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HOMEM O MÚSICO

Som e Símbolo: Segundo Volume

Victor Zuckerkandl
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Tradução do alemão para o inglês


por Norbert Guterman

Tradução do inglês para o português


Gregório J. Pereira de Queiroz
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Introdução

Phaedo, o grande diálogo sobre a imortalidade da alma, mantido à véspera da


morte de Sócrates, começa com uma confissão notável em um aparte do filósofo a
respeito da música. Os amigos de Sócrates o estão questionando sobre o rumor
corrente em Atenas que nos últimos dias de seu aprisionamento ele havia se voltado
para a prática da música, acima de todas as demais coisas. Em resposta, Sócrates lhes
contou que repetidamente, durante toda sua vida, ele havia tido um sonho no qual
uma voz lhe dizia para “fazer música e trabalhar com ela”. Até recentemente, ele lhes
disse, não havia se sentido obrigado a tomar a advertência literalmente. Antes, ele
havia tomado-a no sentido em que um mensageiro toma os anseios do povo: não
havia já ele feito o máximo? Depois de tudo, ele não havia devotado sua vida à
filosofia, a verdadeira arte das Musas? (Para os gregos, a arte dos sons e a das
palavras eram intimamente relacionadas: não havia música sem palavras, e a poesia
não era falada, mas cantada ou salmodiada.) Desde o seu julgamento, no entanto,
Sócrates havia começado a se admirar de que ele pudesse ter tomado a advertência
tão levianamente, e desde então tem se ocupado em seus últimos dias antes da
execução em compor um hino a Apolo e colocar em verso algumas das fábulas de
Esopo.

A história é muito antiga e muito bem conhecida para não ser tomada
seriamente. Embora isto seja dito auto-depreciativamente, seu sentido é perfeitamente
claro. Como as últimas palavras de Sócrates, “Nós devemos um galo a Esculápio”,
refere-se ao pagamento de uma dívida. O filósofo está sendo escrupuloso ao final.
Sua vida inteira foi devotada ao serviço de uma única força, aquela da palavra falada.
Agora, antes de ser tarde demais, ele deve fazer uma reparação por não ter servido à
única força que modela a essência espiritual humana. Ele fará um último gesto de
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reverência e gratidão ao poder da música: ele elevará sua voz numa canção ao menos
uma vez antes de morrer.

Nietzsche foi o primeiro a compreender o sentido de Sócrates como “fazedor


de música”, sem dúvida fora de qualquer parentesco subjacente. Para ele, o último
gesto no Phaedo é um reconhecimento das limitações do pensamento lógico-
científico. Nietzsche via Sócrates como o “pensador abstrato” arquetípico, como o
“mistagogo da ciência”. “Essas palavras ouvidas por Sócrates em seu sonho”, ele
escreve em O Nascimento da Tragédia, “são a única indicação de que ele alguma vez
experimentou alguma inquietação sobre os limites de seu universo lógico. Ele pode
ter se perguntado, ‘Teria sido eu tão preconceituoso para ver o que era ininteligível
para mim como sendo destituído de sentido? Por ventura existe um reino da
sabedoria, afinal de contas, do qual a lógica está excluída? Por ventura a arte deve ser
vista como o complemento necessário ao discurso racional?’” Embora certamente
Sócrates fosse já bem ciente disso. Por repetidas vezes, no curso de diálogo após
diálogo – e no momento mais especialmente importante o ponto é alcançado – o
dialético estrito repentinamente começa a contar uma história; o lógico se torna um
provedor do mito. O Logos é alimentado e feito mais vívido com o recurso do Mito.
E a voz no sonho é uma voz de advertência: mesmo quando Logos e Mito trabalham
lado a lado, as palavras não são suficientes. Para dar elocução à totalidade das coisas,
para ser ela própria inteira, as notas são necessárias, e o canto. Nietzsche deve ter ele
mesmo experimentado algo semelhante quando disse de seu trabalho, logo antes de
enlouquecer, “Ela deve cantar, esta ‘nova alma’, não falar!” Sem dúvida a música, a
canção, sofreu o mais extraordinário desenvolvimento entre Sócrates e Nietzsche,
mas uma coisa não mudou. A música ainda é, exatamente como sempre tem sido, o
outro poder, o qual, junto com a linguagem, define plenamente o homem enquanto
um ser espiritual. Ninguém que tenha reconhecido e honrado a música como tal pode
dizer que tenha pago seu inteiro débito para com o mundo, consigo mesmo, com a
humanidade.

A noção da qual o Phaedo dá expressão é aquela do homo musicus, do homem


como músico, como ser que requer música para realizar-se plenamente. Esta
dimensão de nossa humanidade tem se mantido largamente à sombra no curso do
pensamento ocidental. Este é o tempo de trazê-la à luz.
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Musicalidade
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I. Os Dois Conceitos de Musicalidade

Como correntemente utilizado, o termo ‘musicalidade’ se refere a um dom


especial que leva os indivíduos a um íntimo relacionamento com a música. O dom se
apresenta não somente no fazer ativo mas também na recepção passiva: chamamos de
‘musical’ não somente o compositor ou intérprete mas também o ouvinte sensível. O
dom é sempre a propriedade de um indivíduo, e como tal é uma propriedade
acidental, no sentido que uma pessoa pode tê-la e outra não. Quando a maioria das
pessoas fala sobre ser musical, a observação novamente se refere à individualidade de
uma pessoa comparada a outra. Em todos os casos é feita uma comparação; e uma
comparação estabelece uma linha divisória a qual, como uma fronteira, cria dois
campos. A musicalidade faz seu aparecimento ao ser contrastada com sua contraparte
negativa, a ausência de musicalidade. Em acréscimo, a comparação implica num
julgamento de valor: musicalidade é uma vantagem, sua ausência uma deficiência.
Indivíduos distinguidos como musicais formam uma minoria com a característica de
uma elite que se coloca num relacionamento privilegiado com a música. Na maioria
dos casos, se não exclusivamente, a música é interesse – na verdade, posse – dessa
minoria; o resto pode, no melhor dos casos, participar de sua periferia.

O conceito aqui delineado é fundamentalmente diferente daquele expresso no


Phaedo. Lá, musicalidade não é propriedade de indivíduos, mas um atributo essencial
da espécie humana. A implicação é que não alguns homens são musicais enquanto
outros não o são, mas que o homem é um animal musical, isto é, um ser predisposto à
música e com necessidade de música, um ser que para sua plena realização precisa
expressar-se em notas musicais e deve produzir música para si mesmo e para o
mundo. Neste sentido, musicalidade não é algo que alguém pode ou não pode ter,
mas algo que – junto com outros fatores – é constitutivo do homem. Assim definido,
o conceito não pode ter uma contraparte negativa. Ninguém é escolhido ou colocado
à parte. Música é concernência de todos, não de uma elite privilegiada, e se
musicalidade representa uma vantagem, ela não é prerrogativa de uns poucos
escolhidos, mas um atributo do homem como homem.
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Os dois conceitos não são mutuamente exclusivos; não se pode dizer que um é
verdadeiro e o outro falso. Mas um deles é original e irrestritamente válido, enquanto
o outro é derivado e relativo. O conceito com o qual estamos familiarizados é o
derivado e relativo, e ao considerá-lo como universalmente válido desviamos nosso
pensamento do caminho e distorcemos nossa visão.

Para começar, é importante perceber por que o conceito que nos é familiar
pode ser chamado de relativo e derivado.

O erudito que mais completamente investigou o problema da musicalidade é


Géza Révész. No seu Introdução à Psicologia da Música, cônscio da dificuldade para
chegar a uma definição que caiba para todos os casos, ele se limitou a descrever as
características essenciais de uma pessoa musical. (Que ele concebe musicalidade
somente em termos de um traço individual está implícito em sua abordagem
psicológica). Os excertos seguintes provêm os exemplos sobre este ponto: “Uma
pessoa é considerada musical quando ela é capaz de transferir suas experiências
musicais para a esfera na qual a obra de arte é o objeto de uma contemplação
puramente artística.... A conquista mental da música como arte caracteriza uma
pessoa musical.... Uma pessoa musical possui um profundo entendimento das formas
musicais e da estrutura ou do movimento projetados na obra. Ela tem um sentido de
estilo e da estrita organização do processo do pensar musical requintadamente
desenvolvidos.... Ela experimenta a obra de arte tão interior quanto profundamente,
que a sente como se a estivesse criando.” Por outro lado, pessoas não musicais “são
incapazes de compreender a estrutura de uma composição musical e avaliá-la em
termos de conteúdo estético. ... Elas gradualmente se colocam em contato com a
música sem, no entanto, realmente alcançarem a esfera do especificamente musical
na qual a beleza-em–música torna-se o objeto da percepção estética. ... Não importa
quão arduamente tentem, elas nunca ... alcançam a composição, e nunca são capazes
de entender seu projeto composicional e estrutural”.

Estas afirmações são suficientes para indicar o ponto crucial: musicalidade


assim como sua contraparte negativa surgem quando o ouvinte é confrontado com
uma composição musical. A pessoa musical está à altura da obra; a pessoa não
musical falha em lhe responder. Verdade, esta distinção não é de tudo ou nada.
Révész reconhece graus de musicalidade, estágios de transição entre os dois
extremos. Contudo o critério último permanece sendo a profundidade com a qual a
pessoa, escutando e compreendendo, pode penetrar a estrutura artística de uma dada
composição. Por toda parte, a confrontação do ouvinte com a obra é pressuposta
como um ponto de partida auto-evidente. Révész caracteriza explicitamente a
musicalidade que ele investiga como sendo receptiva sem, contudo, sugerir um
contraste com a musicalidade criativa. Esta última é vista – uma profunda percepção
– como distinta da primeira somente em grau, não em espécie; ela é um caso especial
extremo. Pois, afinal de contas, o compositor também é no fundo um ouvinte; ele
deve atingir sua obra por escutá-la com sua audição interna, e neste sentido ele
também se confronta com ela. Onde há uma obra, deve haver uma confrontação.
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Subjacente a tais reflexões, é claro, está uma concepção específica de música


(não tão pouco específica para não ser formulada) e a suposição de que uma relação
específica entre homem e música é universalmente válida. Música é equiparada com
sua forma mais altamente desenvolvida, o conjunto das grandes composições, e o
relacionamento entre homem e música são restritos ao encontro dos ouvintes com tais
composições. Por ser uma equiparação e uma restrição, no entanto, pode ser aplicada
somente sob condições especiais. Como nascemos dentro destas condições especiais,
nós tendemos a esquecer que elas não são características da totalidade da música mas
meramente uma fase em curso de sua história. Este é uma fase preeminente, sem
dúvida, mas ainda assim é somente uma: a fase culminante.

Em um duplo sentido, nós somos testemunhas da fase culminante: como


membros da civilização Ocidental e como contemporâneos deste século. Com a
notável descoberta da polifonia – isto é, a possibilidade de produzir um todo musical
pela combinação de diferentes e simultâneos fios de notas musicais – a música
Ocidental fez uma clara quebra com todos os demais tipos de música e embarcou em
um padrão que no período de milhares de anos de excitante desenvolvimento,
conduziu ao destilado final da música instrumental pura. Este processo não tem
paralelo na história de qualquer outra arte; pode ser comparado apenas com o
desenvolvimento mais ou menos simultâneo da ciência da matemática. A construção
destes dois mundos, o mundo das notas musicais e o mundo dos números, deverão
certamente permanecer como a mais notável realização do homem Ocidental durante
esse período. Sendo assim, um desenvolvimento como esse necessariamente gera
suas próprias formas especiais, e não é surpresa que nossa vida musical se manifeste
em formas que são muito diferentes daquelas de outras épocas. Elas podem ser
resumidas em quatro categorias: a obra, o compositor, o executante e a audiência.

A obra, sobretudo: vivemos uma era de obras compostas individualmente. Para


nós, música quase não é concebível que não em termos de sinfonias e sonatas, óperas
e oratórios, cantatas, canções, concertos, quartetos de cordas, e assim por diante, cada
um dos quais uma obra de arte, um pequeno mundo em si mesmo, como uma pessoa
individual única e não intercambiável, um microcosmo, uma criação. Uma criação
implica em um criador, um homem com altos poderes mentais, capaz de realizar
muitas e muitas vezes a ultimação e ativação que leve a fronteira da arte ainda mais
além. As obras são preservadas em notação musical, a partir da qual podem ser
transformadas em som vivo, e isto pede por intérpretes e executantes os quais façam
jus à sempre crescente demanda das composições. Tudo isto leva a divisão de
funções. Compor e interpretar é o negócio de alguns poucos especialistas; todas as
outras pessoas estão confinadas a participar da música como meras ouvintes, como
uma audiência. Música é algo em grande parte produzido por uma pequena minoria
para um grande público. Este divisão de funções determina a atitude na qual nós
experimentamos música hoje: sentamos-nos em frente a algo – um palco, um pódio,
um toca discos, um rádio – e esperamos que a música venha até nós. Música sempre
vem para nós desde o outro lado, do outro lado da fronteira; ela vem a nós e nós a
recebemos.
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Outra fronteira divide a própria audiência. Como uma criação superior do


espírito humano, uma composição é um desafio para o ouvinte; um dom
extraordinário requer um receptor extraordinário. Na presença da obra, os ouvintes
são separados de acordo com os vários graus de intensidade, sensibilidade e
compreensão com o qual respondem. Uns poucos ouvintes se separam dos demais e
aproximam-se intimamente da obra, como se sob um encantamento; obviamente eles
ouvem coisas às quais os outros são surdos. Isto significa que o sentido da audição
não é uniformemente o mesmo. Algumas pessoas têm uma faculdade auditiva
especial; seus ouvidos são especialmente afinados para ouvir música. Em resumo, a
audição pode ser musical ou não-musical: há pessoas musicais e não-musicais. Esta
observação pretende ser um insulto ou uma crítica; ela coloca fatos que não podem
ser diferentes. Nosso conceito familiar de musicalidade é o resultado direto das
condições sob as quais o encontro entre homem e música presentemente tem lugar, as
condições da fase culminante.

Para nós, música é simplesmente a música da fase culminante. Oprimidos por


sua magnificência, temos voltado as costas para qualquer coisa fora dela. E embora a
grande arte musical, como a conhecemos, seja um evento excepcional, algo único e
quintessencial, consideramos que a música pura e simples é parte dos atributos
humanos gerais. Ela não está confinada às grandes obras da arte musical, mas é
inerente às pessoas em toda parte. Não há povo ou tribo sem música, conquanto
primitiva. Onde quer que exista fala, há também canto. As harpas das sepulturas de
Ur e os discos de pedra sonoros da floresta malaia dão testemunho do fato de que a
música é tão antiga quanto os registros históricos. Não há nenhum argumento real
contra a suposição de que a música é contemporânea com a linguagem e que o
aparecimento da raça humana no tempo anunciou-se conjuntamente por palavra e
som. Desta música dos primórdios, nós que somos testemunha da fase culminante,
estamos demasiadamente afastados, tanto que na verdade nos perdemos de seu
aspecto. Como, então, podemos esperar entender a mais interna essência da música,
incluindo aquela da fase culminante, a menos que consideremos a totalidade de sua
trajetória e levemos em conta tanto seu primórdio quanto sua culminância? O
primórdio da música não é um evento histórico – o homem fazia música muito antes
que ele fizesse história – não, este é um evento pré-histórico, algo que ocorreu em um
tempo indefinidamente remoto do passado humano. Se não podemos separar homem,
tempo e música em nosso pensamento, então é impossível pensar no primórdio da
música; em outras palavras, o primórdio da música está situado no campo do mito.
Como lenda que é, a música foi o dom de um deus para a humanidade. O que isto
significa é completamente claro. Não pode ter sido que um deus entoou uma canção
para as pessoas cantarem depois dele. Os deuses não a deram por este caminho, desde
o exterior. O dom divino veio do lado interno; ele abriu o coração do homem e
desselou seus lábios. Outra lenda é igualmente clara sobre este ponto: os homens
primeiro levantaram suas vozes numa canção, quando testemunharam a morte do
herói jovem divinamente belo. No começo, a música veio do homem, não para ele –
ou, melhor, também para ele mas como repercussão. O cantor ou executante não pode
ajudar a audiência para a qual ele canta ou executa: o círculo precisa ser fechado.
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Aqui a noção de confrontação entre ouvinte e obra não faz sentido. Música é tanto a
doação quanto o doador, o músico é tanto o doador quanto o recebedor.

Dentre os períodos cuja música estamos adequadamente informados, os séculos


do canto gregoriano oferecem o melhor exemplo de formas predominantes na
situação dos primórdios. Nesse tempo a música Ocidental estava ainda em seu estágio
pré-composicional. Como olhamos para trás desde a fase culminante, as melodias
gregorianas podem soar para nós como obras de arte, mas para aqueles que as
criaram, cantaram e ouviram, elas não eram nada disso, e ainda que as melodias
gregorianas possam ser gravadas em notação elas nunca foram consideradas como
composições para serem executadas para ou ouvidas por uma audiência. O canto
gregoriano é algo inteiramente diverso; é uma oração – um louvor, uma súplica, uma
ação de graças – uma oferenda e não algo recebido. Dar e receber mudaram seus
lugares; se há um recebedor este é o homem em cuja mente a melodia primeiro toma
forma. Longe de pensar em si mesmo como um compositor, ou ainda como humilde
artesão, ele vê a si próprio como tendo sido agraciado com o dom de ser capaz de
ouvir os anjos cantando; tudo que ele faz é anotar os sons concedidos a ele pelos
céus. Então, a melodia ecoa durante o serviço divino, cantado pelo sacerdote ou pelo
coro, nada mais distante da mente de qualquer pessoa do que a idéia de música
executada para uma audiência. A melodia será cantada quer alguém esteja escutando
ou não, e se há ouvintes eles não são uma audiência mas uma congregação. Eles se
reuniram não para ouvir mas para venerar. O cântico não é cantado para eles mas por
eles, em seu favor. A divisão em cantores e ouvintes permanece na superfície,
debaixo da qual todos eles, cantores e ouvintes se assemelham, são um. Somente no
mais óbvio sentido físico os sons vêm ter aos ouvintes a partir do lado de fora deles; a
verdadeira fonte está dentro dos ouvintes. As melodias são suas orações, e os cantores
servem somente para vocalizá-las transmutando-as em som.

Estamos próximos aos primórdios da música quando consideramos aquilo que


hoje, na fase culminante, é chamado música folclórica. Em nenhum sentido a melodia
de uma canção folclórica é considerada como uma composição musical. Nunca (antes
de nossos dias) colocada em notação, ela existe somente nos sons transmitidos de
geração a geração. Como ela é viva, submete-se a mudanças e toma novas formas.
Ela nunca está acabada, como uma composição está, e na verdade resiste a se fixar.
Coletar e transcrever canções folclóricas é a preocupação ansiosa do estágio de
culminância em preservar tesouros negligenciados. O mesmo é verdadeiro a respeito
da performance. Em seu próprio ambiente, as canções folclóricas não são uma
performance. Gentes ficam juntas para cantar canções, não para ouvi-las. Elas cantam
para elas mesmas, e se alguma delas está ouvindo, é para aprender a melodia para
então cantá-la. (A balada na qual uma história é colocada em forma poética musical
marca a transição para o estágio de culminância). Novas melodias podem bem
ocorrer a alguns indivíduos, mas isto não faz deles compositores, uma pessoa
escolhida de modo permanente pelo grupo e encarregada de uma função especial. Ele
se distingue do grupo somente enquanto lança a nova melodia; depois que ele o faz,
funde-se outra vez com seus colegas cantores, os quais podem adotar sua
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contribuição ou rejeitá-la. Quando certas linhas são pretendidas para uma voz solo, o
cantor solo não é um executante [performer] diante de uma audiência; sua voz
permanece como a voz do grupo, a qual pode unir-se de volta a qualquer momento,
como realmente acontece no refrão. A situação é de todos juntos, não de uma
confrontação. As três funções – compor, executar, ouvir – tão formalmente
diferenciadas na fase culminante são ainda facetas intercambiáveis de uma função
global residente no grupo. Isto é igual verdade quando a música aparentemente está
sendo feita de uns para os outros, como acontece com a música para dançar. Aqui
novamente, os outros não são ouvintes, eles são participantes, e a música e a
produção da música são parte de sua própria atividade. A música, como tal, está por
detrás deles mais do que propriamente diante deles. Igualmente no caso extremo do
rito mágico onde o mago usa certas fórmulas musicais as quais de fato são seu
próprio poder cuidadosamente guardado, as formulas não são endereçadas àqueles
presentes como se eles fossem uma audiência, mas juntamente com eles para o deus
ou o demônio então invocado. Outra vez, a música vem dos seres humanos, não para
eles.

Há um traço de esnobismo com relação ao termo “música folclórica”


(Volksmusik), como uma nobre condescendência para com seus inferiores. O termo
não é simplesmente uma classificação: ele expressa também um julgamento de valor.
Além da fronteira ele estabelece o situamento de algo menor, não mais que um
modelo primitivo, uma modesta semente, que não mostra vestígio algum do
esplendor do organismo quando plenamente desenvolvido. Expedições ocasionais a
estas humildes regiões podem trazer à tona achados valiosos, e em tempos de crise
estes podem nos atrair para um efêmero retorno à natureza. Mas a música “real”, a
encarnação da verdade e do valor, reside deste lado da fronteira. Aqui, e somente
aqui, nas grandes obras da composição, a música revela sua verdadeira essência e seu
pleno alcance.

Ninguém irá negar que a melodia de um coral e um prelúdio coral de Bach


pertencem a diferentes estágios; mas os estágios diferem em grau, não em espécie. A
melodia não é um produto um pouco plebeu que é enobrecido quando tocado pelo
gênio de Bach; ela contém encapsulado tudo o que uma grande mente musical pode
levar a frutificar. Música folclórica é como a infância, não como um embrião; o feto
ainda não é um ser humano, mas uma criança é. Música folclórica é música em
sentido pleno e apropriado por que ela contém todos os elementos que compõem a
natureza da música. O ato decisivo que traz a música à existência a precede, ou ainda
melhor, é uno com ela: a descoberta das notas musicais e do sistema de notas.

Ocasionalmente ainda se encontra a opinião de que o homem encontrou as


notas já prontas na natureza (no canto dos pássaros, por exemplo) e fora desta música
criada. Nada pode ser mais errôneo. Não mais do que os números, as palavras e as
notas existem na natureza. E do canto do pássaro até uma melodia é como do ladrar
do chacal para uma sentença. As notas musicais existem tão antes da música como os
números antes da matemática: um nasceu com o outro. Num certo sentido pode-se
igualmente dizer que as notas foram criadas pela música: “É a música que dá
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nascimento às notas”, de acordo com o Li Chi (Livro dos Ritos). Foi o impulso para
criar a música que criou as notas. Não há notas ao acaso, então, subseqüentemente
colocadas em ordem ou arranjadas em um sistema; as notas musicais são uma ordem
e não têm existência exceto dentro de um sistema. O sistema das notas representa a
completação do ato da criação musical, e com a música folclórica este ato foi
plenamente realizado porque o sistema está completamente presente nela. O que
sucedeu depois, incluindo as grandes obras primas, é porém a realização de algo
inerente nas notas. Aqui outra vez a música assemelha-se à matemática: não é que de
algum modo primeiro existem os números, que então são levados a uma ordem
sistemática. Os números são ordem. Muito deles será discutido em grande detalhe
depois. Para descobrir a sombra de sutil falsidade no termo “música folclórica”
precisamos somente imaginar a adição e a subtração elementares sendo chamadas de
“matemática folclórica”.

Aqueles que fazem a assim chamada música folclórica não são “povo” ou
“gentes”, mas “homens”. Não para algumas pessoas nem todas e certamente não
indivíduos específicos, mas para o homem enquanto tal, um daqueles atributos
inigualavelmente humanos é ser musical. Agora, faz sentido falar de “musicalidade”
não como a característica distinta deste ou daquele indivíduo mas como um atributo
humano por excelência: o homem como homem é musical. Não que primeiro ele era
um homem, o qual no curso do tempo adquiriu a música para tornar sua vida mais
atraente por aliviar a tensão do trabalho ou preencher seu tempo de lazer; mais
precisamente, homem e música estão tão fundamentalmente entrelaçados desde os
primórdios que um não existe sem o outro.

Vemos que o conceito de musicalidade o qual temos chamado de original em


contraste com nosso conceito familiar, que é derivado e relativo, não é uma invenção
da imaginação. Ele corresponde à realidade da música em seu começo, da condição
musical primordial. A concepção que considera a musicalidade como um dom de
indivíduos privilegiados e a música como uma prerrogativa de musicistas e amantes
da música passa a ser também limitada porque ela omite o essencial. O que ela omite
pode ser visto quando delineamos melhor uma conclusão lógica surpreendente: na
estrutura de nosso pensamento corrente sobre a música podemos imaginar um mundo
sem música. Mas visto do ponto superior do começo e do conceito original de
musicalidade, um mundo sem música é impensável.

É espantoso que nós que somos testemunhas da fase culminante da música


sejamos capazes de considerar um mundo sem música. Mas tal é o caso: em nosso
pensamento isolamos o fenômeno e a abordagem da música com conceitos analíticos.
Quando pensamos em música como arte, nós a isolamos do mundo da realidade de
todo dia; quando a consideramos como a arte dos sons, nós a isolamos das outras
artes; compositor e executante são os escolhidos, indivíduos privilegiados; o
conhecimento da música é como um campo especializado para especialistas; e os
muitos, o grande público, vêem a música como um dom especial. Se eliminamos a
música o mundo será empobrecido de uma forma de arte, poucos especialistas
perderão seu meio de subsistência, e o público será privado da fonte de um grande
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prazer; este será um mundo empobrecido e sombrio, mas este será também o mesmo
mundo como o conhecemos e entendemos: podemos imaginar um mundo sem
música. Não é assim quando olhamos a música a partir de sua fase de sua origem. Se
o homem e a música, existencialmente pertencem-se um ao outro, e música é um
elemento essencial dos atributos humanos, então o homem sem música não é homem
e um mundo sem música não é mundo: ambos, homem sem música e mundo sem
música, são contradições impensáveis. Em outras palavras, para nosso pensamento
corrente musica é uma obra do acaso, ao passo que quando vista de sua origem ela é
uma obra da necessidade. Qual destes dois pontos de vista está mais próximo do real
entendimento da música? Aquele que a relega para o campo da contingência ou
aquele que a considera como necessária?

Outras eras, outras civilizações empenharam-se para entender a música como


necessária neste sentido. Nós recordamos a visão de Platão do Demiurgo (no
Timaeus) que coloca a ordem da escala diatônica firmemente como fundamento do
universo. A sabedoria do antigo Oriente pode ser menos familiar para nós. As duas
seguintes passagens são tiradas outra vez do Li chi (da versão alemã de Richard
Wilhelm):

“A primavera cria, o verão faz crescer: isto é amor. O outono colhe, o inverno
protege no celeiro: isto é justiça. O amor corresponde à música, a justiça corresponde
aos ritos.”

“A música realiza a união, os ritos realizam a separação. Na união, os homens


amam uns aos outros, na separação os homens respeitam uns aos outros. Se a música
predomina, surge o perigo da dissolução; se os ritos predominam, surge o risco da
estagnação.”

Estas afirmações são suficientes para indicar como o estilo deste pensamento
sobre música e a atitude que ela reflete diferem da nossa. As palavras associadas com
música não são “arte”, “artista” ou “obra de arte”, mas verão e inverno, separação e
união, amor e justiça, dissolução e estagnação. Onde nosso pensamento tende a
analisar e isolar, o sábio chinês contempla um todo ordenando. Ele não compara uma
coisa com outra ou procura por traços que possam ter em comum ou progredir do
particular para o geral. Antes, ele se esforça por entender como a música, tal como
ela é, pode necessariamente encaixar-se no todo. (O todo não é o mesmo que o geral:
criações particulares separadas do geral são acidentais, enquanto a parte de um todo é
necessária. O geral permanece o mesmo quando um particular é removido, mas
quando uma parte é suprimida o todo não é mais o todo.) Aqui música é algo em si
mesma mas não para si mesma. Ela é uma metade de um par, um de dois pólos, o
outro pólo sendo os ritos. Outra vez, música e ritos não são tidos como existindo por
si mesmos, mas como mediadores, como mediadores terrestres entre dois poderes
supraterrestres cuja tensão polar mantém o universo em permanente equilíbrio.
Somente se os mediadores estão em equilíbrio e em um estado sadio está a sanidade
do todo garantida. A oposição entre os pólos é em realidade uma dependência mútua.
O perigo não está na ameaça da existência ou na força do outro pólo mas na sua não
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existência e debilidade. Cada pólo deve querer a existência e a força do outro, e teme
sua não existência e debilidade. Se um pólo estava desaparecendo, a dissolução ou
estagnação do todo começava imediatamente a se manifestar. É óbvio que na
estrutura de tal pensamento, a idéia de um mundo sem música não encontra lugar.

O que foi dito antes pode, é claro, ser rejeitado como uma especulação
metafísica e uma fantasia mitológica, inadmissível sem uma substanciação de sua
reivindicação por validade. Nosso pensamento a respeito de música e musicalidade
pode ser menos ambicioso, mas ele tem a vantagem incontestável de apoiar-se em
fatos como nós os experimentamos e explaná-los adequadamente. E não há razão
para que uma explanação da música como sendo necessária deva em si mesma ser
superior a uma que a considera como uma contingência. Por que deveria a música
não ser um sublime acidente? A pedra de toque, certamente, deveria ser aquela
concepção que se ajusta melhor à realidade dos fatos. E não pode ser negada que a
evidência de nossa experiência não suporta qualquer alto vôo de pretensão a uma
validade universal. É matéria de fato que em seu mais alto desenvolvimento a música
separa as pessoas mais propriamente do que as une. Podem haver muitos ouvintes,
mas muito mais nunca ouviram, e em meio àqueles que ouviram somente uma
pequena parcela está capacitada a ouvir o que vai em uma cantata de Bach, um
quarteto de cordas de Mozart ou uma sonata de Beethoven. Não estamos, então,
limitados a concluir que em seu sentido mais alto e mais estrito a música é uma posse
especial de uma minoria muito pequena? Não deveriam nossas concepções de música
e musicalidade levar em conta este fato?

O que está errado com este argumento é que ele usa o termo “experiência” em
um sentido muito grosseiro e estreito. Para ser claro, a confrontação com uma obra-
prima musical aparentemente divide as pessoas mais do que as une: somente uma
pequena faixa está sendo unida, agrupando-se em torno da obra, separados daqueles
que podem ter uma atenção ocasional e partir insensíveis e de todo o resto que está
muito distante para estar realmente ciente da música. Mas somente uma visão muito
superficial poderia concluir que a música não interessa a todos aqueles outros
também, que ela não existe para eles de qualquer modo. Beethoven escreveu as
seguintes palavras “Do meu coração – possa ela atingir outros corações” antes dos
acordes de abertura de sua Missa Solemnis. Estava ele pensando somente nos
musicalmente dotados? Ele dentre todas as pessoas não teria sido consciente que
somente muitos poucos seriam capazes de seguir a alta complexidade e o pensamento
musical completamente abstrato desta Missa? E contudo o trabalho não é endereçado
a estes poucos ou a outros grupos maiores; ele é endereçado a todos, à totalidade da
humanidade, ao coração humano. Se houve alguma vez um só indivíduo capaz de
entender esta obra, ele seria o representante de toda a humanidade; em seu proveito
ele quereria alargar a compreensão do coração humano; em sua consciência quereria
estender seu alcance e através dele uma nova realidade poderia ter ingressado em seu
conhecimento. Pois o que tenha ocorrido é compartilhado por todos os homens,
realmente como muitos podem compartilhar uma nova iluminação sem verem a fonte
da luz. Neste sentido a grande obra de arte – e na verdade particularmente as grandes
15

– são, se não endereçadas para todos, criadas por todos. A evidência oferecida pela
confrontação na sala de concerto é superficial. Por detrás da superfície evidente nós
sentimos, embora não possamos obrigá-la a confessar, a realidade de um todo-
conjunto no qual todos – compositor, executante e ouvinte – permanecem juntos e
olham fixamente, por assim dizer, com os olhos da obra na mesma direção, a grande
situação que encontramos na fase dos primórdios. Nem são as paredes da sala de
concerto um limite cerceador: o todo-conjunto se estende além delas. O fato de a obra
existir e ser entendida por uns poucos significa simplesmente que daí em diante
muitos outros quererão ser diferentes em sua poesia, em suas emoções, seu
pensamento, talvez equilibrando seus movimentos e sua respiração.

Embora o pleno alcance e impacto dos problemas fundamentais levantados


pela música possam ser revelados somente para aqueles de nós que testemunham a
fase culminante, parece que ao mesmo tempo perdemos a habilidade de nos
concentrar nestes problemas, além de pensá-los a partir do fim. Será que a
proximidade com a fase culminante nos oprimiu, tornando-nos mudos, e sufocou
nosso pensamento a tal grau que só podemos dar minúsculos passos em um pequeno
círculo? Vista da fase dos primórdios, a música se revela como uma das faculdades
principais da consciência humana em seu avanço em direção a horizontes sempre
mais amplos. O que podemos fazer é tomar o problema da musicalidade fora do
contexto da fase culminante e colocá-lo de volta no contexto de seu primórdio. A
procura de respostas não pode proceder por mais tempo das linhas da especulação
metafísica; seria um empenho infrutífero. A tarefa simplesmente é ter uma visão
cuidadosa dos fatos, descrevê-los fielmente, e interpretá-los corretamente.
16

II. O Significado da Canção

Por que as pessoas cantam?

Notoriamente, questões de “por que” prestam-se à ambigüidade. Elas podem


se referir à causa de um dado fenômeno, para seu antecedente, ou para seu
significado, suas implicações. No primeiro caso a resposta será referida a fatos
observáveis dos quais o dado fenômeno é seu efeito; no segundo, para a idéia da qual
o fenômeno pode ser conseqüência lógica. As respostas não são mutuamente
excludentes, mas são de diferentes tipos. A distinção entre as duas é análoga àquela
feita por Dilthey entre a demanda para a explanação e a demanda para a
compreensão. Por exemplo, para a questão “Por que as pessoas morrem?” respostas
de diferentes tipos são possíveis. Se a questão se refere à causa, iremos tratar dos
processos físicos e químicos do organismo envolvido, e a interação destes processos
com outros processos vindos do ambiente em direção a este organismo; se a questão
se refere ao significado, devemos olhar para a questão no Livro do Gênese, na Queda
do Homem.

Que tipo de resposta é a mais apropriada, dependerá do assunto da questão. Ao


que a questão se refere é muitas vezes imediatamente óbvio. Por exemplo, ouvindo
uma peça de música, eu posso bem perguntar, por que exatamente este acorde
exatamente aqui? Claramente, não espero que seja dito que é porque certos
instrumentos produzem ondas sonoras particulares, portanto sendo responsáveis por
aquele acorde exatamente aqui. Pelo contrário, o que realmente me interessa é
compreender o significado deste acorde com referência à obra como um todo. Em
outros contextos, contudo – tais como “por que a lua é muito maior e avermelhada
quando ela está surgindo no horizonte do que quando está alta no céu?” – obviamente
quero uma consideração científica para o fenômeno, uma resposta nos termos de sua
causa. Na verdade, perguntar o que a ascensão da lua realmente significa parece sem
sentido em primeiro lugar. Isto não quer dizer, claro, que todas as questões exigem
respostas que caem nitidamente dentro de uma das duas classes mutuamente
17

exclusivas: causas e significados. Igualmente quando lidamos com fenômenos da


natureza é possível buscar e encontrar significados acima e além de qualquer mera
contabilização deles. Então, acredita-se geralmente que a única questão sobre as cores
do arco-íris é “Como elas são produzidas?” Mas Goethe pensou ser possível inquirir
sobre seu significado e encontrou uma resposta na concepção do Urphänomen, o
“fenômeno primordial”. Goethe também escreveu que as coisas efêmeras são como
uma reflexão – em outras palavras, que a suprema sabedoria consiste na busca do
significado, não das causas. Esta é uma atitude diretamente oposta àquela da ciência
destes últimos tempos, a qual elimina qualquer busca por significado e olha somente
para as causas – mais precisamente, para as leis específicas governadoras da
ocorrência sucessiva dos fatos observáveis. Nesta última perspectiva, a questão “Por
que as pessoas cantam?” seria automaticamente interpretada como uma questão a
respeito das causas, e seria conseqüentemente respondida no sentido da psico-
fisiologia. Nós nos referiremos a esta interpretação de nossa questão num ponto
posterior; estamos aqui interessados não nas causas mas no significado.

A primeira questão com a qual temos que lidar, então, concerne nem às causas
nem ao significado, mas ao objetivo imediato da música, especialmente da música
mais primordial avaliável por nós em alguma medida – a música folclórica. Quanto
mais para trás nós vamos, mais parece como se a música, longe de ser um fim em si
mesma (como ela tem eventualmente se tornando na “música artística” do Ocidente),
estivesse sempre subordinada a finalidades fora dela mesma – religiosa, social,
prática. Nem teria a música de hoje cessado de emprestar seu auxílio a tais esforços
extramusicais. Crianças até agora estão cantando para dormir, soldados ainda cantam
para dar coragem a si mesmos, e trabalhadores tornam mais leve seu trabalho com
canções. Os ritos religiosos do Ocidente não dispensam sua música, e ritos civis
parecem monótonos sem ela. E embora possa-se não prestar muita atenção a ela, uma
certa quantidade de música é ingrediente indispensável para muitos filmes.

Quando um e o mesmo significado serve a muitas finalidades diferentes, e


servem-nas a todas igualmente bem, é natural procurar o que estas finalidades têm em
comum. Em nosso caso, este elemento comum é facilmente identificável. Embora
seja diferente o comportamento de pessoas rezando, marchando, dançando, assistindo
a um espetáculo, trabalhando ou celebrando, e embora os caminhos nos quais se
expressem possam diferir – ação ou contemplação, movimento ou repouso, alerta
físico ou psíquico ou a falta deste, tensão ou relaxamento – em todas estas situações
as pessoas envolvidas abandonam-se inteiramente ao que quer que estejam fazendo.
Elas não se abandonam neste caso por amor ao auto-abandono, a fim de esquecerem-
se de si mesmas ou – o caso extremo – para encontrar libertação em um frenesi
dionisíaco. Contudo, há um elemento comum a todas estas diversas expressões de
uma necessidade de auto-abandono, e esta não é um dar as costas ao próprio ser, não
é uma negação, mas um alargamento, uma intensificação do ser, uma quebra das
barreiras separando o ser das coisas, sujeito do objeto, agente da ação, contemplador
daquilo que é contemplado: é uma transcendência desta separação, sua transformação
em uma unicidade [togetherness].
18

Imagine uma encosta em um campo caloroso; é manhã e o sol está brilhando


luminosamente. Um jovem está em cima de uma pereira, colhendo uma fruta, e
enquanto a colhe ele canta. Por que ele está cantando? Eu suponho que a maioria de
nós poderia dizer, porque ele está em um dia bonito, e é bom ser jovem em um dia
bonito em um bonito ambiente campestre, colhendo pêras suculentas. Tudo isto bem
pode ser, mas há outra razão, mais profunda, mais essencial para cantar nesta
situação. Nosso jovem poderia não cantar enquanto colhe, se o dia não foi tão
agradável ou se problemas pesam sobre ele, mas se ele canta de todo modo enquanto
colhe pêras, cantará uma mesma canção – e uma canção diferente se elas fossem
uvas. A canção que ele canta é a canção imemorial de colher pêras em sua parte do
mundo, uma melodia que musicalmente torna um, fruto e colhedor, que “traz” as
pêras às mãos do colhedor e consagra a colheita delas. É como se as mãos do
colhedor não se estendessem para a fruta mas esta se entregasse a ele, como se a
fruta, ao invés de resistir às mãos, se encontrasse a meio caminho, deixando-se cair
nelas por sua própria concordância. Ao invés de oposição, distinção, temos unicidade,
unidade.

Pode-se fazer a objeção de que nem todo tipo de atividade é incrementado ou


realçado pela música. Assim, cientistas e eruditos não precisam render-se a nada em
capacidade de auto-abandono, e é um fato que eles não cantam enquanto trabalham.
Fausto sozinho em seu estúdio, cantando, como Gounod o retrata, nos parece um
ridículo. Um jogo como o xadrez, igualmente, não se presta a um cenário musical;
imagine um coro de espectadores intrometidos! Caçadores também cantam somente
em óperas, e então somente antes ou depois que eles atiram (isso se o compositor
conhece o seu negócio). Na vida real, caçadores mantêm-se quietos, não exatamente
para deste modo não alertar a caça – eles se manteriam quietos ainda que os pássaros
ou animais que eles visam não tivessem o sentido da audição. Na cozinha você ouve
cantando somente as pessoas fazendo tarefas de rotina, como descascar batatas, nunca
o chefe preparando nervosamente um molho delicado. O que a objeção omite é que o
tipo de relacionamento pessoa–objeto característico do pensamento, estudo ou
qualquer outra atividade que requeira concentração não é corretamente designada
pelo termo “auto-abandono”. Pois aqui o oposto é verdadeiro: ser e objeto são
simetricamente distinguidos. Quando engajados em tais atividades, estamos
inteiramente em nós mesmos e inteiramente com o objeto ao mesmo tempo. Verdade,
não nos concentramos em nós mesmos, todavia estejamos inteiramente absorvidos
em observar o objeto, concentrados nele, e fazendo isto nós mantemos o objeto fora
de nós mesmos, distinto de nós mesmos. Este é uma atitude incompatível com
quaisquer sons. O homem cantando sobre a pereira não se concentra na fruta. Nem
Orfeu age como um caçador quando ele encontra feras selvagens.

Deste modo, música é apropriada, é útil, onde o auto-abandono é pretendido ou


requerido – onde o ser vai além de si mesmo, onde sujeito e objeto reúnem-se. As
notas parecem prover a ponte que torna isto possível, ou pelo menos torna isto mais
fácil, atravessar a fronteira separando os dois.
19

Aí existe um tipo de música elaborada para este nível a qual não serve – ou, em
todo caso, não tão obviamente como outros tipos – como um meio para um fim. Onde
quer que a música folclórica ainda esteja viva, as pessoas se juntarão para cantar.
Para ser claro, muitas canções, como as melodias de dança, cantigas de ninar, árias
marciais, cantos religiosos e hinos têm um propósito específico e imediato; mas há
também outras que são cantadas por si mesmas, realmente pelo amor de cantar. Qual
é o significado desta prática?

Uma canção popular é primeiramente um poema, isto é, uma estrutura verbal.


Ela conta uma história, evoca uma situação, expressa sentimentos. Pode ser sem
dúvida que as palavras da canção sejam da maior importância: a melodia toma um
lugar secundário. O título da canção se refere ao que as palavras dizem, não à
melodia; na verdade, diferentes canções são igualmente cantadas na mesma melodia.
Em muitas coleções de canções folclóricas a maior parte do livro é preenchido pelos
textos verbais, seguido pela indicação “Para ser cantado na melodia de ...” Como
cada texto é cantado usualmente está colocado no apêndice; o número de melodias é
invariavelmente inferior ao dos textos.

Pareceria, então, que igualmente nestas canções folclóricas onde a melodia não
é realmente o sentido de sua finalidade, sua função é claramente secundária. Poderia
mesmo ser sustentado que nas canções folclóricas a contribuição da melodia é menos
essencial do que em outras formas do fazer musical antigo. Nas danças e celebrações
sem acompanhamento musical falta algo essencial, ao passo que em um poema há um
todo independente, nada faltando.

Isto é sem dúvida verdade para o poema não vocalizado, o poema que eu penso
a respeito ou leio silenciosamente, talvez recitado para mim mesmo ou para alguém
para quem ele não é familiar; isto não é verdade para o poema que é na realidade
intencionado para ser vocalizado, para representar a voz de uma comunidade. Pode
alguém imaginar que pessoas se juntem para falar canções? Alguém pode, mas
somente como uma possibilidade lógica; na vida real isto seria absurdo. Isto tornaria
algo natural em algo expressamente artificial. Visto por este lado, o que as notas
musicais contribuem para a canção folclórica é essencial: somente quando ela é
cantada a canção folclórica realmente existe. Jogue a melodia fora, e o que resta é
algo inteiramente diferente.

Uma explicação trivial sugere: a naturalidade do cantar e a artificialidade de


falar em coro supõem-se que seja devido ao fato do metro regular a sucessão
temporal das notas mas não das palavras. Argumenta-se que o metro sozinho torna
possível uma performance grupal ordenada, mas que manter o tempo enquanto
falando é artificial. Esta explicação omite o fato que somente com o avanço da
genuína polifonia – em outras palavras, o avanço da arte musical – que o metro
tornou-se um elemento indispensável da linguagem musical. A música em seu estado
original é livre para concordar ou discordar do metro. Melodias gregorianas que não
conhecem metro são apesar disso cantadas pelos coros. Na música folclórica do lado
de fora das fronteiras do Ocidente, grupos cantando e grupos tocando sem metro não
20

são de modo algum estranhos. Nós podemos nos maravilhar com a realização, mas
ela é considerada como uma concessão. Por outro lado, não há razão por que um
poema, um modo de falar em linguagem rítmica, não possa ser meramente falado
metricamente sob certas circunstâncias. Em todo caso, a razão por que é artificial
recitar canções folclóricas ao invés de cantá-las pode ser buscado noutra parte, não
realmente no fato de que as notas tornaram-se inseparáveis do texto.

Parece que falar palavras é inadequado na situação naturalmente pressuposta


pela existência de canções folclóricas. A palavra falada pressupõe alguém que fala e
alguém falando para, dirigida de uma pessoa para outra, implica numa comunicação.
“Toda fala”, lemos no Der Ausbau der Sprache de Bruno Snell, “consiste nisto: um
som alcança o ouvido de outro ser ... falar é sempre o falar de alguém para alguém
sobre algo”. As palavras da canção folclórica, no entanto, não são dirigidas para uma
pessoa ou outra, ou de muitas pessoas para muitas outras; a voz é aquela do grupo,
que inclui a todos os presentes; aqui não há “outro ser”, não há meros ouvintes. Mais
precisamente, os que falam são também os ouvintes, não no sentido que cada
indivíduo fala para todos os outros, mas no sentido de que todos eles juntos falam
para todos eles receberem; o que há para ser comunicado onde cada um conhece
exatamente – na verdade, precisam saber – o que é para ser dito a fim de tomar parte
numa fala coletiva? Se ocorre de um membro do grupo liderar o coro, suas palavras
não são endereçadas aos outros certamente; cada uma das pessoas do coro poderia
dizê-las tão bem. Ele não fala para elas nada que elas não saibam; ele não fala para
elas mas por elas; ele é ainda o porta-voz do grupo. Nem se compara com a situação
especial do monólogo levado a nós de qualquer parte; monologar é somente pensar
em voz alta, pronunciar sonoramente pensamentos que poderiam perfeitamente
também permanecer não pronunciados, enquanto uma canção não existe realmente
enquanto ela não for pronunciada. As pessoas não se juntam para pensar canções
silenciosamente, para imaginá-las em conjunto. E então nasce a questão, qual é o
elemento da melodia cuja adição às palavras de uma canção folclórica transforma
algo sem significado em algo com significado?

A resposta pode ser buscada na diferença entre as relações humanas criadas


pelas palavras, ou faladas, e aquelas criadas pelas notas, ou cantadas. O falar palavras
pressupõe “o outro”, a pessoa ou pessoas a quem estas são endereçadas; o um falando
e o um para quem é falado estão voltados um para o outro; a palavra sai de um para o
outro, criando uma situação na qual os dois estão encarando um ao outro como
indivíduos distintos e separados. Onde quer que exista fala, há o “ele-não-eu” de um
lado e sua contraparte, um “eu-não-ele”, em outra. Isto é por que a palavra não é a
natural expressão do grupo. No grupo, as pessoas são trazidas juntas, não separadas;
as barreiras entre indivíduos não são enfatizadas, são minimizadas. Uma
individualidade pode certamente entrar diante de um grupo e falar a ele; mas quando
ele fala para dentro do grupo de fora do grupo, como um membro, e quando o grupo
inclui todos os indivíduos presentes, quando não há “outro”, não há “encarar um ao
outro”, então uma das condições sob as quais falar é significativo é cancelada
reciprocamente pelas realidades da situação. Agora, se adicionar notas às palavras
21

resulta em transformar o sem sentido em algo que se explica por si, é razoável supor
que cantar é a expressão natural e apropriada do grupo, da união dos indivíduos
dentro do grupo. Se este é o caso, podemos supor que as notas – cantadas –
essencialmente expressam não o indivíduo mas o grupo, mais precisamente, o
indivíduo na medida em que ele é um membro do grupo, ainda mais precisamente, o
indivíduo na medida em que sua relação com os outros não é um “encará-los” mas
uma unicidade.

Um olhar conclusivo à situação envolvida em cada caso confirma isto: a


natureza das notas expressa a situação de união tão de perto quanto a natureza da
palavra expressa a situação de “encarar um ao outro”. As notas musicais não são
dirigidas aos outros (a hipótese de Géza Révész que elas se originaram no grito – isto
é, a intenção de gritar para dar maior alcance à voz – é realmente tão bem ou mal
fundamentada como qualquer outra tentativa de racionalizar o primordial e penetrar
ainda mesmo além dos primórdios). Notas musicais não fazem referência a coisas;
elas não dizem nada a respeito de coisa alguma. E ainda elas não são meras
“expressões”, também não são meramente emitidas: elas além disso pretendem ser
ouvidas, a saber, pelo próprio cantor. Invariavelmente, elas são ambos, o ponto de
partida e o ponto de chegada. Enquanto que a palavra sai de mim, aquele que fala, e
permanece no exterior com a pessoa a quem é falada, que responde com outra
palavra, eu, como cantor, vou fora de mim mesmo com as notas e ao mesmo tempo,
como ouvinte, retorno a mim desde o lado de fora por meio das notas. Nas notas, e
somente nas notas, o cantor encontra a si mesmo vindo de fora, e não somente a si
mesmo se o cantor é o grupo. Em uma única nota que venha do todo, eu encontro
tanto o grupo quanto a mim mesmo. A linha divisória entre eu e os outros perde sua
agudeza. Aqui a situação não é aquela onde duas partes distintas encaram uma a
outra; aqui os outros não endereçam seu cantar para mim. Enquanto as palavras
levam as pessoas uma em direção a outra, por assim dizer, as faz olhar uma a outra,
as notas levam-nas todas à mesma direção: todos seguem as notas em seu caminho
para fora e em seu caminho de volta. No momento em que as notas ressoam, a
situação onde uma parte encara a outra é transmutada em uma situação de união, os
muitos diferentes indivíduos dentro de um grupo.

Se este é o caso, por que as pessoas não cantam simplesmente canções sem
palavras? Por que as palavras nas canções cedem lugar às notas somente em curtos
momentos, na maioria das vezes? Por que não há canções folclóricas que não sejam
poemas cantados?

Meras melodias seriam suficientes se o sentido da canção fosse esgotado pela


transmutação do encontro face a face entre pessoas em uma unicidade, se o cantor
estivesse interessado somente com o sentimento ao invés de com a comunidade. Algo
mais deve estar envolvido na forma de expressão onde palavras são necessariamente
unidas a notas. O cantor que usa palavras quer mais do que somente estar com o
grupo; ele também quer estar com coisas, aquelas coisas às quais as palavras do
poema se referem. Uma pessoa usando somente palavras nunca está com as coisas
neste sentido: ela permanece à distância delas; ela permanece como “o outro” em
22

relação a elas, aquela que não é, “do lado de fora” delas. Em contraste, se suas
palavras não são meramente ditas mas cantadas, ele constrói uma ponte viva que a
liga com as coisas referidas pelas palavras, que transmuta distinção e separação em
unicidade. Pelo sentido das notas, aquele que fala sai em direção às coisas, traz as
coisas de fora para dentro de si mesmo, então ele não é mais “o outro”, algo alheio ao
que ele é, mas o outro e si próprio em um. Assim, uma forma de falar que não é
endereçada a alguém e nada comunica torna-se inteligível. Tão logo as palavras do
poema restem silenciosas dentro de mim mesmo, o que elas pretendem dizer não é
“algo outro”, uma coisa “do lado de fora” de mim mesmo; eu posso pronunciá-las,
projetá-las para fora de mim, a fim de transformar o que elas dizem em uma “coisa”
outra do que eu mesmo, encontrada do lado de fora. Somente então podem as notas
satisfazer sua proposta: remover a barreira entre pessoa e coisa, e limpar o caminho
que pode ser chamado de a participação interior do cantor na qual ele canta – para
uma participação ativa, uma experiência de um tipo especial, uma experiência
espiritual. Esta experiência não é um sonhar-se-fora-de-si-mesmo, não é um sonhar-
a-si-em-outra-coisa, como se alguém fosse diferente do que esse alguém é. O cantor
permanece o que ele é, mas seu ser é dilatado, seu alcance vital é estendido: ser o que
ele pode ser agora, sem perder sua identidade, ser com o que ele não é; e o outro,
sendo o que ele é, pode, sem perder sua identidade, ser ele. Este tipo de experiência
não deve ser confundida com simpatia. Simpatia é dirigida a uma ação imediata,
como a compaixão, que leva a diminuir ou aliviar o sofrimento alheio, ao passo que a
participação ativa do sofrimento – por exemplo, expressa em uma canção que conta
uma história de sofrimento – consiste exatamente nisto, que o sofrimento é
plenamente re-experienciado na mente do cantor. Aqui a emoção é secundária, é o
efeito não a causa da participação, e junto com a última é espiritualizada, “colocada
em parênteses”. (Por isso é que a maldade à qual o poeta se refere é realmente tão
boa, realmente tão adorável, quanto o bem.)

Assim nossa questão do significado da canção foi levada a uma resposta


preliminar: ela reside na transmutação da dupla confrontação entre pessoa e pessoa, e
entre pessoa e coisa, em uma dupla união: o eu-não-ele e eu-não-ela torna-se o eu-e-
ele e o eu-e-ela. As notas são o meio no qual a transmutação acontece.
23

III. Palavras e Notas na Canção

Desde que a interpretação da relação palavra-nota dada aqui difere


substancialmente das interpretações geralmente correntes, fará bem discutir estas
outras enquanto propostas de orientação e demais elucidações. O pensamento a
respeito da música hoje é quase inteiramente dominado por uma ou outra destas duas
teorias mutuamente exclusivas. De acordo com certos escritores, a música é
essencialmente uma linguagem dos sentimentos, uma expressão da emoção; de
acordo com outros, a música é composta por “padrões dinâmicos de som” os quais
constituem um jogo puramente formal (no mais sério sentido do termo), um que não
contém qualquer significado, que contém só e inteiramente a si mesmo. A relação
palavra-nota é portanto interpretada por dois caminhos muito diferentes. Nos termos
da segunda destas teorias, este relacionamento é externo, não mais que uma íntima
correspondência métrica (por exemplo, as palavras “rauschender Strom, brausender
Wald” adaptam-se a , mas não se adaptam a ). De
acordo com esta teoria, então, o problema com o qual estamos lidando nunca aparece.
De acordo com a outra teoria, as notas acentuam expressivamente os sentimentos que
as palavras estimulam. (Se os sentimentos são aqueles do cantor ou dos personagens
referidos ao poema, é uma questão que deixamos aqui em suspenso). Visto que o
termo “canção” denota hoje primeiramente a arte da canção, e visto que muito das
canções artísticas exibam impressionantemente a força para acentuar o sentimento, é
compreensível que a interpretação “emocional” raramente seja contestada. No
entanto, os estágios primordiais da canção – as verdadeiras canções folclóricas – não
provêm quase nenhuma evidência de apoio.

O exemplo dado abaixo é a bem conhecida canção alemã, “Morte, a ceifadora”.


Eu não a escolhi para refutar uma teoria ou para apoiar a outra, mas em consideração
ao que se tornará evidente no próximo capítulo. Quanto ao que concerne à relação
palavra-nota, um grande número de exemplos poderia servir igualmente bem.
24

Pode o canto desta canção ser interpretado como a expressão dos sentimentos
que suas palavras permitem ao cantor?

Primeiro de tudo, o sentido como o qual o termo “expressão” é usado aqui deve
ser definido claramente. Palavras são ditas para “expressar” o que elas denotam;
gestos e gritos, para “expressar” a emoção que dá nascimento a eles; escritos, para
“expressar” a personalidade do escritor. Notas são ditas para “expressar” emoções em
um sentido intermediário entre o primeiro e o segundo destes três sentidos, um tanto
mais próximo ao segundo. Aqueles que vêem a música como uma linguagem dos
sentimentos dizem que as notas expressam emoções de um modo similar (mas não
mais que similar) àquele no qual as palavras expressam as coisas que elas denotam,
isto é, que as notas servem como um meio de comunicar emoções. Pode ser
sustentado pela mente, contudo, que a correlação de palavras e coisas é superficial e
acidental. Não há necessidade intrínseca de que um dado vocábulo denote qualquer
coisa mais que outra; vocábulos idênticos podem denotar coisas diferentes, e
diferentes vocábulos uma e a mesma coisa. Por contraste, toda emoção exterioriza
sua própria expressão característica, como uma flor o seu aroma; a correlação entre
os dois é direta, inerente, não deixa lugar para ambigüidade. Toda expressão
emocional em si mesma – sob qualquer condição – desce a nuanças sutis em sua
própria maneira característica. Deste modo, ao passo que deve ser dito o que as
palavras da linguagem significam a fim de entendê-las, não somente as pessoas mas
ainda os animais diretamente compreendem o significado de uma fúria ou de um
gesto conciliatório, nunca confundindo o choro de temor com o choro de alegria.

Vamos agora voltar para nosso exemplo, e ver se o relacionamento palavra-


nota nesta canção é realmente deste tipo.

Concebemos imediatamente que a importância da melodia iguala-se àquela das


palavras. Esta observação é inevitavelmente trivial. Obviamente nosso poema, se
tomado seriamente, não parodiado, não pode ser cantado em uma canção alegre de
dança. Seriedade, no entanto, não é uma emoção mas um humor, não é algo que nos
25

agita mas um certo estado receptivo no qual acontece estarmos. Diríamos, então, que
a melodia expressa as emoções que são permitidas em mim pelo meu humor sério.

Claramente, esta afirmação não nos leva muito longe, não contribui
significativamente para nosso entendimento da canção e o meio particular pelo qual
ela nos afeta. Há incontáveis humores sérios, incontáveis melodias sérias. A resposta
à nossa pergunta deve ser mais específica. Podemos dizer, por exemplo, que a
melodia expressa as emoções do cantor quando a transitoriedade das coisas mundanas
– não realmente as coisas sem valor, mas precisamente as coisas naturais e inocentes
do mundo – nos é colocada tão vigorosamente quanto o é, pelas palavras de nosso
poeta.

Mesmo esta formulação é ainda muito vaga, muito geral: ela ainda não abarca
o conteúdo desta canção em particular. Claro, ninguém estará isento de ser afetado
por sua vigorosa evocação da transitoriedade de todas as coisas mundanas, claro, a
cor da emoção que ela desperta é consoante com o tenor de nossa melodia. Mas esta
emoção, tomada em seu sentido geral, não é mais que um fundo monocromático para
as diversas imagens sugeridas pelas palavras, visto que a melodia é muito mais que
um mero fundo musical para as palavras. O que ouvimos não é meramente alguma
música suave acompanhando o recital do poema, mas mais propriamente uma íntima
e indissolúvel união de notas e palavras; a melodia, por assim dizer, funde-se com as
palavras, move-se em completo acordo com elas, sílaba por sílaba, nuança a nuança.
É esta concordância que determina a alta qualidade da canção, e é esta concordância
que está em questão aqui e que nós estamos tentando entender. Aqui a teoria da
música como uma linguagem das emoções falha em passar no teste da experiência.
Ao invés de clarear a experiência, esta teoria a torna ininteligível.

Vamos prosseguir, se não palavra a palavra, ao menos linha a linha.

(Há um Ceifador, homens, chamado Morte)

O movimento escassamente diferenciado das notas de abertura da canção é


mantido com as palavras da abertura, cujo significado não se torna explícito antes de
ouvirmos a palavra “morte”. Adequadamente, com esta palavra o movimento das
notas vem a uma breve parada na nota mais grave.

______________

Nesta linha emergem um contorno melódico definido e um padrão rítmico


definido. Severidade e restrição caracterizam o movimento das notas – comparável a
26

uma série de passos cuidadosamente medidos ao longo de um caminho estreito –


mantendo nas palavras a referência à corte suprema, diante da qual não há apelação.

(A lâmina está sendo afiada, Afiada, mais afiada ele está ficando,
Logo mais estará em movimento, Todos deveremos sofrer isto)

As palavras severas, até cruéis, os eventos inexoráveis referidos a elas, são


igualados pelo padrão rítmico rígido, pela repetição inexorável da mesma frase
melódica, a descida passo a passo (indicado no exemplo musical) de frase a frase.
Inesperadamente, a frase não é repetida até o final; ao invés, temos uma seqüência
descendente. As notas caem repentinamente, como se rendendo à sua própria
concórdia ao desvio abrupto desde a atividade à passividade sofredora. Finalmente,
nada pode transmitir mais vigorosamente a ênfase, todo o peso da advertência
expressa nas últimas palavras do que a ascensão da melodia para o “Acautele-se”
[“Beware”] seguindo diretamente pela sua descida até a nota conclusiva:

(Cuidado, ó flor adorável)

Severidade, restrição, aspereza, crueldade, inexorabilidade, atuação e


sofrimento passivo, violência, gravidade, cautela: todos estes termos denotam não
emoções mas atitudes ou estados de ser. O que temos observado é somente que as
notas correspondem intimamente a atitudes ou estados. Para colocar emoções dentro
do quadro, teríamos que assumir que elas são liberadas pelas atitudes e só
indiretamente são expressas pelas notas. Mas isto seria uma hipótese ad hoc: a nota
enquanto percebida por um ouvinte atento pode ser adequadamente descrita sem
referência a emoções. Que emoções estão presentes certamente não poderá ser
contestado, e elas parecem ser produzidas pelas notas, não por outro meio. (É por isso
que é totalmente errôneo cantar esta canção “com sentimento” – por exemplo, a
primeira estrofe “cruelmente”, a segunda e a terceira “pesarosamente”, e a quarta
“desafiadoramente”.)

A segunda estrofe mostra que o problema pode ser estabelecido sem ir adentro
daquelas sutilezas.
27

(O que é sempre verde e fresco hoje, será ceifado amanhã)

As palavras da abertura estão intimamente relacionadas àquelas da primeira


estrofe, a qual meramente enuncia a lei cujo significado é explicitada na segunda.
Você pode, se quiser, admitir que estas palavras são ditas pelo Ceifeiro: o fato das
mesmas notas serem cantadas para diferentes palavras pode então ser considerado
pela similaridade das emoções expressas em ambos os casos. Mas começando com a
próxima linha, todas essas explanações falham. As palavras agora viram do executor,
em direção às suas vítimas:

(O nobre narciso, As gemas dos prados,


O belo jacinto, As papoulas escarlate brilhantes)
É impensável que estas palavras nasçam das mesmas emoções, ou ainda de
similares, como as palavras correspondentes na primeira estrofe, “A lâmina é afiada”
[“The blade is whetting”], e assim por diante. E ainda as notas são as mesmas, e elas
se ajustam às nossas palavras igualmente tão bem. O paralelismo rítmico e melódico
das frases, a descida gradual é agora percebida como o anti-tipo tonal correto das
imagens sugeridas pelas palavras: flores e flores e flores ameaçadas pela lâmina.
Então, vemos que um e o mesmo gesto expressivo se ajusta a diferentes emoções
igualmente bem.

A terceira estrofe confirma isso. As palavras agora se referem somente às


vítimas do Ceifador. A congruência das palavras e notas –

(As campânulas prateadas, Os doces sultões dourados)

produz a concordância mais íntima.

(Todos eles caem no chão)

Isto é agora tão verdadeiro para as notas como para as flores.


28

(O que acontecerá com eles?)

A desesperança, o colapso expresso nesta pergunta não poderia ser transmitido


mais vigorosamente do que pela descida íngreme da linha das notas neste lugar. É
inconcebível que a melodia não tenha sido inventada para se ajustar a estas exatas
palavras.

E agora a última estrofe. Após a proclamação da lei e a submissão à lei, a


rebelião contra a lei: “Atreva-se, Morte!” [“Dare, Death!”]. As emoções
correspondentes a estas palavras são indiscutivelmente a direção oposta daquela
procedente das estrofes precedentes. E anda a firmeza, a resolução agora revelada
pelo começo do movimento melódico se ajusta perfeitamente à atitude expressa nas
palavras. E quão exatamente o movimento cortante e nítido das notas (embora seu
significado emocional seja muito diferente) corresponde às palavras.

(Atreva-se, venha em um único salto)

A canção alcança sua culminância quando a ascensão melódica – o gesto tonal


que, por ter sido repetido três vezes, tornou-se associado em nossas mentes com o
“Acautele-se” – transmite o “Regozije-se” com o efeito de se mover mais
profundamente.

Considere somente o último efeito mencionado: em termos da teoria emotiva,


ele não faz sentido. Um e mesmo gesto não pode ser uma igualmente vigorosa,
igualmente convincente expressão do sentimento de ser ameaçador e do sentimento
de alegria, realmente, de triunfo. De acordo com esta teoria, o uso das mesmas notas
para expressar ambos os sentimentos pode ser atribuído somente a uma imbecilidade
ou a um milagre. Que não estamos lidando aqui com uma imbecilidade – embora o
inventor da melodia não pudesse pensar em uma expressão mais adequada e
apropriada que aquela que ele utilizara antes – é mostrado pela experiência direta. É o
bastante mudar a melodia da última linha de maneira a fazê-la conforme a teoria
emotiva – recolocando-a, digo, com
29

(O qual nos receberá a todos. Regozije-se, Ó flor adorável)

– para realizar pela primeira vez que o efeito do final permanece precisamente
sobre a repetição da frase, precisamente no fato de que a melodia de “Acautele-se”
inesperadamente manifesta o aspecto de “Regozije-se”1. Falar de um milagre, por
outro lado, seria só e obviamente sugerir uma tentativa de cobrir a falha da teoria. O
milagre não é o incompreensível. A verdadeira teoria prova seu valor não ao ignorar
o miraculoso mas por torná-lo compreensível. Uma teoria que rejeita fatos
observáveis como incompreensíveis prova somente sua própria inadequação.

Reduzidos à fórmula mais resumida, os fatos com os quais esta canção nos
confronta, e os quais nos concernem aqui, podem ser colocados como segue: (1) as
notas se ajustam às palavras, e (2) uma e mesma nota pode se adequar igualmente
bem a palavras que dizem coisas diferentes e ainda diametralmente opostas. Segue
que seu “ajustamento” não pode apoiar-se sobre um acordo tal como entre emoção e
expressão. Tornamo-nos íntimos dos fatos, entendendo-os melhor, se admitimos não
que as notas são mensagens enviadas para dentro de nós desde o mundo exterior (o
que elas seriam se elas fossem a expressão de emoções), mas que nas notas nossa
própria interioridade vai para fora e encontra a si mesma do lado de fora – que as
notas servem não para comunicar nossas emoções mas para ajudar-nos a compartilhar
ativamente o que elas dizem.

Uma observação incidental: o leitor destas páginas encontra as palavras e notas


da canção “Morte, a Ceifadeira” como caracteres impressos em um livro, isto é, de
fora. Não poderiam vir a ele de outro modo: elas são ditas a ele, contadas a ele de
modo insondável: ele se confronta com elas vindas de fora. Em contraste, o cantor –e
ele está em questão aqui – tem as palavras e as notas dentro de si mesmo; elas estão
“atrás” de seu cantar (ele deve conhecer a canção para ser capaz de cantá-la); ela sai
dele e vem de volta para ele mesmo. Desde que o seguinte se refere somente à atitude
do cantor, do leitor é esperado, sem deixar de ser um leitor, imaginar que ele é um
cantor, mais exatamente, um membro de um grupo de cantores.

“Há um Ceifador, homens, chamado Morte... O qual está ainda verde e fresco
hoje... O colorido-azul-celeste não-me-esqueço... atreva-se, Morte, venhá cá” – o que
a “partilha ativa” se refere neste contexto? O que ela não se refere é claro. As
palavras não evocam algo fora do cantor, digo, imagens mentais do Ceifador afiando
sua ferramenta, uma campina verde, uma flor azul, e uma Morte cavaleira combatente

1
Mudar as notas para adaptá-las ao valor emocional das palavras individuais é (como um fator secundário)
característico da arte da canção. Quando Hugo Wolf, na canção “In der Frühe” eleva as notas , “Não
tema mais, não se atormente mais, minha alma”, para as notas , “Regozije-se”, da linha seguinte, a mudança
é precisamente correta.
30

e o Demônio. Aqui não pode haver dúvida de qualquer coisa como esta, nenhuma
dúvida da identificação do cantor em total empatia com o que tais imagens evocam,
com a Morte e seus feitos, com as flores e seu sofrimento, com o desafio e seu
triunfo. A imaginação enquanto a faculdade de conjurar imagens mentais não está por
conseguinte envolvida; nem é ilusão, o colocar a si mesmo no lugar do imaginado, a
substituição de outro ser pelo próprio ser. Mas é igualmente claro que o cantor não
leva realmente as palavras e notas para fora de si mesmo, permanecendo atrás como
mero observador. Ele partilha ativamente com aquilo que ele diz, ele o “vive”.
Como? Em que sentido?

Palavras que não servem para evocar vívidas representações de coisas, eventos
e sentimentos não são nada que não signos vazios – eu entendo os signos sem
explorar completamente seus significados. “Morte”, “flor”, “desafio” – eu posso
entender estas palavras sem visualizar as coisas que elas denotam. Posso entendê-las
como “meras palavras”, “palavras vazias”, as quais provêm comunicação superficial,
nada mais. As palavras que são cantadas, no entanto, não são vazias, ainda se elas não
apontam a uma visualização concreta. Para o cantor, as palavras adquirem uma
plenitude muito especial e uma profundidade de significado. Algo que permanece
silente nas palavras meramente faladas começa a fluir, a vibrar; as palavras abrem e o
cantor abre-se a elas. É como se as notas infundissem nas palavras a força que revela
um novo estrato de significado nelas, que soprasse vida dentro delas de uma maneira
especial: não por fazer da palavra uma coisa tangível, como aparece quando vista do
lado de fora, e certamente não no sentido de submergi-las em uma vida universal na
qual toda particularidade, todas as distinções são abolidas, mas exatamente em seu
conteúdo determinado quando visto de dentro, desde um ponto onde o mundo é, por
assim dizer, um “Eu”.

(As campânulas prateadas, os doces sultões dourados, todos cairão no chão)

Para o cantor, estas palavras não sugerem algo como uma infinita queda de
formas esplendorosas e frágeis. De fato, ele não vê nada de todo, não imagina nada;
nem ele “empatiza” com todas aquelas coisas, incluindo a si mesmo, que deverá cair
ao chão. Ele simplesmente é esta queda e a queda é ele. Ele não observa a queda; ele
a “vive” e a queda “vive” nele. No estrato de significado tornado acessível pelas
notas, coisas que estão separadas se unem; aquele que fala e a palavra falada,
“pessoa” e “coisa” entram em contato direto. É como se uma porta tivesse aberta
através da qual o ser vivo daquele que fala vai para aquilo que ele está dizendo, e
aquilo que ele está dizendo entre dentro dele como algo que tem uma vida em si
própria, como um “Eu”. Embora nenhum dos dois absorva o outro, a antítese “eu” e
“ele” é transcendida: o cantor pode dizer “Eu” para aquilo que ele canta, e dizer “ele”
para si mesmo. A integral realidade da pessoa e a integral realidade das coisas são
agora fundidas em uma realidade assentada.
31

Expressar tudo isto em palavras pode ser algo complicado, mas o que
realmente acontece é simples. O processo é quase automático, comparável ao acender
de uma luz. O que temos aqui não é – longe disso – o resultado de um esforço
emocional: toma lugar abaixo da camada da afetividade (é por isso que o cantar “com
sentimento” inibe mais propriamente do que promove o processo). Mas se
exatamente as mesmas notas que se ajustam então singularmente a palavras
específicas de modo a levar à luz seus significados mais íntimos pode realmente se
ajustar singularmente a diferentes palavras, produzir o mesmo efeito – se a mesma
frase musical pode atingir diferentes escopos com a mesma acuidade – é claro que as
palavras, as quais enfatizam o que distingue uma coisa da outra, não pode tomar parte
decisiva neste processo. (“Coisa” localiza aqui tudo o que não é um “Eu”, quer seja
material ou espiritual, um objeto ou estado de mente, um sentimento ou evento.) O
afiar a lâmina, a queda das flores, a transitoriedade de todas as coisas mundanas, o
êxtase ascencional ao jardim celestial – cada um desses é cantado nas mesmas notas,
cada um é tornado igualmente vivo pela mesma melodia. Podemos concluir que no
estrato e realidade de onde vêm as notas e para a qual elas levam, não somente a
antítese entre “eu” e “ele” mas também as distinções entre as coisas são
transcendidas. Lá pode ser um estrato no qual todas as coisas têm suas raízes; então
as notas podem, por assim dizer, ativar esta camada e desse modo levar-nos próximos
às raízes das coisas. Místicos falam de um lugar “onde todas as coisas são unas”,
implicando não em uma mistura indiferenciada de todas as coisas, mas a fonte
comum que nutre cada coisa particular. Esta fonte é também o domínio das notas. A
experiência característica de cantar palavra, a qual conota ambos, a individualidade
concreta das coisas a que se refere e sua submersão em um todo maior, torna-se então
inteligível. Uma e mesma melodia não poderia expressar “Cautela” e “Regozijo” com
igual verdade se tal domínio não existisse, se ele não fosse a fonte onde medo e
alegria, perdição e salvação, embora certamente diferentes, estão ligados em um
significado comum. A verdadeira existência das notas é a evidência de um estrato da
realidade no qual a unidade brilha através da diversidade.

Conseqüentemente, uma segunda resposta à nossa questão a respeito do


significado da canção pode ser: as pessoas cantam a fim de se certificarem, através da
experiência direta, de sua existência em uma camada de realidade diferente daquele
na qual seu encontro de um com o outro e de coisas com aqueles que falam, como
que faceiam um ao outro e se separam um do outro – a fim de ser consciente de sua
existência em um plano onde a distinção e a separação entre um homem e outro
homem, entre homem e coisa, entre coisa e coisa, dá lugar à unidade, à autêntica
unicidade.

Pode parecer que esta interpretação do relacionamento palavra-nota não é


compatível com a segunda das teorias acima mencionadas, a teoria formal. Se uma
melodia é inventada para um poema, e se suas notas não estão correlacionadas com as
palavras com base nos significados objetivos ou emoções expressas, elas podem estar
baseadas somente no esquema métrico do poema. Realmente, é a inflexão das
palavras enquanto palavras – enquanto unidades métricas e fonéticas, não enquanto
32

veículos de significado – que reluz na invenção de uma melodia adequada – somente


deste modo podemos explicar por que poemas inteiramente diferentes em conteúdo
mas de mesma ou similar estrutura métrica podem ser cantados em uma e mesma
melodia. Isto é verdade não somente para a música folclórica: mesmo os grandes
compositores não hesitaram em usar a mesma partitura duas vezes, para textos
inteiramente diferentes. Então, a teoria formal justificadamente nega qualquer ligação
entre palavras e notas pelo que o significado é concernente, e interpreta a melodia
puramente em termos dos relacionamentos das notas. Mas esta teoria falha porque ela
não vai além dos aspectos superficiais da correlação palavra-nota, e omite os aspectos
mais profundos – a abertura de novos estratos de realidade e significado. A definição
de música enquanto um “jogo” (qualquer que seja o sentido do termo) e de homo
musicus como uma variedade do homo ludens deixa escapar o essencial. Outra
questão, no entanto, permanece aberta aqui. O que temos dito até agora pode dar a
impressão de que quaisquer notas associadas com as palavras em uma ordem métrica
adequada, que qualquer melodia que seja, seja ela desajeitada ou magistral, nobre ou
trivial, pode servir igualmente bem. Esta questão, a questão da qualidade da melodia
e da parte que ela joga em determinar como as palavras são unidas às notas, será
discutida em um capítulo posterior.
33

IV. A Nova Dimensão

O que tem sido dito sobre “o outro nível da existência”, “o outro nível da
realidade”, deve agora ser trazido a um foco aguçado.

O termo “nível” não é preciso o suficiente. “Outro nível” pode ser entendido:
1) Como “plano de fundo” para as notas, em um sentido de perspectiva – pois as
notas nos trazem para trás das palavras e do que as palavras dizem; 2) Como o
complemento “polar” das palavras – pois a realidade expressa na canção está
completa somente na união das palavras e das notas; e 3) Como uma síntese dialética
– pois as notas resolvem as antinomias presentes nos primeiros níveis. Estritamente
falando, nenhuma destas interpretações atinge o alvo. 1) Um “plano de fundo”
implica em um “primeiro plano” e um observador: do ponto de vista do observador
esse é o nível mais distante, ao passo que as notas, apesar delas realmente levarem-
nos atrás das palavras, manifestam um nível mais perto do observador, não ainda
mais longe. 2) As notas realmente complementam as palavras, mas as duas não são
opostas como um pólo e seu contrapólo, como o interior e o exterior, ou como o
espiritual e o físico. Enquanto pólo e contrapólo estão sempre no mesmo plano, a
união de palavras e notas resolve a antinomia de um plano pelo recurso de outro. 3) A
resolução não pode apropriadamente ser chamada de síntese dialética. Semelhante
síntese transcende ambas, tese e antítese, pela demonstração de que nenhuma é válida
e assim abole ambas, ao passo que as notas abolem a oposição verbal sem negar a
validade da palavra cantada. Ao contrário, elas intensificam e aprofundam o sentido
de toda palavra em sua particularidade maior, e pelo mesmo meio produzem a união.
A unidade expressa pelas notas consiste no fato de que a particularidade de cada
palavra é preservada como tal. Pense nos números, em como cada número existe
exatamente como uma pluralidade de distintas unidades: 1 + 1 se torna uno com 2; a
unidade 2 é 1 + 1. Estamos nos lembrando do velho ditado que fazer música é
definitivamente uma contagem inconsciente: deveríamos outorgar sua verdade neste
sentido?
“Outro nível” não denota nem plano de fundo nem contrapólo nem síntese:
denota uma nova dimensão, no sentido geométrico do termo. O que é distinto, o que é
34

múltiplo no primeiro nível dimensional se torne uno passando para o segundo. Dois
pontos tornam-se uma linha, três linhas tornam-se a unidade triângulo, quatro
triângulos a unidade pirâmide. Em cada caso, um novo significado é revelado pela
passagem para a dimensão mais alta, onde elementos antes distintos e separados
formam um todo unificado sem perder suas identidades como elementos da ordem
inferior. Na verdade, sua clareza é reafirmada. Uma linha reta não faz somente juntar
dois pontos; ela também os mantém separados para sempre. A unidade triângulo não
pode existir a menos que o número de linhas retas seja três. Somente em uma
dimensão entendida como mais elevada podem os elementos de uma dimensão
inferior ser unificados; sua unificação pressupõe a realidade ou possibilidade da
dimensão mais elevada. Outra vez a unificação tendo sido efetuada, a dimensão mais
elevada é criada, o potencial tornou-se atualizado.

Assim, cantar atualiza uma nova dimensão da palavra e de seu significado. O


plano de fundo da palavra revelado pela nota não é comparável a um segundo plano
atrás do primeiro plano: ele é um espaço tridimensional – espaço que se estende tanto
para trás quanto para a frente do plano. O que é miraculoso neste evento é bem
ilustrado pela analogia geométrica. O aparecimento de uma nova dimensão é sempre
o maior dos milagres. O que é mais inconcebível que a possibilidade de dois pontos,
os quais não conhecem nada de linhas retas, virem a se tornar unificados enquanto
permanecem sendo dois? Imagine um ser que se comunica com o mundo somente
através do sentido do tato, que está consciente das superfícies somente; agora
repentinamente ele abre seus olhos e vê a luz, a profundidade espacial. Imagine um
ser que não tenha sensações auditivas (muitos animais não têm órgãos auditivos;
somente os vertebrados e alguns crustáceos e insetos estão equipados com ouvidos),
um ser que pode somente ver e tocar, o que tem consciência do mundo somente como
a soma das coisas visíveis e tangíveis no espaço, e repentinamente este ser pode
ouvir, pode perceber sons, uma profundidade atrás da profundidade espacial, uma
profundidade existencial.

(Para evitar possíveis mal entendidos, convém notar que aqui e em todo lugar
neste livro, “palavra falada” denota palavra como elemento da fala usada em sua
função social mais importante, isto é, para comunicar fatos, idéias, emoções, ordens.
Estas incluem a palavra escrita mas não a poesia, nem palavras usadas com
proposição mágica ou ritual. As últimas são provavelmente sempre canções, e como
tais abrem para dimensões profundas. Após a poesia separar-se da música e tornar-se
uma arte puramente verbal, ela conservou a dimensão adicional; mais precisamente,
em sua arte as palavras faladas perfazem a função de notas. Poetas têm aprendido a
usar as palavras de tal modo que suas formas “planas” evoquem profundidade,
exatamente como pinturas estudadas para sugerir profundidade espacial pelo uso
apropriado de formas bidimensionais. Por conseguinte, os poetas se colocam na
mesma relação para a canção como, por assim dizer, a pintura em perspectiva para a
arquitetura.)

Em uma de suas cartas de “Muzot”, Rilke se refere à “profunda dimensão de


nossa interioridade”. Ele escreve: “Eu tenho pensado mais e mais que nossa
35

consciência ordinária está situada no cume de uma pirâmide, cuja base está
posicionada fora de nós mesmos (mas também, num certo sentido, abaixo de nós
mesmos), e que esta base é progressivamente alargada e alargada; quando descemos
dentro de nós mesmos, encontramo-nos mais e mais inclusos em meio aos fatos de
nossa existência terrena (o mundo no sentido mais amplo) que são independentes do
espaço e do tempo. Desde minha mais tenra juventude tenho o sentimento (e tenho
vivido de acordo com ele tanto quanto possível) de que se eu puder realmente entrar
suficientemente abaixo e dentro desta pirâmide de consciência, poderei experimentar
o ser puro, a inviolável presença e simultaneidade de todas as coisas que no nível
‘normal’ superior de consciência nós somos capazes de experimentar somente como
uma sucessão no tempo”2. Aqui, e também em outras passagens, Rilke salienta o
componente temporal, a simultaneidade dos elementos que são sucessivos no tempo.
É claro, todavia, que o que ele tem em mente é o mundo das coisas em geral, o lugar
onde “todas as coisas estão juntas”. Só aparentemente ele passa sem a passagem para
outra dimensão (pirâmides são tridimensionais tanto no topo quanto no fundo): a
passagem para uma nova dimensão está implícita na referência de Rilke à base da
pirâmide como sendo “fora” de nós – em uma dimensão onde a psique e o mundo são
um, onde os muitos existem simultaneamente no mesmo lugar sem cessarem de ser
muitos.

