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C3pítulo i I, "I 11111 ,L'i I I ! ; ,I

Capítulo 4 ,21 Capítulo 20


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Capítulo 5 1.,,1 II Capítulo 21


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Capítulo G ./i:{ '; ~ ,I:' f) .11, I ) r \ ( i' : 1 i I ; I ('" 1 1 \ \ \1,' !(


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Capítulo 22
Capítulo 7 -) "!
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!.,)i.HI'\i i: j:i[u \\11\;d ("-,t;'~ ,\ 1.l1il

Capítulo 23
Capítulo 8 """, TI 100
~li\;( I \ I,," i;- I (~, :.! 11~~"1';" il:) l)~;d < () r l:,' I, ,H.Li Uill qlH' ;'l\ill,' pur '-.i" t' 11;':1) id!:; I ',i!. nF (I

Capítulo 9 1\ Capítulo 24
10')
iJil'" 'I'iíll, 111.1'" 1\1111 PIII,ill'1(',I'III\" ",'" """ IJ( <i", ) .111:1 11"li"1 (,11 (!'1 ',li,! ií 1 i i: I

Capítulo 10 .,' ,1/1 Capítulo 25


I' ~j( \::111"11 I, I dI ',I l!l i1j 111(!li •• ,- •....•.•••••• rI I: i\1 i: I lU
i ,i li i J \) (I l' i 1'- l i.' i t ~! li\. "(

Capítulo 11 -4 ~3
1 ~' \,' ~ (i í i \ :' Capítulo 26 1 1 ;~

Capítulo 12 Ii i 1i!: I
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q: il.' l 27
1

Capítulo
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1)2
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Capítulo 13
j lt \i J : \ I,H', \ : j I' U ,( i,. il,
Capítulo 28
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Capítulo 14 . h()
\\\:) ;\\,.1:;1 li 1\(

Capítulo 29
Capítulo 15 \ \

i",1 ,Iv
Apêndice
Capítulo 16
.'

lvan Jaf

mais conhecedores da natureza humana e do VamplrlSmo. Podemos


fedia a abatedouro, como o da maioria
A lnsônia

de nós, mas, ao contrário,


do Vampiro

era

1Itij;':',':,.~~

corno um passeio por um campo de lavanda.


estudar, aprender a ler, a pintar, a falar outras línguas. Podemos nos
Eu não sabia nada sobre ela. Tinha sido indicada por um amigo, um
desenvolver espiritualmente. O espírito não volta ao que era antes, du-
rante o dia, como o cabelo e as unhas. joalheiro judeu, vampiro, sofrendo havia séculos ele uma grave mania
de perseguição.
Procurei, portanto, a psicanálise, que é uma das furmas de desen-
Fiquei curioso para conhecer o "relato" dela.
vulvimento ao alcance dos vampiros e o que mais se aproxima de um
"Relato" é a maneira pela qual a pessoa virou vampiro, e quase sem-
tratamento" .
Naturalmente, a psicanalista era uma v~lll1pira também. prt é o tema que surge na cunversa quando dois de nós se encontram
pela primeira vez. Mas não est~ívamos ali para trocar "rt1atus·'.
Como eu poderia me abrir, falar de mim, sc'm disfarces nem men-
() consultório era numa ckpendê'ncia isobda do apartamento.
tiras, P~lLI uma psicanalista humana, normal? Eu a mataria de susto na
Ao contrário do que eu esperava, era alegre, colorido, com quadros
primeira sessão - além da dificuldade de arranjar horário à noite.
abstratos nas paredes, móveis modernos e um grande janelão aberto
H{l muitos profissionais liberais vampiros espalhados por uma ci-
voltado para o parque.
dade grande. Meu técnico de inform{ltica, que me socorre quando um
Ela se sentou numa poltrona preta, de apar2'ncia muito macia e ma-
vírus invade meu computador, entra voando pela janela do meu escri-
ternal; e eu me deitei em seu "divã", um caixão de jequitibá maciço,
tório. Tenho um encadernador de li vrus cuja oficina é em um jazigo
com braçadeiras de prata, acolchoado por dentro com um veludo preto
perpétuo no cemitério do Caju.
espesso e com dois travesseiros de renda branca, um para a cabeça e
Nós precisamos "viver", como qualquer um. E prestamos serviços
uns aos outros. outro para os pés.
_ Deve entrar muita luz do sol aqui, durante o dia - eu disse.
A minha psicanalista-vampiro tinha consultório em um prédio, na
~- Com todo esse janelão ...
orla de um parque com flores, gramados e árvores frondosas. Devia ser
Foi um comentário bobo, que demonstrava todo o meu descon!i)rto.
muito bonito durante o dia, mas isso nem eu nem ela íamos saber nunca.
_ Certamente - ela sorriu. - Mas eu nunca vi.
À noite era sinistro, Icomo nos convén1, con1 morcegos enormes voando
_ É tudo muito bonito. E impedvel - continuei, sem saber ()

I
~
entre as copas das amendoeiras e v~lgabundos com ares ameaçadores.
Ela morava no décimo andar. O edifício era luxuoso, portaria com que fazer.
- Tenho uma ótima diarist~1.
I piso de mármore branco, maçanet;ls douradas, tapetes orientais ... ainda
I bem que eu não sofria de ausência de reflexo, como acontece com aJguns
- Não consigo encontrar uma boa ...
- O nome "diarista" nos deix;l inconscientemente de m3 vontade.

i, vampirus, pois ~lSparedes eram todas espelh~Hbs e o porteiro


muitu assustado.
teria ficldo
__ É verdade. Este mUIHlo IÚO foi feito para os v;unpiros.
tar encontLlr um;l "noturnisra ".
Vou ten-

Apertou minha milo com firmeza. Seu corpo físico devia ter uns 40
I
#

Ela riu. Eu j-jquei olhando para o tetu.


anos. Entre nós é uma gall:' horrorosa dizer que uma vampira é bem con-
Numa primeira sessiío de an;llise, não h3 como evit~n certo p:lI1ico.
servada. Tinha um sorriso muito doce e franco. Um sorrisu de quem resol-
1 () sujeito est;Í prestes a re\'olver o passado, a mexer em {lguas p<lrac1as,
veu todos os seus problemas. Um sorriso que deix;lva a gente à vontade.
a revirar todo o lodo do fundo, a fazer a sujeira vir à tona. Ser \'ampiro
Eu a achei muito bonita. Cabelos escuros presos no alto da cabeça.

I Jeam e camisa social de seda preta. Um olhar penetrante,


corujas. Um corpo leve e ágil, como o dos morcegos.
como o das
Dois caninos pon-
só piora as coisas. Eu tinha mais passado que um livro de História.
sujeira, o lodo ... O que eu estava fazendo ali?
- Vamos começar? - ela perguntou, docemente.
E a

tudos se dest;lcando quando sorria.


E foi assim que inici;lmos minhas sessôes de análise, uma vez por
I

Quando ela blou meu nome ... seu tom de voz era suave, mas grave,
nlllt'n rn1110se viesse de aJl!um lugar muitu profundo. E seu hálito nilo semana, às quintas-feiras, às três horas da madrugada .
r ~
'.
,]

e
• lvan Jaf
A lnsôn;a do Vampiro e•• ((li
~~!
Quanto à minha insônia, logo na primeira sessão ela afirmou ser
- Não posso ficar assim eternamente ... (.
1 apenas uma conseqüência.
Ela sorriu:
••
- Conseqüência de quê? - perguntei.
- Não somos tão eternos assim ...
••
•.
"

Tinha razão. É claro que somos bem menos mortais que as pes-
- Estamos aqui para descobrir.
soas comuns, mas também morremos. O sol nos torra. Se cortam (
_ Nlas eu preciso dormir. Tentei me enterrar, sem caixjo, mas nem
. ' nossa cabeça e a afastam bem do resto do corpo, ou se espetam uma Ie-
aSSln1 conseguI.
_ Esse método só dá certo para males físicos, você sabe.
estaca no nosso coração ... () mais comum em vampiros muito antigos
••
- Estou desesperado ...
é enlouquecer e se matar. Se jogam no fogo, ou esperam o sol nascer
••
_ A instll1ia é o sintoma ele uma crise. E ela se agrava nos vampiros, deitados na areia da praia, ou sentados tranqüilamente
do apartamento.
na varanda
••
por terem
preocupe
dias infinitos
com ela. Quando
pela frente. Mas é apenas um sintoma.
a causa passar, a insônia passa.
Não se
Meu apartamento tinha varanda.
- Vamos nos concentrar nas Glusas de sua crise, e não na insônia
••
Ia-
- ela insistiu. - Você acabará dormindo.
- Tudo bem. ••
Ela também explicou que psicanálise para vampiros era diferente a-
da que se pratica com humanos.
- No seu caso, por exemplo, não é possível nos
••
(w.
basearmos nas relações com pais e mães biológicos
porque, depois de tantos séculos, não há como se
••
lembrar direito deles, não é? •••
- Não lembro mesmo. Q.
- Os vampiros têm um segundo nascimento, ••
que é a noite em que viraram mortos-vivos, e esse
••
costuma ser um trauma mais marcante do que () par-
to, o desmame ou uma surra do pai. Nesse segundo ••
nascimento, surge inevitavelmente um segundo pai, ••
~__ ou mãe: o vampi.ro, ou vampira, que os transformou ••
"':~:': em mortos-VIVOS.
- E~sse eu reCOf(,Io 1:
lem. F'()J um van1pJ[o
. •••
~ IJtt,.
,"',:-:.• +.' ."
.
11' •.•.,.,.
- maluco. ••
- Nossos segundos pais são mais importan- •••
tes do que os pais biológicos porque não nos •••
dão a vida, mas a quase-eternidade, o que gera uma rela-
ção de amor e ódio muito mais profunda. E duradoura ...
•••
-Entendo ... ••••
- Vamos partir daÍ. Do seu n:lS(llll('lllo (01110 ••••
vampiro. •••
~
lvan Jaf

_ Certo. Então vou iniciar contando o meu "relato", em Portugal, no
século ...
Ela colocou a mão direita em meu ombro. Seu toque foi suave e
relaxante. E o mais espantoso é que não a senti se mexer. Eu podia jurar
que não havia sido a mão dela, porque sua voz continuou distante, vin-
do lá da poltrona. Mas só havíamos nós dois ali.
_ Não _ ela disse. - Por favor. Nada de começar pelo "pai" e vir
até o ano 2006 ... Basear o processo psicanalítico num resgate da memória
pessoal de um sujeito de ')00 anos levaria toda a eternidade ...
-- É verclade.
_ Um ego de 500 anos não tem mais jeito - ela riu. - Faremos
uma recapitulação da sua vida, como a psicanálise prega, mas não foca-
da na sua pessoa. Em nossas sessões, você trará à tona histórias de outros
vampiros que conheceu. Vamos ver como eles viveram e enfrentaram
seus destinos. E como o influenciaram.
i •
\
~,..
:,
.. _ Vou ficar falando dos outros?
_ É uma boa maneira de tentar aplacar a angústia egomaníaca que
faz as pessoas não conseguirem se desligar dos seus problemas pessoais,
não acha?
_ Não sei por onde começar ...
l\h
I,.
_ Escolha alguCm no passado ... Algum vampiro que tenha sido
I importante na sua vida mudado seu destino ...
Ficamos em silêncio. Ela esperava que eu começasse a falar, mas me
..... senti vazio e desconfortável.
1\
·f.~ Mexi-me um pouco no caixão. Fechei os olhos.
I' Deixei afinal o espírito me guiar, para trás, no tempo; nas lembsanças ...
O primeiro a surgir foi Raimundo Pascoal.
Meu velho amigo Raimunclo Pascoal. Um vampiro que, na Lisboa
nJ. do século XVIIl, enlouqueceu e resolveu ser pai.

I!
\ .
,I

1\

a• Ivan Jaf
t'\ 1'1,:) \J 11' U ••..• '"'

A Peste Negra matou


de um velho moribundo que agonizava junto a uma pi-
--:'.
milhões de pessoas a
partir do século XIV
lha de cadáveres. clinou a cabeça sobre u meu pescoço e mordeu minha ju-
guIar. Lembro apenas que estremeci e comecei a ouvir meu
o Malle1l5
foi
maleflcarurn
(1111 Illamlal
fi
na Ásia e na Europa. Era o ano da Peste Grande, como ficou conhecida a fi
""
mado por pcldres
A doença, causada coração bater forte, como um tambor numa gruta, cada vez dOnllnlCallos para
por uma bactéria, é terceira e maior epidemia de todas, em que chegaralli a enSllldl os IllquislLiOl'esa
mais fórte, e senti um alívio completo de todas as dores que
transmitida ao homem morrer setecentas pessoas por dia em Lishoa. Já não ha- vinha sofrendo por causa da peste, e chorei de felicidade l"ec(JI-',heu;;ren i as bru'\clS
pelas pulgas dos ratos.


e seus Illdiefi(io~;, O
via onde enterrar os corpos. Jogavam-se os «HLlveres em enquanto via imagens e u\lvia suns dei minha infinci;l. Mel!
Em seu primeiro estágio, livro inrJic,:w(-l m\:;ll()clo:~
valas comuns, às dezenas, para serem comidos pc!os «les,

a peste provoca febre de tortura p~lraa
e inchaços na pele, ratos e doninhas. curpu j()j amolecendo e esfriandu, balançando nos hraços
COllfi'-,:.;âu do',; uílfles,
du vampiro como uma calça no v:\T:l1 numa noite fria, atC-
chamados de bubos
- dai ser conhecida A peste era fulminante. A pessoa podid cair morta na
qUl·ele-retirou os dentes, arrotou t' me jogou lk volta :1 pi-
,iJf::,'lll

pdr-cl <,
de' ilJ:,llll',()es
(01 Hk'ncll:~lo •
também como peste
bubônica. Em seguida,
rua sem antes ter sentido nada. A Igreja tinha certeza de que
se tratava de castigo do céu pelos pecados dos cristãos-novos.
lha de cadáveres, COIl1U os hum:lllos Clzem com o pauzill!Jo
FUIplCliI.lldopela
iCllejd ciPPOIS de •
a bactéria invade a
corrente sangüinea O mau cheiro dos corpos apodrecendo era insuportável.
dC'Puisque acabam de chupeIr o picoll-. p"hIIGldo, ulIl',icl"rado
dlltiHIlO (" Ilegal, o •
e causa hemorragia
Mais de um terço da populaç;lo de Lisboa morreu.
Assim que ele se aLIstou tive uma sede terrível e chu-
que IIdU 11!Ii'PUIUsua

,,
interna Hoje em dia é pei o sangue de um corpo de mulher que estav;l perto, r~puhli(ilG'lo. Ficou
rara e mdlS facilmente
controlada, graças ao
Umas 40 mil pessoas.
também vivo, e que acabara de ser chupado pelo mesmo mui10 f,Hlloso 11<1 época.
NllIl(d loi usado na

,. •
uso de antibióticos.
As epidemias de Peste Negra sempre foram consi-
deradas grandes geradoras de vampiros. Mas isso é um
vampiro. Havia sangue dele no pescoço dela. illquisi,du Católica, mas
H
,,
Foi assim que me tornei vampiro. CJdllhouadeptos entre
A Peste Grande foi mito. O motivo não era a peste em si. Não foi nada grandioso. os protestantes, que
\ a maior epidemia de também fizeram uma
Portugal. Na época,
Um tratado publicado pela Igreja, denominado Maf.-
intensa caça às bruxas
J muitos a chamaram leus mal(~jicarum, de 1484, e aprovado pelo papa Inocên- -Você está contando o seu "relato". - A psicana-
~ de "peste sem nome", cia VIII, reconheceu a existência dos mortos-vivos. Pou- lista balançou a cabeça. A Reforma Protestante
I i~
porque era proibido
foi um movimento de 4
, /
\
mencionar a doença. co depois, a Reforma Protestante corroborou a crença de - Saiu sem querer... - me desculpei. contestação das práticas
Prejudicou a economia - Nada aqui sai sem querer. da Igreja Católica no •
que a Peste Negra gerava esses mortos-vivos, com o pró-
do pais, pois mUitos século XVI que dividiu o
r~ camponeses morreram
e deixaram as terras
prio Lutero afirmando que ouvira cadáveres mastigando
em suas tumbas. Isso só reforçou o mito.
- É que isso tem ligação com a forma como encon-
trei Raimundo ...
cristianismo, fundando

as Igrejas Protestantes,

II
da IgrejiJ e dos nobres Martinho Lutero
Ií sem cultivo. O governo
Na verdade, o fato de não se dar um enterro cris-
Não era a Peste Negra, portanto, que gerava os vam- liderou o movimento, "
impôs uma série de tão decente às vítimas, pela rapidez e qHantidade em que apresentando COIllO
medidas preventivas, piros, como acreditava o povo. O que acontecia era que, pl'illcipals reivilldicacóf'~_ II
como o isolamento e morriam, levava o povo a acreditar que os mortos não
o fim ela compra do
a sindlização das casas haviam morrido em paz, e isso jc1os predispunha a achar quando se espalhava a notícia de que a epidemia estava
perdào 1)PloI,pe;ri" I
11
J I dos doentes, além
de punições áqueles
que estavam gerando mortos-vivos. Quando os ouviam assolando uma cidade, vampiros
nham para farrear com o sangue
de todas as partes vi-
fúto dos moribundos.
COllletlcio p " lr"cill';(J('
das E,crlll1r.r', (,11111 ",

,,I.
que não cumprISsem se mexer. .. Mas era comum cadáveres se mexerem, e até
so elll 1011111) 11,)1,1 !l', I
as normas: multas,
se autodevorarem, porque muitas pessoas atacada;; pela E tinham liberdade de ação, já que ninguém se preocu- idiolllas de' 1 ,J(I,II',II·.
açoitamento e até pava em investigar as mortes. Afirmou a e,II'<I(liI,II\I'
mesmo a morte. peste, n3 pressa, eram enterradas ainda vivas. Sei disso
moral e IlldIVlilll.rII',II,'
Na embriaguez da hehida, não se preocupavam em
I' porque foi o que aconteceu comigo.
Acordei do torpor da doença dentro de uma cova ain-
da aberta, ao ser puxado para fora por uma figura sombria,
matar as vítimas depois, como deve ser feito; ao contrá-
rio, deixavam restos de seu próprio sangue lambuzados no
atingir a SaiV<lldl', '.1 '111
precisar de rlt(l,II'., ' 1 '1111'
exigia o cat(illi 1"1111 ,

numa noite gelada de dezembro de 1506, em Lisboa. pe~coço delas, as quais, por sua vez, precisavam de sangue

,I Fui erguido no ar sobre os outros cadáveres, e o homem,


muito magro e alto, com uma cabeleira branca imensa, in-
e mordiam os corpos meio-mortos ao lado, bebendo restos
de sangue de vampiro, tornando-sI' v:llllpiros l:llltll("lll, ,_
assim por diante.

e
• lvan Jaf

As feiterias feram
Raimundo Pascoal foi um desses vampiros a chegar
as primeiras bases a Lisboa em 1569, atraído pela peste, depois de mais de
que os portugueses
montaralT, nas coiônias
trinta anos peregrinando pelos campos miseráveis de
Elas serviam para Portugal, alimentando-se de vacas, ratos e uma ou outra
gual'diu suprimentos
como comida, armas e
rapariga que lhe lembrasse a amada Almerinda.
ferramentas, e também Vinha com uma sede tremenda. Assim que acabou de
como po';to piHa
estclbel"cer trocas de
chupar o sangue do velho, ia partir para o pescoço ele uma
produtos com indlos. negra praticamente morta, com o corpo já coberto pelas fe-
A rir,'iils, no
ridas, quando eu o arrastei para os fundos ele uma constru-
Brasil, foi fumlacla em
15U4 em Cabo friO ção de pedra e ordenei que parasse com aquilo.
- hojl' unia eicldde _ Chupar o sangue dos mortais é uma arte que ne-
do estado cio Rio de
Janeiro.
cessita de capricho e moderação - disse a ele, com meu
ar afetado de vampiro culto.
As capitanias
Eu já era um vampiro experiente nessa época, com
hereditárias foram
criadas para ajudar
4R anos de corpo mortal e mais 63 de vampiro criado
Portugal a colonizar as na metrópole, freqüentando a Corte da Rainha viúva
terras brasileiras
O rei dividiu o território
D. Catarina, levando uma vida calma e refinada, culti-
em enormes "fatias", vando meu espírito, dedicando-me a prazeres eruditos
que iam do litoral até
o interior descollhecido,
como a pintura, a música e a literatura e acompanhando
para entregá-Ias a expansão colonial portuguesa, que, àquela altura, já es-
a quem qUisesse tabelecera feitorias por toda a África e dividira o Brasil
explorar suas riquezas.
Os berlf'ficiados em capitanias hereditárias.
eram c11alllaclos de Não queria ver minha Lisboa infestada de mortos-
r
j •
"donatárlos",
apesar de Ilão serem
os donos da terra,
porque,
vivos sem nenhuma classe; por isso, rondava à noite as
valas onde jogavam os corpos para impedir que vam-

li
reprec,entavam a
autondade máxima 110
piros como Raimundo gerassem mais vampirqs como
local. Os dOllatários Raimundo.
Ilao pilgavam impostos, Ele me escutou, humilde, de cabeça baixa. Eu já esta-
mas deviam fUlldar vilas
e atrair colemos para
va de costas, me afastando, quando ouvi seu pedido:
1\
II cultivar a terra, _ Queria ser como o senhor. Estou cansado de ser

, I'
um morto-vivo sujo e atrasado, vestindo essas r@upas
rasgadas e molambentas, retiradas de cadáveres de ce-
mitério. Quero ser assim ... Falar bem ... Usar punhos de
renda, gargantilhas e perucas ...
\ ' Alguém que sinceramente nos admira, que diz que
fará tudo para ser como nós, nos é irresistível.
Foi assim que começou nossa amizade.
1\

~
a
• lvan Jaf
A lnsônia do Vampiro
fv10uros eram os povos
árabes muçuimanos
o rei acabou mesmo partindo para a África, com oi-
tocentas naus. Raimundo quis ir junto, mas tive de con- simplesmente sumira num turbilhão de sangue e areia. A idéia de !Juinto
do Norte da j1.frica que
ocuparam a região Quando a primeira nau chegou a Lisboa trazendo a no- el'a uma
da Peninsula Ibérica
vencê-ia da inutilidade de um soldado que só poderia
antiga profecia, Uplca
combater à noite. tícia, Raimundo Pascoai estava no cais, como tàzia todas as
durante a expansão do do per'íocJo barroco
Império Muçulmano, no Foi sorte meu amigu nio ter ido. O rei nio quis se- noites desde que o rei partira. Ao saber que o corpo não fóra portugués >:'.;11,:,

século VIII d.C encontrado, gritou que D. Sebastião não havia l1lorrido 1 segundo d qual PortuCJa!
O domínio rnuçulmaflo
guir os conselhos prudentes de guerrear a partir da costa, sucecierlcl os quatro
começou em 711 e 56 apoiando-se na esquadra naval. Resolveu ir terra adentru Tanto confundira o rei consigo mesmo que acredi- g'·alld~·, wlll;~'''QS ela

temllrlOU em 1492, tava que D. Sebastião era imortal como um vampiro. E AntlCluldacle 82IJllónia,
e vencer o inImIgo em casa.
(-0111 as ~Juerras dp Medu-- F\;\!"~~;"i,C; I'pua
comcçou a gritar no meio do povo que o rei voltaria I
reconquista. Os mouros gostar:lm dess:1 estratégia. Deixaram que ~ P,:II Ia f C p"clre
O longo perlodo ele os inimigos se afundassem cada vez mais nas areias du (:OIllO ninguém queria acreditar na morte física do j('SUltCi ,t\JltUI"iIG \\2Ira

dominação rJei>:ou It:,'Uf~J('-11 il~'UL: d ,;cie,'d no


deserto. Quando jj n:lo havia mais :ígua nem comida, rei, nJO havia mesmo um corpo para provar sua morte, e
marcas profundas da IIIUI"I"lt-'lllu H-:"I CI,-ie a

cultura .31'abc 1--13ilrl9ua, D. Sebastiio e us 16 mil homens que ainda estavam de pé o fmatismo católico da época bcilitava a crença em qual- IÇJI·f::'.icl CI:ltcJlic':1 l:Jusc(j':a

na arqultf'llüa e nas rede]ir ;':1Réiorma


fóram atacadus e destroçados. Os poucos que conseguiram quer absurdo, a verSJO de Raimundo Pascoal se propa- f'rol,,·~.tilllll· que fiCOU
praticas ITltilt,lres dos ,,O
gou como f~)go em palha st'cI. (Lllil
povos daquela região escapar levaram a Lisboa :1 notícia: não haviam visto o rei C cntre:-
E, na verdade, chegou até nossos dias. r~E-"rcnl(iJ) I reunindo
de Portugal morrer nem cair prisioneiro. D. Sebasti:lo
\. • Constantlnopla, Ele er:\ um vampiro teimoso. Se ainda estivesse mor-
un-Ia PI"oposta poiitKa

I! PaiesliIld e f'v'lt1rro(os
forar1l palcos de grandes to-vivo, seria sebastianista até hoje, ou seja, acreditaria
P I ell(jlu:,a pala ailrrnar
o c1cslitlQ e a missão da
Coroa Pmtuguesa de
batalhas entre crrstaos
que D. SebastiJo não morrera e que voltaria para levar IUtlt& cristãos e Judeus
e muçulmanos durante
as Cruzadas- uma Portugal novamente aos seus dias de glória, consertando tluma única crença.
série ele batalhasqú'é tudo o que está errado e fundando o <)Ul!lt,) !lll!,t'li ••.
os árabes muçulmanos
11 Mas D. Sebastião nJO apareceu nunca mais. Nem os
I . e os europeus cristilos
\
travaram ao longo de deram notícias dele. Portugal, tendo gasto o
partr' da Id,1dc· Média
que nJO tinha na empreitada,
r~ . por rdzéJe', pollticas
p religiosas. Urna das
_

prltlClpeil'. dlspllta'. era


perdido a maior parte de seus
fidalgos e precisando pegar di-
If pelei posse dil <' idildr.' de
Jerusalem, local silnto nheiro com a Espanha par:l pag:1r

i, pala ludeus,
e IllUçullTlallos
Cttstilus

I
'.----'-,'--=:~_;;F;,:~----_/.r--'--_
L---- ------.
1.. 1 ..

