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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde


Curso de Psicologia

Análise da Música “Cais” sob o ponto de vista da teoria


Psicanalítica Freudiana

Gabriel Jacques Wahrhaftig

São Paulo
2012
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde
Curso de Psicologia

Análise da Música “Cais” sob o ponto de vista da teoria


Psicanalítica Freudiana

Trabalho de conclusão de
curso como exigência
parcial para a graduação no
curso de Psicologia, sob
orientação do Prof. Dr.
Paulo José Carvalho da
abriel Jacques Wahrhaftig
Silva.

São Paulo
2012
Dedicatória/Agradecimentos

Dedico este trabalho a todos que, como eu, amam a música e a


consideram parte fundamental da vida. Também aos amantes e praticantes da
psicanálise, que tanto tem me auxiliado nas encruzilhadas encontradas ao
longo do meu caminho.
Agradeço ao meu orientador Paulo Carvalho por ter compreendido a
essência do meu trabalho e dessa maneira, me ajudado a construir temas,
ideias, teorias e pensamentos aqui presentes.
À minha namorada Cris, por seu amor, confiança e paciência, que
tornam a minha presença mais viva e o meu caminhar mais firme.
Aos meus pais Roberto e Marise e à minha irmã Jacque, por terem me
oferecido liberdade para decidir meus rumos e por investirem em minhas
escolhas.
Aos meus amigos-irmãos e colegas músicos da banda Noite Torta,
Jonas, Juliano, Biel e Lu, que me ensinam a fazer música a cada encontro.
Aos meus amigos e colegas de curso da PUC-SP, que estiveram
presentes nos meus momentos de descoberta da psicologia, dividindo
angústias e aspirações sobre esse e muitos outros assuntos. Destaco Tiago,
Vitão, Caco, Lucas, Diego e Gabi.
Ao meu amigo Luis pelas importantes conversas, construções e
ensinamentos que tanto estimo.
Ao meu amigo Jonas, meu maior parceiro musical e referência na
construção de minha vida como músico.
Ao meu amigo Yoles, por desde a nossa infância estar presente nos
diferentes momentos da vida, apoiando-me sempre.
Ao meu primo Leco, que muito me inspira pela leveza e sinceridade com
que encara a vida.
À Lurdinha, minha professora/profissional referência, por seu olhar
sensível e competência, dos quais procuro me apropriar ao máximo.
À Bárbara, minha analista, com quem aprendo muito sobre a prática da
psicologia e que me auxilia na compreensão das questões da vida.
A todos os amigos e familiares aos quais não me referi diretamente,
mas que também são muito importantes pra mim.
Resumo

WAHRHAFTIG, Gabriel Jacques. Análise da música “Cais” sob o ponto de vista


da teoria Psicanalítica Freudiana. São Paulo, 2012, 46p. Trabalho de conclusão
de curso - Faculdade de ciências humanas e saúde, Faculdade de Psicologia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Orientador: Prof. Dr. Paulo José Carvalho da Silva

Este trabalho analisa o conteúdo da letra da música “Cais” composta por


Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, através da perspectiva psicanalítica
freudiana. Para tal, além da análise da música em questão, foi feita uma
contextualização histórica do movimento que envolveu os compositores – o
Clube da Esquina – além do estabelecimento de relações com outras letras de
música lançadas no mesmo álbum, o “Clube da Esquina”, de 1972. Através da
análise, foram abordados conceitos psicanalíticos importantes, tais como a
solidão, o desejo e a fantasia.

Palavras-Chave: Psicanálise, Música, Freud, Clube da Esquina, Cais, Desejo,


Solidão, Fantasia.
Sumário

Introdução............................................................................................................7

Metodologia.......................................................................................................13

Capítulo 1- Sobre o Clube da Esquina..............................................................14

Capítulo 2- Música e Psicanálise.......................................................................19

Capítulo 3- Análise da música...........................................................................24

Considerações Finais........................................................................................42

Referências Bibliográficas.................................................................................44
I. Introdução

O tema deste trabalho surgiu através do meu contato íntimo com a


música em geral, que desenvolve um papel importante na minha vida e que
considero uma grande forma de expressão humana. Escolhi a música “Cais”
por uma identificação pessoal com o tema tratado na letra da música e por
considerá-la uma canção rica, não só pela letra como também pelos elementos
musicais nela presentes.
Escolhi a teoria psicanalítica de Freud como base para a análise por
considerar essa teoria como a que possui maior identificação com a minha
visão de mundo e entendimento das questões humanas, também presentes na
letra da música escolhida para o trabalho.
Com isso, achei interessante realizar a análise das questões humanas
trazidas pela letra da música “Cais” sob o viés psicanalítico freudiano.
A música escolhida foi lançada no disco “Clube da Esquina” de 1972,
composta por Ronaldo Bastos e Milton Nascimento, que nessa época faziam
parte do movimento musical Clube da Esquina, nascido em Belo Horizonte, da
amizade entre Milton Nascimento e os irmãos Borges. Inicialmente,
compunham e tocavam em uma esquina próxima à sua casa, de onde surge o
nome do grupo.
No decorrer de sua história, muitos músicos fizeram parte direta ou
indiretamente do movimento, que sempre se demonstrou aberto para a
contribuição dos diversos compositores e intérpretes que passaram por sua
história. Com isso, o Clube da Esquina representou um momento importante
para a Música Popular Brasileira, com uma valorização das canções e ênfase
nas letras bem trabalhadas. Além disso, representou um movimento cultural,
surgindo no contexto da ditadura presente no Brasil na década de 1960, em
que havia a efervescência de sentimentos de mudança da ordem vigente, tanto
política quanto musicalmente. No contexto da música brasileira, o grupo
representou uma renovação estética e melódica, dando vazão a uma tradição
musical mineira que veio a se juntar com a tradição baiana da Tropicália.
Este trabalho terá como foco a análise do conteúdo da letra da
música “Cais” sob a ótica psicanalítica Freudiana.

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A música é uma forma artística composta de diversos elementos, entre
eles a melodia, harmonia, ritmo, alturas, timbres e intensidades. Wisnik (2009)
explica que a melodia surge do próprio ritmo:

“A partir de um certo limiar de frequência (em torno de quinze ciclos por segundo, mas
estabilizando-se só em cem e disparando em direção ao agudo até a faixa audível de cerca de
15 mil hertz), o ritmo vira melodia.” (p.20)

As alturas seriam, portanto, a conversão do ritmo advinda de sua


aceleração. Segundo Wisnik, os timbres:

“São os feixes de onda mais densos ou mais esgarçados, mais concentrados no grave
ou no agudo, são em suma os componentes da sua complexidade (produzida pelo objeto que o
gerou) que dão ao som aquela singularidade colorística a que chamamos de timbre.” (2009,
p.24)

O autor define ainda o conceito de intensidade como sendo ”a


informação sobre um certo grau de energia da fonte sonora.” (2009, p.25)
Todos esses elementos combinam-se na ocasião da execução musical,
de modo a expressar uma ideia ou sentimento humano. Sandler no artigo
“Psicanálise e Música (Um estudo transdisciplinar de transformações em “O”)”
explicita essa compreensão da música: “Música, útil ou inútil, expressa
impulsos, pensamentos, urgências, serenidades, tumultos e não-tumultos da
mente.” (2000, p.13)
Além desses elementos, pode entrar a linguagem verbal e escrita que
configurariam mais um meio de expressão a somar-se aos elementos
puramente musicais. Desse modo, há a variação desses elementos de acordo
com o teor da expressão do conteúdo presente na música, que muitas vezes, é
passado por um meio de expressão extra verbal, que se forma a partir da
conjuminação de todos os elementos que compõem a música. Nesse sentido,
ela traria uma dimensão essencial a respeito do objeto a que se refere, que
poderia ser apreendida pelos ouvintes e intérpretes através dessa linguagem
extra verbal que se constitui a partir da junção acima descrita.
A música é uma importante forma de linguagem, sendo caracterizada
por uma forma de reflexão- afetiva, segundo Maheirie (2003):

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“(...) dizemos que a música é uma linguagem reflexivo-afetiva, já que envolve um tipo
de reflexão que se faz possível por meio da afetividade, e uma afetividade que se faz possível
por meio de determinado tipo de reflexão.” (p.148)

