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Repertório, Salvador, nº 21, p.65-83, 2013.

O PERCURSO DA MÚSICA
OCIDENTAL E SUA
APROXIMAÇÃO COM A
ENCENAÇÃO

Ive Novaes Luna1

RESUMO: A fim de refletir sobre a função dramatúrgi- ABSTRACT: In order to think about the dramatic
ca da música na cena teatral contemporânea, esse artigo function of music in contemporary theatrical scene, the
faz referência ao trajeto histórico da música ocidental present article regards the historical course of western
cujo desenvolvimento esteve estreitamente relacionado music, which development was narrowly related with
com a ideia de dramaturgia. O estudo aqui apresentado the idea of dramaturgy. The present study clarifies in
esclarece de que modo a operação dramatúrgica da mú- which way the dramatic function of music had a fun-
sica foi uma de suas funções fundamentais, cumprindo damental function on society fulfilling several ritual ro-
frente à sociedade diversos papeis de ritual, atuando les, approaching humans and their divinities – by con-
como símbolo de aproximação do homem com suas veying both functions of oracle and communication -,
divindades – recebendo neste trânsito as funções de and as a constraining element, blending together with
oráculo e de comunicação –, e elemento de coerção, the staging. In this sense, it is noted the use of music
fusionando-se com a encenação. Neste sentido, obser- as an instrument in different cultural and political do-
va-se sua utilização como instrumentos em diferentes mination, implemented by the State and Church. This
práticas de dominação cultural e política, implemen- article also exposes that since the first rupture of mu-
tadas pelo Estado e pela Igreja. O artigo mostra ain- sic, when it began to be distinguished between profane
da que, na contramão desta segunda operação, houve, and liturgical, the dominated classes had made a cultural
desde a primeira cisão da música – quando esta passou reaction. However, the music and the scene produced
a distinguir-se entre profana e litúrgica –, uma reação cul- by its social stratum were not much classified for those
tural das classes dominadas. Porém, a música e a cena that during a long time wrote the history of western
produzida por este estrato social foram pouco cataloga- civilization. Thus, we are able to notice that the lack of
das por aqueles que durante muito tempo escreveram information about such classification limits our com-
a história da civilização ocidental. Consequentemente prehension of dramatic musical dialogues that could
poderemos notar, através dessa pesquisa, que a carência tell us more about social and political tensions.
desse registro limita nossa compreensão dos diálogos
dramatúrgicos musicais que nos falariam das tensões KEYWORDS: Music. Dramaturgy. Coercion.
sociais e políticas.

PALAVRAS-CHAVE: Música. Dramaturgia. Coerção.

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação do Centro de


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Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina


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1. A função mágica e o ritual na pré-histó- Em toda a prática pictórica e gráfica desapare-


ria da música cem quase por completo as preocupações com
uma fiel reprodução da realidade. Tudo leva a
A função mágica da música, encontrada já na crer que se tratava de manifestações que já não
Era Paleolítica, pretendia uma comunicação entre serviam para reproduzir o objeto, mas para refe-
rir ao mesmo e, com isso, a arte acaba por adqui-
o homem e o mundo que o circundava, no sentido
rir um caráter eminentemente simbólico.
de aproximá-lo até tornar-se o próprio objeto cele-
brado, a ponto de garantir poder sobre ele. Nesta
Ainda acompanhando o estudo de Schurmann,
função, Ernest Schurmann (1990, p. 20) classifica a
observa-se que diferente do pensamento do ho-
música como um instrumento de trabalho mágico, pois
mem paleolítico, que pretendia através das mani-
encontra-se desvinculada da função de comunica-
festações sonoras e pictóricas tornar-se o próprio
ção. Durante estas celebrações, a música muitas ve-
objeto celebrado (1), na barbárie (2) este passa a
zes acompanhava as representações pictóricas de
pretender, através de sortilégios e de conjurações,
animais. Estudos arqueoantropológicos sugerem
“seduzir os espíritos para que o auxiliassem dando
que a produção de um desenho de um cavalo seria
soluções aos problemas surgidos no seu trabalho
acompanhada por sons que imitavam seu relinchar,
e contribuindo, dessa forma, para o processo de
constituindo um objeto cultural complexo e plu-
progressiva conquista sobre a natureza” (1990,
rifuncional. Desta forma, teriam sido construídas
p.25). Considerando a pesquisa comparativa se
práticas que articulavam múltiplos instrumentos
poderia notar que nestes ritos, a prática da sonora
expressivos que permitiam que os homens se tor-
incumbia-se de convocar os espíritos, tanto para
nassem simbolicamente os animais representados.
garantir-lhes poder sobre a natureza, quanto para a
Schurmam afirma que nestas celebrações a música
manutenção daquela estrutura social.
funcionava como objeto mágico e não como ins-
É importante enfatizar que até o Paleolítico não
trumento de comunicação, pelo fato de que, neste
encontramos uma atividade exclusivamente mu-
lugar, não atuava como objeto mediador entre um
sical; a música estava sempre vinculada a modos
referente celebrado (a pintura do animal) e uma
de comunicações relacionados com as práticas de
divindade. Acontecia que, através dos sons e dos
contar histórias, com rituais e mesmo com práticas
gestos o celebrante se tornava o próprio animal ce-
lúdicas com finalidade de proporcionar vantagens
lebrado, era transformado, ele mesmo, em outro,
nos jogos (Idem, p. 28). Durante a fase superior
pelo uso da função mágica da música. Notamos
da barbárie, poetas-músicos conhecidos por bar-
que, assim como as pinturas, a manifestação so-
dos, escaldos e rapsódios passaram a louvar, através
nora seria bastante naturalista, tratando de imitar
de suas poesias cantadas ou declamadas, a memó-
os sons dos animais celebrados. Schurmann, no
ria de deuses e heróis. Considerando que foi “no
estudo que desenvolve em seu livro A música como
âmbito de tais narrativas que tiveram origem não
linguagem, chama atenção para o fato de que talvez
apenas uma grande variedade de mitos e lendas,
fosse mais adequado tratar tais sonoridades e pin-
mas também os grandes poemas épicos, como a
turas como reprodução, e não como representação,
Ilíada e a Odisseia” (Idem, ibidem). A música cum-
uma vez que para uma representação “seria neces-
pria aqui um lugar acessório, principalmente como
sária uma consciência relativamente desenvolvida
suporte ao poema. E ainda quando tais poemas su-
da distinção entre o objeto e sua imagem”, o que
pusessem uma interpretação musical determinada
não acontecia naquele momento. Foi na era Ne-
de antemão (poema lírico e trágico, por exemplo),
olítica que a reprodução, paulatinamente, ganhou
isso se manifestaria mais como um modo de recita-
características de representação, a partir disso se
ção, como afirma Candé (1994), do que como uma
poderia considerar que a arte adquiriu um caráter
composição musical justaposta ao texto.
simbólico, como afirma Schurmann (1990, p. 21):

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2. Música modal: domínio dos afetos. Ora, é natural que esta exigência haveria de im-
plicar em que a estrutura musical se tornasse
Com a paulatina transformação das aldeias bár- apropriada para favorecer substancialmente a
baras em Estados, e com a irrupção do cristianis- competência social dos atos de fala verbais exis-
mo, a música ritual é tomada como modelo pelos tentes nos respectivos textos e, na medida do ne-
cessário, influir sobre os mesmos para que, a ní-
estamentos sociais dominantes e transformada em
vel de atos locutórios, viessem a funcionar como
instrumento social associado a diferentes práticas atos de persuadir (Idem, p.38).
de controle(3). No seio desse processo de espe-
cialização, no qual a relação com práticas culturais Por conta de sua função predominantemente
modificadas pela estratificação dos poderes, deu- persuasiva, a música tornou-se fundamental na
se a primeira cisão estrutural no campo da música. educação do homem. O músico “passa a ser muito
Revela-se, a partir de então, a polarização entre um mais o depositário de uma ciência e de uma técnica
modelo atribuído à cultura popular, e outro que iden- do que de um vago gênio ou da inspiração das mu-
tificaria as classes sociais dominantes. Mas, isso não sas” (Candé,1994, p.70). O poeta-músico, conhe-
se deu de forma livre, se não que foi configurado cedor do caráter de cada modo, ficava incumbido
a partir de tensões e de um norma “rigidamente de conduzir o povo ao conhecimento e à verdade.
regulamentada e imposta a todos os cidadãos, fi- José Miguel Wisnik (1989, p. 75) lembra-nos que:
cando toda tendência inovadora, para processos
que hoje chamaríamos de liberdade de criação ou cria- Nas sociedades pré-modernas, um modo não é
tividade, sujeita a uma severa marginalização (Schur- apenas um conjunto de notas, mas uma estrutura
mann, 1990, p. 35). de recorrência sonora ritualizada por um uso. As
No caso da música, a cultura oficial do Estado notas reunidas na escala são fetichizadas como
se estruturou a partir dos modelos melódicos ritu- talismãs dotados de certos poderes psicossomáti-
alísticos da barbárie – os quais tinham, até então, cos, ou, em outros termos, como manifestação de
uma proveniência divina –, a base para os nomoi uma eficácia simbólica (dada pela possibilidade de
(4). É a partir desses modos fixos que se desen- detonarem diferentes disposições afetivas: sensu-
volvem, no período clássico da cultura grega, uma ais, bélicas, contemplativas, eufórica ou outras).
espécie de texto verbal recitado em observância a
uma estrutura melódica, o que hoje denominamos Damon de Atenas (c. 500 a.C. a ?), influenciado
como canto monódico e que, segundo Schurmann, pela doutrina do ethos, estrutura a teoria dos mo-
“durante um longo tempo, constituiria a princi- dos e dos tons, no qual propõe o ensino da música
pal manifestação musical da cultura dominante” como instrumento de progresso moral através da
(Idem, p. 39), pois muitos dos princípios nos quais mímesis, sugerindo que a arte é imitação, e a alma
se baseiam continuam válidos para grande parte imita, por sua vez, os simulacros da arte (Candé,
da música ocidental praticada até hoje. Na base da 1994, p. 73). Segundo a teoria de Damon, os mo-
monodia, como na base de todo canto, está o texto dos imitariam os costumes e o regime político de
verbal. Este texto é conduzido por uma melodia seu país de origem, possuindo, cada um deles, um
que, concebida como um movimento, tem, por caráter próprio, um ethos, de qualidade mimética e
sua vez, sua trajetória descrita por uma voz. Esta potencialidade ética capaz de gerar virtude e ânimo
voz acabava por assumir o caráter locutório que, no corpo e no espírito.
veiculando a linguagem verbal através de procedi- Os estudos sobre a música helênica baseiam-
mentos musicais, atuavam sobre os atos de fala até se principalmente no estudo de Pitágoras, o qual
transmutá-los em um ato de persuasão. Os valores identificou o caráter numérico e harmônico dos
éticos atribuídos às formas fixas dos nomoi corres- intervalos musicais com o auxílio de um instru-
pondiam às necessidades de manutenção da nova mento de cordas, o monocórdio, medindo o com-
organização social, da qual o Estado era incumbido primento de sua corda e calculando as proporções
de garantir. numéricas entre os intervalos (distância entre duas
notas): quando uma corda vibra em uma frequên-
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cia fazendo soar um som, outras frequências, múl- cial, pois geraria tão somente ruídos e distorções,
tiplas desta primeira, soam internamente e, muito como esclarece Wisnik (Idem, p.102):
embora sejam quase inaudíveis, compõem o corpo
timbrístico do som. Essas notas que soam nestas Por isso mesmo ela é um elemento decisivo no
determinadas frequências internas, por fazerem plano político-pedagógico, e a metafísica de que
parte da escala da nota que lhes dá origem, formam está investida corresponde a uma ética: a har-
sua série harmônica e, por isso, são denominadas monia escalar contém um caráter cujo alcance
mimético é irradiador; trata-se de triar as esca-
harmônico. As frequências harmônicas respeitam
las de maneira a fazer com que aquelas que são
sempre a mesma progressão, ou seja, soam sem- imbuídas de um caráter “elevado” e cívico pre-
pre na mesma ordem: oitava, quinta, quarta, terça valeçam sobre aquelas outras que, consideradas
maior e terça menor. José Miguel Wisnik, em seu dissolventes e pouco viris, não contribuem posi-
livro O som e o sentido comenta (1989, p. 62): tivamente para a formação do cidadão.

