍinãntes, pois teria sido a seu sentido é inverso. Somos nós, aqui e agora, que subs-
expressao ideolog1ca. da crise· do· Antigo Regime. ~tuí.mos a visão iluminista pela nossa visão retrospectiva.
Caso realmente o I ~":minismo tivesse sído apenas o Trata-se então .d.e um dilema? Sim, pois de certa maneira
qu~ po~emos ler nessas versões escolares padronizadas, ele , esse é O gran.de dilema do historiador.
'. se~a tão passado quanto. o Despotismo Esclarecido. Não Somos hoje, de fato, de uma forma ou de outra, her-
é .isso que acontece, porém. Para o mundo de hoje o Ilumi- deiros do Iluminismo. E o somos· em escala bem mais signi-
rusrr:o é algo bastante ·presente, tanto que é capaz de pro- ficativa do que muitos parecem dispostos a reconhecer ou
duzll' debates e tomadas de posição dos mais variados tipos. .assumir, pois, quer como estilo de pensamenU>, quer como
Enquanto para os historiadores -a palavra Iluminismo ,eaüdade política, o fato é que o Iluminismo ainda vive.
rem.ete à noção de um movimento intelectual ocorrido ,na Que realidade política será essa então? Bem, aquilo
Europa.do século XVIIl - o "século das 'Luzes' ,, - em que temos hoje assemelha-se bem mais a uma espécie de
que pese o reconhecimento de que se trata de uma genera- ' mutação. Com efeito, da Ilustração política enquanto pro-
e
lização frente à realidade extremamente rica diversificada posta individualista de uma cidadania .ce~tr~da na liber-
.
,•
de tal objeto - para nós, hoje, o Iluminismo reveste-se de dade e na propriedade como valores pnnC1pa1s, o que nos
•• muitas outras significações. restou? Da Ilustração filosófica, racionalista e otimista
Podemos, por exemplo, tentar compreender o .Ilumi- quanto ao valor da ciência, centrada no princípio da crítica
• nismo como culminação de um processo, ou como um universal, o que ainda sobrevive?
..'

começo. Enquanto ponto de chegada, o lluminismp apa- No plano político restou-nos principalmente a vertente
.••
..
1 rece como o clím.ax de uma trajetória cujos começos se autoritária do Iluminismo, sempre distante e hostil à partici-
identificam com o Renascimento, mas que só alça vôo pação popular, tão elitista hoje quanto o eram à sua época
realmente com a revolução científica do século XVTI. os nossos tão familiares "déspotas esclarecidos". De fato,
Considerado como um ponto de partida, o Iluminismo como designar, na atualidade, senão como manifestações
.. l

passa a constítuir o primeiro momento de uma aventura "iluministas", as formas iluminadas de que se revestem tan-
... .
1
.r
:.
intelectual que é também a nossa. tas ditaduras e líderes carismáticos, tantas elites tecnocrá:-
1 Serão mutuamente exclu.dentes essas duas perspecti- ticas ~ tantos partidos que se proclamam, todos eles, donos
vas? Acreditamos que não. Afinal, a primeira delas nada exclusivos da verdade, ou seja, do que é melhor para todos?
•• mais é do que a própria autoconsciência iluminista. Se No nível intelectual, o Iluminismo converteu-se nesse
.•••
1 possui inconvenientes, talvez n.ão seja difícil percebermos modelo paradigmático da verdade única e indiscutível, aci-
que o maior de todos eles é o de assumir implicitamente ma de qualquer dúvida, que reconhecemos simplesmente
as formas de pensamento dos iluministas, sua visão retros- pela palavra ciência 2 • À sua sombra protetora vicejam a
pectiva, enquanto uma certa maneira de situar sua própria tecnocracia e a burocracia. Esse triunfo da racionalidade
• inserção e importância no processo de constituição da mo- cientifica, por definição a-histórica, representa com certeza
dernidade.
Não tenhamos muitas ilusões, porém. A segunda pers- 2 HABBRM.AS, J. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro, Zahar,
pectiva possui riscos muito parecidos; acontece apenas· que 1982. .
,. -------------··----·--·---~----IIL.a:iU...:..____,.....
l 8

. ,. - ...
a mais sólida e quase imbatível àquisição do liuminismo
contemporâneo. · . · -· ·
Todavia, quem sabe .s.e a percepção de tais mutações,
através do conhecimento mais exato do próprio Iluminis-
mo, não nos possibilitará compreender também por que a
sua herança é também motivo de tantas desconfianças? :e O jogo das palavras~
• preciso, hoje, desconfiar de tais manifestações iluministas.
Já não podemos aceitar as posturas e práticas iluministas ''Iluminismo'' ou

. na esfera política e no campo intelectual, Desconfiamos
muito, iremos com certeza desconfiar muito ·mais ainda,
''Ilustração''?
dos autoritarismos do poder e do saber. Sabemos que os •

salvadores "iluminados", quer sejam eles individuais ou •


coletivos, não salvam senão a si mesmos. Também temos
1 consciência de que a utopia da salvação da humanidade
.! através da ciência cedeu lugar ao pesadelo da destruição A primeira vista, nossa indagação possui um certo
da humanidade por essa mesma ciência. sabor de preciosismo, não é mesmo? Afinal, que diferença
Tal desencantamento que hoje muitos de nós experi- faz? Iluminismo é a palavra utilizada pela maioria. Ilustra-
,.'

mentamos diante do Iluminismo e dos iluministas de varia- ção, talvez mais correta, tem pouco trânsito.
J. dos matizes existentes no mundo atual contrasta vivamente
11 com os entusiasmos e a autoconfiança dos seus pais-fun-
dadores - os "filósofos" do século XVIII europeu. Quem A hora e a vez dos dicionários
.,.. ~
sabe talvez esteja nesse contraste um dos bons motivos para
,.' revermos esse Iluminismo dos primeiros tempos. Só assim Em tais situações, é comum recorrermos aos dicioná-
r poderemos avaliar com exatidão as mudanças e, ao tomar- rios e enciclopédias para dirimir nossas dúvidas. Quem
mos consciência das distâncias que existem entre eles e nós, sabe se assim não conseguiremos resolver a querela de uma
teremos condições para proceder a um sempre útil e neces- vez por todas. Mas será mesmo?
1 \
sário inventário das diferenças. Vejamos alguns exemplos:
• Cremos que isso é importante e necessário. Longe de
ficarmos na contemplação fácil de uma suposta herança Iluminismo: S.m. 1. A mística dos iluminados (5_). 2. Filos .

V. filosofia das luzes. Filosofia das luzes. Filos. Movimento
transmitida através dos elos da cadeia de um progresso ima-
filosófico do séc. XVIII que se caracterizava pela confiança
ginário, é preciso reconhecer a realidad~ originária do 11~- no progresso e na razão, pelo desafio à tradição e à auto-
minismo, a fim de apreendermos com maior clareza o seu ~ir ridade e pelo Incentivo à liberdade de pensamento. (Sin.:
a ser contraditório mas essencial à nossa autocompreensao. /lumlnlsmo, Ilustração. Tb. se diz o alemão Aufkliirung e o
g por tudo isso, quem sabe, que vale a pena rever o Inglês Enllghtenment.)
Iluminismo. (Novo DICIONÁRIO AURÉLIO)
10
11
llunt1énfllmo·. S.m. Seità ou· dÕutrlná religiosa ou filosófica
d o . s culo X\(111 que certa "mística" ou "doutrinau, cujos adeptos se diziam ''ilu-
·, .se. fundatta na crença de uma Inspira•
• ' ~o ,sobrenatural: Não surpreenda esta, se pode dizer-se minados", podendo-se notar que, no segundo verbete, de-
,, mito
. ogla exper1mental,• historicamente
· vinculável ao Jlum/.• fine-se o filosófico em função do sobrenatural ...
n1smo de Paracelso. (Rlc. Jorge, Serm. de um Leigo P 274 Avançamos um pouco, é verdade, pois ficamos saben-
ed. 1926.) . ' ' '
• do que existe, no caso do significante Iluminismo, uma
; (DICIONÁRIO CONTEMPORÂNEO DA LÍNGUA polissemia interessante e até certo ponto contraditória: de-
,· PORTUGUESA CALDAS AULETE) notando "luzes", ele conota racional. ou razão e illacicnal
Iluminismo. S.m. Nome com .que .se- designa o movimento óu . sobrenatural, identificando ou opondo, conforme o
• filosófico-intelectual que f loresceu no séc. XVIII na Europa caso, "seita religiosa" a "seita" ou "doutrina filosófica".
e que, embasado numa postura racionalista, realizou o exa, Será que Ilustração está isenta de arnbigfildades?
me crítico das Instituições absolutistas e eclesiásticas, Vejamos (na mesma ordem das fontes utilimdas) :
combate!1do as tradições feudais e religiosas, opondo-se a
qualquer doutrina revelada, e acreditando numa ordem r~ Ilustração. (Do lat. J/lustrtrtlone) S.f. 1. Ato ou efeito· de
clonai do mundo que seria perceptível pelo progresso da llustrar{-se). 2. Conjunto de conhecimentos; saber: homem
• humanidade; Ilustração. (De iluminar.) de notável Ilustração. 3. Imagem ou ffgura de qualquer natu-
.• reza com que se orna ou elucida o texto de livros. folhetos
(DICIONÁ1\f0 ILUSTRADO DA LÍNGUA PORTUGUESA
••' e periódicos. 4 FJlos. V. ·t1Josofia das luzes·.
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS)
lf
1· Ilustração. S.f. Ação de ilustrar.//Esclarecimento. explica-
·11umlnlsmo. S.m. Doutrina sustentada por diversas seitas,
1 ção. comentário.//Renome, realce, nobrezaJ / Grande cópia
[ segundo a qual os seus mentores eram iluminados sobrena-
1 turalmente por Deus. Doutrina filosófica do século XVII de conhecimentos ( . .. ): Este escritor denuncia muita llus-
t (sic) que só admitia a luz. o Jumen, da razão humana. De traç8o .. . (Latino Coelho, Elogios .scadêmicos. p. 119, ed.
' \,
ilumin (ar) + Ismo. 1873.) ... Desenho gravado e Intercalado no texto de um
··1• livro./ / Obra literária cujo texto é ornado de gravuras ou
~
(GRANDE DICIONÁRIO ETIMOLÓOICO-PROSÓDICO
...~• DA LÍNOUA PORTUGUES.A, por Francisco da
desenhos, como a Ilustração, semanário lngles, francês·

•' .
Silveira Bueno) etc.//1/ustraçéo divina, lnspiração.//F. lat. lllustratio.
Ilustração. S.f. Ato ou efeito de Ilustrar; conjunto de conhe-
•I Tal como já foi indicado, são apenas alguns exemplos, cimentos; saber: renome: realce: nobreza; esclarecimento;
~
tomados ao acaso. Longe de nossa intenção supor que tais explicação: comentário; personagem ilustre por seu saber;
• verbetes sejam os melhores ou mais merecedores de crédito. Imagem. desenho ou•
gravura que acompanha, ilustrando-o,
Deixemos isso aos especialistas. Basta-nos, por ora, per- o texto de obra escrlta.//(Hlst.) Iluminismo (Do lat.: i/lus-
ceber o seguinte: 1.º) a tendência à sinonlmia: /Ju,nittis- tratlo, onis) .

mo / /lustração; 2.º) a referência comum a um "movimento Ilustração. S.f. Aculturação, educação Intelectual, erudição.
filosófico do século XVfil"; 3. 0 ) a indicação, salvo no ter- Explicação. explanação de um texto, problema. doutrina.
1 •

ceiro verbete, de que a palavra se refere também a uma Lat. tard. ///ustratlonem (Laotânclo).
12
13
• ••

Te~e~os avançad~ mais? Parece-nos que· não. Este


outro significante, a n1vel denótativo, ·possui· significados


l hermenêutica, concreta e temporalmente fiel do século
XVIII, em ceda espaçc, culturel, nos pode fornecer (grifos
nossos} 4 •
1 bastante gerais e conhecidos, mas nenhum deles tem algo
a ver especificamente com o nosso dilema. Apenas em seu
1 l• Acontece que, na realidade, o problema do Iluminismo
1 nível conotativo reencontramos o tema que nos interessa,
1 encerra nada menos que três ordens de questões estrita-
mas se trata aí da mesma sinonímia já detectada: Ilustra- mente imbricadas entre si: a questão das palavras, a ques-
J ção / Iluminismo.
tão dos sem.ides ou significados dessas palavras e, por últi-
Tratar-se-á, então, de uma simples qu.estão de prefe- mo, a metâfora das "Luzes,,.
rência? Fica a critério de cada um
Ütilizãr u'ina. ou oútta As palavras - Na literatura sobre o !lt1minismo, é
palavra? Decerto que sim, se nos rativermos aos dicionários muito comum considerarem-se como coetâneos os substanti-
e enciclopédias. •
vos lu.mieres, A ufkllirung, enl.igluenme,u, lumi, üustració~
1 iluminismo, assim como também os verbos éclmrer, aufklã-
• ren, to enlighten, ilustrar, illuminare, iluminar. Poucos, na
A vez dos historiado·res verdade, são aqueles que se dão conta de que várias dessas
1 palavras são criações posteriores ao próprio fenômeno do
E os historiadores? Bem, para estes as dúvidas tam- lluminis,no, produzidas que foram ao longo do século XIX,
bém existem. sendo por conseguinte estranhas ao vocabulário do sete-
Num longo e excelente artigo de Miguel Baptista Pe- centos.
reira 1, encontramos abundantes indicações a respeito do
} Os significados - já no próprio século XVIII, varia-
que deveria ser uma "análise rigorosa da difícil história do vam muito os significados que assumiam, em cada espaço
conceito de Ilu.min.ismo desde o começo do século XVIII,, 2 cultural, os termos utilizados para traduzir a leitura espe-
e a interpretação da sua essência, ou seja, su~ disc~ssão cífica que aí era feita das idéias contidas em palavras e
entre 1780 e 1800 3 • Existe de fato uma pol1ssem1a do expressões como lunzieres, Au/kliin,ng e to enlighcen.
termo Iluminismo no século XVIII e corre-se hoje o pe- A título de exemplo, basta-nos comparar, resumida-
rigo de mente, os vários sentidos de lu,nieres, Au/kliirung e to
enligliten. No âr11bito cultt,ral francês, ll11nieres ("Luzes")
redução deste conceito a uma fórmula vazia, capaz de al-
. bergar os próprios preconceitos atuais, sem cu'.dar d~ dife-
é ao mesmo ten1po uma palavra de ordem e um estado
...

~ . rença histórica e do horizonte próprio, que só a 1nvest1gsção de espírito que expressa a noção de un1 movimento inte-
lectual com o qual os "filósofos" e "hon1ens de letras" fran-
. 11 ceses sentea1-se solidários, pois são os seus protagonistas.
1 PEREJRA Miguel Baptista. Iluminismo e secularização. Revista. de
História das Idéias. O marquês. de Pom?al ~ o ~eu tempo, Coim- Para esses intelectuais o tema das "Luzes" impli~a uma
J ' bra, Instituto de Teoria e Hist6r1a das Idéias, ~(2) .439 et s.(8 • 1:!~·
2 STUKB, H. Au/kliirung, 1972, apud PEREIRA, M. B., op. Cl ·• p. •
filosofia da história e é também um ato de fé.
f
1
3nota 6.
ScHNEIOERS, w. Die wahre Au/klãrung,. · Mun1q
· ue, 1974• apud • PBR.BIRA, M. B., op. cit., p. 440.
l PEREIRA, M. B., op. cit., p. 441, nota 7.
i t
14

15
1 As "Luzes· se identificam, no ·sentido fUosõfico do termo
1 O rãncla religiosa, pelas liberdades polftfcas e Intelectuais
1 com desenvolv!ment~. a P!:!rtir de meados do século d~
quando Já se possui tudo isso 1.

l
um Pensainento simultaneanúinte empirista ·e racional;sta,
cujos ante~ede~tes são diversos, mas cuja forma positiva
1• estava muito distanciada do aspecto de doutrina admitida O problema do vocabulário das "Luzes'~ é ainda uma
por um grupo numeroso de adeptos. Cada um dos partlcl· questão em aberto. Não basta estudar cada palavra em
pantes do movimento das "Luzes· Julga dar uma contribui· si mesma; é preciso situá-la filológica e historicamente na-
ção decisiva; daí não faltarem os contrastes e as contra- ciona_l e internacionalmente. A rede de significações' que
diçõe.s ~.
constituem o seu campo semântico não é mera reprodução
. . . . .. . .. ou reflexo de uma reaJidade histórica, mas é uma reação a
No caso do ambiente ci1.ltural alemão, AufkUirung essa realidade. Entre uma coisa e outra há um espa.çó
significa esclarecimento, descobrimento, reconhecimento; me~tal, maior ou menor, tendente à contestação da própria
seu sentido é mais dinâmico e vem associado ao modelo realidade. Tal é o caso francês, por isso mesmo conside-
meteorológico do tempo sereno e límpido, ou do tempo . .. : distânaa
ra do u cJásstco . e reação convertem-se aí em crí-
que é ou se toma claro. Transferido para o domínio inte- tica violenta ao existente.
lectua4 ao longo do século KVID, passa a significar o escla-
. . A metáfora das "Lui..es" - O ponto de partida da
recimento racional A sensibilidade intelectual germânica idéia de "Luzes'' é a multissecular metáfora da luz; a oposi-
setecentista não pode ser dissociada da experiência polí- ç.ão entre luzes e sombras, entre o dia e a noite, cujas ori-
. tica ligada às práticas dos ''déspotas esclarecidos", especial- gens remontam às épocas mais remotas da humanidade,
mente Frederico li e José li, daí possuir talvez mais po.n- expressa nos cultos solares e em seus variados mitos. Ao
tos de contato com as Lumi italianas e até ,mesmo com a longo dos séculos, mui1os foram os valores e temas asso-
/lustración espanhola e a Ilustração portuguesa 6 • ciados quer à noite, quer ao dia. sempre com a tendência
Na lngla1-erra e Esc6cia, onde as condições políticas à valorizaç.ão positiva do dia e da luz.
e sociais já traduziam na prática uma-boa parte daquelas Quer na Jilosofia, com o platonismo e o neoplatonis-
idéias e propostas que constituíam ainda objetos de de- mo, quer na esfera religiosa, com o judaísmo e o cristi.anis- ·
sejo ou de projeto no contexto das ''Luzes'', to enlighten mo, a luz é sempre imagem ou swbolo que significa ver-
possui um sentido mais dirigido para as questões de natu- dade ou conhecimento verdadeiro. A ilumi~o mística
reza moral e econômica: cristã., baseada na revelaç.ão divina, foi relida e secularizada
.. . a Inglaterra liberal. país de lock e de Newton, é o pafs pelo pensamento das "Luzes": 1
mais esclarecido da Europa; ninguém se apaixona pela tole-
Els-nos agora num século que Irá se tomar cada vez mais 1
esclarecido, e numa tal escala que todos os séculos ante-
:s FRANCASTBL, P. L'esthétiqu.e des Lumiêres. ln: UTOPlB et i11sti1u-
1io,13 au XVIJ/'br1c siecle. Paris, Mou1on, 1963. p. 341.
6 FALCON, F. J. e. A época pomba./lna. São Paulo, Atica, 1982. 7Gt1soou, O. Les principes de la pensie au siecle des Lumieres.
p. 354-8. Paris, Payot, 1971. p. 296.
• eles• •- - - · wv
"'v \fUtt trevas se comparados a
de supormos, com relação ao próprio llumirúsmo, uma uni-
• , • •A, •

