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Theodor Adorno
Lucyane De Moraes1
Resumo
A discussão ética que aqui se propõe tem nos conceitos de arte, música, tradição e
modernidade um campo privilegiado para a análise crítica das tecnologias da
informação como forma de difusão da cultura nas sociedades contemporâneas. Este
trabalho procura demonstrar a ininterrupta, complementar e dialética relação entre
música e filosofia que norteou a elaboração teórico-estética de Theodor Adorno. Para
tanto, tem-se como referência alguns de seus escritos sobre música, sobretudo Filosofia
da Nova Música, em que o autor com o viés de uma crítica radical da sociedade
industrial, identifica a preeminência de uma ideologia reinante e denuncia que esta tem
em mãos os meios propagandísticos ideológicos que contribuem para a “regressão da
audição”, manipulando arbitrariamente a produção e a difusão da música de vanguarda.
Palavras-chave
Abstract
The ethical discussion that is proposes has in the art concepts, music, tradition and
modernity a privileged focus on the critical analysis of the information‟s technologies as
a form of propagation the culture in the contemporary societies. This paper tries to
demonstrate the uninterrupted, complemented and dialectic relationship between music
and philosophy developed by Theodor Adorno in his theoretical-aesthetic works. Then,
it is had as its reference writings on music, specially his work Philosophy of New
Music, in which the author, developing a radical critic of the industrial society,
identifies the preponderance of a dominant ideology, denouncing that it has the
necessary tools for ideological announcements that contributes to the "regression of
listening", manipulating the production and the diffusion of the vanguard music
arbitrarily.
Key-Words
“O que foi pensado pode ser abafado, esquecido, dissipado. Mas não pode ocultar o
fato de que alguma coisa sobrevive a isso, porque o pensamento possui um
momento de universalidade. O que foi bem pensado será necessariamente
1
A autora é mestranda em Filosofia pela UGF - Universidade Gama Filho. Graduada em Filosofia
(UFAL), possui especializações em Ensino da Arte e Direção Cinematográfica. Desenvolve pesquisas nas
áreas de Estética e Filosofia Social.
2
[Theodor W-Adorno]
“O que hoje é distante, amanhã pode ser próximo; é apenas uma questão de
capacidade de aproximar-se. A evolução da música tem seguido esse curso:
incluindo, no domínio dos recursos artísticos, um número cada vez maior
de possibilidades de complexos já existentes na constituição do som”.
[Arnold Shoenberg]
Citando uma sentença proferida pelo filósofo, poeta e escritor francês Paul
Valéry, que “o melhor do novo responde a uma necessidade antiga”, Adorno, em seu
ensaio denominado Música e nova música2, escrito em 1960, procura explicar a
utilização do termo “Música Nova”, em resposta a uma pregressa indagação feita por
seu amigo e editor Peter Suhrkamp, justificando a necessidade da explicação para além
da mera nomenclatura:
A indagação de Suhrkamp, justificada pelo uso desta expressão [Nova] feita por
Adorno exclusivamente no campo da música, relaciona a dispensável referência do
2
Versão da autora. Da tradução espanhola Música y nueva Música do fragmento Quasi una Fantasia. In:
Escritos Musicales I-III. Editora AKAL.
3
Adorno, Música e Nova Música. In: Escritos Musicales II, pp. 485 e 486.
2
termo, por exemplo, no campo da pintura. Adorno, em resposta a dúvida levantada pelo
já falecido amigo, explica:
Significa dizer que para Adorno nada realmente parecido ao que foi
experimentado pela música em termos de ruptura sucedeu à pintura, tendo esta se
desenvolvido paulatinamente e de forma mais harmoniosa historicamente, justificando
assim a exclusividade do termo para o campo da música, entendendo como «Nova»...
4
Idem, p. 487.
5
Idem, p. 488.
6
Idem, p. 486.
3
“A nova música pode afirmar-se sempre como nova na medida em que não se
adapta ao círculo fatal. Objetivamente, portanto, sua reflexão crítica-estética
sobre si mesma é ao mesmo tempo social. Mas, sua relação com a sociedade,
sua recepção proibitiva ou planificada afeta também o seu conteúdo [...] a não
objetividade, produzida pelo material não conceitual da música, sua
relutância a teses maneijavéis, permite consentir inclusive ao seus
recaucitrantes produtos uma liberdade para excentricidade”7 (tradução
modificada).
