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O dos autores
I a e d i ~ ã o2004
: ~ Sumário
Direitos reservados desta edicão:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Prefácio ............................................................................................................I I
He L
p Iracema I,nndLgqf Piccolo
Prefácio de I--IelgaIracema Landgraf Piccolo. Feiticeiros, venenos e batuques: religiosidade negi-a no espaço
urbano (Porto Alegre - século XIX) ............................................................. 14'7
Inclui referências. l'aulo 1-oberto Staudt Moreira
1. História. 2. Rio Grande do Sul - História. I. Crijó, I,uiz A construção de uma Porto Alegre imaginária - uma cidade
Alberto. 11. Kuhn, Fábio. 111. Guazzelli, César Augusto Barcellos. entre a memória e a história ..................................... .
................................. 1'79
IV. Neumann, Eduardo Santos. V. Título. Sandra.Jatal~yPesavcnIo
ISKN 85-'7025-789-9
Porto Alegre, início do século XX: imprensa, "iiiisia de
civilização" e memores de rua .......................................................................247 Apresentação
A nderson Zule-ru,skiVurgas
12 Doc 160 "Consejo d e Guerra eeii e1 qiie 10s-jefes Indios opinaii por la translación de1 ejercito a1
rio San Juan y porque se apresuren las opeiaciones, Saii Gabl-iel, 23 d e j i ~ l i ode 1680". Ao filial 15 As "praticas letradas" remetem as a~iálisesd e João Haiiseii, forjadas a partir d o ponto d e vista
d o ctociimeiito os capitáes índios assinaram pelos demais: D. Francisco Ureta; D. Christobal da retcíiica. Haiiseii, J. "Leitiiras coloniais", In: I,eitzu-as, Izislól-ia e história cln leitura. Abreu,
Capiy; D. Ignacio Ainanclau; D. Jiiaii Aiigiia; D.Migiie1 Arabe e D. Geronimo Giiarubay, i11 Márcia (Org). Carnpiiias, SP: Mercado de Letras; Associação d e Leitura do Brasil, S.P: Fapesp,
Cci??~/~alind ~Brasil.
l A n t e c ~ d ~ n Colomnles.
lp~ Tomo I (15.15-1749) Bueiios Aires: Gmo. Ihaft, 1931, 1999; "A civilização pela palavra". In: 509 anos deEdz~cnceono Brasil. Iapes, Eliaiie; M . T, Filho,
p.218. Liiciano. M. F, Veiga, Cyntliia, G (Org). Belo I-Iorizoilte: Aiitêiltica, 2000.
13 Çriizinski, Serge. Lii colo~z~aiziin de lo iniq@nn7>o. Sorieilailes ind(qen,ns y oc~iiLen~~nlimciór~
rTz el 16 Yapugiiay, Nicolas. S ~ ~ ~y ~qe~tlf~lor
~ o ~eltz kngua
n Guarn?ti.Buenos Aires: Editora Giiarania, 1953
n/II;xico~rf1n6ol.Siglos X'ITI-X'I/IIl. México: Forido d e Ciiltilra Ecoliomia, 1991. (Edicióii fac similar de l'li'i),
14 C;rnziiiski, Serge. 1,n penset; nzetisse. Paris: Fayard, 1999. 17 Arquivo l-listórico Nacioiial (Madri) L e p j o 120j, Atado I.
elite quem reuiiia as melliores condições para expressar suas posi(i0es índios, posiçàio da qual discordamo^.'^ Aceitar este argumento como
quanto aos acontecimentos em curso. Assim, foram rios cabildos das correto, implicaria em desconsiderar o fato de que rnesrno depois de se
missões, pela prática e familiaridade no manuseio da palavra escrita dirigirem ao govei.iiador de Buenos Ares, os guaranis orientais mani-
que surgiram as maiores oportunidades de comuriicação escrita, em festariam novamente, por escrito, sua decisão de ri50 acatar as ordens
guaraiii. recebidas.
As fontes históricas indicam que a prática da escrita foi uma ati-
A reação escrita guarani vidade comum entre os íiidios letrados das 'edu~ões,como demons-
tram vários exemplos: o diário, em língua Guarani, de um índio ano-
A produção histórica sobre as missões Guarani durante muito tem- nimo (provavclmeiite um secretário de cabildo), por ocasião do se-
po esteve condicionada por uma concepção de que esses índios aldeados gundo cerco à Colonia de Sacramento, entre os anos de 1'704 e 1'705.'2
não produziram, durante a sua vida em redução registros escritos, dei- A prática da cultura letrada despertou lia elite missioneira a preocu-
xando de expressar, portanto, o seu ponto de vista. O relato lavrado pação em toriio da redação de memórias e narrativas, pratica acentu-
pelos jesuítas seria, assim, o único testemunho dessa experiência. ada nos momentos de crise, quando experimentavam situações ex-
Atualmente os historiadores têm localizado nos arquivos e biblio- cepcionais. Como aconteceu em 1'754 com os íiidios principais da re-
tecas um número cada vez maior de correspoiidências, relatos e mes- dução de Yapeju. Nesste ano iniciou-se a redação de um livro media-
mo livros redigidos pelos próprios índios. Um caso de destaque é o no, escrito em pergaminho, narrando os fatos recentes em que a re-
registrado nas missões Guarani do Paraguai colonial diante da dução esteve envolvida, destacando os conflitos com o exército espa-
sobreposição de inovações, pois além da alfabetização e do acesso a nliol nas margens do arroio Daymal.'" partir de exemplos como
cultura escrita esses índios conviveram com o advento da imprensa.'" estes é possível afirinar que as fontes de origem indígena, apesar de
A grande profusão de documentos redigidos pelos guaranis ocor- rarefeitas em relação as b'foi~tes
oficiais", não estão restritas uriicamente
reu em meados do século XVIII, e estão relacionados com o início dos 2s sete cartas guaranis.
trabalhos de demarcação dos novos limites na América meridional. A Pois mesmo diaiitc de uma alfkbetizaç%olimitada, como a pra-
celebração do Ti-atado de Madri desencadeou a "reação escrita" nos ticada nas missões, e dif~liididade forma restrita a uma elite, irradiava
guaranis. Como mecanismo de protesto redigiram sete cartas na sua efeitos sobre toda a sociedade. A questão central, portanto, reside ria
Iíiigua,l9estes documentos foram lavrados pelos integrantes dos cabildos possibilidade de avaliar os efeitos da alfabetizaçáo sobre a orgaiiização
das reduções e manifestavam ao governador de Buenos Ares, José de social, independente do grau de domínio da população sobre esta
Aiidoriaegui, toda a contrariedade dos índios á execução da troca das modalidade de registro." Inclusive porque a circillação dos textos esta-
missões orientais pela Colônia de Sacramento. va condicionada pela oralidade diante da decisão adotada pelo Vaticano
Esses documeiitos indígenas foram publicados, em meados do sé- no Concílio de TI-eiito, encerrado em 1563, de valorizar a Truditio (a
culo XX, ria Espanl~a.'~ A divulgação dessas cartas despertou inúmeras tratismissão da verdade canôiiica seria feita pela palavra oral divulgada
polêmicas em toriio da real motivação que os levou a escreverem ao no púlpito por pregadores inspirados pelo Espirito Santo).
governador. Para alguns autores europeus pairava a suspeita de que Certamente os íiidios letrados que possuíam a siia disposição
os giiaranis foram meros marionetes dos jesuítas, expressando nesses anais, cartas e dociimeiitos em geral, podiam alimentar uma idéia mais
textos apenas a opiiiião da Companhia de Jesus e não a dos próprios
21 Becker, Felix. "L.,a gilcor.ra giiaraiiitica desde uiia iiueva pei,spectiva: histhria, ficcióil e
historiografia", 12obtivz Ami.ricn,zisln, 32 (Barceloiia, 1983), pp.7-37.
18 Pla, Josefina. E1 Ocrnoro ki~/)nno-G7~nt-mi.
Asuiicióri: Editorial de1 Centeiiário, 1975. 22 Melia, Bartonie~i."'IIii g~iaranireportero d e giierra" i i i Acciht,, Revista paraguaya cle reflexión
19 As cartas por serem erri níimero d e sete são facilnieiite associadas aos chamados "Sete Povos y ciial<igo, Níiinero 308, Oi~tiibiod e 2000, p,20-23.
das Missões", rnas tlessas recluções orieiitais o cabildo d e São Borja não expediu neiihunia 23 "Ti-ad~iccióiide i i i i libro mediano d e dirz Sox;ts eii pergamiíio esci,itas eii idioma G~iaraniqiie
missi~a,seiido que iima dessas ca-tas foi eiiviatfa da reduçâo de Coiicepción, e esta assiilada
se hallo entre 10s tiespojo d e los l'i'iidios d e I'apeyii [...I i,! I,'oleccio',i F7rtLc::cioEs,hclLtet: ((&')ias do
apeiias pelo corregedor Nicolas Ne~igiiirti. i1 t-rhiuo (IP I~rtlicrs,Sf-nilhn).Gol)i~)-)/o Jonqui??~
de D. L/o.rf;, d~ I'iclrzcc, Tomo 111 ( 1'749-175G), 19%.
20 .Mateos, Fianci5co. S.J . " Carla de Iiidios Ci-istiaiiosde1 Paragilay", l\/l~~sronnL~n hldciiid.
Ifi~j)clr~!tn,
24 Goody, Jack. '4 lbyirn (LI e.sc.,i/nP n o,;qarzizcr(.ciodcr .socif:dntb~.
1,isboa: Edições 70, 198'7.
,4110 VI. N.16, 1949, p. 547-572.
clara, orientada a partir de unia distâiicia liistórica, elaboraiido rcla- cultura ocideiital."' Com isso, uma nova forma de configurar as dife-
ções entre os diferentes momentos.2Essesapresentavam as melhores reiiças culturais se impõe, pois altera as possibilidades de registro
condições de fixar o passado através da escrita, atribuindo desta for- dos acontecirncntos. Certamente o grau de confiança atribuída aos
ma um sentido histórico, na acepção ocidental, para os acontecirneii- registros escritos foi variável de sociedade para sociedade, e inclusive,
tos. Como assinalou o historiador Roger Chartier "a escrita [...I dota mesmo em meios admiiiistrativos. O estudo de Clancliy, para a Ingla-
de competências culturais populações que antes estavam excluídas terra do século XII fornece provas de quanto a oralidade podia se
do muiido do texto [...I ","' alçando dessa forma os guaraiiis a coiidi- prolongar mesmo na presença da escrita.g0Assim as culturas letradas
ção de homens letrados capazes de manusear os códigos retóricos do e orais ri50 apenas coexistiam, como interagiam entre si.
colonizador. Mas foi o domínio das práticas letradas que permitiu aos guaranis
Os documentos produzidos nessa época iiidicam que a popula- ilustrados, em momentos de crise, recorrerem ao expediente da comu-
ção das reduções mobilizou-se em torno dos cuidados com os proce- nicação escrita, enviando cartas ou afixando bilhetes com mensagens
dimentos letrados, possivelmente por haver conferido crédito a es- hostis a presença das comissões dernarcadoras. Nessas epístolas argu-
ses trâmites junto a administração ~ o l o n i a l . ~
A' decisão dessa elite de mentavam a respeito do seu direito histórico sobre as terras e sua
manifestar por escrito suas opiniões legou aos historiadores documen- ancestralidade em relação a este território. A materialidade desses es-
tos que permitem avaliar o elevado grau de iiisatisfação e a mobilização critos é que poderia variar, o conteúdo não, como indicam as inscrições
desses íiidios, explicitaiido sobretudo a importância atribuída a cul- localizadas em papel, cruzes de madeira e mesmo escritos em pedaços
tura escrita nesta sociedade. O fascínio despertado pelas tecnologias de couro.
do ocidente (escrita, livros, imagens) alterou as formas de organiza- Uma fonte privilegiada para a acompanhar as ações desta elite, são
ção social dos g~iaranis.~" os diários dos oficiais militares das comissões ibéricas, como os de Ja-
A importância da escrita, independente da modalidade gráfica cinto Cuiiha e José Custodio de Sá e Faria pelo lado de Portugal e o de
desenvolvida, reside no fato de que cria um novo meio de comunica- Francisco Graell e José Joaquim Viana, pelo lado de Espanlia. Nas aiio-
ção entre os homens, preservando através do tempo informações, em rações de canipo além da informação militar típica, como a movimen-
coii trapon to à transitoriedade da oralidade. A escrita permite salva- tação de tropas e descrição do relevo, foram reproduzidas algumas car-
guardar informações básicas através do registro gráfico, atuando como tas e bilhetes escritos pelos índios. Os exércitos ern marcha na região
um arquivo da memória; desse modo, tanto influencia as lembranças encontraram no percurso várias mensagens em guarani que depois de
quanto produz os esquecimentos, apresentalido uma nova possibili- traduzidas pelos "línguas" foram transcritas iiesses diários.
dade de recompor, de narrar o acontecido. Segurido Micliel de A importância atribuída pelos índios à informação escrita esta di-
Certeau, escrever é uma prática mítica "moderna", pois reorganizan- retamente relacionada a presença dessas comissões demarcadoras na
do aos poucos os domínios por oiide se estendia a ambição ocidental América meridional, como é possível constatar através da documeiita-
de fazer sua história e, assim, fazer história. Nesse sentido, a " I...] ori- ção ora apresentada. Este conjunto de documentos sugere algumas
gem não é mais aquilo que se narra, mas a atividade miiltiforme e iiidagações a respeito da natureza desscs escritos. Por acaso, estavam os
murmurante de produtos do texto e de produzir a sociedade como índios, nessa época preocupados em esclarecer aos deniais eiivolvidos
texto". Assim, a escrita é vista como uma forma de progresso, possibi- no conflito os motivos de sua resistência? Estariam através dessas cartas
litando um afastamento, um apartar-se do muiido mágico das vozes e justificando sua atitude? Esses escritos explicitam claramente a posição
da tradicão. Dessa maiieira se esboça lima fronteira (e urna frente) da dos guaraiiis quanto a permuta de suas reduções, e avisavam sobre qual
seria a reação diarite da decisão metropolitana. Os comunicados em
toni de pregação cristã, indicam o domínio dos códigos retóricos e avi-
25 Gruzinski, Serge. LAL coloniznrión de lo imn@~~rir-io. p.235.
26 Chartiei; Kogei: "As práticas da escrita", 111: £fi.rto/indn Vida /)127)cldn3: da Rennsc~n~.n no Séc.ulo
sam aos espanhóis e sobretudo aos portugueses que 1150 prcteiidiam
d n Luzes
~ (01-g.lioger Chartier). Sáo Paiilo: (:ia das Ixtras, 1991.
27 Oiig, M'altei.. 01-nlb(in(LeP ~ L ~ z Lesnltn: da /jnln-orn. Siio Paulo: Papii-us,1998.
I - n n iec.17~ologiznç60
20 Cei-tcaii, Micliel. A zrzi)~r~çto
do t o l ~ d i n ~Petrópolis:
~o. Vores, 1999, [I. 224.
28 C;oody, Jack. A rionl~rlltnçtiodo/jel~co~~r~nto Lisboa: Editorial Preseriça, 1988. (1- c-dic;iío
~.~l-r~(lgem
inglesa, 1977) 30 Cl,tiicliy, 1979, p. 230, apud Ong, MCilter. OlcrlztlndeeC Z L / ~ I L ) ( pscntn.
I Sáo Parilo: Papyriis, 1998, p.
112.
ceder as exigências irlipostas pelas Coroas Ibéricas. As reiteradas niani- Assim, em novembro de 1754, bi celebrada uma convc1i(;ão de
festações iiidígeiias remetiam aos direitos adquiridos e confirmados paz coni o 013jetivo de suspensiio das armas. Esta convenção definiu
recentemente pelo rei de Espaiiha ria Xeul Cidula de 1743. As epistolas,
que seria o i-ioJacuí o limite para a circulação dos giiaraiiis e lusitarios.
em geral, apreseiitavam como modelo retórico a coiicepção de Cicero, Os termos do armistício foram redigidos eni "língua castellaila e tape"
a Izistón'a magzstra vilae, ou seja, a escrita correspondia a recolher exem- e ao final do encontro cinco caciques guaranis e os demais oficiais
plos com o objetivo de instruir as novas gerações, recordando os acon-
ibéricos preseiites à negociação subscreveram o doc~imento.~'
tecimentos anteriores como base para a argumentação a ser desenvol- Os integrantes dessa elite em determinadas ocasiões procuraram
vida. O passado serve de exemplos e de orieritação para o í'ut~iro.
negociar acordos com os demarcadores ibéricos visando preservar seus
Os documentos produzidos pelos índios sublevados durante os anos interesses. Na convenção de 1754, por exemplo, decidiram que a par-
de conflito permitem repensar as rela<;õesestabelecidas por esses com
te norte das terras, tomando como referência o eixo do Jacuí, seriam
o passado e com território oriental e sinalizam uma discrissão pouco proibidas aos índios das missoes, e que ao sul não se permitiria a
referida pela historiografia sul-rio-grandense, ou seja, a existência da
presença de portugueses, estando todos s~;jeitosa castigos por qual-
defesa por escrito do ponto de vista indígena, neste caso dos guaranis quer infração. Estavam os guaranis definindo uma linha de fronteira
missioneiros. Estes textos permitem resgatar do anonimato os agentes
que procurava salvaguardar a territorialidade das missões, mesmo que
sociais nativos que estiveram relegados ao esquecimento pela
para tanto fosse necessário efetuar acordos que reconhecessem a pre-
historiografia tradicional. Através desses documeiitos torna-se possível
sença dos portugueses nas imediações das reduções orientais. A con-
repensar a coiistrução histórica do atual estado sul rio-grandense, e venção suspenderi temporariamente às hostilidades dos índios para
incluir no debate a questão de uma fronteira indígena que existiu no
com os lusitanos.
tempo e no espaço, e que a partir desses textos escritos pelos guaranis
Em 1'755,o governador de Moiitevideo,José Joaquim de Viaria, foi
passa a ser recuperada pela historiografia sensível as demandas nativas.
nomeado por Aiidoiiaegui seu imediato para atuar lia segunda campa-
Por exemplo, em 1754, o exército luso-brasileiro, acampado no
nha contra os índios rebeldes. Ao conduzir a tropa hispânica na dire-
passo do Jaciii, enfrentava sérias dificuldades, obrigando Gomes Freire,
ção das iiiissões, os soldados corriaridados por Viana, localizarani no
comissário português, a negociar com os giiaranis a retirada de suas
percurso duas cartas afixadas em palanques pelos guaranis. A cópia
tropas. Nessa ocasião alguns índios missioneiros estabeleceram uma
traduzida de uma dessas cartas esta reproduzida no cabeçalho do diá-
trégua com Freire, principal autoridade designado por Portugal para
rio dessa expedição. O título é o seguinte: "Copia de carta traducida de
acompanhar os trabalhos de demarcação na América do Sul.
la lengua Guarani, que e1 exercito nuestro halló en un palo en la
A correspondência de Freire, enviada ao seu superior, Sebastião imediacióii de1 pueblo de Sta Tecla", datada de 30 de junho de 1'755.
de Me10 (futuro Marquês do Pombal) descreve com detalhes o eiicoii-
Esta niissiva é apócrifa, e esclarece qiic 110 ano de 1754 " L...] nos junta-
tro que manteve com uni índio ilustrado. Ao inforniar sobre o acerto
mos 30 pueblos, y ya savemos lo qrie hemos de hacer [...] ", o documen-
de uma trégua com os guaranis, expressou sua opiiiião a respeito da
to iiidica a suposta tomada de rima posição coletiva por parte de todas
conduta do seli iiiterlocutor, o Corregedor da reduçáo de São Luís,
reduções e refere a existência de muitas dúvidas em relação a tregua
Francisco Guacú. <:om certa admiração e espanto afirmou Freire que
estabelecida com Gomes Freire."' Os guai-anis atribuíam à presença
[...I este homem 1ié mais racional, e fino do que cabe lia creação de desse plenipotenciário portrigu6s os distúrbios e dificuldade que esta-
semelhante gente [...I," comentário bastante elogioso. O recoiilieci-
vam eiivolvidos.
rrieiito às qualidades de um g~iaianimissioneiro 6 surpreendente diaii-
te da imagem negativa dos cronistas lirsitaiios a rcspeito dos índios re-
duzidos, e reflete a atuação dessa elite no decorrer da rebelião.
32 "(:opi;~tia Coilvençâo celebratfa eiitrt: Gomes Fi-eirc d e Andi-ade e os caciques para a stispen-
são das ai-iuas" em 14 de Nov 1754. Oar-npo de1 Iiio.Jaciii, iii IZPlnçCo AOtm~indnd« I<e/)uOlicnque os
e.\ln/)ekr.mEo.Lisboa, 1737, p 80.
?eligio.sosdas P,.oui,?cinsde /'ou./ ug01 P ~írs,,t~~lri/1~
31 "Demarcaçáo do sul d o Brasil", (:artas escritas da Fortaleza do Kio Partlo i.c,metidas por l-iuin
Alfères da Guarniçcbo de Saiita (htai-ii-ia para o Rio de.J;liieiro. 111: R(í7~i.>(n
do iirqz~i7~1
1'1íóliro 33 "Dlaiio de Ia Segtii-ida Ex~)edicióiitie Misioiies 511 m,irclia, acahicimentos y reiiditioii c-{c10s
hlin~iro.Belo I-Ioi-izonte, 1928, p. 302. Piical-,105. Ilc-clio por e1 coronel D11 J o s c * l ~ Jo'lqiiiin
li de \'i,in'i, goberi-ia(ioi cle Ici I'lata tle
hlonte\itlco. In lipulrtn I+~tó~lcn.hlIontivideo, Tonio VII, 11. 11, 1914, p. 204/205.
Nos seus escritos recordavam os índios todo o ernpeiilio da po- provocada pela rebelião indígena." Suas interpr<.taçòes são
pulação das reduções em garantir o domínio dessa área ao rei de apologéticas, procurando defender os seus colegas diatite da persegui-
Espaiiha. Estariam por acaso nessa época produzindo os índios uma ção a qiie estiveram submetidos.
versão prbpria sobre estes acontecimentos? Uma leitura atenta do con- O trabalho de Kratz, publicado originalmente em alrrnão, e tra-
junto desses documentos tem permitido repensar a interpretação tra- duzido para o espanhol em 1954, inscreve-se dentro do amplo pro-
dicional quanto a formação histórica do Rio Grande do Sul e a ocupa- jeto de reconstrução do contexto histórico de expulsão dos jesuí-
ção das terras meridionais, que não estiveram restritamente unicamen- tas.'"endo que a causa imediata apontada para a catástrofe em que
te às desavenças entre colonizadores ibéricos. se precipitou a Ordem Iiiaciaiia é o Tratado de Limites (1750) e
todas as suas conseqiiências. A pesquisa, amparada preferencialmente
A guerra guaranitica: algumas interpretações e personagens em documentação inédita, foi realizada na sua maioria rio acervo d o
Arquivo de Simancas (Espanha). E o resultado dessa pesquisa é ape-
O Tratado de Limites, de 1'750,repercutiu de forma muito acentri- nas uma defesa, bem documentada, das ações dos jesuítas para faci-
ada na América meridional, e a batalha de Caiboate. registrada em fe- litar as negociações.
vereiro de 1'756, colocava um limite à resistência dos guaranis, mas não O esforço mais surpreendente em esclarecer os anos cruciais das
encerrava as manifestações de contrariedade a entrega das reduções reduções é o conjunto de monografias de Francisco Matteos, publicadas
orientais. no periódico espanhol MiirsionaliuH i . r ~ a n i c a . ' ~títulos
s dos vários arti-
As várias polêmicas suscitadas nesta negociação geraram uma bi- gos expressam com propriedade os diversos períodos da rebelião indí-
bliografia bastante variada e ampla, sendo igualmente muito tendencio- gena. A pesquisa esta apoiada principalmente em documentos do Ar-
sa, pois esta tentativa de definir as fronteiras meridionais detonou a quivo Geral de Indias (Sevilha), mas também localiza e divulga docu-
suspeita sobre o envolvimento dos jesuítas ou de alguns deles como mentos indígenas inbditos, existentes no Arquivo Historico Nacional
responsáveis no incitamento dos índios das reduções à rebelião. Esta (Madrid). Os trabalhos de Kratz e Mattteos são o resultado de uma
polêmica sempre ocupou um lugar central no debate referente a "guerra revisão histórica geral, empreendida por historiadores jesuítas, visando
guaranítica". apurar os motivos presentes a expulsão e na posterior extinção da Com-
Entretanto, o principal óbice a execução da demarcação dos no- panhia de Jesus no século XWII.
vos limites foi a negativa por parte dos índios em abandonar as suas As pesquisas recentes dos autores regionais (nãojesuítas) têm pro-
reduções. Essa resistência rapidamente transformou-se em uma rebe- curado desfazer alguns mitos e exageros sobre as missões. Esses têm
lião que, apesar de lião ter sido estimulada abertamente pelos jesuítas analisando, entre outros temas, o impacto do Tratado de Madri nas
missioneiros, também é certo que estes nada, ou pouco fizeram para reduções, procuraiido avaliar os efeitos das decisões metropolitanas
impedi-la. Alguns padres, inclusive, são acusados de apoiar e participar juiito à população missioneira. O trabalho de Rejane Several insere o
dessa rebelião, atitude que não reflete a posição conjunta adotada por coi~flitona dinâmica das relações metropolitanas e como a região plati-
parte da Companhia de Jesus nessa polêmica. na estava suscetível a essas riegociações. Entretanto, o texto pouco acres-
Assim, de uma marieira sumária e muito esquemática, poderíamos centa ao debate pois rião aponta nenl-iuma hipótese explicativa quanto
dividir os estudos existentes em dois grandes grupos: um representado a eclosão do conflito.37
pelos historiadores da Companhia de Jesus, que tentam de alguma
maneira isentar os jesuítas da eclosão do conflito, onde se destacam os
trabalhos de Hernaridcz, Kratz e Matteos; r uni outro grupo de pesqui- :34 I-Ieriiandez, Pablo. EL exir.niinmie,~tode lo.rjes7citcls (Iel rio de Ln I'lntn y ([elns ~ n i s i o n ~(de1
s j)nrnç-uny
por- drc~eto(de (,'a,-Los III. Madrict: Victoi-iano Suarez, 1908.
sadores, os autores laicos, interessados nos ternas missioneiros, mas
35 Ii-atz, Guilleimo. El tratndo his/)ccno-l)rugusde limites de 1 E0 y .sus corzsecuencin~.E.~tudiosoD?-eLn
que procuram repensar as raízes do conflito a partir da pesquisa docu- aOoLieión de ln Conzj~clfiiclde Jesus. Koma: I.I-I.S,I, 1954.
mental. 36 h4ateos, Fraricisco S. J . "Avaiices poitiigiieses y rnisiones espafiolas eii la America de1 Siir",
O texto de Hernandez procura esclarecer as circunstâncias da ex- hlissiotlnlin his/)n~aicn,5, Madiid, 1948, ~ 1 : ) .459-505; "E1 tratado de limites entre I!:spcifia y Portu-
gal d e 1750 y las misioncs de1 Paraguay ( 1751-1 753)", Missionnli« Hi.sj)n~/,icn, 6, 1949. pp. 31 3-
piilsão dos jesuítas dos domínios esparilióis, e para tanto refere-se as 373, além cle otitros artigos liesta rivista.
implicações negativas para a Companhia de Jesiis qiiaiito a repercussão 37 Several, Rejane. A g-u~r-~c~ p~clrnnillcts.Porto Alegre: Martins Livreiro, 1995.
O extenso trabalho de Tau Golirn, é f~~iidameiitado quase que ex- Recentemente, foi publicado em Portugal o livro O Tratado de fi-
clusivaniente ilo Diúr;?'oda expediçuo e denza~caçãoda Amh-ica Meridional e dri e o Brasil nzwidional, com atenção voltada para a forma como se pro-
das campanha.^ D'Mi.rsões do Rio IIruCpayescrito por José Custódio de Sá cedeu à demarcação nas terras envolvidas nos novos limites." 0 traba-
e Faria, funcionário a serviço de Portugal. O texto apresenta muitas lho analisa a ação das 'Par-tidas do Sul" e se baseia na análise da carto-
novidades do ponto de vista factual, diante das inúmeras informações grafia e de documentos gerados por ocasião das demarcações. Pesquisa
contidas neste documento." Esse diário redigido u -f>oshioli,está basea- minuciosa amparada em farta documentação, mas que pouco acres-
do em observações pessoais e nas informações partilliadas com os de- centa ern relaç20 ao coiihecimento já existente a respeito do tema.
mais oficiais, e o exame dos conflitos bélicos ocupa espaço significativo O interesse 110 estudo das sociedades indígenas durante as últimas
nas anotações de José Custódio de Sá e Faria. Entretarito, a perspectiva décadas determinou uma revisão quanto ao papel dessas na história,
teórica esta ausente nesta pesquisa histórica, sendo mais uma recons- implicando em uma reconsideração de determinadas categorias utili-
trução pormenorizada dos acontecimentos, do que uma interpretação zadas na sua análise. A guerra é uma delas. A guerra indígena, ou me-
com caráter explicativo. lhor as guerras, tal como a conhecemos historicamente estão relacionadas
O processo histórico das missões foi analisado por Julio Quevedo ao processo de conquista e colonização de grandes proporções empre-
com o objetivo de recuperar as raízes desta rebelião indígena, endido na Arnéri~a.~'
contextualizando-a na conturbada diplomacia Ibérica e os seus desdo-
Nesse contexto de revisão teórico-metodológica os episódios rela-
bramentos no rio da Prata."" partir do vínculo estabelecido pelos ín-
cionados a "guerra giiaranitica" também merecem uma releitura, prin-
dios com a terra e as alterações impostas ao espaço missioneiro diante
cipalmente a partir do aporte e empréstimo de categorias oriundas de
do Tratado de Madri, Quevedo discute o papel do guarani inserido nas
outras áreas de conhecimento, particularmente da Antropologia. No
reduções, enfatizanclo o desagrado e posterior desacato desses índios à
que tange às manifestações indígenas um fator f~i~idarnental é se ater às
ordem de mudanca. A pesquisa, apesar de estar amparada em fontes
suas formas e que para captar as estratégias nativas é necessário aliar
impressas, não acrescenta novidades ao quadro factual, e trata de ma-
uma certa sensibilidade antropológica i s iiiformações inéditas que sur-
neira muito generalizada os efeitos da vida em redução (não distin-
gem, em fragmentos e séries documentais outrora esquecidos nos ar-
guindo, por exemplo, a diferença eirtre urn guarani letrado e um
quivos e bibliotecas de diferentes países.
iletrado) .
A historiografia tradicional ao analisar os conflitos nas missões,
Um trabalho que corre em faixa própria é o do historiador alemão
Félix Recker, que piiblicou sua tese doutoral abordaiido a rebelião somente concedeu espaço a dois índios, no caso o alferes de São Miguel,
giiarani e as controvérsias em torno da fábula de Nicolas I, rei do de nome José Tiaraju, o Sepé, e o corregedor da redução de La
Paraguai.l0 Nesse livro, Becker considera os chefes guaranis rebeldes Concepción, Nicolás Nenguiru. O destaque coiiferido a Sepé, por sua
como meras marionetes dosjesuítas. A pesqi~isa,realizada em siia grande atividade "militar", despertou em alguns pesquisadores regionais o iii-
maioria em arquivos europeus, desconhece a realidade regional que teresse em alçá-lo à condição de símbolo da resistência iridígena.'%na-
analisa, e descoiisidera a capacidade das lideraiiças indígenas envolvi- lises históricas preocupadas com a heroicização desse personagem, tem
das. O autor apresenta uma intricada argumentação, na qual procura eclipsado outras individualidades guerreiras, como a do próprio
esclarecer os motivos da perda de poder da Companhia de Jesus, mas Neiiguiru.
acaba por alimentar mais preconceitos ern relação ao tema.
48
do documeiito (cerca de 85% do total). No filial do dociimeiito, o es- No total, mais de 45% da popiilaçáo era cativa, uni perceiitual muito
crivrio padre Tliomas Clarque anotou que haviam 132 fogos com mais elevado, scmelhaiite ao eiicoiitrado rias zonas rniiieradoras o u de
de setecentas almas. No entanto, a quantia total de fregueses está cor- planlation e náo muito adequado à uma região voltada ao mercado iii-
roída, impedindo qiie saibamos com exatidão esta cifra. Uma terno. Para efeitos cornparativos, podemos citar a zona rural de Buenos
extrapolação pode ser feita se coiisiderarmos a média de moradores
Aires, oiide as pessoas de "cor", cativas ou não, perfaziam somente 15,4%
por fogo em torno de 6 pessoas, chegando a um número entre 750 a
em 1744 ou ainda a vila de Sorocaba em 1772, oiide apenas 15,6% da
800 pessoaq se incluírmos os "andaiites" (pessoas em trânsito pela fre-
população era composta por escravos. Todavia, os números de Viamão
guesia). Na verdade, uma análise atenta permite verificar que não havi-
iião parecem tão discrepantes quando comparados ao Piauí colonial,
am 132 mas sim 136 fogos na freguesia, dos quais não temos informa-
ção alguma para 18 deles. Assim, dos 118 fogos em que foi possível outra conhecida região de pecuária. Em 1762, segundo um levanta-
extrair informações, chegamos ao número de 631 pessoas, com uma mento da população das fazendas do Piauí, havia cerca de 2.400 mora-
média de 5,35 fregueses por unidade de censo. Se talvez houvesse em dores, dos quais mais de 1.300 eram escravos. Ou seja, 55% do total de
torno de mais 90 pessoas nos 18 fogos dos quais não temos dados, além moradores.* Outro dado significativo para a compreensão da estrutura
dos 74 aridaiites que foi possível contahilizar, chegamos a um cifra pró- de posse de escravos em Viamão refere-se ao fato de que em 74 dos
xima àquela já aventada (631+90+74= 795). fogos analisados (62%) havia cativos, indicaiido uma grande dispersão
Na Tabela I podemos visualizar a estratificação social da popula- no padrão de posse de escravos nesta freguesia do Rio Grande do Sul
ção viamonense em 1751. Os dados encontrados surpreendem pelo coloiiial. Isto também se reflete lia relativamente baixa posse média de
elevado número de escravos em um período tão recuado da coloniza- cativos por fogo, equivalente a 4 escravos por unidade doméstica (conside-
ção lusa. De fato, passadas somente duas décadas do início do seu povo- rando-se o conjuiito de fogos onde haviam traballiadores servis).
arrielito, a freguesia apresentava rnais de 42% da siia população com- Dentre os maiores proprietários de escravos ria paróquia, destaca-
posta por- cativos de origem africana. Os cativos indígenas perfaziam se Fraiicisco Pinto Bandeira, um dos mais relevantes membros da elite
sorriente cerca de 3% da população de Viamão em 1751, o que iios local e dono de 20 cativos neste recenseamento. Outro dado que revela
indica o virtual desaparecimento da "administração particular" entre uma precoce conceritraçáo da escravaria nos grandes proprietários in-
os povoadores da freguesia. dica que os doze maiores seriliores - com 8 ou mais cativos - detêm
coiijuiitamente 132 escravos, ou 46 % do total da freguesia, com uma
posse media de 11 cativos por plantel, típicos do padrão dos estanciei-
Tabela 1: População de Viamão conforme a condição social -1'751" ros. Os demais fogos possuidores de escravos, no total de 62 unidades
Condição social I N ~ e s s o a sI % domésticas, detinham 54 % dos cativos, com Lima posse média de 2,5
escravos por proprietário, típica do padrão dos lavradores. Outras pes-
Homens escravos 1 204 132,4
quisas, traballiaiido com iiiventários, chegaram a números muito senie-
Homens livres 1 197 131,2 lhaiites: 3,3 escravos em média no grupo dos lavradores e 11 escravos
Mulheres livres 1 108 1 17,1 em média rio grupo dos estaricieiros.'
Camaradas I 14 1 2,2
índios 14 1 22 4 Joie 1,iiis Moreno, "Población y sociedad eii e1 B~iei-iosAires iurul a fines de1 siglo XVIII". 111:
(comp.) J. C. Gara\agliil ç J L. Moreno. Pohlnczón, vocz~/ln(l,fninzlza y ?nzpccizo/r~ren d es/)nc~o
~~of)lnterr r ~ .Siglos XVIII y XIX. Biienos Aii es, Ciiitaro, 1993, p 26; C h i los d e Almeidu Prado
B,icellar. Fi~1rr2ie soczeclade n u m fro?zonaznd~ nhnd~czme17toz ~ t l e ~ n--aSo?otnOn, skculor X W P XIX.
Sdo Paulo, Tese cie doritorarri<-ilt»/LJSI', 1994, 11. 74; I.uís Mott " 0 5 íiidios e a peciidri't lias
Total 1 631 1100 fc1l/iildus cie çudo do Piuuí coloilial". 111: Ii'evzrtn r l ~Anl~o/)olo~yz/l_JSP,
1979, p. 71.
separata d o vol. XXII,
50
O levaiitamento paroquial de 1751 permite entrever uma socie- 20 fogos, o que demonstra que Jerônimo de Oriiellas não estava sozi-
dade fortemente dependente da mão-de-obra cativa, especialmente nho na sua sesinaria. Mais do qiie isso, revela a importância das redes
africana. A escravidão indígena aparece já de forma residual, na exis- familiares dentro de cada "bairro rural": quase metade dos fogos do
tência dos 20 administrados dispersas nos plantéis da freguesia. Ou- Morro de Santa Anna estavam de alguma forma interligados. Assim,
tros tipos de traballiadores também são encontrados, como os cama- além do fogo de Jerônimo de Ornellas, estavam ali situados o seu gcnro
radas e agregados; os primeiros são certamente de condição social Francisco Xavier de Azambuja, seu cunhado Dionísio Rodrigues Meii-
mais baixa, pois em cerca de um terço dos casos listados aparecem des e ainda os fogos de João Brás e seus 4 filhos, núcleo parenta1 estrei-
juntamente com os escravos. Quanto aos agregados, existentes em tamente ligado ao sesmeiro de Santana. Mais adiante retornaremos a
muito pequeno número, são encontráveis quase todos na estância de falar da importância destas redes.
José Leite de Oliveira, um dos genros do povoador Jerônimo de Na localidade denominada "Beira-Rio" temos apenas 8 fogos, den-
Ornellas. Além destes, encontramos um pequeno número de índios, tre eles o da quase legeridária estancieira Ana da Guerra, proprietária
supostamente livres, pois não são administrados, porém certamente de muitos (para o padrão local) índios e índias administradas. Nas "Lom-
submetidos a alguma forma de servidão. O único dado que causa cer- bas" existiam outros 8 fogos onde residia, por exemplo, Cláudio
to espanto no rol é a presença minúscula de pardos forros, o que é Guterres, filho do espaiiliol Agostinho Guterres, um dos pioneiros
muito discrepante com a realidade étnica efetiva da freguesia. Supo- lagunenses de Viamão. Nas "Estâncias de Fora" eiicoiitramos dezoito
mos que a maioria dos "pardos forros" tenham ficado encobertos na fogos, dentre eles, um dos maiores proprietários de escravos da fregue-
listagem, em meio ao grupo de homens livres. Este foi o caso de Inácio sia, Francisco Pereira Gomes. A localidade mais numerosa em termo de
José de Mendonça, o fundador da Capela de Santo Antônio, pardo fogos era a "Guarda de Viamão", com 31 unidades domésticas. Aí esta-
forro assim mencionado em outros documentos, mas que aos olhos do vam coiicentrados os maiores plantéis de escravos, sendo que no total
"reccnseador" paroquial não mereceu esta distinção. existiam 104 cativos, ou 36% do total computado da freguesia. Quatro
O rol de 1751 também nos revela o grande desequilíbrio existen- "bairros rurais" do rol abrangiam a região dos rios dos Sinos, Caí e
te entre os sexos, tanto entre os escravos quanto entre os livres. Para o Taquari, o n d e havia 22 fogos. Seis anos depois esta região se
primeiro grupo, a razão de sexo chegou a 329, ultrapassando a propor- desmembraria da freguesia, constituindo-se iia rica paróquia de Tririri-
ção de 3 homens para cada mulher cativa. Uma sociedade na qual se fo. Finalmente, mais ao norte, "Em Cima da Serra", encontramos onze
desenvolvia com dificuldade a família escrava, muito embora ela exis- fogos, entre fazendas habitadas por famílias e aquelas geridas somente
tisse, principalmente nos plaritéis dos maiores proprietários. No total, por capatazes e alguns escravos. Os 3 maiores "bairros rurais", Guarda
foi possível computar 24 famílias escravas em 17 UC, ou seja, apenas de Viamão, Morro de Santa Anna e Estâncias de Fora concentram 5 1%
23% dos fogos escravistas api-csentavam famílias cativas, decorrência dos fogos ou 69 UC, que possuíam 202 escravos, ou seja, mais da meta-
sem dúvida da alta taxa de rnasculiiiidade entre a população servil, as- de do total de cativos computados na fregriesia.
sociada à predominância de pequenos proprietários de escravos. No Se os dados do rol de 1751 podern ser considerados inexatos, e
que se refere à população livre a taxa chega a 182, denotando a grande por isso mesmo colocam dúvidas quanto aos iiúmeros apresentados, o
quantidade de indivíduos solteiros, dentro do padrão típico de uma rol de 1778 é extremamente bem-feito, incluíndo também a quantida-
região de fronteira. Mas aqui também temos a formação das estruturas de de "inocentes" livres e escravos existentes em cada unidade domésti-
ca. Desta forma, torna-se possível calcular a pop~ilaçãototal da fregue-
hmiliares, tanto aquelas geradas pelas grandes fazendas ou estâncias,
como aquelas originadas nos sítios e chácaras dos lavradores pobres ou sia - todos os moradores - e não apenas os fregueses. Ademais, devido
remediados. ao seu bom estado de conservação, meiios de 3% da população
recenseada não pode ser devidamente classificada (a ilegibilidade im-
A extensa freguesia aparece dividida em dez "distritos" ou "bair-
pede que saibamos seu sexo, mas não a sua condição de livres ou c-ati-
ros riirais", na verdade as diversas localidades que compiinham os vas-
VOS). A Tabela 2 rijo dá lima idéia aproximada das transformações ocor-
tos Campos de Viarnão. O rol inicia provavelmente com os fogos situa-
ridas na estrutura social de Viamão em iirn período de cerca de urn
dos no Arraial, mas cabe lembrar que dos treze primeiros fogos se per-
quarto de séciilo.
deu toda informação. Na localidade de "Morro de Saiita Atina" existiam
Tabela 2: Popula~áode Viamão coiiforme a coildi(ão social -1778 dois terços das unidades domésticas estão iiesta situaçâo, em flagrante
(:«litraste com oiitras regiões vinculadas ao mercado interno, como o
Paraná oii Sorocaba, eni São Paulo. Neste aspecto em particiilar, os
números de Viamão apresentam notável semelhaiiça com aqucl(:s en-
contrados lia Capitania da Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro. IJina pos-
sível explicação para este aparente paradoxo seria a maior vinculação
destas regiões (Viamão e o norte flumiiiense) coiii as redes do tráfico
atlântico sediadas no Rio de Janeiro, iiesta ocasião o maior porto ini-
portador de cativos do Brasil.
C) Os cii1c~iIosdas taxas d e rnasculiiiicla<le iião forarn realizados a partir da popiilaçao total cla
freguesia, visto qiie o rol nào especifica o sexo cios "iiioceiites". Desta forma, descoiltados os 307 10 Cai 'n.aglia, Judri (:,ri 10s. (1090) f'autor ~u y 1ahtntlo)e~.Una hzrlo, zn n p a n a r l L~a ccctn/)cc6ahor1c~~li.n
,P
iiiocentes mais os 45 casos ilegí\.eis tios qiiais c1.a inipossí~,elcletermiilai- o sexo dos receiiseados, o (1 700-1830). Biiiiios Alies: IEIIS/Etlicioiies d e Ia Floi, p. 73.
riúrriero o total de intlivíciiios fi)i de 1267 (785%dci populaçáo totíil). 1 1 AHKS. Cód. A. 1 O6 - (;o1 I espoiidêiici'i Expedida (1780-1784), fl 4
Feitas estas ressalvas clriaiito à corifiabilidade deste ceiiso de 1780, A teiidêiicia de i~eversãotambéin passa a aparecer nas taxas de
podemos tentar analisar alguns aspectos da evolução demográfica da masculinidade, sendo que tanto livres como escravos apresentam au-
freguesia. A população escrava decresceu ligeiramente em relaçrio a merito no iiúmero de homens. A população livre, que estava equilibra-
1778, mas coiitinuava elevada: 39,676. Aliás, das 14 freguesias então da em 1780, passa a ter unia taxa de 114, ao passo qiie a população
existentes, Viamão era terceira colocada quanto às pro~orc;ões de es- escrava ascende para 178, talvez já como reflexo da retomada das aqui-
cravos na popiilação, perdendo someiite para Ti-iuiifo (50,1%) e Vaca- sições de riovos escravos, inajoritariameiite do sexo masculino.
ria (43,4%).Na média de todas as freguesias, a população escrava cio Eiifirn, este celiso de 1798 também permite vislumbrar algo sobre
Rio Graiide de São Pedro era equivalente a 28,5% do total. a família escrava, ou ao menos, sobre o acesso ao casamento formal
O censo de 1780 também permite que comparemos as taxas de entre os cativos. Em Viamão, somente 6% dos homens escravos eram
mascilliiiidade da população livre e cativa. Neste aspecto, novamente legalmente casados, eiiquanto entre as mulheres este iiúmero subia para
verificou-se um decréscimo: no caso dos livres ela caiu de 104 em 17'78 meros 1176. Estes perceiituais modestos de casamentos entre escravos
para 100 em 1780 e no caso dos escravos a queda foi ainda maior, pas- mostram as dificuldades no acesso ao sacramento do matrimônio para
sando de 172 para 142. Como o ceiiso 1120 trnz maiores detalhes sobre a os cativos de Viamão. Ao que tiido indica, o priiicipal entrave era a
pop~ilaçãoescrava, os dados para análise ficam bastaiite liinitados. pi-ópria estrutura de posse de escravos da freguesia, onde, conlo vimos,
Por seu turno, os dados do ceiiso de 1798, o último do século XVIII, preponderavam os peqiieiios escravistas.
são bem mais completos, abrangendo homens e mullieres "de todas as
condições, estados e idades". O primeiro indicador a ser analisado refe-
re-se ao número total de escravos na populaçrio total. Para o continente I1 - Gente da fronteira: estratégias familiares
como 11111 todo, este índice cresce eritre 1780 e 1798. Neste ultimo alio dos primeiros povoadores
ele chega, na média, a 37%. Mas, mais iima vez, eni Viamão, a tendêii-
cia é decliiiaiite, o que nos levaria a pensar numa inexorável decadêii- As elites coloniais no Brasil vêm sendo objeto de inúmeros estudos
cia da escravidão africana na freguesia lia medida em que nos eiicami- por parte da historiografia receiite, a partir dos mais diferenciados
iihamos para o século XIX. Todavia, não é exatamente este cenário que erifoques. Uma destas novas interpretações abraça urna perspectiva que
se descortiria quando observamos os núineros dispoiiíveis, confornie subverte os princípios básicos do quadro teórico do 'kiitigo sistema
dados do Quadro 111. Em outras palavras, pode-se dizer que h5 um recru- colonial" (Fragoso e Floreiitiiio) , dernoilstraiido a relativa autoiioniia
descimerito do escra\iisino em Viamao, sendo que eiri 1830 o percentual ecori6mica das elites nativas - no caso, do Rio dcJariciro - diaiite das
cle cativos supera aquele existente eni meados do seculo XVIII. pi-cteiisões coloiiialistas metropolitanas. Outra corrente é represeiita-
da por aqueles trabalhos de história social lios quais os grupos domi-
Quadro 111- População escrava eni Viamão (1751-1830) " nantes são arialisados em relação aos demais grupos formadores da so-
ciedade coloiiial. Este é o caso das abordagens de Schwartz e Faria,
respectivamente sobre os seuliores de engenho baiaiios e do iiorte
fl~imiiiense.Existem tamlléni autores que se prendem ao estudo espe-
cífico das Pziniílias de elite, nomçadameilte para o caso de São Paulo
coloiiial (Bacellar, Costa e Metcalf). Temas como os sistemas de lieran-
ça e as estratégias familiares de reprodução patrimonial são alguns dos
aspectos que sobressaein iieste tipo tle ariálise.'Wo entanto, com exce-
FI-agoso,.]oâo1,rtís. I - ~ « J
~ C~~~
J ~P ??C IlIes
S fS~ l l l l l , ~~. rc~z: L ) ~ ~ I P~ I~
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790-1830).Rio de-Iaiicii-o:(:i\,iliza~áoBrasileira, 1098 (1.etl.); Floi-entiito, Manolo.
J ~ l n ~ i )(. I
o
EJIIcostrr.~7irg~ns:~ r n r n/~islr.ji.indo Ircifico d~ P.\O.(IVOS
e12tre n Á/jj,'a P O Rio ( I P , J ~ L M ? (.s~~lll0.5
~Ju 51'1ll e
12 Fontcs: ,4I1(:r\II'i?l, i(íi5 tle coiifeas,itlou clc 1751, 1778 e 1830; BNKJ, cód. 9, 4, 9 c AI IIJ-RS, cx. ?il.Y). S â o I'a~ilo:(lia. clas 1,cti-as, 1997: Scli~vai-t~, Sl.iiar.t 13. Seg~v(lnrI ~ I L ~ P ) . IPI/~P'
IOJ ~PIL/~O.S
: e /<SC~.~/UOS
9, doc. 43 e 44. n c r socierlndr c.o/o?/irll.Sáo Paiilo: (:ia. das 1,eti-as,1988; Fai-ia, Slieila rle
ção da tese de Osório sobre os hzendeiros e comerciaiites do Mio Grari- coiitexto mais arnplo de rela~óessociais, ecoiiómicas c pollticas da se-
de do Sul colonial, não existern traballios específicos para esta região gunda metade do século XWI1, período fundamental para a configura-
particular da América portuguesa. Todavia, não foi objeto de sua aten- ção dos territórios lusitanos na América do Siil, e particular-mente para
ção a questão das estratégias familiares deste grupo dominante, aspec- a região que viria a se tornar o Rio Grandc do Sul.
to que consideramos fundamental para a própria reprodução econô- A análise dos casamentos não é arbitrária, pois os rnatrimôiiios
mica deste estrato social, qiie estava iiitimamentc viiiculada à questão constitiiíam não apenas urn importante momento para o cstabeleci-
da transmissão patrirnonial.14 mento de aliaiiças, nias marcavam também o estabelecirnei-ito de um
Antes de iniciarmos a análise das estratégias de duas das princi- novo núcleo e a garantia dc manutenção do ciclo familiar. Através do
pais famílias do período coloiiial, devemos prestar aqui um breve escla- estudo do comportamento matrimoiiial, elemento fuiidame~italdas es-
recimento conceitual quanto ao que entendemos por farnllias de elite. tratí-gias familiares, torna-se possível, como afirma Levi, "tirar para dan-
Em primeiro lugar, o termo "elites" será utilizado de forma muito am- çar [...I a sociedade inteira". Nossa concepção de família é apropriada
pliada, sendo elas "definidas como grupos superiores, [...] segundo três da vertente microhis~brica,pois a compreendemos no seritido de "gru-
critérios: statw, poder e riqueza".lWertameiite não faltaram os 3 atri- pos não-co-residentes mas interligados por vínculos de parentela
butos referidos por Burke nestes pequenos potentados dos confins do consaiiguínea ou por alianças e relações fictícias qiie aparecem ria iie-
Império luso-brasileiro. No caso particular do Brasil colonial, somente bulosa realidade institticional do Antigo Regime, corno cunhas
a posse d e (muitos) escravos já possibilitava uma distinção estruturadas que serviam de auto-afirmação diante das incertezas do
socioeconômica que poderia projetar um indivíduo em direção aos es- mundo social [...]".I7 Portanto, não tratamos da família nuclear someii-
tratos superiores da hierarquia social. Mas iião era somente a riqueza te, mas sim de sua "versão ampliada", que abrange além do núcleo fun-
que definia este grupo, mas também o acesso a cargos públicos ou nier- dador origiiial, o coiijuiito de iiúcleos familiares associados. Assim, para
cês, também importantes na defiiiição de um stat~csdifereiiciado na designar este grande griipo familiar, composto pelo "fundador da li-
sociedade colonial. Neste sentido, este griipo (a elite colonial), mesmo nhagem", seus parentes diretos, colatei-ais e por afinidade, ~itilizaremos
não tendo autonomia em relação aos imperativos metropolitanos, foi o termo "iiúclco parental", c~iiihadopor Levi. Trata-se de expressão
de fuiidamelital importâiicia para a garantia e a manutenção dos irite- perfeitamente adequada à realidade por iiós estudada, conio rio caso
resses portugueses na América meridional.'" Não se trata aqui, diga- das famílias de Jerónimo de Ornellas e Francisco Pinto Bandeira, am-
mos logo, de recuperar trajetórias iildividuais com um intento de bos represeiitaiites da primeira elite colonial sul-rio-graiidense.
eiialtecer a ação de alguns "grandes homens", mas sim inserí-10s no Jerônimo de 01-nellas de Menezes era um dos mais aiitigos
povoadores dos Campos de Viamâo, com sesniaria rio atual Morro
Santalia. Seguiido o seu próprio dcpoinieiito7'~stabe1eceu-seem
Castro. A c o l h i a em t~io7~imen/o:fo~tz~i7,a
ejkmilia n,o rotidinno co/o~lial.Rio d e Janeiro: Nova Fron- Viamâo por volta de 1734, tendo constituído uma extensa família, com
teira, 1998; Bacellai; Cai-los tle Almeida Pi-ado. Os senhoizs da íerrn: faniília e sistema sucesscírio 10 fillios legítimos, sendo 8 mulheres. Para felicidade deste madeirelise,
enti-e os senhores d e engeiiho do oeste paulista, 1765-1855. Campii~as:Centro de MemGria/
Uiiicainp, 199'7; Costa, nora Isabel Pailia da. Hernn,ça e ciclo de vida: iim estudo sobre família e nascido rios filiais do séciilo XVII, o fato de ter tido muitas filhas foi
populaçáo. Campiiias: Sáo Paulo, 1765-1850. Niterói, PI'GHistória/UFE; 1997; METÇALF, decisivo na estratégia de reproducão deste grupo familiar, O casanieiito
Alicla. Fainily antl Froiitier i11 Colonial Brazil: Santana d e P~I-iiaítja,1580-1822. Berkeley,
Uiiiversity of Califòrilia Press, 1992.
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1991, p. 16. e il herança imnreric~l:t~njetói-iade uln exorci.rta no I->ie)~zo~zte
(10 s i c ~ ~XVIl.
l o Rio deJanciro: (~i\~iliz~i-
16 "A expaiisáo e a coiiêj~iistade novos tri,ritórios permitiram à coroa portiigiiesa atribuir ofícios çáo Brasileira, 2000, p. 98-99.
e cargos civis e militares, conc:eder privilégios comerciais a iiicIi\lídiios e grupos, dispor de 18 Em uma cai-ta dirigida à Miguel Bi-cis,Jeronirno declarou qiie "[ ...I milito bem lenibratlo estou
no\.os rendimeritos L....] Tais coricess6es eram o desdobi-airicrito d e uma cadeia d e ~wclere d e qrie n o ano d e 1'732 estando Vossa h4ei,cê com seus animais 113 Ferreira ao pé da Guarda, eu e
recles d e hierarquia que se esteildiarn desde o reiiio, propiciando a expaiisão dos interesses Sebastião Francisco o trouxernos a \/assa Merc6 para dentro e Ilie demos esse campo aonde V.
ineti-opolit;tnos, estabeleceildo vínciilos estratégicos coiii os colonos" in: João Fragoso, hlaria Mercê assiste e veio I! Mei,cê somenie a po\roá-lo [...I e passados dois aiios ti.ouxe eu a miiiha
Fei-naiitia Ricallio e Maria cte F5tima Silva (;oi~\-ea,organizaclort.s. O Anl& I<cgirnt!11,05 3-ól,ifos: família para iniiilia fàzt.iic!a e depois ti.ouxe 1 '. A4ercG seu I'ai e seiis iriiiãos ...I". Este docii-
a diiiáriiica imperial portugtirsa (sCciilos ><VI-XVIII).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, nieii to encontra-se i-eprocliiziclo ?rn Joi-ge C;. Felizardo. O sesr,i,eiro do Mol-,-o (JP k Y a f ~>I
l 110. Sáo
200 1, p. 23. I'aulo: Empreza Gi-apliica da Kevist;~dos ?i-ihunaes, 1940, p. 41.
desta filhas com adventícios represeiitoii a possibilidade de alavaiicagem ciaiitcs, que provavclmeiite não eram de grossos cabedais, ao iiúcleo
ecoiiômica deste iiíícleo pareiital, seiido que alguns dos herdeiros des- parental, que se via beneficiado pelo seu provável acesso a algumas das
ta família serão proprietários de enormes fortunas nos princípios do redes comerciais que iam se constituindo nesta região da América Por-
século XIX. tuguesa. Mesmo que tenham sido mercadores de menor expressão,
A história da família de Jerônimo de Ornellas pode ser dividida certamente aportaram algum capital ao circuito familiar, toriiando-se
em duas fases distintas, uma ligada ainda a Laguna (os 3 primeiros gen- eles próprios também fazendeiros. Na verdade, em termos de estratégi-
ros) e outrajá associada ao estabelecimento em Viamão e depois Triuii- as matrimoniais, Jerônimo foi extremamente bem-sucedido, pois coii-
fo. De fato, os matrimônios das 3 filhas mais velhas de Jerônimo iiidi- seguiu realizar pelo menos 7 casamentos (num total de oito) que im-
cani que ele se valeu, em urn primeiro momento, do seu circuito de
pulsionaram o desenvolvimento do núcleo pareiital.
relações ligado ao tropeirismo. José Leite de Oliveira, Francisco Xavier
Aprofundando ainda mais a análise do núcleo parental d e
de Azambuja e Manuel Gonçalves Meirelles foram todos tropeiros, à
semelhança do próprio Jerônimo, que teve filhos ilegítimos com mu- Jerônimo de Ornellas podemos perceber os efeitos das estratégias fa-
lheres oriundas das Minas e de Curitiba, pontos cruciais da rota dos miliares sobre o grau de acumulação e nível de prosperidade dos seus
tropeiros de gado. Esta filiação bastarda, aliás, nos revela um pouco a membros. De fato, não parece ser casual que entre as 10 maiores for-
respeito dos caminhos percorridos pelo sesmeiro do Morro Santai~a.~" tunas iiiveiitariadas rio Continente entre 1765 e 1825, duas fossem
Por outro lado, se tomarmos outra fonte, como os registros notariais, pertencentes a indivíduos ligados à família do sesmeiro de Saiita Aniia.
podemos reconstruir um pouco das redes comerciais e de sociabilida- Estes são os casos de Antônio Xavier de Azambuja, neto de Jerônimo
de de Jerônimo de Ornellas. Em janeiro de 1764, o velho sesmeiro apre- e Antônio Ferreira Leitão, marido de uma neta sua.22Esses dois indi-
seiitou-se "em pousadas" do Tabelião Ignácio Osório Vieira, onde regis- víduos são represeiitativos do topo da escala social, que seriam consi-
trou uma procilração, riomeaiido representantes seus em diversas loca- derados como membros da "elite" em qualquer lugar do Brasil colo-
lidades: na própria freguesia de Viamão, na freguesia nova (Triuiifo), nial. Tomemos o caso paradigmático de Antônio Leitão como o da
em Rio Grande, na ilha de Santa Catarina e no Rio de Jaiieiro. Dos 17 trajetória de um membro típico desta elite que estamos definindo.
procuradores que nomeou, 4 eram seus geiiros, o que demoiistra a Natural da vila de Peniche, cidade litorânea da Estremadura portu-
importância dos maridos de siias filhas como herdeiros e representan- guesa, ele nasceu em torno de 1730, tendo iiiiciado sua vida como
tes de seus negócios. Assim, iia fase filial da sua vida, aparecem ligações marinheiro lia frota que fazia a rota Lisboa - Rio de Janeiro. Eni uma
com outras regiões, em particular algumas cidades portuárias, difereii- destas viageris, acabou ficando ria futura capital do vice-reiiiado, onde
temente das regiões iiiterioranas anteriornieiite citadas e percorridas "se pôs a navegar para a vila do Rio Grande e para a dita cidade [do
pelo sesnieii-ode Santa Aniia, lia fase tropeira de sua vida.") Rio de Janeiro] e algumas vezes para esta freguesia de Viamão, onde
Q~iaiitoaos outros 5 geiiros que compõem a pareiitela imediata está morador iiesta freguesia nova [...I ". Acabou se estabelecendo em
de Jerôiiinio, podenios perceber uni outro perfil, especialmeiite quaii- Triuiifo, ondejá em 1760 tiiilia "sua casa com vários gêneros de fazen-
to ao tipo de ocupação. Nenhum deles tiiiha sido tropeiro e neni todos da" e acabou se casando neste mesmo alio com Maria Meirelles de
tinham concessões de sesmarias. Dois eram militares de carreira, sendo Menezes, filha de Manuel Gonçalves Meirelles, genro de Jerôiiimo.
o ííltimo genro provavelmeiite lavrador e o menos aquinlioado de to-
Não se tratava de mercador de restritas relações, pois possuía procu-
dos. Q~iaiitoà origem geográfica, pei-mancce o predomínio r n i n l i ~ t o ~ ~ radores em Viamão, na ilha de Santa Catarina, rio Rio de Janeiro, em
(3 dos 5 geiiros em questão), havendo um origiiiário de Coimbra e Lisboa, além da sua cidade natal, Peiiiche. Todavia, como muitos
outro da Madeira. A fami'lia Orliellas também incorporou dois cornc:r- outros comerciantes coloniais, Antônio Leitão acabou gradualmeiite
abandonando os negócios e dedicando-se à atividade de estancieiro,
que lhe conferia um stutus social mais elevado, dentro desta socieda-
19 Estas i11fi1rrnaç6essáo retiradas d e dois termos d e batismos de netos deJerÔnimo tle Oriiellas. de de Antigo Reginie, onde a rnercância estava associada ao "defeito
Vt:i- AI-Ií;h/lPh. 1qI,izi~o de Bnli.rmos d p 17innz~o( 1 747-1759), fls. 60 e 84. meciiiiico", não coiií'eriiido prerrogativas de nobilitação àqueles que
20 XI'KS - 1" Notariado de Porto Alegre, I,i\,ro 1 (176~3-17(i6), fls. 18v-1'3.
21 Para as riIoti\.açóes tia einigração niinliota pa1.a o KI-asil,ver Ro~vlaiid,Kobei-t. "Bi-asileiros do
A~Iiill-io:eniigração, propriedade e fàiiiília", 111:(Org.) Francisco Uetl-ieiicotirt e 161-ti(:haiidiii.i
/)or./ujircesci,v. 4, Namrrri, 1<)98,1). 324-347.
I-ii.stór7a (10 r.x/)(~ruCo
se dedicavam a esta atividade. Assim, na Relação de Moradores (1784) dcira era portugues e sua mãe, <:atarilia de Brito, era fillia mestiça de
ele constava irI como fazendeiro, dono de mais de 7 iiiil animais e
d um paulista (Brito Peixoto) com uma indígena. Apesar de seu nome
grande criador de mulas, pois possuía 48 echores. Como uma elite estar associado a diversos feitos heróicos da história inicial do Rio Gran-
não se define somente pela riqueza, inas também pelo poder, vamos de, envolvendo as coriquistas portuguesas (Colônia e Rio Grande) e as
encontrá-lo por esta mesma época (1782) como juiz ordinário da Câ- disputas com esparihóis e índios missioiieiros, preferimos, por detrás
mara em Porto Alegre, conduzindo processos criminais. Enfim, no da legenda, eiifocá-I« como exemplo clássico de um patriarca do Anti-
seu inveiitário, datado de 1810, consta um vultoso monte-mor de mais go Regime português nos trópicos, o que pode nos ensinar algo sobre
de 43 contos, sendo que ele possuía cinqiieiita escravo^.'^ o modo de vida e as estratégias familiares de um destacado membro da
Jerônimo de Ornellas morreu em 1771, tendo convivido corn to- elite socioecoi~ômica.
dos os membros da sua parentela que foram mencionados até agora,
A presenca de Francisco Pinto Bandeira em Viamão remonta pelo
mas o inventário foi aberto somente no ano seguinte por sua viúva, menos a 1739, quando estava "governando a guarda de Viarnão". Ape-
Lucrécia Lemes Barbosa. Observamos no seu caso, uma discrepância
sar de seu primeiro filho, Rafael, ter nascido (na verdade, foi batizado)
em relação ao padrão das estratégias familiares verificadas entre os se-
ainda em Rio Grande, é indúbitável que a residência da família já fosse
nhores de engenho paulistas, por exemplo. Diferentemente das famíli-
na estância de Gravataí, o qiie é confirmado pelo Mapa das Fazendas
as da elite caiiavieira, que acabavam privilegiando deterininado herdei-
ro na hora da partilha, nesta família de estancieiro a partilha foi, ao
(1 741), onde Pinto Baiideira já aparece deiitre os estancieiros de
menos em tese, rigorosamente igualitária entre os herdeiros. Seria esta Viarnão. Dez anos depois, em 1751, no primeiro rol de confessados que
uma prática comum do conjuiito das famílias da elite sul-rio-grandeiise? dispomos para Viamão, ele tem dezenove escravos africanos, além de
No momento não é possível ainda responder esta questão, mas há indí- iim índio cativo. No seu inventário, executado em 1772, o seu plante1
cios de que pode ter havido um padrão senielhaiite ao de São Paulo no de escravosjá havia praticamente duplicado, serido neste momento de
século XVIII em alguns casos, como o da família Pinto Darideira. 37 cativos. Indício claro da capacidade de acuinulação deste meinbro
Francisco Pinto Bandeira era certamente um dos próceres da da elite colonial, que através de estratégias diversas, como a apropria
primeira elite colonial sul-rio-graiidense, quaisquer que sejam os cri- ção privada de terras ou as corridas de gado,2%oiiseguiu multiplicar
térios da avaliação utilizados. Para exeniplificai-, a cornparação das for- sua riqueza em um período particularmente conturbado da coloniza-
tunas (montes-mores) constantes nos inventários de Jerônimo de ção lusitana 110 Rio Grande, coiiio foram as décadas de 1760 e 1770,
Ornellas e Francisco Pinto Baiideira nos dá bem a iiiedida das dife- niarcadas pelos conflitos com os espanhóis.
renças de cacife entre os dois fdzeiideiros. Coincideritemerite, arnbos Assim como Jerônimo, o estancieiro de Gravataí também teve
faleceram no mesmo ano (1 771), o que favorece a perspectiva com- uma numerosa descendência, totalizaiido oito fillios, sendo 4 liomens
parativa: 1:522$860 reis era a fortuna do sesineiro de Saiitaiia, en- e 4 mulheres. Nos deteremos priiicipalniente nesta parentela direta de
quanto a de Piiito Baiideira a1canc;ou o total de 12:997$040, ou seja Francisco Piiito Bandeira, com exceção do caso de Rafael Piiito Ban-
um patrimoiiio 8,5 vezes rnai~i-.'~ deira, q ~ ijá
e dispõe de um documeiitado estudo feito por Augristo da
Francisco Pinto Bandeila nasceu em Laguna (1701), sendo neto Silva. No caso desta fimília de elite, parece que realmente o herdeiro
de Francisco Brito Peixoto e uma índia carijó. Seu pai, José Pinto Ban- privilegiado foi o priniogênito, apesar das leis igualitárias de sucessão
em vigor no direito português. A partir de uma "lierança pouco coiivin-
cente", lias palavras do biógrafo de Rafael, o filho mais velho de Fran-
ele An!c?~?,io
2:3 AI ICA/I[-'A,Hfl/jilitn~ciol~intri~~zoninl P?j.1-c.il-nI,eit6o &?hinr-ic~iZ/lei~ellesde A~fenezrs.Eieiiifo, cisco pode constituir rima das maiores fortunas do Continente, tlasea-
17(jO,n"7; APKS, IWotariado, L,ivi.o 1, fls. 89-90 (19.01.17(35) e Cartót-io do Júri - Sirmários,
Maço 1, 11" (1782);AlIIIS, Relnç6o de i\/lo~~ntlol~ (h Siz~nfò, 1784; e Osório, 11. o/). cil. 11. 242.
