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Sobre sombras, tempestades... e bruxas: um ensaio sobre as permanências na


semântica musical

Article · March 2020

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Diósnio Machado Neto


University of São Paulo
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Sobre sombras, tempestades... e bruxas:
um ensaio sobre as permanências na
semântica musical
About shadows, storms... and witches: an essay
on permanences in musical semantics

DIÓSNIO MACHADO NETO


Laboratório de Musicologia (LAMUS) EACH -USP
dmneto@usp.br

Resumo: Tomando em consideração a força do pensamento


canônico da tradição ocidental, podemos dizer que há todo um
campo de conhecimento que se articula sobre o entendimento
da música como linguagem. A música é vetor de significados e
valores, que se formam a partir de estruturas musicais. Partindo
da questão sobre quais estruturas garantiram na
contemporaneidade a permanência de representações
simbólicas de personagens, sentimentos, ações, lugares etc.
este ensaio busca levantar indagações sobre a dinâmica das
ruptura das fronteiras dos universos musicais, a partir da
percepção de que tais estruturas simbólicas, as “tópicas
musicais”, criaram ideias-força dos valores que forjaram as
estratégias da comunicação musical, inclusive na
contemporaneidade. O texto discute, ainda, a permanência da
epistemologia das tópicas musicais na música de cinema, numa
perspectiva da tradição cultural ocidental.
Palavras-chave: significação musical; retórica tópica; música e
cultura; história cultural: música ocidental

Abstract: Taking into account the strength of the canonical


thought of the western tradition, we can say that there is a whole
field of knowledge that articulates about the understanding of
music as a language. Music is a vector of meanings and values,
they expand to the formation of semantic relations. Starting from
the question about which structures in the contemporary world
guaranteed the permanence of symbolic representations of
characters, feelings, actions, places etc. this essay seeks to trace
some of these recurrences, It also raises questions about the
dynamics of the rupture of the boundaries of musical universes,
based on the perception that such symbolic structures, the
“musical topics”, created ideas-strength of the values that forged
the strategies of musical communication, including in
contemporary times. The text also discusses the permanence of
the epistemology of musical topics in film music, as proof of this
transcendence of significant issues, in the course of a cultural-
history in a perspective of the western cultural tradition
Texto submetido em / Submitted on: Keywords: musical meaning, musical rhetoric, music and culture,
21 Jan 2019 cultural history of western music
Aprovado em / Approved on:
14 Mar 2019
Machado Neto, Diósnio. 2020. Sobre sombras, tempestades... e bruxas: um ensaio sobre as permanências na semântica
musical. MusiMid 1, no. 1 (2020): 46-70.

Introdução

“Estou agora escrevendo em Nova York, em meados de


dezembro, e a cidade está povoada de árvores de Natal e
menorás. Velho judeu e ateu que sou, me sentiria inclinado
a dizer que essas coisas nada significam para mim. Mas
músicas do Hanuca são evocadas toda vez que uma
imagem de menorá invade minha retina, mesmo quando
não a percebo conscientemente. Tem de haver mais
emoção, mais significado nisso do que admito, mesmo que
seja sobretudo de um tipo sentimental e nostálgico”.
(Oliver Sacks, Alucinações Musicais)

Em Alucinações Musicais, Olivier Sachs escreveu que a memória não é uma


recordação monolítica de um fato/evento/sensação, mas um fenômeno da nossa cognição
formado por fragmentos diversos que, podem, inclusive, nos dar a sensação de algo que
não foi real se apresente como, pois forma parte não de uma vivência concreta, mas de
uma auto percepção de uma experiência, mesmo virtual, que nos
preserva/justifica/localiza. De certo, a música ajuda esse processo, pois pode suscitar
correlações de recorrências afetivas através da efetivação de campos simbólicos formados
no plano comum das experiências individuais e coletivas. Plano que se potencializa por
um fenômeno de energia histórica que agrega valores a partir de uma rede de
compartilhamento expressa por estruturas musicais sustentadas por uma condensação
de signos, significados e valores. É por estes códigos que podemos, inclusive, entender a
música como linguagem musical, e mais, uma linguagem que localiza uma tradição,
mesmo que imaginada. É nesta tradição, e tudo que a contradiz, que se formam os
cânones e, consequentemente, as pontes de significação que sustentam as rupturas,
ressignificações, reciclagens, e outros processos, na sucessão das gerações. São estas
pontes de diversas qualidades e potências que nos remetem aos valores da significação
pela arte, mesmo que idealmente, da Antiguidade Clássica à Contemporaneidade. É uma
estrada de virtualidade, mas ao mesmo tempo de sentido ordenador, de existências que
sentimos, mas não conseguimos sistematizar a não ser por teorias, da Psicologia
Cognitiva, da História Cultural, da Antropologia etc.
Esse ensaio tratará, assim, de discutir como a ideia de um acervo compartilhado
de expressões musicais, e a reiteração de usos específicos da linguagem musical,
formaram redes de conotação/denotação de signos, a tal ponto de torná-los um domínio
que participa/induz memórias—reais ou imaginárias— e, também, suscita emoções—
vividas ou simuladas.
O texto parte da ideia-força que a música, como linguagem, se potencializa na sua
capacidade mimética e metafórica. É uma qualidade que assumimos historicamente, e,

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portanto, se forma por camadas sedimentares de muitas experiências culturais, dentro do


espaço de uma tradição histórico-cultural específica, a Ocidental (mesmo considerando
esse termo uma expressão de um poder narrativo). Justifica essa restrição geocultural por
sua natureza enquanto espaço de ideias, ou seja, campo que articula uma cosmovisão
específica, no caso por sistemas epistemológicos e teóricos. Evidentemente essa é uma
virtualidade, ou ideologia, mas é também um campo de sentido formado a partir de zonas
de influência. Em outras palavras, forças de modelam e projetam um acervo simbólico
num curso paralelo às lutas de representação e exercício do poder.
O texto busca, assim, criar uma estrutura de longa duração do símbolo musical,
observando sua circulação nos diversos gêneros desde remotas épocas, mas que, a partir
do madrigal renascentista criou uma perícia, a Musica Poetica. Esta não só sustentou o
surgimento da ópera, mas transformou a música instrumental no século XVIII; deu ares
filosóficos à arte musical na Era Romântica; desaguou na trilha de música do cinema e na
canção popular em épocas da sociedade de massa; e, recentemente, quando a arte,
inclusive a de Vanguarda, foi assimilada pela mentalidade da sociedade do consumo como
agregadora de valor, se apresentou como elemento persuasivo no universo da propaganda
comercial através dos jingles.
Outrossim, este ensaio se abre para discutir a música como discurso que articula
padrões culturais da escuta (escuta como espaços forjados sobre cadeias histórico-
culturais filtradas pelos locais da cultura). Neste sentido, importa como cadeia de
produção/recepção não só legitima a perícia do ofício mas, e principalmente, sustenta
uma prática da escuta que, no fim das contas, legitima os campos simbólicos— que trato
como tópicas musicais—e justifica a própria perícia criativa. É sobre esse processo que
busco delimitar algo da dinâmica das rupturas das fronteiras dos universos musicais, ou
seja, a partir da percepção das estruturas simbólicas como ideia-força de um processo
mais amplo, os processos sociocomunicativos da música. Por fim, incide sobre a questão
da permanência da epistemologia das tópicas musicais no campo de escuta
contemporânea, como prova dessa transcendência das questões significativas no curso de
uma história-cultural que redime os valores cognitivos com a qual discursamos sobre a
condição humana.
E no fim desse prólogo justifico a ideia de escrever um ensaio, pois este texto não
é nada além de uma especulação, simplesmente uma a mais, sobre a inefável capacidade
humana de projetar valores pela arte.

Da memória e da significação

Dois fenômenos que não necessariamente se articulam, porque estão em domínios


diferentes, mas podemos supor interligados neurologicamente de alguma forma, é a

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recorrência a uma memória musical espontânea estimulada por qualquer imagem,


lembrança ou situação, e a sua estetização como material dramático para representar em
arte os valores humanos dentro de determinadas sociedades. Prova disso é que no
decorrer do tempo é fácil comprovar a recorrência de certas palavras, traços, sons com
determinadas representações dramáticas.
No campo da música, esta percepção acabou estabelecendo, principalmente a
partir do final da década de 1950, uma discussão entre músicos, teóricos e estudiosos da
cognição em geral, dividido em dois campos de força, pelo menos, a partir de duas
questões: a música teria ou não um significado fora dela mesma? E, em caso positivo,
seria esse significado universal, determinante para a conformação da própria música
enquanto linguagem?
À guisa de introdução a esse assunto recobro algo que já é senso comum. Desde a
Antiguidade, o tema da significação da música é frequente, tendo sido tratada por muitas
gerações por correntes de pensamento diferentes, muitas de forma concomitante... E
assim as discussões promoveram postulados dos mais diversos.
Sem querer entrar no âmago desse denso e extenso campo de estudos, que se
confunde com a própria presença da música como patrimônio cultural de primeira ordem
da humanidade, quero pontuar alguns aspectos que tenho em mente para este ensaio.
Começo, perguntando em que medida os acervos sonoros que reconhecemos estão
determinados pelo nosso tempo-presente de forma arbitrária? É possível que mesmo sem
nossa consciência do fenômeno histórico, possamos replicar as mesmas fórmulas
expressivas de gestualidades musicais tinham no passado?
O primeiro aspecto importante, parece-me, é que tais questão se confundem com
o próprio exercício que assumo enquanto musicólogo; ou seja, considerar primordial
discutir a música como linguagem, historicamente definida, e determinada pelos
processos sociocomunicativos, como já afirmei acime a título de introdução, mas que aqui
assumo como suporte de minhas pesquisas. Porém, sempre há um detalhe importante
para se sublinhar. Isso porque, entendo que a música se estabelece como processo
sociocomunicativo a partir de sua linguagem. Isso não é pouco, pois considera toda a
energia criativa do que consideramos a “arte da música”.
Mark Evan Bonds no primeiro parágrafo de sua obra seminal Absolute Music, toca
em ponto muito sensível desse problema. Ele argumenta que para discutir qualquer
assunto pertinente à música,—e aqui incluo a questão da significação e seus efeitos no
processo sociocomunicativo—, devemos passar necessariamente pela discussão da
linguagem musical como fenômeno autônomo (gramática e sintaxe próprias): “We
cannot, after all, explain how music works without first establishing its identity, which is