Uma imagem que talvez mais vividamente que qualquer outra transmite a
unidade apropriadamente, entre tantas muitas, é aquela da esfera, em particular se ela
é tomada em ambos os sentidos, o dinâmico e o geométrico. O centro da esfera é a
fonte de energia: do centro, linhas de força irradiam-se para fora em todas as
direções, preenchendo o espaço sem deixar nenhuma fresta. Na superfície da esfera
figuras são visíveis em qualquer forma ou número desejado. De todos os pontos de
todas as figuras, uma circunferência, um raio de energia, corre para dentro da esfera,
para o seu centro. As figuras permanecem como sendo muitas: como formas
bidimensionais elas são uma mera pluralidade, nada mais que muitas. Mas como elas
saem por um momento da superfície – carregadas por seus raios, por assim dizer –
elas convergem em direção ao centro, onde todas elas se tornam uma. Lá todas estão
perfeita e puramente juntas; elas são uma, embora não tenham sido absorvidas, não
tenham se tornado indistinguíveis uma da outra, pois em um ponto central cada figura
está presente tal o que ela é, cada uma definida por um feixe particular de raios. Cada
figura individual sobre a superfície encontra um padrão interno guiando para as
outras figuras através do centro comum a todas. A esfera de energia difundida torna
isto possível (Em um trabalho de muito tempo atrás, Kepler disse que a esfera
simboliza a divina trindade Cristã: “’A imagem do Deus trino e uno está na superfície
esférica, o que vale dizer, o Pai no centro, o Filho na superfície externa e o Espírito
Santo na igualdade da relação entre o ponto e a circunferência’. O movimento ou
emanação passando do centro para a superfície externa é para ele o símbolo da
criação.”3)

2
Rilke, Briefe, p. 871 (itálicos de Rilke).
3
Cf. W. Pauli, “The Influence of Archetypal Ideas on the Scientific Theories of Kepler”, pp. 159 ff.
36

Tais imagens, é desnecessário dizer, parafraseiam mais do que definem a


natureza específica das relações do mundo das notas musicais. Contudo, elas nos
fazem ver mais claramente como este relacionamento não deve ser interpretado. A
unidade expressa pela palavra cantada enquanto oposição à pluralidade expressa pela
palavra falada não é aquela da Gestalt; nem é ela algo transcendente.

Quando estamos lidando com uma pluralidade de fenômenos constituindo um


padrão ou estrutura unificado, a idéia que primeiro desponta na mente é aquela da
Gestalt. A Gestalt tonal: uma melodia única que não abole a pluralidade das notas
mas é construída por elas, que é una precisamente como uma pluralidade; a Gestalt
verbal: uma sentença única consistindo de muitas palavras; a Gestalt rítmica: uma
onda única composta por muitas fases; a Gestalt visível: uma figura única composta
por muitas linhas – em cada uma delas, as muitas tornam-se uma da mesma maneira.
A unificação que toma lugar quando a palavra falada é cantada tem outro sentido.
Mas, em geral, estamos justificados em falar de uma “unidade apropriada” no caso
da Gestalt? Depois de tudo, o ponto crucial da teoria da Gestalt é a demonstração que
na Gestalt o todo é não mais somente que a soma de suas partes mas também que o
todo existe previamente às partes. A experiência da Gestalt não é aquela das partes
vindo a juntar-se para formar um todo mas as partes sendo escolhidas por um todo: as
partes não se tornam um todo: elas sempre formaram o todo, seus lugares nele estão
pré-determinados. Por exemplo, esta figura não é percebida como uma figura

aberta com quatro lados, mas como um triângulo cujo um dos lados está incompleto.
(A psicologia da Gestalt demonstra conclusivamente que isto não é primariamente
devido ao hábito, neste caso, o habito de olhar triângulos.) Não somente as partes
como tais se enquadram no todo da Gestalt – linhas como linhas na figura, palavras
como palavras na sentença, notas como notas na melodia – mas elas estão, por assim
dizer, desejosas para fazer a sua própria concordância: é bem conhecido quão difícil é
não ouvir notas sucessivas como uma melodia, não ver linhas conectadas como uma
figura. Conseqüentemente, este tipo de unificação de elementos distintos não
pressupõe a existência de uma nova dimensão. Nem também a unificação das
palavras: nada na palavra falada sugere a possibilidade de unificação, a qual é
somente revelada quando as palavras estão sendo combinadas com as notas musicais;
a palavra falada sozinha nunca poderá revelá-lo e realizá-lo. “Tome cuidado, pequena
flor” é uma Gestalt verbal, “Alegre-se, pequena flor” é outra, e cada uma é
componente da Gestalt verbal maior, o poema no qual os significados opostos de
“Cuidado” e de “Alegre-se” são plenamente mantidos. Esta oposição não pode ser
resolvida por outras palavras, mas pode ser resolvida pelas notas. Anteriormente nos
referimos às três linhas e um triângulo; agora chegamos a que nossa afirmação
continha uma ambigüidade. O triângulo pode ser concebido como uma estrutura
simples, como uma figura linear consistindo de linhas retas, igualmente à parte da
superfície; mas o fato que as linhas como tais permanecem juntas é diferente em tipo
pelo fato delas estarem unificadas pela graça da superfície. A unidade da Gestalt
repousa no fato precedente: a última caracteriza uma unificação que não pode ser
37

provocada com uma passagem para uma dimensão mais alta. A unidade criada pela
palavra cantada é deste último tipo.

Além disso – e isto é crucial – a passagem para outra dimensão não é uma
passagem para um “além”. A “nova dimensão” não é outro mundo, não é algo
misterioso como em oposição ao que é auto-evidente, não é algo sobrenatural. Para
ser claro, um ser bidimensional não pode conceber a profundidade espacial; para tal
ser, a terceira dimensão é um mistério impenetrável, ele emerge como um milagre
além do entendimento. Porém, profundidade espacial é ainda espaço, uma forma de
prolongamento exatamente como a superfície é – uma nova e rica forma de
prolongamento, não algo além do prolongamento, outra realidade do mundo, não a
realidade de outro mundo. Música não é (como Robert Musil colocou) “uma pequena
porta terrestre levando de volta para o sobrenatural”. O homem cantando não vai para
lugar algum, não abandona nada atrás dele, não diz adeus ao homem que fala.
Completamente ao contrário, é o homem que fala que alcança o fundo de si mesmo, e
ele faz isto não por voltar as costas para o mundo, não por olhar para dentro de si
mesmo em busca do mundo “interior” “melhor”; ele não vai para “dentro de si
mesmo”, ele vai para fora de si mesmo; ele não se fecha em si mesmo, ele se abre. A
mudança da palavra falada para a cantada não é uma volta de 180 graus, não envolve
uma mudança de direção. As pessoas que cantam alcançam de volta profundamente
dentro de si mesmas, estendem suas mãos mais adiante, e então também vão mais
longe, penetram profundamente nas coisas, do que as pessoas que falam. A palavra
falada e a palavra cantada não se referem a coisas diferentes; as coisas são as mesmas
e todavia não são as mesmas, certamente como as coisas que eu vejo com meus olhos
são as mesmas e todavia não são as mesmas, como quando eu às cegas as toco com
minhas mãos: eu as vejo sob uma nova luz, minha relação com elas é diferente, e as
coisas iluminadas pelas notas estão em uma nova em relação a mim. A nota que o
cantor acrescenta à palavra não cancela reciprocamente o mundo, mas antes dá a ele
uma margem delineada, faz ele vibrar com a mais alta freqüência, tanto que ele
penetra coisas a uma grande profundidade, desce a níveis onde sua separatividade
mergulha dentro da unicidade. O homem cantando alcança uma nova profundidade
do mundo, e pelo mesmo motivo alcança um nível profundo de si mesmo.

Em tudo o que foi dito antes, o “homem cantante” significa “homem fazendo
música” no mais amplo sentido; depois de tudo, realmente não tem importância se
alguém faz música com o instrumento natural das cordas vocais ou com um
instrumento manufaturado pelo homem. Direta ou indiretamente, as notas são sempre
feitas pelo homem: um homem fazendo música é um homem cantante. A concepção
de musicalidade como uma característica essencial do homem, como uma
predisposição inata do homem para a música – não uma característica que um pode e
o outro pode não ter mas como um elemento constitutivo da natureza humana –
portanto postula a realidade de uma dimensão adicional, de uma profundidade além
da profundidade espacial, uma profundidade existencial no exato sentido da palavra
emprestada da geometria, e uma concepção do como um ser que vive nesta dimensão,
um ser que seria incompleto sem ela. Este meio, contudo, que a musicalidade, em
38

adição a ser um atributo do homem, é também um atributo do mundo. Um sem o


outro não faz sentido: a existência de uma nova dimensão é revelada precisamente na
comunicação entre o homem e as coisas, no fato de que o cantor partilha ativamente
com aquilo a respeito do que ele canta. Um homem cantante comprova sua própria
realidade na nova dimensão, mas ao mesmo tempo, graças às notas, ele sai por um
momento de si mesmo e reconhece a realidade da nova dimensão nas coisas. Claro,
música não é o único meio de atingir os mais profundos e extensos níveis da
existência, nem é o único testemunho deles. Há muitos meios, muitos testemunhos. A
música, contudo, certamente provê o meio mais curto, o menos árduo, talvez ainda o
solvente mais natural das fronteiras artificiais entre o ser e os outros, assim como a
linguagem é mais apta e útil para expressar todo tipo de distinção e diferença entre
eles. Porque o homem pode ascender à “nova dimensão”, ele pode apropriadamente
ser chamado de “musical”.
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V. Música e Interioridade

A interpretação da música aqui apresentada está em franca contradição à teoria


que tem sido bem e habilmente argumentada por um certo número de pensadores
profundos e lógicos. Em seu ponto de vista, a característica essencial da música é sua
saída do mundo; ela não tem relação com as coisas materiais, é absolutamente não
objetiva – em uma palavra, é voltada “para o interior”. A linguagem das notas, como
sustentado, é certamente inadequada para dar expressão aos fenômenos do mundo
exterior como ela é idealmente adequada para exprimir o mundo interior ou a alma.
Para citar um testemunho ilustre: “Nas notas, a música abandona o elemento da
forma exterior. Pois a expressão musical... somente à vida interior da alma que é
totalmente desprovida de um objeto... é apropriada. Este é nosso ego inteiramente
vazio, o ser sem nenhum conteúdo.... A principal tarefa da música deve consistir
portanto em dar um reflexo ressonante, não para a objetividade em seu sentido
ordinário material, mas para as modificações e os modos sob os quais o mais íntimo
ser da alma, do ponto de vista de sua vida subjetiva e idealidade, é movimentado
essencialmente.... As notas meramente ressoam nas profundezas da alma, as quais são
por meio disto apoderadas em sua substância ideal, e banhadas com emoção... É
precisamente esta esfera, a intimidade da vida–alma, a apropriação abstrata de sua
própria realidade, que é capturada pela música.” 4 Seria impossível encontrar uma
afirmação mais lúcida e vigorosa deste ponto de vista do que nestas palavras de
Hegel.

As frases há pouco citadas se referem à música em seu estágio mais avançado.


Elas foram escritas no tempo quando a música havia se movido para o mais longe de
suas origens e estava dentro da visão de sua suprema realização em Beethoven. O que
havia sido impensável antes – vastas estruturas consistindo de nada que não notas
musicais, manifestações irresistíveis de energia divorciada da matéria, capazes de
despertar a mais elevada admiração e as mais profundas emoções – haviam se
tornado fatos na vida musical. Como considerar este fenômeno? Tal músico nos agita
profundamente, mas o que ele diz, a respeito do que ele está falando? Não sobre isto,
não sobre aquilo, não sobre nada que possa ser nomeado, nada sobre qualquer objeto
– ele está falando sobre nada; ainda que este “nada” seja um “tudo”. E não há
contradição aqui. Pois o que encontramos dentro de nós mesmos quando

4
Hegel, The Philosophy of Fine Arte, vol. III pp. 341, 342, 344, 361.
40

resolutamente nos voltamos do mundo das coisas para o interior de nós mesmos? Por
que tal semelhante “nada” é ao mesmo tempo “tudo”. Isto é pura subjetividade:
“nada”, na medida em que coisas e objetos são concernidos, nada para o que possa
ser apontado, chamado pelo nome (se pudesse ser, seria objeto, não mais sujeito). E
ainda isto é “tudo” ao mesmo tempo, porque a existência objetiva de todos os objetos
o pressupõe. Pura interioridade: um “todo” que é a fonte e a base de toda expressão,
de toda elocução e um “nada” na medida em que uma elocução precisa é concernente
– falando estritamente, algo indizível. Pode-se dizer, estaria situado fora da essência
da expressão; seria externo a ele tanto quanto da pura interioridade. O “nada” do qual
as notas nos falam é o “nada” da pura subjetividade, pura interioridade.

(“Subjetividade”, “interioridade”, no sentido utilizado aqui não deveria ser


confundido com emoção ou humor. Alguém “tem” uma emoção e outro alguém não a
tem; alguém está num certo humor e outro alguém não está. Subjetividade, por outro
lado, é o que alguém é, e não poderia ser de outro modo. Emoções e humores são
“objetos”; eles podem ser apontados, podem ser nomeados – temor, alegria, devoção,
rebeldia – e sua conseqüente “objetividade” torna-os externos à pura interioridade,
assim como qualquer outra coisa do mundo exterior. Portanto as notas têm tão pouco
a dizer de emoções e humores quanto qualquer coisa mais. Contudo, se elas não têm
qualquer coisa a dizer sobre emoções e humores, elas também não são inteiramente
outra coisa, ou elas são, falando estritamente, sem significado. Então as duas teorias
opostas sobre a música, enquanto linguagem das emoções e dos humores por um lado
e enquanto um mero jogo de formas por outro, são complementares pois que ambas
estão baseadas na mesma premissa defeituosa.)

Se as palavras de Hegel forem tomadas tão rigorosamente quanto se pretende,


elas pareceriam representar a última palavra do pensador sobre o significado das
sinfonias de Beethoven. O que este ponto de vista extremo implica? Na emancipação
das notas em relação à palavra falada, a música parece ter dado um importantíssimo
passo que iluminou o caminho para seu mais alto desenvolvimento. Se as notas
libertaram-se de torna possível inferir que elas libertaram-se para. As palavras
referem-se a coisas, a “objetos”; algo nomeado por uma palavra torna-se um objeto,
isto é, torna-se separado do sujeito, externo a ele. Igualmente a palavra “sujeito”
transforma o sujeito em um objeto; igualmente a palavra “interior” transforma o
interior em algo exterior. O que mais pode o divórcio das notas da palavra falada
significar senão a mais radical mudança desde o “exterior” para o “interior”?
Somente as notas libertas de sua servidão às palavras podem expressar fielmente o
significado da “subjetividade” ou “interioridade”, pode expressá-lo sem pervertê-lo.
Deste modo satisfazendo-se, a música revela que sua verdadeira proposta tem sido
sempre compreender “a intimidade da alma da vida”. Enquanto ligada às palavras, as
notas retêm um embaraçoso resíduo de terrenalidade. Esta é a razão por que, em
última análise, adeptos ao ponto de vista de Hegel sobre música não podem
considerar a música composta com palavras como música em seu mais alto grau,
como “música absoluta”. Até este momento, o mais rigoroso dentre aqueles que se
ressentem com Beethoven por ter permitido que as notas tomassem seu caminho
41

espontaneamente de volta às palavras no último movimento de sua última sinfonia


completada. Outros consideram esta como a exceção que confirma a regra: depois de
todos os trinta e seis outros movimentos sinfônicos de Beethoven, suas sonatas e sua
música de câmara falar sobre nada e para nada mas para “a vida interior da alma que
é inteiramente destituída de um objeto”. “Do coração – possa ela alcançar outros
corações”: o coração não conhece objetos.

E ainda Beethoven escreveu estas palavras como um lema para sua Missa
Solene, não uma sinfonia ou uma sonata. Além disso, a interpretação do
relacionamento palavra-nota necessariamente implicado ou pressuposto por Hegel
não é muito consistente com relação ao fenômeno da música da fase culminante; em
vista do que sabemos sobre as primeiras fases da música, esta interpretação é
extremamente absurda. Enquanto evidência musical, que do começo é não menos
importante do que da culminação, e é absurdo supor que a música tenha de qualquer
modo sido envolta em auto-contradição no curso de sua história. As palavras
nomeiam as coisas, referem-se a objetos, tornando-os exteriores; as notas expressam
a vida da alma integralmente destituída de objetos, referindo-se ao puramente
subjetivo, tornada interior: temos que concluir que as palavras e as notas puxam em
direções opostas. Se é este o caso, os significados das notas seriam estranhos aos
significados das palavras; cada um entraria em conflito com o outro e o
enfraqueceria. Que este não é o caso é atestado por todas as canções folclóricas. A
nota que o cantor adiciona à palavra não é estranha à palavra, não puxa na direção
oposta, para longe do que as palavras dizem; antes, as notas acompanham as palavras
em seu caminho para as coisas, para o objeto. Somente, ao contrário da mera palavra,
que ela não pára no objeto: ela transpõe a dimensão da existência objetiva, deste
modo tornando impossível que as palavras denotem ser nada senão objeto,
permanecendo congelada em sua existência como objeto. As notas não ofuscam o
significado das palavras mas antes o aprofundam. Incontestavelmente, a canção
“Cuidado” carrega mais advertência, e a canção “Alegre-se” mais alegria, do que o
que as mesmas palavras meramente dizem. Seria totalmente enganoso imaginar que
as notas levam o cantor longe das palavras; ao contrário, graças às notas, as palavras
não estão mais confinadas a meramente denotar objetos. Algumas vezes,
normalmente ao final de uma linha ou uma estrofe, as notas destacam-se das palavras
e o movimento melódico continua livremente por si próprio, mas as notas sem
palavras nunca voltam suas costas para as palavras que as precederam; ao contrário,
elas servem para explorar e saborear mais profundamente seus significados. A última
palavra da estrofe adere à melodia, a qual, por assim dizer, retém seu colorido. Para
ser claro, as notas são “não-objetivas”: em si mesmas não dizem nem “Cuidado” nem
“Alegre-se”, não dizem nada deste tipo; se o fizessem, não o diriam tão bem quanto
quando combinadas com as palavras. Mas a não-objetividade das notas não é aquela
do “outro lado”, da interioridade destituída de um objeto, de pura subjetividade; é
uma não-objetividade atrás dos objetos. “A intimidade da alma da vida é
compreendida pela música”: quando a canção ressoa, quando ouvimos as palavras
“Cuidado” e “Alegre-se”, e as palavras falando de resignação e desafio, de colheita e
decadência, qual vida interior é compreendida aqui? É o cantor ou o compositor
42

quem está advertindo, alegrando-se, resignando-se ao seu destino, rebelando-se,


colhendo, decaindo? Não, é a vida interior da advertência ou regozijo, de resignação
e desafio, a vida interior das flores e da lâmina. A dimensão revelada pelas notas
pode certamente ser chamada de “vida interior”, mas não é a vida interior do sujeito
como oposição à do objeto, a algo externo; não é a vida interior do ser mas do
mundo, a vida interior das coisas. Isto é precisamente por que o cantor experimenta a
vida interior como algo que ele partilha com o mundo, não como algo que o coloca
separado deste. Enquanto ele canta (e escuta a si próprio cantando) ele descobre que
as coisas do mundo falam a linguagem de sua própria interioridade, e que ele próprio
fala a linguagem interior das coisas. As notas expressam sua harmonia. A antítese
entre “interior” e “exterior” não é deste modo abolida, mas é, por assim dizer,
transformada em sua face: o vertical torna-se o horizontal. A parede separando o ser e
o mundo agora corre reta sobre todas as coisas, torna-se uma ponte unindo os dois.

As afirmações de Hegel – e todas as afirmações do mesmo tipo ou semelhantes


– são falsas ou, mais exatamente, uma imitação grosseira da verdade, precisamente
porque, tomadas em seu estrito senso, elas implicam numa antítese radical do mundo
interior e do mundo das coisas. “A tarefa fundamental da música irá portanto
consistir em permitir uma reflexão ressonante, não da objetividade em seu sentido
material ordinário, mas para o modo e as modificações sob os quais o mais íntimo ser
da alma, do ponto de vista de sua vida subjetiva e idealizada, é movida
essencialmente.”: esta afirmação é crivada de falsas antíteses. Pode ser rearranjada
para ser lida: “A tarefa fundamental da música irá consistir em lançar luz, não sobre o
aspecto das coisas que as distinguem de mim e as opõem a mim, mas do aspecto
delas já voltadas para mim, o que elas têm em comum comigo, por oferecer uma
reflexão ressonante para o modo e as modificações sob as quais as próprias coisas são
movimentadas do ponto de vista de sua vida interior”. Esta formulação é certamente
mais coerente com os fatos. Pois a verdade é que Hegel não via a música como ela
realmente é: ele a via através de uma trama de conceitos, categorias – de um lado,
sujeito, interioridade, alma, ser, e de outro, objeto, exterioridade, mundo. Ele pensa
nestas antíteses; ele pensa enquanto um lógico, em termos do logos, da palavra, da
linguagem falada. Isto é o por que de, em última análise, ele ter que chegar a uma
falsa concepção das notas, da música. Enquanto a subjetividade (o ser) e a
objetividade (o mundo das coisas) são concebidos como mutuamente excludentes, a
música só pode se referir à subjetividade, ao ser. Estivesse o mundo interior
inteiramente destituído de objetividade, fosse o mundo exterior nada mais que não
objetos, o tema da música poderia ser somente o de uma vida interior destituída de
objetividade. Mas este é o ponto crucial do assunto: a existência da música coloca
estas categorias e antíteses em questão. É impossível entender a música em tais
termos; as próprias categorias têm que ser revisadas à luz do que a música realmente
é. E o primeiro passo em direção ao entendimento da música é compreender que o
homem cantante não tem lugar no mundo visto pelo homem falante. Contudo,
envolvido pela concepção de si mesmo e de seu mundo que o homem falante pode
formular, a concepção acaba permanecendo provinciana se ele exclui a música, como
o faz, por definição.
43

VI. “Os Limites de Minha Linguagem


São os Limites do Meu Mundo”

O capítulo precedente não aponta de modo algum para uma implicação de


valor de julgamento: que a música é superior à linguagem falada, que as notas são
mais essenciais para a existência humana do que as palavras. Nenhuma característica
essencial isolada de uma dada entidade pode ser considerada como sendo mais
essencial que outra. Os três ângulos de um triângulo não são mais essenciais do que
os seus três lados. É verdade, contudo, que quando consideramos não a essência de
uma coisa mas o modo como ela vem a ser, uma característica essencial pode na
verdade ter precedência sobre outra. O triângulo começa com um lado, não com um
ângulo. Eu não posso desenhar um triângulo começando com um ângulo. Do ponto
de vista evolucionário, a fala inquestionavelmente é mais elevada que a música.

Eu não sustento que a fala existiu antes que a música. É impossível apurar a
exata seqüência de fatos sepultados há tanto tempo atrás. O que eu digo é que o
homem começou com a palavra. A palavra marca o avanço crucial que estabeleceu o
homem à parte dos outros seres vivos. Com a força da fala ele transpôs o círculo
fechado de ação e reação que mantêm os outros organismos vivos escravos de seu
ambiente imediato. Ao contrário do animal, depois que o homem adquiriu o poder da
fala, ele não somente existe na natureza e começa a conceber a “natureza” como algo
distinto dele mesmo. A palavra não divorcia completamente o homem da natureza, à
qual ele permanece confinado, mas ela desata seus laços, coloca-o à parte, cria as
coisas. A natureza se torna o mundo. A palavra é o signo por meio do qual o
ser/estar-no-mundo do homem é distinto do ser/estar-na-natureza do animal. A
questão interminavelmente debatida de se o poder da fala é realmente um atributo
distinto do homem, ou se alguma espécie de animal altamente desenvolvida é capaz
de falar, essencialmente se centra em torno da definição do termo “linguagem” 5. Se
linguagem é definida por sua função social, se a palavra é principalmente vista como
o instrumento usado por indivíduos de uma dada comunidade para se comunicarem
entre si, então não há dúvida que as abelhas, por exemplo, possuem uma linguagem
altamente desenvolvida. Se a linguagem é vista principalmente como uma expressão
da “alma”, da vida interior, emoções, estados da mente, ou como um jogo composto

5
Cf. Ernst Cassirer, An Essay on Man [Um Ensaio sobre o Homem], parte I, capítulo 3.
44

de sons e gestos, quer imitativos ou meramente brincalhões, então é claro que a


linguagem humana se comparada com a animal difere desta última somente em grau
de eficiência, não em espécie. Mas a linguagem humana é realmente algo mais, algo
além: tem também uma função puramente denotativa: ela designa coisas, nomeia-as.
Os animais não nomeiam as coisas. Um animal pode expressar o signo “água”
quando se supõe a água ser encontrada ou evitada, ele pode expressar prazer ou
aversão quando encontra água, pode ainda executar uma “dança da água”, mas não
faria sentido para um animal dizer “água” em circunstâncias nas quais a água não
tivesse relevância para as funções vitais do animal. Se a linguagem é definida por
suas características especificamente humanas, como algo nunca encontrado fora do
mundo humano – pois nenhuma linguagem humana, todavia primitiva, funciona
puramente como signo, como expressão emotiva, como um jogo, ou falharia em ser
primeiro e antes de tudo uma linguagem de palavras – então o termo se refere à força
da fala diferente em tipo de toda e qualquer linguagem animal, uma força que não
poderia realmente se desenvolver gradualmente a partir da linguagem animal.
Nenhum de nós poderia alguma vez ter sido um animal, então nenhum de nós pode
ter a medida deste passo decisivo. Podemos ter um leve indício de quão momentoso é
este passo, na autobiografia de Helen Keller, na qual descreve como primeiro ela
percebeu que “água” era não somente um signo ou um som expressivo, mas um
nome, e que isto fez sentido dizer “água” ainda quando ela não estava molhada ou
sedenta. O passo da designação funcional para o significado, a emergência do
significado, é o ponto crucial: com ele, o espírito humano ascendeu acima da
natureza. A palavra marca o momento quando o começo ingressou no mundo e
tornou-se cônscio do mundo. E então ele pode dizer a palavra “Deus”: a palavra criou
o homem.

Desde que o homem buscou entender a si mesmo, ele teve que se entender
principalmente como um ser que possui o poder de falar. Isto não poderia ser de outro
modo. A idéia que o homem forma de sua própria essência pode concentrar-se em
atividades práticas, em ferramentas e tecnologias, ou em atividades teóricas, arte,
pensamento, ciência: o que essencialmente caracteriza tudo isto é que a linguagem do
homem nasce como atitude para com o mundo enquanto algo distinto de si mesmo.
Animais também trabalham, adaptam-se, pensam em seu próprio caminho, mas
somente o homem faz tudo isso como um “Eu” confrontado ao mundo. Somente o
homem tem um mundo, e ele o tem somente porque ele tem a palavra. Eu tenho dito
que as notas tornam acessível uma nova dimensão: o mesmo pode ser dito mais
apropriadamente das palavras. Para o cantor, o sentido de ser uno com o mundo, tem
um tipo de precedente no estágio pré-humano, no relacionamento do animal com o
ambiente natural, ao passo que a palavra marca a emergência de algo totalmente
novo, algo que nunca havia existido antes. A passagem para uma nova dimensão aqui
envolve uma quebra radical, um passo para fora da natureza: o homem que fala faceia
o mundo, vê-o “de fora”, fala para ele; em falando para ele, ele o vê como distinto de
si próprio, e vê a si mesmo como distinto dele; o que a palavra nomeia torna-se coisa,
objeto. Filólogos e psicólogos concordam que na evolução da raça bem como do
indivíduo, os objetos fazem seu aparecimento simultaneamente ao avanço dos sons e
45

signos expressivos para as palavras. A dimensão tornada acessível pela palavra é


chamada “realidade objetiva”. Isto não é algo que existe antes da fala, que a fala
meramente descobre; é primeiro e antes de tudo uma criação da fala. A lingüística
comparativa está gradualmente destruindo nossa noção inocente da realidade objetiva
como algo absoluto, isto é, absolutamente autônomo, uma realidade inteiramente
auto-determinada para a qual nossas palavras e nossos pensamentos lentamente
encontram seu caminho, guiadas pela linguagem. “É preciso lembrar, embora o fato
possa ser desconcertante, que ao invés da gramática – a estrutura de um sistema
simbólico – ser um reflexo da estrutura do mundo, é mais provável que a suposta
estrutura do mundo seja um reflexo da gramática utilizada.”6 Por esta razão o termo
“objeto” e termos designando o relacionamento objeto-sujeito têm diferentes
conotações em linguagens diferentemente estruturadas: cada linguagem “descobre”
sua própria realidade objetiva. Não há realidade “por detrás” destas todas realidades
objetivas diferentes; a noção de uma realidade objetiva “por detrás” da linguagem é
sem sentido. Tudo isto não diminui a importância da idéia de objetividade; somente
ajuda-nos a entender em que sentido a palavra pode ser dita como tendo criado o
homem e seu mundo. Agora, isto torna clara também a proposição de Ludwig
Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus, “os limites de minha
linguagem são os limites de meu mundo”, que não deve ser tomado num sentido
restritivo, mas é válido sem reservas.

Neste ponto pode parecer que nossas reflexões tenham se tornado auto-
contraditórias, incompatíveis com nossas primeiras assertivas resultantes de um longo
encadeamento de raciocínios, que a auto-imagem do homem que fala e seu mundo
precisa ser ampliada e suplementada. Realmente, a incompatibilidade é somente
aparente. Pois embora os limites de minha linguagem sejam os limites de meu
mundo, a música vive dentro destes limites: depois de tudo, nós a nomeamos,
dizemos “música”; a palavra a coloca diante de nós, torna-a uma coisa humana no
mundo humano. A música não é estranha a nós. Podemos nos apropriar dela porque
temos a palavra, porque a nomeamos, porque podemos fazer perguntas a respeito dela
– questões concernentes à música não somente enquanto uma “coisa” ou “objeto”
mas também enquanto uma realidade não cerceada pelas palavras “coisa” e “objeto”,
questões concernentes à natureza intrínseca da música, sua essência. Verdade, muitos
escritores rejeitam que tais questões relativas à essência da música tenham qualquer
significado racional. De acordo com eles, é possível falar racionalmente a respeito
somente do “objeto” música, uma atividade humana específica vista historicamente,
psicologicamente, sociologicamente – a periferia, a concha da música, não o seu
âmago; este último, estamos dizendo, esquiva-se à expressão verbal. Tomando este
ponto de vista, conclui-se que a música é por natureza inacessível à palavra, à
linguagem, está excluída do mundo da linguagem, isto é, o mundo humano. Mas
considerar que qualquer discurso sobre a essência da música é infrutífero pela razão
de que o núcleo essencial da música esquiva-se à expressão verbal é interpretar mal o
significado tanto das notas quanto das palavras. Se o discurso racional fosse possível

6
Ogden and Richards, The Meaning of Meaning, p. 96.
46

somente onde a essência da coisa não se esquivasse à expressão verbal, o que


restaria? Quem, salvo um matemático, poderia dizer algo racional a respeito das
cores, por exemplo? (tremenda loucura de Goethe!) Não se poderia falar sobre si
mesmo, muito menos sobre Deus. O homem como um ser racional estaria proibido de
fazer as muitas perguntas que mais do que qualquer outra coisa mais revelam-no
enquanto um ser racional, as questões a respeito de si mesmo e do significado de sua
existência.

Tudo isto, contudo, torna-nos mais agudamente cônscios do paradoxo


envolvido em nossa posição. Como pode algo – a música – que se estende para além
da linguagem das palavras apesar disso localizar-se dentro das fronteiras da
linguagem das palavras? Como é possível capturar em palavras aquilo que se esquiva
à expressão verbal? Estamos lembrados de um antigo paradoxo filosófico: O que é
“nada”? Se todo pensamento é um pensamento a respeito de alguma coisa, como é
possível pensar o “nada”? Como nós interpretamos o fato de que quando alguém diz
“nada”, ele não diz nada? Não deveria permanecer em silêncio o homem que quer
dizer “nada”? Aqueles que experimentam dizer algo a respeito de música
confrontam-se com questões similares. Nossa discussão a respeito da relação nota-
palavra na canção folclórica trouxe o paradoxo inteiramente para o claro. Poderia se
mostrar que a palavra “nota” nomeia uma coisa, isto é, torna-a um objeto cuja
essência manifesta-se na negação todo tipo de objetividade e em passar além de
qualquer coisa que possa ser dita em palavras. Nossa análise podia proceder somente
por meio da linguagem; seria uma tentativa dizer em palavras não somente aquilo que
as notas dizem e que as palavras não podem dizer, mas também aquilo que elas
dizem: dizer em palavras o que as palavras não podem dizer. Isto é absurdo?
Somente aqueles que lêem a proposição falsamente podem então alegar, enquanto o
pensamento que temos escrito: “dizer em palavras uma coisa que as palavras não
podem dizer”. Mas obviamente alguém não poderia pretender dizer algo tão absurdo,
pois isto equivaleria a afirmar e negar simultaneamente a diferença entre as notas e as
palavras. O que realmente pode significar somente pode ser: “dizer em palavras o que
é aquilo que as palavras não podem dizer”. Alguém que negue que é possível fazer
isto é como um homem que diz que é fútil tentar ver dentro das coisas porque os
olhos vêem somente sua superfície, e então vê somente o exterior. Tal homem
interpreta mal o que significa a frase “dizer em palavras”. Ela não significa que as
palavras podem tomar o lugar das coisas, como se as palavras pensadas fossem coisas
tudo outra vez, em outra forma. As palavras não duplicam as coisas, nem elas
representam o “espírito” das coisas, nem meramente apontam para as coisas já dadas.
As palavras são fronteiras. Mas um limite não é a mesma coisa que aquela que a está
limitando. Neste sentido, o que é criado pela palavra continuamente se estende além
da palavra, estende-se “para dentro”. Algumas vezes sua parte interior está “vazia” –
quando uma coisa é inteiramente definida por suas fronteiras, quando palavra e coisa
coincidem, quando a coisa é idêntica à sua definição, como no caso de muitos
conceitos científicos e abstratos, especialmente os símbolos do cálculo lógico.
Normalmente, no entanto, o “lado interior” das coisas não é “vazio”; a coisa não é
idêntica à sua definição, é mais do que aquilo que a limita. Mas isto não significa que
47

as palavras devam agora ficar para trás: o que se estende além da palavra não é por
esta razão inacessível a ela. O mundo nomeado será seguido por outras palavras,
dirigidas para o interior, além da fronteira – as palavras que se estendem para dentro
daquilo que está circunscrito, palavras que traçam linhas fronteiriças sempre mais
próximas em torno das coisas, como se as persuadisse. As coisas respondem de várias
maneiras: dependendo de sua natureza ou estrutura, elas se submetem prontamente ou
resistem. Colocando isto de modo diferente, sobre algumas coisas é fácil falar; muito
pode ser dito a respeito delas, mais do que a respeito de outras. Uma coisa visível, por
exemplo, pode ser delimitada, acomodar-se mais prontamente aos requisitos da fala
do que um humor ou uma emoção, o estático mais prontamente que o dinâmico, as
“palavras” mais prontamente que as “notas”. De modo geral, as palavras, por sua
natureza, tendem a enfatizar limites, puxando a atenção para eles; contrariar esta
tendência sempre exige um esforço especial. Quando as palavras estão dando alcance
demasiado, quando nosso pensamento vive exclusivamente nas palavras, na
linguagem, pode ajudar que as coisas, dando caminho para as palavras,
aparentemente se retraindo mais e mais adentro de suas fronteiras, tornando-se
idênticas com suas definições: o mundo se torna irreal. Neste sentido, dissemos acima
que a mera palavra “sujeito” transforma o sujeito em um objeto. Se o mesmo é
admitido acontecer à palavra “nota”, nosso discurso sobre as notas muito breve estará
confinado a freqüências e curvas sinoidais, a figuras e números, isto é, à física; se isto
acontece à palavra “música”, logo confinaremos nosso discurso à história da cultura
ou a regras da teoria musical. Mas a linguagem nunca é impotente. As palavras
podem dizer “não”, podem repetidas vezes desfazer o que as palavras fizeram, podem
perturbar a fixação das coisas em sua existência enquanto objeto, forçar abrir o que
elas haviam fechado dentro de suas fronteiras, traçar novas fronteiras e forçá-las a se
abrirem novamente – palavras atuam contra palavras, linguagem contra linguagem,
ainda assim não cessando de ser palavras, linguagem.

Outra vez a metáfora da esfera vem à mente. O estágio pré-lingüístico pode ser
representado pela esfera indiferenciada. Com o emergir da fala uma diferenciação se
manifesta, a esfera articulando dentro de um centro e uma superfície esférica vista de
dentro – como nós vemos o horizonte, por exemplo, ou o céu estrelado. O centro
significa o homem falante, a superfície o seu mundo. As palavras trançam fronteiras
sobre a superfície; as figuras que elas delimitam são as coisas nomeadas por palavras,
“objetos”. Isto, contudo, não reduz a esfera a um ponto central mais a superfície. Não
existe somente a palavra; há também música, notas, e as notas não traçam figuras na
superfície, não se estendem em duas dimensões sobre a superfície mas cortam através
dela; elas se movem para fora e para dentro sem criar confronto algum com ela: elas
são seres puros na terceira dimensão, a profundidade; elas são, por assim dizer,
perpendiculares à superfície que representa as palavras. Consequentemente, podemos
admitir a realidade dela como uma “perpendicular”: antes e depois da superfície não
há nada. A esfera não é meramente um ponto central mais a superfície; ela tem
também profundidade. As notas colocam a bidimensionalidade do mundo verbal em
questão. Na perspectiva da nota, a superfície é corte transversal do espaço esférico e
as figuras sobre a superfície são projeções de estruturas tridimensionais. Esta divisão,
48

no entanto, não é tão simples quanto parece, não implica que a superfície é o domínio
da palavra, e a profundidade o domínio da nota. A profundidade aberta pelas notas
não é acessível para as palavras. Embora a palavra permaneça na superfície, esta
superfície não é fixa como um lugar definitivo, uma distância definitiva até o centro:
ela pode mudar sua posição, pode se mover mais perto do centro e se mover para
longe dele. As notas não fogem das palavras; as palavras as alcançam. Para qualquer
que seja a profundidade que as notas alcancem, as palavras também podem alcançá-
la, mas elas nunca deixam de ser bidimensionais. A expressão direta da profundidade
é negada às palavras, é reservada às notas. Às notas, de sua parte, é negado o
delineamento definido, a delimitação exata das figuras, as quais requerem as duas
dimensões da superfície para serem representadas. Em si mesma, a dimensão da
profundidade não pode produzir figuras. Então ambas, palavras e notas, têm cada
uma seus próprios limites e suas próprias possibilidades ilimitadas.

“Os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo”: somente agora
o significado da proposição de Wittgenstein pode se tornar inteiramente claro. “Os
limites da linguagem” não implica a existência de um domínio inacessível à
linguagem. Não existe tal domínio. Nada de fato ou potencialmente relevante para a
existência humana está além da compreensão da linguagem; o domínio da palavra é
ilimitado. O limite além do qual as palavras não podem atingir é sua própria atividade
delimitadora. O limite da linguagem é ser ela mesma ser-um-limite (está em ser um
limite). Por mais largos ou estreitos os limites que a linguagem trace, há sempre
alguma coisa que nunca é alcançada: aquilo que está delimitado. Isto é o indizível –
Wittgenstein chama-o de “místico”. Não o místico no sentido de ser infinitamente
remoto, totalmente encoberto; é o que está próximo de nós, em sua presença mais
manifesta, presente em tudo que não seja uma ficção intelectual ou lingüística. Isto é
o que Aristóteles quis dizer quando ele disse que o individual é o inefável. Isto é o
que Rilke tinha em mente quando disse: Wagt zu sagen, was ihr Apfel nennt!” –
“Ouse soletrar o que você chama de maçã!”. Ele próprio ousou exatamente aquilo,
em um de seus poemas da seqüência de “Orfeu”. Wittgenstein estava errado ao
escrever, “o que nós não podemos falar de nós devemos despachar para o silêncio”.
Mas não de todo: o que não podemos falar de nós, podemos cantar a respeito.

Realmente o que queremos dizer aqui deveria estar claro. O homem cantante
não se eleva acima do homem falante; o homem musical não suplanta o homem
racional. A diversidade das notas não é de outro mundo. Elas não derivam de algum
além transcendental ou de algum pensamento, emoção ou ser “puramente interior”. É
a atitude do homem cantante diferente para com o seu mundo. Aquilo do que o
homem falante o coloca à parte e o que ele considera diante de si mesmo, o homem
cantante traz tão perto de si próprio quanto ele possa, tornando-se um com ele. Os
dois atos são como inspirar e expirar, dentro de um processo, ou a
complementaridade do sábio chinês do amor e do respeito.
49

VII. Música e Magia

Temos ainda que considerar a opinião expressa não poucas vezes,


resumidamente referida no que foi colocado acima, de que o homem cantante, longe
de ter algum tipo de vantagem sobre o homem falante, de fato indica a reversão a um
estágio de desenvolvimento preliminar, pré-linguístico e pré-racional. Se é verdade
que a fala cria objetos, uma realidade objetiva, fronteiras incisivas e uma oposição
radical entre sujeito e objeto, então – é argumentado – a música, a qual tende a abolir
esta oposição e enevoar estas fronteiras (como demonstramos), pode ajudar a nada
mais que não anular as realizações da fala e reviver o superado estágio pré-racional.
Isto leva a duas avaliações contraditórias da música. Dizendo resumidamente: onde o
“espírito” é considerado como o “adversário da vida”, a música é louvada como a
força curativa que mantém abertas nossas linhas de comunicação à nascente
imorredoura da vida; em contraste, onde a salvação é buscada em uma ordem
espiritual, a música é sentida como nos seduzindo a recair na ignorância animal, e
portanto nós deveríamos evitá-la. Comum a ambas as avaliações é o juízo errôneo de
que a música se origina em um estágio pré-lingüístico da evolução, e que a oposição
radical entre subjetividade e objetividade pode somente ser transcendida “desde
abaixo”, por voltar a algum estágio pré-racional. O mesmo resultado pode também
ser alcançado por ir adiante, contemplando do alto o racionalismo grosseiro.

O juízo errôneo encontra forte suporte na crença corrente de que a canção é


primeiro e, antes de tudo, uma expressão da emoção. A assertiva de que a música é
para a fala o que o sentimento é para o pensamento raramente é contradita. Além
disso, por ser o desenvolvimento das crianças geralmente visto como um versão
abreviada do desenvolvimento da raça humana, e porque a criança passa por um
período de articulação predominantemente emotiva antes de aprender a falar,
concluímos sem alvoroço que o homem cantante existiu antes do homem falante. “O
homem canta seus sentimentos muito antes dele ser capaz de proferir seus
pensamentos”.

Esta frase e as passagens apresentadas abaixo foram tomadas do Linguagem,


sua natureza, desenvolvimento e origem, de Otto Jespersen. É espantoso que mesmo
50

em uma disciplina tão exata quanto a lingüística moderna a correlação popular entre
musicalidade e emocionalidade seja aceita acriticamente e sirva como fundamento
para uma teoria de acordo com a qual a fala marca um avanço sobre o preliminar
estágio “musical”, exatamente como a racionalidade marca um avanço sobre o
primitivo estágio dos “sentimentos”. “É uma conseqüência do avanço da civilização
que a paixão, ou ao menos a expressão da paixão, é moderada; e devemos concluir,
portanto, que a fala dos homens incivilizados e primitivos foi mais passionalmente
agitada que a nossa, mais como a música ou a canção... Houve um tempo quando
toda a fala era canção, ou mais precisamente quando estas duas ações não tinha sido
ainda diferenciadas... Nossa linguagem falada comparativamente monótona e nossa
música vocal altamente desenvolvida são diferenciações da articulação primitiva, a
qual tinha mais nela desta última do que da primeira. Esta articulação era em
primeiro, como o cantar dos pássaros e o ronco de muitos animais e o choro e o
balbucio dos bebês, exclamativo, não comunicativo... Nossos ancestrais remotos não
tinham a mais leve noção de que seria possível uma coisa como comunicar idéias e
sentimentos para alguém mais... Como fazer com que aconteça a associação de som e
sentido? Como fazer aquilo que originalmente era uma selva de sons sem sentido vir
a ser um instrumento do pensamento?... Podemos talvez formar uma idéia do
processo mais primitivo de associações de som e sentido... Nas canções de um
indivíduo particular havia uma recorrência de séries particulares de sons com uma
cadência em particular... Suponha... um amante tinha o hábito de endereçar à sua
garota ‘um ei!, e um alô!, e um ei!’. Seus compadres e rivais não tardariam em
perceber isto, e ... zombar dele imitando e repetindo seu ‘ei-e-alô-e-ei’. Mas uma vez,
quando este tenha sido reconhecido como o que Wagner denominou um ‘leitmotiv
pessoal’, ele poderia não mais bradar para imitá-lo usando-o ... como um tipo de
apelido. ... Ele podia ser empregado, por exemplo, para avisar seu rival. E então uma
vez que tenha sido feito uso de nomes próprios, nomes comuns (ou substantivos) não
demorariam em se desenvolver”. Então, de acordo com Jespersen, a fala
desenvolveu-se a partir da canção.

Podemos deixar de lado a questão de se é legítimo chamar um ser vivo, ainda


incapaz de falar, de “humano”: de fato não conhecemos comunidade humana, por
mais primitiva, cuja linguagem consistisse apenas de chamados, que não inclua
nomes e palavras. A articulação pré-lingüística, contudo, ser designada de imediato
como um tipo de canção, certamente não passaria sem ser desafiada. Articulações tais
como ruídos sem sentido, rosnados de animais e murmúrios infantis têm tão ou pouco
em comum com o falar tanto quanto com o cantar. O “ei-e-alô” é certamente razoável
ter sido (talvez ainda mais) removido de uma frase musical primitiva como de uma
sentença primitiva. Embora primitiva, uma frase musical é uma estrutura não menos
significativa que uma frase verbal. O sem sentido mais a emoção não faz música.
Tais noções são baseadas em uma concepção totalmente errônea do que são
realmente a música e a canção. Um som de uma altura mais ou menos definida, não
importa quão expressivo, não é uma nota musical; uma seqüência de sons de alturas
variadas, pela qual um sentimento é expresso, não é ainda uma canção, não pode ser
uma canção simplesmente pela repetição. Canções começam precisamente onde sons
51

sucessivos nascem acima de seus vínculos com a emoção e formam novos vínculos –
vínculos com um outro. Uma nota é um som de uma altura definida, referindo-se
primeiramente não a um sentimento expresso por ela – ou, mais geralmente, a uma
coisa – mas a outros sons de altura definida, a outras notas. Uma seqüência de notas é
uma estrutura musical, uma melodia quando sua unidade resulta primeiramente das
relações audíveis de sons uns com os outros, não de sua relação com algo mais – por
exemplo, sentimentos. As notas podem ser audivelmente interrelacionadas somente
porque elas formam um sistema, uma ordem. O passo do chamado pré-lingüístico
para a melodia primitiva não é de um modo menos fundamental do que o passo para a
sentença primitiva. Em ambos os casos, o passo leva à ordem, significa a descoberta
da estrutura; é um ato espiritual que cria significado. O significado do som é
constitutivo da nota musical tanto quanto é constitutivo da palavra; e embora as notas
não sejam significativas no mesmo sentido que as palavras, o problema de como os
sons se tornam associados com o significado é tanto um problema musical quanto
lingüístico. O mesmo abismo separa a articulação pré-lingüística da primeira melodia
e da primeira sentença. Assim como medido por este abismo, a mais primitiva canção
não está um mínimo mais perto dos estágios pré-lingüísticos da cultura do que está
uma fuga de Bach. Similarmente, a sentença mais primitiva e a fala mais
completamente desenvolvida são, enquanto linguagem de palavras, de fato tão
diferentes em espécie da articulação pré-lingüística. Não há evidência contra a
hipótese de que o passo que levou para a palavra foi o mesmo que levou à nota
musical, que o homem começou a cantar e falar no mesmo momento, e que
posteriores diferenciações dos modos verbal e musical de articulação vieram num
estágio quando a fala e a canção não poderiam ser claramente separadas. E tal estágio
de qualquer modo se coloca neste lado do abismo: com respeito à origem, o homem
cantante e o homem falante permanecem juntos. O homem cantante não precede o
homem falante; ele interpreta mal a si próprio quando se vê como o representante de
um estágio evolutivo mais próximo do estágio animal. Seria mais justo atribuir um
lugar altamente espiritual à canção do que à palavra, pois o homem falante encontra
um tipo de suporte material no fato das palavras se referirem a coisas tangíveis, mas
onde pode o músico encontrar tal suporte tangível? Esta talvez seja a razão porque os
mitos gregos e chineses associem o surgimento da humanidade do estado de
barbarismo com o aparecimento de um músico, meio homem, meio deus.

Ver a musicalidade como caindo dentro do domínio do racional, no entanto, é


meramente mudar o problema para outro plano. A racionalidade humana não vem ao
mundo de um golpe, como algo já pronto. Começando de um estágio primitivo, ela
passou por uma longa evolução antes do completo desenvolvimento nas civilizações
avançadas. E é precisamente nos estágios preliminares de sua evolução que a música,
como um fenômeno cultural, teve um papel dominante. Tal domínio no qual sua
importância é mais marcantemente manifesta é caracterizado pela noção de magia.

Acreditamos que a relação do homem primordial é mais compreensivelmente


caracterizada por aquilo que foi denominado sua “mentalidade mágica”. Como pode
ser inferido dos estudos antropológicos das tribos primitivas de hoje, os traços
52

básicos de sua mentalidade são os seguintes: a distinção entre natureza animada e


inanimada, entre pessoas e coisas, também entre uma pessoa e outra, carece da
agudeza e da exclusividade como hoje são consideradas; o mundo não é ainda
dividido em sujeito e objeto, matéria e mente. O pensamento permanece num nível
concreto, não tende ainda à generalização e à abstração; a vida se manifesta mais
intensamente no grupo, não está ainda concentrada no indivíduo emancipado,
permanece em um estado intermediário antes de cair separado em extremos. As
características negativas da mentalidade mágica incluem a inabilidade para fazer
clara distinções e decisões; a imprecisão é um obstáculo que tem que ser superado
antes da racionalidade poder se desenvolver. As características positivas – as quais
foram largamente perdidas no caminho para o estágio seguinte – são a intimidade
original do homem com o homem, do homem com as coisas e das coisas com as
coisas; a unidade do ser humano com a natureza era outrora de fato experimentada,
não somente concebida. Isto não é a mesma coisa que a unidade “inconsciente” com a
natureza dos seres vivos pré-humanos. O homem no estágio mágico podia ver bem a
natureza, mas ele a via desde seu interior, por assim dizer. (Foi para expressar este
conceito que Edgar Dacqué cunhou o termo Natursichtigheit.) Ele foi provavelmente
capaz de influenciar a natureza “de dentro” de uma maneira que é incompreensível
para nós. Neste estágio o homem já faceava a natureza, concebendo-a como algo
distinto dele, mas seu sentido de ser uno com ela era ainda muito forte.

Que a música é intimamente ligada à mágica é óbvio à primeira olhadela.


Nenhum ritual mágico primitivo pode existir sem música, e igualmente nas
sociedades modernas civilizadas têm sobrevivido ilhotas esparsas de ritual. A igreja
não menos que o circo, o cerimonial público tanto quanto a vida privada, não podem
existir sem música. Ao invés, certos princípios do ritual mágico – repetição,
estruturas baseadas no número três, quatro e sete, nomear somente o mais importante
– jogam um papel crucial, não somente na música primitiva mas também no estágio
culminante da arte musical. Quão surpreendentemente uma extensão ainda hoje de
músicos pratica magia no sentido literal (não metafórico), o trabalho volumoso de
Jules Combarieu, La musique et la magie, demonstra com uma grande quantidade de
exemplos documentados. A afinidade entre música e magia não vem realmente de
similaridades superficiais; ela está enraizada em sua verdadeira natureza. Os mesmos
termos servem para caracterizar a essência da musicalidade e a mentalidade mágica;
em ambos, o sentido humano de ser uno com o mundo pesa mais do que o sentido de
ser distinto dele: o que liga o homem ao homem, o homem às coisas, e coisa com
coisa pesa mais do que aquilo que as separa. Se é verdade que as notas constróem
uma ponte sobre as fronteiras que as palavras apartam entre subjetividade e
objetividade, a correspondência entre música e magia parece completa. Talvez seja
natural reconhecer na música a forma na qual a magia sobrevive até os nossos dias.

Em seu livro Usprung und Gegenwart, Jean Gebser não se contentou em notar
a correspondência íntima, bem como as afinidades, entre música e magia: de acordo
com ele, a música de fato determina a verdadeira estrutura da magia. “Se os laços
entre música e magia revelam que elas são intimamente ligadas”, ele escreve, “e deste
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modo sendo a música eminentemente mágica, não será surpresa se acreditássemos


estar justificados em separar a audição como o órgão interno que joga o papel
predominante no estágio mágico. O mundo mágico, e com ele uma parte essencial do
que constitui nosso próprio mundo, originado no som mágico, operando por meio da
audição, dando ascensão ao mundo audível.” Na extensa perspectiva deste livro,
expondo a totalidade do desenvolvimento da humanidade em termos de uns poucos
passos evolucionários decisivos, o estágio mítico suplanta o estágio mágico ao
mesmo tempo em que as palavras suplantam as notas em sua irrevogável função
final. Música e fala significariam dois estágios de desenvolvimento. O estágio
mágico: o mundo experimentado como uno; a existência como eterna, ilimitada,
desprovida de ego; a oposição entre homem e mundo não está ainda presente para a
consciência desperta mas como ainda um sonho, enterrada sob a consciência de que o
homem e a natureza são originalmente unos; o individual dissolvido no grupo, não
ainda oposto a ele. O estágio mítico: a consciência do espírito individual, oposição
entre o homem e o mundo sentida como uma polaridade; a consciência do ser como
existindo no tempo; o indivíduo em processo de imersão desde o grupo. No estágio
mágico o órgão crucial é o ouvido, o sentido crucial é o sentido da audição. No
estágio mítico é a boca, o órgão da fala. Não há boca nas representações antigas das
figuras humanas; somente mais tarde é a boca completamente delineada.

Neste ponto de vista do desenvolvimento da humanidade, palavras e sons


musicais são agudamente contrastados e a eles atribuídas origens radicalmente
diferentes. Seu relacionamento é reduzido a uma sucessão temporal, um salto
evolucionário crucial na história da raça humana. Os dois são diametralmente
opostos, os sons musicais como algo a ser suplantado pelas palavras, e é alegado que
a substituição tenha de fato ocorrido. Ainda quando Gebser dá ênfase especial ao fato
de que em todos os desenvolvimentos vivos os primeiros estágios permaneçam em
operação dentro dos seguintes, sua interpretação nos ajuda a entender por que os
fanáticos do mundo encaram a presença da musica entre nós como um atavismo
perigoso, ao passo que aqueles que têm perdido a esperança no mundo creditam à
audição musical os alegres auspícios do retorno definitivo ao paraíso perdido. Tais
exageros ditados pela paixão partidária são bastante freqüentes; relegar a música à
condição de mágica torna isto tudo possível.

Ouço as pessoas cantarem: estão ensaiando um dos milagres da arte musical, o


cânone duplo de Purcell. Duas melodias estreitamente entrelaçadas estão sendo
cantadas por diferentes vozes a diferentes tempos. A que estágio pertence tal
microcosmo da mais alta qualidade? É este o modo de articulação de uma alma ainda
adormecida, sem consciência do ser ou do tempo, um espírito ainda aprisionado
dentro da natureza? O que é revelado tão esplendidamente aqui é nada mais que uma
ordem do espaço tonal e do tempo tonal, a mesma ordem já contida no embrião das
notas musicais como tais. Se com a criação do mundo o homem emerge como o
princípio da ordem, se o mundo marca a ascensão da ordem espiritual acima da
natureza, então notas e palavras devem ter uma origem comum. Onde poderia a
ordem espiritual, onde poderia a concepção do homem de si mesmo como uma força
54

espiritual distinta da natureza ser mais puramente revelado do que na estrutura das
notas? Onde poderia a alma ser mais despertada do que onde ela representa a si
mesma no movimento das notas? Onde poderia estar mais profundamente a
consciência do tempo, enquanto uma das raízes de sua existência, do que na música?
Em verdade, a boca que abre para cantar, não menos que a boca que abre para falar, é
o órgão humano por excelência. Enquanto a boca abre somente para chorar, para
gritar, para articular sons meramente expressivos, não é ainda humano, e pode ser
omitida na representação da figura humana confinada ao essencial. Somente quando
as representações pictóricas revelam que a boca tenha sido descoberta como o órgão
da expressão humana no sentido pleno – isto é, no estágio mítico, não antes –
podemos nós olhar para a origem das notas tanto quanto para da palavra.

É fácil ver como esta conclusão pode ser reconciliada com o fato inegável de
que a música é intimamente relacionada com a magia. Podemos somente manter
claramente na mente que a mesma palavra, “nota”, denota algo diferente em cada um
dos dois estágios em questão. A nota da alma ainda aprisionada do sonho,
inconsciente do ser e do tempo, é como um fenômeno biológico, um som expressivo
ou signo (aviso, chamado, apontamento) ou ambos: um elemento em uma cadeia de
elementos reais. A nota para uma consciência desperta, a nota musical propriamente,
é um fenômeno semântico: parte de um sistema de relações audíveis, um elemento
estrutural, um membro de um todo simbólico. O significado especial das notas
musicais repousa sobre isto, a realização crucial do estágio mítico, a descoberta do
símbolo, torna-se fértil no próprio mundo audível, isto é, no elemento em que está o
essencial do estágio mágico suplantado, o elemento que incorpora aquela
interpenetração entre homem e mundo. O conteúdo da música é mágico, sua forma é
mítica. A música assume o comando e põe em ordem o velho dentro do novo; não
imagina o passado, não olha para trás, não é uma reconstrução mas, antes e mais que
tudo, uma construção: o passado se torna símbolo e desta forma continua a ser uma
força viva no presente e naquilo que está por vir. A música realiza a apropriação do
mágico pelo espiritual: o núcleo essencial da existência mágica é integrado à ordem
espiritual. Inferir da afinidade entre música e magia que a música se origina no
mundo da mágica é falacioso. A música não se origina na mágica; ela originou-se
precisamente devido à perda do mundo da magia, seguindo a lei de que todo
desenvolvimento vivo em que cada estágio sucedente deve incorporar os modos de
existência do estágio precedente. Fala e música não são antagonistas, representam
dois estágios de desenvolvimento, um dos quais supera o outro. Nossa discussão
sobre o relacionamento palavra-nota na canção demonstrou que os dois trabalham
juntos, não um contra o outro; que eles não se contradizem, mas realçam um ao outro;
As palavras dividem, as notas unem. A unidade da existência que a palavra
constantemente quebra, separando coisa de coisa, sujeito de objeto, é constantemente
restaurada nas notas. A música impede o mundo de ser transformado inteiramente em
linguagem, de tornar-se nada que não objeto, e impede o homem de tornar-se nada
que não sujeito. Em nada pode a palavra ajudar a isto; a objetivação da palavra
necessita da nota, exige-a: fortalecer as notas, liberta as palavras para efetuar sua
tarefa de objetivação. Certamente não é um acidente que o mais alto desenvolvimento
55

da força das notas na música instrumental moderna e o mais alto desenvolvimento do


poder de objetivação das palavras na ciência moderna coincidem historicamente com
a divisão radical já delineada entre subjetividade e objetividade. Não porque as notas
expressam o sujeito tão adequadamente quanto a palavra expressa o objeto, não
porque as notas nutrem o elemento irracional enquanto a palavra alimenta o elemento
racional. Uma e outra são falsas e superficiais. O que a nota expressa não é o sujeito
mas a interpenetração do sujeito e do objeto. A música não floresce às expensas da
racionalidade. A música se origina, se desenvolve e alcança sua culminação dentro da
racionalidade humana, junto com ela, e não fora ou contra ela.
56

VIII. Problema e Solução – Pergunta e Resposta

A ciência moderna vê todos os processos vivos, físicos e psíquicos, como


resultando principalmente do intercâmbio entre núcleos vivos e entre organismos e
seu ambiente – enquanto processos em um campo de energia que envolvem os
organismos e seu mundo, o domínio total de suas possíveis interações. O conceito
central é aquele do comportamento: o comportamento dos seres vivos continuamente
revelam por quais caminhos eles interagem com seu ambiente. A suposição básica é
de que toda mudança no comportamento é causada por um distúrbio do equilíbrio no
campo de energia, e visa restaurar o equilíbrio. A causa do distúrbio pode ser
localizada dentro do organismo ou fora dele, em seu ambiente interior ou exterior; a
tensão produzida é descarregada em uma ação que, se ela é bem sucedida, restaura,
ao menos temporariamente, o equilíbrio entre organismo e ambiente. A antiga
interpretação rígida do comportamento animal como uma adaptação unilateral a um
ambiente pronto, como mera resposta ao estímulo, tem sido ampliada e refinada,
tanto quanto a concepção do comportamento agora pode abranger todos os processos
vivos, desde os mecanismos de condicionamento reflexo e os processos puramente
vegetativos de desenvolvimento e metabolismo, às mais altas realizações da mente
em operações simbólicas com palavras e números. Também a arte e suas obras
podem ser incluídas aqui; atividade formativa, quer por meio de palavras, notas ou
formas visíveis, é vista como uma espécie de comportamento, nascendo de uma
necessidade específica – uma tensão, um distúrbio do equilíbrio – e satisfazendo esta
necessidade, restaurando o equilíbrio. “A arte nasce da busca por ajustamentos que
são sentidos como sendo certos.”

Nosso esforço neste trabalho para entender a música em termos de um encontro


entre o homem e o mundo, e a musicalidade como um atributo essencial do homem
correspondendo a um atributo essencial de seu mundo, parece numa primeira olhada
originar-se junto a linhas comportamentais. O fato de que a fala falha em expressar
57

um aspecto importante do encontro do homem tanto com o mundo interior quanto


como exterior pode ser interpretada como o resultado de uma adaptação defeituosa,
de uma tensão entre diferentes níveis que buscam ser resolvidos. Mas deste ponto
podemos repartir a companhia com o comportamentalismo [behaviorismo]. De
acordo com isso, a música é o meio de resolver a tensão, de acordo com nossa visão,
a tensão é o meio de descobrir a música. Toda forma de comportamento almeja por
definição no ponto zero da tensão resolvida; isto é avaliado como sendo bem
sucedido ou mal sucedido de acordo com se a meta foi ou não atingida. O que
importa, do ponto de vista da música, não é a transição do equilíbrio perturbado para
a sua restauração mas o subproduto da transição – o que é deixado para trás depois da
transição ter sido efetuada. Interpretado em termos comportamentais, isto é, como
um caminho dirigido do distúrbio para a restauração do equilíbrio, fazer música não
difere essencialmente da elocução desarticulada na qual uma tensão emocional é
descarregada, e ouvir música não difere essencialmente de satisfazer a ânsia de
alguém. Mas a musicalidade da música não começa em primeiro lugar até que ela
seja algo outro que não uma descarga emocional, algo outro que não satisfazer uma
ânsia; a má música, o mau ouvinte, para a música é caracterizado exatamente pelo
predomínio do não-musical, pelo elemento comportamental – a descarga emocional,
a satisfação da ânsia. Se a música é entendida como um tipo de comportamento, isto
poderia ser verdade para a música como para qualquer outro tipo de comportamento
cuja proposta principal seja eliminar algo do mundo: como resultado do
comportamento bem sucedido, o ser vivo encontraria a si mesmo, em relação ao seu
ambiente, exatamente onde antes estava o distúrbio do equilíbrio. De nosso ponto de
vista, no entanto, a coisa mais importante a respeito da música não é que ela elimina
algo do mundo, mas que adiciona algo a ele – na verdade, que cria um mundo; não
que ela traga o homem de volta para onde ele estava no mundo, mas que ela o leva a
um lugar onde ele nunca havia estado antes. Em resumo, o que tentamos entender é
por quais caminhos o mundo e o homem são modificados pela música.

A pupila do olho reage ao raio de luz, o brado avisa quando um perigo é


percebido, a procura e o encontro de comida, a resolução de um problema de palavras
cruzadas, a solução de um problema científico: para o behavorista, todas estas são
gradações de um fenômeno básico, termos sucessivos para uma série a qual, para usar
a terminologia de Jean Piaget, se estende entre a causa físico-química e a implicação
lógica-matemática. A reação do olho representa o máximo da causa físico-química e
o mínimo da implicação intelectual; a solução para um problema científico representa
o reverso. No meio há mais ou menos de cada ingrediente, a procura e encontro de
comida sendo localizada aproximadamente no centro. Se traçamos uma fronteira do
ponto de vista do behaviorismo, ela correria entre a procura de comida e a resolução
do problema de palavras cruzadas: esta fronteira separaria o comportamento animal
do comportamento especificamente humano. O rato que resolve o enigma do labirinto
o faz então para alcançar um pedaço de bacon; o homem resolve quebra-cabeças pelo
gosto por resolvê-los. Mas a fronteira crucial, a qual o behaviorismo não pode traçar
porque ela marca seu próprio limite, corre em outra parte – a saber, entre o quebra-
cabeça e o problema científico. A solução do primeiro pode ainda ser interpretada
58

adequadamente como um tipo de comportamento; mas não a resolução de um


problema científico. Ambos o quebra-cabeça e o problema são experimentados como
um distúrbio do equilíbrio intelectual; mas o quebra-cabeça é resolvido a fim de fazer
longe o distúrbio, enquanto o problema científico é resolvido a fim de descobrir a
verdade. A solução do quebra-cabeça termina em uma cesta de lixo; a solução do
problema científico eleva como que uma nova estrela em nosso firmamento
intelectual. Quebra-cabeça e problema pertencem a mundos diferentes. O quebra-
cabeça é uma tarefa a ser executada; o problema, por sua vez, é uma questão e,
falando mais apropriadamente, requer não uma solução mas uma resposta. Problema
e solução, questão e resposta: nisto vive a diferença. Assim, um animal pode ver uma
situação como um problema a ser resolvido e o resolve. Mas somente um ser vivo
com uma mente pode ver uma situação como uma questão. A situação de questão e
resposta não pode ser interpretada em termos puramente behavioristas.

A música, como dissemos no começo destas reflexões, deve ser entendida


como necessária, isto é, de modo que um mundo sem música ou uma humanidade
sem música seriam impensáveis. O que torna a música necessária como um todo e em
suas manifestações individuais, desde os seus estágios primordiais ou no cume de seu
desenvolvimento, é que ela responde à questão. Ser musical é ter a habilidade para
questionar. Mesmo depois de tudo nomeável, inclusive Deus, ter sido nomeado, há
ainda um vazio a ser preenchido, trevas a serem iluminadas; mesmo depois dele ter
dado suas respostas abrangentes, a linguagem ainda deixa algumas questões
irrespondidas. Na música o homem encontra respostas para aquelas grandes questões.
Nossa tarefa é compreender a natureza do questionador com base nas respostas da
música para as suas questões.
59

O Ouvido Musical
60

IX. O Mundo Audível

A base de qualquer encontro com a música é o ato de ouvir. A música existe na


audição e para a audição: à parte ser ouvida, ela não existe. Como todos os outros
encontros, há dois lados para este: experimentamos música por ouvi-la, e ao mesmo
tempo experimentamos nós mesmos como ouvintes da música. O que diz exatamente
a frase “Eu ouço música”, em especial as palavras “Eu ouço”?

Muitas vezes encontramos casualmente afirmações que parecem desacreditar


do ouvido como nosso único meio de acesso à música. Um poeta famoso uma vez
exaltou a “doçura” das melodias “jamais ouvidas” acima daquelas realmente ouvidas,
mas ele não poderia ter escrito estas palavras não tivesse se tornado claro para ele o
significado da “melodia” pelo exercício de seu sentido da audição. Musicistas
afirmam, e eles estão certos sem dúvida, que nenhuma performance pode alcançar a
perfeição do som presente na imaginação quando estão examinando cuidadosamente
uma partitura em silêncio; muitos detalhes sutis podem ser apreciados somente deste
modo, detalhes que desaparecem na confusão acústica da performance real. Mas isto
implicaria, como é afirmado freqüentemente, que as obras primas musicais contêm
muitas coisas nunca intencionadas a serem escutadas, apenas a ser vistas? Ouvir na
imaginação, no ouvido da mente, é certamente uma espécie de audição, não de visão.
Este é o exercício de um sentido da audição muito praticado, um longo percurso
sensível e um intercâmbio íntimo com as notas, em que de fato as ondas sonoras não
são requeridas para colocá-las para fora; os olhos servem meramente enquanto um
órgão subordinado para a recepção da notação musical. Mestres compositores
compuseram tais passagens por seu apelo ao ouvido da mente, não por seu apelo à
visão. Nenhum caminho conduz desde o mundo do visível para o da música sem
passar através do sentido da audição, seja na realidade concreta ou na mente. Não há
abordagem visual à música, embora um experimento tenha sido feito uma vez, numa
instituição americana, para entender as Variações Goldberg de Bach em termos
puramente visuais, trabalhando sobretudo com a imagem gráfica sem qualquer
referência ao som. Não surpreendentemente, o experimento foi o único deste tipo.
61

Outra objeção pode ser sugerida por nossas considerações sobre a musicalidade
e sobre a música em seu estágio primordial. Se a divisão funcional entre produtores,
reprodutores e receptores não havia sido ainda fixada nesse estágio – em outras
palavras, se a esmagadora maioria das pessoas não havia ainda se confrontado com a
música enquanto receptores, enquanto meros ouvintes – então alguém poderia
duvidar de se a música originalmente existiu para ser ouvida. Onde a música vem das
pessoas ao invés de somente ir para elas, a música tem que ser certamente algo que as
pessoas produzem ativamente mais adequadamente do que algo que elas recebem
passivamente. Mas esta atividade é essencialmente a produção de som, um fazer-se
ouvir: fazer música é estar ativamente produzindo sons e trabalhando com sons,
estejam os ouvintes presentes ou não. Esta atividade é, por assim dizer, circular. O
círculo fecha somente quando o som produzido retorna para seu produtor como algo
audível. Isto é verdade para o instrumentista tanto quanto para o cantor; até mesmo
um recluso não faria música em um piano silencioso. O compositor, por sua vez,
ouve em sua mente o que ele cria; até mesmo enquanto criando ele é já um ouvinte
também. De nenhum modo como você olhe, há caminho fora do círculo do audível. O
mundo da música é parte do mundo audível, do mundo da audição.

O mundo audível, o mundo da audição – quantos de nós, homens deste século,


ainda conhecemos que tipo de mundo é este e que este é um mundo? Rodeados pelos
ruídos da era tecnológica, ensurdecidos por seu barulho incessante, estamos alienados
do mundo audível em uma extensão da qual não estamos conscientes ainda. Quanto à
visão, estamos em melhor situação: os olhos ainda encontram um pedaço de céu por
sobre a feiúra da esquina mais sombria da metrópole. A parede de máquinas gera
pseudo-sons que nos envolvem sem deixar vazio; sons naturais apenas esparsamente
a penetram. Os ruídos da rua abafam até mesmo o troar do trovão. Um silêncio
ocasional chega a nós como sendo artificial; ele nos deixa constrangidos e nos
precipita a ligar algum ruído artificial para nos livrarmos dele. Nossa imagem do
mundo audível torna-se distorcida, uma caricatura. Não há nada aí salvo o barulho
das máquinas e, então, Deus sabe onde ou de onde, desconectado de todo o resto, um
corpo estranho – a música.

A imagem verdadeira parece diferente. Que infinita riqueza, que autenticidade,


que inexaurível multiplicidade e diversidade de sensações! O murmúrio das ondas
quebrando, o troar da tempestade, o tilintar de sinos, o eco de um tiro nas montanhas,
o estampido do próprio tiro, o som surdo de uma maçã caindo na grama, o zumbido
das abelhas, a risada de uma criança, o som de um violino, o grito de uma gaivota, o
bramido de um cervo, o estrondo de uma avalanche, o crepitar do fogo, o tinir de
vidros, o sussurrar da neve caindo, o tamborilar da chuva, o roçar de passos na areia,
o estalido de folhas mortas – como poderia alguém enumerar todos eles? Além disso,
as nuanças de sons da mesma espécie: o roçar do vento nos pinheiros, nas árvores que
mudam de folha anualmente – carvalhos, oliveiras, palmeiras – em uma árvore
solitária, em florestas densas ou esparsas, a grandes altitudes, em vales cercados: a
linguagem desde muito tem ficado aquém, incapaz sequer de nomear as sensações
que nossos ouvidos distinguem e identificam mais acuradamente. As referências para
62

as causas físicas destas diferenças, para as delicadas variações na forma das ondas do
ar, longe de ser responsável pela eficiência de nosso órgão da audição, faz parecer
tudo ainda mais miraculoso.

Na enumeração acima, o leitor terá notado que a linguagem invariavelmente


faz uso de duas palavras para designar a percepção auditiva. A primeira – murmurar,
ecoar, rugir, crepitar, tinir, ranger e assim por diante – é sempre imitativa do som
referido por ela [N. T.: isto ocorre de modo mais evidente na língua inglesa]. Já que a
linguagem está em casa no audível, o qual, diferente do visível, é seu natural meio de
comunicação, deveria ser natural para ela nomear o que pode ser ouvido por sons
imitativos. O signo e o que ele significa pertencem a um mesmo mundo. Todavia a
linguagem não é muito acurada em suas imitações. Ela se contenta com o
aproximativo e o polivalente: aquilo que sussurra pode ser água, mas também o vento
ou a seda de uma vestimenta com muitas dobras; o som de triturar é feito por pedras,
mas também por passos na areia seca. A segunda das duas palavras associadas serve
para tornar a designação mais específica; contudo, ela nomeia não a qualidade da
sensação mas o objeto material visível e tangível que é a fonte da sensação do som: o
murmurar do mar, o repicar dos sinos. Nisso, também, a linguagem é fiel à sua tarefa
mais importante – tornar possível a comunicação concernente às coisas visíveis-
tangíveis em um conteúdo audível. Seu método de nomear as percepções sonoras é
associar sons com suas fontes físicas. No espelho da linguagem, aquilo que é ouvido
aparece como um atributo daquilo que é sentido ou tocado.

Este não é o lugar para decidir a questão de, em quais casos, a linguagem
reflete a história natural da percepção ou impõe sua própria ordem nova sobre esta
última. O que é certo é que a linguagem e a sensação correm em paralelo uma com a
outra: quando ouvimos um som, percebemos geralmente, em acréscimo ao som, a
coisa ou evento que produz o som. Ouvimos o mar ou a tempestade, não ouvimos
meramente um roncar; ouvimos sinos, não um tilintar; uma maçã, não um baque.
Nossa audição não pára, por assim dizer, na sensação mas se estende através dela até
a fonte sonora. Algumas vezes se estende para dentro do vazio. Quando ouvimos um
som cuja fonte permanece indeterminada – um roçar, por exemplo, mas não o algo
que roça – então a sensação é insatisfatória, inquietante; ela nos impele a ouvir, a
tentar descobrir a fonte material do som, e não descansaremos antes de termos sido
bem sucedidos em associar o que ouvimos com algo visível-tangível. Deste modo
percebemos todo o mundo audível, como um acessório do mundo das coisas visíveis
e tangíveis, como se envolto em torno dele. As coisas visíveis-tangíveis regalam-se
com a luxúria de serem audíveis – visto que uma mudança, o gosto pelo colorido, o
enriquecimento da pintura, nos agrada, nos inquieta, nos adverte – olho e mão agem
como legisladores, o ouvido como um órgão auxiliar: isto é como alguém poderia
descrever o mundo descortinado aos nossos sentidos.

A descrição poderia ser correta se nossa enumeração das sensações audíveis


não incluísse o item “som de um violino”. Neste ponto o audível sai fora da ordem,
de sua correlação com as coisas visíveis-tangíveis. Quando as notas sucedem as
notas, quando as notas se tornam melodia, abre-se uma porta no centro do mundo
63

audível; entramos, como se em um sonho ou conto de fadas, não tanto em outro


mundo, mas em um outro modo de existência dentro de nosso mundo familiar. O
audível rompe sua ligação com os objetos materiais. Ao ouvir outros tipos de som, se
pergunto “o que é isto”, espero uma resposta tal como “um avião” ou “o vento”. Se
faço a mesma pergunta quando ouvindo um violino, e alguém me responde “um
violino”, eu vou rir dele. Não é sobre isso que perguntei. A resposta correta, algo
como “a Partita de Bach em Mi maior”, não se refere à conecção dos sons com uma
fonte material (isto seria sem valor; todas as notas da Partita de Bach são sons de
violino) mas ao modo como as notas se conectam entre elas. Neste caso, a audição
não vai atrás do que é ouvido, não se estende em direção à fonte visível-tangível da
sensação; o que ouvimos se auto-contém, é um todo completo em si mesmo. Um
mundo de pura audibilidade se abre, um domínio no qual o ouvido é o legislador. É
desnecessário dizer, a existência deste como um domínio confere uma dignidade
inteiramente nova para o mundo audível em si. Na presença da música, não
deveríamos estar inclinados a dizer que o audível é uma vestimenta colorida que
envolve o mundo visível; deveríamos falar preferivelmente de um dom que o Criador
conferiu sobre o mundo visível – o dom de compartilhar do audível, da dignidade de
ser audível.

O fenômeno é único. Que dentro do domínio sensorial uma sensação por outro
lado liga as coisas como uma de suas “qualidades” deveria emancipar-se e construir
um mundo autônomo de seu próprio, livre de qualquer referência objetiva, não ocorre
em outra parte. O fenômeno análogo no mundo visível, a arte das formas e cores
puras, não oferece nada comparável, pois as cores e as formas são ambas as mesmas
como encontradas nos objetos ou derivadas dos objetos, enquanto o homem não
encontra notas no mundo audível: ele precisa provê-lo delas. É o homem quem cria o
puramente audível, no qual o mundo audível se revela em uma forma que é
inteiramente própria. Sem música, a audição poderia ser considerada como se fosse
ver com os ouvidos. Somente na música, a audição assume o domínio de si própria.

Deste modo, descobrimos que há algo especial no sentido da audição. “Ouvir”


não denota sempre o mesmo ato. Eu ouço a marcha de tropas, e ouço a marcha que
eles estão toando: aqui a linguagem obscurece a condição verdadeira da questão, pois
há somente uma palavra para significar duas funções muito diferentes. No primeiro
caso, ouvir é perceber um evento físico: a função envolvida é essencialmente
comparável às funções dos outros sentidos. No segundo caso, ouvir é algo
inteiramente diferente, completamente sui generis. Se alguém tenta entender a
audição com base em quaisquer sensações sonoras dadas, como fazem muitos
psicólogos, nunca poderão alcançar além daquilo que a audição tem em comum com
a visão e o tato. O que a audição realmente é, o que somos realmente enquanto
ouvintes, pode ser compreendido somente com base na audição musical.

A modo de antecipação, podemos resumir as reflexões que seguem. A audição


de música é um processo de muitas camadas. Podemos distinguir quatro camadas:
audição de notas, audição de qualidades dinâmicas, audição de movimento e audição
64

de estrutura orgânica. E tudo isto reside inteiramente dentro da jurisdição do sentido


da audição: os outros sentidos e funções não entram aqui.

Nossas “camadas” não devem ser confundidas com estágios sucessivos, como
se ouvíssemos primeiro um, depois o outro, e assim por diante. Quando ouvimos
música todos eles se apresentam de uma vez. Necessariamente, analisar uma
experiência unitária é quebrá-la em suas partes.
65

X. A Audição de Notas

Para manter os detalhes técnicos no mínimo basearemos nosso estudo em


estruturas musicais simplificadas: cantigas e melodias. Há uma diferença somente em
grau, não em espécie, entre ouvir uma cantiga e ouvir algo complexo, uma longa
composição musical.

O velho hino da Ressurreição – O Coral Aleluia – ressoa, cantado em uníssono.


O que exatamente ouvimos quando da audição desta melodia?

Obviamente ouvimos primeiramente notas, uma sucessão de diferentes notas.


A melodia, toda melodia, é primeiramente ouvida como tal.

O que é uma nota, o que constitui a diferença entre uma nota e outra, não pode,
estritamente falado, ser definido. A única resposta adequada à questão “O que é uma
nota?” é cantar ou tocar uma nota. Não importa quão muitas palavras usemos, não
importa quão corretas e aptas elas possam ser, elas não darão a uma pessoa surda
ainda a mais vaga idéia de uma nota. Tal pessoa pode saber ou entender todas as
66

palavras que tenham sido ditas a respeito das notas: o cerne essencial da realidade
referida pelas palavras permanece um espaço vazio.

O mesmo é verdade para a diferença entre as notas. Notas diferentes são


primeiro e mais que tudo notas de diferentes alturas, e o que é uma altura só pode
igualmente ser ouvido. Pode-se dizer que altura é a característica comparável ao calor
ou ao brilho, os quais podem se distinguir entre um “mais” e um “menos”; que
consequentemente notas podem ser arranjadas em uma série de acordo com a altura, e
que de duas notas diferentes uma é sempre mais alta e a outra mais baixa, e de três
notas uma é mais alta, uma mais baixa e uma intermediária. Mas de acordo com o
quê as notas são então distintas e arranjadas permanece sempre inacessível àqueles
que não possam ouvi-las.

É ainda possível encontrar pessoas que imaginam que elas têm a verdadeira
resposta para a questão do que é uma nota ou o que é uma altura. A resposta é: uma
nota é a vibração do ar ou outro meio de propagação.; altura é o número de vibrações,
a freqüência. A palavra “é” aqui significa “é realmente” ou “é verdadeiramente”. É
escassamente possível colocar alguém dentro do quadro da mente de outro alguém
que aceitasse acriticamente tal resposta. Vibrações ou a freqüência de vibrações pode
ser vista ou sentida; notas podem ser ouvidas; elas não são vistas ou sentidas –
somente um surdo “sente” as notas. Como pode algo audível ser algo visível ou
tangível? Os dois podem corresponder um ao outro mais exatamente; o visível ou
tangível pode ser a causa material ou o veículo material do audível. Mas isto não
justifica a assertiva de que um é o outro, e certamente não “realmente” ou
“verdadeiramente”. Por que deveriam os sentidos da visão e do tato ter acesso àquilo
que real e verdadeiramente é, e ao sentido da audição ser negado tal acesso? Por que
deveria o ouvido ser menos fidedigno que o olho ou a mão?

À parte a altura, as notas são caracterizadas pelo timbre e pela sonoridade.


Ambos tomam uma parte que não é essencial naquilo a que concerne a audição de
uma melodia. Claramente, ouço a mesma coisa – isto é, a mesma melodia – seja ela
cantada suave ou fortemente, soprada num trompete ou dedilhada num violão. Mas
depois da altura a característica mais essencial é a duração. Diferentes notas são
também de diferentes durações, e uma mudança na duração da nota, como uma
mudança da altura, resulta que eu não ouço mais a mesma coisa, mas que eu ouço
uma melodia diferente. Fosse o começo de nosso exemplo ao invés de
, eu ouviria não o hino da Ressurreição, mas “Brother Martin”.

Aqui uma qualificação é necessária. Todos sabem que uma e a mesma melodia,
pode ser cantada por um soprano ou um baixo, tocada em um violino ou violoncelo.
Apesar das alturas completamente diferentes, a melodia permanece idêntica. O que
permanece imutável é a relação da altura de cada nota com suas notas vizinhas. O que
torna uma melodia não é, falando apropriadamente, as notas mas as relações entre as
notas. Uma melodia tomada como um todo pode ser mudada para trás e adiante no
espaço tonal, pode ser transposta para outro tom sem ser modificada, de fato como
67

uma figura geométrica permanece não modificada se a imaginamos de um plano para


outro no espaço (mais precisamente, no espaço euclideano). Esta afirmação trivial
encobre problemas musicais e geométricos de igual peso. O mesmo é verdade para
uma duração: encurtando ou aumentando o todo dos valores de duração na mesma
proporção não afetaremos a melodia. Em outras palavras, uma melodia permanece a
mesma quando tocada em um andamento rápido ou lento (dentro de limites
razoáveis). O que não pode ser mudado sem mudar a própria melodia é a relação
entre a duração das notas, a proporção da duração de cada nota com relação à duração
de suas notas vizinhas.

