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I·' º-·'T·' .

GUERREIRO RAMOS

INTRODUÇÃO CRÍTICA
À SOCIOLOGIA BRASILEIRA

füJffOIUAL ANDES Lli\HTADA


u1rgo d,, Cnrior.r, 11 - 2~ ,mdar
C,úx,, P,w,J - 4318
I, fUo de Jnneirn - ffat.1il
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1957
EditoriãÍÃNDES Limitada

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. ' CRITICA DA SOCIOLQGlÍ\ BR;ASILEIR.A

1

I 1- Notas para um estudo critico da sõcio\ogia no Dra.sil 17

U - Crítica e autocritica ............. . ...... - ..... . - - .. ;" ~


28

xenofobia . . .. . - .... .. ....... . . 32


! ,
III - N acionalismo e
IV - A dinâmica da sociedade política no Brasil D

V - Esforços de teorização da realidade nacional polltica-


mente orientados de 1870 aos nossos dias ....... . 52
1 I - Os republicanos de 1870 . .... ....... .
' ~3

' II -
;· lU -
O movimento positivista · •. ... . . ... .. . ..
Sylvio Romero e a sod'ologia da sociêclade
republicana .. . . .. . ... . •.....•...•....
.~ j
~6
~8
IV - Os ideólogos eh. ordem e p~ogresso , .' •,· .. 61
V - A revolução da classe mt:dià · .... ..... ; : • 67
VI - A rt"Volu;iío de 1930 .. ~ ·.. ~ ·t • • •• • • • ,. - ••• • •
61
VII - Conclusão , .... , ._., •.,··.·,:l;:,. ·,··:-'i ...., ·.'.•·:' , 6~ ·

1
\ 7
SEGUNDA PARTE AnNDICE

J- Sõbre a crise brasileira e a sociologia no Bwil 20,


CARTILHA BRASILEIRA DO APRENDIZ DE SOCIÓLOGO
(Prefácio a uma sociologia. nacional) II - ". • . a desàda aos infernos" .. .. .. · , , · · - · · · · · · 212

I - Noo. expliativa !odice de nomes


217

II - Sociologia enlatada "versus" sociologia dinâmica • . 77


III - A sociologia como instrumento de autodeterminação 82
IV - O ensino da sociologia no Brasil, wn '1'.MO de geração
espontinca ? ... , . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

.
V -
Vl -
. Mem mangas de camisa" . . . . .
Para uma sociologia
Meditação para os sociólogos em flor . . . . . . . . . .
97
102
Yll - A industrialização romo CJ.tegoria sociológica 108
VIU - O problema da pesquisa sociológica no Brasil ... , 114
IX ~ Para uma autocrítica da sociologia brasileira . . . . . 119
X - O problema do
negro na sociologia brasileira . . . . • 123
Caráter ger~ da sociologia e da antropologia na
Brasil •................................ : . . 123
Histõri:i sinrera dos estudos sôbre o negro no Brasil 127
Sylvio Romero e ra mestiçagem . . . . . . . . . . . . . . . 128
Euclides da Cunhe. e a ,mestiçagem . . . . . . . . . . . . l 3t
Alberto Torres e a mestiçagem . . . . . . . . . . . . . . . 1}4
Oliveira. Víana, arianizante ...... , . . . . . . . . . . . 137
Nina Rodrigues, apologista do branco . . . . . . . . . . 141
O negro como tema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14';
Sociologia do negro, ideologia da brancura 148
Passado e prcs~te da nova fase . . . . . . . . . . . . . . n9

TERCEIRA PARTE

DOCUMENI'OS DE UMA SOCIOLOGIA MILITANTE

( .: - Patologia social do "branco" brasileiro 171


fl,- O negro desde dentro ............. ..... _.. 193
III' - Política. de relações de raça no Brasil . . . . . 200
:..•. .:..
• 1. '• ·. - !

PREFACIO

O p,resmte livro wrrtén, o lexta integrr1l da Cartilha Brasileira


,ln Aprendiz de Sociólogo e mais outros estudos p11blicados em
JifefL'11feJ daJd.J.
A demanda n'eICente da Cartilha, impondtJ a su&J reedirão, dá.me
l!.rta oprJrtunida4e de t·eurrfr num JÓ vol11me 01 11•abdho1 espatJO.I em
'f"e prucrdi à (rÍtitt1 da wtiologia no Brasil. Es;a Introdução é,
fomo poderá verificdr o leitor, 11m M11j1111to de eitfldos afins, todo1
imf'irados pelo {)llapósito de reoritmtar o trabalha sociológíc? ,:m
1101.10 p~ís, n11m rent;do pFdgmático.

/11/go-me comp.enstJdo de todos Of Ôrr!IJ das aÚludes po/êmfr-4.1


íf"!' f11i obrigado a aSJumir durante o periodo em que escrevi os
tr,1b,1lhos reunidos nesle v.,lume.
A rápida p,ropag(Jfá? d,u 1déias contidas neste1 escritos demOTU·
rrc1, no meu modo de enterrder, 'i"e el1ts e~p,·ími-ram um est4do dt
~.rJ,irilo gener41,zado entre aq1;êfes q11e estâtJ vivendo as terrdênciaJ
m,ti.r lftttêntica...r de 11,2!!0 pdis.
O prousso da "sociologia" afiúal que iniciei em 1953 é boje
Jl!Jhl larefa púhlica. AI te1er da "sociologia". oficial, até há bem
po!ico dommantas, grdfaJ tta dt:Jpoliciammlo científ1co vigente mi
1111.rw meio, 1ão hoje clandeslind.J. Não 11/tra/nMsmn o âmbito de
,1g,~11â,1s ofkíais que funcio12(i1TJ C?mO 11/timo redutn de conheci401
"/lrnfite11rs" atê recentemente traf)e,tidos de ",ociólogoJ'', "imtropó-
lo,:or" e "etnówgoJ".
O q11e se faz, hoje, de mais Jério n? domí,rio dar ciências
wâais é Job .as f!iJlas d.1 púb/íc.Q e com a JII~ {k6ticípdçiio e aprovação .
.Md.J creitJ estar mperttda a fr:lie polêmka da Jocil;logia nackJ-
,,,,J. Documenta êste livro fim momento deria /are.
Diante de nós, o horizonte é largo.

GUERREIRO RAMOS

Rio, Setembro, 1956.


,
PRIMEIRA PARTE

Cll(TICA DA SOCIOLOGIA ORASILEIHr\


,,

The fundamental p,,oblem, therefo,e, of


lhe social sâenre IJ to f ind lhe /rrwJ acco,-
ding to which i:;ny stale of sodety prod11ceJ
\ the sfa/e which su.cedees li and tuktJ ÍIJ
pfttce.
JOHN Sru ART MtLL,
A System of Logic, VI, X, § 2 .

. . . it is the whole which pr, od11(eJ the


who/e, ~a/he" than tV1J pari a pari.

JOHN STllART MtLL,


A System of Logic, VI, V, § 6.
1 - NOTAS PARA UM ESTUDO CRITICO DA
SOCIOLOGIA NO BRASIL

' A compreensão objetiva de uma sociedade nacional


1- rr:.;ultado de um processo histórico. Não salta da cabeça
tl1· 11i11guém, por mera inspiração ou vontade, nem é epis-
frn1olúgicamente possivel, na ausência de certos fatôres
l"(•'ll1R.
\
A objetividade do conhecimento histórico-sociológico,
('Omo todos eabem, difere largamente da objetividade do
conhecimento físico-matemático. No conhecimento do
út.omo ou du célula incide escassa interferência do contexto
hi»tórico-sociológico do pesquisador, mas, no conhecimen-
1u dos fatos sociais, essa interferência é iniludível. Sendo
o homem um .r.ser em eituação:a- ou um ser históricamente
<·orrntruído, não se dá para êJe aquela circunstância, supos·
tn por Descartes e :il'::mile Durkheim, em que um eu se
dPíronta com a realidade histórico-social, como se esta
fr>:s:::+l' suscetível de ser apanhada, em sua essência, por
um pensamento soberano, liberto de julgamentos de valor,
uc pré-noções e mesmo de tendenciosidade.
Na verdade, no domínio da realidade históric0c,social,
o sujeito pensante e o objeto se compenetram ou são faces
de u111 mesmo fenômeno. Isto não quer dizer que a ohje-
ti vidade seja impossível naquele domínio. Quer dizer que
ela se define em têrmos de perspectiva e que, portanto,
dadas vária.a explicações de um mesmo fato, a mais obje-
tiva é a que alcança maior número de aspectos, é aquela
em função da qual se torna perceptível a infra-estrutura
e o caráter ~sidual, tributárfo ou ideológico das outras; é
aquela que traduz a vetorialidade ou direc:;ão tônica, ou
dominante, dos acontecimentos.
A objetividade é, assim, algo que não se conquista. de
uma. vez por tôdas no domínio da realidade histórico-
-social, e se atinge sempre dentro de limites.

17
. A sociologia, tal como se tem praticado entre nós em
mmto escassa maritem_, represen~a uma efetiva indução A disciplina sociológica, no Brasil e nos paí~s de
de processos e tendenc1as de. sociedade brasileira ou ins- formação E:cmelhante, como os. da ~.érica f:atina, tem
trumento de sua autocompreensão. evoluído até agora, segundo influencias exogenas que
impediam, nêles, o desenvolvim-e_nto de um p~ns~mento
~ !ornada de consciência da situação da sociologia no cientfüco autêntico ou em estreita correspondenc1a com
Br9:s1l, e. fato :r:_ecente na evolução do nos~o pensamento as circunstâncias particulares dêsses países. Assim, a
soc10log1co. ~te data relativamente próxima, carecíamos, discipl;na ~ociológica nesses países se constitui de glos~s
em nosso m~10, das pressões reais que po.6sibilitassem êste de atitudes, posições doutrinárias e fórmul~s de salvaç:1:0
fato ~· p_or raso, a disciplina sccioJógica, no BrasH, estava produzidas alhures, ou ilustra menos o esforc,o do sc,c10-
' e está, amda, em Ja.rga escala, incapacitada para tornar-se
kgo para co.mpreen~le!" a sua. -~ocicdad-c, do q"!le para se
º. s~porte de uma interpretação objetiva da sociedade bra- infor·mar da prodl!çao dos soe10Iogos estrangeiros.
sileira.·
~ . ' . tT5.o é s0m alguma arbltrarfodade que se pode tomar
..,erra necessano, para tanto que inicialmente o a data de 1878, em qu~ Benjamin Constant fur.dcu a
sacióic-:go brasileiro .se di~pusess.e ;, um t~abalho científico ,,:Eocíedade Posithista» do Rio de Janeiro, como aquela
aApa~tir de .•m compromisso com a sua particular circuns- em ciue s~ in:ciam, no Brasil, c:\s estudos acadêmicamente
tanc~a nacional. E são raríssimos os esforços neste definidos ccmo do domínio da disciplina sociológica. À
sent1do.
luz d-2 nossa perspectiva atual, êsses setenta e seis anos (*)
à _raridad.~ e ~ c,a.r:áter excepcional dêstes esforços · de trabalho eo.ciológico, corr~pondenteR a mais ou r:c.ctos
s.e ex~lica.m, abas, historicamente. A cultura brasileira não três gerações, ostentam cs defeitos que a seguir d;sci:if!!i-
poderia furtar-se à lógica da situação colonial. País des- narci . Como se verá mais adiante, a deecobett:l e a rrit:ca
coberto e forn;!ado por co]OJ1ização, teria de percorrer de tais defeitos não implicam a ado!;ão de 1;r:,;i posição
forço~amente todas as fases do processo colcnial. A.ssjm normativa de minha parte, mas passaram a ser possíve.is
a, r~r1dade daquelf; ccmpromisso é sociolôgicamente ordi~ a partir do horizonte que nos abre o presente me.menta
nar1a_e compreen~1vel, tend~ em vis~a a lógica. da situação da vida brasl!eira e mundial.
colomal em que a exploraçao economica se a.liam outras Sime-tri:a ~ r,increfü,mo - Via de regra, o scdólogo
fo~as complementares de dependência, como a assimi.
indígena está sempr-2 disposto a adntar literalmente o que
laç~a, a aculturação,_a al':scciaç,2.0. E preciso notar que é nos centros europeus e norte-americanos E.e apresenta
apena~ de gr-:u e nao de nuttm~:::a a diferença entre a como mafa av::i.nc·~flo . F: comovente, me.c:.;mo. n e:2fôrço do
s1tt.r nçao _c<?_lo~ual e certa.s formas de paz, como a pHx. lusa, prcfirmkna] bras;leiro e ele pafocs de formação ser.1elhan_!e
a pax britamca, a pax Janque, em relação ao nosso país. ao seu. n fim de colacur-se up to dafo com a produ<.ao
A situação._ colonial, posta em questão hoje por soció- rncíológica e.os pafo~s lídere-s d::i. cultura ocidental. Daí
logo~ e econom1~ta~ é entendida como um complexo, uma decorre que a disciplina scclológica, tal como ~e espelha
tot?,hdadc _que, 1mpoe oerto tipo de evolução e de psico- em nossos llvrc.s, 8e tram:;for:rna, no curso do tempo, no
logia col~tiva _w=; pop1;1Iaç~es colonizadas. Um dos traços compas;:o das mudauras que ~e verific~m conjuntamente
desta ps1co_Ic_g1a cole~1va., e. a dependência, certa bilingüis- nás sociologias européias e norte-americana.
mo,, ª. dupI1c1dade psrc0Jog1ca, condiqões one tornam limi- Há cm nossa disciplina sociológica uma espécie de
tad_1ss1ma a possi_bilidade d~ uma identificação da persa. .i:falal' cor-reto~, semelhante ao dos cultores da língua pura
nahdade do colonizado com a sua circunstância histórico- riuc renunci&m, por exemplo, aos c~·i~é:ios co:11.u~i'~ár~os,
-natural imediata.
vivos, de co!l"·!.'{)ã.o, em favor dos cr1tenos art1flc1a1s, Im-
. A ~eorient~ção da evolução e a transformação da portados. Assim ccrr o r,ara êsses puristas brasilefros,
ps1c0Iog1a coletiva dos países colonizados, independente- fa.lar certo é falar como falam os portuguêses em Portu-
mente de alterações macroscópicas de suas estruturas são gal, uma arte difícil que só alcam;a a minoria dos que
port:3-11to, ~essa ?rdem de idéias, impossíveis. Aliás' est~ c0nhecem as regras ,1e colocação de pronomcr, e da crase,
r~o:nentaçao e tais alterações ideais e reais se dão, aimul- induzidas do falar lu.sitano, do mesmo mo<lo re pretende
t:.iineamen te, em processo total.
("} Ilst~ t,·abalho foi csnito em 1951.
18
19

"
i

praticar a sociologia no Brasil, de maneira hipercorreta, identifica com o positivismo. De resto, o proselitismo à
literalmente tal coma no exterior. As orientações e ten- outranoo é sempre o companheiro inseparável dos dogma-
dências aparecem aqui, simetricamente, na mesma. ordem tismos. Outro autor a quem Sylvio Romero aderiu ~n~u~
em que liiurgem lã.. Nossos adeptos de Comte sã.o sucedidos siàstica.mente f o.i o que chamou, certa vez, o «d1vmo
por spenceristas, êstes por durkheimianos e tardistas e Buckle». Manifestação que lembra outra da mesma natu-
assim por diante. Mas, não é só simetrisma que se discerne reza esta de Tobias Barreto, que escreveu: «A Alemanha
na sucessão dos nossos estudos sociológicos. :m também é a ~inha loucura o meu fraco intelectual» . Mas, talvez
sincretismo, pois os nossos autores estão .sempre dispostos o vulto de nossas ~iências sociais que foi mais vítima do
a ~a.zer aqu~ a conc_ili8:ção de d?u1:rlnas que, nos próprios do"'matismo tenha sido Nina Rodrigues. Tôda a sua obra
pa1ses de origem, sao 1ncompabve1s. Um dos nossos mais sôbre o negro no Brasil é ela~orada a P':3'!'º~ de ~m a.to
eminentes sociólogos escreveu mesmo: «Cada vez mais me de fé na. santidade e na veracidade da c1encia social ~u-
convenço de que as incompatibilidades metodoJógicaa se ropéia. Pode êste autor fornecer abundante material
reduzem a questões de nomenclatura». para um estudo de caso do «dogmatismo> no trabalho
O simetrismo e o sincretismo tornaram-se mais nítidos sociológico. .
desde que com,e5aram a ser editados, entre nós, compêndios Menos nítido mas igualmente efetivo, o dogmatismo
de ~ociologia. fEm todos êles, apresenta.m~Ee justapostos continua a incidir' em abras sociológicas atuais, principal-
os su;temaa europeus e norte-americanas, na suposição de mente naquelas cujos autores excelem em mostrar-se
que e~te uma verdade sociológica resultante da «conci- . ajustados literal.mente ao que nos centros europeus ou
liação» das vã.ria.a correntes. norte-americanos se considera como ortodoxo.
lilsse simetrismo, aliás, se registra em todos os cam. Dedutivismo - Decorre diretamente do dogmatismo.
pos da cultura brasileira, e Sylvio Romero, ao escrever a Desde que se empresta aos sistemas estrangeiros o caráter
sua História da Literatura. Brasileira, o~ervou que «a de validade absoluta, êles passam a ser tomados c~o
literatura no Brasil, . . . e em tôd.a a América, tem sido um pontos de partida para a explicação dos fatos da vida
processo de adaptação de idéias européias às sociedades do brasileira. Houve tempo, por exemplo, em que se tentou
continente,, marcada de «servilismo mentab. Sylvio explicar a evolução do Brasil à luz da.s leis ger_ais da
Romero verberava mesmo o fato: «Não é mais do que ter evolução. O positivista Luiz P.ereira Barreto, refenndo-se
lido por acaso Zola, ou Daudet, ou Rollinot, e atirar com à queda de um gabinete conservador, escrevia. em 18!4
êles à cara do país, como se tudo estivesse feito! ... ~ (Vide As Três Filosofias): «No momento em q:ic a socie-
Dogma.tiBmo - Consis~e na adcç.ão extensiva de argu- dade brasileira ce:a::sa, oficialmente, de ser teologa para
mentos de autoridade na discussão sociológica, ou em entrar no pleno regjme da metafísica ... :i>
certa tendência a discutir ou avaliar fatos através da mera Atualmente êste dedutivismo é perceptível em traba~
justaposição de textos de autores prestigiosos. Êste dog- lhos de sociólogos brasileiros aficionados do marxismo.
matismo é notório em atitudes franca.mente apologéticas, Principalmente quando tentam explicar ns nossos proble-
como a dos positivistas em geral, para os quais as reccite,s mas políticos e jurídico-sociais, mu~tos o fazem ~egundo
dos noss0,9 males estariam compendiadas por Augusto estudos marxistas aplica.dos a pa1ses e~trange1ro_s, ou
Comtc. E na reação a êste dogmatismo se apelou meEmo 8 égundo aplicac;:ão. mecânica das categomIB. marx1s~ta.s..
para oub-o dogmatismo. Sylvia Romero, que foi um caso Procedimento êste, diga-se logo, que contraria. a essencia
de bifrontismo, pois exprimiu e adotou tendências contra- do marxismo, mas que assinala a fôrça do 1mpacto da
ditórias, em uma de ~uas obras contra os po.sitivistas, situação colonial na psicologia do coloniz.:i.do. _
depois de afirmar que «a lei máxima de tcdos os fenôme- A característica do dedutivisrno é a e.bstraçao da
ncs do mundo físico, a lei de evoluçfio'l>, era devida ao contingência histórica, ~ a identificação do presente do
«gênio» de Herbert Spencer, aconselha aos sectários do nosso país com o p1:1ei:ente de países outros em fase
naturalismo evolucionista «que se organi7Jem também em superior de desenvolvimento ou, de qualquer mo.d<_>, de
wn centro de ação e propaganda e procurem reagir, pelo· formação histórica diferente d~ nossa. O deduh~smo,
jornal, pelo livro, pela conferência, pela lição oral, co.ntra referência básica de uma tcona equivoca da realidade
o noo-jeE.uitismo que nos invade», neo-jesuitismo que êle brasileirat é o princípio mesmo de nossa sociologia educa·

20 21
'\. ci~m1l e de nossa sociologia político-administrativa, a.mbaf; aquela observação de Hans Freyer: «Só aquêle que se
orientadas per critérios induzidos da experiência de outros acha. imerso na realidade A('.ciaI. . . pode captá-la teórica-
povos. NosEos sistemas educacionais e nossos sistemas mente». Apesar de seu.s erros de técnica científica e de
político-administrativos se justificam em têrmos da exce- seu tributo ao dedutivierno, Os Sertõe5 (1901) constituem,
lência intrínsecn de certos procedimentos e não de nossru; até esta data obra. não exoedida como contribuição tenden-
peculiaridades históricas e natul'a.is. São, via de regra, te a liquidar' aquêle bilingüi.~o a quf: me _r~f~ri, a a~bi-
implantados a partir de uma teoria pré-fabricada. Apre- valência psico.lógica do bras1le1I"o, e a 1dent1f1ca-lo consigo
sentam, por isso, escaSBa. originalidade. próprio. . . . ,
Alienação - A alienac;íio da sociologia no Brasil Ainda mais, nossa soc10-n.ntropol~g1a do negro está
decorre de que ela não é, -Em regra, fruto de esforç:os tôda ela viciada por um tratamento alie~a~o do ~ei:na. O
tendentes a promover a autodeterminação de nossa socie- negro no Brasil, país cuja matriz dem?gra.!~ca rna1s impor.
dade. Em face desta, o sociólogo brasileiro tem realmente tante é o contingente corado, tem s1do visto. como a~go
assumido uma atitude perfeitamente equivalente à do estranho ou exótico na comunidade, o que so se explica
estrangeiro que nos olha a partir de seu contexto nacio. na base de um equivoco etnocentrismo.
nal e em função dêste nos interpreta. Finalmente, em outros campos da vida naciona.l, a
A alienaçãl de nossos estudos sociológicos tornar- influência do trabalho sociológico tem sido alienante.
se-á particularmente visível para aquêles que adotarem Inautenticidade - A inautenticidade é o que resulta de
como aspirações suas as tendências autonomistas da. tôdas as características anteriores. Com efeito, o trabalho
saciedadt! brasileira. Na verdade, o intelectual desplantado · sociológico, cm nosso país, não se estriba em genuí~a.s
ou contemplativo não poderá alcançar a alienaç:ão, porque experiências cognitivas. Em larga. escala, as categonas
esta se define desde um ponto de vista extra-te6rico ou e os processos que o sociólogo indígena usa são recebidos,
pragmático, desde um querer o.rientado para a transfor- por êle, pré-fabricados. Não participando de sua gênese,
mação da sociedade. êle domina escassamente tais categorias e processos.
Temo que êste modo de ver não coincida com o de O sociólogo brasileho tem-se caractel'izado por uma
mui~ leito1:e. Pois, não . é p_ossível ignorar, hoje, a extrema versatilidade, - o que denota, de certo modo, su~
e1,tre1ta rela.çao entre as asp1raçoes e o conhecimento. Na imaturidade. A versatilidade não é, entretanto, uma carac-
verdade, só o que atue. conhece a realidade, corno disse terística dos centros de pensamento de grande autentici-
Plcuge. AB posições quietista-contemplativa e teórico- dade.
pragmática são inconciliáveis. A primeira tem feito de A sociologia mesma surgiu em países curo.peus como
muitos estudos aociológicos, no Brasil, obras de beletrismo um produto histórico . Não é possível compr~endê.la. senão
de diversionismo e, às vêzes, modelos de formalismo. A como um capítulo da evoluçã~ do pe.nsa.mento _europeu.
segunda tem suscitado as obra.e de maior conteúdo de Um dos seus avatares é a noçao medieval de le1 natural,
protestação e pragmáticc, em nosso meio. que postulava a existência de uma order:n . .inserida ~o
Tomo para modêlo da vi.são alienada do Brasil uma mundo, a qual poderia ser descobe11a pela simples razao
obra de caráter para-sociotógico que teve extraordinária humana., ainda que desnjudada da. fé. Esta ordem na.w-
repercussão. na época em que foi publicad e.. Trata-se de ral entretanto como observa TrDEltsch, implica uma.
Retrato do ~~l (1928), de Paulo Prado, que exprime, de co~cepção pa.tri~cal ou teológica do unive15?, e sãc neces-
modo parox1stico, certo sado-masoquiemo de nossas cama- sárias algumas centúrias para que eJa .se laicize totalmente,
das letra.das, para as quais o caráter do povo brasileiro - a que se registra nos sécu!es XVI e XVII, quando os
catá marcado de notas pejorativas. O brasileiro é povo jusna.tura.listas, P!incipalmente, entendem a naturez~ <:orno
triste, luxurioso, cobiçoso e romântico, para Paulo Prado: «o fundamento sobre que repousa o mundo fenomenico:i>,
e-orno para outros se c11rncteriza. pelo servilismo e pelos e passam a admitir que a «essência do h~mem» post~
maus costumes ou por características equivalentes. «um deternlinado esquema de ordem eoc1ah.,. Ã ra.zao
Como paradigma da visão integrada do Brasil, ela- cwnpriria, por meio da invcstlgação, a pesquisa ~as formRB
~rada desde u~ ponto de vista pragmático e participante, naturais de convivência humana, às quais dcveru:.m rever-
mvoco Os Senões, de Euclides da Cunha. Aí se confirma ter ae sociedades européias. Per intermédio das teorias

22 23
q':\i! resultam desta especulação, a burguesia ascendente hoje, o estudioso a per~ber ês.:3es def~ito.s é o f_ato de que
justificava os seus propósitos de reforma dos Estados está inserido numa conf1guraçao econom1co-soc1al que lhe
absolutistas.
dá nova perspectiva. O atual sociólogo brasileiro. não é
A Ilustração, no século XVIII, erige esta época à feito de argila superior àquela de que. foram fe1toa os
~ategoria de culminação da história. Confrontando-a com sociólogos que o antecederam ou !lue a1Il:da r~anescem.
epocas passadas e com a situação de povos da Africa e Sua vi.são diferente dos fatos da vida nacional e resultado
dos mares ,do Sul de que então se tem notícia, o historió- de um pracesso histórico . A sociedade ~rasileira, P'?r fôr~
grafo do seculo XVIII formula uma teoria mono.linear do /'' principalmente das suas transformaçoes materuus, está
progresso humano em que as épocas se escalonara desde alcançando grande capacidade de autodeterminação e êste
a barbárie até ao estado racinnal. A teoria evolucionista fato se reflete no plano ideológico.
de Herber_! ~per_icer e a lei dos ~ês estados de Augusto São as condições reais da fase atual da sociedad~ que
Com te estao indiscutivelmente articuladas com estas dire-
ções do pensamento europeu. permitem, hoje, se inicie, de modo ple~am~te co?sciente,
o trabalho de formulação de uma soc10logia nacional. E
Na Alemanha, além da incidência destas correntes os também o presente momento da história universal, em que
sistemas sociológi~ incorporam as categorias de o;ga- o imperialismo. entra em crise e as chamadas áreas atra-
~mo e de hlsto-'lia,. E é impossível compreender os sadas se empenham no caminho de auto· afirmação.
s1s~emas ~ sociologia germânica fora das pautas da filo- Nêsse ponto, parece oportuno caracterizar o que se
sofia hegel~na, profundamente alicerçada nas vicissitudes . entende por sociologia nacional, .
da história alemã.
A sociologia, como tôda ciência, é universal. :m um
Ora, os nossos sociólogos têm adotado os sistemas método de pensar, corretamente, os fatos. 1:ste método
sociológicos europeus em suas formas terminais e acaba- não é wn na Alemanha, outro na Inglaterra, outro na
das e, na medida em que isto acontece, não os compreen. França, outro no Brasil. :E: o mesmo em tôda a parte.
d~ cab~ente, Apara tanto lhes faltando suportes 'Viven-
c1a1s e, muitas vezes, o conhecimento da gênese histórica ~ verdade que a sociologia, em p~rti~ar. só recen-
dêstes sistemas. temente atingiu o plano realmente e1entíflco . En:i seu
início, ela estava fortemente afetada de etnocentrl.6Illo.
A sociologia, no Brasil, não se organizou ainda para Quero dizer, os primeiros sociólogos, como Com17 e
uma, evolução em bases próprias, a que só teria sido Spencer, generalizaram para a sociedade em gera_l leis e
p_oss1vel se as gerações de sociólogos se articulassem entre tendências típicas da sociedade particular em que viveram,
~ nw_n tr:"balho c_?ntfnuo: Co°;lo diz Hélio Jag111lribe, com além de terem tomado a sua própria sociedade como espé-
respeito a evoluçao da f1Iosof1a no Brasil, cada geração cie de meta do desenvolvimento hístórico. De resto,
re~e, desde. o -!11-Uco zero, o esfôrço da geração anterior também os economistas do século XVIII consideraram
e. vai buscar 1d_é1as na Europa e, com isto, torna-se impoa- como a. «economia política», universalmente válido., a
! s1vel a formaçao de uma tradição cultural brasileira.
[ economia particular dos países em que viviam.
No ent!lilto, nos ~~~os Unidos, a .sociologia, apesar
'
1
A descoberta da historicidade do pensamento é que
de t€r partido do positivismo e do evolucionismo encon- veio possibilitar o refi:°am~nto cientifico das ciências
trou, em se~da,. um leito próprio de evolução,' e suas sociais, inclusive da socmlog:ia.
1 transfonnaçoes, diretamente comandadas pelas vicissitu-
des muito particulares da sociedade norte-americana não Mas a. universalidade da ciência, como técnica. de pen-
~ proce.ssam simétricamente em relação à Europa'. As sar, não impede que a sociologia se diferencie nacionalmen-
razoes disto são as mesmas que explicam a descoloniza.cão te. Esta. diferenciação da sociología é incoerci'o-:eL Desde que
1 da economia norte-americana, mais de um século antes da o sociólogo só existe nacionalmente, na med1?a em que. o
nossa, e que não cabe examinar aqui. seu pensamento seja. autêntico, terá ~e refletir '!-s pe~ulia-
'
1
A presente crítica não ilustra uma posição normativa
ridades da circunstância em que vive . A sociologia se
diferencia nacionalmente quanto aos temas c aos proble-
em face da disciplina sociológica no Brasil. Até agora ela
1 tem E;ido o que não pode dei:icar de ser, e o que habilita, mas de que trata. Desde que. d~t~rminada sofiedade se
autodetermine, o trabalho soctolog1co tende a.i a perder
24
25
t~
Conseqüentemente, parece necessário q~e a ~ociologia
a disponibilidade e a tornar-se instrumento desta autode- contemporânea se procure situar em outra d1reç!o_ de pe~-
terminação . ~amento : aquela que se articula com a trad1.çao ma~s
A sociologia, no Brasil, será autêntica na medida em genuína da teoria social eie~tüica, tal 9: q1;1e_ amda hoJe
que .c olaborar para a autoconsciência nacional, na medida
em que ganhar em funcionalidade, intencionalidade e con-
se inspira em Hegel e aproveita ~s contribmçoes de ~~!"'
r. do culturalismo que tem em Dilthey um marco decIS1' o.
seqüentemente. em organicidatle. ' No Brai:il, ~ dos fatos que têm condicionado os
A crítiea sumâria que vem de Eer procedida não tem caracteres negatives da sociologia, anteriormente_ enun-
outro propósito senão o de colocar o tema - o da inter- ciados é também uma condição estrutural da sociedade:
pretação da realidade nacional - em nível que os leitores a alia~ça dos profissionais cem as agências queA ~ bene·
possam pensar co.operativrunente . De antemão1 declaro ficiam da alienação do pais, principalmente economi~a. A
qu_e: embo:a convencido do que afirmo, a minha posição nossa sociologia se dirigiu para o trato de a.ssu!1tos distan-
cnt1 7a me im~de de considerar definitivos os meus pontos tes dos problemas atuais ou de temas estéticos. Estu-
de ~1sta. As~m, tudo o que aí fica é suscetível de retifi- dam-se tribos deeaparecidas, a renda de bilro, as lutas de
caçoes. famílias, as comunidades, a assimilação de imigrantes, as
E'~. resumo, ~m ~ disposição para empreender a sua relações de raça e outros temas, em tese, e nunca de modo
autocnbca, a soc10Iogia no Brasil não poderá realizar a
sua talefa essencial - a de te.mar-se uma teoria militante prático. . .
Se já possuimos algumas agências aplicadas na for-
da própria realidade nacional. mulação de um pensamento econômic? _militante,. qua_se
. Reservo para. outra op?rtunidade a exposição porme- nada equivalente se registrou no d~mm!o da sociologia.
norizada do conceito de sociologia em que fundamento os Eis porque se afigura urgente a ;"ealizaçao de um e_sfôr~o
meus estud?s. Sem desej~r, nem de longe, focalizar o tendente a promover a desenvolvimento de um8: aoc!olog1a
assunto aqui,_ obser:vo, ~orem, que entendo esta disciplina nacional, quanto à funcionalidade de suas cog1ta..çoes.
numa accepçao muito diferente da admitida pela maioria
dos. que, no Brasil, se consideram .:sociólogos». A «so.cio-
HJllLIOGRAl"l,\
l~g1'!',,. tal. com~ ~ acadêmicamente definida, enquanto
~c~p~ma sistematico-formal, desligada da economia e da
1) Jian.11 Freyer. Jntruducel6n a la 8...ciologht. Madriri . 1945.
historia, e que tem como ponto de partida os sistemas de 2) R. G. c 1,Jlingwoôd. Idea. de la ll••Wria . Fondo de Cultt:ra E<:on(,.
Augusto Comte e Herbert Spencer, é menos uma ciência mica . Mc,tlco. 19~.
3) Lucicn G-Oldmami, 8cie11ces llum11in.,s d Phllosoplole. Pces:s~<'.
do que uma ideolngia conservadora. Tal «sociologia» se
Unln.r. de France. 1952.
form4:u num_ pei:_iodo da história ,européia (principalmente 4) Kat'l Me.nnhc!n, E~sa.y11 on the S0~inw.1u· ui ){no.,..•lodge. _Routl.~_g~
& Kegan Paul Ltd . London. 19ó2. Prhlc1 palmeill,. o capitulo deste. h 11 ,, ·
francesa e inglesa) em que o unpeto revolucionário da
dl\storiclsm~. R' 1""''
classe burguesa arrefece e se transmuta em sentido 6) Guerreiro Jlarno!!,, O Proct'sso da Socinlogia no D~s 11. 10 . -~M ,
6) A\mir ele Andrade, l"onnntio d• Sociolog-li,. Br111;Uen,,. Vol. I. Rrn .
oposto, pois que aquela _classe ascende ao domínio prático
10417) Georgcs Bo.landiel', «L• Sltnatl~ Colonia!(n Approche Tlteorlq,110· • .
do poder. ~ste fato ~a.o s~ verifica sem conseqüências 1a Cahlcn Internatlonanx &! Soolologu,. Vol . XI, G• Au-0, 1961 , " .
P:J-ra o destmo dn teoria social. Mas, ao contrário, condi- 8) o. Mn,nnoni, l'Ryehologle de la Cofoql118.tio11. Edlt10ns du .,eml.
cm.na o se~ desenvolvimento, fragmentando a teoria sociaJ, Paris . 1950. i
9) ltólio J G.l(Uarlbe, 4-A filosofia no Bre.sil». ln 1\sp<"i:to& .... .r o;rm111ç 0
A_ -

que se vmhn formando no eéculo XVIII. em diversas e Ev,liu~ão ilo BrMil, Rlo, lSM!.
10) Sy!vio Rom~ro. Doutrina oo•tr• Doutrln• - O 'F.~oludoai1'1n\l e
disciplinas especializadas. Essa especialização quanto mais " Posltldsmo no Rra,sll, 2• ed. 1!195. Rio , 1
ayança mais contribui para desviar a atenção dos estu- 1) Ernst Troeltsch . Th.c 8<,elal TcD.ehin,t of ( ' h.ristlan <.bu rcht'S. T •e
Ma<:mlllan Co .. Nl"'II YOl'k, 1949.
dioEos para os aspectos parciais da sociedade, clificultan-
do-lh!s a sua compreensão global. Além disso, estimula a
adoça.o de processoo formais de conhecimento em detri-
mento dos práticos, os quais constituíam o car~cterístico
por excelência, dos epígonos da teoria social do sécul~
XVIII, que, em geral, foram ao meemo tempo teóricos e
militantes.
27
26
Quer dizer: a critica no Brasil tem sido, par excelêncla,
o ofício do diletantismo.
O subjetivismo e a fragilidade dos critérios desta
espécie de critica se evidenciam em suas flutuações de
julgamento. A posição social dos autores importa para
essa crítica. Autores de pouca voga passam, subitamente,
para a galeria doa famosos, se melhoram a sua posição
social, e vice-versa. Autores medíocres são festeja.dos, em
virtude do prestígio de que desfrutam. Nestas condições.
II - CR!TICA E AUTOCRITICA o êxito literlÍ.l'io no Brasil, em larga escala, não é um
êxito puro da inteligência; é um êxito social
A critica' no Brasil, atê a presente data não tem Faça-se justiça. Assim procedendo, o critico nacional
ultra~a~o, senão excepcionalmente, os limites do im- níi.o é, via de regra, desonesto. 1<.l apenas vítima. de uma
pre~1~smo. Isto decorre não de alguma incapacidade posição ideológica. Na verdade, êle não tem sido assim
in'71~se& dos .nossos críticos, mas das próprias condições porque quer, mas porque tem que ser. Além disto, o que
obJe~1v~ do pais. _Até bem recentemeute a nossa estrutura disse acima e o que direi a seguir nãa se aplica indistin-
econo!111ca e social não suportava as conseqüências que tamente a todos os críticos brasileiros. Há. exceção à
poden~ resultar de seu autoconhecimento pois suas regra.
contradições eram insolúveis na faEe de cres~imento em Mas há ainda a ressaltar wn aspecto fundamental de
q~! ~ en~o.n~ava. O trabalho intelectual foi, em conse- nossa crítica, o qual explica a sua profunda alienação da
quenCJa, dmg1do para temas gratuitos e em grande escala realidade brasileira: - é o fato. de que ela obedece a crité-
o ~alor das obras foi considerado à l~ de critérios for~ rios de julgamento estranhos ou importados. O critico
mais ou como expressão da capacidade de proeza dos brasileiro esforçou-se sempre, em grande parte, em atuar
autores. na sociedade bra!Jikira .segundo modelos estrangeiros. A
. ~ . o que a critica levava principalmente em con- nossa evolução intelectual, para êlc, devia estar condicio-
!Jlderaçao, para consagrar as obras, era o que elas conti- nada pela evolução intelectual de outros países: Por-
nham de fa.ç~n.ha. Na ~verdade, êste conteúdo serã sempre tugal, França, Inglaterra, Alemanha., Estadoo Unidos,
elemE:nto _pos1tiyo de tôdn produção, mas a sua exagerada Fascinava-o os «prestígios:11 d€sses centros de pensamento.
va.lor1zaçao estimula o individualismo e o desenraizamento Entramos, porém, numa fase do desenvolvimento do
~os aut?re~ e, por outro lado, define a índole da crítica pais ern que começa a ser possível o exercício da critica
1mpress1orusta. objetiva e até da autocrítica. A produção intelectual na
. U?l ~utro ª!'Pe~to a~ 9ual a crítica, no Brasil, tem Brasil está ganhando novo significado. A nossa estrutu-
atr1bUJ.do unportanc1a decJS1va no julgament • f ra econômica e social, em seu presente estádio, começa a
rna~. A correção, a elegância, a otiginalid11d~ ;;;af ~~ oferecer ao trabalho intelectual oportunidade de tornar-se
estilo, em suma, d~cidiam a carreira dos autores. Houve cri3dcr, do ponto de vista coletivo. As fôrças centripetas,
rnome!1to, entre n?s, em que êste formalismo atingiu 0 cm atuação na eccnomia brasileira, atingem o trabalho
par?xismo - precisamente na época em que pontificavam int.electual e o reorienta.m no sentido da busca da auto-
cr[t1co.s como Duque Estrada et catena, r.om;::i. matcri3l e moral do paía. 1:ste fata se configura
De!1tro dE:sta orientação, o crítico, no Brasil, pôde ser mesmo como um fenômeno geracional entre os rapazes
um enc1cl_?ped1sta,. _üs nossos maia festejados criticos jul- <lc vinte e trinta anos, que estão iniciando a sua carreira
ga.varo todn. espec1e de produção - poesia romance de intelectuais. Não se trata rigorosamente de uma re-
ensaio, histó!ía, filosofia, ciência e ar'"~s _ o que explic~ nascença. "t!, antes, um nascimento.
a con~~a.çao, _e~ nosso meia, de muitas obras e pessoas Pode-se colocar, então, o problema da crítica e da.
sem rnerito ob;ietivo, notadainente no ca.mpo cientifico . autocritica em têrmos objetivos e científicos. Para que se
28 29
:)
implante, entre nós, esta espécie de critica, é necessária a dirigir-se para todos os campos da cultura brasileira, com
realização de várias tarefas. Esquemàticamente, são elas: i 11 tuitos revisionistas.
1 - a elabcração de um método de análise susce- As tarefas acima referidas não poderão !'ler realizadas
tível de ser utilizado na avaliação do valor obj~tivo do ~em que ocorra mudança de atitude entre os intelectuais.
produto intelectual, como integração do significado das l~stas tarefas são incompatíveis com o individualismo. Os
obras nos fatos, e não como proeza ou afirmação mera- critérios de pensamento são induzidos da realidade con-
mente individualista; r'J'eta, e esta. hidurJio é um esfôr~c, de compreensão, no qual
:-:P está sujeito a percepções ilufórias. Daí a necessidade
2 - a :revisão crítica de nossa produção intelectual,
realizada, até aqui, à luz dos fatos da vida brasileira; da autocrítica, pela qual o pensador pode liberar-se de
3 - o estímulo da auto-análise, como instrumento (·quívocos. Me.s a autocrítica implica também na dispo-
de purgação de equívocos e vícios mentais e de ajusta- ~:it;iio para suportar o debate, por(]ue a indução. dcs crité-
mento do JJ'Odutor intelectual às propensõ-es da realidade. t'ios de pensamento a partir da realidade é trabalho cole-
Um métodC\ de crítica objetiva não pode deixar de tivo e não uma façanha individual, fruto de <i:i.nspiração».
as.similar as categorias da atual sociologia do conhecimento 1:; um trabalho ccletivo, cuja validade se garante pelo
e de sistemas correlates. O estudioso poderá extrapolar ,·ontrôle de tod.os.
muitas no~ões daí para o âmbito da crítica, como, para Ora, êstes hábitos se chocam de modo frontal com os
fala.li apenas da noção fundamental de um método de ainda vigentes em nosso meio., em que cada um se fecha
crítica objellva, a de iueologfa, hoje integrando o corpo c-m seu ea.sulo ou em q_ue muitos intelectuais preferem
sistemático da socicilogfa científica. Dentro da orientação m-ganizar-se em coi-porações de elogios mútuos.
aqui delineada, ser critico é ser capaz de enxergar o signi- Mas o momento que vivemos é polêmico . Precisamos,
ficado indireto ou implícito do produto intelectual, ou Eer assim, provocar a polêmica, pois por meio dela é pcssível
capaz de Eurpreender as verdadeiras «fôrças motrizes:;. limúdar as moedas falsas que ainda circulam entre nós,
que <,mov·era» o produtor; é, em suma, ser apto a ver a es- t.'Otn O seu valor discutível. (')
tre~ ta vinculação do pensamento cem a situação ex1stencial
elo pensador. Impossível, portanto, o exercício da crítica
objetiva Eem profundo conhecimento filosófico. Fora
desta paut~. só é possível o esteticismo, o impre::sionismo.
Na medida em que as gerações atuais nct:es::úkm
rMrientar 2.s atividades intelcctt!ais, no .sentido de aH&-
las aos fatôrcs recentemente emergidos ela realidade
nacional, e que ]aboram pela autonomia do país, é precirn
rever a protlu.çao cultural ocorrida até aaui em fundi.o
do significado do presente . Torna-Ge imp;es'eindívcl dis-
c:mir n~s <?brus dcs autores que nos prececlcram os signi-
ficados !nd1rctos. Desta forma, cs intelectuais poderão
v~r qu~us ~estas obras , en~err2m uma experiência cujo
con~ec1men:n lhes podera aJud:u-, no memento, no esfôrço
de mtegraçao do seu pensamento aos fatos e de direc5.o
das tendências dos mesmos. Há tradicões a cultivar "na
cultura brasileira. Tradiçõe.G que, uma ~ez estudadas, no3
pou~am de reabrir caminhos . Fiz uma tentativa, neste
sentido, quanda mostrei as correntes principais da socio-
logia brasileira (Vide «O Processo da. Sociolog1a no
~rasib) . Naquele ensaio de crítica indireta, parece que
ficaram claros certos elementos autênticos e ;;:spúrins de
nossa sociologia. Pensa que a crítica indiret~ poderá 1• J Tie\'ista Mo.roo, u 0 2, fevereiro de 1~ ;13.

30 31
d.ida em que, em nossos dias, surgem no Brasil as compo-
nentes objetivas da nação, que faltavam até há bem pou-
co, - o nacionalismo se torna verdadeiramente um fato
sociológico.
:m êsse fato novo que está suscitando as transforma-
ções de superestrutura em nosso país. A nova teoria sodo-
lógica que está sendo formulada por alguns profisEionais
de vanguarda é a tradução, no plana teórico, daquele fato;
não é uma invenção arbitrária, é manifestação necessária
de transformações estruturais, e, por isto, esta teoria se
propaga ràpidamente, de maneira irresistível.
ill -
..
NACIONALISMO E XENOFOBIA

Muita gente ainda não se deu conta de que nada tem


Pela primeira vez, na história das idéias em nosso
país, aparece uma teoria sociológica autêntica, em cujas
categorias se reconhecem aquêles que estão vivendo o que
a :ver com xenofobia a posição nacionalista que vêm assu- é novo no Brasil.
mmdo crescentemente os intelectuais mais representativns Pela primeira vez, em nosso país, a formação do
das tendt~cias atuais do BrMil. Não é uma nova moda, sociólogo passa a resultar menos do manuseio de livros
como o. ftn, em grande parte, por exemplo, o movimento estrangeiros do que
. ralmente .
da indução dos fatos nacionais ' natu-
moderrusta de 1922, nem tampouco um conjunto de mani- ajudada pela posse do conhecimento básico da
festações temperamentais, algo que estivesse accm.tecendo, ciência social.
como se, por acaso, todos os Antônio Torres do país ae Ê assim que adquire pleno sentido a expressão de
tivessem reunido. Graciliano Ramos; «quem não tem vergonha na cara, não
O nacionalism°' na fase atual da vida brasileira, se pode ser sociólogo». Graciliano Ramos dizia isto, refe-
1;1e per111:ite!11: é algo ontol?gico, ~ um verdadei_ro processo, rindo se a certo «sociólogQ:i, indígena. Pode-se, entretanto,
e wn p~mc1p10 que permeia a vida do povo, e, em suma. endereçar esta frase a outros «sociólogos» nacionais.
expressao da emergência da ser nacional. Alguns anos depois que ela. foi pronunciada, reencontro.a
Até recentem.ente, como já observara Alberto Torres no fundo de minha memória e percebo nela tôda uma
a nação brasileira era uma ficção jurídico-institucional'. receita a administrar àqueles que desejam alcançar a nova
Alberto Torres havia percebido corretamente que, em teoria sociológica brasileira.
nosso país, a nação era algo artificial, imposta de cima Graciliano Ramos, em outras palavras, farmulou um
p~r~ baixo, q~e não correspondia a suportes consuetudi- postulado fundamental da filosofia contemporânea, segun-
~nos. Mas n~o c~mpreendeu por que isto acontecia. Não do o qua~, .quando nós assumimos vcluntàriamente o qu~
vrn que a naçaci. nao se dá independentemente da. existên- nos cond1c10na, transformamos a estreiteza em profundi-
cia de um mercado interno; de um sistema de transportes danc. Tratando desta matéria, escreveram Mikel Dufrenne
e comunicações suscetível de interligar todos os recantos e Paul Ricoeur (l): ({Os pais que eu não escolhi não se
do terri~ório. _~ão viu, em resumo, que a nação brasileira tornam meus pais num sentido absoluto ... senão quando
s? poderia verificar-se, em tôda a sua plenitude, com o sur- dê)es para mim e de mim para êles i,e estabelece uma
gimento de um capitalismo brasileiro. Alberto Torres não corrente de pertinência, e esta pertinência mútua, decor~
percebeu o condicionamento econômico do fenômeno rente da menos elegida determinação, é uma ocasião pará.
1:1-acio?-al. E~a dos que advogava que o Brasil não deveria a mais íntima comunicação. Quando adoto minha ori-
Jarn~s desviar-se de sua ((vocação agrícola:ti. Por isso, gem corno se a tiv€sse querido, tenho acesso à verda.deira
pr?pos qu 7 se .f~rm:isse a nação brasileira de cima para piedade filial, que pode permanecer invulnerável, mesmo
baixo, da mtehgencia para as emoções com a tutela do no ódio: não posso mais romper com os meus pais, sem
povo pelas elites nacionalistas. ' romper CQIIl uma parte de mim mesmo e abalar-me em
. ~a~ o nacionalismo não tf:m apenas fundamento (1) Cf. M. Dufrenne e P. Rlcoeur, Karl .Jupe,.,, et la Philosopble
ps1colog1co. Tem também fundamento econômico. Na me- de l'Exh,tencc, Ed. du SPull, 1947.

32 33
1

L
1
.1
meus fundamentos». A assunção do Brasil seria, por- 1
tanto, nessa ordem de idéias, a condição prévia, neces-
sária, para descobri-lo teóricamente.
Não hesito em dizer que, na raiz da nova teoria
sociológica, está uma assunção do novo fato sociológico
a que me referia acima. A nuança nacionalista desta
teQria não é arbitrária, tem seu fundamento na realidade
empírica concreta.
E porque êste fundamento existe, pode-se afirmar,
sem exagêro, que começamos hoje, no Brasil, a poder
exportar idéias sociológicas. Por exemplo, em alguns IV - A DINÂMICA DA SOCIEDADE POLíTICA
af;pectos, a sol'.!ologia anglo-americana está atrasada em NO BRASIL l">
relação à brasileira . Nos Estados Unidos e na Inglaterra
ainda se levam a sério a antropo1ogin cultural c a etno-
logia de caráter empírico, enquanto no Brasil ela cons- A adoção mecânica dos métodos e processos refir.a-
titui fenômepo de arcadismo. Também, em nosso País, dos da antropologia e da sociologia européias e norte-
os estudos sociológicos sôbre relações de ra~a sobrepu- -americanas tem levado grande parte dos prnfissionais
jam, ,cm qualidade, os norte-americanos. Basta dizer brasileiros do campo dessas disciplinas a um certo descri-
que só agora se está problematizando a brancura nos tivismo casuístico de escasso valor pragmático, isto é,
Estados Unídos (vide o livra de Franklin Frnzier, <2> La. pouco utilizável como contribuição para o esc:arecimento
Bourgeoisie Noire), enquanto no Brasil isto já se faz dos principais problemas da sociedade brasileira.
desde 1950 graças ao movimento do Teatro Experimental Numa reação contra êsse descritivismo casuístico,
do Negro, que instalou uma nova visão das relações de compreensível e até nece~ário nos países de estrutura
raça em nosso meio. Finahnente, os Estados Unidos não econômica e social plena.mente desenvolvida em que os
têm uma teoria sociológica de ané.lise macroscópica ou fe.tôres se tornam sutis, estão merecendo cada vez maior
global, enquanto no Brasil já a temos e jã a aplicamos apoio do público, no Brasil, as interpretações globalistas
1 em larga escala.. mais suscetíveis de utilização prática numa saciedade na-
1 Tudo isto são fatos . Não são sentimentos. Em tais cional ainda imatura do ponto de vista social e econômi-
condições, o nosso nacionalii;mo não pode ser confundido ca 11,.
com xenofobia. Importa isto propriamente menos numa criação no
Na medida em que vivemos êste momento verda. plano. teórico, do que nwna instrumentalizaçií.o crítica da
deiramente nacional, não passamos a discernir apenas 8.8 ciência importada.
felá.cias dos sistemas sociológicos estrangeiros: também Começamos a deixar de refletir simetricamente as
.se revela de maneira nítida e. situação deplorável em que mudanças do pensamento científico estrangeiro e a valer-
ficam os intelectuais brasileiros, que, até agora, se -nos dêle como ferramenta, numa elaboração teórica ten-
mantêm alheios ao que está ocorrendo no Brasil. dente a permitir a autoconsciência de nossa sociedade.
No domínio das ciências sociais, êsse alheamento é 1!; ilustrativa desta orientação, entre outros procedi-
pa.rlicularmente lastimável. Digo mais, é algo dramático. mentos, o emprêgo da sociologia comparada. com o obje-
Pirandeliano. <·i tivo de induzir empiricamente modelos ou módulos do
curso dos fenômenos sociais, em que os pormenores são
sacrificados em proveito d€ vistas de conjunto de grande
rentabilidade compreensiva.
(•) Prlmetra de uma. série de conferencias sõbrc- assuntos br11.J1llclr08
realizadas pelo autor. em Paris. em de;;o;embro de 195õ, sob os ausplclOII do
(2) Frankltn Fra:t.ler, La. Boiugeol&.le No1m, Plon, Pa,ls, 1956 Instituto de Altos Estudos da Amfrka Latina da Univnr.eidwle do Parle.
(l) Pa.ra. maior .-sela.recimento sôbre o 1>onlo de \•isb globalhrta, vide
(•") O Joru.l, 1·7-56 nesta. obra; c ....tilhll B...,..ileira do Aprendh; de Socl.SloKO,

