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José P. Castiano

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· -Gom o apoio do ISOED e CEMEC
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José P. Castiano

Filosofia Africana:
da Sagacidade
à lntersubjectivação .

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Índice
..... ..

Dedicatória ...... ... ........... ...... .... .... ......... ...........·:\ ... ...'. .. ..... ·7
Agradecimentos .. ... ................... ... ....... ... ,.. ... .. .... ... :.......... 9
Introdução .... ......... .. ................ .... ................ ...... :.... ..... .... 13

Parte I: Porquê Entre-Vistas com Viegas? ................... 19

A Sagacidade em Viegas.. .... ....... ........ ... .......................... 19


Educador Humanista "Universalocal" ..... ........ .. .... ......... · 24
Filosofia ou Filosofias? .............................. :..... :.... :.:... ....... 30
Sagacidade: Uma Sabedoria Proverbial ou Filosófica? .. . 40
Foi Viegas um Sage Filosófico? .......... .... ................ :.:..'..... 48
FI C HA TÉCNI CA Aculturar a Filosofia e Modernizar Tradições -. ... ;.......... 52
Titulo: Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas Contra o Tradicionalismo Cultural ........ ~. . . ... . . . ................ ...... 59
Autor: José P. Castiano Resistindo à Tentação Antropológica ............ .~: ..:...... .. .. . 63
Colaboraçào: Arão Armindo Come ; Adérito Adriano Miguel e Santos Chaguala
Revisão do Texto: Albino Chavale
Parte II: Entre-Vistas Sagaciosas com Viegas .............. 65
Editora: Educar, Universidade Pedagógica - Maputo
Entre-Vistas I ..... .... ...... ................................ ,.. .. .. ;'. ...... :...' 66
Co-ediçào: ISOED, Instituto de Investigação Social e Educação
Autobiografia do Jovem-Antigo ... ... :.. .. :.:... ..... :.. :~ .. .:·.. .'.... . 67
Fotos: José P. Castiano
Sobre a Religião e Reconciliação .. ... .... .' ... ...... ..... ... .... :.:::... 77
Capa: Jubel D. Castiano

ArTanjo Gráfico e Paginação: Publifix Edições


Sobre a Paz e a Justiça .. .................. :........ ........ :... :.: ....... :. · 84
·Impressão: Publifix Edições Sobre a Religião Cristã e o seu Papel ...... ... ..... ........ .,;..... 86
Tiragem: 1500 exemplares

Registo: 8396/ RLINLD/ 2015 Entre-Vistas II .. . .. . .. . .. .. . . .. .. . . . . . .. . .. .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. . ... . .. .. .. .. 111


Copyright: © Reservados todos os direitos. Uhuru, at least: Sobre a Liberdade .... .......................... .. 111
t: e.xpressamente proibida a reproduçilo total ou parcial desta obra por qualquer Liberdade como Escolha entre o Bem e o Mal ....... ....... 118
mero.rnclurndo a lotocópia e o tratamento informático, sem a autorização expressa
dos titulares dos direitos.
Sobre a Educação e Valores ...... ........ ...... .. .. .... ..... .......... : 134
PubliFlx
Av. Agostinho Í\leto N.º 70 1O, 1.º Andar
Sobre o Lugar da Mulher e da Criança ............. :.. .. ..... ... ,138
Tel/Fax: +258 21 314382 Sobre a Convivência Inter-Religiosa: "Somos pa_cíficos, ·
Email: publifix@publifix.co.mz: publifix@gmail.com
www.publifix.co.mz não passivos" ........ ..... .. ....... ......... ................ ... ... .·... .. ........ 141,
Maio de 2015 - Maputo - Moçambique
1 Sobre o Projecto "Aldeias Comunais" ............... ;............. 146

l
Entre-Vistas III
······· ········· ·· ······· ··· ··· ··· ······· ·· ·········· ····· ····· 149 ?,
Ensino e Religião ......... ... ...................................... ... ........ 150
A Frelimo é como um Homem: Transforma-se .... ....... .. 154
Democracia Multipartidária .... .... .. .. ................................ 159
Sobre a Identidade e a Unidade Nacional .. .................... 162

Parte III: A "Quarta Entre-Vistas" .............................. 173


5

Parte IV: A Morte e o Reviver do Ubuntuismo ........ l 75


Este trabalho foi escrito no âmbito do projecto lvloder-
A Morte do Indivíduo
··· ··· ····································!······ ···· 176 nizando Tradições registado no Centro de Estudos Moçam-
A Morte Social
··········· ········· ········ ······································ 183 bicanos e Etnociências [CEMECJ da Universidade Pedagó-
Sobre a ''.Nobreza de Espírito" ...... .. .............................. . 189 gica [UP].
O Proprium do Humanismo Ubuntuista ...... .. ........ .... .. . 192
O Fim? ···· ··································· ·· ·· ·································· 196 A realização do trabalho de campo para este livro em
Nampula foi facilitado pelo projecto Barómetro da Educa-
Referências Bibliográficas ........ .... ................................ 209 ção Básica em Moçambique do Instituto de Investigação
Social e Educação [ISOEDJ, financiado pelo Mecanz'smo de
Anexos Apoio à Sociedade Civil [MASCJ .
O Ensino de .Valares Culturais: Exemplo A produção final deste livro foi financiad a pela Dele-
da Cultura Makuwa (por: Alberto Viegas) ..................... 213 ~ gaçãó de Nampula da Universidade Pedagógica, no âmbito
Reflexão sobre Filosofia Social (por: Alberto Viegas) .. . 223 da realização da Conferência Alberto Viegas: Modernizando
Obras e Títulos Honoríficos de Alberto Viegas .... ......... 23 7 Tradições, na UP Nampula, Maio de 2015, organizada em
1
homenagem ao 1.º aniversário da morte de Alberto Viegas .
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-~ . Dedicatõria

Aos actuais e futuros estudantes de filosofia, que não


1 perdoam - todavia compreendem - as minhas "ma tendên-
cias" sage-filosóficas; espero, com este livro, ter conseguido
r proporcionar uma proposta teórico-metodológica aos que
7

I acreditam e buscam as condições de existência de uma filo-


sofia moçambicana aculturada, todavia carecem de propostas
de fundamentação das possibilidades de uma existência uni-
~~;4"-;· . ··-··~~.
versalocal [ou "globalocal", como escreve Alberto Viegas]
- ::· ,,•
da mesma. Mas sobretudo que saibam resistir às tentações
do tradicionalismo ["filosofia africana dedica-se somente
sobre feitiçaria, curandeirismo, proverbialismo, misticismo,
etc."] e do antropologismo [textos descritivos sobre cultura,
hábitos e costumes, religião, etnia, mitos, etc. com pretensão
de serem filosóficos] quando o assunto na mesa for filosofia
africana, em particular filosofia moçambicana.
- Devemos resi'stfr à idàa da possibilidade etnofilosó-
fica da existência de uma filosofia moçambicana sem filóso-
fos, i.e., sem os seus sujeitos discursantes!

Dedico também ao Mário Viegas, o filho.

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Agradecimentos

É urgente entrevistar o velho.' Porquê mio o telefonas


para ele vir cá? Ainda temos uma hora aqui ... - era o Rogé-
rio Uthui a estimular-me a realizar a que seria então a primei- 9
ra das entre-vistas, aproveitando a estadia na UP Nampula e
no fim de mais uma "reitoria aberta". É mudo pouco tempo
para o que quero! -foi a minha resposta, um pouco vaga . Se
eu tivesse aceite, talvez a quarta das "entre-vistas" se tivesse
realizado ... Quero agradecer ao Uthui pelo estímulo e apoio,
por vezes silencioso, contudo compreensível e providente, a
este projecto de preservação do património intelectual desta
nossa comunidade de destino: Moçambique.
Quando duas semanas depois regressei à Nampula para,
finalmente, iniciar as primeiras "entre-vistas", foi debaixo da
i umbrela das jornadas de investigação social e educacional e
1
sob o olhar condescendente dos meus colegas mais chegados
1
1
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z do ISOED: o suspeicioso e interrogativo olhar de Severino
Ngoenha, a admiração do Manuel Zianja e os comentários
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1
profundamente ingénuos, mas nem por isso pouco geniosos,
de Félix Mulhanga. Obrigado colegas "confidentes" .
O César Cumbe, o tal de" escritas urbanas", emprestou -
me o famoso e moderno gravador, este instrumento prestável
e sobre o qual não se cansava de me perguntar conseguiu
1 trabalhar com ele?- após cada regresso de Nampula. Obri-
1
1 gado, César, por ter sido tão palite no teu discreto pergun-
''
__ 1 tar-de-volta.
Contudo, para chegar ao César, tive que passar pela
1
1 .. colega e investigadora do CEMEC, Emília A. Nhalevilo, a
1 quem agradeço pelos estímulos recebidos, pois, é no CEMEC
1

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José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viega·s

onde se aloja o projecto "Modernizando Tradições" n:o qual etl--··- · vos do teu pai mas sobretudo por teres autorizado espiritual-
contrei muitos pré-textos metodológicos acerca da "necessida- mente esta._.... minha
. entrada na tua rica privacid_a de . Acho que
de e urgência de perguntar aos velhos" sobre as tradições vivas não tinli.as como não me deixar entrar ...
deste país em busca de respostas do ainda-por-vir. Há outras "duplas" que me foram valiosas : nomeada-
A Universidade Pedagógica, Delegação de Nampula, mente Albino Chavale e Orlanda Gomane, Dulce Pereira e ü
foi ex celente em todo o tipo de apoio que facilita a vida nes- Stélia P. Novo, o Simão Capece e o "primo " Agostinho Sa- 0
10 tes. casos : alojamento , sala para as entre-vistas, finalização do catúcua. Eu deleitei-me em deleitá-los com alguns trechos 11 __)
livro, etc. O Mário Jorge Brito, o José Baptista, a Ermelinda: deste texto, enquanto escrevia. O Chavale, sob o pretexto de
Mapasse, o senhor Iapissa e o Felizardo Pedro foram exce- correcção do texto, discretamente, sugeria melhorias.
lentes por terem ido, muitas vezes , para além d.o que deviam
nos apoios prestados . Kina Xocuru! ,
Na verdade, os reais benificiários são os "meus" des- ó
cendentes: Ivandro, Zildo e "mano" Jubel que aturaram o u
A "dupla" Stélia Muianga e Valéria Zandamela-Zava1C '"·,:. -- --. "velho" , cada um à sua maneira. Especialmente ao manoJu-
minhas assistentes científica e técnica respectivamente, ve~~ bel de quem recebi muito apoio, sempre dis c:Eeto e modesto,
tilaram um ar fresco no meio do trabalho árduo e conjunto. durante as minhas crises informáticas, infelizmente cíclicas.
u
De alguma forma elas entenderam a urgência e a emergência Minha profunda gratidão à Queeneth Mkabel.a que tra-
das entre-vistas com o Viegas e, por isso, fizeram o "trabalho (j
tava de me recordar que ainda tinha uma 1 tarefa a cumprir
escondido" , implícito e importante, em momentos e tempos com o velho Viegas; mas sobretudo agradeço-a por nunca o
de inspiração.
ter-se esquecido do conselho que o Viegas dera um dia du- o
Em qualquer escrita há aqueles a quem nós secretamen- rante uma palestra pública: que ela deve aprender a observar
te dizemos : se não fossem eles ... ! Estes "eles" são três estu- que, quando o marido regressa do trabalho ou de qualquer
dantes de sociologia, nomeada~ente o Arão Armindo Come viagem ela não deve "olhá-lo pela cara", porque esta é a mes-
o Adérito Adriano Miguel e o Santos Chaguala que se deram
' ma com que saíra antes, e não altera. Deve sim "olhá-lo pela
o trabalho de transq-ever o texto-mãe do gravador; agradeço barriga", visto que é esta que pode aumentar e diminuir de 1
_.)
todos vocês pelos olhares duvidosos que me lançavam e pe- volume, consoante as circunstâncias, indicando se comeu
los vossos domingos e noites a "trabalhar". Ao Bento Rupia algo ou tem fome 1 • Pois é, a cara é sempre a mesma, mas a
coube a sorte de tê-los apresentado. barriga pode estar cheia ou vazia e, para além disso, a alegria
e a felicidade, se de algum lado provêm, é mesmo da barriga ...
Ao "irmão" Mário Alberto Viegas, que teve a grande
" sorte " de ser o filho único e amigo confidente do seu pró- 1
Cfr. Viegas, A.:. O Ensino de Valores Culturais: O Exemplo da Cultura
prio pai "jovem-antigo", mas EJ.Ue teve o "azar" de- ouvir o Makuwa. Título da palestra durante a Conferência sobre os Saberes
Locais e Educação organizada pelo CEMEC em Maputo, Setembro de
velho chamar-me também, por vezes, meu filho!. Obrigado 2009. Viegas foi o convidado para proferir a comunicação de i:i.bertura.
Viegas-filho por teres gentilmente facilitado o acesso aos argui- Decidí incluir o texto completo na parte final deste livro, dada .a .sua
importância.
José P. Castiano

Finalmente um n 'dakhuta, khanimambo aos colegas da


UP pelo Mitsein heideggeriano ...
lntroducão
'

Um espectro paira sobre a filosofia africana contem-


porânea2 e, por consequência, a filosofia moçambicana: é
o "fantasma" das tradições africanas expressas pelos seus 13
guardiões e embaixadores culturais - os "filósofos" pela sa-
gacidade. Estes são a'}ueles que usam a riqueza da sua cul-
tura-de-base para interpelarem à humanidade inteira . O seu
público é glocal ou glocalocal. Isto é, interpelam o global a
partir do local, interpelam os problemas globais enriquecen-
do-os com soluções locais. Trazer o seu saber para o espaço
público e académico, é o-que-há-por-fazer da filosofia con-
temporânea moçambicana, se esta tem a pretensão de sê-lo
com legitimidade; é o maior desfio da imer-subjectivação . E
1 Viegas é apenas o início .
Quando o assunto é a sagacidade filosófica, como ve-
remos, não se trata de buscar ou explorar a sabedoria de
1

l"-,~-- ·- um analfabeto ou semianalfabeto: pode ser também ele um


letrado . Não se trata apenas de ocupar boras de conversas
com um velho: embora geralmente seja nele que encontra-
mos a sagacidade. Não se trata de fazer entre-vistas com um
homem: há muitas mulheres que o são porque geralmente
são observadoras e guardiãs da cultura. Não se trata de um
1
1 homem ou uma mulher que vive no campo, numa vila recôn-
1 dita, longe da civilização: o sagaz ou a sagaz pode também

l viver na cidade e cultivar o urbanismo, como aliás é o caso


de Viegas.

2
Parnfraseo Karl Marx e Frederich Engels no início do tex to O
--1 .. __ '
Manifesto Comunista: "Um espectro paira sobre a Europa: o especcro
do comunismo ". Algumas vezes a palavra alemã G'espenst rrac.luz-se por
"fancas1na", no lugar de "espectro".
i
11
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José P. Castiano ·--·11 Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação co m Vi egas .J


0
Enfim, quando aproximarmo-nos aos sagazes filósofos, )
Há uma "longa marcha" ainda por fazer para o cresei: - ·-
mento da filosofia africana em geral, e da moçambicana em trata-se ge. desenvolver a dimensão horizontal [nossa .iriter j
particular. Todavia, ela, a filosofia africana vai crescer en- -relaçã~ entre as culturas locais] da interculturalidade fil<:>sÓc _)
torpecida se não escutar os "colegas" da sagacidade filo- fica, junto à dimensão vertical [nossa relação com o Qcidente
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sófica e se não for aos espaços públicos onde eles cultivam ou o Oriente], esta última dimensão já bastante desepv~lvida
_)
e divulgam a sua filosofia . E quando nos aproximarmos dos no ambiente académico africano. Para que a filosofia afric~­
na cresça e se legitime enquanto tal, a "grande escolha:' est~
)
14 sagazes, nós os filósofos profissionais vindos das academias, 15
entre tecer um diálogo intercultural simultane~mente hprk )
devemos desmistificar a ideia de que corremos em busca de
"fundamentos últimos" ou de quaisquer espiritualidades por zontal e vertical ou perecer.
trás e por debaixo da africanidade da nossa filosofia. Deve- O espectro da sagacidade filosófica que teima em pairar )
mos ir ter com os sages para debater temas contemporâneos sobre a filosofia africana tem, porém, uma longa história de )
e estar atentos ao discurso crítico por eles cultivado . mistificação e desmistificação de si mesmo. TemI,Jels e Oruka
~

É imperioso, para o crescimento da filosofia africarf~, sã~, talvez, os marcos fundamentais desta história: da mistifi-
desmistificar-se esta ideia de buscar seus "fundamentos tra- cação do espectro da tradição [o primeiro] e da tentativa de
dicionais", ideia que uma boa parte de filósofos africanos sua de;mistifi.cação [o segundo]. Oruka, porém, ,re-mistifi-
defende, como Ondó> por exemplo, colocando-se na linha cou porque perguntou aos sages sobre temas que ele achava
tradicionalista da filosofia africana fundamentada por Anta serem somente eles os competentes: sobre os e_spíritos, sobre
Diop e outros afrocentristas. as lógic~s po~ detrás da cultura lua e outras do Q~énia. Ele,
com as suas entrevistas, empurrava-os para - isto é, cpnde~
Trata-se sirri, de ir discutir com eles assuntos contem-
nava o~ sages a - serem eminentes. c~mpetentes s~q~e su"as
porâneos da experiência intercultural africana com o pen-
tradições, e quase nada sobre temas contemporâneo11 que
samento, valores e instituições da modernidade ocidental e
apoquentam a África e o Mundo.
oriental. Mas mais do que isso, trata-se de construir espaços
de intersubjectivação donde dar-nos-emos conta dos olha- O que nos deve interessar nos sages é, todavia, interro-
res críticos e vigilantes destes coleg.as filósofos, guardiões das gar assuntos contemporâneos sobre ~ experiência africana
culturas locais . Trata-se, sobretudo, de descentrar o debate com a modernidade. Concomitantemente, o meu piscar de
no seio da filosofia intercultural que se põe a si própria fron- olho para o Viegas é sobre assuntos da nossa historici,d,ade
teiras ao dirigir o seu olhar de interacção para o Outro do co"ntemporânea moçambicana. E ele responde a esses assun-
Ocidente ou Oriente, e pouco ou quase nada para a diversi- tos_a partir da sua cultura makuwa. Porém, paulatinamen~e
dade nas culturas filosóficas locais. fui descobrindo que a cultura makuwa era, para ele, aP~nas
um (mas um bom) pret~xto par~ atingir_o univer~ª14~~f!Pº<
3
Ondó, E.N . (2001) : Sín tesis Sistemática de la Filosofia Africana. 2ª edición Deixei-me surpreender, nas entre-vistas ~om, Vi~ga~, _pelq
. revisada. Alternativas/ ediciones carenas . Centro de Estudios Africanos , seu olhar crítico expresso por debaixo das suas . histó~ias ' e
Universidad de Murcia . Espanha.
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\ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas


José P. Castiano

provérbios locáis. Deixei-me também deleitar pelo seu mé- O livro fecha com dois artigos do Viegas, sendo um so-
todo de interpelar a universalidade inspirando-se na cultura bre a filosofia de educação de valores e um outro sobre filo-
makuwa ... sofia ·social africana.

Basicamente, este livro aproxima-se aOdera Oru~a pela . Sinto-me na obrigação de dizer o seguinte acerca do
via do método da sagacidade por ele usado e afasta-se dele motivo que me levou a escrever este livro:
pelos conteúdos dos quais me interesso em saber dos sages. - Sobre os saberes locais só oiço por parte de colegas
17
16 Não estive à procura de mundos antigos e nem ulti:a-passa- na academia apelos para a sua "integração", "consideração",
dos. Estou à prÔcura de passados-vivos e suas respostas e "inclusão" ou ainda "valorização" no contexto da educa-
propostas aos problemas de hoje. Como disse algures, busco ção. Os pedagogos fa;em mais ruído neste sentido. Todavia
nos sages soluções locais aos problemas humanos de hoje e poucos "fazem" os próprios saberes locais; ou seja, há muito
do futm~o. poucos intelectuais que na realidade os incluem, integram,
Por isso, pergunto-me, na primeira parte, sobre as ra- ·valorizam na sua acção pedagógica ou nas aparições públicas.
zões que me levaram a entrevistar Viegas. A breve resposta E os poucos que optaram por esta abordagem - e aqui tiro
é simples: encontrei nele a sabedoria filosófica. Na segunda o chapéu aos etnomatemáticos moçambicanos - preferem
parte transcrevem-se as entre-vistas sobre temas contempo- extrair o saber deixando o sujeito deste saber de fora. Foi
râneos da nossa 'historicidade moçambicana: desde a Inde- contra isto que me revoltei na obra Referendais da Filosofia
pendência até à democracia multipartidária, passando pela Africana por trás do conceito "intersubjectivação" .
religiãb. Na' terceira e última parte interrogo-me sobre as Neste livro tento contribuir para fazer sobressair o su -
razões da morte social e da falta de "nobreza de espírito" .1 _ . . ~ jeit.o por trás do "informante" ~u do "fa~tasma" na filosofia
sobretudo dos intelectuais. Isto sempre com Viegas como o .._ ,_ - :-~ ...,.; africana, que volta a tomar aqui a categoria Munthu.
exemplo do engâjamento intelectual pelas causas que abra-
çou; enfim, como exemplo da intersubjectivação.
1
Termino a terceira parte com uma proposta de moder-
1
nizar a filosofia prática do ubuntú; modernizar significa, neste
contexto•, fundamentai: uma nova ética ubuntuísta que lhe tire
do gheÚo '~m que se meteu voluntariamente por cllltivar va-
lores 'qu~ t~m a sua lógica numa perspectiva comunitária de
'\lida; consequ'entemente redutora; pois, quando já vamos num
conte~to d.é."viver juntos" numa nação, mais cosmopolita e
Ôhde 'â. êtica . de tidadania é chamada, o ubuntuismo já não
ehcoiitra resppstas adequadas.
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Parte l:
PORQUÊ ENTRE-VISTAS COM VIEGAS?

Logo de início, uma pergunta óbvia: porquê entre-vistas


19
com Alberto Viegas? A resposta mais próxima à pergunta é
a seguinte: cada encontro com ele, cada vez que eu o escl).-
tava, ficava fascinado pela sabedoria que ex~bia. ~pquanto o
escutava, era como se eu fosse ao encontro d~ mió.4a_ própria
ignorância sobre os segredos do mundo qu,e nos '.~pdeia: : Ele
..
: •• - .. # • ...,. . .

tinha a capacidade de expressar pensamentos myito ÇOtl1;


plexos escolhendo palavras mais simples qu~ er_à:. possível
ouvir de alguém. Recordo-me que, a primeira e a únic.a vez · , .)
que o filósofo moçambicano Severiric) Ng~e~ha ·o esc'ú tara ~
a dissertar sobre o tema O Ensiná d~ °Val;rJ~ C~ltur~i~: :o
Exemplo da Cultura Makuwa nu~a ~onferêncià' oigani~~~
: . f-\ . -

da pelo CEMEC sobre Saberes Locais e Ed_ucaç5o ; nô -full


da sua apresentação e também fascinad~ com:à suá'·r~tóri-~~)
aproximou-se do Viegas e disse-lhe, co~ um ~orriso 'abêrt~;
-Ô Viegas, acabaste de me converter para a etno-filosó/;,a!"

A Sagacidade em Viegas

Mas era mais do que fascínio o. que eu sentia .. Eu tinha


a certeza que aquelas respostas que dava às_qtiestõ.es que lhe
colocavam, em público ou em privado, tinham um sentido
muito profundo, se assim quisermos, quase comparáveis' áo
que Platão sentira em presença de Sócrates. O motivo prin---::-
cipal para as entre-vistas foi esse impulso p~atónico, e sobre-
tudo orukiano, em registar ou "resgatar" [como se diz agora
'Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
José P. Castiano

futuros sobre os sábios e os sages - e aqui colocamos o Viegas


no brasileirismo] os saberes locais e endógenos, para poste-
exemplarmente - deverão poder mostrar qual é, nos contos , o
riormente servirem de matéria no ensino do nível universitá-
texto-produto que é transcrição de "contos populares" do
rio e outros, mas sobretudo na educação dos moçambicanos
interior das culturas particulares e quais as partes dos textos
mais ~i.ovos. A minha intenção, porém , não era apenas para,
constituem utopias dos seus sages individualmente.
depois das entrevistas, introduzir estes saberes em forma de
"apêndices" ou de mais um "exemplo local" na estrutura e Por outras palavras, as entre-vistas reproduzidas na se-
21
ordem científicas formais pré-estabelecidas pelo cânone pre- gunda parte deste livro poderão servir, futuramente, como
20
tensamente universal. Como iremos notar no texto, há pen- material de "discursos de primeira ordem" para alimentar
samento crítico no substracto das suas respostas, substracto "discursos de segunda ordem" - sendo estes últimos de na-
este que, vindo a ser matéria de análise e lucubrações de for- tureza filosófica - segundo se entende numa perspectiva da
ma sistemática e na perspectiva intercultural, poderia cons- hermenêutica africana. Há, portanto, muitas perguntas; mas
tituir-se em um embrião do referencial da intersubjectivação sobretudo há análises que se podem e devem ser desenvolvi-
no tratamento da filosofia africana em Moçambique. Sobre das em cima das ideias expressas nos textos das entre-vistas,
esta matéria já tratei num dos meus livros anteriores. 1 desta feita numa perspectiva da filosofia africana em geral , e

Uma segunda razão para as entre-vistas resulta do facto a moçambicana em particular.


de o Viegas não ter sido somente um sábio no pretenso sen- A terceira razão prende-se com o facto de o Viegas ter
tido africano, nomeadamente o de ser uma "biblioteca viva". sido mestre de uma retórica que fascinava seus ouvintes de
Muitas vezes, porém, por trás do sentido biblioteca viva está tal sorte que se prendiam às suas palavras, sem sentirem can-
a idefa de que "não sabe escrever" ou "não escreve". Viegas saço; era um exímio cultor de um método próprio e inovador
éscrevia e o fazia muito bem! Ele cultivou um estilo de es- .. : quando dissertava sobre temas diferentes que se propunha
crita p~culiàrmente africano: escondia o comportamento das · .~.,- abordar e ajudar-nos a iluminar; de facto, era um orador e
pessoas e os valores societais que pretendia criticar através escritor muito cuidadoso e metódico: punha o peso neces-
dos seus contos e fábulas por trás dos animais que "falam" sário em cada palavra e não era de se perder em adjectivos .
e emitem juízos. Estes abundavam nas suas histórias, como Mesmo quando introduzia piadas nos seus discursos ,
aquela sobre O que nos dizem certos animais? Caberá, no estas encaixavam que nem uma luva no tema em causa. Em
entanto, aos analistas literários de forma geral, e aos filóso- numerosas ocasiões nos sentimos desconcertados pela sim-
fos em particular, a tarefa de, futuramente, diferenciar en- plicidade com que esmiuçava assuntos complexos e _delic_a-
trce o texto que é fiel aos contos populares da sua cultura dos da nossa vida, usando como pretexto de aprox1maçao
de base makuwa e confrontá-lo com as partes do texto que ao tema 0 ângulo da cultura makuwa . O seu método era usar
reflictam a utopia de Viegas, como pensador. Ou seja, estudos a cultura de base [makuwa] para se dirigir ao nacional e ao
universal.
1
Saberes Locais na Academia: Condições e Possibilidades da sua Legitima- ... _ i:

ção. Editora Educar, CEMEC, UP. Publifix, Maputo


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.· . . .· .
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação corri Yiegas

Mas há uma quarta razão pela qual estas entre-vistâS"' ser analfabeto da vida, visto que no ambiente rural nada
com o Viegas tiveram lugar [por esta estar em último ·lugar saber,á fazer para a sua sobrevivência e para o . seu .. bom
aqui, não significa, todavia, ser a menos importante; de fac- ~~Íacionamento com os membros da comunidade onde for
to, é a razão fundamental]: ele reflectia e abordava sobre te- a viver. :./

mas contemporâneos da política e da sociedade a partir da Sendo assim, onde é que deve estar o centro de vali;
sua utopia axiológica, muitas vezes, como dissemos acima, dação dos saberes? Até aos tempos actuais os saberes têm
22 por trás dos animais. Assim, criticava comportamentos erra- sido validados partindo do ponto de vista do moderno,
dos, não verdadeiros, a partir do que considerava deve!:_~ser isto é, do lado literário. Para este lado, todo aquele que
os valores ideais sob os quais a comunidade e a sociedade ~ão sabe ler e escrever, ou seja todo aquele que não tem
moçambicana deveriam conviver. Para além disso, Viegas, conhecimento literário, é considerado como sendo um
como filósofo, endereçava os seus textos a toda uma comu- analfabeto. Esta forma de analisar e definir os fenómenos
sociais corresponde à verdade no seu sentido absoluto? J
nidade universal e não apenas ao seu povo makuwa. Aliás""'°o.<
Perante tal situação das coisas, há toda necessidade dé
povo makuwa e as suas diversas formas de expressar os v:tlo-- .. :. ~~
existir uma estreita aliança entre os saberes literários e os
res societais, constituía o place - no sentido empregue por
saberes socioculturais, um casamento entre' O rtiodernb e o
Molefi Asante de "lugar", "local" ou "ponto de partida" de
tradicional, tomando o ensino ou a educação num sentido
vantagem epistemológica - a partir do qual Viegas se dirigia de globalocalidade, isto é, ter em cohsideração o aspecto
a toda uma comunidade humana universal para expressar o global e local, não apenas um contexto ."
seu ponto de vista epistémico e axiológico. Sob este ângulo
podemos afirmar que Viegas era sobretudo um homem de
De imediato, três aspectos deste escerto ~os conduzem
reflexões filosóficas de natureza ético-comunitária e social
para o carácter universal do seu adressat. O primeiro, está
com incursões políticas sobre assuntos contemporâneos que
mesmo no título onde se ressalta que a cultura maku\s.;a ser~
o inquietavam .
ve apenas de exemplo para olhar o ensino de valores para
A título de exemplo, veja-se a citação que se segue, reti- um contexto mais amplo da educação. o
segundo, ressal-
rada do seu texto O Ensino de Vt1,lores Culturais do qual já ta a forma como ele, comparativamente, define o ·conceito
fiz referência 2 : do analfabetismo: contextualizando-o ·de forrha -a:rialítka. O
[ . . . ] "Portanto, para o homem rural o analfabeto é terceiro, olhando para o sentido mais 'global, dó ;local, que __)
aquele que não sabe fazer estas coisas reais e necessárü1s inclui a criação de um conceito próprio dó ·Viegas ~ ;o de ._J
'1
na sua vida e que não conhece as normas morais da socie-
dade . O saber ler e escrever nada diz para o seu viver lá
"globalocalidade". o
Nas entrevistas dirigidas por Oruka no cont~xto d~ sage, u
no ambiente geográfico concreto em gue ele se encontra
philosophyabuntlam t~mas-corn ênfase da esfera ~~t~físi~~- -
enquadrado. Neste contexto, um sábio universitário pode J
ca, ou ~eja, temas ligados à Deus, à religião, aos · ritv,ais d,~
2 morte, etc. Eis, ainda hoje, uma tendência que _noto entre _?.,S
O texto completo está inserido, em anexo, neste livro.

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u
0
José P. Castiano
\Filosofia Africana: da Sagac idade à lntersubjectivação com Viegas

jovens filósofos africanos que vão ao encontro dos "velhos". Falei com o velho Viegas na 5 .ªFeira antes de ele nos
Estes são tendados a indagar os velhos concentrando o seu "despedir)) [isto é, falecer]. Eu venho falar consigo para sa-
interesse cognitivo em somente informar-se sobre o que en- ber do programa do funeral, porque não posso faltar. Quan-
tendem ser tradições, costumes e rituais que respondam ao do nos encontrássemos, ele me tratava por "meu filho"- Ele,
questionamento sobre como se fazia antigamente? Mesmo sempre que publicava alguma coisa, tratava de me informar.
que procurem abordar sobre temas contemporâneos, nas Uma vez, vendo que ele traúa debaixo do seu sovaco um
24 questões que estes jovens filósofos colocam os velhos para conjunto de folhas dactilografadas, mas sobretudo cheias de
rabiscos à mão, eu lhe pedi que m'os mostrasse e ele, de for- 25
darem respostas, está subjacente a intenção de saber sobre
o aspecto de como se fazia antigamente responder-se-ia à ma educada, respondeu: "Eu escrevo para educar aos meus
questões contemporâneas, ou seja, como faria a minha avó filhos e gosto de ed~car quando tenho alguma coisa escrita e
perante este facto? Estes podem ser problemas de carácter dizer - está aqui [o livro], vai ler.1 Por isso espera até que
individual [como é o caso de doença] , de fórum familiar [tais este livro [referia-se o manuscrito que trazia no sovaco]
esteja pronto e publicado para eu te oferecer". Dias depoú
çomo divórcio , infertilidade, etc.] ou de índole sociocomu-
ele me hgou e me perguntou se eu possuía 100 M eticais:
nitário [pensemos nos conflitos, na baixa produtividade, na
"Meu filho - disse ele ao telefone ainda - encontrei na
fome, na gestão populacional, etc.]. E, nisto tudo, fazem uma
rua o meu livro à venda [referia-se ao livro Educação Tra-
confusão tremenda entre o passado e o ultra-passado. Pois,
dicional Makuwa : Ritos de lmáação publicado pelo Cen-
aquele ainda exerce influência sobre os nossos valores e ac-
tro Catéquico Paulo VI, Anchilo, Nampula 2012] e cada
ções enquanto o ultra-passado já o faz na forma e conteudos
exemplar custa 100 Meticais". Veio pessoalmente busrnr o
de contra-valores.
dinheiro e foi comprar o livro para me oferecer. Desde então
ando sempre com o livro e está aqui hoje comigo .
Educador Humanista "Universalocal"
Este episódio, parecendo banal, mostra , porém, o quão
profundamente humano e descomplexado era o Viegas.
Começo, de seguida, pelo retrato humanista universa-
Pois, a ele, todos, num gesto de reconhecimento da sua sim-
local do Viegas, depois abordar a sua "sagacidade filosófica"
plicidade, chamavam "professor", "velho Viegas", ou " papá
para, num ponto mais abaixo desta parte, enquadrá-la no
cômputo geral dos debates que animam a filosofia africana Viegas": Nunca ensinava ou falava de assuntos sobre os quais
contemporânea. antes não tivesse reflectido profundamente; e esta reflex ão
era acompanhada pela escrita; escrever, para ele, era como
Quando, a 2 de Junho de 2014, estava à espera para des-
o acto de conceber uma "carta axiológica" para educar ao
locar-me à Çatedral de Nampula, onde iria assistir o decorrer
seu povo makuwa e moçambicano ; ensinava, sem humilhar
das cerimónias fúnebres, aproximou-se de mim um dos fun-
0 próximo, investindo bastante energia em evitar colocar-se
cionários da Residencial da Universidade Pedagógica -
0
., na posição de um sábio - que, de resto, era - e colocar ao
senhor Iapissa - que narrou o seguinte episódio:
)
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
.)
u
outr o numa posição de aluno - que, na verdade, érani'o-; · · de 1>aída seguro para afirmar-se na moçambicanidade ·e na
africanida_,d,$!. Aliás, este aspecto metodológico de apelar ao
E nsinava p elo exemplo não apontando o dedo p ara "tu fa -
zeres o que e u digo ". Mas fazia sempre questão de divulgar universâl, baseando-se nas ofertas da sua •cultura origin~h, é
),
o que sabia o u sobre o resultado das suas reflexões. Era uma obje;cto de reflexão algures nas entre-vistas. ~
; ~
espécie de um peregrino palestrante sobre os segredos dos Um segundo ex emplo: na comunicação sobre · 0 "Pa-
assuntos que a nós nos poderiam parecer complex os e em- pel da Universidade no Desenvolvimento da Comunidade ~
26 baraçosos de abordar.
na Universidade Pedagógica em N ampula (2013), o Viegas 27. )
1

Como afirmei acima, de fa cto, Viegas era um sábio; ma·s contou uma história que bem testemunha a sua sagacidade
filosófica: chegar ao universalismo a partir de um ponto onde
1
mais do que isso, era um sábio filosófico . Discutirei estas ca-
tegorias mais adiante, ao interpretar as suas ideias com mais ele tinha os seus pés bem firmes. Este ponto firme é a sua )
cultura makuwa. A história trata de. um macaco que, n.{im í
cuidado e à luz dos desafios da filosofia contemporânea tra- )
dicional. Entretanto - um alerta preliminar e, aliás, a rua;: :- ··- belo domingo pela manhã, julgou ter salvo um peixe que
vida e pensamento demonstraram isto - teremos que re~u~ - . •- aparentemente se estava a afogar na água ~m que nadava.
_)
sar permanentemente a tentação de apresentá-lo ou reduzi-lo Entretanto, para nós humanos racionais , é claro que. o pGi-
)
à categoria de utn "sábio makuwa" . Eu era um dos que assim xe estava a "afogar-se" somente na óptica do pobre maca- --"

pensava antes das entre-vistas , confesso. Notei, ao longo das co, por este não saber nadar, mas sóbretudo/ 's upõe-s·e, não
entre-vistas que, sob a capa da sabedoria e contos makuwa raciocinar. Para "salvá-lo", o nosso macaco retirouOo peixe __)
'
ele ia crescertdo em mim como um sábio inter- e transcultu- da água do lago para a terra firme. E o macaco ; ao ver o
J
ral, e mesmo com a pretensão de atingir uma dimensão uni- peixe mexer-se fora da água abrindo o máximo a boca na
versal nas respostas que dava aos desafios contemporâneos tent ativa desesp~rada para respirar, pensou que este tratava
J
da política e cultura moçambicanas. de ·lhe mostrar o seu contentamento e que aquele gesfo de
abrir a boca lutando pela sobrevivência, indicava um sorri- _)
Um exemplo sobre este último assunto: no seu livro
so. Tendo-se afastado do peixe, satisfeito porquê·acàbàra .de )
Lunga: À Guisa de um a Retrospectiva ele conta como, afli- I·
"salvar uma vida", mais tarde, quando regressava, o macàco
to, recebera ajuda de um cidadão da religião muçulmana,
decidiu passar pelo local para "visitar" o seu amigo a quem
após esta ter-lhe sido recusada por um "irmão branco ca-
"salvara" do afogamento pela manhã; Dá-se conta que este
tólico" como ele próprio fora . Diz ele que este episódio lhe
morrera. Mesmo assim se afasta assobiando, com·a sua cons•
fez " transcender as fronteiras da côr da pele, da etnia e da
ciência tranquila porque, pensou, "pelo menos morreu· feliz ·
pertença religiosa," para simplesmen te buscar uma dimen-
o coitado do peixe". Não é necessário dizer que ~ macaco
são universal do humanismo. Assim, a cultura makuwa era
representa a universidade e o peixe a comunidade .. Ou me-
para ele apenas um ponto de partida seguro para falar,s em
lhor: O Viegas chamava aos unlversitáriosp or .ign ofuhtes
etnia, raça, género e nem religião, para os nossos corações
por procederem como "macacos"' p~lo men~s ·p~la f~rma
e nossas mentes . A cultura makuwa era' para ele o ponto

\
•'·I

"
José P. Castiano
'F,ilosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

como se comportavam diante das comunidades . Compare-se


sua vez, em "espontânea" e "dirigida" . Aí compreendi que,
a sua definição .de "analfabeto" na citação do seu texto nas
o que Viegas tratava em adaptar e adaptar para a retórica
páginas precedentes. ~
da sua oratura nos espaços das universidades, dos ministé-
Ambas histórias mostram o sentido crítico, acompanha- rios e dos colóquios internacionais quando era convidado ,
do por um humor são, que ele detinha ao transmitir o seu era o que ele entendia por educação tradicional "informal
saber e suas reflexões sobre os fenómenos: ·simples, lógico e dirigida" ["aquela que, sem distinção do género, era de igu al
28 deixava espaço paú a auto-reflexão - senão como interpre- modo dirigida para a transmissão das normas e valores d a 29
tar o que ele define como sendo "globalocalidade"J? convivência comunitária " , escreve Viegas no livro Educação
Para além disso, Viegas, mais do que transmitir os seus Tradicional Makuwa dos Rapazes e Raparigas]. Portanto ,
pensa~entos, obrigava aos seus ouvintes (e obriga ainda hoje ele esforçava-se por universalizar o seu particular.
aos seu.s \.eh.ores) a pensarem por s\. mesmos, a sU.!:\:YteenC..e- Este esforço, aliás, fica bem patente no seu artigo R efle-
rem~se de forma crescente ao longo · da sua oratura e, neste xão sobre Filosofia Social onde argumenta que os africanos
caso, do se~ texto escrito. Este é um asPecto que notaremos possuem também História e Filosofia, mesmo que recusad as
nas entre-vistas,
pelo Ocidente. Ele afirma que a filosofia african a caract eri-
Admirado pela atenção que os seus ouvintes sempre lhe za-se por estar "aliada à prudência, virtude que nos ensin a a
prestavam, uma vez lhe perguntei "qual era o seu segre d o ter cautela nas afirmações e nos actos" . No que diz respeito
para despertar tanto interesse quando falava?" [os filósofos particular à filosofia makuwa, outro intento que procura d e-
cha~am a es~e do~ por retórica], ao que ele, em resposta, monstrar, Viegas afirma que estas.e manifesta pela aplicação
sorriu par~ mim, dizendo: é a cultura makuwa, meu filho.' A de "provérbios, adivinhas, contos . e fábulas na resolução d e
form_a con:o eles dizem as coisas e transmitem os seus valo- ····"',.._ ~ litígios que ... surgem entre os homens em geral." O leitor
res E! .a minha fonte de inspiração. l ..:...'.. ... .... _: pode ler directamente este artigo inserido neste livro . P or-
tanto, aqui o Viegas tenta demonstrar a universalidade e a
Evidentemente que ' na altura , eu na-o perceb.1 b em o
que queria dizer . A resp os t a, essa, so- mais
. tarde apareceu particularidade - a universalocali"dade - da filosofia afri-
.
cana e a de um povo concreto, o niakuwa .
diante d~ mim, tão claramente, quando li o livro que o se-
nhor Iapissa, o tal da Residencial Universitária da UP N - Estas posições não são obras de um sábio somente; são
tl . .d am
pt a, tim1 amente me entregara. Ele escreve, neste livro obras do que chamamos aqui por sagacidade filosófica. Ou
sobre a educação tradicional makuwa dividindo -a por ''" ~ seja, a sua retórica era produto de uma reflexão profunda ,
t l" "t ' , in sim, de uma decisão reflectida e metodológica , tomada por
arma e ormal , . A educação informal subdivide ele, por
cima das categorias por ele encontradas na educação tradi -
3 A e~pressão "globalocalidade" é usada por Viegas num d
contidos em anexo t . N h os textos cional makuwa. É a arte de se tornar um sábio universal sem
" 1 l"d d " E nes e 1ivro. goen a p refere usar "glocal" ou
g oca i .ª ~ . u uso o ~ermo "universalocal " e "universalocalidade" ter deixado, no entanto, de ser fiel à uma cultura particular
como ad1ecnvo e substanuvo respectivamente . -··" •de origem , onde, repito, tinha os seus pés firmes .

t '_)
-· '"
)
Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vie gas
José P. Castiano : >;;

Ele ensinou-nos que a umca forma de entrarmos n ó -·-- de _uma filosofia africana ou de várias "culturas filosóficas"
universal hoje, é com os pés bem firmes nas nossas culturas africanas?' E,"ainda mais do que isso, coloca-se º 'problema
par ticulares. Estas devem proporcionar-nos referências bá- das condiçÕes e das possibilidades da produção _pe uni dis"
sicas, sem as quais entramos no dito mundo global, logo de curso filosófico que se quer e pretende africano , _o u seja, que
partida, argumentativamente a perder ou perdidos. A refle- pos~a dar con~a da ambiguidade - se toma;mos ~i;nlinha de
x ão consciente sobre a metodologia e sobre a retórica sob as conta a "oscilação" entre o dito moderno e o dito tradicional
quais descansam as culturas ditas tradicionais africanas é um - com que esta filosofia se vê confrontada para a. validação
30
dos grandes desafios dos jovens filósofos africanos contem- e legitimação públicas do seu discurso .
porâneos, e deve tomar-se a sério. Este desafio coloca-se par- Se e~trarmos pela via da unicidade na cultura filosófica
ticularmente com mais acutilância àqueles que se dediquem ~fricana torna-se evidente perguntarmo-nos .sobre as_.condi:
a encontrar novas roupagens na dita sagacidade filosófica ini- ções e as possibilidades da sua existência ú11Íca e unificadíJ..
ciada por Odera Oruka; sobretudo porque hoje os próprios-- ·~: .~ ..~ Trata-se de uma questão do propium da filosofia africana no
sucessores desta escola filosófica parecem começar a pô-la d ci - -,, ~~ universo da filosofia em geral, ou seja, da sua particulárídade
lado sem razões aparentes ;4 e identidade na construção de um saber que se conv:encio-'
Por isso se impõe, a partir das raízes e luzes lançadas nou designar por filosofia. Então se coloca o problema ~a
pelo jovem-antigo Viegas, reflectir sobre a questão "filosofia historicidade da · filosofia africana no âmbito dà . cons:th1ção
africana " hoje. A vida e o pensamento de Viegas, mais do do pensamento filosófico na História da húmanidade_, ·_·
que oferecer, impõe-se-nos como a ocasião de renovação do Como iremos ver, alguns filósofos afriea"nos bus<:~ es~a
discurso sobre a filosofia africana com roupagens universa- especificidade no estatuto libertário desta :ljlosofia, sehdp a
locais, e, sobre tudo, como possibilidade e condição da in- busca da liberdade a sua génese e o fio-condutor ao.~longq
tersubjectvação. dos sé-culos. Outros justificam a especificidade da>filci'sófj_a
afrkana a partir do campo da cultura milenária e dan·esp~C·"
tivas tradições. Os que defendem a especificidade o\Tc histo-
Filosofia ou Filosofias?
ricidade do 'pensar filosófico africano - tanto os ·que· subli-
nham à liberdade, com os que o fazem pela via da cultuiá
A questão filosofia africana hoje, particularmente quan- - ·orientam a sua busca para um certo sentido e significado
do pensamos no seu ensino como uma cadeira universitá- r .
qué sejam comuns aos africanos. Buscam o espírito unifica-'
ria, já não é se ela, a filosofia africana, existe ou não . Assim dor cÍue justifique um lugar próprio da filosofia africanà
colocada, a questão já se encontra desgastada. O problema no conce~to da filosofia mundial, mesmo que esta busca se
de hoje é o âa sua uniciâade ou diversidade, ou seja,fala-se justifique ultimamente -"-p glos probJemas_de furido_"_ou p~
los "substractos mentais culturais ou filosóficos" - como
4
Conferir em O I nt er-Munth u, livro a publicar pelo autor, no capítulo
sobre a Escola de N airobi. ' É a questão da sua sistematização trazida para o terreno didáctico.

\
")
!_ .

José P. Castiano F.'ilosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

pretende Ngoenha no seu livro sobre o fenómeno da biopo- No entanto, seria ousado e, de certo modo , exagerado
lítica em Moçambique6. falarmos de "clivagens" linguístico-epistemológicos entre es -
Portanto, não se\ ra.ta de evidenciar uma cronologia da tas duas tendências, que levariam a uma espécie de cisão de
história do pensamento filosófico africano, senão de sub~e­ vida ou morte. O facto de, infelizmente, as grandes obras-
ter esta cronologia ao crivo dos problemas que se avizinham . fundadoras da filosofia africana terem sido escritas nestas
problemas que estão a caminhar do futuro para 0 presente: duas línguas não é suficiente para classificarmos ambas, na
Ou 's eja, uma presentificação de utopias. base disso, como sendo "paradigmas" ou "correntes" da fi- 33
losofia africana. Um estudo mais aprofundado no interior
._ ~e: to~avia, optarmos pela via da sua diversidade, que destas duas tendências.poderia deixar surgir muitas aproxi-
alias e mtnnseca ao próprio debate filosófico, então encon-
tramos, consequentemente, diversas formas de sistematiza- mações temáticas que se cruzam entre elas e poria rapida-
ção. A_ ·di~isão: que parece mais óbvia é aquela que obedece, mente de lado uma classificação do género, isto é, baseada
em primeira lmha, ao carácter regional-linguístico, .tirando em línguas coloniais.
o· [des]pro_veito do facto de que a colonização europeia so-
No caso da filosofia africana, dita lusófona, pode efecti-
bre o contmente africano, em muitos casos, fez-se coincidir
vamente notar-se que a língua não constitui um elemento su-
com a c.o lonização epistémica. Assim se fala de uma filosofia
ficiente que determina a direcção futura do debate e muito
africana anglófona, francófona e, ultimamente, lusófona. A
primeira vista parece tratar-se da língua como 0 denomina- menos o seu Roten Fade na ligação com o passado, não o ul-
dor comum para a unificação das filosofias. Ou seja, por trás tra-passado. Como escrevemos (com Ngoenha) no primeiro
das línguas francesa, inglesa e portuguesa procura-se derivar número d'O Curandeiro: Revista Moçambicana de Filoso-
um_ deteArm~nado proprium destas filosofias africanas a partir fia, "a Coruja da Minerva chegou tarde nos países africanos
da 1~flu:nc1a recebida das respectivas metrópoles europeias. :-- de língua portuguesa, porém não tarde o suficiente para não
Assim, a filosofia africana anglófona se atribui um certo -. _: fazer parte da construção de um-novo saber filosófico africa-
empiricismo resultante, obviamente, dos debates e inclina- no". A chegada "tardia" da filosofia africana, pelo contrário,
ções filosófi~as da ~otência colonizadora [Inglaterra] e pelo determinou para que esta, nos países lusófonos, não fosse
facto de multas filosofas provenientes dos países africanos refém dos já "envelhecidos" temas sobre a sua exis.t ência ou
anglófonos terem sido treinados naquele contexto ou terem não e sobre seu pretensioso tradicionalismo e relação com
seguido teorias produzidas naquele contexto. Da mesma o passado, ternas esses levantados pelas etnofilosofias e suas
forma atdbµi-se uma certa inclinação para debates identi- congéneres africanistas .
t_ários-existencialistas à filosofia africana francófona devido
ao ~egad_o dos d~bates na França em torno da sua língua, Como escreve Groys no seu tratado dedicado ao que
nac10nal1dade e certo sentido revolucionário. chama por "antifilosofia", o filósofo é um homem simples
da rua , que se perdeu no mercado global das verdades, e
agora procura encontrar uma placa de saída .7 Para o caso
Cfr. N~oenha, S.E. [2013]: Intercultura, uma Alternativa à Governação
6

Bzopolztzca? Publifix/ISOED, Maputo . p.23 . 7 Groys , B. [2013]: Introduçiío à Antifilosofia . EDIPRO . São Paulo. p . 8 .
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

da :filosofia africana, Ngoenha refere-se à sua característicâ '"···· As quatro . direcções .ou tendências orukianas, então
de ser "incerta", "inacabada", "instável" e mesmo de "equi- anunciadas! §;;í..o: a :filosofia profissional, a filosofia política
vocidade" como sendo o mais importante e precioso nela. É ideológica,. a etnofilosofia e a sagacidade filosófica. Escusa-
uma :filosofia em perigo de morte ou que vive perigosamente, mos dizer que ele próprio - Oruka - pretendia anunciar,
escreve eleª; ou ainda, como dizia Mário Viegas, especifica- naquela Con/erênáa, o nascimento da sua própria corrente,
mente para o caso da :filosofia moçambicana, ela sofreu mui- a sage philosophy. No entanto, foi e é esta sistematização que
34 tos "KOs" ao longo da sua curta existência. Embora fosse é seguida em muitos países africanos - assim também pelas 35
geral para a filosofia em África, este carácter precário e peri- poucas universidades europeias em que se lecciona filosofia
goso da sua existência e crescimento foi ainda mais doloroso africana - para ensinar ou abordar, ou melhor classificar
. . .
nos países africanos de expressão portuguesa; isto determi- as correntes. da filosofia africana. Até certo ponto, estas cor-
, "··:
nou a sua chegada demasiadamente tardia por estas regiões rentes .são tratadas ' como sendo "escolas de filosofia". Não
. .
linguísticas.
-~.-.;· ~ ...::.: ··~ ---- ......... esqueçamos que, no entanto, naquela época e contexto em
Não obstante esta classificação da filosofia africana se~ - . :. •• que Oruka escreve, havia uma suspeição g~ral sobre a exis-
guindo as regiões repouse sobre um pressuposto formalmen- tência ou não, em África, de um pensamento parecid~ coll).
te correcto [línguas, cultura formal colonial], no entanto diz :filosofi~. Portant~, estávamos perante uma reacçãó africana
muito pouco sobre os seus conteúdos específicos e, de con- ao cepticismo europeu acerca da sua exist~ncia e perÚn,~nc~i1
sequência, ainda menos sobre seus métodos. à qual Oruka e os seus contemporâneos procuravam. con-
trapor respondendo afirmativamente. Resulta daí, o factc;i de
Concordo com a crítica levantada contra Oruka, segun-
estes textos terem sido comparativos e se preocupassem el.Jl
do a qual, a então tornada "clássica" divisão da :filosofia afri-
encontrar semelhanças com elementos e direcções das :fil,o-
cana por ele defendida, em quatro direcções ou tendências
sofias nascidas em contexto europeu - Oruka mesmo com-
[trends], é mais de natureza metodológica que sobre os con-
p~ra os sábios que entrevista com Sócrates pelo factb, de este
teúdos que essas mesmas correntes aportam para 0 debate
nunca ter posto em papel o que pensava.
no interior das filosofias praticadas em África. Todavia é pre-
ciso ter em mente que, quando Oruka apresenta as quatro Desta forma, o que é importante fixarmos nesta divisão
tendências da filosofia africana, em Agosto de 1978 no 16.º orukiana é a tentativa em superar, sem no entanto deitar fora,
Congresso Mundial de Filosofia em Dusseldórfia na Alema- a etnofilosofia, particularmente do modo como foi propost..a;
nha, referia-se simultaneamente aos conteúdos e métodos por Tempelsem Bantu Philosophy. Corria-se o.risco,temfa
)

sem no entanto preocupar-se em distinguir especificamente Oruka, de a crítica unanimista de Hontoundji - que não tole~
uns dos outros. o
rava facto de Tempels tentar impingir uma antrop.ologia de
carácter colonial disfarçada e revestida em termos de :filosofia
africana ["uma antropologia com pre tensões filosóficas"n os
8
Cfr. Ngoenha, S. [2013 ): lntercultura, Alternativa à Governação termos dele] - poder impedir o desenvolvim~nto de uma
Biopolítica? ISOED/Publifix. Maputo. p.43.

