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TOMO I – PROLEGÔMENOS PARA UMA UMA SEMIÓTICA MUSICAL

1 MÚSICA, ÓPERA E EXPRESSÃO DAS EMOÇÕES HUMANAS PELA VIA


DO MELOS E DO LOGOS

Conhecer a música pela via de seu próprio sistema simbólico pode satisfazer a
necessidade de compreender experiências desprovidas de mediação pela razão, que
estão relacionadas ao problema da destruição e da vingança enquanto afeto (Kohut,
1972). Isso porque os elementos da dinâmica musical estão relacionados à vida interior
do ser humano (Salomonsson, 1989). Cabe, nesse momento, lembrar uma das metáforas
musicais elaboradas por Freud:

E o que é um afeto, no sentido dinâmico? Em todo caso, é algo muito


complexo. Um afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas inervações ou
descargas motoras e, em segundo lugar, certos sentimentos; estes são de dois
tipos: percepções das ações motoras que ocorreram e sensações diretas de
prazer e desprazer que, conforme dizemos, dão ao afeto seu traço
predominante (Freud, 1996, p.103).

No caso, a edição Standard das Obras Completas de Freud traduz o termo


“Grundton” como “traço predominante”. No entanto, esse termo, no original, se refere à
escala musical1 (Salomonsson, 1989). Cada um dos tons musicais pode ser associado
com afetos específicos (Schubart, 1806).
Esses aspectos da vida pessoal e afetiva estão presentes no domínio pathico,
que afeta os processos de tomada de decisão do indivíduo (Weizsäcker, 1958). A
expressão feita a partir do domínio pathico é feita por verbos modais que, enquanto
metamodais, também estão articulados à atribuição de significado à musica (Tarasti,
2012). Isso implica que verbos como querer, poder e dever estão presentes na dinâmica
pathica da vida pessoal e no ato de atribuição de sentido. Assim, é possível estabelecer
uma relação de similaridade entre o domínio pathico e o sentimento2 (Tatossian, 1979).
Esse sentimento puro carece de processos de significação sofisticados que permitem a
descrição dele. Esse sentimento é conhecido como estado puramente afetivo (Maine de

1
Keynote.
2
Feeling.

11
Biran, 1920). Ele é próprio ao domínio da música quando dizemos que comentários
sobre ela, feitos sob a forma verbal, já fazem com o que estado mais puro se desfaça,
assumindo uma forma verbalizada. Portanto, do ponto de vista semiótico, a relação
entre música e afeto é icônica, já que em ambos os contextos estamos no domínio da
qualia. Dessa maneira, é possível afirmar que há semelhanças entre ambas (Kruse,
2007). Assim, a música pode possibilitar uma significação que mostre um sentimento
por meio de sua relação de semelhança, enquanto signo, para com o afeto sentido pelo
ser humano (Santaella, 2001).
Jean Philippe Rameau, compositor romântico francês que compôs a célebre
“Les Indes Galantes” em 1736, nos disse que “a verdadeira música fala a linguagem do
coração” (Riding & Dunton-Downer, 2010). Marin Mersenne (1636) já havia concluído
que a música é forma de expressão mais apropriada e mais natural para descrevermos as
paixões humanas.
Marie-France Castarède, em “Les Vocalises de la passion – Psychanalyse de
l’opéra”, nos traz uma visão primordializada acerca da música, como um campo
essencialmente original. Ela coloca que “entregar-se à música, senti-la, apreciá-la, é
permitir a manifestação de fortes sentimentos que existem em todos nós e deixar que ela
nos leve para um mundo psíquico que é anterior ao da linguagem, onde apenas as
emoções valem3.” (Castarède, 2002, p. 13).
Assim, ela defende a posição de que o melos antecede o logos, ou seja, de que
existe um primado ontológico da música sobre as palavras. Algumas óperas foram
escritas sobre essa questão. Uma delas é conhecida pelo nome “Prima la musica, e poi
le parole”, de Antonio Salieri, que estreou em Viena em 1786. O “Capriccio” de
Richard Strauss também aborda a problemática, só que num sentido de dúvida: qual tem
primazia sobre a outra? (Parker & Abbate, 2012). A ópera de Salieri sugere que toda
fala deve estar fundada em um som de forma que possa ser escutada. A de Strauss
aponta que não podemos ignorar nenhum dos dois recursos para compreender a
formação do sentido da peça.
Castarède coloca também que “ritmo e canto estão intimamente ligados desde
as origens da expressão humana4” (Castarède, 2002, p. 23). Dessa maneira, o canto é a
única forma de expressão ligada diretamente às origens da música e da fala (Castarède,