Ouvir uma melodia é, desse modo, primeiro de tudo ouvir uma seqüência de
notas que permanecem em uma relação específica uma com a outra no que diz
respeito à altura e à duração. Quando ouço uma melodia, não ouço primeiro uma
nota, então outra, então uma terceira, e assim por diante; ao mesmo tempo a cada
nota, ouço a relação na qual ela se coloca em relação às outras notas, precedentes e
seguintes. Anteriormente, havíamos observado que a audição da música difere de
todos os outros tipos de audição, pois aquilo que é ouvido aqui está auto-contido,
enquanto que em outra parte a audição se estende além do próprio som até sua fonte
material. Agora descobrimos que também no caso de uma melodia, a audição não
pára na sensação imediata do som da nota de fato soada, mas se estende além dela,
desta feita não até um objeto material mas até outras notas – notas que ou tenham já
decaído à distância ou estejam ainda ressoando, notas não ouvidas a este momento.
Ouvir além do que foi ouvido em outros elementos audíveis, ouvir a relação entre
algo ouvido com algo não há muito ou ainda não ouvido: como isto pode ser
entendido?

Como, falando mais genericamente, entendemos o fato de que a audição


alcança além dos dados mais imediatos dos sentidos? Heidegger escreve: “Ouvimos a
corrida da motocicleta pela rua. Ouvimos o galo silvestre planando pela floresta. Mas
realmente ouvimos somente o zumbir do motor, o som que o galo silvestre faz.
Enquanto uma matéria de fato, é difícil descrever o som puro, e ordinariamente não o
fazemos, porque não é o que comumente ouvimos. Do ponto de vista do som
absoluto nós sempre ouvimos mais. Ouvimos o pássaro voando, ainda quando
estritamente falando deveríamos dizer: um galo silvestre não é algo audível...” Mas,
tomando de fato estritamente, é aquele “mais” realmente algo ouvido? Um homem
cego que nunca tenha encontrado uma motocicleta ou um galo silvestre tampouco
ouvirá: ele ouvirá dois diferentes sons, não algo “mais”. A audição em si mesma não
pode ir além da sensação do som. Alguém não ouve um sino: ouvimos um som e
reconhecemos o que faz o som porque vemos ou nos relembramos ou nos foi dito que
é o som de um sino; em outras palavras, reconhecemos por experiência. A função do
órgão do sentido termina em ter e transmitir a sensação; outras funções, geralmente
intelectuais, fazem o resto.

Isto levanta a questão fundamental se o mesmo não é verdadeiro para a audição


de melodias e da música em geral. Falando estritamente, não é, aqui também, o ir
além do dado dos sentidos imediatamente dado algo outro que não a audição? Posso
68

ouvir como uma nota está relacionada a outra notas, precedentes e seguintes, as quais
eu não ouço? Se a melodia é de fato definida por estas relações, como eu posso dizer
que eu ouço melodias? Não seria mais correto dizer que aqui, também, a função do
órgão do sentido é confinada a ter e transmitir as sensações, enquanto que a relação
das notas, e pelo mesmo motivo melodias e toda a música, é percebida por outras
funções não-sensoriais? Podemos concluir que a música é primeiramente pretendida
não para ser ouvida mas para ser percebida por outras funções, o que quer que elas
possam ser?

Surpreendentemente, muitos filósofos, psicólogos, teóricos, historiadores, e


ainda compositores (quando eles teorizam sobre música) em grande parte concordam
em responder estas questões na afirmativa. De acordo com seu testemunho, o som, o
elemento musicalmente audível, é de importância secundária, não mais que um
revestimento externo, uma vestimenta prazerosa; a essência real da música não é
audível, não é percebida pelos sentidos, mas percebida por outras funções não-
sensoriais. O som, eles afirmam, é meramente um mediador, um mensageiro; não há
diferença essencial entre a audição de música e a audição de uma leitura: o som das
palavras alcança o ouvido, mas o que importa é obviamente o significado das
palavras, não o som, e compreender o significado não é uma função sensorial, mas
intelectual. Do mesmo modo, eles concluem, quando percebemos o significado
musical, a função envolvida não pode ser a audição; falando estritamente, a
experiência musical não é uma experiência auditiva. Paul Hindemith – para citar um
testemunho proeminente – distingue “som, a qualidade externa” do “imaterial, o
aspecto espiritual” da música. Podemos, ele diz, “superar o mero registro das
sensações, a superficial dependência emocional dos sons” – não no sentido de
desenvolver uma atitude mais adequada em relação ao som, mas para emanciparmo-
nos do som como tal, realizando a pura compreensão dos aspectos espirituais da
música, purgados de todos os elementos sensoriais.

Certamente ninguém negará que a experiência musical envolve funções outras


além das sensoriais, que há algo mais na música, falando coloquialmente, do que se
encontra na audição. Mas a questão permanece, a que ponto a música cessa de ser
nota e começa a ser algo mais, algo que não é audível? Se é dado por admitido que
“ouvir” é meramente “registrar sensações auditivas” podemos perguntar se a própria
nota não é mais que a nota que é ouvida. De todo seu notável mérito como
compositor, Hindemith o pensador tem caído na cilada de uma falsa alternativa. O
fato de que as qualidades do som exterior podem ser distinguidas dos aspectos
espirituais da experiência musical ainda não é prova de que tudo que não é qualidade
externa do som é automaticamente “espiritual” e pode ser percebido por funções não-
sensoriais. À parte suas qualidades externas, os sons musicais, as notas, podem muito
bem possuir qualidades “internas”; o próprio som pode muito bem ter um aspecto
imaterial. Similarmente, o fato de que podemos superar a dependência emocional
superficial do som a fim de obter uma melhor compreensão da música, em nenhum
sentido prova que podemos superar tal dependência somente por ir além do som. Por
que não seria possível superá-la no próprio ato da audição, em outra dimensão da
69

própria audição? Estas são questões legítimas as quais podem ser resolvidas não por
especulação e debate mas somente por observação cuidadosa do fenômeno musical.
Os resultados de tal observação proverão evidências conclusivas de que a audição
musical efetua tarefas muito diferentes da percepção das qualidades do som exterior.

Como podemos responder pelo fato de que um proeminente compositor


contemporâneo, alguém que não poderia ser mais íntimo da natureza da música,
ignoraria esta evidência? Há somente uma explicação. Aqueles que questionam hoje
a parte que o sentido da audição joga na experiência musical, simplesmente tomam
por garantido que eles sabem o que é o sentido da audição. Eles abordam a
experiência musical com noções estabelecidas sobre os órgãos dos sentidos em geral,
mas sem a mínima noção sobre a audição. Suas convicções são convicções de ciência
popular, envolvendo tais noções antiquadas como o “fato” de que tudo o que os
órgãos dos sentidos fazem é reagir a estímulos exteriores, e por via dos nervos, levar
sua mensagem a algum centro no cérebro, o qual então produz alguma sensação
correspondente na mente. Deste ponto de vista, a função do órgão dos sentidos é
informar o organismo sobre eventos externos a ele. Toda sensação corresponde
exatamente ao evento que a produziu: não há nada na sensação que não tenha sua
contraparte no evento externo. Contudo, as sensações não dão tal informação – pelo
menos, não inteira ou explicitamente; elas meramente servem como sinais. E como
tais elas têm ainda que ser interpretadas por outras funções intelectuais a fim de
serem reconhecidas como apontando para objetos ou eventos específicos. O que pode
ser dito sobre ruídos – ouvimos um som, e sabemos que ele vem de um sino – é
verdadeiro para todas as percepções dos sentidos. A sensação em si mesma não é
mais do que um pedaço de material bruto – um som, uma mancha de cor, uma
qualidade tátil – tão sem sentido como uma letra individual em uma caixa de tipos;
ela adquire significado somente após ser incorporada dentro de um contexto
relevante, sendo o mais importante aquele que associa a sensação com a coisa ou
evento no mundo exterior que a produziu.

Embora possamos estar convencidos de que a audição musical não consiste


primeiramente nas sensações do som relacionadas com as coisas ou eventos no
mundo exterior, desde que estamos convencidos serem os órgãos dos sentidos meros
supridores de dados, excluímos todos os outros pontos de vista que não aquele no
qual, na música, também, a audição serve meramente para registrar as sensações dos
sons individuais. Se não há nada nestas sensações que não tenha sua contraparte nos
eventos que as produziu, e se, por outro lado, a música começa somente com as
relações entre as notas – isto é, com algo que não está no evento que produz as
sensações das notas – então, estritamente falando, a música não pode ser ouvida. O
que quer que seja a coisa que possa relacionar as notas uma com a outra, não pode ser
audível; pode ser percebida por uma outra função não-sensorial; recai sobre os
aspectos “espirituais” da música. Conseqüentemente, pode ser concluído que na
audição musical o ouvido executa essencialmente a mesma função que na audição
dos ruídos. Em ambos os casos, sua função termina com a transmissão da sensação à
consciência; a tarefa de interpretá-la, entendê-la e lhe dar sentido, não tem nada a ver
70

com a função da audição. Apreciar a mera sensação, o som, é como apreciar os sons
harmoniosos da linguagem sem compreender o que as palavras significam. A
afirmação de que o que é ouvido é música, dificilmente pode ser justificada por este
caminho.

Claramente, à luz da noção tradicional de audição, enquanto uma função


puramente sensorial, a música não é mais que uma seqüência de sons prazerosos sem
sentido, a função da audição pode jogar um lugar somente subordinado na
experiência musical, e o problema crucial de se e como a audição musical difere da
audição meramente acústica não é levantado. É impossível lidar com este problema, e
então aprender o que a música é, se aderimos rigidamente a esta concepção obsoleta
da audição.
71

XI. A Audição das


Qualidades Dinâmicas das Notas

A nota, como discutida no capítulo precedente, isto é, como uma sensação


audível específica caracterizada por altura, timbre, sonoridade e duração, produzida
por vibrações em um meio físico e correspondendo a estas vibrações em todos os
aspectos – em resumo, nota enquanto um fenômeno acústico – não existe livremente
no mundo. Ela está em casa somente nos laboratórios, onde, em acordo com as regras
da ciência, físicos e psicólogos estudam seus constituintes e as condições sob as quais
é produzida. A nota que conhecemos da experiência musical é de um tipo diferente –
um fenômeno musical. Alguém familiarizado somente com a acústica do laboratório
nunca suspeitaria que as notas podem também ser algo diferente, audivelmente
diferente. E ainda se nossos ouvidos fossem capazes de recolher sons acústicos
somente, eles não seriam música.

A nota individual removida de seu contexto musical, o produto de laboratório,


é inteiramente caracterizada por suas qualidades acústicas. Mas se a mesma nota é
restaurada ao seu ambiente natural, isto é, ao contexto musical, algo acontece a ela;
ela se torna viva. Ela estando viva manifesta-se em uma qualidade adicional, uma
qualidade que nada no fenômeno acústico nos levaria a esperar. Esta é a qualidade
dinâmica da nota. Por que a música é totalmente a manifestação da vida tonal, e por
que a grande possibilidade da música repousa basicamente sobre esta qualidade,
devemos reconhecê-la como uma qualidade especificamente musical, enquanto
distinta da acústica.

Uma discussão detalhada da qualidade dinâmica pode ser encontrada em outra


7
parte . O ponto principal dela é colocado adiante.

Enquanto eventos musicais, as notas são caracterizadas por estados dinâmicos


específicos de equilíbrio e distúrbio do equilíbrio, estados de tensão. Cada uma das

7
Sound and symbol: Music and the External World, pp. 11 ff.
72

sete notas do sistema tonal sobre o qual a música do Ocidente está baseada (e foi
baseada exclusivamente há dois mil e quinhentos anos) tem uma qualidade dinâmica
sua própria; cada uma difere das outras na característica e direção de sua tensão. As
qualidades das notas não são definidas rígida e definitivamente; preferivelmente, elas
se definem plenamente enquanto se sucedem e, para todas, sua determinação admite
certa margem de variações individuais. Somente uma entre as sete notas é
caracterizada pelo estado de perfeito equilíbrio. Este equilíbrio não marca um ponto
zero; é ativo, mas sua atividade é, por assim dizer, dirigida para si mesma. As outras
seis notas são audivelmente dirigidas para esta nota, que funciona como um centro de
atração; elas gravitam para ela, apontam para ela, cada uma de sua posição e a seu
próprio modo. Elas tendem a se mover para longe de si mesmas em direção a ela; elas
carecem de equilíbrio e esforçam-se por obtê-lo. Elas carecerem de equilíbrio é
completamente óbvio para quatro notas – a segunda, a quarta, a sexta e a sétima notas
do sistema: estas notas são claramente instáveis. As duas notas remanescentes, a terça
e a quinta, apresentam um estágio intermediário: ainda que mais estáveis que as
outras, elas estão claramente dirigidas para a nota perfeitamente equilibrada; em
outras palavras, elas estão em um estado de tensão interna.

A idéia de um campo dinâmico está aqui sugerida. As notas musicais podem


ser interpretadas como eventos num campo dinâmico. A nota equilibrada permanece
no centro do campo de ação; desta última irradiam-se as forças que agem de acordo
com as outras notas de vários modos. A qualidade dinâmica de cada nota é
determinada pela constelação dominante de forças no lugar onde ela soa. Desde que
toda a oitava de uma nota tem a mesma qualidade dinâmica, há tantos campos
dinâmicos de estrutura idêntica quanto há oitavas.

As qualidades dinâmicas das notas são qualidades no sentido literal do termo:


elas são percebidas pelo ouvido; elas são audíveis. Podemos claramente ouvir a
pressão adiante, o esforço das notas instáveis, a peculiar tensão interna das notas
relativamente estáveis, o perfeito equilíbrio da nota central; podemos ouvir o caráter
particular e a direção de cada um destes estados dinâmicos com a mesma distinção,
proximidade e definição como ouvimos as alturas. Elas são audíveis como qualquer
qualidade acústica. Num certo sentido, as diferenças entre qualidades dinâmicas são
ainda mais tangíveis, por assim dizer, que diferenças entre alturas: as qualidades
dinâmicas são a base do treinamento elementar do ouvido no método da tônica sol-fá,
embora sua implicação raramente seja reconhecida. A propriedade pela qual o
método distingue e identifica notas não é, como muitas vezes é erroneamente
considerado, a distância da altura entre as notas, mas a característica peculiar e a
tensão da direção da nota.

Deste modo descobrimos que a primeira resposta à questão “O que nós


ouvimos nas melodias?” – a saber, uma seqüência de notas que exibe uma proporção
específica de altura e direção – foi inteiramente inadequada. Na primeira frase parcial
do nosso Coral Aleluia, por exemplo, ouvimos, se ouvirmos atentamente, que outros
eventos além de movimentos ascendentes e descendentes tomam lugar. O fim da
73

pequena seqüência dá a impressão de marcar um ponto de repouso:


consequentemente, as notas precedentes devem ter introduzido um elemento de

desassossego. Ao fim da última frase parcial o fenômeno se torna


evidente. Na nota final Mi, não somente ouço que ela é “mais baixa” e “mais longa”;
reconheço também uma certa perturbação, uma urgência, um apontar além, uma
vontade de ir além. Não antes da nota final desta linha, Ré, terá este esforço e
urgência atingindo sua meta. Para o meu ouvido, o que primeiramente caracteriza
esta nota é, uma vez mais, não sua altura ou duração, mas o equilíbrio que ela realiza.
Portanto, não é a proporção da altura ou duração que ouvimos neste instante, mas as
relações das direções e tensões das notas. Ainda tomando por certo que quando o
fenômeno acústico está em questão, podemos estar justificados em duvidar se
podemos ouvir as relações das notas (realmente, é impossível ouvir que um evento
acústico se relaciona com outro não ainda presente ou não mais presente, isto é,
audível) – ainda tomando isto por certo, é precipitado concluir que as relações das
notas não podem ser nunca percebidas pelo ouvido, mas somente por funções não-
sensoriais. Quando as qualidades das notas se manifestam na música, as relações das
notas tornam-se audíveis. Ouvir as qualidades dinâmicas das notas é, acima de tudo,
nada mais que ouvir uma nota se relacionando com outras notas, basicamente com a
nota central: a situação dinâmica predomina em vários lugares no campo dinâmico
tornado ele próprio audível nas notas. Nós nos tornamos conscientes destas relações
unicamente por meio de ouvi-las; nenhuma outra função não-sensorial está envolvida.
O que toma lugar não é que a nota ouvida é relacionada a uma nota lembrada ou
esperada. Quando ouço a nota tensão Mi em nossa melodia coral, não tenho um
quadro mental – recordação ou antecipação – da nota perfeitamente equilibrada Ré; a
tensão, a direção o apontar além estão todos dentro da própria nota, são todos
completamente audíveis; eles preenchem minha consciência a transbordar, não
deixando lugar para qualquer outra coisa. Ouvir uma melodia é essencialmente um
ato da audição – o que vale dizer, uma imediata percepção das relações das notas.

O que é peculiar à qualidade dinâmica da nota é que nada no evento físico que
produz a sensação corresponde a ela. A qualidade da nota que torna a música possível
não tem contraparte no mundo material. Quando uma nota ressoa, uma curva
luminosa aparece na tela do osciloscópio; um observador experiente pode ler desta
curva todas as características acústicas da nota; a única coisa que ele não pode ler
dela é a qualidade dinâmica da nota. A menor mudança nas propriedades acústicas da
nota será imediatamente registrada por uma mudança correspondente na curva; mas
nenhuma mudança, por mais radical, na qualidade dinâmica será alguma vez
mostrada na tela. Os eventos físicos e musicais pertencem a diferentes ordens da
existência.

Deste modo, o que toma lugar aqui é uma real ruptura no campo da percepção.
Todas as sensações audíveis (incluindo as sensações de uma nota como um evento
acústico) são reações da audição a estímulos externos ou a alucinações. A audição
das qualidades dinâmicas das notas não é nenhum dos dois. É a percepção direta de
74

eventos não materiais. As qualidades dinâmicas das notas dão à audição o acesso
direto a tais eventos. A condição única das notas – se comparada aos ruídos e outros
sons – sua auto-suficiência audível, tem sido por enquanto caracterizada só
negativamente, pelo fato de que as notas não se referem a coisas visíveis e tangíveis.
Podemos agora caracterizá-la positivamente: a nota transcende a sensação auditiva
dentro do audível, uma transcendência interior. Diferente dos sons não musicais, os
quais, indo além do audível, estendem-se até os objetos, a nota vai para um além
audível. Ela penetra neste último, no ponto onde o fenômeno acústico se converte em
musical. Nesse ponto, o próprio escopo da audição se alarga: a audição não é mais
confinada a reações a estímulos externos. “Mais do que nota” é ainda nota; “mais do
que ouvir” é ainda ouvir. Deste modo, a divisão usual da experiência musical em
qualidades externas do som e aspectos espirituais, reações ao estímulo sonoro e
funções não-sensoriais – emoção, imaginação, pensamento ou tudo o que dissermos –
desconsidera a verdadeira essência do fenômeno. O que existe além do domínio da
qualidade externa do som (isto é, do acústico) não é o domínio dos aspectos
espirituais da música – eles não são alcançados senão muito mais adiante – mas
primeiro de tudo, e por longa extensão, as qualidades musicais características das
notas. Onde termina a audição não musical (a percepção das qualidades acústicas
somente), o que começa não é emoção, pensamento, imaginação, mas a verdadeira
audição musical. O mundo da música em sua plena amplitude e riqueza se estende
entre o domínio da audição acústica e as funções não-sensoriais. Sua realidade,
aquela de um processo não-material, é a audibilidade: ela é inteiramente percebida
pela audição.

O propósito da seqüente discussão prolongada a respeito da psicologia da


Gestalt e da moderna fisiologia (a qual tem descartado ou modificado profundamente
a visão tradicional da percepção dos sentidos) é lançar luz sobre a performance da
audição em perceber as qualidades dinâmicas das notas. Para esta finalidade iremos
definir cuidadosamente o que esta performance parece ser mas não é. Tornar-se-á
visível que as novas teorias da percepção dos sentidos em geral, e da audição em
particular, desenvolvidas pela psicologia da Gestalt e pela fisiologia ainda não podem
explicar adequadamente como a música é ouvida.

Gestalt e a Qualidade Dinâmica das Notas

A escola da Gestalt rejeita a visão tradicional de que o dado sensorial primário


é um elemento sensorial individual – a sensação de uma cor ou de uma nota – um
bocado de material bruto, sem significado em si mesmo, o qual é convertido via
nervos no cérebro e uma vez aí combinados, por uma alta função não-sensorial, com
outros elementos relevantes em um todo significativo de uma percepção. De acordo
75

com esta escola, o dado sensorial imediato e original é ele mesmo um todo, uma
Gestalt, isto é, uma estrutura significativa consistindo de partes diretamente
interrelacionadas. O olho não vê pontos individuais de cor, nem o ouvido percebe
notas individuais, as quais alguma alta função transforma na imagem de uma coisa
visível ou na linha de uma melodia. Mais precisamente, o próprio olho diretamente
percebe o objeto visível; o próprio ouvido percebe a melodia. Além do mais, isso não
é para ser interpretado no sentido de que o fator unificante é uma contribuição
subjetiva da mente, e que o dado individual isolado é objetivo; ao contrário, é
precisamente a noção do dado sensorial elementar, que é destituído de qualquer
conteúdo real, ser uma noção abstrata derivada do todo originalmente percebido.

Isto parece ser suficiente para mostrar as dificuldades surgidas da concepção


tradicional da audição e então colocar a teoria de acordo com os fatos da experiência
musical. Se o que eu ouço não são notas individuais, não nota-nota-nota, mas sempre
porções de um todo de notas, então não tenho que relacionar uma nota com outra em
algum ponto posterior; se realmente ouço as notas dentro de um contexto, uma
melodia, em primeiro lugar, não “elementos” mas partes audivelmente
interrelacionadas, cada uma necessitando ser complementada e cada uma apontando
além de si mesma, então dirigir a percepção às relações das notas não é certamente
tão inexplicável e impossível quanto poderia parecer ser desde o ponto de vista
tradicional. Então, ouvir música pode ser considerado como uma entre outras formas
de percepção Gestalt. A razão de ser designada uma posição privilegiada para a
música, é que as características cruciais da Gestalt e da percepção Gestalt são mais
clara e puramente demonstradas na música do que em qualquer outro lugar. Ouço
uma melodia transposta e a reconheço como a mesma que ouvi antes em outro tom,
embora nem uma única nota tenha se mantido sem modificação. Este fato demonstra
claramente que eu ouço o todo antes das partes, que a Gestalt é prévia a seus
constituintes. Significativamente, o estudo da Gestalt começa com a música: o termo
“qualidade Gestalt” foi primeiro utilizado para designar o algo desconhecido que
permanece não modificado quando melodias são transpostas. O axioma de que o todo
é mais e diferente do que a soma de suas partes é em nenhuma outra parte mais
admiravelmente confirmado.

Fosse este o caso, dificilmente seria correto sustentar que a audição musical,
enquanto distinta das outras espécies de audição, marca uma “quebra de fronteiras”.
Se a percepção é sempre uma percepção Gestalt, diferentes tipos de audição
poderiam diferir somente em grau. De fato, poderíamos perguntar se a nossa primeira
assertiva envolvendo o problema essencial da realidade musical – que nada no
contexto físico do mundo exterior corresponde à qualidade dinâmica das notas – pode
ser sustentada em face das descobertas da psicologia da Gestalt. Uma vez que
abandonamos a noção de que a nota individual é um dado sensorial primário, estamos
justificados para considerar o evento físico, a onda sonora individual que produz a
sensação da nota, como a contraparte da nota musical. Se a nota musical não é nunca
ouvida como uma nota individual, ainda que ao momento que a ouvimos não existam
outras notas, mas sempre como parte de um todo, relacionado a outras notas e ao todo
76

da Gestalt das notas em processo de atualização; se, sendo uma parte, ela é
determinada pelo todo e é ouvida como, ou melhor é, a mesma ou outra, dependendo
do contexto ao qual pertence; se, em outras palavras, sempre percebemos um todo
quando percebemos uma nota individual, a contraparte física do evento musical pode
ser procurada na totalidade dos processos que correm paralelos à audição do todo.
Verdadeiramente, uma onda sonora não mostrará mudanças na qualidade dinâmica de
uma nota, ou, certamente, que a nota tenha qualquer qualidade dinâmica de qualquer
modo. A extensão da freqüência da nota isolada Ré não difere nem de pouco daquela
da mesma nota na frase ; nada no desenho do último Ré mostrará
que 5 se torna 1; nem deveria o quadro mudar nem de pouco se a nota Dó# na melodia
fosse substituída pelo Dó, pois então aquele Ré seria ainda 5. Mas depois de tudo, a
nota Ré é 5, torna-se 1, ou permanece 5 não em si mesma, como uma nota individual,
mas somente no contexto com outras notas, como parte de um todo dado.
Conseqüentemente poderíamos ver que para a contraparte da qualidade dinâmica da
nota não há representação de uma onda sonora individual mas no espectro de todas as
ondas correspondentes a um todo tonal dado. E desde este último desenho será
certamente possível ler a diferença entre Ré – Do – Ré e Ré – Dó# – Ré.

Parece, então resultar da teoria da Gestalt que (1) as qualidades dinâmicas das
notas são determinadas pela totalidade da Gestalt das notas, permanecendo a mesma
ou mudando quando a Gestalt permanece a mesma ou muda, e (2) cada Gestalt é
caracterizada por um espectro de dinâmicas de onda que permanece a mesma ou
muda simultaneamente à Gestalt. As qualidades dinâmicas das notas e os eventos
físicos são então correlacionados pela Gestalt. A possibilidade de transpor melodias,
em particular, mostra que a identidade e a diferença de Gestalt depende não das
alturas individuais mas da proporção das alturas; o que é relevante no evento físico
correlato não são as freqüências mas as proporções de freqüência. É, então, nestas
proporções que deveríamos reconhecer a contraparte física do evento psicológico da
audição musical em geral, e da audição das qualidades dinâmicas em particular.

As reflexões seguintes não estão dirigidas contra a teoria da Gestalt. Nosso


interesse é simplesmente apontar que embora ela resolva um certo número de
problemas, há ainda muitos outros a serem resolvidos. A teoria não poderia abarcar
todos os problemas confrontando-os de um golpe. Metodologicamente falando, os
gestaltistas estão certos em prontamente voltar-se do audível ao visível, às Gestalten
espaciais. Depois de tudo, sua proposta era abrir o caminho para uma concepção
radicalmente nova: que os dados primários dos sentidos não são partes que são
subseqüentemente combinadas em totalidades, mas totalidades que são
subseqüentemente analisadas em seus constituintes. Por esta razão, eles tinham
primeiro que considerar as Gestalten de fato percebidas como totalidades, isto é,
aquelas no espaço visual. As Gestalten audíveis tais como melodias, Gestalten
puramente temporais, por não serem nunca apreendidas diretamente como totalidades
e somente como partes individuais, elas são percebidas diretamente pela audição,
inevitavelmente confronta o investigador com dificuldades diferentes e ainda
maiores. Os gestaltistas certamente não examinaram a música, com suas Gestalten
77

puramente temporais – de fato, eles têm repetidamente mencionado a música como


um campo de estudo especialmente promissor – mas até agora eles não têm ido mais
adiante do que isso. (Característico deste estado de coisas, é o fato de que em seu
levantamento intitulado Probleme der gauzheitspsychologischen Wahrnehmungslehre
Walter Ehrenstein dedica mais que duas centenas de páginas à percepção visual e
somente oito páginas para todas as espécies de percepção auditiva, não somente a
musical.)

Os conceitos e idéias essenciais da psicologia da Gestalt têm sido


desenvolvidos exclusivamente sobre a base das Gestalten visuais e espaciais; se elas
podem se aplicar às Gestalten audíveis e temporais permanece duvidoso, e isto pode
não nos levar muito longe. (É suficiente mencionar os conceitos de “figura” e
“fundo” tão essenciais nas descrições dos padrões espaciais: o que corresponde a eles
no padrão das notas?) Tratar os problemas da Gestalt audível como materialmente
relacionada àquelas da Gestalt visível (como tem sido o caso) é inevitavelmente tratar
a audição como uma sub-espécie da visão. Agora nós podemos, se você insiste,
interpretar a audição em geral como uma espécie de visão auditiva; mas acima de
tudo, a audição musical não pode então ser interpretada. Todavia, os teóricos da
Gestalt estudam a Gestalt das notas como se ela não fosse essencialmente diferente
de outras Gestalten auditivas, isto é, estudam-na predominantemente em seus
aspectos acústicos e não-musicais; aqui, como alhures, o problema fundamental da
audição musical também não é levantado. Similarmente, quando a Gestalt das notas é
estudada com base em nosso conhecimento da Gestalt espacial, a temporalidade da
primeira necessariamente se utiliza de uma aparência de espacialidade, como se o
tempo fosse uma sucessão de espaços; seqüências de tempo são vistas em termos de
uma simultaneidade no espaço transformada em uma sucessão. O que é peculiar, de
qualquer modo, às Gestalten temporais não é que elas transformam a justaposição no
espaço em sucessão no tempo, mas o exato oposto; ela reúne elementos sucessivos
em uma presença simultânea.

A psicologia da Gestalt tem até agora falhado (1) em distinguir com acuidade
suficiente entre visão e audição (e entre ouvir padrões das notas enquanto acústico e
musical), e (2) em reconhecer que a temporalidade dos padrões das notas é
radicalmente diferente da espacialidade dos padrões visuais. Estes dois pecados de
omissão – se eles podem assim ser chamados – têm uma longa história. Uma década
antes da publicação do trabalho pioneiro de Christian von Ehrenfels, “Über
Gestaltqualitäten”, Ernst Mach em seu Analyse der Empfindungen, escreve: “De
acordo com pontos de vista iniciais” – este se refere à teoria tradicional da audição
desenvolvida com base na teoria de Helmholtz – “um fato importante, a ser discutido
adiante, permanece incompreensível, e contudo nenhuma teoria pode ser completa
sem considerá-lo. Se duas seqüências de notas começam com duas notas diferentes, e
as proporções entre as freqüências não variam enquanto uma nota segue a outra,
ouvimos a mesma melodia em ambas tão precisamente quanto vemos duas figuras
geométricas similares e posicionadas similarmente como sendo a mesma forma.
Melodias idênticas em diferentes posições podem ser chamadas ... estruturas de notas
78

de um mesmo padrão tonal.” O problema, o programa e o método da psicologia da


Gestalt está aqui formulado por antecipação. Seu problema é o fenômeno Gestalt, a
imediatez da percepção Gestalt; seu programa pede por alargar o primeiro ponto de
vista ou recolocá-lo por outro que seja capaz de responder pelo fenômeno Gestalt; e
seu método é antecipado porque o problema é formulado em termos geométricos e
não musicais: a Gestalt audível e temporal está sendo estudada com base na Gestalt
visível e espacial. Que os dois se baseiam sobre um fundamento comum é
tacitamente assumido; por outro lado, seria insípido compará-los. É claro, esta
conjectura não é arbitrária: o fato de que o padrão permanece o mesmo é determinado
pela persistência da proporção quantitativa – proporção de freqüência na Gestalt
musical e proporção entre comprimento dos lados na Gestalt geométrica. Por que
e são a mesma melodia, a mesma Gestalt tonal?
As notas não são as mesmas, nem o são as freqüências, mas as mesmas proporções
são preservadas enquanto nota sucedendo nota. A nota inicial Sib em nosso primeiro
exemplo tem a freqüência número 468, e a nota inicial Sol no segundo exemplo, 390;
a segunda nota no primeiro exemplo, Mib tem a freqüência 312, que é exatamente
dois terços de 468; a freqüência da segunda nota Só no segundo exemplo, 260, é
exatamente dois terços de 390. Em ambos os exemplos, o próximo passo leva a uma
nota cuja freqüência é 9/8 daquela da nota precedente, e assim por diante. Se a
proporção de freqüência entre as duas notas iniciais Sib e Sol é 468 : 390, isto é, 6 : 5,
todos os pares seguintes de notas manifestam a mesma proporção 6 : 5. Por que são
similares os dois triângulos e , isto é, de mesma forma embora de
diferentes tamanhos?

Porque os lados correspondentes estão na mesma proporção. Claramente,


observações deste tipo não contribuem mais para o para o entendimento da Gestalt da
visão do que para a Gestalt da audição. O problema é meramente localizado, como
está. Mach escreve: “A questão de por que estruturas geometricamente similares são
também oticamente similares ... contém a totalidade do problema da Gestalt da visão”
Mach toma por admitido que as Gestalten visíveis e audíveis estão intimamente
relacionadas, e que as inferências baseadas na analogia entre as duas são legítimas.

É repetidamente espantoso como mesmo os mais perspicazes e conscienciosos


pesquisadores contentam-se com as analogias mais superficiais quando lidam com
uma questão marginal a seus próprios campos de estudo, e como é fácil descobrir o
que torna tais analogias enganadoras. Se considerarmos a figura geométrica mais
elementar, o triângulo, podemos perguntar se a visão apreendendo a identidade ou
não identidade Gestalt é realmente guiada pelo comprimento dos lados antes que por
suas posições, isto é, pelos ângulos que eles formam. Quando comparando e
, não é o comprimento dos lados mas suas posições – o que vale dizer, os ângulos
– que reconheço como idênticos em ambos, afetado pela diferença de tamanho entre
os dois triângulos. Reciprocamente, reconheço de imediato que e não
são similares, que eles são diferentes em forma, somente porque os ângulos
correspondentes não são iguais, não porque os lados correspondentes são
ligeiramente diferentes em tamanho. Quando olho figuras de formas diferentes, ainda
79

quando os ângulos correspondentes são iguais, por exemplo, e , não


percebemos pequenas diferenças no cumprimento a menos que elas estejam
associadas com diferenças entre os ângulos correspondentes. Que e têm a
mesma forma podemos ver somente depois de desenhar as diagonais entre os ângulos
correspondentes, mentalmente ou no papel, que e não têm a mesma forma
podemos ver de uma vez, embora os comprimentos dos lados diferem menos que no
exemplo precedente. Assim, em geral, parece que no reconhecimento de formas
geométricas, o olho é guiado pelos ângulos, pela proporção direcional e não
dimensional. (Como mais poderiam os círculos, e todas as curvas, serem similares,
terem a mesma forma? Aqui os graus da curvatura fazem o papel de ângulo.) Como
sabe todo leitor dos Elementos de Euclides, o ângulo é uma entidade ainda mais
problemática que a linha reta ou a curva: meia proporção ou meia magnitude, algo
que expressa a inclinação recíproca de duas linhas, a mudança de direção enquanto
passamos de uma para outra. O que corresponde ao ângulo na Gestalt das notas? O
que guia o ouvido em apreender a Gestalt das notas do mesmo modo como o ângulo
guia o olho em apreender aquela visual? Podemos dizer, por exemplo, que as notas
são “reciprocamente inclinadas”? Uma mudança de direção toma lugar enquanto
passamos de uma nota para outra?

Próxima objeção: uma figura deve ter duas dimensões para ser percebida pelo
olho; a ordem das notas conforme a altura tem somente uma dimensão. Se as
melodias estão sendo representadas como figuras, a dimensão tempo – a duração da
nota – pode ser adicionada. Linhas horizontais podem indicar o tempo, as verticais a
subida ou descida das notas. Conseqüentemente, o primeiro passo no motivo citado
acima , seria visto no papel aproximadamente como isto: . Os traços
horizontais representam a nota, com o comprimento dos traços indicando a duração
da nota e sua posição indicando a altura; a linha vertical indica a diferença de altura.
O mesmo par transposto para outro tom _ - mesma Gestalt das notas, a
mesma proporção numérica, mas número de freqüências diferentes – poderia então
ser apresentada por uma figura similar: a mesma Gestalt, a mesma proporção
numérica, mas com diferentes comprimentos. O que é a linha vertical considerada
indicando agora – a razão 3 : 2 obtida de ambos e ou a redução
em freqüência na proporção 6 : 5 que resulta de sua transposição? No primeiro caso,
a figura seria a mesma, não similar, e o quadro não mostraria que o motivo tinha sido
transposto; no último caso, a figura não seria mais similar porque a linha vertical
seria mais curta, enquanto as horizontais representando a duração da nota
permaneceriam as mesmas de antes.

Uma representação geométrica pura das relações das notas pode ser realizada
somente se, ao invés das figuras, usamos linhas verticais para indicar freqüências e a
proporção entre elas. O intervalo poderia então ser representado por ,
o intervalo transposto por . As diferenças em altura estão aqui
representadas por diferenças de comprimento, e a proporção igual de seus
80

comprimentos expressa o fato de que os dois padrões de notas são idênticos. Mas é
ainda verdade que aqui, também sem usar figuras ou ângulos, apreendemos
diretamente a identidade de dois padrões, ou igualmente apreendemo-la tão
diretamente quanto ouvimos a identidade das melodias? No diagrama colocado
abaixo, podemos ver imediatamente qual dos três pares à direita exibem a mesma
proporção de comprimento que a do par à esquerda?

Podemos ver tão imediata e inconfundivelmente quanto ouvimos que


(par a) é corretamente transposto em (par c) mas não em (par b) ou
(par d)? A fundamentação na qual a comparação da audição e da visão é
suposta repousar, prova sob investigação ser tudo menos sólida.

Última e decisiva objeção: é de modo algum significativo o caso em que a


Gestalt tonal permanece inalterada na transposição porque as proporções das alturas
permanecem as mesmas. Esta última é certamente uma condição necessária mas não
suficiente. É suficiente ouvir a escala maior como a uma melodia. Dó – Ré – Mi – Fá
– Sol – Lá – Si – Dó certamente diz algo mais do que a mesma coisa duas vezes em
diferentes posições. E ainda as proporções das alturas em Dó – Ré – Mi – Fá é a
mesma que aquela em Sol – Lá – Si – Dó. Para a Gestalt das notas permanecer
inalterada na transposição, não é suficiente manter inalteradas as proporções das
alturas das notas: devemos também olhar para aquilo que a qualidade dinâmica das
notas não muda, isto é, que o centro dinâmico é modificado com as outras notas. Nem
poderia ser de outro modo, pois uma nota se torna parte de um todo musical em
virtude de sua qualidade dinâmica, não em virtude de sua altura, e a qualidade
dinâmica de cada nota é determinada pela sua relação ao centro dinâmico, não por
sua posição ou sua freqüência em relação às notas vizinhas.

No motivo o intervalo caracterizado pela proporção de


freqüência 2 : 3, a quinta, ocorre duas vezes. É a quinta a mesma coisa
que a quinta ? É a mesma somente em um sentido abstrato, afastado da
realidade musical. Afinal de contas, igualmente o intervalo toma lugar
não no vácuo, um espaço tonal vazio, mas em um campo dinâmico que o próprio
intervalo cria e define. Somente enquanto um evento em um campo dinâmico é ele
81

um evento musical, faz ele dizer algo, a saber, 5 – 1. Mas se este é o caso, é
por não significar a mesma coisa em outra posição, duas notas diferentes exibindo a
mesma proporção de freqüências: ela diz algo mais, a saber, 2 – 5, e isto é algo mais;
na música, as notas são o que elas dizem. Por esta razão não pode haver tal coisa em
música como a quinta ou a quinta , não mais do que a nota Sib
ou a nota Fá. Aqui somente pode existir a quinta 5 – 1, a quinta 2 – 5 , a quinta 1 – 4,
dependendo de qual quinta se trate (todos os intervalos são lidos descendentes).
Somente a música sabe das notas somente enquanto veículos das qualidades
dinâmicas, somente ela sabe dos intervalos como veículos de afirmações dinâmicas.
Um intervalo de notas transposto para outra tonalidade permanece o mesmo para o
ouvido musical somente se ele diz a mesma coisa que aquela não transposta.

O que foi discutido no trecho anterior não foi a melodia propriamente dita, uma
seqüência prolongada de notas, mas os passos de nota a nota: os intervalos. É uma
matéria de debate se o material construtor da música atual consiste de notas
individuais ou de intervalos. Seja como for, a menor unidade musical (a qual não é
suscetível a subdivisões em partes menores) é o intervalo. Quando Ernst Mach
formulou os problemas envolvidos nos padrões das notas, ele estava correto em
escolher o intervalo como “o dado em sua forma mais simples”. Toda investigação
psicológica sobre como nós ouvimos a música se centra em torno do intervalo.
Desafortunadamente, na maioria dos casos, uma noção errônea e não-musical de
intervalo serve de base. Todos os psicólogos, inclusive os da Gestalt, tratam o
intervalo como uma relação entre notas no espaço tonal, como um fenômeno acústico
mais do que como musical. Até hoje os intervalos estudados pelos psicólogos da
música são intervalos mortos, tal como as notas investigadas pelos primeiros
psicólogos mecanicistas eram notas mortas. O intervalo musical, no entanto, é vivo e,
tal como a nota, deriva sua vida das forças das notas, das posições das notas. Somente
porque ela é viva, em virtude das forças ativas em e através dela, pode um intervalo
ser ligado a outro, pode uma seqüência de graus dar nascimento a um todo tonal de
uma ordem mais alta, uma melodia. que começa a Fuga em Mib menor
de Bach, não é uma “quinta”, 2 : 3; é 1 – 5, o soar de pólo e contrapólo, sugestivo da
tensão primordial que é a marca de legitimidade da nossa música. O que segue
não é uma série de segundas ascendentes e descendentes, 15 : 16 : 15
1/2
: 13 : 12 : 13 : 15; se fosse, onde estaria o limite, o ser significativo? É 5 – 6 – 5 – 4
– 3 – 4 – 5, o qual prolonga a tensão introduzida por 5 por mover-se em torno da
tensão da nota. Então chega a , certamente não qualquer quarta, 3 : 4, mas a
quarta 1 – 4, cuja função aqui é começar a redução gradual da tensão, .
Deste modo, a afirmação viva do primeiro intervalo dá nascimento à idéia musical:
82

Neste sentido, não em qualquer outro, como uma cadeia de afirmações, é a


idéia musical aprendida e compreendida pelo ouvido.

Somente de um intervalo acústico morto é verdade que proporções iguais de


freqüência garantem resultados iguais, quando alturas diferentes são usadas. O
intervalo vivente é qualquer coisa menos indiferente para ser modificado para trás e
para adiante no espaço tonal, como se ele fosse uma coisa morta. Se eu começasse a
fuga com Sib – Fá, diretamente após tocar o prelúdio, não ouviria o mesmo intervalo
como antes em uma posição abaixo: desta vez ele expressaria algo muito diferente, a
saber 5 – 2. Em vez de determinar o pólo e o contrapólo, o grau proviria
exclusivamente o último, o aspecto de tensão. No seguinte Fá – Solb – Fá – Mib,
ouvimos não um mover-se em torno de 5, a nota tensão, mas 2 – 3 – 2 –1, uma
gravitação em torno do centro, isto é, o pólo – uma afirmação inteiramente diferente.
Se eu continuo e toco o tema inteiro

o que ouço é sem dúvida o mesmo tema de antes deslocado para uma posição abaixo;
mas eu o ouço como o mesmo não por que as proporções das alturas são as mesmas,
mas por que meu ouvido foi reorientado no processo e o centro dinâmico foi
deslocado com Réb – Mib – Fá – Sib (abaixo), para que as notas preservem suas
qualidades dinâmicas não obstante suas novas posições, e os intervalos digam a
mesma coisa que antes. Se faço uma leve mudança tocando Ré – Mib – Fá – Sib
(abaixo) ao invés de Réb – Mib – Fá – Sib (abaixo), meu ouvido não será reorientado:
a quarta transposta Sib – Mib dirá 5 – 8 – isto é, quase o oposto do antecedente 1 – 4 –
e tanto o resultado da idéia será então alterado quanto demandará uma continuação
inteiramente diferente. Se o ouvido apreende Sib – Fá sem ter sido preparado para ele
por meio do prelúdio, o intervalo será, por razões a serem colocadas abaixo,
claramente ouvido como 1 – 5. Neste caso, o ouvido foi corretamente orientado desde
o início, e o tema é verdadeiramente ouvido em uma posição abaixo – um exemplo de
perfeita transposição. Claramente, o intervalo musical é qualquer coisa menos
insensível a mudanças no espaço tonal. Ao contrário, ele é altamente sensível a toda
mudança de posição. Por saber expressar coisas muito diferentes com o mesmo
intervalo, a linguagem musical desde Bach tem descoberto um de seus principais
meios de expressão. Pegando um exemplo ao acaso, um homem que ouça a melodia
de Beethoven
83

meramente como três passos iguais, três quartas gradualmente ascendentes, e falha
em ouvir como o mesmo intervalo acústico toma um novo significado enquanto
ascende de 1 – 4 através de 2 – 5 para 3 – 6 – a conclusão Fá – Mib – Réb – Dó
recapitula a quarta 6 – 5 – 4 – 3, escrita de trás para diante – tal homem não ouve
música. (O significado da primeira quarta, 1 – 4, é definido pelo contexto.) A
diferença entre a Gestalt acústica e a musical é ainda mais aparente quando não
somente a proporção das alturas mas também as próprias alturas permanecem as
mesmas, embora as qualidades dinâmicas sejam alteradas. Para tornar esta uma
transformação notável, é mais freqüentemente necessário adicionar novas vozes ou
acordes à melodia. No exemplo seguinte:

a mudança é efetuada dentro da própria melodia. O intervalo Dó – Si, 6 – 5, no


primeiro compasso, diz 2 – 1 no segundo. Intervalos podem dizer diferentes coisas
usando os mesmos meios tão bem quanto a mesma coisa usando meios diferentes.

À primeira vista, pode parecer que a psicologia da Gestalt está especialmente


equipada para fazer justiça a este fato. Apesar de tudo, o princípio de que o todo é
percebido antes de que suas partes implica em que o contexto de uma dada Gestalt
determinará de qualquer forma elementos que são considerados idênticos em si
mesmos permanecem os mesmos; isto também implica que os elementos que não são
idênticos por seu padrão podem tornar-se os mesmos dentro do contexto de uma
totalidade. A comparação com as Gestalten visuais imediatamente demonstra a
frouxidão deste argumento. As duas linhas verticais que eu percebo como iguais em

são percebidas como desiguais em . Em termos da Gestalt


auditiva e ouvidos separadamente, ouvidos como no começo da
fuga, são “o mesmo em diferentes posições”. Mas, ouvidos dentro do contexto da
Gestalt, neste caso a conexão do prelúdio e da fuga, e não são nem
de longe o mesmo: é algo mais que transposto. Mais geralmente,
então, se a repetição de um intervalo é para ser tomada como expressando o mesmo
sentido musical ou um diferente depende de sua função dentro da Gestalt como um
todo.
84

Mas é realmente a Gestalt – pois, apesar de tudo, esta questão precisa ser
perguntada – que dá ao intervalo um sentido ou outro, que determina seu significado
musical? É a Gestalt do Prelúdio em Mib menor que responde pelo fato de que
diz 1 – 5 no começo da fuga, enquanto que diria 5 – 2? Realmente
qualquer prelúdio leva ao mesmo resultado desde que ele conclua na mesma
tonalidade. De fato, uma vez o centro tenha se tornado evidente, por quaisquer meios,
os intervalos serão ouvidos expressando realmente o que eles expressam a um dado
ponto. A estrutura de cujo contexto um ou outro significado do intervalo é derivado,
por essa razão, não é uma Gestalt mas um sistema. O que um intervalo diz – isto é, o
que ele é enquanto um evento musical – é determinado não por sua posição na
Gestalt das notas ou no espaço tonal, mas só e exclusivamente por sua posição no
campo dinâmico. Todos os intervalos de todas as Gestalten diatônicas das notas
derivam dos significados das afirmações das sete qualidades dinâmicas das notas no
sistema diatônico, o qual é sempre o mesmo. Para ser claro, as qualidades dinâmicas
são ouvidas somente em notas dentro de um contexto musical enquanto Gestalten das
notas; embora elas se originem não na Gestalt mas nas próprias notas, na medida em
que elas pertencem a um sistema, e as notas, como os números (não custa repetir
isto), existem somente “dentro de um sistema”. A qualidade dinâmica da nota – a
incompletação da nota, seu apontar além de si mesma – não é dirigida para outras
notas dentro de uma dada Gestalt, mas para outras notas do sistema ao qual
pertencem. Sons sem qualidade dinâmica audível, sons enquanto fenômeno
puramente acústico, formam também Gestalten audíveis. Sinos repicantes, o canto
dos pássaros, o soar de sirenes – eles, também, são estruturas dinâmicas, pois uma
Gestalt vem a existir sempre que uma “força” recebe a sustentação da “matéria”. Na
Gestalt musical, no entanto, a própria “matéria” é a “força”: a Gestalt musical é uma
estrutura dinâmica de alta ordem. As forças das notas não são as forças da Gestalt.
Realmente, o dinamismo da Gestalt musical pressupõe dinamismo tonal; e a teoria da
audição que pode adequadamente responder pela audição da Gestalt ainda tem um
longo caminho a percorrer antes que possa explicar adequadamente como as
Gestalten musicais e as qualidades dinâmicas podem ser ouvidas.

Tanto quanto diz respeito à psicologia da Gestalt, a audição musical não pode
ser basicamente diferente de outros tipos de audição ou, por essa razão, de qualquer
outra percepção dos sentidos. Desde que nossos sentidos sempre percebem o mundo
externo na forma de Gestalten, esta teoria considera a Gestalt tonal como uma das
muitas Gestalten auditivas, uma dentre as muitas Gestalten do mundo exterior
percebidas pelos sentidos. Conseqüentemente, os conceitos básicos desta teoria
podem ser aplicados ao fenômeno musical somente na medida em que esta última não
é essencialmente diferente de outros fenômenos auditivos, isto é, somente na medida
em que eles são acústicos, e não especificamente musicais. Mas ouvir música, ouvir
qualidades dinâmicas, é ouvir o que as notas dizem, pois notas são significativas,
audivelmente significativas; um contexto musical é um contexto significativo e, na
realidade, exatamente como um fenômeno musical não é uma Gestalt mas um veículo
para expressar significados. Pelo mesmo motivo, a audição musical é essencialmente
85

diferente de qualquer outra espécie de audição. O som de sinos (uma Gestalt


auditiva), também tem significado – não em si mesmo ou para o ouvido, mas somente
por estar associado a algo mais, à fonte sonora, por exemplo. Uma sentença falada,
outra Gestalt auditiva, tem significado não de fato como uma sentença: cada palavra
individual, como cada nota de uma melodia, tem um significado seu próprio. Mas o
significado de uma palavra deve ser dado, deve ser conhecido, não está diretamente
presente para a audição, enquanto nas notas musicais o som com seu significado está
presente para a audição. Somente os sons musicais são diretamente percebidos como
significativos; somente neles ocorre a pura apreensão do significado: aqui o
significado é percebido pelos sentidos. Esta é a característica especial e única da
audição musical, a “ruptura das linhas limite” no campo da percepção. Cada espécie
de percepção, cada espécie de audição, incluindo a espécie musical, envolve a
apreensão de uma Gestalt, mas na música o significado é apreendido antes da Gestalt.
Aqui e em nenhum outro lugar, a audição funciona não meramente como um órgão
que apreende Gestalten, como faz qualquer outro órgão dos sentidos, mas como um
órgão da compreensão. Ao ouvir e distinguir as qualidades dinâmicas das notas, o
próprio órgão ascende ao nível espiritual de compreensão sem a ajuda de outras e
“elevadas” funções. A máxima de Kant de que a intuição sem conceitos é cega, não
se aplica às intuições da audição musical. Aqui, o intuído é significativo como tal;
intuição é apreensão de significado. Aqui, o fato “despido”, tão amado pelos teóricos
– despido de significado, despido de sentido – é simplesmente não-existente.

(É desnecessário dizer, que todo o precedente é verdade somente para a música


tonal, isto é, música cujas notas e intervalos estão relacionados audivelmente a um
centro supra-ordinário; ele não é verdade para a música dodecafônica deste século, as
notas da qual não estão sujeitas a esta ordem ou às suas implicações de diferenciações
características. Nesta nova música, as doze notas da escala cromática são tratadas
como sendo inteiramente iguais. Sem relação a tonalidades, não há contexto para a
sucessão das notas: esta pode ser relacionada somente a cada outra. Nenhuma quebra
radical com o passado está envolvida, pois nos últimos estágios da música tonal
houve uma mudança ainda mais rápida de tonalidade a tonalidade, nenhuma
tonalidade estando autorizada a prover um ponto fixo de referência por muito tempo.
Com a nova música, a tonalidade muda a cada passo: cada intervalo tem, por assim
dizer, seu próprio centro de referência. O intervalo torna-se absoluto, permanece
completo em si mesmo, e nada expressa que não a relação entre duas notas de
diferentes alturas. Ligações entre intervalos sucessivos podem ser criadas somente
por meio do padrão formal dado por estes intervalos: estes provêm seu único
princípio estrutural. Então, muito logicamente, cada composição é baseada em sua
própria série de notas, um arranjo particular das doze notas numa ordem definida,
mas nunca a mesma em obras sucessivas. A série agora serve como princípio
sistemático, substituindo a tonalidade na música tonal. Como pode ser evidente, os
padrões da música dodecafônica são baseados puramente sobre relações de altura e
são plenamente consistentes em relação aos preceitos da psicologia da Gestalt. De
fato, elas servem para ilustrar sua teoria. No entanto, o desenvolvimento da música
86

atonal não tem investido contra quaisquer que sejam os problemas muito diferentes
de responder pelos princípios estruturais da música tonal.)

A Gestal Pseudo-temporal

Notamos acima que a psicologia da Gestalt falha ao considerar outro aspecto


do fenômeno musical, a saber, como o tempo é percebido em uma seqüência de
notas. Notamos também que esta escola, por muito boas razões, primeiro testou seu
equipamento com padrões espaciais e sobre esta base desenvolveu seu conceito de
Gestalt. Foi natural passar a pensar os padrões temporais como sendo
aproximadamente bastante parecidos com os espaciais, envolvendo somente um
“antes” e um “depois” de espaços sucessivos. Esta abordagem mostra-se bastante
infrutífera. Gestaltistas não “reduzem” realmente tempo em espaço, à velha maneira
mecanicista. Gestaltistas atualmente dinamizam o espaço – “O espaço visual é um
evento dinâmico mais propriamente do que um padrão geométrico” – deste modo
ligando-o ao tempo, o qual de sua parte era dinamizado de qualquer modo. A antítese
tradicional entre espaço e tempo aqui parece perder sua agudeza. Padrões espaciais e
temporais podem agora ser vistos como duas manifestações do mesmo fenômeno
Gestalt básico, diferindo somente no modo como as partes do todo são percebidas –
ao mesmo tempo, simultânea ou separadamente, como uma seguindo a outra. Um
padrão espacial é apreendido diretamente como um todo; um padrão temporal é
construído passo a passo, por um processo de crescimento por justaposição, cada
novo elemento sendo adicionado ao precedente, o qual é um tanto preservado como
eco ou recordação. Apesar de tudo, muitas estruturas espaciais (esculturas, grandes
construções, uma cidade inteira) são tomadas pelo olho parte a parte; seus
componentes não são percebidos simultaneamente, mas como uma seqüência de
vistas parciais. A diferença entre os dois modos de impressão de soma é não mais do
que em um caso todos os elementos estão presentes a uma só vez, enquanto, no outro,
somente alguns estão realmente presentes, o restante sendo representados mais ou
menos conscientemente por eco ou recordação. Em ambos os casos, o todo da Gestalt
contém todas as partes – se não de fato, então ao menos para a mente.

Inicialmente, a sucessão no tempo apresenta um problema real para a escola da


Gestalt: como pode o todo determinar suas partes onde não mais que uma parte a
cada tempo está ainda presente para a percepção? Mas logo o problema diminui
consideravelmente em importância. As partes serem percebidas uma após a outra não
requer uma modificação essencial do conceito da Gestalt. Gestaltistas freqüentemente
parecem pensar que este modo de apreender as coisas como totalidades pode ser
atribuído a fatores estranhos, que isto é forçado sobre nós por alguma limitação de
nossa própria constituição; estivéssemos nós equipados com um olho todo-abarcante,
87

sem dúvida nossa apreensão de Gestalten esculturais e arquitetônicas seria muito


mais satisfatória. No caso de padrões puramente temporais, também, podemos
observar como a Gestalt, a qual unifica as partes apreendidas uma após a outra, foge
das e se eleva acima delas para alcançar uma realidade sua própria. O significado de
uma sentença falada, na qual as palavras individuais são ouvidas consecutivamente, é
formada por todas as palavras juntas: ela sai da seqüência temporal das palavras e
existe na mente como uma Gestalt autônoma. Podemos imaginar que ouvimos
melodias de modo similar, como se estivéssemos olhando uma figura sendo
desenhada num quadro, e como se cada linha, após ser traçada por uma mão fosse
apagada pela outra antes da próxima linha ser começada – apagada, isto é, do quadro
mas não da mente, na qual cada linha é armazenada, para que no fim após a última
linha ter sido apagada e nada restar para ser percebido, uma figura construída por
todas as partes juntas esteja presente na mente.

Tais analogias entre espaço e tempo são tão naturais, tão sedutoras, que elas
facilmente obscurecem a impossibilidade – até mesmo, o absurdo – da concepção na
qual estão baseadas. Para clarear a situação, vamos voltar para o processo elementar
do intervalo.

Até agora temos discutido somente intervalos entre notas que soam
sucessivamente, não simultaneamente como um acorde. A psicologia da Gestalt está
meramente sendo coerente quando falha em distinguir precisamente entre os dois
(isto é verdadeiro, de algum modo, para todas as outras teorias psicológicas da
música). Ela é também coerente em exibir uma certa predileção pelo acorde: de fato,
duas notas de diferentes alturas soando simultaneamente provê uma ilustração ainda
mais notável da característica quase-espacial do padrão tonal do que duas notas
soando em sucessão. Por esta razão, os Gestaltistas tratam a seqüência como o
acorde quebrado em duas notas sucessivas. Eles usam os termos “horizontal” e
“vertical” (derivado do modo como os símbolos são arranjados em nossa notação)
para designar a diferença entre o passo e o acorde, porque em seu ponto de vista esta
diferenciação não é essencial como aquela entre duas figuras no espaço geométrico.
Uma simples rotação de 90° é suficiente para tornar uma horizontal uma vertical – a
própria linha permanece a mesma de antes. De acordo com eles, toda a diferença
entre e vem disto: no acorde, a unidade da Gestalt é baseada na ligação
entre duas notas de fato presentes ao ouvido, enquanto no passo ela é baseada na
ligação entre uma nota de fato presente e outra presente somente como um eco tardio
ou uma recordação. Agora, isto pode ser verdadeiro para o intervalo visto como um
evento puramente acústico, mas a situação é muito diferente em um evento musical.
Aqui a diferença entre , uma seqüência de duas notas, e , um acorde, não
pode ser superestimada. O passo horizontal 1 – 5 é tudo menos uma dobradura para
fora no tempo do intervalo vertical 1/5. Na seqüência , a nota Ré é relacionada
audivelmente para trás à nota Sol, uma nota, no entanto, que está ausente. A tensão de
5, seu apontar em direção a 1, é aqui percebido como uma tendência, um anseio, isto
é, uma privação; a qualidade dinâmica da nota expressa uma ausência, a não presença
88

de 1. Mas de acordo com os gestaltistas, o momento 1 está presente ao ouvido, quer


de fato ou somente na forma de um eco ou uma recordação, ouvimos o oposto:
realização ao invés de privação, completação ao invés de ânsia. Similarmente, a
primeira nota da seqüência, 1, é ouvida primeiro como uma demanda urgente, um
esforço para a e na expectativa de realização, enquanto o som proclama ambos,
demanda e realização. Fosse uma versão temporal de , deveria ser
a mesma coisa em reverso, a imagem especular de , e seria uma
configuração estritamente simétrica. Para o ouvido musical, no entanto, não
é realmente um movimento de vai e vem, mas é primeiro e mais que tudo uma
progressão, uma história; a nota conclusiva, embora seja a mesma da abertura, é tão
diferente dela como uma expectativa realizada de uma expectativa ainda não
realizada. Para o olho, pode ser simétrico; para o ouvido isto é quando
muito simétrico somente como o são pergunta e resposta. Mas uma resposta nunca é a
pergunta ao reverso. Sucessão no tempo não pode ser interpretada em termos de
simetria espacial ou quase-espacial.

A Gestalt pseudo-temporal de vista como o desdobramento temporal do


acorde , o qual a mente abstrai de uma seqüência, é construído como segue:
quando a primeira nota soa, a segunda é antecipada, esperada; e quando a segunda é
ouvida, a primeira está presente como uma recordação. Aqui nenhuma característica
negativa é reconhecida, nem o “não ainda” do futuro nem o “não há muito” do
passado. Ambas as notas são interpretadas como no presente, uma realmente presente
e a outra como antecipação ou recordação. Esta é uma falsa estrutura do tempo, uma
negação ou, até mesmo, uma abolição dele. Ao contrário, na autêntica Gestalt
temporal de a seqüência no tempo não é algum tipo de translação de um
conteúdo extra-temporal: o significado do intervalo é a grande essência do tempo: o
tempo é seu sangue vital. A qualidade dinâmica de 1, da primeira nota, a qual
expressa uma demanda, é simplesmente um audível “não ainda”, e a segunda
expressa um “não há muito” audível (e um audível “não ainda” em relação ao
próximo intervalo). A realidade do intervalo consiste da progressão de um “não
ainda” audível para um “não há muito” audível. A qualidade dinâmica da nota
tomada em si mesma – tensão dirigida, originária da incompletação da nota, sua
privação, seu esforçar-se para ser completada – é precisamente isto: a grande
presença, a existência audível do “não ainda” e do “não há muito” em si, isto é, como
não-existência. Isto é o oposto exato do que ocorre na Gestalt pseudo-temporal, na
qual antecipação e recordação implicam em um estancar do fluir do tempo para
avante, uma negação de qualquer diferença entre uma coisa sendo presente e ela não
sendo presente à consciência. Mesmo uma concepção séria de como o tempo é de
fato estruturado pode começar por postular o puro não-ser como algo real, algo que
pode ser percebido – a audibilidade do tempo. Este velho paradoxo para o intelecto,
não é problema para a audição musical. Ao abolir o paradoxo, você abolirá a música.
89

Claro, há acordes na música; talvez as descobertas e conquistas no campo da


simultaneidade do som sejam a grande aquisição da música Ocidental; e um acorde, a
tríade, tem mesmo sido considerado como uma espécie de idéia platônica de toda a
música. Seqüências do tipo podem somente ser percebidas como
acordes quebrados em seus componentes; sua designação como “acompanhamento”
sugere sua natureza de acorde. Grandes compositores têm, em passagens de alguma
extensão, criado melodias simplesmente pelo arranjo das notas de um acorde em uma
sucessão temporal:

Em outras palavras, existem configurações tonais para as quais a interpretação “quase


espacial” da teoria Gestalt pode ser aplicada.

Como para a tríade, deve ser primeiro repetido que em música não há tal coisa
como a tríade, não mais do que a nota ou a quinta. A música reconhece a tríade
somente como graus harmônicos, como tríades do I, II, III graus etc. – como acordes
definidos cada um pela posição de sua fundamental no campo dinâmico, a qual o
relaciona ao campo dinâmico supra-ordinário. Em harmonia, o evento elementar não
é o acorde mas o passo acordal, como o passo da nota é para a melodia. Aqui,
também, é totalmente enganoso distinguir entre melodia como sendo a dimensão
horizontal e harmonia como sendo a vertical da música. A música conhece somente a
horizontal. Somente que a melodia é uma progressão tonal, um movimento tonal,
enquanto a harmonia é progressão acordal, movimento acordal. Ainda quando o
acorde individual tem um grande valor auditivo, por assim dizer, mais que a nota
individual, aqui, também, a peculiar audição musical é caracterizada pela direta
percepção de relações. Precisamos somente pensar nas tríades de I e V grau para
realizar como muita da diferença entre estados dinâmicos superam a identidade dos
estados acústicos, tanto quanto diz respeito à audição.

Apesar de tudo, é inegável que a tríade, considerada em si mesma, é um


fenômeno musical porque a ouvimos não meramente como um conjunto de três notas
arranjadas em um padrão de altura definido, mas como uma organização dinâmica,
como o conjunto de três notas dinamicamente relacionadas uma com a outra como 1,
3 e 5. A tríade é o que uma nota individual não pode ser: demanda e realização,
empenho e consumação, em um. Por esta razão, ela é completa em si mesma,
perfeita. Separação e união, conflito inicial e reconciliação final, são aqui
incorporadas em um só, o qual pode ser dito que simboliza ou contém em gérmen
todas as coisas que a arte da música oferece em sua forma completamente
desenvolvida. Enquanto um símbolo, a tríade está situada fora do tempo, também fora
do espaço – ao menos não no sentido usual de totalidade do local onde todas as coisas
estão situadas – mas em uma forma de super-tempo, o qual os místicos antigos e
modernos chamam de “o momento de eterna duração”. Revertendo o dito platônico
90

de que o tempo é a imagem movente da eternidade imóvel, poderia se chamar a tríade


de a imagem eternamente imóvel do tempo em movimento.

Desnecessário dizer, o ouvido permanecerá tão distante de um som que é um


evento em si mesmo quanto de uma nota individual a qual se torna um evento
somente em uma seqüência de notas; e o evento interno do acorde pode também
expressar a si mesmo externamente, em um certo sentido, como uma seqüência de
sons, como um movimento – e não somente como pseudo-movimento, na forma de
acompanhamento, mas também como verdadeiro movimento tonal, na forma de
melodia. Há melodias triádicas, melodias acordais, padrões tonais que podem ser
interpretados como quase-espaciais, como a fragmentação – dilatar, estender, esticar
– de um “tudo a uma vez” dentro de um antes e um depois. O tema da Heróica de
Beethoven , que é muitas vezes citado em relação a isto, é
realmente uma adição passo a passo dentro de um padrão que não está meramente
presente enquanto uma idéia: os dois acordes que abrem a sinfonia são uma versão
compacta da tríade que o tema seguinte resolve em movimento, e são reconstruídos
desde o movimento. Aqui, toda uma nova nota de fato toma seu próximo lugar nos
ecos tardios das notas precedentes; um todo no qual todas as partes estão presentes
simultaneamente é aqui desenvolvido enquanto uma seqüência temporal:

Contudo, tentar estender este ponto de vista quase-espacial da teoria Gestalt,


além da estreita fronteira dentro da qual ele é válido, falha quando confrontado com
os fatos. Na melodia de Weber citada a seguir, , o princípio
quase-espacial da organização é dominante nos três primeiros compassos; esta
dominância termina com a nota Dó# quando realizamos que a seqüência precedente
de notas vive somente em um tempo emprestado, por assim dizer. A nova nota
certamente não se alinha com o eco tardio das notas precedentes; se fosse, o
resultado, , seria o oposto daquele intencionado neste ponto, a se julgar pelo
acompanhamento. Mais precisamente, ele oblitera todo o seu eco. Ao momento em
que Dó# é ouvido, o som precedente cessa de estar presente qualquer que seja a sua
forma. Ele certamente não cessa de ser; melhor, ele entra, por assim dizer, em um
novo modo de ser; ele começar a ser ausente. Ao dizer 2, a nota Dó# mantêm vivas
todas as coisas precedentes com toda a sua força, mas precisamente como algo que
não está presente. Muito disso é também verdade para a segunda parte da frase da
melodia, . Igualmente este tipo de melodia, a qual consiste
grandemente de uma progressão de acordes, não pode ser interpretada como um todo
desdobrado no tempo, todas as partes do qual estão simultaneamente presentes.
Realizamos de imediato que tal interpretação é absurda quando consideramos
91

qualquer melodia que não é uma progressão de acordes: seria o


caos, não Gestalt. Em uma melodia, cada nova nota oblitera a presença daquela que a
precedeu, a fim de a referir mais seguramente para sua ausência. (Nem toda melodia
que progride nos passos da tríade pode ser interpretada enquanto uma extensão
temporal de uma Gestalt quase-espacial. A melodia de Bach

É certamente mais que uma tríade de Dó Maior desdobrada no tempo. A grande


abertura é uma terça genuína, um afastar-se de, um salto, um esforço,
novo e surpreendente, em contraste com a terça de Beethoven , a qual
sem esforço copia uma forma que não é nova, não é um afastar-se de; e enquanto a
quarta de Beethoven não diz nada que ainda não sabemos, a de Bach
se eleva com tremenda força para um passo mais elevado).

Não somente com respeito ao “não ainda” mas também com respeito ao “não
há muito” é possível detectar uma diferença entre os dois tipos de melodia. Em um e
outro caso ouvimos uma melodia, notas como veículos de forças, cada nota
incompleta em si mesma, apontando para além de si mesma, ansiando ser completa.
Em ambos os casos, a audição é antecipatória, dirigida para a nota ainda não ouvida.
Agora, na melodia acordal, esta audição antecipatória é guiada pelo padrão tonal
prefigurado no acorde: o ouvido é em certo sentido dirigido pelo último, sua
antecipação como algo razoavelmente previsto. Cada nova nota serve meramente
para confirmar o que o ouvido havia antecipado: o centro de interesse e suspense
sobre como o padrão dado de antemão será satisfeito passo a passo, não sobre o quê
irá satisfazê-lo. Se ainda este interesse está ausente, o previsto torna-se certeza; os
sons não têm nada a confirmar. O que ouvimos é meramente “acompanhamento” ou
má melodia. Em contraste, em uma melodia não-acordal, isto é, em uma melodia pura
e simples, esta audição antecipatória penetra um vazio. Aqui nada é dado em
antecipação: aqui não há padrão, nenhum todo que possa guiar o ouvido. Neste caso,
a audição não é guiada; ela tem que encontrar seu caminho. Ela não está prevista nem
em seu como nem em seu o quê, somente quanto ao seu para quê. Cada nova nota é
tanto esperada quanto inesperada, cada uma é um evento, uma descoberta, uma
surpresa. Isto é verdade igualmente para a nota concludente: muitas coisas podem
ainda acontecer antes do fim; freqüentemente, de fato, surpresas ocorrem antes da
nota final ser alcançada, surpresas não somente para o ouvinte mas igualmente para o
compositor (um exemplo bem conhecido: as duas versões do Prelúdio n° 1 do Cravo
Bem Temperado). O padrão das notas é de fato construído passo a passo, tirado à
força do vazio; ele se descobre e encobre para o ouvido nota a nota. Estritamente
92

falando, não podemos ouvir tal padrão como uma totalidade, como fazemos com um
acorde desdobrado no tempo; podemos somente após tê-lo ouvido.

Pode-se notar, contudo, que somente um padrão de audição deste tipo penetra
no vazio, não há nada dado para sua previsão; por outro lado, algo muito importante
– um sistema tonal completo – é dado a ele: em termos mecânicos, o teclado com
suas teclas brancas e pretas, e em termos musicais, um campo dinâmico, uma ordem,
uma lei. Mas a diferença entre os dois tipos de melodia não é meramente qualitativa,
entre as três ou quatro notas do acorde e as sete ou doze notas do sistema. A diferença
permanece fundamental. Na melodia acordal, o que é dado de antemão é já um
padrão; na outra, o caso mais geral, este não é um padrão, é um sistema, uma lei: a
possibilidade de um padrão, a matriz de todos os padrões possíveis. Tudo o quanto é
dado deste modo não dirigirá o ouvido para qualquer padrão específico. A presciência
do ouvido para a lei que governa as energias tonais – seu conhecimento sobre o que,
manifestado por sua habilidade para identificar as qualidades dinâmicas das notas – é
intimamente ligada com o não-conhecimento, um mero conhecimento do quê tanto
quanto os padrões são afetados, e conseqüentemente com uma urgência descobrirá o
padrão. Limitada audivelmente ao sistema, sujeita audivelmente à lei, a nota é ao
mesmo tempo inteireza audível livre para um infinito de padrões tonais possíveis.

A psicologia da Gestalt pode elucidar como ouvimos padrões quase-espaciais,


pseudo-temporais, mas até agora tem sido incapaz de elucidar como ouvimos os
autênticos padrões temporais. Em outras palavras, sua teoria da percepção dos
sentidos omite considerar a audição musical especificamente, a percepção das
qualidades dinâmicas das notas. O gestaltista pode elucidar como um todo extra-
temporal ou supra-temporal é gradualmente construído na mente, como o passado
(depositado na memória) confluindo com o futuro (antecipação ou presciência) dá
forma ao presente. Ele tem uma elucidação para o todo determinar suas partes, ainda
quando o primeiro não está nunca inteiramente presente à percepção, e o último
somente um a cada tempo. Isto é o equivalente a dizer que cada qualidade dinâmica
de uma nota única nota é mais ou menos conscientemente determinada por
recordações do passado e antecipações do futuro: que eu ouço o que há para ouvir por
que eu tenho ouvido o que houve para ouvir e será ouvido o que haverá para ouvir.
Esta é uma falsa descrição do papel do ouvido na música. Isto é justamente o que não
acontece. De fato, embora isto force a gramática para colocar a experiência em
palavras, eu ouço o que é, eu ouço o que foi, e eu ouço o que será. O que acontece
quando ouvimos notas com suas qualidades dinâmicas não pode ser descrito em
termos de passado, presente e futuro. Aqueles que, por meio de forçar a gramática,
dividem o tempo em diferentes espécies de tempo colocam a si mesmos fora do
tempo, deixam o tempo ir. Mas ouvir música é ser fluído com o tempo, é conhecer o
passado e o futuro somente enquanto características do presente fluente, enquanto
suas duas direções, desde onde e para onde. Assim podemos entender como as forças
tonais podem ser ouvidas e os padrões tonais apreendidos. Os gestaltistas não podem
compreender a estrutura musical salvo enquanto uma fusão extra-temporal de
passado, presente e futuro; somente pela evocação da recordação e da antecipação
93

eles podem combinar as partes sucessivamente ouvidas do padrão dentro de um todo.


Para eles a música deve ser como um fenômeno incompreensível, como muito de
uma ruptura de linhas para outro reino da percepção dos sentidos, como o foi para os
psicólogos acadêmicos do século dezenove.

Paul Valéry deu-nos uma descrição acurada e eloqüente desta ruptura de


linhas:

“Enquanto um resultado, a música possui um reino que é absolutamente seu


próprio. O mundo da arte musical, o mundo dos sons, é completamente separado do
mundo dos ruídos. Enquanto um ruído evoca meramente em nós um evento isolado,
um som produzido evoca em si mesmo todo o universo da música. Se nesta sala onde
estou falando, onde vocês ouvem o ruído de minha voz junto com outros vários
eventos auditivos, uma nota fosse repentinamente ouvida – se um diapasão ou um
instrumento bem afinado começasse a vibrar – o momento em que você fosse afetado
por este ruído inusual, o qual não pode ser confundido com outros, você
imediatamente teria a sensação de um começar. Uma atmosfera completamente
diferente seria imediatamente criada, um estado especial de expectativa seria sentido,
uma nova ordem, um novo mundo seria anunciado, e sua atenção seria organizada
para recebê-lo.”

Peças musicais têm sido compostas expressamente para prover exatamente essa
“sensação de um começo” que Valéry evoca. As improvisações de Beethoven podem
ser vistas como um exemplo característico. O exemplo mais refinado talvez seja a
abertura Freischütz de Weber. A primeira nota soa, inconsciente de onde ela vem e
para onde ela está indo, mas ela tem um tipo de esforço em si, e em uma poderosa
arremetida para adiante encontra sua oitava. Encorajada por isto, ela se arrisca um
passo para trás, então um passo para adiante, então novamente apalpa cautelosamente
para trás e experimenta começar tudo outra vez – até o ponto em que o contrapólo é
descoberto. Este, também, tem sua oitava, com suas novas vizinhas ao lado dela;
novamente há um tatear para trás, uma parada, e então soa a mais pura tríade, a partir
da qual a mais pura melodia é desenvolvida. A música começa a nascer dentro de
outro mundo. Aqui a música escrita é autobiográfica: a nota, diferente e sempre não
mais que um elemento de um padrão, volta para dentro de si mesma, inquire sobre
sua própria natureza, buscando e encontrando sua própria resposta.

Fisiologia e as Qualidades Dinâmicas das Notas

E agora a fisiologia. A discussão que se segue não lida com o estado presente
de nosso conhecimento a respeito dos processos orgânicos envolvidos na sensação
94

auditiva – processos de incrível complexidade. Ela somente se propõe a mostrar que


eles hoje são vistos de um novo ângulo, e que a mudança de perspectiva tem algo a
cerca da questão de como apreendemos as qualidades dinâmicas das notas.

“Eu ouço uma nota”. A maioria das pessoas interpreta esta afirmação como ela
era interpretada há cem anos atrás. A membrana do tímpano no ouvido é colocada a
vibrar por uma onda sonora, a vibração se propaga para o ouvido interno, e, depois
que é comunicada via nervos auditivos para o cérebro, produz uma sensação de som.
Nem a primeira ligação nem a última no encadeamento estão em questão aqui,
somente a intermediária. O que acontece entre a membrana do tímpano e o centro
cerebral? Em virtude da complexidade inacreditável do ouvido – em comparação com
o olho é como uma bicicleta para um automóvel – a questão envolve dificuldades
esmagadoras.

A resposta clássica foi dada por Helmholtz no seu On the Sensations of Tone
[Sobre as sensações das notas] e, fora de um estreito círculo de especialistas, ela se
mantém válida até os nossos dias. O ponto principal desta teoria é o seguinte: no mais
interno recesso do ouvido, dentro de uma passagem em forma de caracol, o labirinto
membranoso, uma membrana delicada esticadamente estendida está embebida em um
fluído. A membrana é composta por mais de dez mil fibras variando de 0,04 a 0,5
milímetros de comprimento. Ela se comunica com o mundo externo através de uma
janela minúscula, cuja placa elástica vibra em união com a membrana do tímpano.
Somente as fibras de um comprimento específico e de um grau específico de tensão
respondem a uma vibração específica propagada pelo canal auditivo: as fibras atuam
como as cordas de uma harpa ou piano com o pedal acionado. Cada fibra está
conectada com o cérebro por um nervo que, estimulado pela vibração em sua
terminação, produz um estado de excitação para o outro. Para cada nota de uma dada
altura (isto é, freqüência) assim corresponde uma fibra vibrante no ouvido interno,
um nervo atuando como condutor e um ponto específico no cérebro, e a excitação
deste ponto parece ser a “causa” da sensação auditiva. Os harmônicos que
normalmente acompanham toda nota similarmente tocam os processos orgânicos e
nervosos correspondentes às suas freqüências; mas os harmônicos são normalmente
muito fracos para produzir sensações auditivas por si próprios. Eles, contudo,
“colorem” a nota fundamental de várias maneiras (a nota de uma flauta, de um
trompete, e assim por diante). Quando muitas notas ressoam simultaneamente, as
fibras, nervos e células cerebrais correspondentes são ativados simultaneamente, mas
cada uma de modo independente das outras; é por isto que um ouvido treinado pode
facilmente analisar um acorde em seus componentes.

Como se pode ver, a teoria da audição que caracterizamos como tradicional é


intimamente relacionada a esta clássica, a assim chamada teoria da ressonância. De
acordo com esta, nós sempre ouvimos notas individuais, seja uma depois da outra ou
combinadas em um som. Que os sons são ouvidos separadamente é mostrado pela
estrutura do ouvido e pelo arranjo das partes do cérebro conectadas com ele. Cada
nota em si mesma é como a corda de um piano. O que une uma nota à outra, o que
95

acontece entre elas, não pode ser apreendido pelo ouvido, mas somente por alguma
outra função “mais elevada”.

A teoria da ressonância como originalmente formulada por Helmholtz


imediatamente incorre em dificuldades consideráveis e foi finalmente abandonada
pelos fisiologistas. Ela é baseada na admissão de que quando uma fibra vibra, todas
as outras (exceto, talvez, aquelas adjacentes) permanecem em repouso. Arbitrária de
início, esta admissão mostrou-se insustentável. A imagem da harpa dentro do ouvido
tem uma certa competência, mas para se aproximar dos fatos deve-se supor que todas
as cordas da harpa são unidas umas às outras por fios esticadamente estendidos, e que
o instrumento inteiro está imerso em um banho de mercúrio. A ressonância ainda
tomará lugar, mas com uma diferença, que agora não realmente uma corda vibrará,
mas o sistema inteiro, ou pelo menos uma razoável porção dele. As vibrações se
propagarão para áreas cujo tamanho e localização irão variar dependendo da altura da
nota. Se o processo é interpretado deste modo, a teoria original é logo incompatível
com os resultados da pesquisa experimental. De acordo com Helmholtz, as sensações
do som estão localizadas em áreas definidas do cérebro; assim, se é verdade que a
sensação produzida por uma nota de altura definida corresponde à excitação de uma
área definida do cérebro, uma lesão nesta área tornaria impossível ouvir notas
daquela altura. Tem sido demonstrado que não é este o caso. A destruição de partes
limitadas do centro auditivo cerebral não produz, como regra geral, as lacunas que se
esperaria com base nesta teoria. Em contraste, se admitirmos que a vibração de uma
freqüência específica se propaga para áreas relativamente grandes do centro auditivo
cerebral e envolve complexos inteiros de filamentos nervosos, esta objeção particular
a esta teoria é eliminada.

Esta e outras objeções levantadas contra a teoria da ressonância, levaram


consequentemente à formulação de uma teoria inteiramente diferente, conhecida
como teoria da “freqüência” ou do “telefone”. De acordo com esta, a causa
fisiológica da sensação da nota não é uma estimulação vagamente definida de
filamentos nervosos; em seu lugar, é admitido que as vibrações da membrana são
transformadas em como que muitos impulsos elétricos, os quais são transmitidos para
o cérebro. Como resultado, nervos e cérebro realmente “vibram” com a mesma
freqüência que a nota. O que acontece é o seguinte: as fibras do labirinto
membranoso – as cordas da “harpa” – são equipadas com células capilares muito
pequenas as quais carregam cargas elétricas e estão conectadas com as terminações
dos nervos auditivos. As células capilares vibram com a membrana; com cada
vibração, a distribuição das cargas elétricas em sua superfície é alterada, e as
flutuações resultantes da tensão produzem impulsos elétricos no nervo. Os impulsos
viajam ao longo dos filamentos nervosos alcançando o cérebro. De acordo com a
teoria da ressonância, somente uma fibra da membrana, um nervo e um ponto no
cérebro devem ser ativados para produzir a sensação de uma nota específica; de
acordo com a teoria do “telefone”, cada fibra, cada nervo e cada ponto no centro
auditivo cerebral podem produzir a sensação de cada nota. Qual nota particular será
96

ouvida, depende somente do número de impulsos nervosos (similar em freqüência às


vibrações do som) transmitidos para o cérebro.

Esta teoria também entra em conflito com os fatos. Experimentos provam que
os nervos auditivos podem receber e transmitir não mais que 1.000 ou 2.000 impulsos
por segundo, não os 5.000 ou 10.000 ou 15.000 impulsos correspondentes ao número
de freqüência das notas agudas. Tentativas têm sido feitas para rodear esta
dificuldade, por admitir que os impulsos elétricos são propagados por meio de
complicadas ligações, sobre feixes de filamentos nervosos, e também pela
combinação da teoria do “telefone” com a teoria da ressonância, a primeira
respondendo pela percepção das notas graves, a segunda pelas notas altas. A
discussão está ainda em curso.