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to say, without first conceiving of it in isolation, apart from all else, consisting only of
itself”(Bonds 2014, 1)1.
Este ponto, no entanto, abre uma outra questão: o que torna a música um campo
de entrelaçamento discursivo, se ela tem uma linguagem própria, não verbal? E essa
pergunta se torna importante na medida em que há correntes do pensamento musical
ocidental que partem da ideia de que essa restrição ao não-verbal a torna um arabesco
sonoro sem capacidade de, por si, criar significação; a significação seria um agenciamento
realizado “fora” da música.
O argumento que coloco aqui é simples. Toda linguagem suscita um acordo de
inteligibilidade. Ela se reconhece nas tramas de sons previamente definidos. Sem tais
acordos e convenções, construídos no vasto território das linguagens, não haveria
possibilidades/realidades de criar vínculos e identidades culturais. Com a música não é
diferente. O que pode ser questionado é a validade universal os enunciados musicais, logo
sua capacidade de criar vínculos de identidades. É evidente, inclusive, que o conceito de
identidade pode nos remeter a restrições culturais muito amplas e dispersas, como
falarmos de cultura ocidental; ou, pelo contrário, a particularidades específicas, como as
gestualidades da música cerimonial do Kuarup, das etnias do Xingu. Porém,
considerando os locais de cultura, são as identidades expressivas, ou seja, usos específicos
de simbolização através de objetos expressivos (cultos, música, artesanatos, danças etc.),
que permitem que uma comunidade específica possa atribuir inteligibilidade e valor às
linguagens. É nesse sentido, inclusive, que as culturas diversas podem, ou não,
reconhecer uma melodia associando-a a algum sentimento; ser funcional para uma
cerimônia, como o Natal; ou para jogos.
Assim, me parece que o ponto não é sobre algum valor em si da música, ou se ela é
uma linguagem ou não, mas sim como ela forma sentido sociocomunicativo quando
damos a ela vínculos representacionais para que participe da projeção de nossas
estruturas de sentido. Isso vale tanto para criar, interpretar, refletir ou mesmo ambientar
o espaço onde existimos. É o estar-no-mundo que determina os processos de
representação, seus simbolismos e, por fim, toda a capacidade acumulativa de
experiências cognitivas com a música e sua relação com os acervos que usamos no
cotidiano de nossa relação com o universo musical disponível. Mas não só, e eis aqui a
questão. Se é bem verdade que a semanticidade da música se realiza na nossa capacidade
de darmos a ela valor, o processo criativo se desenvolve a partir disso como uma espécie
de autopoiesis. Seja como Dahlhaus tratou em seu postulado de “presença estética” (1983,
3); seja reconhecendo a energia espontânea que torna a música uma forma de expressão
do humano, sem outra preocupação a não ser se manifestar.

1“Afinal, não podemos explicar como a música funciona sem antes estabelecer sua identidade, ou seja, sem antes
concebê-la isoladamente, além de tudo o mais, consistindo apenas em si mesma.” (tradução minha).

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Seja como for, a algo inexorável: a música é sempre um tipo de discurso. E como
tal deve considerar as relações de significados e significantes; os processos sociais de lugar
de fala e escuta; e, sobretudo, as condições de formação ideológicas nas quais os sentidos
são filtrados e se transformam em conteúdos.
Este é o ponto onde descolo a visão do pensamento canônico, observando que
sempre haverá algo que transcende a criação individual; algo que o demasiado humano
não liquida, e que movimenta uma cadeia de significações de campos expressivos e suas
restrições semânticas que são transmitidas de geração em geração, por diversas formas.
São valores que, como afirma Agnes Heller (1992, 4), formam parte de um processo de
construção que envolvem esferas sociais e suas hegemonias; conceituam partindo de usos
e costumes, a ponto de criarem estruturas morais; nunca desaparecem, pois sobrevivem
em camadas inatingíveis da cultura, seja em religiões, em comunidades específicas ou em
obras de arte. Portanto, valores históricos que se projetam como elementos de
organização do que chamamos “tempo histórico” e que, como afirma Heller, “(...) é a
substância da sociedade. [E] a sociedade não dispõe de nenhuma substância além do
homem, pois os homens são portadores da objetividade social, cabendo-lhes
exclusivamente a construção e transmissão de cada estrutura social” (1992, 2).
O segundo aspecto a se considerar é que qualquer linguagem é historicamente
localizada. Aqui é possível discutir como, e em que condições, as cadeias de significação
se projetam para além de seus tempos, criando ressignificações, reciclagens ou apenas
como modelo referencial. Aliás, este é um fenômeno que se intensifica sobretudo nos
tempos modernos da reprodução mecânica da música e que ganha contornos
incomensuráveis de trânsito de ideias pelas redes complexas de circulação. Em outras
palavras, a Era Digital hiperboliza o fenômeno, dando a ele uma dinâmica ainda pouco
estudada.
Posto isso renovo a questão para como o deslocamento dos conteúdos musicais de
“outros tempos” se sustenta “fora” de seu tempo histórico e de seu local de cultura. Parto
com a ideia de “presença estética” de Dahlhaus pelo simples fato que ela traduz bem uma
ilusão positivista que redime uma cosmovisão ainda potente no mundo atual ao
reconhecer que determinadas obras transcendem seu momento de criação e criam
impacto estético na posteridade2. Este é o ideal, entre outros, da Cultura Artística como
vontade de potência positiva de criar uma tradição que orienta e guia.

2 A ideia de “presença estética” de Dahlhaus é o fundamento para observar na prática de historização da música algo
que está além do exercício documental dos fatos. Para o musicólogo, a música se projeta, também, por obras seminais
que “capturam” uma tradução estética de forma tal que passam a determinar não só os modelos expressivos da
posteridade, mas a própria forma com a qual o ouvinte se relacionará com as obras a sua disposição, ou seja, seria o
motor propulsor de uma “tradição da escuta” (expressão minha): “For if we accept that the subject matter of music
history is made up primarily, if not exclusively, of significant works of music-works that have outlived the musical
culture of their age quently that the aesthetic presence of individual works will necessarily intervene in any account of
the past (whether as a selection criterion or as a factor in helping us decide what we want to know about), it then follows
that an account of the origins and later history of musical works will serve a dual function, illuminating the

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Pese a este comentário, reconheço que a tese de Dahlhaus tem grande valor, pois
dissocia uma história de fatos para uma história estética que impulsiona valores pelo
movimento de patrimonialização comum à cultura ocidental. No entanto, acredito que tal
tese desconsidera que a música seria formada por associações representacionais que não
dependem necessariamente de estar integralmente constituída como “obra”, ou presa
tão-somente a ideia de transmissão pelo cânone. É claro que a projeção de uma
gestualidade, um simbolismo, enfim, de uma expressão musical, se dá pelo impacto,
também, de obras singulares. Não há como, em tempos atuais, não relacionar momentos
solenes de felicidade à famosa melodia do quarto movimento da Sinfonia nº9 de
Beethoven. Porém, é fato que Beethoven tinha a perícia para potencializar inúmeros
recursos técnicos que o possibilitariam metaforizar não só o seu entendimento de
felicidade, mas, e principalmente, a uma ideia abstrata a partir de sonoridades-sínteses
de uso compartilhado entre compositores e ouvintes de sua época.
Assim, seria mais ajustado pensar que compositores com a perícia de Beethoven
ativavam uma memória acumulativa de esquemas que faziam parte de um campo
significativo de amplo alcance, de tal forma que ao se expressar usavam estratégias
(retóricas) que conectavam não só à sua própria subjetividade, enquanto músico de seu
tempo, mas a uma subjetividade coletiva que ativava vínculos de reconhecimento auditivo
estabelecidos por usos e costumes seculares da prática musical, através de padrões
musicais de amplo domínio.
Assim considerado, ou seja, a expressão musical não sendo uma propriedade
exclusiva da subjetividade, vamos para o ponto que opera, concomitantemente, a
consciência sustentada por um acervo adquirido. Para tanto, pensemos em uma
gestualidade de grande presença na música ocidental, o tetracórdio cromático
descendente. É inegável que ele tem sua potência expressiva independente do seu uso por
uma obra específica; ele é um campo representacional por si só e se estabelece por uma
trilha histórica que remete a acervos tão antigos como os cancioneiros palacianos da Baixa
Idade Média. Porém, ele se desdobra em muitos sentidos. No medievo vemos a
gestualidade cromática descendente (não necessariamente uma quarta cromática) nos
lamentos das sequências. Já no Renascimento aparece até mesmo como uma expressão
lexical de gênero (nas missas de réquiens ou árias de lamentos) e, concomitantemente, de
idioma (o baixo ostinato de lamento). A partir da segunda metade do século XVII, o
tetracórdio cromático descendente consolida-se como elemento de forte caracterização
dos afetos, até que, no estilo galante, tornar-se não só uma tópica, mas um léxico
fundamental do estilo eclesiástico para os momentos de grande agitação emocional, como
os réquiens. Resumindo, tal é sua força que se transforma em gestualidade com expressão
própria, independentemente do estilo. Mais que isso, transforma-se em marca sonora,

preconditions for a given work on the one hand and on the other shedding light on the implications of the present-day
listener's relation to that work.” (Dahlhaus 1983, 3).