. Tal apropriação .d. . . . . . - . . . dade de prmc1p1os e uma autoconsc1enc1a que não corres-
1 pondem, de maneira alguma, à pluralidade inerente às va-
1 nist.as, opondo·as stt,11,,:,~a
'· t~Tora _da~ "Luzes" pelos ilu .
erros e d . ~<> s revas'' d m1- riadas tomadas de consciência ·do movimento ilustrado.
, a ignorância dos se'cuJ as superstiço-es dos Afinal, a realidade do setecentos é muito mais rica:
ves
bemdseus 1:scos.
· os· preced
Pretendendo ve. u1 . entes, possuía tam-
'
As teorias modernas do Inconsciente evidenciaram o ca.
a.antiga metáfora os ~'f'I, icf ar novos sentidos atra-
q ue, en tr. et.anto para ' . 1 oso os" nao - podiam. imped' ráter irredutível das resistências que se opõem à tese de
tivesse vivo , muitos, o sentido tradicional ir uma exposição universal das realidades humanas. 0-esde o
. · se man- século XVIII, a dogmática do reoalcamento posta em prática
pela afirmação das ·Luzes· suscita, sob diversas formas, o
Daí, a necessidade de di .
o sentr~o geral e neutro ~~"f
:r, ~os -textos- ·ao Iluminismo,
<
retorno do recalcado. O século das "luzes" é também o
século do Iluminismo, que afirma a prioridade da. luz lnte-
e o sentido tradicional filo óff e esclarecimento da razão
ou de intelecto agente·.
mo poderiam ser perfilhad
qu: at':'
e teológico, de llumfnaçã~
d por opositores do llumlnis-
rlor·sobre a claridade ilusória do Intelectualismo, verdadeiro
poder de ceguldão 10. ·

de luz da razão que os, o sentido tipicamente epocal •


• marca esse pe • dO h . Após tantas idas e vindas, depois de todo nosso em-
sarnento europeu 9. rro lstórico do pen-
penho em tentar perc,eber com mais precisão quais são
efetivamente as "coisas" que as palavras significam, é pos-
A verdade é que co : sível afirmarmos algo acerca do Iluminismo, no século
dos iluminismos sendo exlste";, .ªº longo do século XVIU
d , anacron1ca a pseud tr ' XVIII?
e sentido que se apresenta " . · o ansparência Sabemos agora que Iluminismo tanto pode significar
dos textos atuais sobre o como e1::dente" em muitos a doutrina dos que acreditam na "iluminação interior,, ou
, assunto. Alias tal f t . , f
por nos percebido quando d d , . ª. o Ja ora mística, a qual para outros constituía uma espécie de ma-
.- as an anç.as pelos di · , .
ocas1ao e.m que observamo h · c1onanos, nifestação "irracionalista", quanto, justo o oposto, Ilumi-
entre o sentido reli . d s . aver uma profunda diferença nismo é sinônimo de "filosofia das luzes,,, isto é, da cha-
secular da ·1u . ~oso .ª iluminação ,rústica e o sentido mada "iluminação racional". Lembremos, só para exem-
· z mlnaçao racional.
plificar, que, no setecentos luso, os textos utilizam muito
Desfaz-se, assim, a suposta univocidade d . "luzes" e "iluminados,, quando se referem às idéias que
de Ilumin · · o conceito .
• .ismo e com ~sso desmorona-se também a pretens- 1 chamamos de iluministas. Todavia, dependendo do con-
' •
que consiste em identificar a época com o . . . ao texto, "iluminados,, eram também os místicos que, em
lectual. Enfim d . . movzmento znte-
' o mesmo modo fica demonstrada a falácia Espanha, são conhecidos como ''alumbrados".
Hâ uma relação dialética e histórica entre esses dois
tl . 8 B AYLE,
article 11.Pierre. Nouvelles d e la Républ',que des Lettres, avr. 1684, sentidos que coexistem, no setecentos, para a idéia de "Lu-
9 P.EIWIRA M B ·~ op. c1t.,
• p. 444; cl GusooRF, G., op. cit., p. 297-
-300 e 304-6..
10 OUSDOllP, o., op. cit., p. 309.

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AQ

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1 zes,, ou llutnimsmo . o O t d . 1 15'
1
,. gioso e místico d ·'dé' · p n ·~ e ~artida .foi O· sentido reli-
que tal sentido f ·
a I ta de ilL~m1nhr - Só
d. - -: . : -yao. .. aos poucos é
' A saída do homem da sua menoridade, pela qual ele é
o1 sen o redef1n1do a p·an· d I. responsável. Menoridade, isto é. incapacidade de servir-se
racionalista dessa idéi ir e uma e1tura do próprio entendimento sem a orientação de outrem, me-
a ter, também uma sign'fi
ªe, como resultado, "Luzes" passou
.. " noridade pela qual ele é o responsável porque a causa dessa
1 , ' • •
1
caç.ao antagonjca em relação Incapacidade não está numa deficiência do seu entendi-
,
~que!ª. qu: era ongmalmente a sua. Em conseqüência dessa manto, e sim na falta de decisão e de coragem para dele
1dentificaçao entre "Luze ,, - . . _ . l
servir-se sem a dlreç.ão de outrem. Sapere Aude! Tem co.
. . . - · s e razao a üuminaçao ractonal
substitwu a ilutninaça-o m' t· d "aJ 1 ragem de servir-te do teu próprio entendimento! Els a di-
'" . · is ,.ca os umbrados" na cons- •f
c1enc1a. dos ''filósofos''. visa das ·Luzes· 12.
. . '. . ...
A ambigüidade é a marca da trajetória da idéia de Concluindo, acreditamos haver conseguido chamar a
''L ,, I
uzes ao ongo do setecentos. Nada melhor talvez do atençã.o do leitor para o fato de que, para os iluministas, a
que o ambiente cult,~ral alemão para apreend:r os vários despeito das múltiplas significações e até mesmo das ambí-
• •
.. • matizes dessa ambigilidade, dadas as especificidades políti- güidades então existentes com relação às noçpes que então
'
cas, sócio-econômicas e religiosas da À.leman.ha (ou das tentavam dar conta da idéia de "Luzes'\ havia um denomi-
Alemanhas) de então. nador comum: a consciência de que não se tratava de um
Como demonstração do que afirm.amos, são significa- acontécimento, nem apenas de um movimento intelectual,
tivas as respostas dadas à pergunta: "Was ist Aufklarung?" espécie de modismo de uma certa época, mas, sim, de um
processo que apenas estava começando - o processo de
(Que é o llumi.nismo?) . Essa indagação, formulada por esclarecimento do homem.
J. F. Zoellner, em artigo publicado no periódico Berlinische Assim, não haveria propriamente uma época de Auf-
Monatsschrift, em dezembro de 1783, recebeu numerosas klãrung, mas um contínuo enriquecimento, traduzido pela
respostas, ·destacando-se, dentre elast ao menos como as idéia de progresso, cuja essência é a capacidade de um nú- •• •

• ••
mais famosas, aquelas que foram escritas por Moses Men- mero cada vez maior de homens ''pensarem por si mes- •

dels.sohn e Emmanuel Kant, em 1784 11 • mos" 13 •


A resposta de Kant explicita, como princípio defi-
nidor da Aufkliirung, o pensar por si mesmo e a ousadia
de fazê-lo:

11 Em torno dos editores dessa revista, Johann E. [!leste, e F.


Gedike, que havía sido fundada em 1783: _logo .se r~untu um ~upo
de intelectuais interessados nos temas polJti<::<>s, Jurfd1C?s, teol6g~7os,
filosóficos, pedagógicos e médicos, os quais Jogo ~r1ar~m a So-
ciedade da Quarta-Feira", também chamada de ~·e~ade _dos
Amigos da Aufklãrung", com o objet~v? .~e promover a 1nvest1ga-
ção livre da verdade de qualquer espec1e ; cf. PEREIRA, M. B., op. 12 PEREIRA, M. B., op. ciL, p. 467-70.
cit., p. 462-3. 1s Ot1SD0P.F, O., op. cit., p. 304-S.
~ -·~~:..t..il.lUWillllflt~itfJil[fttll1IUUllUUlffUJ1111JllillHEill 'lj j J{ l t.r.U .•, ' \
• • •

.. ~.

• •' •
' . . • •
eia geral da economia francesa de então, descrita por La-
•• • . .. brousse 2 : um p~ríodo de expansão, até 1730; uma d~

1
,I
• •
pressão, durante a década de 30; uma recuperação nos
anos 40, seguida de um período de expansão até os anos •
O espaço-tempo 1
••
70; por último, nos vinte e cinco anos finais, uma suces-
do Ilumin.ismo e •
são de altas e baixas.
Por maiores que possam ter sido as diferenças regio-
.. . .

suas bases sociais . . nais ou nacionais e locais, é impossível não se perceber o


aumento de_mográfico, o crescimento da produção agrícola
• . ..
. t,- • e industrial e a expansão comercial, em termos globais.
1 . , Assim, segundo Venturi, é possível .afirmar-se ' q·ue "A

curva do setecentos, com seus altos e baixos, é a curva
da Ilustração". Apesar de todas as diversidades, pod~se
O espéJço-tempo do movimento ilustrado .. perceber que, a partir.., de l 74Q, na Espanha, na ~tália, em
1 Viena, em Berlim e em Paris, a circulação das idéias, com

A primeira vista, as respostas parecem simples e - 1 suas esperanças e expectativas, assegura o aparecimento da
1
óbvias: o espaço do Iluminismo? A Europa! Seu tempo? •
"Europa das Luzes". Algo de novo estava nascendo. Pas-
O século, XVIII! sava-se da Fruhau/klanmg à Aufkliirung e, no centro de
tu_901 estava Paris, onde se começava a produzir a Eríci-
• clopédia 8 • .
A dimensão cronológica
Outros historiadores, no entanto, preferem, em rela-
Para os historiadores, porém, são muitas as indaga- ção aos começos do Iluminismo, associá-lo geneticamente
ções ·e divergências. Em do.is excelentes trabalhos, Franco _ora à revolução cientifica do século XVII, ora, como Paul
Venturi 1 situa as inúmeras dificuldades que envolvem uma Hazard, à "Crise da consciência européia'', entre 1680 e
"Cronologia e geografia do Iluminismo". Uma primeira or- 1720. Já o historiador germânico Fritz Valjavec define uma
dem de questões diz respeito ao ritmo da história eco~ô- "etapa preparatória", de 1720 a 1740, e urna "Ilustração
1 '
mica geral do setecentos e às lacunas que ainda persistem propriamente dita", de 1740 a 1780'.
••
l
quanto às variações regionais e locais em relação à tendên-
21.ABROUSSE, Emest. Fluctuaciones económicas e historia social.
Madrid, Teenos, 1962. p. 339 et seqs.
1 VBNTUJtJ, Franco. Cronologia e geografia dell'illuminísmo. In: s VBNTURt, F. Cronologia ... , cit., p. 146-50.
-. Utopia e ri/orma ne/J'l/luminismo. Torino, Einaudi, 1970. p. , HAMPSON Norman. O Iluminismo. Lisboa, Ulisséia, 1973. p. 12;

145 et seqs. Cf. do mesmo autor: L'Illuminismo nel settecento eu- HAZARD P~ul. La pensée européenne au XVl/fhnt siecle, Paris, Boi·
ropeo. ln: XI Congres lnternationa/ des Sciences Historiques. vin, 1946. t. 1, p. 58-77; VALJA.VEC, Fritz. Historia de l.a Ilustración
Rapports, v~ IV. Histoire Moderne. Estocolmo, 1960, p. 106 et seqs. - en occidente. Madrid, Rialp, 1964. p. 27,
• , •• ' .1--....&U,~llill, .ltl,MSi; tfUillt}Htlill•aillm
1

I 2l
11 1 1• 1_1,UU,
· 1, .uwu··, !:J 11'11 m1 ~t i'
:
• O período de apog·eü· .., Il . • · . · . · . . I• 23
entre 174 «e u,n,n,smo, que J/entur1 s1iua •
f •
ca _ 0 e ~ead?s.dos.anos 10, caracteriza-se pela publi- O espaço geográfico do Iluminismo
'

çao da E~zaclopedia e seu impacto sobre· toda a Europa
mas também pelas - · ·· '

Uma primeira pergunta: Europa ou Europas?

1

i;; reaçoes VlOlentas dos que a condenavam. O hábito, herdado dos próprios iluministas, é de refe-
n~a fas~ que melhor se podem avaliar as distâncias entre rir-se o lluminismc a uma certa idéia de Europa, isto é,
Paris e os outros centros culturais europeus: são inúmeras . uma unidade intelectual e mental que, ainda em nossos
as _gradações, as r~leituras, as defasagens e as refrações. • dias, continua a servir de reíerência a historiadores que se
• Fo~.nos anos 60, afirma Venturi, que o movimento das "Lu-
mantêm fiéis defensores da ideologia da "unidade da Eu-
~es pareceu finalmente abarcar a Europa .inteira .da Rús-
ropa das 'Luzes'". Como demonstração dessa "Europa",
sia à pen.ínsula Ibérica 11 - é a ''primavera das :Luzes' "I •
' aponta-se para a própria consciência dos contemporâneos:
Ela envolve intelectuais, políticos e também o povo. Este se
1 não se referiam eles à existência de uma ''República das
revolta em Nápoles, em 1764, contra a carestia; em Madri,
' Letras", que cobriria a Europa de ponta a ponta, indife-
promove o ••motim de Esqailace"; e em Londres, · agita-se rente às fronteiras políticas? Como se poderia negar a exis-
em tomo de J. Wilkes. [/topia e reforma chegam ao auge tência então de uma "consciência européia", supranacional,
em Paris, e é a partir do Sena que as idéias se difundem e solidária, plenamente aberta ao livre trânsito das idéias,
:•• atravessam as fronteiras nacionais. Mas, que diferenças dos livros, dos "filósofos", a Europa das "Luzes". Uma
de interpretações caracterizam aqui e ali a recepção das Europa que se afirma unida, civilizada, culta, iluminada, e

I obras dos filósófos"!
11
· • que pode defmir, detentora que é das "Luzes", a diferença.
Nessa Europa, somente um país - a Inglaterra - • e ela quem nomeia os mundos e povos "exóticos", e os
I . parece fugir à regra. Não havia ali~um movimento ilumi-
' faz motivo de curiosidade, não raro de simpatia e até de
nista nem um partido dos "filósofos". 1/uminis,no propria- ( admiração, mas nem por isso menos ..estranhos". Mais
mente dito, no caso das ilhas britânicas, só o iremos en- "avançada" na senda do ''progresso", essa EL,ropa pode, ao
contrar na Esc6cia, em GJasgow e Edi~,b'íirgo·e. mesmo tempo, exaltar suas próprias realizações e debruçar-
-se curiosa sobre aquelas culturas que "ficaram para trás.,
Os vinte anos que precedem a Revolução de 1789, •
na marcha da História• •
• marcam a etapa final do lluminismc. .E a época em que Se é assim que pensavam e sentiam os homens do
I
se acirram os debates e mais do que nunca se aprofundam Iluminismo, cabe ao historiador tomar na devida conta tais
1 ,
as divergências entre utopia e reforma. Para ps historia- •
•• formas de sentir e de pensar, para que possa compreender
dores do Iluminismo em geraJ, a Revolução é o ponto final . o sentido de tais tomadas de consciência. No entanto, seria
do movimento ilustrado. Mas tratá-se de um problema • uma coisa bem diversa o historiador assumir essas idéias.,
. ainda em aberto: continuidade ou ruptura entre o Ilumi- esquecend9, ou não querendo perceber, que a pretendida
nismo e a Revolução? •
'
• •
unidade da Europa era na realidade um projeto, ou uma
• 1 ideologia 7 •
. 'I
CI VENTURr, P. Cronologia ... , cit., p. lSS-7.
e Id., ibid., p. 162-S. ' R. L'Europe des Lumieres: co.smopolitisme el uf!ill euro-
7 Pol>tRAU,
• 1
plenne au XV/lft'Ae siecle. Paris, Stock, 1966. p. 13-21; CHAUNU,
1 •


r
24

As bases sociais 'das ''Luzes'' . . . . . .