E complementa:
Refletindo ainda sobre o sentido social da música, Adorno em seu ensaio remete
às questões que explicam as transformações ocorridas no âmbito de seu
desenvolvimento histórico, reafirmando, dialeticamente, aquilo que a caracteriza como
matéria emancipada, justificada como “Nova” em um sentido estrito:
7
Idem, p. 491.
8
Idem, pp. 490 e 491.
9
Idem, p. 492.
4
“Em termos de sua função social, a música no seu íntimo também mudou. A
música burguesa era, incluindo suas produções mais elevadas, adorno. Se
fazia agradável às pessoas, não só imediatamente aos ouvintes, mas
objetivamente, muito mais além deles, mediante as idéias do humanismo. Isto
foi denunciado porque degenerava em ideologia, porque o reflexo do mundo
no espírito positivo, inclusive quase como exigência de um melhor, se
converteu numa mentira que justifica um mal. Tal denuncia de cumplicidade
atinge as mais delicadas sublimações do sentimento formal musical. [...]
Somente através da imagem não figurativa da desumanização, esta música [a
nova música] conserva a imagem de algo humano. [...] Daí o direito de se
falar de nova música”10 (tradução modificada).
10
Idem, pp. 492 e 493.
11
Adorno, Filosofia da Nova Música, p. 58 e 59.
12
Idem, p. 59.
5
Significa dizer que, para Adorno, a música nova do método dodecafônico, sob o
mesmo princípio implicitamente coercitivo que estruturou o sistema tonal, acaba
também por se tornar um sistema fechado em si mesmo através da adoção de um
excessivo conjunto de regras que acaba por inibir as possibilidades criativas do próprio
compositor, suprimindo seu propósito inicial. Em outras palavras, o método
dodecafônico, reproduzindo em termos idênticos a mesma relação implicitamente
restritiva do sistema tonal, acaba por negar suas próprias realizações, promovendo, de
certo modo, uma espécie de retorno às formas tradicionais da música do passado.
Ainda assim, relativizando a questão Adorno entende que se a Nova Música trás
em si suas próprias formas de anulação, isto se deve ao caráter implícito de
autenticidade desta produção, tendo em vista as forças históricas reativas que impedem
qualquer tentativa de mudança estrutural no âmbito desta produção. Pode-se dizer
também que, como autêntico herdeiro de um processo que historicamente promoveu a
dissolução do sistema tonal, o método dodecafônico criado por Schoenberg resume
dialeticamente a afirmação pela negação do próprio sistema tonal, resultando a sua
dissolução em sua própria continuidade em novos termos, corroborando com o próprio
conceito da dialética de que “a afirmação de uma negação é uma negação e a negação
de uma negação torna-se uma afirmação”.
Por compreender que um artista “livre” seria aquele que nunca negasse a sua
relação com a sociedade, Adorno denuncia todo e qualquer comportamento de ordem
conservador, postulando que a autonomia artística deveria estar intrinsecamente ligada
ao desenvolvimento e transformação progressiva da sociedade, tendo em vista que “as
obras de arte registram a história da humanidade com mais exatidão que os
13
Idem, p. 59 e 60.
6
documentos”14. Sua contribuição filosófica sobre arte vai além da reflexão de outros
pensadores que através dos tempos demonstraram interesse pelo mesmo assunto,
evidenciando as relações que se estabelecem entre arte, conhecimento e natureza e,
analisando a obra de arte como parte constitutiva das sociedades modernas, sob uma
ótica crítica da cultura no capitalismo, através do processo de sua inserção na indústria
de massas: “A obra representa o quanto há de verdadeiro, na sociedade, contra o
indivíduo que reconhece a não-verdade da sociedade e reconhece até que ponto ele
mesmo é essa não-verdade. Somente nas obras está presente o que supera a limitação
entre sujeito e objeto. Como conciliação aparente, são o reflexo da conciliação real”15.
Em um mesmo sentido pode-se afirmar que, para Adorno, a música de vanguarda tem
papel importante na medida em que expressa de maneira inconformista, “através de sua
forma, a realidade do caos social a que se opõe o indivíduo, angustiado pelo caráter
irremediável de sua alienação”16.