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como podemos encontrar em tipos de canção popular, como as canções de saudades do


repertório da música “caipira”. Aqui, o cromático, que no princípio do gênero aparecia
como uma gestualidade introdutória das canções para falar da saudade do campo, se
incorpora como interjeição a ponto de ser uma das fichas simbólicas que identificam esse
gênero sertanejo. Logo, cabe a pergunta: quando estes signos se projetam no tempo e são
reutilizadas ou ressignificadas, no todo ou em parte, perdem a essência de sua
semanticidade?
É isso que a musicologia trata, hoje, de dimensionar. Um dos trabalhos admiráveis
sobre essa questão é o de Robert Gjerdingen. Em muitos artigos, mas principalmente no
livro The Music in the Galant Style (2007), Gjerdingen parte da premissa que a cognição
humana é especialmente apta para reconhecer padrões. Desta perspectiva apresenta a
música do século XVIII como uma forma elaborada de compartilhamento de esquemas
de contraponto, e como estes eram a base de um processo comunicativo cortesão
altamente sofisticado de escuta. O processo de assimilação não se daria, então, na
perspectiva que hoje assumimos da criação, mas sim como uma rede de trânsitos
expressivos que se sustentaria não só nos processos educacionais da arte, mas em
experiências sonoras decididas no entrelaçamento de muitas vivencias ordenadas pela
mentalidade cortesã (desde simbolismos locais até processos retóricos de amplo alcance).
De uma forma socrática, assim expõe a lógica da linguagem:
If, for instance, a galant composer studied a particular repertory of patterns
from an early age and employed them in his compositions for decades, would
those patterns not resonate for him when he heard them in compositions by
others? Would these acts of recognition not affect his experience of the music?
If he and his fellow composers shared nearly the same repertory of schemata,
would the repeated presentation of those patterns not affect their patrons'
experiences too? If these schemata constituted a musical medium of exchange
between court artisans and their patrons, did this aesthetic commerce not in
some way depend on at least a general recognition of these patterns by many of
the courtiers? Did familiarity with the normal presentation of these schemata
not determine standards for judging musical propriety, invention, and taste?
(Gjerdingen 2007, 16)3
Mas não só. Desde a década de 1980, muitos trabalhos dedicam-se a entender essa
linguagem por estratégias de padrões. A Teoria Tópica é uma delas. Focada
principalmente sobre a música setecentista, desenvolve-se a partir da teoria de Leonard
Ratner sobre a existência de “musical expressions” pré-composicionais que dariam
sustentação à forma musical. Ratner entendia que tais estruturas musicais eram

3 “Se, por exemplo, um compositor galante estudasse um repertório particular de padrões desde tenra idade e os
empregasse em suas composições por décadas, esses padrões não ressoariam para ele quando os ouvisse em
composições de outros? Esses atos de reconhecimento não afetariam sua experiência com a música? Se ele e seus
colegas compositores compartilhassem quase o mesmo repertório de esquemas, a apresentação repetida desses padrões
não afetaria também as experiências de seus mecenas? Se esses esquemas constituíam um meio musical de troca entre
os compositores da corte e seus patronos, esse comércio estético de alguma maneira dependia de pelo menos um
reconhecimento geral desses padrões por muitos dos cortesãos? A familiaridade com a apresentação normal desses
esquemas não determinou padrões para julgar a propriedade musical, a invenção e o gosto?” (tradução minha).

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decorrentes das formalidades da vida cortesã, adaptando a música, enquanto estilo de


escrita, a ambientes e situações específicas (Ratner 1980, 7). Estas poderiam ser
gestualidades, pequenas formas, como as danças, até conjuntos simbólicos mais amplos,
por ele denominados de estilos. Essas estruturas, quando utilizadas fora de seus meios
originais estabeleciam relações de verossimilhanças que sustentavam discurso por
correlação de sentidos, ou seja, um lugar comum que deveria ser domínio compartilhado
entre compositores, intérpretes e ouvintes. Era, evidentemente, um conceito emprestado
da definição aristotélica de topos, ou seja, o lugar do argumento. Na prática musical do
século XVIII, segundo observou Ratner, as tópicas seriam organizações restritas de
parâmetros musicais que articulavam a forma musical (tanto pelo uso de estilos como do
gênero), indexando situações existenciais da sociedade cortesã (sentimentos, dignidades
de fala, lugares e ações sociais) a afetos musicais, a partir de um uso retórico de um
"thesaurus of characteristic figures” (Ibidem, 9). Paralelamente, um caminho que
incorporava a semiótica musical passou a discutir a ideia das expressões tópicas,
inserindo-a no escopo dos estudos de Significação Musical. Aqui destaca-se o trabalho de
Robert Hatten, que a partir de uma forte abordagem da música como discurso,
desenvolveu conceitos importantes como a questão da marcação, tropificação e gêneros
expressivos.4
Em síntese, a escuta induzida por gestualidades de forte expressão que se projeta
no tempo por si só enfraquece a tese de Dahlhaus sobre uma “presença estética” a partir
de “obras”. No entanto, não a considero equivocada, e sim incompleta. Considerasse
Dahlhaus o efeito da longa duração de uma história cultural talvez desse mais valor a uma
visão que não lhe era estranha: o efeito do pensamento retórico na assimilação de campos
expressivos de forte capacidade semântica. Dahlhaus não dimensionou, ao meu entender,
um fundamento primordial na consciência crítica dos antigos: a ideia de uma razão
universal que poderia ser expresso por uma lógica esquemática, mas flexível, de tal forma
que restringiria todo e qualquer argumento partir de modelos predefinidos que dariam
sustentação a situações concretas, e a estratégia de enunciação, a partir de uma ideia de
verossimilhança. Em outras palavras, todo particular tem sua solução a partir do
universal. Assim, a tese da “presença estética” ganharia peso até mesmo considerando
momentos na qual a Retórica não funcionava mais como campo de validação criativa, mas

4 Em dois livros escritos em 1994: Musical Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation, and Interpretation
Advances in Semiotics e, em 2004: Interpreting Musical Gestures, Topics, and Tropes: Mozart, Beethoven, Schubert,
Robert Hatten desenvolve o que considero a mais sofisticada teoria sobre o processo de significação musical da
musicologia contemporânea. Em síntese, parte da ideia da “marcação” de um elemento expressivo que não só o
transforma, mas indexa uma obra a tal ponto que pode criar um novo gênero, na medida da efetividade dessa marcação
para a semantização de uma ideia. Resumidamente, a “marcação” se desenvolve a partir do princípio de tipo e token.
Tipo é a estrutura original; Token é a especificidade dessa estrutura, conseguida a partir de uma inserção que restringe
o sentido original. Tropificação é um conceito de transformação tópica a partir de uma ideia de fusão de campos
expressivos. Ela se dá principalmente na forte identificação de certos parâmetros (léxicos) com o campo expressivo
original. A partir disso, a presença desses elementos em outras tópicas transformaria o sentido original,
individualizando-o. Por fim, gêneros expressivos é quando determinada estrutura dramática é transformada por
reiterados usos tópicos, a ponto de criar uma derivação assumida. Por exemplo, a escrita para a abnegação. Ela seria
sempre uma “fusão” de ombra, tempesta e pastoral.

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ao mesmo tempo não havia soluções a não ser romper com as questões semânticas da
música, como perceberam os compositores das diversas vanguardas de meados do século
XX. Porém, ironicamente para os vanguardistas, justamente foi numa das linguagens cara
a estes movimentos, o cinema, que os padrões retóricos voltaram com força.

