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É o fenômeno que ocorre pelo rebaixamento

da autoestima que o racismo e a


discriminação provocam no cotidiano
escolar; pela negação aos negros da
condição de sujeitos de conhecimento, por
meio da desvalorização, negação ou
ocultamento das condições do continente
africano e da diáspora africana ao
patrimônio cultural da humanidade; pela
imposição do embranquecimento cultural e
pela produção do fracasso escolar. A esses
processos denominamos epistemicídio.
(Sueli Carneiro)
Apresentação
Quem somos?

O Ajeum Filosófico é um instituto formado por uma equipe multidisciplinar de


pessoas pretas que se fundamenta em três pilares: transmissão de saber em diversas áreas
do conhecimento sob a perspectiva das filosofias africanas; transformação e
desenvolvimento humano; e por fim, a produção de ideias com responsabilidade social.
A palavra ajeum (ajeun) é a contração das palavras awa (nós) e jeun ou jé (comer)
transformada poeticamente em "comer juntos", uma refeição grupal, comunal. Assim
oferecemos, através das filosofias africanas, alimento intelectual para nosso povo.

Nosso objetivo:

Nosso desejo principal é formar, incentivar e capacitar pessoas apresentando novas


dimensões e perspectivas de mundo para motivá-las na construção de outros projetos,
realização de sonhos e busca por mudanças na realidade em que vivem. Nos propomos
ainda ao debate sobre o combate ao racismo e seus processos de violência para a
construção de um mundo melhor. Para isso oferecemos consultorias, cursos, treinamentos
e palestras.

Sobre o nosso curso e o nosso material:

Esse material que você tem em mãos é fruto de muita pesquisa, carinho e dedicação
de toda nossa equipe de professores: Katiúscia Ribeiro, Raphael Luiz, Sônia Ribeiro e
João Paulo Ignacio. Além de ser um material exclusivo para você que faz o nosso curso,
esse material é ideal para te introduzir em um mundo novo, por isso utilizamos como base
para os nossos conteúdos, diversos pesquisadores conhecidos na área das filosofias
africanas como: Katiúscia Ribeiro, Mogobe Ramose, Sueli Carneiro, Renato Noguera,
entre outros.

Essa apostila tem contribuições dos professores Katiúscia Ribeiro, Raphael Luiz
Barbosa da Silva e João Paulo Ignacio. A apostila conta com trechos reeditados da
dissertação da professora Katiúscia. Na primeira parte da apostila e do curso falaremos
sobre: o que é; como se constitui; os desafios enfrentados; e qual a importância das
Filosofias Africanas no campo político, acadêmico e social do povo preto. Iniciamos
nossa investigação falando da importância e da legitimidade de se ter uma Filosofia
Africana, bem como apresentar alguns autores que trabalham com o tema e suas ideias
nesse campo de saber. Nessa Unidade buscamos apresentar o conceito de Epistemicídio
que incorreu sobre os povos africanos e como a Filosofia Africana atualmente se
apresenta como uma estratégia geopolítica para o combate ao racismo em suas múltiplas
dimensões.

Na segunda parte temos como foco discutir os impactos do racismo causados pelos
apagamentos histórico-culturais do povo africano. Buscamos ainda apresentar e discutir
os impactos causados pelo projeto hegemônico de poder europeu que criou categorias
ontológicas, sociais e filosóficas, nas quais os seres africanos sempre ocuparam as
estruturas mais baixas. A partir dessa discussão é feita uma análise das consequências
subjetivas e coletivas incididas sobre a população negra.

Na terceira e última parte buscamos apresentar novos horizontes e caminhos


trazidos pela Filosofia Africana, apresentando o conceito chave na construção de uma
Filosofia Africana. Nessa Unidade falamos sobre: Kemet e sua cultura; Kemet e sua
filosofia; e de Maat como fundamento da Filosofia Africana. Falamos ainda sobre a
Filosofia Ubuntu e a importância da Filosofia Africana na produção de novos modos de
subjetivação.

Desejamos, caro leitor, que sua experiência nesse curso introdutório seja agradável
e eficiente, portanto, bem-vindo ao Ajeum!
Introdução Sobre a Importância e a Legitimidade da
Filosofia Africana
O filósofo sul-africano Mongobe Ramose e o
filósofo afro-brasileiro Renato Noguera, serão os
autores que destacaremos nesse primeiro momento do
nosso curso para os estudos sobre Filosofia Africana.
Renato Noguera, em especial, proporciona ao mundo
acadêmico e social brasileiro uma percepção mais
contextualizada da nossa necessidade de uma Filosofia
Africana. Mesmo assim é importante sinalizar que
Noguera estabelece um profundo diálogo com a
filosofia e conceitos de Mongobe Ramose para
construção de suas análises.
Mongobe Ramose

Filosofia Africana: Percursos e Desafios

Em suas obras e publicações ambos os autores apresentam o tema da Filosofia


Africana como uma questão que supera as divergências comuns no campo acadêmico
sobre a legitimidade e irrefutabilidade de um determinado pensamento. A existência e
legitimidade de uma Filosofia Africana é problema de negação próprio da cultura
Ocidental em que estamos inseridos. O aspecto central que repousa a questão de haver ou
não uma filosofia produzida por povos africanos é muito mais profunda. Cabe-nos
perguntar: por quais motivos a filosofia Ocidental, um campo de conhecimento extenso e
complexo, que sofreu influência de inúmeras culturas, não destaca entre suas grandes
publicações a importância e a contribuição de pensadores e filósofos africanos?

Se a filosofia é parte da compreensão e da razão humana, por que os seres humanos


africanos não são utilizados como referências no campo filosófico? Essas e outras
inquietações unem os filósofos Noguera e Ramose na sustentação de uma premissa muito
importante em nossos estudos, a saber: o esvaziamento da importância da filosofia
africana compõe um dispositivo racista e complexo que chamamos de epistemicídio.

Ambos estão de acordo que é a partir do epistemicídio que se concretiza a


invisibilidade dos conhecimentos filosóficos e culturais africanos, sabemos que todo
pensamento filosófico é cultural, mas destacamos o filosófico por motivos que em breve
você leitor irá entender. O racismo consolida suas barreiras de exclusão e discriminação
em todas as esferas e não é diferente no campo do saber. Os autores convergem quando
apontam que no período colonial, a arma mais letal usada pelo colonizador foi o processo
de neutralização dos pensamentos filosóficos e destituição da humanidade dos povos
africanos. Para Ramose e Noguera, é durante a colonização que os seres africanos passam
a existir fora do estatuto de sujeitos, sem filosofia e humanidade. Junto desta destituição
vem o apagamento histórico, epistêmico e cultural, caracterizado pela invisibilidade e
morte epistêmica dos povos africanos – a isso chamamos de epistemicídio. Dessa forma,
os autores iniciam suas investigações apontando o epistemicídio como mola propulsora
do eurocentrismo.

Ao que Mogobe Ramose afirma:

Os conquistadores da África durante injustas guerras de


colonização se arrogaram a autoridade de definir a filosofia. Eles
fizeram isso cometendo epistemicídio, ou seja, o assassinato das
maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados. O
epistemicídio não nivelou nem eliminou totalmente as maneiras de
conhecer e agir dos povos africanos conquistados, mas introduziu,
entretanto, – e numa dimensão muito sustentada através de meios
ilícitos e “justos” –, a tensão subsequente na relação entre as filosofias
africana e ocidental na África. Um dos pontos fundamentais da
argumentação nesse ensaio é investigar a fonte de autoridade que
supostamente pertence ao Ocidente para definir e descrever, em última
instância, o significado de experiência, conhecimento e verdade em
nome dos povos africanos (RAMOSE, 2011, p. 9).

Ramose, corretamente, coloca no centro desse debate as relações injustas e


desiguais que se construíram no período colonial, relações com acentuado desequilíbrio
entre Europa e África. O continente europeu, nos seus quase 500 anos de hegemonia
escravocrata sobre os povos africanos,
redesenhou o olhar sobre todo o continente da
África. A Europa especializou-se na produção
de valores e estruturas; imaginárias, sociais e
culturais, que estabeleceram uma relação de
domínio que buscava a inferiorização do
continente africano e seus povos, bem como, a
partir disso promoveu periódicas manutenções de sua supremacia, redefinindo os agentes
da história, centrando, na Europa, todo e qualquer protagonismo existente, tornando-os
referenciais únicos e universais.
Na visão ramoseana o epistemicídio introduziu uma relação de poder desigual, na
qual, o Ocidente estabeleceu domínio sobre a definição do que é e não é conhecimento.
Essa relação desencadeou um processo de apagamento do protagonismo dos povos
africanos no cenário mundial. O epistemicídio, portanto, aparece como um fundamento
“lógico-argumentativo” escravocrata que subsidia uma visão que torna a identidade dos
povos africanos unicamente objetal e abjeta. Desta forma, a única porta de entrada dos
povos africanos na história é a que os elimina de qualquer atividade cultural e intelectual
proeminente, lhe resta apenas na história a identidade de um povo escravo e primitivo.

Obstante, a visão eurocentrista da história, possibilitou durante séculos a


perpetuação da inferioridade dos seres negros frente aos sujeitos brancos. Esse
pensamento de superioridade eurocêntrica fundou as bases da sociedade que vivemos
desde a época colonial, portanto, todo esse sistema exploratório dos corpos negros e o
apagamento de suas histórias e saberes foi legitimando por ideologias que afirmavam uma
superioridade de raças. O racismo foi e é a chave para deixar os povos africanos fora dos
sistemas de valores humanitários. O processo de opressão e animalização racial suprimiu,
de todas as formas, os direitos e valores dos escravizados como sujeito histórico.