34 35
No pr:ese!1te estudo, adota-se esta orientação e, a.ssim,
em sue. primeira parte se apresentará um módulo abstrato A teorização sociológica, entretanto, consdcnte da
da dinâmica da sociedade política., induzido da observacão influência dos fatõres irracionais no pensamento, se aplica
na ccmprecnsão globe.l d.:i. soci€dade. Resulta de uma nti-
de. ~orrênc!as históricas efe!ivaa e. ainda, aproveíta~do
analls2s devidas a Marx e a Tunasheff, principalmente; na tude crítica e autocrítica, radical, interessada cm :formu-
segunda parte, se Uustrará aquêle módulo com aconteci- lar uma conccpqão configurada da realidade social, awnta
R tôdas as tendências que a constituem, embora sem pr-e-
mentos da histórfa política do Brasil.
juízo do reconhecimento de um sentido dcminante do
De resto, o qne se espera resulte de análises socioló- desenvolvimento glo.bal da sociedade. É c,erto que mcemo
gicas orientadas neste sentido é uma teoria da sociedade esta teorização não escapa ao condicionamento histórico-
brasileira que i:;irvn de suporte à estruturação efetive. das -socinl. Não existe um ponto. arquimédico - a iTI1.agcm é
tef!ctências de aubilrlt!terminação vigentes hoje em nosso
paIS, de Karl Jaspers - fora do universo his~órico a pRrtir ao
(]Uai se possa daborar uma. concepção abf.c!utn., definitiva,
~o domínio pclítico, uma interpretação globalísta. é da scciedade.
um mstrumento de potenciação dnquelas tendências
enquanto, de um bdo, 1acionaliza um processo societiirio As teorias e os pontos de vista que os ~ontin1~cntes
global e, enquanto, de outro lado, contribui para minar os integrantes da tociedade política podem a[l.sumir não são
fundamentos psicológiccs e scciais dos grupos que opõem infinitcs em número nem tão pouco produtos arbitrários
obstáculos a êste processo. da vontade humana, mas derivam de situações sociais es-
Não é fortuito o fato de que, em todos os momentos 'pecíficas (Mnnnhe?m). A sociologia política, assumindo o
~ .que. numa sociedade se faz imperiosa uma mudança ponto de vista global, é uma ciência do. conjunto da socie-
lDBt1tuc10nnl, recrudescem os esfon;:os de teorização da dade política, uma «ciência da totalidade do fenômeno
realidade social. político» <2 >. E: urna síntese dinâmica e comnreensiva dos
Na história política do Brasil, verifica-se invariàvel- diferentes pantos de vista, jamais feita de· uma vez por
mente esta observação. Para lembrar, apenas, os momen- tôdas, mas sempre aberta a retificações, desdobramentos
tos mais dramáticos, rccordc.>TI-se os acontedmentos que e incorporaçõrn, uma tarefa verdadeiramente interminável.
se registraram, entre nós, em tôrno dos anos de 1822 na Dir-se-ú qt~c a re~liznc:;iio de uma síntese desm na.tu-
ocasião daa lutas pela independência política do país'. de reza é teôric;,mente irupossívcl, pois suporia. a neutrali-
1888, data da abolição da escravntura; de 1889, em 'que zação do pr'.incípi0 do condicionamento existencial do
foi proclamado o regime republicano; e de 1930 em que pensamento.
ocorreu e. revol~ç~o que, com Vari;as à frente, implnntou Mas fl. jnir.i::u;j.o do todó:ogo em cerlcs critérios téc-
a segunda Rep~bhce. Em todos esses momentos, regis- n:cos da tran3i<lc,,logiza.:;Ll.C' cu <le autocriticn lhe possibi-
trou-se, entre nos, um surto de formulação de idéias ten- lita assumir, de m.'!.Ileira cxper:mcntal, vá,·ias po:siGôes
dentes a justificar os propósitm; revolucionários ou refor- pr:rtidál'las, lcnc~o cm vü;ta akanc:a1· o re11tjdo do d::!::;-?n-
mistas em jôgo. volvirncnto progressivo, global, ca re~'.t:cl.lde. De c:::do,
Todavia, há que distinguir dois tipos de teoriza~ao da EÚmente 11q11Hc que pede assl!mir, (ie modo deiitc1t~do,
realidade social, isto é, a ideológica e a sociológica ou um ponto de vista, ,,só o gu:-- 1;ode rcra:hc-u. puie ·~,,brn-
científica. <;ar o todo cln €:stnltur-a social e polítice.».
A teorização ideológica é, necessàriamentc sectária As duas espéci8S de teorizar:ão ..;c lfücrcncium pelo
nisto que visa a justificar os interb:ses particula:.es de um c:;fô1·ço dn tra.nsccndência ou de ü·ansi,:edogiznção que
grupo o.u d_e uma. classe. Esta justificação, evidentemente, constitui uma (a científica) e é e~caSl:'o n11 outra ou da
pode atmg1.r um alto grau de refinamento, assumindo por mesma é aus~nte. E.sta obtci vac:ão r,arec? hat.=Jitai·. cfo;.
vêz~s o ~ará.ter aparente de ciênci11. Os grupos e as clas.ees Liugui.r a scciologln científica daquelns ideologias mais
racionalizam a sua situação mobilizando um arsenal de av~nçadas de nossa épo.:::1. - que né!mit em a inriuência
noções às quais atribuem a qualidade de científicas ou tuna dos fntôres existenciais no pensam,::r,to (' b1seiam Ema
validade no plano universal
<~> V:J,,. I{ad :,l"r:nhe lm,
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}7
crítica da sociedade na consciência dêstes fatôres mas não as transcende, revelando a sua precariedade histórica. Se
são suficientemente radicais como a sociologia. ' as instituições, tal como se apresentam num dado momen·
A radlcalida.de da sociologia científica se exprime to, não permitem a realização das possibilidades da estru-
enquanto esta diBciplina admite o incessante condiciona- tura social, nada mais são que formas fugazes de convi-
mento histórico-social dela mesma, de seus conceitos de vência, não têm direito a persistir. Nec~ssàriamente, são
seu método e não apenas da problemática ou dos fato; em dialéticas as classes e grupos em a.ecensao, enquanto con-
cujo exame se a.plica; enquanto não absolutí.za o primado cebem a história como progresso e êste como um incre-
de nenhum fator (o econômico, o racial, o geográfico, etc.), mento da autodeterminação ou da liberdade. Razão, pro-
mas entende a efetiva preponderância dêste ou daquele gresso, liberdade constituem as idéias chaves da posição
fator num det.erminado período como ocasional e resul- a.soendente. Tôda classe ascendente promete, com o ad-
tante da dinâmica total do processo societário; e, final- vento dcs seus ideais, o fim da história ou o reino da liber-
m.ente, enquanto admite que a essência da realidade social dade e da razão. Neste ponto, perde de vista a dialética
é a transitividade, ou seja, como diz Hermann Heller (3) infinita da realidade social.
que ela é «:construída dialeticament.e>. ' AB elas.ses ou grupos dominantes tendem. a conside-
A possibilidade de uma sociologia cientifita do fenô- rar definitivo o estádio atual da estrutura social. Podem
~eno P?litico reside n~ss.e radicalismo emp.írico-dia.lético admitir defeitos de detalhe desta estrutura, mas não reco-
< ) que lm~ede o especrn.lista de cair nas soluções fáceis nhecem a sua provi.sorieda~e. São re_formietas o~ evolu-
e estereotipadas e de ser confundido com o camelot de cionistas, portanto . Para eles, as leis que pre~em ~
partido,
dinamismo social são leia naturais ou eternas. Se.o anti-
Decorre do e~poato_que, do ponto de vista sociológico, dialéticos e proclamam a necessidade da ordem, identifi-
as correntes po~tic.a~ nao _podem ser consideradas apenas cando esta com o esquema 1:ocial vigente. Tendo conae-
quanto-~º seu s1gmf1cado ima~ente.- A análise sociol6gica guido submeter as tendências a um enquadramento juríw
a.s argm, transcendendo-as, 1Sto e, indagando quais as dico-institucional, erigem os modelos (patfums) que ado-
situações exiirtenciais de que decorrem, que classe ou taram, à. categoria de permanentes, naturais. Por um
gruf!O as. representa. e em que momento elas aparecem. O imperativo topológico, por assim dizer, são levados a uma
que 1lu~:nna. a~ correntes políticas é a posição na estrutura concepção quietista, estática, da sociedade.
:conõ1;111co-aoc1al doa que as representam e a época em que As classes ,e grupos em declínio, aposentados da
eles vivem.
eficácia histórica ou em processo de aposentadoria da
Ora bem, na etapa capitalista das sociedades ociden- mesma, esforçam-se por voltar a.o passado de que se bene-
~s ~- po!ições d?s grupos são variadas. Com alguma ficiavam ou em que eram dominantes e idealizam os «bons
sunplif=caçao, porem, podem ser :reduzidas a três: a de velhos tempos> . Sua palavra de ordem é a recuperação
ascensao, a de domínio e a de decadência. ou a restauração.
. Cada uma destas posições condiciona formas e.specí. Estas referências topológicas, de certo, não esgotam
fica.a de pensamento político. as posições que as classes ou grupos podem ocupar na.
As classes ou grupos ascendentes são levados a dis~ estrutura social. Por vêzes, ocorrem aí situações a.mbi-
cernir na estrutura eocial as virtualidades as possibili- guas.
dades de desenvolvimento, o.s aspectos poten.'ciais e assim Como situar, par exemplo, a cl~se média e o lumpen-
assestam a sua mira no vir a ser, no futuro. Su~ idéia~ proletariat, na etapa capitalista das sociedades ocidentais?
traduzem um impu1so renovador de libertação. Assumem Quanto à classe média, ela aí tem atuado como aliada
uma atitude eminen~emente crítica diante do statu quo e ora de classes ascendentes, ora de classes dominantes,
proc1~1:Ull a nece~1d~de de fazer da razão o critério por ora de classes em declínio..
excelencia de aprec1açua dos fatos. A razão se torna mes. Nos períodoe em que lhe é assegurado .um nív~l .d~
mo um instrumento de negação das instituic;:ões, nisto que vida mais ou menos estável e em que descortma possibili-
(3) Cfr. Hermann Hel!er. Teotta dei Esta.elo. M~ltlco, 1!l-f7,
dades de sobreviver, seja pelas oportunidades de emprêg<_>,
(4) Cfr. Georgcs ~urv!tch. tliypcr-Emplrisme DielecUque•, ln Cahlen seja pelo parasitismo, mantém-se aliada às classes do~-
l.llteni.ailçnaa.x dé 1:!oetolel(1e, Vol. XV, 1963.
nantes ou em declínio, Quando se encontra em pauper1-
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zação progressiva, inclina-se para a adoção da ideologia - diz Timasheff - se encontram tanto no centro ativo
da classe ascend€nte.
como na periferia passiva . Se se verificasS'e permanente-
O Iumpenproletariat, a mão de obra marginal, a rebu- mente a. pa~sividade da periferia e a hcmogeneidade do
talho das ruas, é matéria amorfa de que dispõem as centro, o dinamismo histórico-rncial deixaria de ser dia-
correntes que, de modo ocasional, lhe asseguram uma van- lético. Na verdade, pode ocorrer que, durante largo tempo,
tagem imediata .
urna l)eriferia se deixe conformar de modo passivo pelo
Importa otservar ainda que estas pc-sições .são, ao centro, quando a classe dominante logro. criar formas. d_e
mesmo tempo, posições de coexistência e de sucessão. Em organização social e de cul!ura de grande repres~nt!1~1Vl-
qualquer momento podem ser discernidos grupos em uma dade ou expressivas, mas estes momentos sao historica-
destas posições. Por cutro lado, tais posições são também mente fucrazes · «novos centros potenciais de poder nascem
fases por que passam as classes soéais. l!:ste último fato na perif;ria:i, ;' por fôrça das próprias tran:rrorm~çõ~s
é muito importante, considerando-se a pretensão das clas- objetivas da rocicdadc, surgem condutas coletivas c1sma-
ses asc,rndentes segundo a qual o seu dcmínio representa... ticas, polêmicas, adotadas por classes ou grupos em asce~-
ria o fim das contradições. Ao atingirem a posição de são que pretendem importar um novo e~que!'1:1 de c_onvi;
domínio, as classes ascendentes são a.cometidas das mes- vência social. Estas class.es ou grupos c1smabcos nao so
mas distorsões volitivas e de captação do real caracterís- nentralizam a Jnflu~ncia conformadora do centro, como,
ticas das que as precederam e necessàriament~ se tornam exprimindo 2.s virtualidades históricas, minam progressi-
a referência de um novo dinamismo dialético. «Tôda vamente os suportes psicológicos e ~ociais do centro. De
classe nova, já o observara Marx, que toma o lugar da certo modo poderíamos valer-nos de uma imagem de Marx.
que a dominava antes, é obrigada, para realizar o seu As classes ascendentes alcançam o centro ativo pela epo-
objetivo, a apresentar o seu interêEse cerno o ínterêsse péia ou pela tragédia, mas é sempre uma farsa que marca
comum de todos os membros da sociedade, isto é, para o período final do seu dom.1nio, . . _
empregar uma fórmula ideal, é obrigada a dar a suas
T;imbém se processa no centro uma d1ferenc1aça?
idéias a forma de universalidade, a apresentá-las como as
únicas razoáveis e universalmente admis~íveis:i, (Cfr. Karl progressiva. Diz Maurice Duvcrger que. tc~o centro e
Marx. Jdieologie Allemande, Oeuv.res Philosophiqueis, Tomo
dividido contra si mesmo e permanece cmd1do ,;:m duas
metades: centro-esquerda e centro-direita . Uma fração
IV. Costes. 1937). A estrutura do poder está permanen-
temente em devenir. do centro, por seus suportes obJetivos , se transforma em
sua esquerda e assim se alia às classes ascendentes no
Estas referências supõem ainda que em tôda socie-
dade podem-se distinguir um centro e uma periferia 15>. propósito de transformar qualitativamen.te o ~om:pl~xo
i:ocial global. A nutra fração .se caractenza mais nitida-
O centro da sociedade é aquela sua região a partir da qual
mente como conservadora ou reacionária.
~e l?gra conformar decisivamente o complexo social, a
partir da qual uma classe ou um grupo pode, como propõe Em .sua origem, a classe ou grupo dominante justi-
Max Weber, «impor a sua vontade na ação comum, mes- fica seu poder pela função social geral que exerce e que
mo centra a resistência dos nutras que particjpam da necessàriamente suscita a adesão dos indivíduos da peri-
ação::,) , ou ainda, na linguagem de Timasheff, <tcs juízos se feria. Isto acontece «porqüe, no início, seu interêsse é
transmitem à periferia .. . f€m fazer a pêlo ao mecanismo ainda. na verdade, ligado ao interêssc comum de tôdas as
normal de avaliação de motivos:i>. outras classes nãa dominantes e ainda não pêde, sob a
O centro, dotado de uma influência conformadora, pressão das antigas condições, tmnsfonnar-se em interê~-
estabelece as pautas da sociedade dentro das quais se se de uma clasre particular» (Cfr. K. Marx, ldeolog1e
processam as relações de sociabilidade . Mas é preciso Allema.nde. Edição citada). O poder, portanto a influên-
notar que nem a periferia é totalmente passiva nem o cia conforma.dora do centro·, se baseia inicialmente na
centro é homogêneo. As condições de destruição do poder a<ler;ão da periferia que, pela fôrça da repetição e do
hácito ll,e trani::muta em automatismo . A conduta coletiva.
, (5) SúbrP. us nnções rte centro e peri!erlo.. cfr. 'r!masheff Archives de uma .;e.z organizada, passa a cferecer reEistênda à m~-
l'ldfosuphi~ <ln Drolt rt 8octo.\ogie Jini<ltque, 1986, rr. Coneult,:,-,re também, danc;a. Eis pnrque,. mesmo depois q~e um!1 classe d?m1-
C!l.nd!do Antonio Mendes de Almeida, l'o88lbllldade ela Soclol.o.gia Pollllc...
Rio - 1954. nante deixa de representar uma funçao social geral amda
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consegue, pela manipulação dos reflexos condicionados, e organizou o Estado nacional. Foi aesi~ esque~d~ tão
impedir, durante algrun tempo, que a periferia atinja a logo se diferenciou como uma classe para s1 do ca:p1tah.smo
consciência lúcida das contradições existentes. português, e contra êste lutol!- . F01 c~e dom1_nante, e
à automatização das condutas pelos reflexos condi-
assim ocupou o centro da sociedade pohti:a nacional, d,e
cionados se alia ainda um outro fenômeno complementar º.
1822 a 1930, data em que se torna perceptíve~ seu d~lí-
nio, i.mpõsto pela ascensão _de nossa bur~cs1a indu~tnal.
- a ccoisifica~ão• das relações humanas sob a forma de E nestes dias já se descortma corno poss1vel U:IDª 3:liança
ordem, sociedade, de um co.smos hispotasiado, independen- (que parece esboçada na última. eleiç~o _pres1d~nc1al de
te d0s indivíduos, que se presume sujeito a leis inexorã.- 1955) do proletariado com a burguesia md~a.l !1-~m~
veis. ir: o que Tima.shfff chama de objotiv~ e Marx luta contra os seus inimigos comuns . Entre esses mum-
de aJ:ena.çã.o. Esta no~ão alienada ou objetiva da socie- gos comuns, é necessário esclarecer, só se coloca a. d.asse
dade é o pressuposto de tôda forma. de pordtivismo socio- latifundiária enquanto, perseguindo vantag~ns de seu mte-
lógico. O poder, diria Karl Marx, não aparece aos indi- rês~e imediato e e~clusivo, perman:<:ª 8!1ada d.e ~ertas
víduos como seu próprio poder associado, mas como uma fôrças econômicas externas, ou resista a ampllaçao da
fôrça estranha, exterior, de que não conhecem nem a ori- área de comercializa~ão de nü.SSOB produtos: . ,
gem nem a direção, que êles não podem mais dominar, A configuração de uma classe proletã.na na hist~na
poiB é uma fôrça independente do querer e do desenvolvi- politica do Brasil é ~ f~to. tardio, q1!ase de n<?s~os di~,
mento humano. Até l'ecentemente, nao existiam no pais as cond1çoes obJ~-
A domesticação ideológica das classes submetidas as tivas que permitissem o aparecimento desta classe, poJa
mantém na condição. de fôrças em si, e Eomente quando faltava-nos, para tanto, um mínimo de diferenciação das
as contradições se agudisam elas passam a perceber as atividades produtivas, para não falar no es~~eo volume
virtualidad~s do processo social, assumem a sua teleologia. das atividades produtivas exist-entes no dom1ruo manufa-
e se tornam classes para si. tureiro.
Não ê senão na década de 1870-1880 que começa~ a
Resta, finalmente, ao ultimar esta descrição sumária destacar-se da agricultura as atividades manufatureiras.
do módulo geral do movimento da sociedade política, Antes, 0 que se observa no país .é um arquipélago de
advertir que, no contexto capitalista., a dinâmica dAa rela- nódulos econômicos (fa7.endas) mais o.u menos íech_ados,
ções de poder não se explica em têrm.M de psicologia indi- dentro dos quais a população produz e consome direta.-
vidual ou mesmo coletiva, mas pelas transformações mate- mente quase tudo o de que necessita, inclusive beil;S mani:i-
ríais, pelas transformações das relações de produção, as fatura.dos. O desenvolvimento industrial do Brasil depois
quais condicicnam a ascensão, o domínio e a decadência daquela década, até 1930, c~nsiste principa~ente em des-.
das claEses e grupos sociais. A infra-estrutura da socie- tacar da lavoura a produçao manufature1ra através da
dade política é a aoeiedade econômica. Por outro lado., criação de pequenas emprêsa.s. ·
nenhuma forma de organização política é transcedente à A melhoria de nossas relações de intercâmbio c?m o
história . Tôdas elas, a longo prazo, são insustentáveis. exterior que se observa na segunda metade do seculo
passado'. e expressa ~ã'? só no aumento ~a demanda de
• • • nossos produtos trap1ca1s como .n~ !-levaç~o de seus pre-
ços, provoca. o incremento da d1v1s?-o. social do trabaR:o,
A evolução política do Brasil ê uma ilustração destas isto é, obriga a agrieultura a especializar-se na prod~ç~o
referências conceituais. ir: fã.cil verificar que a classe para satisfazer a procura externa. Para se ter uma _1dê1a
latifundiária, hoje em processo de perda crescente de dessa melhoria., basta observar que enquanto a quantidade
representatividade política, cujo poder é atualmente maior média exportada de ca.fé subiu de 88. 667 tonel3:das no
do que sua importância econômica, isto graças a uma penado de 1839-44 para 165.114 toneladas no penado de
certa usurpação histórica, a classe latifundiã.ria teve no 1869-74, o valor médio anual da exportação do refe-
Brasil a .sua. fase de ascensão, domínio e decadência. Como rido produto aumentou, de um período a o,utro,. de
classe a&cendente fêz o. independência do po.ís, em 1822, Cr$ 18 . 271. 000,00 para Cr$ 91. 098. 000,00. Alem disto,

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Escrevendo na última década. do século XlX, dizia
o país teve saldos positivos no comércio externo de 1860 Sylvio Romero que «a classe mais pobre que existe no país
8: 1929. Ne~tas _condições muitas atividades que eram rea- ê justamente a que corresponde à burgues:.a. na Europa».
lizadas no_ mtenor das fazendas passavam a ser daí alija- E explicava:
das, sur~u!,do assim a produção manufatureira para 0 «Eccnôroicamcnte, somos uma nação embrionária,
mercado 1ITLemo _que começa a formar-se ero virtude da cuja mais importante indústria é ainda uma lavoura rudi-
M..Iptu~ ~os ~mbgos quadros du economia natural pela mentar, extensiva, servida ontem por dois milhões de es-
comerc1alizaçao. ' cravos e, boje, por trabalhadores nacionais e algumas
. O nosso proletariado haveria de surgir de elementos dezenas de milhares de colonos de procedência européia,
ormn~os da massa de escravos e da plebe rural circunja- cem vê7iES mais felizes do que na mãe pátria. O capitalismo
cen~e as fazendas, na medida em que o processa de divisã.o naci.onal é exíguo, qua~e mesquinho.
so~i~l do trabalh? fôsse permitindo o aparecimento de ~Em l'igor todo o país é ainda uma vasta feitoria, uma
ativ1~a~es que dAeixavam de ser realizadas pelas unidades verdadeira colônia, explorada pelo capital europeu sob a
cconom1cas autonomas. ft;ste processo de abertura do forma de comércio e Eob a forma de emprêsas.
cC!~plexo rural (lll, que permite a migração de fatôrcs «A população em geral, feita pequena exceção de
(m_ao-,de-obr~ e capitais} do campo para as· cidades, ainda alguns fazendeiros, senhores de engenho, negociantes e
hoJe. e. uma 1mportante referência dinâmica da economia herdeiros de capitalistas maís ou menos desempenhados,
hrasilerra. é em sua maioria pobre; mas são os· pobres da. inéicia.;
_ Até ~e~enkme~te,. a debfüdade do nosso capitalismo não sã.o os proletários no sentido sccialista; porque não
"ª<? J?erm1t1:1 a rad1cahzação dos interêsses da classe pro- são operários rure.ís ou fabris. Se, pois, há pauperismo
1et~1a ..Ate_ 1888, data da abolição do cativeiro, a popu- é da nacão inteira» <7l.
laqao ativa intermediária entre os grandes proprietários Na; três décadas do século XX acentua-se a expan-
rle terra e os grar.tdes comerciantes e a mão de-obra servil s5,o da mercado interno, como se poderá concluir do exame
escr_ava er:a mac1çamenw afetada de pauperismo. Não do crescimento das atividades industriais. Em 1850, não
haV!a; ~ssun, como extremar as reivindicações de um tínhamos estabelecimentos fabris e eram €m número de
prole~ar1ad?, .d~ que apenas rudimentos eram perceptíveis. 50 as firmas industriais, aí inclusive dezenas de salineiras.
As of'p1sod1cas revoltas de escravos. a revolta dos Em 1889, contavam-se apenas 626 estabelecimentos in-
cah~llü3 (1833-1836), a dos ba]aios (1838-1841) e a dos dustriais no Brasil. Nos vinte e cinto anos posteriores,
foram instalados mais 6.946 novos estabelecimentos indus-
pm1eir_o s (1842-1849),. embora de caráter pC1pular bastan- triais; mas no período de 1915-1919 surgiram aqui 5 . 940
te ~adical, f?ram mov1mcntos de significação local, acon- emprêsa.s industriais novas. O valor da produção indus-
~ec1.~entos isolados não suscetíveis de corpo.rificar um trial atingiu, em 1889, a. Cr$ 211.000.000; em 1907, a Cr$
1dean? ~m um estado de espírito dtrrável; foram re[l.çõ 213 741.536.000~ em 1914, a Cr$ 1.500.000.000, enquanto em
esporad1cas da €~trutu:ra econômica e social qne não che- 1920 montou a Cr$ 2.989.176.281. Disto resultava natu-
garam a ameaça-la. em seus delineamentos essenciais e ralmente um apreciável aumento dos contingentes de tra-
que a classe dominante logo conjurou. balhadores industriais que, em 1889, eram 54. 169; em
Inc(\;t:n:lo. até 1888, uma indústria brasileira um 1907, eram 150.841 e passaram a 275.512 em 1920, quando
m_erca?o nacJ~nal e s~us resp,ectivos suportes roate~iais, se realizou O segundo censo industrial. Todavia, as trans-
nao pode, entao, surgir uma classe operária unific~,da, e formações por que passa a economia brasileira, nesse
os grupo~ populares lutaram por objetivos contingentes pericdo, embora relativamente consideráveis, não propi-
ou se deixaram ~rastar pelo misticismo em episódios
A c;am ainda a formação de um verdadeiro proletariado, por
com~ o de Antomo Com:elheiro, que foi estudado por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque êsses
Euclides da Cunha em Os Sertõe,s. operários urbanos em sua quase totalidade nada roais são
que ex-campônios adestrados em tarefas industriais, care-
(71 Sylvlo Romcl'o, O Evolucl"Onismt> " o l'o•itivlsru" no Brallll. Rlo,
1895. Pág. XLVl,

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centes de consciên.cia profisAslo?,al. Em segundo lugar, par da revoluç;ê.o da claste média contra as oligarquias lati-
q~e aquelas empresas econom1cas em sua grande maioria fúndio-mercantis.
"ª? i:_epr~senlam se!!-ão pequenos empreendimentos, em Antes da Revolu~ão de Outubro de 1930, o país se
CUJo am~1to as rel_açoes _entre patrões e operáric.s, grosso encontrava ainda decisivamente dominado pelas oligarqui-
modo, na.o a.ssum.1~m a~nda o caráter de relações entre as ligadas a interê.Eses do latifúndio e da burguesia mer-
classes e transcc-rnam d1r<:tamente de maneira nã0-formal cantil, embora aí se delineasse, uítidamente, uma bur-
e paternalista. guesia industrinl. Uma certa plnsticidadc da estrutura
Enql?arato es~~s. condições durnram, a classe média político-partidária dominante permitia que, através de
t;~e de ser ncceosanamente a clame eminentemente po- ccmpromiseos e con~esões recíprocas, as classes maia
htica. atuantes (a latifúndio mercantil, a industrial e a média)
~esde cedo, no Brasil, se formou uma classe média encontrassem, de qualquer forma, um modos \livendl.
rc!ativamente vultosa, pois o regime escravo se consti- Até 1930, nenhum movimento politico de importância. ul-
tu1U num fator que dificultava o encaminhamento da rnão,- trapassa a perspectiva da classe média. Luís Carlos Pres-
~~brn lívre p~ra o.tividadcs pro:lutiva.s. Para se ter uma tes,o atual Secretário Geral do Partido Comunista, quan-
1dé~a da Prf;SSao do elenento livre considere-se a 1>opu- do participou da Revolução de 1924, não era comunista
laçao do pais em 1850 e 1872. Naquele nno, para um to- e durante os anos que passou foragido no interior do
~n.l de 8.020.000 habitantes havia 2.500.000 escravos e Brasil, comandando a sua famosa Coluna, expressivos
~.520.000 pes.E:oas livres. Em 187'2, para um totul de contingentes da nossa pequena burguesia viam nêle o
10.112.~61 habitantes, 1.510.806 eram escravos e 8.601.255 Cavaleiro da Esperança, um símbolo de protestação d.a
eram h!res._ f:.sse. avu~tado contingente livre de noai;a classe média, em luta contra a exploração oligárquica e
populaGao nao pc.d:a deixar de ser como foi, interessado plutocrática. 1.; significativo que até Plínio Salgado, o in-
na~ reformas que ampliassem as oportunidades de em- trodutor do fascismo no Brasil em 1932 e atual ch€fe do
prego. Partido de ~presentação Popular, tenha-se referido com
A cla~se mldia no Brasil é unia espécie de variguar- simpatia à Coluna PNstes, em seu romance O Cavaleiro
da de tod?s os movi111:entos revolucionários dure.nte a de Itararé, publicado em 1933. Na década de 1920-1930, a
fase. colomal. Na fa~ imperial, alia-se freqüentemrnte a vanguarda de nossas movimentos políticos é BBsumida
movimentos progressistas, e a proclamação da República, por elementos da classe média e principalmente por uma
em 1889, é, em larga margem, a ultimação de um pro- ala revolucionária das fôrças armadas cuja presen~a fà-
cees? on que tomou P.a~e. decisiva. Durante a fase re- cilmente se indentifica nos movimentos Bubversivos de
pubhc,ana de ~ossa ~1stor1a, a da~se média exprime, 1922, 1924 e 1930, e no chamado ctenentismo:1. A popu-
atra~es de ~ár!os movimentos, os percalços que resultam laridade da Revolução de 1930 e a relativa facilidade com
da diferenctaçao da produção no Brasil, através de ati- que se venceram as fôrças governistas estão a mostrar
tudes dúplices, acomodatícias umaa vêzes, subversivas a escassa contradição entre os interêsses das várias clas-
outras vêze_s, e, atualmente, com a crescente politiza<:ão ses que, confundidas como povo, se opuseram às oligar-
do proletanl:,do e da burguesia industrial ela se inclina quias dominantes.
para a adoçao de t€ndências direitistas. Depois de 1930, fortificam-se as tendências econômi-
Mas apesar de suas oscilações, a classe média aliada cas e sociais mal enquadradas no sistema anteriormente
ao processo de expan~ão industrial no EraBiI, na 'medida dominante, e elas se traduzem na expansão da produ~o
cm que se avoluma, exprime, no plano político e de n1odo para o mercado interno e no incremento da produção de
crescente, a~ 1930, as tendências dominantes do processo bens de capital. A crise mundial de 1929, provocando a
de desenvolvunento da rnciedade brasileira. queda do valor de nossas exportações, repercute favorà-
A Campanha Civmsta de Rui Barbosa em 1910 a velmente em nOMa economia, pois que impulsio11ou o país
Reação Republicana em 1921, as quarte!adas de 1922 e para produzir internlililente grande parle dos bens que
1924, a Coluna Prestes, a Aliança. Liberal e a Revolução eram importa.dos. Algumas cifras dão idéia precisa desta
de_ !)u~ubr~ de 193~, todos movimentos porta.dores de crise externa. No qüinqüênio de 1925/1929, e,r;portamos
re1vmd1caçoes de feição meramente liberal, são marcos 10.413.701 toneladas no valor de f 440.946.000 (libras
46 47
ouro). No qüinqüênio de 1935/1939, exportamos 17.280.000 menta politico-estatal que garantisse esta transi.ção se1;11
toneladas no valer de í 190. 841. 000 (libras ouro) . grandes percalç0a . Era necess~ri~ dar um Be1J,t1do meJB
Baixava asi,im a remuneração dos fatôres empregados na intervencionista ao Estado e elcmmar os obstáculos que
agricultura. Enquanto isto, 08 fatôrcs empregados na in- dificultavam o pleno fW1cionan1ento de um mercado
dústria recebiam cada vez melhor remuneração. Se igua- interno. Por isso foi possível o Golpe de 1937. O chamado
larmos a 100 o vnlor médio dos produtos agrícolas primá- Estado Novo (1937-1945) foi assim wna ditadura da
rios no qüinqüênio de 1925/29, verificaremos que êles des- híbrida. burguesla nacional. ,
cem para 86 no qüinqüênio de 1940/44. Enquanto isto, A an1.bigüidade dialética é ainda hoje discermvel ne.s
e procedendo de modo idêntico, verificamos que, de um relações entre aquelas classes, embora tendendo a ~rans-
período a outro, respectivamente, o valor médio unitário mutar-se em verdadeira polaridade com o desenvolvunen-
dos produtos básicos da indústria sot:c de 100 a 201. Nestas to econõmico.
condições a produção industrial cresce de modo acelerado. Na década de 1930-19401 começa a delinear-se como
Medida em têrmos de ferro e aço, a produção de bens de fôrça política. o proletari~do brasileiro qu~, em no~sos
capital, no ano de 1932, crescera em comparai;:ão com a clias, eonstilui a base eleitoral de um d~ ~a.1ores p~tidos
de 1928, em 60 por cento. A participação de maquina.ria. do Brasil: o Partido Trabalhista Brasileiro . No mes se-
no valor total das importações segue a s·e guinte Hnha. as- guinte ao da vitória da Revolução1 0?1. 26 ~ novembro de
cendente: 1920-10%; 1930-14%; 1938-23$;,; 1952 29%. 1930 (decreto 19.443), criou-se o _M1m.stério d~ Tr_ab~o.
Na década de 1930 se inicia o declínio da burguesia Indústrio. e Comércio; em fevereiro de 1931 mstitwu-se
la.tifúndi0-mercantil como classe dominante, pois, que, for- 0 Departamento Nacional do Trabalhe; em março do
çada pela conjuntura internacional desfavorável. começa a mesmo ano regulou-se a sindic~lização da.:5 cl~sses patro-
perder suas antigas posições DC\ centro do poder em bene- nais e operárias. Desde uma lei de ~ de Janeir~ ~e 1907,
fício dos interêsses da burguesia industrial. Não se deve, era permitida a organização de sindicatos operar1os, m~~
entretanto, exag~rar, nesse período de 1930-1940, a ten- só a partir de 1931 se inicia, entre nós, a estrutura~ao
são entre aquelas duas dasses. Mesmo hoje, entre uma e sindical das claeses.
outra, há menos polaridade do que ambigilidade tR1, mo- As lutas eleitorais posteriores à deposição de Ge-
tivo porque as lutas políticas até agora são ainda mll.rca.- túlio Vargas em 29 de outubro de 1945 exp!imem de :m~do
das de escassa nilídez ideológica. l!'.: que a confusão está crescente O amadurecimento do proletariado brasileiro,
nos fatos mesmos, nisto gue, para mencionar apenas um sobretudo no meio urbano. l!'.: êsse contingente que gar~-
do.do, o nosso capitalismo industrial vem se formando de te a eleição de Vargas como senador em 1945, a. su~ reelei-
significativos recursos provenientes das setores latifun-
diários, coincindindo com freqilência em nossos grandes ção à Presidência da República~ 1~5? ~· bem assl!° que.,
at.tavés das eleições de 1955, dá a vitona ao candi?ato a
homens de negócios, o industrial e o latifundiário. Esta si-
tuação transparece, sobretudo. na conduta. pclítica do par- Presidência. da Rep'ública cujo programa parece ma1s coa-
tido majoritário do Brasil, o Partido Social Democrático. dunar-se com seus interêsses. .
O presidente Getúlio Vargas, em cujos periodos governa- Nos últímcs vinte e cinco ancs, ~ _peg_uel!a ~urgues1a
mentais mais se desenvolveu a indústria, era um criador tem sido cooptada pela direita Política., _prmc1palmente
de gado. pelo integralismo (versão brasileira do. fa.sc1smo) , fw.!dado
Um insuficiente deslinde dos interêsses do latifúndio em 1932 extinto em 1937 c reaparecido em 1945, ~cb o
e da indústria é o gue explica decisivamente o Golpe de nome de.Partido de Representai:;ão Popular. Nos quad::>s
1937, que instalou o Estado Novo, chefiado por Vargas. déste partido e, desde 19~5. também da cham~da U111ao
A braços com a imperativo de reorientar 08 investimentos Democrática Nacional e, a.mda, do pêquen? ~artldo De~o-
para a produção destinada ao consumo interno, a burgue- cre.ta Cristão, até o preaente, a .cl~sse medi.a no Brasil é,
sia latifundiária e a industrial careciam de um ordena- grooso modo, uma fôrça. reaci?nana dcmesti_cad~ por ~a
idcclogia reformista e moralista. Um contmg:nte mino-
(8) P:iro uma lnt~llgênei:l dos t~rmos rwilarldtttle e ambl,:üidade. dr. ritário desta classe se distribui entre os pa.l'Ltdos _da es-
G. Ournteh. o,JTyper-Empirisme Dia!eelh1u~1>. arll.!:o no!! CahiP" lnt~n11•- querda, aí inclusive o clandestino Partido Ccmurusta do
Uona,11x de Soclc.Jogle. Vol. XV. 19fi3.

48 49
Brasil, cujos quadros .se constituem significativamente de niio se esqueceram - ao caso que tinham sob as vistas; e
elementos pequenc-burgueses (9), também porque tôda. a cultura intelectual brasileira da
O observador estrangeiro que examinar a trajetória época se formara na filosofia francêsa do século XVIII.
das idéias políticas que caracterizam os diversos momen- Por isso, na falta de um sistema original, que não estavam
tos de nossas transformações de classe constatará que evidentemente em condições de produzir, a.pegam-se os
elas são, invariàvelmente, tomadas da. Europa e ulgumas nossos constituintes a elas, fazendo mais ou mencs o que
vêzes dos Estados Unidos. Alguém já viu nisso um flagran- já realizara o Código Napoleónico, adaptando à sociedade
te do «espírito de imitação,:i;, do brasileiro. Entretanto, do burguesa. do século XIX os princípios do direito civil roma-
ponto de vista sociológico, aquelas idéias só podem ser no (10).~
cottctamente explicadas tendo em vista a. sua funciona.li. Carecendo a sociedade brasileira de pauta.B institu-
dade. M doutrinas, na luta partidária no Brasil, têm cionais suficientemente dotadas de conteúdo consuetudi-
servida para camuflar as intenções e os propósitos, e a. nário, os grupos e facções eram forçados a. apelar para
compreensão do seu sentido existencial e não meramente as fórmulas feitas, an quais, na verdade, instrumentaliza-
lógico requer que o analista as transcenda., apreciando as vam segundo os seus propósitos.
conexões objetivas dos que delas se utilizam. A sociedade brasileira integrante que é da periferia
Quando, por exemplo, a nossa classe latifundiária. se da. chamada civilização ocidental não pode furtar-se à in-
empenha na luta pela independência do país, apela. de fato fluência cultural das sociedades droninantes nesta civili-
para as idéiB.B em voga. na. Europa. zação. Itste condicionamento cultur11l1 estreitamente vin-
Co:rn efeito, observa um historiador (Caio Prado culado a.o i:rnperiaüsmo econômico, só é neutralizável
Júnior) que, cao elaborarem em 1823 um projeto de Cone· quando são a tingidas condições objetivas determinadas
tituição, foram os constituintes brasileiros buscar seus que apenas recentemente se configuram em nosso país.
modelos nas instituições da. época., inglêsa e francêsa, nes-
ta prineipalmente, e nos princípios filosóficos do «Contra-
to Social» de J.J. Rousseau. Era uma homenagem. às
doutrinas então em voga. As idéias do sistema político
adotado por nossos legisladores constitucionais expri-
miam, na Europa, as reivindicações do Terceiro Esta-
do, especialmente da burguesia comercial e industrial.,
contra a nobreza feudal, a classe dos proprietários. Até
oerto ponto, é o contrário que se dá no Brasil. São aqui
os proprietários rurais que as adotam contra a burguesia
mercantil daqui e do Reino. O que houve fci apena~ uma
simples coincidência dos meios a serem empregados para
fins diversos. Qual era o problema dos legisladores brasi-
leiros ? Substituir as restrições políticas e econômicas do
regime colonial pela estrutura de um e:;rtado na.cíonul. Ora,
as idéias centra.is dos sistemas politicos e filosóficos que
ori~mtam a revolução do Velho Mundo eram justamente
estas: liberdade econômica e soberania. nacional. Adota.
ram-na.s, por isso, os constituintes de 1823, porque coinci-
diam perfeitamente com seus propósitos, porque se adap-
tavam come luvas - feitas as devidas correções, de que
(9) O Partido C<:Jmunlst& do Brasil, atualmente clandMt!no, tem e~ae8;l
exprcsitão prolet.:l:rla. Em 1947, quando êste Partido funcionava lcgalménte,
os seu& adeptos somavam cêrca •le 200 .000. Atualmente deve ser menor o (10) Clr. Caio Prado J"úntor, lJvolucil.o l'(Jiftl= do BraaU. São Paulo.
número dos comunistas fichados no Partido. 1:)6.'I. Pá.g. 51.

50 51
atreladas a tendências nem sempre ilegítimas da socieda-
de nacional.
Assim, é prnvável que as práticas idealístico-utópi-
cas nem sempre tenham contrariado o processo de cresci-
mento vegetativo do país . O t€ma do idealismo utópico
está a. pedir, ha.je, uma revisão. Tudo leva a crer que os
Sales Tôrres Homem, os Tavares Bastos, os Rui Barbasa,
os utópicos típiccs, na insinuação de Oliveira Viana, te-
nham uma psicologia muito diferente da dos utópicos clás-
V - ESFORÇOS DE TEORIZAÇÃO DA REALIDADE sicos. Pelo menos, quanto à atitude em face dos modelos
NACIONAL POL!TICAMENTE ORIENTADOS, institucionais, uns e outros se distinguem. Os primeiros,
DE 1870 AOS NOSSOS DIAS c•J per mais generosas que tenham sido as suas int~n~ões,
viram, nas teorias e instituições, instrumentos de melho-
ria da organização social, sem ultrapassar, porém, cs in~
Nos métodos de a.ção social e política de nossas elites, terê.sses das classes sociais que representavam. Os últi-
desde a Independência até os tempos da República, Oli- mos iam mais além, pretendendo a. supressão dos males
veira Viana fêz notar a incidência do que chamou de sociais, o milenium terrestre.
idealismo utópico. Essa.e elites, na crítica de Oliveira Via- No Brasil, as práticas idealistico..utópicas estiveram
quase sempre aliadas às tendências positivas da evolução
na, teriam acreditado na eficácia imanente de teorias e da sociedade. f: o que parece evidente nas várias tentati-
instituições européias e norte-americanas, e as transplanta- vas de teorização da realidade nacional, orientadas no sen-
ram para o nosso puís certas dos seus efeitos benéficas. tido de possibilitar sua melhor conformação ou de domi-
Segundo o sociólogo fluminense, c.s que assim fizeram, te- nar o processo de cresc:iinento da sociedade nacional.
riam agido sem bom senso ou com ingenuidade e, portan- São estas tentativa.s que procurarei estudar, sem
to, poderiam ter tido outro comportamento se não se tives- contudo pretender fazê-lo de maneira exaustiva. Minha
sem deixado empolgar pelo prestígio daquelas teorias e preocupação é focalizar &ses esforços e, registrando o
instituições. seu significado nos momentos em que surgiram, ganhar
A obra de Oliveira Viana, na parte que diz respeito maior compreensão do desenvolvimento da sociedade bra-
à. crítica de nosrns elites, é, certamente, o máximo de ob- sileira.
jetividade que , até agora, os estudos sociológicos atin- O presente estudo constará dos seguintes capítulos:
giram, entre nós. De fato, a ação de nossas elites deixa
perceber que elas pretenderam, em apreciável escala, do- I - Os republicanos de 1870;
minar os fatos da vida nacional através da exemplaridade Il - O movimento positivista;
das idéias e das instituições. Teriam elas a convicção de m- Sylvio Romero e a sociologia da sociedade
que os cidadãos, sob o impacto dos exemplos, seriam in- republicana;
duzidos a alterar a sua psicologia. Parece, entretanto, que IV - Os ideólogos da ordem e progresso;
Oliveira Viana viu aqui meia verdade; não a verdade tôda. V - A revolução da classe média:
VI - A revolução de 1930
Isto porque aquela conduta inquinada de idealista-utópica VII - Conclusão.
foi, muitas vêzcs, menos decorrt:ncia de uma imitação vo-
luntária do que um expediente pragmático a que tiveram J - OS REPUBLICANOS DE 1870
imperativamente de recorrer a fim de racíc.nalizar ou jus-
tificar interêsses e reivindicações de grupos e fac~ões Em vários momentos críticos de nossa história se
( •) Conferência pronunciada pelo autor na Fe.culrlade d<' F!loaníia d e
registram tais esforços. Um dos primeiros é o Manifesto
São Paulo, numa rta~ se:seC<eo, do J CoIJi;Tcsso Bra,;i!eiro de Sociologia, rea- de 187.0 da Partido Republicano. Trata-se de um documen-
lizado na capital banue!,:i.ntc, de 21 .. 27 de junho de 1955. to cuja plena inteligência só é passivei a partir das condi-
52
çõea concretas de vida. naquera época . Na data de 1870 A sociedade brasileira, após meio século de exis-.
já eram bastante nítidas certas contradições entre as ins:
tência como coletividade nacional independente, en,.
tituíções vigentes e novas fôrças pt·odutivas que busca- contra-se boje, apesar disso, em face do problema
vam o seu curso normal numa forma de organização da sua organização política, como se agora. surgisse
não escravocrata. Uma considerável massa de cidadãos do caos nacional.>
livres, mal ajustados num sistema em que quase só havia
lugar pa.ra senhores e escravos, carecia de posição e fun. O documento passa, depois, a incidir em um por um
dos aspectos do regime imperial assinalados anteriormen-
ç~o na sociedade.. Para se ter uma idéia da pressão polí-
tica do elemento livre compare-se a população do país em te. Refere-se ao cvício orgânico das instituiçõest deficien-
1850 e em 1872. Naquele ano., para um total d~ 8.020.000 tes para garantir a democracia e únicamente eficazes
~abitantes, havia 2.500.000 escravos e 5.520.000 pessoas para perpetuar o prestígio e a. fôrça do poder absolutoP
livres. Em 1872, para um total de 10.112.061 habitantes, da «vontade de um homem>; proclama. que «não podem
1.510806 eram escravos e 8.601.255 eram livtts. Além constituir, de nenhum modo, a legitima representação do
de outros, êste fator demográfico agia no sentido da rup. País,, «uma câmara de deputados demissível à vontade
tura do sistema. agrária escravocrata e, portanto, do es- da soberano e um senado vitalício à escolha do sabera-.
timulo à industrialização do país, a qual, de resto, estava no,· e ainda que o <regime da. fcd~ração baseado na
em processo e, desde 1844, com a tarifa Alves Branco jã ind~pe~dência recíproca das províncias ... é o único capaz
suscitava a resistência do setor latifundiário. ' de manter a comunhão da familia brasileira~.
Tais cont.radições se ~fletiam nos quadros políticos, Efetivamente, esta teorização da realidade nacional
de 1870 não pode .ser dita científica. ~ uma interpretação
e dem~va';l' a altera.çao do esquema das instituições
em cuJo funcionamento se assegurava o predomínio dos politicamente orientada segundo o po~to de v~sta d:1queles
fazendeiros. Os latifundiãrios gara.ntie.m. o primado dos setores da classe média que, na sociedade rmperial, co-
meçam n ter acesso na esfera de decisão política: o setor
seus interêsses principalmente at.ravés do Senado Vitall-
c~o, do _Conselho de Estado, da centralização político-admi- dos profissionais libera.is. Dos 56 assinantes do Manifesto
só wn se declara fazendeiro; 14 se declarem advogados;
!'istrative., ?-? Poder Mo~erador ~ sua prerrogativa de
1rresponsabihdade e de dissolução da Câmara. O mani- 5 se declaram engenheiros; 9 se declaram. médicos; 4 se
fe~to de 1870 representa uma sistematização dos pontos declarem jornalistas; 7 ee declarem negociantes; 2 se de-
de. estr~ngulamento que devem ser desfeitos, a fim de que claram professõres; 3 se declaram empregados públicos;
S0Jem liberadas as novas tendênciaB objetivas da socieda. 1 se declara capita.lista; e os 10 restantes não declaram a
de imperial. :m a teoria política da realidade nacional atividade. Note-se como o Manifesto quase silencia sôbre
11aquele momento. o aspecto propriamente econômico da socieclade brasilei-
Diz o Manifesto: ra. Naquele momento, o máximo ~e c~nsciência poss.ív~l
que se poderia pedir aos qua~ros liberais da, c_la.sse m~
<10 privilégio, em tôdas as suas relações com era o da necessidade de reaJustamento pohtico.adm1ms-
a sociedade - tal é, em síntese, a fórmula social tra.tivo de modo a que pudesse adquirir posição e função'.
e .~ol~tica do nosso_ \ª,Ís. - privilégio de religião, pri- na sociedade um apreciável excedente de cidadãos livres.
vilegio de raça, privilegio de sabedoria, privilégio de A. classe latifundiária a.inda tinha funções positivas o
posição, isto é, tôdaB as distinções ar.b itrárias e odi- cumprir e a indústria nacional de então apenas se ini-
osas que criam no seio da sociedade civil e política ciava<").
a monstruosa superioridade de um sôbrc todos ou :Não parece UII1a observação dotada de absoluta pro-
a de alguns sôbre muitos. priedade e. de que os republicanos_ de 1870 tenham sido
A êsse desequil.J.ôrio de fôrças, a essa pressão idealistas.utópicos. Esta observa.çao decorre talvez de
atrofiadora, deve o nosso País a sua decadência mo-
ral, a sua desorganização administrativa e as pertur- (º) Constitui um documento c,:presslvo <la ideoloi;la do estrato supe-
rior da claMo média na. dl'éc~da de 1670-18.80, o opüsculo de Tobi!Ul Barreto,
bações econômicas, que ameaçam devorar o futuro Um Dli,e1neo em Mani:aa de Camls•. pronunciado em eetembro de 1371, por
depois de haverem arruinado o presente. ocasião <1 a t na ugun1çã.o d o Clube Po1,ul a,· 1'1sc a.d ena~.
uma consideração do aspecto puramente verbal do seu eia em sublinhar o que concretamente lhes parece discre-
comportamento, sugerido óbviamente por idéias e insti-
tuições de pafa:.es de g:r-ande preirtígio na época. Todavia, pante em função dos seus padrões. . . .
o comportamento efetivo dêsses políticos nada tinha de Na teoria positivista do Brasil, há que dist1?~~ll'
utópico; era pragmático, sendo a parafernália vocabular dois aspectos: as teses gerais e o programa. Os pos1bv1e-
que usaram mera camuflagem de concretos interêsses e tas adotaram literalmente o sistema de Comte e, nestas
propósitos. condições, a êles se aplicam tôdas 8!'I restrições que se fa.
zem hoje ao positivismo. E: perceptível, hoje, que o siste-
li - O MOVIMENTO POSITIVISTA ma de Comte reflete as condições peculiares do momento
e da sociedade em que êle viveu, implicando ainda uma
. Foram, entretanto, os positivistas que, pela pri- teoria da história que atribuía à sociedade européia a ca-
meira vez, entre nós, colocaram com tôda cl~.za o tegoria de r€ferência básica do ~esenvol~ento e, tam-
problema da formulação de uma teoria da sociedade bém um conceito abstrato de sociedade, pois a tanto cor-
br!1sileira como fundamento da ação política e social. O resp~nde o pensamento sociológi<:o que não percebe que
pr~meir_? estudo positivista que aparece l!qui .iá manifesta não existe a sociedade, mas soc1edades, cada uma das
o ~nteresse dos adeptos de Comte pelos problemas nacio- quais com as suas leis particulares.
nais. Trata-se de A escravidão no Brasil, de autoria de Abstraindo tais leis particulares e o condiciona~~n_to
Francisco J o-sé Brandão, editado em Bruxelas no ano de histórico-social da psicologia humana, os nossos po.s1tiv1s-
1865. A Sociedade Positivista, fundada em 1878 (5 de tas admitiam a possibilidade da transformação da socie-
setembro) se tornou logo um centro ponderáv€l de difu. dade através do esclarecimento mental dos homens. Neste
são de idéias. Por sua vez, os positivistas também atua- sentido dizia Teixeira Mendes que o <1:espirito positivo1
ram através do Partido Republicano. Diversos foram os
cuja su'perioridade se tem evidenciado em to~os os d?mí·
nias . inferiores da atividade humana, deve mtroduzir.se
adeptos brasileiros de Comte que procuraram formular boje nas artes superiores que sistema.ti_zam a modifica-
uma concepção unitária do país. Um dêles, Aníbal Falcão ção da sociedade e do homem - a pohttca e a mora:I. O
publicou em 1883 um opúsculo intitulado Fórmula. da Ci~ filósofo já assimilou, inventou e demonstrou con~trumdo
vili~ Bra.sileirn, a qual consistiria no «prolongamento a sociologia e a moral; resta convencer e persuadll' os ho-
am~r1cano da civilização ibérica, a que cada vez mais se mens pela p~opaganda, que trar~ a ~g~n~ração mental e
~s.un.ilarão, até a reunificação total, os índios e oa negros moral primerro e, como conseqüência ulti!D!• a refo~a
unportados, ou os seUB descend€ntes.» política das sociedades humanas». Numa v1sao, por assun
. l:1ªª dentre os aficionados da igreja comtista, é a dizer apocalíptica da história, concebiam o que chamavam
Teixeira Mendes que se deve um esfôrço mais sério de de «época normab, que descreviam como aquela €m. que
formulação de uma tecria do Brasil. Está exposta no 0 planeta «se há de compor de pequenos Estadcs hv~e~
opúsculo, A Pátria Bl'tlSHeim, escrito em 1881. Ai Teixei- em tôda acepção do têrmo, po~q1;1e cada ho~em ~umpr~ra
ra Mendes se reporta ao «empirismo> da geração da Inde- conscientemente os d€veres exigidos pela s1tuaçao soc1al,
pendência, à inexistência, nesse momento, de «uma teoria tôdas as pátrias formarão uma vasta_ confederaçã_? cuj?
~sitiva de governo>. Segundo êle, o êITo de José Bonifá- laço será exclusivamente moral, em virtude da unüo1~m-
cio e _dos outros prógonoe de 1822, - êrro que consistiu dade das convicções, da sinergia dos esforços e da sllll-
em nao se ter assegurado «a supressão da hereditariedade patia de tõdas as almas». . , .
monárquica, tornando a sucessão dependente da escolha Indiscutivelmente, enquanto doutrinanos, os nossos
do ditador, sancionada pelo voto nacional» - êsse êrro positivistas eram utópicos. Todavia o progrfiln:a _de me-
poderia ter sido reparado se a «falta de uma teoria cien- didas que preconizavam para o problema brasileiro, em
tifica não constituf~s~ um obstáculo permanente, insupe- muitoa aspectcs, apresentava cunho prático, do pont? de
ravel, a qualquer Vlaao clara das necessidades políticas.» vista da classe social a que majoritàríamente pertenciam.
A concepção positivista do Brasil se caracteriza pelo Tais eram, por exemplo, medidas como~: a supre_s~í!,o da
seu caráter normativo. Partindo de um conceito de socie- hereditariedade monárquica, a supressao da relig1ao de
dade normal , os seus adeptos se preocupam de preferên- Estado, a prcmulgação de instituições civis que assegu-
56 57
rassem a liberdade de pensamento, a abolição da escra- O crítico sergipano nunca chegou a formular uma
vatm·a . E, enquanto a teoria positivista se tornou um teoria configurada do Brasil, tendo deixado esparscs em
suporte ideológico destas reivindicações, deu expressão a váriaB obras o.s elementos desta. Tentou, é verdade, o em-
genuínas tendências da. sociedade nacional e contríbuíu preendimento de c~jo plano pôde _apena~ esboç_ar ~ lin1?,as
para a superação de contradições nelas vigentes. g,e1ais em seu opusculo O Brasil Social. Nao e, assim,
Mas nem o ;própria êxito dos positivistas nos primei- fácil tarefa expor as suas idéias até porque, às vê.2:es, são
ros anos do NgID1e republicano lhes possibilitou a reali- contraditórias. Para guardar a coerência dêste estudo,
zação do que havia de extravagante em seu programa. tratarei apenas dos trabalhos do _critico 7ealizadcs com o
Cêrca de dois meses depois da proclamação da República objetivo de fundamentar uma aça~ politlca. .
os positivistas apresentam ao povo as Bases de wna cons: Impressionado com os acon~ec1;IIlentQS p_olfücos ocor-
t!W:ição políti00-ditatorial federath11. para a república hra- ridos nos primeiros anos da Rep~blica, esp~cia~~te com
a atuação de Floriano Peixoto, viu no pres1denciali~o da
8ileim, em que se preconizava a atribuição do govêrno
federal a um ditador, em consonância com as seguintes Constituição de 91 a fonte de nossos males, e em 01to car-
regras: ci:o ditador atual continuará a ser aquêle que os tas ao Conselheiro Rui Barbosa. (reunidas depois na obra
acon_!:ecimento~ fiz:eram espontâneamente surgir, enquan- Parlamenta.rmno e Presidencialismo na República do B_.
to na.o renuncmr hvNmente ao pôsto em que se acha. Se sil) fêz a defesa das instituições parlamentares., di.Bcutin·
o mesmo ditador já tiver cc.mpletado 56 anos. deverá, após do o assunto em tese, através da exposição das vanta-
a. aprovação destas bases, indicar o Eeu sucessor, a fim gens do parlamentarismo e dQS defeitos do presidencialis·
de ser a escolha sancionada, em caso de renúncia ou mor, mo. g um panfleto que terá realizado na ép~a uma fun-
te, pelas capitais dos esta.dos brasileiros:.. ção positiva pelo seu valo~ colil:o. protestaçao contra a
Entretanto, apesar da Nlativa influência dos prosé- hipertrofia dos poderes pres1denc.1a1s. . .
litos da doutrino e de seufl simpatizantes, a proposta fi. Todavia, um trabalho postenor de Sylvio R~mero Já
cou no papel. apresenta grande importância. COJ?O documento mt~r~re-
ta.tivo da vida politica nos pn.m.erros anos da Republica.
Ili - SYLVIO ROMERO E A SOCIOLOGIA Refiro-me à introdução do livro O Evol~1eionismo e o,~~
DA SOCtEOADE REPUBLICANA sitivimno no Brasil, edita.do em 1894. Ai proeura o cntieo
a dei sociológica que vai presidin~o~- à gênese e ~ f?rma-
Não eó pela ação de presença que teve em sua época ção das principais ccr:entes~ de opuua~, _c om o obJetivo de
como polemista, crítico e político, Sylvio Romero merec~ contribuir cpara a or,entaçao dos esp1ntos1.>. ~ esta pro-
um lugar nesta seqüência, mas porque, depois d.e Teixeira và.velmente a primeira meditação sociológica sôbre os
Mendes, foi êle quem a seguir pt'ocurou sempre respaldar partidos políticos na República. . . ~ . , .
a sua atuação numa teoria da sociedade brasileira. Em Sylvio Romero, nwna grande mtu1çao. so.c1olog1ca,
1886, dizia Sylvio Romero: q;.A teoria da história de um tira todo o partido da crise pÀolí~ica a que as~1.ste e d~ que
povo parece-me que deve ser ampla e compreensiva a participa e tem plena consc1enc1a .da~ rentabilidade cienti-
ponto de fornecer uma explicação completa de sua m'ar- fica desta atitude experimental Diz ele:
cha evolutiva. Deve apoderar-se de todos os fatos firmar- ci:Na Brasil, representa-se agora um dêsses d~amas
se sôbre êles para esclarecer o sêgredo do passad~ e abrir raros, que nem a tôdas as gerações é dado presenciar. O
largas perspectivas na direção do futuro ( o grifo é esboroar de um trono, a queda de instituições quase quatro
meu)~- E prosseguindo nesta ordem de indagações ernre- vêzes seculares, pois que essa é a vexdadeira data. do ~go.
veu estas palavras plenamente válidas ainda em nossos vêrno régio no Brasil; o levantar de nevas. orgamzaçoes,
dia.a: «Todo e qualquer problema histórico ... há de ter de novas fórmulas 1 de novas doutrinas, com • •
seus moldes
no Brasil duas faces priucipais: uma geral e outra par- e suas necessidades novas, tudo isto constitui par a o.s so-
ticular, uma influenciada pelo momento europeu e outra ciólogos e amadores de estudos de psicologia popular um
pelo meia nacional, uma que deve atender ao que vai pelo momento verdadeíramente excepcionah.
grande mundo e outra que deve verificar o que pode ser O nosso autor discerne naquela fase da evolução
aplicado ao nosso pais». constitucional do país os seguintes partidos: o moná.rquico,

S8 59

CTFrtrEEiiii:$ rr::: ..
até com êles, dos funcion6.1fos públicos mal remunerados~.
rc~~ur_ador, ou .n~tm1; o socialista; o jacobino; o isto é, observa Rom{:ro: «a classe mais pobre que existe
militar. e o _pos1tlv1sta. De cada um traça a gênese e dá no país é justamente a que corresponde à burguesia da
uma cabal mterpretação sociológica. Atinge porém o Europa».
m:3-x1mo de lucidez ao tratar do partido socialist.a. E~ca· Além disto, Romero vê o desenvolvimento dialético
mm~ar:do a sua inte~pretaçã.o~ ~rgunta-se: «Corresponde do operariado político, pois a tanto o leva sua convicção de
a cna~ao _?C u_m_ pai;-t1~0 proletário no Brasil a necessidades que a sociedade «evolui normalmente, segue um ritmo de
e asprraçoes rmludíve1s, senão de todo o povo ao menos desenvc1vjmento determinado pela lei de causação, que
de ~ma gran~e _classe da sociedade ?, «Possuíin.os já nós outra coisa não é ma.is- do que a constância sistemática e
aq_u1 as_ co.nd1çoes1 tôdas as condições indispensáveis à
A
infalível de uma. detc1-minada cadeia de antecedentes e
ex1s_tenma de ~ J!.roletariado político, propondo lutas e conseqüentesi. Em conseqüência, apesar de coru1ta.tar,
proJetos de re1vmdica,:;ões ?, nac.!_uele momento, um estado «:onde tôda.s as classes jazem
.«~n:,fel.izmente, não>! é a sua resposta. Conclui pela amorfas e indistintas:», «onde a opinião pública nãa tem
oi:artif1c1os1da~e do movrmento». E explica.: disciplina, nem orientação segura, racional,, afirma que
. «~conôm1camente somos uma nação embrionária cuja nosso operariado («quarto estado») chegarú. a ot:creecer
mais rmpo~tante in~ústria é ainda uma lavoura rudimen- cm fôrça>, «há de emancipar-se e flcresC€r como poderoso
tar, ~tensiva, servida ontem por dois milhões de escravos fator, e «fará bem cm organizar-se».
e ~aJe por trabalhadores nacionals e algumas dezenas de Ainda no domínio da vida política no Brasil, Sylvio
m1l~ares_ de colonos de proced~ncia européia, cem vêzes Romero exprimiu uma contradição que nos nossos d.ias
ma.J.s fe~1zes .do que na mãe pátria. Que socialismo sério se torna uma das dificuldades fundamenta.is a ser vencida
deve. sar!" dai ne~ses duzentos anos? O cnpitallsmo na.cio.. no ajustamento da organização partidária às necessidades
Da.l e exigua, quase mesquinho. de desenvolvimento do pais. Neste sentido, o~erva Ro-
Em rigor todo o país é ainda uma vasta feitoria mero, em s.c>U estudo As Oliga1qui.Bs e sua. Classifi~ão
uma verdadeira colônia, explorada pelo capital europe~ (1908), que «não temos sistema de doutrinas,, e «.até os
sob a forma de_comércio e so.b a forma de emprêsas. grandes nomes, se submetiam aos «.patrões>, aos chefes
A populaç3:o, em geral, feita a pequena exceção de de clã.
a.lgun~ fazendeu:os,. senhores de engenho, negociantes e «Com. quem está o Sr. ~na? Com o bloco e o Pinheiro
herde1.ros de ~a~1talistas, mais ou menos desempenhados, Machado ou com o João Pinheiro e Carlos Peixoto?
é _em _:iua ma10na.p~bre; mas .são os pohl'es da inércia.; Com qurm está o Sr. Rui? com o Nilo Peçanha o,u com
n!-o sao os proletanos no sentido socialista· porque não o Backer, com o Severino Vieira ou com a José Marce-
sao op~rá!1os. rurais ou fabris. Se, pois, há pauperi8IDo é lino?,
da na<;ao mteira.> E fundamentou suas críticas, demarando-se na discri-
. Sem dú~ida, uma resposta de grande categoria socio- minação dos várics tipos de oligarquia, «fórmula.s bastar-
lógica. Sylv10 Romero, realmente, aqui nos dá uma das das de organização polltico-social» que predominavam nos
chaves para. a compreensão dos movimentos pollticos de Estadas da União, desde o «.aciolismo~ no Norte ao "caa-
fases e moy1!11e.ntos que, até hoje, têm refletido os percal- ti!hf!.'.mo positivóide> no Sul
(os e as v1c1ss1tud~s de uma classe média em busca de
enq.uadraf!lento social. Aquêle partido era estruturalmen- IV - OS IDEOLOGOS DA ORDEM E PROGRESSO
te .1mpo~~~el numa estrutura em que a uma burguesia
~!if~ndiaria mer~antil EÓ se opunha, com alguma cons- Sylvio Romero faleceu em 1914, um ano decisivo em
c1en~1a de ~eus mterêsses, uma incipiente classe média., ncsea evolução econômica e social, que registra o início
aquele contingente de pessoas «diplomadas e vestidas de da I Grande Guerra, cujos reflexos em nosso país se tcr-
casaca~, «.O mundo dos médkos sem clinica, dos advogados 1'.nm ac,elera.dores do seu progresso. Estimuladas por uma
sem clientela, dos padres sem vigararias, d os engenheiros conjuntura internacional favcrável (declínio da impcrta.-
rm emp_nlsas e sem obras, dos professôres sem discípulos ção e da concorr~ncia estrangeira, resultante da forte
dos esc_ntoreg, dos jomalietas, dos literatos sem leitores' queda do câmbio) acentuam-se as tendências centrípetas
oe artistas sem público, dos magistrados sem juizados 0 ~
61
60