Do cinema e a reciclagem da Musica Poetica

É simples constatar o fenômeno da reestabelecimento dos padrões das tópicas


retóricas galantes nas trilhas musicais da cinematográficas.5 Apenas para despertar
curiosidade, citarei abaixo três trilhas onde poderemos ver nitidamente como se projetou
o uso de recursos retóricos musicais do passado sem muitos pruridos. Esta será a porta
de entrada para a discussão sobre as amarras dessa apropriação diante uma necessidade
objetiva: o movimento da catarse dependia, além da imagem, da potencialização que dava
a música. E como na arte lírica, os campos expressivos da música eram fundamentais. É
nesse sentido que as tópicas galantes retornaram quase sem reciclagem, pois já eram
compartilhadas como uma cultura assimilada, enraizada ao longo de um profundo
processo de significação de valores, tanto pelos gêneros da música vocal (inclusive pela
canção urbana), como pela música instrumental.
Comecemos com usos de campos expressivos usados de forma a não deixar dúvidas
de seu uso. No tema de Guerra nas estrelas (Star Wars, 1977)6, John Williams usa o
estilo militar em sua plenitude, a começar com a eloquência dos rufares de tambores, uma
marca identitária inequívoca do estilo.7 Mas não só isso, se compararmos o tema de Star
Wars com Marte, do Os planetas (1916), de Gustav Holst, veremos que há mais coisas
envolvidas no uso do estilo militar do que a iconicidade do rufar dos tambores, assumida
nas duas obras. As semelhanças de escrita são tantas que somos tentados a admitir a
possibilidade de uma intertextualidade entre as obras, ou, o que prefiro, pensar que John
Williams tinha tanto domínio do estilo militar que as obras realmente poderiam
tangenciar pelo uso tópico recorrente. Isso por um lado. Por outro, a música de John

5 Juliano de Oliveira afirma que: “as formas de representação musical passaram por um estágio de desenvolvimento e
maturidade da ópera para o poema sinfônico e, ainda no século XIX, tanto o teatro popular quanto às experiências
ópticas que precederam o cinema se apropriaram do repertório criado para o acompanhamento musical. Uma vez que
as projeções cinematográficas se desenvolveram nesse contexto, razões históricas, argumentos pragmático-estéticos e
psicossociológicos são razoáveis para justificar a pertinência da música para o cinema. Dado que as primeiras projeções
eram parte das atrações apresentadas nos teatros de variedades, o acompanhamento musical delas, destarte, seguia o
mesmo modelo dos demais espetáculos”. (Oliveira 2017, 119). Alinho-me com Oliveira, inclusive sabendo de que a
prática da música nas primeiras décadas do cinema (até ca. 1928) empregavam músicos de orquestras que,
evidentemente, traziam as práticas e repertórios para dentro da trilha sonora dos filmes, executando in loco peças das
mais variadas origens.
6 WILLIAMS, John. Finale (From "Star Wars: A New Hope). Youtube. Disponível em
<https://youtu.be/Vz69BumnD5g>. Acesso em: 18 fev. 2020.
7 Para uma melhor compreensão desse estilo consulte MONELLE, Raymond(2006) No canal de Youtube do Laboratório

de Musicologia da EACH-USP (https://www.youtube.com/watch?v=1MrbpdeFFeU&list=PLGXCw1ReUmTWokA


M6n2MS5UEHOo_TVMy7), aonde se poderão encontrar alguns excertos que exemplificam o estilo.

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musical. MusiMid 1, no. 1 (2020): 46-70.

Williams recorre a outra estratégia narrativa, como a passagem, a partir do minuto 4:44,
onde há uma pequena paródia da peroração da Ouverture 1812 de Tchaikovsky. Poderia
ser essa paródia uma forma intertextual em nome do caráter épico, que ligaria a ficção da
guerra interestelar e a resistência russa à invasão napoleônica, em 1812? É bem provável
que sim. Independentemente disso, o que é claro são os usos de ferramentas de
significação como a intertextualidade e retórica tópica, justificados pela referencialidade
assimilada na cultura musical do senso comum da sociedade massificada.
Outro fenômeno interessante está no uso de determinadas gestualidades que,
durante séculos, foram sendo identificadas com emoções específicas. Vejamos aqui a
repetição em circulatio de passagens em semitons. Esta gestualidade simples sempre foi
uma figura retórica de grande poder de persuasão para momentos de suspense ou aflição
dentro dos estilos disfóricos, como a ombra e a tempesta8.
No quadro Cabana de Baba Yaga do Quadros de uma exposição (1874), de Modest
Mussorgsky, esse uso consegue um efeito poderoso, dentro de uma tópica de tempesta,
pois o semitom é muito eloquente como impulso de uma cena musical que mimetiza o
voo de um ser sobrenatural das florestas, que tanto pode acolher como maltratar os
humanos. Quase como uma citação, vemos essa gestualidade usada por John Williams,
agora no tema de Tubarão9. Arriscaria sugerir que a força musical com a qual Mussorgsky
apresenta o perigo iminente do voo da bruxa parece ter sido o motivo que aproxima John
Williams de Mussorgsky.
Há uma terceira categoria de uso retórico de elementos assimilados numa longa
tradição semântica da música: o uso abstrato dos campos expressivos. Nesta categoria um
caso exemplar está no musical Mary Poppins, com canções dos irmãos Richard e Robert
Sherman. Nesse musical identifico dois problemas importantes usando correlações de
sentido que poderiam ser usados dentro do conceito das Teorias tópicas.
O primeiro problema entraria na discussão das tópicas pela janela adaptada do
termo “estilos apreendidos”10,. pois interpreto que a estratégias narrativas, o que

8 O autor referencial para o entendimento dos estilos disfóricos é Clive McCleland (2012) Para excertos de uso destes
estilos consulte-se: https://www.youtube.com/watch?v=9WwiO7scm6A&list=PLGXCw1ReUmTV8FxZo_8OcqQdge
Ia1m16p.
9 Jaws 1975. Direção e roteiro: Steve Spielberg. Peter Benchley & Carl Gottlieb Peter Benchley
Carl Gottlieb. Produção: Richard Zanuck & David Brown. Universal Pictures.
10 Por Learned Styles, Ratner entende toda um agama de escrita para a liturgia que depende de concepções diferentes

do uso do contraponto, por isso a ideia de “aprendido” (Ratner 1980, 23). Já Keith Chapin expande esse conceito através
de uma janela hermenêutica interessante ao associar a escrita do contraponto polifônico, especificamente o cânone, à
um tipo de uso na forma minueto: “The tradition of sophisticated galanterie would later flow into the canonic minuet,
which had achieved the status of a subgenre by the end of the eighteenth century. When E. T. A. Hoffmann composed
his Symphony in E flat major in 1806, he showed off his learning and his modernity with just such a movement. Yet the
distance between the simplicity of the minuet and the learn- edness of the canon may also have provided musicians
with the opportunity to stake positions on high and low stylistic spheres” (Chapin 2014, 313). Em outras palavras,
poderíamos expandir a ideia de “aprendido” para técnicas assimiladas de outros gêneros e estilos além do uso
contrapontístico do estilo eclesiástico. Nesse sentido, qualquer gramática específica (por exemplo, os elementos
característicos de uma “abertura francesa”) usadas em outros contextos poderia ser considerada um estilo “aprendido”,
pois possibilitaria uma correlação de sentidos com os significados sociais/expressivos do gênero original.

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condiciona o caráter das canções, se vale do estilo típico de operetas, que é o uso das
danças rústicas como base de toda a escrita. Aliás, nada mais aparente do que isso do que
a cena The Penguin Dance. Tudo nesse número remete ao frescor da ópera ligeira do
século XIX. Diria até mesmo que essa cena tem grande similaridades com algumas cenas
de La Veuve Joyeuse, de Franz Lehár. Considerado assim, podemos pensar num tipo de
empréstimo de estratégia expressiva das operetas para as cenas musicais de Mary
Poppins. O que não seria comum, pois os musicais americanos tinham estruturas
dramáticas diferentes das operetas populares no começo do século XX, mas, também, não
seria esdrúxulo, até porque no final da década de 1920, quando o cinema sonorizado
tornou-se uma realidade, não foram poucos os que trataram de pensar modelos para
colocar em cena musicais, entre eles, Ernest Lubitch, que tratou de adaptar as operetas
às telas em Love Parade (1929). Ainda na década de 1940, não eram raras as adaptações
diretas dos palcos para as telas, como La Casta Susana de Benito Perojo (1944), escrito a
partir do libreto de Georg Okonkovski, Die Keusche Susanne.
Partindo deste ponto, ou seja, a referencialidade das operetas na construção dos
caráteres das canções, há uma em particular que remete a estruturas mais complexas do
que o empréstimo dos estilos dos números de operetas. Por ela percebo um
desdobramento de referências sedimentares, que nos remete a um estado de correlações
de profundo alcance no imaginário simbólico de personagens arquetípicos. Por sua
amplitude de significação, transcendem não só o tempo, mas os próprio gêneros a que
estão associadas. A canção em questão é a valsa Chim Chim Cher-ee.
Este é um belo exemplo da plasticidade referencial dos campos expressivos
lapidados na esteira do que podemos chamar de tradição cultural da música ocidental. A
dimensão dessa plasticidade é tal que poderíamos pensar em agenciamento virtual, ou
seja, quando o sentido da obra é expandido a partir de relações significantes que fogem,
inclusive, do projeto expressivo do compositor.11
Tratarei de desenvolver essa ideia começando no que considero aparente; aquilo
que possivelmente se desvela a alguém com uma razoável perícia de escuta: a questão do
gênero e a relação entre tonalidade e afeto. O primeiro ponto é o lugar comum, pois,
considerando uma escuta treinada, é bem provável que uma valsa em tom menor suscite
a percepção de drama-jocoso. Isso, inclusive, seria intensificado se a percepção pudesse
entender a canção, também, reconhecendo um certo caráter de dança rústica

