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Adnilson de Almeida Silva

(Organizador)

EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA


E NA AMAZÔNIA
APOIO

GOVERNO DO ESTADO DE RONDÔNIA


Superintendência Estadual da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer –
SEJUCEL
Fundo Estadual de Desenvolvimento da Cultura - FEDEC/RO

Lei n. 14.017, de 29 de junho de 2020 (Lei Aldir Blanc), por meio do Edital n.
86/2020/Sejucel-Codec (Edição Marechal Rondon do Edital de
Chamamento Público para Publicação e Difusão de Expressões Culturais).

Eixo I: Publicação de Livros e Revistas Culturais


Linha de Apoio 3: Republicação de obras impressas (Reedição)
Projeto: Expressões, Vivências e Representações Indígenas da e na
Amazônia

REALIZAÇÃO

Grupo de Pesquisa Geografia, Natureza e


Territorialidades Humanas - GENTEH
Adnilson de Almeida Silva
(Organizador)

EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA


AMAZÔNIA

Temática
Porto Velho – Rondônia
2021
© by Adnilson de Almeida Silva

PROIBIDA REPRODUÇÃO DESTA OBRA, POR QUALQUER MEIO, SEM AUTORIZAÇÃO POR
ESCRITO DOS AUTORES.

Temática Editora
Rua Prudente de Moraes, 2421
Centro Porto Velho-RO – CEP 76801-039
(69) 9.9246-7839 tematicaeditora@gmail.com

Comissão Técnica

Preparação de originais e revisão


Abel Sidney

Rogério Mota
Capa

Fotos
Capa: Ivaneide B. Cardozo. Adnilson de Almeida Silva (demais fotos).
Miolo e mapas: dos respectivos autores/autoras de cada capítulo.

Dados internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

E96
Expressões, vivências e representações indígenas da e na
Amazônia / organizador: Adnilson de Almeida Silva. – Porto
Velho : Temática Editora, 2021.
5.898 MB

Inclui bibliografia
ISBN 978-65-87350-27-1 (livro digital)

1. Povos originários - Amazônia. 2. Identidade cultural. 3.


Territorialidade. I. Silva, Adnilson de Almeida, org. II. Título.

CDU 911.3

Ficha elaborada pela Bibliotecária Zane S. S. Santos – CRB 11/1081


AGRADECIMENTOS

Entendemos que o agradecimento seja uma das manifestações


mais elevadas como expressão humana, por isso nosso respeito e
reconhecimento a todas as pessoas e instituições que direta ou
indiretamente contribuíram para a concretização da obra Expressões,
vivências e representações indígenas da e na Amazônia”, dentre eles:
– Todos os povos originários, com os quais desenvolvemos
atividades acadêmicas e profissionais, de modo que proporcionaram
suas contribuições por meio de experiências e vivências indispensáveis
para a consolidação do presente trabalho;
– Ao Governo de Rondônia, por meio da Superintendência
Estadual da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer – SEJUCEL, do Fundo
Estadual de Desenvolvimento da Cultura - FEDEC/RO, da Lei n. 14.017,
de 29 de junho de 2020 (Lei Aldir Blanc), que proporcionaram o Edital n.
86/2020/Sejucel-Codec (Edição Marechal Rondon do Edital de
Chamamento Público para Publicação e Difusão de Expressões
Culturais), Eixo I: Publicação de Livros e Revistas Culturais, Linha de
Apoio 3: Republicação de obras impressas (Reedição), de modo a apoiar
financeiramente o projeto, bem como contribuir para a disseminação do
conhecimento, do fazer científico e da valorização da cultura e suas
expressões;
- A UNIR por meio do Programa de Pós-Graduação Mestrado e
Doutorado em Geografia (PPGG) em proporcionar os meios necessários
para a condução de nossos trabalhos;
- Aos pesquisadores e pesquisadoras com seus grupos de
pesquisas em suas instituições que cederam seus tempos, dedicação e
contribuição na elaboração de importantes trabalhos;
- Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e Centro de
Estudos da Cultura e do Meio Ambiente da Amazônia – Rioterra que em
inúmeras oportunidades tem nos apoiado em trabalhos de campo;
- A Rede CASLA (Casa Latino-Americana) por reconhecer e
apoiar os mais distintos direitos humanos;
- Leitoras e leitores de diferentes públicos que certamente
fornecem o estímulo para nossos empreendimentos acadêmicos.
Dedicamos a todos os povos indígenas, com os
quais estabelecemos relações e parcerias em várias
atividades acadêmicas e profissionais. Sem a
contribuição deles esta obra não seria possível de
ser concretizada. A todos nosso respeito,
reconhecimento e admiração pelos seus sábios
ensinamentos e o desejo de um mundo melhor.

Dedicamos ainda a todas as pessoas e instituições


que, direta ou indiretamente, contribuíram na
concretização do presente material.
SUMÁRIO

Apresentação: A cultura e o caminhar geográfico entre os povos


originários 11
Adnilson de Almeida Silva

Ciência e epistemologia indígenas: um debate necessário 17


Alessandra Severino da Silva Manchinery
Soleane de Souza Brasil Manchineri
Adnilson de Almeida Silva

Prévia análise sobre direitos dos indígenas e das populações


tradicionais amazônicas 35
Adnilson de Almeida Silva
Rosângela Bujokas de Siqueira
Laura Dominic Gazzotto Soares Almeida

Maloca Yñamõrarikãgã e sua representação cultural para o povo


Jupaú: compreensão da territorialidade 67
Adnilson de Almeida Silva
Josué da Costa Silva

As percepções geográficas e culturais dos estudantes indígenas na


fronteira Brasil/Bolívia 87
Agna Maria de Souza Coelho
Cláudia Conceição Coimbra
Maria das Graças Silva Nascimento Silva
Francisco Oro Waram
Adnilson de Almeida Silva

A etnociência, a ciência e enfoque de gênero na perspectiva das


indígenas da fronteira Brasil, Peru e Bolívia 111
Alessandra Severino da Silva Manchinery
Adnilson de Almeida Silva
A tapyia Amondawa e suas representações simbólicas: a afeição pelo
lugar 126
Cristiane de Almeida Anastassioy
Emílio Sarde Neto
Adnilson de Almeida Silva

Karipunas de Rondônia e a educação intercultural


etnoterritorializada 143
Emílio Sarde Neto
Cristiane de Almeida Anastassioy
Adnilson de Almeida Silva

A escola e a aldeia como atributo Paiter Suruí no desenvolvimento


do processo educacional e cultural 164
Adriana Francisca de Medeiros
Adnilson de Almeida Silva

Abordagem sobre a territorialidade rondoniense e suas implicações


para indígenas e não indígenas 191
Alexis de Sousa Bastos
Adnilson de Almeida Silva
Fabiana Barbosa Gomes
Luciléa Ferreira Lopes

Marcadores territoriais na Terra Indígena Igarapé Lage em


Rondônia: identidade Wari’ 213
Francisco Marquelino Santana
Josué da Costa Silva
Adnilson de Almeida Silva

Representações Kaxarari suas vivências e sentidos culturais 253


Francisco Ribeiro Nogueira
Josué da Costa Silva
Américo Costa Kaxarari
Adnilson de Almeida Silva
Os Paiter Suruí e o ritual Mapimaí como “marcador territorial” 311
Kelli Carvalho Melo
Adnilson de Almeida Silva
Almir Narayamoga Suruí

A cultura dos Paiterey e a apreensão tecnológica: antropofagia pós-


moderna 337
Kelli Carvalho Melo
Adnilson de Almeida Silva

A força da floresta e o conhecimento Parintintin sobre a saúde: as


plantas medicinais e suas representações de cura 359
Juliano Strachulski
Nicolas Floriani
Adnilson de Almeida Silva
Luís Carlos Maretto
Severino Parintintin

Kaxarari mahi ka wa huwyta bili hãshu biltu huihimitu y Kupa hâshu


wetu hatu iky wai hâshu txulutu ma’a
O lugar Kaxarari – do jogo da bola de caucho ao ritual sagrado do
Kupá 397
Francisco Marquelino Santana
Josué da Costa Silva
Adnilson de Almeida Silva
Marcondes Kamakuna Alves Rodrigues Kaxarari

Autoras e autores 413


APRESENTAÇÃO
A CULTURA E O CAMINHAR GEOGRÁFICO ENTRE OS POVOS
ORIGINÁRIOS

A obra Expressões, Vivências e Representações Indígenas da e na


Amazônia é resultado do projeto, com a mesma denominação,
submetido ao Governo do Estado de Rondônia, através da
Superintendência Estadual da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer –
Sejucel/Fundo Estadual de Desenvolvimento da Cultura - FEDEC/RO,
em atendimento à Lei n. 14.017, de 29 de junho de 2020 (Lei Aldir Blanc),
no Edital n. 86/2020/Sejucel-Codec (Edição Marechal Rondon do Edital
de Chamamento Público para Publicação e Difusão de Expressões
Culturais), no Eixo I: Publicação de Livros e Revistas Culturais, e na
Linha de Apoio 3: Republicação de obras impressas (Reedição).
Os 15 capítulos presentes na obra trazem reflexões e resultados
de trabalhos desenvolvidos por e com pesquisadores, especialmente da
Geografia, os quais tratam de expressões, representações vivências com
povos indígenas da e na Amazônia, de modo a percorrer uma trajetória
geográfica de mais de 10 anos em pesquisas relacionadas às culturas
originárias.
Os resultados são provenientes de 13 trabalhos apresentados e
publicados em anais de eventos nacionais e internacionais, bem como
em artigos de periódicos indexados ao Qualis/CAPES. Estes artigos, por
sua vez foram revistos, ampliados, modificados (inclusive os títulos) e
formatados em capítulos de livro.
Em síntese, os capítulos retratam e chamam a atenção do leitor
para refletir sobre a ciência e epistemologia indígena; a compreensão da
ciência associada à cultura pelas mulheres indígenas; práticas e
exercícios de expressões, representações culturais e identidades; as
percepções culturais de alunos no campo da educação; como a educação,
a escola integram práticas não dissociadas da cultura; a cultura como
elemento e fenômeno de proteção territorial; a inserção e utilização da
tecnologia como interação da cultura.

11
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

A obra ainda apresenta dois capítulos inéditos, o primeiro como


resultado de pesquisa de doutorado, o qual discute etnoconhecimentos
e etnossaberes indígenas Pykahu-Parintintin na utilização de espécies da
floresta e dos quintais para o tratamento de enfermidades e que
proporcionam o bem-estar. O outro fruto de vivências e experiências
com os Kaxarari que permeia os tempos dos seringais e do ritual do Kupá.
Neste sentido, as temáticas trabalhadas nos capítulos estão
diretamente vinculadas ao conceito de “marcadores territoriais”, o qual
é assim definido por Almeida Silva (2010, p. 105):

A concepção de “marcadores territoriais” pode ser


compreendida a partir dos símbolos que ocorrem enquanto
espaço de ação, definem territorialidades vinculadas à
cosmogonia e experiências socioespaciais e possibilitam a
formação das identidades culturais e do pertencimento
identitário. [...] são experiências, vivências, sentidos,
sentimentos, percepções, espiritualidade, significados, formas,
representações simbólicas e presentificações que permitem a
qualificação do espaço e do território como dimensão das
relações do espaço de ação, imbricados de conteúdos
geográficos.

No nosso entendimento, a cultura está vinculada aos


“marcadores territoriais” e inscreve-se como representação simbólica e
interliga-se às expressões, às normas ideais estruturantes, à operação
com a materialidade, à organização social, à organização territorial, à
cosmogonia. Destarte, as temáticas desenvolvidas como capítulos se
entrelaçam direta e indiretamente à cultura, suas manifestações e
expressões.
A Figura 1 sintetiza didaticamente como se operacionaliza à
cultura, a qual como conceito refere-se ao “conjunto interligado de
regras, valores, representações simbólicas, sociais e parâmetros
compartilhados por uma sociedade que constrói e produz
comportamentos, conhecimentos, pertencimento, enraizamento e
identidade, aceitáveis e legitimadas por esta sociedade”. Deste modo, a
cultura possui um caráter de dinamicidade, ou seja, em permanente

12
ALMEIDA SILVA (ORG.)

construção, visto que como a sociedade avança, a cultura promove seus


ajustes, ou melhor, se ressignifica, adquire novos sentidos, novas
expressões e novos significados.

Figura 1: Síntese das representações simbólicas e suas conexões com a


cultura

Fonte: Ampliado por Almeida Silva (2010, 2015) a partir de Hofstede (1991);
Cassirer (1953-1957; 1960; 1968; 1992 [1925]; 2005); Hoebel e Frost (2005
[1976])

A partir dessas explicações convidamo-os a participar conosco


da leitura e conhecer um pouco da cultura produzida e vivenciada pelos
povos originários da e na Amazônia em suas múltiplas identidades,

13
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

percepções, representações, etnossaberes e etnoconhecimentos.


Ressaltamos que a obra se refere apenas algumas das particularidades do
universo dos povos indígenas, visto que à acessibilidade a seus mundos
é complexo e não pode ser compreendido em sua totalidade não só por
algumas barreiras – inclusive linguística –, mas também pela não
vivência e experiências em seus espaços de ação.
Ponderamos ainda que somente alguns dos povos originários
estão referenciados na obra, visto que existe uma heterogeneidade e
múltiplas etnias em toda a Amazônia, o que exige pesquisas específicas
sobre cada um deles dado à riqueza cultural. Rondônia, por exemplo,
possui mais de 50 povos indígenas com línguas e valores culturais,
sociais, espirituais distintas - dentre esses existem aproximadamente 10
povos em isolamento voluntário -, que habitam 22 terras indígenas em
diferentes situações jurídicas.
Por fim, reiteramos a todos e todas que tornaram a presente
publicação só foi possível com o apoio financeiro Governo de Rondônia,
a Sejucel, a Lei Aldir Blanc, por meio do Edital n. 86/2020/SEJUCEL-
CODEC (Edição Marechal Rondon do Edital de Chamamento Público
para Publicação e Difusão de Expressões Culturais); demais parcerias
institucionais; as autoras e autores pelo desprendimento de tempo e a
oportunidade de refletir na construção coletiva desta publicação.
Porto Velho-RO, junho de 2021.

Prof. Dr. Adnilson de Almeida Silva


(Organizador)

REFERÊNCIAS
ALMEIDA SILVA, A. Impactos socioculturais em populações
indígenas de Rondônia: estudo da nação Jupaú. Dissertação (Mestrado
em Geografia). Porto Velho: PPGG/NCT/UNIR, 2007. 255 f. Disponível
em: www.ri.unir.br/jspui/handle/123456789/2012. Acesso em: 12 abr.
2012.

14
ALMEIDA SILVA (ORG.)

ALMEIDA SILVA, A. Territorialidades e identidade dos coletivos


Kawahib da Terra Indígena Uru-Wau-Wau em Rondônia: “Orevaki
Are” (reencontro) dos “marcadores territoriais”. Tese (Doutorado em
Geografia). Curitiba: PPGG/UFPR, 2010. 301f. Disponível em:
https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/24230/Adnilson
KawahibUFPR2010.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.

ALMEIDA SILVA, A. Territorialidades, identidades e marcadores


territoriais Kawahib da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau em
Rondônia. Jundiaí: Paco, 2015.

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[1925].

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Tradução de Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1926].

CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. II. O pensamento


mítico. Tradução de Cláudia Cavalcante. São Paulo: Martins Fontes,
2004 [1926].

CASSIRER, E. The philosophy of symbolic forms. Vol. III. The


phenomenology of knowledge. New Haven: Yale University Press, 1953,
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2. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2005 [1942].

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CASSIRER, E. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre Jou, 1978
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CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da


cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994 [1944].

15
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

CASSIRER, E. O mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar, 1976 [1946].

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HOEBEL, E. A.; FROST, E. L. Antropologia cultural e social. 7. ed. São


Paulo: Cultrix, 2005 [1976].

HOFSTEDE, G. Cultures and organizations: softwares of the mind.


Maidenhead: McGraw-Hill, 1991.

16
CIÊNCIA E EPISTEMOLOGIA INDÍGENAS: UM DEBATE
NECESSÁRIO 1

Alessandra Severino da Silva Manchinery


Soleane de Souza Brasil Manchineri
Adnilson de Almeida Silva

A temática propõe-se em discutir alguns desafios que se colocam


ao processo de construção de teorias, em particular, à elaboração de
teorias indígenas. Deste modo, pretende-se identificar e analisar os
dilemas e desencontros do campo do saber indígena nas ciências, bem
como compreender os principais posicionamentos para a construção de
uma epistemologia originária, dada sua relevância para os estudos
indígenas nas ciências sociais e humanas.
A proposta do trabalho está firmada na oralidade, nos pontos de
vistas, pensamentos, etnossaberes e etnoconhecimentos 2, como
possibilidade de quebras de paradigmas, em virtude de sua pertinência
para os estudos interculturais dentro e fora do ambiente acadêmico.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente teve como origem nos debates na ocasião em que as


duas primeiras autoras eram discentes de graduação e participavam do
Grupo de Pesquisas do Programa de Educação Tutorial/Comunidades

1 Publicado nos anais do X Seminário Temático da Rede Internacional Casla-


Cepial no ano de 2018 com o título “Por uma ciência e epistemologia(s)
indígena: dilemas e desafios”.
2 Optamos por utilizar tais termos/conceitos por entendermos que parecem nos

ser mais adequados que saberes ancestrais/tradicionais, os quais muitas vezes


são apresentados e discutidos de modo muito genérico. Assim, etnossaberes e
etnoconhecimentos, embora não estejam devidamente compreendidos
conceitualmente, nos remeterá a um conjunto de valores morais, éticos,
espirituais, culturais, sociais, ambientais e estéticos de determinados povos, no
caso aqui referenciados como povos originários e/ou indígenas.

17
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Indígenas e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Migrações e


fronteiras na/da Amazônia Sul-Ocidental, ambos vinculados à
Universidade Federal do Acre (UFAC), mas também foi intensificado em
seus ingressos nos Mestrados de Letras (UFAC) e Geografia na
Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Ambas destacam que “desde que adentramos no meio acadêmico
sentimos a necessidade de valorizar o pensamento indígena enquanto
ciência, enquanto saber, pois são conhecimentos específicos que foram
marginalizados pelo pensamento ocidental”. De modo que as percepções
em “todas as vezes que estávamos e estamos nos debates em grupos de
pesquisas, seminários dente outros, observamos que o pensamento
ocidental está sempre em primeiro foco, no entanto, a ciência ocidental
tem lacunas que só podem ser preenchidas pelos conhecimentos que
foram deixados de fora”.
Assim, esses conhecimentos desprezados têm como objetivo e
finalidades diferentes para outros estudos como de sociedade e povos
indígenas que valorizam o todo que seria um tempo espacial em que
existem vários fatos interligados nas ações humanas. Neste sentido,
compreende-se que muitas vezes não há uma ponte de integração entre
os saberes e mesmo as realidades apresentam fragilidades na interação
de informações, o que propicia o ceticismo e domínio no campo dos
saberes. É nesta visão que surge a necessidade de ser construída uma
ciência e epistemologia indígena, a partir dos etnoconhecimentos e
etnossaberes.
Trata-se de uma tarefa árdua, vez que os povos originários
restringem seus cabedais de conhecimentos ancestrais imemoriais, isto
é, são conhecimentos pertinentes a clãs familiares, ensinamentos de
família que serão herdados por aqueles que tiverem aptidão de curar, de
liderar dentre outros fatores inerentes à coletividade. Um exemplo
prático seria o chá da ayahuasca que nem todos podem beber, somente
aqueles que estão devidamente preparados por meio de rituais,
possuidores do conhecimento de canção de cura e das ervas medicinais.

18
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O uso inapropriado do chá poderá fazer com que espírito da pessoa


vague fora do corpo numa viagem sem retorno.
Os conhecimentos dos povos indígenas são ensinamentos que
devem ser levados em consideração e respeito, pois movimentam uma
circularidade de conhecimentos físicos, propriamente ditos (aquilo que
é palpável) e o invisível que é o mundo espiritual, onde este deve ser
levado muito a sério pelo fato de ser a fonte dos conhecimentos dos entes
que doutrinam os seres humanos em sua jornada pela Terra.
Lembramos que determinados conceitos ocidentais como Ciência
e Epistemologia não existem nas sociedades indígenas. O que fazemos
são interpretações desses conceitos para poder traduzir significados dos
conhecimentos indígenas e respeitar suas restrições naquilo que não se
pode revelar para o público por serem muito particulares, especialmente
os ritualísticos.
Este ensaio busca demostrar que a ciência estruturada
cartesianamente, a não indígena, tem percorrido caminhos muitas vezes
não compatíveis com vários aspectos fundamentais que integram a visão
dos povos originários. O objetivo aqui proposto é esboçar uma
perspectiva conceitual de ciência bastante distinta e diversa que pode
emergir dos registros históricos das atividades de pesquisa, sobretudo
pela relevância dos etnoconhecimentos e vivências dos povos indígenas.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE CIÊNCIA E EPISTEMOLOGIA

Esta seção apresenta algumas referências sobre o que é Ciência e


o que é Epistemologia, para assim promover a compreensão ou
aproximação dentro da perspectiva indígena. Neste caso, entendemos
não como um dualismo ou que uma abordagem é superior a outra; trata-
se de percepções, experiências, vivências e concepções múltiplas de se
interpretar o mundo e suas variáveis.
O geógrafo francês Paul Claval (2014, p. 17) ao propor o debate
sobre Epistemologia indica no dicionário Robert (da língua Francesa),
que “é um estudo crítico das ciências destinado a determinar a sua

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EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

origem lógica, o seu valor e seu alcance. A epistemologia entra na teoria


do conhecimento”. Logo, é uma investigação moderna que visa explicar
o mundo, os elementos que o compõem e os seres que o povoam. Para
isso distingue elementos, destaca forças e mostra como elas agem e
interferem. Tudo parece simples. É uma ilusão: os seres, as coisas, os
objetos que estudamos não tinham nomes antes que os seres humanos
fixassem o seu olhar sobre eles. O real não se apresenta ao observador de
acordo com as categorias que o fariam parte da ordem natural: as
divisões foram construídas pelos seres humanos, os quais colocam ordem
na confusão das primeiras impressões.
Na análise de Carneiro da Cunha (2007) encontramos talvez o
que muitos esperam que a epistemologia nos diga que etnossaberes e
etnoconhecimentos são semelhantes ao saber científico. Não: eles são
diferentes, e mais distintos do que se imagina. Diferentes no sentido
forte, ou seja, não apenas por seus resultados. Às vezes, se acha que são
incomensuráveis na medida em que, por exemplo, permite uma
expedição da Nasa (finalmente) para tentar consertar o telescópio
Hubble em plena órbita e o outro, não. A autora afirma que
conhecimento científico e etnoconhecimento são incomensuráveis, mas
que esse distanciamento não reside primordialmente em seus
respectivos resultados, mas essas diferenças são muito mais profundas.
A autora afirma ainda que poderíamos começar a notar que, de
certa maneira, os etnoconhecimentos e etnossaberes estão para o
conhecimento científico como as religiões locais para as universais. O
conhecimento científico se afirma, por definição, como verdade absoluta
até que outro paradigma o sobreponha, que o supere, como mostrou
Kuhn (1998).
Essa universalidade do conhecimento científico não se aplica aos
etnossaberes e etnoconhecimentos – muito mais tolerantes – que
acolhem frequentemente com igual confiança ou ceticismo explicações
divergentes cuja validade entendem seja puramente local. Para melhor
entender essa afirmação elaboramos um esquema (Figura 1) de como a
ciência não indígena procura se mostrar perante a outros conhecimentos

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ALMEIDA SILVA (ORG.)

não estruturados (vernaculares, êmicos, originários), dentre os quais os


indígenas.

Figura 1: Esquema da ciência não indígena em relação a outros


conhecimentos

Fonte: Organizado por Alessandra Manchinery (2018)

Com relação ao esquema acima, a indigenista Cardozo (2018),


considera que tudo é ciência, e os etnoconhecimentos e etnossaberes
também é ciência. Porém, alguns pesquisadores, não ponderam
etnoconhecimentos como ciência, porque alegam que esses saberes
precisam ter um método definido, consequentemente um resultado
comprovado e aprovado por testes que podem ser replicados e darem as
mesmas respostas. Diferente disso, os povos indígenas usam a
espiritualidade no sentido de aprendizagem, além da oralidade como
método de ensino desde tempos imemoriais, o que ocorre é que não são
descritos com o rigor que a ciência estruturada (moderna) tem como
parâmetro.
Ainda sobre a ilustração, as ciências não indígenas se firmam
como verdade absoluta, elas dão centro e palco para pesquisas e
produções. Tudo tem que ser provado, ter um resultado concreto e
absoluto. O que mais nos impacta é saber o que os
cientistas/pesquisadores pesquisam e produzem para confirmar essa

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EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

fala, no caso como contraponto citamos Lévi-Strauss que ao chegar


América para estudar sobre os povos originários disse que:

As faculdades aguçadas dos indígenas lhes permitiam notar


exatamente os caracteres genéricos de todas as espécies vivas,
terrestres e marinhas, assim como mudanças as mais sutis de
fenômenos naturais, tais como os ventos, a luz e as cores do
tempo, as ondulações ligeiras das vagas, as variações da
ressaca, as correntes aquáticas e aéreas (LÉVI-STRAUSS, 1989,
p. 17).

A concepção de Lévi-Strauss sobre esses conhecimentos e


saberes relevantes é respaldado por Kuhn (1998) ao afirmar que se a
História fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas
ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na
imagem de ciência que atualmente nos domina. Mesmo os próprios
cientistas têm absorvido essa imagem principalmente no estudo das
realizações científicas acabadas, tal como estão registradas nos clássicos
e, mais recentemente, nos manuais que cada nova geração utiliza para
aprender seu ofício. Porém, o objetivo de tais livros é inevitavelmente
persuasivo e pedagógico; um conceito de ciência deles exaurido terá
tantas probabilidades de assemelhar-se ao empreendimento que os
produziu como a imagem de uma cultura nacional obtida através de um
folheto turístico ou um manual de línguas.
Essa compreensão conduz a constatação que dentre as plantas e
os animais, o indígena nomeia apenas as espécies úteis ou nocivas; as
outras são indistintamente classificadas como ave, erva daninha
(KRAUSE, 1956, p. 104 apud Levi-Strauss, 1989, p. 16).
Deste modo, o que interessa/convém para a ciência e
epistemologia ocidental pode ou até mesmo não ter utilidade os povos
indígenas. Sem dúvida não podemos confundir e nem mesmo compará-
los, visto que são situações, vivências e percepções de mundos distintos,
assim como necessidades distintas. Entretanto, podemos considerar
essas ciências como conexões ou mesmo como define Charaudeau
(2010, p. 4-5) de multidisciplinaridade, transdisciplinaridade e

22
ALMEIDA SILVA (ORG.)

pluridisciplinaridade que é a somas das disciplinas, e nós a chamamos de


somas das ciências.
No entanto, não entraremos em detalhes sobre isso, mas assim
como o autor aborda que cada disciplina precisa manter sua autonomia,
assim reivindicamos que as ciências indígenas também precisam manter
sua autodeterminação, sem precisarmos reexaminar seus pressupostos
sob o ponto de vista de outra ciência, e faça (de maneira saudável)
análise de um objeto de estudo, também ela pode ser ponderada por
outras ciências, mas somente sob sua ótica, assim como a ocidental o faz.
Trata-se de uma justaposição de pontos de vista que trazem uma
compreensão especial sobre o fenômeno estudado e assim formulamos
ou, ao menos tentamos traduzir o que seriam as ciências e epistemologia
indígenas.
No que tange à epistemologia indígena e conhecimento indígena,
Lévi-Strauss (1989) relata que numa área da Califórnia onde realizou
pesquisa havia um coletivo de indígenas Coahuilla, em número de vários
milhares, mesmo assim não não esgotavam os recursos naturais; viviam
na abundância. Isso porque, nesse lugar de aparência desfavorecida,
conheciam nada menos que 60 plantas medicinais. E um único
informante Seminole identificou 250 espécies variadas de vegetais.
Foram recenseadas 350 plantas conhecidas pelos indígenas Topi e mais
de 500 pelos navajos (p. 20). De modo semelhante, os povos indígenas
brasileiros também são grandes conhecedores das plantas 3 e das
medicinas em diversos sentidos, até mesmo devido à grande
biodiversidade existente no país.
Ressaltamos que esses povos possuem grande familiaridade com
o meio biológico, o apego/atenção que lhe dedicam, seus conhecimentos
exatos frequentemente impressionam muitos pesquisadores como
indicadores de atitudes e preocupações que diferenciam os povos

3O mesmo contexto de conhecimento se aplica em relação a animais terrestres,


aquáticos e dos ares.

23
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

originários de seus visitantes não indígenas (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.


20). Entre os indígenas Tewa, do Novo México são apontados que:

As pequenas diferenças são notadas... Eles têm nomes para


todas as espécies de coníferas da região: ora, nesse caso, as
diferenças são poucos visíveis e, entre os brancos, um indivíduo
não treinado seria incapaz de distingui-las... Na verdade, nada
impediria que se traduzisse um tratado de botânica em Tewa
(ROBBINS; HARINGTON; FREIRE-MARRECO, 1916, p. 9-12,
apud LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 20]).

Não diferente de outros povos originários, os indígenas


brasileiros são conhecedores da fauna, do solo e da vegetação. São
capazes de distinguir variedades de espécies que contribuem ou utilizam
em sua etnomedicina, nas suas cerâmicas, nos seus ritos e em sua
culinária. Como afirma Strauss em O pensamento selvagem, os
informantes indígenas acham tudo muito natural, no estádio elementar
de sua instrução, juntar um grande número de espécimes botânicas que
nomeavam enquanto apresentavam, porém, o pesquisador era incapaz
de identificar, não tanto por sua natureza exótica, mas porque nunca se
interessara pela riqueza e pela diversidade do mundo vegetal, enquanto
os indígenas tinham tal curiosidade pré-adquirida (LÉVI-STRAUSS,
1986, p. 20).
As ciências e epistemologia em sentido geral são importantes sim
para construir e descrever diversos processos da própria ciência como
construção de saberes. Porém, para esses conhecimentos a ciência
indígena não é considerada como tal, por não possuir valor, rigor ou
legitimidade e reaplicabilidade, visto que é desenvolvida
sistematicamente por meio de somente prática ou empirismo.
Em contraponto, a Figura 2 demonstra como ocorrem o
pensamento e etnoconhecimento a partir da percepção de alguns povos
indígenas do Acre, mas que certamente tem similaridade com outros
povos originários do Planeta, visto a relação profunda que temos com a
terra e demais seres viventes nela, visíveis ou não. Trata-se de um

24
ALMEIDA SILVA (ORG.)

conjunto interativo e holístico que caracterizam e dão sentidos,


significados e representações de compreensão do cosmo.

Figura 2: Sistema da ciência indígena

Fonte: Organizado por Alessandra Manchinery (2018)

A principal e talvez única diferença que existe entre as ciências-


epistemologia ocidental para a indígena são os modos (métodos) como
são ensinadas e transmitidas, pois compreendemos que ambas são
relevantes para a construção de conhecimentos pretéritos, atuais e que
abrem perspectivas para a compreensão do que ainda virá.

E AS ALTERNATIVAS?

A discussão sobre a ciência indígena tem se constituído em torno


de uma problematização de natureza epistemológica que, baseia-se na
ideia da constituição social do conhecimento científico, concentra-se na
análise da natureza profunda do olhar indígena sobre o mundo e,
portanto, no potencial inovador da pesquisa científica gerada pelos
povos originários. Desta perspectiva, o problema não consiste tanto no
melhoramento da participação de indígenas no sistema das ciências
ocidentais, senão nos esquemas interpretativos que dominam a
construção simbólica da natureza e da sociedade.
Para fomentar a discussão, Pantoja (2016) nos adverte sobre a
noção que “conhecimentos tradicionais” não é “nativa”, se com isso se
quer denominar um termo localmente originário. Utilizamos conscientes

25
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

que se trata de um termo atribuído e que foi paulatinamente apropriado


pelos povos aos quais foi associado, em especial devido à sua dimensão
pública e política. Não se pretende aqui traçar o histórico do termo.
Partimos, contudo, de seus vínculos de origem para aos poucos se
perguntar sobre seus limites conceituais e políticos, em especial para
uma Geografia voltada a uma relação epistemologicamente mais
simétrica com seus interlocutores nativos (PANTOJA, 2016, p. 1).
A ideia de conhecimentos ancestrais/tradicionais pressupõe,
claro, a existência de seus detentores, os conhecedores. Tal como os
primeiros, que possuem amplitude e recobrem inúmeros sistemas de
sentido, os segundos também não são homogêneos e incluem inúmeras
coletividades. Trata-se de seringueiros, castanheiros e outros
extrativistas, assim como agricultores familiares, ribeirinhos, pescadores
artesanais, quilombolas e outros modos de autoidentificação, além de
povos indígenas, com toda sua diversidade interna (PANTOJA, 2016, p.
1-2).
A noção de etnoconhecimentos e etnossaberes aqui adotada,
veremos agora, além de estar marcada pela ciência, tende a acompanhar
de algum modo aquela relativa a seus detentores.
Em primeiro lugar, conhecimento tradicional
(etnoconhecimento e etnossaber) não é o mesmo que senso-comum.
Não é aquilo que tudo mundo “sabe”, que está num certo conhecimento
geral acessado por todos, como aquele que trata da melhor lua para cortar
o cabelo, ou sobre os chás que servem para isso ou para aquilo. Este
tipologia de conhecimento provavelmente tem raízes em descobertas e
usos por coletividades locais, mas a informação assim colocada em
circulação a descaracteriza como parte de um sistema de conhecimento.
Além disso, o termo “senso comum”, em especial entre cientistas,
é pejorativo. Quando o conhecimento de coletividades locais é situado
como de senso comum, este é desqualificado como um interlocutor
legítimo perante à ciência. Cria-se uma oposição entre esses dois saberes,
uma barreira entre eles, na verdade uma hierarquia, enfim, uma relação
de poder, conforme aponta Pantoja (2016, p. 3-4).

26
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Em segundo lugar, os etnoconhecimentos e etnossaberes, tal


como a ciência praticada nas universidades e centros de pesquisa,
também requerem procedimentos científicos. Ou seja, certas regras e
atitudes sistemáticas deveriam ser seguidas e funcionariam como
condições para que possa haver a produção de um conhecimento
(CARNEIRO DA CUNHA; ALMEIDA, 2002 apud PANTOJA, 2016, p. 4).
Concordamos em partes com o enunciado, isto porque os termos
etnoconhecimentos e etnossaberes nos parece mais adequado, no caso
dos povos originários, de modo que compreendemos que apresentam
maior abrangência e abrem perspectivas a partir da vivência e
experiência de cada um desses povos.
Tratar-se-iam, portanto, de cientistas locais, sabedores
ancestrais/tradicionais que, tal como nas salas de aula e laboratórios das
universidades, fazem experimentações, por exemplo, em seus roçados,
domesticam espécies, cruzam-nas, criam novas espécies e selecionam
sementes mais resistentes. Ou nas florestas, erigem uma ciência
naturalista pela observação sistemática dos rastros e comportamentos
dos animais, das épocas de acasalamento e das classificações de matas
onde são encontrados os diferentes animais caçados. Roçados e florestas,
portanto, funcionariam como verdadeiros laboratórios (PANTOJA,
2016, p. 4).
O conhecimento produzido sobre e pelos indígenas sempre foi
visto como de menor valor, por versar sobre assuntos tidos como não
harmonizado com o rigor científico, nem dignos de serem contemplados
pela ciência, como o cotidiano, as histórias de família, ritos, os mitos,
narrativas, histórias, cosmologias, cosmogonias, os gestos e os sonhos,
enfim, temas considerados como “coisas de índios”. Acrescem a essas
críticas, voltadas para o tipo de objeto, outras que dizem respeito às
atitudes de pesquisadores indígenas, acusados de não conseguirem agir
com neutralidade, bem como articular teoria e prática de maneira tão
visceral, a ponto de não separar a construção do conhecimento, da vida
do Eu como pesquisador e objeto de seu próprio estudo.
Tudo isto faz com que, ainda hoje, o quanto é inegável a
importância da pesquisa indígena no processo de reflexão sobre a

27
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

sociedade em que vive e fora de onde se vive, existem alguns autores que
inclusive afirmam que “a contribuição indígena ainda não foi
devidamente reconhecida no meio acadêmico”, em particular por
aqueles que insistem em manter uma postura formal em relação à
ciência.
Esses, entre outros, são argumentos utilizados para dificultar a
legitimidade do etnoconhecimento e etnossaber indígena, de modo que
os excluem de muitas áreas do saber acadêmico, logo são vistos com
desprezo e desqualificação. Essas atitudes refletem os preconceitos que
a sociedade tem com os povos originários e as populações tradicionais, o
que resulta na falta de valor, bem como a incompreensão e a
invisibilidade.
Ainda que saibam que os estudos indígenas são significativos em
quantidade e qualidade, reiteradas afirmações indicam que “o
conhecimento” sobre seu modo de vida, ciência e saberes, enfrentam
grandes dificuldades para obter reconhecimento como tema relevante
para as ciências sociais e outras áreas do conhecimento, daí decorre a
recusa de muitos pesquisadores em não identificar e certificar o que os
povos originários constroem como indispensável à compreensão de
outras perspectivas e leituras de mundo.

SOBRE A CIÊNCIA E EPISTEMOLOGIA INDÍGENA

É a jiboia sagrada, as plantas que curam, a


floração que marca as chegadas das estações, as
fases da lua, o nosso calendário, é a ciência, é a
ciência indígena.
Yube Huni Kuin (2018)

O estudo sobre ciência e epistemologia vem de interpretações


acerca de questionamentos orais que fizemos através de diálogos com
diferentes povos indígenas. A Ciência Indígena está baseada nos
conhecimentos práticos do cotidiano desses povos originários, pois seu
conhecimento depende de ensinamentos que estão ligados com o

28
ALMEIDA SILVA (ORG.)

mundo espiritual conforme ponderado em 2018 por Marcos Nukini, da


Terra Indígena Nukini (Mâthunuya):

A ciência é tudo que me baseio para sobreviver. É o que uso


para o dia a dia, pra caçar, pescar, plantar, colher e me orientar
através dos tempos e sinais da lua, sol, canto dos pássaros,
floração das árvores, chuvas e etc. Além desse ensinamento há
uma relação que chamarei de interação dos conhecimentos
tradicionais e o aprendizado do homem que mora na floresta.
Seria uma interação de reciprocidade, pois no caso a natureza
é considerada como um membro muito importante da família,
como uma mãe.

Constatação semelhante à oportunizada dada por Marcos Nukini


foi discutida por Almeida Silva (2010; 2015) ao tratar de “marcadores
territoriais”, que compreende as constatações dos povos indígenas como
conhecimentos que refletem suas percepções e sentidos de mundo, de
modo que assim pondera:

A forma e a representação simbólicas e a presentificação para


vários desses coletivos como uma revoada de pássaros ou o
florescimento de determinadas espécies podem significar
profundas mudanças climáticas ou, então, fartura e escassez de
alimento, iminência de conflitos, surgimento de doenças, entre
outras possibilidades, implicando na proteção social e
territorial, enquanto para outros coletivos com culturas
distintas trata-se somente de uma revoada de pássaros. [...]
simbolicamente quando ocorre algum sinal ou manifestação
diferente, esses coletivos com sua sensorialidade construída
pela experiência ancestro-cosmogônica procuram explicar os
fenômenos auxiliados pela evocação e presentificação dos
espíritos e heróis cosmogônicos, bem como por meio das
experiências [...] (ALMEIDA SILVA, 2010, p. 72; ALMEIDA
SILVA, 2015).

Destarte, a qualificação dada pelo autor e confirmada na assertiva


de Marcos Nukini reflete que a Terra e seus componentes é tratada com
respeito e veneração, pois é dela que herdamos os etnoconhecimentos
seja para cura dos seres humanos ou como junção e disseminação de

29
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

sementes e multiplicação dos animais para que haja manutenção dos


ecossistemas que dependem muito dessa interação geral.
Tal relação é semelhante a inúmeros povos originários, porém
diferenciada no sentido de como é desenvolvido em determinada
coletividade indígena. Então a ciência ancestral, no nosso entendimento
seria um fato muito além do que só experimentos, também seriam
percepções advindas do sobrenatural, da análise de uma pessoa que se
preparou para observar a natureza e toda biodiversidade existente nela
e assim poder servir como um mediador de conhecimentos de visões
distintas provenientes do mundo real dos homens e do mundo dos seres
encantados donos da floresta, das águas, dos ares, do solo, os cuidadores
de seus territórios, seu habitat.
O que poderia ser intitulado como Ciência Indígena está
interligado a vários fatores do cotidiano dos povos originários que não
tem seus conhecimentos pautados ou guardados em caixinha, gavetas
como se estivesse num armário que a qualquer momento podem ser
retirados e resolver todos os problemas possíveis como muitas vezes
esperamos da Ciência pautada nos conhecimentos ocidentais.
O jovem Renato Manchineri, com 23 anos à época (2018),
morador de Rio Branco, enfatiza que a Ciência serve para reescrever a
história de seu povo, além de mostrar a luta para o registro do legado dos
povos originários ao longo dos anos. É por meio dos registros que se
mostram modos diferenciados de pensar a relação entre os seres da mata,
sem uma hierarquia que posicione o ser humano no topo, mas como parte
colaborativa no equilíbrio entre o mundo físico e o imaterial, parte de um
todo indissociável.
Por outro lado, percebemos uma preocupação desses povos com
a desvalorização da floresta, visto que é dela que se extraí mais do que os
conhecimentos, nela herdamos a vida que tem ciclos variados e
construímos nossas vivências e experiências. O retorno do cuidado com
a natureza é positivo, intrínseco a esses povos, pois adquirem um bem que

30
ALMEIDA SILVA (ORG.)

é a vida com qualidade, em oposição ao desmatamento e os danos


causados a ela traz inúmeras incertezas.
Quanta à epistemologia indígena dá-se ênfase ao conhecimento
dessas relações entre o homem e a natureza já que podemos tentar traçar
meios e adquirir conhecimentos que nos conduziram até os dias de hoje.
Muitos dos etnossaberes ou etnoconhecimentos devem ser resguardados
em sigilo por respeito aos pajés que fazem revelação a respeito, não só
porque é segredo de família, mas pelo fato de haver biopirataria, uso
indevido dessas informações dentre tantas questões que podem
prejudicar outras pessoas, conforme expõe, em 2018, um pajé
Manchineri, que aqui tem seu nome resguardado:

Os Karrunhoti (pajé) também transmitiam os conhecimentos


ancestrais, primeiramente para sua primeira esposa, depois sua
esposa ensinava as demais esposas. Cada chefe, num passado
recente, podia ter até 10 esposas, sendo reservado o ensino à
primeira esposa. Caberia à primeira esposa ensinar as demais
mulheres para depois poderalcançar toda a comunidade. Todo
o ensinamento deve ser passado para a comunidade em geral
havendo uma interação comunitária desde tempos imemoriais.