Nessa perspectiva, o racismo é o pilar de sustentação do processo colonial, a fim de


asseverar o lugar de inferioridade dos povos africanos. A partir dessa constatação,
chegamos até duas conclusões: a primeira
é que o racismo e todo seu apagamento
histórico materializam-se no
epistemicídio; segundo, o epistemicídio e
sua recusa por uma filosofia africana são
produzidos entorno do desejo de
dominação e inferiorização dos povos
africanos. Assim, a invalidação dos
percursos civilizatórios dos seres
africanos, a recusa por sua cultura, religião e conhecimento, configuram-se em um grande
empreendimento geopolítico e econômico. Desta forma, quando falamos e comprovamos
a existência de uma Filosofia Africana estamos em um processo de reinvindicação de
autonomia epistêmica, política e econômica dos seres afrodiaspóricos e dos seres
africanos hoje! Além disso, propomos a apresentação de novos horizontes geopolíticos,
econômicos, subjetivos e sociais para o nosso povo.
Ramose (2011), ao refletir sobre os resultados obtidos pela colonização, observa
que o sucesso do silenciamento frente aos povos africanos só foi possível porque se
apoiava em pelo menos dois pilares:

A colonização estava apoiada em, pelo menos, dois pilares. Um deles


era o pilar da religião, a inspiração e a crença que a fé no Deus de Jesus
Cristo demandava que cada ser humano no planeta Terra deveria ser
cristianizado, mesmo contra a sua vontade. (Williams, 1990, 51) 2. O
outro era a ideia filosófica que somente os seres humanos do Ocidente
eram, por natureza, dotados de razão, sendo assim a única e autêntica
personificação da famosa afirmação aristotélica “o homem é um animal
racional” (RAMOSE, 2011, p. 23)
O propósito do epistemicídio, essa estratégia geopolítica fundamental da
colonização, é frear qualquer tentativa de rompimento com as estruturas desiguais e
exploratórias, as quais o povo negro sofre e as
sociedades ocidentais reforçam ainda hoje. A
negação do saber aos sujeitos africanos busca
impedir que eles escrevam ou reescrevam suas
próprias histórias, inibindo suas capacidades
criativas e resilientes. O recrudescimento da
invisibilidade dos conhecimentos africanos
ainda hoje é uma forma de silenciamento
epistêmico, que reforça uma metodologia antiga do epistemicídio que é o esvaziamento
das produções epistêmicas do continente africano.

O continente europeu tomou para si o direito de definir os lugares existenciais que


os povos africanos deveriam e podiam ocupar, criando narrativas e mitos da colonização
que tinham como base a cruz e a filosofia, alicerçando discursos de autoridade sobre a
colônia, o colonizado e os escravos. Esse discurso de autoridade, segundo Ramose (2011)
definiu, entre outras coisas, a propriedade do discurso epistêmico: assim, se estamos
diante de um povo sem capacidade cognitiva, aptidão cultural e totalmente primitivo,
estamos diante de um povo incapaz de produzir epistemologias, incapazes de alcançar
qualquer pretenso pensamento filosófico, estamos diante de um povo sem humanidade.

A desumanização dos seres africanos está apoiada em sua aparente incapacidade


racional. A zoormorfização é destina a esse ser que possui incapacidade de produzir
pensamento lógico, cognitivamente organizado e que alcance qualquer filosofia, logo,
não é possível pensar a filosofia no eixo africano, mas europeu sim, visto que, a Europa
é a referência principal da racionalidade humana. Esse seria, para Ramose, o resultado
último do próprio epistemicídio, a desumanização dos seres que estão fora do eixo
patriarcal europeu, principalmente os seres africanos.

Ao que Ramose diz:

[...] [pensava-se] que somente os seres humanos do Ocidente eram, por


natureza, dotados de razão, sendo assim a única e autêntica
personificação da famosa afirmação aristotélica “o homem é um animal
racional”. É claro que essa posição filosófica sobre o Homem
contrariava a decisão de cristianizar, já que o cristianismo era
direcionado apenas a seres humanos. No nível conceitual, a contradição
foi resolvida pelo Sublimis Deus, do Papa Paulo III (HANKE, 1937, p.
71-72) 3, que declarava expressamente que “todos os homens são
animais racionais”. A declaração [porém] não eliminou a falácia
psicológica solidificada na convicção de que “o homem é um animal
racional” não se referia aos africanos, aos ameríndios, aos
australasianos e, muito menos, às mulheres (RAMOSE, 2011, p. 23).

O filósofo Renato Noguera nos apresenta com lucidez essa questão e endossa o
ponto de vista apresentado por Ramose, o autor destaca que a colonização teve o papel de
bestializar os povos africanos, a esse processo ele denomina de zoomorfização, ou seja, é
a retirada sistemática da humanidade de determinados sujeitos, concedendo em troca um
lugar de animalização.

Ao que diz Noguera:

Vale a pena registrar que uma espécie de racismo antinegro é a


desumanização radical que se transborda em zoomorfização
sistemática. Os povos negros foram interpretados pelos europeus como
criaturas sem alma, animalizados, tomados como coisas. O
eurocentrismo colonial dividiu os seres humanos em raças e
desqualificou todos os povos não europeus; mas isso incluiu algumas
gradações. E, sem dúvida, os povos africanos foram designados pelo
eurocentrismo como menos desenvolvidos. A zoomorfização
sistemática desses povos foi um elemento decisivo para embasar a
escravidão negra (NOGUERA, 2014, p. 25).

Ramose e Noguera, ao fazerem uma análise sobre a centralidade europeia no


protagonismo da história, denunciam as pretensões do Ocidente. O projeto geopolítico e
econômico do Ocidente é outorgar-se como centro referencial político, econômico e
acima de tudo como modelo de excelência humana. Porém, o custo desse
empreendimento se alicerça, essencialmente, na inferiorização e desumanização daqueles
que se encontram fora dos cânones ocidentais. A sustentação desse discurso se faz
possível a partir do racismo presente no período colonial.
Podemos concluir, nesse primeiro momento, que o problema de negação da
existência da Filosofia Africana, comum nos discursos eurocêntricos, apontam para essa
relação desigual que foi estabelecida entre a África e a Europa, onde a definição e
produção de filosofia pertence unicamente aos povos europeus, isto é, os únicos saberes
genuinamente filosóficos estão centralizados no continente europeu, isso significa que
outros saberes não oriundos desses locais não são filosóficos.

A filosofia ocidental, portanto, se constrói a partir do antagonismo com outros


estilos, abordagens e perspectivas de pensamento, absorvendo para si toda legitimidade
epistemológica e negando qualquer status de saber filosófico aos conhecimentos que não
foram produzidos no Ocidente. A produção de conhecimento ocidental, colocada como
hegemônica, precisa ser deslocada do seu lugar de pensamento único e legítimo, precisa
ser deslocada de sua prerrogativa geopolítica dominante, pois a compreensão do mundo
não pode estar calcada em uma única perspectiva.

O pensamento filosófico único, eurocêntrico e etnocêntrico do mundo e do sujeito,


direcionam modos de ser e existir, institui conceitos, delimita espaços, legitima verdades
e silencia manifestações, revoluções e expressões criativas de outras culturas. Em nome
de uma pretensa ciência que objetiva criar verdades universais o pensamento filosófico
ocidental torna-se epistemícida. Nesse sentido, a filosofia Ocidental foi colaboradora no
processo de inferiorização e apagamento histórico dos povos africanos na medida em que
negava e excluía o pensamento africano do órganon das filosofias e do pensamento. A
filosofia pode ser pensada como a capacidade e a potencialidade que o ser possui para
construir argumentações sobre a imanência e a transcendência; assim, por que resguardá-
la apenas aos povos ocidentais?
As Estruturas do projeto hegemônico europeu e seus
impactos na humanidade dos sujeitos
O Discurso filosófico e seus impactos

Foi possível até aqui aprender sobre a importância política, social e econômica de
se buscar o reconhecimento e contribuir no desenvolvimento da Filosofia Africana.
Vimos o conceito de epistemicídio e como ele funcionou como dispositivo político na
promoção do apagamento da história cultural, filosófica e estética dos povos africanos.
Compreendeu-se ainda que a negação da Filosofia Africana tem função geopolítica,
asseverando e subsidiando diversas formas de racismo em múltiplas dimensões.

Seguiremos nossa discussão sobre o assunto, mas, desta vez, o foco será sobre as
estruturas sociais, epistêmicas e subjetivas provocadas pelo projeto hegemônico europeu
e os impactos sobre o ser negro, como este sofre um processo de inferiorização e
segregação por sua condição étnico-racial.

No tópico passado vimos que a colonização, a partir do epistemicídio, injetou no


imaginário social e subjetivo da cultura ocidental uma série de crenças, mitos e
representações sobre os sujeitos africanos que buscavam minar suas potencialidades
produtivas e criativas, contribuindo para um processo de miserabilidade física e mental
desses indivíduos. Esse processo de necrose das potencialidades subjetivas e sociais,
buscavam tornar esses sujeitos, seres incapazes de construir e contribuir com um pretenso
pensamento crítico-filosófico. O mito racial teve assim como função animalizar os seres
africanos.

O ato de coisificar os seres africanos foi papel fundamental da escravidão. A


escravidão num só tempo foi determinante no apagamento e invisibilidade do legado
africano, bem como, na produção da figura do escravo. Escravizar, além de ser uma
necessidade lógica e prática para satisfazer as necessidades psicológicas perversas e
materiais do colonizador, foi também uma forma de retirar dos povos africanos seu lugar,
suas referências, suas identidades e suas humanidades.

Classes do saber e Categorias do Ser

Uma das consequências preponderantes na manutenção da hegemonia europeia é a


produção de classes do saber. Em nossa cultura distinguimos a validade e a legitimidade
de um saber a partir de categorias, alguns saberes são crenças, outros ciências, outros
mitologias, outros são esoterismo etc. Os discursos sobre essas categorias de saber sempre
privilegiam os saberes oriundos do discurso filosófico ocidental. Assim, segundo
Noguera, isso produz um desequilíbrio epistêmico, uma desigualdade sobre o peso que
cada saber carrega. O saber filosófico ocidental, munido de sofisticação, ascende a ponta
das categorias do saber, como um saber com maior valor político-acadêmico, em
contrapartida, o saber menos valorado acadêmica e politicamente decai para categorias
inferiores como crenças ou esoterismos.