3
S’abandonner à la musique, la ressentir, en jouir, c’est abandonner à des sentiments puissants qui
existent en chacun de nous et qui nous ramènent dans un monde psychique d’avant le langage où seules
les émotions comptent.
4
Rythme et chant sont indissociablement liés aux origins de l’expression humaine.

12
2002). Segundo Jean Jacques Rousseau, o canto também está ligado às origens da
comunicação humana: “As primeiras línguas foram cantadas e apaixonadas antes de
serem simples e metódicas5” (Rousseau, 1781, p. 11).
Nesse sentido, a origem do processo de formação das línguas e de toda
comunicação humana está fundada num enlace entre dois aspectos: ritmo e canto. O
canto ritmizado é repleto de sentido, o que sugere uma significação específica a partir
dos aspectos rítmicos presentes na fala (Santaella, 2001).
Se, por um lado, a linguagem verbal comunica aquilo que é sentido por meio
do logos, os padrões musicais se assemellham aos padrões emocionais (Noy, 1979) e,
portanto, irão expressar o que é sentido pela via do melos. Enquanto as línguas
humanas, como o português e o inglês, são capazes de comunicar um determinado
significado por meio do aspecto convencional da língua, estabelecido nos dicionários –
ainda que haja o problema da polissemia (Santaella, 2001), aquilo que um ouvinte sente
ao ouvir uma música pode variar devido a diversos aspectos – que podem resultar, por
exemplo, da posição que o ouvinte ocupa no teatro onde ele está escutando uma peça ou
então do conhecimento total de música que o ouvinte possui em relação a quem
desconhece elementos de notação musical (Ingarden, 1966). Entretanto, é possível dizer
que existe coerência entre o significado colocado pelo autor e aquele elaborado pelo
ouvinte no ato de escuta, como podemos observar na tese de Serge Lacasse, orientada
pelo musicólogo Philip Tagg6 (Lacasse, 2000): “‘Listen to My Voice’: The Evocative
Power of Vocal Staging in Recorded Rock Music and Other Forms of Vocal
Expression”.
Ao ouvirmos uma música, podemos sentir algo que é de ordem fisiológica,
como uma reação ao estímulo musical, que pode ser tristeza, alegria, excitação,
suspense, etc. Aksnes (2001) coloca que esse é sentido atribuído com o corpo7. Essas
reações podem variar a cada vez que o ouvinte entra em contato com o mesmo estímulo
musical ou então quando analisamos diferentes sujeitos em contato com o mesmo
estímulo ao mesmo tempo (Ingarden, 1966). Por exemplo, na cena em que Igor
Stravinsky está apresentando sua nova peça no filme Coco Chanel & Igor Stravinsky,
Gabrielle (conhecida como Coco Chanel) se sente estranhamente cativada pelo
espetáculo enquanto que a plateia, de forma geral, se sente ofendida e torna a declamar

5
Les premières langues furent chantantes et passionnées avant d’être simples et méthodiques.
6
Philip Tagg é professor de musicologia e foi homenageado no ano de 2014, no Congresso Internacional
de Numanities, na Lituânia, devido à importância de sua obra para a área de Significação Musical.
7
A esse processo de significação chama-se, em língua inglesa, de embodied meaning.

