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conflitos, amores e decisões tinham a curiosa propriedade de cair rapidamente em domíni~
público. Demorei a entender que toda essa exposição não foi gratuita, era sua maneira esforçada
J.\~iC:J.\l~l:N•~i\!i
e original de promover mudanças em seus colegas e na sociedade. Lamento sua partida
silenciosa e prematura."
"Mascarenhas deu muita vida à psicanálise. Denunciou a clínica sombria, triste, fechada para
a vida real, libertou também o psicanalista de seu papel bodeado de incluir pacientes num
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rebanho de conformistas. Mascarenhas fazia análise nas areias de Ipanema, edefendeu sempre
a política do corpo eda saúde, a libertação sexual ea coragem existencial, a vida como aventura
e descoberta. Depois dele, a psicanálise no Rio se descaretizou e nunca mais foi a mesma."
Jabor
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GUARDA• CHINA
-EDITORA-
-
GUARDA• CHUVA
-EDITORA-
Em 1972 um expressivo número de estudantes em formação 1 (IJ
psicanalítica no Rio de Janeiro participou do 9º Congresso
Latino-Americano de Psicanálise, em Caracas (Venezuela).
Era nosso primeiro congresso internacional. Ainda não havíamos
completado aformação, mas tínhamos suficiente autoconfiança -
ou, quem sabe, grande falta de autocrítica - para apresentar
trabalhos psicanalíticos em uma situação tão importante.
GUARDA• CHUVA
--EDITORA - -
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reproduzida ou transmitida sob qualquer forma ou por quaisquer meios, quer
eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro sis-
tema de armazenamento ou de recuperação de dados, sem a autorização por
escrito da Editora. Apresentação ........................................................................ vii
Todos os direitos reservados, no Brasil, por Editora Guarda-chuva Ltda. Viver pela cartilha não dá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. 58
Rua Visconde Silva, 58 • Botafogo CEP 22271-090 • Rio de Janeiro • RJ
Tel.: 212512-1704 E-mail: editorial@editoraguarda-chuva.com.br Instinto sexual ..................................................................... 61
www.editoraguarda-chuva.com.br
A libido ..................................................................... · · · · · · · · · · 65
Apresentação
Mulher gosta de apanhar? ................................................ · .. · 67
O sadismo .................................................................. , .... ·. · · 71
O masoquismo .............................................................. , .. ·... 76
Manuela, Luísa e Antonia Mascarenhas
Narcisismo, sadismo e masoquismo ................................ ·, ... · · 80 jan.2007
Timidez é medo de não ser aceito . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 84
Membro pequeno ................................................. , ....... , ·· · · ·, · 89
EscREVER UMA INTRODUÇÃO ao livro do próprio pai é uma ta-
Paixão que perturba ............................................. , .... , ... ,···.·· 93
refa delicada. Já de início, é dificil decidir qual a melhor maneira
A dor de amor é das maiores ................................................. 96 de nos referirmos ao autor. Chamá-lo pelo nome é, para nós, um
Marido avarento ........................................................... ·, · ·., ·· 95 tanto estranho. Por isso, pedimos licença a você, leitor, para nos re-
ferirmos a ele, ora como nosso pai, ora como Eduardo Mascarenhas.
Não te dou porque você não me dá ......................................... 97 A tarefa toma-se ainda mais difícil pela exigência de nos
Os silos da paixão .............................................................. 101 distanciarmos em certa medida de alguém tão próximo e também
pela inevitável mistura de alegria e saudade que nos gera. Urna
A falência do casamento . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . 104
nostalgia de um tempo distante que nos marcou intensa e defini-
Desencontro sexual ........................................................ , , . . 109 tivamente e, por isso, continua muito presente em nossas emo-
Sobreoamoreocasamento ................................................ 112 ções e memórias.
Para nós, o lançamento deste livro tem um significado mui-
O mal é bom e o bem, cruel................................................. 116
to especial. É uma forma de marcar a passagem de dez anos da
morte do nosso pai. Durante esse período, ficamos distantes de
sua produção por medo de trazer à tona emoções que ainda não
estávamos preparadas para viver. É que ele sempre escreveu corno
falava. Ler seus artigos é como conversar com ele em pessoa: sen-
timos toda a energia intelectual e emocional, toda a paixão com
que transmitia suas idéias no dia-a-dia e, também, uma boa dose
do humor e da ousadia tão próprios do autor:i por essa conso-
nância entre quem ele era na vida privada e como se apresentava
na vida públi~J que consideramos interessante compartilhar um
pouco do E~do Mascarenhas na intimidade. Conhecê-lo mais
viii ix
pode ajudar você, leitor, a entendê-lo melhor e aumentar seu de- outros com precisão. Pegava no ar sutilezas corno só um ótimo
sejo de ler as páginas que se seguem. leitor do inconsciente consegue fazer. E tinha muito senso de
Nosso pai era urna pessoa indiscutivelmente carismática e humor. A todo instante, inventava uma gracinha, uma tirada que
de energia contagiante. Não vivia de meios-termos, levava tudo às fazia todo mundo rir de doer a barriga.
últimas conseqüências, entregava-se completamente a tudo o que A convivência com nosso pai era realmente incrível. Era di-
fazia. Era disciplinado e determinado. Levava a sério até a hora versão inteligente garantida, muita risada e muito aprendizado
do recreio. Se era para brincar, era para brincar para valer; inves- também. Tratava-nos como crianças, mas nunca subestimava nosso
tir tempo e imaginação, entrar numa viagem conjunta. Era muito potencial, muito pelo contrário. Achava que dávamos conta dos
lúdico e criativo. Era adulto, mas engrenava 100% nas ondas recados e nos transmitia essa segurança.
infantis. Para dizer a verdade, ele era o primeiro a começar as Era um realizador e um ávido por conhecer e por fazer conhe-
brincadeiras, estimulando a imaginação e o espírito livre. cer, sempre focado no lado produtivo, inventivo e positivo das pes-
Adorava cantar. Costumava nos ensinar os hinos e as rnar- soas. Adorava ensinar, esclarecer, ficava realizado quando sentia que
chinhas de carnaval e cantava com urna ernpolgação contagiante. havia conseguido transmitir um pensamento. Tinha imenso prazer
-----1triha sempre aquele ar de quem estava descobrindo o mundo, na comunicação e sempre foi de extremo talento nessa tarefa.
aquela curiosidade que, em geral, a gente só vê nas crianças e Era a favor da liberdade plena. Sempre estimulava o "libe-
admira. Aquela alegria de quem vê o mundo pela primeira vez rou geral", urna expressão muito usada por ele para dar fim às
e quer aprS:nder tudo, conhecer tudo, aproveitar intensa e incan- restrições, censuras e regras que nos impomos ou que tentamos
savelrnenteJAfiás, não lembramos de ouvi-lo reclamar de cansa- impor ao mundo. Era a maneira dele de tentar fazer com que as
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ço. Estava sempre a mil. Fazia trezentas coisas por dia. Estudava pessoas ao seu redor vissem o mundo de modo menos contamina-
muito - com disciplina, organização e interesse admiráveis-, do. Sem tantos filtros. Sem tantos julgamentos sobre o que é cer-
fazia exercícios físicos diários (nunca abria mão disso), tinha urna to e errado, bom e mau.
vida social e familiar ativa e trabalhava muito. Mas, mesmo as- Não é porque é pai, não, mas o Mascarenhas era inspirador,
sim, nunca o vimos com ar de quem estava fazendo o que não uma injeção de alto astral e de energia de vida. Aliás, a constante
queria, vivendo de um jeito de que não gostava, ou se queixando e diária paixão dele pela vida é, para nós, sua maior marca. Cla-
do cotidiano. Sabia transformar o dia-a-dia em uma experiência ro que é também nosso maior pesar, já que, logo ele, que tanto
estimulante. Ria constantemente, fazia piada, contava caso. Não tinha para oferecer e tanto queria ainda experimentar, conhecer e
só tomava sua vida interessante, corno se fazia interessante aos descobrir, foi levado embora muito antes do que parecia ser sua
olhos dos outros, porque sabia como cativar e prender a atenção hora. Mas aproveitou muito, usou linda e intensamente os anos
ao dar suas opiniões e compartilhar suas vivências. Tinha aquele que lhe foram dados. Seu relógio condensou muito mais segun-
sei-lá-o-quê que deixa todos em volta fascinados. dos, minutos, horas e dias do que o da imensa maioria das pes-
Era também um homem inegavelmente sensível, observador soas. Amou muito, estudou muito, produziu muito, ensinou mui-
e perceptivo. Sacava as pessoas profundamente e sempre tinha to, conheceu muita gente, teve três filhas, três casamentos e, além
comentários perspicazes que definiam algo da personalidade dos da psicanálise, teve tempo de descobrir uma outra grande paixão:
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a política (foi deputado federal por sete anos). Ou seja, deu tem- nossos desejos, e os dos que nos cercam, estão sempre sendo co-
po para muita coisa, muitos sonhos se realizaram e uma admirá- locados em questão, sendo pensados e repensados.
vel história de vida foi construída. No período em que esses artigos foram escritos, Eduardo
Como psicanalista, teve presença ativa nas sociedades, apre- estava muito focado em expandir e democratizar a psicanálise,
sentou muitos trabalhos e seminários e participou vigorosamente levando-a a um público mais amplo. Quis escrever de forma a se
da vida intelectual. Mas não é esse o Eduardo Mascarenhas que fazer entender por todos. Resolveu que não ia corroborar a posi-
apresentamos neste livro. Este é um livro para ser lido por todos ção elitizada em que a psicanálise se encontrava. Quebrou mes-
que se interessam em refletir sobre os mistérios da mente e das mo um paradigma, mas isso ele tirava de letra. Foi polêmico a
emoções. Não é feito de psicanalista para psicanalista nem de vida toda, nunca foi chegado ao conforto do senso comum. Prefe-
intelectual para intelectual. Retomamos, assim, uma das caracte- ria ousar, arriscar, dar a cara a tapa. Foi assim que rompeu com
rísticas mais peculiares a nosso pai: seu espírito democrático. a formalidade característica dos detentores do saber e mostrou que
O Eduardo das páginas que se seguem é, sobretudo, aquele o leitor comum não deveria ser subestimado. Provou que, quando o
que confiava na inteligência e no senso crítico das pessoas e esta- comunicador quer se fazer entender, consegue. Há sempre a
va sempre buscando estimulá-los; o mesmo Eduardo que, quando maneira simples de explicar o que pode parecer complicad e
éramos crianças, lia Lacan e Freud em voz alta e pedia que nós, os conceitos psicanalíticos são muitas vezes complexos, a lingua-
na nossa miudeza da época, disséssemos o que aquilo queria di- gem também é ampla o suficiente para abranger
,\
a sofisticação do
zer. Acreditamos que ele agia como psicanalista como agia em pensamento e colocá-lo em português clarJ) Era do time que acha-
casa: ensinando, explicando, incentivando, sem jamais subesti- va que escrever bem é saber comunicar.