,I
d
~~

I'
'I

11
e


lvan Jaf

o resgate aos mouros pelos nobres que sobreviveram, acabou anexado à


Espanha, em 1580, e se afundou de vez.
Com o reino passando por tantas dificuldades, o povo tão desiludido
e miserável, o sebastianismo criado pelo meu amigo tornou-se uma epide-
mia espiritual, alienante, como as novelas de tevê hoje em dia.
Nesse período, eu morava na minha quinta, a uns vinte quilômetros
de Lisboa. Construíra, num porão sem janelas, de paredes de pedra,
um sarcélfago de mármore com uma tampa bem pesada, onde instalei
um cômodo caixão de nogueira para passar confortavelmente os dias. À
noite, saía para passear em Lisboa, onde possuía um pequeno sobrado
no Bairro Alto, e ia à Ópera, ao teatro e às festas na Corte. Era recebido
normalmente, sem que ninguém desconfiasse ele que tninha pele com-
pletamente branca não era pó-de-arroz.
Algumas noites, não resistindo à tentação de beber sangue humano,
atacava alguma fielalga. Depois, me apropriava de seus bens, principal-

~.
,I mente ouro e jélias, e dessa fórma juntava dois remorsos num só.
L Raimundo Pascoal seguia meus passos.
Vestia-se como eu, aprendia a andar como eu, lia o que eu lia (de-
pois que o ensinei a ler), assistia aos espetáculos que eu recomendava,
enfim, tentava ser uma cópia mais nova de mim.
II
nI, Mas era meio louco. Isso acontece com freqüência. Simplesmente
há espíritos que não se adaptam ao vampirismo.
Nunca esqueceu Almerinda.
I;
~.
Fora transformado em vampiro justamente quando o que mais

I
1I
queria na vida era casar-se e ter filhos. Essa impossibilidade
desesperou para o resto de suas noites.
eterna o

_ Não se deve transformar uma pessoa em vampiro se ela est~1pres-


li tes a realizar um desejo -lembrou minha psicanalista. - Seu espírito
t I fica preso a esse desejo irrealizável.
_ É verdade - concordei.
n' _ Assim como levamos as marcas do nosso corpo físico para a eterni-
, . dade dos mortos-vivos, também levamos os desejos insatisfeitos.
_ E naquele tempo não havia psicanálise ... Minha sorte é que, de-
, I •
pois de semanas na agonia da peste, quando fui transformado em vam-
piro, já não desejava mais nada a não ser morrer.

I\~

,
t~
$
• lvan Jaf
A lnsônia do Vampiro

~]
:\
Santos Padres são os
"Pais da IgreJa", que
culpa em dela, por "ter a madre seca". Talvez, por ser tros afirmavam que os distraíam os ataques de piolhos, os quais infesta-
viveram entre os séculos
religiosa demais, não inspirasse muito a libido real. vam as perucas da nobreza, chupando mais sangue que todos os vampiros
,] ',< 11e VII, no Oriente e no Não era para ser uma gravidez comum. O rei pre- portugueses juntos. Para os crentes, Deus podia estar querendo dispensar
OCidente, d'lvu',gando
cisava procriar com sua rainha e ter um filho homem, a o rei e fazer que a rainha concebesse sem pecar, como lvIaria, pijra que, no
e construindo mUitos
dos conceitos e normas fim de assegurar uma suceSSJO tranqüila. Por isso nJO se futuro, Portugal tivesse um novo Messias como soberano ... que bem podia
da Igreja Católica que falou em outra coisa por muito tem po em Lisboa: como ser o próprio D. Sebastião, como imaginava Raimundo Pascoa1.
vigoram até hoje

I Muitos deles foram


perseguidos e mortos
fazer D. João V ser pai.
Foi então que Raimundo
.
Pascoal voltou a pensar no
Alguns, mais práticos, sugeriam uma infinidade
tros, promessas
cle- chás, emplas-
e obrig:lvam a rainha a reZilr o ten;o na cama, emhaixo

II por suas atlvlrlarlps


Idelas, Santo Ago"tlnho
e São Jerônlmo foram
algum dos Salltos
e
assunto com obsessão, como se o problema
se também
patriotismo.
o seu, numa mistura de desejo
do rei fos-
particular e
de s~u cobertor de penas trazido da Áustria, depois qllC' () rt'i pilrtia, rl~-
pt'tindo sem parar uma "ave-mari;\
do vosso ventre ... " até dormir.
cht'ia cle-graça (...), bendito C- u frutu
Padres,
Dizem que ela se confessava minutos antes de fIzer St'xo, (UIll medo
Em 1580, o relllo - Raimundo projetava-se na figura elos' reis - a dt' morrer em pecado durante o ato.
\ português se
subordinou à Espanha
psicanalista Lllou. - O rei é uma encarnação ela figura Raim\1l1do Pascoal acompanhou toda eSsa movimt'ntac,:ãu. Rezava
paterna e estabelece um vínculo muito forte com seus o terço, fazia l1ovena, sofria com os alarmes falsos, sempre aflito para
,

,.
~.
'
A Rl'stauraçãc),
seis décadas
se deu por uma
ocorrida
depois, súdi tos. saber das novidades.

n,I. conspiração formada - Pois é. () problema de D. João V passou a ser o Foi um dos que mais vibraram quando, afinal, a notícia da gravi-
por UITI grupo de
problema do meu amigo vampiro. Gerar um filho. dez se espalhou. Era como se o filho fosse dele, e, a rainha, sua amada
nobres que levou o
Almerinda.
duque de Bragança ao

,I o
.1
trono, restabelecerldo a sexo real virara assunto de Estado. A rainha Porém, como o filho 11:10 era dele, pass;lda a euforia Raimundo
"
soberania portuguesa,
D. Maria Ana Josefa chegara da Áustria havia j~l dois caiu na realidade, e numa melanculia profunda. Deixou de freqüentar
:,
'/
~
/
anos para dar infantes à Coroa, e nada. () rei, toda a Cor- as festas na Corte, a ()pera, o teatro. Saía à l1oÍtl', solitário, pelas vielas
te o sabia, cumpria a sua parte duas vezes por semana, imundas de Lisboa, percorria os bairros pobres cLt cidade, alimentan-
,
,:,'

1.
:
" religiosamente. O povo fazia nove nas e oraçê'>es. , du-se do sangue de cães vadios que perambubvillll aus milhares por
A rainha seguia os preceitos médicos. Ficava abso- toda a parte.
p lutamente imóvel depois de o rei sair ela cama, l;;jara que Às vezes mordia o pescoço de algum bêbado in(ol1scit'nte nas sarje-
não se perturbassem os líquidus comuns, Nas vésperas, tas e aparecia na quinta embriagado, resmungando sem pilLtr que que-
LlZia suas devoções, visitava o convento elas carmelitas ria ser pai, amaldiçoando () dia em que havia se tornado vampiro e se
11 descalças da Conceição dos Cardais, rezava novenas para afastara de Almerinda.
J I São Francisco Xavier, proferia o nome dos santos de hora Tive paciência. Era meu amigo.
em hora, inteirava-se dos martírios a seu favor e ~utros Cuidava dele, Seguia-o à noite para ver por onde andava. Vigiava
f
~
II
. sacrifícios particulares de padres e freiras nos conventos para saber quem eram suas companhias. Que pescoços mordia.

I. por todo o reino. E nada. E, já na cama com o rei, antes


do ato, rezavam os dois, para que dessa nova tentativa
Culpo-me, ainda hoje, por não estar com ele na madrugada
25 de abril de 1755, quando tudo aconteceu.
do dia

l' ; resultasse afinal um herdeiro para o trono.

,, I Uns diziam ser a quantidade de percevejos na cama

ll' real que impedia


A l,,;vn 'l F.n~ rl" nllP
a gravidez,
n~
e para isso rezavam a Santo
li\lr",~~f'rb nr:lp':lf' rb (,o(,f'ir:l.Oll-
rcpdindu us palavrôes lusitanus. ()s guizos
IIllS Pl'SC1'Ç'l'S das cabras e das mulas. ()s gri-
lllS dos \l'ndedores ambulantes. Os martelm
h:ltl'Ilc1lJ n;ls higurnas, /\s n 'lhs das CllTUÇ':\S
"lllll'Jldl),
,~ .\'0 sah'as dl's n:\vius nlJ j1l)rtl).
.\ n"ite, na qual p:\ssl'i :\ ''yi\lT'' depuis
l\<- \:\l11pirL), ;\cunll'ci:\ II 0llUStl). A \ilJ1tnci:\
n;l" \ 1l'1a.. Sl'Il1 ilulllin:l<;<iu prlJ\lJ(;\\:\ Ulll tllqUl' dl
rlcul hn l'SP<'Illânl'o. ]"L\\i:1 rni! h:1\TS d(, ha Ild idos,
,:..;ruj1o,s :ll'lll:\dus t' nuhres :lI'ruan'irus. () hando
l il IS 1';l1n Iilhas Sual bs alacava :\'0 C\ rruagl'ns qUl
S(' :\\Tisc\v:ull l"ntrl' (1'0 hccos cSlrl'itos, unde l\1Uit:1S
\('(''0 ('llubv:\\1\ n:\s fugas. J\ cscllrid:lu c :\'0 Li< ki ..
r:\s sinuusas slTviam ;lS cmhuscadas. ( ) cUllllTciu

d:\ vinganp j1ruspcrav:\, ('(Il1l t:I11(-1;\Sdl' prl\U ljue


v:lri:lV:lIll sl'gundo ;1 import:lnci:l d;\ vÍtill1:1. As ..
s:tssinos protíssionais conll'ss:\vam-sc :lO padre, 1:1-
(i:l\11 seus donativos l' S:IÍaIll sel1l pl'Cados.
( ) COl1llTeio abri:1 (t'do e 1l.'CI1:IV:\:\0 tuque de
rl'ColhLT, Um vampiro, se qUiSCSSl' e\1Cont'r:lr pes-
Sl):lS dl) j1ovo, tinha de fn:qüent;u as tabernas e os
prL)stíhu\os, cmbora nos dois lug:\res n;\o houvesse
l, ljU(' pudéssemos consumir (' o cheiro dl' tabaco
hr:lsikiro l'strag;lsse \1OSSl)olLrto,
Rai lIlu\1dl J Pascoa 1, sel1lpre meL ncúlico, era
:\ssÍ<hll' no hotl'ljllilll da ROS:l, n:\ rll:l Nov:\; <IlI
\1l' l'st;lhl'1ccillll'nto lk "m:ld:lIl1l' Sj1l'n('n", onde
h:I\'i:\ \1111:\imagem de S:lIllu /\nltl!1io n:\ j1ort:l,
j1:\r:1 :ltr:\ir os h()mcns :\ IX'Clr. Meu amigu era
CilllllSl) 11llr ch:lInar ;lS mcninas dl' /\!mcrinda
l' IIlei r l11úsic\s l1ltlllldJ! iC1S na gu it:\ rr;\.
N:1\1l)itl' de ~') (k :lhril de 17')\ R:\imundo
saiu do hotcquil1l da Rosa, :\tra\'CSSUll u Ter-
n:i ro do Paço, a grande praÇ:l em frente :10
Tejo, e ficou v:1gandn pela Ribeira, entre as
barracas de peixes, fechadas àquela hora da
noite. Estava com uma sede terrível. Não he-
bia S;\ngue havia três di;ls. Sua pele j:í mur ..
,)
e

• lvan Jaf

chava, e seus olhos se tornavam opacos. Um vampiro nesse estado é muito


perigoso. Ele ia embuçado, com um capote preto que o cobria do pescoço
aos pés, e um chapéu de abas largas. Assim se vestiam os homens quando
.--.-----~.- ••••.
_, .~.:o.•••.~ __ A._ ••._ ••. ._

A lnsônia

A parteira verificou se as bainhas das fraldas estavam bem-feitas.


Bainhas de fraldas bem costuradas impediam que o bebê ficasse em má
posição dentro do útero.
do Vampiro
."
.••.__ '..•..•. _ ..•••

••
"
.,
."
"

precisavam sair à noite. A capa escondia as armas. Impunha respeito.


Ia sem rumo, corroído de saudades de Almerinda, esmagado pela
A mulher berrava, sacudia as pernas, revirava a cabeça, invocava
santos e demônios. As virgens tocavam os sinos. As senhoras rezavam as
'-
.~ eternidade sem sentido. "-
Seguiu vagando, ao acaso, entrando cada vez mais nos becos escu-
ave-marias. O cheiro do sangue enlouquecia o meu amigo, com os olhos
negros e fundos colados aos buracos da treliça. '-
ros da freguesia da Madalena, os lábios tremendo de sede, os caninos já
sobre o queixo. A partei~a suava, agora entre as pernas da mulher, e gritava súplicas '"
desesperadas ao profeta Daniel; às santas Cunegundes, uliana e Mar- ~
'-
J
Atravessava ruelas muito escuras e estreitas, onde muravam trabalha- n(rarida; e rI)rometia ir sentar-se na cadeira de Nossa Senhora da Guia; e
~
dores do comércio, com o costul11e de dormir cedo e acordar cedo.
Ouviu uma estranha algazarra de humanos.
empenhava a palavra com o próprio Jesus de que o pai da criança ofere-
'-
I Passava da meia-noite, de um dia de semana, e aquele barulho de
ceria aos cofres do rei o peso cio recém-nascido em prata ou trigo.
'-
humanos o intrigou. As vozes vinham do beco do Espera-Rapaz.
() cheiru do sangue entranhava cada vez mais no corpo de Raimun-
do Pascoal. Vampiros, como os lobos, dependendo ela sede, são capazes '-
I
\ .
• Era uma construção de granito, de dois anelares, coberta por telhas
de barro. No rés-elo-chão, havia uma porta estreita, fechada, com uma
de enlouquecer e atacar.
'-
H
, imagem de São Lázaro pregada no centro. No andar de cima, três jane-
Meu amigo já estava a ponto de rasgar com seus dedos ossudos e
longos a frágil treliça, entrar naquele quarto e dizimar com os dentes --
.1
las cobertas com treliças de madeira, unidas por uma única sacada. Era
de lá que vinha a gritaria.
todas as nove virgens e as velhas, só para cravar os dentes na dona --
daquele sangue fresco que ... Então, ouviu um berro agudo! Um grito! •••
.~
"i
, ~,
Raimundo Pascoal pulou para a sacada e olhou pelas janelas. Depois
de chupar sangue, é o maior prazer do vampiro: ver sem ser visto.
Um choro!
--
No primeiro cômodo, à esquerda, uma mulher estava deitada em •••
i;
uma cama, rodeada por nove meninas, cada uma com um pequeno sino --
'l. nas mãos, que badalavam de vez em quando. Atrás das meninas, um
•••
,'I grupo de velhas rezava nove vezes seguidas a ave-maria, parava, torna-
••
'-
va a rezar nove vezes.

Uma velha, entre as ave-marias, acendia e espalhava velas por todo


o cômodo.
••
,~
1,1
,I A mulher, que parecia sonolenta, de repente gritou muito alto. Só
então Raimunelo compreendeu. --
Ela estava parindo. •••
~.
111

Por isso as nove meninas virgens e as nove ave-marias, uma para •••
I. cada mês de gravidez.
•••
,I; A mulher gritava cada vez mais alto, e se contorcia, e batia a nuca
••••
no espaldar da cama. A parteira pegou sua mão e lembrou-a de que,
'li desde Eva, era preciso parir com dor.
Raimundo sentiu o cheiro de sangue. Suas narinas dilataram. Os
111 r~ninos btei:uam.
A Insônia do Vampiro
.','
~ •

fumando charutos brasileiros. Um gordo, com bigodes compridos e


roupas endomingadas, e um magro e alto, de vinte e poucos anos, cles-
cabelaclo, suando a camiseta puída. Este era o pai, e recebeu o bebê com
um ar transtornado e alegre.
Logo as duas levaram o bebê para o terceiro cômodo, e Raimundo Pas-
coal novamente as acompanhou, deslizando silenciosamente pela sacada.
Havia apenas U,11acama, e um nicho na parede com uma imagem de
Santa Rira, que dava paciência e era advogada das causas desesperadas.
A parteira colocou o hebê na cIma e () cobriu com uma manta. Ele
parou de berrar. Estava cansado. ()s olhos muito abertos, vendo tudo
pela primeira vez.
A ~xlrteira saiu, preocupada em recolher o resto do cordão umbilical
que ficara numa bacia, no leito da p;lrturiente. Se um gato ou algum
rato o levasse, o garoto seria ladrão. Precisava também cobrir a cabeça
da mãe com o chapéu de um homem corno, a fim de que a placenta
saísse sem problemas.
A avó ficou mais um pouco, ocupada em acender, e deixar queiman-
do num prato, uma sola de sapato, para afugentar as bruxas. Depois saiu
e deixou o bebê sozinho.
Raimundo não conseguiu se despregar da janela. Não era mais o
cheiro de sangue que o atraía. Era a imagem do bebê, em sua caminha,
silencioso, olhando as paredes do quarto, o teto, o corpo ;15 vezes tre-
mendo ainda em espasn10s nervosos.
Cada qual é filho das SU;lS obras.
Dois séculos pensando no assunto, era só uma questão de ocasião.
Em movimentos felinos, no mais absoluto silêncio, abriu a janela e
entrou.

() heb2- olhou aquele rosto hranco, os dentes enormes, viu os dois olhos
pretos hrilhanelo no escuro, mas não chorou. Ainda não conhecia o mal.
Raimundo sentiu o cheiro de carne, fresca, viva, tenra como um
botão ele flor. Suas veias ardiam ele sede.
Não era um vampiro mau. Contentava-se com Glbras, ratos até. 1{;)ra-
mente, para aplacar os instintos, atacava algum bandido nas vielas escuras
de Lisboa; ou um inglês ou holandês, "um protestante pagão elos infer-
nos", como dizia; e mesmo assim passava semanas se culpando.
Aproximou seu rosto, e de sua boca saiu um sussurro:
- Meu filhinho ... meu filhinho ...
O bebê abriu muito os olhos e começou a chorar.
- ----_._- _. "-'-'--'

•• lvan Jaf

Como sabemos, o bafo dos vampiros


tas que existem. Uma mistura insuportável
é uma das coisas mais fedoren-
de mofo e carne estragada.
·QSX'.t4~tpxr~~~~
. ! 1,--
. ~, ~

Ele cobriu os olhos do récem-nascido com as mãos, num gesto de (~il


I ,. ~ f i i, ",
hipnose que eu havia ensinado para ele caçar galinhas sem que ficassem \ I
cacarejando como doidas, e o menino dormiu imediatamente.
, Raimundo pegou-o assim, indefeso, e o segurou no colo. Embalou-o
I com uma canção ele ninar de sua aldeia.
"Que se dane", pensou. E cravou os dentes no pescocinho do bebê.

i, Só a pontinha dos caninos penetrou na carne macia, até encontrar a


veia jugular.
~
Imediatamente sentiu seu corpo esquentar.
Sugou um pouco mais.
Necessitou de todo o seu autocontrole para parar.
Recolocou o bebê na cama e o cobriu novamente.

:I Ninguém ia imaginar. A marca no pescoço parecia com uma mor-


I• dida de mosquito.
.I
L O bebê abriu os olhos, ansioso, com sede.
, Raimundo Pascoal furou a ponta do próprio dedo indicador da
I mão direita. Quando o sangue saiu, deu para () bebê mamá-Ia. Baru-
~ lhos nos cômodos ao lado o fizeram voltar à realidade.
n
I ~
Os nove sinos tornaram a repicar. As ave-marias. E os berros da
mãe.

Raimundo Pascoal voltou à sacada, deslizou até a primeira janela, /,


j;I. grudou () rosto na treliça e ficou muito espantado.

iI
t
Todo o ritual se repetia. A avó tornava a acender
ra implorava aos céus a ajuda de todos os santos q\le conhecia. A mãe
as vebs. A partei-

,~,
gritava, se debatia, torcia a cabeça para os lados. As nove virgens, assus-
tadas, cobriam os olhos com as mãos.
A mulher estava parindo outro.
J I.
Pl
i'
I' ;
'li

II : -~----
A lnsônia do Vampiro

se virar por conta própria, como aleijados, mutilados e P,5

TOl'é:ni ó=
cri,l11ças, porque eles ficarão assim par;l sempre.
Puis fui essa ú! tima regra que fiquei gritando Stm
p,lrar após saber, uma sem;lI1a depois, da barb,lfiebde
que J\,limundo cometera, qu,mdo o remurso afin;11 t~? (J

C( JIl kssar.
l'I~~';';e
pe.r-ic1o'n de
N,lo transr()rn1t'i u bebê em Y<1mpiru - ele gri-
Ll\ <1t;ullbl-m. - Só dei uma ll10nlidinha Ilele, e depuis
(' ;lm<1ll1eIltei cum Ulll pouguillhu du meu sangue, p,lra
ele parar de churarl S() isso' Um puul]uinhu s{). Nilo v,li
,IC(,ntecn nada! () bebê será ullla crianç;l nurm;tl. Estuu
arrependidul Pruntu!
( ) Y,lIl1pirismu nilo l' um;1 ciC'nci;\ exatal -~ l"ll dis-
se. -- Nu ITlulHlo dos mortos-vivos, como no dus vivos-
YiYos, e ;\t( no dos mortos-murtos, tudo pode acontecer!
Ate- murder o pescuço do bebê, apesar de ser uma cuvar-
di;l, tudo hemo A carne, mesmo a morta-viva, é fraca.l\ifas
tL"rdadu seu sangue a ele logo depois, mesmo que só o da
ponta do dedo, isso foi uma temeridade sem precedentes,
l' ningul-m pode saber o que vai acontecer!
Eu estava furioso. Raimundu se excedera. Eu repe-
tira exaustivamente as regras. E ele ;lgor;l infringia uma
debs, da m;lIleira mais inf:tntil.
Ni1u tT,1 sú um;\ guest;lu l,ticl da minha p;lrte. Como
em toda cidade grande, havia uma cungreg;lçJO de vam-
piros em Lisbo;l, liderada pur uma l1lorta--viY;1 chamada
R()sa Lu],;\.