Desse modo, a afetividade (emoções e sentimentos) é compreendida


como uma forma de consciência, uma forma de apreender o mundo. Luiz
(2010) aponta que a relação afetiva que criamos com a música ou com
aspectos musicais, é de grande eficácia para a organização da economia
psíquica.
A composição de uma música aparece, portanto, como uma
necessidade do sujeito de tornar coletiva e social uma realidade subjetiva, e
dispõe para isso tanto de elementos musicais anteriormente descritos, como da
própria linguagem verbal. Com isso, forma-se uma combinação poderosa que
passa a sua mensagem com um alcance afetivo no ouvinte. Wisnik (2009)
afirma que a música é:

“(...) uma linguagem em que se percebe o horizonte de um sentido que no entanto não
se discrimina em signos isolados, mas que só se intui como uma globalidade em perpétuo
recuo, não verbal, intraduzível, mas, à sua maneira, transparente.” (p.30)

Esse aspecto não verbal e intraduzível, acrescido das palavras,


configura uma forma importante e única de tradução de uma subjetividade em
uma objetividade compartilhada. Corroborando com essa ideia, Wisnik afirma:
“A música ocupa um lugar entre as trevas e a luminosidade da aurora, entre o
silêncio e a fala, o lugar do sonho ‘entre a obscuridade da vida inconsciente e a
clareza das representações intelectuais’”. (2009, p.38)
Com isso, o autor considera a música como um meio-termo de
combinação de representações intelectuais juntamente com aspectos primitivos
do inconsciente. Através da linguagem musical, é possível trazer esses
aspectos primitivos ou necessidades urgentes do indivíduo para o plano da
coletividade.
De acordo com Sandler (2000), seria nesse ponto em que Psicanálise e
Música se assemelhariam: “Música e Psicanálise irmanam-se na demanda que

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fazem do observador de suportar uma série considerável de paradoxos que
não podem ser resolvidos.” (p.5)
Com essa fala, o autor aponta a questão de que tanto a psicanálise
quanto à música demandam que o paciente/ ouvinte se disponha a ter um
contato com uma dimensão que transcende a realidade consciente, seja pela
atenção dada à psicanálise aos aspectos latentes na fala do sujeito, quanto
pela apreensão intuitiva de uma mensagem musical. A respeito disso, o autor
discorre: “Tanto Música como Psicanálise me parecem prover contato intuitivo,
transitório e fragmentário, porem real e possível, com as "coisas como
realmente elas existem" (Kant, 1781) ou "fatos como eles realmente são"
(Bacon, 1625a e b; Johnson, citado por Boswell, 1791)”. (Sandler, 2000, p.5)
Para Luiz (2010), a música interessa à psicanálise a partir do momento
em que ela se configura como uma modalidade da linguagem que pode trazer
algo do inconsciente humano através de uma experiência que não seria nem
verbal nem discursiva, mas sim a expressão de uma linguagem universal.
Segundo o autor, música e psicanálise apresentam importantes pontos
em comum como a presença de sonoridades. No processo psicanalítico, elas
estariam presentes através da interpretação clínica do sentido da fala, suas
inflexões, silêncios e pausas. Na música, por sua vez, através do canto, ritmo,
melodia, harmonia.
Ainda quanto às interfaces entre psicanálise e música, Kohut (1957b) faz
um paralelo entre os processos pelos quais o desenvolvimento psicológico
(psicanalítico) e a música passam. Em seu artigo “Observações sobre as
funções psicológicas da música”, o autor explica que o ritmo consiste em um
processo musical primário que equivaleria às formas primitivas de controle da
tensão psicológica. A melodia, por sua vez, é um processo secundário musical
que é pareado com os processos psicológicos complexos em que há a
tolerância das tensões.
Em outro trabalho, Kohut e Levarie (1978) discorrem sobre a reação do
aparelho psíquico ao som, que representaria, em sua forma pura, uma ameaça
direta a ele: “(...) o aparelho mental arcaico, seja no bebê, no homem primitivo
ou em circunstâncias especiais no adulto, tende a perceber o som como uma
ameaça direta e a reagir a ele de maneira reflexa com angústia.” (p.4)

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É nesse aspecto que se torna importante a forma na música, ou seja, a
presença de processos secundários musicais através dos quais seja possível a
reutilização da energia mobilizada por esse medo inicial. Essa energia se
converte em um alívio, ao tornarem-se perceptíveis os aspectos formais que
reduziriam a angústia da ameaça primitiva. É aí que reside o prazer de ouvir
música.
Cabe nesse momento, discorrer sobre a visão psicanalítica de desejo
visto que esse é um dos temas centrais constituintes da letra da música a ser
analisada.
Na música “Cais”, são trazidas algumas questões humanas importantes
como a solidão, a dificuldade de colocar-se em movimento em nome da busca
pelos desejos e a maturidade interna, como fator importante para a busca
desses desejos ou ideais.
Para a teoria Freudiana, o conceito de desejo deve ser diferenciado da
necessidade, como explicam Laplanche e Pontalis (1967):

“Freud não identifica a necessidade com o desejo: A necessidade, nascida de um


estado de tensão interna, encontra a sua satisfação (Befriedigung) pela ação específica que
fornece o objeto adequado (alimentação, por exemplo); o desejo está indissoluvelmente ligado
a traços mnésicos e encontra a sua realização (Erfüllung) na reprodução alucinatória das
percepções tornadas sinais dessa satisfação.” (p.159)

Com isso, o desejo encontra a sua satisfação na fantasia e é a fonte de


movimento da psique visto que nunca há a sua satisfação por completo,
fazendo com que ele vá se transformando ao longo da vida psíquica do
indivíduo, pondo-o em movimento.
O movimento ocorreria também por uma inter-relação entre o Self e o
“ser interior” que é descrito por Walter Trinca em seu livro: “O Ser Interior na
Psicanálise” como sendo um “potencial de existência” que traria singularidade
ao indivíduo. Nesse contexto, o Self atuaria como mediador entre as forças
pulsionais e o “ser interior” na formação da personalidade, sendo este último o
protagonista desse processo.
Freud, em seu artigo Instintos e suas Vicissitudes (1976), apresenta a
vida mental de um indivíduo tendo como alicerces três polaridades:

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a)Sujeito (ego)-Objeto (mundo externo)-Elemento pelo qual o instinto é
capaz de atingir sua finalidade.
b)Prazer-Desprazer
c)Ativo-Passivo
Os impulsos instintivos (pulsionais), desse modo, estariam sujeitos às
influências desses três polos. Freud aponta ainda a existência de “Instintos
Primordiais”, que seriam os Instintos do ego (auto preservativos) e os Instintos
sexuais. Estes últimos, segundo o autor, têm a capacidade de mudar
prontamente de objeto, o que seria nomeado “Sublimação”.
Um exemplo desse processo seria o de uma produção artística, como a
composição de uma música, através da qual a energia pulsional presente no
indivíduo transfere-se para uma atividade socialmente aceitável e produtiva,
como a expressão de um desejo ou busca na associação poderosa entre letra
(linguagem verbal) e elementos musicais presentes na composição da música.
Nogueira (2010) aponta o som como capaz de criar, recriar e invocar o
objeto de desejo. Desse modo, a música teria a possibilidade de reposicionar
os sentidos e as formas instituídas no sujeito. O autor aponta, ao mesmo
tempo, a possibilidade presente na experiência musical no sentido da
superação de resistências, ao passo que a música poderia permitir que
houvesse uma variação do modo como os conteúdos inconscientes podem ser
movimentados para o consciente.

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II. Metodologia

A metodologia utilizada será a análise da letra da música “Cais”,


composta por Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, lançada no disco “Clube da
Esquina” de 1972, por meio da teoria Psicanalítica Freudiana.
O 1º capítulo faz um breve panorama da história do grupo Clube da
Esquina, trazendo o contexto em que a música “Cais” foi composta e os
diversos fatores que influenciaram os artistas na criação do álbum que contém
a música.
O capítulo 2 desenvolve as interfaces entre psicanálise e música,
evidenciando aproximações e distanciamentos na relação entre as duas áreas.
No capítulo 3 é apresentada a análise da música “Cais”, com a
abordagem dos conteúdos psicanalíticos identificados na música e a relação
com outras faixas do álbum “Clube da Esquina” (1972).

