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"Eduardo Mascarenhas tinha uma personalidade marcante e sonora, suas idéias, princípios

1:: ll lJJ.\ 1~ ll O
conflitos, amores e decisões tinham a curiosa propriedade de cair rapidamente em domíni~
público. Demorei a entender que toda essa exposição não foi gratuita, era sua maneira esforçada
J.\~iC:J.\l~l:N•~i\!i
e original de promover mudanças em seus colegas e na sociedade. Lamento sua partida
silenciosa e prematura."

"Mascarenhas deu muita vida à psicanálise. Denunciou a clínica sombria, triste, fechada para
a vida real, libertou também o psicanalista de seu papel bodeado de incluir pacientes num
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IJ(J
rebanho de conformistas. Mascarenhas fazia análise nas areias de Ipanema, edefendeu sempre
a política do corpo eda saúde, a libertação sexual ea coragem existencial, a vida como aventura
e descoberta. Depois dele, a psicanálise no Rio se descaretizou e nunca mais foi a mesma."
Jabor

~A(JI~
l::!iC:OLHJ.\!i,
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INCllJll::TlJlll:S

GUARDA• CHINA
-EDITORA-
-
GUARDA• CHUVA
-EDITORA-
Em 1972 um expressivo número de estudantes em formação 1 (IJ
psicanalítica no Rio de Janeiro participou do 9º Congresso
Latino-Americano de Psicanálise, em Caracas (Venezuela).
Era nosso primeiro congresso internacional. Ainda não havíamos
completado aformação, mas tínhamos suficiente autoconfiança -
ou, quem sabe, grande falta de autocrítica - para apresentar
trabalhos psicanalíticos em uma situação tão importante.

Naquela ocasião, certo dia, queixei-me ao Eduardo da saudade


que sentia da família. "A diferença entre nós", ele retrucou,
"é que você éagorafóbico eeu sou claustrofóbico. Enquanto você
fica com saudade, eu aprecio esses momentos de distância
esinto falta deles. Ficar fechado com as pessoas de quem
gosto me inquieta."

Somente muito tempo depois, compreendi que essa espécie


de fobia com que oEduardo jocosamente se autodiagnosticava
foi um dos fatores que oestimulou aatravessar as paredes
do consultório, fugindo da torre de marfim onde se enclausuravam
os analistas, para levar a psicanálise às ruas, em um movimento
sem retorno. Hoje em dia muitos de nós estamos empenhados
nesse processo de democratização da informação psicanalítica,
mas os pioneiros, no Rio de Janeiro foram, sem dúvida,
Eduardo Mascarenhas eHélio Pellegrino.
'
As Sociedades Psicanalíticas, com seu habitual reacionarismo,
reagiram violentamente contra todos os movimentos que visavam
divulgar epopularizar essa área de conhecimento, mas as
iniciativas dos pioneiros vingaram ecresceram. Lembro-me
de um comentário de Eduardo sobre sua atividade de divulgação
da psicanálise: "O que você acha melhor: escrever para uma
revista de psicanálise eser lido por cem analistas de má vontade,
ou escrever para aPlayboy eser lido com entusiasmo por
milhares de pessoas?".

Sua inteligência rápida, associada a uma enorme facilidade para


falar com simplicidade de fenômenos complexos, levou Eduardo
afazer sucesso na televisão. Seu programa Interiores, na TVE,
ganhou tanta notoriedade que foi cassado pelos poderosos
de ocasião, pois ao mesmo tempo em que exercia a psicanálise
no consultório eadivulgava em todos os meios de comunicação
possíveis, ele ainda iniciava, em oposição ao governo militar,
uma carreira política cujo rápido sucesso foi interrompido
pelo seu prematuro falecimento.
Organização: Luisa e Manuela Mascarenhas

GUARDA• CHUVA
--EDITORA - -
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reproduzida ou transmitida sob qualquer forma ou por quaisquer meios, quer
eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro sis-
tema de armazenamento ou de recuperação de dados, sem a autorização por
escrito da Editora. Apresentação ........................................................................ vii

Projeto Gráfico e diagramação: José Jorge de Moraes


Quero me comunicar . . .. . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . 1
Capa: Mar Design - Guilherme Torres
Impressão: Ediouro Gráfica e Editora Ltda.
Foto da capa: Arquivo pessoal da familia
O Complexo de Édipo ............................................................ 8
Incesto polêmico . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. 17
O homem gosta de neném e a mulher, de gente grande ........... .
. . . a 1enda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. 22
Narc1s1smo,
Narc1s1smo
.. e amor . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. 25

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Obstáculos ao amor ............................................................. 28


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
Por que desejamos ser belos? ................................................ 30
Vaidade ferida . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . . .. . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. 33
M36lf

Mascarenhas, Eduardo, 1942-1997


As causas do ciúme doentio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. . 36
Faces do amor : escolhas, desejos e outras inquietudes / Eduardo
Mascarenhas ; [apresentação Manuela, Luisa e Antonia Mascarenhas]. - Rio Homossexualidade não é doença,
de Janeiro: Editora Guarda-chuva, 2007.
nem heterossexualidade significa saúde . .. . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. 39
ISBN 978-85-99537-05-3
Homossexualismo feminino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . . . 43
l. Amor. 2. Sexo. 3. Relações homem-mulher. 4. Psicanálise. I. Título. A origem primitiva do amor ................................................... 4 7

CDD: 152.41 O mulherengo ...................................................................... 49


07-0108.
CDU: 159.942
A energia da sexualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . . 54
Fome narcísica . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . 56

Todos os direitos reservados, no Brasil, por Editora Guarda-chuva Ltda. Viver pela cartilha não dá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. 58
Rua Visconde Silva, 58 • Botafogo CEP 22271-090 • Rio de Janeiro • RJ
Tel.: 212512-1704 E-mail: editorial@editoraguarda-chuva.com.br Instinto sexual ..................................................................... 61
www.editoraguarda-chuva.com.br
A libido ..................................................................... · · · · · · · · · · 65
Apresentação
Mulher gosta de apanhar? ................................................ · .. · 67
O sadismo .................................................................. , .... ·. · · 71
O masoquismo .............................................................. , .. ·... 76
Manuela, Luísa e Antonia Mascarenhas
Narcisismo, sadismo e masoquismo ................................ ·, ... · · 80 jan.2007
Timidez é medo de não ser aceito . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 84
Membro pequeno ................................................. , ....... , ·· · · ·, · 89
EscREVER UMA INTRODUÇÃO ao livro do próprio pai é uma ta-
Paixão que perturba ............................................. , .... , ... ,···.·· 93
refa delicada. Já de início, é dificil decidir qual a melhor maneira
A dor de amor é das maiores ................................................. 96 de nos referirmos ao autor. Chamá-lo pelo nome é, para nós, um
Marido avarento ........................................................... ·, · ·., ·· 95 tanto estranho. Por isso, pedimos licença a você, leitor, para nos re-
ferirmos a ele, ora como nosso pai, ora como Eduardo Mascarenhas.
Não te dou porque você não me dá ......................................... 97 A tarefa toma-se ainda mais difícil pela exigência de nos
Os silos da paixão .............................................................. 101 distanciarmos em certa medida de alguém tão próximo e também
pela inevitável mistura de alegria e saudade que nos gera. Urna
A falência do casamento . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . 104
nostalgia de um tempo distante que nos marcou intensa e defini-
Desencontro sexual ........................................................ , , . . 109 tivamente e, por isso, continua muito presente em nossas emo-
Sobreoamoreocasamento ................................................ 112 ções e memórias.
Para nós, o lançamento deste livro tem um significado mui-
O mal é bom e o bem, cruel................................................. 116
to especial. É uma forma de marcar a passagem de dez anos da
morte do nosso pai. Durante esse período, ficamos distantes de
sua produção por medo de trazer à tona emoções que ainda não
estávamos preparadas para viver. É que ele sempre escreveu corno
falava. Ler seus artigos é como conversar com ele em pessoa: sen-
timos toda a energia intelectual e emocional, toda a paixão com
que transmitia suas idéias no dia-a-dia e, também, uma boa dose
do humor e da ousadia tão próprios do autor:i por essa conso-
nância entre quem ele era na vida privada e como se apresentava
na vida públi~J que consideramos interessante compartilhar um
pouco do E~do Mascarenhas na intimidade. Conhecê-lo mais
viii ix

pode ajudar você, leitor, a entendê-lo melhor e aumentar seu de- outros com precisão. Pegava no ar sutilezas corno só um ótimo
sejo de ler as páginas que se seguem. leitor do inconsciente consegue fazer. E tinha muito senso de
Nosso pai era urna pessoa indiscutivelmente carismática e humor. A todo instante, inventava uma gracinha, uma tirada que
de energia contagiante. Não vivia de meios-termos, levava tudo às fazia todo mundo rir de doer a barriga.
últimas conseqüências, entregava-se completamente a tudo o que A convivência com nosso pai era realmente incrível. Era di-
fazia. Era disciplinado e determinado. Levava a sério até a hora versão inteligente garantida, muita risada e muito aprendizado
do recreio. Se era para brincar, era para brincar para valer; inves- também. Tratava-nos como crianças, mas nunca subestimava nosso
tir tempo e imaginação, entrar numa viagem conjunta. Era muito potencial, muito pelo contrário. Achava que dávamos conta dos
lúdico e criativo. Era adulto, mas engrenava 100% nas ondas recados e nos transmitia essa segurança.
infantis. Para dizer a verdade, ele era o primeiro a começar as Era um realizador e um ávido por conhecer e por fazer conhe-
brincadeiras, estimulando a imaginação e o espírito livre. cer, sempre focado no lado produtivo, inventivo e positivo das pes-
Adorava cantar. Costumava nos ensinar os hinos e as rnar- soas. Adorava ensinar, esclarecer, ficava realizado quando sentia que
chinhas de carnaval e cantava com urna ernpolgação contagiante. havia conseguido transmitir um pensamento. Tinha imenso prazer
-----1triha sempre aquele ar de quem estava descobrindo o mundo, na comunicação e sempre foi de extremo talento nessa tarefa.
aquela curiosidade que, em geral, a gente só vê nas crianças e Era a favor da liberdade plena. Sempre estimulava o "libe-
admira. Aquela alegria de quem vê o mundo pela primeira vez rou geral", urna expressão muito usada por ele para dar fim às
e quer aprS:nder tudo, conhecer tudo, aproveitar intensa e incan- restrições, censuras e regras que nos impomos ou que tentamos
savelrnenteJAfiás, não lembramos de ouvi-lo reclamar de cansa- impor ao mundo. Era a maneira dele de tentar fazer com que as
/
ço. Estava sempre a mil. Fazia trezentas coisas por dia. Estudava pessoas ao seu redor vissem o mundo de modo menos contamina-
muito - com disciplina, organização e interesse admiráveis-, do. Sem tantos filtros. Sem tantos julgamentos sobre o que é cer-
fazia exercícios físicos diários (nunca abria mão disso), tinha urna to e errado, bom e mau.
vida social e familiar ativa e trabalhava muito. Mas, mesmo as- Não é porque é pai, não, mas o Mascarenhas era inspirador,
sim, nunca o vimos com ar de quem estava fazendo o que não uma injeção de alto astral e de energia de vida. Aliás, a constante
queria, vivendo de um jeito de que não gostava, ou se queixando e diária paixão dele pela vida é, para nós, sua maior marca. Cla-
do cotidiano. Sabia transformar o dia-a-dia em uma experiência ro que é também nosso maior pesar, já que, logo ele, que tanto
estimulante. Ria constantemente, fazia piada, contava caso. Não tinha para oferecer e tanto queria ainda experimentar, conhecer e
só tomava sua vida interessante, corno se fazia interessante aos descobrir, foi levado embora muito antes do que parecia ser sua
olhos dos outros, porque sabia como cativar e prender a atenção hora. Mas aproveitou muito, usou linda e intensamente os anos
ao dar suas opiniões e compartilhar suas vivências. Tinha aquele que lhe foram dados. Seu relógio condensou muito mais segun-
sei-lá-o-quê que deixa todos em volta fascinados. dos, minutos, horas e dias do que o da imensa maioria das pes-
Era também um homem inegavelmente sensível, observador soas. Amou muito, estudou muito, produziu muito, ensinou mui-
e perceptivo. Sacava as pessoas profundamente e sempre tinha to, conheceu muita gente, teve três filhas, três casamentos e, além
comentários perspicazes que definiam algo da personalidade dos da psicanálise, teve tempo de descobrir uma outra grande paixão:
r
xi
X

a política (foi deputado federal por sete anos). Ou seja, deu tem- nossos desejos, e os dos que nos cercam, estão sempre sendo co-
po para muita coisa, muitos sonhos se realizaram e uma admirá- locados em questão, sendo pensados e repensados.
vel história de vida foi construída. No período em que esses artigos foram escritos, Eduardo
Como psicanalista, teve presença ativa nas sociedades, apre- estava muito focado em expandir e democratizar a psicanálise,
sentou muitos trabalhos e seminários e participou vigorosamente levando-a a um público mais amplo. Quis escrever de forma a se
da vida intelectual. Mas não é esse o Eduardo Mascarenhas que fazer entender por todos. Resolveu que não ia corroborar a posi-
apresentamos neste livro. Este é um livro para ser lido por todos ção elitizada em que a psicanálise se encontrava. Quebrou mes-
que se interessam em refletir sobre os mistérios da mente e das mo um paradigma, mas isso ele tirava de letra. Foi polêmico a
emoções. Não é feito de psicanalista para psicanalista nem de vida toda, nunca foi chegado ao conforto do senso comum. Prefe-
intelectual para intelectual. Retomamos, assim, uma das caracte- ria ousar, arriscar, dar a cara a tapa. Foi assim que rompeu com
rísticas mais peculiares a nosso pai: seu espírito democrático. a formalidade característica dos detentores do saber e mostrou que
O Eduardo das páginas que se seguem é, sobretudo, aquele o leitor comum não deveria ser subestimado. Provou que, quando o
que confiava na inteligência e no senso crítico das pessoas e esta- comunicador quer se fazer entender, consegue. Há sempre a
va sempre buscando estimulá-los; o mesmo Eduardo que, quando maneira simples de explicar o que pode parecer complicad e
éramos crianças, lia Lacan e Freud em voz alta e pedia que nós, os conceitos psicanalíticos são muitas vezes complexos, a lingua-
na nossa miudeza da época, disséssemos o que aquilo queria di- gem também é ampla o suficiente para abranger
,\
a sofisticação do
zer. Acreditamos que ele agia como psicanalista como agia em pensamento e colocá-lo em português clarJ) Era do time que acha-
casa: ensinando, explicando, incentivando, sem jamais subesti- va que escrever bem é saber comunicar.
mar, e fazendo o possível para fazer aflorar a criatividade e abrir Este livro é, para nós, uma forma de retomarmos o contato
os horizontes. com nosso pai e manter vivo o seu pensamento. É também uma
No início do processo de elaboração deste livro, tínhamos maneira de compartilhar suas idéias com os leitores e mostrar por
em mente selecionar artigos publicados na década de 1980 em di- que temos tanto orgulho de sermos filhas do Eduardo, um pai que
ferentes jornais e revistas. Nesse período, ele produziu intensamen- - tanto por sua presença intensa e apaixonada em vida como pela
te. Relemos centenas de textos e percebemos que seria impossível permanência em recordações, sentimentos e produções-, mesmo
dar conta de todo o conteúdo em apenas um livro. Nesse momen- indo cedo, nunca deixou de estar aqui conosco. Saímos dessa
to, decidimos fixar-nos no tema do amor, um de seus preferidos. experiência com a certeza de que, apesar das dores, ficaram infi-
Entretanto, este livro não fala apenas sobre o amor. Abrange tudo nitamente mais as delícias e o aprendizado.
o que diz respeito a relacionamento, sexualidade, casamento e pai- Esperamos que, assim como nós, você, leitor, perceba-se com-
xão. Essa temática nunca perde a atualidade e fascina todos. Amor, preendido em várias passagens desta coletânea~. após sua leitu-
sexo, paixão ... não há quem tenha passado sua existência sem se ra, sinta-se mais esclarecido e maduro no universo amoroso. Mui-
perguntar sobre o que sente, o que busca, o que deseja, o que quer tos encontrarão reflexões e respostas para questões que estão vi-
experimentar e vivenciar no terreno amoroso. Nossas escolhas e vendo ou já viveram. Outros encontrarão as perguntas que tenta-
vam formular. Certamente, diversos artigos remeterão você às pró-
xii

prias vivências e é provável que o façam lembrar de experiências


que testemunhou em seu circulo de amizades ou ambiente famili-
uero me

ar. Portanto, sugerimos que este livro seja lido da maneira como
nosso pai costumava fazer: com um iluminador em urna mão e urna
comunicar
ficha de anotações na outra, registrando as passagens que lhe pa-
reçam curiosas, interessantes ou elucidativas.
QUALQUER UM DE NÓS já ouviu de alguém, algum dia,
Segue-se, então, nas próximas páginas, um livro que fala
alguma coisa que mudou a visão que tínhamos de nós mes-
sobre você e para você, seja você quem for. Estamos certas de que
mos, dos outros e da vida. E isso foi tão importante para nós.
todos aqueles que querem ampliar sua compreensão sobre o ter-
Mas apesar da importância de uma palavra certa, no mo-
reno fervilhante do amor e da paixão, todos que querem entender
mento certo, de um toque inspirador, nada é mais impor-
as tramas familiares em que se vêem enredados, todos que dese-
tante que o bate-papo de cada dia, o diálogo cotidiano, o
jam melhorar sua comunicação com o sexo oposto e sua relação
botar em dia a conversa. O ser humano precisa disso como
consigo próprio se encantarão com a retomada desse diálogo com
de ar para respirar.
um grande conhecedor da alma humana.
E, realmente, a gente costuma pensar que sabe falar.
Mas não é verdade. A gente sabe pedir para passar a sopa, a
gente sabe pichar, malhar, fazer fofoca, a gente sabe falar se
o dia está quente ou frio, mas quando chega a hora de falar
SQ~I].ªª-110füifü'LrJ!!qÇQ~}3, âns,iéls esentiinentos, a gente se vê
de língua curta.
Você já reparou? Quando duas pessoas se encontram e
se dispõem a falar sobre a verdade dos sentimentos, ou cada
qual começa a fazer críticas ou a dar conselhos que não têm
nada a ver. Ou pior, se são duas pessoas que mantêm uma
relação estreita, tipo marido e mulher, a conversa rapidamente
descamba para a briga, o insulto mútuo e o impropério. Não
é à toa que tantos casais vivem anos e anos debaixo do mes-
mo teto e são dois estranhos. É que um dia eles tentaram
conversar, tentaram conhecer um ao outro, tentaram since-
ramente se comunicar. Mas um fiasco, foi um fracasso. Ao
invés de a conversa djssolver co~11lQê.J_~Q~§lllfill,Chll!". ..nó.s. e
estreitar vínculos, ela, na realidade, serviu para acentuar di-
vergênciàs, para incrementar incompatibilidades.
r
2 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 3

De discussão agressiva em discussão agressiva, de diá- lindo das emoções, toda sua espantosa grandeza e poesia, toda
logo estéril em diálogo estéril, cada qual foi, então, natural- a sua inimaginável criatividade ficam simplificadas a meia
mente, por instinto de defesa, até para salvar a relação, emu- dúzia de frases feitas, a quatro ou cinco "clichês" morais, a
decendo, se calando, se recolhendo como ostra para o seu dois ou três estereótipos. Que injustiça com a constelação
interior, até sobrar apenas o triste papo burocrático, prático infinita da nossa fantasia, com as cli111~nsões galáxicas _de
e que só servia para encobrir um mar de mágoas, um oceano p.ossas emoções, com as proporções cósmicas da nossa ale-
ácido de queixas mútuas. Depois de tantas tentativas frus- gria, com as medidas telescópicas do nosso sofrimento!
tradas, só restava o silêncio, o triste silêncio dos semimortos E você sabe quando tudo isso começa?
que não falam, numa desesperada tentativa de se manterem Começa com as primeiras tentativas frustradas e frus-
vivos_0~ssando o tempo ou um dia turbulento, amor se faz trantes de nos comunicarmos. E corno queremos nos comu-
paz. Porém, urna triste paz de um quase cemitério. O vulcão nicar! Talvez nada desejemos tão profundamente quanto nos
se extingue e de suas lavas só restam cinzas ou inúteis f11-~. comunicarmos e sermos compreendidos. De receber de volta,
maças que revelam o calor humano que não pode ser vividg) no brilho do olhar alheio, urna imagem que, no mínimo, acu-
Essa atitude de silêncio como medida de sensatez de- se que recebeu nossa mensagem, que não transfigurou as pa-
sesperada reforça ainda mais nossa precária capacidade de lavras da carta que, emocionalmente, lhe enviamos pelo cor-
falar. No colégio nos ensinam que: "Ivo viu a uva da vovó"; reio das emoções. E que alegria quando percebemos no olhar
mas não nos ensinam corno a vovó se sentiu quando Ivo viu alheio que fomoE,y:istos,
"-------·· -- . ---- .
-
foIT1os
-- ---ouvidos!
. ---- ..
-
Daí a irritação que
sua uva, nem como Ivo se sentiu diante do sentimento da vovó. sentimos quando telefonamos para alguém e a linha está ocu-
Nossa incapacidade de falar é tamanha que 99% das pada. A linha ocupada é o símbolo de tantas linhas ocupa-
pessoas chegam a urna certa altura da vida com uma total das nos "telefonemas" que demos pela vida. Ou a irritação
incapacidade de descrever seus sentimentos. Sentem um mi- quando alguém gão escuta o que dize.rpos. É que conversa-
lhão de coisas, mas não sabem colocar em palavras o que mos com tantos surdos. Não surdos de ouvidos, mas surdos
de ajm2-, _ - - ·--- ·'- -- · ··
sentem. E não sabendo colocar em palavras belas e precisas
os seus sentimentos, nem para si próprias, não conseguem Lembro-me de um paciente que um dia sonhou que de
mais nem acompanhar e nem sentir direito os próprios senti- seu ventre paria um rádio transistor. E era um rádio com fina
mentos! Se estivessem no colégio e tivessem que escrever para capacidade de irradiar os sinais que recebia. Seu júbilo era
o exame de fim de ano uma dissertação intitulada "Os meus imenso. E eu entendi por quê. Queria com aquele sonho me
sentimentos", a redação seria paupérrima. Nada mais que dizer da alegria infinita que sentia por ter descoberto na rela-
chavões, banalidades, generalidades, tudo tão misturado com ção comigo, que falava claro, que alguém o entendia. Eu era
a última novela da televisão. o rádio transistor cristalino para ele. Ele era o rádio transis-
Nada me impressiona mais do que perceber a pobreza tor cristalino para mim. Enfim, depois de tantos anos sem co-
que a maioria das pessoas possui ao falarem sobre si mes- municação, conseguia se comunicar. Sem brigas, incompre-
mas ou sobre as outras pessoas. Todo esse mundo infinito e ensões, julgamentos. Apenas se comunicar.
r

4 Faces do Amor

E eu gostaria muito, ficaria muito feliz, se eu fosse um • •


rádio transistor cristalino. Que a sua voz chegasse cristalina-
primeiro
mente a mim, e a minha, cristalinamente a você. Nada mais
do que um simples rádio transistor. Não precisa ser um som
amor
estereofônico de precisão indiscutível. Não precisa nem ser de
alta fidelidade. Apenas um radiozinho, com suas limitações,
O AMOR é um sentimento estranho. Ele é tão bonito,
seus chiados, mas que faça passar a comunicação.
tão forte, tão apaixonado. O problema é que são de sua pró-
Só isso, no fundo, nos emociona...
pria natureza a ânsia e o apelo da reciprocidade. Nada fere
mais fundo ...missa ernoção .do . que. amarnJDS .s.em uo.s . sentir-
--------·------,,_.,--,-,,-~