Destarte, o desafio maior consiste na valorização dos


etnoconhecimentos e etnossaberes por parte da sociedade científica, a
qual não leva em consideração os demais conhecimentos como ciência,
e o tratam como empirismo puro; sim, os povos originários possuem
experiências e mais ainda praticidade, o único procedimento que não
fazíamos/fazemos/éramos/é escrever/anotar como os não indígenas
fazem. Aliás, nossa escrita é nossa língua, são os nossos grafismos na
pele, nas cerâmicas, na etnomedicina, nos rituais e cantos festivos.

CONSIDERAÇÕES ÚLTIMAS

A existência de sistemas tradicionais de conhecimento depende


de certas condições para a sua produção e reprodução, conforme aponta
Carneiro da Cunha e Almeida (2002 apud PANTOJA, 2016). A ciência
também depende de condições próprias para sua existência, como, por

31
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

exemplo, editais de financiamento, bolsas, equipamentos, congressos,


dentre outros.
No caso das ciências indígenas, as condições necessárias são
diferentes. Uma delas seria a presença de relações familiares e de
vizinhança, em que os saberes e objetos são trocados livre e
gratuitamente. Um cientista indígena, nunca trabalha sozinho, ele
coopera incessantemente com aqueles com os quais convive – trata-se
de um conhecimento coletivo, o que não significa que todos saibam de
tudo: há especialistas: como os pajés, caciques, dentre outros.
Outra condição seria a disponibilidade de terras e recursos
naturais, que são o próprio laboratório desses cientistas como foi
relatado no transcurso do texto. Ou ainda a convivência e o aprendizado
intergeracional que possibilita a transmissão dos saberes e a sua
renovação. Na avaliação de Pantoja (2016) parecem coisas simples, mas
que são complexas e que podem envolver questões políticas
importantes. Se uma das condições de produção desse conhecimento é a
existência de redes sociais de troca de informações, isso significa que sua
proteção contra roubo e pirataria, bem como sua justa remuneração, não
pode ocorrer pelo sistema de patentes, que privatiza o saber e impede
sua livre circulação.
Para finalizar o que é ciência indígena, Renato Tupiniquim
(2018) em sua compreensão diz que ela fortalece os rituais do povo, a
cultura, a essência dos antepassados, o repasse de conhecimento às
gerações vindouras, a força que os encaminha para a luta, e acima de tudo
a medicina que cura os males do corpo e do espírito.
Sim, os indígenas são povos diferentes que produzem ciências
distintas, e constroem saberes plenos de pensamentos, experiências e
visões de mundo. A disposição para a luta para que seus saberes sejam
reconhecidos como a ciência dos povos indígenas é o que os move para
outras jornadas.

32
ALMEIDA SILVA (ORG.)

REFERÊNCIAS

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Kawahib da Terra Indígena Uru-Wau-Wau em Rondônia: “Orevaki
Are” (reencontro) dos “marcadores territoriais”. Tese (Doutorado em
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https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/24230/Adnilson
KawahibUFPR2010.pdf. Acesso em: 10 jan. 2018.

ALMEIDA SILVA, A. Territorialidades, identidades e marcadores


territoriais Kawahib da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau em
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CHARAUDEAU, P. Por uma interdisciplinaridade “focalizada” nas


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transdisciplinaridade e a interdisciplinaridade em estudos da
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LEVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.

33
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

MANCHINERI, R.S.B. Entrevista. Rio Branco, 2018.

MANCHINERY, A.S.S.; MANCHINERI, S.S.B.; ALMEIDA SILVA, A. Por


uma ciência e epistemologia(s) indígena: dilemas e desafios. In: Anais do
X Seminário Temático da Rede Internacional CASLA-CEPIAL. Porto
Velho: UNIR, 2018. p. 1-14. Disponível em: www.even3.com.br/anais/
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INDIGENA--DILEMAS-E-DESAFIOS. Acesso em: 4 dez. 2020.

NUKINI, M. Entrevista. Rio Branco, 2018.

PANTOJA, M.C. Conhecimentos tradicionais: uma discussão conceitual.


In: Anais do X Simpósio de Linguagens e identidades da/na
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Amazônias, As Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia: trânsitos pós-
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UFAC, 2016. p. 1-15. Disponível em: https://periodicos.ufac.br/index.
php/ simposio ufac/article/view/794. Acesso em: 2 jan. 2018.

TUPINIQUIM, R. Entrevista. Rio Branco, 2018.

34
PRÉVIA ANÁLISE SOBRE DIREITOS DOS INDÍGENAS E DAS
POPULAÇÕES TRADICIONAIS AMAZÔNICAS 1

Adnilson de Almeida Silva


Rosângela Bujokas de Siqueira
Laura Dominic Gazzotto Soares Almeida

A história e a geografia da humanidade, nas quais se refletem a


trajetória do tempo e da espacialidade/territorialidade, foram e são
construídas de modo não linear com muitos embates e lutas, cujos
resultados na maioria das vezes apontam para uma narrativa ou uma
metanarrativa que refletem o ponto de vista dos vencedores.
O Brasil, país de herança colonizadora e expansionista, apresenta
como resultado as contradições políticas, sociais, econômicas e
espaciais/territoriais consolidadas e que permanecem nos dias atuais,
ainda que muito recentemente tenha procurado dar visibilidade aos
excluídos, tanto da cidade quanto aqueles que habitam o campo – zona
rural.
A Amazônia, integrante desse processo da modernidade, não fica
alheia a tais acontecimentos, ainda que apresente internamente suas
próprias contradições e conflitos, por ser uma das últimas fronteiras
econômicas apresenta uma dinamicidade que diretamente proporciona
uma série de ressignificações nos modos de vida e nas identidades dos
categorizados pelo conhecimento científico como povos tradicionais – e
que neste trabalho nos referiremos a eles como povos amazônicos, sejam
ribeirinhos, indígenas, extrativistas ou pequenos agricultores, em
decorrência da maneira de vivenciar suas
territorialidades/espacialidades.
O fato é que cada um desses povos, é tratado aqui como
constituído por humanos e não como conceitos científicos ou objetos

1Publicado com o título “Reflexões acerca dos direitos dos indígenas e das
populações tradicionais da Amazônia” na Revista GeoAmazônia, em 2014.

35
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

que se encontram numa grande encruzilhada entre a permanência e a


mudança, entre o novo e o antigo, entre o “arcaico” e a modernidade.
Assim, buscamos demonstrar o protagonismo dos povos amazônicos
enquanto pessoas que buscam e reivindicam seus direitos na realidade
enfrentada no seu cotidiano; para tanto esboçamos um recorte temporal
a partir dos anos 1980 a 2014 com o processo de abertura democrática
do país, anos em que surgiram inúmeros movimentos de reinvindicação
de direitos desses povos, até mesmo como compreensão da dívida social
histórica para com eles.

PRIMEIRAS PALAVRAS

O presente escrito foi apresentado à mesa-redonda “Modo de


vida, identidade e campesinato”, durante o I Congresso de Geografia
Agrária Amazônica: Dinâmicas e conflitos territoriais no espaço agrário
amazônico, realizado na Universidade Federal do Pará (UFPA), cuja
proposição consistiu no estabelecimento de críticas acerca dos usos e
abusos do território pelo capital, busca refletir sobre as demandas e
direitos dos povos e comunidades tradicionais nesta região brasileira.
Posteriormente foi publicado na Revista GeoAmazônia, vinculada ao
Departamento e ao Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado
da UFPA.
Discorrer sobre o uso e abuso do território amazônico e sua
relação com os povos indígenas e tradicionais não é uma das tarefas mais
fáceis, isto devido uma série de contradições sociais, políticas,
econômicas, territoriais e ambientais ocorrem com distintos graus de
interferência tanto estadual quanto de interesses privados, embora se
saiba que em sua extensão, as problemáticas adquirem maior ou menor
escala, o que corrobora com o sentido de “monstruosidade geográfica”
(NOGUEIRA, 2007).
O sentido fornecido por Nogueira, embora se refira ao Estado do
Amazonas, como contexto para sua possível divisão territorial, em
realidade pode ser transposto para a região como um todo, vez que

36
ALMEIDA SILVA (ORG.)

caracteriza a afinidade entre o aparato estatal e o território, a qual


recepciona grandes mudanças, especialmente nos últimos cem anos, em
decorrência da aplicação de políticas territoriais direcionadas a essa
região.
Essas políticas tratam particularmente da ocupação do território
e dizem respeito diretamente à segurança e à defesa territorial, com
implicações sobre a população. Interna e externamente, por ser uma
região considerada como fronteira de expansão econômica – como
reserva de matéria-prima – nela ocorrem inúmeras violações de direito,
notadamente sobre os povos indígenas e populações tradicionais, o que
marca tensionamentos constantes e que se caracterizam como “encontro
de sociedades” (GALVÃO, 1979).
Historicamente se pode observar que durante o percurso da
ocupação portuguesa, no atual território amazônico, incidiram distintas
correntes migratórias, onde os rios constituíam-se como o único meio de
transporte e para a manutenção da vida, pois era deles que as populações
locais e migrantes retiravam o sustento necessário à sobrevivência. Os
mais diversos agrupamentos sociais que foram estabelecidos na região,
em consequência das intervenções para a exploração e ocupação
territorial se “miscigenaram” com vários povos indígenas, com isto
possibilitou a formação atualmente das denominadas populações
tradicionais.
Neste contexto, o entendimento de Almeida Silva (2010, p. 41)
para o termo tradicional se refere ao modo de vida ou às experiências
socioespaciais de populações que são portadoras de uma lógica
relacional intrínseca e aberta com o meio onde vivem, em que essas
populações possuem uma visão e interpretação do mundo, plena de
valores e formas de representação simbólica e de presentificação com
características distintas daquelas observadas na sociedade envolvente
(urbano-industrial).
Logo, a percepção de mundo encontra-se, para essas populações,
baseada na sobrevivência material e espiritual na espacialidade e/ou

37
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

territorialidade e dissociada da ideia de apropriação dos recursos com


finalidade meramente econômica. O contexto dado pelo autor para a
compreensão do modo de vida indígena pode ser transposto,
resguardadas as escalas, para o entendimento sobre as demais
populações categorizadas como tradicionais (ALMEIDA SILVA, 2010).

UMA PRÉVIA ABORDAGEM SOBRE A RELAÇÃO ECOLÓGICA E AS


POPULAÇÕES AMAZÔNICAS

As reflexões acerca dos direitos dos indígenas e populações


tradicionais da Amazônia, em seu contexto histórico e geográfico ao
longo do processo de ocupação na região, transportam a noção de
invisibilidade, apesar de essas populações possuírem estreita vinculação
com a natureza e estabelecerem modos de vida singulares, o que pode
ser conceitualmente entendido como uma etnoecologia.
A esse respeito, a etnoecologia é apresentada como um campo
interdisciplinar que se propõe realizar estudos inerentes às relações das
populações locais com os ecossistemas, os quais se alicerçam nos
conhecimentos, valores, crenças vernaculares e sistemas de adaptação
desenvolvidos para sobreviver (MARQUES, 2001 apud ALVES;
MARQUES (2005); Toledo e Barrera-Bassols (2009)2. Em outras
palavras, poderíamos afirmar que a base de sustentação desses povos é o
espaço de ação e de representações simbólicas (CASSIRER, 1968 [1944];
CASSIRER, 1992 [1925]), os quais operacionalizam nas relações
cotidianas e no manejo das atividades humanas.
Salienta-se, no entanto, que essa vinculação dos indígenas e
populações tradicionais com a natureza, de onde tiram o seu sustento,
não é bem compreendida por uma parcela significativa da sociedade
nacional que possui outros níveis de apreensão e lógica, ou seja, que
visam o lucro e a apropriação dos recursos naturais de modo

2Embora tratem questão de modo semelhante aos outros autores, Toledo e


Barrera-Bassols situam a etnoecologia como um campo de estudo
multidisciplinar.

38
ALMEIDA SILVA (ORG.)

intensificado, cujos discursos procuram diminuir o papel daquelas


populações – as tradicionais e as indígenas – de modo que resulta num
quadro de invisibilidade ou de apagamento histórico no processo de
“desenvolvimento” do país.
Outra consideração que é pertinente a essa questão é o papel do
Estado que só recentemente reconheceu a importância dessas
populações, mesmo assim, depois de sucessivas reivindicações históricas
e de lutas organizativas para acessar e garantir o direito à terra, como
meio de sobrevivência. Partimos desses contextos para procura refletir
sobre os direitos dos indígenas e povos tradicionais da Amazônia,
especialmente no que se refere ao acesso e à garantia da terra, onde
possam produzir e sobreviver com suas culturas dentro de modos de vida
específicos e sem prescindir de suas identidades.

A LUTA PELA VISIBILIDADE

A invisibilidade dos povos indígenas e tradicionais no Brasil


durante mais de quatro séculos, foi de quase total apagamento ou
esquecimento histórico, consequentemente se materializou nas
territorialidades. Assim, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caboclos,
caiçaras, entre outras terminologias de povos tradicionais se
constituíam, na visão hegemônica, como os renegados, os
marginalizados, os sem nomes, em síntese não existiam/não existem
para os organismos oficiais, ainda que contribuíssem significativamente
para o desenvolvimento do país.
Só muito recente essas populações passaram a ter certo
reconhecimento, por meio de lutas organizativas e dentro de uma
conjuntura econômica e social – diga-se de passagem, ainda de modo
desfavorável sê comparada aos demais segmentos da sociedade, o que é
perceptível também um preconceito que se revela de maneira sutil ou
escancarada 3.

3 Esse preconceito está presente nos discursos de políticos e de parte da


sociedade, tais como: “para que tanta terra para poucos indígenas”; “bando de
folgados que tem terra, não trabalham e vivem de bolsa-família”; “é o Brasil

39
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Deste modo, a temática das populações tradicionais e indígenas


da Amazônia aparece como foco das preocupações no final dos anos
1970, momento em que se inicia o processo de abertura democrática,
ocasião em que o modelo político-militar não mais se sustenta, em
decorrência da ampla mobilização de distintos segmentos populares em
relação ao sistema, agravado pelo fosso da desigualdade social crônica e
pela violação de direitos fundamentais à vida, à moradia, à educação, à
saúde, ao emprego e renda, entre outros. Enfim, todos aqueles temas
relacionados à dignidade humana.
Esse conjunto de reivindicações formuladas naquele período
partia de insuficiências materiais e desalojavam-se no campo das
práticas políticas, notadamente mais expressivas nas áreas urbanas. É
nesta época que os movimentos sociais (sindicatos principalmente), com
participação popular, pressionavam o Estado com o objetivo de
ampliarem os espaços de discussão e de decisão políticas, de modo a se
contraporem como espaço de organização de ideias e valores contra-
hegemônicos; esses movimentos sociais que contribuíram com muita
luta e perdas humanas para o estabelecimento do processo de
transformação social, com desdobramento das práticas sociais e
políticas.
Em tal processo, os movimentos sociais são mencionados como
tributários centrais da concepção e fomento de uma cultura
democrática, com fundamento em novas naturezas de atuações políticas
e de sociabilidade mais equitativas. Logo, o ato de realização política

sulista que produz, gera riquezas, para um monte de gente preguiçosa do Norte
e Nordeste e para esses indígenas e quilombolas alcoólatras que não são
indígenas nem quilombolas, que não saem da cidade”; “essa gente mestiça que
nada faz, a não ser filhos, que desgraçadamente sustentamos com nossos
impostos”; “essa gente que vive no mato e não produz nada”. Assim, observa-se
um discurso colonialista que não difere muito do passado, com o processo de
escravização de negros, de aprisionamento de indígenas e a negação dessas
populações como seres humanos, o que desnuda a hipocrisia de um sistema
econômico que sobrevive à custa de explorados.

40
ALMEIDA SILVA (ORG.)

deixava de ser competência exclusiva do Estado, e passava a incorporar


toda a sociedade civil (GECD, 1998-1999).
No contexto da luta empreendida por esses movimentos sociais
fica evidente seu papel na defesa da biodiversidade e dos direitos étnicos
e culturais, ainda que, apesar do reconhecimento jurídico, os indígenas,
povos tradicionais e pequenos agricultores familiares permaneçam
invisíveis e subjugados a inúmeras inquietações marcadas por conflitos
sociais e territoriais.
Em tal sentido, a nossa finalidade consiste na reflexão sobre o
campo que envolve os direitos e as demandas desses povos, em que
observa que as políticas públicas têm sido insuficientes e ineficientes na
resolução de conflitos – pelo contrário, em vários casos o que se verifica
é o aprofundamento da problemática existente na Amazônia – daí a
necessidade e o papel proativo dos movimentos sociais em continuar a
realizar os processos de reivindicação, mesmo diante de visões e
particularidades distintas.
Esses processos reivindicatórios, em conformidade com Sader
(1988) e Doimo (1995), originaram- se de uma universalidade material
alicerçada nas demandas atinentes ao custo de vida e aos direitos à
moradia, ao transporte, aos serviços de saúde, à educação, à terra, dentre
outros, e tiveram como propósito a exigência de um novo padrão de
discussão na tomada de decisões políticas, visto que os movimentos
atuavam numa perspectiva ética-política, ou seja, primavam pelo
estabelecimento democrático.
Na obra Libertação e Hegemonia, Semeraro (2009) sustenta que
o movimento de cunho político-cultural ampliou seu espaço na América
Latina, adotou e identificou-se com o “oprimido”, ou seja, com o sujeito
político despojado e violado na sua dignidade, não pela fatalidade ou pela
natureza, porém pela ação injusta de opressores que há séculos o
exploram social e economicamente. Este “oprimido” se configura como
produto do capitalismo e do sistema moderno de colonização
disseminado pela burguesia.
O ponto de partida desses sujeitos “oprimidos” se ancorava em
ensinamentos bíblicos, em que eles se caracterizavam como um povo

41
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

escravizado à procura de sua libertação – com alcance de direitos


fundamentais à vida e melhorias materiais, inclusive a posse da terra –
dentro da lógica de construção de um cristianismo popular, compassivo
a esta condição social (SEMERARO, 2009). Nesse sentido, o cristianismo
popular encontra respaldo na Teologia da Libertação, corrente de
esquerda dentro da Igreja Católica que estimulou os espaços para a
reflexão e a organização política, particularmente por intermédio das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Em decorrência do incentivo proporcionado pelas Cebs e a
interação ideológica entre o humano e o divino, como contraponto às
insuficiências materiais e às estruturas opressoras, buscou-se nos valores
morais a superação do egoísmo e das injustiças e o reconhecimento da
dignidade, solidariedade, paz (SADER, 1988, p. 153).
A partir da estratégia adotada entre a esquerda latino-americana
e o cristianismo popular foi possível o estabelecimento de ações
concretas que questionavam o modelo hegemônico de desenvolvimento
econômico, de modo que foram contemplados nesse cenário o
“ressurgimento” e a “valorização” das culturas indígenas e afro-
americanas, de modo a culminar na manifestação da multiplicidade de
organizações populares e de atores sociais nunca antes configurados
como protagonistas políticos (SEMERARO, 2009).
É importante destacar que no Brasil, o acesso à terra e a
permanência nela é um tema controverso, e o momento atual reflete essa
herança histórica de desigualdades que se manifestam tanto no campo
quanto nas cidades, de maneira que a concentração fundiária se iniciou
com a Lei de Terras de 1850, a qual surgiu durante o Brasil Império e
reafirmava o poder do Estado sobre o solo.
Essa legislação determinou que as terras distribuídas pelo
sistema de sesmarias seriam regularizadas, e só posteriormente elas
poderiam ser adquiridas por meio de compra de títulos junto ao Estado.
Logo, o acesso à terra era possível àqueles que pertenciam às elites rurais,
conforme afirma Martins (2010, p. 10):

42
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O país vivenciou a fórmula simples da coerção laboral do


homem livre: se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser
escravo; se o trabalho fosse livre, a terra tinha que ser escrava.
O cativeiro da terra é a matriz estrutural e histórica da
sociedade que somos hoje. Ele condenou a nossa modernidade
e a nossa entrada no mundo capitalista a uma modalidade de
coerção do trabalho que nos assegurou um modelo de
economia concentracionista. Nela se apoia a nossa lentidão
histórica e a postergação da ascensão social dos condenados à
servidão da espera, geratriz de uma sociedade conformista e
despolitizada. Um permanente aquém em relação às imensas
possibilidades que cria, tanto materiais quanto sociais e
culturais.

O Brasil em toda sua existência, desde o período colonial, tem


passado por outras políticas de reconfiguração territorial até os dias
atuais, tem tratado a questão da terra como “caso de polícia”, como
demonstram as inúmeras revoltas e conflitos seguintes: Canudos (1896-
1897 na Bahia); Contestado (1912-1916 no Paraná e Santa Catarina);
Cabanagem (1835-1840), Eldorado do Carajás (1996 no Pará); Massacre
do Paralelo 11 (1963, perpetrado contra o povo Cinta Larga) e
Corumbiara (1995 em Rondônia), entre tantas outras que ocorreram e
ocorrem em todo o território nacional.
As questões fundiária, agrária e de acesso à terra, de acordo com
Maria Antônia de Souza (2005), foram intensificadas e melhor
organizadas a partir das Ligas Camponesas (1954-1964), dos
movimentos de boias-frias e da atuação do Movimento dos Sem Terra
(Mst – início da década de 1970 aos dias atuais)4. Após a segunda metade
do século XX, em todo o país, diversos movimentos sociais camponeses

4 Este movimento originou-se como contrário ao modelo de reforma agrária


adotado pelo regime militar, principalmente nos anos 1970, que priorizava a
colonização de terras devolutas em regiões longínquas, com a finalidade de
exportar os excedentes populacionais e de propiciar a integração estratégica do
território nacional. O movimento, no entanto, devido a divergências internas,
sofreu dissidências e proporcionou o surgimento de outras entidades ligadas à
luta pela terra.

43
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

reivindicam a reforma agrária, adotaram como síntese e bandeira de luta


“ocupar, resistir e produzir”.
Desses fatos surgem e se multiplicam novos movimentos sociais
com destaque para aqueles ligados à luta pela posse da terra (inclusive
urbana) no Brasil como um todo e na Amazônia em particular, com
movimentos como o “empate” realizado pelos extrativistas seringueiros.
No mesmo contexto e com o advento da Constituição Federal e da
abertura democrática, também surgem no país os movimentos
ambientalista, indígena, indigenista, tradicionais (quebradeiras-de-coco,
extrativistas), entre outros, que se colocam como protagonistas de um
modo de reivindicar e fazer política.
Em nosso país, a discussão foi ampliada pela Constituição de
1988 que incorporou os direitos indígenas e quilombolas, o que
legitimou a demarcação e titulação das terras tradicionalmente
ocupadas. Já a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) só foi ratificada pelo país em 2002, após muita pressão
dos movimentos sociais.
A questão foi reforçada com a égide da Convenção 169 da Oit de
1989, a qual determinou um conjunto de medidas relativas aos direitos
para os povos indígenas e tribais; entretanto, se constata uma oposição
do sistema econômico quanto ao reconhecimento jurídico-formal, como
se verifica nos casos de demarcação e homologação de vários territórios
ancestrais/tradicionais, sendo comuns a violência, ameaças à vida, entre
outros mecanismos de pressão, o que exige a contínua luta dessas
populações.
De modo geral, esses movimentos possuem algo em comum (a
natureza), o que leva alguns estudiosos a considerar que tudo se trata de
uma vertente ambientalista, visto que as pautas de algum modo se
referem à preservação da natureza, notadamente áreas ou unidades de
conservação, a exemplo dos Parques Nacionais, que deveriam ser
protegidos da ação dos indivíduos, logo as populações que viviam
integradas aos territórios dessas áreas deveriam ser expulsas, o que

44
ALMEIDA SILVA (ORG.)

originou intensos conflitos sociais (VIANNA, 2008). É necessário


destacar que o conceito de categorias como os parques e reservas
biológicas se baseou em concepções oriundas da política ambiental
estadunidense, a qual respondia a outras realidades.
A luta aqui foi pela sobrevivência e estava relacionada à
interação do humano com a natureza, relação que não se pautava pela
busca incessante do lucro e de sua apropriação exacerbada, até porque a
compreensão e a experiência adquirida, com as dificuldades inerentes à
região, indicavam que a inexistência da natureza significaria a
eliminação do humano. Da soma da conjuntura da socialização da
política, a organização coletiva e a preservação da natureza emergiu a
discussão dos direitos das populações tradicionais, ainda que tal
discussão se realizasse muitas vezes em gabinetes longe da realidade dos
indígenas e populações tradicionais.
A esse respeito, Cruz (2012) elucida que na América Latina, e de
maneira mais intensos no Brasil, nas décadas de 1980 e 1990 os conflitos
sociais do campo conquistaram outros espaços de luta e surgiram novos
protagonistas que emergiram nas arenas políticas, sendo denominados
como os “povos tradicionais” 5, os quais são derivados da união ambiental
e das lutas por território e direitos culturais.

5 É necessário observar que a maioria das categorias englobadas no termo


“tradicionais”, como povos da floresta, quebradeiras-de-coco, açaizeiros,
babaçueiros, beradeiros, raizeiros, geraizeiros, varzeiros, quilombolas,
extrativistas, dentre outros, são aproximações conceituais acadêmicas e
políticas, que nem sempre correspondem à realidade experimentada por esses
povos. Mas, que de algum modo tais categorizações acadêmicas e políticas
foram incorporadas por essas populações como instrumento de reivindicação
política e afirmação da identidade. A realidade é mais complexa do que aparenta
ser, ao considerarmos os aspectos de invisibilidade e preconceito aos quais
foram submetidos quanto aos processos sociais, econômicos e políticos da
história brasileira com reflexos nas territorialidades. Trata-se de um processo
relativamente novo – que se iniciou da abertura democrática no país – em que
parte da população, embora com sua identidade e pertencimento, não possui de
maneira clara a noção de seus direitos, ou melhor, do pagamento da dívida

45
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

[...] Na década de 1980, iniciou o processo de incorporação do


tema da sociodiversidade ou diversidade cultural, às discussões
sobre conservação da biodiversidade no Brasil. [...] A aliança
entre ambientalistas e movimentos sociais resultou no
socioambientalismo. Os movimentos sociais foram
incorporando a expressão “população tradicional” ao longo da
década de 1990, em função da defesa de seus territórios,
positivando argumentos dos conservacionistas, revalorizando
suas identidades e sua autodeterminação (VIANNA, 2008, p.
214). (sic).

A argumentação do autor é reforçada no discurso de Scherer-


Warren (2013) sobre a relevância da manifestação de movimentos desta
natureza no contexto latino-americano, visto que os grupos até então
considerados como subalternos e/ou marginalizados transcendem sua
condição social na esfera pública para a situação de portadores de vozes
que repercutem para além de suas territorialidades, de modo a impactar,
mesmo com resistência de alguns grupos sociais contrários, a
legitimação dos “direitos originários”, como se observa no caso dos
indígenas, quilombolas, posseiros, entre outros.
Neste contexto se observa que a diversidade dos povos
tradicionais e indígenas não pode ser dissociada dos processos históricos
e sociais, isto é, os mais variados segmentos sociais brasileiros
construíram modos de vida peculiares em relação aos demais, desta
maneira produziram uma multiplicidade de riqueza sociocultural, que,
no entanto, permanece invisível perante a sociedade e às políticas
públicas de nosso país.
Não obstante o processo de luta realizado por indígenas e
populações tradicionais, o campo de tensões sociais e políticas são
caracterizados pela invisibilidade persistente destes grupos sociais, o que
para Roberto Souza (2007) é provocada pelo silenciamento através das
compressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios e

histórica decorrente da expropriação de seus territórios, de sua cultura e dos


valores indispensáveis à construção do país.

46
ALMEIDA SILVA (ORG.)

exclusão em espaços de discussão para a formulação de políticas


públicas.
Em oposição ao status quo reinante na sociedade e no Estado, o
fortalecimento da luta dos indígenas e populações tradicionais se
manifesta pela busca do reconhecimento e do direito ao território
tradicional, embora nem sempre tal luta tenha sido vitoriosa em
decorrência dos muitos interesses provenientes dos segmentos sociais
detentores do poder econômico, que na maior parte dos casos resultam
em conflitos socioterritoriais.
Dessa maneira, Scherer-Warren (2013) aponta que as
articulações das lutas territoriais movimentam uma heterogeneidade de
sujeitos (indígenas, quilombolas, mulheres camponesas, atingidos por
barragens, sem-terra, quebradeiras-de-coco, entre outros) cuja
concepção de luta política ocorre pela elaboração de pautas que primam
pelos significados políticos e simbólicos como princípios da função
social da propriedade.
Apesar dos indígenas e povos tradicionais terem conquistado,
através de intensas lutas e reivindicações, algum reconhecimento
jurídico, o que se observa no cenário atual é a permanência de questões
urgentes não resolvidas para um número significativo de comunidades,
tais como: o acesso à terra, à saúde e educação diferenciadas, que possam
assegurar condições mínimas para a permanência social, cultural e
espiritual destes povos em territórios originários ou tradicionais.
Em nossa compreensão, um dos elementos de contradição que
diz respeito à luta pela efetivação dos direitos dos indígenas e populações
tradicionais está diretamente relacionado à questão agrária do país, a
qual possui uma estrutura de reprodução das desigualdades sociais,
sendo também produto de uma herança histórica marcada pela
submissão econômica.
Neste sentido, Freitas (2012), ao mencionar os juristas Paulo
Torminn Borges (1994) e Vicente Gonçalves de Araújo Júnior (2002)

47
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

sobre os princípios fundamentais no Direito Agrário, enumera os


seguintes princípios:

[...] 1º) a função social da propriedade; 2º) o progresso


econômico do rurícola; 3º) o progresso social do rurícola; 4º) o
fortalecimento da economia nacional, pelo aumento da
produtividade; 5º) o fortalecimento do espírito comunitário,
mormente da família; 6º) o desenvolvimento do sentimento de
liberdade (pela propriedade) e de igualdade (pela oferta de
oportunidades concretas); 7º) a implantação da justiça
distributiva; 8º) eliminação das injustiças sociais no campo;
9º) o povoamento da zona rural, de maneira ordenada; 10º)
combate ao minifúndio; 11º) combate ao latifúndio; 12º)
combate a qualquer tipo de propriedade rural ociosa; 13º)
combate à exploração predatória ou incorreta da terra; 14º)
combate aos mercenários da terra.

A contextualização permite inferir que esses princípios


primordiais no Direito Agrário no Brasil, embora sejam necessárias para
a construção de um país democrático com justiça social, econômica,
territorial e política, encontram-se fora da realidade vivenciada pelos
povos tradicionais, visto que tais princípios são descumpridos
cotidianamente, o que resulta em inúmeros conflitos e tensões de
distintas grandezas em todo o país – no caso Amazônico, muitas vezes
acontece que essa problemática nem sequer é do conhecimento de
grande parte da sociedade. O poder público se mostra impotente para
solucionar as demandas existentes, até mesmo em razão da morosidade
burocrática, dos entraves e dos embargos jurídicos, devido à existência
de leis que se apresentam de modo conflitante e que em muitos casos não
beneficiam os indígenas e populações tradicionais.
Destarte, para Nakatani, Faleiros e Vargas (2012), a questão
agrária brasileira à situação de inter-relações e contradições que se
originaram na concentrada estrutura fundiária, que proporciona
igualmente a concentração de poder econômico, político e simbólico.
Logo, o Estado estabelece estruturas que são incompatíveis com um tipo

48
ALMEIDA SILVA (ORG.)

de exploração racional da terra realizada pelas populações rurais –


tradicionais.
Os autores mencionam ainda o processo histórico e a tomada de
decisões norteadoras do projeto de desenvolvimento econômico
concebidos por grupos empresariais capitalistas e apoiados pelo Estado,
com base no latifúndio, na monocultura e na exportação de matérias-
primas – no caso as commodities agrícolas e pecuárias, entre outras. Esse
fato produziu uma economia primária com alta dependência do capital
externo e das flutuações de mercado, com isso acentuou a manutenção
dos latifúndios, ao tempo em que propiciou os altos índices de
desigualdade social e o aumento dos passivos ambientais.
No processo de luta para garantir o acesso e a posse da terra no
Brasil e particularmente na Amazônia, os povos indígenas e tradicionais
recebem ameaças constantes dos detentores do agronegócio,
latifundiários, grileiros, madeireiros, grupos econômicos nacionais e
internacionais, além de outros segmentos conservadores que possuem
prestígio ou detêm o poder político-estatal.
Pode-se ainda acrescentar nesta discussão o poder exercido pela
imprensa (jornais, revistas, emissoras de rádio e redes de televisão) que
em muitos casos, sem realizar um processo investigativo coerente, emite
opiniões distorcidas, as quais favorecem o acirramento das tensões, visto
que atende a outros interesses em detrimento das populações
historicamente marginalizadas na questão agrária e fundiária.
Nesta problemática na qual estão envolvidos os indígenas e as
populações tradicionais, garantir o acesso e a permanência no território
possui o sentido de permanecerem vivos social e culturalmente, de modo
que possam usufruir dos sistemas produtivos, dos modos tradicionais de
distribuição e de consumo da produção necessária à sua sobrevivência.
Como observam Almeida Silva e Leandro (2010), as áreas
protegidas são alvo de constantes ameaças, principalmente no que se
refere à exploração ilegal dos recursos naturais, visto que comprometem

49
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

não somente os territórios, mas também a base alimentar dos indígenas


– e que também englobam as demais populações tradicionais.
O resultado dessas ações predatórias por seu turno, implica que
a biodiversidade seja gravemente comprometida, sendo que várias das
espécies florísticas encontradas nesses territórios não foram sequer
catalogadas cientificamente, e pouco ou nada se sabe de suas
propriedades químicas e terapêuticas. Logo, a questão ultrapassa o
território e essas populações, visto que a cura de certas doenças que
afetam pessoas dentro e fora do país poderia ser encontrada em alguma
dessas plantas, bem como no que se refere à segurança alimentar.
Neste contexto, a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT (Decreto
n. 6.040) tem como objetivo promover o desenvolvimento sustentável
das populações tradicionais por meio do reconhecimento,
fortalecimento e garantia de seus direitos territoriais, sociais, ambientais,
econômicos e culturais, bem como valorizar suas identidades e formas
de organização (BRASIL, 2007).
O mencionado decreto considera como populações tradicionais,
os grupos com culturas próprias e que possuem reconhecimento entre si
no seu modo de organização social, no uso e ocupação de territórios e de
recursos naturais como meios para a reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, grupos que utilizem conhecimentos,
inovações e práticas produzidas e transmitidas pela tradição.
É nesse sentido que a identidade é considerada como a fonte de
significado e experiência de um povo, a qual pode ser um elemento de
transformação social, conforme pondera Castells (2008). Neste caso,
para o autor existem as identidades de resistência e as identidades de
projeto, em que a primeira é produzida por atores que se encontram em
posições marginalizadas pela lógica da dominação e que organizam
resistências com bases em princípios distintos da estrutura estabelecida
pelos detentores do poder político e econômico; a segunda refere-se à
utilização de estratégias culturais com as quais geram uma nova

50
ALMEIDA SILVA (ORG.)

identidade que lhes proporciona a capacidade de saírem da margem e se


colocarem em direção ao centro da sociedade, de modo a assumirem um
protagonismo político em que buscam a ruptura ou a transformação de
toda a estrutura social.
Complementarmente ao sentido dado por Castells, Semeraro
(2009) compartilha da análise que a elite econômica e política, por ser
incapaz de universalizar direitos, fez com que surgissem na América
Latina os movimentos de resistência com outra agenda de
reivindicações, a qual desafia os propósitos globalizantes, tais como dos
sem terras, dos sem tetos, dos afrodescendentes, dos indígenas, entre
tantos outros agrupamentos que expressam força popular, visto que
sinalizam experiências de reinvenção da política e dos modos de viver
em sociedade, como afirma o próprio autor:

[...] Lutam para introduzir uma visão que visa ao controle


popular das riquezas do território e dos serviços públicos, à
soberania nacional, alimentar, energética, financeira, ao
reconhecimento das etnias, à igualdade social e ao respeito das
diversas culturas e religiões, aos direitos dos trabalhadores e
das mulheres e à educação ecológica [...] (SEMERARO, 2009,
p. 116).

Assim, pode-se afirmar que mesmo diante da dificuldade de uma


permanente luta pelo acesso e garantia dos direitos, no qual se inclui a
terra, ocorreu alguns avanços na condução das políticas públicas
voltadas aos indígenas e povos tradicionais, alerta-se que existe um
longo e intrincado caminho a ser percorrido na conquista da cidadania
para essas populações, seja no que se refere ao reconhecimento de
perspectivas distintas de desenvolvimento, seja ainda em relação ao
respeito e ao diálogo.
É indispensável destacar que a ampliação de direitos descritos na
Constituição e demais legislações específicas para indígenas e
populações tradicionais, são frequentemente engessadas, em função de
diversas ordens e interesses dos detentores de poder econômico e
político. Logo, as políticas públicas voltadas a esses segmentos sociais,

51
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

enfrentam problemas de operacionalidade pelo Estado, o que caracteriza


como omissão ou são adotadas outras prioridades, as quais possibilitam
exclusões.
Em nome do equilíbrio fiscal estabelecido na década de 1990,
foram sacrificados os investimentos em áreas estratégicas e nas políticas
sociais, as reformas estruturais mais amplas (como as reformas agrária e
tributária, por exemplo) e os serviços sociais públicos foram sucateados,
o que teve impactos diretos para o conjunto da população brasileira e
mais notadamente para os indígenas e populações tradicionais. Assim,
grande parte das garantias constitucionais originaram tensões entre os
movimentos sociais e o poder público, em razão desses movimentos se
aventarem na luta pela garantia de acesso e materialização dos direitos
previstos, dos já garantidos e de novos direitos, consequentemente o
reconhecimento perante o Estado.

INDÍGENAS E POPULAÇÕES TRADICIONAIS: DEMANDAS E OUTRAS


LUTAS NA AMAZÔNIA

Para além das populações tradicionais, as práticas de uso e


exploração comum dos recursos ambientais, como as águas dos rios na
Amazônia, constituem-se como parte de seus cotidianos que, no entanto,
têm sofrido constantes transformações devido às dinâmicas territoriais,
notadamente pelo avanço da agropecuária e nos últimos anos pela
construção de empreendimentos hidrelétricos.
Esta realidade tem proporcionado entre outras reconfigurações
territoriais, um rearranjo social e político que conduz para o “fenômeno”
das migrações compulsórias, como recorrência do modelo atual do
capitalismo pós-fordista ou flexível, o que tem causado uma série de
impactos sociais, ambientais, políticos e econômicos.
A espantosa necessidade de conquistar novos espaços para o
acúmulo de capital se move para as “fronteiras de expansão”, espaços que
são considerados como ainda não devidamente capitalizados, como é o

52
ALMEIDA SILVA (ORG.)

caso da Amazônia, que atende aos interesses dos capitais nacional e


internacional, o que para Costa (2011, p. 166) trata-se de

uma “modernização arrasadora” que impõe sua geometria


regular sobre todos os espaços: estradas que parecem retas sem
fim, gigantescos quadriláteros de novos loteamentos e
conjuntos habitacionais padronizados, imensos círculos das
áreas irrigadas pelo sistema de pivôs centrais.