Ao que aponta Renato Noguera:

O conhecimento é um elemento chave na disputa e na


manutenção da hegemonia. Sem dúvida, o estabelecimento do discurso
filosófico ocidental como régua privilegiada do pensamento institui
uma desigualdade epistemológica. Uma injustiça cognitiva que cria
escalas, classes para o pensamento filosófico, estabelecendo o que é
mais sofisticado e o que é rústico e com menos valor acadêmico. Essa
injustiça cognitiva é capaz de definir status, formar opinião e excluir
uma qualidade indefinida de trabalhos intelectuais (NOGUERA, 2014,
p. 23).

Essa questão hierárquica dos saberes, porém, não se fixa apenas no campo
epistêmico, antes influi nas camadas sociais, políticas e econômicas. O próprio saber
filosófico ocidental se institui de forma lógica e dedutiva. É o que aponta o filósofo
camaronês Marcien Towa:

“São os filósofos europeus que formularam o silogismo do


racismo, o fundamento ideológico do imperialismo europeu. O
silogismo pode se enunciar assim:
O homem é um ser essencialmente pensante, racional.
Ora, o negro é incapaz de pensamento e raciocínio.
Ele não tem filosofia, ele tem uma mentalidade pré-lógica etc.
Portanto, o negro não é verdadeiramente um homem e pode ser,
legitimamente, domesticado, tratado como um animal.”. (TOWA,
2014, p. 27).

Questionar à existência e a legitimidade da Filosofia Africana é trabalhar sobre a


lógica deste silogismo. Assim, no segundo plano do questionamento sobre a legitimidade
dos saberes africanos, como sua filosofia, decorre outra questão mais profunda que é a
capacidade do filosofar do negro e, em última instância, a própria humanidade desse
sujeito, visto que sua capacidade cognitiva ocupa as camadas mais baixas, seus
pensamentos são sempre tomados como mitos e esoterismos. A inferiorização do negro,
mesmo que forçosamente fosse tentada, nunca teve respaldo biológico, mas sempre se
tratou de um atávico problema cultural com profundas raízes no racismo.

O que estamos analisando, não se trata de


uma acusação ou denuncismo, menos ainda é
uma análise infundada, mas é um processo de
investigação histórico e filosófico que percebe
que a negação do saber filosófico aos povos
africanos tem uma função política e social
estrategicamente pensada. Nesse sentido, negar
uma filosofia, e como consequência a
humanidade dos povos africanos, foi uma reprodução e elaboração legitimada pelos
filósofos modernos.

Como aponta Noguera:

O que entre os gregos era uma diferenciação entre os nascidos


em território heleno com direito à cidadania e os estrangeiros (bárbaros)
assumiu novos contornos. Com efeito, nossos argumentos convergem
para a tese defendida por Moore. Nós entendemos que o agravamento
desse embate se deu com o advento das guerras de colonização para
civilizar os ‘incivilizados’ na modernidade. (NOGUERA, 2014, p. 24)
A modernidade, marcada pelo agravamento do racismo antinegro, conduziu alguns
discursos e argumentos que visavam negar a capacidade filosófica dos seres africanos a
partir da desqualificação e desumanização desses indivíduos. O que se nega aos seres
africanos não é apenas a capacidade de pensamento, mas o estatuto de humanidade,
vejamos o que alguns filósofos modernos europeus disseram sobre os povos negros-
africanos.

Ao que é colocado por Hegel:

a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não


atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa como Deus, como leis,
pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele
teria uma ideia geral de sua essência [...] O negro representa, como já
dito o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de
toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos de
sentimento, para realmente compreendê-los. Neles, nada evoca a ideia
do caráter humano [...] a carência de valor dos homens chega a ser
inacreditável. (Hegel apud Andrade, 1999, p. 86-87)
Kant por sua vez afirma:
Os negros de África não possuem, por natureza, nenhum sentimento
que se eleve acima do ridículo. O Sr. Hume desafia qualquer um a citar
um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos, e afirma:
dentre os milhões de pretos e que foram deportados de seus países, não
obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou
um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência,
ou me qualquer outra aptidão; já entre brancos, constantemente
arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo
certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença
entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação
às capacidades mentais quanto à diferença de cores. [...] Os negros são
muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que
se deve dispersá-los a pauladas. (Kant apud Andrade, 2017, p. 302).
Legitimando formas perversas de tratamento e a própria violência, a filosofia
moderna cerrou as portas não apenas para o reconhecimento da filosofia africana, mas
para a humanização dos povos africanos. Vale ressaltar que essa postura filosófica tem
como engodo o desejo expansionista e imperialista da Europa, ou seja, os interesses
políticos dos europeus são fundamentais nesse processo, ratificando nossa leitura de que
o não reconhecimento de uma Filosofia Africana é uma questão geopolítica.
Perspectivas filosóficas diferentes: Universal e
Pluriversal
No tópico passado pensamos os processos de categorização epistêmica provocado
pelo projeto hegemônico de saber europeu, bem como suas consequências ontológicas e
subjetivas. Pensamos como a discussão sobre a existência e a legitimidade da Filosofia
Africana é pertinente, principalmente, para a reinvindicação do estatuto de sujeito dos
seres africanos e para a demarcação política de um lugar de representatividade. Ou seja,
a Filosofia Africana, tem força de atuação nas áreas subjetivas (individuais) e políticas
(coletivas) dos sujeitos africanos, afrodiaspóricos e seus descendentes.

Agora estudaremos uma nova perspectiva de mundo a partir da Filosofia Africana,


pois se até aqui apresentamos a importância e a legitimidade desta filosofia, doravante
iremos partir para o entendimento de um dos seus princípios mais importantes, a saber, o
conceito de Pluriversalidade. Antes, porém, é preciso sair do prisma ocidental, fazendo
uma travessia do saber Universal do Ocidente para o saber Pluriversal da África.

A busca por um conhecimento Universal que se aplique a todas as questões e


situações é um desejo antigo do Ocidente. Este é guiado na busca por essa panaceia que
muitos filósofos ocidentais debruçaram seus trabalhos. Essa filosofia alquimista que
engessa o saber à uma única perspectiva e o generaliza para todos os povos como
imperativos categóricos. Essas perspectivas têm por hábito viciosos se instituir como
centro do saber legítimo do pensamento filosófico. Desta forma, a universalidade do saber
nunca se deu pela sua capacidade de resolução, seu poder de abrangência e aplicabilidade
às questões da vida, mas, fundamentalmente, por ser oriunda de uma determinada
localização geográfica. A geografia é, portanto, um elemento-chave para a manutenção
desse pensamento hegemônico europeu.

Nesse sentido, estamos de acordo com Noguera (2014), que aponta que em termos
geopolíticos existe uma “relação” íntima e inerente do saber com: o povo, a sua língua e
a sua terra. O conceito de Universal é um aforismo filosófico que se induz e se impõe do
centro de uma determinada cultura, de um local específico de construção do pensamento,
e se expande como imperativo para outras culturas e sujeitos mesmo para aqueles que não
estão enquadrados naquela realidade específica.
Parte da explicação que legitima o ideal Universal repousa-se no racismo
epistêmico, pois infere uma relação natural da cultura europeia com o saber legítimo,
como se o saber europeu fosse algo inato à civilização humana e algo ensinável às outras
culturas e civilizações, assim todo saber produzido na Europa tende ao Universal.

O projeto do eurocentrismo, por exemplo, contou com alguns pilares fundamentais,


como salienta o professor Noguera (2014), ele assinala o intento de Heidegger em
caracterizar a filosofia como um tipo de pensamento que não pode ser achado fora dos
padrões ocidentais (europeu). Heidegger trata as línguas grega e alemã como as únicas
capazes de comportar, de forma mais excelente, o pensamento filosófico. O filósofo
parece criar uma implicação axiológica de que qualquer confissão do pensamento
filosófico fora do eixo linguístico supracitado é inferior ou ilegítima. Desta forma, quanto
mais distante da matriz linguística expressa por ele – a grega e a germânica – mais
inexpressível é o pensamento filosófico.

O filosofo alemão abre espaço para o entendimento de que as línguas de origem


latina, encontrariam dificuldades para alcançar o pensamento filosófico. Mas ainda assim,
esse lhe era possível, porém as línguas orientais, que não sofreram influências dos gregos
e alemães, estariam praticamente impossibilitadas de alcançar o pensamento filosófico.
Os povos africanos encontram-se justamente nesse último recorte, distanciado da
possibilidade de expressão dessa estrutura intelectual que é a filosofia.

Ao que o Noguera coloca:

Em Only a God Can Save Us: Der Spiegel Interview with Martin,
Heidegger (1993), o filósofo alemão, é enfático ao sugerir uma relação
íntima entre a língua grega e a língua alemã, defendendo que ambas são
as mais adequadas para a expressão do pensamento filosófico. O que,
em certa medida, remete a noção de “povo eleito”. Neste caso, apesar
da filosofia ser universal; ela precisa ser construída dentro de códigos
da língua e da terra de um povo, ou melhor, dentro do território
epistêmico de alguns grupos etnicorraciais específicos, em todos os
casos, brancos europeus ou eurodescendentes (NOGUERA, 2010, p.
05).

Encarar a filosofia como aspecto da racionalidade, fixada em um certo tipo de


linguagem é o movimento que Heidegger assumiu. A filosofia ocidental por si já assume
que tende à universalização, mas ao ter essa tendência endossada, radicalizada e ainda
mais exclusiva, o conhecimento europeu foi colocado como conteúdo pedagógico que
deve ser aplicado e aprendido em todo o resto do mundo. Ignorando completamente a
possibilidade de outras racionalidades, historicamente pouco documentadas, mas de fato
existentes e atuantes – como é o caso da filosofia Ubuntu, por exemplo.

