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Para uma Fundamentação do Conceito de Nova Música em

Theodor Adorno

Lucyane De Moraes1
Resumo

A discussão ética que aqui se propõe tem nos conceitos de arte, música, tradição e
modernidade um campo privilegiado para a análise crítica das tecnologias da
informação como forma de difusão da cultura nas sociedades contemporâneas. Este
trabalho procura demonstrar a ininterrupta, complementar e dialética relação entre
música e filosofia que norteou a elaboração teórico-estética de Theodor Adorno. Para
tanto, tem-se como referência alguns de seus escritos sobre música, sobretudo Filosofia
da Nova Música, em que o autor com o viés de uma crítica radical da sociedade
industrial, identifica a preeminência de uma ideologia reinante e denuncia que esta tem
em mãos os meios propagandísticos ideológicos que contribuem para a “regressão da
audição”, manipulando arbitrariamente a produção e a difusão da música de vanguarda.

Palavras-chave

Theodor Adorno, Dodecafonismo, Teoria Crítica, Arte Moderna, Produção Industrial.

Abstract

The ethical discussion that is proposes has in the art concepts, music, tradition and
modernity a privileged focus on the critical analysis of the information‟s technologies as
a form of propagation the culture in the contemporary societies. This paper tries to
demonstrate the uninterrupted, complemented and dialectic relationship between music
and philosophy developed by Theodor Adorno in his theoretical-aesthetic works. Then,
it is had as its reference writings on music, specially his work Philosophy of New
Music, in which the author, developing a radical critic of the industrial society,
identifies the preponderance of a dominant ideology, denouncing that it has the
necessary tools for ideological announcements that contributes to the "regression of
listening", manipulating the production and the diffusion of the vanguard music
arbitrarily.

Key-Words

Theodor Adorno, Dodecafonism, Critical Theory, Modern Art, Produção Industrial.

“O que foi pensado pode ser abafado, esquecido, dissipado. Mas não pode ocultar o
fato de que alguma coisa sobrevive a isso, porque o pensamento possui um
momento de universalidade. O que foi bem pensado será necessariamente

1
A autora é mestranda em Filosofia pela UGF - Universidade Gama Filho. Graduada em Filosofia
(UFAL), possui especializações em Ensino da Arte e Direção Cinematográfica. Desenvolve pesquisas nas
áreas de Estética e Filosofia Social.
2

pensado em outro lugar e por alguém outro:esta certeza acompanha


o pensamento mais solidário e impotente”.

[Theodor W-Adorno]

“O que hoje é distante, amanhã pode ser próximo; é apenas uma questão de
capacidade de aproximar-se. A evolução da música tem seguido esse curso:
incluindo, no domínio dos recursos artísticos, um número cada vez maior
de possibilidades de complexos já existentes na constituição do som”.

[Arnold Shoenberg]

Sobre o conceito de Música Nova

Citando uma sentença proferida pelo filósofo, poeta e escritor francês Paul
Valéry, que “o melhor do novo responde a uma necessidade antiga”, Adorno, em seu
ensaio denominado Música e nova música2, escrito em 1960, procura explicar a
utilização do termo “Música Nova”, em resposta a uma pregressa indagação feita por
seu amigo e editor Peter Suhrkamp, justificando a necessidade da explicação para além
da mera nomenclatura:

“Para começar, este empedernido termo é suspeitoso. Nasceu, sem dúvida,


em conexão com a denominação alemã da Sociedade Internacional para a
Nova Música, que desde o início dos anos 20 encarregou-se de tudo o que em
certa medida se distanciava do neo-alemanismo, o impressionismo e o que
restava das antigas escolas do século XIX. Até que ponto era pouco
peremptória essa denominação, basta a demonstração do termo inglês para
aquela organização, «International Society for Contemporary Music»
(ISCM), que ao invés do polêmico «Nova» utiliza, de forma neutra,
cronológicamente o termo «Contemporânea» [...] Se hoje em dia se repetisse
o que se tocava naqueles festivais, certamente só uma quantidade mínima
atenderia qualitativamente o conceito atual de nova música” 3 (tradução
modificada).

A indagação de Suhrkamp, justificada pelo uso desta expressão [Nova] feita por
Adorno exclusivamente no campo da música, relaciona a dispensável referência do

2
Versão da autora. Da tradução espanhola Música y nueva Música do fragmento Quasi una Fantasia. In:
Escritos Musicales I-III. Editora AKAL.
3
Adorno, Música e Nova Música. In: Escritos Musicales II, pp. 485 e 486.
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termo, por exemplo, no campo da pintura. Adorno, em resposta a dúvida levantada pelo
já falecido amigo, explica:

“Em contraste com a pintura, a utilização do termo «nova música» não se


afirma de forma casual. Denota a experiência de um brusco salto qualitativo;
enquanto que processos análogos na pintura se desenvolvem em um lapso de
tempo maior e se remontam mais distantes. A música, inclusive no seu
desenvolvimento mais recente, tem demonstrado ser uma arte tardia, um late
comer, em que tudo nela transcorre mais rápido. O que principalmente se
precipitou no termo «nova música» é o fato de que o sistema sonoro havia
mudado”4 (tradução modificada).

Significa dizer que para Adorno nada realmente parecido ao que foi
experimentado pela música em termos de ruptura sucedeu à pintura, tendo esta se
desenvolvido paulatinamente e de forma mais harmoniosa historicamente, justificando
assim a exclusividade do termo para o campo da música, entendendo como «Nova»...

“uma linguagem musical que renuncia aos elementos convertidos em


segunda natureza, da tríade, da escala maior e menor, da diferença entre
consonância e dissonância e, finalmente, a todas as categorias que deles
resultam imediata e mediatamente, exigindo muito mais que as inovações da
pintura”5 (tradução modificada).

E é a partir desse arrazoado que Adorno desenvolve no referido ensaio o


entendimento basilar sobre o significado de Nova Música na forma de um conceito,
relativisando o termo no que respeita á sua generalização, diferindo-o daquele
cronologicamente estabelecido como “contemporâneo”, argumentando que “o conceito
de nova música parece compartilhar o destino de envelhecimento que sempre se abateu
sobre ele no curso da história”6 (tradução modificada). Em outras palavras, significa
dizer que a contemporaneidade não é um conceito autônomo e que definida como si
própria tem como destino a sua própria neutralização, pois na medida em que se opõe a
algo “estabelecido”, em sendo aceita como um novo padrão, se torna, igualmente, outro
algo “estabelecido”, marcada por uma crise endêmica que afirma sua condição trágica,
passadista e efêmera que serve bem aos propósitos da industria cultural:

4
Idem, p. 487.
5
Idem, p. 488.
6
Idem, p. 486.
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4

“A nova música pode afirmar-se sempre como nova na medida em que não se
adapta ao círculo fatal. Objetivamente, portanto, sua reflexão crítica-estética
sobre si mesma é ao mesmo tempo social. Mas, sua relação com a sociedade,
sua recepção proibitiva ou planificada afeta também o seu conteúdo [...] a não
objetividade, produzida pelo material não conceitual da música, sua
relutância a teses maneijavéis, permite consentir inclusive ao seus
recaucitrantes produtos uma liberdade para excentricidade”7 (tradução
modificada).

Referindo-se conceitualmente à Nova Música como uma expressão específica,


Adorno reafirma o seu significado ainda que em termos relativos, delimitando suas
propriedades para além de um sentido individual, mas ao contrário, enfatizada em seu
caráter social:

“... ela sofre daquilo que é comum e arquifamiliar, do qual se diferencia. Se


opõe impotente ao curso do mundo; seu gesto é agressivo. Ao querer
obedecer a sua própria lei e sublevar-se a da demanda, seu sujeito potencial,
oculto em si mesmo, se expressa com toda concretude. Em suas proibições se
manifestam suas propriedades. A agressão que a nova música, depois de
trinta anos, continua manifestando contra as normas estabelecidas, e que
sobrevive também um pouco nas manifestações surrealistas, tem uma
expressão específica, a de ameaçadora. Visto que não é de nenhum modo a
expressão individual de um estado afetivo, mas aquilo que promove a
exclusão do sujeito”8 (tradução modificada).