A descoberta sobre essa ordem numérica ine- Somada à sua eficiência como elemento de ma-
rente ao som teve largas consequências para a nutenção da ordem simbólica, notamos nesta mú-
edificação da metafísica ocidental, pois a analo-
sica uma função dramatúrgica que não escaparia ao
gia entre a sensação do som e a sua numerologia
servilismo. Levando em consideração o fato de que
implícita contribui fortemente para a formulação
de um universo constituída de esferas analógicas, a música funcionava geralmente como o suporte
de escalas de correspondência em todas as or- de um texto, e de que havia o interesse particu-
dens, extensivas por exemplo às relações aritmé- lar do Estado em produzi-lo, tomando-o, também,
tica e a geometria, as disciplinas básicas de uma como modelo para a manutenção da estrutura vi-
cosmologia de larga duração e influência, pois, gente, podemos reconhecer esta música como uma
já citadas em Platão, atravessarão juntas a Idade produção funcional, formando, juntamente com
Média na forma de quadrivium, vigorando até o este texto, uma dramaturgia coerciva.
Renascimento). Deriva daí a ideia, também de Segundo afirma Schurmann, foi como meio de
larga influência, de uma música das esferas, ou propaganda do Estado que “o canto monódico foi
seja, a ideia de que as relações entre os astros se-
introduzido nas manifestações teatrais da Antigui-
riam correspondentes à escala musical, e de que
dade grega, onde passaria a exercer uma função
o cosmo tocaria música inteligível, mesmo que
fora da faixa sensível da escuta. de elevada relevância” (Schurmann, 1990, p. 49).
Esta prática teria encontrado sua materialização
É relevante para a pesquisa das funções da mú- na tragédia e na comédia, onde o canto monódi-
sica na doutrina dos harmônicos de Pitágoras o fato co, entoado pelo coro, e sempre composto em um
de seus estudos terem funcionado como elemento modo específico, tinha como intenção promover
ideológico que possibilitou a construção de uma uma ética ou um afeto. Ainda que tenha funciona-
organização social que supunha um meio “natu- do como um ato persuasivo em grande parte das
ral” de manutenção da ordem vigente. A ideia dos manifestações teatrais, o coro acabou por tornar-
harmônicos gerou um modelo musical e cultural que se, como afirma Lívio Tragtenberg, “uma espécie
prezava pela permanência, sem acidentes nem des- de totem e símbolo da música dramática” (1999, p.
vios (transformações) (Idem, p.101), quando supõe 17), tendo sido o teatro grego, assim como a Poética
que a escala musical obedece à uma ordem natural de Aristóteles, “a base fundante da música de cena
e que não encontra outra possibilidade senão a de ocidental” (Idem, Ibidem).
mantê-la, tornando-se, assim, um equalizador so- O fato de que o homem da antiguidade se ca-
cial. Fazia-se fundamental, portanto, a educação do racterizasse mais por práticas coletivas do que
cidadão para o correto uso (dos efeitos e da eficá- individuais, suas manifestações culturais eram
cia) da música, a fim de que se garantisse a produ- fundamentalmente sociais. Os deuses gregos não
ção da boa melodia, provinda de escalas de caráter prestavam auxílio ao indivíduo, senão à comunida-
elevado; o contrário poria em risco a harmonia so- de e ao Estado. Neste espaço a música esteve rela-
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cionada à palavra socializada, e não há registros de suas mensagens se estruturarem de forma essen-
uma música instrumental solista. Como se unia à cialmente temporal, tratando-se de estruturas que
poesia e à dança, a música encontrava, internamen- basicamente pressupõem a sua existência no tem-
te, um texto e uma coreografia. Os gregos deno- po. Sendo assim, é no tempo “que se localizam as
minaram uma unidade, o tempo-primeiro, que es- durações sonoras e que se efetuam as associações
tabelecia para estas três artes um só tempo: o som rítmicas; são as unidades rítmicas que de fato se
mais curto da música estava relacionado à sílaba caracterizam por uma estrutura temporal” (Schur-
breve da poesia e ao gesto mais rápido da dança mann, 1990, p. 49). Esta mesma estrutura, por sua
(Andrade, 1987, p. 21). vez, oferece a possibilidade de, na cena teatral,
A música e sua interpretação estavam estrita- se estabelecer, enquanto temporalidade proposta
mente ligadas à declamação poética. “A escolha de pela sonoridade explícita (e, por vezes, implícita)
um gênero ou de um tom, eventualmente variáveis na encenação, “um jogo construtivo na percepção
quando se executa uma harmonia determinada, é do espectador entre tempo real e tempo musical,
limitada por princípios éticos também conhecidos” que é um feixe concentrado de outras percepções
(Candé, 1994, p. 78). Mário de Andrade, em seu simultâneas” (Tragtenberg, 1999, p. 24). Conside-
livro Pequena história da música, distinguiu a poesia ro que isso oferece a possibilidade de se perceber
em duas fases: lírica e trágica. Foi durante a fase uma trama dramatúrgica, dado que a experiência
lírica (7) que se estabeleceram definitivamente os do tempo vivenciada pelo espectador da cena será
nomoi (como o ditirambo), e do desenvolvimento lido por este como uma fala que nasce da imbrica-
destes provêm o canto coral e a tragédia. Parece ter ção da oferta sonora com a realização no espaço
se estabelecido, desde então, a fina sintonia entre A tragédia é, segundo Aristóteles, a imitação das
as linguagens da música e da cena teatral, utilizan- ações humanas. O filósofo, influenciado pela dou-
do-se ambas, mutuamente, uma da linguagem da trina de Damon – a qual sugere que cada modo e
outra. Abriu-se, então, possibilidades de diálogo e cada tom imitam um caráter e um afeto –, afirma
de complemento que tornaram-se fundamentais que a epopeia, o poema trágico, a comédia, o diti-
como elemento constituinte de formas artísticas rambo e a música vêm a ser, de modo geral, imi-
que atravessam o tempo chegando até nós, e que tações (Aristóteles, p. 31). A estas especificações
incrementam a noção de encenação contemporâ- éticas promovidas pelo coro, Aristóteles soma a
nea. Um dos elementos fundantes desta relação diz sua doutrina da Katharsis:
respeito principalmente às potências que, ausente
em uma, vão se encontradas na outra. Uma delas Trata-se de um método psicoterápico pela ana-
se refere à capacidade de abstração da música que logia, em que a música suscita na alma enferma
tanto faz falta para a produção da intensidade e sentimentos violentos que provocam uma es-
para o tempo da ação, quanto põe em busca, a pró- pécie de crise, favorecendo o retorno ao estado
normal. Aristóteles nota que a Kátharsis não age
pria música, de um subtexto:
sobre a vontade; logo, é preciso compreender
que ela desencadeia uma espécie de desafogo,
se o drama em ato necessita do aparato instru-
de movimento para fora de si (e-moção) (Candé,
mental e “abstrato” da técnica musical para fa-
1994, p. 75).
zer valer a intensidade de expressão e de dire-
ção da ação no tempo, a música, por seu turno,
tem, no teatro, a possibilidade de utilização de Tratando de buscar uma reflexão sobre as ope-
um instrumental intimamente relacionado com rações contemporâneas relacionadas à ideia de Ka-
a procura de um subtexto latente (Seincman e tharis, Marvin Carlson, diz que Aristóteles sustenta
Guinsburg,1992, p. 239). que a Katharsis livraria o espectador das paixões.
Neste sentido, o autor sugere que Katharsis viria
Schurmann informa que os modos de comu- a ser um termo médico, e que, assim, a tragédia
nicação sonoros, como os processos musicais e “atuaria à maneira da medicina homeopática”, pela
a linguagem verbal, caracterizam-se pelo fato de piedade e pelo terror; e que a música, por sua qua-
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lidade catártica, poderia aligeirar e deleitar as almas sensorial primário das manifestações musicais,
extenuantes (Carlson, 1997, p. 16). como constituído essencialmente de uma altura
Mário de Andrade faz a distinção, também em sonora associada a uma duração sonora (Idem, p.
fases, do cristianismo. São elas três fases, e tal sis- 42).
tematização se e baseia em seus aspectos sonoros,
assim divididas: fase monódica (do século I ao X), Assim, um som correspondia à um elemento do
fase polifônica (do século X ao XVII) e a fase har- texto, geralmente a uma sílaba que, na prática do
mônica (XVII ao XX) (Andrade, 1987, p. 73). A canto monódico, vinha determinada pela fonética
primeira fase com início na queda do Império Ro- e pela prosódia. Foi neste sentido que a teoria aca-
mano e no crescente predomínio do Cristianismo bou definindo o som musical como aquele de altura
como eixo da religião na Europa, durante a qual o e duração fixas, e puderam, através deste definição,
poder se trasladou para a Igreja Católica. A cons- distingui-lo do ruído, que não apresentava tais ca-
trução do mundo medieval a partir da dispersão racterísticas, senão indefinições destes dois parâ-
em pequenos núcleos urbanos observou o predo- metros.
mínio do canto monódico. Já avançado a estrutu- No período que vai dos anos 300 a 600, o can-
ração da Igreja Católica como eixo do poder do to monódico assume características bastante dife-
mundo ocidental, este canto monódico foi asso- renciadas em cada região dominada pela cultura
ciado à hegemonia do estamento católico. Durante da civilização romana. Foi por volta de 600 que,
todo este período a música só é destinada ao povo sob o papado de Gregório I, a Igreja finalmente
quando há o intuito de transmitir mensagens edi- conseguiu uma relativa unificação da liturgia, tendo
ficadoras. Observa-se neste período um claro pre- o Canto Gregoriano como a síntese de múltiplas
domínio e controle por parte da Igreja nos assun- tendências contraditórias, incorporando a ele uma
tos relacionados com a produção de arte. Segundo considerável parcela de cultura bárbara (Idem, p.
Candé (1994, p. 82), “os censores romanos, como 54). Ainda assim, em muito a música litúrgica se
os Padres da Igreja, não se privarão de condenar a divergiu desta influência: negando o ritmo recor-
música popular, cujas tradições Gregório Magno se rente e as estruturas simétricas da canção popular,
esforçará por aniquilar”. Esse monopólio da arte imprimindo nesta a ampliação do tempo frásico da
repercute no campo da música relegando às zonas melodia e um movimento extático, que lhe garan-
mais marginais da cultura de toda e qualquer forma tisse distância do caráter dinâmico do transe.
musical que faça lembrar os modelos não cristãos.
Por outro lado, as referências a músicas que pudes- O canto gregoriano, tal como é concebido pela
teoria teológica, é significante musical oferecido
sem ser relacionadas com a convocação de forças
ao significado litúrgico, na medida (e só na me-
consideradas pagãs, implicaria a condição de fora dida) em que se deixa regular pela imitação da
da lei. A homogeneidade buscada com esse padrão ordem escalar do cosmo10, isto é, modo imutável
musical define no campo cultural daquele período despido de todo o ruído e ritmo pulsante, som
uma norma que era dominada pela altura e pela em estado de máxima sublimação (Wisnik, 1989,
duração do som. Estes dois parâmetros(8) torna- p. 106).
ram-se essenciais na construção de qualquer decla-
mação musical, tendo sido classificadas como os A unificação da monodia litúrgica ocorrera
parâmetros especificamente musicais dos sons. A duração concomitantemente com o início do feudalismo. É
constitui a rítmica; e a altura, por sua vez, constitui a também neste momento que se firma a oposição
mélica(9) (rithmos e melos) (Schurmann, 1990, p. 41). entre a cultura dominante e a cultura popular, que,
Em consequência disso, os termos altura sonora e antes “encoberta pela oposição entre cultura urbana
duração sonora adquirem o significado, respectiva- e rural, viria agora tomar a forma que se tornaria ca-
mente, de som no espaço e som no tempo. racterística para a idade média, ou seja, a forma de
oposição entre cultura eclesiástica e profana” (Schur-
A cultura da civilização europeia, portanto, pas- mann, 1990, p. 56).
saria a considerar o som, enquanto elemento Durante o período que vai da Antiguidade até os
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oito ou dez primeiros séculos da cristandade, a mú- a música litúrgica acabou por incorporar “os ba-
sica teve seu exercício delegado exclusivamente aos rulhos animados das músicas populares, suas per-
músicos profissionais. O público, conhecedor des- cussões, cantos e danças, que nunca se calaram na
ta música, ainda que não a produzisse, tinha aces- história humana” (Wisnik, 1989, p. 41). É impor-
so a ela por ocasião dos rituais religiosos e sociais, tante lembrar que esta música permaneceu como
e se vinculava a ela por meio de princípios éticos. modelo, e que foi a partir dela que se originou toda
Enquanto este ainda a compreendia, “conserva(va) a música ocidental. Pelo próprio fato de ter abolido
seu papel ativo, participando dos cantos de litur- os instrumentos rítmicos-percussivos, pondo sua
gia ou das celebrações das festas tradicionais; mas rítmica à serviço da pronuncia melódica do texto
permane(cia) musicalmente passivo quando o can- litúrgico, “o Canto Gregoriano acaba por desviar
to se torna(va) sutil e complicado, sob a influência a música modal do domínio do pulso para o pre-
dos profissionais” (Candé, 1994, p. 27/28). domínio das alturas” (Idem, p. 42), inaugurando,
deste modo, como afirma Wisnik
A música não é mais a alma da civilização, como
na antiguidade; deixou até de ser um entreteni- o ciclo da música ocidental moderna, preparando
mento. Tornou-se monopólio de Roma e dos o campo da música tonal, que irá explorar ampla-
mosteiros, que possuem sozinhos sua ciência mente, já com envergadura instrumental e com
e que a conduzem a um novo classicismo. Ela outras complexidades discursivas, as possibilida-
pode tornar-se um meio de governo, donde a des de desenvolvimento de uma organização do
ambiciosa decisão de impor a toda a cristandade campo das alturas em que a melodia vem para o
ocidental, sem o auxílio da notação, o canto que primeiro plano (Idem, Ibidem).
se pratica em Roma (Idem, p. 190).
Durante a primeira fase do cristianismo, a mo-
Esse contexto de controle e centralização da nodia teve predomínio sobre todas as atividades
produção musical implica perceber uma operação musicais. No entanto, no início do segundo milê-
dramatúrgica que se define claramente como uma nio cristão – segunda fase distinguida por Mário
fala do poder que se distancia do gozo e do jogo. de Andrade – entra na cena da música ocidental
É importante notar que o Canto Gregoriano não a polifonia e, com ela, todas as suas especificida-
foi produzido visando o deleite, mas a função de des. Na música polifônica há a emissão simultânea
dominação. Como afirma Candé, a igreja manteve, de várias melodias, numa superposição de linhas
durante muito tempo, intervenções autoritárias que melódicas, cujas relações são nitidamente determi-
impediram qualquer evolução e evitaram qualquer nadas pela “escolha de uma pluralidade que exige
influência. A música do Canto Gregoriano evitava uma organização estrita, pois introduz relações de
instrumentos acompanhantes, fossem percussivos simultaneidade (vertical) numa dinâmica da dura-
ou fossem de qualquer timbre, e era cantada em ção (horizontal)” (Candé, 1994, p. 79).
uníssono, geralmente por vozes masculinas. Deste Desde que instaurou-se na história da música
modo, segundo Schurmann, enganam-se aqueles ocidental, a polifonia tratou de abrir um vasto cam-
que atualmente se esforçam para executá-lo res- po de possibilidades criativas relacionadas com a
saltando sua beleza, pois, “na verdade, esta música nova técnica desta composição, que veio propor,
fora concebida nunca para ser bela, mas sempre como já dito acima, um diálogo vertical com me-
para ser eficaz no desempenho da sua função so- lodias simultâneas. Durante toda a Idade Média a
cial” (Schurmann, 1990, p. 63). prática polifônica se desenvolveu tanto na liturgia
quanto na música popular, havendo, inclusive, in-
3.3 – Música tonal: o predomínio das alturas. tersecções entre elas.
A partir do século X, a música dita “erudita”
Embora idealizada como uma música essencial- torna-se cada vez mais complexa e acaba por resu-
mente monótona, a fim de que se evitasse qualquer mir-se quase exclusivamente ao consumo da elite
tipo de ruído, houveram momentos da história que social e cultural. Como consequência da aquisição
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de técnicas mais refinadas apareceram as primeiras a unidade e a inteligibilidade do texto.