Examinando as teorias fisiológica e psicológica da audição, notamos que


ambas se desenvolvem ao longo da mesma linha – desde a primazia da parte
individual sobre o todo, desde o dado elementar à Gestalt, desde as interpretações
mecanicistas às dinâmicas. A teoria clássica da audição trata a onda sonora
individual, definida por um número específico de freqüências, como algo isolado do
começo ao fim, até o exato momento quando ela excita um ponto em particular no
cérebro; na última teoria, a onda individual em processo para ser transmitida para o
cérebro afeta uma área de tamanho considerável, de modo que a terminação
fisiológica resulta não na excitação de uma área específica mas em uma distribuição
específica das tensões elétricas sobre uma porção extensa do cérebro, uma tensão
global específica ou, se você quiser, um padrão de tensão. O último irá variar para
cada nota, cada acorde; mais do que isto, ainda uma e a mesma nota resultará em
diferentes padrões de tensão se ela não tiver sido precedida por notas idênticas. A
mudança produzida por uma dada nota sobre a tensão total obviamente dependerá de
qual tensão ocorreu antes. Do mesmo modo, ondas produzidas por uma pedra atirada
em uma superfície calma de água irão diferir daquela produzida quando a pedra é
atirada em uma superfície turbulenta. A teoria clássica da ressonância, cuja grande
realização foi explicar como o ouvido pode analisar um acorde em suas notas
componentes, foi incapaz de explicar como o ouvido combina as notas componentes
em um todo – e não somente as notas de um acorde, mas também uma seqüência de
notas, uma melodia. É absurdo ainda supor que o ouvido pode perceber se uma onda
sonora individual corresponde à nota Ré, por exemplo, foi precedida por uma onda
sonora individual correspondendo à nota Dó ou Dó#. O meio de vibração não tem
memória; ele vibra com uma freqüência específica, não com outra: isto é tudo. Mas
se o próprio todo tonal, de um acorde ou de uma progressão, afeta a condição total do
ouvido e o centro auditivo cerebral, não é mais incompreensível em princípio como
um todo tonal, uma relação entre notas, pode ser ouvida como tal. Deste modo, não
parece absurdo olhar para características correspondentes às relações audíveis entre
as notas – as qualidades dinâmicas – por exemplo, a característica que distingue a
nota Ré = 1 da nota Ré = 2 ou Ré = 7, ou a característica que a nota Ré = 1
compartilha com a nota Mi = 1, ou Ré = 2 com Mi = 2 – se não no fenômeno físico,
97

isto é, a onda sonora, ao menos enquanto fenômeno fisiológico, a tensão total do


centro auditivo.

Aqui estamos obviamente sugerindo um novo programa de investigação


experimental – ou, se não um novo, uma nova versão de um antigo programa. Pois o
problema foi formulado claramente muito tempo atrás por Ernst Mach em termos
gerais quando ele escreveu: “Se eu posso fragmentar B [B representando a sensação,
N o processo nervoso] em muitos componentes psicológicos independentes, não
deveríamos descansar até descobrirmos componentes similares em N correspondentes
àqueles em B... Para todas as particularidades psicologicamente observáveis em B
deveremos encontrar particularidades físicas em N”. Até agora esta exigência tem
sido só parcialmente satisfeita. Os componentes acústicos das sensações das notas
(altura, sonoridade, timbre e duração), os componentes psicológicos das sensações
que as acompanha, e os processos orgânicos e nervosos correspondentes a eles têm
sido sistematicamente investigados; mas o componente (se ele pode ser assim
chamado) que gera a sensação do som musical, a qualidade dinâmica, tem sido
desconsiderado. As novas teorias psicológicas igualmente não têm tocado o problema
da audição musical. O mesmo é verdade para as teorias psicológicas da música: onde
elas lidam com o processo de audição, há sempre a questão da altura, sonoridade,
timbre e duração das notas, e as sensações que as acompanham, as qualidades
especificamente sensoriais das notas, isto é, do fenômeno acústico e psicológico. Isto
é particularmente acertado onde a interação entre as notas é investigada, e onde
alguém poderia ter a expectativa que o fenômeno musical não poderia ser ignorado,
mas aqui os temas tratados estão confinados ao tempo das notas, à combinação das
notas, ao desvanecimento das notas e assim por diante, isto é, puramente o fenômeno
acústico, e as qualidades sensoriais específicas associadas às notas ouvidas em
proporções de alturas definidas.

Os investigadores até agora se concentraram sobre questões tais como aquela


formulada por Ernst Mach, “Qual é o componente sensorial que é estimulado por
uma combinação de terças?”. Para ser claro, há deste modo uma coisa como a
qualidade de uma terça como tal, e seria ridículo negar que ela joga um papel dentro
da música (por exemplo, as terças de Mozart, as terças “italianas”), mas isto serve
meramente como um revestimento para o fenômeno musical propriamente, como um
colorido, como um epifenômeno. A qualidade musical propriamente não é o que as
terças têm em comum, é mais propriamente, por exemplo, a qualidade que distingue a
terça 1 – 3 da terça 2 – 4. Mas este problema não é nunca investigado. Como para a
tríade, o que deveria ser investigado não é a qualidade sensorial que caracteriza
audivelmente toda tríade maior, mas a qualidade sensorial que distingue a tríade
maior de primeiro grau daquela mesma tríade maior de quinto grau – o último acorde
da seqüência do último acorde da seqüência . O que deveria ser
procurado é o N correspondente a este B. A diferença no estado dinâmico do mesmo
acorde, tão marcante que ele próprio comunica para o corpo todo, um agudo aumento
de tensão no segundo caso e o relaxamento da tensão no primeiro, deve de algum
modo estar refletido em um processo fisiológico correspondente. Certamente não que
98

um acréscimo ou diminuição de tensão no centro auditivo corresponda a um ou outro


acorde – tal idéia seria infantil – mas claramente de tal modo que a tensão produzida
pelo mesmo acorde seria diferente se o som precedente fosse diferente.

Nesta conexão, um antigo trabalho de muito interesse pode ser mencionado. De


acordo com a teoria formulada pelo neurologista Walter Börnstein em seu tratado
Der Ausbau der Funktionen in der Hörsphäere, a função auditiva humana é dividida
em uma função básica e uma função mais elevada. A tarefa da primeira é perceber
ruídos e alavancar as reações motoras correspondentes; é comum ao homem e ao
animal. A última função é subdividida em percepção da linguagem falada e
percepção da música, e é especificamente humana. Sua tarefa é apreender padrões
sonoros. A função básica está localizada no centro auditivo primário do córtex
cerebral, o qual não é subdividido além disso. As duas funções superiores estão
localizadas nos centros secundários do córtex. Os sons “são transmitidos através da
circulação auditiva [do centro primário]” para os centros secundários, onde eles são
transformados em padrões verbais ou musicais. O que é peculiar à performance do
centro onde os padrões musicais são formados é que nele os padrões são apreendidos
dentro de sua própria esfera; aqui, apreensão não é nada mais que audição, enquanto
a apreensão dos padrões verbais envolvem outras funções que vão além da percepção
do dado puramente sensorial. (Apreender um ruído, ouvindo o que ele é, envolve
também outras funções.) A tarefa essencial e crucial das funções cerebrais é
distinguir entre alturas: de acordo com Börstein, os padrões musicais se originam
diretamente das diferenças de alturas, e os animais não percebem esta última; onde
eles parecem reagir a notas de diferentes alturas, eles estão reagindo realmente a sons
diferentes em definição, sonoridade, vocalização e timbre. Assim, de acordo com ele,
a linha que separa o acústico do fenômeno especificamente musical é traçada entre as
três qualidades acima mencionadas e a altura. Tendo reconhecido que os padrões
tonais se originam não na altura mas nas qualidades dinâmicas das notas, devemos
deslocar a linha por um passo, assim então a altura cai no domínio do acústico, e
podemos seguramente admitir que os animais não podem perceber diferenças de
altura. Por outro lado, nada muda no quadro dado por Börstein: o centro onde os
padrões musicais são formados é agora o foco no cérebro onde as qualidades
dinâmicas são transformadas em sensações auditivas.

Vamos admitir que o processo no centro musical do cérebro poderia gravar em


filmes e diagramas, assim desse modo poderíamos de fato ver como uma tríade I
difere de uma tríade V. Poderíamos então “explicar” como as qualidades dinâmicas
das notas são ouvidas? Poderia um enigma então ser resolvido? Poderíamos ter
descoberto a contraparte física no mundo exterior cuja ausência dota as qualidades
dinâmicas com uma condição especial no mundo audível? Teria sido demonstrada a
realidade da música? Não de todo. Meramente viemos um passo mais a dentro da
questão.

Os estados de tensão elétrica no cérebro constituem a ligação intermediária


entre os processos mecânico-materiais dentro ou fora do organismo e o fenômeno
psicológico, isto é, o ato da percepção. Um objeto percebido é admitido como sendo
99

real quando, e somente quando, podemos averiguar a presença de todas as três


ligações da urdidura. Quais aspectos do objeto percebido como um todo pode provar
que as qualidades dinâmicas das notas são algo real, não somente imaginadas? A
teoria clássica da audição não tem resposta. As teorias modernas têm uma: não um
aspecto, mas o todo, o padrão do objeto percebido. Em uma nota individual ouvimos
como o todo afeta a parte; percebemos forças padrões-estruturadoras em ação. E o
que percebemos, como um todo determinando suas partes, tem sua contraparte
demonstrada nos processos fisiológicos, nos estados de tensão do sistema nervoso.

Esta resposta pode ser suficiente no que concerne ao padrão visual; ela não
alcança o problema dos padrões das notas musicais. Voltado ao exemplo citado

anteriormente: na figura as duas verticais são iguais em comprimento; na

figura as mesmas linhas são desiguais – mas então só aparentemente, isto é


geralmente acrescentado, pois se constata que elas são iguais quando medidas. Mas
qual aqui é a matéria que precisamente aparenta desigualdade, não a qualidade
mensurável. Aqui todas as três linhas da urdidura estão presentes: o fenômeno físico
da distribuição de luz, a percepção visual, e entre as duas, o processo elétrico no
centro visual cerebral. Neste último, se o estado de tensão correspondente a ele
pudesse ser gravado em diagramas, deveria considerar o fato das linhas
mensuralmente igual nos padrões visuais poderem ser percebidas como iguais em um
caso e como desiguais em outro. Um fenômeno análogo no domínio dos padrões
audíveis ocorre quando a mesma nota parece ter uma altura diferente em dois
contextos tonais diferentes, por exemplo, a nota anterior à última em

e . Em um padrão esta nota


tem a qualidade dinâmica 4, na outra a qualidade dinâmica 7. É esta diferença entre
as duas qualidades dinâmicas, o fato de que 7 aponta em direção a 8, e 4 em direção a
3, o que considera a aparente diferença de altura. Ver as linhas mensuravelmente
iguais como iguais em um caso e desiguais em outro, é igualado por ouvir notas de
igual freqüência como diferindo em altura. E ainda não é verdade que a nota é para o
ouvido o que a linha é para o olho, porque na qualidade dinâmica nós podemos ouvir
para o que a nota se esforça. A fim de compreender completamente esta diferença,
imagine que podemos ver a linha aparentemente mais curta tentando tornar-se maior,
e a outra linha tentando tornar-se menor. Somente se pudéssemos ver isto, poderia ser
exata a analogia com a qualidade dinâmica das notas. Nossa surpresa diante de tal
fenômeno no mundo visível expressa o que permanece incompreensível no fenômeno
musical ainda após o caráter dinâmico do padrão ter sido reconhecido e
inteligivelmente relacionado ao processo dinâmico nervoso. Se a qualidade dinâmica
das notas fosse enraizada no padrão tonal, seria possível representar nossas três linhas
no seguinte diagrama:
100

(F representa o processo físico, o número de freqüências, N representa o processo


fisiológico no sistema nervoso, P e D os elementos psicológicos da urdidura, a
apreensão do padrão e da qualidade dinâmica.) Deste modo, a urdidura seria
completa, e a qualidade dinâmica conectada com o processo material. Mas de fato as
qualidades dinâmicas das notas não estão enraizadas no padrão tonal – o reverso é o
caso: os padrões tonais estão enraizados nas qualidades dinâmicas das notas – de
modo que o diagrama seria visto como algo assim:

Aqui o lugar no processo material que leva a D permanece desocupado; a fenda


permanece aberta, e com ela a questão da realidade de D. Desde que em ambos os
casos estamos lidando com processos dinâmicos, facilmente nos esquecemos que as
forças tonais têm seu lugar próprio para uma categoria diferente das forças operando
em nossas três linhas da urdidura. A última se manifesta por seus efeitos, a primeira
em sua atividade. D não é um efeito causado por forças ativas; D é uma força ativa, a
qual produz o efeito, a saber P. As qualidades dinâmicas das notas não podem ser
reduzidas a forças elétricas.

Recapitulando: as teorias atuais da audição, ainda enquanto revolucionadas


pela moderna psicologia e fisiologia, não se ajustam aos fatos da audição musical.
Em particular, elas falham em considerar o fato extraordinário do ouvido perceber as
qualidades dinâmicas das notas diretamente como forças em ação e interpreta seu
significado ao mesmo tempo. Não obstante o que possamos eventualmente estar
considerando, isto é certo: ao apreender as notas musicais nos tornamos cônscios de
uma mescla única e incomparável de realidade, atividade e significado.
101

XII. Ouvindo Movimento

Ouvir música é ouvir movimento: a interpretação da música tem diferido em


todos os tempos, mas em um cômputo de longo alcance esta concordância prevalece.
Como o conceito de movimento, em geral, pode ser revisado à luz da experiência
musical foi tratado em outro lugar8. Aqui, estamos interessados em suas
conseqüências para uma definição da audição. Desde que a música existe apenas e
inteiramente para ser ouvida, devo experimentar, ao ouvi-la, o tipo de movimento que
ela é. Como entendemos o tipo de audição que pode perceber progressões de notas
como movimento?

“Ouvir movimento” usualmente se refere a eventos muito diferentes dos


eventos musicais. Quando eu ouço alguém passando à frente de minha janela no
escuro, meu ouvido funciona como órgão de orientação espacial: ele determina o
lugar e pelo mesmo indício a mudança de lugar de uma fonte sonora. Ao executar
esta função o ouvido humano não se distingue por qualquer exatidão especial; muitos
animais são muito mais superiores a este respeito. Ainda, a função é biologicamente
valiosa, pois ela informa o organismo sobre eventos em seu ambiente quando a luz
está ausente e o olho não está sendo usado. Vamos admitir que nosso caminhante está
assobiando , e assim por diante. Agora ouvimos dois
movimentos – aquele do cantor e aquele da canção. Porque o mesmo verbo, “ouvir”
serve para denotar ambos, alguém poderia pensar que ele denota uma única função
apreendida em dois eventos diferentes. Mas isto seria tomar a linguagem muito
literalmente. Nem poderíamos argumentar que o mesmo órgão está envolvido em
ambos os casos. Em vista da esmagadora complexidade do ouvido e sua rede de
conexões nervosas, “o mesmo órgão” pode denotar coisas muito diferentes. Somente
em um sentido crassamente superficial pode a função de apreender o movimento de
um tipo familiar, o deslocamento de um corpo, ser “o mesmo” que aquele de
apreender um tipo radicalmente diferente de movimento, um movimento sui generis
no qual nada está se movendo, nada está ainda em um dado lugar a um dado tempo.
Em um caso, a audição, como outras percepções dos sentidos, se refere a um
comportamento do organismo em seu ambiente, e assim serve à sua auto-preservação

8
Som e Símbolo: Música e o Mundo Exterior, capítulos 7 – 10.
102

no sentido mais amplo; no outro caso, a audição não serve de modo algum a qualquer
propósito biológico. Ela é, como tem sido dito muitas vezes, uma função luxuriosa; a
informação que ela conduz – concernente à relação entre notas – não tem nada a ver
com a auto-preservação do organismo. Por outro lado, se considerarmos os esforços
tremendos que a natureza tem feito a fim de desenvolver a habilidade auditiva para
distinguir afinações puras (sem a qual nenhuma música seria ouvida) – sua “harpa”
com dez mil cordas comportando pequenas células eletricamente carregadas, e uma
rede nervosa altamente complexa a qual (se a hipótese acima mencionada provar-se
correta) conecta-a com um centro cerebral especializado em ouvir música – se
considerarmos tudo isto, hesitaremos em chamar esta função uma luxúria, a menos
que usemos o termo no mesmo sentido como quando dizermos que o homem é um
produto “luxurioso” do mundo animal, ou a mente um produto “luxurioso” da
natureza.

Para compreender como o movimento das notas é apreendido, devemos formar


uma idéia tão exata quanto possível deste tipo de movimento.

Há algo semelhante ao movimento corpóreo, e há algo semelhante ao


movimento psíquico; movimento e emoção [N. T.: em inglês, “motion” e “emotion”].
Agora, a alma, a psique, certamente não é um corpo que ocupa um lugar definido,
que pode se mover de um lugar para outro; por esta razão afirma-se que somente em
um sentido metafórico pode o termo “movimento” ser aplicado à alma ou à psique.
Tais movimentos, dizemos, são realmente nada que não estados que se sucedem, se
modificam, da mente de um “ser”, embora seja muito questionável se os termos
“mente” e “ser” correspondem a algo que existe independentemente destes estados,
se a expressão “estados da mente” seja muito mais do que uma concessão de nossa
gramática. Não obstante, quando digo, “Eu estou profundamente movido por uma
visão”, digo algo muito definido, e muito diferente do que estaria expresso pelas
palavras “meu estado de mente” ou “um estado da mente se modificou”. Se a palavra
“Eu” pode permanecer em sentenças tais como “Eu estou contente”, “Eu estou com
medo”, “Eu estou me levantando”, ou “Eu estou caindo de sono”, isto é bastante
certo: o termo “mudança” é uma designação altamente imprecisa do que acontece ao
“Eu”. O que distingue o movimento de uma mera mudança ou sucessão de “estados”
é a presença inegável de um elemento de atividade. O último pode ser provocado por
uma impressão externa; ainda quando origina-se em si mesmo, em uma força interna,
ela alimenta a si própria; seu nível se eleva e cai como a água em uma fonte. Na
verdade, é como se a dúvida expressa em relação à existência do ser como cerne
permanente e substrato destes estados em mudança servisse somente para confirmar a
percepção de que o termo “movimento” aqui denota algo real, não é uma mera
metáfora. É suficiente recordar a carreira do termo “fluxo de consciência” em
psicologia, e especialmente o fato de que o homem que a cunhou negava
enfaticamente a existência do “ser” e a realidade da alma. Um fluxo sem água, um
fluindo sem um fluxo, teria há muito sido rejeitado como sem sentido.

De qualquer modo, isto é bastante claro: o movimento tonal é movimento


psíquico, não corpóreo, um movimento sem substrato material, movimento não-
103

espacial, espontâneo e auto-movimentador. Os estados da mente no movimento


psíquico são igualados pelos estados dinâmicos em contínua mudança e internamente
coerentes do movimento tonal. O movimento assim ouvido é “emoção”, não
movimento dos corpos. Neste sentido, a proposição “ouvir música é ouvir emoção” é
verdadeira.

É bem conhecido, contudo, que esta proposição é de modo algum interpretada


sempre neste sentido. Para esclarecer seu próprio significado e dissipar a confusão
criada por ambos os proponentes e os opositores da teoria emotiva da música,
primeiro de tudo é necessário discriminar tão claramente quanto possível o que se
apresenta para nós na música enquanto movimento audível. Por motivo de
simplicidade, uma melodia monofônica, o previamente citado Coral de Aleluia,
servirá como nosso exemplo. Afinal de contas, a música tem isto em comum com um
imã, que mesmo uma partícula minúscula dela exibe todas as suas características
essenciais.

A abertura já foi discutida. : a presença de um campo dinâmico é


revelada; uma nota, Ré, é colocada no centro; a repetição da abertura confirma este
resultado. O que se segue? Lá soa – o contra-pólo, 5, inconfundivelmente dirigida
para Ré, atraída por Ré. A seqüência de notas, submissa ao puxão da força ativa,
fecha prontamente a lacuna entre 5 e 1, passo a passo. Isto não quer dizer que a
tensão será reduzida gradualmente: Mi, 2, mais apropriadamente aumenta a tensão
mais enfaticamente, perturba o equilíbrio mais perceptivelmente; e justo neste ponto,
antes do último, um passo crucial no qual o esforço para alcançar 1 torna-se tão
pronunciado quanto seja quase tangível, o movimento faz uma parada. Ele começa
novamente com Mi e agora acontece o oposto do que a nota havia se esforçado:
embora a tensão de 2 não tenha sido resolvida, a seqüência se move para longe de 1,
em uma direção contra aquela da força ativa – o caminho se detém a cada passo que
começa sugere uma batalha contra a força que atrai para baixo – até o
contra-pólo Lá ser alcançado outra vez, e com ele o ponto de mudança. A direção é
revertida, as notas cedem à atração das forças ativas, e a tentativa que falha da
primeira vez obtém sucesso da segunda vez: passo a passo, 1, o centro dinâmico, é
alcançado e seu equilíbrio é restaurado. Devido ao prolongamento da penúltima nota,
Mi, sugere-se por um momento a possibilidade de que a meta pudesse não ser
alcançada também não desta vez, a restauração final do equilíbrio é muito mais
relaxante. (A linha poderia também ser lida , mas o efeito seria bem
mais fraco.)

A segunda metade da melodia é basicamente pretendida como uma repetição


da primeira; ao contrário da primeira metade, no entanto, ela começa não com
104

mas diretamente com : confirmar Ré como 1, depois da


nota já ter sido estabelecida enfaticamente como o centro dinâmico, não faria sentido.
O começo com Lá é tanto mais forte porque 5 é agora contrastada com um 1 que foi
reforçado pela repetição. Deste modo, a segunda metade da melodia é desde o início
marcada por uma tensão e uma contra-tensão ainda mais forte. A idéia de repetir a
primeira frase parcial assume o comando desde a primeira metade. Isto implica que
agora temos duas tentativas mal sucedidas de alcançar 1, e duas perturbações do
estado de equilíbrio, com o resultado da tensão a este ponto estar aumentada. Assim,
de modo algum é “a mesma outra vez” que obtemos quando a melodia repete sua
primeira seqüência desde : aqui o movimento para cima, para longe
desde 1, poderia se afirmar contra uma contra-força ainda mais forte. Similarmente, o
reverso da direção desde Lá marca um terceiro começo, a terceira tentativa de
alcançar o equilíbrio; e a conclusão marca um ponto de término real, pois ela
resolve todas estas tensões construídas.
O que acontece nesta melodia pode ser representado pelo seguinte diagrama:

O que vemos aqui, o processo dinâmico – tensões e contra-tensões, a ação e a


interação das forças tonais – é precisamente o que dá à melodia sua coerência interna
e significado, o que faz dela uma melodia, esta melodia em particular. O diagrama
traça o desenvolvimento desta melodia em seu próprio caminho. Ele demonstra como
um campo dinâmico é produzido; como pólo e contra-pólo são anunciados; como as
notas primeiro cedem ao puxão das forças por um curto trecho, então resistem a ele,
correm contra ele, e ao final rendem-se a ele; como a primeira linha melódica
separadamente e então ambas as linhas combinadas estão determinadas pela tensão
fundamental 1 – 5 – 1; e como a segunda metade de cada linha é construída sobre a
tensão não-resolvida da nota 2, e então sustentam juntas e são carregadas por ela.
Esta e não outra coisa é o que ouvirmos, o que devemos ouvir, quando ouvimos as
notas como melodia, pois somente isto e nada mais torna estas notas uma melodia.
Se ouvir uma melodia é ouvir movimento, deve ser esta alternância significativa de
estados dinâmicos que é ouvida como movimento e entendida somente pelo ouvido,
sem o recurso das funções intelectuais. Recordamo-nos de uma linha em um poema
notável sobre o tema da música, “Movimento significativo areja de frescor minha
razão com maravilhamento”9.

Um diagrama tal como aquele dado acima não somente relembra o


desenvolvimento melódico em si; revela também sua ordem interna. Ele mostra a

9
Gerard Manley Hopkins, “Henry Purcell”.
105

melodia como uma criação individual e como estrutura governada por certas leis.
Além disso, como será visto no próximo capítulo, uma dada graduação de melodias
artísticas pode ser lida de tal diagrama. Aqui, parece primeiro de tudo confirmar um
sentimento que temos quando ouvimos esta ou qualquer outra boa melodia – um
sentimento de que tudo nela é absolutamente necessário: que nem uma única nota
pode ser adicionada ou removida, que cada nota deve ser exatamente o que ela é.
Agora, a fim de obter maior percepção sobre o que torna o movimento tonal diferente
de todos os outros tipos de movimento, devemos entender como sua inegável
necessidade sempre coexiste com uma igualmente inegável liberdade. Nenhuma nota
deve ser diferente do que é, ainda cada nota poderia ter sido diferente do que ela é;
não fossem ambas as proposições igualmente verdadeiras, não existiria a música.

Na descrição da melodia coral, após a repetição da introdução ,


encontramos a questão “O que se segue?” Para compreender a natureza do
movimento tonal, dificilmente algo é mais essencial do que a realização que diante de
cada passo, diante de cada nova nota, a melodia é confrontada com esta questão, com
este espaço vazio. Por que deveria a dupla repetição ser seguida pela
nota Lá? Alguns dirão: por causa da lei que governa esta melodia, porque tudo nela
tem a característica de necessidade. Mas quem sabia a lei antes da melodia ter sido
completada, antes que todos os passos fossem dados? O que seria “falso”, contrário à
lei, se o segundo fosse seguido não por um Lá mas por um Ré e
continuasse assim: ; ou se o Lá fosse seguido não por mas por
? Bem, então teríamos uma melodia diferente, com uma lei e uma
característica de necessidade sua própria. Que a segunda linha da melodia deveria
começar com é ditado não pela lei, prescrita não pela necessidade; é o
resultado da genuína inspiração, uma decisão da qual a melodia nada sabe, por assim
dizer, até que ela tenha sido completada e por meio da qual ela realmente cria a si
mesma. É deste modo que ela cria a si mesma passo a passo, arrancando sua forma do
vazio; a lei que a governa não é dada em avanço; a melodia deve descobri-la passo a
passo, como se ela se revelasse gradualmente; uma melodia pode também perder seu
caminho e falhar em descobrir a lei. Neste caso, sua característica de necessidade é
sempre reconhecida post factum. Cada passo, conforme está sendo feito, é livre;
depois de feito, ele é necessário. Liberdade em prospecção, necessidade em
retrospecto: esta dualidade é característica do tipo de lei que governa o movimento
tonal. O mesmo tipo de lei – liberdade em prospecção, necessidade em retrospecto –
é acima de tudo característica dos processos vivos. O que é distinto na música é o fato
de que nela esta lei que governa a vida (em um sentido superior) torna-se audível.

Exatamente como distinguimos anteriormente entre movimento corpóreo e


psíquico, iremos agora distinguir entre movimento animado e inanimado, entre o
próprio movimento, ou auto-movimento, e o ser movido por algo além dele, ou o ser
em movimento. Um corpo inanimado está em movimento seja por inércia ou porque
106

ele agiu de acordo com uma força exterior. Se usamos para denotar uma realidade ou
como um termo auxiliar que provê um quadro de referência para uma investigação
racional sobre a causa do movimento, “força” é “o outro” em relação ao “corpo”. O
corpo é o que resiste à força, e força é o que atua “desde fora” contra a resistência do
corpo; um corpo está em movimento quando sua resistência foi superada pela força.
Um movimento é inanimado quando uma força ativa causou seu movimento com
absoluta necessidade; esta é a razão de tal movimento ser sempre calculável a
princípio. Em outras palavras, um movimento é inanimado na medida em que ele é
um fenômeno puramente físico. O princípio de indeterminação que, de acordo com os
físicos modernos, governa os movimentos das menores partículas conhecidas, refere-
se a situações nas quais a distinção entre corpo e força torna-se fluído, no qual a
questão “Por quê?” perde seu sentido tradicional, de maneira que perguntas e
respostas devem ser formuladas em novos termos.

Movimento animado ou vivo é tudo menos indeterminado. É verdade mesmo


para um corpo que move a si mesmo tendo sua resistência sido superada por uma
força ativa. Mas neste caso a força não é “o outro” do corpo, não atua desde fora. “Eu
me movo” implica que o movedor é o movido, que a força atua desde dentro. Os
físicos estão perfeitamente justificados em rejeitar tal distinção, pois não há coisa tal
como um movimento corpóreo que não é de algum modo parte de um sistema
fechado, o qual não está atuando desde fora; assim, é sempre possível olhar para uma
causa exterior para seu movimento. Os movimentos de meu braço junto com os
processos nervosos que lhes disparam podem certamente ser considerados como
produzidos por forças atuando desde fora ou por processos elétricos e químicos
dentro do organismo. Mas isto não abole a distinção entre este movimento como
“meu” e todos os movimentos que não são e não podem ser “meus”. “Eu me movo”:
aqui “eu” sou o movedor e o movido, e na medida em que sou o movedor, eu faço a
escolha, ele não é determinado para mim: “eu” determino o movimento, o qual, por
esta razão, é o que “eu” causo ele ser. Assim, o movimento não é indeterminado, mas
auto-determinado – determinado somente desde o ponto de vista do “ser”, embora
indeterminado desde “outros” pontos de vista. Ao mesmo tempo, “indeterminado”
aqui denota não “menos” mas “mais” determinado. A determinação é plena aqui, mas
é somente acessível desde o lado de dentro.

É esta sobre-determinação, característica de todo movimento animado, que nos


capacita a reconhecê-lo como animado (ainda em outro “ser”) e distingui-lo do
movimento inanimado. O fato de ser possível confundir um com o outro, e de
existirem formas intermediárias, não invalida esta distinção. Compare uma folha
levada pelo vento e uma andorinha voando. O movimento da folha é inteiramente
determinado pelas forças ativas desde o lado de fora: a folha se rende a elas. Quão
diferente é o vôo de uma andorinha. Aqui podemos de fato ver que a orientação, a
direção vem de dentro; impulsos interiores estão trabalhando. É claro, forças
exteriores estão também envolvidas, e a força interior não as coloca de lado nem as
ignora: ao contrário, ela baseia sua própria ação sobre elas, chega a um acordo com
elas, ora submetendo-se a elas, ora resistindo, como se jogasse um jogo. Se o pássaro
107

se submete ao vento ou à gravidade, deixa-se ser guiado ou deixa-se cair, isto não é
exatamente o que acontece; acontece com o consentimento do pássaro, o qual ele
pode retirar a qualquer momento. Quando ele é retirado, quando o movimento é
revertido, quando o pássaro voa contra o vento ou ascende verticalmente ou em
espirais e círculos – o que quer que resulte de uma decisão que poderia ter sido
diferente, e por esta boa razão os movimentos do pássaro não são nunca
descontrolados, acidentais ou arbitrários, mas, antes, internamente consistentes,
determinados e guiados através de seu impulso interior. Em comparação, o
movimento de uma folha – o qual é inteiramente determinado, necessário, o qual não
pode nunca ser outro que não aquele – ocorre-nos como sendo ao acaso, arbitrário e
acidental.

Movimento tonal é movimento animado. Se fosse inanimado, se seu curso


fosse exatamente predeterminado em cada caso, se as notas seguissem um padrão
prescrito pela força ativa, como é o caminho percorrido por corpos inanimados, os
quais são o tema da física, elas não teriam nenhuma escolha senão a de se submeter
ao impulso das forças; elas sempre se deixariam cair como pássaros mortos. Mas o
que ocorre no movimento animado é o exato oposto – um jogo de forças, um chegar a
um acordo com elas, um submeter-se e resistir, cada passo decidido livremente,
determinado desde a interioridade, guiado por meio de um impulso interior, o
resultado sendo um todo bem ordenado e significativo.

Movimento vivente é auto-movimento: quem é o “ser” que se move nas notas?


De quem é a vida que se manifesta nelas? Estas são questões que se voltam sobre si
mesmas, questões carregadas; não importa como você as responda, a resposta é falsa.
Pois elas estão baseadas sobre a admissão importante e não comprovada de que o
“ser” [o “auto”] do auto-movimento é um “eu”. Qual movimento é audível em nossa
melodia coral? Claramente não o do compositor e nem aquele do ouvinte, mas
precisamente aquele das notas. Não há dúvida de existir um relacionamento vivo
entre a melodia e seu compositor, e entre a melodia e aquele que a escuta. Mas o que
torna uma melodia uma melodia, e que apreendemos como um processo vivo, não são
estes relacionamentos, mas as relações de uma nota com outra. Padrões tonais não
são essencialmente diferentes de padrões novelescos ou dramáticos. A vida expressa
em uma novela não é aquela de seu autor, ou aquela de seu ouvinte; a vida expressa
em um drama não é a do dramaturgo: é a vida da própria obra. Na verdade, muitos
novelistas sabem que os personagens que criam freqüentemente vão mais além da
mão de seus criadores, guiando mais do que sendo guiados. Não desmerecemos ao
dizer isso; afinal de contas, aqui temos um “ser”, ainda que ficcional, que pode ser
dito que está vivo. No caso das notas, contudo, especialmente as notas da música
instrumental, não há sequer um ser ficcional: a vida das notas não é aquela de um ser,
mas vida em si, auto-movimento puro. A evidência das notas é inconfundível: há algo
como o auto-movimento, vida pura, ainda que estando relutantes em admiti-lo. Tudo
– os hábitos intelectuais, a lógica, a própria linguagem – parecem falar contra isto.
Nós nos apegamos teimosamente à noção de que a vida deve ser a vida de “alguém”;
se não é, não é vida em qualquer sentido.
108

Em termos desta falsa alternativa, a assertiva de que ouvir música é ouvir


emoção pode somente ser mal interpretada, tanto por aqueles que a aceitam quanto
por aqueles que a rejeitam. Igual ao caso da vida, perguntamos quase
automaticamente, emoção de quem? Outra vez, a suposição implícita na questão
prejulga a resposta, a qual somente pode ser: a emoção do compositor. Assim a
música vem a ser considerada como a linguagem das emoções, dos afetos. Assim
como as palavras faladas são signos audíveis por significar o que de um “ser”
expressa e comunica idéias, supões-se que as notas são signos audíveis intentando
expressar e comunicar emoções. Se este ponto de vista é rejeitado, a única coisa que
resta é negar qualquer relacionamento entre música e emoção. As notas não
significam emoção, não são signos deste tipo de movimento, mas elas mesmas estão
neste tipo de movimento, em emoção; a emoção neste caso é aquela das notas, não
aquela de um “ser”, e todavia não importa quão clara a evidência da música possa ser
nesta consideração, não podemos admiti-la. Somos apanhados em uma alternativa
falsa: ou a música é a linguagem das emoções ou ela nada tem a ver com emoção.
Assim, começa e termina o debate estéril sobre se a musica é autônoma ou
heterônoma, se ela se refere a emoções ou a nada disso tudo.

Para colocar ordem na confusão que prevalece sobre este tema, examinaremos
em mais detalhe um dos argumentos que Eduard Hanslick coloca em evidência no
seu bem conhecido tratado Do Belo Musical, o clássico ataque contra a teoria
emotiva da música. Ele rejeita o conceito da música como “a expressão de
sentimentos” em favor de seu próprio conceito de “padrões sonoros dinâmicos”, o
qual, ele declara enfaticamente, são totalmente não relacionados aos movimentos
psíquicos, isto é, as emoções. “Movimentos psíquicos em si, sem qualquer conteúdo”,
ele escreve, “não são um objeto da encarnação artística”. Dentre os inúmeros
testemunhos que ele cita para refutar a teoria emotiva está a famosa ária “J’ai perdu
mon Eurídice, rien n’égale mon malheur”, do Orfeu de Gluck, sobre a qual um dos
próprios contemporâneos do compositor observou que poderia igualmente ser cantada
com as palavras “J’ai trouvé mon Eurídice, rien n’égale mon bonheur”. A observação
é bastante justificada; realmente, um ouvinte que não conheça o texto provavelmente
escolheria a segunda interpretação. Seja como for, este argumento é decisivo: uma
linguagem cujas palavras podem significar o oposto daquilo que o orador pretende
expressar seria uma linguagem realmente estranha. Desafortunadamente, Hanslick
toma por garantido que este argumento contra a teoria emotiva prova sua própria
teoria, isto é, que a música não tem nada a ver com emoções. Ao invés de se fiar em
tal pseudo-lógica, ele deveria antes permitir-se ser guiado pela própria melodia.
Embora ele tivesse admirado o gênio de Gluck, sua profunda percepção sobre a
natureza da verdade dramática, agradecimento que Orfeu expressa ele próprio
precisamente nesta melodia melhor do que em qualquer melodia que se pudesse
reconhecer como “triste”. Ele teria percebido que embora se ajuste as palavras “j’ai
perdu” tão bem quanto as palavras “j’ai trouvé”, ela não se ajusta às mesmas palavras
se “mon Eurídice” fosse trocado por “mon parapluie”, a menos que se pretendesse
uma paródia óbvia. Ele teria realizado que algo está errado com a afirmação de que a
música é “neutra” em relação aos sentimentos. Afinal de contas, as próprias notas nos
109

dizem onde elas são e onde elas não são neutras. Elas são neutras onde as distinções
entre emoções, tal como o desgosto por uma perda e a alegria por um encontro, dizem
respeito; mas elas nos falam claramente o que o desgosto pela perda e o reencontro
com a pessoa amada têm em comum, e o que as distingue de emoções provocadas
pela perda ou redescoberta de um objeto, a saber, sua profundidade e intensidade, e o
modo de auto-consciência que as acompanha. O tema real da melodia de Gluck não é
nem “bonheur” nem “malheur” mas “rien n’égale”. Se você imagina que a melodia é
cantada para palavras expressando alegria, você descobrirá que, sob a influência das
notas, a emoção toma uma qualidade distintiva similar à qualidade do desgosto de
Orfeu. As notas não expressam ou representam emoções específicas. Padrões tonais
comunicam suas emoções às emoções do ouvinte, e como um resultado a última toma
o caráter dos padrões. A melodia estampa seu caráter na emoção, não o contrário.

Assim, a luz da experiência musical introduz uma certa ordem na confusão


resultante do uso indiscriminado do termo “emoção”. A música não é uma linguagem
das emoções – a linguagem da alegria, desgosto, desespero, medo exaltação, êxtase,
de um sentimento que eu tenho ou que alguém mais tenha. Mas ao mesmo tempo a
música está longe de ser indiferente aos sentimentos. Ela não é uma coisa nem outra.
Se você quiser, poderá chamá-la de uma linguagem do sentimento, mas aqui a
palavra não é usada como o singular do plural “sentimentos”, não denota nenhuma
emoção mais ou menos acuradamente designada e distinta uma da outra pelas
palavras “alegria”, “desgosto”, e assim por diante. “Sentimento” aqui denota um
singular do qual não há plural – auto-sentimento, pura espontaneidade, algo que
alguém não “tem” mas que todos “são”, não algo que é originalmente atado a um ser,
preferivelmente, algo ao que o ser se une, algo que é “tudo”, como diz Goethe.
“Sentimento é tudo”: se a palavra usada aqui se refere a qualquer um sentimento, o
singular permanece para o plural “sentimentos”, esta sentença não expressará uma
verdade mas uma declaração de sentimentalidade ilimitada. Que a emoção se torna
audível na música é verdade somente neste sentido do termo “sentimento” – uma
pura espontaneidade, um movimento não-material, limitado às notas, não a um “eu”.
A emoção audível em música é aquilo das notas que se comunica com o ouvinte.

Susanne Langer

Em dois livros notáveis, Filosofia em uma Nova Chave e Sentimento e Forma,


Susanne Langer formula, sobre uma base ampla, distinções que estão largamente de
110

acordo com aquilo que discutimos aqui. Ela rejeita a alternativa estéril entre música
como linguagem das emoções e música como forma pura totalmente desconectada da
vida, entre as teorias emotiva e formal, e sugere uma nova abordagem: a música ser
interpretada como “expressão do sentimento”, “sentimento” sendo usado no sentido
de uma vida interior em contraste a “sentimentos”, e “expressão” no sentido no qual
“expressamos” uma operação ou relação por um símbolo matemático ou lógico, tais
como  e , ou um termo técnico tal como “integral” e “implicação”. As notas
significam algo; elas são símbolos universais alcançados por meio de abstração desde
experiências realmente particulares, e o que elas significam é chamado “sentimento”,
“vida interior”. “O que a música de fato traduz não é nada que não a morfologia do
sentimento . . . a lei da experiência, a ordem da existência afetiva e auto-sentimento,
que não pode ser colocada em palavras, mas não é por essa razão indizível”. A
sentença concludente desta passagem diz: “A musica é nosso mito da vida interior”.

A teoria da música delineada nestes dois livros falha em indicar um avanço


sobre as outras teorias com respeito a um ponto em essencial: compartilha com elas
suas admissões psicológicas básicas. Susanne Langer não as rejeita, ou não as rejeita
explicitamente. Embora ela rejeite as interpretações psicológicas triviais de acordo
com as quais o conteúdo significativo da música é puramente “subjetivo” e somente
seu conteúdo acústico é “objetivo”, ela conserva a divisão básica entre o “exterior”,
os aspectos da música percebidos pelos sentidos, como expressos nos padrões tonais,
e os aspectos “internos” como expressos em “sentimento”. De acordo com ela, a
música é forma, expressão, símbolo e aquilo que é formado, expresso, simbolizado
em padrões tonais é a “vida interior” de uma psique. “A morfologia do sentimento”,
“nosso mito da vida interior”: estas frases implicam que “sentimento”, visto como um
estado da mente, e a “vida interior”, vista como uma realidade psicológica, são
considerados como a matéria prima da moldagem musical, como o conteúdo sobre o
qual as notas pensam e falam. No curso de nossa discussão precedente chegamos a
uma conclusão diferente: as notas não são algo primeiramente exterior relacionadas
com a vida interior; o relacionamento entre externo e interno está totalmente
embutido na própria nota. A vida interior que a música revela além das notas
exteriores é a vida interior das próprias notas, não aquela de uma psique. Ou se
queremos dizer da psique, teria que ser da psique das notas, de algo psicologicamente
exterior. A nota musical é simbólica não porque ela nos ajuda a perceber algo que é
em princípio imperceptível, mas primeiramente porque seu puro dinamismo é
diretamente apreendido pelo ouvido. No que possa ser chamado “expressão”, não é a
expressão de um sentimento, mas da própria qualidade dinâmica da nota. Um
exemplo concreto tornará isto claro. Se, tomando a abordagem psicológica,
perguntamos sobre o que a ária de Gluck discutida acima diz respeito, qual idéia ela
expressa, soará bastante plausível a resposta: os sentimentos de Orfeu, seu estado
psíquico. Se o mesmo é perguntado com relação ao Coral Aleluia ou qualquer obra
instrumental, a resposta não pode ser muito diferente, exceto que desta vez o estado
psíquico não é aquele de um indivíduo específico mas do homem em geral. Quão
diferente é o quadro resultante de nossa análise da melodia coral. Aqui, também, a
questão é do que falam as notas, de que tema elas tratam, o que lhes dá significado.
111

Contudo, em parte alguma nossas considerações se referem a qualquer coisa psíquica,


a sentimentos, a estados de mente; falamos somente de forças das notas e suas
atividades, o caminho das notas são relacionados a forças, e o movimento no qual sua
vida se manifesta. A questão sobre o significado destas notas foi totalmente
respondida pelo diagrama que mostrava a rede de suas inter-relações dinâmicas. A
situação é somente superficialmente diferente na ária de Orfeu: como aquela do coral,
uma expressão de relacionamentos dinâmicos, movimento puro; e somente porque as
notas são tudo que pode ser considerado como a expressão do movimento psíquico, o
auto-sentimento de um “ser”. É claro, música é morfologia – uma morfologia de
forças puras. Pode também ser chamada de o mito de nossa vida interior, mas não o
mito de uma alma ou da psique em um sentido amplo; ou, se ela é o mito de uma
alma, é o mito da alma do mundo, o mito da vida interior do mundo.

O Ser que Ouve Movimento

Nossa proposta neste capítulo tem sido compreender como o movimento tonal
é percebido. Foi necessário, primeiro, formar a idéia mais clara possível do que é
percebido como movimento na experiência musical. Para compreender o ato de
percepção, alguém deve primeiro conhecer o objeto percebido.

Movimento tonal é movimento do tipo da emoção, auto-movimento,


movimento vivente, mas não aquele de um “ser”. Movimento tonal é movimento
audível desta espécie, é audivelmente vivo. Como é um movimento vivo audível?

Para começar, vamos brevemente recordar como o movimento de qualquer


espécie, seja auto-movimento ou estando em movimento, é percebido. A percepção
deste último, como é bem sabida, é problemática. Enquanto uma regra, não
percebemos de todo os movimentos de nossos próprios corpos. Nenhuma percepção
me informa sobre os movimentos que meu corpo faz sob a influência da força
gravitacional da terra; tudo do que estou cônscio é que “algo” está em movimento.
Preciso de uma boa negociação para me persuadir de que este algo sou eu mesmo, e
ainda assim permaneço um tanto céptico. Todos estão familiarizados com as ilusões a
que estamos expostos em veículos em movimento: pensamos estar em movimento
quando estamos parados, e vice-versa, e o mesmo é verdade para outros corpos que
não o nosso próprio. Mais freqüentemente circunstâncias favoráveis excluem a
possibilidade de dúvida: as posições relativas da maçã e da árvore mudam porque a
maçã cai, não porque a árvore se eleva. Mas as circunstâncias não são sempre
favoráveis e, em princípio, a questão permanece aberta. Vemos realmente o
movimento? Sabemos mais sobre movimento do que um homem cego se esquentando
ao sol sabe a respeito da luz?
112

Tais dúvidas não se levantam a respeito do auto-movimento. À parte casos


extremos e patológicos, o auto-movimento é sempre percebido. Aquele que se move
está diretamente cônscio de que ele está se movendo. Do que ele está diretamente
cônscio não é da mudança de lugar, não que ele está em diferentes lugares a
diferentes tempos, mas de que ele próprio é a causa do movimento: esta é a percepção
direta do movimento em si mesmo. Em nenhum outro lugar mais do que aqui é
verdadeiro o velho provérbio de que o igual reconhece o igual. Se não pudéssemos
estar cônscios diretamente do auto-movimento, se conhecêssemos somente
movimentos que podem ser vistos e não tivéssemos consciência de um corpo vivo
possuindo o poder de mover a si próprio e um órgão capaz de perceber o auto-
movimento, o termo “movimento” seria sem significado e supérfluo: “deslocamento”
seria suficiente.

O corpo vivo necessita de movimento, assim como precisa de luz e calor. À


primeira vista, poderia parecer surpreendente que esta necessidade é satisfeita, e
ainda especialmente bem satisfeita, quando o corpo não se move mas é movido, a
saber, por máquinas. Este não é um sintoma de degeneração, a deitar porta afora a
moderna tecnologia: a tecnologia meramente torna possível levar a extremos
patológicos uma tendência profundamente enraizada na natureza humana. É
suficiente recordar o prazer que a criança sente em máquinas como o balanço e o
carrossel. Tais máquinas não servem para substituir forças viventes por aquelas
mecânicas, mas para estender o alcance da primeira: elas realizam o sonho de um
corpo capaz de realizações sobre-humanas. O que temos aqui é o auto-movimento
através de forças emprestadas, cujo arquétipo provavelmente é o cavaleiro. Isto
considera o fato de que os corpos movidos deste modo se expõem ao seu ambiente
tanto quanto possível. Aqui a pele funciona como um órgão percebedor do
movimento.

Só o movimento vivente pode perceber o movimento vivente: o auto-


movimento pode ser auto-percebido somente. Aqui os agentes percebedores são
também os agentes percebidos. Estritamente falando, eu percebo somente meu
próprio movimento como um movimento vivente ou auto-movimento. A percepção
dos movimentos viventes de outros, vê-los – o vôo de uma andorinha, por exemplo, o
qual vejo como movimento animado – é mediado, não é percepção no próprio
sentido: interposto entre o movimento percebido e o agente percebedor está outro
corpo cujo movimento é “seu próprio”. O que eu vejo é a trajetória de um movimento
animado, não o próprio movimento. Existem palavras denotando os atos de ver e
ouvir, mas não há palavras que denotem o ato de perceber o movimento animado:
devemos nos contentar com o termo vago e ambíguo “sentir” do qual nos valemos
sempre que precisamos de um termo para preencher, pelo menos provisoriamente,
uma lacuna em nosso entendimento. De qualquer modo, se “sentir” é tomado no
sentido de “emoção”, isto é, auto-movimento, pareceria que este ato, também, cai sob
a categoria de movimento.

Existe, no entanto, uma coisa tal como a música, movimento tonal, movimento
vivente audível. Na música, experimento um movimento animado que não é nem
113

meu próprio nem de ninguém mais, e o qual eu percebo diretamente, mais


precisamente do que através do intermediário de um corpo cujo movimento quereria
ser – puro auto-movimento, não limitado por nenhum corpo, por nenhum “ser”. O ato
de perceber este movimento deveria ser ele mesmo um movimento. O que o olho não
pode alcançar – a saber, a percepção direta do movimento animado – pode ser
alcançado pelo ouvido. No ato da audição, realidades viventes vêm em contato direto;
ouvindo notas, eu me movo com elas; eu experimento seu movimento como meu
próprio movimento. Ouvir notas em movimento é mover-se junto com elas.

Assim, não somente as notas que eu ouço estão “em movimento”; ouvi-las,
também, está “em movimento” [“in motion”]. Não somente o movimento que ouço,
mas também o próprio ouvir é “emoção” [“emotion”]. O que está errado com a
questão usual sobre o compartilhar respectivo de sentimento e intelecto na
experiência musical deveria agora estar muito claro. O intelecto – a faculdade de
abstração e conceitualização – não compartilha o que quer que seja na estrutura da
experiência musical; o intelecto não entra no quadro senão posteriormente, como uma
reflexão sobre a música. Similarmente, o “sentimento” no sentido com que o termo é
usado neste contexto, como o singular de “sentimentos”, entra no quadro somente
mais tarde. A música é experimentada somente por ser ouvida. O ato de ouvir é ele
próprio um ato de sentir e compreender – sentir no sentido de ser um movimento
animado, “em emover-se” [“in emotion”], porque somente deste modo pode o
movimento das notas ser percebido, e compreendido no sentido de perceber as
qualidades dinâmicas que determinam o movimento das notas. A idéia de
“contemplação interessada” que ainda assombra a estética está, em parte alguma, tão
distante da realidade quanto no caso da experiência musical. Uma espécie de audição
que não fosse movimento animado, que fosse completamente divorciada dos
processos vivos, que estivesse meramente a serviço de um espelho das notas e as
tratasse com “sublime indiferença”, seria surda a toda a essência da música. Uma
espécie imóvel de audição não poderia nunca tornar-se próxima do movimento tonal,
igualmente como um cão não pode nunca tornar-se próximo de um pássaro, quando
muito ladrar atrás dele. O ouvido não é um refletor mas um ressonador da música.
Quanto mais profundamente eu compartilho do movimento vivente das notas, mais
genuína, mais válida, mais esclarecida minha experiência será.

Geralmente, pensa-se que a transformação miraculosa dos eventos físicos em


sensação é efetuada pelos órgãos dos sentidos (incluindo as partes relevantes do
sistema nervoso), os quais ligam o mundo físico ao psíquico de um modo
completamente imperscrutável. De acordo com isso, a tarefa específica do ouvido é
transmutar as vibrações do ar em sensações de som. A experiência musical tem
revelado para o ouvido o exercício de outra função. Na música, o ouvido não está
situado entre dois mundos radicalmente diferentes, separados por um abismo
intransponível: mais precisamente, os eventos deste lado do órgão do sentido (se
podemos colocar deste modo) não diferem em espécie dos eventos do outro lado. Ao
transmutar eventos físicos em sensações, os órgãos dos sentidos são inevitavelmente
ilusórios e enganosos: os quadros que eles nos dão do mundo dificilmente
114

assemelham-se aos originais. Eles traduzem ondas eletromagnéticas em cores,


movimentos do ar em notas ou ruídos. Tais observações podem, claro, ser
corretamente rejeitadas como irrelevantes com base em que as funções sensoriais não
são cognitivas, e que seu verdadeiro propósito não é dar um quadro verdadeiro do
mundo mas ajudar o organismo a sobreviver em seu ambiente. A experiência
musical, no entanto, nos ensina que os órgãos humanos dos sentidos não estão
confinados à função biológica. Ouvir o movimento das notas é um ato de cognição
por meio do qual percebemos realmente um evento em nosso ambiente. Não devemos
ver nossos órgãos dos sentidos como servindo unicamente a propósitos biológicos,
como receptores de sinais, “informação” desde um “outro” mundo, essencialmente –
um mundo hostil ou ao menos estrangeiro – a qual é transmitida a outras partes do
organismo, onde são traduzidas em reações biológicas úteis. Sem dúvida, os órgãos
dos sentidos servem como receptores de sinal, dentre outras coisas, e sua função pode
ser de longe a mais importante nos animais. Mas não no homem, cujos sentidos são
órgãos que não servem meramente para protegê-lo contra perigos e para determinar
seu comportamento em seu ambiente, mas são primeiro e antes de tudo órgãos de
cognição, de apreensão da verdadeira natureza do mundo e de si mesmo – não
somente janelas bloqueadoras que separam “mundo” e “ser” um do outro, mas portas
abertas através das quais os dois podem se aproximar um do outro. A velha definição
da visão como um encontro entre uma luz interior emanente do olho e uma luz
exterior que se move em direção ao olho é qualquer coisa menos “primitiva”, e ainda
embora ela satisfaça os mais altos requisitos mentais, tem se tornado estranha a nós.
Preferimos considerar o olho como o protótipo de todos os receptores de sinal. A pele
humana pode ser considerada como o protótipo de um órgão do sentido combinando
a função de janela bloqueadora e porta aberta, a qual separa o organismo de seu
ambiente e ao mesmo tempo o expõe a ele. O abrigo de toda a coberta natural
protetiva da pele, a qual distingue o homem do animal ao menos tão basicamente
quanto a postura ereta do homem, pode muito bem distinguir o ponto de mutação na
história evolucionária onde a auto-preservação como a meta mais alta de um ser vivo
tornou-se subordinada à auto-afirmação no encontro com o mundo, ao conhecimento
do ser e do mundo enquanto a meta mais alta de um ser espiritual.

O ouvido tem muito mais em comum com a pele do que com o olho: isto por
que, em pessoas surdas, a pele assume o comando da função do ouvido enquanto
órgão da sensação “musical”, não o olho. Nenhuma representação gráfica dos sons na
forma de linhas e curvas na tela do osciloscópio pode ser vir como substituta para as
sensações sonoras. Em contraste, quando uma área da pele sensível a vibrações sutis
é exposta a ondas sonoras, tem-se sensações que, embora indefinidas, correspondem
às sensações sonoras. Exatamente como a pele está exposta ao ar circundante, assim
também o ouvido está exposto ao som. Exatamente como o calor interno e o calor
externo, e o frio interno e externo, encontram-se na pele, assim o movimento vivente
interno e o externo encontram-se no ouvido. As cores não nos colorem do mesmo
modo como o calor nos aquece, mas as notas nos “notam” e a tensão tonal nos
“tensiona”. As ondas sonoras sendo transformadas em sensações sonoras: é assim que
ouvimos os ruídos. Ouvir música é algo mais. Tal como uma mão infinitamente
115

sensível sobre uma membrana tensamente estirada, o ouvido se situa sobre a


superfície tensionada das notas – desta vez sensível somente à tensão não-física, não
a vibrações físicas. O ouvido como uma mão que a vida interior oferece à vida
exterior, com a expectativa de fazer contato com ela e sabendo-se estar
espiritualmente viva no contato – uma mão espiritual, a mão de minha interioridade.
Esta mão não transforma: ela acena, recebe, recepciona, reconhece. A espécie de
audição que se move com as notas arrasta-me em seu movimento; por serem ouvidos,
processos não-materiais viventes caracterizados por estados de tensão tornam-se algo
percebido, algo conhecido.

Agora, o que em “mim” ouve música? Com respeito a que este “eu” difere do
“eu” na sentença “eu ouço uma afirmação falada” ou “eu vejo uma luz”? Quando eu
ouço música, meu ouvido não é um órgão do qual eu faço uso para uma proposta
específica, mais apropriadamente ao contrário – o órgão faz uso de mim. O ouvido
que percebe a música faz uma demanda sobre mim, toma uma ocupação de mim,
pode funcionar somente se é ele próprio um “eu”, por assim dizer, capaz de
movimento vivente. A situação é adequadamente expressa pela frase “eu sou todo
ouvidos”. Usamos a mesma frase para indicar que estamos ouvindo, ou dispostos a
ouvir, atentamente, uma afirmação falada; mas fazemos isto porque pretendemos
reagir ou explicitamente, por lhe responder a ela, ou implicitamente, por armazená-la
em nossa memória. O ouvinte de música não tem tal intenção; sua atitude não é
aquela do jogador de bola esperando pela bola a fim de arremessá-la de volta ou
ainda meramente apanhá-la, mas aquela de um nadador que se permite ser carregado
pela corrente ou pelas ondas enquanto ele nada. Podemos dizer também, “eu sou todo
olhos”, e então nossa atitude é aquela do jogador de bola, expectando, observando,
contra-golpeando. A frase pode significar também que contemplamos o que vemos
do mesmo modo como ouvimos música, isto é, quando contemplamos uma obra de
arte e nos identificamos com o que vemos. Podemos ouvir afirmações faladas do
mesmo modo, como quando ouvimos o som da voz do orador mais do que o que ele
diz – não criticamente, com a intenção de fazer inferências com respeito ao seu
caráter, mas sem qualquer intenção, puramente fora da simpatia ou do amor. Ao
invés, é possível ouvir música da maneira que ouvimos afirmações faladas, ouvindo,
expectando, intentando replicar, como alguém ouviria a sinais. Neste caso, o ouvido
me dá informação a respeito de um evento em meu ambiente. O ouvido é “meu”
ouvido; ele me comunica algo – “eu”, “ouvido” e “algo” estão claramente
distinguidos um do outro. Mas no momento em que começo a ouvir música ao invés
de sinais, a situação muda10. A relação entre “eu” e “ouvido” é revertida: agora o
ouvido me possui e eu estou possuído pelo ouvido, o qual por sua vez está possuído
pela música, torna-se o ouvido próprio das notas. Neste ponto, a linguagem, estando
firmemente amarrada à estrutura sujeito-objeto-predicado, começa a nos falhar. O
“eu” não mais é algo que “faz” algo” (isto é, ouve) e “obtém” o resultado daquilo que
faz (as sensações das notas); agora, denota somente um dos três aspectos (os outros
dois são “ouvir” e “notas”) que constituem o evento vivente. Aqui, tendo reconhecido
10
Efeitos marcantes são alcançados quando um sinal musical torna-se música pura (vide Fidelio de Beethoven) ou
quando sinais são fundidos com sons musicais, como no terceiro ato de Tristão e Isolda.
116

que ouvir música é compartilhar ativamente a vida de uma realidade vivente, somos
inevitavelmente confrontados com o difícil problema da qualidade artística. Toda
nota em uma estrutura musical é, e é ouvida como, o veículo de uma qualidade
dinâmica; toda seqüência musical de notas é, e é ouvida como, movimento vivente. A
vida, especialmente a vida humana, tem uma estrutura hierárquica; suas
manifestações são sempre caracterizadas de acordo com qualidades e graus. São
diferenciadas dentro de ordens fundamentais de autêntico e inautêntico, nobre e
vulgar; são ordenadas de acordo com estágios de desenvolvimento, alinhando-se
desde o começo simples à maturidade final. Desde que a música é ouvida como algo
vivo, também deverá ser caracterizada audivelmente de acordo com diferenças em
qualidade e grau, e o ouvido humano deve ser capaz, unicamente por si mesmo, de
distinguir entre autêntico e inautêntico, nobre e vulgar, maduro e imaturo, entre obras
musicais desenvolvidas de modo rudimentar e de modo elevado. Que fazemos isso,
todos nós sabemos: todos distinguimos entre obras de arte e imitações inferiores,
entre música popular e música artística. O critério que aplicamos ao fazer tais
distinções pode ser difícil de formular, a princípio não podem ser provados; uma
concordância definitiva a respeito deles pode nunca ser alcançada; amplas
divergências de juízo em casos individuais podem sempre ser possíveis; tudo isto de
modo algum deprecia a validade das distinções, as quais são irreversíveis e
independentes de opinião individual.

Estes problemas, aqui meramente mencionados, serão discutidos em grande


detalhe no próximo capitulo.

Umas poucas palavras não seriam inoportunas neste ponto pois por qual razão,
em um capítulo dedicado ao movimento tonal, não foi feita menção ao ritmo,
normalmente o primeiro tópico discutido com relação a isto. A resposta é simples:
aqui estivemos interessados com as espécies de movimento perceptíveis somente ao
ouvido. O ritmo, notoriamente, apela aos sentidos do tato e da visão também; e, até
dizer respeito à audição, muitos outros meios que não as notas em uma estrutura
musical podem ser usados para estimular as sensações rítmicas tão efetivamente
quanto, ou ainda mais efetivamente do que, as notas musicais em uma estrutura
musical: meros ruídos – fenômenos não-musicais – ou notas usadas tanto como sons
acústicos quanto como sinais. Além disso, a experiência do ritmo é intimamente
limítrofe às sensações motoras dentro do corpo do ouvinte que estimula movimentos
correspondentes, se de fato ou meramente intencionados, por disparar respostas
musculares as quais são freqüentemente consideradas o verdadeiro cerne da
experiência rítmica. Separar o que é especificamente musical dos processos motores
associados com nossa experiência do ritmo requereria detalhes de análise, tanto
quanto estabelecer o que realmente ela é: a experiência do movimento do tempo.
Fizemos isso no Volume 1 deste trabalho. Aqui estamos interessados em salientar o
fato de que o movimento na música pode ser considerado com base unicamente nas
relações audíveis entre notas sucessivas, uma espécie de movimento peculiar da
música e percebido somente pela audição.
117

13. Ouvindo Estrutura Orgânica

O ato de ouvir música de modo algum se completa com a percepção das


qualidades acústicas, dinâmicas e motoras. Poderia ser admitido que, estritamente
falando, no que é assim apreendido falta ainda a música, no sentido da música
artística. Por um lado, a composição musical marca um avanço notável sobre a
música popular, a primeira sendo a música em seu estágio espiritual maduro, a última
a música enquanto seu estágio primitivo, próximo à natureza; por outro lado, as obras
de arte musicais diferem da produções ruins tão radicalmente quanto a criação difere
de um mero exercício, e o genuíno do espúrio. Precisamos não nos inquietar com a
opinião desprezível de que distinções deste tipo – distinções do valor artístico – é
questão de gosto pessoal. Afinal de contas, antes delas se tornarem uma questão de
gosto, são uma questão de audição, mas não tanto de audição de qualidades acústicas,
dinâmicas ou motoras. Estas são percebidas em qualquer peça musical, na mais
simples das canções populares tão bem quanto em um prelúdio de Bach, em um
estudo de Czerny tão bem quanto em um de Chopin. Que as notas estão audivelmente
relacionadas e dão ascensão ao movimento tonal é igualmente verdadeiro para os
sucessos vulgares e os trabalhos de Mozart e Schubert. Não é unicamente o
movimento tonal, não o fato de que ele é movimento, mas o modo, o “como” deste
movimento, sua estrutura interna e orgânica, o que identifica a música enquanto arte
elevada. Conseqüentemente, para ouvir música enquanto a arte das notas no pleno
sentido do termo, devemos ouvir não somente relações tonais e movimentos tonais,
mas também estrutura interna. Esta tarefa crucial é executada pela mais elevada dos
quatro funções componentes do ouvido, as quais, juntas, constituem o todo da
audição musical. Exatamente como a audição musical primeiro penetra a superfície
acústica do som, apreende as qualidades dinâmicas das notas, e ascende ao nível da
compreensão, assim agora o processo é repetido em um nível mais alto: o fenômeno
motor/dinâmico torna-se uma superfície, um primeiro plano, o qual é nutrido e
articulado por forças desde camadas mais profundas. Outra vez a audição deve
118

penetrá-la e ascender ao nível da compreensão, perceber e interpretar o significado


profundo do padrão tonal, distinguindo o complexo do simples, o raro do lugar-
comum, o verdadeiro do falso.

Para começar, é necessário deixar claro em que sentido usamos os termos


“superfície” ou “primeiro plano”, “camadas mais profundas” e “significado
profundo”. A melodia de “Morte, a Ceifadeira” mais uma vez revela-se útil para
nosso propósito, graças à sua clareza, pureza e proporções perfeitas. Ao descrever os
eventos melódicos iremos proceder como fizemos no caso do Coral Aleluia.

O gesto tonal conduzido por _________, a abertura – um movimento para-


longe-desde-e-de-volta-para, 1 – 3 – 2 – 1 – afirma o centro tonal e o modo: mas ao
invés de chegar em uma parada em 1 (como acontece no Coral Aleluia, com
________), o movimento continua para baixo, passando através de 1 e vindo a parar
em 5: ________ . Ele começa novamente uma oitava acima, ________, a fim de
tomar espaço para continuar o movimento descendente. 5 está dirigido para baixo em
direção a 1, Mi para Lá, e o movimento segue a mesma direção: ___________ .
Agora algo está acontecendo. No Coral Aleluia, após o primeiro surgimento de 5, o
movimento se rende ao puxão das forças ativas, nota seguindo sobre nota em fileira
única, por assim dizer, __________ , 5 – 4 – 3 – 2 – (Ré é 1). Na canção, também, as
notas se rendem ao puxão das forças, mas elas não o fazem tão simples e
passivamente como no coral. Elas o fazem como um todo, mas individualmente elas
tomam liberdades, jogando com as forças, divergindo da linha reta:

_____________

Ainda vemos (e ouvimos) o movimento simples 5 – 4 – 3, mas somente no


plano de fundo, por assim dizer, enquanto que no primeiro plano o movimento não
ocorre diretamente de uma posição principal para a seguinte; as notas a alcançam por
curtos volteios, a modo de carrossel, como se penosamente encobrindo seu objetivo.
As notas sucessivas não são mais iguais em valor; uma diferenciação começou, uma
diferenciação estrutural dentro da seqüência das notas. Primeiro, as notas individuais
formam pequenos grupos, então um grupo é alinhado com o seguinte, e o todo torna-
se uma seqüência de grupos mais bem do que notas individuais – e é como uma
seqüência em grupo que a frase diz 5 – 4 – 3. O movimento ocorre em dois planos: no
primeiro plano, temos a sucessão de notas como são de fato ouvidas, com seus
volteios e paráfrases; no plano de fundo temos a sucessão de posições principais em
direção às quais as notas se movem via os volteios do plano principal. O ouvido
percebe e interpreta a frase tal como uma estrutura de duas camadas: na seqüência de
notas, como se por detrás dela, descobre a seqüência de grupos; no movimento que
ocorre no primeiro plano, discerne a sucessão de posições principais indicadas no
plano de fundo, na liberdade do padrão da lei que a governa. (As notas de abertura da
frase, Mi – Ré – Dó, tomam diretamente 5 – 4 – 3, antecipam a afirmação da frase
como um todo; o ouvido imediatamente diferencia entre este “aparente” 5 – 4 – 3 no
primeiro plano e aquele “realmente” pretendido no plano de fundo. Podemos ver por
que tal frase não pode ser representada por uma simples série de símbolos dinâmicos,
119

5 – 4 – 3 – 4 – 3 – 2 – 3: esta tradução nota a nota, literal, por assim dizer, interpreta


o significado de seu movimento tão inadequadamente quanto seu conteúdo audível.)

Poderia ser feita a objeção de que estamos dedicando muito espaço para o que,
afinal de contas, é um processo um tanto simples, facilmente compreensível. Mas
estamos face a face com a forma mais simples de um processo que em seu
enriquecimento final resulta nas maiores obras primas da música.

Retornando à melodia: após a parada em 3, o movimento começa novamente


com 5 em uma segunda tentativa para alcançar 1. Seu curso é como segue:

_______________

A partitura esclarece o que está acontecendo: outra vez o movimento ocorre em


dois planos – grupos se formando no primeiro plano, uma seqüência em fila única no
plano de fundo. Ao alcançar 2, o movimento chega a uma parada abrupta, saltando 1,
a qual estaria neste ponto, e deixando-se cair para 5 abaixo. Mas os grupos no plano
principal cresceram para o dobro de seu tamanho anterior, deste modo prolongando
consideravelmente as distâncias e aumentando a tensão entre as posições principais
no plano de fundo. Os grupos dobraram de tamanho como resultado de uma espécie
de crescimento orgânico: o primeiro padrão agora aparece com sua própria imagem
simétrica, ______ torna-se _________ . Aqui, como previamente, o ritmo
compartilha sua contribuição para tornar impossível para o ouvido não encontrar o
significado do movimento.

A tensão construída ao final da frase é igualada pela ampliação da expectativa


– tudo isto é para ser compreendido em um sentido relativo, tendo em mente a
proporção desta melodia simples – do que virá a seguir. O que vem, depois de 5 ter
sido tomado na oitava mais alta, é uma terceira tentativa de alcançar 1, e desta vez a
meta é alcançada. Isto era esperado, talvez. O que não era esperado é o caminho pelo
qual é alcançada – sem qualquer volteio, sem dividir o movimento tonal, diretamente,
concisamente, em uma progressão em fila única: ________, 5 – 4 – 3 – 2 – 1. O
retorno da liberdade à lei no ponto crucial é muito enfático porque estas são as notas
cantadas no refrão, “Cuide-se, pequena flor” e “Alegre-se, pequena flor”.

Para completar o quadro, devemos considerar o movimento no plano de fundo,


como um todo:

_________________

Claramente, este também deve ser interpretado como uma espécie de volteio,
como a expansão de uma progressão ainda mais direta, como um primeiro avanço
para a liberdade, que vai além da lei elementar expressa por _______, 1 – 5 – 4 – 3 –
2 –1. Uma terceira camada estrutural vem à vista: descobrimos que há um plano
intermediário, o qual serve como ponte entre o plano de fundo e o primeiro plano.
Este último parece agora ser dominado, determinado e dependente do plano de fundo
120

via a mediação do plano intermediário. De acordo com isto, o quadro completo pode
ser visto como segue:

_______________

Como pode ser visto, este quadro provê a chave para a compreensão da frase
final da melodia. A pequena frase resume direta e concisamente o significado total da
melodia representada pelo plano de fundo. É característica deste tipo que nos capacita
reconhecer a genuinidade de uma melodia, o fato de ela ser algo desenvolvido, não
fabricado.

Este exemplo simples pretendeu ilustrar em que sentido temos falado de um


movimento tonal estruturado em profundidade, de primeiro plano, camadas mais
fundas e significado de plano de fundo. O que está em questão aqui não é a
articulação horizontal do movimento concebido como partes sucedendo-se uma à
outra no tempo, fora da qual o todo de uma melodia ou uma obra musical é
construído, mas a articulação concedida por uma dimensão a qual é, por assim dizer,
vertical à sucessão no tempo. O fato de que o movimento tonal é ouvido como ele é
ouvido, como um processo complexo, como o resultado de séries multi-camadas de
eventos, pressupõe necessariamente esta dimensão vertical. Afinal de contas, não
pode haver dúvida de que os eventos em questão são de fato ouvidos; nós não os
imaginamos, exatamente, lemo-los nas notas. O ouvido os apreende diretamente; o
intelecto procura os termos ou as imagens apropriados para estes eventos somente
após eles terem sido apreendidos. Nenhum talento musical especial é requerido para
ouvir desta maneira. Qualquer pessoa que realmente ouça a melodia de “Morte, a
Ceifadora” – isto é, que realmente compartilhe seu movimento quando ouvi-la – a
ouvirá como ela foi descrita acima: não tomando-a nota a nota, como um movimento
em fila única, mas articulando-a combinando-a significativamente, relacionando
elementos, separando-os de outros, formando grupos, distinguindo entre grupos e
então combinando-os em grupos de uma ordem mais alta, e combinando estes últimos
em unidades ainda mais altas as quais correspondem à organização em níveis mais
profundos. O ouvido não faz tudo isto, de modo direto, funcionando essencialmente
do mesmo modo como quando apreende o significado de uma afirmação falada, mas
com esta diferença, no entanto: ao apreender uma melodia o ouvido não é auxiliado
pelo intelecto o qual, no caso das afirmações faladas, abastece de significados para as
palavras. O ouvido executa a tarefa complexa de diferenciar e integrar seqüências
musicais sem qualquer assistência exterior, inteiramente por si próprio. Desnecessário
dizer, isto, como qualquer outra tarefa, pode ser executado mais ou menos
eficientemente: a execução é desenvolvida pela prática. As demandas feitas sobre a
audição pela melodia “Morte, a Ceifadora” não estão além, certamente, das
capacidades do ouvinte mediano.

Se voltarmos agora ao Coral Aleluia, vemos imediatamente que aqui, também,


o movimento melódico ocorre em mais do que um plano. Um diagrama desta
estrutura em profundidade, no entanto, mostrará somente duas camadas – primeiro
121

plano e plano de fundo. Não há necessidade do plano intermediário: o plano de fundo


pode ser inferido diretamente do primeiro plano:

___________________

Diagramas deste tipo – duas camadas, distância mínima entre primeiro plano e
plano de fundo – são característicos da música popular. A música em estado natural
exibe a estrutura mais simples em profundidade. A melodia de “Morte, a Ceifadora”
com três camadas, é algo excepcional. Mas mesmo esta fina canção popular está
muito perto da complexidade da música artística, como logo se tornará evidente.

Estas reflexões vêm seguindo, desde há muito tempo, um padrão que foi
primeiro descoberto e explorado por Heinrich Schenker, um grande e verdadeiro
visionário e pensador brilhante. Seu trabalho tem desfrutado de um reconhecimento
firmemente crescente, mas seu significado sensacional para a teoria da música e da
arte em geral, ainda não foi suficientemente apreciado. Mesmo uma exposição
aproximadamente completa de sua teoria requereria minuciosa familiaridade com
todas as ramificações da teoria musical tradicional, e estaria fora do escopo deste
livro. É uma construção que em sua ousadia e complexidade iguala as teorias da alta
matemática. Tentaremos não mais do que extrair seu cerne, na medida em que serve
como a fundação e guia para as presentes reflexões.

Começando com umas poucas palavras sobre o estado da teoria da musica na


virada do século [de XIX para XX], quando Schenker começou a publicar seus
escritos: “Por um século”, ele escreve, “uma teoria tem ensinado como introdução à
arte musical, o que é o oposto do que são seus significados”. Esta afirmação é
notavelmente acurada em dois sentidos. Da teoria, no verdadeiro sentido do termo,
como um esforço para compreender a natureza da música, não existe mais qualquer
vestígio na teoria tradicional da música. Isto exclusivamente com respeito à prática,
com a aquisição de certas habilidades em lidar com as notas. Ao mesmo tempo,
contudo, era perfeitamente óbvio que estas habilidades não tinham nada a ver com a
arte da composição como praticada não somente pelos mestres modernos mas
também pelos clássicos. A ligação com a prática atual da arte foi perdida; a assim
chamada teoria também falhou como prática. Schenker observou corretamente, “ela
[a teoria tradicional] não permite um meio de abordagem prática da arte”. E ele segue
dizendo:

“Aqui apresento uma nova teoria, inerente às obras dos grandes mestres, que é
o segredo de seu nascimento e desenvolvimento, a teoria da estrutura orgânica”.
Schenker certamente estava interessado na prática, também; sua teoria foi pretendida
para intérpretes tanto quanto para compositores. Mas sua concepção de prática está
firmemente enraizada na teoria, teoria no verdadeiro sentido: um esforço para
compreender a música artística em sua essência, para responder à questão central
122

sobre o que torna uma obra-prima o que ela é. Por esta razão, não é o material das
notas mas as obras acabadas que servem como ponto de partida para sua teoria, a qual
não nos ensina como construir estruturas menores ou maiores com um dado material
de acordo com as regras, mas inquire sobre as forças e leis que tornam possível o
trabalho acabado como ele é de realmente ouvido. Não se deve admitir, é claro, que
os compositores devem estar familiarizados com a teoria para serem capazes de criar
obras musicais: a teoria decorre da experiência das obras; as obras não decorrem da
teoria.

Sua essência pode ser parafraseada como segue:

A vida tonal, como toda outra vida, é primariamente caracterizada pela


alternância de estados polares: sístole e diástole, inalação e exalação, para longe
desde e de volta para. No domínio da música, este processo tem a forma de um partir
atrás de e um retornar para um estado audível de equilíbrio, de colocar uma tensão
tonal e então buscar e encontrar sua resolução. Reduzido às suas essências, o
processo pode ser representado em símbolos de dinâmicas tonais, isto é, como 1 – 2 –
1 ou 1 – 3 – 2 – 1 ou 1 – 5 – 4 – 3 – 2 – 1. As figuras de Schenker são mais
complexas; elas levam em conta polifonia e harmonia, as características distintas da
música artística do ocidente. Como um mínimo, elas requerem uma parte alta e uma
parte baixa, e pelo menos a sugestão de um acorde. Por exemplo:

_________________

A parte de cima é chamada de linha fundamental; o todo é chamado de


estrutura fundamental. (Os numerais romanos se referem aos acordes.)

Uma estrutura fundamental deste tipo não deve ser confundida para uma peça
musical primitiva, por exemplo, ou um “átomo” de música. Enquanto uma verdade,
ela não parece dar a perceber como a música é, ou seja, é ouvida: ela apresenta para o
olho da mente. É a “idéia”, no mesmo sentido do Urphänomen de Goethe, a forma
primordial, a lei fundamental governando a organização das coisas vivas, a qual lhes
dá significado mas não tem nenhuma existência tangível sua própria. Todas as coisas
vivas existem pela graça de sua forma primordial, mas nenhuma coisa em particular é
esta forma em si. Como uma realidade audível, como uma peça de música, uma
estrutura fundamental é nada, um pedaço de trivialidade. Existe somente como uma
potencialidade, como um núcleo dinâmico, a encarnação de incontáveis padrões
possíveis.

Toda obra musical, todo padrão tonal acabado, desenvolve-se desde uma
semente que vive escondida e contudo se revela no padrão, que constantemente
deixa-se ficar por detrás e ao mesmo tempo carrega-a para a frente. Embora a
“semente” – a forma primordial – esteja inteiramente dissolvida no padrão, ela é a lei
fundamental que governa a organização do padrão. Uma e mesma lei determina a
forma e o lugar de cada uma de suas partes e o modo como elas se entretecem juntas
123

dentro de um todo. O processo pelo qual o padrão acabado é produzido gradualmente


desde a semente é chamado “transformação”.

Este processo é vividamente ilustrado pelas “camadas” de Schenker. A


descoberta das camadas, do fato de que o movimento tonal é estruturado em
profundidade, é a realização crucial de Schenker. O que o ouvido percebe no padrão
tonal, na obra acabada, é o “primeiro plano”; a forma primordial do padrão, sua
semente, é o “plano de fundo”. O que vive entre os dois, e onde a transformação toma
lugar, é o “plano intermediário”. Nosso diagrama da “Morte, a Ceifadora” mostra
estas três camadas. Mas Schenker está interessado na música artística, isto é, com
padrões de primeiro plano mais complexos do que aqueles da música popular. Sua
grande complexidade é expressa numa distância muito maior entre o plano de fundo e
o primeiro plano, o que leva em conta uma faixa muito maior de transformações.
Uma camada de plano intermediário não é mais suficiente; novas camadas precisam
ser adicionadas, correspondendo a transformações adicionais, a uma complexidade
maior. Um exemplo simples ilustrará isto. (Se aqui, e ocasionalmente adiante, a
simplificação parece ser levada mais longe do que o estritamente compatível com a
teoria de Schenker, isto é justificado pela nossa intenção de expor o ponto principal
da teoria com um mínimo de referências técnicas. Na medida em que não violamos a
integridade dos padrões e não interpretamos erroneamente seu significado, enquanto
a verdade pode não sofrer danos.)

O exemplo escolhido é o tema de uma fuga de Bach. Tentaremos mostrar como


seu padrão agudamente esboçado é, por assim dizer, desenvolvido desde o plano de
fundo: a transformação do plano de fundo em primeiro plano será traçada passo a
passo. As duas notas no plano de fundo meramente introduzem a tensão, 1 – 5, Ré –
Lá; a resolução da tensão não pode ser parte deste padrão simples, porque somente
um tema está envolvido. Primeiro a semente começa a se desdobrar; uma estância
intermediária faz seu aparecimento: Ré – Fá – Lá, 1 – 3 – 5. Então uma pequena
unidade é dividida em duas partes distintas: Ré – Fá, Ré – Lá, 1 – 3 e 1 – 5. A seguir,
cada uma das partes manifesta uma modesta vida própria: _________ . A lacuna
entre as duas primeiras notas da primeira metade é preenchida: ________ . A lacuna
correspondente na segunda metade, Ré – Lá, é também larga para ser preenchida de
um modo similar. A única coisa a fazer é unir com o salto. Mas onde a transição da
primeira metade foi gradual e sem esforço, o salto na segunda metade é um esforço.
Note o firme ponto de apoio oferecido pela nota que serve como trampolim, _____,
como o movimento é acelerado pela diferenciação rítmica antes do salto e retarda
tranqüilamente após ele: _________ . Este é o primeiro plano, o tema da fuga. O
processo inteiro é apresentado como segue:

______________

O que cada um que ouve esta fuga sente – a expressividade característica da


idéia musical, a rica promessa que ela sustenta – é respondido por sua estrutura
interna como mostrado acima. O padrão de primeiro plano não emerge simplesmente
do plano de fundo: vemos que este é o resultado de uma série de transformações. Em
124

comparação com melodias de canções populares, tal padrão revela uma profundidade
maior de estrutura e gera relacionamentos tonais mais ricos e muito maior
complexidade. Este é uma diferença em grau, não em qualidade: tomada em si
mesma, a melodia do Coral Aleluia não é inferior ao tema de Bach, mas o tema
pertence a outro mundo, um mundo de tensões mais altas, um mundo espiritual,
aquele da própria música composta. Na música composta não há lugar para a
simplicidade da música popular – ou melhor, talvez tenha lugar demais. A
“simplicidade” pela qual muitas grandes obras primas são louvadas, pois meramente
parecerem simples: isto é o mais admirável pela maior complexidade que elas
incorporam.

Ilustraremos isto com um exemplo um tanto extremo o qual ao mesmo tempo


nos permite familiarizarmo-nos com a estrutura de uma concepção realmente
ambiciosa. À primeira audição, pode algo soar mais simples, mais fácil de
compreender, do que o tema da “Ode à alegria” de Beethoven? Quando vimos a saber
quanto trabalho a composição desta “simples” melodia exigiu de seu criador, ficamos
francamente frustrados. Contudo, o diagrama ilustrando sua estrutura em
profundidade ajudará a clarear nossas dúvidas. Desta vez começamos com o primeiro
plano. (Aqui, e nos diagramas seguintes, mínimas, semínimas e colcheias
permanecem como estruturais mais do que valores de tempo; unidades estruturais são
indicadas por travessões e ligaduras.)

________________

O padrão é certamente um único; mas quão complexa é sua estrutura em


profundidade, quão grande o contraste entre a idéia do plano de fundo e sua
realização no primeiro plano. A tarefa: adiar muitas vezes a resolução do passo 3 – 2,
anular o passo 2 – 1 imediatamente após ele ocorrer pela repetição de 2, permitir 1
seguir a repetição de 2 por uma longa extensão (compassos 9 – 12), mas ao contrário
anunciar teimosamente, mesmo vitoriosamente, que no fundo nada foi ainda
alcançado, que estamos ainda em 3 (este é o sentido da síncope surpreendente do Fá#
no compasso 12): realizar tudo isto com um mínimo de movimento, com os passos
menores dentro do limite mais estreito, salvo somente por um afloramento inesperado
no compasso 12, o extravagante salto para alcançar a síncope triunfante – ainda esta,
contudo, foi preparada nas primeiras camadas estruturais. A semente 3 – 2 – 1
desdobrada em 3 – 2 || 3 – 2 – 1 – gerando novos ramos camada a camada,
integrando-os firmemente dentro de um todo – a parte de cima do plano de fundo, 3 –
2 – 1, reaparece em forma diminuída (correspondendo à primeira metade da melodia,
compassos 1 – 8) no plano intermediário II; a transformação efetuada enquanto nos
movemos desde o plano de fundo para o plano intermediário I é repetida enquanto
nos movemos do plano intermediário II para o plano intermediário III (primeira
metade); a transição do plano intermediário I para o plano intermediário II (primeira
metade, correspondendo aos compassos 1 – 9) é repetida na transição do plano
intermediário III para o plano intermediário IV (primeiro quarto, compassos 1 – 4) –
até por fim com a transição do primeiro plano a estrutura em profundidade é
encoberta no padrão final: o que pode evocar o passo 3 – 2 menos do que _________,
125

o começo da melodia, a qual tenta um movimento ascendente, embora de fato um


movimento descendente é pretendido, e o relaxamento aparentemente completo de 5
– 4 – 3 – 2 – 1 onde a tensão é pretendida? (O diagrama também nos ajuda a
compreender por que 1 não denota resolução neste caso: porque ele pertence à parte
de baixo da estrutura fundamental, a saber, a nota inicial.) Schenker em certo ponto
cita uma observação de Hofmannsthal: “O profundo deve ser encoberto. Onde? Na
superfície.”