**' ++ztnmr .~.


da economia nac:ional que já vinham se esboç~n.do desde esforços é Alvaro Bomilcar da Cunha, que, aliãs, ainda
1880-1890 e que se exprimiam através da expansão do vive hoje, com oitenta anos de idade. Em abril de 1919,
mercado e da indústria do país. Até 1889, havia somente Bomilcar, associado a Jackson de Figueiredo, Miguel Aus-
626 e,:;iabelecimcntos industriais no Brasil. Nos vinte e tregésilo, J. de Almeida Magalhães, Tasso du Silveira, José
cinco anos postuiores, foram instalados mais 6. 946 novos Cândido Andrade Murici, Alberto Deodato e outros, funda
esta1?elecimen~os industriais; mas no período de 1915-1919 aqui a Propaganda. Nativista, «sociedade de caráter emi-
surgiram aqui 5. 940 emprêsas industriais novas. O valor nentemente p0Iitico1>, em cujo programa se inscrevem,
da produção industrial atingiu em 1920 a 3. 000. 000 de entre outros, os seguintes propósitos :
contos, enquanto em 1914 era de 1. 350. 000 contos. Disto
~sultava, naturalmente, um apreciável aumento dos con- - trabalhar pela emancipação intelectual, financeira
tmgentes de trabalhadores industriais que, f'm 1907, eram e econômica do Brasil, libertando-o c:la opressão estran-
150. 841 e passaram a 275. 512 em 1920, quando se reali- geira em que se encontra: nacionalização absoluta da im-
zou o segundo c,enso industrial prensa e do comércio a reta.lho;
Antepunha-se, porém, a estas tendências, graves obs- - despertar no espírito do Povo Brasileiro o senti-
táculos que urgia liqilidar. Um dêles, consistia no con- mento e as idéias de solidariedade entre as nações ameri-
trôle de ramos importantes do nosso comércio interno canas, combatendo, conseqüentemente, a influência da mo-
c~o _exterior por ~strangeiro~. Na capital do país e nas derna civilização €Uropéia, cujas questões sociais são dife.
mais importantes cidades do litoral, o fato era particular- rentes das que se impõem ao critério do nosso continente;
mente ostensivo, tendo o português excluído pràticamente - defender o projeto legislativo que estabelece a
o brasileiro das atividades com-erciais. Dizia-se existir na obrigatoriedade para as casas comerciais estrangeiras de
Junta Comercial do Rio contratos de casas comerciais em terem pelo menos dois têrços de empregados brasileiros
que ?S _seus sócios se. obrigavam a não admitir empregado~ na.tos;
bras1Ieir~s. Favorecia a. ~s~e predomínio a grande impr,en. - trabalhar para. que seja vedado ao estrangeiro o
sa do Rio, na época, praticamente nas mãos da colônia exercício de cargos eletivos e empregos públicos, mesmo
portuguêsa. quando se trate de indivíduos naturalizados;
Esta situação, aliás, vinha sendo denunciada desde - propugnar pela medida. legislativa que limita ao
lc-nga data. Em 1849, Timandro (Sales Tôrres Homem) estrangeiro a capacidade aquisitiva de bens imóveis;
e!11 seu panfleto, O Libelo do Povo, deplorava que o comér- - provocar a reivindicação dos direitos do proletaria-
c10 pert~nces~ ,r,:ao aluvião. de portuguêses, que enchem do de a.côrdo com a orientação nacionalista;
e deenac1onabzam as capitais de nossas províncins maríti- --adoção do prineípio de igualdade das raças;
mas, e que mensalmente se recrutam com eento.s e cento~ - Organização do Teatro Nacional Brasileiro.
d~ , ~ec~-chegados, os quais vêm ainda minguar nossa
c1villz~ç;ao>:-. E Paul .Acam, em seu livro editado em 1914, Por iniciativa dêste mesmo grupo, funda-se a A~o
Les Visages du Brésil, escrevia : «Em pleno século XX Social Nacionalista (reconhecida de utilidade pública pelo
trinta ou quare~ta il!il negociantes portuguêses, protegi~ decreto n ~ 4.191, de 16-11-1920) cujo programa insiste em
dos por uma 1egrnlaçao por certo que em demasia liberal pontos como: nacionalização do comércio; nacionalização
respeitadora. do indivíduo e de seua atos, infligem a vint~ da imprensa política; nacionalização da costeagem e da
e cinco milhões de brasileiros estas dificuldades e sofri- pesca; regulamentação do trabalho ; a~roximai;ãc _do Br_a-
mentos, uma política inteiramente favorável ao comer- sil às repúblicas americanas, em especial, subcontmentms,
cia1!te, à sua liberdade absoluta, aos seus planos de explo- por uma sã política de concórdia, de respeito e de recipro-
ra~ao. ~ Um ~ar~o ~amoso ~a literatura contra o pc-rtu- cidade de interêsses.
gues no Brnszl e a.mda o hvro de Antônio Tõrres As Para. se aquilatar a repercussão desta. entidade basta
Razoens da lnoonfydencia (1925). ' referir que reecbera o apoio do Partido Republicano, e em
_Foram e~sas circunstâncias que presidiram, a partir 1921 fed€raram -se ao seu Diretório 50 associações . A
do final da decada de 1910-20, alguns expressivos esfor- Ação Soe:al Nacionalista tinha como presidente de honra.
ços de teorização dos problemas brasileiros. A mola dêstes Epitácio Pessoa, como presidente efetivo o conde Afonso
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Celso, e quatro vice-presidentes: Justo Chermont, Camilo estrangeiros,. - cO Brasil se depaupera por falta de Wll
Prates, Frederico Villar e Alvaro Bomilcar. comércio nacional de exportação, por não auferir os lucros
O chamado Movimento Mcdernista, cujos primeiros da venda de seus produtos que só poderiam alimentar a
sinais se registram. nos anos de 19 e 20 e que toma corpo sua vida. O Brasil se depaupera por falta de um comércio
em 1922, será no plano literário o reflexo dos fatôres reais brasileiro interior, por perder, em cada momento e.~
que explicam a Propaganda Nativista. e a Ação Social cada operação comercial, embora. realizada po_r br~ile1-
Nacionalista. Mas infelizmente temos que deixa.r de lado ros embora realizada na zona mais remota do mter1or do
êste aspecto. O que importa é assinalar que aquelas ini- paí~, a maior parte do seu dinheiro, o qual ganho pores-
ciativas tiveram o seu suporte teórico em estudos publicaR trangeiros, é remetido para o estrangeiro.1>
dos nos periódicos Brazílca e Gil Blas e, principalmente, E Jackson de Figueiredo, advertindo que jamais pode-
em três livros A Política no Bras!I ou o Nacionalismo ria causar espanto a «.quem conhecer as condições e.toais
Radical de Álvaro Bomilcar, constituído. de estudos escri~ da nossa. vida social principalmente no Rio> que «o nosso
tos, em sua maioria, por volta de 1917, mas editado em nacionalismo vise, antes do mais, esclarecer aos portuguê~
1920; Nacionalismo Econômico (1917), de Nicolau José ses qual dev,e ser o seu papel>, assim resume o seu pensa-
Debané; e Do Nacionalismo na Hora. Presente (1921), de mento; 4:0 verdadeiro nacionalismo brasileiro é aquêle que,
Jackson de Figueiredo. <•> amando a contribuição do trabalho de qualquer estrangei-
Estas obras procuram justüicar os pontos dos pro- ro em nossa pátria, quer que êsse estrangeiro jamais.
gramas anteriormente referidos, exprimindo, em larga esqueça que o povo brasileiro é o único que, aqui .Pº?e ter
margem, mais por intuição do que mediante pura intelec- situação privilegiada, jamais esqueça que e aqU1 tão es-
tualização, tendências reais da .eociedade brasileira naquele trangeiro quanto nós o somos em sue. pátria.. E, sobretudo,
momento . Elas exprimem assim a consciência mais· ou por especialíssimas razões históricas! imp_õe aos portuguê-
menos difusa de tais tendências antes que uma interpre- ses aqui domiciliados que também Jamais esqueçam que·
tação acadêmicamente organize.da. A nuança intuitiva desR são estrangeiros, tanto quanto o francês, o alemão, o
tas- obras é, por exemplo, ilustrada em palavras como estas japonês.> . .
de Álvaro Bomilcar: <A crítica social se funda nos fatos Êste grupo se mantém atuante durante vários anos e,
e nos sentimentos» . Ou ainda: «A Sociologia.. . . se faz em 1925, ainda é a sua diretriz que preside a fundaçãó.,
mais pela indução psicológica do que pelo relativismo no Rio, da Academia Brasileira de Ciências Econômica.e,
efêmero dos acontecimentos.» Nicolau Debané, que foi Políticas e Sociais, com o objetivo de, entre outras coisas,
cônsul do Brasil no Egito, por vários anos, ·focaliza a realizar estudos que permitam orientar os interê~s~s eco-
«situação geral do nosso comércio, nos mercadcs mundiais nômicos, políticos e sociais do Brasil, dela participando
e em particular no Oriente». Dizia então que «não existe Artur Bernardes, seu presidente de honra, Afonso Pena
um comércio nacional brasileiro». Textualmente: «Não Júnior Francisco de Campas, Mário Brant, Epitá.cio Pes-
existe comércio brasileiro de exportação; não existe co- soa, Afonso Celso, Lacerda de Almeida, Nicolau Debané,
mércio bre.~ileíro de importação; não existe comércio bra- Alvaro Bomilcar e outros.
sileiro interior. Tcdo comércio feito no Brasil é feito por Ao mesmo tempo em que de 1919 a 1925 se registram
estrangeiros ; todc.s os lucros do cowércio, seja interior êirtes esforços de estruturação de idéias destinadas a criat
seja de exportação, que se efetuam, são grangeados pelo~ wna consciência política dos interêsses nacionais, verifi-
cam-se várias ocorrências que dão uma ilustração dramá-
(•) Por esta época {1921), .Jnckson de Figuelrerio já havia. fundado tica do desajustamento da organização político-partidária
no Rio o Centro Dom Vital. Em ai,.-ôsto rlc 1~'21 publicava-se o J>rim€1rn às condições reais do país. lllstes anos correspondem a
nômero da re,·lsta A Ordt>1.n, dirigida ror Jacksou, cm cujo aitig,_, de
fundo, «No,sso Prngn,ma,, d1z1a.-s~; « . .. far-,mts tudo quanto um católi<JO
pode e dPvc !a2er contra o bastardo 0splrito do r. ri smorolítl~nm , que é
dois períodos governamentais - o de Epitá.cio Pessoa e
talve:>: o fator J)rincipal do nossl, cctklsmo sncía1 , ut(• o pt·és,·nte. ,\mundo o de Artur Bernardes - marcados por apreciável inquie-
ardcntemcn~e as t1 alll,:ões criat~ s, (]Ue herdamos dn nos~a ssccndi!ncia tação social e até por convulsões de porte. Na cúpula das'
curop6la. nau eoncorr<',.,•'mos nunc" r,nrn utn rno\·lmento de óclio contra o
estrangeiro europ,;u , seJa <lc qu~ nac.iunallda.clc fôr, rnns isto não impedlrã
que tvdo !a,:amos 7,nra que se.ia uin f:ito a autonomi:l do bt·osil<>iro cm
agremiações partidárias, iniciava-se, no ano de 1921, .ª ~h:J:~
2ua. própria terra, para que ll dir~,;ào intelrct1,al e pollt!ca dn naç·o tenha mada Reação Republicana, sob o pretexto de opcs1çao a
caráter poslth•ament<> brasileiro. .é preciso qu,e ~m tod r s ,,s dr>mlnlos de candidatura Artur Bernardes. No govêrno dêste, as cor-
nossa vida ije faca sentir a autoridade do esp!ríto !Htcionah,

64 65
rentes oposicionistas de todo a pais se coligam com o nome orclem ... por isso que o c~i.Dho para and3: mais Jige~o
de Áliança Libertadora. Piferentes e às vêzes contradi- é aquêle que evita os desatr_nos das corr~1~s 1:voluc~o-
tórios movimentos parecem indicar um estado de tensão nárias perigosas e int_empes~vas». Estas ~umtaç~ ex:is-
entre fôrças mal contidas no arcabouço institucional do- tenciais, entretanto, nao lhes llllpedem de diagnAosti:ar co;11
pais. Funda-se o Partido Comunim em 1922, ano em que acêrto muitos dos nossos males. Sobretudo tres deles sao
se amotinam a Escola Militar e o Forte de Copacabana, felizes neste ponto: A. Carneiro Leão, Gilberto Amado e
iITUpções trabalhada.e pelos mesmos fatôres que promovem. Oliveira Viana. Aliás os intelectuais que comparecem
a. revolução de julho de 1924, em São Paulo, de larga acei- nesta. obra vivem o momento literário modernista, cujo
tação pública, apesar de dominada. . estado de espírito, como já lembrou alguém, pode ser
Ir: neste ambiente, por sua natureza propícia à medi- definido por esta sentença de um participante do mesmo:
tação sociológica, qne um grupo de «escritores da geração «Nós não sabemos precisamente o que queremos, mas
nascida com a República> decide proceder a um dnquérito'l> sabemos o que não queremos-s-.
com o propósito de fixar «no tempo e no espaço o Pen-
so.mento e a. CCJDsciência da Nacionalidade Brasileira>, e V - A REVOLUÇÃO DA CLASSE MtDIA
de que resultou a obra coletiv:1: A. Margem ~ H~tória da
&,pública (Rio, 1924). Eram eles: A. Carnell'o L:ªº• ~l~o Níio seria possível, ree.Jmente, naqueles anos, a~~-
Vieira, Gilberto Amado, Jonathas Serrano, Jose Antoruo .;rir-se a uma concepção configurada da sociedade brasil~J-
Nogueira, Nuno Pinheiro, Oliveira Viana, Pontes- de Mi- ~. pois que, para tanto, faltav~ concliç&:s objetiyas.
randa, Ronald de Carvalho, Tasso da Silveira, Tristão de
Athaíde, Vicente Licínio Cardoso, A compreensão e ? damm10 das fo~ç~~ deste
contexto econômico e soc1a.l ultrapassam as 1de1as e as
Animados por um vago desejo de compreender o coordenadas t~óricas em que se estribava a ação politica.
Brasil, mas sem objetivos concretos marcados para alcan- até 1930. Os revolucionários de outubro de 1930, logo
çar, o que não acontecia com os _grupos anteT~or~s, êsses após a tomada do poder, inqueridos a .9-ue ~am, reve-
escritores refletem, de modo mB.1S ou menos mgenuo, 11,!l
larwn a sua perplexidade~ ~espreparaç~o ~e?nca e passJ-
tendências centrípetas de autodeterminação atuantes na. ram a invocar um <.esprnto revolucionanox, que nao
sociedade brasileira naquela época. i;::1es exprimem com sabiwn definir. Um observador inteligente dêste fato
categorias conceituais inadequadas uma percepção ingênua escreveu: «A confusão tomou conta do país todo. ~in-
dos fatos o que não poderia deixar de acontecer, a maioria guém se explicava diante do país estonteado. _A medida
dêles c~cendo do que Freyer chamaria a participação que os líderes revolucion~ios falav~, a conf~sao aumen-
volitiva. no acontecer social. Transpõem assim as questões tava. As entrevistas vazias de sentido da realidade se su-
para O plano puro da especulação. Na Conclusão d_o ~V!º cediam umas às outras atropelando seus próprios autores.
diz-se: «Em nenhum momento, talvez, de nossa b1stól'lA, O jôgo de palavras emaranha':ª os homens. Pelo que se
foi tão necessário pensar o Brasil, como atualmente. A lia, diàriament~, nos jornais, ficava-se s.!bend? que ~ tal
nenhuma geração mais do que à nossa terá cabido ares-
..:espírito revolucionário» era honesto e nao fü~a pollt1ca».
ponsabilidade de sUBtentar o primado do espí:rito:a, (o grifo
é meu). E de fato, apesar das diferentes orientações que VI - A REVOLUÇAO DE 1930
revelam, quase todos parecem a.dotar uma concepção psico-
logística do processa histórico-social, a qua.l admite a pos- A Revolução de 1930 promoveu, entretanto, mudan-
sibilidade da transformação da sociedade pelo esclareci- ças de sinal positivo :1-ª .vida poJític?-partidária do paí:8,
mento mental, intelectual e moral e muitas vêzes uma pelo menos em decorrenc1a dos seguinte~ fa~os:_ a) ab~1u
certa crença na salvação pelas elites. Faltando-lhes a lugar nos quadros dirigentes para cons1derave1s contin-
peroepção de contingência histórico-social da psicologia
gentes da classe média i b) ~niciou .ª i_ns~tuc~onaliza~ã~
individual e coletiva, pretendiam «a pacificação dos espÍ· das fôrças econômicas, atraves da smdicahzaçao; c) m1-
ritos:> através de «atos de inteligência e de fé.,.. O
ciou o processo de liquidação, no Govêr~o Federal, da he-
documento insiste, neste ponto, quando fala coletivamente. gemonia de uns poucos Estados em detnmento dos restan-
Afirmam que procuram «reagir pelo progresso dentro da tes; d) firmou o princípio da intervenção do Estado na
66 67
economia, embora sob a forma de um «dirigismo> desco- leira no sentido de um amplo mercado interno e, portanto,
nexo e às vêzes caótico. anticolonial) tornam-se cada vez mais ponderáveis de
O período de 1930 a. 1937 b assinalado por um extra- 1937 até os dias presentes, valendo destacar o papel posi-
ordinar10 esfôrço de teorização política da realidade na- tivo, neste processo, da II Grande Guerra e da correlata
cional, no qual se discernem as seguintes direções: crise do imperialismo.
a) uma direção acadêmica-ncrmativa. na qual inclúo A atual crise de nossa organização político-partidária
aquêles que se caracterizaram pela adoção de uma concep- decorre do fato de que ela não ultrapassou aquelas dire-
ção psicológica do processo social, na linha de que se ções formadas entre 1930 e 1937 e, portanto, do seu desa-
acreditava possível a salvação da sociedade através da justamento aos fatôres objetivos que configuram a reali-
tutela das massas exercida pelos mais esclarecidos, ou dade brasileira. A superação desta. crise se obterá, conse-
através da transformação do caráter do povo, pela edu- qüentemente, na medida em que se encaminharem as fôr-
cação; ças políticas no sentido da tendência dominante do pro-
b) uma direção indutiva, na qual inclúo aquêles que, cesso de desenvolvimento do país.
quase sempre desprovidos de instrumentos metodológicos
de rigor cientifico, conseguiram, apesar diato, captar alguns VII - CONCLUSÃO
aspectos essenciais dos acontecimentos (Martins de AJ.
meida., Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Virgínia Santa Em conclusão, podem ser inferidos da presente análi-
Rosa, etc.). se sumária, o.s seguintes enunciados:
c) uma direção pragmático-partidária, na qual
inclúo as obras e documentos em que se expuseram as di- I - Cada uma das tentativas de teorização política
retrizes do Integralismo Brasileiro (fundado em 1932} e realizadas no Brasil, a partir de 1870, tem refletido o grau
do Partido Comµnist.a do. Brasil, desde 1935 orientado por de consciência possivel, no momento em que apar,ecem, dos
Luís Carlos Prestes. F.atôres configurativos da realidade nacional. Tudo leva
Seria necessário examinar pormenorizadamente as a crer que o idealismo utópico que se pretende ver em tais
diferentes nuanças de cada uma destas direções. Infeliz- tentativas seja mais aparente do que efetivo.
mente, não posso fazê-lo aqui, dados os limites dêste Il - Os republicanos de 1870 e o.s positivistas, situa-
estudo . Mas, as seguintes observações podem ser feitas cionalm.ente impedidos de ver, com nitidez, as contradições
sôbre estas direções, em conjunto: econômicas da época em que atuat'am, expl'imiram, em
a) estas direções refletem a necessidade de trans- tênnos prcpondet'antemente políticos, as aspirações de um
formação dos métodos e processos políticos, pot' fôrça do estrato superior da classe média.
relativamente alto grau de diferenciação das classes so-
ciais. No período de 1930 a 1937 se delineiam os dados
m - J?:ste estrato, aliado ao processo de expansão
industrial do Brasil, na medida. em que se avoluma, expri-
do problema político do país, até hoje insolvido e que me, no plano político e de modo Ct'cscente, as tendências
persiste diante de nós: o problema da liquidação da polí-
tica de clientela, através da estruturação ideológica dos dominantes do processo de desenvolvimento da sociedade
interêsses das classes sociais no Brasil ; nacional.
b) de nenhum dos esforços acima m~mcionados re- IV - O golpe de 1889; Sylvío Romero, no período
sultou a formula~ão de uma ideologia orgânica da realidade republicano; a Campanha Civilista de Rui Barbosa, em
nacional que refletisse a direção de.minante do processo 1910; os movimentos revolucionários de 1922 e 1924; a
de desenvolvimento da sociedade brasileira, a despeito de Coluna Prestes e 1930 são marcos da revolução da classe
contribuições fragmentát'ias, neste sentido, às vêzes impor- média contra a burguesia. latifundiária e mercantil.
tantes. V - De nenhum dos esforços de teorização poUtica
Os fatôres fundamentais que constituem a infraes- registrados no Brasíl até a presente data resultou a for-
trutura dos movimentos e dos esforços de teorização polí- mulação de uma ideologia orgânica da realidade brasilei-
tica de 1930 a 1937 (a diferenciação social das classes pela ra apta a. tornar-se o suporte de uma ação política de
expansão industrial e a reorientação da economia brasi- V{!rdadeiro sentido nacional.

68 69
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CARTILHA BRASILEIRA DO AP RENDJZ


DE SOCIÚLOGO

l Prefácio a uma Sociolouia Naciouol l

70
J
t
!

''NoJJfl existêncifl eJ/4 tôdt1 whordir1adll


" 11m tantos princípios elementores de crité·
rio, que a1g11ns ob1ert1'1m pCJr hJ.b;Jo, e
m11ítos de1/1rcza:m; se .al.g,urm 01 ,·ec<Jf'da,
,1111/ha-se q11e 1Jo b~"diJ, mrt.1 a a,Je da vida
prátict1 auen/a s(,hre estas brmnlidades, e i:..J
dewrdens da wciedad.e e dos h?men.r resul-
tam de q11e JJ! csq"ecnnos freqiientemente. ''

At.BERTO TORRES.
I - NOTA EXPLICATIVA

A necessidade de rebater a agressão de que fui alvo


no II Congresso Latino-Americano de Sociologia, por
parte de congressistas brasileiros em desacôrdo com as
recomendações que ali defendi, na qualidade de presi-
dente da Comissão de Estruturas Nacionais e Regionais,
serviu-me de excitante para, a despeito de minhas ocupa-
ções absorventes, escrever uma série de nove artigos
dominicais, no «Diário de Noticias~ desta capital, no
período de 26-7-53 a 4-10-53, em que parece terem ficado
claramente expressas alguma.a tendências fundamentais
de. presente fase da sociedade brasileira. Estou sincera-
mente convencido disto, por fôrça das eloqüentes de-
monstrações de apoio qu<! recebi, vindas de pessoas e
entidades da maior circunspeção moral e intelectual.
Estão entre elas a Faculdade F1uminense de Filosofia,
cujo Conselho Técnico-Administrativo me endereçou um
voto congratulatório, o próprio c:Diário de Notícias», cO
Diário,, de Bela Horizonte, e a. revista «Marco», editada
por um grupo de alunos da Faculdade Nacional de Filo-
~ofia., e para a qual aquêles nove artigos, que chamou de
«sensacíonaís», «pelo seu caráter revolucionário, passa-
rão a constituir uma referência histórica na evolução da
sociologia no Brasil>. Cumpre-me agradecer, nesta opor-
tunidade, a simpático rodapé que, sôbre o ,cn.so,, escre-
veu o historiador e critico Nelson Werneck Sodré, no
«Correio Paulistano>, e o apoio irrestrito que mereci do
ministro Ernesto Claudino e de outras pessoas, cujo nome
não menciono aqui por não ter delas auto.rizaçii.o espon-
tânea neste sentido. Registro, ainda, com satisfação, 88
palavras finais de um editorial de ~o Popular•, 1tssinado
pelo ilustre senador Domingos Vellasco: «Não queremos
dizer que os sociólogos latino-americanos estejam a ser-
vi~o do atre.so de seus países, mas apenas salientar que
êles se preocuparam mais com a discussão de teorias,

75
mai_s ou menos acadêmicas, relegando a um plano secun-
dãr10 problemas sociais que intei-essarn fundamental-
mente à vida do povo. Recearam tocar no assunto. Sal-
vou-os, porém, a coragem da Comissão de Estruturas
~acionais e Regionais com as suas recomendações. Já
e um consôlo» .
Fin_ahnente,. não_ menos demonstrativo da. ampla Te·
percussao das diretrizes que defendi foi o discurso c0.tn
que o professor Euclides Mesquita,organizador do I Con-
gresso de ~ociologia, realizado no Paraná, o inaugurou,
e e~ que fü,:e _a honra ~e ver irrestrita.mente aplaudida Il - SOCIOLOGIA ENLATADA «VERSUS:.
a minha pos1çao na sociologia brasileira. Pois ali a.fir- SOCIOLOGIA DINAW:CA
mou o professor Euclides Mesquita; «:m tempo de aban-
danannos o que um sociólogo brasileiro chamou com
propriedade, de sociologia enlatada» . ' A melhor maneira de fazer ciência é a partir da vida,
Encol!trará o l~itor, neste trabalho, a seqüência da- ou ainda, a partir da nee€ssidade de responder aos desa-
queles artigos, parcialmente reelaborados e enriquecidos fios da realidade .
d~ notas de rodapé: O tema da 6" recomendação - rela.- Segumdo esta regra, proponho-me a tratar, aqui, dos
çoes de raça - foi tratado em capítulo especial, com o probl-emas da sociologia brasileira. pelo aprofundamento
porm,enor que estava a requerer. da análise de um caso oeorrido no II Congres::;o Latino-
A intenção do título - Cartilha. Brasileira do Apren- -Americano de Sociologia, realiza.do no Rio e em São
diz do SocióJogo - é f àcilmente perceptível. Paulo, entre 10 e 17 de julho de 1953. Na qualidade de
presidente da Comissão de Estruturas Nacionais e Regio-
nais, submeti à apreciação daquele certame um documento
que continha as seguintes recomendações:
1'-' - As soluções dos problema.a sociais dos países
latin0-amerieanos devem ser propostas tendo em vista as
condições efetivas de suas estruturas nacionais e regio-
nais, Eendo desaconselhável a transplantação literal de
medidas adotadas em países plenamente desenvolvidos;
2~ - A organização do ensino da sociologia nos paí-
ses latino-americanos deve obedecer ao propósito funda-
mental de contribuir para a emancipação cultural dos
d.Isc1:ntes, equipando-os de instrumentoo intelectuais
que os capacitem a interpretar, de modo autêntico, os
problemas das estMlturas nacionais e regionais a que se
vinculam.
3~ - No exerdcio de atividades de aconselhamento~
os sociólogos latino-americanos não devem perder de
vista as disponibilidades da. renda naci.onal de .seus paí-
ses, necessárias para suportar os encargos decorrentes
das medidas propostas;
4~ - No estádio atual de desenvolvimento das na-
ções latino"americanas e em face ·das suas necessida.dea
cada vez maiores de investimento em bens de produção,
é desaeonselhável aplicar recursos na prátiea de pesqui-

77
sas sôbre minudências da vida social, devendo-se estimu-
lar a formulação de interpretações genéricas dos aspectos
global e parciais das estruturas nacionais e regionais;
5'-' - O trabalho ~ociológico deve ter sempre em vista
da Europa e dos Estados Unidos: e outra que, embora
aproveitando a experiência acumulada do trabalho soci0-
lógico universal, está procurando servir-se dêle como ins-
trumento de autoconhecirnento e deirenvolvimento das
estruturas nacionais e regionais. As proposições acima
,
' 1

[I
que~ melhoria das condições de vida das popula~s está ,1
condicionada ao desenvolvimento industrial das estrutu- enunciadas pretendem representar esta corrente. 1
ras nacfonais e regionais; A essência de tôda sociologia autêntica é, direta ou
indiretamente, um propósito sa.lvador e de r,econstrução
r
6"' - 1í'.: francamente desaconselhável qUe O trabalho
s?cioló~co, direta º!1 indiretamente, contribua para a per- social (t>. Por isso, inspira-se ela numa experiência com u- ri:
sistência, nas naçoes latino-americanas, de estilos de nitária vivida pelo snciólogo, €m função da qual adquire
1-
comportamento de caráter préletrado. Ao contrário, no sentido. Desvinculada d€ uma realidade humana efetiva,
que concerne às populações indígenas ou afro-america- a sociologia é uma atividade lúdica dB. mesma natureza
nas, os sociólogos devem aplicar-se no estudo e na pro. do pif-paf. Quem diz vida, diz problema . A essência da
posição de mecanismos de integração social que apres- vida é a sua problematicidade incessante . Daí, na me-
sem a incorporação dêsses contingentes humanos na dida. em que o sociólogo exercita vita.Imente a sua dis-
atual _estrutura econômica e cultural dos pai.ses latino- ciplina., é forgosamente leva.do a entrelaçar o seu pensa-
-americanos; mento como a sua circunstância nacional ou regional.
. ,7"" - Na utilização dB. metodologia sociológica, os Mas a formação do sociólogo brasileiro ou latino-
s?c_:ologcs ~evem ter em vista que as exigências de pre- -americano consiste, via de regra, num adestramento para
cisao e refinamento decorrem do nivel de desenvolvi-
o conformismo, para a disponibilidade da inteligência em
mento das estruturas nacionais e regionais. Portanto
nos países latino-americanos, os métodos e processos d~ face das teorias. :tle aprende a receber prontas as solu-
pes(]ui.sa devem coadunar-se com o.s .seus recursos econô- ções, e quando se defronta. com um problema de seu
micoo e de pessoal técnico e com o nível cultural genérico ambiente, tenta resolvê-lo confrontando textos, apelando
de suas populações. para a.s receitas em que se abeberou nos compêndios.
Todavia, essas teses foram ruidosamente desaprova- Adestrado para p€nsar por pen.samento.s feitos, torna,se
das, por 22 votos contra 9, com a agravante ainda de o freqüentemente, quanto aos sentimentos e à volição, wn
autor dêste estudo ter sido francamente agredido com répétJt.eur, isto é, sente por sentimentos feitos, quer por
demonstrações de ódio e desapreço por alguns dos seus vontades feitas, como diria Péguy.
opositores . É significativo assinalar que as opiniões con- Abram-se o.s nossos compêndios de sociologia . Um
trárias àqueles enunciados foram coordenadas por con- ou outro foge a regra : em geral, cada um dêles trás de
gressistas brasileiro.s .
tudo, arrola autores e sistemas, sem proporcionar ao
Ora, como se depreenderá da leitura das recomen-
dações, o que se tinha em vista era encorajar os esfor. aprendiz um critério diretivo de críticn . Como quem insi-
ços para a prática, nos países latino-americanos de uma nua: o educo.ndo que procure a verdade sociológica, tiran-
sociologia que refletisse os seus problemas, era ~stimulnr do um bocadinho daqui, outro bocadinho dali. Pois êsses
se cortassem os cordões wnbilieais que têm tornado esta compêndios de que falo, a quase totalidade dos que se
d}s?iplina um subproduto abortício do pensamento socio- escrevem nestas bandas, supõem esta enormidade: que
log!co europeu e norte-americano. existe uma verdade sociológica, eterna, imutável, au-delá.
.Assim, a atitude do plenário em face daquelas teses da contingência histórica, resultante da média. agregativa
.SerV'.IU para dar um flagrante de que hoje, na Brasil pelo
menos, se distinguem, com claxeza, entre outras, duas (1) Em conflrma<:110. o estudioso poderá. \'Prificar como. por l!Xcmplo,
correntes de pensamento sociológico: uma corrente que Augusto Comte é leYado A l<léia da cténcle. .sociológica, atrav('s da m f' tli·
latão do problema. tr=ês de :,ua éPOCa., e l!ecunditrinmrnte llo probli>ma
pode ser chamada, como já prepus certa. vez, de «con- europeu. {Vide o Cu.no ~ Filosofia. 1'os!Hva) . Ainda. 11 éstc propósllc.
observe-se coJPo uma posiç.Ao renovadora no campo da aociologla., como
sular:o-, visto que, por muitos aspectos, pode ser conside- a lle Karl M.o.nnbeim, rn!letc um ptop,)stto de quem procura .soluclit>s para
rada como um episódio da expansão cultural dos países uma crise.

78 79
de todos os sistemas <2.>. Portanto, incapacitam o estu- O «gesticulantell satisfaz-se em fingir a. ação que anela
dante para o exercício funcional de uma atitude socio- cometer, mas não comete realmente m.
lógica. Há, pois, no que concerne ao comportamento de
Por outro lado, outra espécie de vício mental é pa- grande parte dos sociólogos de países como o Brasil, uma
tente em grande número de nossas obras sociológicas . O patologia da normalidade. Desde que, em suas posturas
sociólogo indígena parte, quase sempre, de um sistema mentais, é generalizado aquêle traço culturológicamente
importado, ao qual dá validade absoluta e se filia incon- mórbido, passa o mesma a ser normal. Entre êles, tere-
dicionalmente. O mal vem de origem . Sempre aqui tive- mos também de levar a sério as ficções para vivermos
mos positivistas, baeckelistas, evolucionista.s e outras em paz. Se ousarmos ser sensatos, esta.mos perdidos,
espécies de aficionados à outranoo. E quando se apresenta não nos toleram.
Esta é a doença infantil da sociologia no Brasil. Não
o sociólogo patrício a alguém, a pergunta vem logo: que a creio, entretanto, incurável. O próprio fato de ser capaz
escola o senhor segu~?- de fazer o &eu exame de consciência a encaminha para a.
Além de «consular», esta é uma. sociologia que pode maturidade. Um indício de que estou certo é o que se
ser dita enlatada, visto que é consumida como uma ver- passa com o pensamento econômico latino-americano. Sob
dadeira conserva cultural. os auspícios de um organismo cClillo a. CEPAL, realiza-se
Nesl:a.B condições, asswne-se, entre nós, em face dos a descolonização do economista latino-americano, e & con-
métodos e produtos da trabalho sociológico no exterior, tribuição. de brasileiros para esta mudança é das mais
uma atitude apologética. Tudo que de lá vem é ortodoxo, ilustres.
excelente, imitável. Não se acordou ainda para o fato
de que os meios e resultados do trabalho sociológico são
condicionados por estruturas nacionais ou regionais.
Afirma-se a eficácia imanente das transplantações. Não
se assume uma posição sociológica na discussão da socio-
logia. De modo que, muitas vêzes, a.s certames ou reu-
niões ditos de sociólogos se resumem em pronunciamen-
tos idólatras e até mesmo de intr-epidez patriótica, como
o daqueles que consideram a necessidade de adotar pro-
cedimentos metodológicos simplificados, num país sub-
desenvolvido, uma diminuição dos brios nacionais. Já
assisti, num congresso de sociologia, à queda de uma pro-
posta sociolõgicamente correta, em virtude de ter-se invo-
ca.do os brios patrióticos dos presentes.
~ste exemplarismo é um dos aspecto.<> do que se pode
chamar a 4:doença infantil» da sociologia. nos países colo-
niais, doença que torna a disciplina referida uma «ges-
ticulação>, vazia de significa.dos, um ate em ôco, uma
ação ficta, mas capaz de satisfazer a certos indivíduos. (3) Emprego o têrmo «gestlculll.!:ãO» em eeu sentido técnico, tal como
usado p or Lazar e Karl llfannhelm. La.zar r<ifcre-se ao tipo de «criança
gesticulante> que se eatisf~ com gesto.e quando outros lutam por obje-
tivos con cretos. Lewln reporta-se ao c,,so de uma criança Imbecil que
= (2) .Este modo de ver foi aliás proclamado . .&em rebu~os, por um d08
desta.c11.dos vult_oa de 1Joss115 ernncias sociais - Arthur Ramos. que
d!ss.e: (Cada vez mais me convcnco de que as incornp,e.tib!lida.des metodo-
deseja lani;:ar UmJJ. bola a longa dil!tância e, airoda. que não tenha conse•
guldo. se sentiu satts!eita porque encontrou um substitutivo no vlg-orosó
l(lgl.e&.s se reduzem a q ucst.a.o de nomenclatura» (O Ner:r,1 Bra.slleiro, 3• movimento que realizou. Detel'Illinadas con!lgura ções coletivas podem 11er
edição. 1953). l'.lste mesmo ecletismo Cúnciliarlor é patente na obra da favoráveis A propagação de8ta enfermidade. No Brasil, muito da atividade
figura de maior prestigio nas letras sc,ciológtce.s do pa!s em nossos dius - intelectual é mera «gestícula<:ão~. ou ~xpressão de esforço:, de «adultoe
Gllberto Freyre. Vide eapccl"1mente e...... Graade 11, l!en..r.ala.. gesticulantes> . Para maior deaenvolvimento deste tema, vide Karl Man-
nheim, Libert&d 11 Pl&nifieacl6n. St1cial - México, 1946.

BO 81
A promoção da autoco.nsciência de cada sociedade
latino.americana deve constituir o dever primacial dos
seus respectivos eociólogoe.
Até a presente data, tem-se praticado extensamente.
entre nós, transplantações literais de métodos de ação e
de sistemas institucionais de lu-.eas altamente desenvolvi-
das, como se fües fôssem dotados de uma eficácia ilna-
nente.
A ação social eôbre as condições objetivas das estru-
ill - A SOCIOLOGIA COMO INSTRUMENTO DE turas nacionais e regiona.is não deve obedecer a arqué-
AUTODETERMINAÇÃO tipos ou a modelos considerados excelentes em si mes-
mos, mas deve emergir, de modo dinâmico, da relação
interativa entre o pensamento e os fatos.
Foi o seguinte o texto que precedia às recomenda- Em todos os países latino-americanos se registra
ções submetidas à apreciação do plenário do II Congresso uma contradição entre a vida comunitária e a.s institui-
Latino-Americano de Sociologia pela Comissão que tive ções, a.s quais, em sua maioria, têm sido recebid~s aca-
a honra de presidir e que tratava do tema: «estruturas badas, resultantes mais de um processo revolutivo do
nacionais e regionais»: que evolutivo.
«O d€senvolvimento. de um pensamento autêntico, na Nestas condições, tais instituições não funcionam,
esfera da sociologia latino-americana, depende da medida muitas vêzes, de modo a dar curso às possibilidades de
em que os que a ela se dedicam sejam capazes de per- desenvolvimento dos países latino.americanos, mas, ao
ceber as leis particulares do processo de crescimento dos contrário, tanto quanto têm vigência, a dificultar êsse
seus paísee . desenvolvimento.>
Assim, para que o trabalho sociológico se torne um Passarei da.qui par diante a analisar, de modo por-
fator operativo nas sociedades latino-americanas, é p.re- menorizado, cada uma das recomendações que defendi.
ciso que se integre na realidade econômica e wcial delas, A primeira delas estava assim redígida:
isto. é, que cada vez mais se esforce em vincular-se à vida d~ - As soluções dos problemas sociais dos países
coletiva. latino-americanos devem ser propostas tendo em vista
Embora a sociologia, como ciência, seja uma só, veri- as condições efetivas de suas estruturas nacionais e regio--
fica-se que ela se diferencia quanto aos temas e proble- naiB, sendo desaconselhável a transplantação literal de
mas de que trata. medidas adotadas em países plenamente desenvolvidos.>
Esta diferenciação ê imposta pelas diversidades de Admito que se trata, verdadeiramente, de uma sen-
estrutura econômica e social dos países e deve ser tanto tença digna do Marquês de Maricá, pela sua evidência.
maia estimulada quanto mais desejem os sociólogos lati- Não é mau, porém, que os congressos ade.tem verdades
no-americanos tornar-se úteís às coletividades de que à moda. de Maricá. É, aliás, o que ocorre com freqüência.
participam. Raramente os congressos aprovam pronunciamentos que
Pode-se afirmar, com a categoria de verdadeira lei, não estão na expectativa da maioria dos seus membros.
que a estruturas nacionais e regionais configuradas de Os documentos finais dos congressos, via de regra, se
modo análogo correspondem idênticos problemas e difi- constituem predominantemente de lugares-comuns em
culdades. curso entre especialistas .
Sem estribar-se na compreensão das peculiaridades A sentença acaciana, a.cima transcrita, se justifica-
estruturais de nação e região, o trabalho sociológico está ria, portanto, por êste prisma . Mais ainda, porque ini-
exposto a confundir os espíritos, a acentuar os equívocos ciava uma. série de sete, e porque, no meio latino-ameri-
em vez de tornar-se, como deve, um meio de esclareci- cano, é justamente o contrário que se pratica, ordinà-
mento e de autoconsciência das sociedades. riamente.
82 S3
outro povo ja configurado sob a forma do que Danilevski
Ver-se-a, pelo comentario das outras recomendagoes, chama · d~ tipo hist6rico-cultura1.
que a recomendai;ao em pauta era necessa.ria no contexto, Quando os portugueses descob~i:3:m o Br~siJ, _nossa.s
onde valia como simples introdm;:ao a um tema central. tribos nao tinham atingido uma tip1c1dade historico-c_ul-
Mas nao apenas por isto. No que ccmcerne a socie- tural (7> consistente, como aconteceu com as populagoes
dade brasileira, tern cabimento a repetida condenagao mexicanas e peruanas. 0 Brasil era u~ territ?rio s?bre
das tendencias transplantativas. Tais tendencias presidi- o qual viviam desligadas ou em confht? va.rias. tnbos.
ram a formagao hist6rica do pais, e, em nossos dias, Estas nao constituiam um povo, o que so ter1a s1do pos-
mantem-se vigorosas. sivel pela confederagao. Assim, o colonizad_?r operou so-
A sociologia dos contextos coloniais tern na trans- bre um territ6rio historicamente abstrato, nao se deparou
plantagao o &eu tema por excelencia. Dai a importancia com a resistencia de uma individualidade hist6rica ple-
da guestao para o soci6Iogo latino-americano que pre. namente constituida. Ha iildicios de que no seculo XV
tenda assumir um ponto de vista dinamico em face da e em principio do XVI os Tupi-Guarani, ten~o. expul:
realidade social. Toda a organizagao institucional dos sado as outras nagoes indigenas da costa bras1Ieira e a1
paises latino-americanos padece de um defeito fundamen- se estabelecido, estivessem ja envolvidos num. processo
tal e que consiste em ser manietadora do desenvolvimento que os levaria a integrar-se, de modo confederabvo,. nu~a
organico das estruturas nacionais e regionais. (mica individualidade hist6rica. Afirmam os americams-
Nasceram os pafses latino-americanos sob o signo tas que eles teriam sido dotados de apre~iavel capacidade
da transplanta<;:ao cultural (4). Suas institui<;:oes nao sao para «assimilarem tragos de culturas diferentes d~ sua
produto da evolugao. Foram para la transferida~ nas e tambem para «tupinizarem» os povos estranhos a sua
suas formas t erminais. Em cada na<;:ao latino-amer1cana raga» cs>. Mas a verdade e que aos portugueses foi rela,-
se configura o que, com Spengler, pode ser chamado de
pseudomorfose, termo com que se refere aos casos em (7) Esta cxpressao que, no momcnto, nlio posso evitar,. Sera certa·
que uma velha cultura estranha impera sobre um pais mente obscura para os que nil'.o conhecem a teorla de D,uulevskl sObre
0 desenvolvimento das civllizacoes. Algum esclarechnento, entrct~nto, .Po·
com tanta for<;:a que a cultura jovem, aut6ctona, nao con- dera resultar da Jeltura das seguintcs leis !ormulad.as por Damlevsk1:
1• - T6da tribo ou famllia de povos que e caracteriza.da POr uma
segue respirar livremente e nao logra constituir formas lingua separada ou por um grupo de llnguas, e _cuja seme)hanc3: e. pe r ·
expressivas, puras e peculiares, nem sequer chegar ao cebida dlretamente, scm profundn.s explorai;oe.s fllol6glcas, const1tu1 u"?
llpo h lst6rico original de cultura, se e men tal ou esplrltualme!'te capaz
pleno desenvolvimento de sua consciencia pr6pria. de desenvoh•imento hist6rico e de ultrapassar scu estad10 de wfAncla.
Os paises descobertos e coJonizados, como o Brasil, 2, - A fim de q,te uma c!v!lizaca.o, capaz de tornar-se. um tlpo orl·
glnal de cultura, possa. surglr e desenvolver-sc, _e necessar10 que os PO·
estao sujeitos a esta deformidade culturol6gica <5>. Sao, vos a ela pertencentcs destrutem de lnde~end~nc1a. po~ft1ca.
3, - Os principic.B b:isicos da clvl!Jza~ao <!e um t11,o h!st6rlco de cul·
extensamente, pseudomorfoses, no sentido em que seus tura ni\o slio transmlsslveis a povos de um t1po dl!erente. Cnda tlpo de·
aparatos institucionais, recortados a imagem e semelhan- ve elabora-los por si mesmo, ainda quando ~ob a ln!luencla, maior ou
menor, de elvillzai;oes precedentes ou contemporll.?1eas. ,
<;:a dos de pakes de grande prestigio cultural, nao resul- 4• - A civilizaciio peculiar de cada tipo hist6r1co de cultura olca,.c:a
taram da evolugao propriamente, da elaboragao in1:€rna sua plenitude, variedade e riqueza, apcnas quand~ os varios .«elcrnc1itos
etuograficos> que a compoem formam uma !e<lerai;,,o 0\1 _ um s ,st'lm!' J)O·
do processo de crescimento organico destes paises, mas Htico de governos coordenados. presumlndo-se que (Hes nao tenham Ja s i-
do asslmllados num todo politico.
de transplantagoes. CG>. 5• - A evolue!io doi?- tipos hist6rlcos de cultura e similar ao cu,·a~i de
A pseudomorfose assinala o impacto de forte inter- vlda das plantas • de longa dura<;.io;. que dll.o J'.rutcs u!l'a s6_ vc>< .. Bstas
plantas, embora t entlo um periodo rndcflnl<lo de c1:eec1mc11to. d r,sCrutan,
ferencia hist6rica, ou seja, a situaQiio de um povo cujo apenas de um r e.l atlvamente curto perlodo de floresc1mento e frutlCicacllo.
e nestc esgotam, de uma vcz por tOdas suas fOrca.s vitals.
desenvolvimento normal e perturbado por um choque com (8) err Sergio Buarque de Rolanda, R'!-izes <lo B rasil, Ed .. JoM
Olympic. Rio. 1948: «e conhecida hoje a capac1dade dos povos TuJ)I-Gua-
( 4) Pa.r a a anallse de um caso pa~icular de transpl_antacao no '.!3ra- ranl para assimilarcm t racos de cu lturas diter,mtes da sua e t ambcm
sil vide Guerreiro Ramos, Evaldo da Silva Garcia e Gera1do Bastos S1h·11, para «tuplnlzarem» os povos estra?>hos /J. .sua ra~a. 0 padre W . Schmid~.
«o' Problema da E scola de Aprendizai;em Ind ustrial no B rasil», in Estll· em seu estudo slibre os circulos de cultura e capas de cullura .no Cont1-
dos Econom.ioos - Numeros 11 e 1.2, setembro e dezembro de 1953. nente Sul-americano. obsen,a. que ~::i~e fato fw. parecer qnase 1mpossh•el
(6) Sobre a «c11lturologl.a», vlde L esli e 'White, The Sciencc, of Cultu- «determinar-se o que constitul propriame11te e em sl a cultura espec!f1ca
re - New York. 1949. dos Tupi-Guaranh> (Idem p~g. 149). - ell:sscs prime! r os rolonos (port~-
(6) SObre ~sses problema.s, consulte-se P el-Kang Chang, Agricnltnro guilscs) que flea.ram no Bra$il, (legredados. d~scrtot·es, naufragos. subord1·
and lndU1Jtria.lization. Harvard Univ. Press, 1949. Tambem Wil ber t E. nam-se a, dois tlpos: uns sucumbiram ao me10. no ponto de furar os 1:\-
llfoore lndustrlallzation &nd Labor - New York , 1951. A \eitura d€,sses bios e orclbas. ma.tar os prlsioneiros scgundo os rltos, c cevar:se em S!}a
livros' e util mas inspira cuidados, pois ha. neles certa tend~ncla para carnc ... » Ca.pistr:ino de Abreu C•11itulo8 cJe Uist6rla Oolomal - R10,
gcnerallzar conclusoes nao i nteiramente vtilidas para contextos latlno-nme- 1934.
rieanos.
85
84
tivamente facil varrer os obstaculos humanos oferecidos blema nacional desta ordem, como assinalou Alberto
aos seus prop6sitos de exploragao. Torres, porque suas instituigoes se fonnaram lenta e
0 fato que desejo assinalar e o seguinte: o coloni- demoradamente, por meio de um processo mais evolutivo
zador, no Brasil, nao encontrou povo, como encontrou que revolutivo.
no Mexico, no Peru, na india. Encontrou um «material Estas elites inauguram novo periodo de formagao
etnografico», uma «especie de materia inorganica» de que pseudom6rfica do pais. Nao podiam deixar de compor-
dispos segundo seus prop6sitos. Operou em espago histo- tar-se como se comportaram, isto e, na.o podiam superar
ricamente vazio, que passou a ser ocupado por portugue- a contingencia de sua formagao mental e dos fatores obje-
ses e africanos, os contingentes fundamentais formativos tivos da epoca. 0 panorama era este: de um lado, a
de nossa populagao, uns e outros alienigenas. ltsse con- massa de brasileiros sem habitos de autogoverno, secular-
junto de alienigenas na.o constituia um povo no Brasil, e mente submetida ao discricionarismo de potentados e
aos seus descendentes faltaram, durante muito tempo, reguletes locais; de outro lado, uma camada letrada, pro-
condigoes para se tornar povo. Em 1822, quando o Bra- vida de ideias apanhadas em livros de lingua inglesa ou
sil se declara independente de Portugal, o povo brasileiro francesa, uma elite liv.resca e superfetada que se carac-
era menos uma efetiva realidade hist6rica do que um.a terizou por uma atitude exemplarista, segundo a qual a
fic<;ao comoda. 0 povo brasileiro e ainda hoje uma enti- resolugao dos nossos problemas estaria garantida pela
dade hist6rica. m statu na.scendi. A nao ser a lingua, instalagao, entre nos, das instituigoes vigentes nos paises
todas as condigoes decisivas, propiciadoras da maturidade lideres da epoca: lnglaterra, F11anga, Estados Unidos.
do nosso povo, surgiram depois de 1822, entre elas: o De Jose Bonifacio ate os nossos dias, as elites brasi·
sistema de transportes e comunicagoes extensivo ao ter. leiras, com excegao de certas figuras isoladas, tern atua-
rit6rio brasileiro, e um mercado nacional. do conforme esquema exemplarista. Toda a atuagao de I
I

1822 e a data. da independencia de um territ6rio e nossas elites tern sido marcada por um de.s:encontro entre I

nao de uma naga.o . Aqui a ideia da nagao preoodeu ao suas ideias e os fatos brasileiros. A uma visao profunda,
fato da nac;ao mesma, entendida esta como vivencia de sociol6gica, de nossa formagao, verifica-se que elas se
um.a comunidade de estilo de vida hist6rica. tem conduzido de modo mais ou menos cego quanto ao 1!
As instituigoes vigentes no Brasil, ate 1822, do ponto
de vista sociol6gico, eram uma excrescencia, muito embo-
seu papel de orientar os fatos do meio nacio.nal. Um
pouco a despeito delas, esta formando-se o capitalismo I
ra para o colonizador tivessem sido excelente arma de brasileiro e desenvolvendo-se uma cultura popular, um
manutengao e preservagiio de uma estrutura de poder. e outra destinados a constituirem o lastro de uma indi-
A unidade do Brasil, conseguiu-a Portugal, gragas ao vidualidade hist6rica autonoma.
artificial tecido de instituigoes com que vestiu a nossa Alem disto, as elites da Independencia nao pude-
realidade, «verdadeiro compressor que nivelou o terreno». ram servir-se dos ensinamentos da sociolo.gia e da antro-
0 ano de 1822 inaugura a fase em que as geragoes pologia cultural, ciencias que, na epoca, nao se tinham
de brasileiros deveria caber o mister cicI6pico de criar constituido propriamente e que estavam apenas entre-
instituigoes para uma nag.ao em ser. vistas por precu.rsores .
Foi neste momento (1822) que se apresentou ao bra- Desta forma, os nossos pais-da-patria e os que os
sileiro o «problema nacional» do seu pais . Quero dizer, sucederam nos postos de comando da sociedade foram
a conquista da independencia politica pelo Brasil impunha levados, com a melhor das boas intengoes, muitas vezes,
aos brasileiros a necessidade de rever e reformar as insti- a pensar sobre os fatos sociais em termos de imanencia.
tuigoes instaladas aqui pelo portugues, uma vez que elas Admitiram que a presenga, em nosso meio, de aparatos
obedeciam a um prop6sito predat6rio, explorador e emi- instituciqnais avangados produziriam efeitos acelerado-
nentemente fiscal; impunha-lhes, conseqiientemente, a res do progresso do Pais . Nao estavam habilitados para
necessidade de um esforgo criador no cam po social. ver as leis particulares de nossa sociedade. Diante dos
Era esta um.a circunstancia problematica que desa· fatos, discutiram ideias . Em face dos nossos proble-
fiava a capacidade de compreensao e imaginagao das eli- mas, nao partiram para resolve-las do conhecimento dos
tes da Independencia. Os velhos paises nao tiveram pro- fatores dinamicos particulares, mas do pressuposto de
86 87
que as norm:as a adotar deveriam ser induzidas da expe-
riencia dos povos mais adiantados na momento. Par-
tindo desse criterio heteronomico, fizeram um Brasil for.
malmente simetrico em comparagao com as nagoes adian.
tadas.
Ate a presente data, o comando da sociedade brasi-
leira se realiza ainda de modo heteronomico. Um fla-
grante recentissimo disto e a querela rumorosa entre
parla.mentaristas e presidencialistas, em face do nosso ,II
problema de organizaQao politica, o qual e discutido em IV - 0 ENSINO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL, UM 1
tese e em termos puramente formais, niia se levando CASO DE GERA<;AO ESPONTANEA? i
em consideraQiio as componentes hist6ricas, economicas,
antropo16gicas ou culturais do pais. Focalizarei aqui o tema da segunda reco.mendac;;ao
Nao seria, portanto, descabido, mais uma vez, um pro.
nunciamento condenat6rio das tendencias transplantati. submetida ao plenario do II Congresso Latino-Americana
vas. de Sociologia e que nao logrou aprovac;;iio. Rezava o se-
: Advirta.se, alias, que a recomendaQao em exame se guinte: _ . . . ,
referia a transplantac;oes «lit:erais» . «A organiza(]ao do ensmo da soc1olog1a nos pa1ses
: Na medida em que, em virtude da conjuntura inter. latina.americanos deve obedecer ao prop6sito fundamen-
nacional, os paises subdesenvolvidos s6 poderao veneer tal de contribuir para a emancipac;ao cultural dos discen-
o •seu atraso acelerando a sua transformac;;ao, principal. tes, equipando-os de instrumentos intelectuais que os ca-
mente economica, sao obrigados a adotar medidas obser. pacitem a interpretar, de modo autentico, os problemas
vadas em paises plenamente desenvolvidos. 0 assunto das estruturas nacionais e regionais a que se vinculam.»
me levaria a uma ampla discussao, que os limites deste Antes de passar a discussa.o propriamente do assun.
capitulo nao permitem. Adiante-se, porem, um breve to, quero declarar, com satisfaQao e respeito, que reco-
esclarecimento . nhe~o os meritos de varias agencias brasileiras de ensino
,· Ha que distinguir entre transplantac;oes predaiiorias e pra.tica de sociologia, os quais decorrem dos seus es-
e transplantac;;oes acelerativas. As primeiras desgastam forQos em atingir altos niveis de qualidade em suas tare-
economicamente o.s paises coloniais, sacrificando as dis- fas dida.ticas. Entre tais agendas, e de toda justi(]a in.
ponibilidades de suas rendas em consumos descapitali- cluir, em Sao Paulo, a Escola de Sociologia e Politica, o
zantes. :m o caso de muitos aspectos do nosso sistema Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculda-
educacional, de nosso mecanismo administrativo e de de de Filosofia, e o Instituto de Administrac;ao da Fa-
outros setores institucionais da vida brasileira, visivel- culdade de Ciencias Economicas e Administrativas; no
mente carecentes de func;;oes positivas. Rio a Escola de Administra(]ao Publica da Fundac;ao
As transplantac;oes acelerativas contribuem para Getillio Vargas e os Cursos do D.A.S.P.; no Rio Grande
incrementar a velocidade da capitalizac;ao dos paises peri. do Sul a cadeira de sociologia da Faculdade de Filoso-
fe.ricos. A CEPAL se esmerou no estudo deste tipo de- fia, a ~argo do professor Laudelino Medeir~; no Para-
problemas. Entre tais transplantac;;oes acelerativas estao, na., cadeira identica de estabelecimento similar, a cargo
por exemplo, as ma.quinas, os processos fabris de alto do professor Euclides Mesquita; e na Bahia, a cadeira
rendimento, certas formas especializadas de instruQao e de Antropologia da Faculdade de Filosofia, a cargo do
educac;;ao. professor Thales de Azevedo. Provavelmente cometi omis.
Nestas condiQoes, parece que o que ficou dito e o soes nesta enumerac;;ao, as quais devem ser levadas a con-
bas~ante para tornar perceptive! por que se julgou con- ta de desconhecimento por parte do autor do que se rea-
vemente gue um Congresso Latino.Americana de Socio- liza em outros institutos.
logia aprovasse uma recomendac;;ao condenat6ria das ten- A questa.o do ensino da sociologia no Brasil naa deve
dencias transplantativas prevalecentes nos paises latino. ser tratada em tese, isto e, em termos normativos. Neste
.americanos.
88 89

.\
terreno, ter-se-a de partir do exame de fa tores reais e cessidades comunitarias. Isto parece ser proveniente de
nao do ideal respeitavel de difundir ao maxima os conhe- varias circunstancias. Uma delas consiste em que os nos-
cimentos de sociologia. sos autores de compendios nao tern, salvo rarissima.s ex-
. Na ve~dade, o _Brasil_ e, quero crer, muitos paises cegoes, experiencia vivida dos problemas e assuntos de
latmo-3.1;1~r1canos n~o estao e~ condigoes de propiciar que tratam. Seus textos escolares nao sao propriamente
uma prabca do ensmo da materia em causa de boa ca- fruto de meditagao dos assuntos. Result am, com freqiien-
tegoria, senao em pequena escala C9>. Constitui mesmo cia, de glosas, paralelos, pastiches e de transcrigoes de
perigo a proliferagao de cadeiras de sociologia ~m paise~ obras estrangeiras. Julgo que essas deficiencias da maio-
como este, em geral carecentes ainda de maduras corren- ria de nossos livros escolares se explicam pelas pr6prias
tes de pensamento sociol6gico. condigoes objetivas do pais.
, Nao he~it? em ~irmar que, no Brasil, pelo menos, Os professores brasileiros de sociologia, em grande
pa1s d~ Amer1c3: :f:atma em que, segundo o depoimento parte, tern exercido a catedra por acaso. Ordina:riamen-
de mmtos ~sp~c~alistas ;1orte-~mericanos e europeus, os te, tern sido fator aleat6rio em suas vidas, o que os leva
estudos soc10log1cos estao ma1s desenvolvidas o ensino a ser professor de sociologia. Nao se prepararam para
da m~teria,. via de regra, carece de funcionalidade, pois tal. Aqui as catedras de sociologia nao surgiram para
q?e nao cna no educando comportamentos operativos consagrar uma tradigao militante de trabalho pedag6gi- I,
vmculados a sua vida comunitaria, nao estimula a auto- co, como e a regra em todos os paises avangados. As ca-
nomi~ mental . do aprendiz. Nao se tern conseguido,no tedras apareceram de modo intempestivo e foram provi-
Brasil, na med1da desejavel, formar especialistas aptos a das, inicialmente, mais ou menos, por pessoas que, no
fazer uso socioI6gico da socialogia. momento, ou eram diletantes, quando muito, ou desconhe-
Na pratica, e raro o soci6Iogo brasileiro que nao ne- ciam completamente os estudos da sociologia. Muitos fo-
gue a essencia mesma da visao sociol6gica - que e ser ram estudar a materia depois de nomeados professores;
um saber integrativo da vida comunitaria efetiva. Toda durante algum tempo, ao menos, foram, nos seus postos,
genuina sociologia emerge de suportes existenciais comu-
nitarios e, assim, contribui para aprofundar a insergao do verdadeiros simuladores, aparentando um saber que re-
hamem no seu contexto nacional ou regional. almente nao possuiam.
Medite-se sobre o que fizeram os grandes soci6lo- Para contornar esta deficiencia, algumas entidades,
gos como Comte, Marx, Spencer, Durkheim, Max Weber, como a Escola de Sociologia e Politica e a Faculdade de
Small, Lester Warde outros. Apesar de suas diferengas, Filosofia de Sao Paulo e ainda a Faculdade Nacional de
cada um del~s elab9ro1;1 um sa~er compreensivo do pre- Filosofia, contrataram professores estrangeiros. Atual-
sente e da c1rcunstanc1a que VI.veu. Todo verdadeiro sa- mente existem professores de sociologia formados em
ber socioI6gico tern sido elaborado de modo pedestre par faculdades e, portanto, capazes, em principio, de realizar
me~'! do enlagamento, as vezes penoso, do pensamento do atividades didaticas em melhores condigoes do que os que
soc1?logo c?m ~s fatos <;Ie que participa. Nao pode haver nao se beneficiaram das mesmas oportunidades. Institu-
efebva soc1olog1a sem smcero, profundo envolvimento da tos de ensino normal ou medio e poucos estabelecimentos
cotidianeidade pelo pensamento permanentemente em vi- de ensino superior tern aproveitado uma parcela destes
gilia. Nao ha geragao espontanea da sociologia. Em toda
parte onde ela e genuina, foi elaborada mediante pro- diplomados.
cesso cooperativo e cumulativo. :m evidente que a organizagao do ensino da sociologia,
Vejo no ensino da sociologia no Brasil uma carencia entre n6s, nao resultou de processo gradual de amadure-
fatal: a ausencia de compromisso entre o professor e o cimento de wna experiencia pedag6gica, e bem reflete o
conteudo do que leciona, e entre esse conteudo e as ne- simetrismo e o artificialismo de nosso sistema educacional.
Em nosso pais existem mais catedras de sociologia do
(9) ~ o que CO!"firma J ohn Gillin, em recente cstudo. «La Sltuaci6n que em qualquer pais europeu em que esta ciencia tern
de las C1enclas S-Oc,ales en Sets Pa!ses Sudamerlcanos», in Clenci~ So-
cla.les :- Numero 19, F~verelro, 1953. Consulte-se tamb~m: Alfredo Povlf\a. tradigoes seculares.
Hlstona do 1a. S0ciolog14 e:n 4tl.Jwamerlca - Mexico. 1941.

