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Victor Zuckerkandl
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Introdução
A história é muito antiga e muito bem conhecida para não ser tomada
seriamente. Embora isto seja dito auto-depreciativamente, seu sentido é perfeitamente
claro. Como as últimas palavras de Sócrates, “Nós devemos um galo a Esculápio”,
refere-se ao pagamento de uma dívida. O filósofo está sendo escrupuloso ao final.
Sua vida inteira foi devotada ao serviço de uma única força, aquela da palavra falada.
Agora, antes de ser tarde demais, ele deve fazer uma reparação por não ter servido à
única força que modela a essência espiritual humana. Ele fará um último gesto de
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reverência e gratidão ao poder da música: ele elevará sua voz numa canção ao menos
uma vez antes de morrer.
Musicalidade
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Os dois conceitos não são mutuamente exclusivos; não se pode dizer que um é
verdadeiro e o outro falso. Mas um deles é original e irrestritamente válido, enquanto
o outro é derivado e relativo. O conceito com o qual estamos familiarizados é o
derivado e relativo, e ao considerá-lo como universalmente válido desviamos nosso
pensamento do caminho e distorcemos nossa visão.
Para começar, é importante perceber por que o conceito que nos é familiar
pode ser chamado de relativo e derivado.
Aqui a noção de confrontação entre ouvinte e obra não faz sentido. Música é tanto a
doação quanto o doador, o músico é tanto o doador quanto o recebedor.
contribuição ou rejeitá-la. Quando certas linhas são pretendidas para uma voz solo, o
cantor solo não é um executante [performer] diante de uma audiência; sua voz
permanece como a voz do grupo, a qual pode unir-se de volta a qualquer momento,
como realmente acontece no refrão. A situação é de todos juntos, não de uma
confrontação. As três funções – compor, executar, ouvir – tão formalmente
diferenciadas na fase culminante são ainda facetas intercambiáveis de uma função
global residente no grupo. Isto é igual verdade quando a música aparentemente está
sendo feita de uns para os outros, como acontece com a música para dançar. Aqui
novamente, os outros não são ouvintes, eles são participantes, e a música e a
produção da música são parte de sua própria atividade. A música, como tal, está por
detrás deles mais do que propriamente diante deles. Igualmente no caso extremo do
rito mágico onde o mago usa certas fórmulas musicais as quais de fato são seu
próprio poder cuidadosamente guardado, as formulas não são endereçadas àqueles
presentes como se eles fossem uma audiência, mas juntamente com eles para o deus
ou o demônio então invocado. Outra vez, a música vem dos seres humanos, não para
eles.
nascimento às notas”, de acordo com o Li Chi (Livro dos Ritos). Foi o impulso para
criar a música que criou as notas. Não há notas ao acaso, então, subseqüentemente
colocadas em ordem ou arranjadas em um sistema; as notas musicais são uma ordem
e não têm existência exceto dentro de um sistema. O sistema das notas representa a
completação do ato da criação musical, e com a música folclórica este ato foi
plenamente realizado porque o sistema está completamente presente nela. O que
sucedeu depois, incluindo as grandes obras primas, é porém a realização de algo
inerente nas notas. Aqui outra vez a música assemelha-se à matemática: não é que de
algum modo primeiro existem os números, que então são levados a uma ordem
sistemática. Os números são ordem. Muito deles será discutido em grande detalhe
depois. Para descobrir a sombra de sutil falsidade no termo “música folclórica”
precisamos somente imaginar a adição e a subtração elementares sendo chamadas de
“matemática folclórica”.
Aqueles que fazem a assim chamada música folclórica não são “povo” ou
“gentes”, mas “homens”. Não para algumas pessoas nem todas e certamente não
indivíduos específicos, mas para o homem enquanto tal, um daqueles atributos
inigualavelmente humanos é ser musical. Agora, faz sentido falar de “musicalidade”
não como a característica distinta deste ou daquele indivíduo mas como um atributo
humano por excelência: o homem como homem é musical. Não que primeiro ele era
um homem, o qual no curso do tempo adquiriu a música para tornar sua vida mais
atraente por aliviar a tensão do trabalho ou preencher seu tempo de lazer; mais
precisamente, homem e música estão tão fundamentalmente entrelaçados desde os
primórdios que um não existe sem o outro.
prazer; este será um mundo empobrecido e sombrio, mas este será também o mesmo
mundo como o conhecemos e entendemos: podemos imaginar um mundo sem
música. Não é assim quando olhamos a música a partir de sua fase de sua origem. Se
o homem e a música, existencialmente pertencem-se um ao outro, e música é um
elemento essencial dos atributos humanos, então o homem sem música não é homem
e um mundo sem música não é mundo: ambos, homem sem música e mundo sem
música, são contradições impensáveis. Em outras palavras, para nosso pensamento
corrente musica é uma obra do acaso, ao passo que quando vista de sua origem ela é
uma obra da necessidade. Qual destes dois pontos de vista está mais próximo do real
entendimento da música? Aquele que a relega para o campo da contingência ou
aquele que a considera como necessária?
“A primavera cria, o verão faz crescer: isto é amor. O outono colhe, o inverno
protege no celeiro: isto é justiça. O amor corresponde à música, a justiça corresponde
aos ritos.”
Estas afirmações são suficientes para indicar como o estilo deste pensamento
sobre música e a atitude que ela reflete diferem da nossa. As palavras associadas com
música não são “arte”, “artista” ou “obra de arte”, mas verão e inverno, separação e
união, amor e justiça, dissolução e estagnação. Onde nosso pensamento tende a
analisar e isolar, o sábio chinês contempla um todo ordenando. Ele não compara uma
coisa com outra ou procura por traços que possam ter em comum ou progredir do
particular para o geral. Antes, ele se esforça por entender como a música, tal como
ela é, pode necessariamente encaixar-se no todo. (O todo não é o mesmo que o geral:
criações particulares separadas do geral são acidentais, enquanto a parte de um todo é
necessária. O geral permanece o mesmo quando um particular é removido, mas
quando uma parte é suprimida o todo não é mais o todo.) Aqui música é algo em si
mesma mas não para si mesma. Ela é uma metade de um par, um de dois pólos, o
outro pólo sendo os ritos. Outra vez, música e ritos não são tidos como existindo por
si mesmos, mas como mediadores, como mediadores terrestres entre dois poderes
supraterrestres cuja tensão polar mantém o universo em permanente equilíbrio.
Somente se os mediadores estão em equilíbrio e em um estado sadio está a sanidade
do todo garantida. A oposição entre os pólos é em realidade uma dependência mútua.
O perigo não está na ameaça da existência ou na força do outro pólo mas na sua não
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existência e debilidade. Cada pólo deve querer a existência e a força do outro, e teme
sua não existência e debilidade. Se um pólo estava desaparecendo, a dissolução ou
estagnação do todo começava imediatamente a se manifestar. É óbvio que na
estrutura de tal pensamento, a idéia de um mundo sem música não encontra lugar.
O que foi dito antes pode, é claro, ser rejeitado como uma especulação
metafísica e uma fantasia mitológica, inadmissível sem uma substanciação de sua
reivindicação por validade. Nosso pensamento a respeito de música e musicalidade
pode ser menos ambicioso, mas ele tem a vantagem incontestável de apoiar-se em
fatos como nós os experimentamos e explaná-los adequadamente. E não há razão
para que uma explanação da música como sendo necessária deva em si mesma ser
superior a uma que a considera como uma contingência. Por que deveria a música
não ser um sublime acidente? A pedra de toque, certamente, deveria ser aquela
concepção que se ajusta melhor à realidade dos fatos. E não pode ser negada que a
evidência de nossa experiência não suporta qualquer alto vôo de pretensão a uma
validade universal. É matéria de fato que em seu mais alto desenvolvimento a música
separa as pessoas mais propriamente do que as une. Podem haver muitos ouvintes,
mas muito mais nunca ouviram, e em meio àqueles que ouviram somente uma
pequena parcela está capacitada a ouvir o que vai em uma cantata de Bach, um
quarteto de cordas de Mozart ou uma sonata de Beethoven. Não estamos, então,
limitados a concluir que em seu sentido mais alto e mais estrito a música é uma posse
especial de uma minoria muito pequena? Não deveriam nossas concepções de música
e musicalidade levar em conta este fato?
O que está errado com este argumento é que ele usa o termo “experiência” em
um sentido muito grosseiro e estreito. Para ser claro, a confrontação com uma obra-
prima musical aparentemente divide as pessoas mais do que as une: somente uma
pequena faixa está sendo unida, agrupando-se em torno da obra, separados daqueles
que podem ter uma atenção ocasional e partir insensíveis e de todo o resto que está
muito distante para estar realmente ciente da música. Mas somente uma visão muito
superficial poderia concluir que a música não interessa a todos aqueles outros
também, que ela não existe para eles de qualquer modo. Beethoven escreveu as
seguintes palavras “Do meu coração – possa ela atingir outros corações” antes dos
acordes de abertura de sua Missa Solemnis. Estava ele pensando somente nos
musicalmente dotados? Ele dentre todas as pessoas não teria sido consciente que
somente muitos poucos seriam capazes de seguir a alta complexidade e o pensamento
musical completamente abstrato desta Missa? E contudo o trabalho não é endereçado
a estes poucos ou a outros grupos maiores; ele é endereçado a todos, à totalidade da
humanidade, ao coração humano. Se houve alguma vez um só indivíduo capaz de
entender esta obra, ele seria o representante de toda a humanidade; em seu proveito
ele quereria alargar a compreensão do coração humano; em sua consciência quereria
estender seu alcance e através dele uma nova realidade poderia ter ingressado em seu
conhecimento. Pois o que tenha ocorrido é compartilhado por todos os homens,
realmente como muitos podem compartilhar uma nova iluminação sem verem a fonte
da luz. Neste sentido a grande obra de arte – e na verdade particularmente as grandes
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– são, se não endereçadas para todos, criadas por todos. A evidência oferecida pela
confrontação na sala de concerto é superficial. Por detrás da superfície evidente nós
sentimos, embora não possamos obrigá-la a confessar, a realidade de um todo-
conjunto no qual todos – compositor, executante e ouvinte – permanecem juntos e
olham fixamente, por assim dizer, com os olhos da obra na mesma direção, a grande
situação que encontramos na fase dos primórdios. Nem são as paredes da sala de
concerto um limite cerceador: o todo-conjunto se estende além delas. O fato de a obra
existir e ser entendida por uns poucos significa simplesmente que daí em diante
muitos outros quererão ser diferentes em sua poesia, em suas emoções, seu
pensamento, talvez equilibrando seus movimentos e sua respiração.
A primeira questão com a qual temos que lidar, então, concerne nem às causas
nem ao significado, mas ao objetivo imediato da música, especialmente da música
mais primordial avaliável por nós em alguma medida – a música folclórica. Quanto
mais para trás nós vamos, mais parece como se a música, longe de ser um fim em si
mesma (como ela tem eventualmente se tornando na “música artística” do Ocidente),
estivesse sempre subordinada a finalidades fora dela mesma – religiosa, social,
prática. Nem teria a música de hoje cessado de emprestar seu auxílio a tais esforços
extramusicais. Crianças até agora estão cantando para dormir, soldados ainda cantam
para dar coragem a si mesmos, e trabalhadores tornam mais leve seu trabalho com
canções. Os ritos religiosos do Ocidente não dispensam sua música, e ritos civis
parecem monótonos sem ela. E embora possa-se não prestar muita atenção a ela, uma
certa quantidade de música é ingrediente indispensável para muitos filmes.
Aí existe um tipo de música elaborada para este nível a qual não serve – ou, em
todo caso, não tão obviamente como outros tipos – como um meio para um fim. Onde
quer que a música folclórica ainda esteja viva, as pessoas se juntarão para cantar.
Para ser claro, muitas canções, como as melodias de dança, cantigas de ninar, árias
marciais, cantos religiosos e hinos têm um propósito específico e imediato; mas há
também outras que são cantadas por si mesmas, realmente pelo amor de cantar. Qual
é o significado desta prática?
Pareceria, então, que igualmente nestas canções folclóricas onde a melodia não
é realmente o sentido de sua finalidade, sua função é claramente secundária. Poderia
mesmo ser sustentado que nas canções folclóricas a contribuição da melodia é menos
essencial do que em outras formas do fazer musical antigo. Nas danças e celebrações
sem acompanhamento musical falta algo essencial, ao passo que em um poema há um
todo independente, nada faltando.
Isto é sem dúvida verdade para o poema não vocalizado, o poema que eu penso
a respeito ou leio silenciosamente, talvez recitado para mim mesmo ou para alguém
para quem ele não é familiar; isto não é verdade para o poema que é na realidade
intencionado para ser vocalizado, para representar a voz de uma comunidade. Pode
alguém imaginar que pessoas se juntem para falar canções? Alguém pode, mas
somente como uma possibilidade lógica; na vida real isto seria absurdo. Isto tornaria
algo natural em algo expressamente artificial. Visto por este lado, o que as notas
musicais contribuem para a canção folclórica é essencial: somente quando ela é
cantada a canção folclórica realmente existe. Jogue a melodia fora, e o que resta é
algo inteiramente diferente.
são de modo algum estranhos. Nós podemos nos maravilhar com a realização, mas
ela é considerada como uma concessão. Por outro lado, não há razão por que um
poema, um modo de falar em linguagem rítmica, não possa ser meramente falado
metricamente sob certas circunstâncias. Em todo caso, a razão por que é artificial
recitar canções folclóricas ao invés de cantá-las pode ser buscado noutra parte, não
realmente no fato de que as notas tornaram-se inseparáveis do texto.
resulta em transformar o sem sentido em algo que se explica por si, é razoável supor
que cantar é a expressão natural e apropriada do grupo, da união dos indivíduos
dentro do grupo. Se este é o caso, podemos supor que as notas – cantadas –
essencialmente expressam não o indivíduo mas o grupo, mais precisamente, o
indivíduo na medida em que ele é um membro do grupo, ainda mais precisamente, o
indivíduo na medida em que sua relação com os outros não é um “encará-los” mas
uma unicidade.
Se este é o caso, por que as pessoas não cantam simplesmente canções sem
palavras? Por que as palavras nas canções cedem lugar às notas somente em curtos
momentos, na maioria das vezes? Por que não há canções folclóricas que não sejam
poemas cantados?
relação a elas, aquela que não é, “do lado de fora” delas. Em contraste, se suas
palavras não são meramente ditas mas cantadas, ele constrói uma ponte viva que a
liga com as coisas referidas pelas palavras, que transmuta distinção e separação em
unicidade. Pelo sentido das notas, aquele que fala sai em direção às coisas, traz as
coisas de fora para dentro de si mesmo, então ele não é mais “o outro”, algo alheio ao
que ele é, mas o outro e si próprio em um. Assim, uma forma de falar que não é
endereçada a alguém e nada comunica torna-se inteligível. Tão logo as palavras do
poema restem silenciosas dentro de mim mesmo, o que elas pretendem dizer não é
“algo outro”, uma coisa “do lado de fora” de mim mesmo; eu posso pronunciá-las,
projetá-las para fora de mim, a fim de transformar o que elas dizem em uma “coisa”
outra do que eu mesmo, encontrada do lado de fora. Somente então podem as notas
satisfazer sua proposta: remover a barreira entre pessoa e coisa, e limpar o caminho
que pode ser chamado de a participação interior do cantor na qual ele canta – para
uma participação ativa, uma experiência de um tipo especial, uma experiência
espiritual. Esta experiência não é um sonhar-se-fora-de-si-mesmo, não é um sonhar-
a-si-em-outra-coisa, como se alguém fosse diferente do que esse alguém é. O cantor
permanece o que ele é, mas seu ser é dilatado, seu alcance vital é estendido: ser o que
ele pode ser agora, sem perder sua identidade, ser com o que ele não é; e o outro,
sendo o que ele é, pode, sem perder sua identidade, ser ele. Este tipo de experiência
não deve ser confundida com simpatia. Simpatia é dirigida a uma ação imediata,
como a compaixão, que leva a diminuir ou aliviar o sofrimento alheio, ao passo que a
participação ativa do sofrimento – por exemplo, expressa em uma canção que conta
uma história de sofrimento – consiste exatamente nisto, que o sofrimento é
plenamente re-experienciado na mente do cantor. Aqui a emoção é secundária, é o
efeito não a causa da participação, e junto com a última é espiritualizada, “colocada
em parênteses”. (Por isso é que a maldade à qual o poeta se refere é realmente tão
boa, realmente tão adorável, quanto o bem.)
Pode o canto desta canção ser interpretado como a expressão dos sentimentos
que suas palavras permitem ao cantor?
Primeiro de tudo, o sentido como o qual o termo “expressão” é usado aqui deve
ser definido claramente. Palavras são ditas para “expressar” o que elas denotam;
gestos e gritos, para “expressar” a emoção que dá nascimento a eles; escritos, para
“expressar” a personalidade do escritor. Notas são ditas para “expressar” emoções em
um sentido intermediário entre o primeiro e o segundo destes três sentidos, um tanto
mais próximo ao segundo. Aqueles que vêem a música como uma linguagem dos
sentimentos dizem que as notas expressam emoções de um modo similar (mas não
mais que similar) àquele no qual as palavras expressam as coisas que elas denotam,
isto é, que as notas servem como um meio de comunicar emoções. Pode ser
sustentado pela mente, contudo, que a correlação de palavras e coisas é superficial e
acidental. Não há necessidade intrínseca de que um dado vocábulo denote qualquer
coisa mais que outra; vocábulos idênticos podem denotar coisas diferentes, e
diferentes vocábulos uma e a mesma coisa. Por contraste, toda emoção exterioriza
sua própria expressão característica, como uma flor o seu aroma; a correlação entre
os dois é direta, inerente, não deixa lugar para ambigüidade. Toda expressão
emocional em si mesma – sob qualquer condição – desce a nuanças sutis em sua
própria maneira característica. Deste modo, ao passo que deve ser dito o que as
palavras da linguagem significam a fim de entendê-las, não somente as pessoas mas
ainda os animais diretamente compreendem o significado de uma fúria ou de um
gesto conciliatório, nunca confundindo o choro de temor com o choro de alegria.
agita mas um certo estado receptivo no qual acontece estarmos. Diríamos, então, que
a melodia expressa as emoções que são permitidas em mim pelo meu humor sério.
Claramente, esta afirmação não nos leva muito longe, não contribui
significativamente para nosso entendimento da canção e o meio particular pelo qual
ela nos afeta. Há incontáveis humores sérios, incontáveis melodias sérias. A resposta
à nossa pergunta deve ser mais específica. Podemos dizer, por exemplo, que a
melodia expressa as emoções do cantor quando a transitoriedade das coisas mundanas
– não realmente as coisas sem valor, mas precisamente as coisas naturais e inocentes
do mundo – nos é colocada tão vigorosamente quanto o é, pelas palavras de nosso
poeta.
Mesmo esta formulação é ainda muito vaga, muito geral: ela ainda não abarca
o conteúdo desta canção em particular. Claro, ninguém estará isento de ser afetado
por sua vigorosa evocação da transitoriedade de todas as coisas mundanas, claro, a
cor da emoção que ela desperta é consoante com o tenor de nossa melodia. Mas esta
emoção, tomada em seu sentido geral, não é mais que um fundo monocromático para
as diversas imagens sugeridas pelas palavras, visto que a melodia é muito mais que
um mero fundo musical para as palavras. O que ouvimos não é meramente alguma
música suave acompanhando o recital do poema, mas mais propriamente uma íntima
e indissolúvel união de notas e palavras; a melodia, por assim dizer, funde-se com as
palavras, move-se em completo acordo com elas, sílaba por sílaba, nuança a nuança.
É esta concordância que determina a alta qualidade da canção, e é esta concordância
que está em questão aqui e que nós estamos tentando entender. Aqui a teoria da
música como uma linguagem das emoções falha em passar no teste da experiência.
Ao invés de clarear a experiência, esta teoria a torna ininteligível.
______________
(A lâmina está sendo afiada, Afiada, mais afiada ele está ficando,
Logo mais estará em movimento, Todos deveremos sofrer isto)
A segunda estrofe mostra que o problema pode ser estabelecido sem ir adentro
daquelas sutilezas.
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– para realizar pela primeira vez que o efeito do final permanece precisamente
sobre a repetição da frase, precisamente no fato de que a melodia de “Acautele-se”
inesperadamente manifesta o aspecto de “Regozije-se”1. Falar de um milagre, por
outro lado, seria só e obviamente sugerir uma tentativa de cobrir a falha da teoria. O
milagre não é o incompreensível. A verdadeira teoria prova seu valor não ao ignorar
o miraculoso mas por torná-lo compreensível. Uma teoria que rejeita fatos
observáveis como incompreensíveis prova somente sua própria inadequação.
Reduzidos à fórmula mais resumida, os fatos com os quais esta canção nos
confronta, e os quais nos concernem aqui, podem ser colocados como segue: (1) as
notas se ajustam às palavras, e (2) uma e mesma nota pode se adequar igualmente
bem a palavras que dizem coisas diferentes e ainda diametralmente opostas. Segue
que seu “ajustamento” não pode apoiar-se sobre um acordo tal como entre emoção e
expressão. Tornamo-nos íntimos dos fatos, entendendo-os melhor, se admitimos não
que as notas são mensagens enviadas para dentro de nós desde o mundo exterior (o
que elas seriam se elas fossem a expressão de emoções), mas que nas notas nossa
própria interioridade vai para fora e encontra a si mesma do lado de fora – que as
notas servem não para comunicar nossas emoções mas para ajudar-nos a compartilhar
ativamente o que elas dizem.
“Há um Ceifador, homens, chamado Morte... O qual está ainda verde e fresco
hoje... O colorido-azul-celeste não-me-esqueço... atreva-se, Morte, venhá cá” – o que
a “partilha ativa” se refere neste contexto? O que ela não se refere é claro. As
palavras não evocam algo fora do cantor, digo, imagens mentais do Ceifador afiando
sua ferramenta, uma campina verde, uma flor azul, e uma Morte cavaleira combatente
1
Mudar as notas para adaptá-las ao valor emocional das palavras individuais é (como um fator secundário)
característico da arte da canção. Quando Hugo Wolf, na canção “In der Frühe” eleva as notas , “Não
tema mais, não se atormente mais, minha alma”, para as notas , “Regozije-se”, da linha seguinte, a mudança
é precisamente correta.
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e o Demônio. Aqui não pode haver dúvida de qualquer coisa como esta, nenhuma
dúvida da identificação do cantor em total empatia com o que tais imagens evocam,
com a Morte e seus feitos, com as flores e seu sofrimento, com o desafio e seu
triunfo. A imaginação enquanto a faculdade de conjurar imagens mentais não está por
conseguinte envolvida; nem é ilusão, o colocar a si mesmo no lugar do imaginado, a
substituição de outro ser pelo próprio ser. Mas é igualmente claro que o cantor não
leva realmente as palavras e notas para fora de si mesmo, permanecendo atrás como
mero observador. Ele partilha ativamente com aquilo que ele diz, ele o “vive”.
Como? Em que sentido?
Palavras que não servem para evocar vívidas representações de coisas, eventos
e sentimentos não são nada que não signos vazios – eu entendo os signos sem
explorar completamente seus significados. “Morte”, “flor”, “desafio” – eu posso
entender estas palavras sem visualizar as coisas que elas denotam. Posso entendê-las
como “meras palavras”, “palavras vazias”, as quais provêm comunicação superficial,
nada mais. As palavras que são cantadas, no entanto, não são vazias, ainda se elas não
apontam a uma visualização concreta. Para o cantor, as palavras adquirem uma
plenitude muito especial e uma profundidade de significado. Algo que permanece
silente nas palavras meramente faladas começa a fluir, a vibrar; as palavras abrem e o
cantor abre-se a elas. É como se as notas infundissem nas palavras a força que revela
um novo estrato de significado nelas, que soprasse vida dentro delas de uma maneira
especial: não por fazer da palavra uma coisa tangível, como aparece quando vista do
lado de fora, e certamente não no sentido de submergi-las em uma vida universal na
qual toda particularidade, todas as distinções são abolidas, mas exatamente em seu
conteúdo determinado quando visto de dentro, desde um ponto onde o mundo é, por
assim dizer, um “Eu”.
Para o cantor, estas palavras não sugerem algo como uma infinita queda de
formas esplendorosas e frágeis. De fato, ele não vê nada de todo, não imagina nada;
nem ele “empatiza” com todas aquelas coisas, incluindo a si mesmo, que deverá cair
ao chão. Ele simplesmente é esta queda e a queda é ele. Ele não observa a queda; ele
a “vive” e a queda “vive” nele. No estrato de significado tornado acessível pelas
notas, coisas que estão separadas se unem; aquele que fala e a palavra falada,
“pessoa” e “coisa” entram em contato direto. É como se uma porta tivesse aberta
através da qual o ser vivo daquele que fala vai para aquilo que ele está dizendo, e
aquilo que ele está dizendo entre dentro dele como algo que tem uma vida em si
própria, como um “Eu”. Embora nenhum dos dois absorva o outro, a antítese “eu” e
“ele” é transcendida: o cantor pode dizer “Eu” para aquilo que ele canta, e dizer “ele”
para si mesmo. A integral realidade da pessoa e a integral realidade das coisas são
agora fundidas em uma realidade assentada.
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Expressar tudo isto em palavras pode ser algo complicado, mas o que
realmente acontece é simples. O processo é quase automático, comparável ao acender
de uma luz. O que temos aqui não é – longe disso – o resultado de um esforço
emocional: toma lugar abaixo da camada da afetividade (é por isso que o cantar “com
sentimento” inibe mais propriamente do que promove o processo). Mas se
exatamente as mesmas notas que se ajustam então singularmente a palavras
específicas de modo a levar à luz seus significados mais íntimos pode realmente se
ajustar singularmente a diferentes palavras, produzir o mesmo efeito – se a mesma
frase musical pode atingir diferentes escopos com a mesma acuidade – é claro que as
palavras, as quais enfatizam o que distingue uma coisa da outra, não pode tomar parte
decisiva neste processo. (“Coisa” localiza aqui tudo o que não é um “Eu”, quer seja
material ou espiritual, um objeto ou estado de mente, um sentimento ou evento.) O
afiar a lâmina, a queda das flores, a transitoriedade de todas as coisas mundanas, o
êxtase ascencional ao jardim celestial – cada um desses é cantado nas mesmas notas,
cada um é tornado igualmente vivo pela mesma melodia. Podemos concluir que no
estrato e realidade de onde vêm as notas e para a qual elas levam, não somente a
antítese entre “eu” e “ele” mas também as distinções entre as coisas são
transcendidas. Lá pode ser um estrato no qual todas as coisas têm suas raízes; então
as notas podem, por assim dizer, ativar esta camada e desse modo levar-nos próximos
às raízes das coisas. Místicos falam de um lugar “onde todas as coisas são unas”,
implicando não em uma mistura indiferenciada de todas as coisas, mas a fonte
comum que nutre cada coisa particular. Esta fonte é também o domínio das notas. A
experiência característica de cantar palavra, a qual conota ambos, a individualidade
concreta das coisas a que se refere e sua submersão em um todo maior, torna-se então
inteligível. Uma e mesma melodia não poderia expressar “Cautela” e “Regozijo” com
igual verdade se tal domínio não existisse, se ele não fosse a fonte onde medo e
alegria, perdição e salvação, embora certamente diferentes, estão ligados em um
significado comum. A verdadeira existência das notas é a evidência de um estrato da
realidade no qual a unidade brilha através da diversidade.
O que tem sido dito sobre “o outro nível da existência”, “o outro nível da
realidade”, deve agora ser trazido a um foco aguçado.
O termo “nível” não é preciso o suficiente. “Outro nível” pode ser entendido:
1) Como “plano de fundo” para as notas, em um sentido de perspectiva – pois as
notas nos trazem para trás das palavras e do que as palavras dizem; 2) Como o
complemento “polar” das palavras – pois a realidade expressa na canção está
completa somente na união das palavras e das notas; e 3) Como uma síntese dialética
– pois as notas resolvem as antinomias presentes nos primeiros níveis. Estritamente
falando, nenhuma destas interpretações atinge o alvo. 1) Um “plano de fundo”
implica em um “primeiro plano” e um observador: do ponto de vista do observador
esse é o nível mais distante, ao passo que as notas, apesar delas realmente levarem-
nos atrás das palavras, manifestam um nível mais perto do observador, não ainda
mais longe. 2) As notas realmente complementam as palavras, mas as duas não são
opostas como um pólo e seu contrapólo, como o interior e o exterior, ou como o
espiritual e o físico. Enquanto pólo e contrapólo estão sempre no mesmo plano, a
união de palavras e notas resolve a antinomia de um plano pelo recurso de outro. 3) A
resolução não pode apropriadamente ser chamada de síntese dialética. Semelhante
síntese transcende ambas, tese e antítese, pela demonstração de que nenhuma é válida
e assim abole ambas, ao passo que as notas abolem a oposição verbal sem negar a
validade da palavra cantada. Ao contrário, elas intensificam e aprofundam o sentido
de toda palavra em sua particularidade maior, e pelo mesmo meio produzem a união.
A unidade expressa pelas notas consiste no fato de que a particularidade de cada
palavra é preservada como tal. Pense nos números, em como cada número existe
exatamente como uma pluralidade de distintas unidades: 1 + 1 se torna uno com 2; a
unidade 2 é 1 + 1. Estamos nos lembrando do velho ditado que fazer música é
definitivamente uma contagem inconsciente: deveríamos outorgar sua verdade neste
sentido?
“Outro nível” não denota nem plano de fundo nem contrapólo nem síntese:
denota uma nova dimensão, no sentido geométrico do termo. O que é distinto, o que é
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múltiplo no primeiro nível dimensional se torne uno passando para o segundo. Dois
pontos tornam-se uma linha, três linhas tornam-se a unidade triângulo, quatro
triângulos a unidade pirâmide. Em cada caso, um novo significado é revelado pela
passagem para a dimensão mais alta, onde elementos antes distintos e separados
formam um todo unificado sem perder suas identidades como elementos da ordem
inferior. Na verdade, sua clareza é reafirmada. Uma linha reta não faz somente juntar
dois pontos; ela também os mantém separados para sempre. A unidade triângulo não
pode existir a menos que o número de linhas retas seja três. Somente em uma
dimensão entendida como mais elevada podem os elementos de uma dimensão
inferior ser unificados; sua unificação pressupõe a realidade ou possibilidade da
dimensão mais elevada. Outra vez a unificação tendo sido efetuada, a dimensão mais
elevada é criada, o potencial tornou-se atualizado.
(Para evitar possíveis mal entendidos, convém notar que aqui e em todo lugar
neste livro, “palavra falada” denota palavra como elemento da fala usada em sua
função social mais importante, isto é, para comunicar fatos, idéias, emoções, ordens.
Estas incluem a palavra escrita mas não a poesia, nem palavras usadas com
proposição mágica ou ritual. As últimas são provavelmente sempre canções, e como
tais abrem para dimensões profundas. Após a poesia separar-se da música e tornar-se
uma arte puramente verbal, ela conservou a dimensão adicional; mais precisamente,
em sua arte as palavras faladas perfazem a função de notas. Poetas têm aprendido a
usar as palavras de tal modo que suas formas “planas” evoquem profundidade,
exatamente como pinturas estudadas para sugerir profundidade espacial pelo uso
apropriado de formas bidimensionais. Por conseguinte, os poetas se colocam na
mesma relação para a canção como, por assim dizer, a pintura em perspectiva para a
arquitetura.)
consciência ordinária está situada no cume de uma pirâmide, cuja base está
posicionada fora de nós mesmos (mas também, num certo sentido, abaixo de nós
mesmos), e que esta base é progressivamente alargada e alargada; quando descemos
dentro de nós mesmos, encontramo-nos mais e mais inclusos em meio aos fatos de
nossa existência terrena (o mundo no sentido mais amplo) que são independentes do
espaço e do tempo. Desde minha mais tenra juventude tenho o sentimento (e tenho
vivido de acordo com ele tanto quanto possível) de que se eu puder realmente entrar
suficientemente abaixo e dentro desta pirâmide de consciência, poderei experimentar
o ser puro, a inviolável presença e simultaneidade de todas as coisas que no nível
‘normal’ superior de consciência nós somos capazes de experimentar somente como
uma sucessão no tempo”2. Aqui, e também em outras passagens, Rilke salienta o
componente temporal, a simultaneidade dos elementos que são sucessivos no tempo.