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desaforos e a sair do teatro com desgosto relativo à apresentação. O argumento de Kant
(1764) para essa diferenciação no aspecto da apreciação de um mesmo objeto aponta
para a disposição do sujeito para apreciar um objeto específico, como uma peça
musical. A interpretação do sentido musical, por sua vez, requer a aplicação de
conceitos técnicos relacionados à música e à notação musical (Santaella, 2001; Tagg,
2011), o que sugere a possibilidade de uma atribuição de significado à música que seja
coerente com aquele contido no trabalho de composição musical. Isso porque aquilo que
é expresso musicalmente por uma orquestra em ação deve se manter fiel a uma norma
que está posta na partitura que, por sua vez é um índice da ideia composicional
(Ingarden, 1966). O aspecto da fidelidade garante a coerência em parte, uma vez que ela
se restringe ao nível do intérprete. Mas o ouvinte deverá conhecer os elementos
apresentados na peça para então atribuir o sentido a ela, o que só pode ser feito caso o
intérprete seja fiel à partitura. Dessa maneira, caso o intérprete execute a peça
corretamente, e o ouvinte tenha conhecimentos musicais suficientes de forma que ele
saiba dar o sentido à peça (Tarasti, 2012), o significado musical proposto pelo primeiro
poderá ser alcançado pelo segundo.
A ópera, por sua vez, abre uma possibilidade diferenciada de significação, já
que permite a integração entre melos e logos em seu contexto de expressão uma vez que
há o entretecimento entre texto e música nas conhecidas Árias, como em, “A vingança
do inferno incendeia meu peito8” da Flauta Mágica, de Mozart, e “Ninguém dorme9” da
Turandot, de Giacomo Puccini. No contexto das produções operísticas as famosas Arias
se opõem conceitualmente aos Recitativos. A Ária envolve tanto o canto lírico com
como a execução da partitura por parte de uma orquestra dirigida pela figura do regente.
O Recitativo, cujo aspecto exclusivo é o discurso verbal – além é claro de outros
aspectos cênicos, que também ocorrem durante a Ária, e da questão da tonalidade do
canto, não possui acompanhamento orquestral, podendo vir com o acompanhamento de
um instrumento de cordas (como o cravo), ou com a voz nua (Castarède, 2002).
A ópera, entre as artes, é a que faz uso do maior número de elementos e,
portanto, é a mais completa e complexa, uma vez que ela reúne aspectos de cenário,
figurino, musica e texto. Ela pode nos oferecer recursos para analisar e compreender o
aspecto afetivo do ser humano que se encontra ferido (Whitehead, 1978; Chumaceiro,
1992). Na ópera, o canto se faz presente de forma marcante por meio de artistas

8
Der Hölle Rache kocht in meinen Herzen.
9
Nessun Dorma.

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internacionais desde o século XVII quando a voz exprimiu sob a forma musical as
experiências afetivas e emocionais de maneira evidente. A voz pode ser encontrada nos
corais, nos recitativos e nas Árias (Castarède, 2002).
Essa forma complexa de arte começa a surgir como fruto do Renascimento
Italiano na última década do século XVI. Nesse cenário, um grupo de artistas plásticos,
músicos e poetas, membros da chamada Camerata, empenharam-se em reavivar o teatro
grego, na forma da opera in musica10 (Parker & Abbate, 2012). O Conde Bardi,
Vincenzo Galilei11, especialista em teoria musical, e Girolamo Mei, pianista, eram
nomes de destaque do pensamento filosófico da Itália que deu luz à ópera. À época do
surgimento dessa forma de expressão artística, e particularmente em Veneza, eram
utilizados termos como attione in musica, festa teatrale, dramma musicale, favola regia,
tragedia musicale ou opera scenica para designá-la (Rosand, 1991). O termo “ópera”
apenas passou a ser usado de forma consistente no século XIX (Parker & Abbate, 2012).
O Orfeo de Angelo Poliziano, cuja partitura hoje está perdida pode ser
considerado o marco histórico do surgimento da ópera, porque data de 1480. Nessa
época, em Florença, a intenção de reviver a tragédia grega na forma musical crescia em
interesse. Mas talvez não se tratasse ainda de ópera propriamente dita, o que nos leva a
questionar se podemos escolher o final do século XV como época do nascimento dessa
forma de arte.
Conta-se que houve grande festa promovida pela família Medici, no ano de
1589, que durou três semanas, cujo climax foi uma apresentação da peça cômica, La
pellegrina, que usou recursos da dança, do canto solo, de cenários elaborados e de
madrigais. Apesar das influências do teatro e de proto-óperas que já existiam, esse
momento também pode ser considerado como um marco, mas não apenas pelo critério
da data, e sim porque surgiu algo novo. Essa nova forma artística, que de fato surgiria
em Florença, exigia a narrativa teatral e que todos os atores cantassem – e cantassem o
tempo inteiro.
As primeiras óperas de fato teriam sido a Dafne, escrita por Ottavio Runiccini,
com música de Jacopo Peri e Jacopo Corsi (datada de 1598) e a Euridice, de Rinuccini,
com uma partitura composta por Peri, e outra por Giulio Caccini. Esta foi a primeira a
ser oficialmente publicada, o que lhe dá o título de primeira ópera pelo critério da
divulgação oficial da composição, nos remetendo ao ano de 1600 como o marco do

10
uma obra musical.
11
Pai de Galileu Galilei, que herdou do pai a paixão pela física do som.