Em relação a esta constatação, acrescentamos a imposição dos


grandes e médios empreendimentos hidrelétricos na Amazônia que
contribuíram na formação de “aglomerados de exclusão” (COSTA, 2011)
constituídos pelo deslocamento de populações que antes viviam em
lugares que agora são “engolidos” pelas barragens.
De fato, essa imposição é uma tentativa de apagamento ou de
tornar invisíveis essas populações tradicionais que se defrontam com os
empreendimentos. Em contrapartida essas populações
compulsoriamente desterritorializadas recebem dos empreendimentos
“compensações” sociais ou ambientais, a exemplo do que ocorreu em
Balbina (Amazonas), Samuel (Rondônia), Tucuruí (Pará) e mais recente
nas áreas de influência do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, em
Rondônia e Belo Monte no Pará.
A megalomania de projetos na região como os polos
agropecuários, os minerais, os de colonização, os de agronegócios e na
atualidade os hidrelétricos, produziu e produz reconfigurações
territoriais, além do que as populações atingidas – aqui se incluem os não
tradicionais também – sob muitos aspectos foram ludibriados, isto é, os
projetos apresentados não eram claros e mesmo assim foram
implantados.
Em virtude disso, ocorreram e ocorrem resistências, sendo
que muitas vezes essas populações tradicionais e indígenas recebem o
apoio de vários membros do Ministério Público Federal e Estadual e de
instituições da sociedade civil regional e externas à Amazônia. No
enfrentamento dessas questões, redes de solidariedade se formaram, os

53
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

quais envolvem diversos atores, assim temos como exemplo a


Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(Coiab), o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), o Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento Interestadual das
Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), universidades, entre outros
movimentos e entidades.
Do lado oposto estão os latifundiários, os políticos, os
especuladores, os empresários que buscam convencer que os
empreendimentos serão importantes para a região, e que se for o caso.
cooptam lideranças importantes dos movimentos sociais para que
possam justificar a finalidade desses empreendimentos como vitais ao
desenvolvimento regional, como pode ser observado no caso do
Complexo do Rio Madeira, onde foram consumidos valores altos em
publicidade privada e governamental para convencer a população sobre
os benefícios que seriam gerados pela construção desse complexo. Hoje,
vários desses atores sociais detentores de capital político e econômico,
juntamente com a população, reconhecem que os impactos negativos
decorrentes do empreendimento 6 são maiores do que os benefícios
gerados para o município de Porto Velho e para o estado de Rondônia.
Outro fator relevante na discussão e que está relacionado às
populações tradicionais é a inexistência ou precariedade de estatísticas
oficiais que permitam, por exemplo, a regularização de várias áreas
tradicionalmente ocupadas, o que ocasiona uma situação de insegurança
jurídica e física dessas populações. Daí a necessidade desses grupos de se
fortalecerem e estabelecerem redes de solidariedade coletiva para
enfrentar os desafios em meio a tensões, disputas e pressões que

6 De modo geral em Porto Velho – Rondônia, dentre os inúmeros impactos


atribuídos direta e indiretamente ao empreendimento do Complexo
Hidrelétrico do Madeira podem ser destacados a contribuição para a ampliação
demográfica, a especulação imobiliária, a precariedade nos serviços públicos de
educação, saúde, segurança e trânsito.

54
ALMEIDA SILVA (ORG.)

ameaçam seus direitos étnicos e coletivos, garantidos pela Constituição


Federal de 1988, demais legislações e convenções internacionais.
No contexto do entendimento sobre os indígenas e as populações
tradicionais, além das fronteiras amazônicas e brasileiras 7, existe um
esforço realizado por pesquisadores das universidades da região
relacionado a um grande projeto denominado Nova Cartografia da
Amazônia (PNCSA), o qual tem por objetivo

[...] dar ensejo à auto-cartografia dos povos e comunidades


tradicionais na Amazônia. Com o material produzido, tem-se
não apenas um maior conhecimento sobre o processo de
ocupação dessa região, mas sobretudo uma maior ênfase e um
novo instrumento para o fortalecimento dos movimentos
sociais que nela existem. Tais movimentos sociais consistem
em manifestações de identidades coletivas, referidas a
situações sociais peculiares e territorializadas. Estas
territorialidades específicas, construídas socialmente pelos
diversos agentes sociais, é que suportam as identidades
coletivas objetivadas em movimentos sociais. A força deste
processo de territorialização diferenciada constitui o objeto
deste projeto. A cartografia se mostra como um elemento de
combate. A sua produção é um dos momentos possíveis para a
auto-afirmação social. É nesse sentido que o PNCSA busca
materializar a manifestação da auto-cartografia dos povos e
comunidades nos fascículos que publica, que não só pretendem

7 O projeto tem atendido os estados amazônicos, além do Paraná, Bahia,


Pernambuco, Espírito Santo, Santa Catarina e Mato Grosso, e países como a
Bolívia e a Venezuela, por exemplo. Oferece oficinas e outras modalidades de
treinamento e uma série de ações que possibilitam o empoderamento dos
indígenas e populações tradicionais. Situa-se neste contexto o Instituto do
Homem e Meio Ambiente da Amazônia – Imazon, sediado em Belém, que inclui
ainda como parte de seus objetivos a realização de monitoramento ambiental
na Amazônia. Observa-se ainda a existência de outros projetos, com menor
extensão territorial, realizados por diversas organizações da sociedade civil que
realizavam relevantes trabalhos com indígenas e populações tradicionais, como
é o caso da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé (indigenista e
socioambiental) e o Centro de Estudos da Cultura e do Meio Ambiente da
Amazônia – Rioterra (socioambiental) em Rondônia.

55
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

fortalecer os movimentos, mas o fazem mediante a


transparência de suas expressões culturais diversas [...] Com o
mapa concluído e os depoimentos selecionados, monta-se um
protótipo de fascículo, que é remetido à comunidade. Ela então
faz as correções que deseja, procede à leitura do mapa-piloto e
envia-o de volta ao PNCSA. A partir daí toma-se as
providências concernentes à publicação. São publicadas mil
cópias de cada fascículo. Um menor número de cópias fica em
mãos do PNCSA, que guarda alguns exemplares e distribui os
restantes para pesquisadores, núcleos de pesquisa,
universidades e órgãos estatais tais como Ministério Público
Federal e Procuradoria da República. A maior parte dos
exemplares fica de posse do movimento social, e por ele é
utilizada como quiser, muitas vezes como parte integrante de
sua estratégia de auto-afirmação social e de resolução de seus
problemas. (http://novacartografiasocial.com/apresentacao/
Acesso em: 30 ago. 2014). (sic).

Deste modo, pode-se constatar que as estratégias adotadas pelo


Pncsa e por outras organizações da sociedade civil buscam mobilizar,
organizar, fortalecer e empoderar os movimentos sociais dos indígenas e
populações tradicionais, através de ações participativas, as quais podem
resultar em instrumentos políticos ligados às identidades, às demandas,
às práticas, e servem para a ampla divulgação da luta dessas populações
e ainda como mecanismos para a defesa, reivindicação e implementação
de direitos.
Para além do acesso, posse e garantia das terras tradicionalmente
ocupadas, essas populações, de modo resumido, apresentam – ainda que
num quadro provisório e com variações para cada realidade e
espacialidade específica de cada população – uma série de demandas e
reivindicações junto ao poder público:

a) Turismo ecológico de baixo impacto;


b) Projeto de educação ambiental;
c) Centro de capacitação relacionado à flora e à fauna;
d) Fortalecimento do setor produtivo (agroindústria para

56
ALMEIDA SILVA (ORG.)

beneficiamento dos produtos regionais da floresta;


piscicultura e tanques-rede com espécies nativas; manejo de
animais silvestres; criação e manejos de pequenos animais
domésticos; produção de artesanato a partir de matrizes
florestais não madeiráveis; viveiros de mudas com essências
florestais nativas e de plantas medicinais; recuperação de
áreas degradadas; implantação de sistemas agroflorestais;
enriquecimento das florestas próximas às comunidades com
espécies nativas e frutíferas regionais; apoio às atividades de
subsistência;
e) Recebimento de Icms ecológico, em razão da
conservação/preservação dos territórios;
f) Adoção de currículo escolar flexível e compatível com as
realidades das distintas culturas;
g) Segurança contra ações predatórias, ameaças e conflitos
ambientais e sociais;
h) Formação e qualificação contínua dos indígenas e
populações tradicionais para atuarem em seus respectivos
territórios;
i) Apoio à melhoria das habitações;
j) Apoio ao armazenamento, comercialização dos produtos e
garantia de preços mínimos;
k) Apoio à saúde, de maneira diferenciada, em conformidade
com as distintas culturas, de modo que se constitua como
política que articule as três esferas administrativas, ou seja,
Munícipios, Estados e União;
l) Apoio às populações que estão em áreas de processo de
demarcação, mediante a disponibilização de condições
básicas de sustentabilidade, como: alimentação, saúde e
educação;
m) Maior participação com voz e voto nos diferentes fóruns e

57
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

instâncias de discussão relacionados a políticas públicas;


n) Participação nos mais distintos projetos, com consulta às
populações;
o) Acesso ao ensino formal (fundamental, médio, médio
técnico, superior e superior técnico);
p) Contratação e efetivação de pessoal das próprias
comunidades em ações relacionadas à saúde, à educação, ao
ambiente (vigilância), à pesquisa, entre outros;
q) Extensão das atividades relacionadas à cartografia social das
populações tradicionais ainda não atendidas;
r) Emissão de documentos pessoais, associativos e
regularização fundiária;
s) Apoio aos meios de mobilização (transporte).

A busca pelo empoderamento das populações tradicionais e


indígenas, de certo modo, faz com que o Estado saía de sua condição de
letargia burocrática e procure implantar e implementar políticas
públicas que efetivem os direitos conquistados por essas populações,
observa-se, contudo, a existência de lacunas profundas nas demandas
sociais.
Neste sentido, Scherer e Oliveira (2006) constatam que os
diferentes estudos sobre as políticas públicas na Amazônia só se realizam
por meio das pressões e do protagonismo dos movimentos sociais nas
suas práticas de resistência e inconformismo, sendo que muitas vezes
ocorre a incompatibilidade entre as demandas sociais das populações e
as políticas governamentais.
Em direção semelhante, Garnelo (2006) argumenta que a
política de atenção à saúde indígena representa as contradições estatais
brasileiras no que se refere às minorias – e que podem ser estendidas às
populações tradicionais no nosso entendimento – em virtude do
despreparo dos agentes estatais no processo de implementação de ações
e serviços.

58
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Para a autora, as responsabilidades do Estado foram delegadas a


organizações que sequer tinham noções de governança, com isso uma
série de erros cometidos, os quais foram debitados a essas entidades, o
que levava-as ao descrédito e sendo classificadas como criminosas e
ineficientes. É necessário enfatizar que na visão da autora, os serviços de
saúde prestados não respeitaram a cultura dos indígenas, isso por
reproduzir a lógica curativa com uso abusivo de medicamentos, os quais
constituem a cosmovisão dos indígenas.
Ainda no prosseguimento desta linha de raciocínio sobre as
populações tradicionais, Noda e Martins (2006) enfatizam a necessidade
de valorização de seus etnossaberes e etnoconhecimentos vinculados à
conservação da diversidade cultural e ambiental, com ênfase nas
atividades de agricultura familiar nos espaços da várzea amazônica – em
razão desta ser o sustentáculo para a subsistência – e na promoção da
sustentabilidade ambiental, decorrente das práticas
ancestrais/tradicionais de manejo dos recursos naturais. Observam
ainda que a ineficiência das políticas públicas para o setor contribui
negativamente na redução da diversidade alimentar, aumenta o
desflorestamento e empobrece os recursos hídricos, de modo a agravar
o quadro de pobreza e os problemas ambientais.
Complementarmente a essa questão, Fraxe, Witkoski e Castro
(2006) consideram que a percepção espacial dos caboclos-ribeirinhos é
portadora de intensas relações socioespaciais ricas em um modo de
conhecimento que não poder ignorada pelos agentes estatais, pois é fruto
do vivido, adquirido em função da práxis do mundo ordinário e também
extraordinário, como mitos, lendas, contos, etc. Tal conhecimento pode,
inclusive, potencializar os resultados de políticas públicas.
Apesar de tratar-se de pesquisas distintas, os estudos realizados
por esses autores apontam a lógica inconsequente entre as demandas
dessas populações e o que é efetivamente operacionalizado pelo Estado
através das políticas públicas, as quais possuem um caráter universal de
atendimento, por outro lado as populações indígenas e tradicionais
possuem outras reivindicações de necessidades.

59
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Por fim, temos que levar em consideração o papel que as terras


indígenas exercem não apenas para seus moradores, mas para toda a
sociedade, conforme afirmam Heck e Prezia (1999, p. 42) ao dizer que
“para os povos indígenas, perder a terra equivale a perder a fonte da
economia, as condições de saúde, o espaço social, as tradições culturais,
a configuração histórica e o eixo da religião”. Esse argumento é válido
ainda para as populações e pequenos agricultores familiares da
Amazônia, bem como de outros povos em outras partes do mundo que
possuem semelhante vínculo com a terra.
No caso amazônico, resta constatar que as terras indígenas são
importantes obstáculos para o avanço do desmatamento na Amazônia,
pois prestam “importante serviço de barreira ao desmatamento, e que em
Rondônia pode ser até 10 vezes maior do que fora das áreas protegidas”
(FERREIRA, VENTICIQUE; ALMEIDA, 2005). De modo geral no Estado
mencionado pelos autores, e na Amazônia como um todo, podem ser
incluídas ainda as Reservas Extrativistas e terras quilombolas habitadas
pelas populações tradicionais, que apesar de serem também
pressionadas por vários setores econômicos, sociais e políticos,
procuram manter a conservação/preservação de suas culturas, modos de
vida, territorialidades, entre outras.
No entanto, não se pode deixar de mencionar que é obrigação do
Estado promover condições para evitar invasões ou ocupações ilegais
pelos mais diversos atores, como madeireiros, grileiros, posseiros,
fazendeiros, garimpeiros, ou quaisquer outros modos de esbulhos ou que
causem ameaças à integridade dos territórios e às populações moradoras
– visto que é nessas territorialidades que obtêm os recursos necessários
à subsistência, à integridade de seus valores e à organização
sociopolítica.
É relevante destacar o discurso produzido no meio da sociedade
nacional no sentido de que os indígenas e povos tradicionais se
constituem em grandes obstáculos para o desenvolvimento do país. Isso
ocorre pelo fato de que essa sociedade não compreende a relação que
essas populações mantêm com a natureza, cujo significado e usufruto

60
ALMEIDA SILVA (ORG.)

são distintos do modelo econômico que vê essa mesma natureza como


possibilidade de auferir lucros de maneira rápida, porém destruidora.
Neste sentido, ao tratarmos de povos indígenas, mas que pode ser
incluídas as populações tradicionais, Bastos et al. (2009, p. 7) consideram
que a relação desses povos ocorrem pelo “vínculo com a floresta supera
a objetividade material, em que essa faz parte da sua cosmologia, da sua
simbologia e de todos os reflexos que as interações e percepções
produzem em sua cultura, sociedade e espaço”.
Exatamente neste sentido o que apresentamos procurou refletir
os direitos e demandas dos indígenas e povos tradicionais da Amazônia,
em seu contexto histórico e geográfico, ressaltamos que compete ao
Estado em primeiro lugar garantir a proteção física dos territórios
ancestrais/tradicionais ocupados, e à sociedade em geral, conviver com
as distintas culturas, e deve ser considerada a formação multiétnica do
país.

PARA CONCLUIR AINDA QUE PROVISORIAMENTE

Um trabalho como este, proposto para discutir e refletir a


questão do direito e das demandas das populações tradicionais e
indígenas não se encerra por aqui. Temos a clareza que muitas lacunas e
perguntas não puderam ser respondidas, até mesmo por uma questão de
escala histórica e territorial de uma região plena de contradições e
interesses, como é o caso da Amazônia, considerada por muitos autores
como a “última” fronteira para a inserção do capital nacional e
internacional.
Somos conhecedores de sua multiplicidade cultural, o que por si
só dificulta uma análise pormenorizada acerca de sua extensa
problemática que envolve os mais distintos atores sociais. Procuramos
destacar ainda que resumidamente as trajetórias que focalizam o
campo dos direitos e das demandas dos indígenas e populações, num
processo de histórico de luta junto com os movimentos sociais,
procuram encontrar estratégias e alternativas que possam garantir a
sobrevivência física, cultural, espiritual e territorial, através de um
protagonismo político.

61
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Afirmamos que há um grande percurso a ser feito, em virtude que


os direitos dessas populações não foram plenamente cumpridos nem
pelo poder público, tampouco pela sociedade, além do que esses direitos
são recém-adquiridos e firmados em legislações – com enorme
dificuldade de serem operacionalizados por uma gama de entraves de
várias ordens. Mesmo aqueles direitos conquistados só foram possíveis
após intensas discussões e lutas dos movimentos sociais organizados
como identidades de resistência e identidades de projeto, mas que, além
disso, não são suficientes para as garantias fundamentais, como é o caso
de acesso e permanência na terra.
E finalmente consideramos que as políticas públicas não foram e
ainda não são suficientes para atender as necessidades e as
especificidades dessas populações, daí o papel dos movimentos sociais
no sentido de reivindicar a democratização dos debates sobre os direitos
conquistados e a criação de outros, para que no contexto do Estado
democrático seja efetivado. A universidade, ao propor uma atividade de
grande relevância para discutir as dinâmicas e conflitos territoriais no
espaço agrário amazônico, dá enorme contribuição para o entendimento
de um problema antigo – ainda não resolvido na região – e assim propor
alternativas que possibilitem sua solução.

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66
MALOCA YÑAMÕRARIKÃGÃ E SUA REPRESENTAÇÃO
CULTURAL PARA O POVO JUPAÚ: COMPREENSÃO DA
TERRITORIALIDADE 1

Adnilson de Almeida Silva


Josué da Costa Silva

A reconstrução da maloca tradicional indígena Ynãmõrarikãgã 2


é uma das representações com muitos signos e significados que contribui
para o conhecimento da rica cultura Jupaú 3. Nela se encontra parte das
histórias de vida, em meio a memórias, conquistas e dificuldades desse
povo que após o contato oficial na década de 1980, não esqueceu os
valores do passado ao tempo que demonstra a necessidade de manter e
preservar a memória daqueles que tombaram heroicamente em defesa
da terra e de sua gente.
A acuidade em entender os significados desse espaço de
representação é uma tarefa importante, pois simbolicamente é um dos
elementos de expressão e sustentação, o que implica por sua vez na
formação social, psíquica, mítica, ambiental, cultural e econômica; esse
espaço oportuniza-lhe forças para vencer as lutas e desafios que são
colocados em seu cotidiano para a integridade física e territorial onde
habitam.

1 Publicado como Restabelecimento da Maloca Yñamõrarikãgã: um espaço de


representação cultural do povo Jupaú”, em 2007.
2Palavra em Tupi Kawahib cuja tradução em português corresponde à cabeça
de inhambu, uma ave da família Tinamidae, encontrada na Terra Indígena Uru-
Eu-Wau-Wau e utilizada na alimentação humana.
3 Conhecidos na sociedade envolvente com Uru-Eu-Wau-Wau, possuem duas

autodenominações: a primeira como Jupaú (aqueles que usam jenipapo); a


segunda como Pindobatywudjara-Gã (aqueles que habitam nos palmeirais de
babaçu Orbygnia speciosa), conforme Almeida Silva (2010). Ainda existe uma
versão que Jupaú seria uma homenagem a um antigo cacique chamado Djupá.

67
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

O PROCESSO PARA O RESTABELECIMENTO DA MALOCA-CEMITÉRIO

Na concepção da cosmogonia do povo Jupaú a maloca apresenta-


se como uma representação importante e indispensável para a cultura,
vivência e a própria territorialidade, de modo que reflete diretamente no
modo de vida do povo e no estabelecimento de suas relações internas e
externas. A compreensão do significado de uma maloca é muito mais do
que um atributo físico, é também psíquico e espiritual, é a própria alma e
história que está presente em seus gestos e ações.
Nesse contexto, na cultura do povo Jupaú, a maloca no passado
tinha múltiplas funções que auxiliam na explicação do entendimento das
representações, a primeira delas para o atendimento como moradia e
sustentáculo as atividades agrícolas tradicionais, a segunda função é
como “marcador de território” que oferece a defesa do coletivo, e por
último, mas não menos importantes era servir como cemitério.
Deste modo, um indígena Jupaú ao falecer levava consigo no
sepultamento todos os seus pertences conquistados em vida, tais como
cocares, colares, arco e flecha, não era afixado cruz em razão de ser
sepultado no interior da maloca, de modo que permaneceria
simbolicamente com os outros moradores como se ainda estivesse
presente, o que de certa maneira não deixa de sê-lo, pois seu espírito está
ali junto aos que ficaram vivos.
Antes do contato oficial, caso fosse necessário à mudança do clã
para outro local, os indígenas carregavam os ossos do falecido como sinal
de respeito, memória e proteção espiritual, mas sempre voltavam à
antiga maloca para reviver seus sentimentos, emoções, bem como para
resguardar o território.
Tal ensinamento expressa claramente o sentido, o sentimento de
identidade e os valores construídos ancestralmente não são atingíveis ou
compreensíveis para a sociedade “civilizada”. Trata-se, portanto, do
respeito à memória daquele que em sua trajetória de vida contribuiu para
o engrandecimento de seu povo, por meio de suas experiências,
ensinamentos e orientações do fazer coletivo.

68
ALMEIDA SILVA (ORG.)

As pressões sofridas pelo povo Jupaú através dos seringalistas,


empresas mineradoras e garimpeiros e posteriormente com as frentes
pioneiras colonizadoras fizeram com que na década de 1980 fosse
estabelecido o contato oficial, porém a pressão continuou num nível
ainda maior, agora com a presença do elemento colonizador. Esse
contato trouxe vários impactos para sua cultura e o surgimento de
doenças, de modo a ocasionar baixa populacional significativa. Como
estratégia a Fundação Nacional do Índio - FUNAI promoveu no período
o deslocamento dos Jupaú para as áreas de entorno com menor
incidência de endemias, o que possibilitou maior facilidade de
deslocamento para tratamento de saúde e a defesa territorial.
Na atualidade o maior significado da antiga maloca é o
sentimento que seu povo nutre por ela, algo apaixonante; a decisão de
conduzir as crianças por longos dias e caminhadas até atingir o lugar
onde moraram oferece lições importantíssimas como o reencontrar com
o passado e o prazer em mostrar os caminhos percorridos, além de ser
um “marcador” indispensável para a defesa territorial. Essas emoções só
podem ser traduzidas por quem vivencia essa situação, conforme
descreveu Chicão, antigo chefe do Posto Indígena da Aldeia Alto Jamari:
“quando estiveram à primeira vez em Yñamõrarikãgã há uns três anos,
fato que não se realizava depois do contato em razão das constantes lutas
a fim de evitar a invasão de seu território por posseiros, madeireiros e
garimpeiros. Todos se abraçavam e choravam muito e cantavam em
memória de seus antepassados”.
Antes mesmo dessa viagem, os Jupaú em suas conversas sempre
abordavam a vontade e a necessidade de retornar à antiga maloca-
cemitério, visto terem como fundamento a proteção do local sagrado e o
com o contato espiritual com os antepassados, porque ali se encontram
presente suas memórias, isso possibilitou o planejamento de um projeto
concebido a partir dessas discussões. O projeto proposto pela
Associação do Povo Indígena Jupaú teve em sua execução a parceria da
FUNAI, Ibama, Associação de Defesa EtnoAmbiental Kanindé com
aporte de apoio material, porque como aliados à causa indígena

69
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

desenvolvem atividades desde 1992, além do que houve a participação


de membros da Jovens com uma Missão (JOCUM) e discentes da
Universidade Federal de Rondônia na Expedição de restabelecimento da
maloca Yñamõrarikãgã em 2006.
Nesse sentido, Pollack (1992, p. 204) constata que “a memória é
um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual
como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente
muito importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”.
A memória como elemento da afirmação cultural representa a
própria história cosmogonia de um povo, o que é fundamental para sua
sobrevivência física, cultural e territorial, conforme define Sahlins (1997,
p. 41): “a cultura não pode ser abandonada, sob pena de deixarmos de
compreender o fenômeno único que ela nomeia e distingue: a
organização da experiência e de ações humanas por meios simbólicos”.
Para entendermos o restabelecimento da antiga maloca-
cemitério de Yñamõrarikãgã é preciso destacar que está relacionado a
uma série de conceitos fundamentais como a territorialidade e
representação definidos por Santos (2006), Costa (2004), o que engloba
tanto a terra e tudo que nela existe e principalmente a identidade como
elemento de pertença ou conhecença social. Não pode ser desprezado o
conceito de etnodesenvolvimento desenvolvido por Bonfil Batalla (1982,
p. 131-145) como “a capacidade social de um povo para construir o seu
futuro, de modo a aproveitar os ensinamentos da sua experiência
histórica e os recursos reais e potenciais da sua cultura, de acordo com
um projeto que se define em conformidade com os seus próprios valores
e aspirações” (Tradução nossa).
Nesse aspecto de restabelecimento ou de reconstrução da
maloca-cemitério também é concebida a ideia de “marcadores
territoriais” 4, organizados hierarquicamente por Henriques (2003), de

4Como conceito formulado foi definido por Almeida Silva (2010) em sua tese
de doutorado em Geografia intitulada “Territorialidades e identidade do

70
ALMEIDA SILVA (ORG.)

modo que aduz sua importância para a construção da identidade cultural


de um povo, assim como o de “representação espacial”, em conformidade
com Kozel (2004, p. 221), pois “advêm de um vivido que se internaliza
nos indivíduos, em seu mundo, influenciando seu modo de agir, sua
linguagem, tanto no racional como no imaginário...”.
Para compreender esse restabelecer da antiga maloca, o trabalho
em campo desenvolveu-se a partir da observação ou pesquisa
participante, muito utilizada na Sociologia e Antropologia, diretamente
vinculada à participação real do pesquisador junto à coletividade ou
grupo que se pretende estudar.
Assim durante o período de 12 a 23 de julho de 2006 realizou-se
o trabalho de campo, a partir da Aldeia Alto Jamari na Terra Indígena
Uru-Eu-Wau-Wau 5, em Rondônia, com a participação dos indígenas
Jupaú: Mbawa-Gá 6, Warina-Gá, Paeron-Gá (Pitanga), Taroba-Gá, Uká-
Gá, Awapy-Gá, Koari-Gá, Mongtá-Gá; Boropó-Hen’a e Mandei-Hen’a, as
crianças Biteté-Gá, Morangue-Hen’a, Tatuí-Hen’a, Tangain-Gá, Juwi-

coletivo Kawahib da Terra Indígena Uru- Eu-Wau-Wau em Rondônia: “Orevaki


Are” (Reencontro) dos “Marcadores Territoriais.
5 Apresenta uma área de aproximadamente 1.867.000ha (18.670km²), na qual
vivem nove povos indígenas, cujas autodenominações estão entre colchetes
(Amondawa [Envuga ou Mbo’uima’ga]; Uru-Eu-Wau-Wau [Jupaú ou
Pindobatywudjara-Gã], Oro Win [Oro Towati]; Juma; Isolados: do Bananeira,
do Cautário, do Igarapé Oriente, do Igarapé Tiradentes, Kawahiva do Rio Muqui,
conforme https://terrasindigenas.org.br/es/terras-indigenas/3891 (Acesso em
10 nov. 2020). Provavelmente os isolados sejam de origem Kawahib, dentre eles
estão os que foram avistados os Jururei e os Yvyraparakwara ou Yraparaquara.
Deverá ser computado ainda uma família do povo Cabixi que vive na Aldeia
Pedreira (Guajará-Mirim) que fica situada nos limites da Terra Indígena Uru-
Eu-Wau-Wau. Nesta Terra conhecida como a “grande caixa d’água de
Rondônia” nascem os rios Candeias, Pacaás Novos, Jamari, Cautário, Urupá,
Jaru, dentre outros, os quais formam a maioria das bacias hidrográficas
rondonienses.
6 Mbawa-Gá, Warina-Gá e Paeron-Gá foram grandes lideranças do povo Jupaú
e que vieram a falecer alguns anos depois do restabelecimento da antiga maloca.
A eles nosso respeito e gratidão pela dedicação e ensinamentos.

71
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Hen’a; e não indígenas que representavam à época as seguintes


instituições: Francisco ou Chicão (FUNAI), Rogério Vargas Motta
(Ibama), Adnilson de Almeida Silva (Associação de Defesa
Etnoambienal Kanindé e UNIR), Rafael Prado e Lindinalva Azevedo
(UNIR), Manoel Carneiro (Ibama); da JOCUM: Luiz, Antônio Marcos,
Eloir e Markus, este conhecido como Suíço.

A IMPORTÂNCIA DA MALOCA E SUA REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA

A expedição para a construção da maloca de Yñamõrarikãgã,


próxima às cabeceiras do rio Jamari, em Rondônia, constituiu-se em
grandes desafios. O primeiro deles é a grande distância da Aldeia Alto
Jamari até à antiga maloca, aproximadamente quarenta quilômetros em
linha reta. O segundo é o aspecto da construção, ou melhor, do seu
restabelecimento na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em pleno início
do século XXI, particularmente feita por parte dos membros da Aldeia,
traz consigo não apenas uma caracterização física, mas, sobretudo
simbólica, de modo que implica na continuidade de valores culturais do
povo Jupaú, ou seja, a própria sobrevivência étnica em seu território.
A compreensão do significado da maloca e da territorialidade
para o povo Jupaú é que trazem em sua visão particular de mundo as
raízes construídas e com a necessidade de mantê-las para assim justificar
a própria existência enquanto coletivo humano, conforme o sentido
dado por Costa (2004, p. 50) como “um ato, uma ação, pois o território
reforça sua dimensão enquanto representação, valor simbólico”.
A representatividade territorial para um povo com menos de
trinta de anos de contato, à época (2006), com seus valores pessoais,
culturais e simbólicos esgarçados, cuja população era de algumas
dezenas de pessoas, em decorrência dos inúmeros e violentos ataques e
conflitos, além de serem vítimas de uma série de doenças estranhas ao
seu mundo, contudo não se curvaram frente ao desafio imposto, o
momento da reconstrução traduz a grandiosidade e o encontro com o
sagrado.

72
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O retorno para a antiga maloca, de acordo com as narrativas do


próprio coletivo não era realizado há pelo menos catorze anos devido às
constantes pressões, e durante vários anos se discutia e planejava o seu
restabelecimento como uma maneira de reencontrar seus antepassados
e assim reverenciar seus mortos, visto que ali se encontrava/encontra
parte de sua identidade, origem, história e a própria territorialidade, onde
esta “é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas
materiais e espirituais e do exercício da vida” (SANTOS, 2006, p. 140).
No ano de 2005 foi efetuada uma limpeza prévia na área da
antiga maloca-cemitério, todavia, devido às singularidades amazônicas,
a vegetação retomou e ocupou tudo novamente. O nome do lugar é
Yñamõrarikãgã ou cabeça de inhambu como uma homenagem a um
igarapé (pequeno curso d’água) que fica nas imediações da maloca e
porque no passado ao estabelecerem o local de moradia encontraram a
cabeça dessa ave sobre o tronco de uma árvore, provavelmente abatida
por caçadores ou seringueiros, daí foi então batizado com tal nome, com
isso tem a representatividade simbólica e a definição geográfica do
território.
No processo de restabelecimento da antiga maloca-cemitério,
vista como um fato histórico, mas também político e simbólico ocorreu
a parceria e a logística de órgãos públicos e não-governamentais que
desenvolvem atividades com o povo Jupaú. Essas entidades foram
convidadas e são incentivadoras da valorização cultural, ainda que
recebam questionamentos daqueles que não militam ou não entendem a
causa indígena.
Como pesquisadores sentimo-nos privilegiados, porque poucos
foram aqueles não indígenas que chegaram até Yñamõrarikãgã, e menor
ainda foi o número de pessoas que participaram do ato em contribuir
para o restabelecimento de uma maloca após três dias de caminhada pela
floresta no território Jupaú.
O processo de caminhada para a maloca-cemitério obedece a
ritualísticas importantes para o grupo, como fator de “marcação de

73
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

territórios”, assim definidos: os mais jovens caminhavam sempre a frente


dos demais e levavam seus de instrumentos de caça, pesca e guerra,
seguido pelas mulheres, crianças e os não indígenas e por últimos os mais
idosos. Essa era uma maneira de proteção para que todos chegassem bem
ao destino final.
No caminho costumavam parar em pontos estratégicos, não
apenas para descansar, mas, sobretudo para adentrarem ainda mais na
floresta em locais de barreiros para capturarem animais terrestres e
peixes como: yuhua (veado), mutun’a (mutum), tapi’ira (anta), tayehua
(queixada), ou pescarem yniã (cascudo), jandiá (mandi), piahua
(jatuarana), pakwhua (pacu), namipipihua (cascudinho), yniãpe (bodó);
caratinga (acará), piranha, piau e traíra, sendo que esses alimentos são
indistintamente servido para todos e em qualquer momento que ocorrer
a vontade do tau mãtera (quero comer) de cada um.
O momento da caçada era de muita magia e muita técnica, como
se fosse uma sinfônica noturna na floresta, em que os Jupaú
coletivamente se empenham na captura do animal, com atração por
meio de silvos imitadores de animais. Com o sucesso da empreitada o
fogo é imediatamente acesso, o moquém é armado para preparar a
iguaria, o animal é carregado, esquartejado e limpo no igarapé. Ocorre
então a glorificação daquele que realizou tal proeza, com indeléveis
gargalhadas rompem a noite, enquanto esperam apreciar a carne, todos
celebram e congraçam em volta do fogo.
Do animal nada se perde, aproveita-se desde a cabeça ao
aparelho digestivo para produzir lingüiça, porém o que não se pode
carregar como mantimento permanece na floresta para que outros
animais possam servir-se e assim completar a cadeia alimentar. Assim,
no momento da caçada, tem-se a impressão que os Jupaú não se cansam
nunca, tampouco dormem, na manhã vê-se a disposição para
continuarem a longa jornada.
Nesta caminhada ocorrem as paradas de descanso em razão
intenso calor da Floresta Amazônica, muito sentam-se ao chão e tecem

74
ALMEIDA SILVA (ORG.)

cestos de vários modelos utilizados para o transporte às costas de seus


pertences ou alimentos; para os cestos a matéria-prima eram as folhas
novas de palmáceas como babaçu e inajá Attalea maripa Aubl.
amarradas com talas de envireira Xylopia sp. Em caso de não mais
necessitarem utilizar os cestos, estes são abandonados próximos aos
caminhos que percorrem em suas empreitadas de caça, pesca e coleta de
produtos florestais, de modo que servem como identificadores dos locais
que habituam ou que realizam suas atividades.
Outra estratégia utilizada na longa caminhada para a maloca
antiga é o estabelecimento de pontos de apoios que são denominados de
maloquinhas ou tapiris, ali podem descansar, realizar as refeições e até
mesmo dormir. Elas possuem uma estrutura muito mais simples, ou seja,
com cobertura apenas com folhas de palmeiras de babaçu, servem “como
marcadores territoriais” e de representação simbólica; são também
utilizadas para outras atividades do coletivo como caça e pesca, coleta
de frutos e lazer, de maneira que tornam-se igualmente importante na
defesa do seu espaço e de seu povo.
A chegada na maloca antiga causou uma sensação fantástica,
talvez porque estivéssemos num espaço sagrado ou pela expectativa do
convite feito e da oportunidade de conhecermos um pouco mais aquele
povo e sua cultura, em que a riqueza existente na nossa sociedade parece
não ter tanta representatividade para eles. Um punhado de farinha no
prato é motivo de alegria e riso, mesmo que nele não contenha um
pedacinho de mbiara (carne) ou de pirá (peixe).
As atividades de restabelecimento da maloca aconteceram de
modo coletivo, com os trabalhos iniciados no raiar do sol, conduzidos
por decisão dos indígenas, a palavra final era dada por Mbawa-Gá, o mais
idoso e experiente do coletivo Jupaú. Os trabalhados pesados eram de
responsabilidade masculina, assim como a caça e a pesca como manda a
ancestralidade Jupaú, para as mulheres ficavam a preparação dos
alimentos em moquéns, em folhas de pacowá (pacova) ou cozidos.

75
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Nesse reencontro com seu passado de grande significado


espiritual, o modelo de construção e as tecnologias ancestrais dividiram
espaço com os instrumentos utilizados pela sociedade nacional que só
foram conhecidos por eles após o contato com os não indígenas, uma vez
que esses facilitam-lhes o trabalho.
A primeira atividade realizada no restabelecimento da maloca-
cemitério consistiu na limpeza física da área de entorno através do
roçado, retirada de vegetação, encoivaramento e queima da vegetação
arbustiva e rasteira, com a utilização de instrumentos como terçados ou
facões, foices, machados, enxadas e um motosserra transportados por
helicóptero alguns dias antes juntamente com gêneros alimentícios
como arroz, feijão, farinha, produzidos pelos indígenas entre outros. Esse
transporte foi possibilitado devido às ações de fiscalização que o Ibama
fazia, na época, na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau e Parque Nacional
de Pacaás Novos, e como ocorreu um sobrevôo naquele espaço
aproveitaram a oportunidade para deixarem esses materiais da maloca
antiga, de maneira que diminuiu o peso das bagagens levadas durante a
expedição.
As demais atividades ocorreram quase simultaneamente,
enquanto uns se encarregavam em encontrar madeira bruta para a
estrutura da edificação, outros faziam seu transporte e deixavam no local
designado à construção. Num segundo momento era feito abertura de
cavidades necessárias à instalação e levantamento das estruturas, para
tanto utilizavam cipós e alguns pregos. Essa estratégia de construção
rápida com a utilização de equipamentos de não indigenas, devia-se ao
fato dos vários compromissos com suas famílias que haviam
permanecido na Aldeia e que poderiam passar necessidade como a falta
de alimento. A estrutura ao final ficou com uma dimensão aproximada
de 100m² de área e quatro metros de altura no ponto mais elevado, com
a cobertura em formato arredondado.
A terceira etapa do processo ocorreu na floresta com a retirada
de palha de babaçu, posteriormente transportadas pelos homens e

76
ALMEIDA SILVA (ORG.)

dobradas com a participação de todos os presentes na expedição, e


finalmente fez-se a cobertura da maloca- cemitério.
Alguns detalhes interessantes marcaram profundamente o
restabelecimento da maloca e vale citá-los: a) Taroba-Gá e Mongta-Gá
ao realizarem a amarração da cobertura, tiveram um imprevisto e caíam
de costas, uma vez que a madeira com troncos finos se rompeu, porém
com muita agilidade, realizaram acrobacias no ar e atingiram o solo
literalmente em pé; b) quando um dos lados da cobertura estava pronto,
uma das madeiras de sustentação quebrou-se, com isso pairou no ar um
misto de desespero e profunda tristeza, mas imediatamente todos se
mobilizaram e trocaram-na por outra com melhor qualidade; c) Mbawa-
Gá desceu da maloca construída em poucos segundos, demonstrou que
apesar da idade avançada ainda era extremamente ágil; d) Warina-Gá
subiu e desceu de uma árvore com aproximadamente dezoito metros de
altura numa rapidez indescritível, isso com um laço nos pés que lhe dava
suporte e ainda um terçado (facão) nas mãos o qual cortou os galhos da
árvore próxima à maloca restabelecida para que ela não danificasse a
construção.
Por decisão dos indígenas a maloca foi parcialmente construída,
em que a frente e o fundo não foram revestidos com palhas das
palmeiras. No momento não entendemos as razões de não optarem pela
sua conclusão, posteriormente explicaram que voltariam no ano
seguinte e de fato fizeram isso, pois era uma estratégia para que outros
parentes pudessem conhecer Yñamõrarikãgã e assim ajudasse a protegê-
la de invasores e reverenciá-la como local sagrado de seus valores
espirituais, sociais e coletivos. Como retornariam no ano seguinte
deixaram as ferramentas utilizadas na construção.
Nesse aspecto a representação de sua cosmogonia assume os
papéis de “marcadores de territórios”, conforme enfatizado por
Henriques (2003, p. 9-11). No contexto do restabelecimento da maloca
Jupaú aparecem esses marcadores, plenamente identificáveis, como: a)
marcadores vivos por considerarem o rio e a floresta como elementos do
seu meio; b) os simbólicos porque ali encontram sua história e as

77
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

memórias dos antepassados; c) os fabricados que representa a


sacralização do espaço construído e as técnicas utilizadas em tal
atividade; d) os históricos por representar a mobilização do grupo; e) os
musicais com a expressão de canções para celebrar as vitórias e
relembrar dos antepassados; f) os funcionais com o restabelecimento de
trilhas que levam à maloca antiga, e que permitem a caça e a pesca.
As representações simbólicas constituem a amálgama da cultura,
em que o mesmo objeto pode ter diferentes significados em culturas
distintas, logo o que apresenta sagrado para uns, não é para outros ou
não possui relevância alguma. A sua criação depende substancialmente
dos fatores históricos, econômicos, sociais e ambientais, visto que:

O mundo das representações é anterior ao nosso nascimento e


outros o construíram para nós, porém precisamos, no decorrer
da existência individual, criar mundos simbólicos pessoais ou
inventar uma linguagem, e deste modo, na relação que
estabelecemos com os outros, passamos a construir nosso
próprio mundo semiótico (KOZEL, 2004, p. 229).

Nesse universo de representação o restabelecimento da maloca


Iñamũrarikãgã, envolve aspectos da espiritualidade e da materialidade, a
primeira com a relação com a evocação dos espíritos protetores do povo,
o segundo como um marcador de território. Em sinal de amizade e
confiança da presença de não indígenas, Mbawa-Gá revelou que estava
ali para lembrar dos seus queridos parentes antepassados, mostrou onde
era a maloca e os locais do sepultamento, explicou que “o Gá significa
que é homem vivo, enquanto a mulher é Hen’a, quando morrem são
chamados pelo nome e acrescentam o wae, como um modo de manter as
memórias”.
Durante o processo de restabelecimento da maloca, realizado em
três dias, embora a expedição fosse de doze dias, na segunda noite um
dos homens Jupaú realizou o ritual do omãpuãbuga (choro) e do imbu’ika
(canto), para relembrar a memória de sua mãe. É uma manifestação
muito forte e serve para realimentar a alma através da invocação dos
bons espíritos que auxiliam na proteção do território e de sua gente, ao

78
ALMEIDA SILVA (ORG.)

mesmo tempo em que retribui com o choro e a música como


agradecimento por tudo àquilo que conquistaram.
Esse ritual provoca sensações arrebatadoras, pois produz um
êxtase sublime e leva a introspecção psíquica de maneira que une o
passado com o presente, ou seja, naquele momento o sentimento de
morte parece ser abandonado, como enfatiza Schaden (1974, p. 131) “de
modo inequívoco resulta de tudo isso que morte não equivale
necessariamente a destruição”. A canção semelhante à ladainha exalta a
glória, os valores e as memórias, mas traz a inquietação com o presente
refletido no receio do surgimento de entidades maléficas que possam
causar danos ao povo, à cultura e ao território.
O estabelecimento do ato de representação simbólica no ritual
evoca as reminiscências, como aquela realizada pelo indígena na volta
da antiga maloca, enquanto os demais ficam em silêncio profundo
silêncio e somente ele se manifesta nesse momento especial de sua
existência, demonstra o respeito e a identidade do coletivo, o que
conduz-nos a reflexão que:

Os grupos só acham seu equilíbrio quando dispõem de meios


para se aproximar das fontes da potência e da verdade. Os ritos
correspondem a isto. A dança prepara o transe: a divindade
penetra então no indivíduo que age e fala em seu nome. O
sacrifício reata a aliança com as forças que comandam o
mundo: ele permite captar sua atenção, acalmar sua cólera e
atrair suas boas graças... (CLAVAL, 2001, p. 156-157).

