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São Paulo
2012
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde
Curso de Psicologia
Trabalho de conclusão de
curso como exigência
parcial para a graduação no
curso de Psicologia, sob
orientação do Prof. Dr.
Paulo José Carvalho da
abriel Jacques Wahrhaftig
Silva.
São Paulo
2012
Dedicatória/Agradecimentos
Introdução............................................................................................................7
Metodologia.......................................................................................................13
Considerações Finais........................................................................................42
Referências Bibliográficas.................................................................................44
I. Introdução
7
A música é uma forma artística composta de diversos elementos, entre
eles a melodia, harmonia, ritmo, alturas, timbres e intensidades. Wisnik (2009)
explica que a melodia surge do próprio ritmo:
“A partir de um certo limiar de frequência (em torno de quinze ciclos por segundo, mas
estabilizando-se só em cem e disparando em direção ao agudo até a faixa audível de cerca de
15 mil hertz), o ritmo vira melodia.” (p.20)
“São os feixes de onda mais densos ou mais esgarçados, mais concentrados no grave
ou no agudo, são em suma os componentes da sua complexidade (produzida pelo objeto que o
gerou) que dão ao som aquela singularidade colorística a que chamamos de timbre.” (2009,
p.24)
8
“(...) dizemos que a música é uma linguagem reflexivo-afetiva, já que envolve um tipo
de reflexão que se faz possível por meio da afetividade, e uma afetividade que se faz possível
por meio de determinado tipo de reflexão.” (p.148)
“(...) uma linguagem em que se percebe o horizonte de um sentido que no entanto não
se discrimina em signos isolados, mas que só se intui como uma globalidade em perpétuo
recuo, não verbal, intraduzível, mas, à sua maneira, transparente.” (p.30)
9
fazem do observador de suportar uma série considerável de paradoxos que
não podem ser resolvidos.” (p.5)
Com essa fala, o autor aponta a questão de que tanto a psicanálise
quanto à música demandam que o paciente/ ouvinte se disponha a ter um
contato com uma dimensão que transcende a realidade consciente, seja pela
atenção dada à psicanálise aos aspectos latentes na fala do sujeito, quanto
pela apreensão intuitiva de uma mensagem musical. A respeito disso, o autor
discorre: “Tanto Música como Psicanálise me parecem prover contato intuitivo,
transitório e fragmentário, porem real e possível, com as "coisas como
realmente elas existem" (Kant, 1781) ou "fatos como eles realmente são"
(Bacon, 1625a e b; Johnson, citado por Boswell, 1791)”. (Sandler, 2000, p.5)
Para Luiz (2010), a música interessa à psicanálise a partir do momento
em que ela se configura como uma modalidade da linguagem que pode trazer
algo do inconsciente humano através de uma experiência que não seria nem
verbal nem discursiva, mas sim a expressão de uma linguagem universal.
Segundo o autor, música e psicanálise apresentam importantes pontos
em comum como a presença de sonoridades. No processo psicanalítico, elas
estariam presentes através da interpretação clínica do sentido da fala, suas
inflexões, silêncios e pausas. Na música, por sua vez, através do canto, ritmo,
melodia, harmonia.
Ainda quanto às interfaces entre psicanálise e música, Kohut (1957b) faz
um paralelo entre os processos pelos quais o desenvolvimento psicológico
(psicanalítico) e a música passam. Em seu artigo “Observações sobre as
funções psicológicas da música”, o autor explica que o ritmo consiste em um
processo musical primário que equivaleria às formas primitivas de controle da
tensão psicológica. A melodia, por sua vez, é um processo secundário musical
que é pareado com os processos psicológicos complexos em que há a
tolerância das tensões.
Em outro trabalho, Kohut e Levarie (1978) discorrem sobre a reação do
aparelho psíquico ao som, que representaria, em sua forma pura, uma ameaça
direta a ele: “(...) o aparelho mental arcaico, seja no bebê, no homem primitivo
ou em circunstâncias especiais no adulto, tende a perceber o som como uma
ameaça direta e a reagir a ele de maneira reflexa com angústia.” (p.4)
10
É nesse aspecto que se torna importante a forma na música, ou seja, a
presença de processos secundários musicais através dos quais seja possível a
reutilização da energia mobilizada por esse medo inicial. Essa energia se
converte em um alívio, ao tornarem-se perceptíveis os aspectos formais que
reduziriam a angústia da ameaça primitiva. É aí que reside o prazer de ouvir
música.
