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AS ARQUEOLOGIAS DO SABER DE SANDRA JATAHY


PESAVENTO (1946-2009). AS SENSIBILIDADES NOS
PRIMEIROS TRAÇOS DO ESQUECIDO MARXISMO E
SUA ATUALIDADE
Robson Corrêa de Camargo

Os conhecimentos têm três portas de acesso a nossa alma. Ver, ouvir e tocar
são as três portas.
(Diderot, 2000 [1749], p. 856)

Este artigo tem alguns objetivos. O primeiro, conectar os escritos


de Sandra Pesavento com a questão histórica da sensibilidade presente
nos primeiros escritos de Karl Marx de 1884. Esta importante preocu-
pação marxista foi infelizmente deixada de lado por muitos dos que
seguiram seu pensamento no século XX. Assim, encontramos ecos do
pensamento do Marx original nas profundas reflexões da última fase de
Sandra Pesavento, com quem estabelecemos um diálogo. Finalizo essas
anotações com apontamentos de como a questão tem sido abordada no
pensamento da neurociência recente, colocando-a no centro do debate
contemporâneo.
Este trabalho parte de duas reflexões principais, de longa data, que
desenvolvo a partir de meu trabalho como diretor de teatro e investiga-
dor. A primeira é a relação presença e representação. Teatro não é só
mímesis (reprodução, imitação). Um diretor de teatro trabalha o texto
que lhe chega às mãos como representação, voz de um tempo outro a
ser encarnada, cinzas dos tempos passados, que deve ser retomado sim-
bolicamente, mas como ser vivo. Portanto, ao mesmo tempo, o teatro
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existe como vivência do presente, um diálogo ativo com o tempo em que


vive, apresentando uma contribuição ao tempo em que se vive, com
quem dialoga e assim inclui uma plateia com distintos tempos e experi-
ências. A apresentação acontece então naquele momento novo, numa
relação entre palco que mostra e plateia que vive esse tempo suspenso,
retomado, mas vivido. Não é um tempo passado, embora também o seja.
Uma dualidade paradoxal que se estabelece ao mesmo tempo. Está en-
tre, mas também está amalgamada, em. Atravessa-se um rio
Heraclitiano onde “tudo flui e nada permanece”, há sim um ontem, mas
há um agora. Estamos na teia da cultura tecendo novas ligações. Não é
um comportamento que se restaura, mas um comportamento que se re-
cicla. Não há restauração, pois o comportamento se projeta no tempo,
apresenta elementos de seu passado, como o ovo anuncia o pássaro. Não
estamos presos na Matrix, embora hajam matrizes. Não se deve matar
o tempo nem secar a água.
A segunda reflexão é a relação do ator com a personagem. Ambos
dialogam com vida, a de ator/atriz e a de outro, personagem encarnado,
reconstruído em palimpsesto, num processo que combina experiência
dele, ator/atriz e a da personagem, de memória e imaginação, nem sem-
pre as mesmas, nem sempre diferentes, oscilando entre emoção e
sensibilidade de um tempo vivido, de sua experiência pessoal, e de um
tempo imaginado/vivido, sua experiência imaginada, projetada, recons-
truída como vida no aqui agora. A performance irrompe não apenas um
significado, não é um comportamento que se restaura, que se reinstala,
que traz de volta cenas passadas, recortadas como a edição de um filme,
nem explicação nem explanação. Seu significado é exprimido ou espre-
mido de ou por um conteúdo latente, ou que grita por um entendimento
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imaginativo que se estabelece como primeira vez. Embora o teatro te-