24 ''Inyen tario cle.Jerfitiiino tfr Ori~ellasMeiieses e Va,qcoi~celos".In: He-oisln do I~islilrlloWisió1iro
GeoguíJico do Rio G~.nnde(/o SILI, 80, 11. 3.57.-416, 1940. O valor do monte-mor está lia p. 390;
Itiventái-io tle Francisco Piiito B;~licleira.111: Silva, A~igilstocla. Ii'qli~elPij~toBcindeircl: tle t)aiido-. 25 Isto foi declai-ado pelo próprio Fraiicisco Pitito Bandeira, como depoente d e iim pt-ocrsso de
leiro a ISo\rcrtl;iclor- Kelaqões eiiti-e os poderes pt-ivado e píiblico eni Rio Grande tle Sáo crisarnento:" I., ] hat.er.5 três ai-ios qiie o jiistificat~te[tioi\~o]aiida corn ele testemiiiilia indo
Pedi-o. Porto Alegre, PI>C;-I-Iistória/IJI.'lIC;S,1<)90,p. 158-174. O \ialor do monte-~norvsiá tia t). \,irias v e m à cainpan ha, a coi.t-idas d e g;icion.AI-Ií;A/IPA. Ll(zDi/ifc~~cio r/? Fj;in~zcisco
~rrcllri~iro~zinl
169. 0 s valores aciina citados referem-se ao rilomeiito eni cluc. f'oi fèito o ":i~itotle partill-ias" de U Isnhrl (hrrricl cio h-crtlo,Viaii-iiio, 1760, n" 9. A ii-ifòi-i-iiaçãotle que estaria
Ar~lc?)riode il~1io1711~
cada iiiveiitArio, o que se dvii eiii 1782 t. 1772, respc.cti\,aniente. cni Vianiâo erii 1739 tanibini 6 dacla 11~10 pt-ópi-ioKai-ideira, cni oiitra li;ibilitaç,'io, datada d e
1753. Cf: Neis, IPiiheri. G u n ~ d nkll~lrde I'in~rldo.1'01-to Alegre: Stilii~a,1075, 13. 7(i.
da em negócios lícitos e ilícitos e que poderia certarnciite coiistar de Guimarães, arcebispado de Braga. No seu depoiniento afirmou que
qualquer listagem dos mais destacados patrimonios sulinos."' vivia de neg6cios de fazendas e "viera de sua pátria para a cidade do
Da rnesma forma que na família de Jerônimo, neste riiicleo Rio de Janeiro de idade de 12 para 13 anos [...I ; veio embarcado do
parental também percebemos o importalite papel exercido pelos geii- mesmo Rio de Janeiro para a Praça da Colonia do Sacramento e daí
ros. Nos referimos a dois militares, também comerciantes, respectiva- se passou para o Rio Grande e se transportou às Missóes na comitiva
mente Bernardo José Pereira e Custódio Ferreira de Oliveira Guirna- do Exército e lia retirada ficou morador nestes continentes de Viamão
rães. Pereira era natural da vila de Provezende, arcebispado de Braga aonde tem residido há nove anos". Após o casamento também
(Portugal), tendo casado com Maurícia Aiitônia de Oliveira, fillia de afazendou-se no distrito do Rio dos Sinos, onde era graiide proprietá-
Fraiicisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira. Na vila do Rio rio de escravos. Paralelamente a sua atividade de estancieiro, Guima-
Grande foi alferes de ordenanças em 1760 e ajudante de ordens do rães também permaneceu ligado à carreira militar, chegando ao pos-
governador Ignácio Eloy de Madureira até a invasão espaiiliola. Com to de capitão da Cavalaria Auxiliar em 1'782. Era personagem de rele-
a tomada de Rio Grande pelos castelhanos em 1763 veio para Viamão, vo na freguesia de Triunfo, aparecelido até mesmo como testemunha
onde acabou ligalido-se ao núcleo parental de Pinto Bandeira. Quan- em um processo inquisitorial referente a um caso de bigamia ocorri-
do contraiu matrimonio com a segunda filha de Francisco, Pereira do na década de 1'790.28
recebeu como dote um campo de 3 por uma léguas, afazendando-se Apesar de nos determos em apenas duas famílias de elite, pude-
em Triuiifo, tornando-se morador na "Ilha do Rio dos Sinos". A traje- mos perceber algumas difereiiças em relação aos padrões básicos da
tória de Bernardo José Pereira é significativa, pois é de certa forma elite dos senhores de engenho. Em primeiro lugar, não parecia ser im-
modelar, iio que tange ao processo de ascensão social de alguns emi- presciiidível o favorecimento de um determinado herdeiro, em fuiição
grantes portugueses que acabaram se constituíndo em membros da da própria natureza da atividade agropecuária aqui praticada. Difereii-
elite regional duraiite o século XVIII. De modesto caixeiro, passou a temente da terra dos engenhos, onde a unidade produtiva não poderia
bem-sucedido negociante, ao mesmo tempo que exercia fuiições mi- ser dividida, a propriedade fuiidiária e os rebanhos eram bens que po-
litares. O próximo passo foi o casamento, que lhe guindou a uma deriam ser divididos de forma mais ou menos equânime entre os lier-
posição destacada no núcleo parental dos Piiito Bandeira e lhe abriu deiros. Este parece ter sido o caso de Jerôiiimo de Oriiellas, que coii-
possibilidades de compor com a elite fuiidiária local. A etapa final da templou cada um dos seus filhos com um pequeno qiiinhão do seu
sua trajetória está marcada pelo ocupação de cargos no aparato admi- pati-imôiiio, ernbora nos dotes dados às suas íillias não coiistassem ter-
nistrativo colonial, o que evidencia mais uma vez sua posição de desta- ras. Mas, no caso de Francisco Piiito Bandeira, apesar da divisão iguali-
que social. 6 desta forma que o encontramos no cargo de juiz ordiiiá- tária do patrimôiiio entre os lierdeiros, de Fato houve o favorecimento
rio, conduziiido "devassas" em 1786 e 1793; 110 primeiro caso iiivesti- do filho mais vellio, Rafael. Isto não sigiiifica, rio entanto, que alguiis
gaiido a fabricação de moeda falsa rias vizinhanças de Rio Pardo, "as- genros també m rião pudesseni ter sido favorecidos, como mostramos
sim de moeda castelliana, como de 640 rCis, moeda portuguesa [...] ", no caso de Bernardo José Pereira.
enqiianto no segundo devassou um caso de assassiiiato de uma escra- Isto nos remete ao segundo aspecto das estratégias familiares, que
va em Pir-atini, que resultou em um "auto de sequestro de bciis" do trata da política de dotes benevolente para a t r a ~ ã ode "bons" genros,
senhor criminoso que havia cometido o homicídio.*' principalmente cornerciaiites. Aqui temos uma aparente similaridade
O percurso social de Custódio Guimarhes, outro genro impor- nos padrões cornpoi-tamentais da elite estiidada, pois tanto no caso de
tante de Fraricisco Pinto Bandeira, guarda muita semclliaiica corri o Jcrôiiimo, quanto no caso de Francisco Pinto Bandeira, vemos que cm
de Bernardo Pereira, anteriormerate esboçado. Casou-se com Desideria algurria medida esta cstrategia foi adotada. No caso do iaúclco parental
Maria Bandeira tarnbéni no ano de 1763, quando declarou ter idade de Ornellas, ciicontranios esta prática sendo utilizada tanto por
de 29 anos e scr natural da freguesia dc Nossa Senhora de Oliveira,
69
Jerôiiimo, que casou duas de suas filhas com iiegociaiites, qiiaiito por verdade que José Raymiindo "migra" para São Paulo, para cobrar dívi-
alguiis de seus genros (Azarnbuja e Meirelles), que tambéni procilra- das da família segundo a versão oficial, coiistaiite do inventário, mas
ram atrair pai-a o grupo familiar alguiis mercadores ligados às redes provavelmeiite para também escapar à Justiça colonial, devido ao seu
conierciais do centro da Colônia, especialmeiite do Rio de Janeiro (este envolvimento no caso de um homicídio de iim açoriaiio. Esta estratégia
é o caso de Antônio Ferreira Leitão, que se tornaria um dos rnais ricos torna-se mais evidente rio caso dos Piiito Bandeira, em que vemos que
proprietários da capitania no início do século XIX). Também a família alguns dos irmãos mais jovens de Rafael acabam se instalarido em Tri-
Piiito Bandeira se valeu da estratégia de atrair homens qrie viviam de uiifo, fazeiido uni movimerito que caracterizava a ocupação de uma
seu "iiegócio" para se tornarem maridos de suas filhas. Aqui eiicontra- zona de fronteira,já que o território desta freguesia era ainda conlieci-
mos ao menos dois casos importantes, o j á citado Bernardo Pereira e o do como "Terra de Tapes" na década de 1'150. Neste caso particular, é
poderoso coronel Custódio Guimarães. Como miiitos oiitros homens possível pensar que, dado o favoreciniento do primogêiiito, os irmãos
de negócio do seu tempo, ao se casarem estes também foram abando- mais novos acabaram procurando terras em outra freguesia, adjacente
à de Viamão.
nando gradualmente a atividade mercaiitil, tornando-se prósperos es-
tancieiros. Parece que aqui temos a recorrência de um padrão comum O que fica claro nestes casos analisados é a impossibilidade de se
pensar as estratégias familiares desta elite iiiseridas eni um modelo
na América Portuguesa, identificado por certos autores, corno Joáo
sucessório previamerite coiicebido, fosse ele igualitário ou iião. A
Fragoso e também por Sheila Faria: o comerciante procurava se afastar
historiografia que tratou da questão específica das práticas s~icessórias
da atividade mercantil, visto que em termos de status social esta nâio era
conceiitrou suas análises sobre as elites canavieiras do sudeste. Neste
enobrecedora, ao contrário do ser senhor-de-engenho ou grande fa-
grupo social foi possível identificar pelo menos dois padrões distiiitos,
zendeiro ou estancieiro. iim matriliiiear - onde a transmissão da herança se fazia pelas filhas,
Quanto a uma estratégia de migração dos herdeiros desfavorecidos, havendo uma sobrevaloriração dos gciiros - e outro patriliiiear, onde a
visando o desbravamento de iiovas zonas de fronteira agrícola, aqui te- traiismissão patrimoiiial se fazia pelos filhos, embora alguiis genros
mos uma dificuldade adicional na teiitativa de comparação entre os
pudessem ser escolliidos."' O que deve ser destacado aqui é que deiitro
casos de São Paiilo e Rio de Janeiro e o caso do Rio Grande do Sul. de uma mesnia elite poderia existir mais de uin modelo ou padrão
Diferentemente dos casos de Campinas ou Campos de Goitacazes, por sucessório. Para Bacelar, isto se deveria a iima tlifereiiciação na situação
exemplo, na região de Vianião e adjacêiicias existia um elenieiito ecoiiômica das regióes açiicarciras, algumas rnais diiiâmicas, como o
complicador. Não se tratava de iiicorporar simplesmente novas áreas Oeste paulista e outras, onde a atividade caiiavieira passava por algu-
para plantio de canade-açúcar, coiistit~iíiidonovos eiigenlios. A expari- mas dificuldades (especialmeiite o eiidividaiiieiito crônico dos sciiho-
são da coloiiização lusa nesta região, que tanibém demaridava terras res de engerilio), como a rcgiáo dos Campos de Goitacases. Segundo
para a criação de animais e para agricultura, estava limitada pela exis- este autor, riem sempre seria um privilégio Iierdar um eiigciiho, dcpeii-
tência de uma situação de fronteira muito mais complexa do que um deiido das condições ecoiiôniicas mais ou menos adversas em que ele
mera fronteira agrícola ou ganadeira. Na verdade aqui temos uma fron- se eiicontrasse.")
teira entre os dois impérios ibtricos, além de uma fronteira iiidígena Esta discussao sobre a pliiralidadc dos rriodelos nos remete a
(todo o território ao sul do Jacuí era denominado como bgTerrade Ta- uni tema caro aos praticaiites da micro-história, iim certo ceticismo
pes" ainda na década de 1750).Não era possível aos colonizadores irem quanto à validade analítica das tipoloçias coristrriídas a firiori. Se to-
simplesmente se expaiidindo pelas terras iricultas, pois haviam litígios
quanto a posse das áreas de expansão. Coiiflitos estes que poderiam ser
tanto com os viziiilios castelhanos, quanto com os indígenas, fossem 29 Na priiiiril-a pprispec~ivaestào os tial~alliosclr Slieila Faria ( 1998) e Alicia Metc;iit (1983). Os
eles "selvagens" ou missionriros. 'Todavia, durante os períodos de paz relxexntailtes c-la stagiinclavertente são Racellar ( I 997) e Dora Costa (1997). Faria e hletcalf
clcswcani ;i inipoi-íiiici;i (Ir iini parll-jo d e tr;iiismissão ni;itrilii-i<:ai-da Iie~iiiça,oiirle os geiiros
foi possível a expansão em dircção ao sul, garaiitirido aos dorníriios ~lesernpeiili;inium papel central lias estratégias Eimiliares. Por seii (iiriio, Bacellar e Costa
lusos territórios que origiiialmente pertenceriam aos domínios rspa- apon tarn cluc as piriticas s~icessói-iasda elite cailavieira p~itilistanao sc dava pela \,i;i niatriliiieat;
rihóis. Não é possível percrber o uso da estratégia de migra<;ãodos 1ia1,eiidotiniu opção pr<:l:reiicial pelos honir~rs,enihora iilgiiiis grlil-os t;inibCoi piidessei~iser
cscolliiclos Sei-ia iim sisiciria siicess6i-io d o tipo "lieicir)g(~iro'~, privilegiiiiiclo 01-21 (3s fillios,
herdeiros dcsfavorecidos i10 caso da família de Jer6iiini0,~jáquc todas ora as filliíis. \'(.i. Bacellar. O ~ .rs ~ r / l r o dn
~ ~ ~/PI.I.{L.
r I CIO/, p. Ir>.-l6"
as siias fillias se casani c prrmaiiecem em Viamão ou crn Triunfo. E 30 Bacellai; o/). cil. 1). 15..18.
marmos as Ordennçóur Filzpinas, veremos que a legislação atribuía unia am, então, os elementos constitutivos de um modelo sucessório em uma
igualdade na partilha de bens entre os herdeiros. Todavia, este mo- sociedade de Antigo Regime que não estava viilculada à agroexportação!
delo "legal" poucas vezes parece ter sido cumprido fielmente, o que I
Esta era uma sociedade que supostamente se diferenciava das socieda-
nos indica a possibilidade de uma multiplicidade d e práticas
I des da região canavieira do sudeste, especialmente pelo fato da trans-
sucessórias. Isto não significa que não existisse modelo algum, mas missão das heranças não envolver o problema da indivisibilidade dos
antes sugere que os modelos que usamos podem ser pouco aplicá- engeiihos. Considerando o que foi observado nas nossas histórias de
veis. Giovanni Levi destacou a importâiicia de se repensar a utiliza- família, pode-se elencar os sepintes elementos de um modelo sucessório
ção dos modelos de análise social e nas suas investigações a intenção que possa dar conta das realidades sociais do extremo sul da América
era construir modelos que dessem conta do caráter processual e Portuguesa durante a segunda metade do século XVIII:
generativo de seus objetos, ou seja, "modelos que pretendiam com-
preender processos e não apenas realidades estáticas e que para isso As formas de transmissão patrimonial não apresentavam u.m padrão per-
deveriam incluir nos seus parâmetros internos as variações, a reali- feitamente definido, prevalecendo uma tendência matrilinear, matizada
d a d e individual". Numa crítica aos modelos estruturais/ pela possibilidade de favorecimento de alguns filhos;
funcionalistas, ele passou a resgatar as estratégias individuais e de . A concessão de dotes era uma prática fundamental, significando a for-
grupos, no sentido de compreender de que modo engendravam-se mação de novas alianças familiares, com arranjos matrimoniais envol-
nas situações singulares os processos sociais de grande escala. Daí vendo, quando possível, genros comerciantes ou indivíduos que tives-
decorre o uso da metáfora da rede - influência de Barth - para des- sem alguma posição social de destaque;
crever o tecido social: "O conceito de rede conduz de fato, antes de . A ascensão social dos comerciantes que ingressavam nas fdmílias
tudo, a procurar definir quais são as ligações reais que sustentam os terratenentes passava, na maioria das vezes, pela ocupação de cargos na
grupos sociais e quais são os conteúdos profuridos que neles são ne- Câmara ou postos nas Ordenanças, sendo que o caminho mais comum
gociados". Esta negociação implica em admitir a existência de "es- era o negociante tornar-se fazendeiro após o casamento;
tratégias" individuais e de grupo que podem ser reconstituídas, de- .A migração de alguiis dos herdeiros excluídos para uma região de fron-
volvendo ao historiador a inteligibilidade dos comportamentos ~ o c i n i s . ~ ' teira era prática recorrente, sem que esta opção se configurasse necessa-
Não se trata de reconstruir situações típicas, mas como afirma o riamente como desfavorável, na medida em que possibilitava o acesso a
historiador italiano, "revelar os elementos constitutivos de um mode- recursos materiais importantes (como a posse da terra, por exemplo).
lo". Como destacou Lirna i?" "a crítica aos macro-modelos estáticos ba-
seava-se antes de tudo em uma recusa do seu pressuposto básico, isto é, A transmissão das heranças podia assumir formas muito diferen-
a concepção de que a estrutura social ampla era constituída de iim modo tes. No caso da família Pinto Bandeira, encontra-se um aparente
totalmeilte homogêneo e respondia a uma coerência iriterila que ex- igiialitarismo entre os herdeiros, mas na prática foi beneficiado o
plicaria por si só todas as variações". Esta perspectiva, assentada em uma primogênito Rafael, além dos genros casados com as 3 filhas mais ve-
descorifiança em relação aos grandes esquemas abstratos dc cxplicação Ilias de Francisco. O seu filho Rafael foi beneficiado por ter herdado a
histórica e na recusa de ur;ia causalidade meca~iicistao levou a tentar condução direta dos negócios do seu pai e os genros por terem recebi-
entender as formas familiares a partir de uma tipologia construída a do vultosos dotes, bastaiite superiores às legítimas que teriam direito.
posteriori. Não se tratava de tima "simples descrição de forrrias", mas sim Aqui não houve predomínio de uma transmissão matrilznear ou patrilinear,
da construção de um rnodelo processual ou generativo onde aparece- mas antes uma combinação de ambas as formas. Houve um certo privi-
ria a eriunciação dos seus "priiicípios de f u n ~ i o n a m e n t o " Quais
. ~ ~ seri- légio de um herdeiro nesta sucessão, rnas certamente nesta estratégia
familiar foi importantc a fiiiição do dote, na medida em que possibili-
tou o ingresso de pelo merios dois genros que ocuparam posição de
31 Lima FY,Heiirique Espada Kodiigiies, Miiiortoiio: rsrolor, indirior r siriguLulriiidni1rs. (hmpinas: destaque naquela sociedade. Os seciliidogênitos foram aparentemente
Uiiica~np,19914 (Tese de cioiirorado), p. 25" 258-2.59. A iclkin origiiial dos "modeios
geiiei-ativos" vem tarrih6rri da iiiiluêsicia t j a r t h i a a sobre t,evi. preteridos, sendo que efetivamente os filhos mais novos acabaram mi-
i 2 l.evi, 01). r i i p. 99: I.inia F", o/>. r i i p 257 r Koseiir~l,Paiil-,411drk. "Cuiisti~iiiio inacro prlo grando para áreas de fronteira, como era, naquela coi:juntura, a fre-
niicro: Fiedei-ik Bartli e a riiicrostoi.ia". 111:Jogos tle c.st.c~ln,s.Rio de Janeiro: Editora cla F(;l',
gilcsia de Triunfo.
1998, p. 164-166.
A família de Jeroiiinio de Ornellas mostra uni caso de rigoroso Estancieiros que p
igualitarisrno, aléin de uma opção pela transmissão matrilinear (em
função da inexistêricia de herdeiros masculiiios habilitados). Todos os que criam e comerciantes
genros foram dotados, mas os valores dos dotes foram baixos e não
tinhani terras. Curiosamente, neste caso em que houve uma opção cla-
@e charqueiam: Rio Grande
ra elas filhas, os dotes não foram os maiores atrativos, embora não
I
c.
de São Pedro, 1760-1825
possamos menosprezar a importância dos meios de produção que to-
ram transmitidos (escravos e gado). Não houve neste núcleo familiar
uma opção explícita por genros comerciantes, nias a maioria era bem
posicionada socialmente e muitos deles eram proprietários de terras e Este texto apresenta várias conclusões da tese de doutoramento
homens da governança. Como nesta família não houve herdeiros pre- Estancieiros, lauradores e comerciantes n a constituição da estrernadura portugue-
teridos, a estratégia de migração simplesmente não se verificou. Estes sa n a América: Rio Grande de São Pedro, 1 737-1822,' relativas à caracteri-
casos demoiistram a fragilidade analítica dos modelos descritivos das z a ~ ã odas estruturas agrárias e dos principais grupos de produtores exis-
estratégias familiares e nos indicam a necessidade de novas pesquisas tentes no Rio Grande do Sul colonial. Abandonando o uso quase exclu-
que possam confirmar a extensão dos elemeiitos constitutivos do mo- sivo das sempiternas memórias e relatos de viajantes, debruçamo-nos
delo anteriormente enunciado. sobre outros tipos de fontes, seriadas, que são mais adequadas para o
estudo das estruturas agrárias e das unidades produtivas. Inventários, tes-
tamentos e censos agrários foram utilizados para delinear uma paisa-
geni agrária e para traçar um perfil destes grupos, esseiicialmeiite em
seus aspectos relacionados à produção. O resultado da investigação
contradiz em alguiis aspectos a visão mais difundida e simplificada do
campo gaiícho, no qual existiriam apenas grandes propriedades, lati-
fiíiidios, dedicados exclusivamente à pecuária, e que a experiência agrí-
cola teria se resz~midoao núcleo de migrantes açorianos.
Um segundo problema que nos colocamos foi o de tentar deter-
minar quem constituiu o núcleo charqueador nos primórdios da capi-
tania e depois província do Rio Grande de São Pedro. Dada a irnpor-
tância ecoiiômica desta atividade, com seus desdobramentos sociais e
políticos, a resposta a esta questão pode contribuir para o avanço da
histoi-iografia acerca da primeira metade do século XIX.
panha de Buenos Aires, seg~iiidocensos de população da metade do trapasse o percentilal encontrado-, pois esta informação dependia do
século XVIII e início do XIX," com maior concentração nas áreas mais detalhamento com que o capitâo do distrito realizasse a "Relação9'.
próximas do grande mercado que se constit~liulia cidade de Buenos Outras características definidoras de cada categoria serão deduzidas
Aires. Por exemplo, no distrito de Areco Ar-riba, um censo de 1815 da análise de outras variáveis como tamanho do rebanho possuído e
apontava que, de 259 pessoas com ocupação conhecida, 134 eram forma de acesso à terra.
"labradores", 67 "estancieros" e 53 "jornalero~".~ O tamanho do rebanho possuído por cada proprietário é o único
dado relativo à produção, além da ocupação declarada, que a "Rela-
ção" fornece. Como podemos observar no Quadro 2, ele é bastante
Quadro 1 Ocupação dos possuidores de terras, 1784. elucidativo acerca das denominações das ocupações e da própria estru-
I I tura agrária.obra escrava.
~ u c u p a ç a oreses
l I bois I cavalos Iég
I criaaor 1 852 1 8
-
1 27 1 344 ( 31 1 7 1 6
1 Os temas tidndos aqui foiani dl:sei~\ol\fi(losn'i iniiilia Tew <Irdotitoi;itlo: O iio~zzo~~ic. (10 I?«I,~IL-
no: n J < ~ / ) i i l i i ~??O i dri I'inin (1835-184 7). Rio d c J'iiicii o: LJFKJ
r i ,piiiidc.)~srP o i < A ' ~ ~ d z l(l/ O~ oRIO
i 2 Frnin J«;iqiiirn Jus6 da Silva e <:ia eJ0:iohlai-tiiis Bar~.oso,ainhos priiicipais conierciaiites de (rnimeo), 10'38.
1"-ociiitos gaiiclius no Rio deJiiireii-o lia s ç ~ i i ~ i <cikracla
lii do sii:iilo X I S Iiivciit,íriu í1e Uiiltezar 2 Moreno, hlariiiiio. Hriii Knioii~rioiiriiiuiir O/)einiioii<.r.Biieiius Aiics, I'liis Ilitl-a, p. 73.
(;(jnit:s \iiaiiii:i. APEKGS, 1- cartório 6rf2os e 1)rovcdoria Pclotas, 11.45 a .52, niç. 4, 1820.
3 Varc:la, Alfiwlo. As wi1oluc6e,~ (ii,~/)Loli?/o~. I'ortc): (-;li;irdroii, 15115,1,. I , .1,
33 In\reiit:íriu tleJosé AntOiiio da Sil\r;i Neves, AT'I.;K(;S, 1'' cartório de órfàos e aiisentes de Porto
Alegre, 11.'701, inç. 28, 1830. 4 I'iil>lica~óçsdo Ai-qiiii80Narioii;il (411) X X S I Ale)oóriii Histiiiirn i i i Kodiigo ric Soiizn l>oizt<i>. Kio clc
Janeiro: Oíiciiias (;t.áSic;is cio Arqiii~~o N;icion;il, 10:1.'>.p. 177-236.
Assini, eram difíceis articulações que conipronietesscm estes obje-
Bento Goiiçalves n2o escapoii ao arrastanieiito que awiltou a lioste de tivos, o que limita milito o alcance do "federalismo9'no do Rio da Prata;
Artigas com os riograndeiises liberaes".0utros autores negaram mais o nível mais elevado que atingiram os acordos iriter-provinciais foi o
tarde essa iiicorporaçáo a Artigas, sustentando que Bento Gonçalves das Liças, qtie eram formadas quando algumas unidades temiam inter-
serviu sempre as forças portuguesas lia Banda Oriental." venções centralizadoras por parte d e outras. Corno observou
Mesmo sem iilfluências mais radicalizadas, a presença de Bento Chiaramonte, o que "solemos coiisiderar como tendeiicias federales
Gonçalves e de outros tantos chefes da fronteira em território oriental coiisistía, eii realidad, eii políticas de unióii confederal, cuaiido iio de
permitiu-lhes o convívio com as propostas federalistas que circulavam siniple ligas o aliaiizas. Políticas c011 las cuales Ias llamadas provincias
amplamente pelo Prata. A luta armada de Artigas sempre tivera tintas actuabari eii calidad de Estados indepeiidierites y soberalios" ."
muito fortes em relação às autonomias proviliciais - contra os anseios Os senhores da fronteira do Rio Graiide - historicameiite afirma-
uriitários de Buerios Ares - e sua concepção federal de uma Pátria Grande dos como poder local pelas extremas dificuldades das autoridades cen-
contemplava estes interesses: a Liga de1Litoral reconhecia-no como "Pro- trais em siibmetê-10s aos seus projetos - tiveram a oportunidade não
tetor", mas os líderes de Corrieiites, Entre Ríos e Santa Fé, atiravam apenas de acompanhar as lutas proviiiciais, como também o caso de
com bastante iiidependêricia. uma delas constituir-se como Estado nacional recoriliecido. E aquela
Eram no eiitaiito vagas estas noções de federalisrno; mesmo que noção de união "coiifederal' passaria a compor o leque de reiviiidica-
houvesse uma inspiração iio modelo norte-americaiio, faltava no caso ~ õ c dos
s chefes rio-graiidenses.
platiiio a organicidade que a reunião das várias unidades configurara
na formação dos Estados Uiiidos. Certamente importou no Rio da Pra- A Província Cisplatiila
ta a tardia definição das "regiões-províncias", sempre resultante do
fracionaniento das intendencins, unidades mais amplas lierdadas do pe- A tomada da Baiida Oriental traduziu-se,pelo menos de início, numa
ríodo colonial. É difícil pensar numa união federativa entre províiicias, se situação em que conjugaram-se os iiiteresses da Corte portugticsa e dos
elas muito receiitemente se haviam afirmado com a dissol~içãode entida- estancieiros do Rio Graiide de São Pedi-o. A política bragantina, por um
des políticas maiores, e que por coiisequêricia reciisariam um poder cen- lado, ampliava as possessões portuguesas na América, ao mesmo tempo
tralizado que tentavam organizar os próceres de Biienos Aires. em que refi-eava os ímpetos republicanos que vinham do Prata; os rio-
As províncias do antigo Vice-Reinado resultaram dos anseios por gi-aiidciises,por outro, viam a possibilidade de anipliarem suas estâncias
autonomia dos respectivos grupos dominantes levados ao extremo: à e rebaiihos. Alem disso, o fini das reformas de Artigas trazia traiiqiiilida-
recusa de submissão a, somar-se-iam as iiisubordiilaçõcs a tentativas de de para os estaricieiros da Banda Oriental e de R~ienosAires, afastando-
mando nas diferentes Iiiteiidências, fracioiiarido-as naquelas uiiidades se as ameaças radicais à "ordem". Assim, o geiieral poi-tiiguêsfoi recebido
políticas qric represeiitavam o alcaiice máximo de poder dos proprictá- com entusiasmo ein Moiitevid6u,!' e mesmo aiitigos comaiidados dc
rios rurais. Não foi diferente o artiguismo iio litoral que, ao reivindicar Artigas, como Fr~ictuosoRivera, se iiicorpol-arairi ao exército iiivasor.
a soberania dos povos, "recogió un clamor surgido de las diversas áreas As sucessivas medidas de Lecor foram de plciio agrado dos que
riirales, 110 tanto contra las autoridades espafiolas en gci~eral,sirio es- liaviam sido prejudicados pelo projeto de Artigas. Em "baiidos" expe-
didos pelo agora govcrnador da Cisplatiiia, foi.arn restabelecidos os
pecialmente contra aquellas institucioiies y grupos socialcs que
direitos dos que Iiaviarn sido expropriados: espanhóis, porterios e ori-
preteiidiaii centralizar e1 poder provincial."'
entais tiveram seus campos devolvidos, corn a aiiula(;ão das doacões
que tinliam sido feitas pelo "Reglamento" de Artigas.1° Voltava assim a
5 Varela 1915, o[). cit., p. 994. 8 < : l i i ~ i i . i i i i o i i t ç , . J o s G<.riilos. i l A 1 1 i o {/v [os 01i,,17es rr1 [ri l{?>toi,otycdin I.niziion>nrii(uirn.Biiriior Aiir\:
Cuadeinos siri Instituto Kavigii~ni,Ic)!tl, p. 26.
6 Pono, Aiii-Cliu (Piiblicriçócs cio ai10 XXIX). A'ote~rrio I>ioi:es>orios Fr~i,n/~o,<. KchnOiLilri(i", <k I l e i ~ t o
[I B.iiidcii-.i. L \ l i / Albri t o Aloiii/. O rxJ)nt~szoiii<inei bin<7lizio r n / « ) am(no rios I < i n ( i n snn I,n<zn (to I'~cLii1
r s . cic Janeiro: Oiiciiias (:i-ificas c10 Arqiiiii) N:icioiiiil, 1933, p 513. Miedei-sl>;iliii.
( ~ o i i ~ ~ n l i iIiio
..
rle Aiiig(1i. (:;ixias CIO Siil: U<:S/IE.I 11179, p. G(i.
tlçiiricliie 0sc;ii: l i r i i i o Coi1(nh1i.i e iis g~~vi.io,< ~41~q~tz/~
1'305, p. 66
(1)i iic~i ,g ~ ~ cl >i li ~ t a g l-~ 00
r~~ (,'o1ot~1zcz~Eo I ~ L7 j + l / ( r A l i r i i l ~ r i U1~15íli:1:
h G I L P ~(/o . Ei15~1io/LJiiB,
i F r e p . Aiia Apiiiitcs par;i cl Esiiiciio de1 Ft:clcialisnio cii 1;i Ilrioliirii51i Kioplarcrisr (1810-l'i2O).
Sen-iiii;írio Iiiteriiricioiial I'pi~,cc~i. f i i k i u i i t t n . 1-50 Gi-alide: Fiindação I!iiivcrsitiade tic
c1 l?evol~c~6o
10 alo^ 50 fi;1o~,1205n P / ri11 , L3<i Olig'ii C I ~ L ~ C01-iei1tdI I e11 IA (;i\pl'ii~i~~i / i d o t ~ t r ~ ~ ?E(].
c l ~ lt>i :/ ~ ~ l ) /(Jil~clo\,
os
Iiio <;i-aiicle, 1993 (rninieo),p. 6. 1970, ,i)32
Estas amizades riitre caudillios dos lados opostos da froiiteira, em
"ordem" à campariha orierital, coin a recoiistituição dos latifúndios e
fiingão de iii teresses evcri tualrnente comuns ou de parcii tescos e
a almejada chance de recompor a economia d a região, abalada por
rompaclrioOrestabelecidos, superaram muitas vezes as deterrniiiações dos
taiitos anos de lutas.
govei-lios aos quais serviam; era mais fácil ao caudillio compreeiider a
Os problcrnas apareceriam por conta dos estancieiros do Rio
oiitro, mesmo de distinta nacionalidade, do que as distaiites autorida-
Grande, especialmente relacionados às terras, já que muitos daque-
des ceiitralizadoras que ameaçavam os anseios regionais. Mesmo com a
les aboletaram-se em campos reclamadas por uruguaios. As ações de
Guerra da Cisplatiiia, qiie cle 1825 a 1828 separou rio-graridenses e ori-
Lecor - a quem interessava uma efetiva incorporação da Banda Ori-
entais em campos opostos, muitas dessas alianças se recompuseram a
ental como província - em favor da oligarquia urugiraia, contradizia
partir dos anos 30, e dificilmente acoiitecimeiitos no Estado Orieiital ou
as demandas dos homens do Rio Grande, que liaviam participado ati-
iio Rio Graiide deixavam de fora caiidilhos do outro lado da fronteira.
vamente da ocupaçáo e agora pretendiam o botim. Inverteu-se, além
Foi durante a ocupação da Cisplatina iniciam as indisposições en-
disto, a importância relativa dos portos por onde escoava a produção
tre as autoridades centrais e estancieiros rio-grandeiises. O desenvolvi-
pecuária: Montevidéu não se recuperou como exportador de couros
mento da pecuária extensiva a expansão das propriedades: com a to-
e charque, ao passo o porto de Rio Grande passou a ter um papel
mada das Missões na virada do séciilo, os rio-grandenses haviam ampli-
muito sigiiificativo nesse comércio. Há estimativas de que até quiiize
ado sua froiiteira ecoiiômica, apesar destas pastagens serem inferiores
milhões de reses foram levadas da Banda Oriental durante a domina-
às da campaiiha;já a invasão da Baiida Orieiital, possibilitara um gran-
ção luso-brasileira; mesmo que esta cifra seja exagerada, é provável
de iiicremeiito no estoque de terras de qualidade superior aos campos
que grandes "arriadas" de gado dos campos orieiitais comprometes-
d o Rio Grande, o que justificara a pronta adesão aos projetos
sem a recuperação da Cisplatilia.
expansioiiistas bragaiitiiios. As terras ao iiorte do Rio Negro atraíram
A situação de confroiito entre rio-graridenscs e orieiitais, 1150 de-
os rio-graiidenses sequiosos por mais terras, mas a disputa com os ori-
moraria a repercutir por todo o Prata: os porlefios, livres de Artigas e
e11tais por certo não iii teressava às autoridades ocupaii tes.
siias anieaças radicais, e confortados pela siibjiigaçâo de possíveis coii-
Afinal, a ocupação fora urna operação militar cuidadosameiite
correntes na Banda Oriental, passaram a ter preocupações com os re-
dirigida para derro tal- o projc to de Artigas, aparei1temeii te invencível
sultados da ocupação luso-brasileira, visto que o Rio Grande tornava-se
lias províiicias do lirorr~le ameaçador em relação a RL~CIIOS Aires e ao
agora um competidor iildesejado. Sempre com um discurso que fazia
I próprio Rio Graiide. A restauração pi-omovida na nova Província
referência à comiinhâo Iiistórica da Baiida Orieiital com as Províncias I Cisplatina os estancieiros de todo o litoral, de Bueiios Aires, do Rio Graii-
Unidas do Rio da Prata, despejavam-se queixas de autoridades argeiiti- I
nas no gabinete do govcriiaclor Lecor.'" i de e da própria Banda Oriental. Para as autoridades do Rio de Jaiieiro,
I a iiicorpora~iioda Banda Oriental cumpria aiiida um antigo desqjo de
Até 1825 acumularam-se as tensões que culminariam lia Guerra da
I ampliação do espaço; se a produção dc cliarq~ie,subsidiária da ecoiio-
Cisplatiiia. Por outro lado, os comaridaiites-estal~cieirosrio-graiideiises I
I mia escravista do centro, fosse viabilizada por orientais ou rio-graiideiiscs,
afiançaram durante a ocupação rima série de alianças pessoais, que mais I
tarde teriam decisiva importincia não só na Guerra dos Farrapos, coriio isso tinlia rnenor irnportincia, mas iiáo podiain ser adinitidos traiistor-
rios à reorgaiiizaçáo produtiva e atritos coni os novos súditos, e foijusta-
naquelas ocorridas lia Baiida Oriental e no litoral argeiitiiio: Bento
mente isto qiie promoverarli os rio-grandeiises.
Gonçalves tiiiha uma grande ligação com Lavalleja, o fut~irocomaii-
Assim, a guerra, entre múltiplas motivações, teve sempre por de-
dante dos treinla y tre-sque sublevariam a campanlia orieiital em 1825,
trás os aiiseios privados dos militares-estancieiros. A derrota militar, se-
assini como Beiito Marioel Ribeiro com Fsuctiioso Rivera, o caudilho
guida de Lima solução diplomática qire os privava da rica aqiiisicão,
oriental mais iriiportaritc durante as décadas de 30 e 40.
potencialirou a dissidência corii o Irnp&-io.Mesmo ficaiido as Missões
eni mãos rio-gi-aandeiises,a razriu de Rivera esvaziara os campos de reses
e de traballiadores niissioiieiros, serido os gtiai-aiiislevados para os cani-
pos orieiitais ciitre o Q~iaraie o Arapey. Além do recuo da fronteil-a,
1I Ibid., P. 132.
12 Al-qilivo do Itain;i~-;ity(Ai), < :;+tilogo (.orrçspoiicl6lici~l, 16, ?O'J-t-l 1 ( ( h r ~ a sde ~ci-ll;i~-(iilio com liriiites aiiida incertos, os ataqiics promovidos pelos «i.irii tais to1-
I(irad;iuia, lniliisiii) se<i,t.c,írio<IrKclacfies Exteriores clc Uiiçii~sAiics) r 109-4-10 ((hinta iiaram-se um scrio prol~leiiiapara os proprietários.
1.íicio R/lai~sill;i,go\,c.i-l~atloi~
11(. Eiiti-e Kíos).
O Império, por sua vez, tinha poucas coildições para atuar com car um "algodão entre cr-istais9'criou um perrnancnte motivo de atritos
firmeza. Se iiiaiitiiiha contatos permanentes coin os agentes diplomáti- entre o Império e as Províncias Unidas - mais tarde Confederação Ar-
cos argentinos em torno das grandes questões, pouca coisa prática po- gentina -, estabelecendo para o Rio Grande e para as provínciai do litoral
dia fazer localmente,já que as ações dos seus efetivos estava sob vigilân- um possível aliado onde as intervenções do Império e da própria Confedera-
cia das Província Unidas e da própria mediadora Grã Bretanlia. O Rio ção estaiiam limitadas.
Grande empobrecera, voltara a um estágio anterior àquele que aiitece- Um primeiro problema transparece nos dois artigos iniciais da
deu a ocupação da Banda Oriental, e agora estavam divorciadas as re- Convenção,'" que seria a base para um tratado definitivo: o Império e
clamações da província e as ações do Estado. as Províncias Unidas garantiam o Estado Oriental independente, sob
Restavam ainda grandes ressentimentos em relação à condução mediação da Inglaterra, sem a participação dos orientaisno acordo; em
militar da guerra, quando os rio-grandenses foram chefiados por oficiais conseqüência, o terceiro artigo rezava que as "altas partes contratantes
do Império, e os desastres foram atribuídos à inépcia destes em relação obrigão-se a defender a independencia e a integridade da Provincia de
às formas mais adequadas de combater nas regióes platinas, onde o uso Montevidéu", o que chancelava eventuais intervenções das duas po tên-
da cavalaria ligeira, capaz de rápidas e incisivas incursões, se prestava cias para "proteger" a nova nação. Nos artigos quatro a seis, o Império
mais que as manobras acadêmicas, com sólidos quadros de infantaria e as Províncias Unidas determinavam a forma como deviam ser escolhi-
apoiados por artilharia pesada. Os rio-grandeilses tinham convicção dos os representantes para formação do aparelho de Estado, e no se-
neste sentido, lamentando a perda de vários de seus destacados chefes, guinte impunham-se como fiadores da constituição que fosse elabora-
culpando o comandante Barbacena e as autoridades que o indicaram. da pelos deputados uruguaios.
Por outra parte, estavam conscientes quanto à perda do seu pró- Para tanto estabeleciam-se os efetivos que dos dois acordantes per-
prio prestígio. Subsidiários do centro do país, para onde destiiiavam maneceriam em terras orientais: mesmo depois da ratificação da Con-
siia produção e de onde vinham os iiisumos, sua importância dependia venção de Paz deveriam permanecer 1.500 soldados brasileiros e ou-
do papel de guardiões da fronteira. Praticamente alheios às tratativas tros tantos argeiitinos, uns vigiando outras e ambas controlando o Esta-
do Império com as Províncias Unidas - analogamente ao que acoiitecia do criado com o beneplácito britânico, que garantia a supremacia de
com os orientais - tinham em mente a iião-resolvida questão dos limi- sua mediação no artigo dezoito. Ainda visando os interesses apenas das
tes, que no atual estado das coisas tornava-se decisiva para a retomada "altas partes" e da potência mediadora, foi acrescentado um ato adicio-
das atividades econôii~icas.Esta pendência, que atravessaria o século, nal à Convenção que dizia respeito ao controle que Buenos Aires exer-
fora postergada para tratados futuros, e os principais interessados - ori- cia sobre a navegação rios rios tributários, especialmeiite o Paraiiá.
entais e co~~tiriciltinos- estavam ausentes dos debates. Ao longo deste alio de 1828, o Império e as Províncias Unidas
Derrotados ecoiiGniica e militrrrmente, descorisidcrados em rela- trocaram profusa correspondêricia sobre a mútua confiança na a ne-
ção aos assuiitos fi-onteiriços,os chefes do Rio Grande não podiam pen- gociação e nos positivos resultados para ambos que resultaria a inde-
sar-se integrados a uma grande e poderosa unidade política. Por outro pendf ncia dos orientais.14 Mas se essa diplomacia parecia calma, lias
lado, assistiam a unia província vizinha, mesmo que tutelada pelas duas Províncias Unidas começava mais um ciclo d e guerras civis:
grandes potências antes litigantes, coiistituir-se em Estado. Mesnio que iiicoiií'ormados com a perda da Banda Oriental, os unitariostentaram
esta autoiiomia fosse muito relativa, ela permitia unia recuperação das retomar o controle das Províncias Unidas, e tropas que retornavam a
propriedades e aumento dos estoques de gado, o que serviria para aceii- Buenos Aires sob comando de Juan de Lavalle promoveram lima in-
tuar ainda mais a crise concorrêricia vaiitzijosa ern relação aos para surreição que resultou ria prisão e posterior fuzilamento do presiden-
criadores e charqueadores rio-graiideiiscs. te Dorrego.
22 Iõid.,Vasquez em 9/9/32.
23 Iõid,Reys para Vasqiiez em 1/10/32, 14/10/32,25/12/32 e 27/12/32. 29 Pivel Devoto,.Jirari E. & Pivel Devoto, Alcira Raiiieii. Hzstona (/eln RejbuDlzrn onentnl &I LJrug1rny
24 Iõid.,Reys para Vasquez em 10/12/32. (1830-1930).Moiitevidéii: Editor Raul Artagaveytiu, 1945, p. 53.
25 Diaz, apiid Varela, Alfredo, 01). cit., p. 994. 30 Piiblicaçòes do ano XXXII. C:orresi>oridência para a Corte dos Eiicarregados de Negticios em
Moi1tevicli.u. Oficiiias Gráficas do Arquivo Naciorial, 1937, p. 13.
26 Iõid.,p. 1029.
27 AI, C:atjlogo Correspondêilcia (Governos, Repartiçòes e Ailtoridades Kegioriais 1,ocais. Rio
Grande d o Siil) . 509-422.
28 Silva, J o s é L,iriz MTei.rieckda. A.r duns/hces (cEn vloed(r: a política externa do Brasil mon5rqiiico.
Rio d e Jaiieiro: Uiliversidade Aberta, 1990, p. 40.
e o padre Diogo Feijó, que Ilie maiitiverani o cargo, além da indicação mo seguidor de L.avall<ja na Guerra da Cisplatiiia, seu sucessor; para si
do rio-graiidense Antônio Rodrigues Fernandes Braga para o governo próprio, criara o cargo de Comaiidaiite Geral da Canipariha, tornan-
da províiicia em fevereiro de 1834. Seguia assim cada vez mais aberto o do-se chefe das armas orientais.
apoio obtido por Lavalleja no Rio Grande: Bento Gonçalves no Jaguarão Em janeiro de 1835, Braga já escrevia sobre um "partido
e Bento Manoel no Alegrete eram parceiros fundamentais para as ações desorganizador" que pretendia "separar esta Província do resto do Bra-
do caudilho, facilitando seu trânsito e proporcionando-lhe meios mate- sil constituindo a república semelliante à do Estado do Urugilai, com a
nais.35 O clímax dessa tensão seriam hostilidades eiitre tropas de Rivera e
qual pretendem federar, caso Lavalleja consiga derribar o Governo le-
de Bento Goiiçalves muito além das rapinas habituais.'" gal,:'8 propondo trocar os comaiidaiites da fronteira. A reação dos se-
A crise provocou em Montevidéu "huma effervecencia geral con- nliores da guerra foi o movimento de 20 de setembro, e lia sua primei-
tra o Brasil", e a legação do Brasil em Montevidéu era consciente de ra proclamação Beii to Goiiçalvcs alegou que a "vontade decidida e unâ-
que o Comandante do Jaguarão agira por conta própria, salientando- nime do povo fez baquear a autoridade que tinha substituído a arbitra-
se a presença entre os invasores rio-grandenses de Manoel Lavalleja, riedade ao império da lei9'."Ws primeiros textos traziam, significativa-
irmão do chefe dos treinta y tres, e mais de cinqueiita orientais emigra- mente, saudações finais ao "jovem Monarca Constitucional" e à "consti-
dos. A mobilização militar dos orientais para proteger a fronteira pre- tuição reformada", em nome da "liberdade" e dos "i-io-graiideiises li-
ocupava o encarregado dos negócios, já que o Ministro da Guerra vres", queixando-se do "partido português" e das mudaiiças nos coman-
Manoel Oribe mandara para o teatro das lutas seu próprio irmão dos propostas por B~-aga.~'
Ignacio, um "caloroso inimigo do Brasil". A ameaça de uma nova guer- Este discurso omitia os distúrbios lia fronteira. Três anos mais, tar-
ra na Cisplatina, tinha como fundamento a não resolvida questào de em seu manifesto o presidente da República Rio-Grandeiise, Bento
fron t e i r i ~ a . ' ~ Gonçalves referir-se-ia aos tratos que mantiiilia com Lavalleja como es-
A Corte exigiu medidas duras contra os desmandos, e abriu-se tando ao amparo do "direito das geiites", e que teriam servido apenas
nova guerra entre o presideiite da Província e o comandante das Armas como um pretexto para a interferéncia dos representantes do "partido
contra os dois indisciplinados Beiitos, especialmente o que comandava português". Afirmava ele que "é a hospitalidade rio-graiideiise univer-
o Jaguarão. Essa política contrária aos interesses privados dos caudilhos salmente coiiliecida9' e qiie "o patriota rio-graiidense, verdadeiro cos-
seria um dos estopins da rebelião farroiipilha; uma vez mais, como acon- mopolita, aqui a oferece franca, larga e generosa ao primeiro infeliz
tecia desde os conturbados alios da Cisplatina, estavam as questões ori- que se apresenta à sua vistan.'l
entais envolveiido os chefes rio-granderlses, para os quais os assuntos A Regência iiidicoii corno novo presidente da Província oiitro rio-
da fronteira eram de cunho privado daqireles que a guarneciam com grandeliseJosé Araújo Ribeiro, mas as autoridades ainda desconfiavam
suas próprias tropas. dos chefes rio-grandeiises que estariam, conforme carta de Almeida de
Vascoiicellos para a Corte, "querendo Iiuns a scparação da Proviiicia,
Os primeiros tempos da República Rio-Grandeme oiitros preteiiderido impor condições ao presideiite José de Araújo Ri-
beiro, e os dcmais, a união com o Imperio, mudando somente o Presi-
A política imperial em relação à fi-ontcira era contraditória: o deiitc Braga".4Versistia o temor de que o "Coronel Bento Goiiçalves
cliefe insubordiiiado fora indultado e seguia Iiostilizando o Estado Ori- da Silva, de accordo com 1,avallcja (e ambos favorecidos pelo Dictador
ental, que o Brasil se obrigara a defender; ao presidente Provincial, Rosas) pretendia, attentando contra a integridade do Imperiu, separar
nomeado por indicação de Bento, e ao <:omandaiite das Armas, antigo a Proviiicia do Rio Grande da cominuiihão Bra~ileira".~~
membro dos clubes liberais lavallejistas, eram exigidas providências
contra os dois Bentos da fronteira. No país vizinho, a situação era tam-
bém insólita: Rivera fizera de Manoel Oribe, que tinha sido o mais próxi-
38 ANAIS DO AI IKS, 1980, \lol. 4, 11. 46 1, ( :V-2746.
39 AIIllS, C,'ol~/ci,r~c~ ... , o/). c / / . ,AE?IzK 39,10, 1). 265-266.
40 Itl., rlP. C:\'-85!)2, p. 269.
35 IDid.,p.lOlO. 41 Itl., AP.(:\i-8598, p. 28-&285.
36 Piiblicações do ai10 XXXII, Correspondêi-icia ..., o/). c/( , p. 19
42 Piiblica~<,r5 d o 'iii. (:olctfii~cd
37 TDid., p. 21.
43 /h?(/.
Nesta situação ainda iiidefiiiida, entrara Bento Gonçalves em conta- atores eram os caudilhos, seus peões e escravos libertos, no modelo da
to com o presidente Oribe inteirando-o a respeito dos motivos da rebe- g u m çauchu, oiide a cavalaria ligeira seria a única forma eficieiite de
lião, e do exílio de Sebastião Barreto e outros em terras ur~iguaias.'~
De- combater um adversário militarmente superior, e essa viiiculação dire-
nunciava a Manuel Oribe que era iminente uma invasão dos "retrógra- ta com os viziiilios orientais configuraria questões internacionais muito
dos" desde a Baiida Oriental dadas as "circunstâncias suspeitosas do complexas.
Marechal Barreto com o Sr. Brigadeiro Fructuoso Rivera"," iiisistiiido Mas se a República Rio-Grandense contava com o apoio do presi-
que o asilado "auxiliado por Fructo, não desiste de hostilizar-nos apesar dente Oribe, que criara o Partido Blanco e era secundado por Lavalleja,
das ordens em contrário do Presidente Oribe"." Se a fronteira era o o rebelde Rivera fundava o Partido Colorado, e cruzava a fronteira atrás
território de Bento Gonçalves, também o era de Rivera, e as ações de do apoio do velho comparsa Bento Manoel, buscando as graças do Im-
um e outro não respondiam às respectivas autoridades legais. pério. Como Oribe e Lavalleja eram aliados dos federales de Rosas, go-
Araújo Ribeiro, por seu lado, não se afastou de Pelotas e Rio vernador de Buenos Aires e principal caudilho da Confederação Ar-
Grande, onde tomou posse do cargo em julho de 1836, temendo a gentina, e Rivera recebia a adesão dos proscritos unitarios, os insurgen-
Assembléia Provincial da capital, na maioria a favor dos rebeldes. Ao tes do Rio Grande logo tratariam de estabelecer relações diplomáticas
invés de pacificá-los, preferiu dividi-los, atraindo seu parente Beiito com blancos orientais e federales argentinos.
Manuel como seu Comandante de Armas; além de guerreiro afama- Assim, Oribe frariqueou a fronteira aos negócios dos sublevados,
do, mantinha boas relações com o Comandante Geral da Campanha abastecendo de cavalos, armas, munições e vestuário as forças armadas
oriental, afirmando que "não lhe desse cuidado a fronteira, porque o da República, enquanto os negociantes de Montevidéu asseguravam o
amigo Rivera a conservaria em paz9'.17ABento Manoel cabia derrotar aporte de grande q~iantidadede reses, couros e mesmo charque, em
os farrapos, divididas em duas frentes de combate: Beiito Gonçalves condições muito favoráveis em razão das necessidades prementes dos
assediando Porto Alegre, que caíra em mãos legalistas, e Netto, com- republicanos. Montevidéu tornara-se a praça comercial dos republica-
batendo na fronteira contra os imperiais que haviam emigrado para nos, mas o Estado farroupilha tinha dificuldades para controlar a fron-
o Estado Oriental em 1835. teira e conter as atitudes indepeiideiites de alguns "cidadãos", e o con-
A situação complicava-se com o pronunciamiento de Rivera contra trabando tornava-se iirn problema para a República construída por aque-
Manuel Oribe, buscando DO?% Frutos O apoio do agora prestigiado Ben- les que pouco antes haviam combatido as aduanas imperiais.
to Manuel; isso deixava Oribe numa situação delicada, e sua opção se- Nas aproxiinações com Rosas, os farrapos apregoavam um discur-
ria o apoio aos rebeldes condicionado a uma secessão definitiva, coiisti- so repriblicaiio e federalista, buscando a proteção do riiaior líder federal
tuiiido uma unidade política independente. Assim, a proclamação da do Prata.4" Rosas, no eritanto. coiidicionava seu apoio à República Rio-
República Rio-Grandense por Netto, nos campos do Seiva1 em 11 de Graiideiise a um efetivo empeiilio de seus chefcs na perseguição a liivei-a,
setembro de 1836, teria inspiração no presidente oriental.'" o que estava muito além das suas possibilidades. Por outra parte, iicgó-
Pouco depois Bento Gonçalves rendia-se a Bento Manuel na ilha cios na capital portena eram mais difíceis pela distância e pelas disputas
do Faiifa, e a sobrevivência da República dependia do Estado Orieiital, que as facções rivais travavam nos rios da bacia platina. A procura de
não apenas como um refúgio às perseguições, mas como mercado para aliaricas com blancos e federales persistiram até 1839, mas tanto Oribe
os gados, couro e charque dos farroupilhas, e o abastecirneiito de equi- quanto Rosas receavam apoiar abertamente os dissidentes e criarem
pameiitos bélicos e cavalhadas. Mal começava uma guerra em que os animosidades com o Império do Brasil.
88 1I)zd.
80 A N , Códice (503,Aloiirnt.iaios Igoliticos, Rio C;i-aiidc do Srll, Folh,i 4 0 1 . 92 l b ~ d .
$1 O l/)ld. rlo A N O .XSXl\', i\lr.~tl(jrrtr , o/) r?/., p
93 Piil)lic~i<õcxs (30
91 BN, 11-32, 3, 6 11. 13. $14 I>i\r.l Dt51oto. (I/] (7!., 11. 155).
da pela ação autônoma dos que ali faziam siias vidas e suas guerras, e Referências
que por vezes tinham interesses comuns. A afirmação da identidade
regional, necessária para a expansão e segurança dos limites nacioriais, ALONSO ELOX Rosa et alli. La Oligarquia Orioztal en lu Cisplatina. Montevidéu:
dificultara a incorporação de uma identidade nacioiial. A guerra exter- Ed. Pueblos Uiiidos, 1970 (214 p.) .
na, tantas vezes alardeada como um fator importante de consolidação BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O expan~ion~ismo brnsiluiro e a f m a ç ã o dos Estudos
do "ser ilacional", no caso do Rio Grande reafirmou o 66continentino" - na bacia do Prata. Ayentinu, ( J r u p a i e P a r a p u i - da Coloniraçüo a à ~ e r r ada Tr$dice
só bem mais tarde traiisformado em "gaúcho" - como quem carregava Aliança. Brasília: Ensaio/UnB, 1995.
sobre os ombros o fardo pesado do Brasil, o "tempestuoso aboletameiito" CALÓGERAS, J. Pandiá. A política exterior d o Império. B l . III: rln Regência à
referido por Bento Gonçalves. Queda de Rosas. Brasília: Câmara dos Deputados/ Companhia Editora Nacioiial,
O trânsito pelas fronteiras de homens, gados e mercadorias garan- 1989 (Edicão Fac-similar) .
tira a sobrevivSncia da República Rio-Grandense, e lhe dera uma posi- CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826-1889).
ção de agente político de fato nos assuntos platinas. Submeter o Rio Brasíiia: UnB, 1981.
Grande pela força significaria para o Império a perda de comandantes
CHIARZMONTE, José Carlos. Mmcadmes de1 Litoral. Econon2ia y sociedad en Ia
e soldados que poderia ser decisiva no caso de um enfrentamento que povincia de Corrientes, ~ m n c r nmitad de1 selo X7X Bueiios Aires: Fondo de Cultura
se avizinhava com Rosas; permitir-llie a secessão, seria perder um espa- Economica, 1991.
ço conquistado com tantos sacrifícios. A única solução possível era um
FONTOURA, Antônio Vicente. Lliario. De l q e j a n e i r o de 1844 a 2 2 de março de
armistício, que fosse honroso para os dissidentes e realmente os
1845. Caxias do Sul: EDUCS/Sulina/Martins, 1984.
reconduzisse ao antigo papel de "sentinelas avançadas do Brasil". Con-
templados com as medidas econômicas e políticas que lhes interessa- SALA DE TOURON, Lucía y ALONSO ELOY, Rosa. E1 Urugurcy Co7~zercia1,Pa~lonl
vam, os homens da fronteira mais uma vez perfilariam na defesa das y Caz~dillesco.ibmo 11: Sociedad, Politicu y Ideologza. Montevidéu: Ed. de Ia Baiida
Oriental, 1991.
cores imperiais.
Não houve, no entanto, o abandono das ações independentes, SPALDING, Walter. A ~ o l u ç ( i Fàrrou~illza.
o São Paulo: Cia. Editora Nacioiial/
comandadas por chefes privados, interferindo nos assuiitos platiiios. UnB, 1982.
As "~alifórnias~~de Chico Pedro e algumas escaramuças de Souza Netto STEWAKTVARGAS, Guillerrno. Otióey su signflcucionfi-ente a Roras y Ririera. Buenos
precederam a intervenção brasileira em 1851, defixiindo os rumos da Aires: Pellegi-irii Impressores, 1958.
Guerra Grande, teiido os rio-gi-andensesparticipado com toda sua ca- VARELA, Alfredo. Hirtória da p n d e reuoluçüo. O ciclo f~rroupillzano B7 asil Porto
valaria na derrubada de Oi-ibe, e mais tarde dc Rosas. Iiiterfei-êiicias Alegre: Globo, 1933 ( G v.).
contra os governos bluncos lios anos 60, obrigariam o Império a agir
WEDEKÇPAHN, Hcnrique Oscar. Bento Gonçok~ese a s p n - ~ r r&Arligas.
s Caxias d o
novamente na Banda Oriental, o que seria uma das causas da Guerra Sul: Universidade de Caxias d o Sill/Instituto Estadual do I,ivro, 1979.
da Tríplice Aliança. Mas essa era a condição da fronteira: sua garantia
exigia um grau de autonomia dos homcns da guerra, incompatível com
uma subordiiiação passiva ao govcriio central.
eiros na fronteira uruguaia:
economia e po ítica no séc
Susana Bleil de Souza e Fabricio Pereira Prado
'': Este artigo é tuna vei-sâo ampli:itla e i-evisada de um primeiro trabalho sobr-e esse tema, piil>lica-
do em CD-Roin, eni Montevidkii, em 1909.
1 Felix de Azara. Merntii-ia i-ilral do Rio da Prata. (1801). 111:FIlE:ITAS, Décio. O rc~f)i~nlisuao
l)nstoril
Porto Alcgi-e:Escola Siiperioi dr Teologia Silo l,oui.enço de Briiides, 1980, p. 69.
le do norte uruguaio e da campanha gaúcha, o tipo social, e os valores vam-se com a garantia da propriedade dos brasileiros estabelecidos no
culturais eram também compartilhados, de um lado e outro da frontei- Uruguai, e tal problemática, persistiu durante o decorrer do século XIX.
ra. Assim o norte uruguaio e a campanha gaúcha constituíam um espa- Pode-se perceber, entretanto, que as chamadas "opressões e violêiicias"
ço fronteiriço integrado, economicameiite complementar, e ainda: os reclamadas pelos brasileiros lá estabelecidos, variaram em termos quaii-
limites entre os dois países durante os três primeiros quartos do século titativos e qualitativos no decorrer do período analisado, de acordo com
XIX não haviam sido definidos. a conjuntura política de cada momento.
Após a independência do Uruguai, o preço convidativo da terra e O objetivo deste estudo é examinar a presença brasileira na fron-
a qualidade superior dos pastos foram fortes atrativos aos rio-grandenses teira norte do Uruguai e analisar a evolução política da tensão entre os
que voltaram a se estabelecer na Banda Oriental. Alguns proprietários proprietários brasileiros e grupos das elites orientais durante o século
rio-grandenses que ali haviam permanecido durante a guerra, também XIX. Tal período, denominado pela historiografia como "Viejo Uru-
retomavam à normalidade em suas atividades produtivas. Dessa forma guai", era marcado pela predominância da "estancia criolla" nesta re-
muitas estâncias organizadas ainda antes da independência do país te- gião, onde o poder estatal era débil e a instabilidade política bastante
rão seus títulos de propriedade reconhecidos pelas autoridades da Re- acentuada.
pública. Não obstante, já nos anos iniciais da década de 1830, encontra- Para este trabalho, constituíram-se em preciosa fonte, as notas,
mos reclamações de estancieiros rio-granderises estabelecidos na ban- ofícios e listas de proprietários encaminhadas pelas autoridades de fron-
da oriental quanto à "alienação" e "desapropriação" de propriedades teira do Brasil ao governo do I m p é r i o ~ e l a t a n d oas adversidades
na região norte.' encontradas pelos brasileiros proprietários frente às autoridades do
A partir de 1828, os rio-grandenses continuaram a comprar e ar- país vizinho. Através desses documentos, os estancieiros rio-grandenses
rendar terras na fronteira do país vizinlio. Os chefes políticos solicitavam ao governo central proteção "à vida e propriedade de seus
montevideanos perceberam que seria impossível impedir os estanciei- súditos" e o cumprimento dos acordos internacionais entre a Repúbli-
ros rio-grandenses de voltarem a se instalar na Banda Oriental. Assim, ca e o Brasil." partir deste material, elaborado na fronteira, pode-
"os uruguaios reataram relações ecoriômicas com os rio-grandeiises mos entender melhor, o que os rio-granderises qualificavam de "vexa-
colocando anúncios nos jornais locais para vender e alugar os melho- mes" e "opressóes" sofridos em território uruguaio ao longo de todo o
res pastos de inveriio".% terras ao norte do rio Negro, em meados do período abordado. Tais agressões e confiscos de terras e gado, o desres-
século XIX, tornaram-se praticamente um apêndice econômico e soci- peito ao direito de propriedade, acabavam por influir diretamente na
al do Império. A maioria dos proprietários era brasileiro, criador de economia agropastoril da províiicia do Rio Grande. Dessa forma, os
gado para abastecer charqueadas da província, praticante da pecuária interesses desse grupo latif~indiário-pastorilencontravam eco na As-
extensiva, utilizador de mão de obra cativa (mesmo quando a escravi- sembléia Provincial do Rio Grande do Sul.
dão tornou-se ilegal lia República). Os rio-grandenses acabaram por O exame dos discursos dos parlamentares na Assembléia Proviiicial'
influir, determinantemente, na língua, na moeda, nos costumes e no rios permite vislumbrar, com relativa clareza, a evoliição das interven-
modelo produtivo adotados na r ~ g i ã o . ~ ções e das propostas políticas encaminhadas ao governo central pelos
Entre tanto, a instabilidade política da República dava margem a pecuaristas da fronteira, através do Legislativo Proviiicial. Tais manifes-
constantes confiscos e "embargos" (por parte de autoridades, ou che- tações cobravam ações protecionistas da diplomacia imperial junto às
fes políticos uruguaios) de bens de brasileiros lá estabelecidos. Desde
os anos iniciais da década de 1830, os líderes rio-grandenses preociipa-
5 Constaiites rios livros d e Notas ao miilistério dos Negócios d o Estraiigeiro (MNE), Notus ao
Ministério dos Negócios da G~ierl-;i(MNG), Avisos ao Miiiistéi-io da Justiça (M!j) e Correspoli-
dêilcia Expedida pelo presidente da Proilvíricia (CEPP), todos no Arqiiivo EIistórico d o Rio
2 Não possuímos informações , eritretailto, sobre a procedêiicia dos titiilos de propriedade, ou
Grailcle d o Sul (AI-IKS).A lista d e proprietãrios elaborada pelas autoridades d e fronteira é do
seja, qual a autoriclade e em qual momento liaviam sido emitido tais títulos. Algumas proprie-
Arquivo Nacional do Rio d e Janeiro (ANKJ).
dades constam cle antes da iilvasão luso-brasileira, por exemplo. Coiif'orme ofícios ao MNE d e I
20/10/1832; 28/10/1834; 30/1 e 7/5 d e 1835 (AHRGS). I
I
G Especialmeiite o de 1851, beni corno siia revisão em 1857. Material obtidojunto ii Biblioteca
Nacional.
3 Spericer Leitmaii. Raizes ssócio-ecoi/o~~zicns
(lcr (;z~er~-n Sáo Paulo: Graal, 107'9.
clos fi~n-nj~os. I
7 Anais da Asserrihleia Provincial (AAPKGS) nos anos d e 1848,5Y, 66 e '73, Centro d e Pesquisa do
4 Beiijamiii Naliíiin e Jose P. Barrili. Nistcí,ic~rzcm1 de1 lil~~~n~ni
moderno. Tomo 1. Montevicleo:
Solar dos Câniara c Aryiiivo I-Iistórico do Rio Grande do Si11 (AI'1RS).
Ediciories d e Ia Barida Orieiital. 1
autoridades urugtiaias em defesa da garaiitia do dii-eito de pi-oprieda- Coiivém ressaltar que, lia fronteira, os problenias e suas st>lu<;ócs,
ultrapassavam, em muitos nioniciitos, as diretrizes políticas e diplornáti-
de dos brasileiros estabelecidos no territorio Orlciital.
cas. As disputas políticas eiitre BZuncoc e Colaruh não apenas ocomiam iio
Os Anais do Câmara de Represeiitantes de MontevidéiiVambém
espaço oriental, mas atravessavam a fronteira e se materializaram 110
foriiecem importantes informações no que conceriie aos projetos polí-
cenário político rio-grandense, através de alianças eiitre os líderes polí-
ticos referentes a uma política de terras para a região ao riorte do rio ticos daquele lado da fronteira com os grupos rio-graiidenses. Os líde-
Negro. Através deles podemos perceber, a partir dos anos iniciais da res políticos da fronteira tanto do Rio Grande, quanto da República
década de 1860, como a elite política em Montevidéu enxergava e tra- Oriental, já se encontravam ligados, no século XIX, 1150 só por laços
tava a questão da presença massiva do elemento brasileiro, essencial- políticos," mas também familiares e comerciais. Assim os enfrentameritos
meiite agropastoril, ao norte do país. Tal preocupação traduziuse em ou agressões aos estancieiros rio-granderises estabelecidos no Uruguai
propostas e projetos de colonização da fronteira. As propostas dcfendi- estavam determinados, em muitos casos, pelos víiiculos pessoais e polí-
am desde a nacionalização à 'Vesbrasileirizaçáo" da fronteira, substitu- ticos do proprietário. Durante o período abordado, principalmente nos
indo o elemento brasileiro bem como seu modo produtivo, essencialmen- momeiitos de maior crise ou de anarquia, as políticas oficiais estipula-
te agropastoril e utilizador da mão-de-obra escrava. das pelos diplomatas dos governos centrais de ambos os países, nem
Este conjunto documental deve ser coinpreendido de forma inte- sempre se realizavam e davam margem a novos arranjos políticos, defi-
grada. O intercruzameiito das iriformações contidas riesses diferentes iiidos e implemeiitados ao iiível regioiial, levaiido em coiita as intrica-
tipos documentais acaba por indicar um quadro bastante complexo de das redes de fidelidades pessoais existentes no período. Muitas vezes as
relações sociais, políticas e econômicas na fronteira. Os interesses dos diretrizes definidas entre os grupos rio-granderises e orientais iam con-
habitantes da fronteira e as facções políticas eiivolvidas contrapunham- tra as políticas determinadas pelo governo do Império.
se, em diferentes momentos, com as diretrizes pretendidas pelos gover-
rios centrais do Brasil e do Uruguai. A fronteira uruguaia e as guerras civis: 1835 - 1851
Ligadas a estas questões políticas regionais, e, por vezes, delas re-
sultaiites, estão os tratados interiiacionais celebrados entre os governos No iiiício da década de 1830, os brasileiros estabelecidos no Uru-
do Império e da República do Uruguai. Exemplarmente podemos citar guai reclamavam dos embargos e confiscos de suas terras por forças
os tratados de 1851, sua revisão parcial de 1857 e o coiivêiiio de 1865. militares de caudilhos uruguaios, as quais, seguiido as autoridades de
Em mais de uma ocasiáo o Império brasileiro utilizou-se da força mili- fronteira do Brasil, chegavam a contar, por vezes, com mais de 600 110-
tar" para celebra-los e maiité-10s. Esses tratados atendiam, antes de niens. No eiitaiito, as autor-idades, ou chefes políticos urtlgtiaios não
tudo, aos interesses geopolíticos e ecoii6micos do governo central em foriicciam iienhum documelito q~iaiidoefetuavam tais coiifiscos, c) que
relação ao Prata. Seciiiidariamente, levavam em consideração, os iiite- dificriltava ao proprietário reaver seus bens.
A A
i-esses dos estancieiros rio-grandeiises. Pode-se situar nos tratados de Em setembro de 1835, ainda em um momeiito dc afluxo de rio-
1851 a m;tior aproxiniaçao dos interesses do Iinpério coni os interesses çraiidenses aos campos orientais, teve início a guerra dos Farrapos no
dos rio-grandeii~es.~') Nos tratados seguintes haverá o paulatirio af'asta- Rio Grande do Sul. Nos primeiros anos do coiiflito, o intercâmbio coni
mento eiitre as diretrizes políticas e os interesses assumidos pelo Impé- o Urug~iaiiião liavia sido afetado, "durante a maior parte da guerra os
rio em relação aos interesses e propostas defendidas pelos rio- Farrapos eram senhores absolutos das pastagens e também conirola-
vam o movimento do gado das terras que os brasileiros possuíam ria
graiideiises, ou mais especificamente, pelos pecuaristas da fronteira.
Banda 01-ie~ital".'~
8 Trechos de <-lisciirsosselecioiiaclos ein Petrissans Agililar e Freiria Cai-ballo. Extra~~eiixtrción r& Ias 11 Quase todos os graiidc-s conflitos lia Banda C>i~ieiital oii no Rio Grailde c10 Stil (Iiivasão Iriso-
tio.?-asr i a ~ i o ~ ~ ahllonte\idee):
ks. Proyeccioit, 1987. Discui-sos iiitegi-ais: Aiiales de Ia 29"legislatirra de hrasilera na Banda Oriental, C;~ierrados Farrapos, (;~iei-raGraiide, 'Ti-íplice Aliaiiça e Kevol~i-
Ia tioiiorable Chrnara de Representaiites. Prirner Período de Ia No\leiia I.,e$slatui-a - Tonio 11. ção feíleralista), tiveram eni coniiim, o eiivolvimerito d e g n i ~ j o s p o l í t i c o ~olitro o Iacio da
Motite\.idc-o:Tip. Oiiciitiil,19H(i,1986. fi~oiiteii-a.
Ver: Mal-ia I i ~ e Moi-aes,
s Iiio C;rande do Sul y Ui-~igiiay:histórias fi-onterizas (apiiiites
1mi-a una age11tla de llist(ji.ia coinparatlti) 111: 'Targa, 1,. (Org.) Breur i ~ / ~ i r i ~ t(If>h ~tr~tzas
i o (io rul.
9 Kef'ei-imo-110sespecificanieiitc. às iiiter~eiiçõesde 18.54 e d e lOfi4,
I'orto 12ligre: UFKGS/FEE; I,+jea(lo: lJiiiz.att.s, 1098.
10 Seguiicio Elsa A\~anciiii.ii/ut~ccioli? I'c~rtr~~ll,os
r m n/lontrvicleo, 1851-3, lbse rile mesti.ado USP.
12 Spelicer Leitrilali. Il'crizrs so'cio-rco~io~trirt~~i
da (-;t~prm S;Io Paulo: (;i-aal. 1979.
clo.r (;(117~1I)os.
1982.
O coilflito, que s6 terminou em 1845, com a pacificação imperial e Em 1848 a campaiiha eiicoiitrava-se praticamerite devastada, de-
o ateiidimento parcial das reivindicações farroupilhas, encontrou o serta. Falta de mão-de-obra, iiisegurança, matilhas de cães selvagens, e
Uruguai enfrentando uma guerra civil com dimensões internacionais apenas um terço do rebarilio bovino 110s campos. (Aproximadamente
que assolava o território do país, desorganizando a campanha. 2,5 milhões de cabeças restavam dos 6,5 milliões de antes da guerra).
Com o fim da Guerra dos Farrapos, os rio-grandenses passaram a Manuel Oribe, líder das tropas Blancas (que dominavam a campa-
contar com o gado da Banda Oriental para dar novo fôlego à economia nlia), aliado de Rosas,'Viante de tal quadro, temendo, ao menos teo-
da província, frente a uma campanha devastada pelo longo conflito. ricamente, pela aniquilação do rebanho uruguaio, proibiu a passagem
Entretanto, a situação belicosa, de total anarquia e devastação da cam- de bovinos para o Rio Grande do Su1.17A partir de então, milícias blancas
panha uruguaia nos Últimos anos da Guerra Grande, fez com que mui- passaram a vigiar a travessia de gado na fronteira. Quem fosse apanha-
tos brasileiros estabelecidos ao norte do rio Negro encontrassem pro- do atravessando gados para o Rio Grande era enquadrado no crime de
blemas em garantir suas propriedades.
contrabando, fazendo com que as propriedades dos "contrabandistas"
Os embargos de propriedades e o confisco de rebanhos para a
fossem passíveis de embargo. Embora muitos rio-grandenses já estives-
alimentação dos exércitos eram constantes. Nas palavras do historia-
dor uruguaio A. Barrios Pintos: existiam "estancias que habían sido sem com seus interesses embargados em função de seus víriculos pes-
embargadas, otras estaban ocupadas por tropas uriiguayas, pero en su soais e políticos na guerra, este decreto aumentou as tensões entre au-
mayor parte habían pertenecido a propietários b r a s i l e Í i o s . " ' ~ oen- toridades orientais (as tropas do Governo hlanco de Cerrito, neste mo-
tanto tais medidas encontravam amparo constitucional. Pela Consti- inento) e os estancieiros rio-graiidenses que necessitavam atravessar seu
tuição do Uruguai, de 1830, no Artigo 144 estabelecia-se que a proprie- gado para o abastecimento das charqueadas no Brasil. Significativa quan-
dade privada era inviolável, mas que em tempos de guerra, em caso tidade desses embargos realizaram-se apenas com base em denúncias
de extrema necessidade o governo poderia dispor da propriedade dos chefes políticos vinculados a 0 r i b e . l W a s não eram somente as
alheia, mediante a prestação de recibo. Segundo as autoridades e os forças Blancas que embai-gavam as propriedades de brasileiros. As recla-
proprietários brasileiros, na maioria das ocasiões tal prática não era mações dando coiita de embargos realizados por forças de Rivera tam-
respeitada,14 além do problema de as facções em conflito, não reco- bém eram recorrentes.lg Tal fato contribui para a percepção de que,
nlieciam os recibos emitidos pelas forças opostas. Somente os acor- enfim, mais importante do que a origem do proprietário era os víncu-
dos de 1851 resolveram essa questão. los pessoais e políticos que maiitinha, ou seja, as redes sociais nas quais
Muitas vezes as desapropriações poderiam vir acompanhadas de estava inserido.
violêiicias ou de recrutameiito obrigatório em um dos exércitos. Ha-
A alienação das propriedades ocorria, normalmente, sob a alega-
via ainda os grupos de bandoleiros que vagavam pela campanha em
ção da prática de contrabaiido (essa era a explicação mais recorrente),
épocas de guerra, e podiam ou 1150 estar vinculados às forças político-
militares em embate. Mas foram os bandos viriculados aos grupos po- eiitretanto, alguns embargos eram motivados por serem os proprietári-
líticos em combate os principais responsáveis pelo que os rio-
grandeilses qualificavam de "violêiicias", "vexames", "opressões", além
de muitos assassinatos nas estâncias durante os anos da Guerra Gran-
de. Neste período registrou-se a fuga de grande iiírmero de famílias 16 A Guerra Grande op6s Blailcos e Colorados n o Uriig~iai,e Federalistas e Uiiitários na Argeii-
que deixaram o território oriental em busca de segurança em terras tiria. Os Blailcos eram aliados dos Federalistas, e os Colorados atuavam articulados aos LJriitá-
rios.
rio-grandenses.l5
17 Kepetii~cioo expediente iitili/aci« por Arrigas iro "Reglameilto Provisõrio" d e 1815, no qual
proibia a passagem d e gado para 'Tortrigal", pois o rebanho oriei-ital encontrava-se milito
redu~ido.
13 Conforme A17íb~11Rarrios Piil tos. A r t i p s - cle kos nbonger~escmndo~-esn 10s tie?rzl)ospreselztes-Tomo 18 C:onfornie AI-IKS - CEPP -A-2/9 -. 13./3/ 1848; CEPP - A-2/9 - 1/8/1845; e AHKS ofícios ao
I . h4oiltevideo. 1989. p. 208. MNE cle 28/8/1850. Alkrn da Lista d e Propriethrios Brasileiros na Banda Orieiital obtida
14 AHKS - Notas ao MNE d e 28 Agosto d e 1850. junto ao Arquivo Nacioiial d o Rio d e Jaiieiro.
15 AI-IKS - Notas ao MNE d e 28 Agosto de 1850. A lista de proprietários brasileiros revela que a 19 AHRS - Ofícios ao MNE. 28/ 10/ 1834, Keclarnaçáo de envolvimeiito d e brasileiros tam lutas
maior parte dos proprietarios com propriedades embargadas passou ao Rio Grande ein busca iiiteriias no Urilg~iai,e de desapropriação d e propriedades d e brasileiros 16 1,esiderites por
d e segurança. Ver tainhémi Bei?jamiii Nahíirn e José P. Bari-511.Histhin I+ural &l CTr~~plai iV[otler- Kivera (com GOO homens) na regiao do hrapey. 'Tanlhérri AHKS - Oficios ao MNE 30/ 1/1835;
no, Tcimo I . Moiitevirleo: Edicicxies d e Ia Banda Orieiltal AHRS - CEPP - A-2/88 - 7/5/ 1835.
os simpatizantes do partido colorado, oii o iiiverso. A carga tributária a garantia da propriedade dos estancieiros sulinos estabelecidos na Re-
qual os proprietários estavam submetidos também variava conforme os pública.?"
víiiculos políticos do estancieiro. As tropas que impunham o confisco, O resultado dessa mobilização política foi o eiivio ao governo
r~ormalmenteutilizavam a fazenda embargada como quartel de uma central, em diversas instâncias, ofícios e represeiitacões pedindo pro-
milícia e o gado para abastecimento. Outra prática, era deixar essas teção ao "direito de propriedade" ao Governo Central. Entretanto
propriedades sob administração ou posse de correligionários, poden- este se esquivava de uma ação efetiva, alegando o princípio da neutra-
do algum, eventualmente, ser até mesmo bra~ileiro.~" Ta1 fato indica a lidade, não querendo influir nos assuntos internos dajovem Repúbli-
participação ativa dos brasileiros residentes rias questões políticas inter- ca. As autoridades imperiais alegavam aiiida que "violências" e "opres-
nas daquele país. Alguns comprometidos com colorados, outros com sões" eram termos vagos, pouco explicativos, argumentando que os
blancos; entretanto tais alianças caudilliescas eram por demais instáveis, conflitos eram casos isolados e se deviam à vinganças pessoais pelos
uma vez que eram calcadas em vínculos pessoais, e estes, sofriam estre- erivolvimentos, por parte dos rio-grandeiises, nas questões políticas
mecimentos nos momentos de crises abertas de poder político, como é daquele país.?"
o caso de uma guerra. Na fronteira a resposta à proibição do trânsito de animais materiali-
Assim os estaiicieiros rio-grandenses residentes na República, em zou-se nas "califórnias", comandadas pelo Barão de Jacuí.?? As
muitas ocasiões, variáveis de acordo com o equilíbrio de forças na re- "califórnias" eram expedições que chegavam a reunir forças com mais
gião norte e seus vínculos pessoais, solicitavam ao governo imperial de 600 homens, todos armados que adeiitravam na Banda Oriental
proteção as suas propriedades. apreendendo gado, saqueando propriedades, e até mesmo aprisionan-
do negros para conduzir ao Rio Grande.
Com o severo controle para evitar o atravessamento de gado na
Tais agitações criaram tensões diplomáticas entre os governos dos
fronteira, a situação tornou-se crítica para a maioria dos estancieiros
dois países, pois as "califórnias" constituíam invasões para saquear o
rio-grandenses. Em 1848, as tropas de Oribe, chamadas "blanquillas"
território uruguaio, e preocupou sobremaneira o Império quanto à si-
criavam proibições de trânsito de animais do Uruguai para o Brasil,
tuação na fronteira. Afinal, a lembrança da Guerra dos Farrapos ainda
assim como impediam a passagem de gado entre diferentes regiões do
se fazia bastante presente 110 centro do país. Ao Governo Central,
país, especialmente entre os rios Arapei e Quaraim, área de predomí-
intercssava manter a ordem e conter q~ialquerforma de sublevação na
nio de proprietários brasileiros.?' Nesse momento, a campanha gaúcha fronteira, além de não ver com bons olhos a autonomia dos caudill-ios
aiiida sentia os reflexos da Giierra dos Farrapos e o gado uruguaio era rio-graildenses. É com essa finalidade que já em 1849 é destacado, para
fiiridameiital para as charqueadas do Rio Grande. Assim, a proibição por fim às "correrias" e às "reuniões" que aconteciam lia fronteira, o
de fazer retoriiar o gado levado para cngordar no Uruguai para o Bra- Tenente- Coronel Manoel L,. Osório.
sil, contrariava frontalnlente as necessidades e os interesses dos estanci- As correrias, eritretaiito, continuaram a ter lugar na fronteira ain-
eiros e charqueadores rio-grandenses. da no mesmo ano, e a açào dos militares do Império foi ineficaz para
Tal situação foi levada por políticos e autoi-idades regionais à dis-
cussão na Assembléia provii~cialdo Rio Grande no mesmo ano. 0 s
deputados Brusque e Ubatuba solicitaram no plenário provincial que o
21 AI-IKS - CEPPA-2/9 - 3/3/1848, beni como AI-IKS - ofícios ao MNE - 28/8/1850.
parlamento rio-grandense enviasse representação ao Governo Central
22 Helga Piccolo (Org.) . ( ; o l ~ t k n ~d~nI)zsrzc~;ro5Pn~lnme,llnr~s
da Asse?~zblí;in
h,e~+sslntiva dn Provínrin
visando que este, pelas vias diplomáticas, intercedesse pelo interesse e (IP .SZo J'P~YO(10 RZO(handr do SUL Porto Alegre: AssemblGia I>egislativa cio E m d o d o Kio (;i-air-
d e cio Siil. 1998.