Nesses momentos simbólicos, os rituais espirituais integrantes


da cosmogonia Jupaú constituem-se como “marcadores territoriais” que
permite a manifestação física dos espíritos, incorpora no indígena e
assim produz o canto, choro, gritos, inclusive danças em algumas
situações, de tal modo que em seu imaginário essas representatividades
simbólicas “ajudam a estruturar as identidades coletivas, o território
desempenha um papel central”, conforme constata Piveteau (1995 apud
CLAVAL, 2001, p. 158).

79
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Um elemento muito poderoso e intimamente ligado ao processo


de restabelecimento da maloca é o fogo, sempre o fogo, é ele que permite
não apenas o preparo da alimentação, mas oferece dupla proteção contra
os animais ferozes da floresta que podem atacá-los, além de aquecer as
noites frias de julho, sendo colocado embaixo e ao lado das redes. Ele está
invariavelmente nas coivaras, na limpeza do terreno da maloca e na
queima da vegetação seca o tempo todo, e facilita as atividades
desenvolvidas pelo coletivo.
O fogo também como parte do universo simbólico das
representações protege o guerreiro da ação sinistra de Anhangá, como
explica Awapy-Gá: “se não fosse pelo fogo acesso à noite quando estava
sozinho na maloca, uma vez por brigar com meu irmão, e outra quando
estava caçando, Anhangá teria me levado”. Esse espírito maléfico é uma
visagem ou assombração e apresenta-se como um grande morcego
sugador de sangue, mas pode assumir quaisquer outros aspectos,
conforme as narrativas míticas do povo Jupaú, desaparece com as
pessoas para um local desconhecido.
Outro elemento constante e espiritual é a água, que faz
lembrarem da antiga maloca situada às margens do rio, visto que onde
habitam atualmente (Aldeia Alto Jamari) possui um igarapé intermitente
em muitos trechos, que priva-os da pesca e dos demorados banhos. Ao
chegarem à Yñamõrarikãgã uma das primeiras ações que tomaram foi
direcionar até o rio, ali passaram longo tempo, tomaram banho,
contemplaram as águas e relembraram a história do lugar.
Embora não podemos afirmar que a cultura do povo Jupaú seja
religiosa (do modo como conhecemos na sociedade envolvente), tem
certos atributos que compõe o sagrado por meio de ritualísticas
espirituais e a utilização de elementos da natureza semelhantemente ao
constatado por Gil Filho (2004, p. 258), no qual “em muitas culturas
religiosas a realidade sensível é inerentemente sagrada, na medida em
que faz parte do mundo da natureza”.

80
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Nessa relação de integração do homem e a natureza, a maloca


cumpre seu papel de afirmação da identidade cultural do povo, conforme
constata Sahlins (1997, p. 41): “as pessoas, relações e coisas que povoam
a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e
significados que não podem ser determinados a partir de propriedades
biológicas ou físicas”.
Sob essa ótica acreditamos que o conhecimento, o respeito e a
compreensão do mundo indígena com seus valores, símbolos e
significados de representação e de contribuição significativa não
somente para entendermos as distinções existentes entre as várias
culturas humanas, mas, sobretudo para que possamos tê-las como
referencial de aprimoramento de nossas próprias relações.
A territorialidade, as representações simbólicas se manifestam
por uma necessidade objetiva em ter resguardado os valores intrínsecos
construídos ancestralmente, vez que o “espaço não é a cristalização do
fenômeno, mas parte das possibilidades relacionais do mesmo. Assim,
construímos imagens do espaço e atribuímos a elas as representações de
nossa existência”, na definição de Gil Filho (2004, p. 259), e como tal
deverá ser entendido, pois explica a existência das relações sociais e a
materialidade das diferentes resiliências colocadas ao coletivo.
Nesse contexto das representações territoriais, é mister a
abordagem de Bonfil Batalla (1991) que situa-o como um fenômeno
social em que a “capacidade decisória que define o controle cultural é
também uma capacidade social, o que implica que, embora as decisões
sejam tomadas por indivíduos, o grupo social tem, por sua vez, meios de
controle sobre eles” (Tradução nossa). A necessidade objetiva é, assim,
estendida e entendida pela compreensão da capacidade de decisão e a da
apropriação dos espaços com seus objetos e bens naturais, inclui-se neles
os aspectos psíquico-sociais e míticos, os quais contribuem na
construção e manutenção de sua cosmogonia, vez que permite a
existência material do coletivo.

81
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Os objetivos propostos para a execução do trabalho foram


plenamente alcançados, em que o convívio de doze dias na Aldeia foi
importante; os três dias na execução da construção da antiga maloca-
cemitério permitiu-nos entender um pouco do modo de vida do povo
Jupaú. A observação participante foi de um grande significado para
todos, pois estabeleceu-se um círculo de amizade, solidariedade e
confiança, bem como possibilitou o engajamento ativo nas atividades
que propuseram.
Nesse contexto, mesmo a maloca não totalmente construída por
decisão do próprio povo da Aldeia Alto Jamari, fomos convidados a
participar em 2007 de dois importantes rituais que simbolicamente
representam os “marcadores territoriais”. O primeiro ritual é o de
passagem conhecido como festa da menina-moça, o qual marca a
entrada da fase adulta da mulher; o outro com o ritual Yreruá (dança das
flautas de taboca)7 com a manifestação e evocação dos espíritos dos
antepassados como o ocorrido em Yñamõrarikãgã.
Em ambos rituais as relações sociais tornaram-se mais
fortalecidas, pois são neles que os membros de outras aldeias se
encontram, cantam, dançam, bebem e comem seus produtos ancestrais,
realizam as tarefas de modo coletivo com os papéis definidos entre
homens e mulheres, além de contar suas narrativas e situações
vivenciadas no dia-a-dia.
A partir dessas participações passamos a contar com valioso
material de pesquisa científica, inclusive fotográfica, com as imagens que
posteriormente foram devolvidas ao povo, como sinal de respeito e ética
por terem permitido o acesso ao seu território e aos valores que

7 Trata-se de um ritual também praticado pelos Amondawa e pelos Pykahu


Parintintin, em que neste último ocorre a variação de nome como Yrerupykyhu,
o qual celebra a “Celebração do Guerreiro”. Para melhor compreensão do ritual
recomendamos a leitura da obra Uma viagem ao mundo dos Pykahu-Parintintin:
olhares, percepções e sentidos (ALMEIDA SILVA et al. [orgs.], 2017. Outro ritual
que tem algumas aproximações é o Mboatawa realizado pelos Tenharim
(BERTOLIN, 2015).

82
ALMEIDA SILVA (ORG.)

preciosamente tentam manter e preservar frente às situações de “fricção


étnica” na definição de Cardoso de Oliveira (1972).
Numa expedição também ocorrem alguns dissabores, não
proporcionados pelos indígenas, mas pela distância percorrida, o que
ocasionou o seguinte: lesões em parte dos componentes da equipe
causados pelos espinhos e estrepes que perfuraram pés e mãos, galhos e
vegetação que machucaram os rostos e o extenuante cansaço físico no
corpo; o frio intenso; as inevitáveis picadas de insetos como as formigas
tracoá Camponotus spp., taxi Pseudomyrna spp, de fogo Solenopsis
invicta, tocandira Paraponera clavata e vespas conhecidas como cabas
Vespidae spp; calçados, roupas e bolsas que se deterioraram, além de
serem trituradas por saúvas Atta spp. e marimbondos; a máquina
fotográfica que oxidou devido à umidade e não pode ser mais utilizada.
A Expedição à Yñamõrarikãga foi tão importante ao povo Jupaú,
visto que despertou nos parentes das demais aldeias o desejo de
restabelecer antigas trilhas e malocas de igual significado: a valorização
cultural, a proteção do território, o reencontro com os espíritos dos
antepassados, além de outras simbologias e representações.

PARA ENCERRAR

A expedição para o restabelecimento da maloca Yñamõrarikãgã,


ofereceu grandes aprendizados, principalmente sobre a importância da
representação simbólica dos povos indígenas em articular o espaço
cultural de vivência, visto ser ele impregno de elementos e aspectos que
possibilitam conhecimento e sabedoria, aprimoramento das relações
sociais de humanismo, companheirismo e participação coletiva,
estabelecimento do caráter respeitoso de preservação e utilização
racional da biodiversidade.
A experiência de conviver com a cultura Jupaú é única e
indescritível, o que nos causou a sensação de paz de espírito e harmonia,
típicos do seu modo de vida simples do ponto de vista do não indígena,
que se contenta com o muito que a natureza lhes oferece, e oportuniza-

83
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

lhe uma grandiosidade mágica. Este povo sorridente, hospitaleiro e


trabalhador merecem mais do que ser reconhecido e respeitado. É do seu
imaginário e das relações estabelecidas com seus antepassados e com o
meio onde vivem que encontram a energia indispensável para a defesa
de seu território imemorial e do rico patrimônio imaterial das tradições,
valores espirituais, éticos, morais e sociais.
Entender isso, não é apenas conciliar com o passado, embora
esse, também deverá ser explicado. O ato do restabelecimento da antiga
maloca-cemitério representa antes de tudo para eles o pacto
amalgamador de sua cosmogonia com o mundo exterior, oportuniza as
atuais e futuras gerações o conhecimento das fortes lições porque
contêm sua história e a vida, mesmo com as constantes tentativas de
“invisibilidade” efetuadas pela sociedade envolvente.

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86
AS PERCEPÇÕES GEOGRÁFICAS E CULTURAIS DOS
ESTUDANTES INDÍGENAS NA FRONTEIRA BRASIL/BOLÍVIA 1

Agna Maria de Souza Coelho


Cláudia Conceição Coimbra
Maria das Graças Silva Nascimento Silva
Francisco Oro Waram
Adnilson de Almeida Silva

O trabalho procura apresentar as percepções e


representatividades dos estudantes do último ano do Ensino
Fundamental da Escola Wem Kanum Oro Waram na Terra Indígena
Igarapé Lage (TIIL), em Rondônia, por meio de expressões relacionadas
aos marcadores territoriais ligados à ancestralidade, coletividade,
historicidade e o bem viver.
A representatividade indígena e a identidade cultural na
fronteira Brasil/Bolívia entre os gêneros e os fatores diferenciadores são
apresentados neste artigo por intermédio da leitura de mapas mentais
elaborados com esses alunos em ambiente escolar. As preferências de
lazer em momentos de ócio, e os conteúdos da disciplina Cultura do povo
nortearam as perguntas que culminaram na representação dos mapas
mentais.
Alunas e alunos num espaço de ação peculiar a cada um,
permitem se conhecer através da identidade cultural demonstrada nos
mapas mentais. Elementos da cultura dominante presente no cotidiano
indígena, revelam assim a aproximação com a sociedade envolvente, de
modo que são encontradas nas representações. Os conflitos territoriais
também são expostos pelas várias etnias que compartilham o mesmo
território, bem como o conhecimento dos direitos constitucionais

1 Publicado nos Anais do X Seminário Temático da Rede Internacional Casla-


Cepial, em 2018, com o título “Representatividade indígena e identidade cultural
na fronteira Brasil/Bolívia: o gênero e os fatores diferenciadores Por uma ciência
e epistemologia(s) indígena: dilemas e desafios”.

87
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

adquiridos. O interesse pelo saber da cultura dominante é representado


pela escola, o que mostra o anseio por modificações na qualidade de vida
do povo.

O COMEÇO

Nosso trabalho é voltado à análise de como se expressam os


estudantes do último ano do Ensino Fundamental da Escola Wem
Kanum Oro Waram na Terra Indígena Igarapé Lage (TIIL) sobre os
marcadores territoriais como modo de representatividade indígena e
identidade cultural, descritas por eles, por meio da identificação de
diferenças nas expressões e da verificação como as demonstrações dos
símbolos pessoais dos alunos e alunas se entrelaçam com a
representatividade da coletividade.
No embasamento do trabalho utilizamos a abordagem
fenomenológica como método e os mapas mentais como procedimento
metodológico da hermenêutica na coleta de dados, para a turma do 9º
ano do ensino fundamental, que totalizaram em sete jovens alunos e
alunas, entre a faixa etária de 14 a 21 anos de idade. A fonte de dados da
pesquisa de campo pautou-se na observação com abordagem qualitativa
que na Geografia se mostra presente, essencialmente nos estudos dos
espaços indígenas e também estima ao referencial teórico para
apresentar os resultados reunidos no texto.
A estrutura do texto está dividida em quatro partes. Na primeira
é exposta a contextualização empírica da/na TIIL por meio da simbologia
expressa nos mapas mentais pelas alunas e alunos do último ano do
Ensino Fundamental da Escola Wem Kanum Oro Waram. Na segunda
são apresentadas as concepções teóricas que junto com a terceira parte
deu o enfoque metodológico e ofereceu o suporte necessário para a
quarta e última parte que apresenta os resultados da representatividade
e identidade cultural indígena por intermédio dos fatores diferenciadores
ligados ao gênero, mas que reunidos expressam o sentimento de

88
ALMEIDA SILVA (ORG.)

pertencimento guardado no âmago que se transborda em


territorialidade.

CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA EMPÍRICA

Como partícipes da pesquisa temos os alunos e alunas do último


ano do Ensino Fundamental II, da E.I.E.E.F Wem Kanum Oro Waram,
localizada na TIIL, os quais estão devidamente matriculados e
pertencentes aos subgrupos ou clãs: Oro Waram, Oro Waram Xijein, Oro
Nao’, Oro Mom. Juntos integram o povo Wari’ ou Pacaás Novos do
estado de Rondônia, fronteira Brasil/Bolívia, nas proximidades do rio
Mamoré e Madeira em Rondônia, representadas por 32 aldeias, com uma
população total de 4.721 habitantes.
O termo Wari’ significa “gente”. Muitos se referem a eles como
Pakaas Novos como referência do lugar onde pela primeira vez foram
vistos. O termo” Wari’” significa: pessoa. O termo “Oro” é uma partícula
coletivizadora, que estão subdivididos em sete clãs/subgrupos:

1. Oro Waram: macaco preto;


2. Oro Waram Xijein: macaco preto diferente;
3. Oro Eo’: arrotadores;
4. Oro Nao’: morcego;
5. Oro Mon: fezes;
6. Oro Jowin: macaco prego;
7. Oro Cao’ Cao’ Orowaji: comedores de coisa verde.

Os povos Wari’ são falantes do tronco linguístico, Txapakura. Na


representação gráfica “am” se refere ao gênero feminino, na língua
materna, ou seja; as palavras que terminam em “am”, é uma desinência do
gênero feminino. E se num determinado grupo for composto entre
homens e mulheres, ocorrerá a prevalência será do gênero feminino.
Como exemplos: a) O professor ensinou aos alunos: Ca’ na nanam

89
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

hwijima’ (sala mista); b) O professor ensinou aos alunos: Ca’ na nonon


hwijima’ (sala só com meninos).
Numa área que corresponde a compreende 107.321 ha (1.073,21
km²), a Terra Indígena Igarapé Lage demarcada e homologada, com
reconhecimento oficial através do Decreto 86.347, de 10 de setembro de
1981. Os povos indígenas desse espaço geográfico sofrem até hoje com
as imposições do capital para demarcar terras que antes já eram
pertencentes a eles. Em conformidade com Almeida Silva (2010, p. 99):
“Os indígenas não concebem, pela sua percepção, uma espacialidade
concreta e moldada esquematicamente como a nossa concepção do
mundo, mas são dotados de uma percepção profunda do espaço, devido
à experiência adquirida e pelos ensinamentos de ancestralidade”.
A demarcação ecoa ao indígena como uma tentativa de
aprisionar o que outrora tinha, ou seja, a liberdade de expressar seus
traços culturais e não ser subjulgados diante de uma cultura que os
colonizadores trouxeram em nome do desenvolvimento. A pesquisa
ocorreu na Aldeia Lage Velho, na TIIL, na 6ª linha do Iata, município de
Guajará Mirim, em Rondônia, distante 28 km da zona urbana. Para
atender as crianças da localidade que tinham idade escolar foi criada
pelo Decreto n. 15564, de 7 de dezembro de 2010, a Escola Indígena
Estadual de Ensino Fundamental Wem Kanum Oro Waram, devido à
iniciativa de lideranças indígenas em trazer melhorias para a
comunidade, principalmente no que tange a educação que é de todos
os brasileiros. Assim, a Resolução CNE/CEB n. 5, de 22 de junho de
2012 que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Indígena na Educação Básica.
O nome da escola é uma homenagem a seu patrono Wem Kanum
Oro Waram (falecido em 12 de março de 1985) que era pajé dos Oro
Waram e muito respeitado por suas ações de pajelança. Seus
descendentes vivem até hoje na Aldeia Lage Novo/Bom Sossego) e
preservam sua cultura.

90
ALMEIDA SILVA (ORG.)

CONCEPÇÕES TEÓRICAS

O território como espaço de interação social, permite que as


relações de poder se estabeleçam e produzam marcas entre os
indivíduos. Os alunos e alunas da E.I.E.E.F Wem Kanum Oro Waram
produzem o território a partir de suas experiências e convívio com a
ancestralidade e toda a representatividade simbólica presente nas suas
ações pois “são os variados fios que tecem a rede simbólica, o
emaranhado da experiência humana” (CASSIRER, 2012, p. 48). Neste
sentido,

Fazer da geografia uma análise da experiência humana é


voltar-se para a maneira como o indivíduo toma consciência
daquilo que é através dos lugares onde vive, das paisagens que
lhes são familiares, e daquelas onde se sente à vontade, das
ruínas que lembram o passado e dos equipamentos que
convidam a olhar o futuro (CLAVAL, 2011, p. 237).

As vivências entre os indivíduos em seu espaço são ocorridas por


intensas presentificações, nas quais pode-se perceber a visão de mundo
pertinentes a cada um e os mapas mentais revelaram as características
dos alunos e alunas em suas construções sociais provenientes da
coletividade. Em que esta última é a base da formação indígena:

As representações provenientes das imagens mentais não


existem dissociadas do processo de leitura que se faz do
mundo. E nesse aspecto os mapas mentais são considerados
uma representação do mundo real visto através do olhar
particular de um ser humano, passando pelo aporte cognitivo,
pela visão de mundo e intencionalidades. A imagem de algo
reflete uma construção simbólica (KOZEL, 2007, p. 121).

A representatividade se apresenta como fios conectados às


experiências individuais, porém assimiladas da coletividade dos
ancestrais e da comunidade atual que juntas trazem lembranças que se
tornam “marcadores territoriais” demonstrados através dos mapas
mentais, têm em si as identidades do coletivo e seu pertencimento

91
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

reforçados pelas paridades, visto que “A concepção de “marcadores


territoriais” pode ser compreendida a partir dos símbolos que ocorrem
enquanto espaço de ação, definem territorialidades vinculadas à
cosmogonia e experiências socioespaciais e possibilitam a formação das
identidades culturais e do pertencimento identitário” (ALMEIDA SILVA,
2010, p. 105).
O espaço de ação e os símbolos como definidores dos
marcadores territoriais podem ter semelhanças e diferenças através do
gênero ou seja, as relações entre gênero e espaço que se apresenta ainda
como uma lacuna na ciência geográfica principalmente em relação ao
feminino. “Os questionamentos a respeito da invisibilidade feminina na
ciência geográfica são antigos, já que datam dos anos 70” (SILVA;
NABOZNY; ORNAT, 2011, p. 23).
Os papéis de gênero na Aldeia Wari’ aqui apresentados não vão
ao encontro da mera diferença biológica, mas sim de uma construção
social que faz parte do construto da cultura indígena:

O conceito de gênero agrega a dimensão social e cultural da


diferença sexual, adotando a perspectiva da construção social
dos papéis sociais que devem ser desempenhados por homens
e mulheres, e nega a construção universal das diferenças,
implicando a compreensão dos papéis em determinada
estrutura temporal e espacial (SILVA; NABOZNY; ORNAT,
2011, p. 26).

Na análise de Coimbra (2015, p. 30) “O que se busca é a


compreensão de que nada é inerte no processo espacial e temporal dessa
construção que, até hoje, guarda traços generalizados das diferenças
sexuais, os quais, todavia, devem ser negados”.
O que tange às populações indígenas (homens e mulheres)
sofreram uma sobrecarga de negativas em desfavor da sua cultura numa
tentativa de escamotear sua visibilidade. Apesar dos diversos dissabores
passados pelas populações indígenas, sua luta tornou-se importante ao
ponto de terem uma grande visibilidade simbólica no imaginário da

92
ALMEIDA SILVA (ORG.)

humanidade, apesar da resistência de boa parte da sociedade em aceitá-


las com suas heterogeneidades (ALMEIDA SILVA et al., 2009, p. 209).
Cada pessoa independente de ser homem ou mulher apresenta
maneiras diferentes de contextualizar suas experiências de vida porque
tratam-se de ações individuais ou seja fatores diferenciadores, porém
imbricadas na coletividade que se mostra como a identidade de um povo.
A pesquisa retrata os indígenas e a complexidade das suas relações
sociais. e a sua representatividade através das redes simbólicas do seu
conhecimento ou seja, “toda identidade territorial é uma identidade
social, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no
campo de ideias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico
constituindo assim fundamental dos processos de identificação social”
(COSTA, 1999, p. 172).

ENFOQUE METODOLÓGICO

Para analisar representatividade indígena e identidade cultural


na fronteira Brasil/Bolívia: o gênero e os fatores diferenciadores” entre
os alunos e alunas da escola indígena utilizamo-nos da abordagem
fenomenológica, pois busca-se neste território, conhecer os atores
sociais e as construções que ali promovem. Neste sentido, afirma Claval
(2011, p. 222) que: “A fenomenologia transformou as perspectivas dos
geógrafos que a descobrem porque lhes revelou que os lugares não são
pontos anônimos num espaço neutro; a Terra não é uma superfície
geométrica, é feita de meios físicos, onde a vida está por toda parte
presente e os homens moldaram à sua imagem”.
Os povos indígenas têm se configurado de um modo proativo, em
que se realizam a análise do espaço onde estão inseridos para identificar
quais são os elementos que permanecem vivos em sua cultura. Para
Costa (2012 p. 28) “A maioria dos autores recorre à leitura espacial ou
geográfica, a fim de visualizar melhor não a emergência do novo, mas o
desaparecimento do antigo”.

93
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Para tanto, optou-se pela pesquisa qualitativa, uma vez que esta
possibilita o estudo dos fenômenos a partir das relações sociais, no
ambiente escolar como espaço onde a interação entre os indivíduos é
intensa:

A pesquisa qualitativa é reconhecida em virtude de suas


diversas possibilidades de estudar os fenômenos que envolvem
os seres humanos e suas relações sociais, estabelecidas em
vários ambientes. Essa abordagem sempre foi associada à
antropologia e à sociologia, ciências que inicialmente a
utilizavam com regularidade, e, ao longo do tempo, foi
incorporada por diferentes áreas do conhecimento, como as
ciências da saúde, a educação, a psicologia, a administração,
entre outras (SILVA; MENDES, 2013, p. 212).

O ano de 2017 se apresentou como marcador temporal em que


se buscou conhecer como se diferem as representatividades através dos
marcadores territoriais nas relações ligadas ao gênero, por meio da
leitura dos mapas mentais dos alunos e alunas do último ano do Ensino
Fundamental II da Escola Wem Kanum Oro Waram na TIIL, com isso
oferece o que é relevante para a Geografia de não descuidar dos traços
culturais das sociedades num espaço geográfico.

O contexto obriga, pois os geógrafos a não negligenciarem as


dimensões culturais dos fatos que observam. Ele orienta sua
curiosidade numa nova direção: as técnicas tornaram-se
demasiadamente uniformes para deter a atenção; são as
representações negligenciadas até então, que merecem ser
estudadas (CLAVAL, 2001, p. 50)

Neste contexto, a Geografia Cultural se mostra como a área do


conhecimento que permite estudar as representações por meio dos
elementos fornecidos pelos sujeitos envolvidos na pesquisa, no seu
espaço de ocupação, adotados os estudos culturais geográficos de Paul
Claval(2001), as contribuições para povos indígenas da região Norte de
Almeida Silva (2010); e concepções como de Rafesttin (1993); Costa

94
ALMEIDA SILVA (ORG.)

(2012); Brasil (2005) e estudos sociológicos de Bauman (2012), para


fundamentar esta escrita.
Para Claval (2001, p. 106) “O indivíduo é moldado pela cultura:
o que sabe fazer, suas maneiras de sentir e de ver, suas aspirações, são
recebidos e seus currículos ou construídos a partir dos elementos por ele
fornecidos”. Esta pesquisa qualitativa tem como suporte metodológico
os estudos da hermenêutica, pois esta fornece subsídios para interpretar
os dados representativos fornecidos pelos sujeitos em sua dimensão
cultural:

São consideradas metodologias qualitativas, por exemplo,


pesquisa participante, pesquisa-ação, história oral, observação
de cariz etnometodológico, hermenêutica, fenomenologia,
levantamentos feitos com questionários abertos ou
diretamente gravados, análise de grupo, que como vemos,
abrigam horizontes bastante heterogêneos (DEMO, 2000, p.
151-152).

A hermenêutica permite que o pesquisador visualize dados que


não estão explícitos na representação mental, mas que a partir da
historicidade pode subjetivamente conduzir à valores altamente
representativos. Para Caldas (1997, p. 28) “a hermenêutica deve
estabelecer as conexões entre a prática produtiva, a estrutura social, os
diversos poderes de classe, as ideologias, as representações mentais”. As
representações mentais são linguagens fornecidas pelos sujeitos, que ao
contrastar os elementos possibilita conhecer como são as relações:

A linguagem é o único meio da experiência hermenêutica. Em


outras palavras: conhecer é compreender; compreender é
interpretar; e o interpretar só acontece na linguagem que é
própria de quem ‘fala’ (sujeito), mas é também a única forma
pela qual o ‘objeto’ - e por ele o ‘sujeito’ - se deixa ser conhecido
e expresso (GADAMER, 2003, s. p.).

A linguagem demonstra o elo de ligação com o lugar, o


pertencimento. Cassirer (2012, p. 49) ressalta que “primariamente, a
linguagem não exprime pensamentos ou idéias, mas sentimentos e

95
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

afetos” e os povos indígenas sempre sofreram com as atuações das demais


culturas de tentar camuflar ou até mesmo extinguir sua língua, seus
valores culturais e espirituais numa maneira de apagar o que a
subjetividade vem a tona por meio de sentimentos. Assim, no intuito de
saber como se diferem as representatividades através dos marcadores
territoriais nas relações ligadas ao gênero por meio da leitura dos mapas
mentais dos alunos e alunas do último ano do Ensino Fundamental II da
Escola Wem Kanum Oro Waram. Neste sentido:

Na perspectiva de contribuir com o enfoque e as questões


referentes ao trabalho com as subjetividade advindas de
pesquisa qualitativas como os mapas mentais como uma forma
de linguagem estabelecemos a metodologia Kozel como um
caminho possível de decodificação e interpretação das
imagens construídas (KOZEL, 2007, p. 132).

A coleta de dados realizadas foi por meio da técnica da aplicação


dos mapas mentais para sete alunos matriculados no ensino regular, e
que compõem os subgrupos ou clãs: Oro Waram; Oro Waram Xiyein,
Oro Nao’; Oro Mom. Para a elaboração do desenho 1 dos alunos, a
pergunta norteadora era “o que vocês gostam de fazer na aldeia, quando
não estão na escola?”, enquanto para o desenho 2 “o que vocês aprendem
na disciplina Cultura do Povo, que praticam fora da escola?”
Na perspectiva de Kozel, os mapas mentais são representações
que estão repletas de significados, que estão diretamente ligada ao
contexto sócio-histórico-cultural de determinado indíviduo ou coletivo,
pois expressam subjetividades e materialidades. Assim, afirma Kozel
(2007, p. 115): “Os mapas mentais como construções sígnicas requer
uma interpretação/decodificação, foco central desta proposta
metodológica lembrando que as construções sígnicas estão inseridas em
contextos sociais, espaciais e históricos coletivos referenciando
particularidade e singularidades”.
Para Claval (2011, p. 244) os mapas mentais elaborados por
populações tão próximas geograficamente mostram que a percepção que
têm do mundo é socialmente construída e reflete a cultura na qual estão

96
ALMEIDA SILVA (ORG.)

imersas. O autor afirma que as proximidades nas relações sociais são


bem sucedidas, em razão da familiaridade e da forte ligação ancestral:

A comunidade família desempenha um papel central em todas


as sociedades tradicionais. Ela pode se estender ao tamanho de
um clã é formado por todos os descendentes de um ancestral
comum. A solidariedade clânicas funcionam bem desde que os
gêneros de vida e os recursos familiares sejam relativamente
semelhante (CLAVAL, 2001, p. 114).

A ancestralidade é altamente explicativa nas concepções que os


indígenas fazem do entorno. Durante os ciclos da história dos povos
indígenas, a ancestralidade utiliza a oralidade para fortalecer as
identidades de seu povo entre as gerações:

A tradição oral está intimamente ligada na ancestralidade, e na


cultura indígena. A cultura só existe através dos indivíduos aos
quais é transmitida, e que, por sua vez, a utilizam, ao
enriquecer, transformam e a difundem. Sem ela, eles estariam
desamparados: o instinto não é suficiente para segui-los
(CLAVAL, 2001, p. 89).

Deste modo, temos na interpretação das representações mentais


elementos e fenômenos, que são provenientes da ancestralidade para a
coletividade, e nos auxiliam na compreensão e interpretação de distintos
mundos. Em relação aos povos originários, pondera Almeida Silva (2010,
p. 99) que:

A representação simbólica dos indígenas descritas por meio da


oralidade revela os seus anseios, devaneios, medos,
experiências socioespaciais, trajetórias e perspectivas
indispensáveis ao entendimento da cultura, da cosmogonia e
dos valores concebidos na ancestralidade, a partir de suas
experiências socioespaciais.

Os mapas mentais, como elemento individual, revela a


coletividade impregnada no indivíduo e seus aspectos culturais, bem
como em suas subjetividades e materialidades, de modo que para

97
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Bauman (2012, p. 302): “A cultura é singularmente humana no sentido


de que só o homem, entre todas as criaturas vivas, é capaz de desafiar sua
realidade e reivindicar um significado mais profundo, a justiça, a
liberdade e o bem-seja ele individual ou coletivo”.
As ações individuais não estão dissociadas das práticas coletivas.
A conduta dos indígenas é repleta de significados, nos quais a
ancestralidade marca fortemente cada ação. Para Almeida Silva (2010,
p. 109) “O espaço de ação se inscreve nos marcadores territoriais por
meio da identidade cultural, as quais se encontram repletas de
complexidades que caracterizam a interpretação de mundo”.
Deste modo, nos elementos desta análise, busca-se àqueles que
por representação coletiva tem poder de atribuir à ancestralidade as
marcas do modo de vida em seu espaço, com isso “No caso dos coletivos
indígenas é atribuída ainda a representação cosmogônica e a
ancestralidade como atributos indispensáveis e como referenciais de
constructo desses “marcadores”, porque essa relação ocorre diretamente
com a terra e com os fenômenos que sustentam seu modo de vida”
(ALMEIDA SILVA, 2010, p. 105).
Assim, para descrever os marcadores territoriais dos alunos e
alunas, identificar as suas diferenças, bem como verificar como as
demonstrações dos símbolos individuais se entrelaçam com a
representatividade da coletividade, recorremos aos mapas mentais como
recurso representativo dos gêneros.

APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

A pergunta inicial: O que vocês gostam de fazer na aldeia,


quando não estão na escola? revelou a espontaneidade do aluno no seu
modo de vida. Temos nos mapas a identidade indígena evidenciada pelas
expressões sócio-histórica-culturais. “O geógrafo interroga, pois, as
populações que o interessam” (CLAVAL, 2011, p. 68). Em relação ao
questionamento seguinte: O que vocês aprendem na disciplina Cultura
do Povo, que praticam fora da escola? evidenciou as narrativas históricas

98
ALMEIDA SILVA (ORG.)

trabalhadas pelo professor indígena em sala de aula como sólidas no


processo de ensino e aprendizagem, visto que:

Da vida de cada povo nasce uma geografia. Os alunos e alunas


indígenas como todos os outros trazem para a escola seus
conhecimentos geográficos. Esses conhecimentos devem ser o
ponto de partida e chegada da geografia na escola. No caminho,
há um diálogo entre o conhecimento geográfico do aluno e a
geografia escolar não indígena (BRASIL, 2005, p. 225).

Ao descrever a “Metodologia Kozel”, a autoria (2007, p. 133)


apresenta uma série de atributos que permitem a construção dos
conteúdos dos mapas mentais, os quais podem ser analisados pelos
seguintes quesitos interpretativos, a saber: 1- Interpretação quanto à
forma de representação dos elementos na imagem; 2- Interpretação
quanto à distribuição dos elementos na imagem; Interpretação quanto à
especificidade dos ícones (Representação dos elementos da paisagem
natural, Representação dos elementos da paisagem construída,
Representação dos elementos móveis, Representação dos elementos
humanos); 3-Apresentação de outros aspectos ou particularidades.
A partir desses parâmetros fornecidos pela Metodologia Kozel é
que passamos a apresentar os resultados e suas análises decorrentes dos
mapas mentais elaborados pelas alunas e alunos da Escola Wem Kanum
Oro Waram.
Nos mapas mentais 1 e 2, nos desenhos 1 de cada aluno
encontramos a pintura corporal como elemento representativo, ou seja;
o marcador territorial, como uma prática de satisfação pessoal que
realizam quando não estão na escola:
No caso dos indígenas, esses “marcadores” estético corporais
podem ser constituídas de forma permanente ou temporariamente,
como se verifica nas “pinturas” para a guerra ou na celebração de rituais
e transportam o histórico de acontecimentos, reações emocionais, em
que os mesmos possuem não somente um significado estético, mas

99
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

codifica espiritualmente a proteção do indivíduo 2 e do coletivo


(ALMEIDA SILVA, 2010, p. 152).
Nas Figuras 1 e 2 (mapas mentais) relativas à primeira pergunta
geradora, encontramos referências sobre a TIIL, sua localização e como
se organiza o espaço onde vivem os alunos. Percebe-se que há uma
representação perfeita, a qual corresponde a parte física do espaço
geográfico; na da aluna tem-se como as coletividades (grupos e
subgrupos indígenas) se organizam e vivem no espaço demarcado, o qual
o aluno demonstrou e evidenciou como objeto da geografia “espaço
geográfico”.

Figuras 1 e 2: Mapas mentais dos alunos da Terra Indígena


Igarapé Lage

Autor: Nilson Oro Waram Autora: Sueli Oro Nao’


Fonte: Trabalho de campo (2017)
Acervo: Agna Maria Souza Coelho

Ressalta que,“não estando mais num Universo meramente físico,


o homem vive em um universo simbólico” (CASSIRER, 2012, p. 48),
assim, enquanto o aluno usa o símbolo do arco e da flecha para dar o
sentido de enfrentamento para a sobrevivência do seu povo, a aluna
retrata o símbolo da natureza como meio de sobrevivência e a casa como
um espaço de proteção.

2 O conceito reflete a noção de corpo e pessoa entre os melanésios, conforme


Strathern (2006, p. 40-41) “as pessoas são frequentemente construídas como o
lócus plural e compósito das relações que a produzem”.

100
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Deste modo, configura-se para a geografia o espaço público na


representatividade masculina e a privada na feminina, historicamente o
que dita o patriarcado como o único que pudesse ocupar, assim
representa simbolicamente o gênero como construção social, ou seja,
“existe uma construção cultural dos papéis femininos a serem
desempenhado socialmente, por meio da qual são alimentados
determinados padrões de conduta” (SILVA, NABOZNY; ORNAT, 2011,
p. 30) que são culturalmente repassados às sucessivas gerações.
Identificamos neste mesmo mapa mental a percepção do aluno,
sobre seus direitos adquiridos pela CF/88 do art. 216 que versa sobre o
reconhecimento aos povos indígenas quanto à “sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. De acordo com os critérios
de análise de Kozel, temos a especificidade da localização da TIIL, o arco
e flecha como indicativos de defesa e proteção do território no
sentimento de pertencimento do alunos, com isso as representações
demonstram os conteúdos geográficos, vez que:

A geografia faz parte dos saberes indispensáveis a toda


sociedade. As necessidades às quais responde não mudam
fundamentalmente assim que se torna científica. Trata-se
sempre de se orientar, de localizar as observações e de
acumular informações pertinentes sobre os lugares destacados
(CLAVAL, 2011, p. 51).

A presença de elementos humanos retrata as questões étnicas no


interior de um mesmo território presentes na Figura 2 da aluna, o que
demonsta a familiaridade, de acordo com Claval (2001), de modo que
evidencia a convivência em sala de aula harmonicamente entre os clãs.
Em ambas as Figuras constatamos o artesanato como item de trabalho,
dentre eles o paneiro, que perpassa a preocupação da aluna com a
sobrevivência, bem como vemos na Figura 2 a interconexão entre
temporalidades distintas, ou seja, como marcas existentes na paisagem

101
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

“através de suas formas, criadas em momentos históricos diferentes,


porém coexistindo no momento atual” (SANTOS, 1997, p. 84).
São as percepções da aluna indígena daquilo que viu ao longo do
tempo até os dias atuais o que mostra que os papéis sociais se diferenciam
na medida que representam seus marcos territoriais. Ambas as Figuras
ressaltam a identidade cultural, mas de maneiras diferentes, em que a
complexidade das relações sociais são intensificadas e complementares.
Na Figura 3 constatamos o sentimento de pertencimento da
aluna fortalecido na representação do indígena e do artesanato como
item de trabalho ligados à satisfação em atuar livremente em seu
território. Na Figura 4 o aluno expressa sua satisfação e implicitamente
o interesse pelos estudos, o que hoje é motivo de debate em âmbito
nacional. Os símbolos e significados ligados ao espaço vivido integram
as relações de gênero instituídas por meio das ações sociais num espaço-
tempo.
Nas representações (Figuras 3 e 4) evidenciam-se a música. A
música e o canto aumentam o alcance da mensagem e a sua carga de
emotividade. Em algumas populações, o tam-tam codificado dos
tambores transmite as notícias à distância, conforme aponta Claval
(2001, p. 67). Esta representa entre os indígenas, algo muito mais que
satisfação pessoal, pois por ser construída em notas e versos, a música se
constitui num elemento capaz de transmitir o pertencimento de diversas
maneiras, além do mais nessa técnica se concentra o ato da repetição,
muito utilizada entre eles, tanto para expressão dos sentimentos quanto
para a memória. As propriedades rítmicas da língua são utilizadas como
contribuição à memória: o que se exprime em versos, retém-se melhor
(CLAVAL, 2001, p. 84). O que representa a técnica da tradição oral
indígena.

102
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Figuras 3 e 4: Mapas mentais

Autora: Silmara Oro Waram Xiyein


Autor: Geovano Oro Mom
Fonte: Trabalho de campo (2017)
Acervo: Agna Maria Souza Coelho

Novamente vemos a semelhança entre as representações das


Figuras 3 e 4 com as das Figuras 5 e 6. No caso da Figura 5 elaborada pelo
aluno tem-se o artesanato para trabalho, em que pai e filho seguem em
direção de produzir os meios para sobrevivência. Está perceptível os
cuidados com a terra e a educação familiar contidas nesta
representatividade.
Na Figura 6 produzida pela aluna vemos os artesanatos, como
força de trabalho sendo trabalhados pelo professor em sala de aula, o que
aponta como marcadores territoriais desenvolvidos na educação escolar,
embora a escola um demarcador territorial 3, porém o ambiente propicia
trabalhar elementos culturais, de modo que para a aluna o artesanato
não é somente para trabalho, mas também serve para realçar a beleza
indígena através dos adornos tão marcantes na figura feminina.

3 Isto é, aquele que é produzido a partir de ações externas para dentro das
territorialidades (Almeida Silva, 2010).

103
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Figuras 5 e 6: Mapas mentais

Autor: Gerliandro Oro Waram


Autora: Julia Oro Waram
Fonte: Trabalho de campo (2017)
Acervo: Agna Maria Souza Coelho

Na Figura 7 o artesanato também aparece, assim como nas


Figuras anteriores, todavia, nela se faz presente dois itens pertencente à
sociedade envolvente, no caso a faca e o campo de futebol. Isto remete à
aproximação com outra cultura, bem como uma adoção da prática
esportiva, o que podemos designar com um processo de hibridização. É
perceptível, com isso, compreendermos os traços históricos como
elemento representativo na vida do coletivo indígena.