Cabe nesse momento, discorrer sobre a visão psicanalítica de desejo
visto que esse é um dos temas centrais constituintes da letra da música a ser
analisada.
Na música “Cais”, são trazidas algumas questões humanas importantes
como a solidão, a dificuldade de colocar-se em movimento em nome da busca
pelos desejos e a maturidade interna, como fator importante para a busca
desses desejos ou ideais.
Para a teoria Freudiana, o conceito de desejo deve ser diferenciado da
necessidade, como explicam Laplanche e Pontalis (1967):
11
a)Sujeito (ego)-Objeto (mundo externo)-Elemento pelo qual o instinto é
capaz de atingir sua finalidade.
b)Prazer-Desprazer
c)Ativo-Passivo
Os impulsos instintivos (pulsionais), desse modo, estariam sujeitos às
influências desses três polos. Freud aponta ainda a existência de “Instintos
Primordiais”, que seriam os Instintos do ego (auto preservativos) e os Instintos
sexuais. Estes últimos, segundo o autor, têm a capacidade de mudar
prontamente de objeto, o que seria nomeado “Sublimação”.
Um exemplo desse processo seria o de uma produção artística, como a
composição de uma música, através da qual a energia pulsional presente no
indivíduo transfere-se para uma atividade socialmente aceitável e produtiva,
como a expressão de um desejo ou busca na associação poderosa entre letra
(linguagem verbal) e elementos musicais presentes na composição da música.
Nogueira (2010) aponta o som como capaz de criar, recriar e invocar o
objeto de desejo. Desse modo, a música teria a possibilidade de reposicionar
os sentidos e as formas instituídas no sujeito. O autor aponta, ao mesmo
tempo, a possibilidade presente na experiência musical no sentido da
superação de resistências, ao passo que a música poderia permitir que
houvesse uma variação do modo como os conteúdos inconscientes podem ser
movimentados para o consciente.
12
II. Metodologia
13
Capítulo 1- Sobre o Clube da Esquina
14
pessoas, que, ao acrescentar seus elementos pessoais, acabavam por criar um
novo elemento, a música, que era uma criação coletiva.
Dentre os nomes mais importantes desse movimento, estão: Lô Borges,
Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Beto Guedes, Márcio Borges e como
elemento centralizador do grupo, Milton Nascimento.
Toda a produção do grupo se dava a partir da necessidade mais natural
de expressar-se, seja por um descontentamento com a realidade da ditadura
militar, em pleno vigor nessa época no Brasil, seja pelo impulso mais puro de
criar uma bela unidade entre uma melodia criada por Milton e uma letra que só
poderia ser colocada por alguém com quem tivesse um forte vínculo, como seu
amigo Márcio Borges ou seu parceiro letrista Fernando Brant.
Esse aspecto do vínculo entre os componentes do grupo é de
fundamental importância para a sua produção musical. É através dele que o
Clube da Esquina toma a forma de uma massa criativa, na qual todos os
membros se relacionam sem que haja um vínculo estagnado, como o que se
vê muitas vezes em grupos musicais em que as composições acabam por
seguir sempre um mesmo modelo ou roteiro para a sua criação. No caso do
Clube da Esquina, as composições surgem da necessidade que cada um tem
de acrescentar um elemento só seu, que trazido ao grupo, forma uma criação
coletiva, que nada mais é do que a síntese entre as vivências daquelas
pessoas, naquele momento.
Milton Nascimento iniciou sua vida musical tocando contrabaixo em um
trio de jazz na noite de Belo Horizonte. Sua música viria a trazer forte influência
do jazz e da bossa nova. Segundo Vilela (2010), os primeiros discos de Milton
trazem a sonoridade da bossa nova bastante presente. O autor também aponta
que a obra do Clube da Esquina representou uma síntese da música brasileira,
vindo a servir de influência para os músicos que os seguiram. Essa síntese
advém da multiplicidade de influências do grupo, que além do jazz e da bossa
nova, traziam em sua “bagagem” o rock dos Beatles, que surgiu nessa época,
trazendo uma infinidade de novas possibilidades musicais que foram
absorvidas por Milton Nascimento e outros membros do grupo.