Sendo a música intrínseca a história do ser humano, tida como uma das formas
de expressão mais antigas e importantes, identifica-se desde a mais remota antiguidade
em todas os rituais primitivos a presentificação de deuses ou de algum tipo de
representação mitológica a ela ligado17. De acordo com a mitologia grega, a história da
música no ocidente começa com a morte dos seis filhos de Urano, conhecidos como os
Titãs, vencidos pelos deuses do Olimpo. Objetivando então cantar as vitórias do
Olimpo, Zeus toma para si a tarefa de criar nove divindades, partilhando por nove noites
consecutivas o leito com Mnemosyne, deusa da memória, resultando o nascimento das
nove musas. Assim é que a própria origem etimológica da palavra música advém do
termo mousiké (Μουσική), união dos vocábulos mous + iké, significando a arte das
Musas.
14
Adorno, Filosofia da Nova Música, p. 42.
15
Idem, p. 48.
16
Marc Jimenez, Para ler Adorno, p. 47.
17
Se para os hindus a música teria sido inventada por Brahma e para os egípcios por Toth ou Osíris, para
os hebreus ela estava ligada a Jubal e David e assim por diante.
7
O modalismo
18
Ambrosio estudou filosofia e foi exímio orador. Se converteu ao cristianismo, ordenado padre e
governador de Milão, sendo hábil nos assuntos políticos. Afamado estudioso da Bíblia, escreveu vários
hinos litúrgicos. Seus sermões converteram Agostinho de Hipona e o imperador Theodosius, ficando
conhecido como Língua de Mel por conta de sua habilidade como orador. Hoje, é possível encontrar
iconografias suas rodeado de abelhas, bem como, de outros símbolos que indicam prudência e sabedoria.
“Ninguém cura a si próprio ferindo o outro” é a sua célebre máxima.
19
Livro litúrgico que contém diversas partes cantadas em coro.
20
O sistema de neumas propiciou uma forma de notação musical que apresentava, entre outras vantagens,
a possibilidade de memorização das notas musicais que acompanhavam os textos litúrgicos entoados nas
celebrações religiosas.
8
21
Boécio foi afamado por suas traduções, comentários e resumos de variadas obras do grego clássico
como o Organon de Aristóteles e de diversos tratados de teologia, lógica e matemática. Foi ainda um dos
maiores pensadores da música greco-latina, deixando um grande legado teórico-musical.
9
quatro linhas, o tetragrama, pondo fim ao uso da antiga técnica de escrita neumática.
Desenvolve também, com o propósito de memorização, um sistema de identificação
visual das notas musicais voltado para o ensino, denominado manosolfa, sistema este
em que cada uma das alturas era identificada por partes da mão humana. Ainda, propõe
também a identificação das notas musicais nomeando-as como ut23, re, mi, fa, sol, la e
si, tendo como base um antigo hino latino dedicado a São João Batista:
A tonalidade
22
Guido d‟Arezzo foi regente de coro da catedral de Arezzo na região da Toscana.
23
Com o passar do tempo pequenas alterações na escrita musical foram feitas. Temos como exemplo a
nota Ut, que passa a ser denominada por Dó.
24
Em português, significa: “Para que teus servos possam ressoar claramente a maravilha dos teus feitos,
limpe nossos lábios impuros, oh! São João”.
25
Seus nomes derivam de povos, idiomas e regiões da Grécia antiga e se reportam aos antigos modos
utilizados na música daquela época.
10
Mais tarde irá se ver que o compositor austríaco Arnold Franz Walter
Schoenberg27, criticando a teoria da arte tradicional, considera que o sistema tonal deve
26
O compositor francês Jean-Philippe Rameau, em seu livro de teoria musical, Tratado de Harmonia, de
1722, contribuiu para a constituição da base teórica do sistema tonal. Ao lado de Scarlatti e Bach,
Rameau é considerado um dos fundadores da música moderna.
27
“Como inventor, Schoenberg foi o maior responsável pela „ruptura‟ com o sistema tonal em sua fase de
saturação extrema, ruptura esta por ele vista, entretanto, mais como continuidade e conseqüência natural
da evolução da linguagem musical do que como fruto de qualquer atitude rebelde e avessa à história.