nha mais de dois mil anos, temos que reconhecer nele a juventude de
um primeiro amor.
As imagens da arte estão além da realidade, e na realidade, e em
todo teatro, e não apenas naqueles experimentos que crepitam ou cre-
pitaram experiências inovadoras. Não é espelho, o teatro, a
performance. Nem aparelho reflexivo, não é exagero ou hipertrofia dos
dramas sociais: é coisa em si. Experimenta, expressa, articula, anuncia,
espelha, manifesta “modos de presentação” (TURNER, 1982, p. 12) e de
representação. Uma performance estabelece um processo de experiên-
cia em fusão, em amálgama, em ciclo, não final, não inicial, não
orientável. Como o pai que vê no seu filho aquilo que o assemelha e o
diferencia.
A ocasião. Em março de 2019 completaram-se os 10 anos do faleci-
mento da Profa. Dra. Sandra Jatahy Pesavento (fevereiro/1946–
março/2009) e, recentemente, em fevereiro de 2021, comemoramos o
que seriam os 75 anos de seu nascimento e o frescor de seu pensamento.
Vamos começar esta curta reflexão com uma frase da historiadora
Nádia Maria Weber Santos, num artigo de mais de dez anos atrás, em
que se discutem contribuições de Sandra Jatahy Pesavento. Afirma a
historiadora Santos: “eu diria que a História do Imaginário e das Re-
presentações começou a ser traçada, aqui no Rio Grande do Sul, através
dos textos da professora Pesavento sobre a cidade (e também na relação
entre história, literatura e representações do urbano)”. Esse artigo foi
publicado em 2009, na revista Fênix, mesmo ano do falecimento de San-
dra Pesavento, seu nome “A Sensibilidade na Vida e Obra da
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Historiadora Sandra Pesavento – A Questão da Interdisciplinaridade,


Postura Crítica e a História Cultural”. Nele Nádia acrescentaria

A descrição da realidade social, a “volta” da narrativa, a compilação de in-


formações com análise e teorização, a interdisciplinariedade, a análise das
práticas culturais e das representações, a questão do sujeito e do cotidiano
– tudo isto enriquece nossos textos historiográficos, na análise e resgate de
uma história sócio-cultural vivida na nossa cidade e nos outros “urbanos”.
E foi Sandra Pesavento a pioneira no RGS desta nova postura historiográfica
(SANTOS, 2009, p. 5).

Este pioneirismo se dava no marco do que podemos chamar de pro-


jeto desenvolvido por Sandra Jatahy Pesavento. Este apresentava uma
“nova forma de a História trabalhar a cultura”, desenvolvendo, como ela
afirmava, “uma espécie de arqueologia de um campo, o da História Cul-
tural” (PESAVENTO, 2007a, p. 15).
Santos, então, apresenta o que parece ser o cerne do pensamento
último de Pesavento em seu canto: afirma Santos a importância do con-
ceito de sensibilidade na História Cultural:

[...] assim, é com a noção de sensibilidade, muito pertinente aos atuais es-
tudos da História Cultural, que quero contemplar este artigo. Para nós,
historiadores da cultura, ela é colocada como uma outra forma de apreensão
do mundo, para além do conhecimento científico. As sensibilidades corres-
ponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência
humana no mundo, que se encontra no âmago da construção de um ima-
ginário social. O conhecimento sensível opera como uma forma de
reconhecimento e tradução do mundo que brota não do racional ou das
construções mentais mais elaboradas, mas dos sentidos, que vêm do íntimo
de cada indivíduo. (REPITO, BROTA DOS SENTIDOS). Às sensibilidades
compete esta espécie de assalto ao mundo cognitivo, pois lidam com as
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sensações, com o emocional, a subjetividade, os valores, os sentimentos


(SANTOS, 2009, p. 7, grifos da autora).