É claro, todavia, que o que ele tem em mente é o mundo das coisas em geral, o lugar
onde “todas as coisas estão juntas”. Só aparentemente ele passa sem a passagem para
outra dimensão (pirâmides são tridimensionais tanto no topo quanto no fundo): a
passagem para uma nova dimensão está implícita na referência de Rilke à base da
pirâmide como sendo “fora” de nós – em uma dimensão onde a psique e o mundo são
um, onde os muitos existem simultaneamente no mesmo lugar sem cessarem de ser
muitos.
Uma imagem que talvez mais vividamente que qualquer outra transmite a
unidade apropriadamente, entre tantas muitas, é aquela da esfera, em particular se ela
é tomada em ambos os sentidos, o dinâmico e o geométrico. O centro da esfera é a
fonte de energia: do centro, linhas de força irradiam-se para fora em todas as
direções, preenchendo o espaço sem deixar nenhuma fresta. Na superfície da esfera
figuras são visíveis em qualquer forma ou número desejado. De todos os pontos de
todas as figuras, uma circunferência, um raio de energia, corre para dentro da esfera,
para o seu centro. As figuras permanecem como sendo muitas: como formas
bidimensionais elas são uma mera pluralidade, nada mais que muitas. Mas como elas
saem por um momento da superfície – carregadas por seus raios, por assim dizer –
elas convergem em direção ao centro, onde todas elas se tornam uma. Lá todas estão
perfeita e puramente juntas; elas são uma, embora não tenham sido absorvidas, não
tenham se tornado indistinguíveis uma da outra, pois em um ponto central cada figura
está presente tal o que ela é, cada uma definida por um feixe particular de raios. Cada
figura individual sobre a superfície encontra um padrão interno guiando para as
outras figuras através do centro comum a todas. A esfera de energia difundida torna
isto possível (Em um trabalho de muito tempo atrás, Kepler disse que a esfera
simboliza a divina trindade Cristã: “’A imagem do Deus trino e uno está na superfície
esférica, o que vale dizer, o Pai no centro, o Filho na superfície externa e o Espírito
Santo na igualdade da relação entre o ponto e a circunferência’. O movimento ou
emanação passando do centro para a superfície externa é para ele o símbolo da
criação.”3)
2
Rilke, Briefe, p. 871 (itálicos de Rilke).
3
Cf. W. Pauli, “The Influence of Archetypal Ideas on the Scientific Theories of Kepler”, pp. 159 ff.
36
aberta com quatro lados, mas como um triângulo cujo um dos lados está incompleto.
(A psicologia da Gestalt demonstra conclusivamente que isto não é primariamente
devido ao hábito, neste caso, o habito de olhar triângulos.) Não somente as partes
como tais se enquadram no todo da Gestalt – linhas como linhas na figura, palavras
como palavras na sentença, notas como notas na melodia – mas elas estão, por assim
dizer, desejosas para fazer a sua própria concordância: é bem conhecido quão difícil é
não ouvir notas sucessivas como uma melodia, não ver linhas conectadas como uma
figura. Conseqüentemente, este tipo de unificação de elementos distintos não
pressupõe a existência de uma nova dimensão. Nem também a unificação das
palavras: nada na palavra falada sugere a possibilidade de unificação, a qual é
somente revelada quando as palavras estão sendo combinadas com as notas musicais;
a palavra falada sozinha nunca poderá revelá-lo e realizá-lo. “Tome cuidado, pequena
flor” é uma Gestalt verbal, “Alegre-se, pequena flor” é outra, e cada uma é
componente da Gestalt verbal maior, o poema no qual os significados opostos de
“Cuidado” e de “Alegre-se” são plenamente mantidos. Esta oposição não pode ser
resolvida por outras palavras, mas pode ser resolvida pelas notas. Anteriormente nos
referimos às três linhas e um triângulo; agora chegamos a que nossa afirmação
continha uma ambigüidade. O triângulo pode ser concebido como uma estrutura
simples, como uma figura linear consistindo de linhas retas, igualmente à parte da
superfície; mas o fato que as linhas como tais permanecem juntas é diferente em tipo
pelo fato delas estarem unificadas pela graça da superfície. A unidade da Gestalt
repousa no fato precedente: a última caracteriza uma unificação que não pode ser
37
provocada com uma passagem para uma dimensão mais alta. A unidade criada pela
palavra cantada é deste último tipo.
Além disso – e isto é crucial – a passagem para outra dimensão não é uma
passagem para um “além”. A “nova dimensão” não é outro mundo, não é algo
misterioso como em oposição ao que é auto-evidente, não é algo sobrenatural. Para
ser claro, um ser bidimensional não pode conceber a profundidade espacial; para tal
ser, a terceira dimensão é um mistério impenetrável, ele emerge como um milagre
além do entendimento. Porém, profundidade espacial é ainda espaço, uma forma de
prolongamento exatamente como a superfície é – uma nova e rica forma de
prolongamento, não algo além do prolongamento, outra realidade do mundo, não a
realidade de outro mundo. Música não é (como Robert Musil colocou) “uma pequena
porta terrestre levando de volta para o sobrenatural”. O homem cantando não vai para
lugar algum, não abandona nada atrás dele, não diz adeus ao homem que fala.
Completamente ao contrário, é o homem que fala que alcança o fundo de si mesmo, e
ele faz isto não por voltar as costas para o mundo, não por olhar para dentro de si
mesmo em busca do mundo “interior” “melhor”; ele não vai para “dentro de si
mesmo”, ele vai para fora de si mesmo; ele não se fecha em si mesmo, ele se abre. A
mudança da palavra falada para a cantada não é uma volta de 180 graus, não envolve
uma mudança de direção. As pessoas que cantam alcançam de volta profundamente
dentro de si mesmas, estendem suas mãos mais adiante, e então também vão mais
longe, penetram profundamente nas coisas, do que as pessoas que falam. A palavra
falada e a palavra cantada não se referem a coisas diferentes; as coisas são as mesmas
e todavia não são as mesmas, certamente como as coisas que eu vejo com meus olhos
são as mesmas e todavia não são as mesmas, como quando eu às cegas as toco com
minhas mãos: eu as vejo sob uma nova luz, minha relação com elas é diferente, e as
coisas iluminadas pelas notas estão em uma nova em relação a mim. A nota que o
cantor acrescenta à palavra não cancela reciprocamente o mundo, mas antes dá a ele
uma margem delineada, faz ele vibrar com a mais alta freqüência, tanto que ele
penetra coisas a uma grande profundidade, desce a níveis onde sua separatividade
mergulha dentro da unicidade. O homem cantando alcança uma nova profundidade
do mundo, e pelo mesmo motivo alcança um nível profundo de si mesmo.
Em tudo o que foi dito antes, o “homem cantante” significa “homem fazendo
música” no mais amplo sentido; depois de tudo, realmente não tem importância se
alguém faz música com o instrumento natural das cordas vocais ou com um
instrumento manufaturado pelo homem. Direta ou indiretamente, as notas são sempre
feitas pelo homem: um homem fazendo música é um homem cantante. A concepção
de musicalidade como uma característica essencial do homem, como uma
predisposição inata do homem para a música – não uma característica que um pode e
o outro pode não ter mas como um elemento constitutivo da natureza humana –
portanto postula a realidade de uma dimensão adicional, de uma profundidade além
da profundidade espacial, uma profundidade existencial no exato sentido da palavra
emprestada da geometria, e uma concepção do como um ser que vive nesta dimensão,
um ser que seria incompleto sem ela. Este meio, contudo, que a musicalidade, em
38
V. Música e Interioridade
4
Hegel, The Philosophy of Fine Arte, vol. III pp. 341, 342, 344, 361.
40
resolutamente nos voltamos do mundo das coisas para o interior de nós mesmos? Por
que tal semelhante “nada” é ao mesmo tempo “tudo”. Isto é pura subjetividade:
“nada”, na medida em que coisas e objetos são concernidos, nada para o que possa
ser apontado, chamado pelo nome (se pudesse ser, seria objeto, não mais sujeito). E
ainda isto é “tudo” ao mesmo tempo, porque a existência objetiva de todos os objetos
o pressupõe. Pura interioridade: um “todo” que é a fonte e a base de toda expressão,
de toda elocução e um “nada” na medida em que uma elocução precisa é concernente
– falando estritamente, algo indizível. Pode-se dizer, estaria situado fora da essência
da expressão; seria externo a ele tanto quanto da pura interioridade. O “nada” do qual
as notas nos falam é o “nada” da pura subjetividade, pura interioridade.
E ainda Beethoven escreveu estas palavras como um lema para sua Missa
Solene, não uma sinfonia ou uma sonata. Além disso, a interpretação do
relacionamento palavra-nota necessariamente implicado ou pressuposto por Hegel
não é muito consistente com relação ao fenômeno da música da fase culminante; em
vista do que sabemos sobre as primeiras fases da música, esta interpretação é
extremamente absurda. Enquanto evidência musical, que do começo é não menos
importante do que da culminação, e é absurdo supor que a música tenha de qualquer
modo sido envolta em auto-contradição no curso de sua história. As palavras
nomeiam as coisas, referem-se a objetos, tornando-os exteriores; as notas expressam
a vida da alma integralmente destituída de objetos, referindo-se ao puramente
subjetivo, tornada interior: temos que concluir que as palavras e as notas puxam em
direções opostas. Se é este o caso, os significados das notas seriam estranhos aos
significados das palavras; cada um entraria em conflito com o outro e o
enfraqueceria. Que este não é o caso é atestado por todas as canções folclóricas. A
nota que o cantor adiciona à palavra não é estranha à palavra, não puxa na direção
oposta, para longe do que as palavras dizem; antes, as notas acompanham as palavras
em seu caminho para as coisas, para o objeto. Somente, ao contrário da mera palavra,
que ela não pára no objeto: ela transpõe a dimensão da existência objetiva, deste
modo tornando impossível que as palavras denotem ser nada senão objeto,
permanecendo congelada em sua existência como objeto. As notas não ofuscam o
significado das palavras mas antes o aprofundam. Incontestavelmente, a canção
“Cuidado” carrega mais advertência, e a canção “Alegre-se” mais alegria, do que o
que as mesmas palavras meramente dizem. Seria totalmente enganoso imaginar que
as notas levam o cantor longe das palavras; ao contrário, graças às notas, as palavras
não estão mais confinadas a meramente denotar objetos. Algumas vezes,
normalmente ao final de uma linha ou uma estrofe, as notas destacam-se das palavras
e o movimento melódico continua livremente por si próprio, mas as notas sem
palavras nunca voltam suas costas para as palavras que as precederam; ao contrário,
elas servem para explorar e saborear mais profundamente seus significados. A última
palavra da estrofe adere à melodia, a qual, por assim dizer, retém seu colorido. Para
ser claro, as notas são “não-objetivas”: em si mesmas não dizem nem “Cuidado” nem
“Alegre-se”, não dizem nada deste tipo; se o fizessem, não o diriam tão bem quanto
quando combinadas com as palavras. Mas a não-objetividade das notas não é aquela
do “outro lado”, da interioridade destituída de um objeto, de pura subjetividade; é
uma não-objetividade atrás dos objetos. “A intimidade da alma da vida é
compreendida pela música”: quando a canção ressoa, quando ouvimos as palavras
“Cuidado” e “Alegre-se”, e as palavras falando de resignação e desafio, de colheita e
decadência, qual vida interior é compreendida aqui? É o cantor ou o compositor
42
Eu não sustento que a fala existiu antes que a música. É impossível apurar a
exata seqüência de fatos sepultados há tanto tempo atrás. O que eu digo é que o
homem começou com a palavra. A palavra marca o avanço crucial que estabeleceu o
homem à parte dos outros seres vivos. Com a força da fala ele transpôs o círculo
fechado de ação e reação que mantêm os outros organismos vivos escravos de seu
ambiente imediato. Ao contrário do animal, depois que o homem adquiriu o poder da
fala, ele não somente existe na natureza e começa a conceber a “natureza” como algo
distinto dele mesmo. A palavra não divorcia completamente o homem da natureza, à
qual ele permanece confinado, mas ela desata seus laços, coloca-o à parte, cria as
coisas. A natureza se torna o mundo. A palavra é o signo por meio do qual o
ser/estar-no-mundo do homem é distinto do ser/estar-na-natureza do animal. A
questão interminavelmente debatida de se o poder da fala é realmente um atributo
distinto do homem, ou se alguma espécie de animal altamente desenvolvida é capaz
de falar, essencialmente se centra em torno da definição do termo “linguagem” 5. Se
linguagem é definida por sua função social, se a palavra é principalmente vista como
o instrumento usado por indivíduos de uma dada comunidade para se comunicarem
entre si, então não há dúvida que as abelhas, por exemplo, possuem uma linguagem
altamente desenvolvida. Se a linguagem é vista principalmente como uma expressão
da “alma”, da vida interior, emoções, estados da mente, ou como um jogo composto
5
Cf. Ernst Cassirer, An Essay on Man [Um Ensaio sobre o Homem], parte I, capítulo 3.
44
Desde que o homem buscou entender a si mesmo, ele teve que se entender
principalmente como um ser que possui o poder de falar. Isto não poderia ser de outro
modo. A idéia que o homem forma de sua própria essência pode concentrar-se em
atividades práticas, em ferramentas e tecnologias, ou em atividades teóricas, arte,
pensamento, ciência: o que essencialmente caracteriza tudo isto é que a linguagem do
homem nasce como atitude para com o mundo enquanto algo distinto de si mesmo.
Animais também trabalham, adaptam-se, pensam em seu próprio caminho, mas
somente o homem faz tudo isso como um “Eu” confrontado ao mundo. Somente o
homem tem um mundo, e ele o tem somente porque ele tem a palavra. Eu tenho dito
que as notas tornam acessível uma nova dimensão: o mesmo pode ser dito mais
apropriadamente das palavras. Para o cantor, o sentido de ser uno com o mundo, tem
um tipo de precedente no estágio pré-humano, no relacionamento do animal com o
ambiente natural, ao passo que a palavra marca a emergência de algo totalmente
novo, algo que nunca havia existido antes. A passagem para uma nova dimensão aqui
envolve uma quebra radical, um passo para fora da natureza: o homem que fala faceia
o mundo, vê-o “de fora”, fala para ele; em falando para ele, ele o vê como distinto de
si próprio, e vê a si mesmo como distinto dele; o que a palavra nomeia torna-se coisa,
objeto. Filólogos e psicólogos concordam que na evolução da raça bem como do
indivíduo, os objetos fazem seu aparecimento simultaneamente ao avanço dos sons e
45
Neste ponto pode parecer que nossas reflexões tenham se tornado auto-
contraditórias, incompatíveis com nossas primeiras assertivas resultantes de um longo
encadeamento de raciocínios, que a auto-imagem do homem que fala e seu mundo
precisa ser ampliada e suplementada. Realmente, a incompatibilidade é somente
aparente. Pois embora os limites de minha linguagem sejam os limites de meu
mundo, a música vive dentro destes limites: depois de tudo, nós a nomeamos,
dizemos “música”; a palavra a coloca diante de nós, torna-a uma coisa humana no
mundo humano. A música não é estranha a nós. Podemos nos apropriar dela porque
temos a palavra, porque a nomeamos, porque podemos fazer perguntas a respeito dela
– questões concernentes à música não somente enquanto uma “coisa” ou “objeto”
mas também enquanto uma realidade não cerceada pelas palavras “coisa” e “objeto”,
questões concernentes à natureza intrínseca da música, sua essência. Verdade, muitos
escritores rejeitam que tais questões relativas à essência da música tenham qualquer
significado racional. De acordo com eles, é possível falar racionalmente a respeito
somente do “objeto” música, uma atividade humana específica vista historicamente,
psicologicamente, sociologicamente – a periferia, a concha da música, não o seu
âmago; este último, estamos dizendo, esquiva-se à expressão verbal. Tomando este
ponto de vista, conclui-se que a música é por natureza inacessível à palavra, à
linguagem, está excluída do mundo da linguagem, isto é, o mundo humano. Mas
considerar que qualquer discurso sobre a essência da música é infrutífero pela razão
de que o núcleo essencial da música esquiva-se à expressão verbal é interpretar mal o
significado tanto das notas quanto das palavras. Se o discurso racional fosse possível
6
Ogden and Richards, The Meaning of Meaning, p. 96.
46
as palavras devam agora ficar para trás: o que se estende além da palavra não é por
esta razão inacessível a ela. O mundo nomeado será seguido por outras palavras,
dirigidas para o interior, além da fronteira – as palavras que se estendem para dentro
daquilo que está circunscrito, palavras que traçam linhas fronteiriças sempre mais
próximas em torno das coisas, como se as persuadisse. As coisas respondem de várias
maneiras: dependendo de sua natureza ou estrutura, elas se submetem prontamente ou
resistem. Colocando isto de modo diferente, sobre algumas coisas é fácil falar; muito
pode ser dito a respeito delas, mais do que a respeito de outras. Uma coisa visível, por
exemplo, pode ser delimitada, acomodar-se mais prontamente aos requisitos da fala
do que um humor ou uma emoção, o estático mais prontamente que o dinâmico, as
“palavras” mais prontamente que as “notas”. De modo geral, as palavras, por sua
natureza, tendem a enfatizar limites, puxando a atenção para eles; contrariar esta
tendência sempre exige um esforço especial. Quando as palavras estão dando alcance
demasiado, quando nosso pensamento vive exclusivamente nas palavras, na
linguagem, pode ajudar que as coisas, dando caminho para as palavras,
aparentemente se retraindo mais e mais adentro de suas fronteiras, tornando-se
idênticas com suas definições: o mundo se torna irreal. Neste sentido, dissemos acima
que a mera palavra “sujeito” transforma o sujeito em um objeto. Se o mesmo é
admitido acontecer à palavra “nota”, nosso discurso sobre as notas muito breve estará
confinado a freqüências e curvas sinoidais, a figuras e números, isto é, à física; se isto
acontece à palavra “música”, logo confinaremos nosso discurso à história da cultura
ou a regras da teoria musical. Mas a linguagem nunca é impotente. As palavras
podem dizer “não”, podem repetidas vezes desfazer o que as palavras fizeram, podem
perturbar a fixação das coisas em sua existência enquanto objeto, forçar abrir o que
elas haviam fechado dentro de suas fronteiras, traçar novas fronteiras e forçá-las a se
abrirem novamente – palavras atuam contra palavras, linguagem contra linguagem,
ainda assim não cessando de ser palavras, linguagem.
Outra vez a metáfora da esfera vem à mente. O estágio pré-lingüístico pode ser
representado pela esfera indiferenciada. Com o emergir da fala uma diferenciação se
manifesta, a esfera articulando dentro de um centro e uma superfície esférica vista de
dentro – como nós vemos o horizonte, por exemplo, ou o céu estrelado. O centro
significa o homem falante, a superfície o seu mundo. As palavras trançam fronteiras
sobre a superfície; as figuras que elas delimitam são as coisas nomeadas por palavras,
“objetos”. Isto, contudo, não reduz a esfera a um ponto central mais a superfície. Não
existe somente a palavra; há também música, notas, e as notas não traçam figuras na
superfície, não se estendem em duas dimensões sobre a superfície mas cortam através
dela; elas se movem para fora e para dentro sem criar confronto algum com ela: elas
são seres puros na terceira dimensão, a profundidade; elas são, por assim dizer,
perpendiculares à superfície que representa as palavras. Consequentemente, podemos
admitir a realidade dela como uma “perpendicular”: antes e depois da superfície não
há nada. A esfera não é meramente um ponto central mais a superfície; ela tem
também profundidade. As notas colocam a bidimensionalidade do mundo verbal em
questão. Na perspectiva da nota, a superfície é corte transversal do espaço esférico e
as figuras sobre a superfície são projeções de estruturas tridimensionais. Esta divisão,
48
no entanto, não é tão simples quanto parece, não implica que a superfície é o domínio
da palavra, e a profundidade o domínio da nota. A profundidade aberta pelas notas
não é acessível para as palavras. Embora a palavra permaneça na superfície, esta
superfície não é fixa como um lugar definitivo, uma distância definitiva até o centro:
ela pode mudar sua posição, pode se mover mais perto do centro e se mover para
longe dele. As notas não fogem das palavras; as palavras as alcançam. Para qualquer
que seja a profundidade que as notas alcancem, as palavras também podem alcançá-
la, mas elas nunca deixam de ser bidimensionais. A expressão direta da profundidade
é negada às palavras, é reservada às notas. Às notas, de sua parte, é negado o
delineamento definido, a delimitação exata das figuras, as quais requerem as duas
dimensões da superfície para serem representadas. Em si mesma, a dimensão da
profundidade não pode produzir figuras. Então ambas, palavras e notas, têm cada
uma seus próprios limites e suas próprias possibilidades ilimitadas.
“Os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo”: somente agora
o significado da proposição de Wittgenstein pode se tornar inteiramente claro. “Os
limites da linguagem” não implica a existência de um domínio inacessível à
linguagem. Não existe tal domínio. Nada de fato ou potencialmente relevante para a
existência humana está além da compreensão da linguagem; o domínio da palavra é
ilimitado. O limite além do qual as palavras não podem atingir é sua própria atividade
delimitadora. O limite da linguagem é ser ela mesma ser-um-limite (está em ser um
limite). Por mais largos ou estreitos os limites que a linguagem trace, há sempre
alguma coisa que nunca é alcançada: aquilo que está delimitado. Isto é o indizível –
Wittgenstein chama-o de “místico”. Não o místico no sentido de ser infinitamente
remoto, totalmente encoberto; é o que está próximo de nós, em sua presença mais
manifesta, presente em tudo que não seja uma ficção intelectual ou lingüística. Isto é
o que Aristóteles quis dizer quando ele disse que o individual é o inefável. Isto é o
que Rilke tinha em mente quando disse: Wagt zu sagen, was ihr Apfel nennt!” –
“Ouse soletrar o que você chama de maçã!”. Ele próprio ousou exatamente aquilo,
em um de seus poemas da seqüência de “Orfeu”. Wittgenstein estava errado ao
escrever, “o que nós não podemos falar de nós devemos despachar para o silêncio”.
Mas não de todo: o que não podemos falar de nós, podemos cantar a respeito.
Realmente o que queremos dizer aqui deveria estar claro. O homem cantante
não se eleva acima do homem falante; o homem musical não suplanta o homem
racional. A diversidade das notas não é de outro mundo. Elas não derivam de algum
além transcendental ou de algum pensamento, emoção ou ser “puramente interior”. É
a atitude do homem cantante diferente para com o seu mundo. Aquilo do que o
homem falante o coloca à parte e o que ele considera diante de si mesmo, o homem
cantante traz tão perto de si próprio quanto ele possa, tornando-se um com ele. Os
dois atos são como inspirar e expirar, dentro de um processo, ou a
complementaridade do sábio chinês do amor e do respeito.
49
em uma disciplina tão exata quanto a lingüística moderna a correlação popular entre
musicalidade e emocionalidade seja aceita acriticamente e sirva como fundamento
para uma teoria de acordo com a qual a fala marca um avanço sobre o preliminar
estágio “musical”, exatamente como a racionalidade marca um avanço sobre o
primitivo estágio dos “sentimentos”. “É uma conseqüência do avanço da civilização
que a paixão, ou ao menos a expressão da paixão, é moderada; e devemos concluir,
portanto, que a fala dos homens incivilizados e primitivos foi mais passionalmente
agitada que a nossa, mais como a música ou a canção... Houve um tempo quando
toda a fala era canção, ou mais precisamente quando estas duas ações não tinha sido
ainda diferenciadas... Nossa linguagem falada comparativamente monótona e nossa
música vocal altamente desenvolvida são diferenciações da articulação primitiva, a
qual tinha mais nela desta última do que da primeira. Esta articulação era em
primeiro, como o cantar dos pássaros e o ronco de muitos animais e o choro e o
balbucio dos bebês, exclamativo, não comunicativo... Nossos ancestrais remotos não
tinham a mais leve noção de que seria possível uma coisa como comunicar idéias e
sentimentos para alguém mais... Como fazer com que aconteça a associação de som e
sentido? Como fazer aquilo que originalmente era uma selva de sons sem sentido vir
a ser um instrumento do pensamento?... Podemos talvez formar uma idéia do
processo mais primitivo de associações de som e sentido... Nas canções de um
indivíduo particular havia uma recorrência de séries particulares de sons com uma
cadência em particular... Suponha... um amante tinha o hábito de endereçar à sua
garota ‘um ei!, e um alô!, e um ei!’. Seus compadres e rivais não tardariam em
perceber isto, e ... zombar dele imitando e repetindo seu ‘ei-e-alô-e-ei’. Mas uma vez,
quando este tenha sido reconhecido como o que Wagner denominou um ‘leitmotiv
pessoal’, ele poderia não mais bradar para imitá-lo usando-o ... como um tipo de
apelido. ... Ele podia ser empregado, por exemplo, para avisar seu rival. E então uma
vez que tenha sido feito uso de nomes próprios, nomes comuns (ou substantivos) não
demorariam em se desenvolver”. Então, de acordo com Jespersen, a fala
desenvolveu-se a partir da canção.
sucessivos nascem acima de seus vínculos com a emoção e formam novos vínculos –
vínculos com um outro. Uma nota é um som de uma altura definida, referindo-se
primeiramente não a um sentimento expresso por ela – ou, mais geralmente, a uma
coisa – mas a outros sons de altura definida, a outras notas. Uma seqüência de notas é
uma estrutura musical, uma melodia quando sua unidade resulta primeiramente das
relações audíveis de sons uns com os outros, não de sua relação com algo mais – por
exemplo, sentimentos. As notas podem ser audivelmente interrelacionadas somente
porque elas formam um sistema, uma ordem. O passo do chamado pré-lingüístico
para a melodia primitiva não é de um modo menos fundamental do que o passo para a
sentença primitiva. Em ambos os casos, o passo leva à ordem, significa a descoberta
da estrutura; é um ato espiritual que cria significado. O significado do som é
constitutivo da nota musical tanto quanto é constitutivo da palavra; e embora as notas
não sejam significativas no mesmo sentido que as palavras, o problema de como os
sons se tornam associados com o significado é tanto um problema musical quanto
lingüístico. O mesmo abismo separa a articulação pré-lingüística da primeira melodia
e da primeira sentença. Assim como medido por este abismo, a mais primitiva canção
não está um mínimo mais perto dos estágios pré-lingüísticos da cultura do que está
uma fuga de Bach. Similarmente, a sentença mais primitiva e a fala mais
completamente desenvolvida são, enquanto linguagem de palavras, de fato tão
diferentes em espécie da articulação pré-lingüística. Não há evidência contra a
hipótese de que o passo que levou para a palavra foi o mesmo que levou à nota
musical, que o homem começou a cantar e falar no mesmo momento, e que
posteriores diferenciações dos modos verbal e musical de articulação vieram num
estágio quando a fala e a canção não poderiam ser claramente separadas. E tal estágio
de qualquer modo se coloca neste lado do abismo: com respeito à origem, o homem
cantante e o homem falante permanecem juntos. O homem cantante não precede o
homem falante; ele interpreta mal a si próprio quando se vê como o representante de
um estágio evolutivo mais próximo do estágio animal. Seria mais justo atribuir um
lugar altamente espiritual à canção do que à palavra, pois o homem falante encontra
um tipo de suporte material no fato das palavras se referirem a coisas tangíveis, mas
onde pode o músico encontrar tal suporte tangível? Esta talvez seja a razão porque os
mitos gregos e chineses associem o surgimento da humanidade do estado de
barbarismo com o aparecimento de um músico, meio homem, meio deus.
Em seu livro Usprung und Gegenwart, Jean Gebser não se contentou em notar
a correspondência íntima, bem como as afinidades, entre música e magia: de acordo
com ele, a música de fato determina a verdadeira estrutura da magia. “Se os laços
entre música e magia revelam que elas são intimamente ligadas”, ele escreve, “e deste
53
espiritual distinta da natureza ser mais puramente revelado do que na estrutura das
notas? Onde poderia a alma ser mais despertada do que onde ela representa a si
mesma no movimento das notas? Onde poderia estar mais profundamente a
consciência do tempo, enquanto uma das raízes de sua existência, do que na música?
Em verdade, a boca que abre para cantar, não menos que a boca que abre para falar, é
o órgão humano por excelência. Enquanto a boca abre somente para chorar, para
gritar, para articular sons meramente expressivos, não é ainda humano, e pode ser
omitida na representação da figura humana confinada ao essencial. Somente quando
as representações pictóricas revelam que a boca tenha sido descoberta como o órgão
da expressão humana no sentido pleno – isto é, no estágio mítico, não antes –
podemos nós olhar para a origem das notas tanto quanto para da palavra.
É fácil ver como esta conclusão pode ser reconciliada com o fato inegável de
que a música é intimamente relacionada com a magia. Podemos somente manter
claramente na mente que a mesma palavra, “nota”, denota algo diferente em cada um
dos dois estágios em questão. A nota da alma ainda aprisionada do sonho,
inconsciente do ser e do tempo, é como um fenômeno biológico, um som expressivo
ou signo (aviso, chamado, apontamento) ou ambos: um elemento em uma cadeia de
elementos reais. A nota para uma consciência desperta, a nota musical propriamente,
é um fenômeno semântico: parte de um sistema de relações audíveis, um elemento
estrutural, um membro de um todo simbólico. O significado especial das notas
musicais repousa sobre isto, a realização crucial do estágio mítico, a descoberta do
símbolo, torna-se fértil no próprio mundo audível, isto é, no elemento em que está o
essencial do estágio mágico suplantado, o elemento que incorpora aquela
interpenetração entre homem e mundo. O conteúdo da música é mágico, sua forma é
mítica. A música assume o comando e põe em ordem o velho dentro do novo; não
imagina o passado, não olha para trás, não é uma reconstrução mas, antes e mais que
tudo, uma construção: o passado se torna símbolo e desta forma continua a ser uma
força viva no presente e naquilo que está por vir. A música realiza a apropriação do
mágico pelo espiritual: o núcleo essencial da existência mágica é integrado à ordem
espiritual. Inferir da afinidade entre música e magia que a música se origina no
mundo da mágica é falacioso. A música não se origina na mágica; ela originou-se
precisamente devido à perda do mundo da magia, seguindo a lei de que todo
desenvolvimento vivo em que cada estágio sucedente deve incorporar os modos de
existência do estágio precedente. Fala e música não são antagonistas, representam
dois estágios de desenvolvimento, um dos quais supera o outro. Nossa discussão
sobre o relacionamento palavra-nota na canção demonstrou que os dois trabalham
juntos, não um contra o outro; que eles não se contradizem, mas realçam um ao outro;
As palavras dividem, as notas unem. A unidade da existência que a palavra
constantemente quebra, separando coisa de coisa, sujeito de objeto, é constantemente
restaurada nas notas. A música impede o mundo de ser transformado inteiramente em
linguagem, de tornar-se nada que não objeto, e impede o homem de tornar-se nada
que não sujeito. Em nada pode a palavra ajudar a isto; a objetivação da palavra
necessita da nota, exige-a: fortalecer as notas, liberta as palavras para efetuar sua
tarefa de objetivação. Certamente não é um acidente que o mais alto desenvolvimento
55
O Ouvido Musical
60
Outra objeção pode ser sugerida por nossas considerações sobre a musicalidade
e sobre a música em seu estágio primordial. Se a divisão funcional entre produtores,
reprodutores e receptores não havia sido ainda fixada nesse estágio – em outras
palavras, se a esmagadora maioria das pessoas não havia ainda se confrontado com a
música enquanto receptores, enquanto meros ouvintes – então alguém poderia
duvidar de se a música originalmente existiu para ser ouvida. Onde a música vem das
pessoas ao invés de somente ir para elas, a música tem que ser certamente algo que as
pessoas produzem ativamente mais adequadamente do que algo que elas recebem
passivamente. Mas esta atividade é essencialmente a produção de som, um fazer-se
ouvir: fazer música é estar ativamente produzindo sons e trabalhando com sons,
estejam os ouvintes presentes ou não. Esta atividade é, por assim dizer, circular. O
círculo fecha somente quando o som produzido retorna para seu produtor como algo
audível. Isto é verdade para o instrumentista tanto quanto para o cantor; até mesmo
um recluso não faria música em um piano silencioso. O compositor, por sua vez,
ouve em sua mente o que ele cria; até mesmo enquanto criando ele é já um ouvinte
também. De nenhum modo como você olhe, há caminho fora do círculo do audível. O
mundo da música é parte do mundo audível, do mundo da audição.
as causas físicas destas diferenças, para as delicadas variações na forma das ondas do
ar, longe de ser responsável pela eficiência de nosso órgão da audição, faz parecer
tudo ainda mais miraculoso.