Para evitar possíveis erros de interpretação os quais podem ser sugeridos pelo
diagrama, é preciso dizer enfaticamente que o primeiro plano, o plano intermediário e
o plano de fundo não formam uma sucessão no tempo. As camadas estruturais
individuais não representam assim muitos estágios no processo de criação de uma
melodia. Esta melodia nunca existiu como plano de fundo ou plano intermediário,
nem assim qualquer música. A música existe somente de um modo, como primeiro
plano. Assim como a forma primordial, o Urphänomen, é “idéia”, assim são as
formas transicionais do plano intermediário; unicamente o padrão do primeiro plano é
“realidade”. Isto é verdade não somente para o trabalho enquanto o ouvimos ou
lemos por meio de sua partitura, mas também para a idéia musical na mente do
compositor, não importa se esta surja num instante a ele como forma acabada ou se
ela a desenvolve passo a passo. Precisamente onde os esboços de um compositor são
o testemunho do modo de seu trabalho ser desenvolvido gradualmente, encontramos
que o processo não tem nada a ver com a estrutura em profundidade da obra. Não
deveríamos imaginar que o compositor trabalha seu caminho passo a passo desde o
plano de fundo, via o plano intermediário, até o primeiro plano: o que ele registra no
papel é sempre o primeiro plano; os estágios preliminares não são planos
intermediários, mas infinitos primeiros planos. Assim, o padrão tonal é derivado da
forma primordial idealmente no plano de fundo, não em fato real; quando falamos do
trabalho como ele é ouvido, nos referimos somente ao primeiro plano; tudo mais se
refere ao significado expresso na obra; as camadas estruturais devem ser entendidas
como uma seqüência lógica e significativa, não como uma seqüência temporal e
genética. Um exame mais esmiuçado do diagrama demonstrará imediatamente que
um aparecimento real do primeiro plano desde as camadas primordiais não está
representado. Os signos gráficos usados mostram que o plano de fundo e o plano
intermediário, por um lado, e o primeiro plano, por outro lado, pertencem a diferentes
campos da existência. A música existe como padrão temporal, e pode existir somente
na dimensão do tempo. Somente os símbolos notacionais do primeiro plano
representam valores de tempo; os signos usados nas outras camadas carecem de
qualquer significado temporal, indicando assim que eles pertencem ao campo das
idéias. Imagine que você soluciona o seguinte problema: dados os padrões do plano
de fundo e do plano intermediário da “Ode à alegria”, encontre o tema. Você
perceberá imediatamente que mesmo o último padrão do plano intermediário está tão
afastado do tema a ser encontrado que não oferece qualquer indício que seja. É como
se déssemos um diagrama bioquímico engenhoso e certas substâncias químicas, e
disséssemos para produzir na realidade um organismo vivo funcionando.
126

Isto liquida a questão freqüentemente levantada se o compositor “sabe” algo do


que sucede dentro de uma melodia – a forma primordial, sua transformação, o modo
como os estágios estão relacionados um com o outro e com o todo, e como o padrão é
derivado desde o plano de fundo e o plano intermediário. A questão é vã: se o
compositor sabe ou não sabe é totalmente irrelevante. Nenhuma rota praticável leva
desde o plano de fundo para o plano intermediário e o primeiro plano; a rota pode ser
viajada somente em uma direção, começando do primeiro plano. Como mencionado
acima, uma grande quantidade de trabalho foi colocada na composição da “Ode à
alegria”: o que teria ajudado Beethoven saber que sua sessão do meio, os compassos
9 – 12, é primariamente uma extensão da nota 2 do plano de fundo? Estender uma
nota por quatro compassos por floreios é uma tarefa para um estudante do primeiro
ano de composição; qualquer um descobrirá um número de soluções possíveis, todas
elas igualmente triviais. O problema de Beethoven não foi estender 2, mas encontrar
aquele padrão do primeiro plano que corretamente conduz o movimento da abertura e
o conduz naquele do final. Que o padrão acontece para requerer a extensão de uma
nota desde uma camada profundamente estrutural, por assim dizer, não diz respeito a
isto; alguém poderia quase dizer que está acima das notas resolver este problema. Por
outro lado, alguém hesitaria em dizer peremptoriamente que um mestre compositor
não sabe nada a respeito da estrutura interna de seus padrões: afinal de contas, é
precisamente sua habilidade abrir o primeiro plano para a ação de forças originadas
nas camadas estruturais profundas que as distingue de um mero fundo. “Em suas
composições”, escreve Schenker, “os mestres têm mostrado uma habilidade, expressa
na obra como presciência e pós-ciência, a qual testemunha um claro conhecimento
global das leis da arte, um conhecimento que os tem dispensado de comentar suas
próprias composições; na verdade, toda realização artística . . . é inseparável da
compreensão intuitiva do artista dos relacionamentos internos”. Como conhecimento
no pleno sentido do termo, como consciência clara da meta a ser alcançada, esta
compreensão intuitiva refere-se ao primeiro plano. Onde as leis profundas são
concernidas, seria mais correto falar do conhecimento instintivo na forma de
instigações desde o subconsciente, palpites ou pressentimentos. Isto é por que
Schenker observa que o segredo de um trabalho musical perfeitamente coerente é
para ser descoberto nas camadas estruturais mais profundas; o compositor está
instintivamente cônscio de sua presença: “Esta consciência instintiva está sempre no
fundo da mente, caso contrário todo primeiro plano degeneraria inevitavelmente para
o caos” (ou em um desgaste estéril, alguém poderia acrescentar, embora isto seja
também uma espécie de caos). Schenker também se refere ao “milagre da transição
da estrutura fundamental para o primeiro plano e da volta ao primeiro”. O compositor
de gênio tem a forma primeira não como um esquema diante dele, mas como uma
força atrás dele. Tudo isto será discutido em grande detalhe posteriormente.

Os temas de Bach e Beethoven analisados acima são partes de um todo tonal,


não são eles próprios um todo. Um diagrama mostrando a estrutura em profundidade
de um todo, não importa quão ampla, não diferirá essencialmente daquela de uma
parte. Em ambos os casos, o padrão do primeiro plano pode ser visto como o
resultado final de transformações graduais de uma forma primeira da vida tonal; em
127

ambos, as mesmas linhas correm desde o plano de fundo para o primeiro plano via
camadas estruturais intermediárias. Conforme o padrão se expande, as linhas podem
se tornar mais e mais ramificadas, os relacionamentos internos mais complexos, e seu
limite progressivamente mais extenso; de acordo com isto, o diagrama desenvolverá
uma maior elaboração. Mas se estamos lidando com uma parte ou com um todo, são
sempre as mesmas forças, operando de acordo com os mesmos princípios, que
asseguram a unidade orgânica interna do padrão. Não precisamos nos contentar com
vagas referências à coerência interna e à auto-suficiência das obras musicais, porque
o quadro das camadas estruturais mostra tudo isto. O diagrama descreve claramente
estas características. Isto é ilustrado por um todo tonal de modestas dimensões, a
pequena estrutura tripartida (revestimento) a qual fornece o tema para o movimento
das variações da Sonata para Piano op. 26 de Beethoven (n.n. = [neighbor note] nota
vizinha, uma nota adjunta ou nota vizinha que se move à próxima nota acima ou
abaixo, por exemplo, _______, muitas vezes resumido _______).

Para usar a terminologia de Schenker: a parte superior da estrutura fundamental


mostra o movimento de uma terça, 3 – 2 – 1; sua parte inferior, a típica base partida, I
– V – I. No plano intermediário I, o movimento é mostrado em uma forma mais
desenvolvida, completada não como em nosso exemplo anterior, por dividir o
movimento, mas por introduzir uma nota vizinha, _____, onde a nota inicial 3 torna-
se viva. No plano intermediário II, esta nota gera por si mesma o padrão da estrutura
fundamental por repeti-lo em uma escala reduzida, e a nota vizinha produz uma nota
vizinha mais alta de sua própria, ________ . No plano intermediário III, a estrutura
fundamental revelada mostrada no plano intermediário I é repetida de forma
resumida. A seção central do conjunto parece agora agir sobre si própria: a nota
vizinha mais alta afirma sua independência: é alcançada por um caminho ascendente
grau a grau para a sua própria nota sensível (apoiada pelas vozes mais baixas
harmonizadas de acordo): _______ . No plano intermediário IV, o padrão é
expandido; o movimento de uma terça é dividido e ao invés de 3 – 2 – 1, que
conhecemos, tem 3 – 2 || 3 – 2 – 1, enquanto na seção central outra nota vizinha é
adicionada: ________ . O plano intermediário V é marcado por um passo decisivo, o
qual nos dá um primeiro vislumbre do padrão do primeiro plano: como se levantando
a idéia expressa na seção central do plano intermediário III, _________, a melodia
agora ascende gradualmente à nota inicial no movimento de uma terça _____, o qual
por sua vez é a imagem em espelho do mesmo movimento na estrutura fundamental
________ . A nota vizinha ascende em um movimento similar, _______ . A idéia de
alcançar a nota realmente pretendida desde baixo é também consumida na seção
central: ao invés de ________ temos agora _______. No último plano intermediário,
o movimento ascendente do começo _______ é expandido para _________, e a nota
vizinha Ré – Dó torna-se __________; esta expansão obviamente foi sugerida pela
seção central do plano intermediário IV. O aparecimento das terças ascendentes na
seção central – poder-se-ia quase dizer de um florescimento – pode ser lida desde a
partitura.
128

As duas últimas linhas do diagrama, situadas abaixo do primeiro plano,


pretendem tornar claro como as duas forças ativas principais do processo de
transformação, o movimento de uma terça no plano de fundo e da nota vizinha no
plano intermediário I, contribuem efetivamente para o resultado final, isto é, o padrão
do primeiro plano – em outras palavras, como a forma primeira está presente na
melodia como realmente ouvida. Na primeira destas duas linhas, a melodia é reduzida
a uma série de movimentos de terça, nos quais um dado impulso é apanhado,
carregado para adiante, respondido e expandido. Podemos ver aqui como a seção
central – um único movimento ascendente de terça começando com a nota 3 inicial
(Réb transformada em Ré) – é ajustada ao todo; podemos ver também por que a
melodia alcança sua culminância precisamente neste ponto, no centro. A última linha
mostra como a nota vizinha _______ , agora expandida em ___________, tendo
encontrado sua solução é buscada em ___________, ligando todas as partes juntas, na
verdade, realmente unificando o conjunto. Assim, o diagrama da estrutura em
profundidade revela que toda a segunda metade da melodia, incluindo a seção central
e a repetição do começo, é uma versão enriquecida da última metade. Neste e em
todos os casos análogos, a teoria formal tradicional leva em consideração somente o
primeiro plano e fala somente de sua divisão tripartida em A (compassos 1 – 16), B
(compassos 17 – 26) e A (compassos 27 – 34), omitindo deste modo o fato essencial
de que a estrutura tripartida A – B – A do primeiro plano tem por base a estrutura
bipartida das camadas mais profundas. Esta aponta para a repetição no primeiro
plano, que é uma convenção estilística; nada sabe da repetição nas camadas mais
profundas, as quais revelam que o trabalho tem uma estrutura genuinamente orgânica.

É especialmente interessante observar como o padrão da seção central é


produzido pela ação combinada de duas forças motrizes. A seqüência das notas
vizinhas _____, em conjunção com o impulso da terça, primeiro leva à condensação
_________, a qual é imediatamente expandida para ________. Mas com esta última –
desde que o centro de gravidade foi modificado neste ínterim de Lá b para Mib (em
virtude de ______) – uma demanda por continuação foi declarada: Lá – Sol é
dinamicamente o mesmo como a primeira nota vizinha, Ré – Dó, 4 – 3, e como ela
demanda por ser suplementada como tal para tornar-se 4 – 3 – 2 – 1. O plano
intermediário VI mostra como esta demanda é satisfeita. O que acontece nos
compassos 24 – 26 – a falsa cadência do compasso 24, a expansão do período de oito
para dez compassos (quebrando a norma de oito compassos até então obrigatória) –
não pode ser responsável, por assim dizer, pelo desejo do compositor de expandir o
período a fim de aumentar a tensão a este ponto. Esta expansão é mais
apropriadamente responsável por uma situação nas camadas mais profundas, a qual
por sua vez é o resultado da ação combinada das notas vizinhas e do impulso das
terças, operando nas camadas ainda mais profundas. É esta demanda expressa nas
camadas mais profundas que o compositor – tal como um Beethoven – sente como
um desejo para expandir o período. E, por estar este desejo enraizado nas camadas
mais profundas, ele se sente obrigado a satisfazê-lo.
129

Mencionaremos mais um detalhe, que talvez mais do que qualquer outro


ilumine, como se em um lampejo a linha que corre do plano intermediário para o
primeiro plano e o plano de fundo. À primeira vista, provavelmente, ninguém pensará
que a figura do primeiro plano _________ é mais do que uma ornamentação.
Descobrimos somente nas camadas mais profundas o que ela é realmente: a réplica
exata, transposta acima um grau, da ascensão desde a nota inicial no plano
intermediário VI, __________, a qual por sua vez deriva da imagem em espelho
_____ do movimento da terça na estrutura fundamental. A figura em questão não é
uma formação acidental; ela reaparece no compasso 15, o qual termina a primeira
metade, e no compasso 33, ao final da melodia, desta vez na mesma posição tonal
como ao começo do plano intermediário VI ________ . O padrão do primeiro plano
não oferece nenhum motivo (tal como o requerimento de um paralelismo melódico
ou rítmico) para a repetição da figura nestes pontos. De fato, todo o aspecto externo
pareceria rejeitar qualquer repetição. A passagem correspondente no compasso 7 é
____, a qual sugerirá ___ para os compassos 15 e 33; além disso, a figura ________
tem uma característica pronunciada de anacruze; ela ocorre no último oitavo do
compasso, e, desde um ponto de vista formal, simplesmente não faz sentido usá-la
como substituta para o enfático Lá na primeira oitava parte do compasso. E é
exatamente isso o que Beethoven faz, e o fato de que a figura soa inteiramente
natural, “como se ela não pudesse ser de outro jeito”, é responsável pelo caminho a
que ela está relacionada nas camadas mais profundas. Uma simetria oculta liga
________ no plano intermediário VI a ______ pelo caminho de _______, também no
primeiro plano. A submissão a esta simetria junto com o diretamente seguinte ______
marca o fechamento parcial da primeira metade e o completo fechamento do todo.
Um círculo foi fechado: a última palavra da afirmação recapitula a essência de toda a
melodia: ____________ - isto é, ___________, ascende a 3, retorna à origem. A
respeito de ligações ocultas como esta, Schenker diz: “Como regra, elas são tão
tênues, tão sutis, que mesmo o artista mais sensível não as percebe conscientemente.
Podemos admitir sem muito alvoroço que elas são produzidas por uma espécie de
geração espontânea. Curiosamente, entretanto, sua natureza oculta testemunha por
sua origem orgânica mais convincentemente do que qualquer jogo sistemático de
repetições”. Em outro lugar, ele diz: “Na medida em que o termo ‘repetição’ pode ser
aplicado a estas transformações sucessivas de um padrão musical, estas
transformações são ‘repetições’ (paralelismo). Seu mistério serve a uma proposta
biológica protetora: ao permanecerem ocultas à consciência, elas têm uma melhor
chance de florescer”.

O conceito do orgânico tem um papel dominante no pensamento de Schenker.


O termo ocorre ainda na primeira página do prefácio para Der freie Satz, onde
Schenker denomina sua nova teoria de “estrutura orgânica”. Ele fala continuamente
de obras musicais como organismos, e dos processos musicais como vivendo
espontaneamente. “Ainda a mais simples reflexão desde há muito levaria à conclusão
inevitável de que o que é verdade para o corpo humano é também verdade para um
organismo musical; seus aspectos exteriores são determinados desde dentro . . .
Qualquer que seja a forma que o primeiro plano de uma estrutura possa tomar, sua
130

vida orgânica e espontânea está sempre enraizada na estrutura fundamental do plano


de fundo e nas camadas de transformação dos planos intermediários . . . A estrutura
fundamental nos fala que uma força viva natural deu nascimento às notas vivas; a
força primordial, desde que ela iniciou o movimento, se esforçará espontaneamente
por sustentar sua vida, empregando cada momento até realizar-se plenamente, como
qualquer força da natureza”. É importante lembrar que Schenker não usa tal
linguagem somente para um efeito retórico, metaforicamente (como fazem tantos que
escrevem sobre música). Ele tem um sentido preciso em mente, um sentido que
amplia nossa compreensão sobre a natureza das obras musicais, e da música em geral.

Primeiro de tudo, vamos esclarecer em que sentido as obras musicais podem


ser comparadas a organismos. Julgando pelas feições mais evidentes, a música não
tem nada em comum com a vida orgânica: ela não respira; ela nem ingere nem digere
alimento; ela não preserva a si mesma por se adaptar a seu meio ambiente; ela não
pode cicatrizar seus ferimentos por seus próprios esforços desauxiliados, nem se
propaga por si mesma. Somente em dois aspectos uma obra musical pode ser
comparada a um organismo: o modo como as partes estão relacionadas ao todo e uma
à outra, e o modo como ela cresce desde uma única “semente” por sucessivas
transformações. No caso das obras musicais, contudo, estas transformações, como
temos visto, não devem ser entendidas como reais mas mais propriamente como
puramente ideais. Além disso, mesmo no quesito da organização interna, as
diferenças parecem superar as similaridades. Nos organismos vivos, a relação das
partes com o todo e uma com a outra é primordialmente funcional, não formal; cada
órgão tem, é óbvio, uma forma sua própria, mas coração e cérebro, vasos sangüíneos
e nervos, olhos e ouvidos são partes funcionais, não formais, do todo orgânico. Por
contraste, nas obras musicais é precisamente através de sua forma e de seu padrão
dinâmico específico que cada parte individual está relacionada às outras partes e ao
todo. O fluir infindável de energia, o esforço infinito para manter um estado que é o
verdadeiro oposto do equilíbrio, um estado no qual cada elemento continuamente se
dissolve e se reconstitui – todos estes processos assombrosos que acontecem dentro
dos sistemas vivos e que temos descoberto pelas pesquisas biológicas mais recentes –
nada disto poderia ser argumentado a favor de uma íntima similaridade entre as leis
que governam os organismos vivos e aquelas que governam a música. E então
devemos nos perguntar se expressões tais como “o caráter orgânico das obras
musicais” pode ser algo mais do que uma metáfora poética, sugerido pela força mais
do que pelas impressões claramente definíveis inspiradas pela unidade vida das
obras-primas musicais.

Obviamente, em termos da ordem formal e funcional, do todo formal e


funcional, não há base de comparação entre obras musicais e organismos vivos.
Todavia, embora o organismo seja sem dúvida um todo funcional da mais alta ordem,
não é isto que o torna um organismo, não é isto que o distingue como organismo de
outros sistemas bem ordenados. Um relógio, também, é um todo funcional, e pode ser
também um todo formal. Ele pode ser belo; sua aparência pode nos dar um grande
prazer. Contudo, o mecanismo pelo qual as partes do relógio reunidas não é questão
131

de forma mas puramente de função. A mola, por exemplo é parte de um relógio não
porque sua forma é uma espiral, mas porque ela é a fonte de energia, e como tal pode
prontamente ser trocada por uma fonte de energia que tenha outro formato; o todo
não deixará, por causa disso, de ser um relógio. Com respeito à função, relógios e
organismos vivos estão tão distantes quanto possível. O advento de computadores
eletrônicos, no entanto, nos tornou cônscios do fato de que o alcance funcional dos
mecanismos não é sempre tão estreitamente limitado, mas mais propriamente é capaz
de extensões altamente inesperadas. Hoje em dia, “cérebros” eletrônicos são
programados para reagir a estímulos do ambiente, “favoravelmente” a estímulos
amistosos, e “hostilmente” àqueles inamistosos; eles são capazes de encontrar fontes
de alimento para se reabastecer quando seu próprio combustível está esgotado, e
então de mover-se a cada vez que sua “fome” tenha sido aplacada. Cérebros
eletrônicos podem tanto aprender quanto lembrar-se do que aprenderam, e seu
comportamento observável não é, a princípio, diferente daquele das coisas vivas. Tão
primitivas, rebuscadas ou desajeitadas quanto possam ser suas operações, elas
abriram a possibilidade de construir modelos mecânicos de funções orgânicas. Desde
que tomemos por garantido que uma dada máquina deve ser menos complexa do que
a máquina que a produziu, desde que uma máquina capaz de manufaturar máquinas
mais complexas do que ela própria, uma máquina que “se propaga”, ou mesmo “se
desenvolve”, seja concebível – é claro, não mais do que concebível, embora mesmo
assim! – o abismo entre o orgânico e o não-orgânico, com respeito ao tipo ou ordem
incorporada em cada um, parece agora ter sido transposto, ao menos em teoria:
parece possível reproduzir cada função orgânica em um modelo mecânico.

Os desenvolvimentos acima lançam uma nova luz sobre o problema que


estamos discutindo, isto é, as diferenças e similaridades entre uma obra musical e um
organismo vivo. Admitindo que um todo musical e um orgânico, o primeiro sendo
formal, o outro funcional, não provê nenhuma base para comparação; mas se o tipo
de ordem governada por funções não é a característica crucial do organismo vivo, a
única que o distingue de um sistema inorgânico e mecânico, a questão permanece em
aberto. É claro, se tal distinção característica do orgânico existe de todo, se não
devemos antes reconhecer que os mundos do orgânico e do inorgânico formam uma
série contínua, e que coisas vivas e mecânicas diferem somente em grau de
complexidade, tem sido por um longo tempo uma questão para debate. Mas não há
necessidade de tomar partido nisso para admitir que todas as organizações orgânicas
e mecânicas diferem em um ponto essencial: cada uma funciona de acordo com uma
espécie diferente de plano. Que as máquinas funcionam de acordo com um plano pré-
concebido é auto-evidente; se o mesmo é verdade para organismos vivos é a questão
central da biologia.

Cada máquina é o produto do planejamento humano. Mesmo a hipotética


máquina do futuro, capaz de reproduzir a si mesma, ainda seria dependente do plano
original desenhado para a primeira construção de tal máquina. Máquinas são, então,
comparáveis a organismos no sentido de que ambos são produtos de um plano, um
princípio organizador, mas para o último o princípio é inerente ao organismo,
132

enquanto que o princípio organizador de qualquer máquina existe somente na mente


de seu construtor. O organismo produz a si mesmo ao mesmo tempo em que ele
realiza o plano que governa sua ordem interior. O plano está localizado dentro do
organismo: alguma parte específica dele pode determinar o plano, talvez na forma de
uma mensagem genética codificada nos cromossomos, que o organismo decodifica
gradualmente no curso da travessia de sua vida. Como o plano se origina, contudo, e
realmente onde ele está localizado, se ele pode ser decodificado (por assim dizer,
teoricamente) do lado de fora do organismo, e se nós temos mesmo como alcançar o
ponto onde, colocando de uma maneira mais marcante, “modos de comportamento e
qualidades não podem mais ser descritas, mas são elas mesmas suas mais simples
descrições” – estas questões permanecem ainda sem resposta. Todos podemos estar
certos de que alguma espécie de plano existe. O argumento de que nem todo sistema
necessariamente pressupõe um plano mas que uma ordem pode resultar meramente
de alguma combinação de elementos ao acaso é auto-frustrada. Pois se algum
princípio sistemático de organização pudesse ser produzido pelo acaso, então
seríamos obrigados a supor que ele seria tão prontamente quebrado e desapareceria
sob a mesma suposição. Acaso é o princípio da não-ordem, implicando na não-
existência de forma e função. Supor que um princípio de organização emerge em
primeiro lugar, se auto-sustenta, e além disso cria princípios comparáveis de
organização, em torno de si mesmo, “puramente por acaso” – isto é patentemente
absurdo. Só teoricamente é possível supor que o tema da Fuga em Ré menor de Bach
poderia ser produzido por pegar ao acaso de um conjunto de cento e vinte cartões,
cada um escrito com uma nota de certa duração (colcheias, semi-colcheias, e assim
por diante). Matematicamente, a seleção ao acaso dos cartões demoraria algo em
torno de cinco milhões de anos antes das seis primeiras notas, correspondendo a
________, terem sido reproduzidas – um esforço fora de toda proporção com relação
ao resultado. Para ir além e reconstruir o tema inteiro através deste método tomaria
centenas de bilhões de anos, mais tempo do que aquele que sabemos o universo tem à
sua disposição. E mesmo então tudo o que teríamos produzido seriam os dois
primeiros compassos da fuga, e somente uma voz dela, a essa altura. O que dizer a
respeito do resto da fuga? Obviamente, o argumento se degenera em especulação sem
sentido.

Assim, a linha separando organismos de máquinas pode ser desenhada com um


razoável grau de acuidade. A máquina é montada junta de acordo com um plano pré-
existente; o plano de acordo com o qual o organismo é construído e funciona é
inerente ao organismo e inseparável dele.

Alcançamos agora o ponto onde os organismos e as obras musicais podem ser


comparados em significado. Como o organismo, a obra musical não é construída por
algum plano estrangeiro a ela. Como poderia um compositor proceder para construir
uma peça de música de acordo com um plano? Obviamente, ele não poderia proceder
do mesmo modo que um químico, que coleta substâncias necessárias para a
manufatura de um produto complexo, tomando uma certa quantidade de cada, e assim
por diante, sendo guiado todo o tempo por um plano sem o qual ele não poderia
133

sequer começar seu trabalho. Tomando o exemplo da melodia de Beethoven discutida


acima, primeiro de tudo o compositor coletaria sua matéria prima, notas, valores e
assim por diante? Como poderia saber o que deve escolher, e em quais proporções,
para produzir sua melodia? Onde está o plano que o guiaria? Ele não existe; deve ser
descoberto em primeiro lugar. Como? Por descobrir a melodia. Descobrir o plano e
descobrir a melodia é uma e a mesma coisa. Que o plano existiria antes que a
melodia, como uma espécie de esquema a ser preenchido com notas, é tão absurdo
quanto idéia mesmo para ser imaginada. As formas convencionais são estruturas
vazias; traços estilísticos são meramente material lingüístico; eles caracterizam todas
as melodias. O plano da melodia individual é a própria melodia. A feição essencial e
específica da vida orgânica, a saber, o fato de que o plano é inerente e inseparável do
organismo vivo, está aqui presente em seu extremo, por assim dizer, sua forma
teoricamente mais pura.

Algo que não está construído, não está unido de acordo com um plano – um
todo orgânico, em outras palavras – pode vir a ser somente através de um processo de
desenvolvimento, começando com um embrião ou semente de uma idéia musical e
continuando com um processo de desenvolvimento, auto-duplicação, e
transformações sucessivas até a obra ter sido plenamente realizada. Agradecimentos a
Schenker, por não mais precisarmos pensar tudo isto em termos de especulação
abstrata: pode ser estudado como um fenômeno vivo. Os quadros das “camadas de
transformação” são aqueles do processo de crescimento. Eles nos mostram a semente
presente no começo, o gradual desdobramento desta através de sucessivas
transformações, e a forma madura como revelada ao final: a unidade e coerência do
todo enquanto enraizado na forma primordial e os múltiplos inter-relacionamentos
internos das partes e suas relações com o todo, as quais são as características
distinguíveis no desenvolvimento de todas as coisas. Assim como no caso dos
organismos, a ordem que governa as obras musicais não chegou antes ao seu
desenvolvimento atual; mais propriamente, ela se desenvolveu juntamente com as
transformações sucessivas da forma primordial, e é completada ao mesmo tempo que
a forma final. Agradecimentos aos quadros das camadas estruturais de Schenker, a
caracterização dos padrões tonais como “orgânicos” não mais somente como uma
metáfora mas a expressão de uma percepção genuína.

Como isto deve ser entendido? Afinal de contas, uma obra musical não cresce
realmente, ela é criada. Ela é uma obra de arte, um produto do talento, da técnica no
sentido mais amplo, não uma obra da natureza. Poderá ela ser meio a meio algo
criado e algo desenvolvido, nunca sendo criada? Esta questão é respondida pela
distinção acima mencionada entre o modo de existência do primeiro plano e aquele
das camadas mais profundas: a realidade do primeiro, a idealidade destas últimas. O
fenômeno é único, parece esquivar-se a comparações. O compositor constrói sua
estrutura com sons reais, tendo em mente seus significados do primeiro plano; o
resultado, se bem sucedido, então parece ter sido construído sobre a fundação de um
contexto de significado inteiramente diferente, e parece ter recebido sua ordem desde
este último. Pense em uma ponte: suas várias partes são colocadas juntas
134

mecanicamente, mas o que as mantém juntas não é somente o vínculo mecânico mas
também a força da gravidade agindo desde o centro da terra. Ou a cura de um
ferimento: o incrivelmente complexo processo na superfície, o qual não sabe nada da
estrutura orgânica; mesmo assim o resultado final está de acordo com um plano que
satisfaz a demanda da estrutura orgânica. Feito de matéria real e de tempo real, a obra
musical existe como primeiro plano, mas ela foi desenvolvida desde a semente de
uma estrutura fundamental para a qual, em última análise, ela deve seu significado, a
unidade e a integridade de seu padrão. É aqui, no nível profundo da estrutura
fundamental, que o plano opera: é por isto que ele não é utilizável com propósitos de
“construção”. Tudo isto será esclarecido na próxima seção.

Os diagramas que seguem, um representando o processo de desenvolvimento


de um organismo biológico

__________

e o outro de um organismo musical


__________

diferem somente em suas coordenadas. Em ambos os casos, o começo é


puntiforme; o crescimento é um desdobramento. O organismo biológico se
desenvolve no espaço, o musical no tempo. O crescimento espacial do organismo
biológico é um processo temporal, necessita de tempo; o crescimento temporal do
organismo musical não acontece no tempo mas em uma dimensão perpendicular ao
“tempo”, assim como no primeiro diagrama o “tempo” era perpendicular ao
“espaço”. Esta dimensão é aqui designada como “significado” – talvez não muito
adequadamente, pois afinal de contas significado está presente também no primeiro
plano, nas qualidades dinâmicas das notas. O que necessita tempo na obra tonal não é
o crescimento mas a coisa que cresce; e o que necessita crescer não é o tempo mas o
“significado”. (É verdade que o crescimento do organismo biológico, também se
desdobra no tempo, também tem uma história. O que estende sua própria história tem
“crescimento” em uma dimensão perpendicular do tempo, isto é, é significativamente
organizada de acordo com o tipo de seu crescimento, não pode ser tratado aqui.
Obviamente, o fenômeno primordial da vida não está confinado ao espaço somente.)

Uma objeção particular tem sido repetidamente levantada contra a teoria de


Schenker: o que se ganha ao reduzir o fascinante e maravilhosamente rico mundo dos
padrões musicais a um punhado de fórmulas vazias, as assim chamadas estruturas
fundamentais? Se fossemos levados a acreditar que o tema da ode à alegria de
Beethoven diz nada mais do que ________, e que um tanto de trivialidade similar é
tudo o que é expresso na melodia do movimento variação da sua Sonata em Lá b, e
assim por diante, não seríamos enriquecidos mas empobrecidos. É alegado que tal
teoria não nos dá uma maior percepção da música; ela serve somente para expor sua
insignificância. A montanha deu nascimento a um ratinho. A objeção não teria se
repetido tão obstinadamente contra toda razão se ela não estivesse enraizada em um
135

compromisso intelectual mais profundo, cuja natureza é facilmente descoberta.


Referimo-nos à interpretação tradicional da relação entre idéia e fenômeno.

Temos dito que a estrutura fundamental de Schenker é a “idéia”, no sentido de


Goethe. Mas a interpretação de Goethe da idéia foi agudamente oposta à tradição
idealista. De acordo com esta última, nós “deterioramos” quando procedemos desde a
idéia para o fenômeno: as idéias são mais elevadas em verdade, dignidade e distinção
existencial. Os fenômenos são meras máscaras que obscurecem e deformam a idéia,
ainda que progridam da aparência para a realidade, desde a meia-verdade para a
verdade, da escuridão para a luz. Em termos desta interpretação tradicional, o
primeiro plano de Schenker, sendo uma manifestação da idéia presente somente no
plano de fundo, não é nada que não uma camada exterior, uma paráfrase, ou, se você
preferir, um embelezamento da idéia: o verdadeiro significado do padrão do primeiro
plano deve ser visto no plano de fundo; a verdade da música é sua estrutura
fundamental. Conseqüentemente, temos aquela ridícula objeção. O quadro distorcido
da teoria de Schenker é eliminado no momento em que substituímos a interpretação
tradicional da relação entre idéia e fenômeno por aquela de Goethe. Seu Urphänomen
é investido com a plena dignidade, verdade e distinção existencial da idéia, mas o
caminho que leva desde ela ao fenômeno não é descendente; o fenômeno nem
diminui nem obscurece a idéia, mas a revela e a satisfaz. Contra os “idealistas de
tempos antigos e modernos”, e sua tese de que “a causa deve ter maior perfeição do
que seu efeito”, Goethe argumenta que “uma forma espiritual não é nenhuma via de
declínio quando ela se manifesta, dado que sua forma fenomenal é produzida por uma
verdadeira geração, um verdadeiro ato de procriação. A geração não é inferior àquele
que gera; na verdade, é uma superioridade da criação viva que o procriado pode
alcançar maior excelência do que o procriador”. A teoria de Schenker de como o
primeiro plano cresce desde o plano de fundo deve ser compreendida precisamente
no sentido da “procriação”. A transformação do plano de fundo no primeiro plano
não diminui ou obscurece a idéia, mas, ao contrário, a desenvolve em sua plena
realização. Para mostrar o caminho desde o primeiro plano para o plano de fundo, a
teoria não busca despir o padrão superficial de sua aparência, mas capturar um
vislumbre do milagre da procriação viva, da transformação. A divisa que Schenker
cita, “Semper idem sed non codem modo” – (“Sempre o mesmo mas não do mesmo
modo”) – é totalmente incompreendida se é tomada no sentido de que todas as obras-
primas da música tonal em última análise dizem mais ou menos a mesma coisa, como
se o idem estivesse referido às estruturas fundamentais. O que está referido realmente
não é a semelhança do agente procriador, mas aquela do processo de procriar, o
milagre das sucessivas transformações, o qual é sempre o mesmo milagre, e o qual
produz todo o mundo dos padrões musicais desde umas poucas estruturas
fundamentais. O último é realmente caracterizado por sua extrema simplicidade:
desde que eles criam os incontáveis padrões diferindo em conteúdo e expressão,
como poderiam eles ser algo que não indiferenciados, “vazios”? O que eles apóiam
são potencialidades e forças até então irrealizadas, não coisas pré-existentes. O único
meio de reconhecermos uma força ou potencialidade é quando a vemos ou ouvimos
em uma obra. A contribuição decisiva de Schenker para a teoria musical não é sua
136

descoberta das estruturas fundamentais, mas que o processo pelo qual uma e mesma
estrutura fundamental cria sempre padrões diferentes, sempre novos padrões de
primeiro plano. O conhecimento do padrão de fundo sozinho em nada contribui para
nossa compreensão de um primeiro plano. Neste caso “compreender” significa obter
uma idéia clara de como, de que modo, um dado plano de fundo pode ser
transformado em um dado primeiro plano. O campo de ação para esta compreensão é
o plano intermediário.

Sem exceção, os diagramas de Schenker, intencionados para tornar inteligível a


estrutura profunda das obras tonais, sua unidade orgânica, mostram somente o plano
intermediário, e em muitos casos, quer ilustrando uma obra inteira ou somente uma
parte dela, o plano intermediário é representado por uma camada estrutural somente.
Schenker desenvolveu um sistema de símbolos que torna possível mostrar em uma
única camada, como se em um corte transversal, como o processo trabalha em ambas
as direções, do primeiro plano e do plano de fundo. Mostrar todas as camadas de
transformação no caso de obras mais longas acarretaria uma tarefa infindável (sete
quadros de camadas são necessários mesmo para a breve melodia de nosso exemplo),
mas esta tarefa pode ser realmente dispensada. A partir do diagrama de uma camada
corretamente escolhida – situada estrategicamente, por assim dizer – aqueles que
estão familiarizados com a teoria e sua linguagem simbólica podem compreender o
que acontece nas camadas precedentes e seguintes. Quando a complexidade de
algumas passagens no primeiro plano levanta problemas especiais, ou quando
diferentes interpretações estruturais de uma da passagem parecem possíveis, os
diagramas de tais passagens podem ser adicionados. O diagrama seguinte de um
“esboço parcialmente escrito” muito simples (como Schenker o chama) é deste tipo.
Relembramos o leitor que os símbolos métricos – semi-colcheias, colcheias,
semínimas, mínimas – são usadas aqui não para denotar valores de duração relativa
mas valores estruturais relativos. Este é o Estudo op. 10 nº 12 de Chopin. (Os
números acima se referem a compassos; eles mostram como o esboço está
relacionado à composição, e o esboço principal aos esboços parciais.)

_______________

Temos mostrado o primeiro plano, considerado pela teoria de Schenker, não


por sua própria causa mas mais propriamente com o propósito de descobrir realmente
o que o ouvido é capaz de fazer quando ele ouve música. Schenker responde a
questão do que de fato acontece quando ouvimos algo, como uma peça de música
artística. Uma peça de música é o que ela é, uma entidade particular significativa feita
de notas, porque sua estrutura profunda é orgânica, no exato sentido biológico do
termo. Ouvir uma composição é portanto perceber diretamente uma estrutura
orgânica; o próprio ato de ouvir é orgânico. Sem qualquer conhecimento avançado,
sem qualquer contribuição da faculdade analítica, o ouvido percebe relações tonais
evidentes e encobertas, integra e diferencia de acordo com a dada estrutura orgânica,
distingui entre elementos super-ordenados e subordinados. É claro, não toda audição
faz tudo isto do mesmo modo, nem qualquer audição individual faz isto do mesmo
modo todo o tempo; ainda, a própria audição o faz por um ou outro caminho. Aquele
137

que desfruta do testemunho de uma audição altamente desenvolvida e refinada, por


não poder acompanhar o progresso além de um certo ponto, pelo mesmo indício
demonstra a realidade do que impede de ir além deste ponto: a realidade de uma
resistência que pode ser responsável somente pelo fato das obras musicais diferirem
em sua complexidade estrutural, e pela particular habilidade ou inabilidade da
audição em acompanhar os passos da crescente complexidade.

Em defesa do que a teoria de Schenker demonstra ser o que é


“verdadeiramente” ouvido na música, o que é o “real” fundamento de seus padrões,
imagino que estas afirmações devem ser baseadas por sólida evidência, mas deste
modo porque elas acarretam importantes conseqüências teóricas. Se a reivindicação
de validade para a teoria de Schenker pode ser defendida, então é possível medir a
graduação artística de obras músicas: a graduação é audível, inerente à própria obra,
não é uma questão de gosto pessoal. Obviamente, tal reivindicação é tão só
completamente uma variação das idéias correntemente aceitas de que não deve ser
tomado seriamente a não ser que isto seja assegurado contra qualquer dúvida
razoável. Até agora isto não foi feito aqui. O ponto da teoria exposto à dúvida radical
é óbvio, também. Quem não se sentiria mal caso ele comparasse a partitura do
primeiro estudo em Dó menor de Chopin com o “esboço parcialmente escrito”
mostrado acima? É verdade, estamos nos referindo ao abismo entre primeiro plano e
plano intermediário, entre ser e significado, e temos dito que este abismo não pode
ser ultrapassado passo a passo mas somente saltado através dele. Mas como saltamos
através dele começando do primeiro plano? Poderia se supor que Schenker tem algo a
dizer a respeito disto, que ele indica um método para descobrir a estrutura
fundamental. Mas ele nunca faz isto; aparentemente, ele não vê nenhum problema
aqui. Se lhe fosse perguntado como chegou a estes diagramas das camadas, ele ficaria
somente surpreso: “Por que, isto é tão simples”, ele diria. “Ouvimos isto”. Mas
vamos supor que alguém mais ouvisse algo inteiramente diferente e, começando
desde o mesmo primeiro plano, chegasse a uma estrutura profunda diferente? Onde
não existe nenhum método pré-determinado, tais discordâncias são sempre possíveis.
Quem decidirá, e sobre quais bases? Uma pessoa ouve uma coisa, outra pessoa ouve
outra: como podemos ir além deste fato? O que cria o problema não é que uma
pessoa não ouve nada onde outra pessoa ouve estrutura: o testemunho de um homem
cego contra a realidade do mundo visível não tem valor, mas quando dois homens
capazes de ver não conseguem concordar sobre o que eles vêem, então a realidade da
visão e a verdade de suas afirmações a respeito dela tornam-se questionáveis.

Não seríamos seres vivos deste século e respirando seu ar intelectual, se não
soubéssemos que falar de verdade tem significado somente quando alguém pode
também falar de falsidade, onde o verdadeiro pode ser separado do falso tão
inconfundivelmente quanto a luz das trevas. A reivindicação de validade para
qualquer afirmação deve ser apoiada por uma prova irrefutável, a qual pelo mesmo
indício prova que a negativa da afirmação é falsa. Tal prova pode ser dada somente
por dois métodos: o método lógico, ou por inferir diretamente a afirmação de outras
afirmações conhecidas por serem verdadeiras, ou por provar que a negativa da
138

afirmação envolve uma contradição em termos; e o método fatual, por mostrar que
um evento previsto pela afirmação de fato acontece, e não poderia acontecer se a
negativa da afirmação fosse verdadeira. Toda afirmação testada por um ou outro
destes método pode reivindicar uma validade universal ou objetiva, isto é, expressa
uma verdade independente de pessoa, lugar ou tempo. Os dois métodos de
verificação pertencem a dois mundos diferentes, o lógico ao mundo inteligível, o
fatual ao mundo visível-tangível dos corpos. Que a soma dos ângulos de um triangulo
é igual a dois ângulos retos não pode ser provado por observação, não mais do que as
leis de Mendel de hereditariedade podem ser provadas por dedução lógica. Quando os
dois mundos se juntam, falamos de um milagre: ainda hoje, a descoberta de que a
geometria determina as trajetórias dos corpos em movimento impressionará
profundamente qualquer leitor atento do Principia de Newton. O mesmo Newton, no
entanto, diz “Hypotheses non fingo”, com a ênfase em fingo: “Eu não invento
hipóteses”. Em outras palavras, ele se abstém de fazer afirmações cuja reivindicação
por validade, por veracidade, não podem, por causa de sua natureza, ser confirmadas
por dedução lógica ou por observação empírica. A distinção entre verdadeiro e falso é
significativa somente se ela pode ser confirmada, ao menos em princípio. Caso
contrário esta distinção é sem sentido e o “conhecimento” é impossível – não no
sentido de que ele é impossível para nós, aqui e agora, ou para nós enquanto seres
humanos, mas no sentido que falar de conhecimento neste caso é tão sem sentido
quanto falar da temperatura de uma molécula ou da cor de um elétron. Mas “algo que
não pode ser provado” não necessariamente implica em ser “sem sentido”.
Afirmações tais como “Deus criou o leão”, “o homem deve ser nobre, prestativo e
bondoso” e “amarelo é uma bela cor” certamente não são sem sentido; elas podem
empreender um significado momentoso e determinar o destino de um indivíduo, ou
mesmo da espécie humana. Mas elas certamente não podem ser denominadas
verdadeiras ou falsas. O que é sem sentido é tentar prová-la ou reprová-las, defender
ou negar que elas expressam algo “conhecido”.

À luz disto que foi colocado, o que pensar não somente da teoria de Schenker
mas também das muitas afirmações que temos feito no curso de nossas reflexões
sobre a música? Obviamente, elas não podem reivindicar uma validade objetiva. Elas
não são provadas logicamente nem podem ser verificadas pela ocorrência ou não-
ocorrência de fenômenos observáveis. Desde que a música pertence ao mundo
audível, não ao mundo dos conceitos, qualquer tentativa de provar nossas afirmações
sobre música por meio da lógica, por deduzi-las desde proposições
inquestionavelmente verdadeiras, deverá mais cedo ou mais tarde cair num vazio. Ela
não pode compelir a dar consentimento (como será sentido por qualquer leitor do Der
freie Satz, no qual esta tentativa foi feita, isto é, a de expor a teoria, lógica e
dedutivamente, more geometrico: ela provoca dúvidas diretamente). Enquanto para a
prova por observação, certamente há muitos elementos na música que podem ser
observados – a acústica das notas, a matemática das relações tonais, as técnicas de
tratamento, as características dos tipos de estilo: tudo isto provê oportunidade
suficiente para afirmações verificavelmente verdadeiras ou falsas, para
“conhecimento” no domínio da música. Contudo, temos defendido que todos estes
139

elementos são somente periféricos à música, e que o fenômeno central, o qual


constitui o verdadeiro fundamento da música, é tocado aqui só superficialmente ou
tomado inteiramente por admitido. Temos também defendido que este fenômeno
central é a natureza dinâmica, e que as qualidades dinâmicas das notas eludem a
observação: alguém precisa não ser surdo para não ouvi-las e o osciloscópio não as
registra. Assim, qualquer coisa que tenhamos dito a respeito da essência da música
não pode ser provado por princípio, não é verdadeiro nem falso, não tendo nada a ver
com “conhecimento”. Nossas afirmações dizem algo ou não dizem nada de qualquer
modo, de acordo com se a pessoa para quem elas estão endereçadas ouvem ou não
ouvem as qualidades dinâmicas das notas. Elas certamente não podem ser designadas
como universal ou objetivamente válidas. Elas podem ser válidas só subjetivamente,
isto é, aceita por algumas pessoas, rejeitadas por outras.

A expressão “validade subjetiva”, contudo, não deve ser tomada tão


literalmente neste caso. Se a percepção das qualidades dinâmicas das notas realmente
dependesse de caprichos, humores e idiossincrasias individuais, a música seria
impossível. A fundação sobre a qual repousa um edifício tão imponente quanto
aquele da música obviamente deve ser mais sólido do que a própria música. O
compositor que se expressa na linguagem das qualidades dinâmicas das notas pode
estar certo de que ao menos em suas essências suas afirmações são compreendidas
como ele pretendeu. Se não fosse este o caso, não as ouviríamos enquanto música.
Aqueles que não conseguem ouvir aquilo que faz uma seqüência de notas uma
melodia – tensões e relaxamentos, rigidez e afrouxamento, esforçar-se e atingimento,
demandas, adiamentos, evasões, surpresa, cumprimento – podemos chamá-lo surdo à
nota, surdo à música: esta designação implica que estamos lidando com algo
anômalo, um defeito. O que dissemos sobre as qualidades dinâmicas das notas,
portanto, tem significado e validade onde quer que nossa música é percebida como
música. É claro, esta validade não é objetiva no sentido mencionado acima, isto é,
completamente independente da personalidade do ouvinte; e mesmo não é puramente
subjetiva também, não é dependente de qualquer capricho individual. Mais
apropriadamente, ela se estende a um grupo, uma personalidade coletiva, e está
reunida dentro do grupo.

O termo “intersubjetivo” foi cunhado para denotar esta espécie de validade,


mas na medida em que diz respeito à música isto não tem realmente iluminado o
problema envolvido. Como pode alguém se sentir compelido a perceber algo ao qual
carece a característica de necessidade lógica ou física? Como pode alguém aceitar
uma afirmação como válida, preferivelmente a sentir-se livre para rejeitá-la, se ela
não pode ser verificada? Há somente duas maneiras para estabelecer uma validade
intersubjetiva. Primeiro, pela existência de leis lógicas e psicológicas governando os
processos do pensamento de todos os indivíduos normais, de todos os “sujeitos”, seja
no sentido da lógica kantiana (como quando Kant diz que o espaço e o tempo são “as
condições subjetivas de nossa intuição”) ou no sentido behaviorista de leis
psicológicas operando similarmente. Já mostramos, em nossa discussão sobre as
qualidades dinâmicas das notas, que as teorias psicológicas da percepção auditiva não
140

se ajustam aos fatos da experiência musical. O segundo modo de justificar a validade


intersubjetiva é considerá-la como uma questão de “convenção”, no sentido amplo.
Assim, a validade que está baseada nem em necessidade lógica nem observação
empírica é simplesmente uma questão de “convenção” – isto é, está baseada sobre um
consenso de hábito ou uso. As linguagens verbais especialmente prestam-se a esta
espécie de explicação “convencional”. Fora alguns poucos casos excepcionais, há
pequena ou nenhuma ligação entre a palavra e a coisa significada. Deste ponto de
vista, o que torna um mero som em um condutor de sentido é algo puramente
acidental ou arbitrário; em virtude disto, diferentes linguagens têm diferentes palavras
para as mesmas coisas e também (bastante freqüentemente) emprega a mesma
palavra para coisas diferentes. Não há vestígio de validade objetiva, todavia a
reivindicação por validade pode não ser problema. E a validade é co-existente com a
convenção. Podemos nascer em uma comunidade lingüística ou juntarmo-nos a ela
voluntariamente, ou podemos negar a validade e assim nos excluirmos da linguagem.
Agora, tudo isto parece se aplicar igualmente bem à linguagem da música. Os
significados das notas, assim como aqueles das palavras, podem ser corretamente
entendidos somente dentro de uma comunidade circunscrita de modo definido. A
música de outras comunidades é ininteligível para nós, como uma linguagem
desconhecida, meros sons onde outros ouvem significado. A linguagem musical pode
ser aprendida, seus significados apropriados através do uso, ou sua reivindicação por
validade pode ser rejeitada: podemos nos excluir de sua música. Há definitivamente
alguma justificativa, portanto, para estender a teoria “convencional” da linguagem
para a música.

Contudo, em um aspecto crucial o paralelo é enganoso. Os sons se tornam


palavras por serem arbitrariamente associados com coisas; os sons tornam-se notas
musicais por estarem audivelmente relacionados a outras notas. Aqui, a convenção
simplesmente não entra dentro do quadro. A convenção meramente cria ligações
arbitrárias, enquanto que as relações tonais desenvolvem-se por si mesmas, por uma
necessidade interior, a necessidade particular que governa os elementos de um
sistema tonal particular. Não há nada acidental ou arbitrário a este respeito; nada
pode ser senão do jeito como é. Uma palavra pode mudar seu significado de um dia
para o outro, mas nenhuma força no mundo pode alterar o fato de que a nota 2 no
sistema diatônico é audivelmente orientada para 1, e que precisamente este é o
sentido que a caracteriza. Isto é o que caracteriza o aprendizado das linguagens como
tão diferente do aprendizado de música. Aprender linguagens é uma questão de se
familiarizar com os sons designando coisas, é adquirir uma espécie de conhecimento
que pode ser codificado em um dicionário. Mas quem poderia conceber um
dicionário de notas? Aprender a linguagem das notas é exercitar e treinar o sentido da
audição. Você fecha seus olhos e abre seus ouvidos, deixando os padrões sonoros
revelarem gradualmente seu sentido inerente. O que é revelado deste modo não é uma
convenção: é uma natureza, com toda a validade de um fenômeno natural.

Evidentemente, ver a linguagem musical como comparável às linguagens


verbais levanta mais problemas do que resolve. A música nos confronta com uma
141

reivindicação de validade imediatamente irrefutável, e que não é dependente nem da


prova lógica nem da verificação experimental, nem mesmo de uma convenção. Se em
vista destes fatos ainda insistimos na alternativa da validade objetiva e subjetiva –
incluindo a intersubjetiva – preservamos um modo de pensar e tornamos a
compreensão impossível. Compreender o fenômeno em questão deve começar com a
percepção de que estas alternativas não são aplicáveis aqui. Embora as afirmações
sobre música não sejam objetivamente válidas, embora elas não possam ser provadas
a princípio, elas não deixam de ser verdadeiras ou falsas. Neste caso, embora os
critérios tradicionais de verificação não sejam aplicáveis, a distinção entre verdadeiro
e falso não é sem sentido. Uma teoria da música, a qual, alegando humildade
científica, confina-se à superfície do objetivamente verificável e entrega tudo o que
está abaixo da superfície à arbitrariedade da convenção ou do gosto pessoal terá sido
precipitada em sua capitulação. Mas uma teoria da música que tente provar seus
julgamentos estéticos é igualmente enganosa. Devemos realizar que é possível fazer
afirmações válidas sobre música mesmo onde é impossível a princípio prová-las ou
refutá-las. É óbvio que nosso pensamento está aqui sujeito a condições especiais. Ao
contrário da opinião corrente, pensar sobre estas questões deve ser mais, não menos,
rigoroso do que o pensamento lógico ou empírico, os quais, por assim dizer, aliviam
o pensador da responsabilidade pessoal por suas decisões. O pensamento aqui torna-
se uma aventura arriscada: com toda afirmação que faz, o pensador dá um salto no
desconhecido. Não importa o quão convencido ele pode estar da verdade de suas
afirmativas, ele não pode nunca provar – nem mesmo para si próprio – que a verdade
está do seu lado.

Agora, achamos bastante natural quando uma religião reivindica que seus
dogmas que não podem ser provados são verdadeiros, pois eles se referem a
experiências sobrenaturais, inacessíveis aos descrentes. As experiências sensoriais,
contudo, são sensoriais; elas não pressupõem nenhuma fé, iluminação ou dogma; elas
são meramente experiências da audição humana. Parece inadmissível que afirmações
a respeito de experiências sensoriais não devam ser objetivamente verificáveis por
meio de experiências sensoriais. Como poderia uma experiência sensorial
inverificável ser algo que não alguma espécie de alucinação ou ilusão? Todavia todos
sabem que as experiências musicais não são ilusões. Eu não imagino as qualidades
dinâmicas das notas; eu realmente as ouço em um texto. Este texto é a música.
Somente porque eu ouço o que eu ouço e somente quando afirmações sobre as
qualidades dinâmicas das notas são reconhecidas como válidas, somente então um
texto existe. Um texto pode ser compreendido ou incompreendido. E porque eu
compreendo ou incompreendo estou justificado em minha reivindicação por validade
diante da crítica que sustenta nada existir para ser compreendido, que não há nenhum
texto, que há somente simples fatos. Agora, a reivindicação por validade objetiva é
baseada na certeza de que outros devem observar ou pensar o mesmo que uma
pessoa, ao passo que as afirmações sobre a música assinalam que elas tornam
possível compreender onde sem elas não haveria nada a ser compreendido. O critério
não é quantos compreendem – esta seria uma validade universal – mas quanto há para
142

ser compreendido. Aqui a verdade é mensurável pelo alargamento das áreas


adicionais que tornam acessível à compreensão, pelo incremento do texto.

Isto pode ser esclarecido do seguinte modo:

Suponha que eu esteja com o rádio ligado para quatro ouvintes. Uma voz fala
no aparelho. Noto expressões perplexas nas faces dos quatro ouvintes. Então eu tento
explicar. Tomo o aparelho à parte, nomeio as funções das partes individuais, e
demonstro como uma vibração elétrica produzida por um som desde uma fonte
distante é re-transformada em um som aqui e agora. Um dos meus ouvintes se levanta
e sai. Ele compreendeu. A perplexidade não foi ainda esclarecida. Então eu começo a
tentar explicar. Trato da teoria das ondas, freqüências, campos eletromagnéticos, e
explico seus fundamentos matemáticos. Agora um segundo ouvinte fica satisfeito, e
vai embora. Mas os dois outros ouvintes permanecem, obviamente tão perplexos
quanto estavam antes. A questão em suas mentes é: o que aquela voz estava dizendo
naquela língua estrangeira? Então agora trato dos significados das palavras
individuais e explico a gramática e a sintaxe envolvidas. Traduzo para eles,
finalmente, palavra por palavra. Neste ponto, outro ouvinte se levanta e sai. Mas há
ainda um quarto ouvinte. O que pode estar incomodando ele? Bem, a sentença que
traduzi era, “o tempo é a imagem movente da eternidade”. Discuto o significado
destas palavras com meu ouvinte restante.

As atitudes de meus quatro ouvintes ilustram quatro sentidos diferentes nos


quais podemos dizer que “compreendemos” algo. Os dois primeiros ouvintes
“compreendem” no sentido da observação exata: ciência e matemática. Os outros
dois “compreendem” no sentido interpretativo: o primeiro no sentido ordinário de
quando dizemos que “compreendemos” uma linguagem, o segundo no sentido mais
complexo envolvendo a exploração de questões profundas.

Agora, voltemos à teoria de Schenker. À luz do que foi colocado antes, deve
ser claro que a indemonstrabilidade destas proposições e a inverificabilidade de suas
deduções realmente não investem contra a sua verdade. Justamente o contrário: tendo
sido possível mostrar que elas são objetivamente válidas, isto poderia provar que esta
teoria não se refere ao que é mais crucial e mais específico na experiência musical.
Embora as camadas mais profundas (plano intermediário e plano de fundo) não
possam ser deduzidas logicamente de um dado primeiro plano, e apesar das camadas
mais profundas não permitirem qualquer predição verificável a respeito do verdadeiro
curso dos eventos no primeiro plano – em outras palavras, apesar da possibilidade de
distinguir objetivamente entre verdadeiro e falso estar inteiramente excluído – a
reivindicação da teoria por ser verdadeira ou falsa, sua reivindicação por valor
cognitivo é inteiramente preservada. Contudo, não pode ser ignorado que a validade
destas afirmações a respeito das camadas profundas é menos firmemente estabelecida
143

do que aquelas afirmações a respeito das qualidades dinâmicas das notas. Em ambos
os casos, estamos lidando com interpretação: interpretação elementar – por assim
dizer, literal – onde são distinguidas as qualidades dinâmicas, e interpretação em um
sentido mais elevado onde a estrutura profunda é analisada. Em nenhum dos casos é
um dado material sensorial interpretado meramente pelo intelecto: as funções do
ouvido como órgão de interpretação em ambos os casos – sem a assistência do
intelecto para distinguir as qualidades dinâmicas, e em conjunção com o intelecto,
ainda que mesmo em uma posição de liderança, ao analisar as camadas estruturais.
Mas enquanto duvidar das interpretações elementares seria duvidar da real existência
da música, o mesmo é de algum modo verdadeiro para as camadas estruturais de
Schenker. Este último mais apropriadamente compartilha o fato de todas as formas
mais altas de interpretações textuais: a saber, nunca é possível afirmar que uma única
interpretação é a definitiva ou a única válida; outras interpretações, mesmo que
mutuamente exclusivas, permanecem possíveis a princípio, e nem poderá alguém
sempre provar uma dada interpretação como falsa. Tudo isto é mais aplicável às
interpretações de Schenker porque, como temos dito, elas são proporcionadas
principalmente pelo ouvido, atuando o intelecto somente como uma capacidade
auxiliar. O ponto, no entanto, é que o valor cognitivo da teoria não é de modo algum
prejudicado pelo fato de que cada e toda interpretação pode ser questionada, e outra
inteiramente diferente pode ser sugerida. Se a teoria de Schenker é verdadeiramente
uma teoria da música, seus resultados individuais, como exemplificados por seus
diagramas, não são nada mais nem menos do que inferências auditivas que não
podem ser provadas logicamente, a partir de experiências auditivas objetivamente
inverificáveis.

Isto certamente não implica que a reivindicação da teoria por validade repousa
no fato de suas proposições terem a inerência de não poderem ser provadas e de
poderem sempre ser desafiadas. Como mencionado acima, a verdade desta espécie de
afirmação sobre música é medida pela importância do texto que ela torna avaliável
para a interpretação. E este requisito a teoria de Schenker preenche tão
completamente quanto alguém poderia requerer. Antes de Schenker, uma
investigação da música almejando julgamentos verdadeiros poderia lidar somente
com seus aspectos superficiais; qualquer coisa além disso seria declarado o domínio
do gosto e sentimento ou da mágica e mistério, uma vasta terra-de-ninguém
inacessível à estrita operação da razão. É realização inabalável de Schenker, ter
reclamado esse território para a mente. Por sua análise, ele demonstrou que o cerne
mais interno, a essência da música, que aquilo que a torna música é mais do que mero
som, e pode ser objeto do pensamento e da compreensão. Ele trouxe os milagres das
camadas profundas – trazendo-os para fora do escuro pátio de recreio do gosto e do
sentimento – e colocando-os sob a luz penetrante da mente investigativa. Já se foi a
indiferença vergonhosa (resultante de uma subserviência desencaminhadora aos
critérios da ciência), que torna impossível a aplicação de julgamentos de verdadeiro–
falso para a essência da música, deste modo negando as diferenças qualitativas que
podem existir, enraizadas nesta essência. A teoria de Schenker ajudou-nos com nosso
desespero à limitação do conhecimento, um desespero causado não por nossa
144

inabilidade em provar para os muitos que preferem A Viúva Alegre a A Flauta


Mágica que eles estão errados, mas pelo ponto de vista que não pode haver nenhum
argumento e que isto torna sem sentido dizer de erro desde que ambos os lados da
controvérsia são igualmente válidos, um desespero causado não pela possibilidade de
que nosso julgamento possa estar errado, mas pela reivindicação que é totalmente
impossível alguma vez ele estar realmente errado. Em última análise, fomos liberados
das algemas da teoria tradicional da música, não tanto pelas percepções particulares
de Schenker, mas por sua demonstração convincente de que o conhecimento do cerne
interno da música é possível, que no que concerne às sérias questões do julgamento
musical, podemos estar certos e podemos estar errados.

A teoria de Schenker nos fornece um critério objetivo pelo qual podemos medir
o valor artístico? A esta altura, espero ter se tornado claro quão enganosa é esta
questão quando formulada deste modo. Nenhum critério verdadeiramente objetivo
pode ser aplicado a qualquer elemento essencial da música enquanto tal: nenhum
critério autêntico de graduação artística pode ser objetivo. Os diagramas estruturais
de Schenker podem servir enquanto tais critérios precisamente porque eles são
válidos sem serem objetivos.

Por Schenker não ter sido um filósofo, ele nunca se aplicou explicitamente ao
problema do valor artístico. Ele não se incomodou em analisar as obras que ele sentiu
como sendo inferiores porque ele sabia que não havia nada a descobrir em sua
estrutura. Contudo, sua reivindicação corajosa não será realmente admitida a menos
que usemos seus critérios e descubramos como eles nos capacitam a distinguir o
meramente fabricado do organicamente desenvolvido, o espúrio do genuíno.

Nunca foi tão impressionantemente demonstrado que a teoria tradicional da


música é totalmente incapaz de responder pela graduação artística de uma obra do
que no The Power of Sound [O Poder do Som], de Edmund Gurney; publicado em
1880, este livro ainda bem vale a pena ler. Em um capítulo sobre formas melódicas, o
autor agrupa em pares melodias que exibem similaridades superficiais. Ele sempre
contrasta a obra de um mestre com algum sucesso popular ou outro lugar-comum
musical. Gurney é franco em admitir que embora ele próprio seja plenamente versado
em teoria musical, ele de fato não pode dizer qualquer coisa de uma melodia ou ária
que não possa ser dita da outra. A teoria pode tornar claro somente o que os dois
membros de cada par têm em comum. Ele não faz menção disso dentro de qualquer
espírito de ceticismo: nem mesmo lhe ocorre que a existência de diferenças na
graduação estética pode ser questionada; ele as ouve de modo perfeitamente claro,
elas são tão reais para ele, quanto as diferenças de afinação. Sua afirmação expressa o
desespero diante da aparente inabilidade de nosso conhecimento ter paz com nossa
audição.

Afortunadamente, Schenker mudou tudo isto. Sua análise em profundidade


mostra claramente o que os dois membros de cada par não têm em comum.
145

Adiante tentamos ilustrar seu método, tomando como nosso exemplo um dos
pares de Gurney, no qual a melodia de Schubert, “A Truta”, é contrastada com algo
chamado “Kemo Kimo”. A escolha de Gurney aparece ter sido ditada pelo fato de
ambos os membros do par exibirem o mesmo contorno melódico na abertura
________ junto com retornos repetidos à nota de abertura, Sol. (Para facilitar a
comparação as duas melodias são aqui dadas na tonalidade de Dó maior.)

_____________

À primeira vista, a melodia de “A Truta” parece ser tão simples em estrutura,


seu significado tão fácil de compreender, que torna todos os comentários supérfluos.
O que poderia ser dito a respeito dela que a própria melodia não diz na linguagem das
notas? O que a teoria tradicional tem a dizer – que a melodia é composta dentro de
uma faixa estreita de progressões da escala e de cadência harmonia, que na seção
intermediária ela modula para a dominante e imediatamente retorna para a tônica – é
completamente trivial: o mesmo é verdadeiro para incontáveis melodias, boas e más.
Somente o leve desvio do esquema métrico do período de oito compassos – a melodia
corre por 8 + 8 + 4 compassos – poderia nos parecer como uma peculiaridade, mas
isto também pode ser facilmente considerado como uma repetição convencional do
último meio-período. Onde, então, está a característica especial desta melodia a ser
encontrada?

Na superfície fácil deste primeiro plano, a audição cuidadosa ganha um


primeiro domínio, descobre um primeiro indício no terceiro compasso. Por que temos
aqui _________ mais propriamente do que _________? Isto seria muito mais natural,
considerando o paralelo melódico _______ e as palavras do texto:

________

Por que o movimento é preso por dois meios compassos pela repetição de duas
notas sol _________ ? Obviamente, a proposta aqui é manter o ouvinte em suspense e
sutilmente dirigir sua atenção à importância do próximo passo. O próximo passo é
precisamente o adiado _______ . Deste modo a nota Ré, escolhida por ter sido adiada
e mudada para a parte fraca do compasso, é imediatamente relacionada à nota mais
alta anterior, Mi, a qual também ocorre no tempo fraco: uma progressão inicial 3 – 2
na camada estrutura mais profunda torna-se audível. Mas esta progressão não está
completada; ao invés de continuar para 1, ela rapidamente desliza para baixo para 5
_________ (Dó é aqui uma nota de passagem não acentuada, dissonante contra a
harmonia do acorde dominante). 1 no quinto compasso é ouvido como uma repetição
do começo, não como a conclusão do 3 – 2 precedente. A repetição conduz de volta à
nota mais alta, Mi, 3; mas desta vez a continuação esperada levando para 2 é omitida:
não há suspensão preparatória para o movimento até a nota Sol, nenhum salto de Sol
a Ré. A nota 3 permanece irresolvida, suspensa no ar, por assim dizer, e todo o
repouso da melodia se suspende na linha desta nota irresolvida.
146

Aqui segue o motivo _________, o qual parafraseia o movimento de quarta


________, ecoando o movimento da quinta _______ dos compassos 3 – 4, o qual não
é repetido. Ao mesmo tempo, o centro dinâmico foi mudado de Dó para Sol, de modo
que a última nota Sol do movimento da quarta é ouvida como 1. Aqui a primeira frase
parcial chega a um final. O que acontece adiante é mostrado no diagrama das
camadas mais profundas.

_______________

O que a nota mais alta irresolvida, 3, deixa para trás, a melodia primeiro repete
o movimento de quarta __________ em uma versão expandida, mas agora, após o
centro original ter sido restaurado, o movimento tem um significado dinâmico
diferente. (A mudança de centro não pode ser lida desde a melodia sozinha; é a
harmonia que causa a mudança com ________ [compassos 6 -7] e então a cancela
com _________ [compassos 9 – 10].) Não antes da última nota do movimento da
quarta, Sol, a qual agora readquiriu sua qualidade dinâmica original 5, ter sido
alcançada (compasso 14) a melodia relembra sua obrigação insatisfeita. Por um
tempo, como se acidentalmente, ela se suspende na nota Sol _____: a ligação com os
compassos 2 – 3 é estabelecida, e então por fim, como se nada mais fosse esperado,
aqui segue _________, encurtando o empuxo da nota Mi, que foi deixada para trás
mas não esquecida, e o movimento é concluído com Ré – Dó, 3 – 2 – 1. Que os
últimos quatro compassos são mais que um mero apêndice, uma repetição
convencional da última meia-frase, pode também ser lido do diagrama. Uma
mudança insignificante, que um ouvinte casual perceberia meramente como sendo
um ornamento, esconde o fato de que estes quatro últimos compassos são uma
condensação, em termos de duração tanto quanto de forma, da segunda parte inteira
da melodia.

Um detalhe semelhante, quase imperceptível, que mostra como as camadas


estruturais mais profundas responsáveis mesmo por voltas aparentemente acidentais
da melodia no primeiro plano, é encontrada nos compassos 11 – 12. _______ parece
de início nada que não uma variação dos compassos 9 – 10 __________ -
intencionada, como freqüentemente podemos ler, “para evitar a monotonia”. O
diagrama mostra que há mais do que aquilo. Enquanto que os compassos 9 – 10
servem para resgatar a nota de abertura Dó do movimento de quarta, os compassos 11
– 12 são parte deste movimento. Isto é por que a anacruze antes do compasso 11 não
prepara o caminho, como ela o faz no compasso 9, Sol – Si, mas para baixo Dó – Si!
Este por sua vez leva dois compassos depois a Dó – Lá. Podemos também mencionar
que aparte tudo o mais, este Dó – Si torna possível, como se acidentalmente,
continuar o movimento com ____ após Sol – Si, em termos do movimento Sol – Fá
(acima) seria desajeitado – e deste modo somos relembrados tão discretamente
quanto possível da existência de uma posição mais alta onde algo mais ainda tem que
ser resolvido.
Claramente, a melodia “simples” de “A Truta” de modo algum é simples em
sua estrutura. Dentro do curto espaço de tempo de vinte compassos, ela narra uma
147

pequena história bastante complexa de tensão e conflitos, passagens expandidas e


condensadas, e surpresas. Um quadro muito diferente é apresentado pelas camadas
mais profundas do segundo membro do par:

_____________

Após 1 e 5 terem sido declarados, 3 é alcançado por um movimento ascendente


e é imediatamente deixado para trás via 2 para 1; como um movimento da volta
melódica ________ nos compassos 4 – 5, a nota Dó no compasso 5 é ouvida como
um novo início, em acréscimo a ser a conclusão do que a precedeu. Os primeiros
quatro compassos são repetidos literalmente; a frase parcial conclui com 3 – 1 no
compasso 8: chegamos a um fim antes de algo ter acontecido. Aqui segue, sem
preparação ou pré-anunciação, a nota mais alta 5, alcançada via 3, e mais uma vez
somos suavemente levados para trás desde 5, via 4, 3, 2 para 1, e então o começo é
repetido: a ascensão até 3, cessa bruscamente com 3 – 1. E isto é tudo.

É música, não há dúvida. As qualidades dinâmicas das notas estão presentes,


também como as notas estão audivelmente relacionadas, o movimento tonal, e em
virtude disso também um plano de fundo, uma estrutura em profundidade. Mas ela
não diz nada, não faz nada; a “profundidade” é rasa. Como expressão musical da
idiotice, mesmo assim ela tem méritos distintos. O que é responsável pela fraqueza da
melodia não é a simplicidade de seu plano de fundo – mesmo as mais finas canções
folclóricas têm planos de fundo simples – mas sua incoerência, sua ausência de
sentido. Aqui uma coisa não leva à outra, ou segue desde a outra; em vez de ser
apropriadamente construída e resolvida, as tensões se esgotam sem terem efetividade.
Nada acontece; não há um padrão realmente. O que temos é uma fileira de notas
colocadas juntas. Para recordar uma vez mais como tudo isto aparece em uma canção
folclórica genuína, mostramos, sem qualquer comentário adicional, uma velha ária
cujo plano de fundo exibe uma ascensão similarmente simples até 5 e um retorno
para 1:

_______________

O pessimismo de Guney a respeito da teoria era injustificado. A verdadeira


teoria pode descobrir que os membros bem compostos dos pares de Guney contêm
coisas que estão ausentes naqueles compostos pobremente. O conhecimento
acompanha os passos de nosso sentido da audição, o qual permite sem dúvida
perceber diferenças de graduação artística.

Abaixo apresentamos outro par de melodias, desta vez tomadas não de um


livro teórico mas, bastante curiosamente, dos registros de uma corte de justiça em
Viena. Nos anos vinte do século XX, o compositor de um sucesso conhecido foi
acusado de plágio por um colega compositor menos afortunado. Após o juiz ter
ouvido as duas melodias, ele rejeitou tanto o queixoso quanto o réu:

_________________
148

Ele disse imediatamente – ele havia praticado canto como um amador – que
ambos eram plagiadores. A volta melódica que fazia a melodia popular e foi usada
pelos dois compositores havia sido roubada de Schubert. Acima estão as duas
melodias, cada qual com o diagrama de sua sub-estrutura – a primeira da canção de
Schubert “Die bose Farbe”, e a segunda a do sucesso.

Vemos como o impulso gerado pelo grande gesto que abre a melodia de
Schubert nutre e carrega a curva melódica correndo através de todos os dezoito
compassos. A pausa no oitavo compasso tem somente um valor superficial; ela é
transposta pelo movimento irresistível que desde o princípio almeja ao evento no
compasso 16, quando a nota mais alta, Fá#, como se inadvertidamente tocada no
começo, é finalmente alcançada de modo legítimo. O que acontece no caminho até
chegar a ela, e como a meta é alcançada, pode ser lido no diagrama. O compositor do
sucesso apropriou-se do gesto de abertura mas não sabia o que fazer com ele – como
se alguém estivesse balançando sua arma para um golpe poderoso e então
subitamente mudasse seu pensamento e fugisse. Na melodia de Schubert, o retorno
para o começo na seção intermediária marca um novo esforço para levar o
movimento para seu fim; no sucesso, ela é meramente a repetição de um gesto já
desmascarado como sendo sem significado.

Sobre outros detalhes da melodia de Schubert, há somente isto a mais a ser


dito: o que torna o gesto de abertura ___________ tão especial é que o movimento
ascendente 1 – 3 – 5 é executado não do modo usual mas deste modo: ________ . O
ponto crucial, no entanto, é que aqui o movimento não aponta para Fá #, 5, mas para
Mi, 4! O piano realça explicitamente o passo Ré# - Mi, 3 – 4, não Ré# - Fá#, 3 – 5. O
impulso original executa o movimento além de sua meta; Fá # é “alto demais” e é para
ser entendido como uma suspensão, retardando a nota realmente pretendida, Mi. E
mesmo o passo foi dado e não pode ser tomado de volta: Fá# ressoa e não poderia ser
roubado de seus direitos; mesmo se 5 não fosse realmente pretendido ao começo, ele
puxa toda a melodia para si mesmo ao final. O “engano” do começo torna-se a
verdade ao final e, por meio disto, a verdade do todo.

Estamos lidando aqui com uma espécie de conflito que é também sugerido pelo
fato de que 5 é finalmente alcançado pela força principal, por assim dizer, pela
expansão antinatural do segundo período de oito compassos para dez compassos.
Normalmente, se o período tivesse oito compassos, a melodia terminaria com os
compassos 15 – 16 – isto é, precisamente antes da última ascensão para 5 – como isto
______: também a estrofe do poema termina aqui. Em vez disto temos agora
_________, uma vitória no último minuto, e como se devido a uma sobre-pressão, o
movimento é levado além de sua meta. Enquanto um resultado do fechamento final é
referido ao meio fechamento nos compassos 7 – 8: lá havia _________; aqui há
____________ . A importância das alternâncias maior-menor nesta história merece
ao final se mencionada.
(Poderia ser perguntando por que neste caso, onde após uma preparação de
dezesseis compassos, a tensão é resolvida por 5 – 4 – 3 – 2 – 1 em um único
149

compasso, não falamos de um “enfraquecimento”. Fazer tal pergunta expõe uma


incompreensão. O que importa não é se a resolução toma mais ou menos tempo, mas
o que acontece entre a tensão e o relaxamento, e se algo acontece de fato. Nem deve
ser esquecido que embora a passagem em questão inclua a melodia, ela não conclui a
canção. O diagrama da canção inteira mostraria que a força investida foi toda gasta ao
final da melodia. Um grande negócio aconteceu antes mesmo do caminho de 5 para 1
ter sido percorrido em definitivo!)

Os poucos exemplos discutidos acima pretenderam levar somente uma idéia


geral de quantas diferenças na graduação artística podem ser lidas desde os diagramas
de Schenker das camadas estruturais profundas. Um tratamento compreensivo do
problema envolve situações além do escopo deste livro: como temos dito, nossa
proposta principal é elucidar a parte executada pelo órgão do sentido no ato da
audição musical; para entender a natureza da audição devemos saber o que ouvimos.
Todas as nossas referencias à teoria servem unicamente a este propósito. Afinal de
contas, a teoria musical (talvez qualquer teoria artística), diferentemente de uma
teoria científica, não visa descobrir a ordem, a lei governando os confusos e
freqüentemente enganosos dados da percepção sensorial; sua tarefa não é, como foi
formulado classicamente, “salvar o fenômeno”. Na música, especialmente, não
precisamos pensar teoricamente para descobrir a lei que governa as suas
manifestações; o ouvido cuida disso. A tarefa da teoria, então, é transformar a certeza
implícita da percepção em algo explícito, conhecimento comunicável, elevar o
pensamento ao nível da audição. Este é o por que, na questão da graduação artística,
dos diagramas das camadas estruturais não poderem servir enquanto critério que nos
habilite a decidir casos duvidosos, nos quais nenhuma decisão poderia ser alcançada
com base na percepção direta. Mais apropriadamente, os diagramas mostram-se
proveitosos somente após cada caso ter sido decidido, decidido unicamente pela
audição, e nada ter sido deixado em dúvida. O que os diagramas podem nos dizer não
é se a decisão feita pela audição é justa ou correta, mas como tal decisão é possível, o
que deve a natureza da audição estar em ordem para ser capaz de tais decisões. Se a
graduação artística não pode ser encontrada que não na ordem orgânica característica
dos padrões musicais, segue-se necessariamente que uma espécie de audição capaz de
distinguir graduações deve ser também capaz de apreender sua ordem, sem qualquer
outra ajuda. Alguém que tenha obtido introvisões na sub-estrutura dos eventos tonais
não pode ajudar o sentimento que há algo notável, algo miraculoso, a respeito desta
habilidade: que onde tais eventos são entendidos e seu significado é compreendido,
uma inteligência altamente desenvolvida está atuando. A audição musical, um órgão
tanto sensorial quanto intelectual, é igualmente proficiente em ambas estas funções.
Poderia ser colocada a objeção que nem todos ouvem deste modo, que bastante
obviamente muitas pessoas não ouvem deste modo, pois de outro modo a maioria das
pessoas não preferiria produtos inferiores a genuínas obras de arte. Tal objeção é sem
fundamento. Diferenças de graduação não devem ser confundidas com diferenças de
gosto. A falha em distinguir entre estes dois conceitos tão distantes é responsável pela
esterilidade da estética moderna. Não é o prazer que determina o que é ou não é
ouvido; mais apropriadamente, é a audição que determina o que é e o que não é
150

prazeroso. Uma pessoa cuja audição é incapaz de apreender estruturas orgânicas


complexas não pode possivelmente apreciar obras-primas musicais e preferirá obras
que façam menos demanda à audição. O fato de que a grande música não é um apelo
à maioria das pessoas, enquanto obras inferiores arrastam multidões, leva a atestar
para a realidade das diferenças em graduação tão claramente quanto o faz o fato de
que somente uma minoria – a qual não é tão pequena quanto se poderia pensar –
prefere a grande música. E os poucos que podem apreciar a grande música somente
porque eles a entendem por ouvi-la, isto é, compreendem o significado do que eles
ouvem, pois de outro modo não há nada que possa ser apreciado. Precisamente
porque a audição musical não é mero registro de sinais, reação a estímulos
ambientais, mas um vivo e compreensivo compartilhar interpretativo em um
movimento vivo, porque ela envolve o homem inteiro, deve haver tantas maneiras de
ouvir uma peça de música quanto há ouvintes. E este é o por que da natureza da
audição humana não poder ser descoberta por se questionar ouvintes individuais, mas
somente pelo estudo de sua grande criação, a música.
151

Pensamento Musical
152

Introdução

“Wasserflut”, a sexta canção de Schubert no ciclo Winterreise, é um modelo


exemplar de um padrão musical conciso e autocontido. Carregada por um impulso,
sustentada por uma única respiração, sua melodia oscila em um arco duplo desde o
começo através da cesura e um novo começo no meio até sua inexorável conclusão.
Sua demanda, germinada pela primeira célula melódica, conduz o movimento em
direção à meta pré-determinada, a frase final, a qual é uma tão inesperada quanto é
convincente, e coroa e resume tudo o que se passou antes.

No entanto, uma olhada ao manuscrito de Schubert traz uma surpresa. Como


poderia ser esperado, ele parece ter sido escrito sem hesitação, mas a melodia tem
originalmente um final diferente! A verdadeira peça que o compositor parece ter tido
em mente desde o começo simplesmente não existe. Vestígios de rasura podem ainda
ser descartados: o final perfeito, familiar a nós, veio ao compositor como um
pensamento posterior.

O assombro que sentimos diante de tal descoberta poderia e deveria ser daquele
tipo que, de acordo com Aristóteles, inspira o homem a filosofar. Certamente a
mudança não foi inspirada pelo “intelecto crítico” do compositor, sem dúvida não foi
sua decisão “revisar” a “idéia” original: em outras palavras, não estamos lidando com
uma instância normal e ordinária de colaboração entre inspiração e reflexão. O passo
desde a primeira versão até a final da conclusão da melodia – um passo no qual o
significado do padrão que ele já tinha criado lhe é revelado, e no qual nenhum
intelecto crítico, nenhuma reflexão teria alguma vez sugerido – é, melhor dizendo,
um paradigma do ato criativo e, neste sentido, um ato do pensamento.
153

A terceira parte deste livro pretende demonstrar que esta afirmativa se ajusta
aos fatos da experiência musical. E se tivermos êxito, seremos obrigados pela
evidência musical a revisar um grande número de idéias a respeito da natureza do
pensar e do pensamento, do mesmo modo como antes fomos obrigados a revisar
noções correntes a respeito da natureza da audição e do ouvinte.

XIV. Qual É a Natureza do Pensamento?

À primeira vista, pareceria que a música é a última estrutura à qual olhar para
alguma base, ainda mais nova, sobre este tema. A obra de arte musical é encarada
primeiramente como o produto da imaginação, das faculdades do sentimento e da
expressão do sentimento, mais propriamente do que aquelas do pensamento. É bem
conhecido que todo compositor deve estudar e dominar a teoria da música, e
admitimos que toda obra musical contém um ingrediente intelectual: não presumimos
que algo como uma reflexão entra neste processo, de todo. Ao mesmo tempo
admitimos – penso que corretamente – que no processo de criação de uma obra
musical o intelecto serve como capacidade subordinada, como para delinear o plano
geral ou o esqueleto a ser preenchido. A música dodecafônica de nosso século,
mesmo com sua ênfase sobre os elementos construtivos, não alterou realmente este
relacionamento. Schönberg nos assegura que ele nunca escreveu uma única nota que
não fosse ditada e justificada pelos requisitos da “expressão”, e o próprio Alban Berg
considerava uma medida do sucesso de Wozzeck, que a extraordinária importância da
construção não é percebida na audição da ópera. Sobre quais razões, então, podemos
esperar que a música, de todas as coisas, proveja uma percepção especial sobre a
natureza do pensamento?

Uma questão similar nasceu em conexão com nossa discussão da experiência


especificamente musical do espaço11. Aqui, também dificilmente pareceria que a
música, a menos “espacial” das artes, pudesse proporcionar qualquer nova percepção

11
Ver Sound and Symbol: Music and the External World.
154

sobre a natureza do espaço. Mas tal ceticismo mostrou ser injustificado. Foi baseado
na suposição de que o que é conhecido habitualmente do espaço é tudo o que há no
espaço. Até onde o espaço geométrico é considerado, a suposição trabalha bastante
bem, e a música realmente toma parte muito pequena nele. Pareceria que o ceticismo
com relação ao papel do pensamento na música resulta de um preconceito similar, a
saber, que a natureza do pensamento tenha sido definida só e completamente pelos
lógicos. E ainda: quando muito, a lógica entra na música não mais do que
minimamente.