11 Em seu último livro, Robert Hatten justamente discute a ideia de agência virtual como um fenômeno importante no
processo da discursividade. Em suas próprias palavras: “a virtual agent in music is not an actual agent, but its efficiency
lies in its capacity to simulate the actions, emotions, and reactions of a human agent. More theoretically, the virtual
addresses the gap between music’s actual material or physical aspects as (organized) sound and those both irreducible
and emergent semiotic inferences that enable us to hear music as having movement, agency, emotional expression, and
even subjectivity. Thus, a virtual agent in music can never be actualized in any literal sense (as in “it’s virtually/almost
an actual agent; just give me time for a finishing touch”), but a virtual agent can be interpreted as functioning in
important ways like an actual agent—for example, having a degree of independent action. A virtual agent can be further
embodied with other humanlike characteristics. It can also be fictionalized as an actor in a dramatic trajectory and even
internalized as part of a subjectivity, akin to an active stream of consciousness.” (Hatten 2018, 18)

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concomitantemente a “restrição” do enredo específico, assim como, do gênero que lhe dá


suporte, a opereta. Supondo que essas conexões fossem feitas por esta ordem de
restrições, ainda faltaria elementos para pesarmos os alcances possíveis, a partir do logos
da canção em relação aos modelos tradicionais de representação do universo da magia
nos cânones da música ocidental.
Primeiro comecemos com o que poderia ser o mais superficial: a ideia das festas
das bruxas. Qualquer imagem tradicional do Sabbath, ou mesmo de cenas
hollywoodianas, bastaria para comprovarmos danças rústicas como icônicas na sua
representação. Porém, essa relação é muita mais complexa, e isso justifica um esforço
para sustentar a argumentação central, que é a questão da transcendência de valores
significantes na música ocidental. Assim, faço nas próximas linhas uma digressão
primeiro para delimitar algo o tema do rústico. Depois buscarei caracterizar/taxonomizar
o que considero a formação tópica para personagens mágicos, como a feiticeira Mary
Poppins.
Inicialmente, dito de maneira genérica, desde a Antiguidade personagens
mitológicos vinculados à caça, logo aos campos, eram cultuados como fontes de magia
pela crença que poderiam dominar a Natureza e seus seres. Diana foi, na cultura
mediterrânea, a principal deusa a encarnar essa crença. A princípio, seus templos eram
construídos nas florestas e sua liturgia praticada por mulheres. Assim, secularmente
identificada como mediadora da força da Natureza, a importância do culto à Diana pode
se medir por dois fatos: a grandiosidade do Templo de Éfeso, e por ter sido a única deusa
da mitologia grega incluída no Novo Testamento (Atos, 19). Como deusa da magia, Diana
se perpetuou desde a Idade Média por cultos pagão como a Stregoneria (a Vecchia
Religione), sendo associada a uma procissão de seres sobrenaturais que, em noites de lua
cheia, partiam das florestas com muitos cantos e danças, invadindo casas de camponeses
para praticar adivinhações, achar objetos perdidos, receitar remédios e também auxiliar
com magia na resistência a tiranias. Mais que isso, Diana era a deusa da proteção à
maternidade, dos camponeses, da vida rural e do rústico.
Observando, assim, como a mitologia condensa a ideia de força vital à Natureza,
tudo o que se vinculava a esse estado bruto sem a mediação da educação do conhecimento
normativo, desde animais, pessoas simples e até a seres mágicos como as bruxas,
encontrava representação por verossimilhança num lugar comum, o bucolismo. De
Teócrito à Virgílio, e deste aos árcades setecentistas, o bucolismo definia uma normativa
associativa: o bucólico é redentor das coisas incompreensíveis; é o espaço de resgate da
pureza da alma; é o lugar dos amores idealizados. Quando Virgílio escreve “Ó Títiro, tu
que estás recostado à sombra da copada faia, modulas uma cantilena rústica na delgada
flauta” nos remete à mítica ideia de que pastores teriam saberes, inclusive sobrenaturais,
além do cognitivo possível das elites palacianas. Aqui, o pastor era a conexão legítima
para que um anseio qualquer, inatingível na lógica das razões existentes, encontrasse

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solução pelas forças da Natureza ativadas por espíritos “em estado de Natureza”. Isso se
expande para todos os tipos de curandeiros; para entidades como os “pretos velhos”,
médiuns, videntes como magos e astrólogos; e, inclusive, para a legitimação da “sabedoria
popular” como uma das fontes de estabilidade da sociedade contemporânea; inclusive do
cancioneiro popular. Aqui há a força de uma secular valorização da intuição que se
amplifica num mundo percebido por uma kenosis, que se expressa tanto na conexão com
o divino, como no das forças da natureza; intuição e revelação, nesse sentido, são atos da
mesma espécie. Em síntese, há algo que encanta a humanidade que é acreditar numa
força primordial que redime a todos a um único ponto: a criação como Natureza.
Assim, se é bem verdade que a ideia do rústico como fonte de uma sensibilidade
imaculada, pois seria parte da expressão de uma metafísica que potencializaria uma
proximidade a um estágio de pureza, na medida que a educação do “gentleman” cortesão
passou a ser fundada num acervo literário da Antiguidade Clássica, essa ideia ganhou
novas potências. A própria categorização na arte cortesã do vínculo de danças e canções
populares a uma ideia de rústico se justifica nesse resgate do classicismo da Antiguidade.
Segundo, essa ideia se expande para estilizações retóricas de tal forma que danças
populares, desde a mais antiga citação do gênero, como a estampie, até a sua estilização
como tópica pastoral (ver Monelle 2006, 220 e seg.) passaram a ser consideradas dentro
de um acervo simbólico da representação de pessoas fora da lógica das cortes 12.
Tomando, como referência antigas religiões, como o Orfismo, podemos vislumbrar
a potência dessa estética partindo do conceito metafísico, ou seja, a música para o estado
“puro” dos sentimentos só poderia ser rústica, pois traria em si um elemento primaz que
induziria a sensibilidade humana ao ideal de estado de natureza, “domando-a”. O vínculo
dessa doma era o homem predestinado pelas divindades, como Orfeu. Essa ideia, que
aliás está tanto no Orfismo como no judaísmo através de David, se espraia em vários
paradigmas que sustentam o pressuposto da música como transformadora de uma
realidade concreta, sendo exercida por pessoas em estado de sensibilidade condicionada
a não ser pelo estado de intuição com uma harmonia universal fora do alcance da ação do
homem político e protocolar.
Desta forma, impregnada desde tempos imemoriais com um sentido metafísico de
transformação da alma, chegamos ao vínculo do rústico a seres mágicos, já que estes
acessariam a força vital que possibilitaria a transformação da realidade por uma

12Aqui vale recorrer ao Orfeu, de Monteverdi, para exemplificar que esse axioma se faz presente já no primeiro ato da
primeira ópera, onde ninfas se juntam com pastores em uma animada tópica de dança rústica (ritornello do coro
Laciate i monti) com a qual as ninfas dançam para celebrar o enlace do semideus com Eurídice. Tópica porque não era
uma dança original, mas uma estilização alcançada por usos de parâmetros específicos como o ritmo em tactus binário,
com com prolação perfeita—sesquialtera—a multiseccionalidade da forma (o que induzia ao simulação das
coreografias); as escolhas da orquestração; a busca da simplicidade melódica; o afeto eufórico. Aliás, Monelle aponta
que os compositores da primeira era da ópera não tinham a preocupação com a legitimidade/apropriação da referência
folclórica das danças, e sim a perspectiva da verossimilhança: “Indeed, the first opera composers affected a kind of
musical simplicity that had nothing to do with folksong research.” (Monelle 2006, 220)

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confluência da alma com a harmonia universal. De certo modo, assumimos isso quando
acreditamos que a música, e o músico, possuem a chave sensível dos afetos humanos, tal
qual expõe Virgílio na voz de Títiro, ou tantos outros, como Alessandro Striggio no
prólogo de Orfeu, musicado por Monteverdi: “Io la Musica son, ch'a i dolci accenti so far
tranquillo ogni turbato core, ed or di nobil ira, ed or d'amore posso infiammar le più gelate
menti”. (Striggio [1615] 2012, 2) 13.
Em síntese, tanto em Virgílio, como em Striggio/Monteverdi, Schikaneder/Mozart
(por Papageno), ou mesmo no cancioneiro popular contemporâneo, o homem em estado
de natureza sempre é a redenção via ideal de simplicidade diante das complexas
armadilhas da vida protocolizada. E assim se projeta, por que não, em personagens
“ordenadores/redentores” como Mary Poppins. Nela, o estado de natureza não está nos
costumes, pois se apresenta como uma governanta burguesa tradicional, mas na arte da
magia. Portanto, uma canção de caráter rústico no prólogo da história é perfeita para
ambientar o chamamento de uma entidade mágica, que usará sua arte para trazer
harmonia a uma família, até então disfuncional.
Logo, considerando que a construção de uma ideia de “música rústica” ou “estilo
rústico” vincula-se ao “estado de natureza”, e este se apresenta como ideia-força da
redenção face a problemas que a razão não alcança, iniciar um conto de fadas com uma
canção de caráter rústico não só é um acerto retórico, como uma sutileza fina. Isso porque,
o rústico “marca” essa canção para ativar as correlações desse caráter com um estado de
expressão redimido no espontâneo, na pureza, ou na compaixão. Assim, criando um
significante que se constitui desde remotas épocas como expressão oriunda de uma
conexão com um estado de sensibilidade transformadora, a canção rústica resume Mary
Poppins, como os operistas faziam nas aberturas de ópera, desde a época de Mozart.
Porém, é importante fazer um outro exercício de desconstrução das formas de
representação das bruxas para alcançar outra sutileza de discurso velado na canção,
independentemente se foram propositais ou mero fruto de uma subjetividade virtual
construída “fora” da canção.

