Você está na página 1de 7

Cinema Verbocêntrico e o Papel das Falas na Obra:

Entendendo a voz como elemento compositor da trilha sonora deve-se trazer


o conceito criado por Michel Chion em seu livro Audiovisão, no qual ele define que:
“no cinema, o som é majoritariamente vococêntrico, [...], favorece a voz, evidencia-a
e destaca-a dos outros sons. [...] O vococentrismo de que falamos é então, quase
sempre, um verbocentrismo”.
Percebe-se que as primeiras falas que são apresentadas são as dos Traags,
após uma longa cena de introdução onde aparecem Terr bebê e sua mãe, sem
falas, focada em sua fuga. Podemos pensar aqui em uma analogia sobre o poder da
fala nas relações que a espécie que domina o planeta tem com os outros seres
vivos, poder semelhante ao que os seres humanos possuem fora do universo
cinematográfico. O primeiro som humano que ouvimos é o som de Terr “filhote”
chorando após perder sua mãe, significando o começo da jornada do personagem e
da jornada humana na qual se foca a narrativa.
Pensando no papel das falas no filme consegue-se captar claramente 3 tipos
diferentes de fala, seja em seu conteúdo ou em sua forma de se relacionar com o
público, sendo eles:

- A Fala do Narrador
- A Fala dos Personagens Diegéticos
- A Fala do Aparato de Aprendizagem

O primeiro momento no qual a voz do Terr narrador se apresenta é o


momento no qual ele foi levado para a casa de Tiwa, depois da morte de sua mãe;
sua voz nos soa mais próxima e com maior intensidade do que as vozes dos
personagens diegéticos, possivelmente para diferenciarmos as falas do narrador
daquela dos personagens imersos na narrativa. Terr-Narrador estabelece nesse
momento sua ligação com o Mestre Singh, trazendo já aos 4 minutos de filme um
chamado à imaginação sobre quais seriam os outros encontros que teriam e como
se desenvolveria a história. Nesse momento é mostrado como será trabalhada a voz
do Terr-Narrador, uma voz calma, intensa, trazida em primeiro plano, mais próxima
do ouvinte. Essa voz se mantém inalterada por emoções ou fatos que descreve, se
mantendo como uma voz cujo objetivo é a tradição oral de passar conhecimentos de
outras gerações, assim como o aparato de aprendizagem o é para os Traags,
reforçada pelo tempo na qual o narrador se apresenta, como posto vindo depois dos
eventos retratados no filme.
As falas de personagens diegéticos devem ser separadas da fala do aparato
de aprendizagem, apesar de sua natureza também onscreen. Essa divisão se
baseia no fato de que os personagens expressam através da voz os sentimentos,
desejos e costumes das duas espécies; enquanto o aparato de aprendizagem traz
uma voz “científica”, robótica e conteudista. Deve-se ressaltar a diferença não
apenas na entonação e colocação das vozes, mas também no léxico utilizado,
sendo que o vocabulário das espécies tem a função de comunicação efetiva
enquanto o vocabulário do aparato tem como objetivo gravar as informações que
irão moldar a sociedade Traag, científica, histórica e culturalmente a partir desse
conteúdo em suas mentes. Podemos pensar também na relação de unilateralidade
do discurso do aparato tecnológico contra o diálogo comunicativo dos seres
racionais.
Traz-se à tona aqui também o contraste entre a fala no cinema
Holywoodiano, com a qual o ocidente estava acostumado devido seu aumento na
distribuição global durante o pós-guerra, e a fala no cinema francês, sobre o qual
Hannah Lewis discorre em seu livro “Voicing the Cinema”, como sendo uma
oposição à fala do movimento francês da década de 1930, conhecido como théâtre
filmé, que emergiu da concepção do filme sonoro como “teatro gravado” dando foco
a voz acima de outros elementos sonoros; Lewis afirma também que as tecnologias
de gravação de voz impunham limites de câmera e movimento, levantando uma
importante questão dentro do cinema na época: gravar um áudio da voz
preservando ao máximo sua inteligibilidade e manter a câmera estagnada; ou negar
o papel principal à fala enquanto as câmeras estão livres para movimentação e
experimentação? Dessa forma o cinema francês possui uma ramificação evolutiva
que é definida pelo mínimo de diálogos possíveis, incorporando a música de
maneira proeminente para silenciar a voz falada¹, como podemos notar no filme.
Percebemos que as falas de personagens diegéticos são apenas as falas
necessárias para o entendimento da narrativa e para a concretização das
mensagens que as pessoas envolvidas na produção da obra tinham em mente,
sendo os diálogos curtos e objetivos, diferentes da forma real como pessoas estão
acostumadas a se comunicar, que é cheia de falhas e raciocínios interligados que
movem a conversa; por falta dessas conexões as falas parecem menos naturais e
as resoluções dos conflitos soam objetivas, acelerando o passo do filme e
permitindo que ele trabalhe o tema do desenvolvimento humano, que vai de animal
primitivo à gerador de cultura e dominador de tecnologia, em pouco mais de uma
hora.