90 91
Na patria de Augusto Comte s6 ha atualmente quatro
cadeiras de sociologia, das quais duas na Sorbonne uo> . o pensamento do especialista e a vida. Dai, as peculiarida-
Num recente artigo na revista Sociology and Social Re- des que apresenta.
search ( «Contemporary English Sociology») informava No Brasil chegamos a um estadio em que a sociologia
H. C. Brearley que nao ha na Inglaterra mais do que sete passa a ser adotada em todos os curriculos de Faculdades
ou oito soci6logos profissionais e que apenas um destes, de Filosofia, sem possuirmos, senao muito escassamente,
Morris Ginsberg, detem uma ca.tedra na London School tradigao de pensamento sociol6gico.
of E conomics and Political Sci-ence. Ate ha pouco tempo, Quando, entre nos, foram criados as primeiros ~ursos
na? ha-yia ca.t~dr3: de.sta materia nas duas mais antigas de sociologia, no inicio da decada de ?~, apen3:s d01~ ~ra-
umverstdades mglesas: Oxford e Cambridge. Isso aconte- sileiros podiam ser considerados soc10logos s1stemat~c.9s
ce em pais que foi bergo de corrente de pensamento socio- originais, capazes de transmit~r ~ dis~entes. ~a ~sao
16gico de int:Iuencia mundial. Na Italia, ainda hoje, sao sociol6gica amadurecida e de prrme1ra mao: Ollve1ra Viana
poucas as umv~rsidades que mantem cursos de sociologia. e Pontes de Miranda.
Nos outros pa1ses europeus nota-se a mesma parcimonia O primeiro, desde 1918, ja tinha f or~ula~o uma
na criagao de catedras universitarias. Neste sentido, ccmcepgao dos fatos sociais, e no seu prrmeiro llvro Po-
Leopold von Wiese lastimava, em 1951, o pequeno numero pul~o,es Meridionais do Brasil (editado em 1920) tragou,
de especialistas devotados ao ensino da materia na Ale-
manha (cf. «The Place of Social Science in German
a maneira de um Comte, o programa de trabalho de sua
at ividade como soci6logo. 0 prop6sito fundamental do
Today», in The American Journal of Sociology julho projeto, que alias cumpriu, era contribuir, pela a_nalise
1951). ' '
socioI6gica do nos.so po.vo, para uma mudanga de ~eto~os
Isto decorre, naturalmente, de que, nesses pafaes, nao de educagao, metodos de politica, metodos de l~g1slagao,
se campreende o exercicio de uma catedra senao quando metodoz de governo. A luz das recentes conqmstas das
o saber que, em seu no.me, e ministrado aos educandos, ciencias sociais verificam-se hoje alguns erros nas bases
apresenta as garantias de que e servivel socialmente e metcdol6gicas de ' que partiu Oliveira Viana, ~a~ 1sso
. -
n!1,o
quando ha pro.fissionais amadurecidos para as tarefas impede deva ser ele considerado o noss? prrme1ro ~oc10-
didaticas respectivas. loo-o sistematico e dos poucos que se se bvess.em ded1cado
0
:m verdade que os cur.sos de sociologia proliferam nos as tarefas universitarias poderiam ter encaminhado os
Estados Unidos, desde longa data. Mas o desenvalvimento estudos so.ciol6gicos no Brasil no sentido de um compro-
do ensino de sociologia nos Estados Unidos ocorreu para misso com a realidade brasileira. _
responder a desafios existenciais <11> • 0 ensino da socio- Pontes de Miranda publicara em 1926 sua Introdu~
logia e introduzido, naquele pais, por homens portadores a Sociologia Geral, ate a presente data, n o ~enero, o com-
de uma experiencia de primeira mao dos temas sociol6gi- pendio de maior unidade te6rica e de ma~or autonom1a
cos, por verdadeiros pedagogos que logo estabelecerarn mental que ja se escreveu nestas ~rrl;s, mmto embora, na
as pautas fundamentals de uma sociologia genuinamente minha opiniao, seja esta obra Iast~avel, pelo ~ue repr ~-
norte-americana, embora marcada por uma origem euro- senta co.mo cristalizagao de um esforgo mal aphcado, pois
pe1a, como nao podia deixar de ser. Foram eles William t rata de temas que, em nosso meio, podem ser considerados
Graham Sumner, Lester Ward, Albion Small, Giddings e inuteis. Mas de qualquer modo, resiste a prova de auten-
Ross, cada qual criador de um sistema pr6prio em cujas ticidade.
Iinhas mestras e visive! o impacto da realidade norte-ame- P ois hem estes dois homens tiveram influencia nula
ricana. E , em nossos dias, todo trabalho didatico no cam- na organizag[o do ensino da sociologia no Brasil. Nos
po da sociologia ianque reflete um compromisso entre
anos de 1936 a 1942 de norte a sul do Brasil havia em
(10) Cfr. Armand Cuvillier, Oil Ta la Sociologle Frant&lse ? Paris. cada cur.so compleme~tar uma .cadeira de s?c.iologia . Deve
1953.
(11) .Consulte-se L. L. Bernard, Le Sociologia en los Estado sUnido•
ter sido a lgum amador ou cunoso da m~teria o autor do
- 1~00;1960. Uniao Pan Americana, 1952. Tambcm : A. Small: Fifty Years programa de tais cursos, pois, pela quanbdade de assuntos
of Soc! oJogy in tho Un ited Stat"" (1865-1915)>. In Tho AnH>rican J ourna.l
of S0c1ology - Indtce aos volumes I-LII, 1895-1917. que mencionava, era um modelo do que pode haver de
mais Iunatico.
92
93
!'
1'
r

l
Atualmente, tudo indica estar fixando-se na maioria Houve um periodo (1936-1942) em que surgiram,
daqueles que se dedicam a sociologia uma atitude segundo num a.time, por uma especie de geragiio espontanea, algu-
a qual as teo.rias, os· metodos e prooessos sao adotados mas centenas de mestres de so.ciologia.
literalmente, sao de fato justapostos mentalmente e nao E verdade que alguns dos profissionais que surgiram
absorvidos ou transformados metabolicamente por assim dessa maneira, pelo seu esforgo, pela sua probidade,
dizer. ' honram hoje a cultura nacional.
. Na fisio~o.mi~ de quase todos os compendios brasi- Mas e forgoso reco.nhecer que o ensino da sociologia
lerros ?e soc~olog1a transparece um criterio j ustapositivo no Brasil, implantado sem base numa previa experiencia
de ensmo,. e 1sto deve corresponder largamente a pratica pedag6gica, infunde naturalmente muitas reservas do
da. apren~agem, entre nos . Os compendios brasileiros e ponto de vista da funcionalidade do seu conteudo.
latmo-amer1canos de sociologia nao tern simila:res em Em conseqtiencia, teria cabimento que um Congresso
nenh~ pafs em 9-u~ a ~ociol~gia atingiu, certo grau de Latino-Americano de Sociologia adotasse a recomendagao
.m atundade . A ma1or1a deles fo1 elabo.rada a luz de criterio aqui em exame. Em larga margem, e presumivel esteja
sincretico. sucedendo com a sociologia nos paises da America Latina
o que aconteceu e acontece em muitas escolas brasileiras
-i:ome:nos para confronto paises que, como o Brasil, de diferentes niveis e especies.
tambem sao consumidores de sociologia: os Estados Uni- Com alguns casos documentarei o que quero assinalar.
dos, a India, a Russia.
Um professor de anatomia, toda vez que explicava
Em cada um deles, o ensino se organizou de modo a certa parte do esqueleto, comparava determinada depres-
assegurar duas diregoes: uma pratica, visando a fazer da sa.o 6ssea com uma moeda de cinco fra.neos . Era assim
sociologia um instrumento de autodominio do meio social· que estava no livro frances e L1ie parecia provavelmente
e o~tra teoretica, por meio da qua!, sob as influencia~ ridiculo dizer um tostao em vez de cinco francos. Sei de
nac1onais e regionais, tomam-se as teorias estrangeiras outro que um dia, diante dos alunos, com uma ra des-
can:io meros lontos de partida para novas formulagoes cerebrada, f ez uma experiencia para demonstrar as leis
ma1s consentaneas com os fatores reais. dos reflexos elementares de Pflliger. Ocarreu, numa pri-
Nesses paises, os homens que conseguiram o «status:. meira tentativa, que as rea<;oes do animal nao coincidiram
de soci6Iog?~ s~o autores de abras em que transparece com as descritas no livro. Repetiu a experiencia, e a mes-
um:i . exI?enencia , amadurecida e autentica dos temas ma discorda.ncia. Entao deu de ombros, como quem diz: o
s0Acia1s, mcompat~vel com a mera erudigao sincretica. animal es ta errado. Tempos depois, um dos aluno.s, que
Deste. ponto de v1st:3-, poucos sa.o os especialistas latino- hoje e medico, veio a saber que aquilo costumava ocorrer 1.
-amencanos que res1stem a uma comparagao com figuras
como Robert Park, L. L. Bernard, Ernest Burgess, W. F.
quando se tirava a ra do seu meio natural. Ainda ha mais.
Ouvi, no norte, va,rios professores de quimica e de geogra- I:
I
Ogburn. C. H. C?ol€y,. Radhakamal Mukerjee, Brajendra e fia compararem a cor de certos liquidos com a de cereja,
Nath Seal, _Danilevsk1, Kropotkin, Lavrov, Youzbakhov, ou certas formas geo.gra.ficas com uma pera. E eu ficava
Kareyev, M1khalovsky. sem saber bem a cor e a forma, porque nunca tinha visto,
Aquelas duas diregoes que estavam esbogadas na ate ja menino taludo, nem cereja, nem pera. Depois vim
a saber que a cereja tern a cor de mulungu, de buriti e de
evolug~o da ~oc~ologi3: no Brasil e das quais sao repre- outras frutas nordestinas, e que a pera tern a forma pare-
sentatlvos Oliveira Viana e Pontes de Miranda fo.ram cida com a de abacate. Mas, co.nvenhamos, como ficava
pertur~adas por uma desastrosa e imprevidente politica ridiculo dizer, em aula, que um liquido tinha a cor de
educac10nal, que, de um dia para outro, tornou possivel mulungu, ou um acidente geogra.fico, a forma de
u~ surto de catedraticos da referida disciplina, os quais, abacate ...
nao estan~o P!epa:ados para os novos encargos e nao Ha indicios muito patentes de que a instrugao do
ten~o me~tagao sobre os assuntos sociologicos, tiveram aprendiz de soci6logo no Brasil esta. sendo procedida de
de rmprovisar para atender as tarefas didaticas que Jhes modo analogo, isto e, nao esta contribuindo para o domi-
eram cometidas. nio e o comando do meio brasileiro. 0 que se pede ao
94 9S
ensino da sociolagia e que desenvolva no educando a ,;:

-capa_cidade de auto1:1omia e de assenhoreamento das forgas


particulares da soc1edade em que vive. 0 ensino da socio-
logia nao deve distrair o educando da tarefa essencial de
promogao da autarquia social do sen pais.
1'
. E nec:,ssari? ~ue o trabalho de campo, complementar
da mstruga_o teorica, se encaminhe para a adestramento
dos :1~rend1zes para a realizagao dos trabalhos mais ne-
ces~ari~s ao desenvolvimento das estruturas nacional e
reg1onais. V- PARA UMA SOCIOLOGIA
Mas isto nao se consegue, se se considera a sociolo- «EIM MANGAS DE CAMISA»
gia um objeto de culto e de apologetica. Ao contrario
este objetivo s6 sera atingido se se der a esta ciencia ~
carater pragmatiCO OU dinamico. Nao se divisa ate agora no pensamento sociol6gico
latino-americano nenhuma transfo.rmagao correlata aquela
que e liderada, no setor economico, pela Comissao Econo0
mi~a para a America Latina - (CEPAL). . .
Caracteriza a atuagao da CEP AL o prop6sito de tor'-
nar a polftica e o pensamento economicos dos paises latin()-
-americanos fatores operativos do seu desenvolvimentp.
Desta maneira, ao propOl' solugoes para os problemas de
desenvolvimento, parte da consideragao dos recursos dis-
poniveis e nao das conveniencias e necessidades idealisti-
camente concebidas. Todo o esforgo deste organismo
internacional e o de formular os principios de urna estra-
tegia economica cuja assimilagao habilite o economisfa
latino-americano, em suas atividades de aconselhamento,
a contr-ibuir para a diregao dos fatores produtivos em
cada pais, de moda a acelerar a sua velocidade de capita-
lizagao.
Nestas condic;oes, a renda nacional passa a ser objeto
de atengao especial do economista . E ela que marca o
compassa, a especie e as normas das politicas economicas,
as quais devem prccurar sempre combinar os fatores
nacionais de produgao de modo a serem atingidos os niveis
mais altos de -r entabilidade . Este nova modo de ver t or-
nou-se, no campo economico, o suporte de uma atitude
antitransplantativa . Um dos pr6gonos desta corrente de
ideias, Raul Prebisch <1 2), advertia, em 1951, que a urgente
necessidade atual de capitalizagao nas atividades internas
e muitas vezes incompativel com o empenho de reproduzir
nos paises menos desenvolvidos as formas de existencia
dos mais desenvolvido.s, entre os quais se destacam, desde
(12) lµl(JI P!'ebisch. d'roblemas Teorieos o P r iiticos do Dcsenvolvi.-
mento Economico» - Numeros 7 e 8 - Setcmbro e De~embro de 1951.
Tambl!m: Celso Furtado, «F orma,;ao de Capital e Desenvolvlmento E co-
nOmlco>, In Bevista Brasilei.Joa de Economia - Setembro de 1952.

96 97
logo, os Estados Unidos, porque estas formas de existen- cada municipio, proporcionalmente ao nfunero de pessoas,
cia, as modalidades de consumo que elas implicarn, assim semelhante ao que se verifica nos E stados Unidas . Segun-
~omo as modalidades de capitalizagao, resultam de altos do ele, o menor dos nossos municipios deveria manter,
mgr essos a que gradualmente chegaram esses paises pelo pelo menos, um estabelecimento de ensino secundario, com,
aumento de sua produtividade; e sua mera transfusao no mini.mo, cinco professor es trabalhando. em regime de
aos paises menos desenvolvidos, sem um esforc;o delibe- t empo integral . E rematava o conselho com esta obser-
rado de selegao e adaptagao, provoca tensoes que noutros vagao: o municipio que, no periodo de dois anos, a partir
t empos nao se apresentavam. da promulgagao da norma, nao a tivesse cumprido, per-
Com essas ideias coadunava-se, perfeitamente, uma deria o status de municipalidade.
das recomendagoes submetidas ao plena.rio do II Congresso A sugestao merece restrigoes sob muitos pontos de
Latino-Americano de Sociologia, elaboradas pela Comissao vista, ainda mesmo que a escola secundaria de que se
de Estruturas Nacionais e Regionais, que tive a honra de trata seja de tipo radicalmente diverso daquele a que,
presidir . Estava assim r edigida: entre DOS, se aplica a designagao, isto e, 0 gina.sio OU
«No exercicio de atividades de aconselhamento os colegio. Mas a sua contra-indicagio e 6bvia do simples
soci6~ogos. l~~ino-americanos nao devem perder de ~ista ponto de vista da renda nacional do pais. Faga-se a conta
as disp~mbilidades de renda nacional de seus paises, de quanto dinheiro seria necessario inverter na concretiza-
necessa:r1as para suportar os encargos decorrentes das giio desse prop6sito, para que se enxergue o absurdo que
medidas propostas. » a medida representaria . Admitamos, porem, que o gover-
Como expus linhas atras, fui derrotado na defesa no, num ato de loucura, resolvesse por em pratica o
deste principio. conselho . Onde encontrar os professores? Como manter
~ ao obstant~, a mim parece que a sociologia Jatino- nas escolas secunda.rias uma populagao de adolescentes
:~ericana deve mgressar nessa trilha. O que tern pre- cuja psicologia e cuja situagao economica se constituiriam
Judi~ado, entre nos, .a sociologia, neste particular, e o em fatores impeditivos da escolaridade? Como localizar
c~~amento do soc16Iogo nos quadros academicamente estabelecimentos secundarios, num quadro demografico
def1rudos com? ~ndo os pr6prios desta disciplina . Desta rarefeito, de mo.do que cada um deles funcionasse com o
fo;ma, o prof iss1onal perde de vista o significado econo- minimo de aluno.s tecnicamente r equeridos? P or esses e
mico do seu trabalho . Num pais carecente da consciencia outros motivos, e temeraria a observancia a r isca de acon-
organic3: de suas necessida~es, isto e um desastre, po.rque, selbamentos de autoridades estrangeiras, sem levar em
na med1da em que o soc16Iogo, com tal deficiencia de conta as suas respectivas equagoes nacionais.
formagao, adquire prestigio pessoal e e ouvido ou levado Muitos tecnicos, no Brasil, se conduzem exatamente
a serio, pode induzir agendas governamentais ou par- como esse soci6logo no.rte-americano quando, por exemplo,
ticulares a aplica<;ao funesta de recursos. aconselham que devamos gastar em servigos de saude tres
0 gue tem levado os so.ci6logos latino-americanos a dolares por pessoa, que devamos ter um posto de pueri-
obnubilar-se, neste particular, e o fato de considerar iden- cultura para cada 10. 000 pessoas, um leito para cada
tico.s, na pre~ente epoca. o momento de seus paises e o 6bito de tuberculose, cinco leitos de b ospital-geral para
de paises ma1s desenvolv1dos. Em geral, nao se Iembram cada mil habitantes, 60 . 000 medicos, 100 . 000 enfermeiros,
de compara:r os seus paises com os que consideram como 165. 000 leitos para doentes mentais . Ou quando calculam
paradigmas, em termos de f ase . Ao contrario, seu criteria outras necessidades institucionais, a luz do mesmo cr iterio.
e o da contigilidade ou justaposigao <1a>. Para eles, os problemas sociais se resolvem por meio de
Eis um r ecente flagrante: Um sociolcgo norte-ameri- regra de tres. Uma das mais espetaculares ilustragoes
cano aconselhou, como medida fundamental de uma r efor- desta concepgao aritmetica dos problemas sociais e 0
ms. agra·ria no Brasil, a criagao de escoJas secundarias em fam oso levantamento realizado tendo em vieta a implan-
taQao do I. S.S . B., principalmente na parte relativa a
(13) Pretendo t cr ! elt o uma apUcat;.iio cla.ra da taseologla em meus
eatud o.s sObre mort alidade lnrantfl, os quals contral'lam oa pontos de
saude.
vista oflclals s(lbrc a matltrla. Vldo especlalmente: Guerreiro Ramos, <0 Confundem nesta co.nduta, os efeitos com as causas.
Probtema da Moruilldad e rntantu no Brasil», l.n Soclologi&, Marco de 1951. Na ver dade, os altos niveis de bem-estar sao inseparaveis
98 99
do profe_sso que os criou. Sao resultados, por a.ssim dizer, cisaria de subvengoes de favor ou de comprometer-se com
autamabcos de um processo de desenvolvimento. Portan- a burocracia cartorial a fim de dedicar-se aos seus estudos.
to, sao ?SA fB:t8res d~st~ proce_sso que urge instalar aqui; Ficara preso a essa contingencia, se inEistir em suas ten-
e um.a dinam1c~ econo~co:s~c1al que se tera de promover. dencias academicas e academizantes. :m cada vez mais
. _Na correg_~o de tais hab1tos de pensar e que a contri- crescente a demanda de especialistas em sociologia capa-
bm~~o do soc10logo poderia ser das mais oportunas . O zes de v.incular as suas atividades cientificas as tarefas
soc1?~oga, de todos os especialistas, e o que esta mais de promogao da autarquia economica do pais. Quero
habilitado, pelos instrumentos intelectuais que possui a dfaer, uma sociologia «em mangas de camisa» pode viver,
s~p~rar a visao parcelada das necessidades do pais subs- hoje, no Brasil, dos proventos de sua efetiva utilidade para
tltumdo-a por uma visa.a unitaria de sua cont~xtura o esforgo de construgao nacional.
integral. E verdade que, atualmente, a orientagao aqui preco-
. . A estrategia do desenvolvimento de um pais e con- nizada desperta forte resistencia e sistema.ticas antipatias,
dic10nada pela particular dinamica de sua contextura a t anto mais quanto ameaga falsas posigoes e falsas
qual, -~ cada fase ~st6rica, apresenta a sua priorid~de reputagoes. Reconhego que este modo de ver, pc!o seu
especiflca de necess1dades de desenvolvimento. Desta carater pioneiro, nao e o mais c8modo . Por outro lado,
forma nao sao necessariamente tran.sferiveis em dado contraria poderosos interesses investidos e se afigura
momento, de um pais para outro, quando estiio em dife- incompreensivel, esquisito, dificil, a uma legiao de pessoas
ren~es fases de desenvolvimenta, os criterios de a~a.o sinceramentc equivocadas, Paga-se, as vezes, onus pesado
SOCJal. pelas ideias . E nem todos estao dispostos para tanto.
Uma das razoes desta intransferibilidade decorre de Mas nada disto deve obscurecer o fato de que o
fat~res culturol6gicos. A atual sociologia das transplan- Brasil esta amadurecendo. 0 grau de expansao de suas
tagoes nos. centros n?rte-americanos e ingleses parece f8rgas produtivas e as contradigoes cada vez mais agudas
enxergar somente os rmpedimentos culturol6gicos neste entre tais for!;3S e os quadros institucionais vigentes esta.o
t~~reno. Mas ~a razao importante daquela intr~sferi- tornando incoercivel a mudanga qualitativa da vida brasi-
b11idacle se ~prune. e;111 t ermos de recursos disponiveis. leira, em todos os seus aspectos.
A necess1dade baS1ca de um pnis subdeEenvolvido co.c:io Trata-se de um processo. E contra um processo e
o Brasil e abter combinagao 6tima dos seus fatores eco- inutil lutar.
nomicos, tendo em vista acelerar o incremento de sua
taxa de i-1:~estiment~s e~ hens de produgao. Imperativos
de contnb1lidade soe1al 1mp6em atitude selet.iva na reali-
zagao de ruedidas. Estas nao tern valor absoluto · ao c~n-
trario, _sua eficacia depende das rela£oes domindntes em
det-ermmado momento das cstruturas nacional e regionais.
0 trabalho sociol6gic~ em pais periferico, muito menos
do 9ue qualquer outro, nao pode ·permanecer descompro-
metido do _proce~so de acumulagao de capital. Como
outras nagoes ~atmo-a~er1ca~as, o ~rasil nao atingiu a
taxa anual minima de mversoes ~qmdas necessaria. para
atender ao custo do seu desenv0Iv1mento econ8mico e nem
podera. at~gir_ a e~te montante por processo espontaneo.
~- a consc1enc1a deste fato deve ser suficientemente elo-
quente para converter o trabalho cientifico em todos cs
setores, ao interesses naclonal. '
Orientado nesse sentido, o trabalho socicl6P"ico em 1~
nosso pais tern diante de si o caminho para eman~ipar se
do mecenat o. 0 verdadeiro soci6Iogo, no Brasil, nao pre-
100 l OJ

.,. . ·:··;::·~ :·· '


I •
I
~'
Aqueles excedentes de pessoas letradas ~c~stituem,
pois, carga de inquietude na _socie~ade brasile1ra, e a
maneira de conjurar a sua penculos1d3:de, de vez que as
atividades economicas nao as absorVIam, era da:-lhes
significados simb61icos ou envolve las em mecamsmos
sublimativos. Aqui deve re~idir, pelo m eu~s e~ parte, a
explicagiio do carater «gesbculativo» da ".1da mtelect~al
no pais. Problemas analogos foram resolvi_dos por soc1e-
dades europeias, entre outros, por exped1entes como a
Mania Dangante, a Epidemia Flagelante, as Cruzadas.
VI - MEDITAQA.O PARA OS S0CI6LOGOS EM FLOR No Brasil, a eliminagao de tensoes que poderiam t~
sido criadas pelos excedentes de individuos letrad~. fo1
obtida por meio da burocracia e do mecenato. das a~vida-
Um dos fatos de mais dificil explicaQiio, para o des intelectuais. Muito de nossa burocrac1a ·e xphca-se.
sociologo, e o carater ficticio da vida e da produQao intelec- coma verdadeiro onus pago pela sociedade para obter um
tual no Brasil. Um fato tao dominante, desde o inicio de minimo de consenso e estabilidade . Por outro lado, o
nossa formaQao ate os nossas dias, niio pode ser fortuito. trabalho intelectual foi marcadamente orientado para
Deve ser necessa.rio. Deve ser resultante de fatores reais objetivos mais ou menos lit?rescos e jamais p~a o _escla-
vigentes na sociedade brasileira. E a dificuldade da recimento mesmo da essenc1a da estrutura social v1gente
explicaQao que se deseja decorre forQosamente da sutili- e sempre de modo a evitar a total ociosidade de cidadaos·
dade e da pouca visibilidade desses fatores. que, de outra forma, pod~riam co~yerter-se em fe~en-
Jr:, pois, a guisa de hip6tese de trabalho, sujeita a tos de influencias subvers1vas . Ahas, em nossos dias, e
prova.veis retificaQ6es posteriores, que, iniciando este visive! este compromisso entre a camada letrada bem
topico, proporei uma interpretaQiio para o fenomeno. sucedida e a classe dominante do pais.
As atividades intelectuais obedeeem, em cada socie- Parece, portanto, legitimo afirmar que, ate agora, o
dade, as leis particulares de sua estrutura, nao s6 quanta custeio de grande parte do trabalhc intelectual t~D?- obe-
aos temas sabre que incidem, como quanta a funQao que decido consciente ou inconscientemente, ao propos1to de
desempenham. Nada esta solto na estrutura social, mas evitar' sua aplicaQiio em sentido contra.rio aos interesses
todos os seus aspectos estiio dinamicamente relacionados. da estrutura social. E por este motivo que se justificam
I,
Desde, longa data, a sociedade brasileira esteve a as relativamente vultosas somas que o Estado gasta para.
braQos com o problema de dar posigiio e funQiio a signifi- manter certa produgao cultural suntuaria e superflua a
cativa parcela de pessoas que, por impedimentos axiol6gi- sombra de, organismos oficiais e semi-oficiais. · Deste modo,
cos, nao encontravam integraQiio nas atividades economi-
cas prim.arias . Estas pessoas, versadas em letras, muitas 0 que, as vezes, pode parecer esbanjament? de recursos,

formadas em centros educacionais estrangeiros, procura- e tributo que a sociedade paga a fim de mmorar as con-
vam classificar-se, numa sociedade em que o trabalho tout tradi~oes das for~as nela atuantes.
court tinha significado pejorativo, pela afirmaQao de pen- A sociedade brasileira atingiu, porem, um ponto·
dores intelectuais ou pelo exercicio de o.cupag6es clericais. critico de seu desenvolvimento, ponto que assinala o
Os fatores reais da estrutura economica do pais, ate momenta de transforma~ao qualitativa de sua estrutura.
epoca relativamente recente, eram, por assim dizer, gros- Ao contrario do que acontecia, esta estrutura, tendo
seiros, ou dotados de pouca especificidade - o que, por ampliado as suas possibilidades de crescimento, oferec~
conseguinte, dispensava tivessemos relativamente nume- ao trabalho intelectual o ensejo de exercer um pap~l erm-
rosas pessoas dedicadas a ocupag6es intelectuais. A neces- nentemente criador e dele carece como fator dec1s1vo de
sidade destas se incrementou com o desenvolvimento aceleragao do progresso. Dai resulta o nova sign_if~cado
economico do pais, principalmente a partir do seu surto que esta adquirindo, entre nos, toda e qualquer ativ1dade
industrial, na segunda decada deste seculo. inteleetual.

102 103
Eln consegilencia disto, os recursos intelectuais estao ideias, conceitos, teorias com as quais a na<_:;ao possa com-
cada vez mais sendo regidos por criterios economicos. preender-se a si propria, decifrar objetivamente os se~s
Passar~rn a categoria de fatores produtivas que tern de problemas; e a conversao da ativid~e diuturn.a. do ;iOCio-
ser aplicados segundo a lei do rendimento maxirno. A logo ao interesse nacional, po.r m~10 ~a pl~ifl~a¥ao do
conversao das atividades intelectuais a cateO'o.ria de ensino e do trabalho de campo, no amb1to da disc1plina em
fatores economicos tern fo.rgosamente de oper~r-se no aprego.
campo das ciencias sociais. Como foi referido, varias A socio.logia, no Brasil, esta tentando entrar na
vezes, em paginas precedentes, ja uma vigorosa corrente segunda etapa da evolugao normal por que pasrnu em
de pensamento eco.nomico reflete essa mudanga qualita- cada pais de cultura autonoma, sem ter realizado as tare-
tiva. Jr:: compreensivel, pois, que a scciologia inicie tambem fas caracteristicas do estadio preliminar, isto e, sem ter
uma tomada de posigao ajustada as recentes circunstancias cumprido a fo.rmulagao de interpretac;oes genericas do
emergidas em noss.o meio. nos.so processo de forma!,;ao ou de seus aspectos funda-
. Para essa tcmada de posic;ao, e fundamental com- mentais.
preende_r q~e, de um lado, o trabalho socioI6gico tambelll E verdade que grandes espiritos como Euclides da
custa dmhe1ro, e em qualquer nagao, onde se tern nitida Cunha, Sylvio Romero, Alberto T~rres e Oliveira ~ia1:a,
oompreensao do imperativo de aplicar racionalmente cs muito contribuiram para a formagao de uma consc1enc1a
recurses disponiveis, obviamente deve ser desestimulada a sociologica dos problemas brasileiros. D~vemos-lhe~ diag-
excessiva pormenorizac;ao da atividade cientifica; e, de n6sticos ainda hoje validos. Mas o cam1~1:to que giz~ram
outro lado, que o estudo de pormenores so tern ·sentido foi quase desfeito por u~a tu!lesta politica e~ucac1~nal
quando certas concepgoes basicas, de carater generico que impeliu os estudos soc10log1cos para onde nao dev1am
estao firmemente estabelecidas. ' ter sido levados.
, Tal e o que se verificou, por exemplo, no pais onde Na presente data, existem aspectos fun~a~e!ltais da
a:t:ualmente as pesquisas de pormenores vem sendo mais vida brasileira carecentes de tratamento soc10Iog1co, sem
praticadas - os Estados Unidos. Ali, primeiro, mediante qu.e se observe n~nhuma tende_:1cia dirig~d.a para tal obje-
~;,forQo co.operativo de varies sociologos, se elaborou um tivo. Basta, porem, observagao superficial para que se I
patrimonio de ideias, conceitos, teorias e hip6teses de perceba flagrante desorientaga? na aplic?-g.ao des recur.sos !'
trab.'.'1-lho ~· em .seguida, se passou para as investigaQoes nacionais no trabalho de pesqmsa. A prabca da pesqu1sa, '1
Part1cular.1za,d~s . Alem disto, a pormenorizaga.0 da pes- entre nos e um flagrante da inconsciencia e do ,desco-
qu1sa soc10Iog1ca nos Estados Unidos e, em boa parte mando da ' sociedade bnasileira, pois. que _nao - exprime
.
I

devida ao imperativo de ocupar os excedentes de fart~ nenhum prop6sito e obedece ao mero capricho daqueles
mao-de-obra tecnica que, de outro modo, ficaria talvez que ocasionalmente co.ntrolam ?S recurses. _
perigosamente marginal. Reside ai o motivo que insp1rou a recomendagao apre-
Ate hoje, a sociologia na Inglaterra, na FranQa e na sentada ao II Cong.resso Latino-Americano de Sociologia
Alemanha encaminha-se com prudencia e parcim6nia no e que mereceu a repulsa da m3:ioria absoluta do plenario
terreno da pormenorizagao do trabalho de pesquisa. ' que a discutiu. Rezava o segumte: . _
, N1;1m pais ~omo <2 Brasil, d1;1a.s razoes parecem pon- «No estadio atual de desenvolvrmento das nagoes
derave1s ~a or1entac;ao das ativ1dades dos sociologos. latino-americanos e em face das suas necessidades cada
Uma consISte. em_que se trata de pais de escassos capitais vez maiores de investimento em bens de produgao, e desa-
-:-. o gue lhe unpoe conduta de poupanga de suas disponi- conselhavel aplicar recursos na pratica de pesquisas sob!'e
b11idades . 0 outro motivo reside em que, sendo relativa- detalhes da vida social, devendo.se estimular a formulac;ao
mente .poucos os profissionais capazes, devern ser eles de interpretaQoes genericas dos aspectos global e parciais
aprove1tados, de preferencia, em investiga<_:;oes realmen- das estruturas nacionais e regionais.»
te relacionadas com as necessidades de desenvolvimento Dentro do espirito desta recomendagao, o que J?arece
do .pais. ainda ter alta prioridade no Brasil sao esforc;;os analogos
0 trabalho socio16gico em paises como o Brasil deve aos realizados por Alberto Torres, Oliveira Viana, Aze-
ser conduzido para atingir dois alvos: a elaboragao de vedo Amaral, Caio Prado Junior, no prop6sito cie promo-
104 105
- -- ·- -----,-------------

ver uma compreensao do nosso processo de desenvolvi- em paises como o Brasil, longe de ter:m .atingido o nivel
mento. Sao cometimentos desta ordem que encorajam o de pleno desenvolvimento. Dai a urgenc1a de escl~recer
amadurecimento intelectual do pais. Ou ainda estudm'! os soci6Iogos e os antr~p6logos ~~ flor, que constituem,
sobre aspectos parciais da vida brasileira, como a Geogra- na America Latina, a linha auxihar de uma corrente de jl

fia da Fome, de Josue de Castro, A Vida Privada ea pensamento de efeitos paralisadores do seu progresso. '
Organi~ Politica Naeional, de Nestor Duarte.
Nao se justifica, por exemplo, dentro do ponto de
vista aqui ado.tado, que se reiterem investigagoes do. tipo
da realizada pelo professor Emilio Willems e de que
resultou a obra Cunha - Tradi~o e Transi~ em uma
Cultura Rural do Brasil. Trata-se de um estudo de comu-
nidade procedido dentro de mold.es metodol6gicos ja Iar-
gamente ensaiados nos Estados Unidos. Assim, do ponto
de vista meramente academico, a obra em apre!,o nenhuma

I
contribuigao tras e, do ponto de vista das necessidades
de pesquisa do Brasil, contribui para o esclarecimento de
pormenor da vida rural brasileira de secundarissima im-
portancia. 1!:ste tipo de socialogia regional, mais ou
menos an6dino e diversionista, esta atualmente empolgan-
do consideravel numero de jovens soci6logos brasileiros
- o que representa desperdicio dos nossos recursos
tecnicos.
As pesquisas sobre comunidades tern pleno sentido
no atual estadio econ6mico dos Estados Unidos e no pre-
sente quadro de sua sociologia, cujas correntes esta.o per-
feitamente delineadas e em que ha abundante oferta de
especialistas . No Brasil, a pratica de tais investigagoes s6
pod.era contribuir para desorientar os nossos escassos
soci6logos em formaga.o, pois, dando-lhes a satisfagao de
dominarem certas tecnicas em voga num centre adiantado,
despreocupa-os de tarefas outras essenciais ao seu meio,
quais as de elaborar um saber sociol6gico compativel com
as necessidades nacionais e regionais. Em pais come o
Brasil, desprovido de tradigao sociol6gica universitaria,
e verdadeiro contra-senso ou despistamento sair o apren-
diz a «campo» em busca de conhecimento pormenorizado
dos mecanismos da comunidade, segundo r egras made
in U. S. A. Nao e assim que ele deixara de ser colonial.
Alem disto, ha que considerar ainda os pressupostos
ideal6gicos das chamadas pesquisas de comunidade. Nao
quero antecipar um tema de que tratarei adiante. Mas,
seja dito logo que a sociologia e a antropologia norte-
-americanas, comprcmetidas, como nao podiam deixar de
estar, com as peculiaridades culturais e economicas dos
Estados Unidos, baseiam-se em categorias estaticas de
pensamento, - cuja ado,gao e francamente contra-indicada
106 107
condicionada ao desenvolvimento industrial das estruturas
nacionais e regionais.»
rcom efeito, a industrializaga.o nao se refere apenas
a transformagao tecnol6gica da atividade produtiva. Pode
e deve ser considerada como categoria socioI6gica ~ 0
esclarecimento deste fato e, alias, uma das tarefas "nlaiS
urgentes do soci61ogo latino-americano. Quero dizer, e
necessario, por meio de um proceEso de estilizagao cien-
VII - A INDUSTRIALIZA9A0 COMO CATEGORIA tifica, transportar para o plano abstrato dos conceitos as
SOCIO.LoGICA realidades hist6ricas efetivas. Na verdade, os conceitos
sociol6gicos nao sairam da cabega dos soci6logos, nao lhes
foram revelados em hora de mediunidade; resultaram do
.. Os conceitos, os metodos e as tecnicas de que se exame cr itico de situagoes vividas, dentro de limites his-
ut1hza o trabalho sociol6gico na America Latina via de t6ricos. Assim nasceram nog6es fundamentais como as de
regra, sa.o desenraizados. Ou seja, niio foram i~duzidos <periodos organicos» e «periodos criticos», «-estamento»,
da experiencia comunitaria do soci6logo latino-americano. «classe», «Estado», «secularizagao» e seguramente todas
Na conduta deste, e not6ria uma atitude quase mistica em as outras nogoes da disciplina em aprega. S6 no limbo
face dos processos te6ricos e praticos da sociologia euro- sociol6gico da maioria dos profissionais brasileiros e
peia e norte-americana. latino-arnericanos se admitem co.nceitos historicamente
_ E~ sua maioria, ?S soci6logos latino.-americanos ainda inocentes.
nao sairam do gabmete, ainda nao interromperam o Contrariamente a esta nossa scciologia sera.fica!
tu.:ismo pelos sistemas em que se comprazem, de ha muito. teremos que elaborar de modo dinamico as cat€gorias do
~e~te modo, a sua atuagao, por falta de ingredientes his- pensamento socio16gico brasileiro, dando nome as forgas
toricos, carece de real eficacia. e tendencias insitas na realidade nacional . Na medida em
Parece urgente desperta-los do extase em que jazem que sucedermo.s neste dar nome a fatos e tendencias, a
face aos produ~os do_pensamento sociol6gico estrangeiro. sociologia brasileira ganhara em maturiqade. :i;'.: espantoso
Naturalmente 1sto nao pode s·er feito de uma vez. Tern verificar que nao ha no Brasil, ate agora, nenhum, absolu-
que ser lentamente, para evitar traumatismos fatais, mas tamente nenhum gesto no sentido da formulagao de um
tern que ser. Todo mundo sabe que os sonambulos nao sistema de reforencia sociol6gica ajustado a realidade
d~vern_ ser ass~s~ados ~ A observancia desta regra evita nacional.
s1tuagoes dr~mat1cas, as vezes muito desagradaveis. Re- Na estilizagao cientifica da industrializagao, ter-se-a
conh,e~o, hoJe, que as recomendagoes apresentadas ao de proceder como Max Weber, ao cunhar as nogoes de
plenar10 do I~ qongresso Latino-Americano de Sociologia, dominagao tradicional, carismatica e racional - legal ou
por s1;1a Com1ssao de Estr:ii~uras Nacionais e Regionais, a burocratica, - ou como Fernando Tonnies, ao elaborar os
q1;1e. t1ve a honra de pres1dir, contrariavam frontalmente conceitos de «comunidade » e «sociedade» . Tais t ermos
hab.1tos de pensar muito inveterados, o que, alias, me exprimem tendencias efetivas da hist6ria alema e europeia
obriga a form1;1Iar _os _esclarecimentos a que aqui venho e com eles e outrcs analogcs, a sociologia equipava o
proc_e~~ndo, pois nao t1ve o menor prop6sito de ferir sus- e~pirito dos estudiosos para a compreensao e o tratamento
ceptib1hdades dos congressistas. Antes, pelo contrario ao de situagoes concretas.
defen?er aquelas teses, animava-me o sincero desejo'. de '\_A industrializagao constitu_i catego_ria car?inal da
contr1buir para o maior exito do Congresso.
sociologia, especialmente da ~atmo-amer~ca~a. E, !ss_en-
. A_ recomendag~o que, nesta oportunidade, pretendo cialmente, e sobretudo nos pa1ses da penfena econom1ca,
d1scutir estava ass1m redigida: um processo civilizat6rio, isto e, aquele ~ec3:nismo por
«O t~abalho socioJ6pico deve. ter sempre em vista que m-eio do qual se operam as :°u~angas q.uan~1tabvas e qua-
a melhor1a das cond1goes de v1da das populagoes esta litativas nas estruturas nac10na1s e reg10na1s1 Estas estru-
108 109

II
,,
I
turas s6 alcangam alto grau de civilizagao mediante o observar que a industria~io e, em essencia, uma forma
~
·
desenvolvimento industrial. de relagao entre a sociedade e a natureza. A sociedade se
A ~ompreensa.o da essencia da industrializagao poupa organiza corn os elementos que tira do meio natural e,
o estud1oso d~ p_enosos estudos fragmentarios, desvenci- assim, as condigoes de vida nela vigentes dependem da
lha-o da casu1stica em que muitas inteligencias validas rentabilidade da exploragao da natureza. 0 trabalho e
estao aplicadas desperdigadamente. Ilustra-o o surto de sinonimo desta exploragao . Pois bem, tem sido, em toda
pessoas que, em nosso meio, se especializam no estuzl e a hist6ria humana, o incremento da produtividade do tra-
no tratamento de tipos especificos de problemas. or ball10 o fato basico promotor da alteragao das relagoes
exemplo, ultim~mente tern sido focalizados os prob as entre a sociedade e a natureza. A industrializagio, enten-
do cam po. Assun, para a melhoria das condig6es de vida dida co.mo processo de crcscente elevagao da produtividade
d_o ~omem ~raJ o~ para a sua fixagao, propoem os espe- do trabalho, e libertugao .do hcmem dos determiniEmos
CJaJistas medidas diretas, como organizagao de comunida- c6smicos pelo dominfo destes, dominio que se opera pela
des, educagao s~n!taria, ~ssist~ncia social e outras em que substituic;io das forgas humanas aplicadas na produgao de
transp~recem vari?s eqmvocosJ Um deles consiste em que bens pelas forgas mecanicas oriundas dos combustfveis
se co.ns1dera a soCiedade rurafcomo um sistema fechado s61idos, liquidc.s e gasosos. Os generos e niveis de vida
desarticulado da sociedade nacional - um evidente artifi~ - e uma regra geraJ, sem contestagao - s6 melhoram
?io. AI~. disto, essas _medidas pretendem produzir efeitos na proporc;lio direta em que se verifica essa substituigao
1mposs1ve1s, - elevagao dos generos e dos niveis de vida qualitativa de forgas de trabalho.
- que, classicamente, s6 podem ser obtidos mediante
transformagoes tecnol6gicas da vida campestre, especial-
Chamei a industrializaga.o de processo civilizat6rio
porque dele, substancialmente, resnlta.m verdadeiras routa-
I
mente por meio do incremento da produtividade do traba- goes hist6ricas . Os generos de vida dos paises desenvol- 11
lho rural . Em condigoes de baixa produtividade do tra- vidos que se desejam reproduzir nos paises latino-ameri-
balho rural, muito pouco resulta daquelas medidas. canos foram conseqiiencias, por a.ssim dizer, automa.ticas
do processo de industrializagao. Os altos niveis de saude
Parece, pois, que deve ser revista a questao da fixa-
g~o do_ homem do campoQ fa verdade, o homem do campo
nao migra para os centros urbanos simplesmente porque
e bem-estar social vigentes nos paises industrializados sao,
de fato, efeitos e nao causa de transform~gao tecnol6gica.
!Il
quer . Falo em termos de massa, evidentemente. Migra A recomendagao que se discute aqui teve o prop6sito
porque nao consegue integragao economica na estrutura de aJertar o soci6logo latino-americano para a necessidade
regional. E quando tal acontece, mante-lo ai e crime . o de assimilar novas diretrizes de pensamento socioI6gico.
desloc~mento da populagao. a~iva das atividades primarias Quero referir-me ao pensamento sociol6gico em termos de
- agr1colas - para as abvidades secundarias - indus- fase c14> • Fora desta pauta, o especialista s6 consegue
triais - e tercia.rias - servigos - e um resultado ine- atingir meias verdades e jamais se tornara. apto a orientar
vi~a1'.'el d_o desenv9Ivimento economico - diga-se, da indus- a mudanga social em sentido efetivamente positivo. Fora
tr1aJ1zag~o - e nao um mal. Isto e, alias, um. trui~o entre desta pauta, acontece exatamente o que esta acontecendo
os estudiosos dos problemas de desenvolvimento..J. no meio latino-americano: tamam-se por absolutos os
[.Os paises que desfrutam dos mais altos niveis de vida criterios atuais dos generos de vida dos paises desenvol-
sio os ~ue apre~ntam os maiores indices de urbanizagao, vidos, isto e, dos pa.ises que se encontram ja, em relagao
e est8: ~ sempre produto ?C: d~senvolvimento industrial~ a America Latina, em fase superior de desenvolvimento
Contrar1amente, a predommanc1a de caracteres rurais na industrial . Quando, concretamente, esses criterios sao
fisionomia de um pais e indice de atraso. especificos de uma fase hist6rica do desenvruvimento
economico.
. Po.dia?1os multiplicar os exemplos em que se paten-
te1am eqwvocos semelhantes aos acima referidos todos (14) Po.ra maior desenvolvlmonto de um pensamonto metodol6gico
eles deri~ados da incompreensao do fenomeno ind~trial. neste sentldo consulte-se: Guerreiro Ramos. «Nola Metodolc:lgica>. In cDi-
,:csw C<:onOmko•, n• 85 - Dezembro de 19f>l. Nota da 2• Edica.o : 0 au-
. Prefiro,. entret~n~o, ~ratar, a seguir, do aspecto con- t or t ern expllcado o ~u pent o de ,·isl.a fa.scol6gico em V>\rios estudos s6-
ce1tuaJ da mdustr1ahzagao. Com este intuito, e licito bre problema.s brasilelrol!. Vide, por exemplo, Sociologia de la Morta.ll-
dade l.o.lao.UL Mtxico, 1955.
t

~
110 !lf

1111
E sta diretriz marca profu~dam~nte os conceit~s e ?S
Tais criterios siio r elativos e, de nenhum modo, nor- criterios antropol6gicos, a so~1ologia rural!. a soc1olog1a
mas de ac;;ao independentes da contingencia de fase. Valem, urbana, a sociologia deroogra.fica, 3:s «rela~oes humanas>
apenas, para fases identicas. Estou certo de que dia che- e semelhantes pr odutos norte-americ~n~. d .
gara em que se ha de ver com nitidez o que ha de an6dino, Ora, o Brasil nao esta. em ~ond1c;;oes de esenvo1vi-
de «despiciendo», de diversionista na quase totalidade do mento economico que lhe pernutam acolher tendencias
trabalho socioI6gico no Brasil, em que se vera o que ha paralizantes. Seu caso e ~ de saltar da fase em que se
de funestamente ilus6rio nas atividades profissionais de encontra para outra supenor.
certa casta de especialistas em problemas rurais, sanita-
rios, imigrat6rios, aculturativos, assistenciais, educacionais
e administrativos.
A sociologia e uma ciencia hist6rica e, assim, aplica-se
na descoberta das leis particulares de cada fase de desen-
volvimento economico e social, sem cuja compreensiio se
torna impossivel o tratamento efetivo dos problemas das
estruturas nacionais e r egio.nais.
A recomendac;;ao em exame e mais que oportuna.
Focaliza um dos temas capitais da sociologia latino-ame-
ricana, a qual precisa desembarac;;ar-se de criterios alieni-
gena de pensamento e de ac;;ao e exprimir as normas inse-
ridas na realidade latino-americana, captar, mediante
conceitos, os vetores desta.
Se adotar esta orientac;;ao, vera. o soci6logo latino-
-amer icano que a industrializagao e a categoria basica de
carater dina.mico que lhe incumbe explorar, para ccmpre-
ender a dialetica r eal do processo civilizat6rio dos paises
subdesenvolvidos . Habilitar-se-a a compreender que a me-
lhoria das condic;;oes de vida das populac;;oes latino-ameri-
canas esta condicionada a industrializa~o, e as soluc;;oes
dadas aos problemas sociais nos Estados Unidos nao
devem ser literalmente imitadas em areas atrasadas.
Toda a sociologia e a antropologia norte-americanas,
largamente difundidas no Brasil, baseiam-se no pressu-
posto de que a sociedade ianque, atual, e perfeita ou defi-
nitiva, apretenta.ndo apenas defeitos parciais, que podem
ser corrigidos per meio de medidas tecnicamente elabo-
r adas. Absolutizam o presente. Nao o veem como um
momenta fugaz de uma serie dialetica.
Examine-se o sistema de r eferencia da sociologia
geral, nos Estados Unidos, com os seus conceitos de isoJa-
mento, contacto, competic;;ao, conflito, acomodac;;ao, assi-
mila~ao e controle social . Todos eles refletem atitude
antidialetica e paralizante de uma sociedade que, para
usar o termo de Toynbee, <15> «se idolatriza» ou que esta
adormecida sobre os laureis.
(15) Pnre. um rcsumo das ldl\ia.'!1 de T oynbee. consulte-se: A . :r. To-
ynbee, L'lli.stolro - N. R. F. Paris, 1951.
113
112

I',
.J
nunca tiveram manuais a sua disposigao, nasceram como
subprodutos da motiva~ao de tais estudiosos . ~ mais do
que provavel que nenhum dos grandes vultos da sociologia
universal, um Durkheim, um Max Weber, um Le Play,
um A. Small, um Spencer, viesse a obter aprovagao em
exame de suficiencia a cargo de um dos nossos soci6logos
que acreditam na ortodox.ia metodoJ6gica.
VII1 - 0 PROBLEMA DA PESQUISA SOCIOLOOICA Esses vultos fariam entao aquela experiencia que
NO BRASIL se exprime na exclamagao atribuida a Marx: «moi, je
ne suis pas marxiste».
Nao quero dizer que a -pesquisa sociol6gica seja uma
0 S?ci6logo de paises subdesenvolvidas como O Brasil especie de casa da viuva Costa em que todo mundo
tern. mwt? a ganhar e~ eficiencia, em sua~ investigagoes' mande e faga o que entenda . Longe de mim. Ha, neste
ao, mstrmr-se a respe1to da experiencia de pesquisa do~ terreno, regras de transito. Ha um acervo de preceitos
pai.s~s av~~a~os. Mas, geralmente, par falta de uma e diretrizes resultantes do trabalho sociol6gico universal
«:_ona soc10I6g~ca do trabalho de pesguisa, essa instrugao que t odo verdadeiro pei;quisador deve conhecer profun-
nao lhe apr~ve1ta,. antes. o ini~e, o atemoriza e desestimula damente, sob pena de expor-se e, o que e pior, expor
a s?a capac1da_de mventtva. E gue ele costuma atribuir 0 terceiros a desatinos . Todavia, esses preceitos e diretri-
~arat~r de valida_de absoluta aos criterias metodol6gicos zes nao sao rigidos; sio flex.iveis; sa.o Iemas . Alem disto,
mduz1dos da realidade das nagoes lideres do pensamento. na esfera das ciencias sociais, ha ainda muita oportuni-
. :7ia_ de regra, o soci6logo indigena tende a admitir a dade para a invengao de pro.cessos de pesquisa.
e~t~nc1a do gue se poderia chamar de - ortodoxia meto- Dentro desta ordem de ideias, foi apresentada ao II
do,log1ca. 0 que preceitua o texto estrangeiro acerca de Congresso Latino-Americano de Sociologia, por sua Co-
metodos e p~ocessos de pesquisa lhe parece O correto. missao de Estruturas Nacionais e Regionais, entre outras,
P!ocede, ~~im, de maneira do.gmatico-dedutiva. Entre a seguinte recomendagao:
nos, co1!stitu1 prov8: flagrante disto o fato de que ex:istem «Na utilizac;ao da metodologia sociol6gica, os soci6-
profe~sores e aut or1dades em pesquisa que nunca fizeram logos devcm ter em vista que as exigencias de precisa.o
pesq~1sa, como se esta fosse uma questao de boas e refinamento decorrem do nivel de desenvolvimento das
mane1ras.
A ver?ade, po.rem, e que nao ha ortodoxia em pesgui~
estruturas nacionais e regionais. Portanto, nos paises
latino-americanos, os metodos e processos de pesquisa
Ii
~ · Os me~cdos e processos de investigagao sociol6gica devem coadunar-se com os seus r ecursos economicos e \1
~o uma co1sa na Alemanha, outra na Inglaterra outra na de pessoal tecnico, bem como com o nivel cultural de
. an~a. OU?4a nos Estados Unidos. Isto or ii te d suas populai;oes.» I
aJud star-se as peculiaridades hist6ricas e a~s ;e:ura! d!
ca a uma destas nagoes. Infelizmente foi rejeitada esta recom~mdagao. I
Nas estruturas nacionais e regionais dos paises sub- I,,
,,S6 a meI?,talidade. escolastica da grande maioria dos
soc101ogos Iatino-americanos e gue tais metod desenvolvidos, os problemas se apresentam, ordinaria-
riamente, com tal visibilidade que a sua avaliagao dis-
sPros assumem f~igoes de verdadeiras estatua~s!grp~~:~
ovoca-lhes
utili , 1 al a mdigna"a d t ·
~ o e ves a1s aquele que ameace
A • pensa instrumentos metodol6gicos de alta precisio. Con- I·
za- o!l, . terando-lhes a pureza das linhas confo sideremos, para exemplifica r, a mortalidade infantil. Todo
os compendios os descrevem. rme mundo sabe que nesses paiEes ela e relativamente elevada
~ o en tan to, observo: os metodos e cs processos de e vem sendo medida por meio do que se pode chamar de
pesqmsa que, '.1t~3:lmente, os autores de textos descre- coeficiente classico de mortalidade infantil e que con-
vem foram ordmanamente inventados por estudiosos que siste numa r elagao entre o nfunero de 6bitos de meno,res
de um ano e o numero de nascidos vivos no periodo de
114 I
11 5 !
um ano. Em regra, nos paises latino-a.mericanos esse
coeficiente e superior a cem (100) . ' de amostragem de um conjunto de observacoes, e pre·
~ <?r~, em ~versos paises europeus verificou-se, nas ciso o quadrado e nao apenas o dobro delas.
t:es ultimas decadas, uma queda consideravel da morta- Na verdade, esse raciocinio aplicado a. questao da
lida~e. geral e infantil. Atualmente, esses paises exibem mortalidade infantil pode ser estendido a. maioria dos
coef1c1entes de mortalidade infantil ate da ordem de me- problemas que demandam esclarecimento por meio de
nos de 30 %. Os fatores de tal mortalidade infantil se tor- pesquisa . Os criterios desta nao sao univocos, sujeitam-
naram, portanto, muito sutis, perderam em visibilidade -se as contingencias hist6ricas . 0 uso de normas pre-
e ganhar~m em especificida~e . Vem dai o imperativo de .fabricadas de pesquisa caracteriza precisamente o espe-
serem criados processos maIS refinados para a avaliacao cialista basbaque, desprovido de verdadeiro espirito cien-
do fenomeno. tifico.
~em6grafos europ~us, como Jean Bourgeois-Pichat, Os criterios metodoI6gicos, de carater autentico, nao
co!1Slderam que o 1:ascimento de uma crianca nao e pro- se elaboram por via dogmatico-dedutiva. :m urgente liber-
pr!8:1llente ~m comeco, mas o resultado de um processo tar o especialista latino-americano do culto das normas
m1c1ado ma1s ou menos ha nove meses. Seu desenvolvi- metodal6gicas inseridas nos textos estrangeiros. Princi-
mento pode . ser comprometido par influencias que pare- palmente, e preciso adverti-lo no sentido de utilizar, em
c~m proveruentes da estrutura do embriao ou do orga- termos, as preceitos recomendados em resolu~oes de cer-
nism.a mater~o, sendo provavel que, mesmo depois de tames internacionais. De fato, costuma-se, entre n6s,
nasc1:1os, ~m~1tos menores falec;am em conseqiiencia des- Ievar muito ao pe da letra o que se vota em ccnferencias
sas influencias . Nestas condicoes torna.se necessario realizadas no exterior.
distinguir os 6bitos devidos a tai; influencias daqueles Neste sentido, e significativo que ate a presente data
decorrentes de fatores vinculados ao ambiente. Distin- se observem em toda a America Latina as escalas de
guem-se, pois, uma m?rt.alidade infantil endogena, resul- consumo elaboradas na Europa ou nos E stados Unidos,
tante d~ causas anter1ores ao nascimento ou do pr6prio sem que, ao que se sabe, ninguem <17> se tenha dado c~nta
n:a~atism~ do nascimento: constituicao do embriio, de que foram elaboradas naturalmente tendo em vista
h1g1ene e saude do organismo materno durante a gravidez populacoes daqueles contextos geograficos e de civiliza-
~icul_dade de aleitamento, etc.; e uma mortalidade infan~ !;ii.o. Na medida, pois, em que elas sao .observadas, esta- 1 ',