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Capítulo 1- Sobre o Clube da Esquina

Em seu livro “Os Sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da


Esquina” (2010), Márcio Borges descreve que, no início da década de 60, a
família Borges residia no Edifício Levy, em Belo Horizonte, Minas Gerais,
segundo o autor, um mundo à parte da capital mineira. Esse local foi cenário do
nascimento de fortes relações, tanto artísticas quanto de amizade, que
levariam mais tarde a significativas mudanças no cenário da música brasileira.
Milton Nascimento, ou Bituca, carioca nascido na Tijuca, criado em Três
Pontas, Minas Gerais, também residente do Edifício Levy, começa a freqüentar
a casa dos Borges dando início a um período de primeiras descobertas
musicais, advindas dos ensaios no “quarto dos homens”, localizado nessa
casa. Milton e Márcio Borges iniciam uma forte amizade, que se inicia com a
intenção dos dois de trocar “escritos”.
Das intensas trocas de experiência entre os dois amigos enquanto
andavam pelas ruas de Belo Horizonte, surgem as primeiras músicas que
dariam início ao movimento Clube da Esquina, tendo a parte musical trazida
por Milton Nascimento e a letra criada por Márcio Borges. Algumas delas
foram: “Paz do Amor que Vem”, “Gira-girou” e “Crença”. Márcio Borges era
amante do cinema, amor este compartilhado por Milton. Ambos frequentavam
os cinemas de Belo Horizonte, apaixonando-se pelos filmes e músicas neles
presentes e sonhando com o momento em que Márcio Borges dirigiria um filme
que teria a trilha sonora de seu amigo, Bituca.
Márcio frequentava o “Bocheco”, local em que amantes do cinema e
outras artes se encontravam para trocar pensamentos e ideais trazidos pela
reflexão a partir da introjeção das artes. O diálogo entre esse contexto do
cinema e as manifestações mais musicais de Milton Nascimento, deu corpo a
um grande diferencial do grupo que viria a ser referenciado como Clube da
Esquina.
Ao longo dos anos que se seguiram, tanto Milton Nascimento quanto
Márcio Borges, estabeleceram parcerias com os tipos mais diferenciados de
músicos, poetas, literários, com os quais, a cada música, criavam um universo
único e característico, proveniente da fusão entre as expressões daquelas

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pessoas, que, ao acrescentar seus elementos pessoais, acabavam por criar um
novo elemento, a música, que era uma criação coletiva.
Dentre os nomes mais importantes desse movimento, estão: Lô Borges,
Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Beto Guedes, Márcio Borges e como
elemento centralizador do grupo, Milton Nascimento.
Toda a produção do grupo se dava a partir da necessidade mais natural
de expressar-se, seja por um descontentamento com a realidade da ditadura
militar, em pleno vigor nessa época no Brasil, seja pelo impulso mais puro de
criar uma bela unidade entre uma melodia criada por Milton e uma letra que só
poderia ser colocada por alguém com quem tivesse um forte vínculo, como seu
amigo Márcio Borges ou seu parceiro letrista Fernando Brant.
Esse aspecto do vínculo entre os componentes do grupo é de
fundamental importância para a sua produção musical. É através dele que o
Clube da Esquina toma a forma de uma massa criativa, na qual todos os
membros se relacionam sem que haja um vínculo estagnado, como o que se
vê muitas vezes em grupos musicais em que as composições acabam por
seguir sempre um mesmo modelo ou roteiro para a sua criação. No caso do
Clube da Esquina, as composições surgem da necessidade que cada um tem
de acrescentar um elemento só seu, que trazido ao grupo, forma uma criação
coletiva, que nada mais é do que a síntese entre as vivências daquelas
pessoas, naquele momento.
Milton Nascimento iniciou sua vida musical tocando contrabaixo em um
trio de jazz na noite de Belo Horizonte. Sua música viria a trazer forte influência
do jazz e da bossa nova. Segundo Vilela (2010), os primeiros discos de Milton
trazem a sonoridade da bossa nova bastante presente. O autor também aponta
que a obra do Clube da Esquina representou uma síntese da música brasileira,
vindo a servir de influência para os músicos que os seguiram. Essa síntese
advém da multiplicidade de influências do grupo, que além do jazz e da bossa
nova, traziam em sua “bagagem” o rock dos Beatles, que surgiu nessa época,
trazendo uma infinidade de novas possibilidades musicais que foram
absorvidas por Milton Nascimento e outros membros do grupo.
Ainda segundo o autor, foi a partir do disco “Milton”, de 1970, que as
canções dos membros do Clube da Esquina passaram a adquirir uma
identidade sonora própria, trazendo instrumentações mais pesadas,

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anteriormente não utilizadas por Milton Nascimento. Além disso, segundo o
autor, um dos elementos que consolidou a identidade do grupo foi a utilização
de harmonias originais, assim como a gravação, de um modo diferenciado, de
alguns instrumentos como a percussão, que no trabalho do grupo adquiria uma
evidência que não se costumava dar a ela. O Violão, do mesmo modo, é
utilizado de maneira harmônico-percussiva, enquanto o falsete da voz não é
utilizado apenas como alcance para notas que a voz normal não chega, mas
sim como escolha timbrística.
Ainda no livro “Os Sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da
Esquina” (2010), Márcio Borges traça o percurso que esse grupo de artistas
desenha ao longo de sua história, deixando claro que o grupo tem como
elemento original e único, um processo de criação bastante característico, que
se dá através de uma vinculação profunda entre os artistas, sua história de vida
e o momento que viviam. Com a ascensão da ditadura, muitos membros do
grupo viram amigos ou conhecidos desaparecerem e serem mortos pela
repressão. Milton Nascimento, ao longo de sua carreira, teve sua produção
musical censurada, tendo que modificar algumas músicas letradas,
transformando-as em instrumentais. De acordo com a descrição de Márcio
Borges, esse tipo de acontecimento contribuía para que a produção do grupo
tomasse um caráter de expressão daquilo que era oprimido, como único meio,
muitas vezes, de posicionar-se frente a uma realidade opressora.
Sensibilizados com esse contexto, foram compostas músicas como “Fé cega,
Faca amolada” de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, que trazia uma letra
que, ao ser cantada, era tomada como um modo de reagir à opressão. Abaixo
segue um trecho:

“Agora não pergunto mais


Aonde vai a estrada
Agora não espero mais
Aquela madrugada

Vai ser, vai ser, vai ter de ser


Faca amolada
O brilho cego de paixão e fé,
Faca amolada”

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Além de dividir uma realidade externa que demandava posicionamento,
os participantes do grupo possuíam uma vinculação que advinha da amizade
profunda entre aqueles que compunham as parcerias mais sólidas, como
Milton Nascimento com Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos.
Algumas parcerias estabeleciam-se por uma fluente afinidade musical entre
alguns dos participantes, como no caso da parceria entre Milton Nascimento e
Lô Borges.
Segundo Nunes (2005), a identidade sonora do grupo só pode ser vista
do ponto de vista do coletivo, havendo forte vinculação entre composições e
arranjos. Segundo a autora, a participação de músicos distantes do grupo, ou
seja, com pouca vinculação a ele, acabaria por descaracterizá-lo.
O álbum “Clube da Esquina”, de 1972, foi composto no auge desse
momento histórico da ditadura brasileira e também no auge da vinculação
artística entre os participantes do grupo. Segundo Márcio Borges, o álbum
duplo continha várias músicas que faziam referência à estrada e a viagens,
como é o caso da música “Cais”, de autoria de Milton Nascimento e Ronaldo
Bastos. Inicialmente, o álbum foi rechaçado pelos críticos. A temporada de
shows de lançamento foi um completo fracasso, levando inclusive alguns
participantes do grupo a “surtarem” no palco, devido à pressão a que estavam
sujeitos da parte dos críticos. No entanto, com a ascensão da carreira de Milton
Nascimento nos anos que se seguiram, houve uma ressignificação pelos
próprios críticos do álbum, que passou a ser visto como de extrema
importância para a música brasileira, considerando que trazia em suas faixas
uma mistura de influências bastante completa, com vertentes do rock dos
Beatles, jazz, música regional, entre outras. O disco traz entre seus principais
sucessos, as músicas “Tudo o que você podia ser”, “Um Girassol da Cor de
Seu Cabelo”, “Cais”, “Trem Azul”. A letra da primeira música mencionada
explicita as referências a viagens:

“Tudo o que você podia ser” (Lô Borges e Márcio Borges)

Com sol e chuva você sonhava


Que ia ser melhor depois
Você queria ser o grande herói das estradas
Tudo que você queria ser

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Sei um segredo você tem medo
Só pensa agora em voltar
Não fala mais na bota e do anel de Zapata
Tudo que você devia ser sem medo

E não se lembra mais de mim


Você não quis deixar que eu falasse de tudo
Tudo que você podia ser na estrada

Ah! Sol e chuva na sua estrada


Mas não importa não faz mal
Você ainda pensa e é melhor do que nada
Tudo que você consegue ser ou nada”

Segundo Tedesco (2000), o disco “Clube da Esquina”, de 1972, possuía


um caráter que poderia ser considerado mais sombrio se comparado ao
segundo disco do grupo, o “Clube da Esquina 2”, de 1978. A autora atribui esse
caráter a uma ligação maior, presente no momento da criação do primeiro
disco, a um cenário de ditadura e repressão, posteriormente mais diluído
conforme o momento social se alterava na ocasião da composição do segundo
disco. Desse modo, segundo a autora, há bastante vinculação entre a
produção musical do grupo e o momento histórico em que este estava inserido.