.. .

.,.. cluir o Iluminismo em si mesma, aplicando-lhe seus (de-
1 As características m · . ·· · la) próprios esquemas". Na base dessa concepção está
1
1
e · t ats gerais dai; formações sociais a afmnação do Iluminismo como ideologia da burguesia

1 x1s entes na Europa do século XVITI d .
1 das suas estrut .á ç , o ponto de vista em ascensão.
·.
ao caso é be
uras, J toram por nós expostas em volume
antenor pertencente a esta mesma S6rie s O
· , · que agora vem
' 1: certo que o Iluminismo ou alguns de seus aspectos ,t..
,,_ . . m mais especifico: é a questão das bases sociais converteram-se num certo momento em Instrumentos de ,
uv llumin,smo. defesa e de ataque na luta contra as sobrevivências do ,

No _ente~der de G. Gusdorf, 1'a ·pretensão de··esboçar mundo feudal, senhorial, medieval, na França, na Itália, na ·~

' uma sociologia da cultura para o século xvm é Espanha e alhures. 1: Igualmente certo que tais funções não
te d . ,, 9 ao mesmo foram sempre, nem .por toda parte, as funções do Jlumlnfs-
m~ eses~e~~da e prematura • Desesperada porque mo, cabendo ao historiador precisar quando, como e em que
.l fog~ as possibilidades de um indivíduo tentar realizá-la limites tal ocorreu, e não apenas aceitar aquela ldentlfi·
S~ZJnbo; p~ema~ura porque os novos métodos de investiga- cação preestabelecida 11.
çao estatística ainda estão dando seus primçiros passo~. Em
resumo, podemos apenas formular hipóteses. A questão é exatamente essa: o verdadeiro lugar co-
. ~á a visão d~ Venturí é bem diferente. Após analisar mum em que se converteu, na historiografia, a afirmação
as dificuldades e incertezas das interpretações filosóficas e acerca do "caráter burguês" da ideologia iluminista.
filológicas do Iluminismo, o referido autor debruça-se so- , Segundo W. Dom, há uma notável correlação entre
~re as interpretações que seguem um caminho inverso, par- l .\~~~ a desintegração do antigo sistema intelectual e religioso da
, tindo da sociedade e dos grupos sociais, e busca com- · 1)1....._8 Europa e o esfacelamento do antigo sistema social feudal:
preender o lluminismo a partir de suas raízes. Tal pers- / ~"O ~911texto social do llu,runismo revela tratar-se de um
pectiva, segundo Venturi, tenta compr~ender as "Luzes" a ~~ / " _movimento
. d: cIasse méd'~a, em ~uas afirmações e negações,
partir do que a seu i:espeito escreveram Marx, Engels e r nos preconceitos contra os quais lutou e nos novos pre-
seus seguidores 10• .\ conceitos que cultivou. Nem a velha nobreza, nem o clero
Em lugar de levar em conta o ritmo ínterno de desen- ) :J"' obscurantista teriam sido capazes de liderar a nova socie,.
'!!<)lvimento do Iluminismo europeu no setecentos, confron- ~t>'r' dade em gestação". A guarda avançada da transformação
1
tando-o com os elementos de revolta e de fé, de esperança " cultural foram os setores educados da burguesia: Voltaire,
e de desilusão, "a visão marxista tende simplesmente a in· D'Alt111bert, Crin1111, Diderot, Rousseau, e mesmo D'Hol-
baclz; todos, com exceção de Montesquieu, "eram homens
P. La clvilisation de l'Europe classi'que. Paris, Arthaud, 19~1. p.
66-72; 0l1S00RP, o., op. cit., p. .S6-8; VBNTURJ, F. L~ trad1tlons 11 ld.,ibid., p. 20: "Na base da sua interpretação do Iluminismo
de Ja culture italienne et les Lumieres. ln: UTOPrB et i11s111111io11s . .. , (para os marxistas) está a afirmação de que este 6 a ideologia da
clt., p. 43-8. Á • 986 burguesia em descnvolvin1ento. Estou pessoalmente convencido de
• s FALCON, F. J. C. O despotismo esclarecido. São Paulo, llca, 1 . 1
quo esta definição 6 um dos obstáculos que mais seriamente se
9 GUSOORP, o., op. cit., p. 46.S. opõem hoje a u,na compreensão mais profunda do século XVIII,
1 10 VBNTURL, F. Introdução. !n: -. Utopia e ri/orn1a .. . , oit., p. e que 6 necessário ren1over esta hipótese de trabalho para podern1os
1. 17-18. prosseguir de maneira melhor, n1ais rápida e irmos mais adiante".
1
/
1r -""
1

29
26

oriundos da classe méêli ·· · ·· · · · -


talento,, Ma há ª
e que deveram sua faina ao seu 1 ría dos produtores, mas também dos consumidorepta cul-
conside~r tafs (b sempr.e um) .. "é evidentement~ absurdo tura". A aristocracia subvenciona e protege os pensa9ores
. omens como advogados conscientes de mas, ao fazê-lo, ela adere aos valores da nova classe domi-
uma classe social p---:ucu lar. Eles iludiam-se
. :· a· s1. mesmos
· (U
nante (sic) ·: "A parte esclarecida da aristocracia presta
como defensores da. 'humanidade'
· . . . No entanto, estavam seu ato de adesão à ideologia da classe mais ativa da
defendendo certos interesses sociai·s . . . se bem que .isso nao
_
f osse sempre aparente" 12. na.ção" 13•
Bem outra é a visão de VenJuri: "Por toda parte, a
_ N.o caso de Gusdorf, após uma excele.nte caracte.ri.za- relação entre forças burguesas .mais ou menos estáticas ou
çao da natureza e limites da "classe cultural na sociedade~' ativas e o movimento iluminista deve permanecer um pro-
.. na qual_ se evidenciam os limites numéricos e urbanos qu;
'
ble,na, não um dado de fato e um pressuposto histórico".
a reduziam a algumas dezenas de milhares de pessoas, o Este mes.mo autor indica os riscos que corre o historiador
1
.• autor conclui: "A referida classe cuitural reunia, através incapaz d.e tomar tais precauções, pois "não poderá ja-
da Europa, um pequeno número de eleitos, isolados do mais entender a oposição a Luiz XIV, a formação e o sig-
resto da população, tanto pelos fins que se propunham nific.ado de Montesquieu, a importância da luta dos Parla-
quanto pelos seus métodos"; e sua autoconsciência de ci- mentos e da chamada revolução nobiliária" ou, no caso
. dadãos do mund.o é uma resposta à própria so6dão em italiano, "não saberá como explicar o significado do Ilumi-
' 1
meio a uma população que não os compreende. Os inte- nismo de grupos como o do conde Ve"í, do marquês Becca-
lectuais formam uma confraria, dividida em diversas sei- ,.• ria, do marquês Longo, ou de Filangien"'' 14 •
1 tas. ''A história da cultura deve ser compreendida sobre Expressão mais radical da hipótese ( ou tese?) so}?re
o pano de fundo da incultura", que engloba a maior parte a iden1idade entre lluminism6 e burguesia, Lucien Gold-
da população, "ou melhor", pross,egue Gusdorf, "à classe mann 111 atribui um valor absoluto e genérico a essa asso-
cultural, interessada pelas idéias, contrapõe-se a maioria ciação, "arrisca.ndo-se, seriamente, a levá-la ao absurdo" 16•
silenciosa daqueles que perseveram no regime arcaico das Outras análises, também de inspiração marxista, de-
representações coletivas, da subliteratura- popular, do fol- monstram maior fundamentação na efetiva realidade social,
r clore e do catecismo". .
a partir de pesquisas históricas precisas: Jacques Proust e

Em síntese, a cultura intelectu.al_pode ser entendida fliÍrio Diaz seriam dois bons exemplos. Os enciclopedistas

como uma "mentalidade de ruptura", que toma suas pró- eram homens que não pertenciam ne.m à grande, nem à
1 •
' 1
prias distâncias em relação à ''imutável" mentalidade pequena e média b~rguesias; eram burgueses, sim, uma pe-
• •! .

•• arcaica. 1• 1s GusooRF, G., op. cit., p. 466 et seqs. Neste mesmo livro são
1• Curiosamente, no entanto, esse mesmo autor, ao con- • desenvolvídos temas como: "A import.ância social do intelectu~:·,
1
1
1 cluir ratifica o que den~minamos de "lugar comum": "O ..
••
p. 478 et scqs.; "A vocação do intelectual", p. 490 et scqs.; "O oficio
•' das letras", p. 503 et seqs, cuja leitura recomendamos.
.
'
sécuÍo XVI1I é o século do aburguesamento da cultura, _ôs >•
.• 1, VBNTURI, F. Introdução, cit., p. 20.
l burgueses constituem daí por diante não somente a maio- ' 1G GoLDM.A NN, Lucien. La Ilustraci6n y la sociedad actual. Caracas,
• • Monte Avila, 1968. p. 30 ct scqs.
• •
1 1 ) 18 VBNTUJU, F. lntroduçâo, ci.t., p. 21.
. ·1

12 DoRN, w. CompeJition for empire, cít., p. 182-3 . •

1 ,;
• •

28
29
!
quena elite de doutos ·e ae técnicos, ou seja, }uristãs, m'édi- 1 ou funcionários do Estado absolutista, os "clérigos" de di-
1
~os, professores, engenheiros, .altos funcionários civis e mi- versos matizes ou categorias, os artistas, os "diJetantes" dos
. ht.ares, sábios, . t~cnicos especializad~s! que "se situam tipos mais variados - nobres ou comerciantes. Encontran-
exatamente a meio caminho da grande e da média bur- •
do-se nos salões e academias, fazendo parté de associações ·
1
guesia, bastante próximos das camadas sociais mais ele- ou de sociedades secretas, essa gente formava o mundo por
1
vadas. . . mas não muito longe do povo trabalhador . . . " 11 excelência em que se produziam e debatiam as idé.ias do
Que lições podemos tirar dessa polêmica? Percebe- Iluminismo. A participação maior ou menor de cada um
mos que ela envolve doif tipos de questões: as indagações desses tipos sociais, a importância da opinião pública, o
soore o significado político e sociál àa ideologia iluminista; papel dos vínculos com o aparelho de Estado, tudo isso
e as perguntas sobre a otigem social e a posição dos ilumi- ~~~- muito de ~ s _ .P~..Qlltro~ Bastaria ter em
':istas na. sociedade das " Luzes". Havia, é certo, idéias e mente os casos da Inglaterra, França, Prússia e . Espanha
intelectuais burgueses no movimento iluminista. Mas eram para perceber as enormes distâncias. ·
todos burgueses? Já vimos que aí se situam as discrepâncias Concluindc, desejamos apenas chamar a atenção para
dos historiadores. O .mais difícil, portanto, é saber como
duas ordens de idéias:
1. As respostas a todas as indagações e questiona-
avaliar corretamente as idéias, hábitos, comportamentos e
mentos acima expostos dependem muito da própria con-
atitudes de nature~ aristocrática (no sentido de nobreza
cepção teórico-m.etodológica daquele que aborda o Ilumi-
e clero) presentes no movimento iluminista.
nismo. O dilema é sempre o mesmo: ou admitimos que o
Parece certo, porém, que enxergar somente aquilo que que de fato importa ao histori~or não é ver os homens
identificamos como "burguês(es)" é apenas pinçar algu- (de uma certa época) tal como eles pensam a si mesmos
mas partes que por algum motivo julgamos mais "impor- e, sim, como eles eram realmerue, ou seja, tal como são
tantes", deixando o restante de lado, em silêncio. Tal pro- para nós, ou então, admitimos que aquilo que de fato
cedimento é comum nas abordagens francamente teleoló- conta para o historiador são as representações individuais
.1
. gicas, para as quais a verdade do Iluminismo confunde-se ou coletivas, em si mesmas, as formas concretas de ser e
.! l
•• com a dos vencedores, não havendo a~sim qualquer incon- de pensar de cada individualidade histórica, aquilo que era

veniente em ignorar-se o resto, pois a " memória" já está bastante real para os homens de uma determinada época,
constituída. mesmo que para nós sejam apenas "ideologias" e/ ou "men-
Quanto aos agentes sociais do Iluminismo, sabemos talidades". Valeria então aquilo que os homens são para
1 que eles eram toda espécie de "letrados'' ou, se quisermos si n1esmos. Cada uma dessas posições arrasta consigo seus
' ser mais precisos, todos os "homens de letras" - :·gens ' próprios fantasmas: o n1ecamcis1no no primeiro caso, o

de Iettres". Eram, portanto, os membros das ~.ro~~s~e.~ liistoricisn10, no segundo . . .

liberais (médicos, advogados, professores etc.), os of1c1a1s 2. Os caminhos da investigação direcionada ao escla-
• • recimento dessas dúvidas não são menos complexos. En-

1
PROUST, J. Diderot et l'Encyclopédie. Paris, !~67, p. SOS; D111z, F.
. \
quanto Gusdorf, como mencionamos, parece colocar gran-
.'
' l
11
iBN·
Filosofia e política nel serrecenro fra,icese, Tortno, 1J63, .apud.
' t. P 21 e 23· VBNTURI, F. Introduçao, c1t., p. 4. •
des esperanças nos futuros resultados d.as investigações
'TURI, F •., Op• Cl- .., •
1 '

'1 t
\
,

30

qu_antita~vas, V entt,ri ·mostra.:se cético e irônico a· tal res-


peito, nao poupando críticas às .históri:l$.soçiais da cultura
qu~ part~m da pretensão de uma J1ist6ria total - "a coisa
' mrus pengosa que existe" - , e da visão êf a sociedade como I
~e uma estr~tura global capaz de revelar sua lógica interna,
isto é, as leis de sua própria existência, utilizando um ius- Secularização e
trumento int~pretativo adequado a tal fim: seja a Juta de
classes ( o marxismo), a quantificação ou o estruturalismo. •
1
racionalismo

Em assim procedendo, produz-se .apenas .fi1P.$o/iq ..da Jiis-
.
t6ria is '
· .
1 I
Não tenhamos muitas ilusões. Qualquer um desses 1
I

estilos que definem a mentalidade ilustrada eram apenas 1


•• finas películas superpostas à espessura de um corpo social 1
, -t
i ' . que, na maioria dos casos, sequer se dava conta dessa
••

existência superficial. Os cidadãos da autoproclamação da Por outro lado, no cerne do Iluminismo aconteceu o Impor-
"República das Letras" não eram senão parcela ínfima dos tante fenômeno da secularização ou nova forma de liber-
homens de.então. Eram a minoria da minoria dos instruídos, dade e au1onomia, que determinará o mundo e o modo de
e essa era, de fato, "a verdadeira fronteira das 'Luzes' " 19• ser-no-mundo do homem moderno. Por isso. uma Interpre-
tação do Iluminismo é, por essência, uma leitura da secu-
larização 1 •

\.
A falsa ·antitese

Quando, em 1975, em livro de nossa autoria 2 , abor-


damos o problema da' secularização, situamos esse conceito
' .
1 no interior de um processo caracterizado pela "passagem

da transcendência à in1anência, da verticalidade à horizon-
~ talidade", articulando-o aos desenvolvimentos do individua-
1s Analisando os trabalhos franceses dirigidos J?Or A. DórRt. ~u
'

'
,.. .

,}
elaborados por G . Bolléme, J. Ehrard, François Furet, ·. . oc. e,
1
b L. sociedade no século XVII!, Ventur1 .1ron1za
f•
lismo e do racionalismo e ainda, mais amplamente, às
transformações que se verificaram, durante a Idade Mo-
~s ·r!oge~í!~s r;es~~:~is: " ... estudando as idéias quando já _se
'l ~i
t
1
1
pec •nis sern apreender-lhes o momento cnn-
tornaram estruturas menw • b Ih ) é
tivo e ativo, o resultado historiográfico (desses tra ~ · os .áºe~!
1
derna, em di/erentes planos: ô político, o econômico e o

reafirmar com grande luxo de métodos novos, aqui o que J • PaRmRA, 1'{. B., op. cit., p. 443.
• 1 { 1
11 sabido"· ~f. Introdução, cit., P· 24-5. · 71 . 2 FALCON, F. J. C. A época pombalina, cap. I.
19 HAM~N, N., op. cit., p. 72; CHAUNU, P., op. c1t., p.