Da transcendência pelas tópicas: o caso do imbrogliato.

Se tomarmos as primeiras grandes óperas que formam o repertório canônico da


música ocidental veremos que as bruxas eram geralmente escritas usando campos
expressivos associados à ombra ou tempesta. Isso porque, parece se projetar na música a
ideia das bruxas como foi moldado a partir do século XVI: seres malignos que renegavam

13Eu sou música, que com sotaques doces/Posso acalmar todo coração perturbado/E com raiva nobre e com
amor/Posso inflamar as mentes mais frias. (Trad. minha)

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Deus e cometiam os mais fortes ultrajes morais do ponto de vista cristão, como o incesto,
a antropofagia, assassinatos por envenenamento ou adivinhações de mau agouro.
Ademais, a bruxas eram associadas a profecias que induziam conflitos ou, no mínimo,
discórdias que levariam a rupturas de laços amorosos ou de poder. A melhor tradução
dessa tipologia são as bruxas de Macbeth, de Shakespeare.
Quanto à música, sugiro percorremos a forma com a qual Handel trata a sua
Medeia, na ópera Teseu (1713). Poderíamos partir de um autor também canônico para os
dias atuais, como Purcell, mas por Handel é possível vislumbrar melhor muitos elementos
que se projetaram no cânone ocidental sobre a relação semântica-musical das bruxas.
Arrisco dizer que sua geração tenha sido a que moldou essa estrutura expressiva, já que a
tipologia musical desses personagens, senão muitos, formam o “lugar comum” na qual
não só estão elementos representativo de feiticeiras como Medeia, mas também em
cantos de outros tempos e universo musical, como o canto no qual Bert evoca Mary
Poppins.
A primeira consideração que pretendo sublinhar é que Handel, ao contrário de
Purcell para as bruxas de Dido e Enéas (1688), não vincula Medeia a um campo
expressivo único. Ele escreve as árias numa perspectiva de mostrar a instabilidade
crescente da feiticeira até o estágio da profunda ira, que ocorre no Ato V de sua ópera
Perseu.
A primeira ária que revela o surgimento da raiva em Medeia é O Stringerò nel sen.
É uma cena que a feiticeira se mostra contrariada com o Rei Egeu e pretende provocar
uma vingança a partir de Teseu. Escrita em modo maior, porém com a seção contrastante
da ária da capo em modo menor (o que é uma indexação para toda a obra), a sua tipologia
está distante das ombras e tempestas com o qual os compositores da geração de Purcell
tratavam os seres mágicos até então. O caráter que Handel usou para tratar do espírito
instável de Medeia, ao contrário de Purcell, não de ira, e sim de certa euforia. Esta
caracterização, aliás, é a mesma que usa Alessandro Scarlatti no intermezzo Palandrana
e Zamberlucco (1716) (ária A me strega) e que consagrará Pergolessi vinte anos mais
tarde, no trato das cenas de um enredo que trata das confusões amorosa entre Uberto e
Serpina (La Serva Padrona, 1733). Uma simples comparação entre O Stringerò nel sen,
de Handel, e ária Son imbrogliato io già, de Pergolesi, serve para revelar a estratégia de
Handel: uma retórica tópica para cenas de confusões entre amantes. É desse ponto que
parte Handel, a ideia do imbróglio, ou seja, Handel parte de forças que ativam o desatino,
e seriam iguais tanto para bruxas como para amantes: a frustração, a rejeição, o ciúme,
enfim, afetos negativos, desatando forças irracionais. A questão é o desenlace.
A questão do imbrogliato é interessante na medida em que ele é
fundamentalmente um tipo de tópica de tempesta, ou seja, para momentos de grande
agitação. No entanto, em modo maior, torna-se recorrente em cenas de confusões
amorosas muitas vezes fúteis. Pergolesi é um mestre dessas tempestas do amor

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corriqueiro. É um uso bastante interessante, até porque se adapta às comédias, ou seja,


uma tempesta (que denomino imbrogliato) para histórias corriqueiras, sem o peso dos
grandes gêneros épicos. É, de certo modo, uma tempesta escrita em estilo baixo.
Sublinhar essa tópica é necessária porque muitas músicas para cenas de bruxas
podem oscilar, e de fato oscilam, entre o imbrogliato e a tempesta. Handel, demonstra
com sua Medeia o domínio dessa dicotomia. Se no momento da primeira frustração da
feiticeira ele escreve em estilo imbrogliato, pois é uma cena sobre um ciúmes corriqueiro,
quando a frustração se transforma em ira, como no quinto ato, não abre mão da ombra e
da tempesta, como se pode ver ária Moriro, ma vendicata (Ato 5, Cena 1). Cantando
alternando ombra e tempesta, Medeia se prepara para lançar toda a sua fúria sobre Egeu,
Teseu e Agilea. Em síntese, seria a instabilidade do humor disfórico que justificaria, para
Handel, as transições rápidas do imbrogliato para a tempesta, e vice-versa.
Se projetarmos situações para a mesma personagem, ou de caracterização
semelhantes no decorrer dos tempos da música aristocrática-burguesa ocidental,
veremos que este princípio de jogos rápidos entre imbrogliato e tempesta se estabelecem
fortemente na representação das bruxas. Podemos observar essa escrita, por exemplo, na
ópera Macbeth, de Verdi (1847). Verdi abre a ópera com um coral de bruxas construído
basicamente sobre rápidas modulações entre imbrogliato e tempesta. Aliás, é
interessante notar como Verdi controla o grau de intensidade da tempesta para não
transformar a cena num Dies Irae. Para isso, em poucos compassos, caminha da tempesta
mais escolar para a o imbrogliato. Consegue assim um ambiente musical para as bruxas
dentro do cânone herdado das comédias setecentistas: velhacas que tomam a maldade
como um jogo “divertido”.
Este princípio é utilizado, também, em outras duas obras canônicas: Sonho de uma
noite de sabá, da Sinfonia Fantástica (1830), de Berlioz; e O Aprendiz de feiticeiro
(1897), de Paul Dukas. Nestas obras, a instabilidade entre a tempesta e o imbrogliato
ressalta este caráter sarcástico característico das bruxas. Caráter que Verdi também
explora quando, no final da cena supracitada de Macbeth a transição entre
tempesta/imbrogliato está escrita como um scherzo que joga a cena para um frenético
final, mas mais que isso, nos dá a sensação de uma dança frenética, ou seja, recorre ao
arquétipo do Sabbath.
Aqui temos um ponto interessante, pois a estratégia desses três compositores
canônicos nos mostra algo bastante eloquente para a dramatização das bruxas: a “leveza”
com que planejam suas profecias/estripulias. Ao fim e ao cabo este é o motor do drama
de Shakespeare: a frivolidade da maldade. Talvez seja esse o ponto que acaba sendo
modulado para o que encontraremos em muitos personagens sobrenaturais das operetas
que se projetaram no cinema ligeiro: o frívolo torna-se jocoso e se cristaliza um arquétipo
da jocosidade da magia. Assim, não é de se admirar que, no que o cinema tem de opereta
da Belle Époque, as bruxas não são apenas personagens malignos e sorrateiros; são

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personagens simpáticos, como Mary Poppins. Em síntese, novamente o imbrogliato