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Capítulo 2-Música e Psicanálise

Música e Psicanálise desenvolvem um diálogo bastante rico. Ambas


acessam elementos inconscientes, cada uma a seu modo. Ao ouvir música,
experienciamos uma série de sensações e emoções espontâneas, que muitas
vezes, não sabemos como definir através da linguagem verbal. Com isso,
entramos em contato com o inominável e desconhecido trazido pela música.
Podemos considera-la como uma forma única de expressão humana, a partir
do momento em que ela traz à tona, no momento da escuta, uma gama
enorme de estímulos. Entre eles, podemos ressaltar o impacto que a conjunção
de sons causa na psique do ouvinte, e as memórias que são acessadas por
uma música. Estas, imediatamente remetem a um momento não só
pertencente ao passado do indivíduo em questão, como também permitem que
sua mente devaneie, passeando por uma esfera atemporal.
Algo único ocorre quando esses diferentes estímulos se relacionam
entre si. Podemos pensar que a partir dessa relação, nasce uma nova forma de
manifestação de conteúdos inconscientes, que podem chegar à consciência
por meio da música. Esta é capaz de desenvolver significativas mudanças no
estado emocional, mental e até mesmo físico de um indivíduo (como a
diminuição do stress, por exemplo). Silva, Ferreira e Miranda(2006), através de
uma pesquisa realizada com adolescentes portadores de câncer, concluíram
que:

“Ao cantar, tocar, compor e ouvir música (s), os pacientes puderam expressar
sentimentos que, muitas vezes, tornar-se-iam difíceis de serem anunciados pelo verbal.
Assim, através das experiências de Re-criação Musical e Composição Musical,
principalmente, a música foi utilizada como canal de comunicação e expressão de conteúdos
internos e/ou emergenciais de maneira, talvez, menos invasiva, auxiliando de forma efetiva o
enfrentamento do estresse e/ou das situações emergenciais/alarmantes.” (p.4)

A psicanálise, através da análise do discurso, permite que elementos


inconscientes que interferem na vida do indivíduo passem para a esfera
consciente, dando a possibilidade de suprimir conflitos que geram sofrimento a
ele.

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Desse modo, é possível perceber que a relação entre música e
psicanálise ocorre quando consideramos que ambas acabam por ter uma
função “reveladora” de aspectos que fogem da linguagem verbal, que
ultrapassam a racionalidade da mente. Através delas, podemos alcançar, ainda
que muitas vezes superficialmente (principalmente no caso da música),
elementos inconscientes, permitindo que entremos em contato com o que há
de mais humano em nós.
Outro ponto em comum pode ser identificado ao tomarmos uma música
com letra. Esse tipo de música engloba em seus elementos a linguagem verbal,
o discurso, o mesmo que a psicanálise utiliza como objeto de análise. A
linguagem verbal na música, ao combinar-se com os elementos sonoros e as
percepções sensoriais, tem um enorme potencial de “tocar” o ouvinte, visto que
a mensagem presente na letra se associa a outros elementos musicais que
dialogam com essa mensagem.
Do mesmo modo, a psicanálise possui essa capacidade grande de
“tocar” o indivíduo através da elucidação de elementos por ele desconhecidos,
permitindo que as mensagens do inconsciente possam ser compreendidas pelo
paciente, apresentando-lhe a possibilidade de realizar mudanças em sua vida,
para que esta se aproxime mais de sua essência.
Outra aproximação importante entre as duas áreas se dá ao
considerarmos que as duas experiências (analítica e musical) acessam
conteúdos inconscientes presentes na psique humana. Segundo Sandler
(2000):

“A experiência musical pertence ao espaço a-espacial e ao tempo atemporal do


inconsciente humano. Penso que ela se dá em níveis/dimensões onde prevalece o que é
primitivo psiquicamente, ligado aos instintos e à animalidade humana.” (p.6)

Com isso, o autor ressalta que a experiência musical opera no campo


inconsciente da psique, trazendo à tona elementos primitivos que, em outros
momentos, permanecem inacessados pelo indivíduo. No entanto, ele ressalta
que através da música não é possível compreender tais elementos:

“O método talvez mais potente de contato com a realidade psíquica e penetração


nessa realidade parece proporcionalmente imprestável como método de apreensão, por não ter

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compreensibilidade. Não me refiro a entendimentos, mas sim à "barreira de contato" entre
consciente e inconsciente, e a possibilidade do livre trânsito entre os dois, por essa "barreira"
que também é, paradoxalmente, "contato”.” (Sandler, 2000, p.6).

O autor defende que o retorno de aspectos inconscientes ao campo


consciente ocorre exclusivamente na psicanálise, que nesse ponto se
diferencia da música.
Nesse momento cabem algumas considerações a respeito da visão de
Freud sobre a cultura. Segundo Mezan (1990), para Freud, os fenômenos
culturais se apresentariam como elementos de um “balanço econômico” entre
prazer e desprazer, que ocorre na esfera do indivíduo. O desprazer é
proveniente da coerção das pulsões, necessária para a convivência em
sociedade. Desse modo, a maior ameaça para a cultura viria das tendências
antissociais, destrutivas e anticulturais, que são resultado do sacrifício que ela
impõe à organização pulsional de seus membros.
Freud, na obra “O Mal-estar na Civilização”, afirma que a produção
artística representa um modo de sublimação frente ao sofrimento consequente
da recusa do mundo em satisfazer nossas necessidades, que tem “qualidade
especial”, ou seja, um enorme potencial de afastamento desse sofrimento:

“(...) a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em


solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida,
um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos. Atualmente, apenas de forma
figurada, podemos dizer que tais satisfações parecem ser ‘mais refinadas e mais altas’”.
(Freud, 1976, p.98).

Segundo Kauffmann (1996), Freud teria uma relação especial com a


música, da qual se distancia devido à sua impossibilidade de captar “por onde
ela surte efeito”. Para o autor, a composição musical transcreve o movimento
de emergência do inconsciente e teria entre suas características uma função
catártica:

“Como modalidade singular de expressão do psiquismo recalcado, à


semelhança do sonho, dos sintomas neuróticos e dos atos falhos, a música levaria quem a
ela se entrega a uma espécie de experiência catártica, passível de descarregar suas tensões
internas. Essa função catártica da música, muitas vezes evocada – já desde os pitagóricos –,

21
não pode deixar indif erente o psicanalista, a quem lev a a vislumbrar a
prof undidade dos elementos psíquicos desvelados.” (Kauffman, 1996, p.2).

Nogueira (2010) elucida a semelhança existente entre o discurso


musical e o conceito Freudiano de pulsão (Trieb):

“Ao nos colocarmos diante do discurso de um músico, cuja prática o precede,


constatamos que há algo de pulsional em seu ofício, não no sentido do estímulo (já que tudo
que envolve o humano, diz respeito a algo pulsional), mas sim no sentido de haver algo de
objetivo específico e que age como uma força constante, ou seja, algo da ordem da pulsão.”
(p.37).