estrelas internacionais: travadores e polifonistas da Ao longo dos séculos XIII e XIV, foram prati-
Renascença. O povo aos poucos se afasta desta mú- cadas na Itália representações dramáticas, as Sacre
sica rebuscada e tecnicamente complexa que passa a Rappresentazioni, que foram precursoras do oratório
ouvir somente nas igrejas e nas antecâmaras. Desta e da ópera. Inicialmente representadas nas igrejas,
forma se produziu um movimento segundo o qual ao longo do século XV foram se transferindo para
os setores populares “Cultiva(ram) outra [música], outros espaços, como as praças em frente às igre-
transmitida oralmente e adaptada a suas necessi- jas, e acabaram por incorporar, por este motivo, ar-
dades” (Idem, p. 29). Podemos perceber então a tistas da tradição popular, suas danças, figurinos e
produção de tensão em direção à produção de uma linguagem dramática (Tragtenberg, 1990, p. 18).
musicalidade que fale de suas próprias condições de Paralelos à prática musical litúrgica, os eventos
vida como alternativa à fala hegemônica da Igre- artísticos que aconteciam fora dos domínios da
ja. Certamente, estamos nos referindo a processos igreja apresentavam formas de poesia, dança e dra-
subterrâneos e subalternos, mas que sustentam a maturgia. No teatro se desenvolvia o mimo, uma es-
criação de tecidos persistentes. pécie de narrativa que conta uma história por meio
Apesar de os primeiros registros da música po- de gestos e que eram apresentadas por trupes am-
lifônica se referirem ao organum, Schrumann infor- bulantes (Pavis, 1999, p. 245). As canções entoadas
ma que naquela época, recém saída do primeiro nestas representações eram muito apreciadas pelo
milênio da era cristã, “as instituições da Igreja eram público. Esta forma de representação, porém, por
as únicas que se encontravam em condições de do- não trazer elementos que possibilitasse sua incor-
cumentar quaisquer manifestações culturais, sejam poração pela Igreja, acabou por ser severamente
elas eclesiásticas ou profanas” (Schurmann, 1990, repreendida, tendo sida advertia aos cristãos como
p. 65), o que leva a pensar que novamente esta prá- músicas perigosas, que visavam somente o entre-
tica tenha primeiro acontecido na esfera popular, e tenimento.
que tenha sido, mais tarde, incorporada à música li- Uma prática na qual a igreja investiu mais no
túrgica. Tudo indica que a cultura popular da idade que se refere aos elementos populares foi o tropo.
média já apresentasse uma música heterofônica, que Estas peças tiveram seu início em meados do sécu-
pode ser entendida como execuções simultâneas lo IX, e surgiram como desejo dos monges de de-
de duas ou mais vozes que se movimentam seguin- senvolver as células melódicas dos vocalizes a fim
do trajetórias distintas. A heterofonia, inicialmente de que o texto se adaptasse a ela mais facilmente,
praticada pelos herdeiros da tradição bárbara, a fim isso pode ser relacionado com a preocupação de
de distinguir sua música daquelas praticadas na li- fazer os fies participarem dos mistérios cristãos.
turgia, foi aos poucos sendo absorvida pela cultura Esta peça lírica está, segundo Candé, na origem do
popular da civilização como meio de sustentação drama litúrgico e da canção, às quais os primeiros
no confronto com as classes dominantes (Idem, trovadores chamam de verso. Os pequenos diálo-
p. 68). Estas práticas foram, porém, integradas ao gos desenvolvidos nos tropos formavam o núcleo
serviço litúrgico na forma de organun e de motete. do drama litúrgico, “de que procede grande parte
Diferente do organun – no qual várias vozes se mo- do teatro europeu, principalmente a ópera” (Can-
vimentam por trajetórias paralelas e ao qual Wisnik dé, 1994, p. 238).
denomina como “a base fixa que sustenta o edifício Em meados do século XII a arte romântica
polifônico” – que facilmente se adaptou aos texto estava em seu apogeu. A influência da Igreja na
litúrgicos, o motete apresentava uma estrutura tex- música foi sendo, passo a passo, substituída pela a
tual que tornava embaraçosa a presença da liturgia. influência das universidades de Paris e de Oxford,
Sua composição expunha simultaneamente textos nas quais a música ganhou cátedra e, com isso, co-
diversos, em línguas distintas, às vezes profanos, meçou a ter vida também fora da liturgia que há
que dialogavam com os textos da igreja. Mais tar- tanto lhe ditava as regras e os costumes. No lugar
diamente veio se somar à estas duas práticas o con- do sistema feudal, apareceram as primeiras comu-
duto, que, tendo como base o cantochão, mantém nas na Itália e na França, e nelas um novo estatu-
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to político da burguesia urbana. Nessas comunas o desejo de expressão e as possibilidades técnicas e