Figura 7: Mapa mental

Autor: Vanderson Oro Waram


Fonte: Trabalho de campo (2017)
Acervo: Agna Maria Souza Coelho

104
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Neste sentido é importante destacar o papel das representações


para os povos indígenas, as quais estão ancoradas na memória e nos
valores construídos e vividos em seu processo de construção de
identidades, conforme descrito por Almeida Silva (2010, p. 29):

[...] as coletividades indígenas não negam o processo histórico,


mas tentam conter a ameaça de acontecimentos que possam
desestabilizá-los cosmogonicamente. Os coletivos indígenas
autônomos, principalmente procuram o distanciamento em
relação à sociedade envolvente, enquanto os “conquistados” se
apoiam na cosmogonia com vista a permanência de sua cultura
e valores construídos ancestralmente.

Na análise das expressões do gênero masculino e feminino nos


marcadores territoriais através da leitura dos mapas mentais dos alunos
do último ano do Ensino Fundamental II da Escola Wem Kanum Oro
Waram na Terra indígena Igarapé Lage, consideramos a ciência
geográfica como campos do saber, nos quais, as relações proporcionam
sentido à suas vidas no passado, presente e futuro:

A geografia parte de procedimentos simples e que fazem parte


da vida diária: orientar-se, localizar os fenômenos observados,
representá-los e regionalizá-los (ou seja, classificá-los, como
fazem todas as disciplinas científicas, mas levando em
consideração aqui uma condição especial: os fenômenos
observados devem ser contíguos para serem organizados numa
mesma categoria). Os homens conquistaram e moldaram a
terra alterando suas paisagens e as distribuições de fenômenos
que são observados. Tentam ver como os povos transformam
os ambientes naturais em contextos de vida que lhes permitem
ao mesmo tempo produzir o que necessitam, desenvolver redes
de relações e dar um sentido ao seu destino (CLAVAL, 2011. p.
20).

As ações de homens e mulheres são dinâmicas e ora se


assemelham e ora se diferenciam e os colaboradores e colaboradoras da
pesquisa são unidos na manutenção de seus valores culturais, éticos,
sociais, culturais e coletivos, pois como afirma Arendt (1985, p. 24) “o

105
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo e


existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido”.

ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

Os marcadores territoriais dos alunos e alunas revelam os


aspectos do pertencimento fortalecidos na identidade. A
representatividade indígena e identidade cultural na fronteira
Brasil/Bolívia se diferencia na visão da construção do espaço. Os estudos
geográficos do espaço público aparece representado pelos alunos, sendo
que; as alunas representam o espaço privado, o que caracteriza os dois
espaços como construções sociais que são reafirmadas na leitura das
representações dos mapas mentais.
Os padrões de conduta são permeados de simbologias, que no
cotidiano indígena é pautado na ancestralidade e na coletividade. Os
fatores diferenciadores dos gêneros dos estudantes do último ano do
Ensino Fundamental da Escola Wem Kanum Oro Waram na Terra
Indígena Igarapé Lage se expressam com características individuais, que
são carregadas de marcas do coletivo.
Os símbolos pessoais representados na atividade 1, como
práticas realizadas na aldeia em momento de “ócio”, tem a pintura
corporal, representação coletiva da proteção espiritual representada nos
dois gêneros. O artesanato, item de força de trabalho aponta a
preocupação com a sobrevivência do modo indígena de viver e de se
apresentar e representar.
O elemento da cultura dominante representado pelo campo de
futebol, mostra a aproximação cultural entre esses povos, o que neste
caso não fragmenta o pertencimento, uma vez que o aluno deixa explícito
no mesmo mapa sua força de trabalho advinda da ancestralidade
presente no artesanato. Outro elemento da sociedade envolvente é a
escola, que resulta de uma imposição ao indígena, que por sua vez
reconhece que é preciso se apropriar do saber da cultura dominante para

106
ALMEIDA SILVA (ORG.)

garantia de seus direitos e prosseguir na obteção de conquistas no


combate dos entraves no entorno.
Os símbolos pessoais representados na atividade 2, como
conteúdos aprendidos na disciplina Cultura do Povo, informam o
conhecimento dos direitos territoriais adquiridos, bem como o dever de
defender as terras que tradicionalmente ocupam, com isso são
representados pelo arco e flecha. A representação de várias etnias dentro
de um mesmo território, o que interfere diretamente na organização
social indígena registra aspectos identitários de cada subgrupo. A música
representa a intensidade da língua dentro do território, pois todas as
letras são em língua materna, o que fortalece a identidade nos dois
gêneros.
O artesanato também faz parte do conteúdo ministrado pelo
professor, e como a representação é de um item de trabalho, vemos o
ensino de como lidar com a terra, com o plantio e os ensinamentos
provenientes da educação familiar; na ocasião em que pai e filho se
direcionam à roça, fica claro os ensinamentos repassados de geração à
geração quanto à sobrevivência. A historicidade também é representada,
na ocasião em que o homem branco, com suas armas de ataque, atinge o
indígena, com isso evidencia o quanto o passado opressor do inimigo
ainda se faz presente no cotidiano dos povos originários.

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110
A ETNOCIÊNCIA, A CIÊNCIA E ENFOQUE DE GÊNERO NA
PERSPECTIVA DAS INDÍGENAS DA FRONTEIRA BRASIL, PERU E
BOLÍVIA1
Alessandra Severino da Silva Manchinery
Adnilson de Almeida Silva

O trabalho aponta como resultado, ainda que parciais, para a


reflexão apoiada em experiências de vida e de lutas, em revisões
bibliográficas, e encontros específicos da temática sobre a percepção das
mulheres indígenas sobre o enfoque de etnociência e ciência. O objetivo
principal é o de demonstrar os diálogos de representatividade dessas
mulheres que vivem na fronteira trinacional Brasil, Peru e Bolívia,
especificamente em coletividades dos povos originários nas cidades de
Assis Brasil (Acre), de Bolpebra (Bolívia), e Departamento de Madre
Dios (Peru).
O caminhar metodológico consiste no fragmento angular de
nossas reflexões, a teoria dialógica do discurso, ou seja, a oralidade e a
observação participante. A reflexão situa-se na esfera do discurso de
mulheres indígenas, proveniente dos registros, diálogos e da descrição
dos gêneros, produzidos nas atividades enunciadas durante debates e em
encontros, os quais elas participaram, de modo que emerge durante o
processo da transmissão oral de técnicas e etnossaberes compartalhidos
no cotidiano, bem como nos momentos da transmissão para outras
gerações.
Destarte, o etnoconhecimento e/ou a Etnociência, possibilita-
nos examinar os termos da língua materna/indígena de uma cultura
usados para designar um conjunto ou categoria de objetos no mundo e
que são capazes de serem definidas formalmente, tais como: plantas,

1 Publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional de Geógrafos, em 2018, com o


título: A etnociência e a ciência como enfoque de gênero: o caso de mulheres na
Tríplice Fronteira Brasil, Peru e Bolívia.

111
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

animais, doenças ou mesmo o parentesco. Assim, é possível engrandecer


o debate sobre o problema da relação recíproca estabelecida entre as
bases, a materialidade discursiva e as experiências de vida, bem como a
relação entre essas instâncias, as quais revelam fragmentos da vida
cotidiana de populações indígenas, em especial as mulheres.
Para tanto, o trabalho é composto das seguintes seções: a)
Mulheres indígenas e a Etnociência, em que é ressaltada a importância
da contribuição da mulheres na construção da etnociência indígena; b)
Mulheres indígenas e a questão de gênero, que busca explicitar como elas
compreendem a questão de gênero na construção do saber e sua
importância para desconstruir argumentos preconceituosos; c) Lutas
feministas e resistências, por intermédio dos seus discursos que apontam
para o modo de vida, suas lutas, reivindicações e resistências enquanto
mulher indígena.
As mulheres embora estejam em todos os momentos da vida de
determinada sociedade, e na construção de determinados saberes e
ideologias conjuntamente com o sexo masculino, seu poder de decisão é
quase que oculto ou não reconhecido. Contudo aqui evocamos um
pouco de sua construção enquanto mulher, mesmo sem estrutura de voz
ativa, e algumas vezes sem redes de apoio.

MULHERES INDÍGENAS E A ETNOCIÊNCIA

O estudo sobre mulheres indígenas ainda são poucos abordados,


principalmente em relação aos livros didáticos, construção de saberes,
construção das ciências e uma série de questões que envolvem o gênero
feminino como decisão primária para liderar e decidir, porquê estamos
sujeitas diariamente ao combate do feminismo indígena, de modo que há
um apagamento quase que total de suas ações. Porém, a cada dia, elas
estão mais ativas na defesa e pelo cumprimento de seus direitos políticos,
sociais, econômicos, culturais; coletivos e individuais, de modo que sua
luta consiste no desafio às estruturas de poder; para a transformação
social com equidade de gênero.

112
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Assim, como considera a primeira autora do presente trabalho,


nos tornamos cada vez mais participantes nos diferentes espaços
políticos em busca da igualdade de condições; mulheres feministas e
indígenas se reúnem para questionar e combater criticamente o
colonialismo, o patriarcado, o capitalismo, para acabar com as
desigualdades, com as práticas de violência, impunidade, discriminação,
negação, invisibilidade, repressão, perseguição e violação dos Direitos
Humanos. Com isso, as mulheres se constroem na luta, criam pontes para
o empoderamento feminino individual e coletivo.
No que tange à Etnociência, entendemos como uma abordagem
antropológica usada em pesquisas sobre diferenças culturais e consiste na
exploração das divergências qualitativas na percepção de diferentes
coletividades étnicas. O caminho metodológico consiste em examinar os
termos da língua indígena de uma cultura usada para designar um
conjunto ou categoria de objetos no mundo capazes de serem definidas
objetivamente, tais como: plantas, animais, doenças ou parentesco
(STURTEVANT, 1964); desenvolve assim com os produtos intelectuais
que são incorporados na linguagem dessa cultura, é desse modo que
descrevemos a ciências indígena e as mulheres.
Em outras palavras, a etnociência infere os conceitos no usuário
da linguagem do léxico que usa. Mas o que isso tem a ver com o enfoque
de gênero? Começaremos com a descrição da luta das mulheres
indígenas para entendermos esse processo, e a contribuição feminina
dentro e na ciência.
As limitações dessa abordagem são que ela é incapaz de explicar
como um sistema cultural típico – que classifica os animais ou o
parentesco – se desenvolve ou é utilizado em novas situações.
As mulheres indígenas vivem numa época marcada pela perda de
seus territórios ancestrais/tradicionais, pela falta de visibilidade assim
como ocorreram em outros períodos anteriores. Desde tempos imemoriais se
luta pelo viver bem, no meio de uma sociedade que, em sua maioria é
incapaz de se colocar no lugar do outro. Para que as pessoas possam

113
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

entender o quanto as mulheres indígenas são importantes, elas


contribuíram imensamente no processo histórico e de constituição do
próprio território e povo brasileiro, na formação e construção das aldeias,
contribuíram e contribuem na construção das cidades, nas ciências, nos
etnossaberes, nas políticas e diversas outras ações. Por isso a necessidade
de descrevê-las e valorizá-las em seu processo de empoderamento.
Em entrevista concedida em 2018, Jaime Lulhu Manchineri
afirmou que as mulheres são fundamentais nas tomadas de decisões dos
homens nas aldeias, visto que contribuem no fortalecimento de toda a
estrutura construída nas coletividades; bem como o ensinamento dos
filhos(as), o plantio dos roçados as festividades e os modos como se
organizam coletivamente.
Afirmações assim são relevantes, pois mostram como as
mulheres em sentido geral são em parte o fundamento de qualquer
construção, por isso estão na luta, com finalidade de sair do poderio e do
domínio patriarcal. Alessandra Manchinery apresenta seu relato pessoal
sobre a relevância dos etnossaberes e das experiências vividas e
retratadas por sua avó:

Lembrando os anos de 1995 a 1999, minha avó foi indígena


caucheira (caucho) em sua juventude, além do mais era
curandeira dentro e fora da aldeia, conhecia as plantas sagradas
medicinais, além de plantar algodão o ano inteiro e fiar para as
confecções de rede. Ela defumava minha irmã toda, e prendia
sua cabeça com as mãos, soprava a fumaça no corpo, chupava
onde tinha os males e depois cuspia fora. Também ela fazia chá,
que eu nunca soube ao certo para que servia, que nos bebíamos,
ela não gostava que comêssemos asa da galinha porque
segundo ela, quando engravidássemos e fossemos parir, nos
iriamos bater a asa igual a galinha quando tá brava. Durante o
período que viveu em Rio Branco, ela sempre era procurada,
como a índia que rezava e não cobrava nada; aprendeu o
português, mas nunca falou em português, e quem quisesse
ouvir as histórias dela que tivesse um intérprete. Sempre dizia
que aprendeu tudo na aldeia que ensinou para ela foi seu
marido.

114
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Nessas lutas de resistência e “rebelião/revelação femininas”,


mostramos a luta de mulheres indígenas, dos quais libertam a si próprias
e outras mulheres, com isso propõem novos paradigmas, especialmente,
como alternativa que se contrapõem ao modelo de aumento e
desenvolvimento do capital. Visto que isso afeta tanto os conhecimentos
ancestrais/tradicionais como perpetuação das culturas no interior das
coletividades indígenas e também no modo como são transferidos os
ensinamentos para as gerações seguintes.
Ao se transformarem em uma organização de mulheres, acabam
por promoverem novas estratégias de resistência, assim tanto as
coletividades locais como as próprias mulheres se solidificam e
constituem-se em modelos de articulação e solidariedade, redes de apoio
emergentes para outras do gênero, e fazem com que muitas que estavam
à margem, também se (re)insiram na organização.
Sobre essas redes de apoio, durante o Encontro de Mulheres
Indígenas no estado do Acre realizado em 2017 percebemos as
lideranças femininas questionarem criticamente o papel do Estado e suas
políticas que criminalizaram e criminalizam as várias lutas pela
autonomia e autodeterminação dos povos originários, sistematicamente
elas também são redes de apoio dos homens indígenas, já que também
lutam dentro e fora das aldeias e em todas as instâncias que são negados
os seus direitos.
Suas vozes e representatividades se mostram muito importante
para o debate empoderador no quesito feminino. Assim, elas lutam contra
o retrocesso de seus direitos nos espaços nos debates e reivindicam mais
e maior participação sobre as questões indígenas.
No que tange a importância da ciência indígena para o gênero
feminino tem todo um contexto histórico de relação de aprendizagem.
As mulheres começam a aprender desde crianças quem elas são e o que
é ciência indígena, para assim instruirem-se e repassarem técnicas às
sucessivas gerações. Neste sentido, expressou-se em 2018 a indígena
Maria Rosangela Arara, moradora na cidade de Assis Brasil-AC:

115
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

“Quando eu era criança aprendíamos toda uma técnica para pescar e


assim sobreviver quando os adultos não estivessem presentes, a gente
não passava fome”.
A questão de aprender sobre as ciências indígenas também é uma
questão de sobrevivência, aprender é necessário, é imprescíndivel, pois é
dessa compreensão que se tira os ensinamentos para a vida da atual e das
gerações futuras, ou seja, é o entendimento dos códigos, significados,
representações e expressões que permitirá, inclusive, a permanência e
pertinência dos valores culturais, espirituais, sociais, organizacionais e
afetivos de um povo. Para tanto, elaboramos um fluxograma explicativo
(Figura 1) com a finalidade de melhor visualizar como ocorre essa
relação a partir da percepção da mulher indígena.

Figura 1: Fluxograma de aprendizagem feminina nas ciências indígenas

Fonte: Organizado por Manchinery (2018)

116
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Conforme o fluxograma a transmissão de saberes do gênero


feminino indígena, acontece primeiro com o que as lideranças chamam
de biblioteca viva ou museu vivo (as avós, as pajés, e as cacicas), pois dão
o embasamento em toda a estrutura de etnossaberes e
etnoconhecimentos no interior de determinado povo mediante sua
realidade e necessidade.
Por sua vez, as mães atuam como interlocutoras no processo de
intercâmbio entre as distintas gerações. Por fim, as filhas que são
aprendizes, mas que com o passar dos anos reiterarão a seus
descendentes, de modo que isso se constitui um ciclo ou um retorno de
ensinamento dos etnossaberes e etnoconhecimentos.

MULHERES INDÍGENAS E A QUESTÃO DE GÊNERO

A presente visa explanar como as mulheres indígenas


veem/compreendem a questão de gênero na construção do saber e sua
importância para desconstruir argumentos preconceituosos. Neste
sentido, é que abordaremos sobre a experiência de vida de Alessandra
Manchinery como fonte de informação como acesso ou pontes pontes a
outros discursos de mulheres e lideranças originárias. Assim temos o
seguinte relato:

No ano de 1998, com apenas 14 anos, sou levada para residir


na cidade de Brasília/DF, além disso também fui estudar e fazer
parte do movimento indígena da época, e como diz meu pai
precisava aprender e viver. Aprender e viver outros modos de
vida e de conhecimento, com isso estaria eu a geografizar
outras culturas e sociedades. Estaria ali a aprender outras
perspectivas sobre a questão de gênero. Recordo-me que na
primeira manifestação que participei foi em relação ao pedido
à Justiça pela morte do Indígena Galdino Pataxó, que tinha sido
queimado vivo enquanto dormia numa parada de ônibus no
Distrito Federal. E a coisa mais emblemática é que naquele ano
as mulheres indígenas não poderiam estar à frente das
manifestações, isso era coisa de homens, embora muitas
mulheres de outros povos estavam presentes no momento
clamando por justiça; o poder de voz feminino era abafado.

117
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Assim discorramos sobre outros fatos, como o poder de voz dos


irmãos homens mais velhos sobre nós mulheres em alguns
casos como autoritarismo, como ensinamento do patriarcado,
e digo alguns casos porque não são todos, mas que há uma
predominância, isso de certeza tem. Com raridade vemos
homens a ensinarem seus filhos homens a dividirem os
trabalhos domésticos com suas irmãs, e com raridade
presenciamos os homens a ensinarem seus filhos a respeitarem
uma mulher, e com mais raridade ainda vemos os homens
destacarem e darem relevância ao processo empoderador e de
liberdade das mulheres. E assim vamos evocar outas vozes para
melhor entendermos essas relações.

Durante o I Encontro de Mulheres Indígenas do Estado do Acre,


Maria Shipibo em entrevista em 2017, ressaltou a importância de sua
participação no âmbito de seu país (Peru), disse que elas precisam ajudar
os homens, precisam que as mulheres ocupem seus espaços, porque elas
trabalham, e estão também no trabalho para a gestão de seus territórios
ancestrais/tradicionais, na preservação de seus alimentos e estão cada
vez mais ativas e presente nos espaços de debates.
Outra entrevistada em 2017, Alcimara Mayoruna, que também
esteve presente naquela Encontro agradeceu pelo convite que lhe
fizeram, pois era a primeira vez que saía de sua aldeia para falar sobre sua
experiência de vida para outras mulheres indígenas, assim ela afirmou
que:

Se sentiu grande e bem, pois estava ali para falar sobre sua
cultura e sua medicina e como era importante os seus
ensinamentos. Lembrou ainda que é importante a participação
de todo mundo. Ademais posso garantir que muitas mulheres
que moram nas aldeias desconhecem sobre o conceito de
gênero, mas isso vai depender do grau de contato de cada povo
e de região. Muitas delas falam sobre a importância da
segurança alimentar dentro e fora das aldeias, bem como
destacar seus trabalhos com um assunto que atingem alguns
dos territórios indígenas no Brasil e que pode em um futuro
distante atingir as mulheres na fronteira trinacional, prevenir é
relevante. Lembro que muitos países da América do Sul ainda

118
ALMEIDA SILVA (ORG.)

não há assistência dos Estados para as mulheres rurais e


indígenas, não é o caso do Brasil.

Para além das informações presentes no discurso dela, porém


continuamos na invisibilidade, sofremos com o feminicídio, a violência
física e emocional. É difícil falar sobre a violência contra mulheres
indígenas, por ser um tema complexo e os debates quase não entram na
esfera das aldeias. No entanto, Maria Rosângela afirmou-nos em
entrevista em 2018, que “anos atrás houve um ‘parente’ que bateu na
mulher dele, e ela fez a denúncia na Polícia Federal, e ele nunca mais
espancou sua esposa”.
Grandes mulheres têm se levantado em prol e na defesa dos
direitos femininos, porque muitas desconhecem de seus direitos; muitas
delas não sabem que podem denunciar e que podem serem ouvidas.
Na saúde por exemplo, tem mulheres se levantado como técnicas
de enfermagem, agentes de saúde e agente de endemias. Embora nessa
área não se trabalhe questões de gênero com as mulheres indígenas, elas
se manifestam nas reuniões e nos conselhos deliberativos para a
melhoria de seu povo e de sua coletividade. As Figuras 2 e 3 apresentam
os momentos de participação das mulheres indígenas e suas
reivindicações por direitos iguais.

Figura 1: Reunião sobre saúde indígena: Mulher Manchineri

Fonte: Manchinery (2018)

119
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Figura 2: Filha de Jaminawa com Manchineri. Umas das poucas que


participam de reuniões

Fonte: Manchinery (2018)

LUTAS FEMINISTAS E RESISTÊNCIAS

As lutas femininas são algo quase incomum no “mundo


moderno” e alguns consideram quebrar tabu. Se considerarmos a luta e
resistência delas veremos que “ninguém” ou quase ninguém olha uma
história e ver a mulher como processo construtor de histórias, como
processo construído, como processo fundador e como processo decisivo
para construir-realizar paradigmas de sua própria realidade.
As lutas das mulheres são diárias e constantes. Elas não nascem
informadas, no entanto, criam e adquirem informações em prol de si e
dos coletivos. Mas que informações são essas? Estas encontram-se
relacionadas à acessibilidade, direito e saúde da mulher, bem como
questões que dizem respeito à violência contra esse gênero.
Mulheres diariamente sofrem com problemas associados com a
violência, seja sistêmica, física, econômica, patrimonial, psicológica,
sexual, simbólica, e por sua vez, problemas vivos e associados com

120
ALMEIDA SILVA (ORG.)

racismo e classismo, e que se estendem além de todas as fronteiras e


dimensões espaciais. O machismo e androcentrismo – que nos reduz ao
mínimo e nem ao menos nos considerar como parte integrante de
determinadas sociedades – flagelo e opressão amplamente presente em
espaços públicos e privados que são acentuados como resultado do
processo histórico, o qual se reproduz e aprofunda por meio de políticas
públicas e meios de comunicação que servem aos interesses dominantes
dos homens.
No atual modelo da/na América do Sul, em muitos casos são as
mulheres indígenas que devem assumir as responsabilidades do lar e da
família, e podemos afirmar não somente as indígenas, mas em contexto
geral, isso é um caso global. Em muitas situações elas são marginalizadas e
reduzidas ao espaço privado da casa, na criação de filhos e sobre tutela
em maior parte do patriarcado. Apesar disso, seu papel não é passivo,
nem indiferente, pelo contrário assume cada vez mais a urgência de
participar de espaços coletivos de organização política e sociais para a
defesa de seus direitos e de seus filhos(as).
No Acre, por exemplo, existe um conjunto de mulheres que se
tornaram chefes de suas famílias, seja, pela perda precoce do marido
e o u m e s m o p e l o abandono paternal. Neste sentido, Soleane
Manchineri, nos relatou em 2018, como é ser chefe de família aos 32
anos.

Sou mulher, mãe, e estudante indígena. Vencer as barreiras


sociais não é fácil tendo uma sociedade machista e às vezes
intolerante. É preciso ter coragem de romper com os limites
impostos pelas sociedades já que esses limites não foram
postos pela minha pessoa. Meu objetivo é superar casa
empecilho que há em meu caminho. Não é fácil, pois e como se
tivéssemos que somos capazes de tantas coisas que são bem
obvias para a pessoas.

Sua afirmativa nos remete a Bourdieu (1989), o qual considera


que a classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos
princípios de hierarquização: as frações dominantes, cujo poder assenta

121
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

no capital econômico, de modo que visa impor a legitimidade da sua


dominação quer pode ser por meio da própria produção simbólica, quer
por aspectos ideológicos conservadores que verdadeiramente só servem
os interesses dos dominantes por acréscimo, assim ameaça sempre em
desviar em seu proveito o poder de definição do mundo social que detêm
por delegação; fracção dominada (letrados ou intelectuais e artistas,
segundo à época) tende sempre a colocar o capital específico a que ele
deve a sua posição, no topo da hierarquia dos princípios da
hierarquização.
Entendemos que a questão de classe dominante se estende e
abraça conservadores homens, que tentam manter por todos os meios o
poder de definição sobre as mulheres, de modo a reduzi-lás ao pó e à
invisibilidade. Otilia Lux Maya-Quiché2 educadora e política, uma
referência latino-americana sobre ativismo e defesa dos direitos
humanos com ênfase nos direitos das mulheres comentou sobre as
indígenas em todo o mundo:

Na América Latina as mulheres indígenas têm uma situação


muito preocupante: muitas mulheres indígenas fazem parte
dos indicadores do Subdesenvolvimento no campo
educacional. Muitas mulheres indígenas rurais são analfabetas,
outros com muito baixa escolaridade e sobre a mesma, existe a
morte materna e infantil maneira refletida por mulheres
indígenas e rurais, onde os serviços básicos não estão ao
alcance porque os sistemas do governo negligenciam as áreas
onde vivem. Isso afeta as crianças dos Povos Indígenas, pois são
as mães que são as doadoras de vida, cultura, valores e
princípios e as crianças são muito próximas do que é a mulher
indígena.

2 Foi integrante do Comitê de Credenciamento Histórico que investigou


violações de direitos humanos durante a Guerra Civil da Guatemala (1960-
1986). Foi ministra da cultura e do esporte sob o presidente Portillo e integrante
do Fórum Permanente para os Povos Indígenas das Nações Unidas, bem como
de 2004 a 2007 pertenceu ao corpo executivo da Unesco.

122
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Em trabalho de campo, no ano de 2018, na Terra Indígena


Cabeceira do Acre, entrevistamos Maria Monteza Manchineri, a qual se
expressou: “Quero que minha filha estude, não quero que ela fique
parada, sem saber ler como eu, as crianças daqui precisam todas
aprenderem a ler, precisam estudar, e assim escrever sobre nossa
cultura”.
O analfabetismo não é predominante entre os Manchineri, esse
caso é bem especifico, na verdade foi uma denúncia feita contra
professores que não trabalhavam e por isso se manifestavam devido às
condições precárias das escolas indígenas nas aldeias. Maria Monteza
Manchineri foi a única mulher daquela aldeia se que pronunciou sobre a
situação descrita. Embora muitos não queiram ouvir, as mulheres indígenas
levantam os problemas, fazem valer suas vozes, as queixas, e, reafirmam
demandas para garantia de seus direitos.
O poder de voz feminino tem que valer, precisam-se tirá-las da
invisibilidade; precisam-ser dado credito a esse projeto empoderador
que visa à equidade entre gênero, visto que as mulheres indígenas
contribuem em muito para a organização e o desenvolvimento de suas
coletividades nas aldeias e ainda na área urbana.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos o que foi discutido no texto sobre as mulheres


como um continuum de um processo construtivo social, que propicia a
formação como ser/pessoa modelador de ideologias, de lutas, mesmo
que em alguns casos elas sejam impedidas de se manifestarem.
Quantas mulheres não indígenas não tentaram
denunciar/denunciaram seu opressor? Restaram-lhe o assassintato. Nas
coletividades indígenas não lembramos de ter encontrado nenhum caso
feminicídio praticado por seus maridos ou parceiros, no entanto,
conhecemos situações de agressões físicas, ao que tudo indica como
modo de oprimir simbólica e psicologicamente.

123
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Os assassinatos de mulheres indígenas, especialmente


lideranças, foram executadas por homens da sociedade envolvente. A
violência sobre as indígenas é tão forte, tanto internamente por seus
parceiros, quanto pela sociedade externa, em que esta muitas vezes
veem-nas como um objeto exótico sexualizado e que ao alcance de suas
vontades libidinosas. Às vezes nos perguntamos as razões de em muitas
das culturas indígenas os homens podem ter mais de duas mulheres? e as
mulheres caciques não? Isso é emblemático!!
Não defendemos aqui que as mulheres caciques devem ter dois,
três ou mais maridos. O que questionamos e defendemos aqui são os
nossos direitos e a liberdade de de dizer “o que eu quero e o que eu não
aceito”. Alguns vão afirmar que isso é cultura, outros considerarão que é
para aumentar a população indígena. Será que os homens já pararam
para pensar ou se perguntar, o que pensam as mulheres?
Por fim, entendemos que é preciso discutir modos de
comunicação entre nós mulheres indígenas, pois nosso empoderamento
deve ser sempre coletivo, devemos ser uma rede de apoio em conjunto e
apoiar àquelas que estão desamparadas e assim criar planos específicos
de políticas voltadas a esse segmento originário a partir de suas
especificidades, percepções e realidades, com vista à equidade de gênero,
o que implica em reconhecimento, respeito e visibilidade.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio


de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

CPI-ACRE. I Encontro de Mulheres Indígenas do Estado do Acre. Rio


Branco, 2017. Disponível em: http://cpiacre.org.br/encontro-de-
mulheres-indigenas-no-acre/.

MANCHINERI, J.L. Entrevista. Aldeia Nova União - Terra Indígena


Cabeceira do Acre, 2018.

124
ALMEIDA SILVA (ORG.)

MANCHINERI, M.M. Entrevista. Terra Indígena Cabeceira do Acre,


2018.

MANCHINERI, M.R. Entrevista. Terra Indígena Cabeceira do Acre,


2018.

MANCHINERI, S.S.B. Entrevista. Rio Branco, 2018.

MANCHINERY, A.S.S.; ALMEIDA SILVA, A. A etnociência e a ciência


como enfoque de gênero: o caso de mulheres na Tríplice Fronteira Brasil,
Peru e Bolívia. In: Anais do XIX Encontro Nacional de Geógrafos - Eng.
João Pessoa: UFPB, 2018, p. 1-13. Disponível em:
www.eng2018.agb.org.br/resources/anais/8/1532544996_ARQUIVO_
ArtigocompletoENG201823.07.2018.pdf. Acesso em: 15 nov. 2020.

MAYORUNA, A. Entrevista. I Encontro de Mulheres Indígenas no


Estado do Acre. Rio Branco, 2017.

SHIPIBO, M. Entrevista. I Encontro de Mulheres Indígenas no Estado do


Acre. Rio Branco, 2017.

STURTEVANT, W.C. Studies in Ethnoscience. American Anthropologist.


V. 66, n. 3, june/1964, p. 99-131. Disponível em:
https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1525/aa.19
64.66.3.02a00850. Acesso em: 10 nov. 2017.

YOUTUBE. Otilia Lux de Coti - Mujeres indígenas en Guatemala.


Disponível em www.youtube.com/watch?v=W4AOti1j92M. Acesso
em: 22 jun. 2018.

YOUTUBE. Mujeres indígenas en LAC: desafíos urgentes. Disponível


em: www.youtube.com/watch?v=Y78IYyLPnCQ. Acesso em: 22 jun.
2018.

YOUTUBE. UNFPA América Latina y el Caribe. Disponível em:


www.youtube.com/channel/UCx_lf6zVMo0QJRW9BFI2-oA. Acesso
em: 22 jun. 2018.

125
A TAPYIA AMONDAWA E SUAS REPRESENTAÇÕES
SIMBÓLICAS: A AFEIÇÃO PELO LUGAR 1

Cristiane de Almeida Anastassioy


Emílio Sarde Neto
Adnilson de Almeida Silva

O presente capítulo pretende discutir as representações


simbólicas da tapyia (casa) para o povo indígena Amondawa, por meio
de uma abordagem interdisciplinar (Geografia Cultural, Linguística e
Filosofia), com isso busca aprofundar e/ou confirmar os estudos
relacionados, especificamente aos “marcadores territoriais”, propostos
por Almeida Silva (2010). Os fragmentos textuais utilizados neste
trabalho foram coletados no banco de dados do Grupo de Pesquisa em
Línguas e Culturas Indígenas, Centro de Estudos da Linguagem, da
Universidade Federal de Rondônia.
Cada povo tem sua identidade fundada na própria língua, no
território, nos valores espirituais e culturais e organização social. Além
disso, têm maneiras próprias de ensino e aprendizagem, baseadas na
tradição oral do saber coletivo e dos saberes individuais. O conjunto
desses fatores possibilita que a organização sociocultural do povo
indígena seja distinta daquela verificada na sociedade envolvente. Eis aí
a Diversidade Cultural.
Deste modo, o conhecimento das línguas indígenas, e, por meio
delas, a experiência, a vivência e o conhecimento acumulados pelos
povos que as falam é de valor cultural e social inestimáveis, o que torna
factível uma abordagem interdisciplinar, cujo conteúdo entrelaça-se na
perspectiva da linguagem simbólica.
Os Amondawa vivem na região central de Rondônia, na Terra
Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. A língua está classificada no Tronco Tupi,

1Publicado com o título “Tapyia Amondawa: uma abordagem interdisciplinar


sobre as representações simbólicas”, nos Anais do Semiedu, em 2012.

126
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Família Tupi-Guarani, Grupo Tupi Kawahib. Os últimos dados


estatísticos populacionais da SIASI/SESAI apontavam que em 2014
havia 126 pessoas nesse coletivo indígenas, todas falantes de sua língua
materna e também se comunicavam em português. Com a implantação
da escola Amondawa crianças, adolescentes, jovens e mulheres estão em
processo de aprendizagem da escrita em língua materna. Seus primeiros
contatos com a sociedade não indígena são datados de 1981.

INTRODUÇÃO

Os Amondawa se autodenominam de Envuga 2, ou seja “os que


andam sempre no caminho do rio”. São classificados, linguisticamente,
como um grupo Tupi Kawahib, da família Tupi Guarani do Tronco Tupi 3
e na atualidade habitam a aldeia Tari Tabijara (ALMEIDA SILVA, 2010),
localizada no Posto Indígena Trincheira, Terra Indígena Uru-Eu-Wau-
Wau (TIUEWW), região central do estado de Rondônia.
A TIUEWW possui uma área de aproximadamente 18.671,178
km². Sua homologação está registrada no Cartório de Registro de
Imóveis e no Serviço de Patrimônio da União, com o Decreto Lei n. 275
de 29 de outubro de 1991, e encontra-se sob a jurisdição da Fundação
Nacional do Índio - FUNAI. Sobreposto a esta TI localiza-se o Parque
Nacional dos Pacaás Novos, administrado pelo Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade - ICMBio
(www.socioambiental.org/pi-interno/epi/urueu/loc.shtm. Acesso em:
2 jan. 2012).
Os primeiros contatos dos Amondawa com a sociedade
envolvente ocorreram por volta de 1981. Eles vivem, principalmente, da

2 Edmundo Peggion (2003, 2011) registrou que os Amondawa chamam a si


próprios de Mbo’uima’ga, o nome de um grande antepassado.
3Classificação feita, primeiramente pelos linguistas do International Linguistics
Center (SIL) e posteriormente confirmado pela linguista Wany Sampaio. Outras
referências a essa classificação encontram-se na tese de doutorado de Miguel A.
Menendez, de 1981.

127
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

caça, da coleta de castanhas, copaíba, mel e frutas. Atualmente, além de


cultivarem milho, mandioca e arroz, construíram estruturas para a
piscicultura. Como sofrem constantes invasões em seu território, os
Amondawa organizam, sempre que possível, expedições de vigilância
para protegerem seu território.
De acordo com trabalhos linguísticos feitos por Sampaio (1997),
tanto os Amondawa quanto os Uru-Eu-Wau-Wau 4, Parintintin
(autodenominados Pykahu 5) e os Tenharim são classificados como
Kawahib 6, por pertencerem ao mesmo grupo linguístico, entretanto,
falam diferentes variações da mesma língua que “não são línguas
diferentes em sua estrutura, mas sim variedades dialetais de uma única
língua” (SAMPAIO, 1996, p. 100).
Os Amondawa, assim como os Uru-Eu-Wau-Wau, organizam-se
em metades exogâmicas denominadas Mutum Nhangwera (Mutum) e os
Kanindewa (Arara), em que o casamento só é permitido entre membros
de metades distintas, em conformidade com os valores espirituais e
culturais que constituem o coletivo Kawahib, de modo que é um dos seus
“marcadores territoriais”.
O contexto sobre a problemática dos “marcadores territoriais” foi
levantado, inicialmente, por Isabel Castro Henriques, que não teorizou,
mas sim realizou algumas conjecturas, a partir de outros postulados
teóricos, inclusive com classificação hierárquica (HENRIQUES, 2004;
ALMEIDA SILVA, 2010, p. 112-113).
A discussão do tema em tela foi estudada e ampliada por Almeida
Silva (2010), que não só trabalhou com as subcategorias de “marcadores

4 Possuem duas autodenominações: a) Jupaú (os que usam jenipapo); b)


Pindobatywudjara-Gã (os que habitam nos palmeirais de babaçu Orbygnia
speciosa), conforme Almeida Silva (2010).
5O significado encontrado remete à avoante Zenaida auriculata, espécie de
pássaro que existe na região do rio Madeira (KANINDÉ, 2012).
6 Como Kawahib ou Kagwahiva (que significa nós = gente), tem-se ainda os
Jiahui e os Juma, no sul do Amazonas e os Karipuna em Rondônia.

128
ALMEIDA SILVA (ORG.)

territoriais” (vivos, simbólicos, fabricados, históricos, funcionais e


musicais), propostos por Henriques, mas também inseriu outros, como:
linguístico, cosmogônico ou mito ritualístico psíquico-espiritual,
percepto visual sensorial, estético corporal, situados como estruturantes,
e ainda os estruturadores, como aqueles realizados a partir de
interferências externas (demarcadores).
Em seu contexto, os “marcadores territoriais” são representações
simbólicas, em que a linguagem encontra-se inserida neles como um dos
mais relevantes na discussão da territorialidade, e consubstancia-se
como a característica humana que mais distingue o homem dos outros
seres. Não é de se surpreender, portanto, que o estudo da linguagem
tenha sempre despertado a curiosidade intelectual dos mais diferentes
cientistas. Neste trabalho, por exemplo, ela é abordada pela perspectiva
da Geografia Cultural, da Linguística e da Filosofia.
De acordo com o filósofo Cassirer (1997, p. 50 [1994]) em vez de
definir o homem como animal rationale, deveríamos defini-lo como
animal symbolicum, pois é através do simbolismo que o ser humano se
comunica e tem acesso à “civilização”.
Qualquer agrupamento social humano é um universo completo
de conhecimentos integrado, com fortes ligações com o meio em que se
desenvolveu. Logo, o conhecimento das línguas indígenas, e, através
delas, o conhecimento da experiência e do conhecimento acumulados
pelos povos que as falam é de valor cultural e social inestimáveis.
Assim, numa abordagem interdisciplinar (Geografia Cultural,
Linguística e Filosofia) intentamos discutir as representações simbólicas
da tapyia para o povo Amondawa, na possibilidade de aprofundar e/ou
confirmar os estudos relacionados, especificamente, aos “marcadores
territoriais” descritos por Almeida Silva (2010).

REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS

Cada povo tem sua identidade fundada na própria língua, no


território, nos valores espirituais e culturais e organização social, para

129
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

tanto, apresenta suas próprias estratégias de ensino e aprendizagem,


alicerçadas tanto na oralidade do saber coletivo quanto dos saberes
individuais. O modo de apreensão desses fatores resulta não somente na
organização sociocultural, mas, principalmente, nas relações que
comportam a visão e a experiência de mundo, o que caracteriza distintas
e valiosas culturas representadas em cada coletivo indígena.
Ao partirmos desta premissa, compreendemos que a abordagem
cultural em Geografia não consiste em apenas apreender o fato cultural
em si mesmo, mas em definir territórios reveladores de etnias e culturas
e neste sentido a linguagem é:

[...] condição sine qua non que o indivíduo carrega, se apresenta


e se representa, ou seja, ela é um “marcador territorial” de
internalidade e exterioridade pessoal e territorial, porque onde
quer que esse indivíduo caminhe estará conduzindo esse
“marcador” como algo inerente, como pertencimento [...]
(ALMEIDA SILVA, 2010, p. 147).

Outra abordagem desenvolvida em nosso trabalho refere-se ao


conceito de cultura, que na avaliação de White (1970 [1955]) apud
Laraia (2008, p. 55 [1986]), se expressa como:

[...] “todas as civilizações se espalharam e perpetuaram


somente pelo uso de símbolos [...] Toda cultura depende de
símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que cria a
cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua
perpetuação. Sem o símbolo não haveria cultura, e o homem
seria apenas animal, não um ser humano [...]. O
comportamento humano é o comportamento simbólico” [...]

Logo, se percebe que a cultura constitui-se um somatório de


experiências de vida que resulta da apreensão dos símbolos e suas
representações que possibilitam o acesso permanente de construção, no
qual o ser humano e suas coletividades se encontram com o sentido de
pertencimento, conforme afirma Almeida Silva (2010, p. 96-97):

130
ALMEIDA SILVA (ORG.)

[...] a produção dos elementos que compõem a cultura ocorre


na sociedade, como forma, representação e presentificação,
têm origens nas relações que se estabelecem coletivamente,
sendo a cultura, portanto, um fenômeno indissociavelmente
coletivo. A cultura só pode ser construída pelas diversas
experiências com a presença de diferentes elementos culturais,
que marcam sua diversidade e pode ser constatada pela
multipluralidade linguística existente na história das
sociedades e que traduzem a espacialidade dos seres humanos.
Os componentes culturais identificam determinadas
sociedades com seus sistemas educativos, incluindo-se a
oralidade como um processo que detém importantes artefatos
multiplicadores de conhecimento para as futuras gerações.

Depreende-se, a partir destes conceitos, que o ser humano vive


em um “universo simbólico”, e que a partir dele cria, recria e eterniza seu
modo de vida cultural e coletivo, o que é apresentado sinteticamente por
Claval (2001, p. 12-15), como:

[...] “mediação entre os homens e a natureza [...] é herança e


resulta do jogo da comunicação [...] é construção e permite aos
indivíduos e aos grupos se projetarem no futuro e nos aléns
variados [...] é em grande medida feita de palavras [...] articula-
se no discurso e realiza-se na representação [...] é um fator
essencial de diferenciação social [...] a paisagem carrega a
marca da cultura e serve-lhe de matriz” [...].