É importante estar atento para a virada que faremos agora, pois a partir desses ideais
a filosofia ocidental produzida na Grécia e na Alemanha tornam-se centros universais do
conhecimento filosófico. Há em nossa cultura a tendência de achar que o universal é algo
positivo e aceitável, como, por exemplo, nas políticas de saúde, falamos de uma
universalização do Sistema Único de Saúde. No SUS essa universalidade significa
abrangência no atendimento, ou seja, todos têm direito de acesso aos atendimentos de
saúde. Temos ainda a expressão, comumente, usada no campo da educação que diz que
precisamos “universalizar” os saberes para que todos tenham acesso. Todavia, no campo
da filosofia isso é diferente, o Universal não é valor de inclusão, mas paradoxalmente é a
marca registrada da exclusão.

A filosofia, por mais que seja uma palavra de origem grega, diz respeito a uma
realidade acessível a todos os homens, povos e etnias. Portanto, a filosofia é plural, pois
significa, como aponta Ramose (2011), amor à sabedoria; ou seja, a filosofia é um nome
que surge para designar a relação afetiva que o Ser estabelece com a sabedoria (múltiplos
tipos de saber). A sabedoria é múltipla, plural, coletiva etc., desta forma, o filósofo é
aquele que ama a sabedoria, este pode falar qualquer língua, pode nascer em qualquer
lugar, pode estar imerso a qualquer cultura. Os gregos não inventaram o amor pelo saber,
podem ter inventado saberes que amaram, mas apenas isso.

A filosofia idealizada por Heidegger, fecunda na própria Alemanha, é uma filosofia


que decai de um todo plural e busca reivindicar para si o direito de ser única. O Universal,
na filosofia, é uma imposição que apela para o apagamento de vários. Em outras palavras
é “a ênfase na mesmidade (sameness) sob a égide do ‘universal’, [pois] diz respeito à
aparente intenção de estabelecer totalidade e hegemonia” (RAMOSE, 2011, p. 10). O
conhecimento Universal da filosofia segue fiel ao projeto hegemônico europeu.
A universalização da filosofia configura-se
em uma forma de impor a centralidade do
pensamento dessas culturas sobre outras culturas,
impondo paralelamente uma única visão de mundo,
uma única prática ética, religiosa e filosófica. Não
só isso, mais profundamente, uma perspectiva
filosófica busca, senão todas as vezes, produzir
modos de subjetivação.

É possível pensar que a partir de Sócrates que a filosofia vem dando luz a ideais de
sujeito. Um sujeito racional capaz de se tornar virtuoso pela própria razão, um sujeito
capaz de alcançar a certeza do ser a partir da razão etc. A filosofia socrática e tudo o que
se foi produzido a partir dela implica um sujeito idealizado, um sujeito que sustente a
lógica conceitual da filosofia em questão, portanto, impor uma filosofia é impor um modo
ser.

A filosofia não nasce do pensamento estruturado e sistemático das academias; a


filosofia nasce do sujeito e para o sujeito. Assim, cada sujeito, em cada cultura, têm a
possibilidade de experimentar, a sua forma, a filosofia. Portanto, podemos dizer que a
filosofia nascida na Grécia e na Alemanha e em todo lugar são movimentos próprios da
cultura. Toda figura comporta a figura do sábio. Transformar uma filosofia ocidental em
Universal, transformá-la em modelo e paradigma é um equívoco, pois o Universal de uma
filosofia específica acaba por negar e deslegitimar qualquer outra forma de cultura e
sujeito.

A universalização de uma filosofia implica o apagamento de outras, desta forma,


quando uma filosofia se propõe ao Universal ela está, em algum momento, negando a
pluralidade de ideias, de culturas, de sujeitos. Uma filosofia que se designa Universal e
reconhece apenas os seus métodos, códigos linguísticos, sistemas lógicos e paradigmas
epistêmicos como legítimos e verdadeiros acaba por destituir qualquer legitimidade aos
saberes que lhes são diferentes.

Noguera (2013), por exemplo, afirma que aquilo que é apresentado como filosofia
não se limita a nomenclatura grega e, podemos acrescentar, não se limita também aos
métodos, paradigmas, axiomas e princípios gregos. Obenga (1992), citado por Noguera
(2013), expõe que no Egito antigo havia uma palavra que abarcava os termos: filosofia,
sabedoria e ciência, a saber, rekhet. Quando remetida ao termo filosofia, rekhet indicava
a ideia de uma palavra bem feita, trabalhada; palavra bem esculpida.

A ideia de uma filosofia anterior aos gregos é possível pelo fato da mesma ser
inerente ao ser humano. Alguns especialistas de filosofia ocidental, como afirma
Nogueira (2013), objetam dizendo que antes da era clássica não houve textos e, por
extensão, pensadores, que discutissem questões morais e urdisse especulações
ontológicas; algo característico da filosofia grega.

Isso acaba levantando um grande questionamento sobre, não o que é filosofia, mas
qual o seu caráter essencial. Por acaso a filosofia se resume num tratado sobre a moral ou
em um catecismo sistemático de ontologia? Resumir toda a filosofia a esses dois
emblemáticos temas não seria reduzi-la demais? Um pensamento filosófico só se legitima
a partir de uma elucubração a respeito do Ser e uma discussão sobre a moral?

Pode-se acrescentar que as discussões morais e as especulações ontológicas estão


sim presentes na filosofia africana antiga. Rekhet; a fala bem esculpida não é inferior à
dialética; a arte de discursar. Na aurora do tempo, em tempos imemoráveis a filosofia já
se fazia presente à existência humana. A filosofia não é Universal, a filosofia é Plural!

A Filosofia Africana, por sua vez, provoca-nos à uma mudança de paradigma, uma
que traz múltiplos centros, tendo como preocupação saber não o lugar, mas os
instrumentos necessários para o pensamento. Todavia, esse interesse não é para o
estabelecimento de uma exclusão. Saber os instrumentos necessário para o pensamento é
crucial para permitir um conjunto de possibilidades de socialização e práticas
descolonizadoras, que efetive uma fratura nas relações de poder perversas que se
estabeleceram a partir de diversas modalidades de hierarquias baseadas em critérios
étnico-raciais, de gênero e sexual.

O primeiro instrumento para o pensamento na Filosofia Africana é o caminho da


pluralidade. O continente africano é marcado por sua diversidade, assim, temos uma
mudança de paradigma que introduz o conceito de Pluriversalidade, subvertendo ao
conceito de Universalidade. Se o princípio da filosofia ocidental europeia é o paradigma
Universal, o princípio da Filosofia Africana é a sua perspectiva Pluriversal. O Ser é todo,
é plural!
Esta é a peculiaridade do esforço de suprimir e mesmo eliminar a
pluriversalidade do ser. Esta é a base para o questionável e equivocado
conceito de “universalidade”, conforme ilustrado acima. Reivindicar
que só há uma filosofia “universal” sem cultura, sexo, religião, história
ou cor, é afirmar que a particularidade é um ponto de partida válido para
a filosofia. (RAMOSE, 2011, p. 11).
Com essa mudança de horizonte e paradigma o ser retoma sua pluralidade, como
vimos acima a filosofia nasce do sujeito, para o sujeito. O que parece um dos problemas
da filosofia europeia é que ela emana de um sujeito que se entende enquanto ser Universal
e não Plural, o problema aqui é insistir na singularidade como princípio da filosofia, não
na singularidade em si. Cada indivíduo possui sua singularidade, é verdade, mas a questão
reside quando este indivíduo transmite a sua filosofia essa singularidade com a intenção
de torná-la um fundamento Universal. Os filósofos europeus fazem uma filosofia do “Eu
sou”, enquanto o fundamento da Filosofia Africana é o “Nós somos”.

Esta é a inversão fundamental que vemos aqui, o pensamento europeu faz uso do
Universal para se estabelecer, em contrapartida, a Filosofia Africana faz uso do plural
para se fundamentar. O direito de pensar na perspectiva cognitiva ocidental é exclusivo,
engendra-se na exclusão epistêmica do diferente. A pluriversalidade, por sua vez,
caminha pelos diversos territórios epistêmicos, nos quais valida a racionalidade ocidental,
e muitas outras multiplicidades de saberes filosóficos experimentados em tempos e locais
diversos.

A Pluriversalidade, conceito fundamental da Filosofia Africana, não nega o jeito de


fazer filosofia ocidental e muito menos se pretende a processo de refutação dos seus
saberes. Antes, as reconhece como legítimas, mas não únicas. Em outros termos, o
Universal está dentro do Pluriversal e não o contrário, isso significa que a filosofia é um
todo, mesmo que em diversos fragmentos. O pluriversal é o direito de caminhar em solos
que são determinantes em nossas experiências cognitivas, epistêmicas, sensitivas e
confere verdade à experiência para todos.

É legitimo pensar em um ponto de vista particular, mas este, por sua vez, deve
permitir colóquios com outras filosofias. Exercendo uma atividade fundamental em toda
filosofia: o diálogo.

O Pluriversal permite que a Filosofia Africana, por seu todo, comporte filosofias e
saberes africanos como: a ancestralidade, a filosofia kemética, a filosofia ubuntu, o
mulherismo africana, a filosofia ameríndia, o perspectivismo ameríndio, as rodas de
filosofia, a filosofia política africana, o quilombismo, a afrocentricidade, o
afroperspectivismo etc. A Filosofia Africana é pluriverso de saberes e filosofias que se
harmonizam, se articulam e acima de tudo convivem comunitariamente.

Glossário:

Filosofia Africana: O Continente Africano é extenso e multicultural, há muitos saberes


que o compõe, assim, é correto afirmar que a África possui filosofias e não apenas uma
filosofia. No presente curso optamos por utilizar o termo Filosofia Africana como
referência a todos esses saberes juntos, de forma que represente a Filosofia Africana como
um todo composto por diversas partes e perspectivas.

