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Rafael Sica
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q uand o eu era menor, ficava bast ante na casa dos meu s
avós, os pais do meu pai. Meu pai e minh a mãe
trab alha vam de noite, entã o minh a vó Nen a ou meu vô Joca
iam
s.
me busc ar na escola, e eu toma va banh o e jant ava na casa dele
Mui tas vezes meu s pais se atras avam , ou estav am muit o
cans ados, ou o trâns ito estav a horrível, ou as três coisas ao
s
mesm o tempo, e eu acab ava dorm indo lá, no quar to que ante
foi do meu pai e do meu tio.
Na casa dess es avós eu podi a faze r coisas que eu só podi a
ue
faze r lá. Min ha avó deix ava eu com er a sobr eme sa ante s porq
acre ditav a quan do eu dizia que depois ia com er a com ida.
No banh eiro tinh a banh eira e meu avô brin cava comigo de
bata lha- nava l e temp estad e de neve, e depois eu podi a ficar
mais dent ro da água até ficar enru gado . Lá eu podi a dese nhar
com tinta e pinc el todo dia. Eu podi a faze r tant a coisa!
Naq uela casa pare cia que o temp o pass ava mais deva gar.
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1& vó N ena estava sempre indo ou chegando, entrando ou
a saindo. Cozinhando ou lavando ou passando. Bordando
ou lendo ou falando com uma amiga ao telefone em pé e
andando pela casa, catando coisas e pondo ou tirando do
lugar. Ela parecia um brinquedo daqueles que só para
quando a corda acaba, e a corda dela durava o dia inteiro.
Quando a novela começava, ela já estava entre o mundo
daqui e O mundo dos sonhos e ia sonâmbula pro quarto.
Falava boa-noite enquanto escovava os dentes, de olhos
fechados. O último beijo tinha cheiro de hortelã.
P or isso tudo eu passava mais tempo com o meu avô. Ele trabalhava
em casa, então podia fazer coisas que o meu pai não podia. Ele gostava
de tomar café da manhã na padaria da esquina. Tomar lanche na padaria.
E tomar um cafezinho a qualquer hora na padaria. Ele preferia comprar um
jornal diferente todo dia, porque gostava de variar. Ele achava que ler
sempre o mesmo jornal era como conversar sempre com a mesma pessoa.
O vô Joca me ensinou uma pilha de jogos de baralho. Eu ensinei ele a
jogar videogames . Eu instalei pra ele a n1aioria dos programas no
computador e todos os aplicativos no celular, porque o filho dele, o meu pai,
perdia a paciência depois de dois minutos. Não sei por quê, mas parece que
neto tem mais paciência com avô, e avô, com neto.
Ele já tinha lido pra mim mil e uma histórias. E contado outras. E até
inventou uma em que eu era o herói. Um dia eu vou fazer um desenho
animado e meu avô vai ser o herói.
. .l es~a hi_stória eu sou o herói porque descubro um segredo
l ~ misterioso que depois eu desvendo, participo de uma
caça ao tesouro e ainda faço um agro dar risada. Mas não é
conto de fada não, eu sou o herói, mas o agro não é um monstro
peludo, feroz e fedido. O ogro é o meu bisavô Alexandre.
Geralmente a gente nasce com oito bisavós, né? São dois
pais, quatro avós, quatro bisavôs e quatro bisavós, né? Então,
pra ficar claro de qual bisavô eu estou falando: o ogro desta
história é o pai do pai do meu pai.
Esse bisavô era um resbufaclão. Foi avó Nena que inventou
esse apelido, ela achou que o sogro dela resmungava, bufava e
reclamava demais. Tem gente que acha que reclamar e
resmungar é a mesma coisa. Mas eu não acho, porque tenho
uma tia que reclama muito todo dia de quase tudo e cada vez
que ela faz uma reclamação, o marido, meu tio, resmunga
coisas assim: "Por que essa mulher reclama tanto?", "O que eu
fiz pra merecer isso?", "Será que isso nunca vai acabar?".
Esse apelido começou maior: Resmumbufaclamão. Depois de
um tempo acabou virando Resbufaclão, que era um apelido
secreto, tá? E o único que ele teve. Ninguém nunca teve coragem
de chamar o bisavô Alexandre de Alex, Xandre, Alê. Nem os pais
dele pensaram em fazer isso, ele já era enfezado desde pequeno.
Me disseram que enfezado vem de fezes, que é como os
médicos chamam o cocô, porque quem vai pouco ao banheiro
fica ... enfezado, com bastante fezes dentro, e isso faz a pessoa
ficar irritada. Mas eu não sei se o intestino do meu bisavô
funciona bem ou não ...
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A ma ior ia da s pe sso as ch am av a ess e me
Go nz ag a. El e es tav a se mp re de ca ra
faz ia o qu e se mp re faz ia do jei to qu e
u bisavô de se u
am arr ad a e só
sem pre faz ia no
ho rár io qu e sem pre faz ia no me sm o
lug ar e com as me sm as
pe sso as ou en tão ele com ele me sm o.
Se nã o po dia se r do
jei to dele, o se u Go nz ag a cru za va os
bra ço s, en du rec ia o
qu eix o e olh av a pr a um lug ar on de nã
o tin ha nin gu ém, isso
qu an do nã o dava as co sta s pro s ou tro
s ou se afa sta va .
Nã o, ele tin ha ou tro ap eli do sim , tam
bé m sec ret o, só
me u. Le mb ra? Eu já até ch am ei me u
bisavô de ogro. Depois
ele ga nh ou ou tro , ma s ess e eu vo u co
nta r ma is pro fim da
his tór ia, tá?
