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LINGUAGEM MUSICAL E PROCESSO TERAPÊUTICO

Clarice Moura Costa

PALAVRAS-CHAVE: linguagem musical, expressão musical, significação musical

Através de alguns séculos, vêm coexistindo duas correntes diversas sobre o uso da
música como terapia. A primeira pressupõe o poder curativo dos sons e procura estudar os
efeitos de seus elementos constitutivos sobre o ser humano. Diferentes alturas, intensidades,
durações ou timbres teriam, por si, diferentes efeitos e seriam utilizados para curas diversas. A
segunda corrente advoga, embora nem sempre explicitamente, que estes elementos tornam-
se terapêuticos quando organizados como música, isto é, como linguagem musical. Apesar de
sabermos que os sons têm efeitos inegáveis sobre o ser humano, acreditamos que o grande
valor da música no processo terapêutico deve-se ao fato inconteste de constituir-se em uma
forma de linguagem.
O enfoque semiótico da linguagem musical é uma abordagem teórica que, a meu ver,
não é um dever do musicoterapeuta. No entanto, embora o musicoterapeuta não seja um
especialista em semiótica, deve aproveitar os inestimáveis subsídios que este estudo pode
oferecer ao seu ofício. Do mesmo modo, não se preconiza que o psicoterapeuta se dedique a
estudos de linguística, conquanto possa e deva utilizar estes conhecimentos para lançar novas
luzes à sua atuação.
A partir de Saussure, originaram-se numerosas teoria sobre linguagem, às vezes muito
divergentes entre si, mas aparentemente existe um consenso sobre o fato da linguagem
cumprir a dupla função de representar e comunicar. Cabe assinalar que a linguagem, conforme
Eco (1971), caracteriza-se por comunicar além de referências semânticas (isto é, conteúdos ou
significados), uma certa quantidade de relações sintáticas entre seus elementos. A linguagem
musical é não referencial, não denotando ou denominando significados, mas inegavelmente
comunica relações perceptíveis entre os diversos elementos sonoros que a compõem.
As funções da linguagem foram desdobradas por Jakobson (1963), de acordo com o
foco da comunicação, em:
Função expressiva – em que a atividade comunicacional está centrada sobre o
emissor.
Função apelativa – em que está centrada sobre o receptor.
Função conativa – centrada sobre o referente.
Função poética – sobre a mensagem em si.
Função metalinguística – sobre o próprio código utilizado.
No processo terapêutico, a comunicação por meio da música basear-se-á na função
apelativa, no caso da musicoterapia receptiva e basicamente na função expressiva, no caso da
musicoterapia ativa ou interativa.
Discutir a função expressiva da música nos transporta imediatamente para um campo
bastante controvertido. Stravinsky negou à sua música qualquer significado além de sua
própria existência musical. Juan Carlos Paz (1976) faz verdadeiras diatribes contra a
possibilidade da linguagem musical sugerir algo mais além de música. Segundo este autor, foi
tentada a experiência de uma música cheia de “paludismo sentimental e hipertrofia sonora”
que pretendeu substituir o drama, tendo como finalidade”despertar sensações puramente
físicas que ainda hoje são aceitas como emoções espirituais legítimas”. Critica esta tentativa
como fadada ao insucesso, dizendo que a linguagem dos sons não pode substituir os
elementos de expressão necessários a texto, cena ou ação. Acho esta crítica absolutamente

Trabalho apresentado no III Simpósio Brasileiro de Musicoterapia, Rio de Janeiro, 1985