Ainda, estes dois preconceitos – da característica não-espacial e não-intelectual


da música – são muito diferentes com respeito a algo essencial. A opinião de que a
geometria lida com o espaço puro e simples, ou que o espaço é essencialmente
idêntico ao espaço geométrico pode implorar para que sua validade permaneça
largamente incontestada. Não por isso o juízo de que todo pensamento é lógico, que o
pensamento é idêntico às definições da lógica. Embora Kant diga que os homens
podem pensar apenas logicamente, apenas em conceitos, e que qualquer outro tipo de
pensamento está além do alcance do intelecto humano, ele apesar disso admitiu que
algum “super-homem” poderia ser capaz de “intuição intelectual”, isto é, uma espécie
de pensamento não sujeito às leis da lógica (o qual apesar disso seria pensamento).
Goethe, um artista reflexivo, se alguma vez houve algum, rebelou-se contra os limites
que Kant estabeleceu, e afirmou enfaticamente que o homem, também – ou ao menos
um homem (ele mesmo) – poderia ser capaz de uma espécie de pensamento que não é
vinculado a conceitos, às leis da lógica. Tem sido sustentado freqüentemente (não
somente nos tempos modernos) que os artistas, especialmente os poetas, pensam por
imagens mais propriamente do que por conceitos, que suas obras são governadas por
uma espécie de pensamento intuitivo e visionário, embora admitidamente os
proponentes de tais pontos de vista contentem-se muitas vezes mais com a mera
afirmação, sem esclarecer ao que precisamente eles estão se referindo. Os
antropólogos também têm sido levados a admitir a existência de uma espécie de
pensamento diferente da espécie lógico-conceitual. O pensamento mítico, a
mentalidade dos assim chamados povos primitivos, foi a princípio definido como
“pré-lógico” – isto é, como existindo em um estágio historicamente precedente ao
“verdadeiro” pensar ou pensamento – mas passou eventualmente a ser considerado
como um pensamento sui generis envolvendo processos distantes do pensamento
abstrato conceitual. É claro, os lógicos ainda insistem que alguém pode falar de um
pensamento não-lógico ou extra-lógico somente em um sentido superficial e
metafórico, mas seus pontos de vista têm sido desafiados por um filósofo com
algumas qualificações para falar sobre este assunto: “Se não fôssemos enganados
somente pela lógica, desde há muito teríamos deixado de sustentar teimosamente que
sabemos o que é o pensamento”. Na mesma obra de Heidegger (Was hesst Denken?)
encontramos outra frase que diz: “A Ciência não pensa”. Portanto o que fazemos com
nosso conhecimento do pensamento quando um pensador importante sustenta que o
verdadeiro domínio no qual usualmente olhamos para informações essenciais com
respeito à natureza do pensamento é realmente destituído de pensamento? E
realmente parece dificilmente haver algo que sabemos menos a respeito – em
155

qualquer sentido exato ou compreensivo – do que justamente esta matéria do pensar e


do pensamento. Sendo este o caso, estamos justificados para rejeitar todos os
preconceitos (incluindo o ceticismo a respeito do papel do pensamento na música) e
descobrir por nós mesmos se há algo para aprender a respeito da natureza do
pensamento, desta vez nos endereçando não à ciência – a menos da ciência da
matemática – mas a outra criação da mente humana, a música.

Desde que o caminho que propomos seguirá sendo algo laborioso e alguns
assuntos terão que ser tratados em detalhe, bem pode ser adequado indicar as
articulações principais de nosso argumento. Nosso ponto de partida é a supostamente
irrefutável posição daqueles que acreditam que a natureza do pensamento é aquela
que a lógica diz ser. Vamos admitir ser este o caso. Segue, então que nenhuma obra
musical pode ser gerada pelo pensamento. O pensamento joga alguma parte no todo
do processo criativo? A resposta a esta questão é afirmativa: o pensamento joga uma
parte, mas uma que poderia ser considerada (ainda na admissão de que sabemos o que
é o pensamento) como secundária, vindo a energia principal de outra fonte criativa.
Procedemos confrontando esta hipótese de duas fontes criativas com os fatos reais,
esboçando exemplos das obras-primas musicais. Elas nos obrigam a concluir que a
hipótese não se ajusta a elas e que são falsas as admissões que levam à hipótese de
duas fontes criativas. Somos levados inevitavelmente a identificar a natureza desta
única fonte criativa da música como o “pensamento”, e concluir que o termo aqui
denota algo inteiramente diferente do que foi admitido inicialmente. A convicção
referida acima – de que a natureza do pensamento é definida exclusivamente pela
lógica – prova-se insustentável. Pensamento não é sinônimo de pensamento lógico. A
discussão acima nos levará ao final do capítulo 16, e nos capítulos remanescentes
tentaremos definir mais de perto a natureza e as leis desta outra espécie – musical –
de pensamento.
156

XV. As Duas Fontes Criativas

A música é a única das artes que é oficialmente, por assim dizer, baseada sobre
uma teoria. Ao contrário do pintor ou poeta aspirante, o compositor deve começar por
se familiarizar completamente com a teoria de sua arte. É claro, o que é chamado
teoria musical, na realidade equivale à prática em manipular os materiais da música,
ainda assim é significativo que esta prática seja chamada de “teoria”: teoria, afinal de
contas, tem algo a ver com o pensamento. Embora o estudante da teoria está
primeiramente aprendendo uma suposta habilidade, ele não terá adquirido a
habilidade antes de ter adquirido uma considerável soma de conhecimento. Isto é o
inverso da prática real de qualquer outra arte: lá o conhecimento segue a habilidade.
Nem é dado ao estudante de música praticar sobre seus trabalhos – pelo menos, isto é,
na medida em que diga respeito às duas disciplinas tradicionais, o contraponto e a
harmonia, as quais ainda hoje são, com bastante freqüência, o cerne do ensinamento.
Ao estudante é dado, mais apropriadamente, exemplos altamente artificiais da teoria
musical. Os problemas que são colocados para ele resolver são uma espécie de
música abstrata. É bem conhecido que nenhum talento musical especial é requerido
para adquirir considerável proficiência nestas disciplinas; realmente, com treino
adequado, um surdo-mudo poderia resolver a maioria dos problemas. O fato que ele
está operando com notas é de modo algum essencial; ele poderia operar tão bem com
pontos colocados em conjuntos de intervalos: estritamente falando, ele discursa sobre
problemas topológicos, não musicais. Isto é por que, como tem sido descoberto
recentemente, computadores eletrônicos não se saem tão mal quando lhe são dados
testes de teoria musical. Não vai aqui qualquer crítica à teoria musical em nenhum
sentido, meramente descrevemos a situação que o compositor faceia quando ele
157

começa; estamos, mais precisamente, apontando a extensão considerável na qual a


habilidade musical é baseada em conhecimento, na espécie de habilidade que os
gregos antigos chamavam techné – como na expressão technén epistasthai, “ter
completo conhecimento de uma habilidade”.

Quanto à composição propriamente, cujo estudo vem depois da teoria ter sido
dominada, sua terminologia é reveladora. Ao estudante é ensinada a imitação
musical, contraponto, fugas, harmonização, variações, desenvolvimento – termos os
quais denotam métodos tratando de algo já dado. O que está sendo tratado nestes
vários caminhos é um “tema”. Quando a teoria musical pressupõe o tema como algo
dado (ou emprestado), admite que a fonte do tema está situada fora da música que
pode ser ensinada ou aprendida: conhecimento e habilidade. Um tema musical,
contudo, diferente do tema de uma pintura realista ou naturalista, não tem nenhuma
contraparte externa: ele próprio é música. Isto é por que a obra musical parece ser
derivada desde duas fontes muito diferentes, uma da qual, o conhecimento técnico,
está situada dentro do domínio do pensamento, enquanto a outra parece ser
espontânea, algo que poderia ser chamado de inspiração ou gênio. Como tratar um
tema, o que pode ser feito com ele, é aprendível, ensinável, mas não como compor
um tema; a explicação para isto é que um tema não é feito, ele é simplesmente
encontrado – ele “ocorre a alguém”, de repente. Como poderia algo como isto:

____________

existir salvo como um “dom”, o produto de alguma força fora do tempo,


surgindo de repente, não pouco a pouco. Esta explicação envolve um paradoxo, no
entanto. Afinal de contas, um tema é uma sucessão de notas que leva tempo para
anotar ou tocar. À luz do precedente, teríamos que concluir que a criação de uma obra
musical pressupõe duas coisas, pensamento e inspiração, e que ambas são
indispensáveis se uma obra musical merecedora do nome de arte está sendo
produzida. A afirmação de que existem duas fontes implica em um julgamento de
valor: a contribuição crucial, que realmente determina a qualidade artística da obra,
vem de uma fonte imediatamente não-ensinável e não-aprendível – da inspiração.
Embora indispensável, o pensamento em última análise toma um lugar subordinado.

Um bom argumento contra este ponto de vista poderia ser citar alguma obra
especialmente sublime, aparentemente pura inspiração e nada mais, dentro da qual
nem um conhecimento ensinável ou aprendível nem uma habilidade musical parece
ter entrado. Tomemos, por exemplo, o Andante da Sonata em Lá menor para violino
solo de Bach:

_______________

o qual nada é que não uma única melodia continuamente renovada, a qual
quase nada se refere ao que foi antes. A melodia descreve uma curva sempre ampla,
igualmente inspirada em passagens ascendentes e descendentes (nunca cessando) sem
qualquer sentido de desenvolvimento “necessário”. A qualquer ponto da melodia,
158

esta poderia ter tomado um rumo diferente; ela parece flutuar desde uma fonte pura e
inexaurível, soando imediatamente tão livre, tão correta, tão convincente, quanto ela é
imprevisível. Aprisione a melodia em qualquer ponto e pergunte-se, utilizando todo o
seu conhecimento, habilidade e experiência musical, como calcular como ela deveria
continuar: você não chegará muito longe. A música é totalmente única, tanto uma-de-
uma-espécie que nenhuma regra geral, nenhuma experiência de outra música, será da
mais leve ajuda para você na dificuldade de encontrar o próximo passo. Claro,
nenhuma ignorância concederia alguma vez tal inspiração. Ela pressupõe maestria da
mais alta ordem. Cada passo é impregnado por um conhecimento e uma habilidade
tão profundamente assimilados que eles pode ser esquecidos para deixar a outra fonte
fluir desimpedida. Um homem menor teria que se render após os primeiros passos.

Há, então, uma coisa tal na música em que tudo seja tema e nada mais. O
oposto também é verdadeiro? Há uma coisa tal na música que seja nada que não
“elaboração”, música sem um tema? A primeira inclinação de alguém é dizer não. O
que haveria para ser elaborado onde não existe tema em primeiro lugar? E
exatamente onde entra a inspiração? Música sem um tema, alguém poderia presumir,
seria música puramente planejada, alguma espécie de exercício quando muito, não
arte. Contudo, somente aqueles cuja experiência musical é confinada àquela dos
séculos dezoito e dezenove poderiam plausivelmente ter esta atitude. O que nos
referimos como sendo o tema – isto é, um padrão tonal expressivo, auto-contido
capaz de portar um significado, sem referência a qualquer coisa mais – é um feito
muito recente (e não necessariamente muito permanente) na música ocidental. Este
não faz seu aparecimento antes do século dezessete, em conexão com o
desenvolvimento da música instrumental pura, e na música de nosso próprio século
ele parece estar desaparecendo. O todo da época da grande polifonia, do século
quatorze ao dezessete, é, neste sentido, música sem um tema; nossa distinção familiar
entre tema e elaboração é um tanto sem sentido onde diz respeito a esta música.
Ouçamos alguma obra realmente longa daquele período como o Great Service de
William Byrd, o qual tem a duração aproximada de uma hora: é um fluir poderoso,
irresistível e uniforme da canção, em cujo curso inteiro não emerge em momento
algum um detalhe agudamente definido, nada que poderíamos chamar de um tema.
Ou tomemos o moteto em quatro vozes Super flumina Babilonis de Palestrina. Esta é
música tão comovente e bela como é possível encontrar, mas o que ela contém a
modo de material temático? Uma curta frase melódica domina cada uma das cinco
partes nas quais a obra está dividida, como o salmo no qual ele é baseado.

_______________

Considerados em si mesmos, estes são arranjos triviais de notas que bordejam


muito de perto o amorfo. Não ocorreria a ninguém chamá-los de “temas” em nosso
sentido, nem ainda falar da fonte provável como sendo a “inspiração”. Ninguém
precisaria esperar algum momento especialmente privilegiado para produzir algo
como isto; tudo o que você tem a fazer é anotá-la, como qualquer um pode fazer ao
ouvir atentamente as palavras, repetindo-as para si mesmo com entendimento,
encontrando as alturas e o ritmo apropriados para elas. A melodia de Palestrina
159

parece ser pouco mais do que um dizer as palavras nas notas. Somente na terceira
frase com suas duas quartas ascendentes Mi – Sol – Lá, Sol – Dó surge algo acima do
nível do movimento simples a modo de passo, junto com as palavras, o qual neste
ponto faz o coração do ouvinte bater exatamente uma pequena aceleração, “quando
nos relembramos de Sião”. Mas mesmo se algo como um “tema” aparece aqui,
nenhuma noção de inspiração deveria ser evocada para responder por ele. É claro,
muitos dos temas das obras instrumentais clássicas parecem também à primeira vista
bastante ordinários, não especialmente significativos, mas o que é feito com estes
temas ou arranjado com eles no curso da obra é tudo o que importa, revelando
gradualmente todos os tipos de forças escondidas e significados dificilmente
suspeitados na aparência primeira do tema. Em Palestrina, alguma coisa que
poderíamos chamar de tema permanece ao final exatamente o que ele era no começo,
um mero veículo. As condições musicais verdadeiras estão transpirando inteiramente
em outro plano – onde os fios são tecidos, onde as texturas são reveladas. A
característica única e extraordinária da obra, o gênio criador, e a natureza inspirada de
sua criação têm que ser procuradas no “tratamento”, no que é feito com ou escrito do
que é dado: a própria habilidade seria inspirada. Não sem razão Palestrina foi
celebrado após sua morte como grande conhecedor. Defrontado com tal evidência
musical, não somente nossa distinção entre tema e elaboração mas todo o sentido de
uma linha nítida a ser desenhada entre duas fontes criativas separadas – o tema
enquanto o trabalho da inspiração, a elaboração enquanto o trabalho do intelecto – de
repente parecem terrivelmente ingênuos.

Talvez pudesse ser argumentado que a música não-temática pertence a um


estágio primordial na história da música, antes do som musical ter se emancipado da
palavra; que enquanto a música era composta de palavras, esta última realizava o
trabalho de nos dizer o que as notas significavam, e que somente em um estágio
posterior da história da música, na música puramente instrumental, o próprio tema
musical assumiu o comando deste trabalho e começou a ser expressivo de seu assunto
em si mesmo. De acordo com isto, a divisão entre tema e tratamento e a distinção
correspondente entre inspiração e técnica marcaria o estágio mais alto do
desenvolvimento musical. Afinal de contas, como mencionado antes, o “tema” em
nosso sentido não faz sua aparição antes do advento da música puramente
instrumental. Numa investigação mais cuidadosa, no entanto, encontramos que
mesmo a música puramente instrumental não está necessariamente ligada a um tema;
existem muitas obras instrumentais nas quais um tema tem um papel somente em
uma parte mínima ou ainda nenhum lugar de todo, e isto certamente não é sentido
como uma deficiência, menos ainda como uma deficiência de inspiração. Estas obras,
também, como aquelas mencionadas acima, que parecem consistir de nada que não
“inspiração”, são a glória dos maiores mestres: os encontros extremos. Em todo caso,
a música não-temática é um princípio possível. A afirmação de que a música tem
duas fontes, inspiração e intelecto, pode ser conciliada com esta possibilidade? Como
entendermos o fato de que existem obras musicais da mais elevada qualidade artística
as quais o intelecto não pode criar sem ajuda, e mesmo nenhuma parte da qual pode
ser atribuída à assim chamada inspiração?
160

Esta e outras questões relacionadas podem ser lidadas com sensibilidade


somente através da análise cuidadosa das obras-primas musicais. Para seguir tal
análise devemos impor um certo esforço ao leitor; contudo, nenhum conhecimento
técnico ou meticulosa familiaridade com as obras são pressupostos nesta parte (tal
como seja ser capaz de ouvir mentalmente o que ele vê na partitura). Desde que a
música é aqui tratada primeiramente como um fenômeno do movimento, termos
técnicos podem ser largamente dispensados; uma vista da partitura, vista como o
registro visível do movimento audível, deverá dar uma idéia suficientemente clara da
matéria presente.

Não há tal coisa como um contorno nítido, uma distinção branco no preto a ser
delineada, para nos dizer em todo caso se estamos lidando com um tema ou não. Não
há muitas formas de transição. Na maioria dos casos, contudo, um tema é
instantaneamente reconhecido como tal, a saber, como um padrão tonal expressivo,
significativo em si próprio, como parte de um todo mesmo ele próprio com todos os
traços característicos de um todo – um todo orgânico, algo mais do que realmente um
pedaço de matéria prima. Pensemos nas fugas de Bach. Afinal de contas, por
definição, uma fuga é um modo específico de tratar um tema, e o tema está sempre
presente perfeitamente claro ao começo em uma única voz. Os prelúdios às fugas de
Bach são outra coisa novamente. A grande liberdade de tratamento que nos prepara
para a “coisa real”, para a fuga que se segue, nos deixa incertos quanto ao que os
prelúdios de fato se referem – na verdade, se eles se referem a qualquer coisa de todo.
Alguns poucos prelúdios do Cravo Bem Temperado ilustrarão a transição desde a
presença até a ausência de um tema.

Prelúdio em Sol# menor (Livro I)


Este prelúdio começa com uma série de notas, as quais, sobretudo por sua
brevidade e caráter modesto, é suficientemente expressiva e original para ser
imediatamente reconhecível como uma “inspiração” genuína, como constituindo um
“tema”: ____________. Sua originalidade e, se poderia dizer, sua espontaneidade são
reveladas no modo como as notas conjuntas do início, Sol# – Lá# – Si, são seguidas
imediatamente por uma sucessão de terças, Lá# – Do# – Mi. O movimento ultrapassou
sua marca, a nota Si, 3, e então volta para trás pelo caminho de uma descida lenta, Mi
– Ré# – Dó# – Si (Compare este tema com a forma convencional, ___________).
Deste ponto em diante, o tema é tratado de acordo com as regras da arte: o tema
domina a obra inteira; não há um único compasso no qual ele não está presente de
uma forma ou outra. Após sua primeira aparição no soprano, ele é repetido no baixo
no segundo compasso; os próximos dois compassos, no curso dos quais o centro é
mudado de Sol# para Si, trabalham com elementos do tema, Sol# – Lá# – Si e Ré# –
Mi – Sol#. Então o tema é iniciado em Si maior, ____________ . Dois compassos
depois, ele é então transformado e pode mudar o centro por si mesmo, esta vez de Si
para Ré#. Quando ele reaparece no próximo compasso, a nota com a qual começa não
é 1 (como acontecera anteriormente) mas 5. No próximo compasso exceto um
161

(somente os novos elementos são mencionados aqui) o tema, seu movimento reverso,
parece estar posicionado de cabeça para baixo: ______________ . E assim ele segue,
ininterruptamente. Uma transformação final é reservada próxima ao fim: _________
com seu reverso ____________. (Aqueles que têm algum conhecimento de harmonia
perceberão como esta última forma reproduz o padrão sonoro da cadência
convencional, _______________.)

Neste prelúdio, então, a distinção entre “tema” e “elaboração” pode ser


percebida facilmente, e a hipótese de que a música tem duas fontes – o tema se
originando na inspiração, e a elaboração no conhecimento técnico – parece conferir
com a experiência à mão.

Prelúdio em Dó Maior (Livro 1)


Este prelúdio apresenta um quadro bastante diferente. Que tema há aqui para
ser mencionado? O ouvido percebe um sugestivo padrão não muito delimitado de um
tema. O que nos é dado é uma longa sucessão de acordes uniformemente quebrados;
ao final, os acordes são esparramados acima e abaixo. Considerando que até o meio
da sessão a progressão harmônica permanece inteiramente dentro das convenções
musicais, uma pessoa se maravilhará pelo que responde pela inegável originalidade
da peça, por sua qualidade peculiarmente encantadora. Ouvindo mais atentamente,
descobrimos que o que responde pelo perfil especial dos acordes quebrados, os dois
empurrões para cima e a repentina parada do empurrão sobre a nota mais alta,
___________. Olhe para um perfil mais convencional, ___________, e o
encantamento está feito. No último momento, o perfil de Bach deseja, como se assim
fosse, recordar a nota mais alta e fazê-la re-ecoar no ouvido; deixa o acorde para trás,
alcança a nota mais alta no próximo acorde, e as séries destas notas mais altas pairam
acima do conjunto, como uma linha melódica oculta. A figura dos acordes quebrados
_________ pode ser chamada de tema? Certamente não, pois seu padrão muda, os
intervalos diferem em cada acorde sucessivo, e a frase ora se contrai ora se expande –
no clímax ela se estende sobre duas oitavas; somente o esquema – o perfil -
permanece não modificado. E mesmo a figura pode ser chamada de uma inspiração
real; é uma inspiração de uma certa espécie, a marca de qualidade desta peça em
particular; ela a inspira, no sentido literal, isto é, sopra vida dentro dela.

Prelúdio em Fá maior (Livro II)


Este prelúdio, uma das maiores peças da coleção, ilustra o próximo estágio de
transição, entre a música temática e a não-temática. Aqui estão os quatro primeiros
compassos:

_____________
162

Não importa o quão atentamente ouvimos, não podemos descobrir nada nestes
compassos que pudesse apropriadamente ser chamado de um tema, ou atribuído à
“inspiração”. Seriam estes compassos, talvez, meramente introdutórios, uma espécie
de prelúdio ao prelúdio, o verdadeiro sujeito aparecendo somente depois? Não, tudo o
que está para vir está prefigurado nestas notas de abertura. É impossível discernir
uma melodia escondida, do mesmo modo como foi possível no Prelúdio em Dó
maior. Aqui, Bach não esperou pela inspiração, não perturbou qualquer força superior
por um “tema” cuja elaboração ajudou-o a completar a peça. Além disso, ela não
oferece praticamente oportunidade para demonstrar qualquer conhecimento especial
de composição. Então devemos concluir que é impossível responder pela produção de
obras musicais como envolvendo necessariamente a colaboração entre faculdades
separadas de inspiração e intelecto. Se estamos lidando com alguma obra inferior,
esta conclusão não tem nenhum peso. Mas estamos lidando aqui com uma obra
verdadeiramente magnificente, artisticamente perfeita. De que maneira, então, ela é
produzida?

O que está em questão aqui não são as circunstâncias reais da produção da


obra, mas uma tentativa de reconstruir o processo essencial de sua composição (o
qual, enfaticamente, não é o caminho pela qual foi composta), para visualizar o que
poderia ter sido “idealmente”. Vamos imaginar nosso Bach “ideal” sentado ao
teclado (sentado realmente ou somente na imaginação). Seus dedos tocam uma nova
grave: _____ . Ele pára um momento e então toca a mesma nota, Fá, três oitavas
acima. Esta é, por assim dizer, um eco da primeira nota: através da distância as duas
reconhecem-se e saúdam uma a outra, como se tentando se reunir. A nota mais alta
toma um longo caminho para se encontrar com a mais baixa, nem que fosse por
cortesia, afinal de contas, é mais fácil descer do que subir:

_______________

Isto faz sentido em termos de movimento; os pólos do campo dinâmico, 1 (Fá)


e 5 (Dó), estão sendo manifestados, mas o resultado não é particularmente satisfatório
em termos artísticos. Embora significativo como um todo, o padrão deixa muito a
desejar em seus detalhes. Imagine a nota mais alta expressar sua prontidão para se
juntar à nota mais baixa com um gesto de alçar vôo, por exemplo: Mi – Fá – Sol – Fá.
Isto seria aceitável para um começo. Mas o que segue? Meramente repetir o gesto
seria marcar o tempo: ____________; manter-se indo envolveria subir ainda mais:
_________ . Mas suponha que a direção do gesto fosse revertida – não ______ mas
_____. Sim, agora estamos na trilha certa, para baixo, __________ , e podemos
descer todo o caminho:

________________

Deste modo, uma corrida regular de notas conjuntas descendo o teclado é


transformada em uma sucessão de notas, que tomam seu caminho em torno das
posições centrais, cada uma separada da precedente pelo intervalo de uma terça (antes
da última unidade uma nota é saltada porque a meta pretendida do movimento é Dó).
163

Agora, as terças formam acordes – acordes de tríades e sétimas – assim nós também
fazemos. (Por que não? Afinal de contas, estamos sentados ao teclado.) Poderíamos
simplesmente levar nossos dedos repousar sobre as posições sucessivamente
alcançadas – não sobre todas elas; a mão não tem dedos suficientes para isso – como
isto:

________________

O que conseguimos agora é uma série sensível de acordes, começando com a


tríade dissonante Mi – Sol – Sib. Na primeira oportunidade ela é resolvida (de acordo
com as regras) na tríade do primeiro grau (Fá maior), Dó – Fá – Lá, seguida ao final,
como é esperado, pela tríade do quinto grau (Dó maior), Dó – Mi – Sol. A articulação
métrica também começa a tomar forma; é mais ou menos sugerida pelo próprio
movimento. Incluindo a nota de abertura mais grave, temos ao todo dez posições; se a
última é para coincidir com o começo de um compasso, o movimento deve ser em
tempo ternário ( 3 + 3 + 3 + 1).
Estivesse qualquer um sentado ao teclado, isto poderia ter sido tudo. Depois
que o impulso dado pelo pequeno gesto tivesse sido recomeçado em seu reverso, tudo
pareceria cuidar de si mesmo; mesmo o elemento acordal introduzido pelas notas
sustentadas é tratado de acordo com as regras: tudo acontece como teria sido predito,
quase calculado adiantadamente. Mas o homem ao teclado é Bach, uma mente uma
vez viva, que não se contenta com um primeiro impulso ou com deixar as coisas
simplesmente acontecerem, que nunca cessa de criar novos eventos, e assim algo
novo ocorre, isto:

______________

Para tornar claro o que acontece aqui, tanto o estágio inicial quanto o final são
mostrados aqui:

______________

O ponto de exclamação marca o momento crucial quando um tanto


inesperadamente, por nenhuma razão aparente, o perfil do movimento reaparece em
sua forma primeira, antes que a reversa, _____, mas somente uma vez, pois ela
continua com sua segunda forma, ________ . A mudança não é obstrutiva, seu efeito
delicado, mas ela tem conseqüências de longo alcance. O que teria sido um
desenrolar-se mecânico e repetitivo é agora animado por um impulso cheio de
frescor, um novo início – acima de tudo, _________ tem a forma do primeiro
impulso. Sua reaparição é como uma nova inalação após uma longa exalação.
Sentimos que aqui é a respiração da vida: neste momento a peça está nascendo. A
mera alternância entre _______ e __________ alimentaria e sustentaria todo o
prelúdio, manifestaria sua vitalidade. De fatos, seus efeitos são imediatamente
perceptíveis. Como se surpreendido pelo evento inesperado, o acorde dissonante Mi –
Sol – Sib acima é esquecido de ser resolvido no lugar apropriado; ele é carregado para
o começo do próprio compasso e é resolvido retardadamente. Este evento, também,
164

produz conseqüências, implorando por sua própria repetição com o novo acorde
dissonante, Ré – Fá – Láb. A resolução deste acorde, novamente, é adiada até a tríade
de Dó maior no próximo compasso; representado esquematicamente, o que temos é
______________ . Toque estes compassos sem a mudança crucial no segundo
compasso: imediatamente o movimento se torna inarticulado, sem vida. A
substituição de _______ por __________ neste ponto converte o sem forma em algo
com forma, dentro do padrão cinético __________ o qual se repete várias vezes na
peça. É este o tema? Em todo caso, não é muito mais dizer que ______ aqui ao invés
de _________ faz a diferença entre o gênio e a mediocridade, entre Bach e um seu
talentoso pupilo. E dizer isto não é exagerar a importância de um detalhe, não é ler
dentro dele coisas que não estão lá. É em pequenas coisas como desta espécie que
uma obra de arte revela grandeza e autenticidade; elas decidem se ela é viva ou sem
vida, e elas são a prerrogativa do gênio. “Le bon Dieu est dans le détail” – esta é uma
das observações mais verdadeiras jamais feitas a respeito da arte: “Deus reside no
detalhe”.

A tabela abaixo resume todo o desenvolvimento:

_______________

Continuaremos nossa análise por outros poucos passos. Ao final do compasso


4, a parte do baixo, conduzindo para o compasso 5, rompe com a regra até aqui
observada da reversão do movimento após três notas ascendentes ou descendentes;
com ________ o círculo é quebrado e um padrão é iluminado por um novo elemento,
o qual é introduzido de imediato esquematicamente: __________ . Este é não outro
que uma sucessão obtida da repetição da fórmula inicial _____ – não de seu reverso –
resultando em uma linha ascendente, sua última ligação estendida, sua conclusão
adiada: _______; abaixo da linha estendida o gesto reverso desliza para: _________
– uma exalação sob a inalação (em um processo não-físico algo desta espécie é
possível). Ao mesmo tempo, o acorde dissonante é sustentado para dentro do
próximo compasso e sua resolução retardada ________ nos recorda do evento
análogo nos compassos de abertura.

Os dois próximos compassos (7 e 8) repetem os dois primeiros procedimentos


no grau abaixo seguinte: ___________ . Outra vez algo aconteceu. O fato de que
após o padrão de quatro compassos do começo o padrão dos compassos 5 e 6 é
repetido nos compassos 7 e 8 – em outras palavras, o fato de que em vez da audição
de uma unidade de quatro compassos, como nos compassos 1 – 4, ouvimos duas
unidades de dois compassos – tem o efeito (embora discreto) de reduzir a respiração à
metade de sua extensão. E quando o padrão do compasso 9 é imediatamente repetido
no compasso 10 ___________ – quer dizer, quando a extensão da respiração é
novamente reduzida à sua metade – poder-se-ia sentir um ligeiro agrupamento. Mas
então, no compasso 11, há um súbito enfraquecimento: o padrão de quatro compassos
da abertura re-emerge e continua desembaraçado. Agrupar e enfraquecer tem um
significado profundo na totalidade da estrutura da peça: o agrupamento prepara a
primeira mudança do centro (de Fá para Dó); o enfraquecimento ocorre no momento
165

em que o novo centro surge claramente. Mas ao final desta unidade de quatro
compassos, no lugar onde nos compassos 4 – 5 a voz mais baixa livrou-se da regra
estrita com Ré – Dó – Sib – Lá, a voz superior quebra o círculo com a oposição Sol –
Lá – Si – Dó, carregando o movimento em direção à nota Dó; um compasso adiante o
primeiro ponto de repouso é alcançado. Mas aqui, no compasso 16, o qual marca uma
conclusão e um momento de repouso, o padrão do primeiro compasso – da abertura
– reaparece inesperadamente, recordando-nos que o repouso neste ponto pode ser
somente temporário. Os compassos 9 – 16 são repetidos sem mudança, embora, não
tenhamos _______, como no compasso 16, mas _________, o conteúdo musical
continua sendo o mesmo. Aqui nada se agita novamente; o repouso torna-se
definitivo.

Embora possa ser tentador e instrutivo continuar nossa análise passo a passo
deste magnífico prelúdio, estaria além do escopo de nossas reflexões. Aqueles que
desejarem estudar o padrão de movimento em detalhe e sua relação com estruturas
tonais mais amplas podem fazê-lo com o auxílio da tabela abaixo. Uma representação
esquemática é possível neste exemplo porque o prelúdio inteiro praticamente é
“feito” de nada que não repetições (mais do que duzentas) da fórmula de quatro notas
em uma ou outra de suas quatro versões, _____ e ___ ocorrendo mais
freqüentemente, e ____ e _____ usada somente em poucos casos. Duas vezes no
stretto de um clímax, a parte do baixo sendo levada longe para ____; e diretamente
antes de alguns poucos pontos intermediários de pausa (existem três deles) a regra é
inteiramente descuidada; mas isto marca o limite máximo da liberdade concedida
para as notas. Na tabela a seguir, os símbolos são auto-explicativos (os suportes
acima indicam os padrões recorrentes).

_____________

O elemento “dado” – auto-dado –, o tema com o qual Bach trabalha aqui, o que
é? ________ : um nada, uma bagatela. Dificilmente ocorreria a alguém chamar algo
como isto de uma inspiração. E tudo é senão trabalho! O que torna esta peça tão
especial, até mesmo única, não é um “tema”, um lampejo de inspiração, mas o
trabalho que foi aplicado a ela. O termo “trabalho” contudo, não deve ser tomado
aqui no sentido usual, de uma atividade guiada por conhecimento e habilidade. Pois
conhecimento e habilidade não podem por si mesmos produzir algo único, algo que
nunca existiu antes; à luz das idéias tradicionais, uma peça como esta só pode ser o
resultado da inspiração. Diríamos então que a totalidade da peça é “inspirada”?
Afirmações deste tipo são feitas freqüentemente; ainda os artistas muitas vezes nos
asseguram que um trabalho esteve inteiramente presente em sua mente em um
lampejo de inspiração, e que tudo o que eles fizeram foi reproduzir o todo intuído
como uma sucessão de suas partes. Tal interpretação seria fiel ao esquema conceitual
de inspiração mais intelecto, ou inspiração mais trabalho, mas não acrescentaria
muito à nossa compreensão. O que nos ajuda dizer que Bach teve um quadro mental
de seu prelúdio inteiro em um lampejo de inspiração? O que, em tal caso, seria o todo
aparte dos detalhes no qual, fora do qual, ele vive em primeiro lugar? O que pode ser
que não um vago antegozo de um certo intercalar de forças e do movimento
166

resultante dele até o próprio trabalho ser cristalizado fora de sua névoa, passo a
passo? Afinal de contas, os passos individuais nos quais a vida do trabalho se revela,
que são idênticos à sua vida, os quais são a obra, não podem – nem ainda como meras
indicações – estar todos presentes na mente do compositor simultaneamente, em um
único lampejo; cada um pode emergir somente no lugar certo e ao momento certo,
como ele cai diretamente no curso da composição. Como, por exemplo, poderia a
mudança melódica Sol – Lá – Si – Dó nos compassos 14 – 15 ou o padrão _______
do compasso 16 estar presente na mente do compositor antes que a música tenha
efetivamente alcançado este ponto? Como poderia ter sido produzido sem as
referências a tudo o que veio antes dele? Criação é um processo contínuo; decisões
são tomadas a todo momento, não em um único momento. É uma série de tais
lampejos; trabalho e inspiração são inseparáveis. A hipótese de duas fontes criativas
diferentes desmorona, e se alguém deseja insistir que sem inspiração nenhuma obra
genuína pode ser produzida, então o labor do compositor deveria ser considerado
como inspiração. Esta, no entanto, implicaria em um novo conceito de “labor”, um
conceito que não está essencialmente vinculado a conhecimento e habilidade, e um
conceito que, em última análise, deveria estar associado com “pensamento” – ou um
novo conceito de pensamento.

Prelúdio em Dó maior (Livro II)


Este prelúdio representa o último estágio na transição de composições
temáticas para as sem tema. Enquanto no Prelúdio em Fá maior um “dado elemento”,
embora insignificante, era ainda claramente reconhecível como o material que foi
tratado pelo compositor, aqui todo vestígio de algo “dado” se desvanece: nossa
distinção não mais se aplica. No entanto, seria enganoso esperar algo displicente e
difuso como resultado – como seria o caso em uma improvisação livre – desde que o
vínculo com um dado elemento, um tema, é certamente um dos elementos mais
importantes que trabalham pela coerência. O Prelúdio em Dó maior certamente tem
feições sugestivas de uma improvisação, mas não pode haver dúvida quanto a ser
difuso; muito ao contrário, a impressão que ele produz é de uma compactação e
coerência dificilmente superáveis. O porque desta impressão, imaginaremos na
primeira audição da peça que ouvimos referências contínuas a fórmulas tonais
definidas, ou gestos tonais, como eles são ouvidos no Prelúdio em Fá maior.
Examinando a questão mais de perto, somos surpreendidos por descobrir que nossa
primeira impressão foi enganosa. Existem claramente bastantes repetições e variações
de fórmulas definidas, mas elas têm vida curta e inconseqüente: a todo momento que
elas emergem, rapidamente se desvanecem, ou ainda uma fórmula é reduzida a uma
descida de meio tom, Ré – Dó#, algo que não pode ser chamado de uma forma ainda
no sentido mais rudimentar, algo que é meramente matéria prima musical. Enquanto
o Prelúdio em Fá maior tinha um encadeamento firmemente construído de membros
individuais interligados sem nenhuma lacuna – embora ainda que descontínuos, pois
167

foi possível distinguir entre os vínculos e a corrente, e contar os vínculos – aqui


temos uma continuidade inteiriça de fluência pura. Este não é mais uma corrente mas
uma teia que é fiada mais e mais, um poema consistindo de uma única linha que se
mantém crescendo mais e mais. (Um ouvinte atento descobrirá que a “linha” é
articulada como segue: abertura – 2 compassos; seção principal – 13 e meio
compassos; interlúdio – três e meio compassos, correndo dentro da seção principal
onde a última está em total oscilação, dois e meio compassos decorridos de seu
começo; então, repetição da seção principal desde aqui sobre um centro tonal
diferente e uma conclusão expandida – 12 compassos; e coda – três compassos. Mas
esta articulação não é nunca realçada; ao contrário, ela é ofuscada pelo movimento
das notas. Não há cesuras, não há pausas até o final; é pretendido obviamente um
fluxo contínuo.)

O caráter improvisatório da peça é especialmente notável nos dois compassos


de abertura: o compositor parece estar procurando, experimentando, tateando em
busca da coisa real. Como no Prelúdio em Fá maior, a primeira nota a ser ouvida está
no baixo, a fundamental (aqui Dó), a qual é apanhada no soprano e transformada em
movimento, mas, em contraste com o outro prelúdio, aqui o movimento não se
cristaliza em uma figura específica, um gesto tonal específico a ser trabalho com ele.
Mais apropriadamente, nota flui sobre nota; nenhuma forma definida é delineada e
preservada; todas permanecem em um estado de fluxo, por assim dizer. Tudo o que
temos é uma linha única que se eleva e cai como se ela gradualmente ventasse em seu
caminho para baixo:

___________________

No compasso 3, a linha se divide em quatro fieiras (o prelúdio é em quatro


vozes), e descobrimos que a coisa real para a qual os dois compassos de abertura
tatearam não é essencialmente diferente daquela afirmada nestes dois compassos; é o
mesmo fluxo calmo, nota a nota. Então os compassos de abertura são mais do que
uma introdução: eles antecipam a essência da peça e proporcionam uma chave para a
compreensão dela.

Se, então, nada é “dado” aqui, nenhuma forma, mesmo que rudimentar, à qual
o movimento subseqüente pudesse ser relacionado, se o que temos é uma sucessão de
notas e intervalos, por que ouvimos o prelúdio como um todo uno e coerente mais do
que uma reunião aleatória de notas? Porque o que ouvimos não é meramente a
unidade total dada pela tonalidade (a qual seria audível em uma mera escala), não é
conjunto da progressão de acordes embutida nas notas sucessivas (presente em
qualquer arpejo), mas sua linha melódica particular, seu todo inigualável e
firmemente tecido.

A peça começa com um movimento suavemente ascendente disparado pela


nota fundamental grave (“suavemente” por causa da distribuição dos acentos
métricos; o começo do compasso está vazio, a nota central Dó é a menos acentuada):
Dó – Si – Ré, 1 – 2 – 3. No entanto, o movimento não continua para cima, como, por
168

exemplo, no tema da fuga em Dó maior do Livro I, Dó – Ré – Mi – Fá. Mais


precisamente, ele cessa bruscamente; a próxima nota é muito mais grave: _______ .
Esta poderia ser considerada como uma forma definida com a qual o movimento
seria trabalhado a partir deste ponto – tal como no caso do Prelúdio em Ré maior do
Livro I, ________ . Não é assim aqui; as notas ignoram esta possibilidade, por assim
dizer, elas passam por ela, e o movimento continua como ___________ . Duas coisas
serão notáveis aqui: primeiro, uma alternância de notas conjuntas e saltos – isto será
reconhecido como significativo só subseqüentemente – e segundo, percebido
imediatamente, a presença de dois movimentos, um para um nível mais alto, o outro
para um nível mais baixo, __________ . O momento crucial é o salto Mi (acima) –
Mi (abaixo): quando a nota Mi (abaixo) é tocada, o nível mais baixo é tomado
seriamente, por assim dizer (não é este o caso no Prelúdio em Ré maior): o Sol
precedente, 5, é colocado em movimento via Fá, 4, em direção a Mi, 3. Ao mesmo
tempo, através de um tipo de ação à distância, Mi (acima), também, é tirado de seu
estado de comparativo repouso, e colocado em um movimento 3 – 2 – 1. O
movimento para o nível mais baixo é efêmero e vem a uma parada em sua meta
provisória, 3; como um resultado o ouvido é induzido a se concentrar sobre o
movimento que continua no nível mais alto; o curso deste movimento é mostrado no
seguinte esquema:

_______________________

Após o 1 – 2 – 3 inicial, Sib é tocado acima, fora da tonalidade e se referido ao


centro Fá; tem a qualidade dinâmica 4 – uma nota de tensão – e é resolvida no Lá
presente a seguir, 3. No entanto, a mudança do centro afeta somente este primeiro
passo: a situação original com Dó como centro é restaurada imediatamente, e o Fá
que segue é ouvido como 4, com o passo conclusivo Fá – Mi como 4 – 3 em Dó
maior. Em outras palavras, o que temos aqui é uma alternância regular de tensão e
resolução, 3 – 2 – 3 – (4 – 3 –) 4 – 3. A linha inferior de nosso esquema, que indica a
duração dos movimentos em cada estágio, mostra que os vários passos não são de
modo algum de igual valor. O fato de que o passo 2 – 1 demora menos tempo do que
qualquer outro sugere que ele é o menos significativo: ele não marca o atingimento
de uma meta; o movimento continua além dela. O próximo passo – Sib – Lá – é
prolongado, e a conclusão Fá – Mi toma mais tempo do que todos os passos
precedentes juntos. Deste modo começa a se tornar claro que após a nota inicial Mi, o
movimento tende para a conclusão Fá – Mi, e que desde o princípio ela tem apontado
para ________, 3 . . . 4 – 3, movimento através de notas adjuntas associadas com uma
mudança para a oitava inferior. O movimento como um todo sutilmente indica sua
proposta quando repete o motivo ascendente de três notas levando para o Mi inicial,
3, em direção ao fim, mas não o mais próximo, onde sua meta é a nota Fá, 4, da
oitava abaixo. _________ : isto é como a nota principal e sua nota adjunta alcançam
uma à outra através da distância.

_______________
169

Os esquemas acima são pretendidos como o quadro “ideal” de como tal padrão
completamente não-temático é formado, e mostram o elemento de conexão que liga
os passos sucessivos dentro de um todo unificado. Primeiro, há a nota 3 acima de sua
fundamental, que determina a qualidade dinâmica (I). A vida da nota é expressa em
um movimento desde-lá-e-de-volta-para, 3 – 4 – 3, tocando a nota adjunta (II). A
seguir, a nota adjunta se esforça por afirmar-se, por demonstrar que tem uma vida em
si própria: isto é alcançado por meio de uma segunda voz (III; a mudança das
qualidades dinâmicas na voz principal efetuada pela voz mais grave – a nota adjunta
toma por um momento a aparência de uma nota fundamental – é indicada no
esquema). A seguir vem a mudança para a oitava mais baixa (IV) – a voz principal
torna-se a voz mais baixa; a voz secundária está no alto. Para restaurar a situação
correta, a segunda voz, também, deve se mover para a oitava abaixo (V). O último
passo marca uma descoberta e um enriquecimento a mais (VI). Esta é a estrutura
ideal para a qual a linha melódica dos dois compassos de abertura deve sua solidez,
sua coerência interna. (Na terminologia de Schenker, II é o plano de fundo, III – VI
são os planos intermediários, a partitura do prelúdio é o primeiro plano.)

Como mencionado anteriormente, o que é mostrado aqui é um


desenvolvimento “ideal”, não um quadro de como a peça foi composta de fato. Seria
completamente absurdo supor que qualquer obra musical é construída desde um
“plano de fundo”; o compositor está sempre interessado no “primeiro plano”. Na
verdade, como poderia _________, e assim por diante, ser concebido exceto no
próprio movimento contínuo, no curso do prolongar a linha, o fluir constante de nota
para nota? Bach começa com Dó – Ré – Mi; há uma sugestão, uma direção, um
pressentimento mas não mais, do que está para vir; ele está ao mesmo tempo levando
e sendo levado. Porque sua mente criativa musical está constantemente focalizada nas
formas primais da vida tonal, é inevitável que uma destas formas primais – aqui, a
nota adjunta 3 – 4 – 3 – será incorporada à linha melódica que sua mente está
desenvolvendo como significativa, o núcleo interno, de seu único padrão de
movimento.

Assim, o que temos aqui não é qualquer movimento mas um movimento


representando ou expressando um significado ou núcleo interior, um evento em dois
níveis, um movimento que diz algo, como qualquer gesto corporal. Mas este não é
fixo no tempo (como os gestos estão limitados a um momento particular). Mais
precisamente, ele se estende no tempo, preenche e encorpando o tempo tal como uma
linha ou uma construção preenche e encorpa o espaço. Estamos, então, falando de
uma “estrutura” ou “construção” em movimento? E o que falta a estes termos –
“estrutura”, “construção” – é a conotação de “a respeito do que”; alguém não edifica
ou constrói “sobre” qualquer coisa, como alguém fala ou pensa “sobre” algo, como
esta linha musical particular fala “sobre” a nota adjunta, ou como o homem que a
concebeu está pensando “sobre” Mi – Fá – Mi, 3 – 4 – 3. Novamente, este
pensamento não é do tipo que lida com um problema a fim de resolvê-lo; mais
apropriadamente, é um pensamento que leva algo para adiante, que arranca algo
escondido para a luz – pensamento sobre movimentos das notas. Aqui também, é
170

claro, algo é feito, algo acontece, mas este fazer consiste em pensar. Este pensamento
não é aquele de um homem que atua, este fazer não é aquele de um homem que
pensa. Fazer e pensar estão inteiramente fundidos em um: pensamento que produz,
produção que pensa. Não a existência em uma mão e o pensamento a respeito dela
em outra, mas um pensamento que por si mesmo cria a existência.

Aqui podemos relembrar o ponto de partida destas reflexões – a suposição de


que uma obra musical é uma colaboração entre inspiração e conhecimento técnico.
Partimos para testar esta suposição contra os fatos musicais. E, na verdade, a
suposição mostra-se completamente insustentável, testada contra uma obra tal como
este prelúdio. Em lugar algum podemos apontar para elementos derivados da
inspiração como distintos de elementos derivados da aptidão ou treino técnico. A
distinção parece sem sentido: a noção de duas fontes distintas não contribui para a
compreensão do processo criativo.

Harmonização Coral e Variação

Agora, voltemo-nos brevemente para duas formas musicais nas quais o tema
pode ser claramente distinguido da elaboração técnica: aqui não há dúvida de que
ambos derivam de fontes diferentes, mais ainda de fontes externamente diferentes. A
harmonização coral consiste em imaginar acordes adequados para melodias
tradicionais. Em toda a sua simplicidade, muitas melodias de hinos tradicionais são
estruturas requintadamente belas; se nenhum compositor é conhecido, prontamente
atribuímos sua existência a alguma espécie de inspiração anônima. Por outro lado, a
harmonização destas melodias é parte do treinamento elementar de muitos musicistas.
Talento também não é requerido: depois que o estudante aprendeu como operar com
os símbolos musicais de acordo com as regras, ele pode resolver os problemas
(mesmo sem referência para com o ouvido) sobre uma base puramente topológica.
Aqui, então, a distinção entre inspiração e técnica como as duas fontes criativas da
música parecem inteiramente justificadas, não menos porque aqui cada uma é
representada por uma pessoa diferente. É claro, o caso é um pouco alterado quando é
um compositor como Bach quem abastece o cenário harmônico. Os corais de Bach
têm se mantido sob especial reverência por todos os tipos de musicistas porque, pela
primeira vez, eles revelam que a música de fato progrediu ao se desenvolver na
dimensão da melodia. Os cenários de Bach não são meros acompanhamentos para, ou
suportes da, melodia, não somente um engordamento; eles demonstram que a
harmonia possui a capacidade de interpretar a melodia. Eles levam luz às faces
ocultas da melodia. Por elas mesmas, em termos das qualidades dinâmicas das notas,
estas melodias parecem completamente simples. Dificilmente ocorreria a alguém
supor aqui haver algo a ser interpretado em uma melodia de hino! Mas foram estas,
171

das mais simples de todas as melodias, que Bach transformou nas afirmações
musicais mais sublimes e mais sutis. Ouvindo as grandes Paixões, alguém não está
sempre consciente de que, graças às harmonizações, a mesma melodia pode ser
condutora de sentidos tão diversos quanto “O grande Rei, grande de todos os
tempos”, “O grande amor, O amor além de todos os limites”, e “E contudo quão
prodigiosa é esta punição”, e conduz a cada uma de maneira única. Em análise mais
atenta, estes milagres do som reduzem-se a algumas soluções de problema técnico, a
encontrar três diferentes vozes no baixo para a mesma melodia; ambas as vozes
juntas sugerirão então possíveis harmonias. Em nosso exemplo, as vozes aguda e
grave começam como segue nas três harmonizações:

_________________

Ninguém nega que a habilidade musical da mais alta ordem instrui as


montagens corais de Bach, mas quando somos confrontados com uma invenção como
a terceira citada aqui, começamos a duvidar de que ela seria produzida por
treinamento, conhecimento ou somente experiência, não importa de quão alta ordem
– ainda mais quando reconhecemos que a seqüência de acordes feita em duas vozes
expressa o questionamento, a maravilhosa qualidade das palavras de um modo
completamente incompreensível. Nossas dúvidas tornam-se completas certamente
quando ouvimos o famoso coral da Paixão Segundo São Mateus seguindo as palavras
do Evangelista “E ele morreu”: muito mais está envolvido aqui do que somente
conhecimento da composição musical. O mesmo coral foi ouvido quatro vezes no
curso da Paixão, a cada vez em uma harmonização diferente, mas em todas as quatro
Bach preservou a frase conclusiva: ____________, perfeitamente simples,
harmonizando-a somente com os acordes normais da cadência. Então é tudo a maior
surpresa, na verdade empolgação, quando agora com as palavras “Pela virtude de tua
angústia e dor”, as harmonias familiares subitamente produzem sons inauditos, como
se ascendendo desde um abismo de incerteza. O mundo habitual se desvanece, uma
profundidade sem fundo se abre, e a melodia simples de repente passa a servir para
expressar o incompreensível. Se nos perguntassem se é possível expressar o
inexprimível, apontaríamos somente esta passagem. Tentar colocá-la em palavras
implicaria em uma contradição. Sem dúvida, aqui também, é a voz de fundo que,
tecnicamente falando, determina os acordes:

________________

Mas uma linha do baixo como esta, junto com os sons que a faz possível, não
deriva de qualquer tipo de conhecimento ou experiência; ela deriva de alguma
“segunda audição” (em analogia à “segunda visão”) que detecta coisas não sonhadas
além das notas da melodia. Se algo alguma vez mereceu se chamar assim, esta é a
descoberta de gênio, um lampejo de inspiração, uma idéia brilhante, absolutamente
original, única – não a descoberta inspirada de um tema, mas a inspiração “sobre” um
tema; isto é pensamento, pensamento nota, um pensamento em notas a respeito de
notas.
172

“Variação” ou “tema e variações” é o termo técnico para uma forma musical


clássica na qual uma melodia prolongada, muitas vezes uma tomada emprestada,
submete-se a um número de modificações, embora o perfil fundamental da melodia
original seja preservado. A fórmula “o mesmo, todavia não o mesmo” é uma
descrição bastante correta do resultado. (As Variações Goldberg de Bach não são um
conjunto de variações no sentido clássico: a obra é baseada não em uma melodia mas
no “plano de fundo” da melodia.) Muitas vezes o compositor de tal obra meramente
ornamenta ou parafraseia uma dada melodia, apresenta-a em um número de
diferentes orquestrações. O resultado pode ser muito artístico, mas a arte envolvida
aqui é certamente de uma espécie que pode ser aprendida: na realidade, podemos
concordar com os estudantes de composição de que nada é mais fácil do que escrever
variações. No entanto, grandes compositores têm reconhecido que “o mesmo, todavia
não o mesmo” não é necessariamente o mesmo enfeitar-se em uma nova vestimenta,
mas pode ser tomada no sentido mais profundo de metamorfose. Neste sentido,
escrever variações é a mais difícil de todas as tarefas, a saber, a “transformação do
criado”, a produção consciente de algo que normalmente só a natureza pode produzir
inconscientemente. Não é um acidente que Beethoven, cujos poderes criativos
afirmaram-se mais fortemente quando limitado por uma disciplina auto-imposta,
compôs algumas de suas maiores obras na forma de variações. Um dia, como se sua
mente tivesse inventado reduzir ao absurdo o ponto de vista comumente mantido que
o tema é a matéria de inspiração e seu tratamento algo mais do que técnica, ele
escolheu um produto descartável de talento rotineiro, uma valsa do músico editor
Diabelli, como o tema para não menos que trinta e três variações, criando assim uma
obra corretamente descrita como “o microcosmos do gênio de Beethoven, a
quintessência de todo o mundo da música” (Hans Von Bülow). O tema é totalmente
convencional, um produto de habilidade mediana; a elaboração, trinta e três milagres
do poder criativo, é um trabalho de gênio. Após a valsa de Diabelli ser ouvida, a
primeira “variação” revela de um só golpe, com relâmpago e trovão, a face de
Beethoven atravessando a mediocridade do tema, e então qualquer um pode dizer
onde habilidade, conhecimento, técnica estão trabalhando, e onde uma faculdade
mais alta está operando.

Pode ser mencionado brevemente aqui que nos dois domínios que a música do
século vinte explorou mais extensamente, a composição dodecafônica e o jazz, o
desaparecimento do tema como o elemento inspirado e a força vitalizadora de uma
obra musical foi completada, pelo menos até o momento. A série de notas é sobre o
que toda composição dodecafônica é baseada, e não um tema no próprio sentido, não
um padrão tonal audível, mas material em série pré-arranjada de um modo específico
pronto para ser lidado com ele; não é “inspirado”, mas escolhido deliberadamente de
acordo com a idéia do compositor de como este pedaço específico de material pode
ser elaborado. A inspiração pode se manifestar, se de todo, somente no seu
tratamento. Muito do mesmo pode ser dito a respeito do jazz, o qual é na verdade
uma arte da improvisação – não improvisação livre, é verdade, pois ele é basicamente
limitado por um tema dado. O que o jazz improvisa não é o tema, mas o que ocorre
173

ao compositor de jazz dizer a respeito dele: isto é o que determina a qualidade


artística de sua produção.

O Desenvolvimento Clássico

A distinção entre inspiração (responsável pelo tema) e técnica (responsável


pela elaboração) certamente não foi sugerida pelas obras do tipo discutido acima, mas
mais propriamente pelas grandes obras instrumentais do período clássico, cuja forma
mais claramente distingue entre tema e tratamento, o “dado” e o que é feito dele, o
que acontece com ele. Seus temas são reconhecidos como inspirações autênticas por
todo ouvinte, e o tratamento dos temas é governado por regras fáceis de ensinar e
aprender. Quando olhamos mais de perto, no entanto, descobrimos que aqui, também,
a situação não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista. Em muitas
passagens do “tratamento”, onde supostamente está envolvido somente o
conhecimento sobre composição, é que se encontram repetidamente, de modo
inesperado, acontecimentos musicais que em sua singularidade e imprevisibilidade
não podem ter sido derivados do conhecimento ou da experiência, e sobrepujam de
muito qualquer coisa meramente planejada (no sentido da técnica). Muitas vezes uma
passagem de pura elaboração, examinada de perto, confunde inteiramente nossa
expectativa treinada: é, acima de tudo, muito claro que em tais casos a assim
chamada elaboração se eleva ao nível da arte criativa. Aqui, como em qualquer parte,
pode estar envolvida a inspiração de uma ordem elevada – quase se poderia dizer,
mais alta do que aquela à qual o tema deve sua própria existência. É mais fácil criar
algo a partir do nada do que a partir de algo dado, é mais fácil começar bem do que
continuar bem; em virtude disto, diz-se que não é preciso alguém ser bom músico
para ter uma boa idéia, mas alguém precisa ser um bom músico para fazer algo bom a
partir de uma boa idéia. Em outras palavras, o gênio não precisa de uma melodia
inspirada; uma melodia inspirada precisa de um gênio. Aqueles que concederam
inspiração puramente à tarefa de inventar o tema, e o conhecimento mais a técnica
para a tarefa de tratá-lo, podem ser tidos mais apropriadamente como obtusos. Talvez
eles pudessem conceber obscuramente que uma idéia poderia ocorrer a um
compositor inesperadamente; que a elaboração seria algo inteiramente diferente da
mera aplicação de regras provavelmente estava além do alcance de sua imaginação.
Veja o que os livros texto têm a dizer a respeito das sessões de desenvolvimento na
174

música clássica: você encontrará a implicação de que realmente poderia ter sido
composta também por um estudante avançado ou um bom técnico.

Para compreender o pleno significado destas observações, vamos voltar a


exemplos que eles descreveram em termos gerais e estudar estes exemplos em seus
detalhes concretos. Cézanne afirma que Deus reside nos detalhes, neles aplicando
toda a sua força. A mão do Criador se revela mais convincentemente quando se olha
bem de perto. Vamos escolher dois exemplos da literatura sinfônica.

Nosso primeiro exemplo é a seção de desenvolvimento do primeiro movimento


da Sinfonia em Sol menor de Mozart (nº 40). Tradicionalmente, o primeiro
movimento é em forma ternária; a terceira sessão dele, para manter um esforço
latente pela simetria, repete o primeiro em linhas gerais tanto quanto em muitos
detalhes; a função da seção do meio é retardar com suspense o atingimento da meta
de seu esforço, e ao final atingi-la mais ou menos dramaticamente, dependendo da
característica da obra. O movimento básico partir-desde-e-voltar-para que define o
significado do esquema ternário é expresso musicalmente no fato de que na primeira
sessão a tonalidade principal é renunciada em favor de uma diferente; na sessão do
meio, o compositor está livre para inventar desvios que levem de volta para a
tonalidade principal; esta última é plenamente restaurada na terceira sessão, mas
desta vez, em contraste com a primeira sessão, não é renunciada. Os temas são
declarados na primeira sessão, a assim chamada exposição12; a terceira sessão, ou
recapitulação, repete-os; os temas são elaborados na sessão do meio do movimento, o
desenvolvimento.

Para entender o que acontece ao tema em um desenvolvimento, devemos


primeiro nos tornar familiares com o que acontece no próprio tema. Aqui está o tema
bem conhecido que abre a sinfonia sem qualquer outra preparação:

____________

O que pode ser considerado como preparação é, por assim dizer, parte do
próprio tema, a saber, o início repetido três vezes: Mib – Ré – Ré. (Algo como isto
pode ser somente o resultado de uma inspiração; ninguém se arriscaria a planejá-lo.)
O começo, no entanto, não conduz, como se poderia supor, a um grande gesto
enfático, isto é, ____________ . O gesto de fato ocorre, mas (este é o ponto) não
onde ele é devido; ele é retardado e como resultado ele cai no tempo fraco do
compasso, _______, deste modo negando a si mesmo, por assim dizer, diminuindo o
esforço envolvido, como se sugerindo que não deve ser tomado tão seriamente quanto
tudo aquilo, que o que é de fato pretendido não é a altura Si que foi alcançada, mas
talvez o aparentemente preparatório Ré, 5 (em virtude deste ter sido repetido três
vezes). Em todo caso, o movimento imediatamente desce no mesmo ritmo _______
do começo, e conduz, através da nota de abertura, à próxima nota abaixo, 4:
________. Os mesmos passos são repetidos enquanto o movimento procede de 4 para
12
Uma das convenções da forma é que a exposição é executada duas vezes; que nenhum novo elemento formal é
introduzido pela repetição é aparente desde o fato de que o intérprete é livre para seguir a convenção ou ignorá-la.
175

3: _________________. O esquema do conjunto, junto com a harmonia óbvia: I – II


– V – I, é:

________________

A melodia não termina neste ponto, mas, no que segue, somente esta parte dela
é usada como o elemento “dado” a ser elaborado.

Considerando formalmente, a exposição é convencional. O desenvolvimento


propriamente começa de modo exatamente tão convencional, com uns poucos
acordes; o último destes é um acorde de sétima diminuída, um som que se refere a
quatro diferentes centros tonais, Lá, Dó, Mib e Fá#. Dentre os quatro caminhos
abertos neste ponto de interseção, Mozart escolhe aquele que conduz ao centro Fá#, o
qual é o mais remotamente distante da tonalidade principal (de acordo com o círculo
das quintas). Uma frase de transição é executada: ___________ . Ela foi ouvida
outrora na exposição, onde conduziu para a primeira reafirmação do tema principal.
Aqui ela aparece duas vezes – uma longa parada, uma inalação profunda antes do que
virá a seguir. Então o tema principal é iniciado em Fá# menor.

______________

A princípio, quase até o meio, tudo corre suavemente. Mas no momento


quando a porção descendente da curva melódica é esperada para alcançar a nota 4
(aqui Si), algo acontece: ___________; ao invés de Si ouvimos Si#, uma nota que não
existe em Fá# menor. Seu efeito é de um discreto solavanco: temos sido carregados
confiantemente ao longo do movimento, e agora sentimos um choque; ficamos um
tanto apreensivos, desconfiados – ainda antes que tenhamos tempo para nos
recompor, o distúrbio é removido. Como se nada tivesse acontecido, a segunda
metade da melodia continua com a correta nota 4, Si e não Si#: _________ .
Decidimos que o solavanco foi senão um tropeço e, reassegurados, deixamos-nos ser
carregados pelo movimento familiar. Mas três compassos depois, e uma vez mais
exatamente no ponto onde a parte descendente da melodia se curva, desta vez no
segundo compasso da melodia, é esperado atingir sua meta, e (aqui Lá), a mesma
coisa acontece: __________ . Agora o efeito é muito mais forte, não somente porque
a repetição do “deslize” sugere que ele não é um acidente mas também porque neste
ponto a nota 3 era imaginada concluir a frase e resolver a tensão em alguma medida 13.
É claro, o desvio é imediatamente corrigido da mesma maneira que antes, mas isto
significa que o resultado, também é o mesmo: a nota “corrigida”, Lá ao invés de Lá#,
tem a qualidade dinâmica 4, não 3. Ao invés de ter alcançado o final do tema e um
estado de relaxamento, nos encontramos outra vez no meio das coisas, em um novo
estado de tensão, com uma segunda metade de relaxamento ainda adiante de nós. Ao
mesmo tempo, no entanto, o centro mudou: desde Lá é agora 4, não 3, e tornou-se 1
ao invés de Fá#. A partir deste ponto o tema segue normalmente, ___________ ,
conforme o novo centro. As notas aceleram-se em direção a ele: sem dar ao tema uma

13
A harmonia neste ponto torna possível ouvir Lá como 3 em Fá# maior.
176

chance de alcançar seu final propriamente, as violas e os contrabaixos começam-no


novamente em Mi menor:

________________

A fim de tornar claro o que aconteceu, mostramos a seguir uma representação


esquemática do primeiro estágio do desenvolvimento como comparado com o próprio
tema. O tema: um arco melódico e sua repetição, um grau abaixo; o primeiro arco,
conduzindo desde 5 para 4, elevando a tenção do começo; o segundo, conduzindo de
4 para 3, resolve a tensão.

_______________

No desenvolvimento, a idéia de “mudança do arco melódico um grau mais


baixo” dentro de seu campo dinâmico é intensificado mudando o desenho melódico e
o campo dinâmico. Conseqüentemente, a correção do “deslize” que a segunda vez
leva a um novo 4 ao invés do 3 não é efetuada para evitar um desajeito; mais
propriamente, justo como o deslize aparentemente acidental, ela serve a uma proposta
não-revelada ainda mais elevada do desenho total (este se tornará aparente
subseqüentemente).

A reafirmação do tema em Mi menor marca um novo estágio no


desenvolvimento. O caminho até agora viajado pode ser representado concisamente
pelos estágios ___________ . Para além deste ponto, a mudança gradual para baixo
do movimento total foi executada por meio de desvios insignificantes; agora a
intenção do compositor se afirma aberta e vigorosamente. No momento em que o
centro Mi é alcançado, é induzido a um novo movimento; a mudança de Mi para Ré
começa ainda antes de à segunda metade do tema ter sido dada a oportunidade de se
revelar: _________ . Como resultado, a segunda metade é omitida. Depois que o
centro Ré foi alcançado, o tema começa novamente do começo; desta vez ouvimos
somente sua primeira metade. O mesmo acontece duas vezes mais, quando o centro é
mudado para Dó então para Sib. Após o que, o movimento torna-se íngreme: nenhum
novo centro é fixado mesmo por um momento; no conflito, a melodia ainda desiste de
seu primeiro e último compassos, e é reduzida a seu cerne,

_______________

Os estágios _______ e _________ são meramente passados rápidos, e após o


próximo passo, _____, algo se quebra: o movimento vem a uma parada.

O curso do desenvolvimento até este ponto, que marca o meio da seção, é


representado esquematicamente no seguinte esquema, onde o intervalo característico
da sexta ascendente indica o estágio alcançado a um dado momento (o número do
compasso mostra como o movimento é gradualmente acelerado):

______________
177

A idéia de uma mudança gradual para baixo, contida em gérmen no próprio


tema e trazida ao primeiro plano pelo “acidente” no começo do desenvolvimento,
afirma-se, e no final torna-se o fator dominante. O movimento vem a uma parada no
momento quando a sexta Dó# - Lá aparece na voz superior. A mesma sexta começa o
movimento mas o significado dinâmico do intervalo mudou: primeiro ele era 5 – 3;
agora ele é ouvido como 3 – 5. Conseqüentemente, o curso do desenvolvimento além
deste ponto pode ser mais concisamente resumido na fórmula ________: como um
resultado do movimento, a qualidade dinâmica 5 foi mudada desde a nota mais baixa
para a mais alta do intervalo Dó – Lá. Mas desde que Lá = 5 implica em Ré = 1, e
desde que Ré é a dominante da tonalidade principal, na qual a recapitulação é
alcançada via o passo harmônico Ré – Sol, estamos aqui, embora no meio do
desenvolvimento, separados de seu final somente por um passo.

O significado dinâmico modificado da sexta efetuada pela mudança de 5 desde


a nota mais baixa para a mais alta tem uma conseqüência direta. As notas adjuntas
precedendo a nota 5 no começo do tema, as quais em outra parte precedem a nota
mais baixa da sexta e levam em direção ao salto, ___________ , agora vêm depois
dela, precedem da nota mais alta, ____________, e levam a nenhuma parte. O que
temos agora não é ________ mas ________ . O movimento torna-se uma parada; as
notas meramente marcam o tempo. Mas _________ não é outro que não o começo e
o fim do tema, sem o meio. O que foi omitido no conflito – o primeiro e o último
compassos do tema, de modo que somente seu cerne, o verdadeiro veículo do
movimento, foi deixado – está agora repentinamente presente outra vez, presente
sozinho; agora o cerne foi omitido, e não encontramo-lo novamente até o começo da
recapitulação, quando o tema será reafirmado em sua inteireza. E assim como a
primeira metade do desenvolvimento é dominada pelo elemento do movimento,
assim a segunda é dominada pelo elemento de imobilização __________ –
logicamente, alguém poderia dizer, pois como senão alguém preencheria a longa
extensão de tempo disponível aqui por somente um passo, se não com notas
marcando o tempo? Como Mozart tem êxito em arrebatar, destas notas, o movimento
interno que carrega a tensão do movimento exterior, precedente, para frente – na
verdade, ainda aumentando-o – não pode ser mostrado aqui, embora isto fosse
fascinante, pois a tarefa envolveria explanações técnicas detalhadas. O movimento
impetuoso na primeira metade do desenvolvimento poderia ser seguido na partitura,
mas, somente pela escuta, alguém pode compreender o movimento quase
imperceptível da segunda metade.

No exemplo discutido há pouco, a elaboração do tema certamente é um


trabalho intelectual, executado por uma faculdade racional com base em uma rica
experiência e na técnica mais refinada. A parte do intelecto é revelada no modo em
que o movimento aparentemente espontâneo é liderado em direção à sua meta pré-
determinada de acordo com um plano bem concebido. O fato do compositor nunca
fracassar em suprir os meios para realizar o plano, testemunha sobre sua habilidade
incomparável. E, contudo, sentimos que algo mais está envolvido aqui ao lado do
intelecto e da habilidade. Estes podem bastar para calcular os compassos de abertura
178

do desenvolvimento, mas o evento crucial que esclarece o padrão e provoca o que


vem diretamente após estes compassos, o “erro” aparentemente acidental não pode
ser atribuído ao intelecto e à habilidade. Se a nota “errada”, Si# ao invés de Si, fosse
planejada, isto é, introduzida para um propósito específico, este propósito poderia ter
sido somente levar o movimento longe de Fá# = 1. Mas esta é a coisa que não
acontece: o “erro” é imediatamente corrigido, e o movimento oscila de volta dentro
do padrão correto, imediatamente, após o desvio momentâneo. Somente agora um
intelecto (não o intelecto de todos!) poderia perceber que a repetição do “erro”
acidental e a sua correção dever conduzir a uma mudança total para o próximo grau
abaixo da escala – uma mudança que de fato acontece. Assim, o evento não foi
planejado; mais apropriadamente, foi o evento que sugeriu o elemento básico do
plano. Um acidente que, em retrospecto, passa a ser de conseqüências fecundas, e
serve a um plano que não poderia mesmo existir enquanto ele ocorria: este é
realmente como uma obra da Providência, o resultado da “mais alta” inspiração.
Aqui, como em toda arte, “inspiração” é a palavra correta, pois nesta instância a
inspiração não está confinada a si mesma, mas afeta tudo o que segue. Toda a vasta
construção, latente no “dado”, torna-se atualizada por este único lampejo de
inspiração. Mencionamos previamente que de acordo com Schenker o plano de uma
obra musical é um fator “ideal” operando desde o plano de fundo: aqui vemos que
este plano de fato opera no primeiro plano.

Nossa suposição tácita de que o caso discutido acima não é excepcional pode
ser plenamente justificada apenas por um estudo compreensivo das seções clássicas
de desenvolvimento. A análise seguinte da seção de desenvolvimento do último
movimento da mesma sinfonia pelo menos servirá como uma justificativa parcial.

Primeiro que tudo, o tema. Aqui está a partitura (melodia, baixo, com a
indicação de um acorde):

______________

O “evento” crucial aqui ocorre no segundo compasso, diretamente após o


começo, quando a tríade de Sol menor, a base harmônica da nota mais alta, Si b,
alcançada uma ascensão íngreme, é repentinamente removida e um som é inserido, o
qual transforma Sib de 3 (Sol sendo = 1) em 6 (Ré sendo = 1): _______ (a
fundamental deste som é um Lá, que a princípio não é de fato executado). As rajadas
de ventos que a seguem diretamente, ____________, com o passo da nota-guia
[leading tone] Dó# - Ré, contribuindo com sua quota para afirmar a reivindicação de
Ré. Tudo isto pode ser representado esquematicamente como

____________
179

Como um resultado da mudança violenta de centro, o movimento todo, na


medida em que é dominado pelo tema, empreende sobre seu caráter distinto de uma
pressão agitada para adiante. Na segunda metade do tema (a qual soa como uma
copia fiel do primeiro) Mozart alcança o resultado oposto, a saber, o retorno ao centro
Sol por meio de refinamentos quase imperceptíveis. Não há necessidade aqui de
entrar em detalhes; o seguinte esquema deve ser suficiente:

______________

(Desta vez as rajadas de ventos terminais servem para confirmar o verdadeiro


centro, como é aparente desde a diferença entre os baixos nos dois casos: no primeiro
_______________, no segundo __________.) De acordo com isto, as mudanças do
centro por todo o tema podem ser ilustradas pelo seguinte contorno:

_____________

Aqui vemos a mudança de Sol para Ré via o estágio intermediário Lá, desde
Ré de volta a Sol após tocar Dó. Em termos de graus harmônicos, temos: primeira
metade, IV’ – V – I, meta Ré; segunda metade, IV – V – I, meta Sol.

Agora, o desenvolvimento. A exposição foi concluída em Sib maior, de acordo


com as regras. O que vem a seguir? O tema principal! Mozart corre para ele, com
aparente negligência, e imediatamente atravanca, tropeça, gagueja:

_______________

O que aconteceu? É esta uma improvisação que foi abortada? Fragmentos


desconexos de música, escombros do tema: qual é o significado disto?

Após fechar a exposição em Sib maior, o desenvolvimento começou com o


tema na mesma tonalidade. Mas o evento crucial no segundo compasso exige a terça
menor, e então o movimento nascido no primeiro compasso por meio da terça maior,
Ré, termina na terça menor, Réb, no começo do segundo compasso: __________ .
Mas o que está acontecendo? O tema foi começado incorretamente, não como em
outra parte com a nota 5 e a quarta 5 – 8, Fá – Si#, mas com a nota 1 e o passo 1 – 3,
Sib – Ré. Como resultado o tempo forte cai sobre a nota Ré, e o abrupto Réb no
começo do próximo compasso soa ainda mais fora de lugar – e isto é plenamente
intencionado, pois todos os instrumentos tocam o tema em uníssono e nenhum
suporte de acordes está disponível. Isto é por que o Réb, como o Sib correspondente
no tema original, é ouvido como 6, não como 3. (O acorde a ser adicionado
mentalmente, correspondendo ao acorde no segundo compasso na primeira afirmação
do tema, é aqui o acorde de Dó, ____ , o acorde dominante de Fá = 1.)

O começo “incorreto” do tema teve ainda outra conseqüência muito diferente.


Porque o tema abre com Sib – Ré ao invés de Fá – Sib, isto é, desce uma nota, o
compasso é encurtado desta nota: sem ela, o ponto mais alto seria alcançado
prematuramente, ______ . Portanto, uma nota deve ser inserida em algum lugar. Aqui
180

está: ____________ . Um novo elemento, como se inócuo, aparentemente emergindo


por acidente, mas outra vez um acidente fértil de conseqüências: ele veio para ficar, e
muito cedo sua presença assinala seu próprio sentido. Porque a tríade arpejada
_______ é esperada, o ouvido não pode dar pela falta do semi-tom inserido Lá – Sib:
ele soa como uma preparação especial para a terça diretamente seguinte: Lá – Sib –
Réb. Combinada com o próximo passo em semi-tom para baixo, Réb – Dó, forma uma
nova pequena frase em separado, Lá – Sib – Réb – Dó, que imediatamente se
impressiona sobre o ouvido. O diagrama seguinte mostra o que acontece a seguir, e
como interpretar os enigmáticos compassos de abertura do desenvolvimento.

_________________

O padrão temático requer a continuação temática, que pode ser representada


esquematicamente como Réb – Dó – Mi – Fá: o passo de semi-tom ascendente
conclui a frase como fez antes: Sib – Lá – Dó# - Ré. Mas ouvimos exatamente o
mesmo passo na função oposta como começando uma nova frase. Porque o mesmo
passo agora executa duas funções, a formação em fila ou em cadeia mostra na
primeira linha do diagrama torna-se possível. Embora esta faça um certo sentido
musicalmente, abre um padrão conduzindo à música, a saber, via condensação. A
linha 2 do diagrama mostra como os dois passos de semi-tons são contraídos em um
passo que executa ambas as funções: fim e início de cada frase sobreposta. Isto é, no
entanto, metricamente impossível, pois o passo em semi-tom ao final de uma frase cai
sobre a batida “quatro – um”, enquanto que ele cai na batida “três – quatro” no
começo da frase. Mozart corta o nó com uma abreviação genial. Ele simplesmente
elimina as notas de resolução 5 e 8 da seqüência inteira dos passos 6 – 5 e 7 – 8 (de
qualquer modo, elas são consideradas admitidas após 6 e 7), retendo somente as notas
tensas. A linha 3 do diagrama mostra o que é deixado – as notas dos enigmáticos
compassos de abertura do desenvolvimento, as quais são assim “explicadas”. Desde
que a abreviação livra as notas do esquema métrico, qualquer arranjo rítmico torna-se
possível.

O significado mais profundo da operação é expresso na linha 4 do diagrama.


Os numerais romanos na primeira linha indicam a seqüência de acordes subjacente:
IV – V – I, a mesma como na primeira metade do tema. Nas linhas 2 e 3 vemos como
I é a cada vez reinterpretada retroativamente como IV:

_________________

e assim por diante.

Ao invés de uma sucessão de ligações separadas, temos uma cadeia firmemente


construída. Como esta afeta as mudanças do centro é mostrado na linha 4. Ao invés
das quintas ascendentes na primeira metade do tema, ______, equilibrado pelas
quintas descendentes na segunda metade, _________ , não há tal equilíbrio aqui: o
que temos é uma sucessão inteira de quintas ascendentes, como uma inalação repetida
sem nenhuma exalação. Além disso, desde que os sons do primeiro grau devem
181

permanecer em silêncio por causa da redução, somente as notas de tensão apontam


para elas, as dominantes (V), são audivelmente representadas nos sons.

Começo “incorreto” do tema, com 1 ao invés de 5, como se por acidente;


inserção casual de um passo de semi-tom como um preenchimento métrico o qual
imediatamente ocasiona uma nova figura, a última clareando o caminho da formação
de uma cadeia, a qual por sua vez ocasiona a longa e contínua sucessão de quintas; o
passo ascendente de uma quinta contido na primeira metade do tema afirmando a si
mesmo pela formação de elos das quintas ascendentes, eventualmente tornando-se a
lei que governa tudo o que ocorre subseqüentemente no desenvolvimento:
exatamente como no primeiro movimento da sinfonia, uma curva melódica
aparentemente acidental mostra-se prenhe de conseqüências e leva à realização de um
plano que não existia até o “acidente” ocorrer. Em ambos os casos, uma espécie de
predestinação, além de todo conhecimento ou habilidade, parece estar trabalhando.
Aqui, também, uma asneira aparentemente acidental, um passo de um semi-tom
inserido eruptivamente, pode ser atribuído a um lampejo de inspiração, se alguém
insiste em usar este termo.

A primeira metade do tema com suas quintas ascendentes está contido na


sucessão abrupta dos compassos de abertura; a idéia oposta das quintas descendentes
se afirma na segunda metade. A ligação entre as duas é suprida pela frase de transição
convencional que encontramos no começo do desenvolvimento no primeiro
movimento, Fá – Mi natural – Ré – Dó#, 6 – 5 – 4 – 3. Mas aqui – outra parte de “pré-
determinação” – a convenção é imediatamente colocada a serviço do plano global:
quando o tema começa novamente, desta vez em uma forma similar à sua segunda
metade, _________ , a frase de transição sugere a possibilidade de não concluir com
o áspero Sib – Lá – Dó# - Ré, 6 – 5 – 7 – 8, mas com o suave Sib – Lá – Sol – Fá, 6 –
5 – 4 – 3. Este último é praticamente obrigatório, pois sua “abertura” termina
desobstruindo o caminho para a formação de uma nova cadeia, de quintas
descendentes, mantida com a segunda metade do tema. Uma alternância curta e
hesitante de quintas descendentes e ascendentes é seguida por uma sucessão de
quintas somente descendentes. O diagrama a seguir mostra como isto é feito (uma
nova frase formadora de elo permanece, em cada caso, pois a frase temática inteira,
isto é, Sib – Lá – Sol – Fá permanece em ___________):

________________

Aqui as quintas ascendentes dos compassos de abertura são equilibradas por


quintas descendentes: o padrão simétrico do tema – quintas ascendentes na primeira
metade, descendentes na segunda – torna-se o princípio estrutural de uma sessão
inteira. Isto não foi feito deliberadamente, como se o compositor desejasse ajustar a
melodia a um plano preconcebido, mas nasceu de um próprio padrão temático único,
o processo todo tocado por uma única mudança aparentemente insignificante na
melodia, sugerida pela situação no momento em que foi feita.
182

Tudo isto, no entanto, é meramente o começo. Após um curto intermezzo em


estilo fugato, a tendência à formação de cadeias se reafirma com violência crescente,
e agora as coisas são realmente levadas ao extremo, como pode ser visto no próximo
diagrama:

______________

Não precisamos entrar muito em detalhe; somente o quadro geral é mostrado.


O tema é repetido em cada ligação da cadeia (no diagrama ele é indicado somente nas
duas primeiras ligações). Quinta segue sobre quinta até o Dó inicial ter sido
transformado em Dó# – como se fosse a sua própria negação. Mas pouco antes do
último passo, o movimento veemente é contido, represado acima com Sol# enquanto
V de Dó#: um estágio subordinado torna-se o estágio principal, e quando, após uma
flutuação um tanto longa entre Sol# e Dó#, alcançamos a cadência definitiva V – I,
ouvimos esta quinta descendente – mais apropriadamente do que aquela ascendente,
Fá# – Dó# – como o que realmente é pretendido aqui. Por meio disto, a inversão é
introduzida: as quintas descendentes assumem a posse de si mesmas; o equilíbrio
simétrico começa. O que temos é uma queda realmente precipitada:

______________

E agora, em contorno, o diagrama do todo, tema e desenvolvimento:

______________

O diagrama fala por si mesmo; nenhum comentário a mais é necessário.


Acrescentaremos somente uma observação e arriscaremos uma modesta especulação.
A observação concerne aos eventos do pico das três pirâmides. No próprio tema, as
duas metades – as quintas ascendentes e descendentes – são separadas agudamente
por uma pausa, um vazio. Nas duas pirâmides mais largas as lacunas são ligadas, e
em ambos os casos ligadas do mesmo modo, por dois acordes imóveis, para trás e
para frente à distância de uma quinta, uma espécie de flutuação irresoluta entre as
duas direções das quintas. Na primeira pirâmide ampla, o pico e a imobilidade são
alcançados com o som Lá, seguido diretamente por uma flutuação entre Lá e Ré; no
segundo, com o som Sol#, e a flutuação (aqui duas vezes mais longa) entre Sol# e
Dó#. Durante a imobilidade, a decisão é fazer mudar a direção, então o movimento
vai para baixo tão irresistivelmente quanto ele veio para cima antes. Nossa
especulação – ela se refere ao significado musical do desenvolvimento como um todo
– é melhor expressa em um esquema: _________: a primeira pirâmide começa com
Sib, a segunda com Dó e o final é Ré – Sol. O esquema total então seria, bastante
suficiente, Sib – Dó – Ré – Sol, _________ . O caminho de Sib para Dó envolve um
longo desvio, mas é ainda comparativamente normal, como é aparente no diagrama
precedente; mas entre Dó e a terminação Ré – Sol é muito mais complicado: Dó
torna-se, por assim dizer, alienado de si mesmo, é transformado em Dó#, e o caminho
que conduz para o Sol final começa com um Sol “alienado”, a saber, Sol#. Como
resultado, temos dois caminhos entrelaçados: um desde o Sib inicial através de Dó
183

(começando da segunda pirâmide) via o Dó# fortemente acentuado para Ré e Sol; o


outro desde o Sib via as notas mais altas de ambas as pirâmides, Lá e Sol#, para Sol –
como isto: ________ .