Nesse contexto, Schoenberg – preferindo o adjetivo „evolucionário‟ a revolucionário – se debatia contra a
imagem de inventor, declarava-se, sobretudo, um „descobridor‟ e firmava-se, sim, como um clássico, um
criador mais propenso a sínteses do que a hipóteses” – Flô Menezes, na apresentação do livro Harmonia,
de Schoenberg, editora UNESP, pp. 11 e 12.
11
ser reconhecido por seu caráter histórico e cultural. Fundamentando a sua argumentação
na crítica da tonalidade, ao examinar sua dependência com recursos artificiais como, por
exemplo, a afinação igual do sistema temperado, o compositor alega que o tonalismo já
não pode ser considerado como um método natural. Assim é que suas considerações
irão ampliar a compreensão do princípio ordenador do tonalismo. Ao passo que
impetrava, de forma consciente, a dissolução da harmonia diatônica tradicional,
Schoenberg trabalhava em composições relacionadas com um „atonalismo livre‟.
Música atonal
28
Schoenberg, Harmonia, p. 43.
29
Idem, p. 44.
30
Idem, pp. 58 e59.
31
Idem, p. 59.
12
32
Ibidem, p. 59.
33
Idem, p.69.
13
Dodecafonismo ou Serialismo
34
A chamada Primeira Escola de Viena compreende a obra musical de Haydn, Mozart e Beethoven
desenvolvida no período clássico do século XVIII e fundamentada no sistema tonal. Em contraposição a
esta, a atribuída Segunda Escola de Viena do século XX engloba a obra musical de Schoenberg, Berg e
Webern, construída sobre o sistema atonal.
14
série harmônica, mais distantes do som fundamental e, portanto, menos utilizados pelos
compositores até inícios do século XX, se apresenta pouco usual para os ouvintes,
criando uma sensação de estranhamento provocado por relações sonoras ditas
dissonantes, constituindo-se, por isso mesmo, em material básico e ideal para a criação
de novas formas de articulação do pensamento musical. Quando lecionava, Schoenberg
se “esforçava” em mostrar a seus discípulos “a substância da coisa desde o seu
fundamento”, com o intento de fazer com que seus alunos aprendessem sobre as “leis e
efeitos da tonalidade”, bem como devessem “saber também dos movimentos que
conduzem à sua abolição”:
35
Schoenberg, Harmonia, p. 72.
36
Adorno, Filosofia da Nova Música, p. 50.
15
37
Podendo ser desenvolvida em sua forma retrogradada, de trás para frente, invertida, reorganizando os
intervalos ascendentes da série original de forma descendente e vice-versa, e retrogradada invertida,
realizando de trás para frente a série invertida.
38
Embora Adorno aponte alguns problemas da técnica contrapontística no dodecafonismo, em sua
Filosofia da Nova Música, ele alega que o contraponto “tem a primazia na composição”, que este é “o
verdadeiro beneficiário da técnica dodecafônica”. Complementa afirmando que “o pensamento
contrapontístico é superior ao harmônico homofônico, porque sempre subtraiu a superposição vertical à
cega compulsão das convenções harmônicas. [...] E a prioridade da técnica dodecafônica em relação à
arbitrariedade do „livre compor‟ tradicional é de tipo contrapontístico”. (Filosofia da nova Música, p. 75).
39
Notório se faz saber que no século XIX, época em que, ainda, franceses e ingleses disputavam as
conquistas dos oceanos e viviam no auge de sua vida cultural, os artistas e pensadores germânicos não
muito influenciados pelos efeitos do cientificismo moderno, espalhados por diferentes cidades européias,
até então se mantinham distantes entre si não sendo possível comunicação freqüente entre eles, restando-
lhes teorizar sobre a unificação da nação alemã, fato este que, mais tarde, os projetou, sobretudo, no
16
cenário cultural mundial. Nomes como os de Kant, Leibniz, Goethe, Herder, Fichte, Hölderlin, Schiller,
Schlegel, Hegel, Marx, Engels, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Humboldt, entre outros,
universalizaram-se, como também, os concertos de Bach, as sinfonias de Haydn, Mozart, Beethoven e
Brahms, os Lieder de Schubert e as óperas de Wagner. Ainda assim e, contraditoriamente, após o
processo de unificação dos estados germânicos, as conseqüências da edificação do II Reich
desencadearam também processos de ruptura na própria cultura alemã, tendo como pano de fundo a
formação de um ideal nacionalista que repudiava as tendências culturais inovadoras de uma vanguarda
que então surgia.