Ela yiYia num corpo de 3U ;mos, era gord;l e tinha


sido cUIldcIl;llh a levar cum ela um bigude espessu por
tod,1 ;1 t'tcrni(bde. Dizia ter mais de seis sl'cuJos lk vam-
PlrLSJn(), e ter estadu presente nas ',Ir
111, ,,' I I I de
II (>1. Era Uma vampira histérica e muito cruel.
I'\unca fui um morto-vivo social, nJO freqüenta\'a as
rt'lJJ1iôes da congregaçiío, mas sabiam da minha existên-
CIa, visitavam às vezes minha propriedade no campo e ti-
nham-Ine como um vampiro esnobe mas respeitador das
rt'gras, Raimundu Pascoal, ;lté então, agi,) como eu, por
ISSOnos deixavam em paz,
e

lvan Jaf

A lnsônia do Vampiro •

- Tenho absoluta certeza de que, se aquele bebê se tornar um vam-
- Niio - Raimundo Pascoal choramingava. _ Ecieolastc's é um
pirinho, você e ele serão considerados proscritos, e Rosa Loba os conde- dos livros do Velho
Amar só funciona com os humanos. Nós, vampiros, so-
nará à morte, E é bem provável que eu, como seu tutor, seja jogado na Testamento da Bíblía.
mos apenas n10nstros. O nome é cJIIglllado du
mesma fogueira I
-- Você acredita em Deus, náo acredita? - argumen- hebraico kohe/et ("Cl

- Tenho fé de que o bebê n.'1o vai virar vampiro. pregador") A autolia ela
\ tei. -- V(lCê é católico! Desistiu de ser franciscano, mas obra é tlaellclollall1lente
- Fé?! Diabo ele vampiro católico! Você n.'1o pode mentir para agora se considera um jesuíta, niio é? Pois se acredita em a~rlbuida ao Rei
J mim! - gritei. - O seu propósito fui, sim, o ele faztT uma criança, Ikus, e que Ele criou todas as coisas, ent.'1o tem de admitir Salomão, ainda que
um filho vampiro' f~ isso que você vem Lllando há mais de duzentos
que v~lInpirus também s50 expressões da vuntade divina.
mUitos historiadores
acreclltem que Lellha
I, anos! Niio faz idéia da barbaridade
ro se desenvolve, progride,
que cometeu? I () espírito vampi-
como o dos humanos normais! Seu "filho"
Sumos parte du mundu, e n~lo erros da natureza. Se Deus ',leiU eScrita séculos
ciepoi'. ele sua morte.
!
~ nus criuu, é necessáriu inocentá-Lo. Não somos monstros! Retletlndo sobre a
vai evoluir indefinidamente, mas aprisionado num corpo de bebê!
Para cunvencê-lu, e confurt;Í-lu, cheguei a afirmar natureza humana,
Um bebê que poderá ler AristóteIes, mas n.'1o conseguirá nem en- o Eclesldstes aponta
ter in!()rmaçües seguras de que havia um par de vampi- para a ímportância
gatinhar atrás de uma vítima! Que poderá dar uma aula sohre Arte
rus na Arca de Noé, quando Deus decidiu renov:1f todas do desenvolvimento
Grega, mas será incapaz de morder um pescoço, por não ter dentes! as espécies, e que certamente também éramos descen- espiritual em detrimento

~I
, . O que você imagina? Que vai assistir ao crescimento do seu garoto? dentes de Ad.'1o. dos prazeres mundanos.

Que ficará feliz quando surgirem os primeiros dentinhos? Dois ca-


1-
, . ninos de leite? N:lo adiantou. Nunca vi um vampiro tão melancóli-
I Raimundo não respondia. Olhava para o chão. Eu ficava cada vez
co. Naqueles tempos ainda não havia psicanálise. A gente
mais irritado. tinha de se virar com os amigos. Ele só repetia:
,I
- Somos monstros! Somos monstros!
.~ - O que você quer? Fazer uma família? Pai, mãe, filhinhos, todos
!~ vampiros, ninguém envelhecendo? Uma Lunília eterna?! Diabo!
- Eu não sou um monstro! - gritei. - Sou apenas
raro. Os eclipses são raros, e não são monstruosos! Ser
. , A verdade anda sobre a mentira, como o azeite sobre a ~1gua. En-
monstro ou não é uma quest.'1o de opinião. Um vampiro
. , quanto eu falava, Raimundo Pascoal ia concordando, admitindo que,
.~'\
i num deserto é um monstro? Se não há ninguém em volta
l, de fato, quis transformar o bebê em vampiro. p:lfa se espantar, nada é monstruoso.
Assistir a alguém se deixar vencer pela verdade é um espetáculo triste.
Mas tudo o que eu dizia a ele era pregar no deserto.
,ti - Tem raziío - ele disse, derrotado. - Sou um ser das trevas.
Era malhar no ferro frio. Como está escrito no Ecksi:\s-
Devia saber que não posso amar ninguém. \(·s, "o número de insensatos é infinito".
f
~ Aquilo me arrasou.
, Agora, o importante era ir até a casa do bebê ver o
J I. - Não, Raimundo, ao contrário ... Podemos amar. Nenhum vampiro
conseguiria sobreviver se não amasse as coisas, as pessoas, os bichos ...
que estava acontecendo. Precisávamos vigiJ-lo todas as
noites, dali em diante, para ver se ele se transformaria
nl
~. . em vampiro. Tínhamos de ser os primeiros a saber, para
- Certo - concordou minha psicanalista. - Um vampiro pode
I anur. Amar é um dos truques que usamos para suportar a eternidade.
tomar alguma providência.
Em lugares relativamente pequenos, como a Lisboa
Mas não podemos nos iludir, querendo criar laços duradouros. Não
do século XVIII, de tudo se cuida, de tudo se murmura, e
, I podemos construir pontes sólidas. Vivemos demais. O tempo destrói
'li I a notícia de um bebê vampiro se espalharia como a peste.
tudo. O mundo gira. É impossível construir alg;o realmente sólido so-
A idéia de rever o bebê animou Raimunoo, c S\I:1 pr("()
bre um planeta que se move. cup _. .
11 : açao Imediata foi mas! ig:1 r 11111 IlIll" L\ll, " "" ( 1.11" ,-o. 1',11 ,I
acahar COII I li 111.1\1 I 1.1 ,.11, L I 11, I' I 111.11, 1"11\.11 11111 I 1.111 I I"
e
• lvan Jaf

Eu vinha tentando convencê-Io a se lavar havia meses, sem sucesso.


Agora, ele rapidamente tinha preparado uma tina de água morna, es-
fregava-se com uma barra de sebo de cachorro e até cantava.

- A parte de natureza humana que resta em nós anseia por criar


vínculos com a realidade - disse a psicanalista - , e o maior deles, o
mais profundo, é a L11l1ília.Como para nós é impossível... não podemos
procriar, não podemos reproduzir pela carne, só pelo sangue ... transfor-
mamos pessoas queridas em vampiros.

Vendo ele ali, dentro da tina, tomando banho para ir visitar o "filho",
comentando como Almerincla ficaria feliz se soubesse ... me dei conta de
que a loucura de Raimundo Pascoal era como a cidade de Veneza: ele ia
vivendo de lembranças, enquanto afundava, muito lentamente.
Apressei-o e partimos.
Já era uma questão de salvar minha própria pele. Aquela história
não podia chegar aos ouvidos de Rosa Loba .

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• lvan Jaf
A Insonla 00 vamplru
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Os dois primeiros cômodos estavam às escuras. Na ausência de luz, Comecei a cheirar o lugar. Numa bacia pequena, embaixo da cadeira
posso ver as emanações de calor dos corpos e dos objetos. No primeiro,
da velha, encontrei os restos de um emplastro, com uma gosma de sal e
',~
., havia a cama larga, onde a mulher que parira dormia, ao lado do marido.
rosmaninho. Haviam descoberto as picadas, e as tratado. A pele jovem do
No segundo, a sala, duas cadeiras, uma mesa e um baú comprido que
também servia de assento. bebê cicatrizara em uma semana. Por mais que tentássemos, não pude-
mos descobrir Inarca nenhUlna, em nenhum pescoço.
No terceiro, afinal, a cama, com o nicho de Santa Rita na pare- Os dois bebês eram iguais como dois ovos.
de. Ao lado, perto da porta fechada, a avó dormia, sentada numa
j cadeira. Fiquei furioso.
- Agora n:io sabemos qual dos bebê·s é vampiro' Vamos precisar
II Sem dizer palavra, Raimunelo abriu o trinco da janela e entramos.
Passei a mão sobre os olhos ela velha e a hipnotizei, para ter certeza
que nos :ljudem o céu, a fortuna e o acaso' Todos os trh'
() mais irritante er;1 o ar de IJ<1ternidade de Raimundo Pascoa!. To-
~ de que não acordaria.
talmente inconsciente do perigo, olhava para os dois cumo se tivesse
O quarto pequeno recendia a couro queimado. Tinh:lm muito medo
acordado no meio da noite e viesse ver se os tllhinhos estavam dormindo
de que as bruxas viessem atacar seus behês e os chuchassem, quer dizer, hem. Tornou a cobri-Ios até o queixu com a manta, e tenho certez;1 de
sugassem sua energia. Num canto, à esquerda da janela, vi uma bacia que por dentro estava cantando Ulna canção de ninar.
com as cinzas de várias solas de sapato.
I í Fiquei sem saber o que fazer. Arrastei Raimuncio para fc)ra do quar-
\I Assim que entrou, Raimundo parou ao lado da cama e ficou olhan-
I
J,l. do. Aproximei-me e parei junto a ele. Custou-me entender.
to, escalei a parede e o sentei ao meu lado, no telh:ldo.

I Com a manta de Li até o pescoço, não havia uma só, mas duas
-- E :lgora? E agora? --eu me perguntava em voz alta.
cabecinhas! Ele colocou a m:io em meu ombro, balançou a cabt'çl resignado e
J disse:
.~ - O que significa isso?
- Disponha o céu como lhe aprouver.
I;
11
,
Raimundo simplesmente
- Gêmeos.
halançou a cabeça e disse:
Eu já ia dar um soco em sua car:l branca quando ouvimos o choro do
bebê. Nos deitamos de bruços no telhado, de clbeça para baixo, e olhamos

r
~.
- Como, gêmeos?
-- Ora, a mãe tirou dois filhos da mesnw
- E você chupou o sangue dos dois?
barrig:1.
para dentro do quarto.
A mãe chegou em seguida, esfregando os olhos de sono, e tentou
q - Claro que não.
~lCordar a velha, cutucando-a de todo jeito. Mas eu h;wia me esqueci-
do de retirá-Ia da hipnose. Sacudiu-a pelos ombros, mas a velha não
- Qual deles é o hebê-vam pi ro?
,j
1
Raimundo inclinou-se, puxou a manta para baixo e procurou as
acordava. Achou que estava morta. Chegou
respirava e voltou para:l cama, dizendo para a mulher
o m;lri<io, viu que a velha
amamentar logo
marcas da mordida nos pescocinhos. Ficou confiJso. Hipnotizamos os
b· dois, que estavam prestes a acordar, e os seguramos no colo, cada um o
as crianças p;lra que parasseUl de chorar e o deixassem dormir.
A m:ic sentou na pequena cama e colocou um bebê em cada seio.
fi seu, e os reviramos de alto a baixo atrás das marcas dos dentes de Rai-
1,1 mundo. Nada. Olhei p:lra o lado. RaiUlundo Pascoal estava completamente embe-

I. Encontramos apenas duas tatuagens: um peixe pequeno na nádega


vecido com :1 cena. Tive pena dele. Em seus devaneios, ele devia estar
vendo ali a própria Almerinda alimentando seus filhos.
esquerda de cada um deles. Algumas bmílias marcavam os filhos com
. Eu também estava feliz com aquela cena. Se os dois bebês tomavam
' I os símbolos de sua profissão, para identificá-Ios em caso de perda ou leIte, era sinal de que nenhum deles havia virado vampiro.
',lI. roubo. Nunca entendi por que os portugueses escolhiam para isso uma
Levei meu amigo até nossos cavalos e partimos, de volta p:lfa o meu
parte do corpo que raramente é vista, obrigando o sujeito a arriar as sobrado no Bairro Alto.
11 : calças para se identificar.
Ele ia atrás de nlinl CUIII" 11111 ~,(IIJ.llld'III"., 'lill" "'1'1111",111,,1.11'"
~;:II-:~~.'"
~I .
~
...•.••
----------------
~o à casa do beco do Espera-Rapaz. E eu ia pens:mdo, fnenclo um 1:;;(-
~l lanço da situaç}o.
Tudo indic1\'a que nada aconteceria.
~i ~bs a diligt'nci:l ta 1118eda bO:1 sone .
.Jfi Decidi nJU desgrudar dos gémeos até ter ab,()lur~1 Cer!t':~a de qu~
~; nc:-.hu;n \Jelcs cr~l \<{111piru. Iri~l!TJ()s YlgL:t-lo:-; DIJS 11ltSt.:'S st~LlintC's. ()u~ln-

~i
\.fll C(lnt~:l ts~a n1inh~l inrcns~~1c' ~-lI{~lú11Und(j Fj~l"C(J,-lL .. nunCJ \i urn .. ~lr:n-
piru t,lu feliz.
~
- \ ~()Cl· ncTn }_lrt.:'\~i";;J "'C' :I1C/dT1()(Lif - ,Jt dj.\~·.=-.-- 1)('J~u ~L~r pLin-
~ tiio no L:lh:H!O ldq ,kJn
L1:l '()7inhu.
- :\}o. Eu \ ou iumu.
Ele podia morder o bebé nO\:lIlkntt ...
~

w•
::; I1I ~. ,,," Jo' , A ,,,'"1, d" V,mp'"

1., I O,marido de Antôn~a, Júlio, era p.eixeiro tam~ém, mas ~anhav~ uns qFiquei al.erta. P~recia uma simples dor de garganta inflal~1ada. Dei-
:J .' i
,

ra
trocaaos
.

mUito quando

a situaçãoapareCia
econômica
algumda serVlCO
'

família, dee quem


pedrelfo.os salvava
te>

era o plora-
Ter o-emeos pai de
};é'1
. . lhando o pescocinho
ue o pai em emplastros
e a mae resolvessem de banhaacendendo
o problema, de porco, \·elas
mel, e1050a
em-
~ ,. l..-. esa b -'>

.-JA JÚ.lio, colocando


dos bebes. discretamente
Fora ele quem pagaraalgumas moedas
as despesas embaixo
de um parto do
tão travesseiro
caro. l)fUbuCTueifo. E fazendo oracões a São Sebastião, que curava
. ternas e externas. as feridas
____..11'
""""'E'" . Além do pai e da mãe, morava na casa a avó materna. Por passar qua- 10 Como o bebê bocejava muito, chamaram uma curandeira. Ela diag-

~ Ii se todas as.noites com os netos, foi tantas vezes hipnotizada por nós que n05ticou quebranto, mau-olhado, trespasso, e passou várias noites ao
~ II acabuu l1:elO lesa. ..... . . lado dele na cama, repetindo: _ _. _. . .
~ I, Eu )d e~ta\a. cansado daquIlo. DepOIS da eXCItação das pnmelras se- _ ... eu te benzo en1 nome de Deus, em nume de Jesus, a hUla em

~ II :nal~:ls, ~~erdl U Interesse, conv:ncido de qu<:, ati.nal, a mordida do meu que Deus na~ceu, m~~ sen?or Jesus,Criste~, t'l~ ponho ml~lhas mãos o~de
J ! aml .•..o nao t!ilha afetado o bebe em nada. Os dOIS mamavam e cresCIam vós pondes \cossa DlVlOa \ 1ftude, Santa Eusebla panu Santa .~~a, San-

~
~
:i i normalmente.
mundo, Eu só
vendo que c~ntinua~a
a cnança ~aquelavamp1fO,
nao virava vig.ília apor medo de
n10rdesse de que
novo.Rai- ta
simAna
comopariu
essasa Virgem.
palavras asao
_Virgem
santas pariu 1'\osso
verdades, Senhor
assim J.esus
vos t1fe Cnsto,
meu as-
Senhor
II Ele, ao contrário, a cada dia ficava mais excitado, mais acentuava lesus Cristo este mal, este olho, este quebranto, seja fora do corpo e das
seus delírios paternos, a ponto de várias vezes, estando a velha incons- ilhargas e de todos os membros desse pecador. ..
ciente, trocar fraldas. ~las o bebê não melhorava.
Kunca vi um vampiro mais feliz. Tomava banho quase todo começo Fiquei cada vez mais preocupado.
de noite, antes de sairmos, e começou a inventar tc)rmulas para combater Mordidas leves de vampiro, em que as vítimas são hipnotizadas e
o mau hálito: bochechos com infusões; novenas à Santa Apolônia, que, já nem sabem que foram atacadas, costumam inflamar gargantas. _
que servia para dores de dente, talvez também melhorasse o cheiro deles; Raimundo, ao contrário, em sua ignorância, concluiu que seu hlho
e chegava a lavar a boca com água e sal depois de beber sangue. só podia ser o outro, porque vampiros não adoecem, e passou a se dedi-
Inventou uma pasta com sabão, cravo e hortelã amassados, e essência car exclusivamente ao bebê saudável.
de eucaJipto, uma novidade recém-chegada da Austrália. Ele esfregava Em uma noite quente de meados de setembro de 1755, porém, de-
a pasta nos dentes com uma escovinha feita com os pêlos mais duros da pois de horas tossindo e chorando sem parar, mexendo muito as pernas
base da crina de seu cavalo. Antes, passava entre todos os dentes um e os bracinhos, e bem no meio dos trabalhos da curandeira, cercado pela
longo fio do rabo do cavalo. Eu nunca tinha visto aqueJe método antes. avó e pelos pais, o bebê chorou sangue.
Não sei se Raimundo inventou o dentifrício, mas com certeza fói o pai
da moderna higiene bucal. .
O único detalhe a estragar sua alegria era não saber qual era o seu
"filho".
Todas as noites procurava sinal das marcas de seus dentes mas elas
haviam sumido irremediavelmente. Os meninos eram absolutam~nte idên-
ticos. A saída foi amá-los da mesma maneira, C0111a secreta esperança de
que um dos dois virasse vampiro, pondo fim àquela dúvida.
O começo desse fim foi com um choro repetido, sofrido, que não
parava, acompanhado por uma tosse seca.
Após mais de três meses, pela primeira vez um dos bebês se distin-
guia do outro. Só um tossia, tinha febre e chorava daquela maneira.
r 5- ~.
~
-.-
-: •..
o pai,
mais prátIco, pegou uma lágrima no dedo para ver se era
,.
~'ln (Tuemesma. Era . fI!I
.' ~t.,.mãe ,lpertava os braços contra o peito. Tinha medo de chorar. ••
..:;"de seus olhos também brotasse sangue a acusariam de ter-se deitado
LU.l~ o demônio e a jogariam numa fogueira.
L.~ •• O
--
A curandeira, tentando aparentar a calma que a profissão exige ~
ji.l!1te dos fatos incompreensíveis, e procurando vender seus serviços, .,..
.1i1fhSOU-sea dar seu diagnóstico: -...
. _ O beb~ sofre de carne talhada, ou rendida.
()u seja, ele"estava ferido.
••
Havia certa lógica. ~
_ Se aparece sangue - ela explicou -, a carne está aberta em algum --.
ponto, que é por carnes rasgadas que o sangue sai de dentro dos nossos '--
.::orpoS.Não se ver onde está a ferida só indica que ela é interna. Como
() bebê está a chorar há tantos dias, o motivo disso deve ser ter carne
••••
talhada na garganta. Por aí, pois, saiu o sangue, em tal quantidade que •••
brotoU pelos olhos . --
.-\.mãe e o pai aderiram imediatamente a essa explicação e pediram •••
°
que iniciasse logo tratamento. Tiveram de arrastar a avó para um can-
•••
to. Ela não parava de rezar, ajoelhada, com os olhos saindo das órbitas e
os braços erguidos aos céus. ••••
.-\.curandeira cobriu o menino de sinais da cruz, enquanto repetia: !••••

_ Em nome e virtude de Deus Pai, em nome e virtude de Deus Fi-


lho, em nome e virtude de Deus Espírito Santo, três pessoas divinas em .~
um só Deus verdadeiro, Nosso Senhor nasceu, Nosso Senhor morreu, ~
Nosso Senhor ressuscitou, e a Virgem o pariu ficando sempre Virgem,
antes do parto, no parto e depois do parto, rogo ao Senhor, por virtude
dessas santas palavras, e por virtude de vossa sagrada morte e paixão,
que esta ferida ou fogo seco fique são e salvo e não crie outro mal ne-
nhum, Amém ...
Era esta a situação: uma velha louca em transe místico, repetindo sem
parar um exorcismo, ajoelhada a um canto; uma mãe catatônica, tentan-
do lembrar se não tinha traído seu marido com o diabo em sonhos; uma
mulher de olhos fechados, inclinando o corpo para a frente e para trás,
fazendo sinais-da-cruz e rezando sem parar; um homem andando d(' 11111
lado para o outro, xingando o céu e a terra por não esta r d< i 11'111 I li I. I ;'1< JlIl'I.I
hora, pois no dia seguinte havia um muro clcpcdr:ls P:ILI 1"1)',11<1, I11I1 1"1,,
esperneando, berrando, chorando S;lllglll'; S<').', IlIC I. , 1"1,,
11111 I ,1)'."'111111
.-
bém baixo,
para chorando, assustado noe telhado.
pendurados querendo mamar; e dois vampiros, de cabtca~

'\ião haYia
paternas nada que eu pudesse
de Raimundo. tàzer, a não ser controlar a~ dnsi"s

!I1
11',
Tivemos de esperar toda a noite, até que a curandeira saísse. Eb
afirmou que CJtratamento exigiria drias outras visitas.

Quando todos afinal dormiram. faltava pouco tempo para o sc,] lIdS-
cer. Eu já estava preparado. Matara um pombo num telhado peno. Cif-
tei-Ihe o pescoço, e o menino chupou-o comu se fosse uma mamac1,ird.
com sofreguidão, aos olhos de Raimunclo, em bevecido, que em seguida
limpou bem sua boquinha. colocou-o contra o ombro direito para YUt'
arrotasse, embalou-o
na cama, com o irmão. um pouco, cantando suavemente, e depois o p(JS

O bebê sossegou. Dormiu tranqüilamente. Voltamos às pressas para


nossos caixões, em meu sobrado no Bairro Alto.
Acordamos no princípio da noite, e naturalmente partimos muito
aflitos para ver o que acontecia com o nosso bebê.

Não precisamos de muito tempo pendurados no telhado para com-


preender o que se passara durante o dia.