Geopolítica: Como muito bem nos apresenta o professor Renato Noguera, geopolítica é,
em linhas gerais, como na teoria de Ratzel, entendida como a forma de gerenciar o Estado
sobre os territórios que disputam a hegemonia a partir da expansão de vários domínios
como: econômico, cultural, epistêmico entre outros. Desta forma, entendemos geopolítica
como: uma estratégia de resistir e exercer poder a partir da expansão cultural, epistêmica,
econômica, representativa etc.

Epistemicídio: É um conceito que traz a junção de duas palavras: episteme que pode
significar conhecimento ou saber; e a palavra homicídio que é a ação de matar outrem.
Assim, epistemicídio é o ato de fazer morrer as perspectivas intelectuais, filosóficas e
históricas que não estão nos moldes europeus.

Pluriversalidade: É a perspectiva que parte do entendimento de que o mundo possui vários


centros, diversas possibilidades de ser e estar no próprio mundo. É a visão de mundo que
toma a pluralidade como um todo complexo formador do cosmos, é o princípio
fundamental da Filosofia Africana.

Rekhet: É um termo do Egito antigo que significava filosofia, sabedoria e ciência. Sua
tradução pode ser feita como “fala bem esculpida”, “cuidadosamente talhada” ou “palavra
bem feita”.

Zoomorfização: É um conceito introduzido pelo professor Renato Noguera que traz a


junção de dois termos: Zoo do grego Zoon = animal; e morfológico que quer dizer
“forma”. Assim, zoomorfização é o ato de tomar alguém como um animal ou tratá-lo
como tal.
Introdução à Filosofia kemética

O historiador senegalês Cheik Anta Diop defende a ideia de que a antiga civilização
egípcia desempenhou o mesmo papel em relação a África que a civilização greco-romana
desempenhou em relação ao ocidente. Portanto, se quisermos recriar um corpo de ciências
humanas a partir de África, será necessário começar pelo Egito Antigo. Mergulhar no
pensamento africano do Egito Antigo é a possibilidade de uma reconstrução e ampliação
das referências da história da filosofia. Repensar o ser a partir de diversas perspectivas
filosóficas viabiliza um aprofundamento em questões fundamentais para a filosofia.
Encontramos no Egito Antigo um arcabouço memorável de filósofos e formulações de
ideias como o “a barca”, que é a possibilidade do discernimento de si e do mundo
através do silêncio verdadeiro (geru maa) em uma experiência simultânea entre
coração e razão na perspectiva existencial dos povos egípcios para que assim seja
possível fazer a travessia de encontro ao conhecimento e sabedoria.

Nesse sentido, nos aprofundaremos nos escritos do filósofo egípcio Amen-em-ope,


a fim de investigar as elaborações que perpassam a ideia do que é o ser, presente no seu
pensamento filosófico. Como caminho principal desse estudo, buscaremos em Maat
perspectivas acerca da ideia do ser e sua inscrição no mundo a partir da cosmologia dos
povos que se desenvolveram a margem do Rio Nilo, em Kemet (Egito Antigo). Para isso,
tomaremos como ponto de partida duas ideias fundamentais para iniciarmos essa
investigação: o caminho da barca e a medida da balança, os quais discorreremos mais a
respeito no decorrer deste texto.

O projeto filosófico de Amen-em-ope é encontrado em papiros antigos em Medu


Neter, também conhecidos como hieróglifos, na data de 1300 A.C, em Kemet, nome
original da terra dos povos que se desenvolveram à margem do Rio Nilo, posteriormente
chamado de Egito por egiptólogos modernos. Esses papiros encontram-se hoje
disponíveis para pesquisa em museus britânicos, disseminados e traduzidos para diversos
idiomas por esforços colossais de pesquisadores do continente africano e da diáspora
africana como Cheik Anta Diop, Theofile Obenga, Renato Noguera, entre outros.

Renato Noguera nos apresenta um conceito do filósofo sul-africano Mogobe


Ramose importantíssimo para entendermos a relevância posta nesta perspectiva aqui
apresentada: a ideia de pluriversalidade. Pluriversalidade parte da premissa que existe um
pensamento universal que já está instituído como saber hegemônico e história única da
filosofia. O pensamento pluriversal entende a filosofia, como já sugere o nome, plural,
em sua essência, em sua localização geográfica, étnica e em seus “sotaques filosóficos”,
como Noguera nos convida a refletir. “A contradição precisa ser solucionada através do
reconhecimento da particularidade como um critério válido para toda ou para nenhuma
filosofia” (RAMOSE, 2011, p.1 1).

A abordagem ramoseana nos ajuda a trazer à tona mais do que um “alargamento”


do conceito de filosofia. Mas, carrega outra questão: num aspecto de muita relevância –
o epistêmico –, o cânone filosófico “hegemônico” funciona dentro de dispositivos de
operam buscando que a área de conhecimento seja “homogênea”. Ora, isso quer dizer que
a “filosofia profissional” tem rechaçado pesquisas que advindas de territórios epistêmicos
que não sejam ocidentais, recusando o que podemos denominar dos “sotaques da
filosofia” (NOGUERA, 2013, p.6).

5 elementos do Ser

Na cosmopercepção de mundo do povo do Egito Antigo a ideia de pessoa é


constituída por 5 elementos: Ib, Ren, Sheuti, Ka e Ba. Em síntese, podemos entender da
seguinte forma:

Ib (coração)

Ren (nome)

Sheuti (sombra)

Ka (força vital)

Ba (alma)

A concepção do Ser seria a investigação da interação fluida desses cinco elementos


constituídos de princípios morais e éticos no conteúdo de cada um deles e em sua
totalidade. Para conseguirmos imaginar a possibilidade de esse Ser existir, é necessário
um exercício de pensamento deslocado da lógica ocidental dicotômica. O Ser que os
egípcios nos apresentam existe em uma dimensão holística, onde o corpo aparece como
algo indissociável do pensamento e impossível de ser capturado por um só significado,
estaticamente.

A filosofia egípcia nos convida a olhar e perceber em todas as suas formulações a


imagem-sensação de ritmo, vibração e movimento do pensamento, que nunca se esgota
em definições únicas.

Cardiografia do pensamento

O conceito de cardiografia do pensamento é apresentado pelo professor Renato


Noguera, que afirma que a filosofia parte da criação de novos conceitos e averiguações
filosóficas. Trata-se de uma leitura e estudo aprofundado, na qual Noguera empenha-se
em decifrar os ensinamentos de Amenomope. Na visão de Noguera, Cardiografia é
fundamental para compreender a proposta do filósofo Amenompe e o papel do coração
no seu pensamento, o coração é a medida do saber e dele parte o pulsar do conhecimento,
caracterizando uma outra forma de compreensão e acepção do conhecimento. Visto isso,
buscaremos em Maat, os valores que edificam esse Ser.

Maat

Encontramos em Maat a figura de uma deusa negra, no nível médio, com um dos
seus joelhos no chão, os braços abertos e uma pena de avestruz em sua cabeça, como
coroa. Mas essa é apenas uma imagem alegórica que não define a complexidade de Maat,
que de princípio tão complexo e integrativo, não é possível traduzir em uma só palavra,
mas sim em três: verdade, justiça e harmonia. Segundo a cosmopercepção egípcia antiga,
Maat é o princípio de tudo que existe no universo, do micro ao macrocosmo.

“Encontramos em Maat, a herança espiritual e ética do Antigo Egipto, um projecto


profundamente humanista de uma constante procura de harmonia e recuperação de
equilíbrio dentro de uma concepção inclusiva do mundo em que o passado, o presente e
o futuro são inseparáveis, a vida antes do nascimento e depois da morte. Nesta orientação
cosmogônica kemética, que abarca o universo inteiro, existe uma relação íntima entre
todos os seres humanos, vivos, por nascer, ou já desaparecidos, em harmonia com o
cosmos seguindo os ciclos da vida e os ritmos circulares da natureza.”. (Monteiro-
Ferreira, 2014, p.4).
Principais elementos da filosofia de Amenomope

1. Caminho da barca: discernimento de si

"O termo barca circunscreve ideias como experimentar, degustar, testar o gosto e
participar de uma experiência que não seja ordinária. A barca carrega a ideia de que a
travessia é uma experimentação. Ou ainda, a possibilidade fazer um novo caminho, ou
ainda, percorrer o mesmo destino para compreender, aprender e ensinar.” (Renato
Noguera, 2013, p.10)

Encontramos nos escritos de Amenemope a idéia do “Geru Maa’’, que pode ser
traduzido como “o verdadeiro silêncio”. Amenemope nos aponta Geru Maa como um
elemento chave para a possibilidade de travessia no percurso investigativo da vida, na
busca pelo conhecer a si mesmo. Amenomope nos diz que o conhecimento nasce desse
verdadeiro silêncio que caracteriza a pessoa serena, a pessoa que é capaz de se debruçar
no silêncio que habita seu próprio corpo, para assim conseguir discernir sobre si e o
mundo. A pessoa silenciosa é alguém habilitado no ofício de perfazer a palavra, com
auxílio do sentimento que passa pelo seu coração, num diálogo com a consciência,
configurando a plenitude de seu corpo a experimentar a barca para a travessia do
conhecimento.

“Amen-em-ope propõe com a ética da serenidade um tipo de reflexão silenciosa


que nos coloca diante da balança de Maat para medir as coisas, as palavras e agir de uma
maneira que a harmonia interna não seja perdida. O filósofo propõe um percurso
filosófico, o uso da barca no sentido do estar de bem consigo, a barca é tão somente o
signo de atravessar o mundo em busca de si.” (NOGUERA, 2013, p.9)

2. Travessia do conhecimento

Amenemope nos apresenta a ideia da pessoa inflamada e a ideia da pessoa


silenciosa. A pessoa inflamada encontra diversas dificuldades no caminho da barca em
busca do conhecimento, enquanto a pessoa silenciosa faz a travessia em Maat, em
harmonia e equilíbrio, porque o silêncio é a característica própria do discernimento de si.
Portanto, gerar a palavra através do silêncio aparece como o caminho mais sábio a se
fazer em busca da sabedoria. Amenemope sugere o cuidado com a palavra, e
encontramos nos papiros antigos a palavra egípcia recket, que se traduz como: a arte da
palavra bem feita, bem esculpida. Palavra essa que, a partir dos ensinamentos de
Amenemope, deve ser esculpida através do Geru Maa, o profundo silêncio do ser em
equilíbrio com tudo que existe no universo.