,~?,-~_.3.:IEªdos. ~-n~çessidªge .9ª .coJie.spo11qê;ricia é absoluta


nas nossas vida~. Não sermos correspondidos no nosso amor
fêva a várias reações dramáticas. Primeiramente, à mais pro-
funda das tristezas. Abre-se um rombo no nosso peito tão
profundo que não há palavras capazes de descrevê-lo. Nenhu-
ma frase, por mais inspirada e preciosa que seja, dá sequer
para esboçar a imensidão cósmica do nosso pranto. Nossa
alma chora um choro capaz de inundar de tristeza a face in-
teira de todos os planetas.
Paralelamente a essa tristeza cósmica, a esse pranto
amazônico, a esse dfü!vio..de.desalgnto, começa a estremecer
nosso coração uma sensação sísmic.a de pi:rple~d3:de e inJ1:1;~-
tiça. Ou não entendemos a não-correspondência ao nosso
amor, ou começamos a nos sentir vítimas da mais cruel das
injustiças. Esse terremoto rapidamente pode se transformar
num terremoto de indignação. ~~-!.~:1,.a._s__ clo ódio, os vulcões
da mágoa entram numa resoluta erupção. Não bastasse isso,
·-~~sso'sêntimento éºfomado por unia saudade imensa daqui-
lo que um dia foi. Ou, pelo menos, poderia ter sido. Entra-
mos num estado de oração. Elevamos nossa alma para as
regiões mais sublimes do nosso sentimento e oramos, supli-
camos, damos a nossa devoção mais intensa. Depois de fa-
zermos promessas, até pelo jornal, pelo Menino Jesus de Pra-
6 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 7

ga, de acendermos algum tipo de vela para todos os nossos amores, ou perseveramos nos investimentos falidos, naquela
santos, não se pode nem mais dizer que continuamos a orar. estranha esperança que acomete os desesperados.
Não, tomamos-nos a própria oração. E nada acontece. Nosso Um adulto que teve bons relacionamentos na sua
amor prossegue, sem ser correspondido. Há uma geleira de vida, que sentiu o gosto doce do mel da correspondência e
indiferença, de incompreensão por parte daquele que amamos. da ':...~brosia da reciprocidade, tende para o desinvestimento
Agora, desaparecem o dilúvio das tristezas, a saudade daquilo que não deu e para o reinvestimento daquilo que
infinita, a mágoa imensa e entra em seu lugar o mais seco pode ser que dê. Entretanto, um adulto que nunca sabo-
dos desertos. Nossa alma se resseca, perde a seiva da vida e reou doçura corre o grave risco de permanecer fixado numa
caímos na prostração mais árida, áspera e seca que se pode trágica esperança.
ter notícia. Deserto sem oásis, cheio de ossadas de camelos Agora, imagine uma criança. Ela não sabe nada disso.
mortos. Nem o dromedário consegue resistir à tamanha seca. Não sabe que um amor pode fracassar e que nem por isso
PJJ:isseguimos vivos por fora, mas mortos por dentro. outros amores fracassarão. Ela nasceu ali, do ventre de uma
Essa é a fase aguda do abandono, da rejeição, da mar- mulher e é com ela que terá de se realizar ou se frustrar. Não
<g'.'1!1da, do mal-me-quer sem as pétalas do bem-me-quer. Na bastasse a criança não possuir a idéia de que um amor fra-
terra da nossa emoção, não crescem mais flores, mais frutos. cassado não significa necessariamente o fracasso do amor, ela
Nem mesmo ervas-daninhas da vingança e do ressentimento. está longe de possuir os recursos mínimos necessários para
Oscilando por esse nada, nossa emoção é novamente sacudi- sair de uma relação e entrar numa outra. Ela não tem essa
da pelas tristezas, saudades e rancores. possibilidade. Ao contrário do adulto, ela não possui o direito
Mas o tempo passa e a correspondência, o amor tão do divórcio. Não é a lei dos homens que não possibilita. É a
desejado, a resposta emocionada não vêm. Nossa alma pros- própria lei da natureza.
segue à míngua de reciprocidade. Daí a insistência da psicanálise na importãncia da mãe.
A ebulição vai, então, virando crosta. Vamos nos trans- Afinal, todos nascemos dela e com ela vivemos a nossa pri-
formando num vulcão extinto, numa caldeira fria. Nossas la- meira paixão. Sejamos homens ou mulheres, ricos ou pobres,
vas se tomam pedras. Nossas lágrimas sec~ni. Nossa aridez pretos ou brancos, ela é a nossa primeiríssima namorada.
nem mais nos incomoda como antes. Viramos habitantes do E a desgraça é que nem nós a escolhemos nem ela a
deserto, beduínos desolados da emoção. nós. Não é por nossa culpa nem dela. A vida é assim.
E o tempo passa ainda mais e o que era agudo começa a
se tomar crônico, o que era dramático vai perdendo até a úni-
ca coisa que ainda o mantinha ligado a algo que fosse a vida.
Então pode acontecer de tudo. Ou desinvestimos nosso
amor daquele amor falido e aos poucos vamos entrando em
estado de ressurreição, reinvestindo nosso amor em novos
r
Eduardo Mascarenhas 9

/
tava decifrando todo o enigma das taras, da loucura e de quase
que e todas as doenças mentais.
Complexo/
Complexo de Édipo, com o tempo, tornou-se um termo
técnico. É ele que define se alguém ficará pirado, cheio de
de Edipo? inibição e timidez, tarado, delinqüente ou uma pessoa de ca-
beça legal. Todas as fobias, manias, depressões, angústias,
todo grilo e todo bode que não tiveram causa física, ou ori-
gem em alguma tragédia real na vida, podem e devem ser
NÃO E){IS1E EXPRESSÃO mais badalada na psicanálise
explicados pelo tal Complexo de Édipo.
do que esse tal de Complexo de Édipo. Muita gente fala dele,
Antes de explicar melhor o que ele significa, saibam os
muita gente já ouviu falar dele, mas pouca gente sabe, de fato,
curiosos que Complexo de Electra - o desejo da filha pelo pai
o que significa.
- é uma expressão que jamais foi utilizada por Freud e que, a
A expressão Complexo de Édipo foi utilizada pela pri-
rigor, não pertence ao vocabulário psiçanalítico.
meira vez em 1897, numa carta em que Freud comentava com
A palavra complexo não tem nada a ver com sentimen-
um amigo suas últimas idéias. Como a obra psicanalítica de
to de inferioridade. As expressões complexado e complexo de
Freud foi escrita entre 1900 e 1939, pode-se dizer que esta
inferioridade são derivadas de um mau entendimento do que
foi uma de suas primeiras sacações.
seja Complexo de Édipo. Freud usou a palavra para descre-
O nome Édipo foi tomado de empréstimo de uma peça
ver as emoções das crianças por seus pais e dos seus pais
do teatro grego, escrita por Sófocles e chamada Édipo Rei.
por elas. São emoções as mais variadas e, portanto, comple-
Não cabe aqui entrar em detalhes, mas, na tragédia grega,
xas. Quis dizer que, ao contrário do que as pessoas imagi-
Édipo acaba matando seu pai (Laio) e se casando com sua
nam, Complexo de Édipo não é algo tão simples quanto um
mãe (J ocasta).
guri desejar a mãe só para ele e, por isso, querer tirar o pai
Freud achava que todo guri, se pudesse, faria o mes-
do seu caminho. Explico: apesar de ter tido origem numa tra-
mo. Como as pessoas acreditavam que as crianças eram
gédia grega na qual o filho mata o pai e se casa com a mãe,
anjinhos, nada mais do que inocentes e gorduchinhos
Complexo de Édipo inclui esse desejo, mas vai muito além
querubins, era um escândalo dizer que elas se sentiam sexu-
disso - os desejos e as paixões de um filho por seu pai ou de
almente atraídas e apaixonadas por um dos pais, tão atraí-
~ma filha por sua mãe também fazem parte do Complexo de
das e apaixonadas que, tal qual um adulto, seriam capazes
Edipo. Os desejos e as paixões de uma filha por seu pai e sua
de crimes passionais para liquidar seus rivais. Era demais!
~ontade de eliminar a mãe rival incluem-se no Complexo de
Só que Freud estava realizando uma das maiores des-
Edipo. Também os desejos e as paixões dos irmãos entre si,
cobertas sobre a humanidade. Ao sacar que sexo, com suas
seus conflitos e seus ciúmes igualmente pertencem ao Com-
paixões e seus ciúmes gigantescos, não era algo que se ini-
plexo de Édipo. Atenção: os desejos e as paixões dos pais pelos
ciava na adolescência, mas na mais tenra infância, Freud es-
filhos, seus conflitos e ciúmes também são abrangidos. Não
10 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 11

são só os filhos que amam e desejam - até mesmo sexual- Chocasse ou não chocasse os puritanos de sua época,
mente - os pais. Os pais também amam e desejam - inclusi- foi isso o que Freud viu e relatou ao mundo. Sua honestida-
ve sexualmente - os filhos. de intelectual estava acima de seus interesses mais imedia-
Em suma, \Qomplexo de Édipo é um termo que designa tos. Entre sua reputação e a verdade dos fatos, não hesitou
o conjunto complexo de emoções que circulam no interior de em preferir a verdade.
uma famílià;..:Qes,crevr os múltiplos laços, vínculos e conflitos Hoje, oitenta anos depois,* muitos ainda o insultam de
que animãm uma casa. Nele ainda entram as babás e empre- sexomaníaco, tarado, peivertido, só disposto a enxergar ero-
gadas. Todo relacionamento de amor e ódio dentro de uma tismo em tudo. Isso não é verdade. Freud jamais reduziu o
família pertence ao Complexo de Édipo. Qual é então a sua ser humano à animalidade ou ao sexo. Apenas fez ver aos
novidade? Descrever famílias não é privilégio da psicanálise. moralistas que, além de tudo o mais que eles acreditavam
Escritores, teatrólogos e poetas de todos os tempos já cansa- existir, também havia animalidade e sexo.
ram de fazê-lo. Quem duvidar disso que se apresente.
Tudo bem. Só que a psicanálise joga sal, pimenta, cravo
e canela nos relacionamentos que compõem a IlQYfla.fam.ili:_
ar. Não os descreve com se fossem apenas relações doces,
r--·-
azedas ou amargas. Descreve-os como relações nas quais
A PSICANÁLISE DESCOBRIU que criança já nasce com seu
existem sexo, enamoramento e paixão, com todos os confli-
corpinho e com sua cabecinha a mil. Existe, desde o nasci-
tos que isso engendra. A novidade é o gosto .do pecaclo, no
mento, além de tudo que se pensava existir, uma sexualida-
qual antes havia a biografia de santos ou conflitos puros
de. Claro que essa sexualidade não é igual à do adulto. Não é
entre amor e ódio. - pelo menos nos bebês - urna sexualidade genital. Mas que
A psicanálise afirma que o sexo não começa com a ado-
é sexualidade, é.
lescência, mas com a própria vida. Que os pais, os irmãos,
Por que é sexualidade?
as babás e as empregadas não são somente amor, carinho e
Primeiro, porque o corpinho das crianças se excita... e
cuidado. Rola muito mais do que isso. Se as crianças, já nas-
se deleita com as caricias, desde que na hora, no lugar e no
cidas na malícia, seduzem os adultos - quase tal como um
clima certos.
adulto seduz outro - os adultos, por sua vez, não são tão
Segundo, porque emoções, sob muitos aspectos seme-
santinhos assim com as crianças. Não só se deixam seduzir
lhantes às dos adultos apaixonados - emoções de amor e ódio
por elas como as seduzem ativamente. É claro que, normal-
-, ocorrem entre elas e os adultos.
mente, tudo se passa de uma forma disfarçada, educada, ci-
Terceiro, porque ao investigar a vida sexual e amorosa
vilizada. Contudo, abaixo das aparências, além das fachadas,
dos adultos, não dá para entender seus mistérios se não en-
está presente uma baita sedução. Pode haver ou não atos
abertamente sexuais. Mas climas, que los hay, los hay. * Nota do editor: O texto foi publicado no Jornal Última Hora em 7 de fevereiro
de 1984.
r
Eduardo Mascarenhas 13
12 Faces do Amor

tendermos sua história de criança. Ou seja, o amor e o sexo Mas vejam! O tempo todo falei de pitada, de um pouco.
adulto são resultados, em boa parte, do amor e do sexo da Estou profundamente interessado nessa questão da dosagem.
Nem demais nem de menos. É que criar um filho, tomá-lo apto
criança que esse adulto foi.
Quarto, porque elas exercem atração física e amorosa à saúde e à felicidade, requer a inspiração de um inspirado
sobre os adultos e os adultos sobre elas. Apesar das aparên- cozinheiro. Se sal, pimenta, cravo ou canela de menos estra-
cias, rola entre adultos e crianças um clima de mútua sedu- ga o sabor, demais estraga do mesmo jeito. A saúde mental é
ção. Tão forte quanto rola entre adultos enamorados. sempre questão de uma fina culinária.
E é bom que seja assim. A presença da sexualidade dá Se sensualidade de menos arruína a vida de uma cri-
mais vida, graça, beleza e poesia aos relacionamentos. Dá ança, sensualidade demais também pode fazê-lo.
aquele realce. E, acima de tudo, fortalece vínculos. Não fosse Por quê?
esse tempero mais apimentado entre adultos e crianças, se- Porque não cabe aos pais criar os filhos para eles. Eles
ria apenas açucarado e insosso. Resultado: os vínculos entre são vinte ou trinta anos mais velhos e, portanto, morrerão mais
pais e filhos seriam mais frouxos e menos emocionados. Ha- cedo, enquanto os filhos continuarão vivos. Além disso, uma
veria menos prazer e menos brilho. E as crianças seriam ine- criança não pode satisfazer todas as necessidades de um adulto ,
',

vitavelmente menos bem tratadas, o que seria uma catástro- tal como um adulto também não pode satisf~er todas as ne-
fe para essas lindas criaturas que alegram e dão tanta vida a cessidades de uma criança. Adulto curte coisas que só um
adulto curte, e criança curte coisas que só uma criança curte.
esse planeta.
Se me perguntassem qual é a maior causa dos proble- Assim, adultos que pretenderem se realizar emocional-
mas sexuais e amorosos futuros de um adulto, eu não hesi- mente em relacionamentos com crianças estão, num nível mais
taria em responder: "Muito mais importante do que a super- profundo, mentindo, roubando no jogo. Não estão de verdade
badalada repressão sexual, o que fere fundo, muito mais fun- amando as crianças porque amam as crianças. Estão amando
do, a sexualidade de uma pessoa são as primeiríssimas in- as crianças porque estão com medo de amar outros adultos -
fluências.~r,,Ã principal causa da miséria sexual dos filhos é o pessoas do seu mesmo pique. Há uma mentira, uma falsida-
ii-'--,-,
de, uma covardia no fundo de todas as suas emoções.
-,
fato de os pais não terem vivenciado, com uma pitada de pe-
Cabe aos pais, com todo o seu poder maior que o dos
cado, o relacionamento com seus filhos."
Nada mais repressor, mais triste, mais trágico para uma filhos, amá-los, numa certa medida. Amar de menos é catas-
criança do que seus pais não se deixarem se seduzir por ela trófico. Amar demais também o é.
um pouco nem se interessarem por seduzi-la. Isso significa Pais que seduzam e se deixem seduzir excessivamente
simplesmente o mais cruel assassinato de toda a sexualidade por seus filhos não estão criando filhos para vida, estão cri-
ando filhos para si mesmos.
de uma criança.
Nenhuma criança deseja somente pais docemente enter- Claro, os filhos ficarão excessivamente enrabichados
necidos. Todas anseiam por pais apimentadamente enternecidos. neles. E o pior é que é uma relação que não ata nem desata,
posto que sequer vai às suas derradeiras conseqüências. Fica
r'
14 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 15

um clima de sedução que, na verdade, não se consuma e, Possuída por esse ciúme, passa a ter os piores senti-
assim, não dá oportunidade de se verificar se é bom ou não. mentos pelo rival. Se pudesse, o mataria, tal como em qual-
Fica uma secreta esperança que jamais se realiza e não dei- quer crime passional das páginas policiais. Ou, pelo menos,
xa de se realizar, o que realimenta a esperança. ficaria toda satisfeita se acontecesse algo de ruim com ele.
Resultado: os filhos ficam fixados nos pais. E quem, Todos nós sentimos essas emoções quando crianças,
vindo de fora, conseguirá balançar essa roseira? Que foras- se bem que isso se passa nos bastidores da nossa mente, lá
teiro terá forças para romper um encanto de tantos anos? onde não temos consciência do que acontece. E é absoluta-
A conseqüência também é trágica para a vida amorosa mente normal ter-se passado pelo Complexo de Édipo.
e sexual dos filhos. Moças e rapazes tão fixados nos pais te- O problema do Complexo de Édipo (que, no fundo, nada
rão óbvias dificuldades de amar e se fazer amar por outras mais descreve do que as relações de todas as crianças com
moças e rapazes. seus pais) é quando a gente deixa de ser criança, e ele per-
Cabe aos pais, portanto, deixar nos filhos um necessá- manece. Ou seja: o Complexo de Édipo só é problema em al-
rio gosto de frustração. Nem excessiva, a ponto de matar a gumas circunstâncias.
esperança de qualquer realização, nem tão pouca, a ponto de A primeira delas é quando a gente está tão fixado nos
manter uma esperança demasiada de que se realizarão somen- próprios pais, que não consegue se apaixonar por mais nin-
te com seus próprios pais. guém. Milhões de moças e rapazes, pelo mundo afora, não são
Tudo isso faz parte deste termo: o Complexo de Édipo. capazes de amar ou se fazerem amar por causa disso. É que,
mesmo sem o saber, estão enrabichados num outro amor:
seus pais. Aí, apareça quem aparecer, não se emocionam. E,
não se emocionando, não conseguem emocionar. Só enxergam
defeito. Fica evidente, então, que, no sexo, haverá problemas.
A NOVIDADE DO COMPLEXO de Édipo é que ele confere A segunda circunstância em que o Complexo de Édipo
à criança sentimentos, desejos, amores e rancores que, até o revela seu poder negativo é quando um homem ou uma mu-
surgimento da psicanálise, se pensava que fossem privilégios lher relaciona-se com alguém esperando desse alguém aquilo
(ou desgraças) do adulto. que cabe a uma criança esperar dos pais, e não um adulto
O problema é que existe, na paixão e no enamoramen- de outro adulto. Não ter ultrapassado o Complexo de Édipo
to, um lado meio exclusivista. Quando a gente fica apaixona- é não ter, emocionalmente, ultrapassado o jeito de ser de
do por alguém, quer aquele alguém só para si e ninguém mais. uma criança.
A criança, naturalmente, enamora-se mais por um dos pais Todos os adultos excessivamente melindrosos, cheios de
do que pelo outro. Aquele que for eleito, ela há de querer só ira diante de qualquer frustraçãozinha, passíveis das maio-
para si. Fica corroída de ciúme se o vê nos braços do outro res depressões por quase nada, cheios de medinhos por tudo
ou de algum irmão. e todos, no fundo continuam sendo crianças e esperando que
o mundo os trate como tal. Relacionam-se com os outros tal
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16 Faces do Amor

como, quando crianças, era justo que se relacionassem com


os pais. Não superam seus Complexos de Édipo. Dizer que
Incesto
uma pessoa não superou o Complexo de Édipo é o mesmo
que dizer que ela, emocionalmente, continua criança.
polêmico
Mas o que leva uma pessoa a não conseguir tomar-se
gente grande, ou seja, superar o seu Complexo de Édipo? Ou
uma excessiva frustração ou uma excessiva gratificação. Po-
UMA DAS RAZÕES por que a civilização se preocupa com
o incesto é que a família só se relacionaria entre si.
rém, cuidado com essas palavras, porque elas são perigosas.
Uma das descobertas de Freud que mais escandaliza-
Gente não é cachorro, que se gratifica com tapinha na
ram a humanidade é que os filhos amam sexualmente os pais.
cabeça e comida gostosa na barriga e se frustra porque apa-
Não com a sexualidade do adulto, mas com o tipo de sexuali-
nha ou não recebe mordomia. O que importa para uma cri-
dade própria da infãncia. Há sentimentos poderosíssimos de
ança (preenchidas, é óbvio, suas necessidades mínimas de
posse, exclusividade, ciúme, enfim, tal qual o coração de um
existência) não é luxo ou falta de mordomia. O que importa
para uma criança é a quantidade e a qualidade dos relacio- adolescente ou de um adulto apaixonado.
Assim também com os pais. Lá no fundo do incons-
namentos afetivos.
Uma infãncia feliz depende muito pouco do tamanho da ciente de cada um, existe uma secreta paixão sexual pelos
conta bancária dos pais. Por isso, as doenças mentais atin- filhos; tão secreta que a maioria dos pais nem suspeita da
gem indiscriminadamente ricos e pobres. sua presença.
Uma criança que recebe afeto demais, que é filha de pais E por que a civilização se preocupa tanto com o inces-
açucarados e paparicadores, não aprende a respeitar as pes- to? Por que ela simplesmente não o permite?
soas e a ter que lutar para merecer seu afeto. Por várias razões. A mais importante delas é que have-
Uma criança que recebe pouco afeto fica carente e de- ria uma enorme tentação por parte dos membros da família
pendente dos pais. Na realidade não os ama, mas sente-se fra- de ficar dentro de casa, só se relacionando entre si. Isso pre-
ca demais para deixá-los. Caso consiga fazê-lo, provavelmente judicaria enormemente os relacionamentos de trabalho, tão
será uma boca aberta para o mundo, esperando que alguém fundamentais para a sobrevivência da humanidade.
finalmente a adote como filho e sacie sua fome de amor. Outra razão é que não haveria estímulo psicológico para
a mente se desenvolver, pois ela ficaria superprovinciana, in-
capaz de se relacionar com qualquer coisa que fosse estra-
nha a ela. Ficaria girando em tomo apenas dos assuntos e
das questões surgidos naquele seio familiar, sem novas idéi-
as, sentimentos ou pensamentos vindos de fora, para arejar
um pouco aquele ambiente que, depois de um certo tempo,
r
18 Faces do Amor

tenderia para uma estagnação insuportável. E mais, haveria


uma hostilidade meio tribal por uma pessoa de outra família.
homem gosta
Além disso, embolaria o meio-de-campo dentro de casa; de neném e a mulher,
educação, autoridade, ordem não se coadunam bem com na-
moro, sexo e paixão. Fora as ciumeiras e rivalidades na famí- de gente grande
lia, o que provocaria uma séria possibilidade de crimes
passionais. Se sem namoro, sexo e paixão dentro da mesma
família os sentimentos, às vezes, esquentam tanto, imagine TORNOU-SE LUGAR-COMUM achar que mulher gosta de
com esses sentimentos nitroglicerínicos! Cada família se tor- criança e homem gosta mesmo é de gente grande. Tudo bem,
naria um verdadeiro paiol de dinamite. não é que ele não goste de criança, até pode achar graça na
Mesmo quando não ocorre o incesto propriamente dito, filhinha, ir ao futebol com o filho mais velho e fazer bilu-bilu
esse sentimento de fixação nos pais é o que impede tantas e no recém-nascido. Mas tem fôlego curto, cansa-se logo, rapi-
tantas pessoas de se relacionar com o outro satisfatoriamen- damente perde a paciência e fica querendo conversar com
te, de amar e constituir a sua personalidade adulta e inde- adulto sobre: política, sexo, negócios ou futebol - coisas de
pendente. Esse sentimento faz parte do chamado Complexo homem. Sua emoção viril definitivamente não vibra com fral-
de Édipo. das, pediatras e babás como vibra com o papo na esquina ou
Ou seja: a pessoa fixada no amor dos pais mantém-se com a visão da gatona passeando pela praia. Não, espírito
emocionalmente como uma criança. E, como criança, levan- maternal não é com ele, é coisa de mulher.
do vida de adulto, gera os maiores bodes. Pode-se dizer que Contudo, quando a gente se afasta dessa área domésti-
todos os bodes são causados pela não-superação do Comple- ca familiar e entra nos jogos do sexo e da paixão, as coisas
xo de Édipo. E como superá-lo? Melhorando as relações com parecem mudar diametralmente de direção. Homem passa a
a criança que permanece ativa em nós. Nesse campo, a psi- gostar de criança e mulher, de gente grande.
canálise ajuda muito. Aliás, entender essa virada significa começar a deci-
frar um dos maiores enigmas que existem: as causas da atra-
ção física dos corpos. Em outras palavras, os motivos que
levam homem a gostar de mulher e mulher, de homem, ou
seja, as causas da chamada heterossexualidade. O senso co-
mum, porque não possui a visão refinada do olhar psicana-
lítico, pensa que sabe por que os sexos opostos se atraem.
Lança a responsabilidade nas mãos da natureza, na vonta-
de do criador ou nos imperativos do instinto. Tal corno nos
bichos, macho atrai fêmea e fêmea atrai macho. Assim tam-
20 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 21

bém acontecerá com gente, que, afinal, também pertence ao lada a permanecer mais faminta ainda. Sua porção criança
reino animal. está assim saciada e talvez até empanturrada. Fica faminta é
A psicanálise tem argumentos melhores do que empur- de ser gente grande, de desenvolver suas potencialidades. Por
rar tudo para os instintos. Não exclui sua importância, mas vai isso guarda uma nostalgia de ser tratada com mais rigor, exi-
além dessas determinações vindas puramente da natureza. gência que, no fundo, significa confiança nas suas potencia-
Corpo do homem: voz grossa, rosto barbado, músculo lidades pessoais.
para tudo quanto é lado, pêlos espalhados pela pele inteira, Essas nostalgias, então, mais tarde, se cruzam, se
ossos salientes e grossos. complementam.
Corpo de mulher: voz fina, rosto no máximo com penu- O homem ama na mulher a criança que ele quis ser.
gem, pele aveludada, músculos e ossos delicados, tudo mui- A mulher ama no homem a gente grande que ela também
to suave e macio. quis ser.
Qual dos dois lembra uma criança? No fundo da emoção sexual, cada um busca no outro
Na realidade o corpo de uma mulher é a versão adulta aquilo que lhe faltou. A mulher busca no homem seu lado
do corpo infantil. Este se espichou e, sob impacto dos adulto, masculino. O homem busca na mulher seu lado cri-
hormônios sexuais, arredondou-se. Guarda, contudo, no seu ança, feminino.
encanto feminino, todas as formas infantis. Sua beleza apro- Tanto é assim que o tratamento que um homem con-
xima-se da beleza da criança. Em síntese, não há abismo entre fere a uma mulher amada (geralmente mais moça do que ele)
a estética feminina e a estética infantil. A primeira é um puro é a de um pai encantado com uma princesinha. E a mulher
desdobramento da segunda. Quanto mais feminina for uma busca no homem um pai protetor, um adulto poderoso que
mulher, mais ela preserva a criança encantadora que ela um vai mimá-la como filhinha ou estimulá-la a crescer. Prefere,
dia foi e não deixou de ser. O feminino e o infantil são vinhos por isso, os homens mais velhos e mais bem situados na vida
de uma mesma pipa. e raramente um gato mais moço a quem iria ensinar a viver.
O que terá tudo isso a ver com a atração dos sexos?
É que o homem, desde criança, é tratado para não ser
criança, para ser homem. Jamais se viu um pai ou uma mãe
chamando o Júnior de princesinha e achando uma gracinha
suas tranças ou sua maria-chiquinha. Quer dizer, desde que
nasce, o menino é estimulado a se tomar gente grande. Por
isso o homem fica com uma nostalgia danada da criança que
ele não pôde ser.
A mulher, não. Ela é tratada desde pequenininha meio
para permanecer eternamente criança. Sua fome de ser
princesinha não só é amplamente satisfeita como até estimu-
r
Eduardo Mascarenhas 23