E complementa:

“Entre as partituras avançadas de hoje em dia algumas soam, como diria um


estado-unidense, literalmente como se estivessem out of this world. Esta
expressão se intensifica com a falta de compreensão com que a construção
integral repele o confortante vestígio do humano. É a expressão exata da
consciência da alienação e despersonalização reificadas que se impõe a
humanidade, em última instância da incapacidade da sensibilidade para se
adaptar ao que é imposto”9 (tradução modificada).

Refletindo ainda sobre o sentido social da música, Adorno em seu ensaio remete
às questões que explicam as transformações ocorridas no âmbito de seu
desenvolvimento histórico, reafirmando, dialeticamente, aquilo que a caracteriza como
matéria emancipada, justificada como “Nova” em um sentido estrito:

7
Idem, p. 491.
8
Idem, pp. 490 e 491.
9
Idem, p. 492.
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5

“Em termos de sua função social, a música no seu íntimo também mudou. A
música burguesa era, incluindo suas produções mais elevadas, adorno. Se
fazia agradável às pessoas, não só imediatamente aos ouvintes, mas
objetivamente, muito mais além deles, mediante as idéias do humanismo. Isto
foi denunciado porque degenerava em ideologia, porque o reflexo do mundo
no espírito positivo, inclusive quase como exigência de um melhor, se
converteu numa mentira que justifica um mal. Tal denuncia de cumplicidade
atinge as mais delicadas sublimações do sentimento formal musical. [...]
Somente através da imagem não figurativa da desumanização, esta música [a
nova música] conserva a imagem de algo humano. [...] Daí o direito de se
falar de nova música”10 (tradução modificada).

E referindo-se a Nova Música como aquela escrita no método dodecafônico,


interessante notar que, ainda em termos relativos, baseando-se no próprio pensamento
dialético, Adorno aponta uma série de contradições internas ao próprio método,
aludindo sobre o caráter excessivamente racional do sistema de doze sons que, de outra
forma, analogamente também submete a música à própria “lógica de sua estrutura”,
alegando que “a racionalidade dodecafônica como sistema fechado é impenetrável até
para si mesmo”. Segundo Adorno:

“A exatidão entendida como elemento matemático ocupa lugar daquilo que


para arte tradicional era a „idéia‟ e que certamente no romantismo tardio se
corrompeu em ideologia, na afirmação de uma substancialidade metafísica
resultante da intromissão direta e material da música nas coisas últimas, sem
que estas estivessem presentes na configuração pura da criação musical.
Schoenberg, em cuja música está secretamente mesclado um elemento desse
positivismo que constitui a essência de seu opositor Stravinsky, extirpou o
„sentido‟, pelo menos na medida em que ele, segundo a tradição do classicismo
vienense, pretendia estar presente no contexto da execução musical” 11.

Ainda, segundo Adorno, “o problema que a técnica dodecafônica apresenta ao


compositor não é o da maneira como se possa organizar um sentido musical, mas antes
de que maneira pode a organização adquirir um sentido”12. Nesse contexto, Adorno
afirma que “a exatidão dodecafônica, desembaraçando-se de todo sentido em si da coisa
musical como se fosse uma ilusão, trata a música segundo o esquema do destino”. E
justifica:

“A técnica dodecafônica é verdadeiramente seu destino. Esta técnica escraviza


a música ao liberá-la. O sujeito impera sobre a música mediante o sistema
racional, mas sucumbe a ele. Se na técnica dodecafônica o ato de composição

10
Idem, pp. 492 e 493.
11
Adorno, Filosofia da Nova Música, p. 58 e 59.
12
Idem, p. 59.
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propriamente dito, ou seja, a fecunda elaboração da variação está sujeito ao


material, o mesmo ocorre com a liberdade do compositor. Esta, ao realizar-se
no domínio sobre o material, converte-se numa determinação do material, que
se impõe, estranha, ao sujeito, e o submete à sua obrigação. Se a fantasia do
compositor faz com que o material seja dócil em tudo à vontade de construção,
o material construtivo paralisa, contudo, a fantasia. Do sujeito expressionista
fica somente a submissão neo-objetiva à técnica. Com efeito, esse sujeito
renega sua própria espontaneidade ao projetar sobre a matéria história as
experiências racionais que teve na luta dialética com essa matéria”13.

Significa dizer que, para Adorno, a música nova do método dodecafônico, sob o
mesmo princípio implicitamente coercitivo que estruturou o sistema tonal, acaba
também por se tornar um sistema fechado em si mesmo através da adoção de um
excessivo conjunto de regras que acaba por inibir as possibilidades criativas do próprio
compositor, suprimindo seu propósito inicial. Em outras palavras, o método
dodecafônico, reproduzindo em termos idênticos a mesma relação implicitamente
restritiva do sistema tonal, acaba por negar suas próprias realizações, promovendo, de
certo modo, uma espécie de retorno às formas tradicionais da música do passado.

Ainda assim, relativizando a questão Adorno entende que se a Nova Música trás
em si suas próprias formas de anulação, isto se deve ao caráter implícito de
autenticidade desta produção, tendo em vista as forças históricas reativas que impedem
qualquer tentativa de mudança estrutural no âmbito desta produção. Pode-se dizer
também que, como autêntico herdeiro de um processo que historicamente promoveu a
dissolução do sistema tonal, o método dodecafônico criado por Schoenberg resume
dialeticamente a afirmação pela negação do próprio sistema tonal, resultando a sua
dissolução em sua própria continuidade em novos termos, corroborando com o próprio
conceito da dialética de que “a afirmação de uma negação é uma negação e a negação
de uma negação torna-se uma afirmação”.

Por compreender que um artista “livre” seria aquele que nunca negasse a sua
relação com a sociedade, Adorno denuncia todo e qualquer comportamento de ordem
conservador, postulando que a autonomia artística deveria estar intrinsecamente ligada
ao desenvolvimento e transformação progressiva da sociedade, tendo em vista que “as
obras de arte registram a história da humanidade com mais exatidão que os

13
Idem, p. 59 e 60.
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documentos”14. Sua contribuição filosófica sobre arte vai além da reflexão de outros
pensadores que através dos tempos demonstraram interesse pelo mesmo assunto,
evidenciando as relações que se estabelecem entre arte, conhecimento e natureza e,
analisando a obra de arte como parte constitutiva das sociedades modernas, sob uma
ótica crítica da cultura no capitalismo, através do processo de sua inserção na indústria
de massas: “A obra representa o quanto há de verdadeiro, na sociedade, contra o
indivíduo que reconhece a não-verdade da sociedade e reconhece até que ponto ele
mesmo é essa não-verdade. Somente nas obras está presente o que supera a limitação
entre sujeito e objeto. Como conciliação aparente, são o reflexo da conciliação real”15.
Em um mesmo sentido pode-se afirmar que, para Adorno, a música de vanguarda tem
papel importante na medida em que expressa de maneira inconformista, “através de sua
forma, a realidade do caos social a que se opõe o indivíduo, angustiado pelo caráter
irremediável de sua alienação”16.