Com isso, o autor considera a música como dotada de uma grande


intensidade de força, que permite que ela mobilize o ouvinte e até mesmo o
criador, de forma significativa, causando um impacto que seria semelhante ao
que as pulsões causam no funcionamento da psique humana.
Como ilustração das interfaces entre música e psicanálise, Nogueira traz
a visão de Freud sobre o artista: “(...) o artista não é alguém salvo das
vicissitudes pulsionais da existência, mas sim alguém que se protege de um
modo peculiar do mal estar humano.” (2010, p.45)
Com essa afirmação, o pai da psicanálise deixa clara a capacidade do
artista de realizar a sublimação da energia pulsional, protegendo-se, desse
modo, do mal estar causado pela frustração de desejos não realizados.
Luiz (2010) apresenta ainda uma leitura que a psicanálise faz sobre a
música: “Pela leitura psicanalítica, a música constitui-se, além de expressão
artística, como uma modalidade de linguagem que pode trazer algo do
inconsciente humano.” (p.47)
O autor ainda ressalta que a música interessa à psicanálise visto que a
sonoridade carrega elementos da singularidade do inconsciente.
Podemos perceber, com as contribuições desses autores, que música e
psicanálise dialogam das mais diferentes formas, de modo que a música pode
ser muito útil para a compreensão psicanalítica de uma psique, assim como é
possível utilizar a psicanálise para estabelecer uma compreensão do discurso
musical em suas diversas esferas (a própria música, a linguagem verbal e a

22
aliança entre essas duas esferas que daria origem a uma potente forma de
expressão humana.).
Vale ressaltar que há poucos trabalhos que tratam do diálogo entre
psicanálise e música, ainda que haja um campo bastante vasto de
possibilidades de estabelecer conexões entre as duas áreas.

23
Capítulo 3- Análise da música

“Cais” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)

“Para quem quer se soltar invento o cais


Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar

Eu queria ser feliz


Invento o mar
Invento em mim o sonhador

Para quem quer me seguir eu quero mais


Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar”

No início da letra da música, é possível perceber que o eu lírico cria um


“local” a partir do qual todos que queiram iniciar a busca por seus desejos
possam se “soltar” em direção a eles:

“Para quem quer se soltar, invento o cais”.

Com isso, ele inicia um processo de autoconstrução no qual luta pelo


movimento e cria possibilidades dentro de si para que ele ocorra. Dentro da
condição humana da solidão, ele busca movimento:

“Invento mais que a solidão me dá”.

A utilização do termo “invento” remete à concepção freudiana de desejo


na qual este encontra sua realização na fantasia, nas possibilidades de
elaborar uma situação mental satisfatória do desejo. Ao utilizar o termo acima
referido, o eu-lírico descreve tudo o que é feito internamente para que, por fim,
haja a busca pela satisfação do desejo por ele apresentado:

24
“Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar”

Nesse último verso, ele apresenta a busca pelo desejo como um


processo doloroso, no qual o sujeito sofre diversas frustrações que vão moldar
os limites que o tornarão adaptado à vivência em sociedade, em detrimento de
sua energia pulsional que, muitas vezes, não poderá encontrar satisfação.
Na continuação da letra, podemos perceber que o eu-lírico, buscando a
felicidade (realização de seus desejos), dá vazão à esfera da fantasia de modo
que, com o seu conhecimento, seja possível alcançar um estado de maturidade
e plenitude:

“Eu queria ser feliz


Invento o mar
Invento em mim o sonhador”

Novamente, o termo “Invento” é utilizado como possível referência à


busca pela satisfação das fantasias apresentadas pelo eu-lírico no trecho
“Invento em mim o sonhador”.
Com o final desse trecho, a letra da música começa a tomar outro tom,
no qual o eu-lírico se apresenta mais apropriado de si, consciente de seus
desejos e do caminho que tomará para buscar sua realização:

“Para quem quer me seguir eu quero mais


Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir”

No início do trecho acima, podemos considerar que o eu-lírico valoriza a


sua busca, demonstrando a força que desenvolveu ao longo da música se
concretizando. Ao mesmo tempo, ele convida o outro a acompanhá-lo nessa
busca. Desse modo, fica claro que o processo de auto maturação não é algo
vivido solitariamente por ele; existe uma abertura ao outro, para que este faça
parte do processo.

25
Ainda sobre isso, vale ressaltar a importância da relação com o outro na
busca pelo desejo, levando em conta que, com a abertura para o outro, o
indivíduo é convidado a pensar a sua realidade de outra maneira, o que pode
permitir que ocorram mudanças importantes no funcionamento de sua psique.
Através de uma liberação interior, o indivíduo convida o outro a acompanha-lo
na busca, o que se oporia a uma satisfação radicalmente narcísica.
Nesse trecho, o eu-lírico tem mais clareza de si e de sua organização,
através da qual se torna possível “partir” rumo à realização dos desejos. O
processo de maturação desse sujeito está se consolidando, representado pelo
“saveiro” no verso: “E um saveiro pronto pra partir”.
Nos últimos dois versos, o eu-lírico, maduro e consciente de si, dá início
à busca pelos seus desejos. No momento certo, ele se “lança” do cais por ele
inventado. Por seus próprios meios, torna-se possível lançar mão dessa busca:

“Invento o cais
E sei a vez de me lançar”

Para finalizar a análise, vale a pena apresentar alguns elementos


musicais que acrescentam ao sentido da letra e à transmissão da mensagem
dessa música.
A maior parte da música tem como característica uma constância
rítmica, bastante evidente na linha do violão, que apresenta um dedilhado
constante. Além disso, esse instrumento tem poucas mudanças harmônicas
durante a maior parte da música. Nesse primeiro momento, não há grandes
mudanças no arranjo, que permanece com um desenvolvimento constante,
sem a entrada de novos instrumentos ou “climas” na música.
Quando é cantado o último verso da música (“E sei a vez de me lançar”),
todos os acontecimentos que estavam em andamento cessam, marcando a
entrada de um novo momento musical, no qual apenas o piano toca as novas
harmonia e melodia. É possível considerar que essa única mudança
significativa da música anda juntamente com a letra. Com o cantar do último
verso, o eu-lírico estaria se “lançando” a bordo de seu saveiro rumo à busca
pelos seus desejos.

26
Isso ocorre após o período de auto maturação que é representado pelo
primeiro momento musical, caracterizado pela constância rítmica, harmônica e
melódica. No segundo momento, a música apresenta um desenvolvimento
mais livre, com poucos elementos, no qual o eu-lírico não mais se pronuncia.
Visto isso, podemos considerar que, a partir do último verso e com a
parte final instrumental, é representado o colocar-se em movimento do sujeito,
em um novo momento de sua vida, no qual está mais apropriado de si.
A música termina em “fade out”, o que pode indicar que a busca pelos
desejos é algo que dura por toda a vida, considerando que não é possível
realizar-se todos os desejos. Sempre surgirão novos desejos para pôr o sujeito
em movimento, o que faz parte da condição humana.
Para concluir, é possível perceber que o eu-lírico reconhece as
dificuldades que encontrará ao longo do processo, no entanto tem como
perspectiva tornar-se dono dessas dificuldades, podendo utilizá-las como motor
para o seu movimento.
Cabe, neste momento, caracterizar alguns conceitos psicanalíticos que
puderam ser identificados através da análise realizada neste trabalho.
Um termo de grande importância é a palavra “invento”, presente na
maior parte da letra. O conceito de invenção pode ser considerado pela
psicanálise como mais uma das decorrências do trabalho analítico. Segundo
Czermak (2005), o prazer estaria presente nos sintomas apresentados pelo
paciente, desde o início do processo, considerando que há uma relação destes
com as pulsões.
Desse modo, através do processo interpretativo, a parte desprazerosa
do sintoma dá lugar à parte prazerosa, ligada à satisfação pulsional que ocorre
através de fantasias. É a partir dessa libido restante após a interpretação e
ressignificação dos sintomas que surgiria a capacidade criativa do indivíduo.
Ainda segundo a autora, há, nesse momento, uma mudança de papel do
sujeito que passa da posição de objeto do gozo do outro (na fantasia) para a
posição de sujeito, que também obtém prazer do outro (realidade). Para ela, a
criação (pensamento-ação) estaria estritamente ligada aos desejos:

27
“Podemos situar estas formulações em termos da criação de um pensamento-ação
estritamente ligado ao desejo e à implicação do sujeito, que é ao mesmo tempo sujeito do
conhecimento e sujeito do desejo. Trata-se de inventar modos de existência ou possibilidades
de vida que não cessam de se recriarem como novos, sendo esta atividade própria dos fluxos
desejantes a partir da exterioridade das forças existentes e suas relações, entendendo o
campo do real como o campo das puras virtualidades.” (p.119)