1. https://www.universitypressscholarship.com/view/10.5622/illinois/
9780252043000.001.0001/upso-9780252043000-chapter-003
Acessado em 26/10/2020

Análise de Cena:

1. Primeiro Aprendizado - Introdução ao Aparato de Aprendizagem

A cena se inicia com o uma cama sonora composta por cordas friccionadas fazendo
um segundo plano para uma flauta que realiza ciclos de transição entre as notas C, Db e
Ab, formando uma segunda menor ascendente composta pela passagem da sensível para a
tônica e logo depois uma quarta justa descendente, trazendo uma sensação de
estranhamento seguida por um distanciamento, que nos traz uma percepção de suspense e
mistério associada a apresentação dessa nova tecnologia e do ritual de aprendizado Traag.
Essa música para quando Terr acaba de explicar sobre o aprendizado e dá espaço para um
som que sai do aparato identificado como tiara da informação, de textura sirene, um som
com alterações sobre a nota e filtro muito rápido, objeto sonoro representativo da
sonoridade tecnofônica da obra. Quando ele é ativado, traz consigo o início do tema 2. O
aparato começa a explicar o planeta fantástico, satélite natural onde os Traags conduzem
suas meditações, passando logo depois para uma divisão geológica do planeta Ygam.
Podemos perceber, enquanto o aparato fala, a presença constante de termos
alheios à nossa realidade humana, em falas como: “blocos de fixação combatem a
rebatização pôntica”, unindo termos científicos e termos fantasiosos em uma frase
suficientemente coesa para uma interpretação abstrata de como eles experienciam o
mundo, empregando aqui esse objeto sensível que é uma intersecção entre a literatura de
ficção científica e o soft storytelling.

2. Terr avisa a outra tribo sobre a Desomização

A cena começa com os Oms dormindo, é possível ouvir seus roncos, porém Terr
está acordado e sai da grande árvore; temos uma cena curta, sem som específico
relacionado diretamente à ela, mostrando o ritual de acasalamento da árvore grande.
Enquanto Terr percorre o parque para chegar à tribo da árvore oca o som é
composto puramente por paisagem sonora, caracterizada principalmente por sons
biofônicos e antropofônicos(B5-A1).Entre os sons predominam texturas sirene
semelhantes ao ocorrido em 00:17:20 , porém em 46:41 há um som que se assemelha
levemente aos sons tecnofônicos do filme devido a aparente modulação rápida
sequenciada no pitch, o que pode representar o estágio avançado da tribo da árvore
oca em relação a tribo da grande árvore. Terr é atacado por um dos vigias da árvore
oca e conforme o levam inconsciente para a tribo começa o tema V, gerando tensão
que funciona para afligir o ouvinte e demonstrar o perigo da situação, já que a tribo da
árvore oca é descrita para Terr previamente pelo líder da grande árvore como uma
“tribo de ladrões” com a qual Terr deveria ter cuidado, vendo-os como inimigos. A anciã
da tribo da árvore oca pergunta para ele o que ele está fazendo ali e então a música
para enquanto ele se levanta e recobra a consciência.
Segue abaixo o diálogo decorrente:

Anciã: O que está fazendo em nossas terras?