A história é constitutiva: a música no tempo

Sendo a música intrínseca a história do ser humano, tida como uma das formas
de expressão mais antigas e importantes, identifica-se desde a mais remota antiguidade
em todas os rituais primitivos a presentificação de deuses ou de algum tipo de
representação mitológica a ela ligado17. De acordo com a mitologia grega, a história da
música no ocidente começa com a morte dos seis filhos de Urano, conhecidos como os
Titãs, vencidos pelos deuses do Olimpo. Objetivando então cantar as vitórias do
Olimpo, Zeus toma para si a tarefa de criar nove divindades, partilhando por nove noites
consecutivas o leito com Mnemosyne, deusa da memória, resultando o nascimento das
nove musas. Assim é que a própria origem etimológica da palavra música advém do
termo mousiké (Μουσική), união dos vocábulos mous + iké, significando a arte das
Musas.

14
Adorno, Filosofia da Nova Música, p. 42.
15
Idem, p. 48.
16
Marc Jimenez, Para ler Adorno, p. 47.
17
Se para os hindus a música teria sido inventada por Brahma e para os egípcios por Toth ou Osíris, para
os hebreus ela estava ligada a Jubal e David e assim por diante.
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Com o surgimento do Cristianismo no século I, a antiga civilização Greco-


romana, já demonstrando sinais de decadência, passa a conviver com outras formas de
cultura musical, ainda que praticadas clandestinamente nos subsolos de Roma,
marcando uma trajetória que se estende até a conversão ao Cristianismo do Imperador
Constantino no século IV e a posterior queda definitiva do Império Romano no ano de
476. Por sua vez, a cultura musical grega irá ser assimilada em suas formas pela própria
civilização romana, para além de outras manifestações associadas às práticas guerreiras
do Império, acalentada em ambientes domésticos, mais afeitos a fruição e ao deleite.

O modalismo

O desenvolvimento histórico da música no ocidente registra diversas formas


específicas de organizações sonoras diferentes ao longo dos tempos, entre as mais
antigas conhecidas o sistema dos modos gregos, organizado ainda na Grécia antiga. É
baseado nesse sistema que o então Bispo Ambrosio de Milão18, na segunda metade do
século IV, cria o seu antifonário19, inspirado nos Salmos judaicos e tendo como base a
antiga liturgia grega. Adaptando quatro daqueles antigos modos musicais gregos, os
quais denominou de Authenticus, Ambrósio torna-os obrigatórios para a prática do
hinário eclesiástico, dando origem ao chamado Canto Ambrosiano. Posteriormente, no
século VI, o Papa Gregório, aprofundando o legado deixado por Ambrósio de Milão,
realiza profundas reformas na liturgia católica romana incluindo, entre outras, novas
formas de organização da música sacra utilizada nas celebrações religiosas da igreja,
ficando conhecida como cantochão ou Canto Gregoriano. O cantochão gregoriano,
canto eclesiástico que tem como base a escrita neumática20, é um gênero vocal
monofônico, ou seja, cantado a uma só voz por um coro, sem qualquer

18
Ambrosio estudou filosofia e foi exímio orador. Se converteu ao cristianismo, ordenado padre e
governador de Milão, sendo hábil nos assuntos políticos. Afamado estudioso da Bíblia, escreveu vários
hinos litúrgicos. Seus sermões converteram Agostinho de Hipona e o imperador Theodosius, ficando
conhecido como Língua de Mel por conta de sua habilidade como orador. Hoje, é possível encontrar
iconografias suas rodeado de abelhas, bem como, de outros símbolos que indicam prudência e sabedoria.
“Ninguém cura a si próprio ferindo o outro” é a sua célebre máxima.
19
Livro litúrgico que contém diversas partes cantadas em coro.
20
O sistema de neumas propiciou uma forma de notação musical que apresentava, entre outras vantagens,
a possibilidade de memorização das notas musicais que acompanhavam os textos litúrgicos entoados nas
celebrações religiosas.
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acompanhamento instrumental. Difundido especialmente pela Ordem Beneditina, a


partir da fundação de uma Schola Cantorum, criada pelo próprio Gregório, o cantochão
irá resumir o fundamento de toda a música do ocidente.

Ainda em inícios do século VI o filósofo, teólogo e estadista Severino Boécio21,


baseando-se em Platão, escreve o seu tratado De Institutione Musica ao qual se debita
em grande parte a noção que se tem desde a idade média e ainda hoje da teoria musical
grega antiga, devendo-se a ele, entre outros, o conhecimento das proporções musicais
Pitagóricas. Em seu tratado, reproduzido em manuscrito somente por volta do ano de
1150, Boécio dimensiona a música em três categorias distintas: humana, mundana e
instrumental, sendo a primeira a da harmonia inerente ao homem, a segunda a que
resulta da harmonia das esferas e a terceira a que se faz ouvir simplesmente como
manifestação da beleza das proporções sonoras. Não coincidentemente, é a partir do
século XI que a Europa vive uma profunda renovação em todas as ordens da vida social,
econômica e cultural, devendo as causas a uma série de fatores que influíram de forma
definitiva no cotidiano da vida na idade média: o acirramento político entre a nobreza e
a monarquia, a nova economia monetária, o crescimento das cidades e o
desenvolvimento das rotas comerciais, entre outras, ocasionando profundas mudanças.
Naturalmente, este não foi um fenômeno isolado restrito apenas ao ambiente sócio-
econômico, tendo refletido também no aspecto cultural, dando início ao que a nova
história denomina como a primeira renascença. Como consequência, entre outras,
fundam-se as primeiras universidades e os antigos mosteiros de característica românica,
horizontalizados, passam a ser construídos em um sentido vertical, no chamado estilo
gótico. E é também a partir desse período que várias ordens eclesiásticas passam a
preservar através de manuscritos o conhecimento musical legado pela antiguidade
clássica, adaptando-o às necessidades funcionais da igreja da época, em seu serviço de
disseminação da fé Cristã. E no campo da música, é sob a égide da expansão do
conhecimento, com o surgimento da técnica polifônica, ou seja, da música escrita a
várias vozes diferentes e independentes, que o monge Guido d‟Arezzo22, no século XI,
irá desenvolver uma forma mais aprimorada de notação musical utilizando uma pauta de

21
Boécio foi afamado por suas traduções, comentários e resumos de variadas obras do grego clássico
como o Organon de Aristóteles e de diversos tratados de teologia, lógica e matemática. Foi ainda um dos
maiores pensadores da música greco-latina, deixando um grande legado teórico-musical.
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quatro linhas, o tetragrama, pondo fim ao uso da antiga técnica de escrita neumática.
Desenvolve também, com o propósito de memorização, um sistema de identificação
visual das notas musicais voltado para o ensino, denominado manosolfa, sistema este
em que cada uma das alturas era identificada por partes da mão humana. Ainda, propõe
também a identificação das notas musicais nomeando-as como ut23, re, mi, fa, sol, la e
si, tendo como base um antigo hino latino dedicado a São João Batista:

“Ut queant laxis,


Resonare fibris,
Mira gestorum,
Famuli tuorum,
Solve polluti,
Labilli reatum,
Sancte Iohannes”24.

O sistema de organização das alturas musicais utilizado na idade média


denominava-se modal, composto basicamente de sete escalas naturais, a saber, Jônico,
Dórico, Frígio, Lídio, Mixolídio, Eólio e Lócrio25, respectivamente adstritos às alturas
de Dó, Ré, Mi, Fa, Sol, La e Si. Cada um desses “modos”, característicos per si,
apresentando seqüencialmente padrões intervalares diferentes, foi dominante na música
européia por pelo menos mil anos, desempenhando uma função estruturante na
produção daquele período. É somente a partir da segunda metade do século XVI que o
sistema modal irá sofrer, paulatinamente, uma série de alterações internas através de um
processo de síntese, sendo praticamente substituído em fins do século XVII por outro
sistema igualmente estruturante, mais funcional porquanto racionalizado e
hierarquizado, denominado tonal.