Ainda segundo o autor, foi a partir do disco “Milton”, de 1970, que as
canções dos membros do Clube da Esquina passaram a adquirir uma
identidade sonora própria, trazendo instrumentações mais pesadas,
15
anteriormente não utilizadas por Milton Nascimento. Além disso, segundo o
autor, um dos elementos que consolidou a identidade do grupo foi a utilização
de harmonias originais, assim como a gravação, de um modo diferenciado, de
alguns instrumentos como a percussão, que no trabalho do grupo adquiria uma
evidência que não se costumava dar a ela. O Violão, do mesmo modo, é
utilizado de maneira harmônico-percussiva, enquanto o falsete da voz não é
utilizado apenas como alcance para notas que a voz normal não chega, mas
sim como escolha timbrística.
Ainda no livro “Os Sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da
Esquina” (2010), Márcio Borges traça o percurso que esse grupo de artistas
desenha ao longo de sua história, deixando claro que o grupo tem como
elemento original e único, um processo de criação bastante característico, que
se dá através de uma vinculação profunda entre os artistas, sua história de vida
e o momento que viviam. Com a ascensão da ditadura, muitos membros do
grupo viram amigos ou conhecidos desaparecerem e serem mortos pela
repressão. Milton Nascimento, ao longo de sua carreira, teve sua produção
musical censurada, tendo que modificar algumas músicas letradas,
transformando-as em instrumentais. De acordo com a descrição de Márcio
Borges, esse tipo de acontecimento contribuía para que a produção do grupo
tomasse um caráter de expressão daquilo que era oprimido, como único meio,
muitas vezes, de posicionar-se frente a uma realidade opressora.
Sensibilizados com esse contexto, foram compostas músicas como “Fé cega,
Faca amolada” de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, que trazia uma letra
que, ao ser cantada, era tomada como um modo de reagir à opressão. Abaixo
segue um trecho:
16
Além de dividir uma realidade externa que demandava posicionamento,
os participantes do grupo possuíam uma vinculação que advinha da amizade
profunda entre aqueles que compunham as parcerias mais sólidas, como
Milton Nascimento com Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos.
Algumas parcerias estabeleciam-se por uma fluente afinidade musical entre
alguns dos participantes, como no caso da parceria entre Milton Nascimento e
Lô Borges.
Segundo Nunes (2005), a identidade sonora do grupo só pode ser vista
do ponto de vista do coletivo, havendo forte vinculação entre composições e
arranjos. Segundo a autora, a participação de músicos distantes do grupo, ou
seja, com pouca vinculação a ele, acabaria por descaracterizá-lo.
O álbum “Clube da Esquina”, de 1972, foi composto no auge desse
momento histórico da ditadura brasileira e também no auge da vinculação
artística entre os participantes do grupo. Segundo Márcio Borges, o álbum
duplo continha várias músicas que faziam referência à estrada e a viagens,
como é o caso da música “Cais”, de autoria de Milton Nascimento e Ronaldo
Bastos. Inicialmente, o álbum foi rechaçado pelos críticos. A temporada de
shows de lançamento foi um completo fracasso, levando inclusive alguns
participantes do grupo a “surtarem” no palco, devido à pressão a que estavam
sujeitos da parte dos críticos. No entanto, com a ascensão da carreira de Milton
Nascimento nos anos que se seguiram, houve uma ressignificação pelos
próprios críticos do álbum, que passou a ser visto como de extrema
importância para a música brasileira, considerando que trazia em suas faixas
uma mistura de influências bastante completa, com vertentes do rock dos
Beatles, jazz, música regional, entre outras. O disco traz entre seus principais
sucessos, as músicas “Tudo o que você podia ser”, “Um Girassol da Cor de
Seu Cabelo”, “Cais”, “Trem Azul”. A letra da primeira música mencionada
explicita as referências a viagens:
17
Sei um segredo você tem medo
Só pensa agora em voltar
Não fala mais na bota e do anel de Zapata
Tudo que você devia ser sem medo
18
Capítulo 2-Música e Psicanálise
“Ao cantar, tocar, compor e ouvir música (s), os pacientes puderam expressar
sentimentos que, muitas vezes, tornar-se-iam difíceis de serem anunciados pelo verbal.