mar, e fazendo o possível para fazer aflorar a criatividade e abrir Este livro é, para nós, uma forma de retomarmos o contato
os horizontes. com nosso pai e manter vivo o seu pensamento. É também uma
No início do processo de elaboração deste livro, tínhamos maneira de compartilhar suas idéias com os leitores e mostrar por
em mente selecionar artigos publicados na década de 1980 em di- que temos tanto orgulho de sermos filhas do Eduardo, um pai que
ferentes jornais e revistas. Nesse período, ele produziu intensamen- - tanto por sua presença intensa e apaixonada em vida como pela
te. Relemos centenas de textos e percebemos que seria impossível permanência em recordações, sentimentos e produções-, mesmo
dar conta de todo o conteúdo em apenas um livro. Nesse momen- indo cedo, nunca deixou de estar aqui conosco. Saímos dessa
to, decidimos fixar-nos no tema do amor, um de seus preferidos. experiência com a certeza de que, apesar das dores, ficaram infi-
Entretanto, este livro não fala apenas sobre o amor. Abrange tudo nitamente mais as delícias e o aprendizado.
o que diz respeito a relacionamento, sexualidade, casamento e pai- Esperamos que, assim como nós, você, leitor, perceba-se com-
xão. Essa temática nunca perde a atualidade e fascina todos. Amor, preendido em várias passagens desta coletânea~. após sua leitu-
sexo, paixão ... não há quem tenha passado sua existência sem se ra, sinta-se mais esclarecido e maduro no universo amoroso. Mui-
perguntar sobre o que sente, o que busca, o que deseja, o que quer tos encontrarão reflexões e respostas para questões que estão vi-
experimentar e vivenciar no terreno amoroso. Nossas escolhas e vendo ou já viveram. Outros encontrarão as perguntas que tenta-
vam formular. Certamente, diversos artigos remeterão você às pró-
xii
De discussão agressiva em discussão agressiva, de diá- lindo das emoções, toda sua espantosa grandeza e poesia, toda
logo estéril em diálogo estéril, cada qual foi, então, natural- a sua inimaginável criatividade ficam simplificadas a meia
mente, por instinto de defesa, até para salvar a relação, emu- dúzia de frases feitas, a quatro ou cinco "clichês" morais, a
decendo, se calando, se recolhendo como ostra para o seu dois ou três estereótipos. Que injustiça com a constelação
interior, até sobrar apenas o triste papo burocrático, prático infinita da nossa fantasia, com as cli111~nsões galáxicas _de
e que só servia para encobrir um mar de mágoas, um oceano p.ossas emoções, com as proporções cósmicas da nossa ale-
ácido de queixas mútuas. Depois de tantas tentativas frus- gria, com as medidas telescópicas do nosso sofrimento!
tradas, só restava o silêncio, o triste silêncio dos semimortos E você sabe quando tudo isso começa?
que não falam, numa desesperada tentativa de se manterem Começa com as primeiras tentativas frustradas e frus-
vivos_0~ssando o tempo ou um dia turbulento, amor se faz trantes de nos comunicarmos. E corno queremos nos comu-
paz. Porém, urna triste paz de um quase cemitério. O vulcão nicar! Talvez nada desejemos tão profundamente quanto nos
se extingue e de suas lavas só restam cinzas ou inúteis f11-~. comunicarmos e sermos compreendidos. De receber de volta,
maças que revelam o calor humano que não pode ser vividg) no brilho do olhar alheio, urna imagem que, no mínimo, acu-
Essa atitude de silêncio como medida de sensatez de- se que recebeu nossa mensagem, que não transfigurou as pa-
sesperada reforça ainda mais nossa precária capacidade de lavras da carta que, emocionalmente, lhe enviamos pelo cor-
falar. No colégio nos ensinam que: "Ivo viu a uva da vovó"; reio das emoções. E que alegria quando percebemos no olhar
mas não nos ensinam corno a vovó se sentiu quando Ivo viu alheio que fomoE,y:istos,
"-------·· -- . ---- .
-
foIT1os
-- ---ouvidos!
. ---- ..
-
Daí a irritação que
sua uva, nem como Ivo se sentiu diante do sentimento da vovó. sentimos quando telefonamos para alguém e a linha está ocu-
Nossa incapacidade de falar é tamanha que 99% das pada. A linha ocupada é o símbolo de tantas linhas ocupa-
pessoas chegam a urna certa altura da vida com uma total das nos "telefonemas" que demos pela vida. Ou a irritação
incapacidade de descrever seus sentimentos. Sentem um mi- quando alguém gão escuta o que dize.rpos. É que conversa-
lhão de coisas, mas não sabem colocar em palavras o que mos com tantos surdos. Não surdos de ouvidos, mas surdos
de ajm2-, _ - - ·--- ·'- -- · ··
sentem. E não sabendo colocar em palavras belas e precisas
os seus sentimentos, nem para si próprias, não conseguem Lembro-me de um paciente que um dia sonhou que de
mais nem acompanhar e nem sentir direito os próprios senti- seu ventre paria um rádio transistor. E era um rádio com fina
mentos! Se estivessem no colégio e tivessem que escrever para capacidade de irradiar os sinais que recebia. Seu júbilo era
o exame de fim de ano uma dissertação intitulada "Os meus imenso. E eu entendi por quê. Queria com aquele sonho me
sentimentos", a redação seria paupérrima. Nada mais que dizer da alegria infinita que sentia por ter descoberto na rela-
chavões, banalidades, generalidades, tudo tão misturado com ção comigo, que falava claro, que alguém o entendia. Eu era
a última novela da televisão. o rádio transistor cristalino para ele. Ele era o rádio transis-
Nada me impressiona mais do que perceber a pobreza tor cristalino para mim. Enfim, depois de tantos anos sem co-
que a maioria das pessoas possui ao falarem sobre si mes- municação, conseguia se comunicar. Sem brigas, incompre-
mas ou sobre as outras pessoas. Todo esse mundo infinito e ensões, julgamentos. Apenas se comunicar.
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4 Faces do Amor
ga, de acendermos algum tipo de vela para todos os nossos amores, ou perseveramos nos investimentos falidos, naquela
santos, não se pode nem mais dizer que continuamos a orar. estranha esperança que acomete os desesperados.
Não, tomamos-nos a própria oração. E nada acontece. Nosso Um adulto que teve bons relacionamentos na sua
amor prossegue, sem ser correspondido. Há uma geleira de vida, que sentiu o gosto doce do mel da correspondência e
indiferença, de incompreensão por parte daquele que amamos. da ':...~brosia da reciprocidade, tende para o desinvestimento
Agora, desaparecem o dilúvio das tristezas, a saudade daquilo que não deu e para o reinvestimento daquilo que
infinita, a mágoa imensa e entra em seu lugar o mais seco pode ser que dê. Entretanto, um adulto que nunca sabo-
dos desertos. Nossa alma se resseca, perde a seiva da vida e reou doçura corre o grave risco de permanecer fixado numa
caímos na prostração mais árida, áspera e seca que se pode trágica esperança.
ter notícia. Deserto sem oásis, cheio de ossadas de camelos Agora, imagine uma criança. Ela não sabe nada disso.
mortos. Nem o dromedário consegue resistir à tamanha seca. Não sabe que um amor pode fracassar e que nem por isso
PJJ:isseguimos vivos por fora, mas mortos por dentro. outros amores fracassarão. Ela nasceu ali, do ventre de uma
Essa é a fase aguda do abandono, da rejeição, da mar- mulher e é com ela que terá de se realizar ou se frustrar. Não
<g'.'1!1da, do mal-me-quer sem as pétalas do bem-me-quer. Na bastasse a criança não possuir a idéia de que um amor fra-
terra da nossa emoção, não crescem mais flores, mais frutos. cassado não significa necessariamente o fracasso do amor, ela
Nem mesmo ervas-daninhas da vingança e do ressentimento. está longe de possuir os recursos mínimos necessários para
Oscilando por esse nada, nossa emoção é novamente sacudi- sair de uma relação e entrar numa outra. Ela não tem essa
da pelas tristezas, saudades e rancores. possibilidade. Ao contrário do adulto, ela não possui o direito
Mas o tempo passa e a correspondência, o amor tão do divórcio. Não é a lei dos homens que não possibilita. É a
desejado, a resposta emocionada não vêm. Nossa alma pros- própria lei da natureza.
segue à míngua de reciprocidade. Daí a insistência da psicanálise na importãncia da mãe.
A ebulição vai, então, virando crosta. Vamos nos trans- Afinal, todos nascemos dela e com ela vivemos a nossa pri-
formando num vulcão extinto, numa caldeira fria. Nossas la- meira paixão. Sejamos homens ou mulheres, ricos ou pobres,
vas se tomam pedras. Nossas lágrimas sec~ni. Nossa aridez pretos ou brancos, ela é a nossa primeiríssima namorada.
nem mais nos incomoda como antes. Viramos habitantes do E a desgraça é que nem nós a escolhemos nem ela a
deserto, beduínos desolados da emoção. nós. Não é por nossa culpa nem dela. A vida é assim.
E o tempo passa ainda mais e o que era agudo começa a
se tomar crônico, o que era dramático vai perdendo até a úni-
ca coisa que ainda o mantinha ligado a algo que fosse a vida.
Então pode acontecer de tudo. Ou desinvestimos nosso
amor daquele amor falido e aos poucos vamos entrando em
estado de ressurreição, reinvestindo nosso amor em novos
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Eduardo Mascarenhas 9
/
tava decifrando todo o enigma das taras, da loucura e de quase
que e todas as doenças mentais.
Complexo/
Complexo de Édipo, com o tempo, tornou-se um termo
técnico. É ele que define se alguém ficará pirado, cheio de
de Edipo? inibição e timidez, tarado, delinqüente ou uma pessoa de ca-
beça legal. Todas as fobias, manias, depressões, angústias,
todo grilo e todo bode que não tiveram causa física, ou ori-
gem em alguma tragédia real na vida, podem e devem ser
NÃO E){IS1E EXPRESSÃO mais badalada na psicanálise
explicados pelo tal Complexo de Édipo.
do que esse tal de Complexo de Édipo. Muita gente fala dele,
Antes de explicar melhor o que ele significa, saibam os
muita gente já ouviu falar dele, mas pouca gente sabe, de fato,
curiosos que Complexo de Electra - o desejo da filha pelo pai
o que significa.