A tonalidade

22
Guido d‟Arezzo foi regente de coro da catedral de Arezzo na região da Toscana.
23
Com o passar do tempo pequenas alterações na escrita musical foram feitas. Temos como exemplo a
nota Ut, que passa a ser denominada por Dó.
24
Em português, significa: “Para que teus servos possam ressoar claramente a maravilha dos teus feitos,
limpe nossos lábios impuros, oh! São João”.
25
Seus nomes derivam de povos, idiomas e regiões da Grécia antiga e se reportam aos antigos modos
utilizados na música daquela época.
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Originado dos sete antigos “modos” eclesiásticos organizados e utilizados pela


liturgia cristã desde a alta idade média, o sistema tonal26 advindo do século XVII se
constituiu a partir da sistematização de dois daqueles sete antigos “modos”, tendo sido
adotados como modelo os modos jônico e eólio, constituindo um modo maior e outro
menor que podem ser transpostos de forma modelar para qualquer altura entre os doze
sons da escala cromática (dó, dó#, ré, ré#, mi, fa, fa#, sol, sol#, lá, lá#, si), sendo esta a
base em que se estrutura o sistema. Resumidamente, o sistema tonal utiliza do sistema
modal apenas duas das sete escalas, o jônico e o eólio, como forma modelar de
estabelecimento de um sistema formal, unificado. Sob o ponto de vista físico, a
organização do sistema tonal se fundamentou na série harmônica encontrável na
natureza. O som é uma matéria composta, e não simples, significando dizer que a cada
vez que um som fundamental é produzido ele gera, por si, uma série de sons
secundários concomitantes que o compõe, sempre de acordo com a seguinte disposição
característica de intervalos sonoros: som fundamental (1º grau da escala), a sua oitava
(som fundamental), a sua quinta (5º grau da escala), a sua oitava (som fundamental), a
sua terça (3º grau da escala), a sua quinta (5º grau da escala), a sua sétima (7º grau da
escala), a sua oitava (som fundamental), a sua segunda (2º grau da escala), a sua terça
(3º grau da escala) e assim por diante, infinitamente. Assim é que o sistema tonal
utilizou como base para a sua estruturação hierárquica os dois primeiros sons
secundários encontrados na série harmônica, gerados pelo som fundamental (1º grau),
ou seja, o 5º grau e o 3º grau, justamente os primeiros diferentes e mais próximos do
som fundamental (1º grau) encontrados na série harmônica.

Mais tarde irá se ver que o compositor austríaco Arnold Franz Walter
Schoenberg27, criticando a teoria da arte tradicional, considera que o sistema tonal deve

26
O compositor francês Jean-Philippe Rameau, em seu livro de teoria musical, Tratado de Harmonia, de
1722, contribuiu para a constituição da base teórica do sistema tonal. Ao lado de Scarlatti e Bach,
Rameau é considerado um dos fundadores da música moderna.
27
“Como inventor, Schoenberg foi o maior responsável pela „ruptura‟ com o sistema tonal em sua fase de
saturação extrema, ruptura esta por ele vista, entretanto, mais como continuidade e conseqüência natural
da evolução da linguagem musical do que como fruto de qualquer atitude rebelde e avessa à história.
Nesse contexto, Schoenberg – preferindo o adjetivo „evolucionário‟ a revolucionário – se debatia contra a
imagem de inventor, declarava-se, sobretudo, um „descobridor‟ e firmava-se, sim, como um clássico, um
criador mais propenso a sínteses do que a hipóteses” – Flô Menezes, na apresentação do livro Harmonia,
de Schoenberg, editora UNESP, pp. 11 e 12.
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ser reconhecido por seu caráter histórico e cultural. Fundamentando a sua argumentação
na crítica da tonalidade, ao examinar sua dependência com recursos artificiais como, por
exemplo, a afinação igual do sistema temperado, o compositor alega que o tonalismo já
não pode ser considerado como um método natural. Assim é que suas considerações
irão ampliar a compreensão do princípio ordenador do tonalismo. Ao passo que
impetrava, de forma consciente, a dissolução da harmonia diatônica tradicional,
Schoenberg trabalhava em composições relacionadas com um „atonalismo livre‟.

Música atonal

Desde a segunda metade do século XIX e em diante, compositores germânicos


como Richard Wagner, Gustav Mahler e Richard Strauss, entre outros, empreenderam
esforços no sentido de criar alternativas voltadas para a expansão do sistema tonal então
vigente, herdado desde Johann Sebastian Bach, sendo herdeiro direto desta tradição o
compositor Arnold Schoenberg.

Referindo-se ao fato de que “todavia, a evolução da música seguiu outro


caminho”, e que “os teóricos, mesmo sendo constantemente desautorizados pela
realidade ainda assim não abandonam a ilusão”28, Schoenberg, calcado no entendimento
de que “a tonalidade não é uma lei eterna da música”29, alude ao fato de que não
passando de mera diferença qualitativa, as “expressões consonância e dissonância
usadas como antíteses, são falsas”30:

“Tudo depende, tão somente, da crescente capacidade do ouvido analisador em


familiarizar-se com os harmônicos mais distantes, ampliando o conceito de
„som eufônico, suscetível de fazer arte‟, possibilitando, assim, que todos esses
fenômenos naturais tenham lugar no conjunto. O que hoje é distante, amanhã
pode ser próximo; é apenas uma questão de capacidade de aproximar-se. A
evolução da música tem seguido esse curso: incluindo, no domínio dos
recursos artísticos, um número cada vez maior de possibilidades de complexos
já existentes na constituição do som” 31.

28
Schoenberg, Harmonia, p. 43.
29
Idem, p. 44.
30
Idem, pp. 58 e59.
31
Idem, p. 59.
12

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Apesar de considerar incorretas as expressões consonância e dissonância,


Schoenberg não utiliza outra terminologia, justificando que a introdução de outro
conceito “neste estágio histórico não teria qualquer utilidade e dificilmente resolveria o
problema a contento”. E assim define ambas, respectivamente:

“como as relações mais próximas e simples com o som fundamental, e


dissonância como as relações mais afastadas e complexas. As consonâncias
originam-se dos primeiros harmônicos e são tão mais perfeitas quanto mais
próximas estiverem do som fundamental. Ou seja: quanto mais próximas
estiverem desse som fundamental, mais fácil será para o ouvido reconhecer sua
afinidade com ele, situá-las no complexo sonoro e determinar sua relação com
o som fundamental enquanto harmonia „repousante‟, que não requer resolução.
O mesmo deveria ser dito das dissonâncias. Se não acontece assim, se não se
pode julgar com o mesmo método a capacidade de assimilação das
dissonâncias usuais, e se a distância do som principal não é uma medida para
se estabelecer o grau da dissonância, tudo isso não é uma prova contrária ao
ponto de vista exposto aqui”. 32
Pelo suposto de que “a tonalidade seja uma lei eterna, uma regra natural da
música, mesmo quando esta lei corresponda às condições mais simples do modelo
natural (o som) e do acorde fundamental”, Schoenberg, contrariando outros teóricos que
o precederam afirma que:

“A tonalidade é uma possibilidade formal, brotada da essência mesma da


matéria sonora, de alcançar uma determinada unidade graças a uma certa
homogeneidade. Para se alcançar esse objetivo é preciso que sejam usados, no
curso de uma peça musical, somente determinados sons e determinadas
sucessões de sons (e tudo numa certa ordenação), de tal modo que, nesse dito
tom, a dependência da fundamental (a tônica) possa ser percebida sem
dificuldades”33.