Nesta perspectiva, Claval (2001, p. 50) destaca ainda que as


representações devem e merecem ser estudadas pelos geógrafos, pois
elas explicam as dimensões culturais de um povo, assim como as
dimensões econômicas, sociais e políticas.
A geografia cultural, em conformidade com Amorim Filho
(2007) volta-se, principalmente, para as percepções, cognições e
representações de lugares e paisagens valorizadas individualmente ou
intersubjetivamente (Grifos nossos).
Um dos aspectos relevantes da abordagem cultural na Geografia,
além do número considerável de geógrafos que, tem produzido

131
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

pesquisas, reflexões e trabalhos identificados como pertencentes ao


campo da Geografia Cultural, é a variedade das abordagens e propostas
utilizadas por esses estudiosos, as quais se inserem manifestações,
expressões e representações de religiosidade, espiritualidade e modos de
vida, sejam de populações tradicionais (ribeirinhos, faxinalenses,
caiçaras, dentre outras) e indígenas.

DESCRIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL: TAPYIA AMONDAWA

A representação simbólica dos indígenas descritas por meio da


oralidade revela os seus anseios, devaneios, medos, experiências
socioespaciais, trajetórias e perspectivas indispensáveis ao
entendimento da cultura, da cosmogonia e dos valores concebidos na
ancestralidade, a partir de suas experiências socioespaciais (ALMEIDA
SILVA, 2010, p. 99).
Neste sentido, buscamos o entendimento da relação dos
Amondawa com o seu espaço de habitação, isto é, a tapyia. De modo que,
intentamos compreender e apreender quais representações simbólicas a
casa transmite para esse coletivo indígena, bem como identificá-la como
um importante marcador territorial linguístico, conceito este
apresentado por Almeida Silva (2010).
Para uma melhor compreensão desse espaço de habitação
Amondawa descreveremos suas características físicas, conforme relatos
de Vera da Silva (2000), que denotam não só a sua relação com o espaço,
mas também com o coletivo indígena e a sociedade envolvente.
Todos os Amondava 7 vivem em casas denominadas tapyia, cuja
organização social se baseia na descendência unilinear. A organização
corresponde ao novo formato da Aldeia Amondava, casas individuais –
são distintas daquelas do passado:

7Apesar de o povo indígena ter sido grafado com a consoante V, por Vera da
Silva (2000), neste trabalho optamos o uso do W, por ser próximo à pronúncia
utilizada pelos indígenas.

132
ALMEIDA SILVA (ORG.)

[...] antes existiam duas grandes malocas ovaladas, construídas


totalmente em palha, onde residiam os chefes Mutum e Arara
com os membros de sua metade: seus filhos solteiros e as
famílias de suas filhas casadas. Estas malocas eram construídas
no meio do terreiro. Havia uma espécie de cozinha coletiva,
onde as mulheres preparavam a chicha em grande quantidade,
faziam artesanato, conversavam. (SAMPAIO; SILVA, 1997, p.
31).

Atualmente, a aldeia Amondawa, é composta de 11 casas


construídas, basicamente, das seguintes maneiras: umas são feitas com
madeiras beneficiadas e outras com paxiúba Socratea exorrhiza
(palmeira rústica da floresta); algumas são cobertas com palhas de
palmeiras (babaçu ou patoá Oenocarpus bataua), outras com telhas e
outras com pequenas tábuas.
As casas estão dispostas uma após a outra, de modo que
constituem um arco em volta de um grande terreiro. A maioria delas tem
um único cômodo, de planta retangular e teto de duas ou quatro águas
com paredes de tábuas ou troncos de paxiúba e o chão é de terra batida.
Algumas delas apresentam, ainda, uma divisão interna, como por
exemplo, na casa do Tari há dois cômodos onde são penduradas as redes.
Todas as casas possuem uma porta que é fechada à noite e onde é deixada
acesa a fogueira.
Além das casas, há outras construções: a escola, a farmácia, a casa
do missionário, a casa do Chefe de Posto da FUNAI, duas casas de
farinha, uma casa para o gerador de energia, um chiqueiro para a criação
de suínos, outro para domesticar animais da floresta, dois galinheiros e
uma horta, onde são plantadas verduras utilizadas na merenda escolar.

A TAPYIA E SUAS REFERÊNCIAS TERRITORIAIS

Almeida Silva (2010) destaca que a discussão sobre


espacialidade e territorialidade consideradas como a ação humana sobre
o espaço – entendido como anterior ao território – revelam a
aproximação física e, sobretudo de valores e sentimentos do construir,

133
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

olhar e entender o mundo. Essa constatação está permeada de símbolos,


signos, significados e representações que fazem o indivíduo se posicionar
frente ao mundo, assim:

Podemos considerar que os “marcadores territoriais”, antes de


tudo, estão relacionados à construção mental, na qual os
signos, os símbolos, as formas, as representações simbólicas e
as presentificações como fenômenos constituem a base
psíquico-espiritual de suas resistências, e nelas não podem ser
descartadas os mitos, os valores espirituais e morais, daquilo
que é possível se transcender como cultura (ALMEIDA SILVA,
2010, p. 111)

Simbolicamente, a casa representa nossos pensamentos e ações,


ou seja, as várias instâncias da nossa mente consciente e inconsciente.
Nesse sentido, a casa, assim como a mente, expressa o conteúdo
cognitivo e emocional que nos constitui como divíduos distintos do
coletivo, mas é a casa que dá a segurança física, cultural e espiritual, visto
que:

[...] as antigas malocas e/ou aldeias como forma possuem um


sentido de representação simbólica e presentificação muito
especiais para os indígenas, como “marcadores territoriais”
simbólicos e cosmogônicos que transcendem a materialidade e
permitem a introspecção da memória coletiva e o realizar os
reencontros cosmogônicos, de modo a projetar o destino dos
divíduos e o coletivo (ALMEIDA SILVA, 2010, p. 237).

O modo como os indígenas percebem o espaço por eles habitado


é extremamente importante, pois revela as diferentes concepções que
envolvem não apenas uma adaptação específica, mas, sobretudo,
apropriações diferenciadas e hierarquizadas do espaço habitado.
Em sentido análogo, Bollnow (2008 [1903]) destaca que a casa
tem, antes de tudo, a função do cobrir e proteger. O autor menciona
como um “valor protetor” da casa. Logo, ela constitui um “centro de
proteção” na vida do ser humano: uma esfera ordenada, em que o caos
do mundo exterior está sob controle.

134
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Tal conceito, também, é defendido por Bachelard (2008 [1957]),


que a considera um dos grandes poderes integradores na vida do homem:
“a casa vivenciada não é uma caixa sem vida. O espaço habitado
transcende o espaço geométrico. Toma qualidades sentimentais,
humanas”. Para complementar, a casa é vista como o grande berço, o
aconchego e a proteção, desde o nascimento do homem; é o paraíso
material. As lembranças da casa estão guardadas na memória, no
inconsciente e acompanha-nos durante toda a vida e, sempre voltamo-
nos a elas nos nossos devaneios:

[...] a maloca apresenta-se como uma representação


importante e indispensável para a cultura, vivência e a própria
territorialidade, refletindo diretamente no modo de vida do
povo e no estabelecimento de suas relações internas e externas.
A compreensão do significado de uma maloca é muito mais do
que um atributo físico, é também psíquico e espiritual, é a
própria alma e história que está presente em seus gestos e
ações. [...] a maloca no passado tinha múltiplas funções que
auxiliam na explicação do entendimento das representações,
sendo a primeira para o atendimento como moradia e
sustentáculo as atividades agrícolas tradicionais, a segunda
função como “marcador de território” oferecendo a defesa do
grupo, e por último, mas não menos importantes era servir
como cemitério [...] (ALMEIDA SILVA; SILVA, 2007, p. 2).

Destarte, se tem que a casa é também a morada dos espíritos que


atuam como protetores da aldeia e seu povo, em razão da dimensão
espiritual, social e cultural que os Kawahib concebem na realização de
seu mundo e no estabelecimento das relações internas e externas que
ocorrem em seu universo de representações.
Mas é possível relacionar uma simples “casa” com qualidades ou
características humanas, por exemplo? Sim, é possível, pois para os
Amondawa a tapyia pode ser associada às partes do corpo humano:
Inambutinguhua apyryrym awowo tapyia tombeakaty apytawo (A
galinha foi, rodeou e parou ao lado da casa (na costela da casa). Outros
exemplos também comprovam que a casa é um corpo: Awata jam ua

135
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

tapyia ikupekaty (a galinha) andou novamente e veio para trás da casa e


ficou em pé atrás (nas costas da casa).
Com base nos fragmentos descritos acima, percebe-se que a
tapyia para os Amondawa é um corpo, uma vez que kupea, na língua,
significa costas, a parte de trás do corpo humano. Linguisticamente, este
posicional é empregado para localização de pessoas, objetos ou animais
em relação a pessoas, com um pronominal genitivo que pode estar
prefixado ou não, ou ainda com o sujeito possuidor. É um nome de posse
inalienável. Para indicar localização, geralmente é usado em composição
com o locativo katy (junto). Desta maneira, podemos dizer que a casa é
personificada, pois ela tem características humanas como costelas, frente
e costas e o pé direito.
A leitura de mundo sobre a casa permite, ainda, o entendimento
de sua espiritualidade, porque todos os objetos e materiais são
constituídos de espíritos, ou seja, a madeira que dá sustentação, as palhas
que cobrem e cercam-na, possuem o sentido de extensão do corpo
humano. Nas narrativas indígenas, o ser humano se transmuta em
animais e plantas, logo os seres existentes no universo foram ou
passarão por tal processo, assim as habitações nada mais são do que
resultado dessa extensão, cuja representação é o próprio ser humano que
se materializa como casa.
Na avaliação de Almeida Silva (2010, p. 268) é nas aldeias que se
realizam a base das experiências socioespaciais que configuram o espaço
de ação, a organização e as relações, os acontecimentos e manifestações
culturais do Coletivo Kawahib.
Na concepção de Anastassioy (2006) a casa, em nossa cultura –
a da sociedade envolvente, refere-se ao lugar onde moramos e não
funciona, significativamente, como um corpo humano. A estrutura, neste
caso, é apenas de materiais concretos: madeira, telhado, piso, janela,
tijolo, dentre outros. É claro que, as casas dos Amondawa também têm
estes aspectos estruturais, mas a sua maneira de enxergá-la, para nós, é
bem diferente. Assim como a casa Amondawa possui costas e costelas,

136
ALMEIDA SILVA (ORG.)

ela é, ainda, um elemento de posse inalienável, ou seja, ela sempre terá


um possuidor, um caráter humano.
No que tange ao espaço, poucos instintos humanos são mais
básicos do que a territorialidade, e essa definição de território com
demarcação de suas fronteiras, é um ato de quantificação (LAKOFF;
JOHNSON, 2002, p. 82).
Conforme os exemplos apresentados, todos os marcadores
territoriais encontram-se posposicionados a um nome, cuja referência
espacial é a casa. Podemos, então, considerar que a visão de mundo
Amondawa é estreitamente vinculada às suas relações com o espaço e
isso se evidencia na estrutura da língua.
No que diz respeito às influências culturais, Lakoff e Johnson
(2002, p. 129) concluem que toda a nossa experiência é totalmente
cultural, pois experienciamos o "mundo" de tal maneira que nossa
cultura já está presente na experiência em si. Deste modo, os fatores
culturais são expressos pela língua; portanto eles devem ser
considerados nos estudos linguísticos.

A ESCOLA COMO UMA NOVA REFERÊNCIA PARA A TERRITORIALIDADE

Dentre as várias representações simbólicas da casa destacamos


àquela, enquanto espaço de habitação, que corresponde à unidade
familiar, onde são transmitidos aos indígenas, principalmente às
crianças, os valores ancestrais/tradicionais, que fortalecem a cultura do
povo Amondawa.
Tais ensinamentos foram ampliados com a implantação da
escola, em que o Decreto Lei n. 8494, de 29 de setembro de 1998,
trouxe consigo os valores externos, isto é, originados da sociedade
não indígena. Na realidade, a escola é para os Amondawa, uma extensão
de suas casas, que por sua vez representa a extensão de seus corpos, visto
que na escola, também, são discutidas questões relacionadas à sua
cultura.

137
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Os Amondawa tomaram a escola em suas mãos e dela fizeram


um instrumento de afirmação étnica, de construção de seu projeto
histórico de autodeterminação perante a sociedade envolvente (SILVA,
2000, p. 109). Assim, deram um novo sentido à escola, à escrita, ao
magistério, ao material didático, de acordo com seus reais interesses
frente aos de outras sociedades, principalmente à sociedade
“industrializada” e “complexa”.
De tal modo, a escola reivindicada pelo povo Amondawa foi
construída com base na LDB, que tem como princípios a especificidade,
o bilinguismo e a interculturalidade. Esta última representa um dado
fundamental, pois a diversidade cultural passa a ser aceita e a escola
representa um espaço de diálogo entre culturas e não um espelho de
“civilização” e “integração à comunhão nacional”, a qual operava em
favor da anulação da diferença cultural.

A TAPYIA DÁ UM ATÉ MAIS

A palavra casa, objeto desta discussão, apresenta em sua essência


uma gama de representações simbólicas que se entrelaçam com o ser
humano. Poderíamos associá-la apenas à estrutura em si, como por
exemplo, se é de madeira, tijolos, palha, ferro, ou à forma geométrica, se
é grande, pequena, quadrada, redonda, ou ainda, se é simples, luxuosa
dentre outras características. Independente da sua forma e estrutura a
representação maior é a que se refere a casa como o lugar de refúgio, de
proteção, de paz, ou seja, um lugar importante e sagrado para o ser
humano.
Ao considerarmos o aspecto cultural percebemos que a casa é
importante para os Amondawa, pois não se trata apenas de um local de
habitação e sim de estrutura de interação humana, cujo caráter reflete as
vivências, experiências, espiritualidade, afirmação de valores sociais e
culturais indispensáveis ao seu modo de vida e como se veem, se colocam
e se sentem no mundo. É parte integrante do modelo de casa que eles
veem em sua cultura; é o modelo em função do qual pensam e agem. Isto

138
ALMEIDA SILVA (ORG.)

comprova que as representações simbólicas variam de cultura para


cultura.
Destarte, verificamos que tanto a casa quanto a escola são
extensões do corpo humano Amondawa, ambas se situam no âmago da
territorialidade/espacialidade, cujo contexto é pleno de relações
culturais próprias e, ainda, pela aquisição de novas realidades
vivenciadas por meio das relações com a sociedade envolvente, por se
tratar de um marcador territorial estruturador que influencia o modo de
vida desse povo.

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EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

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142
KARIPUNAS DE RONDÔNIA E A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL
ETNOTERRITORIALIZADA 1

Emílio Sarde Neto


Cristiane de Almeida Anastassioy
Adnilson de Almeida Silva

Aqui será discutido o processo histórico dos Karipuna em relação


à uma educação intercultural e etnoterritorializada. Abordaremos
algumas questões relacionadas à educação indígena, no estado de
Rondônia, bem como o conceito geográfico de territorialização. A Terra
Indígena Karipuna está localizada na margem direita do rio Jaci Paraná.
Os Karipuna autodenominados Ahé (“gente verdadeira”),
constituem um contingente populacional de 55 pessoas (SIASI/SESAI,
2014). São falantes da língua Karipuna, tronco Tupi, família Kawahib. A
escola Karipuna constitui-se como a primeira experiência em educação
escolar indígena de Porto Velho.
Atualmente, o povo Karipuna passa por uma série de mudanças
provenientes da nova realidade social como, por exemplo, a construção
do complexo hidrelétrico do Rio Madeira. Além disso, há constantes
ameaças de invasão de seus territórios por fazendeiros, madeireiros,
aventureiros, caçadores, pescadores e aliciadores, que tentam cooptá-los
para que exerçam exploração ilegal dos recursos naturais no território.

INTRODUÇÃO

O processo histórico da escolarização indígena no Brasil tem


início no século XVI com a chegada dos primeiros jesuítas. José de
Anchieta é considerado o primeiro idealizador da educação dos
indígenas.

1 Publicado como “Karipunas de Rondônia: apontamentos para uma educação


intercultural etnoterritorializada”, no I Encontro Internacional de Geografia:
Colonização, território e meio ambiente em Rondônia, em 2012.

143
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Durante muito tempo os indígenas eram julgados como povos


sem culturas pelos colonizadores; para o trato com eles, os jesuítas
incentivavam catecúmenos europeus e filhos de colonos a língua tupi. As
escolas criadas, na época, tinham cunho católico, baseado nas virtudes
da fé e da caridade. Logo, a vertente cristã estava impregnada nos
romances, teatros e músicas; os clérigos entoavam hinos sagrados e os
meninos e meninas indígenas repetiam para desenvolver neles o amor
pela religião e a inclinação para a música. Afirmava o padre Manoel da
Nóbrega: “Com a música e a harmonia atrevo-me a atrair a mim todos os
índios da América” (NISKIER, 1989, p. 37).
No período colonial, a educação de indígenas ficou restrita ao
preparo, ao trabalho compulsório na extração e produção de materiais
de importância econômica para as metrópoles. O cristianismo católico
era a base ideológica para justificar a submissão dos indígenas.

Nesse sentido nunca é redundante lembrar o papel das missões


religiosas, sombra permanente da “educação escolar indígena”.
Educação escolar e atuação missionária sempre foram e
continuam sendo os meios principais e mais eficazes de
assimilação ou integração. No trabalho das missões, as
questões culturais e linguísticas se separam estrategicamente
numa mais aparente dicotomia. Sabemos que as missões
católicas foram até não muito tempo atrás, fortemente
marcadas por práticas de destruição tanto cultural como
linguística [...] (FRANCHETTO [1995] apud SILVA;
FERREIRA [1997, p. 72]).

O povo Karipuna, então, não ficou imune ao processo de


educação, em que as missões religiosas cristãs surgem como suporte
indutor do conhecimento formal para sua inserção na sociedade
envolvente, ainda que com uma influência direta sobre a cultura
indígena, consequentemente, produziu e produz novas representações
de mundo.
Intentamos, assim, discutir acerca do processo histórico dos
Karipuna em torno de uma educação intercultural e etnoterritorializada.

144
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Para tanto, abordamos algumas questões relacionadas à questão da


educação indígena, no estado de Rondônia, bem como o conceito
geográfico de territorialização.

BREVE HISTÓRICO DOS KARIPUNA

A Terra Indígena Karipuna está localizada na margem direita do


rio Jaci Paraná. Essa etnia foi praticamente dizimada, no século XX,
durante os projetos de desenvolvimento da região Norte tais como a
construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, extração de seringa em
grande escala, a exploração do garimpo e, nos últimos anos,
principalmente, por madeireiros, fazendeiros e grileiros.
De acordo com Mauro Leonel (1995), na região do Território
Karipuna, entre os rios da bacia do Jaci Paraná houve uma série de
conflitos que podem ser caracterizados como guerra dos seringalistas e
mineradores contra os indígenas, o que culminou em expedições
punitivas e etnocídio desse povo.
Freitas e Sarde Neto (2002) afirmam que no ano de 1973 foi
encaminhado um pedido à Fundação Nacional do Índio - FUNAI para a
criação de um Posto Indígena de atração para os Karipuna, devido ao
constante avanço das frentes pioneiras sobre os seus territórios. Naquele
período havia ocorrido a destruição de quatro aldeias do coletivo e a
morte de centenas de indígenas. O processo de depopulação desse povo
não foi revertido até os dias atuais. Os poucos sobreviventes com vínculo
a seu território, não encontraram alternativa para existência enquanto
etnia, senão, por meio de casamentos exogâmicos 2.
Atualmente, a etnia se encontra em processo de desagregação
social, de modo que permanece por longos períodos em Porto Velho, até
mesmo por conta de constantes ameaças e pressões externas de invasão
de seus territórios por fazendeiros, madeireiros, aventureiros, caçadores,
pescadores e aliciadores que tentam a cooptação do povo para que

2 Casamento com indígenas de outras etnias e não indígenas.

145
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

exerça exploração ilegal dos recursos naturais no território. Os indígenas


alegam que são esquecidos pelo poder público e que se faz necessária
suas presenças na cidade, para atender inúmeras demandas, tais como
com a Santo Antônio Energia e demais necessidades burocráticas da
Associação Indígena do Povo Karipuna.

O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO KARIPUNA - DIFICULDADES DE


ATENDIMENTO PEDAGÓGICO

A Escola Pin Karipuna foi criada em 1998, por meio do Decreto


n. 8494, que passou a funcionar em uma casa de madeira construída na
ocasião do contato. No mesmo ano, o indígena Batiti Karipuna iniciou
sua formação inicial e continuada em uma experiência de escolarização
e formação de professores indígenas, por intermédio do Projeto Açaí.
Tem-se, assim, o início o processo de escolarização formal dos Karipunas
de Rondônia, até então ágrafos, como política pública.
A escola passou a funcionar, provisoriamente, em um barracão
cedido pela comunidade; esse local até meados de 2011 jamais havia
recebido reforma ou sequer reparos. O telhado era de zinco, com
goteiras, muito quente e as paredes de madeira bastante deterioradas,
sem telas de proteção para insetos além de o local ser habitado por
morcegos e ratos. Os estudantes alegavam não gostar da escola, visto que
não oferecia conforto como ambiente didático.
Desde a criação da escola houve dificuldades de realização das
atividades escolares. Esses problemas se deram por um lado pela redução
demográfica e falta de pessoas da comunidade para assumir funções
educacionais no campo escolar, logo todas as responsabilidades
administrativas e educacionais ficavam a cargo do cacique Batiti
Karipuna. Por outro lado, os problemas se avolumaram em decorrência
da falta de iniciativa e pela falta de apoio da Secretaria de Estado da
Educação – SEDUC no que dizia respeito à construção de uma escola
adequada e estrutura logística (transporte, equipamento e pessoal) para
acompanhamento pedagógico.

146
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O professor, na época, em formação inicial reivindicava


atendimento pedagógico e acompanhamento das etapas não presenciais
do Projeto Açaí por parte da Representação Estadual de Ensino de Porto
Velho (REN-PVH), o que ocorreu somente uma vez em 2002, por meio
de parceria com a Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Durante
este período, a escola não foi visitada pela SEDUC e as orientações que o
docente recebia eram somente durante as etapas presenciais do Projeto
Açaí.
O acompanhamento foi prejudicado pela falta de transporte para
viabilizar o deslocamento até à aldeia, cuja viagem ocorria por via fluvial
e dependia de embarcações cedidas pela FUNAI. Após várias
reivindicações a SEDUC conseguiu um barco para o atendimento,
entretanto, o professor Batiti Karipuna e a liderança indígena Adriano
Karipuna afirmaram que “o casco do barco é mais pesado do que o motor
pode aguentar e que iriam devolvê-los quando fossem providenciados
outros equipamentos mais adequados”.
Com todos os desafios, o professor alfabetizou seus primeiros
alunos, no período de seis anos. Os alunos André, Adriano, Andressa e
Carlos eram monolíngues em Tupi Kawahib, mas foram alfabetizados
por Batiti em português, em razão da não existência de uma grafia
definida da língua materna. Com isso, a portuguesa tornou-se a língua
majoritária, como resultado também das relações interculturais dos
indígenas, conforme contextualizado por Cohn (1997, p. 118 apud
SILVA; FERREIRA, 1997):

À escola aparentemente são atribuídos dois papéis, que em


alguns casos parecem contraditórios e, em outros, há um
esforço para torná-los complementares: o de espaço de
aprendizado do mundo do branco e possibilidade de inserção
em um mundo novo e o de resgate e permanência cultural. [...]
os índios querem estudar hoje porque perceberam que o
mundo mudou e que estudando acham que podem ajudar a
comunidade, trabalhando. [...] (sic).

147
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Motivado por essa nova realidade e da necessidade de se


relacionar com a sociedade envolvente e encaminhar suas demandas, os
Karipuna em 2005 criaram a “Karipuna Associação Ecológica da
Amazônia - Apoika” voltada para o planejamento, defesa, articulação e
desenvolvimento da Amazônia, com sede na FUNAI na cidade de Porto
Velho.
O objetivo geral da Associação é o de fomentar o
desenvolvimento sustentável e a preservação ambiental da região
amazônica, realizar pesquisas, elaborar projetos e eventos técnicos que
visem divulgar a região amazônica, seu patrimônio natural e cultural e a
valorização das populações tradicionais, desenvolvimento do turismo
sustentável; programas voltados à criação, implantação e gestão de
Unidades de Conservação e Educação Ambiental, prestarem assessoria e
atuar em projetos e programas para o Planejamento e Gestão de
Recursos Hídricos (KARIPUNA, 2005).
À época por solicitação da comunidade e por determinação do
então chefe do Núcleo de Educação Escolar Indígena, Magno Andrade,
foi realizada pela REN-PVH a classificação dos estudantes com a
finalidade de identificar as séries, até então organizadas conforme o
julgamento do professor indígena. A escola trabalhava em ciclos e a
avaliação ocorria conforme processos próprios de ensino e
aprendizagem da etnia, portanto, uma organização própria, amparada
pela Resolução 003/1999 do Conselho Nacional de Educação - CNE.
Entretanto, essas considerações não foram levadas em conta e os
alunos indígenas foram avaliados como alunos das escolas urbanas
convencionais, o que confirmou a situação exposta por Sodré e Trindade
(2000, p. 17):

A primeira questão que se coloca é a importância de se


entender a relação cultura e educação. De um lado está a
educação, e do outro a ideia de cultura como lugar, a fonte de
que se nutre o processo educacional para formar pessoas para
formar consciência. A cultura é, pois, esta dinâmica de
relacionamento que o indivíduo tem com o real dele, com a sua

148
ALMEIDA SILVA (ORG.)

realidade, de onde vêm os conteúdos formativos, ou seja, de


formação para o processo educacional. Mas lamentavelmente,
as instituições oficiais concebem cultura em termos
patrimonialistas.

Por solicitação de lideranças da comunidade e do professor que


alegava dificuldades para dar continuidade ao processo de ensino e
aprendizagem, foi contratado o pedagogo Marques Figueiroa para
trabalhar junto ao professor Batiti Karipuna.
No ano de 2010 houve a necessidade da permanência na cidade
do professor Batiti para discutir e reivindicar a construção da Escola
Karipuna como compensação da Empresa Santo Antônio Energia pela
construção do complexo hidrelétrico do rio Madeira. Este fato contribuiu
para dificultar a realização das atividades pedagógicas na aldeia. A falta
de contingente populacional para desenvolver atividades relevantes na
comunidade levou Batiti a acumular cargos e responsabilidades que
prejudicaram o desenvolvimento das aulas na escola. Por esse motivo
alguns técnicos da SEDUC por não possuírem desenvoltura
antropológica e conhecimentos sobre as especificidades da educação
escolar indígena chegaram ao ponto de abrirem processo administrativo
contra o referido professor.
Em 2011, a REN-PVH organizou uma equipe com três pessoas e
uma coordenação local para atuar no Projeto de Educação Escolar
Indígena, com as finalidades de: atender a demanda de
acompanhamento técnico pedagógico nas escolas indígenas da
jurisdição; auxiliar no processo de implantação e regularização do
Ensino Fundamental e Médio; auxiliar os cursistas do Magistério
Indígena Projeto Açaí II na resolução das atividades. No transcorrer dos
meses do primeiro semestre de 2011 foram realizadas várias reuniões
com o povo Karipuna, a equipe de educação da FUNAI, representantes
da Santo Antônio Energia e da SEDUC, com vista de solucionarem os
problemas educacionais da etnia.
Em acordo com o Parecer 14/99 e a legislação indígena o ano
letivo não precisa corresponder com o ano civil e o calendário escolar

149
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

das escolas urbanas convencionais. A indefinição da validação do ano


letivo de 2010 deixou os alunos desanimados, sem vontade de continuar
os estudos, pois existia o medo da reprovação. A indefinição do término
e início das aulas e as dificuldades de um acompanhamento direto na
comunidade gerou questionamentos e dúvidas desse povo referente à
educação escolar.
A comunidade da aldeia priorizou o processo de mitigação com
a Santo Antônio Energia. Os projetos de mitigação são um modo de
compensar às comunidades indígenas e não indígenas pelos impactos
resultantes da construção dos complexos hidrelétricos do rio Madeira
para diminuir os impactos sociais. No entanto, não foi definido soluções
para os problemas da escola Karipuna.
A REN-PVH na tentativa de solucionar o problema da escola
indígena resolveu enviar no dia 12 de julho de 2011 técnicos à Terra
Indígena Karipuna no distrito de Jaci Paraná para verificar o andamento
da obra de construção da nova unidade escolar realizada pela Santo
Antônio Energia. Constatou-se que o estabelecimento antes do início das
obras funcionava nas dependências da casa do chefe de posto da FUNAI,
e que no momento do início de sua construção passou a servir de
alojamento para os operários que edificavam a nova escola, com isso
prejudicou o ano letivo. Em 2011, o número de alunos sem aulas eram 11
alunos matriculados e mais seis do povo Kaxinawá residentes à época na
aldeia.
Várias obras foram construídas: infraestruturas sanitárias,
alojamentos para profissionais da saúde e educação, foram comprados
veículos traçados entre outros, mas, junto aos benefícios, vieram às
consequências como às saídas de diversas famílias das aldeias para as
cidades, atraídas pelas novidades e tecnologias, de modo que ocasionou
impactos sociais que não existiam.
Técnicos da Santo Antônio Energia mostraram preocupação e
tentam reverter parte desse processo com a implantação de programas
de desenvolvimento cultural, como oficinas complementares de

150
ALMEIDA SILVA (ORG.)

produção de material didático que respeitassem as especificidades de


cada etnia. Nas reuniões com antropólogos envolvidos no processo de
análise de impactos foi explicitada a falta de experiência, conhecimentos
e tato antropológico por parte de alguns profissionais de educação
escolar indígena que atuam nas escolas e a falta de atendimento mais
efetivo às comunidades por parte da SEDUC.
Também ressaltaram que na mitigação deveria ser dado
importância às partes da cultura indígena como a medicina natural, a
música, a educação tradicional, as histórias os mitos, comidas
ancestrais/tradicionais, dentre outros. Para tanto, foi apresentado um
roteiro a ser seguido e a continuação do diagnóstico dará corpo ao
projeto e justificativa a vários benefícios ainda não aplicados. A data
prevista para a efetiva prática dos projetos foi delineada para 2012
(RONDÔNIA, 2012) e será possível o intercâmbio cultural com outras
etnias através de cursos de formação intercultural, importantes na
formação técnica para transferir a maior quantidade de conhecimentos
possíveis aos indígenas com o objetivo de empoderá-los 3.
De acordo com a análise técnica da REN-PVH os impactos
socioculturais ocasionados pela construção do complexo hidrelétrico do
Madeira são visíveis. No caso dos Karipuna, as compensações fizeram
com que os indígenas passassem a maior parte do tempo na cidade
envolvidos em cursos e outras atividades que contribuem no processo de
desagregação sociocultural da comunidade.
A nova política de educação escolar Indígena no Brasil ficou
conhecida como revolucionária, e a principal preocupação é levar a
educação escolar indígena para as aldeias, com o respeito à
interculturalidade e em hipótese alguma levar os indígenas à cidade. O
ideal é que as aulas sejam interdisciplinares e multisseriadas.

3Dar poder a um povo, coletividade ou comunidade, fazer com que tudo seja
mais democrático, liberdade de decidir e controlar seu próprio destino.

151
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Em 2008 a Universidade Federal de Rondônia - UNIR, por meio


da Resolução 198/CONSEA e Parecer 873/CGR aprovou o curso de
Licenciatura em Educação Escolar Intercultural com sede no campus de
Ji-Paraná, em Rondônia. Com isso foi realizado o primeiro vestibular
voltado exclusivamente aos povos indígenas. Sobre este avanço
indicamos como leitura o texto de Neves, Gavião e Abrantes (2019), que
representa uma grande conquista para os povos e estudantes indígenas
de Rondônia e de estados vizinhos, na formação de professores.

O TERRITÓRIO ETNOEDUCACIONAL (TEE) 4

O reconhecimento da diversidade sociocultural dos povos


indígenas implicou na construção das especificidades político-
pedagógicas em seu sentido mais amplo, com a proposta de construção
pedagógica e curricular, elaboração de calendário escolar, formação de
professores, processos participativos da gestão escolar, materiais
didáticos relevantes culturalmente.
Os Territórios Etnoeducacionais (TEEs) nasceram da
preocupação do governo federal em proporcionar a pratica do direito a
uma educação intercultural, bilíngue/multilíngue, específica,
diferenciada e comunitária, de modo a prezar pelo direito à uma
educação escolar que valorize e afirme as identidades étnicas e
proporcione acesso a conhecimentos importantes para a cidadania, o
direito das comunidades indígenas em participação e decidir sobre a
organização e o funcionamento da escola junto ao sistema de ensino.
O Território é concebido como visão política estratégica de
governo e de Estado; para construir um Plano de Desenvolvimento da
Educação – PDE: reconhecimento das dimensões políticas, culturais e

4 As informações foram baseadas no material informativo do Ministério da


Educação para as equipes interinstitucionais responsáveis pela elaboração dos
diagnósticos e criação dos Territórios Etnoeducacionais.

152
ALMEIDA SILVA (ORG.)

identitárias que definem determinado espaço como território de


articulações sociais identitárias.
A publicação do Decreto n. 6861, em 27 de maio de 2009:
institucionalizou os Territórios Etnoeducacionais (TEEs), mas para
consolidação da proposta se faz necessário à discussão com
representantes dos povos indígenas, sistemas de ensino, universidades,
organizações governamentais. No TEE o território tradicional é base da
organização da vida coletiva: social, cultural, política, econômica e
religiosa; é o espaço simbólico (terra, tradições, valores, língua, mitos,
rituais e saberes), é a referência identitária e gestão do presente e futuro
do povo, é a base dos Planos de vida para efetivação da autonomia e
autodeterminação.
A escola indígena etnoterritorializada, intercultural e
diferenciada, fortalece a vida coletiva pela consideração e valorização da
relação espiritual, sentimental e filosófica dos povos indígenas com o
território no processo pedagógico e na organização administrativa da
escola, o território proporciona a autonomia da escola.
Várias mudanças culturais e políticas serão ocasionadas com a
pactuação dos TEEs. A noção de Terra em contraposição a Território, a
tutela será substituída pela autonomia indígena, as Políticas Gerais darão
lugar a Políticas Específicas, os Sistemas de Ensino isolados passarão a
ser em regime de colaboração e a divulgação restrita das informações
passará para a transparência e controle social. Neste sentido, a proposta
é que várias serão as mudanças no Planejamento e na Gestão da
Educação Escolar Indígena. Sua organização será em Planos de Ação
Etnoterritorializados e contará com a participação indígena em todas as
etapas, haverá a definição de responsabilidades e de recursos com a
coordenação das políticas pelo Governo Federal em regime de
colaboração como prática (MEC, 2011).

153
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

O DIAGNÓSTICO E A PACTUAÇÃO DO TERRITÓRIO ETNOEDUCACIONAL


YJHUCATU

A escola Karipuna construída em 2012 (Figura 1) pela Santo


Antônio Energia como compensação socioambiental de mitigação pela
construção do complexo hidrelétrico do rio Madeira possui quatro salas
de aulas com capacidade para quarenta estudantes, dois banheiros
individuais, uma copa e um almoxarifado. A escola possui ainda um
alojamento para professores com dois quartos, banheiros, sala, cozinha
e uma casa de força com um gerador de energia elétrica movido a diesel
tombado pela SEDUC. Entretanto, naquele ano não entrou em
funcionamento, devido à falta de materiais permanentes, didáticos,
professores e transporte.

Figura 1: Escola Pin Karipuna em 2012

Fonte: André Luiz Santos de Souza (2012)

O TEE Yjhucatu é constituído pelos povos Karitiana, Karipuna,


Kaxarari, Kassupá e Salamãi que juntos elaboraram o seu Plano de Ação
com demandas específicas para cada etnia. Os Karipuna reivindicaram
no plano de ação do TEE a ampliação das estruturas da escola para
melhor atender à comunidade indígena, como a construção de um
depósito, auditório, biblioteca, casa de apoio com inclusão digital para
alunos universitários, alojamento adequado na aldeia para professores,

154
ALMEIDA SILVA (ORG.)

transportes da cidade para aldeia, quadra coberta poliesportiva,


pavimentação, refeitório, parque, cozinha grande, pátio coberto com
acessibilidade (escadas e rampas), e tecnologias pertinentes como
computadores, ar condicionado, armários para livros televisores entre
outros aparelhos.
Os cursos de formação superior e técnico são os mais solicitados
pela etnia como acentuou o cacique e professor Batiti sobre a
necessidade de garantir o futuro dos seus filhos. Os membros da
comunidade seguros de suas reivindicações falavam dos cursos de nível
superior que desejavam como: contabilidade, direito, engenharia (civil,
florestal, agronômica, pesca, etc.), administração, arquitetura, gestão de
finanças, medicina, enfermagem, zootecnia e veterinária. Cursos
técnicos e profissionalizantes como: piscicultura, avicultura, agronomia
entre outros. Cursos de marcenaria, mecânica, apicultura. Oficinas de
legislação e direito indígena, culinária indígena, turismo entre outros.
Outras reivindicações que compreendem como relevantes
consistem: 1) na produção de material didático específico para etnia
como: dicionários, livros didáticos, livros de história e literatura,
materiais de áudio e vídeo (filmes, músicas etc.), todos escritos e
elaborados em língua materna; 2) artesanatos e pinturas bem como a
produção de materiais didáticos da própria etnia, mapas, dentre outros;
3) profissionais como professores para o ensino fundamental e médio,
diretores e secretários, serviços administrativos e de apoio (cozinheiro,
zelador, auxiliar e serviços gerais, motoristas entre outros); 4) máquinas
pesadas para as oficinas técnicas, equipamentos como motosserra e
transportes como caminhões, ônibus, carros traçados, dentre outros.
O Ministério da Educação, a FUNAI, a SEDUC, a UNIR, os
representantes dos povos Karitiana, Karipuna, Kaxararí, Kassupá e
Salamãi (professores, lideranças políticas e tradicionais), o Conselho
Indigenista Missionário – CIMI, o Ministério Público Federal em
Rondônia – MPF/RO, discutiram e pactuaram o Plano de Ação para o
desenvolvimento e institucionalização da Educação Escolar Indígena no
TEE Yjhukatu, de maneira a respeitar a territorialidade dos povos

155
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

indígenas em questão. As ações pactuadas devem ser constantemente


acompanhadas e avaliadas pela Comissão Gestora do Território, em
obediência às normas estabelecidas pelo Decreto n. 6.861/2009, que será
constituída de membros permanentes e convidados. Todas as ações
decorrentes das demandas apresentadas deverão necessariamente ser
desenvolvidas em articulação com os povos originários que integram
esse TEE com a intenção de garantir o protagonismo indígena no
desenvolvimento de políticas públicas para educação escolar indígena.

UMA QUESTÃO DE CONCEITO E PRÁTICA EDUCACIONAL

O conceito de Educação Indígena é constantemente confundido


com o da educação escolar indígena. A primeira é aquela repassada
tradicionalmente pela cultura, normalmente pela oralidade, ocasião em
que os mais jovens recebem dos mais velhos conhecimentos peculiares
da cultura. Enquanto a segunda é aquela praticada nas escolas indígenas
e une os conhecimentos específicos ancestrais/tradicionais com os
conhecimentos teóricos e práticos da sociedade envolvente.
A Educação Escolar Indígena, no Brasil, está baseada no
Parâmetro Curricular para Escolas Indígenas, referencial para as
orientações pedagógicas aos professores indígenas:

Todo projeto escolar só será escola indígena se for pensado,


planejado, construído e mantido pela vontade livre e
consciente da comunidade. O papel do Estado e outras
instituições de apoio devem ser de reconhecimento, incentivo
e reforço para este projeto comunitário. Não se trata apenas de
elaborar currículos, mas de permitir e oferecer condições
necessárias para que a comunidade gere sua escola.
Complemento do processo educativo próprio de cada
comunidade, escola deve se constituir a partir dos seus
interesses e possibilitar sua participação em todos os
momentos da definição da proposta curricular, do seu
funcionamento, da escolha dos professores que vão lecionar,
do projeto pedagógico que vai ser desenvolvido, enfim, da
política educacional que será adotada (PCNEI, 1998, p. 13).

156
ALMEIDA SILVA (ORG.)

É importante que os técnicos em Educação Escolar Indígena


tomem esse Referencial, como subsídio para a orientação pedagógica nas
escolas indígenas, visto que se propõe ser um documento que sirva como
base para que cada escola indígena construa o seu próprio referencial de
análise e a avaliação do que nela se realiza, ao mesmo tempo, elabore um
planejamento adequado para o que nela se quer realizar.
Diante desse ponto é necessário fazer as seguintes considerações
sobre Educação e Conhecimentos Indígenas, baseadas nesse Referencial
Curricular:

Desde muito antes da introdução da escola, os povos indígenas


vêm elaborando, ao longo de sua história, complexos sistemas
de pensamento e modos próprios de produzir, armazenar,
expressar transmitir, avaliar e reelaborar seus conhecimentos e
suas concepções sobre o mundo, o homem e o sobrenatural. O
resultado são valores, concepções e conhecimentos científicos
e filosóficos próprios, elaborados em condições únicas e
formulados a partir de pesquisa e reflexões originais. Observar,
experimentar, estabelecer relações de causalidade, formular
princípios, definir métodos adequados, são alguns dos
mecanismos que possibilitam a esses povos, a produção de
ricos acervos de informação e reflexões sobre a natureza, sobre
a vida social e sobre os mistérios da existência humana.
Desenvolveram uma atitude de investigação científica,
procurando estabelecer um ordenamento do mundo natural
que serve para classificar os diversos elementos. Esse
fundamento implica necessariamente pensar a escola a partir
das concepções indígenas do mundo e do homem e das formas
de organização social, política, cultural, econômica e religiosa
desses povos (RCNEI, 1998, p. 22).