Depois que saímos, e devíamos ter previsto isso, já de dia, o bebê


acordou e, como todo bebê depois de mamar, regurgitou. Só que não foi
leite. Regurgitou sangue.
r-"; , .~-:::c

--•
Nascido na Grécia
Culpa tet1e de me matal;
por volta do século
porque em lugar de cura, V a.c., HqJócrales e
'nor remédio me deu a sepultura. considerado o "pai 03
n....
edicina" Em oposicão
iram apenas curandeiros de luxo, que não vacilavam a pfátiC~S :,upf2rstlcio:::,as,
ele desenvo!v'éU um
receitar pó de múmia, raspas de chifre de boi, óleo
:;-111
rí":etodo cien1:f!cc) r~:)
'" ollro ou Inercúrio, e assustavan1 o paciente, sempre
diagnó~~tico de d(::'f:"',ça:~.
;;:zc:ndu o que aquele fez: abriu sua valise de couro sobre Crio'.l tC1!-:·t·~~nU:,-'

. 1"·1 j11ostrando nincas, Scrr~lS, s'lncias, . lancetas, ÚIClS, ,:cdiÇ}o de é1!(~a :).:::r".::1
l.l iJ.l-, - .. ' . r- ::.
~r:C'dic( (':'Jlt_',

. ,
:'rc:':111I)S Tudo de aço suec<), p,lra justificar o preço.
... ri2S J~~;
Limitou-se, purém, a Llzer perguntas à mãe e a eX,I- ~é;cul,dacf': CH~\\ e,:;I'~d-':él,
, :i.')rr':J(Jc]('S
!Ilin~lr os olhos e ;1 garg;lnt:l do hehê. Pouco depois, deu De
!I \('redicto:
_ ( ) menino esLÍ tuberculoso.
4,
Era uma doença comum. As imundícies jogacbs das ~, ,:rn

iand;ls ajudavam a prop;!g:1f essas Jnuléstias contagiosas.


mu:"!cI ::ilT.'S]U,
F nos meses chuvosos, ou no inverno, a umidade e o frio no Ocid~::-jle:::te ::,eC'~dQ

pentt~:l\am naquelas casas pohres, sem aquecimento, co- n-',~f·i'J,

hrind" todas as coisas de mofo. d,:red:t,-r,!,:' -~~e~~.~;:.:\'ss;vel


11":F:Ji Ir~fi~<';3cc,es,
O novo diagnóstico
umbtm fez sentido. Na tubercu- t:i:rrlilléir fe::;r'?, o:)r e
ótt:' curar CLif.:-:Cê.S ao
lose, (1 doente cospe sangue.
"~ôr,ç~!"ar" D :~I,>i€T::e,
- O fato de o bebê ter chorado sangue - o médico el!"õ ;:-l?I·':C,') ci.:i5:n-: dS

explicou - deve-se ao desvio ,lu t1uxo san,L;üíneo. () san- i!':';P!";~-~':ê':;de s~u


SéH- Çld'2, '::)Uê'i~~,-~Cl
;":12i5
gue-. em vez ele sair peb h.)(.l, chegou primeiro aos olhos, r;Jrêl\2 a
subindo pelos onais lacrimais.
-2rã
A.uscultandu os pulmôes do bebê·, concluiu:
u-:·a'::,::;ca C'E:,:, (~;::: 'C2~~O
- Trata-se de uma tuberculose branda, talvez ape- r.le s(lng!Je:_s'.~ÇJ.é3 C,~J (jor
('Clr~e:;. E!"Y) Fcrt~":g?! e :lQ
nas uma pneumonia, que se curará com uma meia dúzia
8r21si!, foi pl'a~:'::2GG ~le1:,5
de S,l!' :;,rias. ,. :r:éd iccs- b2'"b!2:"c's" I

Aos pais, horrorizados COI11 a perspectiva de sangrar mUito procurados p€:i05


mais pObres.
um hebê de seis meses, () doutor consolou:
- Isso abreviará a cura, pois o sangue que teima em

~~otar aos poucos, pela boca e até pelos olhos, sairá logo
t Uma vez, pelos cortes.
O avô paterno coçou a cabeça. Se uma consulta custa-
ra-lhe um dobrão, quanto não sairiam seis sangrias? Pela
e~pressão de seu rosto adivinhei suas intenções: já qUl' llél
\'Ia dol'S netos exatan1ente . . po d'Iam (t'I
IguaIS, I . X;I r v,., ,,c "
c10entinh .
o se curava por 51 n1eSITIO,sempre ' •...1:111.111111
ZT wn ti» If ' b ' ri' _

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'1 A InS0111a UU VCJlllf)IIU lG:fo~,"