Encontramo-nos assim, frente a um novo assalto ao mundo cogni-


tivo que aparenta desconhecer o que antes, de certa forma, se ignorava:
as sensibilidades. Um ano depois, em 2010, publiquei um artigo na re-
vista Moringa, seu nome “E que a nossa emoção sobreviva... Brecht, Marx
e o tratado védico Natyasastra”. Este trabalho concentrava-se também
em aspectos do conceito de sensibilidade, emoção e razão, mas se res-
tringia à sensibilidade no drama.
Sandra Jatahy Pesavento realizara, em seus escritos, uma compe-
tente arqueologia do pêndulo da História no século XX e, criticava, nessa
trajetória, os traços de um determinado marxismo que infelizmente ig-
norara o ser sensível. Esse marxismo capenga fora alçado a explicar
equivocadamente, com tentativa de régua única e sem compasso, pelo
telescópio um pouco difuso e redutor das lutas de classes, todas as coi-
sas em primeira instância, e, certamente, por isso não alcançara
aspectos fundamentais do pensamento humano, que sim haviam sido
abordados anteriormente por seu fundador. Esse marxismo, difundido
no século XX, dicotômico, míope, afastou-se progressivamente não ape-
nas da história de uma melhor forma de conhecimento do humano, mas
também de seu patrono maior.
O pensamento de Sandra Pesavento aproxima-se, ao revés, em cri-
ticar este marxismo coto, apartado das preocupações estabelecidas por
um Marx original, o qual a historiadora Sandra Pesavento retoma e, em
bases mais profundas, possibilita a união em síntese do sentir ao pensar.
Vamos ouvir um pouco minhas perorações sobre um Marx, um Marx de
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antanho, jovem, primevo, que ilumina, amplia e ata o pensamento con-


temporâneo de Pesavento numa forma ainda pouco explorada.
Em suas Teses Contra Feuerbach, de 1845, quase cento e oitenta anos
atrás, Marx (1818-1883) argumentara – e atenção para suas palavras –
que a falha capital de todo materialismo “é que as coisas [der Gegens-
tand], a realidade, o mundo sensível” não são concebidos “como
atividade humana sensível” (Tese I, negritos deste autor). Vale a pena
repetir: a falha capital de todo materialismo “é que as coisas [der Ge-
genstand], a realidade, o mundo sensível” não são concebidos “como
atividade humana sensível” (Tese I, ênfases deste autor). Uma falha ca-
pital.
Em 1845 estamos frente aos primeiros anos de uma intensa escrita
deste marxista das origens e que chegaria ao final em sua longa e fun-
damental construção apenas com sua morte, em 1883. Entretanto, Teses
Contra Feuerbach ou de Feuerbach seria publicado apenas em 1924, oi-
tenta anos depois de sua escrita, em alemão e depois traduzido ao russo
e depois ao inglês, em 1938. Certamente uma das razões, mas não certa-
mente a principal, da figura e da compreensão das sensibilidades
humanas estarem tão ausentes nas elaborações marxistas fundamen-
tais, de seus leitores posteriores e, principalmente, de alguns
historiadores que assim o reivindicaram, sem ignorar a insensibilidade
stalinista imposta. É interessante que se perceba que, neste mesmo ano,
1845, Marx publicaria ainda outros trabalhos que mostravam a maturi-
dade de seu pensamento como A Ideologia Alemã, junto com Engels, e
ainda A Sagrada Família. E ainda, para aqueles que se dedicam aos deta-
lhes, neste mesmo ano, seu principal colaborador, Engels publicaria As
condições da classe trabalhadora na Inglaterra.
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Temos assim aqui, publicados neste mesmo ano, escritos que, ao


mesmo tempo, aprofundam as análises que iriam compor diferentes fa-
ses ou processos posteriores do marxismo no entendimento da História
do século XX. Então, de uma certa forma, encontramos, em síntese, vá-
rias das polêmicas metodológicas em que se perderiam historiadores
marxistas no século XX, ao tomar partido por leituras mais econômicas
ou superestruturais nas determinações do mundo contemporâneo. Não
observaram que a moeda marxista tem dois lados, pula e ainda rola, tal
como apontou Sandra Pesavento ao final de sua trajetória. No ano ante-
rior ainda às Teses, Carlos Marx houvera escrito importante obra, os
seus Manuscritos Econômico Filosóficos, de 1844, em que, em suas páginas
finais, apresentou a seguinte questão, desenvolvendo as ideias de
Feuerbach em seu Essência do Cristianismo, vamos ouvir atentamente:

Que o homem seja um ser corpóreo, provido de uma força natural, vivo, real,
sensível, objetivo, significa que tem como objeto de seu ser, de suas mani-
festações vitais objetos reais, sensíveis, e que somente sobre objetos reais,
sensíveis, pode manifestar sua vida. Ser objetivo, natural, sensível, é idên-
tico a ter objeto, natureza, sentido fora de si, ou incluso ser objeto, sentido,
natureza para um terceiro. A fome é uma necessidade natural; necessita, pois,
de uma natureza fora de si, de um objeto fora de si, para poder satisfazer-se,
para poder acalmar-se. A fome é a necessidade objetiva que um corpo sente
de um objeto que está fora dele, indispensável para sua integração e a ma-
nifestação de seu ser (MARX, 1978, p. 160, tradução deste autor do espanhol,
editora Pluma).