- é uma expressão que jamais foi utilizada por Freud e que, a
A expressão Complexo de Édipo foi utilizada pela pri-
rigor, não pertence ao vocabulário psiçanalítico.
meira vez em 1897, numa carta em que Freud comentava com
A palavra complexo não tem nada a ver com sentimen-
um amigo suas últimas idéias. Como a obra psicanalítica de
to de inferioridade. As expressões complexado e complexo de
Freud foi escrita entre 1900 e 1939, pode-se dizer que esta
inferioridade são derivadas de um mau entendimento do que
foi uma de suas primeiras sacações.
seja Complexo de Édipo. Freud usou a palavra para descre-
O nome Édipo foi tomado de empréstimo de uma peça
ver as emoções das crianças por seus pais e dos seus pais
do teatro grego, escrita por Sófocles e chamada Édipo Rei.
por elas. São emoções as mais variadas e, portanto, comple-
Não cabe aqui entrar em detalhes, mas, na tragédia grega,
xas. Quis dizer que, ao contrário do que as pessoas imagi-
Édipo acaba matando seu pai (Laio) e se casando com sua
nam, Complexo de Édipo não é algo tão simples quanto um
mãe (J ocasta).
guri desejar a mãe só para ele e, por isso, querer tirar o pai
Freud achava que todo guri, se pudesse, faria o mes-
do seu caminho. Explico: apesar de ter tido origem numa tra-
mo. Como as pessoas acreditavam que as crianças eram
gédia grega na qual o filho mata o pai e se casa com a mãe,
anjinhos, nada mais do que inocentes e gorduchinhos
Complexo de Édipo inclui esse desejo, mas vai muito além
querubins, era um escândalo dizer que elas se sentiam sexu-
disso - os desejos e as paixões de um filho por seu pai ou de
almente atraídas e apaixonadas por um dos pais, tão atraí-
~ma filha por sua mãe também fazem parte do Complexo de
das e apaixonadas que, tal qual um adulto, seriam capazes
Edipo. Os desejos e as paixões de uma filha por seu pai e sua
de crimes passionais para liquidar seus rivais. Era demais!
~ontade de eliminar a mãe rival incluem-se no Complexo de
Só que Freud estava realizando uma das maiores des-
Edipo. Também os desejos e as paixões dos irmãos entre si,
cobertas sobre a humanidade. Ao sacar que sexo, com suas
seus conflitos e seus ciúmes igualmente pertencem ao Com-
paixões e seus ciúmes gigantescos, não era algo que se ini-
plexo de Édipo. Atenção: os desejos e as paixões dos pais pelos
ciava na adolescência, mas na mais tenra infância, Freud es-
filhos, seus conflitos e ciúmes também são abrangidos. Não
10 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 11
são só os filhos que amam e desejam - até mesmo sexual- Chocasse ou não chocasse os puritanos de sua época,
mente - os pais. Os pais também amam e desejam - inclusi- foi isso o que Freud viu e relatou ao mundo. Sua honestida-
ve sexualmente - os filhos. de intelectual estava acima de seus interesses mais imedia-
Em suma, \Qomplexo de Édipo é um termo que designa tos. Entre sua reputação e a verdade dos fatos, não hesitou
o conjunto complexo de emoções que circulam no interior de em preferir a verdade.
uma famílià;..:Qes,crevr os múltiplos laços, vínculos e conflitos Hoje, oitenta anos depois,* muitos ainda o insultam de
que animãm uma casa. Nele ainda entram as babás e empre- sexomaníaco, tarado, peivertido, só disposto a enxergar ero-
gadas. Todo relacionamento de amor e ódio dentro de uma tismo em tudo. Isso não é verdade. Freud jamais reduziu o
família pertence ao Complexo de Édipo. Qual é então a sua ser humano à animalidade ou ao sexo. Apenas fez ver aos
novidade? Descrever famílias não é privilégio da psicanálise. moralistas que, além de tudo o mais que eles acreditavam
Escritores, teatrólogos e poetas de todos os tempos já cansa- existir, também havia animalidade e sexo.
ram de fazê-lo. Quem duvidar disso que se apresente.
Tudo bem. Só que a psicanálise joga sal, pimenta, cravo
e canela nos relacionamentos que compõem a IlQYfla.fam.ili:_
ar. Não os descreve com se fossem apenas relações doces,
r--·-
azedas ou amargas. Descreve-os como relações nas quais
A PSICANÁLISE DESCOBRIU que criança já nasce com seu
existem sexo, enamoramento e paixão, com todos os confli-
corpinho e com sua cabecinha a mil. Existe, desde o nasci-
tos que isso engendra. A novidade é o gosto .do pecaclo, no
mento, além de tudo que se pensava existir, uma sexualida-
qual antes havia a biografia de santos ou conflitos puros
de. Claro que essa sexualidade não é igual à do adulto. Não é
entre amor e ódio. - pelo menos nos bebês - urna sexualidade genital. Mas que
A psicanálise afirma que o sexo não começa com a ado-
é sexualidade, é.
lescência, mas com a própria vida. Que os pais, os irmãos,
Por que é sexualidade?
as babás e as empregadas não são somente amor, carinho e
Primeiro, porque o corpinho das crianças se excita... e
cuidado. Rola muito mais do que isso. Se as crianças, já nas-
se deleita com as caricias, desde que na hora, no lugar e no
cidas na malícia, seduzem os adultos - quase tal como um
clima certos.
adulto seduz outro - os adultos, por sua vez, não são tão
Segundo, porque emoções, sob muitos aspectos seme-
santinhos assim com as crianças. Não só se deixam seduzir
lhantes às dos adultos apaixonados - emoções de amor e ódio
por elas como as seduzem ativamente. É claro que, normal-
-, ocorrem entre elas e os adultos.
mente, tudo se passa de uma forma disfarçada, educada, ci-
Terceiro, porque ao investigar a vida sexual e amorosa
vilizada. Contudo, abaixo das aparências, além das fachadas,
dos adultos, não dá para entender seus mistérios se não en-
está presente uma baita sedução. Pode haver ou não atos
abertamente sexuais. Mas climas, que los hay, los hay. * Nota do editor: O texto foi publicado no Jornal Última Hora em 7 de fevereiro
de 1984.
r
Eduardo Mascarenhas 13
12 Faces do Amor
tendermos sua história de criança. Ou seja, o amor e o sexo Mas vejam! O tempo todo falei de pitada, de um pouco.
adulto são resultados, em boa parte, do amor e do sexo da Estou profundamente interessado nessa questão da dosagem.
Nem demais nem de menos. É que criar um filho, tomá-lo apto
criança que esse adulto foi.
Quarto, porque elas exercem atração física e amorosa à saúde e à felicidade, requer a inspiração de um inspirado
sobre os adultos e os adultos sobre elas. Apesar das aparên- cozinheiro. Se sal, pimenta, cravo ou canela de menos estra-
cias, rola entre adultos e crianças um clima de mútua sedu- ga o sabor, demais estraga do mesmo jeito. A saúde mental é
ção. Tão forte quanto rola entre adultos enamorados. sempre questão de uma fina culinária.
E é bom que seja assim. A presença da sexualidade dá Se sensualidade de menos arruína a vida de uma cri-
mais vida, graça, beleza e poesia aos relacionamentos. Dá ança, sensualidade demais também pode fazê-lo.
aquele realce. E, acima de tudo, fortalece vínculos. Não fosse Por quê?
esse tempero mais apimentado entre adultos e crianças, se- Porque não cabe aos pais criar os filhos para eles. Eles
ria apenas açucarado e insosso. Resultado: os vínculos entre são vinte ou trinta anos mais velhos e, portanto, morrerão mais
pais e filhos seriam mais frouxos e menos emocionados. Ha- cedo, enquanto os filhos continuarão vivos. Além disso, uma
veria menos prazer e menos brilho. E as crianças seriam ine- criança não pode satisfazer todas as necessidades de um adulto ,
',
vitavelmente menos bem tratadas, o que seria uma catástro- tal como um adulto também não pode satisf~er todas as ne-
fe para essas lindas criaturas que alegram e dão tanta vida a cessidades de uma criança. Adulto curte coisas que só um
adulto curte, e criança curte coisas que só uma criança curte.
esse planeta.
Se me perguntassem qual é a maior causa dos proble- Assim, adultos que pretenderem se realizar emocional-
mas sexuais e amorosos futuros de um adulto, eu não hesi- mente em relacionamentos com crianças estão, num nível mais
taria em responder: "Muito mais importante do que a super- profundo, mentindo, roubando no jogo. Não estão de verdade
badalada repressão sexual, o que fere fundo, muito mais fun- amando as crianças porque amam as crianças. Estão amando
do, a sexualidade de uma pessoa são as primeiríssimas in- as crianças porque estão com medo de amar outros adultos -
fluências.~r,,Ã principal causa da miséria sexual dos filhos é o pessoas do seu mesmo pique. Há uma mentira, uma falsida-
ii-'--,-,
de, uma covardia no fundo de todas as suas emoções.
-,
fato de os pais não terem vivenciado, com uma pitada de pe-
Cabe aos pais, com todo o seu poder maior que o dos
cado, o relacionamento com seus filhos."
Nada mais repressor, mais triste, mais trágico para uma filhos, amá-los, numa certa medida. Amar de menos é catas-
criança do que seus pais não se deixarem se seduzir por ela trófico. Amar demais também o é.
um pouco nem se interessarem por seduzi-la. Isso significa Pais que seduzam e se deixem seduzir excessivamente
simplesmente o mais cruel assassinato de toda a sexualidade por seus filhos não estão criando filhos para vida, estão cri-
ando filhos para si mesmos.
de uma criança.
Nenhuma criança deseja somente pais docemente enter- Claro, os filhos ficarão excessivamente enrabichados
necidos. Todas anseiam por pais apimentadamente enternecidos. neles. E o pior é que é uma relação que não ata nem desata,
posto que sequer vai às suas derradeiras conseqüências. Fica
r'
14 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 15
um clima de sedução que, na verdade, não se consuma e, Possuída por esse ciúme, passa a ter os piores senti-
assim, não dá oportunidade de se verificar se é bom ou não. mentos pelo rival. Se pudesse, o mataria, tal como em qual-
Fica uma secreta esperança que jamais se realiza e não dei- quer crime passional das páginas policiais. Ou, pelo menos,
xa de se realizar, o que realimenta a esperança. ficaria toda satisfeita se acontecesse algo de ruim com ele.
Resultado: os filhos ficam fixados nos pais. E quem, Todos nós sentimos essas emoções quando crianças,
vindo de fora, conseguirá balançar essa roseira? Que foras- se bem que isso se passa nos bastidores da nossa mente, lá
teiro terá forças para romper um encanto de tantos anos? onde não temos consciência do que acontece. E é absoluta-
A conseqüência também é trágica para a vida amorosa mente normal ter-se passado pelo Complexo de Édipo.
e sexual dos filhos. Moças e rapazes tão fixados nos pais te- O problema do Complexo de Édipo (que, no fundo, nada
rão óbvias dificuldades de amar e se fazer amar por outras mais descreve do que as relações de todas as crianças com
moças e rapazes. seus pais) é quando a gente deixa de ser criança, e ele per-
Cabe aos pais, portanto, deixar nos filhos um necessá- manece. Ou seja: o Complexo de Édipo só é problema em al-
rio gosto de frustração. Nem excessiva, a ponto de matar a gumas circunstâncias.
esperança de qualquer realização, nem tão pouca, a ponto de A primeira delas é quando a gente está tão fixado nos
manter uma esperança demasiada de que se realizarão somen- próprios pais, que não consegue se apaixonar por mais nin-
te com seus próprios pais. guém. Milhões de moças e rapazes, pelo mundo afora, não são
Tudo isso faz parte deste termo: o Complexo de Édipo. capazes de amar ou se fazerem amar por causa disso. É que,
mesmo sem o saber, estão enrabichados num outro amor:
seus pais. Aí, apareça quem aparecer, não se emocionam. E,
não se emocionando, não conseguem emocionar. Só enxergam
defeito. Fica evidente, então, que, no sexo, haverá problemas.