Com isso, Czermak considera que o processo analítico permite que o


sujeito mude seu modo de ser, experimentando novas possibilidades tendo em
vista a realização dos desejos. Nessa busca, ele é, ao mesmo tempo, seguidor
dele e do conhecimento, de modo que é através deste último que ele se torna
capaz de “inventar” novos meios de satisfazer suas pulsões, através da
efetivação de mudanças e experimentação de novas possibilidades de ser. A
análise se configuraria, portanto, como um meio através do qual se torna
possível restituir a potência do indivíduo por meio da liberação da produção e
da fluência das pulsões que recuperam o poder da invenção.
A invenção, portanto, é de extrema importância para satisfação dos
desejos do sujeito, considerando que ela se apresenta para ele como uma
ferramenta através da qual ele experimenta novos caminhos que poderão leva-
lo à satisfação pulsional, fundamental para a sua saúde mental.
Com tudo isso, é possível fazer uma analogia entre a letra da música
“Cais” e o processo de análise. O eu-lírico, ao longo da música, vai se
instrumentalizando para a busca por seus desejos através da “invenção” de
possibilidades de ser, que permitem que haja a superação de um momento de
estagnação. Dá-se, então, início ao movimento, que começa a ocorrer por meio
da experimentação de novas possibilidades de ser, por parte dele. Desse
modo, é possível interpretar que a letra da música tem como tema um processo
de descoberta de si, de autoconhecimento e de estabelecimento da
possibilidade de se lançar, colocar-se em movimento.
O processo de análise se configura justamente como um processo de
autodescoberta, na qual o sujeito se implica. Através da interpretação dos
sintomas, torna-se possível para ele efetivar mudanças em si, superando
comportamentos repetitivos e carregados de sofrimento. Desse modo, ele está

28
se colocando em movimento, o qual entra no lugar da estagnação implicada na
repetição de comportamentos.
É através da elucidação para o sujeito das questões comuns a todos os
seus sintomas, resultante de um trabalho interpretativo do analista, que se faz
possível uma reorganização e uma ressignificação de sua vida mental,
proporcionando-lhe a possibilidade de um funcionamento menos carregado de
sofrimento. A elaboração permite que o sujeito encontre um novo lugar dentro
de si, onde ele pode conviver melhor com suas questões ou conflitos.
Sob este viés, o conceito de invenção ou criação não se restringiria
apenas a indivíduos artistas. Sobre isto, Biazus e Cezne (2010) escrevem:

“(...) a criação, o fazer criador não está limitado somente às artes plásticas, à literatura,
à música, mas sim a qualquer fazer que se utiliza do que há de mais singular no sujeito, o seu
Inconsciente, aquilo que retrata a sua individualidade. Assim, não existe um dom especial para
tal acontecimento, o artista é simplesmente aquele que sabe utilizar-se do seu impulso criativo,
que reconhece a sua singularidade e que se manifesta seja através de uma pintura, de um
livro, da elaboração de um prato de comida, da invenção de uma brincadeira, da confecção de
um vestido. O que está em jogo aqui é submeter-se ao desconhecido, fugir do mesmo, inovar e
para isso, colocar-se à prova. Pois, a criação exige o reconhecimento de que somos seres em
constante transformação, somos obras abertas que nos construímos e reconstruímos na
interação com o Outro.” (p.68)

Com isso, as autoras ressaltam que todos os indivíduos tem um


potencial criativo, a partir do momento em que todos podem utilizar-se de
elementos do inconsciente para realizar uma produção. O processo analítico é
o responsável por que isso ocorra, considerando que ele permite que o
indivíduo entre em contato, de um modo mais clarificado, com sentidos
presentes em sua vida mental, que ele desconhece.
Desse modo, é possível perceber que a arte (no caso deste trabalho, a
música) e a psicanálise têm uma relação muito próxima, ao levar-se em conta
que ambas tratam da elaboração de aspectos inconscientes pelos indivíduos,
seja através de um processo analítico, no qual o terapeuta permite que a
elaboração ocorra por meio da interpretação de sintomas, seja pela criação de
uma música, através da qual o artista pode elaborar elementos de seu
inconsciente e, através da junção de diversas formas de expressão (musical,

29
verbal) comunicar essa elaboração a outros indivíduos, que interpretarão a
obra artística de acordo com sua subjetividade.
A música, nesse sentido, poderia servir como um meio de elaboração,
tanto para o compositor quanto para o intérprete e ouvinte. Estes últimos,
através da junção das diversas formas de expressão em que a música
consiste, podem, ao ouvi-la, pensar de um modo diferente e contemplar novas
possibilidades de ser, percebidas pela interpretação subjetiva do indivíduo. É
neste sentido que a música representa uma potente forma de expressão e
diálogo humano, visto que há uma mensagem elaborada por um indivíduo (o
compositor) que é recebida pelo ouvinte ou intérprete, e desse modo,
interpretada de acordo com a sua subjetividade.
Outro conceito importante identificado na letra da música analisada é o
da solidão. Freud, na obra “O mal-estar na civilização”, discorre sobre o
isolamento, termo através do qual o autor tece considerações a respeito da
solidão.

“Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais
imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade
passível de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude.”
(1976, p.96).

Com essa fala, o pai da psicanálise apresenta uma das formas possíveis
de solidão, na qual o indivíduo utilizaria o afastamento das relações humanas
como via de proteger-se do sofrimento decorrente delas. Seria, desse modo,
um mecanismo de defesa.
Segundo Tanis (2002), Freud associa a solidão, no início de sua obra, à
angústia na vida infantil, nas situações de silêncio e de escuridão:

“Temos aqui uma importante referência metapsicológica de Freud na tentativa de


compreender o medo, o desconforto, a angústia ligada ao estar só. Ela é formulada no recurso
à sua primeira teoria da angústia, segundo a qual o mecanismo principal é a transformação da
libido, transformação de estado de excitação em angústia. Duas situações diferentes obtêm o
mesmo esclarecimento, o medo de estar só e o medo dos estranhos. Ambos revelam para
Freud que a ausência da pessoa amada pela criança se transforma em anelo não satisfeito,
que dá lugar à angústia.” (p.98)

30
Com isso, o autor explicita a compreensão de Freud de que a solidão
originaria a angústia, proveniente da transformação de um estado de excitação,
que ocorre com a ausência da pessoa amada. Tanis discorre ainda sobre os
diferentes caminhos que a solidão pode tomar segundo Freud:

“Ora, sem pretender esgotar, pelo contrário, abrindo as portas da reflexão, vemos que
solidão, perda e angústia de separação, para Freud, se estendem por um amplo escopo desde
posições narcísicas e fusionais, passando pela perda do objeto amado que pode ora redundar
numa postura melancólica, ora numa experiência fóbica de afastamento de um encontro com o
estranho que evidencia a perda irreparável. Esta leitura já dá suporte a nossa hipótese inicial
que propunha a polissemia da solidão.” (p.105)

O autor aponta que o sujeito é convocado a metaforizar as ausências e


que, caso não consiga, ficará aprisionado na concretude da falta. Além disso,
Tanis conclui que a solidão se dá nas relações entre Eu e o objeto.

“(...) podemos concluir que a solidão tem como pano de fundo as relações entre Eu e o
objeto. Constitui-se tanto como estado quanto como sentimento, num campo no qual o outro
será crucial para a sua compreensão.” (p.116)

O conceito de fantasia também se fez presente na análise aqui


realizada. Freud, na obra “Escritos Criativos e Devaneios”, discorre sobre o
fantasiar:

“Vamos agora examinar algumas características do fantasiar. Podemos partir da tese


de que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. As forças motivadoras das
fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma
correção da realidade insatisfatória. Os desejos motivadores variam de acordo com o sexo, o
caráter e as circunstâncias da pessoa que fantasia, dividindo-se naturalmente em dois grupos
principais: ou são desejos ambiciosos que se destinam a elevar a personalidade do sujeito, ou
são desejos eróticos.” (1976, p. 152).

Com isso, a fantasia seria um modo de satisfazer as energias pulsionais,


que, muitas vezes, por limites impostos pela vida em sociedade, não podem
ser satisfeitas na realidade. No entanto, o pai da psicanálise aponta o perigo
proveniente de um grande poder exercido pelas fantasias no sujeito:

31
“Quando as fantasias se tornam exageradamente profusas e poderosas, estão
assentes as condições para desencadeamento da neurose ou da psicose. As fantasias são
também precursoras mentais imediatas dos penosos sintomas que afligem nossos pacientes,
abrindo-se aqui um amplo desvio que conduz à patologia.” (1976, p. 153-154).