Ou ainda, como afirmaria Marx em seus Manuscritos Econômicos e


Filosóficos: “O homem como ser objetivo sensível é, por isso, um ser que
padece, e, por ser um ser que sente sua paixão, um ser apaixonado. A
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paixão é a força essencial do homem que, de maneira energética, tende


ao sujeito” (MARX, 1978, p. 161).
Para os ainda não familiarizados com a importância de Feuerbach
no pensamento marxista, Marx (1980, p. 8) afirma, no seu prólogo aos
Manuscritos, que “A primeira crítica positiva humanista e naturalista
data de Feuerbach e, sendo esta menos ruidosa, não deixa de ser mais
segura, profunda, extensa e duradoura, a influência dos escritos de
Feuerbach”. Marx ainda não poupa elogios a este autor, ao afirmar que
os escritos de Feuerbach são os únicos que contêm uma verdadeira re-
volução teórica desde a Fenomenologia e a Lógica de Hegel. Repetindo “os
únicos que contêm uma verdadeira revolução teórica”. Entretanto, re-
tomemos ainda, brevemente, a tese de um dos escritos de Marx contra
Feuerbach, na qual ele critica sim Feuerbach, mas por ter visto o mundo
sensível apenas como contemplação e não como atividade objetiva sen-
sível. Uma grande diferença. Assim, a atividade humana sensível deve
ser vista como atividade objetiva e ainda como pensamento e práxis
sensível, como ação presente, ouçamos atentamente, dizia Marx:

A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias - o de


Feuerbach incluído – é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo
sensível são tomados apenas sobre a forma do objecto [des Objekts] ou da
contemplação [Anschauung]; (...) Feuerbach quer objectos [Objekte] sensíveis
realmente distintos dos objectos do pensamento; mas não toma a própria
actividade humana como atividade objectiva [gegenständliche Tätigkeit]. Ele
considera, por isso, em seu Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica
como a genuinamente humana, ao passo que a práxis é tomada e fixada ape-
nas na sua forma de manifestação sórdida e judaica. 1

1
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm Acesso em 14/7/2021
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Em outra forma, ainda em suas Teses Contra Feuerbach, agora na


tese cinco, Marx desenvolveria ainda mais esta questão, e, para que fi-
que ainda mais clara a importância do reconhecimento da sensibilidade
como força propulsora no pensamento marxista original, retomemos,
tentando ampliar o debate dessa presença na sensibilidade Pesaventi-
ana. Afirmara Marx que a sensibilidade ou o mundo sensível são
“atividade prática, humana e sensível”. A verdade, assim posta por
Marx, é uma realidade objeto-sensível, passível não apenas de reflexão,
mas de prática. Assim, o pensamento não pertence ao homem “em si”,
assim como não existe apenas o mundo “em si”, o pensamento está no
mundo conhecido, ou melhor, a se conhecer, um mundo sensível ou
mundo que existe com o Homem. Pensamento e sensibilidade estão no
mundo, numa relação dinâmica e externa, não como manifestações in-
ternas. O mundo e a humanidade se encontram numa relação dialógica,
pensamento sensível, pensamento em contato com o mundo. Praxis do
Homem no mundo, um mundo onde se age, não apenas se restaura.
Por outro lado, criticara Marx que o desejo de Feuerbach de querer
objetos sensíveis diferenciados daqueles do pensamento seria um equí-
voco, pois, atenção, o “materialista” Feuerbach “não capta a atividade
humana como atividade objetiva” (tese 1). Para Marx, a atividade
“sensível” é atividade humana, descartando a separação absoluta objeto
e pensamento, corpo e relva. Vale a pena repetir: “a separação absoluta
objeto e pensamento”. A realidade é uma realidade pensada e praticada
e praticada e pensada. Assim também o é a performance, realidade pen-
sada e praticada e praticada e pensada, não apenas restaurada.
Na tese nove, de outra forma, Marx retomaria a mesma ideia, afir-
mando que: o máximo que o “materialismo contemplativo [der
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anschauende Materialismus]” consegue, i.e., o materialismo que não