A NOVIDADE DO COMPLEXO de Édipo é que ele confere A segunda circunstância em que o Complexo de Édipo
à criança sentimentos, desejos, amores e rancores que, até o revela seu poder negativo é quando um homem ou uma mu-
surgimento da psicanálise, se pensava que fossem privilégios lher relaciona-se com alguém esperando desse alguém aquilo
(ou desgraças) do adulto. que cabe a uma criança esperar dos pais, e não um adulto
O problema é que existe, na paixão e no enamoramen- de outro adulto. Não ter ultrapassado o Complexo de Édipo
to, um lado meio exclusivista. Quando a gente fica apaixona- é não ter, emocionalmente, ultrapassado o jeito de ser de
do por alguém, quer aquele alguém só para si e ninguém mais. uma criança.
A criança, naturalmente, enamora-se mais por um dos pais Todos os adultos excessivamente melindrosos, cheios de
do que pelo outro. Aquele que for eleito, ela há de querer só ira diante de qualquer frustraçãozinha, passíveis das maio-
para si. Fica corroída de ciúme se o vê nos braços do outro res depressões por quase nada, cheios de medinhos por tudo
ou de algum irmão. e todos, no fundo continuam sendo crianças e esperando que
o mundo os trate como tal. Relacionam-se com os outros tal
r
16 Faces do Amor
bém acontecerá com gente, que, afinal, também pertence ao lada a permanecer mais faminta ainda. Sua porção criança
reino animal. está assim saciada e talvez até empanturrada. Fica faminta é
A psicanálise tem argumentos melhores do que empur- de ser gente grande, de desenvolver suas potencialidades. Por
rar tudo para os instintos. Não exclui sua importância, mas vai isso guarda uma nostalgia de ser tratada com mais rigor, exi-
além dessas determinações vindas puramente da natureza. gência que, no fundo, significa confiança nas suas potencia-
Corpo do homem: voz grossa, rosto barbado, músculo lidades pessoais.
para tudo quanto é lado, pêlos espalhados pela pele inteira, Essas nostalgias, então, mais tarde, se cruzam, se
ossos salientes e grossos. complementam.
Corpo de mulher: voz fina, rosto no máximo com penu- O homem ama na mulher a criança que ele quis ser.
gem, pele aveludada, músculos e ossos delicados, tudo mui- A mulher ama no homem a gente grande que ela também
to suave e macio. quis ser.
Qual dos dois lembra uma criança? No fundo da emoção sexual, cada um busca no outro
Na realidade o corpo de uma mulher é a versão adulta aquilo que lhe faltou. A mulher busca no homem seu lado
do corpo infantil. Este se espichou e, sob impacto dos adulto, masculino. O homem busca na mulher seu lado cri-
hormônios sexuais, arredondou-se. Guarda, contudo, no seu ança, feminino.
encanto feminino, todas as formas infantis. Sua beleza apro- Tanto é assim que o tratamento que um homem con-
xima-se da beleza da criança. Em síntese, não há abismo entre fere a uma mulher amada (geralmente mais moça do que ele)
a estética feminina e a estética infantil. A primeira é um puro é a de um pai encantado com uma princesinha. E a mulher
desdobramento da segunda. Quanto mais feminina for uma busca no homem um pai protetor, um adulto poderoso que
mulher, mais ela preserva a criança encantadora que ela um vai mimá-la como filhinha ou estimulá-la a crescer. Prefere,
dia foi e não deixou de ser. O feminino e o infantil são vinhos por isso, os homens mais velhos e mais bem situados na vida
de uma mesma pipa. e raramente um gato mais moço a quem iria ensinar a viver.
O que terá tudo isso a ver com a atração dos sexos?
É que o homem, desde criança, é tratado para não ser
criança, para ser homem. Jamais se viu um pai ou uma mãe
chamando o Júnior de princesinha e achando uma gracinha
suas tranças ou sua maria-chiquinha. Quer dizer, desde que
nasce, o menino é estimulado a se tomar gente grande. Por
isso o homem fica com uma nostalgia danada da criança que
ele não pôde ser.
A mulher, não. Ela é tratada desde pequenininha meio
para permanecer eternamente criança. Sua fome de ser
princesinha não só é amplamente satisfeita como até estimu-
r
Eduardo Mascarenhas 23
feitiço e poesia; não podemos viver sem ela, pois ela se toma sionamento que liberta. O culto ao belo, tão característico do
a luz dos nossos olhos. narcisismo, gera, então, a elegância dos nossos gestos, a alti-
Se não houvesse um mínimo de amor dirigido ao Eu, vez dos nossos atos, a nobreza dos nossos sentimentos. E
teríamos uma imagem desvalorizada de nós mesmos e uma também a exigência do colorido e da poesia. E como é impor-
imagem hipervalorizada dos outros. Sentiríamos as nossas tante para um casal achar bonito o seu amor, achar bela aque-
opiniões sem qualquer valor e superestimaríamos a opinião la história de encontros e desencontros. Como é importante
dos outros. Em pouco tempo, não teríamos mais opinião pró- para um casal cada um admirar a grandeza e a nobreza dos
pria e todo mundo mandaria em nós e faria nossa cabeça. gestos do outro. Quer se more numa favela ou num palácio,
Tendo uma imagem desvalorizada de nós mesmos e uma ima- se trata de uma relação entre príncipes. Nesse sentido, o
gem hipervalortzada dos outros, nossos sentimentos, sonhos narcisismo é a nostalgia do humano por se tomar divino.
e desejos seriam por nós mesmos classificados como bobos, Que bela nostalgia!
inferiores e desimportantes. Claro, tudo que fosse nosso e não
dos outros nos pareceria pior. Daí para o aparecimento de uma
sensação de falta de legitimidade interior e de sentimentos
poderosos de vergonha e culpa, bastará um passo.
Vemos, portanto, que sem narcisismo algum seria im-
possível amarmos a nós mesmos e, por conseqüência, a al-
guém. Porque o objeto do nosso amor nos pareceria sempre
menor, sempre menos digno de amor, só porque é nosso. Mal
resolvido, o narcisismo pode representar o obstáculo máximo
para o amor. Mas esse mesmo narcisismo, se bem resolvido,
pode ser condição indispensável para o amor. Além de pôr
beleza, cor e poesia na vida, um dos pontos importantes do
narcisismo é o culto ao belo, ao poético, ao estético. Ele é res-
ponsável pela busca de auto-suficiência, por aquele tom de
dignidade sem o qual nosso amor não sobrevive.
Por causa do narcisismo não nos tomamos grudentos
como polvos. Não grudamos no pé do outro, possibilitando o
lindo espaço da liberdade. O narcisismo é a possibilidade do
amor dos pássaros que se aconchegam nos seus ninhos, não
porque não saibam mais voar, mas, sim, porque é ali que se
dão os maiores vôos. O amor se toma, então, esse estranho
paradoxo: jaula da liberdade, gaiola dos maiores vôos, apri-
Eduardo Mascarenhas 29
mantê-lo no cabresto. Não quer que ele seja de mais ninguém, não significa dizer que em certos casais não haja claro pre-
mas não sabe o que fazer com ele. Não pode viver sem ele, mas domínio de vaidades e interesses. Óbvio está que, conforme
não pode viver com ele. haja o predomínio do amor ou das vaidades, haverá tipos di-
Claro que, descrito assim, vou pegar muito mais homem ferentes de ciúme.
do que mulher. Mas existe a versão feminina de ciúme, mais No narcisismo, não. Como as mulheres, em alguns ca-
inspirado no narcisismo do que no amor. sos, ainda são dependentes, esse narcisismo a que me refiro
Sabe-se, por exemplo, que se para o homem a glória é não aparece com clareza na maioria delas. É que ninguém põe
possuir mil mulheres, para as mulheres a glória é casar e as manguinhas de fora quando está se sentindo fraco. No
amansar o garanhão. Ora, até aí, entrou de tudo, menos o homem porque, muitas vezes, ele se sente mais forte, a gente
amor. Muita mulher pensa que ama o homem com quem está vê cristalinamente o que estou chamando de narcisismo.
casada, mas na realidade ama muito mais a idéia de estar ca- Ele sente uma certa vergonha de amar alguém, de per-
sada, a idéia de ter no cabresto o garanhão, do que propria- tencer a esse alguém, de entregar-se de corpo e alma a ele. É
mente o seu marido. O que aparece sob forma de zelo, preo- que o narcisismo é o não precisar de ninguém em termos de
cupação e afeto por seu homem, se for bem analisado, são convivência. Precisar para seduzir, conquistar, dominar,
sensações mais dirigidas ao seu ego do que à pessoa com descabelar, deixar apaixonado, fazer sexo, deitar falação, es-
quem convive. No fundo, ela está preocupada com o que es- pantar a solidão, com isso o narcisismo não se incomoda.
tarão pensando as amigas e no que lhe acontecerá se ele for Agora, precisar para conviver, para trocar intimidades progres-
embora. Terá condições de conseguir outro homem, tão bom, sivas, para se entregar, ah! isso não! Soa como decadência,
ou melhor, ou levará fora atrás de fora e acabará com um pior, fraqueza, perda de virilidade. Afinal, um super-herói não se
se tanto? Terá condições de pagar as contas sozinha ou terá casa e constitui família ...
de baixar o padrão de vida e amargar as dificuldades profis-
sionais? Aqui, nesses exemplos, há vínculos de interesses e
não de genuína afeição.
O que será então essa tal de genuína afeição? Quem
já viu o olhar de um cocker spaniel para o seu dono imedia-
tamente saberá o que estou dizendo. E em todos nós existe,
em maior ou menor grau, esse olhar de cocker spaniel. Tem
gente que é quase puro amor e dá para perceber isso a lé-
guas de distância.