Assim, através das experiências de Re-criação Musical e Composição Musical,
principalmente, a música foi utilizada como canal de comunicação e expressão de conteúdos
internos e/ou emergenciais de maneira, talvez, menos invasiva, auxiliando de forma efetiva o
enfrentamento do estresse e/ou das situações emergenciais/alarmantes.” (p.4)
19
Desse modo, é possível perceber que a relação entre música e
psicanálise ocorre quando consideramos que ambas acabam por ter uma
função “reveladora” de aspectos que fogem da linguagem verbal, que
ultrapassam a racionalidade da mente. Através delas, podemos alcançar, ainda
que muitas vezes superficialmente (principalmente no caso da música),
elementos inconscientes, permitindo que entremos em contato com o que há
de mais humano em nós.
Outro ponto em comum pode ser identificado ao tomarmos uma música
com letra. Esse tipo de música engloba em seus elementos a linguagem verbal,
o discurso, o mesmo que a psicanálise utiliza como objeto de análise. A
linguagem verbal na música, ao combinar-se com os elementos sonoros e as
percepções sensoriais, tem um enorme potencial de “tocar” o ouvinte, visto que
a mensagem presente na letra se associa a outros elementos musicais que
dialogam com essa mensagem.
Do mesmo modo, a psicanálise possui essa capacidade grande de
“tocar” o indivíduo através da elucidação de elementos por ele desconhecidos,
permitindo que as mensagens do inconsciente possam ser compreendidas pelo
paciente, apresentando-lhe a possibilidade de realizar mudanças em sua vida,
para que esta se aproxime mais de sua essência.
Outra aproximação importante entre as duas áreas se dá ao
considerarmos que as duas experiências (analítica e musical) acessam
conteúdos inconscientes presentes na psique humana. Segundo Sandler
(2000):
20
compreensibilidade. Não me refiro a entendimentos, mas sim à "barreira de contato" entre
consciente e inconsciente, e a possibilidade do livre trânsito entre os dois, por essa "barreira"
que também é, paradoxalmente, "contato”.” (Sandler, 2000, p.6).
21
não pode deixar indif erente o psicanalista, a quem lev a a vislumbrar a
prof undidade dos elementos psíquicos desvelados.” (Kauffman, 1996, p.2).
22
aliança entre essas duas esferas que daria origem a uma potente forma de
expressão humana.).
Vale ressaltar que há poucos trabalhos que tratam do diálogo entre
psicanálise e música, ainda que haja um campo bastante vasto de
possibilidades de estabelecer conexões entre as duas áreas.
23
Capítulo 3- Análise da música
24
“Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar”
25
Ainda sobre isso, vale ressaltar a importância da relação com o outro na
busca pelo desejo, levando em conta que, com a abertura para o outro, o
indivíduo é convidado a pensar a sua realidade de outra maneira, o que pode
permitir que ocorram mudanças importantes no funcionamento de sua psique.
Através de uma liberação interior, o indivíduo convida o outro a acompanha-lo
na busca, o que se oporia a uma satisfação radicalmente narcísica.
Nesse trecho, o eu-lírico tem mais clareza de si e de sua organização,
através da qual se torna possível “partir” rumo à realização dos desejos. O
processo de maturação desse sujeito está se consolidando, representado pelo
“saveiro” no verso: “E um saveiro pronto pra partir”.
Nos últimos dois versos, o eu-lírico, maduro e consciente de si, dá início
à busca pelos seus desejos. No momento certo, ele se “lança” do cais por ele
inventado. Por seus próprios meios, torna-se possível lançar mão dessa busca:
“Invento o cais
E sei a vez de me lançar”
26
Isso ocorre após o período de auto maturação que é representado pelo
primeiro momento musical, caracterizado pela constância rítmica, harmônica e
melódica. No segundo momento, a música apresenta um desenvolvimento
mais livre, com poucos elementos, no qual o eu-lírico não mais se pronuncia.