23 AI-IKS - Ofício ao MNE - 28/8/' 1850. Este ofício é uma resposta ao goveriio Imperial, oiide
todos as autoi-iciades do Rio Graiicie buscciiri coi~veiiceras aiitoridacles imperiais da gravidade
20 iiifbrniaçóes sohi,eos nxotivos dos embargos lcvani em consideraçâo a "Lista d e Proprietá1.i- da situaçiio e da necessidade cle tima ii~tei-vençãopara a garantia das propriedades brasileiras
os Hi-asileiros lia Baiitla Orieiital" obtidajiilito ao i\rqiiivo Nacional d o Rio d e Jaiieiro, além 110 Ur~igiiai.
dos Oficios ao hlinisti-rio c10 Estrangeiro (AHKS - MNF,). l i m caso exen-iplar é o tle José L>uiz 24 Francisco Pedro d e Abreu, oii (;bico Pecii-o era iim irnportaiite líder político iia região da
da (:osta Fai,ia, ai.1-eiidatário brasileiro, possuidor de mais dr 3.000 reses, protegiclo d o líder fronteira, possuía campos tanto 110Rio Grandt. (i-egiáo cle Alegrete e do ariial miiiiicípio d e
OlnrtroDiogo I.an.ias. (:osta Faria, mcsino coiit1.a a voiitacle tio proprietário ao qiial arrei1da1.aas D. I'etli-ito) quanto i10 Estaclo 0i.ieiital. Foi lirn cios niais importarites líderes realistas, aiiti-
terras, prestava arixilio 2s tropas rebeldes. FLtrroiipillia na guerra civil da província.
acalmar os âiiiinos dos proprietários rio-graiidenses. Foi sonieiite com nar todos os proprietários brasileiros estabelecidos no Uruguai, as ca-
os tratados de 12 de outubro de 1 8 5 1 2 q u e as "califórnias" cessaram, racterísticas da propriedade e a situação em que se encontrava no mo-
posto que, as garantias à propriedade r à facilidade de trânsito de ani- mento. As listas fòram concluídas nos meses de junho, julho e agosto
mais na fronteira foram asseguradas aos rio-graizdenses. do mesmo ano, apesar de muitos proprietários não terem fornecido
O baixo valor das terras, depreciadas pela devastação provocada dados sobre a extensão de terra que possuíam.
pela Guerra Grande, que diminuíra, consideravelmente, o rebanlio Segundo essas listas, em 1850, encontravam-se, aproximadamen-
uruguaio, entre 1843 e 1851, estimulou "latifundiários e aventureiros te, 1.181 proprietários brasileiros2%o Uruguai. Deste total, o docu-
do Brasil" a converterem-se no Uruguai, em "terratenientes por pouco mento aponta que 920 rio-grandenses possuíam 3.403,25 léguas de
campo, sendo que os demais não declararam a extensão das proprie-
dinheiro". Nestas campanhas quase desertas, instalaram-se os novos
dades. Dos declarantes, aproximadamerite 9% (105) estavam com os
proprietários com suas familias e seus escravos. Os brasileiros emigra-
bens embargados. Outros 8% (91) tinham abandonado seus interes-
dos continuavam considerando-se súditos do Império e, ignorando a
ses (propriedades abandonadas eram, muitas vezes, utilizadas pelos
legislação uruguaia, trasladavam uma "esclavitud apenas disfrazada".'" revoltosos), vítimas das violências e da insegurariça da Campanha nesse
Autoridades militares da fronteira encaminlzaram nesse período diver- momento.
sas notas ao Miiiistério dos Negócios do Estrangeiro do Império solici- Os proprietários brasileiros, pela natureza de seus negócios, con-
tando proteção à propriedade dos súditos brasileiros residentes no Uru- sideravam-se forçados a praticar o que as autoridades blancas considera-
guai. Em cada representação dessa espécie constavam, normalmente, vam contrabando. O trânsito de animais entre o Uruguai e o Rio Gran-
mais de uma centena de assinaturas de proprietários que se considera- de era fundamental para o abastecimento das charqueadas rio-
vam lesados. Tais autoridades mostraram-se francamente solidárias às grandenses. Ou seja, o trânsito ti-ansfroiiteiriço era estrutural na eco-
reclamações de seus compatriotas. nomia da fronteira. A proibição da passagem de gado resultou num
Em ofício encaminhado a 28 de agosto de 1850, os proprietários aumento das tensões e conflitos lia região. Os acordos de 1 2 de outu-
brasileiros pediam a intervenção diplomática do Império de forma efe- bro buscaram por fim a tais problemas.
tiva, alegando que movimeiitos como o do Barão do Jaciií, tinham por
objetivo a defesa das propriedades dos rio-grandenses na Banda Ori- Os acordos de 1851: o norte vira invernada
ental. Tal documeizto considerava que as "califóriiias" realizadas por
brasileiros na froiiteira eram reflexo da política implementada pelo O Estado brasileiro atuou em 1851, mediando a paz na Banda
governo Bknco de Oribe. Oriental sucedida pela assinatura dos 5 tratados de 12 de outubro eii-
tre a República e o Império. Esses tratados representaram a coi~juizção
Resultado do eiicaminliameizto das notas ao Ministério do Estraii-
dos iilteresses tio Império com os dos estancieiros rio-grandeiises. Afi-
geiro, o Impéi-io no início de 1850 solicitava às autoridades militares
nal, a anarquia na Banda Oriental já prejudicava em demasia os iiegóci-
fronteiriças a confecção de uma série de listas2' que procurava relacio-
os britânicos lia região. A Grã-Bretanha permitiu que seu braço infor-
mal i10 período, o Império brasileiro, interviesse na região acabando
25 Em 12 d e outiibro 18\51 foram assii~adostio Rio de Janeiro, por Andrés Lamas, os Ti-atados com o conflito. 0 goveriio Central utilizou-sc das "violências", "vexa-
entre Brasil e Uruguai: de Aliança, Siibsídios, C:oinércio e Na\legaçáo e Extradição e Limites. mes", e "opressões" reclamadas pelos súditos k)rasileiros na froiiteira
Tais tratados a~segiii-a\~am
o livi-etrânsito d e gado na froiiteira, garantiam a iitivegação conjiiil-
ta na Lagoa Mil-im, e garantia a exti,adic,ão d e escraIros fiigidos clo Bi-asil para o Ur.iigriai. A
uruguaia, como o pretexto da intervenção brasileira de 1853, que bus-
manutenção desses tratados signiíicoii a inter\.eiição brasileira na figura d e mais d e 3.000 cava assegurar o partido Colorado no poder, alem da garantia do cum-
soldaclos em Montevicl6ii em 1833, a fim tfe garantir a mailiitençáo do governo Coloracio, e o primentos aos tratados de 12 de outubro. Tal interveii@o, em 1853,
ciimprimento dos tratados.
tinha por ob~ctivotambém, assegurar a derrota de Rosas. Enfim, os
27 Listas elaboradas em 1851, no mês d e agosto pelas brigacl;is d e froilteira do Iinperio. A/laterial
obtidoj~intoao Ai-qui\,o Nacional do Kio deJsiiieiro. As listas fi~rainelaboradas por tlifèreii tes
28 Esse iiliniero é al~roxirriacloe sut)estiniatio, uma vez qiie eiii algiiiis casos registraram-se apenas
compallhias militares. Dessa fòrrna existem difèreiiçus entre elas d e dados of'et-ecidos. Algil-
o nome d e li111 pl.olj~-it.tArio
senclo qiie a pi-opi-irdade posstiía mais scícios.
mas cifras aproxiniadas se de\wn a liniitaçi5es clessa oi.rlern.
tratados e a interveiiq2o 1150 erain motivados apenas pela pressão dos das i~eclaiiiaçõesé ci-esceiitc ao lo~igoda década de 1850 e, entre 1857
rio-grandeiises, mas tarribSm por interesses comerciais britânicos, e e 1864, eiicontramos a maior iiicid?ncia de reclames do Iri~périocom
geopolíticos brasileiros, no sentido de assegiirar a livre navegação lia 41 ofícios eiicamiiihados. As "violências'', "vexames" e "opressões" con-
bacia do Prata, importante para o acesso ao então território do Mato tra súditos brasileiros eram definidas pelos rio-graiidei~sese autorida-
Grosso. des imperiais como: assassinatos, estupros, prisões (legais e ilegais), re-
Dos tratados assinados em 12 de outubro de 1851, eram o de crutamento forçado, imposição d e traballios obrigatórios,
Comércio e Navegação e u de Extradiçâo"' os que mais diretamente "estaqueamei~to",violações de domicílio, extrações de gado e extra-
atendiam aos interesses dos estancieiros da fronteira. Estipulavam res- ções de dinheiro." Dos inúmeros embargos, seguidos de assassinatos
pectivamente, entre outras cláusulas, o livre trânsito de gado na fron- de brasileiros na fronteira, a maior parte é atribuída aos comissários de
teira, assim como desobrigava os brasileiros de cederem suas proprie- polícia e chefes políticos uruguaios.
dades para serem usadas nas guerras, bastante comuns no Uruguai Em resposta a essas reclamações do Império, o governo de Monte-
desse período. Além disso, o de extradição, garantia a recuperação dos vidé~inegava uma ação sistemática por parte de suas autoridades con-
escravos fugidos da província para a República, onde já se extinguira a tra os brasileiros. As autoridades uruguaias argumentavam qiie tais acon-
escravidão. tecimentos eram erifrentameiitos entre facções políticas, e que cstan-
Estes tratados acabaram por criar coiidições legais para que os es- do os brasileiros eiivolvidos nas contendas entre blnncos e colorado,r, aca-
tancieiros do Rio Grande coritinuassem a utilizar a região ao norte do bavam por sofrer as mazelas da guerra."'
Rio Negro como invernada de gado para as charqueadas gaúchas. Tais As elites políticas do Uruguai, de ambos os partidos, percebiam
garantias atraíram novamente os brasileiros ao norte uruguaio. As ex- a alta iiicidência de propriedades brasileiras na região norte como
celentes pastageiis e o preço convidativo das terras da Banda Oriental, uma ameaqa à soberania territorial e à identidade oriental naquele
somado às garantias legais agora respaldadas pelo governo Imperial espaço.
constituíram-se em forte argumento para o afluxo de estancieiros brasi- Em 1857, estimava-se que os rio-grandesiises possuíssem cerca de
leiros. Os rio-graiideiises levaram consigo novamente gado e capitais. 30% do território oriental. Em meados do século XIX, o Urilgiiai esta-
Reocuparam suas propriedades e 15 se estabeleceram novamente, prati- va convertido em um imenso campo de engorda de gado para a indíis-
caiido a pecuária extensiva e prodiizindo animais para as charqiieadas tria de cliarque brasileira. As terras da fronteira eram iiiveriiadas dos
rio-graiidenscs. Utilizavam como mão-de-obra, escravos brasileiros, que estaiicieiros rio-graiidenses que necessitavam cada vez de mais espaço,
eram iiitroduzidos como peões, no Uruguai, sob falsos contratos de tendo em vista sua exploração extclisiva. A fronteira norte da Republi-
traballio, com duração de qiiiiize a vinte ca 01-ieiital transforiiiara-se, praticanieiite, em uni apéiidice ecoiiómi-
Eiitretanto, a debilidade do Governo central uriiguaio ainda era co do Inipério. Tal situação era bastante coiihecida rio Brasil. Em 1859,
pateiitc, e as autoridades de Montevidéu iião coiiseguiam impor seus o senador do Inipkrio pela Província de São Paulo, Silva Ferrar, num
desígnios freiite aos caudilhos blancos da camparilia. E , ao longo da discurso declarava qiie "ao passar para o outro lado do Jagiiarão se-
década de 1850, as reclamações da continuidade das "\~iolências"e riliorc~s,o traje, o idioma, os costuriies, as moedas, pesos e niedidas,
"opressões" contra os brasileircis continuaram sendo recori-c~ites.E11- tudo, até a terra é bra~ileiro"."~
tre 1852 e 1864 o governo brasileiro eiicaminhou 56 reclamacõcs oficiais
ao governo iirugiiaio a respeito dos conflitos entre as autoridades uru-
guaias e os proprietários brasileiros.'" Podemos notar que a recorrêiicia
:3:! C:rrndet.n«.s de Mnt-chn. N . 62. I,a Rlission Saravia, Moiite\~icleo:19'72. Doe. O2 I?erln111ncio)z~s
29 Pnra iirn qiindio mais cori~pletoa respeito do5 tratados d e l i d e oiitiibro de 18.51 \ e r Elsa l)ei/cIirrl,tesin?rindn.\ pot. Iri lqqciciij7i ittlperie[ietr :\íloutyoi(Ieo O I ~ LejP pbienro dr ki /&/jrliúhlicn Ot-i~t,tnl
rle
A~ancini.Alr~cl(Eo(/P f'nln)~Izo~ PIW ibko~~ie7izdr0,
1831-3, tese d e rnesti-atlo USP. 1982 l l r ~ ~ g u nTi~adiiccióil.
j. p. 13.
30 Petrissdiis Agiiilar e $leilia (,ai ballo. O/). (11. 13. 56. C;unrlert~oscle A/krrr~l~ct. N . (52. I,a hlission Saraiiél. hloiltcvidco: 10'72. Doc. 02 I?~i.lnnt,ctciorl~s
31 Crtntl~t1 / 0 5 dr AIntcl~n.N . 62 I,a hIi4sioii Sara\ ia. Rloii tevideo:19'72. Iloc. O2 I?rc/c~t,~nctotr~s /)B~~~IPIIIPS / ) ~ r ~ d i o /itririrtttct.~
le.~ pot- 10 l~,~r(~ción
ilu/)cvi(il(;r1 M o t ~ t ~ ~ i dat~te de (n XeJirih1ic.n 017r;utnl(IP
e o ~lg(i'»úiet.tlo
ztzztzntlezs po) ln k~gu(~ótz 1tt1/)~7xnl ~ t (JP l i tZc$tihlltn 01~rrlinld r 14 i ~ g t i q .
e!/ Alontr7~ltlrocrtlir r/ g u h ~)/o l i atliiccihn. p. 15.
1 II.~L(C~I.OJ.
TI-adiiccióii, p. 6-14. 34 Trecho d e cliscrirso extraído d e Petrissans Agiiilai e E'i.eiiia (;arballo. O/).cil. p. 67.
A tentativa de reação oriental: tal. Portanto, dava-se preferêiicia para a instalacão de colôiiias agr íco-
Ias, uma vez que substituiria a pecuária comandada pelos riograndcnses.
as políticas do governo Berro para a frorit.eir-a "Es preferible Ia iilstalación de agricultores porque 10s brasileÍíos son
'poco amigos' de la agricultura, por su naturaleza esencialmente pasto-
O norte uruguaio chega a década de 1860 como uma extensão
ril, e1 elemento labrador atuará como fator exp~lsor."~'
dos campos de pastoreio do Rio Grande, um apêndice da economia Alguns deputados chegaram a entusiasmar-se com a idéia de um
charqueadora da província. No entanto, tal situação era também re- cinturão agricultor ao longo da linha de fronteira, isolaiido o elemeiito
conhecida pelos uruguaios, e em nada agradava aos chefes políticos brasileiro, pastoril por exceli-ncia. Dessa forma a preferência produtiva
em Montevidéu. A grande quantidade de proprietários brasileiros na pela instalação de colonos agricultores era priorizada, colocando a ques-
fronteira passou a ser tratadas como questão de Estado. Em março tão da nacionalidade dos imigrantes em plano secundário, como
de 1860, na Câmara de Representantes, .José Vásquez Sagastume de- exemplifica o deputado Juaii Maria Perez: "Yo, sciiores, seré franco:
nuncia a extinção da cidadania oriental ao norte do Rio Negro, decla- prefiero ser turco que brasilcfio".'"m outras palavras, não importava
rando que, na maioria dos estabelecimentos de campo situados na- a nacionalidade dos imigrantes, desde que cessasse a forte predomi-
quela região, havia escravos contratados com o iiome de peões, nância do elemento brasileiro na região.
Substituir o modelo produtivo tradicional utilizado pelos brasi-
registrados em alguma "oficina pública." Argumeii tava o deputado,
leiros, por outro mais moderno, significaria também orientalizar a fron-
que iiesta localidade, tão importante para a República, podia-se dizer teira. O estímulo à pequena propriedade pastoril de ovelhas e, priiici-
que não havia Estado Oriental: "10s usos, costurnbres, e1 idioma, e1 palmente, o estímulo à agricultura, em substituição à pecuária extensi-
modo de ser, todo es brasileiio: puede decirse como continuación de va (sem melhoria de pastagens, sem refino do gado, cuja carne só po-
Rio Graiide de1 S U ~ " . ~ presença
" maciça de rio-grandenses lia fron- dia ser aproveitada pelas charqucadas), acabaria por oricntalizar aque-
teira atingira níveis tais que ameaçava a soberania territorial da região la região, integrando-a mais ao espaço uruguaio, desvinculaiido-a da
no final da década de 1850. econ?mia rio-graiidense.
É justamente nos anos iniciais da década de 60, no período da E com intuito de conter a "iiivasão" e a iiiíluêiicia brasileira que.já
presidência Dlanca de Beriiardo Berro que o assui2to passou a ser trata- se desenvolvia, desde 1853, urna política de criação de pequenas vilas
do com maior preocupação pelo legislativo urugilaio. Esse período é ern poiitos de fronteira, como Santa Rosa dcl Cuareiii (atual k l l a
marcado pela criação de uma Coniissão Especial para tratar do povoa- Uiiión), Treiiita y Tres, villa Artigas (hoje Rio Branco), entre outras.
Em 1862, criava-se a Vila de Cevallos, futura cidade de Rivera, Neste
mento da fronteira, Vários projetos de coloiiiza<;ãosiio elaborados, e
momeiito, entretanto, tais iiílcleos populacionais eram aiiida bastante
amplos debates tiveram espaço no parlamerito. No entanto um ponto débeis. Cogitava-se aiiida, por exemplo a permuta da pequeiia Villa de
era pacífico na questão: "la urgeiite iiecessidad de Ilevar población a la Cevallos por outra área lia fi-oiitcira com o Brasil. Tal possibilidade ex-
r1oiircra por la irivasióii de1 elemento brasileiio, e1 cúal constituye una tingue-se apenas em filiais da dCcada de sessenta, devido à atuação de
masa de poblacióii homogénea, de fuerte tradicióii, costumbrçs arrai- parlamentares preocupados em conter o avanço brasileiro."Vais nú-
gados y aún por su proprio idioma, que se coiistituye u11 elemeiito de cleos populacionais vieram a constituir "cidades geminadas", que em-
peligro a la Rep~blica."~ hora adiniiiistrativameiite iiidependeiites, eram complementares qiiaii-
A quase to talidade dos projetos apresentados eram de inspiração to a sua economia. Mas sobretildo, tais núcleos urbanos marcavam a
liberal, e previam a concessão de terras para colonos uriiguaios, oii para presença estatal uruguaia na região.'O
"coloiios nacionais e estraiigeiros" (europeus). rIàiito Blancos quanto
Colorados eiixergavam a presença brasileira ao norte do rio Negro como
um grande risco à soberania territorial daquela p o r ~ ã odo Estado Orien-
39 Oscar F a ~ r eCarlos
. Keylcs y Niiestra E'roiitera c011 Brasil. Hoy es f1islo1-ia. Montevideo Aiao VI1
N. 38, 1c190, p. 07-09.
3.5 Ver o pr-ólogo d e Picel Devoto em B a i t ~ ãFrdilcisco.
, Sor znC~y f i o n b ~ ~ ~ ~Molltevideo:
EsJ-tudzo~ co,.
Biblioteca Artigas, 1972. 40 Siisan'i Bleil de Soula, Os caminiios e o s hoineils do coiitr,ib,lndo. 111:Iaia Castello, Fnio
lI,i~iseil~t 01. (org.). P I ( ~ ~ L C( 1( I?~\) & / P ~ ~ (tL~( nEf,on/czra$:
)o IPmnJ / ~ a , no lll~rrorríl.Porto Alegi e. Ed.
36 'li-echo cle discurso exti.aído de Petrissans Agiiilar e Fi-eiria Cai,ballo. O/~.(:it.p. 62. d,i Universiciatle/UFK(;S, Institiito Goethe/l(,BA. 1905, p. 126-139.
Coricomitaiite, buscava-se erradicar a escravidão velada dos pa- blanco. Nesse momelito podemos perceber que as articulaçóes da
trões brasileiros. Eni 1861 o presidente Bernardo Berro, além de de- Tríplice Aliança já estavam sendo previamente ajustadas.
nunciar o término legal da cláusula do tratado de Comércio qiie garan- Nessa conjuntiira teve início a guerra do Paraguai, que envolveu
tia a livre passagem de gado para o Rio Grande, proíbe a celebração de não apenas grandes coiitigeiites dos caudilhos gaúchos, como tambkm
contratos de trabalho eiitre patrões brasileiros e "cidadãos de cor," por as forças dos caudilhos da campanha oriental. Nesse período os assun-
um período maior do que seis anos. Para evitar o descumprimento da tos internos assumem importância secundária frente 2 contenda inter-
lei, os contratos celebrados entre patrões rio-grandeiises e negros ti- nacional.
nham que ser realizados lia Jqaíura Defiartamental, onde o peão era es-
clarecido de sua condição de homem livre, da qual não gozava do ou-
tro lado da fronteira. Modernizaçào ao sul, tradição ao norte
Tal medida visava por fim à prática usual dos estancieiros brasilei-
ros que introduziam escravos como peões livres no Estado Oriental sob Após o fim da Guerra do Paraguai a região platina ficou pacificada
falsos contratos de trabalho, que terminavam, devido a seu longo tem- quanto à conteiidas internacionais. Entretanto a volta dos caudilhos e
po de vigência, garantindo a imobilidade do trabalhador. O salário acor- chefes político-militares aos seus territórios de influência fez mais uma
dado por esse instrumento era em média metade do salário de um peão vez as disputas internas surgirem na ordem-do-dia. Assim, os anos inici-
oriental." Além disso, os estancieiros uruguaios reclamavam da com- ais da década de 1870 testemunharam a revolução do caudilho Timo-
petição desleal, não apenas pela diferença de custo, mas também pela teo Aparício. Nesses momentos de guerra civil, as terras de brasileiros
constante disponibilidade de mão-de-obra garantida pela existência dos continuavam a ser expropriadas para sediarem acampamentos milita-
cativos sob forma velada. Na campanha, principalmente nos períodos res ou era simplesmente confiscada pela facção política vitoriosa e dis-
de guerra civil, o elemento liumano tornava-se precioso; e, muitas ve- tribuída como prêmio entre seus partidários (dependendo da vinculação
zes, o processo produtivo das estâncias era desestriiturado pela absolu- política do proprietário). Os rebanhos dos brasileiros continuaram a
ta carência de mão-de-obra. ser utilizados para o sustento das tropas militares dos caudilhos em guer-
Assim, moderiiizar o modelo produtivo da fronteira passou a ser ra, e o couro era utilizado como moeda juiito aos cornerciantcs, em
uma preocupação do Governo Central Uruguaio. Erradicar a escravi- troca de tabaco, agiiardeii~e,tecidos, armas e outros artigos necessári-
dão, fundar e manter escolas para o erisino do espanhol, incentivar a os, e os chefes políticos não prestavam recibo algum, e quando o fazi-
utilização de novas técnicas prodritivas na estâricia e introduzir o ovino: am, o Estado não os honrava.
nioderiiizar a estâiicia criolla, orieiitalizando a fronteira norte, passou a Por outra perspectiva, os proprietários brasileiros continuavam a
ser um objetivo da elite política de Montevidéu. Mas o Estado oriental manter alianças c a iiiterredcrem lias disputas políticas eiitre os caudi-
não estava ainda, suficientemente iiistriinieiitalizado para fazer frente lhos uruguaios.
e impor-se ao poder caudilliesco da camparilia. O Império jiistificava suas poucas medidas, e iienhuma disposição
Em virtude dessa condição, tais políticas foram abortadas em 1864 de uma nova iiiteivenção no Uruguai, em defesa da propriedade des-
pelo levante do caudillio Venâiicio Flores. Este foi respaldado pelo ses súditos, alegando que as acusaçòes eram vagas, e que não havia tes-
Império Brasileiro, com amplo apoio dos estancieiros da fronteira que
temunhas. No eiitaiito, quando estas existiam, e testemunhavam, se-
coiitinuavanl solicitaiido ao governo brasileiro, em repetidos ofícios,
gundo as autoridades de fronteira brasileiras, tornavam-se vítimas de
proteção às propriedades dos súditos do Império residentes na Repú-
vingança por parte das autoridades da facção política rival.
blica." A atuação do caudilho foi apoiada pela intervenção militar
Assim, tal problernática foi levada novameiite a discussão na As-
imperial no Uruguai, oficialmente visando a protecão dos súditos brasi-
sembléia Proviricial do Rio Grande. É em 1873 que encontramos uma
leiros estabelecidos naquele país e qiie terrriinoii por depor o governo
produção parlameiitar mais avultada a respeito do assunto. Nos meses
de março e abril diste alio tiveram lugar acalorados debates sobre a
forma como o legislativo gaúcho deveria atuar junto a« govcriio cen-
41 Petrissaiis Agitilai c Freiri'i Chi-ballo. 01).( I / . p. 56.
tral com intuito de protcger os interesses dos estancieiros rio-graiideiises
42 (;oniòrme ofít ios enviaclos ao M N E e111 3/10/1860, 18/ 1 I / 1861, 24/09/18(32, 26/08/18G:3; estabelecidos iio norte ~irugiiaio.Os deputados salieiitavain ainda a im-
bein como (XPP de :30/08/1860, 6/10/1861 e I / 0 3 / 1862 (AIIK(>S). portância ecoiicirnica da indústria charqueadora e pecuária afirmando:
Veremos que rnetadc da reiida da pi-oviiicia tem siia oi-igcrri iia iiiclustria
pastoril [. . .] é foi-a de dúvida que esses rendimentos, que veni eiii-ique- aqui pedir providências que garantam a propriedade dos brasileiros
cer nossos cofres e tesouros, não é ele somente originado da indfistria naquela República". O mesmo deputado lembrava aiiida do esforço de
desenvolvida nessa província e sim também em sua maior parte no Esta- guerra feito pelos rio-grandenses, especialmente os estancieiros que
do Oriental do Uruguai. 43 montaram as companhias de cavalaria, em defesa do Império contra o
Paraguai, cobrando uma política em favor dos interesses brasileiros no
Inicialmente o Coronel Silvestre Nuiies, representante cornbativo Uruguai, ou no mínimo que o Império fizesse cumprir os acordos de
dos interesses dos brasileiros estabelecidos no Estado oriental, propôs 1851.""
um requerimento ao goveriio imperial para que qrialificasse a proprie- Deputados como Silvestre,Arruda, Diaiia, eram representantes dos
dade de brasileiros estabelecidos naquele país como "iiialienáve19'sob interesses dos estancieiros da fronteira, e trouxeram à Assembléia as
quaisquer circunstâncias, ou que se respeitasse na íntegra o que previa muitas reclamações e denúncias quanto às arbitrariedades por parte
o Artigo 6 V o Tratado de Comércio e Navegação de 12 de outubro de das autoridades orientais. Violências pessoais, roubos, assassinatos e
1851.44Segundo o próprio Silvestre "o tratado não tem sido executado, inúmeros prejuízos à benfeitorias, assim como a depredação dos cou-
e não o será sem que o nosso governo se mova com a energia de que é ros dos animais abatidos para o sustento das tropas, eram as denúncias
capaz".45Através dessa representação o deputado pretendia fazer ces- feitas com maior recorrência no legislativo provincial. O deputado Sil-
sar, com o amparo do Império e sua diplomacia, as constantes violações vestre Nunes defendia a tomada de providências a todo custo, não te-
de propriedade, no país vizinho, principalmente nos momentos de iii- mendo sequer uma guerra com a República em defesa dos interesses
surreição dos caudilhos da ~ a m p a n h a . Entretanto
~" a Comissão de Jus- dos rio-grandeiises lá estabelecidos.
tiça do legislativo provincial não aprovou tal requerimento ern vista de Aprovou-se, após longas discussões, um indicativo ao Governo
problemas jurídico^.^ Central, rio qual pedia-se o "fiel cumprimento do Tratado de 12 de
Nas sessões seguintes, dos últimos dias dc março e os prinieiros outubro de 1851";ou seja, que ern caso de embargo de bem, se prestas-
dias de abril miiitos deputados sucederam-se na tribuna em defesa dos se recibo e este fosse honrado pelo governo da República.
interesses dos "40 mil brasileiros residentes ria República Entretanto, é coiiveiliente lembrarrnos que o Estado Oriental nes-
Havia preocupação por parte dos deputados de inspiração liberal, em te momento, não tinha ainda recursos financeiros. A autoridade oficial
não intervir politicamente ofendendo a soberania da República; unia ainda não é forte o suficiente para adeiitrar na campanha. Dessa for-
vez que a própria constituição daquele país garantia a possibilidade do ma, indicações e representações similares a esta acabavam seiido inefi-
Estado em caso de guerra utilizar-se da propriedade privada, rnediaiite cazes, uma vez que o Império poderia levá-las ao Governo de Montevi-
prestação de recibo. E foi justamente essa a tônica das representaç6es déu, mas este não teria coiidiqões de cumpri-la.
do legislativo gaúcho junto ao goveriio central: fazer com que os i.eci- Os discursos dos deputados cvideiiciam ainda, de forma bastante
bos fossem emitidos em presença do proprietário ou dc algiini seu eii- clara a divergência entre o grupo pastoril da fronteira e as políticas
carregado, bcni como fazer com que o governo oriental honrasse tais imperiais. Além disso, podemos observar divergências de interesses
documentos. Como declara o deputado Epaminoiidas Arruda: "venlio dentro do próprio lcgislativo provincial. Neste rnoniento, a província
registrava o crescimento político e econômico de outras regiões (com
ênfase no planalto), assim diluindo o poder político, anteriormente
concentrado basicamente em função dos interesses dos estaiicieiros vin-
43 Anais da Assenibléia Pro\,incial d o Rio Grande d e São Pedro. 7/3/1873 (Solar dos (;ámai-a) culados ao setor pecuarista tradicional da fronteira.
44 Tal artigo coiisistia e m "Os brasileiros residentes 110 '1Jrugiiai estão desobrigxlos tle todo e Tal conjuntura é aiiida marcada pelo principio do declínio da es-
qualqiier enipréstiino forçado, imposto ou recluisiçáo militar [.. . ] q ~ i a ~ i dseo iizer iiiuito rie-
cessário deve-se prestar recibo sobre gado vac:iim e ca\.alar que for usado". tância crioiila, e da economia charqucadora. A rnodernização começa,
4.5 Solar dos Câmara - Anais da Assciiibléia Proviiicial do Rio Grande d e Sáo Pedro (AAPR(:SP). lentamente, a chegar no campo. No Uruguai registraram-se os primei-
7/3/1873. ros cercamcntos, ao mesmo tcnipo em que se difuiide a iitilização de
matrizes importadas. Nesse momelito, eritretanto, tal rc!alidade não se
Chegava-se a pensar que se poderia forrnar, com iniigrantes, uma
apresentava ao iiorte do rio Negro, principalmente rias propriedades
"barrera para la población brasileiia", na regiáo norte do país."'
de brasileiros, que ainda utilizavam a mão-de-obra escrava e pratica-
Os projetos e o ímpeto modernizante desde Montevidéu tomaram
vam a pecuária extensiva, sem refino do gado para mellioria da carne e
força com a ascensão da ditadura de Latorre, em 1876. A partir de en-
da produtividade.
tão o governo de Montevidéu buscou na modernização de alguns seto-
É com a ascensão dos militares, encarnados ria figura de Latorre res da economia a forma de consolidar a área polarizada pela capital
que as reformas moderiiizadoras terão maior impulso. O período de
no território nacional. Expressão direta dessas diretrizes no que se refe-
governo com lideranças militares à frente do executivo") acelera a moder-
re à fronteira norte, foi a publicação na imprensa montevideana do
nização do aparelho de Estado uruguaio. A partir do fim da década de
projeto de "Colonización Industrial - eiisayo sobre un sistema para la
70, e nos anos subseqüentes, reformas políticas são implementadas. A
República de1 U r ~ g u a y " , 'de
~ autoria de Francisco Bauzá. O autor
promulgação do Código Rural em 1873 transformara a terra em mer-
alertava para o predomínio de brasileiros em toda a região fronteiriça
cadoria. Um sistema de comunicações mais eficiente começa a funcio-
ao Brasil, e via com temor o predomínio da língua e dos costumes bra-
nar a serviço do Estado, o cercamento dos campos é estimulado, e a
sileiros rio território uruguaio. O projeto propunha a criação de colô-
modernização das unidades produtivas passa a ser nieta da elite política
nias de imigrantes estrangeiros (preferencialmente de língua hispâni-
montevideana.
ca), baseadas na pequena propriedade agrícola, e com um modelo pe-
Entretanto, tais reformas nesse momento ainda não conseguem
cuário moderno. Tais medidas neutralizariam os elementos brasileiros.
fazer o poder e a ordem estatal chegarem à campanha. As terras do
Para Bauzá, os brasileiros residentes no Uruguai não deveriam ser ex-
norte ainda são controladas pelo poder caudilhesco, as estâncias per-
pulsos, mas deveriam criar seus filhos de acordo com os costumes, a
manecem utilizando as velhas técnicas da pecuária extensiva, e a pre-
língua e a educação da República Oriental, e assim acabariam por "amar
seiiça de brasileiros subsiste.
dulcemente a tina patria en cuyo sue10 se deslizara e1 tiempo feliz de la
A produção bovina das estâncias tradicionais, devido à utilização
primera edad".5' Ou seja, a preocupação surge no sentido d e
das técnicas arcaicas, acabava por produzir carnes de pior qualidade
"orieiitalizar" a região da fronteira. A presença de brasileiros passa a
em relação às estâncias "modernas" do sul, que desde de a década de
não ser vista enquanto um problema na medida em que estivesse inte-
1860já estavam introduzindo a utilizaçáo de matrizes iniportadas. Des-
grada ao espaço ecoiiômico e político vinculado a Montevidéu.
sa forma a produção dos estancieiros nortistas, especialineiite a dos bra-
Em 1879, o chefe político de Equarembó, senador Carlos Reyles
sileiros estabelecidos naquela regiáo destinava-se, em grande parte, à
irá defender, novameiitc, no parlamento da República a fundação de
produção de charque, lima vez que a carne não se prestava para outra
cidades, ou povoações na liiilia de fronteira. Para Reyles coiistituía-se
finalidade. Assim as terras ao norte do Rio Negro permarieciam forte-
de fundamental importância, que o Estado deseiivolvesse uma política
mente vinculadas à economia rio-grandenses. A partir desse momento,
de povoamento da fronteira por orientais, contribuindo assim para a
este setor prodiitivo, mais tradicional, passou a sentir cada vez mais a
nacioiialização do território, conterido dessa forma a penetração pací-
crise da economia charqueadora.
fica e silenciosa dos brasileiros em territórios uruguaios.
A preocupação da elite política da capital da república com a
A tônica do projeto do senador permanece a mesma dos projetos
massiva presença brasileira lia região Norte era assunto em pauta. Des-
discutidos na administração de Rernardo Berro. Dessa forma, Reyles
de inícios da década de 1870, políticos e intelectuais começaram a for-
irá insistir que "se acuerde la prefereiicia en las donaciones de solares e
mular projetos de coloilização para a fronteira norte. Os projetos apre-
cliacras a pobladores agricultores nacionale~""~ (grifo nosso). Assim pre-
sentados visavam à "orirntali~ação'~ da fronteira. Para tanto propiiiiha-
se a utilizaçáo da imigração de europeus (especialmente espanhóis),
bem como a moderriização do modelos produtivo iitilirado ria região. 51 Conforme os prc!jeios de Gregorio Peies Goniai; político ~liiiciilacloà r\ssociação Rural. I'i-\lel
1)cvoto.IN Fraiicisco Baiizã. Oj,. cil. p. C:IAIII. Tomo I.
52 Fraiicisco Baiizá. 01,. cil. Tonio 11.
53 IOid. p. 144.
~ ( (l J T Z I ~ I ( IMoi~tt.video:
(I( L i ~ ~ t o )(10
50 Nalliim, Beiijaniiii /i/ln~~z~rcl ~I. Eclicioiics de la Baiitla 0ric.n-
tal. 1993 54 Diario d e Sesio1ic.s d e la (:amara dc Seliadores. 21/6/1879. Aj~utl:Oscar F a ~ wCarlos . Iieylcs )i
Nuesti-a Fro1iter;i c011 Brasil. FIoy e , I-listotin.
~ Moiitevideo, v. V1I. 11. 38, 1990, p. 7-9.
tendia-se iião apenas iiacioiializar a fronteira, mas substituir o modelo porte ferroviário para a condução das tropas de gado apresentava-se
produtivo da regiâo, integrando-a à economia nacional e desviiiculaiido sobrcinaneira elevado frente ao custo de condução dos aiiirnais erri tro-
a região da economia rio-granderise. Para taiito era necessário também pa por terra. Dessa fornia os víiiculos com o Rio Gi-ande permaneciam
modificar o padrào das propriedades, estimulando o cercamerito da fortes, uma vez que era ainda mais lucrativo o modelo produtivo
área, a utilização do trabalho livre, e das novas técnicas de produção utilizador da pecuária extensiva e subsidiária da economia rio-grandense.
agropeciiária que já se disseminavam pelo sul do país. Entretanto a economia ~ h a ~ q u e a d ojár ademonstrava sérios sinais de
O projeto foi aprovado no Senado, no entanto, nunca foi discuti- esgotamento e a abolição da escravidão no Brasil significou mais um
do pela Câmara de Deputados. Entretanto os cliefes políticos regionais agravante da crise deste setor produtivo.
mantinham-se constantemente alertas para a importância da presença É importante referir que há significativa, porém ainda modesta,
brasileira no país. Afinal as sólidas redes de relações políticas, econômi- instalação de colônias de imigrantes europeus na região fl-onteiriça.
cas e até mesmo familiares entre orientais da fi-onteira e os estancieiros Tais núcleos apresentavam propriedades moderiiizadas, utilizadora do
rio-graiideinses permaneciam. alambrado, de bretes, raças bovinas européias, etc. Um exemplo é a
A presença de brasileiros em 1888, às vésperas da abolição da es- colônia de "Estrella" 110 departamento de Artigas, com uma população
cravidão do Brasil, atingia o índice de 82% das propriedades do Depar- de aproximadamente dois mil imigrantes de origem italiana.5' Tais
tamento de Rivera. Em Artigas e Cerro Largo, respectivamente 68%, e núcleos vão consistir em verdadeiras ilhas de modernidade fi-ente à re-
64% dos proprietários eram rio-grai~deiises.Em Salto e Taquarembó alidade tradicional das lides pecuárias da fronteira.
encontramos 52,5% e 55,6% das estâncias propriedade de brasileiros.
Nos departamentos de Treinta y Tres e Rocha um quarto dos proprietári- O ciclo revolucionário de 1893 - 1904
os eram de origem rio-grandelise.
Assim, em 1890 o Chefe político do Departamento de Artigas irá Em 1893, teve início a Revolução Federalista no Rio Grande do
registrar que dos 21.1'74 habitantes do Departamento, 4 mil eram bra- Sul. As tropas do caudilho Gumercindo Saraiva iiivadirani o Estado,
sileiros. Sendo que mais de 60% das inversões realizadas naquele mo- vindas da Banda Oriental. A revolta já vinha sendo gestada nos depar-
mento na região eram realizadas por rio-graiidenses. Na mesma época, tamentos blancosdo norte uruguaio desde o ano anterior. Devido à cons-
em Cerro Largo as inversões realizadas por brasileiros representavam tante instabilidade política 110 Rio Grande do Sul, e à ferocidade das
aproximadamente 50% do total. Para Rivera tal proporção elevava-se a perseguições partidárias deseiicadeadas pelo Partido Republicano o
mais de 70% do total invertido no Departame~ito.~~ número de rio-graiidenses emigrados para o Uruguai ul~apassavaos
As propriedades da froiiteira ainda se caracterizavam pela prática 14 mil. As sólidas relações qiie uniam os estancieiros do norte uruguaio
da pecuária extensiva, o que acarretam em baixos iiidiccs de urbaniza- com os estancieiros rio-grandenses transformavani as propriedades ao
ção e nenhuma industrialização. A região, portanto, permanecia forte- 1101-te do rio Negro, muitas delas de brasileiros, praticamente em quar-
mente vinculada à economia e à sociedade da província. O historiador téis-generais dos maragat~s.~'
riverense Joel de Léon assinala que a permanêricia da utilização de Em 1893 estimava-se que lios departanientos de Rocha e Treiiita
técnicas produtivas tradicionais ao Norte, enquanto o restalite do país y Ti-ês 22% dos capitais investidos fossem de rio-graiideiises, em
modernizava-se, não pode ser entendida sem levar em consideração às Tacuarembó tal índice era de 35%, enquaiito em Salto, Cerro Largo e
dificuldades e o cilsto da modernização na região. De Léon acentua Artigas as presenças do capital brasileiro era rcspectivamente 44%, 56%
que muitos proprietários tentaram utilizar rnatrizes importadas, entre- e 64%. No departameiito de Rivera, 79% dos capitais investidos eram
taiito o índice de mortalidade dos animais (vítimas tia febre aftosa e da de rio-graiideiises. Tais dados rios dão a dimensão dos interesses dos
tristeza) atingia índices de 80%1.~(' Ao mesnio tempo o custo do trans-
-55 Petrissans Agirildi B- Fieii-id (:arballo. 01). t z / . p. 72-74. S'iPetrissaiis Agiiilar e Friii-i;i (:ai.ballo. O/).cit. p. 73. Rem como Liiiz Abell5 y Juel I)e 1,eóil.
56 A tristeza 6 molkstia pai-asii.ol6gica iilcicleiite em bo\lirios, traiisrnitida pelo carrapato. Ailimais I . Kivrra: s/e. 1993. p. 31.
Co~cl.syGentes cle liiverc~-/)cll-t~
atitcíctoiies ~sossuemresis(i.1-]<:iairiiiiiiológica, ao coiiti-ãrio d e boviiios pro\reiiientes d e oiitras f)olf/ictrse 7 l t ~o I<io (;~nrl(lrd a SILIe o
58 4 n a 1,tiiza Keckziegel. A I~i/jlomcrc.icri\'l«rgirlnl: 71i7aniln~6c.s
regiões. Ver Joel Salornón d e 1,eoii. Lliciot~cirioKivo-~nsr,itbl4, Rivera: s/e. 1998, p. 1.245. lJr/,ripc{ri1893-1903. %,se cltl cloiitor-ado PUC/RS .l<197.
rio-grandenses rio país vizinho, e o grau de viiicula<;ãoeconômica eii- conflito. Eiitrctai1to as autoridades 1150 exerciam podei- de fato ainda
tre os grupos de um lado e outro da fronteira. sobre a fronteira. Tal situaçào originará o que Alia Liiíza Reckziegel
Dentre os líderes federalistas, muitos eram proprietários de ter- definiu como "diplomacia marginal", uma vez que o goveriio castilhista
ras ao norte do Rio Negro, ou possuíam vínculos econômicos, políti- abandonou as diretrizes da diplomacia do governo central e passou a
cos e até mesmo familiares com os proprietários uruguaios. Dessa for- desenvolver urna política diplomática de alianças autónomas.
ma as alianças realizadas entre os estancieiros da fronteira transcendi- A permaiiência de Júlio de Castillios no poder regioiial rio-
am à lógica política institucional, definida pelos governos legais, via grandeiise após a pacificaçáo federal faz com que muitos maragatos
diplomacia, e acabavam por ser determinadas pela realidade do espa- emigrassem para o Estado Oriental, uma vcz que o goveriio rcpixbli-
ço fronteiriço. cano gaúcho adotou uma política repressiva bastante forte contra as
Os estancieiros rio-grandenses estabelecidos na República Orien- oposições.
tal, utilizavam suas propriedades e ligações no Uruguai para financiar Aparício, após o término da guerra, toriiara-se senhor absoluto ao
logisticamente a guerra. O líder Silveira Martins em mais de uma oca- norte d o rio Negro. Apoiado pelos Dlancos, bem como por muitos
sião, durante a guerra civil irá buscar asilo em terras orientais, maragatos residentes no Uruguai, começou a articular um novo levan-
reestruturando forças em sua estância em Rincão do Pereira em te, dessa vez contra o governo colorado de Montevidéu. Entretanto,
Taquarembó, numa das costas do rio Negro. As forças de Gumercindo constituía-se grave risco realizar um levante na Banda Oriental sem
Saraiva eram em grande parte composta por orientais; além disso os contar coni aliados que garaiitissem segurança no outro lado da fron-
federalistas contaram com o apoio do caudilho uruguaio, irmão de teira. A aliaiiça entre os Dlancos da fronteira e os republicaiios acabou
Gumercindo, Aparício Saraiva que combateu em território brasileiro tendo êxito, e sendo endossada porJulio de Castillios que via com bons
com suas próprias colunas. Após a morte do irmão é Aparício quern 01110s a idéia de cooptar os Dlancos, neutralizando dessa forma a aliança
toma o comando das forças revoltosas no SuL5" destes com os federalistas.
A partir das anotações do oficial maragato Senna Guasina," p d e - No início do séciilo XX, essas aliançasjá não coiitavam mais com a
mos perceber o quão importante constituíram-se as terras do norte uru- simpatia do governo do PRR mas, no entanto, coiitiriiiaram em plciio
guaio para a manutenção da guerra. Em mais de um momeiito o oficial vigor, pois essas ligações entre os caudilhos da froiiteira não atendiam
registrou concentração de forças federalistas em estâncias no território às ideologias, ou às políticas institucioriais de cada Estado, mas calca-
oriental, muitas vezes de propriedade de brasileiros, ou então de alia- vam-se na lógica caudilhesca e nas relações tradicioriais ainda predomi-
dos políticos." Assim, os chefes políticos da fronteira norte, Dlancosprin- nantes no espaço fronteiriço.
cipalmente, irão auxiliar em armas, proteção e ate em homens aos
federalistas gaúchos. As forças que os caudillios rio-grandcnses reiiiii-
am no Uruguai para dali invadir o Rio Grande do Sul cliegavam a con-
tar com mais de quatro mil liomens.
Tais ligações desagradavam sobremaneira aos líderes goveriiistas
gaíichos, os quais i-eiteradamente pediram que o governo central iiiter-
viesse diplornaticamente em defesa da "neutralidade" dos orientais no
[,..I umas são sem dúvida alguma muito irritantes e muito cá~xsticase
portaizto capazes d e produzirem a morte com a continuação da
propiiiaqão e outras até venenosas e fazelido-se notar entre as rnesmas
drogas o -vidro moído - a respeito do que cliamo milito em particular a
ateiiçáo da autoridade competente por causa do grande alcaizce que tem
como meio destruidor e desorgaizizador dos riossos tecidos.'
3 Como boa parte dos delegados e siibdelegados do período Moreiia Ilha era negociante, estahe-
leciclo eni Porto Alegre (iiatiiral rlrsta Pro~íncia,com 30 anos de idade, casado, falecido em do séciilo XVrI1, "todos os que pro\ii~hainda Costa do Oiiro, mas izimbkni. os da Costa dos F,scr,avos
1880). Serviu cle testemuiil~aem pi-ocesx) d e 1873 - APEIZS - S~imArios Jíiri, maço 43, pi ocesso e do golfi) d e Beilim, oii s ~ j aiiidivícliios
, oritiiiclos de povos muitas j8ezesdifereiites, mas qire possri-
1257; APEKS - C:artõrio d e 0if2os, maço 109, t i . 2 x 3 (1880). íam traços cultiirais, creiiças e iiin panteáo relibioso muito prcíximo". Portiligal, Coinissào Nacioilal
4 As deilomiilaçóes de origem africana 1120 encerram a questáo d e saber-mos a cultura a qiie para as Cornemoraçòes dos Descobiimeiitos Port~igueses.0.r negros ctn IJottug(~l- Siculi~sXii-XJX.
pertenciam estes indivíduos, pois lia maioria clos casos refletem apenas o porto d e onde parti- Lisboa: Mosteiro closJeròiliinos, 1999, p. 73.
ram no coritiilente afi-icano, cada rim deles (2s vezes apeiias referência a tima deiiorniilação 5 Na vertlade, existiii irina peqiieila corifùsáo, às vezes constando Joaq~iirrida Cunha Vieira e
topoilímica) ei-a respoiisável pela ciiáspora cle inúmeras etiiias que vinham coildeiisadas em tim oiiti-asJoaqiiim Vieira cla Ciiriha. Poclc, pai-ecer uma sirnples alteração, mas a seguiida maneira
mesnio r6tillo de exportação. 0 s Minas, por exeniplo, eram Lima referência a fortaleza de São remeteria o r-6ii para a área d e dependência tle iim cidacláo de respeito, seu liom6nirno, que
Jorge da Mina - coiisti-uída em 1481 -, qiie segiindo os relatos de época possiiiria dois fossos em 1868 assiiniiii a I'resid6ilcia ci~iPi-ovii~cia,corno 1" vice-presidente. A confiisão talvez losse
cavaclos lia roclia, 400 canhões e potleria "armazenar" até 1 .O00escravos, tendo sicio tomada do pr-(íprio escravo, acost~imadoa usar o seri sobi-enome '%brancon apenas qtiai-ido precisa\.a
pelos liolancleses em 1637. A partir daí, a deiiominaçào passoii a abarcar "toda iiina gama d e j~istificar-secoiri as aiitoridades. Na siia comiiiiidacle tle pi-etos cle~vriaiisar somente a alcuiiha
afiicaiios cle ciiltuia Ioriiba, Haiissá, Ashanti, etc., pois eles ei-ain 'importa(1os' desde a Costa da h4ina, símbolo de ancesti-alidade, qiie icieiitifica\la e reforçava sei1 papel tle feiticeii-o.
Mina". Capela, Josí.. Esun71rrt~rc~, n sv~f,rc.rcz(1s snq11~, o «Õoliriortin?zo (1810-1875).Porto: Ed. 6 No rnoinciito da alfoi-ria tinlia 37 aiios e tral)alha~.;t11os e i ~ i ç odoinkstico. No dia 29 tlt. maio do
Afi-ontarriento, 1974, p. 08. (:arreii.a, Antõilio. ii-hjic.o/)o~?u,crrr~.r
de P J C ~ I I.isboa,
J O . Jiinta cle Inves- mesmo alio, foi lihertatlo o oiitro esci,avo,Fi-ailcisco, (:oiigo, 37 aiios, seiviço doriibstico. APEKS
tigações C:içiitíficas do Ulti-arnar/(:eiitro de Estiidos de Antropologia (:iiItiir.al, 1979: 116. (Es- -- 13'114, 18, fòlha 46v.
PVL tr).r(i.rg(i(Iú-
tiitlos d e Aritrol~ologia(:iiltiiral, 12) R4ac.sti.i Fillio, Már-io. Quilotnbo.~c (j71ilo~r~bol~.s
ch(1.s. Porto Alegre/( :axias do Si11:E:S'T/U(:S, 1979, p. 62. (:orno Minas foi-arn d(asignarlos,a partir 7 A/ILtestii,h42110. A s~)7~cddo ncgt(1. Poi to Alcgie: hlei (ado Aberto, 1988, p. 110.
Mas o escravo enveiieiiador não era, riecessariameiite, rim feiticei- O caso Joaquim Mina pode ser usado como deinoiisti.ativo das vá-
ro qiie soubesse manipular drogas e poções drscoiiliecidas. Podemos rias formas qiie o indivíduo ficava preso cm tramas com seu ex-senhor.
dizer que o perigo residia nas próprias cozinhas dos senliores, gozava Manter lealdade com seu ex-seiilior, não o desrespeitar e praticar al-
da intimidade das suas casas e poderia, em um ato vingativo repentino guns serviços mesmo ocasionais, trazia algumas vantagens para os indi-
e quase indefensável, atingir os seus familiares causando a morte ou víduos saídos do cativeiro. Ao longo de todo o processo, Joaquim será
consideráveis danos físicos. O pajem ou cozinheira submissos, de uma auxiliado pelo sobrinlio de seu ex-senhor, qiie por ele já havia se com-
hora para outra, poderiam fazer chegar a seus senhores, de várias for- prometidojunto a polícia para livrá-lo de prisões e castigos, seiido por-
mas, algum tipo de veiieno corriqueiro, utilizado em suas práticas ca- tanto recusado pela promotoria pública como jurado.
seiras. Esse era o caso do verde-paris ou verdete, um corante ou tinta Segundo as testemunhas arroladas no processo, Joaquim seduzia
muito usado, que tinha em sua composição química o arsênico.s A cor as criadas da casa da família Barros - escravas ou negras livres -, fazeii-
verde tornava esta substância química ideal para ser depositada, sorra- do-as ministrar doses homeopáticas de veneno aos seus senhores ou
teiramente, no mate dos senhores e de sua família. Assim fizeram a amos. Isso ocorria há anos e Barrosjá tinha dispensado 3 ou 4 escravas,
preta Joaquina, eni Rio Pardo e o menor Ladislau, na capital do Impé- manipuladas para esse fim pelo réu. A última cativa seduzida, também
rio, ambos cativos em 18'19. Este último colocou: apontada como ré no processo, chamava-se Silvana, escrava de José
Aiitônio Rodrigues de Barros, preta, nascida em São Jerônimo, vivia
" [...] grande porção de verde-Paris 110s bules, chaleiras, coador e mais em Porto Alegre há 3 alios e ocupava-se do serviço doméstico da casa
vasos de uso doméstico."" de seu senhor.
Os desentendimentos entre Joaquim e a família Barros tiiiliam uma
liistória de muitos anos, siirgidos de uma denúiicia feita por José Aiitô-
nio Rodrigues de Barros ao sei1 senhor, e que ocasionou um dos raros
8 Langaard, Theodoro J. 13. Diciotzcí~.io(Ie n~,edicinndo~néslicnepopulnr- I/olu~,~es I, I I P 111. 2. ed., Rio
castigos sofridos por ele ainda em cativeiro. Açoitado lia casa de seu
d e .Jai~eiro:Laemniert & Cia., 1872, p. 374; Aiilete Caldas, LIIcion~h~io ronten1/1o1-ri~eo dn li~lgun seiihor - que conforme o texto da carta de alforria coiisiderava-o ti-aba-
5. ed. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1968, p. 469.
/)ort.tig~ies~. lhador de coiifiança e essencial a siia sobrevivência -Joaquim passou a
9 Iiigerindo doses d e Verde Paris, teiitai-am suicidar-se, roubando a seiis senlioi-es o aproveita- usar de seu prestígio e conhecimeiitos como feiticeiro, para sem pressa
meiito de siias /)?o/)lledcrtles,o pardo Alfredo da Silva, marceiieiro, escravo ein Pelotas (1881) e a
parda Kita, em Porto Alegl-e (1879) e matori-se a escrava I-Ionorata, em Cachoeira do Sul (1882). obter vingança de seu desafeto, Nomeado como ciirador da 1-6Silvalia,
hlCSHC -Jornal Rio-Ci-crt~derzse(5/7/1879) e Joi.~~,nl113ercnrztil (8/10/1879). Em 1863 foi assassi- o advogado Francisco Pedro de Miraiida e Castro,lo api-escritou uma
iiado em siia padaria na Rua de Bragança (Porto Alegre), R4aiiuel (laetano d e Caldas Qiiii~tela
e siii irmão (Aiitoiiio Joaqiiim d e Caldas), por seiis escravos Delfino (paicio), Camilo (preto) e
interessalite narrativa do caso:
Sil~zestre(preto), estrangulados e esljancatlos coiii aclias d e lenha, Constarido porérn que: "[ ...I
j6 enl tempos mais remotos rim dos escra\rosassassinos pusera veneiios em tima clialeii-a d e ágiia A acusada Silvana é iilculp5vel deste horroroso crime.
pai-a seu senhor tomar mate, que teria sem clii\ida coiiseqiiências fiinestas a não sei- o aviso d o
Neste crime, revestido de todas as coles negras, com cortejo de cii-cuns-
preto Pedro a seu senhor". APEKS - Siiinários -Júri, maço 36, pi,ocesso 1087. MCSHC -Jo?.tznl
do Cottdicio (19/2/1881) ,~Joi-?~nlMe~r(~t1til(13/10/1879) e,Jornnldo Conlétrio (18/6/1882). Voltaire tâncias aterradoras, friamerite calculado para extinção de urna família
em iim d e seus contos relata os ino\.imentos d e rua, iios quais os Jesuítas eram aciisaclos d e inteira, inclusive inocentes crianças, minha ciiratelada nenliunia parte
coritrabandear "drogas e verdete". Voltaire, François Marie Aroiiet de. Cun,tos. São Paulo: Abril teve, mas se a teve foi tão pequena e tão maquinalmente executado seu
Cultural, 1983, p. 279. O imaginário d o período parede "coiltamiriado" pelo receio d o enveiie-
iiarnento, produto destas práticas qiie vimos enti-e os cativos, mas também de referêiicias literá- ato, debaixo d~pri.ssãode ta-rore medo irreesi.stzúel,que 1150 llie cabe responsabi-
rias qiie fermentavam o medo das pessoas em serem sorrateiramente assassinados. O coiisul lidade alguma.
pol-tuguês em Rio Grande, eni abril de 1883, informanclo sobre a prisão d e iim português ocor- Com efeito o preto Joaquim, tendo resolvido envenenar lentamente toda
rida logo após seu desemt)arqiie em Porto Alegre, disse qiie este ( e niais dois italiarios e tini
espaiiliol), f-L~ziaparte d e lima "forniidá\~elqiiadrillia de salteadores com sede em São Paulo" família de Barros, tem-se servido de suas escravas como iii~trurn~ritos de
que pretenclia assaltar o Banco Ii~glêse outras casas coinerciais e ainda dedicavam-se a "iniiito sua intenção criniintssa...L)iaas escravasjá foram vendidas por Barros, por
]>rejutlicial indústria cle passadores d e notas hlsas e ainda, cii.cunstância qiie produziii iiin ver- terem sido achadas com papéis corn substâncias venenosas, foriiicidas
dadeiro pânico a nrria cidade como esta, poiico e mal policiada, qiie eles clisl.)unham e se aclia-
vam miinidos cle cloi-oS61.inioe oiitias siibstâncias qiiiinicas siificienteinciite eiiei-géticas para
da!- morte instâiitanea a quem qrit:r cliie contra eles tentasse a luta eni dcksa dos seiis ha~rei-es
oii clos conielidos a sua guartla". AHRING - Correspoiidi.ii(,i;~d o (:onsillatlo poititgiii-s iio Rio
C:raiicie do Siil, Caixa ,562, ofício clc 12/4/1885. 1 0 Filho tie J o ã o Cayistrano de Mii-antla c. (;astro, ad\,ogado pela Faciildatle dc: Direito tlc Sáo
Paiilo, qiie fòi rliretor geral da Fazenda P~.oviiiciale pi-esicleiit e da Província iiirerino.
1301-Joaquim; e unia criada despedira-se de sua casa por ver-se ameaçada Eni defesa do rPii passou a atuar o solicitador João Pereira Maciel,
em sua existência em coilseqiiêizcia de não querer anuir ao seu plano de então com 51 anos, indivíduo muito conhecido lia capital da Províii-
envenenamento da família de seu amo, tia.':' Causou-nos surpresa a participação de Maciel neste caso como
Silvana, dominada por Joaquim, cheia de terror com ameaças de ser en-
deferisor, pois 6 anos antes ele esteve envolvido em outro processo cri-
venenada se não se prestasse ao plano de assassinato da família Barros,
me iio qual um preto tambérn apoiitado como feiticeiro havia assassi-
recebia os papéis com substâncias veizeiiosas que lhe fornecia e os fazia
desaparecer sem aplicá-los ao fim para que foram dados, dizendo sem- nado a siia esposa. Talvez seja necessário um desvio momentâneo de
pre a Joaquim que os propinava em bebidas e comidas. rumo, para narrar brevemente este entrecruzanieiito de histórias.
A prova evidente desta ameaça e terror encontram-se nestes autos.
A segunda e terceira testemunha ouviram o réu ameaçá-la quando fazia
revelações a seu respeito, proferindo aí estas palavras: "Põe-te bem com O feiticeiro Cabeça
Deus, que eu hei de me vingar de ti". Inquirida iza presença do Réu afir-
mou que deitara algumas vetes em bebidas e comidas tais substâncias, po- Na noite do dia 23.03.1865 a esposa de João Pereira Maciel, Ana
rém em doses muito pequenas. Deve-se notar que na presença do Ferreira Maciel, estava conio era seu costume na janela da sua casa na
Subdelegado e de outras pessoas, negou este fato, que se o afirmou depois Rua de Bragança - atual Marechal Floriano -, com rnais duas moças,
foi ainda debaixo de pressão de Joaquim em presença do qual depôs, que quando repentiiiamente um ndto passou correndo e disparou em sua
passando por feiticeiro e dizendo que adivinhava e munido de venenos que nas direção um tiro com um hacamarte, provocando-lhe a morte imedia-
treuas propinava) a ameaçara de matar .PP nüo se prestarse a execuçüo do seu crime. ta.14Após alguns dias de iiivestigação, foram apontados corno réus:
Admitindo porkm a hipótese de que algumas vezes propinasse as drogas
venenosas, não é intuitivo, à vista dos autos, que ela o praticou violentada - Ve.rzL?ncio:preto, escravo de Maria Bernarda da Silva, ligo ao certo sua
por rnedo irresistível! Nüo éjora de dúuida que Joaquim pasraua pol-feiticeiro, idade, representando ter 28 anos, solteiro, nascido lia Ilha de Santa
que sabia amansnr os senhores, e, mediante ret7ibuiçáopecunicriria, fornecia a escra- Catariiia, pedreiro (em um interrogatório disse que vivia do que sua se-
vos pós e outros objetos para sm-e~nlr~nçudosnas comidas e bebidar de seus senhores, nhora lhe dava), residia lia Rua da Igreja em casa de sina senhora 115
cuja.5 qualidades venenosas ignoruvamn) para o fim de amansa-10s !Tentando alguns meses, filho de Manuel e Eduvirges, não sabia ler e escrever;
eiiverienar a famíiia Barros, por cujo ~notivo já por outras vezes fora a ca- - Amélia Accioli Pi~rheiro:28 anos, viú\.a, de Pernarnl>uco (Vila da Água
deia e uma vez castigado, izão procuraria dominar pelo terror Silvana, como Preta), vivia de seins rendimeiltos (soldo como viúva de militar), residia
já dominara outras duas, afim de poder realizar seu plano criminal ! na Rua Clara há dois ailos, não sabia escrever, filha dc Albiiio José de
iòdos sabem do pod~rque nessa classe de gmte boçal exercem os tais feiticeiros Barros e Maria da Coiiceiçáo;
en-ilenenadores [. ..]. '' - Finnina, escrava de Mailrícia Alves de Azamb~ua,parda, solteira, 16 anos,
aliigada como criada na casa de Arnélia Accioli Pinlzeiro, morava com
Procinraiido caracterizar o réu como feiticeiro, nias ao mesmo tem- sua ama na Rua (:lapa, fillia de Leandro e Benta, de Porto Alegre, não
po denlonstrando como a fama do mesmo estrapolava o seu grupo ét- sabia ler e escrever.
iiico, o Promotor Publico Miguel, Lino de Morais Abreu, conduziu o
interrogatório do negociante Ricardo Manuel de Azevedo, fazendo-o Casado recentemente com Ana Ferreii-a,João Pereira Maciel Iia-
respoiider que havia visto o Oficial de Justiça Manuel Antônio do Couto via sido amante de Arnélia por muito tempo, sendo pai de um filho
pagar 32$000 réis a Joaquim por uma garrafa contendo "uma prepara- que ela carregava no colo duralite as audiCncias do tribunal e outro
ção própria para amansar sua mulher9'." que trazia 110 ventre." Mais ou menos um mês antes do assassiiiato,
Veilâilcio passou a freqiientar a casa de Amélia, contratado para com
11 Trechos iião estno stiblinhados i-io oi-igiiial. Ofício de 2/:4/ 1873. Quando foi feita tinia acaie-
acão riitre Sihlaiia e.Joacltiiin, e4te tleclarou "como am<~ac;aiiclo-a": "põe-te beni com Deus". 13 hlaciel aparece como testemunha em processo d e 18'iG, APEIIS - Siiinirio Jíiri, rnaço 50,
Atetiioi icdda, S i l ~ a i iac,tbou
~i i~igiiidoe seiido jtilgad,c a rcaveliii. processo 1355.
12 1,arira de Mello e Soiiza cita casos tle feitiços sob enconieilcla, qtie tiiiliam coi~iofinalidade a 1 4 APEKS - Siiinários -,Ifiri, maço 37, pi-occsso 1090.
ol~teriçiiotlt. alfi)i-rias. Souza, 1,atii-a cle Mello e, O IIic~Dor n %.,-ade S n ~ i t nQ-LZ: feitiçaria c: 15 (:onforrne clepos a pi-ofessoi-a ita1ian;i I-Ieiiriqiieta Velliitti (26 ailos, solfeii-a, viziiiha tla 1-6):
religiosidade 1)optilar 110 Bi.asil (:olorii;il. São Paiilo: (:oinpai-iliia tias Letras, 1986, p. 207. "[ ...I que efit"1clo iiltirnaiii~nter:orn ela [Arnélia], ~ ~ e i ~ d triste
o - a e sc.i~tlc)pí11)lic.onesta
poderes de feiticeiro resolver scus pi-oblenias afeti~os.'~'
Conio apa- dessa espécie aquelas africanas coni aparê1lr:ias tle "niouras trotas" c aque-
reiitcrneiite, os poderes de Veiiâiicio não foram suficientes para les negros com o aspecto de "negros do surrão", corisagrados pelo folclo-
reaproximar os antigos amantes, o obstiiculo existente eiitre eles teve re da nossa gente como terríveis mestres de catimbó: conhecedores de
ervas venenosas e de pós inisteriosos.'"
de ser eliminado. Aí é que tornou-se cúmplice a esciava Firmina, pois
alguém tinha que mostrar ao assassino o alvo do ódio da mandaiite
Além de ter seus poderes reconhecidos fora de seu grupo étnico,
do crime." Por volta do meio-dia Veiiâncio encontrou Firmiria na
Venâiicio Cabeça havia obtido há alguns aiios um bom protetor, quan-
cozinha da casa de sua ama e pediu-lhe que se encoiitrasse com ele "a
do pedira ao então Capitão do Corpo Policial Sebastião Maria Ricaldes,
boca da noite" na Praça da Matriz para mostrar-lhe a esposa de João
para ser seu padrinho de crisma. Mesmo que isso não tenha se realiza-
Pereira Maciel. Ela anuiu e "às Ave Maria", apontou Ana Ferreira en-
do ('por que ele não sabia rezar e por ser ainda escravo, tempo em que
tre duas moças que estavam na janela e quando regressava ouviu o
estampido de um tiro.
[...I promovia uma subscrição para se libertar",l%ontinuou a chamá-lo
de Padrinho. Na verdade, em troca de proteção, Veiiâncio atuava como
Venâncio tinha o apelido de Cabeça "por ter testa grande e le-
informante da polícia, papel para o qual tiiiha facilidades em decorrêii-
vantada" e era chamado mesmo de Sete Cabeças, "por causa de sua
cia de sua cor e prestígio como curandeiro.""
enorme cabeça", chamando ainda mais atenção pois quando andava
Um último detalhe que merece ser mericioiiado no processo que
balançava com o corpo. Tipos físicos como o de Veiiâncio aparecem
envolvia Venâiicio, Firmiria e Amélia, é que no Auto de Busca realiza-
coiistaiitemente na literatura como se trouxessem a "malignidade" de
do pela polícia na casa de Amélia, vários objetos de feitiçaria foram
seus atos estampada em seu corpo, o que tornava aleijados, anões,
encontrados:"
etc., como indivíduos ideais para exei-cereni as artes de feitiçaria. O
Iiistoriador Gilberto Freyre diz - em seu estudo sobre os anúiicios de C.. ] dentro de u n ~pequeno saco de chita, que se achava atrás da porta
fuga d e escravos -, iião ter encontrado cativos descritos como do quarto da varanda, pendurado na chave da niesma porta, um pano
'6catimbozeirosou bruxos": pintado de cores represeiitando um painel corn diversos objetos; uma
figura de pau; e uma pequeriiiia esteira com mancha de sangue no cen-
Apeiias alguiis são apresentados como pretos tão feios de feições, tão tro, e dois búzios, um em cada ponta da mesma esteira, achaiido-se pega-
corcundas ou aleijados das costas, tão tronclios das pernas, tão apallietados do a dita manclia de sangue, uma pena pequena de ave.
dos pés, tão esfumaçados nos olhos, tão "carregados de semblante^^^, tão
tortos das bocas, tão monstruosos de corpo, que diante deles nos !em a Sendo indagada sobre os objetos e a quem perteilciani, Firmiila
suspeita: talvez fosseni afl-icaiios dados a artes negras trazidos da Africa respondeu:
para o Brasil nos navios negreiros. 'Talvez fossem feiticeiros - dos que
matavam e aleijavam brancos inermes com seus feitiços ou suas artes. E
que não fùrtávamos ao peiidor de associar ao feiticeiro ou a bruxaria
[...I que os objetos pertencem ao réu Veiiâncio, que os levou em uma
ocasião a Casa em que mora a R6 Amelia, e que o pregou no quarto da
Varanda, acendeu umas velas e falava com uni boneco preto e que tem
no peito um espelho, e bebendo ao mesmo tempo cacliaça, borrifava 110
cidade que Maciel era seli ainatite, pergi~i~toii-lhe [...I se a tristeza em que estava ei-a causada pano, o boneco que está presente e o outro boneco preto que já referiu,
1x11-saiidades d e Maciel, ao que respoiideii-llie sua viziiiha qiie iião, pois subia qiie Maciel e [macerando] umas ervas que estava na gaveta, misturava o pó com o
aiiida a amava, e se tiiiha casado com outra foi devido a força das circiinstâiicias."
16 A parda liberta Judite ( 1 G anos, sabia ler e escrever, solteira), qiiaiido falava d e Venâncio
tratava-o como "o preto feiticeiro Cabeça". do Sicz~loXIX.2. ecl., São Paulo: Ed.
18 Freyre, Gilberto. O escrcci~or ~ o s( L ? ~ Z ~ ~ Z Cde
~ O~ OS . I . ) L C LOrn.rileiros
~S
17 Na vespera d o crime siia amajá tirilia mandado mostrar a Venancio a n-iulher de Maciel: '7[...I Nacional, 1099, p. '77.
o q cie não fez por que essa noite foi ter ela iiiterrogada coni uma camarada que a dernor-o11
19 Depoimento do Capitso refoi,maclo do Corpo Policial Sebastiiio Maria Kicalde (47 anos, sol-
milito, e tio dia segiiiiite d e manhã qiit:ixando-se Veiiincio a sira ama Amélia, esta i-cpreelide- teiro, residia no Kiaêl-io).
ra a ela interrogada dizendo qiic náo a tinha maiidado p:issear". No (lia d o assassiilato: ""Kes-
poncieu qiie até o meio-dia este\.e na [,liacla L,cideira, qiie depois fez as coi-ripras prel~aiaildoo 20 O Capitâo Kicaldcs infoimoti qiie coiiliecia VenLiiicioj6 '"c alg~iiisaiios, desde que ele teste-
jantai; engomoii algiima roupa, e sua ama Aniélia nlaiitio~i-apassar pela rua tle Bragaiiqa para miinha f i ~oficial
i do (:orpo I'olicial em que lhe foriiecia algiimas iiiformaçGes a bem cio servi-
[TI- se esta1.a eni casa Maciel; cliie ela ii1tei.i-ogada foi, e voltou dizen<loa siia Aina qiie Maciel ço píiblico".
estava tia riia da 1,adeii.a e elicoiiti-ori siia ama ~x:iiteaiido-se[...In 21 Foi-arii tainhbrn eiicoiitiatios dois hillietes cle J o ã o I'el e i n ~Macicl a sua amante, sericlo iim
cieler assiii'icto '"li.ii 'ité a iriorte".
saiiçue de iini ponibo, cujo r...] Veriâilcio tinlia torcido o pescoço, sericio Na sessão do jlíri de 18 de maio de 1865, os jurados dividiram-se e
este pombo de cor braiica, e um outro que Veiiâncio soltou pintado de acabaram por inocentar Amélia e Fiririiiia, condenando por uiiaiiimi-
branco e preto. dade Venâiicio com várias circuiistâiicias agravaiites (matou com a es-
perança de alguma i-econipei~sa, foi de noite, com premeditação, com
Firmina negava saber o fim deste ritual, acrescentando que superioridade de sexo, forças e arma, com surpresa) e neiihuma cir-
Venâncio ainda fizera cruzes com um giz em volta do pano e fechara-se
cunstância ateriuante. O juiz de Direito coizdeilou-o ao Grau Máximo
em um quarto, e que ela: "[ ...I ouviu alguns estouros, e quando o réu
do Artigo 192 do Código Criminal - Pena Capital -, sendo o seu caso
Venâncio abriu o quarto estava ele enfumaçado e cheirando a pólvora."
remetido ao Tribunal de Relação, onde foi novamente julgado em 25
Só podemos cogitar do sigiiificado deste ritual e dos objetos usa-
de agosto com o mesnio resultado. Condenado 2 morte, Venâizcio Ca-
dos. O Missionário Altuna - estudioso da cultura banto -, fala de boiie-
beça recorreu às graças do Imperador e ainda vivia na cadeia quando
cos de trapos, de uns 30 centímetros, preparados por adivinhos e cha- da prisão de Joaquim da Cunha Vieira, vindo a falecer somente em 29
mados de Kissola, usados para diversos fins e que deveriam ser alimen- de fevereiro de 18'73, de "lesão no coração".24
tados "aspergindo-o com bebidas e alimentos" pelos fiéis. Se demorasse
a surtir efeito, o adivinho mataria um animal - uma galinha, por exem-
plo -, e esfregaria o Kissola com o seu sangue. O espellio talvez escon- A Religiosidade Negra em Porto Alegre
desse uma pequena cavidade, que poderia conter algo da pessoa a quem
Voltando ao caso do feiticeiro Joaquim Mina, percebemos que nas
o feitiço visasse - pedaço de unha ou cabelos.'? A esteira é um siibstitii-
vésperas do seu primeiro julgameilto - em 1872 -, cresceram as "dan-
to para o altar de sacrifícios e a pólvora é usada para limpar a alma de
quem faz o sei-vic;o,parte importante de rituais qiie visavam destruir ças e batuques de pretos" em Porto Alegre, o que levou os vereadores a
reclamarem ao chefe de Polícia por terem sido coiicedidas licenças para
algum inimigo. O antropólogo Ari Pedi-o 01-0, em pesquisa sobre os
estas manifestações, que talvez possamos cogitar tivessem a inteiição de
cultos africaiios na atualidade, só mencioiza um saiito que receberia
coiiseguir auxílio dos orixás para o companlieiro preso. A maior autori-
sacrifício de pomba Ilraiica - Xangô -, orixá do trovão, da justiça e do
dade policial da Pi-ovíiicia respoizdeu que nada constava a respeito des-
fogo, o que talvez tambCm justifiq~ieo uso da pólvora.'
tas permissões e que os subdelegados seriam novamente avisados da
Os bonecos aiiti-oponiórficos de madeira deveriam representar a
proibiçào de tais reuniões, devendo os fiscais da Câmara Muiiicipal,
entidade a que se estava dirigindo pedindo algo e o próprio Pereira
sempre que tivesseni iiotícias de tais ajuntamei~tosrequererem "o iie-
Maciel, sendo provável qiie a rnagia fosse 110 sentido de provocar uma
cessário auxílio para dispersá-l~s".~'
reaproximação entre os ex-amantes, com algum rnalefício que afastasse
Como Porto Alegre caracterizava-se por uma grande presença de
o obstáculo que os separava. Com o fi-acasso dos apelos ao além, Cabe-
população iiegra, percebemos que liavia o costume de se expedir per-
ça viu-se obrigado a acabar com o entrave que existia para que seu feiti-
missões - pelo rneiios até meados de 1850 -, e com limites bem preci-
ço desse certo - matar Alia Ferreira Maciel.
sos, para algunias maiiifestações culturais religiosas africanas. O criou-
lo chefe dos cacumbis, Eduardo, pediu liceiiça em agosto de 1849 para
sair com o seu "balido" nos domingos de tarde até a festa de Nossa
Seil1:iora do Rosário, para obterem esmolas e cumprirem a promessa
22 Alt~iiia,P. Kaiil Kuiz d e Asíia. (,'ulturn t~ndictor2nlbnrzto. Liialida: Secretaliado Arqiiidiocesaiio feita para a '5luminação da porta da Igreja da dita santa". Para come-
d e Pastoral, 1985, p. 553/555, O espelho, em \,irias ciiltitras, é símbolo poclvroso d e inaii
presságio oii d e proteção coiiti-a inau olliaclo. Repi-eseiitacla coni espelhos temos DadA, pri-
morar Nossa Seizhora por ocasião do Natal de 1850, pediu e recebeu
meira dos qiiiiize filhos d e Iemailjá e seu filho Oriingiã, protetora dos recérri-iiascidos. Ver: mercê do chefe de Polícia, o preto forro E'raiicisco, de nação Mina para
Cascudo, 1,riis cla (:âmai,a. L)icionririo do jblclo~e Drc~.silei,-o.7 . ediçiio, Belo IIorizorite: Editoi-a as "da1ic;as de sua nação na casa de sua residência na Rua do Arroio".
Itatiaia Ltda.; Sâo Palilo: F'(litorada Uiiiversidade d e São Paiilo, 1088, p. 278; 12odrigues, Nina.
110 B~.n.sil.7. C ' ( ! . Sâo F'aiilo: Eclitoi-a Nacional; Brasília: E:ciitora da IJNB, 1988, p.
Os cl/i-i~(~~ios No mês de o ~ i t ~ i b rdo
o rrxsmo alio, o prcto liberto João Francisco
222.
23 Oro, Ari. Os negrose os ciiltos aft-o-bi-asileirosn o Rio (;r;ii-ide cio Siil. 111: Leite, Ilka Boaventiii-a
(01-g.). NeCg7.oxJ ~ ~1i1(10
O r t~)-).ito).ií~li(l(~<le.
I ~ J . ( L/~t~~isiÚilid(~~lo
s~~. Floriai-ii>lx)lis:1,eti-as (:oi1teiiipor5- 24 AI-IKS - J u $ t i ~ aICegi\tro
, dc Óbitos d e Kéii4 -- 1867/1801 --J-O(j8.A.
ileas, 199G, p. 49. Na bre\se aiiálise deste ritiial, agraclrço a niiiilia iiifòi.niante tlos ciiltos afi-o, 25 O ofício do5 \jeie;itlores í. de 29/4/1872 c a respost~ldo clic4e tle Polícia 'tos inesmos é cli 4/
Síl\ria Kegiiia dos Saiiios. 5,ex,itniiic-niv o cli'i tlo jitlgarnciito. AIIIIS - I'olicid, (:ódicc (1'1 Polícia 11.240.
Beriiardo, tambkrri solicitou licença para abrir o scu "ensaio para daii- os briiiqiicdos fosscrn ria Várzea desta cidade, e por que esses diverti-
ça que costuina sair pelo Natal com o nome de quicuriibi". Seguiido o I mentos são inteiramente iiloceiites e servem de distração, e alcrii disso
delegado de Polícia, a permissão só deveria ser concedida se o suplicaii- resulta em benefício dc todos por que deles se obtém esmolas qiie são
aplicadas para socorros mútuos em casos de enfermidades e para enterros.'"
te informasse onde pretendia fazer os ensaios e em que lioras do dia,
para que a vizinhaiiça iião fosse incomodada, "por que é costume faze- Rainha Ginga era uma figura que ficou marcada quase mitologica-
rem muita bullia e algazarra". Em resposta o requerente declarou que mente na lembrança dos trabalhadores africanos escravizados. Tratava-
OS ensaios ocorreriam em terreno de sua propriedade no Beco do Ro-
se da rainha quimbundu Nzinga Mburidi, do reino do ndongo (parte
sário, "lugar este que não incomoda, por ser longe de famílias" e que só da Angola atual), que no século XVII resistiu ao avanço português. Como
pedia autorização para os domingos e dias santos de guarda e só por em sua resistência aos exploradores portugueses, Ginga conseguiu
duas horas contadas das 4 às 6 da tarde, prometendo "não fazer bullia montar uma grande aliança com povos antes férreos inimigos, explica-
nestes ensaios, e declara mais que os seus ensaios são decentes para se em parte o predomínio da preta Maria José - no papel de Rainha
poder dançar em casa de famílias particulares pelo Natal".2" Ginga - sobre várias nações afi-icaiias."' O delegadoJacinto José Iriácio,
Cucumbis eram festividades que reuniam "grupos de negros com I em 24 de março, aprovou a concessão de licença dizendo que iião ha-
uma identidade religiosa e étnica comum que se maritiveram e mani- via "iienliuma dúvida" em concedê-la "menos para os enterros, por se-
pularam as tradições das Congadas no espaço urbaiio", seja no período rem atos que eles praticam contra a nossa religião", desde que os diver-
do Carnaval, Festividade de Nossa Senhora do Rosário e Natal e muitas timentos ocorressein na Várzea, Olaria oii outras áreas iguais fora do
vezes tinha como motivação o pagamento de alguma promes~a.'~ ceiitro, "por causa das queixas que costumam fazer os vizinhos, em vir-
Como já fazia liá muitos anos, o preto forro de nação rebolo tude do barulho que fazem 110sbatuques", tornando-se um "tormcnto"
Venâiicio Martiiis Baião, "morador na rua da Igreja em uma meia água 1 para os moradores dos arredores. O alvará de licença foi passado pelo
de propriedade do Padre Francisco de Paula Macedo", requereu em prazo de um ano, para a casa da Rua da Varzinha 102, deveiido cessar o
I
abril de 1850 licença para "nos dias de preceito, com os pretos de sua divertimeiito à noite, ocorreiido somente iios doniingos e dias santos,
I
nação, fazerem o seu baile com um surdo tambor" para tirarem esmo- I
com a coiidição de não liaver qualquer desordem e somente partici-
las e com elas "sufragar as almas dos seus parentes". Venâncio baseava
seu pedido nas diversas licençasjá obtidas em alios anteriores das auto-
ridades policiais - o que provava não ter havido qiialquer desordem - e
I pando escravos coni ordem por escrito de seus senliores.