\ .J
·~ilosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vieg8s
José P. Castiano

filosofia africana que tivesse em conta os "nossos Sócrates" hábitos. Enfim, admite-se também que a literatura e a ora-
.ou sábios, mas sobretudo o risco de se matar a dimensão filo- tura sejam consideradas fontes de extracção da filosofia no
sófica que ·se encontrava por trás das sabedorias contextuais. contexto específico africano.
Portanto, .os Jour trends de Oruka devem compreender-se Numa recente publicação, W. Lajul 10 fala em criticai
no quadro daquele debate, o da necessidade de "provar" a dimensions, referindo-se ao que comummente se considera
existência autónoma duma filosofia africana. Repito, tratava- como correntes na filosofia africana. Ele prefere o termo "di-
se, para Oruka, de não deitar fora os nossos Sócrates por mensões críticas" porque, na sua óptica, a filosofia africana 37
36
causa da crítica unanimista hountondjiana. tem a ver com reflexões crítiéas sobre a "exp~riência africa-
À esta tentativa de sistematização seguiram-se outras na" relativamente ao seu passado e presente. Assim, filosofia
procurándo encontrar "filosofias" de diferentes rumos, po- africana é um "programa" com vista à uma construção e re-
!ém revestidas da mesma ancestralidade, a partir de uma construção, à reinvenção do passado africano e à criação de
mesma mãe: África. Em African Philosoph:y: ln Search of uma gnosis para chegar à soluções de problemas concretos
its Identity, Dimas Masolo começa por caracterizar o debate que afectam a vida e a existência em África. Deste modo jus-
em torno da filosofia africana como uma reacção às dúvidas tifica-se falar de "dimensões críticas" e não de "correntes",
do Ocidente em relação à nossa capacidade de pensar racio- segundo Lajul. Para ele, as dimensões críticas da filosofia
nalfnente. Daí que ele sistematiza o debate sobre a filosofia africana são divididas em tradicional e moderna - trata -se
africana, condiciona mesmo a sua génese e identidade, como de um conceito que nos recorda o que Oruka chama por
sendo- respostas à esta inquietação visceral expressa no dis - "culturas filosóficas".
curso sobre a ciência. Masolo chama a isso the rationality de- Nesta óptica de Lajul, as filosofias tradicionais africa-
bate [debate de racionalidades] e, a partir desta base, divide '." nas seriam aquelas que, duma ou doutra forma , põern muito
as respostas em logocentristas e emotivistas, classificando-as ... .: peso na questão "herança"; ou seja, uma verdadeira filosofia
como dois sistemas ou campos em luta pelo controlo sobre que mereça ser africana, deveria buscar as suas raízes no con-
a identidade que a filosofia africana deveria tomar 9 • Escusa texto próprio cultural africano, ou por outra, na forma espe-
dizer que os emotivistas aceitam a singularidade da filosofia cífica africana de pensar o mundo e agir sobre ele, sobretudo
africana em desenvolver-se a partir de outros elementos do antes de ser contaminada pelas formas exógenas de saber e
pensamento - desde que não fossem estritamente orienta- agir. Assim, a fonte da filosofia africana deveria ser procura-
dos pelo logicismo - tais como provérbios, lendas, contos, da nas ditas tradições africanas, isto é, nos seus provérbios,
9 cantos, mitos, dizeres, etc. que as animam.
Dimas Masolo escreve: The birth o/ the debate on African philosophy is
historically áúociaied with two related happenings: Western discourse on
A/rica and the African response to it. Linhas depois acrescenta: At the
center o/ this debate is the concept of_reason, a value which ,is believed to
stand as the great divide between the civilized and u,;civilized [savage],
·the logical and the mystical. ln: Masolo, D. A. [1995]: African Phzlosophy .. 10 Lajul, W .: [2013]: Africcm Phzlosophy. CrúicC1l Dimensions. F o unrnin
in Search o/ Identity. East African Educational Publishers. Nairobi. p .l. Publishers. Oxford, UK.
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viega s

j
...
Por seu lado, a filosofia africana moderna, diz-nos Laju l; mesmo, alguns filósofos africanos, por intuírem esta descren-
é aquela que deriva as suas lucubrações do que chama "pro- ça, orientam a sua escrita e saber procurando demonstrar
blemas do presente" africano . O passado já não teria muito a sua existência a partir da perspectiva de sua comparabili- . ......,
a dizer a nós os modernos, segundo esta dimensão crítica. dade "[igualização]" com as filosofias eUrbpeiás. Entendem
Assim, esta dimensão ocupa-se em analisar a África política, como sua missão subjacente retrazer determin.ados tenias 'e
. social, económica e religiosa de hoje. Adoptando esta pers- categorias da filosofia africana pretensamente· similares colli
38 pectiva, nos haveria de interessar encontrar soluções para os os temas e categorias elaborados no contexto das culturas 39
problemas, por exemplo , da democracia liberal, da educa- filosóficas ocidental-europeia e americana desde os mitos;
ção, da economia do tipo liberal assim como do desenvolvi- oráculos, até aos elementos e categorias da racionalidade.
mento ou ainda sobre as possibilidades de uma convivência Quando, por exemplo, se trata de mitos, os igualitaristas
inter-religiosa no nosso Continente hoje. Mais do que des- tentam demonstrar, a todo o custo, que "na Europa também
pender energias na busca da compreensão filosófica do ~real existem mitos", ou seja, que estes não são exclusivos para os
a partir das "raízes" e "heranças" egípcias ou dongons ; só -·:, .· africanos . Da ~esma forma, quando se trata de categorias
para mencionar algumas civilizações africanas antigas. De- pretensamente ocidentais - exemplifi9.uemos a "substân-
senterrar esqueletos dos armários etiópicos ou das pirâmides cia" em Aristóteles - os igualitaristas procúrani, desta feita,
faraónicas não é e nem procura ser o apanágio da filosofia encontrar elementos semelhantes no interior dás ctJturas fi-
contemporânea africana. losóficas dos povos bantus, iorubas, e por aí em diante. J
Por baixo da dimensão crítica da filosofia tradicional Abstraindo-me de qualquer juízo . de valor, ;~nso .
que )
africana encontramos , agora sim, trends ·[tendências] tais pode ver-se algo positivo neste empreendim~nto: o esforç9 _)
como e etnofilosofia, a sagacidade filosófica e a filosofia li- igualitarista-comparativo pode pôr à disposição dos filósofos )
terária ou artística. Por seu lado, por baixo da dimensão africanos alguns subsídios para aproxipiar-se à universalida-
crítica da filosofia moderna africana encontramos a filosofia de da filosofia e, para além disso, constituir-se como . bom
nacional-ideológica, a hermenêutica, a filosofia profissional pressuposto na busca de uma filosofia intercultural, c;omo
aliás é o caso de Odera Oruka na medida em que este de- )
e o que ele chama por equalisation philosophy [filosofia da
"igualização " ]. fende a intuição como o conceito básico das epistemologias
adjacententes à todas culturas filosóficas do universo . Sobre
Esta última tendência mencionada - a filosofia africana
este assunto, a intuição e o seu papel na filosofia do mínimo
da igualização - faz justiça ao seu próprio nome: é caracte-
em Oruka, volto a desenvolver mais no livro O Inier-Mun~
rizada e informada pela ideia de que os europeus, no fundo,
não acredítam que exista uma filosofia africana; e, por isso thu [0 Inter-Sujeito].
'\!.

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José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Sagacidade: Uma Sabedoria Proverbial ou Filosófica? Aqui demos exemplos de provérbios, mas também pode-
ríamos estender para mitos, lendas, contos e todas estas expres-
sões que pensamos que nos ensinam muito mais sobre a existên-
. Serão provérbios [e outras formas de expressar o pen-
cia do que wna grande lição discursivamente bem elaborada.
samento fundan)ental por via de contos, adivinhas,· axiomas,
etc.] uma forma de filosofar tipicamente africana? Esta é Apesar deste cepticismo de Zizek quanto aos provér-
uma questão que o cidadão c;on:mm africano, mas sobretudo bios, existem várias.posições de filósofos africanos que mos-
estudantes iniciantes de filosofia, se colocam. Filósofos pro- tram grande persistência em regressar ao "o que é nosso" 41
fissio~ais e outros académicos poderiam achar esta questão em termos de filosofia, referindo-se à capacidade "nata" dos
- que cada ano se renova - bastante ingénua por de~ons­ africanos em expressarem a profundeza do pensamento so-
trar cer.Eº tradicionalismo, já ultra-passado. No entanto, 'ela bre a sua própria experiência no [e existência com o] mun -
é somente ingénua à primeira vista. Uma verdadeira atitude do circundante através de provérbios, mitos, contos e outras
filosófica africank, penso, deveria estimular-nos para pe~sar formas de oratura. Pensa-se que, por trás ou no substracto
sobre âs causas da persistência desta pergunta no nosso meio. destas formas de oratura, podem deduzir-se sistemas profun-
Ou seja, perguntar-se: porque é que cult~ralment~ descon- dos de pensamento comparáveis aos grandes sistemas filosó-
fiamos que, por trás dos provérbios e estas outras formas de ficos do Ocidente.
expressar sabedoria, exista "algo de filosófico"?
O expoente máximo desta linha de pensamento é T em-
Slavoj Zizek, embora não fosse o seu tema principal pe1s que chega à conclusão de que o ser é para a filosofia rne-
tratar de provérbios como forma de filosofia, expressou, to- tafísica europeia como a/orça vital o é para os povos bantu.
davia:, algum cepticismo em relação · aos provérbios em po- Esta conclusão é deduzida por Tempels a partir da análises
derem constituir-se como fontes para extrair qualquer con- ~ de dizeres, de mitos e sobretudo das ditas crenças dos ba-
teúdo filosófico : Ele denomina provérbios como uma das . ,.,....; lubas do Congo-Belga em amuletos e outras formas "tradi-
categorias de muitas "tautologias profundas" que inundam cionais" de expressarem o seu pensamento mais profundo.12
b nosso quotidiano e que usamos "quando não sabemos o
Um outro exemplo é o próprio Oruka, mas também
que dizer; mas queremos mostrar que somos profundamente
Sodipo e outros filósofos de Kinshasa, que se puseran1 a en-
sábios'-'. ·De facto, como ele diz, tautologias ta,ís como "vida
trevistar pessoas nas aldeias e cidades - não somente velhos
é vida", "tudo o que nasce tem que morrer" ou "um dia vais
pagar pelos teus erros" ou ainda "quanto mais alto se sobe, e homens, mas também jovens e mulheres - que eram por
maior são às consequências na queda", podem ser atribuídas eles seleccionados como sendo sábios, para deles "extfiür"
a qualquer acontecimento ou fenómeno com que nos depa- conteúdos filosóficos.
ramos nas nossas vidas 11 •

11
Zizek, S. [2013]: O Ano em que sonhámos perigosamente. Relógio
D' Água. Lisboa, Portugal. 12 Tempels, P. [1945]: The Bantu Philosophy. Présence Afrinaine. Paris.
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Dessas investigações saíram resultados interessantes" de tecnologias] ou não, da qual dependem,0s r~sidentes da
que pretendem mostrar o quão filosófico podem ser os afri- comunid_açle~m que vive porque ele é o guardião dos segre"
canos, particularmente os iletrados. Muito mais além do que dos [oraculares] mais profundos desta mesma comunidade.
mostrar a existência da filosofia nestes meios tradicionais es- Mistérios e surpresas ou aconteciment~~ 4ie~perados que
'
pe1~avam, com investigações deste tipo, fundamentar e, em podem afectar a vida da comunidade, enco~i:'ram g~ralrrt.ente
muitos casos mesmo, fundar uma filosofia africana .a partir respostas no sage. No entanto, assevera-n6s Q;uka, ;,_ãq ~e
42 destas manifestações e espaços tradicionais da entrega desin- pode confundir um sage com um profeta; este tem ..como 43
" -'
teressada ao saber. dom principal pré-dizer o futuro de uma de~e~minada
comunidade; a profecia pode ser feita por.simples ~divinh~~
Para o caso de Oruka, o livro Sage Phzlosophy: Indige-
ção ou baseada na experiência, isto é baseada na. observaçã~
nous Thinkers and Modern Debate on African Phzlosophy,
da sequência de acontecimentos. Por exemplo, da ~hu~a que
publicado em 1991, pretende ser um "clássico " da exposi-
se segue aos. rel~n;ipagos, ou da probabilidad~ de . 'um-p~ríodo
ção do pensamento "genuíno?' dos africanos que ainda não ~~ ·~ . - ......
:•_
de seca por ausência de chuvas .
tinham recebido demasiada influência filosófica ocidental e '
nem da vida racionalizada imposta pelos estilos de vida da Por seu turno, a categoria sagacidade filosófica, que nos
modernidade. Pois , neste livro, para além da transcrição de interessa, diz respeito, para Oruka, unicamente àqueks sages
partes dos diálogos [eu chamo por "entre-vistas" devido ao preocupados pelos problemas éticos e empíricos fundamen-
carácter conversador, mais do que de perguntas o~ questio- tais, que sejam relevantes para a continuidade da respectiva
nários] que Oruka foi levando a cabo com os sábios, também comunid~de e que, por via disso, demonstri::m capacidade de
estão contidos textos de filósofos africanos "profissionais" oferecer soluções alternativas aos problem~s fundamentais
- . parte que no livro é intitulada por "crítica" - como P. O. dela mesma. Portanto, preocupações éticas estão no , subs-
Bondurin, D . N . Kaphagawani, Lausana Keita, L. Outlaw, tracto da sagacidade filosófica, segundo a concepção orukia-
A. S. Oseghare e incluindo um texto do austríaco C. M. Neu- na [e eu acrescento as preocupações didáctico-metodológi-
gebauer. cas]. De facto, colocar as preocupações éticas no centro das
preocupações profundas de um sage é o · mesmo que dizer
Por trás desta aparente formalid~de pura de Oruka, em
que o homem, ou melhor' as condições existenciais, são o
incluir sábios endógenos e filósofos profissionais numa mes-
objecto primordial das suas lucubrações. Os provérbios e ·o
ma obra, está algo mais profundo e copernicano na forma de
resto seriam axiomas que pretendem interpretar ou prescre-
olhar para a força e energia destas sabedorias da vida: a sua
ver, em primeira linha, o comportamento e os princípios da
sagacidade filosófica. Pois, para Oruka, é preciso diferenciar
acção dos habitantes da comunidade ou sociedade em qüé
um simples sage de uma pessoa que possua sagacidade filosó-
vive o sage. O Q_ue se pode chamar de "coerção" qui ess·es
fica e estes dois, por sua vez, não devem ser ~onfunaidos por
provérbios e outras formas exerce~ em cada membro p'âra
um profeta. Um sage é uma pessoa sábia numa comunidade
a sua observância no seio familiar, comunitário e nã esfera
que pode ser alfabetizada [em termos de educação formal e

\
José P. Castiano \filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação c o m Viegas·

civil, pode também conceber-se como sendo formas de ga- "a relação entre homem e mulher na família e comunidade"
.rantia da harmonia social na respectiva comunidade. Aliás, dada a suposta superioridade masculina, etc ..
Emile Durkheim já nos ensina isto. Parece que aos sages só se colocam questões metafisicas
Oruka, nos seus escritos, faz questão de sublinhar que sem.se importar, aparentemente, pela actualidade da vida de
estes sages filósó:ficos existem em todas as sociedades.porque uma comunidade-mor política: a vida e história da nação .
sem' eles, qualquer sociedade corria o risco de desmoronar-se [Neste passo, tenho que lançar uma ressalva e não deitar
44 toda a culpa por cima de Oruka; e a razão é simples: ele teria 45
por conflitos internos ou devido ao doITJ.Ú!Ío de outras sociedades .
sobre da. A soci~dade não saberia defender-se moralmente e manifestado a preocupação de "a vida ser muito curta" e,
com dignidade se não tivesse os seus próprios sages. E não por isso, ele sentia que· o tempo da sua própia vida não seria
interessa, segundo ainda Oruka, que eles ou elas ·sejam clas- suficiente para que pudesse abordar todas as questões que
sificados por "filósofos" como Lenine, por "guerreiros" como se propunham à sage philosophy. No entanto, a lacuna por
Ódinga, ou por "chefes do estado" como Nyerere, ou que te- ele levantada continua]. A mesma questão - ou seja , a da
nham sido profissionalmente um agrónomo como é o caso de actualidade do pensamento dos sages em relação ao rnun'do
_)
Amílcar Cabral, ou ainda um físico nuclear como o foi Cheik [político e axiológico] de hoje - pode e deve ser colocada
) também à recente publicação feita pelo Padre e filósofo l~zio
Anta Di'op.
,J
,r..• Ou seja, é o que está implícito nesta afirmação', um sage
Bona na sua obra MuntuísmoD. Não terá o munthu algo a
dizer a um ~undo cada vez mais global que se deixa consumir
filosófico africano não tem necessariamente de ser analfabeto
por problemáticas biopolíticas, se .não apenas sobre proble-
e que; por via disso, não tenha sido ainda submetido à uma
educação formal ocidentalizada. Ele pode também ser um mas espirituais e da ética comunitária?
letrado. O que faz com que os intelectuais, sobretudo os filó-
sofos africanos que se preocupam com. as questões contern -
No entanto, se deixarmos para trás questões metodoló-
porâneas africanas, não creiam na capacidade de os sages
gicas da sagacidade filosófica e também as questões aborda-
formularem discursos em torno das suas experiências com
das sob~e a diferenciação entre um simples sábio, µm profe-
a modernidade em África é a confusão que fazem em não
ta e a sag~cidade filosófica, e penetrarmos nas questões que
distinguir o passado do ultra-passado, como aliás i ~1 me referi
se colocam para eles responderem nestas entre-vistas, pode
perguntar-se com uma certa justiça: os temas escolhidos im- algures .
plicam que os sábios não seriam capazes de formular juízos Há tradições que assim as chamamos não porque es-
próprios e fundamentados sobre assuntos políticos contem- tejam ultra-passadas, mas porque simplesmente perten-
porâneos? De facto, as temáticas abordadas por Oruka nas cem ao passado quanto à sua génese e origem, apesar de os
suas perguntas andam em volta de assuntos como:. a concep-
ção sobre "Deus como um ente supremo", "á -~arte como u Bano, E. [2014]: Muntuísmo: A Ideia da Pessoa na Filosofia Aj1·1cana
. • •..:.. ·.l:.
Contemporânea. Universidade Pedagógica, Editora Educar, Séries
um fenómeno natural" e como afecta a vida das pessoas e Maxixenses , Maxixe .

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'I '
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivaçãq com Vie gas

princípios adjacentes, sobretudo os de natureza axiológica, ' ".,.._,_ · As "escolas de pensamento" filosófico moçambicanas; .
continuarem a "viver" e serem funcionais para as comuni- ainda-por:vir~ somente merecerão este nome se e quando fo-
dades africanas, dado garantirem um ambiente de harmonia rem capazes de aurir-se do espírito por trás dos valores 'e dás
e solidariedade social. Por exemplo, em algum momento no práticas tradicionais endógenas. E sobretudo a~ Jegitimação
texto das entre-vistas inseridas neste livro, Viegas mostra o teórica e societal dependerá do quão capazes serão estas es~
quanto a chegada paraquedística do multipartidarismo num colas se deixarem iluminar por configurações teóricas que os
46 ambiente rural, não alfabetizado, cria mais desavenças do desideratos e substractos culturais tradicionais parecem su- 47
que o espírito de "viver juntos" em harmonia social e num gerir-lhes. É um empreendimento que os filósofos profissio-
clima de não-violência. E, por isso, no interior de determi- nais moçambicanos-terão que fazer, não sozinhos a''. partir dos
nadas tradições pode descobrir-se um grande potencial para seus gabinetes e departamentos universitários, senão que
aferir soluções práticas, mas sobretudo para possibilidades em diálogo intersubjectivo com os sages. da nossa:praça.
interpretativas relativamente ao nosso futuro imediato e lon- ;-' '"'.~ ··--·· Deveremos olhar para este diálogo como um empreen-
gícuo, enquanto uma comunidade de destino, como maçam- ; - .·. ·• dimento para o enriquecimento das nossas reflexões fi.-
bicanos. Sobre este ponto de modernizar tradições abordarei losóficas académicas' mediante o risco que corremos de a
mais adiante com exemplos ilustrativos. filosofia continuar empobrecida e culturalmente insípida.
Mais do que isso, os intelectuais são chamados a terem O clamor aqui é a necessidade de o intelectual rp.oçarp;,
a suficiente e necessária humildade intelectual, para se de- bicano ser responsável pela construção d~ qu~- ~hariiei p~r
leitarem com a · sabedoria [não necessariamente filosófica] "espaços de intersubjectivação" 14 • Defendo, por isso, qu,e um
que esses sages possuem e têm por comunicar. E neste em- saber-moçambicano, ou por outra, um discurso sobre escolas
preendimento, a abertura para a oralidade é de extrema im- de pensamento moçambicano a construir, estaria mutilado
portância. Se continuarmos a basear-nos, seja para as nossas de espírito, e de consequência mutilado de sua legitimação
aulas , seja para as sessões de aconselhamento nas chamadas no espaço público e académico, se ele mesmo continua'r a ter
"consultorias estratégicas" para o desenvolvimento , apenas o Ocidente como Deus e não considerá-lo apenas como um
em livros, então teremos que estar ccrnscientes de estarmos a saber como outro qualquer elaborado em outros contextos
deixar, na periferia, uma boa parte da produção intelectual para responder aos próprios desafios .
local sob a qual se poderia construir e constituir [novos] re- Oruka teria iniciado, no contexto queniano, este movi-
ferenciais endógenos. E, para isso, mais uma vez, não neces- mento da nova filosofia africana que toma a sé.tio a cultura
sitamos de estar "zangados" com o Ocidente. Já perdemos tipicamente filosófica do interior das culturas. No entanto,
energias intelectuais suficientes em manobras de "de-cons-
trução" , de "adaptação", de "esclarecimento" de quão feio é 14 Cfr. _Castiano,_ J.P .: [2010]: FilosoM_ Africana: Em Busca âe
Intersubjectivação. Ndjira. Maputo. Veja também: Castiano, J.P.
e " como age o inimigo", o pretencioso Ocidente. Precisamos
[2014]: Saberes Locais e Academia: Condições e Possibilidades de sua
de descobrir, isso sim , a beleza e a feieza endógenas. Legitimação. Editora Educar/ CEMEC. Universidade Pedagógica,
Publifix, Maputo.

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José P. Castiano \ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas ·

neste ímpeto de "interrogar aos mais velhos", teremos que o contexto estritamente cultural em que ele se inscreve como
levar a sério as críticas levantadas pelos próprios discípulos "sábio" reconhecido pelas pessoas imediatamente próximas,
de Oruka. Um deles, Owakah, teme que Oruka tenha prati- para se redimensionar, primeiro à uma escala nacional ou
cado uma filosofia bastante "permissiva" e, por isso, consti- nacionalista e, depois à escala maior universalista .
tuir uma ameaça para o futuro da filosofia africana. Isto por-
E Viegas tem, de longe, esta característica-base, no-
que, no seu entender, a metodologia usada por Oruka para
meadamente a de ter transcendido o contex to restrito da
48 entrevistar aos sages "convida" metodologias das ciências 49
oratúra e da literatura populares makuwa, se tivermos em
sociais, sobretudo a antropologia, para o interior da filosofia-.
linha de conta o seu pensamento e prática discursiva . Aliás ,
This is un-philosophical, conclui ele. Owakah vê em Oruka
o seu público era a universalidade que encontramos em qual -
também uma certa imprecisão de critérios na sua definição
quer ser humano, embora falasse a partir do referencial axio-
do que deve ser filosofia africana e, a partir desta, emergem
lógico e epistémico que mais dominava: a sua própria cultura
dificuldades sérias na identificação de um verdadeiro sage
makuwa.
qÍJe não se confunda demasiado com umfolk sage [sábio no
sentido popular]. Uma outra razão importante para elegê-lo como filoso-
ficamente sagaz diz respeito ao facto de Viegas ter desen -
volvido uma reflexão metodológica independente em. torno
Foi Vieg~ um Sage Filosófico? da sua retórica, corria aliás ele próprio responde algures ao
longo das entre-vistas. Quando lhe perguntei sobre o "se-
gredo" de ser tão eloquente, ele não perdeu tempo em res-
Pot trás dos temores que Owakah propõe em não se ponder que desenvolvera o seu método de organizar e expor
confundir um. sage com um profeta, expostos anteriormente, :: as suas intervenções em público tornando frutífera a forma
está a pergimta crucial para nós: foi Viegas apenas um sábio proverbial e tradicional makuwa que é usada para responder
popular ciu·a ·dimensão do seu pensamento e ·sua acção te- às inquietações axiológicas que os jovens colocam ou sen-
riam ultrapássado esta categoria por formas a estarmos legiti- tem, particularmente durante o período de aprendizagem ,
mados em classificá-lo como um filósofo sagaz? Para interro- nos ritos de iniciação. Ele prosseguiu explicando-me que o
gar com Zizek: não serão, os contos, fábulas, dizeres, etc. do ·seu papel foi "somente" ter levado este método tradicional
Viegas, simples tautologias ou axiomas que de filosofia nada de construir a oralidade aos grandes palcos nacionais e inter-
p_os.sue~?, .T erá me1:ecido Viegas um lugar na prateleira dos nacionais. E que o seu mérito reside no facto de ter aclop__!:ado
qpe doravai;ite v~mos considerar filósofos moçambicanos ou e adaptado os valores por trás das fábulas e dos provérbios
não? contextualizando-os segundo as características do público
ao qual de cada vez se dirigia. Portanto, Viegas desenvolvera,
J>ara mim ficpu clarn que o critério fundamental para um
conscientemente, uma espécie de técnica própria de abordar
sábio ser cón.siderado por filosófico, pelo menos n~ contexto
os variados temas sobre os quais era constantemente solicita-
da culturalidàde africana, é o facto de ele poder transcender
·~ ., do para revelar o seu pensamento .
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Um sábio pode ter, e muitas vezes tem, um dom natural "''~--., coerente e humana" foi a característica escolhida por Oruka!par~
para fazer discursos belos e eloquentes; neste cas·o; porém, "eleger" um s4bio na cultura filosófica africana porque, como ele
não se trata apenas de um dom. Porque quando há uma re- bem dizia, ~ão era possível que uma comunidade classificas-
flexão cuidada em desenvolver um método e técnica espe- se alguém em possuir wisdom se esta pessoa não tivesse uma
cíficos de retórica, estamos em presença de uma sagacidade conduta pública e privada humana e justa. Uma pessoa ·s em
filos'á:fica. Num simples sábio existe uma certa eloquência ubuntu não é pessoa, comporta-se como se fosse um anii:nal
espontânea e muitas vezes surpreendente; contudo, num fi- - escreve Desmond Tutu para ressaltar o critério ético para 51
50
lósofo sagaz, como é o caso de Viegas , existe uma certa pre: a classificação de um sábio na perspectiva ubuntuísta.
visibilidade crescente de dados que acompanham ao ouvinte Seguindo este critério ubuntuísta de selecção, isto é;
em direcÇão à conclusão ou à mensagem principal; esta "pre- com base em atributos éticos exigidos de um filósofo~ po-
visibilidade do ouvinte" torna-se possível por haver um méto- demos imaginàr ~ lugar que seria reservado a u~ N 'ietzsch'e
do reflectido de abordar os assuntos; embora ambos [o sábio -~·~, -- -,. , que se revoltava contra todos os valores ou a um Diógenes
e o filosoficamente sagaz] abordem os temas com elegância e ; que irritava a todos ao meio-dia à procura d~ ' um hon}em na
eloquência, acresce-se ao filósofo a capacidade de, antecipa- praça pública de Atenas com a sua lanterna'. O Sócrates, que
damente, ter reflectido sobre o melhor caminho [ascenden- como se suspeita, tornara-se filósofo da praça para éVitar as
te!] na sua argumentação e a de alimentar novas pistas para intempéries da sua esposa Xantipa, também dificilinente'séria
a reflexão em torno do tema. E isto fazia Viegas com muita considerado como tal num meio rural africano, ·pelo ~iiriples
elegância metódica. É certo que o seu passado de professor facto que a sua vida era interpelar pessoas ·coni-pergün:tás
primário, como ele confessa nas entre-vistas, o conduziu a incómodas para o seu gosto. Da mesma forma, sÓ•patâ:cÍar
este tipo de reflexão. mais um exemplo, nos seria difícil seleccionar Aristóteles
Uma última razão pela qual defendo que Viegas merece como filósofo, sabendo que ele foi autor da ·Política e d tu-
estar na prateleira da sagacidade filosófica reside no facto de tor principal de Alexandre, o homem que mandou invadir'· o
ele, como aliás já estava bem vincado na criteriologia adian- Norte de África ...
tada por Oruka, ter possuído o mof'al commitment, tanto E eu acrescento: um sábio não precisa ser necessaria-
na sua vida pessoal como na passagem de testemunho para mente um "herói", mas precisa de ser profundamente justo.
o público que o ouvia. A moralidade, o civismo, a justiça, o A sabedoria inclui não somente o conhecimento, mas tam-
respeito e a humildade constituíam todos uma cadeia dos bém e sobretudo uma atitude e acção orientada pelajusteza.
valores básicos, como pessoa, e fazia deles o tema principal No fim de cada dia, na almofada, teremos que ter a certeza se
das suas interrogações. Ele se bateu para que estes valores tr~tamos a toda a gente duma forma justa. Isto nos tranquili-
fizessem pane do conteúdo social dos_seus ensinamentos, za. Portanto o "saber saber..2'_[eonheçinu~rüo] se-submete ao
mas antes lutara para que eles fizessem parte de si mesmo, "saber viver com os outros" [ética].
como pessoa, na sua conduta pública. Uma "conduta pública

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José P. Castiano \ Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Aculturar a Filosofia e Modernizar Tradições Ora, o que tenho a pretensão de chamar "crítica cultu-
ral" deve, na ideia do grupo de investigação sobre a moderni-
zação de tradições, começar por indagar o próprio conceito
Uma razão, digamos mais prática, para a realização cultura. E este questionamento deconstrutivo deve ser feito ,
destas entre-vistas com Viegas tem a ver com .a fase ini- primeiro, a partir duma perspectiva filosófica intercultural
çial de um programa de pesquisas que pretensiosamen- para, logo de seguida, olhar, numa perspectiva de reconstru-
52 te denominamos "Modernização de Tradições" alojado ção e, finalmente, para as possibilidades e .as condições do 53
no Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências. Este seu uso enquanto conceito operativo, desta feita no quadro
programa pretende ser continuidade, na sua componente duma filosofia cultural.; torna-se, por isso, urgente entregar-
"prática", da filosofia da intersubjectivação proposta no li- mo-nos ao laborioso empreendimento de fundamentar me-
vro Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação 15 e todologias apropriadas para uma investigação crítico-filosó-
continuada, numa versão mais resumida, no livro Os Saberes fica sobre assuntos e fenómenos que interessam ou deveriam
Locais na Academia 16 • interessar à filosofia africana contemporânea no seio dos sa-
No centro do projecto está a urgência e a emergência da ges, considerando as suas culturas filosóficas.' ª
necessidade de o discurso académico-filosófico - o tal dis- Para o caso vertente do contexto contemporâneo mo-
curso que Oruka populariza como sendo de "filosofia africa- çambicano, seria perguntarmo-nos sobre os dossiers da de-
na profissional"-, disponibilizar alicerces ou fundamentos mocratização, como sejam, o papel dos partidos políticos
das possibilidades e condições para uma crítica [inter]cultu- como possibilidade de representação dos interesses das cul-
ral baseada em materiais endógenos e, por outras palavras, turas e povos, o intricado processo de reconciliação, o ecu-
trata-se de, a partir do discurso crítico cultural de primeira ~· menismo no contexto tradicional africano e as perspectivas
ordem [desenvolvido por sábios culturais ou da sagacidade do seu aprofundamento, o conceito de educação e suas in-
filosófica no qual servimo-nos do Viegas como exemplo], tricadas ligações com as culturas modernas e tradicionais e ,
emergir paulatinamente um "discurso de segunda ordem" enfim, o estatuto axiológico da educação e da política. Estes
[Owakah] em sede dos filósofos profissionais 11. temas nos interessavam sacar do pensamento do Viegas e o
leitor os verá sobejamente reflectidos nas entre-vistas .

15
Castiano, J.P. 2010. Ndjira, Maputo. 18 Sobre este assunto de "culturas filosóficas" consultar sobre tudo o de-
16
Castiano, J.P. 2013 . Editora Educar, UP/CEMEC.
bate que Bruce B . J auz levanta em Philosphy in an African Place (Le-
17
Esta ideia é recurrente em Owakah, por formas que é, pela primeira xington Books, 2009 , UK) . Onde - pergunta-se ele apoiando-se em
vez aprofundada na sua tese de doutoramento sob O~~ka cujo título é Derrida - a questão do direito à filosofia tem lugar? É a questão do
A Critique o/ the Culture o/ Philosophy: Challenges and Oportunities for place onde a filosofia se cultiva a as condições e possibilidades necessá-
Philosophy in A/rica. PhD Thesis . University of Nairobi. 2006. rias para ela poder florescer.
.
José P. Castiano ·{ . Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivaÇão com Vif3gas •

Deixem-me, no entanto, iniciar pela desconstrução do>- -~. esta é observada no seu sentido profundo ·de .cultura cien-
conceito cultura. Este, historicamente, é um conceito usado, tífica ou c::u.Jturn de pesquisa. Neste sentido ainda, o termo.
a partir da expansão colonial europeia moderna, seguindo cultura assume a acepção de valores necessários para que
duas acepções que a História Moderna tratou de diferenciar: a pesquisa científica floresça socialmente, tais como o afin-
uma acepção de origem euro-ocidental e uma outra que po-
co pelo trabalho, espírito de questionamento, atitude que
depos considerá-la afro-ameríndia. Entretanto, aqui inte-
priorize a exactidão e precisão no tratamento dos dados ou
ressa a primeira acepção dado que julgo ter sido "reservada"
54 argumentos. 55
pelo Ocidente para o seu uso quase exclusivo no contexto da
historicidade africana. · Daí qUe, quando falamos de educação, trate-se. sobre-
tudo de uma formação para o espírito hutriarío adâptàr~se
Quando se refere ao contexto euro-ocidental, "cultura"
à cultura da época, o que Hegel bem chamou por ZeitgeiSt.
é, de forma leviana, usada permutativamente com o conceito
Ou seja, trata-se de, através da educação, cúltivar-se ti.m cer~
"civilização". Nesta acepção euro-ocidental, por exemplo, ·~·~ ·­
to número de valores supremos que se julga oiientarem a
descrever um "homem de cultura" significa o mesmo que.;
sociedade moderna, representada pela "elite da corte" : Con ~
uma "pessoa civilizada"; em termos do saber, um homem
sidera-se que o homem moderno deve beneficiarcse duma
de cultura é aquele que é educado formalmente e tem um
formação superior em termos do saber e de valores para vi-
domínio científico acima da média, tanto em matérias gerais
ver num mundo civilizado. Ele deve ser salonfáhig, uma ex-
como quando se trata de matérias específicas da sua área de
pressão alemã para designar capacidades e competências que
formação; em termos éticC:,s, refer~-se a alguém que se com-
o homem moderno necessita domesticar para poder estar e
porta segundo as conveniências sociais duma classe burguesa
ser em "salões" - aqui empregue no sentido de espaço públi-
ou que pertence ao grupo da nobreza; sob o ponto de vista
co - onde se fazem alianças políticas e económicas entre os
político é, em termos kantianos, um cidadão "iluminado" que
membros da nomenclatura citadina.
saiu da menoridade na qual ele estava amarrado por culpa pró-
pria" 19 ou seja, selbstschuldigt. Não é, pois, por acaso que, A contrastar esta acepção euro-ocidental, conhecemos
no caso alemão, o Kuftusministeriúm [trad. "Ministério da uma acepção historicamente "reservada" para o caso da África
Cultura"] refere-se ao ministério q~e se ocupa, ao mesmo e dos ameríndios, produto da alteridade intrfuseé:a às aventuras
tempo, da educação, da ciênda e da tecnologia; em fim, do europeias das navegações ao encontro ["cle'scbbert~"] do .ÓÚc
ensino "superior" e investigação. Nestes termos, a ciência, tro na modernidade. Pois, como sustehta Enrique 'Dussel, o
assim como a educação, são tratadas como sendo aspectos ano de 1492 marca a data simbólica :não das '.'d~scobert'as"'
particulares dum campo mais amplo que é a cultura; no caso, do Oriente, América e África, mas ·sim' cio "én~obrimerifo
do outro". Este outro é um não-civilizado, incúltci; atrasado,
t9 Kant, I. [1784]: \fias ist Aufkláºrung? Berlinische Monatsschrift. portanto, "selvagem"-:--A- "-cultunr"- destes-.povos -fofricanos;
December Heft 1784. Berlin. p. 481-494 . ln: www.uni-postdam.de/u/ asiáticos e ameríndios] se torna, aos olhos :da ~ntropologia e
philosophie/texte/kant/aufkaer.htm. [Consultada a 26 de Outubro de
2014].

\
José P. Casti'ano \ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivaçã o com Viegas

etnografia coloniais, reduzida a "hábitos e costumes" ou sim- De uma tradição iluminista do terrno cultura, que aliás não
plesmente uma moralidade reduzida em "tabus", i.e., sem desaparece ainda hoje quando aplicada ao Ocidente, passa-
reflexões por cima de$tes. A Europa outorga-se a si mesma se para uma noção "tradicionalista" de cultuta, esta aplicável
a "missão histórica" [Marx] de civilizar estes "povos atrasa- apenas para os povos do Sul. Hoje herdamos esta dicotomia
dos", sem história. A expansão colonial decorre assim sob o de cultura enquanto conceito: no contex to euro-ocidental
manto de uma "missão civilizadora" para a qual se convoca ela está ao serviço da civilização, da ciência e do progresso,
56 a cruz [igrejas] ao lado da espada [poder real]. Na bagagem enfim, do desenvolvimento; em contrapartida, no contexto 57
que .enche os navios, não só se trazem armas mas também a africano, falar de "cultura", evocamos as tradições, os h á bi-
bíblia, a religião, enfim, a "civilização", a cultura messiâni- tos e os costumes que- devem ser adaptados ao desenvolvi-
ca. Os viajantes não são somente marinheiros em nome d' El mento ou " superados" para criar espaços para a moderniza -
Rei, aventureiros à caça de fortunas fáceis, senão também ção das sociedades africanas; em alguns casos até apela-se ao
missionários para captarem, melhor capturarem, a "alma" seu abandono como condição para se aderir ao desenvolvi-
do negro. mento.
É assim que as aventuras etnográficas - e os estudos Para mim, trata -se de perseguir um modelo e conceiro
antropológicos . adjacentes, que nascem e se instituem em de cultura baseados na intersubjectivação cujo marco funda -
Sociedades Geográficas criadas nas capitais europeias com mental é supervinir a construção de espaços onde indivíduos
o propósito de se dedicarem ao estudo dos ditos povos não- [sages e filósofos com formação profissional] possam trans -
civilizados - se impõem como o propósito fundamental de cender as barreiras tradicionais de cultura, principalmente
poder aconselhar [hoje diríamos "assessorar"] a marcha da entre as formas académica e não-académica de cultivar a fi-
conquista e administração dos territórios coloniais ora "des- ~ losofia africana. É aderir à Bildung humboldtiana em termos
cobertos". Como deixaria implícito o missionário belga Pla- de uma formação humanística do Homem cujo objectivo
cid Tempels em Bantu Philosophy, o conhecimento da alma, consiste em "cultivar a humanidade" no homem, ou simples-
da essência dos povos bantus - que ele pensa ser a "força mente o "cidadão-do-mundo" [Citizen o/ the Wo;ld], para
vital" - deveria ter precedência à dominação territorial e usar um termo emprestado de Martha Nussbaum 2º.
política; i~to ~quivale o mesmo dizer que, antes de "civili- Para esta autora, o cidadão-mundo é aquele que possui
zar" o n~gro à imagem e semelhança do Ocidente, dever- a "habilidade de admirar e amar a diversidade humana" e
~e-i~ pr~s~der à inventariação dos hábitos e costumes destes que, para isso, deve ter corno pressuposto transcender iden-
povos, enfim da sua Sittlichkeit [moralidade] e ontologia. tidades diferenciadoras construídas tais como as baseadas
É, pois, neste contexto que a acepção afro-ameríndia do na raça, sexo e orientação sexual, etnia, nacionalidade
termo "cultura" se aliena da sua "original" euro-ocidental de
"civilização" para assumir, desta feita no contexto africano, 20 Nussbaum, M . [2003]: Cultivating Humanity: A Classical Defense of
a significação de "tradição", "hábitos e costumes" locais. Re/orm in Liberal Education. Harvard University Fress. Cambridge,
Massachusetts . Londres , Inglaterra. p . 50-84.

'j
l
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Vieç;H3S .

e religiosidade. Martha Nussbaum considera que ser cida-"' -~­ Contra o Tradicionalismo Cultural
dão-do-mundo é uma espécie de um convite para tornar-nos, ....- "'
de certa maneira, "exilados filosóficos" das nossas próprias
formas de encarar a vida; significa poder emigrar para um
É, pois, a partir da suspeita da dualidade conceitua! de
cultura - referida acima - que formulo a hipótese ~egundo
ponto-de-vantagem do outro e poder colocar questões que o
a qual, mesmo tratando-se do caso africano, "cultura" é U1Jl
out:rci deveria colocar sobre o seu sentido e função das coisas.
discurso endógeno/indígena sobre as justificaÇões é as razões
Esta atitude precisa de uma "distância [cultural] crítica", 5.9
58
conclui Nussbaum tomando como referência um filósofo da
às
plausíveis - enfim, sobre "valores" subjacentes a_cções po-
líticas, culturais e sociais - para sustentar a maputcénção dos
Antiguidade, o solitário e impertinente Diógenes.
chamados ritos, hábitos ou costumes locais. Esta definiçã()
Algures, no texto sobre as entre-vistas neste livro, pode apre- positiva de cultura como valores permite o reconhecimento
ciar-se esta capacidade de Viegas ser um cidadão-do-mundo quando de Viegas como um "homem de cultura " . Pois, ele conseg~~
ele consegue lançar olhares como um outsider, e não como umf--·-::~ ·: - "- elevar e adaptar aspectos culturais makuwas para um"con ~
insider, cultural religioso. No livro Lunga, à Guisa de uma· . " ,.. texto moderno sem, no entanto, deixar de crÚ:ié'a r .aq~eles
Retrospectiva, conta dois episódios a partir dos quais passou aspectos que considera negativos, se bem que, muitas vezes,
a olhar para indivíduos da Religião Muçulmana - uma re- o faz escondendo-se por trás das fábulas. Ele consegue olhar
ligião que não era sua e nem na qual foi educado - como os aspectos negativos da própria cultura, como por exemplo,
simplesmente humanos, antes de serem membros daquela a relação entre homem e mulher. De facto, d éultura qu~ :Vie~
crença. Isto apesar do espírito de ódio que alguns prelados gas assume é aquela que foi sendo elaborada por ele mesmo
católicos tentavam espevitar contra os muçulmanos. por cima dds tradições, e não as próprias tradições núas e
Nas palavras de Martha Nussbaum: We should recogni- cruas como elas se lf:e apresentavam. Por outra, ao ·assumir
ze humanity - and i'ts fundamental ingredients, reason and esta .d imensão crítica sobre as suas próprias tradiçõ~s, Vie-
moral capacity - wherever ü occurs, and gives that commu- gas ultrapassa a dimensão meramente descritiva e discursiva;
nity of humanity our first allegiance. Nós não deveríamos e até mesmo defensiva, a que um simples sábio geralmente
permitir que as diferenças de nacio;alidades ou classes ou assume quando confrontado com valores e práticas de outras ·
étnicas, ou mesmo de género, erguessem barreiras entre nós culturas, ou quando confrontado com a resistência dos mais
e os nossos companheiros seres humanos viventes - são pa- jovens em assumirem cegamente aqueles valores e seguirem
lavras que caiem como uma luva em Viegas. os ritos adjacentes. A estas duas últimas atitudes de sábios
n _ão-filosóficos, classifico eu por tradicionalismo cultural:
tràta-se de uma atitude de defender e promover cega e .ac~i­
ticamente os hábitos e ritos de uma determinada .cultura sem
se colocar a pergunta sobre os valores que ºestejam rio seu

\
José P. Castiano ''Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

substracto e muito menos, o que é pior, sobre as. p0ssibilida- importa diferenciar o nível discursivo-justificativo sobre os
des e condições da sua "modernização" perante os desafios hábitos e costumes do nível das suas respectivas práticas.
novos ou contemporâneos. Pois, uma coisa é o discurso sobre as "razões" e os "valores"
Assim, importa desconstruir, em primeiro lugar,_o con- , para se adaptarem certas práticas como "hábitos" e "costu-
ceito "cultura" do seu legado antropológico colonial sem, no mes" culturais e outra coisa é o "ritual" concreto que se faz
entanto, cair na falácia de um relativismo cultural cego. A para o respeito dos ditos hábitos e costumes. Só para exern-
60 adopção de uma perspectiva do relativismo cultural levar- plificar: uma coisa é a justificação para .a prática e o conse- 61
nos~ia a uma posição conservadora e· não evolucion:ista do quente ritual do Lobolo [no sul de Moçambique] ou J-Iaru-
conceito "cultu'ra"; no fon da estrada, se seguís~emos a pers- si21 [no Norte entre os.makuwas], e uma outra é o próprio
pectiva de um relativismo cultural, adaptaríamos políticas ritual ou prática em torno das mesmas cerimónias. Um outro
culturais exóticas ou folclóricas de "conservar por conservar" exemplo: uma coisa é a razão que se dá para as cerimónias e
aquele ou este hábito ou prática "cultural", sem equacionar a rituais da ,cerimónia dita pita kufa [xiSena, que significa "en-
sua ~ctualidade e muito menos a sua actualização. trar e morte"] ou Okela Npani [em makuwa, que significa
"substituir/herdar o falecido"], e uma outra coisa são as ce-
A posição básica a defender é a seguinte: as "-r aízes"
rimónias que se elaboram em torno destes rituais tradicionais.
[culturais] só servem como tal, somente e só na medida em
que .constituem o veículo das águas profundas para tornarem Para continuar com o exemplo da cerimónia pita kufa
o tronco da árvore m.ais frondoso, as folhas mais verdes e e em relação ao discurso crítico, podemos anotar o seguinte
as flores poderem dar frutos. Doutra forma não se justifica debate: como manter o seu "espírito'', i.e. os valores adja-
o "regresso" às raízes da tradição e à cultura, regresso este centes ao pita kufa [estamos a falar· da protecção social da
que é alegado, muitas vezes, por posições tradicionalistas ,~viúva, garantia da educação equilibrada dos filhos órfãos do

de africanos pouco atentas na armadilha em que se metem. :.w.~; pai, etc.] transformando, no entanto, a prática de relações

O conceito de cultura deve, assim, ser des-tradicionalizado. sexuais entre a viúva e o seu cunhado, ou seja, o irmão do
Mas mais do que isso, modernizado. O termo "moderniza- falecido durante a ceritnónia? E_sta distinção torna-se ele ex-
do" quer referir-se à necessidade da transcendência cultural trema importância uma vez que a prática pita kufa foi iden-
a que me referi acima. tificada c~mo sendo um dos factores para o aumento das
infecções relacionadas com DTS, HIV /SIDA. É neste deba-
Em segundo lugar e como consequência, o conceito de
te sobre a modernização das tradições que surgem "vozes
cultura deve ser diferenciado dos conceitos "hábitÓs" e "cos-
críticas" [termo emprestado ao filósofo su1-afri~ano Philip
tumes" nas suas acepções tradicionalistas [o que é diferente
Higgs] do interior dos sujeitos discursantes locais sobre as
de "tradicionais"].