Este não é o lugar para decidir a questão de, em quais casos, a linguagem
reflete a história natural da percepção ou impõe sua própria ordem nova sobre esta
última. O que é certo é que a linguagem e a sensação correm em paralelo uma com a
outra: quando ouvimos um som, percebemos geralmente, em acréscimo ao som, a
coisa ou evento que produz o som. Ouvimos o mar ou a tempestade, não ouvimos
meramente um roncar; ouvimos sinos, não um tilintar; uma maçã, não um baque.
Nossa audição não pára, por assim dizer, na sensação mas se estende através dela até
a fonte sonora. Algumas vezes se estende para dentro do vazio. Quando ouvimos um
som cuja fonte permanece indeterminada – um roçar, por exemplo, mas não o algo
que roça – então a sensação é insatisfatória, inquietante; ela nos impele a ouvir, a
tentar descobrir a fonte material do som, e não descansaremos antes de termos sido
bem sucedidos em associar o que ouvimos com algo visível-tangível. Deste modo
percebemos todo o mundo audível, como um acessório do mundo das coisas visíveis
e tangíveis, como se envolto em torno dele. As coisas visíveis-tangíveis regalam-se
com a luxúria de serem audíveis – visto que uma mudança, o gosto pelo colorido, o
enriquecimento da pintura, nos agrada, nos inquieta, nos adverte – olho e mão agem
como legisladores, o ouvido como um órgão auxiliar: isto é como alguém poderia
descrever o mundo descortinado aos nossos sentidos.
O fenômeno é único. Que dentro do domínio sensorial uma sensação por outro
lado liga as coisas como uma de suas “qualidades” deveria emancipar-se e construir
um mundo autônomo de seu próprio, livre de qualquer referência objetiva, não ocorre
em outra parte. O fenômeno análogo no mundo visível, a arte das formas e cores
puras, não oferece nada comparável, pois as cores e as formas são ambas as mesmas
como encontradas nos objetos ou derivadas dos objetos, enquanto o homem não
encontra notas no mundo audível: ele precisa provê-lo delas. É o homem quem cria o
puramente audível, no qual o mundo audível se revela em uma forma que é
inteiramente própria. Sem música, a audição poderia ser considerada como se fosse
ver com os ouvidos. Somente na música, a audição assume o domínio de si própria.
Nossas “camadas” não devem ser confundidas com estágios sucessivos, como
se ouvíssemos primeiro um, depois o outro, e assim por diante. Quando ouvimos
música todos eles se apresentam de uma vez. Necessariamente, analisar uma
experiência unitária é quebrá-la em suas partes.
65
X. A Audição de Notas
O que é uma nota, o que constitui a diferença entre uma nota e outra, não pode,
estritamente falado, ser definido. A única resposta adequada à questão “O que é uma
nota?” é cantar ou tocar uma nota. Não importa quão muitas palavras usemos, não
importa quão corretas e aptas elas possam ser, elas não darão a uma pessoa surda
ainda a mais vaga idéia de uma nota. Tal pessoa pode saber ou entender todas as
66
palavras que tenham sido ditas a respeito das notas: o cerne essencial da realidade
referida pelas palavras permanece um espaço vazio.
É ainda possível encontrar pessoas que imaginam que elas têm a verdadeira
resposta para a questão do que é uma nota ou o que é uma altura. A resposta é: uma
nota é a vibração do ar ou outro meio de propagação.; altura é o número de vibrações,
a freqüência. A palavra “é” aqui significa “é realmente” ou “é verdadeiramente”. É
escassamente possível colocar alguém dentro do quadro da mente de outro alguém
que aceitasse acriticamente tal resposta. Vibrações ou a freqüência de vibrações pode
ser vista ou sentida; notas podem ser ouvidas; elas não são vistas ou sentidas –
somente um surdo “sente” as notas. Como pode algo audível ser algo visível ou
tangível? Os dois podem corresponder um ao outro mais exatamente; o visível ou
tangível pode ser a causa material ou o veículo material do audível. Mas isto não
justifica a assertiva de que um é o outro, e certamente não “realmente” ou
“verdadeiramente”. Por que deveriam os sentidos da visão e do tato ter acesso àquilo
que real e verdadeiramente é, e ao sentido da audição ser negado tal acesso? Por que
deveria o ouvido ser menos fidedigno que o olho ou a mão?
Aqui uma qualificação é necessária. Todos sabem que uma e a mesma melodia,
pode ser cantada por um soprano ou um baixo, tocada em um violino ou violoncelo.
Apesar das alturas completamente diferentes, a melodia permanece idêntica. O que
permanece imutável é a relação da altura de cada nota com suas notas vizinhas. O que
torna uma melodia não é, falando apropriadamente, as notas mas as relações entre as
notas. Uma melodia tomada como um todo pode ser mudada para trás e adiante no
espaço tonal, pode ser transposta para outro tom sem ser modificada, de fato como
67
Ouvir uma melodia é, desse modo, primeiro de tudo ouvir uma seqüência de
notas que permanecem em uma relação específica uma com a outra no que diz
respeito à altura e à duração. Quando ouço uma melodia, não ouço primeiro uma
nota, então outra, então uma terceira, e assim por diante; ao mesmo tempo a cada
nota, ouço a relação na qual ela se coloca em relação às outras notas, precedentes e
seguintes. Anteriormente, havíamos observado que a audição da música difere de
todos os outros tipos de audição, pois aquilo que é ouvido aqui está auto-contido,
enquanto que em outra parte a audição se estende além do próprio som até sua fonte
material. Agora descobrimos que também no caso de uma melodia, a audição não
pára na sensação imediata do som da nota de fato soada, mas se estende além dela,
desta feita não até um objeto material mas até outras notas – notas que ou tenham já
decaído à distância ou estejam ainda ressoando, notas não ouvidas a este momento.
Ouvir além do que foi ouvido em outros elementos audíveis, ouvir a relação entre
algo ouvido com algo não há muito ou ainda não ouvido: como isto pode ser
entendido?
ouvir como uma nota está relacionada a outra notas, precedentes e seguintes, as quais
eu não ouço? Se a melodia é de fato definida por estas relações, como eu posso dizer
que eu ouço melodias? Não seria mais correto dizer que aqui, também, a função do
órgão do sentido é confinada a ter e transmitir as sensações, enquanto que a relação
das notas, e pelo mesmo motivo melodias e toda a música, é percebida por outras
funções não-sensoriais? Podemos concluir que a música é primeiramente pretendida
não para ser ouvida mas para ser percebida por outras funções, o que quer que elas
possam ser?
própria audição? Estas são questões legítimas as quais podem ser resolvidas não por
especulação e debate mas somente por observação cuidadosa do fenômeno musical.
Os resultados de tal observação proverão evidências conclusivas de que a audição
musical efetua tarefas muito diferentes da percepção das qualidades do som exterior.
com a função da audição. Apreciar a mera sensação, o som, é como apreciar os sons
harmoniosos da linguagem sem compreender o que as palavras significam. A
afirmação de que o que é ouvido é música, dificilmente pode ser justificada por este
caminho.
7
Sound and symbol: Music and the External World, pp. 11 ff.
72
sete notas do sistema tonal sobre o qual a música do Ocidente está baseada (e foi
baseada exclusivamente há dois mil e quinhentos anos) tem uma qualidade dinâmica
sua própria; cada uma difere das outras na característica e direção de sua tensão. As
qualidades das notas não são definidas rígida e definitivamente; preferivelmente, elas
se definem plenamente enquanto se sucedem e, para todas, sua determinação admite
certa margem de variações individuais. Somente uma entre as sete notas é
caracterizada pelo estado de perfeito equilíbrio. Este equilíbrio não marca um ponto
zero; é ativo, mas sua atividade é, por assim dizer, dirigida para si mesma. As outras
seis notas são audivelmente dirigidas para esta nota, que funciona como um centro de
atração; elas gravitam para ela, apontam para ela, cada uma de sua posição e a seu
próprio modo. Elas tendem a se mover para longe de si mesmas em direção a ela; elas
carecem de equilíbrio e esforçam-se por obtê-lo. Elas carecerem de equilíbrio é
completamente óbvio para quatro notas – a segunda, a quarta, a sexta e a sétima notas
do sistema: estas notas são claramente instáveis. As duas notas remanescentes, a terça
e a quinta, apresentam um estágio intermediário: ainda que mais estáveis que as
outras, elas estão claramente dirigidas para a nota perfeitamente equilibrada; em
outras palavras, elas estão em um estado de tensão interna.
O que é peculiar à qualidade dinâmica da nota é que nada no evento físico que
produz a sensação corresponde a ela. A qualidade da nota que torna a música possível
não tem contraparte no mundo material. Quando uma nota ressoa, uma curva
luminosa aparece na tela do osciloscópio; um observador experiente pode ler desta
curva todas as características acústicas da nota; a única coisa que ele não pode ler
dela é a qualidade dinâmica da nota. A menor mudança nas propriedades acústicas da
nota será imediatamente registrada por uma mudança correspondente na curva; mas
nenhuma mudança, por mais radical, na qualidade dinâmica será alguma vez
mostrada na tela. Os eventos físicos e musicais pertencem a diferentes ordens da
existência.
Deste modo, o que toma lugar aqui é uma real ruptura no campo da percepção.
Todas as sensações audíveis (incluindo as sensações de uma nota como um evento
acústico) são reações da audição a estímulos externos ou a alucinações. A audição
das qualidades dinâmicas das notas não é nenhum dos dois. É a percepção direta de
74
eventos não materiais. As qualidades dinâmicas das notas dão à audição o acesso
direto a tais eventos. A condição única das notas – se comparada aos ruídos e outros
sons – sua auto-suficiência audível, tem sido por enquanto caracterizada só
negativamente, pelo fato de que as notas não se referem a coisas visíveis e tangíveis.
Podemos agora caracterizá-la positivamente: a nota transcende a sensação auditiva
dentro do audível, uma transcendência interior. Diferente dos sons não musicais, os
quais, indo além do audível, estendem-se até os objetos, a nota vai para um além
audível. Ela penetra neste último, no ponto onde o fenômeno acústico se converte em
musical. Nesse ponto, o próprio escopo da audição se alarga: a audição não é mais
confinada a reações a estímulos externos. “Mais do que nota” é ainda nota; “mais do
que ouvir” é ainda ouvir. Deste modo, a divisão usual da experiência musical em
qualidades externas do som e aspectos espirituais, reações ao estímulo sonoro e
funções não-sensoriais – emoção, imaginação, pensamento ou tudo o que dissermos –
desconsidera a verdadeira essência do fenômeno. O que existe além do domínio da
qualidade externa do som (isto é, do acústico) não é o domínio dos aspectos
espirituais da música – eles não são alcançados senão muito mais adiante – mas
primeiro de tudo, e por longa extensão, as qualidades musicais características das
notas. Onde termina a audição não musical (a percepção das qualidades acústicas
somente), o que começa não é emoção, pensamento, imaginação, mas a verdadeira
audição musical. O mundo da música em sua plena amplitude e riqueza se estende
entre o domínio da audição acústica e as funções não-sensoriais. Sua realidade,
aquela de um processo não-material, é a audibilidade: ela é inteiramente percebida
pela audição.
com esta escola, o dado sensorial imediato e original é ele mesmo um todo, uma
Gestalt, isto é, uma estrutura significativa consistindo de partes diretamente
interrelacionadas. O olho não vê pontos individuais de cor, nem o ouvido percebe
notas individuais, as quais alguma alta função transforma na imagem de uma coisa
visível ou na linha de uma melodia. Mais precisamente, o próprio olho diretamente
percebe o objeto visível; o próprio ouvido percebe a melodia. Além do mais, isso não
é para ser interpretado no sentido de que o fator unificante é uma contribuição
subjetiva da mente, e que o dado individual isolado é objetivo; ao contrário, é
precisamente a noção do dado sensorial elementar, que é destituído de qualquer
conteúdo real, ser uma noção abstrata derivada do todo originalmente percebido.
Fosse este o caso, dificilmente seria correto sustentar que a audição musical,
enquanto distinta das outras espécies de audição, marca uma “quebra de fronteiras”.
Se a percepção é sempre uma percepção Gestalt, diferentes tipos de audição
poderiam diferir somente em grau. De fato, poderíamos perguntar se a nossa primeira
assertiva envolvendo o problema essencial da realidade musical – que nada no
contexto físico do mundo exterior corresponde à qualidade dinâmica das notas – pode
ser sustentada em face das descobertas da psicologia da Gestalt. Uma vez que
abandonamos a noção de que a nota individual é um dado sensorial primário, estamos
justificados para considerar o evento físico, a onda sonora individual que produz a
sensação da nota, como a contraparte da nota musical. Se a nota musical não é nunca
ouvida como uma nota individual, ainda que ao momento que a ouvimos não existam
outras notas, mas sempre como parte de um todo, relacionado a outras notas e ao todo
76
da Gestalt das notas em processo de atualização; se, sendo uma parte, ela é
determinada pelo todo e é ouvida como, ou melhor é, a mesma ou outra, dependendo
do contexto ao qual pertence; se, em outras palavras, sempre percebemos um todo
quando percebemos uma nota individual, a contraparte física do evento musical pode
ser procurada na totalidade dos processos que correm paralelos à audição do todo.
Verdadeiramente, uma onda sonora não mostrará mudanças na qualidade dinâmica de
uma nota, ou, certamente, que a nota tenha qualquer qualidade dinâmica de qualquer
modo. A extensão da freqüência da nota isolada Ré não difere nem de pouco daquela
da mesma nota na frase ; nada no desenho do último Ré mostrará
que 5 se torna 1; nem deveria o quadro mudar nem de pouco se a nota Dó# na melodia
fosse substituída pelo Dó, pois então aquele Ré seria ainda 5. Mas depois de tudo, a
nota Ré é 5, torna-se 1, ou permanece 5 não em si mesma, como uma nota individual,
mas somente no contexto com outras notas, como parte de um todo dado.
Conseqüentemente poderíamos ver que para a contraparte da qualidade dinâmica da
nota não há representação de uma onda sonora individual mas no espectro de todas as
ondas correspondentes a um todo tonal dado. E desde este último desenho será
certamente possível ler a diferença entre Ré – Do – Ré e Ré – Dó# – Ré.
Parece, então resultar da teoria da Gestalt que (1) as qualidades dinâmicas das
notas são determinadas pela totalidade da Gestalt das notas, permanecendo a mesma
ou mudando quando a Gestalt permanece a mesma ou muda, e (2) cada Gestalt é
caracterizada por um espectro de dinâmicas de onda que permanece a mesma ou
muda simultaneamente à Gestalt. As qualidades dinâmicas das notas e os eventos
físicos são então correlacionados pela Gestalt. A possibilidade de transpor melodias,
em particular, mostra que a identidade e a diferença de Gestalt depende não das
alturas individuais mas da proporção das alturas; o que é relevante no evento físico
correlato não são as freqüências mas as proporções de freqüência. É, então, nestas
proporções que deveríamos reconhecer a contraparte física do evento psicológico da
audição musical em geral, e da audição das qualidades dinâmicas em particular.
A psicologia da Gestalt tem até agora falhado (1) em distinguir com acuidade
suficiente entre visão e audição (e entre ouvir padrões das notas enquanto acústico e
musical), e (2) em reconhecer que a temporalidade dos padrões das notas é
radicalmente diferente da espacialidade dos padrões visuais. Estes dois pecados de
omissão – se eles podem assim ser chamados – têm uma longa história. Uma década
antes da publicação do trabalho pioneiro de Christian von Ehrenfels, “Über
Gestaltqualitäten”, Ernst Mach em seu Analyse der Empfindungen, escreve: “De
acordo com pontos de vista iniciais” – este se refere à teoria tradicional da audição
desenvolvida com base na teoria de Helmholtz – “um fato importante, a ser discutido
adiante, permanece incompreensível, e contudo nenhuma teoria pode ser completa
sem considerá-lo. Se duas seqüências de notas começam com duas notas diferentes, e
as proporções entre as freqüências não variam enquanto uma nota segue a outra,
ouvimos a mesma melodia em ambas tão precisamente quanto vemos duas figuras
geométricas similares e posicionadas similarmente como sendo a mesma forma.
Melodias idênticas em diferentes posições podem ser chamadas ... estruturas de notas
78
Próxima objeção: uma figura deve ter duas dimensões para ser percebida pelo
olho; a ordem das notas conforme a altura tem somente uma dimensão. Se as
melodias estão sendo representadas como figuras, a dimensão tempo – a duração da
nota – pode ser adicionada. Linhas horizontais podem indicar o tempo, as verticais a
subida ou descida das notas. Conseqüentemente, o primeiro passo no motivo citado
acima , seria visto no papel aproximadamente como isto: . Os traços
horizontais representam a nota, com o comprimento dos traços indicando a duração
da nota e sua posição indicando a altura; a linha vertical indica a diferença de altura.
O mesmo par transposto para outro tom _ - mesma Gestalt das notas, a
mesma proporção numérica, mas número de freqüências diferentes – poderia então
ser apresentada por uma figura similar: a mesma Gestalt, a mesma proporção
numérica, mas com diferentes comprimentos. O que é a linha vertical considerada
indicando agora – a razão 3 : 2 obtida de ambos e ou a redução
em freqüência na proporção 6 : 5 que resulta de sua transposição? No primeiro caso,
a figura seria a mesma, não similar, e o quadro não mostraria que o motivo tinha sido
transposto; no último caso, a figura não seria mais similar porque a linha vertical
seria mais curta, enquanto as horizontais representando a duração da nota
permaneceriam as mesmas de antes.
Uma representação geométrica pura das relações das notas pode ser realizada
somente se, ao invés das figuras, usamos linhas verticais para indicar freqüências e a
proporção entre elas. O intervalo poderia então ser representado por ,
o intervalo transposto por . As diferenças em altura estão aqui
representadas por diferenças de comprimento, e a proporção igual de seus
80
comprimentos expressa o fato de que os dois padrões de notas são idênticos. Mas é
ainda verdade que aqui, também sem usar figuras ou ângulos, apreendemos
diretamente a identidade de dois padrões, ou igualmente apreendemo-la tão
diretamente quanto ouvimos a identidade das melodias? No diagrama colocado
abaixo, podemos ver imediatamente qual dos três pares à direita exibem a mesma
proporção de comprimento que a do par à esquerda?
um evento musical, faz ele dizer algo, a saber, 5 – 1. Mas se este é o caso, é
por não significar a mesma coisa em outra posição, duas notas diferentes exibindo a
mesma proporção de freqüências: ela diz algo mais, a saber, 2 – 5, e isto é algo mais;
na música, as notas são o que elas dizem. Por esta razão não pode haver tal coisa em
música como a quinta ou a quinta , não mais do que a nota Sib
ou a nota Fá. Aqui somente pode existir a quinta 5 – 1, a quinta 2 – 5 , a quinta 1 – 4,
dependendo de qual quinta se trate (todos os intervalos são lidos descendentes).
Somente a música sabe das notas somente enquanto veículos das qualidades
dinâmicas, somente ela sabe dos intervalos como veículos de afirmações dinâmicas.
Um intervalo de notas transposto para outra tonalidade permanece o mesmo para o
ouvido musical somente se ele diz a mesma coisa que aquela não transposta.
O que foi discutido no trecho anterior não foi a melodia propriamente dita, uma
seqüência prolongada de notas, mas os passos de nota a nota: os intervalos. É uma
matéria de debate se o material construtor da música atual consiste de notas
individuais ou de intervalos. Seja como for, a menor unidade musical (a qual não é
suscetível a subdivisões em partes menores) é o intervalo. Quando Ernst Mach
formulou os problemas envolvidos nos padrões das notas, ele estava correto em
escolher o intervalo como “o dado em sua forma mais simples”. Toda investigação
psicológica sobre como nós ouvimos a música se centra em torno do intervalo.
Desafortunadamente, na maioria dos casos, uma noção errônea e não-musical de
intervalo serve de base. Todos os psicólogos, inclusive os da Gestalt, tratam o
intervalo como uma relação entre notas no espaço tonal, como um fenômeno acústico
mais do que como musical. Até hoje os intervalos estudados pelos psicólogos da
música são intervalos mortos, tal como as notas investigadas pelos primeiros
psicólogos mecanicistas eram notas mortas. O intervalo musical, no entanto, é vivo e,
tal como a nota, deriva sua vida das forças das notas, das posições das notas. Somente
porque ela é viva, em virtude das forças ativas em e através dela, pode um intervalo
ser ligado a outro, pode uma seqüência de graus dar nascimento a um todo tonal de
uma ordem mais alta, uma melodia. que começa a Fuga em Mib menor
de Bach, não é uma “quinta”, 2 : 3; é 1 – 5, o soar de pólo e contrapólo, sugestivo da
tensão primordial que é a marca de legitimidade da nossa música. O que segue
não é uma série de segundas ascendentes e descendentes, 15 : 16 : 15
1/2
: 13 : 12 : 13 : 15; se fosse, onde estaria o limite, o ser significativo? É 5 – 6 – 5 – 4
– 3 – 4 – 5, o qual prolonga a tensão introduzida por 5 por mover-se em torno da
tensão da nota. Então chega a , certamente não qualquer quarta, 3 : 4, mas a
quarta 1 – 4, cuja função aqui é começar a redução gradual da tensão, .
Deste modo, a afirmação viva do primeiro intervalo dá nascimento à idéia musical:
82
o que ouço é sem dúvida o mesmo tema de antes deslocado para uma posição abaixo;
mas eu o ouço como o mesmo não por que as proporções das alturas são as mesmas,
mas por que meu ouvido foi reorientado no processo e o centro dinâmico foi
deslocado com Réb – Mib – Fá – Sib (abaixo), para que as notas preservem suas
qualidades dinâmicas não obstante suas novas posições, e os intervalos digam a
mesma coisa que antes. Se faço uma leve mudança tocando Ré – Mib – Fá – Sib
(abaixo) ao invés de Réb – Mib – Fá – Sib (abaixo), meu ouvido não será reorientado:
a quarta transposta Sib – Mib dirá 5 – 8 – isto é, quase o oposto do antecedente 1 – 4 –
e tanto o resultado da idéia será então alterado quanto demandará uma continuação
inteiramente diferente. Se o ouvido apreende Sib – Fá sem ter sido preparado para ele
por meio do prelúdio, o intervalo será, por razões a serem colocadas abaixo,
claramente ouvido como 1 – 5. Neste caso, o ouvido foi corretamente orientado desde
o início, e o tema é verdadeiramente ouvido em uma posição abaixo – um exemplo de
perfeita transposição. Claramente, o intervalo musical é qualquer coisa menos
insensível a mudanças no espaço tonal. Ao contrário, ele é altamente sensível a toda
mudança de posição. Por saber expressar coisas muito diferentes com o mesmo
intervalo, a linguagem musical desde Bach tem descoberto um de seus principais
meios de expressão. Pegando um exemplo ao acaso, um homem que ouça a melodia
de Beethoven
83
meramente como três passos iguais, três quartas gradualmente ascendentes, e falha
em ouvir como o mesmo intervalo acústico toma um novo significado enquanto
ascende de 1 – 4 através de 2 – 5 para 3 – 6 – a conclusão Fá – Mib – Réb – Dó
recapitula a quarta 6 – 5 – 4 – 3, escrita de trás para diante – tal homem não ouve
música. (O significado da primeira quarta, 1 – 4, é definido pelo contexto.) A
diferença entre a Gestalt acústica e a musical é ainda mais aparente quando não
somente a proporção das alturas mas também as próprias alturas permanecem as
mesmas, embora as qualidades dinâmicas sejam alteradas. Para tornar esta uma
transformação notável, é mais freqüentemente necessário adicionar novas vozes ou
acordes à melodia. No exemplo seguinte:
Mas é realmente a Gestalt – pois, apesar de tudo, esta questão precisa ser
perguntada – que dá ao intervalo um sentido ou outro, que determina seu significado
musical? É a Gestalt do Prelúdio em Mib menor que responde pelo fato de que
diz 1 – 5 no começo da fuga, enquanto que diria 5 – 2? Realmente
qualquer prelúdio leva ao mesmo resultado desde que ele conclua na mesma
tonalidade. De fato, uma vez o centro tenha se tornado evidente, por quaisquer meios,
os intervalos serão ouvidos expressando realmente o que eles expressam a um dado
ponto. A estrutura de cujo contexto um ou outro significado do intervalo é derivado,
por essa razão, não é uma Gestalt mas um sistema. O que um intervalo diz – isto é, o
que ele é enquanto um evento musical – é determinado não por sua posição na
Gestalt das notas ou no espaço tonal, mas só e exclusivamente por sua posição no
campo dinâmico. Todos os intervalos de todas as Gestalten diatônicas das notas
derivam dos significados das afirmações das sete qualidades dinâmicas das notas no
sistema diatônico, o qual é sempre o mesmo. Para ser claro, as qualidades dinâmicas
são ouvidas somente em notas dentro de um contexto musical enquanto Gestalten das
notas; embora elas se originem não na Gestalt mas nas próprias notas, na medida em
que elas pertencem a um sistema, e as notas, como os números (não custa repetir
isto), existem somente “dentro de um sistema”. A qualidade dinâmica da nota – a
incompletação da nota, seu apontar além de si mesma – não é dirigida para outras
notas dentro de uma dada Gestalt, mas para outras notas do sistema ao qual
pertencem. Sons sem qualidade dinâmica audível, sons enquanto fenômeno
puramente acústico, formam também Gestalten audíveis. Sinos repicantes, o canto
dos pássaros, o soar de sirenes – eles, também, são estruturas dinâmicas, pois uma
Gestalt vem a existir sempre que uma “força” recebe a sustentação da “matéria”. Na
Gestalt musical, no entanto, a própria “matéria” é a “força”: a Gestalt musical é uma
estrutura dinâmica de alta ordem. As forças das notas não são as forças da Gestalt.
Realmente, o dinamismo da Gestalt musical pressupõe dinamismo tonal; e a teoria da
audição que pode adequadamente responder pela audição da Gestalt ainda tem um
longo caminho a percorrer antes que possa explicar adequadamente como as
Gestalten musicais e as qualidades dinâmicas podem ser ouvidas.
Tanto quanto diz respeito à psicologia da Gestalt, a audição musical não pode
ser basicamente diferente de outros tipos de audição ou, por essa razão, de qualquer
outra percepção dos sentidos. Desde que nossos sentidos sempre percebem o mundo
externo na forma de Gestalten, esta teoria considera a Gestalt tonal como uma das
muitas Gestalten auditivas, uma dentre as muitas Gestalten do mundo exterior
percebidas pelos sentidos. Conseqüentemente, os conceitos básicos desta teoria
podem ser aplicados ao fenômeno musical somente na medida em que esta última não
é essencialmente diferente de outros fenômenos auditivos, isto é, somente na medida
em que eles são acústicos, e não especificamente musicais. Mas ouvir música, ouvir
qualidades dinâmicas, é ouvir o que as notas dizem, pois notas são significativas,
audivelmente significativas; um contexto musical é um contexto significativo e, na
realidade, exatamente como um fenômeno musical não é uma Gestalt mas um veículo
para expressar significados. Pelo mesmo motivo, a audição musical é essencialmente
85
atonal não tem investido contra quaisquer que sejam os problemas muito diferentes
de responder pelos princípios estruturais da música tonal.)
A Gestal Pseudo-temporal
Tais analogias entre espaço e tempo são tão naturais, tão sedutoras, que elas
facilmente obscurecem a impossibilidade – até mesmo, o absurdo – da concepção na
qual estão baseadas. Para clarear a situação, vamos voltar para o processo elementar
do intervalo.
Até agora temos discutido somente intervalos entre notas que soam
sucessivamente, não simultaneamente como um acorde. A psicologia da Gestalt está
meramente sendo coerente quando falha em distinguir precisamente entre os dois
(isto é verdadeiro, de algum modo, para todas as outras teorias psicológicas da
música). Ela é também coerente em exibir uma certa predileção pelo acorde: de fato,
duas notas de diferentes alturas soando simultaneamente provê uma ilustração ainda
mais notável da característica quase-espacial do padrão tonal do que duas notas
soando em sucessão. Por esta razão, os Gestaltistas tratam a seqüência como o
acorde quebrado em duas notas sucessivas. Eles usam os termos “horizontal” e
“vertical” (derivado do modo como os símbolos são arranjados em nossa notação)
para designar a diferença entre o passo e o acorde, porque em seu ponto de vista esta
diferenciação não é essencial como aquela entre duas figuras no espaço geométrico.
Uma simples rotação de 90° é suficiente para tornar uma horizontal uma vertical – a
própria linha permanece a mesma de antes. De acordo com eles, toda a diferença
entre e vem disto: no acorde, a unidade da Gestalt é baseada na ligação
entre duas notas de fato presentes ao ouvido, enquanto no passo ela é baseada na
ligação entre uma nota de fato presente e outra presente somente como um eco tardio
ou uma recordação. Agora, isto pode ser verdadeiro para o intervalo visto como um
evento puramente acústico, mas a situação é muito diferente em um evento musical.
Aqui a diferença entre , uma seqüência de duas notas, e , um acorde, não
pode ser superestimada. O passo horizontal 1 – 5 é tudo menos uma dobradura para
fora no tempo do intervalo vertical 1/5. Na seqüência , a nota Ré é relacionada
audivelmente para trás à nota Sol, uma nota, no entanto, que está ausente. A tensão de
5, seu apontar em direção a 1, é aqui percebido como uma tendência, um anseio, isto
é, uma privação; a qualidade dinâmica da nota expressa uma ausência, a não presença
88
Como para a tríade, deve ser primeiro repetido que em música não há tal coisa
como a tríade, não mais do que a nota ou a quinta. A música reconhece a tríade
somente como graus harmônicos, como tríades do I, II, III graus etc. – como acordes
definidos cada um pela posição de sua fundamental no campo dinâmico, a qual o
relaciona ao campo dinâmico supra-ordinário. Em harmonia, o evento elementar não
é o acorde mas o passo acordal, como o passo da nota é para a melodia. Aqui,
também, é totalmente enganoso distinguir entre melodia como sendo a dimensão
horizontal e harmonia como sendo a vertical da música. A música conhece somente a
horizontal. Somente que a melodia é uma progressão tonal, um movimento tonal,
enquanto a harmonia é progressão acordal, movimento acordal. Ainda quando o
acorde individual tem um grande valor auditivo, por assim dizer, mais que a nota
individual, aqui, também, a peculiar audição musical é caracterizada pela direta
percepção de relações. Precisamos somente pensar nas tríades de I e V grau para
realizar como muita da diferença entre estados dinâmicos superam a identidade dos
estados acústicos, tanto quanto diz respeito à audição.