Era importante que o suplicante possuísse residência fixa -facili-
tarido a obtenção de iiiformaçõesjuiito aos inspetores de quarteirâ« e
reafirmava que suas danças ocorreriam apenas de dia "até o pôr do I vizinliança e a sua localização ein caso de alguma transgressão - e de
sol". As autoridades policiais coiifirmaram que nunca houve proble- I
I preferência que o local onde ocorresse o "divertimeiito" fosse em urna
mas, mas que tal "divertimento" não podia ser feito iio centro da cida- residência, para que o seu proprietário pudesse ser respoiisabilizado
de e que uma patrulha da polícia devia fazer séria vigilâricia. TÍimbém por qiialquer ocorrência. Se iios primeiros tempos de Porto Alegre,
em 1850, Maria José, preta forra, moradora na Rua do Arvoredo 64, mesmo a zona central poderia possuir locais reservados a terreiros, com
"na qualidade de Rainha Ginga da iiação Angola, corn predomínio so- o passar do século XIX, a Várzea toriioii-se a região por exceli.ncia dos
bre as mais nações de pretos da Costa da África", iriforrnava ter sido cultos africanos, com permissão ou à revelia das autoridades. A Várzea
cassada a licença obtida para brincar "ao modo de suas nações" em aparece neste período, mesclada à Azenha c ao Meiiiiio Deus, con-io
algumas casas na Rua do Rosário e sugeria que: ,
I
47 Souza diz que a eliminação dos malefícios extraídos pelo sopro o u sucção, poderia realizailse 50 MCSI-{C-,Joi.nc~/Aferrri.n.til,28/5/1881, artigo "Novo Rilédico". AI-IRS - Polícia, Cóclice n. 249.
também por via oral oii retal, e ainda para as miillieres, através da vagina. Souza, Laura d e Isso ia contra o Cal>ítiilo 20 das Posturas Miiiiicipais: "Nenliiinia pessoa poderá ter escravos
Mello e. O diabo e a Term de Sc~ntnCruz. São Pai~lo:Conipai-ihia das Letras, 198G, p. 168/170. por caixeiros d e tabernas, t)oteqiiins, bodegas e outras semelhantes casas, seilão estando pre-
48 Ver narrativa d e RichardJobsoii, citado por Dalis, David Brion. E1 ProDkmn de 10 Esclnvitzld e7~Ia sentes nas mesmas seus respectivos donos; e qiieni isto coiitravier pagará, pela primeira vez, a
Cz~ltu~tr Orcidentnl. Biieiios Aires, Editorial Paidos, 1968, p. 402. Gilberto Freyre várias vezes multa d e 4$ réis e pelas mais o cliiplo. A proibição desta Postura conipreende os boticários,
fala da "liibriciclacie" dos negros, comparantto-o com outras etiiias, concliliiido que a "imora- qiie empregarem escr-a1.o~ n ~ maiiipula~ão
t o ~venda
i d e remédios." AI-IMPOA- Posturas Poli-
lidade" que eles apresei1taIram era produto da escra\.idão: "Passa por ser defeito da raça afi-ica- ciais, Tipografia do Comércio, 1'0i\, 1847.
tia, comiliiicado ao brasileiro, o erotismo, a luxíiria, a depravação sex~ial".Serri esclarecer a 5 1 M'ebei-, Beatriz. As c~rlesde czirclr - inedirintr, ~-rl<pGo, ?t~,ngine /)o., itivisrt~,~
Izn KepÚOlicc~Rio-Grandense
fonte de suas pesq~iisas,Freyre desmeiite as percepções d o período ao contrastar o corpo do - 1889 -- 1928. Santa Alaria: Ecl. da UFSM; Baiii.ii: EDIJSC, 1999, 1,. 133.
senhor braiico ("mãos d e mulher, pés cle meriino, só o sexo arrogantemerite viril") con-i a dos 52 'Ao longo do skculo XIX, o cuidado com os doentes coiisistia em recolher os necessitados,
negros ("tailtos cleles gigantes ei-iormes, mas pirocas d e meiiiiio pequeno"). Freyi-e, O/). ril., assistiiido-os riiatei.ia1e espiritualrneiite, aleni d e oferecii. os últimos ciiidados e sacramentos
1990, p. 134, 337-338. ao pobre que estava mori-eiitlo.X n o ~ ã od e cloença em rnarcada pela visão hipocrática, cal-ac-
49 Saint-Hilaire, Aiigiiste de. I/r:og~ni(10 Rio í;rrlnde clo Sul. Belo l-lorizoiite: 1tat.iaia;SP: USP, 1974, tei-izacla por i i i i i deseqiii1il)rio ei-iti-e os 'liiirnores' cio corpo. O tratamento rediizia-se a pi.irgas,
13. 190. Ver o último capítiilo d o li\,i.odt: David Brio11Davis, iiititulado "l.,a Iniagen C:ariibiaiite baiilios, fiiiriigaçOes e coi-itrolr a1imci:iitai-. A fiinção pi.ir-iiordia1tlo hospital, iiesse contexto,
de1 Negro". 1-150era a tei.apGlitica, mas ;i assistêi-icia." Weber, O/). cil., p. 147.
Em um estudo clássico, o aiitropólogo Claude Lévi-Strauss destaca Lourenço morreu na manhã scguiiite, "menos de 24 horas depois
que o poder do feiticeiro deposita-sejustamente na crença qiae existe a do seu último martírio, em um quarto onde se lhe fazia recolher depois
respeito da sua magia: de açoitado", e logo em seguida a notícia do seu assassinato vazou para
a rua através de uma escrava da casa de Bier, que encontrando a preta
Não há, pois, razão de duvidar da eficácia de certas práticas mágicas. africana Luiza, chamou-a "para trás do trapiclie, quando carregava água,
Mas, vê-se, ao mesmo tempo, que a eficácia da magia implica na crença a fim de não ser vista pelo seu senhor, que então morava em frente" e
da magia, e que esta se apresenta sob três aspectos complementares: existe,
inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em segui-
denunciou o ocorrido. A suspeita de que um integrante do grupo havia
da, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no sofrido maustratos, provocou a movimentação da comunidade étnica,
poder do próprio feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da que mobilizou um de seus líderes para tomar a frente das averiguaçóes
opinião coletiva, que formam a cada instante uma espécie de campo de - tratava-se de um dos "parceiros" de nome José Canhoto, da mesma
gravitação no seio da qual se definem e se situam as relações entre o nação. José fazia parte da liderança do grupo étnico, descrito por duas
feiticeiro e aqueles que ele enfeitiçaeS3 características que aparentemente o distinguiam: ele era forro (o que
lhe permitia maior mobilidade e garantia capital simbólico entre seus
A crença na magia consolida a liderança do feiticeiro - ou do cu- pares e mesmo na sociedade dos brancos, a f na1 havia triunfado na bus-
randeiro - e através dele reafirma ou reinventa a identidade étnica, ca da liberdade) e era apontado como "Capitão dos Cangueiros", figu-
principalmente tratando-se de populações arrancadas de seus locais ra que pensamos ser similar aos "capitãos-do-canto" existentes em Salva-
origens, misturadas com indivíduos de nações diferentes (ou mesmo dor. Talvez por Porto Alegre apresentar no período - em comparação
inimigas) e sujeitas ao trabalho forçado e ao sentimento de que não com a capital da Bahia - menos população e espaço urbano, a figura do
passam de mercadorias. Confiar nos poderes mágicos de certos indivídu- capitão-de-canto tenha aqui se alterado de uma base geográfica da ci-
os é acreditar na existência do grupo étnico, que se materializava nos dade (os cantos) para englobar um grupo profissional - no caso os
vários rituais religiosos e na eventual proteção de membros ofendidos. êangueiros. O capitão dos Cangueiros tinlia a tarefa.de dirimir discus-
Em 1866, recaíram suspeitas sobre o alemão carpinteiro da ri- sóes sobre preços e serviços, seja entre os próprios cangueiros - majori-
beira Frederico Bier, de que teria assassinado o seu escravo Lourenço tariamente escravos ou negros alforriados - ou entre estes e os seias
Cabinda, a pancadas, no final da década de 1840. Bier havia comprado a li entes.^"
Lourenço há anos, já "com a inglória pretensão de nada poupar-lhe, Lembremos que o feiticeiro Joaquim Mina também era um
por lhe constar que este mísero escravo não era dos mais mansos", o cangueiro, o que nos fàz cogitar (sem qualquer "prova") seJosé Ganho-
que foi repetidamente desmentido pelo comportamento ordeiro e dili- to também não possuía algum atributo mágico que o fizesse sobressair
gente deste escravo. No ano de seu assassinato, em um Domingo de dos demais. Será que o fato de não ser destro o havia marcado como
Passos, Loureiiço foi a tardinha fazer "despejo de águas servidas, de- possuidor de potencialidades mágicas encarnadas no uso preferencial
pois de haver trabalhado por todo aquele dia em embarricar açúcar" e da mão esquerda? Lembremos que o esquerdo geralmente tem o senti-
demorou-se numa esquina próxima a casa de seu senhor, observando a do de "sinistro", errado, lado de onde vem os maus presságios; assim,
procissão da Paixão de Cristo. Ao recolher-se a casa de Bier, o caixeiro
do mesmo (seu irmão Luiz Bier) censurou-o pela "suposta tardança" e
à noite, chegando Frederico em casa, Lourenço foi amarrado e: "E ...I
54 Porto Alegre - Sumários -Júri, maço 38, processo 1128, 1866. Sobre as formas d e eleição do
depois de tremenda sova de bolos, ordenou uma não menos tremenda Capitão-de-canto e oiiti-as iiiformações, ver: Reis,J. J . A greve negra cile 185'7 na Bahia. I&rtistn
surra de açoites da qual foi vítima esse escravo, que ainda serviu de U X São Paiilo: EDUSP, li. 18, 15193. Niio só iia teiitativa insiirrecional d e 1863 em Gravatai,
mas também em aníincio d e fiiga d e esci-avo de 16/11/1847, ieinos escravos que trazem ao
pasto ao gênio carniceiro de seu senhor, receberiglo uma nova surra no lado d o nome a palavra "<:apitáon (iiin deles roceiro e oiitro oficial d e canteiro), o qiie nos faz
seguinte dia e tão bárbara como a primeira". pensar se sigiiificava algiim tipo especial cle liderariça, respeitada pelos demais parceiros. Reis
n o trabalho já citaclo, c15 como tima das possi~eisorigeiis do iioine traciiçóes afi-icaiias (como
o Capitáo dc Mercado, do Daoiné, os pai-akoyi e bale yoriibaiios, o Chpitiio d e G~ierrado
reino d e Uidá), o que eiri parte coincide com o fàto dos três escravos por 126s eilcontrados
tercrn em comiim a origem afi-icana. Maniiel, irin dos líderes da tentativa d e Cravataí, ir,a
2 ed., Rio d e Jaiieiro:
53 Lévi-Straiiss, C:laiide, O feiticeiro e sua magia. In: Aniro/)ologn ~ s t ~~tuicll
? chnt~rntlocle Maiiiiel, mas ( . o ~ r l ~ ~ rpor
i d o "h4aiiiiel (:apitãon, cic:iioiniiiaç2o pela qual deareriam
Ed. Tempo Brasileiro, 198.3, p. 194/195. chainá-lo seus parceiros.
indivíduos com esta cai-acter-ística talvez despertasserrr talitas expectati- [...]o que ria verdade fácil foi achar por qiie estava o corpo todo pisado e
vas quanto ao seu potencial como feiticciros, c o n ~ oos aleijados e ou- cheio de [bichos] e cl-iagas,consen~ando-sea roupa do corpo c~isar~gften-
tros portadores de deficiências físicas. 55 tada, seiido que esse escravo Lourenço, apesar da cor fula que o asseme-
lhava a pardo, estava basta11te denegrido.
Da primeira vez que ele foi a casa de Bier, pedindo licença para
visitar o escravo machucado, José Canhoto foi informado que Lou-
No requerimento da Rainha Ginga ou na mobilização solidária
renço estava melhor e "não carecia de visitas". Após, uma escrava da
dos escravos cabinda, não encontramos informações sobre os ritos
casa informou que Lourenço encontrava-se morto na cozinha da casa
mortuários que a comunidade negra praticava, muito menos das dife-
de seu senhor, o que provocou a ida de "muitos pretos da mesma
renças e semelhanças que cada nação apresentava no tratamento de
nação'' até a residência de Bier reclamar o corpo "para lhe fazerem o
seus mortos. Assim, não entraremos em de talhes sobre estas cerirnoni-
enterro, como é costume entre os escravos de nação". Recebendo nova
as que - em virtude de serem colocadas em prática por elementos peri-
negativa, os "pretos parceiros" de Lourenço foram até o juiz de Paz
gosos (negros escravos e libertos) -tinham caráter secreto. O pedido
fazer uma denúncia, o qual nada quis fazer. Combinaram, então, "bom-
da Rainha Ginga, que representava além da sua própria nação Angola,
bear"5% casa de Frederico Bier, indo José Cabinda (ou Canhoto), e
as "mais nações de pretos da Costa da África", e a declaração dos escra-
outros pretos, dormir junto ao cemitério atrás da Igreja Matriz, onde
vos cabinda que diziam quererem fazer o enterro "como é costume
viram "alta noite" escravos da casa de Bier carregando "em pau e cor-
entre os escravos de ilação", parece indicar unidade entre os rituais
da" um corpo que sepultaram. Este caso, que teria ocorrido em finais
fúnebres praticados por estes escravos africanos, o que pode significar
da década de 1840, coincide com as críticas feitas àquele cemitério
a reinvenção da identidade étnica destas nações no Brasil e a adaptação
onde, segundo o próprio presidente da Província Conde de Caxias
destas práticas a situação de ilegalidade que elas passaram a represcn-
relatava em 1846, existiam "cadáveres de escravos mal amortalhados e
tar em uma sociedade e s c r a ~ i s t a . ~ ~
foçados pelos cães errantes"."
Como nâo haviam sido acreditados pela autoridade judiciária, os
A precariedade deste campo santo, do qual exalavam odores pesti-
cabindas voltaram a enterrar seu parceiro, sem que saibamos se coiise-
lentos e miasmas contaminadores, era aumentada pela superpopulação
guiram remediar o enterro profano de seu parceiro com algum ritual
de cadáveres o que certamente tornava o lugar rnuito lúgubre, princi-
fúnebre. De qualquer forma, uma das funções sociais do tratamento da
palmente à noite (quando, como podemos ver, ilegalmente alguns ca-
rriorte - que é a coesão entre os vivos que compartill~amas mesmas
dáveres eram "desovados" e enterrados em covas rasas). Talvez por medo
crenças -, foi preenchida, pois este acontecimento permaneceu na
mas também para poderem observar o estado de Lourenço, os parcei-
memória destes escravos por décadas, sendo relatado em drtallies qua-
ros marcaram a cova mas só a abriram quando amanheceu, exiimaiido
se vinte anos depois.'"
o cadáver para vc-rificar se havia vestígio de crime:
55 Note-se qiie o fato d e ser "carilioto" constava nos aniiricios d e escravos fugidos, junto com
outras características distintivas. Em 1882 fugiu o preto Simeão, corpulento, pernas grossas, 58 Cabe meiicionar só como apontamerito da complexidade cultural abordada, que Lourenço
canhoto, cicatriz de golpe de fòice iiiim braço, costa d e lima das mãos queimada e cicatriz em havia sido repreeiidiclo por obsei.var a procissão da Paixão d e Cristo (ritual essericialmeriie
um ombro; iio ano seguinte, foi a vez d o miilato Bonifácio, sem barba, cailhoto, alto, magro, catblico), seiido siipliciado e morto por seiilioi- e enterrado escondido, e exumado por setis
cicatriz em iim biaço, dedos dos pes apontados para baixo. MCSHC - Jol-nnl do Combrcio, 25,' pai-ceii-os cabiiidas para algiiiis aceitos afi.icanos para que tivesse urna "boa morte9'.
12/1882 e Jor7accl Collseri~nclo?;
14/8/ 188ZVer a ótima explaiiação clue faz Câmara Casciido dos
sigiiificados da "mileiiar conveiiçáo verbal e religiosa" sobre "Direito e escluerclo" e m várias 59 Vários pr-elos derarn depoirneii tos, serielo os melhores e mais detalhados dados, por duas teste-
épocas e cultiii~as.(:ascudo, 01). cit. p. 293 e .>95/596. Ver também: Hei-tz, Kobcrt. A preerni- miitlhas: a preta Liiiza, esci-alrcitle Fraiicisco de Souza Cliagas, da Costa da Africa, 50 ai-ios,
iiêiicia da mão direita: iim estudo sobre a polaridade religiosa. solteira e a preta forra Iiomana, tcniib6m com 50 anos, solteira, iiascicla em Pernairibiico,
agregada d e Maiiiiel <ia(:urilia, ambas risicleiites 110 ano do processo (18GG) em São 1,eopoldo.
56 Do guarani mov~beú,,y Lier dizei- "espreitar caritelosaniiiite e de longe o campo iiiimigo". Porto Na descrição dos cultos dos riiortos no hlai-aiihão e m iirria Casa d e Mina, o sociólogo Jean
Alegre, Apoliiiário. I'o/~uln17um sul-r7o-gr{rr.clnde1/se(es!stzctlotle/ilolog-ic~e /obclo~.p).POA, UIXC;S; IEL, Ziegler faia dos rnales qite poderiarr-i provocar Egiiiis errantes, coiiseqiiência d e niortes solitã-
1980, p. 34. i-ias e d e enterros sem cliialqiiei- preparaçso, em valas comiiiis. Ziegler, Jeari. Os 7~il~o.s
e n n~o1-1e.
57 MI-IKS - Relatcíi-io do presidente da PI-ovíncia,A 7.01, Kio d e Janeiro: %aliar,15377, p. 33/34,
Voltando ao caso Joaquim Mina
Joaquim Mina foijulgado duas vezes, sendo a primeira às 11 lioras
da manhã de 4/5/1872. Naquele dia, cumprindo o ritual jurídico, o
Porteiro tocou a campainha para anunciar a reunião do júri na Sala do
agência
Jurados
médico
r
Paço Municipal. As testemunhas foram divididas por diversas salas para O agência
que uma não escutasse o depoimento da outra e o menor Leopoldo empregados médico
sorteou na urna o Júri de Sentença."Após a Promotoria e o defensor públicos O proprietário
42%
do réu descartarem alguns, foram escolhidos os 12jurados e o primei- Oadvogados
ro deles como presidente do ,Júri, depositou sua mão direita sobre os IInegociantes
públicos]
Santos Evangelhos e jurou haverse com "franqueza e verdade" conforme a
sua consciência.
Dosjiirados sorteados, foram recusados pelo promotor:José Pedro -
negociantes
de Carvalho Moreira e Antonio Heleodoro da Cunha Vieira (sobrinho
do ex-senhor do réu); pelo réu: Hemetério José Veloso da Silueira, o
Dr. Israel Rodrigues Barcelos Filho (médico que havia feito a denún-
cia),José Ant6nio Coelho Jr., Timoteo Pereira da Rosa, Francisco Ant6-
62 Através d o Capítiilo 111 do Kegiilamento 11. 120 d e 31 ciejaneiro d e 1842, regiiloii-se a escolha
nio da Silva Neto e José Joaquim Leite Castro Filho. Jurou suspeição e convocação de.jiii-ados, zijnstanelo o qiie ficou disposto na Keforma do Código de Processo
Pedro Maria Xavier de Oliveira Meireles (arriigo íntimo da família Bar- Criminal. AHKS - CL 068 - Lei 2G1 d e 3/12/1841. ,4 escollia dos jiirados seguia d e perto as
listas d e votantes, sendo poi-érn mais exigente e discricionãria, estailclo aptos a atriarem conio
ros) e ficou inibido de servir o advogado Francisco Pedro de Miraiida e Jurados os cicladãos: 1" qiie pudessern ser eleitores, 2" que soubessem ler e escrever, 3"
Castro (que foi curador da preta Silvana). que tivessem d e rendiiileiito aiirial, por bens d e raiz oii emprego píiblico 400$000 nos Termos
Preso desde o final de novembro de 1871, Joaquirn da Cunlia das Cidacles d o Kio cle Janeiro, Bahia, Recife e S. Luiz do hfai-aiihão; 300$000 iios termos das
outras Cidades, e 200$000 em todos os mais Termos. No caso de rendimento d e comércio oii
Vieira, ao depor relatou que nada tinha a opor as testemunhas arrola- indíistria, deveriam ter o clohi-o.A organização ela lista d e cidadãos aptos a exercerem o cargo
das, nem ao que atribuir a acusação, mas estava "sofrendo inoceiite- dejilr-ados, deveria ser oi-çaiii~adapelos Delegados d e Polícia (qtie obteriam informações dos
Inspetores de Qiiai-teirão,S~ibdelegaclos,Escri\.ães criiniiiais,.juízes d e Paz, Párocos, emprega-
mente". Demonstrando coiisciência de sua situação étnica e social, e dos da Fazenda, etc.) e enviada aos respectivos j i i í ~ e sd e Direito no prazo conipreendido
conhecimento dos mecanismos jurídicos, Joaqiiim alegou que não ti- eiitre os dias 10 e 20 d e oiitiibro d e cada ano. Nela deveria constar: " [ ...I o renciiineiito que
nha testemuiilia alguma para "provar ou alcrgar" a sua inocencia pois tem, se provém d e bem de raiz, o u emprego píiblico, coinércio ou indústria, especificando a
circuiistância d e saberem oii não ler e escrever, assiin como se estão proniinciados, o11 se
"sempre inorou com companheiros pretos, rnas que testemuiilios de sofierani condenação passada e111jiligado, por crime d e Iiornicídio, furto, ioi.ibo, bancarrotri,
preto não serve". estelionato, fc~lsidatlc.oti moeda falsa". Esta airtoi-itlacle, então, afixaria esta lista de jurados
potenciais em locais de grande trânsito d e povo e 111-evidenciaria a siia piiblicação na impreii-
Se somarrnos os dois julgamentos, ternos os rioiries de 28=jurados, sa, marcando prazo até dia 10 d e noveinbro para reclamações contra nomes inscritos oii orni-
assim distribuídos profis~ioiia!mente:~j~ tidos. Após este limite de tempo, uma Junta Kevisora - composta tio juiz de Direito, coriio
~xesideiite,o 11roniotor Píiblico e o presidente da Câmara Municipal .- investigaria os proble-
mas siirgidos e coiicluiria os traballios até 15 d e janeiro próximo, apresen~andoiima lista
geral d e jiiraclos pai-a servir o ano todo, qiie seria tambeni afixada lia porta da casa das sess6es
da-jiinta e pi~hlicatla.Todos os nomes deveriam ser colocaclos em cécliilas e inseridos em urna
iirna, fèchada por três cha\.es, ficando cada iim dos membros da Junta com iima delas."? No
dia da reiiiiião do,jíiri, cla iiriia seriam sol-teados 48 jiii-ados por iim menor e fechadas estas
cc?diilasem lima iiriia difèreiite, providenciada então a coiivocação d e todos por Editais e pela
ação dos siibdelepdos de Polícia e oficiais ele Justiça, obrigando-se os hltosos a api.esentai,em
jiistificatira. Assim, pocicmos perceber qiie também na esf-raji~rídicaa infliiencia do partitlo
60 Presidia os traballios o jiiiz d e Direito (ia 2"Tar-a e prCsideiit<.aits 'Tribiiiial AiitOnio d e Afonso que u~ut")la\.ao gabinete irnpcirial ei-a eiioi-ine. Niio só cabia ao h4inistro da Justiqa a escollia
Guirnaráes, tendo corrio aciisador o promot.oi- hlig~ielL,iiio de Mor.ais Abreii e defensoi- cio do C;hefè de Polícia pro~.iiicial-- e através deste eiicaclea\ta-se toda a hiefareliiia policial, p x -
réu o solicitador João I'ereira Maciel. saiitio por Deleg;ictos, Siibclrlegatloo; e 1iispetorc.s cle Qiiarteirão - como mesnio sobre os ein-
pi.eg;idos pUhlicos qiie ;Itiia\Tanlcomo jiirados, podei-ia o presiderite da Pi.ovíncia --.repi-esen-
61 Não eiiconti-amos tlados de ti jtiratlos: João Batista Al\w Porto, Joiio José (;lilarte, J o ã o 1,iiiz
tante elo Imperador - eft.tii:ti. algiiir-i tipo de pressão. Os repuhlicaiios dojori-ial A F~tlewz(íio,
Gomes ele Abreii, 1,iiiz Pereira Rilarclues e Pet11.oMaria Xa1ic.a.dc. al>li\.eii-aMeireles.
eiii 1887, argilrnenta\,ani c ~ u;i-( escr;n.idão
~ liavia pro\:ocado o "pi.trcoiiceito cle q i i ~
o tl-íibalho
Logo rio iiiício do julgamento, quando Joaqiiim é chamado a de- judicial que corai:indava o processo iiomeou para iiixia iiova ii-ivestiga-
por, configura-se uma liita entre ele e os médicos do primeiro auto de ção dois farmaciilticos cjiiímicos (Maiiiiel de Araújo (lastro Ramallio e
corpo de delito. Seguiido o réu, entre as substâncias apreendidas com Luiz Nicolau Massoi-a),os quais declararam que iião poderiam naque-
ele, não existia vidro moído las condições realizar um exame satisfatório das substâncias api-eeiidi-
das, mas garantiram qiie iião existia vidro moído entre elas.""
Respondeu. que haviam uns pós feitos de canela de boi com sabugo para O ataque médico do Dr. Israel Rodrigues Barcelos Filho a conduta
limpar dente^,^" e que os demais objetos eram inofensivos, contando-se de um curaiideiro parece coiifigurar uma luta microscópica destes pro-
entre eles a erva picão" para urinas e outra de nome Rasteira também
fissionais por afirmação, a qual iião ocorreria no século XIX, iiecessi-
para dores de ~ i - i n a . ~ '
tando que fossem criados espaços onde o discurso medico pudesse acu-
João Pereira Maciel - defensor do réu -, sustentou que as substân- mular capital simbólico, como o Hospício São Pedro e a Santa Casa de
cias apreendidas não eram venenosas, nem vidro moído e conseguiu Misericórdia de Porto Alegre.
sensibilizar o juiz que mandou que se realizasse outro exame. Mostraii-
"O poder da Medicina foi construído num longo processo que, certa-
do a pouca legitimidade que tinham lia época os médicos, a autoridade mente, percorreu o século XIX, só se consolidando, no Rio Grande do
Sul, por volta da década de 1940."(j7
é uma desonra [...I De fato, o que observamos? O meiioscabo geral pela vida modesta, a
Os jurados retiraram-se para a sala secreta das conferências, em
negação para o acúmulo lento da economia, o afastamento do trabalho manual e a falta d e
educação cívica pelo mesmo trabalho. As famílias da classes abastadas e da classe média nive- cuja porta ficaram dois oficiais de justiça "a fim de não coriçentirem
iam-se 11a mesma iliisão falsa; só criam fillios para doutores e os que escapam ao pergamiiilio qualquer comuiiica~ão"seja na sala ou iio caminho de ida e volta, e
vão cair no emprego publico." MCSHC -./o, 1zcrl12/le,cclnlzl,29/10/1880; A 01clen~-31 /3/87.
demonstraiido a liesitauão que sentiam lá permaneceram do dia 4 até a
63 Nas pormenorizadas descrições dos cativos fiigitivos, encontradas nos jornais, temos várias
vezes mencionado o bomfestado dos dentes dos mesmos. Tal\zez com práticas culturais de madrugada do dia seguinte, dividindo-se quaiito a resposta dos quesi-
higiene biical trazidas da Africa - como a exemplificada por Joaqiiim -, os escravos se desta- tos apreseiitados pelo juiz.
cassem em comparação com os seus seliliores, freqiientemeiite banguelas: tiiiham Do~zsde~l,tes,
o preto Benedito, d e 42 anos, f~igitloem 1863 e a fiila quase parda Benta, 18 anos, fiigida ern ( 1)- deu as substâiicias para Silvaria para que niinistrasse 2 família
1868; tinham dentes rlrtros, o crioiilo Benedito, d e 15 anos, fiigido em 1882, e a parda Maria, Barros: SIM, 9 votos
fugida em 1847; Felipe, d e 26 anos, fiigido em 1877, tinha Do~~ilos dentes; Simião, d e Nação,
com 30 anos e fugido em 1866, tinha todos os dentes d a frent~;o preto campeiro fugido em 1861 (2)- assim, coiiseguiu que a escrava Silvana satisfizesse seu instinto:
tinha os dentes da jk?)lle li~?~~adosfo~n~nndo,/Orquilhns; e o preto africano I,otirenço, fugido em SIM, 8 votos
1852, também tiilha os deli tes limados. MCSI-IC -./o,-?rclis Correio do Sul (27/12/1861), I\/Ieicnn-
til (28/11/1852), Comircio (16/ 10/1847), Me,z.clr~til (19/6/1863), Conzé~rio(14/12/1882), (3)-resultaram "ofensas" desta propinação: SIM, 8 votos
Rio(;ra17,den.r~(6/11877). AHIZS - Polícia, Códice 240, 3/8/1868. Em relatório sobre a Casa de
Correção de Poi-to Alegre, em 1897, o Di-. Sebastião 1x20 expos vários de seiis levantamentos (4)-produziram grave iiicômodo de saúde: SIM, 8 votos
aiitropométricos baseados em I,ornbroso e oiiti-os. Qtiailto as declarações de Loinbroso de
que "anomalias c-leilt2riasnpoderiam indicar criminosos (4 % dos homicidas estudados por (5)- quis matá-los: SIM, '7 votos
ele apresee"ta\ranicaninos proeminentes), 1x50 declarava que: "Náo há duvida que estes fatos
são observados em alguns criminosos; mas, qiiaiito dentre eles, e priiicipalmei~teos mulatos, (6)-serviu-se de veiieiio: NÃO, 10 votos
apresentam belíssimas cleiitaduras!". AE-IIZS - S1E3-004.
('7)- foi impelido por rnotivo reprovado: SIM, 9 votos
64 O picáojá era lia +oca conliecido tia medicina, como podemos coristatar cle verbete do
Dicionhrio de Ln~zgnc~,.rl,que recomenda a erva como "aiiti-scorbutico e desobstruente. O siico
das folllas é prescrito contra a icterícia. O cozimento é milito usatio para banhar as úlceras d e
mau caráter. As folhas, contusas e aplicadas sobre as úlceras sõrclidas, as mundificam. Contu- 66 Diias testemuiihas que acornipanliaram o primeiro exanie feito pelos médicos, iiáo cliegaram
sas conjuiitameiite com as do fedegoso (as da C h i a sericia oii occidentalis) e as da jaciia- a demoiistrai. diividas, mas certaniente não acreditavam piamente nos rnbdieos. O embarcadi-
canga, e aplicada em forma de cataplasma sobre o seio, diz-se que resolve as glandulas induradas ço Alexandre Daniel tia Silva acornpan hoii a revista e disse qiie viii as substâncias ciiconti-adas
ou entiimecidas, e mesmo o scirro deste õrgão", I,angaard, O/). rit. p. 294/295. Picáo (Bidens no balaio o u sainbiirá, e que "di~iainser" veiieno, inas "sem contudo poder asseverai. por n")
Pilosa I,., Coln/)osilne) zucl(1o em t r n b n l l ~ oj1n7-n
~ "fizer alguém ter pesadelos" e como "proteção coiiliecer"; o ilegociaiite portiigiics h4aiiiiel José Fernaiides Sim6es dizia que "iiatla sabe d e
contra a ganância". Verger, Pieri-e Fatumbi. E7ui: o uso das plantas na sociedade Iorubá. São positivo" apenas pr~sencioila revista e viii o saniburã ori asil ilha com as drogas "que os rnédi-
Paulo: Companliia das 1,eti-as, 1995, 11. 415 e G38. cos reco~lllecemsei'erii \*eiiconosasn.
(i5 Verger cita a folha de cai,rapiclio-i-asteil-o(Acantliospernii~~n
I Iispidtim, Compositae) corno com- 67 M'eber, o/). ri(. 11. 25,Ve'er.:M'acli, J70iiissaMarmitt. I'nlhcio /)ara g~~,n,d(zl-
doidos: urna liisttjria tlas
ponente de "trabalho pai-a fazer Ogirn atacar algii6mn.Verger, o / ~rit., 13. 307. lutas pela coi~struçáotio 1'lospital d e Alienados e da I'siqiiiatria no M i o Ci,aiide do Sril. Porto
Alegre: IFCH/UFK(;S, 1996, 303 p. (Dissertação de Mestrado ern EIistói.ia).
(8)-houve premeditação (mais de 24 lioras entre o designo e o ato): tinha acesso pila cor da pcle e pela 01-igcrn africana. Os envolvidos
SIM, 6 votos neste processo moravam riiuito prcíximos, c.<-rtamrnticrirzando-se dia-
(9)- Houve ajuste entre o réu e outra pessoa: SIM, 8 votos riamente no caniirilio para o serviço e a casa, o que evidencia a existên-
cia de proxirriidade física e distância cultural.
(10)- Circuristâncias atenuantes: come teu em desafroii ta a alguma
injúria que lhe foi feita: SIM, 6 votos, NÃO, 6 votos;
[...I que entre essas substâncias se eilcontrou pós pretos; que serids p w n -
tado ao réu pai-a o qzle cu-u aquilo, respondeu que nlio era nada e par(- o 771osti-ur
tirou u17z Docadinlzo com o dedo epis na lingua; quc esses objetos foram condu-
zidos para casa do subdelegado e que não foi-ani examinados imediata-
mente, ignorando se o foram nesa ou em outro qualquer dia.
'7 Porto Alegi e , Aiig~i\to.A ju,tdcr~.íío( 1 1~' 0 7 1 0 A/wP. Porto Alegl e: 1 iviuria tlo (;lobo, 1906, p.VI1.
do tempo que se iòi. Essa se constituirá, forçosanicnte, riuina represeii- do Rio Grande do Sul, como Alcides Lima" ouJoaquim Francisco de
tação criada sobre aquilo que teria existido um dia e que, niesnlo sendo Assis Brasil,I2duralite o período monárquico, a respeito da ainda re-
construção imagiriária sobre a realidade passada, busca se substituir a cente Revolução Farroiipilha, ou Alfredo Varela'" r João Maia,14já no
ela, atiiigiiido uma versão, o mais possível, aproximada daquilo que um período republicaiio. Recolher depoimentos dos antigos que haviam
dia ocorreu. A invenção do passado passa a ter curso de verdade - Ioi presenciado os acontecimentos era de vital importância, e foi neste seii-
assim - e atinge efeitos de real - aquilo realmente aconteceu. tido que, em 1885, Alfredo Varela correspondeu-se com Coruja? resi-
Para dar conta desta inuençüo do @suado, selecionamos dois textos dente no Rio, para que este lhe fornecesse informaç6es sobre os fatos e
que se constroem como narrativa de forma diferenciada: aguele que se personagens que conhecera.l5Coruja, ao relembrar, era fonte para o his-
apresenta como memória - a obra Antipall~us,de Antonio Alvares Perei- toriador Varela, era testemunho fidedigno do que acontecera.
ra Coruja - e o que se apresenta como históriu- o livro A fundação de Porlo Se havia historiadores interessados, havia também o u t r o
Alepe, de Augiisto Porto Alegre. interlocutor para tais registros: um público para o qual este discurso
Principiemos pela narrativa de Coruja, este porto-alegrense nas- devia fazer sentido. Um público para o qual era importante sentir o
cido em 1806 e falecido no Rio de Janeiro, em 1889. Popularizando- contraste entre o antigo para melhor entender o presente e sonhar
se como professor das primeiras letras, Coruja foi candidato a deputa- com o futuro. Um horizonte de expectativas que anuiiciava recepção
do liberal para a primeira assembléia da província. Ficando como su- favorável para ouvir contar e para ler coisas do passado, em contraste
plente, foi chamado a assumir em dezembro de 1835, ou seja, em com a realidade vivida. Uma cidade que marcasse diferença com a urbs
plena Revolução Farroupilha. Detido de juriho a novembro de 1836, atual, que definisse uma alteridade, enquanto materialidade, costumes,
na Presiganga - o sinistro navio-prisão ancorado ao longo da costa de personagens.
Porto Alegre, em frente ao Largo do Arsenal -, Coruja transferiu-se E, neste ponto, deixamos o Coruja estudioso e pesquisador da líii-
para o Rio de Janeiro no ano seguinte, para fugir à perseguição polí- gua, o Coruja que se tornara fonte de iilformações para os historiado-
tica. No Rio, passou a fnzer parte, desde 1839, do Instituto Histórico e res, para descobrirmos iim outro Coruja, fonte de si mesmo, que passa
Geográfico Brasileiro,"assando a publicar suas pesquisas na revista a escrever suas memórias sobre a cidade de Porto Alegre, sob o título
dessa instituição, onde compilava registros linguísticos do Rio Gran- de Remini~cências.~%urge um memorialista para oferecer uma alteridade
de que deixara." 110 tempo para a cidade do presente.
Ora, Coruja era uma testemuiiha, ou seja, aquele que viu e ouviu Neste caniinho, Antonio ÁIvares Pereira Coruja veio a ser um su-
acontecimentos que, no final do século, já eram passado. Por outro cesso de público, pois a coiitinuada republicação de suas crônicas mos-
lado, era também aquele que tiiiha, por sua vez, ouvido contar de ter- tra que havia mesmo uma expectativa de recepção positiva para tal tipo
ceiros sobre personageils e fatos acontecidos lios primeiros tempos, na de assun to. Primeiranien te, Coruja publicara algumas lembranças da
Porto Alegre do século XVIII. Sua palavra tinlia a autoridade do teste- sua cidade nojonial Gazelu de Porto A@e, de Carlos von Koseritz, para logo
munho de uma vivêiicia. Ele lá estivera, quando os outros já 1120 mais lá ter suas crônicas editadas, em 1881, pela Tipografia do Jornal do Comérci~'~
estavam. A importâiicia desta condição - a de ser testemiinha ociilar
dos fatos - tinha particular importância para aqueles iilteressados em
recuperar o passado e escrever sobre fatos, relativamente recentes mas 11 Lima, Alcides. f Iistõriccl~ol,ulnrda Rio Cilnndfido Sul. Kio deJaneiro: 'Tip. Leuziiiger, 1882.
que, se não fossem registrados, poderiam vir a ser esquecidos. 12 Assis Brasil, Joaquim Francisco de. História dn I?ej)úDlicnRio-gran,den.re. Rio d e Janeiro: Tip.
Leuzii-iger, 1882.
É neste ponto que o registro da memória passa a ser de extremo 13 Vtirela, Alfredo. liio Grairde do Sul. De.scriçíio ,i"og~-(íjicn,Izistó~~cn e econ6micn. Pelotas e Porto
significado para aqueles qiic se empenhavam em escrever uma história Alegre: Echenique e Irmâos, 1897. Ib7iolu~õe.sCis/)lntir~crs. Porio: Chardroii, 1915.
14 Mdia,João. Hzstúrza doI-ho (;?n?u/~ (hSuljjc~rczo c.rwzno czírzro. Porto Alc-gre: SeIbdch, 1898.
15 C:oriija, A.A. CV-4090. Aptad A7zazr clo AIQLLZTIO Hz\/órz(o (10 Ei>zoClt ande do Sul Porte) Alegre, 1983,
\r. 7.
28 Idem, p. 08.
29 Pesavento, Saiicli-a.J;it;illy.Era iiin;i r.eL i i i ~ ibeco: oi-igeiis cle iiin inari Itigar. 111: Bi-esciaiii, Stella
(01-g).As polnu,.rr.r dn (.id(ld~.Porto Alcgi e : kkl. da IJili\,c.i-sid;ide,200 1 .
nados espaços da urbs fossem esses lugares de eiiclave dentro do cen- A cidade de Coruj:~lios pci,initc imaginar - compor Lima irnageni
tro urbano - os tais becos -, com sua descida para a Praia do Riacho e no pciisanieiito, por qtiv não? - um contexto ~irbaiiosedirtor, pitores-
Cidade Baixa, fosse pela varrida dos pobres para uma espécie de cinturão co, com um sabor de passado ududeiro, que ciicoiitra ressonância num
negro em torno da região central, como foi o caso da Coloiiia Africana cruzanieiito intertextual com os relatos de viajantes. Sim, pois a cidade
e do Areal da B a r ~ n e s a . ~ ~ de Coruja seria aquela que Saiiit Hilaire, Nicolau Dreys ou Arsèiie
Portanto, as memórias de Coruja deviarn fornecer aos leitores da Isabelle descreveram. Urn olhar desde dentro - o de Coruja, morador da
época um estranliamento diante da cidade em que viviam, fosse pela urbh mas que escreve ex$o~l-, que pode ser cruzado com olhares desde
noção da distância no tempo e da concepção de um tempo percorrido, fwa, dos tais viajantes estrangeiros que passaram por Porto Alegre e que
fosse pelo tom pitoresco, vetusto e de uma diferença entre modos de deixaram suas impressões sobre a cidade no tempo em que Coruja ali vivia.
ser, espaços e gentes do passado com relação ao presente. Mas o olhar viajante, este olhar do outro que se define na
Ora, todas aquelas sociabilidades e personagens antigos, evocados estrangeiridade de vistas diante do local, é um olliar que expõe a dife-
por Coruja no final do século como modos d'ar~tanhoe fixados no tempo rença de modo claro, exibindo seus marcos refereiiciais. Os viajantes
do passado, comparecem como uma alteridade a contrastar com o pre- são europeus, elite ilustrada portadora de saber científico, que saiu do
sente citadino: "no tempo em que se vendiam os ovos a 2 e 3 por um Vellio Mundo para viajar em outros países da distante América, onde,
vintém, se fazia nas tabernas dez reis de melado".31 imbuída do espírito do século, pretende observar, inventariar, catalo-
gar, dar a conhecer. Seus parârnetros são os europeus, e nesta medida é
Neste ponto, a narrativa de Coruja converte-se em fonte inestimá-
que seus marcos valorativos estabelecem as aproximações, contrastes e
vel, pois se torna referência para todos os que, depois dele, tentam iden-
analogias. Assim, as mulheres da cidade são bonitas, mas nem tão viva-
tificar onde era, quem foi, como foi que aconteceu.
zes corno as fi-aiicesas,ou, então, o sítio da urús tinha um céu da Itcília e
Se Coruja dá a ver traços que não mais eram visíveis, também de-
unia vegetação da Proveiice, e o Guaíba podia ter uma largura do L,oii-e
senterra os mortos e, sobretudo, aqueles que, na ausência de um cargo em sua maior diniensão. Mas, em algo, esses viajantes sáo mais ou rne-
importante ou posição social, estariam fadados ao esquecimento, não nos concordes: a beleza do sítio, a supremacia da natureza sobre a cul-
fòsse a mernória de iiosso cronista! Pai Lelé, Arriansa Burros, a Bronze, tiira. Porto Alegre, como cidade, é bela. Pode ser ora considerada pe-
José Cabelos, Caixa d'óculos, Manoel da Espada. Gente humilde, sim- quena e pacata, ora agitada e progressista, mas é, sobretudo, uma cida-
ples, negros mulatos, portugueses, caboclos. Todos relatados de maiiei- de-espetáculo, cidade-palco, cartão postal.
ra pícara, mas que dão a ver as maneiras dos outros tempos. Saiiit Hilaire destacava esse aspecto marcaiite, fazerido da peque-
Apostando na capacidade imaginária dos leitores, Coruja intro- na Porto Alegre, disposta sobre um dos lados da coliiia, voltada para
duz, no seu texto rnemorialístico, um pequeno relato de ficção pura: iioroeste, unia cidade-paisagerii, com suas "casas caiadas de branco, de
cria um personagem - um certo Pisa Flores de Figueiredo - que, a cava- tellias avermelliadas","' espécic de presépio à beira do Guaíba, onde a
lo, daria unia volta pela cidade e iria eiicoiitrarido gentes e freqfieiitan- iiaturera sobrepujava as obras humanas. Os relatos de Nicolau Dreys
do liigares!'%om isso, nosso cronista introduz estratégias literárias - dão conta de uma cidade bela, "suntuosa9'e promissora, "abastecida de
uma história dentro da história - e estabelece uni jogo com os leitores: todos os niisteres da ~ida".'~Já Arsèiie Isabelle, que passou pela cidade,
alguém conlieceria estes lugares e atores? Era possível acompaiiliar, pelo ila década de 30 do século XIX, deixa uma descrição entiisiasniada da
pensamento, seu percurso e identificar os lugares visitados e as pessoas "linda pequena cidade", com seus "tetos róseos, pouco levantados e
que ele encontra? Estamos, pois, diante da criação ficcional pura ou do salientes [...I coroando casas brancas oii amarelas de uma arquitetura
relato testemunhal da memória que prcsentifica o passado? Coruja lida simples e graciosa".""
com veracit-ladc oia plausibilidade!
33 S'iint Ililaire, Aiigti5tt. de. I'z(~grm no I</«( ; I ( I H do ~ PS'ul (lh'20-21) Belo I Ioi iroilte: Itati'iia, 1974,
30 Pesavento, Saildra Jiitaliy. L,iig;ii.cs ~i~altlitos: a " c i d a d ~do oiiti.o" n o sul brasileiro (Porto Ale- 11. 41.
gre, passageni c10 S ~ C L I I C )XIX ijara o s6ciilo S X ) . Iíklisfnljrcl,\i(rirn tle ffisistó~icr,São Paulo, ANI'UII/ 54 DI eys. Nicol'tri it'oLío/~( I e c o / l ~ ~ tia i / c f'~o7~'1tt rci do Klo (;1crr,d~d r ,\NO l'rd~o do ,7111 /)o) hr~(o1(~1(
I)wy.
I-Itinianitas Pul)licaçóes, s 10, 11.37, 1CIC39. Rio (;i,iiid(-.: Bil)liolcc,i Kio-gictiid(~nsc., lt12'7, 11. S!)
31 Coruja, of,.tzi., 1). I5 i33 Isabelle, Ai-seiie. I ' I ~ I ~ P I I (10
I /?)o C : ~ ( i ~ t ( l (.Jtil(l<S33-34).
~do I>o1to Alegi t b .h4tiwiiJiilio rlc (:;lrtilho<,
1046.
Mas Coruja, nosso primeiro cronista urbano, não apresenta ne- Não est5 escrito se ria época primitiva havia mato ou simplesmerite
rlliurri relato entusiasmado sobre o sítio da cidade, alo seu esplendor macegal; é poi-6111dc crer que houvesse uma c outra coisa, e que os pri-
meiros povoadores fizessem algumas na coliiia e escolhessem na praia
diante do Guaíba. Nada há de pictórico no seu texto, nias sim iirna algum lugar de einbarque e desembarque entre tantos ancoradouros que
descrição de tipos, fatos, nomes e costumes. É claro que ele não é iim tem hoje a cidade. Também não está escrito em que a110 para aí foram os
viajante estrangeiro, nem tem a Europa como parâmetro de referência. primeiros povoadores; é porém certo e está escrito que emjulho de 1754
Mas ele viajara no espaço, morava no Rio, não voltara a Porto Alegre e aí aportaram diversas embarcações com tropa em direção à fortaleza de
só podia olhar a cidade com os olhos da memória. Neste sentido, Coru- Jesus Maria José de Rio Pardo, e que já no ano antecedente o rapitão-
ja é um viajante no tempo e, como memorialista, quer oferecer aos general do Rio de Janeiro Comes Fi-eire de Andrade achando-se na pra-
leitores esta alegria reservada àquele que rememora: o reconhecimen- ça da Colônia do Sacramento tinha nomeado um religioso carmelita para
servir de capelão aos ilhéus e paulistas que existiam no Porto de Viamão
to. Na impossibilidade de estar na cidade para apreciar a mudança do
e também capelão da ermida de São Francisco.'"
tempo no espaço, ele guia os leitores: fornece as pistas para que estes
vissem, na sua cidade, o passado. Ele, Coruja, o narrador, é alguém Coruja lida, assim, com um tempo imaginado, em que não há tes-
distante no espaço, mas próximo do passado que ele reconstrói imagi- temunhos nem escrita; a ele acrescenta alguns registros oficiais, ou seja,
nariamente pela narrativa. o que se tem por escrito sobre essa época. A tais dados, recorre ainda à
Coruja descreve lugares, traçado de ruas, equipamentos urbanos e tradição - ou seja, o que se dizia, o que ouviu contar - para tirar suas
prédios, mas dá conta mais da sua função e significado do que da for- conclusões:
ma. De forma detalhada, ele descreve as ruas não apenas dizendo o
nome de seus moradores mais expressivos, mas também explicando a Ora, segundo a tradição, a ermida ou capela de São Fraiicisco era na
origem do próprio nome da rua. Assim, constrói uma espécie de geo- Quitalida Vellia ou imediações d o Beco do Faiiha, e portanto aí se foram
grafia do léxico urbano, dando ao leitor a possibilidade de visualizar a acomodando os prirrieiros povoadores formarido o que depois se cha-
cidade, mesmo naqueles trechos onde o propriamente urbano acaba- mou Rua da Praia. Eis pois a Rua da Praia considerada como a rua mais
va: "Entre a Rua do Arvoredo e a Praia do Riaclio não havia rua algurna: antiga da cidade3"
ou eram fuiidos de quintais de uma e outra, ou moita de pitangueiras e
outros arbustos"."j Portanto, Coruja combina a capacidade irnagiliativa coni a memó-
Mas e o tempo das origens, o tempo em que Porto Alegre não era ria social e o dado escrito para compor a sua riarrativa de memória
ainda cidade e não possuía ruas? O tempo onde ele, depoente, não sobre a cidade. Seii texto é um convite à imagii-lação e ao reconheci-
estivera presente, e talvez mesmo a geração que o antecedera e que llir mento, para ver, na cidade qrie restou, a cidade que foi um dia. Aos
prestava informações sobre o passado? leitores, um passado para acreditar e amar. Urii arquivo imaginário para
consulta pernianeiite. 4
17 A D~moo-ntin,9-12-1906. p. 2.
18 Idem, 9-7-1905. p. 3.
res tradicionais como a honra e a bondade, cvidenciande) as iaízcs ro- visando a formação do "homem novo", consciente de si mesmo, de seu
mânticas desse pensamento. Assim, segundo o A Democ~acia,o socialis- valor e de seus direitos, despido de toda a sorte de preconceitos e, por
mo representava a fraternidade contra a ignorância, o egoísmo e a bai- isso, preparado para a "ação direta", isto é, a "[ ...I discussão e entendi-
xeza de caráter, típicos do regime capitalista.?" mento entre representantes dos sindicatos e patrões para dirimir ques-
Cabe salientar ainda que pouco se produziu em termos de teoria tões, na greve parcial e geral e na ' b ~ i c o t a g e m " ' .Nesse
~ ~ sentido, como
socialista no Rio Grande do Sul. Uma exceção notável é a obra Catecis- veremos mais adiante, os anarquistas do Rio Grande do Sul fundaram
mo socialicta, de Guedes Coutinlio, publicada corno folhetim no Echo escolas, criaram bibliotecas, jornais e grupos de teatro, entre outras ini-
Operário em 1898. Nela, o autor apresenta pontos importantes dessa ciativas, com o objetivo de denunciar a miséria dos proletários, os abu-
teoria, na forma de perguntas e respostas, agrupados nos seguintes tó- sos da burguesia e do clero, os males da política e do militarismo, os
picos: o conceito de socialismo e a transição para a nova sociedade, a benefícios da solidariedade de classe etc.
forma de organização das associações operárias, a orgaiiização futura Em relação à resistência, os adeptos do anarquismo acreditavam
das coletividades, a união livre ou casamento por amor e as religiões do que os movimentos do operariado - greves, paralisac;ões, boicotes -,
socialismo. organizados em torno de reivindicações econômicas, acentuariam a luta
O anarquismo, por sua vez, também começou a manifestar-se no de classes, pois os trabalhadores, tomando consciência da exploração
Estado no final do século XIX, embora de forma dispersa e iiitermiten- sofrida, começariam a desejar uma sociedade diferente da existente. O
te. Foi sobretudo a partir de 1906 - com a fundação dojoriial A Luta e modelo dessa forma de luta era o sindicalisrno francês. Conforme o
da Escola Eliseu Reclus - que os militantes ligados a essa corrente passa- jornal A Luta, transcrevendo as considerações do "colega" paulistano
ram a desenvolver uma ação mais contínua junto ao operariado. Ape- Terra Livre,
sar de existirem diversas tendências anarquistas, o ideário dos libertários
tinha como ponto comum a luta contra todas as manifestações de po- A sociedade de resistência mais perfeita e a mais completa, embora não
der, sobretudo o estatal e, conseqüentemente, ao contrário dos socialis- sem defeitqs, é o "sindicato" francês, aderente 5 Confederação Geral do
Trabalho. E puramente de resistência, facilitando a entrada a todos, pro-
tas, a recusa da participação no jogo político-eleitoral.
curando agrupar o maior número, mas sem por isso deixar de agir cons-
Os anarquistas gaúchos adotaram o sindicalismo - que não é uma tantemente. Trata de conquistar melhoramentos (sobretudo redução de
"corrente" do anarquismo mas uma forma de organização dos traba- horas), fazendo assim exercício para a greve geral revolucionária e para
lhadores, independente de suas posições ideológicas - como meio de a expropriação dos meios de produção e de transporte. Não aceita a
luta contra a ordem capitalista e como embrião da sociedade futura. política parlamentar, fazendo, porém, luta política (contra o Estado, con-
Defendiam, porém, a completa neutralidade política das associações tra o governo, desde o ministro ao polícia, mas especialmente contra o
operárias. Segundo Fraiicisco Guttmann, secretário geral da FORGS militarismo), pois o poder político é defensor do capitalismo. Mas essa
luta (assim como a econômica) é pela "ação direta", operária, e não indi-
em 1921,
reta por meio dos deputados no parlamento.'"
Sendo a política uma eterna fonte de discórdia, o siridicalismo dirige
suas forças unicamente no sentido economico. Diversos autores influenciaram o ideário dos anarquistas gaúchos,
Como a base do sindicalismo é a autonomia do indivíduo dentro do siii- como: Jean Grave, A sociedadefutura; Pedro Kropotkine, Em uolta de uma
dicato e deste dentro da Federação, segue-se que o operario pode ter a vida; Elisée Reclus, Evoluçáo, revolução, ideal anayuista; Jogo Most, Peste
sua opinião política sem, porém, traze-la para o seio do sindicato. Este reli~osa;Agustin Hamon, Pútria e internacionalismo e Ernílio Pouget, Ba-
lhe serve de núcleo de educação e de resistência para a luta coiltíiiua ses do ~indiculi~cmo.~~A
produção teórica dos anarquistas atuantes no Rio
pela melhoria das cont-liçòes de trabalho e de s a l i i r i ~ s ~ ~ ~ Grande do Sul foi mais extensa que a dos socialistas, tanto na forma de
artigos como de livros. Assinalamos, nesse sentido, os textos de Polydoro
Educação e resistência eram duas palavras-cl-lavesdo pensamento
anarquista. A primeira irriplicava um conjunto dc a ~ ó e spedagógicas
25 Idem.
26 A Lula, Porto Alegre, 13-9-1906. p. 3.
24 A Manhci, Porto Alegre, 1-05-192 I . 27 Idem, 02/01/1907. p. 4 e 26/09/1908. p. 4.
232
Saiitos sobre a Escola Moderna publicados na Keuista L i b m l e a obra D a de luta, através dos quais as associações procuravam despertar a consci-
escravidão liberdade: a deirocuda burpe,su e o adriento da igualdade social, de ência dos compariheiros.
Floreiitino de Carvalho (pseudônimo de Primitivo Kaimuiido Soares).'" Os citados Manqesto do Partido Socialista do Rio Grande do Sul e o
Finalmente, é irnportante salientar que - apesar das inteiisas dispu- Coiigresso Operário de 1898já expressam formalmente a preocupação
tas travadas por socialistas e anarquistas pela liderança do movimerito com o desenvolvimeiito cultural do operariado. Assim o primeiro, em
operário gaúcho - havia, muitas vezes, oscilações e indefiiii~õesnas fron- seu artigo IV, propunlia: "InstruçUo geral e profissional gratuita, bem como
teiras entre as duas correntes. Alguns exemplos: em 1900, Francisco todos os utensílios necessários ao estudo, e além disso vestuário e alimentação, a
Xavier da Costa, principal líder socialista de Porto Alegre - e, posterior- expensas do Estado, para os fillzos das classes pobres". O Congresso, por seu
mente, um feroz inimigo dos libertários -, lembrou [...] de dezenas de " turno, reconieiidou a criação de um jornal e de escolas nas sedes das
muitos [...I homens notáveis, de caráter limpo e borns costumes que associações operárias.
foram e são anarquistas Quase cinco anos mais tarde, A Demo- Tal orientação já era seguida pela União Operária de Rio Gran-
cmcia saudou o geógrafo anarquista Eliseu Reclus como " (...] um dos de, que, desde 1895, mantinha uma escola voltada aos filhos dos operá-
vultos mais salientes da propaganda socialista9'." Em um ponto, po- rios. O "mapa das aulas", anexo ao citado Xelatório apresentado por
rém, socialistas e anarquis tas discordavam fron talmeri te: enquaii to os Carlos Schmidt Jr., indica a presença de 95 alunos do sexo masculino e
primeiros advogavam a necessidade da formação do Partido Operário, 100 do sexo feminino, matriculados nos oito primeiros meses de 1903.
os últimos negavam qualquer participação dos trabalhadores na vida O militante Guedes Coutinho, referido anteriormeiite, foi professor
político-partidária. nesse estabelecimento. Em seu Catecismo Socialista, ele defendia o esta-
É difícil saber o grau de penetração das idéias até aqui analisadas belecimento de escolas para os proletários, "onde possam educar-se li-
junto ao operariado gaúcho. De qualquer forma, elas inspiraram movi- vres dos preconceitos estúpidos e absurdos do respeito ao capital, pre-
mentos de resistência contra a expl oração burguesa, relações de solida- coiiizados tão habilmente nos livros adotados nas escolas públicas por
riedade, conflitos entre militaiites e, algumas vezes, nortearam trajetóri- ordem dos governos burgueses".
as de vida de indivíduos dedicados à causa dos "irmtios explorados". Anos depois, o A Democracia manifestava a mesma preocupação
com a educação dos trabalhadores. Dessa forma, saudou enfaticamen-
Aspectos da cultura operária te a iniciativa da União dos Pedreiros de fundar uma escola pois
O século XIX foi o da difusão da ciência positiva e da cultura letra- [...I somos do número dos proletariados que pensam e estão convei~ci-
dos de que a classe operária jarriais logrará a rcivindicaqão real, efetiva e
da ria vida das sociedades ocidentais. Os operários, priiicipcalrriei~
te suas
definitiva de seus direitos enquanto rio seu seio imperar a ignorância ...
lideranças, também viveram esse clima, no seu caso voltado à chamada Triste é dize-lo - mas é a verdade: a falta de instri~çãona maioria dos
"elevação cultural do proletariado". Pretendiam assim preparar os tra- nossos irmãos de classe é que produz todas as dificuldades que se ante-
balhadores para a iiova sociedade que se libertaria, por sua luta, da põem à rnelhoria de suas co1idiç6es.~'
opressão capitalista. Esta iiitenção pedagógica integrava a agenda de
socialistas e anarquistas e maiiifestoix-se de iiiúnicras formas: ensino; Ao longo de todo o período, tambem os aliarquistas promoveram
preocupação com leituras formativas através da publicação de jornais, a instalação de "aulas", em geral orientadas pelos princípios da pedago-
revistas e livros; criação de bibliotecas; realização de conferêiicias etc. gia moderna de Fraiicisco Ferrer, laica, raciorialista, universal e, por-
O próprio lazer era visto como oport~xnidadede for.raia$io dos operái-i- tanto, ft~ndamen talmen te coiitiária aos pi-iiicípios difuiididos na educa-
os e de suas fàmílias e a encenação de peças de teatro social, a criacão ção pública ou religiosa vigente.
de grupos musicais ou esportivos também constituirani ilistrurneritos Dentre estas iniciativas, destaca-se na capital gaúcha a referida
Escola Eliseu Reclus, fuiidada em 1906
28 Carvalho, Floi-e11tii-10de. Da escmuidEo (i liDe,-datLc a dei-rocatfa hriaguesa e o adeleilto da igual-
dade social. Porto Alegre: Rc:~iasceilça, l L l f l .
J O , Alegre, 8-8-1900. p. 1-2.
29 Co,-ri?ioclo ~ U ~Porto
30 A I)el,loc~acin,9-7-1905. p, 2.
[...I por iniciativa de rnoços estudiosos, C.. ] um grupo de estudos livres É na própria iiistrução pública, mantida ou subvencionada com o di-
baseado nos mesmos princípios das modernas universidades populares, nheiro dos impostos pagos pelos cidadãos de todos os credos, que se
onde podem os trabalhadores encontrar meio fácil de adquirir conheci- percebe a infiltração clerical sob múltiplas e variadas formas.
mentos, que Ihes são vedados em vista das condições economicas em que [...I Ressalta a necessidade de uma Escola Raciorialista. Um estabeleci-
a maioria se encontra [...I Atualmente leciona-se no grupo esperanto, mento de instrução e educação racionalista seria o núcleo de onde pode-
francês, português, aritmética, matemática, história universal, desenho, ria irradiar [...] os princípios d e uma educação racional e lógica,
ginástica sueca etc. Havendo também palestras sobre anatomia descriti- correspoiidendo aos nossos tempos e preparando a mocidade para en-
va, mecânica, física, química etc. O grupo tem uma freqtiência atual de frentar resolutamente a luta pela vida [...I .34
quarenta sócios. As contribuições são voluntária^.^^
Associada à proposta de elevar o nível cultural que, como vimos,
A Escola Eliseu Reclus teve colaboradores entre os intelectuais li-
foi uma constante no movimento operário em todos os locais onde ele
berais e anarquistas, tais como o poeta e jornalista Marcelo Gama e o
Dr. Ronaldo Frederico Geyer, médico, militante anarquista e um dos se organizou, também é interessante mencionar a criação de bibliote-
redatores do A Luta. Encontramos notícias desse estabelecimento pelo cas ou "mesas de leitura" tanto nas sociedades como na própria reda-
menos até 1914. Outra Escola Moderna também foi fundada em 1914 ção dos jornais, onde ficavam disponíveis gratuitamente para os inte-
no Bairro Navegantes, contando [...I com 96 alurios menores e 25 adul-
"
ressados as numerosas publicações recebidas por essas entidades, quer
tos. O diretor- é o prof. J. Ervard. No mês de março abrirá uma seção do Rio Grande do Sul, quer de outros Estados e de países estrangeiros.
feminina que ficará a cargo de uma competente professora".'" Regis- Pelo fato dos jornais operários diviilgarem tais publicações e
tramos igualmente a fundação, em 1916, da Sociedade Pró-Ensino disponibilizá-las nessas "mesas", podemos ter uma idéia das leituras que
Ra~ioiialista~ agremiação com o fim de difundir o ensino e a educação os trabalhadores tinliam a sua disposição, pois a imprensa operária e as
racionalista entre a mocidade. bibliotecas das associações sofreram por vezes perseguição policial e
Em Rio Grande, em 1914, além do Centro de Estudos Sociais, essa literatura foi extraviada.
uma entidade que visava o deseilvolvimentocultural, foi criado o Ateneu E impressionante observar, por exemplo, que um jornal como o
Sindicalista, escola para operários adultos; em 1918 houve outra iniciati- Echo Operário, publicado no interior do Rio Grande do Sul,já em 1898-
va, com o estabelecimento de uma Escola Racionalista. 1899 pudesse disponibilizar tantas obras aos seus leitores, quer na sua
Finalmente, destacamos neste âmbito pedagógico, a atuação de mesa de leitura, quer propoiido-se a encomendar livros e revistas aos
Polydoro Santos, militante anarquista extremamente dedicado à "ele- interessados:
vação do nível cultural dos operários" e que esteve 2 frente da criação
de uma Escola Moderna em Porto Alegre e da Revi~taLiberal, mensário C..] recebemos [de José Ingenieros, de Buenos Aires] um pacote com
antimilitarista, antipolítico e anticlerical que circulou de 1921 a 1923. os seguintes jornais que muito agradecemos: Le Paris Ouvriel; Le Jura
Nas páginas dessa revista, publicou vários artigos justificando os princí- Socialiste, La Lurha de Classes, La Antorcha Valentina, E1 ODrero, Lu Revista
pios da pedagogia libertaria e a necessidade imprescindível de fundar Comica, Ilustracion I'opula~ Buletin Bes Suminai~es,Avanti!, La Lyra Chilena,
escolas para os trabalhadores. Um exemplo: Nurod, Critica Sociale. Tem, pois, os iiossos amigos, em nosso escritório
jornais da Espanl-ia,França, Itália, Bélgica, Bulgâria, Portugal, Chile, Peru,
Ao observador menos descuidado, n ã o passa desapercebido o Bolívia, Argeiitiiia, Montevidéu e diversos Estados do Brasil, às suas or-
desgarramento lamentável da nossa instrução popular para o dornínlo dens. Podem apreciar o movimento operário nas suas melhores folhas
de um espírito de seita, plasmando o cérebro da mocidade na estreiteza de propaganda, pois além d'esses temos muitos outros que nos honram
de dogmas já obsoletos e incongruentes. com a sua visita,35
Já não falamos na facilidade com que se multiplicam os colégios cleri-
cais, onde, aintes de se procurar formar do educando uni cidadão útil a E o jornal tambbm aceitava iiltermediar encorneildas: ""No intuito
si, à família e à coletividade, predomina a preocupação de sci criar urrl de facilitar aos operários de todo Estado meios de conhecer o socialismo,
devoto submisso e dedicado à igreja.
32 A L>zcln, 13-9-190G.
33 Correio do Povo, Porto Alegre, 18-2-1914. p. 12.
frequentadores e cobrain uma mensalidade pesada para as bolsas pobres
ao mesmo tempo que adquirirão corihecimeiitos científicos de utilíssima
vantagem, resolvemos pôr-nos à disposição dos operários em geral para
[...I Em nome dos camaradas que compõem a nove1 e útil agremiaçáo,
pedimos aos nossos coideanos do exterior que se interessam por esse
mandarmos vir qualquer das obras abaixo anunciadas e as mel-10s meio de propaganda de nos remeter peças teatrais que obtiverem e que
dispendiosas". Seguia esta relação, inclusive com os preços: Biblioteca de julguem atingir nosso desiderato. A correspondência para o Grupo de-
ScienciasSociaes; E1 capital, por Karl Marx; Princ@iossocialistas, por Gabriel verá ser dirigida a: G h e z Ferro - Escola Eliseu Reclus - Porto Alegl-e.37
Deville; Lições das cousa,~,Burla capitalista e Direilu a vida, por Ladislau
Batalha; Injustiça econômica, por Benoit Malon, tradução de Ernesto da Na cidade de Pelotas, em 1914, foi fundado o Grupo Teatral Cul-
Silva; O que é ser socialista?, O dia normal, por E. da Silva e Ladislau Bata- tiira Social pelos autores dramáticos anarquistas Zenon de Almeida e
lha; O communismo e a euoluçcio econômica, por Paulo Lafargue, tradução Santos Barboza, sendo que o primeiro também ministrava cursos para
de Ernesto Silva; Manual do povo ou o socialismo ao alcance de todos, por preparar atores amadores.
Manuel José da Silva; Confissão de um rebelde, por Benjamin Motta; Dentre as bandas musicais integradas por operários que atuavam
LXlmanach de lu Q~é~stion Sociale, de 1891 a 1899; História do Primeiro de em ocasiões festivas, a mais conhecida em Porto Alegre foi a Lyra Ope-
Maio, por Gabriel Deville; Lu Kevue Socialiste, fundada por Benoit Malon; rária, da qual encontramos referências de 1909 a 1916. Sabe-se que
Socialismo integral, tradução da obra de Malon; La Petite Republique,jor- nessas mcsmas ocasiões eram entoados hinos de caráter social, como a
nal de Paris chefiado por Gerault Richard; L'Humanité Nouvelle, revista Marsellzesa operúria (letra de Francisco Xavier da Costa), o Hymno socia-
dirigida por Agostin Hamon; La mentira patriótica e E1 militaris,mo y lu lista (música deJoaquim Ferrcira e letra dc Pompeu Matheus), Fillzos do
guerra, por José I n g e n i e r ~ s . ~ ~ povo e Hymno do 1"e Maio (para ser cantado com a ária do coro da
Neste propósito de elevação cultural e formação dos operários, o Ópera Nabuco, de Verdi) .
teatro foi um instrumento da melhor qualidade, pois atingia a própria As sociedades opcrárias promoviam diversas comemorações em
família operária, que assistia essas apresentações, geralmente realiza- datas especiais, como o aniversário de sua fundação, o 14 de julho da
das em datas simbólicas ou em eventos beneficentes. O repertório cêni- Queda da Bastilha, o aniversário do fuzilarnento de Francisco Ferrer,
co incluía peças de circulação internacional, como O 1 "e Maio (I1Pri- comemoraçõcs essas que constavam de conferências proferidas por
mo Magpo) de Piero Gori e Gaspar, o serralheiro, de Baptista Machado e militantes, apresentaçcio das bandas de música e corais femiiiinos das
as produzidas no Rio Grande do Sul, de cunho social ou de humor sociedades. Mas a data máxima do calendário era indubitavelmente o
satírico, dentre elas Avatar, de Marcelo Gama; O trabalho, de Joaquim 1 V e Maio, comemorado no Rio Grande do Sul desde 1892, primeiro
Alves Torres; O apóstolo da liberdade, de João C. de Freitas; Oficzilamento cm Porto Alegre e logo em todas as cidades em que o movimeiito ope-
de Ferrer7Afilha do tecelão e Afonso, o operúrio, de Eduardo Francisco dos rário tinha alguma expressão. Via de regra, as associações saíam em
Santos; Eu n& vou no pacote, de Antônio Cariboiii e as anteriormente desfile, portando seus estandartes e fazendo saiidações operárias nas
citadas de Agostina Guizzardi. sedes das co-irmãs, diante das quais o prEstito passava. Também era
Também se formavam "grupos dramáticos" que tanto traduziam comum que a manifestação encerrasse com um comício, seguido de
obras em idioma estrangeiro como as encenavam. Um desses grupos, o um piquenique ou outra festividade que congregava os operários e suas
Filodramático Libertário, fundado em 1907 em Porto Alegre, justifica- famílias. O primeiro 1"e Maio foi noticiado pela A Federaçcio, veículo
va assim sua atividade: oficial do PRR, e pelo Diário Pofizrlar, da grande imprensa de Pelotas, e
as referências ao caráter pacífico ela comemoração nos dão um indício
A importância que poderá ter uma agremiação de tal gênero é-nos des- da desconfiança que pairava sobre esse novo tipo de trabalhador, consi-
necessário encarecer; em nosso meio vegetam as sociedades dramáticas derado potencialrnei~tedesordeiro:
particulares que, ao em vez de se tornarem centros educativos, são antes
ernbrutecedores com seus detestáveis e inioralíssimos dramalhões. Além Comemoração Operária. As classes operárias reuriir-se-50 amanhã, 2s 2
disso, essas sociedades servem mais para dar largas 2 vaidade de meia horas da tarde, na 1EPrac;ada Alfândega, donde seg~lirãcapor varias ruas da
dúzia de indivíduos, e para o proletário não só são prejudiciais moral-
meiite como ecoiiomicamriite, pois rxigem um certo luxo dos
Y
cidade em grande marcha comemorativa ao dia consagrado às expaii- Esperamos, com o presente texto, ter atingido três objetivos: apre-
sões pacíficas do p r ~ l e t a r i a d o . ~ ~ sentar uma visão ampla, multifacetada e articulada da trajetória do
Porto Alegre, 2 de maio de 1892 - Ontem realizou-se aqui grande rcu- movimento operário gaúcho de suas origens a 1920; evidericiar as di-
nião popular comemorativa do dia 1"e maio. Foram pronunciados dis- ficuldades envolvidas na construção dessa história, especialmente devido a
cursos em alemão, italiano e português. Reinou completa p a ~ . ~ ' escassez e dispersão das fontes e ao caráter moriográfico dos estudos
existentes sobre o assunto e, por fim, estimular os leitores a
Durante todo o período que estamos analisando, os jornais, ope- aprofundarem seus conhecimeiitos e - quem sabe? - realizarem novas
rários ou da grande imprensa, invariavelmente referiam-se à data, os pesquisas a respeito do tema.
primeiros inclusive publicando edições comemorativas,através das quais
podemos encontrar um verdadeiro resumo dos principais acontecimen-
tos do ano operário.
Os festivais operários frequentemente eram realizados visando
Referências
recolher fundos para apoiar, tanto no Brasil como no exterior, alguma ARAVANIS, Evangelia. Uma utopia anarquirta: o projdo social dos anarqui.ul<tasdo
greve, socorrer companheiros presos, recuperar o déficit de jornais ope- periódico '2 Luta" e o seu desgo de m z ~ d r ~o rrumo da Histbiu em Porto A@e ( 1906-
rários etc. A seguir transcrevemos o programa de um destes festivais: 1907). Porto Alegre, PPG em História UFKGS, 1996. Dissertação (mestrado).
. "A utopia anarquista em Porto Alegre nos anos de 19061907. Os aiiar-
Programa do festival operário em benefício das obras do Ateneu Operá- quistas porto-alegrenses do periódico 'A Luta' e sua tentativa de mudar o rumo
rio. local da História". Estudos IbmAm'carzos. Porto Alegre, PUCKS, 22 (2),dezembro
No salão "Princesa Elena de Montenegro" será levado a efeito hoje um de 1996.
festival ein benefício das obras do "Ateneu Operário". Este festival obe-
dece ao seguilite programa: . Leituras, edições e circulações de imi~ressosna P M o AkLgre de 1906 a 1911:
1"arte - Conferência por um professor de "Federação Operária" sobre uma análise a partir do periódico 'XLuta ". Canoas, ULBRA, 1999. (Aitigo inédito).
a organização proletária; BAIç Joaii L. Regzonalperspecliue,ul<
on Braziliun labor histmy: labor; state and i d e o l o ~i n
2"arte - Quermesse; Rio Grande do Sul, 1889-191 7. Paper apresentado na Latin American Labor
3"arte - Monólogos cômicos pelo festejado amador dramático Sr. Conferente, abril de 1994.
Alfredo Alves;
4Qarte - Continuação da quermesse; "Class, ethriicity, and geilder in Brazil: the negotiation of workers'
5"arte - Coiiceder-se-á a palavra aos representantes das sociedades; identities in Porto Alegre's 1906 Strike". Latin Ammican Researciz h i e w . Yale, NE,
6"arte - Distribuição dos prêmios da quermesse; 35 (3), 2000.
7"arte - Monólogo do aplaudido amador dramático Sr. Cândido Ilha. . "Labor, cornmunity, and the making of a cross-class alliance in Brazil:
O festival começará à 1 da tarde e será abrilhantado pela banda de músi- the 1917 railroad strikes in Rio Graiide do Sul ". Hisj~anicAmaican HU.toli'calRivztw.
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Ibero-Amm'cunos. Porto Alegre, PUCRS, 21 ( I ) , 1995. vos fossem contados por jornalistas".' O "bom relato joriialístico", ex-
plicou o resenhista, "tem a vantagem de "ater-se aos fatos, não se per-
"A bipolaridade política rio-granderise e o movimento operário (188?- dendo em divagações à moda acadêmica". Klaus Kleber não explicou
1925)".Estudos IDO-o-Americanos.Porto Alegre, PUCRS, 22 (2), 1996. o que seriam as "divagações à moda acadêmica", mas suponho ser
. "A greve geral de 1917 em Porto Alegre". Anos 90. Porto Alegre, PPG tudo o que fuja ao "ater-se aos fidtos". "Divagações" de acadêmicos
em História da UFRGS (5),julho de 1996. podem, no entanto, mostrar o quão simplório e equivocado é imagi-
nar que a história e o jornalismo sejam simples narração de fatos.