compreende o mundo sensível como atividade prática, é a visão [Ans-
chauung] dos indivíduos isolados na “sociedade civil”. Deve-se evitar,
assim, o materialismo contemplativo, procurando-se – e aqui voltamos
às teses desenvolvidas por Pesavento em seu História e História Cultural
–, repito, procurando-se o mundo sensível como atividade prática.
A performance é atividade prática sensível, atividade prática do
mundo sensível. Vale a pena repetir conjuntamente com o primeiro
marxista, na elaboração de Pesavento, que: a coisa, a natureza e o
mundo objetivo, não existem sem “atividade humana sensível” ou não é
possível pensamento sem uma atividade humana sensível. Aprofunda
Marx assim que, a mercadoria alienada contém o trabalho, a emoção e
o pensamento humano. Emoção e pensamentos que se encontram na
natureza, na sociedade e no ser humano. Toda natureza é uma natureza
do “corpo inorgânico” do homem, portanto, corpo inorgânico sensível e
o seu espírito é a arte.
Nádia Santos, em sua arqueologia do pensamento de Pesavento,
apresenta que

as sensibilidades corresponderiam a este núcleo primário de percepção e


tradução da experiência humana no mundo que se encontra no âmago da
construção de um imaginário social. O conhecimento sensível opera como
uma forma de reconhecimento e tradução do mundo [...] (SANTOS, 2015, p.
3-4).

Sandra Jatahy Pesavento, em seu trabalho Sensibilidades: Escrita e


Leitura da Alma, de 2007, já afirmara que as sensibilidades corresponde-
riam também às manifestações do pensamento e do espírito,
destacando a ambivalência presente na relação originária do homem
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com a realidade. Dizia Pesavento (2007b, p. 16): “temos uma herança que
pode ser definida como clássica: a realidade é apreendida pelos sentidos,
como postulam Epicuro e Lucrécio, ou pela mente, como argumentam
Platão e Aristóteles”. E, em mais detalhes, notemos sua conclusão:

Sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em palavras e em imagens,


em objetos da vida material em materialidade do espaço construído. Falam
por sua vez do real e do não real. [...] remetem ao mundo do imaginário, da
cultura, e de seu conjunto de significações. (PESAVENTO, 2007b, p. 20).

Objetos do mundo real e do não real, amalgamados. Sandra Pesa-


vento ampliaria aí uma discussão realizada no século XX pela filósofa
Susanne Langer (1971a [1953], 1971b [1942]). Embora contida principal-
mente ao terreno da Arte, por Langer, que a tinha como sua
preocupação principal, afirmava Langer, em seu Sentimento e Forma, que
as formas de arte são expressões dos sentimentos humanos numa forma
sensorial, em que a arte é a “...criação de formas simbólicas do senti-
mento humano” (1971a [1953], p. 42). Para Langer uma obra de arte é
sempre um símbolo primário, único, indivisível, não discursivo, um
símbolo que chama presentacional, não é meio, não re-presenta, pois
presente, se presenta, e este pode ser analisado, mas não reduzido à
análise. É um símbolo presentacional construído em um “processo de
síntese de elementos”, sobrepostos, justapostos, contrapostos, apostos.
Seus elementos se compõem de forma totalizante (LANGER, 1971a
[1953], p. 383). Admite, desse modo, o trabalho do artista como a feitura
do símbolo sensível, o qual apresenta a sua significação por meio de for-
mas articuladas em um dado meio. Logo, nas palavras da autora, “o que
a arte expressa não é um sentimento real, mas idéias de sentimentos
[...]”. A Arte não é cópia de sentimento, mas sua presentação simbólica,
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“conhecimento de sentimento projetado nesta forma articulada