Ao considerarmos a conceituação apresentada por Freud, fica clara a


importância da fantasia para o funcionamento da psique humana. Em certa
medida, ela é fundamental para que a convivência em sociedade seja viável,
considerando que é responsável por satisfazer energias pulsionais que
poderiam ter consequências destrutivas para o próprio indivíduo e para quem o
rodeia, se direcionadas à realidade concreta.
Ao mesmo tempo, a fantasia com poder exacerbado pode comprometer
o funcionamento saudável da vida mental do sujeito gerando sintomas, que têm
a função de deslocar a angustia ou sofrimento proveniente de uma fantasia
conflitiva, a qual o sujeito não suporta. Ainda sobre esse conceito, Freud
escreve:

“Não devemos supor que os produtos dessa atividade imaginativa---as diversas


fantasias, castelos no ar e devaneios---sejam estereotipados ou inalteráveis. Ao contrário,
adaptam-se às impressões mutáveis que o sujeito tem da vida, alterando-se a cada mudança
de sua situação e recebendo de cada nova impressão ativa uma espécie de ‘carimbo de data
de fabricação’”. (1976, p. 153).

Com isso, Freud salienta a transitoriedade das fantasias e o quanto


estas falam sobre a realidade atual do sujeito. É através delas que se torna
possível identificar conflitos nele presentes, que constituirão a base de seu
processo de análise.
O “fantasiar” se faz bastante presente na produção artística, na qual,
muitas vezes, os artistas se utilizam de ferramentas imaginativas e construção
de tramas fantasiosas para expressar algum conteúdo presente em si. No caso
da música “Cais”, os autores fazem uso de uma metáfora na qual o cais
representaria um local a partir do qual seria possível “lançar-se”, colocar-se em
movimento. O saveiro, a ser lançado do cais, representa a condição da vida

32
mental do sujeito, que, no caso, encontra-se “pronto pra partir”, ou seja, em um
estado de maior maturidade, que permite o início de um movimento.
Fica claro sob esse ponto de vista, o potencial comunicativo presente no
“fantasiar” contido em uma produção artística. A ferramenta da fantasia
enriquece muito a compreensão do conteúdo presente na obra por outros
indivíduos. Com as alegorias e metáforas, é possível que ocorra uma
compreensão daquele conteúdo que extrapole o campo do racional,
estendendo-se a uma compreensão emocional que, em conjunto com a
primeira, permite que o indivíduo se envolva de forma intensa com a
mensagem passada pelo artista em sua obra.
Podemos ainda, apontar outras letras de música da obra do Clube da
Esquina nas quais é possível identificar temas e conceitos semelhantes aos
apresentados na análise aqui feita. Na letra da música “Saídas e Bandeiras
nº1” (Milton Nascimento e Fernando Brant), também do disco “Clube da
Esquina”, de 1972, é possível perceber um percurso semelhante ao traçado na
letra da música “Cais”:

“O que vocês diriam dessa coisa


Que não dá mais pé?
O que vocês fariam pra sair dessa maré?
O que era sonho vira terra
Quem vai ser o primeiro a me responder?

Sair dessa cidade ter a vida onde ela é


Subir novas montanhas, diamantes procurar
No fim da estrada e da poeira
Um rio com seus frutos me alimentar”

Nessa letra, há um primeiro momento em que há uma crise, na qual um


equilíbrio antes estabelecido deixa de existir. Isso pode ser identificado no
trecho:

“O que vocês diriam dessa coisa


Que não dá mais pé?”

33
Há, desse modo, um jogo presente na letra, no qual acontece um convite
aos interlocutores para que estes pensem em recursos para superar a crise
que se instaurou:

“O que vocês fariam pra sair dessa maré?


O que era sonho vira terra
Quem vai ser o primeiro a me responder?”

Em seguida, há de forma semelhante à da letra da música “Cais”, um


segundo momento no qual o eu-lírico, agora em primeira pessoa, apresenta
possibilidades de se por em movimento como um exemplo de superação da
estagnação que fora anteriormente atribuída ao interlocutor:

“Sair dessa cidade ter a vida onde ela é


Subir novas montanhas, diamantes procurar”

Através desse movimento, ele se torna capaz de alcançar seus desejos,


colhendo os “frutos” decorrentes do processo de sua busca:

“No fim da estrada e da poeira


Um rio com seus frutos me alimentar”

Com isso, é possível perceber que em ambas as letras, são


apresentados momentos de estagnação e de movimento, este último
decorrente de transformações nos sujeitos, que permitem que a busca pelos
desejos tenha maior possibilidade de ser bem sucedida. Essas transformações
presentes nas músicas podem ser consideradas análogas às mudanças de
funcionamento da psique, resultantes de um processo analítico.
A música “Os Povos” (Milton Nascimento e Márcio Borges) também do
mesmo disco, traz em sua letra a temática da solidão.

“Na beira do mundo


Portão de ferro, aldeia morta, multidão
Meu povo, meu povo
Não quis saber do que é novo, nunca mais

34
Eh! Minha cidade
Aldeia morta, anel de ouro, meu amor
Na beira da vida
A gente torna a se encontrar só

Casa iluminada
Portão de ferro, cadeado, coração
E eu reconquistado
Vou passeando, passeando e morrer
Perto de seus olhos
Anel de ouro, aniversário, meu amor
Em minha cidade
A gente aprende a viver só

Ah, um dia, qualquer dia de calor


É sempre mais um dia de lembrar
A cordilheira de sonhos que a noite apagou

Eh! Minha cidade


Portão de ouro, aldeia morta, solidão
Meu povo, meu povo
Aldeia morta, cadeado, coração
E eu reconquistado
Vou caminhando, caminhando e morrer
Dentro de seus braços
A gente aprende a morrer só

Meu povo, meu povo


Pela cidade a viver só”

Essa letra é bastante descritiva, e também trata de um caminho


percorrido, através do qual o eu-lírico percebe a solidão como uma
possibilidade presente nesse percurso. Ao longo do caminho descritivo, o eu-
lírico vai “aprendendo” a viver na solidão, o que fica evidente nos últimos
versos de quase todas as estrofes:

35
“Aldeia morta, anel de ouro, meu amor
Na beira da vida
A gente torna a se encontrar só”

“Anel de ouro, aniversário, meu amor


Em minha cidade
A gente aprende a viver só”

“Vou caminhando, caminhando e morrer


Dentro de seus braços
A gente aprende a morrer só
Meu povo, meu povo
Pela cidade a viver só”

Nesses trechos, após um momento mais descritivo, o eu-lírico fecha


uma compreensão, apresentando a ideia da solidão como condição ou
consequência do que é anteriormente apresentado nas estrofes.
Há também na letra dessa música uma ideia de movimento, assim como
na música “Cais”, que pode ser percebida nos seguintes trechos:

“E eu reconquistado
Vou passeando, passeando e morrer”

“E eu reconquistado
Vou caminhando, caminhando e morrer”

O movimento é desse modo retratado como um caminho a ser


percorrido pelo sujeito, caminho este que culminaria na morte. Assim como em
“Cais”, e em “Saídas e Bandeiras nº1”, há um momento em que fica mais
pronunciada uma sensação de estagnação que em um segundo momento, dá
lugar ao movimento e ao percurso de um caminho.
Considerando as análises aqui feitas, fica clara a unidade presente no
álbum “Clube da Esquina”, que lhe dá enorme valor artístico. Ao longo de toda
a obra, o movimento se faz presente na imagem da Estrada. Com isso, é
possível compreender esse movimento como próximo de uma “peregrinação”,
termo que designaria uma longa e exaustiva jornada de cunho religioso ou de
motivação centrada na fé.