ganha força, pois representa bem o burlesco... e a dança rústica, ganha espaço vem a
reboque.
Por fim, cabe desenvolver que Mary Poppins, em 1960, já era um personagem
arquetípico, uma apropriação cinematográfica que nos faz esquecer o quanto o cinema
bebeu na fonte das operetas da Belle Époque. Aliás cenas de feitiçaria, encantos, magia
negra e elementos do macabro, como os zumbis contemporâneos, sempre foram muito
exploradas pelo cinema hollywoodiano. A relação com a música, no entanto, varia de
acordo com o gênero. Nas comédias, ou mesmo no tragicômico, incontáveis cenas
ilustram bem esse vínculo de feitiçaria com danças frenéticas, canções folclóricas de
lugares considerados exóticos ou com tópicas de danças rústicas, como em Mary Poppins.
Já nos filmes de suspense e terror, bruxas estão na medida exata de ombras e tempestas.
É fácil constatar isso. Comecemos com um clássico que nos atinge em tenra idade,
ou seja, no momento em que estamos construindo nosso referencial dramático do mundo:
o desenho Bela Adormecida (1959). Aqui há um uso exemplar da tópica de Tempesta
numa cena onde a perversidade da feiticeira atinge seu grau máximo (o que nos faz
lembrar a estratégia de Handel para Medeia). Falo da cena na qual Malévola enfrenta o
Príncipe.14 A tensão da perseguição que leva a feiticeira a desabar num precipício é toda
construída na relação semântica da música agitada e frenética que possibilita o estilo de
tempesta. É possível imaginar essa cena numa tópica militar? Provavelmente não se
ajustaria a um conto de fadas que trabalha o heroísmo frente a um ser maligno e mágico
que suscita perigos inusitados.
Além das tempestas, outras gestualidades simbólicas são resgatas do passado
clássico-romântico para os filmes, como as passagens rápidas nos agudos, mimetizando
os voos de bruxas (o que já se via em Purcell), ou os ambientes macabros como muito bem
caracterizaram compositores do final do século XIX. Em The Skeleton Dance (1929)15,
uma breve peça de cinema de animação produzida na aurora do filme sonoro, o universo
do macabro é tratado musicalmente na mesma perspectiva expressiva adotada por
compositores românticos. Aliás, o próprio autor da trilha musical, Carl Stalling, afirmou
que tinha como modelo a Dança macabra (1874) de Camille Saint-Saëns. Neste poema
sinfônico, inúmeros arquétipos musicais da morte estão presentes, desde o trítono com o
qual o violino obligato inicia a obra, até o uso tópicas de danças rústicas como tema. Vale
destacar, também, a paródia de um Dies Irae do repertório gregoriano, o que empresta
erudição, ou ironia, à concepção sobre o macabro por Saint-Saëns. Porém, o que parece
ser importante nessa obra de Saint-Saëns, para os compositores de Hollywood, é

14 A Bela Adormecida 1959. Direção e roteiro: Les Clark; Eric Larson & Wolfgang Reitherman. Erdman Penner.
Produção: Walt Disney Production. Buena Vista Distribution. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=MODMlFVX_XM
15 The Skeleton Dance 1929. Direção, roteiro e produção: Walt Disney. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=vOGhAV-84iI.

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relacionar o macabro com um pulsar de danças rústicas ternárias—neste caso topificada


como uma valsa acelerada—e, a sutileza, descaracterizada pelo jogo rítmico. É essa
estratégia, aliás, que dá ao macabro um caráter tragicômico com o qual o século XX lida
com o tema: veja-se O grande macabro, de György Ligeti (1977) ou o videoclipe Thriller
de Michael Jackson (1982).
Avançando no tempo, podemos relacionar essas características citadas acima à
inúmeras obras escritas para o cinema, a começar com John Williams em A dança do
demônio (1987)16 para trilha musical de As bruxas de Eastwick (1987)17. A
particularidade dessa obra é o uso mais explícito de tópicas de dança rústica, seguindo os
modelos de Saint-Saëns. Outro bom exemplar é Hocus Pocus Parody, do filme Hocus
Pocus (1993)18. Aqui, três irmãs feiticeiras preparam encantos num sprechgesang
intercalado com um refrão em forma de marcha. Aliás, a marcha era comum na
representação do macabro, como se pode ver em Totentanz (1849), de Franz Liszt.
Outro uso para a representação do sobrenatural, como disse acima, são canções
folclóricas de lugares que seriam considerados exóticos para o público americano.
Vincular o estranhamento civilizacional à representação jocosa de bruxos, fantasmas ou
feiticeiras parece ser uma retórica poderosa para Hollywood. Em uma cena do filme
Beetlejuice (1988)19, Tim Burton, célebre pelas cenas em ombra (veja Batman que
inclusive o tema musical parodia o tema do primeiro movimento da Sinfonia nº 8 de
Schubert), usa uma canção jamaicana para coreografar uma cena onde um casal de
fantasmas, com o auxílio de um “bio-exorcista autônomo” (Beetlejuice), tenta assustar os
novos compradores da casa onde viviam antes de morrer. O deslocamento dessa canção
de trabalho para dentro da cena potencializa muitas interpretações, mas principalmente
o contraste entre o esnobe e o rústico, em forma de coreografia. De certo modo, há,
também, uma camada de ironia colonial, ao associar os métodos de um fantasma
decadente, como Beetlejuice, a uma canção folclórica jamaicana.
Destaco, ainda, o uso de estratégias complexas usando referências cruzadas através
de intertextualidades, citações e tópicas, como a de Stanley Myers para a trilha de The
Witches (1990)20. Nessa partitura, o que é aparente é relacionar o ambiente jocoso das
bruxas com a ópera bufa, ou seja, Meyer cria uma intertextualidade interessante, pois se
utiliza de um gênero notadamente vinculado aos imbróglios21. A partir dessa

16 Williams, John. Devil’s Dance, 1987.. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WuoCDrUN77s


17 As Bruxas de Eastwick 1987. Direção e roteiro: George Miller. Michael Cristofer. Warner Bros.
18 Hocus Pocus 1993. Direção e roteiro: Kenny Ortega. Mick Garris & Neil Cuthbeth. Walt Disney Pictures. Disponível

em: https://youtu.be/jFA-2hvJZAk
19 Beetlejuice 1988. Direção e roteiro: Tim Burton. Michael McDowell et all. The Geffen Film Company. Disponível em

https://youtu.be/Zvl8pzXoXww
20 The Witches 1990. Direção e roteiro: Nicolas Roeg. Allan Scott. Warner Bros.
21 Lembremos que o gênero bufo tratava de desencontros amorosos não só entre pessoas comuns, ou seja, sem a

educação e etiquetas cortesãs, mas, também, entre nobres como é o caso de As bodas de Fígaro, de Lorenzo da
Ponte/Mozart ou, para nos remeter ao universo luso-brasileiro, As Guerras de Alecrim e Manjerona de Antônio José
da Silva/Antônio Teixeira.

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intertextualidade explícita, exposto no que seria o exordium da obra musical, Myers passa
a reciclar o estilo levando o ambiente rossiniano para uma atualização neoclássica, num
interessante jogo de seções contrastantes e, algumas vezes, justapondo os estilos.
É esse ponto que intensifica a ideia do imbrogliato de feitiçaria, pois o
deslocamento do clássico para o neoclássico em transições rápidas, e, ao mesmo tempo,
usos de tópicas disfóricas, mimetiza musicalmente tudo o que esperamos de um
imbróglio de feitiçaria, ou seja, confusões que vão do sarcasmo diante do mundo
“normal” à trapalhada de feitiçarias mal executadas (a ideia do feitiço que vira contra a
feiticeira)22. E a música de Myers abre essa janela de correlações a partir do ambiente
clássico: o imbrogliato da ópera bufa. É a partir dessa base que realiza uma transição
bastante eficiente para o imbrogliato de feitiçaria, assumindo que o imbrogliato amoroso
encaixa perfeitamente bem com o drama-jocoso envolvendo personagens sobrenaturais,
como podemos ver em A Flauta Mágica, de Mozart.
Aqui, há um último ponto importante de se destacar. Este ponto é justamente
como, a partir dos campos expressivos já estabilizados desde a geração de Alessandro
Scarlatti (tempesta, ombra, militar, pastoral, eclesiástico etc.), as gerações posteriores
acrescentaram novos parâmetros e ampliaram seu espaço semântico.
Para não perder a referência, continuemos usando como exemplo a tópica de
imbrogliato. Como postulei acima, haveria dois tipos de imbrogliato: o amoroso e o de
feitiçaria. O amoroso foi consagrado para o cânone da Música Ocidental por autores da
escola napolitana de ópera com destaque para Pergolesi, Leonardo Leo, Paisiello e
Rossini, para citar alguns. Caracteriza-se, basicamente pelas melodias rápidas em notas
em graus conjuntos, fortes contrastes de dinâmica e acentos inusitados que, por vezes
quebram a métrica para criar a sensação de desarticulação melódica; é uma metáfora da
confusão. A agilidade da linha melódica parece ser uma marca característica indelével.
Porém, sublinho que essa agilidade e leveza só conseguem criar a semântica da confusão
sendo em modo maior.
Logo, é o modo maior o que redime o imbrogliato de amor, inclusive distinguindo-
o das tempestas. E esse é um detalhe importante, pois a paixão amorosa é, assim,
entendida a partir da mesma energia, ou quase a mesma, que outras agitações, como o
medo, a expectativa da morte ou os perigos diante da força da natureza. Assim, no acervo
das metáforas musicais as agitações do amor foram moldadas como uma espécie de
tempesta modulada pelo modo maior, principalmente quando estas agitações tratam da
torpeza que as paixões envolvem os amantes.
Resta comentar uma questão; como se ajustou a tópica de imbrogliato de amor à
representação da feitiçaria. Parece-me evidente que a modulação ocorre antes no
imbrogliato de amor que pela tempesta. Como podemos ver nos exemplos de Berlioz,