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surgimento oficial da ópera, nova arte. No entanto, sete anos mais tarde, em 1607 a
primeira ópera é estreada em Mântua, na Itália. Algo nascia de forma ainda mais
especial. Sob composição de Claudio Monteverdi, músico já de renome na Europa, a
peça L'Orfeo surge no contexto de inovação e do surgimento de uma nova forma de
arte, pelas mãos de um artista com vasta experiência de composição musical. Em
L'Orfeo vemos traços da festa dos Medici, assim como aspectos do recitar cantando,
mas com o refinamento musical que apenas um grande mestre poderia ter criado (Parker
& Abbate, 2012).
Em 1637, Veneza inaugura o seu primeiro teatro de ópera. Menos de 70 anos
mais tarde já havia na cidade 17 casas de ópera. Na França, Luís XIV, o Rei Sol,
contratou Jean-Baptiste Lully para compor óperas francesas, entre elas “Alceste ou o
triunfo de Alcides”. Henry Purcell compôs a primeira ópera na língua inglesa em 1689,
intitulada “Dido e Aeneas” (Kobbé, 1997). A difusão da ópera se deu no percurso dos
movimentos nacionalistas, como no caso da Alemanha e da Rússia (Leitão, 2009).
Surgiria depois a opera seria, que se diferenciava do modelo da Poppea de
Monteverdi e da ópera veneziana tardia por possuírem menos personagens e uma
quantitade menor de formas musicais (Parker & Abatte, 2012). As óperas do tipo seria e
buffa marcaram a evolução do estilo recitar cantando a partir do século XVIII, período
em que a ópera inspirou grandes paixões e guerras ideológicas como a querela dos
bufões12. A buffa foi inicialmente uma forma cômica que servia como descanso entre os
atos das óperas do tipo seria. A fonte de seriedade nesta se torna fonte de riso naquela: o
comportamento apropriado de acordo com o status social.
Žižek e Dolar (2002) explicam que, enquanto a opera seria prima pela
transcendência, a buffa se baseia na estrutura da imanência – o mesmo argumento pode
ser encontrado em Nagel (1985). A seria se baseia na relação distante entre o sujeito e o
outro, entre o social e a sua transcendência. O enredo irá se desenrolar na troca entre os
dois e terminará na resolução dessa distância pelo ato de misericórdia. Por outro lado, a
democrática buffa mostra uma perspectiva de equidade dentro dos limites dos homens e
seus comuns. Ela é uma arma para mostrar o papel de ridículo desempenhado por
pessoas com qualidades que não correspondem ao seu status social e que não se provam

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Esse episódio dividiu o público frequentador dos espetáculos parisienses em dois. De um lado, os
defensores da ópera italiana que defendiam a reformulação do teatro lírico no sentido da valorização das
melodias baseadas em temas cômicos e do cotidiano, se juntaram a Diderot, D'Alambert e Jean-Jacques
Rousseau. Do outro, haviam os defensores da ópera francesa tradicional, Voltaire e Jean-Philippe
Rameau, seguindo os moldes de Jean-Baptiste Lully. A carta sobre a música francesa de 1753, de Jean-
Jacques Rousseau, é um dos registros históricos sobre a querela.