(Faltam, a partir daqui, 11 páginas no xerox,

inclusive o início do capítulo 16)


184

XVI. A Fonte Criativa Única

Agora, quais conclusões podem ser desenhadas a partir das considerações


precedentes?

A noção amplamente sustentada de duas distintas fontes criativas da música – a


inspiração responsável pelos temos, e o conhecimento técnico responsável por sua
elaboração – provou-se insustentável. Isto foi demonstrado mesmo no caso nos quais,
em uma primeira olhada, parecia justificar a noção. Não pode haver dúvida que é nas
seções de desenvolvimento, onde um dado tema é elaborado de acordo com regras,
que o compositor deve contar primeiramente com seu conhecimento e experiência
técnica. A amplitude e a audácia dos planos subjacentes dos desenvolvimentos nos
dois movimentos da Sinfonia em Sol menor de Mozart que analisamos, a clara
maestria com a qual o material é usado para a posterior realização do plano, são
evidências do incomparável conhecimento composicional de Mozart. Mas temos
visto também que algo mais está envolvido. Os “eventos” cruciais que colocam as
coisas em movimento e levam a tudo o que segue não é uma questão de
conhecimento ou técnica, não são ditadas por um plano pré-concebido. Na medida
em que alguém pode falar de um plano, estes “eventos” são acidentais; eles
determinam o plano mais propriamente do que são determinados por ele. Eles se
originam nos temas – e isto é o que torna tais desenvolvimentos tão fascinantes, tão
excitantes; este é a razão deles serem encantadores, como se ouvíssemos um grande
contador de histórias. Elas soam como as ações e as paixões de uma coisa viva, como
episódios da história viva de um tema. Assim, não é naquelas características do
desenvolvimento que são compartilhadas com outros desenvolvimentos, mas
naquelas que as distinguem de outros e as torna tão únicas quanto um ser vivo, que
compreendemos seu cerne mais interno. Conseqüentemente, não pode ser o produto
do conhecimento ou da perícia. Conhecimento e habilidade vêm com a experiência:
graças a eles, velhas realizações podem servir como a base para novas, permitem que
185

o antigo e o novo sejam comparáveis, isto é, tenham algumas características em


comum. A habilidade é obtida e ampliada através da aplicação a tarefas
essencialmente similares. E porque nenhuma situação é inteiramente nova em algum
respeito – mesmo as respirações únicas individuais respiram o mesmo ar como todas
mais – nenhum compositor pode passar sem conhecimento e habilidade técnica.
Contudo, eles são insuficientes para responder pelo único, o sui generis, o
incomparável – por algo que nunca havia sido feito antes. Ele não tem mais do que
isto com o que contar, um compositor não seria melhor do que outro sem isto. Para
criar algo novo, mais é requerido.

Uma fonte diferente? O _________ ao começo do desenvolvimento em nosso


segundo exemplo deriva da mesma fonte que ______ ao começo do movimento? E se
o faz, é a fonte corretamente designada pelo termo “inspiração”? Estamos usando este
termo para denotar algo criado do nada, algo que preenche um vazio até então não
reconhecido. E nada poderia estar mais distante de um vazio a ser preenchido do que
o começo deste desenvolvimento: ele está repleto com padrões temáticos. Mozart não
colocou estes padrões à parte para acomodar alguma súbita inspiração – bastante ao
contrário. ____________ não é imaginado a partir do nada: a passagem se desenvolve
da riqueza e densidade dos materiais musicais sobre os quais a mente do compositor
está concentrada exclusivamente. Não é uma idéia ocorrida ao compositor a propósito
de nada ou motivada por algo mais, como no caso da linha do baixo de Bach; é uma
idéia emergindo de algo. O termo correto quando lidamos com uma idéia que cresce
de algo é “descoberta”, não “inspiração” – descoberta no sentido de um “achado”
feito no curso do exame dos materiais dados. É claro, achados e descobertas pode ser
chamados “inspiração”: eles não são somente imprevisíveis; eles também produzem
conseqüências imprevisíveis. Mas neste uso “inspirado” significa algo mais.
Nenhuma força “mais elevada” está envolvida, nem mesmo o gênio de Mozart, mas
mais propriamente o próprio tema. O compositor foi meramente ajudar ao tema
adiante, suprindo um campo dinâmico dentro do qual o evento musical pode
acontecer. Em tais casos, o compositor pode se assemelhar a um arquiteto o qual, ao
invés de arranjar os blocos dos prédios de acordo com seu próprio projeto, obriga-os
a agir e interagir entre eles próprios – arranjando-os de acordo com seus próprios
melhores interesses – e que, observando suas ações e interações, faz do plano deles o
seu próprio. Isto soa como mágica, e o centro da questão é que é maior milagre do
que a criação do próprio tema, porque é a criação não no vazio mas em meio à
fartura, e não na liberdade mas em confinamento. O ato espiritual envolvido aqui não
pode ser chamado de “racional” no sentido usual, contudo ele certamente não pode
ser relegado ao domínio da irracionalidade. A única justificativa para evocar fontes
irracionais, obviamente, é com referência aos eventos tão imprevisíveis e tão
completamente sem precedentes que qualquer tentativa de interpretá-los em termos
de causa e efeito pareceria absurda. Aqui, estamos lidando com eventos cuja
característica distinta é precisamente esta, que eles seguem, de modo simultâneo,
lógica e imprevisivelmente a partir o que veio antes; junto com o que precedeu e
seguindo-o eles formam um todo firmemente tecido. Que existe um alto grau de
“racionalidade”, ou até mesmo de “lógica”, nesta espécie de desenvolvimento
186

musical não pode ser negado. Além disso, como temos visto, a tentativa de
compreensão é de modo algum sem esperança.

Vista sob esta luz, a distinção entre racional e irracional – em todo caso, a
maneira como esta distinção é usada – mal parece ser aplicável. Se eventos
específicos, corretamente observados, não podem ser classificados em uma ou outra
destes dois conceitos mutuamente exclusivos, então algo deve ser estar errado com
nossa definição deles. Pode ser que encontremos dificuldade para compreender o que
acontece em uma obra musical porque nosso conceito de racional é muito estreito? E
que somos obrigados por esta razão a chamar de “irracional” todas as coisas que não
se ajustam a este conceito estreito? Contudo que possa ser, quando estamos lidando
com um desenvolvimento mozartiano, não pode nos ajudar a sensação de que nosso
conceito de racional é inadequado para responder pelos fatos do caso – não porque os
próprios fatos esquivam-se à explicação racional, mas porque nossa definição de
racional não é suficientemente inclusiva. O que acontece neste desenvolvimento é
racional mesmo no sentido mais costumeiro, mas não é completamente respondido
por meio disto. Como entre os próprios “eventos” e nosso conceito de racional, quem
é que decide onde desenhar a linha? Considere ___________ . Quem pode dividir
isto na ilustração da noção de duas fontes criativas, especialmente duas fontes
opostas? Esta frase é inteira e indivisível, pode somente ser criada em um ato
espiritual único. Reconhecer que sua fonte criativa é racional acima de um ponto – e
sem dúvida alguma – é reconhecer que tudo nela deve ser racional. Somente nosso
estreito conceito de racionalidade demanda a dicotomia de duas fontes criativas, uma
agudamente distinta da outra. Deveríamos deter forçar os fatos para se ajustarem ao
conceito, de maneira que as características essenciais da música são relegadas ao
domínio do irracional: isto é, dizê-la ininteligível por definição. Mais propriamente,
deveríamos deixar os fatos nos guiarem em direção a um conceito mais amplo de
racional – um conceito que reflita mais verdadeiramente a força real do pensamento,
o verdadeiro alcance do inteligível. Neste ponto, no entanto, uma questão ainda mais
ampla se revela. Sobre quais bases estamos justificados em atribuir irracionalidade à
música em primeiro lugar? Não pode o apelo a forças “mais altas”, à “inspiração”,
simplesmente refletir a estreiteza de nosso conceito de racional? Por enquanto
devemos deixar esta questão sem resposta e lidar com outra questão fundamental: se
o ato espiritual que produz os eventos musicais da espécie referida acima pode ser
chamado de um ato do pensamento. O que tem sido dito até aqui é na verdade
insuficiente para mostrar que esta designação e todas as suas implicações são
somente a própria uma.

A Mão do Musicista
187

Como qualquer outro artista, o compositor manuseia uma dada matéria prima,
confere a ela uma forma específica, produzindo assim algo que nunca existiu antes,
um novo pedaço de realidade: a obra. Neste sentido, o escultor, o ceramista, e o
tecedor de tapetes pode ser chamados de artistas arquetípicos: isto não somente
porque todos os estágios da atividade artística estão marcantemente ilustrados na
maneira como eles transformam suas matérias primas em obras acabadas, mas
também porque suas atividades envolvem primariamente a mão, o órgão no qual a
característica especificamente humana de sua atividade é expressa mais claramente
do que em qualquer outro lugar.

Visto sob esta luz, o ato que produz uma obra de arte parece ser o oposto direto
de um ato do pensamento. O pensamento opera com conceitos; ele desenha linhas
fronteiriças, faz distinções, e cria relacionamentos: ele não cria uma nova realidade.
Ele muda o mundo, é claro, mas nunca diretamente, sempre através da intermediação
de uma atividade que envolve o corpo humano ou uma ferramenta que melhora sua
eficiência. Também a linguagem, esta mais direta criação do pensamento, não seria
uma realidade sem a contribuição do corpo, o qual a transforma em palavras faladas e
signos. A mão do artista, contudo, não é guiada pelo pensamento como definido
acima. É claro, sua mão não é cega, não procura apalpando no escuro, mas o que a
guia são representações e imagens, não conceitos ou julgamentos. Isto é o que a
princípio nos sentimos compelidos a acreditar. A atividade da mão pode depender do
pensamento na forma do aprendizado e da experiência: seus impulsos decisivos não
se originam no pensamento.

Sendo este o caso, pode qualquer coisa ser obtida por comparar o pintor ou o
escultor com o compositor? Afinal de contas, a matéria prima do compositor não
pode ser moldada pela mão. Ou pode? Pode alguém falar de uma “mão do
musicista”?

A fim de preparar o solo para a discussão seguinte, citaremos umas poucas


sentenças da obra de Heidegger mencionada previamente, Was heiss Denhen?
“Existe algo bastante especial a respeito da mão”, ele escreve, “Acredita-se
geralmente que a mão é parte do corpo humano. Contudo a mão humana não pode
nunca ser adequadamente definida como um órgão corporalmente preênsil . . . Existe
um abismo intransponível entre a mão e outros órgãos preênseis. Somente uma fala,
isto é, um pensamento, pode ter mãos e produzir trabalhos manuais. . . . O trabalho
manual é mais rico do que usualmente acreditamos. Todo movimento da mão em
todos os seus trabalhos é executado como um meio do pensamento; cada um de seus
gestos pressupõe o pensamento. Todo trabalho manual é baseado no pensamento. Por
esta razão, pensar é o mais simples e em virtude disso o mais difícil trabalho
manual.”

Para começar, a função da mão do artista plástico deve ser examinada mais de
perto. É realmente verdade que a atividade de sua mão é guiada pela imaginação, que
ela torna visível para o olho físico o que foi visto primeiro pelo olho da mente? A
mão do ceramista pode ser guiada pela sua idéia da forma do vaso quando ele o está
188

fazendo, embora isto pareça menos certo quando recordamos que um vaso pode ser
segurando nas mãos a fim de alguém compreender sua forma. É concebível que o
desenho complicado de um grande tapete está completamente presente na mente do
tapeceiro antes do desenho ter se tornado realmente visível através da atividade de
suas mãos? Teria Altdorfer uma imagem mental das lanças em A Batalha de
Alexandre antes de ele de fato colocá-la na tela? (Ver imagem na página ao lado.)

______________

Até onde esta última questão é concernida, ela pode ser respondida somente
pela negativa. Altdorfer pode ter concebido o plano para sua enorme pintura –
enorme em conteúdo, não em dimensões – antes de ele a ter pintado: no topo do
drama celestial, sol contra lua, e as batalhas entre as massas de nuvens em
tempestades de vento; na área intermediária, a terra, montanhas, mares, as habitações
humanas; em baixo, o choque de exércitos hostis. E aqui estão as lanças, milhares
delas, em todas as posições concebíveis – horizontal, vertical, diagonal, paralelo,
cruzadas, eriçadas como espinhos de porco-espinhos – uma confusão ordenada
indescritível de linhas e redes, nas quais as figuras na pintura são colhidas somente
como espectadores. De nenhum olho escapará sua força realmente mágica. Supomos
que o olho interior do pintor viu esta rede com seus milhares de detalhes antes de
colocá-la na tela? Ninguém diria que os detalhes não são a questão. São precisamente
aqueles detalhes que se somam para criar o todo, a totalidade do desenho, a ordem – e
sem ordem não há mágica. Que uma imagem mental guie a mão aqui é somente tão
impensável quanto que a mão trabalhe cegamente.

A questão que diz respeito à prioridade da imagem interior sobre a imagem


exterior e a parte jogada pelo trabalho manual nas artes visuais foi lidada em grande
medida por Etienne Gilson em seu grande livro Painting and Reality. Após observar
que pinturas são objetos materiais feitos pelo homem e que “é da natureza das coisas
que o fabricante de um corpo físico sólido tenha que usar suas mãos para fazê-lo”,
Gilson diz que a mão do pintor (ele se refere mais freqüentemente à pintura mas o
que ele diz é verdade para todas as artes visuais) é certamente não uma mera
ferramenta subserviente a uma faculdade superior, tal como a mente ou a imaginação,
não é meramente um órgão de execução, mas mais propriamente um órgão educado
para cooperar intimamente com o intelecto. Uma pintura não é concebida dentro da
mente e então transferidas para a tela pela mão do artista: sua mão está envolvida na
concepção da obra. Na verdade, o pintor pode muitas vezes confiar em sua mão para
fazer todo o trabalho, deixando-se guiar pela mão. O pintor não pensa com suas
mãos, mas ele pensa dentro de suas mãos; sua própria mão é para ele cheia de
surpresas: ela resolve seus problemas. “uma das razões principais dos pintores
acharem tão árduo fazerem-se entender quando eles falam de sua arte é que eles
falam aos ouvintes com suas mentes apenas, não com suas mãos”. Quando Matisse
foi perguntado como ele poderia distinguir entre os bons e os não tão bons dentre
suas muitas obras, ele respondeu, “Alguém as sinta em suas mãos”. Um filósofo teria
189

respondido com considerações a respeito da beleza, ordem e outras categorias


estéticas.

Neste ponto alguém poderia perguntar, onde está o olho em tudo isto? Gilson
não se esquece ou nega que o olho está envolvido no ato de pintar. Ele se refere ao
câmbio contínuo entre a mão e o olho do pintor. Contudo, o olho funciona
predominantemente enquanto um órgão receptivo. Ainda quando o olho é a fonte de
todo prazer obtido dentro do visível, especialmente na obra de arte visual, o órgão
ativo e criativo é a mão. No câmbio contínuo entre os dois, a mão cumpre a parte do
doador tanto freqüentemente quanto o olho; é a mão que, de acordo com Gilson, dá a
forma definida às pinturas incompletas e indistintas da imaginação e torna-as visíveis
para o olho. O primeiro impulso criativo, ele diz, não se origina no olho, em algo que
parece poder ser reproduzido na tela: “A menos que ele sinta em seus dedos a coceira
estranha que deve ter colocado um pedaço de carvão nas mãos dos homens que
pintaram o bisão na caverna de Altamira, ninguém adquirirá alguma vez esta arte, e
muito menos a usará. . . . Um homem não terá percepções criativas . . . a não ser no
momento em que ele percebe certos espetáculos externos e sente em sua mão uma
obscura urgência para traduzi-la em cores e formas.” Não é o olho, é a mão que
descobre a pintura, aquilo a ser realizado. O termo “motivo” expressa este fato: o que
o pintor vê torna-se uma pintura potencial por colocar suas mãos em movimento.

Gilson é especialmente esclarecedor a respeito da função criativa da mão onde


ele assinala que pinturas são criações ex nihilo, que o artista sempre começa de um
vazio. “Quando o pintor nato encontra-se confrontado por uma superfície vazia, ele
experimenta um obscuro desejo para cobri-la com formas.” É um nada, um vazio
visível, não um espetáculo ricamente variado, o que engatilha a primeira ação da
mão, a primeira linha desenhada pelo artista: a mão responde ao chamado do vazio,
enquanto o olho meramente assiste. É claro, se o artista não preservou em sua
memória todas as coisas que ele viu, a mão não saberá o que fazer. O que ele viu está,
por assim dizer, atrás de sua mente, mas ele não tem um espetáculo específico diante
dele, que ele queira reproduzir. O que ele tem diante dele é um vazio que demanda
ser preenchido, coberto com formas.

É possível ir além das reflexões de Gilson, as quais se referem somente à arte


ocidental. Certos desenhos do Extremo Oriente sugerem que a mão responsável por
eles fez muito mais do que juntar a demanda do vazio para ser coberto com formas.
Aqui a mão parece de fato ter criado o vazio em primeiro lugar, e se alguém pode
dizer de qualquer demanda feita pelo vazio, esta demanda foi certamente não coberta
mas foi tornada visível como um vazio. Onde nada existia para ser visto antes, agora
alguém vê o nada, o vazio envolve as coisas delimitadas pelas linhas, o vazio
enquanto sua base de apoio, as coisas como criaturas do vazio. A qualquer um que
tenha visto como uma mão treinada na tradição do Extremo Oriente desenha a
primeira linha sobre um papel em branco, como o gesto expressivo da mão,
começando de qualquer lugar, continua desenhando, produzindo uma rede de linhas
fora das quais emerge, como se acidentalmente, formas de objetos – montanhas,
árvores, figuras humanas – não pode escapar a impressão de um diálogo entre mão e
190

vazio. O trabalho se origina neste diálogo, neste encontro, nesta interação, não na
intenção de colocar no papel uma figura vista pelo olho da mente. Caso contrário, a
figura teria pré-existido na imaginação, o tempo necessário pela mão para transferi-lo
para sobre o papel não entraria no fazer a obra, permaneceria externo a ele. Aqui, no
entanto, podemos ver uma obra vindo a ser, e neste processo de vir a ser, o tempo é
tomado pelo movimento da mão, é incorporado na própria obra, tornou-se um
elemento essencial do todo.

Aqui a centelha da analogia nos leva até a arte do compositor. Vamos de volta
ao primeiro exemplo, onde visualizamos Bach ao teclado. Sua mão esquerda toca a
nota mais grave ________; sua mão direita assume o comando, replica com
_________ – ou _______ . uma linha de sons, traçada por uma mão em silêncio,
forma o começo a ser delineado . . . Gilson, também, compara o processo de criar
uma pintura com aquele de criar uma peça musical: exatamente como a forma visível
pressupõe um vazio, diz ele, também a forma audível pressupõe silêncio. Gilson se
refere primeiramente ao silêncio que é imposto antes do começo de uma execução
musical, do qual a primeira nota emerge e no qual a última nota desaparece
gradualmente. Mas há muito mais do que isso. O compositor, também, pode criar um
silêncio ao redor de si mesmo antes de começar sua primeira linha de som. Este
silêncio não é necessariamente externo; Mozart podia compor no meio de barulho
porque ele construía ao redor de si mesmo uma parede de quietude interior. Além
disso, é certamente verdadeiro para a música, como o é para a pintura, que sua tarefa
não é cobrir o vazio ou acabar com ele. Pode-se dizer que uma das funções da música
é revelar o significado positivo do silêncio, transformar um silêncio quando ouvimos
nada em um nada audível. Diferentemente da pintura, a música não pode tornar
tangível o vazio ao redor das formas; no espaço musical não há “ao redor” neste
sentido: cada nota quando soa ocupa todo o espaço disponível. Mas experimentamos
o vazio no entre, na pausa que, afinal de contas, é algo muito diferente da mera
ausência de notas e é um elemento da música tão real quanto as próprias notas. “As
notas param, mas a música continua”, como uma criança inteligente disse uma vez. E
quando o poder do silencio pode ser sentido mais compelidamente do que quando a
última nota de uma melodia desaparece gradualmente? (Pode-se mencionar aqui que
muitas pessoas usam a música para mascarar o silêncio que elas não podem suportar
porque elas sentem somente seu aspecto negativo, o vazio. Elas poderiam ser curadas
deste erro, desta doença, precisamente por ouvir música.)

Pode a linha audível ser uma obra da mão, tal como aquela visível? Afinal de
contas, as mãos de Bach ao teclado meramente golpearam as teclas, não produziram
sons. A mão do pintor produz a linha visível diretamente – o traço do movimento de
sua mão é gravado na linha – mas a mão do musicista meramente opera um
instrumento, o qual produz os sons. Enquanto o pincel do pintor incorpora
diretamente o movimento da mão na linha, a nota e a mão do musicista são mantidas
apartadas por um aparato mecânico rebuscado. E não afirmamos explicitamente que
não é de todo necessário supor que Bach concebeu esta melodia enquanto realmente
sentado ao teclado, que ele poderia de fato tê-la concebido tão bem longe de qualquer
191

teclado? Onde poderia a mão entrar, então? Mas deveriam as mãos de Bach de fato
repousar sobre um teclado para criar uma melodia como esta? Quando a melodia é
criada na mente do compositor, isso faz as mãos terem menos a ver com ela?

A partitura

____________

mostra claramente onde os dedos repousam sobre o teclado, onde o movimento


passa de uma mão à outra. Algo como isto teria sido criado somente por mãos se
movendo em um teclado – se na realidade ou mentalmente é fora de propósito. O que
Gilson diz do pintor é também verdade para o músico: suas mãos resolvem seus
problemas; repetidamente, as mãos têm surpresas em estoque para ele. É por isto que
Novalis disse, “na pintura, a mão se torna o lugar de um instinto, e o mesmo é
verdadeiro para o músico”. E é por isto que é enganoso louvar um compositor que
sabia como escrever “para o seu instrumento”, como se o instrumento o confrontasse
e suas mãos fossem meramente uma coisa a efetivamente dominá-lo ou operá-lo,
quando na verdade o instrumento é uma extensão de suas mãos. Seria mais exato
dizer o oposto, que seu instrumento escreve para ele; realmente, mais freqüentemente
alguém se maravilha se sua mão descobrisse uma linha melódica em seu instrumento
ou se seu instrumento tivesse tocado em sua mão. Em um Chopin, um Domenico
Scarlatti – mestres do mais alto grau que compuseram quase exclusivamente para o
teclado – mão e instrumento são inseparáveis, como mão e pincel para um pintor.
Uma melodia de Chopin parece ser traçada pela mão tocando, como uma linha visível
é traçada pela mão do pintor. Um compositor não precisa sentar-se ao teclado para
fazer isto: ele tem sempre o teclado no espírito de suas mãos.

O que dizer a respeito de instrumentos tais como a flauta que requerem menos
trabalho manual do que o teclado? Uma linha melódica desenhada no silêncio por
meio de um teclado perde sua característica quando tocada em uma flauta? As mãos
que seguram a flauta, abrindo e fechando as chaves e buracos, não são da espécie que
pode ser descrita como sendo “o local de um instinto”. Se, neste caso, qualquer
atividade mental ou real produz a melodia, esta seria a respiração. E o que dizer a
respeito da canção, a mãe de toda melodia, de toda música? O que têm as mãos a ver
com isto? Em lugar algum elas são menos necessárias do que para o cantor.
Finalmente, a idéia de que a música orquestral é em algum sentido o trabalho das
mãos parece completamente absurda: aqui a mão deveria tocar todos os instrumentos
da orquestra simultaneamente.

Em um respeito, contudo, toda a música, seja feita para ser cantada ou tocada
ao teclado, flauta ou qualquer outro instrumento que for, é trabalho manual: é preciso
ser gravada em escrita se é para existir objetivamente como uma obra. Tal como a
mão do pintor grava a obra pictórica na tela, assim a mão do musicista – a mão que
escreve, não a que toca – grava a obra musical no papel. Agora se torna claro como a
pintura difere da composição. O que quer que alguém possa pensar sobre como a mão
está relacionada à mento ou imaginação do artista, não será contestado que a mão é
192

de fato responsável pelo último estágio da obra; se o passo da imagem mental à


pintura na tela é grande ou pequeno, ele é um passo: a imagem mental e pintura
acabada não são a mesma coisa. É mesmo possível perguntar se o passo envolve um
ganho ou uma perda. Nada disto é verdade para o musicista. Sua mão que escreve
registra somente o que é padrão musical acabado em sua mente; sua mão faz a coisa
verdadeira que a mão do pintor nunca pode fazer: ela meramente copia. A música na
mente é a música toda e a mão em nada contribui: não há diferença entre o padrão
musical imaginado e o realizado. Em uma carta bem conhecida, à sua irmã, Mozart
escreve: “Estou mandando a você uma nova peça, um prelúdio e fuga para cravo.
Não se surpreenda que a fuga começa primeiro. Eu a tinha em minha cabeça e
enquanto a colocava no papel, compus o prelúdio” 14. Vemos claramente aqui que a
mão que escreve não tem nada a ver com a tarefa de compor. Você pode imaginar um
pintor que, enquanto pinta sobre a tela, está pintando outra em sua mente?

Para a afirmação de que a mão que escreve não tem nada a fazer na tarefa de
compor, um caso pareceria oferecer uma exceção espetacular e, à primeira vista,
conclusiva: Beethoven. Ele compõe enquanto escreve, escreve enquanto compõe.
Neste caso, as duas atividades – seus cadernos de esboços dão testemunho disto –
estão mais intimamente intertecidos do que no caso de qualquer outro compositor.
Logo mais discutiremos seu modo de compor em grande detalhe; aqui estamos
interessados somente na “mão que escreve”. Quando Beethoven perde seu caminho
após escrever o começo feliz de uma melodia, no sentido de procurar a continuação
apropriada, ele invariavelmente começa de novo da risca, e escreve – escreve – a
melodia, muitas vezes com muita pressa mesmo que nunca omitindo uma única nota,
obviamente na esperança (não há outra explicação) de que o momento de sua mão o
carregará além do ponto crítico e o colocará novamente na pista certa. Este momento
é realmente aquele de sua mão escrevendo? Sim e não. Sim, pois se sua mão que
escreve nada tivesse a ver com isto, ele não precisaria escrever tudo de novo; não,
porque o movimento das notas certamente não é – e não pode ser – aquele da mão
que escreve, se não por outro motivo, somente porque cada uma acontece a um passo
diferente; onde o movimento da música é rápido, a mão fica consideravelmente para
trás; onde ele é lento, a mão corre consideravelmente junto. Conseqüentemente, se a
mão está envolvida, não é a física mas a mão do pensamento, a qual, é claro, não é de
todo a mesma coisa que a imagem mental da mão física.

Que a idéia da “mão pensante” do musicista não é uma ficção, tornar-se-á claro
quando compararmos sua atividade com a do pintor.

O artista visual trabalha em um meio visível. Porque todo o visível, tudo o que
é percebido pelo olho, é um objeto ou a propriedade de um objeto no mundo exterior,
a produção da obra visível requer, um exterior, um órgão “exteriorizado”: a mão. No
mundo audível, também há coisas que o ouvido percebe enquanto vindas do lado de
fora, isto é, todos os ruídos e sons naturais. Os sons musicais, entretanto, o audível
em sua forma mais refinada, não são objetos ou propriedades de objetos no mundo

14
Datada de 20 de abril de 1782, esta carta se refere ao K. 383a [394].
193

exterior. Quando eu ouço __________, ouço “Bach”, não “cravo”. Embora o som
venha a mim desde o lado de fora, ele esteve do lado de dentro antes de estar fora: a
coisa – o instrumento ou corpo humano – é meramente uma instância através da qual
ela passa em seu caminho desde o lado de dentro para fora e de volta para dentro. A
nota que envio para fora quando canto é a mesma que alguém aceita em devolução
quando a ouve. O ouvido que se abre a ouvir não reage a ela do mesmo modo como o
olho reage à cor, pois o ouvido deixa a nota voltar, retornar à casa para junto de
outras notas. Quem quer que trabalhe com as notas não precisa sair fora delas; ele
sempre as tem dentro de si mesmo (este é o por que do homem poder emitir sons mas
não poder emitir luz, ao contrário de alguns animais). Isto é também por que nenhum
órgão exterior, exteriorizado, nenhuma mão corpórea, é necessário para formar as
notas; nenhum órgão corporal compreende a substância incorpórea da música. O
órgão aqui pode ser tão incorpóreo quanto a substância para a qual ele dá forma; se é
para compreender as notas, deve ser indo para o interior, não para o exterior.

O pintor ou escultor precisa de dois órgãos, um que percebe e um que trabalha,


o olho e a mão: o olho vê o que a mão faz. O musicista pode, como se fosse,
dispensar o olho. Sua obra é feita interior, não exterior a ele mesmo. Neste caso, a
percepção externa, a verdadeira audição, em seu melhor serve para confirmar a
correção do que ele fez interiormente ou verificar quanto à proposta de ajustamentos
subseqüentes. Compor ao piano, deixando-se ser guiado pelo som exterior, será
sempre considerado como um sinal de amadorismo. O ouvido do compositor criativo
é um órgão da interioridade mais propriamente do que da percepção exterior, mas não
no sentido de que ele percebe o que está dentro do corpo de alguém. O ouvido do
compositor criativo é um órgão da interioridade mais propriamente do que da
percepção exterior, mas não no sentido de que ele percebe o que acontecer no interior
do corpo da pessoa. Mais geralmente, ele não seve para apreender algo já presente. O
ouvido não percebe do mesmo modo como o olho interior percebe uma imagem
sonhada. O ouvido do compositor é diretamente em um vazio: o que ele percebe ele
cria, chamando à existência desde o vazio. É olho e mão juntos, mas mais mão do que
olho que não encontra o material para ser formado fora dele mesmo. O material
formado aqui mais apropriadamente parece vir diretamente da própria mão que lhe dá
forma; a fronteira entre mão que dá forma e material formado se torna fluída. Antes
da música se tornar som exterior ou partitura escrita, uma audição interior
apreendeu-o, uma mão interior formou-o – e isto é verdade para a música para
qualquer instrumento ou voz, seja um ou muito. É especialmente verdade onde o
compositor está completamente desinteressado com o som exterior, com a realização
por meio de instrumentos, e pensamentos em termos de sons puros. A Arte da Fuga
de Bach é um exemplo citado freqüentemente, e certamente não é o único. E o
mesmo é verdade não somente para obras acabadas inteira ou parcialmente na mente
do compositor antes delas serem escritas mas também em obras improvisadas, onde o
compositor não pensou adiante, onde ele se abandona ao momento. Aqui, também, o
ouvido interior e a mão interior podem ser uma respiração na dianteira do ouvido
exterior e da mão exterior. Temos mencionado obras que parecem ser produzidas por
uma mão física em contato direto com o instrumento. Quando Bach ao teclado
194

começa __________, ele pode fazer isto por seus dedos unicamente, os quais sabem
como encontrar seu caminho; logo depois eles olham para _______, mas _______
não mais envolve unicamente a mão física. É claro, as notas parecem unir a mão a
meio caminho, como se de sua própria volição, sentimos mesmo a presença de algo
mais que guia a mão de dentro dela. Os sons tornaram-se um gesto expressivo. Este
gesto não pode ser atribuído à mão física; ele seria atribuído ao compositor ou às
notas? Aqui tais distinções são sem sentido: as próprias notas tornam-se mão, pois
que elas falam por meio de gestos.

Alguns escritores têm brincado com a idéia de um Rafael maneta. Tais


especulações não são tão absurdas quanto pareceriam à primeira vista. Tirar a mão do
pintor: certamente, o que é deixado não é nada. A vontade de dar forma, de produzir a
obra, está ainda presente, embora não possa ser materializada, desde que está faltando
o órgão que dá forma ao material. Mas quando o material é incorpóreo, quando o
artista encontra-o dentro de si mesmo, a vontade de dar forma pode ser realizada. O
pintor sem mãos é um musicista.

Começamos por inquirir a respeito da porção intelectual na criação das obras


musicais; então começamos uma nova tarefa, olhando a obra de arte como um objeto
material formado pela mão do artista; agora, chegamos a reconhecer a mão do
musicista como um órgão puramente intelectual, e sua atividade formativa como
sendo caracterizada como puramente intelectual. Então, afinal de contas, sua obra é
um produto do ato do pensamento? Nossa questão a respeito da porção do
pensamento na atividade dos musicistas nos levou gradualmente à conclusão de que o
que ele faz é indistinguível do que ele pensa. Isto, é claro, aplica-se somente à sua
atividade musical propriamente: um musicista pode maravilhar quer ele componha
uma cantata ou um quarteto de cordas, quer uma melodia seja dada às cordas ou aos
sopros, ou – para citar o mais famoso exemplo de um processo de pensamento deste
tipo – quer haja lugar para vozes humanas em uma sinfonia. Em todos estes casos,
seu pensamento trata somente com as preliminares, não com a obra em si mesma.
Beethoven pode ponderar se e como a canção é para ser introduzida no último
movimento de sua Nona Sinfonia, mas ele não pode realmente pensar a respeito de
qual melodia é para ser cantada: no verdadeiro ato de conceber a melodia, ele a cria.
Aqui o órgão de percepção é indistinguível do órgão do pensamento: pensar e criar se
tornam uma e mesma coisa.
195

Música e Matemática

As reflexões precedentes lançaram uma nova luz sobre a relação entre música e
matemática.

Temos por garantido que as notas estão correlacionadas com os números, e que
as relações entre as notas correspondem a proporções numéricas. Aprendemos na
escola que toda altura corresponde a uma certa freqüência de vibrações, e que os
intervalos do sistema diatônico, que é a base de nossa música, são expressos em
termos das proporções mais simples. O intervalo da oitava corresponde à proporção 1
: 2, o da quinta a 2 : 3, o da quarta a 3 : 4 (em virtude disto a diferença entre quarta e
quinta, um tom inteiro, é 8 : 9, isto é, a diferença entre 2 : 3 ou 8 : 12 e 3 : 4 ou 9 :
12), o intervalo da terça maior a 4 : 5 (em virtude da diferença entre a quarta e a terça
maior, um semi-tom, corresponde a 15 : 16), e que a terça menor a 5 : 6. A série 1 : 2
: 3 : 4 : 5 : 6 é suficiente para suprir a base para o sistema inteiro. Por este fato se
ajustar facilmente em nossa visão de mundo e em nossa crença, inspirados pela
ciência natural matemática, de que todo fenômeno pode ser correlacionado a
números, tomamos isto meramente como uma confirmação desta crença e não vemos
aí nada de notável.

Se, no entanto, olhamos para esta questão com olhos sem preconceitos, um
quadro diferente é revelado. O sistema diatônico não é um produto natural. Apolo não
o concedeu aos gregos, o Deus da Bíblia não o revelou aos hebreus, nem qualquer
sábio da Antigüidade construiu-o de acordo com uma ordem matemática rigorosa e
decretou que o povo seria por ele guiado em seu cantar e tocar música. O sistema foi
desenvolvido gradualmente. A princípio as pessoas realmente cantaram e construíram
instrumentos sobre os quais eles poderiam tocar suas notas. Eventualmente
começaram a refletir sobre sua atividade peculiar, e perceberam que os mesmos
intervalos pareciam recorrentes em suas melodias. Somente então eles descobriram a
ordem que os governava. “Primeiro vieram as melodias, então vieram as escalas”. Foi
descoberto (talvez por um construtor de instrumentos) que a fim de produzir as notas
que ocorrem nas melodias uma corda vibrando ou coluna de ar precisariam ser
divididas em metades, terças, quartas partes e assim por diante. Tudo isto sugere que
a correlação entre música e matemática é tudo menos natural ou auto-evidente. Afinal
de contas, inventores de melodias não escolheram deliberadamente notas de modo
que seus intervalos pudessem ser expressos em termos de proporções simples!
Quando fazendo música nada está mais longe de nossa mente do que matemática,
mensuração ou números. A matemática opera secretamente, por assim dizer, atrás das
costas dos músicos.
Para uma real compreensão do que se passa na música, é preciso esperar por
considerações que começam com a nota individual ou intervalo e desenvolvem-se
196

para a matemática. Não acrescento nada à minha compreensão da experiência


auditiva de 1 – 5 quando aprendo que a proporção das freqüências correspondente a
este intervalo é 2 : 3. Este fato não dá nenhum suporte para o padrão tonal sem o qual
não haveria música; ele não tem nada a ver com a realidade da música. O que nos
interessa nisto não é a correlação entre música e números, mas a menos óbvia
similaridade entre os músicos e os matemáticos com respeito à natureza de suas
atividades. Nada pode estar mais distante da mente de um músico trabalhando do que
uma contagem, nada pode estar mais distante da mente de um matemático
trabalhando do que cantar, e mesmo assim há algo em comum entre ambos. Em
matemática, assim como na música (e em parte alguma mais), o fazer é inseparável
do pensar; mais do que isto, em ambos o fazer é idêntico com o pensar. O que é
verdade para as notas é também verdade para os números: pensá-los é criá-los. Os
teólogos dizem que os pensamentos de Deus são as Suas criações, que o pensamento
de Deus possui existência; o que Deus pensa, existe. No que diz respeito à criação
humana, a música e a matemática aproximam-se muito do modelo divino: todavia
muito afastadas de Deus elas possam ser diferentes, aqui é o lugar onde elas se
encontram.

Pode ser argumentado que o que estamos afirmando sobre os conceitos


matemáticos é verdade para outros conceitos científicos, ou ainda para todos os
conceitos. Os conceitos tais como aqueles da enteléquia, campo dinâmico, mutação,
valor residual, pensamentos-em-si-mesmos devem sua existência a atos do
pensamento, existem somente na medida em que eles são pensados. Do mesmo
modo, os conceitos de causa, possibilidade e liberdade são o que são somente porque
eles são pensados. Na verdade, “animal”, “planta”, “montanha”, “homem” – todos
estes devem a sua existência a atos do pensamento, e o mesmo é verdade para termos
como “entre”, “todavia”, “não”. Mas cada uma destas criações do pensamento refere-
se a algo “dado” ao pensamento, que o pensamento define, delimita ou, se você
preferir, intelectualiza. Em cada um destes casos pensar é dirigir-se para algo que ele
busca entender. Os conceitos não produzem o que eles definem: o conceito
“pensamento” não produz o pensar; conceitos não postulam existência. Em última
análise, o pensamento normalmente implica uma referência a algo que não é
meramente um pensamento, a algo que existe independentemente do pensamento. O
mesmo é verdade para a palavra, que é o aspecto exterior do pensamento. A palavra,
também, deve seu peculiar modo de existência ao pensamento e se refere a algo outro
que a si mesma, algo dado; mesmo o conceito “palavra” é diferente das muitas
palavras particulares agrupadas dentro dele. Não assim os números e, mais
genericamente, os conceitos musicais: o modo de existência que eles devem pensar é
de uma espécie diferente. 3, 2,   -1, ponto, linha reta, ângulo reto, círculo –
, ,
nada disto se refere a algo dado, algo que não é criado pelo pensamento. Aqui nada é
dado a princípio, nada pré-existe – ou se existe, não é no sentido de “vir antes”: o 2
vem antes do 3, 1 antes do 2, nada antes do 1, a linha reta antes do círculo, o ponto
antes da linha, nada antes do ponto. O que vem antes aqui é invariavelmente da
mesma espécie do que vem depois. Os conceitos estão relacionados, eles formam
197

uma cadeia, mas cada ligação em si é novamente um conceito matemático. A cadeia é


ancorada em outro conceito matemático, não em algo que existe fora do pensamento.
A velha máxima de que a vida pode ser criada somente pela própria vida pode algum
dia perder sua validade (como é sugerido pelos recentes desenvolvimentos da
biologia), mas não pode haver dúvida de que os números e as figuras geométricas são
sempre produzidos por outros números e outras figuras geométricas. Nas palavras
“três árvores” (referindo-se, quero dizer, a um bordo, um olmo e uma palmeira 15), o
termo “árvores” denota um grupo de qualidades que três árvores dadas têm em
comum. Estas qualidades não se originam no pensamento: nós as percebemos; elas
são dadas. Mas “três” não denota algo como aquele, isto é, algo que nossas três
arvores, um triângulo e um relógio marcando três tenham em comum. Que tal coisa
está presente eu sei somente porque sei o significado de “três”: o elemento comum
não sugere o conceito; o conceito sugere o elemento comum. Similarmente, “círculo”
não é primeiramente o que todos os círculos dados têm em comum: até o conceito de
“círculo” ser formado, não teriam sido dados círculos. É claro, depois que eles
tenham sido definidos, números e figuras geométricas pode se referir ao dado, mas
seus referentes devem sua existência aos conceitos, não vice-versa. Tudo isto não é
pretendido como uma contribuição aos debates perenes a respeito do ser e do
pensamento, mas somente salientar o caráter distinto dos conceitos matemáticos, os
quais um matemático, Andréas Speiser formulou na afirmação. “O conceito de
número tem a força para postular existência”.

Mas certamente há um paradoxo aqui. Não outorgamos – para justamente


aquele tipo de pensamento (ou conceito) que alegadamente não tem raízes na
existência – a plena força que temos negado explicitamente a todos os pensamentos e
conceitos? Realmente, há na vida comum um exemplo muito bom de tipo de
pensamento que permanece auto-contido, ainda em operação: aquele que está
envolvido em jogar jogos. Jogos como xadrez e Go são construções puramente
intelectuais que correspondem a nada senão a eles mesmos. A matemática, nesta
conexão, pode ser pensada como meramente o mais sublime de todos os jogos, no
qual o intelecto joga com suas próprias potencialidades – e realmente a matemática
tem sido assim descrita muitas vezes. Ao mesmo tempo, no entanto, deve ser
admitido que jogar com números ou com figuras geométricas é um jogo muito
diferente dos outros. A diferença é ilustrada no dizer bem conhecido de um
matemático, “Deus fez os números inteiros; tudo o mais é trabalho do homem”.
Nunca ocorre a um jogador de xadrez pensar sobre as peças de xadrez como sendo
divinamente criadas. Evocamos a mão de Deus somente em conexões que envolvam
uma percepção sobre a realidade, ao passo que o apelo característico dos jogos é que
eles nos tornam capazes de escapar das limitações ordinárias do espaço-tempo para
um reino de comparativa liberdade, sujeito apenas às regras de sua própria invenção.
As regras e conceitos da matemática, acima de tudo aquelas que podem ser fora de
15
Nota da Tradução: Zuckerkandl utiliza-se aqui de um jogo de similaridade fonética e escrita entre as palavras
“árvore” e “três”, three trees, e entre as palavras que denominam as árvores, maple, elm e palm, como que reforçando
no nível da linguagem o conceito de similitude e diferença que está abordando no nível das idéias. Palm e elm estão
contidas em maple, dois meio-anagramas que compõem a terceira palavra. Este jogo de palavras é intraduzível para o
português.
198

correlativos objetivos, apesar disso referem-se a algo real: jogar o jogo da matemática
é responder questões postuladas pelo mundo real. Podemos bem estar inconscientes
disto quando exercitamo-nos em um problema matemático, mas as regras que
seguimos e o tipo de pensamento que as operações matemáticas requerem são
limitados em última instância pelas leis da natureza. É claro, os conceitos
matemáticos permanecem fora do mundo da percepção dos sentidos, mesmo estando
bastante próximos dele para serem afetados por ele e responderem a ele – exatamente
como uma corda firmemente esticada emite um som quando algo a faz vibrar. A
ordem dos números e das figuras está em sintonia com a ordem da natureza. O que
distingue os conceitos matemáticos dos outros é justamente esta consonância entre
pensamento e existência, e é por isto eles podem servir como símbolos. Outros
conceitos se elevam ao nível de alegorias, no melhor dos casos.

Pela mesma razão, falamos de realizações matemáticas como “obras”; embora


feitos de matéria puramente intelectual, eles postulam existência. Ganhando uma
partida de xadrez ou mesmo um torneio, embora indubitavelmente um feito, não é
uma obra no sentido em que são as Secções Cônicas de Apollonius. E aqui vemos
algo mais que a música – e somente a música – tem em comum com a matemática:
não somente ambos criam obras; eles criam também os materiais dos quais suas obras
são feitas. Como os números, os sons musicais devem sua existência inteiramente ao
intelecto humano. Não é verdade que a natureza provê o músico com seus materiais,
embora pensadores irrefletidos tenham muitas vezes alegado isto. “O som puro”
escreve Paul Valéry, referindo-se ao som musical, “é uma espécie de criação. A
natureza conhece apenas ruídos.” Ninguém negaria que os ruídos da natureza têm sua
própria beleza, pureza e individualidade; realmente, o som na natureza é
provavelmente elaborado de maneira muito mais rica do que a cor. No entanto, são
tão remotos em relação à música quanto a constelação de Cassiopéia é do número
cinco. É o som da natureza mais próximo da música, aquele que melhor ilustra a
diferença: o som dos pássaros. Somente as pessoas que nada conhecem a respeito de
música supõem que o cantar dos pássaros marca um estágio inicial no
desenvolvimento musical ou podem pensar a música como sendo uma “imitação” do
canto dos pássaros. Géza Révész observa que os pássaros sempre cantam na mesma
tonalidade. Eles não podem transpor, porque para fazer isto é necessário ter uma
consciência audível da relação entre notas, de suas qualidades dinâmicas. Isto só é
possível dentro de um sistema tonal, isto e, uma construção da mente. Os sons que os
pássaros produzem não formam um sistema. Quando um pássaro cessa sua canção
usual, talvez exatamente antes da última nota, somos nós que sentimos algo como
uma “tensão irresolvida”. Quando uma melodia cessa antes da última nota, então é a
própria nota que demanda continuação e resolução. A tensão é aquela da nota, não
nossa. Nem poderíamos ter ouvido esta peça em particular antes de termos esta
sensação. Para ser música, os sons têm que ser organizados em um sistema. A
afinidade entre notas e números, devido a serem criações puramente intelectuais, é
melhor demonstrado pelo fato de que nem os números nem as notas existem
independentemente de construí-los e colocá-los juntos em um sistema. Nenhum
número sozinho e nenhuma nota sozinha é o que é sem as outras. Este estranho modo
199

de existência – enquanto relação, proporção, logos – é uma característica essencial da


música tanto quanto da matemática. Assim como os matemáticos, os musicistas lidam
com relação, proporção, logos. Como, então, poderia a atividade do musicista ser
outra coisa que não lógica e racional, como poderia ser algo outro que não uma
atividade intelectual, apesar disso ele não pensar conceitualmente?

No início destas reflexões, supomos, de acordo com o ponto de vista em geral


aceito, que todo pensamento é conceitual, e que desde que o musicista não tem
essencialmente nada a ver com conceitos, sua atividade não seria propriamente
chamada de “pensar”. Mas após ouvir cuidadosamente a música e observar o que ela
transpira, agora parece que o ponto de vista aceito deveria ser virado de ponta cabeça:
o que o musicista faz não pode ser chamado de qualquer outra coisa que não de
“pensamento”. Obviamente, o pensamento conceitual não é a única espécie.

No próximo capítulo, tentaremos, por observar o processo de criação musical,


formar uma idéia mais definitiva da natureza deste “outro” pensamento e das leis que
o governam.
200

XVII. Pensamento Musical

O Problema de Chopin

Temos na autoridade de George Sand que, quando eles estavam em Mallorca,


Chopin uma vez gastou um dia inteiro trabalhando sobre uma passagem de um de
seus Prelúdios, tentando fazê-lo ficar certo. Mesmo todos os seus esforços foram em
vão. Ele não teve sucesso em aperfeiçoar a passagem, e teve que deixá-la como
estava.

O que exatamente está envolvido em tal tentativa? Qual é o significado de


“certo” ou “errado” neste caso, e o que diz ao compositor que algo precisa ser
“aperfeiçoado”? Seu sentimento? Mas este termo vago, “sentimento”, expressa
meramente nossa perplexidade: usamo-lo somente porque não temos palavra melhor
para ele, porque não sabemos realmente o que é. “Sentimento” aqui certamente não é
usado no sentido de sentimento de amor ou de ódio ou qualquer outra família
“emocional”, ou de algo como sentimento vertiginoso, mas mais apropriadamente
como algo aparentado a sentir dor – não exatamente no sentido de doendo, mas
também porque ele nos diz o que é doer. Aqui a sensação tem uma contraparte
objetiva: algo é realmente percebido por um órgão interior dos sentidos. Chopin
ouviria a deficiência? Sua mão chegaria a colocá-la em ordem? Relembramos a
observação do pintor que ele sentiria a diferença entre bom e ruim em suas mãos.
Mas como é possível ouvir ou sentir algo que não está lá?
201

Aqui temos uma oportunidade de observar o compositor trabalhando; é um


exemplo particular de uma situação humana comum: existe um problema a ser
resolvido requerendo esforço intelectual.

Realmente, dois problemas distintos embora relacionados estão aqui


envolvidos. Um concerne ao compositor: encontrar a frase correta. O outro concerne
ao ouvinte: encontrar o que está errado (George Sand não menciona isto). Vamos
considerar o problema do ouvinte primeiro.

Para começar, vamos formulá-la em termos do pensamento lógico. Suponha


que um tratado matemático contenha um passo falso e estou procurando encontrá-lo.
Agora, isto pode ser difícil para eu fazer, mas obviamente não é impossível; em
princípio, realmente, devo ser capaz de encontrar o erro, e se falho em encontrá-lo
apesar disto, a falha será atribuída somente à minha inadequação intelectual pessoal.
No argumento lógico, cada passo está correto na medida em que segue os passos
precedentes de acordo com regras rigorosamente definidas. A afirmação para a qual
ela leva não é necessariamente verdadeira: pode ser falsa, por exemplo, quando os
passos precedentes envolvem afirmações falsas. Mas cada passo logicamente correto
seguido de uma afirmação verdadeira necessariamente conduz a uma afirmação
verdadeira. Isto é o que distingue a necessidade lógica da compulsão física ou da
obrigação moral: não o passo em si mesmo, mas somente sua validade está em jogo.
Na lógica, o símbolo usado denota esta espécie de necessidade – necessidade no
raciocínio mais do que na conclusão do argumento – é __ , o símbolo da implicação.
A forma deste signo sugere que ele significa: implicar é abraçar, envolver, conter.
Cada passo corretamente deduzido no curso de um argumento está sempre implícito
no passo precedente, inteiramente contido nele. Precisa somente ser tomado; não se
adiciona algo novo, nem é suposto algo novo, ao passo precedente – pois se o fizesse,
não seria logicamente correto. Cada passo sucessivo meramente torna explícito o que
estava somente implícito no passo precedente, fazendo-nos ver ou reconhecer algo
que estivera sempre lá mas que até agora esteve ausente. Lembra um quebra-cabeça,
no qual você tenta encontrar algo que não está imediatamente aparente; não é o caso
adicionar algo ao quadro, meramente discernir o que já está nele, mas encoberto. Do
mesmo modo, para assegurar que o raciocínio lógico seja correto, temos que apurar
que toda conclusão esteja implícita no que veio antes; isto é, ela deve estar envolvida
ou “contida” no que é dado, embora isto possa não ser imediatamente aparente. Como
temos percebido, não é sempre fácil resolver tal problema, mas pode confiar que a
solução existe.

Problemas análogos em música são literalmente insolúveis.

Em que sentido podemos falar de “certo” e “errado” em um contexto musical?


Bem, algumas coisas são obviamente erradas: notas falsas, enganos feitos por
executantes, desvios arbitrários da partitura, erros de impressão, deslizes de escrita
em manuscritos originais ou cópias. Com respeito ao último, no entanto, estamos já
em terreno delicado. Quando podemos estar certos que um deslize de escrita é
realmente isso? Richard Wagner atribui a primeira nota dissonante da trompa no final
202

da seção de desenvolvimento no primeiro movimento da Heróica a um deslize da


escrita de Beethoven e “corrigiu-o”. Um primeiro editor do Cravo Bem Temperado
assumiu que uma progressão harmônica não-convencional no Prelúdio nº 1 deveu-se
a um descuido por parte de Bach, e adicionou um compasso inteiro de sua própria
invenção para corrigi-lo: este texto “corrigido” aparece em muitas edições
subseqüentes. Em tais exemplos comparativamente óbvios a questão pode
eventualmente ser decidida. Mas não em outros exemplos, menos óbvios. Beethoven
esqueceu-se de prover os acidentes em uma certa passagem da sonata Hammerklavier
(primeiro movimento, compassos 237 e 239)? A primeira nota do violoncelo no
compasso 24 do primeiro movimento do Quarteto em Dó# menor é um Ré ou um
Ré#? Estas questões permanecem em aberto, embora a interpretação das passagens
envolvidas dependa grandemente de como elas são respondidas. De modo diferente
da lógica, à música parece faltar um critério confiável para decidir tais questões.

Falamos, não sem razão, de “lógica musical” ou “sintaxe musical”, isto é, uma
estrutura que provê um critério de contorno nítido. Estes termos designam um
conjunto de regras resultantes dos relacionamentos dinâmicos das notas, das
qualidades de tensão e resolução dos sons, do relacionamento entre consonância e
dissonância, dos padrões de ritmo básico e do desejo elementar de simetria, e por fim
das particularidades de um dado estilo. Tais regras, no entanto, não são de ajuda para
resolver as espécies de problemas com os quais lidamos aqui. Tome uma partitura
composta em um estilo familiar, esconda umas poucas barras, e solicite a um certo
número de estudantes de composição para prover a música que falta. Isto é
simplesmente uma questão de estudar as passagens precedentes e continuá-las no
estilo indicado. Qualquer estudante de composição deve ser capaz de surgir com a
solução “correta”, ou ao menos com a solução não obviamente “falsa”. Um certo
número de diferentes soluções do problema serão apresentadas, todas elas “corretas”
mesmo que muito improvavelmente algumas delas serão idênticas ao original.
Mesmo quando somente umas poucas notas tenham sido providas – algo tão óbvio
musicalmente quanto a palavra ausente na sentença “Parece . . . chovido ontem” –
mesmo então, quando pareceria que ninguém possivelmente poderia surgir com algo
novo, realmente então podemos nos preparar para uma grande surpresa.

Aqui está um exemplo concreto. Suponha que somente a seção principal do


último coro na Paixão Segundo São Mateus de Bach tenha chegado até nós, somente
os primeiros quarenta e oito compassos, e que o compasso de conclusão da última
frase, também, está ausente – ambos onde ele é tocado por instrumentos e onde ele é
repetido pelo coro. Agora, parece que a melodia admite somente uma conclusão
possível: não somente ela procede 5 – 4 – 3 – 2, _________, no caminho de sua
resolução final, 1, Dó; a passagem paralela ao final da primeira frase, __________,
confirma que a conclusão ausente pode ser somente Fá – Mib – Ré - Dó. De fato,
sopranos, violinos e oboés todos se originam daquele caminho – mas não as flautas!
Estas últimas se afastam da melodia para produzir justamente em torno do último
som que deveríamos esperar: vindo como se fosse de nenhum lugar, a nota
agudamente dissonante Si natural penetra na conclusão e resolve o acorde de Dó
203

menor com um efeito despedaçador. Pela duração de um longo pulso toda a estrutura
musical fica suspensa no ar – e somente após isto a nota é resolvida na consonância
final Si natural – Dó. Assim, havia outro modo de concluir a passagem, embora
nunca nos ocorresse Bach não tê-la encontrado primeiro e nos ensinado a ouvir a
passagem precedente como requerido. É fácil, depois do fato, dizer que a conclusão
possivelmente não seria outra que não esta, e mesmo é possível “justificar” o retorno
melódico inesperado apontando para um primeiro, pois o que é _________ que não
uma repetição disfarçada de _____________? No entanto, o paralelo é tão
completamente oculto, tudo menos óbvio que – como o presente escritor conhece de
sua própria experiência – alguém pode estar familiarizado com a Paixão Segundo São
Mateus durante cinqüenta anos sem ter percebido isto. Além disso, a solução de Bach
para seu problema parece ter sido ditada mais por considerações mecânicas do que
musicais. Em seu tempo, a nota mais grave na flauta transversal era o Ré [acima do
Dó central]: não poderia produzir o Fá – Mib – Ré – Dó do primeiro oboé! Em
situações composicionais como esta, o que ocorre bastante freqüentemente, a nota
que não pode ser tocada é transposta para uma oitava acima: aqui, em outras palavras,
as flautas teriam que tocar Dó [acima do central]. Se Bach procurasse se esquivar
disto, no entanto, outra solução seria possível para ele: ter as flautas tocando Mi
como o segundo oboé. Somente uma destas duas soluções teria sido considerada hoje
em dia se o compasso em questão tivesse sido perdido. No entanto, para um
compositor como Bach um obstáculo mecânico como este serve como trampolim
para seu gênio. Pudesse sua flauta tocar a nota Dó [central], como as nossas, Bach
poderia simplesmente ter concluído com Fá – Mib – Ré – Dó – neste caso Si – Dó
nunca teria sido criado e o mundo seria privado de uma experiência profundamente
tocante. (Bastante estranhamente, fosse um computador solicitado a compor o último
compasso da parte da flauta, proporia, entre outras soluções, “a colcheia Si seguida
da semínima Dó”. Mas dificilmente alguém escolheria esta como a solução correta.)

Tudo isto mostra quão enganoso é falar de “lógica” com referência à coerência
peculiar da música. Pois a característica decisiva da coerência lógica, implicação –
isto é, o fato de que todo passo está implícito no precedente e em virtude disso pode
dele ser deduzido – está ausente. Na música nenhum passo necessariamente segue
desde o precedente no sentido de ser dedutível por meio de uma audição perspicaz.
Isto é verdade não somente para o “ouvir” no sentido acústico usual mas também no
interpretativo, compreendendo “escutar”. Todo passo em música pode realizar aquilo
que a nenhum passo em lógica é dado fazer: ele pode ir além do dado e dizer algo que
não está surgindo dele por qualquer regra conhecida. Mesmo quando o uso do signo
de implicação, ______, parece ser justificado, quando um novo passo de fato é
determinado pelo precedente e precisa somente ser dado – mesmo então, como temos
visto, o campo permanece aberto amplo, e a situação é expressa melhor por ____ do
que por __ . É claro, isto não dizer que a música é de fato uma sucessão de surpresas.
Isto seria insustentável; e, ao invés disso, como todos sabem, o que acontece em
música é amplamente determinado pela convenção. Muitas vezes, o que acontece é
exatamente o que está sendo esperado de acordo com regras correntemente
reconhecidas – em outras palavras, não é algo novo. Mas os procedimentos
204

convencionais em uma atmosfera de liberdade, por assim dizer: não porque precisa
ser assim, mas porque o compositor quer que seja assim. Em princípio, todo passo em
música poderia ser dado de outro modo do que foi, e então, desde este ponto de vista,
mesmo um passo convencional é “novo”. Isto deixa sem sentido qualquer tentativa de
encontrar, em uma dada peça musical, a passagem que pareceria errada para o
compositor. Se não podemos decidir entre o que é e o que não é correto com base no
que veio antes (como fazemos na lógica), como decidiremos de todo? Se não posso
dizer de qualquer passo que ele deve ser somente aquele e nada mais, então eu não
posso (dentro de limites razoáveis) chamar qualquer passo de “errado” ou dizer que
ele não pode ser correto. Quão vão, então, procurar através dos Prelúdios de Chopin
pela passagem que ele trabalhou tão longamente sem ser capaz de aperfeiçoá-la. O
problema é insolúvel não somente na prática mas também em teoria: ele é insolúvel.

À luz destas afirmações, no entanto, a verdadeira noção de coerência musical


tornou-se questionável. Se nenhum passo em música segue desde o precedente, se um
passo pode estar “errado” ainda quando segue e “correto” ainda quando não segue
desde o precedente, o que é feito da coerência musical aparte o fato psicológico de
que um certo número de impressões subjetivas está ligada em uma mente individual,
um fato cuja validade objetiva pode ser negada? Para esta questão uma resposta
somente é possível: se fosse este o caso, a tentativa de Chopin de aperfeiçoar uma
passagem teria sido tolice. Mas um Chopin não é um tolo. Seu problema não é sem
sentido. Seu comportamento expressa a realidade da coerência musical não menos
claramente do que o comportamento de uma agulha magnética expressa a realidade
do campo magnético. Se nossa noção de coerência demonstra ser inaplicável aqui, é
nossa incumbência formulá-la de tal maneira a tornar as experiências e os fenômenos
da música não sem sentido, mas compreensíveis.

Em seu diálogo Eupalinos ou o Arquiteto, Paul Valéry, faz seu arquiteto dizer:
“O que é importante acima de tudo mais é obter desde aquilo que está vindo a ser,
que isto poderia com todo o vigor da novidade satisfazer os pedidos razoáveis daquilo
que foi”. O que Eupalinos diz da arquitetura, a arte espacial por excelência, é também
verdade para a música, a arte temporal por excelência. A característica essencial da
coerência musical, que a distingue tanto da coerência lógica quanto das sucessões
aleatórias, não pode ser expresso mais clara e adequadamente. Se omitimos as
palavras “com todo o vigor da novidade”, a afirmação de Valéry define a lei que
governa a coerência lógica; se mantemos estas palavras e omitimos o resto, isto
define a sucessão aleatória. O que está em questão aqui, no entanto não é nenhuma
destas alternativas, mas um tipo de coerência que não é lógica e também não é
irracional. É mais propriamente uma coerência que tem uma lógica sua própria, na
qual a racionalidade é compatível com a novidade. “Aquilo que foi”, isto é, o que é
dado, faz uma demanda razoável, isto é, uma demanda contida e reconhecível no que
é dado, capaz de ser satisfeita, e endereçada para “aquilo que está vindo a ser”. A
última, a fim de satisfazer a demanda, deve suprir mais do que o que pode ser
conhecido ou ouvido no que é dado e inferido dele, deve manifestar “todo o vigor da
novidade”. Ao passo que na lógica somente a consistência importa, e cada passo pode
205

ser somente certo ou errado, na música onde o novo é tecido dentro do contexto dado,
tais decisões firmes ou ligeiras são impossíveis. A diferença entre certo e errado
permanece, mas admite graduações, como temos visto em nossos exemplos de Bach e
Chopin. Os dois elementos de consistência e novidade podem nunca ser separados,
mesmo em um exemplo concreto individual. Nem eles são um composto –
consistência mais uma parte de novidade ou novidade mais uma parte de
consistência. A dupla requisição é satisfeita por um passo; um único ato produz
ambos, consistência e novidade. Cada passo revela dois aspectos: uma vez ele tenha
sido dado, é consistente, pois de outro modo ele não poderia encontrar um
requerimento razoável; antes de ser dado, ele é imprevisível, pois de outro modo não
teria o pleno vigor da novidade. O ouvinte de uma obra acabada, que sabe somente os
passos que tenham sido dados, desfruta da consistência do novo; o compositor dentro
de sua composição, que tenha dado todos os passos, sente que não pode predizer o
que será consistente. O que cada passo sucessivo deve ser a fim de reunir o duplo
requerimento, isto o compositor também não pode saber antes que ele tenha de fato
dado o passo. Antes então, isto é um segredo que as notas não denunciam a ninguém
exceto àquele a quem elas devem sua própria existência, e mesmo para ele elas não se
revelam realmente; elas meramente apontam o caminho. Elas incitam-no a imaginar,
elas facilitam, ainda mesmo urgem, mas elas não compelem. A tentativa vã de
Chopin para aperfeiçoar a passagem localiza com precisão o processo em seu estágio
crítico. A tentativa torna-se necessária pelo requerimento de consistência falhar em se
unir ao requerimento da novidade. Nada caracteriza mais completamente a coerência
musical e o ato que a produz, do que a falha de Chopin em resolver este problema.

Estamos todos familiarizados com a situação na qual nos encontramos quando


confrontados com uma tarefa que requer esforço intelectual. Resolver um problema
técnico ou matemático, construir um modelo para a proposta de obter melhor
entendimento de um fenômeno específico, definir um termo, escolher o melhor meio
para uma finalidade específica, entender o modo como um homem atua, interpretar
um evento histórico, encontrar palavras adequadas para expressar um pensamento ou
um sentimento – todos os problemas deste tipo, embora diferentes em outros pontos,
têm em comum que em cada um, o pensamento é dirigido para algo dado. O que é
para ser encontrado está já presente no dado; somente algo que está escondido pode
ser descoberto, como quando um rio de luz ilumina um ponto escuro ou quando nosso
pensamento ajusta um elemento do dado em uma nova ordem. A situação do
compositor difere de todas as situações deste tipo, as quais são caracterizadas
adequadamente por uma afirmação que Albert Einstein fez certa vez em uma
conversação, “Eu sei exatamente onde eu quero chegar, somente não sei como chegar
lá”. Todos aqueles que interpretam a música como sendo essencialmente uma
linguagem do sentimento acreditam que a situação do compositor é comparável
àquela da pessoa tentando encontrar palavras para expressar um sentimento para o
qual não existem palavras. Isto não é assim. Quando Chopin tenta resolver seu
problema, seu pensamento só aparentemente é dirigido para o “dado” que ele tem
diante dele: a passagem que ele quer aperfeiçoar. De fato ele não tem nada diante
dele; seu pensamento não está dirigido para, ou focado sobre, o dado; ele começa do
206

dado, mas é dirigido para algo além do dado, para um vazio. O dado está atrás dele
mais propriamente do que à frente dele; ele busca não dentro dele mas junto com ele,
junto com o dado ele procura algo que não está no dado. Nem poderia ele esperar
descobrir algo no vazio. Aqui somente uma coisa interessa: encontrar algo que não
existe, isto é, inventá-lo. Nem poderia ele aproveitar-se de um critério para avaliar
sua invenção, tal como ela é avaliável em outros casos. Mesmo a palavra para ser
encontrada pode ser testada contra a experiência interna que ela é suposta expressar, a
fim de apurar se ela serve ou não a seu propósito. Um compositor não tem tal critério,
nada que possa ajudá-lo em sua condição, nada de objetos, regras, conceitos ou
sentimentos; ele tem somente as próprias notas musicais. Seu momento sem dúvida
pode levá-lo até um certo ponto, mas então eles o deixam, abandonam-no, lançam-no
dentro do vazio, onde ele pode ganhar um ponto de apoio sem sua ajuda. E somente
um sentido interior elusivo fala a ele – e a ele somente – se ele encontra a solução que
estava buscando. Ainda na consciência de sua falha, ele está sozinho: ninguém mais
pode dizer que ele não encontrou; mesmo o compositor não pode. Pois ele poderia
dizer isto somente das notas que não foi capaz de inventar.

E há algo mais: o fracasso matemático é temporário; o musical é definitivo. O


que um matemático falha em encontrar, outros depois dele podem ser capazes de
encontrar, e mesmo que nunca seja encontrado, está “lá” em um certo sentido,
embora não visto; pesquisá-lo não é absurdo. O que Chopin falhou em encontrar não
existe e nunca será encontrado; pesquisá-lo não faz sentido. O grande matemático
Fermat escreveu na margem de um livro que a equação an + bn = cn não é resolvível
em integrais para qualquer n maior do que 2, e adiciona que a prova que ele
encontrou era longa demais para escrevê-la na margem estreita. Esta afirmação foi
descoberta após a morte de Fermat, e pelos últimos três séculos os matemáticos têm
em vão tentando encontrar a prova para seu teorema, sobre cuja verdade não há
dúvida. A prova existe: está implícita no “dado”, embora não o tenhamos. A prova
existiria mesmo se sua anotação não tivesse sido descoberta, mesmo se ele próprio
não a tivesse encontrado. Mas o que Chopin falhou em encontrar – ou se ele
encontrou, deixou de escrever – não existe em qualquer forma que seja, nem mesmo
escondida nas notas, onde outros poderiam reassumir sua busca por ela. Em seu
Traité de la lumière, Huygens escreve, “Eu não posso trazer minha teoria ondulatória
da luz de acordo com certos fenômenos ópticos, mas coloco minha teoria na
convicção de que outros, melhores inteligências terão sucesso em resolver este
problema”. O problema foi resolvido por outras mentes, não necessariamente
melhores do que a dele. Poderiam melhores mentes do que a de Chopin resolver seu
problema? A solução não pode ser procurada nas notas; pode ser procurada somente
com elas, desde o interior de seu movimento vivente, e ninguém pode ingressar lá
exceto o homem que esteve dentro de seu movimento vivente desde o começo para
ajudá-lo a vir a ser.

Anteriormente afirmamos que a música tem isto em comum com a matemática:


que em ambas o pensar é indistinguível do fazer, e que pensar tem o poder de propor
a existência de números e de notas. Agora encontramos qual é a diferença essencial
207

entre números e notas. Se é verdade que o que o matemáticos pensam existe antes
dele de fato ser pensado e existiria mesmo se não fosse pensado, então parece que o
pensamento musical é ainda superior ao pensamento matemático onde a
pressuposição da existência é concernida. Mas isto somente parece assim. A prova do
teorema de Fermat pode existir embora ninguém pense sobre ela, mas ela é parte da
teoria dos números, a qual é uma criação do pensamento. Certamente faz sentido
dizer que toda a aritmética está implícita, isto é, existe, na idéia de número – na
verdade, na idéia do primeiro número (especialmente se consideramos dois como o
primeiro número como os gregos faziam), ao passo que mesmo a menor parte da
música, apartada de toda a música, está implícita na idéia da nota ou qualquer nota
específica. Em música somente existe o que é de fato criado: isto expressa não o
grande poder da música de postular a existência, mas sua íntima afinidade com o
tempo. A este respeito, o número é o oposto direto à nota. É claro, é necessário tempo
para pensar um pensamento matemático, como qualquer outro, mas em matemática, o
tempo é meramente um pano de fundo psicológico, uma “mera formalidade”; o
tempo flui pelo, por assim dizer, lado de fora do pensamento matemático, o qual é
realmente estranho ao tempo assim como o texto de um livro é para a luz que eu
necessito para lê-lo. O que os pensamentos matemáticos são, eles são mesmo se não
houvesse tal coisa como o tempo; alguém poderia quase dizer que somente o tempo
impede a matemática de se desenvolver em toda a sua dignidade e esplendor.
(Bastante curiosamente, Kant, quem primeiro denunciou os perigos do psicologismo,
incorreu em seu pior erro justamente quando confundiu número com contagem, e
afirmou que aritmética estava fundamentada no tempo assim como a geometria
estava fundamentada no espaço. Nenhum musicista teria se extraviado tanto.) No
pensamento lógico explanatório, o tempo é meramente uma condição psicológica. No
seu Regulae ad directionem ingenii, Descartes descreve o processo do raciocínio
dedutivo como uma cadeia de proposições, observando que “podemos passar tão
rapidamente do primeiro para o último que praticamente nenhum passo é deixado na
memória, o conjunto sendo visto todo ao mesmo tempo” (Regra XI). Em outras
palavras, se o tempo fosse eliminado o processo não seria afetado de todo modo. Se
fosse eliminado do pensamento musical, nada sobraria deste último. Como poderia
alguém pensar uma melodia se não como uma sucessão específica de notas no
tempo? Pensamos mais efetivamente quando imaginamos uma melodia lenta
movendo-se rápida? Não, aqui o tempo não é uma mera formalidade. Flui não fora do
pensamento, mas dentro dele; o tempo não é meramente uma condição geral do
pensamento, mas é consubstancial com as próprias notas, com a melodia particular
que elas formam. Aqui alguém pensa não no tempo, mas com o tempo; na verdade, a
pessoa pensa o próprio tempo na forma de notas, a única forma na qual o tempo pode
ser pensado. Este é o motivo pelo qual somente o compositor pode pensar até o fim
uma melodia que ele tenha começado a pensar. O tempo que ele pensa é seu próprio
tempo, e embora seja possível em alguns casos outro homem continuar o trabalho, é
impossível continuar o seu “tempo”.
208

Nossa discussão do caso de Chopin nos ensinou uma coisa ou duas a respeito
do pensamento musical. Podemos aprender mais a partir do caso de um compositor
que, diferentemente de Chopin, teve êxito em aperfeiçoar uma de suas melodias.

O Segundo Pensamento de Schubert

Na nota introdutória a esta seção nos referimos à canção de Schubert,


“Wasserflut” e a alteração do seu final original. Examinaremos agora mais de perto o
que temos chamado de paradigma do ato criativo.

“Wasserflut” é uma das canções mais simples do ciclo Winterreise. O poema


original consiste de quatro estrofes de quatro linhas. A composição de Schubert se
estende pelas duas primeiras estrofes e é repetida para as duas segundas estrofes.
Aqui está a parte da voz (prelúdio, interlúdios e acompanhamento são omitidos):

_____________________

O que vemos aqui são duas graciosas curvas melódicas, uma para cada estrofe,
cada uma delas subdivida em meias-estrofes.

O caráter da melodia é, a princípio, determinado pelo ritmo ______, anunciado


no curto prelúdio do piano: avançando para o começo do compasso, parando no meio.
Se as tercinas caíssem na cabeça do compasso e a nota mais longa começasse um
novo compasso, assim: ______, o efeito seria aquele de uma progressão natural em
direção a uma meta (como nos compassos 7 – 8, _________). Mas o que temos aqui é
o oposto. A parada em um tempo fraco após o avanço sobre o tempo forte contradiz o
esquema métrico natural, parece forçado, como um movimento executado contra uma
resistência. O que o ritmo sugere é marcantemente expresso na própria melodia:
primeiro, pela acentuação resoluta da nota mais alta (a qual é também a tônica, na
tonalidade de Mi menor) alcançada em um tempo fraco _____ (comparar com o
natural ____), então por uma descida cortante _________ executada como se em
resposta à advertência “Assim longe e não mais longe!” – como se a nota Mi fosse
209

uma espécie de teto que não pode ser transpassado, de maneira que o que acontece
deve permanecer debaixo dela. Contribuindo para o mesmo efeito estão talvez as
duas oitavas ________ e ________ nos compassos 5 e 6, os quais jogam uma contra
a outra, a tônica e a quinta. O desfecho de tudo isto é algo como uma rigidez e tensão
forçadas, como se algo estivesse sendo contido, que está inquieto sob a superfície.
Isto é responsável por uma tendência à explosão, a primeira das quais ocorre para o
final da primeira curva melódica, nos compassos 11 e 12. Aqui, no ponto onde
termina a primeira estrofe do poema, um período de oito compassos pode ser
completado com uma subida seguida por uma descida, com esta aparência: _______ .
Ao invés disso, temos uma subida correndo através de toda a extensão demarcada por
aquelas duas oitavas, _____ e _____ , a saber, __________. Mesmo assim, o período
poderia ser concluído com a nota Mi alcançada no começo do compasso 12, não para
o acorde ______ o qual, parando neste ponto, altera neste momento o valor dinâmico
8 do Mi para 5, evitando assim a conclusão e forçando a extensão do período por dois
compassos e a repetição da última linha da estrofe. Além disso, ele empurra a
melodia além de sua meta aparente, Mi, para ____ . Então isto foi o que a longa
descida precedente significou: um esforço para transpassar o teto! Somente agora
pode o movimento ser revertido, a ascensão equilibrada por uma descida, e o final
buscado e encontrado (compassos 13 e 14).

O segundo começa com um movimento suavemente descendente, ______, não


com um passo ascendente como o primeiro. Após o interlúdio do piano efetuar a
mudança da tonalidade para Sol maior, tudo parece relaxado; o movimento flui suave
para baixo e para cima em oitavas, _______, foi recolocado o movimento agudo para
cima e para baixo interrompido por uma parada. Somente o grande salto artificial e
sem motivo no compasso 25, ________, relembra-nos que há algum assunto não
concluído. Entretanto, no compasso 26 o período de oito barras termina normalmente,
mas, desafortunadamente, no lugar errado – Sol, não Mi, como 1. Então isto, depois
de tudo, não é o final? Por um momento todas as coisas estão em suspenso, então o
final real surge abruptamente, quando menos esperado. O “erro” é corrigido; tudo
está composto certo; com um sopro poderoso o teto é transpassado. Após _______
nenhum retorno é possível: agora a melodia como terminar somente com o Mi na
oitava mais alta – um final que não é uma resolução. O efeito deste final é tão
irresistível que tudo que o precede é agora sentido como uma progressão inexorável
em direção a esta meta pré-determinada, como se toda a melodia existisse somente
por causa deste verdadeiro final.

Como mencionado anteriormente, esta melodia a princípio tinha um final


diferente. O que não pode ser outro que não este, foi, apesar disso, outro. O gesto
final que resume tudo o que o precedeu, que parece tão inevitável quanto uma
inferência lógica, poderia ter sido um gesto inteiramente diferente, aquele que serviu
como o final original, o qual não transpassava o teto. Os vestígios de rasura no
manuscrito não deixam dúvida: o próprio Schubert, quando primeiro anotou esta
melodia, o fez completamente sem saber do final que para nós parece ser o único
possível; o que ele escreveu foi
210

________________

O final original não pode ser interpretado como um escorregão da pena. Em


nenhum sentido pode ser descrito como um “erro”. Tivesse Schubert morrido logo
após ter anotado isto ao invés de um ano mais tarde, ninguém poderia apontar seu
dedo a estes dois últimos compassos, dizendo, “Errado! Isto não pode ser! É preciso
algo mais aqui!” O que poderia estar errado aqui? A idéia básica é a mesma como
aquela do final que nos é familiar: a correção abrupta do “erro” nos dois compassos
precedentes. A frase enganosa _________ que poderia ter sugerido uma conclusão
sobre o Sol é convincentemente refutada por ser repetida, mas desta vez no lugar
certo: _________ . E o começo do compasso que leva a esta frase de conclusão, ___
– não ecoa o início da melodia? Começo e final resumem em um simples gesto: é um
final concebível mais efetivo? Não, todos de nós que tivéssemos aceito a canção
como foi feita originalmente, sem a menor objeção, teríamos amado-a e admirado-a
como uma obra-prima do melhor período de Schubert.

E ainda, embora seus dias fossem contados, Schubert sentia-se compelido a


voltar-se para a melodia perfeita, acabada. Algo incomodava sua consciência criativa
lembrando a ele que não havia feito inteira justiça à sua própria criação. No curso de
suas reflexões sobre a melodia, repentinamente clareou para ele que o problema era:
até agora não havia realmente compreendido sua melodia, e visto que poderia realizar
plenamente suas potencialidades somente se desse outro final. Diferentemente de
Chopin, ele foi capaz de criar um novo final no momento em que ele percebeu que
este era requerido pela melodia. Seria um engano minimizar sua realização com base
em que qualquer bom compositor poderia pensar em uma dúzia de diferentes finais,
ou que Schubert, tendo ficado por alguma razão insatisfeito com o primeiro final,
substituiu-o por um de sua preferência – em resumo, que tudo isto é pura questão de
gosto. Tais argumentos podem muitas vezes ser o ponto, mas não aqui. Eles não
podem ser refutados, quando, como no caso de Chopin, sabemos somente que o
compositor tentou mudar algo, não o que a versão aperfeiçoada poderia ter sido. Mas
no caso de Schubert conhecemos ambos, o velho e o novo final, e pode ser mostrado
que ele não meramente substituiu um por outro igualmente bom, mas um bom por um
melhor. Tal mudança não pode ser considerada como sendo um gosto do compositor,
mas somente pela natureza específica da própria melodia. Para usar outra vez um
desacreditado par de termos, Schubert foi guiado não por sua subjetividade mas por
considerações objetivas, não por seu gosto mas por seu pensamento.

O que Schubert falhou a ver a princípio, o que poderia ter clareado para ele
após pensar a respeito dela, foi que a meta de sua melodia tenta completar com a
oitava ______ . Não que isto seja uma idéia racional – foi somente um impulso
pensar outro pensamento musical. Afinal de contas (Schubert pode ter refletido), a
história toda da melodia gira em torno destas duas notas: onde a melodia está (e onde
estou eu) em casa – no Mi mais baixo, no mais alto, em ambos, ou alternadamente
nos dois? Ambos aparecem no curto prelúdio do piano; quão significantes eles são, a
pessoa só realiza mais tarde: __________ . Aqui o Mi mais alto não é mais do que
uma imagem em espelho do mais baixo, ele é somente sugerido; o movimento se
211

enraíza no mais grave e imediatamente se reafirma. Mas quando a voz começa com
______ , temos algo diferente. Embora o Mi mais alto caia sobre o tempo fraco, não
cai sobre um tempo, sobre “dois”, não como realmente fora antes, na última unidade
de tempo de uma batida. Além disso, veio a permanecer por uma batida e meia ao
invés de ser deixado imediatamente; a nota foi agora afirmada em sua independência.
Ela tem uma vida sua própria, embora seja ainda fraca demais para sustentar a
melodia, a qual desde logo recorre à oitava mais baixa. Dois compassos depois, a
mesma coisa é repetida, mas então algo decisivo acontece. Como se o Mi mais alto
fosse levado a tentar puxar a melodia para si mesmo, para capturá-la, e como se a
melodia estivesse disposta a se submeter, temos agora uma longa ascensão passando
através das notas intermediárias da oitava de Mi a Mi; a melodia alcança Mi mais
agudo no tempo forte, e continua além dela: ________ . Por um momento ela escapa
do puxão da oitava mais baixa. Então esta última consegue apanhá-la novamente e,
submissa, a melodia desce suavemente, relutantemente, à última nota da frase, Mi.
Por este tempo, no entanto, o Mi mais alto tornou-se gradualmente mais forte do que
o mais baixo; ao final da primeira curva parcial, o resultado se suspende em
equilíbrio. Ela permanece para a segunda curva parcial para dar o último passo,
encontrar a demanda do que precedeu, para acomodar a emissão. O primeiro final de
Schubert falha em fazer isto:

______________

simplesmente ignora o conflito e vai para trás da situação que obteve no começo
como se nada tivesse acontecido. Mas _________ leva a decisão final, termina o que
foi começado por alcançar a meta da melodia, Mi em direção à qual tendeu desde sua
nota inicial, Mi. Mas para ser realmente definitivo, Mi deve ser alcançado desde uma
nota mais alta. O que o transpassar o teto, a ruptura do espelho, Mi – Fá, prenunciou
passar à última frase, _______ . (Conseqüentemente, o que caracteriza Mi – Fá não é
que, cantado sobre a palavra “grief” [mágoa], ele expressa este sentimento, mas que a
volta que expressa mágoa satisfaz a função decisiva de preparar para a frase de
fechamento da melodia.) Representada esquematicamente, esta é a história da
melodia, a gradual superação do Mi mais baixo pelo mais alto: _________. Um braço
é levantado, cai impotentemente, é levantado mais vigorosamente, permanece para
cima, e o que permanece no final é o quadro de um braço levantado. Depois dele, o
_______ do prelúdio, o qual se torna o poslúdio, se desvanece como uma sombra.

Não deixemos a objeção de que nossa consideração de como Schubert


descobriu o novo final para sua melodia é devido a uma visão posterior, que é uma
explicação após o fato. Isto certamente é verdade, mas não é uma objeção. Uma
explicação antes do fato classificaria as razões para algo por acontecer. Mas onde
nada “deve” acontecer, onde tudo pode acontecer diferentemente, uma tal explicação
é sem sentido. Explicar um evento antes dele ocorrer é possível somente se a situação
na qual ele ocorre pode realmente ocorrer outra vez ou ser artificialmente repetida,
como um experimento científico. Somente a recorrência do evento prova se a
explicação é correta, isto é, se o evento pode realmente ocorrer na dada situação.
Onde o evento é único, onde a recorrência é impossível em princípio, tal explicação
212

obviamente não serviria a propósito algum. A situação na qual Schubert encontrou


seu novo final não poderia ter ocorrido antes que ele o tivesse encontrado, nem
poderia ela ocorrer no futuro. Não poderia ocorrer antes porque a própria melodia não
existe, e quando ela existia com o primeiro final, não era a mesma melodia; a situação
não pode ocorrer no futuro porque o novo final retroativamente modificaria a
situação na qual ele foi encontrado. Afinal de contas, o novo final não teria existido
oculto em algum lugar nas notas antes de ser encontrado. A melodia como a
conhecemos hoje não existiu antes do novo final ser encontrado, e se Schubert não o
tivesse encontrado, ele não existiria, não mais do que as melodias que ele teria
composto caso tivesse vivido mais tempo. Foi o novo final que retroativamente
produziu a melodia; a demanda que o novo final satisfez, no novo significado da
melodia, a própria melodia – tudo isto foi criado retroativamente. Como poderia uma
explicação antes do evento ser considerada para tal processo? A fim de explicar e
entender tal caso, alguém deveria olhar não para as causas mas para o significado: a
questão que nos confronta aqui não é “Por quê?” mas “Qual é o significado de...”
Qual é o significado da mudança desde a versão antiga para a nova? Qual é o
significado do novo final? Qual significado ele criou? Onde nossa proposta é
interpretar o significado, a explicação após o fato não é sem sentido; ao invés disso,
de nenhum outro modo se poderia fazer justiça a um ato do pensamento criativo.