22 Myers, Stanley. Opening of the The Witches. Disponível em: https://youtu.be/S0zO7SN1OZw

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Verdi, Saint-Saëns, Dukas e muitos compositores de trilhas musicais cinematográficas, a


tópica de feitiçaria tem algo de jocoso que a tempesta não logra expressar. Por outro lado,
a feitiçaria tem algo de expectativa e tensão que o imbrogliato de amor não alcança.
Para tratar de equacionar esse problema, voltemos às soluções de Handel, através
de sua Medeia. Recordo que a primeira ária de Medeia tem um caráter brilhante, altivo,
e por vezes escutamos algumas características que Pergolesi dará aos seus imbrogliatos
de amor. Porém, como já afirmei, na medida em que o ciúmes de Medeia cresce, e assim
sua vontade de vingança, o campo afetivo transporta-se para o disfórico. Isso ocorre a
partir da ária Sibilando, ululando, fulminate, la rival, cantada no terceiro ato, quando
Medeia, já no uso de sua magia, põe em andamento a fúria de sua vingança. Há um
detalhe muito bem construído por Handel que é o sarcasmo da cena. Medeia, cortesã,
perde sua temperança pela ira que sente por ter sido preterida por Egeu. Assim, Handel
parte de uma gestualidade de minueto e tropifica-o com léxicos de imbrogliato (nas
cordas graves) e de ombra, pelo uso do contraponto de quarta espécie nas madeiras.
É uma ária extremamente complexa de significação, mas que serve para mostrar a
questão do estilo. Mesmo usando uma dança considerada nobre, a feiticeira não pode se
apropriar dela, por isso a tropificação com o imbrogliato, pois a indexa com campos
afetivos para estilos baixos. Mais, ainda, demonstra-nos a preocupação de um compositor
que ainda não tinha à sua disposição uma fórmula retórica pronta, mas que era bastante
consciente das qualidades afetivas e do caráter que deveriam ter personagens malignos.
Por fim, na ária Moriro, ma vendicata, Handel apresenta a bruxa na face mais sombria
usando o campo expressivo que esperava a audiência para essas situações: alternâncias
entre ombra e tempestas em plena potência.
Ora, parece que a estratégia de Handel foi mostrar o desvelamento da maldade de
Medeia através do uso das tópicas retóricas das árias, que vai de um quase imbrogliato
na primeira ária; na segunda ária tropifica tópicas contrastantes no afeto; e por fim
termina em ombra/tempesta, quando a bruxa apresenta toda a sua ferocidade. Em
síntese, o que Handel ensina através de sua Medeia é que uma boa expressão da feitiçaria
deve ter imbrogliato, dança (no caso ele usa um minueto) e o conjunto ombra/tempesta.
A intensidade de cada uma dentro do esquema tópico vai depender do gênero dramático.
Se avançarmos uns cem anos, podemos ver a fórmula pronta, usada numa música
incidental para uma comédia de Shakespeare. Trata-se da composição de Mendelssohn
para Sonhos de Uma Noite de Verão (1826). A ouverture é por si um manifesto pétreo do
que virá a ser o imbrogliato de feitiçaria para tantos e tantos compositores que seguirão.
A fórmula de Mendelssohn é simples. Primeiro, mantém o essencial do
imbrogliato tal qual encontramos em Pergolesi, Mozart ou Paisiello, ou seja, fortes
contrastes dinâmicos, acentuações irregulares na melodia, sem travar a ligeireza da frase.
No entanto, usa o modo menor, mas para não parece ser uma tempesta; evita

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gestualidades que poderiam ser entendidas como passus ou saltus duriusculus.23 Assim,
marcando o imbrogliato com o modo menor e evitando figuras de retórica pathopoieticas
(figuras melhor adaptadas às catarses de heróis ou mártires), Mendelssohn parece ter
indexado o que se espera de um conto de bruxas: o caráter instável que o “divertimento”
dos seres mágicos criam no “outro” mundo. E isso parece ter se tornado uma referência,
já que bruxas não serão mais musicadas em modo maior, nem terão suas ambientações
musicais como se fossem meras artífices das confusões amorosas, como vemos em Chim
Chim Cher-ee.

Da abertura a múltiplos sentidos de percepção...

Este passeio sobre tópicas e suas constituições teve o objetivo de sustentar a


hipótese de que, mesmo em singelas canções como Chim Chim Cher-ee, há mais do que
simplesmente uma competência do compositor. Para além do domínio do seu ofício, há
um imenso campo sedimentar que arrasta uma história cultural que consolida a sua
efetividade expressiva que transcende não só a consciência retórica, ou criativa, mas
também todas as camadas sedimentares que o espaço simbólico de sua cultura
disponibiliza por uma cadeia dos efeitos, muitas vezes de forma desapercebida. Em outras
palavras, há algo que localiza os que compartilham de um espaço cultural específico que
e, mesmo sem percebermos, estabelece algumas restrições.
Poderíamos ir mais além abrindo outras janelas de correlações no âmbito dos
campos expressivos, a partir do exemplo deste musical. Por exemplo, a canção do filme
tem uma clara inspiração pastoral, coerente com o logos de um limpador de chaminé que
declara sua alegria de estar associado à leveza das cinzas. No entanto, de forma bastante
sutil a música “marca” algumas contradições com o espírito de alegria que parece ser o
mote do argumento do filme: a fumaça liberada por Bert leva um pedido de auxílio para
uma babá com superpoderes que colocará ordem onde há o caos. Assim, podemos
justificar Bert cantando sua “alegria” em modo menor, em uma valsa moderada.
Porém, a canção vela ambiguidades, pois a métrica dessa valsa nos faz sentir uma
música em 6/8. Juntando o caráter pastoril, em modo menor, com ritmos pontilhados,
podemos dizer que essa valsa poderia ser escutada como uma pastoral siciliana; até
mesmo porque o primeiro tempo se prolonga pela configuração rítmica harmônica, ou
seja, mesmo ritmicamente há uma ambiguidade que pende para a siciliana. Porém, ela
não é uma siciliana na medida em que o andamento mais rápido e o caráter da cena não
permitem que se caracterize como uma siciliana na sua plenitude, tal como ocorre no
Concerto em MiM BWV 1053, de Bach, ou Mozart, na ária Ach, ich fühl's, es ist

23Para comparar com uma tempesta para um argumento sobrenatural escrito na mesma época, escute O rei dos elfos
(Erlkönig, 1782), de Schubert.

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verschwunden de A flauta mágica. Aqui, de fato, as sicilianas exercem seu poder


expressivo em sua plenitude, proporcionando ao ouvinte momentos de introspecção
singela, diferentemente com o que ocorre com uma canção que abre um musical infantil.
E mais, a valsa, em si, pareceria “desajustada”, pois a cena mostra Bert alegremente
conduzindo crianças para uma casa em que ele sabe que falta acolhimento por parte dos
pais. Isso não acontece pela perícia do compositor que “marca” valsa para o modo menor
para dar coerência dramática, e, concomitantemente, cria uma ambiguidade métrica por
um pulso que a torna quase uma siciliana.
Em síntese, parece ser esta a estratégia, bastante sutil, aliás, para dar início a um
enredo que trata de uma realidade conflituosa que será resolvida com magia. É através de
uma ambiguidade de gênero entre a leve valsa e a introspectiva siciliana que o compositor
indexa todo o filme. Acrescente-se que na música cortesã europeia, a siciliana servia
justamente para cenas que evocavam uma “nobre simplicidade”. Mary Poppins e Bert são
personagens simples, de profissões comuns, mas de almas nobres.

Concluindo...

Os positivistas aferrados aos inquéritos dos fatos perguntariam, inclusive para


legitimar a ação investigativa, se essa estratégia teria sido uma perícia do compositor ou
apenas uma ação espontânea diante de um ouvido treinado para reconhecer gêneros e
seus usos dramáticos, e transformar estilos em canções ligeiras?
Acredito que essa pergunta que sempre nos fazemos quando nos deparamos com
algo que transcende o universo empírico é falaciosa. Melhor seria pensarmos que que os
signos musicais, historicamente constituídos, permitiram que em uma cena
aparentemente simples fosse, pela música, tonada complexa no sentido narrativo.
É a música que traz as ambiguidades: a felicidade e a preocupação de Bert juntas e
sua solução futura, a intervenção de Mary Poppins. É a música que criou essa indexação.
E consegue isso por um jogo de referências que surgem como peças de um quebra-cabeça
que se encaixam discretamente, e são retirados da caixa da grande simbólica da música
aristocrático-burguesa. É este lastro que, primeiro, abre o acervo de estilos, gestualidades
e processos narrativos diversos como intertextualidades, citações paródias, reciclagens e
empréstimos etc. Segundo, cria a ancoragem dos sentidos da cultura coletiva ativando o
processo sociocomunicativo através das correlações de sentidos adquiridos na história
dos efeitos que constituem nosso capital simbólico.
E o problema transcende a música cinematográfica, em que a questão imagética
poderia ser considerada como guia para a orientação de uma significação específica.

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Poderíamos citar inúmeros usos desses recursos retóricos em outros universos, a ponto
de presumirmos, empiricamente, sua efetividade, dentro do todo da cultura ocidental.
Enfim, é evidente que essa perspectiva considera como ideia-força a esteira pela
qual a história cultural resguarda e impulsiona valores. Outros buscarão respostas na
Antropologia, na Psicologia Cognitiva, na Teoria Crítica, enfim, em outros campos.
Porém, acredito que todos encontrarão respostas a partir de uma só perspectiva: valores
culturais são ancorados por forças vitais que encontram sentidos numa cadeia constituída
de certos axiomas inquebrantáveis. É sobre essas “certezas” da condição humana, forjada
em plataformas civilizacionais minimamente associadas, como a ideia de Ocidente, que
os campos expressivos tópicos permaneceram na constituição de acervos e instituições
que nos traduzem em arte.

Referências

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