Freud, portanto, estava interessado no destino de nossos in-


Narcisismo, vestimentos amorosos. Esses investimentos ora se dirigem
para outras pessoas, fazendo com que a gente se sinta apai-
a lenda xonado, ou, pelo menos, afeiçoado a elas, ora se dirigem para
nós mesmos, ou para nossas fantasias.
Quando nossos investimentos amorosos saem do mundo
A PALAVRA NARCISISMO provém de uma lenda grega: a das pessoas de carne e osso, imediatamente elas perdem o
lenda de Narciso. A versão mais popular dessa lenda diz que interesse para nós. Ficamos apáticos e indiferentes a elas,
Narciso era um jovem lindo, tão lindo que todas as ninfas e pois, na realidade, é o nosso amor que toma as pessoas im-
rapazes se apaixonavam por ele, e ele não se apaixo~a~a por portantes para nós. Uma pessoa que não tenha recebido nosso
ninguém. Mantinha-se sempre naquela indiferença propna dos investimento amoroso não existe para nós. Mas uma pessoa
belos. Num certo sentido, achava que ninguém estava à sua que tenha recebido um poderoso investimento de nossa par-
altura. Sendo o próprio deslumbramento, não se deslumbra- te toma-se a nossa própria razão de ser,
va por ninguém. . Freud compreendeu, assim, a espantosa humildade do
Uma das ninfas que mais se deslumbrava por Narciso coração apaixonado diante da pessoa que o deslumbrou. Num
era Eco, que O amava tanto que foi, aos poucos, desapare- certo sentido, uma pessoa apaixonada vira Eco, a ninfa da
cendo, se desfazendo, até se transformar numa voz que se li- lenda de Narciso. Sua dignidade perde a pose e ela não se
mitava a repetir as últimas sílabas das palavras dele. Eco é, incomoda em se anular completamente nessa estranha psi-
pois, 0 símbolo do coração apaixonado, que se anula comple- cologia da paixão.
tamente diante daquele por quem se apaixonou, a ponto de Seguindo essa trilha, Freud entende que, quando inves-
se tomar apenas um eco de quem lhe deslumbrou a emoção. timos o nosso amor em nós mesmos, podemos sentir sensa-
Certo dia, Narciso foi beber água nas margens de um ções grandiosas de auto-estima e auto-suficiência. A megalo-
lago e viu refletida uma imagem tão deslumbrante q~e ~e mania e o complexo de superioridade seriam conseqüências
debruçou para beijá-la. Nesse movimento, perdeu o eqmlíbno do oposto da psicologia da paixão. Quem investe afeto demais
e morreu afogado no lago que refletia a sua própria imagem. no próprio corpo, principalmente nas próprias vísceras, aca-
A partir dessa lenda, a palavra narciso ficou ligada àque- ba hipocondríaco e hipersensível, razão pela qual apresenta
la pessoa tão vaidosa que só gosta dela mesma e se conside- vários sintomas físicos.
ra superior a todo mundo. Quando o investimento amoroso de uma pessoa sobe
Em 1914, Freud empregou pela primeira vez a palavra para a própria cabeça, ou ela se contenta em viver das pró-
narcisismo. Ele estava preocupado em entender por que cer- prias fantasias, ou se toma dona da verdade, considerando-se
tas pessoas se desinteressavam completamente das outras, a pessoa mais inteligente do mundo, ou, ainda, começa a
trancavam-se dentro delas mesmas, tomavam-se indiferentes delirar e a alucinar, tal a importância que confere aos própri-
à realidade e viviam nos castelos de sua própria fantasia. os processos mentais.
r
24 Faces do Amor

Essa teoria dos investimentos amorosos é que explica o


luto e a tristeza que nos assaltam quando perdemos alguém
Narcisismo
que amamos. De início, nosso investimento amoroso fica e amor
desarvorado, mas, aos poucos, vamos desinvestindo nossa
afeição da pessoa que perdemos e reconduzindo-a ao nosso
Eu. Essa é a razão pela qual, passados os momentos iniciais,
NARCISISMO É UMA palavra complicada. De um modo
conseguimos sair da depressão que nos dominava.
geral, as pessoas entendem por narcisismo algo parecido com
Saber que o poder de fascínio do outro não depende só
ser vaidoso, egoísta, egocêntrico, ter o rei na barriga, achar-se
dele mas também de nosso investimento amoroso é fundamen-
lindo e ostentar essa beleza como um pavão. Até certo ponto,
tal, pois nos toma menos dependentes daqueles que amamos.
têm razão - essas são manifestações indiscutíveis do narci-
Se é o nosso amor que faz alguém ser tão fascinante, então,
sismo. As mais extravagantes, digamos.
perder essa pessoa não há de ser tão desastroso assim. Dá
Por isso mesmo, elas não revelam os significados mais
para construir um novo amor, não é mesmo?
profundos e complexos do narcisismo. Mergulhando mais fi.m-
Essa teoria de que o deslumbramento e a fascinação do
do, vamos encontrar o narcisismo como atitude da mente
outro dependem de nosso investimento amoroso é tão impor-
disposição da alma. E vamos descobrir que ele não pode se;
tante que a relativa independência da maturidade e a sabe-
visto unicamente como algo ruim e negativo. Não fosse ele,
doria dos experientes em grande parte derivam de uma com-
estaríamos todos mortos. Isso porque simplesmente não nos
preensão profunda desse mecanismo.
interessaríamos por nós mesmos. O narcisismo é a fonte de
cuidado e de interesse que devotamos a nós próprios. Não
fosse isso, seríamos, desde o nascimento, seres sem qualquer
auto-estima, sem sentimento de valor, verdadeiros molambos
de berçário. Freud, para explicar o narcisismo, costumava
comparar cada um de nós a um reservatório que contém amor.
Esse amor pode ficar guardado dentro da gente, sem se diri-
gir a ninguém. Pode dirigir-se ao Eu e aí gera a auto-estima.
Pode dirigir-se a outras pessoas, gerando estima por elas.
Se há excesso de amor guardado sem ser investido, nem
na gente nem nos outros, tudo perde o sentido, o brilho. Se
ele estiver excessivamente investido nas outras pessoas, a
gente fica fraco e elas, fortes. Se o amor se dirigir a uma só
pessoa, em grandes quantidades, surge o fenômeno do ena-
moramento e da paixão. Aquela pessoa fica ungida de magia,
26 Faces do Amor
r Eduardo Mascarenhas 27

feitiço e poesia; não podemos viver sem ela, pois ela se toma sionamento que liberta. O culto ao belo, tão característico do
a luz dos nossos olhos. narcisismo, gera, então, a elegância dos nossos gestos, a alti-
Se não houvesse um mínimo de amor dirigido ao Eu, vez dos nossos atos, a nobreza dos nossos sentimentos. E
teríamos uma imagem desvalorizada de nós mesmos e uma também a exigência do colorido e da poesia. E como é impor-
imagem hipervalorizada dos outros. Sentiríamos as nossas tante para um casal achar bonito o seu amor, achar bela aque-
opiniões sem qualquer valor e superestimaríamos a opinião la história de encontros e desencontros. Como é importante
dos outros. Em pouco tempo, não teríamos mais opinião pró- para um casal cada um admirar a grandeza e a nobreza dos
pria e todo mundo mandaria em nós e faria nossa cabeça. gestos do outro. Quer se more numa favela ou num palácio,
Tendo uma imagem desvalorizada de nós mesmos e uma ima- se trata de uma relação entre príncipes. Nesse sentido, o
gem hipervalortzada dos outros, nossos sentimentos, sonhos narcisismo é a nostalgia do humano por se tomar divino.
e desejos seriam por nós mesmos classificados como bobos, Que bela nostalgia!
inferiores e desimportantes. Claro, tudo que fosse nosso e não
dos outros nos pareceria pior. Daí para o aparecimento de uma
sensação de falta de legitimidade interior e de sentimentos
poderosos de vergonha e culpa, bastará um passo.
Vemos, portanto, que sem narcisismo algum seria im-
possível amarmos a nós mesmos e, por conseqüência, a al-
guém. Porque o objeto do nosso amor nos pareceria sempre
menor, sempre menos digno de amor, só porque é nosso. Mal
resolvido, o narcisismo pode representar o obstáculo máximo
para o amor. Mas esse mesmo narcisismo, se bem resolvido,
pode ser condição indispensável para o amor. Além de pôr
beleza, cor e poesia na vida, um dos pontos importantes do
narcisismo é o culto ao belo, ao poético, ao estético. Ele é res-
ponsável pela busca de auto-suficiência, por aquele tom de
dignidade sem o qual nosso amor não sobrevive.
Por causa do narcisismo não nos tomamos grudentos
como polvos. Não grudamos no pé do outro, possibilitando o
lindo espaço da liberdade. O narcisismo é a possibilidade do
amor dos pássaros que se aconchegam nos seus ninhos, não
porque não saibam mais voar, mas, sim, porque é ali que se
dão os maiores vôos. O amor se toma, então, esse estranho
paradoxo: jaula da liberdade, gaiola dos maiores vôos, apri-
Eduardo Mascarenhas 29

bstáculos suprema de recuperar o sentimento do narcisismo inaugural


perdido. Assim, toda busca de amar e ser amado está rela-
ao amor cionada a esse impacto de recuperação da unidade perdida.
Só que a constatação de que não somos a única coisa
que brilha no universo pode também tomar outros rumos, que
não o impulso erótico e amoroso. Por isso, algumas pessoas,
QUANDO UM BEBÊ NASCE, a gente pode observar a fra-
ao perceberem a beleza alheia, ao invés de se enamorarem por
gilidade daquela figurinha indefesa, daquele pequenininho ma-
ela, podem querer destruí-la. Ao invés de serem tomadas pelo
rinheiro de primeira viagem condenado a navegar nos mares
sentimento de amor, são tomadas pela competição, pelo ódio
interiores e nem sempre calmos que constituem a vida. Nes-
e pela inveja. Aí, ou a pessoa desconhece o brilho do outro
sa fase, ele precisa desesperadamente de um capitão para esse '
sentindo-se superior a todos os mortais, ou ataca o outro ati-
navio. Um capitão de pulso firme, orientado pelas bússolas
vamente, denegrindo e tentando amesquinhar todos os que
da experiência, que sabe navegar nesses mares. Esse capitão
possuem luz própria.
é a mãe (ou quem a substitua}, e é quem vai transmitir segu-
O primeiro caminho é seguido pelo arrogante, pelo pre-
rança à criança.
sunçoso: ignorar o brilho alheio e só enxergar o próprio brilho.
Mas, ao lado dessa fragilidade, o bebê também tem a
O segundo caminho é o do invejoso, portador de inveja
sensação profunda de ser a única coisa que existe no univer-
doentia: ter rancor e ódio de todos aqueles que têm valor.
so. Nem desconfia que exista algo que não seja ele mesmo.
Essas duas atitudes mentais se constituem em obstá-
Esse sentimento de ser único no mundo é o que Freud cha-
culos ao amor. Por um lado, só podemos amar aqueles que
mou de narcisismo, porque é nesse estado que todos os nos-
nos deslumbram. Mas aqueles que nos deslumbram, exata-
sos sentimentos de afeição estão concentrados no nosso pró-
mente porque nos deslumbram, são os que nos melindram,
prio Eu. E não há nada de anormal ou patológico nisso. Sim-
nos humilham e nos magoam. Logo, não podem ser amados
plesmente é o nosso jeito quando nascemos, e há um desejo
porque devem ser odiados. Aí, surge o narcisismo doentio e
natural de retomar a ele.
rancoroso que provoca tantos desencontros e desavenças pela
Acontece que, por estranho que pareça, é desse saudá-
vida afora.
vel narcisismo que deriva a nossa capacidade de amar. Isso
porque, quando a gente constata que não é a única luz que
brilha no universo, não é a única fonte de deslumbramento e
cor, num primeiro instante a gente fica em estado de choque.
Se alguém não consegue deslumbrar aquele que o deslum-
bra, em pouco tempo pode começar a se sentir uma estrela
apagada e sem vida. O encontro dos amantes apaixonados,
que se deslumbram mútua e reciprocamente, é a tentativa
Eduardo Mascarenhas 31

sempre foi impressionante a fascinação do ser humano pela


r que beleza corporal. Como se explica isso?
Ora, logo de saída a beleza física tem a ver com sexo,
desejamos com poder de sedução. É uma poderosa garantia de ser de-
ser belos? sejado e cobiçado pelas outras pessoas. Poucos poderes são
tão influentes quanto os estéticos.
O efeito de hipnotizar, magnetizar, enfeitiçar, embevecer,
deslumbrar é impressionante. Diante de uma mulher bela, os
NUNCA SE VALORIZOU tanto o visual quanto atualmen- homens se desmancham e as mulheres se intimidam. Se chega
te, a ponto de a beleza física ter-se transformado numa ver- a algum lugar uma dessas deusas da beleza, de imediato,
dadeira obsessão. muda a temperatura do ambiente.
A razão cultural desse fenômeno não é difícil de ser O mesmo - em menor grau - acontece com um homem
explicada. É que a chamada vida moderna acelerou o tempo lindo. Ele imediatamente atrai olhares femininos e apreen-
das coisas. As pessoas entram numa roda-viva e não têm mais sões masculinas.
tempo interior para se deter em nada. Tudo o que não for do Por que o ser humano é tão sensível à beleza?
tipo "cheguei", contatos imediatos de terceiro grau, bateu-valeu, Primeiro, porque beleza se une a idéias de limpeza, ri-
corre o grave risco de ser considerado pesado, chato, lento, queza, juventude, saúde, pureza. Ou seja, evoca emoções dire-
devagar-quase-parando. tamente ligadas à idéia de vida, vigor, refinamento, nobreza.
E qual é o único atributo humano que literalmente via- Segundo, porque beleza produz um impacto mágico,
ja à velocidade da luz, senão a beleza física? Só mesmo o vi- uma vibração poética. E se existe algo que todos nós deseja-
sual bate de imediato e não exige mais tempo ou paciência mos ser, é um poema que irradia magia por todos os lados.
para ser percebido. Não precisa nem de refinamento de olhar, Desejamos conseguir isso sem esforço algum, pois o esforço
sensibilidade, intuição, convivência, aprofundamento. Nada. quebra o encanto. Daí o esforço dos bailarinos para não pa-
O visual arromba feito um trator as portas da nossa percep- recerem fazer esforço. É que o esforço lembra trabalho, e o
ção e nos impacta sem deixar margens a dúvidas. trabalho quebra a magia.
As pessoas, tão apressadas, vão perdendo, assim, a sen- Só é mágico aquilo que não representar esforço, que não
sibilidade para perceber outras formas de beleza: a beleza parecer humano, que parecer divino. Por isso a beleza evoca
interior, a beleza dos gestos, das emoções, dos ideais, dos a magia e o divino.
sonhos de imaginação, da inteligência. Representa a vitória esmagadora da vida sobre a mor-
Usando uma palavra tão surrada: é o império do con- te, da saúde sobre a doença, da riqueza sobre a pobreza, da
sumismo. perfeição sobre a imperfeição, do gratuito sobre o fruto do
Tudo bem, isso explica a obsessão pela beleza física, esforço, da pureza sobre o poluído, do virginal sobre o gasto.
verdadeiro culto ao corpo. Mas, descontados esses exageros,
32 Faces do Amor

Num nível profundo, um lado nosso detesta todas as conquis-


tas que representaram esforço.
Vaidade
É que, se tivéssemos sido irresistíveis, o mundo teria se
curvado a nossos pés e não teríamos que, com o suor do ros-
ferida
to, ganhar o pão de cada dia.
E a beleza física representa, mais do que tudo, essas
TEM GENTE QUE SENTE ciúme por amor. Tem gente que
profundas aspirações.
sente ciúme por vaidade ferida, por sensação de perda de con-
Claro que outras formas de beleza inspiram a mesma
trole sobre alguém que até então se controlava, por competi-
devoção. Pessoas comoventes, de lindas emoções, são capa-
ção com o rival, por vergonha de se sentir traído, preterido.
zes de despertar poderosas paixões. O único problema é que
Enfim, muito mais por questão de orgulho, auto-estima, ima-
essas modalidades de beleza requerem olhares mais sutis e
gem pública e vaidade, do que por um genuíno sentimento
desapressados para percebê-las.
de amor.
E, como é obvio, esse olhar anda meio em falta na praça.
A gente usa a palavra ciúme para descrever as reações
de uma pessoa quando ela está pressentindo que vai ser pre-
terida ou quando já foi, de fato, preterida. Tudo bem, está certo
o emprego da palavra. O problema é que assim tudo fica meio
farinha do mesmo saco.
Explico-me melhor. Quando a gente vê uma pessoa sen-
tindo ciúme, dá para perceber tantas diferenças de uma para
a outra que fica esquisito usar a mesma palavra para descre-
vê-las. É que, na vida real, existem tantos tipos diferentes de
ciúme quanto tipos diferentes de pessoas.
O que toma mais complicado fazer a diferença entre o
ciúme de quem ama e o ciúme de quem está com vaidade fe-
rida é que freqüentemente esta se manifesta sob a forma de
amor. A pessoa ameaçada de abandono ou no empenho da
reconquista sente amor sincero e verdadeiro. E é verdade.
Sente mesmo e não está mentindo, não. Só que parece que é
amor, mas, na verdade, é vaídade ferida. Tanto é assim, que,
restabelecido o equihbrio anterior - caso isso tenha sido pos-
sível -, desaparece a sensação de amor e o que reaparece é o
tédio, a necessidade do controle sobre a vida do outro, de
Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 35
34

mantê-lo no cabresto. Não quer que ele seja de mais ninguém, não significa dizer que em certos casais não haja claro pre-
mas não sabe o que fazer com ele. Não pode viver sem ele, mas domínio de vaidades e interesses. Óbvio está que, conforme
não pode viver com ele. haja o predomínio do amor ou das vaidades, haverá tipos di-
Claro que, descrito assim, vou pegar muito mais homem ferentes de ciúme.
do que mulher. Mas existe a versão feminina de ciúme, mais No narcisismo, não. Como as mulheres, em alguns ca-
inspirado no narcisismo do que no amor. sos, ainda são dependentes, esse narcisismo a que me refiro
Sabe-se, por exemplo, que se para o homem a glória é não aparece com clareza na maioria delas. É que ninguém põe
possuir mil mulheres, para as mulheres a glória é casar e as manguinhas de fora quando está se sentindo fraco. No
amansar o garanhão. Ora, até aí, entrou de tudo, menos o homem porque, muitas vezes, ele se sente mais forte, a gente
amor. Muita mulher pensa que ama o homem com quem está vê cristalinamente o que estou chamando de narcisismo.
casada, mas na realidade ama muito mais a idéia de estar ca- Ele sente uma certa vergonha de amar alguém, de per-
sada, a idéia de ter no cabresto o garanhão, do que propria- tencer a esse alguém, de entregar-se de corpo e alma a ele. É
mente o seu marido. O que aparece sob forma de zelo, preo- que o narcisismo é o não precisar de ninguém em termos de
cupação e afeto por seu homem, se for bem analisado, são convivência. Precisar para seduzir, conquistar, dominar,
sensações mais dirigidas ao seu ego do que à pessoa com descabelar, deixar apaixonado, fazer sexo, deitar falação, es-
quem convive. No fundo, ela está preocupada com o que es- pantar a solidão, com isso o narcisismo não se incomoda.
tarão pensando as amigas e no que lhe acontecerá se ele for Agora, precisar para conviver, para trocar intimidades progres-
embora. Terá condições de conseguir outro homem, tão bom, sivas, para se entregar, ah! isso não! Soa como decadência,
ou melhor, ou levará fora atrás de fora e acabará com um pior, fraqueza, perda de virilidade. Afinal, um super-herói não se
se tanto? Terá condições de pagar as contas sozinha ou terá casa e constitui família ...
de baixar o padrão de vida e amargar as dificuldades profis-
sionais? Aqui, nesses exemplos, há vínculos de interesses e
não de genuína afeição.
O que será então essa tal de genuína afeição? Quem
já viu o olhar de um cocker spaniel para o seu dono imedia-
tamente saberá o que estou dizendo. E em todos nós existe,
em maior ou menor grau, esse olhar de cocker spaniel. Tem
gente que é quase puro amor e dá para perceber isso a lé-
guas de distância.
Na vida real, raramente se vê um relacionamento em que
haja só amor e as dificuldades e conflitos que do amor deri-
vam. Sempre há vaidade, interesse e dependência também
envolvidos. É que na vida nada está em estado puro, o que
Eduardo Mascarenhas 37

cem, assim, o nome ciúmes doentios, obsessivos,


cos, delirantes.
Várias são as razões a esses tipos ciúme
doentio. O narcisismo e o homossexualismo certamente es-
tão entre elas.
Um narcisista acha-se o ser mais ·~-·------ mun-
do, o mais irresistível, o mais encantador, o mais apaixonante.
E o pior é que acha que todo deve considerá-lo as-
OBVIO QUE o CIÚME em si é uma reação natural de
sim. No fundo não passa de um Zé Bonitinho disfarçado, de
qualquer pessoa quando se pressente ameaçada de perder
um Alberto Roberto* enrustido que os nossos humoristas sou-
alguém que ama para um rival. É uma emoção humana sa-
beram tão bem representar. Isso se forem homens. Ou, na
dia e parte do instinto de defesa. Só mesmo urna perso-
versão feminina, as narcisistas são variações daquela madras-
nalidade pamonha e desfibrada não reage quando se percebe
ta da Branca de Neve que vivia perguntando aos espelhos da
ameaçada de ser preterida por alguém que lhe seja importante.
vida se alguma outra mulher era mais irrecusável e embeve-
Exatamente por isso, todos nós somos ciumentos. Alguns
cedora do que ela.
mais, outros menos, mas todos lutamos para preservar nos-
Como os espelhos da vida são as reações dos outros,
so patrimônio afetivo.
qualquer um que não se renda completamente aos encantos
É que se precisamos alimentar nosso corpo, precisamos
dos narcisistas estará praticando um crime de lesa-majestade
também alimentar nosso espírito, sob pena de definharmos
e deverá, portanto, ser punido com toda a severidade. E tome
emocionalmente. E nada alimenta mais a nossa emoção do
de violência. Na realidade, ser amado é pouco para um narci-
que as energias vibrantes, embevecidas e interessadas daque-
sista. Como ele no fundo se acha Deus, ele quer é ser adora-
les por quem vibramos e nos embevecem. Nada nos torna
do, idolatrado, curtido nos seus mínimos detalhes. E o outro
mais iluminados do que amar e ser correspondido. Do ponto
não faz mais do que a sua obrigação, tratando-o assim. E se
de vista da vida psíquica, trata-se, pois, de uma questão de
não o fizer, então é um traidor, uma pessoa má, uma jararaca
vida ou morte. Tanto isso é verdade que muitos matam, se
sorrateira e que não merece confiança. "Corno você não é com-
matam ou se tomam mortos-vivos quando são preteridos por
pletamente meu?", vocifera insultada a narcisista. "Corno você
alguém que amam.
não é completamente minha?", vocifera o narcisista ferido.
Se alguns tipos de ciúme são humanos e sadios, não
O narcisismo exagerado é uma das causas do ciúme
significa que todos sejam. Existem tipos de ciúme que são tão
doentio. Na realidade, esse narcisismo exagerado resulta sim-
exagerados, tão descabidos, tão desproporcionais à realidade
plesmente da imaturidade emocional, do infantilismo psico-
do que está acontecendo, que só podem mesmo ser chama-
dos de uma reação doentia de uma mente perturbada. Mere-
* Nota do editor: personagens interpretados respectivamente pelos humoristas
Jorge Loredo e Chico Anísio.
38 Faces do Amor