Não somente com respeito ao “não ainda” mas também com respeito ao “não
há muito” é possível detectar uma diferença entre os dois tipos de melodia. Em um e
outro caso ouvimos uma melodia, notas como veículos de forças, cada nota
incompleta em si mesma, apontando para além de si mesma, ansiando ser completa.
Em ambos os casos, a audição é antecipatória, dirigida para a nota ainda não ouvida.
Agora, na melodia acordal, esta audição antecipatória é guiada pelo padrão tonal
prefigurado no acorde: o ouvido é em certo sentido dirigido pelo último, sua
antecipação como algo razoavelmente previsto. Cada nova nota serve meramente
para confirmar o que o ouvido havia antecipado: o centro de interesse e suspense
sobre como o padrão dado de antemão será satisfeito passo a passo, não sobre o quê
irá satisfazê-lo. Se ainda este interesse está ausente, o previsto torna-se certeza; os
sons não têm nada a confirmar. O que ouvimos é meramente “acompanhamento” ou
má melodia. Em contraste, em uma melodia não-acordal, isto é, em uma melodia pura
e simples, esta audição antecipatória penetra um vazio. Aqui nada é dado em
antecipação: aqui não há padrão, nenhum todo que possa guiar o ouvido. Neste caso,
a audição não é guiada; ela tem que encontrar seu caminho. Ela não está prevista nem
em seu como nem em seu o quê, somente quanto ao seu para quê. Cada nova nota é
tanto esperada quanto inesperada, cada uma é um evento, uma descoberta, uma
surpresa. Isto é verdade igualmente para a nota concludente: muitas coisas podem
ainda acontecer antes do fim; freqüentemente, de fato, surpresas ocorrem antes da
nota final ser alcançada, surpresas não somente para o ouvinte mas igualmente para o
compositor (um exemplo bem conhecido: as duas versões do Prelúdio n° 1 do Cravo
Bem Temperado). O padrão das notas é de fato construído passo a passo, tirado à
força do vazio; ele se descobre e encobre para o ouvido nota a nota. Estritamente
92
falando, não podemos ouvir tal padrão como uma totalidade, como fazemos com um
acorde desdobrado no tempo; podemos somente após tê-lo ouvido.
Pode-se notar, contudo, que somente um padrão de audição deste tipo penetra
no vazio, não há nada dado para sua previsão; por outro lado, algo muito importante
– um sistema tonal completo – é dado a ele: em termos mecânicos, o teclado com
suas teclas brancas e pretas, e em termos musicais, um campo dinâmico, uma ordem,
uma lei. Mas a diferença entre os dois tipos de melodia não é meramente qualitativa,
entre as três ou quatro notas do acorde e as sete ou doze notas do sistema. A diferença
permanece fundamental. Na melodia acordal, o que é dado de antemão é já um
padrão; na outra, o caso mais geral, este não é um padrão, é um sistema, uma lei: a
possibilidade de um padrão, a matriz de todos os padrões possíveis. Tudo o quanto é
dado deste modo não dirigirá o ouvido para qualquer padrão específico. A presciência
do ouvido para a lei que governa as energias tonais – seu conhecimento sobre o que,
manifestado por sua habilidade para identificar as qualidades dinâmicas das notas – é
intimamente ligada com o não-conhecimento, um mero conhecimento do quê tanto
quanto os padrões são afetados, e conseqüentemente com uma urgência descobrirá o
padrão. Limitada audivelmente ao sistema, sujeita audivelmente à lei, a nota é ao
mesmo tempo inteireza audível livre para um infinito de padrões tonais possíveis.
Peças musicais têm sido compostas expressamente para prover exatamente essa
“sensação de um começo” que Valéry evoca. As improvisações de Beethoven podem
ser vistas como um exemplo característico. O exemplo mais refinado talvez seja a
abertura Freischütz de Weber. A primeira nota soa, inconsciente de onde ela vem e
para onde ela está indo, mas ela tem um tipo de esforço em si, e em uma poderosa
arremetida para adiante encontra sua oitava. Encorajada por isto, ela se arrisca um
passo para trás, então um passo para adiante, então novamente apalpa cautelosamente
para trás e experimenta começar tudo outra vez – até o ponto em que o contrapólo é
descoberto. Este, também, tem sua oitava, com suas novas vizinhas ao lado dela;
novamente há um tatear para trás, uma parada, e então soa a mais pura tríade, a partir
da qual a mais pura melodia é desenvolvida. A música começa a nascer dentro de
outro mundo. Aqui a música escrita é autobiográfica: a nota, diferente e sempre não
mais que um elemento de um padrão, volta para dentro de si mesma, inquire sobre
sua própria natureza, buscando e encontrando sua própria resposta.
E agora a fisiologia. A discussão que se segue não lida com o estado presente
de nosso conhecimento a respeito dos processos orgânicos envolvidos na sensação
94
“Eu ouço uma nota”. A maioria das pessoas interpreta esta afirmação como ela
era interpretada há cem anos atrás. A membrana do tímpano no ouvido é colocada a
vibrar por uma onda sonora, a vibração se propaga para o ouvido interno, e, depois
que é comunicada via nervos auditivos para o cérebro, produz uma sensação de som.
Nem a primeira ligação nem a última no encadeamento estão em questão aqui,
somente a intermediária. O que acontece entre a membrana do tímpano e o centro
cerebral? Em virtude da complexidade inacreditável do ouvido – em comparação com
o olho é como uma bicicleta para um automóvel – a questão envolve dificuldades
esmagadoras.
A resposta clássica foi dada por Helmholtz no seu On the Sensations of Tone
[Sobre as sensações das notas] e, fora de um estreito círculo de especialistas, ela se
mantém válida até os nossos dias. O ponto principal desta teoria é o seguinte: no mais
interno recesso do ouvido, dentro de uma passagem em forma de caracol, o labirinto
membranoso, uma membrana delicada esticadamente estendida está embebida em um
fluído. A membrana é composta por mais de dez mil fibras variando de 0,04 a 0,5
milímetros de comprimento. Ela se comunica com o mundo externo através de uma
janela minúscula, cuja placa elástica vibra em união com a membrana do tímpano.
Somente as fibras de um comprimento específico e de um grau específico de tensão
respondem a uma vibração específica propagada pelo canal auditivo: as fibras atuam
como as cordas de uma harpa ou piano com o pedal acionado. Cada fibra está
conectada com o cérebro por um nervo que, estimulado pela vibração em sua
terminação, produz um estado de excitação para o outro. Para cada nota de uma dada
altura (isto é, freqüência) assim corresponde uma fibra vibrante no ouvido interno,
um nervo atuando como condutor e um ponto específico no cérebro, e a excitação
deste ponto parece ser a “causa” da sensação auditiva. Os harmônicos que
normalmente acompanham toda nota similarmente tocam os processos orgânicos e
nervosos correspondentes às suas freqüências; mas os harmônicos são normalmente
muito fracos para produzir sensações auditivas por si próprios. Eles, contudo,
“colorem” a nota fundamental de várias maneiras (a nota de uma flauta, de um
trompete, e assim por diante). Quando muitas notas ressoam simultaneamente, as
fibras, nervos e células cerebrais correspondentes são ativados simultaneamente, mas
cada uma de modo independente das outras; é por isto que um ouvido treinado pode
facilmente analisar um acorde em seus componentes.
acontece entre elas, não pode ser apreendido pelo ouvido, mas somente por alguma
outra função “mais elevada”.
Esta teoria também entra em conflito com os fatos. Experimentos provam que
os nervos auditivos podem receber e transmitir não mais que 1.000 ou 2.000 impulsos
por segundo, não os 5.000 ou 10.000 ou 15.000 impulsos correspondentes ao número
de freqüência das notas agudas. Tentativas têm sido feitas para rodear esta
dificuldade, por admitir que os impulsos elétricos são propagados por meio de
complicadas ligações, sobre feixes de filamentos nervosos, e também pela
combinação da teoria do “telefone” com a teoria da ressonância, a primeira
respondendo pela percepção das notas graves, a segunda pelas notas altas. A
discussão está ainda em curso.
Esta resposta pode ser suficiente no que concerne ao padrão visual; ela não
alcança o problema dos padrões das notas musicais. Voltado ao exemplo citado
8
Som e Símbolo: Música e o Mundo Exterior, capítulos 7 – 10.
102
no sentido mais amplo; no outro caso, a audição não serve de modo algum a qualquer
propósito biológico. Ela é, como tem sido dito muitas vezes, uma função luxuriosa; a
informação que ela conduz – concernente à relação entre notas – não tem nada a ver
com a auto-preservação do organismo. Por outro lado, se considerarmos os esforços
tremendos que a natureza tem feito a fim de desenvolver a habilidade auditiva para
distinguir afinações puras (sem a qual nenhuma música seria ouvida) – sua “harpa”
com dez mil cordas comportando pequenas células eletricamente carregadas, e uma
rede nervosa altamente complexa a qual (se a hipótese acima mencionada provar-se
correta) conecta-a com um centro cerebral especializado em ouvir música – se
considerarmos tudo isto, hesitaremos em chamar esta função uma luxúria, a menos
que usemos o termo no mesmo sentido como quando dizermos que o homem é um
produto “luxurioso” do mundo animal, ou a mente um produto “luxurioso” da
natureza.
9
Gerard Manley Hopkins, “Henry Purcell”.
105
melodia como uma criação individual e como estrutura governada por certas leis.
Além disso, como será visto no próximo capítulo, uma dada graduação de melodias
artísticas pode ser lida de tal diagrama. Aqui, parece primeiro de tudo confirmar um
sentimento que temos quando ouvimos esta ou qualquer outra boa melodia – um
sentimento de que tudo nela é absolutamente necessário: que nem uma única nota
pode ser adicionada ou removida, que cada nota deve ser exatamente o que ela é.
Agora, a fim de obter maior percepção sobre o que torna o movimento tonal diferente
de todos os outros tipos de movimento, devemos entender como sua inegável
necessidade sempre coexiste com uma igualmente inegável liberdade. Nenhuma nota
deve ser diferente do que é, ainda cada nota poderia ter sido diferente do que ela é;
não fossem ambas as proposições igualmente verdadeiras, não existiria a música.
ele agiu de acordo com uma força exterior. Se usamos para denotar uma realidade ou
como um termo auxiliar que provê um quadro de referência para uma investigação
racional sobre a causa do movimento, “força” é “o outro” em relação ao “corpo”. O
corpo é o que resiste à força, e força é o que atua “desde fora” contra a resistência do
corpo; um corpo está em movimento quando sua resistência foi superada pela força.
Um movimento é inanimado quando uma força ativa causou seu movimento com
absoluta necessidade; esta é a razão de tal movimento ser sempre calculável a
princípio. Em outras palavras, um movimento é inanimado na medida em que ele é
um fenômeno puramente físico. O princípio de indeterminação que, de acordo com os
físicos modernos, governa os movimentos das menores partículas conhecidas, refere-
se a situações nas quais a distinção entre corpo e força torna-se fluído, no qual a
questão “Por quê?” perde seu sentido tradicional, de maneira que perguntas e
respostas devem ser formuladas em novos termos.
se submete ao vento ou à gravidade, deixa-se ser guiado ou deixa-se cair, isto não é
exatamente o que acontece; acontece com o consentimento do pássaro, o qual ele
pode retirar a qualquer momento. Quando ele é retirado, quando o movimento é
revertido, quando o pássaro voa contra o vento ou ascende verticalmente ou em
espirais e círculos – o que quer que resulte de uma decisão que poderia ter sido
diferente, e por esta boa razão os movimentos do pássaro não são nunca
descontrolados, acidentais ou arbitrários, mas, antes, internamente consistentes,
determinados e guiados através de seu impulso interior. Em comparação, o
movimento de uma folha – o qual é inteiramente determinado, necessário, o qual não
pode nunca ser outro que não aquele – ocorre-nos como sendo ao acaso, arbitrário e
acidental.
Para colocar ordem na confusão que prevalece sobre este tema, examinaremos
em mais detalhe um dos argumentos que Eduard Hanslick coloca em evidência no
seu bem conhecido tratado Do Belo Musical, o clássico ataque contra a teoria
emotiva da música. Ele rejeita o conceito da música como “a expressão de
sentimentos” em favor de seu próprio conceito de “padrões sonoros dinâmicos”, o
qual, ele declara enfaticamente, são totalmente não relacionados aos movimentos
psíquicos, isto é, as emoções. “Movimentos psíquicos em si, sem qualquer conteúdo”,
ele escreve, “não são um objeto da encarnação artística”. Dentre os inúmeros
testemunhos que ele cita para refutar a teoria emotiva está a famosa ária “J’ai perdu
mon Eurídice, rien n’égale mon malheur”, do Orfeu de Gluck, sobre a qual um dos
próprios contemporâneos do compositor observou que poderia igualmente ser cantada
com as palavras “J’ai trouvé mon Eurídice, rien n’égale mon bonheur”. A observação
é bastante justificada; realmente, um ouvinte que não conheça o texto provavelmente
escolheria a segunda interpretação. Seja como for, este argumento é decisivo: uma
linguagem cujas palavras podem significar o oposto daquilo que o orador pretende
expressar seria uma linguagem realmente estranha. Desafortunadamente, Hanslick
toma por garantido que este argumento contra a teoria emotiva prova sua própria
teoria, isto é, que a música não tem nada a ver com emoções. Ao invés de se fiar em
tal pseudo-lógica, ele deveria antes permitir-se ser guiado pela própria melodia.
Embora ele tivesse admirado o gênio de Gluck, sua profunda percepção sobre a
natureza da verdade dramática, agradecimento que Orfeu expressa ele próprio
precisamente nesta melodia melhor do que em qualquer melodia que se pudesse
reconhecer como “triste”. Ele teria percebido que embora se ajuste as palavras “j’ai
perdu” tão bem quanto as palavras “j’ai trouvé”, ela não se ajusta às mesmas palavras
se “mon Eurídice” fosse trocado por “mon parapluie”, a menos que se pretendesse
uma paródia óbvia. Ele teria realizado que algo está errado com a afirmação de que a
música é “neutra” em relação aos sentimentos. Afinal de contas, as próprias notas nos
109
dizem onde elas são e onde elas não são neutras. Elas são neutras onde as distinções
entre emoções, tal como o desgosto por uma perda e a alegria por um encontro, dizem
respeito; mas elas nos falam claramente o que o desgosto pela perda e o reencontro
com a pessoa amada têm em comum, e o que as distingue de emoções provocadas
pela perda ou redescoberta de um objeto, a saber, sua profundidade e intensidade, e o
modo de auto-consciência que as acompanha. O tema real da melodia de Gluck não é
nem “bonheur” nem “malheur” mas “rien n’égale”. Se você imagina que a melodia é
cantada para palavras expressando alegria, você descobrirá que, sob a influência das
notas, a emoção toma uma qualidade distintiva similar à qualidade do desgosto de
Orfeu. As notas não expressam ou representam emoções específicas. Padrões tonais
comunicam suas emoções às emoções do ouvinte, e como um resultado a última toma
o caráter dos padrões. A melodia estampa seu caráter na emoção, não o contrário.
Susanne Langer
acordo com aquilo que discutimos aqui. Ela rejeita a alternativa estéril entre música
como linguagem das emoções e música como forma pura totalmente desconectada da
vida, entre as teorias emotiva e formal, e sugere uma nova abordagem: a música ser
interpretada como “expressão do sentimento”, “sentimento” sendo usado no sentido
de uma vida interior em contraste a “sentimentos”, e “expressão” no sentido no qual
“expressamos” uma operação ou relação por um símbolo matemático ou lógico, tais
como e , ou um termo técnico tal como “integral” e “implicação”. As notas
significam algo; elas são símbolos universais alcançados por meio de abstração desde
experiências realmente particulares, e o que elas significam é chamado “sentimento”,
“vida interior”. “O que a música de fato traduz não é nada que não a morfologia do
sentimento . . . a lei da experiência, a ordem da existência afetiva e auto-sentimento,
que não pode ser colocada em palavras, mas não é por essa razão indizível”. A
sentença concludente desta passagem diz: “A musica é nosso mito da vida interior”.
Nossa proposta neste capítulo tem sido compreender como o movimento tonal
é percebido. Foi necessário, primeiro, formar a idéia mais clara possível do que é
percebido como movimento na experiência musical. Para compreender o ato de
percepção, alguém deve primeiro conhecer o objeto percebido.
Existe, no entanto, uma coisa tal como a música, movimento tonal, movimento
vivente audível. Na música, experimento um movimento animado que não é nem
113
Assim, não somente as notas que eu ouço estão “em movimento”; ouvi-las,
também, está “em movimento” [“in motion”]. Não somente o movimento que ouço,
mas também o próprio ouvir é “emoção” [“emotion”]. O que está errado com a
questão usual sobre o compartilhar respectivo de sentimento e intelecto na
experiência musical deveria agora estar muito claro. O intelecto – a faculdade de
abstração e conceitualização – não compartilha o que quer que seja na estrutura da
experiência musical; o intelecto não entra no quadro senão posteriormente, como uma
reflexão sobre a música. Similarmente, o “sentimento” no sentido com que o termo é
usado neste contexto, como o singular de “sentimentos”, entra no quadro somente
mais tarde. A música é experimentada somente por ser ouvida. O ato de ouvir é ele
próprio um ato de sentir e compreender – sentir no sentido de ser um movimento
animado, “em emover-se” [“in emotion”], porque somente deste modo pode o
movimento das notas ser percebido, e compreendido no sentido de perceber as
qualidades dinâmicas que determinam o movimento das notas. A idéia de
“contemplação interessada” que ainda assombra a estética está, em parte alguma, tão
distante da realidade quanto no caso da experiência musical. Uma espécie de audição
que não fosse movimento animado, que fosse completamente divorciada dos
processos vivos, que estivesse meramente a serviço de um espelho das notas e as
tratasse com “sublime indiferença”, seria surda a toda a essência da música. Uma
espécie imóvel de audição não poderia nunca tornar-se próxima do movimento tonal,
igualmente como um cão não pode nunca tornar-se próximo de um pássaro, quando
muito ladrar atrás dele. O ouvido não é um refletor mas um ressonador da música.
Quanto mais profundamente eu compartilho do movimento vivente das notas, mais
genuína, mais válida, mais esclarecida minha experiência será.
O ouvido tem muito mais em comum com a pele do que com o olho: isto por
que, em pessoas surdas, a pele assume o comando da função do ouvido enquanto
órgão da sensação “musical”, não o olho. Nenhuma representação gráfica dos sons na
forma de linhas e curvas na tela do osciloscópio pode ser vir como substituta para as
sensações sonoras. Em contraste, quando uma área da pele sensível a vibrações sutis
é exposta a ondas sonoras, tem-se sensações que, embora indefinidas, correspondem
às sensações sonoras. Exatamente como a pele está exposta ao ar circundante, assim
também o ouvido está exposto ao som. Exatamente como o calor interno e o calor
externo, e o frio interno e externo, encontram-se na pele, assim o movimento vivente
interno e o externo encontram-se no ouvido. As cores não nos colorem do mesmo
modo como o calor nos aquece, mas as notas nos “notam” e a tensão tonal nos
“tensiona”. As ondas sonoras sendo transformadas em sensações sonoras: é assim que
ouvimos os ruídos. Ouvir música é algo mais. Tal como uma mão infinitamente
115
Agora, o que em “mim” ouve música? Com respeito a que este “eu” difere do
“eu” na sentença “eu ouço uma afirmação falada” ou “eu vejo uma luz”? Quando eu
ouço música, meu ouvido não é um órgão do qual eu faço uso para uma proposta
específica, mais apropriadamente ao contrário – o órgão faz uso de mim. O ouvido
que percebe a música faz uma demanda sobre mim, toma uma ocupação de mim,
pode funcionar somente se é ele próprio um “eu”, por assim dizer, capaz de
movimento vivente. A situação é adequadamente expressa pela frase “eu sou todo
ouvidos”. Usamos a mesma frase para indicar que estamos ouvindo, ou dispostos a
ouvir, atentamente, uma afirmação falada; mas fazemos isto porque pretendemos
reagir ou explicitamente, por lhe responder a ela, ou implicitamente, por armazená-la
em nossa memória. O ouvinte de música não tem tal intenção; sua atitude não é
aquela do jogador de bola esperando pela bola a fim de arremessá-la de volta ou
ainda meramente apanhá-la, mas aquela de um nadador que se permite ser carregado
pela corrente ou pelas ondas enquanto ele nada. Podemos dizer também, “eu sou todo
olhos”, e então nossa atitude é aquela do jogador de bola, expectando, observando,
contra-golpeando. A frase pode significar também que contemplamos o que vemos
do mesmo modo como ouvimos música, isto é, quando contemplamos uma obra de
arte e nos identificamos com o que vemos. Podemos ouvir afirmações faladas do
mesmo modo, como quando ouvimos o som da voz do orador mais do que o que ele
diz – não criticamente, com a intenção de fazer inferências com respeito ao seu
caráter, mas sem qualquer intenção, puramente fora da simpatia ou do amor. Ao
invés, é possível ouvir música da maneira que ouvimos afirmações faladas, ouvindo,
expectando, intentando replicar, como alguém ouviria a sinais. Neste caso, o ouvido
me dá informação a respeito de um evento em meu ambiente. O ouvido é “meu”
ouvido; ele me comunica algo – “eu”, “ouvido” e “algo” estão claramente
distinguidos um do outro. Mas no momento em que começo a ouvir música ao invés
de sinais, a situação muda10. A relação entre “eu” e “ouvido” é revertida: agora o
ouvido me possui e eu estou possuído pelo ouvido, o qual por sua vez está possuído
pela música, torna-se o ouvido próprio das notas. Neste ponto, a linguagem, estando
firmemente amarrada à estrutura sujeito-objeto-predicado, começa a nos falhar. O
“eu” não mais é algo que “faz” algo” (isto é, ouve) e “obtém” o resultado daquilo que
faz (as sensações das notas); agora, denota somente um dos três aspectos (os outros
dois são “ouvir” e “notas”) que constituem o evento vivente. Aqui, tendo reconhecido
10
Efeitos marcantes são alcançados quando um sinal musical torna-se música pura (vide Fidelio de Beethoven) ou
quando sinais são fundidos com sons musicais, como no terceiro ato de Tristão e Isolda.
116
que ouvir música é compartilhar ativamente a vida de uma realidade vivente, somos
inevitavelmente confrontados com o difícil problema da qualidade artística. Toda
nota em uma estrutura musical é, e é ouvida como, o veículo de uma qualidade
dinâmica; toda seqüência musical de notas é, e é ouvida como, movimento vivente. A
vida, especialmente a vida humana, tem uma estrutura hierárquica; suas
manifestações são sempre caracterizadas de acordo com qualidades e graus. São
diferenciadas dentro de ordens fundamentais de autêntico e inautêntico, nobre e
vulgar; são ordenadas de acordo com estágios de desenvolvimento, alinhando-se
desde o começo simples à maturidade final. Desde que a música é ouvida como algo
vivo, também deverá ser caracterizada audivelmente de acordo com diferenças em
qualidade e grau, e o ouvido humano deve ser capaz, unicamente por si mesmo, de
distinguir entre autêntico e inautêntico, nobre e vulgar, maduro e imaturo, entre obras
musicais desenvolvidas de modo rudimentar e de modo elevado. Que fazemos isso,
todos nós sabemos: todos distinguimos entre obras de arte e imitações inferiores,
entre música popular e música artística. O critério que aplicamos ao fazer tais
distinções pode ser difícil de formular, a princípio não podem ser provados; uma
concordância definitiva a respeito deles pode nunca ser alcançada; amplas
divergências de juízo em casos individuais podem sempre ser possíveis; tudo isto de
modo algum deprecia a validade das distinções, as quais são irreversíveis e
independentes de opinião individual.
Umas poucas palavras não seriam inoportunas neste ponto pois por qual razão,
em um capítulo dedicado ao movimento tonal, não foi feita menção ao ritmo,
normalmente o primeiro tópico discutido com relação a isto. A resposta é simples:
aqui estivemos interessados com as espécies de movimento perceptíveis somente ao
ouvido. O ritmo, notoriamente, apela aos sentidos do tato e da visão também; e, até
dizer respeito à audição, muitos outros meios que não as notas em uma estrutura
musical podem ser usados para estimular as sensações rítmicas tão efetivamente
quanto, ou ainda mais efetivamente do que, as notas musicais em uma estrutura
musical: meros ruídos – fenômenos não-musicais – ou notas usadas tanto como sons
acústicos quanto como sinais. Além disso, a experiência do ritmo é intimamente
limítrofe às sensações motoras dentro do corpo do ouvinte que estimula movimentos
correspondentes, se de fato ou meramente intencionados, por disparar respostas
musculares as quais são freqüentemente consideradas o verdadeiro cerne da
experiência rítmica. Separar o que é especificamente musical dos processos motores
associados com nossa experiência do ritmo requereria detalhes de análise, tanto
quanto estabelecer o que realmente ela é: a experiência do movimento do tempo.
Fizemos isso no Volume 1 deste trabalho. Aqui estamos interessados em salientar o
fato de que o movimento na música pode ser considerado com base unicamente nas
relações audíveis entre notas sucessivas, uma espécie de movimento peculiar da
música e percebido somente pela audição.
117
_____________
Poderia ser feita a objeção de que estamos dedicando muito espaço para o que,
afinal de contas, é um processo um tanto simples, facilmente compreensível. Mas
estamos face a face com a forma mais simples de um processo que em seu
enriquecimento final resulta nas maiores obras primas da música.
_______________
_________________
Claramente, este também deve ser interpretado como uma espécie de volteio,
como a expansão de uma progressão ainda mais direta, como um primeiro avanço
para a liberdade, que vai além da lei elementar expressa por _______, 1 – 5 – 4 – 3 –
2 –1. Uma terceira camada estrutural vem à vista: descobrimos que há um plano
intermediário, o qual serve como ponte entre o plano de fundo e o primeiro plano.
Este último parece agora ser dominado, determinado e dependente do plano de fundo
120
via a mediação do plano intermediário. De acordo com isto, o quadro completo pode
ser visto como segue:
_______________
Como pode ser visto, este quadro provê a chave para a compreensão da frase
final da melodia. A pequena frase resume direta e concisamente o significado total da
melodia representada pelo plano de fundo. É característica deste tipo que nos capacita
reconhecer a genuinidade de uma melodia, o fato de ela ser algo desenvolvido, não
fabricado.
___________________
Diagramas deste tipo – duas camadas, distância mínima entre primeiro plano e
plano de fundo – são característicos da música popular. A música em estado natural
exibe a estrutura mais simples em profundidade. A melodia de “Morte, a Ceifadora”
com três camadas, é algo excepcional. Mas mesmo esta fina canção popular está
muito perto da complexidade da música artística, como logo se tornará evidente.
Estas reflexões vêm seguindo, desde há muito tempo, um padrão que foi
primeiro descoberto e explorado por Heinrich Schenker, um grande e verdadeiro
visionário e pensador brilhante. Seu trabalho tem desfrutado de um reconhecimento
firmemente crescente, mas seu significado sensacional para a teoria da música e da
arte em geral, ainda não foi suficientemente apreciado. Mesmo uma exposição
aproximadamente completa de sua teoria requereria minuciosa familiaridade com
todas as ramificações da teoria musical tradicional, e estaria fora do escopo deste
livro. É uma construção que em sua ousadia e complexidade iguala as teorias da alta
matemática. Tentaremos não mais do que extrair seu cerne, na medida em que serve
como a fundação e guia para as presentes reflexões.
“Aqui apresento uma nova teoria, inerente às obras dos grandes mestres, que é
o segredo de seu nascimento e desenvolvimento, a teoria da estrutura orgânica”.
Schenker certamente estava interessado na prática, também; sua teoria foi pretendida
para intérpretes tanto quanto para compositores. Mas sua concepção de prática está
firmemente enraizada na teoria, teoria no verdadeiro sentido: um esforço para
compreender a música artística em sua essência, para responder à questão central
122
sobre o que torna uma obra-prima o que ela é. Por esta razão, não é o material das
notas mas as obras acabadas que servem como ponto de partida para sua teoria, a qual
não nos ensina como construir estruturas menores ou maiores com um dado material
de acordo com as regras, mas inquire sobre as forças e leis que tornam possível o
trabalho acabado como ele é de realmente ouvido. Não se deve admitir, é claro, que
os compositores devem estar familiarizados com a teoria para serem capazes de criar
obras musicais: a teoria decorre da experiência das obras; as obras não decorrem da
teoria.
_________________
Uma estrutura fundamental deste tipo não deve ser confundida para uma peça
musical primitiva, por exemplo, ou um “átomo” de música. Enquanto uma verdade,
ela não parece dar a perceber como a música é, ou seja, é ouvida: ela apresenta para o
olho da mente. É a “idéia”, no mesmo sentido do Urphänomen de Goethe, a forma
primordial, a lei fundamental governando a organização das coisas vivas, a qual lhes
dá significado mas não tem nenhuma existência tangível sua própria. Todas as coisas
vivas existem pela graça de sua forma primordial, mas nenhuma coisa em particular é
esta forma em si. Como uma realidade audível, como uma peça de música, uma
estrutura fundamental é nada, um pedaço de trivialidade. Existe somente como uma
potencialidade, como um núcleo dinâmico, a encarnação de incontáveis padrões
possíveis.
Toda obra musical, todo padrão tonal acabado, desenvolve-se desde uma
semente que vive escondida e contudo se revela no padrão, que constantemente
deixa-se ficar por detrás e ao mesmo tempo carrega-a para a frente. Embora a
“semente” – a forma primordial – esteja inteiramente dissolvida no padrão, ela é a lei
fundamental que governa a organização do padrão. Uma e mesma lei determina a
forma e o lugar de cada uma de suas partes e o modo como elas se entretecem juntas
123
______________
comparação com melodias de canções populares, tal padrão revela uma profundidade
maior de estrutura e gera relacionamentos tonais mais ricos e muito maior
complexidade. Este é uma diferença em grau, não em qualidade: tomada em si
mesma, a melodia do Coral Aleluia não é inferior ao tema de Bach, mas o tema
pertence a outro mundo, um mundo de tensões mais altas, um mundo espiritual,
aquele da própria música composta. Na música composta não há lugar para a
simplicidade da música popular – ou melhor, talvez tenha lugar demais. A
“simplicidade” pela qual muitas grandes obras primas são louvadas, pois meramente
parecerem simples: isto é o mais admirável pela maior complexidade que elas
incorporam.
________________
Para evitar possíveis erros de interpretação os quais podem ser sugeridos pelo
diagrama, é preciso dizer enfaticamente que o primeiro plano, o plano intermediário e
o plano de fundo não formam uma sucessão no tempo. As camadas estruturais
individuais não representam assim muitos estágios no processo de criação de uma
melodia. Esta melodia nunca existiu como plano de fundo ou plano intermediário,
nem assim qualquer música. A música existe somente de um modo, como primeiro
plano. Assim como a forma primordial, o Urphänomen, é “idéia”, assim são as
formas transicionais do plano intermediário; unicamente o padrão do primeiro plano é
“realidade”. Isto é verdade não somente para o trabalho enquanto o ouvimos ou
lemos por meio de sua partitura, mas também para a idéia musical na mente do
compositor, não importa se esta surja num instante a ele como forma acabada ou se
ela a desenvolve passo a passo. Precisamente onde os esboços de um compositor são
o testemunho do modo de seu trabalho ser desenvolvido gradualmente, encontramos
que o processo não tem nada a ver com a estrutura em profundidade da obra. Não
deveríamos imaginar que o compositor trabalha seu caminho passo a passo desde o
plano de fundo, via o plano intermediário, até o primeiro plano: o que ele registra no
papel é sempre o primeiro plano; os estágios preliminares não são planos
intermediários, mas infinitos primeiros planos. Assim, o padrão tonal é derivado da
forma primordial idealmente no plano de fundo, não em fato real; quando falamos do
trabalho como ele é ouvido, nos referimos somente ao primeiro plano; tudo mais se
refere ao significado expresso na obra; as camadas estruturais devem ser entendidas
como uma seqüência lógica e significativa, não como uma seqüência temporal e
genética. Um exame mais esmiuçado do diagrama demonstrará imediatamente que
um aparecimento real do primeiro plano desde as camadas primordiais não está
representado. Os signos gráficos usados mostram que o plano de fundo e o plano
intermediário, por um lado, e o primeiro plano, por outro lado, pertencem a diferentes
campos da existência. A música existe como padrão temporal, e pode existir somente
na dimensão do tempo. Somente os símbolos notacionais do primeiro plano
representam valores de tempo; os signos usados nas outras camadas carecem de
qualquer significado temporal, indicando assim que eles pertencem ao campo das
idéias. Imagine que você soluciona o seguinte problema: dados os padrões do plano
de fundo e do plano intermediário da “Ode à alegria”, encontre o tema. Você
perceberá imediatamente que mesmo o último padrão do plano intermediário está tão
afastado do tema a ser encontrado que não oferece qualquer indício que seja. É como
se déssemos um diagrama bioquímico engenhoso e certas substâncias químicas, e
disséssemos para produzir na realidade um organismo vivo funcionando.