I
ideo/6gico Todo · 33
Hprobl á. . esse ·COnJunto, por nós denominado de
em tica européia'.',.ao m~smo ternno que privilegiava
d e certo Ocorre no domínio da ciência do espírito o mesmo pro-
mod0 ~ · · · · · ·, ":. ·· .
. a questao da seculanzaçao oferecia a res- cesso de secularização com que deparamos antes no do-
peito d ta ' I · . ' mínio da observação e do conhecimento da natureza a.
. es u t:íma um certo tipo de· concepção pautada
~el~ VISão .~:°tômica que tende a opor, de forma radical,
azao e rel1gzao. Cremos que, hoje, já é tempo de inatizar A visão tradidonal, de natureza finalista ou teleoló-
um pouco as coisas. .gica por defirução, era típjca de um universo mental mar-
cado pela Revelação. Pouco a pouco essa visão perdeu
A passagem à imanOncia, cada vez mais associada às terreno diante do avanço da visão imanentista, naturalista
idéias de "progresso" e de "civilízagão", . como o.. assinala e antropocêntrica. Ao longo desse embate produziu-se uma
Gusdor/, está presente _nas sucessivas mudanças que então nova concepção do mundo e do homem, essencialmente ter-
se operam quanto à maneira d.e definir as relações entre o rena e humana, pautada pelos pressupostos da imanência.,
homem e a natureza, cuja contrapartida se acha na luta da da racionalidade e da relação homem-natureza como reali-
Igreja Católica contra os avanços de um "novo espírito dade essencial.
científico", que é o verdadeiro espírito da ciência moder- Um dos aspectos mais conhecidos e evidentes da secu-
' na, expresso na concepção matemático-n~tural do mundo. larização foi o desenvolvimento da crítica às crenças e prá-
Contra essa possibilidade de uma outra verdade, distinta, ticas religiosas, em nome da razão e da liberdade de pen-
, autônoma e imanente, .os guardiães da verdade revelada samento. Já em 1713 AnJhony Collins, no seu Discourse
assestaram suas baterias. Que o digam Giordano Bri.1no e o/ free-thi-nking, defendia a liberdade de pensamento e
Galileu Galilei! · referindo-se às interpretações da Bíblia e à multiplicidad;
de opiniões em matéria de religião, afirmava que a razão
A afirmação d.a imanência, típica do racionalismo mo-
1. deve ser o único critério válido, de acordo com a própria
derno, privilegiando a dialética homem-natureza, colocou vontade divina.
em evidência o paradigma naturalista, fazendo da idéia de O livre-pensar, com tendência ao deísmo, caracteriza
uma natureza auto-regulada, detentora de sua própria lega- inicialmente os meios culturais anglo-holandeses, difundin-
liâade, a premissa necessária de todo conhecimento cientí- .,.
do-se, a partir dali, durante o setecentos e assumindo, prin-
fico. Este racionalismo naturalista constituiria, no século ci.palmente em França, uma forte .conotação anticlerical,
XVIII, um dos pressupostos básicos do Iluminismo. que Voltaire muito bem simboliza. A tradição desse radi-
A secularização significou, até certo ponto, a essência calismo anticlerical levou às leituras da secularização em
; .
do pro~sso de passagem da transcendência à imanência no bases antitéticas: razão vers1,s religião, ou natural versus
. ,. "" . .
c.ampo das teorias e prátJcas pohticas, econom1cas e sociais
. 1
sobrenatural•. Contra essa visão algo maniqueísta da se-
cularização, presente nos círculos maçônicos, é necessário
· em geral. Neste sentido, a secularizaç.ão pode sor idontlf!-
1 '
1 : cada como a emancipação de cada um dos campos parti-
i s CASSlR6R, Ernst. Filoso/ta de la llustración. México. Pondo de
culares do conhecimento, especialmente daqueles cujo obje- Cultura Económica, 1950. p. 181.
! ,
to é o próprio homem, da tutela teológica e metafísica: 4 FALCON, F. J. e. A lpoca ponibalina, p. 9, nota 36, e p. 10, nota
37.
1.1
34
35
.l . .

••
contrapormos a realidade histórica de um~ sec~lariiação o reconhecimento da autonomia e da legitimidade da esfera
que está ~onge _de ter sido um· processo linear ou homogê- pró'pria do entendimento humano, assim como da realidade
neo. Sena mais exato concebermos não urna mas várias intramundana do homem e da vida, ou seja, do natural 4•
secularizações, cada qual com seu próprio ritm~ formando A segunda linha, muito vinculada às vicissitudes in-
! um conjunto diacrônico e desigual, não raro co~traditório. glesas do seiscentos, tem em Herbert de Cherbury (1588-
'
• •j • ..~ r Dentro de tal perspectiva, o essencial é não estabele- -1648) e nos platônícos de Cambridge, como Henry More,
. J-.J .. , cermos uma total oposição ou inco1npatibilidade entre a os expoentes de uma tendência que busca conciliar a ciên-
secularização e o cristianismo, pois: cia com os valores espirituais, pois, para eles e muitos
,. Nas raízes históricas do Iluminismo há ~m crés.cente ·pro- outros, "a razão é a luz, o candelabro do Senhor". Pensa-
.),\f' f. cesso de secularízação, que não é apenas urfi produto da vam, assim, que era possível conciliar raziio e Revelação,
.t
•. ~' 1 Reforma nem uma expropriação de bens culturais extorqui- fazendo da Revelação presente na Bíblia apenas o começo
:.. .
' .1 t! • ·
~ •\:,,
'
1
dos de seu legítimo proprietário. mas uma profunda mu-
dança histórica nascida sob a influência direta do cristia-
histórico de uma revelação a ser adquirida por intermédio
da razão. Foi esse também o grande objetivo de B. Spinoza
nismo 11. e, bem mais tarde, ele estará presente em Lessing.
Se, no plano do pensamento político, as especulações
O anticlericalismo, típico das "Luzes" francesas, não sobre as origens da sociedade e do Estado e sobre a natu-
é a regra no restante da Europa. O reconhecimento da reza do poder do príncipe e dos direit.os dos súditos leva-
diferença como raiz da autonomia do homem e do mundo
1
1/l , , 11 faz parte também de um processo interior à própria Igreja.
vam a uma espécie de compromisso entre a esfera da polí-
tica, própria do Estado, e a esfera da liberdade de cons-
Com freqüência, a iluminação racional, longe de ser enca- ciência, própria do súdito, afinnando então o binômio ..pú-
J ' '! rada como oposta à iluminação religiosa, foi entendida blico" (Estado) versus "privado" (indivíduo), no plano •
• •
como uma espécie de expansão ou a!Dplia.ção desta última. do pensarnento religioso a tendência foi a conciliação entre
"O caminho do racionalismo moderno, historicamente, não a h'Z natural da razão e a lia. sobrenatural da revelação
é o da rejeição do cristianismo mas, muito pelo contr~rio, histórica. A luz natural também é uma palavra divina. T~
o de seu alargamento. " . era a essência das reflexões de Pierre Bayle. Outra não se-
Do século XVI ao século XVllI, desenvolveram-se ria, aliás, a posição de Kant, para quem o dictamen da cons-
duas linhas de reflexão tendentes, em ambos os casos, a ciência é a própria palavra de Deus. . ..• •
. ••
' reconhecer a realidade secular. A primeira, no plan_o da
•• •
.
·,. política, tem seus marcos mais signi~cativ~s em Maquia~el, '

Bodin, Hobbes e Locke, mas é preciso nao .esquecer a im- A razão iluminista - a iluminação secular .- •

I. portância de certos textos de Tomás de Aquino (séc. XIII_)


. Já vimos que a visão de inundo do lluntinismo, ao
1 e sobretudo de Roberto Belar,nino ( séc. XVI), nos q~a1s
desponta ~a visão cristã da secularização cuja essência é retomar a antiga rnetá/ora das li,zes que se opõem às som-
11
1: 6 Jd., ibid., p. 488-9.
l
1
6 P.ERl!IRA, M. B., op. cit., p. 484.
36
.,,
1
bras, interpretou-a no' interior' de um conte~tô ~arcàdo • dados empíricos, daquilo que chamamos de "fatos", uma
pelo processo de secularizaç.ão, ' ttevendo'-se·· entender este 1 vez que a verdade jamais é diretamente "dada" por qual-

'
último nos termos do que acabamos de expor linhas acima: quer tipo de "evidência". Para o pensamento iluminista,
trata-se da "iluminação racional,, a qual, para boa parte a razão é trabalho, trabalho do intelecto, cujas ferramentas
1
dos pensadores de então, não se opõe necessariamente à· são- a observação e a experimentação. A razão é instrumen-
"f . ., '!!'
"luz divina n. •
.1 .to de mudança: o primeiro passo é mudar o pr6prw modo
Entre o raciorzalismo dos grandes filósofos do século de pensar.
'/'ffii" •
XVII (Descartes, Spinoza, Leibniz, entre
. outros)
- . .. . .e.. o ra-
cionalismo das ''Luzes" há continuidady5 e cliferenças im-
.
Pensar racionalmente, filosoficament.ê, isto é, pensar
diferente. Que significa esse novo pensar? Basicamente,
portantes. Para os iluministas a razão é alguma coisa ao trata-se de criticar, duvidar e, se necessário, demoJir. A ra-

•;
•• j
1 mesmo tempo mais modesta e também mals ambiciosa do zão define~se portanto como crítica de um pensamento "tra-
que o era para os grandes construtores de sistemas filo- dicional" - de suas formas e conteúdos. Não há mais espa-
sóficos do século anterior. Mais modesta porque os ~'filó- ços proibidos à razão. Tudo deve ser submetido ao espírito
sofos,, já não acreditam numa razão definida como soma- crítico. Afinal, é através da crítica do existente que se po-
tório on síntese de idéias inatas reveladoras da essência ,C
• derá produzir o novo e o verdadeiro. Os preconceit<:>5, as
absoluta do existente; mais ambicú>sa. porque, par~ os h~ superstições, os ídolos, no sentido de Bacon, cons~tuem
mens do Iluminismo, a razão está longe de s~r uma espécie •• barreiras ou véus que ocultam/ encobrem a verdade, 1mpe-
•• dindo o caminho até ela. A verdade é um mais além,
de herança _ ela é, sim, uma aquisição possível. Portanto, ,
• em lugar de constituir uma espécie de tesouro, ou "b~nco
• algo a desvendar e/ ou a descobrir. Contra a ideologia
(desculpem-nos o anacronismo) os iluministas empunham
.. . de ·dados", como diríamos hoje, a ra.zão é u?1a fo:ça 111te-
lectual original cuja função maior é a de guiar o intelecto
no caminho que O leva à verdade 7 - . • •

••
as armas da crítica racionalista.
O movimento mental das "Luzes" repousa no pressu-

-

posto do avanço constante, historicame~_te n.~º· d~


L
onge de ser um conjunto de conhecim.entos a priori
- 'l ·
' ·- uma racionalidade que pouco a pouco ilumina as som-
sobre princípios ou verdades preexisten~es, a razao , u,n,- •• •
• bras do erro e da ignorância. A razão iluminista apresenta-
. ; b.da como energia ou força intelectual, só com-. • ••
nista e conce 1 á. . é do que ' -se aos seus adeptos como um instrumental critico que se
preensível e perceptível a~avés da pr tíca, 1sto ' ••• •
' " dirige a cada indivíduo naquilo que possui de mais íntimo
•'
i
é capaz de fazer e produz1r. . . - e essencial - sua consciência racional de ser huma~o. ••

1 Princípio de toda verdade, autônoma por def1n1çao, .(
• Mais que convencer ou persuadir, com argumentos ~c10- •

. . õe a tudo que é irracional e se •.


a razão iluminista se op . " t 'dade,, "tra- •• nais, trata-se de trazer à tona, em cada um, essa capac1dad~
11 . - vagas de au- or1é · , d s
oculta sob as denommaçoes. .• ou essa essência racional, comum a todos: pensar por si
1. 1 dição" e "revelação". T ampoucO essa razao escrava o ,nes,no, "sair da menoridade para a maioridade", tal é a
palavra de ordem.
1 j 1 CASSIRER, E., op. cit., P· 13.
• •

1
1• •' \
\ século XVII - , fize(am fulgir os primeiros clarões d.e ra-
A razão ilurninista . mstaura êm definil-ivo o "reino. da
crítica" 8 e, ao fazê-lo, J.?,ã~ é .ªP~!las. o Est<3d<? absolutista cionalidade, contestando crenças e valores, afirmando no-
que lhe serve de alvo. B a sociedade existente como um vos princípios de conbecjmento, sendo por isso mesmo per-
todo que deve ser reconstruída. Identificando no cristia- seguidos, incompreendidos e quase sempre esmagados pela
nismo a verdadeira essência da socieda.de conte.mporânea, intolerância, cujo modelo perfeito e acabado era represen-

1
os iluministas promovem a crítica impiedosa dessa cidade tado pelo Santo Ofício.
de Deus, para em seu lugar edificarem a cidade dos homens, Já o modelo físico-inatemá1ico é~ demonstração cien-
natural, secular 9 , ou, quelll sabe, a cidade celestial dos tífica da mcipnalidade do universo e constitui a garantia
fil6sofos 10• · de que existe uma identidade essencial entre o sujeito e o
Se tudo pode e deve ser subm~tido ao trlbunàf da ·Crí- objeto ·do conhecimento: a racionalidade é imanente ao
l
tica racional, por que não criticar também as próprias con- mundo e ao homem. Deriva daí o otimisnw quanto às pos-
t

cepções do raciónalismo ilum'inista? Significativrunente, tal
crítica, empreendida por Kant, já anuncia o crepúsculo do
• • sibilidades da razão humana - ela pode âpreender, reco-
nhecendo-se, a razão universá.1. Daí as conseqüências bá-
Iluminismo. Mas, até chegarem a essa crítica, foi possível sicas: existem leis que regem o existente, tais leis são ra-

aos iluministas esbanjarem suas certezas e difundirem seu cionais, logo, acessíveis à razão humana. O homem pode
otimismo quanto p. felicidade possível do gênero humano e 1• conhecer as leis que governam o mundo material e as
• 1
próprias sociedades que ele criou, logo, conhecendo-se tais
~
à sua fé no progresso.
O otimismo racionalista dos "filósofos'' expressa a .1 leis é poss.ivel construir uma sociedade adequada a elas e
1 que, dada a natureza racional do próprio homem, será
convergência de duas vertentes de pensamento complemen- 1
também a melhor sociedade possível para esse hometllt ·
tares. Por um lado, sua autoconsciência; por outro, a
admiração, a quase embriaguez com que se debruçam soóre O rnodelo de racionalidade típico do pensamento ilu-
minista é aquele que o grande avanço das ciências da na-
o modelo físico-matemático. tureza, de Galileu a Newton, havia fixado como verdade
A autoconsciência iluminista contrapõe seus próprios
"avanços" ao "obscurantismo'' das épocas an~eri~res. Sua indiscutível. Os progressos da matemática e da física ali .
• •
visão peculiar da história reforça-lhe as conv1cçoes de su- estavam,.diante dos 1'fil6sofos", a demonstrar a verdade in-
perioridade intelectual. Quando muito, reconhecendo-se sofismável da racionalidade do universo. Existem "leis" ao
1 mesmo tempo racionais, naturais e universais. Se assim
como "modernos",· já que os "antigos" estiveram m~r~-
lhados em trevas,. admitem os ufilósofosu a importancta

é no mundo da natureza, por que não o deveria ser tam-
daqueles precursores - movimentos e bomen~ - que, en1 •
bém no mundo dos homens? Se a razão que a tudo governa
determinados momentos - como no Renasc1mento .e no é a mesma, por qu~ não deveriam estar também a ela sub-
; ·1 metidas as instituições sociais? Eis, portant.o, a grande
' .
1

!

. b dt Cr',•r'ca illuministo e crlsi de/la società bor·
s KoSELLECK, Re1n ar • ,, I. tarefà do Iluminismo: fazer o balanço e a divulgação dos
'1
1 ghese. Bologna, n Mulino, 1972. > enormes progressos já alcançados pela razão t~rica .e pr~-
1 1 ·9 8A,zARD, P., op. ciht., t.hl . I city in the phllosophy o/ the 18th tica (as ciências e as técnicas) e empreender a mvest1gaçao
:1 • 10 BECKER. Carl. T e eaven Y
i century. Yale University Press, 1959.
,. •
40
41

d~s leis que dizem respeito diretam-ente ao· hómem· - indi- e pelo que çonstruiu. Sua especificidade reside não tanto
.vidual e social. · !
J em suas doutrinas, quanto na forma que imprimiu à ativ1-
1
• O paradigma fisico.-mate;ndtico · então ··no seu apogeu dade de criticar, duvidar e demolir, mas também de cons-
~evou o racionalismo iluminista à na~u;alização do homem: truir. . '
'1• isto_ é, d~ -sociedade e da cultura. As instituições humanas Distanciando-se do "espírito do sistema" que predo-
entao existentes apareciam à razão iluminista como cria- minara no século anterior, mas não do "espírito sistemáti-
- . . . .
çoes 1rrac1onais, mcapazes de resistirem por mais tempo aos co", os ''filósofos" tentaram quase sempre reconhecer os
••
golpes da crítica racional. Ca.be a esta última desvendar a méritos, tanto do raciona.lismo cartesiano, quanto do em-
inadequação de tais instituições ,à .natureza. racional po pirismo inglês,. de Locke e Newton. Seu maior desejo era
• fundir essas duas correntes filosóficas, aproveitando de
homem. Não é, portanto, de causar espanto o otimismo ·
iluminista. Ele resulta, naturalmente, da fé que têm os cada uma delas os melhores elementos. Ainda hoje as aná-
1 , fil.ósofos no poder da razão e na verdade da ciência - uma lises dos especialistas divergem quando se trata de apontar
quem teria exercido maior fascínio sobre os iluministas:
I nova religião enfim, uma religião secular, cujo deus é a
Descprtes ou Locke.
razão e onde a razão é Deus.
O que realmente importa é a concepção que os ilumi-
'' As avaliações do pensamento iluminista constantes da nistas tinham da Yilosofia: uma forma de pensar (racional-
~ maioria das hist6rias da filosofia são reticentes ou franca ' ' mente) todos os ramos do conhecimento, dando ênfase ao
1
mente negativas. Os "filósofos" parecem haver criado . . sentido de indagação e descoberta, pois assim é a razão:
.. pouco e pecado pela falta de originalidade 11 • :8 como se,
r• • crítica e criadora. O progresso dessa mesma razão - o
1 num certo sentido, sua capacidade criadora houvesse sido progresso intelectual em suma - permitirá ao homem a
1 eclipsada pela atividade crítica. A tal respeito, Cassirer verdadeira liberdade. Tal liberdade só é possível através

: .j.
,
observa:
... o J/umlnlsmo criou realmente uma forma de pensamento
·, do conhecimento daquelas forças e tendências que regem
o mundo e são responsáveis pela ordem e pelas leis uni-

• •

• •
.' que era original em sua totalidade. pois só no que diz res- •.,' versais:
ij ' '
• •
1
i peito ao conteúdo ela continuou na dependência das elucu- Os fatos não são uma mistura caótica e fortuita de ele-
Ji,,;:
•jJ •
brações dos séculos precedentes 12• I mentos separados; pelo contrário, parecem incorporar-se a
certos padrões e apresentar formas, regularidades e rela-
O pensamento do Iluminismo pode ser avaliado .t~nto ções definidas. A ordem é Imanente ao universo. acreditava
1'l'1..· negativa quanto positivamente, pelo que negou e cnticou Newton. e não se pode descobri-la -a partir de princípios
• abstratos, mas sim mediante a observação e a acumulação
1 •
de dados 1s.
11 CHBVÃLJEA, J. Histoire de la pcnsée - 3; la pensée moderne d~ ..