lógico. Por quê? Porque todas as crianças do mundo são as-


sim e é normal que sejam.
Homossexualidade
Até aí tudo bem, pois são crianças. O problema é quando
se tomam gente grande e prosseguem tão crianças assim.
não é doença, nem
Cabeça e corpo de adulto com coração de menino, com senti-
mento de criança, em boa coisa não pode dar.
heterossexualidade
Outra razão para os ciúmes doentios é um homossexua- significa saúde
lismo não resolvido. Esse homossexualismo pode ser até in-
consciente, ou seja, a própria pessoa não se dá conta dele.
Nesse caso, o lado Pombajira lésbica (no caso de mulheres), MUITA GENTE AINDA HOJE considera a homossexuali-
ou D. Juan gay (no caso de homens), vai gerar os maiores dade sinal de urna natureza degenerada. Sua lógica é bas-
tumultos. Explico-me melhor. Suponhamos uma mulher com tante simples. Homem nasce macho e mulher nasce fêmea.
uma homossexualidade mal resolvida. Em lugar de sua emo- É da ordem natural da vida, macho querer fêmea e fêmea
ção (consciente ou não), ela está fissurada por mulheres, até querer macho. Foi a própria natureza que assim o quis. Na
porque não se realiza homossexualmente, o que deixa o de- sua sabedoria, garante por esse tipo de atração a procria-
sejo homossexual faminto e enlouquecido. Tal como ela dese- ção de filhos e com isso a perpetuação da própria vida. Saiu
ja fissuradamente mulheres, imaginará seu homem desejan- daí, é doença, tara, falta de vergonha, paixão de desnatura-
do o mesmo. É que enxerga a sua própria imagem e seme- dos, amor entre anormais. Em síntese, uma violência con-
lhança. Resultado: ciúmes doentios. Haverá aqui mais ciúme tra a natureza.
ainda, porque ela teme que seu homem faça amor com aque- Para reforçar essa crença, invocam-se exemplos na es-
las com quem ela gostaria de fazer amor e não ousa. cala animal. Os bichos instintivamente não buscam o sexo
No caso do D. Juan gay, o mesmo ocorre. O homem oposto? Logo, seres humanos, porque também são bichos,
projeta na sua mulher seus próprios desejos de transar com deveriam igualmente fazê-lo. Na infância, ainda vá lá. Afinal,
homens. Como está na carência, pensa, consciente ou incons- criança é criança. Sua mente ainda é confusa e não adquiriu
cientemente, o dia todo em se relacionar com eles. Assim en- plena consciência do certo e do errado. Contudo, quando na
xergará sua mulher corno urna ninfomaníaca inveterada, sem- adolescência aparecer o instinto sexual, aí a própria nature-
pre disposta a transar com qualquer um, a começar pelo seu za se encarregará de colocar as coisas no seu devido lugar.
melhor amigo. Claro, não se deve confiar demasiado nela. Por via das dúvi-
das, deve-se, desde pequenino, evitar os jogos homossexuais
infantis. Não custa ajudar a natureza e deve-se impedir a cri-
ança de se viciar.
Não é assim que pensa a psicanálise. Uma das maiores
glórias de Freud foi ter derrubado essa idéia biológica e na-
40 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 41

turalista da mente humana. Depois de sacar o jeito como fun- Em outras palavras: sexo não inicia na adolescência, co-
ciona cabeça de criança e a importância dos seus primeiros meça desde o nosso primeiro suspiro. Afirmar isso lhe cus-
relacionamentos para o resto de suas vidas, abalou profun- tou dez dolorosos anos de solidão. Desangelicalizar crianças
damente as idéias de índole, temperamento, instinto. A par- era demais para o puritanismo preconceituoso de então. Desde
tir de Freud, não se pode mais compreender uma pessoa sem nosso primeiro dia, jamais fomos inocência. Já nascemos de
se compreender a sua história. Principalmente, a história dos carne e osso.
seus primeiros e mais remotos amores. Dizer que criança tem sexo não significa dizer que ela
Não é que haja uma natureza, uma índole de nascen- tem sexo de adulto. Seu desejo não arde principalmente nos
ça. É óbvio que cada pessoa já nasce de um jeito. Contudo, à seus genitais. Arde por todo o corpo, principalmente pela pele,
diferença de todos os outros bichos, é da própria natureza boca e orifício anal. Criança não tem sexo de adulto, tem sexo
humana uma quase infinita capacidade de se deixar influen- de criança. E o futuro sexo do adulto dependerá não só da
ciar pelo ambiente. Abelha nasce abelha e vai viver corno to- explosão do instinto na adolescência, mas, principalmente, do
das as abelhas para o resto da vida. A natureza determina encaminhamento desse sexo de criança. A história da sexua-
seu jeito de ser e sua vida afeta não mais que um pouco. Com lidade não começa aos 13 anos, começa no berçário.
os cachorros, golfinhos e chimpanzés, o ambiente já influi Até aí, à primeira vista, tudo bem. Só que se pensar-
muito mais. Mesmo assim, infinitamente menos do que com mos com mais atenção no que está escrito, vamos descobrir
um ser humano. É da própria natureza humana ser aberta uma coisa chocante. Que todas as chamadas taras e desvios
para o ambiente. E de sua índole quase não ter índole. Nosso não são produto de uma mente adulta degenerada. São os
instinto é feito de borracha. produtos da sobrevivência do sexo sadio de uma criança no
Ao descobrir isso, Freud, em vez de sair por aí rotulan- sexo do adulto! Isso mesmo. Se formos julgar as crianças pelos
do pessoas, começou a entendê-las na sua profundidade. padrões que julgamos os adultos, elas são taradas, despudo-
Parou de julgar, de louvar e de pichar e tratou de compreen- radas, desviadas, sem barreira para nada. Sentem-se atraí-
der. Descobrir que a nossa alma é feita de borracha foi um das por animais e excrementos, meninos e meninas, homens
golpe de morte nas idéias de mentes degeneradas e desnatu- e mulheres, não importam idade, cor ou classe social, num
radas, índoles perversas, temperamentos anormais, falta ina- autêntico vale-tudo. Toda tara ou libertinagem não passa do
tiva de vergonha na cara etc. Uma de suas maiores glórias, predomínio do sexo normal da criança no adulto. Logo, em
sem dúvida, foi ter desfeito o abismo que existia entre o nor- vez de anjos, nascemos tarados e libertinos. Não é à toa que
mal e anormal, saúde e doença, sanidade e loucura, mentes Freud chocou, de início, a sua época.
íntegras e degeneradas. Fiz essa introdução para desfazer essa idéia de que ho-
Outra de suas glórias foi ter descoberto que criança não mossexuais são degenerados. Não. Exatamente porque, ao
é anjinho. Não nasce pura, crédula e sem maldades como um contrário de todos os outros animais, nosso instinto é de bor-
querubim. Ao contrário, já nasce, não diria com o diabo, mas racha, homossexualidade e heterossexualidade são leitos per-
com um diabinho no corpo. feitamente possíveis pelos quais pode fluir nosso desejo; são
rios por onde pode desaguar nossa sexualidade. Não existe
42 Faces do Amor

no ser humano uma natureza homossexual ou heterossexual


suficientemente forte para selar nosso destino. Nascemos
muito mais sexuais do que homo ou heterossexuais.
Homossexu •smo
As venturas e desventuras de nossos primeiros amores é
que determinarão o curso da nossa preferência sexual. É claro
feminino
que a educação e a cultura influirão poderosamente. Tanto que
a heterossexualidade é mais freqüente. O que não significa di-
O INSTINTO HUMANO não é tão definido quanto o dos
zer que a criação seja onipotente. Se o fosse, não existiria
animais. Não fossem a criação, a moral e os costumes, ele po-
homossexualidade.
deria perfeitamente dirigir-se para pessoas de ambos os se-
Faço uma diferença entre os primeiros relacionamentos
xos. Se ele vai se direcionar para pessoas do mesmo sexo (ho-
e a criação. Enquanto a criação é meio prêmio e castigo, meio
mossexualismo), para pessoas do sexo oposto (heterossexua-
exortação moral, meio pode e não pode, os primeiros relacio-
lismo) ou para pessoas de ambos os sexos (bissexualismo), isso
namentos não são morais ou pedagógicos, são afetivos. E, por
dependerá da biografia amorosa de cada um, principalmente
isso, mais efetivos.
da história dos primeiros amores de infância.
As causas tanto da homossexualidade quanto da hete-
Exatamente por essa característica algo indefinida do
rossexualidade são lotéricas. Trocando em miúdos: de ante-
instinto humano, as mulheres possuem uma tendência ao
mão, não há quem possa prever se um relacionamento com a
homossexualismo maior do que os homens. Isso porque já
mãe e o pai desaguará na homo ou heterossexualidade. Não
nascem nos braços de uma pessoa do mesmo sexo (a mãe),
há atitude materna ou paterna que, por si só, garanta esse
ao passo que os homens nascem nos braços de uma pessoa
ou aquele curso. Digo isso porque não é verdade que uma pes-
do sexo oposto (também a mãe).
soa se tome homossexual porque seu relacionamento com os
Logo, enquanto os homens já nascem num relaciona-
pais foi ruim, quer por ter sido excessivamente frustrante ou
mento heterossexual, as mulheres nascem num relacionamen-
gratificante. Isso não é verdade. Uma pessoa pode se tomar
to homossexual. Para os homens, basta prosseguir na mes-
homossexual pelas melhores ou piores razões. Exatamente
ma trilha que chegarão à heterossexualidade. Para as mulhe-
como pode se tomar heterossexual.
res, não. Têm de mudar de rumo. Daí o processo feminino de
Logo, homossexualidade não é doença, nem heterosse-
se chegar à heterossexualidade ser mais complexo, pois con-
xualidade significa saúde. Existem homossexuais doentes e
tém duas etapas. Está, por isso, mais sujeito a complicações.
sadios, tal como heterossexuais. Claro, assim como os negros,
Uma mulher recém-descasada, mãe de uma bela filhi-
os pobres e as minorias, os homossexuais são alvo de discri-
nha de três anos de idade, me revelou, aflita, sua preocupa-
minações sociais, o que afetará uma parte de suas emoções. É
ção de a filhinha estar fadada ao homossexualismo, já que
óbvio que, com toda razão, tenderão a ficar um tanto reativos.
agora ela não tinha nenhum homem em casa. Sem dúvida,
Como qualquer heterossexual na mesma situação. Contudo,
aumentam um pouco as possibilidades de a menina se enve-
i isso não passa de camadas mais superficiais da emoção.
44 Faces do Amor

redar pelos caminhos da homossexualidade. Mas por que so-


mente um pouco, e não muito?
r Eduardo Mascarenhas 45

tuir uma família. Isso, e não o teatro de uma família que vive
de aparências, é o que vai passar para a cabeça da criança e
Porque a emoção humana é muito mais complexa do que se constituir na base de sua futura personalidade.
se imagina e não há de ser a presença ou ausência concreta A pergunta principal não é, pois: tenho ou não tenho um
de um homem em casa que determinará o seu curso. homem dentro de casa? É, isto sim, tenho ou não tenho a ca-
Explico-me melhor. Quando uma pessoa - mesmo que pacidade de ter um homem no meu coração?
seja um adulto - ama outra pessoa, ela se liga também - e Olhem que coisa estranha! Então uma relação entre
como! - a seus sonhos, seus valores de vida, seus ideais. Em duas mulheres - mãe e filha - nesse sentido, uma relação
outras palavras, quando amamos, somos poderosamente in- homossexual, já que inclui afeto e contato físico, pode per-
fluenciados pelos valores daqueles que amamos. Não por seus feitamente gerar o desejo de se buscar um homem. Estra-
valores superficiais para uso externo, mas, sim, por seus so- nhamente, uma relação homossexual pode gerar heterosse-
nhos profundos, seus desejos e ideais mais secretos. Num xualidade. Por amor homossexual à sua mãe heterossexual,
certo sentido, há uma espécie de contágio psíquico, que a uma filha pode se tornar heterossexual, já que desejará os
psicanálise dá o nome técnico de identificação. Se o amor for desejos daquela que ama, sonhará seus sonhos, se norteará
profundo, daqui a pouco estamos falando, pensando, sentin- por seus ideais.
do, gesticulando, agindo como aquele que amamos. Passamos Por outro lado, uma mulher pode ficar homossexual por
a sonhar os seus sonhos, viajar nas suas fantasias, desejar várias razões.
os seus desejos, nos guiar por seus valores e ideais, nos emo- Primeira. Por causa do beijo da mulher aranha. Sua
cionar com aquilo que o emociona, nos embevecer com aqui- mãe, na realidade, amou-a não para que crescesse e se liber-
lo que o embevece. tasse de suas teias, mas para que ela ficasse para sempre sua.
Se isso acontece com gente grande - e acontece mesmo Não a criou para o mundo, criou-a para si mesma. Esse fator
-, imagine com a criança! pesa muito mais ainda se a mãe for uma mulher sedutora,
Por isso a psicanálise insiste em dizer que, muito mais carismática e encantadora e empenhada em seduzi-la, acatar
importante do que ter pai, mãe e família, é o tipo de pai, mãe seus caprichos, encantá-la por todos os meios.
e família que se tem. O importante, para uma criancinha, nos Acima de tudo, a fixação na mãe se dará se a filha
braços de sua mãe, não é que esta seja casada em cartório, perceber-se como a fonte suprema de prazer da mãe; que ho-
com um marido que mora em casa. Isso pode ter alguma im- mem nenhum, atividade nenhuma faz os olhos matemos bri-
portância, mas muito secundária, e pode ser tanto um fa- lharem tanto quanto ela, filha. Enfim, que em vez de uma
1
tor positivo quanto negativo! relação mãe-filha, surja uma mútua paixão e um estado de
O decisivo não é ter um homem em casa, é a cabeça da mútuo enamoramento, para qual homem algum faça falta.
1

mãe. Se dentro da cabeça ela gosta ou não gosta de homem, "Que importa um homem se tenho você, minha filha!"
1 '

se ela é ou não capaz de amar um homem, se ela é ou não Uma mulher a quem sua filha faça vibrar mais do que
1
capaz de, numa boa, e não por aparências hipócritas, consti- qualquer homem (ou até mesmo qualquer outra mulher) e que,
i
'I
i, 1

'
46 Faces do Amor

além disso, seja encantadora o bastante, disponível o bastante,


presente o bastante para fazer a filha vibrar por ela, é urna A origem
poderosa causa de urna futura homossexualidade.
Principalmente, porque uma mulher tão enrabichada
primitiva
assim por sua filha obviamente não está casada com um ho-
mem de verdade, encantador, vibrante, igualmente carismáti-
do amor
co. Por quê? Porque um homem assim jamais estaria casado
com ela. Logo, essa configuração psicológica é extremamente
COM A PSICANÁLISE, houve urna verdadeira revolução
enfeitiçante para a filha. Não lhe dá sequer oportunidade de
no modo de o homem enxergar a si mesmo. Desde então, to-
descobrir as maravilhas masculinas. E a gente sabe, criança
dos os estudiosos do mundo não têm como negar: a nossa ca-
adora ser adorada. Ser alvo, tão cedo, de tão poderosa adora-
beça não é feita só das coisas de que temos consciência - a
ção deixa marcas profundas na mente de qualquer criança.
região iluminada que enxerga anos com a nossa visão interior-,
Quando, mais adiante, por conta do jogo da vida, não
existe o inconsciente, região escura e que, por isso, escapa ao
dá mais para sustentar essa paixão, a relação mãe-filha pode
nosso olhar.
se romper, mas o desejo de restaurá-la em alguma outra
Essa região escura - o inconsciente - possui uma lógi-
mulher será poderoso.
ca completamente diferente do consciente. Como sabemos
A descrição que eu fiz é extrema, só para ser didática.
como é o inconsciente? Sabemos como ele é porque, em cer-
Contudo, relações menos óbvias existem - e como. A pergun-
tas pessoas, parte dele irrompe pela consciência.
ta decisiva é: por quem brilha mais o olhar matemo? Pela vida,
O segundo passo da psicanálise foi decifrar essa lógica.
por um homem, por alguma mulher ou, na realidade, pela fi-
Freud foi genial nisso, pois descobriu o mais fantástico ovo
lha? É a exclusividade desse brilho do olhar matemo o fator
de Colombo. Sabem o que se passa nos níveis escuros da
mais sedutor de todos.
nossa cabeça? Tão-somente a psicologia de criança, os níveis
Se O brilho desse olhar for dessexualizado, platônico,
primitivos do psiquismo. Como cabeça de criança é comple-
puramente espiritualizado, está aberto o caminho para futu-
tamente diferente de cabeça de adulto, essa não consegue
ras apatias sexuais, quer com homens, quer com mulheres.
entender o que se passa com aquela.
Se, no entanto, for um brilho sensualizado, está aberto oca-
Toda criança mais crescidinha é muito apegada aos pais.
minho para futuras homossexualidades, as quais aparecem
É apegada por duas razões: primeiro, porque já descobriu que
diretamente ou não são visíveis por conta do peso da expres-
precisa desesperadamente deles. Seu sentido de realidade já
são social.
a fez se dar conta da sua enorme dependência. Segundo, por-
que é urna pessoazinha e, por isso, pode enxergar os pais como
pessoas e amá-los de pessoa para pessoa.
48 Faces do Amor

O recém-nascido não é assim. Ele não está nem aí para


os perigos que o cercam. Não possui o menor sentido de rea-
lidade e vive no mundo das suas fantasias. Não sabe da sua
dependência dos pais. Além disso, sua cabeça é tão primitiva
mulherengo
que não pode ser considerado uma pessoa. Não sendo uma
pessoa, não tem como entender o que seja pessoa. Logo, não
pode estabelecer vínculos verdadeiramente pessoais. O recém-
A NATUREZA HUMANA é complexa demais. Cada pessoa
é única e compete somente a ela descobrir os caminhos de
nascido, portanto, é auto-suficiente e não ama ninguém. En-
sua própria realização. Por isso, respeito desde o mais casto
tretanto, seu instinto está a mil e se manifesta através de im-
dos monges até o mulherengo mais inveterado.
pulsos e fantasias. Como vive no império da imaginação, atri-
Apesar de cada mulherengo ser diferente dos outros,
bui a esses pedaços do corpo poderes demoníacos ou divinos.
existem alguns pontos mais ou menos comuns entre eles, o
Se projetou fantasias positivas, amará apaixonadamente aque-
que permite se falar de uma psicologia do mulherengo.
le pedaço de corpo. Essa é a origem mais primitiva do amor.
Uma das coisas mais comuns nos mulherengos é seu
Amar não as pessoas, mas pedaços de corpos nos quais se
interesse pelos homens. Parece um paradoxo, mas é verdade.
projetam fantasias paradisíacas.
E não estou repetindo aqui aquele chavão meio moralista de
Essa é a origem de o desejo sexual adulto se dirigir para
que um homem faz sexo com várias mulheres só porque des-
um pé, um dorso musculoso, um par de olhos azuis, um lá-
confia se é homem mesmo, tipo, se transo com muitas mulhe-
bio carnudo, uma voz sensual. Não há amor pela pessoa que
res quer dizer que não sou impotente nem quero transar com
detém o corpo. Há amor por partes do seu corpo. Logo, o sexo
homens. Se bem que isso possa acontecer, não é a regra geral.
pelo sexo é a expressão suprema do amor no seu estado ori-
A regra geral é o prazer de mostrar aos outros homens
ginal. Por incrível que pareça, todas as taras sexuais são as
suas proezas. Daí o prazer de contar para os amigos as aven-
expressões supremas de inocência infantil.
turas amorosas. Há uma espécie de competição de quem con-
A ninfomaníaca - como, aliás, os garanhões - está com
segue mais mulher e, de preferência, aquelas mais cobiçadas
sua sexualidade e seu amor fixados nessas fases. Amam e
pelos competidores. Por isso, mulher bonita ou famosa mar-
fazem amor como bebês. Em ambos os casos, o que deveria
ca mais ponto.
ser inconsciente tomou de assalto o consciente.
Esse desejo de estar bem situado entre os rivais é dos
impulsos mais fortes do mulherengo. O chamado come-quieto
não é exceção a essa regra. Ele não conta diretamente, é ver-
dade, mas ou deixa insinuado e adora que se descubra, ou
guarda dentro de si esse precioso segredo e triunfa secretamente
sobre os outros, ainda com o prazer de os estar ludibriando.

j,

j
50 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 51

Esses jogos masculinos são tão importantes para os É evidente que o tão badalado machismo é, em parte,
homens, que muita mulher toma-se objeto de uma paixão - responsável por tudo isso. A cultura faz a cabeça dos ho-
às vezes duradoura, que pode até chegar ao casamento - só mens. Explicar, porém, todas essas emoções masculinas
porque é objeto do encantamento dos amigos. Alguns têm somente pelo machismo é pobre. É que, independentemente
consciência disso, outros não. Sentem uma forte atração, de cultura ou criação, existe urna competição e uma afeição
uma sensação de amor sincero. Contudo, se essa mulher, por inata entre as pessoas. Sejam homens ou mulheres. É da
essa ou aquela razão, deixar de ser cobiçada pelos amigos, própria natureza humana e, quem dúvidas tiver, basta en-
quebra-se a magia e desaparece o encanto. trar no quarto de crianças bem pequeninas e constatará essa
Boa parte dos ciúmes masculinos decorre não propria- verdade. Assim o foi, o é e o será, aqui e em qualquer cultu-
mente do amor à mulher, mas, sim, da humildade de vê-la ra. Se aparecerá mais sob a forma de mulherengo ou outras,
nos braços de um rival. Muitos homens separam-se de uma isso é uma nova discussão.
mulher e sentem alívio. Entretanto, quando sabem que ela en- O mulherengo, contudo, não se relaciona com mulhe-
controu um novo amor, a geleira se derrete e no lugar dela res só por causa dos homens. Relaciona-se com as mulheres
aparece um vulcão. também por causa das mulheres.
A timidez de abordar mulheres também se deriva des- Primeiro, por causa de sua índole competitiva. Por con-
1
sas competições entre os homens: "Se eu não me der bem, o ta dela surge um jogo, de ambas as partes, de medição de
1

que vão pensar os meus amigos?" forças do tipo quem dobrará quem, quem fará o outro ficar
Até nos momentos de um grande amor - esse compo- rendido aos encantos. E não há relação homem-mulher em
nente está presente: "Poxa, vivo um amor pra homem nenhum que essa competição não ocorra, de ambas as partes. Em
botar defeito." É que o "espelho, espelho meu, existe alguém muitos casais, é razão de confusão, desencontros e rompimen-
mais encantador do que eu?" não pertence somente às mu- tos. Em outros, não. Gera o maior clima. É que, existem com-
lheres. Os homens também o consultam. E como! petições doentias, mas também as sadias, mutuamente esti-
Alguns se orgulham de não serem competitivos, po- mulantes e que ainda trazem à relação aquele gostoso sabor
rém, disputam um torneio paradoxal: o campeonato de quem de risco e aventura.
é o menos competitivo de todos! Ou seja, a competição da Segundo, por causa de sua índole fraterna. Pode pare-
não-competição. cer estranho, mas o sentimento de fraternidade do homem para
Mas nem só de competição vive o homem. Ele vive tam- com a mulher, se pode ser um fator fundamental para se vi-
bém de fraternidade, fraternidade pelos ... outros homens. Por ver um grande e definitivo amor, pode também ser a razão de
. •: 1
isso ele também se relaciona com mulheres, uma maneira de sua impossibilidade. Explico melhor. Em alguns homens, o
cumprir as regras do seu Clube do Bolinha. Por amor aos sentimento de fraternidade é tamanho que começa até a pin-
homens, ama as mulheres: "Porque gosto dos meus amigos, tar culpa quando se está com uma mulher: "Poxa, por que
gosto do que eles gostam que eu goste." preferi fulana e me apaixonei por ela? Apaixonar-me por ela é
como dizer às outras que elas, para mim, são inferiores, não
50 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 51

Esses jogos masculinos são tão importantes para os É evidente que o tão badalado machismo é, em parte,
homens, que muita mulher torna-se objeto de uma paixão - responsável por tudo isso. A cultura faz a cabeça dos ho-
às vezes duradoura, que pode até chegar ao casamento - só mens. Explicar, porém, todas essas emoções masculinas
porque é objeto do encantamento dos amigos. Alguns têm somente pelo machismo é pobre. É que, independentemente
consciência disso, outros não. Sentem uma forte atração, de cultura ou criação, existe urna competição e uma afeição
uma sensação de amor sincero. Contudo, se essa mulher, por inata entre as pessoas. Sejam homens ou mulheres. É da
essa ou aquela razão, deixar de ser cobiçada pelos amigos, própria natureza humana e, quem dúvidas tiver, basta en-
quebra-se a magia e desaparece o encanto. trar no quarto de crianças bem pequeninas e constatará essa
Boa parte dos ciúmes masculinos decorre não propria- verdade. Assim o foi, o é e o será, aqui e em qualquer cultu-
mente do amor à mulher, mas, sim, da humildade de vê-la ra. Se aparecerá mais sob a forma de mulherengo ou outras,
nos braços de um rival. Muitos homens separam-se de uma isso é uma nova discussão.
mulher e sentem alívio. Entretanto, quando sabem que ela en- O mulherengo, contudo, não se relaciona com mulhe-
controu um novo amor, a geleira se derrete e no lugar dela res só por causa dos homens. Relaciona-se com as mulheres
aparece um vulcão. também por causa das mulheres.
A timidez de abordar mulheres também se deriva des- Primeiro, por causa de sua índole competitiva. Por con-
sas competições entre os homens: "Se eu não me der bem, o ta dela surge um jogo, de ambas as partes, de medição de
que vão pensar os meus amigos?" forças do tipo quem dobrará quem, quem fará o outro ficar
Até nos momentos de um grande amor - esse compo- rendido aos encantos. E não há relação homem-mulher em
nente está presente: "Poxa, vivo um amor pra homem nenhum que essa competição não ocorra, de ambas as partes. Em
botar defeito." É que o "espelho, espelho meu, existe alguém muitos casais, é razão de confusão, desencontros e rompimen-
mais encantador do que eu?" não pertence somente às mu- tos. Em outros, não. Gera o maior clima. É que, existem com-
lheres. Os homens também o consultam. E como! petições doentias, mas também as sadias, mutuamente esti-
Alguns se orgulham de não serem competitivos, po- mulantes e que ainda trazem à relação aquele gostoso sabor
rém, disputam um torneio paradoxal: o campeonato de quem de risco e aventura.
é o menos competitivo de todos! Ou seja, a competição da Segundo, por causa de sua índole fraterna. Pode pare-
não-competição. cer estranho, mas o sentimento de fraternidade do homem para
Mas nem só de competição vive o homem. Ele vive tam- com a mulher, se pode ser um fator fundamental para se vi-
bém de fraternidade, fraternidade pelos ... outros homens. Por ver um grande e definitivo amor, pode também ser a razão de
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1
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isso ele também se relaciona com mulheres, urna maneira de sua impossibilidade. Explico melhor. Em alguns homens, o
cumprir as regras do seu Clube do Bolinha. Por amor aos sentimento de fraternidade é tamanho que começa até a pin-
homens, ama as mulheres: "Porque gosto dos meus amigos, tar culpa quando se está com uma mulher: "Poxa, por que
gosto do que eles gostam que eu goste." preferi fulana e me apaixonei por ela? Apaixonar-me por ela é
como dizer às outras que elas, para mim, são inferiores, não
52 Faces do Amor

tão encantadoras, e isso é cruel, não é justo." Surge assim urna


T Eduardo Mascarenhas 53

da disponibilidade que se abriu, mas até como forma de vin-


espécie de afeição ecumênica, de amor universal por todas as gança sobre o antigo e extinto amor.
mulheres do mundo, o que não permite que se fixe em nenhu- Acredito que um pouco de tudo isso se encontra pre-
ma. Passa a ser urna questão de justiça libidinosa. Se todas sente em todo mulherengo. Alguns deles são felizes; outros,
são maravilhosas, corno escolher urna e preterir as outras? E infelizes. Tal como os não-mulherengos. Alguns de seus mo-
assim nasce mais um mulherengo. tivos são nobres; outros, não tão nobres assim. Tal como em
Também dentro desse espírito de afeição desregrada todo mundo. O simples fato de se ser mulherengo não é sinal
pela mulher, existe o prazer pigmaliônico. Para quem não nem de saúde nem de doença mental.
sabe, Pigrnalião é um personagem que gostava de auxiliar
mulheres abnegadamente. Por exemplo, ensinar uma moça
pobre a tomar-se urna grande dama; iniciar uma donzela nos
segredos do amor; redimir as chamadas mulheres de vida
fácil etc. Já conheci homens que, sabendo ou não, namora-
ram mulheres, entre outras coisas, para libertá-las de uma
família opressora.
Ainda dentro dessa questão de uma afeição excessiva
pelas mulheres, o mulherengo não consegue amar uma só por
muito tempo porque ele rapidamente enxerga qualidades em
outras e se afeiçoa por elas, as quais, por sua vez, cederão
lugar a mais outras e outras mais. Paradoxalmente, por amar
tanto, não consegue amar ninguém.
Essa questão é da maior importãncia porque é uma das
principais razões do desgaste de tantos casamentos. Um ca-
samento não se desgasta somente pela rotina. Não é o que se
faz num casamento que o desgasta. É o que se deixa de fa-
zer. São os outros amores que não puderam ser vividos, as
outras vidas que não puderam ser curtidas. E essa frustra-
ção vai se acumulando pelo dia-a-dia até converter-se em
antipatia, implicância ou indiferença.
Outros homens tomam-se mulherengos porque são ex-
tremamente melindrosos. Qualquer coisinha que sua amada
faça pode ferir seus sentimentos, a tal ponto que acaba por
matar o amor. E aí surge um novo amor, não só por causa
T Eduardo Mascarenhas 55

A energia da A questão de sexualidade não aparece na adolescência.