r••
,JiI •• !.,,~' I v~n Ja T f '.
,JJt O c:c')rá') era uma O próprio médico, porém, vendo que naquela caSa s6 St ~ i com um barbeiro ambulante, O homem estava de branco, com man-
• moeda de aura . d b ld d' h li:
",. PClftuguesa hlspano- e comia sopa e e roegas, ou sar In a com a lace, e prt- ~~asde sangue seco na camisa e cara de sono',Trazia também uma valise,
com seu dubrju, fechou a valise e disse:
~'~:,n7~s..,:er~~"=~T~=,,~:2.l -
_i
~l q,
ue \';lg3bunda, de couro cru ensehado, e Ia de dentro tirou uma lance-
b' 'd d '
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eõn".IE'Cicõna'.=l.,r.,;-ao3
, LJ - u.,,,~a,,~_,_ .. em,.:
O vendo di.ficu.ldadesem receber seus honor.ários, contentou_,r_ tJ, uma pequena aCla e uma caixa e ma eira com sanguessugas.
sec,,!c ;<';<,/3':2 A sangria é simples e pode ser feita por qualqUtr A mãé deu um grito:
,..
,.- A I I
II lero,
I -- - :,~~e
-."" - 'e,'
24 cr,,!
"-"'- ",~,e,,",c
..• -.
-
bar b'eira.
11 i 'r:- ;.,TI(::lr'~I:) r",,-.;:.. •.. ,""1:::-
_ Sanguéssugas não. gUé o médico não as receitou'
O bc:rbtiro deu de ombros e colocou as "bichas·' de \'olta na v:l1ise.
,JII
,JJj II II ;='",-c:;--,--;;-:,'a~=-ê
~~~~,r~~~,~~,:>;~=;,=~~~ , Retirou-se em seguida,
O sogro suspirou estimando
aliviado. as mdhoras.
A mãe mandou o mari,i" Cl hcb2. tüdo o témpo, chorav.l.
Eu é RdimunJo sabi,illlCJSque ele estava nOV~1Elentecom séde de
IA '11 C~r~," .,' .. ~>-,'O' s:l!r e buscar Uin barbeiro,
sancrUé.111:tS lÜO podíamos fazer nada. R,1imunc1o ;lpertava as núos no
" t"

~ 111 I ~.~i.=::;nc.".'e,c~.:~~:5-,f~;~3'
:'=:é~3, :JS:ã~ ' 1'\a Lisboa
em cada esquma,d.aquela épocahora,
a qualquer encomra\'a-se U~llbarlJtifíl
Pouco depOISemra\:l 'J
beiral do telhado, com o ódio mortal que enlouquece um vampiro.
e Vir:~2r,l.
lvan Jaf
1fJ.·

o
pai teve de segurar o bebê, enquanto o barbeiro o virava para ()
lado esquerdo e fazia um torniquete acima do cotovelo do bracinho di-
reito. O homem tremia. Era a primeira vez que sangrava um bebê. Pós
a bacia por baixo e procurou, com a ponta do dedo indicador, a veia ba-
sílica. que ia do torniquete att o ombro. Era uma H:ia de volume mtdiCi.
su perficial. e ele logo a encontrou. Com a lanceta, cortou a pele" do lxbê.
a,é arin:;ir a ""c·i". O sangu,:- ,,'en(1SU êscor!'eu logo. ti;lgindo o fundi>
b~1cia. De Ul1i ~dulto de t1r,1[i:1 \.lflS dllzcntu5 ,zum,lS de"5;,lIgue. Tirel):.l
nl:-t~:d:-. com muito med,), e ]':·go ~lp~1í<::ceua aV(I. con1 um e"mplastr(, '1<::
rosma:linhu para cobri r o ferimênto.
Tornaram a pôr o bebê de barriga para cima.
É f:lcil imaginar o quanto ele be"nava e esperne;l\a nesse momento.
O barbeiw estava muiw aflito. O avô (I pagou, e" combiruram ,I,
próxim.as SeSS(le"S.;\ avó reza\ a o ttrço e reacendia ,1 vela do niei1u c\c
SaDta Rita. O pai sentara na cade"ira. exausto pela tens2io. A m:ie ar:,,'-
ment;1\';1 o outro filho.

Foi ent:io, nu poucu espaço de tc:mpo qUe"u deixaram em P,1Z, clue o


bebê-\ampiro c(Jnseguill \'irar de bruços, enfiar a cara dentro da bacia gele
aincb estava sobre a cama e beber seu próprio sangue, diante de todos.
':""I" .."".•

~II
~II morte-vida: o fanatismo cego gerado pela crença na verdade absoluta da
palavra de um Deus único.
de um barbeiro contra a de uma família inteira, já que a curandeira
aceitara o suborno do sogro para guardar os fatos para si.
i Eu e Raimundo acompanhamos tudo, noites a fio.
Se uma pessoa fosse denunciada aos Tribunais do Santo Ofício, era
quase certa sua condenação; por isso, a peixeira, seu marido e todos Os Incitada pelos pais do bebê e incentivada pelo dinheiro do avó, a
que a cercavam se apavoraram. Por menos, muitos já haviam caído nas curandeira mostrou serviço.
garras da Igreja. l\Janreve-se firme no diagnóstico anterior e continuou o tratamento
O cônsul inglês, por instalar um recém-inventado pára-raios no te- tópico para carne talhada ou rendida, aplicando papas de azeite quente
lhado de sua casa, foi denunciado à Inquisição da cidade do Porto por (l;m massa de pão em forma de cruz na garganta do bebê, bafejando
possuir o poder diabólico de domesticar o fogo do céu. júmaça de tabaco em seu peito e rezando em voz muito baixa palavras
Dois irmãos morreram nas masmorras por denúncia dos vizinhos, ininteligíveis.
que os viam se ajoelhar e rezar diante de deuses africanos de jade sobre Porém, como carne talhada no interior do corpo não explicava o
a lareira. Os deuses não passavam de lembranças de uma viagem. Na fato de o garoto ter enfiado a cara na bacia para beber o próprio sangue,
verdade, eles cultuavam o grande crucifixo que havia na parede, sobre ela teve de dar um segundo diagnóstico:
as estátuas, mas que não se via da janela. - Ele foi vítima de malefício.
Um pai e seu filho foram queimados vivos por serem vistos, de lon- Doenças comuns eram o resultado de castigos divinos, mas, quando
ge, batendo com paus na base de uma das inúmeras cruzes que se espe- o sujeito apresentava sintomas muito estranhos, era certo estar sofrendo
tavam nas encruzilhadas para cortar o caminho aos lobisomens. O que de feitiço provocado por alguém, pessoa ou monstro das trevas, e aí o
eles queriam era matar uma cobra. procedimento de cura era outro.
Além da heresia, o Santo Ofício condenava a bigamia, o homosse- - É preciso saber quem provocou o malefício, para poder anular
xualismo e a feitiçaria. seus poderes.
Um bebê que chorava, vomitava e bebia sangue era obra de feitiça- Foi então que a avó, que sempre se recusara a admitir o trabalho da
ria, pacto sexual da mãe com o diabo, vítima de bruxas, um monstro ge- curandeira, por ser contrário à sua cada vez mais crescente e fanática
rado por magia negra, enfim, um prato cheio para o tribunal da Igreja. fé católica, lembrou-se das marcas das duas picadas que encontrou no
Eu e Raimundo acompanhávamos o drama da família, de ponta- pescoço do bebê, na noite do parto. Ela só não sabia dizer em qual dos
cabeça no telhado, protegidos pela escuridão da noite, e o que mais me dois encontrara as marcas.
irritava era que meu amigo custava a se dar conta da gravidade do caso, - O bebê foi atacado por monstros chupadores de sangue de re-
tão orgulhoso estava de seu "filhinho" ter sido capaz de se aHastar e cém-nascidos - concluiu a curandeira.
beber o sangue da bacia. - Eu não sou parva! - a avó protestou. - Sei muito bem dos
O desespero histérico da mãe a fez voltar-se novamente para a perigos, por isso preguei a imagem de São Lázaro na porta de casa! E
curandeira, embora o sogro a prevenisse: venho queimando solas de sapato no quarto desde o dia do parto, que
- Olha que curandeiras também são tidas como feiticeiras. Isso só para isso já estraguei calçados quase novos!
piora a situação. - Solas de sapato espantam apenas bruxas - retrucou a curandei-
Estávamos chegando ao final de setembro de 1755. Por mais que ra -, e nada adiantam contra lobisomens e vampiros.
o boato corresse, por mais que o barbeiro dominicano se encarregasse Foi a primeira vez que fomos citados.
de espalhá-l o por todas as esquinas, até chegar ao conhecimento dos Olhei para Raimundo e balancei a cabeça.
membros do Santo Ofício, e daí serem tomadas as primeiras providên-
cias, a mãe acreditou que teriam algumas semanas, e pôs toda a sua fé e
esperança em que a curandeira poderia curá-Ia. Curado, seria a palavra
"'~


~- • •

J o tratamento prosseguiu por vários dias.
Um sabugo de milho, com o cabelo da mãe na ponta, foi espetado

t
,
\].',
. 1 um alfinete e colocado numa ~
,-(.]1 gaveta.
. :\ mãe e o pai foram obrigados a dormir invertidos, um com os pés fi
" "l(losnara
\lr,· r a cabeca
' do outro, para impedir que o lobisomem voltasse.
.\ 11l;1ep3.SS0U toda uma noite com uma g<11inhapreta sem cabeça
41
,-.bre a barriga.
Um grande sapo seco f"i colocade) sob o tr<wesseiro do bebê, por G.

:11
;t;
dU;I' nuites, e dê)'ois enterndo junto ao muro do cemitério, enquanto
1 cUf;tndclra pedia <lpoio )s alm.lS dos defuntos, as quais, por estarem

Jl~,li, pre~)ximasele Deus, pCJdi:]mser mais bem üuvidas.


•t-
••

A CHia noite ela vinha com rezas e rituais diferentes, usando V;}S-
se.uras, facas, azeite, água, fogo, incenso, mel, banha de porco, cabeça
de frango, raÍzes ... Tudo isso à custa do dinheiro do avô, que abrira
uma conU num armazénl da Ribeira, cujo dono começou a desconfiar
••
o.

que ali havia rituais de feitiçaria. Uma família não podia consumir tudo
<,quiloem tão poucos dias, nem ter tanta urgência de sete rabos de porco a.
às sete d3 manhã no dia 7 de outubro, entrando e saindo do armazém a.
com sete passos para a frente e sete para trás. Q.
A curandeira só não usava velas. Elas eram monopólio da avó, que
queria rivalizar em matéria de rituais, espalhando velas por toda a casa:
Q.
cinco velas sempre acesas nos braços das cadeiras; velas imensas, do tama- Q.
nho do bebê enfeitiçado, sobre a cômoda da sala; velas cercando os santos, Q..
os quais começaram a proliferar por todos os cantos da casa; e a cada vela
acesa muitos pais-nossos e ave-marias; fora as novenas e as idas à igreja
duas vezes ao dia; e os terços rezados durante toda a noite.
Eu não suportava mais aquilo tudo. Estava prestes a acompanhar
Rail1lundo numa chacina para resgatar o pobre coitado do bebê, que
sofria todo tipo de maluquice nas mãos daquela gente. Mas o temor de
que um ataque de vampiros chegasse aos ouvidos de Rosa Loba sempre
me fazia recuperar o juízo e a paciência. E esperar.
Raimundo Pascoal sofria muito.
O bebê chorava durante toda a noite, berrava furiosamente, e a úni-
ca coisa que podíamos fazer era dar-lhe um pouco de sangue de pombo,
nas raras vezes em que o deixavam a sós.
O bebê gostava de sangue, isso é certo. Acalmava-se, dormia pro-
fundamente logo em seguida. Mas também mamava o leite da mãe.
Outra coisa estranha: ele estava crescendo.

111 11
Durante o dia, um oficial do Tribunal de Inquisição do Santo Ofício
li levou aoSpais do bebê uma intimação
. . para comparecerem à presença do
'sidor-mor, na semana segUinte.
rnqUl. . .
li A noite, eu e Ralmundo, entretldos sobre o telhado, olhando o que

se (1:!~,a\"ano quarto dos bebês, fomos agarrado; pelos pescoços, pela


li,
111
ler~. vlescomunal
.• •. 1
'. d"ólsmãos dô Morcegão,
~, e arrastados por sobre os te-
'I' "h'j,l(lo;
IJ• tI -~ da freg.uesla
.... da l\1adalena.
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o lugar fedia à carne podre, mofo e xixi de rato. Baratas e imensas


ratazanas circula vam à vontade por todos os cantos.
A luz vinha de quatro grandes lamparinas de azeite penduradas nas
paredes, que produziam sombras dançantes.
Era uma caverna artificial, com um conjunto de piscinas vazias
:,Cifundo, onde haviam colocado alguns caixôes. ~ichos retangulares,
;:bertos, como bclich:s. c)briam um~l eL1sparedes. A um canto, desta-
(.,dos. sl'bre ~ilTl;1pedra aira ê c!UL1. dois caixôes hL\Ll\hUS. Um, muito
" ~'cF;trH'. () outro. irnenso.
. Os proprinúiu' daqueles do;s clixl>(s estaV:lm bem :1 nossa frente:
1<"5:1 Luha e seu se\Cur:lIlça, o Morcegãd.
t\usa Lüba devia n-.edir ménos ele um l1iétrn e meio, gordinha, sem
nenhuma curva, como um:! rolha. Era cabeluda. US;l\<1 uma long:l
Iranç:1, e o higude act:'ltu:du. Vestia-se de preto, sempre. Sua aparência
(;,,;ca era de uma tipic:l mulher portuguesa de 3(1 anos daquela época,
entlhecida prtm:,turamente pelas quantidades industriais de açúcar
brasileiro que consumia. Seus únicos dentes eram os dois caninos sa-
;ientes na :lfC;l(1a superior. CarrC:i,!..lva no rosto os traços da ascendência
:nOUD.
Seu segurançcl, o Morcegão. era um negro de dois metros de altura,
coberto de músculos.
Ele fora tLl!1Sic)rmadu em vamriro assim que as primeiras levas de
c~;cr;l'.'OSchegar;lJ11 a Lisboa. no começo do século :XV. Sua tC)fça era es-
}':int(ISCI.Podia erguer pec1r;,s que pesavam toneladas. Dar saltos tão altos
c'iarg(IS que eraJ11 quase vôos, puLmdo sobre ruas inteiras.
i\]t'l11 de nós, t'l11 volta, mais de vinte vampiros e morcegos, e dois
,:-:'«ncles e peludos Jubisomens.
1\':\0 gosto de lobisomens. PeSSO;lS normais durante a maior parte
do tempo, em cleterrninadas noites de lua cheia viram monstros sangui-
nolentos descontrolados, atacando a primeira vítima que encontram.
Como geralmente são os caçulas de uma família de sete irmãos, são mi-
mados, cheios de manias e caprichos, sempre se achando injustiçados e
perseguidos.

- A "monstruosidade" deles não é permanente, como a nossa -


explicou minha psicanalista. - É mais parecida com o que chamamos
de "crise", ou "surto".
r\ lll;,>urlld UU Vdllll,I1IU ~l<'•

Rosa Loba estava possessa: t.pesar je sues


d:fere::t.:-s :,r:ge"s,
_ Um barbeiro está há dias a perambular pela fregue- :I~i ::. ~;;'~S

.;'1 da Madalena, a espalhar a notícia de que um bebê bebeu


'J.' -:-=-~, ;:~=~:::::
s~rrie;~;=:-:':'2S:.:'~::,='5
uma bacia cheia de sangue. Isso pode ser o indício de um U'?:'-Jra: s:~':' .:aT;': d;:..
bebé-\-ampiro. E como os vampiros não se razem sozinhos, '::;02 se 3 r,~O::;-:.:.'''- ~::'
s:wg')-=J-:':: =:'-:,:::'::.
aí tem coisa. Coisa muito errada. Pelo fio se acha o novelo. ~ s art' :::':: er~~-; ;:",-::tE:·:.:e

~1andei investigar e descobri a casa do bebê. E que vocês ;;"'>-;;:.":;;:; --,':'-:?:)':;


:-=r::,~ ~e 2 =ç ~ :~-=
dois têm p3ssado rodas as noites em cima do telh;,do dela'
ce:::-:-' ~ê'-:;_,~ --'::'-"-i
Eu já vinha me preparando para aquilo: ;:. -.:.r " -::-':'~

_ Justamente. Também ouvimos falar na história


que o barbeiro anda contando, daí passamos algumas noi-
tes sobre o tal telhado, para saber do que se tratav;:.
Ela me encarou, desconfiada. Ç'3 '.:.;~= -:: >::';':' :-.
. 7':.7: :':~.:- "_.;:.-:,::
- Não gosto de VOCtS - disse. - Fic3111a tentar " G'

\iver vidas de anjo em corpo de vampiro. Tenho certeza 5',,:';;ê,~~:" =: =7: ::-'- ;"'-'~
c:;
de que estão metidos nisso. s;:·rt:,,:,,_;~, 2;--'-

- Absolut3mente - retruquei. - Sou um estudioso - -"':- :,ê::-:::-;

(].)mundo das trevas e quis imestig3r se o bebê fora ata-


cado por alguma criatura das que chucham recém-nasci-
dos, como as bruxas; ou até mesmo as lendárias Ílllin,;i.', da
Grécia~ou as lanf!.-,uyare.c, malaias~ ou quem sabe uma /i/;r/"
ludia, já que há tantos judeus em Lisboa ...
Sempre fiz o tipo vampiro-culto. Continuei:
- Depois de noites e noites de vigília. posso adiantar
que não detectamos nada de mais no bebê. É um lX'bê
absolutamente normal, humano. Não foi atacado nem
sofreu nenhum malefício. O que ele está é tísico. Por isso
expeliu sangue. Fizeram-lhe uma sangria, e ele acabou
por cair com a cara dentro da bacia. Só isso. Um aciden-
te. Ele não pretendia beber, de jeito nenhum. A mente
dominican3 do barbeiro, louco para lev3r denúncias à
I~quisição, que todos sabemos estar nas mãos dos domi-
nlcanos, acrescentou ao fato uma versão fantasiosa.
Acho que teria convencido Rosa Loba não fosse a
presença de Raimundo Pascoal a meu lado, olhando-me
Com ar aparvalhado, sem disfarçar que ouvia o que eu
dizia pela primeira vez.
- Tudo pode ser - ela disse -, mas para mim vo-
.--
cês andam a querer colher legumes no mar. Criaram um bebê-vampiro,
,I
I: o que é uma infração terrível e condenável. e que os levará à fogueira,
com bebê e tudo.
11

Os outros vampiros, e os lobisomens. grunhiram de satisfação.


I" Eu precisava ser esperto. Percebi algc! ali que podia usar.
I'!:
- T.)r,··~c\ 11rl")'-')r '-"-('n1-""':-';;:""j •..•• r,--l .... -1,-,,1- --1--;, -r':' ....,.'
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.••..•~ .•.•...•,) •..•\.. -}~ ~,,-•..I...-L 1J.d,.j~1 ~,~_,llC' •.. ) .••.• L l..~LC,11,,-~\1 '.'
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I'!: \"(lCt mesma analisar. Se os espt:ci,:distas católic,'s do Tribun,il Li"

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()fíciu são caJ")aze;; de s~tbcr~e ~lJ,gu~~rrj :0 YJ1T}1_~ir(lI_>u n:icl. C('!11(J f-1L\.i ,> ".
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R~Js:t L(ILX:t. (l,lrn [tJ\.Lt ~'i :-.U
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'. :-xpt'riérh.-i<.l ::- ~..ibc-d()ri~t. Llrnb~Tn p,-,':""!

- E CL1fC' que sei íjizer Se ~t tratJ Ol: r:~u d~ tIll1 i)t"bt-\>~llllplr,


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tl..h.!t' ~~u~d:do Se \i~~t: ~i)z.;nh(':. \Ll"';_ qU..1nd" rH!S ,.1,~·sF:·diI!1()5. CfJCf:':-

':!!' ·~l L· :'~l~:-"~'.lt.1", ;..1(1 ..l pr('>lTj'-'::~:<l \"~t' Tl( •.-:1' '--~! rCL...
~·!r:J" 1.:.!LJ >~t!-r'J
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S~il (lê L..'t.Cljlt~:i _11,I. 5c1l1 dizL'f lpLd ,,-Li !,) lrit"U r~Lln(l.

111
I
~

como uma baforada de charuto, e, em seguida, uma minúscula velha, só todos a minha palavra de que daqui a sete noites nós
pele e ossos, ergueu-se muito lentamente, até ficar sentada. o traremos novamente para conferir o resultado do
Suas mãos apoiavam-se nas bordas de madeira do caixão. Os dedos arranhão.
eram finos e nodosos, como gravetos ressecados. A pele forrava o rosto _ "Traremos", não! - Rosa Loba me corrigiu
como papel celofane sobre uma caveira, tão fina que se podiam ver as de novo. - Seu amigo Raimundo Pascoal cá fica
raízes dos dentes. Uma manta preta. mofada e puída. com babados de toda a sel11ana, con10 garantia.
renda amarelados pelo tempo, cobria o esqueleto da velha. Era uma vi.,:!" Tomei um susto. ~ão havia pensado nisso. 1\10s-
pavorosa, mesmo para os olhos de um vampiro. mas o que mais me cho- uei-me indignado:
cou foi que aquele espectro usa\a uma cabeleira postiça. uma bela penlCt _ Desconfiam de mim' Isso é um despropó-
morena. de cabelos longos e cacheados. Um cadáver vaidoso. sit'). \1111,1 arbitrariedade 1 Fazer meu amigo prisio-
A velha ficou imóvel. sentada dentro do caixão. olhos vidrados. "1\8" neiro. tendo apenas uma leve suspeita'
respirava. Apenas desprendia, de vez em quando, pequenas baforaebs _ ~30 perca seu tempo a falar, que as pala-
de poeira cinza. vras desacreditam as obras. Tenho cá certeza de
- Esta é i\laria Romana - Rosa Loba explicou -, a vampira mais que são culpados, que já sei há tempos que Rai-
velha de Portugal. l\lorcegão a foi buscar, num cemitério do outro lado mundo Pascoal não se conforma em ser vampiro
do Tejo, porque Maria Romana tem o poder de revelar se o sangue de e que até hoje, duzentos anos depois, ainda sonha
um humano foi contaminado pelo de um vampiro. Ela arranhará a pele com sua amada Almerinda. Todas as mulheres
do bebê com sua unha. Se, em sete noites, o arranhão tiver deixado uma dos prostíbulos de Lisboa sabem que ele sofre por
marca permanente, há sangue de vampiro correndo nas veias desse pe- não ter uma família.
queno corpo. Ela estava bem informada.
Eu não esperava pela aparição de uma coisa como aquela ... Maria Tentei ser mais agressivo, pegando Rai-
Romana. Mas uma chefe de congregação precisa ter seus truques, mm- mundo pelo braço:
trar por que é a líder. Tudo bem. Eu continuava tranqüilo. A velha - Vou levá-Io comigo de qualquer jeito.
podia arranhar o bebê todo que não ia acontecer nada. - Se digo pedra, pedra há de ser, mes-
Rosa Loba descobriu o bebê e levou-o no colo, nu, para junto da velha. mo que seja pau! - ela gritou.
Eu não acreditava que ela tivesse forças para levantar o braço, mas Maria :\lorcegão deu dois passos para a fren-
Romana começou a erguer a mão direita, fechada, lentamente, como uma te, na minha direção, o suficiente para que
marionete guiada por um fio invisível. Também muito devagar, foi esten- eu soltasse Raimundo e me conformasse
dendo o dedo indicador, e aí vimos sua imensa unha, preta de sujeira. com seu destino.
Rosa Loba aproximou o bebê daquele dedo descarnado. Num sú- Ela tornou a embrulhar o bebê na man-
bito movimento para a frente e para baixo, como se tivesse levado uma ta e o devolveu a mim:
descarga elétrica, Maria Romana arranhou a coxa esquerda do bebê. - Daqui a uma semana, se o arranhão
O sangue apenas aBorou à superfície. Uma fina linha vermelha. tiver se transformado numa cicatriz. vocês
Maria Romana foi amparada por Morcegão, que a deitou novamen- três vão para a fogueira. Vampiros que des-
te no caixão e começou a fechar a tampa. respeitam as regras não têm uma segunda
- Fiquei admirado com os poderes de Maria Romana - eu disse, chance. Cachorro que come galinha não
para aparentar segurança. - Como estudioso, gostaria de voltar para serve mais para tomar conta de galinhei~
saber mais sobre ela. Agora precisamos levar o bebê para casa. Têm ro. Só matando.
Raimundo Pascoal estava estranhamente alheio a tudo. Acenei para
eie, fiz um sinal positivo. Ele pareceu nem me enxergar.
Era 30 de outubro de 1755. Un1J sexta-feira. Eu só \"()1ta,ia na pró-
xima quinta. 0:ão havia nada que eu pudesse fazer.
Colocaria o bebe em sua cama. ao lado do irmão. e ficaria vigia:ido,
todas as noites. para que nenhum vampiro. ou lobison,e:n. ou que;'ü
quer que aparecesse d~'ls tH'V:lS a mando de Re,sa Luba dcsc1,brisse LJUc
ha\"ia d()i~ bebês. gtn1tO~. c;"':(1tan1entc jgu~lIS,curnu dU~lS ;(lt~lS de' 3,2T1J.

:\"dU tivc up0rtunidade de dizer;1 R;,imund" PascoaJ que aquele: era


o beb2 hum,lnu. () 01!tfO. (J :1Orm,,1.

fJe p~l'''aria U!1"'!~lSI.:'!Tl~t!!:: d()~·~ Ji~·:l)(~s.S;ií ti\. L.~ L'u111l(JUlt~1 pella d{J
meu amIgo.
:\' unca mais o veria.
••••

Acendi a lamparina. Dezenas de ratos corriam de um lado para o outro,


guinchando, muito assustados. Cachorros uivavam ao longe. ~leu cavalo
relinchava, aflito, escoiceando as paredes de tábuas da cocheÍra.
Falta\'a pouco para as dez horas da manhã. :-\ão podia abrir a pOrta.
Temi ser um ataque da congregação.
::'\uvo estrC:1TJe<:imento,seguido de um estrondo forte, chegou a me
desequilibrar. em quadro caJU da parc:de. O dntaro com água tombc)u
e quebrou.
Seria :\lorcc:g:io, temando pôr abaixo meus alicerces de pedra - l\Ls
como era possÍ\'eL se estávamos em pleno dia, e ele era um v:lmpiro.
como eu-
Os ratos afinal encontraram uma brecha entre as pedras e o ch:io de
barro e saíram. Tudo ficou quieto. Deitei novamente no caixão. :'-Jãohavia
o que fazer. Esperei o pIOr.
Nada mais aconteceu. Definitivamente quieto. Voltei a dormir.
Assim que o sol se pôs, pulei cio caixão, selei meu cavalo e parti para
Lisboa.
Na estrada, cruzei com uma multidão vindo em sentido contrário.
Homens, mulheres, cri:lnças, \'elhos. Todos pareciam ter acabado de
°
\'er demônio. Alguns, com panos enrolados na cabeça, empapados de
sangue. Esfarrapados. l\luitos precisavam ser arrastados, com pernas e
braços quebrados. Vários vestiam apenas ceroulas. Todos cobertos de
poeira e cinza, com os olhos vidrados de terror.
I! Fugiam de Lisboa.
Chicoteei o cavalo. Do alto de uma colina, olhei a cidade. Lisboa
,I
1I ardia numa imensa fogueira!
'.1
Deixei meu cavalo amarrado às portas da cidade. Ele se reCU~'1va;1
prosseguir. Segui a pé.
ri
O céu er;l pura fumaça negra.
As labaredas subiam alto, iluminando as ruas destroçadas, as racha-
duras que se abriam em abismos na terra.
l'ão havia mais nada de pé. Paredes, torres, campanários, palácios,
mosteiros, telhados ... tudo desabara, rachara, e milhares de pessoas gri-
tavam sob os escombros. Choros, gritos, pedidos de socorro. Pessoas
semi-esmagadas por blocos de pedra gritavam por misericórdia. Pilhas
de corpos ardiam sob o madeirame dos telhados desabados.
Loucos vagavam entre as chamas.
Eu via tudo através de uma nuvem de pó e cinzas. Prosseguia,
·-

contornando pirâmides de cadáveres, umedecendo as botas em poças Enchi-me de coragem e fui direto ao inimigo. Caminhei para os li-
de sangue, ouvindo gemidos dos moribundos e ladainhas de homens t mites da freguesia, direto para o cemitério paroquial da ermida de Nos-
II
mulheres ajoelhados, abraçados a pedaços de cruzes arrancadas às igre_ sa Senhora da Consolação. Em meu ensandecido jUÍzo, queria afrontar
jas em ruínas.
! Rosa Loba, amaldiçoá-Ia por aquela destruição.
Eu atravessava entre terros retorcidos. escalava montanhas de pedra~ Custou-me reconhecer o local. A Porta do Ferro havia afundado
I

I que. até o dia anterior, haviam sido igreias e palácios. Abria caminho entre numa cratera. A ermida desabara e era agora um monte de entulho
paredes de fumaça, ouvindo corpos ainda vives crepiLmdo no tc'go. fumegante. Corri para o cel11it~rio. Uma fenda gigantesca o cortara de
:\tàstava de mim pessoas énlouquecidas que': tentavam me agarr~tr fora a fora. Sem ptnsar, pulei dentro dela.
as pernas, os braços. Pulava. com saltos de vampiro. gr.1ndes Cf:.!krac; A cavtrna artificiaL o balneário romano, ainda estava lá. Coberto de
abertas nas ruas, de cujo fundo escuro relinchavam cavalos e gritavarl1 pedr~lssolras, terra, poeira.
I pessoas tragadas pela terra. Eu ia em frente. Eu precis.wa saber U '-jLk . Ainda via os caixi'íts, ul1pilhados nas paredes, alguns espalhados
havia acontecido.
nelo chão. Os de :\lorce2:ão e Rosa Loba continuavam sobre os grandes
O fogo ardia por todos os lados. Tanta luz que parecia dia. blocos de pedra retangular. '
LTma nlula em chamas corria, roçando-se entre os escombros, t"\l'd- Todos mortos.
lhando o fogo onde ainda não havia.
.-\.fenda aberta na terra expusera a congregação à luz do sol' Todos
Eu precisava saber. .\1as era como se eu já soubesse. haviam virado punhados de cinzas, em seus caixões sem tampa.
O Terreiro do Paço desaparecera. Desaparecera o largo do Pc:louri- Pedaços de vigas em chamas caíam na fenda. Eu tinha de sair dali.
nho, a casa do Haver o Peso, o mercado do peixe. Não sobrara um.1 S'l Procurei ... até encontrá-Io. Estava em um caixão de pinho vagabundo.
barraca. A terra se abrira, tragando tudo, as construções. O fogo trans- Tudo o que restava de Raimundo Pascoal era o anel de esmeralda
formava o que restou em cinzas.
brasileira que lhe dera de presente, e que ainda brilhava entre o monti-