. "Etnia e classe 110 mutualismo do RS (18541889)". Estudos IDero-Ammi- Através de "divagações" o historiador, e o jornalista bem informado,
canos. Porto Alegre, PUCRS, 25 (2), 1999.
pode descobrir, e informar ao leitor, o quãÒ arbitrária e precária pode
. "Condicionantes locais no estudo do socorro mútuo (Rio Grande do ser a definição de Lima conjuntura histórica como "decisiva". Muito já
Sul: 18541889)". Locus. Juiz de Fora, UFJF, 5 (2), 1999. se escreveu sobre "grandes momentos" qiie, posteriormente, foram
"Trabalhadores em pedra: conflitos coletivos de trabalho no RS (1895- relegados ao esquecimento porque mudaram os tempos e com eles os
1925)". Hisihica. Porto Alegre, (4), 2000. interesses pelo passado. Nietzsche referiu-se a este aspecto da história
dizendo que : "Todo grande homem exerce urna força retroativa: toda
SILVA,Maria Arnélia Gonçalves da. "Rompendo o silencio: a participação feminina a história é novamente posta na balança por causa dele, e milhares de
no movimento operário de Rio Grande-Pelotas (1890-1920)".Estudos IDero-Ameri- segredos do passado abandonam seus esconderijos - rumo ao sol
canos. Porto Alegre, PUCRS, 22 (2),dezembro de 1996. dele."? Não vivemos mais na época daquele filósofo alemão, e os acon-
Romnpendo o silêncio: mulizozs ol~eráriasm Pelotas e Rio Gande (1890-1920). tecimentos do sécirlo XX rios tornaram descoiifiados para com "gran-
Porto Alegre, CPG em História da PUCRS, 1998. Dissertação (mestrado). des homens" que revolucionam nossa visão do passado. A despeito
disso, podemos concordar com a tese de que é um olliar histórico que
SILWIRA, Marcos César Borges da. O teutla operurio em Rio Grande no tempo das se dirige ao passado, desvelando alguns "fatos" e velando oiitros. Qual-
primeiras chaminés. São Leopoldo, PPG em História da UNISINOS, 2000.
quer historiadoi; oujornalista-liistoriador, está lia posição do "grande
Dissertação (mestrado).
liomem" nictzscheaiio, potencial criador do passado a ser lembrado e
VIOLA, Solon Eduardo Annes. Con.rideraçõessobre o movimento operário no inicio da estudado, e de pertinentes "momeiltos decisivos". A liistória é um cam-
década de 1920. Porto Alegre, UFRGS, 1983. (Monogi-afiade conclusão do <;urso po miitante, indefinido, como defiiiiu Nietzsche na coiiclusão d o
de Especiali7ação em História do Rio Grande do Sul) aforismo já citado: "Não li5 como ver o que ainda se tornará liistória.
XERRI, Eliaiia Gasparini. Uma incursão ao movimento of~errino deXio Grande no inicio Talvez o passado estqja ainda essencialmeiite por descobrir! Tantas
do sséculo X X , Porto Alegre, PPG História PIJCRS, 1996. Dissertação (mestrado). forças retroativas são airida necessárias"."
. "Urna incursão 2s fontes sobre o rnovirnento operário de Rio Graride
110 século XX". Estzldos IDo-o-Anzericanos.Porto Alegre, PUCKS, 22 (2),dezernbro
de 1996. 1 Igebei; I<l,ius.Vigoi do relato histbrico. Gnzpln n/l~?cnt~tzl. São I'aiilo, 1'7, 18 e 19 de novembro d e
2000. (/ilda?zo (te fi~ndu ~pmn?zn, 13. 13.
2 Niettscl-ie, Fi-iedeiich. A garn tzr^nrzn.%o Paiilo: Coinpailhid das L,etias, 2001, Afoiismo 34, p. 81.
3 I(/.
Mais ou menos 10 anos atrás, quando cursei meu mestrado, as O Independente circiilou em Porto Alegre rias duas primeiras déca-
"forças retroativas" daquele tempo fizeram com que muitos historia- das do século XX. Seu criador, Otaviano Maniiel de Oliveira, fora tam-
dores desvelassem um "momento decisivo", específico: a passagem do bém diretor-proprietário de A Gmetinl~a( 1891-1 8991, um jornal de
século XIX para o XX. Viu-se naquele tempo uma série de transfor- "escâiidalo", caracterizando pelo "sensacionalismo grosseiro" de seus
mações fundamentais que ocorreram na sociedade brasileira em ra- ataques à honra de pessoas e de famílias da comuiiidade da capital
zão da modernização provocada pela globalização capitalista. Não fa- g a ú ~ h a Por
. ~ outro lado, o mesmo periódico noticioii e comentou,
lávamos, então, de "globalização capitalista", mas de "imperialismo" com simpatia, acontecinientos ligados ao movirriento operário da ci-
ou de "constituição de sociedades produtoras de mercadoria^".^ Era dade. Otaviano de Oliveira foi associado à Liga Operária Internacio-
um "processo de homogenei~ação"~ do planeta, com as peculiarida- nal de Porto Alegre, entidade que congregava os militantes da social-
democracia, e diversas lideranças operárias colaboraram no seu jor-
des e limites daqueles tempos. Havia então, no Brasil, uma profunda
nal. Devido a isso, A Gazetinha foi classificada como uma folha "social-
rejeição da realidade por parte de alguns indivíduos, daqueles que
democrata", "socialista", "proletária" e "operária".lo O Independente,
tinham condições e interesse em perceber e interpretar as mudanças apesar de matérias simpiiticas aos operários, não pode ser coiisidera-
do mundo, bem como o desejo delas participar. Defini essa rejeição do da mesma forma.
como sendo uma "ânsia de civilização",~oisnão se tratava unica- O segundo jornal de Otaviano de Oliveira foi uma follia secundá-
mente de pretender o progresso material.' Desejava-se, é verdade, ria rio panorama jornalístico de cem anos atrás, mas sobreviveu por
que a cidade colonial fosse colocada abaixo e sobre ela fosse erigida mais de 22 anos e distinguiu-se, em certo sentido, por uma inédita co-
uma moderna urbe, à semelhança das grandes cidades do mundo bertura do interior do Estado." Em seus primeiros níimeros, e ao lon-
daquela época, com serviços de água encanada, esgoto, transporte, go de sua existência, proclamou-se "popular", "republicano-histórico"
iluminação, limpeza. Entretanto, almejava-se igualmente a transfor- e "independente" em relação As forças políticas do Estado. Scm nunca
mação da essência do ser brasileiro - de hábitos, comportamentos, deixar de ser republicano, o periódico variou seu posicionameiito, quaii-
vestimentas, formas de pensar, agir, trabalhar. Desejava-se a instaura- to ao governo local, da oposição, dura e crítica, à adcsáo explícita, de-
ção de uma realidade radicalmente diferente enfim, e a imprensa foi pois de 1907." Não obstante essa variação de suas simpã .ias políticas, O
um dos canais de atuação dos agentes moderniradores: intelectuais, mé- Independentefoi, ao longo dc sua existência, o canal de atuação de indi-
dicos-higienistas, jornalistas, funcionários públicos. Ao invés de sim- víduos que se colocavam, através do jornal, ao lado daqiiele que consi-
plesmente se aterem aosfatos, os jornais foram espaço de divulgação de deravam como o único iiistrumento de transformação da realidade: o
"imagens esquemáticas da realidadeu8 que pretendiam a "civilização" Estado.13 Era este qiic deveria ser o principal ator na soluçáo dos pro-
do país. A imprensa, um jornal porto-alegrense em particular, foi a
principal base documental de minha pesquisa.
9 A ( k e t i n h a foi utili~adapela colega Cláudia Malicli eni siia dissertação d e rriestratlo: Ot~iettz
/)liDlirn e mo7nlitlntr'r: itn/)wizsc~e/)olicinttle?lf«t~thcrtroetn I'otlo A l ~ g r e/?,o(lérn(1ci(/e 1890. Porto Alegre,
1992. Dissertação (Mestrado em História). Crii-so de P6s-gi-aci~iaçãoem IIistoria, Universiclade
Federal do Rio (4raiitie do Sul.
4 A coiiceituação, nestes termos, daquele "processo d e globalizaçáo" pode ser examinada em
10 A primeira classificaçáo 6 d e Peterseii, Síl\ia Kegiiia Fel-i-az. Guio /jrlrn o e.s/rtdo d n Z ~ L / I ~ P dos ILS(Z
Hobsbawii, Eric. A era dos ittr/)é7jo.s. 1875-1914. Rio d e Janeiro: P ~ eL Terra, 1988; Hardmaii,
Francisco Foot. fr~ntnsmcc.A »lodern,idnde ~ z aselva. São Paulo: Compariliia das Letras, 1988. A tt.crDnI/zn(loti?sdo Rio Gi.r~ndedo SILI(1874-1940). Poi-to Alegre: UFKGS/ITAI-'EIZGS, 1089, p. 28. As
demais classificaçóes sâo d e Pesavento, Saiitlra Jataliy. O colidirlr~od a Kr/~liOlicr~. I<lile~e povo n a
Última expressão entre aspas, tio texto, foi retirada da obra d e Mardman, p. 1G.
uit-nda do século. Porto Alegre: UFKGS, 1090.
5 Sevcenko, Nicolau. Lileratura romo ?~zissZo:Tensões sociais e criação cultural na Primeira Repúbli-
11 G o n ~ a ç aAlcides.
, I T o t ~ ~ ePt zf07sns
~ (lejot /?nl.Porto Alegre: Globo, 1944.
ca. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 44.
12 O marco da mudança foi a luta pelo go\.t:riio estacliial, que dividiu o PIIR corri a disputa entre
6 Francisco Foot Hardman designa este mesmo aiiseio com a expressão "ânsia d e progresso".
Fei.naiido Abott, ~ I . ~ ? z s ~ I Lc10~ ( Lpartido d e Borges de Medeiros, e Carlos Barbosa, candidato da
Quando d e miiilla pesquisa, optei por "civilização" por elitelider qrie esse termo expressava,
sitiiacáo. OIt~de/~erz(~e~ztedefeiicleii a candidatura cle Abott at6jiinho d e 1907. No dia 12 dacjiiele
com maior fidelidade, a preocirpação existente n o j o r ~ i a lO Inde/)endente.
mês, em "AG1TA(r'A(3 -. A nossa atitude", artigo assii~atlopelo pi.6prio Otaviailo tie Oliveii-a,
7 Seria iriteressante contl-astar a "ânsia d e civilização" d e cem anos atrás com a "ânsia de Primeiro tudo inudo~i.A partir daquela [lata, o clireto~proprietáriod ' O I ? ~ c / e / e t z /não e mais abairdo-
Mundo" , qiie grassa em nosso pais há mais d e uma década. Poder-se-iam verificar semelhanças nou as hostes oficiais, passando a freqLientar os mesmos anibientes qire os "prócei-es republica-
e diferenças entre dois momentos cle radical rejeição de uma identidade iiacioiial qiie não esteja nos", elogiando-os e recebendo sinais d e coiisicleraç5o tias aiitoridades.
d e acordo com o "niovimeiito da história", oii melhor, com os sonhos d e nos transformarmos
13 E rniiitas vezes acima tlo prhprio Estaclo, pois a iniprensa tla época, e não soinente Ol,ide/)~?a(/etl-
em europeus ou norte-amei-icaiios.
te, tamtkrrt se.julgava fiscal e.jiiiz da ação clas autoi-iclades. (;olo<:ando-.senuina j>osiçáo acinia cle
8 Geertz, Clifford. A in,terfitztaçho das czdturccs. Rio d e Janeiro: Jorge Zalrar, 1978, p. 190. qiialquer interesse part.icular, ela aclqiiiria, oii tencionava aclqiiirir, {irna situação privilegiada
blemas que atrapalhavam a modcrnização de Porto Alegre, em particu- por si só a coiicepqiio negativa da maioria da população e o precoiicei-
lar do "problema social". to quanto ao seu comportamento, se entendermos por moralidade sim-
O que me chamou atenção, desde o iiiício da pesquisa, foi o pre- ples "obediência aos costumes".1('Defender a "moralização do povo"
conceito social das matérias sobre a civilizaçiio daqueles que, em matérias significa não considerar o etl~os" deste como adequado, digno, respri-
mais amenas, eram simplesmente classificados como "inferiores". Não tável, aceitável.
creio que em outra época da história do Brasil republicano o precon- Minha principal preocupação, lia dissertação de mestrado, foi
ceito social teiilia se manifestado de forma mais intolerante do que iio explicitar o caráter autoritário das radicais propostas expostas de rna-
início do século XX. Não creio que em outro período de nossa história neira constante no jornal. Neste artigo em particular, abordo o qiie
o preconceito social tenha sido publicamente expresso de forma mais deixei de lado em artigos anteriores: os "menores de rua". Esta é uma
sincera e agressiva. Há, em boa parte das matérias sobre o "problema expressão contemporânea e pode facilmente induzir ao anacronismo.
social7',uma cliocante conjunção de sentimentos de medo, repulsa, asco Minha intenção é simplesmente destacar o elemento comum nas diver-
e mesmo ódio, e um evidente desejo de inspirar tais sentimentos nos sas matérias aqui analisadas: elas se referem a menores que viviam, cori-
leitores através de algumas terríveis construções simbólicas. É tentador viviam, passavam parte de seu dia nas ruas. Não eram, iiecessariamente,
considerar a imprensa como simples "instrumento de informação". Ela, moradores das ruas, abandonados, drogados, delinqüentes. Existiram,
entretanto, nunca foi isso apenas, e o foi menos ainda no início do é certo, menores delinqueiites, e muitas matérias d'O Independente for-
século passado, quando os jornais, tal como os do século XIX, preten- iiecem informações a respeito disso. Entretanto, o "problema social", no
diam desempenhar um papel ativo nos acoiitecimentos. Concebiam-se início do século passado, era concebido de forma diferente e as diver-
como agentes sociais e lutavam para serem reconhecidos como tais atra- sas classificações dos "garotos", bein como suas respectivas implicações,
vés de matérias antes de caráter opinativo que noticioso.14 Através delas, pertencem àquele tempo, às páginas de um jornal específico e ao pen-
com idéias, conceitos e temores que supunham aceitos pelo leitor ima- samento de determinados indivíduos. Ao lado das "prostitutas7',dos "va-
ginado, seus redatores construíam verdadeiras imagens com os objeti- gabundos" e dos "mendigos", os "menores de riia" - quando classifica-
vos confessos de "moralizar o povo" e "aisxiliar" as autoridades na exe- dos como "vagabundos" - foram uma das quatro j i p r a s ,simbólica,s da
cução de seus deveres. O Independente se classificava como "popular" abjeçiio social. Nas paginas do periódico, essas personagens foram apre-
quando pretendia ser o representante da maioria da população. Nas sentadas, ao leitor e ao Estado, como Lima ofensa e uma ameaça à
matérias sobre o "problema social", porém, povo é, usualmente, subenteii- moralidade, à saúde, à segurança, aos projetos de civiliznção da popula-
dido de forma negativa: é a grande parcela dos porto-alegrenses que ção da capital gaúcha. Ou nielhor, uma ameaça à sobrevivência e aos
nGo é respeitável e rnora1.I" projeto de "moralizar o povo" já indica projetos daqueles que eram considerados como componentes do "es-
col social" porto-alegrciise. Apesar dc Otaviano de Oliveira, e boa parte
de seus redatores e colaboradores, terem tido uma origem social hu-
para a sua atiiação no meio social, podendo alinliar-se oit contrapor-se a qualqirer força, res-
çriardado pela sua posiçáo d e altaiieira neutralidade e isenção. milde," não dcixaram de pensar consoante o elitismo então dominaii-
14 Em 7 dejaneiro d e 1909, o correspoilcieiite A. Viiiardell-Kuig reagiu à concepção norte-arneri- te, presente inclusive no movimento operário.'"
caiia de jorilalisrno, a qual faizia da imprer~sasiriiples insrriiineillo inSormativo. Nas palavras do
correspondente, o periódico, "na siia acepção mais i-acional e sob o ponto d e vista da ética,
devia ser uma escola d e ilustraçào e d e bons costumes". Apesar d'O Ir~de/)ende~ztr, exatamente a 16 Nietzsche, F.. Aumrtl. Porto, RGs, 1983, p. 13.
partir desta 6.poca, ter acentuado seu caráter informativo, nunca cedeu conipletamente à con-
cepçio que Vil-iardell-Riiig classificori corno sendo uni "aviltameiito moral dos costumes 17 Ethos entendido conio hcibifo enpnnto rnrncte7islicn disli?sli?~n e rn-arteirade ser col~lianoii,de forma
joi-~ialisticos". mais precisa, como "tom", o "caráter" e a "qiialidade d e vida", o "estilo moral e estético" e a
"disposiç%)" d e iim "povo". A primeira defiiiição 6. rima adaptação da apreselitada por Eniile
15 Nesses casos, aplicam-se as palavras do prefácio de Jacques L,e Goff ao excelente livro d e Benveniste para o termo,grego, restrita ao plaiio iiidividilal; a segunda 6. elaboração d e C;liffoi~d
Geneviève Bollènie sobre o liso do "povo" pelos literatos: "No âmago da designação d e rima Geertz. Cf: Beiiveniste, Eniile. O rioc.ab,ukíriorins ir~,stitui~ões
indo-euro/)Pins. Yofl~?; I)i,-rito, KvligiGo.
obra, de iim objeto, d e urna literatura, tie urna religião o11 d e uma cultiira como 'popular', há Campinas Eúitora da IJnicamp, 1995, 11. 1, p. 326; Geertz, C;. Op. cit., p. 143.
em vei-dade rima rejeição: o l~opularé sobretudo aqiiilo que não 6 (erudito - científico, racio-
nal -, riobre, ete.)", Bollème, G. Opovo/)o~escrito. São Paiilo, hlartiiis Fontes, 1988, p. VII. "Fa- 18 As principais informações, além daquelas oferecidas pelo próprio jornal, eiicoiitr-am-se rias
tos" como a Re\~olirçãoSoviética levaram à ampliação da noção de povo em artigos como o mem6rias de Vivaldo Coaracy, iim dos seus redatores, pro\~avelmenteentre 1005 e 1907. Coaracy,
piiblicado em 24 de~jaiicirod e 1919, sobre o "maximíilismo". O siirgimeiito deste Sai explicado V. Er'r2c».ntrosrorn n uidn. Rio de.Jaiieiro:José Olympio, 1962.
como fi.iito da falta d e zelo para cotn o "povo": "o operáiio, o patrão, o pobre, o rico, o bacha- 19 O militante socialista, e redator d ' O Itld~/1~?ide?2te,
P,iiis Alves Rolini, em artigo comen~orativoao
rel, o f~~ricioilário",eiifirn, "todos nós". Primeiro d e Maio d e 1904, escreveri iiojornal que o partido "genui~iaine~ite do povo" era giiia-
Os objetivos deste artigo se resiimem a mostrar, inicialmente, al- Em rienhuma capital populosa, vê-se a criai~çadaem grupos pelas luas,
em correrias, em brinquedos, saltando ern bondes ou carroças, como
guns dos elementos usados pelos jornalistas?' daquele periódico para
sucede em nossa terra.
fazcr dos "menores de rua" um problema, e como isso estava ligado ao As mas são apeiias destiizadas ao trânsito público e não a recreio de meninos.
"problema social9'por eles concebido. Posteriormente, apresentarei e Assiin conio as mães contêm as meninas, que são numerosas, e não brin-
analisarei algumas das medidas sugeridas para a resolução do "proble- cam nas vias públicas, também deveriam conter os rapazes, fazeizdo-os
ma" dos "garotos". Ela comportava dois aspectos - como tratar os quejá briizcar nas áreas e nos quintais.
tinham se tornado "vagabiindos" - medidns tera~êuticu.~ para tratamento Mas izão se dá isto. Muitas mães, não quereiido aturar os filhos arteiros e
do "mal' -, e conio resolver de vez o problema, as nzedidus profláticas. desinquietos, deixam-nos sair a porta da rua, com supremo alívio.
Daí os numerosos fatos lamentáveis de crianças apanhadas pelos veícu-
Nos dois casos, o agente de intervenção era um só e o mesmo - o Esta-
los, das rixas entre rapaLes, cabeças quebradas e até mortes eiztre eles.
do. Ao longo de rodo o período pesquisado, apenas o Estado foi consi- As crianças devem ter fhlego, mas este deve sei- vigiado e nunca rias ruas
derado como instrumento legítimo e capaz de criação da nação, de públicas.
intervenção, correção e transformação da sociedade. Não se tratava do Os jardins aí estão, sem nenhuma fi-equência, quaizdo neles seria o me-
reconhecimento de uma realidade, porque ojornal militas vezes, ou na lhor local para reunião de crianças, para os seus briizcos e folgiiedos.
maioria das vezes, não teve atendidos seus desejos de ação estatal. O Preciso é que cada um se coiivença de que nas ruas, sem escolha, izuma
que podemos acompaiihar nas matérias sobre o problema social em promiscuidade deprimente, iião se pode dar boa educação à prole.
particular é o contíiiuo traballio de constituição do direito de interfe- O contbgco moral existe do ~ m s m 77zodo
o com tãofune.s~aclção co,no o coniágzofiiro.'"
Para que se possa educar, é preciso exercer vigilância sobre as criariças, a
rência radical do Estado. Fosse repressora, institucionalizadora ou sini-
fim de que, a cada erro, apareça a censura e a correção.
plesmente violenta, ela seria sempre arbitraria, porquanto resultante ex-
clusiva do juizo de governaiites orientados pela "lanterna de popa" da A hipérbolc - rio seu aspecto de figura que siiperestima determi-
"imprerisa moralizadora" ." iiado dado, informação, fato - é uma das características da retórica do
jornal no trato da queslrio social. A modesta Porto Alegre do inicio do
Os menores e a rua corruptora século XX podia assim ser considrrada, dentre as capitais p@ulosc~sde
então, como a qiie api-esentava, de forma ímpar, uma "criançada em
Em 2 de setembro de 1909, foi publicada tima matéria intitulada grupos pelas ruas, em correrias, em brinquedos, saltaiido em bondes
"OSmenores e as ou carroças". Não se trata do problema de menores abaiidoi~ados,mo-
radores de rua, crimiiiosos. São crianças aparelitemalte i-iorrnais, de
estrato social não definido, que escapavani para as ruas e nelas convivi-
am com outras crianças, foroiarido "grupos" e usando aqueles espaços
públicos como seu pátio de brincadeiras. As culpadas, seguildo o arti-
d o por "mentalidades criltas". O próprio "desenvolvimento espiritual" íla "miiltidáo operãria"
era um dos objetivos da existência da folha cle Otaviaiio d e Oliveira, conforme artigo ein qiie
culista, eram mães, porque, impacieiitcs com seus filhos "arteiros e
saiidou a criaçáo do "Ateiieu Opei-ário" (1/5/1910). Tal estabelecinieiito, escreveu-se, era "uina desinquietos", sentiam-se aliviadas quando os mesmos escapavam das
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necessidade iirgeiite, pois o mal de qiie se queixava o operariado" era, 'km g r a ~ i d eparte, cleri- areas e qiiiritais" de suas casas. Maiitiiiham as meiiiiias junto consigo,
vaclo da sua carência d e cultivo intelectual". Esse elitismo pode explicar o "estilo autoi-itãrio"
ideiitificado por Benito B. Sch~nidtna concliição c10 mo\.irneiilto ctos trabalhadores gaíichos, e mas permitiam qiie os meninos se evadissem. Preguiça, impacieiicia,
que atribuiu a possível iniflitência das "teorias sociais científicas". Cf. Scmidt, B. B. O deiis tio falta de vontade causavam a incúria materna e criavam uma espécie
progresso - a difiisão do cieiitificismo 110 movimetito operár?o gaUcho da I Kepíiblica. I<evi,stcl
R,-cl~ibir-ndefli.sló7in. São Yaiilo, v. 21, 11. 41, p. 113-12G,2001.
particular de problema social. As ruas eram um espaço perigoso para
20 Osjoriialistas d'O Irtdej)ef,el~derlte
se enqriaclram mais propriamente na categoria d e "espíritos de
criaiic;as. Elas ofereciam alternativas arriscadas para os pequenos tmve,ssos
eleição" que combinavam as suas profissóes d e professores, ad\,ogados, eiigenlieiros, militares, - as simplc-scorrerias lias calcadas e em meio ao trâiisito, as caronas rni
com a atividade inta-:lectlial e joriialística. Não eram jornalistas profissionais. bondes e cai-roças. Nas ruas tambkrri não era possível a cdi.icaqãc) apro-
21 Ao final de Lirn artigo sobre a "vadiagem" d e nieiiores, em 25 de jiiiilao tle 1911, foi escrito: "A priadajá que iiiexistia a vigilância d e um adulto respoiisável - e a corre-
missáo da impreiisa é toda iiisti-iitiva;consiste eni iiifòrmar, apontar; avisar e aconselliar; o resto
afèta aos poderes competentes, àqueles que revestimos tla aiitoriífaclr pfibca".
22 Salvo iiidicaçiio em coiiti.sirio, todas as rnai6i-iasjori~alísticasan-nalisadasnesse artigo perteiiceni
à coleçáo d ' O In~(l~11end~r~te
pi.eservada 110 Artl~iivoMiiiiicipal d e Pon-toAlegre. 23 Salvo observaçáo eril c o n t ~ í r i o to(los
, os destaqiies são tle iiiiiiha aiitoria.
ta formação exigia permaiieiite vigilância para que, a cada "erro ou dos fatores que levou à sua adoção pelos intelectuais brasileiros, a par-
falta", ocorresse a necessária censura e correção. Sem a presença tir do final do século XIX. Na interpretação de Bolívar Lainoiinier, houve
corretora de adultos responsáveis, os menores se reuniam em "grupos9'. uma "assimilação estruturada" dessa metáfora portadora da "reaçâo
Estes eram meios de socialização perigosos - o texto fornece as evidên- romântico-conservadora ao iluminismo, racionalisrno e ao utilitarismo"
cias: havia rixas entre os mesmos, com brigas, ferimentos e mesmo e característica do conjunto de idéias protofascistas européia^".'^ No
mortes. Estas eram acidentais ou premeditadas? É um ponto não escla- nosso país a sua absorção teria acentuado o elemento positivista e os
recido - o que pareceu importante ao redator foi fi-isar o alcance do aspectos conservadores da linguagem organicista. A mudança deveria,
risco corrido por aqueles meiiiiios. Nos 'Jardins" - as praças? - e sob entre outras coisas, se caracterizar pela garantia da perduralidade de
vigilância, eles poderiam se reunir, se divertir e serem formados ade- certos aspectos do passado, pela adequaqão ao grau de maturação da
quadamente. Nas "ruas públicas", em meio aos "grupos", não havia "es- sociedade. Ela deveria consistir na instituição, pelo Estado, de rima or-
colha", a não ser conviver numa promiscuidade não definida pelo arti- dem adequada à natureza do orgaiiismo b r a s i l e i r ~ Confirma
.~~ a argu-
culista, mas sugerida como moralmente corruptora. Essa é causa maior mentação de Lamouiiier, eiitre outros artigos d' O Independente, o come-
do descaminho dos menores: a corrupção moral. Assim como existia morativo à proniulgação da constituição de 24 de fevereiro, publicado
contágio físico de moléstias, assegurou o mesmo, também havia o "coii- na primeira coluna da primeira página da edição de 23 de janeiro de
tágio moral".24 1910. Nele, a monarquia foi classificada como uma "aberração traiis-
A ideologia expressa nas páginas d 5 0Independente é um exemplo plantada de plagas externas, que devia ceder o lugar à "fatalidade
de visão moral de mundo, isto é, da concepção da sociedade como um idiossincrática de nosso sangue, para o qual a República é uma necessi-
"sistema de costumes"."' São estes, os costumes, e não leis econômicas dade fisiológica, um quase iiistinto político." Em uma realidade pensa-
ou políticas, que estruturam e que podem desestruturar uma socieda- da conforme princ@io.sorganiristas, não havia necessidade da livre deli-
de. Disso decorre o moralismo das matérias do jornal e, no caso do beração de seus membros quanto ao regime político que deveria reg&
artigo anteriormente considerado, a referência ao "contágio moral9'. 10s. O "organismo brasileiro" guardava em si a sua formapolitica, a única
Esse assurne sentido especial devido a outra peculiaridade da ideologia possível, que deveria ser simplesmente instituída por quem tinha o di-
dos intelectuais do jornal: a concepção da sociedade em termos orgáni- reito e a capacidade para t a i ~ t o . " ~
cos e naturalistas.'" Nas ideologias historicistas alemãs, a transposição Em seu artigo sobre as relações entre "populares" e "morcegos"
para o domínio social do "conceito naturalista de desenvolvimento or- (policiais), na Porto Alegre do século XIX, Paulo Moreira identificou
gânico" compeiisou a falta de uma história comum para a implantação a existência de uma "seiisação popular" que "construía as ruas como
da nação ~ e r m â n i c a . A
' ~unidade do povo teuto não era conferida pela espaço de relativa liberdade de movimento e comportamento, no qual
história, que a negava, mas pela raça, pelo sangue de um organismo somente alguns elementos eram considerados legítimos para efetua-
cujas origens podiam ser remontadas à longínqua antigüidadc. É possí- rem o ordeiiamento desse 'espaço comum' - legitimidade nunca ab-
vel que essa peculiaridade das "concepções organicistas" tenha sido um
31 Staiidt, Paiilo Mot~ertohloreira. E a rua i150 é do rei, Morcegos e poplilares i10 inicio do polici- 33 Como jA o tinharri sido iio final tio séclalo XIX, pela Cnzpl~~zhn i pelo]ojol?bnl dn Ii77CIp, p e s c l i ~ i ~ d d o ~
amento iirbaimo eni Porco Alegre. Skcitlo XIX. 111: Staudt, Paiilo R. h!., Hageii, Acãcia Maria por hlaiirh, (;láiidia. Saiieariieiito rnoial em Porto Alegie ima decada d e 1890. 111: Mauch, PL
Madiiro (Orgs). SoOv n run e oz~troslug~~res. Keini.eiitanclo P ~ I - tAlegre.
o Porto Alegre: Ai qiiivo n//. I'orto A I P ~ I??a
P ~ ~ z ~ adod ~ l o 1'01 to Alegre: Editoia da UFK(;S, Editoia da IJLBKA,
n i o ~ 19.
I-Iistór-icod o Ihio (;i,ande do Siil, Caixa Ecoii6mica Federal do KS, 1995, p. 53. Editora Uni~ino5,1994, p. I1 e ss.
célebres bodegas, antros de vício, que j2zlll~Zanznas, ruas duwido.sas desta jornal, eram as "bodegas9'qiie atraíam os "desociipados", causadores
capital, escolas de embrutecimento, onde a embriaguez acotovela a li- de "desordens" com "resultados trágicos, como facadas, cacetadas,
bertiiiagem e frateri~izacom o jogo. e tc "36 Ameaçavam, esses "ii~divíduos'~,
não apenas a segurança, mas a
r 1
L...J
Muitas outras tascas têm-se (sic) aberto pela Cidade Baixa, além das aiiti- "moral social", isto é, o qiie era considerado como sendo a infra-estru-
gas que continuam franqueando as portas a todos os viciosos, fomentan- tura da sociedade. Na matéria em questão eles foram descritos como
do a devassidão pelos becos do Poço, do Fariha e outros. tendo prazer em se reuiiir para "achincalharem os preconceitos da
ordem e da moral". O (s) redator (es) se esforçaram, então, para gerar
É notável como o organicismo da visão d' O IndeFendente é adeqiia- medo e asco no leitor descrevendo o que seria uma cena de degrada-
do a uma visão alarmista e alarmante da realidade. Segundo jornal, o ção no qiie hoje chainaríamos de "as voltas do mercado":" "talvez sob
organismo social da capital gaúcha tinha sua sanidade ameaçada pela a influência atmosférica alterada pela presença de Marchetti, espu-
corrupção moral que se alastrava a partir de "bodegas", "tascas" , casas mavam de delírio canibalesco, expelindo pela boca, num hálito re-
de pasto ordinário, segundo sentido preservado pelo dicionário Auré- pugnante de cachaça efervescente, todo o rosário oral de seus conhe-
lio. Sendo um todo orgânico, a sociedade dependia da sanidade de to- cimentos de beco".:48
dos os seus "órgãos", especialmente da sanidade moral dos mesmos. Ainda levaria niiiito tempo para a cachaça ser reconhecida como
Como a segregação urbana ainda iião se fizera sentir em Porto Alegre, uma "bebida nacioiial"."" No início do séciilo passado, como até há
o estado i~ormalda cidade era o "doentio",já que habitava111 em seu pouco tempo, ela era considerada a bebida do pobre, do desclassifica-
coração as pessoas cuja moralidade era vista como ameaça de desirite- do, do vagabundo. Mas os "turbulentos" do Mercado não eram apenas
gração. Havia, pois, um permanente perigo e era preciso denunciar o alcoólicos. Antropofagia é um dos atos que distingue o humano (civili-
mal e a possibilidade de seu "alastramento" por "contaminação". As zado) do selvagem. Em nossa visao dc muiido separativa, talvez seja um
"bodegas" erarn "escolas de embrutecimeiito" - produziam "selvagens" dos poucos ''fdtos" que guardam resquícios da idkia de mácula, caracte-
- e a trarisforniação de seres humaiios em '6brutos'9era resultado do rística de concepções interligantes de mundo.") A referência ao "delí-
álcool, da libertinagem e do-jogo. Figura central desse processo de de- rio canibalesco" provocado pela "Marclietti" fazia, portanto, daqueles
gradação era a da prostiluta, freqiientemente considerada como uma "desocupados" seres à parte da raça humana civilizada. 0 s "turbulen-
"infeliz", de "natureza fraca", seduzida por "viciosos" ou por cafetiiias." tos" eram verdadeiro selvagens capazes de comportamentos iiiumanos
De qualquer forma, consciente ou não, vítima ou iião, a meretriz era devido ao seu coiisumo habitual de cachaça. Era a bebida qiie criava a
apresciitada como uma ameaça à saúde, à moralidade e à segurança da "influência atm~sférica~~ que propiciava a exibiçáo dos "conliecimentos
cidade. Era intimamente associada à figura do vagabundo, ao qual, se- de beco", os quais erarn transmitidos aos transeuiites inocentes por ar
gundo o artigo de 20 de março de 1910, seguia, acompanhava c auxili-
ava, ajudaiido a roubar, atraindo as vítimas para que o comparsa fizesse
36 Id.
a "féria do dia".
37 Qiie permaiiece seiiclo, cem anos depois, iirn espaço d e "coiivivêricia pol~iilar",com tiido o que
Mas as Iiodegas, um dos ceiitros de disscminação de "micróbios essa expressão, adequadanieiitc imprecisa, pode sigiiificar.
morais", não se localizavam apriias nos célebres bccos e nos arraiais 38 Id.
suspeitos. O Mercado Público, iio coração da capital, era tini dos meios 30 Sob o títiilo "FI-IC decreta: a cacliaça í- brasileira", o site do E,:.ctcldcionoticia o decreto presi-
contaminados e contaminantes. Isso foi denunciado pela coluiia "Inte- dencial 406% d e 21 d e de~ernbi-opassado, qiie defiiiiii: "O uso das expressóes protegidas
'cachaça', 'Brasil' e 'cachaça clo Brasil' e restrito aos produtores estabelecidos iio País". O
resses Muiiicipais, rio ano dc 1907"." Tal corno hoje, "bodega" é de- okjetivo do cieci-eto é a proteção do "prodilto iiacional" contra a aqáo daiiosa cle estrangeiros
iiomiiiação reservada para pequenos estabcleciineritos c ~ g aimagem e, com isso, estimular a exl>oi.taçào.fistslnclno.com.Dt; São Paiilo, 27 d e dezembro ele "01. Dis-
está ligada à siijeira, consumo excessivo de álcool e brigas. Segundo o poliivel em http://~v~zr\v~jt.~~c~~~.c0m.b1-/ec1itoris/O 1/12/27/~rer()28.Iitnil.Acesso em 15
cle janeiro ele 2002.
40 Sobre as distiiiçóes entre visões d e iniinclo sepai-ativa - qiie sup6e a realiclade diviciida em
ciominios estaiiqiles (huiiiaiio, iiatural e, eveiit~ialmeiite,clivilio) - e iiiterligante - qiie imagina
o cosmos diviclido em àrnl~itose seres iiiiidos por elos qiie os tornarn iiiterdepeiideiites - vei-
34 A respeito cla prostituiçio 12 '0 Ii?d~/jende~~le,
ver Elmir, Cláiiclio Pereira. Iniageiis da prostituição especialrneiite: Oudcrnaiis, 7'h. c:. MT.; l,ardiiiois, A P M I-I. ii-agic ctn~Dig7~it~
An~i-u/)olo~~/~hiloso/~/~~
na Porto Alegre dos anos 10. In: R,Iaiich, C. e outros. O/). c.il.,p. 8%-08. nrld So/~hocLeisAi?tigone.1,eicleii: E . J . Brill, 1987. Os autores iisam o coiiceitr) d e cosinologia, niais
3.5 7 d e março d e 1907. complexo e detalliado qiie o de \,isáo de niuiido.
carregado pelo mau cheiro do "hálito rcpilgiiaiite9',igualmente origi- O caso suspeito deu-se 110 beco do Fanlia.
nado pelo consumo da bebida. Eram, em resumo, seres abominiveis: No beco do Fanlia? Então
"desocupados", "violentos", "bêbados", "fedorentos" e "iinorais". Não vejo aí grande mal.
No ano de 1909, os becos e vielas foram novamente alvo de uma E bem clara a suspeição.,.
Ao menos quanto ii ......Moral.44
campanha do jornal, em matérias intituladas "Embelezamerito geral
da cidade". Em uma delas foi apresentada outra ameaça à sanidade
Esse admirável poemeto, publicado rias páginas do Correio, indi-
do organismo social porto-alegrense. "Além de iiiútil é prejudicial
ca que a equação que relacionava moralidade e saúde física não era
essa travessa, onde se abriga a mais baixa espécie de gente, centro de exclusiva da visáo orgrinico-moralista d ' O Indeprmiente. Na edição d o
imoralidade e de depravação, ponto de reunião de bêbados, cafajes-
Correio que noticiou as primeiras mortes, mais "fatos" foram iiifor-
tes e vagabundos, escola do vício e foco perene de doenças a emjDestar a
rnados ao leitor.
idade".^' Frequentando esses lugares, os menores podiam ser traiis-
formados em "bêbados, cafajestes e vagabiindos", e também podiam O locatário do prédio em questão, um vellio sobrado, sem condições higi-
se transformar em transmissores de doenças. Esse último aspecto êiiicas, sublocava qu"rtos a diversos indivíduos.
pode hoje parecer curioso, mas cem anos atrás, varíola, tuberciilose e Em um desses quartos, morava um moço de 17 anos de idade, Luiz
mesmo peste, eram ameaças consideráveis 2 sobrevivência dos liabi- Dui-igari,trabalhador braçal, o qual adoecendo súbita e gravemente, foi
taiites da capital gaúcha. recolhido ao Hospital da Santa Casa, 110 dia 9 do corrente, falecendo
Através da pesquisa que realizei sobre as epidemias de peste bubô- poucas horas depois, em conseqüência de uma septicemia, segundo o
nica e varíola, pude constatar que o fato de serem doenças com ti-ata- atestado do médico do hospital.
Terça-feira também adoeceu, repeiitiiiamente, um outro morador da casa,
mento conhecido na Cpoca iião impediu que elas rompessem com « Affonso Doneda, sócio do depósito de viillios estabelecido a rua dos A11-
cotidiano da cidade e de seus habitantes. O medo que inspiraram, e as dadas, nO124.4'
medidas tomadas pelas autoridades higiênicas para combatê-las, traiis-
tornaram a capital g a ú ~ l i a . Ela
* ~ permitiu também compreender que a Tratava-se de uni prédio suspeito. Era um "velho sobrado, sem
representação dos becos como locus exclusivo de 6'desclassificados"era condiçóes higiênicas", um cortiço localizado niiina rua moralmente
arbitrária e limitada o que, pela sua importância, merece um pequeno suspeita. A primeira vítima fora um "trabalhador braçal" que, em oii-
excursus neste artigo."" tras situações, poderia ser descrito como "vagaburido9'por morar em
Caso o Correio teiilia corretamente iriformado seus leitores, os pri- iini beco. Mas ao coritrário do que O IndejDendenle geralmente aprego-
meiro casos de peste realmente ocorreram lia Travessa Paissandu, mil- ava, a seguiida vítima não era um "desclassificado". Corno informou o
go Beco do Fanha. Esse fato inspirou a imaginação poética de um de Correio do Povo, Aífonso Doneda era sócio de iim depósito de vinlios
seus jornalistas localizado lia R ~ i ada Praia.*" As matCrias seguintes, do mesmo jornal,
ainda csclarecerarn que Doneda era uni iniigraiite italiano, de casa-
mento marcado para o dia em que foi transferido para o vapor Hori-
zoiitc, por decisáo do Diretor de higiene do Estado, Dr. Protásio
A l v e ~O. ~Horizonte,
~ fiindeado no Guaíba, origiiialmcnte destinado
41 11 d e abril d e 1909. para a função de leprosário, terminou por ser usado para o isolamcii-
42 Vargas, A. Z. Porlo Alegt-c - 1900-1903.E P i d r ~ t ~ i co)~seqiiP^~~cio.~
a~: e iqi~/)lic(~~Ce,s.
Poi-to Alegre, 1990, to de qualquer doeiitc acometido de mol6stia coiitagiosa naquele
53 f. Moilografi;~(Discipliila d e I-iistória do Kio Grande do Sul TV) - (:urso de Pós-(;i-adiia.qào
em História, Iilstituto d e Filosofia e Ciências IHiimarias, UFKGS. período. Dele, o infeliz Doneda pularia, acabarido por morrer afoga-
43 Isto tarnbkrri fòi demonstrado pela anfilise d e algiinias foiites policiais. Cf. Vargas, A. 'L.. "0,s
suljtet.rcit~,eos.... p. 210-224. Apesar tiisso, os inoradores e fi-eqioientatlores das áreas "duvidosas"
da capital podiam partilhai. tla visáo rediitoi-;i e depreciativa cios jornais a seii rt:speito. N o j á
citado artigo d e Paulo Moreira, está reproclilzida a disciissáo eiltse duas rlomí.sticas, ocosi ida 44 (:o7 1rzo do Pui)o, 28 de dezernbt o d e 190 1.
na Kua da Olaria, fiitiira Lima e Silva. Uina delas, Vitalina tias Dores, teritlo sido cl~aniaclad e
45 Coj7elo clo lJovo, 21 de dercmibro de 1901.
"piitinha" por outra, h/lari;i tla Costa, replicoii dizeiido "que 1-150niora\.a n o Beco do Poço
como ela [Maria cla Costa] e qiie vi~fia do seti alugiiel de criatla," Cf, Moreii-a, I'aitlo R, I': n t u n 46 Colmo cla l'oito, 28 dc cie~enil~i o d(- 190 1 .
ncio PcLo Rei ....p. 52. 47 Corre10 do f'ooo, 2 1 d e derernbi o d e 1901.
do. O que se seguiu demonstra o nível de traiistorrio e alarme causa- cos e vielas, seus respectivos moradores e freqiieiitadores, eram torna-
do ria ;ida da capital. Relatou o Correio dos assim ameaça 2 higiene da cidade, um argumento a mais usado
pelo jornal na defesa de suas propostas terapêuticas e profiláticas da
Às 7hs da tarde, zarpou do trapiche da diretoria de higiene a lancha a moléstia que tarito preocupava alguiis porto-alegrrnses.
vapor 17 deJuiiho, levando a seu bordo os Drs. Deoclecio Pereira, médico- Em "Pró-moral", as três principais figuras da abjeção foram reuiii-
Iegista, Ricardo Machado, bactcriologista da Higiene, tenente-coronelJoão
Leite, delegado judiciário, Santo Cimmi, secretário do consulado italiano,
das em outra matéria sobre "saiieamento moral",
Emílio Loncarelli, s6cio de Doneda, Tito de Sá, capataz da capitania do
porto, e outras pessoas, entre as quais diversos compatriotas do finado. Queremos falar da undinçesz, de menores e das prostitutas a que a cafetagem
Após o exame do corpo, em adiantado estado de p~itrefação,e da (sic), ultimamente, não encontrando diques que se lhe opoiiham, tem
constatação da sua identidade, os marinheiros da capitania do porto, tido livre expansão.
que haviam seguido em um bote, fizeram junto à praia, urna cova rasa A autoridade, não há muito, começou uma campanha contra as cafetinas
onde foi sepultado o corpo do malogrado Doiieda, colocado em um cai- e a sociedade não lhe poupou aplausos; urge que continue sua ação bené-
xão de madeira, levado pelos seus compatriotas. fica e enérgica e, uma vez que não é possível por-se termo à prostituição,
Estes também recoiiheceram a identidade do mortoe4"
ao menos pode de alguma forma deter-lhe a marcha, que se u c e h a urda vez
nznis.
O considerável cortejo formado para confirmar a identidade do Os prostíbulos estão cheios de verdadeiras crianças, vítimas dos laços das
cadáver em "adiantado estado de putrefação", confirma que Affonso cafetinas que, enquanto a autoridade se descuida, trabalham na sombra,
Doneda não era um João-iiinguém", um "vagabundo". Além dos com- desmantelando lares pobres, no seu negócio infame, no seu mercado
patriotas, o secretário do consulado deslocara-se com a lancha até o nauseabundo.
ponto em que fora encontrado o cadáver. Os amigos de Doneda, irfor- Essas betesças imundas que cruzam e recruram a cidade, salpicadas de
mou ainda o Correio, esperavam ciiterrá-lo em Porto Alegre, e para tanto tavernas igualmente imundas, são antros onde as víboras se acoitam, so-
tinham contratado um coche fúnebre. O simples fato do carro transitar bre focos infcctos dc peste, que, em nome da higiene e da moral, deuem
pela cidade teria provocado uma "impressão alarmante", na visão de A ser extintos.
Fedmçcio: "Sabemos que o fato de ir e vir, a trote largo, ontem a noite, [...I
Para outro assunto, também deve a polícia voltar vistas e, sobre ele, dema-
pela rua dos Andradas um carro fúnebre causou impressão alarman-
te'' .49 A seqüência de "fatos" provocou uma real perturbação na capital siado temos falado; referimo-nos à extraordinária quantidade de ~nenores
vadios, ladrões e1n0~-iunúrios
que, nas escolas dos becos, se vão já formando
gaúclia, devido ao medo e ao rompimento da vida cotidiana da cidade. na carreira do crinle.
O impacto causado ria vida da capital, agravado pela ocorrêiicia inces Pelas ruas todas da cidade, iioite e dia, passeiam, entregues 5 rapinagem,
sante de tuberculose e de uma epidemia de varíola, indica que o medo ou j ogaiido.
sanilário era unia realidade eni Porto Alegre. Ao corporificá-lo iios be-
cos, os corporificava também em seus moradores e freqiientadores, entre O problema dos "menores de rua", seu tratamento nas páginas
eles os "meriores" que, para O Inde~endente,escapavam à tutela dos pais d 'O Independente, i. iiiseparável do 6cproblernasocial", tal como pensado
e da sociedade, ou que simplesmelite moravam naqueles lugares. Be- e apresentado pelos seus joriialistas. Assim corno todos os moradores
dos becos, bairros c zonas suspeitas eram ou "vagabirrldos" ou "prosti-
tutas", todos OS ineiiores que moravam ou everitualnieiite fieqücnta-
48 I(/. vain aqueles espaêos podiam ser vistos corno "menores vadios", como
49 A fidel-niCo, 28 d e dezembro de 1901. Por oiitro lado, os potenciais aspectos I~icrativosda des- "ladrõcs eml)rioiiári»s", uni perigo para a sol>revivSiiciada sociedade.
grac;a que atiiigiii Poi-to Alegre não passoii (tesapercebido para alguiis, como o demoristra esta Assim todos podiam ser alvo de medidas proporcioiiais à gravidade do
prc'papiida veic~iladapela I;ecie,-crçCo (4/2/ 1902): "Avisu impr)rtaiite do l.aboi.atório Horneopá,.
tico e Bioqiiíinico d e Ixiz 1<6liler. Rim dos Aiidradas 471. (;iassaiido riessa capital Lima epide- problema que, tias páçiiias do jornal, foi qiiase que cotidiaiiamente
mia tlescoilliecida a qiie c150 o noiiie d e peste biil-joiiica, proporno-nos a tratar todas as pessoas elaborado. C o i i r ~as figuras abomináveis, que coiistitiríarn uma amea-
qric se siilmnham [sic] atacadas por esse mal." A i.rticcncia do aiiíiiicio - "epidemia clesconlie-
cida a que dão o ilome cte peste brib6iiica" - pode ser explicacia 1 x 1 0 Cato cle que eiitáo se ça que se expandia "cada vez mais", foram propostas ac,6es c~l-ja
travava iirna grierra d e iiiformaçcies i1a irnpi-eiisa, eslxrialrn<:ntc. eiitre A l.i.tleici<-C«e o Cor,i.io. O radicalidade potencial talvez resida lia imprecisão de sua liiiguagern.
primeiro negava a epidemia, o seguiido a deiiiiriciava.
Terapias e profilaxias Vigilância e repressàio, essas medidas terapêuticas, militas vezes não
foram consideradas bastantes para a resolução do "problema". O artigo
O que fazer com as "criaii~as"que, seguiido o joriial, se multiplica- já comentado, de 25 de maio de 1905, fazia iiiicialrnerite o elogio da
vam de forma ímpar pelas ruas da capital, se educando "em meios vici- ação repressiva: "A polícia muriicipal promove com louvável afã a re-
ados e espúrios"? Um dos meios de controle do "mal" era a vigilância e pressão a vagabundagem dos pequenos garotos que pululam nas ruas
a repressão, o que foi prescrito para os mciiores que viviam nas voltas desta capital". Mas logo depois observou-se que: "E nos perguntamos:
do Mercado, o mesmo meio dos '6turbulentos".Em 13 de março de com o intuito de reprimir a vagabundagem dos garotos, a polícia muni-
1907, a coluna "Interesses Municipais", publicada na primeira página cipal prende-os e depois deles o que faz? Solta-os,após uma reprimenda,
d'O Independente, iniciou lamentando: "E com grande pesar que vimos um piinhado de conselhos e algumas ameaças? Não é suficiente. [...I ."
pela terceira vez nos ocupar do Mercado Público, no ponto referente O que seria então "suficiente"?
ao patrulliameiito. Grande nfimero de negociantes nos pedem que re-
clamemos contra o diminuto número de agentes que guarda aquele Na Capital Federal está organizada a repressão dos garotos, pivetes, como
local, o que dá margem a fatos como o de quinta-feira última, e que lá se diz, mas o governo mantém um internato, escola correcional, a Esco-
passamos a narrar." Colocaiido-se novamente como intermediário en- la 15 de novembro, a que eles são recolhidos e sob o regime de uma severa
disciplina são sujeitos a uma bem orientada educação física, moral e inte-
tre "grande número de comerciantes" e as autoridades, o periódico
lectual até que estejam em idade de serem transfèridos para o Instituto
solicitava reforço de policiamento para evitar a repetição do que regis- Profissional,outra utilíssima instituição mantida pelo governo e de onde os
trou logo a seguir, um conflito entre "marinheiros e turbulentos", cujo pequenos garotos saem ao fim de alguns anos dotados de uma profissão
desfecho foi o esfaqueameiito de iim dos envolvidos. Mas esse não era honrosa, com unia sólida instrução prática, aptos para na vida desempe-
o Único coiiflito existente naquela região da cidade. nhar os seus deveres de cidadãos. Epreciso que e7n Porto Alegre seja rejni~nida,
extinbwidaessa nociva garotagon que enche as nossas ruas [...I é digna de todos
Reclamam ainda aqueles negociantes contra a malta de guris que ali se os louvores e de todo o apoio a ação da polícia; mas é preciso tambérn
juntam para apanhar os restos de cereais, e que, aproveitando-se disso, cuidar do futuro dos pequenos garotos."") Em nosso estado fazem-se tan-
surrupiam também o que encontram a máo, como aconteceu com 10 tas despesas dispensáveis! Seria pedir muito ao excelentíssimo Sr. Presi-
latas vazias de propriedade do Sr. Joaquim Rodrigues d'Almeida e que dente do Estado que fosses criada uma Escola Correcional e mais tarde,
estavam no trapiche [municipal]. para o futuro, quando estivesse em melhores condições o erário publico, a
criação de aulas profissionais anexas a essa Escola?
Os "guris" que perturbavam e prejudicavam os negócios dos nego-
ciantes do Mercado Público eram pobres, mas não eram iiioceiites. A Nem tudo estava perdido. Mesmo crescidos em um meio doentio
mente depreciativa do articulista os agrupa em uma "malta", um grupo e corruptor, os "rneiiorcs vagabundos", "gaturios", ainda tinham salva-
de seres de condição inferior, um bando, uma súcia de criailças mal- ção. Em um primeiro momeilto, a regeneração ocorreria pela ediica-
ção "física, moral e intelectual", sob "severa disciplina9'.O que seria essa
iiitencionadas. Agiam coletivamente, fosse para juntar cereais caídos
"severa disciplina"? Envolveria "punições físicas"? Provavelmente sim,
pelo chão, fosse para furtar bens quando possível, como as "10 latas
já que esse era um recurso accito mesmo deiitro das escolas. Mas que
vazias de propriedade do Si-.Joaquim Rodrigues d'AlmeidaV.Deviam,
grau de severidade sei-ia aplicado a "nienores infratores"? Que "direi-
pois, ser vistos com desconfiança, apesar da miskria que os transforma-
tos" teriam esses meninos de não serem submetidos à algum excesso
va em catadores de grãos. O redator não se preocupava com o que fazia
discipliiiar? Isso aiiida não era algo qiie preocupasse os intelectuais do
corri que criancas fòssem levadas a catar grãos pelo chão, rnas corri a
jornal. Nem podiam eles pensar segundo uma experiêiicia que não ti-
ameaça ao patrirnônio dos comerciantes do Mercado. A solução, nham, a de d6cadas d e iirstituições preteiisarnente reformadoras e
siigerida diretamente ao intendente e ao seu subordiiiado - ao "digno recuperadoras de nieriores dclinqueiites. O segiiiido estágio da rege-
Dr. Montaury e ao ativo silb-intendente" Major 1,ouzada -, seria a colo- neração corrsistia na cej~ica~ão profissional. Q~iaiitosanos seriam con-
cação de um policial na esquina do Mercado, defronte à doca. Com
isso, de acordo com ojoriial, seriam beneficiados traiiseuiites, comei-ci-
antes e o próprio serviço policial,
sumidos nessa regeneração? O provável é que os "pivetes" saissem já A referência a R. Garofalo - o "eminente sociólogo9'que, com a
adultos daquelas iiistituições.
"ciência médica", @ autoridade corroboradora do raciocínio de Fúlvio
Graças a uma educação especial, portanto, o que chamaríamos de
de Paula - é importante para comprovar o manancial de idéias ao qual
"menores infratores" podiam ser cor@dos - se o meio os corrompera,
outro meio poderia corrigi-los. Subjaz a concepção de que o homem é os intelectuais d' O Independente recorreram para pensar o problema
um ser maleável, o que decorria, em grande parte, da hegemonia da representado pelos "desprovidos de educação intelectual9'.Alto magis-
doutrina do determiiiismo do meio, o que fica claro no artigo "Vadia- trado italiano, Garofalo foi o responsável pela transformação da doutri-
gem", de 15 de junho 1911. Nele, a origem do "mal" continuava a ser a na de Cesare Lombroso - do "criminoso natural" - em linguagem jurí-
"vadiagem" e a "incultura" na infância. Por isso, "os meniiios" dica.5" Partilhava com aquele, com Spencer e com a teoria positivista
em geral, da idéia de que a introjeção de uma moral na criança, através
Alimentados e crescidos na estufa do vício, quando a razão se Ihes des- da educação, seria uma alternativa à repressão. Sua proposta, contudo,
perta acha-se de tal maneira eivada e falseada pela influência recebida era mais dura que a de Lombroso, pois não aceitava a miséria como
através da infância, que torna-se impotente para reprimir o mal [...] Por- justificativa do crime e se opunha à educação dos delinqüentes, defen-
que a razão, longe de constituir um foro inderrocável, soberano e intan- dendo a aplicação de penas máximas para castigo de criminosos.
gível no homem7 como se acreditou por muito tempo, constitui uma
"faculdade histórica"(Tobias Barreto) sujeita como qualquer outra, as Não é possível saber se Fúlvio de Paula partilhava completamente
modificações do meio e da evolução. das opiniões de Garofalo. Somente podemos afirmar que o intelectual
italiano foi usado para defender a imposição do eiisino obrigatório,
Deixados a correr, a brincar nas ruas e becos, convivendo em "gi-u- idéia que implicava em uma intervenção do Estado no âmbito familiar,
pos" e com "vagabundos" e "prostitutas", a conseqüência era fatal: os o que não era ponto pacífico. Por essa razão, já tinham sido escritos
"precoces gatunos" seriam "futuros ladrões e assassinos"," porque nem artigos defendendo a legitimidade da ação estatal.
uma razão natural existia para contrabalançar a influência nefasta da
"estufa do vício". Se o Estado é o tutor do povo, tem o implícito direito de zelarpelo progresso deste
A correção, por outro lado, podia mesnio ser descartada se fossem último, sob todos os aspectos; e não somente vemos aí um apoio em favor
tomadas medidas profiláticas, caso os pobres, desde a infância, fossem da iiistrução obrigatória, mas também no fato de que a administração
educados de forma a introjetar neles a obediência às leis. Porque a mi- publica compete, não só velar pelos interesses pátrios na hora presente,
séria era considerada, de uma forma geral, a origem usual dos crimino- mas também preparar o porvir pelo cultivo de cidadãos aptos a compre-
sos de "baixa esfera". O colaborador Fúlvio de Paula, responsável pela ender e interpretar livremente os seus deveres cívicos, o que só se pode
conseguir pela educação e instrução do povo, elaborando assim o pro-
coluna "Gazetilha", recorreu à autoridade de R. Garofalo, um dos
gresso gradual, que garante o futuro, semeando hoje a messe que a Pá-
"teoristas (sic) modernos" que tria colherá arrianliã. Quando, pois, os cidadãos não compreendem a
necessidade de fazer instruir os seus filhos, necessário se faz que iiiterve-
em judiciosos conceitos pensa que a melhor maneira de não aumentar nha o Estado, coagindo-os a isso, obrigando-os a tornar esses filhos capa-
as estatísticas criminais é incutir n o unimo do agente seus recíprocos deve- zes de amanhã se tornarem cidadãos, em umapátria onde sábia legisla-
res, ensinaiido-o a educaçrio intelectual. E essa opinião do eminente sociólogo ção nega aos analfabetos os direitos políticos. E o caso de se dizer que o
tem sido corroborada pelas maiores ~nentalidndesd a ciência nzidica. Pen- Estado vem obrigar os cidadãos a serem l i v m ~ r o g e n i t o r e s . ~ ~
sam esses fisiologistas que o indivídiio educado está menos afeito ao de-
lito do que os baldos dessas noções. Que as abalizadas opiniões preiitadas
têm amparo incoritestado na reparação do crime, ressalta clara c eviden- O problema nâo é o eiisino obrigatório, uma realidade em nossos
temente aos órgãos visuais de quaisquer pessoas. dias, mas as noções de povo e de Estado reveladas nesse artigo. Obvia-
[...] Para cumprir esse objetivo [confirmar a argumeii tação] , bastaria, mente, seu redator não se incluía na categoria "povo", nem a seus cole-
então, coiifabular sobre o niais trivial assunto com pessoas oriundas desse gas, familiares e amigos. Povo era o coqjunto dos miseráveis, sem educa-
núcleo de desf~rovidosde educaçiio intelectual para ficarmos plenamente con- ção intelectual, portanto afeitos ao crime e incapazes de compreender
vencidos de que entre eles predomina o delito máximo, o assassinato."'
1 Caggiani, Ivo. I;l«tur da Cunhcr (Dzog)a/ia).Porto Alegi e: Mal tins Z,ivi.eiro, 1996, p. 1 2 4 127
gionários", muitos dos quais seriam designados para "bons empregos" Em trabalho anterior7 tive a oportunidade de analisar as trajetórias
na crescente burocracia estatal e, os mesmos ou outros tantos, se casari- dos membros desta "geração". O presente artigo é uma pequena parte
am com "bons partidos" de "boas famílias" do centro do país. deste estudo mais amplo, no qual apresento as análises relativas ao
Entre estes rio-grandenses, destacaram-se Getíilio Doriielles Vargas, momento decisivo nestas trajetórias estudadas: o salto que puderam
Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura, José AntOnio Flores da Cu- dar estes políticos rio-grandenses do plano estadual do controle de re-
nha, Liiidolfo Collor, Firmino Paim Filho e Maurício Cardoso. Eles com- cursos privados e públicos para o controle destes recursos ao nível naci-
punliam, segundo Joseph Love, a "geração de 1907": um grupo de po- onal. Centrando o foco da análise nas trajetórias destes políticos, foi
líticos rio-grandeiises nascidos no final do século XIX, cujas carreiras também possível analisar o quadro mais amplo da situação político-
se inciaram à época em que Borges de Medeiros era o presidente do partidária no Rio Grande do Sul e da sua inserção na Federação, pois
Estado do Rio Grande do Sul e chefe do partido político lá dominante, tais políticos foram, com efeito, agentes-chaves no processo que levou à
o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Possuíam em comum as ascensão de Getúlio Vargas ao centro do governo nacional. Ressalto
seguintes características: faixa etária semelliante (nascidos todos entre também que neste texto não estão presentes as discussões teórico-
1880 e 1894); eram formados em direito, exceto Collor; todos inicia- metodológicas que se eiicoiitram no trabalho citado, ao qual remeto os
ram seus percursos político-partidários na atuação rio PRR quando es- interessados na problemática, principalmente por uma questão de es-
tudantes; "em sua maioria [eram] filhos de republicanos históricos"; paço. Tais questões e referenciais, porém, são as bases sobres as quais
seis deles "eram filhos ou pareiites próximos de coronéis e cinco provi-
repousam as colocações que se s e g ~ e m . ~
nham de famílias de estaiicieiros"; e, o que fez Love os designar como
"geração de 1907", "quatro haviam-se formado na Faculdade de Direito
de Porto Alegre em 1907 ou 1908 (Vargas, Neves, Paim e Cardoso) e A paróquia e o mundo
começaram sua vida política em 1907, participalido do Bloco Acadêmi-
co Castilhista, durante a campanha governamental de Carlos Barbosa Muitos dos aspectos das origens sociais e vidas familiares, profissio-
Gonçalves". Formariam uma "segunda geraçãio de políticos Irepublica- nais, escolares e sociais dos componentes da "geração de 1907" esta-
nos] rio-grandenses".' vam perpassadas por inter-relações com o jogo político, cuja lógica
Mas o que passou a aproximar as trajetórias dos componentes da influenciava as suas mais diferentes relações sociais e âmbitos e insti-
"geração de 1907" é que, a partir da década de 1920, todos ocupariam tuições nas quais atuavam. Para os filhos das elites rio-grandenses em
cargos públicos importantes que instrumentalizaram para alcaiiçar po- geral, um certo domínio da lógica do jogo político impunha-se como
sições cada vez mais importantes frente aos demais líderes político-par- uma forma d e garantia d e sucesso até mesmo "profissional",
tidários rio-grandenses e brasileiros, até o ponto em que todos, ao final I
I
notadamen te para os aspirantes a cargos judiciários, advogados, médi-
desta década, puderam ter participações destacadas nas açoes que leva- cos, engciiheiros, oficiais militares, dirigentes e administradores de
ram à chamada Revolução de 1930, o que os franqueou um novo espa- órgãos públicos, joriialistas e professores. Se nem todos estes se torna-
ço para a ocupação de ouii-os tantos cargos e posições de poder tam- vam propriamente "políticos", contavam eiitre eles com pareiites ou
bém no plano nacional. E somente na década de 1920 que se pode
perceber ou conceber estes ageiites como compondo irm grupo, do
qual iião eram os únicos componentes, mas que os aiielava em ações
comuns ou visando objetivos comuiis. Primeiro, formando ern torno 3 G1yó, I,tiiz Alherto. Ortgert 5 sotzcur, etl1cltPpclrde nscc?z~Zo
e rr(utsos dor conrf)oricntrsda rhninndn " g ~ a ~ n ~
(LP 1907". Porto Alegre, dissei taçáo d e mestrado em Ciêiicia Política/UFRGS, 1998.
de Borges de Medeiros uni núcleo importante de apoio quando das
4 Cabe aiiida iima obser\raçáo. Em seti traballio acima citado, Love usa "geração" sem se preocir-
crises do início dos anos 20 e, depois, gravitando em toriio de um de par em conêeitualizar o terino. Qiiaiido o trabalho qiie deri origem a este artigo foi realizado,
seus membros que alcariça o governo do Estado, Getúlio Vãrgas, quaii- tambkrn iiáo se buscou tal coiiceitiializaçáo, seiido que a referêiicia 2 "geração d e 1907" - sem-
do passam a ser os articuladores do niovimeiito político-eleitoral da Ali- pre eiitre aspas - s e i ~ i uapenas coino uma iiidicaçáo para a constriição d o objeto d e estiido a
partir do texto de l a v e . Para iim estiido mais apurado e específico d e uma "seg~indageração de
ança Liberal e de sua continuidade no movimento armado de 1930. políticos rio-gi-arideiises"- qiie, parece, podeiia ser tomada como objeto -, certame11te os seus com-
p o n e i ~ t e s ~ Gseo restringiriam apenas aos agentes aqui enfocados e geração deveria sei. eiiteiidi-
da de forma niais iigoi,osa em termos teóricos para sua adequada utilização rnetodológica. Nes-
te sciitido, remeto para a disciissáo qiie faz Siriiielli,Jeaii-Fraiiçois.Os intelectuais. In: Kémond,
Kené. 1'07- u,mn Izistcírin J~olilict~.Rio d e Janeiro: FCV, 1996, e para o estudo d e Gomes, Angela d e
2 Love, Josepli. O rr~rionnl~.~mogrniitho.
São Paulo: Peispectiva, 1C1'75, p. 233-234. Castro. t-lislóric~e hisloi-icrclorc.~.Iiio cle Janeiro: FGV, l99c1, sobre os historiadores brasileiros r l o
filial do século XIX e iiiicio do XX.
292
"amigos" e, em certos momentos, tinham rnesmo que optar por uma para as carreiras dos proponeiites a posições partidárias ou a cargos
das facções políticas em disputa, como nos casos de crises como a públicos, bem como a consolidação de um poder pessoal enquanto
Revolução Federalista ou as disputas político-eleitorais. Para Neves da centro de redes clientelísticas que se iniciavam, frequentemente, em
Fontoura, Oswaldo Aranha, Paim Filho, Getúlio Vargas, Flores da Cu- distritos e municípios do interior do Estado.
nha, Maurício Cardoso e Lindolfo Collor, no entanto, a participação Esta relaçáo complexa entre os recursos próprios, as "bases 10-
no jogo político tornou-se uma aspiração e uma especialização no sen- cais" no interior, e a indicação pelo chefe do partido não se davam
tido de que paulatinamente a maior parte de seu tempo era dedicada sem tensões e mesmo sem possibilidades de rupturas. O que sobressai
a tal atividade. Com exceção de Collor, todos os demais tinham já nos nas trajetórias dos compolientes da "geração de 190'7" é que, apesar
próprios grupos familiares de origem membros vinculados a partidos das tensões, estes agentes lograram constituir-se, em um primeiro mo-
políticos ou ocupantes de cargos de indicação político-partidária, con- mento, enquanto mediadores entre as tais "bases" e o governo de
tando, portanto, em suas "escollias" fortes estímulos vindos destes gru- Borges, "bases7'estas compostas por familiares, amigos e clientes em
pos para que se engajassem em partidos e almejassem colocações vin- regiões do interior do Estado. Em um segundo momento, já enquan-
culadas a estas participações. to líderes coiihecidos e recorihecidos, gozando de suficiente notorie-
Contudo, somente estes estímulos não explicam a adesão ou o su- dade que extrapolava em muito o plano paroquial, findam por alcan-
cesso no jogo político. Certas circunstâncias bem aproveitadas, como a çar posições de suficiente autonomia frente a Borges de Medeiros, o
campanha eleitoral de 190'7 para os casos de Neves, Vargas, Cardoso e que os possibilitou inclusive a agir sem o necessário conhecimento
Paim, ou a amizade com Pinheiro Machado, caso de Flores da Cunha, prévio ou beneplácito do cliefe do PRR, embora sempre o consultas-
ou ainda o engajamento na militância político-partidária nas escolas sem e buscassem seu "conselho" ou "diretriz". A década de 1920 re-
superiores, como no caso de Aranha, ou mesmo a atividade na impren- presentou para estes então jovens (Flores, o mais velho, tinha 40 anos
sa, como no caso de Collor, ou airida uma bem sucedida banca de advo- e Aranha, o mais novo, 26 anos em 1920) o momento aproveitado
cacia e a docência do direito em escola superior, como no caso de Mau- para virem a se tornar alguns dos principais responsáveis pela conspi-
rício Cardoso, constituíram vias para o acesso aos círculos de militantes ração que levou à Revolução de 30.
de um partido político, no caso o PRR, e a oportunidade de mostra- O controle do poder local por familiares próximos e/ou por eles
rem-se capazes de arcar com o peso das tarefas ou empreendimentos próprios constituíam "bases" importantes de apoio e índice de prestí-
valorados como adequados e mesmo necessários para a iiitegração e gio que os constituía enquanto mediadores entre tais "bases" e o gover-
aceitação no conjunto destes militantes com possibilidades de obter no do Estado. Isto é válido para todos os membros da "geração" em
cargos ou posições de destaque. questão, com exceçiio de Maurício Cardoso.Wo plano local, as rela-
Quanto a estes cargos, os de representante na Assembléia estadual, ções de parentesco, clientelísticas e de posicioname~~tos em termos de
deputado na Câmara Federal, senador, intendente municipal, ministro facções políticas aproximavam estes agentes das lógicas vinculadas a
ou secretário de Estado eram os mais disputados pelas possibilidades tais relações e que estavam perpassadas por um grau bastante grande
em termos de instrumentalização dos mesmos como meios de se obter de violência física, incluindo assassinatos, surras, intimidações e a possi-
maior reconhecimento político e social, bem como para o exercício de bilidade de mobilização de "provisórios"%m tempos de crises. Porém,
patronagem em graus variados. Como somente as eleições ou os méri- nenhum destes agentes limitou-se a atuar neste espaço paroquial. E
tos técnicos, profissionais ou escolares não decidiam de fato quem ocu-
paria os cargos públicos, embora muitos fossem formalmente de cará-
ter eletivo ou exigissem certos conhecimentos e habilidades específi- 5 Ele era filho d o desembargador Melchisedech Matusalém Cardoso. Nascido em Sergipe (1860),
cos, a inclusão do nome em uma nominata de candidatos a um cargo bachareloii-se em Recife (PE) e m 1880. Foi promotor píiblico na Bahia. Transferiu-se para o
eletivo ou sua indicação para o preenchimento de uma vaga,já signifi- Kio Grande do Si11em 1881 como juiz d e 6rfaos ern Soledacte. Foi Juiz d e direito em Cruz Alta,
Kio Pardo e Kio C;rande até a trailsfei.êneia para Porto A1egi.e. Foi também professor na Facul-
cava um certo grau de prestígio ou de importância do proponente frente dade d e Direito d e Porto Alegre. Careciam a Maurício Cardoso as "bases locais" com as qriais os
ao líder do governo e do PRR, Borges de Medeiros. 'Tal proponente, demais puderam coiitai-, mesmo Collor. Este íilcimo, embora de origens sociais modestas, co~ls-
não obstantc, tinha que fazer por merecer o cargo, pois lançava mão de trriiii "bases" irnpoi-tantes entre a comiiilidade de origem germânica da região d o Vale do Rio
seus próprios recursos para collier os apoios necessários ou mesmo aspi- dos Sinos.
rar a poder propor o riome à ratificação de Borgcs. Milito do que se G Tratam-se dos Corpos Provisórios, tropas auxiliares as da Brigada hlilitar coi~vocadasentre os
civis qiiando o governo do Estatfojiilgava iiecessái-io e por siia orclein. A siia testa normalmente
disputava rieste âmbito era o reco~~hecimento do chefe (do partido, o se encoiiti-avain,com postos de oficiais, os grandes líderes políticos civis do PKR dos distritos d o
dono das chaves para as portas das ascensões, estagnações oii entraves interior.
que, para isto, estavam adequadamente iristrumentalizados em termos foram autononiizando frente às disputas político-partidárias paroquiais
culturais, intelectuais e profissionais, pois todos eram diplomados em e qualificando-os socialmente para intervir, agindo e dando conta
cursos superiores e estavam habilitados a manejar instrumentos com« a discursivamente das "razões" disto, em outras esferas: corriando de tro-
oratória, a retórica, a lógica "bacharelesca", bem como as relações for- pas, liderança de bancadas, entrevistas aos jornais, atuação ern tribu-
mais e eufemizadas das "sociedades" de Porto Alegre e, principalmen- nais do júri, enfim, qualificando-os até que o ponto em que pudessem
te, do Rio de Janeiro, onde contavam com relações pessoais herdadas se colocar à frente de ações e mobilizações coletivas mais amplas. O
ou por eles mesmos costuradas, acumuladas e estendidas. sucesso das "carreiras" políticas dos membros da chamada "geração de
As tensões entre a solidariedade ao grupo familiar, à facção parti- 1907" deveu-se tanto a ocupação destas posições de mediação entre
dária, ao chefe do PRR, aos "amigos e correligionários" bem adminis- diversos níveis e esferas cujas lógicas passavam a dominar, quanto a uma
tradas, aliadas a formações culturais e escolares elevadas, permitiram a notoriedade adquirida em "feitos heróicos", seja em ações militares,
estes políticos espaços de atuação diferenciados que iam desde os "du- seja enquanto polemistas na imprensa e oradores parlamentares e em
elos de honra", "organização de eleições", vendetas pessoais e políticas praças públicas.
paroquiais, passando por postos de liderança político-militares, pela
participação em comícios como oradores, em tribunas parlamentares,
em escritos na imprensa, em elegantes bailes e banquetes e em cargos O Rio Grande "De Pé"
político-administrativos no Estado e no Rio de Janeiro. Eles buscaram,
pois, e em grande medida foram bem-sucedidos, notoriedades que Em 1926, nas "comemorações castilhistas"," eritão estudante de
extrapolavam em muito as relações de patronagem que exerciam nos Direito e depois secretário de governo de Getúlio Vargas, Luiz Vergara,
níveis paroquial, estadual e federal e que atravessavam as esferasjurídi-. proferiu um discurso em homenagem ao "patriarca,lo que se encerrava
ca, partidária, dos grupos familiares, burocrática e pautava as relações com a afirmação de que, "em face da calamitosa situação nacioiial", era
de "amizades". preciso "rio-grandensizar o Brasil9'.A manifestação "fora considerada
"Estas expressões interesse do Rio Grande, o deuer do Rio Grande, a pelos conspícuos maiorais partidários [do PRR] um tanto desproposi-
honra do Rio Grande tinham, para os homens da nossa geração, um sen- tada e arrogante". No ano seguinte, quando Getúlio Vargas já ocupava
tido quase místico. Nós nos considerávamos soldados do Rio Grande, o cargo de ministro da Fazenda, Vergara teria se encontrado com ele.
cavaleiros andantes da sua honra, servidores dos seus i d e a i ~ . "Notorie-
~ Vargas lhe teria dito que: 'tJá o conheço. Você foi aquele orador que
dade militar, como oradores, como "tribunas" e "intelectuais", conhe- alarmou a circunspecção do Dr. Borges, dizendo que precisávamos rio-
cidos e reconhecidos, se articulavam para que passassem a se conceber gundensizar o Brasil, e aqui para nós é bem possível que estivesse com a
como encarnações do Rio Grande do Sul, seus porta-vozes e intérpre- razão".l 1
tes dos seus desejos, identificação que se foi constituindo ao mesmo Nesta época o Rio Grande do Sul se encontrava político-partidaria-
tempo em que ~ e t ú l i o
Vargas assumia o governo do Estado e passava a mente dividido entre os componeiites da Aliança Libertadora, liderada
mediar uma aproximação com os principais líderes da oposiçáo ao PRR, por Assis Brasil, e o PRR, chefiado por Borges de Medeiros. Este último
notadamente, a aproximação com os chefes do Partido Libert,ador (PL). tentava reaproximar-se do govci-110 federal, influindo na sucessão de
Esta notoriedad'era pois baseada na crença "mística" a eles atribuída Artur Bernai-des, com quem tivera relações conflituosas por não apoiar
pelos outros de que eles de fato encarnavarn o que diziam e eles própri- sua candidatura em 1922.12Nas eleições de 1926 para a presidência da
os criam encarnar. Ou seja, tornavam-se intérpretes e senhores do sen- República, porém:
tido para a sociedade enquanto seus líderes carismáticos."
Os recursos culturais e escolares adquiridos, as viagens realizadas, Borges aceitou passivameilte a fórmula paulista-mineira e o trapaceiro
sistema de conveilções que j5 re~eitaraem 1922. Em suas considerações,
os laços de amizade estabelecidos com outros políticos, juristas, profes-
sores, advogados, funcioriários públicos e cornpaiiheiros de armas os
9 Peregi-iiiação ao tíiniiilo cle Júlio de Castlllios, segilida d e discursos e banquetes, que membros
clo PKK f a ~ i a maiitialmeiite à dava d e siia morte.
10 Jíilio d e (:astillios era considei-ado pelos niembros d o PIIK o "patriarca d o Kio G r a i ~ d ~ " .
7 Fontorira, João Neves cla. k l e ~ n ó ~ i Borges
~s: cle Medeiros e seii tempo. Porto Alegre: Globo,
19G9, p. 573, grifos iio original. 11 l'ergara, L,iiiz. Fui ser,i.b&)iotle Getúlio V a r p s , Porto Alegre: Globo, l$lGO, p. 7-8, grifos iio origi-
nal.