Na vida real, raramente se vê um relacionamento em que
haja só amor e as dificuldades e conflitos que do amor deri-
vam. Sempre há vaidade, interesse e dependência também
envolvidos. É que na vida nada está em estado puro, o que
Eduardo Mascarenhas 37
turalista da mente humana. Depois de sacar o jeito como fun- Em outras palavras: sexo não inicia na adolescência, co-
ciona cabeça de criança e a importância dos seus primeiros meça desde o nosso primeiro suspiro. Afirmar isso lhe cus-
relacionamentos para o resto de suas vidas, abalou profun- tou dez dolorosos anos de solidão. Desangelicalizar crianças
damente as idéias de índole, temperamento, instinto. A par- era demais para o puritanismo preconceituoso de então. Desde
tir de Freud, não se pode mais compreender uma pessoa sem nosso primeiro dia, jamais fomos inocência. Já nascemos de
se compreender a sua história. Principalmente, a história dos carne e osso.
seus primeiros e mais remotos amores. Dizer que criança tem sexo não significa dizer que ela
Não é que haja uma natureza, uma índole de nascen- tem sexo de adulto. Seu desejo não arde principalmente nos
ça. É óbvio que cada pessoa já nasce de um jeito. Contudo, à seus genitais. Arde por todo o corpo, principalmente pela pele,
diferença de todos os outros bichos, é da própria natureza boca e orifício anal. Criança não tem sexo de adulto, tem sexo
humana uma quase infinita capacidade de se deixar influen- de criança. E o futuro sexo do adulto dependerá não só da
ciar pelo ambiente. Abelha nasce abelha e vai viver corno to- explosão do instinto na adolescência, mas, principalmente, do
das as abelhas para o resto da vida. A natureza determina encaminhamento desse sexo de criança. A história da sexua-
seu jeito de ser e sua vida afeta não mais que um pouco. Com lidade não começa aos 13 anos, começa no berçário.
os cachorros, golfinhos e chimpanzés, o ambiente já influi Até aí, à primeira vista, tudo bem. Só que se pensar-
muito mais. Mesmo assim, infinitamente menos do que com mos com mais atenção no que está escrito, vamos descobrir
um ser humano. É da própria natureza humana ser aberta uma coisa chocante. Que todas as chamadas taras e desvios
para o ambiente. E de sua índole quase não ter índole. Nosso não são produto de uma mente adulta degenerada. São os
instinto é feito de borracha. produtos da sobrevivência do sexo sadio de uma criança no
Ao descobrir isso, Freud, em vez de sair por aí rotulan- sexo do adulto! Isso mesmo. Se formos julgar as crianças pelos
do pessoas, começou a entendê-las na sua profundidade. padrões que julgamos os adultos, elas são taradas, despudo-
Parou de julgar, de louvar e de pichar e tratou de compreen- radas, desviadas, sem barreira para nada. Sentem-se atraí-
der. Descobrir que a nossa alma é feita de borracha foi um das por animais e excrementos, meninos e meninas, homens
golpe de morte nas idéias de mentes degeneradas e desnatu- e mulheres, não importam idade, cor ou classe social, num
radas, índoles perversas, temperamentos anormais, falta ina- autêntico vale-tudo. Toda tara ou libertinagem não passa do
tiva de vergonha na cara etc. Uma de suas maiores glórias, predomínio do sexo normal da criança no adulto. Logo, em
sem dúvida, foi ter desfeito o abismo que existia entre o nor- vez de anjos, nascemos tarados e libertinos. Não é à toa que
mal e anormal, saúde e doença, sanidade e loucura, mentes Freud chocou, de início, a sua época.
íntegras e degeneradas. Fiz essa introdução para desfazer essa idéia de que ho-
Outra de suas glórias foi ter descoberto que criança não mossexuais são degenerados. Não. Exatamente porque, ao
é anjinho. Não nasce pura, crédula e sem maldades como um contrário de todos os outros animais, nosso instinto é de bor-
querubim. Ao contrário, já nasce, não diria com o diabo, mas racha, homossexualidade e heterossexualidade são leitos per-
com um diabinho no corpo. feitamente possíveis pelos quais pode fluir nosso desejo; são
rios por onde pode desaguar nossa sexualidade. Não existe
42 Faces do Amor
tuir uma família. Isso, e não o teatro de uma família que vive
de aparências, é o que vai passar para a cabeça da criança e
Porque a emoção humana é muito mais complexa do que se constituir na base de sua futura personalidade.
se imagina e não há de ser a presença ou ausência concreta A pergunta principal não é, pois: tenho ou não tenho um
de um homem em casa que determinará o seu curso. homem dentro de casa? É, isto sim, tenho ou não tenho a ca-
Explico-me melhor. Quando uma pessoa - mesmo que pacidade de ter um homem no meu coração?
seja um adulto - ama outra pessoa, ela se liga também - e Olhem que coisa estranha! Então uma relação entre
como! - a seus sonhos, seus valores de vida, seus ideais. Em duas mulheres - mãe e filha - nesse sentido, uma relação
outras palavras, quando amamos, somos poderosamente in- homossexual, já que inclui afeto e contato físico, pode per-
fluenciados pelos valores daqueles que amamos. Não por seus feitamente gerar o desejo de se buscar um homem. Estra-
valores superficiais para uso externo, mas, sim, por seus so- nhamente, uma relação homossexual pode gerar heterosse-
nhos profundos, seus desejos e ideais mais secretos. Num xualidade. Por amor homossexual à sua mãe heterossexual,
certo sentido, há uma espécie de contágio psíquico, que a uma filha pode se tornar heterossexual, já que desejará os
psicanálise dá o nome técnico de identificação. Se o amor for desejos daquela que ama, sonhará seus sonhos, se norteará
profundo, daqui a pouco estamos falando, pensando, sentin- por seus ideais.
do, gesticulando, agindo como aquele que amamos. Passamos Por outro lado, uma mulher pode ficar homossexual por
a sonhar os seus sonhos, viajar nas suas fantasias, desejar várias razões.
os seus desejos, nos guiar por seus valores e ideais, nos emo- Primeira. Por causa do beijo da mulher aranha. Sua
cionar com aquilo que o emociona, nos embevecer com aqui- mãe, na realidade, amou-a não para que crescesse e se liber-
lo que o embevece. tasse de suas teias, mas para que ela ficasse para sempre sua.
Se isso acontece com gente grande - e acontece mesmo Não a criou para o mundo, criou-a para si mesma. Esse fator
-, imagine com a criança! pesa muito mais ainda se a mãe for uma mulher sedutora,
Por isso a psicanálise insiste em dizer que, muito mais carismática e encantadora e empenhada em seduzi-la, acatar
importante do que ter pai, mãe e família, é o tipo de pai, mãe seus caprichos, encantá-la por todos os meios.
e família que se tem. O importante, para uma criancinha, nos Acima de tudo, a fixação na mãe se dará se a filha
braços de sua mãe, não é que esta seja casada em cartório, perceber-se como a fonte suprema de prazer da mãe; que ho-
com um marido que mora em casa. Isso pode ter alguma im- mem nenhum, atividade nenhuma faz os olhos matemos bri-
portância, mas muito secundária, e pode ser tanto um fa- lharem tanto quanto ela, filha. Enfim, que em vez de uma
1
tor positivo quanto negativo! relação mãe-filha, surja uma mútua paixão e um estado de
O decisivo não é ter um homem em casa, é a cabeça da mútuo enamoramento, para qual homem algum faça falta.
1
mãe. Se dentro da cabeça ela gosta ou não gosta de homem, "Que importa um homem se tenho você, minha filha!"
1 '
se ela é ou não capaz de amar um homem, se ela é ou não Uma mulher a quem sua filha faça vibrar mais do que
1
capaz de, numa boa, e não por aparências hipócritas, consti- qualquer homem (ou até mesmo qualquer outra mulher) e que,
i
'I
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46 Faces do Amor
j,
j
50 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 51
Esses jogos masculinos são tão importantes para os É evidente que o tão badalado machismo é, em parte,
homens, que muita mulher toma-se objeto de uma paixão - responsável por tudo isso. A cultura faz a cabeça dos ho-
às vezes duradoura, que pode até chegar ao casamento - só mens. Explicar, porém, todas essas emoções masculinas
porque é objeto do encantamento dos amigos. Alguns têm somente pelo machismo é pobre. É que, independentemente
consciência disso, outros não. Sentem uma forte atração, de cultura ou criação, existe urna competição e uma afeição
uma sensação de amor sincero. Contudo, se essa mulher, por inata entre as pessoas. Sejam homens ou mulheres. É da
essa ou aquela razão, deixar de ser cobiçada pelos amigos, própria natureza humana e, quem dúvidas tiver, basta en-
quebra-se a magia e desaparece o encanto. trar no quarto de crianças bem pequeninas e constatará essa
Boa parte dos ciúmes masculinos decorre não propria- verdade. Assim o foi, o é e o será, aqui e em qualquer cultu-
mente do amor à mulher, mas, sim, da humildade de vê-la ra. Se aparecerá mais sob a forma de mulherengo ou outras,
nos braços de um rival. Muitos homens separam-se de uma isso é uma nova discussão.
mulher e sentem alívio. Entretanto, quando sabem que ela en- O mulherengo, contudo, não se relaciona com mulhe-
controu um novo amor, a geleira se derrete e no lugar dela res só por causa dos homens. Relaciona-se com as mulheres
aparece um vulcão. também por causa das mulheres.
A timidez de abordar mulheres também se deriva des- Primeiro, por causa de sua índole competitiva. Por con-
1
sas competições entre os homens: "Se eu não me der bem, o ta dela surge um jogo, de ambas as partes, de medição de
1
que vão pensar os meus amigos?" forças do tipo quem dobrará quem, quem fará o outro ficar
Até nos momentos de um grande amor - esse compo- rendido aos encantos. E não há relação homem-mulher em
nente está presente: "Poxa, vivo um amor pra homem nenhum que essa competição não ocorra, de ambas as partes. Em
botar defeito." É que o "espelho, espelho meu, existe alguém muitos casais, é razão de confusão, desencontros e rompimen-
mais encantador do que eu?" não pertence somente às mu- tos. Em outros, não. Gera o maior clima. É que, existem com-
lheres. Os homens também o consultam. E como! petições doentias, mas também as sadias, mutuamente esti-
Alguns se orgulham de não serem competitivos, po- mulantes e que ainda trazem à relação aquele gostoso sabor
rém, disputam um torneio paradoxal: o campeonato de quem de risco e aventura.