til exogena, concernente a 6bitos derivados de fatores mos avaliando as neoessidades dos contingentes huma-
8fllbienta~s ~16> • Cogita-se, assim, de exprimir em coefi- nos latino-americanos por meio de criterios heterono-
c1entes d1stintos os dois aspectos descr itos. micos.
Pois bem, s~ria lastimavel a conduta de quem pre- E'.: canfortador verificar que, em seu tempo, ja obser- )
tendesse gene.ralizar no Br~sil a ado<;io desse novo pro- vava Pandia Cal6geras esta mesma desorientagao, na pes-
cesso de med1da da ~o!tal!dade inf.:3-~til, nao s6 porque, quisa industrial praticada no pais, quando escreveu :
neste t erreno, a precISao e s€cundaria em nosso meio «Se a energia hidraulica tivesse predominado sobre
como porque e ate impossivel atingir o refina'tlento e~ os combustiveis nos paises de industrializagao avangada,
paut~, ~endo em vi~t~ as deficiencias do no..,~u nparelho a maioria dos pro.blemas industriais estariam resolvidos
es.tatist1c~, as condi~oes culturais das popula~oes brasi- em funcao da eletricidade. Nos, a quem faltam com-
leiras e amda as disponibilidades financeirae do Estado. bustiveis, coloquemos de novo tais problemas, adotando
Quando os fatores atuantes em dct.~r minada estru- uma variante nova, e amplos horizontes abrir-se-ao a
tura nacional on regional apresentam pouca especificida- nossa perspectiva.»
de; quand? sa~, po; assim dizer, grosseiros, a precisao Em resumo, ha todo um complexo de heteronomia
9-as pe~gwsas e, alem de desnecessaria, financeiramente e de hipercorrec;;i o no trabalho de pe£quisa, na America
1mprat1cavel, se nao fosse ordinariamente impassive}. Latina, que necessita da meclitagao do soci6logo . S6 ha
Basta esclarecer que, para diminuir da metade o erro um caminho para atingir a autonticidade nesta materia:
06) Vlde J . B ourgeols-Pl cbat. «La meaure de la mortallt6 tntan- (17) Por proposta do autor. a Comi!!Silo Nnclonal do Bem-Estar So-
tue., in P opuh.Uon . AVTU-J'uin, 1951.
elal coglta otualmente de estudar a !undo est () p r obl()ma. Nota de 1956:
Es t& Comlssiio fol ext lnta.
116
117
o empirico-indu!i".o, o que parte de situagao concreta
para o plano teonco, o que parte da experiencia para a
regra .
. A; t:aita de origi_nalidade de grande parte do trabalho
soc10Iog1co no Brasil e na America Latina decorre em
Iar~a ~ar~em, ~e que ele se t em orientado de modo hete-
ron~m1co, 1sto. e! obedece a preceitos nao induzidos da
realidade bras1le1ra ou latino-americana.
No que diz :espeito a pesguisa, estamos quase no
~rco zero, P:ec1sc::mos de investigar os pr6prio.s crite-
nos de pesqu1sa aJustados as peculiaridades de nossos IX - PARA UM.A AUTOCRtTICA DA SOCIOLOGIA
prcbl~m~s. Para, encetar esta importante taref a, 0 soci6- BRA.SILEIRA
l~go mdigena ~~a de expurgar de seu espirito os estere6-
bpos metodoloipcos, que lhe inculcou um treinamento
escol3:1" mal or1entado, e reeducar-se e adestrar-se na A despeito da fortissima execragao de que foram
capac1dade de yer, ~em obnubilagoes, os problemas do objeto as ideias que defendi, continuo, cada vez mais, co.n-
se!l. contexto existe~c1aJ; precisa, por um esforQo de auto- victo de sna validade. Para falar apenas do Brasil, e
c:1tica, ?e .reconqwsfar a condigao de novigo diante da com sinceridade, vejo em nossa sociologia a a.meaga de
cll'cunstanc1a que vive . buracratizar-se, de fixar-se em rotina esterilizante, e o
perigo de perder inteiramente o contacto com a vida,
pelas tendencias que manifesta ao enclawruramento, de
fugir a controversia, tendencias estas evidentes nos com-
portamentcs de alguns profissionais que Iideram os
6rgaos que pretendem congregar os especialistas, neste.
terreno.
:I!: este o momento de ser promovida u.roa autocritica
da sociologia brasileira, no sentido de expurga-la dos seus
vicios, de dinamiza-1a com as ideias que estao ja infor-
mando a atividade de muitos brasileiros, e que tern sido
mesmo expressas de modo esparso, em diferentcs oca-.
sioes.
Esta autocritica s6 e possivel, em primeiro lugar,
num ambiente em que se assegure a impessoalidade, em
que se desarmem os espiritos de preven~oes sistematicas.
Nao e raro, em reunioes, comportarem-se os individuos
na base da nao-aceitagao das idefo.s de outros, sejam
quais forem. Ate hoje me intriga, por exemplo, o fato
de que no II Congre.s so Latino-Americana de Socialogia,
entre os meus combatentes mais denodados, incluiam-se
pessoas que, por seus co.mpromissos te6ricos, estavam no
dever irrecorrivel de proceder contrariamente. No entan-
to, oederam a impulsos emociona.is personalissimos. E, O·
que e inacreditavel, persistem ainda assim, opondo as
ideias apresentadas - injurias, cavilagoes, insinuagoes,
reticencias, mentiras, suposigoes e outros fabulosos ardis,
tentando ate aliciar adeptos por meio de versoes ficticias
118
119
I,
J !
~-·~; . .:,r:e. :· .
<>U alucinadas de fatos que nao querem decididamente 1• - As solu~es dos problemas socia1s dos··w¢es
enxergar. . Iatino-americanos devem ser propostas sem ter em vista
. E~ ambiente onde reine tal psicose de grupo, a as condigoes efetivas de suas estruturas !1aci?nais e regio-
discussao se torna, como talvez tenha sido o caso do Con- nais sendo aconselhavel a transplantagao literal de me-
gresso, uma especie de journee des dupes em que os ven- did;s adotadas em paises plenamente desenvolvidos;
c~dores saem logrados e cs vencidos, vitoriosos, porque 2" - A organizagao do ensino da sociologia nos ,P:3-i-
tern a seu favor a colabo.ragao de forgas objetivas. ses Iatino-americanos nao deve obedecer ao propos1to
Outra regra fundamental a ser observada na auto- fundamental de contribuir para a emancipagao cul~ural
critica. e a ?e :inalisar a. P;o~ugao e o trabalho no campo dos discentes, evitando equi~a.-los de instrumento.s m!e-
da ~oc10logia a luz da dinanuca dos fatores reais da vida lectuais que os capacitem a mterpreta~, de. modo ~ute1;1-
nac10nal. 0 criterio de aferigao da validade das ideias tico, os problemas das . estruturas nac1ona1s e reg1ona1s
e a sua congruencia com os fatos. A ciencia e uma forma a que se vinculam;
3, - No exercicio de atividades de aconselha~ento,
de c~>nsciencia do real historicamente vivido e, assim, na
med1da em que e concreta, exprime a dinamica objetiva os soci6logos latino-americanos devem perder de vista as
dos fatores naturais ou sociais. disponibilidades da renda nacional de seus paises, nece~
. ~ec~r~e da~ que o trabalho cientifico nao e uma perf. sarias para suportar os encargos decorrentes das medi-
~ec1a mdiv1duahsta, que sucede na medida do poder inven- das propostas; .
tivo ?e _quern pretende faze-Ia. Ao contra.rio, a ciencia 4~ - No esta.dio atual de desenvolvunento d~s na-
constitl;ll-Se de descobertas, de indugoes de leis inseridas goes Iatino-americanas, e em face de suas necess1da~es
n_a :eahdade c~ncreta. A auto.critica da «sociologia» bra- cada vez maiores de investimento em hens de pro.dugao,
slle1ra i:eyelara que ela esta. profundamente marcada e aconselha.vel aplicar recursos na pra.tica de pesg~isas
pelo espmto de proeza. Nossas obras rotuladas de socio.- sobre minudencias da vida social, devendo se desestrmu-
16gicas, em sua maioria, valem mais como documentoa lar a formulagao de interpretagoes ge~eric.as dos _as~c-
esclarecedo.re~ da biografia _dos que as produzem do que tos global e parciais das estruturas nac1ona1s e reg1on~1s;
como um esfor~o de capta~ao dos processos objetivos da 5'-' - O trabalho socio!6gico deve ter sempre em vista
realidade nacional. que a melhor ia das condigoes d~ vida d~s pop~lagoes nao
Ha, hoje, no Brasil, duas so.ciologias: uma «enlata- esta. condicionada ao desenvolvunento mdustr1al das es-
da»,~ qu~ se fa~, via de regra, nos quadros escolares e truturas nacionais e regionais;
n? amb1to c~nfmado ?e . reunioes e entidades particula- 6• - :e francamente aconselhavel que o trabalho
nst~s de carater academ1co; e outra que se exprime pre- sociologico, direta ou indiretame~te, contribua_para a per-
dommat?tem~nte em comportamentos e que se «pensa>, sistencia, nas nagoes latino-americanas, de estilos de co~-
por assim dizer, «com as maos», no exercicio de ativi- porta.mento de cara.ter pre-letrado .. No que conce.z:ne as
dad~s. execu?vas e de aconselhamento nos quadros dos populagoes indigenas ou afro-amencana_s,_ os soc10log?5
negoc1os pnvado.s ~ governamentais. A primeira, em devem aplicar-se no estudo e na prop~s1gao de 1!3-ecams-
larga escala! tern s1do uma percepgao ilus6ria da reali- mos que retardem a incorporagao dernes contmgentes
dade. do pa1s; . ~ ~egun~a, especie de crisalida, emerge humanos na atual estrutura economica e cultural dos
da v1da comumtar1a nac1onal e se encaminha no sentido paises latino-americanos; . . , .
de tornar-se uma autoconsciencia das leis particulares da 76 _ Na utillzagao da metodolog1a soc1_ol?g1~a, o.s
sociedade brasileira. soci6logos nao devem ter em vista qu~ as ex1genc1as d~
Dir-se-~a q,u~ as teses fundamentais da «sociologia precisao e refinamento decorrem do mvel de des·envolv1-
enlatada», mtrep1damente defendida pelos que me derro- mento das €struturas nacionais e regionais . Portanto,
taram no II ~on~esso Latino-Americano de Sociologia, nos paises latino-americanos, os metodos e processes de
pode~ ser smtebza_das nas seguintes proposigoes que \ pesquisa nao devem coa~un::tr-se com os se?s recursos
c~mstiti:em e n u 1! c. 1a d o s opostos aos que submeti A
discussao do plenano do referido certame:
120
l economicos e de pesso.al tecmco, nem com o mvel cultural
generico de suas populagoes.
121
;
Eis ai todo o programa do que se pode chamar uma
sociologia «quisling:..
Salvo as contribuigoes que podem ser cont adas nos
dedos, a sociologia no Brasil, pelos seus ingredientes ideo-
16gicos, nao contribui para o autodominio do meio brasi-
leiro; nao e, pois, ciencia, mas, acentuadamente, beletris-
mo ou mera composigao academica. Nao esqqego que
figu ras devotadas as ciencias sociais ja formularam
entre nos algumas indicagoes basicas para uma teoria
geral da sociedade brasileira, tarefa que considero urgen- X _ O P ROBLEMA DO NEGRO NA SOCIOLOGIA
tissima, e a que me venho dedicando e da qual dei noticia BRA.SILEIRA
sumaria no roeu estudo «O Processo da Scciologia no
Brasil>. Ai procurei elaborar alguns instrumentos de des- Sohre O problema do negro n? Brasil ex}s!e farta
mascaram ento, aos quais acrescentei outros aqui mesmo literatura de carater hist6rico e s6c10- 3:11tr<?pologico f~o-
neste trabalho. duzida por autores estrangeiros e na~10na1.S: Nesta 1 e-
Mas a elaboragao de uma sociologia nacional e tar efa ratura em sua quase t otalidade, esta JJI1plic1to um mo_do
coletiva e nao individual. Eis por que tenho feito os de ver' as r elac;;oes raciais no pais, que se ~ev~la, nos d~as
maiores esforgos para confundir-me com os meus cole- que correm, em contradi~ao com a~ t endenc1as de au o-
gas, evitando acentuar discordancia. Eis por que estou nomia espiritual e material do Brasil. . ti d
o negro tem sido estudado, no ~rasil, a par r .e
sempre disposto ao debate e desejo que arguam as ideias
que tenho fo.rmulado no sentido de ser conquistada a
autonomia do pensamento sociol6gico, no Brasil, pois do
cat egorias e valores induzidos predomman~emente
alidade europeia. E assim, do ponto_ de v1s~a. da a 1 e
i~;r
controle dos especialistas pode decorrer, nao s6 a cor- ou da 6ptica, os autores nacion~is nao se d1stmguem dos
regao dos meus provaveis erros, como o floresciment o estrangeiros, no campo em aprec;;o. . - . tif"
dos meus acerto.s e ainda o enriquecimento de todos. Por conseqtiencia, a partir de uma .pos1gao c1en 1-
Na promogao da autocritica da sociologia brasileira, ca de carater funcional, ist o e, propor~1onadora d:t .au-
creio ser muito util o emprego de ferramentas de des- toconciencia ou do autodominio da sociedade bras1le1ra,
mascaramento, a fim de que se apresse a liquida<.;ao do im orta, antes de estudar a situagao do .negro tal como
que tenho chamado o «consularismo» do trabalho socio- e !tetivamente vivida, examinar aquela hteratura,. t endo
l6gico em nosso meio. A reagao dos aficionados da «so- em vista desmascarar os seus eq~vcc~s, as suas fieelles,
ciologia enlatada», face acs que a combatem, e, como se e alem disso denunciar a sua allenac;;ao. . .
tern visto, de panico, de prot eger-se, or ganizando-se em ' Aquela literatura e, ela roesma, um. ~ater1al ilustra-
grupos fechados, excluindo a possibilidade de discussao t ivo do que ha de pr oblematico na cond1c;;~o do negro na
e, portanto, insulando os elementos que lhes sao adver- sociedade brasileira. Eis por que tra~re1, nesU:. estudo,
sos, ainda que da maneira mais ostensiva. Realmente, o menos do problema do negro no Brasil do 9-ue deste p~o-
progresso da sociologia cientifica no. Brasil s6 podera blema tal como ele se configurou nos escntos dos soc16-
ocorrer contra ou malgre os profissionais da «linba auxi- logos e antrop6logos. . . b
liar> da expansao cultural dos paises imperialistas . Esta e tarefa preliminar necessaria par.a a e1a ora-
~les tem consciencia disto e defendem os seus inte- glio de uma consciencia sociol6gica, ~ verdad.e1:amente na-.
resses investidos. Nao desconfiam, pore.in, que, sob a clonal, da situagao do homem de cor bras1lerro.
forma de sentimentos, impulsos e intelectualizagao, um CA RATER GERAL DA SOC IOLOG IA E DA
n.ovo levedo opera profundament~ no Brasil. E, persis- ANTROPOLOGI A NO BRAS IL
tmdo em suas posturas superadas, dao-me a impressao
melanc6lica de atores que continuam no palco represen- Para a compreensao do nosso problema do negro, e
tando uma peca serodia sem perceberem que o pano ja necessario que O estudioso se de conta de que, de modo
desceu e o publico ja. se r etirou ...
123
122

... -- --- --...-


de uma circunstancia historicamente ~oncreta. E a. a.utro-
geral, os estudos de sociologia e antropologia no Brasil poloafa no Brasil, est.a fortEmente ahenada do, D:1e10 bra-
refletem o estado em que neste se encontra o tr aba.lho sile:o, 'ja por suas categorias, ja. pela sua tematic3:. A

cientifico. Ate a presente dat a, nao temos, senao em pe- Com efeito as categorias de nossa antropolog1a tem
quenissima escala, uma ciencia brasileira. Nestas condi- sido literalmente transplantadas de paises euroteu~ e dos
goes, o t rabalho cientifico, entre n6s, carece, em larga Estado.s Unidos. Ora, de todas as chama~as c1enc1as so-
margem, de funcionalidade e de autenticidade. De um la- ciais, a antropologia, naqueles centr~s,. e a que se tem
do, porque nao contribui para a autodeterminagao da so- menos depurado de ingredientes ideolog1co~. De modo _ge-
ciedade; de outro !ado, porque o cientista indigena e, via ral a antropolo,gia europeia e norte-amencana _tem s1do,
de regra, um repetiteur, habil muitas vezes, um utiliza- em' larga margem, uma racionaliza~ao 0~1. desp1stamento
dor de conceitos pre-fnbricados, pobre de experiencias cog. da espoliac;ao colonial. llJste fato marca mt1dame1:1t<: ? seu
nitivas genuinamente vividas e, portanto, vitima dos inicio, pois ela comec;ou fazendo dos povos «1:rmutivos>
«prestigios:t dos centros europeus e norte-americanos de 0
seu material de estudo. Entre outr3:5, a. nogJo ~e ra~
investigagii.o. assinalou, durante rouito temp~, as 1mpllca~oes ~peri-
Embora os principios gerais de conhecimento positi- alistas da antropologia. Sob o s1gno desta c_ategona, for-
vo sejam universais, existe, em varios sentidos uma ci- temente impregnada de conotag6es deI?ress1vas, elabora-
encia nacional em todo pais de cultura autentic; Em pri- ram-se no Brasil alguns trabalhos cons1dera?-os represen-
meiro lugar, o trabalho cientifico esta sempre, direta ou tatives de nossa antropologia, entre os qua.is se 111clue~
indiretamente, articulado com um projeto nacional de de- principalmente os de NINA RODRIGUES e «Raga e Ass1-
senvolvimento - o que t ransparece nos objetos em que milagao» de OLIVEIRA VIANA. . , .
incide. Os prablemas cientificc-s radicam-se em situagoes Nao faltaram, porem.. no. Brasil, espmtos como o de
hist6ricamente concretas, embora posi::am ser intrlnseca- SYLVIO ROMERO e EUCLIDES DA ~ que, e~-
mente abstratos. Eis porque a problematica cientifica e bora nii.o inteiramente livres da obnub1lagao do conce~to
uma coisa na Russia, outra nos Estados Unidos, outra de raga proclaroaram a sua desconfianga com respe1!0
na Franga. outra na !llglaterra, outra na Alemanha. O a ele e fizeram os primeiros esforc;;os em proJ ?~ cr1ag3:.o
comportamento dos quadros cientificos, nesses paises, e de uma an tropologia nacional asi:ente em cntenos auto-
- e'tni"cas. . . _
comandado pelas necessidades praticas da sociedade. Nao nomos de avaliagao de nossas rela~oes
e ocasionaJ nem gratuito. Quanta mais coma.ndada seja Neste sentido. e de muito relevo a contr1bu1gao de
a. vida nacional, mais restrigoes a disponibilidade do tra- ALBERTO TORRES e ALVARO BOMILCAR que,_a1:tes
balho cientifico. do atual movimento antropol6gico, !ormularam md1ca-
Alem disso, uma ciencia nacional se caracteriza pelo coes fundamentais para a compreensao do problema ra-
fato de que ~e form.a pedestremente, de modo cumulati- cial no Brasil ,. · · Im te
vo, «assente sobre bases pr6prias, para um crescimento Mas a atual antropologia europe1a e, prmc1pa en ,
evolutivo regular». Ao contrario, nao se elabora revolu- a norte-americana cstao longe de se ter depi;rado de re-
tivamente, pela justaposigao. de conhecimentos importa- .\ sidues ideol6gico.s. Conceitos igualmente eqmvocos como
dos ou pela mera sucessao abrupta de or ientagoes-. J amais
se chega a constituir uma ciencia nacional, se as geragoes
de cientistas nao se articulam no sentido de um labor conti-
f
'
0
de «ra!}a~ tornaram-se basilares no _trabalho antropo-
16gico. Entre eles, os de estrut~ra so;tal, o de acultur~-
c;;ao, 0 de mudall(;;a social, os qua1s sup?em uma concepc;ao
nua e se os especialistas de uma mesma epoca na.o se or- quietista da sociedade e, assiln, contribuem para a ocul-
ganizam para a coopera~o. ta~ao da terapeutica decisiva do~ prob]emas h~manift! e7
. A inobservancia de tais reguisitos retarda o apare- paises subdesenvolvidos_. Tal o:ientagao, adot&d~ ~~
cimento em nosso pais de uma ciencia nacional. Ela e no- mente pelos profissionais de p3:1ses :.omo o Bras , con
t6ria, por exemplo, em nossa antropologia. tu i-se em poderoso fator de ahenagao.
Na verdade, entre n6s, a antropologia nao chega a A contentar-se O antrop6logo com descreve; os com-
constituir uma ciencia nacional. Uma colegao de obras port~entos como implicagoes da estrutura social da c~
niio faz necessariament.e uma ciencia. 0 gue faz uma ci- munidade, concorre para obscurecer o fato fundament
encia e um espirito, uma atitude militante de compreensao
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124
mente subsidiario. Nossos problemas culturais, no sentido
da precariedade hist6rica de tais implicagoes, e quase se antropo~6gico, sao pa:ti~ulares e dependentes da fase de
faz um apologista do aqui e do agora, ou pelo menos um dc::envolvimento econom1co do Brasil. A mudani;a faseo-
interessado na inalterabilidade da sociedade particular I6(7ica de nossa estrutura economica automaticamente
onde atua. Proceder deste modo em face de uma comu- soiucionara t ais problemas. Parece, pois, que em noss.?
nidade pre-letrada e, sem duvida, uma experiencia enri- meio o insulamento do antrop6logo nos quadros .r ~~tr1-
quecedora para o antrop6Iogo pessoalmente, uma expe- tos e formais de sua disciplina limita as suas poss1bilida-
riencia estetica, alias, muito mais do que cientifica. Mas des de compreender exatamente os fatores mediatos, mas
tal atitude, por isso mesmo, e imperialista e espoliativa. basicos, des problemas que pretende tratar. Ne~t:3-s c~n-
0 significado quietista e imperialista desta tenden- digoes, os nossos patricios, cultores desta mat.e~1a, t em
cia antropol6gica e perceptive! ainda mais nos refolhos diante de si uma tarefa cic16pica, qual a de, ut1llzando o
das nogoes de aculturagao e mudanga social. A acultura- acervo de conhecimentos acumuladcs ~niversalm.ente ~e~-
gao supoe o vale.T mais de uma cultura em face de outra, te campo, induzirem da realid8;de. nac1~mal C?_S s<':us ~:r:ite-
do mesmo modo como a superioridade de certas ragas rios de p,ensamento e a~ao. Pois Jama1s serao c1entif1cas
em face de outras, suposta pela antropologia racista. A obras r esultantes da imitagao servil ou da transplanta-
aculturagao nao se faria, assim, pela eugenia, pelo con- gao literal de conceitos e atitudes. ~ cie~cia na.o e. cole-
trole de nascimento e de casament os; faz-se pela incul- ~o de livros, nem tampouco gesticulagao . E estilo de
cagao de estilos de comportamento por meio de processos vid~ , . d
scciais fo.rmais e informais, diretos e indiretos, mas, em Estas deficiencias de nossa antropo.1og1a, e que
tais processos, admite-se sempre uma variavel cultural tambem esta afetada nossa sociologia, sao. ~itidamente
quase indep,endente e outra ou outras dependentes. P or perceptiveis nos estudos sobre o negro bras1le1ro.
outro lado, esta antropologia, quando se torna pratica
ou «aplicada» ( «applied anthropology»), parece tender a H1 ST6RIA S INCERA DOS ESTUDOS SOBRE
considerar a mudanga social em seus aspectos puramen- 0 NEGRO NO BRASIL
te superestruturais, justificando a mudanga social por
intermedio de agencias educacionais e sanitar ias, :llltes A luz de criterio funcional, est.a por fazer, ate agora,
que mediante a altera~o das bases economicas e politi- a hist6ria dos estudos sobre o negro no Brasil e das ten-
cas da ccmunidade. tativas de tratamento pratico da questa.o.
Na medida em que a antropologia no Brasil se ajus- P ondo de lado os escritos de natureza folcl6rica e
ta a este sistema de referencias, d.esserve o pais e con- de car ater puramente hist 6rico e as numeros~s obr~s de
funde os interessados no equacionamento dc·s problemas estrangeiros que nos visitaram na fase colo.n:al e unpe-
nacionais. Os nossos grandes problemas «antropol6gicos> rial d,e nossa formagao, tais como Debr~t, Maria Graham,
sao indecifraveis a luz das categorias habituais daquela Rugendas, Koster, Kidder e outro~, d1scernem-se, neste
especie de ant ropologia. campo tres correntes fundamenta1s.
Os nossos grandes problemas «antropoI6gicos» - o U~a· delas e fundada por SYLVIO ROMERO (1851-
do indio e o do negro - sao aspectos particulares do pro- 1914) que continua nas obras de EUCLIDES DA CUNHA
blema nacional de carater eminentemente economico e (1866~1909), ALBERTO TORRES (1865-1917) ~ 0 ~ -
politico. Dai r esulta que, sem es·t ribar-se na teoria geral da RA VIANA (1883-1951) , e se caracteriza pela atitude.~n~1-
sociedade brasileira, o antrop6logo, em nosso pais, se ex- co-assimilativa dos seus epigon?s, em fac~ da ~1encia
poe a tornar-se uma especie de «mercenirio inconscien- social estrangeira. Apesar das diferentes onenta.goes te-
te», um «inocente util> ou, na melhor das hip6teses, um 6ricas desses autores, todcs eles. estav~ Jnt~ressado.s
esteta. antes na formulagao de uma teor1a do .ti~o etruco b.ras1-
Rigoro~amente, e licito afirmar que, em pais como o leiro do que em extremar as caract.er1sticas pec;1hares
Brasil, o trabalho antrcpol6gico tera sempre sentido dis- de cada um dos contingentes formadores da nagao. No
persivo se na.o se articula com o processo de desenvolvi- que diz respeito ao el~mentoA n~gro, seu~ t!abalhos, em-
mento economico. Na fase em que se encontra, o mero bora ressaltem a sua 1mportanc1a, contribmram para ar-
aspecto «antropol6gico» dos seus problemas e acentuada-
127
126
refecer qualquer tendencia para ser ele co.nsiderado do ma atengao prestada aos. jndios, e· a urgencia se explic~va
angulo do ex6tico, ou como algo estranho na comunidade. em virtude de .que estayam desaparecendo mogambiqueit,
A segunda corrente, que pode ser chamada mono-- banguelas, monjolos, congos, cabindas, cagangues. 0 n~
grafica, e fundada por NINA RODRIGUES (1862-1906), gro -:-dizia - nao e s6 u'a maquina economica; ele e
e se continua nas obras de ARTHUR RAMOS <1>, GIL- antes de tudo, e n.iau grado sui:i. ignorancia, um objetp
BERTO FREYRE e de seus imitadores. 0 elemento .de ciencia.
negro se to.ma «assunto», tema de especialistas, cujos E levando a seria esta .advertencia, SYLVIO ~0-
estudos pormenorizados promoveram, entre nos, movi- ME.RO · dedicou a materia paginas de .grande interes1;1e.
mento de atengao de uma parcela de cidadaos para as Na verdade, incoi:r'eu. em muitos enganos.- mas a maioriJ:'
I. chamados afro-brasileiros. Interessava-lhes o passado da em decorrencia dos instrumentos de estuda que utilizou,
,I
gente de cor ou as sobrevivencias daquele no presente. na epoca muito precarios. . Entr.e os autores em que ~~
Enquanto a primeira corrente viu o elemento de cor pre- .ap6ia incluem-se Taine, Renan, Preville, Broca e Gobinea'U
ponderantemente em devenir, em processo, a ultima in- a ·quem chamou, tom simpatia, «ilustre». · .
clinava-se a adotar ponto de vista estatico, acentuando · E compreensivel, portanfo, que SYLVIO ROMERO
mmuciosamente o que na gente de cor a particularizava tenha formulado a respeito do · negro pronunciamenw~
em comparagiio com os restantes contingentes etnicos da hoje .inaceitaveis. Assim, incorreu. em lap.ce~ em que cha-
comunidade nacional. ma «povos inferiores» aos indJo.s e aos negros; em que
A mais antiga posigao em face do problema do ne- afirma ser o mestigamenta uma das. causas de .certa ~hl~-
gro no Brasil se configurou predominantemente sob a tabilidade mor-a l na .populagao»; .em que chama aos «ar\-
forma de comportamentos mais que sob a forma de es- ·anos»; «a gran.E'le ra~a», «bela ·e valorosa ra~a»; e final-
critos. Caracteriza-se pelo prop6sito antes de transformar .mente,. em que adota ·a ldeologi_a do bra.nqueaniento (uma
a condigao humana do negro na sociedade brasileira do das futuras teses de OLIVEIRA VIANA) nestes termo~:
que de descrever ou interpretar os aspectos pitorescos . 4, p.ao .. .- constituiremos uma nagao de mulato~; poi~ q'Q.e
e particularissimos da situagao da gente de cor; seus .a· forma· branca vai prevalecendo e prevalecera» . ,
pr6gonos e epigonos sao numerosos e se registram desde Mas esses e outr-os sernelhantes. sao .erros. da ci~ncia
a epoca colonial A caracterizagao mais pormenorizada :da epoca e ate estere6tipos populares vigentes no mome~-
desta terceira posigao se fara mais adiante. to em que vive:u SYLVIO .ROMERO. Quando, porem, ·;$e
Na ordem desta exposigao, tratar-se-a de cada uma ·e striba em :;uas pr6prias observagoes e em sua argucia,
destas correntes. Toca, portanto, a vez de focalizar a pri- .SYLVlO ROMERO acerta quase sempre. J!:Ie foi, em fa-
meira delas, o que farei imediatamente, ocupando-me da ce do tema, um ambivaleute, pois,; ape:Sar das referencias
contribuigao de SYLVIO ROMERO. mencionadas acima, esbogou indica~oes fundamentais pa-
ra o estugo e. o tratamento do noi,so problema do negro.
SYLVIO ROMERO E A MESTl<,;AGEM Ao contrario do seu contemporaneo NINA RODR~-
,GUES, lev~ntou em torno do conceito. de raga; caraoteri~-
Interessou-se SYLVIO ROMERO pelo estudo do ele- t ico ·da antropologia eurc_peia, uma suspeita que a cien-
mento negro, eminentemente do ponto de vista da hist6- .cia 111oderna confirmou totalmente. AssJm, referindo-se
ria social. :f: provavel que o primeiro documento que .as contradi~oes reinantes no campo, disse: «Aqui and.~
adverte os nossos estudiosos para este a£sunto tenha .erro conscientemente arranjado e aplaudida», e faloµ
sido o ensaio do autor, A poesia popula.r n-0 Brasil, publi- -_ainda em «capricho para-eneobrir e desculpar os defeitos
cado em «Revista Brasileira» (1879, Torno I, pag. 99). .nacicnais». ·Tambem a este prop6sito esclarece que, nos
«'f: uma vergonha - diz o poligrafo - para a ciencia ·_«paises conquistados e submetidos», -h abitados pelo ·gue
do Brasil, que nada tenhamos consagrado de nossos tra- . os «colonizadores chamam selvagens e genks Enfer.io.-
balhos ao. estudo das linguas e das religioes africanas.~ res», «implanta-se uma crdem de co.tsas em ·que as raga~
Parecia-lhe urgente que se dedicasse aos pretos a mes- inferior.'.}!, nao se ·podem manter». Trat:mdo do problema
da distin~iio das r a~as, escreveu esta advertencia: «O cr\-
Cl) Falecido em 1949. terio para a sua separa~ao e quase puramente lingilistico
128 129
~-a lingliistica e um criterio bem fraco na etnografia, eSi- <;ii.o, 1888), acentuou o cara.ter inautentico da cultura
.pecialmente entre as povos modernos e recentissimos, re- brasileira, decocrente da pratica intensiva e extensiva da
sultantes da fusao de ra<_;as». transplantagao.
'.·, Explicando por que os estudiosos brasileiros nao 0 aspecto dinamico da questao tambem lhe interes-
:tinham dado aten<.;ao ao contingente negro, disse que sou, como se viu ha pouco, tendo estranhado que «ne-
ninguem ate entao se atrevera a isto «com receio do pre• gros e mesti<.;os ilustrados» se mantivessem alheios ao
juizo europeu, que tem sido um dos nossos grandes ma- assunto e, ainda, encarecido medidas praticas de emanci-
les com medo de mostrar simpatia para com os escra- pagao da gente de cor, e o roteiro de estudos que esbogou
viz1ados, e passar por descendentes deles, passar por ilustra que ele compreendeu nao existir uniformidade na
mesti!'.;O»; e admirava-se de que a tarefa ainda nao tivesse situagao do negro no Brasil. Gra~as a sua familiaridade
:sido empreendida por «tantos negros e mestigos ilustra- com os trabalhos da Esco.la de Le Play, pode perceber que
Jdos existentes no pais». Nao lhe escapou tambem o as- tal situagao apresentava nuangas diversas, decorrentes das
pecto pratico do problema do negro, o qual, a seu vev, d.iversidades de zona, de classe e de atividade economica.
exigia «medidas seguras, eficazes e amplas», que «apres- Ha, certamente, duplicidade na posi!'.;iio de SYLVIO
's assem», «precipitassem» a sua «completa emancipagao». ROMERO. Mas, apesar disso, e indiscutivel que em sua
. O roteiro de estudos sobre o negro, delineado pelo obra se delinearam algumas das tendencias mais acerta-
:noSSO autor - e, em essencia, Valido para OS dias que das no estudo ·do negro brasileiro.
correm. Ei-lo: «Seria preciso estudar acuradamente, sob
·multiplos aspectos, cada um dos povos que entraram na EUCLIDES DA CUNHA E A MESTlvAGEM
·forma<_;ao. da na<_;a.o atual; dividir o pais em zonas; em
'cada zona analizar uma a uma todas as classes da popu- EUCLIDES DA CUNHA elaborou os seus estudos
la!'.;ii.o e um a· um todos os ramos da industria, todos os sobre as problemas etnicos no Brasil em epoca em que
:elementos da educa<_;a.a, as tendencias especiais, os cos- os eonceitos de cultura e raga nao estavam perfeitamente
tumes, o modo de viver das familias de diversas catego:. desembaragados um do outro. A distingao entre o pro-
rias, as condigoes de vizinhan<.;a, de patronagem, de g~- cesso biol6gico e o processo social, hoje corriqueira e
pos, de partidos, apreciar especialmente o viver das nitida nos compendios de sociologia e antropologia, nao
-povoa<_;oes, vilas e cidades, as condigoes do operariado tinha sido alcangada ainda pela ciencia do tempo de
em cada uma delas, os recursos dos patroes, e cem Euclides. Entre os autores que mais influiram na formaga.o
outros problemas, os quais, nesta parte da America, a. do autor, incluem-se GUMPLOWICZ e, indiretamente,
ret6rica politicante dos partidos em luta nunca ocorreu RATZEL.
cogitar». Como se sabe, Ratzel foi um dos precursores do con-
O que parece importante ressaltar na posigii.o de ceito antropogeografico de area cultural e, em seu sistema,
SYLVIO ROMERO e o ter conseguido superar a preca- atribuia av .meio um papel de condicionador das mani-
riedade dos instrumentos da ciencia de sua epoca. Assim festagoes culturais do homem. Euclides adotou esta ori-
viu, com precisao, as bases ideo16gicas da antropologia entagao, e em seus estudos, principalmente em Os Sertoes
do seu tempo e esforgou-se em induzir da realidade bra- ·(Rio - 1902), sublinhou a importancia das circunstan-
sileira os criterios de investigagao do «problema» do ne- cias mesoI6gicas como eiementos formadores da socieda-
gro. Gragas a isto, indentificou o sentimento de «vergo- de. A atengao que ele dispensou a este fator o Ievou a
nha~ da camada letrada pelas origens raciais da populagao dar, de um lado, contribuigao de relevo e que consistiu
e inclinou-se pela busca de uma solU<;ao desta inautenci- em reconhecer a heterogeneidade social do pais, em de-
dade. Na equacionamento do problema do negro como de correncia da sua diversidade geografica ( «um meio fisico
outrcs problemas do Brasil, assinalou a deficiencia fun- amplissimo e variavel, completado pelo variar de situa-
damental dos estudiosos: a adogao literal de categorias c;;oes hist6ricas, que dele em grande parte decorreram»).
europeias, das Quais suspeitou com fundamento. Alias Neste sentido, Euclides e um dos fundadores de nossa
SYLVIO ROMERO. em toda sua obra, principalmente sociologia regional. Todavia, a antropogeografia ratzeliana
-em sua famosa Historia d.a Literatura Brasileira. (lt' Edi- e talvez responsavel pelas paginas escritas em «Os Ser-
130 131
toes», em que se atribui ao cli.ma, entr~ outrns influenc1as ·os anfrop6Iogos e soci6Iogos da corrente · que tenho
negativas, a dL inferiorizar QS · contingentes humanos. chamado de «consular> ~2> entenderam escassamente ou
Diz-se ai, por exemplo, que «o calor funido das paragens de nenhum modo o significado profundo de Os Sertoes,
amazonenses» «modela organizagoes tolhigas». preocupando-se em descobrir no livro os erros de tecnica
Por outro lado, Euclides foi vitima da antropologia cientifica. ARTHUR RAMOS o considerou um «terrivel
racista do seu tempo, e viu a nossa forn1a~.io .:i. luz da anatema contra o nosso povo de mestigos» <S>. .
teoria da luta de ragas de GUMPLOWICZ. Assim, segun- .. : Mas e justamente o inverso. Ji: uma tentativa de esti-
do o autor de Os Sertoes, a evolugao cultural de um povo lizagao· dos tipos da sociedade brasileira, ·como ja assina-
define-se, em ultima analise, como evolu!;ao etnica·. «A lou alguem. E como tal, -um documento importante da
nossa evolugao bioI6gica - diz ele - reclama a . garan- precaria ciencia brasileira.
tia da evolugiio social». Para ele, a «mistura de ragas» e Para EUCLIDES DA CUNHA, o mestigo brasileiro
«prejudiciab e o «mes.tigo - mulato, mamaluco ou ca- e, com efeitoi: ret.r 6grado, mas nao em ·carater definitivo.
fuz - menos que um intermediario,. e um decaido, sem Deixara de o ser por meio do processo civilizat6rio : «Es-
a energia fisica dos ascendentes selvagens, ·sem a altitu- ta.mos ·condenados a civilizagao» ..;:,.., diz o .autor. E ainda:
de intelectual dos ancestrais», ou .ainda, e «um desequi. <OU' progredimos ·ou desaparecemos». Foi o «abandono» a
librado» OU um «histerico». . · que ficou relegado o respnnsavel pelos sews comportamen-
De resto, em matetia de relagoes de l'l:iga no Bras il, tos a.trasadcs. Estes comportamentoS', porem, foram vis.
EUCLIDES DA CUNHA equivocou-se tanto quanto, por tos ,'I>elo nosso · auto.r como verdadeiro soci6Iogo, isto e,
exemplo, NINA RODRIGUES . E o que, enttetanto, o fi:>ram vistos dt>mo produtos naturais, que· riao poderiam
diferencia do ultimo e dos seus seguidores sao duas cQisas: .ser·argilidos a: luz de criterios heteronomicos. 'Isto e o que
Jr:m primeiro lugar, a sua atitude critico-assimilativ.~ .em f~ de<:EUCLIDES D:A CUNH:A., em primeiro lugar, um
soc:6Iogo e, em segund6, · um soci6logo br.asileiro. Cien-
face da ciencia. estrangeira, .qu~ ele_utilizou, sem , pa~siyi- tista, apesa-r dos seus -er.ros·de' tecnica; trata dos fatos da
dade e sem basbaquice, ma.s.com plena luci~ez, .repensan.do v.ida brasileira procurando ex.trair da· sua dinamica crite.
os conceitos e as teoria$, a_Iuz dos fatos que coletava., r,ios de· avaliagao objetiva·. Aprendera . com um dos seus
Jamais e surpreendido na pratica de· meros ccnfrontos de mestres, Taine, que o ·vicio e a virtude sao produtos como
textos de cientistas estrangeiros, de dissertagoes douto~ o vitriolo. e o agucar .. ·E, assim procedendo, nao anatema-
rais an6dinas ou do croohet de cita~oes. As paginas de tizow antes estilizou -0s nossos tipos hist6ricos concretos.
seus livros saem inteirigas, expressao direta do ·que o Por exemplo, descreveu os «sertoes» e o «sertanejo», sem
autor pensa. Ha que se sublinhar, pois, aqui, a autentici- n.enhu:tna inclinagao pejorativa : 'rudo indica, em Euclides,.
dade de um esforgo de compreensao merecedor, s6 por uma grave compenetragao do que esta 6ptica envolvia ~e
isso, de ser apresentado como paradigmatico .aos cientistas hostil a.concepgao litoran~ ou europeia dos _aspectos mais
bra.sileiros. genuin9s dq Brasil. Proclamo.u-se um «nan:ador sincero»,
Em fegundo lugar, embora EUCLIDES DA CUNHA do qual disse Tah;1e:
tenha adotado os preconceitos · da antropologia racista,
soube superar a.s suas conotagoes depressivas para os bra- «il s'irrite centre les demi-verites qui sont des
sileiros. Viu, por exemplo, o mestigo brasileiro exatamente demi-faussetes, contre l€s auteurs qui n'alterent
ni une· date, ni une genea,logie, mais denaturent
ao contrario do modo como NINA RODRIGUES e AR- les sentiments ·et !es moeurs, que gardent le des-
THUR RAMOS viram o negro; viu os mestigos como sin des ·evenements et en changent la couleur,
brasileiros «retardados», ccmo «patricios», como «nossos qui ~opient les faits et defigurent l'fune: il veut
irmaos» e nao como elemento ex6tico, estranho ou mumi- sentir en barbare, parmi les -barbares, et, parmi
ficado. Ao ccntrario dos africanfa,tas de mentalidade esta. ·les anciens, en ancien. »
tica, acentuou o carater provis6rio de nosso. quadro de
relagoes de raga e apontou mesmo a terapeutica para (2) Cfr. Guerreiro Ramos, 0 PROCESSO DA SOClOJ, OOIA NO BRA·.
Sll,. Rio 1953.
$l.ltera lo. (8) Cfr. Arth.u r Ramos, LE 1\JETISSAG:E At,, B~~~IL, .H~rmann 8'
Cle.. Paris. 1952.
132
A superioridade de EUCLIDES DA CUNHA, enquan- ciou, portanto, o condicionamento da p~icologia. do povo\
to soci6Jogo, quando comparado a estudiosos como NINA brasileiro e de suas elites pelas condigoes materiais do
ltODRIGUES, ARTHUR RAMOS ou GILBERTO FREY- pais e, assim, incorreu em enganos e erros em muitos.
RE, e nao ter utilizado a ciencia estrangeira simetrica aspectos do seu dign6stico e de sua terapeutica do «pro-
e mecanicamente. Nao importam seus erros. Temos de blema nacionab. .
aprender com ele a assumir atitude integrada na reali- Mas ha, na obra de ALBERTO TORRES, muitas con-
dade nacional. Nao e dificil escrever obras cam o prop6- tribuigoes a incorporar na fonnulagao de uma sociologia
sito de mostrar que se sabe bem uma ligao ou como quem nacional. :ete foi inexcedivel, por exemplo, quando focali-
escreve deveres colegiais . Os acertos dos atuais soci6Io- zou o ca.rater abstrato de nossa cultura. Neste terreno,
gos e antropologos consulares e os equivocos de EUCLI- temos de retomar o fio de seu pensamento e de recolocar,
DES DA CUNHA se equivalem: uns e outros sao impor- no presente, a polemica iniciada por ele . ALBERTO TOR-
tados ou frutos de nossas obnubila~oes pelos «prestigios» RES tocou no ponto central da sociologia brasileira, quan-
ocasionais dos centros estrangeiroo. do escreveu : «As ideias, em que se baseiam os estud~e·
Tivessem os monografistas ou africanistas visto o sociais e politicos ate hoje feitos sobre a nossa vida, par-.
negro no Brasil como EUCLIDES DA CUNHA viu o ser- tem de postulados e dados analiticos ou sinteticos, infe- ·
tanejo, e uma pagina melanc61ica da hist6ria de nossaa ridos da vida e da evolugao de povos de existencia multis-,
ciencias sociais teria sido proveitosamente eliminada. secular, de seu progressivo desenvolvimento em regioes
Qualquer estudante de sociologia ou de antropologia; den.samente povoadas, sob a agao de fatores ordinarios de·
atualmente, e capaz de descobrir os erros do autor de «A fonnagao e desenvolvimento das velhas sociedades e civi-
Hargetn da Hist.6rm:. . Mas nenhum dos nossos soci6Iogos liza~oes . Estas ideias nao tem aplicagao a interpretagao
mais festejados o excede, em autonomia mental, na capa~ dos fenomenas dos paises como o nosso, criados por des-
cidade de ver os problemas brasileiros. cobrimento, com sociedades form-adas por colonizagio - ·
A visao euclidiana do Brasil e, alias, algo a restaurar, nem a solugao de seus problemas.:.
e implica uma altura do espirito que devem esfor~ar-se Na medida em que obedeceu a orientagao de «inferir>·
por atingir os novos soci6logos. Ela tornou dramatica- da realidade nacional os criterios de pensamento e de agao,
mente perceptive! a alienagao da cultura brasileira. A ALBERTO TORRES foi urna das figuras mais represen-.
campanha de Canudos, que Euclides estudou, e descrita tativas da sociologia brasileira. :ele e da estirpe dos «assi-
em Os Serto2S como um epis6dio em que esta alienagao milativos:.. Cada Iivro seu e um monobloco, isto e, tecido
provocou conflito sangrento de brasileiros contra brasi- com um pensamento que segue sua 16gica pr6pria e inde-
leiros, conflito que continua a ser, hoje, em fonna larvar, pendente . Raramente cita, o que tem tornado dificil para
um dado ordinario da vida brasileira. os exegetas a reconstituigao das fontes em que se abe-
E nos dias presentes trava-se no ambito das ciencias berou.
sociais no Brasil uma luta decisiva entre o espirito eucli- No que diz respeito as relagoes de raga no Brasil, a
<liano e o espirito litora.neo ou consular. obra de ALBERTO TORRES resiste com vantagem a com-
para!,iio com as de quaisquer outros que, depois dele, tra-
ALBERTO T ORRES E A MESTl~AGEM taram do assunto. Em certo sentido, os que a sucederam,
no trato da materia, deram um passo atras. Nao tem
Muitas restrigoes merece a obra de ALBERTO TOR- importa.ncia, no caso, que alguns desses ultimos tenham
RES, a qual, por isso mesmo, nao pode ser aceita em sabida mais e que TORRES tenha errado quando afirmou
bloco. Tais restrigoes decorrem principalmente do fato de que o cruzamento produzisse «a degeneragao orga.nica do
ter o autor d'O ProbJema. Nacional Brasileiro (Rio, 1914) individuo» e, por isso, devesse «ser evitado». Tem impor-
adotado uma concepgao psicol6gica da so.ciedade, segundo tancia, sim, que o nosso autor fez, como ninguem, depois
a qual os nossos males poderiam ser erradicados mediante dele, um esforgo para ver as relac;oes de raga no Brasil,
a transfonnagao do cara.ter nacional. Admitiu mesmo que a luz dos fatos da vida brasileira, e nao, literalmente, a
se pudesse formar a nagao de cima para baixo, artificial- partir das categorias da ciencia antropol6gica europeia.
mente, partindo da inteligencia para a vontade. Negligen- Afrontou-as ate, verberando a sua tendencio.sidade. Ass~
134
~,que, pa.ra eie, as teonas de Weissmann sobre a distingao. nos de correlagao das fungoes mentais com os caracteres
if!redutivel das ragas e · de O. Ammon sobre a superiori- : organicos acham-se ainda muito aquem de exato ·conheci-;.
dade da raga teutonica nada mais sao-do que justificagoes~ mento, para que se possa distinguir, em assuntos de impu-
do :«direito de doniinagao», em apaio da ..ri:politica de·expan- tiLbilidade, o fisiol6gico do patoI6gico, o anormal do nor-
sao colonial». Declarou ainda gue «a pretensa unidade da mal, o inumano do humano.» . :.
ra~a. indo-europeia nao e inais do que uma ficgao, resul- · Em 1915, certo escritor brasileiro ve em ALBERTO
1:ante da supremacia politica dos arias sobre as populagoes TORRES um ~depto da tese da inferioridade do nosso
prlinitivas dos ·pafses. conquistados» e mais: que ·«a posigao· mestic;o. Esclarecendo o seu pensamento, escreveu:
e.ventual de superioridade de certos povos emana de :uma «:.. . essa tese abstrata. de etnologia . (o grifo e meu) .... .
s~leQao · hist6rica, que obedece a fatores ou poderes tao nao tern. e nao _pode ter, para cerebros de orien~9a5> ·pra-
artifi.ciais quanto· os que selecionam os 1ndividuos·.» · tica, senao um tribunal julgador: o curso ordinano dos.
: .. ·Em consonancia: eoin estas· verificaQoes, TORRES, ja: fatos , operando ao jogo de todos os elementos e de todos.
e:til mia ·epoca, anteviu· Uma das tendencias mais mo.dernas · os fatores do «habitat» e da vida; ·o joeiramento das sele-
~ : sociologia: a· cfe arquivar o ccnceito de raQa; que lhe: ~oes .. ,: Ora, . essa teoria da desigualdade definitiva· ·das.
P'!l!.e ceu· um «dot mais...abusivos» . Descortina-se. atµalmen- ragas e a premissa maior do siio·g ismo .que leva a conrle-:
te'·~·a ,<Siencia um grande esforgo dos estudios-o.s na busca nagao do «mestiQo:i,, ;· e um dos mais esfor~ados, justamente,
d~.' novo. ?cnceito que: SUJ?€i'~ os inconvenientes do de. raQa, dos meus· trabalhos tem .consistido .·. . em ccmbater a·
I'ecolihec1damente «wn produto de ginastica · mentab, influencia:· dessa teae . .. » .
CO'ino proclamava Jean ·Finot, em 1905 (4). · ., . .. · Atualm:ente, · :parece necessarfo l'econside.rar . certoa
,'; .. A tlOQao: de raga seria ·daquelas, Mino tanfas outras as.pectos da posigao que ALBER'T~ TORRES assu1!1iu '!m.
c6ttentes entre· nos, ·~«deduzidas da otganizaQaO de· outros. face das r.elagoes .de rac;a .no Brasil. De fato, depo1s dele,
paises» ....Ji: em v'irtude de· sua adoQao literal que «o-no.sso os estu~os neste campo deram um passo atras: em parte,
poyo ~ caluniac;lo pelos setrs homens de letras e pelos seus porque, influenciadcs por · NINA RODRIG~S_. se extre-
lio¢ens . de Esfado». Nestas condigoes, ALBERTO TOR- maram em considerar o. negro como uma espec1e d.~ ~orpo
RES· ·colocou o estudo das telagoes de raga em nivel que estranho: na . comunidade nacional; ~m parte, porque -aoa.
nair: :foi ·uiterformente ultrapassado. Muito antes de $€US . auto.res faltaratn vocagiio cientifica e. a.quela capaci-.
AltTHUR RAMOS e · GILBERTO FREYRE, o autor de d-ade pratica que habilitou O 'n osso' ~scritor . a . perceber ~·
«A Organiz~ao Naciona:h mostrou a carencia de . funda- carater «abstra.to» e tendenc.ioso da itntropologia . i~por-
niento- cientifico de. pcsigees como a <le NINA . RODRI- tada. . ' .. . . .
GUES que admitira a te~e «da degeneragiio. de nossa raga . N5.o ·se conclua dai que ALBERTO TORRES .tenh~·
e ·de sua inferioridade intrinseca». Diz· ·ele em a~tigo do ignorado os trabalhos de antropologia d~ fC;l tempo. Nada.
ano. de _1916: «.as .r~as escuras» sao as ragas «pr6prias» mais falso do que isto. , Estava, ao eontrario, a;o. ~or~ente
dos me10s trop1ca1s·, e ... podem, se e que nao ·devem vir das ciencias sociais da. epoca e, por exemplo; fam1harizad~
a i EE!F -ragas superiores ,desses· meios, ·quando a exte~sao com a obra do mestre de GILBERTO. FREYRE, que f~
dos· fatores scciais que estimulam .a dviliza~ao tender a · FRANZ BOAS. Assim e que, tanto quanto qua_lquer scci6-
faze_r das sociedades negras, por exemplo, sociedades de logo de hoje; distinguiu o conceito .de cultura ?o de rag?-
I:;UIZ GAMA e de REBOUQAS». Referindo-se aos «antro-· e pode escrever. observac;oes c~m? esta: «? tipo men.ta~,
pologistas criminais»., em grande voga em sua epoca e em das racas deriva das modalidades do me10 e da vi~a
q~e ·Se baseara NINA RODRIGUES, escreveu em 1916: · social (1915) .» . · · . . .
«Nao rlou a menor fe a essa pretensa crenc:a a.ntropolo~ica Por estas e outras ·contribuigoes, ALBERTO TORRES.
(o grifo e meu), convencido, como estou; que os fatores e, sem duvida, um vulto proeminente. da sociologia br.asi-
~?t~·a!s da evolugao humana envolvem completamente o leira, em toda a plenitude dl:!, expressao: . ·: .
md1v1duo, a ponto de tornar quase, senao de todo, nulos
. OLIVEIRA VIANA, ARIA,NJZANTE
ns determinantes da evolugao individual, e que os fenome- + •• .,

Na historia dos nossos estudp&sopre. relagoes de ra~a,


; ' ,(4) ,J ean F!not. Le . PreJur6 . des Race9, Alea
.n Paris. TrolaliJme.
edftlon, 1908. · OS homc11s' qU:e mais se equivocarani .foram . NINA: R0-
136 . 137
DRIGUES e OLIVEIRA-VIANA . Ambos se basearatn no Segundo quando interpreta o incremento cr.escente da,
pressuposto da inferioridade do negro e do mestigo . To- proporg!o de «brancos» ?a, c?mpo~ig~_o. populacional do
davia, no que diz respeito a atitude assumida em face da· pais como um processo b1olog1co pr1mario.
realidade.nacional, distinguem-se muito significativamente Dispense-me de maiores comentarios sobre o fato ine-.
os dois estudiosos. · · · quivoco de que a «cultura», ~omo repert6rio ,d~ obj_etos e.
· Ha, em NINA RODRIGUES, um certo trago de sado-· simbolos, constitui uma realidade extra-somabca, 1sto e,,
-masoquismo quando· trata de nossa questao etnica, o que a.Igo que cada individuo tem de adquirir na e pela convi-
parece patente em afirmagao como esta: «a raga negra vencia.
no Brasil. . . ha de constituir sempre um dos fatores de O que, no caso, merece particular atengao e a tese do
nossa inferioridade como povo» <G> (o grifo e meu). branqueamento do povo brasileiro. A sua adogao por;
Seguntlo a inteligencia deste ponto de vista, seria insohivel OLIVEIRA VIANA, nos termos acima enunciados, e des-
a inferioridade do povo brasileiro . Neste, o escritor mara~ concertante e nisto se revela certa -ambivalencia no socio~
nhense-baiano teria visto· uma especie de lesao definitiva logo fluminense. Quern acertou tanto na critica tlo caratef
e, brasileiro que era, ao proclama-la, deveria ter sentido transplantado da cultura brasileira, n~o deveria, !6gic~-
na pr6pria carne a imputagao depressiva. · mente incorrer nesse engano. A questao se tornara ma1s
Em OLIVEIRA VIANA, porem, os erros espetacula- desco~certante se o autor reafirmar essa tese em livro de
res que cometeu ao tratar de nossas relagoes de raga sua autoria que esta sendo anunciado (Sel~oes i!:1nicas).,,
refletem o carater geral de sua obra, a qual foi um esfor- pois no ultimo periodo de sua vida, OLIVEIRA VIANA <7>
~o para desenvolver as tendencias autoconstrutivas do foi muito permeavel a influencia dos modemos estudos de
pais . Assim, em varies livros, entrou no assunto com antropologia cultural, todos, sem excegao, imunes dos an-
espirito polemico, isto e, com o prop6sito de rebater a tigos equivocos racistas.
«previsao sombria:. de Lapouge; segundo a qual O Brasil Tudo indica ter sido OLIVEIRA VIANA vitima da
estaria destinado a ser «um imenso Estado negro:. (5a) .. extremagao de uma de suas qualidades: a de fazer da
OLIVEIRA VIANA, embora adotando o criterio das sociologia instrumento de autodeterminagao nacional . Nao
«sele(;oes etnicas» de Lapouge; opoe-lhe a tese da «evolu- hesito em dizer que esta orientagao, digna de tanto aprego,
gao arianizante» da populagao brasileira. Para ele a infe- e perigosa quando nao se esta de posse de instrum~ntos
rioridade do nosso povo, ·resultante de sua componente seguros de conhecimento cientifico. Ora, no que diz res.:
negra, era passageira. Viu as nossas relagoes de raga nao peito ao nosso problema etnico, a obra de OLIVEIRA
como uma _situagao definitiva, mas.como algo em processo. VIANA foi, por assim dizer, uma r eagao infeliz do orgu-
Neste senbdo, escreveu: «. . . o quantum do sangue ariano lho nacional ofendido. No caso, em vez de se fazer cienc~a.
~sta aumentando rapidamente em nosso povo. Ora, esse fez-se apologia.
~u~ento do quant~ ariano ha de fatalmente reagir sobre Um livro como « ~ e A s s ~ » (Sao Paulo,
o tipo antropol6g1co dos nossos mestigos, no sentido de
motlela-los pelo tipo do homem branco» <6>. 1932) pode ser uma defesa, nao um trabalho cientifico. A
critica de ARTHUR RAMOS C8> aos estudos do escritor,
A precariedade cientifica de enunciados como este esta
hoje ao alcance de qualquer colegial. OLIVEIRA VIANA oo que se r efere as rela~oes de ra~a. e procedente: estao
confunde ai o biol6gico com ·o social duplamente. Pri- eivados de afirmagoes aprioristicas, «suas ideias nao
meiro, enquanto admite que um quantum sangilineo possa tinham significado. cientifico, porem politico». Ninguem
f!er responsavel por uma melhoria de carater cultural. perde nada em ler as paginas de ARTHUR RAMOS sobre
o assunto, as quais, de parte algumas inferencias exagera-
(6) Nina Rodrig ues, 0 problema da raca negra, llll- Amfaica Por- das, sao justissimas. Surpreende-me, entretanto, que
tu,ru,esa (publlcado no «Jornal do Comerclo:o, do Rio. em 1903, cm . parte),
Vide tamb~m Os Atrleanos no Brasil, Sllo Paulo, 1932.
ARTHUR RAMOS nao tivesse sido, na mesma medida,
(5a) - «Le Br~sll . . . constltuera sans doutc d 'lei un siccle un Im- rigoroso com NINA RODRIGUES, tambem racista, e, ale~
mense ~tat nl!gre, A molns qu'll ne retourne. et c'est probable, A la bar-
baric> (Vlde G. Vacher de Lo.pouge, L es Sclecti,ats SociAlcs - Parle.
1896. pa.g. 187). (7) O. Viana morreu em 1951.
(6) Vlde 0. Viana, Oa tlpoe ~tnlcos brasllelro,11, (in cDiclonArlo His• (8) Ctr. Arthur Ramos, Le Mttlss&~e &u Bresll, Hermann & Cle.,.
t6rlco e GeogrlL!lco do Bra.ell.> Rio, 1922. · Paris, 1952. ·

138 · 139
di~to, autor de obra sem ·iniportancia cientifica, apesar de- necas de piche>. E ate um jornal mantiveram, em que
eonter alguns uteis registros historicos. fcstej!l,ram as celebridades de cor c10>. Os preconceituosos
De fato, o branqueamento da popula~ao brasileira, a viram nisso - odio. Nao ·era. Era apenas sorri£:o int~-
Iigente, processo brando, cordial, de <<desencantamento;
~r efetivo, nao e um pracesso biol6gico, senao· secunda-
riamente. Em parte, e devido a conhecida tendencia de da brancura e de reeducagaa dos nossos brancos. Alguns
co~sidera.vel contingente de pessoas de ··cor preferirem· aficionados de nossa· sociologia par coeur viram e veei:n
casamento com peEsoas· mai:s claras, tendencia que regis- nisto racismo as avessas. Pudera: a tatica em aprego nao
trei em pesquisa realizada no Distrito Federal, cujos resuI.;.' estava receitada por nenhum so.ci6logo estrangelro; tinha
tados alias confirmani observa~oes· procedidas em otitras que ser condenada, portanto, por esses decoradores.
unidades administrativas e ainda nos Estados Unidos Voltemos a OLIVEIRA VIANA. Suas vistas sobre o
segundo Herskovits. Por outro lado, as pessoas claras; nossa problema etnico se destinaro a uma das gavetas do
por forga do preconceito, sao influenciadas· tambem no .arquivo de nossa ·sociologia. Documentam o nosso precon-
sentido de evita~em pessoas pigmentadas como conjuges. ceito. Nao esco.ndo a minha admiragao pelo escritor . Foi
Acresce.nte-se a 1sto . o sal~o ?o nosso balanga migratorio, um mestre ·apesar dos seus erros. Ao lado de SYLVIO RO-
predommantemente · constitu1do de eleinentos brancos. MERO,EUCLIDES DA CUNHA e ALBERTO TORRES;
Finalmente. na=medida em ·que o branqueamento e apur-a do integra a·corrente autonomista do nosso pensamento sacio-
por ~eio de esta~isticas, deve-se Ievar. em conta a inclinagao· 16gico. Mesmo errando ·ao .focalizar o tema - raga -
de muitos· brasile{ros para se declararem, nas- fichas recen~ saube veneer a tenta~ao de tratar o negro no Brasil como
seadoras, mais claros do que sao realmente. . · :· elemento exotico ·e -petrificado. Tratou-o como brasileiro;
· A tei:e da «.arfa.nizagao», sustentada ·par OLIVEIRA
VIANA,_~ uma r~cionalizag~o do p·r~conceito de· ·cor vigen- .. Nl~A RODRJGUE~, APOLOGISTA DO BRANCO
te em nosso pa1s. Na verdade,.. diz-se. ct>mumente: «no
Brasil, a questao racial esta. sendo resolvida demacratica...: Rigorosamente, NINA ·RODRIGUES seria, na socio1
mente, sem conflitos, pois. que a populagao se torna cada logia brasileira, escritor de segunda ordem. Dele, porem,
ve~. mais clara~. Nessa ideologia, . entretanto, se .contem fizeram um cientista, um «antropologo», e, mais qu~ isto,
qe pi_aneira ~u~to sutil, a discl'iminagao de cor. Pois, .PO; o chefe da chamada «escola bahiana». ARTHUR RAMOS
q_ue e necessariamente me~or que a nossa populagij.o se Considera O -eSCI'.itor maranhense-bahiano um Sabio, Um
~mbr~nquega .? Porventura, numa escala objetiva de valo- µiestre; portado.r de «melhor tormagao cientifica» ,do que
:es, aqu~~8: tendencia deve . ter um sinai pasitivo? Po:r que F.:UCLIDES DA CUNHA e SYLVIO ROMERO. Esta
e.. trang_u~lizador~ . ~guela . tendencia do nos!!o processo l~genda se_fixo':1 tantp, entre nos, que hoje e quase teme~
demogr~f1co? Ha, dE;certo, nos refolhos -d€ssa ideologia, ndade.. tentar desfaze-la. 0 estudo de ccmo a chamada
verdade1ramente nac10nal, um preconceita ein forma vela- ~~sc()la. bahiana» veio a ser impingida e um capitulo escla-
d,a. Para liquida-lo, evidentemente, nal'.> se deverao inver. recedor da ·· socio-antropologia do negro . Restrinjo-m~
~er o~ termos ~!1 ideologia, -p~ocli:mando-se, por exempio·, aqui, entretanto, llO exame sumario da obra de NINA
9-ue fosse deseJavel a «negrificagao» ·da· popula<;;ao nacio- :RODRIGUES, no que diz respeito as relagoes de raga. no
nal: Seria esta atitude uma especie de raci!!Illo contra Brasil. · · '
rac1smo. lnicialroente devem ser lembradas algumas contribui-
· Mas, .n a liquidagao desta'forma larvar de preconceito, goes do escritor. S€m duvida, . ele presto.u grande. servi~o
e legitimo utilizar o classico procedimento <la; ironia. Foi a.os estudiosos, exclusivamente no campo da cronica.
o · caminho que seguiram, ·entre nos, alguns intelectuais Gragas a ele, scbretudo, temos hoje ideia da diversidatle
negros ~ mulatos <9> • :F:: deles a iniciativa de eleger «mis- de proveniencia dos africano.s que foram trazidos para ·o
ses», ramhas· de beleza de cabelo duro. Varias vezes na Brasil e outras informagoes preciosas sobre as diferengas
capital da Republica, fizeram ·suas «rainhas» e· suas ~·bo- culturais entre os negros . Alem disto, sao-lhe devidas
algumas cbserva<;;&s uteis sobre o nosso sincretismo reli-
(9) Agruna.dos sob. o patroelnlo do T eatro El-.:perimen tal .do Negro.
fundado em 1944 no Rio, por um grupo d·e lntelectuals, liderado por .Ab· (10) Tra.ta•,Se do perl6dlco Qoilombo.
dlaa Nascimento. · ·· · ·

1:41
gioso e lingiiistico. Como fonte de informagao hist6rica; cional deles.» No dia eni que se fizer um."estudo da pato-
portanto, e indispensavel a consulta a obra de NINA RO- logia da vida intelectual no Brasil, uma obra como a de
DRIGUES, no estudo de nossas relagoes etnicas. NINA RODRIGUES sera excelente documentario. Quero
· Do ponto de vista cientifico, porem, nao e possivel estiver interessado nisto, nao deixe de examinar especial-
colocar NINA RODRIGUES no mesmo nivel de EUCLI- mente os. capitulos IV e V do livro supracitado.
DES DA CUNHA e SYLVIO ROMERO . Estes, como Mas a beatice de NINA RODRIGUES nao para ai.
aquele, utilizaram conceitos tendenciosos da sociclog~a e Foi ainda admirador irrestrito dos povos europeus e ver-
da antropologia de importagao. Mas, enquanto Euclides dadeiro mistico da raga branca, na sua opiniao, «a mais
e Sylvia souberam desconfiar de tais conceitos e assumi- culta das segoes do genero humano». Assim verbera a
ram, em face do meio brasileiro, atitude indutiva, NINA «desabrida intolerancia para ·com os portugueses», acen-
RODRIGUES, ao contrario, foi verdadeiro beato da cien- tuando que, «sem nogao da mais elementar urbanidade,
cia importada e, por sua atitude dogmatico,dedutiva, era 'clamamos a altos brados que a nossa decadencia provem
impermeavel as ligoes dos fatos da vida nacional. . da incapacidade cultural dos lusitanos. . . ·e nmguem ai
Nao teve espirito cientifico. Foi beato e copista. Nao descobre todav'ia uma parte de ofensa pessoal que lhe
cita escritor estrangeiro sem empregar adjetivo laudato~ possa caber (o grifo e meu)» Ut>. Por outro lado, poucas
rio . Um dos seus livros, As Ra~as Humanas e a Respon~ linhas adiante, lastima que a campanha pela extin9ao do
sabilida.de P enal no Brasil (Bahia, 1894) e dedicado a trafico se revestisse ·de «fornia toda sentimental» «empres-
Lombroso, Ferri, Garofalo, Lacassagne e Corre, «em ho:. tando»» ao «negro a organizagao psiquica dos povos bran-
menagem aos relevantes servigos que os seus trabalhos cos mais cultos», «qualidades, sentimentos, dotes morais
estao destinados a prestar a medicina legal brasileira» . OU ideias que ele nao tinha, que ele nao podia ter>. $em
Alias, estas manifestagoes de extase e esta pacholice defi- comentarios ! ·
nem um dos tragos caracteristicos dos mais proeminentes 0 povo ingles e considerado por NINA RODRIGUES
epigonos do que, entre o pequeno circulo de etnologos bra-
sileiros, se tern chamado de «escola bahiana». Eles gost am, um «tipo legendario de impassibilidade e compostura» e a
coma certa figura do conto de Machado de Assis, de apre- Inglaterra uma nagao benemerita, pois que, no seculo XIX,
sentar-se na companhia de escritores estrangeiros. Dao «encetou a campanha gloriosa da supressiio do trafico,
gritinhos, quando isto acontece. E o .mais recente rebe~to monta cruzeiros, policia os mares e; criando, cam dispen-
dessa «escola» esta fazendo o seu debut, em nosscs dias, dios enormes, enormes esquadras, torna a extingao do
precisamente com esses truques e invocagoes. comercio humano uma questiio de honra. . . que a Ieva a
A ciencia, para NINA RODRIGUES, foi uma questao cabo com a mais decidida e merit6ria energia» (12) • Do
de autoridade . Como um escolastico, nao discutia os fatos ponto de vista desta apologetica do branco, o problema do
com fatos, mas com trechos de livros, estrangeiros sobre- negra passa a consistir, entre outras coisas, em «diluir»
tudo. 0 negro e o mestigo sao inferiores porque. . . assim os nossos negros e mestigos ou em «compensa-los por um
esta escrito nos livros europeus. Leia-se, pro: exemplo, o excedente de popula~ao branca., que assuma a d ~ do
livro citado acima. '.e um verdadeiro caderno de deveres pais» . Considerando «nociva a nacionalidade» a influencia
colegiais. «Prova-se», ai, a incapacidade do negro para a da raga negra, o nosso autor nao esconde as suas apreen-
civilizagao, invo.cando-se a autoridade de escritores estran- soes quanto ao futuro do Brasil, de vez que «as vastas
geiros, entre os quais Abel Havelacque, que teria estudado proporgoes do mestigamento . . . entregando o pais aos
«magistralmente» a questao, «com o rigor cientifico e a
isengao de animo que nao se podera legitimamente con- mestigos, acabara privando o, por largo prazo pelo menos,
testar» . Em outro lance, documenta suas opinioes em da ~ suprema da Ra!la Branca.» Finalmente me seja
«luminoso parecer de segura ana.lise psicologica, firmado permitido transcrever ainda o seguinte trecho de O pro..
pelo egregio alienista Motet e o sa.bio professor Brouardel, blema da ~a negra na America Portuguesa (1903):
insuspeitcs ambos por titulos numerosos». Ou entao fala (11) Vide N. Rodrigues, 0 problema da ra.,:a neg-nr. na Am6rhl'a
assim: «como demonstra Spencer, tao conhecida imprevi- Portug-uesa. 1903.
dencia dos selvagens, tern a sua origem no estado emo- (12) Idem.