Considerando sobre o processo de desenvolvimento histórico da música desde o


período medieval, Schoenberg se refere a dissolução do sistema tonal aludindo ao fato
de que “direitos adquiridos acabam gastando-se”, para em seguida indagar se não foi um
fato similar o mesmo que aconteceu com o sistema modal, dos modos eclesiásticos:

“Havia momentos, nos modos eclesiásticos, que pressionavam em direção à


dissolução do sistema modal, fato que hoje podemos facilmente constatar. Isso
nos é demonstrado, por exemplo, no fato de que os acordes fianis eram sempre
maiores, apesar de, nos modos dóricos, éolio e frígio, o acorde próprio da escla
ser menor. Não parece deduzir-se daí que seria como se a fundamental se
libertasse, finalmente, da força artificial a ela imposta e, atendendo a seus
harmônicos, voltasse à sua eufonia natural? Talvez tenha sido esta

32
Ibidem, p. 59.
33
Idem, p.69.
13

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circunstância o que acabou por eliminar as diferenças entre os diferentes


modos eclesiásticos, a tal ponto que restaram apenas dois tipos únicos: os
modos maior e menor, nos quais estão contidas as características fundamentais
dos sete modos primitivos. Fenômenos semelhantes aparecem em nossos
modos maior e menor. Sobretudo o fato de que, em qualquer tonalidade
(naquilo que denominamos “tonalidade ampliada” [erweiterte Tonalität])
podemos introduzir, pretextando um desvio passageiro, quase tudo o que é
próprio de outras tonalidades muito distantes, mas, ainda assim, próprio
também da tonalidade em questão. Ou o fato de um modo ser expresso, quase
exclusivamente, como acordes diferentes dos que são próprios da escala, sem
que por isso a tonalidade seja anulada. Logo: ainda assim fica existindo,
efetivamente, a tonalidade?

Este entendimento abriu espaço para o estabelecimento de novas formas de


criação musical periféricas ao sistema tonal construído sobre os sete sons da escala
diatônica, baseado primeiramente na utilização mais ou menos sistematizada e orgânica
dos doze sons da escala cromática, culminando com sua ruptura no início do século XX
com o advento do atonalismo livre e do posterior método de composição dodecafônico
da chamada Segunda Escola de Viena34.

Dodecafonismo ou Serialismo

O método de composição com doze sons, chamado dodecafônico (do grego,


dodeka: „doze‟ e fonos: „som‟), criado por Schoenberg, se originou da necessidade de
organizar de forma sistêmica e coerente o legado da quase ausência de tonalidade
deixado por aqueles compositores alemães, resultando no rompimento com o modelo
tradicional da música da cultura germânica, baseada no sistema tonal vigente desde o
século XVII construído sobre a escala diatônica de sete sons (dó, ré, mi, fa, sol, lá, si),
sistema este, ainda hoje massivamente ultilizado, e que tem como base a organização
hierárquica dos diferentes sons (alturas) dessa escala ao redor de um “som principal”, a
sua tônica, exercido como centro de atração para os demais sons que a constitui. Como
alternativa, o sistema atonal utilizado pelo método de composição dodecafônico propôs
a utilização da série harmônica a partir dos sons secundários mais distantes gerados pelo
som fundamental, ou seja, respectivamente os intervalos de 7º, 2º, 4º, 6º, etc., até o
infinito. Estabelecido como um dado cultural, a utilização desses sons secundários da

34
A chamada Primeira Escola de Viena compreende a obra musical de Haydn, Mozart e Beethoven
desenvolvida no período clássico do século XVIII e fundamentada no sistema tonal. Em contraposição a
esta, a atribuída Segunda Escola de Viena do século XX engloba a obra musical de Schoenberg, Berg e
Webern, construída sobre o sistema atonal.
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série harmônica, mais distantes do som fundamental e, portanto, menos utilizados pelos
compositores até inícios do século XX, se apresenta pouco usual para os ouvintes,
criando uma sensação de estranhamento provocado por relações sonoras ditas
dissonantes, constituindo-se, por isso mesmo, em material básico e ideal para a criação
de novas formas de articulação do pensamento musical. Quando lecionava, Schoenberg
se “esforçava” em mostrar a seus discípulos “a substância da coisa desde o seu
fundamento”, com o intento de fazer com que seus alunos aprendessem sobre as “leis e
efeitos da tonalidade”, bem como devessem “saber também dos movimentos que
conduzem à sua abolição”:

“Deve saber que as condições para a dissolução do sistema tonal estão


contidas já nas próprias condições sobre as quais se fundamenta. Deve saber
que em tudo o que vive está contida a sua própria mudança, desenvolvimento
e dissolução. A vida e a morte estão já na mesma origem. O que existe entre
elas é o tempo. Portanto, nada essencial, apenas uma medida, a qual é, porém,
necessariamente consumada. Com este exemplo, o aluno aprenderá a
conhecer a única coisa que é eterna: a mudança [der wechsel]; e o que é
transitório: a existências [das bestehen]. Dar-se-á conta, assim, de que muito
do que se tem tido por estética – ou seja, por fundamento necessário do belo
–, não está sempre alicerçado na essência das coisas. Que é a imperfeição de
nossos sentidos o que nos obriga a compromissos graças aos quais
alcançamos uma ordem. Porque a ordem não vem exigida pelo objeto, mas
pelo sujeito”35.

A criação do método de composição dodecafônico repercute em toda a música


ocidental moderna como proposta organizada de ruptura com aquela construída a partir
do sistema tonal, desestruturando o esquema racionalizado e hierárquico que
subordinava os demais sons da escala a um único centralizado, ampliando em muito as
possibilidades de articulação de novas formas do pensamento musical, contribuindo
para uma sua possível maior emancipação. Segundo Theodor Adorno, “esta é a origem
da técnica dodecafônica. Ela culmina na vontade de superar a oposição dominante da
música ocidental, a oposição que há entre natureza polifônica da fuga e a natureza
homofônica da sonata”36. Para tanto, o método de composição dodecafônico preconiza a
utilização dos doze sons da escala cromática em uma ordem qualquer pré-estabelecida
pelo compositor, sem qualquer relação hierárquica entre os sons da escala, porquanto
ordenados em uma seqüência não repetida de sons, caracterizada como uma série,

35
Schoenberg, Harmonia, p. 72.
36
Adorno, Filosofia da Nova Música, p. 50.
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evitando assim o estabelecimento de um centro tonal, ou seja, de um determinado som


como sendo o principal e mais forte. Organizada em qualquer padrão estabelecido, essa
série seqüencial de sons que não devem ser repetidos antes que toda a série seja
completada, pode ser criada a partir de qualquer estrutura rítmica escolhida e em
qualquer oitava da escala, construída em uma seqüência modelar original37. Outra
contribuição fundamental proposta de forma coerente pelo método de composição
dodecafônico foi o resgate da técnica do contraponto38, que consiste na superposição de
linhas melódicas independentes formando um todo harmônico. Utilizada desde a baixa
idade média, a técnica do contraponto teve seu apogeu no período barroco, tendo sido
abandonada pelos compositores do período neoclássico em função das novas formas da
harmonia funcional surgida no âmbito de desenvolvimento do sistema tonal.

Historicamente, o dodecafonismo e o movimento da música nova sofreram


inúmeras críticas de nacionalistas no mundo inteiro, adeptos do sistema tonal. Os
defensores do sistema dodecafônico foram acusados de serem universalistas, apátridas,
sem compromisso com as raízes e origens de sua cultura, sendo que, por sua vez, os
defensores do atonalismo reconheceram em seus detratores, adeptos do tonalismo,
manifestações de reação não evolucionistas, além de vestígios de um tipo de
atrelamento a governos autoritários. No entanto, não importando essa questiúncula, a
discussão que interessa diz respeito à tentativa de Schoenberg de criar uma nova forma
de articulação do pensamento musical, nascida da necessidade de superação do processo
de massificação sofrido pelo sistema tonal, tendo Theodor Adorno como um dos mais
árduos defensores dessa nova corrente estética desenvolvida no panorama da cena
musical germânica39.