Nesse sentido, deve se levar em consideração o conhecimento


ancestral/tradicional do Povo Karipuna na elaboração do calendário
escolar, o qual deve se adequar a realidade da organização da vida da
coletividade e não ao calendário oficial do ano letivo proposto às escolas
não indígenas. A cultura dos povos originários é mantida milenarmente

157
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

pela oralidade e a Educação Escolar Indígena é uma necessidade


constituída após o contato com a cultura ocidental.
De acordo com o que foi verificado sobre Educação Escolar
Indígena na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.
9.394), no artigo 32, é estabelecido que o ensino fundamental seja
ministrado em língua portuguesa, mas que será assegurado aos povos
indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem. Reproduz-se aqui o direito inscrito no Capítulo 210 da
Constituição Federal.
Deste modo, entende-se que deve ser considerado de maneira
específica o contexto histórico de redução demográfica que os levou a
estabelecerem relações interétnicas de casamentos com não indígenas,
ameaças de invasão do seu território, impactos atuais e necessidades
burocráticas que os levam a ir e vir constantemente da aldeia para a
cidade e a comporem um processo próprio de aprendizagem de acordo
com a dinâmica de suas vidas. Em conformidade com o que afirma a
Constituição da República Federal no artigo 210, serão fixados
conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de modo a assegurar a
formação básica comum e o respeito aos valores culturais e artísticos,
nacionais e regionais (CF, 1988).
O Núcleo de Educação Escolar Indígena (NEEI) em conjunto
com a coordenação de Educação Escolar Indígena da REN-PVH deveria
ter elaborado um plano de ação em que considerasse o contexto
histórico, cultural, populacional e político do Povo Karipuna e estar
presente na execução desse plano, vez que, de acordo com estudos
antropológicos e topográficos realizados em 1981, foi constatado que
num período de cinco anos houve uma grande depopulação na área
habitada por essa etnia, com o desaparecimento de 75% do coletivo,
vitimados por surtos sucessivos de gripe e sarampo, processo que ainda
não foi revertido e tem causado consequências irreversíveis na
manutenção dos valores culturais, espirituais e sociais dos Karipuna
(FUNAI, 1997).

158
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Neste sentido, o plano de ação da educação escolar indígena


desenvolvido pela SEDUC, deveria ter contemplado projetos de
reestruturação social, cultural e linguística. Além de acompanhar
assiduamente o processo de negociação de construção da escola como
compensação da Santo Antônio Energia, para que ela fosse edificada em
caráter de urgência, visto que projeto de construção da Escola na aldeia
pela SEDUC havia elaborado em 2007, e conforme informação do NEEI,
não foi efetivada. A visão dos técnicos em Educação Escolar Indígena foi
unilateral, pois não levaram em conta os contextos daquele povo.
A equipe do NEEI procurou cobrar que o professor Batiti
permanecesse na aldeia para ministrar suas aulas, mas não garantiu a
estrutura mínima necessária para que a educação específica e
diferenciada acontecesse, em vista que, conforme o Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas - RCNEI (1998), o papel
do Estado e outras instituições de apoio devem ser de reconhecimento,
incentivo e reforço para que o projeto escolar indígena seja elaborado
pela vontade livre e consciente da coletividade e se efetive de modo
comunitário.

[...] as reivindicações indígenas pelo reconhecimento de seu


direito à manutenção de suas formas específicas de viver e de
pensar, de suas línguas e culturas, de seus modos próprios de
produção, reelaboração e transmissão de conhecimentos, uma
vez acolhidas pela Constituição de1988, abriram caminho para
a oficialização de “escolas indígenas diferenciadas” e para a
formação de políticas públicas que respondessem aos direitos
educacionais dos índios a uma educação intercultural, bi – ou
multilíngue, comunitária e voltada à autodeterminação de seus
povos (SILVA, 2001, p. 10).

Foi verificada a necessidade de estrutura para realização das


atribuições repassadas pelo NEEI e um olhar específico e diferenciado
para estabelecer os diálogos com o povo Karipuna. Nesse caso haverá
necessidade de um esforço conjunto da SEDUC independentemente de
setores, para que a situação da educação escolar indígena possa ser
efetivada na Escola Pin Karipuna. Caberá à SEDUC reconhecer o que foi

159
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

desenvolvido no campo da educação indígena (conhecimento e


organização própria do Povo Karipuna) e estruturar juntamente com a
etnia a Educação Escolar Indígena, conforme orienta o RCNEI.

PARA FINALIZAR

A Escola Pin Karipuna constitui-se como a primeira experiência


em educação escolar indígena de Porto Velho. No momento, passa por
uma série de mudanças provenientes da nova realidade social,
ocasionadas pela construção do complexo hidrelétrico do Rio Madeira.
Tais características refletem as modificações do contato com a sociedade
capitalista
A morosidade do Núcleo de Educação Escolar Indígena/SEDUC,
setor responsável pela contratação de profissionais (principalmente de
professores) para as aldeias indígenas, em 2012, causou um prejuízo
incalculável no que diz respeito ao acesso aos conhecimentos universais
e ao direito à escolarização indígena específica e diferenciada, tão
valorizada e almejada pelos povos originários.
O professor é alguém que vai iniciar o indivíduo na radicalidade
ética e cultural da vida dele, conforme exposto por Trindade (2002).
Portanto, há uma mudança no papel do professor, ele não é mais o que
detém em termos absolutos o saber, é o que detém a porta, uma
passagem, o que faz a mediação. E, essa mediação é menos de entupir de
informação, e mais de levar o indivíduo a refletir, a imaginar e a criar.
A entrada de jovens indígenas Kaxinawa e não indígenas, levados
pelas próprias lideranças indígenas para a aldeia, fortaleceram a
coletividade ao mesmo tempo em que diversificam e propuseram novos
modos de interação e vivência comunitária.
A elaboração em conjunto com a etnia do Projeto Político
Pedagógico, dos componentes curriculares e regimento escolar,
procedimentos necessários para garantir as especificidades e a
autonomia dos povos indígenas, de acordo, com as orientações do
Parecer 14/1990 até o ano de 2012 não havia sido construído, o que é

160
ALMEIDA SILVA (ORG.)

um agravante. Destarte descaracteriza, assim, a proposta de valorização


dos saberes, da oralidade e, principalmente, da história de cada povo.

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ALMEIDA SILVA (ORG.)

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Porto Velho: PPGG/UNIR, 2012. p. 1-16. Disponível em:
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mentos-para-uma-educacao-intercultural-etnoterritorializada.html.
Acesso em: 20 nov. 2020.

SILVA, A.L.; FERREIRA, M.K.L. (Orgs.). Práticas pedagógicas na escola


indígena. São Paulo: Global, 1999.

SILVA, A.L.; FERREIRA, M.K.L. (Orgs.). Antropologia, história e


educação. A questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001.

TRINDADE, A.L.; SANTOS, R. (Orgs.). Multiculturalismo: mil e uma


faces da escola. 2. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2000.

163
A ESCOLA E A ALDEIA COMO ATRIBUTO PAITER SURUÍ NO
DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO EDUCACIONAL E
CULTURAL 1

Adriana Francisca de Medeiros


Adnilson de Almeida Silva

Procuramos descrever e analisar, a partir de um estudo


documental, a temática educacional inserida no Plano de Gestão
Ambiental da Terra Indígena Sete de Setembro – TISS ou Paiterey Karah
- TIPK (a Terra dos Suruí Paiter) que sobrepõe os estados de Rondônia e
Mato Grosso. Este povo vive numa região localizada em um dos
principais focos de desmatamento e de expansão de propriedades rurais,
além de outras ameaças para a sobrevivência da etnia.
O primeiro contato oficial da Fundação Nacional do Índio –
FUNAI com os Paiter Suruí ou Paiterey ocorreu no final da década de
1960. Ameaçados de extinção, por inúmeros problemas, o povo Suruí
procurou desenvolver, no início do novo milênio, estratégias a partir da
gestão territorial, mediante a realização de diagnósticos etnoambiental e
de etnozoneamento e um plano de proteção com o reflorestamento em
áreas degradadas.
Em 2000, elaboraram o Plano de Gestão Etnoambiental da
TISS/TIPK que objetiva estabelecer em 50 anos procedimentos e
diretrizes para o encaminhamento das demandas socioculturais, de
modo a possibilitar condições para o uso responsável dos recursos
naturais. O plano apresenta nove temáticas (Segurança alimentar, Saúde
integral, Educação, Cultura, Sustentabilidade ambiental, Habitação e
construções indígenas sustentáveis, Meios e vias de transporte, Matriz
energética).

1 Publicado como “Quando a aldeia vira escola: a temática educacional no Plano


de Gestão Etnoambiental Paiter Suruí”, no XV Encuentro de Geógrafos de
América Latina, em 2015.

164
ALMEIDA SILVA (ORG.)

A nossa análise foca o olhar para as diretrizes, ações e objetivos


educacionais que contemplam o plano, na qual a cultura está
umbilicamente ligada à educação. É possível visualizar uma metodologia
educativa na estrutura do documento, e esta não se limita apenas a
temática educação, mas, está presente nos objetivos, nos paradigmas
norteadores, nas diretrizes, como também nas demais temáticas.

UM CADINHO DE PROSA 2

A trajetória da educação indígena no Brasil é marcada por


momentos de conflitos, de isolamento, de inviabilidade e violência. No
entanto, nas últimas décadas foi possível visualizar progressivas
conquistas, a partir da aprovação da Constituição Federal que garantiu o
direito à uma educação bilíngue e diferenciada, conforme o artigo 210, §
2º: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua
portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”
(BRASIL, 2010).
A regulamentação dos artigos previstos na Carta Magna de 1988
e o cumprimento à Convenção n. 107 da Organização Internacional do
Trabalho, aprovada pelo Decreto n. 58.825, de 14 de junho de 1966,
posteriormente editado por meio do Decreto n. 26, de 4 de fevereiro de
1991, que dispõe sobre a educação indígena no Brasil, como de
competência do Ministério da Educação a coordenação de ações
educacionais indígenas, veio consequentemente ocasionar – ainda com
muita resistência – a transferência da Educação Indígena, até então,
responsabilidade da FUNAI para o Ministério da Educação e Cultura
(MEC).
Como decorrência desse processo, outras legislações foram
elaboradas e sancionadas a partir dos princípios expressos na Carta

2Alguns títulos para seções foram retirados do livro Tempo de histórias, de


Daniel Munduruku.

165
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Magna, no sentido de criar a educação escolar específica e diferenciada,


entre elas, destacamos estas:

− A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN,


9394/96 que garante aos povos indígenas o direito a uma
educação escolar diferenciada e de qualidade, essa assegura
no artigo 78, que o Sistema de Ensino da União, com o auxílio
das agências federais de fomento à cultura e de assistência
aos indígenas, desenvolverá programas integrados de ensino
e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e
intercultural aos povos indígenas;
− O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas
(1998) que define os princípios e as propostas pedagógicas e
curriculares para as escolas indígenas ao mesmo tempo em
que orientava os sistemas de ensino para a construção e o
desenvolvimento de políticas de EEI, pautadas nas ideias de
especificidade, diferenciação, interculturalidade,
bilinguismo e escola comunitária;
− As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Indígena na Educação Básica, definidas pelo
Conselho Nacional de Educação (CNE) e homologadas pelo
MEC em 2012.

Podemos afirmar que a Constituição Federal é o marco inicial


para o reconhecimento de uma educação diferenciada para os povos
indígenas. No entanto, veremos que o fato de se proclamar a diversidade
cultural e o respeito à diferença na legislação não garante
necessariamente uma postura política transformadora.

A EDUCAÇÃO INDÍGENA NA AMAZÔNIA

Esta temática na Amazônia brasileira foi caracterizada por um


longo período por princípios assimilacionista em que a educação escolar
objetivava a integração dos indígenas à ordem econômica e cultural
promovida em parceria com as missões religiosas.

166
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Em conformidade com Albuquerque (2007, p. 28) “A educação


indígena para o índio se constituía em estratégia de imposição da fé
religiosa, da desestruturação cultural e de dominação para a civilização
domesticação e exploração da força de trabalho indígena e controle de
suas terras”. É perceptível a tênue relação entre educação, religião e
economia. O conjunto das ações desenvolvidas por estas, visava
transformar o indígena naquilo que ele não era como pretensamente
branco, cristão e trabalhador produtivo de riquezas. Nessa perspectiva,
Oliveira e Nascimento (2012, p. 768) afirmam que:

[...] o principal objetivo das políticas educativas voltadas para


os povos indígenas, das ações catequéticas dos jesuítas no
período colonial às práticas indigenistas do século XX, era
trazê-los à civilização ou nacionalizá-los. É sob tal imperativo
que será instituído o campo indigenista dentro dos aparelhos
institucionais do Estado, tendo como pressuposto a
inferioridade dos indígenas em relação à raça branca civilizada,
estando situados, desta feita, numa ase evolutiva primeva ou
selvática. Fora do tempo da nação, os índios eram vistos como
estando fadados ao desaparecimento, como sobreviventes de
um passado que se queria distante.

Neste sentido, Lago Silva (1985 apud Albuquerque, 2007)


apresenta três distintos períodos da educação na Amazônia. O primeiro
compreende o Regimento das Missões (1616-1757) que nuclearam os
indígenas em aldeias para propagar fé cristã (com o sentido de
“humanizá-los e amansá-los”), modificar os hábitos, inclusive, no
trabalho e o ensino de leitura e escrita. O seguinte período foi
denominado de Regimento Diretório (1757-1798), o ensino fica sob a
responsabilidade de diretores leigos, como resultado o intuito de
promover uma educação laica. Em conformidade com Medeiros e Silva
(2014, p. 5):

A expulsão dos jesuítas em 1759 – por ordem de Sebastião José


de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal – naquele momento
histórico contribuiu para ação integracionista do Estado,

167
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

alterando desta forma os modos de vida e as culturas indígenas,


bem como suas formas de organização.
Com o fracasso da política pombalina percebe- se que nos
períodos colonial e imperial não apresentaram avanços no que
diz respeito a uma educação institucionalizada nem para
índios 3 e nem para os não índios.

O terceiro momento, ainda de acordo com Lago Silva (1985)


apud Albuquerque (2007), é o período Provisional (1798-1808), é
caracterizado pelo Estado para organizar o ensino na Amazônia. Nesse
período é promulgado um regimento provisional para professores de
Filosofia, Retórica, Gramática e de primeiras letras, no qual o Estado
definiu seu dever de administrar os serviços com a instrução pública.
Afirma Albuquerque (2007, p. 34) que “O peso da catequese da
instrução, em conjunto com a força de outros mecanismos coloniais deu
início ao processo de desestruturação da ordem sociocultural e
econômica dos povos indígenas na Amazônia”.
No entanto, veremos que o processo de colonização foi muito
extenso, visto que atravessou séculos. No início do século XX, é criado o
Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais
- SPILTN, que mais tarde, em 1918, teve a função e a denominação
específica mudada para Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Essa fase
ficou caracterizada por um intenso processo de escolarização que visava
a “integração dos índios à comunhão Nacional” que se estendeu por
quase todo o século passado, sob a responsabilidade de religiosos. No
Amazonas, descreve Estácio (2009, p. 5):

A presença efetiva, a partir de 1915, de missionários salesianos


na condução de internatos para crianças índias, na região do
Alto Rio Negro, interior do Amazonas; e para tais internatos,

3 No Brasil até recentemente usava-se o termo índio, visto como preconceituoso


na atualidade. A partir da década de 1980 passou-se a se utilizar como indígenas
em razão das etnias considerarem como o mais adequado, inclusive como
retórica para um discurso político-ideológico, com objetivo de acessar políticas
públicas — ainda que as mesmas não sejam aplicadas em sua totalidade.

168
ALMEIDA SILVA (ORG.)

meninos e meninas índios eram recrutados e recebiam ensino


primário, eram proibidos de falarem suas línguas maternas, e
eram, ainda, iniciados na religião católica e no aprendizado de
hábitos e padrões estranhos à sua cultura. A atuação educacional
dos salesianos por meio do regime de internato para meninas e
meninos índios, estava amparada pelas diretrizes da estrutura de
poder do Estado brasileiro, o qual se voltava para a expansão das
fronteiras da civilização e como forma de facilitar o
recrutamento da força de trabalho indígena e sua subordinação à
racionalidade do sistema capitalista. Esta atuação missionária
objetivava o aldeamento ou redução, a catequese e a instrução;
assim, por meio da educação escolar desenvolvida nos
internatos, os salesianos introduziram a língua, a história e os
valores da sociedade dominante (branca), interferindo nas
condições reais de reprodução da vida dos povos indígenas da
área amazônica.

No Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, surgiram timidamente


movimentos pró-indígenas, apoiados por uma parte da sociedade civil
que visavam discutir e viabilizar saídas para os problemas que atingiam
suas comunidades, e dentre esses estavam a educação escolar,
participação política, terra e saúde.
Neste sentido, Oliveira e Nascimento (2012, p. 767) ponderam
que “a instituição das políticas indigenistas e educacionais não
acontecem alheia à força do movimento indígena e a mobilização de
outras agencias indigenistas da sociedade civil”. Na mesma direção é
apontado por Czarny (2012, p. 14), que:

Nas últimas décadas, diferentes Estados da América Latina têm


realizado reformas educativas voltadas para o reconhecimento
da diversidade, algo que resultou principalmente das
reivindicações dos movimentos indígenas e de organizações da
sociedade civil. Sendo assim, houve avanços na discussão
política sobre os direitos reconhecidos aos povos indígenas nos
últimos anos, entre eles o de acesso a uma educação formulada
segundo sua realidade específica e suas aspirações de futuro,
valorizando suas culturas e identidades.

169
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Deste modo, podemos afirmar que a inclusão dos artigos 210 e


231 na Constituição Federal que garantiu aos povos indígenas um ensino
fundamental regular diferenciado ministrado em português e em suas
línguas maternas, estabelecem também processos próprios de
aprendizagem foi resultado dos movimentos anteriores à promulgação
da Carta Magna.
Apesar do expressivo avanço da educação indígena, ainda
existem muitos desafios, como ponderam Suruí et al. (2014, p. 7):

A educação escolar indígena prossegue em passos lentos


apesar das grandes conquistas realizadas. Deste modo
podemos enumerar alguns problemas crônicos existentes: a)
suas atividades seguem em acordo com a realidade estrutural
das Secretarias de Educação dos estados e municípios; b)
Muitos são os contratempos para a aplicabilidade das políticas
públicas; c) funcionários com cargos de chefia e
responsabilidade pela educação que possuem interesses
políticos diretamente ligados aos latifúndios, dificultando o
atendimento e o processo de ensino e aprendizagem das
escolas indígenas; d) material didático incompatível com a
realidade vivencial dos discentes indígenas; e) recusa dos
órgãos públicos do setor em contratar e disponibilizar equipe
de técnicos e professores indígenas e não indígenas para as
escolas; f) escolas construídas em padrões arquitetônicos
urbanos que produzem resistências e topofobias no ambiente
educacional. Soma-se a essas questões o fato que a maioria das
escolas indígenas se encontra em regiões de difícil acesso, logo
a falta de transportes fluviais e terrestres prejudica a chegada
de materiais (merenda escolar, livros etc.) necessários ao
desenvolvimento das práticas pedagógicas.

170
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O PROTAGONISMO PAITER SURUÍ NO CENÁRIO EDUCACIONAL


INDÍGENA

Os primeiros seres nasceram de si mesmo – do nada. Brotaram.


Ou brotaram do inhame gopodjoga [...] Nasceram primeiro, de
si mesmo, Lakapoy, Tamoati, Palop 4, Moradati, Gerepti,
Gerpati. [...] os primeiros seres fizeram tudo. [...] Palop nosso
pai, fez muito mais, fez a terra toda” (MINDLIN, 2007, p. 122).

O fragmento anteriormente descrito é parte da narrativa mítica


da criação do mundo do povo Paiter Suruí, que narram histórias para
explicar o mundo e seus fenômenos. Em conformidade com Turner
(1990, p. 12) os “[...] povos primitivos, com todos os rituais e as
expressões ‘guturais’, têm sido excelentes estudiosos de seus mundos, e,
portanto, da realidade”. Esses conhecimentos que estão incorporados no
cotidiano indígena expressado através de narrativas orais comumente
repassadas para gerações mais jovens, o que representa na concepção de
Almeida Silva (2010, p. 100), que:

[...] as histórias narradas pelos indígenas, apesar de serem de


modo geral breves, oferecem uma enorme complexidade de
construção de mundo, porque representam um baú de
sabedorias, experiências, vivências e cultura, contendo desde a
essência de sua gênese, perpassando pela transfiguração do seu
modo de vida, e principalmente pela relação de familiaridade
com a floresta, válida para todos os divíduos da mesma
coletividade.

Assim, percebemos que as narrativas orais se configuram como


um dos aspectos mais importante da cultura indígena, por englobar
múltiplos aspectos de suas vivências, que revelam sua espiritualidade,
experiências e trajetórias, repassada de geração para geração, o que a
nosso ver constitui uma educação para a vida.

4 É grafado como Palob (o grande criador), conforme Suruí (2018, p. 37).

171
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Essa dimensão educativa indígena é o objeto de apreciação nesse


trabalho. Procuramos analisar a partir de um estudo documental a
temática educacional no Plano de Gestão Ambiental da Terra Indígena
Sete de Setembro, habitada pela etnia Paiter Suruí, o qual foi elaborado
a partir de 2000 pela Associação Metareilá do Povo Indígena Suruí em
parceria com a Kanindé Associação de Defesa Etnoambiental, o Plano de
Gestão Etnoambiental da TISS/TIPK, ou mais conhecido como Plano de
50 anos Paiter Suruí.
O plano apresenta uma estratégia educativa que suplanta os
modelos das Secretarias de Educação implantados na maioria das
escolas indígenas, como também traz perspectivas que buscam a
conservação dos valores culturais e do meio ambiente, para garantia da
sobrevivência da coletividade Paiter. Com isso se configura em proposta
transdisciplinar, na concepção de Tress, Tress e Fry (2005) apud
Athayde et al. (2013, p. 5), visto tratar-se “um modo de construção do
saber integrativo que vai além das disciplinas da ciência ocidental,
pressupondo o diálogo, as trocas e a integração de saberes entre
academia e sistemas de conhecimento de participantes não acadêmicos”.
É perceptível no plano a integração de diversos saberes, saúde,
educação, segurança alimentar, proteção territorial e moradia ao meio
ambiente. Esta conectividade com a natureza se faz importante, porque
os Paiterey, conforme aponta Suruí et al. (2014, p. 8) consideram que
“Em tal sentido, concebem que o modo de viver peculiar está
intimamente ligado à natureza, especialmente a floresta que é de grande
importância para sustentabilidade da cultura, tradição, rituais, alimentos
e a própria existência do povo”. O objetivo geral do citado plano é:

Implementar o Programa Paiterey para a gestão ambiental,


estabelecendo procedimentos e diretrizes para o
encaminhamento das demandas sociocultural, de forma a
permitir condições para o uso responsável dos recursos
naturais gerando os benefícios necessários, a valorização da
cultura e a conservação do meio ambiente (KANINDÉ;
METAIRELÁ, 2009, p. 12).

172
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Os Suruí de Rondônia, autodenominados Paiter, que significa


gente, “nós mesmos” (MINDLIN, 2007) ou ainda “gente de verdade”,
vivem próximo à cidade Cacoal-RO, na rodovia, a BR-364, que liga Porto
Velho-RO a Cuiabá-MT, e, também próximos à sede municipal de
Rondolândia-MT.
O território habitado é autodenominado Terra Indígena Paiterey
Karah ou Sete de Setembro pela FUNAI e localiza-se numa região entre
os estados de Rondônia e Mato Grosso, com a população distribuída em
27 aldeias, isto no ano de 2015.
Dados disponibilizados no site Povos Indígenas no Brasil, do
Instituto Socioambiental (ISA), a partir de informações da SIASI/SESAI
que em 2002 a TIPK que a população era de 920 pessoas que
encontravam-se distribuídas em onze aldeias dispostas ao longo das
linhas de acesso, de modo que constituia-se como base de proteção
contra a entrada de não indígenas em em seu território. Ainda de acordo
com esses dados, 432 pessoas encontram-se na idade entre 0 e 15 anos,
o que revela que uma significativa parte de sua população é bastante
jovem. A mesma fonte indica que devido a um ligeiro crescimento
vegetativo a população alcançou 1.375 pessoas 5.
O contato oficial com a sociedade brasileira deu-se no dia sete de
setembro de 1969, na localidade chamada Nambekó-dabadakibá (o
lugar onde o facão foi pendurado e que o yara 6 chegou), ocasião em
visitaram o Posto Indígena Sete de Setembro instalado pela FUNAI,
motivo pelo qual a Terra dos Paiter Suruí passou a ter a mesma

5 Em conformidade com as informações dos Paiterey, sua população atual é de


aproximadamente 1.500 pessoas, com vários integrantes da etnia que
frequentam curso superior, inclusive em pós-graduações (mestrados e
doutorados), o que evidencia o propósito de implantarem uma universidade
indígena livre, de modo que esses possam exercer o magistério superior junto a
seu povo.
6Designação dada para quem não é Paiter Suruí, especialmente aquele que é
estranho, estrangeiro, o não indígena. O plural é yara ey.

173
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

denominação em alusão à data do contato oficial. Neste sentido, Suruí et


al. (2014, p. 4), afirmam que:

[...] o contato oficial com os Paiter Suruí está relacionado tanto


a fatos históricos quanto geográficos e geopolíticos, em virtude
de várias situações ocorridas no país, das quais destacamos
alguns delas: 1) a implantação do regime militar no Brasil
(1964-1984); 2) a aplicação da doutrina de segurança nacional;
3) a ocupação do “vazio demográfico” amazônico; 4) a
efervescência de reivindicações sociais, especialmente no sul e
sudeste, como reforma agrária; 5) a modernização da
agricultura provocando o êxodo rural com consequente
marginalização nas cidades.

Antes disso é preciso ressaltar que nos tempos dos seringais 7,


seguido pela mineração, ocorreram uma série de conflitos em todo o
território que hoje se constitui o estado de Rondônia, ou seja, o avanço
civilizatório com as pressões e ameaças, inclusive, possibilitou que
houvessem as inevitáveis guerras entre distintas etnias que por serem
nômades perambulavam por territórios em busca da sobrevivência.
Constata-se que a migração de brasileiros do sul do país para
Rondônia, descritas por Suruí et al. (2014) foi um dos fatores que
provocou a invasão de terras antes habitadas pelos indígenas e
potencializou os conflitos. No caso das terras habitadas pelos Paiter
Suruí nesse período, Mindlin (1985, p. 26) descreve:

O contato da FUNAI veio como uma necessidade. Relatam,


dramatizando, o primeiro encontro com Apoena Meireles, em
69, que juntamente com o pai, Francisco Meireles, chefiava a
expedição de atração. Os índios e Apoena tremiam de medo de

7 Indicamos a obra de Leonel (1995), o qual que faz um minucioso trabalho de


“encontros de sociedades”, desde os “ciclos da borracha” e percorre até à
colonização oficial que incidiram ameaças, conflitos e violências sobre diversos
povos de Rondônia. Indicamos ainda o artigo de Miguel et al. (2016), em que os
autores descrevem situações de conflitos e violências no antigo Território
Federal do Guaporé, atual estado de Rondônia, as quais estão vinculadas a
questões econômicas, notadamente nos anos 1950.

174
ALMEIDA SILVA (ORG.)

um lado e do outro dos facões oferecidos como brinde aos


índios, em sinal de paz. Eram os primeiros estrangeiros que não
vinham como chacinadores. Mas a ambiguidade dos resultados
fica aparente quando os índios refletem sobre a passagem. Diz
um Suruí que Apoena ficou amigo e impediu os seus de
continuarem a matar a tribo, que trouxe facões, machados,
panelas, espingardas, espelhos, objetos que os índios não
tinham e desejavam. Mas que na ponta dos facões pendurados
trouxe também doença e morte.

O contato interétnico deixou lembranças tristes e profundas para


o povo Pai- ter-Suruí, como relata Chicoepab Suruí (2013, p. 25): “No
ano de 1971, meu povo foi vitimado pela primeira epidemia de sarampo,
mais da metade de nossa população cruzou os caminhos do
Maraimepeter (o caminho pelo qual cruzam os espíritos dos mortos na
cosmologia Paiter Suruí)”. Isto ocasionou uma diminuição drástica da
população e uma desorganização social do povo. Em decorrência dessa
aproximação, outros problemas também emergiram, como nos
constatam Suruí et al. (2014, p. 3):

[...] o contato com a FUNAI – uma espécie de “rendição” –


potencializaram as pressões marcadas com assentamento de
colonos oriundos de outras regiões brasileiras, com conflitos e
disputas de terras; pela construção de estradas e cidades
próximas ao entorno; pelo surgimento de doenças, até então
desconhecidas, que dizimaram praticamente toda a etnia; pela
apropriação ilegal de produtos madeiráveis, entre outros, e
com isso ocorrendo à usurpação das terras ancestrais.

A população indígena foi praticamente dizimada, há divergência


quanto aos números de indígenas na época do contato, Mindlin (1985)
cita 500 a 600 pessoas, baseado na contagem realizada por Jean
Chiappino em 1971. Porém, os Suruí afirmam “terem sido 5 mil o número
de pessoas encontradas durante o primeiro contato” (KANINDÉ;
METAIRELÁ, 2009, p. 9).
O impacto sentido pelo povo foi imenso, o que de acordo com
Suruí (2013, p. 21) “Antes do contato com a sociedade nacional, havia

175
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

mais de 4 clãs entre nós, Paiter Suruí, tais como, Agoy Pep (uma espécie
de árvore), Agoy Kir, Watãr (outra espécie de árvore), Kaler (borboleta)
e Mãp (castanheira). Esses clãs foram dizimados durante as tentativas de
contato”.
Atualmente a organização da etnia ainda é a partir dos clãs
remanescentes: Gabgir (maribondo amarelo); Gameb, às vezes grafado
como Gamep (marimbondo preto); Makór (taquara); e Kaban (uma
frutinha doce encontrada na região). Cada clã possui um chefe, o qual de
tempos em tempos é repassado de pai para filho, além de poder ser
transmitida a um irmão caso o chefe não possua descendentes
masculinos.O mais comum é o homem chefiar o grupo de irmãos, mas o
sogro pode ser o chefe dos genros caso morem na mesma casa 8.
A manutenção dos clãs é delineada pela união de dois indígenas
através do casamento, em que,

Não pode haver uma relação de casamento entre membros de


um mesmo clã ou com clãs que tenham grande aproximação
de parentesco, como Gamep e Gabgir. O casamento da jovem
com o tio materno ainda é uma tradição entre nós, embora haja
casamentos que fujam à regra. Na maioria das vezes, a menina
é comprometida pelos pais, desde o nascimento. A pessoa do
clã Gamep pode se casar apenas com a pessoa com clã Kaban.
A pessoa do Kaban, por sua vez, pode se casar com pessoas de
qualquer um dos outros três clãs: Gabgir, Makor ou Gamep. A
pessoa do clã Gabgir pode se casar com a pessoa do clã Kaban
e Makor, e o Makor, com o Gabgir e Kaban (SURUÍ, 2013, p.
22).

Além da organização dos clãs, o povo Suruí também conta com


um conselho, do qual participa as lideranças e os anciões (os mais idosos
e com maior experiência de vida), com isso objetiva gerenciar as diversas
atividades dos Paiter desenvolvidas no seu território. Este é formado por
membros de todos os clãs, de modo que constitui um sistema de

8 Informações extraídas do site https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:


Surui_Paiter. Acesso em: 10 abr. 2014.

176
ALMEIDA SILVA (ORG.)

governança democrático. A prática desse tipo de governança tem sido


importante para a vida do povo Paiter, como relata um indígena Suruí,

Com a organização do Parlamento Paiter Suruí, meu povo tem


‘resgatado’ a política própria de nossa cultura, combinando-a
com novas formas, conhecidas na interação com a sociedade
não- indígena e a execução de projetos, [...] começou a se unir
mais para dialogar sobre os projetos de desenvolvimento da
nossa terra, diminuindo os riscos do aparecimento de
lideranças de qualquer forma (SURUÍ, 2013, p. 38).

O Parlamento Paiter Suruí como se constata é um espaço de


aprendizado, de trabalho, de trocas culturais. Há ainda o Labiway eSaga
(líder maior do povo), com papel político semelhante a um primeiro
ministro, que representa a etnia no interior e externamente à TIPK, cuja
escolha para representação se dá com a participação de todo o coletivo
Paiter.

TEMPO DE MUDAR

Os Suruí aos poucos, saberão definir seu papel e escolher, dentro


do que for possível, seu modo de vida no difícil Brasil do final do século
(MINDLIN, 1985, p. 9).
Ameaçados de extinção em decorrência de inúmeros fatores, o
povo Suruí procurou desenvolver nas últimas décadas estratégias a
partir da gestão territorial, mediante a realização de diagnósticos
etnoambiental e de etnozoneamento e um plano de proteção com o
reflorestamento em áreas degradadas.
A partir do ano 2000, em parceria com a Associação Metareilá do
Povo Indígena Suruí, Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e da
Equipe de Conservação da Amazônia - ECAM, elaboraram o Plano de
Gestão Etnoambiental da TISS/TIPK, que objetiva estabelecer em 50
anos procedimentos e diretrizes para o encaminhamento das demandas
socioculturais, de modo a permitir condições para o uso responsável dos
recursos naturais.

177
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

O plano segue a seguinte estrutura: contextualização histórica,


social e ambiental; Diretrizes e paradigmas do Sistema Nacional de Etno
Desenvolvimento Sustentável; Diretrizes; Paradigmas norteadores;
Objetivos do plano de gestão; Metodologia; Subprogramas: contexto,
diretrizes estruturais e as temáticas (Segurança alimentar, Saúde
integral, Educação, Cultura, Sustentabilidade ambiental, Habitação e
construções indígenas sustentadas, Meios e vias de transporte, Matriz
energética). As ações a serem desenvolvidas contemplam cada campo
temático, que por sua vez, trazem o detalhamento das ações a serem
postas em prática.

TEMPO DE APRENDER

Na parte introdutória do Plano Etnoambiental, os elaboradores


explicitam a metodologia que elegeram para o desenvolvimento das
ações dos eixos temáticos, assim,

Pretendemos estabelecer aqui uma nova forma de repassar,


mediante uma metodologia educativa, conhecimentos sobre
manejo e uso de recursos naturais para produção de alimentos,
construção, saúde, processamento, preparação e colocação de
produtos no mercado, dentre outros. Uma escola de
entendimento holístico, sobre os diversos componentes
necessários ao etnodesenvolvimento Sustentado com a
construção de um programa que atenda de fato as necessidades
atuais dos Paiter sem comprometer a sustentabilidade
socioambiental futura (KANINDÉ; METAIRELÁ, 2009, p. 6)
(Grifo nosso).

No corpo do plano a metodologia educativa é expressa nos eixos


temáticos:

Segurança alimentar – Estabeleceu-se a necessidade de análise


mais profunda sobre a modificação dos hábitos tradicionais de
alimentação, procurando verificar os alimentos abandonados,
os introduzidos e as suas implicações com o aparecimento e
desenvolvimento de doenças (KANINDÉ; METAIRELÁ, 2009,
p. 17).

178
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Saúde integral – Necessário ainda se faz a formação de agentes


indígenas de saneamento para tratarem dos temas de esgoto,
lixo e educação na área de saneamento e os outros temas
relativos ao atendimento primário na área de saúde
(KANINDÉ; METAIRELÁ, 2009, p. 19).
Educação – A criação de uma escola padrão que dê
continuidade a uma formação diferenciada [...] e
Diferentemente do ensino formal, aqui não se pretende formar
índios com diploma para a sua atuação junto à sociedade
nacional, nem alfabetizá-los para o entendimento da cultura do
não – indígena, mas sim prepará-los para o estabelecimento
dos processos de sustentação do próprio etnodesenvolvimento
Sustentado (KANINDÉ; METAIRELÁ, 2009, p. 20).
Cultural – A criação do Centro de Cultura e Tecnologia Paiter
deverá prestar suporte ao desenvolvimento de atividades de
valorização da cultura indígena (KANINDÉ; METAIRELÁ,
2009, p. 22).
Sustentabilidade ambiental – A educação ambiental deve ser
desenvolvida nas aldeias, trazendo Matriz energética –
entendimento e apropriação de novas técnicas; Capacitar e
preparar os indígenas para utilizar biodigestores (KANINDÉ;
METAIRELÁ, 2009, p. 26, 32).

Dos oito eixos que compõem a proposta, seis explicitam clara-


mente a temática educacional, nas metodologias e nas ações. Os eixos
Habitação e construções indígenas adaptadas, não citam diretamente
uma metodologia educativa, no entanto, refere-se à necessidade das
aldeias não perderem “toda sua originalidade e tradição de construção,
pois é como não mais falar a língua materna, não saber da sua própria
história” (KANINDÉ; METAIRELÁ, 2009, p. 29). O que se configura em
educação, haja vista, ser necessário ensinar aos mais jovens a construção
das tradicionais habitações indígenas.
No componente temático, Meios e vias de transporte, os Paiter
Suruí apresentam a necessidade de meios de transportes que atendam às
necessidades de evacuação de produção na época adequada, o que se faz
extremamente necessário para o desenvolvimento econômico local.

179
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Além dos eixos, os fundamentos do Programa trazem dez


objetivos específicos que integram entre si, cinco deles correlacionam a
educação diretamente, a saber:
1. Desenvolver projetos alternativos de produção de
alimentos, farmácia viva, habitação sustentável e geração
de excedentes comercializáveis;
2. Promover a cultura Paiter Suruí, com a criação do Centro
de Formação e Pesquisa Indígena para divulgação da
cultura na sociedade regional, nacional e internacional;
3. Implantar a Escola Agroambiental Paiterey como
instrumento para repasse de conhecimentos ambientais
sobre uso dos recursos naturais;
4. Implantar a Universidade Indígena Paiterey;
5. Implantar o Centro de Cultura e Tecnologia Paiter, no
qual serão apoiados indígenas para realizarem junto com
pesquisadores não indígenas pesquisas culturais e
científicas, via convênios e parcerias com instituições e
institutos de pesquisa, faculdades, Ongs e empresas.

É perceptível que há por parte dos indígenas uma preocupação


em uma formação tríade e indissociável: desenvolvimento–cultura-
natureza, alicerçada pela educação, com saberes diversos formais e
informais, o que de acordo com Suruí et al. (2014, p. 9) se dá

Na concepção educacional os Paiter Suruí apontam a


necessidade de unir seu etnoconhecimento (informal) com o
conhecimento sistematizado e acadêmico-científico (formal),
para tanto, tem buscado parcerias nacionais e internacionais
com universidades, instituições de ensino fundamental e
médio, entidades não governamentais. Compreendem que é
indispensável à adoção de métodos formais de aprendizado,
nos quais se incluem a continuidade e a ampliação da formação
de professores indígenas, como forma de passar essa atribuição
à própria comunidade. Em tal sentido projetam a criação de
uma escola formal que possibilite a continuidade a uma

180
ALMEIDA SILVA (ORG.)

formação diferenciada, ou seja, incorporando a lógica temporal


e o conhecimento do povo com o saber científico.

Ao expor a estrutura que contempla: a) Diagnóstico e


planejamento estratégico participativo; b) Transferência de
conhecimentos e informações; e c) Autonomia no gerenciamento e
monitoramento de projeto. O segundo item reforça o aspecto do
etnoconhecimento e transdisciplinar como norteador das ações “Através
do sistema de ensino formal e das formas de ensino livre, como Escola
Agroambiental, Centro de Vivência Cultural e Biblioteca Ambiental,
pretendemos construir um forte siste- ma de repasse de conhecimentos
e tecnologias de fácil apropriação pelos Suruí” (KANINDÉ; METAIRELÁ,
2009, p. 14).
Como vimos anteriormente, e o próprio titulo do plano sugere
“Plano de Gestão Etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro”, é
perceptível no corpo do texto, ao se analisar os eixos temáticos, ações
educativas, objetivos e estrutura do plano a intrínseca relação entre o
indígena e a natureza. As estratégias sugeridas se configuram como im-
portantes para o uso responsável dos recursos naturais na preservação
da cultura e na conservação do meio ambiente. De acordo com Almeida
Silva (2007, p. 9) “as relações entre ser humano e natureza são
indissociáveis, visto que o território constitui a base física dando sua
interconexão com o mundo, sendo o grande palco para a construção
cultural e social”.
É nesse sentido que no cotidiano das aldeias os ensinamentos
para a vida fluem de modo natural, como na cena que descreve Mindlin
(1985, p. 40) sobre o dia a dia dos Suruí,

A roça tem um papel da escola. Em maio, no tempo de colher


cará, numa colheita possivelmente ritual, a que se juntaram
homens de outras casas, um sábio e pajé interrompem a
atividade para contar o passado da tribo, as lutas com os
brancos, o sentido das festas. As crianças, com pequenas
tarefas, imitam os adultos e participam de seu universo.