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merecedoras de participar da cena social. Mozart, gênio inquestionável da composição
operística e com quem a ópera atingirá o seu auge, irá se valer, além da seria e da buffa,
do Singpsiel, gênero musical alemão que não possuía uma forma definida, misturando
elementos do folclore alemão, dos arranjos velozes da buffa, da coloratura complexa da
seria e de composições solenes para o coro (Apel, 2000).
No canto, elemento caro à ópera, podemos notar que, em virtude da presença
do logos, temos fonemas que marcam a presença de uma língua particular, como o
alemão ou o italiano. No caso do melos, temos uma característica mais ligada aos traços
genéticos da espécie humana, que é capaz de cantar um intervalo específico de tons,
conforme a técnica de cada cantor. É preciso então compreender o domínio do logos
segundo a sua forma específica e a partir de áreas de estudo como a gramática e a
linguística, enquanto que o estudo da sonoridade exige uma lógica diferenciada e deve
ser estudada do ponto de vista da teoria musical (Žižek, 2004).
O entretecimento entre o libretto musical e a emoção expressa musicalmente
permite uma ampla análise da dinâmica afetiva humana por meio de um estudo
detalhado da lógica dos legi-signos musicais utilizados, sob a forma de réplicas, em uma
composição real. Diversos estudos explicaram e descreveram determinadas lógicas
humanas pela via de composições clássicas que, propositadamente veiculam
significados específicos, como a comédia social representada no Quarteto em Mi Menor
de Joseph Haydn13 (Robinson, 2000), o amor adúltero em Tristan und Isolde (1858) de
Richard Wagner, a paixão entre amantes de diferentes idades em La Damnation de
Faust (1846) de Hector Berlioz (Castarède, 2002), o sentimento de nacionalismo como
na Segunda Sinfonia de Jean Sibelius (Tarasti, 199914), o lamento em Dido and Aeneas
(1689) de Henry Purcell (Monelle, 1991; Aksnes, 2001) que, possui uma linha vocal
“cheia de sofrimento com trítonos lacrimejantes e cromatismos desesperados 15”
(Castarède, 2002, p.83).
O entretecimento entre música e libretto se aplica na proposta da própria
experiência de apreciação operística, proposta por Hector Berlioz, expoente do
romantismo francês na música, que defendia que a platéia deveria ter conhecimento do

13
Ainda que o quarteto de Haydn não possua uma parte em texto ela é apontada como uma peça
essencialmente humorística (Robinson, 2000).
14
Apesar de Sibelius ter negado qualquer conteúdo programático em suas sinfonias, à 2ª é atribuída o
senso de nacionalismo (Tawaststjerna, 1976).
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plein de souffrance avec ses tritonts sanglotant et son chromatisme désespéré.

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texto a ser entoado pelos atores durante a ópera antes que fosse realizada a perfomance.
Dessa forma, os ouvintes poderiam dar atenção aos aspectos da peça que estivessem
presentes apenas durante a ação, enquanto o texto permanece inalterado e acessível,
antes e depois da peça (Riding & Dunton-Downer, 2010).
Guillaume (1984) defende que a compreensão verbal, do ponto de vista lógico-
verbal, ocorre num processo que se divide em três momentos: in posse, in fieri e in esse.
A terminologia extraída do latim significa que, primeiramente, o saber está apenas ao
nível de potência, é virtual – in posse. Enquanto está sendo feita a aquisição do saber,
diz-se que está ocorrendo de maneira atualizada, no gerúndio do in fieri. Quando a
aquisição está completa, então a noção verbal já está in esse, implicando que o sujeito
tem posse do saber. O que Berlioz defendia é que o enredo do libretto estivesse na fase
in esse quando o expectador se dirigisse para o espetáculo. A proposta de Berlioz para a
compreensão do evento musical enviesa a percepção da obra de arte na tentativa de
uniformizar a compreensão que os diferentes indivíduos da plateia terão por meio da
redução do sentido da peça ao significado contido no texto. A leitura prévia pode
também servir como suporte para uma experiência diferenciada, uma vez que os temas
musicais podem se associar a personagens contidos no texto (Sousa, 1999). Segundo o
crítico de ópera Rodney Milnes, nós vamos à ópera para ouvir e observar o espetáculo, e
não para ler (Parker & Abatte, 2012).
O entretecimento entre música e libretto na ópera pode ser observado nas
produções do Leitmotiv e do Erinnerungsmotiv, que são também evidências da
existência de significados musicais determinados. O termo Leitmotiv foi criado por
August Wilhelm Ambros e serve para descrever o efeito produzido pela música
programática de Liszt e pelas óperas de Wagner. No entanto, o termo só foi
popularizado nos tratados de Hans von Wolzogen, os “Thematischer Leitfaden” (Meyer,
2009). O antecedente formal deste modelo é a idée fixe, utilizada por Hector Berlioz na
Symphonie fantastique (1830), na qual um tema, apresentado no primeiro andamento,
representa a intensidade da paixão do artista ao longo da mesma obra (Sousa, 1999).
Carl Maria von Weber e Louis Spohr utilizaram em suas peças a noção do
Erinnerungsmotiv, que é o uso recorrente de um motivo para relembrar uma
personagem ou os seus sentimentos (Sousa, 1999). Weber havia regido, em Praga, a
estreia de uma peça romântica com enredo alemão: Fausto, de Spohr, mas foi Weber