Publicado no jornal Psiquiatria Hoje, ano 10, nª2, 1985
pertinente. Linguagens diferentes, usando recursos peculiares, focalizam realidades distintas
ou faces distintas da realidade.
“A minha opinião é de que toda música tem o seu poder expressivo, algumas mais e
outras menos, mas todas têm um certo significado escondido por trás das notas, e esse
significado constitui, afinal, o que uma peça está dizendo ou o que ela pretende dizer. O
problema pode ser colocado de maneira mais simples, perguntando-se ‘A música tem um
significado?’ Ao que minha resposta seria ‘sim’. E depois ‘Você pode dizer em um certo
número de palavras que significado é este?’ E aqui minha resposta seria ‘não’. Aí é que
está a dificuldade.”
Esta opinião é do maestro e compositor Aaron Copland (1974). Diz-nos ainda
textualmente que a música expressa
“serenidade ou exaltação, tristeza ou vitória, fúria ou delícia. Ela expressa cada um destes
moods e muitos outros, em uma variedade infinita de nuances e diferenças. Pode mesmo
apontar para estados de espírito a que não corresponde palavra alguma em lingua
conhecida. Nesse caso os músicos gostam de dizer que ela tem apenas seu significado
musical”.
E Copland conclui: “O que querem dizer com isso é que não há palavras para a
expressão do sentido musical (...)”.
Cabe-nos então indagar – a inexistência da palavra adequada significa a inexistência do
mood, do estado de espírito? Ou a inexistência da palavra adequada mostra apenas a
insuficiência da linguagem verbal para significá-lo? Estas questões não se colocam porque,
como diz Lacan, nunca se questiona a insuficiência da lingua para cobrir o campo do
significado, visto acreditar-se que o efeito de sua existência de lingua é responder a todas as
necessidades expressivas.
Voltando ao problema da significação em música, Paz (1976) nos diz, opondo-se a
Copland, que tornou-se necessário “reintegrar a música em uma função autônoma”, recriando
algo que “apenas é música e não nos diz ou nos conta coisa alguma”, como contrapartida ao
outro tipo de música, sentimentalóide e hipersonora, que desperta sensações físicas
nomeadas como emoções. No entanto, ele próprio parece contradizer-se declarando que
algumas destas músicas “autônomas” nos emocionam profundamente.
Parece-me, portanto, que a linguagem musical, embora seja não referencial e
comunique basicamente relações entre elementos sonoros, provoca ou sugere estados de
espírito, moods, emoções. A música não denomina estes estados de espírito, mas sob o
significante musical fluem significados, num plano de conotações de ordem emocional.
E qual a importância da linguagem musical no processo terapêutico? Sob meu ponto
de vista, a terapia por meio da linguagem musical, ou seja, a musicoterapia, é principalmente
indicada para a pessoa com prejuizo na comunicação verbal, e em particular para o
esquizofrênico. Nas esquizofrenias, de acordo com Henri Ey (1960),
“o sentido (o significado) do material verbal (o significante) está desviado de seu acordo
com a linguagem comum. O esquizofrênico tende a mudar o sentido das palavras, seja
criando verdadeiros neologismos, seja empregando em um sentido novo palavras já
existentes.”
Esta peculiaridade de sua comunicação torna muito difícil o tratamento do
esquizofrênico exclusivamente por meio da linguagem verbal.
Na musicoterapia ativa ou interativa, como afirmado anteriormente, centra-se o uso
da linguagem musical em sua função expressiva, isto é, a pessoa em tratamento vai ser o
emissor da comunicação, vai fazer sua música, criando-a ou reproduzindo-a.
A partir destas considerações teóricas e das observações sobre a prática terapêutica,
podem ser levantadas duas hipóteses:
1. Em primeiro lugar, se a linguagem musical, como quer Copland, expressa estados de
espírito, emoções, mesmo as mais difíceis de denominar em palavras, esta linguagem
vai permitir o acesso a estes conteúdos psíquicos. Fazendo música, o psicótico vai ter
oportunidade de expressar de maneira organizada, por meio de uma linguagem, seus
conteúdos emocionais. Esta primeira forma de expressão, não verbal, propicia o início
das comunicações destes mesmos sentimentos e emoções verbalmente e
coerentemente.
2. Mesmo que a música comunique apenas relações entre elementos sonoros, ainda
assim constitui-se em uma linguagem apreensível pelo outro, o que propicia uma
interação comunicativa. A linguagem musical será então de extrema valia na
abordagem de outro problema da maior gravidade na psicose esquizofrênica – o do
relacionamento interpessoal. O desenvolvimento de uma relação saudável
proporciona uma confiança que permite a exteriorização de sentimentos e conflitos
por uma linguagem verbal coerente.
No sentido de tentar corroborar as hipóteses levantadas e de dirimir numerosas
dúividas, indagações, questionamentos, daremos início a uma pesquisa, que deve desenvolver-
se por um período de dezoito meses no Instituto de Psiquiatria da UFRJ em convênio com a
FINEP e apoio da IBM do Brasil.

BIBLIOGRAFIA

ARVEILLER, J. (1980) – Des Musicothérapies. Issy-les-Moulineux, Ed. Scientifiques et


Psychologiques.
BOYER, P. (1981) – Les Troubles du Langage en Psychiatrie. Paris, Presse Universitaire de
France.
COPLAND, A. (1974) – Como Ouvir e Entender Música (trad. J.P.Horta). Rio de Janeiro, Ed.
Artenova.
ECO, U. (1971) – Obra Aberta (trad. B. Carvalho). São Paulo, Ed. Perspectiva, 2ª edição.
EY, H., BERNARD, P. et BRISSET, C. (1960) – Tratado de Psiquiatria (trad. Da 5ª ed. francesa).
Barcelona, Ed. Toray Masson.
JAKOBSON, R. (1963) – Essais de Linguistique Générale. Paris, Ed. de Minuit.
LACAN, J. (1957) – “ A Instância da Letra do Inconsciente ou a Razão desde Freud” exposição
na Sorbonne.
PAZ , J. C. (1976) – Introdução à Música de nosso Tempo (trad. D.T.Pizza), São Paulo, Livraria
Duas Cidades.

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