Terr: Vim avisá-los, os Traags vão desomizar o parque.
Anciã: Desomizar o parque? Me diga, como soube?
Terr: Um dos nossos leu as escritas no muro!
Anciã: Desde quando os Oms da grande árvore sabem ler a escrita Traag?
Terr: Acreditem em mim! Os Traags vão desomizar!
Anciã: Tirem-no daqui! Alguém vá olhar os muros!

É possível perceber pelo conteúdo das falas que elas servem apenas para
mover a história, a cena serve para uma introdução da anciã, que terá papel relevante
na narrativa. Além disso vemos que o estilo dessa animação, de poucos frames e feita
com recortes de papel, não possui uma grande gama de expressão faciais e sua
transição é brusca, deixando assim a voz incubida de demonstrar o estado emocional
do personagem baseado nas inflexões do diálogo.
Após o diálogo, Terr é preso e a câmera foca em seu rosto desesperançoso
enquanto entra o tema IV marcado por timbres graves de bumbo e baixo, tendo o baixo
as cordas puxadas com força. A música para quando o dia amanhece e corta para a
próxima cena.

3. Fuga de Terr I

Cena começa com Tiwa retornando para casa após sua primeira
meditação, com uma música alegre. Tiwa entra na casa e olha para o seu quarto
procurando por Terr. Quando a câmera muda de Tiwa para o quarto vazio a
melodia transita de calma para tensa através da pausa dos elementos e a transição
para o baixo, nesse momento a música expressa a busca de Tiwa por Terr com a
utilização de acordes tensos, uma melodia ascendente que se repete sob uma
flauta que alterna entre duas notas, primeiramente mi e fá e, em seguida, si e dó,
caracterizando ciclos de segunda menor entre um trítono, enquanto a velocidade
aumenta gradativamente, intensificando o grau de tensão da cena. Terr Narrador
começa a falar, segue abaixo sua fala:

- Ter Narradorr: Pouco depois, perdi minha intimidade com a Tiwa.


Ao crescer, abandonou seus brinquedos. Privado da lição, decidi
fugir.

Apesar desse momento ser de grande impacto emocional, a inflexão de


sua voz o retrata de forma apática. A cena se encerra em um smash cut sonoro
entre o som de timbres graves da saída da cena e a paisagem sonora intensa
com a qual se inicia a próxima cena.
AT&T had unveiled one of the first synthetic voices, developed at its Bell Labs,
at the 1939 World’s Fair in New York City. But more than 40 years later, despite
increasingly powerful computers, speech synthesis was still relatively primitive.

“It just sounded robotic,” said Tom Gruber, who worked on synthetic speech
systems in the early ’80s and went on to create the digital assistant that became Siri
when Apple acquired it in 2010.
By 1990, companies like AT&T had started to deploy these new systems, allowing the
hearing-impaired, for example, to generate synthetic speech for phone calls. The
voices, though, typically sounded male.

That year, at the Bell Labs research center in Naperville, Ill., Dr. Syrdal
developed a voice that sounded female — a much harder result to achieve, in part
because so much of the previous engineering work had been done for male voices.
https://www.nytimes.com/2020/08/20/technology/ann-syrdal-who-helped-give-
computers-a-female-voice-dies-at-74.html

HAL's capabilities, like all the technology in 2001, were based on the speculation
of respected scientists. Marvin Minsky, director of the MIT Computer Science and Artificial
Intelligence Laboratory (CSAIL) and one of the most influential researchers in the field,
[29]
was an adviser on the film set. https://en.wikipedia.org/wiki/HAL_9000

Pesquisa:

Falar sobre verbocentrismo no cinema


Falar sobre o papel da fala no cinema francês em contraste com o cinema
americano
Falar sobre o papel da fala do Narrador
Falar sobre o papel da f ala científica do aparato de aprendizado
Silencing and Sounding the Voice in Transition-Era French Cinema
Hannah Lewis
DOI:10.5622/illinois/9780252043000.003.0003
This essay examines two contrasting aesthetics of the voice in early 1930s French
cinema and the role that music played in each. Filmed theater, or théâtre filmé,
emerged from the conception that sound cinema was primarily a recording medium.
In French theatrical adaptations, the speaking voice took precedence over all other
elements of the soundtrack. The author argues, however, that in théâtre filmé,
speech takes on almost musical qualities, folding music and sound effects into the
voice itself. Avant-garde filmmakers took a contrasting approach, rejecting the
restriction of camera movement imposed by the theatrical model and hoping to
recapture some of the visual freedom characteristic of silent cinema. These
filmmakers told their stories with as little spoken dialogue as possible, incorporating
music prominently into their soundtracks in order to silence the speaking voice.
Though the intent may have been to strip the voice of its dominance within the
soundtrack, these directors’ strategic denial of the voice often granted it a much
greater significance. By examining early experiments with the voice on the
soundtrack in the transition years—including those by Jean Renoir, René Clair, and
Jean Grémillon—the author’s analysis expands the concept of “vococentrism,”
as articulated by Michel Chion and David Neumeyer, to include different models of
understanding the voice in cinema beyond those found in classical Hollywood and
helps shed light on competing conceptions of the voice’s role in cinema before
practices became codified.

https://www.universitypressscholarship.com/view/10.5622/illinois/
9780252043000.001.0001/upso-9780252043000-chapter-003

Filmes no ocidente europeu:

- Nas décadas seguintes ao fim da Guerra, dois grandes fatores passaram a ser
determinantes para o estudo da animação, influenciando tanto o conteúdo formal
quanto o formato técnico dos filmes e seus meios de produção: a polarização sócio-
econômica do mundo entre capitalismo e comunismo, e a popularização universal da
televisão como meio de comunicação.
(Movimentos Invisíveis, 2010, Daniel Leal Werneck, p. 44)
- Obviamente, os orçamentos dos filmes não eram tão altos quanto os dos estúdios
de Hollywood, e os animadores desses países comunistas dependiam muito mais de
seu talento narrativo do que de malabarismos tecnológicos para produzir seus
filmes. Entre o final da segunda guerra e a queda do muro de berlim, estúdios
lendários como o Kratky Film da Tchecoslováquia, o Panonnia Film da Hungria, o
SFA da Polônia, o Zagreb Film da Croácia e o Soyuzmultfilm da União Soviética
produziram milhares de curtas, longas e séries de TV que foram exibidos em salas
de cinema, festivais e programas de televisão em todo o mundo, com uma liberdade
artística tão grande quanto eram pequenas suas liberdades temáticas. Esses filmes
tinham um amplo espectro de técnicas e visualidades, permitindo um grande
experimentalismo estético por parte dos artistas, tanto nas imagens quanto no som.
(Movimentos Invisíveis, 2010, Daniel Leal Werneck, p. 45)
- O estúdio (Soyuzmultflm) foi financiado pelo governo comunista desde sua fundação
até 1989, quando pressões políticas e econômicas o privatizaram. Nesse meio
tempo, a principal função do estúdio não era de produzir filmes comerciais que
agradassem ao público, mas que agradassem também o governo e servissem como
propaganda. Não que os filmes fossem todos de propaganda ideológica, mas eram
provas de superioridade cultural da União Soviética, assim como o balé Bolshoi, os
cosmonautas e os atletas olímpicos. Assim, o principal interesse do governo não era
vender os filme para canais de televisão, mas sim exibí-los no maior número
possível de festivais de animação possível, acumulando prêmios e condecorações
que validassem o comunismo como estilo de vida.
(Movimentos Invisíveis, 2010, Daniel Leal Werneck, p. 68)
- Precurssores do som fotografado, como Oskar Fischinger e o russo Arseny
Avraamov, já haviam experimentado com imagens pintadas sobre papel e
fotografias sobre a faixa sonora do filme, e vários músicos experimentais dos anos
1930 usavam essa técnica para criar composições sonoras consideradas algumas
das primeiras experiências com música eletrônica. No entanto, era isso que eles
buscavam com o método: fazer música, em uma espécie de MIDI visual dos anos
1930. McLaren criava sons, às vezes usando imagens pré-definidas e estritamente
relacionadas às notas da escala musical ocidental, mas as vezes criando formas
orgânicas diretamente sobre o filme, criando sons imprevisíveis que nunca haviam
sido ouvido antes.
(Movimentos Invisíveis, 2010, Daniel Leal Werneck, p. 168)

Você também pode gostar