37
Podendo ser desenvolvida em sua forma retrogradada, de trás para frente, invertida, reorganizando os
intervalos ascendentes da série original de forma descendente e vice-versa, e retrogradada invertida,
realizando de trás para frente a série invertida.
38
Embora Adorno aponte alguns problemas da técnica contrapontística no dodecafonismo, em sua
Filosofia da Nova Música, ele alega que o contraponto “tem a primazia na composição”, que este é “o
verdadeiro beneficiário da técnica dodecafônica”. Complementa afirmando que “o pensamento
contrapontístico é superior ao harmônico homofônico, porque sempre subtraiu a superposição vertical à
cega compulsão das convenções harmônicas. [...] E a prioridade da técnica dodecafônica em relação à
arbitrariedade do „livre compor‟ tradicional é de tipo contrapontístico”. (Filosofia da nova Música, p. 75).
39
Notório se faz saber que no século XIX, época em que, ainda, franceses e ingleses disputavam as
conquistas dos oceanos e viviam no auge de sua vida cultural, os artistas e pensadores germânicos não
muito influenciados pelos efeitos do cientificismo moderno, espalhados por diferentes cidades européias,
até então se mantinham distantes entre si não sendo possível comunicação freqüente entre eles, restando-
lhes teorizar sobre a unificação da nação alemã, fato este que, mais tarde, os projetou, sobretudo, no
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Da relação entre música, conhecimento e sociedade

O legado cultural herdado por Adorno foi determinado por fatores


contrādictōrǐus históricos e sociais. Em seus primeiros anos de vida a música esteve
efetivamente presente, tendo crescido ouvindo trechos de óperas interpretados por sua
mãe, cantora lírica italiana e por sua tia materna, a quem mais tarde ele reconhece ter
despertado e incentivado seu interesse por teoria musical, tendo esta influência o
acompanhado em sua vida adulta, época em que, refletindo sobre a cena musical de sua
cidade, escreve pequenos artigos sobre crítica e estética musical, referindo-se de forma
minuciosa aos anseios artísticos daquela sociedade. Vale notar que ainda jovem,
estimulado por seus pais e amigos que o encorajaram a seguir tanto as atividades
artísticas como acadêmicas, se dedica, paralelamente aos estudos musicais, à leitura da
obra filosófica de Emmanuel Kant, conseguindo progredir de forma ímpar em ambas as
direções. Deste fato Adorno nos faz lembrar quando escreve a seu amigo e interlocutor
Thomas Mann, em carta de 05 de julho de 1948: “Eu cresci num ambiente dominado
por interesses teóricos (também políticos) e artísticos, musicais em primeiro plano.
Estudei filosofia e música. Em vez de me decidir por uma ou outra, eu tive, em toda
minha vida, o sentimento de perseguir o mesmo objetivo nestes domínios divergentes”40
(tradução modificada). Assim é que em meados da década de 20 dirige-se a Viena a fim
de estudar teoria musical, voltando sua atenção para as áreas da composição e piano41.
Em seu regresso à Frankfurt se dedica a carreira acadêmica desenvolvendo estudos de
filosofia centrados na área de estética. Influenciado por sua estada na capital Austríaca,
onde participara do círculo vanguardista da chamada Segunda Escola de Viena, conduz
sua teoria voltando-se para os problemas musicais de seu tempo, caminhando em

cenário cultural mundial. Nomes como os de Kant, Leibniz, Goethe, Herder, Fichte, Hölderlin, Schiller,
Schlegel, Hegel, Marx, Engels, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Humboldt, entre outros,
universalizaram-se, como também, os concertos de Bach, as sinfonias de Haydn, Mozart, Beethoven e
Brahms, os Lieder de Schubert e as óperas de Wagner. Ainda assim e, contraditoriamente, após o
processo de unificação dos estados germânicos, as conseqüências da edificação do II Reich
desencadearam também processos de ruptura na própria cultura alemã, tendo como pano de fundo a
formação de um ideal nacionalista que repudiava as tendências culturais inovadoras de uma vanguarda
que então surgia.
40
Carta de Adorno a Thomas Mann. In: Correspondance 1943-1955 Theodor Adorno & Thomas Mann.
Collection D‟Estetique, sob a direção de Marc Jimenez, p. 33.
41
Idem, p. 33.
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direção ao desenvolvimento da música de vanguarda, especialmente a do método


dodecafônico, ligado a técnica dos doze sons42.

A Restauração versus o Progresso

Foi através da querela estabelecida pelo material artístico de Schoenberg e


Stravinsky que, em sua Philosophie der neuen Musik, Adorno propôs uma reflexão
sobre as novas tendências da música no século XX, tendo como pano de fundo uma
sociedade dominada pela cultura de massas. Escrito em duas partes, a primeira em 1941,
se refere à obra do compositor vienense Arnold Schoenberg que, segundo o autor,
propõe novas formas de articulação do pensamento musical numa perspectiva
construtiva atribuindo à sua obra um sentido de progresso na música contemporânea; na
segunda parte, que trata da obra do compositor russo Igor Stravinsky, o autor denuncia
os mecanismos de “uma restauração musical e seus vínculos com tendências regressivas
da nossa época”43 (tradução modificada).

Adorno diagnostica que o mundo havia sido aviltado pelo domínio da soberania
econômica e por forças que mercantilizaram a cultura, sendo que esta sua observância,
dotada de força crítica, demonstra os aspectos dialéticos do mundo concreto, levando o
leitor a um novo olhar analítico e, portanto, consciente do fator ideológico que exerce a
força do poder econômico sobre o indivíduo e sua sociedade, alterando e violentando as
relações sociais. Preocupado essencialmente com a política oficial de difusão da cultura,
que não reconhecia os valores culturais da música de vanguarda de seu tempo, Adorno,
em seu livro Filosofia da Nova Música, não escondendo o ímpeto de seus propósitos e
evidenciando seu pensamento crítico e dialético, se refere à ambígua relação entre arte e
sociedade e a uma possibilidade de reconciliação entre as duas, interessando-se em
“reconhecer as antinomias objetivas em que está necessariamente envolvida a arte”.

Desde os seus primeiros escritos sobre música, Adorno preocupa-se em eliminar


toda e qualquer intervenção de caráter psicológico que propusesse invalidar a

42
Importante se faz pontuar que a discussão estético-musical proposta por Adorno só é possível a partir
da teoria musical de Schoenberg, bem como do seu conceito de material musical e sua reflexão estético-
filosófica da música.
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objetividade de seu método dialético, estando, portanto, seu pensamento voltado para a
construção de uma relação radical entre artista e obra, sendo que em sua Filosofia da
Nova Música essa relação se torna ainda mais radical, como enfatiza Marc Jimenez:

“[...] Adorno substitui a relação quase linear artista-obra por uma pluralidade
de relações: obra-sociedade, obra-história, constituição interna da
composição – estrutura social, matemática musical – evolução da técnica.
Enquanto o Versuch über Wagner procura a identidade, a Philosophie der
neuen Musik busca revelar as contradições, colocando-se mesmo sob o signo
do paradoxo. Paradoxo entre a tentativa expressionista de escapar à aparência
e o retorno ao ornamento, paradoxo entre a emancipação da dissonância em
Schoenberg e a construção do sistema dodecafônico, entre a suspensão das
funções tradicionais clássicas e o rigor do serialismo, paradoxo entre o desejo
de novidade em Stravinsky e a regressão às formas antigas. Paradoxo enfim,
em um plano muito mais geral, entre o que poderia (ou deveria) se ter tornado
a música, e o que ela na realidade se tornou”44.