tiveram gênese novas cidades, que apresentavam teóricas de realização naquele momento histórico:
novas estruturas sócias, e nas quais reapareceu, em “o compositor colocou os atores no palco fazen-
detrimento do Estado, a imagem do um príncipe do apenas os gestos dos personagens, enquanto
soberano da monarquia (Idem, p. 256). eram dublados, nos bastidores, por coros de qua-
É neste cenário que entra em cena a figura do tro a cinco vozes”. Embora o evento tenho sido
trovador, poeta e músico erudito, que cantava ain- “irresistivelmente cômico”, Wisnik aponta para o
da “a epopeia medieval (...) e suas próprias aventu- fato de este efeito ter “contribuído para abrir o ca-
ras guerreiras ou amorosas” (Candé, 1994, p.260), minho para o canto homofônico, individual, trilha
e, ainda que fosse de origem modesta, ganhava po- dominante seguida pela música barroca, iniciando
sição e notoriedade, por conta de suas obras. Em o deslocamento para fora da polifonia” (Wisnik,
grande parte, os trovadores eram seus próprios 1989, p. 128). Em decorrência desta dificuldade,
interpretes, mas acontecia de terem suas obras in- foi somente no século XVIII, quando a melodia se
terpretadas pelos jograis, artistas herdeiros dos mi- encontrava já desvencilhada do contraponto, que o
mos, os quais se faziam às vezes, segundo Candé, melodrama tornou- se, de fato, um gênero. Segundo
de mensageiros, confidentes e bufões. Diferentes Pavis, o melodrama se desenvolveu “no momento
dos trovadores, os jograis não eram estimados, as- em que a encenação começa a impor seus efeitos
sim como não o era a imagem dos “intérpretes” visuais e espetaculares” (Pavis, 1999, p.238).
que acompanhavam os grandes trovadores. Por volta de 1600, no palácio do Conde G.
Bardi, em Florença, deu-se início ao processo que
Alguns jogladors põem-se a serviço de trovadores conduziu a música ao estabelecimento do sistema
célebres, que seguem em suas andanças, cantan- tonal. Segundo Schurmann um grupo de músicos
do seus “versos” e forjando sua lenda, com gran- intelectuais que ali se reuniam fundou um “movi-
de reforço de biografias romanceadas. Mas tarde mento de reação contra as complexas estruturas
os menestréis serão jograis de uma classe supe-
polifônicas do Renascimento”, sob a denomina-
rior, providos de um ofício estável (mistérium).
ção de Camerata fiorentina. Tinham pretensão de
Eles se organizarão em corporação no século
XIV (Idem, p. 260). um retorno ao que julgavam ter sido a monodia
da Antiguidade helênica, e lançaram a proposta de
A música polifônica renascentista já apresentou produzir “as primeiras realizações de uma mono-
em sua estrutura um tema – melodia que permane- dia acompanhada, hoje frequentemente chamada
ce ao longo de uma seção ou de toda a peça –, ainda de homofonia” (Schurmann, 1990, p. 121). Cac-
assim, encontra, segundo Wisnik, dificuldade em cini (1551-1618), um dos intelectuais integrantes
alcançar o desejo “de fazer da música um suporte e do grupo, desenvolveu uma obra didática, intitu-
um acentuador emocional das palavras”. Na tran- lada Nuove Musiche, que veio mudar a direção mú-
sição que ocorre entre a música renascentista e a sica de então, conduzindo-a à música barroca. Na
barroca, os madrigais e os melodramas assumiram obra Caccini descreveu novos meios de expressão
um caráter expressivo e declamatório, articulando e dentre eles, a magnificência cênica era o que lhe
os recursos musicais com uma gesticulação que parecia mais importante, e afirmou que nela, as
desse ênfase à palavra. A dificuldade de conceder à coloraturas e os ornamentos eram “aconselhados
palavra sua relevância expressiva, residia no fato de apenas onde reforçam a expressão da palavra, ou
que as vozes que as articulavam, livres de diálogo, então, para esconder os parcos recursos técnicos
expostas em melodias simultâneas e engendradas, de um cantor”.
não favoreciam sua compreensão.
O que há de essencialmente novo na ideia é o
Wisnik comenta, em seu livro, a apresentação da
seguinte: um texto, quase sempre um diálogo, é
peça Anfiparnaso commedia harmônica, do polifonista musicado a uma voz, fundamentalmente, para
erudito Orazio Vecchi (1550 -1605), que retrata a si- seguir com precisão e realismo o ritmo e a me-
tuação criada pela distância ainda encontrada entre lodia da palavra. Tratava-se unicamente de dar o
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máximo de compreensão ao texto e interpretá-lo tema filosófico-musical, o qual denominaram teoria