Todos nós já nascemos incendiados por desejos e paixões. A
sexualidade educação que recebemos nos faz reprimir esses desejos, essa
fissura. Por isso é que muita gente pensa que crianças são
anjinhos assexuados. Mas, quando chega a adolescência, esse
incêndio aumenta ainda mais, pois às fissuras insatisfeitas
A SEXUALIDADE é uma força tão poderosa que, sem ela,
da infãncia se somam os efeitos dos hormônios sexuais. Por
crescemos apenas pela metade. Viramos adultos parcialmen-
essa razão, nessa época, até os santinhos ficam endiabrados.
te e, dentro de nós, sobrevive uma metade criança que pode
Como controlar tamanha excitação quando, depois de tama-
nos infligir dolorosos sintomas.
nha espera, se chega ao contato direto com o corpo de outro
Uma vez incendiados pela sexualidade, tornamo-nos
alguém? Apesar de todos os medos, para um adolescente, o
mais atirados, arrojados, ousados e menos submissos. E acon-
ato sexual é como jogar sangue na água: o tubarão que na-
tece ainda que, quando as pessoas se encontram incendiadas
vega submerso nos mares de sua sexualidade fica simples-
pelo desejo, tomam-se mais interessantes aos nossos olhos. mente enlouquecido.
A gente descobre nelas uma porção de qualidades que nos
animam a enfrentar a timidez, o pãnico tão comum diante da
vida e dos outros. Nesse ponto, passamos a não mais depen-
der da família com a mesma intensidade.
Se não houvesse a energia da sexualidade para nos in-
cendiar, tudo se passaria ao contrário. Ficaríamos retraídos,
cheios de não-me-toques, numa apatia interminável.
É da própria natureza do ser humano buscar relacio-
namentos físicos com outras pessoas. Claro, pois o corpo
alheio, pela sua própria textura e anatomia, gera enorme pra-
zer físico. Além disso, é parte fundamental do prazer sexual
a sensação de estar produzindo prazer no parceiro. Nesse
mútuo embevecimento é que se encontram os maiores níveis
do prazer sexual.
É verdade que sexo é instinto. É a forma que a natu-
reza encontrou para perpetuar a vida, mesmo depois da .
morte. Não no sentido religioso da alma, mas no sentido fí-
sico dos corpos. São corpos dando vida a corpos. É vida re-
produzindo vida.
T
'
1 Eduardo Mascarenhas 57

Fome Essa é uma das importantes razões pelas quais sua afei-
ção concentrou-se tanto na área sexual. É que ali tudo é ten-
/ ®

narc1s1ca so, dramático, intenso. Os gestos sexuais não são de carinho


mas de veneração. Nos transes sexuais, por exemplo, 0 qu~
um amante diz para o outro (e pode sentir pelo outro) é do
MUITAS MULHERES adoram seduzir, fazerem-se deseja- mais absoluto exagero, só compreensível pela força transitó-
ria da paixão.
das, sentirem-se irresistíveis, mas não gostam tanto do sexo.
Esse deleite pela sedução pode alcançar níveis tão Há urna verdadeira celebração narcísica no ato sexual.
fissurados a ponto de se tornar uma verdadeira obsessão. Cada qual é divinizado pelo outro, corno jamais o seria em
Essas mulheres formam a legião das chamadas namoradeiras circunstãncias comuns. A fome ninfomaníaca é, portanto, urna
fome narcísica.
inveteradas. Jogam charme para tudo quanto é lado, todos
os seus gestos são provocativos - provocam sem parar, mas, O aparente desinteresse sexual desse tipo de ninfoma-
na hora em que o cerco masculino aperta, adoram tirar o corpo níaca se deve ao fato de que ela adora mais ser adorada do
fora. Sentem um secreto prazer em deixar o homem com água que adorar. Quer, como deusa do amor, a entrega completa
na boca, sedento num deserto. do homem, mas sem ter de se entregar a ele.
Uma mulher pode compulsivamente recorrer ao sexo sim-
plesmente como uma tentativa meio desesperadora de conse-
guir afeto. Afora a entrega do próprio corpo, sente-se incapaz
de fazer-se minimamente desejada e querida. Esse tipo de nin-
fomaniaca não está faminta no corpo, está faminta na alma.
Como percebe que um homem sexualmente excitado
pode ficar transitoriamente de peito aberto e repleto de emo-
ções generosas, ela, para sentir-se alimentada emocionalmen-
te, recorre ao sexo. Com o tempo percebe que tudo é muito
ilusório, mas prefere a ilusão de um amor intenso, mesmo que
passageiro, a amor nenhum.
Emoções de média intensidade não lhes interessam, pois
parecem mornas e sem graça. Só emoções vulcãnicas alimen-
tam seus corações. Essas pessoas não querem ser amadas.
Querem ser adoradas. Não lhes basta ser queridas, precisam·
ser divinizadas. Assim, só gostam de adoradores.
Eduardo Mascarenhas 59.

matemáticos de seus autores. E ficará pensando na espanto-


Viver sa capacidade que tem o ser humano de renunciar à sua sen-
pela ca lha sibilidade e inteligência para se tomar ovelha de rebanho.
Claro, não fosse assim, não haveria tamanho consumo para
não dá tamanhas bobagens.
Longe de mim gostar de filmes intelectuais, eruditos ou
herméticos. A qualidade não se mede pela linguagem empo-
lada elitista de um autor. Quando a gente ouve Chico Buarque,
NÃO TENHO DÚVlDAS de que muitos homens (e mulhe-
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Beatles, John Lennon, Rita Lee,
res) não são mais do que meros papagaios dos valores soci-
Michael Jackson e tantos e tantos outros, percebe corno pode
ais dominantes, verdadeiros computadores programados para
haver qualidade vinculada à simplicidade. Não precisa ir lon-
repetir as coisas que foram ensinadas pela família e pela es-
ge. Basta lembrar dos desfiles de escola de samba para veri-
cola. Basta começarem a falar, que a gente percebe logo aquela
ficar corno a qualidade varia enormemente de samba-enredo
ladainha de frases feitas. De suas bocas jorram chavões e
para samba-enredo.
estereótipos. O pior é que não só suas idéias foram invadidas
O que nos deixa otimistas quanto ao ser humano é
e dominadas pelos catecismos e preconceitos. Até seus senti-
que mesmo os papagaios e engolidores de catecismos dis-
mentos são sentimentos clichês. Emocionam-se até as lágri-
tinguem imediatamente o verdadeiramente bom do aparen-
mas com situações piegas e melodramáticas e são capazes da
temente bom, o belo do bonitinho, o realmente emocionan-
mais profunda ira e desprezo caso lhes aconteça algo que já
te do lacrimogênico.
estava previamente catalogado e classificado como merecedor
Não sei se 99% dos homens e das mulheres são papa-
de ira e desprezo.
gaios e engolidores de catecismo. Talvez todos nós sejamos
Tanto é assim que o mau cinema americano e os maus
um pouco isso. Mas o grau varia de pessoa para pessoa e,
autores de novelas brasileiras já descobriram uma fórmula in-
principalmente, diminui muito, quando o que está sendo apre-
falível para o sucesso. Misturam no liqüidificador mocinhos
sentado possui qualidade indiscutível.
e bandidos, romantismo lacrimogênico com crueldade de bru-
Por que estou dizendo essas coisas? Porque, na reali-
xa de teatro infantil, moças e rapazes puros com sirigaitas e
dade, todos nós somos ou podemos ser uma bela obra de arte
troca-tintas e criam personagens caricatos completamente
ou uma bobagem feita para enganar trouxa.
distanciados da verdade humana. Eureca! Está pronta a vi-
Você pode encaminhar sua vida tentando se tornar
tamina para os paladares primários que garantem as bilhete-
aqueles filmes americanos de quinta categoria ou algumas
rias dos cinemas e as audiências de televisão.
daquelas novelas mexicanas e, se houver perseverança, po-
Quem - como eu já tive - tiver a oportunidade de acom-
derá até obter grande sucesso.
panhar corno se bolam filmes, comerciais e novelas apelativas,
Ou você pode tentar se encaminhar para despertar toda
ficará chocado ou com o cinismo ou com os cálculos quase
a genuína beleza e poesia que existe em você. Aí, se você for
T
60 Faces do Amor
!
perseverante, com o tempo, é muito provável que se torne
um verdadeiro poema, tão belo quanto a Mangueira desfi-
Instinto
lando na Avenida.
Aí, nesse alto nível, importa muito pouco o que se faz
sexual
ou não se faz. Aí, a ordem dos fatores não altera o produto,
não há mais cronogramas do amor.
TODOS NÓS nascemos com instinto sexual. Faz parte
A questão não é: sou ou não sou casta donzela? Seguro
de nossa natureza. Sem ele, não haveria reprodução, ninguém
ou não seguro na mão? Troco ou não troco caricias? Já é hora
teria filhos e, em pouco tempo, a humanidade estaria morta.
ou não é hora de aproximar mais intensamente os corpos?
Ninguém precisa de psicanálise para saber disso.
A questão é: sou ou não uma verdadeira obra de arte?
Contudo, ao contrário do que se pensava antes de Freud,
O que faço, não importa o que seja, é de alto ou baixo nível?
o instinto sexual não aparece na adolescência. Começa a agir
O que se faz importa muito menos do que o quem faz,
desde o nosso primeiro suspiro. É que, além de existir a se-
como faz, para que se faz.
xualidade que todos conhecem - a do adulto e do adolescen-
Muitas donzelas se tomaram grandes mulheres e mui-
te - existe também uma sexualidade infantil. Como essa é a
tas ficaram pra titia. Muitas gatas no cio viraram meras ga-
que aparece primeiro, seu tipo de desenvolvimento afetará
rotas de programa e foram descendo as ladeiras da respeita-
a sexualidade posterior. É nesse sentido que se diz que a cri-
bilidade até os pãntanos do não-reconhecimento. É a verda-
ança é o pai do adulto. Claro, é dela que todos viemos.
de. Mas também se tomaram grandes mulheres, constituíram
Mas a sexualidade da criança (principalmente das cri-
belas famílias e viveram emocionantes amores. A vida está
anças bem pequeninas) não é igual à do adulto. Os órgãos
cheia de exemplos de todos os tipos.
genitais, por exemplo, não são para ela o centro de sua se-
Logo, pela cartilha não dá. Uma grande pessoa não se
xualidade, o ponto máximo de seu prazer. Nos bebês, a boca
faz pela leitura das enciclopédias do bem-viver. ..
é, disparado, a região mais importante do corpo, seguida
pela pele, como um todo, e o ato de defecar. Só lá pelos
dois anos de idade é que se inicia um maior interesse pe-
los órgãos genitais.
Não se deve, pois, confundir sexualidade com genitali-
dade. Sexualidade só se toma igual à genitalidade nas crian-
ças maiores. Mesmo no sexo adulto mais desenvolvido, a boca,
a pele e o ãnus desempenham importantes papéis auxiliares.
Sua estimulação aumenta a excitação e faz parte dos jogos
preliminares do amor.
T
62 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 63

Crianças de mais de dois anos já dão uma nítida im- volvidos - a imensa maioria - dependem do que virá depois.
portância aos órgãos genitais. Meninos e meninas se deliciam Nesses casos é que entra em cena a superbadalada repres-
com atividades masturbatórias e alcançam um verdadeiro gozo são sexual. E os mal desenvolvidos nem em condições ideais
sexual (sem ejaculação, é claro). Essas atividades masturba- futuras terão boas chances de um contato corporal legal.
tórias, desde que não sejam nem estimuladas nem reprimi- Quando se cumprimenta, se beija ou se abraça alguém,
das pelos adultos, são plenamente normais e inofensivas. dá imediatamente para sacar como foi desenvolvida a sexua-
Fazem parte da natureza humana e não trazem nenhum pre- lidade primitiva dessa pessoa. Não tem gente que vira um
juízo futuro. soldadinho ou um porco-espinho, parecendo que tem eletri-
Por que se chamam de sexuais essas atividades das cidade no corpo ao menor contato com a pele alheia? Esses
crianças? Primeiro, porque há excitação física no corpinho foram os mal desenvolvidos. Para evitar essa dificuldade de
delas, prazer de manipulação e descarga. Segundo, porque, contato corporal, podem ficar distantes e misantropos. Para
quando a gente faz psicanálise em adultos, não pode deixar eles, chegar fisicamente perto de alguém não desperta pra-
de reconhecer a importância dessa sexualidade infantil. Se ela zer, mas desprazer.
1 !
não for levada em conta, jamais se conseguirá entender qual- O instinto sexual atinge fundo a nossa emoção. É ele que
quer tara ou perversão, ou inibição sexual (impotência, eja- hipnotiza a nossa mente, inundando de fascinação e magia os
culação precoce). nossos olhos. Se a gente não produzisse uma visão fascinante
Se a criança é o pai do adulto, quanto menor ela for, e mágica do outro, não ia desejar tanto se aproximar dele. O
mais lesivos serão os traumas psíquicos. É claro que um bebê instinto sexual inspiraria apenas práticas masturbatórias e sua
perturbado gerará uma criança perturbada, que, por sua vez, finalidade última de reproduzir a espécie estaria comprometi-
gerará um adolescente perturbado. E assim por diante. É o da. Por isso Freud nunca cansou de insistir que o enamora-
mesmo que lesar a semente de urna planta, ou um embrião mento e a paixão têm a ver com o instinto sexual.
nos primeiros meses de gestação. Essas foram as avenidas traçadas pela natureza para o
Além disso, a capacidade de um bebê sacar o que está escoamento do fluxo sexual. A libido invade a alma, emocio-
se passando com ele é mínima. Não adianta dar explicações nando-a pelo parceiro, a fim de que, preferencialmente ele,
a ele ou pedir desculpas, porque estará longe de entendê-las. possa realizar o desejado prazer físico.
No seu mundinho existem emoções intensas, sem qualquer Mas, além das avenidas, existem ruas e vielas colaterais
grau maior de entendimento. Sua emoção é radical: ou foi bom por onde o trânsito pode circular. E essas ruas e vielas podem
ou não foi. E nem quer saber por quê. ser alargadas a ponto de se tomarem as avenidas principais.
Daí a gigantesca importância de lidar numa boa com o Tal como a história de uma cidade muda o seu traçado, a his-
corpo do bebê. Aí - e não nas repressões culturais - encon- tória de uma vida pode transformar uma avenida numa ruela
tra-se o ponto mais importante de toda a vida sexual futura. e uma transversal sem importância em via preferencial.
Um bebê bem desenvolvido é a maior de todas as garantias O instinto sexual ferido, principalmente nos primeiros
para uma sexualidade feliz. Os mais ou menos bem desen- meses de gestação, pode gerar várias conseqüências.
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64 Faces do Amor

Primeira: não se deixar emocionar pelo parceiro, que não A l ido


estaria correspondendo aos nossos sentimentos. Nesse caso, a
pessoa pode partir para curtir a auto-suficiência, tipo "você não
soube me amar". Tirar o time de campo e tentar se realizar EXISTEM ALGUNS PONTOS com os quais todos os psica-
sozinha. Assim se originam os amantes do prazer solitário, que
nalistas do mundo estão de acordo. É que eles fazem parte
com o tempo preferem a masturbação ao relacionamento fisi- da própria natureza humana. Já, já eu vou citar alguns des-
co. Assim se originam os amantes dos afetos solitários, que se
ses pontos. Antes, porém, deixe-me usar uma palavra que os
deleitam em contemplar o próprio umbigo. Ao invés de trocas psicanalistas gostam muito: libido. Ora, quando um psicana-
emocionais com o outro, preferem falar sozinhos. lista utiliza a palavra libido, ele não a usa no sentido em que
Segunda: não se emocionar pelo parceiro fisicamente e
as pessoas em geral o fazem. Quando um não-psicanalista uti-
manter-se emocionado por ele espiritualmente. Esses são os liza a palavra libido, imediatamente vem à nossa cabeça a idéia
platônicos inveterados. A libido, que originalmente se enca- de sexo, de impulsos sexuais, de efervescências da carne.
minha para o corpo e a alma, nesse caso dirige-se fundamen- Contudo, quando um psicanalista emprega a palavra
talmente para a alma. Algumas vocações religiosas vêm dai. libido, ele não está dizendo exatamente isso. Libido para a
Terceira: não se emocionar pelo outro espiritualmen-
psicanálise é um termo técnico, com um sentido bastante
te, mas manter-se emocionado por ele fisicamente. Surge
preciso. É o equivalente à energia que move e impulsiona a
o sexo pelo sexo, o sexo sem afeição ou amor, o sexo de mente. Todos os nossos pensamentos, sonhos, desejos e ide-
alta rotatividade. ais são movidos por essa energia mental chamada libido. É 0
Não quero com isso dizer que toda vocação contempla-
combustível da mente, aquilo que movimenta e a põe a fun-
tiva do tipo ioga, toda vocação espiritual do tipo religioso e cionar, seja de conteúdo sexual ou não. Libido, portanto, não
toda veneração ao erotismo venham desses traumas. A men- é libidinagem, se bem que libidinagem seja uma das mani-
te humana é misteriosa e rica demais para poder ser reduzi-
festações possíveis da libido.
da a qualquer esquema aplicativo. Muitos iogues possuem Podemos, assim, sem cair numa redundância do tipo
tensos desejos físicos, muitos religiosos, também, e muitos "descer para baixo", "subir para cima, "sair para fora", falar
idólatras do sexo são contemplativos e transcendentes. de uma "libido sexual". Isso porque existem libidos não sexu-
ais, assexuadas, espiritualizadas, que não têm nada a ver com
sexo. As emoções religiosas, por exemplo.
Aí vem uma pergunta: "Ora, se libido não tem necessa-
1,' riamente a ver com paixão e sexo, então, por que Freud esco-
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lheu logo essa palavra e não outra mais neutra e menos car-
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11 regada de idéias sexuais?" Essa é uma boa pergunta, tão boa


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66 Faces do Amor

que uma das razões pelas Freud com Jung


e Jung com Freud.
É que, para Freud, nós não nascemos com uma ener-
gia meio amorfa, que depois vai ganhando várias formas, in-
clusive as sexuais. Para Freud, nós nascemos embalados
impulsos sexuais mesmo. A energia original é de natureza
sexual. É que, lá do jeito superprimitivo dela, já nasce famin-
ta de relacionamentos e vibrações meio emocionadas e dos UMA DAS FIGURAS mais marcantes
quais participam vibrações corporais. Ela não nasce anjinho, Nelson Rodrigues. Eu ainda era adolescente e já me deliciava
assexuada. De um modo muito rudimentar, ela já nasce em lendo suas crônicas irreverentes nos jornais. Sua originalidade
transe e, em transe de corpo e alma, só pleiteia uma coisa: era tamanha que dava para pressentir a existência um
ser correspondida por energias e vibrações que passem para talento raro, quem sabe, um gênio.
ela a sensação de que a pessoa na qual ela está ligada tam- Só mais tarde vim a conhecê-lo pessoalmente. Foi por
bém se encontre em algum tipo de transe de corpo e alma. ocasião do lançamento do filme "Os Sete Gatinhos", baseado
Sua emoção, desde o primeiro suspiro, portanto, é uma num de seus textos. Fiquei tão entusiasmado com a história
versão superinfantil da paixão enamorada dos adolescentes e que escrevi um ensaio de mais de trinta laudas. Nelson ado-
do enamoramento apaixonado dos adultos. Ela quer mais rou. A partir daí, tomamo-nos amigos. E, como era do seu
é amar e ser amada, e não só de uma forma açucarada, mas, costume, ligava-me diariamente, quase sempre à mesma hora.
também, de uma forma apimentada. Com sua voz inconfundível, dizia: "Mascarenhas, aqui fala o
Assim, Freud apresenta uma versão muito bonita da Nelson, esse humilde operário do teatro." Em seguida, deita-
natureza humana. Nunca ele disse que nós nascemos tara- va falação. Até hoje me emociono quando me lembro disso.
dos, só com sexo na cabeça. O que ele afirmou é que nós Várias de suas frases ficaram célebres, entre elas uma
nascemos enamorados e querendo correspondência nesse em que afirmava, categoricamente, sem qualquer cerimônia:
nosso enamoramento. "Toda mulher gosta de apanhar." Essa frase era um verda-
Toda felicidade e toda tristeza, todo ódio e toda alegria, deiro escândalo ali pela década de 1950. Quando eu brinca-
toda ternura e todo rancor têm aí a sua origem nuclear. Por- va com ele, perguntando se isso era realmente verdade, ele
que as vibrações desse núcleo original são enamoradas e sen- respondia, em tom bem-humorado: "Não, não é verdade. As
suais, ele lhes deu o nome de libido. neuróticas não gostam."
Já não estamos na década de 1950 e muita água já ro-
lou debaixo da ponte. Não faz mais sentido a gente ficar só
batendo papo tipo água-com-açúcar. Vamos lá?
68 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 69