“A serenidade é o que permite o discernimento, o conhecimento de uma situação,


das coisas, dos modos como nossa força vital e coração brigam diante de um desejo.
Amen-em-ope propõe com a ética da serenidade um tipo de reflexão silenciosa que nos
coloca diante da balança de Maat para medir as coisas, as palavras e agir de uma maneira
que a harmonia interna não seja perdida. O filósofo propõe um percurso filosófico, o uso
da barca no sentido do estar de bem consigo, a barca é tão somente o signo de atravessar
o mundo em busca de si.” (NOGUERA, 2013, p.15)

3. Medida da balança: Princípio de Maat

Para adentramos no universo filosófico de Maat é preciso um exercício de


deslocamento do pensamento dicotômico ocidental, onde os elementos constituintes do
mundo e do ser operam no pensamento em uma lógica de oposição, o dia e a noite, o sol
e a lua, o claro e o escuro, o feminino e o masculino etc. Maat é a ordem do universo e
seu ordenamento se dá pelo princípio de complementariedade e simultaneidade em tudo
que existe no universo. As coisas que existem no mundo se complementam e daí nasce
a harmonia, o equilíbrio e a balança de Maat.

Em Maat encontramos uma profunda responsabilidade ético-espirtual e social, uma


interconectividade entre o ser humano e Deus, entre o mundo material e o mundo não
material, entre o céu e a terra e todas as polaridades do universo. Mas para que o espírito
se conecte com a força vital é preciso um corpo, um lugar receptivo e emissor de saber
ético, moral e espiritual dos povos egípcios. Por isso, a filosofia egípcia antiga,
herdeira de um discurso ético rico, holístico, com fortes valores espirituais de
responsabilidade individual e coletiva, de respeito e veneração pela sabedoria e dignidade
dos antepassados, de sustentabilidade das comunidades e do ambiente, estabelece no
corpo o local de diálogo fundamental e intransferível entre razão e emoção, como
gerador da construção do pensamento.

Por fim, nesse passeio filosófico por Kemet (Antigo Egito) nos apoiaremos na ideia
de uma pluriversalidade filosófica e reconstruiremos assim um diálogo com a filosofia
africana antiga, a fim de demarcar seus sotaques filosóficos e vislumbrar a possibilidade
de caminhos na reconstrução da história da filosofia. Assim, o que se propõe aqui é a
reflexão sobre essas outras formas de filosofar desde a antiguidade, onde encontramos
outras formas de sensibilidade filosófica, compreendendo o sentido holístico dessas
experiências em produzir conhecimento filosófico. Essa travessia em direção ao
conhecimento através de uma cosmopercepção kemética busca a compreensão do ser em
uma perspectiva de mundo onde o sentido de equilíbrio, harmonia, liberdade,
ancestralidade e coletividade se inscrevem na existência como elementos constitutivos do
ser.

Glossário:

Maat: Deusa da justiça, verdade e harmonia na mitologia egípcia, que será aprofundada
no decorrer dessa pesquisa.

Renato Noguera: Professor da UFRRJ – Integra o corpo dos pesquisadores mais


influentes na comprovação e argumentação de saberes existentes nos povos do Egito
Antigo, atestando a legitimidade da filosofia construída por eles. Atualmente desenvolve
também pesquisa na área de educação e infância.
Referências bibliográficas:

NOGUERA, Renato. Afrocentricidade e Educação: os princípios gerais para um


currículo afrocentrado. Revista África de Africanidades, Cidade Rio de Janeiro, ano 3,
n.11, nov. 2010. Disponível em: <
http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/01112010_02.pdf >.

NOGUEIRA, Renato; O ensino da filosofia e a lei 10.639. Rio de Janeiro: Pallas, 2014

_________________; A ética da serenidade: O caminho da barca e a medida da balança


na filosofia de Amen-em-ope. Ensaios Filosóficos. v 8. Dez. 2013. p. 139-155.

RAMOSE, Mogobe; Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Tradução:


Dirce Eleonora Nigro Solis, Rafael Medina Lopes e Roberta Ribeiro Cassiano. In:
Ensaios Filosóficos, Volume IV, Out. de 2011. Disponível em:
<http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf>.
A ética da serenidade: Um caminho para Maat a partir
de Ubuntu

Ensaio

Introdução

Quem foi Amen-em-ope?


Amen-em-ope, segundo Asante, citado por Noguera em “A ética da serenidade: O
caminho da barca e a medida da balança na filosofia de Ame-em-ope”, tinha um nome
que fora também de outras proeminentes personagens na história egípcia. Entretanto, o
autor da obra os “Ensinamentos”, que se encontram no museu Britânico, conservado em
papiro, era um funcionário do alto escalão, cujo pai chamava-se Ka-nakht, um escriba.

Segundo Emanuel Araújo, em “Escritos para a Eternidade: a literatura do Egito


faraônico”, os ensinamentos de Amen-em-ope são divididos em trinta capítulos. A
opulência de metáforas e a sobeja cautela em criar orações elípticas trazem à obra
características ímpares. Seu léxico de palavras raras e de difícil compreensão dá um
caráter de difícil tradução a sua obra. Outro ponto proeminente em sua obra é a
convergência de dois assuntos basais: o primeiro é a configuração do homem ideal, o
homem silencioso frente o seu opositor, o homem colérico. Segundo é o conselho para
uma vida honesta e a repreensão contra a vida desonesta.

Em Amen-em-ope o que marca um homem, enquanto alguém superior, não parece


ser a razão, mas o silêncio. Sua obra completa – como já destacado – encontra-se em
escrita hierática, conservado em papiro, no Museu Britânico 1474, todavia, há fragmentos
de suas obras localizados em outros museus pelo mundo.

No prólogo de seus ensinos, Amen-em-ope informa que eles são um testemunho


em favor da felicidade. Noguera afirma que o fio condutor que perpassa toda a obra de
Amen-em-ope é a virtude do silêncio ou, como preferimos, a ética da serenidade; esta
ética é a arte de manusear o discernimento de forma em estado calmo e permanente. Neste
momento evocaremos dois objetos importantíssimos na ética da serenidade de Amen-em-
ope: a barca e a balança. Esses dois objetos carregam aspectos importantes que apontam
questões morais e ontológicas anteriores as arquetípicas dialéticas gregas.
A barca e a experimentação do discernimento

“A barca do avarento é deixada na lama, enquanto a do sereno navega com o vento1. ”


Amen-em-ope

A barca representa a transliteração hieroglífica dpt, observa-se que dp transliterado


significa degustar, experimentar. Com isso o termo barca circunda ideias como: degustar,
testar o gosto e participar de uma experiência de experimentação extraordinária. A barca
propicia a ideia de travessia, ou seja, movimento. Estar em uma barca num rio é estar em
constante movimento, é seguir o fluxo da correnteza, é uma travessia feita pela barca a
partir de um processo de experimentação. A barca é então uma experiência de
experimentação de um discernimento que se move, mas que também nos move à medida
que o experimentamos.

Abre-se a partir desse entendimento um leque de reflexões sobre a barca, entre eles,
uma questão ontológica. Nos ensinamentos de Amen-em-ope a barca pode ser vista como
a chave para o bom discernimento do homem sobre si mesmo e sobre outrem. Ao que
parece, os ensinos de Amen-em-ope são fundamentalmente refinados a partir da ideia de
que a barca está num movimento de travessia, sendo esta última uma forma de construção
do sujeito, ou seja, o sujeito é entendido como alguém que está em constante processo de
experimentação das inúmeras mudanças e transformações da vida. Essa travessia feita
pela barca é francamente uma travessia existencial.

Nessa travessia existencial o rio da existência se mostra inconstante, as ondas


parecem ser desarmônicas, o vento nem sempre é numa só direção. Assim como o rio se
agita e a barca resiste o homem sereno resguarda-se frente ao colérico. A barca é rekhet,
e a fala bem esculpida é um antídoto para a dor existencial que inflama o coração. Amen-
em-ope busca escapar das palavras de engano e de pessoas que a proferem, busca ensinar
o controle das palavras que incita o colérico e provoca insultos a outrem. Noguera nos
aponta que neste caso estamos diante de uma questão ética.

O professor Renato Noguera afirma que “a capacidade de discernir é um tipo de


travessia existencial dentro de uma barca que não se deixa levar pelas intempéries
externas.”. Nos ensinamentos de Amen-em-ope o que está em jogo é outra alçada do Ser.
O que torna o homem superior na filosofia de Amen-em-ope, não é a razão, mas a

1
Escritos para a Eternidade: a literatura do Egito faraônico – Emanuel Araújo
serenidade, a sabedoria de recolher as palavras e a capacidade de conter o gênio colérico,
de reter os insultos no dia ruim e de medir as palavras na balança da vida.

Não seria essa mais uma forma de conceber o Ser? Por qual razão essa constituição
ontológica do sujeito foi esquecida ou entendida como um mito? Os ensinos keméticos
seriam então preteridos por sua falta de questionamento ontológico e ético ou seria uma
recusa por sua forma de vir a se escapar a filosofia ocidental? Por que a dificuldade em
aceitar uma filosofia anterior à nascida na Grécia?

Talvez as respostas não sejam tão simples, mas porque seriam também tão difíceis?
Ao que parece, as grandes dificuldades da filosofia seus especialistas e adeptos sejam
uma, a incapacidade de reconhecer que não há uma igualdade, que não há uma
universalidade; o que há é a mudança, o movimento, a potência do Ser em constante
fluidez, uma pluriversalidade em constante devir.