é o menos competitivo de todos! Ou seja, a competição da Segundo, por causa de sua índole fraterna. Pode pare-
não-competição. cer estranho, mas o sentimento de fraternidade do homem para
Mas nem só de competição vive o homem. Ele vive tam- com a mulher, se pode ser um fator fundamental para se vi-
bém de fraternidade, fraternidade pelos ... outros homens. Por ver um grande e definitivo amor, pode também ser a razão de
. •: 1
isso ele também se relaciona com mulheres, uma maneira de sua impossibilidade. Explico melhor. Em alguns homens, o
cumprir as regras do seu Clube do Bolinha. Por amor aos sentimento de fraternidade é tamanho que começa até a pin-
homens, ama as mulheres: "Porque gosto dos meus amigos, tar culpa quando se está com uma mulher: "Poxa, por que
gosto do que eles gostam que eu goste." preferi fulana e me apaixonei por ela? Apaixonar-me por ela é
como dizer às outras que elas, para mim, são inferiores, não
50 Faces do Amor Eduardo Mascarenhas 51
Esses jogos masculinos são tão importantes para os É evidente que o tão badalado machismo é, em parte,
homens, que muita mulher torna-se objeto de uma paixão - responsável por tudo isso. A cultura faz a cabeça dos ho-
às vezes duradoura, que pode até chegar ao casamento - só mens. Explicar, porém, todas essas emoções masculinas
porque é objeto do encantamento dos amigos. Alguns têm somente pelo machismo é pobre. É que, independentemente
consciência disso, outros não. Sentem uma forte atração, de cultura ou criação, existe urna competição e uma afeição
uma sensação de amor sincero. Contudo, se essa mulher, por inata entre as pessoas. Sejam homens ou mulheres. É da
essa ou aquela razão, deixar de ser cobiçada pelos amigos, própria natureza humana e, quem dúvidas tiver, basta en-
quebra-se a magia e desaparece o encanto. trar no quarto de crianças bem pequeninas e constatará essa
Boa parte dos ciúmes masculinos decorre não propria- verdade. Assim o foi, o é e o será, aqui e em qualquer cultu-
mente do amor à mulher, mas, sim, da humildade de vê-la ra. Se aparecerá mais sob a forma de mulherengo ou outras,
nos braços de um rival. Muitos homens separam-se de uma isso é uma nova discussão.
mulher e sentem alívio. Entretanto, quando sabem que ela en- O mulherengo, contudo, não se relaciona com mulhe-
controu um novo amor, a geleira se derrete e no lugar dela res só por causa dos homens. Relaciona-se com as mulheres
aparece um vulcão. também por causa das mulheres.
A timidez de abordar mulheres também se deriva des- Primeiro, por causa de sua índole competitiva. Por con-
sas competições entre os homens: "Se eu não me der bem, o ta dela surge um jogo, de ambas as partes, de medição de
que vão pensar os meus amigos?" forças do tipo quem dobrará quem, quem fará o outro ficar
Até nos momentos de um grande amor - esse compo- rendido aos encantos. E não há relação homem-mulher em
nente está presente: "Poxa, vivo um amor pra homem nenhum que essa competição não ocorra, de ambas as partes. Em
botar defeito." É que o "espelho, espelho meu, existe alguém muitos casais, é razão de confusão, desencontros e rompimen-
mais encantador do que eu?" não pertence somente às mu- tos. Em outros, não. Gera o maior clima. É que, existem com-
lheres. Os homens também o consultam. E como! petições doentias, mas também as sadias, mutuamente esti-
Alguns se orgulham de não serem competitivos, po- mulantes e que ainda trazem à relação aquele gostoso sabor
rém, disputam um torneio paradoxal: o campeonato de quem de risco e aventura.
é o menos competitivo de todos! Ou seja, a competição da Segundo, por causa de sua índole fraterna. Pode pare-
não-competição. cer estranho, mas o sentimento de fraternidade do homem para
Mas nem só de competição vive o homem. Ele vive tam- com a mulher, se pode ser um fator fundamental para se vi-
bém de fraternidade, fraternidade pelos ... outros homens. Por ver um grande e definitivo amor, pode também ser a razão de
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1
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isso ele também se relaciona com mulheres, urna maneira de sua impossibilidade. Explico melhor. Em alguns homens, o
cumprir as regras do seu Clube do Bolinha. Por amor aos sentimento de fraternidade é tamanho que começa até a pin-
homens, ama as mulheres: "Porque gosto dos meus amigos, tar culpa quando se está com uma mulher: "Poxa, por que
gosto do que eles gostam que eu goste." preferi fulana e me apaixonei por ela? Apaixonar-me por ela é
como dizer às outras que elas, para mim, são inferiores, não
52 Faces do Amor
Fome Essa é uma das importantes razões pelas quais sua afei-
ção concentrou-se tanto na área sexual. É que ali tudo é ten-
/ ®
Crianças de mais de dois anos já dão uma nítida im- volvidos - a imensa maioria - dependem do que virá depois.
portância aos órgãos genitais. Meninos e meninas se deliciam Nesses casos é que entra em cena a superbadalada repres-
com atividades masturbatórias e alcançam um verdadeiro gozo são sexual. E os mal desenvolvidos nem em condições ideais
sexual (sem ejaculação, é claro). Essas atividades masturba- futuras terão boas chances de um contato corporal legal.
tórias, desde que não sejam nem estimuladas nem reprimi- Quando se cumprimenta, se beija ou se abraça alguém,
das pelos adultos, são plenamente normais e inofensivas. dá imediatamente para sacar como foi desenvolvida a sexua-
Fazem parte da natureza humana e não trazem nenhum pre- lidade primitiva dessa pessoa. Não tem gente que vira um
juízo futuro. soldadinho ou um porco-espinho, parecendo que tem eletri-
Por que se chamam de sexuais essas atividades das cidade no corpo ao menor contato com a pele alheia? Esses
crianças? Primeiro, porque há excitação física no corpinho foram os mal desenvolvidos. Para evitar essa dificuldade de
delas, prazer de manipulação e descarga. Segundo, porque, contato corporal, podem ficar distantes e misantropos. Para
quando a gente faz psicanálise em adultos, não pode deixar eles, chegar fisicamente perto de alguém não desperta pra-
de reconhecer a importância dessa sexualidade infantil. Se ela zer, mas desprazer.
1 !
não for levada em conta, jamais se conseguirá entender qual- O instinto sexual atinge fundo a nossa emoção. É ele que
quer tara ou perversão, ou inibição sexual (impotência, eja- hipnotiza a nossa mente, inundando de fascinação e magia os
culação precoce). nossos olhos. Se a gente não produzisse uma visão fascinante
Se a criança é o pai do adulto, quanto menor ela for, e mágica do outro, não ia desejar tanto se aproximar dele. O
mais lesivos serão os traumas psíquicos. É claro que um bebê instinto sexual inspiraria apenas práticas masturbatórias e sua
perturbado gerará uma criança perturbada, que, por sua vez, finalidade última de reproduzir a espécie estaria comprometi-
gerará um adolescente perturbado. E assim por diante. É o da. Por isso Freud nunca cansou de insistir que o enamora-
mesmo que lesar a semente de urna planta, ou um embrião mento e a paixão têm a ver com o instinto sexual.
nos primeiros meses de gestação. Essas foram as avenidas traçadas pela natureza para o
Além disso, a capacidade de um bebê sacar o que está escoamento do fluxo sexual. A libido invade a alma, emocio-
se passando com ele é mínima. Não adianta dar explicações nando-a pelo parceiro, a fim de que, preferencialmente ele,
a ele ou pedir desculpas, porque estará longe de entendê-las. possa realizar o desejado prazer físico.
No seu mundinho existem emoções intensas, sem qualquer Mas, além das avenidas, existem ruas e vielas colaterais
grau maior de entendimento. Sua emoção é radical: ou foi bom por onde o trânsito pode circular. E essas ruas e vielas podem
ou não foi. E nem quer saber por quê. ser alargadas a ponto de se tomarem as avenidas principais.
Daí a gigantesca importância de lidar numa boa com o Tal como a história de uma cidade muda o seu traçado, a his-
corpo do bebê. Aí - e não nas repressões culturais - encon- tória de uma vida pode transformar uma avenida numa ruela
tra-se o ponto mais importante de toda a vida sexual futura. e uma transversal sem importância em via preferencial.
Um bebê bem desenvolvido é a maior de todas as garantias O instinto sexual ferido, principalmente nos primeiros
para uma sexualidade feliz. Os mais ou menos bem desen- meses de gestação, pode gerar várias conseqüências.
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66 Faces do Amor
Então, vou contar um papo que tive com um amigo meu, são cultural da mulher. Mas me entenda bem: não é que não
um cara que transa com homens e com mulheres. Acima de concorde com isso. Pelo contrário, estou completamente de
tudo, é uma pessoa sensível, boa e de rara profundidade. Sem- acordo com as teses feministas. Acho que é isso aí. De verda-
pre que estou com ele, aprendo muito. de. Acho também que se começou a falar de coisas muito
"Você sabe, Eduardo, qual é das coisas mais complica- importantes. Mas, exatamente por causa disso, não se fala
das quando se vai pra cama com um homem? É que, quando mais sobre outras coisas igualmente importantes ...
você se tranca com ele num quarto, sendo ele tão forte ou mais "Essa história da força física, por exemplo, eu acho fun-
forte que você, ele pode simplesmente te matar. E sem ter que damental. Sem levá-la em conta, a gente nunca vai entender
usar arma ou esperar que você esteja dormindo ou distraído. direito nem a cabeça do homem nem a da mulher. A mulher
Por isso, dá tanto medo ir pra cama com um estranho ... " em geral é mais fraca socialmente. Tudo certo. Mas ela é tam-
Até aí, tudo bem. Ele estava me descrevendo uma reali- bém mais fraca fisicamente."
dade, uma dura realidade. Papo meio pro pesado, não tenho Realmente, até agora, não dava senão para concordar.
dúvida. Mas estimulante. Contudo, o mais interessante vinha "Até num casamento, essa questão da força física é
a seguir. complicada. A mulher, em algum lugar dentro dela, sabe per-
"Agora eu entendo as mulheres. Sabe por quê? Porque feitamente que, pelas madrugadas da vida - mesmo pelas
eu sinto o que elas sentem. Elas podem nem saber que sentem madrugadas da vida matrimonial -, se ela esticar limites e
todo esse medo, já que, por causa disso mesmo, cercam-se da perder o controle da situação, seu marido poderá recorrer à
prudência e do recato. E aí é possível que jamais o sintam força física. Não digo para matá-la. Seria um exagero. Mas
realmente. Claro. Mas ele está ali. Silencioso, mas pronto para para agredi-la. E isso, meu caro Eduardo, faz uma enorme
ser deflagrado." diferença. Mesmo que nunca seu marido (ou outro homem)
Cada vez mais entusiasmado, quase num transe, ele a tenha agredido de fato, ela sabe que, a qualquer momen-
prosseguia. to, pode fazê-lo.
"Não é mole a situação da mulher. Imagina: estar "Acho que, por essas e outras, com ou sem revolução
trancada num quarto de motel com um estranho. E numa si- dos costumes, a mulher continua evitando estranhos. É uma
tuação que excita apetites e emoções, que a gente sabe como prudência instintiva. E liga, muito mais do que o homem, o
começa, mas não sabe como acaba. Eduardo, cá dentro dos sexo ao amor. Além de procurar impor um tom mais suave e
meus olhos, você se sentiria tranqüilo sabendo que uma filha lírico às suas relações com os homens. Para quê? Para não
sua estava trancada num quarto de motel com um estranho?" perder o controle da situação, para se assegurar de que as
O papo começava a me incomodar. Sabia, então, que ele emoções não alcancem o perigoso terreno da agressividade."
estava tocando em coisas profundas. Tão profundas, quera- Nesse momento, fiz um gesto de indagação, que ele in-
ros homens e mulheres pensam nelas de verdade. terpretou corretamente.