Havia barcos, de cascos para o ar, por todos os lados. nho de cinzas.
Atravessei a freguesia da Madalena.
Desapareceram os Hospitais dos PaJmeiros e da :Misericórdia. le-
vando seus peregrinos, seus cegos, suas ramalhtiras, o homem qUt inll-
rava nas escadas e fazia tatuagens.
Desa pareceram a rua :\'ova dos Ferros e todas as suas livrarias; a rua
dos Ourives de Prata; a ermida das Pedras Kegras.
Desa pareceram as ruelas e escadarias escuras, onde as prostitutas
prestavam seus serviços; os açougues da rua das Carniças Velhas; o pa-
lácio do Correio-mar; os becos do João das Armas, do Oliveira da Pa-
daria, do Cura.
Não restava mais nada do beco do Espera-Rapaz. Nada.
Uma grande fenda, paralela ao Tejo, tragara todas as casas. Tudo
era poeira e fumaça.
Parei diante do que antes era o sobrado da família do bebê. Cho-
rei sangue. Ainda não havia compreendido o que acontecera. Confllso,

brir que eu que


acreditava a enganara, mostrando
tudo aquilo era urna ovingança
bebê errado.
de Rosa Loba, por desco- '
1~.
~

o próprio Palácio da Santa Inquisição ruiu. E a Casa da Alfândega,


a Vedoria Geral de Guerra e muitas outras construções que abrigavam
instituições públicas importantes.
Tudo isso aconteceu em um domingo de céu limpo. sem nuvens. na
manhã agradável de um dia de grande devoção religiosa.
Ao final do terremoto, as águas do Teja recuaram mais de mil me-
trOS, deixando dezenas de barcos e navios ":!1calhados. Uma multidão,
:;sq;suda com a terra que ainda tremia de tempos em tempos. t com os
Inc~ndIOs, fugiu para o leito seco do riü. procurando at~lstar-se o mais
possível daquele pesadelo.
O Teia. então, tornou a avançar. Uma onda de dez metros de altura.
A onda investiu contra a parte baixa de Lisboa. Cobriu o Terreiro
do Paço. Varreu a freguesia da I'v1adalena. Arremessou barcos dois qui-
!ómetros terra adentro.
Centenas morreram afogados na ressaca, arrastados pelas águas que
avançavam em turbilhões de ondas sucessivas, estraçalhando barcos, en-
golindo e destruindo o recém-construído Cais da Pedra, todo em már-
more bruto.
Depois do terremoto, e do maremoto. o fogo ficou livre para com-
pletar a destruição.
As chamas das milhares de velas acesas no dia santo se espalharam
rapidamente.
Os incêndios duraram uma semana. As labaredas avançaram sem
parar, consumindo tudo, objetos e corpos. Não havia como combater o
fogo. Os tremores de terra haviam secado as poucas fontes de Lisboa.
Durante sete noites vaguei pelo caos, com a absurda esperança de
ainda encontrar o bebê vivo.
Na madrugada do domingo do terremoto, eu escutara a família dis-
~utir sobre em qual igreja iria assistir à missa no dia santo. A velha beata
Insistia que fossem ao templo do Convento do Carmo, um dos mais im-
POrtantes da cidade, para que todos vissem como eram devotos. A mãe e
o pai preferiam presenciar o culto em algum templo dominicano, como
uma forma de agradar à Inquisição.
. Ficaram de decidir na manhã seguinte, e eu acabara sem saber a que
Igreja tinham ido.
Na primeira noite, corri para as ruínas do Convento do Carmo .
. Desesperado, revirei os escombros com uma energia descomunal,
atirando longe pedras imensas e vigas de madeira.
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"..

'fi
Nada. Quatrocentos corpos esmagados, muitos ainda gemendo. O
bebê não estava lá.
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Fui a outro templo importante, a basílica de Santa Maria. Sua nave
central havia desabado sobre centenas de fiéis. :\ada.
Ti\'e de parar as buscas. O sol nasceria em breve.
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colares, anéis, moedas - de corpos mortos ou ainda em agonia. Cruzei Bandos de freiras perdidas passavam entre as ruínas. Fanáticos enlou-
com um franciscano que dava extrema-unção aos moribundos e depois quecidos insistiam em penitências absurdas, chicoteando as próprias cos-
lhes roubava moedas e tabaco. tas. Beatos andavam pelos becos carregando imagens de santos e rezando
Turbas saqueavam a igreja Patriarcal, levando os valiosos para.- dia e noite. Padres jogavam 05 corpos nas fendas e os cobriam de cal e
mentos e ornamentos. :Multidões reviravam as ruínas do Palácio Bra- ten3. dando uma extre1113-unção colt-tiva.
gança, levando as jóias da Coroa, as baixelas, as ta peçarias de seda com P<1reide procurar o bebê.
fios de ouro; hordas roubavam as especiarias das Índias, nos armazéns :\leu sobrado 110 Bairro Alto fora COlTlpletamente consumido pelo
expostos. da Casa da Alfândega, e os bens das mansões desabadas dos b Dêcidi recolha-mê à quinta, cue n:,o fora abllbJa DeIO terremoto.
t; ,:'u. ~!
.
COIllerClantes ncos. p:lssdria um te111poLi até os humll11(Jsse organizarem.
L:ma rica senhora, coberta ele jóias com diamantes brasileiros, as .'\ tamília do beco do ESDêf:I-RaD:lzn:io existia mais. R:iÍmundo Pas-
o •

pernas esmagadas por uma pedra de cantaria, gritava por ajuda em COltldesapllfecera. ROS:l Loba, :\Iorceg:io e toda a congrega(ío haviam
meio aos escombros. 'em homem, bem vestido, arrancou-lhe meticulo- \]fado cinza. O Pabcio da Inquisiç:1o desllbara.
samente as jóias e jogou-lhe mais pedras em cima. Er:<,portanto, a sétin1ll noite de buscas, e eu voltava para casa, confor-
Eu precisava encontrar o bebê. mado, quando a sone me pregou uma peça.
Já procurara em todas as grandes ruínas. Por duas noites estive reme- Estava lxm diante do pequeno templo dominicano do Corpo Santo
xendo nos mil e quinhentos corpos esmagados pelas paredes de pedra do quando vi um grande ajur.tamento de padres daquela seita, realizando
Convento da Trindade. uma vigília em torno do convento destruÍdo.
Havia mais ele cem lugares onde a tlmília podia ter assistido à missa do A grande e pesada abóh,c1a que C'lbria a capela desabara, trazendo
dia de Todos os Santos naquele domingo, e eu resokera começar pelos que junto as grossas paredes de pedra, e um sino de ferro pesando toneladas,
tinham reunido grandes multidões, até chegar às pequenas ennidas. Isso me soterrando umas três dezen:ls de fiéis que assistiam à missa das dez. Eles
parecia mais sensato do que procurar ao acaso nas ruínas das paróquias. sabiam que era impossível haver sobreviventes e se preocupavam mais em
A semana passou. Lisboa era um acampamento caótico. Os corpos resguardar o convento de saques do que em vasculhar os escombros.
ainda não enterrados ou queimados começavam a feder terrivelmente. Com minha audição de vampiro, ouvi claramente estranhos ruídos
1\1inha esperança era alimentada pelos gemidos que ainda se escuta- sob as ruínas.
vam, saindo de sob os escombros e do fundo das fendas, de corpos às vezes Amanheceria em breve. Eu tinha pressa. Incentivei os padres a revol-
já cobertos de cal. verem as pedras, dizendo que ouvira barulho de gente viva L1 embaixo.
Uma mulher foi encontrada seis dias depois do terremoto, sob um Começaram a trabalhar, a princípio com muita má vontade, mas logo
.11111
. ~ arco de pedra, com o pé esmagado, abraçada a uma imagem de Santo ouvimos duas crianças a berrar sob as ruínas.
Antônio, e sobrevivendo graças a uma parreira cheia de cachos de uva que Lá estavam os gêmeos I
desabara com a casa. l\'1aisde vinte padres dominicanos fi:Jramtestemunhas.
Mas esperança tem limite. Quatro grossas vigas de madeira brasileira haviam escorado o grande
sino, criando uma bolha de ar sob ele. Isso não havia impedido que muitos
- Para nós - a psicanalista lembrou -, que duramos quase uma corpos jazessem ali, esmagados, cortados.
eternidade, a esperança ser a última que morre não traz nenhum alento. Apenas os dois bebês estavam vivos, embaixo do sino.
Um sobrevivera chupando o leite do peito de uma mulher, que não
No fim da primeira semana, o incêndio já se extinguia por si próprio, os era Antônia Batista, a mãe dele.
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sobreviventes comiam ratos, mulas, cavalos, cães e até cascas de árvores, e ca- O outro, para horror total dos padres, chupava o sangue que do
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minhava-se sob uma chuva fina de cinzas. A fumaça não deixava ver o céu. pescoço cortado de um homem muito gordo.
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i o ;:'cs:<Ut;S;-f:8 foi uma
, teonê. pC.i:·t!ca q:..;e As coisas funcionavam assim na Lisboa do séculr) Assinavam em cruz e podiam passar toda
Gefe~.:"u o poder total, XVIII, e foi por isso que os bebês encontrados vivos nos uma vida sem ter de tratar com a administração
I abso!:.j'10, d,:) mcnc~ca,
êrt, :c:d25 25 inST~:<~as escombros do convento dominicano foram logo batizadr.s .,ública. Registros de nascimento eram anotados
com nomes de santos.
::ic ;:'2:'S.'.'i;;lC'~:'::U ,-:3

'li!! :i~;r8::J::: se:, S2::;~)~O X\/: a ~elos p3dres, nas paróquias, em grandes cader-
~'~3rjC:S 88 se::,.;:c Um, o que se alimentara de leite, o bom, foi chalhad(J noS de capas sebosas. O terremoto, o 111,uemoto
E ca:E'SCJ 'l~ :e:~;a de Antônio, em homenagem a Santo Antônio, o padrOei_
'I, ! 'illl
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'.J: J-='~,:,;: /: - -" ro de Portugal. e, pc,r t1m, o incêndio haviam destruído a maior
7~:~;_,e E ::"'~;-r:':,r· Js'::e narre desses registros e apagado definiti\'amen-
,i :i:!!i
O outro, o que chupara sangue, o mau, re:ebêu "
nume de Yiceme, em repres:dia a São \'iceme, o
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:. l11ilhJres de vínculos L1J11iJiares.
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III li! 1;11,.
:II/! I;nurou-se o passado dos gemeos. Seus pais
I: li! I TO de Lisbo,1.
n:iu a~xueceran1. Estavam 111ortOS.
:;;;1'li Enquanto Santo AntôIlio mostrara-se muito eTicaz Sobre\'Íverem foi considerado um milagre:. O

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ao proteger o resto de Portugal de tão terrível trélgédia,
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2::-;' :>j;:::::::' 2-:::_'5. :::'~J fato de SC'femgêmeos reforçou a mística. Viraram
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"21,::·-~S cr,Q 0,:,J:E;5 São \ 'icente havia demonstrado não ter o menor prestí- símbolos. Um mau e um bom. Um enviado por Deus;
li!
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ili :3t;::;'~r: 5::3::: :: "2 ,o. gio perante Deus.
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1.1

I -;;:c::~· ,o:;. ::~c- :.=. li Ulltru, pelo Demônio.


11
~O~'~~,:~a: ê C::;:'Bi .~E
De fato, o terremoto só causou destruição no Cé'ntru _ Temos de cuidar para não embaralhá-Ios -lem-
de Lisboa. Até os arredores, como a região ao norte, onde
1111
I, ~ eu tinha a minha quinta, a apenas vinte quilômetros, t~l-
brou um padre -, pois são tão iguais que corremos o
risco de trocá-Ias, e santificar o filho das trevas.
\.\
ram poupados. Isso, aliás, foi o que salvou a nobreza. Eu não podia fazer nada. Vicente, afinal, por outros
Naquele domingo de Todos os Santos, a quase totalida- motivos, acabara nas mãos da Igreja. Ele não era um
de dos fidalgos encontrava-se em suas quintas. Como sem- vampiro completo, não dormia de dia. Eu não poderia
pre, passavam o fim de semana fora, acordavam tarde e as-
sistiam às missas de domingo em suas capelas particulares.
criá-Io. Recolhi-me à minha quinta e fiquei assistindo ao
seu destino.
\
Toda a família real estava em Belém, a apenas onze
quilômetros. Se estivessem no Paço da Ribeira, que veio Lisboa começou a se erguer das cinzas.
totalmente abaixo, teriam morrido.
Não era uma tarefa simples. Um terço da cidade fora
A imensa maioria das vítimas era do povo. destruído. As sedes administrativas tinham vindo abaixo.
Comentou-se que Deus era :ibsolutista. O rei, D. José I, que nunca tinha dado provas de
Agora os gêmeos chamavam-se, portanto, Antônio ter grande iniciativa, e muito menos de heroísmo, num
e Yicente.
ataque de pânico se pôs a rezar, e não saiu de Belém.
Ninguém se preocupou em saber quem eles eram an- Dos três ministros, um ficou inválido com o susto,
tes, de onde vinham, quem seriam seus pais. o OUtro fugiu. O terceiro, Sebastião José de Carva-
Naquela época, as pessoas do PO\'o tinham apenas lho e ~lelo, mais tarde conhecido como marquês de
o nome de batismo e, como sobrenome, a profissão que Pombal, foi quem tomou as rédeas da situação.
exerciam: Ricarda do Peixe, Teodoro das Couves, Pe- Foi nessa ocasião que ele proferiu a célebre frase:
dra Sapateiro; ou o nome do santo padroeiro da família: - É preciso cuidar dos vivos e enterrar os mortos.
Teresa Batista, ~laria Genoveva; ou de uma árvore que Com tanta gente ferida e desamp:lr;rd:I,,' 1:1111'""I
brotava em seu quintal: Teodoro Pereira, Clara Figueira; dáveres apodrecendo nas r\1;IS,c<Jlllid"" 1'(11',I,IH"I(I',.
ou uma característica física: Álvaro Manco, José Vesgo. roídos por ratos, isso P:Ij'('l'j:1<.,)\
j",

fi .,# , •.•• ,.".'


Se não agissem rápido, logo estariam enfrentando
de novo a peste.
Percorrendo a cidade em sua carruagem, dia e noite,
Pombal dava ordens e assinava decretos.
a con:es1:3,~ão ao
::cder d', r\c, c~o re Cuidar dos vivos... Construir albergues. barracas.
::or:,~;;si 31~"':CJ:C.'J ~os tendas .. -\brigar os bandos de freiras perdidas. Confiscar
~:lêgS~~-=~c's C3 :::''J:~':-' 3
:Y,::;S, -=,~a S~,,5 2,: ';~2~~:::'1 toda a comida possíYêl inclusive as armazenadas nos po-
::::,'~e ..~:,.: =-: 5~t' f- :ç::?
f(-)esdos n,n-ios atracados na costa. Impedir que os preços
:::.c:':~.:;?: ns ~,::C"~:: ;1':::::1

jd no se::L,'C "::',S
aumentassem. Cortar impostos. Recolher alimentos nas
o:taOur3~ oc·s 2no~ pro\"íncias vizinhas.
~i93D e ~9é,,=,':C' E:,"asii
Enterrar os mortos ... Organizar tropas de coveiros.
,reSU,;t"":gi;~a'~1 ::>5 (;-,'"'::,105
;n~:}\',;JLc,IS, n'iéiS TC<2m Cobrir os corpos com bastante cal. Atirar cadáveres ao
!J~, ,n~:,S ;r:S::~~:-':;':":-:::-;':,
mar, ;}marrados 3. pedras. Os padres davam a extrema-
5 e ~4.C1ue::;r;i2ian", o
:5:2-:10 1"'(:2:5 a~..rlco1·!iarlo, unç50 por atac3.do, confiando que Deus, no céu, saberia
ce r";C'/O c:-e ..encCJ a quem er3. quem.
pena ':2;:,;~a: para o:;
:evc:~c::c'r;ê,r;c:s 1969). Criaram-se patrulhas. Um juiz, um confessor e um
,~ ;)e:-l2. CE ;y:cy:e \-'c!tc-u carrasco percorriam os escombros, condenando e executan-
a SE~ e;':l!:-:a CC\~-: a
Co!'""'s:;-:::j:-;ãc.- ce ; 988,
do no ato quem fosse pego em flagrante de pilhagem.
sen,jc :YE'/5tê: sc..'me:lte Na Praça do Rossio, vi duzentos corpos balanç3.ndo
enl CêSO de guerra. na forca e outras tantas cabeças espetadas em est3.cas nas
esqull1as.
Enfim, muita coisa a ser feita, em curto prazo. Eu,
porém, não me envolvia com a "noite-a-noite" dos hu-
manos, muito menos com o dia-a-dia, e me limitei a al-
guns p3.sseios por Lisbo3., para ver como iam as cois~ls
e para acompanhar, como já disse, o futuro de \'icente,
que, por algum motivo que ainda me era estranhá, n30
me saía da cabeça.
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- , ----------------------------_._------,
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- ...
- - . :...._.. - - - .. _~-_._-_._---_.-----------_.-._-._-_
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~-- ---

-
.~
~

Os i:umin,stas íoram os
primeiros a contestar e
Pascoal, apesar de venerá-Ias, tinha de fugir dos crUci_ dência de um império que já fora senhor
CDnde~,ar o ,A.bsolutismo fixos e das águas bentas como fugia do sol. Eu, que sou do Ocidente.
:::~:'Jrc='c,;da ce ateu e iluminista, posso dormir abraçado a uma cruz t A Igreja aproveitou para esfolar as cons-
:Il",.;....CO ca1'J~:C2
8e7E-nO!arn os direitos
lavar o rosto com água benta. ciências. O misticismo foi lêvado ao paroxismo.
0cr:"';~2:se un!\'e"sê.!s: - A psicanálise vampírica já estudou esse fenôme_ Tudo foi usado para aumentar esse medo,
:)r':);:r:-=:Cla:::'? ~Yi\:3C;3
::·e':;:;d-= e "25!s:e:--Cld
no. O vampiro que acha que os símbolos católicos sAI) Inclusive Yicente.
as >'3"-;:2';. :f~:~:'::'-:jgai. do '·bem". e que ele próprio é do "mal", é afetado e podt Os dominicanos entregaram os gêmeos aos
....
SC-='"'2S
- r- sr:-:::; ch~~c,;~:
:'":c 7::-:-1:;,::
até ser destruído por eles. É um problema psicossomáti_ it'5UiLlS,que eram mais poderosos em matéria
SE<::_~':' co,., sintomas org,'inicos produzidos por influencias p~í- de' pf\lpaganda e articulação política, De co-
quicas ... Já curei muitos vampiros disso. Basta melhorar n1l1macordo, usaram os dois como símbolos
,.; Qi:Jérr: dc·mj;::car:a fOI
ur-:-.êrn-:a("jadê f'Jn.j~Qa sua auto-estima, ou seja, nós precisamos nos achar du do mal e do bem. Da destruição e da recons-
:Jcr 5~c 0',::,n-;:ngc's :jE'
"ben1". tru(io, Dos pecados e da absolviçi1o. Do cas-
G;Jsr'ião ern ~21-S. CJs
0::;"-'1'- C2:!OS :!ni-':~ql .'.::'
- Tem razão. Eu tentava conversar com Raimundu, tigo e da salvaçi1o. Caim e Abel.
C:)~é~i·,.,O~e se aeolcar a "O catolicismo nos considera obra do demônio", eu im- Levaram os bebés para o mosteiro de
:xe;;:s.::ãeo :ia E\'ar:gelho plicava com ele. "Como pode um vampiro, como VOCt. São Bento, um dos poucos a permanecer
no rr:'...i:"'.jQ e aos
ideaiS dE ;J:J8reza dC'5 ter fé num Deus que quer destruí-Ia?" de pé, e lá foram expostos, como motivo de
or;;;,e:rc'33pc.'IS10iOS. "Louvo o Deus católico por tudo o que faz", Rai-
Fcran~: :i-r:..;;to alua:-ites
peregrinação.
nê :nqu:Slção. mundo Pascoal explicava. "Daí, louvo-O por precisar Redigiram panfletos explicando, em lin-
nos destruir." gua;em barroca, as circunstâncias milagros:ls
Os Jesuítas eram oadrE~
Eu ria daquela lógica absurda. em que haviam sido encontrados, depois de
iiga::os a Corrlpanh!a de
}ESJS, urna ir~Tiandade Depois do terremoto eu teria perguntado a Raimun- uma sen1ana enterrados vivos, e como un1 so-
exci~sva pa;'a O clero
do Pascoal: "Se você estivesse com metade do corpo es- brevivera com leite, e o outro, com sangue.
catci:co Tundaaa PDf
inac;o de Loy'oia, em magado pelas ruínas de uma igreja, onde foi venerá-Lo, Antônio foi colocado num berço folheado
15.34. ~c:·am mL.,lito vendo ao lado toda a sua família morta, mesmo assim es- a ouro, junto ao altar, ao lado de uma estátua
ir::Donanles para taria satisfeito com as obras de Deus?".
a ConH2-Reforma
de Santo Antônio, enorme. Uma ama-de-leite
(niovirnento que Quando eu o encostava na parede com a minha razão. com ares virginais foi encarregada de ama-
co",batEu a Reforma
seu argumento final era uma espécie de reza, em qu~ ficl- ment<1-lo na frente de todos.
Protestõnte), pois
e:-:fa~i:::?'."3m a va repetindo: "Tudo em minha volta pode ser destruído, Yicente foi aloiado numa cela imunda na
obediência ao papa contanto que me reste só Deus e eu", masmorra, em um leito de palha suja e úmida.
Os Jesu;tõs tinham
grande iní'uênm Ao que eu retrucava: "Se você estiver sozinho com Um carrasco iria alimentá-Io com sangue de
politca por serem Deus, é porque está morto". ratos e galinhas.
educadores e, muitas
vezes, con"essores e Tenho muitas saudades de meu amigo Raimundo Assim que o povo soube, formaram-se lon-
conselheiros dos reis. Pascoal. gas filas.
Os padres conduziam primeiro a Antô-
O povo, por sua vez, tinha muito medo. nio, o símbolo de uma vida pura e religiosa,
Era um medo antigo, fruto de muitas tragédias: Depois, a Vicente, a representação viva do
as pestes, os terremotos, o sumiço de D. Sebastião, a pecado, do mal, da monstruosidade, do pa-
derrota para os mouros, a ocupação espanhola, a deca- ganismo.
I V d 11 J a I
~y;
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11: I
,'"E-:?ren·::e 2
:~:i:iZad::i Cê:C Eanc<c,
A peregrinação atravessava as noites. As vezes eu
::L:ê f.:: :j'::2 t~:.dê~iClê
estava entre os fiéis.
::":,~>:3 :E':':::- - ,''::2
I :\'ão agüentava ver o bebê-vampiro naquela situaçào
* 3S =".~5= ;>a~~':35 e
I' e tària alguma coisa para salvá-lo. nem que custasse mi-
c'~p~,i5 '--,'"1;::nl~-:-3:~'=3 ,- a
I."
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:éré;~_ '3 .rl'::ê2:r: 2"'2 nha própria 111CJrte-vje13.
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• I' O século XVIII ficou
Pois bem: eu prefiro ser uma superstição a um monstro IlumiDlstas mais radicais diziam que o terremoto Ibérica, a ciénc:a

'!1 conhecido como Século das trevas. fora castigo, sim, mas contra os jesuítas, tanto que derru-
I!uminista demoro,j mais
. das Luzes por marcar é se tOf:!ar .:or.r'E:c!oa e
~~II' .-
'.. :1 , d"mm",'mm'O do Naquela época, a razão avançava por toda a Europa. bara todos os seus sete templos. Os jesuítas se defendiam, Uliiiza::ia. Essa den-,ua
! Iluminlsmo na Europa, ccorre'J por cc:!ta ca
o que teve reflexos
Até os regimes absolutistas já precisavam de "déSpotas afirmando que Deus destruíra muitos outros templos e forte dorninac3o da
políticos e cuit'urais esclarecidos" para poder continuar no poder. centenas de casas. Os iluministas concluíram, então, que Igreja e dos a'/3ílçOS da
- incluindo a eXllnção E, nesse contexto de idéias iluministas, o terremoto DeuS não tinha uma mira boa. ('Jntra-F:.e7orrna. ,A,ss:r:""
do "obscurantismo" a :dé!3 de "Jeus
de Lisboa foi um marco. O Iluminismo precisou da ciência para justificar o OLi:::'

causada pe'G domínio qUIs assim" CC:'l,tinuou


oa Ig~e.:2 e ':jS Portugal era considerado o país europeu mais atra- terremoto, mas a ciência da época era tão maluca quanto se misturanDO C0fi'. 25
!llOr:êiqUJas ôOSD:ut:5tas. superS1.;çÕes P:jPU:d!'~S
::eguncic' essa r0êJ':~;ra
sado, justamente por ainda estar nas mãos do clero. us delírios místicos ...
e a cléncla prat'C.~da no
c€ pensar, a raZdO seria Após o terremoto, Deus começou a ser questionado em "A Terra é um ovo gigante, cu;o fogo central consti- períooo medieval.
o prlnc:pal meiO de
Portugal. tui a gema, e a grand~ massa líquida, a clara, e portanto é
Ilbertac~o do h·yriem,
a que! se daria por Como acreditar na perfeição das obras de Deus de- muito natural que, de vez em quando, a casca, onde vive-
r:leio da Educacão mos, se rache."
pois daquilo? Como continuar afirmando que Suas obras
e da partic:pação
trazem em si o caráter de seu Criador? Como ensinar "A Terra é um ser vivo, que às vezes gagueja."
Doinica ےfi um gOl.,'Erno
repreSE!itat.II'O e para uma criança, cujos pais foram esmagados dentro de "Terremotos são ataques epiléticos do planeta."
constitUCional. Na
uma igreja, que tudo o que Deus faz tem de ser glorifica- "Lisboa foi construída sobre um caldo fumegante de
-,"merlca, seus ecos
chegaram com a do? Como convencer os fiéis de que a crença em Deus os betume, enxofre e nitro, capaz de provocar tempestades
indecenoéncia dos
protegia contra o mal, se o terremoto soterrara justamen- intestinas, como peidos, produtoras de trovões (o que ex-
estados Unidos,
em 1775. No te os que assistiam à missa? plica o estrondo que se ouviu antes do sismo), e que, não
Brasil, influencia a O terremoto destruiu a maioria dos conventos, tendo um orifício pelo qual escapar, provocam o rompi-
Inconfidência Mineira,
em 1739. igrejas, mosteiros e ermidas, numa hora e num dia em mento das camadas rochosas."
que todos estavam lotados. Como dizer que aquilo foi Para mim, a humanidade que se danasse com suas
Os déspotas esclareCidos
castigo de Deus, se castigados foram os que acredita- loucuras e suas tentativas de explicar o inexplicável.
foram os monarcas
Que adotaram os ideais vam n'Ele? Encontrava-me aflito como nunca me acontecera an-
i1uministas, ou seja,
A bondade de Deus tornava-se, no mínimo, suspeita. tes, Precisava resgatar Vicente daquela condição humi-
"esclarecidos" pelas
novas idéias, mas aliados As dúvidas surgiram. Mesmo entre os devotos. Uma es- lhante. Mortificava-me ver o bebê-vampiro naquela cela
ã burgueSia em um pécie de mal-estar metafísico. Uma certa mágoa ... Deus imunda, exposto como a encarnação do mal, servindo
esforço de adequar o
não devia ter feito aquilo ... à mistificação fanática dos religiosos. Sentia uma fúria
regime monárqulCO aos
"novos tempos". A explicação iluminista fazia mais sentido e começou incontrolável.
a ganhar adeptos: terremotos eram sucessos da natureza, Não podia tomá-lo nos braços e escapar, enfrentando
e não da cólera divina; não se tratava de castigo divino, e a multidão, as centenas de padres e o destacamento de
sim de causas naturais; a noção de bem e de mal era hu- soldados que o prestígio dos jesuítas conseguira deslocar
mana; a natureza não conhecia a moral, sujeitava-se aos para dar segurança ao mosteiro de São Bento.
elementos que às vezes entravam em fúria uns contra os Mas mesmo esse ato suicida eu teria tentado, se Vi-
outros e produziam catástrofes que atingiam os seres hu- cente não tivesse resolvido as coisas por mim.
manos, mas cujo alvo não era a humanidade; a nós cabia O que ele fez foi simples: não fez nada.
apenas nos defender, nos proteger da natureza, usando a Desde que o retiraram dos escombros da igreja, não
razão. bebeu nem mais uma gota de sangue.
..,.

Chorava, berrava, tentavam lhe dar mamadeiras de sangue, aprOxi_

mar ratos com barrigas abertas, enfiar pescoços cortados de galinha (11)

'o, boco.ma, de com;n",," eho;ando. Então. ,1""".lh, Ie;,c. o''''"',i.


como um anJo.
como o de qü"lquer criança, e ele mamava, e se acalmava, e dr'rnli"
Frustrou os pbno5 da Igr-:jJ.

Cma semana de procissc,es depois, a notícia hJ\lJ Sê esp:dh.\dl': I,


j,\

Llêb;: du mal, C,rim,:. alma ruim por tr:lS do krrelTluto. tf.t Llil~.l Lr'J .
.-\s ribs aCll>:iLim. Ch jesmüs decidiram iIl\estJr elll C'~1tfl'S til''''k
;~liLtgrc, cumu o da madre sLlJ.kriurJ do [(JJ)\tnro d,) Anunci.'"J,!, li;l,.•
religiosaem,juminicana
mônio obsef\'ante qUé', desdé' a rrdgé,/iJ, l'umitd\,l
t{>rma de altinetcs. I' I ic-

A.ntóni,'; L1l11bém fói descartado. Sem a comp,H;l~;lO com o m,d. li h:'1])