8 Para a iioçiio d e carisma, ver Boiii-clieu, Pierre. Oj~odel-sirrrbólito.Rio de Jaiieiro/Lisboa: Bertrand
Brasil/DIFE~Z,,1989, p. 191. 12 Borges fizera pai-te da cl.iaiiiada Keaçiio Wepiiblicaiia, qiie apoiava o candidato Nilo Peçai-ilia
contra a caiididatilra d e Bei-iiardes.
pesava iiidubitavelmente um respeito, recentemente adquirido, pelas coii- Para isto foi fiiiidamental a ascensão de Getúlio Vargas à presidên-
seqüências de uma oposição 2 aliança daqueles dois estados, já que as cia do Estado em 1928, enquanto Borges de Medeiros permariecia como
coriturbações dos anos de Berilardes podiam, em certa medida, ser atribu- "chcfe unipessoal" do PRR. Este último muda-se de Porto Alegre para
ídas à campanha de 1922. Demais, o Rio Grande do Sul estava em débito
sua fazenda em Cachoeira do Sul, a estância do Irapuazinho. Por outro
político com São Paulo. Em troca da intercessão paulista para minimizar
o efeito das revisões constitucionais de Bernardes em 1925, Vargas [en-
lado, os oposicionistas a Borges de Medeiros formaram, também neste
tão líder do PRR no Congresso] prometera o apoio gaúclio às ambições ano e a partir da Aliança Libertadora, o Partido Libertador, sob a chefia
de São Paulo pela presidência.'" de Assis Brasil. O novo presidente do Estado passa a aproximar-se des-
tes opositores e vice-versa. Ele "convidou os libertadores a visitá-lo no
Neste contexto, pois, "rio-graiidensizar o Brasil" só podcria scr in- Palácio do Governo, um gestojamais cogitado por Borges de Medeiros",
terpretado pelos "maiorais partidários" corno "impetuosidade do estu- pois "Getúlio podia permitir-se ser mais flexível do que Borges; aos olhos
dante improvisado em orador político".** Dois anos depois, porém, tal dos libertadores, ele não era urn usurpador".'%lérn disto, apesar de
afirmativa ou outras com uni sentido semelhante, estariam presentes Getúlio ter recrutado "provisórios" em 1923, não chegou a participar
em comícios e nas páginas dos jornais com o intuito de mobilizar o diretamente das batalhas. Com Getúlio Vargas na presidência do Esta-
"povo" para a candidatura de Gctúlio Vargas 2 presidencia da Repúbli- do, Paim Filho e Oswaldo Aranha foram chamados a conipor o seu
ca. Este último mesmo se encarregaria de uma outra afirmação a cla secretariado e João Neves, seu vice-presidente, assume uma cadeira na
semelhante ou complemeiitar em seu manifesto lançado eni 4 de outu- Câmara Federal, como Lindolfo Collor, onde passa a ser o Iíder da ban-
bro de 1930 nos jornais do Rio Grande do Sul, na manhã seguinte, cada do PRR. Flores da Cuiilia foi eleito para o Senado e Maurício
portanto, ao dia em que se desencadeou o movimento de 1930: "Rio Gran- Cardoso para a Assembléia estadual.
de, de pé, pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino lieróico".'' Neste contexto, Getúlio Vargas tinha seu poder de atuação limita-
do, no que conceriie ao PRR, por Borges de Medeiros, que mantinha
A partir dos últimos dois anos da década de 1920, as duas grandes
sua centralidade na rede quc a ele vinculava a maior parte dos líderes
facções político-partidárias estaduais formariam uma "frente
do partido no interior do Estado. Esta desvantagem aparente de Getú-
interpartidária" e o Rio Grande do Sul se inseriria na política nacional
lio Vargas findou por ser para ele um grande trunfo. Claramente irn-
tendo como refereiicia esta composição organizada em torno da possi-
pondo-se como o Iíder de sua "geração", João Neves, Flores da Cunha,
bilidade de que um rio-grandense pudesse assumir a presidência da Oswaldo Aranha, Paim Filho, Maurício Cardoso e Lindoliò Collor fica-
República. Isto apenas poiicos anos depois dos confrontos armados nos vam cada vez mais depeiidentcs dele, ao mesmo tempo em que a apro-
quais estas facções se enfrentaram pelo interior do Estado na chamada ximação com os principais chefes Libertadores podia ser capitalizada
Revolução de 1923 e nos posteriorcs movimentos ditos "terientistas". politicamente por Vargas. Desta forma, foi-se delineando uma primeira
Alguns dos principais agentes da esti-uturação desta unidade que trans- característica da asceiisão destes políticos no período, a autonomização
cendia o paroquialismo e rcpousava sobre uma espkcie de regioiialis- frente a Borges de Medeiros, reforçada ainda pelo citado regionalismo
mo recém constituído, foram os componeiites da "geração dc 1907". que era também capitalizado por esta nova "geração". A segunda carac-
Estes artífices e interpretes deste regionalismo do filial da década de terística foi a possibilidade aberta pela "união política" do Rio Grande
1920 imediatamente se posicionararn, instrumentalizados que estavam, do S~i1 de estes políticos colocareni-se como mediadores entre seu Esta-
conio mediadores entre o plano estadual e o "sistema" iiiter-oligárquico do e o plano político iiacional, respaldados agora por csta "união", o
que regia o Estado brasileiro da época. Igualmente estabeleceram medi- que os tornou mais agressivos e exigentes frente ao governo central e
ações com outros grupos em ascensão social e/ou política rio Estado e no frente aos líderes dos demais Estados. Por fim, relações de reciprocida-
país, tais conio, principalmente, alguns militares, irnigraiitcs e dcsceiideii- de Irá muito costuradas, corno as de amizade e coleguisnio desde os
tes destes e agrupamentos, quase todos recérn formados, de categorias pro- bancos escolares c na militância político-partidária, e as relações de
fissionais, de produtores ou de trabalhadores. parentesco, junto com a pei-sp(xctivade desencadcamento de um suposto
ou possível movimento radical de subversão das instituições iorrriais, apro-
ximaram niiiitos destes políticos de líderes militares ditos "terientistas"ou
13 L o ~ eJosepll.
, 01, n/.,p. 230.
não que dariam o siiporte militar iiecessário ao golpc de 1930.
14 Veipi-d, I,ui/. ,(O rzl., p. 7.
1.5 A/)ucl, Fi di-~co,Vil gílio A. tir Melo. O l ~ l u l ~ r 1930.
o, Rio dc Jdmeiio: Nova Iiontvii-a, 1980, p. 2 9 .
1ti Love, Joscph. 01).rit., p. 242.
sões com respeito a ele e amplia-se o grau de possibilidade de atuações
O processo em que a atuação destes rnenibros da "geração de 1907"
mais autônomas. Segundo João Neves, em um discurso da época: "no
foi fundamei~taldeu-se em tres momentos principais. Primeiro, a cita-
campo administrativo" a "orientação [era] do presidente do Estado",
da aproximação com os Libertadores. Segundo, as articulações políii-
enquanto "politicamerite [...I obedecemos à inspiração e ao comando
co-eleitorais para a formação da Aliança I,iberal, com o lançamento da
de Borges de Medeiros, que há de ser sempre o condutor das grandes
candidatura de Getúlio Vargas à presidência da República. Terceiro, as
legiões deixadas por Júlio de Castilho~".'~ Embora seja muito difícil
articulações político-militares que redundariam na chamada Revolu-
distinguir o que era "administração9'do que era "coiidução política",
ção de 1930.
Em todos estes momentos pesou significativamente o sucesso dos no seiitido de que arnbas as esferas se interpenetravam e estiveram até
entàio centralizadas em Borges de Medeiros, parece que foi iiecessária
membros da "geração de 1907" em colocarem-se em posições-chaves
de mediação. Camargo os qualifica como "mediadores estratégicos", uma acomodação entre Vargas e Borges.
referindo-se tanto a estes rio-grandenses, quanto a uma genérica "gera- Sob este aspecto, o casGrelatado-Por Luiz Vergara de como veio a
tornar-se secretário de gabinete de Vargas é significativo. Quando o
ção política mais nova", que englobaria ainda os mineiros Francisco
Campos e Virgílio de Me10 Franco. Segundo Camargo tal "mediação último era ainda ministro da Fazenda, teria perguntado a Vergara se
estratégica"seria exercida por esta "nova geração" enquanto aglutinadores ele não estaria interessado em um "emprego federal". Vergara, aceitan-
"de grupos regionalmente diferenciados e politicamente heterogêneos". do a oferta e seiido questioriado por Vargas se não sabia de "uma vaga",
Tendo eles acesso direto aos que chama de "vellios patriarcus qiie eram mostrou-se interessado no cargo de "fiscal do selo adesivo" que lhe per-
a ei~carilaçãomesma da República Velha" - Borges de Medeiros, Antô- mitiria também advogar, mas o tal cargo só vagaria com a morte de um
nio Carlos, Olegário Maciel e mesmo Getúlio Vargas, excluído do gru- seu ex-colega de faculdade que o ocupava e que se encontrava "grave-
po dos "novos" -, se posicionavam como elos de ligação entre eles, mente doente". Getúlio Vargas lhe teria dito que "se ele morrer e eu
mediando suas relações." ainda for ministro avise-me". Tempos depois, quando Vargas iniciava o
Embora a noção de "mediadores estratégicos" é adequada aos ca- seu governo no Estado, o ex-colega de Vergara morreu e ele fez chegar
sos aqui abordados, a fornia como Camargo concebe tal noção simplifi- ao presidente a notícia. Vargas maiidou dizer-lhe que "lembrava bem da
ca em muito as funções de mediação que os componentes desta "nova promessa e faria de mim o seu candidato no momeiito oportuno". O
geração" exerciam e passaram a exercer a partir dos dois últimos anos "momento7'seria um encontro que teria com Borges de Medeiros. em
uma "situação delicada em cpe'se encontravam as relações do presi-
-
da década de 1920, incluindo nesta Getiilio Vargas como se tem feito
aqui. Não se constituíram apenas corno niediadores ciitre os "vclhos dente com o chefe do Partido", de modo que Vargas u
não teria auerido I
patriarcas" e governadores dos Estados em função da articulação da cam- fazer as iridicações para os cargos vagos (liavia outras vagas a serem
panha eleitoral de 1929-1930 e do movimeilto armado posterior. Se no preenchidas) sem "antes ouvi-lo a respeito". Desta entrevista, entre
plano mais geral do jogo político nacional isto pode ser verificado, as Getúlio Vargas e Borges de Medeiros, ~ u i Vergara
z teria ouvido a se-
atuações específicas de cada um destes mediadores aponta para ten- guinte versão dada pclo entàio secretário de Vargas,João Pinto da Silva:
sões e ambigüidades lias tomadas de posições e rio exercício das fuii-
Fora cerimoiiiosa mas cordial e liaviam acertado os relógios para um modus-
ções de mediação bem mais complexos e variados.
vivendi, que não sofreu posteriormeizte alterações. Só unia coisa havia dei-
xado Getúlio contrariado e tratava-se iiifelizmeiltc do caso da miiilza indi-
Velhos inimigos se aliam caqão. Acertara as indicações para os outros cargos e por último, quando
se tratou da vaga de fiscal e o presidente disse que para ela tinha iim candi-
O primeiro momento importante no processo que culrninou na dato, declaraiido logo quem era c não esquecendo de acentuar a minha
Revolução de 1930 foi a aproximação entre "republicanos" e "libcrta- qualidade de jornalista e também companheiro político. O Dr. Borges
dores7'.Se, como referido, inicialmente o sucesso destes ':jovens políti- mostrou-se reservado e depois de dizer que estranhava que eu sendo um
cos" deu-se em grande medida por se inr9corircn-i lia rede centralizada jornalista não escrevesse nojornal do Partido A I?edera(ão e preferisse outro
que se apreseiita\~icomo iiitlependei-ite mas tinha colunas alr~ertasaos seus
em Borges de Medeiros, ~oncomitantemente~ porém, voltam as ten-
vclhos adversários, acaboir declaraiido que lamentava iião poclei- concor-
1'7 (:aili:ii.go, Aspásiia. Os\zialcloAranha: a estrvla tla rivoluçiio. Iri: (:amargo, Aspásia, Ai-aejo,Joáo
18 Foritoiiia, J o ã o Neves tla. ill~~no,icr\:
R Aliaiiça Liberal e a Kevolrição de 30. Por-to Alegre: (20-
I-I. Pc:reii-a de, Sirnons<:ii,MIário IIeiii-iqtie. O.irunldo A i n , ~ / t n-- n c,slwln do ,zvolu~cio.São I'aulo:
bo, lCI(i3, p. 41-42.
h/lailclarirn, 19'36, 1). 5G-5'7,grifos 110 origiilal.
301
dar com a minlia iildicação, mesmo porque tiilha um compi-omisso e de- coiicessõcs ccoi16niicas'~,c "encorajou" a formação, iiiclusive "patroci-
sejava atendê-lo. Pois se tratava de um moço que havia sido seu oficial de nando", de "novas associaç6es de grupos de interesse9',associações pa-
gabinete e que ele queria premiar pela sua dedicação. Declinou-lhe logo o tronais, de trabalhadores, de comerciantes e de produtores que se vi-
nome e Getúlio surpreendeu-se de ver que o candidato era um fiincioná-
nham organizando desde meados da década de 192OS2lMantendo com
rio estadual que ele havia conservado no seu gabinete juntamente com
mais dois auxiliares de gabinete do Dr. Borges.'" Borges de Medeiros o tal modus-uiriendi, posicionava-se em relativo afas-
tamento com respeito a elc, o que lhe permitiu costurar apoios e acor-
Vergara ainda relata que Getúlio Vargas se "desgostara duplameii- dos fora do partido político ao qual pertencia. Desta forma, a aproxi-
te com o caso da [...I iiidicação": pela "oposição encontrada" e pelo mação com os libertadores e o incentivo ao associativismo, de onde
"procedimento do seu auxiliar de gabinete que sem dizer-lhe nada fora saíam iiovas lideranças e poteiiciais aliados, constituíam recursos im-
solicitar o apadriiihameiito do Dr. Borges". O resultado foi que o ex- portantes para a ação de Getúlio Vargas.
oficial de gabinete de Borges de Mcdeiros ganhou o cargo de fiscal do Mas ele não somente atuou 110 sentido de uma aproxima<;ãocom
selo adesivo e Vergara foi convidado por Vargas para ocupar o lugar os tradicionais opositores do PRR. Mesmo que todos os demais mem-
que este deixou vago em seu gabinete. Vergara aceitou, iniciando "qua- bros da "geração de 190'7"tenham apoiado Borges de Medeiros a partir
se dezoito anos de colaboração ininterruptaU.*' dos confrontos armados de 1923, não parece ter havido maiores resis-
Este caso, além de mostrar como eram preencliidos os cargos pú- tências entre eles a uma aproximação com os líderes do Partido Liber-
blicos, mostra também que as relaçóes entre Borges de Medciros e Ge- tador. Pelo contrário, Oswaldo Aranha possuía diversos ex-colegas de
túlio Vargas foram desde o início marcadas por tensões que chagaram faculdade filhos de oposicioiiistas ao PRR, como Rubens Antunes Maciel.
ao ponto de ser necessário o estabelecimento de um modus-oiuendi,que Em 192'7, "seu prestígio parecia crescente mesmo entre os seus
pode ser formalmente entendido como a tal separação das esferas de opositores", e "é provável qiie Rubens Antunes Maciel já estivesse de-
coiitrole de um e de outro, respectivamerite, os comandos "político" e fendendo Oswaldo junto aos libertadores, como contiiiuaria a fazê-lo
"administrativo". Contudo, fica também claro que mesmo um ato "ad- em 1928, biiscaiido uma aproximação entre aqueles e Aranha".?"
ministrativo" como o preenchimento dos cargos públicos, de responsa- Durante o ano de 1928, porém, tal aproximação deu-se em atos
bilidade legal do presidente do Estado, era objeto de barganha e mais ou menos isolados, como o recoiihecimento de candidatos eleitos
patronagem. Ou seja, Borges de Medeiros não estava de todo afastado pelos libertadores em alguiis municípios, ou em tomadas conjuntas de
da "administração" e, como é analisado na sequéiicia, Getúlio Vargas posição de parlamentares do PRR e do PL, principalmeiite no Legislativo
não se limitou a ser apenas um "administrador". E o caso específico de lederal.?:' Neste plano mais amplo da relação entre os partidos, pois, as
Vergara aponta igualmeiite para uma disputa ou tensao eiitre padri- rivalidades paroquiais podiam ser contornadas 011 diluídas em função
nhos, de um lado o chefe do PRK e de outro o presidente do Estado, da ação de líderes iiidividuais em nome de "interesses do Rio Grande"
que parece não se propor a manter-se em uma posição subalterna fren- frente ao governo iiacional, ou em fuiição de relacóes de amizade ou
te a Borges. de "gestos" como o de Getúlio de convidar líderes oposicionis-
Em favor de Vargas contava que ele era só em parte devedor de siia tas para visitá-lo no Palácio.
posição ao chefe do PRR, pois possuía tanto o apoio de suas "bases" iio A formalização desta aproximação somente ocorreu quando a
interior do Estado quaiito o prestígio que soube granjear no Rio de possibilidade dc eleger presidente da República um rio-grandcnse se
Janeiro como parlamentar e miiiistro, bem corno possuía fortes e pró- abriu. Em meados de 1929 a reciisa de Wasliington Luiz em apontar
ximas relações com, principalmeiite, os outros "jovens políticos" do seu um sucessor mineiro para o seu cargo levou a que membros do Partido
partido. A aparente desvantagem de Vargas frente a Borges ser-lhe-ia Republicano Mineiro (PRM) procurassem líderes rio-grandenses para
um trunfo. Aprcsentando-se ou deixando-se aprcsentar como um "ad- que fosse laiiçado um candidato do Rio Grande do Sul em oposição ao
ministrador", afãstou-se das antigas rivalidades eiitre as facções mutua- candidato "oficial" que, tudo indicava, seria o paulisia Júlio Prestes. Em
mente opositoras no Rio Grande do Sul, coiisegiiiu estabclecer rela- torno da candidatura Getúlio Vargas à presidêiicia da República foi
ções varitajosas com o governo federal, de qiiein "obteve iniportaiitcs
22 I,ag-o. I,rii/ Ai a n h d (' do. O~?~icl/t/o A ,ntr/ln, o ICzo Grnndr r n Iirvolrr(do ( i p 1 930:L O ~ L /joli't?co gatilho
nn I<ef,iihlztn 1Cll~ci.R i o ricbJaiic.iio Nov'l Fronteir'l, 1996, p. 187.
2 3 Lago, I,~ii7Arailha 4:. do. Op. rlt., p. 1'30-200.
possível formalizar uma aliança eleitor91 entre os partidos I-io-grandenses como vinha sendo con<-lilzidaa questão sucessória, Vargas mantinlia
que ficou conhecida como Frente Unica. Getúlio Vargas e Oswaldo relações "amistosas" coni Washington Luiz, recebia informações de vá-
Aranha, pelo lado do PRR, e Francisco Antunes Maciel Júnior e Batista rios parlamentares rio-grandeiises, bem como de "amigos" como João
Luzardo, pelo lado dos libertadores, "sendo que este último desde o Daudt de Oliveira,?"e parece não ter acordado uma "liiilia" muito clara
início de 1928vinha mantendo contatos com Vargas, apoiado por Plínio de ação para seus parlarnentares. Em carta a Daudt de fevereiro de
Casado e com a tolerância de Assis Brasil", teriam sido os principais 1929, quando seu norne era já cogitado para encabeçar a chapa oposi-
artífices da citada união.24 cionista, Getúlio Vargas escreveu que "nossa atitude em face do proble-
Nos planos estadual e nacional, em riome de "interesses do Rio ma político deve ser de discrição e silêncio. [...I A regra deve ser ouvir
Grande" e/ou de "reformas liberais" vagas e imprecisas, como é aiiali- e transmitir, seni p r ~ m e t e r " . ~ '
sado adiante, foi costurado um acordo político-eleitoral visando as elei- Ele procurou manter esta posição ao longo de todo o processo,
ções presidenciais de março de 1930 entre o PRR e o PL. Isto foi mas deixava que os políticos e "amigos" mais próximos a ele agissem,
implementado não pelas velhas lideranças como Borges de Medeiros e inclusive incentivando-os, muitas vezes de forma diversa uns dos ou-
Assis Brasil, embora não estivessem alheios aos acontecimentos que fin- tros, ao mesmo tempo em que se mantinha informado sobre o que
daram por contar com seus beneplácitos, mas por novas lideranças faziam. Desta forma Vargas foi se fortalecendo frente a Borges de
emergentes de ambos os lados que passaram a circular principalmente Medeiros, aos libertadores e aos demais políticos rio-grandenses e bra-
em torno de Getúlio Vargas. Se no plano paroquial, quando ambos milita- sileiros, pois passou a mediar as várias composições c os acordos que
vam em Uruguaiana, Batista Luzardo, oposicioriista, e Flores da Cunha eram estabelecidos, alem de ocupar o cargo político-formal mais im-
quase se envolveram em um duelo de armas de fogo e a partir de 1923 se portante do Estado. Ou seja, tornava-se o principal mediador entre os
enfrentariam nos campos de batalhas, ambos estariam, poucos anos de- vários agentes do jogo: Borges de Medeiros e o PRR, os políticos dos
pois, lado a lado atuando em favor da candidatura de Getúlio Vargas. outros estados, os demais conipoiientes da "geração de 1907",Assis Brasil
e o PL, Washington Luiz e o governo federal.
De um quarto no Hotel Glória para as ruas A partir de então, Borges passa a ser um dos líderes que tinha
muito mais que ser "administrado" do que seguido como um chefe. Em
Enquanto no Rio Grande do Sul o afastamento de Borges do go- janeiro de 1929João Da~idtescreveu ao secretário de Getúlio Vargas,
verno do Estado e a ascensão de Vargas permitiam a aproximação entre ~ o ã Pirito
o da Silva, relatando que Assis Chateubriaiid gostaria de fazer
os partidos locais, no Rio de Janeiro se costiirava a formação da cliama- uma entrevista com Rorges de Medeiros para um de seus jornais. "O
da Aliança Liberal. A ação de João Neves na Capital Federal, enquanto Assis, por indicação do Neves, confiou ao Collor a reportagem. Disse-
líder da bancada do PRR no Congresso, foi para isto decisiva. Ele, sem- me o Neves que orientaria e controlaria as inlerviewi, o que, conforme
pre em contato com Borges e Vargas, foi quem acertou os termos do acordamos, era indispe~isávcl,devido à pouca confiança que inspira o
acordo com os políticos mineiros que viabilizou a formação da Aliança entrevi~tador."'~ "Desco~ifiança"com o eiltrcvistador e "controle" so-
Liberal. Ao mesmo tempo, Getúlio Vargas apoiava as ações deJoão Neves bre a entrevista. Estes mediadores estratégicos, pois, não agiam corno
sem, contudo, restringir os contatos de Flores da Cunlia e Oswaldo Ara- um "bloco [...I emulador de grandes mudanças", embora o que os unis-
nha com políticos paulistas ligados a Júlio Prestes, sendo que ele pró- se era por certo "a dissidência eleitoral cujo objetivo final era um só: o
prio contin~iavaa manter cori-espoiidêiicia com o presidente Washing- poder","' mas exercendo r disputando posições de mediação. E os "cui-
toli Luiz. Em meados de 1929, no entanto, de forrna geral os líderes dados" com a tal entrevista mostram também que Borges de Medeiros
políticos rio-granderises mais importantes do FKR e do PL ensc raj aram-se
estava perdendo o controle sobre os seus subordinados formais.
ria campanha eleitoral apoiando a chapa Vargas-Pessoa.'"
Neste contexto Getúlio Vargas parecia deixar que os demais políti-
cos rio-graiideiises agissem mais ou menos livremente, pois enquanto
João Neves principiava as conversas com políticos desgostosos da forma
26 Eml~resLiriodc 01-igc.111 i-io-grandense estabelecido rio Rio de Janeiro e conteinporârieo cle
Vargas na Faculdade d e Direito cie Porto Alegre.
27 A ~ j ~ i cC;iiiniar5es,
l, Marioel L. I,. Salgado e oiiiros (Org.).A ,~-rioklçAocle 30 - textos e docu,l,,entos.
24 Lago, Liiiz Aranlia C. do. Q. cit., p. 259. Bi-asília: Ed. UnB, tori~oI, 1982, 11. 10G.
2.5 J o á o Pessoa era o presidei-ite da Paraíha que foi escolhido pelos líderes da Aliança 1,iberal 28 ~ : A / ~ i l(hiimai-âes,
d, R!íanoel I,. L. Sa1g;ido P/ crb. (Org.). O/]. cit., p. 100.
como ca11didat.o à vice-presidente e n - ~siia chapa. 29 Cainarço, Aspásia. O/). cit., p. 57.
Com isto, Getúlio Vargas é qiiern passou a lucrar, priiicipalrneiite P ~ outros~rinci$ios, V Z ~ L Spam lviiarmo~u,?zdos
n e ~ t acr~vq!)unhaporc c ~ u ~~ Pa Y Y OU
qinndo foi assiriado o acordo de junho de 1929 entre João Neves e os n o aos u chefia do CPovmo da izj!iblic.a.
mineiros Francisco Canipos e José Bonifácio Ribeiro de Andrada, que Como de hábito, falara pouco, com seii jeito rnordente e imperativo.
ficou conhecido como Pacto do Hotel Glória. Este versava sobre o lan- Flores e Aranha o apoiaram. Quaiito a mim, limitei-me a sorrir, de bom
humor.
çanieiito de um candidato oposicionista à situação federal que seria do
Vargas ergueu-se do sofá, em que estava recostado, deu trés ou quatro
Rio Grande do Sul: Getúlio Vargas ou Borges de Medeiros. O últirrio
passadas pela sala e, voltando-se para nós, exclamou textualmente: V o i ê ~
iião aceita a indicação e o primeiro finda por ser o escolhido. A partir
rrio u n s loucos. Isso meio sério, meio ~ o m p l a c e i i t e . ~ ~
de então, formalizou-se a chamada Aliança Liberal. O "pacto" firmado
foi posteriormeiite ratificado por Borges de Medeiros, procurado em
Em telegrama a Góes Monteiro de 10 de outubro de 1930, o pró-
sira estância por Oswaldo Aranha, e levou Getúlio Vargas a escrever a
prio Paim Filho deu uma versão semelhante deste e n c ~ i i t r o . ~ ~
Washiiigton Luiz comunicando-lhe sua disposição de concorrer nas elei-
Estes quatro participantes da reunião constituíam o principal e mais
ções de março de 1930, carta entregue por Flores da Cunha. O gover-
nador de Minas Gerais, Aiitôiiio Carlos de Andrada, faz o mesmo, de- próximo círculo em torno de Getúlio Vargas. Não necessariamente por
clarando seu apoio à caiididatiira de Getúlio Vargas. Em julho, em Por- relações de amizade mais estreitas com ele ou por manterem eles própri-
to Alegre, reúne-se um Congresso das Municipalidades, quando a can- os entre si uma relação estreita. João Neves fora o principal articulador
didatura de Getúlio Vargas é "aclamada" por membros do PRR e do PL da Aliança Liberal com os mineiros, 0;waldo Aranha um dos principais
e se forma a Frente Uiiica entre estes dois partidos. articuladores da formação da Frente Uiiica e, como Paim Fillio, era se-
Lançada a campanha eleitoral, Lindolfo Collor foi escolhido "por- cretário de Estado de Vargas, Flores da Cunha fora líder da bancada do
ta-voz oficial da Aliança" enquanto redator e diretor do jornal A Pátria, PRR no Congresso antes de João Neves e ele e Paim Filho contavam tan-
"órgão oficial" no Rio de Janeiro da Aliança Liberal. Collor também to com a notoriedade militar iiacional," como eram, dentre os políticos
contribuiria como "autor" da "plataforma política L...] com alguma co- mais próximos de Vargas, os chefes políticos com mais forte penetração
laboração do candidato aliancista e do jurisconsulto Maurício Cardo- nos municípios oi?de eram tambkm estancieiros, Uruguaiana e Vdcaria,
so", que seria lida por Getúlio Vargas na Esplanada do Castelo na capi- respectivamente. Aquela altura, todos já estavam complctameiite ideriti-
tal federal..?"Oswaldo Aranha e Flores da Cunha também se integram ficados e comprometidos com a Aliança Liberal, com exceção de Paim
ativamente na campanha, seja cumprindo "missões" de contatos políti- Filho, que não estava na "liiilia de frente" da campanha.
cos, seja em discursos públicos e entrevistas à imprensa. A partir, pois, Paim assumiii uma posição um tanto ambivaleiite nesta conjuntu-
deste momento os membros da "geração de 1907" de fato comporiam ra. Embora apoiasse a candidatura de Getúlio Vargas, foi também o
e liderariam um griipo visando um fim específico: a eleiqão de Getúlio principal mediador da teiitativa de uma forma de acomodação com o
Vargas 2 presidência da República. presidente Wasliington Luiz. Em dezembro de 1929, pouco antes de
Sobre o caráter deste eiigajamento na canipanha eleitoral cabe desembarcar no Rio de Janeiro para ler a plataforma da Aliança Libe-
citar um encontro ocorrido em outubro de 1929. Estando Flores da ral, Vargas enviou justamente Paim Filho ao encontro de Júlio Prestes e
Ciinha e João Neves em Porto Alegre, Getúlio Vargas convidou-os ao Washiiigton Luiz e dos mineiros Artur Bernardes e Aiitôiiio Carlos.
Palácio para uma reuiiião da qual participaram também Paim Fillio e Desde o lançamento "oficial" da Aliança Liberal ern setembro deste
Oswdldo Aranha. SegiiiidoJoão Neves, Getúlio Vargas teria dito qiie se mesmo ano, ocorreu uma dissidêiicia no PRM. O vice-presidente,
predispunha a reiiuiiciar a sua candidatura, depois de frustradas suas Fernando de Melo Viaiia, "rompeu com o PRM, por discordar da iiidi-
teiitativas anteriores para uma "composição honrosa" segundo a qual cação de Olegário Maciel para o governo de mina^",'^ afastando-se tam-
ele eJúlio Prestes reiirinciariam em beneficio de iim tertiui7.Getúlio Vargas "
bém da Aliança Liberal r aproximando-se do candidato Jiílio Prestes. A
se proporia à "desistêiicia da Aliança Liberal, se o sr.Júlio Prestes, de acor- reuiiião entre os políticos rio-graiideiisesjá citada ocorreu pouco depois
do com o sr. Warhiiigtoii Luiz, se obrigasse a cirniprir os [...I compromis-
sos para corn o povo", que sei-iam "realizar o nosso programa".
Quaiido coiicluiu a exposição, fiquei calado i espera de ouvir, primeiro, 31 Fontoiira, João Neves da. I!Hi3, O/). ril., p. 191-1!12.
os oilti-os com pai1heiros. Paim adiaii tou-se: Eu nüo concordo. Nüo entrei 39 A/11it1,C;iiiinar3rsl Maiioc'l 1,. I,. Salgado r oiltios (Org.). O/). ri/., p . 195.
33 Possiiíam arribos,já o iíriilo clr (;eiie,ral Hc~iiorãiiotlo Exército poi. suas ;1r.naç6ev iio comaiitlo
de tiopasqi~andotios le\,aiites "tenc.iitist;is".
L,ullardelli, 1990, p. 3.5-3íj'
CoLLo~:E;loi-ia~l(jpolis:
30 Costa, 1,icilrgo. 1:ilsnio sobre n -ciidn rle L~i~zclol/i~ 34 Dicioiiário Histúrico-Riogiiliio Brasileiro. I<io c1çl:iiirii-o: <:PDO<:/F(.V, 1984, p. 2.474.
306
desta dissidêricia que podia ameaçar a Aliaiiça Libeid, pois esta pressii- bro de 1929 erri Porto Alegrev -, quanto dos qiie eram merios propen-
puiiha a unidade mineira e rio-grandense em apoio a Vargas. sos a tomadas de posições mais radicais, corno Paim Filho e Rorges de
Este último, pois, tinha razões para estar apreensivo, pois suas Medeiros. Táo logo Paim concluía a sua "missão" em fins de dezembro
cliances de chegar à presidência, que eram já pequenas, diminuíam de 1929, Getúlio Vargas, desembarcava no Rio de Jaiieiro para ler o
aiiida mais em função deste deseiitendimeiito no PRM. Caso não fosse "~"ograma"da Aliança Liberal crn praça pública (110 dia 2 de janeiro),
eleito, Getúlio Vargas, que estava no segundo ano de seu mandato, te- rornpeiido uma das clá~isulasdo recém acordado modu.r-vivendi. Antes
ria aiiida que contar com a possível hostilidade do governo federal nos porém d e realizar a leitura d o "programa", teria se encontrado
anos restantes de sua presidência iio Rio Grande do Sul. A viagem de "secretamen te" com o presidente Washingtoii L~iiz.'"
Paim Filho ao centro cio país ficou conhecida como "missão Paim" c Ao mesmo tempo, o "hall do Hotel Glória [rio qual se hospedou
nos encontros que teve acordou um modus-viwndi entre o governo fe- Getúlio Vargas] transbordava de deputados, políticos, jornalistas, po-
deral e o Rio Grande do Sul. Este corisistia em um compromisso de pulares" e, quando da leitura do "programa" na Esplaiiada do Castelo,
Getúlio Vargas de "iião fazer propaganda eleitoral fora de seu Estado, "multidões imeiisas e entusiásticas enchiam o enorme logradouro".'"
conformar-se com o resultado das eleições, apoiar o governo federal e, Isto mostra que Getúlio Vargas adquiria uma notoriedade q u e
caso fosse eleito, manter boas relações com São Paulo" e em um corn- extrapolava em muito a já conquistada no seu Estado natal e ela seria
promisso de Júlio Prestes e Washingtoii Luiz de "recoi~liccer,ria apura- dividida e compartilliada com outros dos membros da "geração de 1907"
ção das eleições para o Congresso Nacioiial, os candidatos gaúchos - principalmente os que eram parlamentares no Kio deJaiieiro: Liiidolfo
diplomados, aceitar a possível eleição de Vargas e, no caso de vitória de Collor, João Neves e Flores da Cunha, que frequentemente se maiiifes-
Prestes, restabelecer as relações entre o governo federal e o Rio Gran- taram em público apoiando a Aliança Liberal.
de do Sul nos termos anteriores à crise su~essória".~" O interessante e provavelmente até então não rxperimen tado por
Este acordo, mantido em sigilo até o período do levante armado políticos rio-grandenses em tal grau é que esta ampla iiotoriedade iiáo
de outubro de 1930, quando Paim Fillio o tornou público, foi realiza- era restrita aos círculos de elites sociais e políticas, se estendia às tais
do, dentre os que cercavam mais proximameilte Vargas, por seu "ami- "multidões imensas", ou seja, sc confundia coni o que se poderia clia-
go e compadre" Paim Filho, cliie POUCO participara tanto das articula- mar de uma "popularidade" que a campanha eleitoral Ilies trazia na
ções para a formação da frente de partidos do Rio Grande do Sul quaii- capital fcderal e em diversos outros Estados do país. A "populai-idade"
to da Aliaiiça Liberal. No mesmo telegrama citado cndereçado a Góes que vinha seiido conquistada foi bem gerida e ampliada, inclusive com
Moiiteiro, Paim cliegou a mostrar-se contrariado com a aliança cntre o um expediente inédito. Segundo João Neves, as sessões da Câmara, que
PRR e o PL, que atribuía ao "esqiiecimerito de(os) princípios progra- eram utilizadas pelos parlameiitares da Aliaiiça Liberal para atacar o
ma Júlio [de] Castilhos por parte alguns correligioriários" ". O acordo governo federal, passaram a ser obstruíclas pelos congressistas ligados
náo implicava em desistência de Getúlio Vargas ein concorrer às elei- ao goveriio que a elas iião compareciam. Assim, decidiram que "abriría-
ções, o que naquele momento seria, como visto, qiiase impossível, pois mos [as sessões] na praça pública, diante de sua sede", na foi-ma de
ele arriscava-se a perder o apoio de seu principal círculo dc sustenta- "comício popular".'%ste expediente interessava em muito aos mein-
ção, e também não sigiiificava que Paim Filho estivesse ao lado do can- bros da Aliança L.ibera1, pois mobilizava os "populares", mas também, e
didato do goveriio federal. O resultado da "missão Paim" foi muito mais talvez priiicipalineiite, permitia uma ampla repercussão em certos peri-
uma tentativa de pi-eveilc;ão firtura em caso de derrota eleitoral qiie ódicos. Ao mesmo tempo, se armava um palco iio qlial se podiam evi-
permitiria a Vargas contiiiiiar goveriiaiido mais ou menos traiiquila- dciiciar as qualidades oratórias destes parlaiiientares. Usando iios scus
meiite o seu Estado. discursos os "cctnteiídos programáticos" (ia Aliariça Liberal, os quais
Getúlio Vargas coiisegui~i,durante esta crise sucessória nacional, girwam em torno do "voto secreto", "verdade eleitoral" e "anistia", e
manter-se tanto ao lado dos defensores de um rompimento mais radi- atacando o governo de Washingtoii Luiz, se tornavam cada vez mais
cal com o goveriio central - alguns, eiitrc eles Oswaldo Arantia, j i conliecidos e recoiiliecidos.
cogitavam a possibilidade de iim movinieiito armado e mesmo já busca-
vam contatos para tal, sendo que o próprio Vargas se eiicoiitraria com o
então líder "teiieritista" cxilado, Luiz Carlos Prestes, por volta de sctetn- 37 I,ago, 1,iiiz Araniia 6:. clo. O/).cil., p. 291 e segs.
N<:\,es tla, 1!1(5:1. O/). ri/., p. 270.
38 Foi-itoiii-a,%Jo;io
iicc) O/). clt., p. 2474.
3.5 Dicioil<ilioI I i ~ t < j ~ i c o - B i o ~ r ~131-asileiio. 30 Fontorii-a,.JoáoMc:~,esda, 1903. O f j . cií.,p. 272 e 274.
3G Afjzid, (;iiimaiães, M'iiioel I,. I,. Salgado e outros (Org.). O/) czt., p. 203. 40 Foi-itorira, João Neves da. 1063. 011. ci/.,p. 253.
Nestes encontros em frente ao prédio do Congresso a violência
também era uma presença constante. No início, ainda segundo João
Neves, tais comícios se realizaram com certa tranqüilidade, porém, com Antes rnesino da realização das eleições, como apontado, urna
o passar do tempo, "grupos de Pdcínoras e desocupados, ao serviço do alternativa mais radical se esboçava. Oswaldo Aralilia, em outubro de
oficialismo", se fizeram presentes. Em certo momento "a turma 1929, "já estava mantendo contato comi três dos principais tenentes
faciiiorosa dos Bambu, Peru et caterva [...I trocara tiros com os nossos [Luiz Carlos Prestes, João Alberto e Siqueira Campos], orientarido-os
companheiros" e Flores da Cunlia teve de enfrentar um "desacato", o e tomando providências práticas para a compra de armas para uma
qiie fez descendo "as escadarias já de revolver em punho atirando con- r e v o l u ~ ã o " . ~ ~ W oreferido,
mo Prestes teria se entrevistado com Getú-
tra os que intentavam desfeitá-lo9'." .41ém destas ocorrências rias ruas, lio Vargas nesta época e Juarez Távora teria sido apresentado a ele
por Aranha. Este iíltirno, por sua vez, tinha entre os "tenentes" vários
no próprio recinto da Camara algo semelhante se deu. Em 26 de de-
ex-colegas de Colégio Militar da época em que lá estudara no Rio de
zembro de 1929, o deputado do Rio Grande do Sul, Ildefoiiso Simões
Janeiro. Secretário de governo de Vargas e valendo-se destas antigas
Lopes atirou e matou um deputado ligado ao governo, Sousa Filho, de
relações, Aranha mediaria os contatos com os "tenentes" e, depois,
Periiarnb~co.~~ com outros militares, o que trazia a Vargas um trunfo político iiide-
A violência, porém, não se restringiu a estes casos ocorridos no pendente do controle de antigos líderes como Borges e Assis Brasil,
Rio de Janeiro. Depois da leitura do "programa" da Aliança Liberal sem mencionar outros do resto do país. No niesino sentido, João Ne-
feita por Vargas, orgariizarani-se "caravanas liberais" para percorrerem ves também sondava os políticos mineiros, de quem se aproximara
Estados do Nortej4"das quais participaram, entre outros, João Neves e nas articulações para a formação da Aliança Liberal, para a possibili-
Batista Lozardo. Este último "teve de suportar um grave conflito" que dade de uma reação armada. Em caso de derrota eleitoral,João Nevcs
resultou em um "tiroteio" no qual "morreram duas pessoas, além de escreveu em carta a Oswaldo Aranha, a "corrupcão" e o "esbullio",
várias ferida^".'^ que 6'Antôi1ioCarlos [presidente de Miiias Gerais] supóe [...] possa
Estas maiiifestações públicas em comícios, com o uso dos recursos começar já 110 reconliecimento de senador e deputados, [...I agrava-
retórico-oratórios e mesmo da violêiicia, não eram estranhos aos políti- ria mais a situação e justificaria ainda melhor o apelo 2 repulsa violeii-
cos aqui em questão, pois estavam aptos e dispostos tanto a manipular ta" .4 6 Ou seja, paralelamente à campanha eleitoral, algilns dos
"conceitos" e "princípios" quanto um revólver.J á fora assim no Rio Gran- apoiadores da Aliança Liberal já cogitavam e mesmo se preparavam
de do Sul, quando apoiavam Borges de Medeiros na Assembléia esta- materialmente para uma alternativa "violenta" à possível derrota elei-
dual, na imprensa, nas cidades do interior, em comícios. Na campanha toral. Como cscreveii Virgílio de Me10 Franco:
eleitoral nacional, os recursos permaneciam os mesmos e tanto a orató-
ria quaiito a violêiicia não eram novidades para as quais não estivessem Encontravam-se riessa época escorididos no Rio dejaneiro os oficiais revo-
preparados. Se as eleições no Rio Grande do Sul que implicassem em lucioilários de 1922 e 1924, Siqueira Campos, Estillac Leal,João Alberto e
disputa entre candidatos estavairi associadas a crises, esta disputa iiacio-
Juarez Távora, alem de muitos outros r...].
Esses militares trataram de se
pôr em ligação com os elementos mais extremados da Aliança Liberal, srs.
na1 também se revestia de características de uma crise de acornodação João Neves, Flores da Ciiiiha, Afrânio dê Melo Franco e eu prcíprio. Eii-
de interesses inter-oligárquicos que reproduziu em escala nacional as quaiito isto se pa~sa\~a no Rio de Jaiieii-o, o si-. Oswaldo Araiiha, 110 Kio
práticas corriqueiras de violência e acusações mútuas entre as facções Graride, recebia a visita do si-.Luiz Carlos Prestes, chefe supren~odos revo-
em disputa. E, tal qual no Rio Grande do Sul, quem dominava o gover- lucionários, iniciando, assim, a primeira fase da conspiração. Então não
no findoii por vencer o pleito eleitoral. Em 1 de março de 1930 a chapa havia ainda, pi-opi-iarneiite,uma preparacão revolucionái-ia, nias apenas
Vargas-Pessoa foi derrotada. uma coiispii-açáo,marchando em sei~tidolateral a piopaçanda eleitoral."
52 Foiltoiira, João Neves da. 1963. 011. cit., P. 31 1-314. 50 Lago, Liiiz Arailha C. do. 0,. cit., p. 322,
53 Brandi n/)ud Lago, Liiiz Aranha C. do. 011. cit., p. 313, 60 Fontoili-a,J o ã o Neves da. 1963. 01).cit., 11. 355.
54 L,ago, l,itiz Araiiha C:. do. 011. cit., p. 32.5-330. 61 Frailco, Virgílio A. d e Melo. O,/). cit., 1). 183.
5.5Dicioniírio IIist61-ico.~Biogs6ficoBrasileiro. 011. cit., p. 628. 62 Foiitoiira, J o ã o Neves tla, 1963, 011. cit., p. 364.
56 Dicionãsio I-IistOi-ico-BiogrificoBr-asileii-o.O/). cit., p. 2474. 63 Franco, Virgílio A. d e Melo. O/). cit.; p. 187.
57 A/~ucl'Franco,Virgílio A, dc Rilelo. 011.cit., p. 176. 64 Dicioii6s.io Histórico-Biogi.áfico Brasileiro. O/). cil., p. 1318.
58 A/)u,d Franco, Virgllio A. de Melo. O/). cit., p. 175. 65 Foiltoi1i-a,J o ã o Neves da. 1963. 017. cit,, p. 367.
e que Getúlio Vargas foi, durante estes últimos meses antes de 3 de com Vai-gas e findou por obter dele uma reafirmacão dos tais "podcres
outubro, "bravio e destemido", estando sempre no centro da conspi- escritos". Só então rumou riovamente para Cachoeira, eri trevistou-se
ração.%Jooà Neves, em suas Memória.r,ao contrário, tende a atenuar a com Borges de Medeiros e obteve dele o consentimento ao levaiite ar-
contrariedade de Borges de Medeiros para com um levaiite armado, mado.'l
e n q u a n t o descreve a atuação d e Getúlio Vargas como d e Apesar das divergências entre as versões acima, cabe salientar que
"procrastinação" do m o v i m e n t ~ . ~ ' ambas mostram o porito ao qiial chegaram os membros da "geração de
De qualquer modo, Otlielo Rosa, poucos dias depois do assassina- 1907" ao final da decada de 1920. Estavam de tal modo autonomizados
to de João Pessoa, retoriiava da estância do Irapuazinho para Porto frente a Borges de Medeiros que este não era mais para eles a referên-
Alegre a fim de publicar em A fi(1eraçGo declarações de Borges de cia básica, senão única, como o fora poucos anos antes, para a tomada
Medeiros contra um movimento armado. Antes, porém, ericontrou-se de posições no jogo político. O PRR também não constituía mais uma
com Getúlio Vargas no Palácio para comunicar-lhe sobre as declara- referência deste tipo, como mostra a disposição de Flores da Cunha de,
ções. Getúlio, então, convocou para discutir o caso uma reunião com junto com seu ex-antagonista, Batista Luzardo (do PL), iniciarem um
Oswaldo Aranha, João Neves e Flores da Cunha. Segundo Virgílio de levante armado em Uruguaiana. Contudo, a ascendência de Borges no
Me10 Franco, Flores da Cunha se mostrava disposto a, junto com Batis- PRR ainda tinha um peso grande caso se procurasse a aceitação das
ta Luzardo, "no caso de não ser possível recompor a unidade gaúcha", principais lideranças paroquiais do partido, os "coronéis", para uma
irem para Uruguaiana iniciar um "levant e", enquanto "nós [Aranha, ação conjunta.j2
Virgílio, Neves, Collor e Maurício Cardoso] seguiríamos para Cachoei- Neste momento e ad hoc, formou-se um grupo engajado em torno
ra, cuja guarnição [do Exército] era integralmente nossa, e nos atiraría- da possibilidade da luta arrnada cujo centro, mesmo com pretensas "va-
mos à luta"." No entanto, decidiu-se que Aranha seguiria para cilações", era ocupado por Getúlio Vargas. Tanto pelo reconhecimento
I
Irapuazinho com uma carta de Vargas dando-lhe "poderes escritos [...] I nacional que consolidara ria campanha da Aliança Liberal, quanto pelo
para desempenhar a missão" de convencer Borges a apoiar o niovimeii- ! cargo que ocupava de presidente do Rio Graiidc do Sul, que punha em
to armado.6c' suas mãos os recursos humanos (Brigada Militar, polícia e funcionalis-
A versão de Melo Franco sobre a "missão" de Aranha é a de que ele
obteve sucesso em conseguir o apoio de Borges de Medeiros devido a
sua "irreverência natural [...I e a siia incontestável sedução pessoal [que]
foram sempre um trunfo com que ele contou para lidar com o Sr. Borges
I
I
mo) e econômicos (possibilidade de compra de armas e equipamen-
tos) do Estado e o legitimava como o mediador por excelência das rela-
ções do Rio Grande do Sul com os demais presidentes de Estados e
com o governo federal, Vargas se impunha como o centro de qualquer
possibilidade de ação que se pretendesse bem-sucedida.
de M e d e i r o ~ "João
. ~ ~ Neves, por sua vez, apresenta uma versão mais
detalhada e um pouco diferente. Ele relata que um dia antes de Oswaldo Os demais membros da "geração de 1907", embora at~iandocom
Araiiha embarcar no trem para Cachoeira, a fim de encontrar-se com certo grau de autonomia frente a Vargas de acordo com os cargos que
Borges de Medeiros tendo em mãos a carta de Getúlio Vargas, Neves ocupavam e em frinção dos rccursos de que dispuiiliam em termos es-
teria visto o vice-intendente de Cachoeira de saída do Palácio do gover- colares, culturais, técnicos, econômicos, de relações sociais e em termos
no. Abordando-o na rua, o vice-intenderite lhe teria dito que se encon- de clientelas - Batista Luzardo junto com Flores da Cunha possivcl-
trara com Vargas a fim de receber "ordens".João Neves relatou o caso a mente poderiam mobilizar a maior parte da população de Urug~iaiana
Oswaldo Aranha que, no dia seguinte e já no trem para Cachoeira, tam- para o pretenso levante armado tinindo suas clientelas que até então
bém teria eiicontrado o mesmo vice-inteiideiite. Araiiha foi até ele e, constituíam facções opostas -, rio nível dojogo político estadual e iiaci-
pressionando-o, coiiseguiu que lhe entregasse uma outra carta de Vargas oiial não podiam dele presciiidir. Segundo Joáo Neves:
endereçada a Borges que desautorizava a carta que Oswaldo Aranha
levava consigo. Este último, portando as duas cartas conflitarites, des-
ceu do trem e voltou a Por-to Alegre de carro. Avistou-se novamente i 71 Foiitoiira, João Netes da. 1'363, O!).cit., p. 372-373
72 A mobilização popiilar constatada por Vir-gílio de Melo Frailco em Poi.to Alegre certameii-
te ilão coi-respoiiclia ao clima bem menos efervescente. dos griipos sociais iiiferioi-es dos
GG Franco, Vii gílio A. d e Melo. O/). czt., p. 200-203. distritos niais ahstados do iiitei-ior cio estado. O ei-igaJameiito destes depentiia tia disposi-
G7 Fontoiira,J o a o Neves da. 19G3. 0;fi r l.l . , p. 368-377. ção dos líderes locais, os "coroilCisV,em eilvolverern-se nas disputas. Sobre estes "coroiléis"
clo PKK Borges parecia aiiitla exei-cer foi-te infliiêircia. Sob o aspecto de iima liita ai-iriada,
C O , A. d e Melo. O/). c ~ t . p.
68 F I ~ ~ I ~Virgílio , 202.
siia ~ ~ a r f i c i l ~ a çse:i.ia
i i o mesmo inipresciiidível, acostiirnados cliie ista\.arn eni sei-\ir nas Iiitas
G9 F'oiitoiira,Joáo Neves cla. 1963. 01,.clt., 11 371. e guerras interiias e ewtciiias nas qiiais o Rio C;rai-ide d o Si11se \rili eiivolvitlo c-lçscle o sí.ciilo
70 Fi-aiico, Virgílio A. d e Melo. O/). rzt., 13. 203. XIX e mesmo antes.
1
Para nós as cartas estavam lanqadas. Não ecoiiomizávamos qualquer sa- i de confiança de Luiz, general Gil de Nirieida, e o próprio
crifício para associarmos, no arranque, todos os valores da nossa gente, I presidente da República se mantivessem pouco propensos a crer em
desde o Sr. Borges de Medeiros e o sr. Getúlio Vargas até os conterrâneos 1
um movimeiito armado de maiores proporções."'
mais humildes. Queríamos a levée en masse, como sucedeu em França
durante os anos her6icos de 1789. Mas, se não fosse possível a grande,
faríamos a pequena revolução.73 Do sul ao obelisco
Contudo, não seria necessário correr os riscos de uma "pequena Ultimados os contatos conspiratórios a partir do retorno a Porto
revolução", pois Borges de Medeiros e Getúlio Vargas terminaram por Alegre de Lindolfo Collor e tendo sido consultados Juarez Távora, que
aceitar o desencadeamento da sua versão ampliada. O interessante nes- lideraria o levante no norte do país, e os conspiradores mineiros, Getú-
ta imagem de João Neves sobre as dimensões hipotéticas do movimen- lio Vargas e Oswaldo Aranha terminam por optar em conjunto pelo dia
to é que a diferença entre a "pequena" e a "grande" revolução seria a 3 de outubro para a eclosão do m ~ v i m e n t oo, ~que~ mostra que Vargas,
participação ou não de Borges de Medeiros e Getúlio Vargas, o que a partir dos últimos acertos, principalmente com Borges, os mineiros e
ratifica o que se vem comentando tanto sobre a persistência do primei- com os militares de alto escalão no Rio de Janeiro, assumiu as responsa-
ro ao centro do PRR, quanto sobre a centralidade recém conquistada bilidades finais para o deseiicadeamerito da "revolução". As cinco ho-
pelo segundo em termos estaduais e nacionais. Isto é ainda reforçado ras da tarde do dia 3 de oiitubro tropas lideradas por Oswaldo Aranha,
pelas várias vezes nas quais Getúlio Vargas "orientava" por cartas os coiis- Flores da Cunha e Lindolfo Collor invadiam o quartel General da 3"
piradores ou enviava algum deles em "missões" de contatos com líderes Região Militar na Rua da Praia, onde se encontrava o General Gil de
de outros Estados ou de testemunho de situações, principalmente no Almeida, enquanto Maurício Cardoso, comandando "grupos civis ar-
Rio de Janeiro. mados", ocupava algumas das mais importantes repartições públicas
Feita a decisiva opção pelo levante armado, Vargas, segundo Me10 federais na cidade.78João Neves, então em Cachoeira, participou lá do
Franco, entregou "em absoluto, a direção dos traballios preparatórios le~ante.~%o mesmo tempo, no Palácio do governo do Estado era insta-
da revolução" a Oswaldo Aranha. Em meados de setembro este teria lado o "quartel-general revolucionário", onde permaneceram Getúlio
considerado os "trabalhos" concluídos e foi comunicar isto a Vargas. O Vargas e Góes Monteiro.
presidente do Estado, porém, ainda enviaria Collor ao Rio de Janeiro No dia seguinte foi publicado nos jornais de Porto Alegre o "ma-
para "entender-se com os generais" Fragoso, d'Agrogne e Andrade Neves nifesto revolu~ionário'~ de Getúlio Vargas que terminava com: "na?
para que, uma vez iniciado o movimento, "o governo não fosse cair em foi em vão que o nosso Estado realizou o milagre da união sagrada. E
mãos de aventureiros". Collor esteve ainda em Minas "onde se enten- preciso que cada um dos seus filhos seja um soldado da grande causa.
deu com os membros do seu novo governo" cliefiado pelo sucessor de Rio Grande, de pé, pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino
Aiit6iiio Carlos, Olegário Maciel." Enfim, o que João Neves chamou ' final do manifesto é característico do que se vem ana-
h e r ó i ~ o " . ~Este
de "procrastinaçiio" ou de "indecisões e perplexidades9?de Getúlio lisando sobre a centralidade de Getúlio Vai-gas,pois. ao mesmo tem-
V a r g a ~c ~o ~que, coiitraditoriameiite, Virgílio de Me10 Franco chamou po em que cita a "união sagrada9',ou seja, a Frente Uiiica, apela para
de "bravura" e "destemor" foram, com efeito, os grandes truiifos no uma espécie de regionalismo militarizado, agressivo e um tanto fata-
sentido de coiifundir o governo federal quanto a sua posição. Assim, lista - "soldado da grande causa", "destino heróico" - recentemente
resguardava-se como goveriiador do Estado caso o movimento fosse urdido em função mesmo da ascensão dos componeirtes de sua "gcra-
abortado, mas também se tornava cada vez mais indispensável como ção" e de sua liderança. Ou seja, Getúlio Vargas apreseiita o movi-
centro do movimento. Mantinha-se, pois, no controle da conspiração mento que lidera como sendo algo alem do facclonismo reinante até
ao mesmo tempo em que parecia e aparecia não conspiraiido, o que POUCO tempo atrás, da mesma forma que propoe iim outro prii~cípio
fazia com que, como salienta Lago, mesmo com toda a movimentação identitário para os "rio-grandenses" enqiiarito 6'soldadosda causa" que,
nas ruas descrita por Virgílio de Me10 Fraiico, ou com os contatos feitos
com oficiais militares, o comandai-itedo Exército no Rio Grande do Siil,
76 Lago, I a i z Aranha c:. do. O/). cil., p. 363-364.
77 Franco, Vil-gilio A. de h4elo. 01).cit., p. 223.
73 Foiitoura, J o ã o Neves da. 1963. 01).rir., p. 3(iM, grifas 110 original. 78 Fraiico, Virgílio A. de blelo. O/). cit., 11. 225-226.
74 Fr-aiico, Virgílio A. de Melo. O/). cit., p, 212-313 e 221. Joâo Nevcs da. 1963. O/). r i / . , p. 411-413.
79 Foi~totira,
J o ã o Neves da. 19G3. O/). cit., p, 373.
75 Foi~toril-a, 80 F'runco, Virgílio A, d e Melo. O/). cit.,11. 229.
enfim, estava expressa ria frase de efeito do então estudante de direi-
to Luiz Vergara: "rio-grandensizar o Brasil". Enquanto líder do movi-
O fascismo extra-euro~eu: A
mento, Getúlio Vargas se apresentava, junto com os demais rio- o caso do integr
grandenses envolvidos, como a encarnação mesma deste regionalis-
mo salvacionista da nação brasileira.
no Rio Grande d
Mesmo assim, João Neves refere que esta liderança de Getúlio
Vargas ainda seria discutida por partidários do PL, para os quais teria
liavido a questão de qual "norma a seguir" assim que fosse deposto o
governo Washington Luiz: apoio a Getúlio Vargas ou a umaJunta Pro- Em artigo publicado rios alios de 1960, ?&eGene,sisofFaascism,George
visória. Assis Brasil teria se manifestado em favor do apoio a Getúlio Mosse afirmara que "no sécrilo XX, dois movimentos revolucionários
~ ' seja,já em
Vargas "como chefe unipessoal" de um novo g o v e r n ~ . Ou deixaram sua niarca sobre a Europa: aquele originalmente nascido do
um primeiro momelito, corno ocorreria depois em vários outros, o marxismo e a Revolução Fascista", e , não sem um certo tom de censura
questionamerito sobre a legitimidade de Getúlio Vargas assumir o go- aos estudiosos, acrescentava, "mas o fascisrno tem sido negligeii~iado."~
verno poderia ser e era levantado. Contudo, ao final de 1930, em que Ao longo das últimas dkcadas, ao contrário, o fascismo tem sido oejeto
qualquer legitimaçào para um novo governo teria que passar pela ad- de amplo debate na literatura especializada, não apenas acerca de seu
quirida em um comando "revolucionário", a centralidade de Getúlio conceito e iiiterpretação, como também sobre o seu possível locus de
Vargas se impunha como a única alternativa possível, sob pena de os desenvolvimento.
"revolucionários", como logo depois ocorreria, se dissolverem em várias Vários autores admitem a ocorrência do fenômeno fascista fora de
facções em disputa pelo espólio da "revolução". Corri certeza o sucesso seu ambiente origiriário, qual seja, o continente europeu do período
situado entre as duas guerras mundiais, mesnio frisando o frágil caráter
de Vargas deu-se, em grande medida, porque conseguiu "fazer media-
do mesmo. Em tal lógica, o coiitiiiente latino-americano, como "extre-
ções quase impossíveis, arbitrando os coiltrários, sem saber no próprio
curso dos acontecimentos qual seria o desfecho final do litígio".82
mo ocidente" na expressão de Rouquié," revela-se a região cultural e
politicamente mais exposta 5s manifestações próximas do fnscismo. E
Em 24 de outubro uma Junta Governativa composta por militares possível observar neste continente alguns niovimentos de relativa im-
derrubou Washington Luir. Getúlio Vargas, então, enviou ao Rio de portância, aprescntando certas correspondencias com os partidos fas-
Janeiro Oswaldo Ararilia e Lindolfo Collor para encontrarem-se com cistas originários. Segundo Staiiley Payiie, "o maior deles foi a Ação
os membros da Junta. Estes conseguem que os militares concordem em Integralista Brasileira (AIB), inspirada, em uma medida considerável,
entregar o governo a Vargas que, eni 31 de outubro chega ao Rio de pelo fascismo italiano. Tratava-se de misturar aritoritarismo corporativista
Janeiro e assume o Governo Provisório em 3 de novembro. No dia da com a cultura autóctorie brasileira."' Apesar de negar, a principio, a
posse as "comemorações" a ela vinculadas possibilitaram o ato mais possibilidade de reprodiição em grande escala do coiljunto clas carac-
caricatura1 deste movimento em sua vinculação com o citado regioria- terísticas do fascismo europeu, o autor reconhece também os casos da
lismo salvacionista. A lógica do "Rio Grande, de pé, pelo Brasil!" e do Uiiiáo Nacional Sinarquista (UNS) do México, do Socialismo Militar boli-
"rio-graiiderisizar o Brasil" findou por permanecer fixada na fi~tografia
dos cavalos que os filhos de Flores da Cunha e outros "gaiichos" ataram
I O p r e x q ~ t eartigo b;iseia-se lia Dissertação d e mestrado da aiitora,defendida tio Crirso cle Pós-
ao obelisco da Avenida Rio Branco. Gracluação erri Ciência Política cla UFKGS em 1991 sob o nome d e O,/h.rristtzo n,nfierj/e7.ia L a l i ~ o -
Altlel-icc1nn:o/ial.c~doxoda irt?/jlrr?lla~cio do zr~Lfgrolisttto??,o Rio (;rnnc/e do Sul.
2 Mosse, (3eoi-ge.~ X C~ne.,is P oJI;nsci.snz in J o u n ~ n loJ'í:otzte~itfio~.nrjl Hi.slory, I , OI,l!IGG, p. 14.
3 Roiiq~iié,Alaiii. i i ~ t i b r i qIcltir2e:
~ ~ ~ itltrodirction (i I'ext7<)1~~ occid~ibl.Paris: Seuil, 1987. O u , 110s termos
d e Stanley I'a),iie (13 I;il.\c.istt~o.Matli-id: Alian~a,1982, p. 1L71 ) : "A região oiitle inais sc teiri copia-
do a política d o contiiientr etiropeil é a AniGi-ica Latina. Ilaclo o caráter rntiitas veLes autorita-
rio tlos governos latino-arriericaiios e o auge do nacioiialisino nessa região, entre as duas giitar-
ras, parecia a Loiia iriais atlecliiatla a aparição cle fiisrismos iii~portantesnão e~iropeiis."
I I p. 172; Payiie, S. i X e co)~ce/~I
4 Payiie, Staiilt-y. I ~ P Ill~id., I~//([J(~JUL i i i I,arseii, Stein et (11.l44o zolzetr. fhe
8 1 Foii(oura,João Neves cla. 1963. O/>.cit., 11. 440. ,/irsri.st.s:socic~ltuols c!/ f ~ i o ~ ) / j ~ ( ~ ) ~ J i ~Uerg(:n:
~ c i , s t t ~IJili\.ei.sit
. etsf01laget, 1980.
82 Cainargo, AspGsia. 01). cd., p. 76. .5 A UNS, por exemplo, 6 fiiiidatia oficialmente n o México em 1037. Api.esentava-sc corrio tini
viano, do Movinieiito Nacional Socialista (MNS) do Chile e do Partido apoio de massas a estes movimentos. Em algumas nações latino-aineri-
Fascista Argentino ("o mais claramente mimético") .' canas, reforça o autor, a ideologia fascista encontrava certa
Alistair Heririessy, do mesmo modo que Payne, aceita a existência aceitabilidade, mas as instituições políticas democráticas não eram sufi-
de fascismos limitados na América Latina, "durante os anos trinta, ocor- cientemente consolidadas. Esta constatação parte do princípio de que,
reram movimentos fascistas estilizados [ .. .] entretanto, somente os para o fascismo tornar-se uma alternativa viável, é preciso haver um
integralistas brasileiros realizaram uma mobilização de massas suficien- certo grau de liberdades políticas. Sem elas, torna-se difícil organizar
temente ampla a ponto de causar alarme. Outros movimentos, tais como um movimento de massas baseado em princípios contestatórios e violeii-
o mexicano, os nazistas chilenos e inúmeros grupos argentinos eram tos. Assim, somente em alguns países da América Latina que apresentavam
limitados em tamanho e expressão."Wo entanto, Hennessy ressalta um grau maior de desenvolvimeiito, houve lugar para movimentos fascis-
que, se realmente esses movimentos podem ser classificados como fas- tas de alguma envergadura. Os mais significativosteriam sido o integralisrno
cistas, eles desenvolveram-se em função das características e das forças no Brasil, a Falange Boliviana e o Partido Nazista no Chile.7
próprias destes países. A influência do fascismo original teria sido tê- Por sua vez, Pierre Milza corrobora igualmente a noção de
nue, pois o contexto histórico-cultural latino-americano era muito dife- potencialidade reduzida do fascismo na América Latina do entre-guer-
rente do europeu. Antes, as condições históricas da América Latina ras, apesar das inúmeras manifestações presentes, tais como: o Partido
deram ensejo à formação de uma ampla cadeia de niovimentos e parti- Fascista Argentino, os Camisas Caquis bolivianos, Partido Nacional-§o-
dos nacionalistas-reformistasde massas que não poderiam ser facilmente cialista e o Partido Corporativo do Chile, o Partido Fascista Peruano.
categorizados em termos de fascismo. Tais associações políticas foram Estes movimentos, sendo em sua maior parte insignificantes imitações
denominados genericamente de "populismos". Para o autor, o fascis- dos correspondentes europeus, não obtiveram as condições mínimas
mo, como outros movimentos políticos inspirados na matriz européia, a para se impor frente às classes dirigentes, quase sempre ditaduras mili-
exemplo do liberalismo e do socialismo, falharam em enraizar-se na tares reacionárias. Apenas o Brasil, segundo P. Milza, "conheceu um
América Latina, pois as inúmeras modificações ocorridas nesses fizeram verdadeiro fascismo de massas [. . .] a Ação Integralista Brasileira (AIB),
com que os princípios originários se tornassem superficiais. o primeiro movimento autenticamente fascista da América Latina."8
De acordo com Juaii Linz, somente alguns poucos países desenvol- Compreende-se, portanto, que, apesar de limitada, a experiência
veram as precondições que viabilizaram a emergência de partidos fas- do fascismo mostrou-se presente no continente latino-americano. O
cistas. Ainda menor era o numero dos países que apresentavam um surgimento deste gênero de manifestação política na América Latina
estaria bastante ligado aos anos críticos das décadas de vinte e trinta. As
perturbações econômicas, sociais e políticas desta época,
movimeiito nacional e náo como iim partido político. Iiiteiicionava "salvar" o país da Revolu-
desestabilizaram regimes que pareciam solidamente implementados.
ção cle 1910, dos comuiiistas, dos norte-americanos, dos franco-maçons, dos protestaiites e Como resposta à crise e sob inspiração de so1uc;ões externas, tendeu-se
dosjudeiis. Pretendia apoiar uni programa religioso e social, baseado 11a fé católica, rias tradi- a abandonar o liberalismo na mesma proporção em que crescia a iriter-
ç6es hispânicas, lia fàmília, na vida em aldeias, na economia do bem comum. Para tanto, venção do Estado e o autoritarismo tornava-se regra. Observa-se um
exaltava a coragem, o sacrifício, o ascetismo, a virilidade e a discipliiia. Da mesma forma,
siirgia iio Chile em 1932, o MNS, deiiomiiiaiido-se como a hiica esperança d e realizaçào dos clima propício à impulsão de vários movimentos de extrema-direita,
interesses nacioiiais. Sob um disciirso nacionalista e através d e um aparato político-adminis- dos quais, alguns assumiram um caráter fascista."
trativo rigidamente l-iierarquizado e inspirado pelo iiacioiial-socialismo alemáo, alinejava
mobilizar Lima maioria popiilacioiial que se encontrava 2 margem do sistema particlário tradi-
cional. O m o ~ i m e ~ latraiu,
to entre 1992 e 1938, cerca d e 200 mil militai~tes.Ver:Potasliiiik, M.
Nocismo: Nntion,nl Socinlism i ~ Chib:
z 1932-1938. Berkeley: Univ. of Califòriiia Press, 1974; Meyer, 7 Linz, Juaii. Soit~esr~oteytorunrd a co,tn/)~ratiuestudy ofJi(scisrn in so~ioLo~~;!cal hisio>icnlper/)rctiue iii
Jeail. Le Sinarquisme:un f;;lscis?ne Mexicnin? Paris, Hacliette, 197'7; I-Iei-inessy,Alistair. Foscism l,aqueur, M!, o/).c.it.; L,iiiz, Juan. A n ~~uilzoritoTi~nz
~rg7tz:tlze case q/'S/)nini11.Allard e Rokkan (ed.).
nnci p@ulis,n i?z L d i n Americo i11 I,aqiieiir, W .( e d ) . Fkscim: n Render's Cuide. Berkeley, Univ. of Mnss politics: stiidies in poli tical socioloçy. New York: Fress Press,l980.
California Press, 1976. Paris: Imprimei-ie naí.ioriale, 1985, p. 428; Milza, P. fiscismes et ideologes
8 Milza, Pierre. Z2e.~k7nscis?tlrn,..
G Heiiiiessy, A., id. ibid., p. 255. Dos movimeiitos siirgiclos na Argeiitiiia, o mais conhecido foi o réclction7snires eu Ezmpe (1919-1945). Paris: Armancl Coliii, 1969.
nacionalismo Argentino ele Direit.a. Pai-a Marysa Gerassi (Los Nncio7xnlislo.~.Biienos Aires: J o r g e 9 Conceito polissêmico, o significado teórico d e fascismo foi amplamente discutido pelos especi-
Alvares,l(lGli), porem, "mais do que fascismo, o nacioiialismo foi uma forma extrema d e reaçáo alistas sem qiie isto efetivasse um consenso. Assim, Ernest Nolte ( L n ci-isi.~clel sistelna liberc~lye1
coiiservadora frente ao ascenso da classe média ao poder através do Radicalismo". Por oiitio ~ ~ u deljhsci.s»~o.
ge Barcelona: Peníiisula, 1973.), constrói uma tipologia lia qiial o fiscismo apare-
laclo, a aut.oia admite que ideologicaineiite .o iiacioiialismo constituiii uma colagem mais o u ce como alitimarxista, alitiliberal, aiiticoiiservador, defendendo o princípio do caudilismo, a
menos artificial do fascismo." Ver também, Deiitsch, Saiidi-a.Coutttej.--1iP71olutimitl A7grntillc~. milícia d e pzirtido e a política do totalitarismo. Para Staiiley Payne ( T l x co~zee/)to/filscisnz i11
l,incoln e L,ondon, 1986. I a - s e n , S., o/).ci/.) tinia clefiiiiçào aplicável a todos os fascismos deveria identifical, tambem os
elementos comuns em materia d e ideologia e objetivos, d e estilo e orgaiiizaçáo. Ressalta, assim,
No eiitanto, a emergêiicia coiicoi-reiite de forças autoritárias iião meira Guerra Muiidial com o aurneiito da iiidustridlilação, a forn~ação
fascistas na cena política latino-americana contribuiu decisivanierite para de um proletariado nas grandes cidades e o rápicio processo de urbaiii-
a limitação do teri-eiio necessário ao florescimeiito de sigiiificativos Tas- zação. Agravam-se os coiiflitos sociais, como as reivindicações operári-
cismos. Obtéin-se, ao invés, um modelo particular de relacioiiameiito as. As classes médias, presentes sobretudo ria burocracia estatal, n o co-
civil-militar niarcado pelo profundo envolvimento dos militares na po- niércio, nas pequeiias empresas e no exército, assim como uma nasceri-
lítica. O militarismo latino-americano, afeito ao uso da violência para a te brirgiiesia industrial, começam a desempenhar um papel significati-
"purificação" do corpo político, associado a um iiacioiialismo pop~ilista vo na vida política,' '
medialite a exaltaçáo dos símbolos e sentimciitos de nacionalidade, A pressão dos novos grupos sociais, o progressivo esgotamento da
juntamente com a adoção de peculiares práticas políticas clieiitelistas ccoiiomia pi-imário-exportadora evoluindo em moldes de "siibstituição
baseadas na troca de benefícios por votos e lealdades pessoais, acabou de importações", a crise rnuiidial de 1929, o aumento das dissidências
por reduzir a área de atuação dos movimentos fascistas. inti-a-oligárquicas coiicorreram na forte coiitestação e lia ruptura d o
Somente no Brasil reuniram-se as circuiistâncias sócio-históricas poder político das elites ti-adicionais. Ademais, o questionamento leva-
suficientes à emergência de um fascismo desenvolvido, onde é efetiva- do a cabo por setores maisjovens das Forças Armadas, com o apoio de
merite possível recoiiliecer o caráter "mítico-regenerador" da ideolo- parte das classes médias, resulta igiialmcnte na perda de legitimidade
gia fascista e seu ultraiiacionalismo dotado de diiiâmica p~pulista.'~) do governo então instituído.
Esta iiação contava com um processo acelerado de formação de um A sitiiacão reiiiante iio país, no ocaso da República Velha, estimu-
Estado pluralista, moderno e parcialmeiite secularizado. Observava-se lou a propagação em esferas culturais e políticas, de discursos apelativas
o desenvolviniento de uma política de massas e de iioções tais como a a uin povo e a um Brasil niitificados como justificativa da edificação de
de unidade cultural nacioiial. As condições políticas míriimas se apre- Lima nova ordem social. Tratava-se d e correiites d e pensamento
seiitavam para o exercício e o clesciivolvimeiito de movimentos políticos e permeadas, implícita ou explicitamciite, dc dialetos "decadentistas" e
ideologicamente oposicionistas. Ao mesmo tempo, não havia um amplo impregiiadas de esquemas de "i-egeiieração"." Ncste qiiadi-o, são par-
consenso da população a propósito dos procedimeritos políticos liberais, ticularmciite siiitomáticas a Revolução estética promovida pelo movi-
onde o governo parlamentar fosse visto como o único modelo legítimo na m e n t o Modernista e as terapias sociológicas d o "objetivismo
condução da sociedade. Fatores estes que se conjugavam &s disfuiições estru- teciiocrático". O antiliberalismo e n c o n t r a também particular
tiirais do sistema, coiisequência das pressões de modernizaçiio. receptividade eritrc os iiitelectiiais católicos que participavam do mo-
A "crise de traiisição" que atravessa o Brasil durante os aiios vinte e vimeiito de 'renovaçáo espiritiialista'. A via de soliiçaio para os males do
trinta constitui, assim, o coiltexto de fermentação cultural-ideológico país passava pela construção de um Estado forte?forneiitador da naciona-
d o Fascismo rio país. Tal situaçáo manifesta-se já iio imediato pós-Pri- lidade e realizador do "ideal coletivo". Incluía a recusa ao Estado liberal-
democrático com seu "desmorali~ado"parlanientaiisrno rnultipartidário,
a criação d e uni i~ovoEstado nacioiialista aiitoritái-io; a oi-gaiiização de algiirn tipo i ~ o \ ~tleo
estrutiira ecoiiomica, elirniiianclo a aiitoiiomia do gi-aiide capital; a defesa d e iiiii crçdo
voluiitar-ista e idealista, com o deseiivolvimento de iiina cliltiii-a no- coiisideracla siipei-ioi-;a 11 O alto grau tle participação das classes médias n o Fascismo ii2o a u t o r i ~ a coiicliiir pela cxclii-
disposição ao liso da violêiicia; a militarizaçâo d;is relaçóes políticas; iim estilo de niiiiitlo pesso- sividacle. A participasão de 11111 gi-aiide níiniiro d e elemei-neosestraiil~osãs clirssçs niétlias neste
al, aiitoritário e carisriiáiico; a exaltnção dajuveiitiicie coino uiiia i~o\.aí'oi-ça vital. N. I<ogaii gi-iiero d e inovinieiito 6 assinalatla por- S. Pajrne (E1 I;crscist,~o,o/).cit., p.184) c., es~>ecialmcnte,
(Fcr.tcism (I.Sn /)»litical sysrpnr i i i S.J. M'oolf (ed.) Fcl.rcisin i11Lu~o/J,P. L,ondoii: Mt:tliiieii, 1081) , por poi- Fraiicis (;aisteli (/?~le7j~r-rlnli«t?s
(!J"nfnst.isttrin M7. Lacllieui-, o/~.c.it.,14. 410), O qii;~l,apelaiido ao
siia vez, concebe ser o totalitarismo a essêticia do fascisnio. tcsteriiiinlio d e divei-sos liistoriacloi-es sobre a mobili~açáotraiisclassista, coiicliii: "o terino "bai-
10 Na pi-oposição coiiceitiial tle Koger Griffin (Tlw t ~ n t u wqf/c~xisitl.b,oiitloii: Piiiter Press, 1901: xa classe rnt.tliav é milito geral e vago para explicar as grandes dikreiiças tio l~ncl~~v-«zlttd social
I l ~ erznliorl r~ljoi-n,paper apr-eseiitatlo tio XV Congi,esso R/Iiindial tla Associaçáo Iilteriiacional d e
r 7
dos Iítiei-es tàscistas c seguitloi-es ( e a participação d e urri be)n-nniinie1.o de Ilessoas oriuiidas cla
C;iêiicia Política JIPSA).Bucai~osAii-es,jiiiiho tlc: 1901), o liipcriiacioiialisrrio fascista clistingite-se classe operária) ".
na i-ecusa axiomática do ii;icioiialisrno liberal, bem como aos valores ciiltiirais c10 hrinianisnio 1 2 As circu~istâiiciasexperimentadas tiaqueles anos eram pei-cebiclas como coiidiqâo d e crise
iliiniinista nos qriais se fiir~tlainenta.Itleiitifica no "ljovo" tima coiriiinidade I1ist61-ic;isiipra--iiiclii.i- exigindo cliagiióstico imediato e prescriçâo d e terapia, como coloca i4.T. Sadek (Ainc.hicrvel,
diial com siia pi.ópria dinârriica e destiiio. Legitiina-se através clo apelo ao poder do po\lo, iiin n ttngkiin oclauinun. Sâo Paiilo: Síniholo, 1978, p. 7 8 ) :"Aqiiele rrioniento liist6rico
A,kclc~llin.r~éi.s:
p o i n~itificado,
~ tim toeto orgiiiiico i-eljositcírio das irirtrides iiacionais, O iiiicleo niobili~atlorcla fiji cle iiiietisa protliição intc~lectrial.Pi-odiiqão essa cliie não apeiias i-eflete aqrieles iinpasses e
icleologia fiiscista eiicoiitra-sc iio rnito i-evoliicionái-io da regeiierac;ão da i i a ~ ã otleca(leiite, tia coiiti-adicóes, coino taniheiii pi-ociira entender as siias caiisas e atiiiar com soliiçóes." \7er
ciiaçáo tla i i o ~ ordcrri,
i d o srirgiinento do no\lo I~orncm,resultante de iinia re\foliiçáo operada I~aiiioiinier-, Boli\ra~-.P;bt-irrci(5o(Ir rltn /)~t~sclttret~lo /)oli'lieo cli~loi-itrit.iotzn I'i.inr~il-nII~/~iíOlicc~:
u,ttr,a
tanibeni e ])i-iiicipali-neiltelia "vicia secr(:tii d e cada alrri;in:o ""hoino fascistils", portatlor tliis 1-irtii- i,llri-l,t~tnicio.111:I:AIJS'II'O, Roi-is. Ili.clór-icr ( h n l cl'n C-i/ilizn~cio I~in.vi/rilir.Sáo I'aiilo: Ilifèl, 2. c<{.,
clvs heróicas r agc.rite. capar de operar as transforinaç15es da societladta. T.111, \: 2, 1'378; I,iiz, Nícizi Vilela. :\ clbccl(l'ccde 1920 p szrc~sci-ispsiii Ii~uisliltlo /1~.sti/i~lo Bri~.sileiiu,11.