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que compôs a primeira grande ópera romântica alemã: O Franco-Atirador16. Spohr
desenvolveu uma técnica de composição em que a música acompanha o texto. Nesse
sentido, a música fica entreleçada com os motivos semânticos da obra (suas ideias,
imagens e cenários descritos no libretto). No caso do Erinnerungsmotiv, podemos
relacionar a melodia-motivo com referência ao enredo e as suas personagens, de forma
que a música assume uma função indicial. As obras de Weber projetaram a ópera
germânica na nova estética de sua época: O Romantismo. Seu trabalho influenciou
posteriormente o pensamento de Richard Wagner, compositor de música dramática
alemã (Sousa, 1999).
No contexto de produção de óperas germânicas em que encontramos o
Leitmotiv e o Erinnerungsmotiv, é preciso apontar que se distinguem, enquanto
programáticas, da música absoluta. Na primeira, as frases musicais portam informação.
Apesar do termo “programático” ter sido cunhado por Richard Wagner, após a era
Mozart, é possível dizer que essa proposta de composição com conteúdo não está
restrita à época wagneriana, já que podemos falar de significados musicais anteriores a
Wagner (Everett, 1991). A música programática é conhecida como drama musical, que
requer o entretecimento da harmonia, com o ritmo, a melodia e o logos (Dahlhaus,
1989). Com relação à segunda, Hanslick (1922) e Hoffmann (1810) colocam que ela é
uma música enquanto forma de arte autônoma, constituída por “movimentos
instrumentais17”. Ambos se opuseram a Wagner que, por sua vez, preferia usar o termo
música absoluta18 (ainda que em alemão "Musik" e “Tonkunst" sejam sinônimos).
Hanslick (1922) e Hoffmann (1810) usaram o termo “Tonkunst" para se refererir à
música enquanto uma arte19 que consiste especificamente num trabalho em torno da
tonalidade musical20, opondo-se assim à visão de Wagner que via a música –
programática, enquanto integradora dos aspectos tonais, gestuais e verbais (Bonds,
2014).
Se a música carece de um sistema semântico convencional, ainda assim ela
pode enviar mensagens precisas a partir do contexto que enuncia. Ou seja, a partir da
compreensão musical de uma determinada peça é possível apontar elementos precisos
de significação – o que é apoiado pela noção de idée fixe. Por outro lado, não se trata de

16
Der Freischütz.
17
Absolute Tonkunst.
18
Absolute Musik.
19
Kunst.
20
Ton.

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uma significação universal uma vez que os mesmos elementos musicais podem ser
recombinados e serem utilizados em um contexto diferente que irá produzir uma
significação necessariamente diferente, uma vez que irá se tratar de outra peça
(Ingarden, 1966). Isso implica que uma sequência de três notas em intervalos melódicos
descendentes de meio tom, marcados, por exemplo, por uma quinta aumentada sobre a
escala de Fá Maior, pode ter um sentido diferente se estiver seguida por uma sequência
de sétima aumentada numa peça, e se forem seguidas por uma terça aumentada em
outra. Nesse sentido, a compreensão de uma frase musical de uma ópera fora do
contexto em que ocorre e ignorando o libretto a que se remete se torna uma tarefa
desfavorável à compreensão da composição musical. Assim, no contexto da ópera, a
significação musical não pode se distanciar da possibilidade de significação verbal. Elas
devem ser analisadas conjuntamente, ainda que a música permaneça ilustrada pela
partitura, e as palavras, pelo libretto.

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