"Estou lhe falando essas coisas - confesso - porque es- "Eu já sei o que você vai me dizer. Que existe, em todo
tou um pouco enjoado desse papo que explica tudo pela opres- mundo, homens e mulheres, um prazer também na agressi-
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çado. Infligir alguma espécie de dor no adversário é a essên- Se ela vai se casar com um homem e sabe que, num
cia do prazer do esporte competitivo. certo sentido, está domesticando a fera, amansando o bicho-
Nas disputas políticas e eleitorais, também, quando ven- homem, isso também gera um prazer que pode ser descrito
cemos, além da alegria cívica de acreditarmos que a melhor como sádico.
causa venceu as outras menos nobres, sentimos uma alegria Quando uma pessoa faz outra ficar loucamente apaixo-
sádica de ver o adversário derrotado. Nos debates intelectu- nada, ocorre o mesmo. Tanto que se diz: "Eu vou te matar de
ais, nos festivais de música, nos programas de calouros, nos tanto fazer você me amar, você vai morrer de amor por mim,
jogos de cartas ou nos cassinos, também, está presente um ficar louco, descabelado, completamente meu. Sem mim você
tipo de prazer de colorido indiscutivelmente sádico. não vai ser mais nada, nada terá mais graça na sua vida. Eu
Logo, o sadismo é muito mais freqüente do que se ima- serei a luz dos seus dias, a menina dos seus olhos. Adoro
gina e nem sempre é algo torpe ou sórdido. É fonte de ino- vê-lo rendido a meus pés, chorando em súplicas para ficar
fensivos prazeres, que dão mais graça e cor à vida. mais comigo, corroído de saudades quando parto e enlouque-
Mas não é só aí que o sadismo se manifesta. Todas as cido de ciúmes para saber para onde fui."
conquistas amorosas possuem, entre outras coisas, um indis- Mas não há sadismo só nessas regiões.
farçável prazer sádico. Quando um homem conquista uma Quando alguém na vida sente prazer de se sentir mais
mulher e a leva para a cama, lá no fundo, ele sente um delei- do que aqueles que ficaram por baixo está sentindo um pra-
te sádico. Ele dobrou sua vontade, quebrou sua resistência; zer sádico. Até quando nosso filho é mais bonito e inteligente
ela saiu toda penteadinha e arrumada de casa e encontra-se que o filho do vizinho, baixa esse sádico deleite.
agora toda desfeita em seus braços, gemendo como bicho no Quando a gente se sente fazendo a cabeça dos outros,
cio. A sexualidade inteira possui algo de sádico. Primeiro por- mudando seus gostos e sua maneira de sentir, de agir e de
que ela tira as pessoas de suas posturas mais elegantes e, pensar, há também algo de prazer sádico nisso.
num certo sentido, animaliza-as de algum modo. O prazer de Na realidade, sadismo, dominação e poder são emoções
penetrar, de possuir, de fazer o outro se render é claramente primas-irmãs.
composto de ingredientes sádicos. Logo, não se precisa esbo- Como tem gente que vibra quando dá um pé no namo-
fetear o parceiro ou dizer-lhe palavras insultuosas no ato se- rado e percebe toda a sua agonia. Ou quando abre os jornais
xual para se estar exercendo o sadismo. Dizer que existe sa- e não consegue tirar os olhos das páginas que descrevem as
dismo em toda a sexualidade não significa, entretanto, dizer- desgraças alheias. O prazer de fofocar, de pichar, de jogar
se que nela só existe sadismo. para baixo, de armar intrigas mostra como todos nós somos
i i Claro que uma mulher que se sente conquistando um muito mais sádicos do que, à primeira vista, parecemos. Tem
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homem, arrancando-o dos braços de suas rivais, deixando-o muita gente até que, por sadismo, se torna santo. No fundo,
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amarrado sexualmente a ela, alcançando graus de prazer nunca deleita-se com sua aparente superioridade moral, com o pres-
[; li ' antes alcançados, também sente o mesmo que um homem con- tígio de homem de bem, olhando de cima para baixo, com des-
li 1 quistando uma mulher. dém, os pobres pecadores. Ou olhando-os com ternura
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paternalista, maneira de se sentir com mais nobres e genero- um sádico. Secretamente deleita-se em desmanchar o prazer
sos sentimentos do que os outros, porque se sente "piedoso". e a alegria à sua volta. Adora destruir pessoas com seus jul-
Aquela visita que, sem querer, deixa cair Coca-Cola no gamentos implacáveis, impondo a elas um grau de disciplina
nosso tapete novo ijá repararam como tapete novo atrai esse e abstinência sobre-humanas.
tipo de acidente?) ou esquece o cigarro aceso em cima do sofá Se colocado sob a lente de um microscópio capaz de
dá demonstrações de sadismo inconsciente. enxergar as minúcias da alma, não existe um só gesto hu-
Mas o sadismo não se manifesta somente por meio de mano no qual não se possa enxergar uma pitada de sadismo.
atos de violência ativa. Existe o sadismo da violência passiva. E, afinal, o que tem isso de mal? Não sejamos tão sádi-
É aquela pessoa que adoece justo no momento da festa que a cos a ponto de impor aos seres humanos condições de perfei-
gente tanto queria ir. É aquela mulher que não curte as coisas ção sobre-humanas. Tudo o que for exigência sobre-humana
do marido, que, por sua vez, não curte as dela. Ou que, na é desumano, logo, sádico e cruel.
cama, por questões misteriosas, não se realiza plenamente.
Claro que muitas dessas situações são uma mistura de
vingança com sadismo.
O sadismo tem seus lados ruins e seus lados bons. Os
lados ruins são óbvios. Os lados bons são que esses prazeres
de dominar, triunfar, vencer nos impulsionam na vida e aju-
dam a dar sentido e colorido a ela. Se tirássemos o sadismo
da alma humana, muita coisa ruim deixaria de acontecer, mas
muita coisa boa, gostosa, construtiva, também.
Sem um mínimo de sadismo, morreríamos de constran-
gimento de dizer não a alguém, de enquadrá-lo, discipliná-lo.
Se não houvesse um prazer sádico nessas situações, contra-
balançando as dores de cortar o prazer do outro, acabaría-
mos possuídos por uma excessiva piedade.
A presença do sadismo toma também o jogo da vida
mais perigoso e por isso com mais sabor de aventura e mais
emocionante. A constatação de que as pessoas, por possuí-
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rem emoções sádicas, são mais perigosas pode estimular o
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interesse pelo jogo afetivo com elas.
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Eduardo Mascarenhas
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1 que isso a destrua. "Veja como sou forte. Sou capaz de violar Enquanto o narcisismo é o individualismo que só se
tudo o que me ensinaram, não sou uma menina boazinha, uma ama, o sadismo é o individualismo que só se deleita em ser
moça de familia e, mesmo assim, as pessoas me amam." amado, o masoquismo é o próprio deleite de amar.
O masoquismo desperta prazer, ainda, porque, de algu- O Eu se desinteressa por si mesmo, abre mão de sua
ma forma, ele reproduz o prazer de se sentir, apesar de importância, aspira ser nada ou ninguém nos braços de um
pequenina como uma criança, sem força de reagir, amada por outro Eu. Surgem emoções do tipo Garcia Lorca: "Quero ser a
um poderoso adulto. Reproduz de forma exagerada o senti- sombra de sua sombra, seu cachorro." "Quero perder-me nos
mento de criança fraca diante dos adultos fortes, e sem qual- seus braços, dissolver-me no seu corpo, esperar ansioso o te-
quer conseqüência mais ameaçadora. lefone tocar na esperança de que seja você. Quero entregar-me
Outro fator ainda no prazer masoquista é que a.mulher por inteiro, ser plena e pura doação. Sem vaidade, sem orgu-
se sente como uma potranca que vai ser domada por um po- lho, sem arrogância, que tanto atrapalham o amor."
deroso domador. Ela pode soltar seus demônios, seus impul- O estado apaixonado, que dá tanto prazer à vida, para
sos, que alguém forte e poderoso saberá mantê-los dentro de a psicanálise é, assim, uma variante sofisticada daquilo que
certos limites. Deixa então de se preocupar com a fera que ela, tecnicamente, chama de masoquismo.
existe. Alguém será tão forte que, sem reprimi-la, saberá como Enquanto o sadismo, tecnicamente falando, é o lado
conter sua ferocidade, sua tendência a sentir desejos desen- masculino da personalidade, o masoquismo é o lado femini-
freados. Há alguém com energia bastante para colocar freios no. É a mulher apaixonante e apaixonada que todos nós -
nos seus excessos, e isso gera prazer. homens ou mulheres - trazemos no peito.
Agora, eu estou convencido de que o principal fator que E quem não sabe como é gostoso sofrer por amor ...
toma o masoquismo atraente é que, por incrível que possa
parecer à primeira vista, é dele que provém o enorme prazer
da entrega, de se sentir apaixonado, enlouquecido de amor.
Explico melhor. O narcisismo gera a auto-suficiência.
Logo, não se pode genuinamente amar, e é gostoso estar
amando. O sadismo gera a dominação, do poder, do triunfo.
Depois de algum tempo, começa a gerar tédio, vontade de se
apaixonar. Por quê? Porque o legal no sadismo é ver o outro
apaixonado, rendido, enlouquecido de amor, logo, é o oposto
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O que não significa dizer que toda homossexualidade são alguém um só minuto. Ou seja, estaríamos completamente
formas narcisísticas de amor. Tem muita que não é. Tal como vulneráveis à solidão.
a heterossexualidade. Como teríamos uma imagem desvalorizada da gente
O narcisismo não é algo ruim ou negativo. Não fosse ele, mesmo e supervalorizada dos outros, sentiríamos nossas opi-
estaríamos todos mortos. Isso porque simplesmente não nos niões sem qualquer valor e superestimaríamos as opiniões dos
interessaríamos por nós mesmos. O narcisismo é a fonte do outros. Nosso julgamento sobre as coisas, também, nem che-
cuidado e do interesse que devotamos a nós próprios. Dele de- garia aos pés do julgamento dos outros. Ora, em pouco tem-
riva o sentimento da gente de gostar da gente, de achar a gen- po, não teríamos mais opinião própria e todo mundo manda-
te legal. Enfim, ele é a fonte original da própria auto-estima. ria em nós e faria a nossa cabeça.