O Ser se diz de muitas maneiras, essa é uma ideia aristotélica. Pergunta-se: será que
a barca e a balança não são também uma forma de dizer o Ser? Na cultura kemética a
ética não é a Nicômaco, com seus conceitos e ideais teleológicos, mas a ética é da
serenidade, com a barca como uma experiência de passagem e a medida da balança como
caminhos para o homem sereno chegar à felicidade. Agir de forma íntegra, equilibrada e
tranquila frente aos desafios e impasses da vida é uma manifestação prática da filosofia
de Amen-em-ope.

A balança e o julgamento pautado na justiça


“Aspira a que tua existência seja justa2. ”

Amen-em-ope

A palavra “Maa” significa balança e tem sua origem no termo “Maat”. Antes de
falar sobre “Maa” (balança) é necessário falar sobre quem é “Maat”. Maat é uma deusa
que tem sua representação na figura de uma mulher negra que segura, em uma das mãos,
o símbolo de “Ankh” (vida) e na outra segura um cetro. Sua coroa é adornada com uma
pena de avestruz e o termo Maat circunda: retidão, verdade, justiça e harmonia.

2
Escritos para a Eternidade: a literatura do Egito faraônico – Emanuel Araújo
A balança na cultura kemética está associada à ideia de equidade. Maat concede
medida à balança, pautando seu juízo pela verdade. Na cultura egípcia nós somos julgados
enquanto sujeitos a partir da nossa integridade coronária, a justiça é a medida do Ser.
Nessa construção o que acontece é que cada pessoa tem seu coração pesado na balança
de Maat, como contrapeso Maat põe a pena de avestruz de sua coroa. Caso o coração da
pessoa seja mais pesado que a pena é um sinal de que sua vida não foi aprovada e suas
ações estiveram fora da medida correta.

Pensar dessa forma não é anedótico e muito menos místico, principalmente quando
se pensa a balança enquanto um julgamento pautado pela justiça, embasado pela verdade.
O que Amen-em-ope aponta para todos nós é que o Ser é efetivo quando está
integralmente pautado em justiça, verdade e retidão. As leis no tribunal de Maat tem o
intuito de deixar nosso coração mais leve, elas não são essencialmente proibitivas, mas
são fundamentalmente um exercício para alma e um alívio para o coração.

Na cultura kemética Maat é casada com Toth o deus do conhecimento e da escrita,


o que mostra um casamento perfeito que a filosofia tanto anela. Desta forma o que temos
é a instrução para pautarmos nosso conhecimento no princípio da verdade, bem como
promover nossos julgamentos guiados pela verdade de um bom discernimento. A
mitologia egípcia num ato nobre uniu, num só, o anseio mais antiquíssimo dos homens
que é o alinhamento da palavra com a verdade.

Em suma, mais proveitoso é discursar guiado pelo silêncio, esculpindo cada


palavra, trabalhando cuidadosamente nosso dizer. Tendo como medida a balança, ou seja,
a justiça e a verdade. Amen-em-ope nos convida, em seus ensinamentos, a uma ética
serena. Nos ensina a ter uma vida quieta e sossegada que conduz cada um à presença da
balança, para que, a parir da medida da equidade, nossos dizeres e ações contribuam para
uma harmonia do Ser como um Todo.

Considerações Finais

Conclui-se ratificando que, cabe aos filósofos da filosofia africana, abrir novos
caminhos. Caminhos que conduzam a um questionamento ainda mais profundo sobre o
sujeito universal europeu e a imanência do sujeito da pluriversalidade. Produzir Filosofia
Africana é urdir uma sólida crítica contra os paradigmas eurocêntricos, mas também é
reconhecer e analisar outros aspectos ontológicos e subjetivos para os sujeitos negrxs,
conhecendo outros horizontes e incorporando-os.

A Filosofia Africana é construída com o coração e o intelecto é apenas mais um


instrumento dessa construção, não há um Eu que pensa, mas um nós. Só é possível fazer
filosofia a partir do equilíbrio comunitário, assim o princípio da Filosofia Africana é o
nós e não o eu. É o beber da ancestralidade antes de iniciar a caminhada. É saber que para
onde se vai é preciso ter a ancestralidade como referência de partida e chegada. É deixar
se marcar pelas histórias e experiências de nossos mais velhos. Pois, se a construção do
saber nessa área pender somente para o campo das discussões de nada adiantará, nossa
filosofia é prática é exercício espiritual e não somente intelectual, usamos o intelecto para
exercitar o espírito.

Precisamos dessa travessia existencial para alcançar Maat, sair dos nossos grilhões
ocidentais e apontar nossa barca para o Sul e contemple um mundo mais leve que uma
pena de avestruz. Do lado de lá encontramos o caminho para uma filosofia pluriversal
que só é possível na coletivamente, inclusive, essa reconexão com saberes ancestrais só
é possível a partir de uma nova experiência com o Comum, a partir de Ubuntu.

Segundo Nogueira ubuntu é uma palavra que traz como significado ou possibilidade
de tradução ‘aquilo que é pertencente a todos’, segundo o autor, Ubuntu é um modo de
experimentação da vida, uma forma de estar no mundo a partir de um posicionamento
ético, uma experiência de existir comunitária onde o social e o ancestral é que precede o
sujeito. Ubuntu é, pode-se dizer, um modo de organização social e de subjetivação que
antagoniza com os modelos hegemônico ocidentais de propriedade privada e
individuação, pois em ubuntu o outro e a comunidade são a substância do “ser como um
todo”.

Sobre os princípios da filosofia Ubuntu, Nascimento (2016), coloca que ela pode
ser entendida como uma Filosofia do Nós, cuja responsabilização pelo outro, a
solidariedade e o compartilhamento da vida comum são aspectos fundamentais. O autor,
ressalta que essa visão de Comum, compôs a cosmovisão do mundo negro-africano.

É possível, portanto, argumentar que o sujeito da concepção Ubuntu nasce de uma


interação ética, de um ato singular e profundo com outro humano. O sujeito nasce em
ubuntu da ancestralidade, pois a ancestralidade é o nosso primeiro contato com o outro,
sendo assim, o sujeito não emerge de um método racional introspectivo, antes ele se
manifesta nos encontros e desencontros da vida, a partir de experiências corporais,
espirituais, afetivas, racionais, sociais, éticas e ancestrais.

A filosofia ubuntu pode, então, ofertar aos dias atuais, uma possibilidade de
subjetivação e organização social que está além das estruturas egoístas que estamos
inseridas cotidianamente. A organização social e subjetiva em ubuntu está fundamentada
em pilares comunitários como: ‘eu sou porque nós somos’. Desta forma, em vez de uma
sociedade privatista e uma subjetividade individualizante a opção que pode ser promovida
e buscada é a de uma subjetividade ancestral e uma comunidade pluriversal.

Trazendo para a nossa realidade brasileira contemporânea, a experiência da


filosofia ubuntu na busca pelo ordenamento e equilíbrio social e subjetivo deve ser
promovida a partir de uma filosofia afroperspectivista. A filosofia Afroperspectiva é um
conceito do professor Renato Noguera que, segundo o próprio, “em linhas muito gerais,
afroperspectividade significa uma linha ou abordagem filosófica pluralista que reconhece
a existência de várias perspectivas. Sua base é demarcada por repertórios africanos,
afrodiaspórico, indígenas e ameríndios.”.

Essa abordagem filosófica tem como referencial teórico o quilombismo, a


afrocentricidade e o perspectivismo ameríndio. A filosofia afroperspectiva faz uso da roda
como forma de exercício filosófico, é inspirado nas rodas de samba e de candomblé, do
jongo e da capoeira e consiste em pôr na roda diversas perspectivas possíveis de ver o
assunto da discussão. Esses métodos de fazer filosofia mostram que é possível nutrir-se e
inspirar-se em nossa ancestralidade para filosofar, nossa filosofia é Maat, é Ubuntu,
Afroperspectiva.

Caminhando para o fim, é importante dizer que a proposta central desse curso foi
apresentar a necessidade e a legitimidade da filosofia africana, bem como o mundo
pluriversal que ela comporta, apontando para novos horizontes e perspectivas de saber,
ser e viver no mundo.

Por fim, queremos agradecer por vocês aceitarem embarcar nesse barco para juntos
atravessarmos esse grande e extenso rio; em partes ele é revolto e complexo, mas a barca
é forte, nós somos fortes, mesmo sendo um caminho longo e árduo, ele é gratificante, se
fielmente perseverarmos até o fim, encontraremos nosso oásis no deserto, que esse oásis
seja Kemet.

Referências:

ARAUJO, Emanuel; Escrito para a Eternidade a literatura no Egito faraônico.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.

NOGUEIRA, Renato; O ensino da filosofia e a lei 10.639. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

NOGUERA, Renato. Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética
afroperspectiva. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v.
3, n. 6, p. 147-150, 2012.

NOGUERA, Renato. A ética da serenidade: O caminho da barca e a medida da balança na


filosofia de Amen-em-ope. Ensaios Filosóficos. v 8. Dez. 2013. p. 139-155.

RAMOSE, M; Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Tradução: Dirce Eleonora


Nigro Solis, Rafael Medina Lopes e Roberta Ribeiro Cassiano. In: Ensaios Filosóficos, Volume
IV, Out. de 2011. Disponível em:
http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf.

Autores:

Essa apostila foi pensada e elabora por João Paulo Ignacio3, Kátiúscia Ribeiro4 e
Raphael Luiz Barbosa da Silva5

3
João Paulo: João Paulo Ignacio é Bacharel em Psicologia pela Universidade Veiga de Almeida – UVA; é
Psicanalista Lacaniano e graduando em Filosofia pela UFRJ; Membro do Laboratório Ousia da UFRJ e Membro
pesquisador e fundador do Laboratório Geru Maã de Africologia e Estudo Ameríndios – UFRJ.