:~;l()tinha .'2'ac" l,enhurn,L .\:in,:.:utm :úia ri!.l p"r;1 \ t:r Ull) btb~s,-r ""'JéI-
memadu por Um,l rapariga que met3de de Lisboa sJhia niio Ser \ir,~tl'l.
CJs jesUít,15 c('meçaram J pensar em como Se li\Tar deles.

I
I,.
.- -.
05 'rnêL;S passos" eram Quando abri a pesada porta de madeira para sair, as tes que me vissem. Do último retirei as chaves do grande portão de ferro
a desobediência aos
votos de castidade: dobradiças rangeram como se eu tivesse apertado o pes- que isolava as celas dos condenados, onde haviam enfiado ·Vicente.
rrIJ!::as vezes, as TrE:!rêS coço de dois gatos sonolentos. O padre se ergueu na cama Apaguei as duas lamparinas que iluminavam o longo corredor.
7i:S\'am g:-av:das, senao
e começou a resmungar: Como já disse, no escuro posso ver o calor que sai dos objetos, sua ener-
cbr:gadas a abortar ou a
2ba~!dor:ar os filhcs. - Quem é? Quem é? gia pura. O último guarda era uma bola redonda e vermelha, que veio
A única luz vinha do lado de fora, da lamparina na ao meu encontro. na escuridão, ver quem apagara as luzes, Derrubei-o
parede do corredor. Refugiei-me na sombra da porta. O e tirei de seu cinturão a chave com. que abri a cela de Vicente.
padre levantou, esticou a cabeça, olhou o corredor. Seu Ele dormia como um anjo.
pescoço ficou muito perto de meus dentes. l'vleu corpo Passei a mão em seu rostinho, hipnotizando-o para que não chorasse.
tremeu. Eu devia ter bebido mais, antes de sair de casa Embrulhei-o bem na manta fedida com que haviam forrado sua cama e
àquela noite. Dois copos de sangue de cabra não eram saímos do mosteiro, voltando pelo mesmo caminho, até o janelão do tercei-
suficientes para aplacar a vontade irresistÍvel de enfiar ro piso, de onde pulei para a escuridão das ruínas de Lisboa.
meus dentes naquele pescoço gordinho e suculento. Eu Corri como um lobo assustado.
precisava só esticar os braços, puxar o corpo do padre, Tinha a impressão de estar sendo seguido.
cravar os caninos naquela jugular pulsante ... Podia sen- Atravessei como uma bala o que restara do Paço da Ribeira. Havia
tir o coração do homem batendo junto com o meu. fogueiras acesas por todos os lados, e sobreviventes tentando dormir
É uma espécie de delírio. Um vampiro nesse estado em barracas improvisadas.
deixa os limites do próprio corpo. Sentimos o sangue da Alguma coisa estava em meu encalço.
vítima bombeando, correndo nas veias, como se já fosse Corri muito. Praticamente voei. Imensas paredes de pedra, sem telha-
o nosso sangue. dos, projetavam sombras fantasmagóricas umas sobre as outras. Paredes
Dei-lhe uma pancada na nuca e joguei-o de volta à que pareciam destruÍdas a dentadas por um gigante enlouquecido.
cama. Era o mais sensato a fazer. Não queria roubar um Um pavor terrível me brotava das entranhas. Apertei Vicente ainda
bebê que chupara sangue de um cadáver na mesma noite mais contra o meu corpo e mudei de rota, saí dos becos, enveredei pelas
em que encontrassem uma vítima de vampiro. ruínas, pulei sobre casas desabadas, sobre abóbadas destruÍdas de igre-
Apaguei a lamparina do corredor e apressei-me na di- jas, por baixo de imensos pórticos caídos, sabendo que o que quer que
reção da parte frontal do mosteiro, onde eu sabia existir fosse ia me alcançar, não ia poder fugir daquilo.
uma grande escadaria de pedra que levava ao térreo. E, então, lá estava ela, sobre os escombros de uma paróquia, com os
Madrugada. Não havia ninguém desperto, braços cruzados sobre o peito.
Desci as escadas muito rápido, quase invisível para o Rosa Loba.
olhar de um humano. Saí próximo ao imenso portal de
entrada. Dois sentinelas dormiam, sentados no chão, as
costas apoiadas na parede. Soquei-os na testa. Não faria
mal deixar um rastro de violência comum, que combi-
nasse com o rapto do bebê.
Repeti o trajeto que o povo fazia, na fila para visitar
Vicente. Percorri corredores estreitos e escadas sombrias,
afundando-me nos subterrâneos do mosteiro. No cami-
nho, abati com socos três guardas, surgindo das trevas an-
_ Deus protege até os mosquitos no ar - ela falou, embalando
Vicente. - Estávamos fora da gruta na hora do terremoto, a passar
o dia em uma cova rasa, num cemitério de paróquia para os lados do
Bairro Alto, a resolver uma questão entre dois lobisomens, dos quais
um foi devidamente queimado. Pois lá também a terra se abriu e nos
surpreendeu o sol. iv1as,como vê, tivemos tempo de cobrir-nos, apesar
de sairmos bem chamuscados. Lá o terremoto foi mais delicado. Deus
não fez distinção entre bons e maus, mas entre ricos e pobres.
-1\las havia cinzas nos caixões de vocês -lembrei.
_ Viu, dona Rosa? - Morcegão queixou-se. - Eu não disse? Os
malditos vampiros piolhentos dormiam nos nossos esquifes quando
viajávamos.
_ Lamento muito o que aconteceu - falei -, mas não tenho cul-
pa. O terremoto foi ...
_ É sempre um consolo nas desgraças achar quem as lamente -
ela ironizou. - Agora temos o bebê verdadeiro. Vocês dois morrerão.
Ela sabia.
_ Eu me enganei - menti. - Peguei o menino errado. Esse aí é o
certo. Mas ele não é vampiro. Esteve com os jesuítas, no mosteiro de São
Bento, e não aconteceu nada. Podem se informar. Poupem o bebê. Se há
um culpado disso tudo, foi meu amigo Raimundo Pascoal, mas ele está
morto, foi torrado pelo sol, vocês sabem disso!
Rosa Loba sacudiu os ombros.
_ Quem recebe morte repentina, depressa termina a pena. Cada
um que o mate a sorte, ou Deus, que o fez. Mas você há de arder lenta-
mente, por ter enganado uma chefe de congregação. Não vim ao mun-
do para fazer papel de parva. E levará junto este filhinho das trevas, pois
Lisboa toda sabe que sobreviveu sob os escombros do convento domini-
cano do Corpo Santo chupando o sangue de um homem.
_ Estava embaixo do sino. Como queria que se alimentasse? Qual-
quer bebê faria isso.
Falei aquilo sem nenhuma convicção. Não havia mais argumentos.
Lancei o pé direito para trás, contra a virilha de Morcegão. Havia força
suficiente para derrubar uma parede, mas ele apenas largou o meu pesco-
ço e levou as duas mãos à parte atingida, mais de susto que de dor.
_ Tente me ferrar, para ver como dou coice! - gritei.
E bati-lhe na cabeça com um pedaço de caibro. Uma pancada que
teria derrubado um touro. Morcegão caiu de joelhos. Várias bolhas estou-
;--

raram, transformando o lado direito de seu rosto numa pasta gosmenta,


Acertei-lhe novamente a cabeça, de cima para baixo. Aquilo racharia um
bloco de pedra. O caibro se quebrou, e ele nem se mexeu. )Jum mo\'i_
mento muito rápido, agarrou minha perna direita e puxou. Caí. Então,
calmamente, ele quebrou minha canela, como se fosse um graveto.
Urrei de dor. Vampiros sentem dor. Temos sangue, veias, sentimen_
tos, mau hálito.
cal.
Em seguida, até com certa delicadeza, .\lorcegáo quebrou-me a ca- _ Esta não é sua congregação, Clemen-
nela esquerda. te' - Rosa Loba gritou.
Não parou. Partiu os meus dois fémures. Com cuidado, para que C's -Não há mais congregação em Lisboa
ossos náo rasgassem a pele. Estava me preparando }Xlraa fógueira. _ meu pai falou. - A que existia aqui o
- Acho que assim não dará mais coices, dona Rosa - ele explicou, sol incinerou. E a responsabilidade foi sua.
depois do serviço pronto. Dormir em caixões abertos é fruto de sober-
De todos os lados, das ruínas de Lisboa, surgiam vampiros imun- b.:le indisciplina.
dos, cobertos de terra, raÍzes, com mato saindo dos cabelos desgrenhados, _ Cada um que olhe por si, e não fará
roupas em frangalhos, larvas brotando dos bolsos. pouco - ela tentou manter a autoridade. -
A horda fétida, com rostos e mãos sujos de sangue, silenciosa, nos Está interrompendo um ritual de punição. Se
cercou.
quer discutir procedimentos, conversemos
Lembro-me apenas de fragmentos de imagens. depois, de chefe para chefe. Agora, afaste-se.
O sorriso de Rosa Loba.
ivlorcegão, jogue esse traste ao fogo.
Ratazanas fugindo dos escombros. Eu era isso mesmo, um traste. Morcegão
Morcegão erguendo rápido uma fogueira, usando o madeirame do tornou a pegar-me pelo pescoço e lançou-me
telhado desabado.
à fogueira.
Rostos nojentos me olhando entre as bolhas gosmentas. Num movimento ainda mais rápido,
Eu era um saco vazio. l\forcegão me arrastou pelos cabelos para meu pai bateu-me nas costas e me atirou por
junto do fogo, que já ardia, alto. sobre o fogo, jogando-me longe.
Rosa Loba gritava, erguendo Vicente nos braços, exibindo-o. Morcegão avançou para ele com as mãos
Ia atirá-lo ao fogo. em garra. O que aconteceu em seguid<l pa-
Ivforcegão apertava meu pescoço. E me erguia. receu absurdo. Quando o gigante negro
As labaredas chamuscaram minhas calças, queimaram-me as botas. agarrou meu pai pelos ombros, estava sem
O cheiro da carne assando. Ouvi um grito. Fechei os olhos. Continuei cabeça.
suspenso no ar. Tudo parecia ter parado depois daquele grito. Foi difícil de compreender. O corpo de
um homem estava em pé, no alto de um muro. Uma silhueta, alta, Morcegão desabou. Sua cabeça estava no
imponente, com uma capa preta esvoaçante e uma longa cabeleira branca. chão. Meu pai segurava uma fina e curta espa-
- Pare com isso, bruxa covarde! - a silhueta falou. da, que tirara de trás da capa. Fisgou a cabeça
Fiquei de olhos muito abertos. Aquela voz era familiar. de Morcegão com a ponta da espada e a atirou
Clemente.
ao fogo. A cabeça ardeu, chiando como um
bolinho de bacalhau no azeite quente.
- Inimigos, quanto menos, melhor - meu pai sorriu.
Rosa Loba era outra pessoa. Ainda com Vicente no colo, parecia
uma pobre mãe desamparada.

A platéia de vampiros esfarrapados continuava muda, mas de


olhos muito abertos. Não tàziam parte da antiga congregação de Rosa
Loba. Eram apenas mortos-vivos arrebanhados em cemitérios de pro-
víncias, atraídos pelos milhares de cadáveres frescos de Lisboa. J\ão
querIam se meter.

nos Clemente
braços. tomou Vicente das mãos de Rosa Loba e o aconchegou

- Este bebê está crescendo - ele disse. - E bebe leite. Não foi
transformado em vampiro. Você sabe disso. Rosa Loba. Quer apenas
exercer a tirania. Se eu fosse você, sairia o mais rápido possível dê Por-
tugal. Se permanecer aqui, convoc.J.rei uma reunião com outros chefes
de congregação e, pode ter Cêrtêza, vamos jogá-Ia numa fogueira.
Ela estava sem alma. l\lurcha. Pêrmaneceu calada e quieta.
Clemente enxotou os outros, como pombos.
Depois empurrou com os pés o corpo de l\lorcegão para dentro da
fogueira.

- A cabeça deve estar sempre junto ao corpo.


Segurando Vicente num dos braços, com o outro me ergueu.
- Tire forças da fraqueza, filho. Vamos para casa.
lIl#
• lvan Jaf
li
Naquela época, derrota significava destino. Não eram muito otimistas. meu filho, é melhor não ter outro rumo na vida senão aquele que o acaso
Eu invejava o pragmatismo de meu pai. Queria ser como ele. mostrar.
Ele cuidou de tudo.
- Não quer não - a psicanalista balançou a cabeça. - 'Você está Fingindo-se de grande senhor, um conde, levou Vicente a Setúbal,
aqui, neste consultório, justamente para se distinguir de seu pai, simple~- uma aldeia do outro lado do Tejo, para ser criado por uma família de
mente porque não é como ele, não pode, nem precisa ser. agricultores que conhecia bc:m, mas que, é claro, nem desconfiava de sua
condição de vampiro. Deixou com eles uma bolsa com moedas de ouro,
l\"aquela noite, Clemente nos levou, eu e o bebê, para a minha quinta. prometendo contribuir periodicamente, caso o menino fosse bem tratado.
Eu estava com as pernas arruinadas. Para me recuperar, deveria fi- Exigiu que nunca revelassem ao menino quem pagava por sua educaç3.o;
car embaixo da terra por pelo menos seis meses, tempo em que os meus por isso receberiam visitas misteriosas, sempre de madrugada.
ossos voltariam a se soldar com perfeição. O casal não fez perguntas. Era comum filhos bastardos da nobreza
Antes, porém, precisava resolver o destino de Vicente. serem dados a Úmílias estranhas, para evitar escândalos. Filhas, quase
-1\'ão é vampiro. Entregue-o a alguém, para que o criem - Cle- sempre, paravam nos conventos.
mente aconselhou. Clemente os instruiu a, no futuro, contar a Vicente que seus pais ha-
-
Mas ele chorou e bebeu sangue ... viam desaparecido no terremoto, e ele fora recolhido, pelo casal de agricul-
- É normal. Raimundo deu sangue a ele. Sangue é gostoso. i\;ós tores, por piedade, nas escadarias que sobraram da Casa de l\fisericórdia.
sabemos disso. Ele quis mais. Berrou e chorou tanto por isso que o sangue Quanto à Rosa Loba, Clemente convenceu-me de que o melhor era
íI: i
brotou de seus olhos. Quando viu e sentiu o cheiro de sangue na baci~l, deixá-Ia ir:
mergulhou de cabeça. Se Raimundo tivesse dado açúcar, Vicente teria - verdade, n3.oé bom matar uma chefe de congregação sem le-
);'.1
atacado açucareiros. E, embaixo do sino, chupou o pescoço do gordo por- var o caso a instâncias superiores. Reunir vários chefes de congregações ...
que estava maIs perto. Fique tranqüilo. Tenho certeza de que ela não causará mais problemas.
O cinismo pode ser bastante sensato. Está destruída. Não tem escolha. Terá de sair de Portugal.
- E, depois de ter passado dias chupando sangue sob os escombros, Quanto a mim, ele mesmo, antes de voltar para a cidade do Porto,
Vicente nem quer mais sangue. Isso prova que o que ele teve foi uma ânsia abriu uma cova confortável no chão de terra do meu porão e me enterrou.
normal de bebê. Quando se saciou completamente, acabou enjoando. E
voltou a querer leite. Enquanto eu me recuperava embaixo da terra, em cima Lisboa fazia
- Não sei... Não existe um método rápido e definitivo de saber se o meSlno.
Vicente é um vampiro ou não? O senhor já ouviu falar numa velha cha- Pombal continuava a dar ordens, a assinar decretos, a mandar que aca-
mada Maria Romana? bassem logo de botar abaixo as ruínas. Derrubavam paredes que insistiam
- Maria Romana ... - ele riu. - Aquilo foi um embuste de Rosa em ficar de pé e colocavam o entulho em carroças de bois, que em filas inin-
Loba. É um truque antigo, usado pelos chefes de congregação, quando terruptas despejavam tudo no Tejo, ou nas colinas ao norte da cidade.
querem condenar alguém. O arranhão da unha de uma vampira velh;l A região mais atingida pela estratégia do bota-abaixo foi a beira do
como aquela sempre forma uma cicatriz medonha, em qualquer pessoa, Tejo. Agora totalmente nivelada, tornou-se um bairro comercial, com
viva ou morta-viva, mas depois some. rUas traçadas à régua e distribuídas de acordo com as profissões. Uma
Senti-me um idiota. para os cambistas, outra para os lapidários e ourives, outra para os sapa-
- Preciso fazer alguma coisa, Clemente. Saber se Vicente é ... ter teiros, douradores, peleteiros ...
certeza ... A reconstrução de Lisboa criou oportunidades de trabalho para mi-
- Apenas enterre-se por um tempo. Se você quer manter a sanidade, lhares de homens. Um imenso canteiro de obras. Pagavam-se quinhentos
réis por dia a pedreiros e carpinteiros. Contrata_ Uma nova camada social, os grandes comerciantes, contando com
vam-se ferreiros, pintores, carreiras, canalizado_
res, condutores de carroças ... I o capital inglês e aliando-se a Pombal, começou a conquistar poder
político.
Para financiar tudo isso, impôs Pombal, en- O rei D. José I deu carta branca a Pombal, o que enfureceu a nobre-
tre muitas outras medidas, o confisco das pro- za e o clero.
priedades cujos donos haviam morri do, que "Afaste-se da política", meu pai sempre me aconselhou. "Políticos
eram muitas. Foi esse o destino do que restou de costumam ser psicopatas perigosos. Podem contaminar os vampiros
meu sobrado no Bairro Alto. Não pude provar com suas vaidades. São péssimas influências para nós."
que estava vivo ... Seis meses depois saí da minha cova. Tinha as pernas perfeitamente
Lisboa se transformava. Sua nova arquite- restauradas, mas completamente bambas, e tive de reaprender a andar.
tura mostrava a passagem da mentalidade reli- Nada de meses de fisioterapia, é claro, mas durante algumas semanas
giosa, com seus becos e ladeiras sinuosas, para a caminhei como bêbado.
iluminista, de quadras simétricas, ruas niveladas, Meus cabelos pareciam raízes de capim arrancadas com a mão.
Cé'ntros de comércio e lazer. O místico dava lugar Tive de me enterrar completamente nu, e o contato da pele com a
ao prático. terra durante seis meses a torna murcha e fina, quase transparente. Eu
A vida voltava ao normal. me sentia uma minhoca deprimida.
E, com ela, as intrigas políticas.
A aristocracia, enriquecida com as 3 mil
toneladas de ouro brasileiro que entraram na
primeira metade do século XVIII, havia aban-
i.rr& donado a produção e o comércio, deixando as

~'""_ terras sem cultivo. O dinheiro que chegava das

~~.'
'1J!ili Importações
'\ ouro brasileiroda i~m
Inglaterra. NavIOS
diret~men_te para carregados de
o porto nas.
de
:liJZI~.·". colônias, principalmente do Br~sil, perdia-se

, 'I reino, incluindo terra e imóveis, era do clero, que


. ~. ., Londres. Para pIOrar a sItuaçao., a terça parte do
r 'I '-~j Mas o ouro começou a escassear. As colônias

/L:('~~l~~ "nada produzia


sofriam e só dava
invasões despesa.
de outros países. Navios eram
<~. "':"'1. roubados por piratas. Para manter o luxo, a Cor-
te aumentava impostos e se endividava com a
Inglaterra.
O terremoto acabou de arrasar essa econo-
mia decadente.
A Igreja, com tantas propriedades perdidas,
entrou em crise financeira profunda. Em crise
também ficou a nobreza.
,. ''' ..••V" ,U ••.•v "(A III tJ l I U
'U,re

o mais influente desses profetas da desgraça era um jesuíta chama-


do i\1alagrida, espécie de santo milagreiro, freqüentador das altas rodas
da Corte. Acabara de voltar do Brasil, onde havia peregrinado muitos
anoS pelo sertão, do PiauÍ à Bahia, pregando sermões dramáticos, em
que se açoitava em público. Lembro-me de ter lido um panfleto que ele
t:scre\'ê~Uchamado juízo da !'erdadeira calL,a do terremoto que padeceu a
Cor!t' de Li.,boa 110 primeiro de 1l0z.:embro de 1755, em que o jesuíta expli-
(Jva que o abalo da terra não se deu por causas naturais, mas, sim, pelo
cxce,so de pecados da nação, e deixava no ar uma intriga com endereço
certo: Pombal, "0 perpétuo inimigo que muito importava comhater".
Pombal o expulsou de Lisboa.
O rei D. José I obedecia aos seus decretos.
l\blagrida t()i mandado justamente para Setúbal, onde vivia Vicente.
Eu não estava gostando daquelas coincidências. Preocupava-me
com o destino dos gêmeos. Estavam próximos aos dois maiores focos
de intriga política: o duque de Aveiros e o padre Malagrida. E os dois
conspiradores não ficavam quietos.
Sempre que podia eu ia a Setúbal, secretamente, sem que o casal
que o criava, nem o próprio Vicente, soubesse. Queria conferir se o
menino manifestava algum traço de vampirismo. E, não sei bem por
que, ia também à quinta de Azeitão, ver como andava Antônio.
Ambos cresciam fortes e saudáveis.
Antônio se misturava entre os serviçais do duque de Aveiros, estri-
beiros, porteiros, esmoleiros, mordomos, pajens, mestres-salas, armeiros,
capitães de guarda, criados de quarto, camareiras, trinchantes de car-
nes... Era criado por uma cozinheira gorda, que o enchia de comida.
Vicente também não podia reclamar. As moedas de ouro de Cle-
mente, e depois as minhas, que eu passava ao casal nas madrugadas,
misteriosamente envolto em capas escuras, elevaram bastante o pa-
drão de vida da família de agricultores, que tratavam o menino adota-
do como um investimento a ser protegido com a própria vida.
JVlaseu via a quinta de Azeitão transformar-se num antro de cons-
piradores, com reuniões secretas contra o governo, irradiadoras de intri-
gas, delações e traições.
E Malagrida continuava a pregar contra Pombal, transformando
Setúbal numa trincheira da Companhia de Jesus, ponto de convergência
de fanáticos, com suas procissões diárias de beatos descalços, cordas no
pescoÇo e coroas de espinhos na cabeça. Já via a hora em que o exército
arrasaria a cidade.
• •

Mas 1756 chegou ao fim, sem que pudessem conter o avanço do O que aconteceu na manhã seguinte, segundo ouvi contar depois,
Iluminismo sobre Lisboa. Surgiram avenidas largas. O estilo neoclás_ foi uma estupidez sem tamanho.
sico foi substituindo o barroco. Jesuítas perdiam poder sobre as ins- O próprio duque de Aveiros apareceu no palácio para saber notícias
tituições de ensino. Reformas políticas e administrativas afastavam a da saúde do rei. Isso sem que o atentado tivesse sido divulgado.
Igreja do Estado. E a besta do duque, quando informado de que o rei estava "indis-
A nobreza tinha mais prestígio que força. Eram apenas quaw) posto", ainda brincou:
duques, dez marqueses e trinta condes. O clero, sim, era poderosü. _ O mal de que ele sofre dne-o a alguma donzela.
Influenciava diretamente o povo. E não queria as mudanças. Eram Por três meses ainda Pombal e o rei guardaram o atentado em
sebastianistas, conservadores. Afast3r a Igreja do Estado foi um golpe segredo, preparando o terreno, investigando. Os autores do atentado
mortal para eles. Trataram de indispor a população contra o governo já se julgavam a salvo.
e suas leis. De repente, o barril explodiu.
O ano de 1757 também terminou. Vivia-se sobre um barril de pól- Agentes da polícia avançaram sobre a quinta de Azeit:i.o e captu-
vora. Pendurado no telhado da quinta do duque de Aveiros, eu escu- raram o duque. Como era comum patrões jogarem nos empregados a
tava planos conspiratórios. culpa sobre seus delitos, os serviçais fugiram.
Na noite de 3 de setembro de 1758, pouco antes da meia-noite, o Descobri, tarde demais, que a cozinheira havia desaparecido com
rei voltava de carruagem para seu barracão palaciano. Vinha de um Antônio.
encontro com a amante, a esposa do filho do marquês de Távora, tam- Os Távor3s também foram presos.
bém marquês, ambos conspiradores assíduos à quinta do Azeitão. Os conspiradores tentaram transformar o caso numa questão de
Acompanhei o atentado de cima de uma árvore. honra, desfecho de um caso de adultério, crime passional, mas essa
Os dois primeiros tiros vararam as cortinas da carruagem, mas versão comprometia o rei e não foi aceita.
não acertaram D. José L Submeteram todos à tortura, com aparelhos confiscados da Inqui-
Pedro Teixeira, seu cocheiro, chicoteou os cavalos. Passou pelas siç:1o. O duque de Aveiros, poupado, mesmo assim confessou tudo.
formas sombrias de dois homens, encapuzados, cobertos por longas Bastaram alguns interrogatórios para que denunciasse um por um.
capas. Sobrou até para o velho jesuíta exilado em Setúbal, Malagrida. Por
Mais adiante, novos tiros. influenciar os Távoras com seus conselhos e participar das reuniões na
O braço e o ombro do rei foram atingidos. quinta de Azeitão, foi preso, juntamente com seus criados e alguns
D. José I caiu no chão da carruagem, banhado em sangue. Pe(ho seguidores mais fanáticos. Usaram-no para implicar a Companhia de
Teixeira, também ferido, conseguiu fugir. . Jesus no atentado.
Não voltaram ao barracão. Aquilo parecia mais vingança de ma- A lei não previa castigo específico para regicidas. Dizia apenas que
rido traído do que atentado político. O certo era abafar o fato, evitar deveria ser exemplar, e o mais cruel possível.
o escândalo; por isso, Pedro Teixeira conduziu a carruagem para a De 12 para 13 de janeiro de 1759, numa bela noite de eclipse lunar,
região da Junqueira, onde morava o médico pessoal de D. José r. Fi-. a multidão se aglomerou em Belém, à beira do Tejo.
zeram-lhe um curativo de emergência, e servidores discretos deram Caía uma chuva fina.
sumiço na carruagem crivada de balas. Trazida em uma pequena liteira, apareceu a matriarca, a marquesa
O rei retomou a seus aposentos e trancou-se, alegando indisposição. Leonor de Távora.
O sol ia nascer. O diabo de ser vampiro é ficar sem saber o que se A marquesa subiu os degraus do cadafalso. Ataram-lhe as mãos e
passa durante o dia. Somos como ascensoristas, ou motoristas de táxi, vendaram-lhe os olhos. Cortaram sua cabeça.
sofrendo com histórias interrompidas. Depois dela, seu caçula foi colocado sobre a "aspa", que era uma

.~.-
"t . -tE ~

-. fi-
~
armação de duas vigas grossas de madeira formando um x, onde amar- Depois um conde e mais três cúmplices. -.
ravam os braços e as pernas dos condenados. Um carrasco quebrou-lhe Quanto ao duque de Aveiros, o protetor de Antônio, untaram-no de
breu, colocaram-lhe um saco de enxofre no pescoço e o assaram vivo,
-.
todos os ossos com um pesado martelo de madeira. Primeiro as pernas,
depois os braços, por fim afundaram-lhe o peito, deixando-o morrer ~
lentamente, numa fogueira. Era um homem baixo, mas volumoso. Um
lentamente.
filete de gordura escorria entre as cinzas. O vento afastava as chamas, e ••
Em seguida, da mesma forma, na aspa, mataram o marquês jo- ele só acabou de morrer no final da tarde. ••
vem, cuja mulhe-r, a marquesinha, era amante do rei. Lembro que noites depois, encontrando por acaso um lobisomem '-
Fazia parte da sentença que o velho marquês de Távora assistisse
à morte dos parentes. Assim foi feito, e esmigalharam-lhe os ossos.
numa estrada de barro perto de minha quinta, comentamos como o ser
humano ~ 1110nstruoso.
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No mesmo janeiro de 1759, prenderam l'vfalagrida. Em setembro,
D. José I assinou um decreto expulsando a Companhia de Jesus do ter-
ritório português e confiscando todos os seus bens.
Mesmo destino tiveram os jesuítas expulsos das colônias. Principalmen-
te os do Brasil, os que mais incomodavam a administração portuguesa.
Malagrida ficou mofando na prisão da Junqueira, onde fez jejuns
e penitências, e escreveu cois livros, ambos ditados diretamente por Je-
sus Cristo. Deus em pessoa o designara embaixador do Céu na Terra e