Então, vou contar um papo que tive com um amigo meu, são cultural da mulher. Mas me entenda bem: não é que não
um cara que transa com homens e com mulheres. Acima de concorde com isso. Pelo contrário, estou completamente de
tudo, é uma pessoa sensível, boa e de rara profundidade. Sem- acordo com as teses feministas. Acho que é isso aí. De verda-
pre que estou com ele, aprendo muito. de. Acho também que se começou a falar de coisas muito
"Você sabe, Eduardo, qual é das coisas mais complica- importantes. Mas, exatamente por causa disso, não se fala
das quando se vai pra cama com um homem? É que, quando mais sobre outras coisas igualmente importantes ...
você se tranca com ele num quarto, sendo ele tão forte ou mais "Essa história da força física, por exemplo, eu acho fun-
forte que você, ele pode simplesmente te matar. E sem ter que damental. Sem levá-la em conta, a gente nunca vai entender
usar arma ou esperar que você esteja dormindo ou distraído. direito nem a cabeça do homem nem a da mulher. A mulher
Por isso, dá tanto medo ir pra cama com um estranho ... " em geral é mais fraca socialmente. Tudo certo. Mas ela é tam-
Até aí, tudo bem. Ele estava me descrevendo uma reali- bém mais fraca fisicamente."
dade, uma dura realidade. Papo meio pro pesado, não tenho Realmente, até agora, não dava senão para concordar.
dúvida. Mas estimulante. Contudo, o mais interessante vinha "Até num casamento, essa questão da força física é
a seguir. complicada. A mulher, em algum lugar dentro dela, sabe per-
"Agora eu entendo as mulheres. Sabe por quê? Porque feitamente que, pelas madrugadas da vida - mesmo pelas
eu sinto o que elas sentem. Elas podem nem saber que sentem madrugadas da vida matrimonial -, se ela esticar limites e
todo esse medo, já que, por causa disso mesmo, cercam-se da perder o controle da situação, seu marido poderá recorrer à
prudência e do recato. E aí é possível que jamais o sintam força física. Não digo para matá-la. Seria um exagero. Mas
realmente. Claro. Mas ele está ali. Silencioso, mas pronto para para agredi-la. E isso, meu caro Eduardo, faz uma enorme
ser deflagrado." diferença. Mesmo que nunca seu marido (ou outro homem)
Cada vez mais entusiasmado, quase num transe, ele a tenha agredido de fato, ela sabe que, a qualquer momen-
prosseguia. to, pode fazê-lo.
"Não é mole a situação da mulher. Imagina: estar "Acho que, por essas e outras, com ou sem revolução
trancada num quarto de motel com um estranho. E numa si- dos costumes, a mulher continua evitando estranhos. É uma
tuação que excita apetites e emoções, que a gente sabe como prudência instintiva. E liga, muito mais do que o homem, o
começa, mas não sabe como acaba. Eduardo, cá dentro dos sexo ao amor. Além de procurar impor um tom mais suave e
meus olhos, você se sentiria tranqüilo sabendo que uma filha lírico às suas relações com os homens. Para quê? Para não
sua estava trancada num quarto de motel com um estranho?" perder o controle da situação, para se assegurar de que as
O papo começava a me incomodar. Sabia, então, que ele emoções não alcancem o perigoso terreno da agressividade."
estava tocando em coisas profundas. Tão profundas, quera- Nesse momento, fiz um gesto de indagação, que ele in-
ros homens e mulheres pensam nelas de verdade. terpretou corretamente.
"Estou lhe falando essas coisas - confesso - porque es- "Eu já sei o que você vai me dizer. Que existe, em todo
tou um pouco enjoado desse papo que explica tudo pela opres- mundo, homens e mulheres, um prazer também na agressi-
70 Faces do Amor

vidade e nas situações de perigo, que têm o agradável sabor


da aventura. Quem não gosta das montanhas-russas e dos
trens-fantasmas da vida? Assim também no sexo e no amor.
Não é que certos jogos mais brutos do amor não sejam gos-
tosos. Claro que são, mas é preciso ter muita confiança em
si ou no parceiro. então contar com o equilíbrio força
física, o que estabelece, automaticamente, um certo respei-
A PALAVRA SADISMO vem imediatamente associada à
idéia de crueldade, perversidade, bestialidade, práticas sexu-
to mútuo."
ais animalescas, prazer em se exercer alguma espécie de bru-
Depois de ouvir tudo isso, sabia que estava diante de
talidade. E há uma certa razão nessa associação.
um papo sério, profundo e importante. Nunca tinha pensado
Realmente, nas suas formas puras e extremas, o sadis-
que uma das razões por que a mulher é mais recatada e liga
mo é o prazer de infligir dor física ou moral a alguma outra
tão fortemente o sexo ao amor fosse sua inferioridade física.
pessoa. É uma violência, mas não uma violência qualquer,
Mas, pensando bem, é óbvio que essa é uma das razões.
como a que sentimos quando perdemos a cabeça e o sangue
Certo dia assisti a um jogo de basquete feminino pela
ferve. Não. É uma violência fria, calculada, intencional, pre-
televisão. Eram moças sadias, sem dúvida nenhuma. E vibra-
meditada. E o sádico extrai enorme prazer pela prática dessa
vam a cada cesta que faziam. Como era gostoso para elas agre-
violência. O sadismo se distingue do prazer da vingança, posto
dir (esportivamente) a equipe adversária. Como essa violência,
que, nesta, há algum mal prévio para ser vingado, enquanto
mantida dentro de certos limites, lhes despertava prazer!
no sadismo, não. A crueldade é praticada por outro prazer.
Isso explica, em parte, por que tantas mulheres só sen-
Não há qualquer razão que a justifique. É uma crueldade gra-
tem prazer físico associado a uma certa dose de violência. É
tuita. O sadismo, assim, não é a mesma coisa que ódio, ran-
um tipo de prazer semelhante ao do surfista pegando ondas
cor, mágoa ou ressentimento. É a maldade pelo simples pra-
gigantescas; do domador controlando as feras; do toureiro,
zer da maldade.
com sua arte, desafiando o touro. Em suma, o mais fraco en-
Ora, posto nesses termos, o sadismo representaria o lado
frentando o mais forte. Uma espécie de delicioso orgasmo de
mais torpe do ser humano. E, realmente, muitas vezes é. Al-
tourada. Tudo uma questão de fino equilíbrio. Um misto de
guns dos crimes mais bestiais já perpetrados foram movidos
"Sangue e Areia" com Davi e Golias. Prazeres de uma toura-
pelo sadismo.
da em Madri.
O problema é que o sadismo nem sempre se manifesta
Olé!
dessas formas tão torpes. Por exemplo, quando vamos a um
jogo de futebol assistir ao nosso time jogar e vibramos com o
gol, estamos tendo um prazer sádico. A alegria do gol é a ale-
gria de ver a outra torcida e o outro time perder, ser destro-
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72 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 73

çado. Infligir alguma espécie de dor no adversário é a essên- Se ela vai se casar com um homem e sabe que, num
cia do prazer do esporte competitivo. certo sentido, está domesticando a fera, amansando o bicho-
Nas disputas políticas e eleitorais, também, quando ven- homem, isso também gera um prazer que pode ser descrito
cemos, além da alegria cívica de acreditarmos que a melhor como sádico.
causa venceu as outras menos nobres, sentimos uma alegria Quando uma pessoa faz outra ficar loucamente apaixo-
sádica de ver o adversário derrotado. Nos debates intelectu- nada, ocorre o mesmo. Tanto que se diz: "Eu vou te matar de
ais, nos festivais de música, nos programas de calouros, nos tanto fazer você me amar, você vai morrer de amor por mim,
jogos de cartas ou nos cassinos, também, está presente um ficar louco, descabelado, completamente meu. Sem mim você
tipo de prazer de colorido indiscutivelmente sádico. não vai ser mais nada, nada terá mais graça na sua vida. Eu
Logo, o sadismo é muito mais freqüente do que se ima- serei a luz dos seus dias, a menina dos seus olhos. Adoro
gina e nem sempre é algo torpe ou sórdido. É fonte de ino- vê-lo rendido a meus pés, chorando em súplicas para ficar
fensivos prazeres, que dão mais graça e cor à vida. mais comigo, corroído de saudades quando parto e enlouque-
Mas não é só aí que o sadismo se manifesta. Todas as cido de ciúmes para saber para onde fui."
conquistas amorosas possuem, entre outras coisas, um indis- Mas não há sadismo só nessas regiões.
farçável prazer sádico. Quando um homem conquista uma Quando alguém na vida sente prazer de se sentir mais
mulher e a leva para a cama, lá no fundo, ele sente um delei- do que aqueles que ficaram por baixo está sentindo um pra-
te sádico. Ele dobrou sua vontade, quebrou sua resistência; zer sádico. Até quando nosso filho é mais bonito e inteligente
ela saiu toda penteadinha e arrumada de casa e encontra-se que o filho do vizinho, baixa esse sádico deleite.
agora toda desfeita em seus braços, gemendo como bicho no Quando a gente se sente fazendo a cabeça dos outros,
cio. A sexualidade inteira possui algo de sádico. Primeiro por- mudando seus gostos e sua maneira de sentir, de agir e de
que ela tira as pessoas de suas posturas mais elegantes e, pensar, há também algo de prazer sádico nisso.
num certo sentido, animaliza-as de algum modo. O prazer de Na realidade, sadismo, dominação e poder são emoções
penetrar, de possuir, de fazer o outro se render é claramente primas-irmãs.
composto de ingredientes sádicos. Logo, não se precisa esbo- Como tem gente que vibra quando dá um pé no namo-
fetear o parceiro ou dizer-lhe palavras insultuosas no ato se- rado e percebe toda a sua agonia. Ou quando abre os jornais
xual para se estar exercendo o sadismo. Dizer que existe sa- e não consegue tirar os olhos das páginas que descrevem as
dismo em toda a sexualidade não significa, entretanto, dizer- desgraças alheias. O prazer de fofocar, de pichar, de jogar
se que nela só existe sadismo. para baixo, de armar intrigas mostra como todos nós somos
i i Claro que uma mulher que se sente conquistando um muito mais sádicos do que, à primeira vista, parecemos. Tem
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homem, arrancando-o dos braços de suas rivais, deixando-o muita gente até que, por sadismo, se torna santo. No fundo,
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amarrado sexualmente a ela, alcançando graus de prazer nunca deleita-se com sua aparente superioridade moral, com o pres-
[; li ' antes alcançados, também sente o mesmo que um homem con- tígio de homem de bem, olhando de cima para baixo, com des-
li 1 quistando uma mulher. dém, os pobres pecadores. Ou olhando-os com ternura
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74 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 75

paternalista, maneira de se sentir com mais nobres e genero- um sádico. Secretamente deleita-se em desmanchar o prazer
sos sentimentos do que os outros, porque se sente "piedoso". e a alegria à sua volta. Adora destruir pessoas com seus jul-
Aquela visita que, sem querer, deixa cair Coca-Cola no gamentos implacáveis, impondo a elas um grau de disciplina
nosso tapete novo ijá repararam como tapete novo atrai esse e abstinência sobre-humanas.
tipo de acidente?) ou esquece o cigarro aceso em cima do sofá Se colocado sob a lente de um microscópio capaz de
dá demonstrações de sadismo inconsciente. enxergar as minúcias da alma, não existe um só gesto hu-
Mas o sadismo não se manifesta somente por meio de mano no qual não se possa enxergar uma pitada de sadismo.
atos de violência ativa. Existe o sadismo da violência passiva. E, afinal, o que tem isso de mal? Não sejamos tão sádi-
É aquela pessoa que adoece justo no momento da festa que a cos a ponto de impor aos seres humanos condições de perfei-
gente tanto queria ir. É aquela mulher que não curte as coisas ção sobre-humanas. Tudo o que for exigência sobre-humana
do marido, que, por sua vez, não curte as dela. Ou que, na é desumano, logo, sádico e cruel.
cama, por questões misteriosas, não se realiza plenamente.
Claro que muitas dessas situações são uma mistura de
vingança com sadismo.
O sadismo tem seus lados ruins e seus lados bons. Os
lados ruins são óbvios. Os lados bons são que esses prazeres
de dominar, triunfar, vencer nos impulsionam na vida e aju-
dam a dar sentido e colorido a ela. Se tirássemos o sadismo
da alma humana, muita coisa ruim deixaria de acontecer, mas
muita coisa boa, gostosa, construtiva, também.
Sem um mínimo de sadismo, morreríamos de constran-
gimento de dizer não a alguém, de enquadrá-lo, discipliná-lo.
Se não houvesse um prazer sádico nessas situações, contra-
balançando as dores de cortar o prazer do outro, acabaría-
mos possuídos por uma excessiva piedade.
A presença do sadismo toma também o jogo da vida
mais perigoso e por isso com mais sabor de aventura e mais
emocionante. A constatação de que as pessoas, por possuí-
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rem emoções sádicas, são mais perigosas pode estimular o
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interesse pelo jogo afetivo com elas.
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O sadismo - que é prazer de cortar o prazer, ou o pra-


I ' zer de gerar desprazer, cortando o prazer dos outros - tem
i' no moralista um exemplo ímpar. Todo moralista no fundo é
Eduardo Mascarenhas 77

da paixão. A paixão é tanta que se esquecem do respeito, do


orgulho, da dignidade, e se entregam quase como bichos aos
masoquismo feitiços de paixão. Isso excita o grau de prazer dos componen-
tes da relação. Sentem-se vivendo em delírio uma entrega que
não conhece limites, barreiras do costume, da sensatez, das
regras civilizadas do convívio.
POR QUE EXISTEM MULHERES que se excitam sexual-
Além disso, o masoquismo desperta um prazer na mu-
mente e só conseguem alcançar o orgasmo caso se sintam,
lher porque ela, sendo fisicamente mais fraca do que o ho-
no plano sexual, objeto de algum tipo de violência e insulto?
mem, ingressa com ele na área da violência física sem se sentir
Claro que existem homens que possuem prazer equivalente.
ameaçada realmente de ser ferida ou assassinada. É como
Entretanto, por conta do machismo, eles são mais tímidos
uma tourada de Madri. O bicho-homem vem com toda sua
para assumir posições masoquistas no encontro enamorado
bestialidade e a mulher, como hábil toureiro, não é ferida por
dos corpos.
ele. Revela, assim, sua coragem e a força de sua capacidade
Essa história de que o masoquismo das mulheres seria
de manter dentro de limites a violência da fera, por causa dos
resultado do sentimento de culpa que elas sentem com rela-
encantos de seu amor. Provoca a fera e ela, contudo, se man-
ção ao sexo é a interpretação mais freqüente desse intrigante
tém dentro de certos limites da violência. Isso, paradoxalmen-
fenômeno, mas confesso que nunca me convenceu completa-
te, faz a mulher sentir-se forte e poderosa.
mente. A interpretação do masoquismo sexual de tantas mu-
Além disso, ser colocada no lugar de uma fêmea des-
lheres seria esta: como se sentem moralmente culpadas por
classificada e não de uma dama, e perceber que isso, em vez
estar fazendo sexo, precisariam se sentir castigadas e puni-
de desprezo, desperta paixão e encantamento no seu homem,
das para aliviar as suas culpas e aí se soltar. Sem recusar
faz com que ela se sinta mais legitimada na sua condição de
que este possa ser o fator principal de alguns tipos de maso-
mulher. Terminado o sexo, seu homem volta aos respeitos dos
quismo feminino, não creio que ele seja o mais importante.
carinhos e das carícias, puxa sua cadeira e lhe manda flores,
Um primeiro prazer na relação de um homem sádico
acompanhadas de bilhetes românticos de amor. Logo, ser fê-
com uma mulher masoquista é que, pela intensidade e vio-
mea desclassificada não a tomou uma pessoa desclassifica-
lência da relação, ela desperta a sensação de um delírio mú-
da. Ela, nem por isso, deixou de ser uma respeitável dama.
tuo de extrema entrega. O humano alcançaria tamanho pa-
Outro fator ainda é que a mulher, ao ser tratada com
roxismo de paixão, que perderia toda sua habitual compos-
violência e insulto por um homem no sexo, se sente como uma
tura e cortesia, em face da força da energia que percorre os
desejada criança desamparada, a quem nada de mal vai acon-
amantes. Esse é um fator que produz sabor de prazer aos
tecer. Ao ser tratada como um ser despojado de toda a sua
relacionamentos sadomasoquistas. É como se, no sexo, os
respeitabilidade de mulher, ela se sente segura nessa posição
amantes ficassem tão fora de si que admitissem fazer um com
aparentemente tão apavorante. Ao mesmo tempo em que se
o outro, coisas que jamais admitiriam fora desses paroxismos
sente poderosa, capaz de agüentar as brutalidades da vida sem
r.· .·
~

Eduardo Mascarenhas
78 Faces do Amor 79
1

1 que isso a destrua. "Veja como sou forte. Sou capaz de violar Enquanto o narcisismo é o individualismo que só se
tudo o que me ensinaram, não sou uma menina boazinha, uma ama, o sadismo é o individualismo que só se deleita em ser
moça de familia e, mesmo assim, as pessoas me amam." amado, o masoquismo é o próprio deleite de amar.
O masoquismo desperta prazer, ainda, porque, de algu- O Eu se desinteressa por si mesmo, abre mão de sua
ma forma, ele reproduz o prazer de se sentir, apesar de importância, aspira ser nada ou ninguém nos braços de um
pequenina como uma criança, sem força de reagir, amada por outro Eu. Surgem emoções do tipo Garcia Lorca: "Quero ser a
um poderoso adulto. Reproduz de forma exagerada o senti- sombra de sua sombra, seu cachorro." "Quero perder-me nos
mento de criança fraca diante dos adultos fortes, e sem qual- seus braços, dissolver-me no seu corpo, esperar ansioso o te-
quer conseqüência mais ameaçadora. lefone tocar na esperança de que seja você. Quero entregar-me
Outro fator ainda no prazer masoquista é que a.mulher por inteiro, ser plena e pura doação. Sem vaidade, sem orgu-
se sente como uma potranca que vai ser domada por um po- lho, sem arrogância, que tanto atrapalham o amor."
deroso domador. Ela pode soltar seus demônios, seus impul- O estado apaixonado, que dá tanto prazer à vida, para
sos, que alguém forte e poderoso saberá mantê-los dentro de a psicanálise é, assim, uma variante sofisticada daquilo que
certos limites. Deixa então de se preocupar com a fera que ela, tecnicamente, chama de masoquismo.
existe. Alguém será tão forte que, sem reprimi-la, saberá como Enquanto o sadismo, tecnicamente falando, é o lado
conter sua ferocidade, sua tendência a sentir desejos desen- masculino da personalidade, o masoquismo é o lado femini-
freados. Há alguém com energia bastante para colocar freios no. É a mulher apaixonante e apaixonada que todos nós -
nos seus excessos, e isso gera prazer. homens ou mulheres - trazemos no peito.
Agora, eu estou convencido de que o principal fator que E quem não sabe como é gostoso sofrer por amor ...
toma o masoquismo atraente é que, por incrível que possa
parecer à primeira vista, é dele que provém o enorme prazer
da entrega, de se sentir apaixonado, enlouquecido de amor.
Explico melhor. O narcisismo gera a auto-suficiência.
Logo, não se pode genuinamente amar, e é gostoso estar
amando. O sadismo gera a dominação, do poder, do triunfo.
Depois de algum tempo, começa a gerar tédio, vontade de se
apaixonar. Por quê? Porque o legal no sadismo é ver o outro
apaixonado, rendido, enlouquecido de amor, logo, é o oposto
1

•I de estar apaixonado, rendido, enlouquecido de amor. E como


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é gostoso estar amando alguém, sentindo falta e necessidade


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1
dele, sentindo o grande prazer de reencontrá-lo.
Eduardo Mascarenhas 81

pletamente a si próprio, de recorrer exclusivamente aos pró-


Narcisismo, prios recursos. Na área do amor, o narcisismo, no seu estado

sadismo e puro, consiste naquele estado de auto-enamoramento. Esse

. auto-enamoramento, se for muito exagerado, tomará a pes-


masoquismo soa algo desinteressada de todas as outras. É corno se toda a
reserva d: amor, de interesse, estivesse voltada para o pró-
prio Eu. E por isso que o narcisismo extremo vai aparecer na
área sexual corno excitação sexual diante da imagem do pró-
IMAGINAR QUE ESSAS três palavras servem apenas para
prio corpo.
descrever alguns comportamentos extravagantes na esfera se-
Mas não é só assim que o narcisismo se manifesta. O
xual é não entender nada do que seja narcisismo, sadismo e
narcisismo menos puro já mostra rachaduras, fendas e aber-
masoquismo. É ficar apenas na superfície, nas suas manei-
turas, pelas quais escoam os nossos fluxos afetivos dirigidos
ras mais grosseiras de manifestação. Fica-se até mesmo sem
para outras pessoas. Ai. nos interessamos pelo outro, mas o
entender nada de por que existem esses desejos e prazeres
fazemos por questões narcísicas. Ou porque percebemos nele
estranhos na área dos relacionamentos físicos. Daí a tendên-
a nossa própria imagem. Ou porque percebemos nele a ima-
cia a considerá-los taras, falta de vergonha na cara, produto
1. gem do que gostaríamos de ser. Ele pode se parecer com o
de mente torpe, doentia e degenerada e por aí vai. É óbvio que
nosso corpo ou com a nossa alma e é isso que nos encanta
a psicanálise não fica aí. Mergulhando mais fundo, vai alcan-
nele. Na realidade, ele é a nossa imagem refletida no espelho,
çar o espírito que está por trás do narcisismo, do sadismo e
só que não há espelho, nem imagem. Ele é a gente mesmo.
do masoquismo. Se nós não chegarmos a esse nível de en-
Muitas paix~es físicas e amorosas se apóiam nesse tipo
tendimento mais profundo, eu jamais os chamaria de três
de manifestação. As vezes, o outro aparentemente não se pa-
grandes temas da alma humana. rece nada conosco. Mas há uma consangüinidade de sonhos,
O narcisismo, o sadismo e o masoquismo são muito
!
de aspirações. Há afinidades. Às vezes, ele não é nossa alma
mais atitudes da mente, disposições da alma, do que taras
1

gêmea, mas é a versão feminina daquilo que a gente é versão


do corpo ou degenerações do instinto. Descrevem muito mais
masculina e vice-versa. Ou seja, ele é a gente, como a gente
prazeres e deleites da emoção do que do sexo. Aliás, quando
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seria se tivesse nascido com outro sexo. Se formos homem, ele
se rnanifestam pelo sexo no corpo é porque estão espelhando
é a ge~.te de saias. Se formos mulher, ele é a gente de calças.
o retrato da alma. E óbvio que se muita paixão heterossexual se alimenta
Por narcisismo não se devem entender taras sexuais de
dessa fonte narcísica, muita paixão homossexual também o
se excitar com a imagem do próprio corpo refletido no espe-
faz. Um homem amar um outro homem ou uma mulher amar
lho. Isso é pobre demais. Por narcisismo deve-se, isso sim,
outra mulher amplia as possibilidades de semelhança e afi-
entender a sensação humana da auto-suficiência, o orgulho
nidade. Dá mais facilmente para enxergar no outro a nossa
de não precisar de nada ou de ninguém, de bastar-se com-
imagem refletida no espelho.
11
82 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 83

O que não significa dizer que toda homossexualidade são alguém um só minuto. Ou seja, estaríamos completamente
formas narcisísticas de amor. Tem muita que não é. Tal como vulneráveis à solidão.
a heterossexualidade. Como teríamos uma imagem desvalorizada da gente
O narcisismo não é algo ruim ou negativo. Não fosse ele, mesmo e supervalorizada dos outros, sentiríamos nossas opi-
estaríamos todos mortos. Isso porque simplesmente não nos niões sem qualquer valor e superestimaríamos as opiniões dos
interessaríamos por nós mesmos. O narcisismo é a fonte do outros. Nosso julgamento sobre as coisas, também, nem che-
cuidado e do interesse que devotamos a nós próprios. Dele de- garia aos pés do julgamento dos outros. Ora, em pouco tem-
riva o sentimento da gente de gostar da gente, de achar a gen- po, não teríamos mais opinião própria e todo mundo manda-
te legal. Enfim, ele é a fonte original da própria auto-estima. ria em nós e faria a nossa cabeça.
Não fosse esse amor voltado para si próprio, seríamos, desde o Tendo uma imagem desvalorizada de nós mesmos e
nascimento, seres sem qualquer auto-estima, sem qualquer hipervalorizada dos outros, nossos próprios sentimentos, so-
sentimento de valor, verdadeiros molambos de berçário. nhos e desejos seriam por nós mesmos desqualificados como
Se há excesso de amor guardado sem ser investido nem bobos, inferiores, errados, sujos. Claro, tudo que não for igual
na gente nem nos outros, tudo perde o sentido, o brilho, a aos outros será pior. Daí ao aparecimento de um sabor de falta
graça e a beleza. Se ele estiver excessivamente investido nas de legitimidade interior e de sentimentos poderosos de vergo-
outras pessoas, a gente fica fraco e elas, fortes. A gente se nha, insegurança e culpa, bastará um passo.
sente sem graça e as sente deslumbrantes. Ficamos tristes e Até nossa família, nossos objetos, nossos filhos seriam
deslumbrados. Se o amor se dirigir a uma só pessoa em gran- por nós desvalorizados e não apreciados na sua real dimen-
des quantidades, surge o fenômeno do enamoramento e da são. Claro, tudo que sair de nós ou nos pertencer receberá a
paixão. Aquela pessoa fica ungida de magia, feitiço e poesia, carga de falta de valor que concedemos a nós mesmos.
e não podemos viver sem ela, pois ela é a luz dos nossos olhos.
Daí o coração apaixonado ser tão dócil e até submisso à gran-
deza que ele enxerga em quem ama. Se o amor se dirigir ex-
cessivamente ao Eu, esse se sente o cara mais bacana do
mundo, com complexo de superioridade e se achando com o
rei na barriga.
Se não houver o mínimo de amor dirigido ao Eu, a gen-
te vira um molusco, um invertebrado, um zero à esquerda. A
dignidade, a respeitabilidade que inspiramos no outro depende
de algum grau de narcisismo. Sem o amor dirigido ao próprio
Eu, ficaríamos como mendigos, de pires na mão, suplicando
o amor alheio. Perderíamos, assim, completamente a nossa
soberania e não conseguiríamos ficar sem a companhia de
Eduardo Mascarenhas 85