Na p .e rspectiva intersubjectiva de tratar, metodologica- 21 Harusi significa literalrnente "virgem"; no sentido mais lato está patente
mente, os élementos culturais nos ~studos críticos culturais ~ regra <;fe que somem~ se lobola ~ w1i.a mulhe1~ C)Ue não tenha ainda
' --~ •k conhecido um homem . [mformaçao dada por Inac10 Tarc1so, Na.mpula ,
04.08.2012].
José P. Castiano :1 Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vieg as

suas próprias tradições. No caso do Okela Npani, pratica- '"-·"· Resistindo à Tentação Antropológica
do entre os makuwas, existem práticas [como bater no rabo
do tio após este ter feito necessidades, "insultar" a própria
mãe durante a noite após ter regressado da cerimónia] que A filosofia africana, ao meter-se no terreno da cultura,
nos parecem "más" à primeira vista, mas que podem assen- corre . o risco de se confundir com a antropologia. Já Houn-
tar em valores, se forem analisadas a partir do discurso local tçmdji chamou-nos atenção contra este perigo . Pdr isso, te-
endógeno sobre as "justificações" ou as "razões" ou ainda os nho para mim que, ao proceder-se à restrição do .conceito
62 63
"valores" [moralidade] subjacentes à tal prática. cultura .aos valores iidjacentes aos rituais tradicionais, poder-
se-á escapar à tentação de um discurso antr<~pológico .e etno-
É de extrema importância diferenciar o discurso jus-
tificativo que resulta de um esforço interpretativo e de le-
gráfico, sem no entanto abandonar totalmente este terreno o
. ' )
qual considero ser básico e fundamental para a interpretação )
gitimação dos que comungam um certo território cultural,
das culturas locais.
do discurso crítico desses mesmos membros [o que acima Z'"' '"'.~ :-.;,;i 1
",.

chamamos por "sagacidade filosófica"]. Este é, porventura, ; - . Deste modo, um desafio importante na resist.ência à ten-
o domínio que mais interessa à filosofia no contexto das suas tação antropológica reside no facto de que esta nova filoso-
investigações crítico-culturais porque ajudaria a desmistifi- fia moçambicana, e por extensão a filosofia africap.a, c:leve
car a ideia comummente defendida sobre a inexistência de ser capaz de superar a restrição com que a noção "dto"
vozes críticas - ou por outra, dos pressupostos para a sua é usada no, âmbito da cultura. Pois, comummente, o. uso,
própria evolução - no e do interior das ditas tradições afri- deste termo está restrito enquanto se tratar de tradições afri-
canas ou da cultura filosófica em África. Assim, deve ser do canas. Na verdade, quando falamos de ritos no contexto tra-
interesse da ainda-por-vir filosofia moçambicana peneirar os dicional africano, estamos a nos referir ao que nó ·contexto
momentos críticos elaborados no e a partir do interior das moderno se convencionou chamar por "protocolo" oli "pro"
tradições , discurso esse de que Viegas serve como exemplo. ced!mentos protocolares". De facto ambos, i.e. o term.o ~itci
no contexto tradicional ou o t~rmo protocolo no co~texto
A modernização de culturas visa redefinir a noção "cul-
formal moderno, referem-se ao carácter formal que se llies é
tura" centrada no discurso interpretâtivo-justificativo sobre
exigido pelas etiquetas e ambos estruturam-se em torno do-
as práticas que são agenciadas como sendo "culturais" ; desta
que-há-por-fazer numa hierarquia de decisões e intervenções
feita advogo o aproximar-nos a um conceito e discurso sobre
bem descritas.
cultura centrado nos "valores" e "razões'' que estão subjacen-
tes e no substracto dos hábitos e práticas ditas "culturais". E, por outro lado, na perspectiva da intersubjectivação,
os sábios devem ser induzidos a responder sobre questões
que-e les ac h am " " eu " erra d"
t as
eer ~ .
as e porque-ass1m-as-1u·1 ~ -
gam de tal modo. No fundo , ao assim proceder, estada-
mos a questionar sobre as possibilidades e condiÇões d.e

\
.,:( __)
·1 .
,; ) José P. Castiano \
11>
'.i.' )
li
if
1
) "modernização" de certas tradições a partir .d a ·consciência Parte 11:
1! ,-j dos seus efeitos negativos [no caso do SIDA para a cerimó-
I'
nia do pita ku/a, por-exemplo]; ou, para usar uma linguagem
ENTRE..vISTAS SAGACIOSAS
!!:r J
\j
rhais modesta, estaríamos a procurar "soluções'" aos proble- COM VIEGAS
mas modernos inspirando-nos nos valores que a tradição nos
')
parece propor. Estaríamos, portanto, na descrição do discur-
') so da "segunda ordem" como referido acima por Owakah, As entre-vistas com Alberto Viegas ocorreram na ci- 65
64
) mas induzido por nós. Se assim entender-se melhor, estamos dade de Nampula. A primeira, realizou-se a 27 de Abril de
'j no papel de um Platão discípulo de Sócrates. Compare-se 2014 e durou duas haras e quinze minutos de gravação. A
este passo com ·o conceito narrative imagination 22 em Mar- segunda, foi a 28 de Abril de 2014 tendo levado uma hora e
)
tha Nussbaum. cinquenta e seis minutos. E a terceira entre-vistas foi no dia
) 18 de Maio de 2014 que durou uma hora e quarenta e cinco
Segundo ela, o conceito narrative imagination envolve
minutos. Tinham sido programadas quatro . Porém, esta, a
" the ability to think what it might be like to be in the
1) "quarta entre-vistas", programada para duas semanas n1ais
shoes o/ a person di/ferent /rom onessel/, to be an intelligent
(j tarde, não foi realizada.
reader o/ that person 's story ... is not uncritical." Ou seja,
1.J a habilidade de pensar no lugar do outro diferente de nós O jovem-antigo Viegas 1 veio a falecer no dia 30 de Maio,
(j mesmos e de ler inteligentemente a história a partir do outro. duas semanas depois de despedirmo-nos com um breve "até
Porém, esta atitude não significaria deixar de ser crítico. a próxima ... !". Era uma despedida que me fez reflectir se,
1 _)

durante as entre-vistas, tinha testemunhado o discurso ape-


) Enfim, o filósofo africano resiste à tentação antropológi-
·- nas de um sábio ou se não estivera perante um sage filosófi-
ca se, ao tratar de tem.as contemporâneos com os sages, con-
') - ~.....:. co . Pelo que escrevi atrás e pelo que vai ler, o leitor julgará
centrar-se nos pontos-de-vistas críticos destes sobre ·a s suas
.' ) por si.
próprias culturas e tradições e evitar entrar no unanimismo
.'.( )
intrínseco ao discurso do tradiconalismo culturalista.
cl j
1\ J

1 A razão pela qual o Viegas ter sido conhecido por " jovem -amigo" eslá
22
Cfr. Nussbaum, M. [2003] : Cultivating Humanity. Harvard .University explicada logo nas primeiras palavras na segunda parte desLe li vro -
Press, London . p.11. Entre-Vistas I.

tJ;;.
1 '
José P. Castiar:io Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Entre-Vistas I Agora eu havia dividido a nossa conversa em três partes,


nomeadarn,ep..te a primeira sobre a sua vida; aqueles aspectos
que acha que são importantes, que marcaram a sua persona-
-~
j.
José P. Castiano U.P.C.]: Hoje é dia 27 de Abril 2014 e lidade, como uma pessoa que é consultada pela sociedade, _)
gostaria de iniciar uma série de conversas com o "jovem-anti- não só de Nampula, mas de Moçambique em geral., Na se-
go ~'- Viegas, como gosta de ser chamado. Então vou-lhe expli- gunda .parte abordaríamos aspectos da religião e ria terceira ~
car do que se trata: eu estou a escrever um livro que se chama de política e reconciliação. Naturalmente que no centro das
)
66 67
O Inte1--Munthu, ou seja, o inter-sujeito. Resumidamente, o abordagens a .e stes temas a educação de valores a partir do J
inter-sujeito é aquele que, no meu entender, está entre a tarefa seu imaginário cultural [makuwa] tem um lugar importante. )
da reconciliação e a de manter as liberdades conquistadas; e Í.J
a ideia centra). é a seguinte: nós [quando digo nós, refiro-me
a nós, os africanos], a partir da década 60 do século passado, ,.-..~.:.. Autobiografia do Jovem-Antigo
...)
conquistamos algumas liberdades, como exemplo em 1975 ,; 1

a de sermos cidadãos em Moçambique, isso mais. tarde; no


J.P.C.: Começaria por aí: onde ·nasceu, a sua família,
entanto, os acontecimentos estão cada vez mais a mostrar
como e onde se formou? Portanto, falemos sobre aq~eles
que temos que nos reconciliar c:omo comunidade, seja como
aspectos ·que acha que podemos conversar sobre eles, ·e- são
africanos, seja como nações singulares. E esta reconciliação
o fundamento do seu ser hoje. A.V.: Para começar, diss~ "jo-
está custar ~gumas liberdades que tínhamos alcançado, quer
vem-antigo; como ele gosta de ser chamado"; queria recti-
diz~r, pàr exeii.i.pfo a democracia está a regredir; isto porque
ficar "como ele gosta"; devia s~r "como os outros gos.tarri
em nome da reconciliação, alguns países estão a distribuir o
de lhe chamar" porque não fui eu que disse. que eu sou "jo=
dinheiro pelos grupos armados ou, outros, estão a formar go-
vem-antigo'', os outros que vêm da minha altura [refere:se ·à
vernos chamados de "unidade nacional"' integrando partidos
idade] ; vêm a minha maneira de falar, a minha ma~eira d~
que não foram eleitos, etc., etc. Há muitos sacrifícios que es-
me relacionar com os outros e sempre dizem: "afinal ~ste é
.
tão a fazer-~e pela reconciliação, em muitos países africanos,
incluindo em Moçambique; então a ideia do livro é essa. Eu
velho, mas está sempre actualizado, está sempre na actualil ·
dade, está sempre com os jovens"; principàlmente em 197.5'; '
comecei a descrever a questão da reconciliação no meio reli-
quando estava no Centro de Formação dOs Pro/essore; _tomd "
gioso africano, depois na política, depois na filosofia, e agora
instrutor e riie encarregaram pela cultura, entao, eu brin2~v'~,~
chegou a fase daquilo que eu chamo de olhar para as pessoas
dançava; logo de manhã estava a "var~er", pára mobiliz~~ áü'J
mais velhas, que têm ideias sobre i~so. Portanto o livro todo é ')
alunos ; p-orque eram alunos trazidos de várias escolas set:U~~
sobre isso, este é o assunto e eu queria terminar um capítulo __)
dári~s__que não tinham___yocação para ser_professciré_s e 'i1em~ __
em dizer assim falou o "jovem-antigo" Viegas ... Crisos]. 2 - -.)
queriam saber o que é isto ser profess~r. Era' preciso rriobiliJ ;

2
Entretanto, este capítulo inicialmente parte do Inter-Munthu, autonomi- zá-los para que gostassem da profissão, então iss.6 dependia J
zou-se convertendo-se no presente livro.
u
\
1-.J
, _)
José P. Castiano \ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação corn Viega s
1J
J muito de nós os instrutores, da nossa actuação. Porém, h a- Isso era só para começar. Agora, eu nasci em Cuamba·,
i'r'_) via colegas que diziam que os instrutores deviam distanciar- distrito de Cuamba, na província de Niassa, concretamente,
li(_) se dos alunos, porque aluno é sempre aluno "senão depois numa povoação chamada Kharau. Nasci ali, de pais campo-
' \__) causam problemas, vão habituar-se" e, eu dizia; "não, 'pelo neses, no verdadeiro sentido da palavra, quero dizer; viviam
'( _)
contrário, não é só na sala de aulas que aprenderri; ·eles vão da machamba; não sabiam nem uma palavra portuguesa;
aprender muito olhando para a nossa conduta; a partir daí se pronunciavam uma ou outra palavra ein português, era
," _) vão aperceber-se se gostamos dessa profissão ou não, por-
68 como os outros que pronunciavam sem saber se isso é portu~ 69
.) que .somos professores e eles serão também professores". Se guês; pensam que é sua língua, quando dizem, por exemplo:
,'_) o próprio professor hoje se distancia dos alunos, este alu- "como kaphanhi", qu,.e quer dizer, "como não encontrei"
" ') no quando amanhã for professor, vai-se distanciar do aluno esse "como" não sabem que é português, pensam que é lín-
1 também, não vai ter aquela vocação . Então, tudo começou gua deles. J.P.C.: Ahh! Como kapharíhi! [risos . .. ], e outras
i)
.._) aí, eles diziam: ,"esse nosso instrutor é jovem, é jovem-an- palavras assim. Portanto, não falavam português.
1 tigo"; eu tinha 48 anos ou quase 50 anos na altura. Então
«J A.V.: Eu cresci ... nascemos onze . irmãos . Crescemos
quando fui integrado no Curso de Formação de Professores ,
t<) oito, onde quatro eram homens e quatro mulheres . Agora
fui 'u m dos que foram indicados para ir participar. Ao invés
ficou uma [irmã]. Em Janeiro ou Fevereiro faleceu urna das
"._,.\ de dois anos, foi um ano só, formando nós que éramos pro-
minhas irmãs em Lichinga. Então ficou uma ; e dos rapazes fi-
( ) fesso~es antigos, em 1978, em Maputo, ali onde era antiga
1· __,J
camos dois, então somos três. Agora , durante a minha infân-
Escola de Magistério3 • Então eu tinha 51 anos, mas era tam-
·) cia, eu vi como o meu pai era considerado naquela povoação;
bém o mais brincalhão .[risos], até tinham uma canção que
j era um indivíduo sem problemas, quer dizer, nunca ouvi a
dizia "rapazes chegou o tempo de reconstruir o nosso País",
t) ~ ser julgado por ter feito qualquer coisa, por ter ofendido al-
então chamaram-me de hanhamata, que significa "rapaz", e
'. _) -~ guém, e era muito respeitado . Bebia sim, bebida alcoólica,
daí, traduziram para o português e ficou "jovem-antigo" ... !
tipo maheu, mas não era, deve ser uputso, em makuwa cha-
) Portanto não é questão de eu gostar, só que os outros me
ma-se otheca. Ele bebia otheca, bebia mesn10, mas nunca lhe
,' j chamaram assim, mas não digo que eu odeio ou não estou a
vi a cambalear, nunca lhe vi a discutir com alguém , nunca
gostar, [ ... ],se outros gostam de me chamar assim, quem sou
'' j 0 vi a dormir fora de casa por. causa da bebedeira; sempre
eu para os contrariar? Sim, até é preferível: "ó velho como
veio dormir em casa; não teve duas mulheres, só teve minha
está?" Mas aquele "velho" de respeito, e não aquele de aca-
mãe. E isso m.arcou-me 1nuito, perguntava-me sempre : "E - ~ ste
bado mesmo. Sobretudo em algumas línguas moçambicanas,
homem quem é? Porquê é que quando falam dele , falam dele
chamar velho alguém não é falta de_respeito. Por exemplo,
com respeito?" Então comecei a ver que não era malandro,
dizer madala, para dizer "mais velho". Então te chamam de
tudo e por nada. não tinha problemas. Afinal, na vida nós temos de andar de
modo conecto, ter bom comportamento social, educação
3
Refere-se ao Centro de Formação de Professores Primários Elija Machava moral e cívica. Então quando pedi ... , eu fazia todo trabalho
em Maputo.
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

que um indígena 4 fazia naquela altura, era requisito neces -"' -·--- que eu não quero, eu e a tua mãe, é fugires, é mexeres,. pro-
sário para se casar. Primeiro tinha que falar com a mãe, e a vocares, d<';!p.ois fugir; deves ir à frente, vai e fica lá, até'. que
mãe falava com o tio, nós somos m~trilineares não é? Então, o branco diga . 'termina aqui', e não vais receber dinheiro lá;.
para que a família assumisse a responsabilidade de ir pedir Lá só estuda-se, não se recebe dinheiro, não é serviço,'.· não
a mão da filha de alguém para o nosso filho casar, esse rapaz porque vais para receber dinheiro, mas fica lá, até,que os·pa-
tinha que ser bem comportado em casa e que fazia esses. tra- dres digam, pronto acabou, tudo termina aqui, já'. .podes sair:
70 balhos para vida; como exemplo: fazer esteiras [esteiras de Não és tu que vais pedir sair de lá". De facto, fuLà Missão~ 71
folha de bananeira, esteiras de caniço], fazer peneiras, pilão_, fui recebido e o. padre perguntou se da povoação' donde éu
saber fazer laços ou armadilhadas, que é para onde lá forem vinha, havia uma escola, e se havia lá catequistas . ~ra o mês
iniciar um lar, poder sustentar a sua família. Porque como de Agosto e estavam lá reunidos catequistas. J.P ~ C.: Como
somos uxorilocais' , nos nossos. casamentos, o homem é que se chamava a Missão? Missão José de Metúcue'. Então havia
ia viver na família da mulher e lá não tinha que envergonhar:-··~· catequistas da minha povoação e perguntou: "quem conhece. -
a família donde veio; tinha que ser flexível, vencedor, tinha;· ~ este aqui?" Eles disseram: "Eu conheço, filho de fulano ~
que trazer carril para casa, comida etc., etc. EntãQ aprendi tal". Então o Padre recebeu-me, porque teve receio de me .J
'
tudo isso , pratiquei tudo isso; por exemplo sei caçar de di- man.d ar para casa, porque, de certeza, não estud~ria ..~ó não J·1-
versas formas . Mas ao invés de pedir aos meus pais, para pe- cheguei a estudar lá, saí directo para a Missão. Então-:rece-
direm em meu nome alguma rapariga para casamento, pedi
que me deixassem estudar. Até ficaram admirados. Em 1944,
beu-me e fiquei a estudar. ..
'•. -i
(
De facto, fui estudando; quando cheguei à segunda
eu tinha já dezassete . anos . Quando fiquei de pé em frente .,,

d.eles, me perguntaram "o que tu queres?" E eu pedi a eles


classe, pedi para sair, porque queria começar a trabalhar
para ajudar .os meus pais; mas o Padre disse: "Não, deves
1
)
que me deixassem ir à Missão estudar. Olharam para mim e
continuar a estudar!", mas não quis continuar a · estudar
disseram: "~stá bem, o problema é teu, já estás crescido, pen- _)
porque a . hipótese ou a possibilidade de continuar a estu-
samos que ias pedir casamento". J .P. C .: Aos dezassete anos
dar seria na Escola de Formação de Professores, que estava a.
1J
não é? [risos]. Yah, havia meus colsgas com dezasseis anos,
funcionar no Unango. Mas no ano anterior, eu fiz a terceira
já estavam casados . Naquela altura, casamento era "liberta- j
classe em 1948, no anterior, essa es~ola tinha sido transferida
ção" da família, sobretudo quando fosse um rapaz flexível,
qu e fazia müita coisa, era muito concorrido na povoação, pe-
de Unango para Marrete, para aqui em Nampula.. Po,rque u
aqui e.r a capital da Província de Niassa. J.P.C.: Ah, Naí~pulâ ·
las famílias que tinham filhas; cada um queria que a sua filha
era a capital de toda região norte: Cabo-Delgado, .Niassa é 1
_)
se casasse com aquele ali. Só que meu pai disse: "Vai, mas o
Nampula,_eram regiões de Niassa. A.V.: Então, a escola foi
)
4
Refere-se, muito provavelmente~ m ragaz crescido no campo~que transferida_para_a capital,_em_Marr_~re.. Qu_eria~tr~b.alh'.'lr .e.
segue tradições culturais familiares, neste caso makuwa.
5 o Padre dizia que não, que continuasse os esttidos/ Re.s isti J
"Virilocal" significa que o casal reside com os pais do marido [daí o viril];
"ux orilocal" que reside com os pais da mulher; "neolocal" que reside num um pouco, mas acabei cedendo. Primeiro mandou-';ue para
local independente.

\
l._j
,1 _)
José P. Castiano- 'Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação corn Viegas
,1 _)

•._)
um Curso de Aperfeiçoamento de Professotes. J.P.C.: Em mas tens que ir fazer pelo menos a 4." classe porque, a ter-
I·~) que ano? A.V.: Em 1946 houve um curso de aperfeiçoamen- ceira rudimentar que tens, um dia não vai servir " ; isso foi em
'') to de professores indígenas . Eu não era professor, acabava 1949. Ele continuou a dizer: "Esta terceira classe que tens
\ _) de terminar a terceira classe, mas a minha Missão não tinha não está segura, um dia não te vai servir em nada, vai fazer
!,' ) professores; então o Padre resolveu mandar-me para formar- 4." classe, no Curso de Formação de Professores Indígenas
me como profes_s or, para participar nesse curso, para pelo em Marrere" . Persisti um pouco , mas aceitei e fui no dia 3 0
'. ]
72 menos a missão ser representada. JP.C.: O padre da Missão de Março e, logo a seguir, eram férias ele Páscoa; estavam a
)
73
1 São José Metucué? A.V.: Exactamente! bom, eram eles to- começar férias, então fiquei ali sentado e outros foram para
"J dos, porque ele não estava sozinho, eram aqueles que vivem suas casas, eu fiquei ali.em Marrere . O Padre deu -me livros
:' em comunidades . Com certeza ele era porta-voz, tinha ideias
_) para ler, fiquei ali, quando acabaram os quinze dias de férias .
) também . J.P.C.: Como se chama esse Padre? Era português? J.P.C.: Eram livros de quê? A .V.: Livros da escola, de leitura
A.V.: Ele -chamava -se padre Mário Casanova e era italiano e não sei quê quê! Então quando começaram as aLllas, já na
.j
d.a Congregação d.a Consolata. '
.; _) segunda metade de Março, o Padre pôs -me na 4" Classe e
- Então~ eu vim para esse curso que durou seis meses· não na 3ª Classe rudimentar, onde estavan1 aqueles que ti-
'í )
tínha~_os muita coisa lá dentro: enfermagem, agricultura'. nham feito rudimentar comigo; fui para cima deles, fiquei na
(')
pecuana, etc., que era para ajudar à população onde 0 pro- quarta. Uma semana depois, chamou-me, tirou -me os livros
i _) fessor fosse colocado, porque não havia enfermeiro em todo da quarta e deu-me os da quinta. J.P .C.: Opa! A .V. : É verda-
'1) lado. JP.C.: Então tinha agricultura nesse curso de aperfei- de! issü ein Maio, então ai fiquei Maio e Junho , a fazer a 5.ª
' _) çoamento? A.V.: Sim, tinha muita coisa eu não posso dizer classe. Feito os exames, passei para a sexta . J.P .C. : Quer di-
a~ora, mas havia noções de enfermagem, agricultura, pecuá- __ zer, em 1949, começou a frequentar na terceira, na quarta e
') na,. construção, porque tfohamos um engenheiro que nos .._' acabou na sexta. A.V.: Sim . . . [risos]. J.P .C.: A que se deveu
(_)
ensrnava como calcular as "chapas" de construção da casa. isso? A.V.: Não sei, até quando eu dizia aos meus amigos . . .
'l
) JP.C.: Havia carpintaria? A.V.: Carpintaria não me lembro [risos] que eu possuo somente a terceira rudimentar como
~
' )
\ . muito bem, mas eram professores brancos e no curso não vou para 4.ª classe? J.P.C .: Naquele tempo era segundo ano
;, ) havia nenhuma senhora, eram só homens. a sexta classe não é? Era chamado segundo ano do ensino
j:) . . . A.V.: sim, essa fiz durante um ano inteiro; a 6." classe fiz
O curso durou seis meses, portanto, Agosto, Julho até
Fevereiro; .ou seja, terminou em Fevereiro. Eu fui para Mitú- entre 1949 a 1950, J.P.C.: então terminou a 6." classe em
I ~ '. )
1950. A.V.: Sim, então aí fui colocado e nomeado [co~o]
k) cue, voltei para terra. Quando voltei para Mitúc~é 0 Padre
disse: "Está bem', tiraste este curso, mas eu não ·te'. dou ser- professor em Mossuril, e cheguei no dia 6 de Outubro de
il'i.d-
J· <,! viço aqui, tens que ir para Marrere". Então eu disse: "Padre
1950, na missão de Mossuril, porque éramos professores das
/) é para eu ser professor?'', ele disse: "Isso vamcJs \ rer d~pois, missões, porque havia ensino oficial e ensino indígena que
era das missões; tinha escolas de formação de professores

1. '
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

indígenas. Então comecei a trabalhar em Mussoril, mas antes'·-,... velho, que mais ou menos era bom para os ·indígenas, gosta-
meu pai tinha-me dito, durante uma das férias quando estava vam dele, go,stavam do nome, não sei quê, quê; quê! J.P.C. :
a estudar na missão, depois de ter deixado de estudar, parece E depois ;· como lhe deram esse nome? A.V. : Os pais dão ao
que estava na segunda ou terceira, quando me chamou de filho o nome. que eles gostam. J.P .C .: Sim? mas como se
manhã. Ele t inha dito no dia anterior, à tarde: "quero falar chamava o seu pai? A .V.: Meu pai era Marehera Mole; mas
consigo de manhã, . de manhãzinha, no primeiro galo", que nos meus docutnentos estão aportuguesados, vem Mareira.
74 são duas horas da manhã ... [risos], só para me dizer que "tu A.V.: Bom, todos os apelidos têm significado;· eu posso 75
foste estudar , p r ovocaste o branco, ele vai-te mandar longe não saber neste momento, mas sei por exempfo que "Ami-
de nós , longe da tua terra ". Nós ficamos presos, trabalhamos limá" ; isto é; Maria Carla Amilima Viegas, Amilima .eram
durante 'seis meses, voltamos dois meses a descansar, depois pessoas que naquele tempo de recolecção, dedié:avam-se ,à
retornamos , nós estávamos presos nas mãos dos brancos. agricultura [milima significa "agricultura;'], e Amóle eram
J.P.C.: .Ohó , estudar significa prisão? A.V.: Aquela prisão de:~ ·~; iridivíduos que cavavam o tubérculo [amole, aqueles que
ligação! J.P. C. : Sim percebi, isso é igual a ficar nas mãos do:· · vivem de "mole"]. J.P.C.: Mas o seu nome completo está
branco, ou ser branco .. . [risos]. A.V.: Então meu pai disse: como no Bilhete de Identidade? A.V.: Está Alberto Viegas
"hás-de ir longe, mas isso não é problema se tu continuares
só, porque eu quando foi para Marrere era Alberto :Yiegas
com o teu coração ou comportamento que conhecemos aqui Mirole, . apelido da minha mãe, como somos matrilíneares;
em casa; lá longe vais encontrar teu pai, tua mãe, teus irmãos, mas lá quando cheguei disseram "haaaa, chega· só Alberto
vais encontrar tua família lá, mais do que nós que somos do Viegas" e eu, como aluno não podia discutir com ninguém.
1nes1no sangue . Mas se disseres "eu sou branco e começares a [o "Mirole" escreve-se com dois "Ms"] não escreviam· com
andar de maneira diferente, a desprezar os outros, vais sentir
um M, [mas aqui 6 escreveu com dois Ms], sim, tradíciona}-
cheiro dos outros". Isto é pesado! O "cheiro" das pessoas, o
mente, J.P.C~: sim, mas eu vou escrever . tradicionalment'.e,
desprezo das pessoas que dão quando alguém que se orgu- porque os nomes têm carga de espírito e não pode~osvioiar.
lha . Então fiquei com aquilo ali e, de facto, quando cheguei A.V. : E, coisa curiosa, o Arcebispo disse-me que na Tanzâ-
.
em Mossuril ' ia visitar família dos alunos, família deste, fa-
mília daquele e acabei arranjando amizade lá, comecei a ser
nia há um bispo' chamado, esqueço o primeiro nome, m'.1s
é Mole, então ele deve ter origem daqui. J.P.C. : Está bem,
considerado "filho" . Então eu tive boas relações com a po- vamos continuar então, lá em Mussoril? A.V.: Fiq~~i. cin~b
pulação de Mussoril, fiquei ali a trabalhar durante um ano, anos na sede de Mussoril, portanto, de Outubro de50. à Se-
de 50 à 51 fui casar-me. J.P.C.: O casamento foi em 1951? tembro de 55.. No dia 10 de Setembro em55, fui transferido'
A.V. : Sim, foi em 51, no dia 27 de Agosto. J.P.C. : Casou-se para Lunga, que é um Posto Administrativo que pertence
com .. . ? [risos] A .V.: . .. Com Maria Carla, veio a ser Mària a Mussoril, portanto estou no Mussoril
Carla Viegas, J.P. C.: esse nome de Viegas é do seu pai~ A. V .:
- - .-. na mesma, e nessa
Não é ; nem do meu pai, nem de ninguém, é de um branco 6
A palavra "aqui" é empregue para referir o local onde escreveuº. nome
que vivia lá na nossa região, em Cuamba, havia um branco do entrevistado. ·

'\
1j
') José P. Castiano \ Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
1 _)

tj
altura Mussoril era uma circunscrição. Então :fiquei no Mus- Sobre a Religião e Reconciliação
') soril vinte anos:J.P.C.: Vinte anos! A.V.: Aliás 25, fiquei 20
·j anos na Lunga! J.P.G: .: de 1955 a 1975, q~ando chegou a
1j Independência. A.V.: Exactamente, eu sai de lá com a Inde- Í.P.C'. : Mais uma coisa que queria saber deste período:
fj pendência, precisamente para ir fundar o centro de formação : chegou a ser catequista? A .V.: Nós éramos preparados na
dos professores primários de Momola, aqui em Nampula, a Escola de Formação de Professores Indígenas como cate-
'. j
76 25 e 30 quilómetros . quistas, éramos professores-catequistas. Além de ensinar as
. _) 77
J:P.C.: Então em Lunga estava a dar aulas? A.V.: Sim, ciências, história, geografia, e outras coisas, tínhamos que
'J no ensino primário indígena. J.P.C.: Quando pensa hoje, também, no período .da tarde, ou num. outro período qu~-
'j qual é a grande experiência durante esses 20 anos como pro- quer, ensinar religião; nesse sentido, éramos professores-cateqws-
) fessor? A :V.: O que eu sei é que fiquei marcado, marcado e tas. Mas então, houve separação, quando veio o Bispo Dom
ligado ao ensino ·ao ponto de não pensar numa outra.profis- Manuel Pinto, ele fundou uma escola chamada Centro Ca-
J
são; ser. professor ficou -me no sangue. Quando chumbasse tequético, só para os catequistas c01n as suas esposas . ~ntão
í)
1, um aluno. meu ficava muito triste, porque não éramos nós frequentávamos um ano ou dois, depois éramos cateq~ustas,
\)
a examinar; o júri saía daqui de Nampula, constituído por recebíamos aquelas batinas, [ . .. ] então aqueles eram so cate-
1 'j
professores brancos do ensino oficial. Então eles é que exa- quistas . Isso foi ele que separou em 1960 e 70, qualque.r coi-
:( J minavam os meus alunos; isto era para terem o nível oficial; sa assim. J.P.C.: Mas a mensagem que recebia ela IgreJa, da
;1 ) nós os professores indígenas só os preparávamos. Chegado o Bíblia, quando era catequista, teve alguma impressão ele que
mês de Julho o mês de exames, levávamos para Mongicual, alguma coisa não estava certa com esta religião? A.V.: Bon1,
"1 • .J
saía daqui, ficava na sede de Mongicual, então os da Lun- em casa eu tinha uma religião, aquela religião natural, dos an-
,(j·
ga iam para lá, os da 4ª classe, juntavam-se aos de Quinga, . tepassados, Deus único, Deus não tem Filbo, entã.o quando
de Quixaxe, de Liúpo e eram examinados lá. Se chumbou, chego na Missão e oiço que Deus tem Filho, fiquei.um. ~ou­
' ) chumbou; mas geralmente os meus passavam . Lembro-me co escandalizado ... [risos], depois eles tiveram que JUSttficar,
' _) que estava a assistir a um exame oral, quando o presidente "não , ele é estéril, ele é omnipotente", aquelas justificações
í_} do Júri zangou-se com um dos alunos meus e disse: "os da [ . .. ]. O que me meteu impressão, mesmo com pena , quase
Lunga todos passam , menos este indivíduo aqui", um aluno que eu chorei, foi quando vi Cristo na cruz, aquela imagem
·J
que tremeu um pouco, e o júri disse, "chumba este'', só para quando o Padre tinha o crucifício; eu não sabia quem era,
dizer. . . [risos] que não foram em cem por cento os meus eu vi um homein, que lhe pregaram, aquilo meteu-me medo.
alunos a passarem. Mais tarde fui aprendendo, corno catequista, etc., etc. De
facto sabíamos que muita coisa era de branco, não era es -
peciBcamente da religião, era cultura do branco. J.P.C'.: Não
era só religião, era cultura? A.V.: Era cultura porque 1mpu-
• nha certas coisas que a gente via e dizia: "isto, só pode ser

1. '
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

de branco". Por exemplo, a questão de jejum, a abstinência;"-~· a .nossa religião, isto ê que era a diferença entre a Religião
eu como professor-catequista era chamado a participar em Cristã e a .. nossa Religião Natural. Mas quanto ao pecado, )
reuniões de padres com bispos e e.u colocava estas questões,
era atrevimento naquela altura, J.P.C.: de jejum e abstinência
não houve diferença, porque aquilo que lá em casa diziam
mwiikho, quer dizer "tabu", então lá dizia-se é "pecado" ._
J.
[ .. .]A.V.: sim, eu colocava, eu sublinhei: "Vocês têm geleira,
têm carne, comem carne quando quiserem [ ... ] , e quando
J.P.C.: Tabu que foi transformado em pecado, mas não é
mesma coisa? A.V.: Tabu é proibição, tabu é ttido o que é
J
chega a sexta-feira, podem não comer, porque no dia seguin- proibido; e pecado o que é? [risos]. J .P.C.: Está bom, tem
)
78 79
te vão comer. Mas agora, "nós, vamos à casa dum amigo, .e )
razão, A.V.: e os muçulmanos chamam Haramo, ·aquilo que é
nesse dia encontramos lá ou serve-nos caril de carne ou ga- proibido, o que não se deve fazer. J.P .C.: O que era mwiikho, ) .
linha, e não vamos comer naquele momento? Vamos comer qual era o conteúdo de mwiikho, o que era proibido? A.V.: É )
amanhã? Ele vai guardar para nós comermos amanhã?" É mwiikho, por exemplo, ter relações com a tua irmã, o inces- j
a única oportunidade, porquê não aproveitar? Não estamos -"~-­ to; é mwiikho ter relações com a mãe; é mwiikho ter.· relações _J
já a sacrificar-nos, todos os dias, por sermos já pobres? Po2 · · sexuais com os familiares mais directos, ter relações sexuais
natureza nós somos abstinentes, por natureza nós estamos a com uma mulher que esta na menstruação; enfim, mwizkho
Jejuar. era praticamente tudo o que podia ser punido ou sofrer algu-
)

Por exemplo, um Padre na escola que dizia no mês de ma pena,J.P.C.: mas havia uma espécie de dez mandamentos, J.
Maio para fazer sacrifício por amor da Nossa Senhora, pú- ou .tudo era em volta de relações sexuais? A.V.: Não! não .J
nhamos pedras nos sapatos para nos incomodar. Mas nós matar, por exemplo, é proibido, é proibido roubar; quase J
tudo [ ... ] é por isso que a Igreja dizia que Deus: imprimiu
pisamos pedras a toda hora e todo momento, porque anda- )
mos descalços ... J.P.C.: Esses sacrifícios na Religião Judai- nas pessoas a consciência por natureza,, e todo .mundo é as7 ·. , _)

ca começaram antes de Cristo, antes do Cristianismo, havia sim; é difícil encontrar um povo que aprova como uma regra
uma seita, que se chama sicários; são esses que faziam esses alguém roubar, matar; também tínhamos isso, J .P.C. : .mas tal-
sacrifícios, que até amarravam um cinto com picos e tinham vez aventurei muito quando disse tabu é diferente do peca-
que andar um dia inteiro a sentir doFes . A .V .: Sim, esses pa- do, não é pelo conteúdo, mas é pela forma do castigo, A.V. ~
dres Combonianos, uma das coisas era essa; tiraram em 60, Ya! já entendi; nós sabemos que tudo aquilo que ~ p_r qil:J~d~,
tudo o que é mau, aquilo que é contra a vontade 'cie D~us, é
foi abolida. J.P.C.: Então obrigavam a pôr pedras nos sa-
punido; mas inferno eterno não; não cabe na nossa . cabeça,
8'
I,
patos? A .V. : Não obrigavam a pôr pedras no sapato; eles é
na nossa cultura, qu~ Deus tenha que castigar alguém p~r~ .·
que punham, diziam que punham quando eram miúdos, e
sempre, porque não existe no mundo u~ pai 'qu.~ i ejeite o )
queriam que nós fizéssemos o mesmo. Outra coisa que me
filho eternamente; estão de costas viradas, _mas acabarão"por ·. )
intrigou um pouco,__§_ão todos os ministérios; essa Santíssima
se reconciliar e, aí esfá ! reconciliação pressupõe °.· reet;i:cóntrn · _]
Trindade, por exemplo, é claro, dizem que Santo Agostinho
de pessoas que se tinham ofendido, que n~o s~ falavam, que
tentou, mas não conseguiu, [ .. . ]. Isto é o que estava contra
estavam separadas; então quando se unem de riovo, isto é que

\
José P. Castiano
'Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjecti vação c om Viegas

é reconciliação. Eu não me vou reconciliar com alguém que


lava-se" . .. [risos] 7 • J.P.C. : ... isso para dizer que? A.V. : Para
está passar na rua, se não o conheço e não sei quem é. J.P.C.:
dizer que na sociedade quando alguém faz mal, por ex em-
Mas esse sentido de reçonciliação é da Igreja, aliás, da religião
plo, pecou, fez mal à comunidade, deve-se criticar sim, ~ara
tradicional, porque se a pessoa vai ao inferno eternamente
se emendar, mas não se deve destruir, não se deve deix ar
na há reconciliação possível. A.V.: Não há reconciliàção, por '
de vez, não! Deve-se fazer um trabalho a ral ponto que ele
isso. não se entende na cultura tradicional, não cabe na cabeça
venha a recuperar-se 8 . J.P.C.: E acha que hoje nós estamos
80 de ninguém; por isso dizem; Deus castiga sim senhora, mas
em condições de reconciliarmo-nos como família moçambi - 81
acaba por perdoar. J .P.C. : Mas as suas aulas de catolicismo
cana? A.V.: Hoje há muita coisa que está contra aquilo que
/ _) ·eram baseadas na Bíblia ou havia um livro especial? A.V.;
era a norma; não sei po.rquê dificilmente nos perdoamos uns
~() Havia um livro chamado Catecismo. ].P.C.: E estava escri-
aos outros, um simples perdão ·parece difícil! Até dizemos
to em português? A.V.: Em português naturalmente; mas os
f' ) "perdoar sim, mas esquecer não!" J.P .C. : O que significa
padres estrangeiros, contrariamente aos portugueses, tinham
\J isso? A.V.: Se eu não esqueço não perdoei, então é difícil; até
um livro traduzido em makuwa. J.P.C.: Então chegou a ser
há quem diz: "fulano, aquilo que fez, nunca hei-de perdoar,
) formado na base desse makuwa? A.V.: Sim! Eu aprendi em
nunca hei-de esquecer", diz claramente! "Até se eu morrer
makuwa o catolicismo, que foi traduzido em 1927 pelo Pa-
que não venha no meu enterro, não venha à cerimónia do
dreJoão Fortinos, que trabalhava em Cabo-Delgado; era um
meu enterro, não pode pôr o pé lá." Se você morreu, como
;l j makuwa diferente do nosso, porque o makuwa t~m várias
é que você vai decidir que as pessoas não podem pôr o pé
ramificações, mas entendemos tudo, eles enquanto dizem:
1) lá? Então significa ódio, de tal maneira que é difícil recon-
[em diferentes dialectos da língua makuwa] , eles dizem txe-
' _j ciliarmo-nos, sempre desconfiámo-nos uns dos outros; não
txé, nós dissemos xexé, para referir o quarto mandamento, é
1 _) tudo mesma coisa.- . • sei, talvez por saber que o mundo abriu -se demais, por qu e
~, naquela altura eram comunidades restritas; [as comunidades
(_)
J.P.C. : Okay, posso aproveitar essa parte que falou ,.. _ _ tradicionais] eram constituídas pela mesma família e quase
de. reconciliaÇão para fazer um corte? Claro sobre o ponto todos se conheciam, mas hoje vêm donde vêm [ .. . J. É o que ,
de vista dà religião, nós percebemos o que é reconciliação. por exemplo, fez com que as aldeias comunais não fossem
Já me disse agora que é um entendimento de duas pessoas longe, por causa disso. Eu fazia a minha p alhota aqui e
que pecaram, ou alguém que se tinha desviado e precis·a ser
perdoado. A.V.: Até há um provérbio que diz nata nivan- 1 Este provérbio também está contido no artigo Refle;Yão sobre a Filosofia
re mahiryaakhu khaninthikzliwa: nnonyawihiwa que quer Social do Viegas inserido em anex? d~ste hvr? .. A1 Viegas c o;oc~ es ta
expressão para m o strar que na JUStlÇa trachc10nal condenai " um
dizer, "a mão que sujou nalgum excremento não se corta: culpado n ão eleve significar destr:ií-lo; ele deve ser rec up_:r~d.o , c~m o
sujeito de pleno direito, pela família ou comunidade onde esrn mseJldo .
s No período em que realizámos a entrevista, Mo çambique estava
confrontado com as oficialmente chamadas "h o stilidades " rnilnares
entre os "homens residuais" da Renamo e o exército governamenrnl,
principalmente na zona C entro [Satungira, Mu xúngue] , ao longo d a
estrada nacional .
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
"' j
. ·' .

:jf.
vinha alguém que não tem nada a ver comigo, e nem com à' """"'"' . portugueses, que nos dominaram, nos espezinharam, explo-
minha farn.ília, e fazia a sua palhota ao meu lado ou a frente
da minha. Mas quem é este para estar comigo aqui? J.P.C. :
raram du_rante, não sei quantos anos ... ! Quando. os expulsá-
mos, foi através da guerra; aí é ofensa um ao outro, matamo-
~
Então havia uma espécie de desconfiança. A.V.: Depois eu nos uns aos outros, temos de continuar a matar-nos uns aos __)
ia para o serviço, o meu vizinho é solteiro, não foi ao servi- outros como com os portugueses? Não! Agora entre nós saiu
um grupo, que também fez mesma coisa, agora nós temos
J
ço; ficou em casa, e a vizinha fica lá sozinha, depois ele vai
)
82 pedir fogo ... [risos], água, sal. .. J.P.C.: Sim, mas ao nível um lar, agora somos família. J.P.C.: Então os acordos que
83 )
familiar, amigos da comunidade talvez, agora se formos ao assinamos em Lusaka com os portugueses e ess~ - de Roma?
nível nacional, vamos dizer assim? A.V.: Nãq, a coisa come- A.V.: Era só para o Inglês ver. É a tal coisa, uma pai-te tinha ~
ça ao nÍvel familiar; se hoje até na família é difícil perdoar talvez confiança: "Há-de entrar na nossa linha, há-de voltar, v
o outro, não é fácil essa coisa de reconciliação, .porque eu é irmão! Assina lá, assina lá esse acordo". Mas o nosso irmão )
quando me reconciliar com o fulano, estou a desconfiar dele!- ·~~ não deixa as armas; é tal coisa de desconfiança um do outro.
J
ele é que não quer reconciliação, sempre o mal é feito pelo;: - - · •·· Continuou e disse: "Bom, assinamos mas eu fico com· as mi-
outros, mesmo que eu faça o mesmo mal. .. é difícil, há-de nhas 'armas; e se você não cumprir o que prometeu aqui, está
levar tempo. J.P.C.: Então, acha que com o desenvolvimento aqui a arma". Onde está a reconciliação? J.P.C.: Não, não )
as pessoas misturaram-se e então começou a reinar um clima há. A.V. : Tipo hoje, essa coisa de política· para nós, sabía- __)
de desconfiança, que não permite cultivar os valores ligados mos só governo-povo, não sabíamos essa coisa de política. _)
à reconciliação; A.V.: Desconfiança, separação, etc .. Aí está! J.P.C.: Ou partidos,, vamos assim dizer, diferentes. A.V.: Aí
E hoje com valores monetários, cada um chega para si [no está, partidos com bandeiras, nós conhedamos um Governo
sentido de que é auto-suficiente], não precisa de alguém, não com uma Bandeira e ponto final. A população dizia: ." Aquela
precisa de ninguém, isso também é mau. J.P.C.: Mas então Bandeira [do partido] com aquela Bandeira Nacional é rpes-
o .que acha que se deve fazer para que nós possamos nos re- ma coisa?" Bandeira é bandeira! Então são dois governos
conciliar. A.V.: "Água mole em pedra dura tanto dá até que no mesmo sítio? é mesmo partido? Está aqui bandeira ~e
fura"; este é um provérbio muito v~lho; portanto eu penso régulo, que é dono do território, mas dentro deste território
que temos que seguir esse princípio, não desanimar com o há um partido com bandeira também. O Secretário tàmbéhi
tempo; com novas gerações a coisa há-de mudar. Ruanda tem uma bandeira dele, afinal quem é quem? Ainda s~ o?~­
e Burundi, quanto tempo está levar, até hoje, mas eles não cretário se entregasse no caso da política, era uma.coisa! Mas
vão cruzar os braços, vão reconciliar-se um dia. É a tal coisa, ele também, manda pessoas, tem bandeiras, há pessoas [ ... ]
primeiro a reconciliação não é sólida, mas tem que se viajar é uma confusão. Para quem estudou pode . ent~nder ~ais
para lá. J.P. C.: Sim, mas quem está separado hoje, quando vê ou menos, mas quando a população [no sentido de. "anal- ,~
ao nível nacional [em Moçambique], quais são os que estão Iabeta"J entra lá dentro, é um caso sério, é uma ~onf{i.sã'~: ' " .~. ~
. ' . ' . l . ·..:, '.': • ' • -~ '. ·~

separados, aqueles que devem reconciliar-se? A.V.: Eu pen- J.P.C.: Mas o que é que o país deve fazer para re~t.al?.e~ec.er ·• .. · ·
so que a nossa reconciliação deveria ser primeiro com os confiança entre nós, ou entre as diferentes cultur.ãs?" A.V.: "

\
~'( ._)
.' ( ) José P. Castiano
\ Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
f)
1) Não é o país que deve fazer, mas sim as pessoas;. o que é o outros, qualquer coisa é ruído: "talvez vai acontecer isto";
, r) país? ].P.C. : Dizia .. . em termos nacionais. A.V.: País o que
então, não há paz. É como alguém ·que rouba ou que mata,
:r. j
1'
é? ].P.C.: País somos todos nós . A.V.: Então o que devemos
fazer? ].P.C.: Porque, como vejo, o que está em causa é o po-
não fica em paz com a sua consciência, não fica sossegado,
l; • j aquilo para mim é que não é paz . Guerra é .u m conflito no
der. A.V.: É o poder sim! ].P.C.: Então, reconciliar significa
/:'j dividir o poder? A.V.: Mas dividir o poder significa dividir
sentido mais alto, porque aí, já há armas e, armas matam[ .. . ].
I' ;1,_) Mesmo agora, houve tempo depois de 75 que não havia ar-
84 a nação, dividir o povo, o país. Um vai mandar num sítio e
mas, não haviam matanças uns aos outros, mas vivía1nos em
" J) um mandar noutro! São dois países num mesmo território, 85
paz? Dissemos que agora temos paz , mas começamos a ver
'J não pode! Dividir o poder como? J.P.C.: Pode ser .o mes-
o número de ladrões a aumentar, o número de malfeitores a
j mo governo, mas com pessoas diferentes. A.V.: Está bem, arrancarem bens nas ruas. Isso significa que não há paz . Eu
:·· ) mas pessoas diferentes já somos por natureza; pensamos não sou capaz de sair daqui ou da minha casa à vontade, sem
;l j
diferente por natureza, J.P.C.: sim, de partidos diferentes. temer se vou ser agredido ou não; então isso não é paz. Fora
A.V.: _Agora dizer: "bom, eu vou mandar aqui, você também
destas coisas, ou seja, a ausência destas coisas, incluindo a
) manda aí". O quê é isso? Também não se vai entender; é guerra, é que é paz.
:) divisão do país , com certeza absoluta, ao invés de unidade,
.~) porque nós somos muitos povos em Moçambique, não so- J.P.C.: Então o que é injustiça para si? A.V. : Agora, in-
mos um povo, somos povos; aquilo que se chamou tribo, não justiça é fazer um mal a alguém inocente; isso é que é injus -
fj
sei o que é .. ! O que é tribo? Para nós é n'Loko, J.P.C.: haa, tiça, aquele não merecia e eu fiz-lhe isso . Injustiça pode ser
t) na família; por exemplo, o homem traz caril para casa, peixe,
tradução de tribo é n'Loko. A.V.: Que significa "povo", di-
_) carne, não sei o quê, mas na comida, na refeição não lh e dão
ferente de muLoko, que significa "dezena", "grupo" . Depois
( _) ~ aquilo, é uma injustiça, se ele trouxe. Até fazemos injustiça
em português, quando se diz povo, não é povo de população
() é com os cães de casa. O africano, não digo branco, porque o
[risos], confundecse muito, população e povo, o que é isso?
branco quando estima um cão, estima mesmo . Mas nós não!
)
Temos um cão que nos ajuda em casa, matamos um coelho ,
J Sobre a Paz e a Justiça mas chegados à casa, nunca tiramos uma perna par·a ele. Mas
.r
ele é que perseguiu o coelho e apanhou [risos] , é injustiça .
~) Ele merece ou não merece? Mas porque é cão, não lhe da -
:!. ) ].P.C.: Eu queria saber uma coisa só. O que é paz? E mos nada!
o que é injustiça? vindo do seu lado. A. V. : Para mim paz
l ( _j J.P.C.: Então pode haver, segundo o que está dizer , uma
1•. é quando não há [ . .. ], ].P.C.: guerra! A.V.: Não só guerra,
(-;:) injustiça que é passiva? No sentido de cometer ou evitar. ..
numa família pode não haver paz sem haver guerra, pode
f,) não haver a paz, mas não há guerra; o que não há é sossego, não atribuir uma coisa alguém que merece, A .V.: Exacta-
t'
Ir) ... ninguém _viVe à vontade, vive-se com desconfiança uns dos
mente! J.P.C. : Por exemplo, se a gente não dá educação às
pessoas , é uma injustiça. A.V.: É um a injustiça, por exemplo,
.:
··,
,~
_)
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à Jntersubjectivação corn Viegas
r
)
!:

um praticou uma acção boa, louvável, outro praticou uma ··--· e ·crianças.:.. " [risos] : Porquê não contaram as mulheres e as )
mesma acção , mas nós vamos punir este e não aquele, por- crianças? J.P..C.: Isso está escrito onde? A.V.: Papá9, .o meu -~
quê? Se todos fizeram a mesma coisa; ou então este fez mal e
o outro não fez e vamos punir os dois, porquê yamos punir
mal é este; eu não sei dizer que na Bíblia, capítulo X, versícu-
lo X, não sei; só sei que está lá e qualquer um que conhece a
d
aquele que não fez nada? É injustiça. J.P.C.: Já alguma vez Bíblia pode ir consultar! Pode apanhar lá. Aquilo que contei
sentiu-se injustiçado? [risos] A.V.: Não! é que eu não pen- quando vim aqui, o tentador de Cristo conhecia berna sagrada
so em mim, que mereço isso, aquilo, não me deram; nunca, escritura, porque quando disse a Cristo: "Se és filho de Deus,
)
86 87
nunca, por isso, se fui injustiçado [ ... ].Fui injustiçado sim; diz essas pedras que se transformem em pão". Cristo disse:
eu era professor, dava aulas como o branco dava, mas aquele "Está escrito, não só de pão vive o homem, mas de to_d a pa- .)
recebia mais do que eu, não era injustiça? Então! J.P.C.: Mas lavra que sai da boca de Deus" . O tentador calou-se,. porque J
só lá, aqui depois da Independência não? Nunca foi injusti- sabia que estava escrito . Quando o levou pata o Cenáculo lá,
çado? Não estou a dizer a nível político, mesmo a nível . ·:·-·~:_
J
disse: "Se.és filho de Deus atira-te daqui para baixo; porque
~
A .V .: não, eu acho que fui considerado mesmo no tempo c~ está escrito!" Está ver? Ele também recorria ~s escdturas.
__)
lonial e, eu não sei porquê! Era por causa do comportamen- "Está escrito que Deus mandará o seu anjo par'ã. te receber e
to? Era por causa da dedicação no trabalho? Sempre tive não trOpeçar o teu pé nalguma pedra" . Cristo disse: ".Tam- J
bons resultados. Porque, estando na Lunga, que é "mato" lá, bém está escrito, não tentareis Deus ao senhor ·seu 'Deus.''. )
era acompanhado na direcção da educação aqui. Na altura, a Então tudo está escrito, nunéa disse capítuio X, verskulo X,
e ducação era chamada Repartição Escolar. Ao ponto de me está escrito na Bíblia. Quem vai ver os evangelhos, porque )
chamarem de lá, para receber medalha em Lourenço Mar- são quatro, um conta isso, outro não conta. Evangelistas são
ques. JP .C.: Em que ano? A .V .: Foi em 1972; recebi a Me- assim, há episódios que contam e outros não contam. Por
dalha da Ordem da Instrução Pública, aquilo foi uma honra exemplo, quando vão prender Cristo, os evangelistas dizem:
para mim, apesar de estar lá, mas havia lá também outros, "Ele perguntou, querem Jesus Cristo de Nazaré?", E Ele •
~Ús_-1
talvez tivessem sido injustiçados [risos]. se: "Sou eu, se é a mim que me quereis, prendei a mim e deixei
estes", E assim está escrito e está cumprido o que o profeta
disse: "Dos que me deste não perdi nenhum." Está .ver? Mas
Sobre a Religião Cristã e o seu Papel • 1

outro evangelista diz quando chegam: "A quem-procurais:?··


Jesus de Nazaré?", depois Jesus diz:· "Sou eu; IOgo que disse
isso, recuaram e caíram". Mas outro não ·falou em ca:ir. 1: .;
J.P.C.: Mas não acha que ao nível familiar, por exemplo,
mas lá está, eu vou encontrar isso quando for ler. J . P.C ~ : Mas
o lugar, o papel da mulher é injusto? A.V.: Foi sempre injus- , · I•

ta_, des_de_há_muito temp_o, mesmo_na religião. E.orquê é que


como interpreta, já que estamos na Bíblia, o gesto d~Jdl;ls 'dê
escolher doze apóstolos e cada um ser de-'t-~ibo difereme? D~
evangelistas escrevem: "Jesus transformou três pães e dois
peix es e comeram 5000 mil pessoas, sem contar as mulheres 9 Alberto Viegas gostava de chamar por "papá" independc;:nt.e mente da.
idade ou o estatuto social dos interlocutores . ·, , .- ,·
~~--:
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1
l·'; ) José P. Castiano
~. '·. Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
~I\ )
cada um representar uma das. doze tribos? A.V.: Ele é que
Ainda não chegou a minha hora" 11 . Ele a tratou d e " mu Ih er "
1: _)
/i
disse? ].P.C.: Como? A.V.: Ele é que disse isso? J.P~ C.: Está
e não disse mamã, o que é isso? J.P .C.: Tratou por "mulher"
!J escrito na Bíblia! A.V..: Sim? Ele é que disse? O que sei é que
à sua mãe? A .V .: Sim, à mãe: "O que é que eu e tu temos
quando disseram: "Nós deixamos tudo,_ seguimos-te, que re~
a ver com esta festa aqui, somos simples convidados" . .Nlas
compensa teremos?" Ele disse: "Em verdade vos digo, nd
') Maria não ficou ofendida. O filho chamou-lhe "mulher". De-
dia do julgamento final, sentareis em doze tronos e.julgareis
'_j pois Maria foi ter com os criados: "Façam tudo que El~ ~os
1 88 as doze tribos de Israel" . Não é cada um era daquela tribo,
mandar", voltou e sentou-se. Passado algum tempo, Cnsto 89
) cada um teria encargo de julgar cada uma das tribos. ].P.C.:
vai lá e faz o milagre sem querer.
1, ) Não eram representantes das tribos? A. V.: Não! Não! Não!
J.P.C.: Não? A.V.: Não! ].P.C.: Mas não está escrito, que A.V.: A segunda, ê quando Cristo está na cruz, a m orrer
)
ele escolheu cada um dos representantes? A.V.: Bom, isso na agonia, vê João em baixo, também e ele diz, dirigindo-se a
) Maria: "Mulher, eis aí teu filho". Naquele decisivo momen-
eu não vi, não sei, é possível, mas eu não me lembro de ter
).
_./
visto; só sei que Ele disse: "No dia do julgamento final, senta- to, trata a mãe de mulher12. J.P.C.: .Nias isso discutiam enr_re
os catequistas? Refiro-me a estas observações que está faze r
[,. ~
reis em doze tron.os e julgareis as doze tribos de Israel". Isso
disse! Agora, se cada um representava cada tribo ... não sou agora? A .V.: Não, não tínhamos essa liberdade que ternos
' , capaz de saber. ].P.C.: Pode não ter vindo de cada tribo, mas hoje. Tínhamos só que ouvir o Padre . J.P.C. : Mas na a~tu ­
1· era- cada um devia julgar cada tribo. A. V.: Sim, agora essa ra que ouvia essas coisa, pensava essas coisas? ~ . V .: S1m ~
linguagem papá! Ali há linguagem metafórica, há linguagem J .P.C.: Ou admirava-se pelo menos? A .V .: Bom, as vezes ha
1:J [. .. ],por exemplo o dia, quando a Génese diz: "Deus criou pensamentos que vêm mais tarde! Com a prática da Av1~ .
I•
no primeiro dia isto, no segundo dia aquilo, no terceiro aqui- Chama de mulher à mãe na altura da agonia, porque nao
''.J lo . .. ", seria o "dia" mesmo de 24 horas? O que significava ~ disse: "Mãe, eis teu filho"? Depois disse ao João: "Eis .ª tua