142 14}
«0-que mo_i:i\ra o estudo imparcial dos povos noticia de que ele foi homem born, professor digno e crite;.
negros e q"9e entre elles existem graus. ~a uma rioso, mas os seus amigos, pretendendo faze-lo passar fl
escala hierarchica de cultura e aperfeiQoamento. hist6ria co.mo cientista, fizeram-lhe verdadeira maldade,
Melhoram ·e progrid.em: sao, pois, aptos a umil, pois a sua obra, neste particular, e um monumento di:!
civilizaQao futtira. Mas se e impossi~el dizer se asneiras. Por outro !ado, .e inacreditavel desprezo ao
~ssa civiliz~ao ha ae ser forQosamente a'da ra<;;a publico brasileiro atribuir-se a um cidadao como NINA
br;mca, demcnstra ainda o exame insuspeito dos RODRIGUES lugar egregio entre homens como SYLVIO
factos que e extremamente moro.ga, por parte dos ROMERO e EUCLIDES DA CUNHA que, apesar dos seus
' negros, a acqu~siQao da civiliza«1ao .europeia. ~ erros, deram realmente ccntribuic;oes efetivas no campo
deante da necessidade, ou civilizar-se de promp- das ciencias sociais no Brasil. Nao teriam os admiraqores
'to, _ou c_apitular _n~ luc~ e concorrencia que lhes de NINA RODRIGUES extrapolado para o campo das
mov~m as ·p()V_o s qi:ancos, ~ incapacidade ou a ciencias sociais a sua possivel autoridade no campo ; da
morosidade de progredir, por pa.rte dos negro1:1, medicina legal?
.se _ t .9rnam ~quivalentes na praµ~a. Os ext:r~<;>r- 0 certo e que, no campo das ciencias sociais, a melhor
dinarios_pr9gre1?SOS da civ:ilizaQao europ~ia entre- homenagem que se pode prestar as qualidades do cidadao
·.: garam aoa brancos· 0 dominio do mundo, .as suas comum NINA RODRIGUES e fazer silencio a respeito :de
maravilhosas . applica~oes industriaes supprimi- sua obra.
. rain a distancla e o tempo. Impossivel conceder,
pois, aos negros .como ·. em geral aos p9vos fraco.s 0 NEGRO COMO TEMA
~ ..., . - .: e retardatarios, lazere$ e delongas para uma
.acqufsi~ao niuitci lenta e reniota da f!Ua emaric,- Com NINA RODRIGUES, funda-se propriamente a
paQao so<:ial. Em todos os . tempos nao passou ·corrente brasileira de estudos sociol6gicos e antropol6gi:-
de utopias· de philanthropos · ou de plarios ambi- cos tendo por tema - o negro. NINA RODRIGUES era
ciosos de poderio sectario a idea de ttansfcinrtar- racista e a reagao contra seu biologismo foi iniciada quan!"
:· ;se ·wna ·paTte_de nac:;oes- as quaes a necessidade do ele a.inda vivia, isto. e. em 1902. Naqu€le ano, o bri~
de progredir mais do que as imitaQoes moncma- lhante medico bahiano OSCAR FREIRE escreveu sua tes~
, .nia.cas do lib!;!~lismo impoe a nece:,sidade· social «Etiologia das formas concretas da religiosidade no Nort~
da igualqade civil e politica, em tutora· da outra do Brasil», em que pro.curou mostrar as ccnfusoes de NIN4"
'.
parte, desti-n~da a interminavel a.prendizagem ~m RODRIGUES ao imputar a raga manifestaQoes que decor;-
.vastos seminarios ou rifficiflaS prof.i,ssionais. A -reriam de fatores sociais. OSCAR FREIRE chega mes~p.
geral deaappari~ao do indio em toda a America, a defender a mestiQagem, o que, na epoca, significava.
. a_lenta e g'radµal sujei~ao dos povos negros a .muita auda.cia de pensamento, pois corria, entre os do.utos,
· · . administra~ao intelligente e explcrada dos po- _a ideia dos efeitos patol6gicos do cruzamento de individuoi;;-
. vb.s brancos, tem s~do a respcsta pratica a ess~ de ragas diferentes. Vale, porem, notar que, apesar do
· divaga~o~s sentimentaes.» · seu liberalismo, OSCAR FREIRE viu o negro naquilo e:m
que era portador de tr~o cultural esquisito. 0 subtitulo
-. · Sen:ti a necessidade · de- documeritar fartamente as de -sua tese e «introduQao a um estudo de psicologia cri-
,afirmaQoes acima para neutralizar a impres~ao aue ·aJP."um minal».
-leitor· possa ter -a respeito de 0uer'n escr€ve estas linhas, Mas o continuador de NINA RODRIGUES que alcan,..
pois sustento que NINA RODRIGUES e, no plano da _c;ou maior notoriedade foi ARTHUR RAMOS. Como o s~u
,ci~neia _social, uma. nulidade, mesmo :considerando-se a patrono, ARTHUR RAMOS, homem -alias de grandes
.,epoca em qu.e viveu. Nao ha exemplo, no seu tempo, de meritos ,sob varios pontcs de vista, jamais se situ. m em
tanta basbaquice e ingenuidade . . Sua apologia do branco .ciencia. Neste terreno, nao atingiu a maturidade. N~nhu-
nem· maliciosa e, como fora a de Rosenberg (na Alema- ma obra sua reflete unidade te6rica . No plane da ciencia.•
.nha) -. i;: sincera, o que o torna ainda: mais insignificante, foi um sincretico em tOdOS OS seus livros sobre O negrO,
se se pretende considera.-lo soci6Iogo ou antrop6logo .. Ha · t~is como: 0 negro brasileiro (193'!l:); 0 folklore negro d.,
t.45
.
I ..

Brasil (1935); As Culturas Negras no Novo Mundo P?PUla~oes de origem nao europeia jamais poderiam parti-
·{1937) ; A a c u l ~ negra no Brasil (1942) e a Intro- c1par, c~m vantagem e dignidade, da civiliza~ao universal,
,d u~ a. Antropologia Brasileira (1943 e 1947, respecti. cm sua forma contemporanea, sem a posse e o dominio de
vamente, priimiiro e segundo volumes); · grande acervo de elementos culturais do Ocidente. P orem,
,: :£ ainda ARTHUR RAMOS um dos responsa.veis pelo
ARTHUR: RA~OS adotou literalmente o approach da
prestigio que ainda gozam entre nos as correntes norte- acultura~ao e nao percebeu que ela teria limite : nao pode
:_americanas de sociolcgia e de antropologia, de nefasta f~er do h omem de cor um autoflagelado, dividi-lo inte-
:i.nfluencia entre os especialistas em formac;ao, quando riormente, como acontece em toda a part:€ onde areas de
eadotadas de maneira literal. ARTHUR RAMOS, continu- popula~oes caradas estao sendo colonizadas ou pclitica-
.ando a linha de NINA RODRIGUES, pelo prestigio que mente dominadas por contingentes europeus. Faltcu a
-veio a ter nos meios intelectuais, perturbou, na verdade) AR!ffll:R RAM~~ 8: iniciagao em certa sociologia da
a evoluc;ao do pensamento s6cio-antropol6gico genuina- sociologia ou da c1encia em geral, - o que o teria tornado
mente brasileiro, encaminhando-se para o beco sem saida alerta,:para o fato de q_ue, em grandAe parte, a antropologia
·do ecletismo. Fazia, sem rebugos, profissao de fe na europeia e norte--americana a que ele aderiu sem critica
-~fecundidade» da conciliac;ao das doutrinas . «Cada vez e um «caso de cupidez.~ Pesa-me di~r Qu~, em algun~
imais ~e convenc;o - dizia em O Negro Brasileiiro (3~ edi- aspectos, a obra de ARTHUR RAMOS nao esta eximida
c;ao, 1951) - de que as incompatibilidades metodol6gicas de charlatanismo.
se reduzem a questoes de nomenclatura ... »
. Ain~a nesta co:fente da tematiza~ao do negro brasi-
Infelizmente, ele nao tem mesmo ·a desculpa de ter l~1ro se mclue~ d01s certames. 0 primeiro, em 1934, na
sido tal orientaGao imperativo da epoca e do meio em que
-yiveu, pois ja EUCLIDES DA CUNHA, em 1902, verbe- ~1d~?e do Recife, tendo sido seu principal organfzador .o
soe10Iogo GILBERTO FREYRE. Seguiu-se a este em
rava a aceitac;ao passiva da ciencia estrangeira e assumira,
em face dela, posic;ao critico-assimilativa ., Em Os Sertoes, 1937, na Bahia, organizado por AYDANO DO COUTO
·por exemplo, nao se surpreende o autor em nenhuma espe- FE~~Z e EDISON CARNEIRO, o 2° Congresso Afro-
:~ie de prosapia cientificista. Ao contrario, Euclides dete~ -Bras1lerro. Ambos estes conclaves foram predamina.nte-
ve se na considerac;ao direta da. «figura dos nossos patrl- mente academicos ou descritivos. Exploraram O que se
·~ios retarda~rios,» ,de~denhando do que chamou «os gar- pode cha.mar de temas de africanologia, bem como o pito-
bosos neolog1smos etmccs». Por outro lado, nao tomou resc? ~a vida e das religioes de certa parcela de negros
i5 bonde da suspeitissima antropometria, como o seu con- prasileir?s. Apesar da participagao de elementos de cor,
'temporaneo NINA RODRIGUES, e evitou enredar-se em esses do1s foram Congressos «brancas» pela atitude que
«fantasias psicogeometricas» que, dizia, «hoje se exagerani assu~iram em face da questao, como tambem pelos temas
,n:um quase materialismo filos6fico, medindo o a.ngulo fa- focahzados, temas de interesse remoto do ponto de vista
·cial ou tra~ando a norma verticalis dos jagun~os». E acres- pratico. Ma~ isto e dito aqui sem nenhum intuito de empe-
:centava: «se nos embara~a.ssemos nas imaginosas linhas queneoer ta1s Congresses Afro-Brasileiros . £ de justi~a
dessa «topografia psiquica», de que tanto se tern abusado .r econhecer que eles desl:?ravaram o caminho para os movi-
:talvez nao os compreendessemos melhor». ' mentos atuais.
· Em ·seus primeiros trabalhos sobre o negro no Brasil, NINA RODRIGUES, OSCAR FREIRE e ARTHUR
ARTHUR RAMOS utilizou a psicana.lise . Depois aderiu a RAMOS e esses Congresses ilustram com nitidez o que,
-antropologia cultural e adotou o approach suspeitissimo no dominio das ciencias sociais e da cronica hist6rica, se
.da acultura(;ao. Em 1942, publicou A Acultu~o Negra chamou, entre n6s, de «o problema do negro». Para o
no Brasil . Que seria, em ultima analise? Um processo de prop6si!o que me inspira, neste estudo, nao distingo aque-
preserva~ao e expansao da «brancura» de nossa heranc;a les escritores de outros como Debret, Maria Graham, Ru-
-cultural. Mas, a partir da perspectiva do negro, a acultu- g~ndas, Koster, Kidder, Manoel Querino, Roger Bastide,
ra~ao se revela um ponto de vista gue merece muitas Gilberto Freyre e seus imitadores. Ha, certamente, entre
reservas. Como um caso particular da europeiza<,iio do eles, diferen~as de metodo, de tecnica cientifica . Todos
mundo, a acultura~ao e, talvez, inevitavel, pois que as ' A

porem, veem o negro do mesmo angulo. Todos o veem


14~ 147 '


como algo estranho, . exotico, problematico, como nao. colonial, grande ma.ssa de negros e mestiQos tinha abra-
-Brasil, ainda que alguns protestem o contrario. ~ado a religiao predominante no Brasil - a cat6Iica.
Ainda entre esses estudiosos, incluo os mais recentes: Quando, no fim do seculo passado, Nina Rodrigues falou,
Donald Pierson, Charles Wagley, Florestan Fernandes e pela primeira vez, no dominio da ciencia nacional, em
Thales de Azevedo . Como os seus antecessores, continuam problema do negro, a parcela de homens de cor de religiao
percebendo, descortinando no cenario brasileiro - o con- cat6lica era a mais significativa. Mais ainda, ja na epoca
tingente corado, a mancha negra, detendo-se sabre ela, a de Nina Rodrigues as sobrevivencias religiosas, com0 ain-
fim de, sine 'ira ac studio, estuda.-la, explicit. la, as vezes, da hoje, caracterizavam o comportamento da.s classes
discerni-la, quando., em elevadas posi~oes da estrutura pobres, ai se incluindo tanto claros como escuros, muito
social, quase i::e confunde com os mais claros. Anota.se. embora os claros participassem dos cultos primitivos
em tais estudos, a existencia de negrcs .e mestiQos no mais como aficionados ou clientes do que como oficiantes
e~ercicio de profissoes liberais, participando das elites, de praticas sagradas.
unidos a conjuges claros. Um destes autores jovens r efe. Tem sido, tambem, considerada com freqiiencia a
riu-se mesmo a escritos sociologicos sobre o negro de criminalidade do negro . Terao, porem, o negro e seus des-
autoria de um estudioso negro como documentos «curio- cendentes criminalidade especffica? Objetivamente, ainda
sissimos.> nao.
A maior freqiiencia de individuos pigmentados na.
SOCIOLOGIA DO NEGRO, IDEO LOGI A DA BRANCURA estatistica de certos crimes decorre necessariamente de
sua predominancia em determinadas camadas sociais.
A principio, o negro, no dcminio da so.ciologia bra- Assinala um fenomeno quantitativo e nao gualitativo. Por
sileira, foi problema porque ser ia portador de tra~os cul- outro lado, careceria de base objetiva a afirmaQio de que
turais vinculados a culturas africanas, pelo. que, em seu o ne~o no B:asil manifestasse tendencias espedficaa es-
comportamento, apresenta como sobrevivencia. Hoje, senc1a1s na VJda associativa, na vida conjugal, na vida
continua a ser assunto ou problema, porque tende a con- profissional, na vida moral, na utiliza!;ao de processos de
fundir-se peJa cultura com as camadas mais claras da competiQio economica e politica. 0 fato e gue O negro se
popula~ao brasileira. comporta sempre essencialmente como brasileiro, embora,
Neste ponto, e oportuno perguntar: Que e que, no como o dos brancos, esse compartamento se diferencie
dominio de nossas ciencias sociais, faz do negro um pro- segundo as contingencias de regiao e estrato social.
blema, ou um assunto? A partir de que norma, de que ~ negro e tema_. e a~sunto, e objeto de registro, no
padrao, de que valor, se define come pt oblematico ou se Brasil, em todas as s1tua~oes. Um dos mais recentes livros
considera tema o negro no Brasil? Na medida em aue se sobre o negro na Bahia 09> i::e detem precisamente regis-
afirma a existencia, no Brasil, do problema do n€gro, que trando-o em posi~oes de relevo na estrutura social e eco-
se supoe devesse i::er a sociedade nacional em que o ditQ nomica . 0 livro em apreGo exibe varias fotografias em
problema estivesse erradicado? gue aparecem negros medico, homem de negocio univer-
Na minha opinHio, responder a estas perguntas cor:. sitario, pintor, compositor, de resto, situa~oes ve;dad'eira-
responde a conjurar uma das maicres ilusoes da sociologia mente comuns no Estado da Bahia.
brasileira. Observe-se que, em ncssos dias, gra~as ao desenvol-
~terminada condiQao humana e erigida a categoria vimento economi.co e social do p.Afs. elenientos de cor se
de prc,blema quando, entre outras coisas, nao se coaduna enoontram, de alto a baixo, em todas as camadas sociais,
com um ideal, um valor o.u uma norma . Quern a rotula e s6 em algumas instituigoes nacionais vigoram ainda
como problema, estima-a ou a avalia anormal. Ora, o fortes restri!;oes para o seu acesso a detenninadas esferas.
riegro no Brasil e cbjeto de estudo como problema na Nestas condi~oes, o que parece justificar a insisten-
medida em que discrepa de que norma ou valor? cia com gue Ee considera como problematica a situa<;ao do
Os primeiros estudos no campo trataram das formas negro no Brasil e o f ato de que ele e portador de pele
de religio.sidade do negro . Tera, porem,o negro, entre n6s (19) Thplee de A:,evedo, J,rs f;Utu de eou leur dar,g l&lle Vllle Btt·
religiao especifica? Objetivamente, nao. Desde a epoc~ elllene. Edltlio da UNESCO. 1953.

1'48.1 149
escura. A cor da pele do negro parece ·constituir·o obs-
taculo, a anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na cultura
brasileira o branco e o ideal, a norma, o valor, por exce-'
' de.tinham grande soma de poder. As -divindades destas
tribos eram preponderantemente femininas e se relacio,..
navam tom a fecundidade e as vicissitudes das safras.
lencia. Quando os indigenas aprenderam a usar o cavalo, inici..:
E, de fato, a cultura brasileira tern conotagao clara.. ou-se e tomou vulto a mudanga radical das bases materi-'
~ste aspecto s6 e insignificante aparenteroente. Na ver; ais das tribus, as quais adotaram a vida nomade. A caga,
dade, ,iuerece aprego especial para o entendimento do que ganhou· decisiva .importancia, as instituigoes se alteraram·
tern sido chamado, pelos soci6logos, de «problema· do e., inclusive, as divindades, por exemplo, passaram a re••
negro». ·. . 1:: vestir-se de fei~oes masculinas, divindades vinculadas a:
. Constitui, hoje, nogao corriqueira da ciencia a de que coragem, a guerra, a iniciativa. .\
o· processo · blo16gico ·e o ·cultural se realizam em pianos· E, portanto, legitimo afirmar com Simmel que a cul-·
diferentes. Parece definitivamente aceito como resul~do tura e · uma compen~tragilo de elementos hist6ricos e bi.,.
da observagao cientificamente confrolada que a cuitura oJ6gicos: Que ela nao e, par exemplo, produto neutro, do
e realidade superorganica e, portanto, produto da convi.; ponto de vista sexual, podendo ser, de fato, masculina ow
vencia .humana ou do trato do hc.mem com a natureza e feminina. ··r
nunca uma especie de dom, algo que emana de qualidades :, 0 ingrediente biol6gico, a: partir do .qual a cultura,
biol6gicas inatas. · · · elabora alguns dos seus elementos, fazase bastante rtltido.
Mas, partir dai, para nao admitir ~o reflexo na cultura· nos· valores esteticos. Com efeito, o valor estetico prima~.
e na sociedade de·certos acidentes bioI6gicos, vai um gros.; rfo para todo o povo autentico e o vivido imediatamente.•
seiro erro de observagao cientifica. Na verdade, os· aciden: Os padroes esteticos de uma cultura autentica silo esti-
tes biol6gicos, como todos os acidentes naturais, refratam~' lizagoes elaboradas a ·partir da vida ·· comunitaria. Uma·
-se na cultura. Natureza e cultura se interpenetram. 0
• comunidade de individuos brancos tera de erigir a cate-:
Uni soci6logo alemilo, Georg Simmel (14>, meditando goria .de ideal de ·beleza humana o homem branco. 0 ideal
sobre as origens da cultura· ocidental, concluiu que ela· de beleza no Japao, na China, 11a India, reflete realida-·
era nrasculina. No ocidente, constituem ·obra do homem des etnicas, tipicas de cada um desses paises. Por outro,
a industria, a ciencia, o comerdo, o Estado, a -religi~o. As· lado, o tipo de beleza para as sociedades tribais, que se
instituigoes da ·cultura. ocidental assinalariam a prepoten;· mantem ainda integras do ponto de vista cultural, se des-:
cia do homem. Ai o varonil se confunde mesrno com o· prende sempre de ccndigoes etnicas particulares. As dis
«humano». Simmel ilustra esta identificagao do particu- vindades das tribos africanas sa.o negras. No seculo XIV;,
lar con1 0 g~merico, reportando-se a alegagao corrente de· & ge6gtafo Ibn Batouta deplorava o desprezo pelos
que as mulheres carecem de senso juridico ou se inclifiam· brancos que demonstravam os negros sudaneses. A mes•..
sempre para assumir ·atitudes contrarias ao direito. Tal ma aversilo se registra entre os indios pele-vermelha. Os
contradiga.o, e·ntretanto, seria apenas oposigao ao direito Bantus «nao civilizados», informa S. W. Molema, tem 1

mascul:no, 6nico que possuimos, e nilo ao direito em ge.; profunda aversao a toda pele d.iferente da sua; Os nativos
ral. 'Mas para· ilustrar a origem masculina das instittii- da Melanesia, segundo Malinowski, achain os europeus
~oes do Ocidente nao seria necessario apelar para o ca:so horriveis. Certos canibais teriam repugnancia pela came
do djreito. Lembremos gue ate no dominio da decora~ao do hOirJem branco, que eles acham riao «amadurecida» ou.
estetica do corpo da mulher, e o homem, em larga mar- «salgada» e, conforme relates de mais · de um etn6Iog9;.
ge:m, um ditador de criterios, ditador alias obedecido. d6- a.lguns povos africanos associam a pele branca a ideia
cilmente. Ai esta.o para comprovar isto os famosos figu- ¢de des.coloragao de um corpo que permaneceu muito tem~.
rinistas e cabeleireiros de Paris e Nova Iorque ... po dentro da agua». 0 pastor Agbebi refere que, para mui-
Sabe-se que na planicie norte-americana muitas tri- tos africanos, o homem branco exala um odor fetido,
bos eram sedentarias, baseando sua subsistencia no tra- desagradavel ao olfato. E Darwin, que viajou .muito -~
balho agricola, num regime eccnomico em que as mulheres visitou -diversas partes do mundo, escreveu: «. . . a ideia
do que e o belo nao e nem inata nem inaJteravel. Consta-'.'
(14) Georg Slmmel, Cultura femenina y otros eniiayos. Coleccl6n ·Au~·
tral. Buenos Aires. 1944. · ta.mos isso no fato de que hom~µs· de . di,f~r.entes r~~.
150 · 151 ·
admiram entre suas respectivas mulheres tipos de beleza sido observado tecnicamente no Estados Unidos,. no Bra-
ahsolutamente diferentes». <lo> sil e ~ toda. a parte em que populac;;oes negras estao
As categorias da estetica social nas culturas auten• sendo europeizadas. 0 negro europeizado, via de regra, de-
ticas <1s> sao sempre locais e, em ultima analise, sa.o es- testa mesmo refer encias a sua condigao racial. Ele tende
tiliza~oes de aspectos particulares de circunstancia hist6- a negar-se como negro, e um psicanalista descobriu nos
l'ica determinada. Tais categorias sao assimiladas pelo sonhos de negros brasileiros forte tendencia para mudar
individuo na vida comunitaria. Aprende se a definir o belo de pele. 0 que escreve estas linhas teve ocasiao de veri-
ei o feio por meio da convivencia quotidiana, do processo ficar, quando realizava uma pesquisa, o vexame com que
social. Cada sociedade, na medida em que se conserva certas pessoas de cor respondiam a um questionario Eo-
dotada de autenticidade ou de integridade, inculca, em ca- bre preconceitos raciais. Situac;;ao esta analoga a que e
d~_.um de seus membros, pela aprendizagem, padroes de narrada por Kenneth e .Mamie Clark numa pesquisa sa-
avaliagao estetica, os quais reforgam as suas particula.- bre preconceitcs entre criangas negras norte-americanas
ridades. Cada sociedade alcanga, assim, a sua pr6pria so- de 3 a 7 anos, que consistia em solicitar-lhes que esco-
brevivencia, enquanto, pelos seus mecanismos institucio- lhessem, a diversos prop6sitos, bonecas escuras ou cla-
nais, consegue fazer cada individuo indentificado com a ras. De modo geral, os autores registraram entre as cri-
sua; moldura hist6rica e natural. ~ assim que me louvaria angas a preferencia pelo branco. Vale notar que, algumas,
em Karl Vossler <17> para dizer que toda ·a vida orga.nica em face de certas perguntas :em que se tematizava a cor
e:os pr.odutos mentais e materiais do homem estao impreg- preta, se perturbaram a ponto de prorromperem em so-
nados da natureza circundante. lugos, nao suportando enfrentar o tema.
' Todavia, o processo de europeizagao do mundo tem Ora, o Brasil, como s.ociedade europeizada, nao es-
abalado os alicerces das culturas que alcanga. A superio- cap~. quanto a estetica social, a patologia coletiva acima
ridade pratica e material da cultura ocidental face as descrita. 0 brasileiro, em geral, e, ei:pecialmente, o le-
~ulturas nao-europeias ·promove, nestas :u1timas, manifes- trado, adere psicoI6gicamente a um padrao estetico euro-
~oes patcl6gicas.Existe uma patologia cultural que con- peu e ve os acidentes etnicos do pais e a si pr6prio, do
siste~precisamente, sobretudo no campo da estetica social, ponto de vista deste. Isto e verdade, tanto com referenda
na adogao pelos individuos de determinada sociedade, de ao brasileiro de cor como ao claro. l!:ste fato de nossa psi-
padrao estetico ex6geno, nao induzido diretamente da cci,Iogia coletiva e, do ponto de vista da ciencia social, de
circunstancia natural e historicamente vivida. ~. por carater pato16gico, exatamente porqu~ traduz a adog~o
-exemplo, este fenomeno patol6gico o responsavel pela de criterio artificial, estra.nho a °".'ida, para a avalia~ao
a.nibivalencia de certos nativos na . avaliagao estetica. 0 da beleza hum.ana. Trata-se,aqui, d_e ~ caso de alieµagjio
desejo de ser branco afeta, fortemente, os nativos go- que consiste em renunciar a indugao de criterios Iocais
vernados por europeus. Entre negros, R. R. Moton regis- ou regionais de julgamento do belo, por subserviencia in-
trou o emprego do termo «branco» como designativo de consciente a um prestigio exterior.
e:x:celencia e o habito de dizer-se de um homem born que Esta alienagao do padrao de nossa estetica social e
tem um coragao «branco». £::ste «desvio existenciab tem particularmente no.t6ria quando se considera que foram
soci61ogos e antrop61ogos do Estacio da Bahia, por assim
, . (15) err Alan Burns, Le PreJui:6 de Ra.ct, et de Couleur, Payot.
P'arts. 1949.
dizer, de tima terra de negros, de um Estado em que o
. · (1.6) Entende-ee aqul «cultura aut6ntlca> no sentldo deltmltado POr contingente de brancos e, ainda hoje, minoritario, foram
Ed)IVard Saplr. «A cultura aut~ntica niio 6 necessll.riamente alta ou bal·
s:a, 6 apenas lnerentemente harmontosa. equlllbrada, a sl mesmo satlsfa. ~les que se extremaram no estudo do chamado «proble-
t6rla. Jl: a expresslio de uma atltude rlcamente variada e entretant o de
certo modo un!flcada e conslstente em tll.f'e da vlda, uma atitude que vG
ma do negro no Brasil».
o · slgnlflcado de qualquer elemento de clvilizacllo em sua relacllo com to- 0 que explica, portanto, esse «problema»_ de nossa
dos os out ros. 1!;, falando de modo Id eal, uma cultura em que nada delxa
eaplrltualmcnte de ter sentldo. em que nenhuma parte lmportante do ciencia social e uma alienagao, uma forma m6rbida de
eunclonamento geral tr~s. em st. aenso de frustra<:1io. de esf6rco ma! di·
r!gldo ou hostll. N;io 6 um h lbrldo esplrltual de t>lementos contradlt6·
psicologia coletiva, a patologia social do brasileiro e do
dos de cc,mpartimentos estanques de conscl!ncla que e.v lts.m partlclpar bahiano, principalmente. Pode-se dizer, no caso, que se
de uma slntese harmonlosa .> Cfr . Donald Pierson <organl?ador) Estu• esta diante daquilo que Erich Fromm chama «.socially
do11 ~ A O•l!'ftl\lzado S0t'ln1, L !vrarla Marttns Editora SIA. 1949. plig. 291;
; · (17) Karl Vnssler, The Spirit of Lana-uase in Clvlllr.ation, Routle•
d ge- ·&, Kegan Paul Ltd. London. 1951. · ·
patterned defect», de um defeito socialmente padroniza-

1~2 lH -
do, que o individuo reparte com os outros, o que lhe dimi- de rac;a: como fazia N~na . R9drigues em 1890, .na_o o con-.
nui o carater de defeito e o transfor~a em verdadeira sideI'.am expressamente como o problem~ de dilmr. o co1;-
virtude. tingente negr o a fim de assegurar a llderan~a do pais
Talvez a sociologia da linguagem nos ajude a melhor pelos brancos. O probj~ma e, em nosso~ ~lias, colocado em
compreender esta aliena~ao da ciencia social no Brasil, term cs de cult1,1I'.a. Esbma-se como po_:i1tivo o processo d~
no que diz respeito ao negro. a.cultu~o. Mas, repito, a acultura~ao, ~o caso, a um.a
Na epoca helenistica, as camadas letradas das cida~ 8J].alise proftmda, supoe ainda uma espe:1e de def~rn da
des gregas deixaram de falar e desprezavam as Hnguas' brancura de nossa ·heran~a cultu.:al, supoe. ~ conce~to ·da.
locais e se esmeraram no uso de uma ·Jingua geral, a Koine, superioridade intrinseca do .P~drao da es~etica -~oc1al de
que desfrutava de .relevante pre:rt.igio internacional. l!i. arigem europeia. Do contrar10, ·9~e sentido ter1a no~~
sfgnificativo que isto. ac.cmteceti · quando aquela!:> cida~es_ registrar o negro ·ate mesmo part1c1pando da classe doi:u-
perderam a independencia politica. 0 poder era exerc1do nante no pais·? Qu~r sentido teria continuar a ~c~ar «cur1q-,
por ligas ou confederac;oes de cidades ou estava nas mac~ sissimos» como ,se escreve num. dos relator1os para a
de reis que, embora de civiliza~ao helenica, tinham suas UN~sco'. os ccmportament~s do ;t1e~~ a!nda quando-
capitais fora da Grecia propriamente c1s> . . exprimin~o-se nl) plapo artisbco e c1entiflco . . ,
O «problems,. do negro»,. tal -~om~ ~oloca~o !1~ soc10-
," · Na· epoca de Luis· XIV, grac;as ao prestigio e ao Juxo
da corte, a lingua francesa tornou-se· tambem em · todo o logia.brasileira, e, a-luz d~ uma ps!canalise, soc10lo~1ca, ·um
ato de ma-fe ou um equ1voco, e este eq~~vo~o so podera
Velho Continente uma especie de lingua geral das ~ssoas ser desfeito:por meio d11, tomada de consc1enc1a pelo n~sso
distinguidas. · · ·
branco o.u ~lo _nosso negro, cultui:aimente _embr~nquec1do,
Ora, a· aliertac;ao e~tetica anterio~ente assinalada e de sua alienac;ao de sua· enfenmdade ps1col6g1ca. Para,
da mesma especie da. alienac;ao lingilistica . Ambas resul~ tanto, os µocume~tos de nossa s6cio-8:n~rop?l?gia do negr_o
bim:.de uma falta. de suficiencia da coµmnidade, do aµto~ devem ser considerados como -matena.is climcos.
desptezo, de um sentimento coletivo de inferiori~ade, da
re·n(mcia· a criterios naturais de vida; em beneficfo de . Tais documentos sa.o f.rutos de uma visao alie~ada ou
triterios artificiais, dogmaticos ou ·abstratos. ·· · ·· ~onsular do Brasil, de U?1::i- vis3;.o desd~ fora do pa1s. ~~w
pora redigi\ias po~ bras1leiros, ele~ s~ mclu~m na trad1~~
A mim parece neces_sario seguir esta pista na 'analise do~ antigos relatorios par~ o Remo ... , amda q?e, hoJe,
do nosso «problema do negro», negligenciando mesmo os o Reino se metamorfose1e na UNESCO, sediada em
seus · aspectos economicos. 0 que rios interessa aqui lf
fo~a.lizar a questao do a.ngulo psicol6gico, enquanto socjal~ ~arise~ -~pigpnos de nossa s6cio-a~tropolo~ia do nep-~•.
rnehte condicionado, e· atingir a sociologia funcional e cien- desde Nina Rodrig~es, glosam, aqw, as abtud~s (prmc1-
tifica do negro, inteiram.ente por fazer ate agora, desd~ palmente as atitudes) e as categorias dos estudio~~s euro-.
que os estudos da questa.o que se rotulam de 'sc,ciol6gicos f!
antropoI6gicos na.o sao :mais. do que documentos ilustra..:
e
peus norte-ameri~anos, em face do_ assunto. Imc1almen-
te, com Nina Rodrigues· e Oscar Freire, o~ modelcs foram_
tivos da ideologia da brancura ciu da claridade. . .. europeus e a partir de Arthur Ramos, ate esta data,. pas-
Isto acontece desde Nina Rodrigues ate Arthur saram a ~r preponderantemente inspirad?s em hvros
Ramos, e os atuais estudos sobre rela~oes de r a~a,_ patro.: norte-americanos. Assim, a principio, o co~tmgente neg7o
4inados pela UN]IB.CQ o~>. :m c~rto que os modernos ~oci6- foi visto como TaQa inferior a ser errad1cada do me10
logos brasileiros nao definem mais o problema em termo1;1 nacional. Desde 1934, porem, os estudiosos pass8:ram a
(18) A. Mcillet , Apertu d' une Hlstolre de la Langue Gl'eeque. LI:
distinguir raga e cultura e se orient3:ra1;1, predommante-
bralrle- Hachette. Paris. 1980. mente conforme o sistema de referenc1a adotado _Pelos
' (19) - Os estudos sObre o ncgro no Brnsll sob o pntrocinio .d o sociol~gos ianques neste campo, sistema de ~eferenc1a em
UNESCO toram renllzados dentro do melhor po.drilo tccnico, cum exce•
~ do que se r efere ao negro no Rio de J anel. o que toi con!lado a
Luiz Aguiar da Costa Pinto, cldadiio scm q.uo.lificacoes morais e cientt 0
que sao capitais as n?c;oes de «aculturaQa?»,. «hcmem
Clcas., :ltste carreirista,double de s ocl61ogo, anterlormente ja havin come- marginal», 0 par conce1tual «ra~a-classe» e, ultunamente,
Udo grosselro pJaglo. Compar(l-Be de L , A. Costa Pin~, Luta.s de Fa-
inllla•· no Bn.flil (Bras!Jiann, 19•9), com Lo. Ve ng, a.nce Pr1v(,o et Les FOll- a categoria ecologica de «area~, ~ de «est7:11~ur~, a de «fun-::
demepts du . Druit .Internatlon!'I Public, de Jacques Lambert. (Parle,
1936). Vide artigo meu <0 PIAgio>, In O .Jorn.al, edic4o de 17-1-1954.
<:;ao». Via .de regra, e escass1ssuna a or1gmahdade meto•

155 :
dol6gica e conceitual dos autores de tais estudos. Ha per~ ficiencia postiga do s6cio-antrop6Iogo brasileiro, quando
feita simetr ia entre as produgoes dos autores nacionais e trata do problema do negro no Brasil. Entao, enxergo o
as dos estrangeiros. que h:,. de ultrajante na atitude de quern trata o negro
No entanto, a compreensao efetiva da situagao do como um ser que vale enquanto «aculturado» . Entao, iden~
negro no Brasil exigira esforgo de criagao metodol6gica e ti,fico o equivoco etnocentrismo do «branco» brasileiro. ao
conceitual, de que ninguem foi capaz ainda. Ela tern sublinhar a presenga do negro mes:rpa quando perfe1ta,
peculiaridades hist6ricas e sociais insusceptiveis de ser mente identificado com ele pela cultura. Entao, descor~
captadas por procedimentos meramente simetricos, tao e tino a precariedade hist6rica da brancura como valor .
somente pela parafernalia da ciencia social importada. Entao, converto o «branco» brasileiro, sofrego de identi-
Adotando literalmente esta parafemalia, o s6cio-antrop6- ficag·ao·com o padrao estetico ·europeu, num caso de pato-
logo brasileiro contribuiu para confundir aquela situacao \ogia social. Entao., passo a considerar o preto brasi~eir~l~
e, atualmente, o soci6logo que tenta ve-la de modo genufno a,vido de embranquecer se embarac;ado com a sua propr1a
tera de arrostar fortes interesses investidos e macigos pele, tambem como ser psicologicamente dividido . Entao;
estere6tipos justificados em nome da ciencia oficial; de descobre-se-me a legitimidade de elaborar uma estetica
resto, de duvidosa validade funeionaJ. e objetiva. . social de que seja um ingrediente pasitivo a cor negra,
A tarefa que se impoe como necessaria para conjurar Entao, afigura-se-me poEsivel uma sociologia cie~tifica das
esta mistificagao do assunto - o negro no Brasil - e a: relagoes ·etnicas. Entao, compreendo que a soluc;ao do que,
de promover a purgagao daqueles cliches conceituais, e na socjalogia brasileira, se cbama o «problema do negro»,
a. de tentar ·examina-lo pondo entre parenteses as conota;· seria uma sociedade em que todos fossem brancos. EntaQ,
goes de nossa ciencia oficial, e a de tentar o entendimento capacito-me para negar validade a esta soluc;ao.
do tema, a partir de uma situagiio vital, estando. o investi- A partir desta situagao vital, o problema efetivo do
gador, nesta situagao, aberto a realidade fatica e, tambem, negro no Brasil e·essencialmente psicoI6gico e secun~ariar
aberto interiormente para a originalidade. mente economico. Explico-me: Desde que se def me o
Qual sera a situagao vital a partir de que seria melhor negro como um ingrediente normal da populagao do pais.,
propiciada para o estudioso a compreensao objetiva do camo povo brasileiro, carece de significagao falar de pro-
tema em tela? Ao autor, parece aquela da qual o homem blema do negro puramente economico, destacado do proJ'
de pele escura seja, ele pr6prio, um ingrediente, contanto· blema geral das clasEes desfavorecidas ou do pauperismo=
tiue este sujeito se afirme de modo autentico como negro. O negro e povo, no Brasil . Nao e um componente estranh9
Quero dizer, comega-se a melhor compreender o problema de nossa demografia . Ao contrario, e a sua mais impor-
quando se parte da afihnagao - niger snm. Est3: expe- tante matriz demografica : E este fato tern de ser erigido
riencia do niger swn, inicialmehte, e, pelo seu significado
dialetico, na conjuntura brasileira em: que todos querem
a categoria de valor, como o exige a nossa dignidade e o
nosso orgulho de povo independente .. 0 negro no Brasil
ser bra.ncos, um procedimento de alta rentabilidade cienti- nao e anedota, e um para.metro da realidade nacional. A,
fica, pois introduz o investigador em perspectiva que a condigao do negro no Brasil £6 e so.ciclogicamente proble,
liabilita a ver nuangas que, de outro modo, passariam matica em decorrencia da alienagao. estetica do pr6prio
despercebidas. negro e da hipercorregao estetica do branco brasileiro1
Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu .avido de identificagao com O europeu. ,
eu esta. inserido. atribuo a sua cor a suscetibilidade de ser Descortino, portanto, no Brasil, de um lado, um «pro,
valorizada esteticamente e considero a minha conru.gao blema do negrc» tal como e colocado pelos profissionais
etnica como um dos suportes do meu orgulho pessoal - de sociolo.gia e, de outro ]ado, um «problema do negro»,
eis ai t6da uma propedeutica sociologica, todo um ponto tal como e efotivamente vivido. .
de partida para a elaboragao de uma hermeneutica da · A · Iuz da sociologia cientifica, a sociologia do negrq
situagao do negro no Brasil. no Brasil e ela mesma, um problema, um engano a des-
Pois bem, a partir dai se tornam perceptiveis, de razer - o que e6 podera ser conseguido por intermedio d~
repente, as falacias esteticas da socio-antropologia do crltica e da autocritica. Sem critica e autocrltica, alias,
liegro no Brasil. Entao, em primeire lugar, percebo a su. nao pode .haver .ciencia. O espirit~ cientifico nao se"'coa:
157
dun3: com a intolerancia, nao se coloca jamais em posi~ao Tanto quanta o soci6Iogq venha a converter-se a este
de sistematica irredutibilidade, mas, ao contrario, esta im~erativo, empre~ndera tarefa criadora e participara,
sempre aberto, sempre disposto a rever as suas posturas, ass~, d~ elaborac;;ao de uma verdadeira pedagogia nacio-
no sentido de corrigi-las ou supera-las, naquilo em que se nal, 1sto e, de uma pedagogia vivificada por ideias - for-
revelarem inadequadas a percepgao exata dos fatos. A c;;as desprendidas da pr6pria configurac;;ao do pais. Tan to
nossa sociologia do negro e, em larga margem, uma pseu- 9uan~o assim o fizer ~ nossa sociologia, obter-se-a a con-
domorfose, isto e, uma visao carecente de suportes exis- Jurac;;ao do constrangunento discernivel em nossas atuais
tenciais genuinos, que oprime e dificulta mesmo a emer. relac;;oes de raQa - perigo e constrangimento a que Ievou
gencia ou indw;ao. da teoria objetiva dos fatos da vida o fato de se ter hipostasiado o negro na sociedade brasi-
nacional. Imp6e-se, assim, que, entre os que se dedicam leira. . .
ao assunto em pauta, se abra um debate leal e ftanco. . No esforc;;o de induc;;ao da paideia da sociedade brasi-
Precisam os soci6Iogos empreender esta descida a~ infer- le1ra, no q:1': diz respei,to_ as relac;;6es de rac;;a, parece
nos q~e consiste em argUir, em por em duvidas aquilo que ~omento tat:co e estrateg1camente necessario. aquele em
parecia ccnsagrado. Quern nao estiver disposto a esse que se tematiza o nosso branco, tal como dei exemplo aquj.
compro.misso, arrisca-se a petrificar-se em vida, ou a falar Ap_res~o.-~e em declaz:ar; entretanto, que essa tematizagao;
SOzinho, OU a perrnanecer na COndigao de materia bruta do alias m1c1ada por m1m em outra oportunidade <20>, na.o
acontecer, em vez de tornar-se, como deveria con·sciencia pretende con!:ltituir senao expediente a .ser utilizado n6
militante desse acontecer, pela apropriagao do seu signi- processo de desmascaramento de nossos equivocos esteti-
ficado profundo. . · cos, processo, portanto, a ser abandonado tao logo se
A sociologia do negro ta.I coma tern sido ·feita ate alcance aquele cbjetivo. Na verdade, utilizando observacao
,a gora, a Juz da perspectiva em que rqe coloco, e uma de Sartre, pode-se dizer que, no Brasil, o branco t~ni
forma subl de agressao aos brasileiros de cor e como tal 1:e~frut~do ?o privilegio d~ ve~ o ~egro, sem por este
constitui-se num obstaculo para a formagao de 'uma cons! Altuno ser visto. Nossa soc1olog1a do negro ate agora tem
ciencia da realidade etnica do pais. . s1do uma ilustrac;;ao desse privilegio. Em nossos dias,
Ha, inserida na com.unidade racional uma I6gica, cujo -e~!retanto; a estrutura economicAa e-social do pais possi:.
transporte para o piano conceitual constitui uma das tare~ b1ht3: a . nova fase dos estudos sabre relac;;6es · de raga no
fas primordiais do soci6Iogo brasileiro . 0 Brasil, por forc;;a B!as1l, ~ase que se caracteriza pelo enfoque de ta.is rela-
do desenvolvimento de sua riqueza material e de sua cres- ~oes, desde um ato de liberdade do negro. . :
cente emancipa(;ao economica, comega a ter o que se chama . . :m minha convic~ao que desta mudanc;;a de orientac;;ao
de carater nacional, um orgulho nacional e, na medida. resulte, nao um ccinflito insoluvel entre brancos e escuroi
em. que este. ~rocesso avanc;;a, torna-se verdadeiro impe- ma~. uma liquidagao de equivocos de parte a parte e, con~
rat~vo categor1co de nossos quadros intelectuais procurar sequentemente, uma contribuic;;ao para que a sociedade
aphcar-se na estilizac;;ao, na valorizagao de nossos tipos brasileira se encaminhe para a rumo de sua verdadeira
etnicos. <iestinac;;ao hist6rica - a de tornar-se, do ponto de vista j

A soc~ologia no Brasil tern sido, em larga margem; etnico, uma conjunctio opposit,o~. · I.1,
uma espec1e de pa.t.ois ou dialeto da sociologia europeia ,I
PASSADO E PRESENTE DA NOVA FASE
ou norte-americana . Tera, hoje, de procurar tornar-se
tuna autoconsciencia do nosso processo de amadureci.,.
mento. A nova corrente de ideias sobre a co.ndic;;ao do negro I
No 9ue diz respeito as relac;;6es de rac;;a, a sociologia no Brasil, que se corporifica no Teatro Experimental do
no BraS1l, para ganhar em autenticidade, tera de liber- Negro, representa o amadurecimento ou a eclosao de 11
ideias que estavam mais implicitas do que explicitas na
tar-se da postura alienada ou consular, que a tern mar-
cado, e partir, na analise dos fatos, da assunc;;a0 do Bra- . (20) Vlde Guerreiro Ramos. «Sociologla Cllnlca de um Balano Claro>
I
sil (19a). tn O Jornal. Rio 27 de Dezembro de 1953. Neste pequeno estudo expus
que chamel o «complexo glldlc0
o
hipotese de trabalho que 1>retendo desen-
•.
1 ,·

_volver posterlorrncnte nns mlnhas lnvesUga~oe3 sObre a patologla social do


(19a} S6bre usunl)io, vide n~ste livro: Naclonallsmo e xenof\Jbla. cbranco> balano e brasileiro. .

f5s·
conduta de associagoes, grupos ou pessoas desde 'O prin- cia . . 0 processo natural pelo qual a Escravidao fossilizou
cipio da fo.rmagao da sociedade brasileira . A hist6ria d~ nos seus moldes a exuterante vitalidade do nosso povQ
desenvolvimento desta corrente nao pode ser contada aqm durou tocfo o periodo do crescimento, e enquanto a NagaQ
porque nos obrigaria a um pormenor que nao cabe neste nao tiver consciencia de que lhe e indispensavel adaptar a
estudo. Entretanto, pode se dizer sumariamente q~e os liberdade (o grifo e meu) cada um dos aparelhos do seu
marccs desta evolugao foram os trabalhos do africano .organismo de que a escravidao se aprc.priou, a obra desta
Chico Rei que, em Minas G€rais, no principio. do seculo ira por diante, mesma quando nao haja mais escravos
XVIII, organizou um movimento para alfc.rri~r 1:egros (0 Abollcionismo, Companhia Editora Nacional, S. Paulo,
escravos · as confrarlas, os fwide5 de emanc1p~ao, as 1938, pag. 5) ». .
caixas d~ emprestimo, irmandades e juntas, instituigoes No livro de JOAQUIM NABUCO, 0 Abolicionismo,
que recolhiam contribuigoes ·ae homens de cor destinadas escrito . em 1883, se encontram, alias, algumas coJocagoes
a compra de ca~ de alforrias; as insurreigoes de negros qu,e podem perfeitamente ser retomadas,hoje, com al-
mugulmanos no Estado da Bahia; os cha.mados quUombos, _tera~oes apenas formais. Uma delas e o que ele chama
aldeamentos de negros fugido.s, como a famosa Republica de «mandato da raga negra». Parafraseando Nabuco, po~
dos Palmares, em Alagoas, verdadeiro Estado de negros; de dizer-se que, em nossos dias, incumbe ao.s interEssados
o movimento abolicionista em que sobressairam LUIZ no problema em pauta a£sumir em face dele uma «dele-
GAMA e JOS~ DO PATROCINIO, intelectuais negros, e gagao inconsciente da parte dos que a fazem, interpretada
outras iniciativas e associagoes come o Clube do Cupim, pelos que a aceitam como um mandate que se nao pcde
em Recife, as Frentes Negras, de Sao Paulo e da Bahia ... renunciar».
Evidentemente a nova corrente de ideias em que se ALVARO BOMILCAR pode ser considerado como
inspira o autor destas lin_has e gue informa as. atividade:s um pioneiro da nova concepgao das relagoes etnicas no
do T . E . N. registra mamfestagoes como as acima refer1- Brasil. Em 1911 escreveu uma serie de -artigos, na im.
das apenas como antecedentes, mas nao sanciona necessa- prensa da capital da Republica, depois reunidos no livro
riamente os seus intuitos, pois, via de regra, careciam de O Preconooito de Ra~a no Brasil (1916), em que .poe a
elaboragao te6rica e foram , muitas vezes. reagoes agres~- mostra o culto da brancura vigente nas classes dominantes
vas que nao podem ser, hoje, apresentadas camo paradig- ·do Brasil. ALVARO BOMILCAR organizou mesmo um
mas. Salva-se. porem, em todas elas, o esforgo da camada movimento social e politico, em cujo programa se delimi.-
pigmentada, sozinha ou aliada com patricios claros, C?~o tava com clareza a tarefa de liqu~dar os constrangimentos
foi o case do abolicionismo, na buscn. de uma condi~ao entre os brasileiros claros e escuros . Se, do ponto. de vista
humana para o negro, em que ele pudesse ser sujeito de da tecnica s:ociol6gica de hoje, aquela obra de ALVARO
um ato de liberdade. BOMILCAR e precaria, nem por isso deixa de ser o
· Os antecedentes te6riccs mais pr6ximos da nova posi- do.cumento mais importante do diagn6stico cientifico de
gao podem ser identificados em duas figuras de intelec- .nossa questao rn.cial, na fase r-E?publicana. ·
tuais brasileiros, ambos, alias, brancos. Trata-se de JOA- 0 livro O Prooonce:to de R~a no Brasil e um ensaio
QUIM NABUCO e ALVARO BOMILCAR, este ultimo .luciclissimo sobre o sentimento coletivo de inferioridade,
um nome praticamente esquecido. que ALVARO BOMILCAR di£cernia na saciedade · brasi,.
JOAQUIM NABUCO. um dos lideres do abolicionis- leira e que lhe faz:a observar que a despeito das diversas
mo, concebeu, desde 1883, a fase dinamica do tratamento vezes que as ciencin.s se tern enriquecido com o concurso
de nossa guestao negra, em termos que podem ser tidos Jntelectual dtsse grande mestigo - que e o brasileiro _.__
como atuais ainda. Com efeito, este notavel estadista es- 0 nos1:9 criteria academicista e que O sab' o s6 existe. na
creveu em seu livro, 0 Abolicionismo: «Depois que os Europa. :£:ste criterio e o que tern dificultado a elabcragao
ii.ltimos escravos houverem sido arrancados ao poder da autoconsciencia da realidn.de nacional, inclusive da rea,-
sinistro que representa para a raga negra a maldi~ao. da ·uaade etnica do pais. Neste sentido. escrevia BOMILCAR:
cor, sera ainda preciso de£bastar. por meio de um.a educa- ·«No Brasil, pondo de parte SYLVIO. ROMERO e algun!=I
gao viril e seria, a lenta estratificagao de trezentos a:ros ·pkneiros da nossa literatura, de rara combatividade, que•
de cativeiro, isto e, de despotismo, superstigao e ignoran- damo-nos inertes, a es:pera que :um qualquer ~at?io_ da
160 161
Europa venha dizer de n6s aquilo que po.rventura lhe ocor- -Nacional do Negro (1949) e o I Congresso do Negro Bra-
ra, no sentido dogmatico; OU ainda O que O criterio de uma sileiro, realizado em 1950.
permanencia de a lgumas semanas, na ·capital da Republica! Os dirigentes do T. E. N . sabiam e sabem que, de
lhe possa sugerir de agradavel e interessante». E pergun- modo geral, a camada letrada e os «antrop6logos» e «so-
tava· em 1911: «Quern tera a coragem para escrever a ci6:ogos» oficiais nao estavam, coma ainda nao estao, pre-
verdadeira sociologia, a -Cmica que nos convem: a socio~ parados mentalmente para alcan~ar o significado da
logia brasileira ?» <21> iniciativa.
' 0 Teatro Experimental do Negro, fundado em 1944 0 movimento em aprego representa uma rea~ao de
por um grupo liderado por Abdias Nascimento, e, no Brasil, 1nte-lectuais negros e mulatos que, em resumo, tern tres
a manifesta~ao mais consciente e espetacular da nova objetivos fundamentais: 1) formular categorias, rnetodos
- o negro
fase, caracterizada pelo fato de que, no. presente,
se recusa a servir de mero tema de disserta~oes «antro-
e processos cientificos destinados ao tratamento do pro-
blema racial no Brasil; 2) reeducar os «brancos» brasilei-
..pol6gicas», e passa a agir no sentido de desmascarar o~ ·ros, libertando-os de criterios exogenos de com portamento;
preconceitos de cor. 0 T. E . N . patrocinou as Conven~oes 3) «descomplexificar» os negros e mulatos, adestrando-os
Nacionais do Negro, a primeira em Sao Paulo (1944) e 1;1, ·e m estilos superiores de compo.rtamento, de modo que
~egunda no Rio (1947); a Conferencia Nacicn~ ~o Neg.ro .possam tirar vantagem das franquias democra.ticas, em
'(Rio, 1949) e o I Co.ngresso do Negro Bras1leiro (Rio, funcionamento no pais.
1950). Todos estes certames foram animados de prop6- Na realiza~ao do primeiro objetivo, o T. E. N. des-
sitos praticos e nao reunioes de debates academicos. Isto mascarou, de maneira alias muito polida, a antropologia
·nao inipediu, entretanto, que um estudioso como ARTHUR oficial. 0 I Congresso do Negro Brasileiro marca defini-
RAMOS tivesse comparecido, como convidado, a Confe- tiva.mente a nova fase dos estudos sobre o ncgro. Com a
·r encia Nacional do Negro, em cuja sessao final tomou plena consciencia disto, escreveu ABDIAS NASCIMENTO,
parte·, em vesperas de sua viagem para a Europa, onde diretor-geral do T. E. N., em Quilombo n. 5 (janeiro de
faleceu. 1950):
Fundamentado em bases dentificas, de carater socio-
16gico e antropoI6gico, o T. E . N. nunca foi compreendido «O I Congresso Negro pretende dar uma
.pelos pr6gonos da ciencia oficial que, embora nao o hosti- enfa-Ee toda especial aos problemas praticos e
·uzassem francamente, sempre se conduziram em face do atuais da vida da nossa gente de cor. Sempre
:empreendimento ccm desconfian~a. No fundo, percebiam que se estudou o negro, foi com o prop6sito evi-
que o T. E. N . representava mudan~a de 180 graus na dente ou a inten~ao mal disfar~ada de conside-
orienta~ao dos estudos sobre O negro. ra-lo um ser dist ante, quase morto, ou ja mesmo
Todavia, nunca os dirigentes do T .E.N. hostilizaram empalhado como pe~a de museu. Par isso mesmo,
os «antrcp6Io.gos:i> e «soci6logos» oficiais. Foram, na o Congresso dara uma importancia secundaria,
verdade, paclentes com eles. Atrairam-nos mesmo para as por exemplo, as questoes etnol6gicas, e menos
palpitantes, interessando menos saber qual seja
suas. reunioes, certos de que, na medida em que fossem o indice cefalico do negro, ou se Zumbi suicidou-se
sinceros, poderiam ser recuperados. realmente ou nao, do que indagar quais os meios
Vale a pena insistir neste ponto. 0 T.E.N. foi, no de que poderemos lanQar mao para organizar
Brasil, o primeiro a denunciar a aliena~ao da antropolo- associaQ6es e institui~6es que passam oferecer
·gia e da sociologia nacional, focalizando a gente de cor, oportunidades para a gente de car se elevar na
a luz do pitoresco ou do hist6rico puramente, ccmo se se sociedade . Deseja o Congresso encontrar medi-
tratasse de elemento estatico ou mumificado. Esta denun- das eficientes para aumentar o poder aquisitivo
cia e um laitmotivo de todas as realizaQoes do T. E. N. , do negro, tornando-o assim um membro efetivo
entre as quais o seu jornal QUILOMBO, a Conferencia e ativo da comunidade nacional - Guerreiro
Ramos vai mais longe afirmando que essa toma-
(21) Vlde A. BomilCP, OP, cit., J)ll.g. 6L da de pcsiQao de elementos da nossa massa de
162 163
cor ilada mais e do que uma resposta do Brasil ~ assustadora a situa~o dos estudos sobre o negro no Bra-
um apelo do mundo que reclama a participac;ao sil, pois, ate certo ponto, eles criaram «fa.Isa consciencia>
das minorias no grande jogo democratico da cul- da questio. Tranqiiilizaram a consciencia das elites, quan-
tura . E o futuro Congresso, portanto, vem afir- do o caso nio e para isto ainda.
mar que ja existe em noEso pais uma elite de cor Deram-nos a impressio de que tudo corria bem, quan-
capaz de infundir confianga as classes domin:m- do efetivamente tudo corre mal. 0 negro tem sido estu-
tes, parquanto o nosso movimento niio e um diver- dado, entre nos, como palha ou mumia. A quase totalidade
sicnismo, nao visa a objetivos pitorescos e nem dos estudos sobre o tema implica a ideia de que a Aboligao
se caracteriza por aquela irreEponsabilidade que tenha sido uma resolugao definitiva do problema das
infelizmente tern prejudicado a maioria das ini- massas de cor. Depois daquele cometimento espetacular,
ciativas dos negros do Brasil.» nada haveria que fazer senao estudar o negro do ponto
de vista estatico. E assfm os especialistas entraram na
Em 1949, um dacumento <22>, em que se definia o sen- pista dos trabalhos de reconstituig.a o hist6rica, do folclore
tido pra.tico do movimento, rezava: «A condi~ao juridica e de certa antropologia descritiva, por excelencia.»
de cidadao livre dada ao negro (pela Aboligao) f oi um A declaragao final do I Congresso do Negro Brasilei-
avan~o sem duvida. Mas um avango puramente simb6lico, r o, publicada na imprensa brasileira em 4 de Eetembro de
abstrato. S6cio-culturalmente, aquela condi~o nao se 1950, continua sendo ate agora a sfunula mais inteligente
configurou; de um lado, porque a estrutura de dominac;ao de um programa de tratamento objetivo das relagoes
da saciedade brasileira nao se alterou; de outro lado, por- etnicas no pais. 0 documento formula, entre outras, as
que a massa jurldicamente liberta estava psico~ogicamente seguintes recomendagoes:
despreparada para assumir as fungoes de cidadania. As- a) a defesa vigilante da sadia tradigio nacional de
sim, para que o processo de liberta~ao desta maEsa se igualdade entre os grupos que constituem a nossa popu-
positive, e necessario reeduca-la e criar cc.ndigoes sociais lagao;
e economicas para que esta reeducac;ao se efetive. A s:m~ b ) a utilizagio de meios indiretos de reeducaga.o e
ples reeducagao desta massa desacompanhada de correlata desrecalcamento em massa e de transformagio de atitu-
transformagao da realidade s6cio-cultural representa a des, tais como o teatro, o cinema, a literatura e outras
criagao de situagoes marginais dentro da sociedade . E artes, os concursos de beleza, e as tecnicas de sociatria;
necessa.rio instalarem-se na sociedade brasile:ra mecanis- c) a realizagao peri6dica de Ccngressos culturais e
mos integrativos de capilaridade social capazes de dar fun- cientificos de ambito internacional, nacional e regional;
gao e posic;ao aos elementos da massa de cor que se ades- d) a inclusio de homens de cor nas listas de candi-
trare.m nos estilos das classes dominantes (Guerreiro datos de agremiagoes partidarias, a fim de desenvolver a
Ramos, «O Negro no Brasil e um Exrune de Conscien- sua capacidade politica e f ormar Iideres esclarecidos, que
cia»)>. pcssam traduzir em formas ajustadas as tradigoes nacio-
Em 1950, escrevb. em artigo publicado em «A Man:h.a» nais as reivindicagoes das massas de cor;
(10-12-50) - «Os estudos sobre o negro bra.Eileiro»: - e) a cooperagao do governo, por meio de medidas
«Os estudcs sobre o negro no Brasil estao manifestamente eficazes, contra os r estos de discriminagao de cor ainda
atrasados. Nao superamos ainda, neEte particular, a fase existentes em algumas repartigoes oficiais.
do academismo e do epicurismo soc:ol6gico interessado nos Naturalmente, as pcsigoes te6ricas e praticas assu-
aspectos pitorescos da questao . 0 problema do negro no midas no meio brasileiro, pelos representantes da nova
BraEil tern sido focalizado com aquele intuito de descrever, fase, nao podem ser consideradas definitivas. Nelas ha
de €Studar por estudar . A gente toma susto quando faz muito o que discutir e ja se discernem algumas incorregoes,
esta verifica~ao, pois, a primeira vista, tinha-se a impres- contradigoes e ate erros de tatica e estrategia a serem
sao de que havia no pais uma consciencia do problema, evitados daqui por diante. Mas a autocritica deste movi-
criada pelos numerosos livros escritos Eobre o tema . Mas mento, ja iniciada, e outro assunto. 0 que ate aqui se
e precise ter vindo «de fora» para se constatar coma e escreveu pretende ser apenas um relatorio veridico e ho-
nesto da situagao do.s estudos sobre o negro no Brasil.
(22) Vldo Relatoes de R it~a no Ilrnail, nlo. 1950. (Por varios au tores).