126
ambos, as mesmas linhas correm desde o plano de fundo para o primeiro plano via
camadas estruturais intermediárias. Conforme o padrão se expande, as linhas podem
se tornar mais e mais ramificadas, os relacionamentos internos mais complexos, e seu
limite progressivamente mais extenso; de acordo com isto, o diagrama desenvolverá
uma maior elaboração. Mas se estamos lidando com uma parte ou com um todo, são
sempre as mesmas forças, operando de acordo com os mesmos princípios, que
asseguram a unidade orgânica interna do padrão. Não precisamos nos contentar com
vagas referências à coerência interna e à auto-suficiência das obras musicais, porque
o quadro das camadas estruturais mostra tudo isto. O diagrama descreve claramente
estas características. Isto é ilustrado por um todo tonal de modestas dimensões, a
pequena estrutura tripartida (revestimento) a qual fornece o tema para o movimento
das variações da Sonata para Piano op. 26 de Beethoven (n.n. = [neighbor note] nota
vizinha, uma nota adjunta ou nota vizinha que se move à próxima nota acima ou
abaixo, por exemplo, _______, muitas vezes resumido _______).
de forma mas puramente de função. A mola, por exemplo é parte de um relógio não
porque sua forma é uma espiral, mas porque ela é a fonte de energia, e como tal pode
prontamente ser trocada por uma fonte de energia que tenha outro formato; o todo
não deixará, por causa disso, de ser um relógio. Com respeito à função, relógios e
organismos vivos estão tão distantes quanto possível. O advento de computadores
eletrônicos, no entanto, nos tornou cônscios do fato de que o alcance funcional dos
mecanismos não é sempre tão estreitamente limitado, mas mais propriamente é capaz
de extensões altamente inesperadas. Hoje em dia, “cérebros” eletrônicos são
programados para reagir a estímulos do ambiente, “favoravelmente” a estímulos
amistosos, e “hostilmente” àqueles inamistosos; eles são capazes de encontrar fontes
de alimento para se reabastecer quando seu próprio combustível está esgotado, e
então de mover-se a cada vez que sua “fome” tenha sido aplacada. Cérebros
eletrônicos podem tanto aprender quanto lembrar-se do que aprenderam, e seu
comportamento observável não é, a princípio, diferente daquele das coisas vivas. Tão
primitivas, rebuscadas ou desajeitadas quanto possam ser suas operações, elas
abriram a possibilidade de construir modelos mecânicos de funções orgânicas. Desde
que tomemos por garantido que uma dada máquina deve ser menos complexa do que
a máquina que a produziu, desde que uma máquina capaz de manufaturar máquinas
mais complexas do que ela própria, uma máquina que “se propaga”, ou mesmo “se
desenvolve”, seja concebível – é claro, não mais do que concebível, embora mesmo
assim! – o abismo entre o orgânico e o não-orgânico, com respeito ao tipo ou ordem
incorporada em cada um, parece agora ter sido transposto, ao menos em teoria:
parece possível reproduzir cada função orgânica em um modelo mecânico.
Algo que não está construído, não está unido de acordo com um plano – um
todo orgânico, em outras palavras – pode vir a ser somente através de um processo de
desenvolvimento, começando com um embrião ou semente de uma idéia musical e
continuando com um processo de desenvolvimento, auto-duplicação, e
transformações sucessivas até a obra ter sido plenamente realizada. Agradecimentos a
Schenker, por não mais precisarmos pensar tudo isto em termos de especulação
abstrata: pode ser estudado como um fenômeno vivo. Os quadros das “camadas de
transformação” são aqueles do processo de crescimento. Eles nos mostram a semente
presente no começo, o gradual desdobramento desta através de sucessivas
transformações, e a forma madura como revelada ao final: a unidade e coerência do
todo enquanto enraizado na forma primordial e os múltiplos inter-relacionamentos
internos das partes e suas relações com o todo, as quais são as características
distinguíveis no desenvolvimento de todas as coisas. Assim como no caso dos
organismos, a ordem que governa as obras musicais não chegou antes ao seu
desenvolvimento atual; mais propriamente, ela se desenvolveu juntamente com as
transformações sucessivas da forma primordial, e é completada ao mesmo tempo que
a forma final. Agradecimentos aos quadros das camadas estruturais de Schenker, a
caracterização dos padrões tonais como “orgânicos” não mais somente como uma
metáfora mas a expressão de uma percepção genuína.
Como isto deve ser entendido? Afinal de contas, uma obra musical não cresce
realmente, ela é criada. Ela é uma obra de arte, um produto do talento, da técnica no
sentido mais amplo, não uma obra da natureza. Poderá ela ser meio a meio algo
criado e algo desenvolvido, nunca sendo criada? Esta questão é respondida pela
distinção acima mencionada entre o modo de existência do primeiro plano e aquele
das camadas mais profundas: a realidade do primeiro, a idealidade destas últimas. O
fenômeno é único, parece esquivar-se a comparações. O compositor constrói sua
estrutura com sons reais, tendo em mente seus significados do primeiro plano; o
resultado, se bem sucedido, então parece ter sido construído sobre a fundação de um
contexto de significado inteiramente diferente, e parece ter recebido sua ordem desde
este último. Pense em uma ponte: suas várias partes são colocadas juntas
134
mecanicamente, mas o que as mantém juntas não é somente o vínculo mecânico mas
também a força da gravidade agindo desde o centro da terra. Ou a cura de um
ferimento: o incrivelmente complexo processo na superfície, o qual não sabe nada da
estrutura orgânica; mesmo assim o resultado final está de acordo com um plano que
satisfaz a demanda da estrutura orgânica. Feito de matéria real e de tempo real, a obra
musical existe como primeiro plano, mas ela foi desenvolvida desde a semente de
uma estrutura fundamental para a qual, em última análise, ela deve seu significado, a
unidade e a integridade de seu padrão. É aqui, no nível profundo da estrutura
fundamental, que o plano opera: é por isto que ele não é utilizável com propósitos de
“construção”. Tudo isto será esclarecido na próxima seção.
__________
descoberta das estruturas fundamentais, mas que o processo pelo qual uma e mesma
estrutura fundamental cria sempre padrões diferentes, sempre novos padrões de
primeiro plano. O conhecimento do padrão de fundo sozinho em nada contribui para
nossa compreensão de um primeiro plano. Neste caso “compreender” significa obter
uma idéia clara de como, de que modo, um dado plano de fundo pode ser
transformado em um dado primeiro plano. O campo de ação para esta compreensão é
o plano intermediário.
_______________
Não seríamos seres vivos deste século e respirando seu ar intelectual, se não
soubéssemos que falar de verdade tem significado somente quando alguém pode
também falar de falsidade, onde o verdadeiro pode ser separado do falso tão
inconfundivelmente quanto a luz das trevas. A reivindicação de validade para
qualquer afirmação deve ser apoiada por uma prova irrefutável, a qual pelo mesmo
indício prova que a negativa da afirmação é falsa. Tal prova pode ser dada somente
por dois métodos: o método lógico, ou por inferir diretamente a afirmação de outras
afirmações conhecidas por serem verdadeiras, ou por provar que a negativa da
138
afirmação envolve uma contradição em termos; e o método fatual, por mostrar que
um evento previsto pela afirmação de fato acontece, e não poderia acontecer se a
negativa da afirmação fosse verdadeira. Toda afirmação testada por um ou outro
destes método pode reivindicar uma validade universal ou objetiva, isto é, expressa
uma verdade independente de pessoa, lugar ou tempo. Os dois métodos de
verificação pertencem a dois mundos diferentes, o lógico ao mundo inteligível, o
fatual ao mundo visível-tangível dos corpos. Que a soma dos ângulos de um triangulo
é igual a dois ângulos retos não pode ser provado por observação, não mais do que as
leis de Mendel de hereditariedade podem ser provadas por dedução lógica. Quando os
dois mundos se juntam, falamos de um milagre: ainda hoje, a descoberta de que a
geometria determina as trajetórias dos corpos em movimento impressionará
profundamente qualquer leitor atento do Principia de Newton. O mesmo Newton, no
entanto, diz “Hypotheses non fingo”, com a ênfase em fingo: “Eu não invento
hipóteses”. Em outras palavras, ele se abstém de fazer afirmações cuja reivindicação
por validade, por veracidade, não podem, por causa de sua natureza, ser confirmadas
por dedução lógica ou por observação empírica. A distinção entre verdadeiro e falso é
significativa somente se ela pode ser confirmada, ao menos em princípio. Caso
contrário esta distinção é sem sentido e o “conhecimento” é impossível – não no
sentido de que ele é impossível para nós, aqui e agora, ou para nós enquanto seres
humanos, mas no sentido que falar de conhecimento neste caso é tão sem sentido
quanto falar da temperatura de uma molécula ou da cor de um elétron. Mas “algo que
não pode ser provado” não necessariamente implica em ser “sem sentido”.
Afirmações tais como “Deus criou o leão”, “o homem deve ser nobre, prestativo e
bondoso” e “amarelo é uma bela cor” certamente não são sem sentido; elas podem
empreender um significado momentoso e determinar o destino de um indivíduo, ou
mesmo da espécie humana. Mas elas certamente não podem ser denominadas
verdadeiras ou falsas. O que é sem sentido é tentar prová-la ou reprová-las, defender
ou negar que elas expressam algo “conhecido”.
À luz disto que foi colocado, o que pensar não somente da teoria de Schenker
mas também das muitas afirmações que temos feito no curso de nossas reflexões
sobre a música? Obviamente, elas não podem reivindicar uma validade objetiva. Elas
não são provadas logicamente nem podem ser verificadas pela ocorrência ou não-
ocorrência de fenômenos observáveis. Desde que a música pertence ao mundo
audível, não ao mundo dos conceitos, qualquer tentativa de provar nossas afirmações
sobre música por meio da lógica, por deduzi-las desde proposições
inquestionavelmente verdadeiras, deverá mais cedo ou mais tarde cair num vazio. Ela
não pode compelir a dar consentimento (como será sentido por qualquer leitor do Der
freie Satz, no qual esta tentativa foi feita, isto é, a de expor a teoria, lógica e
dedutivamente, more geometrico: ela provoca dúvidas diretamente). Enquanto para a
prova por observação, certamente há muitos elementos na música que podem ser
observados – a acústica das notas, a matemática das relações tonais, as técnicas de
tratamento, as características dos tipos de estilo: tudo isto provê oportunidade
suficiente para afirmações verificavelmente verdadeiras ou falsas, para
“conhecimento” no domínio da música. Contudo, temos defendido que todos estes
139
Agora, achamos bastante natural quando uma religião reivindica que seus
dogmas que não podem ser provados são verdadeiros, pois eles se referem a
experiências sobrenaturais, inacessíveis aos descrentes. As experiências sensoriais,
contudo, são sensoriais; elas não pressupõem nenhuma fé, iluminação ou dogma; elas
são meramente experiências da audição humana. Parece inadmissível que afirmações
a respeito de experiências sensoriais não devam ser objetivamente verificáveis por
meio de experiências sensoriais. Como poderia uma experiência sensorial
inverificável ser algo que não alguma espécie de alucinação ou ilusão? Todavia todos
sabem que as experiências musicais não são ilusões. Eu não imagino as qualidades
dinâmicas das notas; eu realmente as ouço em um texto. Este texto é a música.
Somente porque eu ouço o que eu ouço e somente quando afirmações sobre as
qualidades dinâmicas das notas são reconhecidas como válidas, somente então um
texto existe. Um texto pode ser compreendido ou incompreendido. E porque eu
compreendo ou incompreendo estou justificado em minha reivindicação por validade
diante da crítica que sustenta nada existir para ser compreendido, que não há nenhum
texto, que há somente simples fatos. Agora, a reivindicação por validade objetiva é
baseada na certeza de que outros devem observar ou pensar o mesmo que uma
pessoa, ao passo que as afirmações sobre a música assinalam que elas tornam
possível compreender onde sem elas não haveria nada a ser compreendido. O critério
não é quantos compreendem – esta seria uma validade universal – mas quanto há para
142
Suponha que eu esteja com o rádio ligado para quatro ouvintes. Uma voz fala
no aparelho. Noto expressões perplexas nas faces dos quatro ouvintes. Então eu tento
explicar. Tomo o aparelho à parte, nomeio as funções das partes individuais, e
demonstro como uma vibração elétrica produzida por um som desde uma fonte
distante é re-transformada em um som aqui e agora. Um dos meus ouvintes se levanta
e sai. Ele compreendeu. A perplexidade não foi ainda esclarecida. Então eu começo a
tentar explicar. Trato da teoria das ondas, freqüências, campos eletromagnéticos, e
explico seus fundamentos matemáticos. Agora um segundo ouvinte fica satisfeito, e
vai embora. Mas os dois outros ouvintes permanecem, obviamente tão perplexos
quanto estavam antes. A questão em suas mentes é: o que aquela voz estava dizendo
naquela língua estrangeira? Então agora trato dos significados das palavras
individuais e explico a gramática e a sintaxe envolvidas. Traduzo para eles,
finalmente, palavra por palavra. Neste ponto, outro ouvinte se levanta e sai. Mas há
ainda um quarto ouvinte. O que pode estar incomodando ele? Bem, a sentença que
traduzi era, “o tempo é a imagem movente da eternidade”. Discuto o significado
destas palavras com meu ouvinte restante.
Agora, voltemos à teoria de Schenker. À luz do que foi colocado antes, deve
ser claro que a indemonstrabilidade destas proposições e a inverificabilidade de suas
deduções realmente não investem contra a sua verdade. Justamente o contrário: tendo
sido possível mostrar que elas são objetivamente válidas, isto poderia provar que esta
teoria não se refere ao que é mais crucial e mais específico na experiência musical.
Embora as camadas mais profundas (plano intermediário e plano de fundo) não
possam ser deduzidas logicamente de um dado primeiro plano, e apesar das camadas
mais profundas não permitirem qualquer predição verificável a respeito do verdadeiro
curso dos eventos no primeiro plano – em outras palavras, apesar da possibilidade de
distinguir objetivamente entre verdadeiro e falso estar inteiramente excluído – a
reivindicação da teoria por ser verdadeira ou falsa, sua reivindicação por valor
cognitivo é inteiramente preservada. Contudo, não pode ser ignorado que a validade
destas afirmações a respeito das camadas profundas é menos firmemente estabelecida
143
do que aquelas afirmações a respeito das qualidades dinâmicas das notas. Em ambos
os casos, estamos lidando com interpretação: interpretação elementar – por assim
dizer, literal – onde são distinguidas as qualidades dinâmicas, e interpretação em um
sentido mais elevado onde a estrutura profunda é analisada. Em nenhum dos casos é
um dado material sensorial interpretado meramente pelo intelecto: as funções do
ouvido como órgão de interpretação em ambos os casos – sem a assistência do
intelecto para distinguir as qualidades dinâmicas, e em conjunção com o intelecto,
ainda que mesmo em uma posição de liderança, ao analisar as camadas estruturais.
Mas enquanto duvidar das interpretações elementares seria duvidar da real existência
da música, o mesmo é de algum modo verdadeiro para as camadas estruturais de
Schenker. Este último mais apropriadamente compartilha o fato de todas as formas
mais altas de interpretações textuais: a saber, nunca é possível afirmar que uma única
interpretação é a definitiva ou a única válida; outras interpretações, mesmo que
mutuamente exclusivas, permanecem possíveis a princípio, e nem poderá alguém
sempre provar uma dada interpretação como falsa. Tudo isto é mais aplicável às
interpretações de Schenker porque, como temos dito, elas são proporcionadas
principalmente pelo ouvido, atuando o intelecto somente como uma capacidade
auxiliar. O ponto, no entanto, é que o valor cognitivo da teoria não é de modo algum
prejudicado pelo fato de que cada e toda interpretação pode ser questionada, e outra
inteiramente diferente pode ser sugerida. Se a teoria de Schenker é verdadeiramente
uma teoria da música, seus resultados individuais, como exemplificados por seus
diagramas, não são nada mais nem menos do que inferências auditivas que não
podem ser provadas logicamente, a partir de experiências auditivas objetivamente
inverificáveis.
Isto certamente não implica que a reivindicação da teoria por validade repousa
no fato de suas proposições terem a inerência de não poderem ser provadas e de
poderem sempre ser desafiadas. Como mencionado acima, a verdade desta espécie de
afirmação sobre música é medida pela importância do texto que ela torna avaliável
para a interpretação. E este requisito a teoria de Schenker preenche tão
completamente quanto alguém poderia requerer. Antes de Schenker, uma
investigação da música almejando julgamentos verdadeiros poderia lidar somente
com seus aspectos superficiais; qualquer coisa além disso seria declarado o domínio
do gosto e sentimento ou da mágica e mistério, uma vasta terra-de-ninguém
inacessível à estrita operação da razão. É realização inabalável de Schenker, ter
reclamado esse território para a mente. Por sua análise, ele demonstrou que o cerne
mais interno, a essência da música, que aquilo que a torna música é mais do que mero
som, e pode ser objeto do pensamento e da compreensão. Ele trouxe os milagres das
camadas profundas – trazendo-os para fora do escuro pátio de recreio do gosto e do
sentimento – e colocando-os sob a luz penetrante da mente investigativa. Já se foi a
indiferença vergonhosa (resultante de uma subserviência desencaminhadora aos
critérios da ciência), que torna impossível a aplicação de julgamentos de verdadeiro–
falso para a essência da música, deste modo negando as diferenças qualitativas que
podem existir, enraizadas nesta essência. A teoria de Schenker ajudou-nos com nosso
desespero à limitação do conhecimento, um desespero causado não por nossa
144
A teoria de Schenker nos fornece um critério objetivo pelo qual podemos medir
o valor artístico? A esta altura, espero ter se tornado claro quão enganosa é esta
questão quando formulada deste modo. Nenhum critério verdadeiramente objetivo
pode ser aplicado a qualquer elemento essencial da música enquanto tal: nenhum
critério autêntico de graduação artística pode ser objetivo. Os diagramas estruturais
de Schenker podem servir enquanto tais critérios precisamente porque eles são
válidos sem serem objetivos.
Por Schenker não ter sido um filósofo, ele nunca se aplicou explicitamente ao
problema do valor artístico. Ele não se incomodou em analisar as obras que ele sentiu
como sendo inferiores porque ele sabia que não havia nada a descobrir em sua
estrutura. Contudo, sua reivindicação corajosa não será realmente admitida a menos
que usemos seus critérios e descubramos como eles nos capacitam a distinguir o
meramente fabricado do organicamente desenvolvido, o espúrio do genuíno.
Adiante tentamos ilustrar seu método, tomando como nosso exemplo um dos
pares de Gurney, no qual a melodia de Schubert, “A Truta”, é contrastada com algo
chamado “Kemo Kimo”. A escolha de Gurney aparece ter sido ditada pelo fato de
ambos os membros do par exibirem o mesmo contorno melódico na abertura
________ junto com retornos repetidos à nota de abertura, Sol. (Para facilitar a
comparação as duas melodias são aqui dadas na tonalidade de Dó maior.)
_____________
________
Por que o movimento é preso por dois meios compassos pela repetição de duas
notas sol _________ ? Obviamente, a proposta aqui é manter o ouvinte em suspense e
sutilmente dirigir sua atenção à importância do próximo passo. O próximo passo é
precisamente o adiado _______ . Deste modo a nota Ré, escolhida por ter sido adiada
e mudada para a parte fraca do compasso, é imediatamente relacionada à nota mais
alta anterior, Mi, a qual também ocorre no tempo fraco: uma progressão inicial 3 – 2
na camada estrutura mais profunda torna-se audível. Mas esta progressão não está
completada; ao invés de continuar para 1, ela rapidamente desliza para baixo para 5
_________ (Dó é aqui uma nota de passagem não acentuada, dissonante contra a
harmonia do acorde dominante). 1 no quinto compasso é ouvido como uma repetição
do começo, não como a conclusão do 3 – 2 precedente. A repetição conduz de volta à
nota mais alta, Mi, 3; mas desta vez a continuação esperada levando para 2 é omitida:
não há suspensão preparatória para o movimento até a nota Sol, nenhum salto de Sol
a Ré. A nota 3 permanece irresolvida, suspensa no ar, por assim dizer, e todo o
repouso da melodia se suspende na linha desta nota irresolvida.
146
_______________
O que a nota mais alta irresolvida, 3, deixa para trás, a melodia primeiro repete
o movimento de quarta __________ em uma versão expandida, mas agora, após o
centro original ter sido restaurado, o movimento tem um significado dinâmico
diferente. (A mudança de centro não pode ser lida desde a melodia sozinha; é a
harmonia que causa a mudança com ________ [compassos 6 -7] e então a cancela
com _________ [compassos 9 – 10].) Não antes da última nota do movimento da
quarta, Sol, a qual agora readquiriu sua qualidade dinâmica original 5, ter sido
alcançada (compasso 14) a melodia relembra sua obrigação insatisfeita. Por um
tempo, como se acidentalmente, ela se suspende na nota Sol _____: a ligação com os
compassos 2 – 3 é estabelecida, e então por fim, como se nada mais fosse esperado,
aqui segue _________, encurtando o empuxo da nota Mi, que foi deixada para trás
mas não esquecida, e o movimento é concluído com Ré – Dó, 3 – 2 – 1. Que os
últimos quatro compassos são mais que um mero apêndice, uma repetição
convencional da última meia-frase, pode também ser lido do diagrama. Uma
mudança insignificante, que um ouvinte casual perceberia meramente como sendo
um ornamento, esconde o fato de que estes quatro últimos compassos são uma
condensação, em termos de duração tanto quanto de forma, da segunda parte inteira
da melodia.
_____________
_______________
_________________
148
Ele disse imediatamente – ele havia praticado canto como um amador – que
ambos eram plagiadores. A volta melódica que fazia a melodia popular e foi usada
pelos dois compositores havia sido roubada de Schubert. Acima estão as duas
melodias, cada qual com o diagrama de sua sub-estrutura – a primeira da canção de
Schubert “Die bose Farbe”, e a segunda a do sucesso.
Vemos como o impulso gerado pelo grande gesto que abre a melodia de
Schubert nutre e carrega a curva melódica correndo através de todos os dezoito
compassos. A pausa no oitavo compasso tem somente um valor superficial; ela é
transposta pelo movimento irresistível que desde o princípio almeja ao evento no
compasso 16, quando a nota mais alta, Fá#, como se inadvertidamente tocada no
começo, é finalmente alcançada de modo legítimo. O que acontece no caminho até
chegar a ela, e como a meta é alcançada, pode ser lido no diagrama. O compositor do
sucesso apropriou-se do gesto de abertura mas não sabia o que fazer com ele – como
se alguém estivesse balançando sua arma para um golpe poderoso e então
subitamente mudasse seu pensamento e fugisse. Na melodia de Schubert, o retorno
para o começo na seção intermediária marca um novo esforço para levar o
movimento para seu fim; no sucesso, ela é meramente a repetição de um gesto já
desmascarado como sendo sem significado.
Estamos lidando aqui com uma espécie de conflito que é também sugerido pelo
fato de que 5 é finalmente alcançado pela força principal, por assim dizer, pela
expansão antinatural do segundo período de oito compassos para dez compassos.
Normalmente, se o período tivesse oito compassos, a melodia terminaria com os
compassos 15 – 16 – isto é, precisamente antes da última ascensão para 5 – como isto
______: também a estrofe do poema termina aqui. Em vez disto temos agora
_________, uma vitória no último minuto, e como se devido a uma sobre-pressão, o
movimento é levado além de sua meta. Enquanto um resultado do fechamento final é
referido ao meio fechamento nos compassos 7 – 8: lá havia _________; aqui há
____________ . A importância das alternâncias maior-menor nesta história merece
ao final se mencionada.
(Poderia ser perguntando por que neste caso, onde após uma preparação de
dezesseis compassos, a tensão é resolvida por 5 – 4 – 3 – 2 – 1 em um único
149
Pensamento Musical
152
Introdução
O assombro que sentimos diante de tal descoberta poderia e deveria ser daquele
tipo que, de acordo com Aristóteles, inspira o homem a filosofar. Certamente a
mudança não foi inspirada pelo “intelecto crítico” do compositor, sem dúvida não foi
sua decisão “revisar” a “idéia” original: em outras palavras, não estamos lidando com
uma instância normal e ordinária de colaboração entre inspiração e reflexão. O passo
desde a primeira versão até a final da conclusão da melodia – um passo no qual o
significado do padrão que ele já tinha criado lhe é revelado, e no qual nenhum
intelecto crítico, nenhuma reflexão teria alguma vez sugerido – é, melhor dizendo,
um paradigma do ato criativo e, neste sentido, um ato do pensamento.
153
A terceira parte deste livro pretende demonstrar que esta afirmativa se ajusta
aos fatos da experiência musical. E se tivermos êxito, seremos obrigados pela
evidência musical a revisar um grande número de idéias a respeito da natureza do
pensar e do pensamento, do mesmo modo como antes fomos obrigados a revisar
noções correntes a respeito da natureza da audição e do ouvinte.
À primeira vista, pareceria que a música é a última estrutura à qual olhar para
alguma base, ainda mais nova, sobre este tema. A obra de arte musical é encarada
primeiramente como o produto da imaginação, das faculdades do sentimento e da
expressão do sentimento, mais propriamente do que aquelas do pensamento. É bem
conhecido que todo compositor deve estudar e dominar a teoria da música, e
admitimos que toda obra musical contém um ingrediente intelectual: não presumimos
que algo como uma reflexão entra neste processo, de todo. Ao mesmo tempo
admitimos – penso que corretamente – que no processo de criação de uma obra
musical o intelecto serve como capacidade subordinada, como para delinear o plano
geral ou o esqueleto a ser preenchido. A música dodecafônica de nosso século,
mesmo com sua ênfase sobre os elementos construtivos, não alterou realmente este
relacionamento. Schönberg nos assegura que ele nunca escreveu uma única nota que
não fosse ditada e justificada pelos requisitos da “expressão”, e o próprio Alban Berg
considerava uma medida do sucesso de Wozzeck, que a extraordinária importância da
construção não é percebida na audição da ópera. Sobre quais razões, então, podemos
esperar que a música, de todas as coisas, proveja uma percepção especial sobre a
natureza do pensamento?
11
Ver Sound and Symbol: Music and the External World.
154
sobre a natureza do espaço. Mas tal ceticismo mostrou ser injustificado. Foi baseado
na suposição de que o que é conhecido habitualmente do espaço é tudo o que há no
espaço. Até onde o espaço geométrico é considerado, a suposição trabalha bastante
bem, e a música realmente toma parte muito pequena nele. Pareceria que o ceticismo
com relação ao papel do pensamento na música resulta de um preconceito similar, a
saber, que a natureza do pensamento tenha sido definida só e completamente pelos
lógicos. E ainda: quando muito, a lógica entra na música não mais do que
minimamente.
Desde que o caminho que propomos seguirá sendo algo laborioso e alguns
assuntos terão que ser tratados em detalhe, bem pode ser adequado indicar as
articulações principais de nosso argumento. Nosso ponto de partida é a supostamente
irrefutável posição daqueles que acreditam que a natureza do pensamento é aquela
que a lógica diz ser. Vamos admitir ser este o caso. Segue, então que nenhuma obra
musical pode ser gerada pelo pensamento. O pensamento joga alguma parte no todo
do processo criativo? A resposta a esta questão é afirmativa: o pensamento joga uma
parte, mas uma que poderia ser considerada (ainda na admissão de que sabemos o que
é o pensamento) como secundária, vindo a energia principal de outra fonte criativa.
Procedemos confrontando esta hipótese de duas fontes criativas com os fatos reais,
esboçando exemplos das obras-primas musicais. Elas nos obrigam a concluir que a
hipótese não se ajusta a elas e que são falsas as admissões que levam à hipótese de
duas fontes criativas. Somos levados inevitavelmente a identificar a natureza desta
única fonte criativa da música como o “pensamento”, e concluir que o termo aqui
denota algo inteiramente diferente do que foi admitido inicialmente. A convicção
referida acima – de que a natureza do pensamento é definida exclusivamente pela
lógica – prova-se insustentável. Pensamento não é sinônimo de pensamento lógico. A
discussão acima nos levará ao final do capítulo 16, e nos capítulos remanescentes
tentaremos definir mais de perto a natureza e as leis desta outra espécie – musical –
de pensamento.
156
A música é a única das artes que é oficialmente, por assim dizer, baseada sobre
uma teoria. Ao contrário do pintor ou poeta aspirante, o compositor deve começar por
se familiarizar completamente com a teoria de sua arte. É claro, o que é chamado
teoria musical, na realidade equivale à prática em manipular os materiais da música,
ainda assim é significativo que esta prática seja chamada de “teoria”: teoria, afinal de
contas, tem algo a ver com o pensamento. Embora o estudante da teoria está
primeiramente aprendendo uma suposta habilidade, ele não terá adquirido a
habilidade antes de ter adquirido uma considerável soma de conhecimento. Isto é o
inverso da prática real de qualquer outra arte: lá o conhecimento segue a habilidade.
Nem é dado ao estudante de música praticar sobre seus trabalhos – pelo menos, isto é,
na medida em que diga respeito às duas disciplinas tradicionais, o contraponto e a
harmonia, as quais ainda hoje são, com bastante freqüência, o cerne do ensinamento.