L· "dia" na língua deles? A língua amárica ou judaica, hebraica; ___: mãe!" Então quando dizem- que- Maria tinha outros filhos ,
'r o que significava tempo? E tempo o que é? Pode ser milhões além de Cristo, porque precisava entregar ao João? Ou era o
' de anos. No primeiro tempo Deus criou isso, no segundo único na cruz? J.P.C.: Não sei!
i( J
tempo! Está ver? É como palavra "mulher", teria conceito
f )
que hoje tem? Teria o significado que hoje tem a palavra mu-
..--.,,l
lher? Ao ponto de desprezarmos? ].P.C.: Não ou sim. A.V.: 11 Refere-se à cena d a transformação da água em vinho no b anquete d~
·J Porque é que é que Cristo, no dia do casamento lá em Caná, casamento em Caná , Galileia, descrita em.João 1:3 2 , 2 ,_ 2 -11. A cena .e
descrita como tendo sido o "primeiro milagre" d e Cristo na G alilern
Maria quando lhe disse: "Olha, eles não têm vinho", e Ele (11).
disse: "Mulher 10 o que é que eu e tu temos a ver com isto? 12 Na verdade, Viegas questiona uma passagem em.João 19:39, 25-26 ond:
se narra que quando Jesus , já em Golgotha, em agonia e crucificad o, v e
a sua "mãe" Maria acmnpanhada por 1nais duas " Mar~as ", uma sendo
a mulher de Clopas e a outra a Maria M agdalena, virou-se _pa~·a ela
10
Itálico meu. c h amou- lh e por. " n1tun
_n er" . Depois , virando-se para o seu d1sc1pulo,
João, disse: "Eis a tua mãe".
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

com.ungar .. ! Uma vez [um colega] chegou no Centro de For ~ - isso que estou a perguntar! A.V. : Para mim Religião é acredi~
mação de Professores, e falou dessas coisas para a popula- tar que existe-alguém que fez tudo isto, que fez o inundo, que
ção, ele pediu-me para interpretar; ele falava em português e é Deus; a Religião começa dai; agora Deus rião está sozinho;
eu interpretava em makuwa; ele é makuwa, a população tam- há boas pessoas que morrem e que vão ficar com Ele lá e eu
bém é makuwa; porque não falava em makuwa? Só quando acredito nessas pessoas. Essa é a Religião Tradicional. Se não
chegou a parte onde dizia: "Fé em Deus, onde tu estavas?" faz templos, · igrejas, mesquitas, não interessa. J.P.C.: Sim,
94 Eu lhe disse "fala você agora", fui sentar-me, "diga lá isso mas quando aquelas pessoas fazem na Igreja tradicional não 95
com a sua boca porque tu eras professor catequista e hoje ,é evocam a Deus; evocam aos antepassados! A.V.: Evocam a
que sabes que Deus não existia." Portanto por conveniência Deus. J.P,C.: Como se chama Deus em makuwa? A.V.: Mu-
ou oportunismo, vou ser assim porque hei-de ser chefe, mas lukhu. Mulukhu é Deus, a primeira coisa que evocam é
quando vê que não consegue ser chefe volta atrásu. Muitos Deus. Evocam a Deus sim senhora! J.P.C.: A diferença que )
ali é para não perder o pão[ . . . ]. J.P.C.: Fora disso há igrejaS;-- """:. existe é que eles não têm uma Igreja. A.V.: Não têr:n porqu,e
que têm uma lista de preços para quando você quiser "sei: Deus é espírito e os que morrem tornam-se espíritos; não pre-
rezado" para não sei o quê! A .V.: Por exemplo, aquela coisa, cisam de um lugar para eles serem evocados, qualquer-sítio
a Igreja Universal, aquela não é Igreja é uma organização de serve! J.P.C.: E nem têm rituais? A.V.: Escritos não; rituais
angariação de dinheiro, muitos proveitos, Cristo também são aqueles que eles pronunciam, a oração espontânea, en- _)
disse, "muitos falarão em meu nome, mas no dia do julga- quanto a Igreja Católica tem tudo estabelecido, [ ... ].-_Pensa J
m.ento direi: não vos conheço!" J .P .C.: Para terminarmos o que nós cristãos em relação àqueles [da Réligião Tradicio-
assunto sobre Igreja só tenho uma pergunta, o que é feito nal] quem reza mais? J.P.C.: Eu não sei. A.V.: Rezam mais
hoje da sua religião tradicional? A.V.: Está a ser praticada eles da Religião Tradicional porque dizem coisas espontâ-
[no sentido de "instrumentalizada"]; agora, ultimamente, neas; na oração deles [Religião Católica], você repete '.'Paic
quando se fez ou o Governo quando quer fazer algum traba- nosso" que já foi escrito há muito tempo, "Avé-Mariã.", já
lho ou uma obra, começa com a Religião Tradicional, chama esFá escrito; você só repete as palavras dos outros. E qual é a
.
os chefes tradicionais para oferecerem farinha, oferecerem
produtos, etc .. J.P.C.: Como fizeram na UP? A.V.: Sim, aqui-
importância que essa Religião ocupa hoje na sua vida? J.P.C.:
Mas o meu Deus não tem o mesmo nome que o seu ... A.V.:
lo significa "se eu não acredito pelo menos tolerar," que é Não interessa! Mesmo na Europa, os ingleses chamam God,
deixar que os outros façam a sua parte. J.P.C.: Mas podemos os italianos Dia, eu sei lá, não interessa. Porque un~ discu-
chamar isto religião? A.V.: O que é Religião afinal? J.P.C.: É tiam Deus não existe; "porque se existisse - dizem eles - Ele
haveria de eserever o nome d'Ele lá no céu". Eu disse "você
13
Viegas ~stá a reflectir sobre o fenómeno de moçambicanos que eram
está maluco, quantos nomes haveria de escrever?" ..J_P.C.:
católicos antes da independência; depois estavam na vanguarda do Mas qual é o sentido que tem na sua \ rida esta Religião Tra-
laicismo [não confundir com laicidade] do Estado pró-marxista dicional? Tem-na praticado? A.V.: Eu acompanho 'qú'ándo
pós-independência, mas sobretudo aqueles que voltaram à Igreja no
p e ríodo liberal. fazem, mas não pratico como Religião, já sou cristão. J.P.C.:

\
!. • )
, Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjec t ivação com Viegas
1) José P. Castiano

•J um só porque ele é um régulo 15 ; hoje estou a ver jovens a


·J Então sabe também conduzir cerimónias? A.V.: Eu posso
oferecer sacrifícios, estamos a confundir tudo, porque entre
' dirigir, mas aqui em Nampula não posso porque eu não te-
J eles há aqueles que foram entronados e há aqueles que não o
nho elo de ligação com os antepassados; a quem vou evocar?
:J Eles não me conheciam, conhecem-me agora? Porque esta
foram; ·quando se senta numa reunião, os entronados ficam
·J juntos, aquele que não o foi é régulo sin1, mas não se junta
coisa que estamos a fazer ... não basta ser régulo. Não é, não
() com aqueles; nós estamos agora a confundir tudo! Eu posso,
basta ser régulo; tem que ser um indivíduo ordenado sacer-
') se eu quiser, oferecer sacrifício; posso sim! Ninguém há-de 97
96 dote, indivíduo ordenado para aquele trabalho. J.P.C.: E
- discutir comigo; basta saber dizer aquelas coisas; tirá-las da
) quem ordena na Religião Tradicional? A.V.: Aquele que tem
ligação, aquele que vinha oferecendo a farinha e indica cabeça, conhecer os nomes daquelas pessoas; ninguém vai
lt )
dizer "mas quem é você? Com que poder você faz essas coi-
alguém. Assim como aquela mulher 14 que estava ali sentada
J com aquela peneira; então ele dizia "eu já estou velho", por- sas? Quem é o seu antepassado?" Ninguém há-de pergun-
) que geralmente morriam velhos, "já estou para vir juntar-me tar! Portanto agora é de qualquer maneira. Não era preciso
) a vós; até hoje fui eu que falei sempre convosco nestas ce- que todos aqueles ali oferecessem sacrifícios; não! Chegava
rimónias; mas daqui em diante há-de ser esta aqui"; enquan- só aquele primeiro! Os outros podem falar, mas não devem
)
{
1
to isso está atirando farinha; depois tira farinha entrega-lhe ser tornados figuras principais das cerimónias.
:i,J
nas mãos, as duas mãos, depois ajuda a deitar; no fim diz J .P .C.: Quando é que recorre ao cristianismo e quando
!·.')
"fala lá tu"; e ela própria atira a farinha e diz "eu sou criança, é que recorre a sua Religião? A.V.: Eu não recorro à m.inha
\)
não sei falar, não conheço nada, mas peço que quando eu Religião Tradicional; só acredito que os mortos existem; eu
•) falar aqui me oiçam;" está a ver? Já a primeira oração ela faz, não os evoco, eu rezo como cristão, acabou! J.P.C. : Porque
•. _) a partir dali quando houver cerimónia, aquele sacerdote vai .~ não os evoca? A .V .: É porque não vêem à cabeça, pronto!
(j dar a primeira pronunciação; depois dele, aquele que foi or- ,,, _]' Porque eu sei que, por exemplo, a própria Igreja tem san-
{j denado, começa pouco a pouco a dar farinha; não é qualquer tos; santos são seus antepassados; acreditam que existem
mas não evocam directamente a eles. Sim os santos são an-
•' )
tepassados da ' Igreja, os meus também são antepassados,
')
14
Alberto Viegas refere-se, a seguir, às cerimónias tradicionais que e~ acredito que estão com Deus assirn corno eles [na Igreja
() antecederam a inauguração do edifício do complexo pedagógico da UP Católica] acreditam que estão com Deus . Perguntei os pa-
Nampula, com a presença do Presidente da República. Alberto Viegas
:.'J foi convidado a assistir na sua qualidade de membro do Conselho de dres: "há [Padres] portugueses aqui, há [Padres] italianos,
: r. ) Delegação . da Universidade Pedagógica Nampula. Conduziram esta [então] porque é que vocês discutem sobre Santo António,
~l cerimónia tradicional três ou quatro régulos tradicionais. No entanto
ir ) o régulo principal, que ia deitando a farinha no chão, retirava a farinha italianos e portugueses? Os portugueses dizem Santo Antó-
L aos poucos de uma peneira cuidadosamente segurada, pela "mulher" a

1~
que Alberto se refere. Ela também ia poupando a farinha, para que esta "O termo "dar" refere-se ao acto de o régulo deitar farinha para os
fosse suficiente para todos régulos. antepassados . De facto, a mulher media a farinha para distribui-la quase
L que equitativamente por todos os régulos que iam fazendo a bênção ao
;'(J novo edifício d a UP.
, '
"')
j~ 1

~!'
-, . . '~

t ) .
L\i ., - ...,_:..
1-
José P. Castiano :~_ - Filosofia Africana: da Sagac idade à lntersubjectivação com Viegas

nio de Lisboa, nasceu em Lisboa, os italianos dizem Santo ...._ diga que esta criança está doente por causa, p.e., do seu tio
António de Pádua, porque ele trabalhou em Pádua. J.P.C.: e precisa .de~fazer cerimónias para acalmar esses tios. A.V.:
A cultura latina é conhecida como tendo muitos santos, os Faz. J.P.C. : Papá é que deve fazer, não o médico .tradicional.
germânicos já não têm tant os, estou a falar de alemães e in- A.V.: Ele é que vai fazer; ele é que sabe. Eu posso facilitar,
gleses; eles não têm tantos santos na religião deles. A .V .: Mas dar-lhe dinheiro; comprar tudo, mas ele é que vai fazer tudo. _.)
a religião deles qual é? J.P.C.: São cristãos. A.V.: É católica? J .P.C.: Mas ele pode dizer "olha chega em casa faz isso", di-
98 J .P.C.: É .católica mas não têm santos, por isso acredito na zer "não dorme deste lado, dorme daquele!" A.V.: Isso não
99 .,,..)
\
versão de que os santos são antepassados porque os sant os vale porque é obrigação; podem dizer você vai lá à Igreja ir
estão ligados a determinados países, culturas ou famílias! A rezar Santo António lá. Você vai lá à Igreja mas a sua reza lá J
cultura alemã e os ingleses não falam muito de santos . A.V.: não conta.J.P.C.: Mas, eu ainda vou-lhe continuar a "picar". !
Os ingleses têm influência de protestantes que dizem Deus Será que em algum momento lhe fez mal essa Religião T~a­ J
disse, "não adorarás mais ninguém! " Porque eles dizem qu:---c~ dicional, para abandoná-la relativamente? A.V.: Não me faz
J
a Igreja Católica adora os santos. A Igreja Católica defendei mal nenhum; eu não tenho nada contra, por isso até defendo
_ .I ;
\
que não adora, venera os santos; agora eu sei o que é adorar que é da nossa cultura, deve ser valorizada. [ ... ] Muit9 bem
j
e o que é venerar. Eles não criaram santos . Não, a Bíblia já sim senhor, deve ser respeitada. Porque é que os outr~s res ~
está lá, "não adorarás a outra coisa no mundo", do outro peitam as suas religiões lá na Europa? Só porque é dci preto .)
lado a Igreja Católica faz imagens, mas a Bíblia diz para não não se deve respeitar? Porquê? Chamam de anímism,o·,;·P or- j
fazer imagens. J.P.C.: São esses do Oriente que fazem ima- quê animismo? Porque se chama tradicional? Porque antes
gens, são iconoclastas. Mas então abandonou a sua Religião dos outros trazerem a sua Religião, nós j~ tínhamos esta reh-
Tradicional? A .V.: Eu não abandonei, acredito nela, posso gião. Por isso tradicional; e isso o que é? Aquela galinha que
não praticar , mas acredito . Mas "praticar" o que seria? Eu se chama galinha makuwa; eu não gosto quando chamam
sair com farinha? Sozinho ou convocar minha família para por galinha makuwa; uma galinha nunca é makuwa, nunca
rezar? Não! Não é preciso! Eu limpo as campas dos meus é·changana, nunca é nyanja: Ela é somente uma galinha. Eu
pais e campas dos meus irmãos. J\credito que eles vivem; vou a Maputo encontro galinha da mesma qualidade, vou a
a maneira como vivem, somente eles é que sabem! J.P.C. : Niassa encontro a mesma coisa, é galinha 'SÓ! Tradicional.
Mas se alguém está doente? A.V.: Isso é outra coisa. J.P.C.: Na nossa tradição galinha é aquela ali. J .P.C.: Não, quan-
Não faz cerimónias que estão ligadas a uma Religião Tradi- do dizem galinha zambeziana é como dizer .. . A.V.: galinha
cional? A.V .: Não vou rezar aos antepassados para curar um à zambeziana, preparada da maneira da Zambézia! J.P.C. :
doente; vou ao curandeiro porque ele é médico . J.P .C.: Mas Ahhh! É à zambeziana. A.V.: Preparada, é como galinha ca-
ele, às vezes, pode evocar. A.V. : Ele que evoque, eu peço a freal16. Não é galinha cafreal, porque cafreal quer dizer dos
ele para curar o doente; ag;ra como ele vai fazer isso, não
16 Cafreal vem da palavra kaffir, nome pejorativo adaptado da língua árabe
sei . JP .C .: Ele pode evocar a um espírito antepassado seu.
pelos boers e que significa literalmente "pessoas sem fé" ou incapazes
A.V.: Está bem, mas isso é com ele! J.P.C.: Por mais que ele de professar uma religião, ou mesmo "sem religião".

\
'· _)
,' ) José P. Castiano ' filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com \/i ~~,á~'
()
') pretos, ca/re ! Então galinha à cafreal, falta "à", que significa J.P.C.: Sim, é esse outro nível que queria perguntar; a
. ') preparada à maneira dos pretos, porque os brancos só sa- nível de "deuses" na Religião Tradicional: Há um que é espe-
') biam abrir galinha e fu:má-la, fumar mesmo! Depois comiam. cialista em .chuva e outro que é especialista em fome? A.V.:
•, j Quando chegaram aqui, encontraram-nos a nós, abríamos a Deus é um só! Aquela sua "gente" [refere-se aos "antepassa-
'" )
galinha, punhamas sal, um pouco de piripiri, depois assa- · dos"] que estão com Ele é a quem Ele encarrega: um para a
mos, não directamente na brasa, à nossa maneira. Então eles chuva, um para o sol, etc . Não são Deuses, são "trabalhado-
) gostaram ... [risos].
100 res" de Deus. J.P.C.: Sim, mas como disse no início, o nosso 101
) Deus tradicional, posso falar assim, não é castigador. A .V .: É
J.P.C.: Mas vamos voltar à religião; isso vamos falar nou-
'. ) castigador, mas não eternamente; castiga e pára, castiga sim
tro dia, eu ainda tenho perguntas sobre a religião. Agora, se
j J?eus, que diz set tradicional, como é que é concebido? A.V.: senhor! Só que não é aquele castigo eterno . J.P.C. : Ou é pro-
) E concebido como sendo "bom", pelo menos aquilo que eu tector só ... A.V.: Não, quando há um mal, quando há justiça
\ _) ouvi; o que eu penso não é? Agora que sou cristão é difícil, a fazer, Ele faz; só que não castiga para sempre, como se diz
de facto, definir Deus; mas naquela altura eu acreditava em lá no inferno, "inferno é que não nos escapa! " J.P.C.: E acha
'j
tudo que se dizia; é como um chefe da povoação, um rei que que estas religiões tradicionais têm chance hoje? A .V.: Se é
(j tem a Sua casa, tem os Seus ho1nens que O servem, aqueles tradicional, então significa que, por exemplo, ao não desa-
,') que Ele manda para cá e manda para lá, da mesma maneira parecer de qualquer maneira, têm sim; se estamos a voltar
Jj ~ue a Igreja pensa que Deus tem anjos que são Seus emissá- para elas agora, solicita-se a eles para oferecer sacrifícios aos
rio~ não. sei quê; também nós pensamos assim que Deus não antepassados, não é prática? J.P.C.: Sim, mas é manipulação
u :sta sozmho; aqueles que morrem, os velhos, ficam com Ele· política, acha mesmo que as pessoas estão a crer nela? A.V .:
1 _)
e _[como se _houvesse] um conselho lá onde está Deu s,. El'e
Papá! Não é manipulação política! Em 1989 houve falta de
1J n~o ~~rre, não é.velho, mas é idoso, não é jovem. J.P.C.: Sim
... °- chuva aqui em Nampula e Ni~sa; não sei na Zambézia; mas
_) nao e idoso, é sábio. A .V.: Surgiu assim mesm 9 , sabe tudo.
faltou chuva em quarenta e nove, o milho tinha nascido, ti-
)
J.J~.C.: Mas está onde? A.V.: Dizem que está no céu . }.P.C.: .
nha crescido, partia-se até a ponta cair no chão; mas não se-
N_ao, mas esses são os cristãos! A .V.: Não, não. J .P.C.: Tam-
j parada do caule principal; seria ano de grande fome , mas o
bem a Religião Tradicional africana diz isso está no ce'u
t'j
, . ' ou administrador de Cuamba e o de Malema convidaram p ad r es
esta em ~1ma . A.V. : Dizem "em cima", no céu; 0 que é céu
para realizarem uma missa, e convidaram também os régulos
,(j afinal? Sa~ no~es esquisitos! Até porque dizem que concre-
para convocarem a população para realizarem a cerimónia
,:'. J t~men:e nao _existe em cima e em baixo; é a nossa impressão;
tradicional; realizaram-se cerimónias tradicionais , agora não
)l_J nao ha _em c1~na, não há em baixo; então nós dissemos que
sei se foi por causa de cerimónias tradicionais ou por causa
~ '. 1?e~1s nao esta connosco aqui, mas está a olhar-nos, está a as-
)'~ da missa da igreja , mas a verdade é que choveu, o nlilho co-
s1st1r-nos; de vez enquanto vem passear aqui, às vezes manda
meçou a levantar a ponta que estava no chão, e deu espigas,
"'_) um que vem controlar a chuva num ano; então-esse torna a
foi um ano de grande produção! O próprio administrador
~,1 j chuva acessiva, [risos] às vezes outro vem.
-·- ·~ colonial branco chamou aos régulos e perguntou " quando
.t>"
.,, _J,
:~~ .

ÍEJ,:;1.
1
Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
José P. Castiano
j!
J
)'
acontecia assim antigamente como é que vocês faziam?" Lã ~ só ficar o português, assim como quis matar todo tipo de
j
isso sim, era manipulação política. regulado e.ficar só o Rei de Portugal; os outros passaram ·a 1

ser "régulos" o quer dizer "pequenos reis" ou,· ".reizinhos";


J.P .C.: Então significa que as duas religiões coexis-
até é pejorativo; se os próprios régulos soubessem ... J.P.C.:
ten1.· e não só coexistiram mas também reconciliaram-se,
' Soubessem o quê? Que são "reizinhos" não é? À.V.: Que são _)
integraram-se? A.V.: Nunca foram inimigas, integraram-se
"reizinhos", "espécie de rei"; nem chegam a ser ; eis; o rei era )
sim . J.P.C.: Só que nós africanos somos mais ricos, porque
só o de Pprtugal! _ 103 _)
102 fazemos tipo "compras" não é? Um dia podemos recorrer
à uma Religião e noutro recorremos à outra: fazemos uma J.P.C.: Nas outras partes de África, isto que está a en- )
espécie ,de compras! A.V.: Tratamento não tem nada a ver sinar-me aqui sobre, vamos assim dizer pelo próprio nome, )
com a Religião; tratamento é medicina. J.P.C.: Não, não é "resistência" à cristandade, algumas mensagens não estavam
)
uma figura de estilo, quando estou a dizer' quer dizer há um adequáveis à nossa situação; noutros sítios em África houve
dia que agente vai adorar estes e num outro dia adoramof ''"~ _-· ~;_ . até negros que escreveram a sua própria Bíblia, e fundaram J
outros. A.V.: Não sei! Só sei que mesmo antes do Cristo~ -·. " · 1
• a.s suas próprias igrejas, neste sentido. A.V.: Sabiam ler e es- J
na Judeia, havia uma Religião Tradicional deles. J.P.C.: Sim, crever! J.P.C.: Então a pergunta é se aqui em Nampula,nesta
eu sei! A.V.: Até essa religião, não aceita Cristo como o Sal- zona, não houve? A.V.: Não sabíamos ler e nem escrever;
vador; dizem que Cristo ainda não nasceu, o Messias ainda iam escrever o quê? Era só acreditar naquilo que os outros
não nasceu, é a Religião Hebraica: J.P.C.: Aquele é falso! disseram, repetir aquilo, não há nada escrito! J.P.C.: Sim,
A .V.: Dizem que aquele foi um profeta qualquer, como veio mas houve outros que, não sabendo escrever muito, todavia
J
adaptaram a Bíblla um pouco; conheço a Igreja Shem.b e na
)
Isaías, como veio Jeremias, também ele veio e foi; o Messias
\
ainda não nasceu porque Ele é para salvar o povo judaico das África do Sul, um indivíduo que achou que era o 'Messias ..)

mãos de dominação dos outros; porque naquela altura eram dos negros e também foi à montanha e ,d esceu. A.V.: Como j
dominados pelos romanos; disseram que se Cristo fosse um Muthui por exemplo! J.P.C.: Como nãó; Muthui foi um pro- )
Salvador, havia de destruir o Império Romano e deixar os ju- testante católico, ele nunca fundou a Igreja dele, é. um r.e-
-{
deus livres, com o seu reino; porqu~ eles acreditavam serem verendo; mas há um outro chama9.o Shembe, que fundou a
_)
a nação eleita; Jerusalém vai ser a sede, está a ver? Portanto Igreja dele; aqueles que se vestem de branco com fitas azuis;
nós aqui também temos a nossa Religião Tradicional; este e claro a base é o cristianismo. A.V.: Sim, mas quando é que !
branco trouxe aqui e começou a combater a nossa cultura; o homem libertado na África do Sul em relação a .Moçam- .)
se você não falasse. português não era gente; a própria lín- bique porque lá colonizaram uns aqui colonizaram outros; )
gua chamou-se "dialecto"; até hoje nós dizemos "dialecto" aqui queriam que todos fossem portugueses; aquele :que não j
makuwa, dialecto ajaua; esses não são dialectos nenhuns: são concordasse com o português era "cortado" e não-tínhamos )
línguas! O branco é que quis matar todas as línguas para a possibilidade de escrever livros e mand,a r editar. J.P.C.:
,._, .r.
._)
'.":' J
...)
\
_)
r)r·)') José P. Castiano " Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vieg as

L~
Uma última pergunta parece que está cansado : vamos [con- casar não sei; essa pergunta é uma daquelas que eu também
• i
tinuar a] falar? A.V.: Não estou! JP.C.: Não está mesmo? me faço sobre determinada afirmação; quando o evangelista 'lJ
l A .V. : Por acaso não 11 . ,
'

,il ·_J diz, "Maria estava casada com o esposo, desposada com um
!
'(
1 _) JP.C.: Qual é a diferença entre a Religião Católica e o varão chamado José". Mas aconteceu que antes de ele rece-
'.<' ) missionarismo? Ou é mesma coisa? A.V.: Bom a Religião Ca- ber a mulher em casa, Maria achou-se grávida; então o José,
.1
tólka mandou missionários; o que é o missionário? M1ssio- como era um homem justo, quis manter secretamente para
!1 ) 104
j nário é da missão, vem da palavra "missão", miÚa; significa não difamar e haver justiça; só que o anjo veio aí e disse a 105
J
·) José, "não tenhas medo; recebe.Maria como tua esposa , por-
enviados, missas anjeles; foi enviado o anjo Gabriel, um missas
' ) enviado; ei:tão a Igreja Católica quando a Europa começou que ela concebeu pelo.Espírito Santo" e José recebeu , e não
lj a descobrir o mundo, quis aproveitar esse momento para a conhecia; "até que teve o seu primogénito" ; agora muito
') espalhar a Religião Católica, então mandava missionários obrigado! "Até que teve o seu primogénito - não diz, não
mandava padres-,, até foi na altura que se estabeleceu a lei d~ se diz, eu posso especular - se teve o " primogénito " será
'J celibato. O grande Papa - não sei se foi Gregório _ di . que teve outros filhos posteriores? Porque primogénito quer
') "A . . sse.
partir de hoje, quem quiser ser Padre deve renunciar 0 dizer "primeiro filho", não é o único , mas também pode ser
() casamento porque a Igreja tem que dispor deste indivíduo único! Então essas coisas deixam o indivíduo a pensar está
'.'_) e mandar nos navios!" ].P. C.: O celibato foi muito depoi~ a ver? Então a Igreja impôs a divisão: "quero padres liv res
(j não é? A .V .: Foi muito depois, todos eram casados, os papas e solteiros para eu mandar para onde vão os navios do Go-
.) eram casados, os apóstolos eram casados. J.P.C.: Mas 0 São verno"; porque era o Governo que mandav a; a Igreja é que
Pau..10 _não? A.V.: Paulo disse: "Convém que um bispo seja aproveitou as viagens; J .P .C.: porque é que deviam ser sol-
· '~)
escolhido por u~ indivíduo casado que tem filhos para dar teiros? Porque um Padre com filhos ern casa, com a mulher
·)
exemp~o à comunidade", porque "como é que vai dirigir a '. .:._.: em casa, havia de se preocupar com a família, agora seria
( _)
comumdade do Senhor se ele não sabe dirigir a sua casa a desumano abandonar a mulher e os filhos para virem, por-
,) sua familia? Não me considerem a mim; se eu estou assim que eram aventureiros mesmo; "aventureiro" é aquele que se
'J é que considero-me prisioneiro de Cristo voluntariamen- atirava para onde não conhece, e nem sabe o que é que v ai
() te"; Sim ele não estava casado, resta saber se ele antes de se acontecer; então dai nasceu o "missionarismo" , mission ário
converter não estava casado . [risos] JP .C.: Não, não estava. enviado sim.
1J A.V.: Não sei, eu não posso pôr as mãos no fogo· se ele era
,fj J.P.C.: Mas eles eram enviados coin uma determinada
\'
até comandante da tropa, se perseguia os cristãos: já era um mensagem? A.V.: Mensagem da Religião, ir pregar a Reli-
,r) homem adulto, chegava aos trinta anos, quarenta anos sem
1.- gião. J.P .C.: Sim, mas não de toda a Religião , quer dizer, não
!'-:-;:)
i' de todo pacote ... A.V.: Como? J.P .C.: É assim, da forma
i1J
1
17
Nota do Autor: foi frequente, durante a entrevista, eu tef lido sinais de como eu concebo missão, é uma preparação para alguém ir
'(J cansaço em Alb_e rto Viegas, erradamente. Ele insi6tia que não estava e
que quena connnuar.
J.l _)
+_>

ir l
,, ·,,_)
José P. Castiano Filosofia Africa na: da Sagacidade à lnte rsubjectivação com Viegas ).

pregar o Evangelho de Jesus Cristo, numa determinada re'!: -·~ l;í em Niassa que não éramos portugueses; agora capítulos (
gião, neste caso era África; mas a mensagem que se escolhia específicos.-que eles deviam ensinar neste momento não me )
1
para África não era a mesma àquela que os mesmos missio- aparecem, não posso estar a inventar, mas ensinavam-nos )
nários levavam para Ásia ou para Europa; podiam somente mais a humildade, [ ... ], enquanto os da Consolata diziam
recorrer à mesma base, que era o cristianismo. A.V.: Sim de- "vocês estudem lá, aproveitem lá a ciência do branco para
pendeu de quem conduziu esse missionário para lá, no nosso
.J
valorizar isto, por que Moçambique não há-de ser sempre
106 caso aqui era Portugal, que queria fazer acabar tudo que fos- [uma] colónia"; ~m 1947 um padre falou isso, ensinou-nos a J
107
se religioso J.P .C.: Sim! Aí. era onde íamos começar já ago_ra dizer que nós éramos portugueses, ele vinha dos padres por-
a falar. A.V.: Sim! J.P.C. : Então missionarismo é uma adap- tugueses aqui, então chegava na escola "quem sois vós?" _)
tação, de certa forma de uma mensagem geral, para um de- [ ... ] "Vocês têm que dizer nós somos portugueses! .", e res- ~
terminado objectivo . A.V.: Sim, o colono português como pondíamos assim e o padre ouviu. O tal padre Casanova veio
J
tinha uma outra ideia, dominar todos e transformar .ist9- ·~~ para a escola [e perguntou:] "quem sois vós?" "Nós somos
[Moçambique] em Portugal; então, como missionário haviá· portugueses!", "o quê?" [perguntou ele] "Somos ·portugueses!"
coisas que não podia ?izer. J .P. C. : É isso! Eu queria chegar aí; [respondemos] ; "sentem-se lá, trás lá o mapa do mundo~' e
são aquelas partes que se deu conta, que aqui o.s padres esco- estendeu o mapa na parede. Mandou pôr o mapa na parede, _)

lhiam a mensagem e na homilia interpretavam de forma ou de levou-nos lá à Europa: Alemanha, França, Itália, e volta à )
modo a fortificar o sistema colonial, por exemplo. A.V.: África, Angola, Moçambique: "então Portugal onde .está?" j
Aqui, na região nortenha, estava dividido; em Cabo Delgado "Ali"; "Itália aqui", "eu sou de onde?" "Da Itália, então sou j
estavam missionários holandeses, mas ao serviço de Portu- Italiano", "sim, sim", e "a pessoa que está aqui na Espanha é
)
gal; a região do Niassa e.s tava entregue aos missionários ita- espanhola, e a pessoa natural daqui de Portugal é portuguêsa
lianos da Consolata; os holandeses eram monfortinhos; quer )
e quem está aqui em Angola é africano: como é que é portu-
'
dizer, de São Luís de Monforte da Consolata; aqui em Nam- guês esta pessoa que está aqui?" "Moçambique está · aqui, (
pula eram padres missionários que se chamava Sociedade Vasco da Gama saiu daqui" - e com a vara apontou Portu- )
l.
Portuguesa das Missões Católicas !Jltramarinas vinham de gal - "e ele estava de passagem, o interesse dele era o: cami-
Cucujães.J.P .C.: Okay! A.V.: Imagina o português que ensi- nho marítimo [para a Índia], mas Portugal veio e ocupou
{
navam aqui ... J.P .C.: Eu estava a perguntar mais concreta- aqui; porque é que é Portugal aqui? E vocês como é que ~ã<;> ., /)
mente assim: havia certos capítulos da Bíblia que escolhiam portugueses? Vocês não são portugueses!" , o profe~soi: esta,- '!
)
para a missionação? A.V.: Também vamos até lá. J.P.C. : Si~, va lá, :ficou molhado : "vocês não são portugueses, vocês ' s~o · · f
sim . A.V.: Os portugueses, ensinavam apenas que Portugal é moçambicanos e devem estudar, usar essa ciência." J~P . G.: _.)

que era dono disto; os cristãos, aqueles que eram baptizados,
tinham que obedecer aos portugueses, tinham que se humi-
Onde é que está esse padre agora? A.V.: Deve tér morrido; já
era idoso! J.P .C.: Morreu aqui? A.V.: I\Tãô sei, ouvi dizer,. eu
?
)
1
lhar, enquanto que os missionários da Consolata ensinaram- estava lá no Niassa; parece que foi para Itália: J .P.C.: Sim; o
nos que nós não éramos portugueses; por isso que eu aprendi que eu sei, por exemplo, talvez pode pensar um pouco .mais,

\
' J
1
i' J José P. Castiano \ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação tom Viegas
''
r· \ )
:.J
sobre o que estava a perguntar sobre as mensagens concretas existe um livro agora que se chania assim mesmo Zelote, o
\ ) da Bíblia. O que· é que se ensinava? Por exemplo, sei que na Jesus CriÚo de Nazaré; quando se diz Jesus Cristo, Filhó de
1
:J África do Sul, não se tocava muito aquela cena da aparição Deus, quer dizer há diferença entre dizer "Jesus o Cristo" e
ij de· Cristo ·no templo. A.V.: Aquela de chicote? ].P.C.: Sim, "Jesus Cdsto"; em Jesus o Cristo evoca-se ao Jesus histórico,
'
i 'j sim, no templo quando ele veio, começou a tirar toda geri te, que é o Jesus o Messias; Cristo quer dizer Messúis o Ungido,
1
uma·.das ~'.narrativas da paixão", então aquela, por exemplo, mas é Messias também, então Jesus o Ungido ou o Messias,
f()
' 108 essa de aparecer. no templo não era muito aprofundada; era quando se diz Jesus Cristo já se evoca a Ele como fundador 109
'
' "J ultrapassada logo. A.V.: Aqui não, aqui falava-se. J.P.C.: Fa- de uma Religião. O Cristo aparece corno um apelido , não é
{( J lava-se? A.V.: Falava-se muito bem. J.P.C.: Porque. tinham Jesus o Messias mas Jeious Messias. A.V.: "Cada cabeça, cada
. 1 .J medo de mostrar um Jesus revoltado contra injustiças. A.V.: sentença", papá é isso que nos divide, é isso que nos faz per-
;
') Não, aqui falava-se, e dizia-se que, de facto, na Igreja não é tencer a nmitas religiões, cada um. interpreta à sua m.aneira.
para brincar, na, Igreja [é] para o respeito da Igreja templo,
"__) J.P.C.: Mas quem fez isso foi o Paulo! A.V.: Está bem, nós
se o próprio Cristo revoltou-se contra aqueles que estiveram
'J temos aqueles quatro evangelhos; não são -Cmicos, há evangelhos
a profanar, até se justifica! Dizem que quando Ele fez aquilo
que a Igreja Católica adaptou, por causa de quê não sei, [e ou-
1 ~J ali, os apóstolos, mais tarde os discípulos, entenderam que
tros] não adaptou; chama-se Hiprocrz/us; falam de Cristo,
'j . cumpriu o que o Profeta tinha dito "antes de um dia" ele ti-
falam de coisas que não aparecem no evangelho que temos
(j nha dito, "o zelo da vossa casa me devorou", quer dizer, fez-
[hoje]; mesmo a palavra Bíblia, papá sabe que em grego bi-
j me ultrapassar os limites, para zelar a vossa casa [risos].
blia é plural de livro, quer dizer "livros"; então a Igreja Cató-
1
JP.C.: Sabe quem eram os zelotes? O termo zelo vem de
') lica pegou em setenta e dois livros e oficializou . Então outras
Zelotes. A.V.: Não sei quem eram, mas já ouvi falar ... JP.C.:
j seitas não aceitam os setenta e dois livros; aumentarn mais
Zelotes eram um tipo de soldados que juraram "zelar", e daí
~ um ou dois, outros áté diminuem, segundo aquilo que lhes
J vem o nome "zelotes", pelo Templo de Jerusalém; só que ,,. __ convém, porque para a Igreja Católica são quarenta e cinco
·J quando começam essas profanações, mesmo antes de Jesus
livros, escritos antes de Cristo, portanto do Antigo Testa-
_) aparecer como Apóstolo, eles "zelavam" assassinando às
mento; vinte e sete livros escritos depois de Cristo, que são os
:·_J pessoas, andavam com facas escondidas nas batinas e assassi-
evangelhos, as cartas de Paulo e dos outros, etc. Tem duas
navam . .. até Jesus era conhecido como um zelote, mas no
J fontes a Igreja, duas fontes de inspiração: tem a Sagrada Es-
sentido não agressivo do termo, por isso é que ele vai fazer
critura que é a Bíblia e tem a Tradição Oral, aquilo que foi
J aquela con.f usão aí, porque ia "zelar" pelo templo onde esta-
1 sendo falado, está a ver como a tradição existe em todo l;do?
,J<) va Deus. A.V.: Aquilo que se diz, há um. termo aí ... aqueles
'1 J.P.C.: Sim, sirn; também a Religião Tradicional, até porque
w-~ que .exigem, por exemplo, como Martin Luther King chefiou
hoje, rigorosamente falando, hoje em dia, a Religião Cristã
1-' um movimento que se chamou de "resistênCia pacífica"; também tornou-se tradicional ela mesma . A.V.: É tradicional
'l'.? Mahatma Gandhi também; quer dizer resistir sén:i matar nin- sim, porque já tem muitos séculos, de maneiras que, de facto,
~r .
J _)

guém, então por isso foi um Zelote. JP.C.: Exacto, até que -·" ·~ interpretações papá [ ... ]. Estava um Padre e um pastor - ao

lju .·
l '
11'_)
~ ~ . .

1 -. .·.:'
;..._
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

fim e ao cabo são todos padres - num navio, de muitos pas- ' -~ Entre-Vistas li
sageiros, então um sentou-se ali e o outro do outro lado; para
se entreterem, foram lendo a Bíblia; só que um deles apa-
nhou aquela passagem onde Cristo disse: "Se te baterem J.P.C.: Da última vez abordamos questões ligadas com
numa face, ofereça a outra"; e perguntou ao colega: "Aqui o a reconciliação todavia, fundamentalmente, fizemos uma re-
Nosso Senhor falou assim, o que quer dizer? O outro disse vista da sua vida até mais ou menos 1977 /8, quan:do entra no
"nós temos de perdoar as ofensas como se nos tivéssemos instituto de formação. Então hoje vamos abordar dois temas:
110
oferecido para sermos ofendidos _longamente", quer dizer, 111
primeiro é a sua vida de 75 para cá, e coincide também com
ter paciência no sofrimento nas ofensas dos outros, perdoar _{
o segundo tema do livro que são as liberdades. Em 1975 Mo-
o outro; então , disse "não, aqui é taxativamente oferecer a
çambique tornou-se independente, ganhamos o direito de J
face e levar mesmo a bofetada física"; o outro diz "não é
sermos moçambicanos, antes éramos portugueses; e, por trás ..)
possível; você leva uma bofetada e ainda oferece a cara, __ ,_,
do direito de sermos moçambicanos, havia toda uma .série de
não!". Então começaram a discutir, e assim o outro "chateou-se", ~
direitos tipo, o Bilhete de Identidade moçambicano,. termos
levantou-se e foi dar bofetada àquele que defendÍa que tinha-· ~
uma Bandeira, termos um Hino Nacional, tomarmos as nos-
que dar a outra face e 'pau!' "Se você tem coragem oferece lá _)
sas próprias decisões, autonomia, planificarmos o próprio
outra face" , e corno havia muita gente [ . .. ], para ter razão,
desenvolvimento do país já fora de Portugal; então foram
ofereceu a outra face ao outro e foi sentar-se; ele ficou a ler
conquistadas uma série de liberdades nesta fase da vida do __)
mas estava a roer-se cá dentro "esse gajo humilhou-me aqui"
[pensou para si]; o outro já não teve mais paciência quis con- Viegas, que vamos passar também em revista numa segunda J
parte, por isso bom-dia mais uma vez. A .V .: Bom dia!
cretizar; passado algum tempo ele chegou à parte que diz "a .)
medida que usares para os outros será usada para vós e de
· J agora e, mm
forma reca 1ca d a; [ nsos · }1a vez... " e ' pau ' I. ' pau 'I.
U huru at Least: 18 Sobre a Liberdade .)
Então o outro estatelou-se, caiu no chão ; "recalcada", disse l·

ele. Os passageiros perguntam "o que é que estão a fazer


aqueles homens?", e o comandante d.isse "deixem lá estão a ].P.C.: Gostaria de começar onde acabamo~ ontem.
explicar-se a Bíblia" [risos]. Portanto, de 1975 para cá, como é que vê a sua vid.a em ~s 0
J.P .C.: Está bem; deixe-me lá dizer uma coisa: vamos pectos como dissemos ontem, que são mais rrn1rcantes, na
1
aqui terminar a primeira parte da conversa com o jovem-an- sua. história e .personalidade, na sua posição como éidadãb .)
em Moçambiqu~? A.V.: Muito obrigado! Em 1975 .qÚàridci
1

tigo que o chamaram assim, agora rectifico, Viegas. A segun- ,

da parte vamos falar de setenta e cinco para cá; não me disse hoüve aqueles acontecimentos, mesm; a partir an~ an- do
nada airida sobre como viveu a Independência, como se filia terior, em 1974, eu não fiq~ei espar:itadô; po~que sãà ~ ~~ori·~
ao partido e quais são as convicções políticas que tem. A ou-
tra parte vamos falar sobre a liberdade conquistada após a 18
"Liberdade enfim" do Kiswahili "Uhuru'' e d~ In~lê~ · "a~ les;" . 'É ~a~-
Independência; mas vamos descansar um pouco . bém titulo de um li~ro de Oginga Odinga (Quénia). · .· ' ; "· · '

·,
\
'
'~.

José P. Castiano \ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vi eg as ·

tecimentos que eu vinha acompanhando; com a Luta de Li- Então nós tínhamos que unirmo-nos em volta da FRELIMO
.bértação Nacional, eu já sabia mais ou menos que, mais dias e tal! E as populações começaram a trabalhar mesmo com
menos dias, Moçambique havia de ser independente, porque entusiasmo. Quando se falava das machambas da aldeia, de
se as . outras colónias britânicas iam sendo independentes, machambas comunais, iam à vontade. Qualquer tarefa que
não seria Moçambique, uma colónia africana pertencente a se pedisse, a população estava livre, porque diziam "nós esta-
Portugal, ~não ficar independente. Porque, também, não era mos livres", por que já tinham sentido a escravatura colonial,
1:12 a primeira vez que Portugal perdia colónias, já tinha perdido só que não podiam falar, e se falavam era a meia-voz: "Afinal 113
o Bi:asil:, )á tinha percl\.clo Damão e Goa na Índia·, então é. um o branco estava a espezinhar-nos, ago1:a estamos livres, são
processo que vinha acontecend.o. Aqui perto, o Malawi já nossos filhos que nos libertaram, então vamos seguir aquilo
estava-.independente, a Tanzânia estava independente então que os nossos filhos dizem"; os "nossos filhos" referiam-se à
sabia etn 1974 que, mais cedo ou mais tarde, Moça~bique FRELIMO e aos dos grupos dinamizadores, a todo aquele
tornarcse-ia independente; por isso, quando se assinou o
que falasse da FRELIMO. "Yah, agora sim ~stamos livres"
Acordo {de Lusaka] eu fiquei feliz, fiquei satisfeito e em 75 e etc . J .P .C.: O que é que eram "machambas comunais"?
. ( _)
criou-se um Grupo Dinamizador na Lunga. E a população
:u exigiu que eu fizesse parte; perante a exigência da população
A.V. : Machambas comunais eram campos de cultivo . Carn-
pos agrícolas em. que a população de uma comunidade traba-
eu tentei dizer "·não porque agora estou a preparar os vossos
1 ' _)
lhava em conjunto. Só que a coisa não pegou muito, porque
'i . filhos para o exame". Era mês de Abril, "daqui a pouco há-
!! _) quando começaram a ver que individualmente não podiam
de haver exame· em Julho; os vossos filhos vão ficar prejudi-
!(_) ir lá tirar mandioca quando lhes apetecesse, não podiam tirar
cados porque vou dedicar-me mais ao trabalho político do maçaroca quando lhes apetecesse; os filhos queriam com e r e
1f )
que ao ensino deles", e disseram "não, se você não aceita não _ eles não podiam ir lá buscar, entretanto iam todos um dia à
1I J se vai formar nenhum Grupo Dinamizador aqui", foi essa a
1 ' machamba, perguntava-se "afinaJ que tipo de macharnba é
': J condição. Então tive que aceitar mesmo; fiquei fazendo parte essa?" e por vezes, diga-se em abono da verdade, o produto
·_) daquele grupo e deram-me a tarefa de mobilização das mas- agrícola era vendido e não se sabia onde fora o dinheiro , não
sas, como se dizia naquela altura; eu era o secretário para a se sabia para onde é que tinha ido o dinheiro, então, virarn
'.J
, _) mobilizac;:ão e propaganda no Grupo Dinamizador. Então de que se estava a trabalhar de graça, começaram a desanimar.
12 de Abril de 1974 para adiante eu tive que trabalhar mes-
.j'J mo com unhas e dentes, dia e noite, para se poder espalhar a J.P.C.: Então eles tinham que deixar suas machambas
. ;./ _) ideia da FRELIMO em toda Lunga. A população não sabia o ou cultivavam paralelamente com rnachambas individuais?
.\(__) que era a FRELIMO; era preciso explicar que era um grupo Como é que se dividia isso? A.V.: Bom, em princípio tinha
l
de filhos de Moçambique e [ .. .] aquelas explicações todas, que ter uma machamba comunal e uma machamba indivi-
;y
dual, mas haviam pessoas que não tinham ainda percebido o
;,_)
i:
não é? E que nós todos éramos irmãos e que o c<_?lono é que
que era; era só cultivarmos depois vamos dividir o produto 1
procurou separar-nos, ao ponto de mesmo de:· em Lunga,
haver regulados que não se davam com outros regulados. Tanto mais que havia quem não tinha sua machamba indivi-
dual. Então é assim. Daí que começaram a abandonar, pouco
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viega s

a pouco; assim como aconteceu com aldeias comunais por- • ~­ aceitavam ... J.P. C.: Não perceberam qual era a diferença en-
que a princípio foram recebidos com certa relutância porque tre aldeamento e aldeias comunais. A.V.: De maneira que eu
aqui não havia costume de viver em casas apinhadas, a não trabalhei com entusiasmo de facto, na FRELIMO, primeiro
ser nas vilas assim como na Ilha de Moçambique e na sede de no Grupo Dinamizador; portanto, preparei a Independência
Mussoril; mas fora, na povoação mesmo, as casas já estavam eu com os outros, mas toda agente olhava para mim, como
distanciadas; porque diz-se que "é falta de respeito ouvir o era da mobilização, fazia-se comparação com â~ estruturas
114 que se passa na casa de alguém, marido e mulher discutirem coloniais. J.P.C.: O termo correcto era mobilização e propa-
à noite" , e então os vizinhos ficaram a saber; então isso é ganda·no:Grupo Dinamizador. Mobilizar e propagar ideias ...
vergonha, as casas têm que estar distanciadas umas das ou-
A.V.; Então.eu dizia que as pessoas.faziam comparação
tras. J.P.C.: Sim para proteger a dignidade da família. A.V.:
do Grupo· Dinamizador com a estrutura · col6nial, em que
Exactamente, além de que quando uma palhota pega [fogo],
havia um administrador, a seguir um secretário, hoj~ chama-
pegam todas porque estão juntas; enquanto que separadas as ; - :-:.
mos secretário pérmanente, mas havia um secretário q~e d~ ~
palhotas é outra coisa, ... os vizinhos podem vir a correr para ;
pois subia para chefe-de-posto, e não sei o quê! Então ali rio
aquela casa e podem apagar o fogo.
Grupo Diriamizador as pessoas entenderam que o secretário
J .P.C.: Então as pessoas não aderiram muito ao projecto era o mesmo secretário do Grupo Dinamizador para secre-
das aldeias comunais? A:V.: Não aderiram muito aqui sim; ta~iar. Então o da mobilização e propaganda era o priri'cipal.
mas não aconteceu o mesmo em Cabo Delgado; lá já era cos- J.P.C.: Mas quem era o secretário do seu gn1po? A.V.: Tinha
tume viver-se em aldeias; havia aldeias de casas apinhadas; lá um professor aí cham~do Felisberto Ramos; mas ele próprio
você apanhava uma aldeia; lá levava tempo para atravessar também trabalhou nesse sentido, naquilo que o camárada
a aldeia; uma vez deixasse uma aldeia entrava-se no mato, falava, eu ê que dizia "vamos para a populáção X", não era
era mato mesmo até apanhar a outra aldeia, enquanto aqui ele que organizava as tarefas, era eu; eu estava convericido
em Nampula não; por isso não houve aderência às aldeias de que, de facto, o responsável era eu; descobri màis tarde
comunais . Assim como aconteceu no Niassa; lá também as quando, já tinha saído em 1975, já estávain:os no ceritró cÍ~
aldeias comunais não foram bem aceites porque já houve al- formação, quando perguntam, disseram "não, o secretári6
deamentos construídos pelos portugueses, onde as pessoas era o responsável", mas já tínhamos trabalhado bem. 20
eram quase presas; todo aquele que viesse depois das 17 j.P.C.: Como é que preparava essas ··'mobilizações? Ti-
horas era abatido, era considerado "turra" 19, então quando
nha úm material dado pela FRELIMO? Ou tinha"&uniÕes
vem a FRELIMO ~fala de "aldeias comunais", então viam d<;! preparação? A.V.: Não, nós só tínhamos re1:1niõe·s, não
que afinal aldeamentos não acabaram, então as pessoas não
20
Nota do autor: Viegas quer 'dizer qu~ a palavra ."secretário? · [o
responsável dos Grupo Dinamizador] era mal compreendic;la · ppa , .
19
Nota do autor: "turra" é o nome dado aos guerrilheiros da FRELIMO população. Respeitava mais o Chefe da Mobilização } Propagaç.p~7 ·
pelo Governo Po rtuguês . Provavelmente uma forma abreviada de trocando os seus papéis. "Secretário" tinha a conotação :de" "i/lgu~iil"'
" terroristas" . que era ajudante do chefe". ·· · . · ' · .· "" ~ ·

\
José P. Castiano \ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

tínhamos material como tal. J.P.C.: Reuniões com quem? mandarn10-nos entre nós n1esmos, sem o branco . A .V .: Li-
fJ A.V.: _Com a população. J.P .C.: Não, estou a dizer que antes berdade era mandarmo-nos entre nós, isto é o que era li -
.; ) de ir falar com a população: Como é que se preparavam? berdade e não ser um estrangeiro a mandar; e explicar que
'
1 t A.V.: Nós do Grupo Dinamizador preparávamo-nos, reunía- mesmo que venha de Maputo, chamávamos landim, expli-
/
1
;'J mo-nos, vamos falar, começamos do régulo X ou do cabo X cávamos "mesmo que viesse um landim aqui a dirigir, é um
ou na zona X então pronto vamos falar isto, isto, isto. J.P.C.: moçambicano, é nosso :filho; por exemplo, mesmo que saia
)
116 Quais eram. os temas que preparavam mais? A.V.: Era mais um makuwa para ficar como governador, é um moçambica- 117
para falar o que era a FRELIMO, porque as pessoas pensa- no, vai ser recebido". J.P .C.: Chamava landim as pessoas de

·_)
·,; _)

'_)
vam que a FRELIMO fosse nome duma pessoa, que a FRE-
LIMO era uma pessoa, até antes da assinatura dos Acordos
de Lusaka, .assim sorrateiramente, quero dizer às escondi-
Maputo? A.V.: Sim. J ~P .C.: Porquê? Era o termo que tinha
entrado aqui, todos de Maputo que vinham eram chamados
por landim; até eles próprios tratavam-se assim, de landz;

! _)
j
d~s, as populações me perguntavam: "Professor Viegas, essa
FRELIMO quem é que os brancos não conseguem matar?
Pessoas a lutar com eles desde 60 .. .. Brancos para cá, aviões
mulandz; afinal mais tarde descobrimos que landim significa
"negro". J.P.C .: Então participou na preparação das pessoas
e na sua consciência para Independência? A .V .: E o úlrimo
j para lá, os brancos morrem, não seio quê ... essa FRELIMO chefe que estava, e que não me lembro do nome dele, du-
que nt!o morre, quem é?" Então começaram a dizer: "Vo- rante o Governo de Transição em 1974 , quando nos viu a
j cês querem nos fazer prender"; então tínhamos que explicar mobilizar a população para limpar o porto que tinha sido
"não se vai prender ninguém, a FRELIMO é um grupo_ 0 abandonado, perguntou-me o branco, perguntou a min1
J termo mais fácil era esse - de filhos de Moçambique; po- mesmo: "Será que vocês vão conseguir mobilizar indígenas
__)
deria morrer um mas ficam muitos outros para continuar a _. para limpar aqui?" Eu disse: "Epa, mobilizar indígenas, isso
_) lutar; são muitos .. . a FRELIMO não era uma pessoa. Então ~ . .:. agora pertence aos indíg~n_as, _vão limpar o que é deles ", mas
_) tínhamos que explicar isso: que era [ou melhor: que estava "epah vão conseguir?" "epah deixa lá; cada un~ põe a camisa
_) para vir a ser] um Governo negro. Porque estávamos habi- dele como quer", foi a resposta que eu dei . Então quando se
i _) tuados que quem devia governar tinham ~ue ser somente os aproximou o dia da festa, e nós nem tínhamos aind a visto a
brancos.
_) .µova Bandeira, mandei alguém para Nampula, onde estava a
JP.C.: E o que era Governo dos negros? Como explica- sede política de então; recebeu a Bandeira embrulhada, dis-
vam? A.V. : Explicávamos, o régulo, por exemplo, porque 0 seram "não desembrulha", os de Mussoril de onde nós de-
régulo era chefe tradicion al, se havia régulos maus que que- pendíamos; vieram e levantaram a Bandeira; chegaram àqui
riam imitar brancos , era excepção. Não era norma. Então distribuíram, uma para o Posto Administrativo de Matibane,
tínhamos que nos mandarmos ,entre nós e nós · vamos es- outra para o Posto Administrativo de Lunga , então quando
colher um que nos vai representar. JP.C.: Então liberdade trouxeram aqui disseram "camaradas, aqui está a Ban dei-
significa, já indo um pouco ao tema, liberdade significava ra mas não podem desembrulhar, deixem assim até aquela
-- ·· hora, que vocês vão içar" ... Mas eu tentei dizer: " Não ten1os
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivàção com Vieg as
)
condições, não temos corda ." Não! Não tem cordas, mas ti_ .,..-,. que quer dizer ficar salvos, ficar livres. Wisetta quer dizer an- J
nhamos que estar preparados. Imagina lá eu ter que desem- dar como:vecê quer. Mas isso foi traduzido mal, andar como ')
~
brulhar a Bandeira em frente das pessoas e não tinha corda.
Eu amarrei de qualquer maneira, eu arranjei-me. Foi à meia-
você quer pode empurrar alguém na rua, não há problema.
-~
Wisetta então quer dizer Igualdade. J.P.C.: Quer dizer tudo )
noite em ponto. D~a 25 de Junho. J.P.C.: Então tinha que isso dentro disso? Igualdade ... A.V.: Woopowa significa ficar
içar a Bandeira? A.V.: Sim. Então tinham dito que devia ser ·V
salvos [Liberdade]. J.P.C.: A outra? A.V.: Wisetta significa
j
118 um homem e uma mulher. Indicaram uma mulher que ficou andar livre, ir para onde quiser. Literalmente significa "an-
119 )
comigo. Ela disse "estou a tremer·! " . Eu disse "coragem!". dar-se a si mesmo", andar-se, "ser conduzido por ninguém",
Era jovem! J.P .C. : Uma "jovem-antiga"? [risos] A.V.: Não, Autonomia.
não . Erajovem . Só quando perguntámos à população quem _J
'
A.V.: Antes âo dia de içar a Bandeira, preparamos a fes-
vai içar a Bandeira, todos foram unânimes: "camarada Vie- )
ta, preparamos com a população que contribuiu em. dinhei-
gas .. . " todos!
ro, uma. quinhenta, um escudo, aquilo que cada um tivesse. _)
A.V.: Ele nos dizia no tempo colonial: Mwila wanaman-'" Conseguimos angariar não sei quanto, não sei dizer ·muÍta J
riya kunokowa kumala.t' Quer dizer, "essa coisa de ser como coisa, só sei que desse dinheiro tirei 6.000 fui c~mprar duas
u
branco é como cauda de camaleão: não se endireita todo, sem- cabeças de vaca. J.P.C. : Seis mil escudos? A.V.: 'Sim! J.P.C. :
pre tem uma ponta embrulhada" . Esse é o termo que nós usa- Na altura: era escudo? A.V.: Era escudo sim. Então foi â Mu-
___)
mos para o nosso filho que estudou, volta para casa quer tudo chelía, para [rendiÇão] de João Ferreira dos Santos oride ha~
como wn branco. "Come lá isso aí. Essa calça de branco que via bois. Fui comprar duas cabeças, levei-as para Lunga, pedi o
você tem, não é nada isso! Um dia pode te acabar". De facto um branco que tinha carro que me a,companhou; chamava-se )
\
quando o branco falisse era levado para Portugal, a gente não Albino. E paguei três mil cada cabeça. Quando cheguei · à )
sabia como ele terminou; mas um negro que teve dinheiro, an- :f
Lunga tiramos os bois do carro, e tinha recebido orientaÇões
dava como branco, uma vez falido, voltava para a população. na plantação, como iam ser abatidos no dia seguinte, riãOde~
Então voltou; "a cauda embrulhou-se." vfam comer ri'aquele dia. Eu cheguei. Disseram, "não de~efn
c~mer, só devem beber água". Qs bois é que ' não deviaÂi.
comer' tinham que beber água naquele dia; mànd~i, ;,m:~i:~
Liberdade: Escolha entre o Bem e o Mal
rar uma arma e tal, então a população dizia "não, nã6 dêem
capim", ·e disseram "vão sobreviver até amanhã;" . eU' disse
J.P .C. : Como é que se traduz "Liberdade" em makuwa? "vão chegar", então aquilo intrigou às pessoas ,_ _"'"como é
A.V.: Epá, são termos que estão a arranjar-se. J.P.C.: Mas na- que os animais não vão comer, só vão beber água?" . Depoís
quela altura como- o term-o "-Liberdade" se- tnrduzia? Tin-ha _ da_festa,_disseram_"não hou'.l.e problymas_porque_o_professor
uma palavra concreta para explicar a população que dia 25 Viegas fez jejuar os bois", portanto aquela era a oraçao; :En-
de Junho era da Liberdade: A.V. : Só diziam woopowa - o tão festejamos pelo menos cinco dias antes do próprio:di~ :