tão expressivamente quanto o possível. A música dos afetos. Segundo Schurmann, seguindo tais deter-
deveria permanecer em segundo plano, sua fun- minações, “a música viera estabelecer-se como lin-
ção era a de compor um discreto suporte harmô- guagem mais adequada sempre que tratava de ex-
nico. Tudo o que se tinha até então considerado pressar ou provocar certos sentimentos, emoções
como propriamente musical era rejeitado como
e paixões, ou seja, os afetos humanos” (Schurmann,
diversão (Idem, p. 166).
1990, p. 120).
Por conta disso, no cenário tonal a figura me-
Após a reviravolta causada pelo evento da poli-
lódica deslocou-se para a voz mais aguda, que
fonia, o outro grande passo referente à história da
ressaltou-se das outras, e tornou possível o desejo
música ocidental, e que deve ser relacionado com o
renascentista de devolver à palavra a potência ex-
desenvolvimento das operações dramatúrgicas da
pressiva que tinha na monodia, aqui, porém, com
música, aconteceu – juntamente com a transição
outras finalidades e anseios. A fala melódica “se dá
do mundo feudal em capitalismo – com o tonalis-
com um fraseado progressivo, um fio lógico em
mo, que se estabeleceu, pouco a pouco, ao longo
que se distinguem claramente o ‘antes’ e o ‘depois’
dos séculos XVI, XVII e XVIII (Wisnik, 1989, p.
na linearidade do tempo” (Wisnik, 1989, p 132). A
113). Segundo afirma Valéria Bittar, essa música
classe musical teve na monodia a referência para
tornou-se, no final do século XVIII, “o emblema
a construção desta nova música. Nesta prática,
da expressão musical ocidental, gerando formas
porém, a monodia se fazia acompanhar por uma
por sua vez também emblemáticas dessa cultura”
harmonia que lhe imprimia cores e que a fixava
(Bittar, 2012, p. 30), quando já não é mais vista ape-
em uma certa tonalidade, passando a ser, por isso,
nas como uma espécie de linguagem, mas sobretu-
denominada como monodia acompanhada (ou ho-
do como um modo de comunicação.
mofonia). Entre os estilos que daí surgiram, teve
Diferindo da música modal que gira em torno
gênese o stile rappresentativo, destinado ao teatro, nos
de uma tônica fixa que permanece constante, a mú-
quais a melodia representava musicalmente a ação
sica tonal propõe o deslocamento da tônica atra-
dramática.
vés de modulações e produz “a impressão de um
A palavra teve lugar privilegiado na melodia
movimento progressivo, de um caminhar que vai
até o classicismo, quando os músicos partiram em
evoluindo para as novas regiões, onde cada tensão
busca de uma “música pura” (aquela que não tem
(continuamente reposta) se constrói buscando o
lugar nem no teatro, nem na igreja). Harnoncourt,
horizonte de sua resolução” (Wisnik, 1989, p. 114).
fazendo uma análise da função que a melodia de-
Esse movimento de tensão e resolução acaba por
sempenha em cada um destes dois momentos his-
trazer à música tonal um caráter discursivo, como
tóricos, afirma:
afirma Wisnik:
a música anterior à 1800 fala e a música pos-
Olhando panoramicamente, o tonal é o mun-
terior a esta pinta. Uma delas precisa ser com-
do onde se prepara, se constrói, se magnifica,
preendida, pois tudo que é dito pressupõe uma
se problematiza e se dissolve a grande diacro-
compreensão, enquanto a outra se expressa atra-
nia: o tempo concebido em seu caráter antes de
vés de atmosferas, sensações, que não precisam
mais nada evolutivo. É o mundo da dialética, da
ser compreendidas, mas sentidas (Harnoncourt,
história, do romance. Olhando internamente, o
1998, p. 49)
discurso tonal é também o discurso progressivo,
“narrativo”, subordinante, baseado na expansão
do movimento cadencial, no desdobramento Segundo o estudo de Harnoucourt, a prática mu-
sequencial, no princípio do desenvolvimento sical se destinou durante muito tempo em ajustar
(Idem, Ibidem). a poesia na música, tratando de transmitir a men-
sagem poética e de tê-la como inspiração para sua
Como modo de comunicação, a classe musical concepção. Por volta de 1600, no entanto, surgiu,
estabeleceu determinações englobadas em um sis- a partir de visitas aos conceitos e teorias musicais
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da antiguidade grega (como a teoria dos afetos), a um papel fundamental.