164 16.5
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1.

TERCEIRA P ARTE

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I - PATOLOGIA SOCIAL DO «BRANCO»
BRASILEIRO

Hi o tema do negro e ha a vida do negro . Como·


tema, o negro tero sido, entre nos, objeto de escalpclagao
perpetrada por literatos e pelos chamados «antrop6Iogo.s~
e «soci6logos». Como vida ou realidade efetiva, o negrq
vem assumindo o seu dest inp, vem se fazendo a si pr6prio;
segundo lhe tern permitido as condigoes particulares da
sociedade brasileir a . Mas uma coisa e o negro-tema; ou-
tra, o negro vida.
0 negro-tema e uma coisa ex~minada, olhada, vista,
ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de
qualquer modo como um r isco, um trago da realidade
nacional gue chama a atengao.
0 negro-vjda e, entretanto, alga que niio se deixa
imobilizar; e despistador, proteico, .multifrrme. do oual,
na verdade, na.o se pode dar vcrsao definit iva, pois e hoje·
0 que nao era ontem e Eera amanha O que Dao e hoje.
!Mal formuladas as retratagoes verbais do negro no
Brasil, elas ja estao caducas ou ja. se revelam faJsas, por,
que o negro-vida e como .o rio de que fala Heraclito, en1
que nao se entra duas vezes.
Eis por que toda atitude de formalizagao diante ~
negro conduz a aprecia~oes fictas, inadeauadas. enganosas.
E e uma at itude de formalizagao que esta na raiz da quase
t otalidade des estudos sobre o negro no Brasil. -
0 tema das r elagoes de raga no Brasil chega, nestes
dias, a um momento pclemico . Ate aqui se tem falado
numa antropologia e numa sociologia do negro. Hoje, con.,_
digoes objetivas da so.ciedade brasileira colocam o proble-
ma do «branco» e aqueles estudos «antropol6gicos» e «so-
cioI6gicos» rapidamente perdem atualidade.
Ha hoje uma contradigiio entre as ideias e o.s fatos
de no~sas r el~es de ragas. No plano ideol6gico, e domi-
171

j
nante ainda a brancura como criterio de estetica social.
Na p!ano dos fatos, e dcminante na sociedade brasileira mos.generosos, mas ut6picos, come Novicow, ou confcrme
~a camada de origem negra, nela distribuida de alto a perspectiva conservadora; isto e, para estes, patcl6gicas
baixo. seriam todas as tendencias que p€rturbam o equilibrio
, . 0 Tea!1"o Exp~rimental do Negro e a literatura cien- v.atural da sociedade, a sua saude. A saude da rnciedade
!1f1~a por ele susc1tada vem tentando criar uma consci- equivaleria, para diversos organicistas, a um estado de
enc1a ,d~sta ccntradigao e, ao mesmo tempo., desenvolver, que s6 se beneficiam os que integram a classe dcminante.
sob varias formas, uma agao social para reiwlve-la. Nao faltcu mesmo, entre os organicistas, quern, como
~a realizagao desse trabalho, entretanto, estamos Francis Galton e Alexis Carrel, afirmasse que a pobreza
desaJU?~dos, tem?s. de criar os nosscs pr6prios instrumen- e doenga, uma especie de tara e, portanto, um problema
tos praticos e teor1cos. de eugenia.
_ Nes!as c~n.digoes, na elaboragao do presente estudo Tao evidentes falicias do bio-sociologismo o levaram
nao, s~ pod~ utilizar ~ copiosa literatura sociol6gica e antro- a desacreditar-se.
polog1ca sobre relagoes de raga, produzida por brasileiros. Os trabalhos de Durkheim sao um paEso adiante neste
J?e m?do geral,. os nossos especialistas neste dominio tem dominio das ciencias sociais. Em primeiro lugar, pcrque
contr1bufdo ma1s para confundir do que para esclarecer os ele propoe, com toda clareza, e pela pr'meira vez, o pro-
suportes de ~ossa~ relagoes de raga, como pretenda de- blema da definigao do normal e do patoloJ?;ioo. Durkhe;m
monstrar ma1s ad1ante. sustenta €ID sua obra Les Rep:I-es de la 1\1-ethode Sociolo-
Por outro lad·o, receio que alguns leitores, impressio- gique <1 > teses plenamente aceitaveis pela moderna rncio-
n~dos com os aspectos_ verbais 3:parentes deste estudo, logia histo:ricista. Este historicismo transparece, por exem-
nele descubram mtengoes agress1vas. A esses Ieitores plo, quando o autor advert-e que «as condi~oes de saude
asseg~r?, com sinceridade, que o meu prop6sito e, ao e de doen~a nao podem ser dP.finidas in abstraefo» <2 > e
contrario, generoso e pacifista. que «e precirn renunciar ao habito, ainda muito generali-
Isto posto, passemos ao assunto. zado, de julgar uma institui~ao, uma pratica, uma maxima
moral, como se fossem boas ou mas em si mesmas e por
0 tema d.o _Present~ es~udo - «patologia social do si mesmas, para todos os tipos rnciais indistintamente cs>» .
«branco» brasI1e1r<:» - 1;IDP~ca -~ dos mais complicados E, alem disto, para convencer-nrs da boa qualidade de seu
pro~lemas d~ termmolcg1a c1entif1ca. Muitos especialistas historicismo, proclama a necess:dade de renunciar as defi~
~ tern perd1do n~ busca ~e um conceito de «patologia so-
nicoes que pretendam atingfr a «e£sencia dos fenome-
Ciab . Pode a soc1edade f1car doente? Existem enfermida~
des cole~ivas? Se se da uma resposta pcsitiva a tais per- nos <4>».
guntas, e for~osa a. delimitagao objetiva do que se entende Durkheim considera, portanto, o criterio do normal
por «patolog1a soc1ab. como algo a ser induzido das condigoes particulares de
Entre os soci6lc-gos, o tema foi inicialmente tratado cada sociedade e segundo cs seus limites faseol6gicos . Diz
pelcs adeptos do biologi~mo ou do organicismo corrente ele: «para rnber se um fato social e normal nao basta
se~do a q~al a sociedade e um organismo.' Haveria observar sob que fonna ele se apresenta na generalidade
a~s1m paralehsmo entre o mundo social e o mundo biol6- das socied:-ides que pertencem a determinada especie, e
g1co. i:ste paral€lismo e exagerado par uns, moderada~ preciso ainda ter cuidado de consid.era-las na fase ccrres.,.
~e~te proclamado por outros, mas todos cs organicistas pondente de sua evolu~ao (5>». Um fate social- acre£"centa
ace1tam ~ue o soc~al e uma extensao do bio16gico. - nao pode ser dito normal para determinada especie
Adm1~em, assim, que no organismo social ta! come social senao em rela~iio a uma fase, igualmente determi-
no organismo vegetal e animal, ha, entre o~tros, dois nada, de seu desenvolvimento <G>.
estados q'!e se po.dem discernir c~~o normal ou patol6gico. (1) Emile Durkheim, Les Reglcs de la llletho,le Soclologique, Pari!,
Que e .n?i:mal? Que e patologico? A questao e extre- 1950.
mamente ~1flc1I e as solugoes que tern suscitado sao muito (2) Idem. pag. 56.
(3) Idem. p!\gs. 56-57.
contro~ert1das. No .d?minio da sociedade, de mode geral, (4)' ldem, pag. 55.
os soc10logos orgamc1stas definiram o normal ou em ter'.. (5) Idem. pag. 57.
(6) I dem, p{l.g. 56.
172 ·

J
173
Por conseguinte, para Durkheim, a criterio do normal uma comunidade linguistica, religiosa, de valores .esteti';~S
e do patol6gico varia historicamente numa mesma socie- e de costumes. S6 ass;m, diria Gumplowicz, poderia ap?1~
dade. Ele e uma coisa dentro de determinadas condigoes sua autoridade em s6lidos pilares, o que sempre constitw,
desta sociedade. Muda, se estas condigoes se transfor. para todo poder, um valioso elemento de conservagao, uma
mam. 0 nossa soc:6logo foi, mais uma vez, muito preciso efetiva garantia de duraga.o <9>. ;
quando a. este prop6sito esclareceu que certo fato social Estas observagoes de Gumplowicz se coadunam per;
embora generalizado em determinado momento, pode ser feitamente com a de um escritor marxista, G. V. Plekha-
anormal, ·do ponto de vista socicl6gico. «E o que acontece nov, que escreveu: «Na represcn~aga_o do home~, a influ-
nos per:odos de transigao, em que o todo esta em trans- encia das particularidades racia1s ~ao . pode de~ar dE: ~
formagiio sem se ter fixado definitivamente em forma exercer sobre a «ideal de beleza» proprio do art1sta pr1m-1:-
'nova. Neste caso, o -Cmico tipo normal que esteja no pre- tivo. Sabe-se que cada raga, sobretudo nos primeiros est~,
sente, realizado e dado nos fate s , pertence ao passado e, dios do desenvolvimento social, se considera como a ma1s
portanto, nao esta mais em ajuste com as novas candigoes bela e se orgulha antes de tudo daquilo que a distingue das
de existencia. Um fato pode assim persistir. . . sem res- outras ragas (cfr. Les Questions ~ondamentales du ~ac-
pc-nder as exigencias da situagao. Ele nao tern, senao_. xisme. Paris. 1947, pag. 214) ». Plekhanov observa amd~
neste caso, as aparencias da normalidade, pois a generali- que as particularidades da estetica de cada raga subsistem
dade que apresenta e apenas etiqueta falaciosa, uma vez :apenas durante certo tempo, isto e, em determinadas CO_!l.·
que, nao se mantendo senao pela forga cega do habito, digoes (pag. 214). E acrescenta: «_Q~ando uma populag3:9
nao e mais o indice. de que o fenomeno observado esteja e obrigada a recanhecer a superioridade de outra ma1s
estreitamente ligado as condigoes gerais <la existencia desenvolvida seu amor pr6prio de raga desaparece e passa
·coletiva <7l ».
a imitar os 'gostos estrangeiros considerados ate entao
Para superar as dificuldades que as epocas de tran- ridiculos, mesmo vergonhosos e i11. fames (pag. 214) ». ,
sigao apresentam ao esforgo dos que pretendem distinguir
nelas o normal do patologico, Durkhe'm formula esta re- Para gar.~ntir a e~po~aga?, a mii:or!a do1;1in_anJe · ~e
gr a: «Depois de estabelecer, pela observagao, que o fato e origem europe1a recorr1a nao _soD?e.nte J forga, a v10!e~c1a,
.geral, demonstrar se-ao as condigces que determinaram mas a um sistema de pseud0Just1flcagoes, de estereotipos,
·e sta generalidade no passado e procurar-se-a saber, em o.u a processos de domesticagao psicol6gica. A aff_:magap
seguida, se estas ccndigoes perslstem ainda no presente dogmatica da excelencia da brancura ou a deg!ad~g~o este-
ou se, ao contrario, mudaram. No primeiro caso, ter-se-a .tica da cor negra ·era um dos s~portes ps1colog1ccs ~-a
direito de tratar o fenomeno como normal e, no segundo espoliagao. 11::ste mesmo fato, porem, passou. a ser patruo--
de lhe recusar este carater <&>». gico em situagoes diversas, com? a~ de hcJ<:, em que o
Embora nao pretenda adotar estritamente esta regra processo de miscigenagao e de c_apllaridade social <10> absor~
no presente estudo, reconhego que ela prc.picia explica- veu, na massa das pessoas p1gmentadas, larga margem
gao satisfat6ria do carater patol6gico do quadro atual das dos que podiam proclamar-se brancos outrora, e em que
relag6es de raga no Brasff. F ago um parentese para expli- nao ha mais, entre nos, coincidencia de raga C de classe (ll) .
car-me. Mas, fechemos a parentese e prossigamos.
Nas condigoes iniciais da formagao do DO€So pafs, a
desvalorizagao estetica da cor negra, ou melhor, a asso- (9) L. Gumplowlcz. socl6logo austrlaco. sustent~ uma. teorl_a. ritclsta
da. hist6rla. quo. bbvlamente. carece de ,;alldnde !)lenLf lca. T odavia, apesar
ciagao desta cor ao feio e ao degradante afigurava-se "disto, suas anallses dos proces.'los de do'!'lna.<;~o das mlnorlas slio, e.'.'.:
normal, na medida em que na.o havia, praticamente, pes·- multos aspectos, aceitAvels. Vlde o seu ltvro na traduclio espanhola
La Lucha. de Razss, Madrid. S/d. Pltg. 247.
soas pigmentadas sena.o em posigoes inferiores. Para que (10) A capilarldade social ~ um processo slmu!Ul.n t;amente ascendente
a minoria colonizadora mantivesse e consolidasse sua do.- . 8 dcscendente de renovacao nos varlos estratos da '!OC}edade . Abrange do
processo descrlt" nor Vllfredo P areto como «ctrculac;· o de elites e e
minagao sobre as populagoes de cor, teria de promover no chl$MS>. Vlde Vll!redo Pareto. Tralte de S<>dologle, Paris, 2 vols. 1917
meio. brasileiro, por meio de uma inculcaga.o dogma.tica, 0 19
iii> Entre varlos soci6Jogos e antrop61ogos brnsilelrC's ~ corrente a
t ese de que os nossos problemas raciais reflctem determlnadas relacOel!l
(7) Idem. PAgs. 60-61. de classe. Esta tes e ~ tnsuflclente, a meu ver. Expllca a.penas aspectos
(8) Idem. PAg. 61. parciais da questli.o.

:J
Outra tentativa de tratar o tema da patologia social .economia como a sua psicologia coletiva. A norm.a e o ethos
f devida a Eduardo Sprang~r c12>. Este autor porem que lhes siio impostos nao traduzem ordinariamente a sua
coloca a questao em termos abstratos. ' .' imanencia. Como adverte Ckorges Balandier <1a>, estas
Sprang.er co.nsidera a cultura como um superorganis- ·sociedades estao afetadas por um estado cronico de crise
mo que vive sobre os individuos e por cima da cadeia das ·e, em grau maior ou menor, devem ser consideradas como
~era~es, e admite a existencia, em toda cultura, de uma sociedades doentes («societes malades»), a pesquisa de
norma que preside a sua estrutura e seu funcionamento. suas normas coincidindo com a pesquisa de sua auto-regu-
Esta ~~>nna ~le a entende, porem, em termos vagos . A ·lagao. .
enferm1dade e algo contra a norma, contra a «ente!equia Na sociedade brasileira, em larga escala, o ethos, a
diretriz», contra a «ideia normativa» que lhe e imanente. norma, ainda dominantes, sao remanescentes de fases
Alguns antrop6Iogos ~orte-americanos e alemaes aproxi- ultrapassadas de nossa evolugao economico-social, e se
mam-se·desta concepgao de Spranger, quando se repo.rtam destinam a ser superadas em conseqUencia do apareci~
,ao que chamam de patterns (Ruth Benedict) ou ethos mento de novos fatores objetivos que estao ja condicio-
(Kroeber, Margaret Mead) , ou paidewna (Frobenius) nando a vida do pais.
como uma especie de principio metafisico ordenador d~ As dificuldades que envolvem o tema da pato.logia
cultura. social parecem superaveis quando se procede em termos
A pseudociencia de autores como esS€s tem sido leva. casufsticos e concretos. Quero dizer, quando se renuncia a
da_demasiadamente ao pe da letra por mais de um literato ·uma definigao generica da patologia social e se passa a
brasile~o afici?Jlad? da «antropologia» e da «sociologia». m0strar a patologia das situagoes singularmente conside-
Ent~~ eles se mclw Arthur Ramos. que conseguiu fazer ·radas.
Carreir.a de «cientista», e ate de Sabio, em DOSSo pais a :m este o caminho que seguirei. A minha tese e a de
CUSU!; de glosas e ?a divul_gag~? de teorias «antropol6gic~s> que, nas presentes condi~oes da sociedade brasileira, exis,.
de d1scutrvel vahdade c1entifica. A qualidade essencial- te uma patologia social do «branco» brasileiro e, particular-
mente literaria e secundariamente cientifica dos trabalhos menfe, do «branco» do «Norte» e do «Nordest.e». (Aqui,
de A~hur Ramos e patente em seu ensaio sobre Cultu:ra e ·e em ·alguns o.utros lugares deste estudo, as palavras
,Ethos, publicado na revista Cnltura nQ 1 editada pelo «Norte» e «Nordest.e» sao empregadas em seu sentido
Ministerio da Educagao e Cultura. ' ' -popular e nao tecnico-geografico) (13a> •
. Estas orientagoes sao, pcrem, as oue infundem hoje msta patologia consiste em que, no Brasil, principal-
11:a1s reservas. do ponto de vista cientffico. Tais orienta- .mente naquelas regloes, as pessoas de pigmentagao mais
goes perdem t erreno cada dia e se revelam inaceitaveis •clara tendem a manifestar, em sua .auto-avalia~ao. estetica,
pois nao oferec~n:i explic~cao_suficientemente objetiva par~ um protesto contra si pr6prias, contra a sua condigab
o processo genetico dos 1dea1s da cultura ou da sciciedade. ·etnica objetiva . E e este desequilibrio na auto-estimagao,
0 ethos, a ncnna, os patterns da cultura ou da sociedade verdadeiramente coletivo no Brasil, que considero patol6-
nao sao originarios, nao sao incondicionados. ao contrario gico . Na verdade, afeta a brasileiros escuros e claros,
refletem relaroes concretas e se transforma:O quando tai~ :mas, para obter al guns resultados terapeuticos, considerei,
relagoes se alteram. . ·aqui, especialmente, os brasileiros claros.
_E muito perigoso, na ana.Hse sociol6gica, partir da Para dar um flagrante de como o brasileiro considera
nc~ao.de ethos, ou nonna, como s:e tais co.isas fossem inde- vexat6ria a sua condigao racial, parece-me bastante ilus-
pendent,es ou desvinculadas dos elementos materiais da :trativo um documento de nossa estatistica oficial . Trata-se
~ultura. Nas sodedades coloniais, o ethos, a norma sao (13) VldP Gilorges Balandler. «La S ituation Colo'1lale: Anproche TMo-
mc,ulcados de fora para dentro, isto e, nao chegam a for- . rloue:o. in Ca,hlt>rl!I lntemati.onanx de Soclolog-ie. Volume XI, Cahler Double,
1951. Nfste estudo escr,eve o autor cltado: « ... la situation <"Olonlale anpa-
,mar-se como produto dos fatores end6genos de tais Eocie- .r ait comme nossMante. d'une manlere e"sentlelle. un caractere d'lnauthen-
.dad.es. As sociedaqes coloniais, em sua estrutura total, sao tlcite: Plle cherche, constamment, a se justifier par un ensemble de pseu-
do-ralsons.:.
reg1das por criterios heteronomicos, pdncipalmente a. sua <18a) Popularmente se empreitam sem preclsll.o as palavras «Nordeste>
e «NorlP> com refer~ncla aos E"tados que ficam al~m do E.solrlto Santo.
em dlre<:Ao do norte. Quandn Pscritas sem aspas devem ser interpretadasc
(12) Vl~e Eclunr?o Spranger, cPatologla Cultural?:.. In La Expcricn- em seu sentldo tecnlco-geogrAflco.
c.la de la Vida. Renl1dad, Buenos Aires, 1949.

176 177
de uma publica~ao do lnstituto Brasileiro de Geografia e
Estatistica CH>.
tanto pela qualificagao de brancos, aplicada em casos para
9s quais seria mais apropriada a de pardos, como ~ela
. Apresentam-se, no primeiro capitulo desse estudo, os qualificaQao de pardos, aplicada em casos que ~ d~ven~
resultados do Recenseamento de 1940, no que diz respeito classificar entre os pretos, conforme um cnteno mais
a composiQao da populaQao segundo a cor . A publica<.,ao ·racionaL Mas, mesmo esse criteria racio.nal seria de deter-
come<.,a esclarecendo que, nas instruQoes para o preenchi- ininagao extremamente dificil, como demonstram todas as
mento dos questio.narios, so se previram as resposta.s tentativas realizadas para estabelece-lo.
«branca», «preta», «amarela» ou um tra~o (-), quando Nos boletins censitarios preenchidos pelo chefe da
o recenseado nao· se enquadrasse em nenhuma dessas clas- familia, ou pelo recenseado isolado,predominou o arbitria
sifica<_,oes. Isso, fundamenta a publicaQao, porque a «Co- pessoal; todavia e certo que, via de ~e~ra, apenas numa
A

missao · Censitaria quis evitar a obriga<_,ao, para o recen- moderada fraQao dos casos esse arb1trio se afastou do
seado, de aplicar a si mesmo qualifica~oes de cor que as uso _loc·alr desviando-se, como foi acima especificado.
. vezes sao usadas com sentido de desprezo <1s>», procedi-
mento que, embora «passive! de critica do ponto de vista ' , M'aior perturba~ ( o grifo. e meu) foi causado pelo
da tecnica censitaria,», «representa», do ponto de vista da preenchimento dos boletins por parte do agente recensE:a-
«dignidade humana» (sic) {sao palavras da publicaQao), dor ocorrencia muito freqUente no interior, em vir-
.tud~ da escassa · instruQao das popula~oes. Os criterios
«6tima solu<_,ao de um problema dificil» (sic). ' '\ pessoais .do agente, em parte influenci~dos pela s~ pr6"
Mas, continua o folheto, os intuitos da Comissao
f oram frustrados. Por que? Eis aqui a raiz patol6gica da
frustra<_,ao: «pela inclusao de um.a notavel fr aQao de par.-
dos entre os brancos e de urna menor Dias nao desprezivel
.I. pria cor (o grifo e meu), foram aphcados? ~n~ao, em
centenas de casos . E, quando delegados muruc1pa1s acha-
ram conveniente intervir para limitar esse arbftrio, em
fraQao dos mesmos entre os pretos, e, talvez, pela atri-
'{
muitos casos conseguiram, apenas, unifi~a-lo,. e~ . ce~o
buigao de uma fraQao dos pretos aos grupos de pardos <16> ». rumo variavel conforme os pontos de vista mdiv1dua1s
0 referido documento, elaborado por especialistas, dos pr6prios delegados. Em alguns Municipios, quase
por dever de oficio a par das circunstancias concretas que todos os que nao foram qualificados brancos foram qua-
influenciam a declaraQao da car pelo cidadao brasileiro, lificados pretos; em outros, pardos (pelas respostas me-
reza ainda: !:llante trago, ou pelas declara<_,oes explicitas de ma:ren?s,
«Deve-se lembrar que num pais, como o Brasil, ande pardos, mulatos, caboclos, etc.). Ate entre Mun1cip1os
nao existe uma «linha de car» intransponivel como a que confinantes e de composigao etnica da populaga.o po.uco
ainda se encontra nos Estados Unidos, toda delimitaQao diferente verificou se esse contraste na qualificagao dos
verbal das diversas cores torna-se extremamente dificiL nao bra~cos come. foi documentado em varios estudos
Pessoas com 1/16 ou 1/8 de sangue preto, que na Republi- da serie de ~Analises de Resultados do Censo Demogra-
ca norte-americana seriam classificados coma «colored», fico», compilados pelo Gabinete Tecnico do Servigo Na-
aqui se consideram, e sao universalmente consideradas, cional de Recenseamento, de 1940.
«brancas». E, por motivos evidentes, mesmo pessoas de tez Deve-se, logo, interpretar, com grande prudencia,_ a
nitidamente mo.rena, quando atingem certo grau de bem- apuragao censitaria da cor, evitando-se toda conclusao
-estar ou de instruQao, tendem a se inserir no grupo que apressada que nao resistiria a uma seria analise critica.
inclui a maior parte da aristocracia economica e intelec- · No que diz respeito aos brancos, pode-se afnmar
tual O dos brancos . Analoga tendencia verifica-se nos com seguran~ que !> niunero ap~r:"do _ excecl~ sensivel-
casa'.mentos em que um do.s conjuges e moreno e outro inente o que const.aria. duma class1f1~0 realizada. con-
branco; adota-se para toda a familia esta cor. Seria facil forme criterio objetivo (o grifo e meu).
multiplicar os exempJcs dessas tendencias para os matizes O numero apurado dos pretos, pelo contrario, deve-
mais claros, nas declaraQoes da car, que se manifestam ria ficar sensivelmente inferior a realidade, se as decla-
· 114) Estmfos S6bro a Composi~lio da Popula~io Seirundo a. C6r, I.B . raQoes procedessem dos interessados; mas c1!mpr~ le~-
Q. E., Rio. 1950.
(15) Idem. P ag. 8.
brar que a a<_,ao dos agentes recenseadores nao fo1 sem-
(16) Idem. P ag. 8. pre dirigida nesse mesmo sentido, e que em certos casos
178 179

fora.m, incluidos numerosos pardos entre os declarados


pretos.
'
.•: -,

sua composigao delllografica o mais forte contingente de


individuos de cor (70,19% da populagao total, em 1950) .
. 0 numero ap~ado dos pardos provavelmente esta A minoria «branca» de Estados do «Norte» e do
abaixo do que ser1a dado por uma classificagao objetiva ~Nordeste:i>, como o da Bahia, merece a atengao 'daqueles
sendo, de certo, maior o numero dos pardos classifiead~ q,ue se dedicam a ciencia das relagoes humanas, porque
entre os brancos (o grifo e meu) do que o possivel exce- em seu comportamento apresenta interessante problema
dente em favor dos pardos nas trocas de classificagao 4e psicologia coletiva. Trata-se de minoria que sofre de
COJll OS pr;etos (17>».
«instabilidade auto-estimativa», visto que tende a disfar-
. _ M~lhoy ~agrante n.ao. se poderia obter da perturba- ~r a sua condigao etnica efetiva, utilizando-se de meca.
g~o ps1c0Iog1ca d~o br~sile1ro em sua auto avaliagao este- nismos psicol6gicos compensat6rios do que julga ser uma
tlca. . Todos aqueles mformes mostram o sentimento de
inferioridade que lhe suscita a sua verdadeira condigao inferioridade .
etnica . ~sse sentimento e tao forte, no cidadao brasileiro . l!:ste fato caracteriza, efetivamente, como patol6gico
que vicia os dados do Recenseamento levando este ~ o quadro das relagoes de raga, no Brasil, e especialmente
resu!tados paradoxais. :Ji: o case, por 'exemplo, que se nos Estados do «Norte» e do «Nordeste».
conf1gura, em 1940, nestas palavras: «a mais elevada Segundo os resultados do Recenseamento de 1950,
propor~ entre pretos e pardos (148 pretos para 100 compoem a populagao dos Estados do Norte 68,37% de
pa~dos) se encontra na regiao Sul, que tem a menor pessoas de cor. Nos Estado.s do Nordeste esta percenta~
q:upta de populagao nao ~:anca, e a mais baixa (18 pretos gem e da ordem de 53,77 %. Note-se que estes numeros
para 100 pardos) na reg1ao Norte, que tem a maior quota estao certamente minorados. A parcela de brancos na-
de pop_ulagao nao branca os> ». Paradoxo que se repete no quelas regioes e menor do que o fazem supor os resul-
Recenseam~nto de 1950. Neste ano, a referida proporgao tados do Censo, e seria, de resto, insignificante se, ape-
no Sul ter1a subido a 157 pretos para 100 pardos · ao nas, se considerasse branca a pessoa nao portadora de
passo que teria diminuido no Norte a 8 pretos para' 100 sangue preto. 0 branco puro em tais regioes e excepcio-
pardos. Sao dados, evidentemente, inverossimeis! nal, enquanto o branco aparente e ali minoria.
Nesta ~a~cha nao sera de todo impossivel que as Com efeito, foi neste contexto demografico que ~
nossas estatist1cas venham a revelar, dentro em breve desenvolveu um padrao de estetica social, em cuja escala
que nao ha mais pretos no «Norte» e no «Nordeste:/ ·\ de valores a cor escura ocupa, por assim dizer, o polo
enquanto a papulagao do Sul se torna cada vez ma~
escura ...
l!:stes resultados estao a indicar que, no Brasil o
\ negativo, quando, se prevalecessem ai criterios sociais
nao heteronomicos, 0 contra.no e que deveria ter acon-
tecido.
negro e matS negro nas regioes onde os branoos sa,o maio-
#' • ·- ,

As minorias «brancas» destes Estado.s, de longa


ria e e mais claro nas regioes onde os brancos sao mi- data, tern mostrado tendencia para nao se identificar com
noria. a sua circunstancia etnica imediata. Sentem-na como
Semelhantes aspectos, gue os resultados numericos algo inferiorizante e, por isso, Iangam mao, tanto quanta
do Recenseamento vem ressaltar com tanta clareza, ser- podem, de recursos que camuflem as suas origens raciais.
vem para sublinhar a patologia social do branco brasi- l!:st-es recursos sao inumeraveis, desde os mais sutis ate
~eiro. Grifo a palavra branco, pois que o nosso branco os mais ostensivos .
e, do po.nto de vista antropol6gico, um mestigo, sendo, Um desses processos de disfarce etnico, que aquela
entre nos, peq~ena minoria o branco nao portador de minoria tem utilizado, e a tematiza~iio do negro. Ao tomar
sangue preto.:. E n<;> N~r:te e no Nordeste do Brasil, por- o negro como tema, elementos da camada «branca» mino-
tanto, onde sao ma1s mtidos os tragos da patologia social ritaria se tornam mais brancos, aproximando-se do seu
do, «br~co» brasileiro, e em nenhum ·1ugar do nosso arquetipo estetico - que e europeu. E is porque a lite-
pa1s ma1s do que no Estado da Bahia, que apresenta em ratura sociol6gica e antropoI6gica sabre o negro tern
(17) Idem. P ~gs. 8-9.
en_c ontrado seus cultores principalmente entre intelec-
.(18) Idem. P Ag. 16. tuais dos Estados do «Norte» e do «Nordeste:i>.
180 181

......
.· Os socio-antrop6Iogos, autores de estudos sobre -«o Os elementos da minoria «branca» no «Norte» e no
negro no Brasil», Sylvio Romero, Nina Rodrigues, Arthur «Nordeste» sao, por exemplo, muito sensiveis a q~em
Ramos, Gilberto Freyre, Thales de Azevedo e Rene Ri- quer que ponha em questao a ~a «brancura»:. Por ~so•
beiro sao naturais daqueles Estados, cujos «brancos» exi- exibem a sua brancura de manerra tal que nao susc1te·
bem os caracteres psicol6gicos que ilustram o que pocte- duvida. Sao eles, em geral, muito ciosos de suas orige~
mos chamar o prot.est.o racial de uma minoria interior- . enobrecedoras e aproveitam todo pretexto para procla-·
mente inferiorizada. ma-las: aneis, deco.ragao da casa, constituigao do nome,
Que o sentimento de inferioridade esta semp.re. na estilo lingiiistico <21>. Na Bahia, Estado da yniao ~nde
l'.aiz do que os psic6logos da escola de Adler vem cha-
mando prot.esto, parece indubitavel. E este sentimento
e mais forte o contingente de pessoas de cor, func1ona
um Instituto de Genealo.gia . Nao e preciso dizer que esse
que explica, por exemplo, reagoes de pessoas do sexo femi- Instituto se especializa na descoberta das origens ~~anc!s
nino contra as restri~es que lhes impoem as convengoes de elementos da minoria «clara». l!:ste trago parano1co < >
da sociedade, reagoes que as levam muitas vezes a assu-. nao caracteriza somente o comportamento do «branco.>
mir modos masculinos na linguagem, na vida profissional, baiano, mas, em grau maior ou menor, do «branco braS1-
na vestimenta, no andar.
leiro», em geral, embora especialmente do «branco» dos
Os discipulos de Adler, ao tratarem deste fenomeno Estados do «Norte» e do «Nordeste».
- o protesto - referem-se tambem ao prot.esto lin-
guistico dirigido contra a lingua materna, que explicaria . Conhego o caso, muito significativo, d~ llll; poeta ~a-
muitos casos de bilingiiismo, como o de certos catalaes goano. Era esse homem, de letras ~ ~1dadao mestigo,
na Espanha, sobretudo letradcs, que recusam falar outra mas perfeitamente suscetivel de ser mclmdo na quota dos
lingua que nao seja o castelhano; o do escritor Joseph «brancos»apurados pelo Recenseamento .. Co~ta que, ~r-
Conrad, polones de nascimento, que aprendeu .ingles, ta vez, um editor argentino de suas poes1as sobre motivos
depois de maduro., e o utilizava com mestria; e, final- negros fez uma propaganda em que o apresenta~a ao
mente, o caso dos individuos avidos de ascensao social, publico como um «grand~ pceta negro do Brasil». A
«bourgeois gentilshommes», «parvenus». alcunha, porem, teria levado o poeta alagoano a, em longa
Como ilustragoes famosas do prot.esto racial, um carta, pedir ao editor argentino que cessasse na propa-
ganda as alusoes que o apresentav~ como homem ,de
adepto de Adler, Oliver Brachfeld, l€mbra o ingles Hous- cor . l!:ste mesmo cidadao escreveu, d1reta~ente em. lin-
ton Stewart Chamberlain, discipulo de Gobineau, que des- gua alema (o que e significativo na perspectiva adleriana
denhou de sua nacionalidade inglesa e se considerava do prot.esto) , um livro em que su~tentava .uma tese
alemao; os judeus da A~o Fnmcesa, Pierre David e arianizante. Mas, outro po.eta nortista, res1dente em
Robert Herz, mortos pela Franga, numa inconsciente Sao Paulo, de pele tostada, foi mais taxativo . Tendo sido
busca de compensagao do que sentiam como inferiori- considerado numa entrevista como poeta negro, requereu
dade. se Ihe fizesse um exame de sangue no Instituto de Biotipo-
E interessante observar que as oscilagoes de auto- logia da Penitenciaria de Sao Paulo para provar a pureza
-estimagao nos individucs que protestam, com freqiien- do seu sangue. Recentemente, um romancista da ~aga
cia, exprimem a «coexistencia de dois polos opostos - negra, mas «embranquecido» por proc~s~os deco~ativos,
infer.i.oridade sentida com excessiva intensidade e supe.-
riorida.de, desejada mas ficticia U 9>». Tal coexistencia e
quimicos e mecanicos, numa autodescr1~ao que fizera a
o substrato do que tenho chamado de complexo gildico <20>,
cuja presenga tenho verificado em intelectuais da minoria (21) o «branco> baiano e brasilciro e. um t ~ma alnda a explorar.
Os socl6Jogos e os psic6logo11 bra.s1le1roa amda n .. o se deram contn. do
«branca» do Estado da Bahia. excelente material de obse1 va<;ao que o tema sugerc_. Uma das pesqu1s11.11
quc pretendo empreender proxlmamente e a do prec1os1smo da llnguagem
falada e escrlta de «brnncos» da camada letrada da Bahia, onde I! patente
(19) Vlde Oliver Brachfeld, Inferiority Feelings, in the lndl\'MuaJ and um aspecto adlerlano muito tuter essantc. .
the group, London, 1961. Pl!.g. 127. (22) Emprego O t~rmo na acep,;iio em que o empregava ·Gustav
(20) Vide Guerreiro Ramos. Sociulogia Clln.i ca de um Baiano «Claro,,, Ichheiser. em seu estudo ocMisunderatandlngs In Humnn Relations>. Tbe
In O Joma.I, Rio, 27 de dezembro de 1963. Americ"n Journal of Soeiolog;y, actembro, 1949.

182 183

. .-
pedido de um reporter da revista O Crnzeiro, se declara e um conhecido escritor brasileiro (Gilberto Freyre) .
- «moreno carregado» (23). Sublinhemos, inicialmente, que, no momento ·em que o
Por sua vez, um intelectual «branco> do Estado de pais comemorava o Dia das Maes, e um «nortista» que
Pernambuco, perguntado, num inquerito socioI6gico, como. levanta a sua voz para distinguir a «mae preta» da «m~e
receberia o casamento de parente seu com pessoa de cor branca» . E na sua 6ptica ele ve .u ma e outra como doIS
preta, responde <24> : polos. Leia-se o artigo e la esta?, ~m. cores vivas, os,
«Devo estabelecer uma gradua~ao, ao justificar meu aspectos clinicos em que venho ms1stindo. A palavra
ponto de vista pessoal sobre coloragao pigmetitaria, o : «senhora» s6 ocorre ao articulista aplicar a «mae branca»,
qua! me parece fundado, ao mesmo tempo, em motivo.s
e!Jteticos e fisioI6gicos. 0 branco, nessa gradagao, vem
a. «iaia. branca». Nos refolhos do inconsciente do escritor
pernambucano e impossivel conceber a «mae preta» como.
em primeiro lugar, seguindo-se-lhe o indio, o mulato, e, «senhora» como «dama», ou seja, na.o associada a suges-
por fim, o negro. A cor preta nunca me agradou . Ela toes subalternas. Textualmente ele descreve as «maes
nao e uma sintese, como o branco. 1l'.: a pr6pria ausencia prestas» (o artigo e ilustrado por um desen~o, represen--
da cor, na serie prismatica. Luto, trevas, fumo, se asso- tando uma «baba» tendo ao colo um menmo branco)
ciaram na formagao de um complexo que remonta, tal-
vez, a minha meninice e a que tambem nao e estranha como «Joanas, Marias, Beneditas, Amaras, Luzias, Jacin-
a influencia de «hist6rias-de-trancoso>, com personagens tas, carregando num brago um filho branco e no outro
que eram «negros velho~», perversos e de h6rrido aspecto. um filho preto; dando de mamar aos dois dos mesmos ·
De sorte que, para ser rigorosamente verdadeiro, devo peitos maternalmente gordos; dando aos dois, ~e co~er
afirmar que nao receberia bem o casamento de filho ou do mesmo pirao amolengado por sua doces e sabias ma?s .
filha, irmao OU irma, com pessoa de cor preta. Entre- negras; ensinando aos dois as mesmas palavra~ face1s, .
tanto, nao creio que essa repugnancia, por si s6, deva os mesmos brinquedos simples, as mesmas palminhas de
pfevalecer sobre altas razoes sentimentais, morais e guine, os mesmos beliliscos-de-pintainho, as mesmas .ben-
mentais, para evitar unioes entre brancos e pessoas de ~aos a Pai, a Mae, a Avo, a Av6, a Padrinho, a Madrmha,
cor . A minha esposa tern boa dose de sangue de indios.
Mas um negro, a nao ser que possuisse dotes excepcionais, a Papai-do-Ceu, a Mamae-do-Ceu, aos sa~tos protetores
que sobrepujassem essa minba {mica reserva, nao me de casa, a Dindinha Lua; ninando os do1s com as mes-
agradaria para marido de qualquer das minhas filhas.> mas cantigas de ninar menino pequeno; contand':' aos
Nortista e tambem um inteligente redator de O Globo, dois as mesmas hist6rias de bicho.s compadres de b1chos,
jornal em que escreve diariamente uma cronica sobre de papo·e s inimigos de nenens malcriados, de mo1:ras enca!1-
a vida noturna do Rio . Na edigao de 18-1-55 daquele cantadas de mouras tortas, de velhos de surrao, de re1s,
jornal, o r eferido redator publica a fotografia de uma de rainh~s, de princesas, de fadas; tr~tando os dois com
artista de «night club», seguida desta legenda: os roesmos ungilentos e os mesmos oleos».
A mo~ de hoje - Esta e a bonita ba:ilar:na negra, Nada mais compreensivel, por conseguinte, que este
Nilza, do elenco do «Beguin» . Bela de corpo e de cara.. brasileiro tenha sido o criador da «Iusotropicologia», isto
Dela se poderia dizer: «Isso em braneo» ... (25>. e, uma apologetica do colonizador portugues.
E para terminar esta enumeragao de ocorrencias em · O desajustamento do «branco» br~sileir~ ao seu co~-
que se tornam flagrantes os trago.s adlerianos da psico- texto etnico o leva, por outro lado, mmtas vezes, a aderir
logia coletiva do nortista, desejo reportar-me a um recente a fic~oes. Nao gosta, por exemplo, que se diga que o
artigo publicado no jornal O Globo ( edi~ao de 3-5-55), Brasil e um pais de mestigos. Conhecido cronista social
intitulado «O Brasil e a Mae Preta». 0 autor deste artigo recebeu, certa vez, como protesto a uma alusao sua m~-
(23) Vide Jollo Condi!, «Arqulvos lmplacaveis,, c'flash> de RosArlo nos cortes sabre Ali Khan, uma carta de censura cuJo
Fusco . Revista O Cruzelro, 23 de abrll de 1955. au tor dizia que o principe deveria ser melhor tratado ·
(24) Vide Adolfo F . POrto. Rcsposts a um lnqu6rito, Diret o ria de
Doeumentaclio e Cultura, P re!eitura Municipal do Recife, 1948. Pags. 74-5. pois era amigo do Brasil e nao. se confundia co1:31 certa
(25) Vide lllesa de l'ista, coluna de Antonio Ma.r la. 0 Globo, edl,;ao
de 18-1-1955. especie de estrangeiros que afirmam no exter10r que

184 185 .

J
- ;,,
somos um pais de. «maltrapilhos; de cobras e de ne- receram desde ha muito, do pais, as situaQoes estruturais
gros ... :.<2s> que confinavam a massa pigmentada nos estratos infe-
Isto niio impede, entretanto, que o estrangeiro veja
o «branco» brasileiro como um especime um tanto bizarro
e pitoresco. Ha uma pagina de Tibor Mende que me
f:
f
riores da escala .economica; e, de outro, observa se que
a massa pigmentada, preponderante desde o inicio de
nossa formagao, absorveu, pela miscigenaQlio e pela capi-
parece ilustrativa da maneira como o europeu ve o nosso laridade social, grande parte do contingente branco, que,
«branco». Narrando o seu primeiro encontro no Brasil inicialmente, podia considerar-se isento de sangue negro..
com um funcionario do Itamarati, escreve Tibor Mende (27>: O que, nos dias de hoje, re£ta de brancos puros em n?sso
«Le senor Bastos, du Ministere des Affaires etran- meio e uma ..quota relativamente pequena. 0 Brasil e,
geres, chef de section au Palais Itamaraty, etait venu pois, do ponto de vista etnico, um pais de mestiQos.
me prendre pour me conduire dans sa maison de Copa- Os fatos da realidade etnica no Brasil, eles mesmos,
cabana. Bien qu'il eut une grandmere franQaise - qu'il estao iluminando a consciencia do mestiQo brasileiro e o
mentionnait trop souvent pour qu'on n'oublia.t son exis- levam a perceber a artificialidade, em nosso meio da
tence et ses origines aristocratiques, - il etait le Bre- ideologia da brancura. 0 ideal da ~ri:ncura, ~l coma o
silien type, si toutefois cela existe dans un pays presen- ilustramos anteriormente, nas cond1goes atua1s, e uma
tant une aussi grande variete. Nos relations, nouees en sobrevivencia que embaraQa o processo de maturidade
Europe a !'occasion d'une breve rencontre, s'etaient trans- psicol6gica do brasileiro, e, alem disso, contribui p~a
formees en amitie aussi vite que murissent les fruits sous enfraquecer a integraQao social dos elementos constitu-
le soleil tropical du Bresil, sans avoir le temps de deve- tivos da sociedade nacional.
lopper les vitamines necessaires. Bastos etait infiniment Antes dos soci6lo.gos, os fil6sofos tinham ja perce-
bon, cordial et sans faQon, bien qu'assez soucieux du pres- bido a natureza sociologica da sim.;iatia e, ao mesmo tem-
tige social,. et il eprcuvait parfois un brusque besoin de p·o, o seu papel social. Segundo eles, a simpatia seria
vous faire des confidences:.. originariamente um estado psicol6gico que aparece mes-
Foi certamente evocando a imagem ridicula de um mo entre os animais, desde que pE-rcebam que sao seme-
desses brasileiros avidos de europeizaQlio que Henri Mi- lhantes. Hume, desenvolvendo pensamentos de Spinoza,
chaux escreveu aquela pagina depreciativa a nosso res- considera a slmpatia como a causa primaria da s3cie-
peito, em seu livro Passages. Michaux diz que, apesar dade, pois ela suscita a imitaQ~o e x:eduz uma nagao _a
do tempo que passou aqui (malgre le temps passe la-bas) um tipo generico, variando de mtens·dade na proporgao
nao pode estabelecer contato com os brasileiros, pois que direta da relaQao e identidade dos individuos <29>.
encontrou a «sua inteligencia cafeinada» sempre «em Posteriormente a Hume, o fil6sofo e quase soci61ogo
reflexos e jamais em reflexoes» ( «leur intelligence cafei- Adam Smith desenvolve uma Teoria. doS Sentiment.os
nee, toute em reflexes, jamais em reflexions») (28). l\lor:ais (1759) , na base do significado social da simpatia.
0 carater patol6gico do protesto racial do «branco> Adam Smith procura mc.strar que a sociedade humana
brasileiro e evidente, levando-se em conta aspectos estru- subsiste enquanto certa bilateralidade simpatica entre
turais de nossa sociedade, em nor::sos dias. seus membros neutraliza as tendencias individualistas e
Na atual fase de desenvolvimento economico-social desagregadoras . A sociabili~ad~,, para S~ith, _repousa na
do Brasil, niio existem mais suportes concretos que per- simpatia, no fato de cad!" m<;liv1duo «srmpatizar c.9m a
mitam a nossa minoria de «brancos» sustentar suas ati- situa<_.ao da pessoa que e obJeto de sua observac:;ao» e
tudes arianizantes. De um lado, verifica-se que desapa- desta ultima «assumir a situaQao do espectador » ou, como
(26) Vlde «O Principe mo Ficar4 na Miser!~. coluna de Ibrahim
diriam atualmente os soci6logos norte-americanos, no
Sued. O Globo, edit ao de 11-12-54.. fato de os individuos serem capazes de se ajustarem as
(27) Vlde Tibor Mende, L'Amerlqne Latlne entre em Sc~ne, Paris,
1952, PAg. 26. expectativas uns dos outros (30>.
(28) Vlde ~enri Michaux, 1'-.sa.ges. NRF. Paris, 1950. Escreve
Michaux: <.Alns1 les mages (du Pays de la Magie) furent commences le (29) Vlde Barnes and Becker, Social Thought from Lore to Science,
Jendemaln d e mon arriv~e A RJo de Janeir o, me si\parant si b ien de ces 1.• vol. 1952, cap. XIV.
Breslllens. avec qui je ne trouvals pas de contact (leur lntellgence (30) Co nsulte Luigi Bagoltnl, l1Ioral o Dlreito na Doutrl.na da. Slm -
cafl\lnee. toute em reflexes, jamala en r l\tlexions) que je pourrals presque
dire, malgr·e le t emp., passe Ill-bas, que je n 'en al pas rencontrl\ (pi\g. 162)>. p,uia.. Sii.o Paulo, 1952

186 187
· A sociologia norte-americana nao deixou perderem-se -relacionam . pelo sentimento si~~ene~ico, de que f'.3-la
estas observa~oes f·ecundas. Giddings ca1> inspirou-se di-· L. Gumplowicz, cujo substrato fls1co e ? fato perceb1do
da. semelhanga fisica e da semelhanga mtelectu~l. :m o
retamente em Adam Smith, quando sustentou ser a cons- csingenismo» que faz de cada g1:1po um grupo a part:,
ciehcia da especie ( «consciousness of kind») o elemento observa -acertadamente Gumplow1cz, que o lE:va. a g_Ior1-
subjetivo primario, fundamental de toda sociedade . Tan. ficar o que lhe e pr6prio e o que t.e1_!1 de m_aJS ~mt:mato,
to as sociedades animais como as sociedades humanas rebaixando e meno::.prezando o que nao lhe e propno e o
sa.o tanto mais integradas, quanto ·mais, entre os seus I
que esta ·a fastado dele. Segue-se ~ai - ac~:scent~ .o so-
membros, se reforga a consciencia da similitude, quanto ci6logo (33> - que a hist6ria escr1ta europe1a des1gna a
ma.is os caracteres que os fazem semelhantes sao valori- Europa como o coroamento da criagao e o centro d? de-
zados. Para G'ddings, a co.nsciencia da similitude COD· senvolvimento hist '.>rico, que a hist6ria chin~sa, ~m1ta a
verte em normas os ha.bitos coletivos e os costumes, os mesma af irmagao a prop6sito da China, a hlstona ame-
quais a sociedade utiliza para reforgar a sua co.esao inte- ricana. a prop6s1to da America e que, em s_?ma, . ca?a
gral e assim perpetuar-se. Neste ponto, a atual sociologia povo, cada tribo, siga seu exemplo. A forma<;ao co~omal
norte-americana confirma Giddings, pois os seus epigo. da sociedade brasileira tem dificultado o desenv0Iv1men-
nos ainda aceitam classificagoes de co.ntato social, como to entre os brasileiros deste sentimento e, segundo Aze-
a de C. H. Cooley, que os divide em prima.rios e secun- vedo Amaral ter-nos-iamos habituado «a ter vergonha
darios, e a de N. S. Shaler, que os diferencia em simpa- de nos mesm~s», e «acreditamos, atraves de nossa cultu-
teticos e categ6ricos, classifica~oes gue implicam no reco- ra livresca que .s6 e grandioso o que corresponde aos
nhecimento do papel social integrativo da simpatia. padroes eticos e etnicos das civiliza~oes que se elabo~am
Radhakamal Mukerjee, em seu estudo socioI6gico em torno do Mediterraneo e do Ba.ltico» <34>. Afetar1a a
soLre a genese dos valores, considerou-os precisamente personalidade do brasileiro um senti~ento de inferiori-
em sua fungao integrativa Para Mukerjee, os valOJ'es dade, ao contrario do que tem acontec1do com outros .PO·
sao mecanismos de orienta~ao social do homem, instru- vos, que se acreditam «particulannen~e nobres, parbcu_-
mentos de ajuste de grupos e individuos ao meio fisico larmente distinguidos, como povos ele1tos entl'.e todos os
e social, e se selecionam e testam na experiencia social povos, reforgando, mediante esta .solidariedade, a supe-
efetiva. Nestas condigoes, a prevalencia dos valores auten- rioridade de seus membros sobre os membros dos outr<.>s
ticos numa comunidade «Ieva a completa estabilidade e povos, corroborando seus sentimentos singeneticos entre
integragao do ser humano», assegurand,-;-ihe «liberdade» os membros de sua comunidade (Gumplowicz).»
e facultando-lhe o «controle do ambiente», a criagao e Torna-se assim perceptive! a crueldade, a ma.-fe e a
manutengao de grupos, instituigoes, leis e pautas de direi- inten~ao «cismogenetica» (Bateson~ subjacei:tes ~os nos-
tos e deveres, orientando com exito a sociedade na luta sos estudos sobre o negro no Brasil. A fun<;ao del~s tern
e na so.brevivencia intragrupal e possibilitando o esta- sido a de contribuir para minar nas pessoas ~e cor, ~1:1
belecimento de lagos e relagoes sociais intimas e duraveis nosso meio, o sentimento de seguranga. Os n.az1stas utill-
de solidariedade (32> . zaram tambem processes semelhantes com cs JUdeus . Para
Nenhum grupo social alcanga niveis altos de vida inferioriza-los entre outros processos, transfonnaram-nos
bist6rica se os seus membros internamente nao se inter- em assunto. Consulte-se, por exemplo, o. livro Di~ Juden in
Deutschland C35>, publicado por uma ed1tora na~ast~ Nes-
(31) Vide Giddings, Princlpios de Sociologln, Buenos Aires, 1943. ta obra se encontram t6picos sobre «a emanc1pagao dos
(32) «Values are mechanisms of man's social orientation and gui-
dance: they are tools of adjustment of human g roups and individuals
t o the w,ysical and social mil ieu. and are silted and tested out in actual (33) Vid e Gumplowlcz. Op. cit. P a.g . 273. . •
social experience by the three-Cold criteria: (1) h ow far tho dominant (34) Vlde Azevedo Amaral. O Brastl na Crise Atual. $;i.o Paulo. 1984 ·
v.alues that men hold lead to the full poise and Integration of the per- Pa 181 Nesta m esma p.\glna escreve Azevedo Amaral: «A nossa alm_a
sonality. achieving freedom and control of the evironment; (2) how Car co!primida (ervllha em relnvldira,;:oes plat~nicas a que a nossa c ;h~!-
the Present system of values with whose aid men creat and maintain
groups, institutions. Jaws and rights-and-duties sucessfully guides society
encia ernpr esta as forl'has !lctlciaa de asp1ra1:oes pue_r1s e mesQu 1 ,
en uanto o s entido daquelss for,;:a.s subterrAneas ~ a !tbertaGlio do nos.so
In lntra-g1oup struggle and survivals. alld (3) how far the present system esgir!to na af!rmacao orgulhosa de nos~a realidade ps.qulca e dos trac;os
of values promotes the creation and maintenance of intimate, enduring, singulares da nossa personalldade na.clonab. St
and ideal social b onds and relations and an Id eal soli darity of humanity (35) Die Juden in Deutschland. Herausgegeben von Instltut zum u,
(Cfr. R. M.ukerjee, Tho Socia.I. Structure of V~ue.~ . London, 8/d., pegs.. dium der J'udenfrage, Munchen, Germany, 1935.
8·9)>. · ·

188· 189
judeus>; «o desenvolvimento demografico dos judeus des-
de o seculo XIX»; «os judeus na vida economica»; «os
.J A partir de certa idade - observa um estudioso de ques.-
toes geracionais, Frangois Mentre <37> - o homem : nao
judeus na imprensa»; «os judeus na politica»; «os jude- muda, o individuo se torna estavel e vive sabre o capital
us como vultos da cultura alema»; «os judeus na litera- int.electual e moral que comanda sua atividade. Dai o ca~
tura»; «os judeus' no teatro»; «os judeus na musica».;
«cs judeus e a imoralidade»; «os judeus e a criminalid3:-
de». Titulos esses perfeitamente equivalentes aos de ca-
;1 rater polemico que o tema das rela~oes de ra~a assume
·nos dias de hoje, entre nos. ltle reflet.e uma tensao entre
geragoes que elaboraram os ingredientes de sua mem6ria
pitulos de obras «antropol6gicas» e «sociol6gicas» sabre
o negro no Brasil, de autores nacionais. Eis aqui alguils coletiva. dentro de «quadros» sociais diversos.
titulos extraidos de Estudos Afro-Brasileiros (Rio, 1935) Como Maurice Halbwachs, cada um pode dizer:
volume contendo trabalhos apresentados ao 19 Congres.:- «Je porte avec moi un bagage de souvenirs historiques>
so Afro-Brasileiro reunido em Recife ein 1934: «o negr.;> <SB>. 1!::stes «souvenirs historiques::., em parte, conformam
no foJclore e na literatura do Brasil»; «ensaio etnopsi- a visao social, as atitudes de cada um. Muitos brasileiros
quia.trico sobre negros e mestigos»; «contribuigao ao es- ainda vivos descendem de av6s que possuiram escravos,
'tudo do indice de Lapicque»; «os negros na hist6ria das enquanto outros nao. Tais circunstancias importam ne-
Alagoas»; «as doengas mentais entre os negros de Pernam- cessariamente na forma~iio psicol6gica de cada· um.
buco» ; «longevidade»; «grupos sanguineos da raga ne-
gra». Por outro !ado., no 29 Congresso Afro-Brasileiro . A tradic;ao da brancura que ainda sobrevive, entre
realizado em 1937, em Salvador, apareceram estudos. so- nos, tera de ser ultrapassada. por outra tradigao, tradi<;ao
bre: «costumes e praticas do negro»; «o negro e a cultu- que estamos assistindo nascer e que representa novas
ra no Brasil»; «influencias da mulher negra na educagiio condic;;oes objetivas da vida brasileira.
do brasileiro»; «culturas negras, problemas de acultura- Nos dias de hoje, a idealizac;;ao da brancura, na so-
giio no Brasil»; «a liberdade religiosa no Brasil: a ma:. ciedade brasileira, e sintoma de escassa integragao social
cumba e o batuque em face da lei»; «o moleque do carna- de seus elementos, e sintoma de que a consciencia da es-
val» <36>. Isto aconteceu em Salvador, no ano de 1937. pecie entre os que a compocm mal chegou a. instituir-se.
Note-se como todos os estudos mencionados implicam J!:ste, porem, e um processo social normal que nao podera
sempre um po·n to de vista branco. ·
ser definitivamente obstaculizado. Apenas uma situa~ao
:F.: 6bvio que o desaparecimento dos aspectos aqui colonial temporaria tern embarac;;ado este processo.
descritos da patologia social do «branco» brasileiro niio
ocorrera como conseqliencia de mero trabalho de reedu- A luz de uma sociologia indutiva, isto e, de uma so-
cac;;ao e esclarecimento. 1!::st.e trabalho, de certo, e neces- ciologia cujos criterios sejam induzidos da realidade bra-
sario e, alem disto, de efeitos positives, nisto que sus- sileira, e nao imitados da pratica de soci6Iogos de outros
cetivel de libertar muitas pessoas do que se chamou paises, a luz de uma sociologia cientifica, o que se tem
protesto racial. Mas sao os fatos mesmos que, em ulti- chamado no Brasil de «problema do negro::. e reflexo da
ma analise, propiciariio o desaparecimento daquela anor-
malidade de nossa psicolcgia coletiva. (87) Vlde Fran~ols Mentre, Les Generation• Soel&les, Paris, 1920.
1!::st.e problema envolve uma questao de articulagao Pag. 220. «A partlr d'un certain age, l'homme ne change plus, l'lndlvldu
devient stable et vlt sur l e capital lntellectuel et moral qui commande
de geragoes. :m natural que os caracteres daquela pato- son actlvlte. Mais, autour de lui. t out change par l ,effet du progr~s
logia se mostrem mais vivos nas gerag6es mais velhas, general et de l'entree lncessante des jeunes dans la vie, si bien que le
revolutlonnalre de la vielle devlendra le reactlonnaire du lendemain: en
que receberam, de geragoes outras que alcanc;;aram a rWlte, ii n'a pas retrograde, mals 11 retarde de plus et plus sur la mar-
·plena vjgencia do regime ~scravo, uma definic;;ao pejora- che des ldeea et des evenements et s'en!once toujours davantage dan11 Ji,
pasae ou ii trouve sa raison d'etre•.
tiva social do negro e do mulato. As geragoes mais mo- (38) Vlde Maurice H albawachs, La Memolre Collective, Paris. 1950.
c;;as, entretanto, se mostram mais acessiveis a admitir os Pags. 36-7 : Vide tambt!m dl!ste mesmo autor, Les Cadres Socia.ox de la
Memolre, Paris, 1951. Halbwachs, nestas dua.s obras, abre perspectlvaa
novo.s criterios de avaliac;;ao que os fatos estao impondo. muito importantes para o escla1ecimento de problemas eomo o que cone-
titul o tema d~ste estudo. Pretendo, em trabalhoe posterlores, utili.zar mats
(36) Varlos autor es, O Negro 110 Brasil, Rio, 1940. amplamente ae hip6teses fccundas de Halbwachs naqueles dols livros.