\
José P. Castiano 'Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectiva ção com VieÇJa s

Eu disse à população "vamos dividir-nos; este lado aqui as mulheres só não contamos as crianças. E eram três mil
venha à noite dançar, os daqui ficam durante o dia a dan- pessoas. Mas em Monapo, houve luta durante a distribuição
çar". Disseram "não, nÓ's homens vamos ficar aqui, as nossas de comida, mesmo em Mussoril-sede; tínhamos mandado
mulheres vão trazendo comida"; além da comida que tínha- alguém para representar-nos lá, houve luta, todos lados em
mos contribuído para o dia da festa, "nossas mulheres vão nossa volta, menos Lunga. Isso falam até agora! Menos Lun -
trazer comida aqui" . Nós ficamos d.ia e noite aqui, durante ga! Ali houve tudo em paz e pronto. Continuaram mais ou
cinco dias, então quando chegou o dia, de facto, tentei ma- menos dois ou três dias depois do dia da festa, da Indepen- 121
tar aqueles bois e mandei cozinhar, trouxeram-me o fígado dência. J.P.C.: Ali em volta do Posto Administrativo? A.V. :
·~ _j - ·- "camarada Viegas está aqui o fígado para si" - eu disse Ali mesmo no posto. J.P.C.: Onde dormiram? A.V.: Com
1 _) "não, isso é para o povo . Cozinhem e dá para o povo. Eu não batuques, ao relento, se não dormíamos! J.P.C.: Então, no
devo nada". Aquilo também admirou porque de costume total foram três dias? A.V.: Sim! Cinco dias antes e três dias
)
um chefe ... J.P.C,: É que leva só pedaços. A.V.: Até porque depois. J.P.C.: Então no total oito dias? A.V.: Sim! Mais ou
j
o costume é o "Xêe", que corta o pescoço do an~al fica com menos senão dez mesmo. Então eu tinha dito quando nós fa-
! _j
o pescoço, o pescoço é dele; mas eu perguntei "quem quer zemos nossas cerimónias tradicionais, aquelas solenes comu-
·J matar em nome do povo para o povo sem receber nada?" nais mesmo, comunitárias, costuma chover no fim para apa-
:, J Então alguém disse "eu" . Houve um que matou, tudo de gar a poeira, então quer dizer o céu está connosco, no fim tem
) graça. Chegou o dia então, depois de iç~r a Bandeira, cada que apagar a poeira que se levantou durante três dias. Não sei
chefe de família sentou-se num lugar no chão com a família o que me fez falar aquilo porque no fim mesmo, naquele ter-
)
dele. ,Eu dizia: "não estranhemos essa terra, é sobre ela, é ceiro dia, veio uma chuva forte . Caiu chuva forte e torrencial.
_)
por causa dela que lutamos, já libertamos, já é nossa, vamos J.P.C.: No dia 28 de Junho . A.V.: Sim! então diziam "vamos
_) sentar". Então! "É verdade; é verdade" . Sentaram-se. Então .- ~apanhar essa chuva, não varnoJ>JJJgir". Foram para casa todos
_) havia arquitriclino, quer dizer aqueles chefes de comida, de -~ ·-- satisfeitos! Então outros interpretaram que Viegas, aquele
) distribuição da comida como fazem eles quando têm festa. relógio que ele sempre consultava, não era relógio, era um
,_J Então eles chegaram e eu andava de família em-família a dis- aparelho com o qual falava com Samora . Ele dizia "faz isto,
tribuir a comida. J.P.C. : Lunga é uma população muçulma- faz isto", Samora é que me dava/orças!
_)
na? A.V.: Sim!
J.P.C.: Mas o programa dos oito dias foi traçado no
A.V.: Então foram dando comida. Aquilo correu muito Grupo Dinam.izador ou havia um. programa nacional? A.V .:
-_'' •.' .J1
bem, cada lim comeu e quando queriam mais, dava-se, não Não sei. Nós organizamos sim a festa de Lunga, pronto a
l-?
1-::;f
houve problemas e eu ia passeando. Chegava ali, tirava pe-
dacinho, levava, andava ali ia ver as panelas como estavam.
nossa festa é aqui: comemorar a Liberdade! J.P. C.: Mas não
acha que isso contribuiu para que as pessoas pensassem que
·, _) Gostaram imenso. Contamos as pessoas "três mil:'-; como era
1 ~ Liberdade é só festa? Ao invés de juntarem Liberdade com
J.
__,~ costume contar as mulheres e as crianças. Então ali contamos .,responsabilidade? A.V.: Não sei. J .P.C.: Porque sabe o que
j _)
.J_j
1
J )
.. ~'\ _J '··~
1
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
.)

aconteceu? Os escravos, nos Estados Unidos, qu~ foranf - ofereceram produtos, arroz e açúcar. A popul,ação, e aque-
transportados para o Ocidente, alguns daqui para os Esta- les que colaboraram comigo, os mais velhos, "vieram dizer
dos Unidos, depois de terem passado a primeira geração ou "branco·pode vingar-se, envenenar a comida, vamos pedir a
mesmo a segunda, quando chegou a sua libertação, eles fi- ele para provar aquilo que trouxe". Não se fez isso. Queriam
caram aí, não tinham para onde ir; foi então que tomaram que provasse o açúcar, o arroz, para ver se não .: envenenou-.
em conta. que, afinal Liberdade comporta responsabilidades, Eu disse: "não, isso é ingratidão, [ .. . ] é dele, não pagamos
122 quer dizer, eles tinham que alimentar seus filhos para si mes- nada, trouxe-nos os produtos, ainda vamos obrigá~lo dessa
123
mo; depois de receberem aquilo que eles chamaram Carta maneira?", foi quando convenci a eles; de facto, desistiram
de Euforia, começaram a ver que afinal custa alimentar fi- da ideia.
lhos, construírem as suas próprias casas, encontrar empre-
A.V.: Então quando tirei a Bandeira portuguesa; arreei
go, etc .. A.V.: Mas eu acho que aqui em Moçambique, após
-a, dobrei-a muito bem, entreguei aquele branco, o senhor
a Independência, a mentalidade não foi esta; foi de festejai;-- --"..
Monteiro. Tirei a Bandeira entreguei a ele, eu disse "entrega
um acontecimento que depois passava, era para aquele dia, O:
o seu colono". J.P.C.: Mas o senhor Monteiro o qu~ era?
resto era para trabalhar, só que o branco não nos devia man-
A.V.: Era comerciante branco. Albino também era t'.im co-
dar. Isto já estava na cabeça de toda gente branca, já não nos
merciante, então entreguei ele a Bandeira 'e ele passou _p·a ra a
manda, até era preciso dizer mesmo devemos odiar o branco,
mclher. A mulher pôs-se a chorar, tanto chorou, foi el~ que
branco que ficou aqui é talvez moçambicano, só que naquela
me disse: "senhor Viegas, tenho a certeza. que nunca há-de
altura não se identificava como moçambicano. A liberdade,
ficar malu'co se não ficou desta vez." J.P.C.: Então depois
para nós, era sair das mãos do branco; este facto tinha que
dessas celebrações? A.V.: As pessoas forarii para casa. Eeu, )
ser festejado.
apesar desses trabalhos todos que andava a fazer, trabalho )
político se quisermos, nunca abandonei os meus alunos. Pi:e~
f
].P.C.: .É um acontecimento que tem que ser festejádo. 1
(
A.V.: Eu até me lembro desse branco que me ajudou a trazer parei os exames de manhã com eles até ao meio-dia, e do
)
vacas de Mechelia para Lunga, o Albino, veio para Nampu- meio-dia ém diante ia para o trabalho político; dava deveres:
)
la, era o único branco que tinha firndo ; o único não, por- de-casa a eles e quando voltava à noite, corrigia; ·no dia se-
que tinha ficado um casal de velhos um chama-se António guinte dava aulas. Foi o que eu disse à população, "eu aceito
Monteiro Ferreira. Ele é que me perguntou "senhor Viegas o que vocês querem, mas não quero abandonar os meus alu-
todos os brancos estão a sair daqui, têm medo de violência, nos" e, de facto, tiveram um bom resultado no .fim do anó.
Têm medo de represálias! Eu posso ficar com a minha fa- . . . .

].P.C.: Quando aderiu à FRELIMO?. ,A.V.: Eu posso


mília aqui, não vai acontecer nada?" Eu disse: "Pelo que eu
dizer que aderi à FRELIMO logo que . ou:;,i f~lar del~ ,pel~ )
saiba-senhor Monteiro, eu sou da opinião que fique cá.-Nin-
prirffeira vez, clandestinamente; não ~os_trava.· ,a ;i0igµé~:
guém vai violentar, ninguém vai fazer nada". Ele ficou com
mas eu estava sempre com a rádio a acorp.panhar.J.P.C.: Mas
um outro e mandou [vir] a família para cá. E ficou lá. Então então quando foi, mais ou menos isso? A.V.: Foi ·~m -62,

\
José P. Castiano 'F.ilosofia Africana: da Sagacidade à lntersubject iv ação corn Viegas

r'! ) ', quando ouvi falar que foi fundada a FRELIMO paraliberta- sílaba e da sílaba para a letra. Tentei dizer que sem abecedá -
!"')
( '
ção do ·país . J.P.C. : Era rádio do Malawi? A.V.: Eu tinha rá- rio as ·crianças· teriam dificuldades em saber ler e es.crever
·i' ) dio de Tanzânia .. ~ ].P.C:.: que transmitia em kiswahili ou em
ir' ' porque ninguém pode construir qualquer coisa sem primeiro
h_) português? A.V.: Em kiswahali, português, makuwa, nyanja, preparar o material necessário para tal, porque o abecedário
:r _) etc., era a Voz da FRELIMO, só que nem a minha família é o material para escrita e a leitura. Disseram : "Não! Quando
,: sabia. Quando chegasse aquela hora eu 'Pegava na rádio, di- você quer mostrar uma bicicleta às crianças o que você faz?"
j, ) 124 2.ia que 1.a à.escansar - 'Entrava no quarto e sintoni:zava; era Eu disse "eu levo a bicicleta para casa, chamo às crianças 115
' _) urna voz que não se ouvia fora, então eu acompanhava tudo. tocam-na, mexem-na e depoi·s é que vou dizer os pormeno-
i' _j ].P .C.: Quando é que saiu de Lunga? A.V.: Saí em Novem- res, os parafusos, raios,. etc. " . Disseram, "enrão é isso ; como
;, ) bro .de 1975, J.P,. C. : para? A.V.: Primeiro vieram buscar-me
"' é que você vai ensinar as letras soltas? Tem que pattir ela
em.. Outubro para frequentar o curso de instrutores em Na-
J frase , tem que partir da palavra". Eu disse : "Está bem , mas
maacha; foram s~leccionados professores do tempo colonial, esquecemos que essa bicicleta, para ser feita na fábrica, não
'J
pela estrut~ra d~ educação colonial, ainda estava cá. Então foi feita a bicicleta inteira; primeiro tiram as peças que se
' __)
urri deles fui eu. ].P.C.: Quantos eram em Namaacha? A .V.: juntaram e sai a bicicleta". Disseram "não, você está defen-
,_) Éramos oito por: cada distrito e existiam 10 distritos. J.P.C. : der porque apreendeu assim, essa aqui é a únic a maneira de
:j Distrito. que hoje, é província? A.V.: Sim. ].P .C.: Qual foi a ensinar". Só terminei com essa frase : "quem semeia vento
'_) escola de Namaacha? A.V.: Estivemos no Colégio Dom Bos- colhe tempestade" , e disseram "o que quer dizer com isso?"
;, _) co , por 30 dias. Fomos os primeiros que saímos para a for- eu disse, "iremos ver o fruto disto"; então mais ou menos era
mação da FRELIMO. J.P.C.: O que fez lá para instruir a isso. J.P.C.: Então em Namaacha quem eram os instrutores?
_)
FRELIMO;:> A.V.: Mudança de mentalidade; não ensinar A.V.: Eram aqueles que vinham da Luta Armada, por ex em-
_)
como no tempo colonial; não ensinar catolicismo, não come- ~plo nosso professor de História era Gabriel Simbine, depois
.) çár as aulas por "em nome do Pai do Filho e do Espírito ·" - -·os dirigentes Miguel Nkaima e estrangeiros havia Farouk,
_) Santo" . Não bater no aluno, todas essas coisas. ].P.C. : De uma mulher holandesa, estava com o rnarido, Y an Draisma;
forma detalhada, em que constituiu a primeira instrução; pri- estavam na Beira, foram. nossos professores , mais urn cham.a-
meiro disse, separar o ensino das questões religiosas. A.V.: do Susuki, um brasileiro de origem chinesa ou japonesa .
Não ensinar tabuada, não ensinar abecedário porque diziam ].P.C.: Conheceu lá o Matias Manuel Capece? A.V. : Capece
que as letras são muitas para as crianças apre~der,em de uma era director do Ensino Primário; ele é que era o chefe rni:1x i-
vez só; a criança não pode conseguir, vinte e três letras mi- mo desses cursos; conheci-o muito bem. Lembro-me, uma
núsculas, manuscritas, vinte e três letras maiúsculas, e vinte e vez, veio ao Centro de Formação de Professores, enconrrou-
três na letra da impressa, epah! Fizeram as contas saíram me já como Filariose; não estava conseguir andar; ele come-
e
cento tal. J.P.C.: 124 letras! A .V .: Para uma criança não dá, çou a conversar comigo . J.P.C.: Em 1976? A.V.: Sim! Em 76
então é só partir da frase para a palavra, da p'~i~vra para a porque quando voltámos de N amaacha eu quis sair de vez de

',_
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vi egas

Lunga, em Novembro, porque tinha que criar o centro dê" __ _ A.V.: Eu acredito, porque fala-se de Deus, e que vem de
Momola. J.P .C .: Então, quando voltou, teve que fazer ames- Deus não . se~pode discutir porque veio d'Ele; eu tinha essa
ma coisa com outros professores aqui em Nampula? A .V.: mentalidade; Deus fez isso e acabou. J.P.C.: Então fica tudo
Sim! Organizamos uma sessão de reciclagem para aqueles simples? A.V.: Sim, fica muito simples e é melhor! J .P.C.:
que já eram professores; durou 30 dias . J.P.C.: Quais eram as Mas como é que essa teoria religiosa que defende que Deus
cadeiras que tinham lá? Disse-me que na História era o Sim- fez-nos iguais, porquê de repente, somos desiguais? A.V.:
bine, depois Mkaima dava o quê? A.V.: Mkaima não dava Não. Há dois poderes: há poder Divino, que faz para o bem, 127
126
aulas, era dos dirigentes. Tínhamos História, Educação Polí- mas ao mesmo tempo há o poder do mal, que destrói a. obra
tica, Geografia, Metodologia do Ensino. Eu lembro que na de Deus; e Deus dá Liberdade aos homens para depois tirar
Educaçao Política esse Susuki disse: "camaradas! vocês sa- o bem mesmo do mal. Deus não pode fazer o mal. J.P.C.: E
bem que o surgimento da vida e do homem no mundo é ex- porque é que Deus não destrói o mal? A.V.: .Não pôde!. Por- )
plicada em duas teorias : a primeira teoria é aquela da Bíblia;---~­ que não haverá Liberdade. Porquê não se diz que a galinha
;

que def~nde que Deus criou isso, criou aquilo; e a segunda ê: vai ao céu? Porquê não se diz que o cão não recebe o prémio _)
aquela evolucionista, o darwinismo, que diz que o homem de Deus? Porque não têm Liberdade. O homem tem Liber-
começou não sei quê e quê!" E eu comecei a fazer perguntas, dade, pode fazer aquilo assim como pode não fazer. Deus
eu disse "ambas são teorias? " E ele disse "sim, então cac:1a criou o homem e disse ~,está aqui o bem e o m .al, se esc.olher '
~Jn pode escolher a teoria que quer, que lhe convêm;" então f
o mal[ ... ] é contigo! se escolher o bem ... ;' P.C.: Mas a Li- ._)

eu disse "eu fico com a teoria da Bíblia". E ele olhou para berdade neste caso é dada não é conquistada. A.V.:,. Está
mim! J.P.C.: Agora, falando sério: Porquê escolheu a teoria bem, mas quem diz que toda Liberdade é dada? J.P.C.: Qncle
~
da Bíblia e não de. Darwin? A.V.: De Darwin não estava a Deus só dá possibilidade [ . . . ] A.V.: O homem conqui~ta a )
l.
entender, era através da poeira, através de não sei o quê, Liberdade uma vez que sabe que isso é o J?J-ªl e nã9 faço; já )

pode surgir qualquer coisa. Mas como se juntaram essas coi- esta é uma conquista do bem. Conquistar não é lutar. Apon-
sas, saíram donde as tais poeiras, o nevoeiro? Saíram donde? ta haver duas coisas o mal e o bem. Eu escolhi o~be~, lutei?
Porque a poeira sai de alguma coisa.que se destrói, então eu Conquiste!? Por isso mereço um prémio? J.P.C.: Mas agor~
não estava a entender. J.P.C.: É aquela que Darwin diz acer- já não estamos num plano da Liberdade que fal_ávamos antes,
ca da evolução das espécies, da adaptação das espécies? que é o plano, como traduzimos em makuwa, de ir ond·~ qui-
A .V .: A adaptação das espécies porque os outros ainda con- seres, de falar com quem quiseres aliás isso de f~al'. ainda
tinuam primatas, só o homem é que ficou homem sozinho, os nem chegamos lá? A.V.: É para nós; não p~demoster Úber-
outros não seguem porquê? Depois, se o homem começou a dade perante Deus, Ele é o nosso Senhor; Ele é q~~ nos p.ode
andar com quatro patas, libertou as mãos, começou a traba- d~r Liberdade não somos nós que pedimos Lib_erdad~ de
lhar, então foi adquirindo essa posição vertical; como a evo- Deus para fazermos o que quisermo~. •
J• .P'.C,.:

Então,
., 1
p~ra

si,
lução não pára, um dia não há-de andar assim virado para mais ou menos, a liberdade, nesses termo.s religiosos, é a pos~
trás? J .P.C. : Então porquê é mais forte a teoria religiosa? sibilidade queº homem tem de escolher o be~? si~,
A..v.; ..J
1

' _)
\ ._)
José P. Castiano 'rilosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

escolher o bem ou o mal se quiser. J .P.C. : Sim mas ·aí já não secretário", para ser cham.ado "senhor fulano". Não, eu que
fica livre. A.V.: Fica livre! porque ele é quem escolhe. Al- vou fazer, como professor de · hoje, os professores de hoje
guém ofendeu-me, eu posso matar ou não matar, e opto por não têm vocação, vão lá porque não conseguiram ernprego
não matar, fiz bem ou fiz mal? J.P.C.: Fez bem. A.V.: Então noutro sítio. Entãó também no partido, na direcção até mes-
eu escolhi o -bem . J .P.C.: E aquele que opta por matar? A.V.: mo· no Governo, há indivíduos que estão lá para defenderem.
Escolheu o mal porque matar é mal. J .P .C.: Então não é livre. benefícios deles . Isso é que falha porque a população vê, a
A.>!.·. =É \\.v\:e\ "E.\e. é q_ue. e.sco\ne.u \sso, é \'tv\:e e\e esco\\ieu 1.a-- falha é porque eles olham para as pessoas que se diz "gover- 129
zer assim; ·ninguém lhe agarrou dizer "faça lá isso! " Disse o no", quern é Governo? Ninguém se criou com o governo na
;, _)
., catolicismo, Deus é bondade infinita, Deus não pode fazer o rua. O Estado que é iss<dl de Estado? Por isso que se diz " esse
'i'_) 1nal, porque sendo bondade infinita não pode querer porque
Deus pode fazer tudo o que quiser. Ele, como é bondade
Governo não faz nada?"
) J.P.C.: Mas temos um problema. Como é que nós va-
divina, não pode fazer o mal, e não querendo o mal não pode
) mos garantir que pessoas que estejam nestes cargos ele di-
fazer, mas tolera o mal para deixar livre as criaturas, sabendo
._) depois tirar o bem, mesmo do mal. recção, sej~m pessoas iluminadas pelo bem? A.V .: Isso não
J é de mau para o bem, isso não é coisa de hoje, não acontece
J.P.C.: Então se fizermos uma analogia com a Indepen- só connosco, acontece com todo o mundo. Corno é que os
j dência podemos dizer que ela foi a conquista da Liberdade, Estados Unidos vão fazer com que ~s homens que os dirigem.
_) ou seja escolha dum bem? A.V. : Sim! J.P.C.: Então onde é sejam homens de bem? É difícil, rnesmo o Império Roma-
J que falhamos? O que acha que nós fizemos com esse bem no caiu porque houve imperadores que olhavam mais para
_) que escolhemos, olhando toda História até hoje 2014, se tem vida deles do que a vida do povo. J.P.C.: Mas também houve
'j fases, assim quando senta em casa, começa analisar todo o ;-pessoas que olhavam para o bem do que para o seu estô-
:j
percurso do nosso país que acompanhou muito bem. A.V.: "· ·~~' mago. A .V.: Sim isso não falta . -É- mais uma gota no oceano .
Eu, o que estou a ver, são homens que dirigem esse processo, J.P.C.: Então como vamos garantir que, de facto, não vamos
i _)
aquele que é escolhido para dirigir esse processo; a questão falar ao riível nacional, mas ao nível n1esrno de base, porque
,_J é: é digno ou não? Dirige como deve ser ou dirige comó não nós estamos a assistir o barco a encalhar, então precisamos
;
J
)
deve ser? Não falo do Presidente, falo a partir de grupos, e
de Viegas que como vocacionado, estamos a assistir pro-
1_) digo a partir dos grupos dinamizadores, chamam secretaria- fessores a voltarem-se mais para o seu estômago, a víolarem
dos provinciais, secretariados distritais, quem está lá é de fac- c~ianças, etc., há qualquer coisa que possamos fazer? esse
·,' _) to um individuo que vive essa liberdade da população. É um
_) é o problema que estou a colocar. A :V .: Mas é isso! os que
individuo que trabalha para o bem do povo ou é um indivi- estão fora do processo vêm essas coisas aí; qtiandà você fala
\~ duo que está lá por interesses próprios? O que se vérifita ora
~ com eles, numa reúnião, há quem diz, "não é isso". Eu, por
'/.J lutam quando chega o tempo de eleições, porque ele quer lá exemplo, tentei uma vez dizer, na reunião de quadros, era
1.
ii_J para defender os seus interesses, para ser chamado "senhor .~ Chissano o presidente. Quando dizia "Frelimo hoye" . Em
j, .
'fl~

id. · '- ,
José P. Castia no Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

m akuwa "hoye", quer dizer "não", é negação, é mesma coi:· J.P.C.: Na Constituição, fala-se de três .tipos de liberda-
sa que dizer "não", "Frelimo não". Falo do makuwa lá de des sobre os-quais pretendo discutir consigo: a primeira é de
interior hoye é "não", mas é palavra que vem de Tanzânia, escolha, ou seja a pessoa pode escolher aquele,que acha que
é um termo que veio de Tanzânia que quer dizer "viva"; in- pode representar-lhe; a segunda é de ser escolhido · e "a ter-
troduziram esses termos aqui, quase à força , quero dizer, a "
ceira é de expressão, esse é o nível das liberdades colectivas __)
força do uso ; sabe quem criticou? quando voltamos ·para cá democráticas.. Depois tem outro tipo de liberdàdes que. são
)
130 em Nampula? Numa reunião? Eu quando falo com a popu- individuais que é escolher onde quer viver·; esc~Íher ~ par-
lação, quando digo hoye, toda gente grita com a euforia, _já ceiro com quem quer viver, escolher o-partido Çl~'feligião, e 131 ~
entendem, está ver você pensa que entende, então fica, eu é então eu queria que focalizasse no primeirÓ. tipo de liberda- '..)
que nunca usei, esse termo. des que é de escolha porque ela é que garante _quetfpo d.~ ..J
A.V.: Nas minhas interv~nções nunca usei o hoye, por- dirigentes temos no poder. A.V.: Está ver? Mas é q~~ não é )
só um indivíduo; .eu posso escolher o fulano mas . os outros
que, tenho na consciência que estou a dizer "não"; entãor·": 0
são esses que dizem "não, não". Você que não diz. Apesar dé' . -- não. escolhem aquele outro fulano. Eu usei a minh~ ·Liber-
_J
dade, gosto do fulano, porque tenho certeza que esse vai-
você ter boas ideias , até porque fica depois mal visto. O fula ~
no quer adiantar-se, quer ser o único que sabe, quer nos en- nos dirigir bem, !Ilªs os outros não querem. ].P.C.: Então; o
esses sistemas não funcionam? A.V. : Não pode funcionar! __)
sinar. Uma vez também tentei aqui no grupo dos amigos e de
secretariados, estávamos a ir às primeiras eleições, quando ].P.C.: Como é que temos que escolher? A.V.: Temos qu~ ..J
eu disse: "temos que saber falar com a população, conhecer fazer assim; é que somos muitos não podemos ter os mesmos 0
a cultura, porque a população às vezes diz que sim enquanto gostos. Sabe? Antes do dia da escolha faz-se um trabalho )
'
não é isso; é despacho porque querem sair, temos que saber não sei se é sujo ou limpo, essa coisa de mobilização para
o que falar, não podemos imitar o que se passa 'aqui na cida- angariar outros, campanha, o que é campanha? Convencer
J
de; aqui temos mesa com um pano vistoso, com uma jarra de alguém que o fulano é que é bom, eu penso que el~ é borri;
flores e água ao lado; na pop~lação 'não podemos usar isso". vou convencer, já deixa a sua Liberdade, tem que -seguÍr a
Levantou-se um disse: "Alguns que_rem nos ensinar, esque- minha Liberdade, está ver? Não desviei pessoas ai? Então!
cem que em 1975 fomos nós que mobilizamos a população". É o que está a acontecer. Não vamos longe, mesmo aqui. É
Está a ver? rebateu aquilo que eu tinha falado ali. Disse "está que aqui, por exemplo o Presidente do Município, foi esco-
bem, vão lá!", resultado no sítio onde ele tinha sido man- lhido doutro partido, precisamente porque os daqui tinham
dado chumbou. Não teve sucesso, não ganhou. Porque era dito, nós queremos o fulano, mas vieram pessoas daqui, que
um indivíduo que tin.ha estudado, eu sou analfabeto, eu não hc:am aq_u\., ma"& q_ue '7\.e>:am à.ou.'t>:o'5 \u.ga>:e.'5 ma'5 v\.vem :ao..u.~,
tenho nível para discutir com pessoas papá; quando eu falo disseram não, "esses maK.uwas são tribalistas, I?-ão n~s. que-
- -âizem "qúem é esse Viegas que se faz? Quen ível é que tem rem a nós porque não somoSdaqu'i, não querem o_fiilanq
aquele ali? Nível de esti..ido? Haaa só tem décima classé, e porque não é daqui, querem um makuwa"; aí forj~rçi~ lin-
quando muito fez o Insthuto Pedagógico". guagens, criaram problemas, convenceram os que ~i~~a~ .dê .

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l'l') . ' ·,
f!'~ ~~;1~

~)_. :. José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação corn Viegas


·~~\. )
,i r· )
Maputo a dizerem "estes não querem este por não ser daqui que estava a falar de que para o Ocidente é mais no sentido
ir) e ·nós queremos este" . Um punhado de pessoas, seis ou cinco de escolha, de expressar, escolher nas eleições e de escolher
·:) pessoas, mas porque o ·que vale nestas coisas não é o núme- seu partido, de dizerem Liberdade de palavra . A pergunta é:
f·) ro, é a possibilidade de convencer. os outros, por isso nem Quais são as diferenças entre os tipos de Liberdades? É per-
1
"( \ sempre a maioria vence. Convenceram aqueles ali, "pronto! gunta um pouco abstracta. A.V:: Está meio difícil de facto.
-': _)
vocês são tribalistas", está ver, estamos a tratar aqui da nossa
,1
~ _,
)
J.P.C. : O foco do que estou perguntar é qual é o seu
132 vida, que nos chamamos de tribalista, ofendemo-nos, o. que é
,\) conceito de Liberdade. A.V.: Mas o conceito de Liberdade 133
isso? Quem vai sair daqui satisfeito? Não puseram aquele ali,
é aquilo que eu expliquei aqui não tenho mais . J.P .C. : Incli-
>J naquela escolha restrita passou uma pessoa em detrimento
na-se mais para o makt1wa de Liberdade em termos de mo-
," ) daquilo que nós queríamos. O que é que aconteceu? Não
vimentos de fazer o que quer, ou inclina-se para o religioso,
· ) passou, pode não ser daqui, é que não têm imagem boa pe-
ou ainda inclina-se para Liberdade .. . A .V. : Isso é segundo
rante a população. Não têm boa forma . Não têm dignidade,
·J ele como pessoa não tem problema. JP.C.: Como se explica,
a vista da pessoa eu vejo assim, se conhecesse plenamente o
j imagina, o que ~ca não é uma boa coisa? A.V.: Sim, chum- problema europeu havia de fazer comparação, mas eu não
:j bou. E todos foram para aquele que era novo. JP.C.: Inde- vou comparar com uma coisa que não conheço! Só sei que
.j pendentemente de saberem que ele é bom ou não? A.V.: A há muita coisa da Europa que estamos a imita r aqui. J .P .C.:
consequência é que não teve apoio na campanha. Não teve Agora vou perguntar doutra forma, o que é para si ser li-
_)
e ele tínha sido vereador e durante o m;ndato dele , tirava vre? A.V.: Para mim ser livre é isto: deixar-me pensar como
~> quero, exteriorizar o m.eu pensamento como quero, portan-
produto desses vendedores da rua. Produtos comestíveis .
..J
)

levava para cadeia. Indivíduo que preparou produtos dele to Liberdade de me expressar, sem receio de ninguém; mas
·.J .hoje quando eu quero falar eu tenho que pensar porque es -
para vir ganhar uma quinhenta, era arrancado, esse é que
.': _) _:_._... - -:",_;ses hão-de ir contra; e, de facto, s-e alguém lev antasse e foss e
devia ser presiden_te? Até disse-se assim "se for presidente
o que vai ser?" contra aquilo que eu disse , não que seja infalível aquilo que
~ _)
eu digo , mas que me convençam como deve ser, e não só por
._J~-·1 J J .P.C. : Nós tínhamos falado do conceito Liberdade, já
'_f porque sabe falar, porque é mais do que eu, isto para m.irn
:_) falamos disso directa e indirectamente também. O .que é que não é dar liberdade ao outro. J.P. C.: Acha que nas socie -
acha? Qual é a diferença que existe entre o conceito Liber- dades tradicionais, lá onde nasceu e viveu , ex iste este g rau
dade,[disse agora em makuwa é Liberdade de it para onde de Liberdade? Não estamos a falar do coloníalisrno, mas no
quiser quando se traduz] e o conceito de Liberdade que nós contexto tradicional. A.V.: Plenamenre não , porque há aque -
podemos derivar da religião, porque falamos um pouco que le conceito de que perante os mais velhos os mais novos não
é a possibilidade de escolher entre o bem e mal que o homem têm palavra; isso não é dar Liberdade ao jovem , depois nós
tem, essa é a liberdade máxima, e conceito Liberdade que mesmos contrariamo-nos. Existe um provérbio que diz: " sa-
talvez lê ou vê assiste do Ocidente, que é mais ou menos o ber as coisas não é ter nascido há muito tempo, é passar por
..)

José P. Castiano
Filosofia Africans : da Sagacidade à lntersubjectivação com Vie gas
0
_)
onde estas coisas estão" . J.P.C .: O que quer dizer com isso?~--­ )
pessoas imaginárias; recordo-me da história do ·m acaco e do
A .V. : Quer dizer "viver", eu nasci, cresci aqui, conheço as 21 .)
peixe , rec;:ordo-me duma outra história, -quando estávamos
coisas daqui; o Castiano é meu filho, nasceu depois, mas pas- aí na mesa; eu perguntei ao Viegas o que :acha dessa guerrà, __)
sou por onde viu outros acontecimentos . Então sabe aquilo e contou-me U:ma história do pai que é português ·e · da mãe
não sabe aqui, até pode saber aqui e aquilo, lidar com aquilo inglesa. Então para mim surge a ideia de que a sua retóri- :)
lá, todavia tem que me deixar falar; portanto não há Liber- ~a p~rte quase sempre duma históda, e de pr~ferência qe ,)
134 dade absoluta lá. Falam os mais velhos do que jovens, falam animais, para não culpabilizar ninguém, então eu disse que
mais homens do que as mulheres [no contexto tradicional]. 135
essa é a retórica; mas ainda ontem disse-me uma-coi~amui~'a
impo~tante, que essa sua retórica é inspir~da na for~a como )

os mak~was educam. O tema é educação, educa~ã~ para li- 0


Sobre a Educação e Valores
berdade, ontem deu-me um exemplo; disse, c~mo ~xempl~,
--
...........,_<"-'<:"

.
~
o valor de afinco no trabalho [ ...] a pergu~ta é: Quais são o's
J.P.C.: Como é que liga Liberdade com, já falou dosa:' ~utros va_lores tradicionais? E quais são os pr~vérbios q~e
ber, mas eu quero restringir-me para um tipo de saber que ~~ pegam para ensinar esses valores tradicionais? A.V.: São
é a educação, educação formal. Qual é a importância que vê muitos d~pende do que se quer ensinar! '
da educação hoje no sentido de ajudar a pessoa a conquistar J.P.C.: Mas quais são os valores mais importantes na
as suas liberdades? A.V.: A educação é um fenómeno que educação.tradicional, qU:e tipo de provérbio .quais são? A. V.:
estamos a perder, está sendo perdido; é preciso recuperar, Por exemplo, temos: Tudo o que acontece só me vê a mim;
o que devemos fazer para recuperar a educação? Hoje não qualquer coisa que acontece ... Então conta-se essa máxima
há educação, porque vamos falar da educação tradicional, para depois explicar-se que refere-se à galinha, porque quan-
ensinamos lá, mas a criança vai para cidade e vai encontrar do chega um hóspede em casa, mata-se galinha. Naquele
outras pessoas com outra maneira. de pensar que lhe vão di- tempo que não se usava dinheiro, quando aparecia um .pro-
zer outras coisas; logo, não vai cumprir com o que nós en ~ blema, era com galinha que se pagava! Petisco, qualquer cÓi-
sinamos aqui; a nossa educação é dgida, muito rígida, tens sa, é galinha! Então tudo é galinha! Entã~-'. ~ galinha chama~·
que fazer isso e aquilo, mas encontras pessoas que não fa- se enkuma enkuma; "tudo o que acontece. s.6 ~e ~ê a .mim",
zem isto. Depois os próprios educadores são indivíduos que isto só para dizer aos jovens "vocês, quando saírem daqui j
e ti~erem a vossa· casa, têm que ter galinh~,s; tê!ll que ~ri~r
'
não têm experiência plena, são indivíduos que precisam ser
educados, como é que vai educar os outros? J.P .C. : Eu es- galinhas". É muito importante ter criação em casa. J.P.C.:
cutei duas vezes essa gravação ontem, falou dum aspecto de P,orque aquilo é mais ou menos dinheiro. A.V.: É dinheiro!
__que eu_falei ontem, eu ontem escrevLsobre'--a sua_retó.rica_[é __ Tem a função de resolver problemas. Em ~~z de se diz,er tem
a arte de falar] , então falamos um pouco sobre isso. Repa-
j , ....
r ei que começa sempre com uma história de animais e de 21
Esta hlstóúa toi. re.\)roà.\.Yz.là.a \)e.\.o autor a\gur.e.s tia. pal:te. -1. à.e.st é 'üv ro .
\\). 29) , : - 1 • ;•

\
f:)
}J José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação co rn Vie gas
~ (J
r,
,()•
que criar galinha é boa, primeiro conta-se esse provérbio. ção é Olela, Olela Mutuo para ser alguém [ . .. ] e depois exis-
,' ) "Aquilo" canta-se durante horas e horas; os rapazes respon- te oxuttiha é ensinar que é instrução; eu posso ensinar o meu
:) dem mas não sabem para onde é que vão; para no fim dizer filho a ser carpinteiro, não estou a educar, pode aprender
q_u.e. à.e.vem. t.e..: c:úação à.e. g,a\mna"-' .
,;< J mas continua malcriado, mas é carpinteiro; posso ensinar a
,; /
") Ensina-se a uma rapariga que quando o marido esti- ser professor mas se não tem educação há-de ser mau profes-
\') ver a regressar à casa, ela não deve preocupar-se em olhar a sor, e não irá educar os seus companheiros ; posso ensin ar al-
136
cara; não. olhar a cara do marido porque a cara nã~ muda,' é guém a conduzir carro mas não .estou a educar, educação ali 137
~! _)
a _mesma; mas tem que ofüar para barriga; há muito' tempo no ensino de carro é o código que se põe. J.P.C.: É instrução;
..;
·' J nao se usava roupa, olhar para a barriga e ver se diminuiu ou está a formar a pessoa para profissão. A .V .: Sim, sim, portan-
t) n~o, para descobrir se o marido tem fome ou não; isto é para to, por isso eu disse, promove a educação .... J.P .C.: Então
j dizer qué tem que preocupar-se pelo bem-estar ·do mârido, está de acordo com a nossa definição na filosofia? Para nós
·j J.P.C.: Provérbio também podemos criar. A.V.: Sim, vamos educação é, resumindo, transmissão de valores! A.V.: E x ac-
dizer que quando seu marido está a voltar para casa não ofüa tamente! J.P.C.: E um valor de tipo justiça : uma pessoa tem
)
par'a cara olha para a barriga, para dizer que tens qi:.Íe cuidar que ser justa. A.V.: Exactamente! J.P .C. : Pode transmitir-se
J dele como homem, e para dizer que se ele teve problemas usando vários conteúdos de instrução, não precisa de ser um,
primeiro é preciso dar-lhe de comer, depois discute os pro~ é isso? A .V. : Exactamente! Até porque, nos ritos de inicia-
1 _)
blemas .. Outro hábito que nós temos é essa coisa de rir e ção, um dos consefüos que se dá lá é aquele que se apresenta
' _) bater as palmas, mas isto significa demonstrar que estamos em forma de advinha, que diz aquele que passa pela casa dos
_) mais ligados, "estamos juntos". J.P.C.: Há alguns valores que outros, na casa dele não se passa. J .P.C.: O que quer dizer
consegue diferenciar se esses são mais masculinos ou femini- )sso? A .V .: Quer dizer: gosta de passar na casa dos outros,
_)
nos ha educação tradicional? A.V.: Existem sim, mas assim --,~ · ...~·mas na casa dele não admite ninguém. J.P.C. : E qual é o valor
) de repente eu não posso dizer. por trás disso? A.V.: Então é para dizer que quando você for
_) grande tem que ser sociável com os outros, admitir também os
J.P.C.: Qual é a diferença, entre a instrução .e a educa-
J ção? A.V.: Eu não sei! estou a pensar em makuwa. J.P.C.:
outros, você deve gostar de conviver com os outros e também
(_) tem que admitir a convivência dos outros consigo;,não deve se
Em makuwa existe um termo? A.V.: Existe separaÇão; existe
1') isolar, não tem que ter atitudes que afugentem os outros , "na
um termo para educação, e existe um termo para instrução . ·
casa do fulano e aquele gajo, na casa dele nem se .ri, não vale a
:1J J.P.C.: E qual é o termo para a educação? A.V.: Para educa-

·'r'~
t) 22Q" il" r .
aq_u º. ~erere-se aos ritos de iniciação para rapazes·, durante
os q~a1s. o metod? ?eensino de valores como este é de repetirem os
pena chegar lá".
J.P.C.: E qual é outro valor da educação tradicional
.i além da convivência, como é que se educava para o trabalho
''J
tl proverb10s ou maxunas cantando repetidamente ao longo de muit
tempo. Podemo_: dizer que se compara ao método de repctição usad~ por exemplo? Para o afinco, a abnegação e o interesse pelo

r
·Í
· antes na ~du~aç~o formal, c~m a diferença de que nos ritos de iniciação __ ,. trabalho? A.V.: A última vez que falamos, eu falei de que
a memonzaçao e fena por via do canto. .
~· (~)
~f~ ..
; ·,i

i·J~ ~--.
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. '
1
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação co m Viegas

o Leopardo quando estiver ferroz, não se deve fugir dele, .., - mens.t ruação e o rapaz? J.P.C.: Qual é o lugar da mulher na
deve-se apanhar pela cauda. J.P.C.: Para dizer que? A.V.: É sociedade.dos makuwas? Ontem disse que o seu apelido é da
para dizer que o capim, quando for muito na machamba, não sua mãe! Qual o lugar que a mulher tem nessas sociedades,
tenha medo, agarra e .... J.P.C .: Mas a interpretação que me acha · que é mais livre que o homem? A.V.: Mais livre não,
deu não foi essa, eu estou a perguntar de novo, mas é quase mas é muito valorizada a mulher na sociedade makuwa; por
isso, sim, o capim tem que se cortar por baixo. A.V.: Sim, fora, assim à primeira vista, não parece; é só ver cada chefe
)
138 sim! J.P.C.: Mas essa de machamba que meteu agora ... [ri- tradicional tem uma figura feminina chamada puyamwene
139 _)
sos] A.V.: Eu não vou recomendar não ter medo de qualque_r como aquela que vimos ali que segura aquela farinha para
capim do mato; estou a falar do capim da machamba onde se os antepassados 23 • Puyamwene quer dizer "senhora do rei',
produz, J.P.C.: ou seja, no fundo é dizer não tenha preguiça! "dona do rei", quando é [entronizado] o rei é ela que lhe dei-
A.V.: Sim! Não tenha preguiça ... J.P.C.: ... preguiça de fazer ta a farinha.J.P.C.: Está a baptizar ou a entronar não.é? A.V.: )
as coisas enquanto tiver tempo ... A.V.: essas coisas podem r·~;.. Cada dirigente, em cada nível, tem sua puyamwene, seja de
interpretar-se de várias maneiras. - nível familiar tem puyamwene, seja ele de nível comunitário
tem puyamwene; o régulo também tem puyamwene;.e ova-
lor dessa puyamwene depende do chefe que a circu~da. O
Sobre o Lugar da Mulher e da Criança
facto de ·ser o homem a sair da família d.ele para ir ver· na \ri -._)

família da mulher é uma valorização; ela: não é um 0hjecto _)


J.P.C.: Sim! Mas já vimos ontem que nas sociedades que ele deve tirar para onde quer, e nem paga uma quinhenta -~
tradicionais as pessoas com doze já conseguem ... A.V.: Não sequer porque mulher não é um objecto para se comprar; ·0
se poder definir para todo mundo, isto depende de cultura nas outras etnias do nosso país vendem-se mulheres, e que ')
para cultura. Para nossa cultura podemos dizer se é doze ou valor! Mais que duas ou três cabeças de vacas . .
.)
se é 15 anos, pelo menos tem que ser a idade em que a crian- f~
JP.C.: Que diferença faz entre direito e dever? Foca-
ça pode entender de facto, mas com doze pode entender? lizados numa mulher, quais os direitos que ela t~lli ·e quais
No nosso caso actualmente acha que pode entender. Não são os deverés? A.V.: A mulher tem direito de ter uma c-~sa;
sei isso é como casamento; quando se diz que casamento é quando é casada não pode continuar na casa dos pais; homerii o
quando tiver idade legal; qual é a idade legal; E quem fez tem de lhe construir uma casa; a mulher tem direito de .ter' ro~c
essa lei? Porque legal quer dizer "segundo a lei", e aqueles pa, a mulher tem o direito de criar galinhas ri:ias, o homem
que só vêm grávida e dizem que dessa grávida, se nascer uma é que traz as galinhas , compra entrega a elâ, ela: é ' que cui.da;
menina , é minha mulher; e começa a dar comida, quando a mulher tem direito de ser consultada 'q uando' cheg'3. um
_ nascer,_de facto, é filha_dele;_é correcto?~iz~se_que a rapari=----
ga tem que atingir a puberdade e o rapaz quando é que atin- 23
De novo, Viegas refere-se à cerimónia tradiciopal 9rganizada . por
ge a puberdade? Porque na rapariga mede-se pela primeira ocasião da inauguração do complexo pedagógicc; da -·U P Na~pula, ~
que referimo-nos atrás. -~;: .;_ ··'

\
José P Castiano \ Filosofia Africana: da Sagacidàde à lntersubjectivação com Viegas

hóspede, "o que fazer com aquele hóspede? O que vamos mulheres? A.V.: Sim, não lutarem, não discutirem mas têm
dar?", não é o homem que decide "faz lá isto, faz aquilo!'. um único marido, e porque não diz que a mulher tem direito
J.P.C.: E deveres? . A.V.': A mulher tem o dever de prepa- de ter dois ou três homens? Desde que harmonize' Está cla-
;( _) rar comida para o · marido, a mulher tem o dever de limpar ramente, e ele é muçulmano, então quer puxar todo homem
;r ) ·a casa, pôr a casa em condições; a mulher tem o dever de moçambicano para o lado dele; isto é correcro? Como é que
~· ) ­
cuidar das crianças; a mulher tem o dever de acatar com o vamos levar o nosso processo para frente, se os que estão à
que o marido diz, o que o marido decide; tem o dever de frente são os primeiros? 141
"J 140
questionar o que .nós decidimos ou dizemos. J.P.C.: Agora
Í1 j a mesma lisfa para o homem, quais são os direitos e deveres
Sobre a Convivência inter-Religiosa: "Somos pacíficos, não
ft. _,1 do homem? Eu percebi do seu lado que, por exemplo, um
dos deveres do homei;n é construir a casa para o seu lar, mu- . "
passivos
j .J
tatis mutandi o dever dos homens é construir casa. A.V.: Eu
·li _) ' '

falei dos direitos dà mulher, e precisamente os direitos das


) J.P.C.: Agora antes de terminar quero começar uma ter-
mulheres são deveres do homem e os direitos do homem são
., _) ceira parte da nossa entrevista. É o seguinte, eu queria saber
os deveres da mulher. J.P.C.: E as crianças? A.V.: A criança
sua opinião sobre como é que a convivência destas três reli -
j tem direito de ser guardada [no sentido de segurança no lar]
giões, a muçulmana, católica [apostólicas, protestante tudo
l _) e cuidada; a criança tem direito de ser vestida; de ser alimen-
ao mesmo sítio], e as religiões tradicionais? Historicamente
_) tada; tem direito de tudo aquilo que é necessário para o bem
em Nampula particularmente, verifica-se um.a convivência
da criança, são direitos dela. J.P.C.: E os deveres? A.V.: A
_) muito grande. A.V.: Sim pacífica, é tal liberdade. Meu filho
partir de certa altura ... J.P.C.: sim mas quais são os deveres
_) , é muçulman.'o, eu posso ser cristão e vamos conviver; não
que a criança tem? A.V.: A criança tem que respeitar os mais
_) ·;,__: vamos deixar de ser família só pelo facto de sermos de dife-
velhos e respeitar. os pais; ela tem que ajudar em casa em
rentes religiões; o branco é qi1e trouxe essa separação "você
_) alguns trabalhos domésticos. Mas é o que nós faze~os hoje?
é católico não pode fazer com aquele protestante; . você não
_J Ensinamos crianças mais deveres, não ensinamos direitos,
pode comer com aquele muçulmano" por causa das guerras
' (.J por isso quando você discute com uma criança ela diz "papá
que eles tiverem lá; sabe que a Península Ibérica foi domi-
afinal o direito duma criança não é brincar?" , está bem mas
() tem limites! ].P.C.: Acha que brincar é um direito da crian-
nada pelos muçulmanos, esses nomes todos Aljubarrota e
j'__) ça? A.V.: Dizem e escreveram que é um direito. É a_q uilo que
tudo "al", até Fátima é filha de Maomé, os muçulmanos na
;
: '._) Península Ibérica deram aquela parte de Portugal chamada
falamos aqui: os que estão à frente deste processo fazem o
' . ' Cova da Iria o nome de Fátima. É a mãe do Cristo, Maria
1
,,--:::} que querem, e como está escrito, temos que dizer "sim"; por
( portanto, anos depois foi aparecer precisamente ali e passou
l(_J exemplo, no casamento porque é que um certo dirigente fez
\ . ~ -- a ser chamada senhora de Fátima, Nossa Senhora de Fátima.
'\: )' lei da família onde diz que o homem pode ter duas mulhe-
:'P ~ ,J .P.C.: Ela era filha do Maomé? A.V.: Porque entre eles não
:1 \ re~ ou mais desde que harmonize? ].P.C.: "Harmonizar" as
;l\..J
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1
1
José P. Castiano ' ..)
Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viega s

bavia esse problema; aqui não temos problemas; até temos ~­ _)


criada que tinha em casa, uma egípcia e disse:· "Passa aqui
filhos de muçulmanos que são padres, temos filhos de mu-
com essa-·mulher e que esse filho que Deus prometeu, ele
çulmanos que são irmãos [católicos], convivem na mesma J
vai dar-te ·através dela"; de facto essa mulher ficou grávidá
casa, até há momentos em que rezam juntos. Aquela chama-
da oração ecuménica. J .P.C.: Tem uma Igreja específica para
só que interveio Deus disse "não é com. essa mulher, é com J
a Sara", depois a Sara ficou grávida, mas a primeira a dar a )
isso? A.V.: Não, não pode ser em qualquer sítio . Combina-
luz foi a Ágata; esta egípcia teve um filho, Ismael, depois Sara
142 se vamos para sítio X para não parecer que cada um traz a
teve o Isaque, então começou a não haver entendimento em
oração dele. É oração ecuménica, vai um sacerdote reza, vai 143
casa entre as duas mulheres. A Sara pensou, "afinal entreguei
um muçulmano reza, vai um hindu reza. Eu assisti aqui em
uma escrava a meu marido enquanto eu devia ser a mulher";
Nampula'! J.P .C. : Isso é frequente ou são coisas esporádicas? ')
então interveio Deus e disse "para que haja paz na sua casa
A.V .: Não são coisas esporádicas, há momentos que até em )
manda embora a escrava e o filho", e mandou embora, e des-
Maputo fazem. Chama-se oração ecuménica. J.P.C.: Mas isso .--""... _-- ;-
é mais para cerimónias públicas? A .V.: Não é só isso. Quan- 2: - · - ··, ~
te Ismael, na descendência dele, é onde nasceu Maomé, mas j
antes foi na descendência do Isaque onde nasceu .. o Cristo; j
do há uma coisa qualquer que querem pedir, por exemplo, 1 ·'
quinhentos ou seiscentos anos depois é que nasceu Maomé.
de Janeiro é dia da união das igrejas organiza-se e rezam jun-
J.P.C.: Afinal Cristo não é Filho de Deus? A.V.: Não sei, eu
tas , porque de facto não há guerra aqui; não há motivos para
acredito que é filho de Deus, sempre que me dão ·uma ge-
guerra aqui. Por os muçulmanos terem dominado a Penínsu-
nealogia do Cristo confirma-se que não é filho de Deus, ele
la Ibérica arranjaram inimizades com eles, por isso quando
nasce na descendência de Isaque, Deus havia de mandar . o
eles trouxeram a ~elígião deles encontraram árabes aqui, e
filho d'Ele ou qualquer profeta ou messias, mas teve que nas-
então tentaram separar-nos, "Você é cristão, você não pode cer de alguma família; então nasceu dessa descendência de
ser baptizado, não pode comer com aquela gente; aqueles lá Isaque. A genealogia de gerações até José espera pela Maria,
são sujos" . Até queimaram mesquitas aqui, combater todas não disse que José gerou Jesus, esposo de Maria da qual nas-
as religiões e manter a cristã porque estava ligada ao Gover- ceu Jesus que se chama Cristo. .
no Colonial; n~uitas capelas protest~ntes eram queimadas;
J.P.C.: Vamos. voltar a Nampula, explicou que uma das
não era o Padr~ que queimava, era o próprio administrador;
razões da não contradição é que os dois são da mesma famí-
ele combatia para ficar somente a Religião Católica; os pa-
lia, qual é outra razão que podemos encontrar que de facto o
dres nunca mandaram queimar, mas o administrador para
povo nampulerise, os makuwas, embora os portugueses ten -
mostrar que era mais cristão, tinha que proteger a Igreja Ca-
tassem transladar esse conflito da Europa para cá mas não
tólica; aconteceu isto porque afinal Cristo e Maomé .s ão da
conseguiram, porque nós convivemos com as duas religiões
mesma família, têm a mesma origem do Abrão, teve uma mu-
duma forma pacífica. Que factores .a cha que estão poi'.de trás
lher, a Sara, Deus prometeu que havia de dar um filho, esse
disso fora desse factor da doutrina? A.V.: Ya, é dá própria
seria pai das multidões [ . . . ], mas como essa mulher era velha ' . .
cultura. Nós aqui não temos a cultura de impor o que é n~sso
e estava a demorar ficar grávida, ela própria entregou uma