Me dis se ram que ele era as sim ma l-h
um ora do po rqu e
tin ha pre ssã o alt a e po r iss o tin ha do
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ac eit ar que ele er a da qu ele jei to e pro
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o qu e é pre ssã o alt a, ma s eu nã o lem
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pe sso a se r pre ssi on ad a a faz er coisa s
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a pesso a vê coisas qu e ela nã o go sta
e fica im pre ssi on ad a .. .
se be m qu e aí se ria im pre ssão alt a, ma
s é me lho r eu de ixa r
iss o pr a lá e co nti nu ar a his tór ia.
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bisavô Alex andre .se apos ento~ , a bisav ó Flori nda
O morr eu e aí ele foi ficando mais calad o do que já era
e mais sério e mais enfia do dentr o da casa dele. E O fusca
ficou parad o anos e anos na gara gem, até a filha mais velha
dele, a tia-avó Cele ste, come çar a usar.
Af ele come çou a esqu ecer quas e tudo ou tudo mesmo:
palav ras, nomes, ativi dade s. Ele esqu ecia como cham ava 0
cachorro. Esqu ecia de dar comida pro cacho rro. Esqu ecia de
fecha r a torne ira da pia. E sque cia de almo çar. Esqu ecia de
dorm ir.
Depois ele começou a esqu ecer o próp rio nome e um dia
ele saiu de casa pra co1n prar algu ma coisa que ele não sabia
mais o que era en1 uma loj a que ele não lemb r ava mais qual
era e quan do tento u volta r não tinha ideia de onde morava.
Entã o meu bisavô não podi a mais ficar sozin ho. Como
quan do a gente é bem pequ eno. Por que qual quer luga r do
n1undo pass a a ser u n1 luga r perig oso.
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m dia eu dor mi na cas a da vó Ne na e do vô Joc a e
U qua ndo aco rde i fui pro qua rto da bag unç a pra pegar
um dos brin que dos ant igo s do me u pai . Ele não par tici pa
muito des ta his tór ia, ma s eu pos so con tar que ele foi um
me nin o que não dei xav a tud o jog ado e não que bra va os
brinquedos dele. Est á tud o até hoje lá no qua rto da bagunça.
Eu que ria ser ass im. Um dia , que m sab e, eu vou ser mais
.
como o me u pai .
O nde eu estava? No quarto da bagunça, onde eu achei um cadernão
pesado com cheiro forte, com cara de álbum de fotos. Era!
Que álbum esquisito. Pra começar, na capa estava escrito
photograph ias. Que jeito louco de escrever! As fotos não tinham cor. Eu
pensei: "Será que desbotaram ?". Preso numa página tinha um envelope
cheio de tiras com fotos transparent es e bizarras, e tiras de fotos tão
pequenas que não dava pra ver nada direito. Eu pensei: "O que será que
são essas tiras?".
Minha avó tinha saído pra ir à missa, à ginástica chinesa, à feira e a
mais alguns lugares. Meu avô gosta de ficar lendo e escrevendo de noite, e
de manhã ele dorme. Não tinha ninguém pra responder às minhas
perguntas. Liguei pra minha mãe e pro meu pai, mas eles não atenderam.
Eu comecei a olhar as fotos do álbum e fui estranhando porque não
reconhecia aquelas pessoas. Aí eu virei uma página e fiquei parado de
boca aberta. Tentando entender o que estava vendo. Sem conseguir!
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que eu estava fazendo numa fotografia sem
cor, com uma r oupa esquisita, quase careca
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com um chumaço de cabelo em cima da testa,
segurando um gato que eu nunca vi?
Na foto do lado, tinha eu de novo, com meu pai do
1neu lado, com os olhos azuis, mas ele estava de
bigode e o cabelo dele, que é loiro, estava preto. Aí eu
fiquei mais parado e com a boca mais aberta ainda.
Que choque, caramba!
O eu naquela foto era o vô Jaca, e o meu pai era o
bisavô Alexandre! Foi assim que eu descobri que era
muito parecido com meu avô e que meu pai era muito
parecido com o avô dele. As outras páginas do álbum
tinham várias f otogTafias do meu bisavô, de todos os
t ipos: bonitas, engraçadas, estranhas. Umas três
t rist es. E uma muito especial.
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~ ão sei quanto tempo eu fiquei ali parado, só virando as páginas
l ~ e olhando foto por foto. Só sei que uma hora eu comecei a
sentir cheiro de almoço e meu avô voltou da rua com o jornal e um
picolé pra cada um.
Eu comecei a fazer uma pilha de perguntas que ele só acabou
de responder depois que a gente acabou de lavar, enxugar e guardar
a louça.
A primeira coisa que meu avô explicou é que quando ele era
criança, pelo menos onde ele morava, ninguém usava bermuda
porque esse tipo de roupa não existia. Menina usava saia, calça e
shorts, menino usava calção, calça ou calça curta.
Do mesmo jeito que as crianças aprendiam a escrever com lápis
até saber fazer isso muito bem, pra só depois usar uma caneta, os
meninos só usavam calça curta até certa idade, pra depois usar calça
comprida. Era por isso que ele chamava calça de calça comprida!
Era uma das coisas que separava os meninos crianças dos homens
adultos. Isso foi difícil de eu entender porque meu pai só usa bermuda.
Pra ele vestir uma calça precisa estar um frio de rachar.
As calças nunca tinham elástico na cintura. Pra elas não caírem,
as pessoas tinham que usar cinto ou o que os meninos geralmente
usavam com a calça curta: suspensório.
Aí o vô Joca deu risada, porque se lembrou de uma expressão que
falavam quando ele era jovem: "pegar de calça curta", que é a mesma
coisa que pegar alguém de surpresa, desprevenido. Ele riu porque
nunca tinha ligado a expressão com aquele tipo de roupa infantil.
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