J
190
patologia social do cbranco» brasileiro, de sua dependen-
.cia psicol6gica C39).
Foi uma minoria de «brancos» letrados que criou es-
se .«problema», adotando criterios de trabalho intelec-
tual nao induzidos de suas circunstancias naturais diretas.
Nestas condigoes, reconhece-se hoje a necessidade de
·reexaminar o tema das rela~oes de ra~a no Brasil, den-
tro de uma posigao de autenticidade etnica. ·
S6 a simples tomada desta posigao vale como meio
caminho andado no discernimento das incompreensoes
reinantes em nossas relagoes de raga, atualmente. Il - 0 NEGRO DESDE DENTRO
~ preciso dizer, finalmente, que esta pasigao de au-
tenticidade etnica nao se inclina para a legitima~ao de
nenhum romantismo culturol6gico, de nenhum retorno Povos bran~os, gragas a uma conjungao de fatore~
as formas primitivas de convivencia e de cultura. A au- hist6ricos e naturais, que nao vem ao caso examinar
tenticidade etnica do brasileiro nao implica um processo aqui, vieram a imperar no planeta e, em conseqiiencia,
de desestruturagao <40>, no caso, de desocidentaliza~ao da impuseram aqueles que dominam uma concepgao do mun!"'
sociedade nacional. Ela e possivel perfeitamente dentro do feita a sua imagem e semelhanga. Num pa:s como o Bra;-
das pautas nas quais tem transcorrido a evolugao do pais. sil, colonizado por europeus, os valores mais prestigia,-
dos e, portanto, aceitos, sao o.s do colonizadcr. Entre
estes valores esta o da brancura como s1mbolo do excei-
so, ·do sublime, do belo. Deus e concebido em ·branco e
em branco sao pensadas todas as perfeigoes. Na cor negra,
ao contrario, esta investida uma carga milenaria de sig,-
nificados pejorativos. Em termos negros pensam-se to.-
.das ~s imperfeigoes , Se Ee reduzisse a axiologia do mundo
.ocidental a uma escala crornatica, a car negra repre£~-
taria o polo negative. Sao infinitas as sugestoes, nas mai~
sutis modalidades, que trabalham a consciencia e a in-
consciencia do homem, desde a infancia, no sentido de
considerar, negativamente, a cor negra. 0 demonio, o~
espiritcs rnaus, os ·e ntes humanos ou super-humanos,
quando perversos, as criaturas e qs bicho.s inferiores e
malignos sao, crclinariamente, representados em preto.
Nao tem conta as expressoes correntes no comercio ve11-
bal em que se inculca no espirito hurnano a reserva con-
tra a cor negra. «Destino negro», «lista negra», «cambio
negro», «missa negra», «alma negra», «sonho :negro»,
. (39) Consulte 0. Mannon!, Psychologie de la Colonleation, Paris, 1950. «mfaeria negra», «caldo negro», «asa negra» e tantos o.u-
Tambem Georges Balandier, «Contrlbultlon A une Sociologle, de la Depen-
dance:o, ln Cahlers lnten,attona.ux de Soclologfo, Volume XII, 1952. Escre-
tros ditos implicam sempre algo execravel. Ainda nas
ve o.1 Balandler: d,a soclete colonisce peut ... et, e considiirii comme une ·pessoas mais vigilantes ccntra o preconceito se surpreen-
eoclete &'lobalement alll\nee, qui est atteinte dans son organisme soclo-cultu- dem manifestagoes irrompidas do inconsciente em que ele
relle propre (plus ou mains, s elon la copaclte de resistance d e cette der-
niere) et d 'autant plus soumise A la prllssion de la socletii dominante et
etrangere qu'elle est plus degradee:o.
aparece. Ha dias um lider cat6Iico, culto cidadao, anti-
(40) SObre este tema, vlde Gurvltch, «Hyper-Emplrisme Dlalectlque», racista por principio, num dos seus artigos, em que foca-
ln Cablen, Vol. XV, 1953. Tamb~m Determinismee Soclaux ei Llbertc
Hamaille. Paris, 1955.
:lizava a momentosa tragedia culminada no suicidio do
Presidente Vargas, escrevia: « ..• pelas revelagoes tre-
192
193

.\
mendas do arquivo secreto do Eeu mais intimo «guarda- se saissemos do nevoeiro da br an cura - o que · nos pa-
costas», se verificou que o governo do Brasil possuia rece olha-la em sua precariedade social e hist6rica. E
uma «eminence grise», que no caso era uma eminencia ainda que, por um momento, para obter certa corre~ao
negra! E que essa asa negra do presidente .. . escondia em do nosso aparelho optico, poderiamos dizer que das tre-
suas fichas secretas o mais t.errivel libelo contra um re- vas da. brancura - s6 nos libertaremos a luz da negrura.
gime de traficancias e fa-voritismos». E mais adiante Revelar a negrura em sua validade int.rinseca, dissi-
reporta-se aos «que acudiam a rojar-se aos pes da emi- par com o seu foco de luz a escuridao de que resultou a
nencia negra, para dela conseguir as mais escusas inter- nossa total posseEsao pela brancura - e uma das tarefas
ven~oes». Os grifos sao meus. Sirvo-me deles para mar- herofoas da nossa epoca. Pior do que uma alma perversa,
car o sortilegio que a cor negra evoca no espirito desse dizia Peguy, e uma alma habituada. Nossa perversao es-
escritor. Pois que se fosse branca a pessoa de·que Ee tra- tetica niio nos alarma ainda po.rque a repartimos com
ta - Gregorio Fortunato, a elabora~ao do pensamento muitos, com quase todos: e uma lesao comunitaria que
teria, eviden:temente, t omado outras dire~oes. Se o guar- passou a categoria de normalidade desde que, pratica-
'· da-costas fosse claro, as aproxima~oes seriam muito ~ - m-ente, a ninguem deixa de atingir . A ninguem? Nao.
versas. (Experimente o leitor traduzir para o branco ~ Alguns se iniciaram ja na visao pristina da negrura e se
·texto acima). 0 comentario do caso nos jornais e nas ruas postam como novigos diante dela, isto e, emancipados do
se assinala de angulos muito elucidativos da degrada~ao precario fastigio da brancura. P urgado o noEso empeder-
da cor escura. De uma revista carioca transcrevo, por nimento pela brancura, estamos aptos a enxergar a be-
exemplo, este excerto: «Gregorio quis saber se tera uma leza negra, beleza que vale por sua imanencia e que exige
chance, um dia, de ser acareado. Disse lhe eu que, na ser aferida por criterios especificos. A beleza negra vale
pior das hipoteses defrontar-se-a com o General no. su- intrlnsecamente e nao enquanto alienada. Ha, de fato,
mario de culpa, na Justi~a comum. 0 preto pareceu f1car cxemplares de corpos negros, masculines e femininos, que
-satisfeito. Esfregou as maos . .. Deixei o quarto do negro valem per si mesmos, do ponto de vista estetico, e nao
e com ele caminhei par a a sala. . . Perguntei quais eram enquanto se alteram ou se aculturam para apraximar-se
seus amigos ... o preto respondeu ... ». A cor humana dos padroes da brancura. Ha homens e mulheres triguei-
· ai perde o seu carater de contingencia ou de acidente para r os, de cabelos duros e de outras peculiaridades soma.ti-
t omar-se verdadeiramente substancia ou essencia. Nao cas e antropometricas, ncs quais e imperioso reconhecer
' adjetiva o crime. Substantiva-o. a transparencia de uma autentica norma estetica. A be-
Tais escritos sao de autoria de pessoas brancas. Mas, leza· negra nao e, porventura, cri~ao cerebrina dos que
na verdade, me£mo as pessoas escuras sofrem obnubila- as circunstancias vestiram de pele escura, especie de ra-
~ao em face da cor negra. Um dos mais dramaticos cionaliza~ao ou autojustificagao, mas um valor eterno,
flagrantes disto e esta declar~ao de uma autoridade po- que vale ainda que nao seja descoberto. Nao e uma rei-
licial de cor negra: «. . . o preto, e verdade, e feio. Uma
ra~a foia, de pele escura. Nao agrada aos olhos, o negr~
e anti-estetico, e a manifesta~iio deste sentimento e tida
como preconceito». 11:ste, como a quase totalidade dos
nossos . patrlcios de cor, e um cidadao aculturado ou as-
similado, como diriam os que cultivam aquela tipica ci-
encia de exporta~ao e de intuitos dcmesticadores - a
' vindica~ao racial o que cc-nfere positividade a negrura:
e uma verificagao, objetiva. :Ii: assim, objetivamente, que
pedimos para a beleza negra o seu lugar no plano egregio.
Na atitude de quem asEocia a beleza negra ao meramen-
te popular, folcl6rico, ingenuo ou ex6tico, ha um precon-
ceito larvar, uma inconsciente recusa de aceita-la libe-
ralmente. Eis por que e digna de repulsa toda atitude que,
, antropologia. Mas, pratiquemos um ato de suspensao da sob a forma de folclore, antropologia ou etnolagia, reduz
. brancura e com este procedimento fenomenol6gico nos ha- os valcr-es negros ao plano do ingenuo ou do magis-
. bilitaremos a alcan~ar a sua precariedade e, dai, a per- tico. Num pais de mesti~os como o nosso., aceitar tal visao
. ceber a profunda aliena~ao estetica do homem de cor em constitui um sintoma de autodesprezo ou de inconsciente
.sociedades europeizadas como a nossa. De repente se nos subserviencia aos padroes esteticos europeus.
,torna obvio o no::so empedernimento pela brancura, se A acultura~ao e tao insidicsa que ainda os espiritos
nos torna perceptive! a venda dos nossos olhos . ~ cQmo mais generosos sao por ela atip.gidos e, assim, domesti-
19~ I 195

J
Quiz beijar-lhe as mii.os divinas,
cados pela brancura, quando imaginam o contrario~ :m o Afastou - mas - nao consente;
que parece flagrante na pcesia de motivos negros. De A seus pes de rOjo pus-me,
- Tanto pode o amor ardente !
ordinario, a negrura ai aparece subalterna, princ1palmen-
te quanao se ioca.iza a mu1her, que e celebrada, em re. · ·· Nao sao raros, alias, os mementos em que Luiz Gama
gr a, em termos puramente dionisiacos, como se neles se alcan~a a visao esS€ncia1, nao contingente, da beleza
esgotasse a sua especificidade: negra. Referem se-lhe, entre outras, expressoes como .«as
<E eu que era um menino puro
madeixas crespas, negras», «flor lou~a», «formcsa criou-
Nao fui perder minha infancia la», «Tetis negra», «cabe~a envolvida . em nubia trunfa»,
No mangue daquela came ! «amores. . . lindos, cor da noite», «eburneo colo». Neste
Dizia quc era morena particular, Luiz Gama antecipou os movimentcs revolu-
Sab. ndo que er.a. mulata cionarios atuais, como o Teatro Experimental do Negro
Dizia que era donzela
Nern isso nao era ela e o da negritude dos intelectuais de fcrma~ao francesa,
Era uma moQa que dava» em que se destacam Birago e David Diop e Leopoldo Sedar-
-Senghor (senegaleses), Gilbert Gratiant, Etienne Lero,
Aime Cesaire (Martinica), Guy Tiroren e Paul Niger
Assim falou o ncsso grande Vinicius de Morais. Fa- (Guadalupe), Leon Laleau, Jacques Roumain, Jean-F .
Iaram no mesmo tom, com a melhor das inten~oes, Mario Briere (Haiti), i ean-Joseph Ratearivelo, Jean Rabema-
de Andrade, Jorge de Lima, Nicolas Guillen e a legiao nanjara e Flavien Ranaivo (Madagascar). Todos estes
de seus imitadores. Tcdavia, pondo a salvo o prop6sito poetas perceberam a bel€za negra nao des~igurada pel~
generoso de tais poetas, uos refolhos de suas produ~oes, contingencia imperialista como «forma. . . f1xa na eterm-
surpreende-se, com freqiiencia, a estere6tipo: «Branca dade», no dizer de um deles, Leopo!d ~edar-Senghcr, autor
pra casar, negra pra cozinhar, mulata pra fornicar!» do poema Femme Noire, no quel ass:m se expressa:
Labora pela oculta~ao da negrura toda esta patina de
associaQoes pejorativas e de equivocos sinceros que ves- Femme nue, femme noire!
tem nosso espirito e que precisam ser purgados mediante V~tue d e ta couleur que est Vie, de ta forme qui est beaute!
J 'al grandi A ton ombre, la douceur de tes mains banda,it mes yeux.
a reiteraQao, em termos egregios, dos valores negros. No. Et voila qu'au coeur de l'ete et de midi. je te decouvre terr'3 pro-
Brasil, quern talvez mais perto chegou, em alguns momen- [mise du haut d'un haut col calcine
tos, da visa.a nao domesticada da beleza negra foi Luiz Et ta beaute me foudroie en plein coeur comme l'eclair d'un aigle.
Gama, no seculo passado, que escreveu versos como Femme nue, femme obscure!
estes: Fruit milr A la chair ferme, sombres extases du vin noir, bouche
[qui fais lyrique ma bouche
Como era linda, meu Deus! Savane aux horizons purs, savane que fremis aux caresses fervmtes
Nao tinha da neve a cOr, [du Vent d'est
Ma s no moreno semblante Tum-tam sculpte, tam-tnm tendu qui grondes sous !es doigts du
Brilhav3.In raios de amor. ·· [Vamqueur
Ledo o rosto, o mais formoso Ta voix grave de contre-alto est le chant spirituel de !'Aimee.
De trigueira coralina, Femme nue, femme obscure! . ,
De anjo a boca, os Jabios breves Huile que ne ride nul ,scuffle, buile calme aux fl ancs de l a thlete,
COr de pAlida cravina. · [aux flancs des princes du Mali
Em carmim rubro engastados Gazelle aux attaches celestes, les perles sont etoiles sur la nuit
Tinha os dentes cristalinos; [de ta peau
Doce a voz, qua! nunca ouviram belices des jeux de !'esprit, les reflets de l'or rouge sur ta peau
Dubios bardos matutinos. [qui se moire.
A r'ombre de ta chevelure, s'eclaire mon angoisse aux solcils
[prochains de tes yeux.
Limpida alma - flor singela Femme nue,. femme noire!
P , las brisas emtalada, Je cha:nte ta b caute qui passe, fonne que je fixe dans l'eternel
Ao dormir d'alvas estr~las, Avant que le destin jaloux ne te reduise en cendres pour nourrir
Ao nascer da madrugada. [les racines de Ia vie.
197
196
Esta verdadeira revoluc;;ao poetica de nossos tempos se exprime de modo autentico, as versoes pficiais a seu
conjuga-se com todo um movimento universal de auto- respeito se desmascaram e se revelam nos seus intuitos
-afirmac;;a.o dos povcs de cor e tem grande importancia mistificadores, deliberados ou equivocados . 0 negra, na
sociol6gica e politica. Nao deixam mais duvida quanto a versa.o de seus «amigos profissionais» e dos que, mesmo
isto versos como os que seguem, de Aime Cesaire: de boa-fe, o veem de fora, e uma coisa. Outra e - o negro
desde dentro. <·>

Et nous sommes debout maintenant,


mon pays et moi, les cheveux dans le
vent, ma main petite maintenant dans
son poing enorme et la force n'est pas
en nous mais au-dessus de nous, dans
une voix vrille la nuit et !'audience
comme la penetrance d 'une grepe
apocalyptique.
Et la voix prononce que !'Europe nous
a pendant d es siecles graves de mensonges
et gonfles de pestilences,
car il n'est point vre.i que !oeuvre de
l'homme est finie
que nous n'avons rien a faire au monde
que nous parasations le monde
Qu'il suffit que nous nous mettions au
pas du monde
mais !'oeuvre de l'homme vient seulement
d e commencer
et il reste a l' homme a conquerir toute
interdiction immobilisee aux coins de
sa ferveur
et aucune race ne possede le monopole
de la beaute, de l'intelligence, de la force
et il est place pour tous au r endez-vous
de la conquc!te et nous savons maintenant
que le soleil tourne autour de
notl:e terre eclairant Jo. parcelle qu'a
fixee notre volonte seule et que toute
etoile chute le ciel en terre a notre
conunandement sans limite.

A rebeliiio estetica de que se trata nestas paginas sera


um passo preliminar da rebeliao total dos povos de cor
para se tornarem sujeitos de seu pr6prio destina. Nao
se trata de novo racismo as avessas, as avessas daque-
le de que foram arautos Gobineau, Lapouge, Rosenberg
et cat.erva. Trata-se de que, ate hoje, o negra tern sido
mero objeto de versoes de cuja elaborac;;iio nao participa.
Em todas estas versoes se reflete a perspectiva de que
se exclui o negro como sujeito autentico. Autenticidade
- e a palavra que, por fim, deve ser escrita. Autentici-
dade para o negro significa idoneidade consigo pr.6prio,
adesao e lealdade ao repert6rio de suas contingencias exis~
tenciais, imediatas e especificas. E na medida em que ele ( • ) Revlsta fonna, n• 8, outubro d e 1964.

198 199
;·· • l' ••
e). considerando as novas perspectiv.as abertas pela
atual teoria social cientifica acerca das questoes coloniais;
f) considerando que, sob o disfarce de «etnologia»,
«antropologia», «antrcpologia aplicada,, e a despeito de
contribuigoes cientificas de profissionais dedicados a essas
disciplinas, tern se corroborado, direta ou indi_ret~ente,
situac;;oes e medidas retardativas da autodetermmagao e do
desenvolvimento material e moral de minorias e povos de
cor·
'g) . considerando qu·e o Brasil, pelas suas particulari.
ill - POLiTICA DE RELAQOE~ DE RA~A NO BRASIL dades hist6ricas, e uma nagao ocidental em que prepon-
dera o ~ontingente populacional de origel!l negr_a ;
h) ··· considerando que o Brasil·e uma comumdade na-
Prosseguindo na realizagao de certames peri6dicos cional . onde tern vigcncia os mais avanc;;ados padroes de
sobre relagoes de raga no Brasil, o Teatro Experimental democracia racial, apesar da sobrevivencia, entre nos, de
do Negro promoveu na A. B. I., de 9 a 13 de maio de alguns restos de discriminaga.o:
1955, uma Semana de Estudos, na qual varios conferen-
cistas procederam a um balango dos estudos sociol6gicos DECLARA:
e antropol6gicos sobre o negro em nosso pais.
Ao encerrar-se a Semana de Estudos, o Teatro Expe- ., 1) :m desejavel que os organism.as intemacionais,
rimental do Negro fez a declara~ao de principias que, a cujo objetivo nominal e estimular a integragao dos povos,
seguir, e transcrita. sejam cada vez mais encorajados a discutir medidas con-
cretas tendentes a Iiquidagao do colonialismo, em todas
DECLARA~AO DE PRINctPIOS <•> as suas formas e matizes, uma vez que a mera proclama-
c;;ao de direitos e de principios, s~_b forml: academica e el!l
abstrato pode prestar-se (e frequentes vezes se tern efeti-
Ao encerrar a Semana de Estudos Sobre Relagoes de vamente' prestado) para a coonestagao da injustiga e da
Raga, o Teatro Experimental do Negro : espoliac;;ao.
a) considerando as tendencias gerais que se expri- 2) Jr: Iegitimo reconbecer que o recente incremento
miram nas conferencias realizadas durante as sessoes da da importancia dos povos de cor, pcliticamente indepen-
referida Semana; dentes, como fatores ponderaveis na configuragao das,r~la-
b) considerando as mudangas recentes do quadro c;;oes internac:onais, tem contribuido, de modo benef1co,
das relagoes internacionais impostas pelo desenvolvimento para restaurar a seguranga psicoI6gica das minorias e
econom.ico, sccial e cultural dos povos de cor, o qua! s~ desses povos; todavia, este fato auspicioso nao d;v~ trans-
constitui no suporte da autodeterminac;;ao e da auto-afi!'- mutar-se em estimulo a considerar como luta e od10 entre
magao <lesses povos; ragas o que e, fundamentalmente, tensao e conflito entre
c) cons'derando cs perigos sociais que poderiam sistemas economicos.
advir do equivoco de definir em termos raciais as tensoes 3) Sem prejuizo do direito de as nac;;oes. escolhex:_em
decorrentes das relai;;oes metr6pole-colonia e capital-tra- o seu pr6prio destino, e ccndenavel toda med1da ou tod~
balho; politica, ainda que justificada no direito de autodeterm1-
d) considerando que e anti-hist6rico retornarem as nac;;ao, que tenha por objetivo, dire!o ,ou indireto, ~~zer
minorias e os povos de cor as formas arcaicas de socia- retornar as minorias e os povos de cor as fonnas arcaicas
bilidade e cultura, ou preservarem-se marginals nas condi- de sociabilidade e de cultura, cu conserva-Ias marginais
!;Oes ecumenicas contemporaneas; nas condi~oes ecumenicas contemporaneas.
4) :m necessario desenvolver a capacidade critica dos
(•) Elaborada pelo autor. . · :. ,. quadros cientificos, intelectuais e dirigentes dos povos e
200 · 'l 201
grupos decor, a fim de que eles se tornem aptos a discer-
nir nas cbamadas ciencias sociais o que e mera camufla-
gem e sublimagao de prop6sitos espoliativos e domestica-
do.res e o que e objetivamente positivo na perspectiva das
sociedades ditas subdesenvolvidas.
5) ~ desejavel que o Governo Brasileiro apoie os
grupos e as instituigoes nacionais que, pelos setis requisi-
tos de idoneidade cientifica, intelectual e moral, possam
contribuir para a preservagao das sadias tradigoes de de-
mocracia racial no Brasil, bem como para levar o nosso
pais a poder participar da lideran~a das forc;as interna-
cionais interessadas na liquidagao do colonialismo.
Rio de J aneiro, 13 de maio de 1955:

APtNDICE

20.2
1- SOBRE A CRISE BRASILEIRA E A SOCIOLOGIA
. NO BRASIL .

Respectivamente nas edic;oes ~ 7-6-56 ~


28-7-56, o jornal carioca ULTIMA HORA publi-
cou em duas partes a seguinte entrevista dJ
autor:

0 Professor Guerreiro Ramos, pelo relevant.e presti.:.


gio cresoent.e que adquire no Brasil e no piano internaciO"'
nal, pode ser considerado como o nosso sociologo do deseiJ...
e,
volviment.-0, isto como o soc:ologo em cuja obra se espe-
lham hoje as novas tendencias da sociedade brm:;ileira. A
reportagem de 'OLTIMA HORA t.eve oportunidade de
ouvi-lo a respeito de varios assuntos liga.dos a. sociedade
brasileira, no tocante a sua especiallda.de. De~ encontro
entre report.er e professor, surgiu esta palpitante entre-
vista-, cu,ja primeira. parte publicamos hoje, guardando a
segunda pa.rte para publica!li,o posterior, em que o leitoi
podera aferir a profundida.de .com que trata- as questoe~
sociologicas e a independencia com que as expoe. ·
. Falando.nos sobre o momento atual brasileiro, disse;
-nos inicialment.e o prof. Guerreir_o _Ramos:
- :m velha, no dominio da sociologia, a distin~ao entre
os periodos organicos e os perfodos criticos da vida de
uma socie·a ade. Em seus perlodos organicos, a sociedade
consegue canalizar os impulsos _h umanos dentro de pautas
consistentes, obtendo assim a integra~ao das condutas. A
crise rnrge quando estas pautas niio sao mais aptas a
exercer papel organizat6rio, deixando, por assim dizer,
J,ivres ou soltas as propensoes. novas. Entao se tor.na
evid~nte uma ruptura entre a sociedade produzida, .? u
205
rotinizada, e a sociedade em produgao, em estado eferves- «punctum secum» de que podem decorrer surpresas amea-
cente. Estamos hoje, no Brasil, vivendo um momento c;adoras. Se nao sairmos ja. deste «punctum secum~. e
essencialmente critico, caracterizado pelo descompasso prova.vel que nos afundemos outra vez na confusao,
e~tre_as aspira~oes majori~:ias dos brasileiros e a orga- alias em franco processo a nossa vista. Nao ha maior
mzagao social vigente. .€ visive!, boje, um cisma na socie- desgra~a que possa acontecer ao pais do que o equivoco.
dade b:asileira, c!sm.a que, co_m o pa.ssar dos dias, cada E o germe do equivoco esta nele operando . Grupos par--
vez ma1s se acentua. Uma soc1edade velha desaba a nossa tidarios, que nao representam mais nada e ja. deviam
"!s?t, 1;11"1ada por tendencias novas que, perseguindo sua estar reduzidos ao silencio, adquirem importancia, defen-
logica unanente, estao suscitando desequilibrios sociais os dendo, por impostura, as teses populares dos que os der-
quais, para o soci6logo, sao criadores, pois auspici~ o rotaram . Inversoes semelhantes se verificam em outros
advento de uma forma superior de organizagao social niveis de lideran~ . E tudo isto mostra a inexperiencia
em nosso pais. e a timidez dos que representam as novas tendencias da
No fundo da crise esta. evidentemente uma transfor- sociedade braslleira . E o exercicio severe e energico dessa
.magao -material do pais, uma transformagao de s uas con- representatividade que se torna urgente em todcs os seto-
digoes economicas. Ja estao deflagrados na economia res, principalmente no economico, no politico, no cultural.
brasileira fatores de tal natureza e vulto que nos permi- Ha, hoje, no Brasil, um enorme desgaste de recurses e
cem comandar, em grande parte, o nosso desenvolvimento, energias, resultante do ex-ercicio de fun Goes de lideran~~.
o ~ue nao se v_~rif~cava ate ha bem pouco, quando o con- por pessoas .respeitaveis, mas desqualificadas, sem sen-
tr~le das vanave1s de gue: dependia o crescimento do sibilidade para as tarefas novas que se impoem, pessoas,
pa1s estava totalmente alem de nossa interferencia. Em em suma, que deveriam ser devolvidas a vilegiatura ou
outras palavr~s, _embora escassos, existem boje no Brasil a uma pacata vida domestica . Enquanto tais pessoa~
rec~rsos .econom1cos e humanos que, se organizados e estiverem investidas de autoridade formal - a unica qu~
aphcados funcionaJmente, podem acelerar o ncsso pro- lhes resta - nao se desfaz a parafernalia de enganos de
gresso material. :e.:stes fatores, relativamente recentes que resulta a confusao geral.
estao,. entreta~to, como sugeri acima, e se me permitem'. Falando-nos sobre o sentido de sua obra, prossegue
desva1rados, entregues a sua espontaneidade . Esta.a des- o Prof. Guerreiro Ramos: '
mobilizados. Ora, o espontaneismo pode ser mortal para
o Brasil. - Sao as tendencias de desenvolvimento que procure
Nao basta constatar a existencia, entre nos de fato. e.x primir em minhas obras e estudos sociol6gicos . Na
res autodeterminativos. Temos um prazo util ' relativa- minba atividade profissionaJ, por meio da palavra escr ita
mente curto. para realizar a emancipac;io do pais, - a e falada, fago, quase diariamente, uma experiencia enri:.
queA nos obnga a esforc;os para enquadrar esses novas ·quecedora. Jr: que, sendo o meu pensamento freqiient~
fatores nos ~st~tuto~ economicos e sociais que eles recla- mente polemico e contrario ao aparentemente consagrado,
tnam . A crJa~o desses novos estatutos da sociedade seria de esperar que suscitasse oposigoes, desaprova~oes.
bras!leira_ exige que se projete e r ealize um elenco de Todavia, nao me posse queixar. 0 6dio que aJguns «so~
medidas mtegradas, que reflita.m a consciencia organics. ci6Iogos» oficiais me votam, ele mesmo se constitui em
de nossa'S lacunas e necessidades . A classe dominante do situ~ao intelectual.mente fecunda para mitn, pois me
Bra~il atual nao e, em verdade, uma classe dirigente, na -instala dentro de uma contrad.igao muito estimulante do
medid~ em que ela nao_- pcssui a. consciencia organica das ponto de vista dialetico. Vivo dialeticamente . Na o encon-
necess1dades ·da comurudade nac1onal . Para ser dirigente, tro, porem, resistencias serias na minha atu~ao profis-
falta-lhe um.a ccmponente psico16gica e ideol6gica - a sional. Posso dizer que tenbo, hoje, publico numeroso
compreensao da realidade do pais como um todo . Esta em t odo o pais . Agora mesmo estou-me preparando para
i- carencia ideol6gica se revela nas marchas e contramar- atender a convites para fazer conferencias em Sao Paulo,
chas e na indecisao que. ostensivamente. caracterizam a Belo Horizonte, Salvador e Recife . Isto e para mirn tiio
maru!ira como cs grandes problemas nacionais estao sen- desvanecedor quanta se fosse convidado para o cstrnn-
do tratados . Estamos vivendo uma perigosa fase de geiro. P ois o sentido de minba obra e cmlnentcmcnte
206 207
, I Iutar' contra esse estado de co~as e que estao j a inquietos,
brasileiro e o seu julgamentb, nao apenas no exterior, em busca de novas rumos.
mas no Brasil, e importante no meu entender, Lamento
apenas que a minha obra publicada ainda nao ccrresponda TI
ao que mi que posso e vou fazer. Considero-me, na ver-
-dade, um estreante, tendo em vista os meus projetos de - Pode o senhor resum.ir as teses principals do sen
trabalho.
pensamento soeiologioo?
- Quais os principais problemas de o r ~ do
.trabalho sociologico no Brasil? - Ja o fiz em 1954, em declaragoes prestadas ao
jornalista Otto Schneider. Mas e pertinente re".er essas
- Na minha opiniao, dois devem ser destacados, no teses tendo em vista atualiza.-las. V cu resunu-las nos
·m omento. Em primeiro lugar, o da aplicagao dos recur- itens' que formularei a seguir:
·sos no trabalho de pesquisa no dominio das ciencias so- I _ o atual esquema de di~isao d~s ciencias soci~i~
..ciais. V arias or ganizagoes nacionais estao aplicando esses ( economia, sociologia, psicolog1a soc1al, . antro~c l?~Ja,
·rectirsos. Salvo raras exCeGoes, fazem-no; porem, d_e ma- etc.) esta obsoleto. Correspcnde a um per10do h;stor1co
-neira que considero ··verdadeiramente predat6ria. Estao dos paises europeus, em que se verifi?ou o al??ge~ do
·sendo feitas pesquisas para se conhecer o que e 6bvio, capitalismo. Nesse periodo, a burgues1a eurcpe1a tmha
·o que ja se sabe sem pesguisa; ou ainda, aplicando-se conseguido tornar-se o ?entr~ conf~rmador do mundo e
recursos em projetos de sobremesa, em investigagoe_s e para garantir-se est~ s1tua~~ao,. est1mu!ou, nos g~adros
,estudos de secundarissima importancia €ID pais como o acadei:nicos a floragao de c1enc:as part1culares apbca~a~
Brasil, com o que se ocupa, ass•m, mao-de-obra quaJifi. no estudo 'ae ·aspectos parciais da socieda:de e da v1da \
cada, que poderia ser encaminhada para a realiza~ao de humana . A visao unitaria e global das rnc1edades, nesse
'tarefas de maior prioridade. Sohre o que penso a res- perfodo 'hist6rico, se traduz na conduta pratica, da bur-
·peito da pesquisa socio16gica no Brasil, escrevi um capi- guesia. Atua!mente estamos entrando em no~a epoca de
tulo da Camlha Brasif:~ira do · Aprendiz de Soeiologo. crise do imperialismo. 0 centro d~ co!lfor!°agao do mun:-
Nesse terreno, ha verdadeiras leviandades, custeiam-se do ja se bipartiu, enquanto na perifer1a dcste se esbogam
empreendimentos de carater puramente parasitario. . ondas ou movimentos cismaticc s que tendem, por sua
O outro problema diz respeito a utilizagao pelo Brasil vez, a promover a repartigao de ~o~gas inte;nacionais.
dos recursos a aue tern direito, oriundos de organizagoes Conseqlientemente, torna-se ne~essano o apelo a . uma
internacionais. Por um lado, o prestigio dessas organiza- teoria globalista da presente epoca, apta a servir de
goes parece ofuscar-nos e nao temos, na medida neces- instmmento para realizagao das mudanga:3 _em que o.~
.saria, uma atitude critica em face delas. E assim, acei- povos estao empenhados .. ~stas novas cond1goe~ ?~term.1-
tam-se, no Brasil, seus projetos simetricamente elabora- na.m o imperativo da revisao do esqueµia de diy1sao d8;S
dos de maneira abstrata, uniforme, desplantada, que nao ciencias sociais oriundo do seculo passado, e amda hoJe
'traduz os interesses reais do pals, os quais, por serem sobrevivente.
muito particulares, exigem sejam tais projetos tambem II - A sociologia, a luz dos fatos contemporaneos,
muito especificos. Na burocracia internacional, verifica- revela-se como uma forma de ideologia conservadora. Na
-se em nao pequena escala o que se pode cham,ar de pato- forma sistematico-formal que veio a assumir nos quadr5s
,logia a.dmmistrativa. Ai ac!3.ba por rn formar uma con- academicos, tern de ser utilizada subsidiariament~ e. nao
fraria de especialistas do abstrato, de questoes genera- como «a» ciencia da sociedade. As correntrn 1n;.ais 1de_o-
Jii;:simas, cujos compcnentes se rodiziam num jogo incon- I6gicas ou acientificas da scci~logia contemporanE:a. sao
seqiiente de postos mais ou menos in6cuos ou «carto- o formalismo (Simmel, von Wiese, etc.) e o emp1rismo
_riais». Faz parte desse jogo o aliciamento. dentro de (sociologia e antropologia anglo-am~rica~as, sobretudo! .
cada pais, de uma especie de quinta-coluna que se bene- Estas correntes, mais do que a soc10log1a em geral,, sao
ficia dos cart6rios mantidos mediante recursos interna• «doutrinas da crdem», tautologias disfargadas sob o rotulo
cionais. Ainda bem que conhego varias excegoes: brasi- de ciencia.-
leiros patriotas, ligados a tais organizagoes, que procurani
209
208

,J
ill - -Inclino-me a conceituar a nova 'Ciencia soc!al subsidio, jamais como norma ou criterio de pensamento
coino uma concepgao resultante de relagoes dialeticas e agao . Quante mais autentico.s o pens amento e a agao,
entre a teoria e a pratica. Note-se que nao dou primado mais os seus criterios devem ser induzidos da circuns-
sistematico nem a teoria, nem a pratica. Em toda pra- tancia imediatamente vivida pelo sujeito. Comego a me
tica ha uma teoria imanente. Em toda teoria ha uma preocupar com a criagao de um~ tecnica de «redugao
pratica imanente. }'l_a · minha vida prcfi_ssio.p.al, alias, e~ socio!6gica», que habilite o estudioso a «suspender» os
certo sentido, a pratica precedeu a teoria. A nova teor1a produtos sociol6gicos, a fim de ~ssimil~-los! sem perigo
sobre relagoes de raga no Brasil, que consegui fazer vito- de deixar-se envolver por sua mtencionalidade ou de
riosa ~m nosso meio, representa a indugao de uma prax:S. alienar-se.
O Teatro Experimental do Negro me possibilitou a praxis
do . «problema» e depois dela e que cheguei a teoria. 0 VI - Quern apenas conhece a literatura socioJ6gica
mesmo aconteceu com os meus estudos sobre mortalidade
infantil e sabre problemas administrativcs, economicos e
politicos do pais . Q~em nao age, quern nao participa do
processo societario nao compreende a scciedade.
IV - Resumindo: a ciencia social do s-eculo XX e
t universal, sem se dar conta do que chamo de «reduc;;ao
socio16gica», nao passa de simples «alfabetizado» em so-
ciologia. No Brasil, pessoas meramente alfabetizadas em
sociologia sao erroneamente consideradas soci6logos. A
hist6ria da sociologia no Brasil e, em larga margem, uma
uma teoria culturalista de carater radicalmente histori- cronica de Iivros, ou de cadernos de deveres colegiais.
cista e dialetico. t:: culturalista pcrque distingue na hist6_- VII - Os fates sociais nao sao coisas, ccm o pensa va
ria universal um processo unitario de desenvolvimento - Durkheim e como pensa a s6cio-antropologia empirico-
.o processo eivilizat6rlo; e descontinuidades culturais, _cul- -positivista atualmente aceita principalmente na Ingla-
turas irredutiveis, ou seja o processo cultural. £ rad1cal- terra e nos Es'tados Unidos e servilmente imitada no Bra-
mente historicista enquanto nao se consid.rra uma teoria sil por uma legiao de franzboas-boys, hersko'?t_::-boys,
final, mas esta disponivel para a superagao de sua pro- e wagley-boys. E ai que se recrutam os «Iusotrop1co.ogos»
pria estrutura categorial, uma vez que esta advertida de e os agentes cc,nsulares e outras especies de an'mais
que a pr6pria estrutura subjetiva do homem se altera domesticos. Para a sociologia cientifica, o que acontece
pistoricamente. £ radicalmente dialetica no tr!plice sen- na sociedade nao se reduz a coisas, mas a processos. 0
tido de que - (a) nao ad.mite o primado sistematico de empirismo sociol6g:co e pseudo-cientifico, porque con-
nenhum criterio operat6rio de dialetizagao, nem tampouco verte um memento transit6rio da sociedade em algo defi-
~e ad.mite como um m,5mismo determinis~a ,d.i_alet5:-o ~ .<b) nitivo, eterno, mumificado . Prefiro dizer com Hegel: «O
na.o ad.mite a conclusao do processo h1storico-dialetico; importante no estudo da ciencia e realizar o esforc;;o do
nem sabe de antemao aonde conduz este processo; (c) conceito» . Contra o fisicalismo, a «coisificagao» dos fates
dialetiza as relacoes entre a t eoria e a pratica. sociais, su.stento que o que acontece na sociedade humana
. V - A pro-dugao sociol6gica, como toda especie de so pode ser entendido objetivamente quando se assum~
produ~ao, e historicamente condicionada. Portanto, a o ponto de vista do devenir, do movimento permanente.
produgao scciol6gica, direta ou indiretamente, reflete os
caracteristicos especificos da sociedade particular do pro- . vm - Uma conseqtiencia do exposto anteriormente
·a utor ou dos produtores . Todo produto socioJ6gico e e a que tenho chamado de «faseologia », modo de ver
dotado de intencionalidade. No dominio da ciencia social, sociol6gico aplicado por mim em varios estudos , princi-
tem validade tambem a observagao de que o desenvolvi~ palmente no meu livro editado no Mexico (1955) «Socio-
mento nacional consiste em grande parte na substituigao lcgia de Ia Mortalidad Infantil» . A ideia central deste
de importac;;oes . Assim como somos mais brasileiros, con- modo de ver pode ser assim enunciada: toda estrutura
~umindo Guarani em vez de Coca-Cola, tecidos Bangu economica e cult-urologica condiciona E,211 correspondent.e
em vez de tecidos ingleses, devemos produzir e consumir elenco de problemas, o qual so se alt.era na medida em
a nossa sociologia em vez de consumir a dos outros passi• que a .referida estrutura se transforma de modo fas.~0-
·vamente . Para o autentico profo,sional brasileiro, a pro:- logioo. 0 modo de ver faseoI6gico e empirico-dialetico e
dugao sociol6gica estrangeira deve ser considE:rada cam9 encarece a visao globalista da :;:cdedade. Implicaria o
lema: o tcdo condiciona as partes.
210
I 211

\
logia>, cuja validade eu nego, fazem-no, nao porque care-
gam de va:or e de inteligencia, mas porque foram adcs-
trados de maneira equivocada. Sao pessoas, via de r egra,
Binceramente equivocadas.
- Negando a «sociolog:a», nao esta f.azendo racio-
cinio suiclda?
- Ao contrario, encontro fortes estimulos para rea-
lizar uma tarefa criadcra. E ssa tarefa consiste na fun-
damentagao e no exercicio da c:encia hist6rica. . A dencia
II - 4:. • • A DESCIDA AOS INFERNOS> social s6 podera ser legitima enquanto hist6rica, enquanto
teoria da problematica atual da s·ociedade. Dai se infere

'
que, sem pratica, sem militancia, - nao ha ciencia social.
Sob o titulo «Guerreiro Ramos e a descida aos infer-
nos», a revista Marco (n., 4, 1954) poblicou a segu.nte - Qual o anteeedente europeu desta ciencia histo-
entrev:sta: rica?
- 0 senhor aceita ser classificado como sociologo? - Principalmente Hegel e seus continuadores revo-.
lucionarios e, ainda, o historicie:mo, com Dilthey a frente.
. - Aceito por comadidade o qualificativo. Todavia, Temos de retomar estes marcos do pensamento e repen-
cada vez mais me convengo de que, enquanto permanece sar a atual divisa.o das ciencias sociais, a qual esta muito
adstrito aos quadros academicamfnte definidos como so- comprometida com as tendencias conservadoras da socie- .'I
cioJ6gicos, o especialista nao se habilita a alcangar a dade europeia, a partir mais cu menos da decada de 1840.
compreensio global da sociedade. A sociologia, nos mol- Em suma, o atual esquema das ciencia sociais nao e nada
des em que a ccncebeu Augusto Comte na decada de definitivo, e reflexo de uma fase hist6rica, superado ou
1830-840, e nos moldes sistematicos em que se configurou em vias de superagiio, na medida em que estamos plan-
posteriormente, e uma escamoteugao, enquanto nao pro- tados em outra fase hist6r ica.
picia a percepc.;ao das tendencias fundamentais do desen-
volvimento das sociedades, mas apenas conhecimentos - Que contribui~io pode dar neste sentido o clen-
fragmentarios e parciais da vida coletiva. tista bra.sileiro?

- A sociologia e portanto ideologia. 't - No dominio da ciencia soc~al, o intelectual brasi-


leiro pode tirar grande vantagem da perspectiva que lhe
- Para ser preciso, vamo.s dizer a «sociologia>, usan- da a sua sociedade em rapida tr ansigiio do semicolcnia-
do aspas . Sim. A «sociolcg:a>, enquanto se pretenda lismo para a emancipagao. Nossa perspectiva em face
uma ciencia sistematico-formal (pem-o aqui em sist<mas da produgao cultural dos paises lideres e semelhante a
como os de Durkheim, Simmel, von Wiese e as da maioria que habilitou os intelectuais do seculo XVIII a liquidar
dos soc'6logos norte-americanos). e. freqlientemente, as sobrevivencias feudais de sua epoca. 0 process·o pcsi-
uma fonna larvar de ideologia conservadora, uma cripto- tivo de nossa sociedade e favoravel a tarefa criadora no
ideologia. dominio da cultura.
- Di7..-se por ai qoe o senhor e um iconoclasta e a - As nossas institui~oes culturais estio preparadas
tese que esta agora sustentando nao iri. confirmaz isto? para isto?
- Quern quer que contr arie a rotina esta exposto - De modo geral, nao. Em sua maioria, elas estao
a inccmpreensiio. Na verdade, pretendo ser construtivo burocratizadas, sem sensibilidade para a cultura e sem
e esfor~o-me por ser impessoal, evitando ferir suscepti- inqu'etagao. Em larga margem, nossa organiza~ao cul-
bilidades alheias. Nern haveria raza.o para isto. Em ulti- tural «oficiab carece de representatividade, e inimiga da
ma analise, muitos dos profissionais que pr aticam a «socio•
213
212
,,
criagao autentica, assim que o trabalho de criagao de gas, daqueles refolhos, daqueles tropos da vida que os
cnltura tera que ser procedido a despeito dela. . . Deixe- inocentes, os equivocados, os conformados negligenciam
mos os «profiteurs» daquela organizagao cc m os seus· ou nao percebem. Este saber-culto s6 se adqu1re des-
titulos, seus galardoes academiccs. sua pachalice e tra- cendo aos infernos ou . . . mordendo a maga, como Adao.
temos de viver intensamente o nosso tempo. Quero nao obedece aquela regra, nao pcde conjurar o
hermetismo constitucional da cultura, que s6 entrega o
- Que pensa a respeito de nossa produ!;ao socio- seu segredo aos generosos.
16gica.?
- Que situ~oes em sua vida tem ma.is contribuido
- A sociologia no Brasil, sobretudo a «oficial» e a para a sua forma~a.o?
mais festejada nos circulos dos «Entendidos» e:::ta desatua-
lizada. Em parte, esta desatualizagao e reflexo da desa- ...:.... A pobreza e as relagoes de comensalidade c~
tualizagao da atual sociologia eurcpeia e norte-americana, os amigos. Uma das mais fortes impressoes ·que · recebl
em face do prcgresso das ideias filos6ficas nos ultimos na adolescencia resultou da leitura de Rilke e de Peguy,
quarenta anos e da nova imagem do mundo. Na medida dois her6is da pobreza. Ainda que, atualmente, ponha
em que os no:::sos soci6Iogos levam demasiadamente a entre parentesis certcs aspectos das obras destes homens,
serio ou ao pe da letra a produgao sociol6gica alienigena, devo-lhes a inic:agao no espirito da pobreza como ideal
acentua se a dita desatualizagao. Alem disto nossa de vida. Ao lado disto, dentre as minhas melhores oca-
sociolo~ia . esta d~~tualiza~a em relag~o ao no~so pre- sioes de crescer incluo cm primeiro lugar as em que, a
sentE:, a problematica particular da scc1edade brasileira pretexto de um cafezinho, de um almo~o ou de um jantar,
P.~rdida na !nvestigagao de pseudoproblemas, de ques: dialogo com , os amigcs. Em materla de cultura, meu
tmnculas, ta1s como «aculturagao», «estrutura de comu- debito para com os amigcs e muito grande. Reconhego-
nidade», «Iusotropicologia», «sobradcs e mucambos» ou -me mesmo, neste terreno, um espaliador de amigos.
em certas mandarinagens i:-:obre temas tratados em tese - Que estudos esta realizando presentemente?
com muita erudigao e sem nenhuma urgencia necessidad~
ou funcionalidade. ' - Estou ultimando uma obra que se chamara A
Teoria da Sociedado Brasilclra, em que pretendo mostrar
- Sua posi!;ao na soc!clogia brasileira e muito in.so- a evolugao da teoria rnciol6gica entre nos, desde Sylvio
lit;a.. Como chegou a ela? Romero ate os nossos dias e apresentar uma interpreta-
. - A. vida tem sempre razao. Sempre tomei o par- gao hist6rico-scciol6gica da realidade brasileir a. Prepa~o
tido da vida. Os mcdestos conhecimentos que acumulei tambem uma obra sobre negros e «brancos» no Brasil,
(e nao cesrn de adquiri-los) sao vividos. As c!rcunstan- em que pretendo mostrar que o nosw «problema» do
cias colocaram-me em tal posigao que o.s meus estudos negro e reflexo da patologia social do «branco» brasileiro
foram sempre ccmandados pela n€cessidade de com- e, portanto, um equivoco de nossa sociologia e antropo-
preender ou resolver problemas: mortalidade infantil logia do negro.
ad~inistragao de neg6cios governamentais, organizaga~ - Qu.e coisas gostaria de fazer na vilegiatura?
s~c1al dE: negros, agao pclitica, agressoes pessoais, etc.
T1ve ass·m de, continuamente, testar na pratica as mi- - Quero crer que esta muito longe ainda esse pe·
nhas ideias e os meus conhecimentos; quando nao de riodo. Mas a pergunta me da oportunidade para confessar
extrair da pratica uma teoria. Estou certo de que d~riva dois dos meus mais amoraveis projetos para quando dis-
dai o meu realismo, se me permite. Meu lema e e sera puser de mais tempo .. Ii:stes p~ojetos sao: e.screvE:r «a
sempre o de Napo:eao: «on s'engage, et puis on verra>. h'st6ria secreta de Abd1as Nascimento» e a b10graf1a de
Seguindo este lema, pude restituir a cultura, para mim, Helio Jaguaribe.
o seu sentido original de saber. Para me entender e Com o primeiro destes projetos, pretendo, atraves
preciso por enfase em rnber, na cnndigao de estar 'de da descrigao do curso de uma vida, fazer a hist6ria interior
posse, de estar senhor daqueles angulos, daquelas nuan- de um precursor, de um homem a quern venho assistindo

214 .I 215

......
i,
viver d~a!eticamente a negritode. A antecipagao que
marca a vida de Al::dias tern sido o obstaculo para o seu
exito social, no presente. Mas o exito vital. . . e o tema
que quero ferir - o pl€no exito vital de um homem sob
a aparencia social ma:s despi£t adora, e apesar das incom-
preensoes impostas pela pemiria e a mediocridade am.
biente.
Com o segundo projeto, pretendo fixar a fisiono.mia
dinamica de um pedagogo, fixar um momento importante
da evolu~ao cultural do Brasil, quando uma vida humana
se faz .materia em que um determinado «tempo> hist6rico
impregna o seu sentido . .. f· tNDICE DE NOMES

216
l
A BOLMICAR da Cunha, Alvaro,
63. 64, 65, 70, 125, 161, 162
BONI F ACIO, Jose, 56, 87
ABREU , Caprlstano de, 85 BOU RGEOIS - PICHAT, Jean,
ADAM , Paul, 62

I
116
ADAO, 215 BRACH F ELD, Oliver, 182
ADLER . 182 BRANDAO, Francisco Jose, 56
AFONSO Celso, Conde, 64, 65 BRANT, Marlo, 65
t,
A G BEBI, 151 BRAS ILI ENSE, A., 7 0
ALMEIDA Magalhil.es, J. de. 63 BR E ARLEY, H. C., 92
Al.MEIDA, Martins de, 68, 70 BR l tRE, J an-F., 197
ALVES Branco. 54 BROCA, 129
AMADO, Gllberto, 66, 67 BROUARDEL, 142
AMMON , 0., 136 B UARQUE de Holanda, Sergio,
ANDRADE , Almir d e, 27 85
ANDRADE, Mario de, 196 B UC KLE , 21
ANDRADE Murici, Jos6 CG.ndl- BURGESS, Ernest , 94
do, 63 ' BuRNS, Alan, 152
ANTONIO Conselh~lro, 44
ATHAIDE, Trista.o de {Alceu
Amoroso Lima>. 66
0
AUSTREGESILO, Miguel. 63
AZEVEDO Amaral, 68, 105, 189 CALOGERAS, Pandia, 117
AZEVEDO, Thales de, 89, 148, CAMPOS, Francisco de, 65
149, 182 CARNEIRO, Edson, 147
CARNE IRO Leiio, A., 66, 67
CARR EL, Alexis, 173
B CARVALHO, Ronald de; 66
CASTRO. Josu6 de, 105
CESAIRE, Alme. 197, 198
BACKER. 61 CHAMBERLA I N , H. S., 182
BAGOLINI , Luigi. 187 C H ANG, P el-Kang. 84
BALANDIER, Georges, 27, 177, CHERMONT, Justo, 64
192 CHICO Rel , 160
BARBOSA, Rul, 46, 53, 59, 61, CL ARK, Ma m ie, 153
69 CLA U DINO, Ernesto, 75
BARNES. 187 COLLINGWOOD, R. G., 27
BARRETO, Luis Pereira, 21 COMTE, Augusto, 20, 22, 21, 25,
BARR E T O, Tobias. 21, 55 26, 56, 57, 59, 79, 90, 92, 93,
BASTI DE, Roger, 147 21'.!
BASTO S, Abgu.a r, 70 CONDE, J oil.o, 184
BATESON, 189 CONRA D, J oseph, 182
BATOUTA, l bn, 151 CONS T AN T , Benjamin, 19
B ECKER , 187 COOLEY, C. H., 94, 188
BENEDICT , Ruth, 176 CORRE, 142
BERNARD, L. L., 92, 94 COST A Pinto, L. A. da, 154
BERNARDES, Artur, 65 CUNHA, Euclides da, 8 , 22, 44,
BIR AGO , 197 105, 125, 127, 131, 132, 133,
B OAS, Franz, 137 184, 141, 142, 145, 146
I BOEHRER, Georg C., 74 CUVILLIER, Armand, 92
D GINSBERG, Morris, 92
LAMBERT, J a cques, 154 NI G ER, P aul, .197
GOBI N EAU, 129, 182, 198
GOLDMAN, Luclan, 27 LAPI CQUE, 90 NINA Rodrigues, Raimundo, 8,
DANILEVS K Y, 85, 94 G RAHAM, Maria, 127, 147 LAPOUG E , Vacher de, 138, 198 21, 125, 128. 129, 132, 134,
DARWIN. 151 GRATITIANT, 197 LAVROV, 94 136, 137, 138, 139, 141, 142,
DA U DET, 20 GU ERREIRO Ramos, Alberto, LAZAR, 81 143, 144, 145, 146, 147, 149,
DA V I D. Pierre, 182 5, 11, 27, 84. 98, 111, 133, LERO, Etienne, 197 154, 155, 182
D EB ANE, N icolau Jo!re, 64, 65 159, 163, 164, 182, 205, 207, L E PLAY, Fr., 115, 131 N OGU EIRA, Jose AntOnlo, 66
DEBRET. 127, 147 211 LEW I N , Kurt., 81 NORMANO, J . F., 70
DEO DATO, Alberto, 63 G UI L LIEN , Nicolas, 196 LICI NIO Cardoso, Vicente, 66 N OVI COW, 173
D ESCARTE S, Rene, 17 G UMPLOWI CZ, 131, 132, 1 75, LIMA, J orge de, 196 NUNO P inheiro, 66
DI L THE Y, 27, 213 18!) LOMBROSO , 112
DIOP, David, 197 G LIRVITCH, Georges, 38, 4.8, 192 LU IS, XIV, 104
D U ARTE , Nestor, 106 LUKAC S, Georges, 70
0
D UF RENNE, Mikel, 33
D U QUE Estrada, 28 H
DURKHEIM, J!lmil, 17, 90, 115, l\l OGBURN, W . F., 94
173, 174, 211, 212 OLIVEIRA Viana, Francisco
OU V E R G ER, Maurice, 41 HALBWAC HS. Maurice, 191
HAV E LACQU E , Abel, 14_2
J ose ~ . 8, 52, 53, 66, 67, 68,
MACHADO de Assis. 142 70, 93, 94, 105, 125, 127, 129,
H EG EL. 27, 211, 213 MALINOWC KI , D., 151
HELLER, Hermann, 38
137, 138, 139, 140, 141
E HERACLITO, 171
MANNHEIM, I<url, 27, 37, 70
70, 81
HERS KOVITS, M. J ., 140 MANNON!, 0.1 27, 192
ENGELS, Fr., 70 HERZ, Robert, 182 p
MARCELINO, Jos~. 61
H LI ME, David, 187 MARIA, AnlOn io, 184
MARICA, Marq11<\~ de, 83
PAIM, Gilberto. 44
F MARX, Karl, 27, 36, 10, 41, 42,
PARETO, Vilfredo, 175
l 90, 115
PARK, Robert, 94
F /1 l_r. 1< 0 . /I ntl),.l. 56 MEAD, Margaret, 170
PATROCI NIO. J ose do, 160
I CHHEISER, Gustav. 183 M E DEIROS, Lnudclino, 89
F ERN A NDES. Florestan. 148 PE<; ANHA , Nila, 61
MEILLET, A., l M PEGUY, 79, 195. 215
FER R AZ. Aydano do Couto, 147
MEN DE Tibor, 186
FERRI. 1 42 PEIXOTO, Carlos, 61
F I NOT. J ('an. 136
J MENDES do Al meida, Candi do
PEIXOTO, Floriano, 59
AntOnlo, '1 0
FI G UEIREDO, Jackson, 63, 64, PENA, Afonso, 01
J AGUARIBE, Hffio, 24, 27, 215 MENTRE, Fru.ni;ols, l!ll
65 P ENA Junior, Afonso, 65
JASPERS, Karl, 33, 37 MESQU ITA, Euclides. 76, 89
F O RTU NATO, Greg6T!o, 194 PEREGRINO Junior, 70
MI CHAUX, Henri, 186
FRAZIER, Frankli.n, 34 P ESSOA, E plt6.cio, 63, 65
MIKHALOVSKY, 91
FREIRE. Oscar, 145, 147, 1 55 P F L OGER, 95
K MOLEMA, S. W ., l !H
F RE YER, Hans. 23, 27, 66 PIERSON, Donald, 148, 152
MOORE, Wilbert E ., 81
FREYRE, Gilberto, 80, 128, 134, PIMENTA, Joaquim, 70
M O RAIS F iJho, Evaristo de, 70
136, 137, 147, 182, 185 KAREYEV, 94 PINHEIRO , Jolo, 61
MORAIS, Vlnlclus d ~, 196
FROBENIUS, 176 PINHEIRO Ma<:hado, 61
KENNETH, 153 MOTEN, R. R., 152
FROMM, Erich, 153 PLEKHANOV, G. V., 175
KIDDER. 127. 147 MOTET, 142
FURTADO, Celso, 70, 97 PLENGE, 22
KHAN. A li. 185 MUKERJEE, R adhakamal, 94,
KOSTER. 127. 147 PONTES de Miranda, 66, 93, 94
188
KROEBER, 176 PORTO, Adolfo F., 184
G KROPOTKIN, 94 POVI I\I A , Alfredo, 90
PRADO J(mior, Caio, 50, 54, 70,
N 105
GAL TON, Francis, 173
GAMA, Luiz, 136, 160, 196, 197 L PRADO, P aulo. 22
GAR CIA, Evaldo da Silva, 84 NABUCO. Joao_uim, 160, 161 PRATES. Camilo, 64
GAROFALO, 142 NAPOLEAO, 215 PREBISCH , Raul, 97
LAC A SSAG NE, 142 PR EVILLE, 129
GI D DINGS, 92, 188 NASCIMENTO, Abdias, 140,
LACERDA de Almeida, 615 PRESTES, Luiz Carlos, 46, 4.1,
GILLIN, J ohn, 90 LALEAU, Leon, 197 162, 163, 215, 216
NIEMEYER, Waldyr, 70 68, 69
Q SPENCER, H erbert, 20, 24, 25,
26, 90, 115, 142
QUERINO, Manoet, 147 SPENGLER, Oswald, 84
SPINOZA, 187
SPR A N GE R, E<luardo, 176
R S TUART Mill, John, 15
SUED, Ibr ahim, 186
SUMNER, W . G., 92
RAB tAR IVELO Jean-Joseph,
191 •
RABtMANJARA, J ean, 197 T
R AMOS, Arthur, 80, 128, 132,
133, 134. 136, 139, 141, 145, TAINE, H., 129, 133
146, 147, 1:54, 155, 162, 176, TAVARES Bastos, 53
182 TEI XE IRA M endes, 56, 57, 58
RAMOS. Graclllano, 33 TIMAN DRO (Sales TOrres Ho-
RANAIVO, Fla vien , 197 mem). 62
RAN GEL, IgnAclo, 44 TIMA SHE FF, 36, 40, 41, 12
RATZEL, 131 Tl RO l.. 1EN, Guy, 197
REBOUCAS, 136 TONN I ES, F ernando, 109
R ENAN , 129 TORR ES, Alberto, 8, 32, 73, 87,
RIB EIRO, Rme, 182 1 05, 125, 127, 134, 135, 136,
RICOEUR, Paul, 83 137, 141, 169
RI LKE, Rain er Maria, 215 TORR ES, AntOnio, 32, 62, 70
ROLLINOT, 20 TOYNBEE, A rnol d, 112
ROMERO, Sylvlo, 7, 8, 20, 21, T ROEL TSCH, Ernst, 23, 27
27, 15, 63, 58, 59, 60, 61, 69,
70. 105, 125, 127, 128, 129,
130. 131, 141, 142, 145 161,
V
18!!, 215 '
ROSEN BERG, 144 198 VAR GAS, Getulio, 36, 48, 49, 193
ROSS, 92 ' VELLASCO, Domingos, 75
V IEIRA, Celso, 66
ROUMA IN, J acques, 197
VIEIRA, Severino, 61
RUGENDAS, 121, 147
VILLAR , Frederico, 64
VITAL, Dom, 64
V OSSLER , Ka rl, 152
s
SALES Torres Hom em , 53, 62
w
SALGADO, P linio, 47, 70. WA GLE Y , Charles, 148
SAN TA Rosa, Virginio, 68, 70 WARD, Lester, 90, 92
S APIA, E<l ward, 152 WEBER, Ma x, 40. 90, 109, 115
SARTRE, J ean Paul, 159 WEISSMANN, 136
SCHMIDT, W., 85 WHITE, L eslie. 84
S CHNEI DER, Otto, 209
0

W IESE , Leopold von, 92, 209,


SEAL, B rajendra N a th, 94 212
SE DAR Senghor, Uopold, 197 WILLEM S, Emilio, 106 ·
SER RANO, Jonathas, 66
SH A LER, N . S., 188 y
SI MMEL, Georg, 150, 151, 209,
212
YOUZHAKHOV, 91
SI LVA, Geraldo Bastos, 84
SILVEIRA. Tasso da, 63, 70, 66
SMALL, Albion, 90, 92, 115 z
SM 1TH, Ada m, 187, 188
Z OL A , 20
SODRt, Nelson W erneck, 75
Z UM BI, 163

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