Que o “aperfeiçoamento” de Schubert é um ato do pensamento criativo será


prontamente outorgado; mas por que chamamos isto um paradigma do ato criativo?
Afinal de contas, dizer que existe tal coisa como o pensamento criativo, uma espécie
de pensamento que não se ajusta às nossas noções do lógico e do racional, não é dizer
que não existem atos criativos de diferentes tipos. Os exemplos tão longamente
discutidos, que ilustram o pensamento criativo dos musicistas e sua presença nas
obras-primas musicais, têm sido todos de um tipo; em todos eles o processo de
criação era o que os teologistas usavam para chamar creatio in re, não creatio ante
rem. Nestes exemplos, o processo criativo nunca começa em um vazio, nem mesmo
no vazio comparativo do material ainda não formado; estes sempre envolvem
trabalhar sobre algo dado, elaboração de algo já formado, desenvolvimento de formas
mais elevadas a partir de formas mais baixas – criação no sentido de transformação.
Mas o que sobre a outra espécie de criação, creatio ante rem, a qual, mesmo se não
cria fora de nada, ainda assim cria formas originais fora do material sem forma,
formas que são elaboradas mais tarde? O que dizer a respeito do tema, o “lampejo de
inspiração”? Afinal de contas, quando lidamos com o processo criativo na música, é o
tema inspirado o que primeiro vem à mente. É o tema o que é primariamente
responsável pela visão corrente de que a fonte principal da música é a inspiração,
algo diferente e mais alto do que o pensamento, mais apropriadamente do que uma
espécie de pensamento não-lógico. Se vamos sustentar que o ato criativo dos
musicistas é sempre e essencialmente um ato do pensamento, devemos mostrar que o
tema, também o originalmente “dado”, tem sua existência no mundo do pensamento,
não em um súbito lampejo de inspiração.
213

Vamos agora nos confrontar com a questão crucial de como o tema inspirado
vem à existência. A questão parece ser auto-contraditória: se o tema é devido à
inspiração, ele não “vem à existência”, ele existe. É sempre um começando, e a
questão do que vem antes do começar é sem sentido. E ainda, como veremos, esta
questão, embora possa soar paradoxal, não é auto-contraditória ou sem sentido. O
lampejo de inspiração, como tudo mais, teve antecedentes – não realmente
psicológicos (isto não nos concerne aqui) mas também morfológicos. O lampejo de
inspiração é, também, uma criatura do tempo, não do momento.

Os cadernos de esboço de Beethoven

“Nada jamais se iguala à perfeição do que vemos em nossa mente ao momento


da concepção!” Estas palavras são de uma carta endereçada a seu editor por Adalbert
Stifter – uma cândida testemunha, se houvesse mesmo uma. E mesmo a exclamação
envolve uma ilusão típica de todos os artistas criativos. Poderia haver uma coisa tal
como o “momento da concepção”, mas neste momento o artista não tem nada diante
dele em sua mente. Se ele tivesse algo diante dele, sua tarefa consistiria meramente
em copiar o que ele vê. Chopin teria sido poupado de seus esforços exaustivos e
infrutíferos; Schubert nunca teria registrado o primeiro final do seu “Wasserflut”. O
artista pode ter algo no fundo de sua mente ou profundamente enterrado nela; ele não
tem nada “diante” dele. Ele é empurrado, dirigido, pressionado, não puxado, não
guiado por um farol. O que ele tem diante dele é somente algo que ele quer obter a
respeito, ir além, sem saber para onde. O que ele tem diante dele é somente um vazio.
Aqui cada passo confronta-o com um horizonte aberto. A outra praia que ele quer
alcançar é invisível; ela não existe. Ele a imaginará somente ao progredir passo a
passo no vazio. A concepção não é nascimento; o artista que concebe um trabalho
não pode saber o que ele será após sua concepção ter se tornado uma realidade. Seu
trabalho pode falhar próximo à sua concepção, porque entre concepção e parto há um
período de gestação, e esta última, como todo processo vivo, envolve a possibilidade
de falha, de não-realização, tanto quanto de realização. Somente o próprio criador
sabe ou suspeita onde ele falhou. Nós outros somos beneficiados em ambos os casos.

Os Cadernos de Esboço de Beethoven, sobre os quais nos voltaremos agora,


constituem um registro profundamente impressionante e comovente dos estágios
através dos quais uma obra passa antes de vir ao mundo, um registro das batalhas,
derrotas e vitórias do compositor. Cinco mil páginas chegaram até nós – o único
documento musical conhecido deste tipo. Como uma obra musical vem a existir, é
registrado aqui em forma visível, tangível. É como se o processo da Natureza da
214

criação oculta – da qual sabemos somente por seus produtos acabados – tornasse-se
aqui transparente e revelasse seus trabalhos interiores: podemos literalmente ver o
processo de criação.

A importância deste documento foi primeiro reconhecida pelo musicólogo


Gustav Nottebohm. Seu pequeno volume levando o modesto título Beethoveniana
apareceu há mais de um século atrás. Um segundo volume, maior, Zweite
Beethoveniana, foi publicado após sua morte. O que estes livros revelaram foi tão
surpreendente, tão empolgante, que suas inadequações não são percebidas a princípio.
Eles contêm somente pequenas seleções dos manuscritos originais, os quais podem
ser comparados a minúsculos fragmentos recortados ao acaso de uma tela imensa.
Além disso, a seleção – como era de se esperar – foi determinada pelos interesses
pessoais do estudioso. Nottebohm também publicou separadamente seleções
resumidas de dois dos Cadernos de Esboços. Isto era tudo – até que, um século mais
tarde, a Beethovenhaus em Bonn começou a publicação da edição completa. O
primeiro volume apareceu em 1952; contém os esboços para a Missa Solemnis, sem a
omissão de uma única nota ou signo, reproduzida em tipo ordinário, não em fac-
símile (isto não teria servido a propósito algum porque a letra de mão de Beethoven é
ilegível aos não-iniciados). Somente aqueles que chegaram a ver os manuscritos
originais pode ter uma idéia de quanto trabalho foi preciso para decifrar e transcrever
o texto. Algumas páginas parecem como se um homem ao seu lado com excitação
estivesse expressando duas tempestades interiores com uma pena áspera. Não fosse
pela pauta alguém dificilmente perceberia que isto é música. O observador se
maravilha que isto é como uma estrutura organizada da mais alta ordem seria
produzida. Outras páginas parecem, à primeira vista, consistir de espaços vazios, tão
fracas são as notas rascunhadas a largos intervalos pela mais leve das mãos. Tais
diferenças, claro, não podem aparecer na versão impressa; todavia, temos agora uma
reprodução fiel do documento, o registro visível de um processo criativo contínuo.

A imensa quantidade destes esboços – e o que chegou até nós é somente uma
fração do que Beethoven escreveu – pode ser considerado somente se admitimos que
para ele compor era inseparável de escrever. É sabido que, em suas longas
caminhadas sempre carregava papel de música com ele na forma de pequenos
cadernos de nota, cuja condição mostra que os estava usando na rua. Outrora,
pensava-se que ele escrevia somente porque desconfiava de sua memória, porque seu
fluxo de idéias era tão abundante que temia algo pudesse escapar, mas um exame em
detalhe destes esboços mostra que esta hipótese é infundada. Outros compositores
registram idéias, um padrão tonal acabado que pode ainda ser deficiente em algumas
partes, ou delinear uma peça acabada omitindo detalhes. Em contraste, Beethoven em
seus esboços nunca registra uma melodia acabada; esta última aparece somente no
manuscrito do trabalho (onde, no entanto, muitas vezes submete-se a posteriores
alterações). Os esboços contêm somente o que precede a versão definitiva; o que eles
registram é como ela está vindo a ser. Vemos – literalmente vemos – como os
padrões desenvolvem-se desde começos embrionários, os estágios através dos quais
ele passa como se fosse gradualmente se aproximando do resultado final (o qual nós
215

conhecemos, mas o qual Beethoven não conhecia). Esta não é a reconstrução “ideal”
do processo criativo para o qual nos referimos em nossa discussão da teoria de
Schenker – o auto-desenvolvimento de um “plano de fundo” através de suas
sucessivas transformações pelos “planos intermediários” até o “primeiro plano”;
como declaramos explicitamente, nenhuma obra musical é de fato produzida deste
modo. Nos esboços, temos diante de nós o processo do desenvolvimento real em
tempo real. Um exemplo particularmente refinado vem a seguir.

A maravilhosa melodia que serve como tema para as variações no movimento


lento do Quarteto op. 127 poderia parecer a todo ouvinte um modelo de lampejo de
inspiração enviado pelos céus. Enquanto a melodia emerge dos compassos
introdutórios gradualmente assumindo forma, começa a respirar, para traçar sua linha
pura no espaço tonal, todo ouvinte sente claramente que aqui está a perfeição. Ele se
sente no colo dos deuses enquanto saboreia cada momento, exaltado, enlevado na
onda da música, profundamente satisfeito por suas proporções lógicas e requintadas.
De que outra maneira poderia tal obra ter vindo ao mundo que não como o todo que
ela é, de um só golpe, como uma dádiva vinda do alto? Bem, os esboços contam uma
história diferente. O registro visível dos dias, talvez semanas, de incessante labor ao
qual esta melodia deve sua existência preenche mais do que vinte folhas de música
grandes. Esta famosa melodia foi reconstituída pedaço por pedaço; continuamente,
novas possibilidades são testadas e descartadas. Em alguns pontos, o compositor
perdeu seu caminho completamente e teve que recomeçar de novo, ou hesitou
interminavelmente entre caminhos que o levaram a parte alguma. Tal é a face real
desta inspiração enviada dos céus.

Aqui está a melodia acabada sem as frases de abertura e fechamento, mudanças


de registro, acompanhamento e contra-cantos:

A tonalidade é Láb maior, a fórmula de compasso é 12 por 8 em um ritmo


balançante em ; um período de dezesseis compassos, divididos no meio por
uma cadência para a dominante Mib; cada metade é articulada por cesuras fracas em
duas frases de quatro compassos; um par de duas frases de quatro compassos, a
216

segunda repetindo a primeira com ligeiras alterações, a quarta sendo uma exata
repetição da terceira.

Aqui estão os primeiros quatro compassos:

Uma extensa anacruse, 5 – 6 – 7 – 8, leva à tônica: esta é seguida por uma


subida gradual para a sexta e duas descidas, a primeira começando com Fá, 6, e a
segunda com Mib, 5. A seguir vem um salto de uma oitava , seguido por uma
descida gradual. Representado esquematicamente, o movimento é
. A frase termina na nota não-resolvida Sib, 2, no meio do quarto
compasso. A segunda frase busca a resolução: os três compassos de abertura repetem
aqueles da primeira frase, mas o final do sétimo compasso (não contando a anacruse)
se desvia agudamente do curso anterior com . Deste modo,
uma resolução é encontrada, mas somente uma provisória, pois a última nota não é a
tônica Láb, mas Mib, 5. O centro foi mudado de 1 para 5. O centro original terá que
ser restaurado na segunda metade da melodia. Ele começa com o ainda não resolvido
Sib, 2 (a última nota da primeira frase de quatro compassos), alcançada pela anacruse,
, e leva-a para a buscada resolução 1, mas – uma idéia surpreendente
b
– é o Lá da oitava mais alta! Isto é, por assim dizer, uma delicada lembrança de que
a melodia deve algo mais ao salto de oitava do que o que foi concedido dele lá.
E então é somente por um breve trecho que o movimento após Sib, que começa no
compasso 9, desce para o Láb mais baixo; então ele muda de direção, começa a subir
suavemente, compasso a compasso, alcançando Dó, 3, que começa o compasso 10, e
Ré, 4, que começa o compasso 11. A partir deste ponto, no entanto, o caminho deve
ser desobstruído, o movimento procede irresistivelmente em direção ao Láb mais alto
e ainda além, de modo que ele pode ser alcançado via o passo , 2 – 1. Agora
faz somente o movimento de descida rápida e suavemente até
b
alcançar a nota de resolução realmente pretendida, Lá , com a qual ela chega a uma
pausa. A frase é então repetida, como se para confirmar e saborear a resolução
alegremente encontrada. (A impressão que pelo compasso 11 o caminho foi
desobstruído é provavelmente considerada pelo fato de que desde lá a meta desejada
pode ser atingida meramente por seguir o mesmo caminho, como no compasso 1. Os
esboços confirmam isto.)

Vamos agora ver como tudo isto sucedeu. Na página 35 de um dos Cadernos
de Esboços, dentre outras coisas, repentinamente encontramos isto:

. Um nada, fora de qualquer lugar; uma escala gradualmente


ascendente seguida por uma descendente, um ritmo balançante. Quem teria
217

suspeitado de suas potencialidades? Claro, quem sabe o que Beethoven fez dele
facilmente reconhece a semente do futuro padrão. O primeiro compasso revela seu
futuro perfil; o segundo é ainda amorfo. Somente a primeira e a terceira últimas
notas, as notas que irão reaparecer no padrão definitivo, são claramente legíveis; as
outras são apenas decifráveis.

Isto parece nada conter de um elemento poderoso para dar forma. Ele se
acomoda e começa imediatamente a se desenvolver, a se desdobrar. Ainda na mesma
página, encontramos isto:

A forma começou a respirar: ela encontrou sua própria respiração pela


extensão de quatro compassos. O segundo compasso não é mais amorfo; foi inteirado
um estágio mais alto (mesmo a sincopação no padrão definitivo já está
presente). No entanto, podemos quase tão somente sentir o padrão futuro nos
compassos 3 e 4. Mas ao final, similar a na melodia
acabada, mostra que as forças desenvolventes estão trabalhando.

Seguem vários experimentos com detalhes, mas então, duas páginas adiante,
vem uma surpresa. Vemos algo assim:

A frase repentinamente mostra uma outra face. Está numa tonalidade diferente,
Dó maior ao invés de Láb maior. Em Beethoven tal mudança indica um passo em
direção a uma maior simplicidade e clareza. A alternância rítmica entre notas longas
e curtas e de estados de tensão suave e resolução dão caminho a uma seqüência de
oitavas uniformes e relaxadas. Para nós, que sabemos que Beethoven a esse tempo
ainda não sabia, a saber, para o que este processo de crescimento estava levando, esta
mudança pode parecer como um desvio do caminho direto. Mas os caminhos do
desenvolvimento orgânico cuja meta está latente não são os caminhos do
planejamento intelectual que estabelece ele mesmo sua meta em avanço. O menos
pesado Dó maior, a mais relaxada seqüência de oitavas: quem poderá dizer – talvez a
tarefa requeira neste ponto que algum lastro seja arremessado fora do barco. O que
nos parece um desvio do caminho direto pode parecer ter sido um atalho em termos
de desenvolvimento orgânico.

Claramente, esta mudança marca um ganho decisivo. A vontade para mudar o


centro da dominante – aqui de Dó para Sol – afirmou-se da maneira mais simples e
218

mais marcante: o movimento do compasso 1 é repetido no compasso 3, somente


agora Fá# substituiu Fá; isto é, a ordem Dó maior abriu caminho para a ordem Sol
maior. Ao mesmo tempo, o compasso 2, levando ao novo começo do compasso 3,
encontra, como que acidentalmente, sua forma definitiva. Mas a maior surpresa vem
no compasso 4. Ele é rascunhado em duas versões: uma do registro mais alto é
tentada e obviamente rejeitada – ela nunca ocorre; a outra é retida. Mas nesta última
versão dos compassos 3 – 4 não é nada que não a frase final da melodia definitiva,
meramente transposta por um semitom abaixo e tempo 4/4. Começo e fim da melodia
foram encontrados, mas nada mais tão distante. O conjunto do padrão de
desenvolvimento está agora delineado tão concisamente quanto possível.

Para concluir este avanço, no entanto, importantes elementos tiveram de ser


sacrificados: o esquema de quatro compassos, a longa respiração orgânica. O que
temos aqui são quatro compassos, não uma frase de quatro compassos. Temos duas
frases de dois compassos, claramente distintas uma da outra porque a segunda frase
faz um novo início; ela não continua a primeira, mas é mais propriamente simétrica a
ela, uma unidade independente. Além disso, o compasso 4 tem um final real, ao passo
que a tentativa anterior de quatro compassos terminou com a não-resolvida nota 7,
assim indicando que a primeira parada estava para ser alcançada somente no final da
segunda frase de quatro compassos. É impossível saber, neste ponto, mas mais tarde
se tornará visível que nas duas tentativas as linhas da batalha futura estão desenhadas
claramente. Frases de quatro compassos, mudam o centro: estas duas demandas
inerentes ao padrão de desenvolvimento são aqui expressas como duas alternativas
mutuamente excludentes que levam a duas soluções radicalmente diferentes,
mutuamente excludentes. A frase de quatro compassos exclui a mudança de
tonalidade: a mudança do centro divide a frase de quatro compassos em duas. O
compositor é agora confrontado com a tarefa de reconciliar o aparentemente
irreconciliável, de satisfazer ambas as demandas.

Não se deve esquecer, no entanto, que tais percepções são devidas a uma visão
posterior, após o fato. Neste ponto Beethoven não sabia, não poderia ter sabido, que
meta ele queria atingir – ele sabia, ele poderia ter tido a melodia inteira; ele mesmo
pensou aqui que deveria, além disso, diminuir o peso e a tensão. E então ele substitui

as oitavas por sextas: ; a melodia torna-se alegre.


Um último experimento no mesmo espírito resulta em um delineamento um tanto

enevoado: . E enquanto Beethoven adicionava a palavra


“V.cello” na última nota oitavada do esboço – isto é, planejando para um quarteto de
cordas – Schindler ( o assistente e executor testamenteiro de Beethoven) escreveu na
margem da décima-sexta nota dos esboços que ele intencionava ser usado em uma
sonata para piano a quatro mãos. Aparentemente Beethoven neste ponto brincava
com a idéia de um trabalho inteiramente diferente, mas logo o abandonou. Por um
tempo ele perseguiu experimentos em contraponto com o material das dezesseis
notas, mas o próximo esboço marca um retorno à idéia original:
219

As oitavas estão de volta; a indicação explícita “adágio” enfatiza a rejeição à


alegria. Mas isto é muito mais do que um retorno à idéia inicial. Marca também um
avanço essencial. Pela primeira vez a estrutura inteira, consistindo em dezesseis
compassos (como indicado pelos signos de repetição no meio), vem à vista; o
resultado definitivo é delineado; e aprendemos que ele será formado pela repetição de
duas frases de quatro compassos. Além disso, ele começa e termina, aos dois
primeiros e aos dois últimos compassos, é dada sua forma definitiva (aparte de uma
pequena mudança no final). A pausa da melodia, contudo, está ainda meio-formada.
A primeira metade assemelha-se ao primeiro esboço em Dó maior: pois o tempo
sendo progressivo a atravancou. A repetição da frase transforma os ganhos prévios
em fraqueza: a frase de dois compassos combinada com a cadência na dominante (a
qual é agora repetida) soa com falta de ar; a breve oscilação da tonalidade entre 1 e 5
carece de justificativa intencional. Por contraste, o processo de crescimento foi sendo
levado muito mais longe na segunda metade do esboço. Com respeito ao seu
movimento, a lenta subida por notas conjuntas de compasso a compasso, os dois
primeiros compassos após a repetição, são agora muito similares aos compassos
correspondentes no padrão definitivo, acima de tudo naquilo que eles designam a
levar em uma ampla subida em direção ao “clímax” dos dois últimos compassos.
Conseqüentemente, o que temos aqui, em contraste com o que temos na primeira
metade, é uma genuína frase de quatro compassos. E o “clímax”, a frase conclusiva
com a qual o esboço chega ao padrão final, é nada que não a repetição dos compassos
3 – 4 da primeira metade, exceto por começar em Fá ao invés de Dó, assim lendo Dó
ao invés de Sol. Previamente mal empregado, aqui está absolutamente correto;
encaixa-se perfeitamente. Os caminhos de desenvolvimento são peculiares: era
realmente necessário que a frase aparecesse primeiro no lugar errado e então pela
repetição se colocasse no lugar certo? É também valioso notar que neste ponto
Beethoven já reconheceu que após a metade fechada na dominante a segunda metade
da melodia deveria começar diretamente, sem transição, na tonalidade da tônica. No
entanto, a segunda metade começa com 1 – esta é a sua fraqueza – não com a tensão
da nota 2, como no padrão definitivo. Como um resultado, o começo da segunda
metade soa como um começo inteiramente novo; a pausa conjunta em duas partes
separadas. E existe outra fraqueza: a frase conclusiva foi antecipada no compasso
final da primeira metade (ainda duas vezes). Conseqüentemente, seu efeito
maravilhosamente libertador na versão definitiva, está ausente aqui. A tensão que
informa o arco do final da melodia não está ainda à vista.

Nos esboços seguintes, Beethoven leva a si mesmo ao ponto onde o processo


de desenvolvimento foi encarcerado após a maior parte. Desde que o esquema de dois
compassos da primeira metade está errado, ele tenta encontrar outra continuação para
os dois compassos de abertura. Ele se concentra nos compassos 3 – 4, como pode ser

visto no começo do próximo esboço longo: . Esta é uma


220

verdadeira frase de quatro compassos, similar àquela no último esboço em Láb maior,
mais próximo da versão definitiva porque desta vez ele termina “corretamente” sobre

2. O que é decisivo, contudo, é a mudança no compasso 3: . Se bem que ainda


não seja a versão definitiva, está presente aqui de um modo peculiarmente encoberto,
como será visto logo adiante. O esboço é muito elaborado: ele aponta para um
conteúdo inteiramente novo para todos os dezesseis compassos, mas decresce
lentamente sem resultado. O que é notável é que no meio a melodia repentinamente,
sem nenhuma razão, muda para Láb maior. A tonalidade original não foi esquecida: o
impulso para retornar a ela continua estando ativo em segredo. Muito breve ela se
afirmará abertamente.

Um dos esboços na próxima página mostra Beethoven experimentando pela


última vez com dezesseis compassos; o que segue, no entanto, é surpreendente:
16
. Esta é uma volta, levemente velada (o perfil é impuro; o metro é
diferente), ao ritmo e à tonalidade originais. Mas o que é decisivo é que o terceiro
compasso abre com um salto de uma oitava, onde o esboço cessa bruscamente.
Podemos quase sentir a mão do compositor parando instantaneamente com a
percepção de que ele havia atingido o passo correto. (Ele percebeu isto somente após
escrever.) Então, seguro de si mesmo, ele procedeu a rascunhar o próximo esboço,
onde a anacruse faz sua primeira aparição:

Este é o padrão definitivo da primeira frase de quatro compassos: salto de uma


oitava, seguido de uma descida gradual. O mesmo esboço também mostra como o

compasso 3 da versão definitiva foi prefigurado no esboço precedente: .


Ambos, o salto e a descida, estão aqui, mas na ordem inversa! Enquanto um problema
é resolvido, outro aparece: a frase de quatro compassos não pode ser estendida para
oito compassos por ser repetida, pois ela não muda o centro para 5. Mesmo a
mudança deve ser efetuada pelo oitavo compasso. Em conseqüência, um novo
conteúdo executando a mudança pode ser encontrado pelos compassos 5 – 8. O
esboço mostra a primeira de muitas tentativas, nenhuma delas satisfatória. O tempo
ainda não está maduro para promover o desenvolvimento.

E então Beethoven ataca outro problema: outra vez ele se concentra na


estrutura como um todo, todos os dezesseis compassos. Para começar, ele tenta
aperfeiçoar a seção central da melodia onde, nos primeiros esboços completos em Dó
maior, ele divide em duas partes porque a segunda metade começava com 1, o que
produzia o efeito de um começo inteiramente novo. Ele rascunhou o seguinte muito

16
A primeira metade do segundo compasso é ilegível.
221

rapidamente, como se para registrar imediatamente uma possibilidade que havia há


pouco lhe ocorrido:

À primeira vista isto parece ser com um passo para trás. O padrão final
previamente atingido (é claro, Beethoven não sabia que ele era o final) da primeira
frase de quatro compassos é sacrificado; as primeiras frases de dois compassos estão
de volta. Mas isto está fora de questão aqui; Beethoven está agora interessado em
alcançar o meio com o centro modificado, se possível em uma limpeza que o
carregará na correta continuação e na ligação apropriada das duas metades da
melodia. Por sua vez, nada melhor é avaliável por ele, para enchimento do todo
estendido desde o começo até o meio, do que as duas frases de dois compassos com
repetição. Mas a tentativa revela-se frutífera. O que aparece agora na fenda no meio é
nada mais que não a anacruse do começo, repetida aqui, mas agora levando para 2 ao
invés de 1. Em outras palavras, ao invés do prévio , agora temos

no meio, uma ligação tão simples quanto sólida, une as duas


metades em um todo único.

Na página seguinte encontramos um esboço de dezesseis compassos. A


anacruse não está rascunhada, mas um prelúdio é indicado (os primeiros dois
compassos estão escritos na clave de Fá), e a mudança de registro é efetuada. A
melodia é dividida entre o violino e o violoncelo:

Beethoven escreveu esta descida dupla, a segunda vez com a indicação de um


contra-canto mais agudo, que sutilmente diferencia entre a primeira ocorrência da
frase conclusiva e sua repetição. (A nota Solb do contra-canto, última nota no terceiro
compasso do final, faz a nota de abertura do próximo compasso soar como
1 por um momento, de modo que aqui a frase conclusiva começa com Ré b = 1 e
termina com Láb = 1. Assim aqui – mas não nos quatro compassos anteriores, onde
ela ocorreu primeiro – ela tem exatamente a mesma forma na qual apareceu primeiro,
embora no “lugar errado”, no primeiro esboço em Dó maior!) Exceto pelos
compassos 3 – 4 e sua repetição nos compassos 7 – 8, tudo parece aqui como na
versão definitiva – mas sabemos que o problema está oculto por detrás destes dois
compassos “inacabados”. Para dominar esta última tarefa um grande negócio
permanece por ser feito.
222

Por algum tempo o desenvolvimento não é levado adiante. Nas próximas duas
páginas encontramos sugestões de variações. Beethoven ainda brinca por uma última
vez com Dó maior e notas em oitava. Ele experimenta com prelúdios e poslúdios
possíveis; ele presta atenção aos contra-cantos. Então, lentamente, o último estágio de
desenvolvimento começa, e ao mesmo tempo toda espécie de outras idéias ocorre a
ele. Com o próximo esboço ele experimenta descartar os períodos de dois compassos
na primeira metade; o esboço começa com a primeira frase de quatro compassos
correta, mas falha em encontrar a continuação, que é suposta levar à dominante
quatro compassos mais tarde. Ele escreve, risca, escreve novamente e risca
novamente; as notas não têm direção. O resultado do esforço infrutífero é uma nova
tentativa, a última, com a forma de dois compassos, quase idêntica à da última citada,
somente enriquecida por um póslúdio. Então ele volta para trás para a frase de quatro
compassos do começo, assim:

Um novo conteúdo para os compassos 5 – 8 e um sinal de repetição? Que


formam dezesseis compassos. Onde está a segunda metade? Pretenderia Beethoven
estender a melodia para trinta e dois compassos? Outra vez, parece que todas as
conquistas alcançadas laboriosamente estão sendo colocadas em perigo. De fato, no
entanto, estamos agora quase próximos do final. Esta é somente uma última tentativa
antes do passo decisivo – uma tentativa na direção oposta. O que encontramos na
próxima página é já o último esboço:

A princípio, é com dificuldade que percebemos que o passo decisivo foi dado,
pois aqui Beethoven reconhece que a primeira frase de quatro compassos deve ser
repetida. Justo como a segunda metade da melodia, então a primeira metade requer
repetição de uma frase de quatro compassos. Este é um reconhecimento sem reservas;
a frase é repetida literalmente. Como resultado desta repetição, a mudança de centro e
a conclusão sobre a dominante no compasso 8 estão eliminadas, mas somente um
observador superficial concluiria que isto é outra tentativa para alcançar o impossível.
Na verdade, tudo o que é necessário agora para chegar na versão definitiva é uma
pequena mudança, uma tão desprezível que ela dificilmente tem importância
enquanto registrando em mais um esboço. Esta mudança aparece somente na melodia
definitiva, no manuscrito: nos compassos 3 – 4 torna-se
223

nos compassos 7 – 8. Isto é tudo o que é necessário para atingir a


meta imanente no processo de crescimento, isto é, para realizar as duas tendências
mutuamente exclusivas – a de uma articulação em quatro compassos e a de uma
mudança de tonalidade no meio – dentro de um padrão coerente.

Vamos dizer mais uma vez: nossa apresentação da seqüência dos esboços
musicais como um processo significativo, uma revelação, um crescimento cuja meta
pré-determinada é alcançada, embora a abordagem possa ser peculiar, com uma
espécie de certeza sonambulística – tal apresentação foi possível somente porque
sabemos o desfecho. Para aqueles que não conhecem o final, que não podem ver o
que vem após cada estágio sucessivo, longas distâncias do processo podem parecer
como uma flutuação sem plano entre possibilidades igualmente pouco promissoras.
Os tormentos criativos de um artista são devidos ao fato de que está na mesma
situação: ele não sabe a meta do processo; em virtude disso, antes de alcançar sua
meta, não sabe se ela existe. Ele toma uma grande quantidade de força, coragem e fé
para perseverar em tal situação. Até o último passo, o artista não pode dizer, isto é
isto, isto é o que eu havia buscado sem saber o que era, sem mesmo saber que eu
estava buscando isto. Somente após ter a melodia definitiva diante dele pode
Beethoven entender que todo o longo processo foi a respeito dela, que espécie de
problema ele tinha a resolver (posto que ele está interessado, o que é duvidoso).
Estamos nos lembrando do dito de Valéry de que uma linha ditosa em um poema é a
solução de um problema que se levanta somente após ter sido resolvido. Paul Klee
diz também: “Um artista conhece uma grande oportunidade, mas somente em
retrospecto”.

Os esboços citados acima são novamente reproduzidos, em seqüência, na


prancha seguinte: um desenvolvimento puramente audível pode também ser tornado
visível – pode apresentar um quadro significativo para o olho – e assim somos
capazes de ver que a “inspiração” considerada como outrora o véu de mistério foi
levantada. O que aconteceu com a súbita iluminação tão gabada, a voz que parece vir
desde o alto e para a qual o criador extasiado ouve atentamente? Quem poderia estar
mais incerto do que Beethoven está aqui a respeito de sua própria criação, a respeito
do que sua própria voz lhe diz? O lampejo de inspiração, o momento da graça, é visto
se estendendo no tempo, demorando mais e mais tempo. Ao invés do repentino “Aqui
está!” vemos um longo processo, uma lenta gestação. E o tempo a que nos referimos
não é o tempo que um artista precisa para impor sua vontade a um material refratário,
nem é um processo como aquele, a dizer, de construir uma casa, pedra sendo
adicionada à pedra, até a forma concebida pelo arquiteto tornar-se realidade.
224
225

É o tempo de desenvolvimento, comparável ao desenvolvimento orgânico, um


processo que acontece independentemente da vontade ou da imaginação do artista:
ele não pode atuar sobre ele; pode apenas regular seu curso. Desde seu começo como
uma visão do surgimento final do padrão definitivo, este processo é tudo menos um
desenvolvimento direto. É marcado por falsos inícios, mudanças de direção, segundos
pensamentos; mesmo assim ele não é cego, não é um tatear no escuro, mesmo se em
alguns pontos ele assim parece ser. Mais propriamente poderia ser dito seguir um
aroma invisível: é um tâtonnement dirigé (“um tatear dirigido”), como Teilhard de
Chardin caracteriza o desenvolvimento das coisas vivas. É como se o compositor
nada fizesse com ele, como se as notas fizessem tudo por si mesmas. Não vemos
nenhum Prometeu aqui, nenhum Titã atuando com orgulho: o que vemos é um
homem lutando contra obstáculos, fazendo seu máximo para ajudar as notas em seu
esforço para nascer, atuando como uma parteira, um anti-Prometeu, tentando somente
descobrir a vontade oculta das notas. É uma experiência profundamente tocante ver
como Beethoven – por exemplo, quando ele tenta encontrar a correta continuação
para o compasso 4 – começa sua busca não com o compasso 5 mas com o compasso
1. Como mencionado antes, ele repetidamente começa tudo de novo, escreve todos o
quatro compassos iniciais nota por nota, freqüentemente em pressa febril, como se ele
soubesse que pode encontrar o que está vendo somente nas próprias notas, que deve
deixar-se ser carregado por seu movimento, mover-se com o tempo delas e
novamente até que seu momento leve-o acima da barreira e o coloque na pista
correta. Pois ele não sabe como a melodia irá continuar, e somente as notas podem
lhe dizer. E elas o fazem, repetidas vezes. São elas que falam a ele, não uma voz
vinda do alto. Isto é inspiração, se você quiser, mas sua fonte não é nem uma força
mais alta nem o próprio artista: ela vem das notas.

Poderia ser afirmado que, diferente do crescimento biológico, o processo há


pouco descrito começa em um ponto que pode ser localizado com exatidão. Quando a

frase emerge pela primeira vez, algo de fato surge de lugar


algum, está repentinamente “lá”, a criação de um momento, não o resultado de um
processo – em outras palavras, uma súbita iluminação, um genuíno lampejo de
inspiração. A criação de um momento, sim; mas de um momento de graça, um
momento “inspirado”? é realmente necessário usar tais palavras grandiosas para
julgar a existência de ? Afinal de contas, pensar é sempre pensar
sobre ou a respeito de “algo”. Um musicista naturalmente pensará a respeito de notas,
a menos que algo mais se force sobre sua consciência. Quando a consciência de um
musicista é deixada a si mesma, por assim dizer, será uma consciência das notas, na

forma de grupos reunidos mais ou menos desprendidas. : uma escala


ascendente, um ritmo balançante – isto é simplesmente o que os psicólogos chamam
de um conteúdo primário da consciência. Sua presença não requer nenhuma
explicação especial. Desde que os compositores são seres conscientes, tais conteúdos
primários da consciência devem existir, também. Em outras palavras, a existência de
226

não é uma questão morfológica mas somente uma questão


psicológica.

Que o processo aqui descrito é típico do método criativo de Beethoven é


estabelecido convincentemente por seus Livros de Esboços. Como mencionado antes,
seu método representa um método excepcional, na medida em que sua composição é
inseparável de sua escrita. Mas isto não implica necessariamente em que o que
podemos estar aprendendo deste caso especial não tenha validade geral. Algo veio à
luz aqui que pode muito bem estar presente (embora usualmente esteja escondido) no
trabalho de outros compositores. E então afirmamos enfaticamente que é o processo
da criação musical em si, o qual é revelado nos Cadernos de Esboços de Beethoven,
que a criação musical é sempre um processo de crescimento espontâneo, e que todo
padrão tonal genuíno é algo desenvolvido. Na maioria dos casos, contudo, os estágios
deste processo sucedem-se um ao outro tão rapidamente que o compositor não pode
registrá-lo – é provavelmente mesmo inconsciente dele – ou (isto é o que deveria na
verdade ser admitido) o processo toma lugar no inconsciente, e somente seu
resultado, o padrão acabado, cruza o limiar da consciência. O que os compositores
experimentam como um lampejo de inspiração seria então meramente o momento no
qual eles se tornam cônscios do padrão acabado, gradualmente desenvolvido – aquele
momento quando Beethoven pára de escrever em seu Livro de Esboços e passa a
escrever o autógrafo. Tal afirmativa não pode ser confirmada ou refutada pela
observação; não pode mesmo ser chamada de uma hipótese; além disso, podemos
admitir que ela é menos plausível do que as objeções que serão levantadas contra ela,
por artistas que experimentaram lampejos de inspiração e por outros. Somente isto
pode ser dito em seu favor. Ninguém negará que as melodias produzidas por Mozart,
Beethoven e Schubert pertencem ao mesmo tipo, apesar das diferenças individuais e
geracionais que elas revelam. Agora, o método criativo de Beethoven é o mais oposto
do de Mozart e Schubert; eles compunham sem esforço e rapidamente, como se
redigindo uma incansável provisão de padrões acabados. Não é verdade, de um modo
geral, que a afinidade do tipo aponta para a afinidade da fonte? É concebível que
melodias tão intimamente relacionadas sejam produzidas de maneiras radicalmente
diferentes – que uma pressupõe um logo processo de crescimento enquanto outras
são, por assim dizer, imaginadas por uma varinha mágica, um “Venha a ser...”? No
entanto, por menos que alguém tente provar aqui, o melhor: afinal de contas, nossa
afirmativa é admitidamente um ato de fé, um postulado do mesmo tipo que o mais
exato dos cientistas não pode dispensar, cuja validade é mensurada somente por sua
contribuição ao nosso conhecimento e compreensão.

“Não se supõe ser a perfeição algo crescente”. Sob este título Nietzsche
escreve em Human, All Too Human: “Na presença da perfeição, raramente
perguntamos como ela acontece. Ficamos contentes em usufruí-la como uma dádiva,
como se fosse conjurada por mágica. Isto é assim provavelmente porque estamos
ainda por uma atitude primitiva, mitológica. . . . O artista sabe que seu trabalho é
mais altamente louvado se ele dá a impressão de ter sido produzido pelo milagre de
227

uma súbita iluminação, e então ele encoraja acreditar que na criação de uma obra de
arte a única força ativa é a inspiração cega. . . . Sua intenção é iludir o espectador ou
ouvinte, fazê-lo prontamente aceitar a idéia de que a perfeição implica em nenhum
trabalho. . . . É a arte imposta pela história . . . para dissipar esta ilusão e expor as
falácias e maus hábitos que guiam o intelecto dentro da espraiada rede pelo artista.”

A noção romântica do artista, que Nietzsche denuncia aqui, desde há muito se


tornou uma coisa do passado. Mesmo ainda hoje, após ter sido “des-romantizada”,
estamos relutantes em negar que existe algo miraculoso na obra de arte e que a voz
desde o alto foi uma parte em sua produção. Ao mesmo tempo, nos agarramos na
noção de que “milagre” é o oposto do processo, e acreditamos que uma força mais
alta pode atuar somente por mágica – como se o desenvolvimento gradual diminuísse
sua dignidade. Perfeição não se supõe ser algo que cresça. Este ponto de vista é ainda
tão comumente sustentado quanto era no tempo de Nietzsche. Teriam os cientistas do
século dezenove e seus partidários nos tornado incapazes de experimentar a
maravilha e o assombro do milagre do crescimento? Ouvimos ainda suas explicações
fáceis e compartilhamos de sua adulação ao intelecto? Não ouvimos nunca o coro
crescente das mais recentes vozes? Seja lá o que for, certamente não existe melhor
caminho para reaver a capacidade de se maravilhar e assombrar do que estudar os
Cadernos de Esboços de Beethoven.
228

XVIII. Pensamento Cognitivo


e Pensamento Criativo

Que os padrões musicais são criados através de um processo de crescimento foi


a impressão irresistível trazida pelas séries de exemplos discutidos acima. Muitos
outros exemplos poderiam ser citados dos Cadernos de Esboços de Beethoven. Em
todo caso, a concepção primeira é amorfa, contendo ainda elementos capazes de
desenvolvimento, e as forças que ativam e dirigem este desenvolvimento para a
forma definitiva parecem ser inerentes às próprias notas. Admitindo, como temos
feito, que o mesmo é verdadeiro para o trabalho de outros compositores, todo o
domínio da música aparece mais apropriadamente próximo àquele da natureza, onde
similarmente formas germinam, crescem e maturam. A única diferença é que plantas
e animais, após alcançarem a maturidade, geram outras de sua espécie e morrem,
enquanto que as obras de arte se reproduzem por se tornarem vivas novamente a cada
vez que a experimentamos.

Contemplando este aspecto da música quase nos esquecemos que, diferente de


plantes ou flores ou frutos, seus padrões são feitos pelo homem. E se eles parece estar
crescendo organicamente, eles são ao mesmo tempo o resultado da atividade humana.
O milagre do crescimento orgânico da melodia de Beethoven é um aspecto, mas
existe também o milagre do pensamento: Beethoven o homem debruçou-se sobre
seus trabalhos, buscando e encontrando, resolvendo problemas e criando novos,
tomando cada simples passo conscientemente, produzido pelo pensamento. Se
quaisquer dúvidas permanecem a respeito do que produz os padrões tonais, aqui eles
são deitados por terra: é o pensamento, um esforço intelectual continuamente
renovado. A atividade da mente quando ela se concentra sobre uma questão que a
229

confronta, como um problema, quando ela encontra soluções que se tornam parciais e
postulam novos problemas, e quando por fim ela alcança a meta que representa a
solução de todos os problemas – não podemos que não chamar isto de pensamento.
Reconhecidamente, este tipo de pensamento não se ajusta completamente na imagem
tradicional de um homem que confia nas fontes de sua mente, onde ele busca
orientação para alcançar suas decisões. O pensador assim como o compositor está
mais propriamente perdido em sua mente, a qual não concede sua orientação; ele olha
para a orientação em sua matéria subjetiva, as notas, e é de fora das notas que a
inspiração vem a ele. Agora podemos aplicar o termo sem termos que incomodar o
gênio ou o Deus ou as Musas do homem. Nem existe uma contradição entre a
atividade do compositor como um parteiro ajudando uma melodia a nascer e o caráter
da obra como uma criação feita pelo homem. Pois as notas não são algo radicalmente
diferente do homem, totalmente fora dele. As próprias notas são criadas pelo homem,
e o espírito das notas é o espírito do homem. Quando o compositor busca orientação
nas notas, ele busca orientação em seu próprio pensamento: ele pensa não somente
em notas mas fora das notas. Um padrão tonal, uma obra musical – eles se colocam
diante de nós totalmente como o produto do pensamento humano.

Como o pensar e a inspiração colaboram no processo de composição? Por


agora, certamente, esta questão antiga tornou-se tudo menos sem sentido. Qualquer e
todo elemento da obra musical, seja tema ou elaboração, tem sua origem em uma
única fonte, uma fonte para a qual não há melhor palavras do que pensamento,
pensar, reflexão intelectual sustentada, mas em um sentido diferente daquele que elas
têm dentro da lógica.

O processo que temos estudado é inegavelmente uma instância concreta do


pensamento não-lógico. Houve um tempo quando sua realidade foi negada, quando
todas as formas de conhecimento do pensamento não-lógico – pensamento orgânico
ou intuitivo, imagem ou objeto – eram tomadas como sendo primitivas, estágios pré-
lógicos do pensamento lógico. Tal ponto de vista não pode mais ser justificado: um
documento tal como os Cadernos de Esboços de Beethoven é suficiente para
demonstrá-lo. Um habitante do deserto poderia acreditar que a vida é impossível fora
da atmosfera, mas ele seria compelido a admitir seu erro se lhe mostrassem um peixe.
Que existe uma coisa tal como o pensamento não-lógico, e que ele não é meramente
um estágio preliminar do pensamento lógico mas igual a ele em qualidade e
performance, não é mais matéria de debate. A única coisa que ainda permanece em
questão é a natureza desta outra espécie de pensamento e seu modo de operação.

Como é bem sabido, o pensamento lógico lida com conceitos e proposições,


esta última definindo conceitos e ligando-os de acordo com regras rigorosas.
Conforme seu modo de operação, o exemplo modelo é fornecido pelos Elementos de
Euclides. Sua lei suprema é a implicação: nenhuma proposição é válida a menos que
siga necessariamente desde os axiomas e definições iniciais. Tudo o que o
pensamento lógico faz é tornar explícito o que está implícito nos axiomas e
definições, desnudar, descobrir o que está escondido – muitas vezes escondido tão
profundamente que somente o mais árduo esforço intelectual pode trazê-lo à luz. A
230

prova do teorema de Pitágoras que “no triângulo de ângulo reto o quadrado da


hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos” está totalmente contido nas
definições de ponto, linha reta, ângulo reto, triângulo, quadrado e assim por diante.
Embora dificilmente alguém encontraria a prova sem ajuda, ela deve estar implícita
naquelas definições, pois de outro modo não seria válida. Sua validade é provida
precisamente pela demonstração de que está implícita nela. (Incidentalmente, este é o
porque os Elementos podem ser lidos de trás para frente, começando do final, como
feito pelo jovem Pascal.) Embora inesperadas, as coisas que vêm à luz deste modo,
não podem ser “novas”. Toda a força de um argumento lógico consiste precisamente
nisto, que ele nunca diz algo realmente novo, que ele somente nos faz ver o que não
havia sido visto antes. O que é realmente novo vive além do alcance das leis da
lógica. Este é o por que no campo da lógica nenhum problema é insolúvel a princípio,
nada é a princípio incognoscível. Aqui, o que é desconhecido hoje pode tornar-se
conhecido amanhã; o que algum homem falhou em descobrir, outro pode ser capaz de
descobrir: pois o que pode ser descoberto está já lá, como deve ser se é para ser
descoberto sem violar as leis da lógica. (Incidentalmente, é interessante notar que
uma característica individual do sistema de Euclides – a idéia que pode na verdade
não ter ocorrido a ninguém – é um passo não-lógico: a idéia de que uma proposição
de um sistema pode ser “nova”, isto é, não está contida nas proposições prévias e
portanto não é dedutível delas. A lógica moderna, no entanto, tem demonstrado que a
idéia de Euclides para propor que o postulado do paralelo como indemonstrável fosse
apesar disso um postulado lógico: seria demonstrado logicamente que todo o sistema
lógico completo deveria incluir pelo menos um postulado logicamente
indemonstrável.)

O pensamento musical lida com movimentos e ligações dentro de padrões. Por


que a música foi sempre experimentada e reconhecida como movimento foi
demonstrado em detalhe em outro lugar17. Música é movimento, movimento puro,
livre de todo vínculo com objetos materiais, e por esta razão uma espécie de
movimento que pode ser realizado em pensamento. Que os padrões musicais são
padrões de movimento é confirmado pelo modo como são produzidos. Temos visto
que Beethoven invariavelmente reescreve suas melodias desde o começo toda vez
que ele perdeu como continuá-la. O que ele faz seria completamente um desperdício
de tempo sem sentido não fosse sua proposta ser mover-se com as notas, descobrir
um novo movimento por se mover com o antigo. O que ele busca ao escrever

e encontra quando escreve é um gesto tonal, são


movimentos tonais. Cada movimento comunica seu impulso para o próximo; o último
imagina-o e equilibra-o, mas invariavelmente excede sua meta, de modo que
novamente um novo movimento poderá ser buscado, poderá ser inventado. O novo
movimento é novo no pleno sentido da palavra: aqui o pensamento não acontece sob
as leis da lógica como no buscar e encontrar algo que já está lá; é inventar algo que
não está lá, não ainda lá, não implícito no dado, mas demandado por ele. O
pensamento lógico é dedutivo, leva somente à luz; sua meta é descobrir o escondido;
17
Cf. Sound and Symbol: Music and the External World, pp. 73-148.
231

é como revelar uma chapa fotográfica exposta. O pensamento musical articula, dá


forma a um impulso amorfo; sua meta é preenchê-lo; é como o desenvolvimento de
um ser vivo, auto-desenvolvimento. O primeiro é tornado visível, o segundo é
tornado real. Por esta razão, o que é verdade na lógica, a saber, que cada passo pode
em princípio ser dado por qualquer pessoa a qualquer tempo, não é verdade para a
música. O pensamento lógico é uma função impessoal: pode em princípio ser
executado, embora com eficiência variável, por qualquer indivíduo: o pensador aqui é
a matéria lógica pura. Onde a música é concernida, o pensador é um indivíduo vivo,
pois ele compartilha um movimento vivo que envolve o homem como um todo.

Vemos agora: a feição distinta do pensamento musical é o mesmo que aquele


da audição musical. Exatamente como o “Eu” da audição objetiva, o ouvinte dos
ruídos, é diferente do “Eu” da audição musical, o ouvinte das notas, o pensamento
cognitivo é diferente do pensamento criativo. O “Eu” do pensamento cognitivo é
determinado pela oposição entre sujeito e objeto; o que quer que ele pense deverá
tornar-se seu objeto, deverá ser algo que ele não é. Ele não pode se pensar sem
tornar-se um objeto, alienado de si mesmo. Pensador e pensamento são separados por
um abismo intransponível. O “Eu” do pensamento criativo não pensa algo fora dele
mesmo; ele é seu próprio movimento e ele pensa movimento; ele pode se pensar sem
tornar-se alienado de si mesmo; ele encontra, por assim dizer, desde o lado de fora o
que ele pensa do lado de dentro. Ao invés da separação entre pensador e pensamento,
temos aqui a unicidade de ambos.

Agora, quando a função e o que sustenta a função não podem ser diferenciados;
quando o ser humano não tem uma função, mas é uma função, função inteiramente
que projeta agora um, não outro aspecto; quando a função não é dirigida para um
objeto em separado ou separável dentre muitos; quando, gramaticalmente falando,
sujeito, predicado e objeto estão em constante movimento de influência mútua: então
a divisão em três partes gramaticais de fala torna-se enganosa. A mesma unicidade,
intimidade, interação que caracteriza a relação entre o cantor e sua canção no estágio
primal caracteriza aquela entre Beethoven e seus padrões melódicos. A matéria
pensante é também a matéria ouvinte: ela se deixa ser guiada por sua criação. O
último está invariavelmente em crescimento e em invenção, nunca um ou outro.
Nossa distinção costumeira entre sujeito e objeto simplesmente não se aplica onde a
experiência musical diz respeito. Esta experiência não é mística. Embora ela seja
similar em estrutura à experiência musical, na última o sujeito não está
completamente submerso pelo pensamento; os dois aspectos do processo envolvente
permanecem distintos. Mas aqui a distinção foi em um sentido inteiramente diferente
de nossa distinção costumeira entre “sujeito” e “objeto”.

Existe, então, uma coisa como um pensamento lógico, pensar em conceitos, e


existe uma coisa como um pensamento musical, pensar em movimentos. Pensamento
conceitual leva a julgamentos, pensamento musical a padrões tonais. Todo conceito é
um conceito “de” algo, uma reflexão da realidade. Movimento é real por si mesmo.
Pensamento conceitual é cognitivo, se propõe a adicionar nosso estoque de
conhecimento. Pensamento musical é produtivo, se propõe a adicionar nosso estoque
232

de realidade. Pensamento conceitual deve sua ordem interna às leis da lógica que o
governam: é natural supor que o pensamento musical, produtivo, deve sua ordem
interna às leis que lhe são próprias. O que são as leis da lógica é conhecido: deverá
ser possível ter uma percepção sobre o interior da natureza daquelas outras leis das
quais temos nos instruído a respeito do pensamento musical.
233

XIX. A Lei Musical

Antes de mais nada, deixe-nos definir o sentido no qual empregamos o termo


“lei”.

Como usado comumente, ele denota uma afirmação geral que cobre um vasto
número de instâncias individuais. Leis da natureza são afirmações a respeito de
processos naturais; elas se referem a certas uniformidades observadas e que podem
ser reduzidas a uma fórmula. “Isto sempre foi assim e sempre será assim”. As leis do
pensamento ou da lógica são redutíveis à fórmula “Isto é então”. Leis morais
expressam um “deve ser”. O que é comum a todas estas leis é sua universalidade.
Cada instância individual agrupada dentro de uma lei universal difere de todas as
outras, mas desde o ponto de vista da lei, a diferença é secundária, mera questão de
oportunidade ou circunstância. Uma falsa inferência não invalida as leis da lógica,
mas mais precisamente confirma-as por suas conseqüências. O vento que sopra as
folhas para cima não é uma “exceção” à lei da gravidade. Matar em auto-defesa é
contrário à lei moral, mesmo ficando a ação impune. Qualquer fenômeno que reúne o
requerimento geral de uma lei pode ser dito que é “governado” por essa lei: sua
universalidade não é afetada pela particularidade da instância individual. A
formulação da lei (e a lei não é anunciada ou descoberta até ter sido formulada) é
sobre outro nível que o fenômeno que ele governa. Um mandamento, “Tu deves” ou
“Tu não deves”, não é a mesma coisa que uma ação, nem é uma equação matemática
de processo natural. Uma regra em lógica não é um juízo: não é nem verdadeira nem
falsa em si mesma, a proposição da regra é determinar quando um juízo é verdadeiro
ou falso.
234

Que leis ou regras desse tipo operam na composição de Beethoven não será
contestado por qualquer um que tenha acompanhado nossa análise dos esboços
discutidos acima. Tais leis ou regras derivam sua validade do sistema métrico e tonal
específico com o qual o compositor conta. Que Beethoven usou papel de música
comum e a notação costumeira mostra que ele aceitava as condições do sistema
métrico e diatônico maior-menor da época. A série inteira dos esboços é governada
pelas leis deste sistema, isto é, pelo fato do centro tonal ser mudado para a dominante
e no fato das frases de quatro compassos serem equilibradas uma com a outra. Como
as leis da natureza, as regras da lógica e as leis morais, aquelas do sistema diatônico
têm uma certa universalidade: elas estão em vigor se a música se expressa na
linguagem da tonalidade maior-menor e na sua métrica. Sua validade, no entanto, é
de uma espécie diferente – diferente do “Isto será sempre assim” das leis na natureza
(as quais não deixam chance alguma para o que vai acontecer), do “deve ser” da lei
moral (que implica na possibilidade de obedecer ou desobedecer a lei), e diferente,
também, mas não de tudo, do categórico “Isto tem que ser então” das leis da lógica,
assim tão certas com respeito ao que é verdadeiro e o que é falso. As leis em questão
aqui podem mais precisamente ser formuladas como: “Se isto . . . então aquilo”,
portanto, tanto expressam uma combinação de liberdade e conformidade à lei quanto
uma certa variabilidade ou flexibilidade na própria lei. A este respeito estas leis
assemelham-se a convenções lingüísticas cujo objetivo é a exata correlação entre
forma e conteúdo, o “como” e o “o que”. Sou livre para dizer o que eu quero dizer, e
posso dizê-lo de qualquer modo que eu escolha (embora o “como” sempre afetará o
“o que”), mas se eu quero que minha afirmação seja entendida, devo expressar-me
em uma forma convencionalmente prescrita para minha espécie de afirmação. (Por
exemplo, se pretendo fazer uma pergunta, minhas palavras não devem ser lançadas
em uma das formas convencionalmente usadas para responder questões, ou serei
muito provavelmente incompreendido.) Não é impossível fazer afirmações partindo
do uso convencional, nem são tais afirmações necessariamente falsas; elas são
simplesmente sem sentido. (Isto é por que alguém pode também falar de leis do
significado.) É claro, posso querer dizer algo para o qual não exista nenhuma
expressão convencional e então ser necessário cunhar uma nova palavra, deste modo
partindo do uso corrente. Quando faço isso, no entanto, eu não estou quebrando
qualquer regra, estou meramente alterando-a. (O termo “estilo” tem sido evitado
deliberadamente neste parágrafo: ele é por demais vago; maneja-se melhor sem ele.)

Em todo caso, é certo que os esboços musicais de Beethoven não devem seu
fascínio à aplicação destas leis, isto é, a convenções de tonalidade, tempo do
compasso, esquema métrico, rítmico, mudança de tonalidade nas passagens centrais e
assim por diante: tudo isto, as feições da música de Beethoven compartilha com
muitos outros compositores, como ensina a teoria musical. O que nos fascina, e foi
valioso inquirir a respeito, foi mais propriamente como Beethoven tomou um grupo
de notas inicialmente amorfo e o transformou em uma estrutura musical única.
Podemos confidenciar que ele estava completamente familiarizado com as leis ou
regras do sistema tonal e métrico que herdou, que ele assimilou todas as lições da
teoria musical, mas este conhecimento não o ajudou quando, por exemplo, trabalhava
235

no terceiro compasso da melodia. Estas não poderiam ajudá-lo, porque nenhuma


regra geral pode possivelmente ser formulada para a necessidade de saltar uma oitava
neste ponto particular da melodia. O único problema para o qual esta é a solução, foi
o problema particular que confrontou Beethoven neste ponto particular desta
composição particular. E podemos dizer o mesmo de todos estágios em sua pesquisa
da melodia. Houvesse leis gerais governando seu desenvolvimento, cada etapa
sucessiva teria sido deduzida da precedente, e Beethoven teria sabido exatamente
quais notas ele teria que escrever a cada ponto dado. Mas, como temos visto, isto é
precisamente o que ele não sabia (ou, diríamos, ele ainda não sabia): a lei governaria
sua melodia. Ele não saberia possivelmente porque esta lei não existe (ou, diríamos,
ela ainda não existe). Que o caminho no qual trabalhou era todo ele governado por
leis, que este foi um processo de crescimento inconfundível enquanto tal por sua
consistência interna, desenvolvido fora de uma lógica sua própria, ninguém pode
negar. Mas então a lei governante pode estar escondida dentro do próprio processo
composicional. Beethoven encontrou-a para si mesmo: ela não pré-existia; ela foi
demandado para ele. Alguém poderia quase dizer aqui de um processo em busca da
lei que o governa. Somente a reconhecemos como lei após o fato, uma vez que o
processo composicional foi terminado e a obra musical foi criada. A lei em questão
aqui não é mais ou menos do que determinada obra em toda a sua singularidade e
particularidade. “ Tu pesquisarás e encontrará tua lei” – este poderia ser como colocar
em palavras a lei que governa o processo da composição musical. Isto implica, no
entanto, em que o processo é governado pela lei somente na medida em que de fato
este encontra sua lei. Se o manuscrito do Quarteto op. 127 não tivesse chegado até
nós, se tivéssemos somente os esboços preliminares, não teríamos idéia do que
Beethoven de fato estivesse tentando. Ao invés de um processo de crescimento bem
ordenando, teríamos somente um número de tentativas aparentemente ao acaso
levando a lugar nenhum. Não ocorreria a ninguém chamá-lo de um processo
governado por leis.

O que tudo isto aponta é que no domínio das formas musicais existem muitas
tantas leis quanto existem padrões musicais individuais, e que cada lei é válida
somente para uma dada instância. Podemos, então, nesta relação, falar de lei
“individual”? O termo não é desconhecido em outras relações, mas que sentido teria
aqui? Como a estaremos interpretando? Uma lei que é aplicada somente uma vez, a
validade da qual se desvanece tão logo ela tenha sido reconhecida e realizada
claramente, isto é o oposto de lei. Uma situação na qual existem tantas leis quanto
instâncias individuais, cada lei valendo somente para um caso – o que é isto se não
anarquia? Poderia ser argumentado que a lei governando uma estrutura musical é
universal no mesmo sentido em que cada passo no processo de composição é um caso
particular submetido a ele. Mas mesmo outorgando isto, como poderíamos falar de
uma lei quando ela está oculta, quando ela não pode ser destacada do processo que
ela supostamente governa, quando ela não pode ser formulada independentemente do
processo que ela governa, a formulação da qual é, mais precisamente, simultânea com
a perda de sua efetividade e validade? Podem haver tais leis? Devem haver leis deste
tipo: caso contrário, a arte seria um domínio não da ordem mas da anarquia. E a arte é
236

um domínio da ordem – não somente e não essencialmente porque é também


governado por leis gerais relativas aos materiais, pela organização formal, por épocas
históricas, gerações, estilos, mas em um sentido muito mais profundo. A afinidade
entre uma paisagem feita por um pintor Sung e uma por Dürer é uma afinidade mais
próxima do que entre uma pintura de Dürer e uma pintura feita por um de seus
pupilos. Para considerar tais fatos, precisamos obviamente revisar nossas noções
habituais de lei e de conformidade à lei.

Em seu Crítica do Julgamento, Kant reconhece que a arte não tem espaço para
leis universalmente unitivas, e que ao mesmo tempo as obras de arte inegavelmente
manifestam uma ordem que não pode ser puramente subjetiva, uma mera questão de
gosto pessoal. Ele tentou dominar a dificuldade envolvida aqui apresentando uma
noção de “conformidade à lei” em uma situação “onde nenhuma lei se aplica”. Por
sua própria experiência de arte ser limitada, ele deixou este por aquele, contentando-
se com uma formulação negativa. Nosso interesse, no entanto, é progredir em direção
a uma percepção positiva dentro da natureza do que temos chamado “a lei oculta”,
oculta por definição, por assim dizer, pois ela cessa de operar tão logo descoberta e
nenhuma aplicação ou validade além de um simples instante a governa. Ela não opera
via causalidade (como as leis da natureza), via motivação (como as leis morais) ou
via regras formais (como as leis da lógica). Admitir que ela opera via propósitos – o
padrão final como o propósito secreto guiando o processo criativo – seria ainda
inadequado. Se, com Kant, definimos propósito como “o conceito de um objeto, na
medida em que ele contém a base da atual existência do objeto”, certamente não
podemos falar aqui de um “propósito guia”. Nossa análise de um exemplo dos
Cadernos de Esboços mostra inconfundivelmente que na criação de sua melodia
Beethoven nunca atuou por um “propósito guia”. Nem tal conceito existia em sua
mente, pois tivesse ele sempre existido, não teria tido nenhuma necessidade de
procurar algo mais. Dizer que ele existia em outra parte – em Deus, na coisa-em-si-
mesma, no campo das idéias platônicas, ou em qualquer outro lugar inacessível –
poderia ser aceitável para aqueles que acreditam que a “perfeição não é suposta como
sendo algo que cresce”, mas não contribui em nada para nosso entendimento. Se a
melodia de Beethoven tivesse vindo a ele toda de uma vez, faria sentido dizer que ela
pré-existe em algum campo superior e que foi revelada a seu “criador” em um
momento de inspiração. Mas onde não poderia haver crescimento, não haveria
problema de crescimento, e nenhuma lei oculta. Vemos agora que a última não opera
através de propósitos mais do que através de causas, motivos, regras formais ou
qualquer espécie de compulsão. Quando muito podemos falar somente de um
“obscuro impulso” do compositor para buscar por ela. Ainda o termo “operar” é
enganoso aqui, pois o padrão final não é certamente o resultado da “operação” de
uma lei. Mais propriamente, é a auto-realização da lei, a forma que ela assume ao
emergir desde seu lugar oculto, quando finalmente se manifesta.

Como mencionado antes, esta espécie de “emergir” não se parece com o erguer
de um véu, como quando algo até agora invisível repentinamente se torna visível. O
que acontece, mais propriamente, é que algo atravessa o limiar da existência: algo
237

que nunca existiu, salvo potencialmente, agora é feito atual. Estamos recordando a
distinção aristotélica entre existência _______ (como força, como tendência) e
existência _________ (como atualidade). Porque a lei oculta não é dada de antemão
mas é para ser construída, e porque ela não se revela até ter sido encontrada, a espécie
de processo que ela governa combina a conformidade da lei com a novidade, a
consistência interna com a imprevisibilidade. Sob leis universais tal combinação seria
auto-contraditória, pois nos processos governados por tais leis cada passo é pré-
determinado, pré-figurado, predizível, e conseqüentemente nenhum é realmente
“novo”. A estética tem desprendido uma grande quantidade de trabalho infrutífero
tentando eliminar a aparente contradição, o pseudo-problema de como a
conformidade da lei pode ser conciliada com a liberdade na criação artística, como se
a liberdade envolvida fosse uma coisa à parte da conformidade da lei! Desde que a
estética, tomando sua deixa de outras disciplinas, almejou descobrir leis universais,
ela não pode livrar-se desta contradição, e então se desviou de sua tarefa real. Pois
diferente da ciência natural, cujas leis universais acrescentaram ao nosso
conhecimento e compreensão, a estética deveria buscar a chave da compreensão não
nas leis universais, mas na que é única e não-repetível, a única de sua espécie.

Sob esta luz, ainda uma outra noção corrente da estética parece insustentável, a
noção (a qual é mais ou menos tomada por certa) de que criar obras de arte e
experienciá-las são dois processos diferentes, o primeiro dirigido para terminar a
obra, o último começando a partir deste término. O processo de criação é mais
freqüentemente estudado do ponto de vista psicológico, ao passo que o problema da
estética é localizado na experiência recebedora da obra acabada. O fato de que nos
primeiros estágios da música – na música folclórica, por exemplo – é impossível
desenhar uma linha dividindo criadores dos ouvintes ou intérpretes, ou para falar de
“obras” musicais, seria suficiente mostrar, pelo menos até onde concerne a música,
quão superficiais são todas estas distinções. No outro pólo, onde compositor e
ouvinte estão tão afastados quanto possível, nosso exemplo dos Cadernos de Esboços
de Beethoven provam além de qualquer dúvida que o processo criativo na música é
primeiro e antes de tudo musical, que o problema principal envolvido – o problema
de como uma estrutura musical vem a existir – não é psicológico mas morfológico.
Aqui, produção do padrão e o próprio padrão envolvem o mesmo tipo de problema,
mas mais do que isto, ambos são governados pela mesma lei. Ainda antes discutimos
a gênese do padrão tonal, dissemos que o último é essencialmente uma união de
conformidade à lei com novidade, consistência interna com imprevisibilidade. A
mesma lei governa o processo quando o compositor trabalha sobre padrões já
existentes, quando Mozart elabora o material temático, quando Chopin tenta
aperfeiçoar uma passagem em um prelúdio, e quando Schubert altera o final de uma
de suas melodias. Em todos estes exemplos, temos observado quantos passos
imprevisíveis podem ser “corretos”, como em cada caso uma lei oculta governa o
processo da composição musical. Enquanto o compositor penetra ainda mais
profundamente dentro do padrão que ele mesmo criou, ele sente quais de suas
potencialidades inerentes não foram ainda plenamente realizadas. E sua busca dentro
do padrão é essencialmente não diferente de sua busca pelo padrão: elas são
238

governadas pela mesma lei. Na realidade, não há melhor meio de descrever o que de
fato ouvimos em uma melodia de Beethoven (ou qualquer boa melodia) do que um
processo de crescimento orgânico, de gradual auto-realização, cada passo sucessivo
novo e imprevisível, mesmo, uma vez dado, de certo modo satisfaz uma certa
requisição até então não reconhecida. Temos a mesma experiência a cada vez que
ouvimos uma tal passagem da música, e não importa quantas muitas vezes a
ouçamos. Mesmo quando sabemos exatamente o que é cada próximo passo que está
vindo a ser, ainda assim experimentamo-lo como imprevisível e nos encantamos por
completo outra vez. Nenhuma linha clara pode ser desenhada entre o padrão final e o
padrão gradualmente emergente. O processo de crescimento orgânico não termina no
padrão final, ele continua nele. Então não é correto dizer que a lei oculta cessa de
operar uma vez que tenha sido incorporada no padrão: ela meramente foi movida do
campo do Vir a Ser para aquele do Ser relativo, do campo do não-repetível para
aquele do repetível. Repetição do não-repetível (totalmente incompreensível nos
termos de qualquer lei universal) é em música uma ocorrência de todo dia: a cada vez
que experimentamos o padrão, a lei oculta é revelada de novo.

Alguém levantará a objeção de que tudo isto não tem nada a ver com qualquer
lei do pensamento musical, somente com a lei que governa os padrões tonais e as
composições musicais? Tal objeção seria infundada, pois não há duas espécies
diferentes de leis. Assim como as leis do pensamento lógico são as mesmas daquelas
que governam o pensamento que as produzem – um trabalho de matemática, por
exemplo – assim é com o pensamento musical e suas produções. E agora isto deve ser
dito: mesmo se a música é a criação do pensamento musical, e somente daquele, a
música não está de qualquer modo separada do resto do mundo. Outras coisas ao lado
da música são musicais: a lei que governa o pensamento musical tem aplicações além
da música, onde outros processos musicais estão envolvidos. Não é somente uma
metáfora poética dizer da “musicalidade” do mundo.

Claro, mapear realmente as extensões mais distantes do pensamento musical


seria uma tarefa não menos árdua do que a de fazer o mesmo com o pensamento
lógico. Isto sem dizer que não podemos tentar fazê-lo, ao final de reflexões já tão
distantes. Podemos, contudo, ainda chamar a atenção a poucos pontos essenciais.

Se formos olhar para a característica crucial que distingue o pensamento


musical do pensamento lógico, ela será encontrada muito provavelmente na sua
atitude para com o tempo radicalmente diferentes. Falando em geral, as leis da
música sustentam a influência, onde quer que o tempo opere como força ativa. Na
lógica, o tempo não existe; na música, o tempo é essencial. Em todos os processos
governados pelas leis de um tipo “lógico” – universal – o tempo é uma mera
formalidade; em todos os processos governados por leis musicais, o tempo é sua
verdadeira natureza.

O tempo entra em todos os tipos de processo, não importa sob que leis, mas
processos governados por leis universais (os quais implicam em um caráter “lógico”)
não são afetados pelo fluxo do tempo. Eles, é claro, ocorrem no tempo, mas o tempo
239

como tal não lhes acrescenta nada, serve meramente como uma zona condutora
carreando partes em nossa direção. Não há diferenciação entre passado, presente e
futuro; tudo se funde em uma indiferença cinza. O passado pode sempre ser
redescoberto, e o futuro já está presente em todos os aspectos essenciais. Tudo o que
falta é a “mera formalidade” da tangível emergência no aqui e agora. Esta
formalidade, também, cuidará de quando o comprimento pré-determinado do tempo
tiver transcorrido. Fosse ele senão previsibilidade, nunca teria sido a pedra de toque
da lei universal. Na medida em que o processo corre, seu curso em conformidade
com a lei, o tempo não toma parte nele. A temporalidade não é inerente a ele, mas um
elemento estranho adicionado pelo observador ou pensador que é forçado a nascer e
deve morrer. Os processos não-humanos estudados pelas ciências naturais, em
especial, exemplificam esta eternidade peculiar.

Nenhum observador pode deixar de notar que os processos musicais respiram


tempo em um sentido muito diferente, que o tempo é seu próprio conteúdo, o ar de
sua respiração, por assim dizer, a cada e a todo passo. O que acontece na música é
uma união de nota e tempo, metro e tempo. A nota é mais que um evento audível que
ocorre no tempo; é o tempo audível. Metro é um “agora” sinalizando um “de onde” e
um “para onde”, um “não mais” e um “não ainda” em um 18. O tempo é uma força tão
ativa na música que não seria surpresa que todos os outros processos nos quais o
tempo é um fator essencial sejam governados por leis similares àquelas que
governam os processos musicais. Leitores familiarizados com o debate a respeito do
problema do tempo, o qual tem avançado no pensamento filosófico por mais de meio
século, deverão ter percebido que muitas de nossas formulações e interpretações têm
ecoado aquele debate. O aparente paradoxo do tempo – uma existência feita
inteiramente de não-existência – dissolve-se quando somos confrontados com a lei
que produz uma realidade concreta fora do “não mais” e do “não ainda”. Pois a
música é a manifestação concreta de uma ordem que, longe de excluir o novo, requer
e incorpora-o. A novidade não destrói a consistência na música, mas a cria: aqui a
imprevisibilidade é a verdadeira pedra de toque da lei, não é um lapso nela. Para
tornar evidente que o tempo é algo mais do que uma “mera formalidade”, mais do
que um fator t na física, a música nos provê o modelo de um processo governado por
uma lei que é única, a instância particular, não é uma questão de acaso mas de
necessidade – o modelo de um genuíno Vir-a-Ser como um modo de Ser em seu
próprio direito, mais propriamente do que subordinado ao Ser. Os processos
governados pela lei musical e acessíveis ao pensamento musical podem ser admitidos
como envolvendo o genuíno Vir-a-Ser onde quer que a interpretação em termos de
leis universais se veja em dificuldades. Anteriormente dissemos que o conceito do
orgânico provê uma ligação entre o domínio da música e da biologia. Assim, ao
responder pela gênese de um padrão musical somos obrigados a usar o termo
“crescimento”, e em música, como na biologia, falamos de sementes, crescimento,
desenvolvimento, de como formas embrionárias são “transformadas” em formas
maduras. Poderia ser contestado que as similaridades entre música e biologia são

18
Cf. Sound and Symbol: Music and the External World, onde tudo isto é discutido em detalhe (p. 151 – 264).
240

superficiais e provavelmente enganadoras. Afinal de contas, o crescimento biológico


é cíclico – ele começa com uma semente e produz sementes, e então começa outra
vez novamente – enquanto que o crescimento artístico finda em um determinado
ponto. Como, então, podemos estender a biologia a operação de uma lei caracterizada
por sua aplicação exclusiva a um instante único específico? O que quer que a lei
possa governar do desenvolvimento do caroço da cereja na árvore da cereja ou do
ovo na galinha, ele será válido para todos os caroços de cereja, todos os ovos – ele
terá que ser de aplicação universal para todas as instâncias dadas. A biologia está
perfeitamente intitulada para estudar o desenvolvimento orgânico deste modo, e está
supremamente desinteressada na forma individual das cerejeiras ou das feições das
galinhas individuais: no campo da natureza orgânica as características individuais não
são essenciais e são vistas como acidentais, não valendo o trabalho de responder por
elas. Não é assim no campo da arte. Mesmo se sabemos hoje pouco sobre as leis do
crescimento biológico, elas não são “ocultas” no mesmo sentido como a lei musical:
elas podem ser descobertas, e uma vez tenham sido descobertas, não cessam de
governar o crescimento. Sua efetividade não depende de estarem ocultas.

Contudo, é possível ver estas coisas de um ângulo diferente. Se as leis


universais são sempre responsáveis pelo crescimento orgânico tão completamente
quanto são responsáveis pelo crescimento dos cristais é uma questão em aberto.
Mesmo os biologistas de quem ninguém suspeitaria tendências neo-vitalistas
reconhecem que “o problema do crescimento orgânico se estende além da física e da
química” – em outras palavras, ele está situado além do campo da lei universal. É
somente na medida em que o processo do crescimento orgânico é repetido em todo
crescimento universal que as leis universais aplicadas e o processo podem ser
previstos. No entanto, à parte das características individuais (as quais são uma
questão de acaso tanto quanto seu crescimento é concernido), os organismos são ao
mesmo tempo essencialmente únicos, enquanto representativos de sua espécie. Se seu
crescimento individual é visto como uma instância de um padrão único da
característica de crescimento de cada espécie, então o aspecto “musical” do processo
torna-se aparente imediatamente: ele é um padrão final único, governado pela lei,
completo somente uma vez um padrão final tenha sido alcançado, e não “repetível”,
estritamente falando. Tal qual os padrões da música (os quais podem ser re-jogados
qualquer número de vezes), aqueles das coisas vivas são reproduzidos não
produzidos, re-criados e não criados. É de fato tão impossível inferir a forma de um
organismo maduro desde uma célula do embrião de uma espécie desconhecida quanto
inferir o padrão final de uma melodia desde sua “semente”, ao passo que o curso do
crescimento biológico em um indivíduo de uma espécie conhecida é tão previsível
quanto o curso de uma melodia familiar. Como temos visto, previsibilidade no último
caso (reprodução, não produção, de um padrão tonal) não é incompatível com a
efetividade contínua da “lei oculta” e a imprevisibilidade do processo que a governa:
previsibilidade e imprevisibilidade aplicam-se a diferentes aspectos do processo. Em
outras palavras, um e o mesmo processo pode ser governado por ambos os tipos de
lei. Podemos levar nossa comparação um passo mais longe. Suponhamos que o
fonógrafo cresça como as plantas e emita padrões sonoros do mesmo modo que as
241

flores emitem aroma: então “físicos e químicos” poderiam estar ansiosos por
investigar como os fenômenos musicais são governados por leis universais, mas isso
não os colocaria uma polegada mais perto do coração e do cerne do processo musical,
a saber, o padrão tonal. Quando procuramos pelas leis universais do crescimento
orgânico – embora importante, significativo e difícil por si mesmo – não estamos
como aqueles físicos e químicos estudando o mecanismo de reprodução de padrões
tonais únicos?

No entanto, quando lidamos com o desenvolvimento e auto-realização do


indivíduo humano, não há dúvida que ele permanece dentro dos limites da lei
musical. Aqui, também a lei não é dada de antemão mas está sempre para ser
encontrada, e nem um único passo é previsível, pois a lei que o governa deve
primeiro ser encontrada. Nem qualquer passo segue necessariamente desde aquele
que foi antes; embora o resultado final seja internamente consistente e significativo,
cada passo singular é dado em perfeita liberdade. O significado da vida individual de
um ser humano pode ser compreendido somente em retrospecto: atuamos como o
fazemos porque somos o que somos. O processo é uma progressão gradual desde um
começo amorfo em direção a formas cada vez mais agudamente definidas e está
completo somente quando o último passo for dado. A morte do homem, então poderia
ser comparada ao nascimento de uma melodia – ao momento quando ela cessa de
“crescer” e ingressa na existência real. O que afirmamos no começo deste livro pode
agora ser confirmado em um sentido mais profundo. A musicalidade não é um dom
individual, mas um dos atributos básicos do homem; a verdadeira natureza do homem
predispõe-no à música. Na música, o homem não dá expressão a algo (seus
sentimentos, por exemplo), nem constrói estruturas formais autônomas: ele inventa a
si mesmo. Na música, a lei pela qual ele conhece a si próprio como ser vivo é
realizada em sua forma mais pura.

Existem outros processos dentro da história e da experiência humana que são


similarmente caracterizados pela singularidade. Pense naquelas grandes
individualidades coletivas: nações, estados, comunidades supra-nacionais, mesmo a
espécie humana como um todo, o indivíduo histórico por excelência. Disputas sobre
as “leis” da história são todas viciadas porque somente a interpretação admitida de
“lei” é aquela universalizante das ciências lógicas e matemáticas. Mesmo os
processos históricos são governados obviamente, pelo menos em parte, por outro tipo
de lei inteiramente diferente. A história é essencialmente previsível e imprevisível,
embora algumas situações podem se repetir no sentido da reprodução. O significado
de um evento é revelado somente após o fato. Todas as pessoas estão em busca de sua
própria lei oculta, sua história é sua verdadeira busca. O padrão é plenamente
revelado somente ao final. Todas estas feições são características dos processos
musicais, e então o significado da história é mais prontamente compreendido pelo
pensamento “musical” do que pelo pensamento “lógico”. A noção de leis universais
governando todos os eventos históricos mais certamente vem de não mais do que um
desejo de realização inspirado pelas ciências naturais. Há boas razões para acreditar
que existem tantas leis históricas quantas coletividades históricas existem. Assim
242

portanto, a única verdadeira lei histórica seria aquela que mostrasse governar toda a
espécie humana. Mas a busca por tal lei não é o negócio dos historiadores; a espécie
humana como um todo está buscando por ela, está no seu caminho para realizá-la.
Hoje em dia, pensadores ousados, treinados na rigorosa escola da ciência natural,
estão aplicando o conceito de história ao universo como um todo – o universo sobre
seu caminho desde os estados sub-atômicos iniciais em direção ao estado final
quando ele será consumado e sua lei oculta será revelada; o universo como um todo
em busca de sua lei oculta: uma concepção verdadeiramente musical. Encontra-se
suporte neste quadrante, pois a idéia de musicalidade do mundo ajudaria a libertá-la
da mancha de ser fantástica. Além disso, foi um estudante de mitologia, não um
musicista, quem escreveu: “A música repousa sobre uma qualidade inerente da
existência, a musicalidade”. A música não poderia nos mover tão profundamente se
não a sentíssemos na operação de uma lei que abarca a nós e ao mundo e uma
intimação do pulso do coração que anima todo o universo.

Aqui fazemos uma pausa e refletimos.

O mundo, o mundo do homem, nos mostra duas faces: a face da lógica e a face
da música. Nada podemos fazer sem uma ou outra delas. Ambas as leis são criadas
pelo homem antes dele encontrá-los no mundo, e de ambos ele descobre
posteriormente que eles são também a ordem do mundo. Espantar-se com a ordem
lógica inconcebível do mundo foi o começo da filosofia; a tremenda realização
intelectual de Kant foi tornar o inconcebível concebível a princípio sem tirá-lo fora
do maravilhoso ou reduzir a reflexão. A maravilha análoga e a reflexão a respeito da
musicalidade do mundo não havia ainda surgido, embora ambos os aspectos, mesmo
que ainda indiferenciados, podem ter estado presentes nos ensinamentos de Pitágoras.
Nenhum esforço intelectual na escala kantiana, contudo, é requerido para apreender a
musicalidade do mundo: na música, afinal de contas, o homem não está radicalmente
separado do mundo como um sujeito de um objeto, mas cada um é dirigido em
direção ao outro como na unicidade de um encontro. A verdade da música, como
aquela da matemática, consiste em ela nos servir como uma chave para o
entendimento do mundo no qual vivemos.

A lógica e a música não dividem o mundo em dois compartimentos cartesianos


separados. O mundo é um, governado por leis dadas e do mesmo modo por leis ainda
a serem encontradas. O homem, que alterna entre o pensamento conceitual e musical,
é também um. Em última análise, lógica e música precisam uma da outra, pois
nenhuma é bastante completa sem a outra. Como previamente mencionado, a lógica
alcança sua culminação na prova de que cada sistema lógico completo deve incluir
pelo menos uma proposição logicamente indemonstrável, isto é, uma que é “nova”,
que não pode ser logicamente deduzida. Isto é, a lógica pede emprestada à música.
Que as obras da lógica, assim como as obras da música, pressupõem um processo de
crescimento é atestado pelo livro de Pascual Jordan, Verdrängung und
Komplementarität. “Um eminente matemático vivo [John Von Neuman]”, escreve
Jordan, ‘uma vez descreveu para mim o processo da descoberta matemática. Primeiro
uma conjectura específica é formulada, então é buscada a prova para ela. Parte a
243

parte, fragmentos desconexos de uma eventual prova são trazidos à tona. É como
ligar uma ilha com o continente, mas não da maneira usual de trabalhar desde o
continente para fora. Mais propriamente, é como se o banco de terra crescesse de si
mesmo desde o fundo do oceano para cima, e muito irregularmente, partes da calçada
eventual emergisse aqui e ali acima da água muito tempo antes das demais partes”. O
processo assim descrito é obviamente aparentado com aquele que traçamos em nosso
exemplo desde os Cadernos de Esboços de Beethoven.

Que mais do que o pensamento musical está envolvido na música deveria ser
claro desde a existência da teoria da música, enquanto parte indispensável da
educação de todo compositor. Podemos compará-lo com o papel da física e da
química na vida orgânica. Schenker estava correto ao chamar a atenção a um aspecto
essencial da música que envolve o pensamento conceitual mais propriamente do que
o musical. Que o desenvolvimento gradual da estrutura fundamental do plano de
fundo pode ser compreendida como uma reconstrução puramente “ideal”, não deve
ser confundido com o processo real de crescimento em tempo real, como
mencionamos anteriormente. É verdade que os diagramas de Schenker podem ser
interpretados em termos dinâmicos, todavia é claro que seu padrão de “primeiro
plano” está contido no plano de fundo de um modo que torna fechada a implicação –
não de todo a melodia acabada de Beethoven está contida na semente de seu primeiro
esboço. Isto é, na realidade, por que Schenker expôs sua teoria modo geométrico,
dedutivamente, começando com formas primárias hipotéticas no plano de fundo,
inferindo padrões de plano intermediário, gradualmente tornando-os mais explícitos.
O método analítico da lógica conceitual, no entanto, não nos leva mais longe do que
as estruturas do plano intermediário: o salto para o primeiro plano está além dos
poderes da lógica.

Nota do Editor

O manuscrito original continua aqui por algumas páginas, enquanto o


rascunho de uma recapitulação do volume. A conclusão do presente autor – os três
parágrafos finais – é um resumo da terceira parte, “Pensamento Musical”, mais
propriamente do que do livro inteiro. A morte impediu que ele reformulasse estas
páginas finais de modo que elas servissem como um final apropriado para este
volume.

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