ideia de fazer da palavra, do diálogo, o fundamento Na terceira fase do Cristianismo, classificada por
da música, a fim de torna-la dramática: Mário de Andrade, a harmonia encontrou no modo
jônico (conhecido como dó maior) a ordem básica
Tal música devia tornar-se dramática, pois um para a nova música. Esta escolha deu-se pelo aber-
diálogo já é em si dramático; seu conteúdo é ar- tura sonora que sua sonoridade apresenta, pelo seu
gumento, persuasão, problematização, negação, ethos. Junto dele, o modo eôlio (lá menor), fixou-se
conflito. O que contribui para o nascimento da também como modelo de modalidade, associado
ideia, como já era de se esperar nesta época, foi
à tristeza e à melancolia. Desde então, os modos
a antiguidade. A paixão pela antiguidade levou à
concepção de que o drama grego não era falado,
maior e menor que fixam a tonalidade da música
mas cantado (Harnoucourt, 1998, p. 165). ocidental.
A fuga foi um dos primeiros modelos de música
Atrelado à busca pela dramaticidade da música, tonal, desenvolvida por Bach, e nela estão contidos
deu-se o aprofundamento dos conceitos da retóri- o contraponto, a imitação e a polifonia. Neste mo-
ca. Segundo Bittar, estudos musicológicos redesco- delo de composição torna-se bastante clara a forma
brem-na na música barroca como a base e a estru- de diálogo: inicia-se com a exposição de um sujeito
tura do texto musical, desenvolvendo-se desde o (tema) que será novamente apresentado durante o
Renascimento até o Classicismo. “Essa busca dos desenvolvimento de outra (ou de outras - contra-
intérpretes de parâmetros orientadores da perfor- tema) voz consecutiva, enquanto aquela primeira
mance recorre à compreensão do discurso musical, deixa de expor o sujeito e parte para variações. Tra-
concluindo que todo texto desses períodos será ta-se de uma composição “de um Tema só, curto,
estruturado na retórica”, tendo “na persuasão do seguido de Contratema, enunciado sucessivamente
público seu objetivo final” (Bittar, 2012, p. 107). pelas diversas vozes” (Andrade, 1987, p. 102), que
A música do barroco imbuiu-se de retórica para descende dos motetos vocais.
formar seu discurso musical e reforçar o conteúdo Marcos Motta, em seu estudo sobre a dramatur-
verbal através de figuras melódicas corresponden- gia musical, apresenta uma analogia entre a fuga e a
tes: mesmo o gesto, o movimento do corpo, é ex- representação. Segundo este autor, a dramaticidade
presso musicalmente. Pavis aponta para o fato de da fuga reside em seu caráter episódico por meio
que os tratados de retórica “frequentemente com- do qual as vozes se assentam:
param a arte do orador à arte do ator”:
Fazer durar uma presença para além de seus con-
tornos - eis a perspectiva temporal da fuga. Para
A voz do orador e do ator está subordinada aos
que isso se realize, o espaço de representação
princípios de clareza e expressividade; os olhos,
precisa ser estruturado em vários níveis sobre-
o porte da cabeça, o uso das mãos são codifica-
postos, o que exige uma diferenciação contextu-
dos. Os gestos devem sublinhar as palavras e não
alizada. A seção-desenvolvimento vai contextu-
as coisas. A arte do ator guardou na memória es-
alizar, na atualidade contínua de sua exibição, a
tas palavras (Pavis, 1999, p. 341).
variação sobre o tema praticada na seção-expo-
sição. Contra o fantasma da literalidade, a dispo-
Junto a uma melodia destacada – que retrata o sição variacional do desenvolvimento atua como
tema da canção, ou da música instrumental – co- inteligibilidade de procedimentos já expostos
meçou a esboçar-se a harmonia que é modelo para anteriormente e agora focalizados (Mota, 2001,
toda a música ocidental composta posteriormen- p. 230).
te. É interessante notar que a música barroca tem
sempre o intuito de dizer alguma coisa, represen- Se a percepção da ação dramática torna-se com-
tar ou suscitar um afeto. Desde aproximadamente plexa pela exposição de eixos descontínuos, de sín-
1650 e por quase dois séculos, este diálogo, como a teses, e de linguagens que se relacionam, e possibi-
designa Wisnik, ou este discurso, como a denomi- litam, assim, “não apenas uma leitura, mas leituras
na Harnoucourt, desempenha na música ocidental simultaneamente complementares”, sugerindo
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uma polifonia de significações pluridimensionais, suas propriedades em favor do drama, mas antes
como afirmam Seincman e Guinsburg, a encena- que deverá, ela mesma (melodia, ritmo, timbre, in-
ção pensada enquanto composição fugal pode de- tensidade), possibilitar produções de sentidos que
linear fatores básicos que determinam a cena, pelo favoreçam a cena teatral e permitir, deste modo, as
fato de apresentar ao público, como sugere Mota, múltiplas leituras da recepção. Mota afirma:
“as habilidades do compositor em organizar sons
em função de estratégias melhor compreensíveis Quando a música se dramatiza, ela não se torna
por uma meta-estética, uma dramaturgia musical” um drama, não deixa de ser música: vai pesqui-
(Idem, p. 235). sar em sua linguagem procedimentos para tor-
A música retórica do barroco, ou a ideia da mú- nar possíveis efeitos dramáticos. Os suportes
dramáticos utilizados pela música são inscritos e
sica vinculada à uma palavra expressiva, criou, aos
redefinidos nas formas escolhidas e adotadas. A
poucos, um certo desconforto entre a classe musi- alta dialogização da fuga é amostra disto (Mota,
cal. O desejo de torna-la “pura” aparece em decor- 2001, p. 218).
rência do pensamento classicista de que as estrutu-
ras sonoras, elas mesmas, poderiam expressar, ou Poucos foram os momentos na história da mú-
potencializar sentidos. Harnouncourt afirma que, sica ocidental (eles realmente existiram?), nos quais
“infelizmente nos foi demasiado explicado que a a música esteve completamente desassociada de
música que diz ‘alguma coisa’ tem menos valor que alguma função, ou que se pôs quieta, sem buscar
a música ‘pura’ absoluta” (Harnouncourt, 1998, p. sentido e complemento em outra linguagem, ou,
155). Este conceito e esta busca por uma música podemos dizer, sem outra linguagem buscar nela
“auto-suficiente” influenciou e influencia forte- complemento e potência. Esta inquietação parece
mente, ainda hoje, compositores e instrumentistas, ter sido, momento a momento, o motor de propul-
que acabam por reconhecer na música para a cena são de sua evolução.
teatral uma música “menor”, não tão sublime, mas Segundo Harnoncourt, “desde épocas muito
apenas funcional e retórica. Jean-Jacques Lemêtre, antigas tentou-se utilizar a música para reproduzir
músico da companhia francesa Théâtre du Soleil, ideias extramusicais” e, falando exclusivamente da
em entrevista à Josette Ferral, comenta a dificul- música instrumental, classifica este domínio em
dade que encontra em trabalhar com músicos de quatro orientações: imitação acústica; representa-
teatro, pela falta de compreensão que estes têm da ção musical de imagens; representação musical de
função dramática da música: pensamentos ou sentimentos; e a linguagem dos
sons. À primeira delas, o autor dá como definição
Digamos, para começo de conversa, que ser mú-
a imitação sonora de animais (que Schumann reco-
sico de teatro é uma profissão que não existe,
nhece já no plistocêno, como visto anteriormente),
tanto como ofício quanto como termo. Reco-
nhece-se a existência de músicos de cinema, sim- ou de instrumentos musicais, prática mais recente,
plesmente músicos, músicos de circo, mas não datada de 1600 e se estendendo até a contempo-
músicos de teatro. Porque um músico de teatro raneidade. A segunda, Harnoncourt afirma tratar-
ou é um músico fracassado, ou não tem trabalho se de uma orientação mais complicada, e comenta
e procura emprego no teatro. Em vez de tentar que durante séculos “foram se criando fórmulas
fazer música de teatro, ele faz música e tenta fa- musicais que provocam determinadas associações,
zer com que ela cole no teatro. E não chamo isso construindo, assim, uma ponte entre imagem e
de música de teatro. É música de cena. Isso sem- música. Já representação musical de pensamentos
pre existiu, mas é completamente diferente. ou sentimentos conduziu a história e a evolução da
música por vários séculos, ora tratando de poten-
É importante estabelecer uma relação entre cializar afetos, ora funcionando como persuasão.
a música e a cena teatral na qual esteja claro que Segundo o autor,
qualquer que seja a operação sonora criada para a
encenação, esta deve, sim, estar em situação de di-
álogo. Isso não quer dizer que ela vá abrir mão de
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grande parte da música instrumental barroca é possíveis substituições (eixo vertical)” (Ubersfield,
teatral, não só pela maneira retórica de retratar 2005, p. 95):
acontecimentos naturais, conflitos de paixões
e estados de alma, como também pelo modo Compreende-se como o empilhamento vertical
fundamentalmente dramático de, por meio da dos signos simultâneos na representação (sig-
linguagem sonora barroca, representar um acon- nos verbais, gestuais, auditivos etc.) favorecem
tecimento concreto ou abstrato, cuja solução só um jogo singularmente maleável em ambos os
aparecerá no fim do conflito músico-dramático eixos: paradigmático e sintagmático. Daí a pos-
(Harnoncourt, 1998, p. 178). sibilidade, para o teatro, de dizer muitas coisas
ao mesmo tempo, de construir várias narrativas
Por fim, a linguagem dos sons é definida por simultâneas ou entrelaçadas. O empilhamento de
Hanoncourt como aquela que “desde aproxima- signos permite o contraponto (Idem, p.13).
damente 1600 e por quase dois séculos, desempe-
nha na música realmente um papel fundamental” No classicismo, além de o elemento melódico
(Idem, p.151). estar em primeiro plano, ficou determinado que
O caráter discursivo no qual investiu a música as melodias deviam ser fáceis e convincentes, com
tonal tornou-lhe capaz de sustentar, com o recurso acompanhamentos simples que permitissem ao ou-
do próprio som, estruturas narrativas. Estas po- vinte ser atingido no seu sentimento. Este ouvinte
rém, segundo Wisnik, já não estavam mais relacio- já não tinha mais que compreendê-la, mas senti-la
nadas com as suas antigas funções ritualísticas, mas somente.
remetiam-se ao “âmbito da contemplação estética,
no contexto exclusivo da representação”. Wisnik Foi nesta época e a partir desta mentalidade que
informa: brotou a ideia muito comum hoje de que a músi-
ca não tem de ser compreendida; se ela me grada,
É nesse momento que a linguagem musical, sem se ela se dirige aos meus sentimentos, se ela me
ter propriamente uma função ritual (suspensa no faz sentir qualquer coisa, então é porque é boa.
teatro da representação) e sem ser narrada por Assim, na fronteira do barroco, com o clássico
um mito, se investe internamente de estruturas encontra-se também a fronteira que separa a mú-
míticas, “encarna” o mito na estrutura sonora, sica fácil da música difícil de entender (Harnon-
e o seu mito na estrutura sonora, o seu mito é o court, 1998, p. 157).
da crise e da reparação da ordem questionada e
recomposta (Wisnik, 1989, p. 163). Cláudio Monteverdi (1567 – 1643), compositor,
maestro e gambista italiano inspirado pelas nova
Neste caso, não há um fio melódico, no entanto, prática tonal elaborou um “vocabulário dramático-
que narre linearmente o mito. A narrativa encontra musical, de forma sistemática”. Nada escapava-lhe
seus elementos agrupados em acordes e inscritos que não fossem fundamentos bem pensados e, em-
em contrapontos: “como na música, o que impor- bora não tenha composto música instrumental, a
ta não está apenas na horizontalidade da suces- mitologia e a anedota em sua obra eram expostos
são, mas na verticalidade do simultâneo” (Idem, com maestria, ditados pela estética e pela técnica.
p. 164). Como vimos anteriormente, esta mesma Sistematizando a própria obra, Monteverdi demar-
estrutura narrativa fez-se presente na fuga. E faz- cou o território melódico da canção que pela pri-
se presente, também, na cena teatral. O estudo se- meira vez viu-se despreocupado com a oratória, e
miótico desenvolvido por Anne Ubersfield propõe pode, assim, criar uma instrumentação e um arran-
uma analogia entre a estrutura constitutiva da en- jo que deixava a música expressar-se com todas as
cenação com a da música tonal. Segundo afirma, suas propriedades, ainda que em colaboração com
uma das oposições básicas da qual a cena teatral a poesia. Para Mário de Andrade, Monteverdi foi o
se imbrica com a linguística é a dos dois eixos, sin- primeiro arranjador da história da música ociden-
tagmático e paradigmático. “O eixo sintagmático tal, deixando um legado de três séculos. Diz ele:
indica a sucessão linear do discurso, indicando as