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José P. Castiano ' Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Víc;ga s
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aos outros; por isso o povo makuwa apesar de ser numeroso; aquele também, muita gente podia sair, ir para lá, mas depen-
1)
nunca teve unidade política, vive em qualq~er lado e rece- dia daqui. Agora, eu não sei onde há vantagens e desvanta-
.; 1)
~ ... be-qualquer um que vier; 'c á nunca aconteceu, por exemplo, gens, de facto; por isso somos considerados "fracos", "passi-
il j como o que aconteceu com Gungunhana: ele tentou con- vos" enquanto não somos passivos, nós somos pacíficos . Ser
() quistar todos os outros por isso chamou-se "imperador", pacífico não é ser passivo; o facto de dar liberdade os outros,
:r --
)
-
quer dizer submeteu outros reis ao seu poder. Aqui não hou- de fazer o que eles querem, não signlfica que somos passivos,
.:\ )144 ve nenhum que tentou submeter os outros. Se houve, .não foi pacíficos sim porque gostamos da paz, nada de conflitos com 145
de grande impacto; o makuwa, quando vai viver em qualquer os outros. É diferente. J.P.C.: E como é que vê a invasão
"_j
parte, ele assume, adapta os costumes das pessoas com quem dessas n~vas religiões, •Se no século XII chegaram aqui os
J está viver; lá não impõe o que faz, nunca diz "na nossa terra muçulmanos, depois chegaram, no século XV, os portugue-
) não se faz isso, faz-se assim e assim", como alguém diz "vocês ses, com a nossa pacificidade aderimos a eles e ~1gora neste
devem fazer o que se faz na minha terra", então se quiseres século X..,'( estamos "pacificamente" a aceitar estas "novas
fazer coisas da tua .terra porque não ficaste na tua terra? Se religiões" principalmente do Continente sul -a mericano, Bra-
·)
estás aqui tens que fazer o que os outros fazem aqui! Por sil, mas algumas também de Portugal, como a Igreja Maná.
·)
isso eu.entro aqui com a minha religião e fico aqui sou tole- A.V.: Cristo disse: "Haverá muitos Cristas, ouvirão falar de
j rante. J.P.C.: Então, neste sentido, se mudarmos os termos, muitos Cristas em vários lugares , mas eu direi a eles, n o dia
_) podemos dizer que ele é facilmente dominado, porque há de julgamento, não vos conheço"; eu vou dizer o quê? Eles
um limite de tolerância. Eu posso tolerar a partir do momen-
J sabem se devem continuar ou se devem aumentar. J.P.C .:
to que não entre na minha casa e tire qualquer coisa; agora Mas professor Viegas, nós estamos a nos queixar da educa-
)
eu não posso chegar na sua casa e tirar alguma coisa e ainda ~ ção, da degradação de valores morais, não conseguimos es-
1 _j dizer que está tolerar. A.V.: Aí não, mesmo na entrada por- --~...-'- colher dirigentes moralmente bons, mas ao mesmo tempo
.t_) tuguesa aqui encontrou resistência; houve reis que resistiram estamos a dizer que somos hospitaleiros, chegou o cristianis-
' _) aqui, mas a nossa resistência pode não ter sido a armada. mo, chegou o islamismo, agora estão a vir religiões que vêrn
·J J.P.C.: O facto de não haver impérios aqui, como falamos, do Brasil e de Portugal. A.V. : Mas imagin a lá, rnel.i filho, se
( _) na base de não impor os outros, cria também uma desvan- todos tivéssemos que estar uns contra os outros? Seria um
tagem que é não formar órgão de Estado, não haver ordem inferno! Mas também temos que proteger as crianças dessas
-~
na defesa do comum, não haver assembleias de coordenação influências que quando saiem à rua encontram, não estou a
''.J
.! de acções, não haver escolha de dirigentes ou pelo menos 0 dizer que não devo convencer ao meu filho que não e~tra
)' _) conhecimento de que aquele é o nosso rei comum. A. V.: É
k~
naquela religião, mas é que meu filho vai ouvir dos outros
que antigamente aqui, cada regulado era um reino com qual é a rn.elhor religião; há-de ir na Igreja Universal depois
·:(,,. , sua gente; então não havia necessidade de haver urrvei para
' _,) vai dizer "papá ali querem dízimo". Você também diz que
todos eles, seria imperador. Mas o que os unific~va era só tem direito de escolher a religião mas ao mesmo tempo está
a língua, era a língua e os hábitos; este reino respeita este e - · a dizer o que vamos fazer para que não haja muitas igrejas,
o
. ..)
José P. Castiano Filosofia Afr icana : da Sagacidade à lnte rsubjectivação com Viegas

,)
não é possível! Haverá sernpre até ao fim do mundo! Haverá" um projecto que não andou .... População está ali, chegam
e aparecerão mais ainda tudo isso nos interessa. Assim como )
os da Renamo arrancavam cabritos, nos diziam ·"nós quere-
os partidos vão nascer mais, esses são poucos que temos; é mos comer", vinham os da Frelimo diziam "vocês admitefo )
assim o homem, o ser humano, no seu geral, é assim. Hoje que os. bandidos armados entrem e alimentam a eles'', então _)
está contente co1n isso, amanhã esta descontente com ames- eles levavam o resto de cabrito; então o ·povo sofria dum. e
ma: pela mesma razão, hoje pode deixar-se matar por uma doutro lado. ].P.C.: Mas o "espírito" das aldeias ,comunais ... )
146 causa, amanhã poae negar. Onomem é assim, aquela li6er- A.V:: era muito bom, porque era para facilitar o ·apoio à po-
147
dade de escolher o bem ou o mal, muitas vezes escolhe o mal pulação; fazia-se, por exemplo, uma fonte de água do qu~
e não sabe que é o mal, pensa que é o bem. fazer uma fonte de água para cada casa espalhada; . faziam
para todos e podia pôr-se um gerador, escola, etc. Mas é tal 0
coisa : o pôr uma fon_te de água aqui resolve um problema e )
Sobre o Projecto "Aldeias Comunais" cria-se outro problema, porque uma mulher quand~ pega o ..)
seu tam~or ou a.sua panela para ir b.u scar:. água_, não sei onde
conversa com outras e é livre, mas este poço está perto do
J
J .P . C.: Podemos regressar ao projecto libertário no Pós
fulano, e quando chega estão lá todos de manhã,'· ;:você~
-·Independência? Como enquadra as aldeias comunitárias
estão a fazer barulho aqui, não me deixam descau"sar", · é J
como projecto de desenvolvimento? A.V.: Nã_o abordei a
outro problema. J.P.C.: E a escola, posto de saúde qual seri~
entrada da Independência, falei só de machambas comunais,
o problema? A.V.: Não teria problema, até P.o rque seriam
faltou falar das aldeias comunais , falamos pouco também.
vantagens. Há mais vantagens do que desvantagens. J.P.C.:
As causas que fizeram com que essas aldeias comunais não
Mas na prática viu-se que há mais desvantagens d_o q:1~ \Tan-
0

tivessem raízes, primeiro não haviá hábito de pôr casa per-


tagens. A .V.: Não, a desvantagem foi es1?a, de que os outros
to dos outros; segundo porque quando se construía a aldeia
vinham, queimavam, tiravam as coisas, levavam, vin,ham _m;1-
comunal, num sítio punham as pessoas sem as famílias de
tros ao invés de proteger. J.P.C.: Mas esse projeclo de ~ld~ias
origem; era obrigado a viver com indivíduos que não são das
~omunais foi concebido por quem? A.V.: Eu não sei! Só .sei
minhas relações; isso também desanimou as pessoas; tercei-
que a Frelimo é que dizia para fazer aldeias comunais. J.P ..C.:
ro , quando chega a guerra, essa de "16 anos" como se diz,
Quem construía? A .V.: Era a população, cada um construía
queimaram a aquela aldeia, "Frelimo estava a nos enganar
casa dele. J.P.C.: Então identificava-se um espaço. A.V.: Era
porque vocês ·estão aqui, voltem para onde estavam!". Está
redistribuído; você faz a casa aqui, você faz ali, em talhões.
a ver? Queimavam áldeias. A população fugia para as zonas
E eram casas alinhadas. J.P.C.: Ainda existe isso? A.V.: Não
controladas pda Frelimo, e alguns, deste lado, diziam: "vo-
sei se ainda existe alguma. Mas a aldeia que prosperou mais ·
eês est:ã0-aqui para eonviver com o partido que aebam ser-ar-
chamava-se Aldeia 25 de --Setembro. Até tinha um banco.
rogante? Vão lá donde vieram!". Então era população para
Mas já não se fala. J.P.C.: Mas ainda existe? A.V.: Não existe
aqui, população para ali, e isso fez com que as aldeias fossem
nada. Cada um foi viver onde quis viver, não existe, não há

\
F'., José P. Castiano \ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
kJ
li
1( ~) ne11huma aldeia comunal. J.P.C.: Mas onde é que se copiou Entre-Vistas III
1,J
1
esse·modelo? A.V.,: Não sei, m~s eu penso que cwpiaram de
;! ) Cabo Delgado já que havia aldeias lá, embora não estavam
,( _) alinhadas, mas viram que era bom, as pessoas estavam juntas, J.P.C.: Vamos começar onde acabamos; da última vez
'.( ) são coisas que foram trazidas de lá de Tanzânia ou. de Cabo falamos muito de 75, da Independência, e falamos um pou-
Delgad~, não sei, mas a FRELIMO é que trouxe. J.P.C.: Na co do projecto social das aldeias comunas, porque no seu
·· __J_
Tanzânia havia Ujamaa, aldeias camponesas que Nyerere or- ponto de vista tinham fracassado as machambas colectivas
.. ~ ganizou ruais ciu menos com mesmo estilo que ele chamou etc., quais são os problemas ligados a isso, mas quando fala-
149
~ "j "socialismo africano". A.v.-: Talvez foi isso. mos por telefone expr~ssou um.a certa ânsia e um pouco de
") "mágoa" porque não chegámos de falar de uma parte da sua
J.P.C.: Mais âlguma coisa que pode ter esquecido?
) vida; vamos começar por aí na sua vida no partido quando é
A.V.: Há tim provérbio que está ligado com a educação que
que se filiou? Porquê? Motivações e depois vamos à assen1-
j diz: wahaawa ohiütukelele, "quando sofreres, ~ão te en-
bleia, porque eu sei que foi membro da Assembleia da Repú-
1 _) forques!"; quer dizer podes enfrentar problemas difíceis de
resolução, mas nãô é problema [suficiente] para te matares blica. Também foi .m embro suplente e do Comité Central do
·) partido Frelimo e t.ambém de outras organizações, como a
ou para te suicidares, não é solução . Um dia, quem sabe lá,
_) de escritores, etc., tudo aquilo que foi membro, então vamos
há qualquer coisa · que te espera e que tu não sabes, se te
1j enforcares vais perdê-la. Isso parà incutir coragem no sofri- começar com a primeira parte.
') mento, o vafor da coragem nas vicissitudes da vida. J.P.C.: E A.V.: Sabe muito bem que às vezes a ..memória nos trai.
j porquê está dizer isso? A.V.: Em geral todos nós precisamos Só lembramos depois de ter explicado alguma .coisa à parte,
de coragem;. você está a sofrer aqui, a andar dum lado para 0 .~ é difícil agora dizer tudo que foi da minha vida após o "7 5".
'j
outro a investigar isto, a falar com o fulano, não é sofrimento -.~, ~~- J.P . C.: Tudo bem, ficamos naquela parte em que o secretário
' _)
isto? Mas você faz com gosto. Por isso que no fim vou dizer: para a mobilização e propaganda e que sua tarefa consistia
: __)
"hei, se você rião .m e oferecer meu livro , eu passei noite sem em fazer perceber ao povo o que era isso de FRELIM.O e
'j dormir, mas passou a pensar em quê?" I-Iá outros que dizem o sentido e significado da Independência Nf;!cional que se
(_J isto. aproximava? A.V.: Sim, na altura fiquei secretário para esra
•:J área que menciona. Então, eu pedi que me deixassem, por
,: j certo período, continuar a dar aulas de modo a não prejudi-
j, ) car os meus estudantes porque estavam a preparar-se para
1..J o exame. Perante a recusa tive que dar aulas no período de

1'º
(J
manhã e no período de tarde fazia o meu trabalho político
... "mobilização de massas". Em Outubro do mesmo ano,

l
~'.2
isso em 1975, fui chamado para fazer parte do grupo que
-·- ....
\J
·J
,! \'
.J·

(J.~_:·
l
José P. C.astiano _;
Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Vi egas
)
seria formado como "instrutores" [formadores de professo-•. -- _)
isto tudo tinha de acabar; a criança, a partir do:lugar onde fica,
res primários]; então fui para Maputo, concretamente para deveria saber a História de Moçambique do Rovuma ao Ma- )
a Namaacha, onde ficamos trinta dias. Após esse período, puto, a História era mesmo da FRELIMO; pelos arios ·de luta
regressamos para Nampula; como eu disse .antes, quando armada de libertação. J.P.C.: Duas perguntas: A primeira é
lá chegamos abrimos o Centro de Formação de Professores sobre História, como é que se recorda como é '.que se tratou
onde; numa primeira fase, começamos por reciclar os ·nossos Gungunhana? A.V.: No tempo colonial· ouvíamos falar-de
150 colegas;clemos novas ideias que postulavam um e·nsino livre Gungunhana, a acção de Mouzinho . de Albuquerque :por-
da religiosidade; ensinamos boas maneiras de dar aulas, etc, 151
tanto, como que conseguiu vencer um iriiperador.' Mas com
a nova metodologia de ensino, com o novo:programa de His-
tória, falava-se de Gungunhana como uni herói,. um, Herói
Ensino e Religião
Nacional, símbolo de resistência nacional e tínhamos poucos
heróis assim; Gungunhana era figura de herói~ apesar de aqui
J.P. C.: Sim mas quando refere-se à "nova maneira de- também ter havido outros que resistiram, como:por _exemplo
dar aulas" o que significava? Eu sei que falamos na entrevista Mukupulamuno, o rei da Napawa e outros; mas-sobre esses,
passada mas eu queria que desse mais detalhes sobre isso. tal como no tempo colonial; não se falava deles; e também
A.V.: Sim, nós tínhamos programas de ensino no tempo co- no princípio, talvez as pessoas não sabiam; eram falados mui- .J
lonial; então era preciso ter outros programas, quero dizer, to pouco,, mas foi daí que começaram a :surgir esses .nomes
com a Independência não poderia ser exactamente o ensino como heróis da resistência. J.P.C.: E como é que analisa essa
colonial; por exemplo, foi abolido o abecedário, o alfabeto, a introdução de Gungunhana? A.V. : Eu analiso Gungunhana
tabuada foi abolida e aqueles métodos violentos que eram de como qualquer outro, como Mataka por .exemplo que che-
uma pedagogia daquela altura que se ensinava com sangue; gou de matar o Dilo Delela, mas falava-~e de Gungunhatia
)
portanto, no tempo colonial o professor que batesse era bom como um indivíduo bem bom porque matou um emissário
professor! Tinha que se abandonar. português; então com a Independência falava-se como u:ri:t )
! ·1 .
herói.
J.P .C. : E ' também sei que nas· cadeiras de História e (
de Geografia os programas foram mudados! A.V.: Os pro- } :P .C.. ·. Sim\ Há uma outra se. segunda perg~nta que
gramas no tempo colonial eram tudo ensino de Portugal: tenho; falou um pouco acerca de sepa~ação da ~ducaç~o
_ _ _ _ _ _G
~e=ografia de Portugal, História de Portu al etc ~; sobre religiosa e educação formal posso assim dizer; como é qu~
~~--------~Et

Moçambique falava-se muito pouco; mesmo sobre os rios sentiu essa separação, na altura o que é que perisou sobre
moçambican:os falava-se muito pouco do rio Nkomati, do isso e como é que pensa hoje sobre isso? A.V.: Na altura
Zambeze e do Lúrio; em contrapartida falava-se mais dos nós aceitamos como normal o "nov9 sistema" [de educação];
rios. portugueses como o Tejo, o Douro e também da Serra não podíamos fazer a educação tal e qual à do tempo colo-
da Estrela ... parecia uma coisa não sei de que mundo; então nial. Foi daí que também que soubemos que a Igreja estava

'\
..·
José P. Castiano 'Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação corn:Vii:lgas_,'

muito mais ligada ao Estado Colonial do que pensávamos; J.P.C.: Mas depois da Independência como é que ·ficou
sabíamos que a Igreja estava ainda ligada ao Governo Co- essa relação? A.V.: Ficou igualada a qualquer outras reli-
lonial, a Igreja Católica 's obretudo; até porque era a Igreja giões, foi dito que todas as religiões são iguais , são idealistas,
'i'' .-) Oficial de Portugal, portanto, estava estendida em todo ter- e quem deve ser da FRELIMO não deve se r .religioso nem
jr ) ritório considerado português; [com a Independência] nós muçulmano, nem católico, J.P.C.: Mas eu lembro-me de um
1 achámos normal a separação entre a Igreja e o Estado . .Isto, episódio que, não sei se o tem na mente, quando o presi-
; J __
de facto, ameaçava tirar emprego a alguns; [. .. ] éramos reli- dente Samora faz aquela viagem de Rovum a ao Maputo , a 153
:: ) 152
1 -- giosos; éramos católicos, houve alguns que automaticamente "viagem triunfal" assim chamava-se, quando chegou à Ilha
·:·j
proclamaram-se que nunca foram catequistas, nunca foram de Moçambique fez um discurso um pouco antimuçulmano
'' J professores do catecismo [ ... ] , são indivíduos que depois tem memória disso? A.V.: Eu estava lá; J.P .C.: O que acon-
' _J filiaram-se à reyolução mas acharam que isso significaria o teceu de facto? A .V. : Não me lembro! Só lembro-me d e qu e
;' _) abandono ·da Religião Católica e outras. Alguns tornaram- falou duramente sobre a fortaleza de São Sebastião e até ele
se mais protagonistas [políticos] para poderem ocupar um ironizou quando disse "nós visitamos a fortaleza e destruí-
' _)
lugar, serem chefes, ou dirigentes; alguns deles quando não mos o espírito dos nossos guerreiros, dos nossos irmãos mo-
') conseguiam isso, andavam aí frustrados. çambicanos, porque aqui [na fortaleza] eles eram alvos de
') J.P.C.: Mas , ao mesmo tempo, como é que foi tratada tiros, torturados" . Agora quanto à r eligião, n ão me len1bro
u a Religião Muçulmana? Eu sei que aqui em Nampula uma da passagem que falou dos muçulmanos . Eu estava sentado
1 _) boa parte da população é muçulmana. A.V. : Nos últimos em frente dele; saí de Lunga só para ir assistir a chegada do
tempos do colonialismo, falo da década sessenta, setenta e Presidente; ele estava com Marcelino dos Sap.tos e outros.
_)
tal, o Governo Coloni~l português já estava a considerar a
.J J.P.C.: Sim mas está escrito principalmente não é só cli-
Religião Muçulmana, já tinha começado a restaurar mesqui-
·,,.-.rectamente aos muçulmanos, mas era sobre a religião que di-
') tas; por exemplo, aquela mesquita que está em frente da Ilha
de Moçambique, mesquita de Gulamo, aquela foi restaura- zia que não vai haver milagres para Moçambique, o milagre
_)
da e inaugurada pelo Governador-Geral; naquela altura era que os religiosos propagam. A.V.: Sim, mas não e stão a falar
.) sobre os muçulmanos, estão a falar de tudo que é r eligião.
Sarmento Rodrigues que lhe chamaram de "governador dos
muçulmanos". Sarmento Rodrigues já tinha sido ministro J.P .C.: É, sobre isso que se lembra então ? A .V .: Lembro-me
de trabalho; ele restaurou a mesquita de Gulamo que ficaria que disse que a religião não libertou o país, a religião estava
em Lumbo, enquanto que, em tempos ant<i::riores as mesqui- aqui, pelo contrário, a Religião Cristã esta va ao lado dos .co-
tas eram destruídas , até os muçulmanos eram perseguidos e lonos, a oprimir os Moçambicanos porque não estava a favor
desprezados; mas depois começaram a ver porque queriam da libertação; por isso a religião era idealismo era uma for-
ganhar na década de sessenta, o Governo colonial queria ma de fazer adormecer as pessoas para não verem e que era
aliar-se aos muçulmanos para ter apoio contra ps "turras" , para serem melhor ex plorados; tanto a Religião Muçulm an a
da Frente de Libertação de Moçambique. .,quanto à Cristã.
_)
__)
José P. Castiano ~- Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
J
A Frelim.o é como o Homem: Transfonna-se antigas e foi adquirindo outras características de acordo com
a realidader·a ponto de deixar de ser FRELIMO. e ser parti~ . )

do más com o mesmo nome [Frelimo] 24 ; agora ·esse· pa:rtido . u


J.P.C.: Eu vou "saltar" para o partido; as .opiniões hoje devia ser exactamente como de setenta e cinco, setenta·e seis;
escritas por pessoas intelectuais que dividem "Frelimo um" setenta e oito? Os tempos estão a passar, imagiria 'lá que á
J
e "Frelimo dois" ou melhor, até três; "um" é aquela da Luta Frelimo não tivesse aderido ao sistema de · econo~ia, como é
~--~-.de bbertação até-setenta e cinco como movimento-armado;----~. ; ~
154 que iria viver depois? Hoje você sem dinheiro não faz nada;
"dois" é aquela que em setenta e sete organizou o 3. º Con_- 155_
mesmo pessoalmente, como pessoa! Agora imagina lá um
gresso, que foi o congresso que declarou a via socialista e a partido · que tem um número de pessoas, como dirigir· o país )
adesão a6 marxismo-leninismo como ideologia do Estado; sem dinheiro? Então teve que deixar, primeiro até condenou
e a "três" começa mais ou menos em oitenta e sete com a como se diz, um indivíduo que tivesse muito dinheiro que os
"viragem" e a consequente entrada do Banco Mundial, etc., ~·"~­
'J
outros era chamado; como é que era chamado? "E)(plora~ J
pergunta um, à qual das Frelimo aderiu e por quê? E per-) d ar " , "Xi conh oca ,, , " açam b arca d or " ; mas ·d epo1s
. v;1u-·
. s e que
_)'
gunta dois, se está de acordo com essa ~ivisão? A.V.: [Ri- não havia outra .maneira. Agora, é ver também .na direcção
sos] Okay, eu aderi à primeira FRELIMO que chegou, era a do partido as pessoas que estão entrando · hoje, não .são as J
única [frente] e tinha libertado o país; todos sabíamos disso mesmas, até aqueles antigos que dizem "não era isso q~e nós :)
e propagávamos isso, e era realidade, como as próprias pes- pensávamos"' sim, "o que é isto?" não sei dizer, não era iss~
soas que tinham combatido estavam no Governo, estavam que pensamos, nós queríamos outra maneira, de certeza que
em várias direcções, as mesmas pessoas, os combatentes. En- alguns daqueles também e quando começ~ram a eritr?-r ' OU~
tão nós aderimos a eles, unimo-nos a eles e, naquela altura, tras pessoas que nem lutaram, nem tinham nascido naque~
. . '
era preciso explicar, a FRELIMO [ .. . ] era um ideal. Mais la altura, hoje é que estão a dirigir. A dirigir corno? Têm, o
tarde começamos a ouvir dizer que .p artido é uma coisa, go- mesmo espírito daquele que lutou? Que se sacrificou? Que
verno é outra,· só que o partido é que indica os seus gover- estava pronto para morrer? O de hoje está pronto para mor-
nantes. Agora eu pessoalmente vejo i~to como mudanças dos rer? Um secretário de hoje tem espírito de ser "u· primeiro
tempos, vejo e analiso como mudanças que se operam nor- no sacrifício e último no benefício", como se dizia ~a aquel~
malmente, como acontece no próprio homem. O Viegas de altura? Naquela altura o membro do partido tinha que ser e;>
hoje você não pode pensar que é aquele Viegas que tinha três primeiro no sacrifício, só depois nos benefícios . ·.· . -, · · • 'i
______ano.s_quaudo_nas.c.eu,_aqu.el.e_que_tinha_dois_m.es.es_,_nã.o_é_o~--­
].P. C: Está bom, o que estã a âiz-er dá-rrie -a ' se:-guinte
mesmo; é verdade que tem uma essência que o identifica que
ideia: que no tempo colonial, libertar-se sigui.ficava e:Xpul~k~
esta pessoa é a mesma, mas mudou muito, tem outras carac- • ·,{.' !- (

terísticas. O parüâo também, quando nasceu tinna caracte- , -) 'r. • ;


24
rísticas próprias daquela altura; à medida que foi crescendo Viegas refere-se à transformação da Frente de Libertação de MoÇa,;,,biq'ue
·:· .
com a grafia FRELIMO para o partido da. :grafia :"Frelimo"., em
o tempo foi passando, foi deixando algumas características Fevereiro de 1977, no 3 .º Congresso. ,' :.. · " ·,

\
José P. Castiano \ Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectiva ção com Vi egas

0 colono fisicamente . A.V.: Exactamente! J.P.C.: Depois do que quiser e não vender o algodão vai apodrecer l á em casa;
partido se ter transformado de uma frente para partido, li- o problema está aí! Não há indústria, não há outra alternati-
bertar-se significava desenvolver, aumentar a produção; hou- va para ir vender o algodão . Também ao milho : que m marca
ve aquele PPI2 5 e todos aqueles documentos normativos; mas preço não é o produtor, portanto, recomenda-se produ ção ;
hoje se quiséssemos renovar esse espírito, essa ideia de mis- liberta-se no sentido de produzir muito etc ., mas depois .. .
são da liberdade do povo, o que podia significar, já.que disse tudo vira~se contra o produtor.
muito bem que o partido não podia continuar o mesmo en- 157
J.P.C.: Então eu tiro duas conclusões do que está a dizer:
quanto as condições mudaram, mas o que significaria reno-
primeiro que não está de acordo com o mercado livre! A .V.:
var hoje esse espírito de libertação que norteou o partido? Se
• • • 1 Não eu estou! J.P.C. : Mas que não é livre! A.V.: Sim! não é
tivéssemos que recomendar aos Jovens engajem-se por isso.
) livre porque não é o produtor que determina os preços ; é o
o que é que seria? A .V.: O espírito, o pensamento de pes-
~) comprador. J.P.C.: Segundo quer dizer que o Estado aban-
soas é difícil trabalhar con~ ele, porque o que falta enquanto
·j donou o povo à sua própria sorte ao deixa.r de determinar
os dirigentes tiverem pensamentos que não aquele, mesmo
o~ preços por exemplo, A.V.: não, o Estado não abandonou
•) que digam vamos à libertação, todos são iguais mas de que
o povo porque a direcção do povo não consiste só na venda
j maneira? Aumentar a produção? Sim senhora a população
dos . produtos, não é só comércio, há muitas outras coisas;
: _) está a produzir; naquela altura quem marcava os preços era o
o Estado não está com o povo? Esses investimentos que se
Governo, era o Estado; hoje é livre, é "livre" aparentemente
tJ porque a marcação do preço não é totalmente livre. Porque
fazem, estradas que se constroem, escolas porque é que se
•) pode dizer que o Estado abandonou o povo? Hospitais que
o próprio produtor não diz o preço do produto dele, o com-
) se constroem é para o benefício do povo, portanto, o Estado
prador é quem dita o preço; o caso do algodão, PC?r exemplo:
.•não abandonou o povo, nós estávamos a falar do comércio
a população produz algodão, como princípio não devia mais
, _:"~ - . ·'..,._h ivre . J.P.C.: Sim ... A.V.: Aqui é outra coisa . J .P.C. : Sim, mas
r _)

) meter-se no algodão porque o fez sofrer no tempo colonial;


nesta área de economia, o que se definiu depois de oitenta
pelo algodão a população sofreu muito, agora quando se diz
~.J e sete é que o Estado não poderia entrar em tí.1do, aliás foi
"produzir algodão é ser herói", depois de produzir não é o
._) produtor que marca o preço do seu algodão; o comprador é
um discurso de Samora mesmo. A.V.: Sim! J.P .C. : D e que
(j que diz "eu vou comprar isto tanto", há pouco tempo reu-
o Estado não pode ocupar-se em venda de agulhas. A.V. :
.-J Exactamente, J.P .C.: o Estado não pode se ocupar da venda
niram-se aqui e discutiram sobre o preço do algodão; não
de coisas insignificantes ... A.V.: Okay! J.P .C.: Portanto tem
! _) é o camponês que ditou; só disseram que tem que ser de
tarefas, vamos assim dizer, macroeconómicas , A .V.: isto n ã o
;J primeira, tem que ser de onze não sei quanto e algodão de
l, significa abandonar, é deixar livre a popula ção, deix ar livre
: ·~
segunda tem que ser[ . . . ], é imposto ao produtor, e ele tem
não é abandonar; acho eu que são dois termos diferentes,
que aceitar esse preço, porque também se ele exigir o preço
não podemos dizer que o Estado, por ter deix ado o negócio
25
Plano Prospectivo Indicativo.
.de comércio livre, abandonou o povo; o Estado está com o
)
José P. Castiançi )
Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vi ega s
)
povo só quer que o povo se emancipe, que seja ele próprio a" -
].P.C.: Os graus de liberdade, por exemplo na· consti-
dirigir os seus problemas. J.P.C.: Mas a consequência é que __)
tuição diz!.!"'s e liberdade de escolha, mas a cmesma liberdade
os preços dos produtos básicos já não garantem que cada 0
diz que só pode escolher quando tiver 18 -anos . Há uma res-
um adquira aquilo que é .o básico para a vida das pessoas.
trição, dá e te uma liberdade depois dá essa restrição, é contra
A.V.: Sabe? É complicado, a FRELIMO, quando proclamou
crianças, não no sentido de que quem não tiver: 18. anos não ...)
a Independência, ia para as escolas secundárias indicar estu-
· n=~
a tem. A.V.: Mas o que nos leva até aLé o tal IJ-=e=n=s=a=m=e= -. .,C...---~~
158 -dantes graduados da-quele ano era da sétima-;-oitava-ou-:nona·, -
to de que nós os adultos podemos decidir sobre as crianças
indicava dois, três, quatro "vão lá para enfermagem, na saú- ·159
na educação; quem educa a quem? O adulto é que educa à
de"; indicava outros para o sector da educação para serem
criança, então ele é que diz não faz isto, faça aquilo. Aquela
professOres, indicava outros para não sei quê quê .. . , então <)
forma de orientar na vida é que é educar. Então nós pensa-
dava emprego não é? J.P.C.: Sim! A.V.: O que é que o povo .._)
mos que nós adultos podemos decidir para a geração que
fez? · Começou a reclamar! "Povo", este nome povo para-.~·--:. -~·;..,..
ainda não veio, por isso criamos leis, não se deve ·fazer isto
mim é um pouco com.plicado; são pessoas do povo, que sej . •
e nem aquilo, a geração que vem não deve fazer, hão-de vir
pensam esclarecidas, às vezes pensam, então começam a cri-
cüm seus problemas. J.P.C.: Então não está de acordo com
ticar primeiro a meia voz este Estado, "este Governo não dá
essa restrição? A.V.: Eu estou de acordo porque de facto seja
liberdade às crianças para poderem escolher a profissão que
dezoito anos ou mais que 18 é uma fase que a crianÇa deve
querem, são obrigadas a serem isto a serem aquilo, são envia- entender.
dos a Cuba ... , querem vender nossos filhos, mandam para a
Rússia" .. . , afinal voltavam de lá pilotos, engenheiros, etc. Ti- '

nham einprego, mas o "povo" estava a murmurar; queria que Democracia Multipartidária
)
fossem os próprios filhos a escolher as suas profissões; o Es- )
!· .

tado o que é que fez? Disse: "Está be~! Nós não fechamos
escolas , vossos filhos [que] estudem depois de se graduarem, J.P .C.: Vamos voltar aos partidos: já vimos q~e o p-a~~
arranjem o emprego", o que é que d~zemos hoje? "Ha! Esse tido, o Estado particularmente, tem alguns devere~'. embci'r~
Estado, ha! Há muito desemprego, não empregam nossos não seja instrução, não seja educação, mas peló meiios a in~~
filhos; estudam e. depois ficam sentados em casa!" Se disse- trução é a possibilidade que se dá para a educação das · pe1 ~
mos nós que não é o Estado que deve dar serviço, porquê soas. A.V.: Sim, sim! J.P.C.: Mas a partir do finais da clécada
_ _ _ _ _ _ agorn-estamos-a-dizer- o-contrái:ioL J..E.C ..:-Mas_na_sua_opinião._ _ __ oitenta, e noventa principalmente, comeÇá a .havet -v~r_içt~ _
quais são as obrigações do Estado? A .V.: Não sei meu filho!
partidos, com ideias diferentes, com projectos sociais apa- . -5
rentemente diferentes, eu não diria muito "diferente~ !',' mas )
Não sei nada; dizer que o Estado tem obrigação disto, tem
divei--gentes, vamos- assim di-zer;-0 que-é que-aeha ·dess.e pro-
obrigação daquilo, o que eu vejo é que o Estado promove a _)
cesso de surgimento de vários partidos,-'multipartidarisrp.o,
educação, pelo menos a instrução se não é educação, por que
eleições? A.V.: Para mim não constitui admiração algun;ia, n,em
instrução é uma outra coisa ...

\
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

preocupação porque quando se sentou em Roma26 , um dos houve' FUMO, houve FICO, GUMO, está a ver? Naquela ·
objectivos era esse que não fosse um único partido a dirigir altura a população não sabia a quem. seguir; é como o caso
o país; e assim assinaram-'s e acordos; então se é tudo partido, das bandeiras: Cada partido tem a sua Bandeira, sim senhor,
quer dizer aquele que tiver ideia diferente de outro está livre; então como a pop~lação, que estava habituada a conhecer
e isto acontece com a religião; a católica começou como a somente uma Bandeira do Governo, pergunta: "Afinal quan-
única com os apóstolos mas depois foi se dividindo, divergia- tos governos temos?" Porque pensa que cada Bandeira é um
'(· ~
i '160 se com este e criava-se não sei o quê; agora o diácono, não sei Governo, tá ver? Isso atrapalha às pessoas; agora imagina se 161
l J--=-=-- da :Grécia, temos patriarca da Rússia com o Papa de lá, está a logo de princípio houvesse esses partidos todos ; teve que ser
1
• 1 _ )
ver? Isto vem da mentalidade das pessoas, partido não difere · primeiro um a dirigir, e depois chegar à conclusão de qL1e
') da ·r eligião, é uma :religião-partido; quando eu sou membro têm que vir outros também.
_J de um partido, sou adepto desse partido como se fosse adep-
J.P.C.: A minha conclusão está correcta do que está adi-
to de uma outra religião, portanto aqui também se diz "cada
'J cabeça, cada · sente~ça". Enquanto os homens tiverem de
zer? Pode deduzir-se que a introdução do multipartidarismo
criou mais confusão do que resolveu na população? A.V.:
facto sentenças diferentes vão-se divergindo; isto vai-se mul-
Eu penso que sim; eu penso que se criou mais confusão [ ... ] ;
tiplicando; o que temos hoje é pouco, até surgir mais coisas.
muita gente não sabe qual partido escolher porque, quando
Portanto, para mim, não é novidade alguma, só que deviam
chega o tempo das eleições por exemplo, chega um "eu e o
!{ todos trabalh~lr para o mesmo fim; só que cada um pensa "eu
m.eu partido", no mesn10 lugar vem outro an1anhã "eu é que
(j estou correcto, aquilo que estou a dizer é isto" .J.P.C.: Mas
sou o melhor ... "; afinal aquele que dizia isto, e este que diz
qual seria esse "fim"? A.V.: Não posso interferir; desculpa!
) isto, qual é a realidade? Nós temos de pensar que a maioria
].P.C.: Qual seria esse mesmo fim? Porque, de facto, como
:. J não há esse "fim'', estamos em divergências. A.V.: O fim do
. . do povo moçambicano é analfabeta. Não entenden1 as men-
I _) ·., ,,:sagens; eles querem coisas concretas. Agora se eu chego e
benefício do povo. ].P.C.: Ah, está bom! A.V.: Igualdade,
digo: "Olha aquilo que eu digo é que é verdade" não sei quê,
(:.> paz., harmonia, sim acabar com o banditismo, acabar com os
amanhã chega Castiano e diz: "Não é aquilo que Viegas es-
roubos, acabar com tudo que é mal.
: 'J tava a dizer"; até insultamo-nos; onde é que está a civilização
.() ].P.C.: Mas como é que se explica que só em noventa, aqui? Onde é que está a educação aqui? Vir insultar "aquele
:(J surgem vários partidos enquanto nós ficamos livres em seten- ali é ladrão", aquele ali não sei quê ... o povo fica atrapalhado.
:; j ta e cinco? A.V.: Não era o único partido? só não admitiram
J.P .C.: Mas não acha que isso é resultado de problemas
;, l
mais ningué1n. Imagina lá o que aconteceria se houvesse vá-
i. _J mal resolvidos aquando da união em sessenta e dois? A.V. :
rios partidos, a população, o povo não ficaria atrapalhado? A
..
· !',:.._,
í
__:i
quem haveria de seguir? Tentou criar-se vários partidos, mas
Em sessenta e dois? J.P.C.: Sim, porque em sessenta e dois
::f f( ) eram também três movimentos . A.V .: Sim 1 J.P.C. : E que,
1· viu-se que istO só atrapalhava as pessoas; houve GOREMO,
prontos tiveram um.a união, um pacto! A.V.: Alguns recua-
l'j
\

' f ·- ~
26
No sentido de negociações de Roma, 1994 . -. "tam. J.P.C.: Outros foram para o Quénia e outros não sei
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m_~ _ _./,,,:,.1~
1
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José P. Castiano
Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação c om Viega s

para onde mais . A.V.: Outros mesmo depois da formação'--


moçambicano e sou moçambicano. J.P.C.: O ·que é ser Mo-
da FRELIMO abandonaram a Frente, saíram, voltaram, sim, )
çambicano-? A.V.: Ser moçambicano é ter nascido. em Mo-
tudo tem origens; é como uma papaia que amadurece não é ...)
çambique, é ter um Governo moçambicano;'.'. ser dirigido
naquele dia que agente vê que essa papaia está madura; que
por moçambicanos. J.P.C.: Ser dirigido por moçambicanos?
tenha começado, ou não começou naquele dia, é um processo.
A.V.: Moçambicanos sim, porque se eu sou moçambicano.
.- J.P.C. : Okay, eu estou interessado numa coisa que re- e outro vem dirigir [. .. ]; é como fizeram os portugueses·
. . '
162 cusou responder, depois respondeu e depois não respondeu, impuseram-me ser português, encontraram pessoas em Mo-
quando disse que o mais importante é todos termos o mesmo çambique: "vocês são portugueses!" mas Portugal está na
)
objectivq comum; vamos explorar esse "objectivo comum", Europa .. ., umas pessoas eram consideradas civilizadas, ou-
o que é que seria para si o objectivo comum? A.V.: Objecti- tras pessoas eram consideradas indígenas, está a ver? Então 1..J
vo comum? eu já disse "benefício do povo", acabar com os ficamos assim, aí já não éramos moçambicanos; e ninguém -!
ladrões, acabar com a marginalidade; isto é consequência daf- ·"'..- _-~-_.,.. · r, dizia eu sou moçambicano de pés juntos; pior, qua,ndo fos-
~ - . - • 'l
educação que se deve dar ao povo, a educação que se deve· -· se moçambicano de raça branca, nunca dizia q~e é de Mo-
J
dar às crianças nas escolas para quando crescerem, cresce- çambique. J.P.C.: Portanto, ter nascido em Moçambique, se~
rem com educação; este é que é o objectivo. Todos os parti- dirigido por moçambicanos; há uma terceira caractedstica,
j
dos tinham que falar disso ao invés de estarem a criticar-se falar a língua. A. V.: Falar a língua moçambicana, sim; c~mo é
uns aos outros, a insultarem-se uns aos outros; outro porque que sou de Moçambique e não conheço nenhuma língua mo- _j
não é obedecido tem que entrar com força. Não é assim! Isto çambicana? J.P.C.: Juntamente com português ou só.falar a
significa querer satisfazer a ambição própria, já não é povo língua. A.V.: A língua portuguesa, por enquanto; servia-para
aqui, "eu é que quero ser isto"; isto é mau. entendermo-nos uns aos outros, porque já se falava mais ou
menos de ponta a ponta em Moçambique; o portuguê~ já .se
falava quase em todo lado, mas as nossas línguas são muito
Sobre a Identidade e a Unidade Nacional diferentes; cada um deve valorizar a sua língua; ~u fico um
pouco preocupado - não um pouco, muito preocupado ~
quando vejo alguém que não fala a sua língua; até eh~~
J.P.C.: Mas como acabar com isso? A.V.: Não existem
"dialecto"; dialecto quer dizer ramificação de uma ~gu?,
medid~s taxativas, pelo menos na minha cabeça. J.P.C.: Tá
a minha língua é ramificação de que língua? ·É .,uma língua
bom; po§so' entrar .rium terreno q_ue estava a reservar para a
completa -com as suas regras gramaticais;~ quando.·e\r falar
outra parte da entrevista que vão fazer os meus estudantes21 ,
mal uma criança daquela língua pode corrigir-me; .não estu-
que é a seguinte: sente-se Moçambicano? A.V.: Eu sinto-me
dou mas vai dizer não é assim que se pronuncia. Então ;IÍngua
moçambicana é língua, não é dialed:o. -; ' ··. · ' _)
27 Estavam planificadas, na altura, entre-vistas do Viegas cóm os meus
estudantes em torno do assunto "identidade nacional" que, como é ..)
sabido , não chegou a suceder, ...)

\ .J
. José P. Castiano Filosofia Africaha: da Sagacidade à lntersubjectivação co rn Viegas

J.P.C.: Está bom! Então temos a definição de moçam- trisavôs, nasceram aqui, eu também ·nasci aqui sim; os outros
bicano, primeiro nasceu aqui, é dirigido por moçambicanos, são moçambicanos a partir deles, de resto teremos chineses
:· 'J que fala sua língua nacional. A.V.: Sim, a sua língua materna. que não são chineses, mas são moçambicanos nascidos aqui.
;! j J.P.C.: Mas o que fazemos dos moçambicanos que não são
J.P.C.: Então, neste sentido, o que é ser makuwa? Pri-
· . .'_ ) originários daqui, mas nascerarn aqui? A.V.: É um fenóme-
meiro sente-se makuwa? A.V .: Eu sinto-me makuwa, sou
no pouco de compreender ou difícil de compreender, por
I, j 164 que de facto, nasceram em Moçambique não falam nenhuma
makuwa, não que sinto nem me preocupo com. isso, sou
165
. ) --
das línguas originais de Moçambique. JP.C.: Está dirigido
makuwa, nasci onde se fala makuwa, nasci no povo makuwa;
os meus pais eram makuwas, não falavam outra língua qual-
0~ J por um Estado e aceita esse Estado, mas não fala nenhuma
quer; mesmo que falas:."em era uma língua que aprenderarn
J língua nacional. A.V.: Não é moçambicano completo, está a
cómo eu falo um pouco de nyanja, não são minhas línguas,
é
faltar uma parte, moçambicano tanto que eles próprios 28 ,
apreendi; eu sou makuwa, sou do póvo makuwa, sim. J .P.C.:
isto dito pelo professor de música que tivemos em setenta
E qual é o espaço do makuwa dentro de uma nacionalidade?
e oito em Maputo chamado Ndolo-Ndolo, autor daquele
Como é que nós podemos, na sua concepção, equacionar o
Hino [cantando] "Sinto-me orgulhoso/de ser africano/meus
ser makuwa e o ser moçambicano ao mesmo tempo? A.V. :·
antepassados/todos nasceram aqui/filho legítimo/do mun-
Bom, eu não sei; eu estou a ver, por exemplo no Malawi,
do rainha/minha África, oye oye". Houve uma reunião do
existe um grupo relativamente pequeno, xitcheua, esse que
Comité Central, quando veio dar-nos aulas, disse que lhe
se desenvolveu mais, 1neteu a sua língua nas escolas, n1as a
disseram para se modificar, aqui onde disse "meus antepas-
maioria é makuwa. No Malawi, a parte oriental é makuwa,
sados todos nasceram aqui", porque nem todos moçambi-
mas os que falam xitcheua por que uns nasceram lá, os ante~
canos possuem antepassados que nasceram aqui. Isto signi-
-passados deles já morreram; eu tive antepassados que viviam
fica que há uma separação; existem moçambicanos mistos
, \ -.~. -1m Malawi; acho que o importante é a gente entender-se,
__) e brancos que seus antepassados não nasceram aqui. Então
esteja onde estiveres, até essa çoisa de makuwa foi usada pe-
'_) não gostaram desta parte da canção .e mudaram ficando as-
jorativamente; tanto assim que nós próprios, os rnakuwas,
:.J sim "Todo o meu conceito é desenvolver aqui". J.P.C.: E
envergonhávamo-nos de nos chamar makuwa porque signi-
depois como é que ficou? A.V.: Não nos ensinou assim, mas
ficava estar socialmente abaixo. Como os brancos chamavam
não sei como é que acabou. Mas a parte da canção que diz
"indígena" significava aquele que é baixo, não toma banho,
"meus antepassados todos nasceram aqui" ainda continua.
não se veste bem; então aqui fomos considerados como jn-
Mas nós entendemos logo que eram moçambicanos que não
divíduos ignorantes, indivíduos sem posição. Então, chamar
se sentiam moçambicanos, queriam ser moçambicanos mas não
makuwa a alguém era quase ofender.
tinham antepassados nascidos aqui; mas eu sou moçambicano
todos os meus antepassados nasceram aqui, os meus bisavôs, J.P.C.: Mas então, o que é ser makuwa hoje? De que
28
serve ser makuwa hoje no contexto de Moçambique? A.V.:
Alberto Viegas quando diz "eles" refere-se aos indivíduos que não são
originários, por nascência, de Moçambique. _ ·•Para mim, no contexto de Moçambique, todas as etnias têrn
José P. Castiçmo
Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

lugar; o importante é que nos respeitemos uns aos outros; "-·


diferentes; um deles, que eu aprendi agora no Niassa, são os
coisa curi~sa até galinha, quero comer "galinha makuwa"
axirimas,.·são makuwas ' de Niassa. A.V.: Sim! É uma ramific
num bar: "Prepare-me lá aquela galinha makuwa" , qual é a
cação de makuwa! J.P.C:: E qual é o lugar desses dentro dos
galinha makuwa se quando vou a Maputo encontro a galinha
makuwas é uma identidade? A.V.: Identidade o que é? Não
da mesma raça, e não chamam galinha xangana? Vou a Tete
é aquilo que distingue de alguém? JP.C.: Sim! A.V.: Temos
apanho galinha daqui igual a aquela de Tete, mas de Tete
um programa pelas Quartas -feiras no qual falam os locutores J
nãe é ehamada galinha- nyungue?- Vou- a Niassa- eneont:re
daqui [de Nampula] e dão palavra ao locutor da Zambézia,
galinha mas n .ão é chamada galinha ajaua ou galinha nyanja
da Zambézia passa para Cabo Delegado depois pa:ra Niassa.
167 :J
porquê tem q~e ser galinha makuwa? Porquê? . j
São quatro províncias que falam makuwa, mas com diferen-
J .P.C.: Mas o que é ser makuwa é aquele que nasceu tes formas da pronúncia; só isso não o conteúdo, o conteúdo ,)
nesta região , é aquele que fala a língua makuwa e para além é makuwa~ entende-se aqui quando fala-se da Zambézia, está _..{
disso? A.V. : Sabe? No tempo colonial, enfermeiros, profes-;-":. ver o sotaque? A pronúncia das palavras não é a mesma, mas
;
sares que vinham do sul faziam filhos e iam registar no Ma-·.; . entende-se muito bem aqui e quando um fala daqui;• enten-
puto , para não ser considerados makuwa; então um filho que
J,
dem ·em Cabo-Delgado entendem; em Niassa temos a netho,
nasceu aqui, mas é registado em Tete é makuwa? Segundo o
.__;
em xirima, temos em lomwe, temos em warengue, temos em )

registo não é, Guebuza nasceu aqui em N ampula, mas cres- nahara, temos em saka, mas todos são makuwas.
ceu a onde? Foi registado no sul, os pais eram de sul, e os
].P.C.: Sim! sabe porque Eu estou a dizer isso.? Estou a
J'
makuwas estão em todo lado, você sabe, ·estão em todas as
tentar explorar uma coisa que os políticos exploram ' tju~ é' á
províncias e até em países limítrofes como na Tanzânia onde
fundação de ass?ciações; há bocado surglú uma associação
todo sul é makuwa, J.P.C.: Que falam uma mesma língua.
dos amigós não sei se é de Cabo Delgado; outras ~ião asso~
A.V. : Falam a mes~a língua, temos variantes é verdade por
dações dos amigos não sei de onde, querºdizer, eu não pe°r-
exemplo mesmo aqui Nampula tod_o é makuwa; no litoral
cebo; há uma instrumentalização dessa "identidade"? A.V.:
falam de uma maneira, esses é que são dialetos do makuwa;
Isto concorre mais para a divisão das pessoas do que para
não o makuwa que é o dialecto; o makuw~ é que tem dialec-
a unidade; para mim, porque quando dizem por exemplo
tos, como em Portugal, existe o português padrão, mas existe
associação dos naturais de Nampula eu não sou natural da~
dialectos : Na região dQ Minho em Portugal, por exemplo, fa-
qui, não posso fazer parte desse tipo de associações. J .P.C..:
la-se de uma i:naneira, no Algarves fala-se de outra maneira e
Agora dizem "naturais", "amigos de .. . " A.V.: ~im ; porquê?
assim sucessivamente. J.P.C.: Está bem, aceita que é moçam-
viram que estavam a excluir os outros abertamente, é uma
bicano? A.V.: Não é aceita como algo que é me imposto, eu
forma de camuflar certas ideias. J.P.C.: Então, se quisermos
sou makuwa sim! J.P .C. : Não moçambicano? A.V.: Sim, sim, _conceituar o que é identiElade-para si? J á-falamos-de·ser m0~
J.P .C.: Depois é makuwa? A.V.: Sim, J.P.C.: Mas agora s~ çambicano, ser makuwa, então isso :tudo ,.estava em volta d~
fo,rmos a cavar dentro dos makuwas , como disse tem grupos um tema muito interessante que é identidade;: que o homerµ
•, ·~
...
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l José P. Castiano F;ilosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectiva ção com Vieç.ias
ir') .
l'·'·'·
~;· j
tem uma identidade. A.V.: Eu penso que identidade é urri baseada na cultura? Que futuro temos como um todo Mo-
()
conjunto de características que identificam uma pessoa, por çambique assim? A.V.: Isso seria um assunto que eu pudesse
() isso que é identidade, identifica que este é moçambicano, abordar, se fosse um indivíduo que pensa nestes cargos, que
;l J este é angolano por causa da cultura dele; felizmente que o pensa nessas questões, mas a minha tarefa aqui na vida não
makuwa não tem pretensão de impor aos outros a sua cultu- é preocupar-me com o que vai acontecer amanhã, amanhã
j •_l _ ra;. o makuwa quando sai e vai viver, por exemplo na Zam- há-de vir com os seus problemas, e serem outras gerações a
bézia, vive como eles; até muda de falar; fala como eles; n:ão terem outros pensamentos, eu não posso dizer que deve ser
l· _!168 169
diz "lá na minha terra não se diz assim", não! Se sai daqui, assim, não posso dizer isso, o futuro dirá! Outras nações são
(_)
vai para Maputo, convive com os de Maputo à vontade; não pequenas e o povo é pequeno por isso unem-se rapidamen-
') tem o hábitode dizer "nós os makuwas somos assim"; os ou- te, também antigamente eram separados, havia várias etnias
_) tros fazem; mas isso papá, fazem isso a nós; não quero citar como a cultura, mas depois com o andar dos tempos - são
nomes agora; "nós .os fulanos não fazemos assim"; até hou- séculos, falamos de séculos, - unificaram-se. Hoje, quando
1~ J
ve um governador aqui que disse "makuwa não sabe comer · se diz português é português só; não se diz português de Mi-
\ _)
massaroca: Tira com os dedos, descaroça e depois mete na nho, a Itália também houve lá muitos povos, uns no norte,
(j boca, não é assim que se come massaroca! Massaroca come- outros no centro e outros não sei o quê, os italianos eram
(j se directamente"; eu estava para dizer: "Excelência! É que o diferentes dos não sei o quê, mas hoje fala-se de uma Itália
•(j rnacac() não tem uma mão aperfeiçoada para tirar os grãos, unificada; estava a falar que a Itália antigamente era um ter-
1:·_)
por isso tira com dedos". [risos] ].P.C.: Estava a chamar ma- ritório com vários povos, a França a mesma coisa, Alemanha
! _)
caco ... A .V.: Os makuwas não sabe~n comer massaroca! Que a mesma coisa.
interesse ele tinha se o makuwa come bem massaroca ou não
r '_j .- . _ -: J.P.C.: Sirn! No que respeita aos países europeus pod e-
come? Vinha ver cqmo é que o makuwa comia a massaroca .. .
() -.,,_.~se facilmente falar assim porque eles estão baseados numa
essa era a taref~ principal dele?
Lj língua comum, enquanto que os países · africanos, como o
JP.C.: Mas e~tão entrarmos num acordo que, Moçam- nosso, não têm só uma língua. A .V .: Mas eles "fizeram" urn<1
bique como uma identidade é política e não muito cultural ) língua comum, eram várias línguas; com o andar dos tern-
porque em termos culturais, temos várias culturas. A .V.: Sim, pos unificaram, escolheram uma e fizeram dela a língua ofi-
sim! ].P.C.: Mas Moçambique é uma identidade política na cial, toda criança que fosse para escola tinha que apreender
qual gozamos o direito de exe1·cer cidadania; agora quanto à aquela língua . J.P.C.: E para o nosso caso o que seria? A.V.:
identidade cultural: nós temos uma outra fonte que são, por O nosso caso ainda é cedo para escolher uma língua, nós
exemplo, as nossas diferentes línguas. A.V.: É isso! JP.C.: E não estamos unidos; estamos a lutar para a unidade primei-
etnias etc.; qual é o. futuro de Moçambique com uma iden- . ro para nos podermos considerar ig.u ais; hoje se dissermos
tidade ténue, quero dizer fraca, só baseada na política, en- que changana fica língua ·oficial vamos criar problemas . O
quanto nós sabem.os que a identidade que é forte é aquela , makuwa que é falado pela maioria, e até é falado fora de
·· l,
· ~

José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas


' -{
.j
Moça.m.bique, fica uma língua oficial, toda criança que vai"' - valor do que outro, então é neste sentido que estava a pedir
à escola teria que aprender makuwa; mas makuwa de que f~armos ·s~bre isso da próxima vez. Então muito obrigado,
dialecto é preciso escolher? Esta variante? Quem vai aceitar? nos vamos mterromper por aqui, essa conversa vai ter quatro
V a.mos criar problemas, portanto, pensar numa língua comum partes, a próxima parte não sabemos quando é que vai ser.
agora é difícil. J.P.C.: Então a nossa fonte de identidade tem A.V.: "Será da próxima vez ... " [riso]
que sair de outro lado qualquer? A nossa fonte de identidade
170 tem que sair de uma língua qualquer? A.V.: Sim! Por exem-
plo o Brasil é cinco vezes maior que Portugal mas já fala por-
tuguês, mas mesmo o português do Brasil há quem diz toda
"gente" [o Viegas imita a pronúncia brasileira], há quem não )'
'
diga isso; eu falei com um brasileiro, um Padre, que disse )
que "isso era do Norte" ; logo identificou que na região x ~~·"".·­ :j
do Brasil há diferença do português; e aquilo foi constituído.J
)
pelos portugueses, destruíram os nativos ali, os índios, fica-
ram portugueses, implantaram a sua língua; é o que queriam
fazer aqui. J.P.C. : Então a nossa identidade não passa pela j
língua como Moçambicanos, passa só pelo facto de nascer
em Moçambique, e ser governados por um Moçambicano
ou por Moçambicanos, ou seja, ter um bilhete de identidade
Moçambicano? A.V.: Passa pela língua também, não podia
~
falar essa língua enquanto sei que não é de Moçambicanos,
apesar de não ser e todo Moçambique, distinguia-se. )
J.P.C.: Está bom! Uma última questão ainda dentro da
_;
! ·~ '

identidade: se eu dissesse para enumerar três valores que


acha que são cardinais makuwas quais seriam? A .V .: Não
estou preparado , para isso desculpa, não vou inventar, vou
dizer coisas. que não são mais importantes. J.P.C.: Pode fi-
car para próxuna conversa?- A.V::-Sim !- Fica para a próxuna
conversa. J.P.C.: Sim! Estou a pedir para pensar sobre isso ...
• '
A .V .:_P ara 1mprov1sar - ' e d'ir_tr_es_o
entao,_esta_p_ A queA;>. J.r.. e .:
T)

Nós vimos que a educação são valores, então valores ·signi-


.,_ fica que há certos grupos culturais que priorizam mais um

\
·;, )
r-·) ,,
\

,t )
')
') Parte III:
(j
A "Quarta Entre-Vistas"
tJ
fj
A "quarta entre-vistas" nunca mais se realizou porque
'j o jovem-antigo Viegas veio a falecer duas semanas depois .
No fim de uma bela e calma tarde, o filho dele, o Mário, 173
:: )
i(') telefonou-me dizendo: "O teu sábio acabou de nos deixar" .
_J Cada vez que me reco~do desta data me emociono desme-
didamente e me pergunto: o que ele teria dito mais? Só me
_)
recordo muito bem do seu sorriso, meio apagado e enigmá-
' _)
tico, quando nos apertámos a mão, na despedida à porta da
•_) Universidade Pedagógica de Nampula , Campo de Napipíne,
pronunciando: "a próxima vez ... quem sabe?" Ele já pres-
sentia o fim da jornada!
Enquanto escrevia e relia o texto, ia apresentando as mi-
nhas dúvidas sobre o que ele me teria ainda dito a mais na
quarta das entre-vistas, se esta tivesse acontecido. Assustou-
.~ me a ideia do pressentimento da proximidade da morte . Por
-~~-·-: ..-~ algum momento, mesmo por_ váóos, parei para entender o
significado. O trecho da entrevista, que volto a reproduzir a
seguir [última parte das entre-vistas rn intrigou-me durante
J

noites adentro. O que quereria dizer ele? Haveria de voltar a


i$SO, de certeza, na "próxima vez" ... se esta tivesse tido lugar.
].P.C.: Mais alguma coisa que pode ter esquecido?
A. V.: Há um provérbio que está ligado com a educação que
diz [ern língua makuwa: wahaawa ohzittukelele] "quando
sofreres, não te enforques.'", quer dizer podes encontrar-te
em problemas difíceis de resolução, mas não é problema [su-
ficiente] p~ra te matares ou para te suicidares, não é solução .
,, Um dia, quem sabe lá, há qualquer coisa que te espera e que
tu não sabes, se te enforcares vais perdê-la. Isso para incutir
)
José P. Castiano

coragem no sofrimento, o valor da coragem nas vicissitudes "" -


da vida. ].P. C.: E porquê está dizer isso? A . V.: Em geral
Parte IV:
todos nós precisamos de coragem; você está a sofrer aqui,
andar dum lado para o ~utro a investigar isto, a falar com o
A MORTE E O REVIVER
fulano, não é sofrimento isto? Mas você faz com gosto. Por DO UBUNTUISMO ·
isso- que no fim vou diz'e r: hei, se você não me oferecer meu
174 li"vro, eu passei noites sem dormir, mas passou a pensar em
quê? Há outros que dizem isto ~ 175,
0
J
O "livro" está aqui! Gosto de educar quando tenho
)
algo já feito - foi o que me ensinaste ...