40
Carta de Adorno a Thomas Mann. In: Correspondance 1943-1955 Theodor Adorno & Thomas Mann.
Collection D‟Estetique, sob a direção de Marc Jimenez, p. 33.
41
Idem, p. 33.
17
Adorno diagnostica que o mundo havia sido aviltado pelo domínio da soberania
econômica e por forças que mercantilizaram a cultura, sendo que esta sua observância,
dotada de força crítica, demonstra os aspectos dialéticos do mundo concreto, levando o
leitor a um novo olhar analítico e, portanto, consciente do fator ideológico que exerce a
força do poder econômico sobre o indivíduo e sua sociedade, alterando e violentando as
relações sociais. Preocupado essencialmente com a política oficial de difusão da cultura,
que não reconhecia os valores culturais da música de vanguarda de seu tempo, Adorno,
em seu livro Filosofia da Nova Música, não escondendo o ímpeto de seus propósitos e
evidenciando seu pensamento crítico e dialético, se refere à ambígua relação entre arte e
sociedade e a uma possibilidade de reconciliação entre as duas, interessando-se em
“reconhecer as antinomias objetivas em que está necessariamente envolvida a arte”.
42
Importante se faz pontuar que a discussão estético-musical proposta por Adorno só é possível a partir
da teoria musical de Schoenberg, bem como do seu conceito de material musical e sua reflexão estético-
filosófica da música.
18
objetividade de seu método dialético, estando, portanto, seu pensamento voltado para a
construção de uma relação radical entre artista e obra, sendo que em sua Filosofia da
Nova Música essa relação se torna ainda mais radical, como enfatiza Marc Jimenez:
“[...] Adorno substitui a relação quase linear artista-obra por uma pluralidade
de relações: obra-sociedade, obra-história, constituição interna da
composição – estrutura social, matemática musical – evolução da técnica.
Enquanto o Versuch über Wagner procura a identidade, a Philosophie der
neuen Musik busca revelar as contradições, colocando-se mesmo sob o signo
do paradoxo. Paradoxo entre a tentativa expressionista de escapar à aparência
e o retorno ao ornamento, paradoxo entre a emancipação da dissonância em
Schoenberg e a construção do sistema dodecafônico, entre a suspensão das
funções tradicionais clássicas e o rigor do serialismo, paradoxo entre o desejo
de novidade em Stravinsky e a regressão às formas antigas. Paradoxo enfim,
em um plano muito mais geral, entre o que poderia (ou deveria) se ter tornado
a música, e o que ela na realidade se tornou”44.
“Parece realmente cínico que, depois do que ocorreu na Europa e o que ainda
ameaça ocorrer, se dedique tempo e energia intelectual a decifrar os
problemas esotéricos da moderna técnica da composição; além disso, as
obstinadas discussões do texto, puramente formais, com freqüência referem-
se diretamente a uma realidade que não se interessa por elas. Mas talvez este
começo excêntrico lance alguma luz sobre uma situação cujas conhecidas
manifestações somente servem para mascará-la e cujo protesto só adquire voz
quando a conivência oficial e pública assume uma simples atitude de não-
43
Carta de Adorno a Thomas Mann. In: Correspondance, p. 34.
44
Marc Jimenez, Para ler Adorno, pp. 42 e 43.
45
Adorno, Filosofia da Nova Música - Prefácio, p. 9.
19
A obstinada investigação das antinomias sociais se torna uma condição sine qua
non ao método dialético, entendido como elemento fundamental ao senso crítico
proposto por Adorno. Esse sēnsus critǐcus é vital para o autor, bem como para o
entendimento da arbitrariedade da cultura oficial e do regulador mercado da indústria da
cultura que leva o público a um não discernimento da opressão gerada pela produção
comercializada em massa que o transforma em ouvinte conivente e passivo, da mesma
maneira que divorcia o gosto do espectador e a qualidade da obra de arte. Segundo
Adorno, este fato se reflete no público como uma espécie de “conformismo simulado”:
E justifica:
46
Idem, pp. 10 e 11.
47
Idem, p. 15.