A isso é que Freud chama de sexualidade: a emoção de


1midez emocionar, a vibração de fazer vibrar, o prazer de gerar prazer.
Essa é a maravilha, o êxtase, o esplendor supremo da emoção
é medo humana, da qual derivam todos os outros esplendores.
Por isso, toda doença mental é decorrência de paixões
de não que não deram certo, de amores infelizes, de um predomínio
ser aceito de desencantos e desencontros. Sexualidade para Freud é a
volúpia do am~r total, da entrega sem limites, do desejo de
encontro sem restrições. Quando Freud diz que a criança já
nasce sexualizada, ele quer dizer que ela já nasce possuída
FREUD CONFERIU UMA ENORME importância à sexuali-
pelo feitiço da paixão. Por isso é melindrável, sente podero-
dade, e muita gente que não conhece direito sua obra pensa
sos ciúmes e rancores, deprime-se, fica de mal com o mundo
que ele tinha mania de sexo. Alguns até já o acusaram de li-
e consigo mesma quando não consegue preencher todo o seu
bertino e corruptor de costumes. Longe disso, Freud foi sem-
lirismo sensualizado, todo o seu romantismo erótico. E por
pre de uma conduta humana exemplar. Seus biógrafos até in-
quem ela iria se apaixonar senão por aqueles que cuidam dela
sinuam que ele foi austero e reprimido demais na sua vida
e com ela convivem? A essa fixação amorosa aos pais Freud
pessoal. Sua grande paixão foi a mente humana, o desven-
chamou de Complexo de Édipo.
damento de seus segredos profundos, a psicanálise.
Quase todos os deleites humanos derivam dessa essên-
Quando Freud diz que o instinto sexual é o centro de
cia física emocionalmente enamorada. Boa parte dos ideais,
nossas emoções - só comparável, em força, ao instinto
dos sentimentos místicos, dos impulsos artísticos, seriam
de sobrevivência -, ele está enunciando uma idéia complexa,
manifestações sublimadas dessa essência. É que o amor é
muito mais complexa do que a simples atração física dos cor-
tanto que não cabe no espaço de qualquer relacionamento
pos. O que ele quer dizer é que, desde os nossos primeiros
amoroso concreto. É amor demais, mesmo para o maior dos
suspiros, somos seres de carne e osso, e em nossas veias cor-
amores entre pessoas apaixonadas. O superávit das paixões
re o sangue quente das paixões. Temos uma vocação inata para
desloca-se da terra dos amantes e vai alimentar sentimentos
0 enamoramento. Já nascemos enamorados e com ânsia de
religiosos e poéticos. Daí os grandes ideais políticos e o senti-
sermos correspondidos. E esse enamoramento não é platôni-
mento oceânico de amor universal a tudo o que representa
co, nem angelical, nem puramente espiritualizado. Queremos
vida. Ora, se à essência de tudo isso Freud dá o nome de se-
nos entregar de corpo e alma àqueles que amamos e quere-
xualidade, e se a sexualidade, em primeira e última instân-
mos que eles se entreguem de corpo e alma a nós. Queremos
cia, se dirige ao encontro apaixonado de corações e corpos,
nos perder nos braços do ser amado, ansiando que ele se
não é de se espantar que em tomo desse bem supremo, des-
entregue à igual perdição.
se mais rico de todos os tesouros, se ergam os mais podero-
sos sentimentos de medo e temor pela perda.
86 Faces do Amor

Por isso é tão freqüente a existência de uma timidez


intensa e rebelde na área da corte e da conquista. Afinal, ti- embro
midez é o medo de não ser correspondido, e a hora da con-
quista é exatamente quando corremos o risco de não inspi-
pequeno
rarmos correspondência naqueles que nos emocionam. Daí a
aflição e a taquicardia que nos dominam nos momentos de
sedução, daí a agonia daqueles que já estão amando sem Murros HOMENS possuem um membro vhil pequeno. Não
qualquer certeza de estarem sendo amados. há nenhuma doença nisso, apenas um capricho da natureza.
Como resolver essa timidez? Descobrindo o mapa da Já tive vários pacientes nessa situação, e a grande maioria sofre
mina que conduz aos tesouros daqueles que nos emocionam. com isso. É que vivemos numa sociedade muito cruel, cheia
Acontece que jamais abriremos as portas de qualquer cora- de valores rigidos, impregnados de preconceitos.
ção se não abrirmos as portas do nosso. E isso dá um medo Desde meninos, eles sofrem na escola. São os próprios
danado, já que nos expõe naquilo que temos de mais caro. coleguinhas que os amolam com todo o tipo de gozação. Com
Mas não tem outro jeito, não. Boa taquicardia para você. o passar do tempo, acabam achando que as piadinhas eram
sérias observações. Resultado: ficam tímidos e complexados.
Passam a evitar qualquer situação em que tenham que ficar
despidos na frente de alguém. Mais tarde, isso costuma tra-
zer freqüentes inibições sexuais.
Por incrível que pareça, esse preconceito que envolve o
pênis pequeno não é um problema psicológico, mas uma ques-
tão política.
A qualidade de uma relação sexual tem pouco a ver com
o tamanho do órgão masculino. E a maioria das mulheres sabe
disso muito bem: não é pelo tamanho do pênis que se mede
a qualidade do amante. O sexo é muito mais do que um en-
contro de corpos. É, principalmente, um bailado de cabeças.
Sei perfeitamente que algumas mulheres têm prevenção
contra homens de membro viril pouco avantajado. É que elas
'I ,'
assimilaram, sem qualquer capacidade critica, os valores do-
f I' 1
minantes e acabaram se tornando sexualmente de direita. Elas
restringem a possibilidade de serem amadas e não sabem o
que estão perdendo.
88 Faces do Amor

Insisto: a capacidade de provocar arrebatamento depen- Paixão


de muito mais da parte mental da pessoa do que de seu corpo.
Uma coisa eu aprendi, em anos e anos de consultório: quando que perturba
um homem está excessivamente preocupado com um detalhe
do seu corpo, ele está colocando ali uma série de outras difi-
culdades suas que, freqüentemente, pertencem a outras esfe- NINGUÉM SE APAIXONA por ninguém gratuitamente. A
ras. E que, enquanto consome seu pensamento naquele peda- gente pode não descobrir as razões, pode não conseguir
ço do corpo, não precisa passar em exame a totalidade da sua colocá-las em palavras, mas que elas existem, ah! isso existem.
vida, na qual encontraria a real dimensão de seus problemas. Uma mulher pode se apaixonar por um homem como
Portanto, lance o olhar para a sua vida como um todo e não meio de sair da casa de seus pais. Ela não possui recursos
fique apenas corroído pelo tamanho do seu membro. próprios, não tem dinheiro suficiente nem segurança para
abandonar o lar paterno e enfrentar sozinha a barra da vida
lá fora. Então, aparece um homem pela sua frente. Boa si-
tuação financeira, inspirando carinho e confiança. Está aberto
o caminho para o enamoramento e a paixão. Disse enamora-
mento e paixão porque, freqüentemente, essas motivações
práticas não aparecem no sentimento como tal. Não. Apare-
cem sob a forma de sentimentos sinceros e profundos. Pare-
ceu uma genuína afeição.
Essa, aliás, é uma das principais razões pelas quais
muitas mulheres se afeiçoam a homens. É muito mais fre-
qüente do que suspeita nossa tendência a ver coisas por um
olhar romãntico. Dinheiro, segurança e proteção podem per-
feitamente aparecer na mente sob forma de amor sincero.
Outra razão pela qual algumas mulheres se apaixonam
por homens é para sentirem-se por cima das outras mulhe-
res. Explico melhor. Cada homem possui uma faixa de mu-
lheres para a qual ele é encantador. Possuí-lo significa, pri-
meiro, situar-se nessa faixa, ou seja, acima das faixas de
mulheres que não o encantam e que ele encanta. Segundo, é
situar-se nessa faixa de forma privilegiada, pois, afinal, ele a
preferiu a todas as outras do mesmo pique.
90 Faces do Amor
Eduardo Mascarenhas 91

Por exemplo, o Fábio Jr. É obvio que o Fábio Jr. encan-


diretamente vá lhe dar prestígio. Não é o caso. É que ele, por
ta ampla faixa de mulheres. Mas nem todas essas faixas en-
seu pique de cabeça e emoção, estimula e incita a cabeça e a
cantam o Fábio Jr. Ser a eleita desse charmoso e talentoso
emoção da mulher. Essa é uma boa causa para aparecerem
ator significa situar-se quer entre as mulheres que potencial-
enamoramentos e paixões.
mente o encantariam, quer sobre as mulheres que não levam
O contrário também pode acontecer. Existem mulheres
chance. Claro que nem todas as mulheres se encantarão pelo
que se apaixonam por homens justamente pelo seu desampa-
Fábio Jr. Não sei se a princesa Caroline de Mônaco, por exem-
ro. Sua fragilidade pessoal as deixa comovidas ou querendo
plo, se interessaria por ele. Logo, se encantar o Fábio Jr. co-
acarinhá-lo ou desejando ajudá-lo a superar essas fragilidades.
loca urna mulher em posição privilegiada diante de tantas
O homem funciona não como pai, mas como filhinho a ser pro-
outras, coloca-a também, sob esse ponto de vista, em desvan-
tegido e cuidado pela mulher. O instinto maternal aqui pode
tagem diante das princesas Carolines da vida. Ai. resta saber
se realizar até sexualmente, pois não é um filho de verdade.
se a mulher em questão se conforma com essa limitação. Se o
Outra razão pela qual uma mulher pode se encantar por
fizer, estão abertas as portas para o enamoramento e a paixão.
um homem é que ele não a ameaça. Jamais se tornará mais
Não é que essas idéias apareçam na cabeça de urna
do que ela nem aspirará a outras mulheres. Conviver com ele
mulher apaixonada. Porém, urna análise mais profunda de
gera a paz. Não haverá competição dentro do casal e, se hou-
suas idéias revelará que elas existem.
ver, a vitória já está garantida. E não haverá a necessidade
Por essas duas razões é que raramente uma mulher se
de a mulher ter de medir forças com outras mulheres. Se a
apaixona por homens desprovidos de algum tipo de poder. Seja
competição estimula e gera prazer em muitas pessoas, gera
algum poder financeiro, social, artístico, estético. Urna pessoa
irritação, ameaça e desprazer em outras. Muitas mulheres
famosa e poderosa tende a conseguir maior número de pesso-
curtem homens visivelmente mais medíocres do que elas por
as gamadas por ela. Essa é a razão pela qual, raramente, pes-
essa razão.
soas de classes sociais diferentes se casam. É que no fundo de
Urna mulher pode se apaixonar por um homem também
emoções românticas escondem-se interesses secretos ...
porque ele representa o oposto de seu homem anterior. As-
Uma mulher pode se encantar e se apaixonar por um
sim, uma mulher casada com um homem que cobrava inte-
homem também porque ele possua alguma característica que
lectualmente dela que progredisse, a ponto de tomar o conví-
lhe falte. Assim, uma mulher que não esteja satisfeita com
vio, de início, cansativo e, com o tempo, infernal, pode se apai-
sua beleza física pode se encantar por homens bonitos. Algu-
xonar em seguida por um homem que encarne o despojamen-
ma mulher que se sinta pouco inteligente, e isso a incomode,
to, a não-cobrança e a bondade.
pode se encantar pelo brilho intelectual.
Como cada homem transmite um tipo específico de
Existe também um tipo de encantamento decorrente do
melodia, poesia e ritmo, uma mulher pode se apaixonar por
fato de determinado homem representar um estímulo ao de-
ele como se apaixonaria por uma música, um quadro, um li-
senvolvimento pessoal, sexual, afetivo, profissional de uma
vro, uma obra de arte.
mulher. Não é que ele vá diretamente dar coisas para ela, nem
92 Faces do Amor

Uma das razões mais poderosas de despertar encanto,


enamoramento e paixão é a capacidade de um homem de via-
dor
jar na fantasia de uma mulher, ser capaz de vibrar e sonhar
seus sonhos. Essa é uma das nobres razões da paixão. E se
de amor
houver reciprocidade, se cada qual puder viajar na fantasia
do outro e sonhar seus sonhos, abre-se a perspectiva de um
é das

grande, eterno e definitivo amor. maiores
Existem mais milhares de razões que despertam pai-
xões, além de uma mistura em proporções variáveis dessas
que mencionei.
ABRIR O NOSSO CORAÇÃO para alguém e esse alguém
Fora da inspiração e da intuição, não há salvação.
não corresponder é a chamada dor de amor. Dói tanto que a
maior parte das pessoas leva a vida inteira trancada em si
mesma ou mantendo somente relacionamentos superficiais,
só para não senti-la.
Freud descrevia, em um dos seus últimos trabalhos, ele
já velhinho, com um câncer que lhe corroía o céu da boca e
lhe trazia dores físicas inimagináveis, que, depois de mais de
quarenta anos de exercício diário como psicanalista, estava
convencido de que a maioria das pessoas não vive de verdade
uma vida pela busca da felicidade, mas sim para evitar a in-
felicidade. Ou, como ele gostava de dizer, em vez de estarem
inspiradas pela busca do prazer, buscavam a todo custo evi-
tar o desprazer. O horror de sentir dor - e a dor de amor é
das maiores - faz a maior parte das pessoas preferir passar
suas vidas se defendendo de amar.
Uma das maneiras de evitar esses perigos é derivar nos-
so interesse para outros campos. Podemos virar ratos de bi-
blioteca, máquinas de ganhar dinheiro, atletas olímpicos. Dói
muito menos perder nos debates intelectuais, bolsa de valo-
res, eleições, competições atléticas, do que nos jogos do amor.
De uma coisa esteja certo: ninguém jamais será capaz
de amar e se fazer amado, de nadar nas águas incertas e vi-
94 Faces do Amor

brantes do sexo e da paixão, sem perder a serenidade interi-


or, sem passar por alguma forma de dor de amor.
rido
Uma criança bem preparada por pais que lhe propor- avarento
cionaram dor de amor na dose exata, quando for adulta,
terá aprendido que nenhuma vitória é eterna e que nenhu-
ma derrota é primitiva. Já terá aprendido que nenhum re- MUITOS MARIDOS, de qualquer nível social, com muita
lacionamento é capaz de suprir, o tempo todo, as necessi- ou pouca renda, tendem a se tomar avarentos para com as
dades emocionais de alguém, que sempre haverá dolorosas despesas da casa ou as despesas pessoais da esposa e dos
falhas no suprimento. filhos. São capazes de gastar muito dinheiro num almoço com
Não deixe que o medo da dor seja mais forte que o de- amigos, dar gorjetas generosas, comprar uma linda televisão
leite do amor. Só amando, se arriscando, se ferindo, é que se ou um novo gravador e na hora de comprar o tênis para os
aprende a amar e a se fazer amado. filhos ou pagar a manicure da esposa ficam como quem tem
urna ratoeira no bolso: a mão entra, mas não sai com facili-
dade. E por que será que isso acontece?
Todos nós ternos um lado avarento. Em algum lugar
da nossa alma, nos sentimos roubados, perdedores. Parece
que a vida tinha conosco um compromisso que não cumpriu.
Prometeu-nos algo que não nos deu. E quando somos torna-
dos por esse sentimento, amesquinhamos os nossos gestos,
ficamos atentos a todos os detalhes, mesmo ao que é
irrelevante e banal. Parece que temos tão pouco, que não po-
demos deixar que nos tirem nem mais um pouquinho. Fica-
mos econômicos com tudo, porque estamos economizando as
nossas emoções. Nessa hora não nos entregamos e jamais nos
arriscamos. É como se estivéssemos em época de guerra ou
em estado de sítio. Se todos temos um pouco disso, existem
pessoas que possuem uma predisposição especial para a ava-
reza. São pessoas que preferem a segurança ao desafio, mes-
mo às custas do empobrecimento da própria vida.
Por que eu digo tudo isso? Porque essa avareza costu-
ma aparecer com certa freqüência nas relações de amor. No
96 Faces do Amor

amor, existem pelo menos dois aspectos importantes, e até


contraditórios: nele convivem egoísmo e generosidade. Não te dou
O lado egoísta do amor é aquele que não quer ver feliz
o ser amado, que nos leva a nosso serviço. Somos conduzi- porque voce"
dos, pelo egoísmo, a querer controlar e dominar o ser amado,
para que ele esteja sempre à nossa disposição. Ciúmes, im- não me dá
plicâncias com relação à liberdade do outro, freio ao desen-
volvimento do outro, tudo isso vem na esteira do egoísmo e
da possessividade. CERTA OCASIÃO um conhecido meu me contou uma
O lado generoso do amor é aquele que quer ver feliz o história que eu não só achei profunda como divertida, origi-
ser amado, que nos leva a abrir mão do nosso desejo pelo de- nal e deliciosa.
sejo do outro. Numa relação sadia do amor, ambos os parcei- Ele estava há alguns anos casado com uma mulher. A
ros poderiam lidar com esses dois lados. Assim, o egoísmo de relação tinha altos e baixos, mas, como um todo, até que
um poria freio ao egoísmo do outro, e a generosidade de uma era bem legal. Entretanto, havia algo no ar que desagrada-
atrairia a generosidade do outro. O amor é um jogo de trocas va a ambos.
que anseia por ser equilibrado. Quando um dos parceiros Uma bela noite, dessas sem crianças, compromissos,
sente que está sendo prejudicado, que não está recebendo o amigos ou telefones, os dois, até numa boa, estavam conver-
que considera que merecia, começa a se tomar avarento. Você sando descontraidamente sobre a vida e o relacionamento
não me dá, então também não dou. conjugal deles. Esforçavam-se por apararem arestas, ritmar
Generosidade não é apenas dar, mas dar o que o outro cadências, acertar ponteiros.
gosta de receber, do modo como ele gosta de receber. Uma Num lance de bom humor, ousadia e originalidade, esse
dedicada e sacrificada dona de casa pode não ser a mulher meu conhecido pegou uma caneta e uma folha de papel e disse
romântica e, às vezes, até malvada que um marido pode, no para a sua esposa: "Eu vou fazer aqui uma lista de trinta
fundo, querer. Um marido caseiro e carinhoso com a família coisas que você gostaria que eu fosse ou que fizesse, ou seja,
pode não ser o homem viril e corajoso com quem uma esposa trinta razões pelas quais você fica meio magoada comigo. Mas
sonha. Os sonhos são muitos - diferentes e variados - e é não vou escrever nenhuma dessas que nós já sabemos quais
necessário muita generosidade para que um saiba sonhar o são e já estamos cansados de conversar. Não. Eu vou fazer
sonho do outro. uma lista de trinta queixas secretas que você tem de mim e
que, por essa ou por aquela razão, você jamais disse nada.
Talvez algumas dessas coisas você não tenha dito por puro
orgulho. Talvez outras porque todo mundo tem uma vontade
danada de ser adivinhado. Que o nosso companheiro adivi-
nhe o nosso sonho, as nossas ânsias e os nossos desejos, sem
1
98 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 99

a gente nem ter dado qualquer indicação. Dá uma sensação legal. Que ia ouvir o resto da lista e que depois faria uma lis-
gostosa ser adivinhado, uma sensação de comunhão de espí- ta do mesmo tamanho para ele. Afinal, por que não um mo-
ritos, de almas e prazeres afinados. E mais. Eu vou escrever mento duro, porém bonito, de verdade e sinceridade mútua?
para não colocá-la nem na desconfortável posição de quem E ele chegou aos trinta itens, ao final dos quais ela
guarda mágoas secretas no peito, nem na igualmente apenas lhe disse: "Estou perplexa, boquiaberta. Nunca pen-
desconfortável posição de cobrança, de megera cobradora, sei que alguém me sacasse tanto, que eu dava tanta bandei-
reclamona que vive fazendo exigências para o marido. Você ra. Tem coisas aí que você escreveu que eu nem conto para
topa que eu escreva?" mim, mas é verdade. Só não sei se serei capaz de escrever
Ela topou. uma lista tão completa e tão precisa quanto a sua."
Af ele começou a escrever a lista. Quando chegou no E começou a escrever. Rapidamente e com uma facili-
nono item, ela já estava debulhada em lágrimas. dade que a surpreendeu chegou ao vigésimo item. Claro, tam-
"Então você sabe tudo isso e não faz nada! Agora você bém já estava mais descontraída por não ter sido a primeira;
não tem nem a desculpa de que não fazia porque não sa- do vigésimo ao trigésimo item levou um pouco mais de tem-
cava ou não entendia. Não! Você me sacava e me entendia, po. Eram assuntos mais delicados. Mas ela foi em frente.
sim, apenas queria me frustrar, me magoar, me supliciar. Quando chegou ao trigésimo, ela lhe perguntou: "Então, você
Eu te odeio!" está satisfeito?" E ele, olhando fundo nos olhos dela, lhe de-
Ele olhou firme nos olhos dela e respondeu: "Olha, em volveu a pergunta. Ela entendeu o olhar e foi novamente ho-
primeiro lugar você topou fazer a lista. Portanto, segura. Em nesta. Disse-lhe que achava que poderia chegar aos dez itens.
segundo lugar, você, se quiser, irá escrever uma lista sobre Ambos foram de uma precisão absoluta. Pareciam dois
mim. Com trinta itens contendo o que você sabe que eu quero videntes, dois seres dotados de olhar de raios X, capazes de
de você, que eu jamais mencionei, e segure essas lágrimas, radiografar um a alma do outro.
senão você estará dando uma de santinha, de vítima, e me Af não precisaram quase dizer mais nada. Claro que um
colocando como o único responsável por nós não sermos não fazia ou era para o outro aquilo que o outro queria ou
mais felizes. E isso não é legal se a gente quiser ser mais gostaria, exatamente porque o outro não era ou fazia para o
feliz. Você vai ficar magoada comigo e eu vou ficar magoado primeiro aquilo que ele gostaria.
com você. Não se esqueça de que eu estou sendo delicado, Havia, assim, um jogo subterrâneo de mútua sabota-
apesar de a delicadeza, às vezes, ter de se manifestar de for- gem: "Você não me dá o que eu gosto. Eu não te dou o que
mas duras. Eu estou poupando você de ficar numa posição você gosta."
de cobradora, eu estou lhe adivinhando e eu gostaria que você Pelo menos aquela noite foi de encontro e de paixão.
fizesse o mesmo comigo. Que escrevesse as trinta razões pe- Melhorou o relacionamento de ambos. Não tenho tido conta-
las quais eu me magõo com você." to com eles para saber como anda a relação. Mas certamente
Ela segurou o choro e reconheceu que estava, talvez, alguns coágulos devem ter sido dissolvidos e alguns proces-
tirando mesmo uma de vítima ou de santinha e isso não era sos alcançados.
100 Faces do Amor

Fica aí o sinal alerta, todos nós, perigo de


um orgulho excessivo ou uma demasiada
ser
A mútua sabotagem nos ameaça a todos.