Ao estudante é dado, mais apropriadamente, exemplos altamente artificiais da teoria
musical. Os problemas que são colocados para ele resolver são uma espécie de
música abstrata. É bem conhecido que nenhum talento musical especial é requerido
para adquirir considerável proficiência nestas disciplinas; realmente, com treino
adequado, um surdo-mudo poderia resolver a maioria dos problemas. O fato que ele
está operando com notas é de modo algum essencial; ele poderia operar tão bem com
pontos colocados em conjuntos de intervalos: estritamente falando, ele discursa sobre
problemas topológicos, não musicais. Isto é por que, como tem sido descoberto
recentemente, computadores eletrônicos não se saem tão mal quando lhe são dados
testes de teoria musical. Não vai aqui qualquer crítica à teoria musical em nenhum
sentido, meramente descrevemos a situação que o compositor faceia quando ele
157
Quanto à composição propriamente, cujo estudo vem depois da teoria ter sido
dominada, sua terminologia é reveladora. Ao estudante é ensinada a imitação
musical, contraponto, fugas, harmonização, variações, desenvolvimento – termos os
quais denotam métodos tratando de algo já dado. O que está sendo tratado nestes
vários caminhos é um “tema”. Quando a teoria musical pressupõe o tema como algo
dado (ou emprestado), admite que a fonte do tema está situada fora da música que
pode ser ensinada ou aprendida: conhecimento e habilidade. Um tema musical,
contudo, diferente do tema de uma pintura realista ou naturalista, não tem nenhuma
contraparte externa: ele próprio é música. Isto é por que a obra musical parece ser
derivada desde duas fontes muito diferentes, uma da qual, o conhecimento técnico,
está situada dentro do domínio do pensamento, enquanto a outra parece ser
espontânea, algo que poderia ser chamado de inspiração ou gênio. Como tratar um
tema, o que pode ser feito com ele, é aprendível, ensinável, mas não como compor
um tema; a explicação para isto é que um tema não é feito, ele é simplesmente
encontrado – ele “ocorre a alguém”, de repente. Como poderia algo como isto:
____________
Um bom argumento contra este ponto de vista poderia ser citar alguma obra
especialmente sublime, aparentemente pura inspiração e nada mais, dentro da qual
nem um conhecimento ensinável ou aprendível nem uma habilidade musical parece
ter entrado. Tomemos, por exemplo, o Andante da Sonata em Lá menor para violino
solo de Bach:
_______________
o qual nada é que não uma única melodia continuamente renovada, a qual
quase nada se refere ao que foi antes. A melodia descreve uma curva sempre ampla,
igualmente inspirada em passagens ascendentes e descendentes (nunca cessando) sem
qualquer sentido de desenvolvimento “necessário”. A qualquer ponto da melodia,
158
esta poderia ter tomado um rumo diferente; ela parece flutuar desde uma fonte pura e
inexaurível, soando imediatamente tão livre, tão correta, tão convincente, quanto ela é
imprevisível. Aprisione a melodia em qualquer ponto e pergunte-se, utilizando todo o
seu conhecimento, habilidade e experiência musical, como calcular como ela deveria
continuar: você não chegará muito longe. A música é totalmente única, tanto uma-de-
uma-espécie que nenhuma regra geral, nenhuma experiência de outra música, será da
mais leve ajuda para você na dificuldade de encontrar o próximo passo. Claro,
nenhuma ignorância concederia alguma vez tal inspiração. Ela pressupõe maestria da
mais alta ordem. Cada passo é impregnado por um conhecimento e uma habilidade
tão profundamente assimilados que eles pode ser esquecidos para deixar a outra fonte
fluir desimpedida. Um homem menor teria que se render após os primeiros passos.
Há, então, uma coisa tal na música em que tudo seja tema e nada mais. O
oposto também é verdadeiro? Há uma coisa tal na música que seja nada que não
“elaboração”, música sem um tema? A primeira inclinação de alguém é dizer não. O
que haveria para ser elaborado onde não existe tema em primeiro lugar? E
exatamente onde entra a inspiração? Música sem um tema, alguém poderia presumir,
seria música puramente planejada, alguma espécie de exercício quando muito, não
arte. Contudo, somente aqueles cuja experiência musical é confinada àquela dos
séculos dezoito e dezenove poderiam plausivelmente ter esta atitude. O que nos
referimos como sendo o tema – isto é, um padrão tonal expressivo, auto-contido
capaz de portar um significado, sem referência a qualquer coisa mais – é um feito
muito recente (e não necessariamente muito permanente) na música ocidental. Este
não faz seu aparecimento antes do século dezessete, em conexão com o
desenvolvimento da música instrumental pura, e na música de nosso próprio século
ele parece estar desaparecendo. O todo da época da grande polifonia, do século
quatorze ao dezessete, é, neste sentido, música sem um tema; nossa distinção familiar
entre tema e elaboração é um tanto sem sentido onde diz respeito a esta música.
Ouçamos alguma obra realmente longa daquele período como o Great Service de
William Byrd, o qual tem a duração aproximada de uma hora: é um fluir poderoso,
irresistível e uniforme da canção, em cujo curso inteiro não emerge em momento
algum um detalhe agudamente definido, nada que poderíamos chamar de um tema.
Ou tomemos o moteto em quatro vozes Super flumina Babilonis de Palestrina. Esta é
música tão comovente e bela como é possível encontrar, mas o que ela contém a
modo de material temático? Uma curta frase melódica domina cada uma das cinco
partes nas quais a obra está dividida, como o salmo no qual ele é baseado.
_______________
parece ser pouco mais do que um dizer as palavras nas notas. Somente na terceira
frase com suas duas quartas ascendentes Mi – Sol – Lá, Sol – Dó surge algo acima do
nível do movimento simples a modo de passo, junto com as palavras, o qual neste
ponto faz o coração do ouvinte bater exatamente uma pequena aceleração, “quando
nos relembramos de Sião”. Mas mesmo se algo como um “tema” aparece aqui,
nenhuma noção de inspiração deveria ser evocada para responder por ele. É claro,
muitos dos temas das obras instrumentais clássicas parecem também à primeira vista
bastante ordinários, não especialmente significativos, mas o que é feito com estes
temas ou arranjado com eles no curso da obra é tudo o que importa, revelando
gradualmente todos os tipos de forças escondidas e significados dificilmente
suspeitados na aparência primeira do tema. Em Palestrina, alguma coisa que
poderíamos chamar de tema permanece ao final exatamente o que ele era no começo,
um mero veículo. As condições musicais verdadeiras estão transpirando inteiramente
em outro plano – onde os fios são tecidos, onde as texturas são reveladas. A
característica única e extraordinária da obra, o gênio criador, e a natureza inspirada de
sua criação têm que ser procuradas no “tratamento”, no que é feito com ou escrito do
que é dado: a própria habilidade seria inspirada. Não sem razão Palestrina foi
celebrado após sua morte como grande conhecedor. Defrontado com tal evidência
musical, não somente nossa distinção entre tema e elaboração mas todo o sentido de
uma linha nítida a ser desenhada entre duas fontes criativas separadas – o tema
enquanto o trabalho da inspiração, a elaboração enquanto o trabalho do intelecto – de
repente parecem terrivelmente ingênuos.
Não há tal coisa como um contorno nítido, uma distinção branco no preto a ser
delineada, para nos dizer em todo caso se estamos lidando com um tema ou não. Não
há muitas formas de transição. Na maioria dos casos, contudo, um tema é
instantaneamente reconhecido como tal, a saber, como um padrão tonal expressivo,
significativo em si próprio, como parte de um todo mesmo ele próprio com todos os
traços característicos de um todo – um todo orgânico, algo mais do que realmente um
pedaço de matéria prima. Pensemos nas fugas de Bach. Afinal de contas, por
definição, uma fuga é um modo específico de tratar um tema, e o tema está sempre
presente perfeitamente claro ao começo em uma única voz. Os prelúdios às fugas de
Bach são outra coisa novamente. A grande liberdade de tratamento que nos prepara
para a “coisa real”, para a fuga que se segue, nos deixa incertos quanto ao que os
prelúdios de fato se referem – na verdade, se eles se referem a qualquer coisa de todo.
Alguns poucos prelúdios do Cravo Bem Temperado ilustrarão a transição desde a
presença até a ausência de um tema.
(somente os novos elementos são mencionados aqui) o tema, seu movimento reverso,
parece estar posicionado de cabeça para baixo: ______________ . E assim ele segue,
ininterruptamente. Uma transformação final é reservada próxima ao fim: _________
com seu reverso ____________. (Aqueles que têm algum conhecimento de harmonia
perceberão como esta última forma reproduz o padrão sonoro da cadência
convencional, _______________.)
_____________
162
Não importa o quão atentamente ouvimos, não podemos descobrir nada nestes
compassos que pudesse apropriadamente ser chamado de um tema, ou atribuído à
“inspiração”. Seriam estes compassos, talvez, meramente introdutórios, uma espécie
de prelúdio ao prelúdio, o verdadeiro sujeito aparecendo somente depois? Não, tudo o
que está para vir está prefigurado nestas notas de abertura. É impossível discernir
uma melodia escondida, do mesmo modo como foi possível no Prelúdio em Dó
maior. Aqui, Bach não esperou pela inspiração, não perturbou qualquer força superior
por um “tema” cuja elaboração ajudou-o a completar a peça. Além disso, ela não
oferece praticamente oportunidade para demonstrar qualquer conhecimento especial
de composição. Então devemos concluir que é impossível responder pela produção de
obras musicais como envolvendo necessariamente a colaboração entre faculdades
separadas de inspiração e intelecto. Se estamos lidando com alguma obra inferior,
esta conclusão não tem nenhum peso. Mas estamos lidando aqui com uma obra
verdadeiramente magnificente, artisticamente perfeita. De que maneira, então, ela é
produzida?
_______________
________________
Agora, as terças formam acordes – acordes de tríades e sétimas – assim nós também
fazemos. (Por que não? Afinal de contas, estamos sentados ao teclado.) Poderíamos
simplesmente levar nossos dedos repousar sobre as posições sucessivamente
alcançadas – não sobre todas elas; a mão não tem dedos suficientes para isso – como
isto:
________________
______________
Para tornar claro o que acontece aqui, tanto o estágio inicial quanto o final são
mostrados aqui:
______________
produz conseqüências, implorando por sua própria repetição com o novo acorde
dissonante, Ré – Fá – Láb. A resolução deste acorde, novamente, é adiada até a tríade
de Dó maior no próximo compasso; representado esquematicamente, o que temos é
______________ . Toque estes compassos sem a mudança crucial no segundo
compasso: imediatamente o movimento se torna inarticulado, sem vida. A
substituição de _______ por __________ neste ponto converte o sem forma em algo
com forma, dentro do padrão cinético __________ o qual se repete várias vezes na
peça. É este o tema? Em todo caso, não é muito mais dizer que ______ aqui ao invés
de _________ faz a diferença entre o gênio e a mediocridade, entre Bach e um seu
talentoso pupilo. E dizer isto não é exagerar a importância de um detalhe, não é ler
dentro dele coisas que não estão lá. É em pequenas coisas como desta espécie que
uma obra de arte revela grandeza e autenticidade; elas decidem se ela é viva ou sem
vida, e elas são a prerrogativa do gênio. “Le bon Dieu est dans le détail” – esta é uma
das observações mais verdadeiras jamais feitas a respeito da arte: “Deus reside no
detalhe”.
_______________
em que o novo centro surge claramente. Mas ao final desta unidade de quatro
compassos, no lugar onde nos compassos 4 – 5 a voz mais baixa livrou-se da regra
estrita com Ré – Dó – Sib – Lá, a voz superior quebra o círculo com a oposição Sol –
Lá – Si – Dó, carregando o movimento em direção à nota Dó; um compasso adiante o
primeiro ponto de repouso é alcançado. Mas aqui, no compasso 16, o qual marca uma
conclusão e um momento de repouso, o padrão do primeiro compasso – da abertura
– reaparece inesperadamente, recordando-nos que o repouso neste ponto pode ser
somente temporário. Os compassos 9 – 16 são repetidos sem mudança, embora, não
tenhamos _______, como no compasso 16, mas _________, o conteúdo musical
continua sendo o mesmo. Aqui nada se agita novamente; o repouso torna-se
definitivo.
Embora possa ser tentador e instrutivo continuar nossa análise passo a passo
deste magnífico prelúdio, estaria além do escopo de nossas reflexões. Aqueles que
desejarem estudar o padrão de movimento em detalhe e sua relação com estruturas
tonais mais amplas podem fazê-lo com o auxílio da tabela abaixo. Uma representação
esquemática é possível neste exemplo porque o prelúdio inteiro praticamente é
“feito” de nada que não repetições (mais do que duzentas) da fórmula de quatro notas
em uma ou outra de suas quatro versões, _____ e ___ ocorrendo mais
freqüentemente, e ____ e _____ usada somente em poucos casos. Duas vezes no
stretto de um clímax, a parte do baixo sendo levada longe para ____; e diretamente
antes de alguns poucos pontos intermediários de pausa (existem três deles) a regra é
inteiramente descuidada; mas isto marca o limite máximo da liberdade concedida
para as notas. Na tabela a seguir, os símbolos são auto-explicativos (os suportes
acima indicam os padrões recorrentes).
_____________
O elemento “dado” – auto-dado –, o tema com o qual Bach trabalha aqui, o que
é? ________ : um nada, uma bagatela. Dificilmente ocorreria a alguém chamar algo
como isto de uma inspiração. E tudo é senão trabalho! O que torna esta peça tão
especial, até mesmo única, não é um “tema”, um lampejo de inspiração, mas o
trabalho que foi aplicado a ela. O termo “trabalho” contudo, não deve ser tomado
aqui no sentido usual, de uma atividade guiada por conhecimento e habilidade. Pois
conhecimento e habilidade não podem por si mesmos produzir algo único, algo que
nunca existiu antes; à luz das idéias tradicionais, uma peça como esta só pode ser o
resultado da inspiração. Diríamos então que a totalidade da peça é “inspirada”?
Afirmações deste tipo são feitas freqüentemente; ainda os artistas muitas vezes nos
asseguram que um trabalho esteve inteiramente presente em sua mente em um
lampejo de inspiração, e que tudo o que eles fizeram foi reproduzir o todo intuído
como uma sucessão de suas partes. Tal interpretação seria fiel ao esquema conceitual
de inspiração mais intelecto, ou inspiração mais trabalho, mas não acrescentaria
muito à nossa compreensão. O que nos ajuda dizer que Bach teve um quadro mental
de seu prelúdio inteiro em um lampejo de inspiração? O que, em tal caso, seria o todo
aparte dos detalhes no qual, fora do qual, ele vive em primeiro lugar? O que pode ser
que não um vago antegozo de um certo intercalar de forças e do movimento
166
resultante dele até o próprio trabalho ser cristalizado fora de sua névoa, passo a
passo? Afinal de contas, os passos individuais nos quais a vida do trabalho se revela,
que são idênticos à sua vida, os quais são a obra, não podem – nem ainda como meras
indicações – estar todos presentes na mente do compositor simultaneamente, em um
único lampejo; cada um pode emergir somente no lugar certo e ao momento certo,
como ele cai diretamente no curso da composição. Como, por exemplo, poderia a
mudança melódica Sol – Lá – Si – Dó nos compassos 14 – 15 ou o padrão _______
do compasso 16 estar presente na mente do compositor antes que a música tenha
efetivamente alcançado este ponto? Como poderia ter sido produzido sem as
referências a tudo o que veio antes dele? Criação é um processo contínuo; decisões
são tomadas a todo momento, não em um único momento. É uma série de tais
lampejos; trabalho e inspiração são inseparáveis. A hipótese de duas fontes criativas
diferentes desmorona, e se alguém deseja insistir que sem inspiração nenhuma obra
genuína pode ser produzida, então o labor do compositor deveria ser considerado
como inspiração. Esta, no entanto, implicaria em um novo conceito de “labor”, um
conceito que não está essencialmente vinculado a conhecimento e habilidade, e um
conceito que, em última análise, deveria estar associado com “pensamento” – ou um
novo conceito de pensamento.
___________________
Se, então, nada é “dado” aqui, nenhuma forma, mesmo que rudimentar, à qual
o movimento subseqüente pudesse ser relacionado, se o que temos é uma sucessão de
notas e intervalos, por que ouvimos o prelúdio como um todo uno e coerente mais do
que uma reunião aleatória de notas? Porque o que ouvimos não é meramente a
unidade total dada pela tonalidade (a qual seria audível em uma mera escala), não é
conjunto da progressão de acordes embutida nas notas sucessivas (presente em
qualquer arpejo), mas sua linha melódica particular, seu todo inigualável e
firmemente tecido.
_______________________
_______________
169
Os esquemas acima são pretendidos como o quadro “ideal” de como tal padrão
completamente não-temático é formado, e mostram o elemento de conexão que liga
os passos sucessivos dentro de um todo unificado. Primeiro, há a nota 3 acima de sua
fundamental, que determina a qualidade dinâmica (I). A vida da nota é expressa em
um movimento desde-lá-e-de-volta-para, 3 – 4 – 3, tocando a nota adjunta (II). A
seguir, a nota adjunta se esforça por afirmar-se, por demonstrar que tem uma vida em
si própria: isto é alcançado por meio de uma segunda voz (III; a mudança das
qualidades dinâmicas na voz principal efetuada pela voz mais grave – a nota adjunta
toma por um momento a aparência de uma nota fundamental – é indicada no
esquema). A seguir vem a mudança para a oitava mais baixa (IV) – a voz principal
torna-se a voz mais baixa; a voz secundária está no alto. Para restaurar a situação
correta, a segunda voz, também, deve se mover para a oitava abaixo (V). O último
passo marca uma descoberta e um enriquecimento a mais (VI). Esta é a estrutura
ideal para a qual a linha melódica dos dois compassos de abertura deve sua solidez,
sua coerência interna. (Na terminologia de Schenker, II é o plano de fundo, III – VI
são os planos intermediários, a partitura do prelúdio é o primeiro plano.)
claro, algo é feito, algo acontece, mas este fazer consiste em pensar. Este pensamento
não é aquele de um homem que atua, este fazer não é aquele de um homem que
pensa. Fazer e pensar estão inteiramente fundidos em um: pensamento que produz,
produção que pensa. Não a existência em uma mão e o pensamento a respeito dela
em outra, mas um pensamento que por si mesmo cria a existência.
Agora, voltemo-nos brevemente para duas formas musicais nas quais o tema
pode ser claramente distinguido da elaboração técnica: aqui não há dúvida de que
ambos derivam de fontes diferentes, mais ainda de fontes externamente diferentes. A
harmonização coral consiste em imaginar acordes adequados para melodias
tradicionais. Em toda a sua simplicidade, muitas melodias de hinos tradicionais são
estruturas requintadamente belas; se nenhum compositor é conhecido, prontamente
atribuímos sua existência a alguma espécie de inspiração anônima. Por outro lado, a
harmonização destas melodias é parte do treinamento elementar de muitos musicistas.
Talento também não é requerido: depois que o estudante aprendeu como operar com
os símbolos musicais de acordo com as regras, ele pode resolver os problemas
(mesmo sem referência para com o ouvido) sobre uma base puramente topológica.
Aqui, então, a distinção entre inspiração e técnica como as duas fontes criativas da
música parecem inteiramente justificadas, não menos porque aqui cada uma é
representada por uma pessoa diferente. É claro, o caso é um pouco alterado quando é
um compositor como Bach quem abastece o cenário harmônico. Os corais de Bach
têm se mantido sob especial reverência por todos os tipos de musicistas porque, pela
primeira vez, eles revelam que a música de fato progrediu ao se desenvolver na
dimensão da melodia. Os cenários de Bach não são meros acompanhamentos para, ou
suportes da, melodia, não somente um engordamento; eles demonstram que a
harmonia possui a capacidade de interpretar a melodia. Eles levam luz às faces
ocultas da melodia. Por elas mesmas, em termos das qualidades dinâmicas das notas,
estas melodias parecem completamente simples. Dificilmente ocorreria a alguém
supor aqui haver algo a ser interpretado em uma melodia de hino! Mas foram estas,
171
das mais simples de todas as melodias, que Bach transformou nas afirmações
musicais mais sublimes e mais sutis. Ouvindo as grandes Paixões, alguém não está
sempre consciente de que, graças às harmonizações, a mesma melodia pode ser
condutora de sentidos tão diversos quanto “O grande Rei, grande de todos os
tempos”, “O grande amor, O amor além de todos os limites”, e “E contudo quão
prodigiosa é esta punição”, e conduz a cada uma de maneira única. Em análise mais
atenta, estes milagres do som reduzem-se a algumas soluções de problema técnico, a
encontrar três diferentes vozes no baixo para a mesma melodia; ambas as vozes
juntas sugerirão então possíveis harmonias. Em nosso exemplo, as vozes aguda e
grave começam como segue nas três harmonizações:
_________________
________________
Mas uma linha do baixo como esta, junto com os sons que a faz possível, não
deriva de qualquer tipo de conhecimento ou experiência; ela deriva de alguma
“segunda audição” (em analogia à “segunda visão”) que detecta coisas não sonhadas
além das notas da melodia. Se algo alguma vez mereceu se chamar assim, esta é a
descoberta de gênio, um lampejo de inspiração, uma idéia brilhante, absolutamente
original, única – não a descoberta inspirada de um tema, mas a inspiração “sobre” um
tema; isto é pensamento, pensamento nota, um pensamento em notas a respeito de
notas.
172
Pode ser mencionado brevemente aqui que nos dois domínios que a música do
século vinte explorou mais extensamente, a composição dodecafônica e o jazz, o
desaparecimento do tema como o elemento inspirado e a força vitalizadora de uma
obra musical foi completada, pelo menos até o momento. A série de notas é sobre o
que toda composição dodecafônica é baseada, e não um tema no próprio sentido, não
um padrão tonal audível, mas material em série pré-arranjada de um modo específico
pronto para ser lidado com ele; não é “inspirado”, mas escolhido deliberadamente de
acordo com a idéia do compositor de como este pedaço específico de material pode
ser elaborado. A inspiração pode se manifestar, se de todo, somente no seu
tratamento. Muito do mesmo pode ser dito a respeito do jazz, o qual é na verdade
uma arte da improvisação – não improvisação livre, é verdade, pois ele é basicamente
limitado por um tema dado. O que o jazz improvisa não é o tema, mas o que ocorre
173
O Desenvolvimento Clássico
música clássica: você encontrará a implicação de que realmente poderia ter sido
composta também por um estudante avançado ou um bom técnico.
____________
O que pode ser considerado como preparação é, por assim dizer, parte do
próprio tema, a saber, o início repetido três vezes: Mib – Ré – Ré. (Algo como isto
pode ser somente o resultado de uma inspiração; ninguém se arriscaria a planejá-lo.)
O começo, no entanto, não conduz, como se poderia supor, a um grande gesto
enfático, isto é, ____________ . O gesto de fato ocorre, mas (este é o ponto) não
onde ele é devido; ele é retardado e como resultado ele cai no tempo fraco do
compasso, _______, deste modo negando a si mesmo, por assim dizer, diminuindo o
esforço envolvido, como se sugerindo que não deve ser tomado tão seriamente quanto
tudo aquilo, que o que é de fato pretendido não é a altura Si que foi alcançada, mas
talvez o aparentemente preparatório Ré, 5 (em virtude deste ter sido repetido três
vezes). Em todo caso, o movimento imediatamente desce no mesmo ritmo _______
do começo, e conduz, através da nota de abertura, à próxima nota abaixo, 4:
________. Os mesmos passos são repetidos enquanto o movimento procede de 4 para
12
Uma das convenções da forma é que a exposição é executada duas vezes; que nenhum novo elemento formal é
introduzido pela repetição é aparente desde o fato de que o intérprete é livre para seguir a convenção ou ignorá-la.
175
________________
A melodia não termina neste ponto, mas, no que segue, somente esta parte dela
é usada como o elemento “dado” a ser elaborado.
______________
13
A harmonia neste ponto torna possível ouvir Lá como 3 em Fá# maior.
176
________________
_______________
_______________
______________
177
Nossa suposição tácita de que o caso discutido acima não é excepcional pode
ser plenamente justificada apenas por um estudo compreensivo das seções clássicas
de desenvolvimento. A análise seguinte da seção de desenvolvimento do último
movimento da mesma sinfonia pelo menos servirá como uma justificativa parcial.
Primeiro que tudo, o tema. Aqui está a partitura (melodia, baixo, com a
indicação de um acorde):
______________
____________
179
______________
_____________
Aqui vemos a mudança de Sol para Ré via o estágio intermediário Lá, desde
Ré de volta a Sol após tocar Dó. Em termos de graus harmônicos, temos: primeira
metade, IV’ – V – I, meta Ré; segunda metade, IV – V – I, meta Sol.
_______________
_________________
_________________
________________
______________
______________
______________
musical não pode ser negado. Além disso, como temos visto, a tentativa de
compreensão é de modo algum sem esperança.
Vista sob esta luz, a distinção entre racional e irracional – em todo caso, a
maneira como esta distinção é usada – mal parece ser aplicável. Se eventos
específicos, corretamente observados, não podem ser classificados em uma ou outra
destes dois conceitos mutuamente exclusivos, então algo deve ser estar errado com
nossa definição deles. Pode ser que encontremos dificuldade para compreender o que
acontece em uma obra musical porque nosso conceito de racional é muito estreito? E
que somos obrigados por esta razão a chamar de “irracional” todas as coisas que não
se ajustam a este conceito estreito? Contudo que possa ser, quando estamos lidando
com um desenvolvimento mozartiano, não pode nos ajudar a sensação de que nosso
conceito de racional é inadequado para responder pelos fatos do caso – não porque os
próprios fatos esquivam-se à explicação racional, mas porque nossa definição de
racional não é suficientemente inclusiva. O que acontece neste desenvolvimento é
racional mesmo no sentido mais costumeiro, mas não é completamente respondido
por meio disto. Como entre os próprios “eventos” e nosso conceito de racional, quem
é que decide onde desenhar a linha? Considere ___________ . Quem pode dividir
isto na ilustração da noção de duas fontes criativas, especialmente duas fontes
opostas? Esta frase é inteira e indivisível, pode somente ser criada em um ato
espiritual único. Reconhecer que sua fonte criativa é racional acima de um ponto – e
sem dúvida alguma – é reconhecer que tudo nela deve ser racional. Somente nosso
estreito conceito de racionalidade demanda a dicotomia de duas fontes criativas, uma
agudamente distinta da outra. Deveríamos deter forçar os fatos para se ajustarem ao
conceito, de maneira que as características essenciais da música são relegadas ao
domínio do irracional: isto é, dizê-la ininteligível por definição. Mais propriamente,
deveríamos deixar os fatos nos guiarem em direção a um conceito mais amplo de
racional – um conceito que reflita mais verdadeiramente a força real do pensamento,
o verdadeiro alcance do inteligível. Neste ponto, no entanto, uma questão ainda mais
ampla se revela. Sobre quais bases estamos justificados em atribuir irracionalidade à
música em primeiro lugar? Não pode o apelo a forças “mais altas”, à “inspiração”,
simplesmente refletir a estreiteza de nosso conceito de racional? Por enquanto
devemos deixar esta questão sem resposta e lidar com outra questão fundamental: se
o ato espiritual que produz os eventos musicais da espécie referida acima pode ser
chamado de um ato do pensamento. O que tem sido dito até aqui é na verdade
insuficiente para mostrar que esta designação e todas as suas implicações são
somente a própria uma.
A Mão do Musicista
187
Como qualquer outro artista, o compositor manuseia uma dada matéria prima,
confere a ela uma forma específica, produzindo assim algo que nunca existiu antes,
um novo pedaço de realidade: a obra. Neste sentido, o escultor, o ceramista, e o
tecedor de tapetes pode ser chamados de artistas arquetípicos: isto não somente
porque todos os estágios da atividade artística estão marcantemente ilustrados na
maneira como eles transformam suas matérias primas em obras acabadas, mas
também porque suas atividades envolvem primariamente a mão, o órgão no qual a
característica especificamente humana de sua atividade é expressa mais claramente
do que em qualquer outro lugar.
Visto sob esta luz, o ato que produz uma obra de arte parece ser o oposto direto
de um ato do pensamento. O pensamento opera com conceitos; ele desenha linhas
fronteiriças, faz distinções, e cria relacionamentos: ele não cria uma nova realidade.
Ele muda o mundo, é claro, mas nunca diretamente, sempre através da intermediação
de uma atividade que envolve o corpo humano ou uma ferramenta que melhora sua
eficiência. Também a linguagem, esta mais direta criação do pensamento, não seria
uma realidade sem a contribuição do corpo, o qual a transforma em palavras faladas e
signos. A mão do artista, contudo, não é guiada pelo pensamento como definido
acima. É claro, sua mão não é cega, não procura apalpando no escuro, mas o que a
guia são representações e imagens, não conceitos ou julgamentos. Isto é o que a
princípio nos sentimos compelidos a acreditar. A atividade da mão pode depender do
pensamento na forma do aprendizado e da experiência: seus impulsos decisivos não
se originam no pensamento.
Sendo este o caso, pode qualquer coisa ser obtida por comparar o pintor ou o
escultor com o compositor? Afinal de contas, a matéria prima do compositor não
pode ser moldada pela mão. Ou pode? Pode alguém falar de uma “mão do
musicista”?
Para começar, a função da mão do artista plástico deve ser examinada mais de
perto. É realmente verdade que a atividade de sua mão é guiada pela imaginação, que
ela torna visível para o olho físico o que foi visto primeiro pelo olho da mente? A
mão do ceramista pode ser guiada pela sua idéia da forma do vaso quando ele o está
188
fazendo, embora isto pareça menos certo quando recordamos que um vaso pode ser
segurando nas mãos a fim de alguém compreender sua forma. É concebível que o
desenho complicado de um grande tapete está completamente presente na mente do
tapeceiro antes do desenho ter se tornado realmente visível através da atividade de
suas mãos? Teria Altdorfer uma imagem mental das lanças em A Batalha de
Alexandre antes de ele de fato colocá-la na tela? (Ver imagem na página ao lado.)
______________
Até onde esta última questão é concernida, ela pode ser respondida somente
pela negativa. Altdorfer pode ter concebido o plano para sua enorme pintura –
enorme em conteúdo, não em dimensões – antes de ele a ter pintado: no topo do
drama celestial, sol contra lua, e as batalhas entre as massas de nuvens em
tempestades de vento; na área intermediária, a terra, montanhas, mares, as habitações
humanas; em baixo, o choque de exércitos hostis. E aqui estão as lanças, milhares
delas, em todas as posições concebíveis – horizontal, vertical, diagonal, paralelo,
cruzadas, eriçadas como espinhos de porco-espinhos – uma confusão ordenada
indescritível de linhas e redes, nas quais as figuras na pintura são colhidas somente
como espectadores. De nenhum olho escapará sua força realmente mágica. Supomos
que o olho interior do pintor viu esta rede com seus milhares de detalhes antes de
colocá-la na tela? Ninguém diria que os detalhes não são a questão. São precisamente
aqueles detalhes que se somam para criar o todo, a totalidade do desenho, a ordem – e
sem ordem não há mágica. Que uma imagem mental guie a mão aqui é somente tão
impensável quanto que a mão trabalhe cegamente.
Neste ponto alguém poderia perguntar, onde está o olho em tudo isto? Gilson
não se esquece ou nega que o olho está envolvido no ato de pintar. Ele se refere ao
câmbio contínuo entre a mão e o olho do pintor. Contudo, o olho funciona
predominantemente enquanto um órgão receptivo. Ainda quando o olho é a fonte de
todo prazer obtido dentro do visível, especialmente na obra de arte visual, o órgão
ativo e criativo é a mão. No câmbio contínuo entre os dois, a mão cumpre a parte do
doador tanto freqüentemente quanto o olho; é a mão que, de acordo com Gilson, dá a
forma definida às pinturas incompletas e indistintas da imaginação e torna-as visíveis
para o olho. O primeiro impulso criativo, ele diz, não se origina no olho, em algo que
parece poder ser reproduzido na tela: “A menos que ele sinta em seus dedos a coceira
estranha que deve ter colocado um pedaço de carvão nas mãos dos homens que
pintaram o bisão na caverna de Altamira, ninguém adquirirá alguma vez esta arte, e
muito menos a usará. . . . Um homem não terá percepções criativas . . . a não ser no
momento em que ele percebe certos espetáculos externos e sente em sua mão uma
obscura urgência para traduzi-la em cores e formas.” Não é o olho, é a mão que
descobre a pintura, aquilo a ser realizado. O termo “motivo” expressa este fato: o que
o pintor vê torna-se uma pintura potencial por colocar suas mãos em movimento.
vazio. O trabalho se origina neste diálogo, neste encontro, nesta interação, não na
intenção de colocar no papel uma figura vista pelo olho da mente. Caso contrário, a
figura teria pré-existido na imaginação, o tempo necessário pela mão para transferi-lo
para sobre o papel não entraria no fazer a obra, permaneceria externo a ele. Aqui, no
entanto, podemos ver uma obra vindo a ser, e neste processo de vir a ser, o tempo é
tomado pelo movimento da mão, é incorporado na própria obra, tornou-se um
elemento essencial do todo.