4
Katiuscia Ribeiro: Filosofa e Mestra em Filosofia Africana. Atualmente é Doutoranda em Filosofia no Programa de
Pós-Graduação de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Coordenadora Geral do Laboratório de
Africologia e Estudos Ameríndios Geru Maã / UFRJ na área de Filosofia Africana/ Indígena.

5
Raphael Arah é mestrando em Filosofia pela UFRJ, pesquisador do Laboratório Geru Maa de Africologia e Estudos
Ameríndios - UFRJ, atua como coordenador e professor convidado do Ajeum Filosófico no Módulo I: Filosofia e
Cultura Africana: Princípios e Horizontes Pluriversais
Mulheres Negras e a força Matricomunitária

Mestra Sônia Ribeiro & Mestra Katiuscia Ribeiro6

O poder do feminino nas tradições africanas é milenar e essas relações de


pertencimento estão envoltos em valores ancestrais e sociais, pois, os poderes de
gestações não estão somente para o gestar a vida, estão também na força dinâmica e
propulsora que move as relações de toda um processo de comuna que organiza e propõe
perspectivas de inter-relações grupais. Essas dinâmicas instrumentam a existência
comunitária e coloca as mulheres como força para gerir e gestar a vida, as organizações
ancestrais, sociais, econômicas e políticas de um povo, assumindo o papel de
matrigeradora e matrigestora de uma comunidade. Quando falamos em poder estamos
falando de relações sociais de africanidade estabelecidas a partir de um coletivo sócio
ancestral que baseia seu modo de vivências e experiências alicerçados nas tradições de
um povo. Tradições essas, que buscam reforço e equilíbrio nos elementos da natureza
como princípio básico de reorganização existencial. Sendo assim, é preciso compreender
que nessas relações existem uma antropoteologia na qual os seres humanos são
considerados ontologicamente constitutivos do sagrado (Jairo Pereira,.2001, p1.).

Nesse contexto, o poder do feminino, constituído na natureza e no corpo das


mulheres, interliga com a parte masculina, e nesse diálogo produzem a manutenção da
vida e serão revestidas por um valor sagrado. Esse valor faz parte da roda cíclica da
existência que busca o equilíbrio dinâmico para pensar o fortalecimento do povo preto
na sua matriz germinativa de enfrentamento ao epistemicídio e aos massacres
colonialistas (Suely Carneiro). Ou seja, a força biomítica (biológica e divina) restabelece
dentro da comunidade o segredo, o sagrado, o social, a economia e a política, que
garantirá a resistência e a sobrevivência do povo preto na dispersão. O sequestro do
atlântico trouxe nos barcos do deslocamento, filosofias e ciências capazes de reestruturar
e realocar os descendentes de África dispersos pela escravização. Essas práticas
embasadas nas teorias afrocêntricas recriou nos territórios negros representações
materiais e simbólicas que permitiu o resguardo de capitais científicos, culturais,
ambientais e filosóficos que resistem às violações e as violências impetradas ao povo

66
Artigo publicado revista Cult : https://revistacult.uol.com.br/home/mulheres-negras-e-a-
forca-matricomunitaria/
negro. Modelos de sociedades matriarcais e comuna embarcaram nas memórias da
juventude negra escravizadas, e as bagagens existências depositadas nos seus corpos
suportaram todo o massacre e a dor e restabeleceram as forças e assim garantiram o
compromisso de reorganizar o trilho civilizacional do povo negro disperso, fora de
África.

Sendo assim preciso retornar às experiências comunitárias, coletivas,


empreendedoras, associativas, cooperativas e comunitaristas, que esses grupos já
vivenciavam, heranças de seus antepassados e repassados por gerações, no momento de
dor a saída era olhar para trás (Sankofa). Firmaram então um pacto de compromisso com
o outra/o africana/o escravizado, mesmo sendo de etnias diferentes, mulheres e homens
acolhendo-se através de energias ancestrais, olhares, falas, cicatrizes, curas ancestrais,
toques, cheiros, afetos, choros, risos e principalmente escutas e observações,
reinventaram suas diferenças e resguardaram todas as estratégias de reorganização.

Os silêncios deram vozes aos olhares e aos símbolos e signos de comunicação e


assim foram apresentando-se e reinventando-se e deram possibilidades de auto-
organização. Cada mulher e cada homem foram trazendo suas formas de conhecer e
organizar e assim foram tecendo suas histórias e recriando mapas que deram
direcionamento a uma ação conjunta e perceberam que havia algo comum entre elas e
eles, nisto temos a sobrevivência do povo negro fora de África ou seja retrazer suas
dinâmicas civilizatórias para reorientar suas vidas e sobreviver.
Os processos de observação, escutas e espera foram constantes para auto
organizar e planejar espaços de potencialidade de vida, e as mulheres foram importantes
para desenhar formas de convivências e outras possibilidades de viver em sociedade.
Articularam formas de compreender as dinâmicas do escravismo, aproveitando seu
trânsito dentro das casas grandes e senzalas, igrejas e outros e transmitir para fora das
estruturas pensantes escravocratas. Cabe salientar que mulheres e homens foram os
grandes mentores de lutas contra o processo do escravismo, planos de sobrevivências,
rotas de fugas e possibilidades de reconstruir espaços longe das casas grandes e senzalas.
Espaços de comuna para dar suporte a permanência e a resistência, a exemplo das
primeiras sociedades organizadas na dispersão, os terreiros e os quilombos, esses espaços
foram reconstruídos por grupos de diferentes etnias. Dois modelos recriados como lugar
de totalidades que reelaborou uma força subjetiva africana de organização e a
possibilidade de humanização. As experiências das sociedades comunitaristas e
sociedades matriarcais, trouxeram nas suas bagagens existências e foram lastros
organizacional de lugares de preto, depois comunidades de pretos, redutos de pretos,
mocambos, favelas.

No Brasil, as lideranças femininas negras estão presentes até hoje à frente de


grandes comunidades tradicionais (quilombos e terreiros) e organizações comunitárias
como: entidades sociais de mulheres negras, escolas de sambas, empresas solidárias,
associações, cooperativas e afroempreendedorismo. Os vínculos solidários e a matriz
mulher/mãe/matriarcado e matrilineariedade, são referências importantes de reorientação
sagrada e constroem no universo social da luta das mulheres negras, as práticas
sucessórias de relações de acolhimento, respeito e cumplicidade com as demais
diferenças. As famílias de asé religadas nos territórios de terreiros e Quilombos são
reorientadas no útero mítico de África (ancestral), são sacralizadas, ressocializadas e
desempenham um grande papel no sagrado, social e político desenvolvendo ações de
sustentabilidade partindo dos territórios corporais e territórios locais. Essa relação entre
corpo e território é onde são reelaborados os conceitos, práticas que compõem um projeto
de Africanidade. As mulheres impulsionadas pelas forças das raízes ancestrálicas
organizaram com o povo negro contrapontos às forças externas, trazendo a solidariedade
do povo africanos materializada nas famílias extensas recriadas nas religiões tradicionais.
E assim, Mãe Aninha de Obá By, Mãe Senhora, Mãe Estela, Mãe Olga do Alaketo, Mãe
Menininha de Gantois na Bahia, Tia Ciata, Mãe Beata, Mãe Mariazinha, Yá Torody no
Rio de Janeiro, Mãe Rita do Candomblé do beco firme entre a várzea e a rua da glória,
Mãe Apolinária Morro Santana, Mãe Pretinha do Oxalá Vila Floresta, Mãe Marlene da
Obá Vila Santa Izabel, Mãe Nilza da Iemanjá Vila Bom Jesus, Mãe Maria da Oxum Vila
Cruzeiro em Porto Alegre, Mãe Ciana, Joana Biriba, Mãe Gilda em Santa Maria da Boa
Vista - PE, essas últimas sobrevivendo e trazendo práticas e técnicas de convivência no
semiárido nordestino. Todas essas mulheres desenvolviam e desenvolvem trabalhos
sociais dentro de comunidades, marcados pela segregação e exclusão, com atuações
comunitárias de grandes exemplos de sociabilidade que precisam ser vivenciados e
reproduzidos como auto desenvolvimento territorial e auto sustentabilidade para o povo
preto. Essas mulheres de terreiros agregaram no sagrado social e político das
comunidades de terreiros outras realidades externas com vícios e práticas diferente das
realidades “desde dentro”. Mas era necessário reconstruir os valores de convivências
sociais e políticas, recriando os vínculos com as comunidades em grande maioria de
população negra, população essa destroçados pela lógica colonialista e judaico cristã.
Apresentar outras perspectivas mais humanas e dialógicas para conceber o sagrado é um
vínculo importante para garantir a participação comunitária, ligando as realidades
internas e externas dos indivíduos até encontrar um elo entre a memória e o interesse pela
própria história. Para assim vencerem as adversidades o preconceito e os estereótipos de
demonização imposto aos cultos afros. Essas mulheres deram palavras para seus corpos
e foram as danças ancestrais e as cantigas que trouxeram as memórias corporais e sociais
como estrutura das bases solidárias, onde os compassos, ritmos, cantigas entoadas
retraziam a história comunitária, política e o social.

Rever a história desses territórios e o formato de organização é compreender que


as mulheres negras, tiveram e têm um papel fundamental na continuidade da vida e
estabeleceram relações de equilíbrio para o respeito à outra visão de mundo e outras
formas de conceber o sagrado diante das bárbaras opressões impostas ainda hoje pelo
colonialismo.

A contribuição feminina nos territórios tradicionais estabelece a condição de estar


em igualdade de direitos, mesmo dentro dos espaços que refletem uma lógica classista,
sexista e racista. O matrilinear e o matriarcado assumem a condição de respeito, vida e
auto sustentabilidade, retroalimentando o poder sagrado, social e comunitário como
instrumento de um Devir negro. Uma reconstrução gestada por mulheres afim de gestar
a potência e sobrevivência de um povo – O Negro.

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