Não fosse esse amor voltado para si próprio, seríamos, desde o Tendo uma imagem desvalorizada de nós mesmos e
nascimento, seres sem qualquer auto-estima, sem qualquer hipervalorizada dos outros, nossos próprios sentimentos, so-
sentimento de valor, verdadeiros molambos de berçário. nhos e desejos seriam por nós mesmos desqualificados como
Se há excesso de amor guardado sem ser investido nem bobos, inferiores, errados, sujos. Claro, tudo que não for igual
na gente nem nos outros, tudo perde o sentido, o brilho, a aos outros será pior. Daí ao aparecimento de um sabor de falta
graça e a beleza. Se ele estiver excessivamente investido nas de legitimidade interior e de sentimentos poderosos de vergo-
outras pessoas, a gente fica fraco e elas, fortes. A gente se nha, insegurança e culpa, bastará um passo.
sente sem graça e as sente deslumbrantes. Ficamos tristes e Até nossa família, nossos objetos, nossos filhos seriam
deslumbrados. Se o amor se dirigir a uma só pessoa em gran- por nós desvalorizados e não apreciados na sua real dimen-
des quantidades, surge o fenômeno do enamoramento e da são. Claro, tudo que sair de nós ou nos pertencer receberá a
paixão. Aquela pessoa fica ungida de magia, feitiço e poesia, carga de falta de valor que concedemos a nós mesmos.
e não podemos viver sem ela, pois ela é a luz dos nossos olhos.
Daí o coração apaixonado ser tão dócil e até submisso à gran-
deza que ele enxerga em quem ama. Se o amor se dirigir ex-
cessivamente ao Eu, esse se sente o cara mais bacana do
mundo, com complexo de superioridade e se achando com o
rei na barriga.
Se não houver o mínimo de amor dirigido ao Eu, a gen-
te vira um molusco, um invertebrado, um zero à esquerda. A
dignidade, a respeitabilidade que inspiramos no outro depende
de algum grau de narcisismo. Sem o amor dirigido ao próprio
Eu, ficaríamos como mendigos, de pires na mão, suplicando
o amor alheio. Perderíamos, assim, completamente a nossa
soberania e não conseguiríamos ficar sem a companhia de
Eduardo Mascarenhas 85
a gente nem ter dado qualquer indicação. Dá uma sensação legal. Que ia ouvir o resto da lista e que depois faria uma lis-
gostosa ser adivinhado, uma sensação de comunhão de espí- ta do mesmo tamanho para ele. Afinal, por que não um mo-
ritos, de almas e prazeres afinados. E mais. Eu vou escrever mento duro, porém bonito, de verdade e sinceridade mútua?
para não colocá-la nem na desconfortável posição de quem E ele chegou aos trinta itens, ao final dos quais ela
guarda mágoas secretas no peito, nem na igualmente apenas lhe disse: "Estou perplexa, boquiaberta. Nunca pen-
desconfortável posição de cobrança, de megera cobradora, sei que alguém me sacasse tanto, que eu dava tanta bandei-
reclamona que vive fazendo exigências para o marido. Você ra. Tem coisas aí que você escreveu que eu nem conto para
topa que eu escreva?" mim, mas é verdade. Só não sei se serei capaz de escrever
Ela topou. uma lista tão completa e tão precisa quanto a sua."
Af ele começou a escrever a lista. Quando chegou no E começou a escrever. Rapidamente e com uma facili-
nono item, ela já estava debulhada em lágrimas. dade que a surpreendeu chegou ao vigésimo item. Claro, tam-
"Então você sabe tudo isso e não faz nada! Agora você bém já estava mais descontraída por não ter sido a primeira;
não tem nem a desculpa de que não fazia porque não sa- do vigésimo ao trigésimo item levou um pouco mais de tem-
cava ou não entendia. Não! Você me sacava e me entendia, po. Eram assuntos mais delicados. Mas ela foi em frente.
sim, apenas queria me frustrar, me magoar, me supliciar. Quando chegou ao trigésimo, ela lhe perguntou: "Então, você
Eu te odeio!" está satisfeito?" E ele, olhando fundo nos olhos dela, lhe de-
Ele olhou firme nos olhos dela e respondeu: "Olha, em volveu a pergunta. Ela entendeu o olhar e foi novamente ho-
primeiro lugar você topou fazer a lista. Portanto, segura. Em nesta. Disse-lhe que achava que poderia chegar aos dez itens.
segundo lugar, você, se quiser, irá escrever uma lista sobre Ambos foram de uma precisão absoluta. Pareciam dois
mim. Com trinta itens contendo o que você sabe que eu quero videntes, dois seres dotados de olhar de raios X, capazes de
de você, que eu jamais mencionei, e segure essas lágrimas, radiografar um a alma do outro.
senão você estará dando uma de santinha, de vítima, e me Af não precisaram quase dizer mais nada. Claro que um
colocando como o único responsável por nós não sermos não fazia ou era para o outro aquilo que o outro queria ou
mais felizes. E isso não é legal se a gente quiser ser mais gostaria, exatamente porque o outro não era ou fazia para o
feliz. Você vai ficar magoada comigo e eu vou ficar magoado primeiro aquilo que ele gostaria.
com você. Não se esqueça de que eu estou sendo delicado, Havia, assim, um jogo subterrâneo de mútua sabota-
apesar de a delicadeza, às vezes, ter de se manifestar de for- gem: "Você não me dá o que eu gosto. Eu não te dou o que
mas duras. Eu estou poupando você de ficar numa posição você gosta."
de cobradora, eu estou lhe adivinhando e eu gostaria que você Pelo menos aquela noite foi de encontro e de paixão.
fizesse o mesmo comigo. Que escrevesse as trinta razões pe- Melhorou o relacionamento de ambos. Não tenho tido conta-
las quais eu me magõo com você." to com eles para saber como anda a relação. Mas certamente
Ela segurou o choro e reconheceu que estava, talvez, alguns coágulos devem ter sido dissolvidos e alguns proces-
tirando mesmo uma de vítima ou de santinha e isso não era sos alcançados.
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mesmo que não esteja em cena nenhum vestígio do fracasso Emoção completamente diferente sente a pessoa que
de noites anteriores. esteja saciada ou inapetente. As mesmas comidas serão in-
É que a presença do desejo sexual altera a visão do diferentes para ela, podendo até causar-lhe uma espécie de
mundo. Uma pessoa sexuada enxerga a vida por ângulos in- repulsa. Andando pela rua, raramente notará pizzarias
teiramente diferentes, se comparada com uma assexuada. Va- e pastelarias.
loriza cada coisa, cada evento de forma completamente diver- Imaginem o faminto saindo para passear com o inape-
sa. E olhe que não estou me referindo a sexomanias ou coi- tente. Haja desencontro!
sas semelhantes, mas à presença ou ausência daquela sadia
cota de libido que a natureza nos deu.
Uma pessoa sexuada, mesmo nos seus momentos de re-
pouso, tenderá a enxergar o mundo não como alcova, mas como
um lugar romântico e propício aos encontros de seres enamo-
rados. Ora, isso hierarquiza valores de uma forma diametral-
mente distinta do que faz um olhar assexuado. Inteiramente
desapimentado, um olhar assexuado enxergará, no cotidiano,
apenas oportunidades para cafunés platônicos, cuidados ma-
ternais e requintes fundamentalmente culinários. As crianças,
a casa e os empregados tornam-se mais importantes que todo
o resto. O corpo humano, em vez de inspirar paixão, inspira
cuidados quase que de enfermagem. Em vez de vinhos à luz
de velas, muitos chazinhos, cafezinhos e bolinhos.
Essa visão de mundo diferenciada em função das do-
ses de desejo sexual vai levar o casal a se desentender nos
mínimos detalhes. De onde vem essa misteriosa maldição que
gera sistematicamente desencontros? Vem da própria lógica
do desejo.
Um desencontro desse tipo é igual ao que ocorre entre
uma pessoa faminta e uma inapetente. Sob o impacto do de-
sejo de comer, tudo o que se refertr a comida e culinária su-
birá de cotação na bolsa de valores interna, que faz o seu
pregão no coração do faminto. Se passa pela cozinha, queijos
e quitutes o deixam com água na boca.
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cupa tanto com essa renúncia. Mas quem não tem pode real- sua fissura de entrega, espiritualizando-a. Entregam a alma,
mente ficar trêmulo e assustado. Tomar-se um casal, tomar-se mas não, de verdade, o corpo. De um lado, homens que só
dois, antes de haver se sentido um, antes de haver se sentido pensam em sexo. Do outro, mulheres que só pensam no amor.
nascido e vacinado - você há de convir - é difícil. Boa parte Duas faces de uma mesma moeda: a resistência à entrega. E
da resistência que algumas pessoas sentem em se entregar é tome desencontro ...
essa insegurança de se já é ou não autor de sua própria vida, Outras pessoas, ainda, diminuem (ou excluem) a impor-
cabeça e sentimento. tância do amor nas suas vidas. Optam pelas glórias do mun-
Em quinto lugar, o prazer de entregar-se e de inspirar do, uma entrega algo anônima e inconsistente das multidões.
no outro entrega equivalente é tamanho - talvez seja a su- Preferem o sucesso profissional, a fama, a admiração coleti-
prema satisfação da emoção humana - que essa é uma re- va, a mergulhar de cabeça nas águas densas da paixão. Suas
gião perigosa. Um desejo tão imenso pode despertar dores, vidas, na realidade, estão mais dirigidas para as arquibanca-
rancores e sofrimentos igualmente imensos. Entregar-se re- das, para as galerias e platéias da vida, do que para o amor.
quer enorme risco. Amam tomar-se célebres, mais do que amam o amor.
Não será melhor nossa alma fumar cigarros de baixos E existem muitas outras maneiras de se proteger do
teores e tomar cerveja light? Pelo menos, se não curtirmos os deleite e risco extremo da vida: a entrega radical a alguém que
deleites supremos da entrega, não correremos o risco dos ran- radicalmente se entrega à gente.
cores, saudades, ciúmes e sofrimentos supremos do eventual Na minha vida conheci poucos casamentos. Talvez ne-
fracasso dessa entrega. nhum. O que não significa que não deva continuar acreditando
Há, nas profundidades de todos nós, um polvo imenso na possibilidade dele.
querendo fundir-se e confundir-se com o polvo imenso que É uma idéia bonita demais para não mais se acreditar nela.
existe na profundidade do outro. Daí podem ocorrer fossas
e depressões oceânicas, mágoas atlânticas, caso os polvos
não se encontrem. Vale, então, a pena ir tão fundo nas nos-
sas emoções, até se deparar com esse polvo querido que tanto
nos abraça?
Por todos esses fatores é difícil a entrega e, por isso, é
difícil o casamento.
Algumas pessoas - principalmente homens - resolvem
sua fissura de entrega, sexualizando-a. Entregam-se de cor-
po, mas não de alma, e o fazem por tempo limitado. Até que
novamente amanheça e termine a noite.
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pode matar deleites supremos da magia, da poesia, da beleza
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Luiz Alberto Py