• Descartes à Kant. Paris, Flammaríon, 1961. P· 414. et seqs.,
I• J Sendo assim, era preciso estudar os "fatos", levar em
1
- 2· Le Dix•HUitiême Siecle. Paris., PUF, 1950; C~EL~T,
Hist6ria da filosofia - 4; o Iluminismo. o século XV · o e

BRBHJER, E. Histoire de la phl/osophie - 2; La pbdosoph!e moderne


consideração os "dados" fornecidos pela observação e pela

1., op. cit., p. 15.


ij}J. l Janeiro, Zahar, 1974.
~ r:,s_<;JRRR, E .. OP, cit. 1 p. 13.
. I lS ZEITUN,

experimentação a fi d Nossa época gosta de chamar-se • época da filosofia·. oe


isto é, científico m· e q.ue se pudesse unir o positivo, fato, se examinarmos sem preconceito algum a situação
h . 0 • e O rac,o~al. Somente através do co- atual dos nossos conhecimentos, não poderemos negar que
n lecfimento acurado dos /enôrnenos em si mesmos é possí- a filosofia realizou entre nós grandes progressos . . . Tudo
e A áliazcr avançar
ve · o ve rd ade1ro
· conh'ecimento racional. tem sido discutido, analisado, removido, desde os prlnclplos
n ~e e síntese., observação empírica e explicação racio- •
das ciências até os fundamentos da religião revelada 16•
nal, e1s ~ verdadeira ,neta a alcançar. 1•.

P~do do primado absoluto da razão princípio e Há um certo sabor de afU1Cl'onismo nas críticas que
~ara~tia do progresso da humanidade uma v;z que este se se limitam a arrolar tudo aquilo que os "filósofos" não

1denufica
"d . .com. o ava nço do conhecimento: verdadeiro a produziram - grandes teorias e sistemas. Afinal, devemos
.... i eologza
. · ilw~~ · ta prod uz e/ou articula
. as· principajs
· · ·· cate-
'
• dar mais atenção àquilo que eles realmente foram e qu~
gor~ ?ª sens1b1lidade intelectual do século XVIII: cultura ram sempre ser: os batalhadores, divulgadores, realizado-
e. civilização, progresso e liberdade, educação e huma- res de um programa centrado na critica racional do exis-
nidade. tente, em nome de princípios que apontavam para a possi-
1 . Princípio uruversaJ, a razão é também conquista in- • bilidade de h'bertar o homem do erro e do preconceito, e
tnnsecamente individual. 8 ao homem esclarecido que cabe desobstruir o caminho para uma nova sociedade digna de
1 fazer triunfar a racionalidade, numa espécie de encontro uma humanidade reconciliada consigo mesma.
consigo mesmo e com a natureza em geral. Para esse
homem esclarecido nada poderá estar fora ou acima da
sua própria razão, sua única e legítima fonte de autoridade,
pois qualquer autoridade que se situe fora dessa consciên-
cia individual, racional por definição, é necessariamente
"irracional" e ilegítima, mero "despotismo" de sacerdotes,
príncipes e funcionários.

.,....__,/.,-
~,
Os filósofos demonstram, com freqüência, a confiança
e a certeza que possuem quanto a constituírem a vanguarda
de uma nova Era pelo próprio fato de serem os portadores /'
da verdade. Ao apresentar um quadro geral do "estado do
espírito humano", em meados do século XVIIT, diz •

1 D'Alembert:
'

1• CASSIRER, E., op. cit., p. 12; Gus~RP, G., op. cit., P· 151 et
seqs. "A ideologia da Aufkliirung baseia-se na tra~sparêncaa ~e u~~ •
razão que só presta contas a si mesma; o protótaPo dessa 1~tchg1- •

bilidade foi tomado por empréstimo às opernçõcs do conhcetmonto


cientifico que, pela primeira vez na hístória .d~, saber, assume aquele 15 Apud FALC'ON, F. J. C. A época ponibalina, p. 99.
' vaJor exemplar outrora reservado à teologia. 1
'
1
1,
45
• ••
• •

de três tipos de ccnsiderações: l .ª) os verdadeiros limites


de penetração e aceitação do racionalismo iluminista nas
1 '
di~ersas_ cam_adas sociais; 2.ª) o emergir, no seio do pró-
Dilemas da 1
r prio rac1onahsmo, de uma atitude humanitária cujos pressu-
postos contradi1..em em muitos pontos as concepções dos
razão iluminista "filósofos" iluministas; 3.ª) a convergência parcial desse
humanitarismo racionalista e do humanitarismo sentimen-
1
.. ... tal, este último, sim, tendencialmente hostil a muitas das
• • •
prmc1pais premissas do Iluminismo, daí podermos consi-
derá-lo, embora simplificando um pouco as coisas, como

"precursor" do romantismo.
A pri,neira das considerações acima pode ser desen-
volvida em função de dois pontos: l .º) a natureza das
Apesar de todas as suas certezas e entusiasmos a ra- concepções racionalistas; 2.0 ) as reações do público re-
zão iluro~ista não era imune a alguns dilemas e ~bigüi- ceptor.
dades. Dilemas_ que resultam das relações sempre comple-
xas entre a razao e o sentimento; ambiglUdades que tradu-
~m as perplexidades da razão iluminista quando colocada A natureza das concepções racionalistas
diante de sua própria historicidade.
Tal como nós as entendemos, compreende: o oti-
mismo, os valores sociais e estéticos, o ceticismo moral e
religioso, o cosmopolitismo.
O lugar do sentimento - a sensibilidade O oti1nisnzo a respeito do mundo em geral repousa no •

primado de uma razão que se supõe soberana e absoluta:
A tendência a opor o racionalismo das "Luzes" ao .....
~•• r--
sentimentalismo romântico, tão difundida que já se tornou
quase obrigatória, escamoteía boa parte da realídade men-
A razão é o único melo pelo qual os homens podem buscar
a fellcldade. (Burlamaqul)
/1
tal do /luminism-0, em particular, e do setecentos, em geral.
11 Tal oposição ignora o verdadeiro e importante lugar que Daí resultava ser necessário aceitar o mundo tal como
' 1
ocupa o sentimento durante o século XVIII, ao mesmo ele o é, com suas inevitáveis mazelas, pois somente o pro-
' j 1. tempo que apaga as suas íntimas relações com o racionalis- gresso (da própria razão) trará o fim dos males existentes.
11
. i mo iluminista, reduzindo tais manifestações de sentimenta- -e preciso, afirmava-se, con1preender que "este é o melhor
lismo a meros fenômenos "pré-românticos". dos mundos (racionalmente) possíveis" e que a lógica que
1 1 A questão do sentimento no contexto das formas de o rege, apesar de ainda não ser plenamente conhecida em
1 muitos pormenores, é seguramente racional, daí ser de so-
ser e de pensar do setecentos deve ser analisada em função
n1enos importância o fato de existirem indivíduos infelizes

.'
47

ou
. miseráveis.' po
. ·..
is, de 1guma forma,
ª · • · · ·
funciona uma ·
espé- Do ponto de vista moral e religioso, o racionalismo
cie de mecanismo que faz C<?~·que ''os males de alguns se oferecia muito mais dúvidas que certezas. O ceticismo filo-
transforn~em no b~?1 ou fehc1dade de muitos", asseguran- sófico apenas constata a existência do mal e é incapaz de
do-se assim o equillbrio, que é tão real nas sociedades hu- acreditar na bondade inata do homem. A visão naJ.uralista
manas quan.to no universo como um todo. No fundo, como reduz o ser humano a um complexo de sensações e dese-
v~remos adiante, estava aí presente a ideologia do utilita- jos que uma psicologla mecanicista julga poder explicar em
nsnw. todos os seus pormenores. Para muitos ..filósofos" a con-
clusão lógica é uma concepção materialista do mundo e
. Socialmente, o racionalismo atendia às atitudes men-
j ;j· 1 t~1s .e formas de comportamento das· elites dominantes, mi-
do homem, embora a maioria deles reserve ainda lugar
para um Deus "arquiteto supremo do universo" ou ''razão
. 111 nurnzando o vício e ridicularizando, não raro, a virtude.
suprema". No fundo, esse Deus dos deístas é algo muito
Suas propostas de uma nova moralidade social e de uma so-
distante e, o que é pior, indiferente aos problemas da exjs-
ciabilidade ajustada ao ambiente das cortes e dos salões ade-
t i j: l .i quava-se à minoria dos "bem-pensantes" e "bem-nascidos".
tência humana. Não há, portanto, o que esperar em ter-
. !· - ,. • . 1
: .. 't'· ; mos de uma int.ervenção ou ajuda divinas.
1
Com suas regras de urbanidade e de sociabilidade, cuja ex-
'~ .. ' l ~' pressão mais acabada eram as regras de convivência "civi-
O cosmopolitismo, que expressa a visão otimista das
i li' , J·~ 1 f :~n_-,..,1.,,
.
"Luzes" quanto à superação das fronteiras políticas e cultu-
lizada" e os refinamentos da arte da conv,ersão que atribuía rais, relega a uma posição inferior e desprezível as 'cria-
t J f·lr1·!· 1\ ·, l
um valor supremo ao "esprit", o racionalismo era frio e
reticente diante de atitudes ou palavras que expressassem
ções culturais nacionais, encarando-as como sobrevivências
de tradições vindas das idades obscurantistas. Em seu lu-
emoções ou arrebatamentos. Tais coisas eram indignas de
irj li 1; -~!~ l~ · gar, acreditam os "filósofos", desenvolvia-se uma cultura
.1 ' 'tt•~ 1111 ·t.i. ., 11 J
,r pessoas "bem-educadas".
Quanto aos seus val<>res estéticos, o racionalismo das
que era de todos os homens educados e cultos, sem fron-
teiras, cujo centro de irradiação é Paris mas que se reen-
"Luzes", na literatura e nas artes ' plásticas, assume uma contra, sempre igual a si mesma, em Potsdam, Berlim,
, 1 i ª'l J.t..j perspectiva mais e mais inclinada ao classícismo, ou seja, São Petersburgo, \Veimar, Madri, Lisboa etc. 2 • O homem
à busca de princfpios e regras de validade eterna e univer- verdadeiro não tem pátria, é um cidadão do mundo. A·
sal. Embora não se deva mais estabelecer uma. oposição Europa é uma só - "Europa francesa", afirma Rivarol,
absoluta entre o rococ6 e o Iluminismo, como bem o de- premiado pela Academia de Berlim.
1 \1i J .i ~' ; Ll monstrou P. Fra,icastel 1 , parece não haver dúvidas quanto
·I.M.•1.'-. ao fato de que, a partir de meados do século, a maré mon-
tante do neoclassicismo identificou-se completamente com ,As reações do -.e~bJico -~JmtQt
;j f l l i 1,• 1J
• f ' i as perspectivas estéticas iluministas, tal como já ocorrera
desde muito antes, na Inglaterra, com o paladiaoisn10 de
O otimisrno da razão iluminista, sua visão de mundo
do homem como algo tão rigorosamente ordenado quanto
Burlington.
2 GnRSHOY, L. Fron1 despotisrn 10 re,•olution. New York, Harper,
1 FRANCASTEL, P. L'estbétique des Lumi~res. ln : UTOPJB e1 ins1i111- 1944. p. 235-6.
~. .t 1 1
tlons ••• , cit., p. 33 I-57. ..
1t
1 1
49

a mesma e intrinsecamente boa; a virtude existe; o que real-


0 universo de Newton, não encontravá êco no · ho,nem mente distingue o ser humano é a benevolência.
co,nu,n, especialmente nas .mentalidades burguesas As Do ponto de vista estético não são menores as discre-
~rases forte~ e claras dos filósofos para demonstrar a o~dem pâncias. O racionalismo aparecia à maioria como dema-
ªregulandade do mundo soavam falsas aos ouvidos da- siadamente frio, reticente ou hostil aos sentimentos e emo-
queles que conV1v1am
· · no dia-a-dia com a pobreza, com ções. Era muito pobre, de fato, para o número cada vez
1
a doença e com a fome dos seus semelhantes. Por instinto 1naior de indivíduos que ansiavam por uma literatura, um
~e públiC? sabia_ dos desvarios e das fraquezas dos huma~ teatro, uma pintura, mais fiéis ao que se sente e não apenas
n~s e tç?d1a a atitudes de tolerância e bondade diante de àquilo que se pensa. Desejava-se um homem real, feito de
tais realidades reconhecidas, -na prática, como tão huma- sentimentos, paixões, instintos, virtudes. Na religião e na


nas qu31:1to a razão. Não se tratava propriamente, ainda, arte essas tendências servem de pano de fundo à irrupção
de uma revolta contra a razão. Era talvez algo assim como da sensibilidade no horizonte das "Luzes".
um estado de espírito, uma forma de pensamento, divergen-
te e capaz'
de polarizar tendências e anseios que, mais do Neste ponto, retomamos as duas outras consúleraÇQes
que pensados, eram sentidos. Derivou-se daí o humanita- que havíamos enunciado páginas atrás: o emergir de um

rismo,

qu_e estudaremos mais adiante. humànitarismo racionalista e seus encontros, segúidos de
Frente às concepções moraís e religiosas do raciona- posteriores desencontros, com o desabrochar de um huma-
lismo.iluminista desenvolveu-se aos poucos uma visão mais nitarisrno .sentirnental anunciador do Romanúsmo do final
••sensual" da realidade dos desejos. humanos. Uma aceita- do século.
ção, como legítima, da busca do prazer e do conforto. Tal Do hunwnitaris,no racionalista iremos tratar em outro
hedonismo foi' completado ou interpretado de acordo com capítulo. Por ora, basta-nos ter em mente que esse huma-
a compreensão mais profunda da natureza interior do nitarismo era em sua essência pragmático. Longe de negar •

• homem, em oposição às teorias psicológico-mecanicistas. a existência da injustiça social, ou de apenas derramar lá-
Lord Shaftesbury e Francis Hutcheson realçaram o sentido grimas diante das misérias humanas, tal humanitarismo
moral inato existente no homem, sua, afeição inata pelo propõe uma atitude ativa e pragmática, destinada a buscar
bem, oferecendo destarte uma concepção muito mais ajus- a extirpação dos sofrimentos do homem na terra, funda-
• tada àquilo que o homem médio estava propenso a aceitar, mentando sua utopia nas grandes esperanças despertadas
pois, confusamente embora, era assim que ele o sentia no público em geral pelas notícias dos grandes avanços já
também. obtidos pelas ciências e técnicas. Daí atitudes como a filan-
O grande público preferia acreditar na bondade inata tropia, a beneficência e a benevolência. A crença no pro-
do homem, apesar de todos os sarcasmos de David Hu,ne . gresso e na perfectibilidade do homem garantia de ante-
1 3
• Os refinamentos filosóficos, com suas dúvidas e reticências, mão o triunfo da ca1tsa da J11,111anidade •
eram estranhos a esse público em geral. Era bem mais
fácil e gratificante acreditar na bondade humano com suas a Id., ibid., p. 197 ct scqs.

fonnas variadas de expressão. A natureza humana é sempre
• •

'
,
50 51

• A convergêncià daqueles dois tipos· de h\lnianitarismo · períodos subseq~entes da hist_ória da historiografia, co1:'1
que mencionamos resultava.do .fato de que a mesma bene- seu cortejo, inevttável, de admiradores e detratores e, mais
volência, que era justificada por uma razão mais realista, importante, com os mal-en.t:ndídos. tra?s.formados em
era confirmada pelas exigências d.o coração. A 'razão hu- sentençás definitivas; 3.º) a v1sao da h1stor1c1dade presente
manitária-e o sentimento humanitário, apesar de diferentes, no pensamento ilustrado e as dificuldades· filosóficas dela
têm em comum a convicção de que é preciso aliviar os sofri- derivadas.
mentos dos pobres e dos oprimidos, eliminar a crueldade, Desses três sentidos, interessa•nos aqui o último,
difundir a felicidade pública, sobretudo em favor dos pobres mesmo porque a exposição dos dois primeiros exigiria ca-
e dos miseráveis. . . ... · pítulos adicionais. Vamos por esse motivo apresentá-los
Tal explosão da "sensibilité" exprime o estado de es- apenas em suas linhas mais gerais.
pírito das chamadas "almas gentis e amáveis", hostis à fria
indiferença da razão iluminista pelas misérias e à sua tácita Natureza e características da historiografia
aceitação do mal. Os espíritos ''mais simples", no entender
iluminista
do~ "filósofos", preconizavam a generosidade e a caridade
' para com os seus semelhantes. Esse estado de espírito tra- Ao analisar "A conquista·do mundo histórico", em
duz-se na esfera religiosa através da exigência de uma reli- sua obra sobre a Ilustração 4 , Ermt Cassirer põe em relevo
gião mais profunda e rica em éxperiências pessoais, uma autores e obras que significaram momentos e contribuições
fé mais colorida de sentimentos e capaz do verdadeiro en- importantes para a historiografia ilustrada, sempre em es-
tusiasmo, tal como se concretiza entre os pietistas e meto- treita relação com as idéias filosóficas. Em sua exposição,
distas. ~ Cassirer vai de P. Bayle a J. G. Herde,. Bayle, com seu
A longo prazo, porém, tais atitudes mentais colefl~as Dicionário histórico e critico, situa a importância do fato,
distanciam-se mais e mais do Iluminismo e tenderão ao fim ""'°' não como um dado; mas sim como termo de um processo
e ao cabo por contestá-lo. Ao redescobrir e dar um novo de investigação metódica, rigorosa e crítica. O fato histó-
valor às tradições culturais de cada país, ao criticar o cos- rico é o problema, exatamente porque resulta de uma ope-
mopolitismo dos "filósofos", ao privil~giar o_senti?1ento :m ração intelectual que tem a verdade por objetivo, mas ·se
todas as suas diversas formas de man1festaçao, tais tenden- defronta com a origem subjetiva dessa verdade. Bayle faz
cias abrem caminho à rejeição do próprio Iluminismo. a crítica da razão histórica, situando-se, assim, segundo
Cassirer, num nível de importância equivalente ao de Co-
pérnico ou de Galileu.
A consciência da historicidade A filosofia da história, ausente em Bayle, é proposta
por Vico em seus Princípios de zuna ciência nova, em bases
Convém notarmos, inicialmente, os três s.entidos ºque anti-racionalistas. Porém a obra de Vico só viria a ser re-
a questão proposta pelo título acima pod: in~1car: _1. ) a
natureza e as características da produção h1stor1ográfi_ca das 4CASSIRB!t, Ernst. Filosofia de la l lustraci6n. México, Fondo de
"Luzes"; 2.º) a valoração atribuída a essa produçao nos Cultura Econ6mi~1950. p. 221-59 .