Visto isso, podemos considerar que, a partir do último verso e com a
parte final instrumental, é representado o colocar-se em movimento do sujeito,
em um novo momento de sua vida, no qual está mais apropriado de si.
A música termina em “fade out”, o que pode indicar que a busca pelos
desejos é algo que dura por toda a vida, considerando que não é possível
realizar-se todos os desejos. Sempre surgirão novos desejos para pôr o sujeito
em movimento, o que faz parte da condição humana.
Para concluir, é possível perceber que o eu-lírico reconhece as
dificuldades que encontrará ao longo do processo, no entanto tem como
perspectiva tornar-se dono dessas dificuldades, podendo utilizá-las como motor
para o seu movimento.
Cabe, neste momento, caracterizar alguns conceitos psicanalíticos que
puderam ser identificados através da análise realizada neste trabalho.
Um termo de grande importância é a palavra “invento”, presente na
maior parte da letra. O conceito de invenção pode ser considerado pela
psicanálise como mais uma das decorrências do trabalho analítico. Segundo
Czermak (2005), o prazer estaria presente nos sintomas apresentados pelo
paciente, desde o início do processo, considerando que há uma relação destes
com as pulsões.
Desse modo, através do processo interpretativo, a parte desprazerosa
do sintoma dá lugar à parte prazerosa, ligada à satisfação pulsional que ocorre
através de fantasias. É a partir dessa libido restante após a interpretação e
ressignificação dos sintomas que surgiria a capacidade criativa do indivíduo.
Ainda segundo a autora, há, nesse momento, uma mudança de papel do
sujeito que passa da posição de objeto do gozo do outro (na fantasia) para a
posição de sujeito, que também obtém prazer do outro (realidade). Para ela, a
criação (pensamento-ação) estaria estritamente ligada aos desejos:
27
“Podemos situar estas formulações em termos da criação de um pensamento-ação
estritamente ligado ao desejo e à implicação do sujeito, que é ao mesmo tempo sujeito do
conhecimento e sujeito do desejo. Trata-se de inventar modos de existência ou possibilidades
de vida que não cessam de se recriarem como novos, sendo esta atividade própria dos fluxos
desejantes a partir da exterioridade das forças existentes e suas relações, entendendo o
campo do real como o campo das puras virtualidades.” (p.119)
28
se colocando em movimento, o qual entra no lugar da estagnação implicada na
repetição de comportamentos.
É através da elucidação para o sujeito das questões comuns a todos os
seus sintomas, resultante de um trabalho interpretativo do analista, que se faz
possível uma reorganização e uma ressignificação de sua vida mental,
proporcionando-lhe a possibilidade de um funcionamento menos carregado de
sofrimento. A elaboração permite que o sujeito encontre um novo lugar dentro
de si, onde ele pode conviver melhor com suas questões ou conflitos.
Sob este viés, o conceito de invenção ou criação não se restringiria
apenas a indivíduos artistas. Sobre isto, Biazus e Cezne (2010) escrevem:
“(...) a criação, o fazer criador não está limitado somente às artes plásticas, à literatura,
à música, mas sim a qualquer fazer que se utiliza do que há de mais singular no sujeito, o seu
Inconsciente, aquilo que retrata a sua individualidade. Assim, não existe um dom especial para
tal acontecimento, o artista é simplesmente aquele que sabe utilizar-se do seu impulso criativo,
que reconhece a sua singularidade e que se manifesta seja através de uma pintura, de um
livro, da elaboração de um prato de comida, da invenção de uma brincadeira, da confecção de
um vestido. O que está em jogo aqui é submeter-se ao desconhecido, fugir do mesmo, inovar e
para isso, colocar-se à prova. Pois, a criação exige o reconhecimento de que somos seres em
constante transformação, somos obras abertas que nos construímos e reconstruímos na
interação com o Outro.” (p.68)
29
verbal) comunicar essa elaboração a outros indivíduos, que interpretarão a
obra artística de acordo com sua subjetividade.