Aqui a centelha da analogia nos leva até a arte do compositor. Vamos de volta
ao primeiro exemplo, onde visualizamos Bach ao teclado. Sua mão esquerda toca a
nota mais grave ________; sua mão direita assume o comando, replica com
_________ – ou _______ . uma linha de sons, traçada por uma mão em silêncio,
forma o começo a ser delineado . . . Gilson, também, compara o processo de criar
uma pintura com aquele de criar uma peça musical: exatamente como a forma visível
pressupõe um vazio, diz ele, também a forma audível pressupõe silêncio. Gilson se
refere primeiramente ao silêncio que é imposto antes do começo de uma execução
musical, do qual a primeira nota emerge e no qual a última nota desaparece
gradualmente. Mas há muito mais do que isso. O compositor, também, pode criar um
silêncio ao redor de si mesmo antes de começar sua primeira linha de som. Este
silêncio não é necessariamente externo; Mozart podia compor no meio de barulho
porque ele construía ao redor de si mesmo uma parede de quietude interior. Além
disso, é certamente verdadeiro para a música, como o é para a pintura, que sua tarefa
não é cobrir o vazio ou acabar com ele. Pode-se dizer que uma das funções da música
é revelar o significado positivo do silêncio, transformar um silêncio quando ouvimos
nada em um nada audível. Diferentemente da pintura, a música não pode tornar
tangível o vazio ao redor das formas; no espaço musical não há “ao redor” neste
sentido: cada nota quando soa ocupa todo o espaço disponível. Mas experimentamos
o vazio no entre, na pausa que, afinal de contas, é algo muito diferente da mera
ausência de notas e é um elemento da música tão real quanto as próprias notas. “As
notas param, mas a música continua”, como uma criança inteligente disse uma vez. E
quando o poder do silencio pode ser sentido mais compelidamente do que quando a
última nota de uma melodia desaparece gradualmente? (Pode-se mencionar aqui que
muitas pessoas usam a música para mascarar o silêncio que elas não podem suportar
porque elas sentem somente seu aspecto negativo, o vazio. Elas poderiam ser curadas
deste erro, desta doença, precisamente por ouvir música.)
Pode a linha audível ser uma obra da mão, tal como aquela visível? Afinal de
contas, as mãos de Bach ao teclado meramente golpearam as teclas, não produziram
sons. A mão do pintor produz a linha visível diretamente – o traço do movimento de
sua mão é gravado na linha – mas a mão do musicista meramente opera um
instrumento, o qual produz os sons. Enquanto o pincel do pintor incorpora
diretamente o movimento da mão na linha, a nota e a mão do musicista são mantidas
apartadas por um aparato mecânico rebuscado. E não afirmamos explicitamente que
não é de todo necessário supor que Bach concebeu esta melodia enquanto realmente
sentado ao teclado, que ele poderia de fato tê-la concebido tão bem longe de qualquer
191
teclado? Onde poderia a mão entrar, então? Mas deveriam as mãos de Bach de fato
repousar sobre um teclado para criar uma melodia como esta? Quando a melodia é
criada na mente do compositor, isso faz as mãos terem menos a ver com ela?
A partitura
____________
O que dizer a respeito de instrumentos tais como a flauta que requerem menos
trabalho manual do que o teclado? Uma linha melódica desenhada no silêncio por
meio de um teclado perde sua característica quando tocada em uma flauta? As mãos
que seguram a flauta, abrindo e fechando as chaves e buracos, não são da espécie que
pode ser descrita como sendo “o local de um instinto”. Se, neste caso, qualquer
atividade mental ou real produz a melodia, esta seria a respiração. E o que dizer a
respeito da canção, a mãe de toda melodia, de toda música? O que têm as mãos a ver
com isto? Em lugar algum elas são menos necessárias do que para o cantor.
Finalmente, a idéia de que a música orquestral é em algum sentido o trabalho das
mãos parece completamente absurda: aqui a mão deveria tocar todos os instrumentos
da orquestra simultaneamente.
Em um respeito, contudo, toda a música, seja feita para ser cantada ou tocada
ao teclado, flauta ou qualquer outro instrumento que for, é trabalho manual: é preciso
ser gravada em escrita se é para existir objetivamente como uma obra. Tal como a
mão do pintor grava a obra pictórica na tela, assim a mão do musicista – a mão que
escreve, não a que toca – grava a obra musical no papel. Agora se torna claro como a
pintura difere da composição. O que quer que alguém possa pensar sobre como a mão
está relacionada à mento ou imaginação do artista, não será contestado que a mão é
192
Para a afirmação de que a mão que escreve não tem nada a fazer na tarefa de
compor, um caso pareceria oferecer uma exceção espetacular e, à primeira vista,
conclusiva: Beethoven. Ele compõe enquanto escreve, escreve enquanto compõe.
Neste caso, as duas atividades – seus cadernos de esboços dão testemunho disto –
estão mais intimamente intertecidos do que no caso de qualquer outro compositor.
Logo mais discutiremos seu modo de compor em grande detalhe; aqui estamos
interessados somente na “mão que escreve”. Quando Beethoven perde seu caminho
após escrever o começo feliz de uma melodia, no sentido de procurar a continuação
apropriada, ele invariavelmente começa de novo da risca, e escreve – escreve – a
melodia, muitas vezes com muita pressa mesmo que nunca omitindo uma única nota,
obviamente na esperança (não há outra explicação) de que o momento de sua mão o
carregará além do ponto crítico e o colocará novamente na pista certa. Este momento
é realmente aquele de sua mão escrevendo? Sim e não. Sim, pois se sua mão que
escreve nada tivesse a ver com isto, ele não precisaria escrever tudo de novo; não,
porque o movimento das notas certamente não é – e não pode ser – aquele da mão
que escreve, se não por outro motivo, somente porque cada uma acontece a um passo
diferente; onde o movimento da música é rápido, a mão fica consideravelmente para
trás; onde ele é lento, a mão corre consideravelmente junto. Conseqüentemente, se a
mão está envolvida, não é a física mas a mão do pensamento, a qual, é claro, não é de
todo a mesma coisa que a imagem mental da mão física.
Que a idéia da “mão pensante” do musicista não é uma ficção, tornar-se-á claro
quando compararmos sua atividade com a do pintor.
O artista visual trabalha em um meio visível. Porque todo o visível, tudo o que
é percebido pelo olho, é um objeto ou a propriedade de um objeto no mundo exterior,
a produção da obra visível requer, um exterior, um órgão “exteriorizado”: a mão. No
mundo audível, também há coisas que o ouvido percebe enquanto vindas do lado de
fora, isto é, todos os ruídos e sons naturais. Os sons musicais, entretanto, o audível
em sua forma mais refinada, não são objetos ou propriedades de objetos no mundo
14
Datada de 20 de abril de 1782, esta carta se refere ao K. 383a [394].
193
exterior. Quando eu ouço __________, ouço “Bach”, não “cravo”. Embora o som
venha a mim desde o lado de fora, ele esteve do lado de dentro antes de estar fora: a
coisa – o instrumento ou corpo humano – é meramente uma instância através da qual
ela passa em seu caminho desde o lado de dentro para fora e de volta para dentro. A
nota que envio para fora quando canto é a mesma que alguém aceita em devolução
quando a ouve. O ouvido que se abre a ouvir não reage a ela do mesmo modo como o
olho reage à cor, pois o ouvido deixa a nota voltar, retornar à casa para junto de
outras notas. Quem quer que trabalhe com as notas não precisa sair fora delas; ele
sempre as tem dentro de si mesmo (este é o por que do homem poder emitir sons mas
não poder emitir luz, ao contrário de alguns animais). Isto é também por que nenhum
órgão exterior, exteriorizado, nenhuma mão corpórea, é necessário para formar as
notas; nenhum órgão corporal compreende a substância incorpórea da música. O
órgão aqui pode ser tão incorpóreo quanto a substância para a qual ele dá forma; se é
para compreender as notas, deve ser indo para o interior, não para o exterior.
começa __________, ele pode fazer isto por seus dedos unicamente, os quais sabem
como encontrar seu caminho; logo depois eles olham para _______, mas _______
não mais envolve unicamente a mão física. É claro, as notas parecem unir a mão a
meio caminho, como se de sua própria volição, sentimos mesmo a presença de algo
mais que guia a mão de dentro dela. Os sons tornaram-se um gesto expressivo. Este
gesto não pode ser atribuído à mão física; ele seria atribuído ao compositor ou às
notas? Aqui tais distinções são sem sentido: as próprias notas tornam-se mão, pois
que elas falam por meio de gestos.
Música e Matemática
As reflexões precedentes lançaram uma nova luz sobre a relação entre música e
matemática.
Temos por garantido que as notas estão correlacionadas com os números, e que
as relações entre as notas correspondem a proporções numéricas. Aprendemos na
escola que toda altura corresponde a uma certa freqüência de vibrações, e que os
intervalos do sistema diatônico, que é a base de nossa música, são expressos em
termos das proporções mais simples. O intervalo da oitava corresponde à proporção 1
: 2, o da quinta a 2 : 3, o da quarta a 3 : 4 (em virtude disto a diferença entre quarta e
quinta, um tom inteiro, é 8 : 9, isto é, a diferença entre 2 : 3 ou 8 : 12 e 3 : 4 ou 9 :
12), o intervalo da terça maior a 4 : 5 (em virtude da diferença entre a quarta e a terça
maior, um semi-tom, corresponde a 15 : 16), e que a terça menor a 5 : 6. A série 1 : 2
: 3 : 4 : 5 : 6 é suficiente para suprir a base para o sistema inteiro. Por este fato se
ajustar facilmente em nossa visão de mundo e em nossa crença, inspirados pela
ciência natural matemática, de que todo fenômeno pode ser correlacionado a
números, tomamos isto meramente como uma confirmação desta crença e não vemos
aí nada de notável.
Se, no entanto, olhamos para esta questão com olhos sem preconceitos, um
quadro diferente é revelado. O sistema diatônico não é um produto natural. Apolo não
o concedeu aos gregos, o Deus da Bíblia não o revelou aos hebreus, nem qualquer
sábio da Antigüidade construiu-o de acordo com uma ordem matemática rigorosa e
decretou que o povo seria por ele guiado em seu cantar e tocar música. O sistema foi
desenvolvido gradualmente. A princípio as pessoas realmente cantaram e construíram
instrumentos sobre os quais eles poderiam tocar suas notas. Eventualmente
começaram a refletir sobre sua atividade peculiar, e perceberam que os mesmos
intervalos pareciam recorrentes em suas melodias. Somente então eles descobriram a
ordem que os governava. “Primeiro vieram as melodias, então vieram as escalas”. Foi
descoberto (talvez por um construtor de instrumentos) que a fim de produzir as notas
que ocorrem nas melodias uma corda vibrando ou coluna de ar precisariam ser
divididas em metades, terças, quartas partes e assim por diante. Tudo isto sugere que
a correlação entre música e matemática é tudo menos natural ou auto-evidente. Afinal
de contas, inventores de melodias não escolheram deliberadamente notas de modo
que seus intervalos pudessem ser expressos em termos de proporções simples!
Quando fazendo música nada está mais longe de nossa mente do que matemática,
mensuração ou números. A matemática opera secretamente, por assim dizer, atrás das
costas dos músicos.
Para uma real compreensão do que se passa na música, é preciso esperar por
considerações que começam com a nota individual ou intervalo e desenvolvem-se
196
correlativos objetivos, apesar disso referem-se a algo real: jogar o jogo da matemática
é responder questões postuladas pelo mundo real. Podemos bem estar inconscientes
disto quando exercitamo-nos em um problema matemático, mas as regras que
seguimos e o tipo de pensamento que as operações matemáticas requerem são
limitados em última instância pelas leis da natureza. É claro, os conceitos
matemáticos permanecem fora do mundo da percepção dos sentidos, mesmo estando
bastante próximos dele para serem afetados por ele e responderem a ele – exatamente
como uma corda firmemente esticada emite um som quando algo a faz vibrar. A
ordem dos números e das figuras está em sintonia com a ordem da natureza. O que
distingue os conceitos matemáticos dos outros é justamente esta consonância entre
pensamento e existência, e é por isto eles podem servir como símbolos. Outros
conceitos se elevam ao nível de alegorias, no melhor dos casos.
O Problema de Chopin
Falamos, não sem razão, de “lógica musical” ou “sintaxe musical”, isto é, uma
estrutura que provê um critério de contorno nítido. Estes termos designam um
conjunto de regras resultantes dos relacionamentos dinâmicos das notas, das
qualidades de tensão e resolução dos sons, do relacionamento entre consonância e
dissonância, dos padrões de ritmo básico e do desejo elementar de simetria, e por fim
das particularidades de um dado estilo. Tais regras, no entanto, não são de ajuda para
resolver as espécies de problemas com os quais lidamos aqui. Tome uma partitura
composta em um estilo familiar, esconda umas poucas barras, e solicite a um certo
número de estudantes de composição para prover a música que falta. Isto é
simplesmente uma questão de estudar as passagens precedentes e continuá-las no
estilo indicado. Qualquer estudante de composição deve ser capaz de surgir com a
solução “correta”, ou ao menos com a solução não obviamente “falsa”. Um certo
número de diferentes soluções do problema serão apresentadas, todas elas “corretas”
mesmo que muito improvavelmente algumas delas serão idênticas ao original.
Mesmo quando somente umas poucas notas tenham sido providas – algo tão óbvio
musicalmente quanto a palavra ausente na sentença “Parece . . . chovido ontem” –
mesmo então, quando pareceria que ninguém possivelmente poderia surgir com algo
novo, realmente então podemos nos preparar para uma grande surpresa.
menor com um efeito despedaçador. Pela duração de um longo pulso toda a estrutura
musical fica suspensa no ar – e somente após isto a nota é resolvida na consonância
final Si natural – Dó. Assim, havia outro modo de concluir a passagem, embora
nunca nos ocorresse Bach não tê-la encontrado primeiro e nos ensinado a ouvir a
passagem precedente como requerido. É fácil, depois do fato, dizer que a conclusão
possivelmente não seria outra que não esta, e mesmo é possível “justificar” o retorno
melódico inesperado apontando para um primeiro, pois o que é _________ que não
uma repetição disfarçada de _____________? No entanto, o paralelo é tão
completamente oculto, tudo menos óbvio que – como o presente escritor conhece de
sua própria experiência – alguém pode estar familiarizado com a Paixão Segundo São
Mateus durante cinqüenta anos sem ter percebido isto. Além disso, a solução de Bach
para seu problema parece ter sido ditada mais por considerações mecânicas do que
musicais. Em seu tempo, a nota mais grave na flauta transversal era o Ré [acima do
Dó central]: não poderia produzir o Fá – Mib – Ré – Dó do primeiro oboé! Em
situações composicionais como esta, o que ocorre bastante freqüentemente, a nota
que não pode ser tocada é transposta para uma oitava acima: aqui, em outras palavras,
as flautas teriam que tocar Dó [acima do central]. Se Bach procurasse se esquivar
disto, no entanto, outra solução seria possível para ele: ter as flautas tocando Mi
como o segundo oboé. Somente uma destas duas soluções teria sido considerada hoje
em dia se o compasso em questão tivesse sido perdido. No entanto, para um
compositor como Bach um obstáculo mecânico como este serve como trampolim
para seu gênio. Pudesse sua flauta tocar a nota Dó [central], como as nossas, Bach
poderia simplesmente ter concluído com Fá – Mib – Ré – Dó – neste caso Si – Dó
nunca teria sido criado e o mundo seria privado de uma experiência profundamente
tocante. (Bastante estranhamente, fosse um computador solicitado a compor o último
compasso da parte da flauta, proporia, entre outras soluções, “a colcheia Si seguida
da semínima Dó”. Mas dificilmente alguém escolheria esta como a solução correta.)
Tudo isto mostra quão enganoso é falar de “lógica” com referência à coerência
peculiar da música. Pois a característica decisiva da coerência lógica, implicação –
isto é, o fato de que todo passo está implícito no precedente e em virtude disso pode
dele ser deduzido – está ausente. Na música nenhum passo necessariamente segue
desde o precedente no sentido de ser dedutível por meio de uma audição perspicaz.
Isto é verdade não somente para o “ouvir” no sentido acústico usual mas também no
interpretativo, compreendendo “escutar”. Todo passo em música pode realizar aquilo
que a nenhum passo em lógica é dado fazer: ele pode ir além do dado e dizer algo que
não está surgindo dele por qualquer regra conhecida. Mesmo quando o uso do signo
de implicação, ______, parece ser justificado, quando um novo passo de fato é
determinado pelo precedente e precisa somente ser dado – mesmo então, como temos
visto, o campo permanece aberto amplo, e a situação é expressa melhor por ____ do
que por __ . É claro, isto não dizer que a música é de fato uma sucessão de surpresas.
Isto seria insustentável; e, ao invés disso, como todos sabem, o que acontece em
música é amplamente determinado pela convenção. Muitas vezes, o que acontece é
exatamente o que está sendo esperado de acordo com regras correntemente
reconhecidas – em outras palavras, não é algo novo. Mas os procedimentos
204
convencionais em uma atmosfera de liberdade, por assim dizer: não porque precisa
ser assim, mas porque o compositor quer que seja assim. Em princípio, todo passo em
música poderia ser dado de outro modo do que foi, e então, desde este ponto de vista,
mesmo um passo convencional é “novo”. Isto deixa sem sentido qualquer tentativa de
encontrar, em uma dada peça musical, a passagem que pareceria errada para o
compositor. Se não podemos decidir entre o que é e o que não é correto com base no
que veio antes (como fazemos na lógica), como decidiremos de todo? Se não posso
dizer de qualquer passo que ele deve ser somente aquele e nada mais, então eu não
posso (dentro de limites razoáveis) chamar qualquer passo de “errado” ou dizer que
ele não pode ser correto. Quão vão, então, procurar através dos Prelúdios de Chopin
pela passagem que ele trabalhou tão longamente sem ser capaz de aperfeiçoá-la. O
problema é insolúvel não somente na prática mas também em teoria: ele é insolúvel.
Em seu diálogo Eupalinos ou o Arquiteto, Paul Valéry, faz seu arquiteto dizer:
“O que é importante acima de tudo mais é obter desde aquilo que está vindo a ser,
que isto poderia com todo o vigor da novidade satisfazer os pedidos razoáveis daquilo
que foi”. O que Eupalinos diz da arquitetura, a arte espacial por excelência, é também
verdade para a música, a arte temporal por excelência. A característica essencial da
coerência musical, que a distingue tanto da coerência lógica quanto das sucessões
aleatórias, não pode ser expresso mais clara e adequadamente. Se omitimos as
palavras “com todo o vigor da novidade”, a afirmação de Valéry define a lei que
governa a coerência lógica; se mantemos estas palavras e omitimos o resto, isto
define a sucessão aleatória. O que está em questão aqui, no entanto não é nenhuma
destas alternativas, mas um tipo de coerência que não é lógica e também não é
irracional. É mais propriamente uma coerência que tem uma lógica sua própria, na
qual a racionalidade é compatível com a novidade. “Aquilo que foi”, isto é, o que é
dado, faz uma demanda razoável, isto é, uma demanda contida e reconhecível no que
é dado, capaz de ser satisfeita, e endereçada para “aquilo que está vindo a ser”. A
última, a fim de satisfazer a demanda, deve suprir mais do que o que pode ser
conhecido ou ouvido no que é dado e inferido dele, deve manifestar “todo o vigor da
novidade”. Ao passo que na lógica somente a consistência importa, e cada passo pode
205
ser somente certo ou errado, na música onde o novo é tecido dentro do contexto dado,
tais decisões firmes ou ligeiras são impossíveis. A diferença entre certo e errado
permanece, mas admite graduações, como temos visto em nossos exemplos de Bach e
Chopin. Os dois elementos de consistência e novidade podem nunca ser separados,
mesmo em um exemplo concreto individual. Nem eles são um composto –
consistência mais uma parte de novidade ou novidade mais uma parte de
consistência. A dupla requisição é satisfeita por um passo; um único ato produz
ambos, consistência e novidade. Cada passo revela dois aspectos: uma vez ele tenha
sido dado, é consistente, pois de outro modo ele não poderia encontrar um
requerimento razoável; antes de ser dado, ele é imprevisível, pois de outro modo não
teria o pleno vigor da novidade. O ouvinte de uma obra acabada, que sabe somente os
passos que tenham sido dados, desfruta da consistência do novo; o compositor dentro
de sua composição, que tenha dado todos os passos, sente que não pode predizer o
que será consistente. O que cada passo sucessivo deve ser a fim de reunir o duplo
requerimento, isto o compositor também não pode saber antes que ele tenha de fato
dado o passo. Antes então, isto é um segredo que as notas não denunciam a ninguém
exceto àquele a quem elas devem sua própria existência, e mesmo para ele elas não se
revelam realmente; elas meramente apontam o caminho. Elas incitam-no a imaginar,
elas facilitam, ainda mesmo urgem, mas elas não compelem. A tentativa vã de
Chopin para aperfeiçoar a passagem localiza com precisão o processo em seu estágio
crítico. A tentativa torna-se necessária pelo requerimento de consistência falhar em se
unir ao requerimento da novidade. Nada caracteriza mais completamente a coerência
musical e o ato que a produz, do que a falha de Chopin em resolver este problema.
dado, mas é dirigido para algo além do dado, para um vazio. O dado está atrás dele
mais propriamente do que à frente dele; ele busca não dentro dele mas junto com ele,
junto com o dado ele procura algo que não está no dado. Nem poderia ele esperar
descobrir algo no vazio. Aqui somente uma coisa interessa: encontrar algo que não
existe, isto é, inventá-lo. Nem poderia ele aproveitar-se de um critério para avaliar
sua invenção, tal como ela é avaliável em outros casos. Mesmo a palavra para ser
encontrada pode ser testada contra a experiência interna que ela é suposta expressar, a
fim de apurar se ela serve ou não a seu propósito. Um compositor não tem tal critério,
nada que possa ajudá-lo em sua condição, nada de objetos, regras, conceitos ou
sentimentos; ele tem somente as próprias notas musicais. Seu momento sem dúvida
pode levá-lo até um certo ponto, mas então eles o deixam, abandonam-no, lançam-no
dentro do vazio, onde ele pode ganhar um ponto de apoio sem sua ajuda. E somente
um sentido interior elusivo fala a ele – e a ele somente – se ele encontra a solução que
estava buscando. Ainda na consciência de sua falha, ele está sozinho: ninguém mais
pode dizer que ele não encontrou; mesmo o compositor não pode. Pois ele poderia
dizer isto somente das notas que não foi capaz de inventar.
entre números e notas. Se é verdade que o que o matemáticos pensam existe antes
dele de fato ser pensado e existiria mesmo se não fosse pensado, então parece que o
pensamento musical é ainda superior ao pensamento matemático onde a
pressuposição da existência é concernida. Mas isto somente parece assim. A prova do
teorema de Fermat pode existir embora ninguém pense sobre ela, mas ela é parte da
teoria dos números, a qual é uma criação do pensamento. Certamente faz sentido
dizer que toda a aritmética está implícita, isto é, existe, na idéia de número – na
verdade, na idéia do primeiro número (especialmente se consideramos dois como o
primeiro número como os gregos faziam), ao passo que mesmo a menor parte da
música, apartada de toda a música, está implícita na idéia da nota ou qualquer nota
específica. Em música somente existe o que é de fato criado: isto expressa não o
grande poder da música de postular a existência, mas sua íntima afinidade com o
tempo. A este respeito, o número é o oposto direto à nota. É claro, é necessário tempo
para pensar um pensamento matemático, como qualquer outro, mas em matemática, o
tempo é meramente um pano de fundo psicológico, uma “mera formalidade”; o
tempo flui pelo, por assim dizer, lado de fora do pensamento matemático, o qual é
realmente estranho ao tempo assim como o texto de um livro é para a luz que eu
necessito para lê-lo. O que os pensamentos matemáticos são, eles são mesmo se não
houvesse tal coisa como o tempo; alguém poderia quase dizer que somente o tempo
impede a matemática de se desenvolver em toda a sua dignidade e esplendor.
(Bastante curiosamente, Kant, quem primeiro denunciou os perigos do psicologismo,
incorreu em seu pior erro justamente quando confundiu número com contagem, e
afirmou que aritmética estava fundamentada no tempo assim como a geometria
estava fundamentada no espaço. Nenhum musicista teria se extraviado tanto.) No
pensamento lógico explanatório, o tempo é meramente uma condição psicológica. No
seu Regulae ad directionem ingenii, Descartes descreve o processo do raciocínio
dedutivo como uma cadeia de proposições, observando que “podemos passar tão
rapidamente do primeiro para o último que praticamente nenhum passo é deixado na
memória, o conjunto sendo visto todo ao mesmo tempo” (Regra XI). Em outras
palavras, se o tempo fosse eliminado o processo não seria afetado de todo modo. Se
fosse eliminado do pensamento musical, nada sobraria deste último. Como poderia
alguém pensar uma melodia se não como uma sucessão específica de notas no
tempo? Pensamos mais efetivamente quando imaginamos uma melodia lenta
movendo-se rápida? Não, aqui o tempo não é uma mera formalidade. Flui não fora do
pensamento, mas dentro dele; o tempo não é meramente uma condição geral do
pensamento, mas é consubstancial com as próprias notas, com a melodia particular
que elas formam. Aqui alguém pensa não no tempo, mas com o tempo; na verdade, a
pessoa pensa o próprio tempo na forma de notas, a única forma na qual o tempo pode
ser pensado. Este é o motivo pelo qual somente o compositor pode pensar até o fim
uma melodia que ele tenha começado a pensar. O tempo que ele pensa é seu próprio
tempo, e embora seja possível em alguns casos outro homem continuar o trabalho, é
impossível continuar o seu “tempo”.
208
Nossa discussão do caso de Chopin nos ensinou uma coisa ou duas a respeito
do pensamento musical. Podemos aprender mais a partir do caso de um compositor
que, diferentemente de Chopin, teve êxito em aperfeiçoar uma de suas melodias.
_____________________
O que vemos aqui são duas graciosas curvas melódicas, uma para cada estrofe,
cada uma delas subdivida em meias-estrofes.
uma espécie de teto que não pode ser transpassado, de maneira que o que acontece
deve permanecer debaixo dela. Contribuindo para o mesmo efeito estão talvez as
duas oitavas ________ e ________ nos compassos 5 e 6, os quais jogam uma contra
a outra, a tônica e a quinta. O desfecho de tudo isto é algo como uma rigidez e tensão
forçadas, como se algo estivesse sendo contido, que está inquieto sob a superfície.
Isto é responsável por uma tendência à explosão, a primeira das quais ocorre para o
final da primeira curva melódica, nos compassos 11 e 12. Aqui, no ponto onde
termina a primeira estrofe do poema, um período de oito compassos pode ser
completado com uma subida seguida por uma descida, com esta aparência: _______ .
Ao invés disso, temos uma subida correndo através de toda a extensão demarcada por
aquelas duas oitavas, _____ e _____ , a saber, __________. Mesmo assim, o período
poderia ser concluído com a nota Mi alcançada no começo do compasso 12, não para
o acorde ______ o qual, parando neste ponto, altera neste momento o valor dinâmico
8 do Mi para 5, evitando assim a conclusão e forçando a extensão do período por dois
compassos e a repetição da última linha da estrofe. Além disso, ele empurra a
melodia além de sua meta aparente, Mi, para ____ . Então isto foi o que a longa
descida precedente significou: um esforço para transpassar o teto! Somente agora
pode o movimento ser revertido, a ascensão equilibrada por uma descida, e o final
buscado e encontrado (compassos 13 e 14).
________________
O que Schubert falhou a ver a princípio, o que poderia ter clareado para ele
após pensar a respeito dela, foi que a meta de sua melodia tenta completar com a
oitava ______ . Não que isto seja uma idéia racional – foi somente um impulso
pensar outro pensamento musical. Afinal de contas (Schubert pode ter refletido), a
história toda da melodia gira em torno destas duas notas: onde a melodia está (e onde
estou eu) em casa – no Mi mais baixo, no mais alto, em ambos, ou alternadamente
nos dois? Ambos aparecem no curto prelúdio do piano; quão significantes eles são, a
pessoa só realiza mais tarde: __________ . Aqui o Mi mais alto não é mais do que
uma imagem em espelho do mais baixo, ele é somente sugerido; o movimento se
211
enraíza no mais grave e imediatamente se reafirma. Mas quando a voz começa com
______ , temos algo diferente. Embora o Mi mais alto caia sobre o tempo fraco, não
cai sobre um tempo, sobre “dois”, não como realmente fora antes, na última unidade
de tempo de uma batida. Além disso, veio a permanecer por uma batida e meia ao
invés de ser deixado imediatamente; a nota foi agora afirmada em sua independência.
Ela tem uma vida sua própria, embora seja ainda fraca demais para sustentar a
melodia, a qual desde logo recorre à oitava mais baixa. Dois compassos depois, a
mesma coisa é repetida, mas então algo decisivo acontece. Como se o Mi mais alto
fosse levado a tentar puxar a melodia para si mesmo, para capturá-la, e como se a
melodia estivesse disposta a se submeter, temos agora uma longa ascensão passando
através das notas intermediárias da oitava de Mi a Mi; a melodia alcança Mi mais
agudo no tempo forte, e continua além dela: ________ . Por um momento ela escapa
do puxão da oitava mais baixa. Então esta última consegue apanhá-la novamente e,
submissa, a melodia desce suavemente, relutantemente, à última nota da frase, Mi.
Por este tempo, no entanto, o Mi mais alto tornou-se gradualmente mais forte do que
o mais baixo; ao final da primeira curva parcial, o resultado se suspende em
equilíbrio. Ela permanece para a segunda curva parcial para dar o último passo,
encontrar a demanda do que precedeu, para acomodar a emissão. O primeiro final de
Schubert falha em fazer isto:
______________
simplesmente ignora o conflito e vai para trás da situação que obteve no começo
como se nada tivesse acontecido. Mas _________ leva a decisão final, termina o que
foi começado por alcançar a meta da melodia, Mi em direção à qual tendeu desde sua
nota inicial, Mi. Mas para ser realmente definitivo, Mi deve ser alcançado desde uma
nota mais alta. O que o transpassar o teto, a ruptura do espelho, Mi – Fá, prenunciou
passar à última frase, _______ . (Conseqüentemente, o que caracteriza Mi – Fá não é
que, cantado sobre a palavra “grief” [mágoa], ele expressa este sentimento, mas que a
volta que expressa mágoa satisfaz a função decisiva de preparar para a frase de
fechamento da melodia.) Representada esquematicamente, esta é a história da
melodia, a gradual superação do Mi mais baixo pelo mais alto: _________. Um braço
é levantado, cai impotentemente, é levantado mais vigorosamente, permanece para
cima, e o que permanece no final é o quadro de um braço levantado. Depois dele, o
_______ do prelúdio, o qual se torna o poslúdio, se desvanece como uma sombra.
Vamos agora nos confrontar com a questão crucial de como o tema inspirado
vem à existência. A questão parece ser auto-contraditória: se o tema é devido à
inspiração, ele não “vem à existência”, ele existe. É sempre um começando, e a
questão do que vem antes do começar é sem sentido. E ainda, como veremos, esta
questão, embora possa soar paradoxal, não é auto-contraditória ou sem sentido. O
lampejo de inspiração, como tudo mais, teve antecedentes – não realmente
psicológicos (isto não nos concerne aqui) mas também morfológicos. O lampejo de
inspiração é, também, uma criatura do tempo, não do momento.
criação oculta – da qual sabemos somente por seus produtos acabados – tornasse-se
aqui transparente e revelasse seus trabalhos interiores: podemos literalmente ver o
processo de criação.