atemporal” (LANGER, 1971a [1953], p. 387, grifos do autor).
Acompanhando Pesavento, agora sobre os ombros de Susanne Lan-
ger, naveguemos: podemos ampliar que os ritos, a cultura e a arte são a
criação e a vivência de formas simbólicas do sentimento humano por meio
de símbolos presentacionais, tais como os símbolos da arte. Para Langer
(1971a [1953]), há os símbolos discursivos da linguagem e os símbolos
abertos apresentados ou “presentacionais” da obra de arte, que nunca
fecha seu sentido. Podemos então dizer que os ritos, os jogos, as festas,
as performances da cultura se desenvolvem também ao mesmo tempo
como linguagem e como arte, embora com dinâmicas distintas. São, ao
mesmo tempo, representação e presentação, ação de realidade. Pro-
põem essas performances culturais uma vivência da experiência
emocional dos partícipes, uma “ideia” de emoção, uma imagem em ação,
imaginação. Criam assim, ao mesmo tempo, uma aparência de tempo,
um “tempo virtual”, uma aparência de realidade, uma realidade virtual,
“espaço virtual” onde se encontram e se reiteram ilusão, aparências e
vivências de acontecimentos.
Os rituais, as festas, os jogos, ao conterem, desenvolvem formas
musicais e artísticas, simples ou complexas; ostentam e promovem uma
lógica de vivência, de semelhança, como formas de sentimentos huma-
nos. Os rituais, o movimento, a música, a gestualidade, o momento
vivido e revivido, é um “símbolo presentado” do processo psíquico e das
suas estruturas tonais que ostentam uma lógica estreita de semelhança
com as “formas de sentimento”. Parafraseando Susanne Langer, em seu
Sentimento e Forma (1971a [1953]), formas de crescimento e de atenuação,
de fluxo e de refluxo, de desorganização e de arrumação, de conflitos e
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de resolução, de excitação e de calma. Assim, o símbolo e o objeto viven-


ciado, em experiência, têm uma forma lógica. Lógica sensível, que é
outra lógica. O sentimento, tanto para Langer como para Marx, é base
da experiência, da sensação, da emoção, da memória, do pensamento e
da ação. Não apenas se restaura, mas se instaura, também nas muitas
portas de Diderot.
Estivesse ainda Pesavento entre nós, como sempre aberta aos no-
vos caminhos do pensamento e da história, certamente aprofundaria a
sua investigação sobre a sensibilidade na sociedade junto aos novos e
recentes caminhos da neurociência, que não separam o pensamento “ci-
entífico” do pensamento sensível, e que, ao contrário, apresentam a
impossível separação entre os dois no estabelecimento do comporta-
mento humano e da sua intensa relação na sociedade.
Não há conhecimento sem emoção e vice-versa, como apresentam
os estudos iniciados pelo neurobiólogo português António Damásio, em
seu O Erro de Descartes, Emoção, Razão e o Cérebro Humano, de 1994. Da-
másio, neurocientista, descreve a íntima relação entre as estruturas
cerebrais envolvidas na gênese e na expressão das emoções (o sistema
límbico), na elaboração de imagens e de áreas do córtex cerebral ligadas
à tomada de decisões, recuperando elementos da teoria das emoções de
William James, de 1884, escritas um ano após o falecimento de Marx.
Para ele, James, as emoções jogam um papel central nas tomadas de de-
cisão e ainda na cognição social.
Em artigo de 2007, escrevendo também sobre a interdependência
entre cognição e emoção (On the interdependence of cognition and emo-
tion, de Justin Storbeck e Gerald L. Clore) – mesmo ano de publicação do
aqui citado Sensibilidades: Escrita e Leitura da Alma, de Pesavento –,
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Storbeck e Clore descrevem, no campo da neurologia, diferentes argu-