Ci,lOGS.
responsável maior pela "situação caótica de desagregação nacional". Em seu suhstrato geral, também o mito político integralista
Um esquecido "Brasil real" e uma abandonada "gente brasileira', em condensa-se a partir da fixação de irma nação e de um povo profunda-
oposição ao Brasil artificializado pela importação de modelos mente idealizados. Eiicontrando-se estes no presente em avançado es-
institucionais estrangeiros, serviriam de instâncias últimas de legitimação tágio de degeneração, urgia recuperar a resistência enraizada em meio
para a reestruturação sciopolítica. ao povo." Segundo Plínio Salgado, "a alma do povo só desperta-se com
Não obstante a formação de ligas, centros, associações e mesmo a coragem, com fé, com energia [. . .] contra os entorpecentes liberais,
partidos na esteira deste clima cultural, os grupos ideológicos do país o cosmopolitismo despersonalizador, o grosseiro oportunismo, o
inspirados pela retórica de renascimento nacioiial e pela rejeição ao aviltante pragmatismo, os pântanos morais onde se afogam as raças
liberalismo falharam na produção de um expressivo movimento de decadentes e se escravizam as nacionalidades." Este despertar, objetivo
massas dedicado ao uso de uma combinação de procedimentos legais maior do integralismo, permitiria à Nação o cumprimento de seu desti-
com táticas violentas, visando à tomada do poder. A incapacidade de se no histórico, "o espírito do sertão está invadindo as cidades. A América
apresentar como pretendentes sérios à criação de uma nova ordem, em do Sul vai erguer-se pelo milagre do Brasil. O Brasil caboclo, Brasil for-
que pesem outras razões, poderá ser buscada em excessos utópicos e te, o Brasil do sertão, o Brasil bárbaro e honesto, num ímpeto selva-
elitistas, ou mesmo, na radicalização insuficiente de seu populismo e gem, vesyiu uma farda cor das matas e desfraldou uma bandeira da cor
nacionalismo, limitados quanto à possibilidade de imprimir uma dinâ- do céu. E o despertar de uma Nação. E um destino que se cumpre. E a
mica revolucionária à seus discursos visionário^.'^ A maioridade ativista resposta do Atlântico. "lf5
e doutrinária de um fascismo nacional viria com o surgimento da Ação A percepção iiitegralista da realidade nacional deriva-se de uma
Integralista Brasileira em 1932. peculiar interpretação filosófica da história, do homem e da sociedade.
Concepção esta governada pelo binomio materialismo-espiritualismo.l 7
O integralismo brasileiro A expansão dos princípios materialistas em direção ao controle absolu-
to da vida social e, coiiseqiientemente, à destruição dos valores espiri-
A elaboração das diretrizes teóricas do integralismo foi efetuada tuais constitui a caiisa da decadência da civilização. Deve, portanto, ser
através da contribuição, muitas vezes discordante, de vários teóricos, a combatida no sentido da restauração do eqiiilíbrio inspirados nos valo-
exemplo de Miguel Reale, Olbiano de Mello, Gustavo Barroso e, sobre- res espirituais da vida. O Brasil contemporâneo, bem como o resto do
tudo, Plínio Salgado, fundador e líder da AIB. Já na primeira fase do miindo, sucumbia ao ateísmo materialista. O fato é que a civiliza~ão
discurso político de Plínio Salgado, entre 1919 e 1930, encontra-se ateísta brasileira, insuflada pela burguesia urbana e pela elite agrária,
esboçada a temática que dará ensejo a parte significativa da doutrina estaria forçada, por circunstâiicias históricas que remontavam ao período
do movimento. As considerações giravam em torno do nacionalismo
nativista, indianista, anticosmopolista e romântico; do espiritualismo
religioso; da crítica ao liberalismo; da crença do sentido missionário
13 OS movimentos fascistas pretendem-se representantes d e toda a nação antes que de grupos
das novas gerações. O cristianismo, igualmente, constitui importante partictilares, imbiiídos clo espírito, desejos e ~irtiidesdo povo. Este aspecto enfatiza a condena-
referência, haja vista o elogio à pobreza honesta, às virtudes da vida ção da participação política cios indivíd~iosqiiando parcial (senão falaz, ao s~iprimiras oport~i-
simples dos pobres e a condenação da riqueza "perversa" que desvia a nidades d e expi-essiio clos g e i ~ ~ i í n anseios
os do povo), restringida pela intermediação dos parti-
humanidade do espiritualisnio. Plíiiio Salgado faz a defesa da "revolu- dos políticos. Alternativamente aos moldes tradicionais cio político, defende-se iim "feitio inte-
gral" d e participação e de completo en\.oIvimento com os destinos da nação. Iniprirne-se n o
ção interior" do homem, na direção de reformas sociais, vaticinando a fascismo, atributos essencialmente cai-ismáticos, condicionaclos pela atuação das lideranças,
formação de irma nova raça no Brasil.14 promotoras maiores da identificação dos adeptos com o movimento. O mito fascista é aquele
da nova ordem, oriundo da crença na experiinentação d e iini processo histórico decisivo, onde
a crise e a decadência são vistos como sinais d e que os velhos tempos estão findos e os novos
tempos se aproximam. Constiltar Sternhell, Zeev. Fnscisrn Icleolody i11Laqueiir, of,.cit.; Sternhell,
13 Entre estes moviineiitos, encontravam-se o Partido Fascista Brasileiro, a Legião Cearense d o
Z et nlli. Naissnnce d~ 1'idio/o~ie/nsciste.Paris: F q a r d , 1989. Ainda, a expressão "mito político" ciiz
Tiabalho (movimento que combinava aspectos doutrinários do catolicismo tradicional corn respeito a um princípio motor ii-racional de toda a ideologia, a despeito das legitimaçóes clue
elementos d e inspiração fascista: ver Parente, Josênio. AnauP: os camisas-vedes no l~odel:Fortale- possam ser invocadas. Não se trata, portanto, apenas d e um mito liistórico especifico o u uma
za: EUFC, 1986); a Ação Social Brasileira, a 1,egião d e Outiibro, o Particlo Nacionalista d e São
ficção. Griffiii, R.I'lle rzcrture offi~scisme,o/).cit,, p. 27-28.
Paulo, o Partido Nacionalista Iiegenerador. Ver Carone, Edgar. A S e p n d n Reflublicc~.São Paulo:
Difel, 1974. 16 S d l p d o , Plínio. Du.rjiejtei>rosa na@o. Rio d e Janeiro: Jose Olympo, 1935, p. 93-98; Salgndo, P. A
quarta h~imanidadezn 0 h n s ( : o ~ ) ~ / ) l e Vol
t « ~ . V, SP: Ed. das Américas, 1955, p. 213-214.
14 Qrianto ri primeira fase da pi o d ~ i ( ã oteórica pliiiiana ver: hiZedeii os,Jarbas. Icleologn A~~tor-zth~za
rto Braszl: 1930-1 945. Rio deJaneiro: FGV,1978;Vasconcelos, Gilberto. A zdeolo~aclci~ru/)~ra.nnhL~re 17 Uma exposição clc(a1liada desta argrimeiitação encontra-se em: Beiizaq~iemd e AraGjo, R . A Cot
do dzscu?so znlegalzstc~.USP: Tese d e doutorado, 1977. da Esperccnça: lotc~litciris?noe ~e~~oltlçiiono integralismo n;? PIZnio Salgc~cl'o.CPDOCVW, 1984.
colonial, ao convívio coni um fundo espiritualista presente sobret~ido AIB corresporide à dos fascismos europeus. Da mesma forma que estes
no interior do país, onde permanecia o caboclo, com seu forte senti- últimos, a grande maioria de seus adeptos procede dos setores médios.
mento de naeioiialidade. A mutação espiritual e a conconiitante traris- Ainda, a estrutura orgariizativa da AIB obedece a padrões hurocráticos-
formação estrutural da sociedade brasileira ocorreriam a partir da po- totalitários segundo o modelo fascista originário.18
pulação interiorana.
Não é de estranhar, frente a este quadro, a anatematização
integralista a todas as forças culturais, sociais e econômicas considera- O integralismo gaficho
das como prornotoi-as do materialismo e, consequeiitemente, da deca- A organização oficial da AIB no Rio Grande do Sul ocorreu de modo
dência naciorial: o racioiialismo cientifico, o liberalismo e o sistenia
relativamente tardio em relação a outras regiões do país. Em nível nacio-
político deniocrático-liberal, bem como as realizações maiores da civili-
nal, a AIB expandira-se, a partir de São Paulo, primeiramerite para o Rio
zação ateísta, o capitalismo e o comunismo. A atuação partidária, sen-
de Janeiro, Minas Gerais, Ceará e Pernambuco, fato possível devido à
do relacionada a interesses de grupos sociais antagônicos e a pseudo-
maior facilidade com que as lideranças integralistas estabeleceram con-
representatividade, mostra-se ilusória e fraudadora dos interesses legí-
timos do povo. Viiiculada como é ao sistema do sufi-ágio universal, ser- tatos políticos nestas áreas. Na região sul, ao contrário, a comunicação
ve apenas para promover a desorganização, a luta de classes, a opressão era esparsa e desarticulada. De qualquer forma, desde fins de 1932, al-
exploratória dos poderosos, o individualismo competitivo e a injustiça guns simpatizantes, dispoiido de certo conhecimento sobre a doutrina
social. Uma verdadeira democracia, a orgânica, demandaria a substitui- iritegralista, passam a corresponder-se com as lideranças nacionais do
ção do falso voto cívico pela organização corporativa da nação coorde- movimento. Destaca-se Dario Bittencourt, advogado porto-alegreiise, o
nada pelo Estado, onde a representação autentica contemplaria os i11- qual, como um dos principais organizadores do iiitegralismo no Estado,
teresses de todos. será posteriormente designado "Chefe Provincial" da AIB.'"
Vale notar que esta própria dinâmica transforma a representa-
ção da vontade geral em pouco mais que delegação de autoridade a
uma elite, ou a um líder, guardiõcs dos destinos do povo, com o qual
encontram-se misteriosamente vinculados. Os líderes do movinieiito 18 Coiitrariando o trabalho precursor d e EIélgjo Trindade (Itztegrnlismo: o jhscism~o6rn.sibir-o nn
dkncln cle30. São Paulo: Difel, 2. ed., 1979) quanto ã proximidade d o iiitegralismo ao fascismo,
estariam entre aqueles dotados de virtudes para a apreensão e repre- algiins autores discordam dcste ponto d e vista. Para Marileiia Chaiií (Apontnnzmtos j~nl-c~ uma
sentação da vontade, das emoções e do sciitiniento do povo. Seriani cri/ icn n Aç6o int~gralistnO1-nsibitn. 111:CI-IAUI M. e CAK'I!4L2H O A4. Sílvia. I(1eoloyin e ,rnobilizni6o
os arquitetos da pátria, um grupo de heróis capacitados a interpretar j~o/)ulnr:São Paulo: Paz e Terra, 1978, p. 112), a AIB corresponcle antes a Liin "fèiiômeno políti-
co-ideolbgico local, prenúncio d e iim populismo faltiaclo, diverso d o d e Vargas, e que não se
a raça e a hist6ria a partir de sua vinculação ã força poderosa do s~lb- preociipava com o "povo operário", mas com o "povo-classe inétlia". José Cliasin ( O intebrl'nlisvzo
consciente, do sentimento, dos iiistintos da massa humana. O desper- de JYirsio Snlgo(lo: forma de regressiviclade iio capitalismo liipertardio. São Paulo: Ciê~iciasHu-
tar do povo, impulsioiiado pela revolução espiritualista, ag~iardava manas, 1978, p. 41), por siia 1-ez,acredita qiie um ariátenia cle1.e ser lançado sobre Plinio Salga-
do e o integralismo. Isto cie~iei.i;i,n o eiitanto, decorrer claqiiilo qiie a AIB efètivamente repre-
apenas o surgiineiito de seus intérpretes naturais, condição de possi- sentou, e iiáo do que os analistas, via de regra, pensaram o mo\.irnerito repr-eseiitac Deste modo,
bilidade da enérgica traiisformacão pregada pela campanha de salva- C;liasiii coriclena a ideiitificação d o integralismo com o fascismo. Em seti trabalho, o autor iiicicle
ção nacional integralista. Assim, o cai-atei- revolucioliário d o em alertas acerca d o clrie considera iiina iilsistência ii!j~istificadados estudiosos d o integralismo,
na "cornuiiiclatle dos inimigos clo fascismo e d o Iiitegralismo (libei-alismo e coniiiilismo) e com
integralismo expi-essa-se iiãu sonieiltc na intenção ideológica de er- certa ordem d e siinilitucle feilomêiiica entre os dois eventos." Não pocle ser esquecida aqui as
guer uma nova ordem, mas também na vocação para promover uma observaçoes d e Gilberto Vasconcelos (oj).cil., p . l 3 l ) , o qiial pi-ociira, entre outras coisas, dar
profunda transformaçiio social que afastasse do poder as classes diri- conta da "ambi\~alêiiciana coiifigriração do disciirso integralista: seris principais traços ideoló-
gicos teriam sido extraídos tanto d o fascismo europeu quanto d e uma tradição intelectiial auto-
gentes tradicionais em favor da nova elite natural, composta por aque- ritária do Brasil."
les imbuídos da coiicepção integralista do univcrso. O mito político 19 Segundo relato d e D. Bittencourt: '"Certa tarde, vou a Livi-aria do Globo ... e encontro rins
do integralismo passa, ainda, por uma metafísica da revolução conso- prospectosqiie tiiiham recebido cfe São Paulo, como o Manifesto Integralista d e Plinio Salga-
lidando a nova ordem mediante sua reificaçao rium Estado de nature- tlo. Eiitáo, por c~iriosii'latleeu li ... e me agradou aquele manifesto, remeti a vários colegas no
interior do. Isto crn 32. Iniciei a correspondência com São Paulo."(Eiitrevista de: D. Bitteiicolirt:
za corporativo-him-arquizada. Este Estado aparece como um orgariis- 1969. Arq. AIB/I-1.Triiidade. Nupergs/(:oiisul/UfI-gs). Ainda sobre estas primeiras articiilações
mo cornposto de i-6lulas nucleares siiidicais. realizadas por Bitt.encoiirt, Nestoi, Pereira, um dos adeptos d e primeira I-iora cio movimento,
Além da esti-titura ideológica que caracteriza a AIB como u m mo- relata: "D. Bitteiicoui-t publicori rima nota iiojoi-na1 par-a qiie aqueles que simpatizavaiii e est~i-
da\ram o iiitegralisiiio se reriiiissiin ...1-10 seii escrit6rio. Foi a primeira reiiiiiáo. Ali srii.giti a AIB."
vimcnto do ge11(>1 o fkscista, algiiiis aspectos adicioiiais podem scr apori- (Enti.evis~acle Nestoi- I'ei-rim: ICIGS, Arq. AIB/E-I. 'Trinclacle, Nupei-gs/coiisiil/Ufi-.gs).
tados, importaritcs para validar o coiiceito. A carriada social de base da
Apenas em fins de 1933, no entaiito, o aumento na procura de
Diehl pertencera ao PL, mas "quando houve a Revoluçáo de 30, eles
informações sobre o caráter da AIB permitiu à cúpula administrativa
[do PL] brigaram pelos cargos antes da Revolução começar ... j á não
central do iritegralismo visualizar a oportunidade de fundar de uma
gostei daquilo. Depois, quando surgiu o integralismo, entáo eu vi a di-
"sede provincial" no sul do país. Já nas primeiras reuniões na capital
ferença entre os dois." Pereira relembra os fatos da kpoca,
porto-alegrense, define-se o público que preferencialmente optaria pela
movimento integralista. De modo geral, indivíduos pertencentes às pro-
fui libertador até determinada idade. E o PL, que vinha vencendo as
fissões liberais, estudantes, bancários, empregados do comércio, alguns eleições de município por município, mantendo aquela tradição, aque-
operários.*" Em 3 de janeiro de 1934 é inaugurado o Núcleo da AIB 1s: seus princípios, se ligou, com seu maior adversário, formou a Frente
em Porto Alegre, passando a entidade a existir oficialmente no f i o Unica e frustrou grande parte de seus partidários. E ficou a mocidade,
Grande do Sul. da qual eu fazia parte, em disponibilidade, desencantada.'"
As pessoas que se interessavam pelo integralismo no Estado parti-
lhavam, de modo geral, de um sentimento de frustração política. Frustra- Ainda na opinião do integralista Luiz Compagnoni, ex-secretário
ção esta ensejada, ora pela percepção da marginalização política, ora pela Municipal de Educação Moral e Física do movimento em Caxias do
visão do fracasso e decadência dos partidos tradicioiiais. Tal grupo não Sul, com a AIB seria possível romper com a onipotência dos partidos
possuía, via de regra, maiores vínculos partidários ou encontrava-se de- tradicionais. Esses só se interessariam em quantificar votos em épocas
cepcionado com a atuação dos partidos. Nos relatos dos motivos de ade- eleitorais, menosprezando os problemas da população e da comunidade
são à AIB de alguns integralistas observa-se tais circunstâncias. Dario após a vitória nas urnas. A AIB, pelo contrário, permitiria a representação
Bittencourt explica desta forma seu ingresso no integralismo, direta das demandas locais, pois sua organização interna e os assuntos a
receberem prioridade dentro do movimento dependeriam do consenso e
eu aderi aquela idéia [da AIB] desde o princípio, porque os partidos da participação de todos os seus membros e não apenas de alguns poucos
políticos como estavam estruturados naquela época, eram superados, não líderes. Assim, na visão idealizada de Compagnoni, o integralisrno viria
criavam uma coisa nova. Era preciso uma Câmara Corporativa. O dotado de algo maior do que a simples politicagem regional :
Integralismo acenava com esta possibilidade. Com a Revolução de 32, os
partidos praticamente desapareceram, e eu estava então desimpedido
Nós representamos muito mais que a implantação de um regime político.
políticamente."
Um "camisa-verde" que passa é uma consciência reta e pura que serve de
condenação 2imoralidade,2corrupção. O povo vê em nós o restabelecimento
Jayme Castro, que dirigira o jornal integralista A Luta, concorda do equilíbrio e da harmonia na vida moral, econômica e cultural. O povo
com esta perspectiva ao relatar as adesões à AIB, "havia uma disponibi- sabe que não estamos neste movimei~topara obter vantagem material [...I
lidade de grande número de brasileiros. Disponibilidade de política, no atual regime ninguém deposita confiança e, dos homens que dele fazem
anseio por uma coisa nova... A AIB foi um benefício para o parte, poucos se salvam e, destes poucos, quase todos são passíveis de conta-
país...conquistou a mocidade. O Integralismo prop~inhaa revoluçâo mii~ação.E a nós, exclusivamente a nós, que cabe a tarefa de expurgar, de
interior, bons princípios, moralidade ética.?' varrer, de demolir, de construir, de aprovar e de~aprovar.'~
Por sua vez, Roberto Dielil, que fora secretário de Instrução Mo-
ral, Cívica e Física, e o militailte Nestor Pereira acusam a desilusão com Em termos discursivos, a AIB pretendia inserir-se no Estado como
os partidos regionais como o fator de aproximação ao iiitegralismo. uma originalide político-ideológica ao objetar as formas partidárias tra-
dicionais em Favor de um modo de participação concebido como radi-
o jornal era o porta-voz da colônia naquele tempo. O jornal valia mais do Integralismo: ação e reação
que um comício. Havia na época entre 15.000 a 20.000 assinaturas, mas o
número de leitores era muito maior. 0 s que sabiam ler, liam para os que No escopo de divulgação da doutrina iiitegralista no Rio Grande
não sabiam ou contavam as notícias. O jornal era distribuído até por do Sul, um dos pontos a provocar maior reação adversária é justamente
ocasião da missa dominical, era levado até a igreja."' a identificação entre a AIB e o fascismo. Políticos ligados ao PL condu-
zem as críticas mais contundentes ao movimento na defesa de sua posi-
No Stafetta, Mussolini é considerado um herói na luta em defesa ção prograinática, baseada em um liberalismo conservador, com a vrilo-
de uma nova era de paz. Se o Duce atuava com a força da espada, escla- rização das práticas parlamentares. O PRR, por siia vez, encoiitrava-se
recia o joriial, assim o fazia para combater os iiiimigos, a maçonaria no momeiito eiifraquecido em função do exílio do chefe do partido e
socialista, e desarmá-los. O movimento fascista aparece conio das dificuldades ern rearticular os seus membros,
Para o libertador Fay de Azevedo, Plíriio Salgado pretenderia se
tornar um ditador iios moldes de Hitler e Mussoliiii, ao qiie denuncia,
36 Cai-ta de D.Bitteiicourt a Kudolf Wess. Berliin.(Niipergs/Constil/Ufrg~~n. arq. 005, doc. 023.)
Em relação a possível colaboração da Alemailha, Kené Gertz ( O I;nsci.sn~o710 sul cEo Bm.ril. Porto "não jogaremos pela jaiiela, como quer Plíiiio Salgado, todas as nossas
Alegre: Mercado Aberto, 1978, p. 134136), coloca qiie até 1936 não 1iou~:eqiialqiier orieiitação tradições, iiem iiivci-tei-emosas diretrizes de iic~ssaIiistOria 110 deslurn-
oficial iieste sentido por parte dos alemães. A partir d e 1936, a Orgaiiizaçâo do Exterior da
NSDAP fòrnializa uma postiira de estrita ~ie~itraliclade
à AIB, piocurando não entrar em confli-
to com tal ino\~imeiitonem com o governo brasileiro.
37 Pastoral piiblicacla pelo Cor-7ziodo Povo (18/1/1934). Sobre as estreitas relações eiitre ovaticano 39 Stnfi?ttn Hiogrnn<k??zse(8/1 1/ 1932); (2/11/1932). Segiiiido 1,oraiiie Giron ( A s son~bm.rdo littori:
e o Estaclo fascista italiaiio, Caetano Sal\~emini( S u i t t i sull;nsci.smo. Milaiio: Feltriiii, vol. I, 3. eci., oj?~.rcismonri r~giEocobainl itnlinl~crdo Ilio (;i-cltlde do Sul. PUC-Si? Tese tie tio~itoratio,1989, 11.
1966, p. 625) explicita a questão: "Antes d e tudo, a máquiila d e propagalida iiiteriiacioiial d o 191): "Os peqlieiios produtores admiravam a 0lii.a d e Miissoliiii por caiisa da intensa pr-opagaii-
clero cattjlico foi colocacla a serviço d e Mussolini, cai-[leais, arcebispos, bispos, padres, frades, tia realizada pela Igrqja apbs 1929. Sem o apoio efetivo tia propaganda movicia pt.los sacerdotes,
fi-eiras,jornalistas do mundo inteiro foram entiisiastas d e Mitssolini." Noticias sobre as ações d o a maioria da população teria tiesconhecido até a própria existêiicia cio L>uce..."
clero lia Itália chegavam coiistaiitçmerite à região coloiiial: "Os (50 arcebispos e bispos e os 40 Segiiildo clepoimento d e (:ai.los Fabris, chefe iiitegralista iio povoado d e Coiiciiçáo, iiiterior
2.000 sacerdotes coiividados ã Koiiia pai-a as nianifc~staçõesao Diice,..por unanirnitlade aprova- d e Caxias d o Siil, "eu era facisea, ai-iclavade camisa preta, pregava no nieii povoado. Mas, então,
ram iim vibrante voto d e gratidão e devoção a o Fundador d o Impkrio." (I1 Gioriiale veio o integi-:ilismo e 116s pei-isá~~anios qiie era a iriesrii~icoisa e fornos pai-a o iiiic.gralismo,
dell'Agrictil tore: 20/7/1934). nosso, brasileiro eiitão, com o Plínio Salgado." (1969. Arq.AIB/H.'l'i~ii~cl~itle. Niipergs/colisiil/
38 Eiitrc.~.istatle frei Alberto Sta~viiiski,concetlitla em 1991. De acordo com frei L)ioiiísio Vei.onese Ufi-gs). 011 aincla o depoiineiito d e frei Veronese (o/j.cit.): "A AI13 foi milito a c i i ~ ina zona
(eiiti-evis~a conceditla em 1!)!)1): "OS/cfet/n destii~ava-seao colono, com dois otj:,jetivos,guardar a itali:ii~a, c o i ~ ifàcilidatle o coloiio recebeli o integi-alisrno, pois havia o exemplo tlo S~iscisnio
siia fé e ajiidá-lo lia agi-icultura...'l'itllia pouca peiietração lia zona iii.baiia.,," italiaiio. I-Ia~riamuita simpatia por Miissolini lia zoiia italiaiia."
bramento da miragem fascista." Ao rnesrno tempo, Azevedo alerta para estado. O coiitrole mantido pelas oligarquias regionais sobre o eleito-
o perigo da proposta de supressão dos partidos, pois acarretaria na ins- rado e a política interna passava, de alguma forma, a ser questionado.
tauração de uma ditadura baseada no terror e na cartilha do Estado, Um movimento exóçeno tal como a AIB rião poderia deixar de ser
práticas essas, do fas~ismo.~' visto com animosidade.
Já o PRL, partido político situacionista hegemônico no Estado, Nas eleições para deputados estaduais e federais de 1934, a AIB
preocupa-se com o crescimento eleitoral da AIB. Partido de ocasião, o marca a sua presença. Mesmo não tendo eleito nenhum candidato, a
PRL formou-se visando congregar facções políticas que haviam rompi- abrangência da votação da AIB por todo o Estado surpreende. O movi-
do com o PL e o PRR. Tal aspecto concorrerá para a promoção de uma mento obtém votos em 44 dos 83 municípios do Kio Grande do Sulj4' ou
certa ambigüidade programática manifesta na miscelânea de teses seja, no mesmo ano de sua implantação, o integralismo arregimentava
modernizadoras, como por exemplo, a iiiterveiição estatal e a regula- eleitores na metade dos municípios sulinos. Inclusive, a AIB tinha metas
mentação social, do agrado dos setores emergentes, com a defesa de claras ao concorrer ao pleito,
posições tradicionais de inspiração oligárquico-republicanas pré-Revo-
lução de 30. O PRL lança um programa eleitoral bastante amplo, com não é o caso que o Integralismo queira pleitear a vitória agora. AAIB não
ênfase básica em aspectos sociais e econômicos, evitando, deste modo, tem pressa. Sabe que vencerá sem violência ... O Integralismo, se concor-
a focalização excessiva em circunstâncias político-ideológicas. re a eleição, é porque necessita tornar-se conhecido de todos os brasilei-
Criado em 1932 para apoiar e manter os grupos solidários à Getú- ros e as eleições oferecem campo adequado à propaganda de siias idéias.
Se o Integralismo concorre nestas eleições é para impedir que os
lio Vargas no poder no Estado, o predomínio eleitoral interno era o
integralistas cedam seus votos aos velhos partidos.*?
objetivo máximo do PRL. Esta finalidade o conduzirá à tentativa de
aliciamento tanto de camadas médias sociais em ascensão, à exemplo
de profissionais liberais, comerciantes, industriais, quanto de elemeii-
O PRL se volta contra esta possível ameaça ao seu podcr no Esta-
do, no que recebe o apoio dos partidos que compunham a FU. Entre as
tos pertencentes às oligarquias agropecuárias. A acefalia dos partidos
tradicionais, particularmente, permitiu ao PRL congregar coronéis inúmeras perturbações, um dos episódios mais eloqüentes se sucedeu
mandatários do interior e outras lideranças descontentes do PL e do PRR, em São Sebastião do Caí. Em fevereiro de 1935, um grande comício
agora articulados na Frente Unica. O apadrinhamento e o uso sistemático fora organizado pelos integralistas nesta cidade. Fontes da AIB conta-
da coerção auxiliariam no enquadrarnento das bases eleitorais. vam em cerca de 300 as pessoas participantes, vindos sobretudo de Caxias
Flores da Cuiiha, interventor do Rio Grande do Sul em nome do do Sul, Novo Hamburgo, Porto Alegre e São 1.eopoldo. Em decorrên-
PRL, deseiicadeia uma maciça política de alistamento, pretendendo cia de altercações entre as "forças da ordem9'municipal e os integralistas,
abranger sobretudo as zonas colonias alemã e italiana, onde havia um morreram dois policias e um militante de São Ideopoldo,Luiz Schrocder,
razoável contingente populacional em disponibilidade política. Justa- com vários feridos. Emerge, assim, um mártir para a causa integralista.
mente a região onde a AIB estava obtendo uma maior aceitabilidade O prefeito do Caí, Moraes Fortes, do PRL, em seu relato a Flores da
partidária, constituindo-se mesmo em unia terceira força política no Cunha, revela que prendera mais de 50 pessoas, pois "a coiicentração
aqui realizada tiiilia por fim menosprezar as autoridades locais devido
a uma repressão feita no interior do município em um núcleo integralista
41 Artigo d e Fay d e Azevedo publicado no (;onzio cio I'ouo (23/1/1934). Da mesma forma, Kirbeiis que estava atentando contra a
Maciel e Júlio Siiffertli vêm a público para atacar a assim compreedicla vocação fascista cla AIU. O chefe municipal integi-alista, Mctzler, confirrna, em parte, o ob-
R. Maciel, após assistir algumas sessões integralistas, revolta-se com o que a seu eiitencler seria
coiiclamar os brasileiros a aderirem à causa imperialista da Alemanha e da Itália. A AIB, com
jetivo da passeata. A pretensão seria prestar solidariedade pacífica aos
seii i~acionalismoiiisano, levaria os seiis adeptos a participai- da guerra iminente a deflagrar-se integralistas de Nova. Petrópolis, pois estes teriam sofrido violências não
lia Europa pela ação d e I-litler e d e Mussolini. R. Maciel argrimeiita no artigo Plíiiio e a Guerra justificadas por parte das autoridades:
(Gol-xio do I'ovo, 13/9/ 1934), "foi a iiigeiiuiclade d e iim patriotismo iludido, qiie me trouxe do
silê~lcioda minha obsciiridade ...Porque os nossos patrícios, aplaiidindo o ilacionalismo agressi-
vo do chefe integralista, aplaridii-am, sem o saber, o Iiorror incalculável dos morticínios desta Devido ao grande incremento tomado pelas nossas idéias, o prefeito d o
bem próxima guerra cio fiitirro." J. Suffertli, por sua vez, escreve vários art.igos à imprensa com município começou a perseguir todos os integralistas de Nova Petrópolis
o objetivo d e d e m o i ~ s t r a rseri iiicoiiformisrno com a orientação itieol6gica da AIB: "O
Iiitegralisrno se propõe a adotcii os métodos do fascismo italiaiio e c10 nacioiial-socialisino ale-
máo. Ele bate-se pelo corporativisrno, milito emboi-a este nâo tenha sido ~iplicadona Alema- 42 COVPZOdo £'OTJO(3/ 12/ 1934); B I ~ de L ~ (4/ 1" 1034);A L u c t n (16/9/ 193.5).
~ -Noliczns
i ~ l i asendo
, na Itália coriio se costirma dizer a @iiiita roda (10 carro, porqiie lá preclomiria a
voiitade iiicoiiteste de M~issoliili.O Integralis~no1-epi.esei-itaunia tlitacliira que deve sei evita- 43 Joriidl O I t l t e p n l / ~ i n(14/ 10/1034).
da." (Correio d o 1->07~o,14/9/1934) 44 Telegiama de Moiaes Forte a Flores da Cuiiha, citaclo pelo C o r r ~ l odo Povo (26/2/1935).
... Em vista disso, a Chefia provincial resolveu fazei-um grande desfile cni rariamente sol' aciisac;ão de turnult~iara ordem. Em Ragé e TÍiquara, as
São Sebastião do Caí para dar uma demostraqão pública de apoio moral sedes da AIB foram fechadas. Em Erecl-iim, o delegado de polícia, a
aos integralistas de Nova Petr6poliss4j pretexto da falta de policiamento eficiente, impede a realização das
sessões semanais integralistas."
Frente aos acontecimeiltos, Flores da Cunha apóia plenamente o Em sua orientação, o governo estadual acaba sendo auxiliado pe-
seu prefeito. O iiiterventor alega que até o momento teria oferecido los rumos da política nacional. Articulava-se, em nível federal, a aprova-
todas as facilidades de propaganda à A113. Esta, porém, não soubera ção de um projeto de lei cuja finalidade maior era garantir o poder às
corresponder à altura, desrespeitando afrontosameiitc a lei. Urgia, ra- forças situacionistas diantc da crescente mobilização das classes médias
ciocina Flores da Cunha, não mais permitir ao iiitegralisirio suas ativi- e dos setores populares. Sob argumentação de instabilidade social é
dades criminosas, "os atos praticados pelos integralistas, pela sua ine- promulgada, em abril de 1935, a Lei de Segurança Nacional (LSN). A
quívoca significação, dciiuiiciam os processos violentos que sc quer anterior reconstitucionalização do país, que propiciara certas conquis-
colocar em prática para subverter a ordem pública"."' No inquérito tas sociais, como o voto secreto e prerrogativas trabalhistas, ao mesmo
levado a cabo pela polícia administrativa estatal conclui-se que o coiifli- tempo, dera legalidade à atriação política de novos setores da sociedade. A
to fora provocado de forma inequívoca pelos integralistas, sendo esses manutenção do domínio das oligarquias em todo o país exigia a insti-
considerados perniciosos à segurança interna do Estado. tuição preventiva de mecanismos de controle sobre as medidas consti-
Proíbe-se, em decorrência, aos integralistas de fazer uso público tucionais vigeii te^.^^
da "camisa-verde",de realizar passeatas e comícios. As manifestações só As negociações em torno de uma lei que restringisse os "movimen-
poderiam ocorrer nas sedes do movimento. Sem desfiles, tirava-se da tos extremistas", assegurando a "defesa da ordem", são apoiadas desde
AIB o apelo visual. O uniforme, as palavras de ordem, os tambores, os o princípio pelo órgão de imprensa oficial do PRL,, A Fedmção: "Já tar-
hinos exerciam um inevitável apelo junto ao píiblico. A repressão pros- dava uma medida legislativa que viesse por cobro aos abrisos [...I é unia
segue rígida. Em diversas localidades do interior, a polícia estadual, sob medida de prevenção e de bom senso que deve merecer os aplausos de
demanda das autorjdades muiiicipais, tenta impedir a atuação do movi- toda a população, cuja tranqüilidade ficara definitivamente assegura-
mento. Em Sailto Angelo, os líderes integralistas foram presos tempo- da." O governo central deveria adotar de imediato, sustenta o dorilal,
medidas para contcr a "onda de indisciplina" e o "surto de demagogia
delirante" que percorreria o país nas ações de grupos defciisores do
4,;) Entrevista d e hletzler, medico em Novo I-lamburgo, ao Con-eio do Pozio (26/2/1935). Nova
Petrópolis, lia époc;i, era um distrito de São Sebastiiio do Caí, estantlo, portanto, sob a jurisdi- extremismo político. Caso uma lei não fosse suiicieiite, seria preciso
ção d o prefeito hiforaes Forte. Dados oficiais d o integi-alismo contabilizavam 320 inscritos no uma lei maior de ~eguraiiça.~~'
suhní*cleo local, iim bom índice d e adesão. ( O Intrg~nlistn:10/2/1935) O jornal O I~rb~g-)-nlistcz Se o governo federal, com a LSN, pretendia atingir sobret~idoas
viiilia afirmando estai- o prcfeito perseguiiiclo os membros cla AIB. Em fcvereii-o d e 1935, lança
a coiivocação ao desfile, "para deriiostrar qiie não é coiii prisóes que se pode arrancar d o espí-
manifestações operrlrias que fortaleciam-se organizadas principalmcn-
rito dos camisas-iaercles o seli ideal" (10/2/1935). Por sua vez, Moraes Fortesj~istifica~i as pri- te pelo Partido Comuiiista Brasilcii-o, a iniciativa recaía também sobre
sões em No\sa Petrópolis argiiineiitando qiie os integi-alistas eram dirigidos poi- elemeritos es- a AIB. No Rio Graii(ie do Sul, o governo estadual e os demais membros
trangeiros, sendo urna ameaça, pois disciii-savam contra o go\rcLri~o, o exército e as institiiições d o PRL procuravam colocar n o mesmo plano o comiiiiismo e o
republicanas. Tratava-se, para Fortes, d e um grupo de extreniisjas qiie tentavani tlestitiiir o
siibpi-efeito do terceiro distrito c10 (Jaí pela fòrça. (Citado pelo COIT.PIO do 1'0110, 28/2/1935). A integralisino, como duas faces da mesma moeda, 'h extremismo verde
AIB estava longe de ser un-i consenso entre os pi.óprios 1-iabitantes d e Nova Petrópolis, como não sc diferencia clo vermellio, antes, com ele se conf~inde,pelo mciios
deiiioiistra o depoimento tle Elisabetli I<. Evers (citado em (;orztriDl~i~cio p n m n histcirin cle No71c~ nos métodos brutais de ação"."" Pela lei, estava proibida a existência de
Pebr.ó/)olis. Prefeitura d e Nova Petrcípolis, EDUCS.): "Qiiaildo algtiéin náo qiieria mais acompa-
nhar, siia ficha e sua camisa-verde eram queimadas sol-, malclição. Os que saiam eram evitados organizações paramilitares com quadros e liiri-arquia. Isto lcvou a cú-
pelos outros. Além disso, os Integralistas i-iáo pagavam imposto algum, nern contribiiiçáo para a
comiii~iclade.Nas festas mais simples o u nos cultos domiriicais apareciam ... Eles não iiicomotia-
vam, mas iiotava-se claramente como o partido aumeiil.a\.a em níimero aqui em liosso nliii1icí-
pio e eles estavam conscientes de siia fòrça."
48 Sobre a Lei de Sêg~iraiicaNacioiial ver: (:aroiie, Flclgai-. Olzg~~r~quin e cl~ssrssociais nn Srg1o/cln
46 Citado por (hmsio do 1'07K) (.5/3/19:35). Verjoriial A fiderc~(;CCo(26/2/1935; 1/3/1935). Ainda I<e/)liOlictc( 1 930-1937). Siio Paulo: Ilifiisiio Eiiropéia tfo I,i\,ro, 1974.
segiiiiclo deptrirneiito prestado pc-:lo integralista caxiense Oswaldino Artico, "foi uma sitiiaçáo
d e muito pavor. Algiins clos nossos compaiiheiros estavam ai-niatlos. N6s fònios 12 d a i apoio aos
companlieiros dos níicleos locais, qiie estavam sendo hostilizados por capaligas de Flores da 50 A Fede,-ccçclo (%/2/193S). A reljr-essão ao integl-alismo eiicontrava rcspaido ern normas da L,SN
(;iinlra. Os partidos rt:piiblicanos liherais estairam perdendo espaço no estado. i1 ixaçiio era como: " [ ... 1 sâo coiisidc.rados CI-inies111-aticai-atos, iiieqiii\,ocainent pi.eparatórios, oii tie exe-
criai. o pavor. Qiiai~doestávarrios para rios retirar, Flores da <:iinlia mancloii setis capangas Segii- ciiçiio, qiie sc destinein a siiprir o11a rnrtd:ii- poi- meios ~ioleiiiosa :onstitiiição...<>ii a fi)i-ma cle
rança para cirria d e nós." goveriio; iiicitai- entre as classes sociais o cídio, oii instigii-ias à laita pela violincia." (Citacio poi-
pula da AIB a refoririular seu estatuto, extinguindo as milícias Por sua vez, com a finalidade de combater os "eextremi~mos'~ de
integralistas. Esvaziava-se uma das armas de defesa e propaganda do esquerda e direita em favor da liberal-democracia, formou-se em Porto
movimento. Alegre no final de 1936, uma organização de jovens universitários viii-
Por outro lado, paradoxalmente, a LSN acaba fornecendo argu- culados ao PL, o "Centro Universitário de Estudos Políticos e Sociais".
mentos para a continuidade de atuação da AIB no país e no Rio Gran- O alvo principal do Centro recaía sobre o integralismo e as idéias de
de do Sul. A partir de sua edição, o integralismo finalmente registra-se Gustavo Barroso. De acordo com os "liberais", a simples presença dos
como partido político e como um centro de estudos e de cultura mo- integralistas em um local era suficiente para provocar toda espécie de
ral, física e cívica. Ate então, a AIB atuava como um "movimento políti- tumulto. Por ocasião de um congresso do PL, em julho de 1936, é apro-
co" em sua lógica dc condenação ao partidarismo. Corno organização vado por unanimidade uma moção contra o "extremismo de direita",
política legalmente registrada nos Tribunais Eleitorais, a AIB garantia referência clara ao integralismo." De qualquer forma, nas regiões onde
pela constituição e pela própria LSN, sua liberdade de fuiicionamento. o PL ainda mantinha uma certa presença política, como na zona da
Também como centro de estudos poderia desenvolver suas práticas campanha, o integralismo não tivera maior inserção.
doutrinárias. A fundação tardia de núcleos integralistas na zona da campanha,
Contrariando as decisões do governo estadual, mediante a LSN, a como o de Uruguaiana em agosto de 1936,já encontra a resistêiicia
AIB volta a usar a "camisa-verde" em público. Está liberada a realizar articulada do PL. Segundo A Nacrio, jornal da FU, "hoje pela manhã a
reuniões fora de suas sedes, desde que devidamente autorizadas e fisca- cidade amanheceu cheia de propaganda in tegralista [...] o iii tegralismo
lizadas pela polícia. Por fim, a LSN oferece a oportunidade de defesa não passa de letra mort-a. O povo brasileiro e, em especial, o gaúcho
legal à AIB. Alegando coação, os líderes do integralismo recorriam sis- não suporta regimes despóticos, tal como o que preconiza o
tematicamente ao Tribunal Eleitoral com vistas a fazer valer seus direi- Integralismo, o extremismo de direita." Quanto aos responsáveis pela
tos de partido político. Tais prerrogativas eram devidamente reconhe- AIB em Uruguaiana, A Naçãu alertava, "aconselhamos esses iiossos
cidas pelos i~itegralistas.Seguiido Anôr Butler Maciel, patrícios a voltarem para a derriocracia, desintoxicando-se da fantasia
reacionária de Plínio Salgado."" O PRL local segue na mesma linha,
a LSN não nos atinge, porque a nossa doutrina política não se enquadra publicando em seu jornal A fronteira, "os integralistas arrumaram sua
nos extremismos que aquela lei visa coibir. Se somos um partido nacio- toca em nossa cidade. O integralismo consegue atrair alguns incautos
nal, se não há lei que proíba a pregação de nossas doutrinas, quem nos
poderá impedir de fazer propagandas em sessões pública^?^'
que se aproximam de sua órbita. Integralistas e comunistas, dois iiiimi-
gos entre si e inimigos comuns das riossas tradições, da nossa dcmocra-
Em todo caso, os militantes do integralismo consideram por bem cia. Era a praga que faltava em nossa cidade.""'
recuar neste mornento, "não realizaremos mais desfiles, porque não A região sul do Estado, mesmo apresentando estágios diferentes
precisamos mais deles. Os desfiles custam muitas despesas. Poderemos de moderiiiza~ãodo seu complexo pecuário, persistia em um modelo
agora fazer esta ecoriomia. Afinal, a perseguição aos "camisas-verdes" é econômico pouco dinâmico. Tal estrutura era marcuda, por um lado,
o primeiro sinal de nossa ~itória."~? Não importa, a perspectiva de con- pela concentração latifundiária da propriedade e pela criacão eni mol-
fronto permanece a regra entre as duas instâncias partidária^.^^ des cxterisivos, de outro lado, pelo processaniento da carne baseado
em uma tccnologia arcaica, com alto custo de produção e baixo valor
de troca do produto. A resisttrrcia em efetuar uma divisão dos latifiín-
Caroi~e,E., oji.cit., p. 333). Seguiido a perspectiva do PKL,, era exatameiite este o propósito da dios e em introduzir a cultura intensiva implicava na baixa retribuição
AIB, a tomada d o poder pela violêiicia, daí a legitimidade em combatê-la.
51 Artigo de An6r Biitler Maciel, Aos inkpalistns e floIiGl)lu.o,piiblicado 1x0 Cm& (1« P m ~ o(16/8/1935).
52 Declaração d e D. Bitteimcourt ao Correio do Povo (8/8/1935). 54 &?-raio do I'o'oí)~ (18/ 12/ 193G); A h!P7~0lli('60(25/7/1936).
53 N o alio d e 1936, por exemplo, são fechados os nncleos dos muilicípios d e Taquara, d e 5.5 Citado pelo (:on.eio do Po71o (14/8/193G).
Molitenegro, d e Cruz Alta, de Erecliim, de Canela e de C;ramado, sob a aclisação d e desacato à
56 Citado pelo C:orreio cio Po7)o (14/8/1<)36). Em relacão ao cintagonismo entre PL e AIB, o relato
aiitoridade e pei-tlii-baçáo da ortlem. Em Estrela, o chefe muiiicipal é preso; em Palineiras, os
d e Mralter Gomes cle Alrneida (eiitrevista coixcedida em 199l), qiie pei-reiicer-a ao integralismo
iiitegralistas são coagidos a abandoilar a cidade. A AIB tenta instriimentali~aros motivos da
d e Rio Grande fornece iiidicaçóes. A fiiiitiação do i-iítcleo ocorrera já em outri11i.o cle 1934,
peisegitiçtto: ':Já agora, não somos uma simples esperança. Somos um fàto. Existimos. O KS
porém o coi:tiiigeiite cic acleptos iião crescera niiiito, Segiindo Almeicla, "lá, os rnembi.os clos
cleixoii d e ser o ~relhotablaclo das lutas de base clos partidos tradicioiiais. Os partidos liberais-
oiitros partidos lios cliamavam d e galiiilias-vertlês. A AIB se i-ebelaxla cotitrti o PI, devido a ex-
dcmocráticos morreram. Morrerain lia coiisciêiicia do povo. Nitig(iém mais acredita iios políti-
ploração d o ti~aballiatloiI-iii-ai,os peões eram misersveis, maltratados pelos pati-óes tlo PI,."
cos. Quanto ao iiitegraliçrno, pçrcorram o iiiterior da Piovíiicia. O fàto salta aos olhos d o obser-
vador menos avisado." (i1 Ke-riolu~no,18/7/1936)
do trabalho e na restrita circulação de riquezas, serido as relações de tidária ocupara apenas urna secão do rnovinieiito, agora devidanieiitc
produção caracterizadas, em geral, não pelo salário fixo, mas por ou- extinta. A AIR rcaclquiria, no novo sistema, insistiam os líderes
tras formas de remuneração, incluindo abrigo, alimentação. A estagna- integralistas, o seu real carátcr de associacão de estudos, de ediicação
ção das charqueadas somava-se à redução das exportações e o declínio moral e esportiva. Por siia vez, o I'RL considerou a dissoliição dos
da indústria frigorífica motivados, em parte, pela retração do mercado partidos políticos Lima prova cabal do espírito democrático do gover-
e queda de preços em função da crise de 1929. no \largas. O fim do iritegralismo como partido foi comemorado como
Os mecanismos de produção que marcaram a porção sul do Esta- uma medida ímpar.
do favoreceram a coiistrução de uma sociedade senliorial, onde as rela- Os iiiciclciiies entre o Governo Federal e a AIR nacional 110 pós-
ções sociais eram essencialmerite do tipo patriarcal autoritário, com Estado Novo, porem, pcrmaiiecein e acerituaiii-se, fato que renova e
estratificação poiico acusada e baixa mobilidade social. Nesta socieda- reforça as liostilidades mútuas rio Rio Graiide do Sul. Segundo repor-
de, cujos vínculos de dependência entre oligarcas e camadas populares tagem de O Momento de março de 1938, um dos jornais controlados
mostravam-se acentuados, a vertente liberal-conservadora estabelece- pelo PRL,
ra, desde meados do Império, uma sólida ordenação política baseada
na fidelidade de seus membros e no voto condicionado." Sendo assim, prossegue por todo o país, a carnpaillia que o governo desenvolveu con-
o modelo sociopolítico vigente precluiu o espaço necessário à inclusão tra os adeptos do " p a ~ i overde9'.Precisamos oI1iar com firmeza ao redor,
de um movimento com o tipo de apelo participativo e ideológico tal verificar bem de perto quem eram os adeptos de ontem e os inimigos de
como, a AIB.5Y hoje; mais cuidado deve ter 0 g ~ \ ~ e i - nDebaixo
o. de demoiistraç6es Iiipó-
As animosidades generalizadas das forças políticas gaúchas do- critas pode estar escondido aquele que mais tarde poderia ser o porta-
minantes agregou-se, por fim, o advento do Estado Novo em novem- dor do punhal homicida coiitra o povo que iião quer o regime estraiigei-
bro de 193'7. Tanto a AIB quanto o PRL apoiaram inicialmente o novo ro e coiiti-a o governo que se inicia e que trabalha.
regime. Para os integralistas, o fim das práticas político-partidárias no
país parecia vir justamente ao encontro de seus princípios de base. Coiicomitaiite aos acoiite(.imciitos do país, a dcsarticiilação dcfi-
"Os homens de partido não trepidavam em pôr em execução os mei- riitiva do iiitegralismo no Rio Grande do Sul sucedcu-se com o fracasso
os violentos, sacudindo o país, de tempos em tempos, com movimen- do golpe de 11 de maio de 1938, quando alguns integralistas rebela-
tos armados que perturbavam o ritmo normal da vida da Nação [...I rarn-se coii tra o governo federal teli tando tomar o poder. I11tegralistas
se os partidos eram reconhecidaniente inúteis, riada mais correto e das mais diversas partes do Brasil forain convocados ao Rio dc Janeiro
natural q u e sua extinção", afirmava com eritusiasnio o j o r n a l para r e c e b ~ rinstruções. E l o q ~ e r i t eé o depoimento do niilitaiite
iii tegralista O Bandeirante."" Osivaldino Artico, "em Caxias, ficariros reiiiiidos esperando o sirial da
Os membros da AIB, neste raciocínio, iiegavam que sua orgaiii- rádio Mairink Veiga para começarnios a Kevolução. Iniciava no Rio. O
zação tivesse sido um verdadeiro partido político. Apenas iiiscrcvera- sirial não foi feito. Nós não tíiiliarnos armas. Nada organizado. Na liora,
se sob esta rubrica visando propagar idéias legalmente. A política par- íamos peiisar iio qiic fazer, mas iiada acoiiteccu. Ficou por isso mesmo
e o movimento iiitcgr;ilista terminou para ~cnipre.""~)
Enfim, o integralismo rcpresciitoii a« longo da sua exist6iici;i le-
gal no país, ciitr-c os aiios de 1932 c 1938, tima nianifcstaçao da maior
57 Pes~i\.eiito,Sciiidi-a. Ia:a ecoiiomia e o poder iios aiios 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, complexidade social eiigcndratla pelas tra~isforniaçõessociopolíticas e
1980; Triiidacle, EIélgio. As/~~rto.r/)oliticos m'chgranrletlse. 111:Dacaiial,
do sistema /)cl,-tirlh~.iore/~u/~licnizo
J . H. e C;oiizaga, S. h': llron07,ricr e/)olílircl. Poi-to Alegre: Mercado Aberto, 1979; No11, Maria Izabel. econ6rnicas ocorridas ao loiigo das décadas de 1920 c 1930. Em detcr-
I'artitios r /)oli/ica tau Rio Cmizde do Sul. Diss<oriaçãod e Mestrado em Ciência Política. Porto Ale- miiiadas regiões do país, o ~ i d eestia fase de transição revcloii-sc signifi-
gre: UFIIC;S, 1980, cativa, a rcceptividade à AIK rxpi-iniiu-se de forma mais iiiteiisa dado
-58 A peqiieiia receptividade do iiitegralismo lia zona da (:anipaiilia revela-se rio esforço d e kizei- ao sca caráter de rnovinicnto político pretensamen tc alternativo ao slrrtlcs
avaiicar o nio\.iinento ria regiâo siil pelo eiitâo chefe pro\rincial, Nestoi- Coiitreiras lioclrigiies.
N o iiiicio d e 19:37, o líder reali~auma viageiii d e 40 dias pelo sril com o claro objetivo d e "levar quo. Coni eicito, siias práticas e propostas radicais com base fascista for-
aos gaíiclios da froi1teir.a a palavra d e fi: clos caniisas-vei-des" (segtiiido eiiire\~istad e (:ontreiras neccrain urii projeto político aiitoiiomo aos segmentos sociais emer-
Rodi-igiies prestada ao í.hi.wio (/o (>o~)o:2/1/19117). O iiúriiero de inilitai-ites iiisci-itos nos iiúcleos gentes ~ L N : se ideiitificavaiii corli tal gCnero de apelo.
ii1~111ici1,aistias cicl;ides visitatlas iiiclica a l ~ i x apeiieti-;ição da AIB: 13agi.. 30; Uriig~iaiaiia,22;
!llegrc.te, 25; D.Pecli-ito, 16; Pelotas, 50. ( C : o ~ x i doo Pu7)o: 20/1/ 193'7)
1 G e r t ~Kenk
, E. "O Estado Novo: um invt.i~táriohistoi-iogrifico". 111: Silva,José I,iii~MTerneckda
(Org.). Ojezxr e o przrrnn: u m a rez~z~üo cio E5lndo Novo. Kio d e Janeiro:Jorge Zah'ir Editor, 1991, p.
111-131.
2 Levine, Kobert. A 71elhausilzn: Pel-rznmbuco n,nJidernçtio brclsileirn, 18891937. Kio d e Janeiro: Paz e
Terra, 1980; Love, Joseph. A Loromolivn: Süo Paulo ?znJideraçcio b~asileira,1889-1937; M7irth,Johil
D. OJieldn balança: Minas Gerais 11a federação brasileira, 1889-1937. Kio d e Janeiro: Paz e Terra,
1982.
3 Além das várias obras da aiitora sobre a Kepública Velha, cf. I'esavento, Saiidra J . 1s:ecoiiomia
e poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1080; Kakos, Margaret Marchiori. I'oilo
Akgrr e seus elemos intendentes. Porto Alegre: Edipttcrs, 1996; Peterseii, Sílvia K. F. e Lucas, Maria
Elisabeth. Antologic~do ?rro-oitnen,tooy~erririogc~úclzo,1870-1937. Porto Alegre: Editora da Universi-
dacle/Tcliê, 19532.A referência brnzilic~?~,i~tn para o Kio Giaiide do Sul neste contexto é Bak,J o a n
L. Sow~ea ~ l l e c ~ d r rqf~ tcor~)or(Lti.s~tz:
s .slc~t~
P C O ~ I O ? ~il1l~r71~?1~tiot1
~~C nnd r-urnc!o;gvtzizn~ioni n Urazil: the c c ~ s ~
oJ'I-?io Grnnde do Sul, 1890-,1937.I'ale: Yale University, 1977 (Tese d e doutorado).
Qirrri q~iisesseiriformar-se sobre a liisthria do Rio Graiidc do Siil O Estado Novo (1937-1945)
de 1937 cm diante tinha, assim, a seu dispor niio milito mais do que as
poucas iriformaçóes e ariálises coii tidas em algtiris manuais, como os de O livro de Cai-10s Cortéss cobre, como indica o subtítulo, a história
Artliur Frrreira Fillio e Saiidra Pe~aveiito.~ O íinico trabalho publicado política sul-rio-graiideiise de 1930 a 1964. Apesar de prodiirido no iní-
de maior fôlego era o de Carlos E. Cortés intitulado Gaz~clzo~oliticsi n cio da década de 1970, continua sendo uma obra incoritoriiável, a úni-
Braiil: thepolitics of Rio Grande rlo Sz~l,194?0-1964,que, além das barreiras ca piiblicada - mais detalliada - que se pode recomeiidar a queiri solici-
liiiguísticas e do fato de não poder ser adquirido em qz~akquerlivraria ta iridicações bibliográficas sobre o pcríodo. Mas aprcseiita um proble-
brasileira, eral interessaiitemente, pouco denso em relacão aos anos de ma em relação ao período do Estado Novo. A tentativa de explicação
1937 a 1943, mas rclativaniciitc cletalliado para o período posterior. Cla- há pouco citada sobre a escassa liistoriografia a respeito do período iios
ro, havia alguiis textos memorialísticos c jornalísticos, mas nada de sis- Estados - a de que os autores, apareiitemerite, partem do pressilposto
temático. de que, após um longo período de ceiitrifiiguismo das partcs em rela-
Uma recente obra acadêmica coletiva de qualidade respeitável, ção ao ceiitro, este passa a impor siia supremacia sobre aquelas, e que,
sobre 400 anos de história sul-rio-grandense, mostra que o período aiii- portarito, iião faz mais seriticio estudar as partes para cnteiidei- o todo,
da permanece como um terreno difícil para os liistoriadores gaÚclios5, mas sim deve-se estiidar o todo para entelider as partes - essa cxplica-
e isso qiiarido em relação à liistória iracioiial existe, entremeiites, uma ção parece coiifirmar-se no livro de Çortés. Se o restante do livro --
bibliografia considerável.'' Com isso, aquilo que se tem, ainda, é muito tanto para o período anterior a 1937, quanto para o posterior a 1945 -
pouco deiiso para teiitar uma síntese ou, ao menos, traçar as lirihas- está recheado de daclos sobre o Rio Grande do Sul, é absolutameiite des-
mestras da história do Rio Grande do Sul no período. O que pode ser prezível o coiiteúdo que apresenta sobre a história gaúcha no referido
fcito é uni despretensioso arrolamento Iiistoriográfico, destacaiido algu- Capítulo - o sexto -, deseiivolvc.iido,lia verdade, uma 1iistói.iado Esta-
mas áreas ou aspectos que foram contemplados com estudos.'
do Novo em iiível nacioiial.
Como os anos que vão de 1937 a 1964, do ponto de vista político,
Entre os trabalhos mais antigos, também merece citação iima dis-
podem ser divididos em dois gr-andes períodos, o Estado Novo (1937-
sertação de mestrado de Geraldo Miiller (1972). O aiitor propóe um es-
1945) e a República liberal o ~populista
i (1946-1964),se observará essa
niesnia divisão na apresciitação da liistoriografia. Alguils trabalhos, evi- tudo da história rio-granderise de 1889 a 1964, dividindo esse período
dentenreiite, se estendem pelos dois períodos ou ainda iiicluem perío- em três fases (1898-1930, 1930-1955, 1955-1964). Como essas fases, so-
dos aquém c além dos anos iiidicados. Nesse caso, poderão ser citados bretudo a seguiida, iião são deliniitadas taiito por eveiitos 19olíticos,
11os dõis itens. mas muito mais pelo desenvolvirneiito socioecon6mico, o Estado Novo
se localiza iio centro dc uni período qiie o extrapola croiioloçicamentc
para trás e para freirte. No eiitaiito, aléiii dos dados que o aiitor apre-
seirta em r c l q ã o ao períoclo Estado-liovista, o texto rner-ecc sei- citado
4 Fel-reira Filho, Ai.tlitic Hi.sió/in (:~r-crld o Rio G/.cr/zrle(10 Sul. Porto Alegi-e: Globo, 19'78; Pcsa~~eii
to, neste contexto, por estar estruturado da segiiiiite forma: para cada iinia
Saiidra Jataliy. Ilis/ór.icl do I i i o (;7atsde (10 Sul. Porto Alegre: Rlercado Al)ei-to, 1080. das fidses é feito, primeiro, urn estiido do processo "real" c, dr~)ois,do
5. Qie~eclo,.Jíilio(Org.). Rio (;~-(zn(lp(1'0 Szil: 4 séciilos clc Elisttjria. Poi-to Alegre: Martiiis I,ivreiro, processo "nieiitado" sobre essc real, Em outras palavras, o auto1 estiida
1999. A heni cla precisão, deve-se destacar tliie iini (10s textos - de Orlai-itlo Foiiseca, p. 383-397
- ultrapassa o ni:irco d e 1930, ao tratar cio i~ioviineiiionativista, a partir da d6cada de 1970, corn
primeiro a iiifi-a-estrutura e depois a superestrutura oii o iiível de coiis-
ii-iteresse especial pelas C;alif'óriiias tla Caiiçáo. ciência sobrc a realidade. E esse seg~iiidopasso é desenvolvido de Sor-
(j Para tima avaliaçrio historiogi-iífica inais i-cceiite iio que tai-igc ao Estado Novo, cf'. (:apelato, ma sistemática, corn base lia aiiálisr de um ou dois autores que escreve-
R'Iaria ITeleina Kolirn. "E:stacio Novo: iio\.as liistórias". 111: Freitas, Marcos ( k ~ a r(01-g.). ram iia época sobrc a realidadc~que estavam vivenciaiido. F:, irrsse se-
His/o/.iog/-cllinOrasilpirn em , h ~ r a / ) ~ c i iSào
~ ~ aPaiilo:
. (;oiitexeo, 1998, p. 183-213.
7 De\sc-se eiif'ati~arque o levaiitamento 11ào se pi-etcntlc cornpl<,to.Alkr~icias b~iscasern l~il~liote-
cas, iio cliie taiige aos trabalhos acatli.micos iiào piiblicacios, recoi.reu-se aos PI-ograrrias d(: Pós-
C;i;rciria~àoein I-Iistói-ia- e eveiittiali-iientc de oiitn-as ireas - tlo estado, ate iim passatlo r-eceilte. 8 De agora em diante os iiorries ciii i-icgi.ito pi <-rciitl(~in rcnietei- i bil~liogr-afiaapi t.sc.iitatla n o
P;rr;i os l'rograrn~as de oiiti-os esiaclos isso sti foi kiio ate 1904, período eiii qtte terminam os filial d o texto. Caso o iiorrie cativei- acoiiip;~itIi;itlod c uma data, sigiiificai-5 qric se csrarã fàzeii-
caiáiogos dispoiií\~eia((;ori,Ca,(hrlos Iliinibei-to lorg.1. (,'c~ihlogotl(1.s ~ ~ . s J P ) I N P( te,sfJ,s
~ ~ J clo.s n ~ / s o dp
s d o i-efei-i-iiciaà obra (10 aiitor l~iil~lic~atla iiacliicla data. Qiiaiido i ~ à ohoii.i~eii i i d i c ~ i ~de
a r ~tl;ita,
/)cí,-g~atll~cl(.No e111fIi~iÓ/.Irl,1971-1YSj. Floi-iaiiópolis: Etlitoia da UFSC, 1987; <;apelato, Maria li<:le-
sigiiificai5 qiie scí 6 citada iiiii:i ohi-:i c10 ;rLiroi oii que a refi:rêiicia iitiiige iocicrsas obias ali-o1acl;is
ii;i li. I ~ / o c i l c ~ lhis/ó/7cc1
io 1 1 0 BI-cisil, 19(Yj-1994: carálogo t l e iiisserta<õt:s e tesc-s dos prograinas e
do aiitoi-. A l)il~liografia~i~)i-cseii(a~l~i iio fiiiitl, iiatiii.almcnte, é mais arril~latlo cliit. as i-<-fi.i.i.i~cias
fcitas
" . iio texto.
ciirsos cle pós-.-gi,atliiac;ão erri I listciria. S5o Paiilo: Xamã, 199.5 [ 3 vols.] ).
g u n d o momento, os dois autores que são analisados como sistema coronelístico foi afetado de forma significativa ou, pelo coiitrá-
paradigmáticos escreveram durante o Estado Novo: Limeira Tejo e rio, apesar do discurso oficial sobre um novo papel para essa unidade
Wolfgang I-Ioffmann-Harnisch." político-administrativa, tudo permaneceu mais oii menos no mesmo?
Sem dúvida, um trabalho de peso sobre o Estado Novo no Rio Num levantamento relativamente detalhado sobre as mudanças e/ou
Grande do Sul, escrito antes da década de 1990, é a dissertação de permanências político-partidárias nos principais municípios gaíichos,
mestrado de Dilan D. D'Ornellas Camargo. Baseado em farta documen- Colussi mostra como o pertencimento partidário dos detentores do
tação arquivística, analisa o papel e a atividade do Conselho Adminis- poder local no momento do golpe, em novembro de 1937, foi decisivo
trativo de Estado (CAE). Extintas as Assembléias Legislativas, com a para a ocorrência ou 11áo de mudanças.
decretação do regime implantado em 1937, esse órgão visava, de algu- Uma tentativa de verificação empírica pormenorizada das teses mais
ma forma, substituí-Ias, seja no seu papel de exercer algum controle gerais de Colussi foi feita na dissertacão de mestrado de Sandra n/laria
sobre o Executivo (os interventores), seja no de receptáculo de de- Amara1- orientada por Colussi -, ao dedicar-se a uma avaliação sobre a
mandas da sociedade, como os vários estratos sociais, as associações elite política e as relações de poder em Ijuí entre 1938 e 1945.
de classe e os poderes locais. Camargo tenta responder como o CAE Afora esses estudos sobre história política, na década de 1990, as
desempenhou esse seu papel, analisando desde as origens sociais e o preocupações com o Estado Novo no Rio Grande do Sul se voltaram,
posicionamento político-ideológico de seus membros até suas ações e muitas vezes, para aquilo que se poderia chamar os aspectos ideológi-
decisões. O trabalho reflete aspectos importantes do funcionamento cos e culturais, uma característica também constatada por Maria Hele-
da administração do aparelho estatal, conflitos intraburocráticos e de- na Capelato para a história sobre o período no Brasil todo." Sem gran-
mandas sociais, que nas fontes jornalísticas da época, por exemplo, de preocupação com a cronologia do surgimento desses trabalhos, cer-
eram, naturalmente escamoteadas. Esse trabalho é, sem dúvida, um tamente é justo começar a enumeração com a dissertação de mestrado
dos mais importantes para entender-se vários aspectos do Estado Novo de Gláucia Konrad. Centrado na política e na prática culturais do perío-
no Rio Grande do Sul.'' do, um dos aspectos importantes do texto é a constatação de resistêiici-
Esses são, salvo ignorância minha, os principais textos mais amplos as aos ditames do regime nesse campo e também de divergências inter-
sobre o Estado Novo no território gaúcho, surgidos antes de 1990.Houve nas entre os próprios mandatários e apoiadores no que se refere às
alguns outros, mais específicos, que serão lembrados adiante. Dos que medidas restritivas e seus limites, mostrando, dessa forma, que o
surgiram na década de 1990, merece destaque, neste ponto, o de Eliane monolitismo não era absoluto, deixando claro, inclusive, que algumas
Colussi, pois se coloca na tradição, e de certa forma como contiiiuidade personalidades ligadas a instituições não estatais, muitas vezes, procu-
crítica, do de Dilan Camargo. Centrando sua atenção na política em ravam ser mais realistas que o próprio rei.
nível municipal durante o período, preocupou-se em saber se a centra- Todo aquele que tem alguns conhecimentos básicos sobre os anos
lização representou uma ruptura nesse nível, e, portanto, uma mudaii- 1937-1945 sabe que a "campanha de nacionalização" foi um assunto
ça substancial naquilo que fora uma das características marcantes da muito importante nesse período.'' A partir do pressuposto (correto ou
República Velha. A pergunta que o iiorteou foi a seguinte: houve mu- errôneo) de que havia um perceiitual bastante alto da população não
danças marcantes na configuração da política em nível municipal, e o assimilado nas regiões de coloiiização, coiistituindo "quistos étnicos",
foi, inicialmente, realizada unia ii-itervenção no sistema escolar nessas
regiões. Vinculada a essa política, foi desenvolvido um programa de
9 Tejo, Limeira. "A inclíisti-ia rio-graildense em f~inçãoda ecoilomia i-iacioiial". Iri: Diretoria Geral
d e Estatística (ed.). E,slatística inuizlsllicll do 12io Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1939, p. 5-58; trazer "coloninlios" para a Capital durante a Semana da Pátria, a fim de
I-Ioffmanil-IiIarilisch, Wolfgang. Rio Crancle clo Sul: a terra e o homem. Porto Alegre: Globo, "abrasileirá-10s". Mas para atingir os objetivos, era necessário não só
1941. Cabe destacar que a escolha d e Hoffmaiiil-Hariiisch, iiatiiralme~lte,poderia ser criticada, lidar com os alunos vindos do interior, mas preparar a populaqão porto-
pois tratava-se de um teatrólogo social-democrata alemão que buscou asilo político 110 Brasil
lios alios 1930, e resolveu escrever uin li\rro sobre o pais, então goveriiado por Getíilio Vargas.
Segiirido siias próprias palavras, fez, para tanto, primeiro, uma visita ao Kio Grande d o Si11, a
fim d e familiarizar-se com a realidade dentro da qrial o presiderite da Kepública se criara. E
dessa viagem resiiltou o livro em qiiestào. O autor, assim, iiáo tiilha raízes 110 estado e 11ão era I 1 Capelato, o/). cii.
iim intelectual qiie, ilecessariamei~te,refletisse a visão e o peilsameiito sequer d e uma parte da 12 As principais obras da +oca sobre esse tema são: [Farias, Oswaldo Cordeii,o d e ] . Nnrior/í~lizn-
elite gaiiclia. ~60:dois clisr~osos.S . 1.: S. e., [1941]; I.,eiizi, Branca Regina (Org.). Os colonin1~o.r: S~rrln?znda I'iit,ia,
10 Não se pode esquecer d e consiiltar o relatório do iiiterve~ltoi-Cordeiro d e Farias (Farias, 1940. Poi-to Alegre: (;lobo, 1940; Py, Aurélio cia Silva. A 5"olur~a n,o R171sil.Porto Alegre: (.;lobo,
Os\,aldo (:o1 (1eii.o de. R~ln!ntór?on/~rgrpntndocto Exlno. SI:L),: í;etúlio Ilol-rzeles Vargn.~.DD. l'lssitleute da 1942; Soiiza, J. P. Coelho de. Beuli~zcin:o ,znzisr~~o uns escolas do Rio ( ; , ~ I L ( L Pdo Sul. Poi-to Alegre:
I?e/)iiblica,/)elo general Osualdo... Porto Alegre: Of. Gráf: da [mprerisa Oficial, 1943. Thrirmail, 1941.
alegrciise para recebê-los adcq~iadaineiite.Para coiiseguir isso, a im- Alaria IIoppe Kipper produziu, ern 1979, um pequeno livro sobre esse
prensa exerceu um papel muito importante. Andréa lbrres, graduada em tema em relação a Santa Cruz do Sul. Ele mostra a iritervenção no siste-
joriialismo, coiiseguiu apresentar iim bom quadro do papel da inipreri- ma de associações recreativas, culturais e religiosas e as perseguições de
sa nesse processo. Mesmo sendo um trabalho bastaiite diferente do que muitos cidadãos se tornaram vítimas.
anterior, traz uma coiitribuição importante para ampliar o coiiliecimen- Em 1992 o Instituto Histórico de São Leopoldo realizou seu X
to sobre o campo político-cultural da época. Simpósio, dedicado ao tema da nacionalização. O volume que contém
Mesmo sem ai-rolar uma diversidade tão gi-aiidc de fontes quaii- os textos dos trabalhos apresentados na ocasião foi editado por Telmo
to os dois trabalhos anteriores, a coinparação dos disciirsos refletidos Lauro n/luller, e nele se encontram estudos dos reflexos dessa prática
iium jornal de Porto Alegre e outro de Passo Fuiido feita por Saiidi-a sobre as escolas, a imprensa, as igrejas, ampliando, portanto, a temática
Leideris coiistitui unia conti-ibuição válida pai-a avaliar tendências ide- ti-atada por Maria Kipper alguns anos antes.
ológicas e a eficácia do sistema para produzir discursos para popula- Se os citados estudos se concentravam lia nacionalização em re-
ções-alvo diferentes. giões de colonização alemã, surgiram, mais recentemente, dois traba-
Pode-se eiifileirar nessa mesma categoria a tese de doiitorado de lhos acadêmicos que abordam a história dessa política nas regiões de
José Luit Nunes, sobre os articulistas do Correio do Povo. Os dois artigos, colonização italiana. São os estudos de Cláudia Sganzerla e Marcos
da década de 1980, de lornando i?inda$e sobre a fuiidacão da Faculda- Pagani. O primeiro é uma reconstituição bastante minuciosa das con-
de de Filosofia e sobre a polémica eiitre Erico Veríssinio e o padre Fri tzeii
4
' dições em que se refletiu a determinação estatal de reprimir manifes-
são, sem dúvida, também importantes para o eiitenclimeiito do contex- tações políticas e culturais em Guaporé - a autora estuda a atuação
to ideológico-cultural durante o Estado Novo. das autoridades policiais, o comportamento da população, as diferen-
O texto de Andréa Torres traz à toiia o tema do nacionalismo e de ças entre o centro urbano do município e as zonas rurais. O segundo
seus reflexos sobre a iiacioiiali~açáo,isto é, à forma em que o Estado apresenta uma forma de atuação nacionalizadora que nem sempre
Novo encarava e lidou com as populações de origem imigrante, priiici- foi explicitamente estatal, apesar de bem-vista pelo poder público - a
palmentc ceiiti-o-européias e japonesa. Esse tema já fora abordado por constituição dos Centros Culturais, que visavam levar a "brasilidade"
Maria Luita Morscl~,qiiando se concentrou na análise da dociiineiita- às tradicionais regiões de colonização italiana na Serra. Temos aí um
ção da Secretaria de Educação, destacaiido o que as autoridades da exemplo de atuação de "nacionalistas" muitas vezes alheios à região,
época pensavam sobre alemáes e descendeiites e que medidas aplica- que se dedicavam a "abrasileirar" a população através de palestras,
rarn na área da ediicação formal para tentar acabar com os problemas f~liidaçãode bibliotecas, ensino informal.
que elas viam como prejudiciais à iiacioiialidade. Destacou-se nesse pro- Mesmo tratando-se de um texto de menor extensão, o estudo
cesso o secretário da educação da época,Jose Pereira Coelho de Souza. de Regina Weber (1994) sobre os teiitos e o Estado Novo em Ijuí tam-
Quem quiser realizar um estudo sobre esse político lia citada fuiição bém se agrega a esse conjuiito temático. E não de todo descolada da
não poderá deixar de iniciar seu trabalho sem primeiro recorrer à dis- preocupação com os grupos étiiicos deve-se citar ainda a dissertação
sertacão de mestrado de Liiíza Morscli. de mestrado de Llébora Krebs sobre os judeus de Porto Alegre duran-
O tema eclucação comecou a ser tratado em sua aparente coiitra- te o período, na qual se destaca com maior ênfase que nos casos
dição eiitre coiiservadorismo e recepção de tendências iiiovadoras na anteriores a representação que o grupo étnico deseiivolveu de si
dissei-tacão de mestrado dc Afaria Carmen BuIDo.ru, seiido depois amplia- mesmo nesse contexto.
do na tese de doutorado de Maria Helena Bastos, lia qual a autora se Tudo isso tem, riaturalmeiite, a ver com a íbrnia em que se encara-
dedica a estudar a Reriirta do linsino, editada pçla Secretaria de Educa- va a história e a identidade étnica e cultural do Estado nos anos 1930/
cão. A partir da aiiiilise drssa revista, a autora pode discutir aspectos 1940. Além dos coiiteúdos que, a esse respeito, podem ser encontrados
variados da política cdiicacioiial, como as concepções pedagógicas que no livro já clássico de Ieda Gulfreind, onde sào minuciosamente analisa-
vigoravani, as divei-gêricias rntre as várias aiitoridadcs e iiistitiiições, das as várias matrizes historiográficas aplicadas a« passado gaúcho, a
eiifim foriiccer um pairiel daquilo que caracterizou esse setor da adirii-
tese de Luiz Henrique Erres presta iiiforniações mais detalhadas sobre
nistração pública gaíiclia.
como se interpretava a prcseiiça indígena na forrnaião do Rio Grande
A iiacioiialiração referida 110s trabalhos aiitcrioi-es não se resti-iii-
do Sul. Sandra P~sauenLo( 1991) escreveu um ensaio rápido sobre o regi-
giii à iiitervciição i10 sistema forriial de eiisiiio. A partir do início dos
oiialismo, tema cliie depois foi ampliado por sua orieiitaiida MariaElaine
anos 1940, a preocupação curn os "íliiistos étiiicos" amplioii cm miiito
Áuila em uma dissertação de mestrado.
as fi~i-mas de prcseiiça cstatal e paracstatal rias regiões de coloiiização.