1_)
_)

.,)
)
)
J í
;

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· ) : ·. ,··,
)
José P. Castiano \ Filosofia Afri can a: da Sagacidade à lntersubj ect ivaç ão com \/iega;;
()
'J Este episódio levou-me a reflectir sobre um tema que, business. Contactos futuros, lobbies, representatividades d e
j
embora falado na esfera privada familiar é pouco ou quase todos os géneros, encontramos nestas ocasiões.
!J nada abordado pela filosofia profissional em Moçambique
É lá onde a religiosida de, a oratura, a retórica, a estéti-
1_) - a morte!
ca do momento, a sagacidade, aparec~m sublima das no seu
') A morte pode ser tratada sob o ponto de vista indivi- maior luxo e plenitude. De facto, é um momento de reflex ão
)_ dual na família, sob o ponto de vista do que chamarei "morte próprio. É uma ocasião escolhida para expressar a dor e o
) 176 social" e no sentido de ferir o espírito de uma nação inteira. brilho, a luxuosidade. Mas sobretudo é um dos espaços cul- 177
)..)
j. Na esfera familiar sente-se muito o desaparecimento fí- turais onde se reflecte e se manifesta a sagacidade filosófica .
i! Ultimamente, nas ciàades sobretudo, é um local e espaço
) sico da pessoa por conta do consequente vazio emocional e
i'
_p

afectivo deixado. Na morte social estamos confrontados com intercultural, onde a cultura europeia se mistura com a afri -
11 _)
' uma retirada voluntária, particularmente dos intelectuais de cana, e os ritos e filosofias de diferentes culturas moçambi-
' _) canas se encontram . Diria mesmo : é um espaço d e intersub-
uma sociedade, do espaço público e do engaja).11ento por uma
' ) causa. Por último, muitas vezes se fere o e~pírito da comu- jectivação.
u. nhão de destino naeional por mortes provocadas por guerras Por isso, a morte é um espectro ainda pordes-encantar
) injustificadas, como foi o caso recente em Moçambique . na filosofia africana, na sua dimensão metafísica . Po r es tas
(
'J
1 razões, os filósofos moçambicanos deveriam prestar mais
') atenção a este fenómeno, até agora mais explorado pela an -
A Morte do Indivíduo
tropologia, um pouco menos pela sociologia e sob retud o
'J bastante politizado. A filosofia moçambicana parece estar
) '~ ainda a temer debruçar-se sobre este fenómeno, um espe ctro
A morte de um indivíduo, e todo o ritual em volta dela,
.r ) na vida de cada um de nós.
é um dos momentos e espaços da vida pública mais impor-
j tante em África. É o momento da reconciliação familiar que, Severino Ngoenha conta, no livro Intercultura, Alter-
') num contexto mais alargado, pode abranger a vida comuni- nativa à Governação Biopolítica? que, seu primo Sitói, tem
·~_) t ária e nacional. É um espaço de celebração dos feitos e .s abe- o hábito de dizer qu e "faltar a um funeral , p ara um african o,
j dorias assim como da bondade do desaparecido; neste mo- é pior que faltar ao serviço" [cito de memória, sem ter a cer-
mento e espaço ele é quase levado à categoria de um "herói" teza]. Uma colega minha mostrava, num certo dia, o coI?-_flito
(
')
familiar, local ou mesmo nacional, dependendo da dimensão que tinha consigo mesma para atender a dois funerais que
::( j

J~
da pessoa e da estatura que é atribuída ao desaparecido. Por iam realizar-se ao mesmo tempo: de um familiar e de um
isso, o mostrar-se presente nos funerais revela-se de gran- "camarada" do partido . Aliás, do lado do "camarada" não
!/_> de importância tanto em termos éticos, como em .termos de se tratava sequer de um funeral. Tratava-se da "missa de um
1-
,]~ ganhos políticos e mesmo para negociações de carácter de ano" - uma "boa" ocasião para mostrar-se politicamente
.j

V-) correcto e atender às redes do poder .

Vj
l~
José P. Castiano ....•
. Fllooofia Afrlcanac da Sagaoldade à lntecoubjectlvação =m Vlegao 1
Mas o dever ético . de se fazer presente aos funerais ou ,,--
vive~, celebramos a sua vida, sobretudo se ela se preencheu de
em momentos de tristeza dos outros, expressa algo ainda
engaJamehtos sociais e de uma certa transparência ética M k
mais profundo em nós: a existência de uma filosofia que se R ld .ar
. ow an s; em O Filósofo e o Lobo, expressou duma forma
baseia ou tem o seu ponto de partida na ética. "Uma filosofia
sunples e directa: "Julgo sempre as pessoas pela forma como
deve emergir da ética", ouvimos dizer como seu ponto de tratam os mais fracos"2.
partida. Essa parece ser a perspectiva que está a ser culti-
vada pelo ubuntu quando insiste na ideia segundo a qual-;-o- . Pois, no funeral de Viegas, nós estávamos lá para 0 jul-
178
carácter colectivo do seu princípio - "eu sou porque tu és garmos de acordo com a forma como ele tratou aos outros
e nós somos porque vós sois" - deve dar luz à um discurso em geral, mas fundamentalmente como ele tratou aos mais
de natureza filosófica que abranja outras áreas da mesma filo- frac~s: seus alunos durante a sua vida como professor; seus
sofia; por exemplo, a epÍstemologia deveria tomar em conta sobrmhos, filhos; seus estudantes; seus subordinados; pes-
este princípio da primazia dos valores: fazer ciência tendo ~- ,,,_ s_oas clesfavorecidas; pessoas com fome de comida e saber.
em conta e a partir da base dos valores comunitários. Ou J E n~s~as ~írcunstâ~cias, isto é, perante o sofrimento, 0 mal
seja, a axiologia tem precedência sobre a epistemologia. [Um e a Injustiça, que s~ "manifesta" o espírito do ubuntuismo
exemplo é quando um filósofo tem a obrigação fundamen- da pessoa africa~a. _Viegas tratava as pessoas com gentileza,
tal de partir do valor justiça ou liberdade para deduzir as sem. n~ entanto sigm4car falta de rigor. O que quero destacar
outras partes ou capítulos da filosofia; Oruka, por exemplo, aqm, e que as socie'f ades africanas tradicionais estão mais
partia da necessidade de uma "ética mínima" perante a fome pre~ar~das ~'ara acei~ar ~s características. correspondentes a
para formular toda a suá filosofia do mínimo] . Queeneth um filosofo [poderia dizer-se a "função social de filósofo"]
Mkabela, num artigo intitulado Ubuntu as an Axiological a uma pessoa que, em vida, tenha posto ênfase numa condu-
F1'amework for Human Rights Education, insiste na neces- ta moral sã do que propriamente a quem "sabia tudo" .
sidade de os valores culturais derivados do ubuntu servirem . Esta forma de encarar a morte [com~ uma celebração da
de única plataforma e "guia" para se formularem filosofias vida levada pelo falecido] contrasta profundamente pela for-
africanas. Segundo ela, ethical and cu,.ltural values of ubuntu ma de olhar a morte "sob o olhar da eternidade"· pois sob
should guide African philosophies.1 olhar_da eternidade [do tempo, por exemplo] os ~eres huma~
_)
nos sao ~penas uma pequena parte entre as outras espécies. ·')
Acho que este ponto de olhar a vida dum homem, não so-
Concomitantemente, o ser humano é um ser-entre-os-outros !
bretudo a partir do que saiba ou soube, mas a partir de como que, como estes, irá desaparecer sob o olhai desta -mesma
" eticamente " ele viveu, parece ser umversal-:-Perante a morte eternidade, sem ter deixado rastos: "uma espécie que não
de alguém, nós celebramos o seu contrário: a forma como ele anda por cá há muito tempo e, ao que tudo indica· também
não irá ficar por cá por muito mais tempo". Aliás e~ta forma
"fria" de a filosofia do Ser encarar a morte dá c~erêJ:?.da ao
1
Mkabela, Q .N. [2014]: Ubuntu as an Axiological Frameworkfor Human
Rights Education . Comunicação durante o Congresso da Association
of A/rican Studies United Kingdom [ASAUK] , Brighton, Inglaterra, 2
Rowlands, M. [2008] : O Filósofo e o Lobo. O que a selva nos pode ensinar .
Setembro 2014.
sobre o amor, a morte e a felicidade. Lua de Papel, Lisboa. p. 103.

\
'l
:J
José P. Castiano \ Fi losofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

que Epicuro dizia sobre a morte: não nos pode fazer mal. "projectos de vida", ou seja, com o f uturo. Se concebermos
Enquanto estamos vivos a morte ainda não aconteceu e, por a filosofia como numa perspectiva de utopia ou de escrutí-
isso, não nos pode fazer mal. Depois, a morte não pode ser nio do futuro - como aliás o paradigma político-filosófico
má, pelo menos para quem morre. Para ele es ist vollbracht. libertário da nossa praça moçambicana nos relembra sempre
Não há coisa mais absurda que esta forma epicuriana - a "presença" da morte não se torna uma ocasião de
de conceber a morte para uma cultura e mente informada e celebração das realizações , senão uma angustia de " dei xar
formatada pelo contexto cultural tradicional africano, pelo coisas por fazer". A percepção da infinidade por trás dos 181
ubuntuisrno em particular. Pois, repito, o valor da morte está grandes projectos de melhoria e lutas sociais como "justi-
na forma como conduzimo-nos pela vida adentro. ça social", "libertação:', "acção afirmativa", " renascimento
africano", "socialismo", etc., para além de se reconhecerem
No entanto, de qualquer das formas, a morte nos apare-
! .J como objectivos nobres aos quais a humanidade não deveria
ce como um "jogo humano" com o tempo: com o passado, o
desistir de projectar para o futuro dela mesma, sobretudo
l' J
1 •
presente e o futuro; no qual o "presente" é a própria morte
quando estamos perante a presentificação da morte, porém,
1 • _) física [em potência, à espreita] mesmo sem ainda estar fisica-
esta percepção se apresenta em forma de angústia. O cronos,
Ir J mente "presente". Digo "presente" porque ela se presentifi-
que tudo devora, parece também não ter piedade para com
i-_) ca constantemente durante a nossa condução da vida, sendo
os justos e bons. Podemos até dizer que angustia mais a estes
cada ve~ mais ."pres·e nte" com a idade. Assim, ein "presença"
') que vivem pensando em "salvar a humanidade" e passam. a
i da morte o passado da pessoa morta se presentifica como de
i j vida a levantar as cruzes dos outros, do que aos "maus" a
"realizações'' boas e só assim tem ou ganha sentido o facto
Jl j quem lhes interessa somente o "hoje" e o " aqui" .
de ele ter' vivido. Ao exaltar o passado ético da pessoa, o
ij ubuntuismo está, na verdade, a construir um discurso éti- .~ Martin Heidegger retratava a cada um de nós, os " ain-
.
-,,. ~: da-vivos", como "seres-em-direcção-ao-futuro" . Ou seja, so -
i' ) co sobre o projecto de vida da pessoa humana. Trata-se de
uma ocasião, mais do que de um "espaço" formalizado, para mos vivos porque nos direccionados para um futuro que ain-
IJ
a elaboração e manifestação do discurso axiológico sobre o da não existe, mas que, de alguma forma, ajudamo.s, com as
: _J
munthu. nossas vidas, a construir. Deixa no ar a ideia de que há uma
existência suprema, ou por outra, de que há uma forma de
Sob o olhar do ubuntuismo, a morte é uma ocasião, por-
existência melhor, à qual a vida de cada um de nós é somen-
tanto, para a reflexão sobre os projectos de vida do morto,
te um "fragmento da totalidade", para usar a linguagem do
aqueles que ele terminou e deixou por realizar e que "os que
crítico literário moçambicano, Francisco Noa, numa inter-
ficaram, sobretudo os mais novos, devem continuar".
venção por ocasião do lançamento do seu livro sob o mesmo
Assim, contrari.amente ao que uma mão-cheia de filóso- título em Maputo. Por minhas palavras, diria que Heidegger
fos pronssionàis deixam subentender, a relação com ci pas- concebe que a nossa "presença-no-mundo" é somente expli-
sado da pessoa que .nos deixou, se torna uma relação com os , cável pela temporalidade dos nossos planos e projectos. Ele
José P. Castiano
Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

escreve que "[O] fundamento ontológico da ex~stencialidade ...- A Morte Social


da pre-sença é a temporalidade. A totalidade das est~uturas do ~·· ...

ser pre-sença articuladas ... só se tornará existencialmente


compreensível a partir da temporalidade" 3 • A vida não teria A minha resposta à pergunta é clara: ~a ;,í~a s~:n en;a~
sentido sem essa sensação de temporalidade presente em nós jamento "por qualquer coisa" não faz justiça ao .contexto da
desde que nascemos e que, paradoxalmente, também nos época em que vivemos em que causas por abraçar abunda~<
182 faz sentir a-permanentemente presença da morte. Contraria- ou por outra, não faltam. Há, de facto, muitas . causas por .
mente a muitos, eu penso que nós experimentamos a morte abraçar e lutar; e sobretud~ devemos, nos os int~lect:uais, te~ 183 ·~
(
em cada minuto da nossa vida porque sabemo-la presente, "nobreza de espírito" ao abraçar tais cau~as .. E ~meu princí- -1
enquanto possibilidade e condição para vivermos. pio, para .esta nobreza espiritual, é claro: não precisamo; d~
ser heróiS [neste engajamento], precisa~os é de ser ju;J0 5:-
~
A questão, pois, que aliás nos é permanentemente co- )
locada pela perspectiva ubuntuísta, é: o que fazemos com a z-"'.. Precisamos de ter a certeza que estamos a ser justos em tudo
~
temporalidade, com o fragmento que é o nosso pedaço na ; o que fazemos. Apesar de tudo, a nobreza de espírito não é 1

vida que nos separa do nascimento até à morte? Traçamos o -suficiente, embora fundamentalmente ·necessária: mais do
e perseguimos os nossos próprios planos? Ou passamos a que de "espírito" é preciso uma nobreza na acção pelos mais
vida a obedecer a um plano "superior" [traçado por Deus fracos e contra a pobreza material [da maioria] e de espírito
[de alguns].
ou pelos antepassados] ao qual somos ou nos vemos como
simples servidores? Ou, ainda, passamos a obedecer a outro Acho que é nisto que se resume, no fim do dia:, a men-
tipo de planos e projectos idealistas, ma~s mundanos, mas sagem do jovem-antigo Viegas nas nossas entre-vistas e nos
nem por isso menos nobres, como a ideia da liberdade, do seus _escritos. Durante as entre-vistas, ele estava constante-
1
renascimento africano, do socialismo e coisas de género? mente a "esquivar-se" em formular juízos acabados sobre ._),
Há numerosos processos e fenómenos que acontecem fenómenos e processos, mas sobretudo _s obre pessoas e ·ac- 1
...{;
hoje, sobre os quais é difícil encontrar uma explicação e mui- tores concretos que se envolveram no processo de revoluç~o
to menos é fácil falar sobre elas, mas" que é difícil permane- e de transformação sociais. Contudo, ao mesmo tempo e no
cer-se calado. A presença permanente da possibilidade da mesmo espaço, ele não se esquivav~ quando se tratasse de
morte social, por exemplo, é uma delas que fica à espera do mostrar comportamentos que não lhe pareciam justos. Ser
nosso engajamento, s'obretudo enquanto intelectuais e aca- justo não implica tolerar injustiÇas. Lemos ~cima como ele
démicos. se ind~gnou - é quem ouvisse a gravação sentiria esta in- ?-
d ignação na sua voz que, de repente, se torna alta e áspera - ,,_,)
contrastandp com o facto de ter- a t€;ndên€-ia de falar em-voz ---7-~~ ' (-

)
t
Com~arar com a Introdução ao livro .Pensamento Engajad; [com
4
3 Heidegger, M. [1999]: Ser e Tempo. P~rte II. Editora Vozes. Petrópolis
Severino Ngoenha]. 2009, Universidade Pedagógica, Editora Educar.
2000 . p . 13. Maputo.

'\
)

( ~> José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Vi egas


' ')
_)
baixa e vagarosamente - quando falou de um colega seu Esta aparente indirecção do "progresso " atingiu já os
) dos seminários e professor de Nampula que, regressado a nossos países africanos. Já não é somente um fenómeno
, _)
Nampula após anos na "c'a pital", esquecera como se rezava europeu ou americano. Não é por acaso que o automóvel
'J e, pior, pretendia ter um tradutor para a sua própria língua tornou-se o símbolo da entrada na corrida para o progres-
materna, o makuwa. so. Possuir um automóvel, mesmo que sej a um a potencial
J
sucata importada do Japão - o que chamamos por "dubai-
,1 ...L- Uso, agora, a ocasião criada por Viegas, para reflectir
zinhos" - e que sabemos a sua morte cá é um problema do
i· ~ em torno do engajamento pela vida e contra a morte, no seu
sentido social, dos iritelectuais. Porque é que estes se retiram futuro presente, o que importa é estarmos em movimento .
185
, r _)
da vida activa polítiCa e social e não se engajam por causas E também não é por acaso que os eternos engarrafamentos
J nobres, usando o seu saber? Porquê morrem voluntariamen- matutinos na rota Matola-Maputo e vice-versa se torn am
J te em vida? irritantes a dobrar porque nos dão a sensação de estarmos
_) parados no tempo, de nada andar. Quem já não disse "isto
Os tempos de hoje, a ontologia de hoje, não parecem ser
não pode mais continuar assim" no engarrafamento? E qu e
) favoráveis para atrair pessoas que abraçam causas que vão
"este Governo não está a ver con10 estamos a sofrer? " e m ais
r_) para além do "eu" e muito menos que vão para além da nos-
coisas. Aquele movimento que não é movimento dos enga r-
'_) sa própria morte. l?arece ser não-tempo para engajamentos
rafamentos pode ser a futura fonte de manifestações sociais .
altruístas. São "tempos difíceis" .
_) De facto, o que vai irritar é a ambiguidade entre estar vivo
O filósofo alemão Peter Sloterdijk, no seu livro A Mo- em movimento e a morte de estar parado: p ar ar é morrer!
J
bilz'zação Infinita, nos alerta para a particularidade da pós-
') Se na pré-modernidade o saber sobre o destino do pro-
modernidade: são tempos de uma mobipdade infinita. O
) ~gresso era atirado a um Deus, na modernidad e o homem se
que interessa é estar em movimento, numa corrida frenética,
)
·, ,,.~:acha assaz em dominar o seu destino [liberdade] graças ao
mesmo que não se saiba o destino . Nas palavras de Sloter-
seu domínio do saber tecno-científico que lhe dá a ceneza
_) dijk: " ... o conceito de progresso não significa [mais] uma
do progresso. Porém , na pós-modernidade, coIT10 d~z Sloter-
l ._J simples mudança de. posição , na qual um agente avança de A
dijk, a " utopia cinética" se torna autónoma devido à aber -
para B. Progressivo, na sua essência, é somente aquele 'pas-
'' _) tura para muitos destinos, ou para nenhurn fund amental.
1
so' que leva o incremento da ' capacidade de dar passos' . Isto
i '__) Estamos todos num comboio da história - estar dentro é
fornece a fórmula de processos de modernização: progres-
) 0 que interessa - em movimento que aparenta não ter des-
so é movimento para o movimento , movimento para mais
tino nenhum, interessando apenas em "explodir os velhos
: (_) movimento, movimento para uma capacidade de movimento
1. mundos". Todos sabemos que o comboio da história cami-
li-d incrementada" 5 •
nha rapidamente para a autodestruição, mas não o podemos
).t·j
L.) 5
Sloterdijk, P . [2002] : A Mobilização Infin ita: Para uma Crítica da Cinética
lr-
;~ _)
Política. Relógio d' Água. Filosofia. Lisboa. p . 32-33 .

~:;.j
~()
I ,.-,
)
..)
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vieg ~ s

i .
[~...- ~--1.--.C~.
parar. Na pós-modernidade predomina a "cultura p~ica" , ~· 6
. A pobreza, a fome, convoca-nos ·a todos para uma per-
-
0
~roduto das catástrofes que se aproximam; viver_nos Já a ex- gunta fundamental, que aliás toca o domínio da ética: .estará
periência da morte da humanidade que se aproxima. · o pobre autorizado a roubar ou a ir contra otltras normâs
De facto, para nós moçambicanos, as nossas calamida- éticas, para salvàr a sua vida? Pois, como diz Anke Graness :J
des ou catástrofes, que provocam a experiência da morte, no seu livro sobre justiça global em Oruka, " .. .. Armut ste- )
nã~ são de qualquer dimensão pós-histórica, pós-metafísica, llt die Moeglichkeü des Zusammenhalts menschlicher Gé,
186 ----;-u pós-qualquer-coisa. As nossas calamidades são. bem ma- meinscha/ten au/ der Probe. Armut /uehrt zur Fráge nach
187 _J
teriais, vivas na carne de muitos, e que provocam incertezas den v;raussetzungen menschlicher Gemeinschaft und nach
den Bendingugen der Moeglichkeit moralischen Han,dels" 7 ; j
concretas, no nosso dia-a-dia, de continuar a viver: a fo~e e
as guerras. Pois, quem não presentifi.ca a sua morte social, e ou seja, a pobreza põe à prova a possibilidade de sobrevivên- J
bate em retiráda db espaço público, perante a ameaça da fal- ..~,,. cia das comunidades humanas. A pobreza leva a perguntar: 0
ta de comida ou perante o espectro de uma guerra-por-vir? ; · _- _ . mo-nos sobre as-· [prékondições da comunidade humana e
Somente uma nobreza de espírito e da acção pode devolver sobre a co~dição da possibilidade da acção moral huml;lna.
0 necessário engajamento pelo movimento do devir melhor. Ou, podemos ainda radicalizar a questão: é o pobre ain-
Os automóveis, esses que nos dão a sensação de estar- da membro pleno da sociedade moçambicana, neste caso? O
mos em movimento e de participação no progresso, são, de que se pretende qustionar é se ele está em condições de fazer
facto uma fuga para a frente perante a realidade da pobreza escolhas políticas, mas sobretudo da sua sobrevivênda, que
f
e da orne, visível através do vidro, no exterior imediato. Por- sejam "racionais"? Pode ele ser feito responsável quando sai
que a fome nua e crua representa um "desafio ético": vira- à rua e revolta-se contra a violência que a abundância de co-
mos a cara e nos concentramos [demasiadamente] na estrada mida nas montras das pastelarias representa para o seu lar
em frente? Ou abrimos o vidro e oferecemos uma moedinha vazio? Pode ele ser feito responsável pela violência que pro"
às centenas de crianças e velhas "da rua" que constantemen- voca a violência no seu lar resultado de banquetes govern~,
te nos batem no vidro do carro em qualquer semáforo? Ou mentais, de casamentos pomposos televisados, de tempos em
ainda, chegados ao serviço, procur';imos constantemente, tempos, pela nossa querida STV? São banquetes televisados~
através do nosso engajamento pessoal e colectivo, alargar as durante o dia todo, nacionalmente, onde até há "código de
condições para que mais pessoas usufruam os benefícios que indumentária" e recepção com champagne ~ apei;~tivos, mas
• ;:i
a modernidade e o tlrogresso trazem consig-"º'-'-'---------~ olhados por espectadores famintos e sem ma.te~ial es~cgl_?r! ~.,.--

6 Pan, Deus greg; da hora do meio-dia, quar:do as sombras são · m~s


curtas e 0 mundo se esmaga no chão sucumbmdo perante o Sol. Tu o 7 "
Graness, A. [2011]: Das Menschilche Minimum. Globale. Gere<:htigkei(
se põe a descoberto nesta "experiência pânica" porque cada um, num aus a/rikanÚcher Sicht: Hanry Odera Oruka .. C~mpus' Verla'g, Universitat
fenesim louco, vai procurando uma sombra . Wien. Frankfurt/New York. p.9. · ··
{\ j ·F
"l'. ~J . ' . 1 .

:.( ' José P. Castiano ' Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjecti v ação co m Viegas
'., !· f _) :·..
"f t _)
Façamos o que decidirmos fazer em prol da eliminação -a com· a riqueza. Mas filosofia moçambicana não pode vo ci-
i _) da fome e da pobreza, o que é proibido é o não-decidir e ferar contra a abundância somente. É preciso lutar para que
·J ficarmos indiferentes. E não esqueçamos que somente indi- o pobre tenha voz e palavra. Reviver os sages constitui uni a
i_) víduos concretos sentem fome e que as instituições pelas ou modéstia contribuição que a filosofia moçambicana pode dar
; { _) nas quais lutamos por se construir,. sobretudo as políticas, para trazer "vozes" periféricas à mesa principal onde se tro -
devem erguer-se e dobrar-se perante a realidade da pobreza cam champagnes após um "acordo" .
(j - -
188 e fome . Mas sobretudo a filosofia moçambicana deve erguer-
( _J - - Em segundo lugar, porém o mais importante, significa 189
se a partir desta realidade, sob pena de ficar uma filosofia de
( ~) que a filosofia moçan1bicana não se deve curvar perante a
elite, na sua forma e conteúdo. E viva, com isso, a realidade
ideia que de nós se exig"e, nada mais e nada menos, de sermos
'j da sua própria morte, ainda nos primórdios da sua vida em
Moçambique. justos. Não precisamos de ser heróis ou de difundir gran-
I_)
des utopias ao estilo de meta-narrativas, m as necessitamos
Um prisioneiro de um dos campos de concentração de agir comjusteza, de agir com uma certa nobreza mfriima
NaZi escreveu numa parede: aqui vivem mortos. Posso ima- de espírito. Tudo o que precisamos ê sermos justos. É de lá
ginar que, na mesma linha de raciocínio, os habitantes de donde sairá a nossa nobreza :
Gorongosa, ·durante as "hostilidades" militares entre o Go-
verno e:as forças residuais da Renamo, poderiam ter escrito:
aqui vivem os que podem, a qualquer momento, morrer: ou Sobre a "Nobreza de Espírito"
ainda·.para o caso de Muxúngue, podemos imaginar o se-
guinte: por aqui passam os que podem morrer. E quando os
prísioneiros -dos Nazi acordavam de manhã dum sono mal Por quê estou a dissertar sobre isso tudo num capítulo
dormido ,. perguntavam-se todas as manhãs:já/omos liberta- _ ; sobre a morte? É porque há rn12 certo tipo de morte que é
,,,_ a mais triste de todas: aquela que faz emos voluntariamente,
dos? Em Gorongosa também, e em Moçambique em geral,
acordávamos todos os dias com a pergunta na boca: é hoje em vida, pela omissão de escolhas e de acções; aquela qu e é
que vai acabar a guerra? provocada pela falta de engajamento por al go que tran·s cen-
de as nossas vidas particulares e que, como resultado , melh o-
Mas, o que significa isso, praticar uma filosofia d a fome , rariam a nossa atitude ética: a morte social do intelectual. É
sabido que é que as palavras não enchem barrigas .. .. e o que preciso recusar morrer, recusar sucurn.bir perante um cronos
significa praticar uma filosofia contra a guerra?
capitalista neoliberal. Este parece tudo devorar. Parece ésta r
Em prim.eiro lugar significa reconhecer que a filosofia já a alastrar uma visão de impotência perante o curso qu e a
dera um bom passo primordial em nascer indignada contra história aparenta estar a tom.ar, um curso em que os ricos
as desigualdades sociais e contra as instituições .e condições constroem cada vez mais grades nas suas vivendas , contra -
.· .
da sua reprodução. Sim, em alguns momentos se revolta contra tam mais seguranças particulares, con1pra-se cada vez rnais
a abundância desmedida em algumas mãos, não confundindo --" armas , em nome da "estabilidade".
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

De facto, precisamos de estabilidade, mas não no senti- ,,,- A segunda razão da morte social dos intelectuais é que
do neoliberal do termo, quer dizer, aquela estabilidade que nós, muitas vezes, não reflectimos em torno dos nossos valo-
tem em vista proteger os indivíduos e as suas propriedades. res mais nobres. É fácil cair na "má-fé" se não se conhecem
Se "estabilidade" quiser significar isto, então nós devemos as fronteiras axiológicas da nossa acção. Uma reflexão em
possuir ou cultivar uma nobreza de espírito suficiente para torno de valores que o ubuntuismo nos proporciona como a
estabelecermos uma rede de desconforlados cont_ra isto. Este beleza, a justiça, a compaixão, sabedoria, solidariedade, diá-
190 tipo de estabilidade não deve servfr para que alguns de nós logo - enfim, esses valores que tanto faltam hoje ao nosso
191
se escondam por trás da realidade nua e crua: a da pobreza e espírito - ajudam-nos a distinguir dos seus contrários ime-
da miséria sociais. Devemos abandonar a metafísica da mor- diatos. Muitos intelectuais, pois, apressam-se a considerar )
te, do nillismo, para abraçarmos uma metafísica da nobreza. por "tradicional" sempre que se trata de olhar para os va-
Não duma nobreza social, mas de uma "nobreza de espíri- lores humanitários por trás do que se reclama ser o ubun-
to", sobre a tal que Riemen insiste em nos recordar e sobre ~-·"";. tuismo. Rejeitam. Não têm uma atitude de cultivar valores.
a qual ele diz ser um "ideal esquecido" nos tempos de hojeª. ) - Entregam-se, em vez disso, ao abismo em que movimento o
Eis, de facto, a questão: estamos a falar, agora, da morte da cultura pânica ocidental nos abriu. Procuram lá valores,
de ideais, da nobreza de ter ideais e poder persegui-los. Sem deixando os nossos bem pertinho, porque ."retrógrados". A
estes, a vida, esta que tanto amamos, perde o seu sentido. estes só se pode responder: não procuremos uma árvore na
floresta, ela está aí, bem em frente. Os valóres também. Não
Mais uma vez: não falo de ideais para sermos heróis da
os procuremos muito longe: eles estão aí, betn perto, nas nos-
história e nem pela "glória", como Agamben diz 9 • Trata-se
sas culturas à espera para serem cultivados e serem dados um
do ideal de sermos simplesmente justos. "Olhemos à nos-
sentido próprio pelos intelectuais: "A verdade da realidade
sa volta. Quantos intelectuais existem que consideram que
só pode surgir através do conhecimento dos valores, da dis-
ter Resposta Final política é mais importante do que dizer
tinção entre útil e inútil, bem e mal, significativo e significan-
a verdade e raciocinar sem preconceitos?" - pergunta-nos te ... ", escreve Riemen.
Rob Riemen. Para ele, a sedução do poder é a razão mais
forte para que o intelectual de hoj~ não descubra a razão Nós não devemos perder a capacidade de conhecer o
do seu engajamento. O poder, a ânsia de ser herói, de ser o nosso mundo e nem abdicar de o reinventar com base no co-
"porta-voz" da televisão, de ter glória, cega, muitas vezes, a nhecimento resultado da confrontação com o mesmo. Seria a
--------'""er_dade._E.or_causa deste poder aliciante da glória a nobreza "morte" do intelectual-responsável pela sua civilização, mas
do espírito se esconde. sobretudo responsável pela sua transformação em direcção
ao mundo melhor. Sem os próprios intelectuais embarcarem
8
nesta aventura, nada será feito;_Qu o,utros o farão por Í}ós_._ ~
Riemen, R. [2011]: Nobreza de Espírito: Um Ideal Esquecido. Bizâncio.
Lisboa.
9
Cfr. Agamben, G. [2011]: O R eino ea Glória. HomoSaccer II,2 . Colecção
Estado de Sítio. Boitempo Editorial. Brasil.

'\
"1, ·{

José P. Castiano
'Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjecti v açâo com V iega s

Viegas ensinou-nos isto. Sobretudo, ele ensinou-nos, Na verdade e atendendo às circunstâncias da época, a
a nós intelecti.iais, a não acumularmos ressentimentos para revolta de Heidegger contra a ideia da racionalidade como o
com as nossas tradições vivas. Podemos vivê-las de uma for- facto distmtivo do ser que se quer humano justificava-se pelo
ma estimulante, desafiadora e alegre . Podemos usá-las para período imediatamente antecedente à Carta . Tinha termina -
:J' trazer um ar fresco às teorias ocidentais já sisudas no seu do a II guerra mundial e qual seria a maior demonstração
, ./
1
conteúdo e na sua forma. Viegas fazia isto com uma elegân-
l· da irracionalidade humana senão aquele desumanismo qu e
!) 192 cia jamais vista . E não era somente porque tinha dom. Era caracterizou a guerra? E ao recordar ao homem de ele ser 193
'
;..) porque, sobretudo, reflectia acerca dos assuntos contempo- um simples guardião da verdade e que mora numa casa que
'. j râneos sobre os quais tinha que dar respostas, inspirado na se chama linguagem, I-.Jeidegger, na verdade, se revoltava
_) cultura makuwa onde tinha os seus pés bem firmes . contra a grande mentira que fora todo o processo do fa s-
_) As mensagens lidas no seu funeral, na verdade, signifi- cismo durante a guerra .
1 _)
caram, para mim, ·a quarta das entre-vistas que não chegou a Porém, para além desse propósito imediato de Heide -
acontecer. No entanto é um não-acontecimento'º que é mar- gger de revolta contra a situação difícil em que o homem.
'_)
cado pela sua presença, e não pela omissão . se metera a si mesmo com a guerra mundial, Heidegger
,j
aproveita .esta brecha, a partir do existencialismo, para re-
)
formular - como diz Sloterdijk em Normas para o Parque
' _) O Propriurn: do Humanismo Ubuntuista
Humano - as duas outras variantes do humanismo usadas
:__) como "terapia" nas mágoas provocadas pela guerra: o cris -
_) Heidegger revolta-se contra toda a tradição anterior à tianismo e o marxismo . Enquanto o cristianismo tirava pro-
1
' _) sua quando, na Carta sobre o Humanismo, declara que o cveito da sua doutrina de "salvação" do género humano d a
- -;,,,,..lhecatombe universal, o marxismo se apresentava como uma
iJ próprio do ser humano é a linguagem, a sua casa, da qual se
serve para "guardar" a verdade que vai descobrindo com e utopia social que iria evitar às sociedades contemporâneas
)
1
no tempo sobre o ser. Ou seja, o "homem " de Heidegger já do comboio da avalanche catastrófica em que a modernidade
..) capitalista parecia ter metido o homem .
não era o mesmo ser todo-poderoso pelo facto de possuir a
_) razão. Desde Platão, sobretudo, o homem do Ocidente foi As duas vertentes eram, pois, vertentes de humanização
_) educado e convenceu-se da sua elevação sobre todo o Ser oure-humanização do homem, este homem que, como Niet-
_) enquanto Ser porque era racional. O homem é um ser racio- zsche havia denunciado, tinha-se rendido perante todas ·i·e-
~
.J nal. E isso o diferia, distinguia, dos outros seres. Heidegger ferências morais, particularmente do cristianismo. Nietzsche
remete o homem para a sua condição de existência, a de ser-
~~ exigia Uwandlung aller Werten declarando o esgotamento
·" no-mundo e não muito mais que isso. tanto da racionalidade (homem como ser racional) como da
:'' j\
.,/

j· 1
cristandade (homem como ser crente), dois modelos de nar-
JJ 10 - ·rativas da hominização . Heidegger declara a emergência de
No sentido de José Gil em Portugal o Medo de Existir.
1
,-J

,t ,J
~
,,, l
J;_J
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

um outro modelo de uma narrativa baseada na linguagem"'·- Ao :filósofo africano, o ubuntu exige não tanto conheci~
como guardiã da verdade , da existência no mundo . No fun- mento, mas--sabedoria. E sabedoria é um conhecimento que
do, Heidegger, com o Mitsein, inaugura a ideia do entendi- se manifesta por trás de um bom comportamento; se calhât
mento como a essência do homem e base para a sua re-huma7 podemos dizer que a figura típica de um :filósofo àfrican9 não
nização perante as catástrofes vividas . é a de quem se está a expressar e a criticar n _a praça pública,
A estes modelos eurocentristas de narrativas sobre à mas de quem está numa atitude de escuta e refle~1va. Ds ex-
cessos de _u m Sloterdijk ou a frivolidade de' Zizek ~~s pal~os
194 humanização com pretensão universalista se deve acrescen-
não cairiam naturalmente na categoria de ~ábios : nui:n meio
1

tar o ubuntuísta, cuja base já não é a racionalidade e nem b


ubuntu. No máximo, na gíria popular, seriam "agitaclC>res".
divino , mas sim a ética. Um homem, n a perspectiva ubuntu,
só o é como tal quando trata aos outros como seres huma- Porém, se por um lado , a primazia do ético sobre o sa-
nos. O elemento cardinal para ser tratado como "homem" ., ber perece ser o proprium da proposta ubuntuiSfa- p ara o
é a sua conduta generosa e altruísta no tratamento dos ou-C'~". _~;:::~ modelo de :filosofia, esta mesma característica não conseguiu
tros , como vimos, por exemplo, em Viegas . Estamos perantl - - ··· ainda transcender para um espaço públi~C>· maiQ~, co~o o ~é
uma proposta de humanização com base em valores que têm o espaço nacional. Pois, as exigências éticas de cariz llbu~­
primazia em relação ao saber que o homem possua. Aliás, a tuista co~o amabilidade, franqueza, condesc~ndência ~~ so- .
n~ção do próprio saber se dilui perante os valores: ninguém bretudo afabilidade no trato com o Outro são perc~p~íveis
é considerando "inteligente" se não se comporta bem e com como sendo boas e justas num contexto c~munitário. TC>da-
justiça para com os outros na perspectiva da comunidade via limitado à" comunidade" onde as rel~ç6es são "quentes" ;
imediata deste homem. como definiu o sociólogo alemão Ferdinand To~nnies. ,·: ..
...
.

Nesta perspectiva, Diógenes, que interpelava as pessoas Porém, num contexto de uma "sociedade" - onde se-
com a sua lanterna, ou Sócrates que tratava aos outros com gundo o mesmo TQennies as relações são "frias" - mais aber-
ironia disfarçada em "dúvida metódica" e até mesmo com ta e de espaço público com dimensão de Nação, onde é preci~ .
certo sarcasmo, não teriam a "sorte" de serem considerados so exercer cidadania activa, no lugar de "amor ao próximo" ,
:filósofos. Embora ambos estivessem• em busca da verdade e o esfo.çço por se apresentar humilde pode ~epresentar o que
justiça na polis grega, porém, na perspectiva ubuntuista, esta chamamos acima de "morte social" ou falta de engajamento.
não deveria passar por cima da desconsideração com que in-
Num contexto em que a palavra não se dá, mas toma-se, os
terpelavam aos outros na praça pública. O Diógenes seria o
------- m - a1~s_c
_o_n denaao pelo u15untu âaâ:o que fazia tuâo em p ú,...._---,..,..;(f..
__,
nosSQS valores ubuntuistas, cultivad1).s ao extre~o, podem
tornar-se rapidamente em eximir-se da responsabilidade de
blico, incluindo a satisfação das suas necessidades pessoais
se manifestar e de agir. Pois, o que significaria ser humilde
de toda ordem. Enfim, vivia como um cão e cuspia na cara
de quem desconfiasse prepotência. Uma polis ubuntu nem num parlamento? Levar "muito tempo" a reflectirrEnquanto
' ...
sequer chegaria a reconhecer a sua sabedoria, pois ofuscada o que se exige de um deputado é exactamente o contrário?
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pela falta de pudor em público .
. j Agir e rapidamente antes que os outros, da bancada contrária,

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1
José P. Castiano

passem pela frente . Exige-se sim, neste contexto de cidadania,


escutar criticamente. Ou seja, exige-se sim a compreensão do
F- ilosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

'Foi a vez de Viegas deixar-nos não uma obra qualquer,


mas uma grande obra. Se estudarmos com mais cuidado os
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l
1
Outro tal como no ubunt'u, mas complementariamente, exige- seus ditos e escritos, de certeza teremos respostas cada vez
;~ se uma compreensão sim, que seja sobretudo crítica. mais claras do que ele teria dito e escrito se tivesse partido
J Naturalmente que Viegas não se conformou c~m um mais tarde.
j delimitar ético virado para a sua comunidade de origem e A verdade, porém, é esta: a jornada do seu funeral serviu
: 196 pertença. Transcendeu o makuwismo (et1~ocentrismo) para
r_) para nos apercebermo-nos do quão larga era a sua influência 197
um espaço de dimensão nacional e universal através da pri- por todo o sítio por onde passou: família, partido, conferên-
1
j
mazia que deu à ética, revelando-se sábio. Por isso , mais do cias, homenagens, festas, universidades, mas sobretudo nas
'. _)
1 que a um panteão dos sages, ele pertence ao panteão dos aldeias da Lunga e em diversos fóruns aos quais pertenceu,
:- _)
filósofos africanos. como por exemplo dos Direitos Humanos .
)
Teremos "perdido" muitos Viegas na riossa história.mo - . No funeral houve a solidariedade e apoio incondicional
.J çàmbicana? Não importa. O que porém doravante imp~rta do pessoal médico, enfermeiros, serventes dos hospitais C en-
,j é não os perdermos mais. E nisto a filosofia moçambicana tral de Nampula e Geral de Marrere, Ministério da Cul tu-
J profissional é convocada a mudar. Basta de apelos d~ tipo ra, Sindicato N acion~l dos Professores, Comissão Nacional
_) "é predso valorizarmos ... " ou "é necessário integrarn1'os ... " dos. Direitos Humanos, Govern o da Província de Nampula,
e arregacemos as mangas ao trabalho de intersubjectivação. Universidade Pedagógica, Secretariado da Assemq,leia Prn-
_)
Basta de sabedorias sem sábios e de uma filosofia ·africana vincial, Bispo Dom Dinis Matsolo, Arcebispo Dom Tom.é
.J tradicional sem filósofos, interdialoguemos ! Makwelia, Comunidade e Grupo de Oração, Direcção Pro-
_)
{vincial de Educação e Cultura e Associação dos Escritores .
.J As mensagens ["elogios fúnebres"] , que foram lidas ,
O Fim?
.)
mostram esta dimensão magnífica . deste homem. Mais do
1 _)
que este livro e as entre-vistas aqui reproduzidas das con-
~ ) Bom, todo homem ou toda mulher deixa a sua obra in- versas, elas resumem o que ahnas inais amplas puderam le r
i- _J completa. E começamos a nos aperceber disso com o corpo do seu ser-no-mundo e do seu saber-sobre-o-mundo. Delas
ainda "quente" . A morte não é o fim. É antes o início de uma se nota que, de facto e como Oruka presava ressaltar para
~
_)
nova relaçã~, mais transcendental, que se realiza e renova encontrar a sagacidade, um sábio africano é sobretudo um
· 1.~ através.da obra deixada. Ubuntuisticamente diríamos qu~ es ta homem ético . Correcto. Justo. Tenaz. Solidário. Pacífico . In-
·f~ nova relação se adualiza através do exemplo. A obra ~e vê tolerante perante a indiferença. Simplesmente humano . En-
'.''/"
-1· _) pelo exemplo. gajado e com nobreza de espírito e materiaL
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1
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

O saber está intrinsecamente ligado ao comportamento ~· - Em algum momento, a escrita se transformou em diálogos
_ público do próprio sábio. Não tem que ser um Santo e nem com o passado ainda presente ...
que ser considerado como tal, mas deve notar-se nele um
A mensagem dos familiares e dos màis próximos de Vi~~
esforço de auto-superação e de escuta às observações dos
gas, carregada do pesar das palavras da ocasião, mostrava
outros.
uma dot profunda provocada pela perca do ente querido:
Seleccionei algumas passagens das mensagens de várias "Estamos aqui para, acompanhar-te no início do tua viagem .._,I
198 individualidades e instituições lidas nas cerimónias fúnebres.
Outras não foram lidas por limitações de tempo e outras ra·-
para o Pai [Altíssimo]. Se tivéssemos o engenho é a arte qÜ.é ·_ __ _,'
'199
passeaste por estas terras, dir-te-íamos corsas ainda mais liri-
zões .. . Muitas mensagens recolheram-se no silêncio dos pre- das do que ~quelas que nos contavas. Temos presente a men·-
sentes. Penso que o sentimento do abandono, recaído sobre sagem qué sempre nos transmitiste: as pernas se êsiendem :~o
as pessoas presentes e ausentes, não foi assim tanto pelo facto tamanho da esteira. Tu eras a nossa ésteira. Nela nos esticá-
de Viegas ter-nos deixado. Acho que foi por causa do mesmo C"~·-,_ . _·~_::­ vamos e nos deleitávamos a busca de: amor, ensinamentos,
fenómeno da "quarta entre-vistas", que não chegou a acon- ~· · · · espírito de luta e tenacidade, humildade e respeita para o
tecer, mas num outro ângulo: gostariam de ter-lhe encontrado próximo, solidariedade e amizade. Hoje, não a temos" . E a
para poderem dizer-lhe directamente o que pensavam dele. mensagem continua, mais adiante: "Parafraseando uma das
Trata-se do fenómeno de "um dia ... quando o encontrar" que suas canções - Na piriki pirzki - no começo de mais um
nunca mais chegara. É pelo peso da consciência de não ter- momento de transmissão de valores e elementos do nossa
mos criado a ocasião para expressar o que deveríamos ter dito, história, nos tinhas habituado a rever e aprofundar o conhe-
principalmente quando se trata de reconhecimento de valores cimento sobre a história do nossa terra e a valorizar a beleza e
que não chegamos a expressar. harmonia da Natureza. Apego à cultura, aos valores do moral
O funeral do Viegas foi marcado por um grande pesar. e ético. Pesquisa e discussão de elementos da nossa história~ te
'
Uma chuva miudinha caía naquela tarde quente na cidade vamos guardar a máquina de dactilografar, substituída por um
computador que Seu Reverendíssimo Dom Tomé Makhelia
J
de Nampula. O pesar que pairava não era exactamente pela
partida mas por sentirmos o peso da oportunidade perdi- Arcebispo de N ampula, te presenteou como apoio para que,'
da para dizermos o quão boa foi a sua companhia para nós. tão rapidamente, os passasses para o registo e uso de novas
Para o caso deste livro, foi o peso de ele não ter podido ter gerações."
------~º~prazer de o rever e corrigir as .12artes que, de certo, teria E ainda os familiares acrescentam: "Infelíz.__mente s_ó
franzido o seu olho rigoroso que se expressava num suave depois de partires, nesta viagem sem retorno, é que com-
mas contundente "não é assim ... ". Foi o pesar da quarta "en- preendemos aquilo que enquanto [vivo eras], designada-
tre-vistas" que não chegou a se realizar:-Devo confessar que mente a tua visão de sociedade, os teus princípios, a tua
a angustia de não saber o que ele teria comentado nalgumas verticalidade, o teu forte espírito tradicional enraizado no
passagens deste livro foi forte em certos momentos de escrita. Cultura Makuwa, as tuas mágoas, enfim a tua honestidade. e

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José P. Castiano F.i losofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectiva ção com Vie gas

'··" )
capacidade de superar os obstáculos do vida. Só agora com- contista "sábio popular" e, porquê não dizer, possuidor de
<• )
i - preendemos, ao abrir as pastas e o arquivo, que mesmo com uma sagacidade filosófica: "Viegas foi um escritor que se for -
_) problemas de saúde, teimávas em continuar a escrever. Estão mou a partir das experiências adquiridas ao longo dos anos
'_j connosco obras de singular importância e uma contribuição da sua carreira multifacetada, usando a sabedoria popular
) para a Cultura Moçambicana ... ". A mensagem dos fami - como a sua matéria-prima, escreveu e contou o ralment e
_)_ liares continua destacando que "[N]inguém esquecerá o inúmeros episódios acerca do grande povo m akuwa , [e]
)200 p~rfu~e do ~spíritp 1=ulto, fino, acutilante que naturalmen- fê-lo usando recursos linguísticos rebuscados de humo.r, 201
te ~e espraiara para as escolas com a obra [ ... ] O que nos despertando atenção e encantando a todos que o escutavam .
_)
dium certos Anim.ais e Lunga: À Guisa de Retrospectiva." [. .. ] Os escritores e todos outros artistas moçambicanos so-
. __)
Ela termina destacando as seguintes qualidades do Viegas frem com essa grande perda e irreparável. [ . .. ] Nos presen-
_)
que, aliás, constituem o seu "legado" para a família: perse- teou com contos e escritos revelando o lado mais precioso da
) verança, espírito de trabalho árduo, a forma honesta em que mitologia africana. Com palavras onomatopaicas metafóricas
· conduzi.u a vida, s~lidarie.dade, humüd.ade e sobretudo a identificou a dimensão da complexa espiritualidade de Mo -
-d~--"-cr. errça-em dias me - ores"·-.- - - - - - - - - - - -
_) çambique e do continente africano."
Como escrevi algures, Viegas destacou-se por ser sobre- Na passagem acima mostra-se que o pensamento de
·_)
tudo um homem da cultura e da arte, seja no sentido oci- Viegas era metodicamente transmitido, mesmo que usando
·) dental, seja no sentido cultural tradicional do termo. Pode- a via [afríCana] de contos e provérbios. Continuemos com a
j mos até dizer q~e, nos termos da UNESCO, Viegas foi um mensagem: "Alberto Viegas contou a tradição e o dia-a-dia
J verdadeiro embaixador da cultura moçambicana. Por isso, dos moçambicanos da forma excepcional, com um enorme
uma das mensagens mais calorosas que procura celebrar este poder criativo, como corolário. [Ele] foi condecorado , em
_) ., • .. -
lado do Viegas foi lida em nome do Ministério da Cultura de 'F evereiro do corrente ano [2014], com a Medalha de Méri-
_)
Moçambique, representado pela respectiva Direcção Pro- w~..to Artes e Letras, tendo preenchido assim, uma das páginas
) mais belas do seu contributo cbmo Homem das Artes e Cul-
vincial, instituição à qual o Viegas prestou- serviços inapa-
j tura. Por isso, na construção do nosso belo Nloçambique, a
gáveis. Vamos destacar, de seguida, alguns extractos desta
:: J mensagem: história do desenvolvimento das artes e cultura não pode ,
de forma alguma, ignorar este nome. Pois, os seus escritos
"Foi com profunda mágoa e consternação que o Minis- são lidos e recontados por todos nós . Quem não se lembra
tério da Cultura e toda a família artística no nosso país rece- da famosa história O Homem, o Cão, o Boi e o Cabrz'to. do
beu a notícia do falecimento de Alberto Viegas. [ . .. ] Viegas seu Úvro O que nos dizem certos animais? Com a morte de
partiu, foi difícil, foi dolornso e sofrido para todos nós, ao Alberto Viegas, Nampula e Moçambique perderam uma das
termos recebido esta trágica notícia. Mais difícil ainda,-por- suas mais importantes vozes da literatura oral. Déspedimo-
que Viegas foi nosso companheiro de luta nas artes e .cultu- nos hoje de um grande artista , amigo e, sobretudo, ser hum a-
ra." De seguida destaca-se a sua qualidade de um escritor e po. Sua obra vai continuar inspirando várias gerações".
José P. Castiano Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas.