36
Com a ideia de “peregrinação”, o movimento estaria dotado tanto de
motivações internas quanto externas, não sendo, portanto, vivido apenas de
forma solitária. Ao mesmo tempo em que ocorreria um movimento interno, este
se daria na realidade externa, que é capaz de ser compartilhada.
Esse tema, que unifica a obra do grupo, nos remete à sua história que
foi marcada por uma intensa movimentação dos artistas que o constituíam, que
iam se apresentar em diversos lugares, onde houvesse alguém que os
quisesse ouvir. Esse caminhar do artista, que visa chegar onde o povo está, é
um elemento característico da cultura mineira, vivido intensamente pelos
membros do Clube da Esquina, que transitaram por diversos festivais, shows,
eventos, nos quais lhes era possível compartilhar o caminho que traçavam,
com o povo.
Nos trechos em negrito a seguir, essa unidade constituinte da obra se
faz presente:

“Tudo que você podia ser” (Lô Borges e Márcio Borges)

“Com sol e chuva você sonhava


Que ia ser melhor depois
Você queria ser o grande herói das estradas
Tudo que você queria ser

Sei um segredo você tem medo


Só pensa agora em voltar
Não fala mais na bota e do anel de Zapata
Tudo que você devia ser sem medo

E não se lembra mais de mim


Você não quis deixar que eu falasse de tudo
Tudo que você podia ser na estrada

Ah! Sol e chuva na sua estrada


Mas não importa não faz mal
Você ainda pensa e é melhor do que nada
Tudo que você consegue ser ou nada”

37
Na canção “O Trem Azul” (Lô Borges e Ronaldo Bastos), a ideia de
movimento e da imagem de um viajante fica clara na figura do trem:

“Coisas que a gente se esquece de dizer


Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar

Você pega o trem azul, o Sol na cabeça


O Sol pega o trem azul, você na cabeça
Um sol na cabeça

Coisas que a gente se esquece de dizer


Coisas que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar

Você pega o trem azul, o Sol na cabeça


O Sol pega o trem azul, você na cabeça
Um sol na cabeça”

Também em “Nuvem Cigana”, o tema do movimento interno e externo se


faz presente:

“Nuvem Cigana” (Lô Borges e Ronaldo Bastos)

“Se você quiser eu danço com você no pó da estrada


Pó, poeira, ventania
Se você soltar o pé na estrada, pó, poeira
Eu danço com você o que você dançar

Se você deixar o sol bater nos seus cabelos verdes


Sol, sereno, ouro e prata
Sai e vem comigo
Sol, semente, madrugada
Eu vivo em qualquer parte de seu coração

Se você deixar o coração bater sem medo

Se você quiser eu danço com você


Meu nome é nuvem, pó, poeira, movimento

38
O meu nome é nuvem
Ventania, flor de vento,
Eu danço com você o que você dançar

Se você deixar o coração bater sem medo”

No primeiro trecho destacado na letra de “Nuvem Cigana”, é


apresentada novamente a imagem da estrada e do “soltar-se”, ideia de grande
importância para a letra da música “Cais”, segundo a análise aqui apresentada.
Nos trechos destacados seguintes, podemos perceber a imagem do movimento
sob diversas formas, como o bater do coração, a dança, a imagem da nuvem,
que se move de acordo com a ventania e o convite ao outro para pôr-se em
movimento (“Sai e vem comigo”).
Por fim, nos trechos destacados na música “Nada Será Como Antes”,
novamente é enfatizada a ideia de “estrada” e de “movimento” rumo ao
desconhecido, representando uma transformação, seja no sujeito, no mundo
externo ou em ambos. (“Sei que nada será como antes amanhã”)

“Nada Será Como Antes” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)

“Eu já estou com o pé nessa estrada


Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã

Que notícias me dão dos amigos?


Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol

Num domingo qualquer, qualquer hora


Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes amanhã

Que notícias me dão dos amigos?


Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol”

39
Com a análise da música “Cais”, torna-se evidente a riqueza da
abordagem das questões humanas na letra de uma música. Essa abordagem é
diferenciada, ao levar-se em conta o diálogo estabelecido entre a linguagem
verbal e a musical, através do qual o ouvinte é levado a ter uma relação mais
intensa com o conteúdo da letra, considerando que a linguagem musical
acessaria conteúdos de sua memória e ofereceria vivências sensoriais a ele.
Na música em questão, esse diálogo ocorre através da constância
musical da primeira parte, a qual pôde ser interpretada como o momento de
autoconhecimento, de instrumentalização para a busca do desejo. Não há
nesse momento, movimento, assim como não ocorrem novos acontecimentos
musicais. Ao mesmo tempo, a música está sendo executada com elementos
musicais bastante presentes. Essa escolha de arranjo pôde ser interpretada
como uma representação de que não há movimento, ou há pouco, no momento
de instrumentalização. Porém, é este que permitirá o movimento que ocorrerá
na parte final da música.
Levando esse raciocínio para o processo de análise, é possível
considerar que o primeiro momento, o da entrada do paciente no processo
analítico, é um momento de pouco movimento, no qual os conflitos e fantasias
começam a se pronunciar para, em um segundo momento, poderem ser
interpretados. Através do processo interpretativo, o indivíduo pode se colocar
em movimento, revendo comportamentos que geram sofrimento,
experimentando novas possibilidades de ser e encontrando lugar dentro de si
para os conflitos que, anteriormente, geravam sintomas.
Visto isso, vale ressaltar o quanto, no contexto do processo de análise,
uma música pode ser de grande valor interpretativo quando trazida pelo
paciente, assim como outras formas de expressão do inconsciente, como os
sonhos, lapsos, atos falhos. Uma determinada música estar presente na mente
do paciente naquele momento, tem um sentido, que é somado aos sentidos de
suas outras formas de expressão no contexto analítico, facilitando a
interpretação, por parte do terapeuta, do sentido comum a todas essas formas,
em uma determinada sessão.
Para Freud, em “O Moisés de Michelangelo”, no entanto, a produção
artística representa um enigma para a compreensão psicanalítica e sabe-se

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pouco a respeito de sua representação para a psicanálise. O pai da psicanálise
considera que o que prende nossa atenção em uma obra é a atenção do
artista, e sua capacidade de expressar-se por meio de sua produção:

“Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão; o que
ele visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele
produziu o ímpeto de criar.” (1974, p.254)

Com isso, Freud demonstra que a motivação do artista para produzir


uma obra é a necessidade de dar vazão a uma vivência emocional interna, de
modo que ela seja compartilhada por outros indivíduos, que poderão se
identificar com o conteúdo de sua produção.

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Considerações Finais

Através deste trabalho, foi possível conhecer um pouco das interfaces


entre música e psicanálise, evidenciando-se um diálogo muito rico entre as
duas áreas. Com a análise realizada, fica clara a riqueza da junção das
diversas linguagens na constituição da música, criando a possibilidade de uma
ideia individual ser compartilhada coletivamente. Puderam ser identificados
importantes conceitos psicanalíticos na letra da música “Cais”, presentes
também em outras músicas do álbum “Clube da Esquina”, tornando-se
evidente a unidade presente na obra. Tais conceitos foram desenvolvidos ao
longo do trabalho, com a exposição das ideias psicanalíticas que dão corpo à
teoria criada por Freud.
A unidade da obra do grupo pôde aqui ser compreendida como resultado
de um momento específico da história do Brasil, no qual a repressão da
ditadura tornava urgente uma manifestação por parte da população,
principalmente dos artistas. Em meio a este cenário, os membros do Clube da
Esquina se encontraram e com a convivência, criaram importantes vínculos de
amizade entre si, que permitiram que nascesse uma significativa produção para
o cenário da música brasileira. Por viver um mesmo momento, cada membro
do grupo pôde contribuir com seu ponto de vista nas composições do disco
duplo “Clube da Esquina”, de modo que alguns temas centrais da obra como a
Estrada e o Movimento pudessem ser abordados de diversas formas. Isto
permitiu que houvesse um diálogo entre as diferentes “vozes” do Clube da
Esquina, garantindo que o álbum passasse uma mensagem que ultrapassa a
soma dos pontos de vistas dos compositores e letristas, dando vida à obra, que
passa a ter uma “voz” própria, de grande valor artístico.
Pôde-se perceber também, com a realização do trabalho, o potencial da
música como uma possibilidade de expressão única. Com a junção das
linguagens verbal e musical, forma-se uma “terceira” linguagem, que, assim
como no caso do álbum “Clube da Esquina”, é mais do que a soma dessas
duas formas de expressão. Por entrar em contato com a esfera das sensações
e emoções, a música adquire a possibilidade de nos remeter a lembranças e

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fantasias, permitindo, que “conversemos” com uma parte de nós pouco
acessada no dia-a-dia, mas que nos constitui como seres humanos.

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