A música, nesse sentido, poderia servir como um meio de elaboração,
tanto para o compositor quanto para o intérprete e ouvinte. Estes últimos,
através da junção das diversas formas de expressão em que a música
consiste, podem, ao ouvi-la, pensar de um modo diferente e contemplar novas
possibilidades de ser, percebidas pela interpretação subjetiva do indivíduo. É
neste sentido que a música representa uma potente forma de expressão e
diálogo humano, visto que há uma mensagem elaborada por um indivíduo (o
compositor) que é recebida pelo ouvinte ou intérprete, e desse modo,
interpretada de acordo com a sua subjetividade.
Outro conceito importante identificado na letra da música analisada é o
da solidão. Freud, na obra “O mal-estar na civilização”, discorre sobre o
isolamento, termo através do qual o autor tece considerações a respeito da
solidão.
“Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais
imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade
passível de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude.”
(1976, p.96).
Com essa fala, o pai da psicanálise apresenta uma das formas possíveis
de solidão, na qual o indivíduo utilizaria o afastamento das relações humanas
como via de proteger-se do sofrimento decorrente delas. Seria, desse modo,
um mecanismo de defesa.
Segundo Tanis (2002), Freud associa a solidão, no início de sua obra, à
angústia na vida infantil, nas situações de silêncio e de escuridão:
30
Com isso, o autor explicita a compreensão de Freud de que a solidão
originaria a angústia, proveniente da transformação de um estado de excitação,
que ocorre com a ausência da pessoa amada. Tanis discorre ainda sobre os
diferentes caminhos que a solidão pode tomar segundo Freud:
“Ora, sem pretender esgotar, pelo contrário, abrindo as portas da reflexão, vemos que
solidão, perda e angústia de separação, para Freud, se estendem por um amplo escopo desde
posições narcísicas e fusionais, passando pela perda do objeto amado que pode ora redundar
numa postura melancólica, ora numa experiência fóbica de afastamento de um encontro com o
estranho que evidencia a perda irreparável. Esta leitura já dá suporte a nossa hipótese inicial
que propunha a polissemia da solidão.” (p.105)
“(...) podemos concluir que a solidão tem como pano de fundo as relações entre Eu e o
objeto. Constitui-se tanto como estado quanto como sentimento, num campo no qual o outro
será crucial para a sua compreensão.” (p.116)
31
“Quando as fantasias se tornam exageradamente profusas e poderosas, estão
assentes as condições para desencadeamento da neurose ou da psicose. As fantasias são
também precursoras mentais imediatas dos penosos sintomas que afligem nossos pacientes,
abrindo-se aqui um amplo desvio que conduz à patologia.” (1976, p. 153-154).
32
mental do sujeito, que, no caso, encontra-se “pronto pra partir”, ou seja, em um
estado de maior maturidade, que permite o início de um movimento.
Fica claro sob esse ponto de vista, o potencial comunicativo presente no
“fantasiar” contido em uma produção artística. A ferramenta da fantasia
enriquece muito a compreensão do conteúdo presente na obra por outros
indivíduos. Com as alegorias e metáforas, é possível que ocorra uma
compreensão daquele conteúdo que extrapole o campo do racional,
estendendo-se a uma compreensão emocional que, em conjunto com a
primeira, permite que o indivíduo se envolva de forma intensa com a
mensagem passada pelo artista em sua obra.
Podemos ainda, apontar outras letras de música da obra do Clube da
Esquina nas quais é possível identificar temas e conceitos semelhantes aos
apresentados na análise aqui feita. Na letra da música “Saídas e Bandeiras
nº1” (Milton Nascimento e Fernando Brant), também do disco “Clube da
Esquina”, de 1972, é possível perceber um percurso semelhante ao traçado na
letra da música “Cais”:
33
Há, desse modo, um jogo presente na letra, no qual acontece um convite
aos interlocutores para que estes pensem em recursos para superar a crise
que se instaurou:
34
Eh! Minha cidade
Aldeia morta, anel de ouro, meu amor
Na beira da vida
A gente torna a se encontrar só
Casa iluminada
Portão de ferro, cadeado, coração
E eu reconquistado
Vou passeando, passeando e morrer
Perto de seus olhos
Anel de ouro, aniversário, meu amor
Em minha cidade
A gente aprende a viver só
35
“Aldeia morta, anel de ouro, meu amor
Na beira da vida
A gente torna a se encontrar só”
“E eu reconquistado
Vou passeando, passeando e morrer”
“E eu reconquistado
Vou caminhando, caminhando e morrer”
36
Com a ideia de “peregrinação”, o movimento estaria dotado tanto de
motivações internas quanto externas, não sendo, portanto, vivido apenas de
forma solitária. Ao mesmo tempo em que ocorreria um movimento interno, este
se daria na realidade externa, que é capaz de ser compartilhada.