••
52 53
1
cuperada do esquecimento ·por· Herder 'dáí sua· nenhuma Jução, também Condorcer, que sintetiza bem a visão pecu-
i~tf~uência sobre o llur~inis,rw. Neste, o' pr-0blema da histo- liar dos iluministas quanto à História 6 •
nc1dade está presente nas obras de Montesquieu, Voltaire, Na Inglaterra, a historiografia teve também expressões
Diderol, D'Alembert, Rume e Lessbig. das ma1s representativas, erpbora diferentes entre si do
Montesquieu, em O espírito das leis, utiliza os dados
, .
ponto de vista iluminista. Edward Gibbon - História do
emp1ncos para estabelecer leis e princípios gerais sobre as declínio e queda do império romano ( 1776-1788) e W.
sociedades humanas. Segundo Cassirer. Montesquieu é o Robertson - História do reinado do imperador Carlos V
primeiro pensador a utilizar o tipo ideal histórico, produ- (1759) seriam, segundo E. Fueter, representantes da "es-
zindo uma tipologia política e sociológica. Sua. principal cola de Voltaire na Inglaterra". Já Adam Ferguson -
característica é a análise sincrôníca, daí a crítica que se Ensaio sobre a história da sociedade civil ( 1767) ocupa
faz a ele quanto às suas formas "estáticas" que não dão um lugar à parte.
conta do processo. Na Alemanha, os dois principais nomes são os de
Para Voltaire, é necessário erguer a História acima Lessing e Herde,. Lessing tentou conciliar a teologia e a
do âmbito do demasiado humano, acidental e puramente • História em sua Educação do gênero humano. Herde,, por
individual, a fim de se evidenciar "o espírito das épocas e sua vez, sobre um substrato leibniziano, opõe a singulari-
das nações". O que importa é a marcha da cultura, ex- dade do individual ao método analítico, negando as gene-
pressão de uma natureza humana sempre igual a si mesma, ralizações, a possibilidade de leis históricas universais e
forma através da qual se revela a história do espírito, seu afirmando, ao contrário, a imanência de cada situação ou
progresso ou ilustração. Para Voltaire, a História é o es- fase histórica. "A superação da Ilustração por Herder é,
tudo racional do desenvolvimento da cultura 6 • realmente, a sua auto-superaçãon 1.
H ume destoa do contexto iluminista

também pelas suas
idéias sobre a História. Anti-substancialista, interessa-se As valorações da historiografia iluminista
pelo processo histórico, pela mudança incessante. Mas não
Enquanto Fueter alonga-se na tentativa de distinguir,
crê num desenvolvimento contínuo, não vê racionalidade
entre as críticas feitas à historiografia iluminista, aquelas·
inerente à História. Sua ênfase é no factual e no indivi-
que são ou não procedentes, a análrse de Cassirer, mais
dua~ descrendo do · valor dos conceitos no terreno do
objetiva, chega a resultados bem mais consist(;ntes apenas
histórico. pela demonstração de que em boa parte muito daquilo
Os enciclopedistas deram destaque à História como que em geral se admite como válido acerca do caráter
demonstração empírica de suas próprias idéias a r~spelt~ a-histórico do século XVTil foi produzido pelp Romantis--
do home~ da razão, do progresso e do seu próprio oti- mo, o qual, tendo sido tão rico quanto ao sentido da
mismo. Além de Voltaire, Diderot, D'Alembert, deve-se •
mencionar o abade Raynal e, embora já em plena Revo-
6 CASSIRER, E., op. cit., p. 2S4; GusooRF, G ., op. cit., p. 222;
ÚERSHOY, L., op. cit., p. 203 ct scqs.
õ GusooRF, Georges. Jn1roduction aux sciences humaines. Paris, 1 CASSlRBR, E., op. cit., p. 257-9; FuETER. E. Historia de la histo-
riograjia rnoderna. Buenos Aires, Nova, 19S3. t. 11, p. 36-43 e 81-8.
Ophrys, 1974. p. 222-4.
54
ss
perspectiva histórica, falhou exatamente· qÚarido tratou de j

colocar o setecentos nessa mesma perspectiva. e Fontenelle; a erudição laboriosa e anônima dos bola11-
distas e beneditinos; o desenvolvimento das teorias do di-
. O ~~do histórico utilizado pelos românticos contra
os dunun1stas foi descoberto graças à eficácia dos pressu- · reito natural e das gentes (Grotius e Spinoza, Hobbes e
postos intelectuais do lli11ninismo. Foi este quem colocou Locke, Tomasius, Cristiano Wolf/ e Leibniz).
a autêntica questão filosófica da História 8•
'1 Criada por Voltaire, em 1765, segundo Gusdorf, a
expressão "filosofia da História" é o reconhecimento do
sentido da História - a grande contribuição do Iluminis-
;1j11 A visão iluminista da historicidade e mo. A História delimita, a partir de então, um espaço

seus problemas .. mental distinto do dogma e do determinismo físico ou
O verdadeiro cerne da "nova História" proposta pelos
naturalista, espaço esse dotado de inteligibilidade própria.
~ .. i . iluministas estava na fé que depositavam no progresso. A Tal foi a nova leitura que o Iluminismo fez da velha tensão
metafísica entre tempo e eternidade, ou seja, da oposição
1·,i : l J
•1 História deveria ser, assim, "uma filosofia que ensina pelo
exemplo", pois a História é a própria experiência confir- absoluta entre as verdades de razão - intemporais, eternas
, . , r, - e as verdades históricas - mutáveis, contingentes.
,:t I /Jfh !;., mando as verdades eternas da razão 9 •
~ Como expressão dessa leitura, o llu,ninismo substitui
As análises de E. Cassirer e G. Gt1Sdorf demonstram
JJ 11:1·11j?d j o que foi, no século XVIII, "a conquista do mundo histó-
o binômio "verdades de razão" e "verdades de fato" pela

~
relação entre "natureza" e "liberdade": a natureza é o
rico" 10 ou "o despertar do sentido histórico" 11 • Mas tal
·1 ili! '1/ • conquista não esteve jamais isenta de dificuldades, dada a
reino dos acontecimentos calculáveis segundo leis necessá-
1 rias, matemáticas; a liberdade é o reino da História.
oposição, tida como insuperáveJ, entre a filosofia - cujo
. t 1. ;l 1
objeto são as verdades racionais e eternas - e a História
Ao findar o século XVIII, despertado o sentido histó-
1 1111 i 1 rico, seu destino é ainda incerto. Liberto de uma dogmá-
- esfera do contingente e do individual. Daí as distâncias tica, a da Revelação, ele permanece escravizado à outra,
entre a filosofia e a História assumidas pelo racionalismo
a da Razão. Daí as "diversas aventuras das filosofias da
cartesiano e o empirismo inglês. História". Ka11t marca bem esse final de um ciclo, ao
1
l·l1•
1 ~
lji!t1i l . . A conquista do mundo hist6ricc foi um processo lento, mesmo ten1po que ilumina o debate que o precede. Caberá
resultante de variadas vertentes: o surgimento de uma fil~ ao Romantismo propor o estudo do passado como valor
11 J' j f;, sofia da cultura que irá fazer da civilização o fato funda- em si mesmo e afirmar que a História contém em si seu
I 1
11 1 ' •1 mental da realidade humana; os progressos da crítica his- próprio sentido. Mas será também a tarefa de uma outra
1 1 tórica restrita, durante muito tempo, aos textos bíblicos
, . .
( Mabillon, Spincza, Ricardo Si,n_on); as 1nvest1gaçoes e
- filosofia, a do historismo, tal con10 o será também do posi-
tivis,110. "A alternativa entre um sentido que esvazia a
111 análises críticas mais amplas deVJdas a Merse11ne, Bayle • História e uma História vazia de sentido não pôde ser resol-
vida; precisará ser ultrapassada. Este será o problema do
8 C ASSIRER, E ., op. cit., p. 221-; F UETER, E., op. cit., p. 18-9. século XX" 12•
9 G ERSHOY, L., op. cit., p. 201 et seqs.
10 CAssrRE.R, E., op. cit., p. 224 et seqs.
l l GUSDORP, o., op. cil., p. 247-67. 12 GusooRP, O., op. cíl., p. 226-8 e p. 247 et seqs.
i ~'1} !i , 1
FJ\lr{O}J 57
' .. •


Daí resultam as diversas perspectivas que a ciência do
... • • .. homem assume então:
• - uma hist6ria natural, independente da perspectiva
1


da antropologia médica, tendendo a primeira a

As bases do . sistematizar-se numa filosofia da natureza;
- uma filosofia da cu/Jura, produto do desenvolvi-
pensamento iluminista mento do sentido hist6rico;
- uma teoria do conhecimento, associada a uma aná-
. . . . ...

1
lise psiccl6gica que conduz a uma antropologia
1 filos6fica .
••
Esta pluralidade de dimensões epistemológicas, ao $
1 ameaçar a perspectiva unitária do homem, abria caminho ft
• à fragmentação do saber, em função da especialização 1
1 1
Movimento intelectual portador de uma visão unitária crescente das diversas disciplinas, cujo objeto comum era
do mundo e do homem, o Iluminismo, apesar das diversi- o homem. Para enfrentar esse risco, o Iluminismo realizou
dades de leituras que lhei são contemporâneas, conservou um movime.nto duplo: o prirneiro foi a elevação da antro-
uma grande certeza quanto à racionalidade do mundo e do pologia à categoria de fundamento de todos esses saberes,
. .
homem, a qual sena imanente em sua essen~.
,.. .. deslocando, em conseqüência, a teologia, que havia desem-
Suas principais linhas de força foram o pensa.mento penhado até então esse papel; o segundo consistiu na orga-

crítico, o primadc da razão, a antropologia e a pedagogia. nizaç.ão e consolidação dos conhecimentos existentes, e
O pensamento críúco e o primado da razão já foram tal foi a razão de ser da Enciclopédia. •

Dentre as diversas tendências e dimensões criadas ou ••


analisados nos capítulos anteriores. Vamos examinar agora •


1
as questões que denominamos de antropologia e pedagogia desenvolvidas pela a.n tropologia das "Luzes", todas elas ex-.
das "Luzes". pressões de uma crença profunda na inteligibilidade racio-
nal do domínio do humano, há duas que mais nos inte-
1 '
1
ressam: un1a, baseada nas conquistas da história natural
1 A antropoJogia das ''Luzes'' e da nzedicina, considera o homem como um ser solidário
de todos os seres vivos em geral, daí resultando uma histó- •
As várias antropologias do século XVTII têm em co- ria riatural do homem e uma filosofia da natureza. Já a
mum, segundo Gusdorf, o objetivo de realizar o estudo outra tendência, mais impressionada pela distância que
1 positivo do homem: seus adeptos crêem existir entre humanidade e natureza,
considerado como Indivíduo. sadio ou doente, como espé· coloca em primeiro plano o donúnio humano sobre o mun-
·e natu"""I
c1 . ,.. , como criador coletivo da civilização ao longo do natural, dada a capacidade, inerente ao homem, de ser
dos caminhos da história.
'\
59
o criador do seu própri0 d . .
d 1, d . mun o - o 11iundd da cultura·
ª
d Aenvavam eles então uma filosofia baseada na vocaçã; A antropologia - seus temas e valores
o genero humano à civilização.
,, Tendo como premissas mais gerais o primado abso-
' ~iJ~sofia_s da natureza e filosofias da cultura conduzi- luto da razão e o caráter universal e eterno da natureza
,, r~m, .e imediato ou não, às doutrinas evolucionistas e às hun1ana, desenvolvemwse os temas da humanidade, da civi-
1' osof,as da hi.)t6ria b~seadas na idéia de progresso 1.
lização e do progresso.
A temi" · ·
. . encza ou vertente das filosofias da natureza
or,g,~ou, no Iluminismo, as diferentes idéias, geralmente Humanidade
reurudas sob o rótulo de "materialismo do século· XVIII" •
A palavra, antiga (do latim humanitas, correspon-
(o mes?1o que Mar~ chamaria de "materialismo vulgar") 2.
Estes .diversos materialismos diferem dos seus homônimos dente ao grego philanthropia), significa coisas antigas e
d?. século XVII, pois enquanto estes últimos eram meca- novas no contexto do Iluminismo: qualidade inerente ao
n~c1sta~, os do sécuJo XVIII eram em gera) vitalistas ou ser humano, ideal de cullura que toma o homem verdadei-
b10/6g1cos. Foi este o caso de pensadores como Lamettrie ramente humano, comunidade dos homens, valor de impor-
Dide~ol! D'~olbac~, Maupertuis e Helvetius, se bem Rt1; tância jurídica, moral, e pedagógica. Humanidade é para
este ultimo Já se situe numa espécie de passagem para a os iluministas também uma ton1ada de posição: da imanên-
1 filosofia da cultura. cia contra a transcendência do homem, da afirmação do
A vertente das filosofias da cultura privilegia a noção reino do humano como quadro epistem~lógico, e objeto
d_: civillzação enquanto expressão autêntica da emancipa- de pesquisa - o homem pode ser objeto de ciência e sua
çao do mundo da cultura, isto é, do próprio ho,neni - o verdade é deste mundo. Temos aí o antropocentrismo das
homo faber. Qualquer ciência do homem deverá implicar, "Luzes".
neste caso, uma ciência das scciedades humanas, sempre Como expressão desse antropocentrisnw das "Luzes",
a partir de uma visada dupla : o conhecimento de tais socie- a idéia de humanidade traduz, simultaneamente, o ponto
dades como são e o conhecimento de como deveriam/ de- de chegada de um debate teológico secular e uma diferença_
verão ser. Sem constituir exatamente urna aquisição do em relação ao humanismo renascentista. Como ponto de
1,/ Iluminismo, essa autonomização do húmano é agor~ enri-
.. 1/ chegada, ela significa a rejeição da doutrina do pecado
1 quecida pelo sentido do devir hist6rico, dotado de uma original e a redefinição das relações entre o homem e
inteligibilidade própria e positiva - o progresso. Não foi Deus; enquanto diferença, ao contrário das construções
por acaso que o Iluminismo foi o primeiro grande momento filosóficas dos humanistas renascentistas, tal idéia é afir-
da filosofia da hist6ria. mação do valor da realidade terrena em si mesma, da
importância das ciências do homem e da investigação s~
1 GusooRP, Georges. lntroductlon aux scie11ces humal11es. Paris, gundo os princípios da ciência experimental. Humanidade
Opbrys, 1974. p. 229 e 243.
.2 DESN, R. Os 111flterialistas franceses, de 1750 a 1800. Lisboa, Sea- e ciência do homem pressupõem-se mutuamente. Enfim,
.!
ra Nova, 1969. a idéia de J1umanidade implica atitudes, comportamentos e
60