Já em seu ensaio intitulado “O Fetichismo da Música e a Regressão da


Audição”, de 1938, Adorno propõe “mostrar as transformações internas que os
fenômenos musicais sofreram ao serem subordinados, por exemplo, à produção
comercializada em massa”, revelando também “de que maneira certos deslocamentos ou
modificações antropológicas da sociedade massificada penetram até na estrutura do
ouvido musical”45. Suas teses embasam-se na necessidade de uma reforma da razão
mesma, libertando-a do peso da superioridade autoritária sobre as coisas e homens, peso
este que, segundo o autor, a sociedade moderna carrega até hoje, desde os ideais de uma
razão iluminista. Este entendimento o conduz às questões ligadas a arte do seu tempo,
especialmente as formas de difusão da cultura, a arte de vanguarda e a música
dodecafônica de Shoenberg que tomava como norma um corte radical, fundando uma
relação de independência com o sistema vigente que contribuía de forma hábil para
adulterar as relações entre os homens, sobretudo dos homens com a natureza.

“Parece realmente cínico que, depois do que ocorreu na Europa e o que ainda
ameaça ocorrer, se dedique tempo e energia intelectual a decifrar os
problemas esotéricos da moderna técnica da composição; além disso, as
obstinadas discussões do texto, puramente formais, com freqüência referem-
se diretamente a uma realidade que não se interessa por elas. Mas talvez este
começo excêntrico lance alguma luz sobre uma situação cujas conhecidas
manifestações somente servem para mascará-la e cujo protesto só adquire voz
quando a conivência oficial e pública assume uma simples atitude de não-

43
Carta de Adorno a Thomas Mann. In: Correspondance, p. 34.
44
Marc Jimenez, Para ler Adorno, pp. 42 e 43.
45
Adorno, Filosofia da Nova Música - Prefácio, p. 9.
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participação. [...] Como poderá estar constituído um mundo em que até os


problemas do contraponto são testemunhos de conflitos inconciliáveis? Até
que ponto a vida estará atualmente perturbada, se cada estremecimento seu e
cada rigidez sua se reflete ainda num plano a que não chega a nenhuma
necessidade empírica, numa esfera em que, segundo os homens acreditam, há
um asilo seguro contra a pressão da norma funesta, e que cumpre sua
promessa apenas negando-se ao que os homens esperam dela?”46.

A obstinada investigação das antinomias sociais se torna uma condição sine qua
non ao método dialético, entendido como elemento fundamental ao senso crítico
proposto por Adorno. Esse sēnsus critǐcus é vital para o autor, bem como para o
entendimento da arbitrariedade da cultura oficial e do regulador mercado da indústria da
cultura que leva o público a um não discernimento da opressão gerada pela produção
comercializada em massa que o transforma em ouvinte conivente e passivo, da mesma
maneira que divorcia o gosto do espectador e a qualidade da obra de arte. Segundo
Adorno, este fato se reflete no público como uma espécie de “conformismo simulado”:

“Desde a década heróica, ou seja, desde os anos da I Guerra Mundial, é em


toda a sua decadência, uma regressão ao tradicional. Essa separação da
objetividade, própria da pintura moderna, que nessa esfera representa a mesma
ruptura que a atonalidade representa na música, esteve determinada por uma
posição defensiva contra a mercadoria artística mecanizada, sobretudo contra a
fotografia. A música radical, em sua origem, não reagiu de outra maneira
contra a degradante comercialização do idioma tradicional. Foi o obstáculo
colocado frente à expansão da indústria cultural em sua esfera. É verdade que o
processo pelo qual se passou à produção calculada de música como artigo de
consumo demorou mais a se desenvolver do que o processo análogo verificado
na literatura ou nas artes plásticas. O elemento não conceitual e não concreto
da música, que desde Schopenhauer a remeteu à uma filosofia irracionalista,
fê-la contrária à ratio da vendabilidade”47.

E justifica:

“Somente na era do cinema sonoro, do rádio e das formas musicais de


propaganda, a música ficou, precisamente em sua irracionalidade, inteiramente
sequestrada pela ratio comercial. Mas assim que a administração industrial de
todo patrimônio cultural se faz totalitária, ela adquire ainda poder sobre tudo o
que não admite conciliação do ponto de vista estético. Com o poder dos
mecanismos de distribuição de que dispõe o mau gosto e os bens culturais já
ultrapassados e com a predisposição dos ouvintes determinada num processo
social, a música radical caiu, durante o industrialismo tardio, num completo
isolamento. Para os autores que querem viver, este é o pretexto moral e social
para uma falsa paz. Forma-se assim um estilo musical que, por mais que

46
Idem, pp. 10 e 11.
47
Idem, p. 15.
20

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proclame a pretensão irrenunciável do moderno e do sério, se assimila à cultura


das massas em virtude de uma calculada imbecilidade” 48.

Segundo Adorno, por questões de ordem ideológica, as formas de racionalidade


técnica legitimam a dominação política propagada nas sociedades modernas, as quais a
produção dos bens culturais é dominada de forma ininterrupta pela ação da indústria
cultural que, se utilizando das novas tecnologias da informação como forma de difusão
da cultura através dos media modernos, age de forma autoritária e conservadora,
desconsiderando como patrimônio cultural as produções de vanguarda. E afirma que
“aquele que conserva arbitrariamente o que já está superado compromete o que quer
conservar e se choca de má fé contra o novo”49. Ainda, entende que uma sociedade que
se baseia na centralização econômica, forjando um aparente conforto e uma suposta
segurança de “reconhecimento oficial”, desfavorece o senso crítico, os valores éticos da
coletividade e, no que diz respeito à arte, atruibui crenças de que algumas fórmulas são
mais compreensíveis que outras:

“A opinião de que Beethoven é compreensível e Schoenberg,


incompreensível, é de um ponto de vista objetivo, um engano. Enquanto para
o publico, que está fora da produção, a superfície da nova música parece
estranha e desconcertante, os mais típicos representantes desta música estão
condicionados pelos mesmos pressupostos sociais e antropológicos que
condicionam o ouvinte. As dissonâncias que o espantam falam de sua própria
condição e somente por isso lhe são insuportáveis” 50.

Designada a cumprir um papel que se distancia cada vez mais de sua própria
natureza, a obra de arte, na sociedade tecnocrata, se torna um produto reduzido e
inteiramente dominado pelo detalhe técnico, entrando num metié reservado
anteriormente somente às grandes mercadorias. Em termos de linguagem estruturada e
estrita, a obra de arte em todas as suas possibilidades se torna testemunha de
transformações impostas de forma inerente pela realidade empírica, constituindo no
mínimo um equívoco a crença de que esta, em seu âmbito estético, é indiferente a
qualquer tipo de influência que não a sua própria interna e que, conseqüentemente, sofre
interferências advindas do processo de reificação imposta por uma ideologia dominante
levada a termo pela indústria cultural:

48
Ibidem, p. 15
49
Idem, p. 16
50
Idem, p. 17.
21

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“Quando o público acredita compreender, não faz senão perceber o molde


morto do que protege como patrimônio indiscutível e que desde o momento
em que converteu em patrimônio é algo já perdido, neutralizado, privado de
sua própria substância artística; algo que se converteu em indiferente material
de exposição. Na realidade, na concepção que o público tem da música
tradicional, permanece apenas o aspecto mais grosseiro, as idéias musicais
fáceis de discernir, as passagens tragicamente belas, atmosferas e
associações”.51

Necessário se faz entender que para Adorno o fenômeno da regressão da audição


está ligado a absolutização e banalização, pela reificação em termos sintéticos, de
apenas um sistema musical, o tonalismo. Em sua Filosofia da Nova Música, essa
compreensão é ratificada:

“Não somente o ouvido do povo está tão inundado com a música ligeira que a
outra música lhe chega apenas como a “considerada clássica”, oposta àquela;
não somente os sons onipresentes de dança tornam tão obtusa a capacidade
perceptiva que a concentração de uma audição responsável é impossível”. 52

Em sua defesa da música nova, a utilização de um novo “alfabeto musical” se


apresenta como progressista na medida em que a sua utilização como modelo
alternativo ao sistema tonal possibilita a abordagem de novas formas de articulação do
pensamento musical, menos afeitas a reificação da música pela indústria cultural, tendo
na absolutização do sistema tonal o aspecto fundamental que determina o processo
regressivo da audição, inerente e necessário ao desenvolvimento da produção
comercializada em massa. Segundo Adorno “a única defesa consiste em denunciar a
cultura oficial, já que esta cultura por si mesma só serve para fomentar precisamente a
selvageria que se esforça em combater”53.