20
Designada a cumprir um papel que se distancia cada vez mais de sua própria
natureza, a obra de arte, na sociedade tecnocrata, se torna um produto reduzido e
inteiramente dominado pelo detalhe técnico, entrando num metié reservado
anteriormente somente às grandes mercadorias. Em termos de linguagem estruturada e
estrita, a obra de arte em todas as suas possibilidades se torna testemunha de
transformações impostas de forma inerente pela realidade empírica, constituindo no
mínimo um equívoco a crença de que esta, em seu âmbito estético, é indiferente a
qualquer tipo de influência que não a sua própria interna e que, conseqüentemente, sofre
interferências advindas do processo de reificação imposta por uma ideologia dominante
levada a termo pela indústria cultural:
48
Ibidem, p. 15
49
Idem, p. 16
50
Idem, p. 17.
21
“Não somente o ouvido do povo está tão inundado com a música ligeira que a
outra música lhe chega apenas como a “considerada clássica”, oposta àquela;
não somente os sons onipresentes de dança tornam tão obtusa a capacidade
perceptiva que a concentração de uma audição responsável é impossível”. 52
51
Idem, pp. 17 e 18.
52
Idem, p. 18.
53
Idem, p. 19.
22
Adorno sustenta que não existe material artístico puro, mas somente o material
artístico histórico-social e define a evolução da arte e o progresso na música como um
seguimento pelo qual os arquétipos musicais são despojados de seu caráter único e
imutável. Conseqüentemente para Adorno, o compositor somente dá consistência a uma
obra quando se apóia na utilização de um material que atende às exigências históricas. E
Schoenberg, em seu livro Harmonia, infere que a evolução da arte não é guiada por leis
naturais e sim por leis artísticas:
54
Adorno, Filosofia da nova Música, p. 111.
55
Uma das questões tratada por Adorno acerca da reificação da música tradicional, diz respeito à idéia
freudiana de Totem e Tabu e ao caráter psicológico a que atribui à composição de Igor Stravinsky mais
reconhecida, A sagração da primavera. Nessa composição, Adorno identifica a utilização de elementos
arcaicos do folclore russo como forma de representação do homem moderno, inferindo que o compositor
“aguça a tal ponto a tensão entre o arcaico e o moderno que repele, em favor da autenticidade arcaica, o
mundo primitivo entendido como princípio estilístico”. Das obras fundamentais de Stravinsky, Adorno
reconhece que “somente as Noces acolhem ainda o folclórico”. Chama a atenção para o fato de que “se
Freud ensinou que existe uma conexão entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos, o compositor
desdenha os selvagens e se atém àquilo cuja experiência é segura na arte moderna, ou seja, a esse
arcaísmo que constitui o estrato profundo do indivíduo e que se cria novamente na decomposição deste”.
Referindo-se a outras obras do compositor, como aquelas que se situando “entre Le Sacre e o desvio
neoclássico imitam o gesto da regressão, típico da dissociação da identidade individual - e „esperam‟
disso uma autenticidade em sentido coletivo”. Aludindo a esse pensamento Adorno revela que “a busca
de equivalentes musicais do inconsciente coletivo prepara a revirada que levará à instauração de uma
comunidade regressiva entendida como fato positivo”. O autor entende, ainda, que com a finalidade de
atender a um público já obnubilado pela ação da indústria cultural, Stravinsky vincula-se às tendências
regressivas da música de vanguarda, afirmando que o compositor russo “escava em busca da
autenticidade na própria estrutura e na dissolução do mundo de imagens da arte moderna” e se deixa
envolver pela produção massificada: “Stravinsky é o que diz sim em música”.
56
Schoenberg, Harmonia, p. 151.
23
Conclusão
57
Idem, p. 155.
58
Idem, p. 105
24
“Música nova é aquela que nunca foi dita. Então música nova pode significar
tanto aquela que existe há mil anos, quanto esta que se faz agora, ou seja: toda
música que aparece como jamais dita anteriormente. Mas também podemos
dizer: percorramos a evolução ao longo dos séculos, e veremos então o que é
realmente a música nova. Assim, talvez venhamos a saber o que hoje é música
nova e música obsoleta. Devemos, pois, evidenciar as leis que lá estão ocultas,
para ver mais claramente o que ocorre no momento atual. Aí então teremos
percorrido o caminho para a música nova” 59.
Bibliogarfia
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