A tentativa de esclarecimento das funções de irnpoi-taritesbrgãos corresporide em amplitude cronológica e C eqiiivaleiite em tcrnios
de imprensa foi feita por Estela Benevenuto em relação à Vida Policial, de importância. Também C uma história política, um pouco mais
revista editada pela polícia gaúcha no período e fuiidameiital para eri- "analítica" do que o livro de Cortés, mas igualmente bastante narra-
terider a ação policial do período, e por Mateus Dalmús no que tange à tiva, no sentido de apresentar uma infinidade de informações rele-
Revista do Globo - com certeza a mais importante revista gaúcha desde vantes para o período. Mercedes Cánepa estabeleceu como norte de
aproximadamente 1930 até os anos 1960 -, mostrando como a repre- seu trabalho uma comparação, ou iim paralelo, entre aquilo que
sentação de Hitler e da Alemanha foi se modificando à medida que a acoiitecia no nível estadual com aquilo que se passava no nível fede-
política externa do Brasil e a posição da opiiiião pública foram sofreii- ral. Para estabelecer esse coiifronto, privilegiou os momeritos em
do alterações no decorrer do tempo. que se processava a troca de governo, isto é, os períodos de campa-
iilia eleitoral. Depois das reflexões teóricas da cientista política -
pois trata-se de uma tese em Ciência Política -, a autora traça um
A República liberal (1945-1964) rápido quadro da conjuntura socioeconômica de 1945 a 1965 e da
Para o período 1945-1964 como um todo a mais importante refe- f o r m a ç ã o d a e s t r u t u r a p a r t i d á r i a regional, a p a r t i r d a
rência em texto publicado continua sendo, ineqiiivocaineiite, o citado redemocratização com a queda do Estado Novo. Nas restantes 330
páginas, debruça-se sobre as eleições de 1950, 1954, 1958 e 1962,
livro de Carlos Cortés. Ao tratar do período do Estado Novo, como que
para analisar com detalhes a campanha eleitoral, com seus discursos
levantou vôo, pois suas informações e seus comeiitários se referem qiia-
e programas, caiididato a candidato, dando atenção especial à ori-
se exclusivamente à política em nível federal. Terminada essa fase, po-
entação que os partidos ou coligações partidárias que apoiavam os
rém, volta ao chão, isto é, a detalhes da história política gaúcha, como
respectivos postulantes assumiram, naquele momento, em nível fe-
já acontecera com referência ao período de Flores da Cunha, de 1930 a deral, para confrontá-la com a postura que tiveram no nível estadu-
1937. O texto é de fácil leitura, numa forma de reprisentação esseiici- al. Segue-se uma análise dos resultados eleitorais e da administração
almente narrativa. O objetivo declarado dessa narrativa é o de demoiis- dos vencedores.
trar sete teses básicas sobre a história do Estado diirante o período. De Os traballios de Cortés e de Cáriepa, juntos, apresentam um im-
forma extremamelite simplificada, essas teses são as seguiiites: continii- portante arcabouço básico da história política rio-granderise do perío-
ando uma tradição que vem desde, no mínimo, o início da República, do da assim chamada Kepública liberal. Os doisjuiitos permitiriam, no
há dois campos político-partidários claramente definidos e estáveis, rio mínimo, a redação de iiin bom manual de história da política gaúcha
entanto - ao coiitrário do que acontece no restante do Brasil; as clivagens de 1945 a 1964.
político-partidárias superarn rodas as demais diferenças derivadas de Mesmo quc surgidos nos anos transcorridos entre a feitura de
outros tipos de iiiteresse; no período pós-1950 verifica-se um grande arnbos - e, por isso, sem levarem em conta o de Cáiiepa -, pode-se
equilíbrio entre os dois caiiipos, eiisejaiido, muitas vezes, o predomí- "rechear" a história política do período com uma série de estudos nie-
nio de um grupo no Executivo contra a presença majoritária do outro 110sabrangeiites em termos croiiológicos, mas igualmente importantes
no Legislativo, além da alternância no poder; o Estado conseguiu ser e coiisistentes, em geral aprofiiiidaiido sensivelmente aquilo que Cortés
fiel de balança político-militar em alguris momentos de grande crise e Cáiiepa só piideram taiigenciar.
institiicional em nível iiacional; a decantada autoiiornia regional - de O primeiro, e lia Iiierarqiiia acadêmica rnais importante, 6 o de
longa tradição - serviu, rnuitas vezes, para dar força 2s deniaiidas regio- Miguel Hodea, origiiialmente uma tese de doutorado. O autor historia o
nais; qiiando gaúchos, no iiitanto, eram alçados ao governo federal, surgimelito e o deseiivolviinerito inicial do Partido Trabalhista Brasilei-
tentavam desfazer a pecha de provincianismo derivada do liistórico ro iio Rio Grande do Sul, de 1945 a 1954, acompanhaiido a trajetória
destaque dado à autoiiomia regioiial, e não se valiam do poder federal dessa organização politica num primeiro ciclo de sua existêricia. São
para favorecer o Estado; fiiialmcnte, a política gaúclia foi caracterizada comporientes importaiites do conteúdo a comparação do PTB gaúcho
pclo persoiialisino pró e aiiti-Vargas. Indepeiideiite das teses, o livro de em relacão ao nacional, e uma tentativa de classificação de suas priiici-
Cortés é fundameiiial conio um panorama geral da história política pais vertentes, coiii ênfase nas relações eiitrc ni()vimentos sociais e as
sul-rio-graiidense, jiistariieritc porque faltam sínteses oii nianiiais mais duas mais destacadas lideranças: a de Vargas e a de Alberto Pasqualini.
detalliados do período. A reorgaiii~acáopartidária mais geral rio Rio Grande do Sul, após
Mais de tini qiiai.to dc sí-ciilo depois do surgirneiito dessr texto, a queda do Estado Novo, já fora tema da dissertação de Maria Amilia da
a p a r e c e u a tese tlc d o u t o r a d o d e Mercedes Cúnel>u, q u e l h e Costa. A dissertac;ãodc ~ o k Karnikoruski,
m por siia vez, pode ser encarada
corno um estudo coniplementar ao de Rodea, pois se propõe a rastrear Um dos episódios políticos mais marcai~tesda história do Rio Gran-
o Trabalhismo desde 1945, passando por toda a Repiíblica liberal, pro- de do Sul pós-1930 foi, sern dúvida, o movimento da Legalidade. E exis-
curando, inclusive, mostrar onde ele se localizou no quadro menos ni- te, a respeito, uma série de publicações, mas certamente ainda falta um
tido do regime militar. A bancada federal do PTR, durante o período estudo de maior envergadura. O que temos são textos mais ligeiros,
em apreço, foi tema do Caderno assinado por Manoel Passos e outros. que não resultaram de grandes pesquisas sistemáticas.'"
AnZcio Rech avaliou a campanha eleitoral de Egydio Michaelsen, pelo A década de 1950 caracterizou-se, no Brasil, pelo crescimento da
PTR, em 1962, tentando definir o que naquela campanha aparece como mobilização por demalidas de parte de uma variada gama de movimen-
típico e tradicional do discurso do bloco político que apoiou o candi- tos sociais: tiveram papel de destaque, por um lado, os movimeiitos
dato e o que deve ser visto como específico e circunstancial. Suely Bastos urbanos, liderados pelas organizações sindicais, por outro lado, os mo-
estudara,já na década de 1970, a cisão que ocorreu dentro do PTB, no vimentos rurais, dentre os quais ocuparam lugar central as Ligas Cam-
final dos anos 1950, sob a liderança de Fernando Ferrari, dando ori- ponesas, com seu epicentro no nordeste.
gem ao Movimento Trabalhista Renovador (MTR). Claudira Cardoso Esses movimentos não estiveram ausentes do Rio Grande do Sul e
abordou a política de alianças do relativamente pequeno Partido de foram tema de alguns estudos, mesmo que relativamente pouco divul-
Representação Popular (PRP) com o PTB, em 1958, partidos que, teo- gados. No que tange aos de caráter urbano, Maria Elisabeth Crimberg
ricamente, se encontravam em pólos opostos do espectro político, tcn- estudou os movimentos operário, sindical e popular no início dos anos
tando explicar por que essa aliaiiça foi possível naquele momento e 1950. Ela procurou caracterizar as especificidades relativas à constitui-
por que ela não pôde ser mantida nas eleições de 1962. Estas rápidas ção e organização da classe trabalhadora no Rio Grande do Sul, tentan-
referências mostram que a história do PTB e de suas adjacências é um do analisar a forma específica de organiza~ãodos movimentos operá-
dos temas mais estudados. rio, sindical e popular, sua articulação com os partidos políticos - com
Neste sentido, merece destaque o empreeiidirnento de Lisandre ênfase especial sobre o PTB e o PCB - e seu relacioiiameiito com o
Oliveira em deslocar-se, praticamente, para o pólo oposto do espectro governo. Receberam ateiição especial ferroviários, motoristas de Ôni-
político-partidário e realizar um detalhado estudo sobre a Uiiião De- bus, greves de bancários, marítimos e metalúrgicos.
mocrática Nacional (UDN), abrangendo todo o Estado, e partindo das Já Maria Assunta Za?zfeliz e Elisabeth Mama Pedroso concentraram-se,
primeiras articulações ainda sob a vigência do Estado Novo até a extinção cronologicameiite, nos anos seguintes, isto é, os mais críticos que ante-
do sistema multipartidário e a criação do bi-partidarismo, em 1965. cederam 1964. Zanfeliz preocupou-se com o período dos dois últimos
Como se vê,juntando os trabalhos de Cortés e Cáriepa e os citados governos pré-1964. Coiistatou, como era de esperar, uma diferença
trabalhos referentes a partidos específicos, tem-se um bom número de muito grande entre os governos Brizola e Meneglietti no que tange ao
informações sobre o sistema político-partidário tradicional do Rio Gran- seu relacionamento e ao tratamento dado ao movimento siiidical. O
de do Sul entre 1915 e 1964. primeiro, ao contrário do que acontecia em algumas das principais
Não se pode deixar de lembrar que todos esses trabalhos se vale- unidades da federação naqueles mesmos anos, mantinha uma atitude
ram, de alguma forma, dos estudos deseiivolvidos por cientistas políti- de relativa complacêiicia com o movimento sindical e um bom relacio-
cos, desde a década de 19'70, sobre o comportamento eleitoral rio Rio namento com suas lideraiiças, priricipalmente através da Secretaria do
Grande do Sul," eiitre os quais se destacam os de flélgio Ti-iiidade Trabalho. No governo do segundo, as relações passaram a ser mais ou
(19'75, 1981, 1991), mas merecem referência tarnbém os de Leônidas meiios as mesmas dos demais Estados. Assim, a autora tentou avaliai-
Xausa e Francisco Ferraz, bem como o de Judson De Ceru.14 sobretudo o significado do governo Brizola para o movimeiito sindical
e para as massas trabalhadoras.
Partindo do pressuposto de que as greves são o momento mais
13 Um iilstriimento de trabalho milito importante, sob essa perspectiva, é Noll, Maria Izabel e "visível" do rnovimento sindical, e que 90% de todas as greves ocorridas
Triildade, tIé1;io (Coords.) . Estslntistirn.~c.bito7-clisco~n/)nrntLn.sdo Rio (;rccrtde (do Sul, 1 945-1994. Por- eiitre 1945 e 1979 se localizat-am no período iiidicado pelo título,
to Alegre: Editora da lJniversidade/Assembléia Legislativa, 1995. Pedroso fez urn levantamento c uma avaliação das greves da Capital e
14 Os cl2ssicos contemporâileos são: Azevedo, A. Fay d e & Rodi-igiies, Félix Comtreiras. "Os partidos do interior, procurando mostrar a ampliação do leqrie de reiviiidica-
políticos do Kio Graride do Sul: dois pontos de vista". iia~istnB1.nsilei1.c~ de Estsiudo.~lJolilicos, Belo
kIorizoi1te: IJFMG, 11.2, 1957, p. 7G-98; Azevedo, A. Fay de. '%alaiiço das eleiçóes cfe 58 iio Kio
Grande cio Siil". Ikisin Btn~iGirn(IeIntrr(1osPoliticos. Belo I-forizonte: UFM( i, 11. 8, 1960, 13.25.5-278;
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a reação dos setores que se seritiram prejudicados com elas e os limites nal para implementar urn processo de iiidustrialização, procurando de-
dessa mobilização. A atuação mais específica dos portuários foi estuda- finir os níveis de autoiiomia do governo estadual frente ao federal para
da por Edgar Gandra. Marcos Vinkios Saul realizou iima investigação cro- desenvolver esse projeto bem como os momentos de coopera<;ãocom a
nologicamente mais extensa, abrangendo todo o período de 1945 a instância nacioiial, importante para obter financiamentos. São analisa-
1964, mas numa extensão geográfica restrita, a cidade de Novo Ham- dos, d e forma coiicreta, as áreas de transporte, energia elétrica,
biirgo. Sobre o movimento dos professores públicos estaduais pode-se armazenamento da produção, assisteiicia agrícola, comunicações e edu-
encontrar referências sobre o período na dissertação de Eliezer Pacheco, cação. Por fim, a dissertação de mestrado de Pedro ?i de Almeida (1993)
mesmo que a parte mais substantiva desse traballio recaia sobre perío- representa uma importante iiitervençáo riiima discussão Iiistoriográfica
dos mais recentes. sobre o processo de iiidustrialização gaúcha. Defende a necessidade
Sobre os movimentos rurais, temos, no mínimo, dois trabalhos; d e viiiciilar esse processo - de Corma mais estreita do que isso tinha
um que aborda o Movimento dos Agricultores sem Terra (Master), e sido feito até então - ao processo nacional de i i i d u s t r i a l i ~ a ç ã o . ~ ~
outro que analisa a Frente Agrária Gaúcha (FAG).Trata-se das disserta- Esse breve comentário, bem como a listagern bibliográfica que se-
ções de mestrado escritas, respectivamente, por Cbrdula Eckert e Paulo gue, mostra que aiiida são relativamente escassos os estudos sobre a
Bassani. A primeira estuda a emergência do Master, sua atuação diiran- história do Rio Grande do Sul 110 período posterior a 193'7. Por alguma
te o governo Brizola, os primeiros acampamentos, a repressão sob o go- razão que ainda está por ser esclarecida, houve, rios anos 1980/1990,
verno Meiieghetti e o surgimento de movimeiitos alternativos contrári- um boom de estudos sobre a República Vellia, mas não se avançou cro-
os. Entre estes últimos estava a FAG - estudada por Bassani -, que surgiu nologicameiite. Pelas restrições à atividade política de 193'7 a 1945 é
em 1961, sob orieritação da Igreja Católica, tendo sua atuação, ao contrá- compreensível que os trabalhos sobre esse período teliliam dado mais
rio da do Master, ultrapassado os limites croiioló~cosde 1964. atenção a aspectos ciilturais e à questão da "nacioiialização", que atiii-
Quem estiver interessado na história ecoii6niica pode iniciar com giu iima parte muito significativa da população gaúcha. A busca de uma
a leitura de avaliações contemporâneas, como os livros clássicos de identidade étnico-culttiral está, evidentemente, relacionada à preocu-
Franklin de Oliveira e Paulo Schi1ling.l" A Bibliografia unalitica de aspec- pação contemporânea com as populações de origem "estrangeira". Não
t o . econômicos
~ do Rio Cs~andedo Sul: 1950 -1977foriiece mais informa~ões admira, pois, a ênfase da historiografia nesses temas.
sobre análises da época, constituindo-se em importante instrumento Quanto ao período de 1945 a 1964, a politização crescente da soci-
de trabalho." O pequeno texto de Manoel Marques Leite está acompa- edade brasileira como um todo e a suposta ou efetiva ti.adiçáo de eleva-
nhado de muitos dados com tabelas, gráficos, curvas, séries sobre o dos níveis de politiração do Estado desde o século XIX certamente ex-
intercâmbio economico com outros Estados e corn o exterior. O ti-aba- plicam por qiie a história política é aquela sobre a qual se prodtiziram
1110 de Cláudio Accurso e outros constitui um diagnóstico sobre o fraco mais estudos, de forma que talvez já liaveria condições dc tentar reali-
deseiivolvimento ecoii6mico na década de 1950, escrito por eiicornen- zar iima síritese, iiessc campo específico. E se isso aiiida é difícil, com
da d e uma comissão da Assembléia Lcgislativa, visando um plano dc certeza j5 se poderia escrever, ao menos, iam resumo ou iim manual.
ação, em meados da década de 1960. Mas representa uma importan- Falta, porém, avançar em todas as outras areas.
te análise tanto da evolução da agricultura quanto da indústria. Ke-
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17 Deve-se alertar que esse iiistr~imentod e trabalho 1150 constiiui um arrolamento d e trabalhos
historiográficos ,sobr~,mas siin de trabalhos escritos diu-ctnte o período indicado no título. Nesse
contexto cabe fazer referência, tainbém, a oiltros três importaiites instriimentos d e trabalho
nos quais poclem ser eiiconti~aciosdados e refèrências sobre os pei-iodos aqui abordados: Bail-
deira, Pedro Silveira e Metz, Marli, M. (coords.). 11,lcnlcnl biblio&niik/ic«de I ~ i s t ó ~ ~con6nziccl
ia do Rio 18 Para um born resumo tio processo ecoii6niico gaúcho tliiraiite o período em qiiestão, confira
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Nos anos 80, algumas cidades da região metropolitana de Porto
TRINDADE, Fernando Casses. "Uma contribuição à história da Faculdade de Alegre (RMPA) são vistas ora como cidades-dormitório, ora como mu-
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Porto Alegre: UFRGS, v. X, 1982, p. 39-53. nicípios que estão se industrializando e gerando empregos em virtude
dos distritos industriais, construídos a partir da década de 70. Intelectu-
TRINDADE, Fernando. "A polêmica entre Érico Veríssimo e o Pe. Leonardo ais (urbanistas, economistas, sociólogos), administradores públicos,
Fritzen". Revista do Instituto de filosofia e Ciências Humanas, Porto Alegre: UFRGS, I
1 políticos e a imprensa, seja influenciada por aqueles, seja elaborando
vol. XI/XII, 1983/1984, p, 35-98.
sua próprias interpretações, veiculam imagens nem sempre convergen-
TRINDADE, Hélgio. "Padrões e tendências do comportamento eleitoral no Rio tes, a partir de ângulos específicos de análise. Partindo de uma pesqui-
Grande do Sul (1950-1974)".Iii: W O U N I E R , Bolivar; CARDOSO, Fernaiido sa sobre jovens de famílias operárias, centrada em Cachoeiririha, ten-
Heiirique (eds.). Os partidos e as elcições no Brasil. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1975,
tando elaborar uma análise abrangendo diferentes pontos de vista, tan-
p. 153-204.
to dos intelectuais, quanto dos que vivenciaram a situação, este artigo
TRINDADE, Hélgio. "Eleições e partidos no Rio Grande do Sul: do sistema propõe a idéia de "cidades operárias" para algumas das cidades da RMPA,
multipartidário à criação do bipartidarismo (1950-1976)". In: FLEISCHER, David buscando relativizar tanto a idéia de cidades-dormitórios quanto a de
V. (Org.). 0 s partidos polilicos no Brasil (vol. 11). Brasilia: Editora Universidade de
Brasília, 1981, p. 190-235.
cidades industrializadas.
A partir do caso de Cachoeirinha,' sabe-se que há trabalhadores
TRINDADE, Hélgio e Noll, Maria Izabel. Rio Grande da AmCnca do Sul: partidos e que moram nesta cidade e trabalham em Porto Alegre ou Gravataí,
eleições (1823-1990).Porto Alegre: Editora da IJiiiversidade/Editora Sulina, 1991. assim como destas duas cidades ou de Alvorada vêm operários para as
WEBER, Regina. Os inícios da indust~/aliulçÜoern IjuzLi Ijuí: Editora da UNIJUI, 1987. fábricas do Distrito Industrial daquela, e sabe-se também que a popula-
MZBER, Regina. "Naciolialidade sem prefixos: os teutos e o Estado Novo em ção de migrantes, que coiitinuou a chegar na cidade, ainda vinha com
Jjuí". In: MAUCH, Cláudia; VASCONCELLOS,Naira (Orgs.). 0 s alnnücs no sul do a velha expectativa de trabalho, particularmente de trabalho industrial.
Brasil. Canoas: Editora da ULBRA, 1994, p. 105-1.19. Este estudo está indicando que nas estradas da RMPA tem havido um
MEBER, Regina. Os op~iriare a col~,lmn.
Rio deJaneiro: UFKJ, 1996.Tese (doutorado). constante trânsito, nem sempre aquilatável, de trabalhadores, não ape-
nas em função do trabalho, da moradia ou do consumo, mas da reivin-
UrEBER, Regina. O ~ ~ ( ~ b a l i ~fabril
u i l o rem ge~taçüo:depoimeiitos sobre os aiios 30 e dicação e do protesto.
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As "cidades-dormitórios"
(mestrado).
Nos anos 70, a visibilidade de uma "Grande Porto Alegre" existia a
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ZANFELIZ, Maria, A. C. As rek~çõ~s so'ciq9olitiras no Rio (&ande do SUL: governo, A pesquisa que deu origem a este artigo coiitou com fiilailciameilto d o CNPq (Bolsa PQ) e dela
:':
partidos e sindicatos na conjuiit~irade 1958 a 1964. Porto Alegre: UFKGS, 1980. participaram os bolsistas C;ersoi~ Waseil Fraga (PIBIC/CNPQ/UFRGS) e L.airtoil Pedro
Iaeiniibing (BIC/FAPEKGS).
Dissertação (mestracio) .
1 Ver R. Weber, 1998
ção iiidiistrial, isto é, a indústria porto-alegrerise extravasou os limites via, a atividade agrícola entrava em estagnação a partir da década de 50,
da cidade, instalando-se nestes municípios adjacente^.^ A Região Me- gerando expulsão da população do campo, que se dirigia para outros
tropolitana de Porto Alegre (RMPA) foi delimitada pelo Governo do Estados (Paraná, Santa Catariiia) ou para centros urbanos, notadamente
Estado em 1968 em função dos seguintes critérios: a continuidade dos para a RMPA. Em 1970, metade da população da região metropolitana
espaços "urbanizados", medida através de fotografias aéreas; os fluxos era constituída por migrantes, estabelecidos principalmente em Esteio,
de transportes, fundamentalmente de transporte de passageiros; as fun- Cachoeirinha, Alvorada, Sapucaia do Sul e Canoas, e, no período 1940-
ções exercidas por cada um dos centros urbanos periféricos ao espaço 1980,as áreas que correspondem aos atuais municípios de Cachoeirinha
urbano da capital." questão metropolitana compareceu pela primei- e Alvorada foram as que apresentaram maiores taxas de crescimento
ra vez na legislação brasileira na Constituição Federal de 1967 e foi populacional.'
institucionalizada pela Lei complementar de 1973. Em 1974 foram cri- Na década 80, principalmente na primeira metade, as consequ-
adas nove regiões metropolitanas (São Paulo, Belo Horizonte, Porto ências do êxodo rural são uma preocupação dos administradores. A
Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém, Fortaleza e Kio de Janeiro) e análise dos dados do Censo de 1980, associam o êxodo rural com o
os 14 municípios que compunham a RMPA eram, além da capital, Alvo- aumento da população "em cidades como Alvorada, Cachoeirinha,
rada, Cachoeirinha, Campo Bom, Canoas, Estância Velha, Esteio, Gravataí e Viamão, os chamados municípios dormitórios de Porto Ale-
Gravataí, Guaíba, Novo Hamburgo, São Leopoldo, Sapiranga, Sapucaia gre".8 Em Cachoeirinha, que dobrou sua população na década de 70,
do Sul e V i a m ã ~ . ~ surgiram mais de uma dezena de vilas irregulares, algumas sem água
Também o governo municipal de Porto Alegre se preocupava nes- ou luz. As declarações do prefeito - que, ao garantir que ninguém
ses anos com os problemas habitacionais da "região metropolitana", seria despejado, foi acusado pelos oponentes políticos de estar mon-
que estavam dando origem ao fenômeno das "cidades dorkitórios", tando "currais eleitorais" - explicitam o fenômeno sociologicamente:
resultado do descompasso entre o lugar de moradia e o lugar de traba- "eles chegam, se acomodam e depois vão buscar os parentes que fica-
lho.5 Para compreendermos este fenômeno, é necessário analisar os ram no interiorV."e muitos dos migrantes das décadas anteriores
processos de industrialização e aumento dos fluxos migratórios con- conseguiram o almejado emprego na capital, como demonstram as
j u n t a m e n t e com o processo d e ocupação das terras urbanas trajetórias de vida colhidas pela pesquisa, a crise do início de década
(loteamerltos). de 801°, que deixou sem emprego operários que já estavam alocados
O processo de industrialização que se intensificou no pós-guerra (as levas de demissões, principalmente nos setores metalúrgicos e de
estava concentrado, até os anos 60, em Porto Alegre, Novo Hamburgo construção), tornava difícil a situação dos novos migrantes. Um Semi-
e São Leopoldo. A partir de meados desta década, também no eixo nário de Planejamento Participativo, com a presença de 30 líderes
norte da região (ao longo da BR-116), Canoas e, com menor peso, comunitários, realizado em Cachoeirinha em 1981, concluiu que ha-
Sapucaia do Sul e Esteio, começam a adquirir importância. "Na década via necessidade de aumentar a oferta de empregos para atender a gran-
de '70, a construção da BR-290, que ligou Porto Alegre à BR-101 (litorâ- de massa de migrantes. No final da década, contudo, estes ainda são
nea), favoreceu a implantação de indústrias no eixo leste-nordeste - alvo de ações assistencialistas, enfrentando problemas de segurança,
Gravataí, Cachoeirinha e Alvorada"."nquai~to a indústria se desenvol- trabalho, saúde e falta de documento^.^^
pria ou cuja legislação era menos rigorosa e a fiscalizaçao irieficiente, na década de 60, prioritariamente, e 50, todas fora da cidade, teiido para lá se transferido posteiior-
mente com siias famílias ou parentes. Os depoimentos não seráo identificados.
18 Dvoraiiovski, C;lóvis. O p~-ocessode constituicEo de sujeitos politiros mediante n articulq-Eo entre o
socioj~olítiroe o reli~$xo:As coinunidades Eclesiais de Base em Cachoeirinha (KS), 1976198.5.
12 Ver Mombach, p. 112. Poi-to Alegre, UFKGS, 1990. Dissertaçáo de mestrado eni Sociologia, p. 80.
13 "Cachoeirinha destiila área de 41 1 mil metros qiladractos para migrailtes", & r o f i m , n. 5.732, I9 Associações reclamam contra os transportes, Zero Hola, 11. 7.904, 2 maio 1987, Geral, p. 25;
6juil. 81, Grande Porto Alegre, p 23. Passageiros apedrejam ônibris, 2 1 - 0 H o w , 11. 8762, 2 set. 1989, TI-ai~sportes,
p. 31.
Observe-se que o alto custo da habitação em Porto Alegre não ape- iiidustriais de Caclioeiririlia e Gravataí, paralelamente à coiistruçáo da
nas fazia com que os migrantes se instalassem nas cidades periféricas auto-estrada (BR-290),com a conseqüente realização de obras comple-
visando, prioritariamente, o mercado de trabalho da capital, mas teria mentares de infra-estrutura, produziram uma certa valorização dos seus
também ocasionado um "êxodo" de habitantes da capital para a região terrenos, deixalido Alvorada, Sapucaia do Sul e Viamão como opções
metropolitana nos anos 80. Alguns destes "retirantes" seriam pessoas mais baratas em termos de uso resideizcial.
que, na década de 70, teriam ocupado postos de trabalho nas indústrias Os loteamentos feitos nos municípios da RMPA rios anos 50 supe-
da periferia e que, pressioiiados pelo custo do transporte e da habita- ravam a demanda do mercado por lotes, mas essa "retenção especulativa
ção, passam a residir nestas cidades na década seguinte.?' (Porto Ale- de terras, à espera de maior valorização", por demanda de lotes e pela
gre, nestes casos, teria funcionado, por algum tempo, como cidade- expansão da infra-estrutura e dos equipamentos urbanos,27contribuí-
dormitório.) Na análise de Rigatti,?l o que ocorreu foi uma segregação ram para o fenômeno das vilas irregulares ou clandestinas, ocupações,
espacial da população trabalhadora nestes municípios da RMPA (Alvo- por centenas de famílias, de terras quase sempre pertencentes a "um só
rada, Viamão, Caclioeirinha, Gravataí) com "fuiição residei~cial'~ (ou proprietário":
de reprodução da força de trabalho), incentivada pelo Estado, que faci-
litou as ligações viárias entre estes municípios e Porto Alegre, onde se Inicialmente, a ocupação deste município [Cachoeirinha] se deu de for-
ma desordenada ao longo da Av. Flores da Cunha, única via que dá aces-
localizaria o setor de p r o d u ~ ã o . ~ , ~ "caso de Alvorada é extremo,
so a Porto Alegre. Em seguida, houve implantação de conjuntos
havendo no município, no início dos anos 80, vilas que possuem linhas habitacionais, loteamentos e, nos últimos anos, ocupações clandestinas
de Ônibus que as conectam diretamente com a capital do E ~ t a d o . 'Um~ de áreas do Poder Público e de proprietários particulares.'" 29
levantamento realizado pela Metroplan - Furidação Metropolitana de
Planejamento - em 1979 apontou que, da população economicamen- É bastante freqüente, nas entrevistas, a menção às ocupações, par-
te ativa desta cidade (58% do total da população), 78,3% trabalhavam ticularmente quando explicam o crescimeiito desordenado de algumas
em Porto Alegre, 17, 7% trabalhavam em Alvorada e 4% trabalhavam áreas, onde se concentravam as populações que vinham de fora da ci-
em outros municípios da RMPA, o que demonstraria que Alvorada se- dade, como as vilas a que se tem acesso pela "parada 59". "A cidade de
ria um grande bairro residencial da capital.?j Um metalúrgico, mora- Cachoeirinha tem essa história de invasão", diz um entrevistado. Na
dor de Cachoeirinha, que acompanhou a transferência de sua empresa avaliação de um líder político, 30% das áreas de Cachoeirinha são inva-
de Porto Alegre para Gravataí, conta que em seli setor, onde trabalham didas. Observe-se que as ocupações são um fenômeno expressivo nos
atualmente mais de cem pessoas, poucas são de Gravataí, e a grande anos 80, isto é, a maior parte da família dos entrevistados, que chega-
maioria é de Alvorada. Segundo Carrion,?" cconstrução do distritos ram na cidade quase sempre nos anos 70, adquiriu, senão a casa, pelo
menos seu lote, sendo recorrentes lembranças de se "levar a casa", isto é,
transportar casas de madeira em caminhões e reconstruí-las novamente,
20 "Região Metropolitana: a vida é mais barata fora de Porto Alegre", "Muda o perfil dos retiram e de autoconstrução, ambos processos constituindo o que Maricato")
tes", Hora, li. 8338, 8 jul 1988, Geral, p. 26-7. As reportagens são comentários sobre a
pesquisa "Custo de (:oi~siimoFii-ial da I-Iabitação", de Otilia Carrioil.
descreve como "assentamento resideiicial da classe trabalhadora urbana,
21 Rigatti, Décio. filnlaçíio de ritea~urbanay com funçíio de hnbztnçko na iWIPA: o caso de Alvorada
oriunda dos fluxos migratórios" desconliecidos pelo Estado.
1948-1980. Porto Alegre: UFRGS/PKOPUK, 1953. Dissertação de nieqtrado. p. 183.
22 Id., p. 164.
23 Exemplificaildo as divergências nas avaliações acadêrriicas do mesmo processo histórico, des-
taca-se que, em sua ail5lise dos "padrões fiincioiiais" da KMPA, Kigatti - cujo texto é o mais
antigo dos aqui citados - miilimiza o processo d e indiistrializaçáo das citlades localizadas no 27 Id., p. 236.
eixo da BR-290, qiie cumpririam o papel da "fiinção de liahitação", mas o recorihece para as do 28 Dvoranovski, o/). cit. p. 17.
eixo da BK-116. Ver seu gráfico na p. 192. 29 Este aiitor ofèrece iim ilustrativo relato de um morador, que, expulso de seu lote, iniciori a
24 Id., p. 205. ocupaçáo d e outra área na cidade (Dvoranovski, p. GG-70). Sobre a concentração da propiiedade
25 Irl., p. 163. da terra e, posteriormente, dos lotearnentos em Alvorada, ver Kigatti (1983, p. 88-89),
30 Maricato, Ermínia. Autoconstrilção, a cirqtiitetiira possível. 111: (0i.g.) A pmcluçíio ra/)ilnlista d a
2. ed. Sác:, Paiilo: Alfa-omega, 1982, p. 74.
casa (e da cidade) n o Hrrr.siL i~~dustrinl.
Toda aquela infra-estrutura que os loteamentos (adquiridos ou comuilitária iniciado em 1976, i10 âmbito da Paróquia Nossa Sei1hora de
invadidos), por falta de restrições ou por ausência de fiscalização, dei- Fatima, uma área de concentração operária e de invasão, onde vive pra-
xaram de fornecer foram, posteriormente objeto de reivindicações dos ticamen te dois terços da população do muiiicípio i.. .]
Grupos de estudo bíblico, pastoral, histórico da Igreja, leis trabalhistas
movimentos populares: começaram a se organizar, ao mesmo tempo em que eram encaminha-
dos movimentos reivindicatórios por água, luz, saneamento nas diversas
A canalização do esgoto saiu por conta da prefeitura. Agora, o resto foi vilas abarcadas pela paróquia [...I
tudo batalhado. Quando eles calçaram a rua a gente teve que pagar. Foi Essa organização se manifestou no apoio 2 greve da construção civil, em
feito movimento e tudo, a prefeitura aceitou dar a mão de obra, conse- 19'79, na Grande Porto Alegre, e no interesse e ligação com os movimen-
guir uma ajuda no material e tal. Mas o pessoal pagou. Já o asfalto o tos dos sem-terra no Estado. Outra expressão do movimento de base foi
governo do Estado botou. Questão de campanha política, aí, de eleição ... a procissao ecológica em defesa do rio Gravataí, que reuniu oito mil pes-
Não deu trabalho pra conseguir. Agora, a maioria das coisas é na base soas, em 1980.No preparo dessa manifestação se envolveram grupos de mães,
da ... da pressão [metalúrgico, pai adquiriu o terreno em 19781. associações,escolas,grupos dejovens, que traballiaram três meses aglutinando
representações de Gravataí, Alvorada, Viamão, Cachoeirinha [...I
Ante a pressão dos "vileiros", a Prefeitura de Cachoeirinha passou Outro interesse dos moradores por Educação faz brotarem pressões pela cons-
a embargar loteamentos que não cumpriam a legislação quanto às obras trução de escolas, com base em levantamei~tosque mostrava essa necessidade.'"
de infra-estrutura." Dvoranovski" mostra como os grupos de base liga-
dos à Paróquia Na. Sra. de Fátima apoiaram, no final da década de 70, Mais grave foi a situação das ocupações de áreas impróprias para
a transferência de moradores instalados em áreas de conflitos para no-. habitação, como é o caso da população que se estabeleceu às margens
vas áreas e como estes grupos participaram da organização e mobilização do rio Gravataí, cujas enchentes produziam, periodicamente, uma po-
para a conquista de equipamentos básicos de infra-estrutura (luz, água pulação de flagelados, até a constru<;ãodo dique em 1988.37A prefeitu-
encanada, esgoto), a par da construção da capela local. Instaladas as ra sempre procurou deslocar os moradores das áreas ribeirinhas para
vilas, começam as reivindicações por postos de saúde e transportes e, outros l u g a r e ~ . " ~
ante a recusa dos empresários de transportes de estender itinerários de Um outro fenômeno de década 80, relacionado com a questão da
Ônibus aonde não havia calçamento, aparecem os movimentos por pa- habitação, o das invasões de conjuntos habitacionais, tem origem nas
vimentação de Em 1979, quatro jovens universitários de classe décadas anteriores. O finncionamento do mercado de terra e de habi-
média, vindos de Porto Alegre, passaram a residir na Vila Fátima, defi- tação sofreu mudança com a criação do Banco Nacional de Habitação
nida como uma "vila operária", atuando como agentes sociais." O pro- em 1964 e com a estruturação do Sistema Financeiro da Habitação
longamento destes movimentos, atingindo o âmbito educacional do (SFH). Os novos loteamentos na RMPA, que haviam diminuído a partir
município, com a participação do próprio Dvoranovski, teve repercus- de meados dos anos 60, são retomados na segunda metade da década
são em meados dos anos 80: de 70, mas na forma de conjuntos habitacionais, acompanhando o
redirecionamei~toda atuação do BNH para um segmento popular com
As origens do processo educacional que se desenvolve atualmente no maior renda (três a ciiaco salários mínimos). A recessão econômica do
município de Cachoeirinha estão num trabalho de animação religiosa e
36 Agora, o objetivo é ampliar o processo, Zero tlorn, 11. 7.166, 29 abr: 1985, Educação Popular -
31 Vileiros d e Cachoeirinha realizam ato público, Zero Hora, 11. 6183, 29 ag. 1982, Geral, p. 26;
Filial, p. 36-37. A pai-te iilicial da reportagem está em 2 ) - oHola, n. 7.165, 28 abn 1985, Geral
Cachoeirinha embarga loteamento d e 700 lotes, Zero flora, n. 6476, 17jun. 1983, Geral, Grande
(Eclucação Popular), p. 3G-38.
Porto Alegre, p. 28.
37 O "sistema de proteção contra iniii1daç6esfl foi inaiigiirado emjiii1ho de 1988, ainda iiiacabado,
32 Ver p. 81.
sem ri casa cle bombas dçfii~itiva,operando com iirn equipamento d e ernergêilcia para evitar
33 Dvoi,anovski, o/). cit, p. 91. alagamentos (Cachoeiriilha protegida co11ti.a as iiliiiidações, Hora, n. 8318, 18jiiri. 1988,
34 Sobre a presença d e Pe. Sérgio e m mailifestaç6es contra o moi1opólio ilo serviço d e transporte Geral, p. 25; Cachoeii-inha 1ivi.e das cheias, 2 % ~Hora, 11. 8. 427, 4 out. 1988, Geral, p 37; ver tb.
coletivo, ver Zero Hora, 11. 5495, 11 out 1980, Geral, p 6. A atuação do Pe. Sérgio Fritzen é 11. 8. 420, Geral, p. 41)
destacada por Mombach (p. 113). 38 Vila d e Cachoeirii~haapela por ágiia potável, Zero I-lorcl, 11. 6149>26 jiil. 1982, Geral, 1). 37;
35 Fischer, Maria Clara Bueilo. Do agente no educador populn~.Porto Alegre: UFKGS, 1987. (Disser- Cachoeirinha clesloca moradoies das vilas, a r o Hom, li. 7492, 19 mar. 1986, Geral, Grande Por-
tação d e mestiado em Educação) to Alegre, 11. 37.
início dos anos 80 vai, por uni lado, aumentar a parcela da população Na imprensa dos anos 80, as perspectivas positivas quanto à indus-
que, por falta de poder aquisitivo, estava fora deste tipo dc investinien- trialização crescente de Gravataí e Cachoeirinha, o que é analisado a
to e, por outro, dificultar a comercialização destas unidades seguir, conviviam com as persistentes imagens das "cidades-dormitóiios",
habitacionais." Um enorrne déficit habitacional e conjirritos manuseadas quase sempre quando se tratava de analisar os contínuos
habitacionais vazios ocasionaram o fenômeno das invasões em vários problemas de transporte na região. Por exemplo, um aumento do pre-
Estados do país; para o Rio Grande do Sul ele já havia sido previsto por ço das passagens dos Ônibus poderia significar uma "ameaça de desem-
urbanistas como Rigatti (1983) e deu-se em 1987: prego nas chamadas cidades dormitórios de Porto alegre".'"^ jornais
locais não costumavam usar essa imagem na década de 80, a não ser
A corrida da habitação na Região Metropolitana começou em Alvorada
para negá-la, mas, na crítica ao transporte, enfatizam que "Milhares de
no dia 11 de abril de 1987. As 13h30min daquele sábado, famílias intei-
ras começaram a ocupar os 2.040 apartamentos construídos pela Cohab. trabalhadores cruzam diariamente o trajeto Porto Alegre - Cachoeirinha
No meio da tarde, o fluxo de pessoas se assemelhava a um formigueiro. e vice-versa, indo e vindo do serviço, passeando ou até mesmo fazendo
Todas transportavam móveis e alimentos nas costas. Esta foi a centelha compras".44O congestionamento da zona urbana de Cachoeirinha era
que se espalhou por Porto Alegre, Canoas, Viamão, Guaíba e Gravataí, atribuído ao "fluxo, especialmente de trabalhadores que vão para Por-
entre outras cidades, e gerou a maior onda de invasões urbanas já vista to Alegre".45A crescente criação de linhas de Ônibus com destino a
no Rio Grande do Sul. Estima-se que perto de 100 mil pessoas participa- Porto Alegre (14 em 1981) é usado como argumento, em estudo acadê-
ram das ocupações.40
mico dos anos 90, para afirmar que, apesar dos distritos industriais,
Em Cachoeirinha, o conjunto invadido foi a Granja Esperança e "expressiva parcela da mão-de-obra local continuava vinculada ao cen-
em Gravataí, a Morada do Vale I. A invasão da Granja Esperança teve o tro m e t r ~ p o l i t a n o " . ~ Westudo
m sociológico aponta que as áreas me-
respaldo da Prefeitura de Cachoeirinha, o que atenuou a repressão, nos valorizadas em termos habitacionais de Cachoeirinha eram uma
mas, em outros núcleos, a ação da Brigada Militar deixava pessoas feri- alternativa para aqueles que, desde a década de 50, buscavam empre-
das ou presas.ll Uma professora conta que alguns alunos de sua escola, gos na Grande Porto Alegre, e que, para o período 1976-1985, como o
e mesmo um professor, estavam entre os que invadiram os imóveis da comércio e a indústria locais absorvem pouca mão-de-obra, "a maior
Granja, deixando de vir à escola nesses dias para assegurar seu lugar. parte dela se desloca, diariamente, para outros municípios mais indus-
Para o período de 1981-1985, quando a população dos municípios trializados como Gravataí, Canoas e Porto Alegre".47
de Cachoeirinha e Gravataí continuava a crescer, a implantação de lo- Em Porto Alegre, a informação que, nas horas de "pique", passa-
tes e unidades habitacionais estagna~a:'~ a conseqüência disto, além vam pelo corredor da avenida Assis Brasil (que dá acesso à Alvorada,
das invasões de conjuntos habitacionais desocupados, foi o contínuo Cachoeirinha e Gravataí) cerca de 18 mil passageiros por hora apenas
crescimento das áreas de subabitação (vilas irregulares). numa direção, motivava a demanda de um outro metrô, a exemplo do
que seria inaugurado na direção Canoas-Novo H a m b u r g ~ .A~experiên-
~
cia de implementação, em 1985, de dois hospitais estatais, um em
Cachoeiriiiha, outro em Alvorada, através da Metroplan, considerou a
39 Carrion, o/). cit. p. 238.
40 Uma década d e moradias irregulares. &i-o Hora, 13jul. 1997, p. 32-3. Geral. As COHABs eram
as Compaiihias d e IHabitação Popular dos Estados e M~lilicípios,que compuilham os progra-
mas habitacionais d o BNIH. 43 "Passageiros revoltados com passagens mais caras", Zero Hora, 11. 5.629, 23 fev. 81, Geral, p. 39
(grifo meu).
41 Um ailo de iilvasão, Jonzal clp (hrhoen-uahn, v. 11, li. 20, 27 abi-. 3 maio 1988, p. G'7. No ano de
1987, &?o Hola trazia diai-iamente notícias das iilvasóes: sobre o corifroi-ito policial em Gravati 44 cJnchoei7inhnEs/)ecinl, a110 I, i1 13, 17 set. 1980, p. 13. Esse periódico defendia a eiicampação da
empresa SOGIL, que fazia a liilha Caclloeiriill~a-PortoAlegre, p. 2.
ver edição 11. 7996 (3 ag. 1987, Gerdl, p. 41); para um qiiadro geral, ver 814'7 (31 dez. 1987,
Jor7zal(lo A no, p. P 8) . 45 "Di~ei-estuda novo trevo de acesso para Free-M7ay",229-0 Moi-a9 11. 6.566, 15 set. 1983, Geral,
Grande Porto Alegre, p. 38.
42 De Totii, Jacksoii; Ortiz, Romeu F. O processo (JP consolida~tioe tmnsfòrmn~nodas "cidades-dormi-
tórios" n a 12egino n/1et1-of,olitnna de I'urto A l e p : z ~ mestudo dos inlfinrsos (10,s disll-ltos irzduslriais nas 46 De Toili, Ortlz, o/). cii., p. 53.
cidades de C;achoeirinha e Cravataie suas relnçr?eJ c0191t'orto A h ~ v e Porto
. Alegre: UFKCS, 1991, p. 92. 47 Dvoranovski, op. cit., p. 18.
48 "Metro", &ro H o w , 11. 9,079, I" fev. 1985, Ecoilomia, p. 29.
população destas cidades como "composta, em grande parte, de assala-
riados que permanecem apenas à noite e nos fins de ~eiriaria".~!'Após a
As cidades "industriais"
invasão da Granja Esperança, estudos da Metroplan respaldaram a cri- É dos anos 70 a iniciativa do governo estadual de criar os "distritos
ação de uma linha de onibils, reivindicada pelos moradores, que industriais", em cuja execução deveriam ser fundamentais: a incorpo-
conectou o bairro (além da Vila Aiiair) a Porto Alegre.'() Em resumo, ração de novas teciiologias, a adoção de normas que se preocupassem
diversos estudos e eventos indicam uma relação bastante estreita dos com o meio ambiente, a eficiência operacioiial e a busca de fontes
trabalhadores de Cachoeirinha e outras cidades com Porto Alegre. energéticas alternativas. Superando os limites da indústria tradicional,
Entre os entrevistados, a expressão "cidade-dormitório" é usada os distritos deveriam se toriiar abrangentes, buscando segmentos in-
para descrever uma situação passada de Cachoeirinha, genericamente dustriais mais diilâmicos."'
situada na década de 70. A iiistalação das indústrias rios anos 70, no A localização viária, tanto de Cachoeirinha quanto de Gravataí, foi
Distrito Industrial, não teria modificado de imediato esta situação, de um incentivo à instalação das indústrias, cuja efetivação adquire mais
um lado, porque muitas destas empresas só admitiram localmente mão- visibilidade na década de 80:
de-obra menos qualificada, trazendo seus quadros mais qualificados da
capital (ver a seguir), de outro, porque os mais velhos, ja empregados Cachoeirinha está privilegiada quanto 2 acessibilidade. Situa-se dentro
na capital, não trocaram de emprego: de um anel viário, formado pela BR-290, RS-118 e a projetada auto-estra-
da Porto Alegre - Novo Hamburgo, que atribui vantagens sobre os de-
É, ali [Distrito Industrial], os que foram trabalhar. .. eram principalmen- mais municípios da Região Metropolitana, inclusive Viamão (município
te os mais jovens, porque os mais velhos tinham emprego em Porto Ale- mais antigo) atraindo principalmente atividades de porte. O exemplo
gre. Que Cachoeirinha até aquele momento era uma ciciade-dormitório, concreto disso é o Distrito Industrial que conta atualmente com inúrne-
né. Então as pessoas tinham emprego, daí que as pessoas mais velhas, até ras indústrias, o que proporciona maior número de empregos, garantin-
com mais responsabilidades, prá manter a estabilidade, mantinham o do a continuidade do crescimento apresentado nos últimos a11os.."'
emprego, né, e não arriscavam em se transferir para ali. Tem muitas pes-
soas que ... se aposentaram trabalhando em Porto Alegre, conheço diver- A Moore Formulário Limitada, que detém 35% do mercado nacional de
sas que se aposentaram trabalhando em Porto Alegre, nunca trabalha- formulários, inicia este mês a construção de uma fábrica no Distrito In-
ram em Cachoeirinha, mesmo morando a vida inteira em Cachoeirinha. dustrial de Gravataí, com perspectivas de inauguração para novembro.
E quem estava, por exemplo, na Albarus em Porto Alegre, ou na Zivi, Para tanto, a empresa investirá Cr$ 6,19 bilhões e criará 115 novos em-
que eram as grandes... que absorviam a maior parte da mão-de-obra, não pregos diretos... [...] Para o Moore, que domina 70% do mercado gaú-
queria correr o risco de trabalhar numa empresa menor, que muitas ve- cho no ramo de formulários, a instalação no Distrito Industrial de Gravataí
zes do ponto de vista de ... benefícios sociais oferecia menos, de rancho, se deve, fundamentalmente, à localização estratégica em termos de saída
de assistência médica e tal, então essas pessoas já permaneciam onde para todos os Estados, já que a empresa visa exportar parte de sua produ-
estavam. A não ser depois quando a rotatividade passa a acontecer iiide- ção, especialmente para a Argentina e Chile..""
pendente da vontade das pessoas [chegou em Cach. em 1971; trabalhou
no ramo do vestuário]. A própria escolha do local para instalação do complexo Federação
das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul - FIERGS - e Centro
Para outro informante, que pertenceu a rim grupo de joveiis cujos das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul - CIERGS -, inaugura-
referenciais culturais estavam em Porto Alegre, Cachoeirinha seria uma do em julho de 1987, é uma confirmação da "localização estratégica9':
cidade-dormitório pela quantidade de migrantes, principalmente de
Santa Catarina, não absorvidos pelos mercado de traballio local, e pelo
fato da cidade náo possuir alternativas culturais: sem cinema, poucas
51 De Toni, Ortiz, o/). cib., p. 59.
praças, poucos eqiiiparneii t os recreativos. 52 "Forrnação política e liistórica da cidade",Jo17inlclr Ckchoeirinhn,11. 23, 18-24 maio 1988. Cader-
iio Especial (Cachoeirinha 22 aiios), p. 2. Sobre a decisão da Miliopã Porto Alegre Produtos
Alimeiltícios 1,tda. d e iilstalar-se em Cachoeii.inlia ein 1987, ver "Miliopã chega a 550 mil unida
des por mês", Jot.no-1cle Cnchoei~itikn,1: 11, 11. 8, 28 jan. 1988, p. 3.
49 2 7 0 F'lotc~,11. 7.201, 3jiii-i 1985, Geial, Graricle Poi to Alegle, p. 34.
t e 6,l bi i10 distrito de Gravata?', 2 r o Ilora, 11.7071, 24jaii. 1985, Ecoilomia,
53 "Moore i n ~ ~ e sCr$
50 Um ano de iiivasiio, j«t ~znldp C4'nrhoesr.z~zhn,11. 11, 11. 20, 27 abr. 3 maio 1988, p, 6
p.23.
ele está situado na Av. Assis Brasil, 8.787, próximo a urn viaduto da RS- metalúrgicos da RMPA - que Já eram notícia por suas greves, eleições
290 (a free-wq) , na divisa de Porto Alegre com Cachoeirinha." sindicais e congressos - adquiriram visibilidade na imprensa pelo de-
Efetivamente houve a instalação de indústrias nos distritos indus- semprego que atingiu principalmente seu ramo e o da construçãcj civil.
triais que estavam sendo criados, definindo um certo perfil para cada Em maio de 1983, em reunião da Comissão Especial de Desemprego
um; no caso de Cachoeirinha, o do ramo metal-mecânico:55 da Câmara Municipal de Porto Alegre, foi divulgado que na área de
Porto Alegre, Cachoeirinha e Gravataí existiriam, no setor metalurgico,
Os três distritos industriais, apoiados pelo BNDE têm vocações distintas. cerca de 9 a 10 mil desempregados." Um dos diretores do Sindicato
O de Cachoeirinha, localizado na Grande Porto Alegre, abriga principal- dos Metalúrgicos de Porto Alegre, em reunião com o secretário do Tra-
mente empresas do setor mecânico metalúrgico, que não tinham mais balho, alertou que o nível de desemprego em Cachoeirinha, de 6 mil
condições de expansão na capital do Estado.
desempregados, significava "risco de uma convulsão social".61
O Distrito Industrial d e Gravataí também está localizado na Região
Metropolitana de Porto Alegre, ao longo da estrada Porto Alegre- Enquanto algumas análises j us tificavam o aumento da população
Osório. Este D.I. aproveita a vocação industrial da região e tem, em nas cidades da região metropolitana pelo sua característica de cidades-
sua maior parte, empresas de médio e grande porte, produtoras de dormitório, um estudo da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS,
bens d e capital. de 1982, conclui que, além dos planos habitacionais, aplicados irregu-
O Distrito Industrial de Rio Grande [...I mantém estreita vinculação e larmente, foram os distritos industriais que atraíram as pessoas, e que,
dependência das atividades portuárias [...I Já implantadas, funcionam
em Cachoeirinha, o crescimento industrial nos anos 70 estava ocasio-
fábricas de fertilizantes e de beneficiamento de sojae5"
nando "uma expansão urbana violenta e sem planejamento"." Em ou-
Os distritos da RS-030 continuam a ser ocupados ao longo da dé- tra reportagem, que divulga os dados de tais estudos, a expansão indus-
cada de 80, havendo ainda alguns poucos lotes disponíveis em 1989. O trial de Cachoeirinha e Gravataí é medida pelo aumento da oferta de
de Gravataí é considerado o mais bem-sucedido, com empresas de gran- empregos, "diretamente ligado à instalação de distritos industriais na-
de porte que geraram 15 mil empregos; o de Cachoeirinha mantém a queles dois municípios"." Posteriormente, na visão jornalística, os distri-
especialização metal-mecânica com empresas de pequeno e médio tos industriais e seus empregos haviam acabado com a "cidade dormitó-
porte, que deram origem a 5 mil empregos," refor~ando,portanto, o rio", ainda que tenham causado outros problemas:
segmento dos metalúrgicos, que já possuía expressão na cidade pelo
Com 6'7 quilômetros quadrados e 150 mil habitantes, o perfil econômico
número de operários que se alocaram em metalúrgicas da capital, pois, de Cachoeirinha está obrigando a uma revisão no conceito de que o
segundo a anedota popular, o sonho dos catarinenses que chegavam à município não passa de uma cidade-dormitorio de Porto Alegre. Territó-
Cachoeirinha era "trabalhar no ZIVI, comprar uma bicicleta e um rio escolhido para a instalação de 68 indústrias, espalhadas por quatro
radinho d e pilha99.5"5gNa primeira metade da década de 80, os distritos industriais - um do Governo do Estado e três particulares - o
município já exibe um cada vez mais saudável mercado de trabalho que
atrai, todos os anos, milhares de famílias... [...I
Fruto de um crescimento desordenado, estimulado especialmente pelos
54Jornal de Cackoeirinha, alio I, ri 2, 16 dez. 1987, p. 3.
baixos preços dos terrenos e pela proximidade com Porto Alegre, a
55 O grande destaque da cidade tiillla sido, até e i ~ t ã oa, fábrica de coilsei-vas Kitter, criada i1a
segunda década do século XX (Mombach, p. 30).
56 "BRDE dá Cr$ 415 milhões aos Distritos Iildustriais", 7 ~ Ho,ra, o n. 5.488, 4 out. 1980, Ecoi~o-
mia, p. 19. Ver também "Goverilo vai ocupar "espaços vazios" com mais iildíistrias", Zero Hora, Porto Alegre, abriu uma nova fábrica (ciitelaria) 110Distrito Iildiistrial de Gravataí em agosto
11. 5.741, 15juil. 1981, Execeitivo estadual, p 10. de 1981 (Zero Hora, 11. 5.784, 28jul. 1981, Informe Economico, p. 20).
57 "CEDIC oferece terras baratas nos distritos", Zero Hora, 11. 8.662, 26 maio 1989, Iiiforniativo 60 ""Rriinida coiriissão d e deseniprego", .&)o Hora, 11. 6.433, 5 maio 1983, p. 35.
Especial (Arrancada l[ildustrial), p. 4. Ver também "Progresso é a origem dos problemas das
61 "Dois mil metalui-gicos podem peidei o emprego ila capital", Zero Hora, 11. 6.524, 4 ag. 1983,
iildílstrias localizadas no Disti-ito",~Jornnlde Cachoeirin,lzn,ano I, 11,1, 10 dez. 1987, p. 3. Sobre
Geral, p. 38. Sobre a demissão em massa de operarios da Ii~dílsiriade Mãqiiiilas Mbtail, ver
a Compailliia de Deseilvolviinento Industrial e Comercial (CEDIC),ver De Toili e Ortiz (1991,
'YCachoeiriiiha: pi-eociipação com demissões", 7m-oHora, 11.6.018, 18 mar. 1982, Geral, p. 35.
p. 61).
62 '"NOS quer acabar com as cheias da (;ravataí", Zplo Hora, 11. 6.251, 5 ilov. 1982, (kral, p. 34.
58 Mombach, p. 112.
(33 "'Em 20 a11os, o progresso chega a Viamão", Zero H o ~ n11. 6.302, 26 dez. 1982, (;raiide Porto
59 Em uma outra versão, colhida pelas eiltrevistas, o ideal do migrailte era ter uma bicicleta,
Alegre, p. 13.
carteira d e trabalho 110 bolso e trabalhar ila Zivi. A Zivi-Hércules, metalílrgica iiistalada em
concentração de vilas gerou um sub-produto. a violêilcia, que atinge mo- fosse ocupada por empresas d e Porto Alegre q u e buscavam
radores pobres e de classe média indistintamente e que vem servindo de relo~alização.~' Depois de um certo tempo, é provável que a empresa
tema de campanha nestas eleições.,.64
passasse a contratar mão-de-obra local, como é ilustrado pelo caso da
Os projetos de novos distritos industriais certamente devem ter fábrica Doormarin, de embalagens plásticas, que se transferiu para
sido influenciados pelas análises favoráveis quanto ao mercado de tra- Cachoeirinha no final de 1987, precisando, inicialmente, contratar
balho, tais como as citadas anteriormente, pois o que estava em desta- ônibus para transportar seus empregados que moravam, na sua maio-
que, contrapondo-se às restrições dos ambientalistas, era a expectativa ria em Porto Alegre e Alvorada."
da geração de empregos. Ao anunciar a implantação do Distrito Iiidus- Confirmando o que disse um entrevistado já citado, que as empre-
trial da Restinga, o diretor do Departamento Municipal de Habitação sas que se transferiram para Cachoeiriiiha com seu quadro de pessoal
destacava sua finalidade social, "pois [as indústrias] atenderão aos mo- qualificado, abriram espaço apenas para a mão-de-obra menos qualifi-
radores que não têm mercado de trabalho na região e a população cada, constituída por jovens, relembra um destes que por lá passou: "e
economicamente ativa, que normalmente precisa se deslocar 30 quilô- eu que inclusive já trabalhei no Distrito também, muita gente que eu
metros até o centro da cidade para poder trabalhar9'."Wa mesma for- conheço, da minha idade, passou pelo Distrito; e os trabalhadores do
ma, a criação do Distrito Industrial de Canoas, junto a um conjunto Distrito, são trabalhadores dessa faixa assim, sabe, dos que tavam come-
habitacional, previa oferta de "emprego para parte dos habitantes da- çando o trabalho, a trabalhar nos anos oitenta". Outro entrevistado,
quela região"." A própria idéia, de alguns líderes políticos, de extinção que também entende que o gênero de emprego que havia "rio máximo
dos distritos industriais, em favor do deslocamento das indústrias para era de arigó, e olha lá!", faz um paralelo com o contexto do período da
os distritos municipais, o que a imprensa denominou "indústria distrital", entrevista (1999), o da polêmica acerca da instalação das montadoras
supunha o favorecimento da "mão-de-obra que lá existe".h7 de automóveis: "Mas essas montadoras aí, que que adianta montadora?
Por várias razões é necessário matizar a idéia da geração de empre- Montadora abriram, mas os empregados vem tudo da Bahia e de São
gos. Primeiro, porque se tratavam, muitas vezes, de empresas que se Paulo, né? [..I Todo mundo que veio trabalhar na montadora [GM] tá
transferiram de Porto Alegre para as cidades vizinhas e, portanto, na trabalhando aqui [Gravataí]; mora aqui mas é de São Paulo. Tem um
RMPA como um todo, não geraram novos empregos, "vinham com o monte ali que eu já conheci". Nos anos 80, o trabalho desqualificado e
seu quadro de firncionários ~ o m p l e t o " "Para
~ . "estancar a fuga de pe- mal remunerado foi justamente o que motivou muitos destes jovens a
quenas e médias empresas de Porto Alegre para municípios vizinhos, procurarem alternativas ao trabalho fabril.
especialmente Cachoeirinha", chegou a ser criada uma Central de Apoio Uma segunda razão, de certo modo uma causa da anterior, é que
à Pequena e Média Empresa pelo executivo municipal, com a prorries- distritos industriais corn perfil produtivo específico, como é o caso do
sa inclusive de terreno^."^ Em outubro de 1986, estimava-se que a capi- de Cachoeirinha, trabalham com mão-de-obra relativamente especializa-
tal teria perdido quase 20% de suas indústria^.^^ Na verdade, j2 no pro- da, que necessariamente nâo se encontra no local onde se instalam. Já
jeto de instalação, previa-se que uma parte do D.I. de Cachoeirinha em 1982, buscando urna solução para o aumento da população das
vilas de Cachoeirinha, o prefeito cogita expandir o distrito industrial
do município, atraindo, preferencialmente, pequenas e médias
empresas "não tão sofisticadas,para que possam absorver tima parte do
64 "As vilas abrigam 60% da poprilaç2o", Zero H o I . ~11. , 8.452, 29 oiit. 1988.
chamado mercado iriforrnal (mão-de-obra não especializada,
6.5 "Restinça terá distrito indiistrial. Com isso, mercado de trabalho será garailtido", Zem H ~ I - a11. ,
7704, 16 out. 1986, Geral, p. 44. Ver também Zero Hora, 11.9.749, 29 ilov. 1986, Geral, p. 33. biscateiros), que vem crescendo assustadoramente na Grande Porto
66 "Criado o distrito iildustrial de Canoas", 21-Hom, o 11.8.512, "L dez, 1988, C;ei-al, p. 42. Sobre a
crítica dos ecologistas, ver 21.0 IjO)-a,11. 8.496, 12 dez. 1988, Geral, p. 33.
67 Zero Hora, 11. 6,105, 12juil. 1982, Política, p. 10.
68 Mombach, p. 112.
69 "Fuga de empresas", íof.7.o HUI-a,11. 7190, 23 maio 1985, Ecoiiorriia, p. 23.
70 "Capital perde l8,78%,cie siias iildustiias", Zero Hom, 11,7918, 30 out. 1986, Ecoilomia, p. 28.
AlegreW.'"m 1988, um vereador defeiideu a criação de uma escola
ambiental, eram portadoras de outros males como poluição, violtncia,
profissionalizante com o argumento que "muitas firmas são obrigadas a
vilas clandestinas, ocupação de áreas verdes, etc. Em Gravataí, vários
recorrer à capital para contratar profissi~iiais".~%té1987, quando abre
reclames apareceram já no início da década:
uma escola do Serviço Nacional da Indústria - SENAI - no Distrito In-
dustrial de Gravataí, era em Porto Alegre que os moradores dessas cida-
des buscavam tais cursos técnicos.'" SENAI
E, mesmo que os postos de trabalho não demandassem especiali-
Para De Toni e Ortiz, os Distritos Industriais são produto de uma
zação, as empresas poderiam dar prioridade a candidatos com "currí-
visão que hierarquiza os países segundo o grau de desenvolvimento e
culo operário"; em suma, as vagas disponíveis poderiam ser disputadas
que supõe que os países subdesenvolvidos poderiam atingir, através de
por quaisquer trabalhadores, que, caso residissem a uma certa distân-
etapas sucessivas e encadeadas, o desenvolvimento dos países capitalis-
cia, continuariam a pressionar o sistema de transporte. Como afirma
tas centrais. No Brasil, este projeto foi implementado por um Estado
um metalúrgico, que veio de Santa Catarina para Cachoeirinha em 19'72,
centralista e autoritário, com alto Ônus social:
tendo trabalhado em Porto Alegre e Gravataí: "A pessoa náo escolhe
muito em que cidade vai trabalhar; trabalha onde consegue emprego". O que percebemos também é uma profunda dissociação entre a política
Na visão de um informante, os trabalhadores de Gravataí ou Porto Ale- de desenvolvimento urbano e o planejamento econômico dos distritos.
gre teriam "um histórico operário muito maior do que aquela migra- Neste sentido a tônica de sua implai~taçãoserviu mais as premissas de
ção que vinha habitando Cachoeirinha". As "vagas", com as quais os crescimento do que de desenvolvimento econômico e social. Não pode-
administradores contavam para resolver tanto os problemas de trans- rá ser outra a conclusão se não deixarmos de investigar o grande déficit
habitacional, de transportes, serviços básicos, energia, etc ... presentes,
portes como os de desemprego, se criadas, não estavam garantidas para hoje, nas cidades de Cachoeirinha e Gravataí, alguns estudados ao longo
a população "local". De resto, as próprias previsões oficiais quanto a deste trabalho.'"
número de empregos foram diminuindo proporcionalmente à implan-
tação do D.I. de Cachoeirinha e com a proximidade da recessão nos Se as indústrias traziam empregos e os empregos atraíam migrantes,
anos 80: "dos 12 mil empregos previstos em 19'73, passou-se a 7 mil no o governo cogitou levar as indústrias para onde estava essa mão-de-obra,
final da década, depois 5 mil até a concretiração dos atuais 4.860 em- o interior do Estado, visando "diminuir o impacto negativo que as mi-
pregos direto^".^" a população urbana do município - que pratica- grações causam aos poderes públicos, municipais e estadual, na Região
mente não possui área rural - cresceu, de 1970 a 1980, período que Metr~politana"'~ solução que, na opinião de De Toiii e Ortiz," é equi-
corresponde ao da implantação do D.I., 33.400 pessoas, ou seja, quase vocada, pois "o êxodo rural não se combate com indústrias nas cidades
sete vezes mais." de médio porte, mas sim, com políticas econômicas e sociais voltadas
Na época, mesmo para os que reconheciam que as indústrias esta- para fixação do homem no campo". A idéia presente nessa década, por-
vam criando os tão desejados empregos, sabia-se que elas, por atraírem tanto, era a de que milhares de pessoas em um período de crise iam em
migrantes e por se instalarem sem respeitar as normas de preservação busca das fábricas que existiam na região metropolitaiia.
As cidades operárias
73 "Cachoeirinha: uma revoliição no eilsiiio", &?z, Hora, 11.6.280, 3 dez. 1982, região metropolita- Nas análises do Censo de 1980, ao mesmo tempo er-n que o au-
na, p. 28-29.
74 "Legislativo. Vereador do PMDB quer escola profissitsi~alizaiite",Jorrull de Ikchoeir-iralha,v. 11, 11.
mento populaciorial das cidades da região metropolitana era explicado
21, 4 1 0 maio 1988, p. 4.
75 "Seilai fòrma profissionais para iildústrias",~Jor.nnldc C:nclzoeirirzhn, v. 11, 11 21, 4 1 0 mai. 1988, p,
3.
78 De Toili, O r t i ~ o.),! czt, p. 109
76 De Toili, Ortiz, 01). cif, p. 74.
79"A~laliaçãoI", 2 7 0 Ho~n,1-1. 6.020, 20 mar. 1982, Executivo Estadilal, p. I I.
77 Id., p. 82.
80 De 'Toni, Ortir, op. p. 65
~22,
em termos de êxodo rural para os "niuiiicípios-dormitórios" (visto an- Certamente possuindo um iiúmei-o de postos de trabalho superio-
teriormente), a descompressão populacioiial na capitaljustificava-se por- res aos de décadas passadas, mas com rnigrantes que chegavam coiiti-
que "muitos moradores da periferia deslocam-se em direção aos muni- nuamente e que j5 não encontravam a mesiaia oferta de trabalho na
cípios da Grande Porto Alegre em busca de trabalho nos vários distritos RMPA tal como seus predecessores, Cachoeirinha no final da década
industriais que foram se f ~ r m a n d o " .Assim,
~ Cachoeirinha e Gravataí, de 80 oferecia um aspecto urbano pouco atrativo
ambas com distrito industrial instalado nos anos 70, poderiam estar rece-
A cidade não apresenta qualquer característica de "urbanidade", no sen-
bendo migrantes com expectativa de trabalhar em Porto Alegre e pes- tido de que são muito limitados os espaços oiide as pessoas possam se
soas da periferia porto-alegrense que vieram trabalhar nos distritos. encontrar e aparecer enquanto cidadãos. Inexistem locais públicos, corno
Parece haver um movimento populacioiial que os dados estatísticos glo- praças, passeios, centros de cultura e lazer, onde se possa veicular infor-
bais não desvendam. Isto é, os dados do censo industrial, que atestam mações, estabelecer relações informais, diálogos, assistir a eventos cultu-
um aumento nos postos de traballio, não nos dizem quem estava ocu- rais. Aliás, até mesmo ruas, pátios das escolas públicas, localizados nas
vilas mais pobres, são com freqüência, invadidos pela força policial e,
pando esses postos; por sua vez, o aumento da população empregada
bastando apenas a suspeita, pessoas são detidas e levadas a delegacia de
nas indústrias, revelada pelos censos demográficos, não nos esclarece polícia. Ao contrário da maioria das outras cidades Cachoeirinha não
onde estas pessoas estavam trabalhando. É certo que a contribuição de dispõe de área central e quem atravessa a cidade, no sentido norte-sul,
Cachoeirinlia e Gravataí para a população economicamente ativa (PEA) percorre 5 km de um via (pavimeiitada) desarborizada e cercada, sobre-
da RMPA como um todo aumentou na década 70-80, pelo aumento da tudo, por pequenos estabelecimentos c ~ m e r c i a i s . ~ ~
contribuição dos setores secundário e t e r c i á r i ~ . ~ ~
São as pesquisas de "origem-destino", realizadas pela Metroplan Vista como uma cidade operária, Cachoeirinha teria ern comum
em 1974 e 1986, que podem melhor elucidar a magnitude e as razões com os bairros operários descritos por I-Ioggart a feiúra, ainda que
do movimento pendular através das RS-020 e RS-030. Pelas tabelas que nesses a ausência de beleza é de outra natureza: "ruas e ruas de casas
alinham "Todos os modos e motivos por dia útil", é possível constatar velhas, todas iguais, interceptadas por ruelas e pátios; tudo isto de
que, para Gravataí, um percentual de 60% da pop~ilaçãosempre per- aspecto pobre, esquálido e envolto num nevoeiro permanente; uma
maneceu na cidade e que, em Cachoeirinha, o percentual da popula- paisagem em tons de cinzento sujo, desprovida de verdura".85 Outra
ção que se deslocava para Porto Alegre reduziu-se (de 40% para 28,3%), semelhança destas cidades operárias com os bairros operários ingle-
ses descritos por Hoggart8Qstaria em uma certa fixação resideiicial
mesmo tendo havido aumento da população. E com os dados da tabela
do trabalhador, que poderia mudar constalitemente de emprego na
"Todos modos e motivo trabalho", disponíveis para 1986,verifica-se que,
RMPA - o que seria uma vantagem para o capital -, sem, necessaria-
da população que se desloca para Porto Alegre, parcela expressiva o faz
mente, mudar seu local de domicílio." O que as entrevistas com mo-
por razões de trabalho (53, I%,em Cachoeirinlia e 41,5% em Gravataí).
radores jovens de Cachoeirinha têm mostrado @ uma mobilidade ex-
De Toni e Ortiz entendem que os dados indicam que, mesmo não pos-
pressiva no local de emprego, porém, uma também significativa mu-
suindo "vidas econômicas" desvinculadas de Porto Alegre - como São
dança no local de residência.
Leopoldo e Novo Hamburgo -, Cachoeirinlia e Gravataí, pelo cresci-
A "condição ~perária"~"os moradores das vilas de Caclioeirinha
mento dos setores secundário e terciário nas décadas 70 e 80, já iião
é afirmada em marcliinhas carnavalescas que satirizam tanto sua situa-
padeceriam dos processo de "d~rmitorização".~"
84 Dvorai~ovski,o f ~rzt,
. p. 18
8.5 Hoggart Ricl~aid. li;, utdzznçó~\da cuúura. clrf)~cloc uzda da t l a s s ~ ~ a D c ~ l l a,
~ acom
d o ~esl)~czazJ I P / P ~ @ I Z -
Poi to: Editoiial Preseiiça, 19'73 3 (195'91.V. 1, p. 72
czas ( I ~ J I I D I z ~P~dz?~t?rt~~n~llto~.
cO~J
81 "Resultados d o Censo 80 saem ate o próximo dia 15", Hora, 11. 5.519, 4 iiov. 1980, 86 Id., p. 76
Cieial, p. 7. 87 Kiptti, ofi rzt, p. 194
82 De Toili, O r t i ~op.
, czl., p. 9 4 9 8 88 N'eil, Simone. A cotlrliç60 of~trhin,e outros estuctos sobre a opressào. Rio cle Janeiro: Paz e Terra,
83 Id. p. 103. 1979.
ção quanto a repressão que sofreram ao reivindicar,juiito ao congcla- Na visão do informante, este <: "um sistema de exploração alta-
mento dos preços das passagens de ônibus, a retirada da roleta da porta mente refinado", pois o produtor tem que garantir a qualidade do pro-
de entrada, mais higiene e respeito as paradas. O bloco das vilas Monte duto, se responsabiliza pelo conserto das máquinas, mas não tem ne-
Cristo e Princesa Isabel tinha mais de 100 integrantes: nhum vínculo empregatício. Outro entrevistado lembra de passar a in-
fância (final da década 70) costurando bainhas de calção; sua mãe, após
Você pensa que operário é peça/operário não é peça nãs/operário é de trabalhar por algum tempo de free-lancer para uma empresa de Porto
c?rne e osso/e precisa de muito feijão. [...I Alegre, acabou inclusive obtendo carteira assinada. Considerando que
O operário por que estás tão triste/mas o que foi que aconteceu/foi o
ele se recorda de acompanhar a mãe quando esta levava roupas para a
transporte que subiu de preço/ou o teu salário que não cresceu./Vem
operário, vem transformar/de ti, depende o patrão que te oprime/vê se empresa, pode-se sugerir que alguns deslocamentos por motivo "de tra-
sai desse regime/combatendo a o p r e ~ s ã o . ~ " balho" à metrópole não significa que as pessoas lá trabalhassem; na
capital estava a sede do capital. A pesquisa localizou um informante
Outro aspecto da cidade, que reforça seu perfil operário, em de- que, após um acidente de tránsito em 1994, passou a trabalhar na con-
pendência com Porto Alegre, mas sem a transformar em cidade-dormi- fecção da esposa - uma confecção no fundo da casa -, que está no ramo
tório, são as inúmeras empresas familiares do ramo do vestuário (as desde 1980. Ela conta que existiam pelo menos três grandes confec-
"facções") que trabalham para grandes empresas sediadas na capital: ções em Cachoeirinlia, que faliram com o governo Collor, gerando a
alternativa da compra de máquinas pelos trabalhadores para confecção
É, tinha já bem desenvolvido isso de pequenas ... pequenas empresinhas caseira. Ela reconhece que o empresário que administra o sistema de
caseiras, de fundo de quintal. E isto chegou num momento que ... talvez
facçiio tem a vantagem de não pagar "todos os direitos da pessoa"; mas
pelo motivo, pelo êxodo das pessoas de Porto Alegre prá periferia, e
pelas novas relações de trabalho estabelecidas pelas grandes empresas também vê vantagens de sua parte: não pagar ônibus, estar na própria
também do vestuário, elas... elas começaram a terceirizar seus trabalhos. casa (vantagem especialmente para as mulheres), possibilidade de ma-
E àquelas costureiras que estavam a mais tempo nas empresas, era pro- rido e mulher trabalharem juntos. Quanto ajornada, ela confirma que
posto um acordo de pagar indenização com máquinas e ela montar na se trabalha de "8 às 8" e de "segunda à segunda", mas justifica que em
sua casa a sua empresa e prestar serviços prá sua empregadora original; e janeiro e fevereiro não há demanda.
isso se proliferou em Cachoeirinha. Tu inicia fazendo prestação de servi-
ços, que é quando a pessoa aprende a riscar, a modelar, a cortar, a costu- Os deslocamentos que as pessoas realizam entre as cidades da
rar, e de repente ela tá produzindo peças, né, e daí se constitui uma RMPA, das cidades vizinhas para a capital e vice-versa, e de uma para
pequena empresa de produção. Não é uma empresa de prestação de outra, são muito complexos nem sempre mensuráveis. O próprio lo-
serviços mas de produção. cal de moradia pode sofrer mais de uma alteração - de uma cidade
para outra - em poucos anos. Não há dúvidas que Porto Alegre, princi-
palmente no horário "útil" tem um poder centrípeto, pois, como capi-
É, porque ele [o ramo têxtil] trabalha, primeiro, com a categoria com-
tal de Estado, é sede administrativa, inclusive para alguns sindicatos.
posta basicamente de mulheres; é 90, mais de 90% de mulheres. E... quan-
do terceiriza ele leva para dentro da casa, acaba empregando também a Por outro lado, há toda uma movimentação interna a estas cidades,
mão-de-obra excedente dentro de casa, as crianças, o marido desempre- expressas rias reivindicações não só melhores condições de habitação e
gado, o filho, enfim, né, acaba envolverido todo mundo na produção. E transportes, mas também de escolas, assistência médica, empregos, etc.,
aí... têm situações que as pessoas, para coiiseguir tirar o rníiiiino para o que lhes dá, no próprio ato de mobilizaçâo, uma vida própria, ainda
seu sustento, fica a família inteira trabalhando 16, 18 horas por dia, pro- que uma passeata pudesse, sem rniritas dificuldades, acabar no Palácio
duzindo assim por preço ... [trabalhador do ramo do vestuaio].
Piratini. (:«ntrido, se é preciso rclativizar a imagem de "cidade dormi-
tório", construída unicamente a partir da ótica do mercado de traba-
lho, a ampliação deste mercado, pela iiistalação das indústrias nestas
89 "Cachoeiriiiha teve o bloco do protesto, com muito humor", &O Hora, 11. 5.640, G mar. 1981,
Carnaval, p: 92. As i~otíciaçdas reiriviridicações e da iiltimidaçrio por parte da Brigada Militar 5s cidades, confirmou o caráter metropolitario destas, nas quais não há
ações dos vileiros estão em Zh-o IIolq ri, 5.633, 27 fev. 1981, Geral, p. G e Zero Hora, 11. 5634, 28 reserva de trabalho para a populaqão local, permanecendo o contínuo
fev. 1981, Ponto Livre, p. 3.
vai-e-vem de ô i ~ i b i ~
des operários. Se a região metropolitana fuiicioria WBER, Regina. Rapazes pelas mas:juventude operária da região metropoli~ria
como um grande mercado de traballio, que é também a área de atua- porto-alegrense nos anos 80. 1998. niimeo. 25 p.
ção dos siildicatos, as "vilas" são o locus a partir do qual os "vileiros" --. Coilsiderações sobre a cultura operária. Hu~nanas.Londrina: Ed. UEI,. v.
exercem sua cidadania, inclusive quando estão fora do mercado de tra- 1, n. 1. mar. 1999, p. 45-83.
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Sobre os autores