Contrapondo a Música Nova à obra de Stravinsky, Adorno identifica que o


compositor russo evitava deliberadamente a inovação na busca de um padrão exterior à
própria música utilizando de forma recorrente fórmulas musicais estereotipadas,
atendendo aos interesses do ouvinte massificado traduzido pela falta de um nexo
constitutivo de unidade, coerência e forma musical, resultando em um tipo de

51
Idem, pp. 17 e 18.
52
Idem, p. 18.
53
Idem, p. 19.
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originalidade alcançada por um efeito meramente aparente: “Stravinsky desdenhou o


caminho fácil que conduz à autenticidade”54. Denunciando ainda que Stravinsky retoma
formas “arquetípicas” através do uso de elementos “anacrônicos” e por meio da
reificação de fórmulas facilmente identificadas pelo ouvinte, Adorno afirma que “a
psicologização da música, à custa da lógica de sua estrutura, demonstrou ser um
fenômeno fragmentário e já envelhecido”55.

Adorno sustenta que não existe material artístico puro, mas somente o material
artístico histórico-social e define a evolução da arte e o progresso na música como um
seguimento pelo qual os arquétipos musicais são despojados de seu caráter único e
imutável. Conseqüentemente para Adorno, o compositor somente dá consistência a uma
obra quando se apóia na utilização de um material que atende às exigências históricas. E
Schoenberg, em seu livro Harmonia, infere que a evolução da arte não é guiada por leis
naturais e sim por leis artísticas:

“[...] por nossa incapacidade em compreender o desordenado, nos esforçamos


em representar o manejo tradicional de nossa arte sob a forma de uma teoria
perfeitamente concluída, baseada na natureza. Pode-se consentir nessa teoria
como algo também baseado na natureza. Não mais que isso! Pois, mesmo que
nossa arte e sua teoria pudessem, com justiça, invocar a natureza, o inculto
não estaria necessariamente errado se produzisse coisas diferentes. Porque a
arte reduz o cognoscível ao representável. Por conseguinte, as coisas podem
ser conhecidas e representadas de maneira diversas. E, sobretudo: a arte não é
como a natureza, uma realidade existente, senão algo que veio a existir”56.

54
Adorno, Filosofia da nova Música, p. 111.
55
Uma das questões tratada por Adorno acerca da reificação da música tradicional, diz respeito à idéia
freudiana de Totem e Tabu e ao caráter psicológico a que atribui à composição de Igor Stravinsky mais
reconhecida, A sagração da primavera. Nessa composição, Adorno identifica a utilização de elementos
arcaicos do folclore russo como forma de representação do homem moderno, inferindo que o compositor
“aguça a tal ponto a tensão entre o arcaico e o moderno que repele, em favor da autenticidade arcaica, o
mundo primitivo entendido como princípio estilístico”. Das obras fundamentais de Stravinsky, Adorno
reconhece que “somente as Noces acolhem ainda o folclórico”. Chama a atenção para o fato de que “se
Freud ensinou que existe uma conexão entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos, o compositor
desdenha os selvagens e se atém àquilo cuja experiência é segura na arte moderna, ou seja, a esse
arcaísmo que constitui o estrato profundo do indivíduo e que se cria novamente na decomposição deste”.
Referindo-se a outras obras do compositor, como aquelas que se situando “entre Le Sacre e o desvio
neoclássico imitam o gesto da regressão, típico da dissociação da identidade individual - e „esperam‟
disso uma autenticidade em sentido coletivo”. Aludindo a esse pensamento Adorno revela que “a busca
de equivalentes musicais do inconsciente coletivo prepara a revirada que levará à instauração de uma
comunidade regressiva entendida como fato positivo”. O autor entende, ainda, que com a finalidade de
atender a um público já obnubilado pela ação da indústria cultural, Stravinsky vincula-se às tendências
regressivas da música de vanguarda, afirmando que o compositor russo “escava em busca da
autenticidade na própria estrutura e na dissolução do mundo de imagens da arte moderna” e se deixa
envolver pela produção massificada: “Stravinsky é o que diz sim em música”.
56
Schoenberg, Harmonia, p. 151.
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Ainda, no que diz respeito ao caráter histórico da arte e sua evolução,


Schoenberg indica “que em todo progresso, tem-se que perder algo de um lado se se
quer ganhar de outro” e que “sob o aspecto absoluto da evolução, todo progresso é
apenas um trabalho preliminar; se não inteiramente, pelo menos no essencial” 57. Tal
qual Schoenberg, Adorno entende que o progresso da música se produz no material
artístico, entendendo que este material em seu estado mais avançado historicamente se
determina, em um sentido dialético, pela disponibilidade dos meios técnicos frente às
suas necessidades de expressão.

Conclusão

Talvez como um reflexo da enorme complexidade que encerrou o próprio


processo de elaboração do método dodecafônico, a discussão impetrada por Adorno
sobre a possibilidade de uma música nova resulta ainda hoje problemas insolúveis que
inclui, entre outros, o aspecto de sua própria comunicabilidade:

“O deslocamento do conteúdo social na nova música radical, que se


manifesta somente de forma negativa na recepção que recebe, ou
seja, como abandono da sala de concertos, não se deve ao fato do que
esta música tome posições, mas que destrói hoje, desde o interior,
como um imperturbável microcosmo da constituição antagônica
humana, esses muros que a autonomia estética havia levantado tão
cuidadosamente pedra sobre pedra. Era o sentido de classe da música
tradicional que proclamava, ora através de sua compacta imanência
formal, ora através do aspecto agradável de sua fachada, que, em
última instância, não há classes. A nova música não pode
arbitrariamente entrar por si mesma na luta, sem vulnerar sua própria
coerência; mas, como bem sabem seus inimigos, assume contra sua
própria vontade uma posição precisa quando renuncia ao engano da
harmonia, engano que se tornou insustentável frente a uma realidade
58
que está marchando para a catástrofe” .

De qualquer forma, para o entendimento sobre a questão da afirmação de uma


música nova, ainda é válido lembrar a citação do compositor autríaco Anton Webern
proferida em um ciclo de conferências intitulado O Caminho para a Música Nova,

57
Idem, p. 155.
58
Idem, p. 105
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realizado em Viena no ano de 1933, referindo-se a uma sentença proferida por


Schoenberg:

“Música nova é aquela que nunca foi dita. Então música nova pode significar
tanto aquela que existe há mil anos, quanto esta que se faz agora, ou seja: toda
música que aparece como jamais dita anteriormente. Mas também podemos
dizer: percorramos a evolução ao longo dos séculos, e veremos então o que é
realmente a música nova. Assim, talvez venhamos a saber o que hoje é música
nova e música obsoleta. Devemos, pois, evidenciar as leis que lá estão ocultas,
para ver mais claramente o que ocorre no momento atual. Aí então teremos
percorrido o caminho para a música nova” 59.

Certo é que ainda hoje, para além da utilização do método dodecafônico, a


discussão sobre a possibilidade de uma música nova no âmbito do sistema capitalista
apresenta igualmente problemas insolúveis, resumida que está àquilo que não foi além
de “uma promessa de esperança”.

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Akal, 2006.

59
Anton Webern, Conferência I, proferida em 20/02/1933. In: O Caminho para a Música Nova, p. 26
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