"MAs VOCÊ só vive me cobrando. Reclama de tudo,


briga por qualquer coisinha, nada a satisfaz. Quando a gente
começa a conversar, na segunda frase o clima é de discussão
e bate-boca. Parece até que circula adrenalina o tempo todo
pelas suas veias. Não, adrenalina, não. O pavio é tão curto e
a explosão tão forte que parece que circula mesmo é nitrogli-
cerina. Assim, eu não agüento mais. Você não entende que
eu tenho coisas para fazer, tenho um projeto de vida, te-
nho sonhos a realizar e não posso parar minha vida por você!
"É engraçado, você também é uma pessoa cheia de pro-
jetos, sonhos e afazeres. Sempre admirei sua garra e disposi-
ção. Mas de uns tempos para cá você regrediu, está desmoti-
vada, só pensa em mim. Isso já não me homenageia mais. Não
é amor de mulher, de gente grande. É amor de criancinha que
vive em função de estar enfim sós com sua mãe.
'Você não entende? Isso não é gostar, é carência bra-
ba. É uma eterna boca aberta, sempre faminta. Nada a sacia.
Se a gente passa uma noite gostosa, juntos, você se acalma,
mas logo no dia seguinte a goela fica larga outra vez.
"E o incrível é que você sabe que você gostou e gosta
de mim e eu de você, exatamente porque éramos pessoas in-
tensas, extensas e ativas. Se eu diminuir minhas atividades,
eu não serei mais o homem que você ama. Você não perce-
be a contradição?
"Reconheço que nesses oito meses minha vida tem an-
dado superapertada. Parece que caiu um caminhão de solici-
tações sobre a minha cabeça. Não tenho podido ficar junto

i d
102 Faces do Amor
Eduardo Mascarenhas 103

com você o tempo que ficávamos antigamente. Mas tempo não


cida que vem daquele que nos embevece. E não pode ser na
é algo que se mede apenas por relógio. Não é só quantidade.
base da homeopatia. Agora não. Agora eu estou no CTI da
Existe um tempo qualitativo. A qualidade conta, e você pare-
emoção. Preciso de cuidados especiais. Soro de glicose e de
ce não ser mais capaz de sentir isso.
doçura na veia. Não há análise que dê jeito nisso. Ou eu busco
"Você se irrita até quando ponho música na vitrola,
um novo amor ou você terá de me alimentar até meus silos
músicas de amor. Coloco-as para você e isso não a emocio-
ficarem novamente cheios. Ai eu voltarei a ser farta, genero-
na. Você deixou de ser minha companheira. Você não torce
sa, mansa, serenamente fogosa como eu sempre fui. Renas-
mais por mim. Não vibra mais por minhas realizações. Aliás,
cerá meu interesse pelas coisas da vida. Preencha, porém,
vibra sim, com vibrações negativas e baixo-astral. Me passa
primeiro os meus silos da paixão."
a sensação de que você está torcendo contra. Assim, como é
que eu vou poder amá-la? Vou acabar é sentindo mais pra-
zer estando longe de você. Sei lá, você deveria fazer análise,
segurar mais sua cabeça, conviver melhor com essa carên-
cia. Você não diz nada?"
"Digo, sim. Tudo o que você está falando é verdade. Es-
tou me sentindo desagradável, irritadiça, carente, mal-amada.
Meu entusiasmo pela vida esmaeceu-se e quase vivo em fun-
ção de você. Como uma criancinha. Você coloca uma música
na vitrola, me irrita. Fico pensando: 'Lá vem ele. Em vez de
viver o amor, prefere cantar o amor.' Torço contra os seus
negócios. Seu entusiasmo me deixa enciumada. Sua felicida-
de me infelicita. Cheguei a pensar que estava regredida, pre-
cisando de um psicanalista. Mas não estou, não. Esse papo
de tempo qualitativo não dá mais. Quero é presença física
concreta. Quero é vibrações líricas e amorosas comigo. Mas
não por beijinhos pelo telefone ou cartinhas de amor. Quero
é tempo de relógio, sim.
"Eu não estou voraz e de goela larga como você diz, não.
Eu estou é carente mesmo. Estou faminta, famélica, desnu-
trida. Se meu sentimento pudesse ser fotografado, eu já vejo
a minha imagem. Seriam aqueles escombros da Etiópia. O
corpo da gente não precisa de comida? Pois nossa emoção
também. E a única coisa que a alimenta é a energia embeve-
Eduardo Mascarenhas 105

ver a cara outro iarne11te e, às vezes,


na cabeça ou chinelos furados é um breve contra a saudável
luxúria, para mim, não passa de um enorme equívoco. O con-
vívio prolongado e cotidiano, pelo contrário, pode representar
justo O oposto. Pode exponenciar a poesia, ser combustível de
alta octanagem incendiar o amor e a paixão. Inclusive fí-
SE, POR CASAMENTO, entender-se pacto purita- sicos. Esse papo de dizer que um fica enjoado da cara do ou-
no de conveniências - em que duas pessoas um dia subiram tro e que não há lirismo resista àqueles encontros entre o
ao altar, fizeram juras mútuas e assinaram papéis no cartó- banheiro e a cozinha, para mim, representa uma maneira ex-
rio -, eu não hesitaria em afirmar: o casamento está falido. A tremamente superficial de ver as coisas.
cada dia que passa, a própria realidade das separações vem O que corrói a poesia, esfria a sexualidade e mata a pai-
demonstrando, de maneira indiscutível, a procedência da mi- xão não é o convívio cotidiano. É o convívio cotidiano realizado
nha afirmação. com baixo grau de mútua inspiração. São as mágoas acumu-
Com a emancipação da mulher, a revolução dos costu- ladas num dia-a-dia mal vivido. As mágoas dos desencontros
mes, esse casamento dos nossos avós não poderia mesmo é que envenenam a poesia do relacionamento e acabam se con-
sobreviver. As tentações são grandes demais e as restrições a vertendo em apatia, frieza, ódio ou indiferença.
quem se separa quase se extinguiram. O número de pessoas A rotina que mata o casamento é a interior, a rotina das
descasadas ou disponíveis - homens e mulheres - é grande emoções, a falta de inspiração e de criatividade dos sentimen-
demais para assegurar a tranqüilidade de casamentos pouco tos, e a pobreza de fantasia e de imaginação, a incapacidade
sólidos. Os casados sabem disso e sabem que sobre eles e seus de sonhar e de viajar nos sonhos, a intransigência e o indivi-
filhos não pairam mais as mesmas restrições de antigamen- dualismo. Tudo isso mata o amor e, com ele, o casamento.
te. Serão bem recebidos, caso se separem, em qualquer lu- O importante na vida de um casal não é que eles se en-
gar. E, em alguns, até mais bem recebidos, pois se tomam contrem de rolinha na cabeça por fora, mas é que eles
mais uma pessoa disponível na praça. se encontrem de rolinha na cabeça por dentro. Digo isso por-
A experiência também tem demonstrado que, para os que não há relacionamento humano sem desencontros e de-
filhos, não é pior pais separados do que pais forçados a viver sencantos. Isso não esfria o amor, desde que, cotidianamente
juntos apesar de não existir um bom relacionamento de amor o casal se encontre para colocar em dia a relação. É preciso
entre eles. Agora, ao dizer que o casamento tradicional está, que um tenha disponibilidade de tempo para o outro. E esse
senão falido, em vias de pedir concordata, longe de mim di- encontro terá de ser efetuado em horário nobre, com a alma
zer que o casamento em si esteja falido. vestida com todo rigor e pompa. Um encontro de espíritos ves-
Primeiro, porque discordo profundamente dessa frase tão tidos de gala.
repetida de que a rotina corrói a poesia do amor, que viver de-
baixo do mesmo teto representa a morte da paixão. Esse papo
Eduardo Mascarenhas 107
106 Faces do Amor

qual, mesmo em prejuízo próprio, se aferra e exagera o seu


Afora essa, a causa mais freqüente para a falência de
próprio jeito de ser.
uma relação é o individualismo desenfreado. Esse individua-
O individualismo desenfreado pode se manifestar tam-
lismo se manifesta das mais variadas maneiras.
bém no grau de participação de um nas decisões da vida do
Pode ser um individualismo nas idéias. Cada um se
outro. Não havendo genuína participação, as conquistas, pos-
sente o dono da verdade, está cheio de certezas e, a partir
ses e realizações do outro deixam de ser vividas como própri-
dessa convicção, não há mais diálogo que prospere. Não dis-
as. Já, já, o casal começa a sentir raiva e antipatia da vida
cutem mais porque se entendem, mas porque entendem que
do outro. Começa a pintar mútua inveja e perigosa competi-
é impossível se entender.
ção. Em vez de um levantar a bola para o outro, começa a
O individualismo pode se manifestar no tipo da emoção.
haver toda a sorte de cortar o barato, de desestimulação.
Cada um passa a considerar a sua maneira de amar melhor a
' Cada um aumenta o grau de implicãncia das lentes com
versão mais bem acabada do amor, e passa a considerar a do
que olha o outro. Mais brigas, mais desencontros. Afinal, cada
outro como sendo de baixo nível, recusa à entrega, romantis-
qual está cheio de verdades e ninguém quer ceder. Quando
mo açucarado ou erotismo vulgar. É infinita a capacidade hu-
esse processo se toma rotina, é só esperar que um dia ele
mana de arrumar palavras pejorativas para aquilo que ela não
chega ao fim, levando junto o casamento. Marido e mulher
está podendo curtir. Cada um começa a sabotar o outro de mil
vão desistindo de tentar chegar àquela doce comunhão tão
maneiras. Desde a ofensa direta, até as formas mais sutis de
sonhada nos tempos do namoro. E pouco a pouco as brigas
rejeição; não vibrar tanto pelas coisas que o outro vibra, fazer
vão sendo substituídas por um silêncio mortal, de tantas e
corpo mole, operação tartaruga, ficar doente na hora H etc.
tantas coisas não ditas e engolidas.
O individualismo se manifesta não só na melodia da
Por isso, casar é se dispor a decidir em conjunto as ro-
emoção. Mas também no seu ritmo, na sua cadência. Cada
tas e os caminhos da vida, do trabalho, dos desejos, dos so-
um de nós possui um ritmo emocional, uma cadência de fa-
nhos e das emoções. Se não houver essa profunda disposi-
zer as coisas, de se enjoar das coisas. Até aí, nada demais.
ção, não haverá casamento.
Com boa vontade e transigência mútua dá para encontrar
O casamento está mais para frescobol do que para jogo
variações de ritmo e de cadência, em que ambos possam se
de tênis. É que, no tênis, o prazer consiste em cada um jogar
sentir bem. Quando o individualismo é desenfreado, isso não
contra o outro, castrar o jogo do outro, baixar a bola. No
ocorre. O mais veloz passa a considerar o outro lerdo, sem
frescobol, ao contrário, o prazer consiste em cada um jogar a
pique, devagar quase parando, uma verdadeira lesma huma-
favor do outro, dando força ao outro mantendo a bola no ar.
na. O menos veloz passa a considerar o outro apressadinho,
Enquanto no tênis há competição, no frescobol há comunhão.
um tubarão que não sabe curtir as coisas, um demônio que
E o casamento está mais para mútua estimulação do que para
não nos deixa em paz, sempre aprontando alguma, não se
mútua castração.
satisfazendo com nada e fazendo da vida um inferno. E tome
Não digo que o casamento seja a única maneira de se
de mágoa. O pior é que, a partir de um certo momento, cada
alcançar a felicidade, mas digo que ele é a forma suprema e
108 Faces do Amor

extrema de manifestação amor. Só ele possibilita o mais


complexo e lindo do bailado das emoções.

MUITAS PESSOAS acreditam que o desencontro sexual


entre casais é uma das principais causas de tantos casamen-
tos não darem certo. E uma das mais importantes razões do
desencontro sexual é a chamada frigidez feminina, que engloba
desde a diminuição do apetite sexual por parte da mulher até
uma extrema dificuldade de alcançar o orgasmo.
Às vezes, a mulher possui o desejo sexual, sente prazer
no ato, mas esse prazer não é completo, o que deixa frustra-
dos ambos os membros do casal. O mesmo ocorreria se, sis-
tematicamente, na hora decisiva o homem perdesse a potên-
cia e não conseguisse completar o ato.
Mas a tensão entre um casal não se restringe ao mo-
mento do sexo. De jeito nenhum. Invade as madrugadas em
intermináveis insônias. Alcança manhãs e tardes de mútuo
mau humor. Frente à chamada frigidez feminina, o homem
se sente rejeitado, e a mulher, cobrada por algo que ela nada
pode fazer para reverter. É evidente que, nesse clima, o dese-
jo sexual que porventura existe vai se extinguindo, soprado
pelos ventos frios do mútuo ressentimento.
Vou abordar uma outra causa à qual nunca vi ninguém
se referir. Falo de uma espécie de incompatibilidade de gê-
nios que surge quando o homem apresenta o desejo sexual
mais forte que a mulher. Essa incompatibilidade nada tem a
ver com o ato sexual em si nem com as ressacas que dele po-
dem advir. Mas, em função dela, o casal passa a se defender
o tempo todo, entrar em franca rota de atritos e colisões,
110 Faces do Amor
Eduardo Mascarenhas 111

mesmo que não esteja em cena nenhum vestígio do fracasso Emoção completamente diferente sente a pessoa que
de noites anteriores. esteja saciada ou inapetente. As mesmas comidas serão in-
É que a presença do desejo sexual altera a visão do diferentes para ela, podendo até causar-lhe uma espécie de
mundo. Uma pessoa sexuada enxerga a vida por ângulos in- repulsa. Andando pela rua, raramente notará pizzarias
teiramente diferentes, se comparada com uma assexuada. Va- e pastelarias.
loriza cada coisa, cada evento de forma completamente diver- Imaginem o faminto saindo para passear com o inape-
sa. E olhe que não estou me referindo a sexomanias ou coi- tente. Haja desencontro!
sas semelhantes, mas à presença ou ausência daquela sadia
cota de libido que a natureza nos deu.
Uma pessoa sexuada, mesmo nos seus momentos de re-
pouso, tenderá a enxergar o mundo não como alcova, mas como
um lugar romântico e propício aos encontros de seres enamo-
rados. Ora, isso hierarquiza valores de uma forma diametral-
mente distinta do que faz um olhar assexuado. Inteiramente
desapimentado, um olhar assexuado enxergará, no cotidiano,
apenas oportunidades para cafunés platônicos, cuidados ma-
ternais e requintes fundamentalmente culinários. As crianças,
a casa e os empregados tornam-se mais importantes que todo
o resto. O corpo humano, em vez de inspirar paixão, inspira
cuidados quase que de enfermagem. Em vez de vinhos à luz
de velas, muitos chazinhos, cafezinhos e bolinhos.
Essa visão de mundo diferenciada em função das do-
ses de desejo sexual vai levar o casal a se desentender nos
mínimos detalhes. De onde vem essa misteriosa maldição que
gera sistematicamente desencontros? Vem da própria lógica
do desejo.
Um desencontro desse tipo é igual ao que ocorre entre
uma pessoa faminta e uma inapetente. Sob o impacto do de-
sejo de comer, tudo o que se refertr a comida e culinária su-
birá de cotação na bolsa de valores interna, que faz o seu
pregão no coração do faminto. Se passa pela cozinha, queijos
e quitutes o deixam com água na boca.
Eduardo Mascarenhas 113

tar, do não precisar de ninguém, e o prazer da disponibilida-


Sobre o amor de, ou seja, do estar aberto a tudo e a todos, ao que der e
vier. Entregar-se de corpo e alma a alguém exclui a possibili-
e o casamento dade de entregar-se de corpo e alma a outro alguém, e isso
pode ser doloroso.
Em terceiro lugar, entregar-se a alguém contraria o de-
TORNOU-SE UM ENORME lugar-comum dizer que aro- leite de um certo tipo de glória: a glória de ver o outro
tina (inevitável do casamento) mata o amor, convertendo os invertebrar-se diante de nossa grandeza. É gostoso sentir-se
outrora amantes em não mais do que chochos amiguinhos. um deus cercado de adoradores e idólatras. É gostoso perce-
Não é o convívio prolongado que mata o sexo, o encanto e a ber o outro se descabelando de paixão diante da nossa quase
poesia. É, sim, um convívio prolongado, pouco inspirado, fria indiferença. O desespero de alguém a quem não
cheio de mútuo individualismo, sem aquele lado supremo do correspondemos traz uma agradável sensação de grandeza
amor que é a mútua entrega entre aqueles que se amam. O pessoal e nos faz delirar na nossa auto-estima, por esse meio,
que mata o sexo e a poesia é a mágoa acumulada de um mau engrandecida. Tem gente que passa a vida curtindo isso. Fa-
relacionamento. Um bom e inspirado relacionamento não ex- zer do outro um seduzido e abandonado.
tingue a chama. Ao contrário. Torna-a cada vez mais calo- Em quarto lugar, para um Eu ainda confuso quanto à
rosa e incandescente. sua identidade, às suas fronteiras, para alguém que ainda não
Essa questão de entrega, porém, é delicada e complica- sabe direito quem é, o que quer e do que é capaz, entregar-se
da. Sabem por quê? Porque a mente humana é delicada e a outro alguém, cair de boca e de cabeça numa paixão pode
complicada, cheia de ãnsias e desejos contraditórios. ampliar ainda mais a confusão. É que é próprio do coração
Por entrega entende-se esse enorme prazer que quem apaixonado render-se ao Eu do outro, querer tomar-se o Eu
ama sente de abrir mão de seu Eu para viajar pelo Eu do do outro, querer deixar-se hipnotizar e dominar pelo Eu do
outro, à exata medida que o outro Eu se disponha a fazer outro, ficar de cabeça e moleira aberta para o outro. Ora, aí
o mesmo. surge uma angústia: a angústia de alguém, que não tem a
Quais são os fatores que dificultam a nossa capacidade cabeça feita, ter sua cabeça feita por um outro alguém. Vai
de nos entregar e de inspirar entrega equivalente naqueles aos dar um bode de identidade que não acaba mais.
quais nos entregamos? E mais. Se existe algo que todo mundo valoriza, esse
Em primeiríssimo lugar, o medo de não ser correspon- algo é ser autor de suas próprias idéias, sonhos e emoções.
dido. É doloridíssimo entregar nosso bem supremo, que é a Antes de se sentir autor, é difícil abrir mão dessa certeza para
entrega, a alguém que não corresponda a essa suprema doa- permitir-se a entrega que consiste em ser não só autor mas
ção. Nada dói mais do que amar sem se sentir amado. também autoria. Por que digo isso? Porque amar, num certo
Em segundo lugar, entregar-se a alguém contraria dois sentido, é renunciar à condição de autor e tolerar, numa boa,
poderosos prazeres: o prazer da auto-suficiência, do se bas- admitir ser também autoria. É um relacionamento entre dois
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114 Faces do Amor

autores. Ora, quem tem segurança de que é autor não se preo-


Eduardo Mascarenhas

Outras pessoas - principalmente mulheres - resolvem


115

cupa tanto com essa renúncia. Mas quem não tem pode real- sua fissura de entrega, espiritualizando-a. Entregam a alma,
mente ficar trêmulo e assustado. Tomar-se um casal, tomar-se mas não, de verdade, o corpo. De um lado, homens que só
dois, antes de haver se sentido um, antes de haver se sentido pensam em sexo. Do outro, mulheres que só pensam no amor.
nascido e vacinado - você há de convir - é difícil. Boa parte Duas faces de uma mesma moeda: a resistência à entrega. E
da resistência que algumas pessoas sentem em se entregar é tome desencontro ...
essa insegurança de se já é ou não autor de sua própria vida, Outras pessoas, ainda, diminuem (ou excluem) a impor-
cabeça e sentimento. tância do amor nas suas vidas. Optam pelas glórias do mun-
Em quinto lugar, o prazer de entregar-se e de inspirar do, uma entrega algo anônima e inconsistente das multidões.
no outro entrega equivalente é tamanho - talvez seja a su- Preferem o sucesso profissional, a fama, a admiração coleti-
prema satisfação da emoção humana - que essa é uma re- va, a mergulhar de cabeça nas águas densas da paixão. Suas
gião perigosa. Um desejo tão imenso pode despertar dores, vidas, na realidade, estão mais dirigidas para as arquibanca-
rancores e sofrimentos igualmente imensos. Entregar-se re- das, para as galerias e platéias da vida, do que para o amor.
quer enorme risco. Amam tomar-se célebres, mais do que amam o amor.
Não será melhor nossa alma fumar cigarros de baixos E existem muitas outras maneiras de se proteger do
teores e tomar cerveja light? Pelo menos, se não curtirmos os deleite e risco extremo da vida: a entrega radical a alguém que
deleites supremos da entrega, não correremos o risco dos ran- radicalmente se entrega à gente.
cores, saudades, ciúmes e sofrimentos supremos do eventual Na minha vida conheci poucos casamentos. Talvez ne-
fracasso dessa entrega. nhum. O que não significa que não deva continuar acreditando
Há, nas profundidades de todos nós, um polvo imenso na possibilidade dele.
querendo fundir-se e confundir-se com o polvo imenso que É uma idéia bonita demais para não mais se acreditar nela.
existe na profundidade do outro. Daí podem ocorrer fossas
e depressões oceânicas, mágoas atlânticas, caso os polvos
não se encontrem. Vale, então, a pena ir tão fundo nas nos-
sas emoções, até se deparar com esse polvo querido que tanto
nos abraça?
Por todos esses fatores é difícil a entrega e, por isso, é
difícil o casamento.
Algumas pessoas - principalmente homens - resolvem
sua fissura de entrega, sexualizando-a. Entregam-se de cor-
po, mas não de alma, e o fazem por tempo limitado. Até que
novamente amanheça e termine a noite.
Eduardo Mascarenhas 117

paixão só se mantém onde, misturadas às certezas, sobre-


mal é bom vivem as incertezas: e certeza demais aterroriza, é verdade,

e o bem, cruel e pode matar o amor. Mas incerteza de menos enfastia e


também pode matar o amor.
O que estou aqui chamando de bondade é aquela voca-
ção que todos sentimos de dar, dar mais. Um lado da gente
CAETANO VELOSO, numa música sua chamada 'Tigre- adora dar. Dar tudo, dar logo, dar para sempre. E é claro que
sa", escreveu esses versos à primeira vista enigmáticos, mas a bondade é linda. Porém, ser só bom não basta. Corre-se o
indiscutivelmente profundos: o mal é bom e o bem, cruel. De risco de ser tratado como bonzinho.
fato, quando penso no amor, nesse estranho feitiço que, A pessoa dominada por um excesso de bondade também
de quando em vez, se apossa dos seres humanos, não posso não se impõe, não se faz respeitar. E, se a gente observar bem,
deixar de entender os versos de Caetano. essa sensação tão decisiva que despertamos ou não nos ou-
Olhando retrospectivamente como psicanalista e como tros de respeitabilidade, de dignidade, de altivez tem algo a ver
homem as várias histórias de amor que me foram dadas acom- com algum tipo de medo que despertamos nos outros. Não ter-
panhar, sempre vi uma forte dose de algo que se poderia cha- ror, pavor, horror, mas há uma vaga ameaça pairando no ar
mar de maldade presente nas mesmas. Em outras palavras, que, caso o outro ultrapasse certas limitações, nós não sere-
jamais vi uma mulher, cuja marca mais característica fosse a mos mais só bondade. Possuímos um estoque de maldade pron-
bondade, evocar uma prolongada paixão num homem. E jamais to para ser disparado, caso isso se tome necessário. Isso pro-
vi um homem, cujo traço marcante do seu sentimento fosse a duz nos outros uma sensação de respeito, admiração, cuida-
bondade, fazer tremer, por longo tempo, as estruturas de uma do, gentileza, atenção, consideração. Se não despertarmos isso,
mulher, deixando-a perdidamente enamorada por ele. seremos tratados corno bananas, fracos, e isso será a morte da
A bondade em estado quase puro desperta ternura, paixão. A maldade pressentida dentro da gente pelos outros,
afeição, amizade. Mas não é capaz de apaixonar ou produ- se bem balanceada com a bondade, produz uma dose indis-
zir um prolongado transe sexual. Se desperta paixão, o faz pensável de insegurança e incerteza no outro, elemento funda-
por pouco tempo. Depois, em suas águas mansas, quentes, mental para manter seu interesse por nós.
ternas e fraternas, o outrora amante vai, pouco a pouco, Muita gente não percebe que malícia rima com caricia
sentindo sua chama perder seu fogo e se converte quase num e delícia. É o "Bolero" de Ravel que cruelmente se segura e se
amiguinho, num irmão. A bondade, por ser bondade, alimen- repete, para melhor explodir no gozo. É o amor que não se dá
ta tanto que acaba por matar definitivamente a fome; aga- todo de urna vez, para excitar o delírio dos amantes. É aque-
salha tanto que acaba por empanturrar; produz tamanha la deliciosa insegurança tão necessária para manter viva a
certeza e confiança que acaba por extinguir o sabor de aven- poesia dos casais. É aquela traição que pode um dia aconte-
tura do relacionamento e traz-lhe o sabor do tédio. Ninguém cer e que faz ferver de paixão, de reconquista, o coração
ama apaixonadamente ninguém no universo das certezas. A enciumado. É aquela taxa de saudade que se precisa deixar
118 Faces do Amor

no peito de quem se ama para melhor poder amá-lo. É a cria-


ção daquela tensão dramática dos relacionamentos que de-
pois se alivia nos deleites da reconciliação. É o fino jogo en-
tre entrega e não-entrega. É aquela arte de saber levantar a
bola para o outro na hora certa ou jogar água fria na fervura
no instante recomendado. É, além de anjo, poder ser feiticei-
ra, para produzir a indispensável dose de feitiço.
Como a bondade só sabe dar e a maldade só sabe não
1i dar, a paixão não dependerá nem só de uma nem só de ou-
j'
1 tra. Só poderá haver paixão duradoura e prolongada se hou-
'
1)
ver uma inspirada conjugação entre bondade e maldade, en-
i'
tre o anjo bom e o anjo mau. O amor é jogo de emoções e só
sobrevive se for um jogo emocionado. E emocionante de emo-
ções. Um jogo capaz de deixar a platéia interna de cada um
em permanente suspense, admiração e atenção. Tem de ha-
ver Deus e o Diabo na terra deste Sol, pois só assim a Terra
fica em transe. Tem de ser um espetáculo belo, de dois gran-
., des parceiros, no qual cada um saiba responder com preci-
são e maestria à jogada do outro.
Por isso, o mal é o bom e o bem, cruel. Cruel porque
1

1
pode matar deleites supremos da magia, da poesia, da beleza
1

e da paixão. Não é à toa que, ainda, nessa mesma música,


Caetano canta: "... As garras da felina me marcaram o cora-
ção. Mas as besteiras de menina que ela disse não." Felinos
ou felinas, orgulhem-se de si mesmos, pois vocês são boa parte
da beleza da vida. Deus abençoe suas diabólicas manobras
no jogo divino da paixão.
Eduardo me descreveu sua proposta de divulgação do pensamento
psicanalítico em termos precisos: "basta ficar alguns centímetros
abaixo da supertície. Um mundo de riquezas psicológicas
se encontra aí."

Esse foi oEduardo que conheci eque me deu oprivilégio


de sua amizade: livre, liberal, inteligência brilhante, capacidade
de comunicação extraordinária, sedutor e, acima de tudo, um bom
amigo de seus amigos. Quando se foi, tão precocemente quanto
precoce foi sua carreira, deixou-nos atodos mais pobres. Este
oportuno livro oferece atodos nós um encontro, ou reencontro,
com oespírito de Eduardo Mascarenhas, com alinguagem
saborosa com que ele se expressava tanto ao escrever quanto
conversando, com sua facilidade para explicar edesenvolver
com simplicidade temas complexos, sua clareza didática.

Luiz Alberto Py

Eduardo Mascarenhas nasceu no Rio de Janeiro


em 1942, graduou-se em Medicina pela UFRJ efez
formação psicanalítica na Sociedade Psicanalítica
do Rio de Janeiro (SPRJ).

Apartir dos anos 1980, comandou um intenso movimento


de popularização da psicanálise divulgando-a em colunas
nos jornais Última Hora eODia ena revista Contigo;
em programas de televisão como TV Mulher (Rede Globo),
Bate Boca (Rede Manchete), Jornal da Manhã, Sem
Censura, Interiores (todos da TVE) eCanal Livre
(Bandeirantes); eem livros como obest-sel/er Emoções
no Divã de Eduardo Mascarenhas.

Na década de 1990, deu início a sua carreira política


elegendo-se suplente na Câmara Federal pelo PDT
no Rio de Janeiro (1991-1994). Em 1993, filiou-se
ao PSDB, partido pelo qual se elegeu deputado federal,
também no Rio de Janeiro, para a legislatura de 1995
a 1998, que sua morte precoce, em 1997,
não lhe permitiu completar.

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