Esse tema, que unifica a obra do grupo, nos remete à sua história que
foi marcada por uma intensa movimentação dos artistas que o constituíam, que
iam se apresentar em diversos lugares, onde houvesse alguém que os
quisesse ouvir. Esse caminhar do artista, que visa chegar onde o povo está, é
um elemento característico da cultura mineira, vivido intensamente pelos
membros do Clube da Esquina, que transitaram por diversos festivais, shows,
eventos, nos quais lhes era possível compartilhar o caminho que traçavam,
com o povo.
Nos trechos em negrito a seguir, essa unidade constituinte da obra se
faz presente:
37
Na canção “O Trem Azul” (Lô Borges e Ronaldo Bastos), a ideia de
movimento e da imagem de um viajante fica clara na figura do trem:
38
O meu nome é nuvem
Ventania, flor de vento,
Eu danço com você o que você dançar
39
Com a análise da música “Cais”, torna-se evidente a riqueza da
abordagem das questões humanas na letra de uma música. Essa abordagem é
diferenciada, ao levar-se em conta o diálogo estabelecido entre a linguagem
verbal e a musical, através do qual o ouvinte é levado a ter uma relação mais
intensa com o conteúdo da letra, considerando que a linguagem musical
acessaria conteúdos de sua memória e ofereceria vivências sensoriais a ele.
Na música em questão, esse diálogo ocorre através da constância
musical da primeira parte, a qual pôde ser interpretada como o momento de
autoconhecimento, de instrumentalização para a busca do desejo. Não há
nesse momento, movimento, assim como não ocorrem novos acontecimentos
musicais. Ao mesmo tempo, a música está sendo executada com elementos
musicais bastante presentes. Essa escolha de arranjo pôde ser interpretada
como uma representação de que não há movimento, ou há pouco, no momento
de instrumentalização. Porém, é este que permitirá o movimento que ocorrerá
na parte final da música.
Levando esse raciocínio para o processo de análise, é possível
considerar que o primeiro momento, o da entrada do paciente no processo
analítico, é um momento de pouco movimento, no qual os conflitos e fantasias
começam a se pronunciar para, em um segundo momento, poderem ser
interpretados. Através do processo interpretativo, o indivíduo pode se colocar
em movimento, revendo comportamentos que geram sofrimento,
experimentando novas possibilidades de ser e encontrando lugar dentro de si
para os conflitos que, anteriormente, geravam sintomas.
Visto isso, vale ressaltar o quanto, no contexto do processo de análise,
uma música pode ser de grande valor interpretativo quando trazida pelo
paciente, assim como outras formas de expressão do inconsciente, como os
sonhos, lapsos, atos falhos. Uma determinada música estar presente na mente
do paciente naquele momento, tem um sentido, que é somado aos sentidos de
suas outras formas de expressão no contexto analítico, facilitando a
interpretação, por parte do terapeuta, do sentido comum a todas essas formas,
em uma determinada sessão.
Para Freud, em “O Moisés de Michelangelo”, no entanto, a produção
artística representa um enigma para a compreensão psicanalítica e sabe-se
40
pouco a respeito de sua representação para a psicanálise. O pai da psicanálise
considera que o que prende nossa atenção em uma obra é a atenção do
artista, e sua capacidade de expressar-se por meio de sua produção:
“Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão; o que
ele visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele
produziu o ímpeto de criar.” (1974, p.254)
41
Considerações Finais
42
fantasias, permitindo, que “conversemos” com uma parte de nós pouco
acessada no dia-a-dia, mas que nos constitui como seres humanos.
43
Referências Bibliográficas
44
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46