61
práticas ht,manas, como· veremos mais adiante ao tratar-
mos dó "pragmatismo das 'Luzes•" 3, .. · de um povo ou de um país, numa gradação ou hierarquia
de sentido em relação a "civilização". Enfim, no Ilumi-
Civilização e cultura • nismo, civilização afirmou-se mais e mais como o "conceito
que designa o movimento coletivo da realidade humana na
~ala~ras. .do século XVIII, a primeira dos vocabulários
I ~n~ e ingles e a segunda do alemão - Kultur. Para os
sua passagem do estado da natureza ao estado da cultura" 6.
llum1n1stas, .civili<AÇão é uma realidade e um ideal, algo No decorrer do movimento das "Luzes", porém, a
como a vanável temporal da idéia de humanidade, tendo idéia de civilização tomou-se mais e mais ambígua, pola-
co~o .seu substrato a noção de pro,gressa. ·Boa parte dos rizando-se entre o pressuposto filosófico de uma civiliza-
' • mais unportantes trabalhos produzidos durante o século ção unitária e a verificação empírica da existência e das
XVllI tem como objetivo a idéia de "civiJização" 4 • No es- •
especificidades das civilizações diferentes entre -si. Já no
paço men~l das "Luzes", civilização assume uma COIU)ta- crespúsêulo do Iluminismo, mais e mais se percebe que,
çã.o dupla: ela é um valor em si, espécie de qualidat./.e que em lugar de civilizaçãq, existem na roalidade "civilizações".
faz ou deve fazer parte da própria maneira de ser do •
Progresso
homem em sociedade - seu estado natural; ela é também
.l :,
uma tomada de consciência da realidade da existência do O tema do progresso é essencialmente moderno. Só
homem na sua dimensão horizontal - a apreensão e valo- é possível pensá-lo se forem admitidas também a historici-
ração da diferença no tempo e no espaço entre as sociedades dade da existência humana, como realidade autônoma na
humanas, pois, em última análise, "os selvagens são os perspectiva de um desenvolvimento temporal, e a eficácia
nossos contemporâneos primitivos". Trata-se então de uma da ação do homem no mundo. Daí ser uma idéia que
arqueologia humana, na qual as diferenças apenas demons- pressupõe a imanência. O progresso é fruto de uma tomada
tram um caminho ao longo do qual os homens progridem, de consciência capaz de perceber o movimento e a dife- .. .
• •
do selvagismo à civilização. I rença, assim como o sentido de mudanç.as que têm no
Civilização significa também a possibilidade de civili- homem o seu sujeito.
zar. Daí, no plano dos costumes e da educação, as ambi- A idéia de progresso manifesta-se inicialmente à época.
güidades existentes no século XVIII entre civilização, civi- do Renascimento, como consciência de ruptúra. Ela irá
1 lizar e palavras como ''civilidade", "polícia" e "policiado", implicar mais e mais, a partir de então, uma dissociação
significando a primeira polidez ou cortesia, enquanto a se- entre a ordem da çultura e a ordem natural, pois implica
1 gunda e a terceira designando os costun1es e as instituições
• a negação da repetição cíclica. No século XVIII tal idéia
associa-se à consciência do caráter progressivo da civiliza-
1 3 GUSDORP, G. Les príncipes ... , cit., p. 349,75, especialmente p.
361-2 e 354·5.
ção, e é assim que a encontramos em Voltaire. Tal como
4 A ciência nova, de Vico ( 1725); A riqueta das nações, de Adam
• para Bacon, no início do século XVIT, o progresso também
Smith (1776); O espfrito das leis, de Montesquieu (1748) ; O ensaio é uma espécie de objeto de fé para os iluministas.
1 sobre a história da sociedade civil, de A, Ferguson (1767) etc. Cf.
GUSDORP, o., op. cit., p. 336.
• • •
ti GusooRF, G., op. cit., p. 333·48, especialmente p. 337, 340 e 345.
1

.;.,·
62 1• 63

Apesar de existirem vozes dissonantés como as de bem-educados, da plebe ignorante, supersticiosa, inclinada
Hume e Rousseau, a crença -no progresso.é "um' dado que aos maus costumes e mal-educada.
se demonstra com a própria história geral da humanidade" A pedagogia iluminista envolve, para o historiador.
(Turgot). O caminho da barbárie à civilização é o próprio duas ordens de indagações, que foram assunto dos políticos
caminho do ser humano da animalidade à humanidade. e dos "filósofos" do setecentos: a questão da natureza do
1 Tal progresso é linear e ilimitado. processo educativo e a questão da reforma e difusão das
• A tomada de consciência que a noção de progresso ). 1 instituições educacionais.
implica expressa-se numa hierarquização da humanidade, No que. se refere ao processo educativo em si, havia
' no tempo e no espaço, sustentada, porém, pela tese da divergências significativas. Helvetius, ~ssim como boa parte
perfectibilidade infinita· da espécie humana, que é o seu 1 •, . dos demais "filósofos", especialmente aqueles de tendências
fundamento filosófico. A certeza do progresso permite en- mais inclinadas ao materialismo, estava convencido de que
carar o futuro com otimismo. "O homem não é senão o produto da sua educação". Se-
Todavia, talvez em decorrência de seu próprio dina- gundo ele, a pedagogia era uma ciência tão exata quanto
mismo intelectual, as "Luzes" se saldam também aqui por a geometria, e era ela que tomaria possível produzir bons
novas ambigüidades: frente à tese da perenidade da natu- cidadãos, ou seja, pessoas capazes de subordinarem seus

.'
reza humana em todos os tempos e lugares, afirma-se o . interesses particulares ao bem público. Afinal, dizia-se,

l l\
1
caráÍer mutável da espécie humana a partir das P.róprias "todos os homens têm os mesmos interesses e os mesmos
evidências empíricas 6 • sentidos" - cabe à educação explorá-los.
Opondo-se a · tal concepção pedagógica, situou-se
Rousseau. . Seu Emílio é a negação das afirmações de
A pedagogia dos ''filósofos'' • Helvetius e dos demais pedagogos que se apoiavam na
• psicologia das sensações'. Contrariando aqueles que privi-
Boa parte das expectativas e pressupostos positivos do re- ' . legiavam a influência do meio, Rousseau apela para a ........._
• •••1 •t='l-•
formismo ilustrado tinha como premissà a eficácia das práti- .. "verdadeira natureza do homem". Em lugar de ensinar a ,
cds pedag6gicas, como se depreende, aliás: da'própria c?n- virtude ou a' verdade, a educação, para Rousseau, ·é um i)
cepção que destacava como instrumento ideal para a dtfu- conjunto de preceitos negativos que visam a preservação
~ • pe1os "f.I 16so f os" .
são das' "Luzes" a educação do pr1nc1pe do "espírito" e do "coração", ameaçados pelo "erro" e
Fator-chave do progresso da razão, a pedagogia era pelo "vício", defendendo os impulsos primitivos da criança
para os iluministas o único caminho racion~lmente. ~ssí- da contaminação pela sociedade e pelos intelectuais. Em
vel no sentido da igualdade. S6 ela poderia prop1c1a~ a • essência, afirma ele, os instintos naturais da criança são
eliminação, no futuro, do abismo que separava os ~spíntos corretos e bons. Refutando Locke ao negar a importância
bem-pensantes, moralmente bem-forntados e socialmente ••
da instrução, Rousseau coloca em primeiro plano o desen-
volvimento das potencialidades da criança e o pleno flo-
o BURY, 1. La idea de.l pr~greso. Madrid. Alianza, 1971. p. 151 et rescimento da sua personalidade. ·
seqs.; GusooRP, G., op. c1t., p. 310-33.


Em relação ao problema da ·difusãó dos · estabeleci- ·
mentas educac,·onalS,
· 9 primeiro
· · dado a considerar é a
opinião favorável dos "filó~ofÓs" à~m ;istema controlado 1 •

pelo Estado. O próprio Rousseau, neste particular, corro-


b~ra _esse ~nsenso. Percebendo as relações entre a cons-
c1encia nacional e o patriotismo na formação· do cidadão, .O pragmatismo
' R?usseai,. d~fende, em O contrato social, a educação pú-
blica, def1rundo a educação como "exigência pública e
· das ''Luzes''
l dever do Estado". Na realidade, ~ra d~ cida~a que se
tratava, em oposição ao cosmopolitismo e ao vago senti-
1
mento de amor pela humanidade.
Dessa forma, a cidadania só poderia ser co,nstruída
com seus alicerces plantados na herança cultural particular
de cada nação. O amor da pátria depende de instituições •
nacionais, e dessas nenhuma mais importante do que um No horizonte do movimento ilustrado, as idéias em
sistema estatal de instrução. si mesmas, apenas enquanto idéias, isto é, abstrações inte-
Pedagogos e reformadores iluministas tendiam, assim, lectuais, divorciadas de uma prática transformadora, têm
a rejeitar em escala crescente todos os tipos de obstáculos muito pouca importância. As idéias ape.nas têm razão de ·
capazes de impedir o cidadão de afirmar seus laços de .• ser, para os iluministas, quando objetivam ações que modi-
obediência exclusivamente para com o Estado nacional. fiquem a realidade existente. Tal pragmatismo, freqüente-
Sistematizando tais idéias, temos o Ensaio de educa- mente colorido de utopismo, ainda boje espanta um pouco
ção nacional, de La Chalotais, publicado em 1763, arqui- os adeptos do pensamento puro. Mas assim eram os
inimigo dos jesuítas. No mesmo sentido manjfestou-se "filósofos" 1 •
Turgot. '8 possível agruparmos a multiplicidade das propostas
No terreno das práticas, apesar dos entusiasmos que e das práticas iluministas em três tópicos maiores: a tole-
saudaram em diversos países a derrocada dos jesuítas, as rância, o humanitarismo e o utilitarismo. Um quarto tó-
realizações ficaram não raro muito aquém das expectativas • pico - a pedagogia, ou "educação do gênero humano.,
e esperanças. Conforme o país, diversas foram as realiza- -, já foi abordado no capítulo anterior, pois julgamos
ções pedagógicas 7 , modestas na França, importantes na
Inglaterra, particularmente intensas nos países do despo- 1 GuSOORP, G. Les principes ... , cit., p. 376-7. "Uma sabedoria
tismo esclarecido. prática e empreendedora substitui as metafísicas especulativas." T!l
era a preocupação da Academia Real, de Londres, da Aca~em1a
das Ciências de Paris, corno o será também da Real Academia das
Ciências, de' Lisboa. Dai a importância das ciências históricas, polí·
"GERSHOY, L., op. cit., p. 210-3 e 274-86. ticas e econômicas.
• 67

que é tal a importãncia·da educação para -o llu"1i11ismo que era pessimista quanto à possibilidade de se extirpar, a curto
bem podemos considerá-la uma verdadeira linha de força. praro, a "superstição infame" - o cristianismo - do seio
' '
da ralé, pois, no seu entender, apenas os bem-educados,
que são aqueles que querem pensar, aderem ao deís,no. l
Tolerância Tampouco era comum a adesão ao materialismo. Casos
como os de Helvetius, D'Holbach, Diderot e alguns outros
1
Seus pressupostos político-filosóficos e teológicos são poucos "filósofos" não constituíam regra geral. Esta últi- 1
uma releitura e uma afirmação. A ºreleitura, ou redefinição, ma, de fato, consistia no meio termo: nem se deixar levar
prende-se à nova forma de conceber a própria natureza por transportes emotivos e sentimentais, nem negar a exis-
• da tolerdncia. No século XVII, o reconhecimento da tole- tência de Deus. Afinal, era importante que se evitassem
rância foi um fato essencialmente político, fruto das difi- o entusiasmo vulgar e a inevitável perda do decoro. Mas
culdades resultantes das dissidências e conflitos religiosos. também não se podia ter homens bons, magistrados hones-
Tratava-se então de uma questão de conveniência política, tos e súditos obedientes se tais pessoas fossem materialistas.
e como tal era reconhecida. Nesses termos, a tolerância foi Assentando-se sobre o alicerce que era o deísmo. a
vista a princípio como concessão do príncipe, ficando res- tolerOncia teve trajetos variados de país para país. Uma .\
trita a liberdade de consciência à esfera do indivíduo en- coisa eram as nações protestantes, outra as nações católicas. '
quanto entidade privada, pois, na esfera pública submetida Na Inglaterra, os não-confonnistas e católicos sofriam dis•
ao Estado, prevalecia a religião do soberano. criminações, enquanto em França os protestantes eram
Coube ao Iluminismo dar o impulso final no sentido verdadeiros foras-da-lei. Em outros países católicos, salvo

de fazer da tolerância um princípio de ordem geral, im- o lento declínio da Inquisição em alguns deles, a heterodo-
1
posto pela razão, algo inerente à natureza h.umana e não xia continuava proscrita e o ateísmo execrado.
'
mais uma concessão outorgada pela autondade estatal. Por último, convém não perdermos de vista alguns
outros aspectos. Para boa parte da burguesia, tal como
Nesse contexto ela é entendida como dever moral.
para certos príncipes, o deísmo e a tolerância eram armas
A difusão do deísmo contribuiu decisivamente para o --......_
na luta contra a riqueza, os privilégios e a influência da
.. r rr-

avanço da tolerância religiosa. Conforme a crença religiosa
despojou-se das cerimônias e ritos, circunscrev~ndo-se _à
crença na existência de um Ser Supremo, ~ais e m~s
Igreja Católica, pois seus interesses materiais e/ ou políticos
primavam sobre as questões propriamente religiosas 2 • - .
~
"
Enquanto que no seu país de origen1, a Inglaterra, o
1 foram-se esmaecendo as diferenças entre as diversas reli- dets,110 teve pequena aceitação, no continente ele se expan-
·- Afinal O importante era a consciência do bem e do diu bastante, se bem que muito pouco na Itâlia, Espanha
gioes. , f. .da
mal, do valor da vida virtuosa, e a con ia~ça º~,ma v1 e Portugal, e muito intensamente na Alemanha.
futura na qual "o supremo arquiteto do universo recom·
pensará os justos. 2 GsasHOY, L., p. 208. Trata-se de um longo processo ~ue <:<>nduzirã
Que tal reUgião natural era acessível apenas a algu~s ao fim e ao cabo à dessacralização da história, rac1onahi.ando o
róprios "filósofos" duvidavam. Voltaire devir humano. Cf. GusDORF, B., op. cit., p. 211.
poucos, nem os P
'.
Humanitarismo • •

l'
.
!J homem pela lei", e D'Holbach, segundo o qual "a verdade
. E a trad~ção, na prática, das atitudes mentais já des- em matéria de legislação não é dada e, sim, é alguma coisa
critas sob o titulo de Humanidade. Suas três noções fun- que se precisa descobrir". Nesse mesmo diapasão Filan-
damentais eram então: Otimismo jurídico, Filantropia e • gieri escreveu sua síntese, a Ciência da legislação, de J780
•,·
Bene/icência. a 1788, a qual, por intermédio de Helvetius, foi retomada
por Bentham, segundo quem "A infJuência do governo se
Otfmismo Jurídico estende praticamente a tudo, com exceção do tempera-
.. mento, da raça e do cJima" 3 •
~ a confiança no sistema das leis e no poder do legis-
• •
Em suma, é a legislação que deverá tornar os homens

lador como capazes de assegurar a virtude e a felicidade mais felizes, unindo e harmonizando todas as atividades
dos homens. Se as leis forem racionais, serão justas, po- humanas. Daí, como prioridades, a reforma dos códigos,
dendo promover o bcm~estar geral. dos processos, dos tribunais e das prisões. Pertencem a
Já os teóricos do direito natural e do direito das gen- essa ordem de preocupações o tratado Dos delitos e das
tes, desde o século XVII (AlthzJSius, Grotius, Pufendorf) pe,zas, de Beccaria, a luta pela abolição da tortura, os
'
haviam ressaltado a importância da "dimensão jurídica" projetos de prisões-modelo, de Bentham ~.

• para as atividades • h4manas. Com o IIL1minismo ganhou . Humanizar os processos e as sanções, assegurar uma
ímpeto o reconhecimento, o primado do coletivo sobre o . organização judiciária independente de manipulações arbi-
individual, e com ele a confiança nas leis e instituições, trárias, codificar a legislação para que se torne conhecida
confiança que se expressa de formas diferentes em Rous- de todos, fazer da prisão um lugar mais voltado para a
seau e Raynal: Todo povo é aquilo que a natureza de seu educação do que para a punição, eis alguns dos lugares-
• • • -comuns do otimismo jurídico iluminista.
} governo o faz; tudo é possível a um legislador hábil e ·sábio
• •
• pois, perante esse legislador, o indivíduo é uma rabula O fundo humanitário desse otimismo revoltava-se con-
rasa. tra as crueldades presentes nas práticas legais fixadas por
• 1 uma antiga tradição. .A tortura e a pena de morte eram
• Esses pressupostos· informam a prática dos déspotas •

esclarecidos e também a dos revolucionários franceses em vistas pelos iluministas como fonnas de "violência legal".
suas assembléias. Cab.e à legislação transformar em reali- As condições das prisões eram descritas como desumanas.
dade o racionalmente possível. A punição do criminoso deveria ser algo proporcional ao
Não duvidamos que essa confiança ilimitada no poder crime cometido,
• assin1 o afirmavam Beccaria, na obra já
das leis e dos códigos seja uma das principais responsáveis citada, e Benthan,, en1 sua Introdução à política e à moral.
l Por sinal, o importante da punição não deve ser tanto o
pelo grande número de legisladores que o llumi~isn1': pr':
duziu. Tal foi o caso de Beccaría, com sua leg1slaçao cri- 1
3 0USOORP, o.. op. cit.,
p. 378-80.
1
••
minal espécie de "filantropia codificada". Foi tambén1 o .. • FOUC.\ULT, ~f. Survtilltt ti punir: naissan.ct de la prison. Paris,
Oallln1nrd, 197$; !.{icro/ísica do podtr. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
caso de Rousseau, para quem era necessário "substituir o p. 129 Cl scqs.: GUSDORF, G. Lcs principes . .. • cit., p. 381 e 385.