A imensa quantidade destes esboços – e o que chegou até nós é somente uma
fração do que Beethoven escreveu – pode ser considerado somente se admitimos que
para ele compor era inseparável de escrever. É sabido que, em suas longas
caminhadas sempre carregava papel de música com ele na forma de pequenos
cadernos de nota, cuja condição mostra que os estava usando na rua. Outrora,
pensava-se que ele escrevia somente porque desconfiava de sua memória, porque seu
fluxo de idéias era tão abundante que temia algo pudesse escapar, mas um exame em
detalhe destes esboços mostra que esta hipótese é infundada. Outros compositores
registram idéias, um padrão tonal acabado que pode ainda ser deficiente em algumas
partes, ou delinear uma peça acabada omitindo detalhes. Em contraste, Beethoven em
seus esboços nunca registra uma melodia acabada; esta última aparece somente no
manuscrito do trabalho (onde, no entanto, muitas vezes submete-se a posteriores
alterações). Os esboços contêm somente o que precede a versão definitiva; o que eles
registram é como ela está vindo a ser. Vemos – literalmente vemos – como os
padrões desenvolvem-se desde começos embrionários, os estágios através dos quais
ele passa como se fosse gradualmente se aproximando do resultado final (o qual nós
215
conhecemos, mas o qual Beethoven não conhecia). Esta não é a reconstrução “ideal”
do processo criativo para o qual nos referimos em nossa discussão da teoria de
Schenker – o auto-desenvolvimento de um “plano de fundo” através de suas
sucessivas transformações pelos “planos intermediários” até o “primeiro plano”;
como declaramos explicitamente, nenhuma obra musical é de fato produzida deste
modo. Nos esboços, temos diante de nós o processo do desenvolvimento real em
tempo real. Um exemplo particularmente refinado vem a seguir.
segunda repetindo a primeira com ligeiras alterações, a quarta sendo uma exata
repetição da terceira.
Vamos agora ver como tudo isto sucedeu. Na página 35 de um dos Cadernos
de Esboços, dentre outras coisas, repentinamente encontramos isto:
suspeitado de suas potencialidades? Claro, quem sabe o que Beethoven fez dele
facilmente reconhece a semente do futuro padrão. O primeiro compasso revela seu
futuro perfil; o segundo é ainda amorfo. Somente a primeira e a terceira últimas
notas, as notas que irão reaparecer no padrão definitivo, são claramente legíveis; as
outras são apenas decifráveis.
Isto parece nada conter de um elemento poderoso para dar forma. Ele se
acomoda e começa imediatamente a se desenvolver, a se desdobrar. Ainda na mesma
página, encontramos isto:
Seguem vários experimentos com detalhes, mas então, duas páginas adiante,
vem uma surpresa. Vemos algo assim:
A frase repentinamente mostra uma outra face. Está numa tonalidade diferente,
Dó maior ao invés de Láb maior. Em Beethoven tal mudança indica um passo em
direção a uma maior simplicidade e clareza. A alternância rítmica entre notas longas
e curtas e de estados de tensão suave e resolução dão caminho a uma seqüência de
oitavas uniformes e relaxadas. Para nós, que sabemos que Beethoven a esse tempo
ainda não sabia, a saber, para o que este processo de crescimento estava levando, esta
mudança pode parecer como um desvio do caminho direto. Mas os caminhos do
desenvolvimento orgânico cuja meta está latente não são os caminhos do
planejamento intelectual que estabelece ele mesmo sua meta em avanço. O menos
pesado Dó maior, a mais relaxada seqüência de oitavas: quem poderá dizer – talvez a
tarefa requeira neste ponto que algum lastro seja arremessado fora do barco. O que
nos parece um desvio do caminho direto pode parecer ter sido um atalho em termos
de desenvolvimento orgânico.
Não se deve esquecer, no entanto, que tais percepções são devidas a uma visão
posterior, após o fato. Neste ponto Beethoven não sabia, não poderia ter sabido, que
meta ele queria atingir – ele sabia, ele poderia ter tido a melodia inteira; ele mesmo
pensou aqui que deveria, além disso, diminuir o peso e a tensão. E então ele substitui
verdadeira frase de quatro compassos, similar àquela no último esboço em Láb maior,
mais próximo da versão definitiva porque desta vez ele termina “corretamente” sobre
16
A primeira metade do segundo compasso é ilegível.
221
À primeira vista isto parece ser com um passo para trás. O padrão final
previamente atingido (é claro, Beethoven não sabia que ele era o final) da primeira
frase de quatro compassos é sacrificado; as primeiras frases de dois compassos estão
de volta. Mas isto está fora de questão aqui; Beethoven está agora interessado em
alcançar o meio com o centro modificado, se possível em uma limpeza que o
carregará na correta continuação e na ligação apropriada das duas metades da
melodia. Por sua vez, nada melhor é avaliável por ele, para enchimento do todo
estendido desde o começo até o meio, do que as duas frases de dois compassos com
repetição. Mas a tentativa revela-se frutífera. O que aparece agora na fenda no meio é
nada mais que não a anacruse do começo, repetida aqui, mas agora levando para 2 ao
invés de 1. Em outras palavras, ao invés do prévio , agora temos
Por algum tempo o desenvolvimento não é levado adiante. Nas próximas duas
páginas encontramos sugestões de variações. Beethoven ainda brinca por uma última
vez com Dó maior e notas em oitava. Ele experimenta com prelúdios e poslúdios
possíveis; ele presta atenção aos contra-cantos. Então, lentamente, o último estágio de
desenvolvimento começa, e ao mesmo tempo toda espécie de outras idéias ocorre a
ele. Com o próximo esboço ele experimenta descartar os períodos de dois compassos
na primeira metade; o esboço começa com a primeira frase de quatro compassos
correta, mas falha em encontrar a continuação, que é suposta levar à dominante
quatro compassos mais tarde. Ele escreve, risca, escreve novamente e risca
novamente; as notas não têm direção. O resultado do esforço infrutífero é uma nova
tentativa, a última, com a forma de dois compassos, quase idêntica à da última citada,
somente enriquecida por um póslúdio. Então ele volta para trás para a frase de quatro
compassos do começo, assim:
A princípio, é com dificuldade que percebemos que o passo decisivo foi dado,
pois aqui Beethoven reconhece que a primeira frase de quatro compassos deve ser
repetida. Justo como a segunda metade da melodia, então a primeira metade requer
repetição de uma frase de quatro compassos. Este é um reconhecimento sem reservas;
a frase é repetida literalmente. Como resultado desta repetição, a mudança de centro e
a conclusão sobre a dominante no compasso 8 estão eliminadas, mas somente um
observador superficial concluiria que isto é outra tentativa para alcançar o impossível.
Na verdade, tudo o que é necessário agora para chegar na versão definitiva é uma
pequena mudança, uma tão desprezível que ela dificilmente tem importância
enquanto registrando em mais um esboço. Esta mudança aparece somente na melodia
definitiva, no manuscrito: nos compassos 3 – 4 torna-se
223
Vamos dizer mais uma vez: nossa apresentação da seqüência dos esboços
musicais como um processo significativo, uma revelação, um crescimento cuja meta
pré-determinada é alcançada, embora a abordagem possa ser peculiar, com uma
espécie de certeza sonambulística – tal apresentação foi possível somente porque
sabemos o desfecho. Para aqueles que não conhecem o final, que não podem ver o
que vem após cada estágio sucessivo, longas distâncias do processo podem parecer
como uma flutuação sem plano entre possibilidades igualmente pouco promissoras.
Os tormentos criativos de um artista são devidos ao fato de que está na mesma
situação: ele não sabe a meta do processo; em virtude disso, antes de alcançar sua
meta, não sabe se ela existe. Ele toma uma grande quantidade de força, coragem e fé
para perseverar em tal situação. Até o último passo, o artista não pode dizer, isto é
isto, isto é o que eu havia buscado sem saber o que era, sem mesmo saber que eu
estava buscando isto. Somente após ter a melodia definitiva diante dele pode
Beethoven entender que todo o longo processo foi a respeito dela, que espécie de
problema ele tinha a resolver (posto que ele está interessado, o que é duvidoso).
Estamos nos lembrando do dito de Valéry de que uma linha ditosa em um poema é a
solução de um problema que se levanta somente após ter sido resolvido. Paul Klee
diz também: “Um artista conhece uma grande oportunidade, mas somente em
retrospecto”.
“Não se supõe ser a perfeição algo crescente”. Sob este título Nietzsche
escreve em Human, All Too Human: “Na presença da perfeição, raramente
perguntamos como ela acontece. Ficamos contentes em usufruí-la como uma dádiva,
como se fosse conjurada por mágica. Isto é assim provavelmente porque estamos
ainda por uma atitude primitiva, mitológica. . . . O artista sabe que seu trabalho é
mais altamente louvado se ele dá a impressão de ter sido produzido pelo milagre de
227
uma súbita iluminação, e então ele encoraja acreditar que na criação de uma obra de
arte a única força ativa é a inspiração cega. . . . Sua intenção é iludir o espectador ou
ouvinte, fazê-lo prontamente aceitar a idéia de que a perfeição implica em nenhum
trabalho. . . . É a arte imposta pela história . . . para dissipar esta ilusão e expor as
falácias e maus hábitos que guiam o intelecto dentro da espraiada rede pelo artista.”
confronta, como um problema, quando ela encontra soluções que se tornam parciais e
postulam novos problemas, e quando por fim ela alcança a meta que representa a
solução de todos os problemas – não podemos que não chamar isto de pensamento.
Reconhecidamente, este tipo de pensamento não se ajusta completamente na imagem
tradicional de um homem que confia nas fontes de sua mente, onde ele busca
orientação para alcançar suas decisões. O pensador assim como o compositor está
mais propriamente perdido em sua mente, a qual não concede sua orientação; ele olha
para a orientação em sua matéria subjetiva, as notas, e é de fora das notas que a
inspiração vem a ele. Agora podemos aplicar o termo sem termos que incomodar o
gênio ou o Deus ou as Musas do homem. Nem existe uma contradição entre a
atividade do compositor como um parteiro ajudando uma melodia a nascer e o caráter
da obra como uma criação feita pelo homem. Pois as notas não são algo radicalmente
diferente do homem, totalmente fora dele. As próprias notas são criadas pelo homem,
e o espírito das notas é o espírito do homem. Quando o compositor busca orientação
nas notas, ele busca orientação em seu próprio pensamento: ele pensa não somente
em notas mas fora das notas. Um padrão tonal, uma obra musical – eles se colocam
diante de nós totalmente como o produto do pensamento humano.
Agora, quando a função e o que sustenta a função não podem ser diferenciados;
quando o ser humano não tem uma função, mas é uma função, função inteiramente
que projeta agora um, não outro aspecto; quando a função não é dirigida para um
objeto em separado ou separável dentre muitos; quando, gramaticalmente falando,
sujeito, predicado e objeto estão em constante movimento de influência mútua: então
a divisão em três partes gramaticais de fala torna-se enganosa. A mesma unicidade,
intimidade, interação que caracteriza a relação entre o cantor e sua canção no estágio
primal caracteriza aquela entre Beethoven e seus padrões melódicos. A matéria
pensante é também a matéria ouvinte: ela se deixa ser guiada por sua criação. O
último está invariavelmente em crescimento e em invenção, nunca um ou outro.
Nossa distinção costumeira entre sujeito e objeto simplesmente não se aplica onde a
experiência musical diz respeito. Esta experiência não é mística. Embora ela seja
similar em estrutura à experiência musical, na última o sujeito não está
completamente submerso pelo pensamento; os dois aspectos do processo envolvente
permanecem distintos. Mas aqui a distinção foi em um sentido inteiramente diferente
de nossa distinção costumeira entre “sujeito” e “objeto”.
de realidade. Pensamento conceitual deve sua ordem interna às leis da lógica que o
governam: é natural supor que o pensamento musical, produtivo, deve sua ordem
interna às leis que lhe são próprias. O que são as leis da lógica é conhecido: deverá
ser possível ter uma percepção sobre o interior da natureza daquelas outras leis das
quais temos nos instruído a respeito do pensamento musical.
233
Como usado comumente, ele denota uma afirmação geral que cobre um vasto
número de instâncias individuais. Leis da natureza são afirmações a respeito de
processos naturais; elas se referem a certas uniformidades observadas e que podem
ser reduzidas a uma fórmula. “Isto sempre foi assim e sempre será assim”. As leis do
pensamento ou da lógica são redutíveis à fórmula “Isto é então”. Leis morais
expressam um “deve ser”. O que é comum a todas estas leis é sua universalidade.
Cada instância individual agrupada dentro de uma lei universal difere de todas as
outras, mas desde o ponto de vista da lei, a diferença é secundária, mera questão de
oportunidade ou circunstância. Uma falsa inferência não invalida as leis da lógica,
mas mais precisamente confirma-as por suas conseqüências. O vento que sopra as
folhas para cima não é uma “exceção” à lei da gravidade. Matar em auto-defesa é
contrário à lei moral, mesmo ficando a ação impune. Qualquer fenômeno que reúne o
requerimento geral de uma lei pode ser dito que é “governado” por essa lei: sua
universalidade não é afetada pela particularidade da instância individual. A
formulação da lei (e a lei não é anunciada ou descoberta até ter sido formulada) é
sobre outro nível que o fenômeno que ele governa. Um mandamento, “Tu deves” ou
“Tu não deves”, não é a mesma coisa que uma ação, nem é uma equação matemática
de processo natural. Uma regra em lógica não é um juízo: não é nem verdadeira nem
falsa em si mesma, a proposição da regra é determinar quando um juízo é verdadeiro
ou falso.
234
Que leis ou regras desse tipo operam na composição de Beethoven não será
contestado por qualquer um que tenha acompanhado nossa análise dos esboços
discutidos acima. Tais leis ou regras derivam sua validade do sistema métrico e tonal
específico com o qual o compositor conta. Que Beethoven usou papel de música
comum e a notação costumeira mostra que ele aceitava as condições do sistema
métrico e diatônico maior-menor da época. A série inteira dos esboços é governada
pelas leis deste sistema, isto é, pelo fato do centro tonal ser mudado para a dominante
e no fato das frases de quatro compassos serem equilibradas uma com a outra. Como
as leis da natureza, as regras da lógica e as leis morais, aquelas do sistema diatônico
têm uma certa universalidade: elas estão em vigor se a música se expressa na
linguagem da tonalidade maior-menor e na sua métrica. Sua validade, no entanto, é
de uma espécie diferente – diferente do “Isto será sempre assim” das leis na natureza
(as quais não deixam chance alguma para o que vai acontecer), do “deve ser” da lei
moral (que implica na possibilidade de obedecer ou desobedecer a lei), e diferente,
também, mas não de tudo, do categórico “Isto tem que ser então” das leis da lógica,
assim tão certas com respeito ao que é verdadeiro e o que é falso. As leis em questão
aqui podem mais precisamente ser formuladas como: “Se isto . . . então aquilo”,
portanto, tanto expressam uma combinação de liberdade e conformidade à lei quanto
uma certa variabilidade ou flexibilidade na própria lei. A este respeito estas leis
assemelham-se a convenções lingüísticas cujo objetivo é a exata correlação entre
forma e conteúdo, o “como” e o “o que”. Sou livre para dizer o que eu quero dizer, e
posso dizê-lo de qualquer modo que eu escolha (embora o “como” sempre afetará o
“o que”), mas se eu quero que minha afirmação seja entendida, devo expressar-me
em uma forma convencionalmente prescrita para minha espécie de afirmação. (Por
exemplo, se pretendo fazer uma pergunta, minhas palavras não devem ser lançadas
em uma das formas convencionalmente usadas para responder questões, ou serei
muito provavelmente incompreendido.) Não é impossível fazer afirmações partindo
do uso convencional, nem são tais afirmações necessariamente falsas; elas são
simplesmente sem sentido. (Isto é por que alguém pode também falar de leis do
significado.) É claro, posso querer dizer algo para o qual não exista nenhuma
expressão convencional e então ser necessário cunhar uma nova palavra, deste modo
partindo do uso corrente. Quando faço isso, no entanto, eu não estou quebrando
qualquer regra, estou meramente alterando-a. (O termo “estilo” tem sido evitado
deliberadamente neste parágrafo: ele é por demais vago; maneja-se melhor sem ele.)
Em todo caso, é certo que os esboços musicais de Beethoven não devem seu
fascínio à aplicação destas leis, isto é, a convenções de tonalidade, tempo do
compasso, esquema métrico, rítmico, mudança de tonalidade nas passagens centrais e
assim por diante: tudo isto, as feições da música de Beethoven compartilha com
muitos outros compositores, como ensina a teoria musical. O que nos fascina, e foi
valioso inquirir a respeito, foi mais propriamente como Beethoven tomou um grupo
de notas inicialmente amorfo e o transformou em uma estrutura musical única.
Podemos confidenciar que ele estava completamente familiarizado com as leis ou
regras do sistema tonal e métrico que herdou, que ele assimilou todas as lições da
teoria musical, mas este conhecimento não o ajudou quando, por exemplo, trabalhava
235
O que tudo isto aponta é que no domínio das formas musicais existem muitas
tantas leis quanto existem padrões musicais individuais, e que cada lei é válida
somente para uma dada instância. Podemos, então, nesta relação, falar de lei
“individual”? O termo não é desconhecido em outras relações, mas que sentido teria
aqui? Como a estaremos interpretando? Uma lei que é aplicada somente uma vez, a
validade da qual se desvanece tão logo ela tenha sido reconhecida e realizada
claramente, isto é o oposto de lei. Uma situação na qual existem tantas leis quanto
instâncias individuais, cada lei valendo somente para um caso – o que é isto se não
anarquia? Poderia ser argumentado que a lei governando uma estrutura musical é
universal no mesmo sentido em que cada passo no processo de composição é um caso
particular submetido a ele. Mas mesmo outorgando isto, como poderíamos falar de
uma lei quando ela está oculta, quando ela não pode ser destacada do processo que
ela supostamente governa, quando ela não pode ser formulada independentemente do
processo que ela governa, a formulação da qual é, mais precisamente, simultânea com
a perda de sua efetividade e validade? Podem haver tais leis? Devem haver leis deste
tipo: caso contrário, a arte seria um domínio não da ordem mas da anarquia. E a arte é
236
Em seu Crítica do Julgamento, Kant reconhece que a arte não tem espaço para
leis universalmente unitivas, e que ao mesmo tempo as obras de arte inegavelmente
manifestam uma ordem que não pode ser puramente subjetiva, uma mera questão de
gosto pessoal. Ele tentou dominar a dificuldade envolvida aqui apresentando uma
noção de “conformidade à lei” em uma situação “onde nenhuma lei se aplica”. Por
sua própria experiência de arte ser limitada, ele deixou este por aquele, contentando-
se com uma formulação negativa. Nosso interesse, no entanto, é progredir em direção
a uma percepção positiva dentro da natureza do que temos chamado “a lei oculta”,
oculta por definição, por assim dizer, pois ela cessa de operar tão logo descoberta e
nenhuma aplicação ou validade além de um simples instante a governa. Ela não opera
via causalidade (como as leis da natureza), via motivação (como as leis morais) ou
via regras formais (como as leis da lógica). Admitir que ela opera via propósitos – o
padrão final como o propósito secreto guiando o processo criativo – seria ainda
inadequado. Se, com Kant, definimos propósito como “o conceito de um objeto, na
medida em que ele contém a base da atual existência do objeto”, certamente não
podemos falar aqui de um “propósito guia”. Nossa análise de um exemplo dos
Cadernos de Esboços mostra inconfundivelmente que na criação de sua melodia
Beethoven nunca atuou por um “propósito guia”. Nem tal conceito existia em sua
mente, pois tivesse ele sempre existido, não teria tido nenhuma necessidade de
procurar algo mais. Dizer que ele existia em outra parte – em Deus, na coisa-em-si-
mesma, no campo das idéias platônicas, ou em qualquer outro lugar inacessível –
poderia ser aceitável para aqueles que acreditam que a “perfeição não é suposta como
sendo algo que cresce”, mas não contribui em nada para nosso entendimento. Se a
melodia de Beethoven tivesse vindo a ele toda de uma vez, faria sentido dizer que ela
pré-existe em algum campo superior e que foi revelada a seu “criador” em um
momento de inspiração. Mas onde não poderia haver crescimento, não haveria
problema de crescimento, e nenhuma lei oculta. Vemos agora que a última não opera
através de propósitos mais do que através de causas, motivos, regras formais ou
qualquer espécie de compulsão. Quando muito podemos falar somente de um
“obscuro impulso” do compositor para buscar por ela. Ainda o termo “operar” é
enganoso aqui, pois o padrão final não é certamente o resultado da “operação” de
uma lei. Mais propriamente, é a auto-realização da lei, a forma que ela assume ao
emergir desde seu lugar oculto, quando finalmente se manifesta.
Como mencionado antes, esta espécie de “emergir” não se parece com o erguer
de um véu, como quando algo até agora invisível repentinamente se torna visível. O
que acontece, mais propriamente, é que algo atravessa o limiar da existência: algo
237
que nunca existiu, salvo potencialmente, agora é feito atual. Estamos recordando a
distinção aristotélica entre existência _______ (como força, como tendência) e
existência _________ (como atualidade). Porque a lei oculta não é dada de antemão
mas é para ser construída, e porque ela não se revela até ter sido encontrada, a espécie
de processo que ela governa combina a conformidade da lei com a novidade, a
consistência interna com a imprevisibilidade. Sob leis universais tal combinação seria
auto-contraditória, pois nos processos governados por tais leis cada passo é pré-
determinado, pré-figurado, predizível, e conseqüentemente nenhum é realmente
“novo”. A estética tem desprendido uma grande quantidade de trabalho infrutífero
tentando eliminar a aparente contradição, o pseudo-problema de como a
conformidade da lei pode ser conciliada com a liberdade na criação artística, como se
a liberdade envolvida fosse uma coisa à parte da conformidade da lei! Desde que a
estética, tomando sua deixa de outras disciplinas, almejou descobrir leis universais,
ela não pode livrar-se desta contradição, e então se desviou de sua tarefa real. Pois
diferente da ciência natural, cujas leis universais acrescentaram ao nosso
conhecimento e compreensão, a estética deveria buscar a chave da compreensão não
nas leis universais, mas na que é única e não-repetível, a única de sua espécie.
Sob esta luz, ainda uma outra noção corrente da estética parece insustentável, a
noção (a qual é mais ou menos tomada por certa) de que criar obras de arte e
experienciá-las são dois processos diferentes, o primeiro dirigido para terminar a
obra, o último começando a partir deste término. O processo de criação é mais
freqüentemente estudado do ponto de vista psicológico, ao passo que o problema da
estética é localizado na experiência recebedora da obra acabada. O fato de que nos
primeiros estágios da música – na música folclórica, por exemplo – é impossível
desenhar uma linha dividindo criadores dos ouvintes ou intérpretes, ou para falar de
“obras” musicais, seria suficiente mostrar, pelo menos até onde concerne a música,
quão superficiais são todas estas distinções. No outro pólo, onde compositor e
ouvinte estão tão afastados quanto possível, nosso exemplo dos Cadernos de Esboços
de Beethoven provam além de qualquer dúvida que o processo criativo na música é
primeiro e antes de tudo musical, que o problema principal envolvido – o problema
de como uma estrutura musical vem a existir – não é psicológico mas morfológico.
Aqui, produção do padrão e o próprio padrão envolvem o mesmo tipo de problema,
mas mais do que isto, ambos são governados pela mesma lei. Ainda antes discutimos
a gênese do padrão tonal, dissemos que o último é essencialmente uma união de
conformidade à lei com novidade, consistência interna com imprevisibilidade. A
mesma lei governa o processo quando o compositor trabalha sobre padrões já
existentes, quando Mozart elabora o material temático, quando Chopin tenta
aperfeiçoar uma passagem em um prelúdio, e quando Schubert altera o final de uma
de suas melodias. Em todos estes exemplos, temos observado quantos passos
imprevisíveis podem ser “corretos”, como em cada caso uma lei oculta governa o
processo da composição musical. Enquanto o compositor penetra ainda mais
profundamente dentro do padrão que ele mesmo criou, ele sente quais de suas
potencialidades inerentes não foram ainda plenamente realizadas. E sua busca dentro
do padrão é essencialmente não diferente de sua busca pelo padrão: elas são
238
governadas pela mesma lei. Na realidade, não há melhor meio de descrever o que de
fato ouvimos em uma melodia de Beethoven (ou qualquer boa melodia) do que um
processo de crescimento orgânico, de gradual auto-realização, cada passo sucessivo
novo e imprevisível, mesmo, uma vez dado, de certo modo satisfaz uma certa
requisição até então não reconhecida. Temos a mesma experiência a cada vez que
ouvimos uma tal passagem da música, e não importa quantas muitas vezes a
ouçamos. Mesmo quando sabemos exatamente o que é cada próximo passo que está
vindo a ser, ainda assim experimentamo-lo como imprevisível e nos encantamos por
completo outra vez. Nenhuma linha clara pode ser desenhada entre o padrão final e o
padrão gradualmente emergente. O processo de crescimento orgânico não termina no
padrão final, ele continua nele. Então não é correto dizer que a lei oculta cessa de
operar uma vez que tenha sido incorporada no padrão: ela meramente foi movida do
campo do Vir a Ser para aquele do Ser relativo, do campo do não-repetível para
aquele do repetível. Repetição do não-repetível (totalmente incompreensível nos
termos de qualquer lei universal) é em música uma ocorrência de todo dia: a cada vez
que experimentamos o padrão, a lei oculta é revelada de novo.
Alguém levantará a objeção de que tudo isto não tem nada a ver com qualquer
lei do pensamento musical, somente com a lei que governa os padrões tonais e as
composições musicais? Tal objeção seria infundada, pois não há duas espécies
diferentes de leis. Assim como as leis do pensamento lógico são as mesmas daquelas
que governam o pensamento que as produzem – um trabalho de matemática, por
exemplo – assim é com o pensamento musical e suas produções. E agora isto deve ser
dito: mesmo se a música é a criação do pensamento musical, e somente daquele, a
música não está de qualquer modo separada do resto do mundo. Outras coisas ao lado
da música são musicais: a lei que governa o pensamento musical tem aplicações além
da música, onde outros processos musicais estão envolvidos. Não é somente uma
metáfora poética dizer da “musicalidade” do mundo.
O tempo entra em todos os tipos de processo, não importa sob que leis, mas
processos governados por leis universais (os quais implicam em um caráter “lógico”)
não são afetados pelo fluxo do tempo. Eles, é claro, ocorrem no tempo, mas o tempo
239
como tal não lhes acrescenta nada, serve meramente como uma zona condutora
carreando partes em nossa direção. Não há diferenciação entre passado, presente e
futuro; tudo se funde em uma indiferença cinza. O passado pode sempre ser
redescoberto, e o futuro já está presente em todos os aspectos essenciais. Tudo o que
falta é a “mera formalidade” da tangível emergência no aqui e agora. Esta
formalidade, também, cuidará de quando o comprimento pré-determinado do tempo
tiver transcorrido. Fosse ele senão previsibilidade, nunca teria sido a pedra de toque
da lei universal. Na medida em que o processo corre, seu curso em conformidade
com a lei, o tempo não toma parte nele. A temporalidade não é inerente a ele, mas um
elemento estranho adicionado pelo observador ou pensador que é forçado a nascer e
deve morrer. Os processos não-humanos estudados pelas ciências naturais, em
especial, exemplificam esta eternidade peculiar.
18
Cf. Sound and Symbol: Music and the External World, onde tudo isto é discutido em detalhe (p. 151 – 264).
240
flores emitem aroma: então “físicos e químicos” poderiam estar ansiosos por
investigar como os fenômenos musicais são governados por leis universais, mas isso
não os colocaria uma polegada mais perto do coração e do cerne do processo musical,
a saber, o padrão tonal. Quando procuramos pelas leis universais do crescimento
orgânico – embora importante, significativo e difícil por si mesmo – não estamos
como aqueles físicos e químicos estudando o mecanismo de reprodução de padrões
tonais únicos?
portanto, a única verdadeira lei histórica seria aquela que mostrasse governar toda a
espécie humana. Mas a busca por tal lei não é o negócio dos historiadores; a espécie
humana como um todo está buscando por ela, está no seu caminho para realizá-la.
Hoje em dia, pensadores ousados, treinados na rigorosa escola da ciência natural,
estão aplicando o conceito de história ao universo como um todo – o universo sobre
seu caminho desde os estados sub-atômicos iniciais em direção ao estado final
quando ele será consumado e sua lei oculta será revelada; o universo como um todo
em busca de sua lei oculta: uma concepção verdadeiramente musical. Encontra-se
suporte neste quadrante, pois a idéia de musicalidade do mundo ajudaria a libertá-la
da mancha de ser fantástica. Além disso, foi um estudante de mitologia, não um
musicista, quem escreveu: “A música repousa sobre uma qualidade inerente da
existência, a musicalidade”. A música não poderia nos mover tão profundamente se
não a sentíssemos na operação de uma lei que abarca a nós e ao mundo e uma
intimação do pulso do coração que anima todo o universo.
O mundo, o mundo do homem, nos mostra duas faces: a face da lógica e a face
da música. Nada podemos fazer sem uma ou outra delas. Ambas as leis são criadas
pelo homem antes dele encontrá-los no mundo, e de ambos ele descobre
posteriormente que eles são também a ordem do mundo. Espantar-se com a ordem
lógica inconcebível do mundo foi o começo da filosofia; a tremenda realização
intelectual de Kant foi tornar o inconcebível concebível a princípio sem tirá-lo fora
do maravilhoso ou reduzir a reflexão. A maravilha análoga e a reflexão a respeito da
musicalidade do mundo não havia ainda surgido, embora ambos os aspectos, mesmo
que ainda indiferenciados, podem ter estado presentes nos ensinamentos de Pitágoras.
Nenhum esforço intelectual na escala kantiana, contudo, é requerido para apreender a
musicalidade do mundo: na música, afinal de contas, o homem não está radicalmente
separado do mundo como um sujeito de um objeto, mas cada um é dirigido em
direção ao outro como na unicidade de um encontro. A verdade da música, como
aquela da matemática, consiste em ela nos servir como uma chave para o
entendimento do mundo no qual vivemos.
parte, fragmentos desconexos de uma eventual prova são trazidos à tona. É como
ligar uma ilha com o continente, mas não da maneira usual de trabalhar desde o
continente para fora. Mais propriamente, é como se o banco de terra crescesse de si
mesmo desde o fundo do oceano para cima, e muito irregularmente, partes da calçada
eventual emergisse aqui e ali acima da água muito tempo antes das demais partes”. O
processo assim descrito é obviamente aparentado com aquele que traçamos em nosso
exemplo desde os Cadernos de Esboços de Beethoven.
Que mais do que o pensamento musical está envolvido na música deveria ser
claro desde a existência da teoria da música, enquanto parte indispensável da
educação de todo compositor. Podemos compará-lo com o papel da física e da
química na vida orgânica. Schenker estava correto ao chamar a atenção a um aspecto
essencial da música que envolve o pensamento conceitual mais propriamente do que
o musical. Que o desenvolvimento gradual da estrutura fundamental do plano de
fundo pode ser compreendida como uma reconstrução puramente “ideal”, não deve
ser confundido com o processo real de crescimento em tempo real, como
mencionamos anteriormente. É verdade que os diagramas de Schenker podem ser
interpretados em termos dinâmicos, todavia é claro que seu padrão de “primeiro
plano” está contido no plano de fundo de um modo que torna fechada a implicação –
não de todo a melodia acabada de Beethoven está contida na semente de seu primeiro
esboço. Isto é, na realidade, por que Schenker expôs sua teoria modo geométrico,
dedutivamente, começando com formas primárias hipotéticas no plano de fundo,
inferindo padrões de plano intermediário, gradualmente tornando-os mais explícitos.
O método analítico da lógica conceitual, no entanto, não nos leva mais longe do que
as estruturas do plano intermediário: o salto para o primeiro plano está além dos
poderes da lógica.
Nota do Editor