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Monteverdi é talvez o maior experimentador que uma espécie de “teatro dentro do teatro”:
a música da Civilização Cristã apresenta. Pare-
ce que previu todas as formas futuras de teatro a ação, sempre de cunho mitológico, devia ne-
cantado. Prefere os temas históricos aos mitoló- cessariamente ser conduzida pela constante in-
gicos. Acentua a decadência da música religiosa. tervenção dos deuses e era interrompida, após
Compreende o futuro Drama Lírico, com base cada cinco atos, por um divertissement – um ou
na expressão poética, inventa o “Stille Concitato” mais interlúdios ligeiros, dançados, e cantados, e
(estilo exaltado) e acena para o Motivo Condutor mais ou menos alheios aos acontecimentos –, no
(leitmotif) como força expressiva simbólica (An- qual se recorria às maquinarias de teatro tão im-
drade, 1987, p. 81). portantes, máquinas voadoras, fogos de artifício,
enfim toda uma variedade de engenhos capazes
Na busca de exprimir musicalmente o senti- de dar brilho ao espetáculo (Idem, p. 243).
mento de agitação extremo – importante nas cenas
de guerra –, Monteverdi criou o Stile concitato, que No ano de 1661, Molière apresentou a comédia-
acabou por tornar-se um procedimento artístico balé, Les fâcheux, na corte de Luis VIX, para o en-
precedente para as óperas compostas depois de tretenimento do rei, e viu-se, por isso, obrigado a
sua obra. Segundo Hanoncourt, o concitato trouxe à introduzir em sua obra a música e a dança. A partir
ópera o elemento corporal, puramente dramático, deste evento, iniciou uma parceria com Lully, que
como potência da ação: trabalhou durante dez anos como seu colaborador.
Lully, escutando os atores dramáticos, teve a melo-
Não se pode representar uma situação dramáti- dia e o ritmo da língua francesa como modelo para
ca, um diálogo, sem ação. Aqui são necessários a a composição de suas elocuções recitativas. Segun-
mímica, os gestos e o movimento do corpo in- do Harnoncourt, “parece que ocorreu o contrário:
teiro. Fala-se com todas as fibras do corpo (Har- foram os grandes atores que passaram a estudar a
noncourt, 1998, p. 170). maneira pela qual os cantores executavam o recita-
tivo” (Ide, Ibidem).
Desta forma, Monteverdi realçou o conteúdo Depois de uma série de espetáculos, Lully, de-
expressivo da palavra, potencializando-a, também, terminado em colocar a música em comando da
através do movimento corporal, prenunciando um poesia, decidiu não só trabalhar sozinho como
elemento essencial das futuras encenações (Idem, ter em seu único privilégio o direito de represen-
Ibidem). tar apresentações públicas: depois de conversas
Em razão das exigências musicais dos franceses, severas com o rei, consegui proibir, a quem quer
das especificidades de sua língua e poesia, e de sua que fosse “fazer uma peça inteira ser cantada em
antiga predileção pelo ballet, a tragédia e a comé- música, a não ser com permissão por escrito” do
dia na França tiveram longo privilégio em relação próprio Lully (Candé, 1994, p. 472). Mesmo des-
à ópera, que somente pode desenvolver-se a partir contente com a situação imposta por Lully, Moliè-
de critérios musicais que levaram em conta tais fa- re compôs O doente imaginário, sob denominação de
tores; aqueles mesmos que a transformam em um comédia mesclada com música e dança, na qual a música
gênero muito diferente daquele desenvolvido por estava sempre integrada à ação, como queria Mo-
Monteverdi. lière. Mas, vindo a falecer na quarta apresentação
Foi com o compositor francês, nascido na Itá- do espetáculo, Molière deixou livre o caminho para
lia, Jean-Baptiste Lully, que a ópera francesa tomou Lully destruir a concepção “do teatro musical em
nova forma. Harnoncourt afirma que, denomina- benefício da ópera lírica” o que, por certo, “contri-
das como tragédie lyrique –, em clara oposição à ópera buiu para o declínio da tragédia” (Idem, p. 476). De
italiana – as óperas compostas por Lully tinham as todo modo, Lully chegou a compor quinze óperas,
cenas entremeadas por interlúdios dançados, quase sempre de muito sucesso, para um público que se-
sempre instrumentais, compostos por atos que não guia a tendência de gosto real. Candé afirma: “A
apresentavam ligações com a ação principal. Estes tragédia lírica é um puro produto da ditadura de
interlúdio ficaram conhecidos como divertissement:
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Luís XIV, que impôs à ópera francesa uma orienta- p. 150). Entre a exposição dos dois temas há uma
ção muito pouco conforme ao gosto do público” ponte modulatória que encaminha o segundo tema
Até o começo do século XX, a música esteve para uma tonalidade diferente daquela na qual se
vinculada à uma mensagem mimética do real trans- apresentou o primeiro. O desenvolvimento ainda
pondo-o para um ideal sonoro social, irreal, mágico, não reestrutura a tonalidade inicial, que só aparece-
fantástico, mítico. Vimos que a retórica agiu como rá na reexposição dos temas, aí então, na tonalida-
linha mestra na condução da música em sua busca de inicial. Apesar de inicialmente parecer tratar-se
por um ato elocutório que lhe tornasse eficiente. O de uma norma fixa, a sonata “vigorou de forma
sistema tonal, embora tenha estabelecido perspecti- muito mais plástica e variável, segundo a necessi-
vas completamente novas para a produção musical, dade de cada obra singular em confronto com o
não deixou de fixar-se, também, no discurso e na estilo, sem nunca ter funcionado como um padrão
mimese de seu real contemporâneo. A ideologia de- normativo” (Idem, p. 151).
notada na elocução musical classicista – fundamen- É interessante notar que na sonata, a forma
tada nas relações de produção e de trabalho impos- como passeiam as tonalidades (a modulação) aca-
tas pela classe burguesa, que dominava a economia ba por propor um movimento de tensão-repouso-
e a política da época – passou a fazer parte de ma- tensão, sobre o qual, pela primeira vez, a música
nifestações culturais consolidadas como forma de instrumental causou a impressão de estar falando,
consumo. A arte como mercadoria serviu de “ali- “contando uma história”. Segundo Wisnik, a so-
mento ideológico, indispensável a essa burguesia” nata era uma cerimônia realizada a partir de pa-
(Schurmann, 1990, p. 173). Neste cenário habita- drões muito claros, através dos quais poderíamos
vam artistas que tinham suas obras constantemente rir dela, mas sobretudo rir “com ela e através dela”.
limitadas por esta fatia da sociedade que não admi- E falando-nos sobre a música de Mozart, o autor
tia nenhuma espécie de grande inovação na com- comenta:
posição musical: “A sociedade burguesa, tolerante e
naturalista, não suscitou uma revolução musical. De É possível dramatizar o mundo a partir de uma
Bach a Beethoven, a ‘linguagem’ musical permane- espécie de rigor aéreo, cuja precisa leveza pode
ce essencialmente a mesma, sem que o sistema tonal ser reconhecida em Mozart, como angelical e
ou as formas “clássicas” sejam questionadas” (Can- sensual: encontramo-nos no perfeito gozo da fór-
mula (Wisnik, 1989, p. 153).
dé, 1994, p. 524). Estas formas clássicas, das quais
fala Candé, foram a sonata, a sinfonia e o concerto.
Diferindo dos períodos clássico e barroco – que
A partir delas, a música do classicismo designou a
aristocratizaram a música profana, delimitando-a
base de nossa cultura musical.
tanto ao gosto do rei quanto ao ânimo do público
O público ouvinte desta música não tinha mais
–, o romântico, mais indisciplinado, busca na estru-
a mesma compreensão musical do público anterior,
tura musical a expressão de sentimentos insatisfei-
pois que a música tornara-se diletantismo e privi-
tos, a ânsia e a tormenta (Sturm und drang, na Ale-
légio da nobreza palaciana. No entanto, as salas de
manha), a dor das maiores desgraças, como afirma
concerto – onde compositores e virtuoses, susten-
Andrade: “O que preocupa os romântico é o cume
tados pelo mecenato, organizavam suas próprias
da comoção. Catoclismo, paixão sexual e nature-
apresentações –, proliferaram em toda a Europa
za andam juntos como nunca. Se confundem para
com fins de receber esse novo público passivo,
atingir o pathos mais grandioso” (Andrade, 1987, p.
obediente, e cada vez mais incapaz de participar
132). A tonalidade que compõe a música romântica
ativamente do evento musical.
cria tensões sucessivas, sempre retardando suas re-
Das formas clássicas, a sonata foi, segundo
soluções, em uma onda modulatória que, segundo
Wisnik, a que elaborou o processo de transição do
afirma Wisnik, levou o tonalismo “a beira de sua
tema: “Trata-se de uma forma que começa com a
dissolução” (Wisnik, 1989, p. 142), desfazendo as
exposição de dois temas, seguidos de um desenvol-
articulações do clássico e cirando vigor na constru-
vimento de relações entre os dois, que desembo-
ção de texturas sonoras.
ca por sua vez na sua reexposição” (Wisnik, 1989,
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3.4 – Atonalidade: explorando a matéria sonora. De espacial se tornou temporal. Música antiespacial,
antiarquitetônica. A música polifônica era com-
Esse novo modelo desenvolveu-se a ponto de preendida horizontalmente. A música harmônica
fazer surgir, no início do século XX, as muitas in- era compreendida verticalmente. Metáforas abu-
vestidas dos compositores à fuga da tonalidade sivas a que a música moderna não se sujeita mais.
A música de hoje tem de ser compreendida temporal-
e de suas leis fixadas nos períodos anteriores. O
mente no tempo. Momento por momento. A com-
cromatismo, já encontrado na obra de Wagner, preensão da obra resultará mais de uma saudade,
desembocou no dodecafonismo criado por Schoen- dum desejo de tornar a escutá-la, que da lem-
berg (compositor que rejeitou mais cerradamente brança contemplativa que fixa as partes, evoca,
“o princípio tonal, isto é, o movimento cadencial compara o que passou com o que está passando,
de tensão e repouso”) (Idem, p. 173), que desen- reconstrói, fixa e julga. A relembrança pensa. A
volveu um sistema de composição em séries que, saudade sente (Andrade, 1987, p. 128).
utilizando os doze semitons da escala, renuncia a
“recorrência melódica, harmônica, rítmica, atra- As “metáforas abusivas” das quais fala Mário
vés de uma organização simultaneísta de todos os de Andrade, que instauraram a horizontalidade e
materiais sonoros” (Idem, p.174). Esta música não a verticalidade como configurações exclusivas na
prestou-se a conduzir a memória por caminhos composição musical, foram subvertidas. Outras
seguros, logrando a escuta do material repetido a formas passaram a vigorar no ambiente sonoro,
ponto de não fazer-se mais reconhecer. Buscou de- abrindo possibilidades múltiplas na concepção das
sierarquizar as notas, dando a todas elas a mesma obras. O tema, motivo condutor, ora monódico,
importância, a fim de ausentar qualquer centro me- ora polifônico, ora acompanhado por uma harmo-
lódico. O objetivo estava em retardar ao máximo nia, também viu aí a sua decadência, tendo sido
um som ouvido anteriormente. substituído por séries. Estas, formadas pelas doze
Paralelo ao dodecafonismo, o movimento minima- notas de uma escala de semitons (cromática), tiram
lista construiu-se, ao inverso, através de repetições do jogo melódico a possibilidade de um centro. As
exaustivas de pequenas melodias e de pulsos rítmi- tensões demoradamente resolvidas no romântico
cos que agrupavam, aos poucos, novos elementos aqui já não se resolviam mais. Sem centro e sem
(Idem, ibidem). resolução, a tonalidade, assim como a forma e o
De fato, como mostra Wisnik, essas duas com- tema, não encontrou mais habitat.
posições trazem em comum “a ruptura entre o Das possibilidades nascentes para as formas
tempo subjetivo (vivido com um contínuo) e o desta nova música, uma delas foi o espelho, onde
tempo musical (vivido com extensão do tempo uma série poderia, depois de sua exposição, come-
musical)”: o dodecafonismo, por um lado, instaura çar de seu inverso e seguir a diante, até o começo.
um “não-tempo inconsciente, enquanto tempo não E qualquer novo impulso poderia ser apresentado.
linear”; o minimalismo, por outro, “se relacionaria Wisnik informa que Weber em uma carta ao com-
aparentemente com um outro traço do não-tempo positor Hildegard Jones, propõe como ideia de sé-
inconsciente: a compulsão à repetição, cujo retor- rie a inscrição latina:
no em ostinato ‘esvazia’ o tempo.
As relações com o tempo se intensificaram na S A T O R
música do início do século XX como consequência A R E P O
da ruptura com a perenidade espacial que forjou- T E N E T
se na música ocidental no decorrer de sua história: O P E R A
horizontal na polifonia e vertical na harmonia. Má- R O T A S
rio de Andrade afirma haver na “Música-Tempo”
uma liberdade de forma e de timbres que a “Músi-
ca-Espaço” não permitia. E diz:

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Winsik explica: de fala. É no neolítico, fase superior da selvageria


e começo do desenvolvimento da barbárie, que se
frase que pode ser lida em quatro sentidos di- desenvolve uma linguagem capaz de servir para a
recionais diferentes, à maneira de uma série que emissão de mensagens de naturezas diversas, e sur-
pudesse ser, ao mesmo tempo, o original, a inver- ge aí, então, uma comunicação social. Schurmann
são, o retrógrado, e o retrógrado da inversão. desenvolve este estudo baseado na teoria de L.F.
Morgan, que divide as fases da humanidade em sel-
De qualquer maneira, essas novas estruturas vageria, barbárie e civilização.
musicais pareciam trazer para a sonoridade uma
certa “área de atuação” inscritas na espacialidade e 2 A barbárie vem a ser, assim, o sistema que
na temporalidade de suas representações. Se restou sucede o estado selvagem e que nos apresenta a
a ela a mimese, pensamos que sim. Pois esta músi- arte neolítica. Na barbárie “não existiam ainda
ca foi forjada no período pós-guerra, onde muitas diferenças entre direitos e deveres: teria sido um
ideologias romperam-se, assim como rompeu-se a absurdo questionar-se era um direito ou um dever
linearidade temporal perene e estável, e o espaço a participação de todos nos assuntos de interesse
propriamente dito. comunitário, da mesma forma como hoje, para
É interessante notar que neste mesmo momento, nós, dificilmente se questiona se comer, dormir e
em todo o mundo ocidental, aconteciam manifes- amar é são deveres ou direitos. Todos formavam
tações culturais que reivindicavam libertar a arte de no conjunto uma comunidade fraternal unida pelo
modelos arcaicos, e lançavam propostas de novas parentesco de sangue”. É importante salientar que,
relações, mais intensas, das linguagens artísticas. O segundo esta teoria, a linguagem se desenvolve em
teatro renunciava o drama, que foi sua célula cria- paralelo com as necessidades surgidas a partir da
dora durante todo o passado, ao mesmo tempo em relações de produção e de trabalho. (Schurmann,
que a música renunciava à tonalidade, recém che- 1990, p. 24)
gada. Talvez por ambos os modelos pressuporem
formas fixas, talvez por serem caminhos seguros 3 A respeito disso, Barthes afirma: “o poder
a seguir, quando a arte visava, naquele momento, está presente nos mais finos mecanismos do inter-
rumos incertos, cheios de novas possibilidades. câmbio social: não somente no Estado, nas classes,
nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões
Notas correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos espor-
tes, nas informações, nas relações familiares e pri-
1 Como nos explica Schurmann (1990), o es- vadas, e até mesmo nos impulsos libertadores que
tado selvagem se divide nas fases inferior, média tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo
e superior. Na fase inferior, definida como plisto- discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a
cêno, os homens habitavam os bosques tropicais culpabilidade daquele que o recebe. (BARTHES,
e semi-tropicais e, pelo menos parte deles, ainda 1978, p. 11)
viviam nas árvores. Neste período não havia se de-
senvolvido ainda uma linguagem propriamente dita. 4 Plural de Nomos: Composições fixas, invariá-
Segundo o autor, supõem-se que “usavam apenas veis. Designa algo fixo, determinado, uma lei. “Ao
alguns sinais sonoros e gestuais. Tais sinais, entre- contrário dos objetos musicais a que chamamos
tanto, já devem ter servido para o homem se referir ‘obras’, os nomos não podiam ser separados dos
a fatos particulares do mundo circundante”. A fase poemas ou das circunstâncias que os suscitavam.
média, denominada paleolítico, já apresenta uma Alguns, porém, eram escolhidos para serem nomos
espécie de tecnologia (é nesta fase que o homem nacionais, devido, sem dúvida, a características es-
aprende a manipular o fogo e fabrica instrumen- pecíficas tiradas de um ‘folclore’ determinado”
tos de trabalho de madeira, osso e pedra lascada) e, (CANDÉ, 1994. p. 70).
por conta dela, a necessidade de uma comunicação
mais complexa, já verbal, denominada como atos
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5 “Todas as melodias existentes são compostas (singular: Nomos)”. (ANDRADE, 1987.p. 28)
com um número limitado de notas. Assim como a
língua compõe suas muitas palavras e infinitas fra- 8 Os parâmetros (ou propriedade do som) são
ses com alguns poucos fonemas, a música também geralmente divididos em quatro: altura, duração,
constrói sua grande e interminável frase com um intensidade e timbre.
repertório limitado de sons melódicos. (...). Aquele
conjunto mínimo de notas com as quais se forma 9 “a associação entre duas alturas sonoras se dá
a frase melódica costuma ser chamado de ‘escala’ muito frequentemente mediante uma conotação
(ou ‘modo’, ou ‘gama’). Não importa que a nos- espacial (intervalo), gerando-se assim uma nova ca-
sa tradição pense a escala como uma sequência de tegoria, que aqui designaremos pelo termo espaço
notas que vão do grave para o agudo, e que os gre- mélico, e que se refere a determinadas entidades
gos pensassem as suas escalas como um conjunto mélicas que permitem a avaliação das distâncias
descendente indo do agudo para o grave. A escala assim concebidas mediante o estabelecimento de
é um estoque simultâneo de intervalos, unidades uma unidade de medida, como o tom ou o semi-
distintivas que serão combinadas para formar su- tom” (SCHURMANN, 1990. p. 46).
cessões melódicas. A escala é uma reserva mínima
de notas, enquanto as melodias são combinações 10 José Miguel Wisnik se refere aqui à Harmo-
que atualizam discursivamente as possibilidades nia das Esferas, que remonta ao pitagorismo, e se-
intervalares reunidas nas escalas como pura virtu- gundo a qual “a descoberta de uma ordem numé-
alidade” (Wisnik, 1989, p. 71). Os modos gregos rica inerente ao som faz da analogia entre as duas
eram sete. Cada modo recebeu o nome de seu país séries, do som e do número, um princípio universal
de origem: Jónio, Dório, Frígio, Lídio, Mixolídio, extensivo a outras ordens, como a dos astros celes-
Eólio, Lócrio. Cada um destes modos obedece a tes. A pesquisa das proporções intervalares provo-
uma certa sequência de intervalos, o que lhes ga- ca e alimenta o demônio das correspondências e a
rante um caráter específico: “cada modo eviden- suposição do caráter intrinsecamente análogo ao
ciando seu caráter de verdadeiro território sonoro, mundo, pensado através da convergência de consi-
era associado, pela sua denominação, a uma região derações aritméticas, geométricas, musicais e astro-
ou povo. O modo dórico (formado pelos interva- nômicas. A ordenação progressiva que se percebe
los que vão de mi a mi) relacionado ao caráter viril na seriação interna do som, em que certas quali-
dos lacedemonianos, era ligado tradicionalmente à dades melódicas se revelam regidas por qualidades
solenidade (sonora e ética); o frígio, (de ré a ré), de numéricas, integra uma cadeia maior de similitudes
afinidades orientais, era ligado por sua vez ao dio- que liga a terra e o céu e onde, num eco micro e
nisismo” (Idem, p. 85) macro-cósmico, os astros tocam música” (Wisnik,
1989. p. 99).
6 Sons harmônicos são aqueles “cujas frequên-
cias são múltiplas de uma mesma frequência fun- 11 A teoria dos afetos foi desde o início parte
damental” (Candé, 1994, p.44). integrante da música barroca – tratava-se de mer-
gulhar a si próprio em determinados sentimentos,
7 “Na prática a música foi apreciadíssima e teve para poder transmiti-los aos ouvintes –, embora a
uma importância social formidável. De primeiro ligação da música com a oratória se fizesse por si
valeram principalmente os Rapsodos, cantadores mesma (Harnouncourt, 1998. p. 154).
ambulantes que acompanhando-se da lira de qua-
tro cordas, louvaram a memória dos deuses, dos 12 “a fuga é o próprio modelo da razão estrutu-
heróis, dos feitos nacionais. Pelo caráter conser- ral: ela trabalha sobre oposições defasadas que pro-
vador próprio dos rituais religiosos, muito cedo cedem por variações imitativas sem desenvolvimen-
principiaram se fixando certas melodias-tipo, inal- to. O sucessivo remete a cada passo ao simultâneo,
teráveis, a que se atribuía influência mágica, moral, o diacrônico, ao sincrônico. Como dois (ou mais)
ou simplesmente eficiência ritual. Eram os Nomoi grupos (de “personagens”) que se perseguem e se
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escapam, que se alcançam e se distanciam, as vozes


se confundem e se diferenciam continuamente até
se encontrarem, “por uma última vez”, no fim do
percurso. As vozes em fuga, opostas e espelhadas,
“encarnam” o movimento desencontrada das iden-
tidades e das alteridades, que o mito resolve por
conjunção extrema. Na narrativa mítica, essas vo-
zes em movimento fugal são semantizadas como
foras opostas, seja elas “o céu e a terra”, “o sol e
os poderes subterrâneos”, ou outra antítese. Mas,
feita a abstração dos significados opostos, que, fora
da fuga, são meras oposições estáticas, o que temos
é movimento caleidoscópico em que os contrários
ecoam entre si e se espelham até se revelarem como
reverberações defasadas do mesmo. A configura-
ção dessa identidade, isto é, a entrada das vozes
em fase dá por finda a fuga, pois ela vive, diga-se
mais uma vez, das defasagens. Ela é produzida pelo
encontro estrutural das vozes e resolvida pela coin-
cidência entre elas (WISNIK, 1989. p. 167).

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