Viegas foi um membro destacado e respeitado da Co- ~ - vinha dele mesmo: o Professor Viegas, ao longo da sua vida,
missão Nacional dos Direitos Humanos que esteve represen- tinha chegado a um ponto onde reconheceu o valor da huma-
tada no seu funeral. Reproduzo, de seguida, algumas passa- nidade e da humildade. Ele sabia que para estar bem consigo
gens lidas por ocasião do seu desaparecimento físico em que mesmo e honraJ~- os seus valores e princípios, devia v,iver fa-
se .destaca, sobretudo, o facto de Viegas ter tido "múltiplas .zendo o bem, o seu lema, passaram a ser o --amor, a justiça e o
qualidades humanas e talentos excepcionais" e de ter sido respeito ao próximo. [0 Viegas] Abraçou~ causa dos Direitos
202 "cidaâão ela sua cidade e provínda"aonâe se elevou para Humanos sem dela esperar ou cobrar ganhos m~teriais. [ ... ]
um patamar nacional. Ele sabia como ninguém que o be~-estar de todo; os n~ssos
"O Professor Alberto Viegas tomou posse perante o compatriotas moçambicanos, só será possível se c~da um de
Presidente da República, a 08 de Setembro c;:le 2012, junto nós se predispuser a fazer a sua parte."
de outros dez compatriotas seus, como os primeiros mem- E, por fim, destaca-se a sua qualidade de. incansáv~l ~
bros da Comissão Nacional dos Direitos Humanos de Mo- z-·º-:. . afinco no trabalho: "O professor Viegas tinha uma força de
çambique. Esta Comissão determinou um novo começo de 1 - ..•· admirar, incansável lutador, enquanto membro da Comissão
vida para todos os seus onze membros e alegrava-nos a ideia Nacional dos Direitos Humanos, nunca se queixou de fadiga
de estamos unidos pela mesma causa, a causa dos Direitos e nem implorou por descanso. Era como se quisesse desa-
Humanos e nesta província ele era o nosso principal repre- fiar aos mais jovens a continuar~m a trabalhar e continuarem
sentante." com o s~nho de um Moçambique melh~~-- Ele acr~di~~va n~
Em seguida destaca-se a "sabedoria" e a "humildade trabalho e na dedicação, sabia que O suces~~ não era-n;da mais
intelectual" de Viegas, sobretudo a "humanidade" com que do que o fruto do nosso próprio cometimento. Ainda~ssim,
tratava aos outros: "O professor Viegas [ ... ] era o membro continuava com tempo para escrever suas memória~; p~ra or-
mais velho do grupo. Sempre sereno, observador e de poucas ganizar seus textos e para fazer seus cont~ctos com a À~socia­ __)
palavras. Falava quando era necessário e estava sempre dis- ção dos Escritores Moçambicanos e com editores. O professor
posto a ajudar e a encontrar consensos. Ele sabia transmitir Viegas desafiou o seu tempo." -
a sua sabedoria de décadas, usando "palavras muito simples Como ainda se disse acima, -Viegas f<:Ji um membro ac-
e claras, nalgumas vezes usando contos e ditos populares de tivo do Conselho da Delegação da Universidade Pedagógic~
conteúdo muito profundo. E, quem o escutasse, podia sentir em Nampula. Este, é um órgão que retine representantes da
como as suas palavras e a sua sabedoria fluíam como a ág,_u_a_ _ _~ Sociedade Ci__vil [\Gegas era membt"o nesta qualidade, po--
que vence a sede." r~m actuava mais como um "conselheiro"], repres~man.~es
"No meio de tantos desafios nacionais no campo dos do Governo Provincial [direcções provinciais "relevant~s"
Direitos Humanos, muita; vezes perguntei-me, onde é que o p~ra a DelegaçãOâaOP, tais como'"do Phmo, de FinanÇas';-::-~­
f~
'... ' Professor encontrava forças na sua idade, já acima de oitenta da Educação], representantes dos estudantes, dos docentes
~; '. ,. ' ' .
r. e membros dos corpos directivos. Ao nível da Universidade
anos, para continuar a lutar pelas causas humanas e a resposta
..J ....

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f) José P. Castiano 'Filosofia Africana : da Sagacidade à lnte rsub jectivação com Viegas
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kJ Pedagógica, em geral, é um órgão que corresponde ao Con- Uma faceta interessante é destacada ainda pela UP: a
.j:J
'I selho Universi~ário. .
f de Viegas um declamador dos seus próprios poemas, infeliz-
O Viegas era uma pessoa assídua às reuniões mas tam- mente ainda não publicados, tais como: O Heroísmo Secular
bém permanentemente convidado às realizaçõe·s culturais em Moçambique [Poema], A Dádiva de Allah cresceu [por
;) e sociais da universidade. Aliás, ele chegou a frequeniar 0 ocasião do aniversário natalício de Abdul Razak Noormaho-
! _) _ Curso de Licenciatura em História e Geografia nesta dele- med, então Governador de Nampula], O Homem de Obrás
' 204 gação. Por isso, a sua morte foi· profundamente sentida por de Grande Vulto [homenagem a Joaquim Alberto Chissano ,
:J - 205
toda a comunidade universitária. Os trechos da mensagem então Presidente da República de Moçambique], Um Adeus
'J desta universidade mostram este sentimento de profunda não de definitiva SeptU"ação [por ocasião da cerimónia de
_)
perca e destacam, sobretudo, a sua "sabedoria", humildade transmissão de poderes do ex-Governador de Nampula, l::;'i-
_) mas também os seus ensinamentos escritos do "papá Viegas" lipe Chimoio Paúnde para o seu sucessor, Felismina Ernesto
: _) ou do "professor Viegas" ou ainda do "jovem m:ais antigo", Tocóli], Longa Trajectória [homenagem ao Presidente da
') como se lhe é chamado. Aliás, nesta mensagem se eleva Vie- República de Moçambique], Alta Determinação [Saudação
gas à categoria de "filósofo africano" . ao Presidente da República de Moçambique, Armando Emí-
_)
lio Guebuza, no fim da sua visita a Nampula em Maio de
_) Eis um trecho: "O Papá Viegas partiu num momento
em que a Universidade Pedagógica estava a prepa.r ar uma 2009].
homenagem para atribuição do título doutor Honoris Causa Como membro de Comissão Nacional dos Direitos I-Iu-
j
em Antropologia Social. Uma homenagem que serviria p~ra manos defendeu os direitos dos moçambicanos , a educação,
) reconhecer o seu trilho como lutador incansável de uma cau- a saúde a riqueza ao bem-estar. A sua larga experiência no
~) sa social, como conservador dos valores mais nobres do povo ; campo social permitiu dota-lo de grandes convicções e com-
) makuwa, como conselheiro, como escritor, como, sobretu- -.,.,.,_: preensão sobre autoridade tradicional ao ponto de ascender
do, um verdadeiro filósofo africàno." a Conselheiro do Governador para assuntos relacionados
_)
A UP Nampula enfatiza que, em 1999, aos 72 anos de com esta matéria; a sua religiosidade evitou que se compro-
j
i~ade, Viegas entrou na universidade para o curso de Licen- metesse com o regime colonial nos 25 anos, enquanto fun-
_)
ciatura em Ensino de História, não tendo concluído. Em cionário.
')
2000 regressou, ~ovamente, à Universidade Pedagógica, Uma análise atenta do seu Currículo Vitae permite
_J
com 79 anos de vida, para voltar a frequentar o curso na compreender uma vida dedicada a uma única causa: eduntr.
tendo, novamente, concluído o curso, mas demonstra~do Foi esta causa que fê-lo ser dos poucos melhores professores
:d dui:na forma persistente, a vontade de estudar e de apre~de; chamados em Novembro de 1975 para darem continuida-
mais.
/_J de do seu trabalho no Moçambique Independente após ter
terminado o Curso de Instrutores de 30 dias na Namaacha,
:'...J
-·-" Maputo .
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Alberto Viegas tornou-se guardião de valores que ul-'' - sos problemas e uma série de interpretações sobre a nossa
trapassam a sua religião, a sua etnia, a sua raça e a sua con- historicidade e culturas tivessem ido com eles. Já perdemos
vicção política. Por isso lidou com pessoas de variadíssimos demasiadas referências culturais e teóricas no. nosso país. O
estratos sociais e origens. Viveu ininterruptamente 25 anos colonialismo tratou de dizimar ou minimizar a importância
no meio de muçulmanos de quem muito aprendeu, convi- de muitas destas referências locais. E o epistemicídio estava
veu com missionários, governantes e chefes de aldeias; ele então na moda. Retomarmos nós mesmos este epistemicídio,
206 fez âo respeito e da tolerância como alicerces de contacto por nossa própria conta e responsabilidade? Saber ou Igno-
com os outros. No período de transição do regime colonial rância? Eis a questão perante a qual o nosso tempo africano
[entre 1974-1978] fez um grande trabalho de sensibilização se nos apresenta, enquanto o espectro do tradicionalismo
de modo a evitar que os moçambicanos negros, eufó_ricos ainda pairar sobre a filosofia moçambicana.
pela independência, se vingassem dos brancos [aqueles que
tinham optado por ficar ainda em Moçambique].
Não .temos palavras suficientes para descrever a vida~
a experiencia, o exemplo, que este Homem que hoje parte
represente. Ele mesmo, em vida, dizia: "cada pessoa estica as
pernas mediante o tamanho da _esteira que tiver" .
Viegas foi membro-fundador da Organização Nacional
dos Professores [ONPJ que mais tarde se transforma em Sin-
dicato Nacional dos Professores de Moçambique. No seu fu-
D
neral os professores estavam representados e também leram
j
uma mensage1n destacando, naturalmente, as suas qualida-
des como "professor". Destaca-se que os professores admi~
ravam nele sobretudo a "capacidade rara" de aconselhar aos
outros, de animar grandes eventos ·com as suas anedotas e
provérbios e, acima de tudo, a sua "alta capacidade de elo-
<.__)
quência", ou seja, de pronunciar "discursos suaves e agradá-
veis aos ouvidos ... ". 0
Enfim, por mim, o "espírito" dele ainda continua
o
"quente" nas nossas vidas . Temos agora a árdua tarefa de
-.. ~ fazer com que este e-s pírito não morra, e não o deixemos
morrer. Há muitos sages que já morreram no anonimato das 0,
. '
·· suas vidas. É como se um conjunto de soluções para os nos-
-~
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os Saberes Locais e aqui anexado sob a autorização do nos em sua~ principais características.
_)
Mário A . Viegas) Do inesmo inodo, e para não entrar de chofre no assun-
_j
Viegas, A. (s.d.) : Reflexão sobre Filosofia Social (artigo pu- to "o ensino de valores culturais dos makuwas", corneçarei
J por falar utn pouco sobre este povo, citando para isso o que
blicado ern anexo sob a autorização do Mário A. Viegas)
_) alguns investigadores não-makuwas disseram acerca do mes-
.J Zízek, S. [2013]: O Ano em que sonhámos perigosamente.
i mo. Com efeito no livro de Francisco Lerma Martínez, mis-
R~lógio D' Água. Lisboa, Portugal.
,J
1
sionário católico que, no período dos anos de 1917 a 1985
_) trabalhou no norte do nosso país, lê-se o seguinte:

_} "O povo makuwa é o mais numeroso dos povos


_J que integram Moçambique-;- encontrando-se, embora
em grupos reduzidos, também noutros países tais como
_)
Tanzânia e Malawi~ devido às migrações do século XIX,
__)
Ilhas de Madagáscar, Seychelles e Maurícias, devido ao
_J comércio de escravos durante os séculos XVIII- XIX"
'j (Cf. Martinez, Francisco Lerma. O Povo Makuwa e a
_) Suas Culturas. Ministério da Educação, Instituto de In-
1; __) vestigação Científica Tropical, Lisboa-1989:37, notas 2 ,
'!.:::;) 3 e 4).

i(_J
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Jj
·J_J'
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j
José P. Castiano )
Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
)
Os makuwas moçambicanos encontram-se concentra- ..,-- Acontece isto apenas por tais regiões constituírem maio-
.J
dos na província de Nampula, sendo por isso que o primeiro res círculos eleitorais do país, ou é pelo facto de se saber que, .J
nome da área onde hoje está situada a cidade de Nampula a par disto, o povo makuwa possui a característica de aceitar
era Macuwana, corruptela da palavra Omakhuwani, que sig- conviver pacificamente com pessoas de todas as outras et-
nifica "Região dos Amakhuwa" (terra dos makuwa). nias, venham de onde vierem? .
Também a maioria das populações das províncias de
214 Niassa, Cabo delgado e Zambézia é constituída por makuwas,
Sabedoria e Conhecimento do Povo Makuwa 215
ramificados em vários grupos e subgrupos, como se pode vet
a seguir: Axirima, Ameeto, Alomwe, Anahara, Amarevone,
Axaakaou Asaaka e outros. A sabedoria filosófica e os conhecimentos da vida social
Existem certos factores que revelam a unidade original __ ,,. do povo makuwa são manifestos ou notáveis essencialmente
de todos estes grupos, tais como a crença em Deus e a ve- _J em circunstâncias próprias o efeito. De facto, evidenciam-se
neração aos antepassados, o mito da sua origem comum no nos ritos de iniciação da camada juvenil, na vida dos adul-
Monte Namuli, o casamento fora do próprio clã, a desloca- tos nas cerimónias de entronização dos reist, na . r~soluçã~
ção do homem para viver no local da família da esposa, a de "milandos" 2 sociais, recorrendo -se constantemente aos
crença na feitiçaria e a recorrência aos curandeiros, as formas contos, provérbios, fábulas e advinhas, que constituem o seu
estruturais da língua makuwa e seus dialectos, entre outros. rico reportório cultural. .

Todavia, apesar de numeroso, o povo makuwa nunca Alexandre V. Matos, outro missionário católico que du- )
constituiu-se uma unidade política e é um povo simples e pa- rante mais de cinquenta anos trabalhou entre nós, diz no seu
cífico. É um povo simples porque não se dedica à produção livro de provérbios: " .. . os contos, as fábulas e os provérbios
de bens de luxo ou para ostentação, nem leva a vida deste makuwas no seu aspecto cultural fazem parte do património
género; é pacífico, porque não tem pretensões de se sobre- comum da humanidade, encerrando normas de moralidade
por às outras etnias, convivendo des.te modo simplesmente e de guia para a vida prática (Matos, P. A. Valente de. Pro-
COITl elas etTl paz. vérbios Makuwas. pág. 11). . ...

Nos termos actuais, assistimos ao fenómeno de os lí- Na verdade, através dos provérbios, dos contos e das
deres das formações políticas que vão emergindo no nosso fábulas fazem-se apelos a respeito dos usos e costumes .do
país a acotovelarem-se e a gladiarem-se assannadamente nas
regiões de maioria makuwa, procurando a todo custo e re - 1
Os nossos régulos outrora eram verdadeiros reis: e assim considerados
correndo a todos os meios para Gonseguirem conquistar ali e ga~a~os pelo povo. Com a ocupação estrangeira foram reduzidos a
um lugar para si mesmos . Alguns chegam até a afirmar publi- condiçao de "régul?'', isto é, "pequenos reis ou reizinhos", porque para
os portugueses o r.e1 era só Sua Majestade El-Rei ·de Portugal. . ,
camente que vão a~ norte do país "para salvar (ou resgatar) 2
Milattu, na língua emakhuwa, são litígios; conflitos ou desavenças que
os makuwas". Salvá-los de quem? E de quê? surgem entre as pessoas.
~);:.
W) .
;1· ' ' José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vie~1as
')
l'
f..) povo. Portanto, tais narrativas e maxunas reúnem em si a muito para ganhar muito dinheiro com que com.prar
() filosofia do povo, filosofia essa que manifesta os princípios e artigos de luxo, divertir-se em instalações de alta ca-

L)
1.
normas em que se baseia·o seu código de direito costumeiro. tegoria, etc., etc. Segundo ele quem não tem acesso
K
t
j . Em muitas circunstâncias da sua vida, o povo recorre a este género de vida nada é, e diz que é "analfabe-
;l ) ao uso dos provérbios, contos fábulas para reforçar as suas to" o indivíduo que não sabe ler e nem escrever.
1
\ ) -- atitudes e posições, ou para inculcar nas pessoas, sobretudo [2] Por outro lado , os conhecimentos do homem do
.- 216 nos jovens, valores morais e cívicos.
'. _,) - - contexto rural servem para a vida concreta, não es- 217
i)
i•
sencialmente para ganhar dinheiro . Para ele, comer
à mão é a melhor maneira para apreciar a comida
_) Os Saberes Makuwas: Seus Objectivos
antes de metê-la na boca; e analfabetismo é não sa-
: _) ber fabricar os instrumentos para a produção agrí-
_) cola, o desconhecimento dos processos e instrumen -
Seja qual for o tipo de conhecimentos que o ser humano
_) possa possuir, eles são para serem aplicados na vida real e no tos de caça, isto é, desconhecimento do fabrico de
j contexto sociocultural em que vive o respectivo povo. No redes, azagaias, flechas e os diversos tipos de arma-
caso dos makuwas, os seus saberes estão estritamente ligados dilhas para apanhar animais e encontrá-los vivos ou
_)
ao seu modo de interpretar e levar a vida neste mundo, quer mortos, bem como o desconhecimento dos vários
)
dizer são conhecimentos práticos para a produção do que se modos de pesca e de fazer casas e artigos domésti-
j cos , etc.
precisa, para se fazer face aos desafios que a natureza coloca
j ao home1n makuwa para sobreviver, e não para invenções
_) científicas espantosas.
Portanto, para o homem rural o analfabeto é aquele que
_)
Para melhor entendermos o fenómeno da sabedoria hu- não sabe fazer estas coisas reais e necessárias na sua vida e
.: ~) m ana, ternos de entrar efectivamente em cada um dos con- que não conhece as normas morais da sociedade. O saber ler
1J textos em que o homem se encontra inserido, o contexto ur- e escrever nada diz para o seu viver lá no ambiente geográfi-
i _) bano e o contexto rural, porque o que no concreto se verifica co concreto em que ele se encontra enquadrado.
.'·
é o que se segue:
Neste contexto, um sábio universitário pode ser analfa-
[1] Por um lado, o homem do ambiente urbano defi- beto da vida, visto que no ambiente rural nada saberá fa-z er
ne a vida e leva-a de acordo com o que se faz nos para a sua sobrevivência e para o seu bom relacionamento
círculos do seu dia-a-dia. Para ele as preocupações com os membros da comunidade onde for a viver.
fundamentais são relacionadas com o que comer a
Sendo assim, onde é que deve estar o centro de valida-
garfo e do melhor, tomar banho d_u as vezes ao dia,
ção dos saberes? Até aos tempos actuais os saberes têm. sido
~· . vestir roupa engomada, calçar bons sapatos, estudar
alídados partindo do ponto de vista do moderno, isto é do

'-

l r,
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sag acidade à lntersubjectiv ação com Viegas

lado literário . Para este lado, todo aquele que não sabe ler ~-·­ vem o aspecto da profissionalização do indivíduo ou fase de
e escrever, ou seja todo aquele que não tem conhecimento aprendizagem dos conhecimentos práticos. No aspecto da
literário, é considerado como sendo um analfabeto. Esta for- moralização, os ensinamentos são transmitidos de maneira
n1.a de analisar e definir os fenómenos sociais corresponde à espontânea e empírica, culminando com a form·a organizada,
verdade no seu sentido absoluto? que se materializa nos ritos de iniciação, masculina e femi-
Perante tal situação das coisas, há toda necessidade de nina, onde se ensina aos jovens de .ambos os se.x os como se
218 existir uma estreita aliança entre os saberes literários e os deve~ tratar mutuamente na vida social e de ca~ados.
saberes socioculturais, um casamento entre o moderno e o É aqui onde o rapaz aprende a tratar bem sua esposa,
tradicional, tomando o ensino ou a educação num sentido de cumprindo os seus deveres para com ela, de entre os quais
globalocalidade, isto é, ter em consideração o aspecto global :figuram os de lhe construir casa, arranjar-lhe roupa ade-
e local, não apenas num contexto. quada, proporcionar-lhe comida conveniente e machamba
condigna; a par do dever de respeitá-la nos seus momentos
críticos, próprios de ser feminino e defendê-la em caso de
Formas de T ransrnissão de V alares Culturais
perigo, sendo esta uma das razões que deu origem ao facto
de, numa viagem, a mulher ir andando atrás do homem, toda
Em paralelo aos conhecimentos materiais, existem os ela carregada, por vezes conduzindo os filhos, e ele apenas
com alguma catana ou uma azagaia nas ~ãos. Isto acontecia .J
valores éticos e morais para uma vida harmoniosa nas co-
para ele servir de batedor da zona em que se passava e po- "_)
munidades. Na cultura makuwa, as formas de transmissão
der pôr-se imediatamente em acção, em caso de repentino )
de valores culturais e dos saberes locais estão agrupadas em
curricula e ciclos tradicionais não escritos em virtude de os surgimento de alguma eventualidade desagradável, salvando
seus mentores não possuírem o uso da letra, logicamente. assim a família, o que lhe não seria possível se tivesse carrega-
Com efeito existem períodos do ano em que se deve realizar do de alguma bagagem. Portanto, naquele tempo tal atit~de
determinados ritos do ensino cultural, e idades em que são tinha sua razão de o ser.
realizados outros . Regra geral, os co~hecimentos são minis- Por parte da rapariga, também aprende a amar e respei- _J
trados de modo informal, através do que se faz no dia-a-dia tar o marido, ajudá-lo e preparar-lhe comida de q~e precisa e
e, na sua forma organizada, transmitem-se mediante as reali- tratá-lo bem para o dignificar perante a comunidade. Apren- J
______zaç_õ_es_s_o_ciais_que_tamb_éni_p_o_demos classificar de culturais de a observar que, quando o marido regressa do trabalho ou
ou comunitárias. d.e qualquer viagem, ela não deve "olhá-lo pela cara", porq~e
Na educação tradicional, têm-se em consideração dois es~a é a mesma com que saíra antes, e não altera. Deve sim

aspectos principais. Primeiro, o aspecto da moralização do "olná-lo pela barriga", visto que esta é que podeaument~r
homem, processo que vai desde a tenra idade até a iniciação, e diminuir de volume, consoante as circunstâncias, indican-
isto é, até aos ritos de passagem para a vida adulta. Depois, do se comeu algo ou tem fome. A comunidade participa na

\
) !
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação corn Vieg;;i~,:

educação tradicional e acompanha-a, tendo assim maior ensino dos aspectos concernentes a efectividade rnoral e pas-
eficiência, pois é de responsabilidade de todos. Com efei- sional do mesmo modo que outrora tais ensinamentos eram
to, todos controlam como o indivíduo iniciado se comporta; dados a adolescentes e jovens de 15, 16 e mais anos de idade,
repreendendo-o quando necessário, para que se corrija, em e não a crianças de tenra idade, pois estas nada poderiam
caso de estar a incorrer no erro. compreender sobre o assunto.

.J-220 Úm dos problemas que hoje me preocupa bastante é o Convidem um indivíduo da população local, ou diri-
,.
seguinte: O nosso Sistema Nacional de Educação é mesmo jam-se ao seu posto de trabalho, onde produz os seus arti- 221
· )--
de Educação? ou apenas de informação e instrução? O que gos artesanais, para que demonstre e ensine aos alunos com.o
. ' _)
observo é que, quando algum dirigente visita uma escola, a se prepara um cabo de" enxada, de machado ou de catana;
_)
única preocupação que manifesta é a de se inteirar "se os como se entrelaça o material para o fabrico de uma esteira,
~) alunos sabem ler, escrever, fazer operações matemáticas e de ou como se faz uma nassa para apanhar peixe; como se pro-
_) outras ciências .. . ", não pergunta como se comportam peran- duz fogo através de fricção de dois paus de certa espécie, etc.
; _) te. os pais e outras ·pessoas, de modo particular perante os
Nem que seja para saber fazer uma armadilha de apa-
.1 ) portadores de deficiência física! Onde está a educação do
nhar ratos, já é um passo positivo, porque, para mim, o im-
civismo social? Temos tantos doutores com conhecimentos
_) portante é produzir algo de utilidade concreta e não apenas
literários ou académicos-científicos, mas poucos com educa-
·) simples e fugazes brinquedos, como se vê hoje a fazer siste-
ção ético-moral.
maticamente nas nossas escolas. Penso que para aprendiza-
j
No contexto rural, quanto aos aspecto·s da profissiona- gem destas coisas, há lugar para todas as pessoas: crianças de
j lização, aperfeiçoam-se os conhecimentos práticos, tanto os determinada idade, adolescentes, jovens e adultos que não
_) culturais como os éticos-morais, a par dos que dizem respei- .. ;t:enham conhecimento sobre tais assuntos, principalmente os
_) to aos casos de provimento de alimentos e vestuário. .,,,...:indivíduos que vivem num ambien te rural.
._J Portanto, para um maior sucesso no processo educacio-
_) Que Valores poderiam ser Aproveitados? nal, o casamento harmonioso entre a modernidade e a tradi-
_) ção é necessário e indispensável.
i,'J
A dado passo desta explanação, eu disse que os valores
socioculturais eram fransmitidos essencialmente através dos
ritos de iniciaÇão. Mas aého que os mesmos podem ser mi-
nistrados fora dessas realizações tradicionais, devendo-se no
entanto, selecclonar as idades dos instruendos e as individua-
lidades de co'nduta'exemplar, para mestres e conselheiros no

1.- '
-.
"
J
Reflexão
_.,-
sobre Filosofia SociaF )
Por: Alberto Viegas _J

Introducão . )
' 223 '.'

Qualquer trabalho escrito tem um nome ou título. O


nome ou título deste meu trabalho é Reflexão sobre a fil~so­
fia Social. É realmente isso? Cabe ao leitor dizer sim ou nã~,
___...,,_ porque, c~m efeito, aqui toco um pouco de cada pouco do
;- ~· T • • .., ...
pouco que diz respeito a cada um dos poucos assuntos qué à
seguir se colocam, tais como a existência ou não existência da
História e Filosofia dos povos africanos, o problema dos fe-
nómenos instinto e irracionalidade dos animais; entre outras
divagações sobre os acontecimentos na vida social, segundo J
o meu ponto de vista pessoal. Na verdade, é simplesmente
uma reflexão individual e feita de uma forma subjectiva. Se j
ao longo deste trabalho aparecerem situações ou casos que
colidam com outros, tal não é minha intenção .
Inculcaram-nos a ideia de que somos um povo de baixa )
1
categoria neste mundo e sem História e Filosofia. Convence-
ram-nos que nada somos. Vamos_ ficar indiferentes? ·
Posto isto,_acompanhemos a exploração qµe se segue.
Com a presente reflexão pessoal ·sobre a Filosofia Social,
pretendo convidar os nossos estudantes e outros que se

1
Este texto sofreu algumas adaptações e encurtamentos meus . A razão
destas alterações prende u -se pelo o facto de que, pareceu-me, ele ter
sido apenas concebido, m as ainda não acabado. Os . subtemas finais
("Em Ciência não existem T eorias Acabadas " e "Advertência a alguns
Graduados") foram por mim retirados desta versão por os achar ainda
não terminados .
José P. Castiano Filosofia Afr icana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
\1 j
;' ) interessam a entregar-se ao trabalho de investigação acer- Povos estrangeiros vieram donde vieram e, não tendo
:·J ca destes e doutros assuntos, para fundamentar ou refutar encontrado em África livros ou enciclopédias sobre a nossa
'J _coq1 conhecimento de caus·a a tendência da ideia de que "os vida, deduziram que este povo não tem História nem Filo-
_) africanos, incluindo os moçambicanos não têm História sofia. Por não terem encontrado templos e outros edifícios
' '
_) porque nada existe escrito sobre ela" , A ser verdade, signi- de culto, concluíram imediatamente que este povo não tem
_ _)_ fica implícita e inclusivamente que tais povos "também não religião. Não encontraram obras de arte segundo a sua teoria
têm filosofia",
-~ sobre esse assunto, e convenceram-se que este povo não tem 225
Não tenho intenção de discriminar quem quer que seja, cultura.
_)
mas ao longo deste meu trabalho ver-me-hei obrigado a to- E, para fundamenta tem a alegada inexistência da Histó-
~)
mar como um exemplo o povo makuwa, do qual sou mem- ria e da Filosofia entre os povos de África e de outros conti-
~) o
bro e sobre qual tenho minimamente algum conhecimento, nentes, afirmaram que não era obra dos povos nativos as edi-
_) pois para mim não é tarefa fácil falar do Povo Moçambicano ficações de valor histórico incontestável neles encontradas,
j no seu todo. como são os casos dos majestosos templos dos Maias e Incas,
j Sobre o assunto referente à História, consultei o Dicio- na América, as famosas pirâmides do Egipto e os gigantescos
_) nário da Língua Portuguesa, Acordo Ortográfico 2009, Por- amuralhados do Estado de Zimbabwe e os estados dos Mwe-
to Editora; e nele encontrei mais de oito significados sobre nemutapas, na África, só para citar alguns exemplos .
_)
História e Filosofia (não vamos reproduzir aqui)_ Melhor compreenderemos isto se tomarmos em consi-
J
deração de que quando alguém tem a intenção de desacre-
l j
ditar qualquer facto, mesmo que tal seja evidente, procura a
_) Há ou não História e Filosofia em África?
_ tÓdo o custo destruir as provas que __Q_ testificam, como proce-
"' êieram os fariseus em relação ao milagre de cristo tinha ope-
_) rado, curando um cego de nascença. Para destruir a prova
Afinal, o que é História e o que é filosofia? Se a História
J é a "sucessão natural de factos sociais, políticos, económicos, desse prodígio, apertaram com tantas e tão insistentes per-
_) militares, culturais ou religiosos, que fazem parte do passado guntas o homem que havia e, porque ele teimava em afirmar
de um ou mais países ou povos", deixando m9rcas na socie- e ~eafirmar a veracidade de facto, chegando até, por sua vez,
dade e modificando o modo de vida das pessoas, porque é a fazer-lhes perguntas para eles embaraçosas, expulsaram-no
que se deve pensar que nos povos africanos não há História? da sinagoga (João 9,34). Por Jesus ter ressuscitado Lázaro,
Será que os acontecimentos aparecem com a intenção de pe- de Betânia, os sumo-sacerdotes e os fariseus convocaram o
direm aos homens que os escrevam? Se algum facto ocorrer Conselho e este decidiu matá-lo, para apagar a prova de tal
''j numa sociedade e "não for narrado" ou escrito deixará de milagre (João 11,47-48),
' -·
"ser um facto histórico"? Deixará de "ter sucedido"?
,-'
1__)
i'-_)
.~ -/

11) ,
José P. Castiano -,
Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vieg as

Para nos convencerem que não temos valor, nas facul- Os factos que ocorrem noutros povos, que hoje têm fon- 'J
dades universitárias, quanto ao que diz respeito à História, tes esctitas, inicialmente também não eram escritas, e nem
até hoje só se fala essencialmente de Roma Antiga, da. Grécia por isso deixaram de s,er factos históricos. Quando tais povos
Antiga, do feudalismo na Europa, do Império dos Maias, dos inventaram a . escrita é que os escreveram. De igual modo,
Incas, do Egipto Antigo, etc., menos de "Moçambique An- se os africanos tivessem inventado a escrita, também teriam
tigo ''-, a pretexto de que não há fontes fidedignas a citar .... escrito nessa altura o que acontecera e o que ia acontecendo
226 Com efeito, hoje quem, nos seus trabalhos universitários de no seio ou à volta.
História ou de Filosofia, não citar Platão, Sócrates, Aristóte- .
A .Igreja Católica tem duas fontes de inspiração: a BL
les , Séneca, Hegel, Kant, Tomás de Aquino, Marx e outros
blia, que se diz ser um dos livros mais antigos (senão m~smo
sábios do mundo ocidental, não é considerado conhecedor
o mais antigo) e a Tradição Oral. Os povos africanos têm a
da História ou da Filosofia. É isto correcto no sentido abso-
luto? Não é uma das sequelas da hegemonia do europeísmo?
sua Tradição Oral. J
...-, - Isto é mais uma prova de que cada povo tem uma His-
tória própria e uma filosofia específica, que ·o distingue dos )
Os Moçambicanos também têm História outros povos do Mundo . ·

Arites da chegada dos povos estrangeiros à África, os


Os moçambicanos, nos quais estão inclusos os makuwas, deste Continente, incluindo os makuwas, tinham guerras en-
a
têm também sua História, constituída de factos relaciona- tre si, praticavam o comércio dos seus produtos, até 0 ._dos es-
dos com a sua vida desde a origem até aos tempos actúais, cravos, embora não os exportassem para outros países, mas
factos que se deram nos âmbitos sociais, políticos, económi- sim para _outras tribos, e veneravam os .seus antepassados,
cos, militares ou religiosos, e que chegaram até nós através pois tinham a crença na vida de após morte.
da tradição ou da narração oral. Os makuwas afirmam que Acreditavam na exis_tência de um Ser Supremo, criador
foram criados por Deus no Monte Namuli, enquanto que de todos os homens , obreiro e dono de todas as coisas visí-
u
os Hebreus dizem que tiveram o Rio 6anges e ainda outros veis e invisíveis, chamado Deus .. Não construíram templos e
dizem que descendem de primatas ou macacos (Australopi- outros edifícios para neles O adorarem, porque, sendo Ele J
tecos), eu sei lá de onde vieram outros tantos povos. espírito e estando em toda a parte, não necessita de um lu- _)
- - - - - - - -G -00nt in€-n t e-a-fúcano-.:f oLparülhado_e_subme_tid0 ªº~~r~e_-_ _ _ __ gar específico para aí ser adorado por aqueles que acreditam
n'Ele.
gime capitalista e strangeiro na famosa Conferência de Berlim
(1884 a 1885). Isto foi um acontecimento histórico que afec-
tou negativamente os povos africanos, mesmo co locando-se
a hipótese de que eles não sabiam. disso e não o escreveram
e nem narraratn .
~r-J
r) José P. Castiano Fil'osofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectiva ção corn Vic9as
~()
·..li
HJ
1 A Filosofia do Povo 1vfakuwa acusação invoca o provérbio que diz: Mwalakhu
':J
khanivavela ahirima axaana. O que, traduzido para
1)
português, significa: "A galinha sem pintainhos não
·1 A filosofia no povo makuwa é um facto inegável, que só
ataca ninguém", querendo com isso dizer que o acu-
pode ser posto em dúyida por quem não conhece este povo.
1 sado é realmente culpado e a sua atitude revela que
L_)_ Para confirmar que o povo makuwa é filósofo, basta reflectir
no facto de, não tendo sido alfabetizado, ter conseguido es-
está procurando encobrir algo existente no íntimo d a
l/'>8 sua consciência, à semelhança do que a g<:llinha foz
-'-'J=- truturar-se em comunidade organizadas e dirigidas por líde- 229
<) res tradicionais, a partir da família alargada e estendendo-se
em defesa dos seus pintainhos, quando vê chegar al-
gum perigo.
..J à toda sociedade comunitária .
_) O Código Penal e de Conduta é consuetudinário, quer
' _) dizer: é costumário, isto é, baseado nos costumes, sendo Nisto, intervém no assunto um outro indivíduo, dizen-
transmitido tradicional e oralmente de geração em geração. do: Mwalakha khanrela ooniwaka, isto é, "a galinha não
_J
Tem seus juízes e advogados de acusação e de defesa, con- põe os ovos à vista das pessoas", para este provérbio insinuar
/J
soante os casos, sábios surgidos de modo espontâneo e empí- que o arguido sabe que é culpado, mas não quer confessar-
_) se como tal em público, havendo portanto a necessidade de
rico de ei1tre os membros da sociedade. Portanto, não o são
.J por terem passado pelas carteiras de uma universidade nem
)
afastá-lo dali, acompanhado de alguém para conversar com
J mesmo por qualquer instituição de ensino de nível básico. ele a sós, num lugar isolado, podendo até ser noutro lado da
São sábios por natureza. mesma casa em que estão reunidos para o efeito.
J
_) Uma das manifestações da sabedoria filosófica do povo _. . _ Vezes sem conta, é aí que, levado por palavras estraté-
) makuwa é o uso dos provérbios, adivinhas, contos e fábulas -.,. gicas e persuasivas do inquiridor, qualquer acusado que não
na resolução dos· litígios que, obviamente, surgem entre os tenha bases bem fundamentadas em sua defesa acaba confes-
_J
homens em geral. Recorre-se constantemente a um ou outro sando a culpa que lhe pesa na própria consciência, culpa que
)
provérbio, ou a uma breve fábula, para acusar e/ou para de- pretendia ocultá-la aos olhos dos demais.
__)
fender alguma situação problemática.
_)
Vejamos estes três exemplos à resolução de questões 2. Provado o envolvimento culposo no assunto, o ar-
J sociais: guido é condenado ao pagamento de uma multa eli1
J dinheiro ou em algum outro produto do seu traba-
1. Quando um arguido tenta escapar-se do problema
~ lho, seguindo-se a sessão de críticas , para corrigi-lo
em que está envolvido, recorrendo a argumentos e
' _) juramentos para convencer à força os seus j\Ügado- perante a comunidade e levá-lo ao arrependimento.
1
1 •
! _) res a pensarem que ele é inocente, o advogado da '. Quando as críticas começam a ultrapassar os níveis
LJ construtivos, tendendo a tomar o âmbito de insultos ,
José P. Casti.ano Filosofia Africana: da Sagacidade à lnte rsubjectivação com Viegas

.,- está a ser condenado inocentemente, mas, um dia,


intervém um advogado de defesa com o argumen-
to proverbial que diz: Nata nivanre mahiryaakhu -Deus far-lhe-á a verdadeira justiça.
khaninthikiliwa: nnoonyawzhiwa, quer dizer, "a '- Sendo filosofia o "conjunto de princípios que orientam
mão que sujou nalgum excremento não se corta: lava- o comportamento ou conduta" das pessoas, evideritemetúe
se" , pretendendo com isso atenuar a situação crítica que os africanos, de modo particular os makuwas, têm a súa
daquele que está a ser enxovalhado pelos presentes, filosofia, manifestada também através dos ritos de iniciação, )
como quem diz: critiquemo-lo, sim, mas nao o des- onde transmitem conselhos ético-morais (ikano) à camada ju- 231
230
truamos, porque pode_ mudar de comportamento e vir venil, como forma de preparar esta para a vida social adulta.
a ser útil à comunidade; ele é um ser humano como
nós, e todo o ser humano é susceptível de falhas.
A Filosofia Africana e a Filosofia Ocidental )
J
Os romanos também diziam: errare humanum est, que- ,? )
rendo com isso dizer que errar é próprio do homem; todos Qual é a filosofia mais antiga entre a ocidéntal e a africa-
estamos sujeitos a cometer erros, porque neste mundo nin- na? Acho que nenhuma, porque a filosófia é tão antiga como
guém é perfeito. o próprio homem.

Que diferença encontramos nós entre este pensamento A filosofia africana é igual à filosofia ocidental? Eu pen-
romano sobre o comportamento do homem e a capacidade so que não, porque a interpretação das cbisas ou fenómenos
de julgar as questões humanas demonstrada pelo advogado depende da concepção que cada povo tem sobre tais coisas é
de defesa makuwa que acabamos de ver? fenómenos, podendo, no entanto, coincidir em alguns pon-
tos, por vezes até em pontos vitais do modo de ver as coisas
nas diferentes sociedade humanas que existem sobre a Terra.
)
3. Se algum arguido esgotou todas as provas de que dis-
O homem africano diz que tudo que tem nome exis- .)
punha para demonstrar a su~ inocência no proble-
te . O homem ocidental, quando não consegue identific~r e
ma em que está metido e, mesmo assim, os julgado-
provar algo, diz que não existe. Por exemplo, diz que a água
res persistem na decisão de o condenarem, recorre
não tem cor, não tem cheiro, não tem sabor ... É verdade ab-
ao provérbio que diz: Enama yookkwa kinkhootta
soluta? Como se consegue distingui-la dos outros líquidos?
---------mwaa-le,-e-EJU€-s-Íg-n.i.:fiGa~animal-mo-rt~não-nega _ _ _ _~
E através de quê a mesma chega a ser agradável ao nosso
faca ", como quem diz "fazei de mim o que preten-
paladar? Através de outras substâncias a ela associadas?. Será
deis fazer; embora inocente, resigno-me" . Ou invo-
realmente isso? E porquê se diz "esta água -é boa" -e não se
ca outro provérbio, dizendo: Mulattu wa masikhini
diz "as substâncias desta água são boas"?
onlavuliwa ni Muluku, isto é "o problema do pobre
:· ...
é resolvido por Deus", demonstrando com isso que

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José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas
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A :filosofia africana está aliada à prudência, virtude que que 6 anünal selvagem., quando "quer" descansar, procura
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)
nos ensina a ter cautela nas afirmações e nos actos. Investi- um lugar mais escondido e seguro para o efeito . "Fá-lo por
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g~r, sim; mas a:fin:nar categoricamente que fulano ou sicra- instinto !" O que é o instinto? - torno a perguntar.
,1 j n9. r;ião tem isto ou aquilo, ou ainda, que isto ou aquilo não
Alguém nos inculcou a ideia de que os animais são irra-
") existe, sem ter investigado diligentemente o fenómeno, não
é prudente. cionais e agem por instinto. E nós nos acomodamos a isso e
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nunca procuramos reflectir sobre a veracidade ou não deste
'. ")2
-' J=..- depoimento de outros. Não existirá alguma hipótese para o 233
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O Proble1na do Fenórneno "Instinto"
.
contrário ou para outro caminho de pensar?
O homem é também animal e quem define o instinto e
_) a irracionalidade dos outros animais é ele mesmo, o homem
O que aqui exponho sobre este assunto não é segundo
' _) -animal ou animal-homem. Não haverá nisto algum objec -
o pensamento e a definição dos que julgam ter atingido o
tivo intencional por parte dele? E se alguma vez descobrir
J cúm1-1lo da sabedoria, ~as sim segundo o sendo comum, por-
que, pelo contrário, os outros animais, ditos irracionais, é
) que o que hoje se considera "ciência" surgiu do empirismo
que vêm a ele como irracional e consideram-no co mo tal ele
) e da análise das coisas segundo o senso comum. Não sou
facto, o que é que há-de dizer ou fazer perante a suposta
cientista, nem à sombra disso me aproximo.
) evidência?
) - Se não és cientista, nem sombra diss~, porquê te metes
Se o homem é um ser racional em sentido rigoroso da
l j nesses assuntos? - perguntar-me-á alguém.
palavra, porque é que inventa e produz armas sofisticamen-
1.'_) · Como .resposta, digo-lhes apenas: A ninguém é proibi- te., poderosas e de destruição massiva, para se destruir a si
)
do manifestar as suas opiniões, seja em. que matéria ou as - _::__·- ~~ruóprio, à medida que vai eliminando os seus sernelhantes?
sunto for, porque o facto de alguém ter língua curta não lhe O animal mata apenas o que precisa corner para viver e não
_)
impede de se lamber. Se o boz~ o cão e o gato conseguem mata os da sua espécie. É irracional? "Age por instinto ... " -
,) lamber-se até às narinas, tal sorte é deles. Portanto, deixem- repetem a lacónica resposta. Mas o que é instinto? - 'i nsisto
j me procurar o desejo de saber. eu na pergunta, já que insistente é também a resposta.
j Os animais pensam? Não pensam? Se não pensam, Será o instinto dos animais um facto consumado? Não
J como e porquê conseguem agir positiva e negativamente? será antes uma forma de pensar e de agir, qúe o homern ainda
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"Fazem-no por instinto" - dizem os que defendem que os
animais não pensam . O que é instinto? E quando é que dize-
não conseguiu identificar devidamente e que, um dia, poderá
desvendar o mistério que envolve este e outros fenórnenos
mos que determinado animal, dito irracional, age ou agiu de desconhecidos? Em ciência não existem teorias acabadas.
·i'_) maneira positiva ou negativa? Não é quando o faz de "fiiodo ,
lt _) que nos agrada ou desagrada, respectivamente? Porque é
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José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Neste preciso momento, ocorre-me na memória um"'- O facto de nós, homens, não percebermos como os ani-
provérbio makuwa, que diz: - Mputtu wa mwalakhu onoo- )
mais se--eomunicam, significa que eles não têm linguagem?
neya nzhiku na epheyo.' - com o significado de "o traseiro da É prova segura de que não têm alguma língua? Na Bíblia
galinha vê-se em dia de ventania!" diz-se que a jumenta de Balaão falou (nr. 22.28-31). E se, um
Com efeito, para mim, o fenómeno "instinto" e certas dia, todos os animais abrirem efectivamente a boca e falarem:
a:fi.~·m-ações cat~goricamente feitas constituem a ventania que como nós, o que dirá ou fará o homem?
234 faz ver a minha fraca análise das teorias ditas "cientificamen- Durante muito tempo, o Homem ocidental tambéb:i 235
te estabelecidas" sobre os fenómenos e acontecimentos so- pensou que os negros não tinham .ª fala: pensavam que _ _)
ciais. Mas o que me induz a contestar certas actuações e/ou apenas grunhiam como os porcos, ou guinchavam como· os
afirmações é a minha consciência, que me sugere a não dizer macacos, pois não entendia não percebia nem entendia as
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pura e simplesmente "Ámen" a tudo que por aí se diz. Estou
errado? Conduzam-me à verdade, se é que entre os homens t"",
... _
~ -
nossas palavras. O próprio grunhir dos porcos e o guinchar
dos macacos não serão a fala deles, cujas palavras nós enten-
existe a verdade verdadeira, isto é, a verdade absoluta. O que"' demos?
sei é que quem tem intenções de submeter os outros à sua
Quando não conseguimos definir a causa causadora do
supremacia sempre arquitecta argumentos a seu favor, quer
modo de agir de outros seres da Natureza, não nos fica bem
tenha, quer não tenha fundamentos lógicos para tal. (. ... )
dizermos categoricamente que isto ou aquilo não existe, ou
A afirmação de que o instinto é "actividade hereditá- que isso é "instinto"; porque pode aconte·cer que na realida- )
ria adaptada às condições de vida, relativamente uniforme 1'
de à mesmo seja outra forma de consciência, muito diferente
em cada espécie, inconsciente da aparente finalidade" é uma )
da de nós outros, que somos seres humanos.
teoria estabelecida pelo homem, porque este pensa desta )
maneira sobre o caso e quer que o fenómeno seja entendi-
do assim pelos seus semelhantes. Mas será esta teoria uma Convite aos Académicos
realidade no sentido absoluto? No futuro, o homem não terá
outra opinião , quando descobrir re;lidades diferentes das
Convido os nossos historiadores, filósofos, sociólo'gos,
que conhece actualmente? Mais uma vez: Em ciência não
arqueólogos e outros graduados das universidades a pen- )
existem teorias acabadas .. .
sarem seriamente no problema da investigação profunda e
A hereditariedade presume existência de um anteces- árdua daquilo que é nosso, para demonstrar ao Mundo que
sor, que a tenha transmitido em primeira mão aos seus des- também temos factos históricos e filosóficos, que os povos do
cendentes . Nesta linha de pensamento, se o instinto é uma Ocidente abafaram, com intuito de melhor nos dominarem,
actividade hereditária, o primeiro ser, no qual se manifestou escravizarem e nos explorarem, justificando que .fazem is·s o
tal actividade, de quem a havia herdado? sobre os povos africanos por estes não diferirem de bestas,: o
pois não têm História nem Filosofia.

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l-<) · José P. Castiano \
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;rJ É verdade que os nossos estudantes, durante o processo Obras e Títulos Honoríficos do Viegas
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de sua formação universitária, nos seus trabalhos académicos
() devem citar os historiadores e os filósofos que os respectivos
( docentes e as enciclopédias existentes nas várias bibliotecas •Certificado de Participação ao V Festival Nacional de
lhes incutiram, porque, se não fizerem isso, nunca vão con- Cultura pelo Ministério da Educação e Cultura
(j
seguir obter o diploma que comprove o seu nível académico. • Certificado de Participação na Conferência Interna -
J _) -
Mas quem lhes diz que, depois, devem permanecer apenas cional sobre Saberes Locais e Educação, organizada 237
!1j_ agarrados aos sábios ~strangeiros, sem procurar valorizar e . pelo Centro de Estudos Moçambicanos e de Etno-
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descobris também os seus? Para que é que foram licencia- ciência da Universidade Pedagógica
' _) dos? Licenciatura não é igual à licença ou autorização para o •Diploma de Honra pelo Ministério da Cultura
seu titular ter acesso aos segredos do mundo ~a investigação
e fazer algo no sentido de descobrir e revelar o que até àquela
_) Obras publicadas:
altura da evolução da' história humana ainda não era conhe-
) cido, porque estava oculto?
j • O que nos dizem certos animais [Volum e IJ
Fico feliz quando oiço falar de sucessos dos trabalhos
'j • O que nos dizem certos animais [Volume l.l]
arqueológico em Manyikeni (Província de Inhambane). É
j de louvar a actividade dos arqueólogos, estimulando~os que • O Curandeirismo
) continuem o seu abrn:!gado labor e façam trabalhos similares • Lunga: À Guisa de Retrospectiva
-_) noutras regiões deste nosso vasto País, para que venha à luz
a glória da nossa rica História.
_) :- · -·,-Obras não publicadas:
_) Na província de N ampula existem várias pinturas ru-
--- . ..
_-, ,... _._,..

pestres, concretamente nos distritos de Érati, Meconta, Me-


J •Alguns Episódios da História de Na mpula
cubúri, Memba, Mogovolas, Monapo, Muecate, Murrupula
'J e Ribáue, totalizando em onze dados histórico-culturais des- • Uma Abordagem a Cultura Macuwa
) te género. • Uma Abordagem as Cerimónias Funerárias
_) •Educação Tradicional Makuwa - Ritos de Iniciação:
A minha pergunta é: Em prol da grandeza de Moçam-
) bique, não haverá algo que justifique a instalação da activi- Rapazes e Raparigas
dade de uma Estação Arqueológica nalguma das periferias • lthale s' AtthuAmakuwa - Contos Populares Makuwas
'.J das pinturas rupestres aqui mencionadas? Nada sei sobre a [Bilingue]
) arqueologia, nem faço ideia dos custos que os res.e.~ctivos • O Valor da Mulher na Comunidade Makuwa [Pro-
trabalhos acarretam, .mas sou levado a pensar muito neste vérbios e imagens]
,J assunto, que considero deveras importante.
!J
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1 _)

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1
José P. Castiano Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

• O Valor da Mulher e do Homem na Sociedadl!- Poesias não publicadas: .,,... ;


Makuwa :t .
)
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1

• Casamentos Prematuros [e outros] -- ---: ~ ·-


• O Heroísmo Secular em Moçambique [Poem,a]
•A Autoridade Tradicional no Contexto Cultural de
• A Dádit!,a de Allah cresceu [no aniversário na_talício
Nampula _)
de Abdul Razak Noormahomed, então Governador ·
• Reflexão sobre a Filosofia Social [A Filosofia Makuwa] da Província de Nampula] _: _ ,)
238 239
• Um Pequeno Historial da Igreja Católica em Nam- • O Homem de obras de grande vulto [em homenagem-
pula a Joaquim Alberto Chissano, então Presidente da Re- )
pública de Moçambique] .J
Palestras não publicadas: • Um adeus não de definitiva sep~ração [rta cerimónia 0
_
.... ... ..,.,,
_

de transmissão de poderes do ex-Governador da Pro-


~
• Importância e Valor da Identidade Cultural ·" víncia de Nampula, Filipe Chimoio ~aunde, para 6 -.;__)
seu sucessor, Felismino Ernesto Tocoli].
• Metodologia de Intervenção nas Comunidades Rurais J
•Longa Trajectória [homenagem a Arniàndo Emílio
• Conversa sobre a ONP [no âmbito da Semana do Pro- )
Guebuza] .
fessor] __)
• Alta Determinação [saudação aCJ. Presidente da Re-
.
• Conversa sabre o Povo Makuwa [no Centro Caquéc- ~· ,:

.J
pública de Moçambique no balanÇo da sua Visita de .·
tico do Anchilo] . _)
Trabalho à Província de Nampúla, em Maio. de 2009]. .

• Educação no Tempo Colonial em Moçambique [na


UCMJ
• O que nos ensinam os Provérbios [no Centro Franco
Moçambicano, Maputo]
• O Valor dos Cantos e Fábulas [na AEMO, Maputo]
• Ensino de Valores Culturais: O Exemplo da Cultura
Emakuwa [na Conferência do CEMEC sobre Saberes
Locais e Educação realizada no Centro Internacional
de Conferências Joaquim Chissano, Maputo]
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