mentos do estado da arte desta relação fundante do ser humano,
cognição e emoção, para expressar seu ponto de vista da relação inter-
dependente e interativa entre emoção e cognição. Suas conclusões se
fundamentam em pesquisas de seu laboratório, elas apontam o papel do
afeto na percepção e da regulação afetiva nos estilos de processamento
de informação.
Storbeck e Clore apresentam três possíveis hipóteses que orientam
os estudos da neurociência, e podem nos ajudar a amplificar as contri-
buições de Pesavento nos dias de hoje. A primeira hipótese, a da emoção
e da cognição sendo processadas independentemente em áreas distintas
do cérebro; a segunda, em que o afetivo teria uma primazia nessa rela-
ção; e a última hipótese de que o afetivo seria um processo automático
que agiria automaticamente no comando dos estímulos e na avaliação.
Para nossa abordagem, até o momento, não é necessário que cheguemos
em tal ponto da definição de primazias, devendo nos concentrar no se-
guinte aspecto. Diferentes áreas de pensamento percebem
fundamentalmente que emoção e cognição não são forças separadas
e/ou opositivas, mas que se amalgamam de distintas maneiras. Tradici-
onalmente se separava o controle motor das emoções, do pensamento,
mas hoje se percebe o relacionamento efetivo e afetivo no movimento e
no conhecimento. Bom, isso é matéria ainda a ser aprofundada, o que
podemos fazer na perspectiva da sensibilidade apresentada por Pesa-
vento e da História Cultural.
Em síntese, em sua arqueologia da História Cultural, Pesavento
fala “de uma espécie de arqueologia de um campo, o da História Cultural
e da História” (PESAVENTO, 2007a, p. 15), ou ainda, como afirma no fim
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de seu segundo capítulo, a “consolidação de um campo de trabalho” e “a


construção deste novo olhar da história, a partir dos seus principais
pressupostos teóricos de análise”, pressupostos que colocam a sensibi-
lidade no centro do conhecimento humano (PESAVENTO, 2007a, p. 20).
A emoção está aí para quem quiser ver.
Assim teremos várias aproximações do entendimento da ação hu-
mana e podemos ainda ampliar, não apenas da História Cultural. Como
aqui demonstrado brevemente, aproximou-se ela, ao se esquivar de de-
terminadas abordagens das concepções de um marxismo positivista e
limitado no século XX, das preocupações daquele jovem Marx, num
longo caminho ainda a ser trilhado, e que se ajunta às recentes contri-
buições da neurobiologia que, em visão transdisciplinar da afetividade,
percebe as emoções e os sentimentos como constituidores de aspectos
centrais e relacionais de nossa regulação biológica e como construtor de
pontes entre processos racionais e não racionais. Essa concepção abre
ainda o conhecimento a novos universos na elaboração da afetividade
na análise não apenas da História, mas ainda das performances cultu-
rais e da cultura, seja em ritos, festas, jogos e/ou nas vivências
individuais e coletivas.
Para terminar nossa contribuição, penso que seria sábio ouvir e co-
mungar, mais uma vez, com Fernando Pessoa, ou melhor, com Alberto
Caeiro, em seu O guardador de Rebanhos. Sentados na relva podemos ou-
vir este poema escrito, provavelmente numa noite de insônia de 1914,
um ano antes da morte virtual da personagem por tuberculose. Per-
gunto: personagens morrem de tuberculose?
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IX:

Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos


E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.

REFERÊNCIAS

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védico Natyasastra. Moringa: artes do espetáculo, João Pessoa, v. 1, n. 2, p. 35-43,
jul./dez. 2010.

DAMÁSIO, António R. O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano, São


Paulo: Companhia das Letras, 1996. Descartes’ error: Emotion, reason and the
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DIDEROT. Lettre sur les aveugles a l’usage de ceux que voient [carta aos cegos para o uso
de quem pode ver]. Paris Gallimard, 2000 [1749], p. 856.
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FORGAS, Joseph P. Affect and cognition. Perspectives on psychological science, v. 3, n. 2, p.


94-101, 2008.

LANGER, Susanne K. Sentimento e Forma. São Paulo: Perspectiva, 1971a [1953].

LANGER, Susanne K. Filosofia em Nova Chave. São Paulo: Perspectiva, 1971b [1942].

MARX, Carl. Manuscritos Economico-filosoficos de 1844. Tradução de Daniel Zadunaisky e


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MARX, Carl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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