11era-Ihe a missão de prc,reger a Companhia de Jesus, que seria a fun-
°
dadora de novos inlpérios. Ele conversa\a sobre assunto diretamente
com Santo Inácio, São Felipe e São Francisco.
Não era preciso ser iluminista para concluir que ele estava comple-
tamente maluco.
Foi iulgado e condenado pelo tribunal do Santo Ofício, que na épo-
(;1 era presidido por ;\uno de Melo, por "coincidência" irmão de Pom-
bal, e queimado na fogueira em setembro de 176l.
Eu seguia minha vida de vampiro culto, estudando muito, princi-
palmente os novos filósofos iluministas e os grandes avanços da física
propostos pelo inglês Isaac Nevvton. Ia à Ópera e ao teatro.
Quando Vicente completou 13 anos, decidi levá-Ia para Lisboa. Ins-
talei a família de agricultores num sobrado do Bairro Alto, perto do
meu antigo local de pouso na cidade.
Queria que ele estudasse Artes. O menino havia adquirido uma
habilidade espantosa. A partir dos 7 anos, passava horas desenhando
animais e pássaros com um graveto no barro mole, ou nos muros,
com pedaços de carvão. Também reproduzia catedrais destruídas
pelo terremoto.
Matriculei-o, por intermédio dos pais adotivos, no Colégio dos No-
bres. Fundado em 1761, para os filhos da nobreza terem uma formação
mais moderna, tinha um ensino afastado do modelo jesuítico. Embora
sem poder provar uma ascendência aristocrática, um saco de moedas de
ouro convenceu o reitor a aceitar Vicente.
Nessa época, Pombal gozava de um poder quase ilimitado, e houve
um período de paz. A não ser por uma guerra desastrada contra a Es-
panha, em 1762, na região de Trás-as-Montes, e que teria fortes ligações
com o destino dos gêmeos.
Aos 16 anos, Vicente era um rapaz magro e desengonçado, com a vas-
ta cabeleira preta do pai e os olhos mouriscos da mãe, mas extremamente
bonito - onde passava as mulheres o espiavam por trás das gelosias.

~ IVOII JOI

Nunca mais bebera sangue. Era uma alma sensível, um artista. Com Dugood, produziu uma grande planta da cidade de Roma
Gostava de desenhar, e dos animais. Ficara famoso em Setúbal por re- para doar à Real Biblioteca, cujo acervo começava a ser recomposto, de-
colher e tratar centenas de cães vadios, que naquela época infestavam pois da grande destruição provocada pelo terremoto. Doaram também
Portugal. um álbum aquarela do com retratos de nobres.
Paralelamente ao Colégio dos Nobres, começou a estudar desenho A única coisa estranha em Vicente era sua fixação pelos peixes.
e pintura com um mestre inglês chamado Guilherme Dugood. que Aos domingos, de ia às barracas de peixes, que voltavam a se reunir na
também era ourives e trabalhava para a Corte. Foi lá que aprendeu Ribeira, para comprar vários, um de cada espécie, e os reproduzia a Lápis.
:lS técnicas da gra\"ura e da :lquarela. interessando-se muito por esta em seu quarto de estudante. freneticamente, antes que se estrag~lssem.
últim:l. Yicente iria se tornar um mestre em aquarela. Eu tinha certeza de que ele não sabia nada sobre o seu passado.
Foi no ateliê de Dugood. ajudando no trabalho de ourivesaria, quc A mania dos peixes mostrou-se inofensiva. Concluí que SU<lfixação
pela primeira vez te\"e nas mãos o ouro brasileiro. Ficou tão f3scinadu decorria da tatuagem que carregava impressa na nádega e de seu inte-
que julgou SC"f o Brasil um paraíso. resse pelos anim<lis.
Dugood produzia estampas de Lisboa a pedido de Pombal, que Porém, como sempre dizia Clemente: "Tantas vezes o cântaro vai à
encomendava imagens que reproduzissem a reconstrução da cidaJe, fonte que acaba quebrando".
como uma forma de propaganda de sua administração. Aos 18 anos, Em 1775, ali mesmo, próximo ao Terreiro do Paço, Vicente conhe-
Vicente passava os dias diante de palácios. praças, ruas, ou nos pátios do ceu uma prostituta que o levou para um quarto na rua Suja.
Castc'lo de São Jorge, recriando em aquarelas a luminosidade de Lisboa Quando ela viu a tatuagem do peixe, contou a Vicente que ele tinha
e as águas cor de estanho do Tejo ao crepúsculo. um irmão!

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_ Com certeza são filhos de peixeiros - ela afirmou.


_ E como se chama meu ... irmão?
- Antônio.
_ O que ele faz? Onde mora?
_ É um militar. Um soldado. Vive na fortaleza de Bragança. Ain-
da deve estar lá.
Isso não saiu mais da cabeça de Vicente.
Ficou obcecado pela idéia de encontrar o irmão.
Duas semanas depois ele largou tudo, encheu uma valise com rou-
pas, papéis e um estojo de aquarelas, e partiu rumo a Trás-os-Montes.
Tive maus presse:l1l:imentos. Atravessar as províncias do interior
de: Portugal naqueles te:mpos era um aro muito temerário. Havia tan-
td miséria no campo, um ul abandono. as estradas viviam tão infesta-
das de bandidos, que os viajantes precisavam fazer te:stamentos antes
de partir.
Vicente despediu-se dos pais adotivos, comovido, muito grato, mas
afirmou que nada nem ninguém no mundo poderia impedi-lo de en-
contrar o irmão gêmeo e resgatar seu passado. Talvez Antônio soubesse
quem eram seus pais, mortoS no terremoto de 1755.
O casal, sem saber se o que havia combinado há tantoS anos com
o homem misterioso que lhe trouxera o bebê era afinal verdade, pre-
feriu calar-se.
Vicente partiu numa manhã fria de novembro de 1775.
Tinha 20 anos de idade.
Eu o segui, escondido.
Ele nunca me vira. Não sabia da minha existência.
Eu passava os dias dentro de alguma tumba vazia, nos mal cui-
dados cemitérios provincianos, e às noites, depois de chupar o sangue
de uma cabra, ou espremer um franguinho sem cabeça numa caneca,
deitava-me nos telhados das estalagens onde ele se abrigava, velando
por sua vida.
Não tinha dificuldade em encontrá-lo. Era só seguir uma espécie
de fluido emocional que ele desprendia e eu podia captar.
De Lisboa à cidade do Porto não houve nenhum incidente. Havia
um serviço de carruagens regular, e a estrada não era de todo ruim.
A nova administração pombalina iniciara até a colocação de gLlIlt1cs
colunas à beira da estrada, para marcar as 1égll:ls.Nu ;ill(,.I(' (;i<h 111.11

co desses, havia um relógio de sol. () pruhl(·111.1 (' (111<' ,I', \1'/(', ,I I, )',11.1
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terminava à sombra. Deu-se então um grande debate: havia os parti- casaco preso à cintura, calças atadas com fita, camisa bordada e pu-
dários de se errar a medição, deixando algumas léguas maiores do que nhos rendados.
as outras, e os que achavam mais correto ficar o relógio de sol sem sol. Quando a noite chegava, eu saía do buraco na terra onde havia
Não chegaram a nenhuma conclusão, esqueceram a idéia dos marcos e me enfiado, louco de preocupação, e o procurava em alguma casa pelo
abandonaram a reforma da estrada. caminho.
N a cidade do Porto, aproveitei para encontrar Clemente e avisá-Io Até aquela noite terrível. Véspera do Natal de 1775.
do projeto do garoto e da minha apreensão. Era madrugada, e eu não o encontrava em parte alguma.
- Fico orgulhoso do meu "neto" - ele disse. - Você está se tor- Há dois dias começáramos a subir a Serra do Nogueira. Não ha-
nando uma velha vampira rabujenta, com medo de tudo. via estalagens nem casas, a neve cobria as escarpas, a estrada sinuosa
- i\tas é uma viagem tão arriscada ... e estreita parecia um caminho de cabras, e os uivos dos lobos famintos
- Vicente é valente, e o valente está entre o covarde e o imprudente. ecoavam nas grutas e nos paredôes.
Da cidade do Porto Vicente subiu o rio D'Ouro numa barca de Eu corria montanha acima, desesperado, sem conseguir captar ne-
transporte de vinho, até a vila de Peso da Régua. Para segui-Ia, tive de ;.
nhum sinal de Vicente.
me esconder dentro de um barril durante o dia, e à noite me alimentar Ele não podia ter se afastado da trilha. Não havia nada em volta. Teria
de sangue de ratazanas no porão. l
~
de ter dormido em alguma gruta daquelas, como nas duas noites anterio-
Até aí tudo transcorrera tranqüilamente, sem nenhum perigo. De res. Fora muito fácil achá-Ia então, e velar por ele, espantando os lobos.
1
Peso da Régua a Mirandela ele ainda pôde contar com serviços de car- ,~ Só me restou voltar um bom trecho e percorrer novamente a trilha,

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5
ruagens. Daí em diante, porém, avançando cada vez mais para o norte, vasculhar todas as grutas do caminho, com uma rapidez a que só os
em direção à Espanha, só lhe restou ir a pé, por estradas desertas.
A nobreza abandonara os campos, indo para as cidades atrás do
it vampiros desesperados podem chegar.
Afinal o encontrei.
luxo fácil que o ouro do Brasil podia comprar. Deixara a terra entregue '1. No fundo de uma reentrância, tão pequena que tive de puxá-Ia pe-
a agregados e parentes, que viviam de cevar porcos e criar galinhas da las pernas.
Índia, comer trem aços, pinhões, broas de milho e pastéis de tutano, e a O lado esquerdo de seu ventre havia sido aberto por um golpe de
abanar as moscas com rabos de raposa. faca. Um pedaço de intestino saía para fora.
Eram raras as estalagens. Vicente via-se obrigado a dormir em se- Estava na fronteira entre a vida e a morte, mas sua alma ainda lutava
des de fazendas decadentes, com criadas velhas cozinhando em panelas para ficar com o corpo. Uma poça de sangue formou-se sobre a pedra.
de barro, onde a gordura fazia crostas castanhas; senhoras frisando 9 Esfreguei dois galhos secos com tanta energia que eles pegaram fogo
cabelo com garfos quentes, bebendo em canecas de prata enegrecida, e em minhas mãos. Fiz uma fogueira para esquentá-Ia. E chorei.
papagaios catando piolhos sob as asas. Meu rosto ficou coberto de lágrimas de sangue.
Ele passava as noites frias de dezembro ao pé de alguma larei- A vida de Vicente se esvaía diante de mim.
ra, bebendo vinho barato, jogando o faraó, o pacau ou o chincalhão Eu teria dado minha eternidade idiota por ele, para que vivesse sua
com algum grupo de homens miseráveis e embrutecidos, enquanto curta vida mortal.
eu ,pena va sob a neve do lado de fora, sentado entre os galhos de uma Salteadores de estrada, como eu pensei. Haviam roubado sua valise
árvore, ou com o corpo esticado sobre o chão de tábuas de um sótão, e o deixado para morrer numa fresta de rocha. Os lobos sentiriam o
quando os havia. cheiro do sangue e o devorariam. Não sobrariam rastros do crime.
Eu continuava apreensivo. O rapaz chamava muita atenção com Sentei-me a seu lado. Só me restava ver sua morte. Confortá-Ia no
seu ar cosmopolita, o jeito de estudante aristocrático, as maneiras re- momento final. Aconteceu, porém, uma coisa inacreditável.
finadas, as roupas caras. Cruzava as estradas usando chapéu redondo, Num movimento muito lento, sem que eu tivesse feito nada, o pe-
daço de intestino, com contrações nervosas, foi voltando para dentro do
ventre e acabou se acomodando lá.
Sempre muito devagar, a pele aberta à faca, um grande rasgo de
mais de um palmo, começou a se fechar, como um zíper. Uma ou duas
horas depois o ferimento havia desaparecido.
Vicente abriu os olhos. Suas pupilas estavam completamente negras.
A pele de seu rosto ... mais branca do que a neve em volta.
Ele sorriu. Eu também.
Seus dois caninos superiores deYÍam medir agora uns sete centímetros.
Eu sabia o que faur.
Em pouco tempo voltei com uma raposa sonolenta e cortei seu pes-
coço. \'icente bebeu o sangue com avidez.
raiva. Alguns fatos de sua vida deviam estar fazendo sentido. Tudo era mui-
to assustador para ele, mas pelo menos estava conhecendo seu passado.
Cada um de nós aceita o fato de virar vampiro de um jeito. Vicente
fingiu que se conformava com aquele destino. Rápido demais.
Por fim fizemos um silêncio pesado. Encostei-me também a uma pe-
dra e ficamos olhando para a lua. em lobo uivou ao longe.
_ O que você pensa em fazer daqui para a frente? - acabei pergun-
tando, afinal ele estava entrando numa noYa existência.
_ Seguir viagem. Chegar logo a Bragança. Encontrar Antônio.

_ É como você diz - lembrei à psicanalista. - Era seu maior de-


sejo quando virou vampiro ... encontrar o irmão, saber sobre sua família,
seus pais biológicos ... e continuou com esse desejo todo o tempo, mesmo
depois de vampiro, quando geralmente não damos mais importância ao
nosso passado mortal.

Eu simplesmente o segui. Sentia-me muito bem por tudo ter-se escla-


recido e Vicente estar a meu lado, morto-vivo e bem disposto, apesar de
muito confuso.
Tive de convencê-Io de seus novos poderes. Passávamos os dias es-
condidos no fundo das cavernas. À noite, escalávamos as montanhas e
corríamos pelas estradas, mais rápido que lobos. Em pouco tempo che-
gamos a Bragança.
Era uma das muitas vilas portuguesas abandonadas à própria sorte,
com a única diferença de abrigar uma fortaleza incrustada em seus arre-
dores escarpados.
Na guerra de 1762, contra os espanhóis, ela vivera dias agitados.
O rei da França, Luís XV, após várias derrotas na luta contra os ingle-
ses, na disputa para saber quem era a primeira potência comercial do mun-
do, aliou-se à Espanha e exigiu que Portugal rompesse com a Inglaterra.
D. José I era cunhado do rei Carlos m, da Espanha. Tinha de aderir
a um tratado chamado Pacto de Família. Mas Portugal dependia da In-
glaterra para tudo. Não podia romper com ela. Não rompeu. Pressionada
pela França, a Espanha invadiu Portugal em março de 1762,num conflito
que ficou conhecido como Guerra Fantástica. O exército português era uma
piada. Os soldados eram recrutados à força entre os criados das grandes
casas da província, pelos comandantes das tropas, que arrebanhavam qual-
quer homem entre 15 e 60 anos que não pudesse pagar para escapar desse
destino trágico.
.- --.
.4. rivê,:jjê.Je éntre
ingiater:a ~ França era
o coitado recebia apenas um par de botas, calção, um A defesa do território começou a ser feita pelos próprios camponeses,
an,i a, e nc século sabre ou um mosquete, o qual na maioria das vezes termi- armados de foices, paus e alguns bacamartes velhos usados na caça às ra-
XVi a~,ngi;Jc:: P.err,Js nava vendendo. Davam-lhe uma sopa e dois pães por dia. posas, irritados com as ir.vasões de propriedades, as lavouras pisoteadas e
iber :C':; e as :"eiacô-::s
dip!oiTlat!CâS en:re eles,
Esquadrões de soldados maltrapilhos e esfomeados o confisco de galinhas, porcos, cabras e vinho.
J.3abaladas. O Pacto de mendigavam pelas vilas e estradas. As tropas espanholas, que não eram muito melhores que as lusitanas,
Fa;-:-:~::j, ,~e 1761, 'Jr'i:U
Os ohciais não levavam uma vida muito mdhor, rece- recuaram.
(,;5 ~: ..:rbon r'::i~-12;-il;':S
na r:'2r';~a e na ts::::=;nr-,2. ber:.do soldos com atraso de mais de ano, só se linando d,l Para Pombal, a maior dor de cabep não era a guerra, mas a despesa
L.r~-25jess~, ou~rCJs miséna por um casamento rico. com a alimentação, e por decreto fez cortêS na quantidade de comida ofe-
oo:s ;.:..a:.::t05 r;a'~'iar~-I:::do
ass:~-,::<;OS - E:''T: 'i:.?3 A Guerra Fantástica pôs em ação esse exército de comé- recida ZlS tropas. Isso pro\'ocou deserções em massa.
::: 1743. () pacte· .-:1e dia pastelão. Uma autoridade inglesa chegou a reclamar que Espanha e Portugal
17E:t era U~ ~ra:dC:O de
DfOE·;:àa íT:IJ~lJae:-,::e Os primeiros destacamentos espanhóis avançaram n.1o esta\'am faz'.:ndo uma guerra a sério, segundo os princípios milita-
',)s :="ç,rses '2 [:'1"0::"_';'0'. a sobre a vila de lvliranda. A tropa portuguesa ali aquar- res lxisicos.
en',,':JIJer os '=::':P2r-!hj;::;
na GI_:-?~:'a 0:'5 S'?~e
telada explodiu o próprio paiol de pólvora, arruinando a Um ano depois, um tratado de paz entre Inglaterra e França fez ;}
~r,cs (:;je c,s rrar;C2SE:S fortaleza e capitulando sem resistência. Espanha recuar para seu território, e a guerra simplesmente acabou,
tra\'a'/2m contra Ci5
Os espanhóis logo ocuparam Bragança, Chaves e Torre tão absurda que, quando contaram os mortos, descobriram apenas
ingleses,
de !\loncorvo, s~mpre espantados com a facilidade com que dois: um pedreiro e um cavalariça, que não tinham nada a ver com
A Guerra Far:tast,ca os portugueses se rendiam. a história.
íicou aósim con:Jec,da
por tE: envol'", ido mais
mov:r::e:"ttações táticas
que batalnas dire~as, -_ ...__ .-

;-
.....

Fatores como a condição


geogrihca desíavoravel
nos lO:ê4is de invâ5ão e a ----~--
fa:ta se objetivos claros
levaram a 1550,

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J.I'
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I
I
Quando chegamos à fortaleza de Bragança, numa noite extremamen-
te fria de começo de janeiro de 1776, treze anos após o fim da guerra,
tivemos uma visão da pobre vida que Antônio levara .
•-\s cabras dormiam dentro dos alojamentos. Os soldados jogavam e
bebiam pelos cantos, o mato crescia por todos os lados, abelhas tàziam
colméias nas bocas dos canhôes. muros se estàrelavam e a ferrugem cor-
roÍa as baionetas e os mosquetes .
.-\ tropa viYia de pequenos expedientes na \ila. como colar editais nas
paredes, :liucLu a rezar as ladainhas ou patrulhar estradas. Ou partia para
u ruubo, CUI110 salteadores comuns.
:'\ão tivemos ditlculdades em saber notícias de .-\ntônio.
A cozinheira do duque de Aveiros tinha parentes em Bragança e, apa-
vorada com a prisão e a condenação do patrão à tc)gueira, fugira com An-
tônio para Tds-os-1\lontes. Ali vivera na pobreza até sua morte, quando o
garoto, abandonado, sem mais opçôes, entrara para o exército.
Antônio estivera aquartelado ali desde os 13 anos.
Tornara-se um soldado arruaceiro e violento. Havia um ano matara
dois homens, por causa de mulheres e jogo, e, para não ser pego, fugira
com um contratador de mão-de-obra, que o levara para o Brasil, para o
trabalho em plantações de tabaco, em Pernambuco.
-o r _ .._, ~_~ ~ . _
-~

e
• lvan Jaf
A Insonla ao V~IfIIJ'llI "1ft;•
••
••
fi
luminoso, com um sol intenso. Ele era um pintor, deslumbrado pela cor.
Achava que aqui devia ser o paraíso. Agora tinha um motivo. O irmão.
desrespeitar OS tratados assinados com a Inglaterra. Para
piorar a situ3ção, a rainha D. Maria I enlouqueceu com-
Em 1804, Napoieão
Bonaparte tornou-se
'imperador da França,
fi
.\las eu o convenci a adiar um pouco a viagem. Ele precisava aprender pletamente. Passava os dias deitada, gritando "Ai, Jesus!
Para enfraGu"cer fi
sua princlpai rival, a
primeiro a ser vampiro. l\'"ão podia entrar num navio assim, como esta- Ai, Jesus", vendo o demônio em tudo. Tiveram de passar 1~,(]laterrj, ele d"cretcu, tj
va, e ficar quarenta dias preso numa embarcação, entre humanos mor- o poder ao seu iilho, que viria a ser o nosso D. João VI. ern 1806, o Bloqueio
t!
tais. Seria descoberto. Custou-me, mas voltou comigo a Lisboa. Resultado: el11 1808 a Corte portuguesa rambtm fugiu
ConTlflen"!a!, Dr'~)'bincjo
C)5 pa:ses europeus de ti
- Você quis ganhar tempo ... Pretendia convencê-Io a não ir.
-É.
para o Brasil.
_ \'ocê veio para o Brasil por problemas políticos ...
fazer comércio (om
'Ji(]!eses. Fortu(j31,
~;é1CF=I()na! al!acJo 03
;I
- E então· _ "t:. Sentimentais também. Sempre gostei daqui. Inglaterra, não d·::dlOU
o ij:oqueic. r'J(~p'~'piedo,
- Não consegui. Ele ficou uns dois meses na minha quinta. Ensinei Sabia que viréi vampiro em 15062 O Dr:!sil tinha sido e:-I~áo, invacJi~Jo (!3ís
o básico. Ele aprendeu rápido. Cma noite eu acordei, e Vicente simples- descuberto pelos portugueses h:1\'ia seis anos. O que Por- p-Jr terra, em 1208.
de SlJd c:,e;1é'tda,
mente tinha ido embora. Foi para o Brasil. Pronto. Foi isso. esta terra? Chupou seu sangue. É como se
tugal fez C(;111 ;.\n~,ê3
:-10e:ltarito, a corte
Fiquei calado. .;>j
o Brasil fosse meu innão, entende? Começamos juntos portuguesa cc)nsegulu
'1

Havi,l aqueles silêncios durante as sessões, e eram como se a analista nossa mone-\'ida. fugir para ~ Brasil.

estivesse abrindo a minha cabeça para procurar alguma coisa lá dentro. ;\lais um grande silêncio.
- O que você fez? ~ ela perguntou. Eu tremia de medo. Não tinha mais o que dizer. Mi-
- O que eu podia fazer? Vampiros são solitários. Eu me confor- nha voz não saía. Percebi como havia dado voltas, como
mei. Continuei vivendo a minha morte. havia esmiuçado o passado, a política, a história, como saí-
- Triste? ra do assuntO, numa espiral, girando, mas passando sem-
Quando eu ficava em silêncio, ela podia ver dentro da minha cabe- '~i pre pelo mesmo lugar, cada vez mais perto do centro da
(

I ça. Com certeza. Fiquei apavorado. Falei qualquer coisa. questão ... E ela ali, olhando dentro da minha cabeça.
! - Lisboa estava convulsionada, porque o rei D. José I passava
i O silêncio. Dessa vez ela o deixou prolongar até tor-

i
\ muito mal, paralisado desde 1774. Pombal dependia do apoio dele. A nar-se completamente insuportável. Duas gotas de sangue
rainha, D. I\1aria, filha do rei e herdeira natural do trono, sem pre ti- escorreram de meus olhos.
\',1· nha sido contra Pombal. Ela apoiava os jesuítas, queria a volta deles ao Eu não conseguia dizer uma palavra. Ela olhava den-
11

poder. Começou a encabeçar o movimento dos descontentes ... os jesuí- ~ tro de meu cérebro e sorria. Eu implorava para que ela que-
tas, os comerciantes que haviam caído em desgraça, a nobreza afastada: :,1
brasse o silêncio, mas ela o deixou ir até o limite, até falar:
:1

! Quando o rei afinal morreu, em fevereiro de 1777, Pombal caiu definiti- _ Você sabe qual é a característica mais importante
da psicanálise? O que faz o processo analítico ser um "tra-

l
vamente ... Foi demitido em seguida. Todos ficaram contra ele. A Igreja ~
voltou com toda a força. Nobres presos foram libertos. Degredados re- talnento"?
tomaram. Eu não queria assistir à volta do obscurantismo, à vitória da _ Não ... - gaguejei, apavorado com o tom de sua
Igreja. Resolvi abandonar tudo. Vendi minha quinta e saí de Lisboa. J
I voz.
,:~
- Veio para o Brasil. _ Aqui, nesta sala, comigo, é o único lugar e momen-
- É. E foi uma decisão muito acertada. Pouco tempo depois a :;
:~
to para você em que a mentira não vale a pena.
França declarou o Bloqueio Continental, contra o bloqueio marítimo ~ _ Não estou entendendo.
determinado pela Inglaterra e proibindo os países europeus de esta- _ A mentira sempre é útil. Se não fosse, a gente fala-
belecerem comércio com os ingleses. Portugal ficou no meio da briga. ria a verdade, que é mais simples, não precisaria inventar

1.1
Não tinha como enfrentar as tropas francesas de Napoleão nem podia I nada. Mas aqui, meu amigo, entre nós dois, a mentira é
.tlil
P,"r?..
• 1 van Jaf
-.
Como suportar minhas noites infinitas ...
um mau negócio. Você está me pagando. :Vlentir aqui é jogar dinheiro fora. Sem _ Raimundo Pascoal quis ser pai, formar uma família. Com tantos
falar na perda de tempo.
séculos de vida, você deve ter conhecido milhares de vampiros, mas foi
Fiquei muito assustado.
escolher logo ele. Você e Raimundo Pascoal perseguiram a mesma coisa.
A entonação de sua voz lembrava a de Rosa Loba. Ela me encostou na pa-
Uma família. Um pai. Uma mãe. Filhos. Família ~ a sensação de uma
rede e tive de reagir. Infantilmente.
vida completa. Olhe para mim.
- Eu não estou mentindo.
Ela tirou um lápis de dentro de: um estojo de madeira. Segurou-o
Eb deixou minha frase cair, desamparaeb. num abismo de silêncio infinito.
com as duas mãos e o quebrou. De:puis, pegou seis ou sete.'. juntou-os.
Quando voltou a [dar, tinha uma voz novamente suave, maternal:
I'ão conseguiu quebrá-los. Sorrimos. Eu havia entendido.
_ Vicente não era um vampiro. Pode ter sido contaminado naquela noi-
_ A eternid~1de nos !1,assacra - ela continuou. - Tudo muda.
te: por Raimundo Pascoal, a ponto de vir a chorar sangue e a querer bebê-lu,
:v1enos nós. Os vampiros têm de ;lcompanhar o tempo. É esse o perigo.
mas isso não foi suficiente para transformá-lo. \'icente continuou crescendo.
Um dia o vampiro acorda e descobre que quer desistir. :\'ão suporta
tornou-se um rapaz!
mais suas noites infinitas. :-'1a5 não desiste, porque tem alguém que pre-
Eu parara de lutar por dentro. As lágrimas de sangue escorriam à von-
cisa dele. Fez uma "Llmília". Um lápis sozinho quebra fácil...
tade. !\1eu corpo estava duro como pedra, dentro do caixão. Ela vertia suas
p3lavras dentro da minha cabeça aberta, com suavidade, como um bule enche
uma xícara de chá ...
_ ~aquela noite, nas montanhas de Trás-os-Montes, ao descobrir Vicen-
te com a barriga aberta, à beira da morte, você o mordeu. Você o mordeu e
depois deu a ele o seu sangue.
- Ele ia morrer. ..
- Foi você que o transformou em vampiro!
--- Ele ia morrer 1
- Kinguém soube. ~inguém sabe! Nem o
11I1I1)rioVicente!
I·Je estava inconsciente! Estava quase
1111IrllI'
1'1.1IIW.i,," 11111
pouco mais de silêncio, para
\' I 11111ill.l"1,;i1;I\'ras caírem no vazio.
1,'11,11111"\'.\\OU a falar, eu me sentia muito
I, \, I 1," ·,'grl'do de dois séculos e meio não
111' 1"',,1\;1 mais na consciênCia.
I LI ('l1lbalava minha mente, como a um
\" \"

Quando eu pedi para você contar o pas-


'"I' I" (I, ,s outros vampiros, e não o seu, queria I!
I

. 1"' Illvestigasse como os outros lidaram com o


1,11",\,' ser vampiro. Que obsessões desenvolve-
1,1111.( :O\TIO suportaram suas noites infinitas.
":"W"

Continuei sorrindo.
- Você \'eio para o Brasil atrás de \Ticente.

o silêncio já não me incomoda\'a mais.


(.-\lguma coisa me dizia que eu dormiria bem naguek dia.1
-- Est~~ na hOLl de che;ar :w }3Llsil - ela soniu. - Seu pasSac1(l
em Pürtugal i<1 acabou h:1 muito tempCI .. -\h;1S. nosso hor:írio tambtm.
Até quinta-feira.

Eu falaria v.hre \ ·iCé!1te. Claro.

E sobre come,. V1ra sah'ar-Ihe -1\id-1. com rodo (I -1111"rque um ]xli


pr,de ter. condenei-u a uma dupla nuldiç~ll).
Como hOl11ém. a ser um \·ampiro.
Cumo pintor, a nunca mais \'er a luz cio sol.

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