------.-,u,11uu111w1MtlMA41MUt;ll1Qi4AU!tMlMtlftiNP11'•taull'i'.'fttlSCíAttJ1Jt11n

70
1 . 1. 71
objetivo de castigar quanto o de convencer· o público· em
geral · 1·1·dad
. da 1nu '' e d o próprio
· ato criminoso. Tratar-se-ia,. ·
assim, de pôr em prática uma espécie de aritmética moral
~,, •
Do ponto de vista dos "filósoJos", o objetivo maior
da filantr'opia deveria ser ~empre contribuir para "ampliar
a quantidade de humanidade existente no mundo" e. Daí
onde a contabilidade dos prejuízos deveria superar sempr; incluírem entre os diversos tópicos das atitudes filantrópicas
a .dos possíveis benefícios ou lucros proporcionados pelo ,,, as preocupações concernentes a fenômenos como: a servi-
cnme 11.
dão e a escravidão; a doença e a fome; a pobreza e o de-
Nas práticas político-jurídicas dos déspotas esclareci- • •
semprego; a guerra e o patr1()1lsmo.

dos podemos detectar inúmeros exemplos de todas essas
concepções do otimismo jurídico iluminista, notadamente
Servidão e escravidão
quanto à codificação e à organização mais ou menos autô-
1 noma dos sistemas judiciários frente à administração civil 1) A servidão propriamente dita,· como tema espe-
em geral, incluindo os critérios mais racionais para escolha cífico, é um objeto pouco freqüente no discurso iluminista.
e nomeação dos juízes. Para alguns historiadores tal silêncio pode ser explicado
• pelo fato de que, na Europa Ocidental, a servidão já havia

desapar~cido ou estava condenada a um rápido desapare-
Filantropia .( •
c1mento, ao passo que, na Europa Centro-Oriental, ela
Pertencente ao mesmo campo semântico que Huma- estava solidamente enraizada. Desconfiamos dessas duas
nidade e Beneficência, o termo Fi/anJropia foi posto em explicações. Cremos que uma explicação mais satisfatória
uso · por Fénelon e rapidamente integrou-se ao vocabulário deveria levar em consideração três séries de elen1entos: l.º)

das "Luzes". Seu sentido é o de expressar as atitudes e as boas relações mantidas pelos "filósofos" com os déspotas
· sentimentos que demonstram "a disposição e bondade na- esclarecidos de países onde reinava a servidão (Prússia,

Rússia, Áustria), levando a uma aceitação implícita da
turais de amar todos os homens", principalmente, acres-
ordem social aí vigente. ~ o silêncio do interesse e da cau-
centamos nós, pelos seus sofrimentos e necessidades. Esta
tela; 2.0 ) sem constituir um tema à parte, a liquidação
amizade desinteressada pela espécie humana, embora se da servidão está i111plícita nas idéias de Rousseau, com sua·
enraíze na perspectiva de uma generalização humanitária sociedade democrática, politicamente igualitária; está mais
da caridade cristã, dela difere por se basear nas premissas ~

do racionalismo iluminista que fazem da razão o denomi- 1


1
subentendida ainda nas propostas e concepções .radicais,
igualitárias e idealistas, formuladas por Morelly no seu ..
·<' ~;.•
t '
nador comum dos homens de boa vontade. Código da natureza ( 1755), pelo abade Mably, em suas
1
O horizonte universal da filantropia iluminista pode 1

1 críticas aos "filósofos economistas" (1768), e, principal-


ser percebido, por exemplo, nas instruções redigidas por mente, por Sin1011 Linguet, na sua Teoria das leis 7 ; 3.º)
Degerando (1800) para os ·exploradôres que iam contatar
"os povos selvagens". o OAY, Pet.er. The e111ighte11n1ent: an interpretation. New York,
• Knopff, 1966. p. 680•
T OERSOOY, L., op. cit., p. 225-9 e 288; MosER, J. Escritos escogidos.
cs GERSHOY, L., op. cit., p. 218·9. Madrid, Nacional, 1984.
1

l •
~- 'ª'',, ,s,11,i1111lêJU
1
72

1 .. •. .
73
é possível também faurmos 1
cravism0 d il . . uma e1tura do intenso anties- Doença e fome, pobreza e desemprego
. . os ummtstas. como. uma espécie de derivação
~u ª~~cio cap~ ~e produzir em suas entrelinhas a crítica D!an~e das misérias e injustiças humanas o sentimento

=
I.Illplietta da se~idao, se bem que também é factível supor-
que, .:°º~ciente ou inconscientemente, uma espécie de
_ consciencuz, resultante do seu silêncio acerca da servi-
humarutáno, na sua vertente filantrópica, propõe atitudes
de compreensão e simpatia que significam de fato as diver-
sas tomadas de consciência possíveis a respeito da doença
dao, expressava-se através das suas inúmeras diatribes da fome, da pobret.a e do desemprego, enquanto expressõe~
contra a escravidão nas colônias. de uma mesma injustiça social.
. 2) A escravidão foi objeto de condeaações quase unâ- . Foi principalmente entre os componentes da burgue-
1 , sia que tal consciência da injustiça social encontrou suas
1 ru~es. No processo da escravidão pelo Iluminismo, foram
cnticados o sistema colonial - por ser uma forma impie- principais manifestações, traduzindo-se num crescente sen-
dosa de exploração do homem pelo próprio homem - o timento do dever dos ricos para com os necessitados e como
tráfico negreiro e o trabalho escravo. Estes dois últimos p~r- forma de compensação pelas suas próprias riquezas. O
' que ''destituíram milhões de homens de sua humanidade" conde Rumford dizia que a bondade era "deliciosa", pois
e são um exemplo lamentável de patologia social, corrom- o enchia de "paz interior e auto-aprovação". No mesmo
•' pendo o gênero humano como um todo. e assim que o tom manifestava-se o dr. John More: o homem de negócios
abade RaJ:nal, ná sua História filos6fica e política dos esta- ao mesmo tempo que enriquece satisfaz-se em saber que
belecimentos e do comércio dos europeus nas duas lndias está dando pão a milhares de concidadãos. Assim. ' os ricos,
segundo Priestley, estão obrigados, pelas leis naturais da
sintetiza as críticas iluministas, ao afirmar que a coloni- 1
economia e pelos ditames morais de sua natureza, a difun-
zaç.ão é nefasta, desumana .e antieconômica. Destituída de dir sua riqueza pelas camadas mais baixas da sociedade.
qualquer valor civilizatório, a colonização corrompe ,éolo-
No universo mental iluminista, ao mesmo tempo que
nizados e colonizadores. se percebe uma compreensão significativa das relações
O Iluminismo produziu, assim, um discurso anticolo- entre os diversos males que afligem o gênero humano, como
nialista e antiescravista que se traduziu em ações práticas • por exemplo entre a pobreza e o crime, ou entre a fome-
contra o tráfico negreiro e em prol do abolicionismo, além e a mendicância, assim como os impactos negativos das
do reconhecimento do direito das colônias à autodetermi- transformações econômicas - caso do desemprego -, ten-
.
nação ª· Foi na /nglate"a que · aquelas práticas tiveram, a de-se a atitudes e práticas que põem em xeque as explica-
princípio, uma importância maior, com a criação de asso- J ções e remédios tradicionais do cristianismo: a caridade
das esmolas, o fatalismo, a idéia de castigo divino.
ciações e. o debate parlamentar, reforçados aliás pelas con-
cepções econômicas fisiocráticas e liberais hostis ao mer-
• Uma outra conseqilência desse mesmo processo de
cantilismo, como verificamos em Turgot, Bentham e Adam conscientização foi o surgimento de uma atitude de respon-
sabilidade individual em relação às mazelas sociais e hu-
Smith. manas. Neste particular houve sensíveis di/erenças entre
' países como Inglaterra e França e aqueles caracterizados
s GERSBOY, L., op. cit., p. 215; 0USD0RP, o., op. cit., p. 395-402.


~
4 l l~

74
75
pelo despotismo esclarecido. Nestes últimos; o Estado • •
assumiu papéis e iniciativas importantes no quadro da ajuda patriotismo, já conhecidas no século XVII, ganham signi-
aos necessitados, enquanto que naqueles isso foi muito mais ficados mais precisos em Voltaire e na Enciclopédia. A
um assunto dos indivíduos e das associações privadas. idéia de pátria é tida como expressando uma realidade anti-
• ga e necessária, desde que destituída de intuitos agressivos.
Observa-se também, quanto a este ponto, uma mu- 1
O amor pela pátria é algo que só tem sentido entre homens

dança no sentido de que as práticas filantrópicas e benefi- livres. Daí os perigos do patriotismo, pois, mal compreen-
centes serão cada vez mais voltadas para a pessoa humana, dido, leva ao militarismo e à guerra, segundo Rousseau.
para o indivíduo e não para o súdito. Em lugar de uma
Contra os perigos do patriotismo mal entendido os
política cujos princípios e fins são aqueles ditados pela
"filósofos" acenam com a idéia do cidadão do mundo -
ótica da razão de Estado, o Iluminismo tende a promover o cosmopolitismo. Contra os males do militarismo, Rous-
o valor intrínseco da filantropia laica, exaltando o papel seau preconiza uma sociedade humanizada e democrática,
ativo do indivíduo em favor de seus semelhantes como um na qual cada nação possuiria um exército de cidadãos
valor moral racional. patriotas que naturalmente haveriam de entender-se e coo-
perar sinceramente com os cidadãos patriotas das outras
Guerra e patriotismo

-
naçoes.
Num mundo em que as guerras estavam incorporadas S importante assinalarmos que, no século XVIIl, o
ao cotidiano da existência individual e coletiva, a razão patriotismo autêntico opõe-se àquilo que, no século XIX,
• uma nova palavra irá chamar de nacionalismo, o qual,
/' iluminista incorpora os projetos utópicos de uma paz un,-

·'1 versal que lhe são anteriores e os redimensiona a partir de para os homens do Iluminismo, seria certamente identifi-
1 cado como um patriotismo egoísta. O bom patriotismo
'1 suas próprias premissas, em particular o otimismo e_o
progresso. Acreditavam que tudo era apenas uma questão é uma forma de solidariedade humana, e como tal deve
de tempo. A difusão das "Luzes" convenceria a to?os conduzir àquela solidariedade mais ampla e completa que
acerca do caráter estúpido e fútil da guerra em si. Existe é a do cosmopalitisrno, segundo a qi1al a pátria da huma-
portanto urna certa continuidade entre o Projeto p~ra.tornar nidade é o mundo todo, como o tenta demonstrar Fougeret
a paz perpétua na Europa ( 1713-1717), de Leibniz, e o de Monbron, no seu O cosmopolita ou o cidadão do mundo
(1750).
Projeto de paz perpétua ( 1795), de Kant, pa.ssando pelas
ostas do abade de Saint-Pierre e pelos escntos de Rous- Rousseau criticou os exageros de alguns cosmopolitas
prop H d r "A ética humanitária se conjuga nessas ten- · e o alemão G. Garve identificou o cosmopolitismo com a
seau e '!' e • . . ,, o reivindicação igualitária da burguesia, cabendo a !(cuit
tativas à doutrina jurídica do d1re1to natural :
: tentar demonstrar que o cosmopolitismo é uma lei natural
As especulações sobre paz e guerra baseiam-se n~~
1 que acabará por prevalecer na História, notadamente _em
• t o cosmopoütismo do Iluminismo e na redefin1-
pressupos · · t ·ora e sua Idéia de uma história universal de uni ponto de vista
ção da idéia de patriotismo. As palavras antigas, pa ,,
cosmopolita ( 1784). Para Kant, a "paz perpét~a" e a
-----º-op.
9 <3USOORP, .,
't p • 367·, GBRSHOY, L., op. c.it. p. 213 et seqs.
CI ,
1
den1ocracia no interior de cada Estado e nas relaçoes entre


1

..
__,,, 7.ll

76

77
os Estados marcarão o· fim da História e ·o estabelecimento
~e uma sodedade das nações, que assinalará o triunfo do No século XVIlI, a tendência a fazer da assistência
ideal cosmopolita. aos pobres e doentes uma responsabilidade pública. em
lugar de ser apenas urna atribuição das igrejas, é um fato
consumado. Nesse sentido, cabe pôr em relevo o avanço
Beneficência 1 •
das práticas inglesas, já notado pelo Dr. Johnson e pelo
• abade Prevost. Na Inglaterra, as medidas de auxílio aos
O sentimento huma.nitário e a atitude filantrópica
necessitados se multiplicam por iniciativa tanto das auto-
traduzem-se, na prática, em ações cujo denominador co-
ridades locais quanto das organizações religiosas dissidentes,
mull) a palavra "beneficência" expressa. O neologismo
cabendo lugar destacado aos metodistas.
beneficência, segundo Gusdor/, foi utilizado pelo abade de '
Saint-Pie"e com o objetivo de "designar uma virtude se- B preciso aqui distinguir entre as preocupações pre-
cular, liberada de todas as harmônicas da língua eclesiás- ventivas e repressivas, típicas das Poor Laws ( 1601), da
tica", tendo em vista os abusos sofridos pela palavra cari- ·criação do Hospital Geral de Paris (1656) e das Workhou-
dade na sua utilização pelos cristãos, até mesmo em suas ses, entre muitos outros exemplos semelhantes, e a benefi-
perseguições. Beneficência significa fazer bem aos outros. cência das "Luzes", que busca substituir essas preocupa-
• 1,
~ um dever dos favorecidos por Deus contribuir para ali- ções pela intenção filantrópica. No primeiro caso, o essen-
viar a miséria dos desfavorecidos, dos eleitos para com os cial era proteger a sociedade e a ordem contra os indiví-
não-eleitos. duos "socialmente perigosos": mendigos, loucos, prostitu-
A secularização do mundo e do homem exigia dos tas, vagabundos, pestilentos etc. Já no contexto mental do
t •
1
homens do setecentos que o sofrimento da humanidade Iluminismo, em lugar de isolar os infelizes, é preciso
acabasse aqui mesmo, na terra, em lugar de sua aceitação assisti-los e educá-los. Individualmente, em alguns casos,
como direito virtual às recompensas extraterrenas. O oti- mas regra geral através de associações voluntárias, os espí-
mismo, associado aos progressos científicos e técnico_s, ritos humanitários lançaram-se à tarefa de socorrer os .
parecia justificar as esperanças de que em breve. se pod_ena
,-/desgraçados, criando hospitais, asilos, maternidades e
acabar com o sofrimento do homem. Tudo sena poss1vel,
• orfanatos 10•
pois tudo estava ao alcance da razão humana. . .
. ~...... , A idéia de beneficência, elogiada por Voltaire, exph- Os pobres, os doentes, os desempregados, são objeto
ci~,acia pela Enciclopédia como sendo ''uma virtude que de iniciativas variadas em seu benefício. Era preciso dis-

nos leva· a fazer bem ao próximo" e a dar ao nosso sem:- tinguir entre as instituições voltadas para os doentes -
lbante, é também uma qualidad~ que cabe à ~ucaçao hospitais e asilos - e aquelas voltadas para a detenção
•. ttr' A idéia de homem beneficente é desenvolvida por dos criminosos - as prisões. O caso dos doentes mentais
lllCU , • d é típico: em lugar de criminosos devem ser agora tratados
1 Pestalozzi, reformador suíço da pedagogia, e r~tom~ a por
.1 o de um quadro histórico dos
Co ndorcei em seu Esboç
10 GERSHOY, L., op. cít., p. 288; GUSDORP, G., op. cit., p. 380-3.
progressos do espírito humano ( 1794).
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• 81

• •• • • •
como doentes, destacando-se neste aspecto nomes como
Pinel e Cabanis. Em 1-800 aparece a palavra psiquiatria 11 •
Ao lado da justiça e polícia, definem-se aos poucos
o sentido e os princípios de uma política médica, aqui
também com nítido avanço, no caso da Inglaterra.
A assistência aos desempregados através de .auxílios
O Enciclopel
e da criação de locais ·d e trabalho, além da sua utilização das ''Luzei
em obras públicas, é outro dos aspectos da beneficência 12 •
As práticas ditadas pela noção de óerieficênêia repre- • 1 1
sentam, hoje, temas dos mais importantes para as pesquisas ' 'r
da História Social. Sabemos que tais práticas são ambí- ,,
guas ou ambivalentes quando analisadas e interpretadas !, •

pelo historiador. Para cada um dos aspectos que mencio- •



namos - hospitais, asilos, prisões, workhouses etc. -, é
possível perceber-se que, ao lado das intenções conscientes A enciclopédia
ditadas pelo sentimento filantrópico, perpassam objetivos
_ A imagem do Iluminismo, hoje, é indissociável da
menos explícitos ou conscientes, mas não menos reais: .º
Enc_iclopédia, tão evidentes parecem ser suas implicações • •
controle, a ordem, a disciplina, os novos saberes, um novo • •
reciprocas. A noção de enciclopedismo ou de uma con-
conceito de trabalho, coisas a respeito das quais M. Fou-
18 cepção enciclopédica do saber remete quase naturalmente •
cault produziu alguns de seus mais ~mportantes trabalhos •
~o ~-bien:e intelectual das ..Luzes". Tais associações e .. ..· .
• ,, •
• •
'

1dentificaçoes, apesar de basicamente corretas, precisam •


••

ser. um .,P~Uco nuançadas pelo historiador, pois a idéia •


• •
enc1clopedica é bastante anterior ao Iluminismo. •

' ?
aparecimento da palavra enciclopédia está em geral
• associa~o à cultura renascentista, à qual coube também
redefini-la. De fato, já existia há muitos séculos uma idéia
. • de enciclopédia, que era sinônima de projetos e tentativas
• •
• '( li
que vtsavam reunir e condensar o conjunto de todo o saber
. existente num dado momento histórico. Os renascentistas,
' •

porém, entenderam enciclopédia num sentido moderno, em


11 FOUCAULT, M., op. cit.; OERSHOY, L., op. cit., p. 219-20 e 293-5; • conexão com um novo saber pleno de novas e extraordiná-
i GusooRF, O., op. cit., P· 384-5. · 383 ·' • • • a#

12 GBRSHOY, L., op. cit., p. 290-2; G USDORF, o.. op. Clt. p. e ~


nas aqws1çoes que começavam a assumir contornos defini-
.1 "' . ,. \
dos, especialmente em conseqüência das grandes viagens
t •
~:iOUCAULT, M., op. cit.; OOFF, J., LB dír. La nouvelle hi.stoirt, •
\
e descobrimentos dos séculos XV e XVI.
1 •
Paris., CEPL, 1978. •

1 •
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