181
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Entendemos que o plano de gestão territorial do povo Suruí pode


ser considerado também uma proposta para educação intercultural,
como norteia a legislação. Haja vista esse conceito ser entendido como
inter-relação entre culturas, de modo que propõe um tratamento
igualitário da diversidade, em que esta é vista como riqueza e não como
entrave nas relações. Assim, na contra mão da hegemonia colonialista.
No entanto, ainda se configura um grande desafio a implantação
dessa proposta, que muitas vezes, são elaboradas pelos não indígenas ou
pela inexpressiva participação indígena,

[...] pois a escola que conhecemos tem como base a


homogeneização: em que se ensina para todos, em que se
agrupam por idades similares, se igualam e disciplinam
conhecimentos e saberes, modos de agir, sintetizados na
homogeneização dos tempos e espaços. [...] como fazer uma
escola que não cumpra os dias letivos instituídos para todas as
escolas pelo Ministério da educação? Como enfrentar os
tempos escolares padronizados e controlados da vida, com um
horário fixo e quase inegociável? Como vivenciar o controle
escolar que exige uma assiduidade que desconhece a
organização familiar e comunitária de cada pessoa ou grupo?
Do mesmo modo, posso indagar acerca do espaço escolar,
cujos prédios que alojam a instituição são confundidos com a
própria escola e sugerem um aprender e ensinar entre quatro
paredes, com certeza são grandes os desafios para a
constituição de fato, das escolas especificas e diferenciais
(BERGAMASCHI, 2012, p. 51).

Ainda nesse sentido, o segundo passo seria de um currículo


próprio, o que contraria em parte o que cita o Art. 26 da LDB 9394/1996.
Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino
médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada
sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte
diversificada, exigida pelas características regionais e locais da
sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.
A lei permite um currículo de base comum, com isso autoriza
apenas um pequeno acréscimo na parte diversificada. Defendemos que o

182
ALMEIDA SILVA (ORG.)

currículo da escola indígena deva partir da interação da tradição e


memória ensinadas pelos mais idosos, e os conhecimentos da sociedade
não indígena e que a escolha desse último seja realizada pelas
coletividades indígenas.
Outro aspecto proposto na organização da escola indígena é o da
interculturalidade, palavra muito usada na atualidade, principalmente ao
se falar sobre educação e escola. Esta é entendida na legislação brasileira
como um processo de inter-relação entre as culturas, o intercâmbio entre
as mesmas e as contribuições recíprocas as quais todas as sociedades
foram e são submetidas ao longo de sua história (BRASIL, 1994).
Neste sentido, Bergamaschi (2012, p. 44) considera que “a
interculturalidade pode significar o movimento concreto de diferentes
grupos sociais em interação, em diálogo”. Ao partirmos dessa concepção
podemos compreender uma relação que implica em reconhecer e aceitar
as diferenças culturais, raciais, sexuais, religiosas, de classes e gênero.
Essa configuração de educação intercultural exige um currículo
pensado e elaborado por muitas mãos e cabeças: educadores indígenas e
não indígenas entre outros membros da comunidade como crianças,
mulheres, jovens e idosos, de modo a garantir que o processo de ensino
e aprendizagem se insira num contexto em que ao mesmo tempo
possibilite o acesso à uma nova cultura, mas que também ajude a
preservar e valorizar a riqueza cultural étnica e ambiental.
Os documentos norteadores para a educação indígena, em
especialmente o atendimento às crianças do ensino fundamental,
silenciam nesse aspecto, o recente documento Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Indígena (2012), objetiva:

a) Orientar as escolas indígenas de educação básica e os sistemas


de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios na elaboração, desenvolvimento e avaliação de
seus projetos educativos;
b) Orientar os processos de construção de instrumentos
normativos dos sistemas de ensino visando tornar a Educação

183
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Escolar Indígena projeto orgânico, articulado e sequenciado de


Educação Básica entre suas diferentes etapas e modalidades,
sendo garantidas as especificidades dos processos educativos
indígenas;
c) Assegurar que os princípios da especificidade, do bilingüismo e
multilinguismo, da organização comunitária e da
interculturalidade fundamentem os projetos educativos das
comunidades indígenas, valorizando suas línguas e
conhecimentos tradicionais;
d) Assegurar que o modelo de organização e gestão das escolas
indígenas leve em consideração as práticas socioculturais e
econômicas das respectivas comunidades, bem como suas
formas de produção de conhecimento, processos próprios de
ensino e de aprendizagem e projetos societários;
e) Fortalecer o regime de colaboração entre os sistemas de ensino
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
fornecendo diretrizes para a organização da Educação Escolar
Indígena na Educação Básica, no âmbito dos territórios
etnoeducacionais;
f) Normatizar dispositivos constantes na Convenção 169, da
Organização Internacional do Trabalho, ratificada no Brasil,
por meio do Decreto Legislativo n. 143/2003, no que se refere
à educação e meios de comunicação, bem como os mecanismos
de consulta livre, prévia e informada;
g) Orientar os sistemas de ensino da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios a incluir, tanto nos processos
de formação de professores indígenas, quanto no
funcionamento regular da Educação Escolar Indígena, a
colaboração e atuação de especialistas em saberes tradicionais,
como os tocadores de instrumentos musicais, contadores de
narrativas míticas, pajés e xamãs, rezadores, raizeiros, parteiras,
organizadores de rituais, conselheiros e outras funções próprias

184
ALMEIDA SILVA (ORG.)

e necessárias ao bem viver dos povos indígenas;


h) Zelar para que o direito à educação escolar diferenciada seja
garantido às comunidades indígenas com qualidade social e
pertinência pedagógica, cultural, linguística, ambiental e
territorial, respeitando às lógicas, saberes e perspectivas dos
próprios povos indígenas.

Assim, para o terceiro objetivo apresentado acima sobre o


bilinguismo, que se configura uma complexidade, haja vista que se fala
no Brasil várias línguas indígenas, o que dificulta a relação entre as
diferentes etnias, como também entre indígena e não indígena. Não
defendemos o monolinguismo, ao contrário, entendemos esse aspecto
como um dos mais importantes para se institui uma escola diferenciada
– a preservação de sua língua materna.
A apropriação de novos sentidos e representações culturais para
as populações indígenas ocasionou em muitas etnias à perda de sua
língua materna. Todos os documentos que norteiam a educação
indígena, a partir da década de 1980, defendem que as crianças sejam
alfabetizadas em sua língua mãe.
No entanto, a educação indígena está longe da idealizada. O que
está posto na legislação não confere a autonomia da educação escolar
indígena, como chama atenção Marés (1998 apud VILLARES, 2009, p.
274):

A educação estatal está concebida como um reprodutor


monocultural, o que causa problemas não só aos indígenas,
mas também aos ciganos, às comunidades negras e mesmo às
rurais, que recebem uma educação ‘universal’ urbana, havendo
em relação aos índios, o acréscimo da língua. O
multiculturalismo aplicado não raro se traduz em um conteúdo
universal expresso em línguas diferentes, o que também é uma
imposição, talvez até mais eficiente do que o colonialismo
cultura.

185
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

O Plano de Gestão Territorial do povo Suruí, que


compreendemos também como proposta educacional intercultural,
supõe uma estratégia de fortalecimento de seu Território, de sua cultura,
e de sua economia, por meio da educação, de modo que concordamos
com Suruí et al. (2014, p. 13):

Aqui se inscreve claramente que um dos meios para se garantir


a sobrevivência da humanidade é exatamente que a educação
poderá proporcionar mudanças positivas no trato que fazemos
com a Terra, com a floresta e com os demais seres existentes e
que passa necessariamente pelo respeito e pelo uso adequado
do nosso Planeta.

UMA ÚLTIMA PALAVRA

Nosso trabalho procurou identificar e apresentar a dimensão


educativa metodológica inserida no plano de gestão etnoambiental do
povo Paiter Suruí a partir de uma revisão bibliográfica e de uma análise
documental. Pela limitação do trabalho, apresentamos algumas das
ações que julgamos corresponder aos objetivos propostos. No entanto,
enfatizamos que o plano é composto de 41 ações e que algumas apre-
sentam os aspectos relacionados a temática educacional.
Ainda na perspectiva educacional, o plano apresenta como
objetivos específicos: Implantar a escola agroambiental Paiterey como
instrumento para repasse de conhecimentos ambientais sobre uso dos
recursos naturais e Implantar a Universidade Indígena, com isso
compreendemos que a educação é a grande aliada e se vincula com os
anseios do povo Paiter, que consiste, principalmente, na valorização de
sua cultura.
Desse modo, é necessário reconhecer o vanguardismo do Plano
de Gestão Etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro, por
apresentar preocupações e ações de desenvolvimento e preservação de
seu território, visto que a sustentabilidade, a preservação/conservação e
fortalecimento de sua cultura não se disassocia da educação. Só assim a
aldeia e a escola caminharão juntas e robustas.

186
ALMEIDA SILVA (ORG.)

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190
ABORDAGEM SOBRE A TERRITORIALIDADE RONDONIENSE E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA INDÍGENAS E NÃO INDÍGENAS 1

Alexis de Sousa Bastos


Adnilson de Almeida Silva
Fabiana Barbosa Gomes
Luciléa Ferreira Lopes

Objetivamos analisar os processos históricos ocorridos em


Rondônia, em decorrência da migração verificada nas últimas décadas,
os quais produziram grandes transformações no espaço e a promoção de
novos arranjos e reconfigurações territoriais marcadas pelas novas
relações de disputas por poder, refletidas na dominação do território.
Além do estudo de alguns desses conceitos de inesgotável debate dentro
da Geografia, a análise tem por base os modos de percepção do território
por indígenas e não indígenas, bem como os reflexos sentidos através das
mudanças de ordem social, política, econômica, ambiental e espacial por
esses atores sociais.
O nosso objetivo principal é discutir a percepção territorial com
as mudanças estruturais e conjunturais, assim como os respectivos
significados e representações para os povos originários e não indígenas
no contexto da dinâmica regional rondoniense. A metodologia utilizada
na análise inicia-se com reflexões teóricas e epistemológicas de autores
como Giddens, Harvey, Milton Santos, Théry, Raffestin, dentre outros
que tem proporcionado debates acerca das questões de território,
territorialidade, espaço e espacialidade; além da experiência acumulada
por nós autores e autoras que vivemos na Amazônia e temos realizados
várias atividades profissionais e de pesquisas na região.
O presente trabalho é estruturado em quatro seções: 1) a
primeira retrata as considerações iniciais o processo histórico de

1 Publicado com o título de “Amazônia: territorialidade rondoniense - uma visão

geográfica dos seus reflexos para indígenas e não-indígenas” nos Anais do I


Geosimpósio, no ano de 2009.

191
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

ocupação de Rondônia a partir do Programa Integrado para o


Desenvolvimento do Noroeste do Brasil - Polonoroeste; 2) a seguinte
discute teoricamente sobre a compreensão de território e suas
implicações como conceitos geográficos; 3) versa sobre a colonização
em Rondônia e as conseqüências para os territórios indígenas e não
indígenas; 4) retrata as considerações finais como reflexão do processo
de reconfiguração territorial.
Como resultado percebe-se na análise uma rápida e contínua
transformação territorial brancamente demarcado, que permite seu uso
pelos indígenas, mas que de fato é um território não indígena, isso é, dado
à realidade promovida pela sociedade envolvente que alija os povos
originários – mesmo que estes ocupem porções consideráveis do
território. Em outras palavras, quase sempre a ocupação territorial pelos
indígenas significa sua exploração social, econômica, cultural, política e
territorial pelos não indígenas. Como contribuição geográfica esperamos
que possibilite a reflexão sobre as questões territoriais da Amazônia e
sua relação política e de poder no território.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O estado de Rondônia é marcado pela alteração de sua paisagem


a partir da década de 1970, momento em que se operacionaliza intensa
corrente migratória em decorrência do incentivo e propaganda oficial
que oportunizou aos migrantes, especialmente do sul e sudeste
brasileiros a receberem terras distribuídas gratuitamente através de
projetos governamentais de ocupação. Tal processo é intensificado com
a criação, em 1981, do Polonoroeste que forneceu as bases de
infraestruturas, como estradas, núcleos de apoio rural, escolas, entre
outras, de modo que possibilitou a ascensão de status jurídico e
autonomia político-administrativa de território federal para estado.
Com isso, o espaço geográfico rondoniense recebeu uma
quantidade enorme de pessoas provenientes de outras Unidades da
Federação, conforme apontado por Pedlowski et al. (2005). O estímulo à

192
ALMEIDA SILVA (ORG.)

migração não foi obra do acaso, mas sim da estratégia geopolítica


adotada pelo sistema política vigente à época, cujo objetivo consistia no
enfraquecimento dos movimentos de organizações sociais que
ensejavam a democratização do país, o que de acordo com Fearnside
(2004) era uma resposta aos graves problemas causados pela
mecanização da agricultura e consolidação da concentração fundiária no
sul brasileiro.
A paisagem rondoniense era intensificadamente alterada através
de processos exossomáticos 2, que modelavam a região e contribuíam
para a definição de uma nova espacialidade/territorialidade e novos
arranjos geográficos. Nessa efervescência, processavam-se as
reconfigurações, diretamente ligadas aos modos de uso e ocupação da
terra, por meio de intrincadas relações de poder. Essas mudanças, por sua
vez, influenciaram diretamente o tempo e o espaço, enquanto lugar de
projeção das possibilidades, consequentemente vieram a causar intensa
fricção interétnica e estranhamento cultural entre os que chegavam e a
população local estabelecida ancestral e anteriormente na região, de
modo a promover um processo dinâmico sobre o território rondoniense
e sobre as territorialidades dantes constituídas.

A COMPREENSÃO DE TERRITÓRIO E SUAS IMPLICAÇÕES COMO


CONCEITOS GEOGRÁFICOS

Como tempo e espaço são dimensões essenciais para a


compreensão dos problemas ambientais e humanos, a contribuição da
Geografia e da História é indispensável para entender o processo de
ocupação e transformação do espaço, das mudanças e inovações
tecnológicas ocorridas ao longo do tempo e dos modelos de

2No sentido de desenvolver a região a partir de políticas originadas nos grandes


centros de decisões do país. O termo é utilizado por C. Santos (2004) para
explicar a operacionalidade humana sobre a
construção/remodelagem/reconfiguração do espaço geográfico, por meio de
próteses, as quais são instrumentos ou aparatos artificiais que são utilizados no
processo e na morfologia espacial.

193
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

desenvolvimento adotados, conforme apontado por C. Santos (2004).


Entretanto, tempo e espaço são insuficientes para explicar as
transformações em andamento, de modo que é necessário o ser humano,
o ser social, o que para Soja (1993) é o elemento essencial para completar
a tríade da ordem espacial da existência humana.
Nesse contexto, Santos (2006b) define que o ser homem, como
aquele que anima as formas espaciais, atribui-lhes um conteúdo, uma
vida, uma função, o que no presente estudo de caso, esses seres ou atores
sociais são representados pelos indígenas e não indígenas. Do mesmo
modo, é indispensável incluir o ser humano como ser individual e social
(MACHADO, 1997), é oportuno o entendimento desse e de outros
conceitos geográficos utilizados para que se estabeleça o diálogo. Se isso
não é estabelecido, também não se permite que as pessoas possam
discutir determinado assunto, conforme afirma Santos (2006a).
É relevante na compreensão do texto, a definição de espaço,
objeto de estudo da Geografia, em que estão inseridos o lugar e o
território, e conseqüentemente definem-se as espacialidades. Neste
sentido, afirma C. Santos (2004) que o espaço é um conjunto
indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações, os quais
podem ser qualificados.
O autor acima corrobora com a discussão ao inferir que pelo fato
do espaço ser revelado intuitivamente e integrar cada um de nós, não há
a necessidade de sua apreensão científica, e sim de análise das
representações presentificadas no espaço, o que conduz à reflexão de
Tuan (1980) acerca da relação de afetividade do homem com seu meio
numa perspectiva topofílica 3.
Por seu turno, Werlen (2000) compreende e considera que o
objetivo da Geografia Humana fenomenologicamente fundamentada

3 O conceito diz respeito à afetividade com o lugar, ao pertencimento identitário,

logo, reflete as vivências, as experiências, as culturas e modos de vida.

194
ALMEIDA SILVA (ORG.)

não deve ser mais o de analisar o espaço, mas principalmente analisar a


produção cotidiana das geografias produzidas pela ação social.
A partir de tal constatação os conceitos utilizados possuem
abordagens distintas: o espaço enquanto dimensão permissiva dos
comportamentos humanos, a intuição de possibilidades, a intenção de
possibilidades e por último, a realização dessas possibilidades (M.
SANTOS, 2004).
Destarte, a análise por nós proposta, é a de compreender a
mudança espacial ocorrida em Rondônia, fundamentada no conceito de
espacialidade 4, que significa o processo incessante de modelagem que o
ser humano promove na região a si e ao seu entorno, passíveis de
qualificação. Esse conceito é também utilizado por outros pensadores
como Soja (1993), ao tratar da dialética socioespacial que: “o termo
espacialidade especifica esse espaço socialmente produzido”. O escopo,
portanto, será analisar justamente esse recorte do espaço, essa
espacialidade onde estão impressos os resultados das ações humanas
que formataram esses lugares, espaços e territórios.
Por ser um “animal espacial” os seres humanos necessitam
construir ambientes que lhe possibilitem a vida de acordo com os seus
acúmulos culturais, modelá-los e atribuir-lhes funções, por isso passa a
ser denominado de lugar. Este pode ser considerado como a categoria
básica, mais fundamental da Geografia, conforme afirma M. Santos
(2004, 2006b), porém os lugares são constituídos por aparatos artificiais
para determinados fins e determinadas paisagens.
O contexto das paisagens cria um lugar, pois é constituido de
elementos naturais e artificiais que fisicamente caracterizam uma área,
portanto, é um conjunto de formas que, num dado momento, exprime as
heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre o ser
humano e o seu meio. O termo paisagem, parece o mais apropriado para
descrever as mudanças visíveis de uso e ocupação dos solos, e cobertura

4O termo espacialidade foi escolhido propositalmente, porque entende-se que


o espaço é anterior ao território, embora exista uma correlação entre ambos.

195
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

vegetal, por serem próteses tratadas e valoradas distintamente pelos


povos originários e pelos não indígenas.
Neste sentido, enquanto um percebe seu valor e representação
na floresta preservada, como objeto provedor dos estoques necessários
à sua reprodução cultural e integridade física, ou melhor, geográfica,
portanto devem ser preservadas/conservadas, por outro lado os não
indígenas concebem-na como reserva para usos imediatistas e fonte de
transformação de recursos para geração econômica.
A utilização de determinados recursos ou reservas, transforma-
os ou simplesmente valora-os, de modo que possibilita ao espaço
assumir funções distintas. A esse processo de “funcionalizar” a natureza
e seu conteúdo, deu-se o nome de instrumentalização do espaço, meio
pelo qual o homem procura moldá-lo, utilizá-lo de maneira a viabilizar-
se como humano.
Essas transformações, porém, ocorre de acordo com as
possibilidades e recursos (materiais e tecnologicos, por exemplo) de
cada povo, de seu acúmulo técnico, de suas relações socioculturais com
o ambiente, refletem seu caráter ideológico, o que para Robinson (1978)
pode ser traduzido como o conjunto de normas, valores, símbolos, ideias
e práticas que procuram justificar as relações econômicas e sociais
existentes no interior da sociedade. Para além desses enumerados pelo
autor, adicionamos os valores culturais, espirituais, ecológicos e políticos
como integrantes do conjunto, por compreendemos que não estão
disassociadas entre si no constructo de um povo.
Na perspectiva de Hitoma (1996), este considera e caracteriza
que a ideologia está intimamente ligada à relação de poder, que
influencia direta e decisivamente nos modos e na formatação de
ocupação, de instrumentalização dos espaços e na definição de
territórios. Este sentido, no nosso entendimento, relaciona-se ao que M.
Santos (2004) assegura que o espaço é o único veículo capaz de viabilizar
as aspirações humanas, uma vez que toda e qualquer carência se realiza

196
ALMEIDA SILVA (ORG.)

nele, logo, torna-se alvo de disputas territoriais e qualifica a função de


sobrevivência.
A necessidade natural e a capacidade dos seres huanos em
transformar a natureza que os circunda e suas próprias relações sociais
propiciam ambientes tensionados, como relação de poder, o que é
sugerido por Raffestin (1993) como o resultado da manifestação por
intermédio de aparelhos complexos que encerram o território,
controlam a população e dominam os recursos, de modo que está
implícito de todas as relações e permeia-se em todos os lugares.
A noção de território para Geografia esteve em seu início,
marcada pela representação de uma área que poderia ser identificada
pela posse, uma área de domínio de uma comunidade/coletividade, e
principalmente, por um Estado. Apesar de não ter perdido tal conotação,
os problemas para definição de território, ampliaram-se. Notadamente a
partir da década de 1960 o enfoque ultrapassa a ideia do Estado-Nação e
das questões políticas e econômicas, o que inclui-se a discussão
ideológica e cultural com sua valorização e a reformatação do
pensamento geográfico enquanto ciência espacial (MACHADO, 1997).
Na perspectiva dada pela autora, a relevância que o território
assume hoje para a Geografia, repousa em seu significado concreto, pois
envolve não apenas o físico ou material, mas também, tudo que uma
sociedade pode comportar como ideal, como representações,
sentimentos de vinculação e de comportamentos individuais ou
coletivos que participem da organização espacial. É entendido como um
produto da história de uma dada sociedade, que, portanto, está em
constante modificação, e resultante de um processo de apropriação de
determinado grupo social e do quadro de funcionamento da sociedade,
comporta assim ao mesmo tempo, como uma dimensão material e
cultural edificadas historicamente.
Na avaliação de C. Santos (2007) o espaço territorial de uma
nação é o locus do exercício do poder de um Estado ou formação política,
cuja soberania é a expressão do domínio patrimonial ou de propriedade,

197
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

de modo exclusivo, e sob dado contexto ecológico. Destarte, a palavra


possui um inerente significado jurídico, que abrange três importantes
atributos: a) dominação, por meio do poder soberano; b) interdição,
devido ao controle territorial; c) demarcação, em virtude das fronteiras
físicas.
Por tal delineamento, chega-se facilmente à conclusão, em tese
para alguns analistas e parte da sociedade brasileira, que jurídica ou
politicamente, os indígenas não possuem de fato territórios no território
do nosso país, isso porque esses não possuem um poder soberano ou
absoluto dentro de suas áreas, visto a situação de serem tutelados.
Suas terras possuem limites fixados pelo não indígena e são de domínio
da União, ou seja, eles possuem apenas parte do controle territorial, uma
espécie de concessão, restrita aos modos de usos ancestrais/tradicionais.
Por outro lado, é preciso destacar que por se tratar de povos
originários, estes possuem direitos assegurados na Constituição Federal
de 1988, além de tratados e acordos internacionais, os quais estão
explicitados o caráter necessário para sua reprodução e manutenção
física, cultural, social, espiritual, identitária, portanto, a terra e/ou
território são imprescindíveis para sua sobrevivência. O problema ao
nosso ver está no 3º, 5º e 6º parágrafos do Artigo 231 que dá margem a
interpretações jurídicas, as quais podem resultar em prejuízos a esses
povos.
As noções de territórios, não mais se baseiam meramente no
político e/ou econômico, fundamentam-se também nos fatores
culturais, no sentimento de pertencimento a um lugar. Como resolver
então a situação dos indígenas?
Neste sentido, Santos (2006a) considera que o território deve ser
fundamentado na identidade, como ideia de pertencimento cultural.
Apesar que os fatores de dominância e decisão em um determinado
espaço façam parte indissociável dessa interpretação, pois não há
território sem relação de poder. Pela vertente do sentimento de
pertencimento, pela ligação cultural com o lugar, pode-se sim pensar em

198
ALMEIDA SILVA (ORG.)

um território indígena, mesmo que determinada unidade seja concebida


e concedida por não indígenas, assim como inúmeras decisões que os
atingem.
Há na verdade, uma conformação dos indígenas para garantirem
um espaço, e não um território no sentido geográfico da palavra. Seu
vínculo com a floresta supera a objetividade material, em que ela (a
floresta) integra sua cosmologia, sua simbologia e todos os reflexos que
as interações e percepções, que proorciona a produção de sua cultura,
sociedade e espaço. Portanto, ao longo da breve história do contato, vê-
se que os indígenas são a cada dia mais confinados a um território
“brancamente” demarcado, ou em “ilhas” 5 e que apesar de lhes pertencer,
não representa a totalidade desse, e sim de um espaço permitido e
produzido por nossa sociedade, sem respeito a deles.
Na verdade, cria-se um território que serve a ambos. Aos
indígenas, por que nele, podem continuar a instrumentalizar o espaço de
acordo com suas concepções culturais e necessidades, ainda que no
exercício de limitada territorialidade, e aos não indígenas que vêem a
espacialidade criada como algo para preservar reservas naturais.
Não se trata aqui de fazer um julgamento étnico ou a
determinação de um estereotipo sobre quem degrada o ambiente, pois
não são os atributos de etnicidade, classe ou orientação econômica de
um dado segmento social que definem, por si, seu comportamento em
relação ao ambiente, mas a conjugação particular de suas características
sociais num dado momento e lugar. A categoria “índio” não está hoje,
necessariamente associada à sustentabilidade, nem a não indígena ou
“branca” à insustentabilidade, embora se atribua às sociedades indígenas
a herança da sustentabilidade e à outra população o papel oposto. É

5Almeida Silva (2007, p. 80), conceitua esses territórios como ilhas indígenas,
uma vez que “são espaços socioculturais cercados por espaços externos com
características diferenciadas de produções econômicas e sociais em relação aos
povos indígenas, com isso esses povos passam a ter como referência as áreas de
entorno”

199
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

importante atentar para a cristalização de estereótipos socioambientais


que atribuem valores ecológicos positivos ou negativos à diversidade
social da Amazônia. Tal premissa obstrui a construção de uma análise
objetiva a respeito da interação complexa entre os processos sociais
responsáveis pela degradação ambiental (LIMA; POZZOBON, 2005).
Busca-se sim, compreender como aconteceram os processos de
ocupação em Rondônia, como essas mudanças de território
contribuíram para alterar a espacialidade local e as conseqüências sobre
as populações indígenas que baseavam suas vidas em uma cultura
cosmogônica e autóctone.
Surgem assim, algumas questões pertinentes que exigem
reflexão na compreensão da organização espacial e a formatação do
território: 1) Como o meio é percebido por aqueles que o habitam?; 2)
Quais as razões do domínio que ocorrem sobre ele?; 3) Como concebem
a ordem social, regras e normas com as quais tem que se conformar?
É desse emaranhado de múltiplas e conflitantes problemáticas
que os povos originários buscam sair da condição de tutelados para um
protagonismo que implica em autonomia econômica, política e social,
todavia, não é uma tarefa simples e fácil como constantamente se vê, seja
pelo não atendimento a seus direitos assegurados na Constituição e
demais legislações, seja pela violência, pressões, ameaças e
discriminação étnica.

A COLONIZAÇÃO EM RONDÔNIA E SEUS REFLEXOS PARA OS


TERRITÓRIOS “ÍNDIOS” E “NÃO ÍNDIOS”

Os projetos de colonização e integração nacional iniciados na


década de 1970 criaram alicerces para a implantação dos assentamentos
na Amazônia, particularmente em Rondônia foram responsáveis pela
ocupação geográfica, com isso resultou no surgimento da maioria dos
municípios rondonienses. A maior parte das famílias que migraram para
a região foi motivada pela oferta de terras e créditos subsidiados. Essas
famílias foram distribuídas áreas em sua maioria, no estado do Pará e no

200
ALMEIDA SILVA (ORG.)

entorno da BR-364, em Rondônia, que recebeu 17% dessas famílias


(BRANDÃO JR.; SOUZA JR., 2006).
Devido às suas baixas densidades e à pressão pioneira
ocasionada do sul-sudeste, a Amazônia foi e continua a ser, a grande
reserva de espaço do país, a sua última fronteira de migração e expansão
capitalista mundial, conforme asseguram Becker et al. (1990) e Théry
(2005), de maneira que constitui-se um espaço geopolítico privilegiado
para a ação das corporações transnacionais e nacionais através de fluxos
de entrada e saída de capitais, em detrimento da população regional.
A criação do estado de Rondônia ocorreu concomitantemente
com a implantação do Polonoroeste, cuja intenção era instalar
comunidades de pequenos produtores, baseadas na agricultura
autossustentada, com atendimento básico de saúde, educação e
escoamento da produção, bem como respeitar a floresta e as povos
indígenas (SANTOS, 2007), todavia seus objetivos não foram
alcançados em sua totalidade, em virtude do descontrole estatal ao que
havia sido planejado.
O Polonoroeste apoiava o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária – INCRA com a distribuição gratuita de lotes, desde que
o ocupante ou beneficiário desmatasse ao menos 50% de sua
propriedade, para “garantir a posse da terra” (PEDLOWSKI et al., 2005),
entretanto, esse processo serviu para acentuar drasticamente diversos
conflitos espaciais em Rondônia na disputa por territórios. Esse modus
operandi (desmatamento) como política imposta pelo INCRA fez com
que os colonos implementassem, compulsoriamente, atividades
agropecuárias, rentáveis economicamente e abrissem uma nova
fronteira produtiva, como pode ser constatado hoje com o agronegócio
da pecuária e da sojicultura, por exemplo.
Como o espaço é a expressão da intencionalidade (SANTOS,
2004), por essa ótica é possível entender a construção, a destruição e a
reconfiguração de espacialidades e de territorialidades no processo de
colonização da Amazônia e, particularmente, em Rondônia dado a lógica

201
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

de produção minero-agrícola que resultariam em usos lucrativos do solo,


sempre com a busca pelo meio mais rentável de exploração (SANTOS,
2007).
Essa ocupação intempestiva e ambientalmente desorganizada
não transcorreu impunemente, na visão de vários estudiosos sobre a
questão agrária em Rondônia, fez surgir conflitos pela posse da terra e de
suas riquezas, com prejuízos muitas vezes irreparáveis e irrecuperáveis
para as populações indígenas e o ecossistema (SANTOS, 2002).
Assim, formatava-se a espacialidade local, com a modificação,
construção de novas configurações, geração de novas estruturas com
novas funcionalidades por meio de um processo tensionado e complexo
que se aproximava do caos. Durante uma década, investiu-se
principalmente em infraestrutura e planejamento. A intencionalidade
dos governantes ficava explícita por meio da construção dessas obras,
uma vez que escancaravam as novas funções territoriais a elas
atribuídas: produção e circulação de mercadorias.
Outra funcionalidade espacial era desenhada para a região, nesse
período, que era a de estocar reservas naturais. Durante o projeto
criaram-se unidades de conservação e demarcaram-se terras indígenas,
o que representa outra grande intervenção na dinâmica de ocupação de
Rondônia. As terras funcionam como áreas limitadoras ao processo de
antropização, mesmo que muitas delas foram sido criadas
estrategicamente posicionadas às margens dos eixos rodoviários, como
as terras indígenas dos povos Paiter Suruí (em Cacoal), Gavião e Arara
(em Jí-Paraná), Jupaú e Amondawa (entre Ariquemes e Jaru).
Com o asfaltamento da BR-364, concluído em meados de 1984,
ocorreu uma intensa ocupação e especulação imobiliária das terras nas
suas proximidades, onde os habitantes situados às margens desse eixo
rodoviário foram forçados a interiorizarem-se na região, o que
incrementou assim, o processo de devastação da floresta (SANTOS,
1991).

202
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Tal modelo gerou profundas consequências locais,


principalmente às populações indígenas, incapazes de acompanhar essa
dinâmica de ocupação de seus territórios imemoriais. Neste sentido,
Santoss (1991) conclui que esse modelo excludente, apesar de gerar
benefícios a determinados segmentos da população local, aprofundou as
diferenças sociais, a troco da miséria de muitos e de acentuados danos ao
meio ambiente, além de problemas de ordem cultural, social e econômica
sobre essa porção da Amazônia.
Em conformidade com Fearnside (1989) aponta que o
desmatamento aumentou nesse mesmo período a uma taxa de 24,8% ao
ano, em razão do processo migratório potencializado pelo asfaltamento
da BR-364.
Aliado aos problemas decorrentes da chegada de moradores e a
abertura de estradas, a ampliação dos desmatamentos contribuiu para a
diminuição das possibilidades de usos dos recursos por parte dos
indígenas, com isso se estabeleceu-se uma nova ordem que conflita com
as relações sociais, produção material e espiritual, qualificada como sua
cultura (GONÇALVES, 1989).
O processo de ocupação resultou na diminuição dos estoques e
territórios de caça dos indígenas, em consequência dos desmatamentos
causados, bem como a caçada indiscriminada por parte dos
trabalhadores dessas frentes que desrespeitaram os limites das
demarcações das terras indígenas. A cultura indígena por razões
ancestrais possuem certas restrições alimentares (CARDOZO, 2002) e
com a redução dos territórios de caça passaram a sofrer com problemas
nutricionais.
Outra problemática consistia nas queimadas, visto que os
projetos de colonização preocuparam-se apenas em ceder as terras, mas
não ofereciam condições de trabalho, como assistência técnica, apoio à
produção, crédito, estruturação física ou aparelhamento. Logo, esses
migrantes adotaram as queimadas como método rápido e barato de
limpar suas áreas, todavia com o descontrole, o fogo adentrava os limites

203
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

das terras indígenas, de modo a causar a destruição de árvores da


medicina tradicional e a diminuição das áreas florestadas, importantes
para preservação dos valores indígenas, além de matar e afugentar
animais que poderiam ser utilizados como fonte de alimentação. Finda-
se com recursos muitas vezes escassos e existentes apenas em certas
partes dos territórios, importantes para confecção de utensílios e para
transmissão cultural (CARDOZO, 2002).
Como fonte de reservas e recursos, a floresta funciona para os
povos originários como um obstáculo ou, ao menos, dificulta as
incursões de não indígenas às terras indígenas. As queimadas expõem
certas partes da floresta, fragilizam-na e permitem a entrada de
madeireiros, em busca de espécies de valor comercial, pescadores e
caçadores que pressionam e utilizam, de maneira indevida, suas reservas.
Estas, na maioria das vezes, encontram-se esgotadas fora dessas áreas
por conta das ações dos próprios colonizadores.
A destruição de florestas e de outras áreas marginais causa a
extinção de espécies vegetais e animais e reduz drasticamente a
diversidade genética dos ecossistemas do mundo. Esse processo priva as
gerações atuais e as futuras de material genético. O desaparecimento de
espécies e subespécies, muitas delas ainda não estudadas pela ciência,
priva-nos de importantes fontes potenciais de remédios e produtos
químicos industriais. Destrói para sempre seres de grande beleza e partes
de nosso patrimônio cultural; e empobrece a biosfera (CMMAD, 1988),
com isso atinge toda humanidade.
Países como o Brasil, desatualizados tecnologicamente, possuem
setores da economia que tiram vantagens e são altamente dependentes
de seus recursos naturais, como grandes extensões de solo para uso
agrícola, disponibilidade de recursos hídricos, grandes províncias
metalogenéticas que lhes proporciona uma oferta abundante de
minérios para processamento industrial. Por esses motivos as terras
indígenas desempenham um importante papel na preservação desses
recursos pelo modo como esses povos fazem uso do território.

204
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Por isso, são importantes aliados para conservação, devido às


práticas de sucesso em sistemas tradicionais de manejo que constituem
não são somente modos de exploração econômica dos recursos naturais,
mas revelam a existência de um complexo de conhecimentos adquiridos
pela tradição herdada dos mais idosos, de mitos e símbolos que levam à
manutenção e ao uso sustentado dos ecossistemas naturais (DIEGUES,
2002).
Por esses importantes serviços de conservação da floresta, os
povos indígenas deveriam ser remunerados, uma vez que os benefícios
são globais e não meramente locais. Isso ajudaria a floresta,
possibilitaria-lhes ainda melhor qualidade de vida, vez que encontra-se
inserida, de certo modo, na economia de mercado. Conservar grandes
espaços de áreas florestadas é hoje, uma necessidade, pelos serviços
ambientais que prestam como manutenção de ciclagem de água,
importante para manutenção do clima local, conservação de
biodiversidade e estocagem de carbono (FEARNSIDE, 2002; ALMEIDA
SILVA; GIL FILHO; SILVA, 2008). A cada dia as florestas tropicais são
mais ameaçadas pela objetividade do capital a serviço de interesses
meramente econômicos e imediatistas.
Além dos problemas ambientais, existem os culturais originados
dessa relação de estabelecimento de poder e conseqüentemente, da
busca pela dominação territorial. O primeiro deles, justamente, fruto da
relação é o contato. De acordo com Ribeiro (2002), no primeiro ano de
contato, geralmente a metade das etnias contatadas morrem vitimadas
por doenças para as quais não possuem defesas, complementa-se ainda
com o processo de perda de identidade das práticas culturais e a
introdução de elementos estranhos à sua cultura.
O contato produz dois processos irreversíveis, o de
“deculturação” e o de “aculturação”, tratadas por Giddens (1991), como
“desencaixe”, o que significa uma retroalimentação do processo com a
inserção e submissão no sistema de produção econômica,
inexoravelmente leva à desintegração da vida tribal, a desmoralização e
o desaparecimento de muitos desses povos (RIBEIRO, 2002).

205
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Para a satisfação das novas necessidades, os indígenas são


submetidos a uma nova e estranha relação social com o trabalho, para
tanto, tem que produzir excedentes para adquirirem os desejados bens
inexistentes em suas terras. Com essas mudanças, adentram
forçosamente no processo de “compressão espaço-tempo”, em que as
qualidades objetivas contidas nesse processo assumem uma nova
representação de sentidos e significados, acarreta transformações
socioculturais irreversíveis (HARVEY, 2006).
Além da “compressão espaço-tempo”, por conta da
instrumentalização do trabalho enquanto valor de força produtiva e
dedicação do tempo à atividade ocorre o desencaixe com a inserção de
“novas” próteses, representada pela busca por dinheiro e a diferenciação
de força produtiva para obtenção dos resultados, qualificado por Milton
Santos (2004, p. 165) como “uma forma social estranha, até então, mas
que se impõe ao grupo social como meio de obter dinheiro líquido e
assim poder comprar o que se precisa. O equilíbrio antigo é desse modo
rompido”.
Assim, o individual se destaca em detrimento do coletivo,
propicia a reestruturação de relações sociais internas dos grupos não
mais através dos vínculos ancestrais, baseados principalmente no
parentesco, mas pela valorização do indivíduo e pela posse ou
possibilidade de obter novos objetos diante do coletivo.
Há, por conta dessas modificações, o “distanciamento espaço-
tempo”, o que representa para Giddens (1991) relações de desencaixe
por estarem vinculadas a fenômenos que envolvem a separação do
tempo-espaço. Nas sociedades pré- modernas, e aqui se considera
também os povos indígenas, espaço e tempo coincidem amplamente, na
medida em que as dimensões espaciais da vida social são, para a maioria
das populações, e para quase todos os efeitos denominados pela
“presença”, por atividades localizadas.
O advento da modernidade, através de algum de seus
mecanismos de desencaixe, como o dinheiro, arranca crescentemente o

206
ALMEIDA SILVA (ORG.)

espaço do tempo, fomenta relações entre “ausentes”, localmente


distantes de qualquer situação, devido à interação face-a-face. Com isso
o lugar torna-se penetrado e moldado por influências sociais bem
distantes deles, o que vale tanto para os povos originários, quanto para
não indígenas, mesmo que ambos não tenham compreensão de seus
contextos na totalidade desses processos.
É sempre importante lembrar, no caso dos indígenas, trata-se de
povos que há tempos em contato com outras culturas, tem sofrido e
vivido todos os dramas da inserção na economia de mercado, através da
espoliação de suas terras, devastação das florestas e a marginalização
social, principalmente por não conseguirem acompanhar o desenrolar
dos acontecimentos. Esses fatos para Mindlin (2001) produzem
transformações acompanhadas quase sempre, de graves problemas
sociais, os quais não são resolvidos pela sociedade hegemônica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O espaço em Rondônia é realmente percebido com o local de


realização de possibilidades, tanto para os povos originários, quanto para
os não indígenas. Está impresso nele uma espacialidade que mostra as
diferentes aspirações, intenções e dimensões culturais de cada “ser
social”, que apesar de estarem definidos e de serem visíveis, constituem
paisagens, lugares e territórios, cada dia mais limitados e delimitados, em
meio a uma infinidade de sistemas invisíveis.
O domínio sobre esses territórios ocorre cada vez mais por meio
das relações de trabalho e pela crescente evidência dos limites
territoriais de cada um deles. Assim, para os não indígenas apesar da
compressão espaço-tempo tornar-se mais latente e de uns poucos
deterem o poder dos meios de produção, o fato não é nenhuma novidade.
Nossa sociedade tem evoluído no interior desse processo, mesmo
que muitas pessoas nem se apercebam desses fatos. Com os indígenas
ocorre interferências em suas culturas, espiritualidades, modos de vida
com alterações nas bases das relações sociais e das relações como

207
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

desenvolvem seus trabalhos, de modo que trata-se de um processo em


marcha. Não pode se falar o que é de fato, mas há indícios de graves
problemas que ocorrem e resultam em conflitos, inclusive de identidade
étnica.
Com relação ao limites de cada um, o crescimento populacional
e as atividades nos entornos das terras indígenas, fizeram com que suas
linhas de demarcação ficassem evidentes. Essas paisagens parecem
funcionar como um bloqueador às ações de expansão dos trabalhos e
territórios não indígenas.
Concluem-se, a visão antagônica entre não indígenas e
indígenas, em virtude da ordem social, regras e normas com as quais tem
que se conformar ou então se articular politicamente para que mudanças
concretas se realizem. Os primeiros atribuem que a delimitação de
espaços para os indígenas seja injusta, em razão da “discrepância” entre
o número de habitantes na terra e sua “vasta” extensão; ou pelo fato de
pensarem que os indígenas, por terem um modo de vida cultural e
geográfica diferentes, poderiam satisfazer suas necessidades de
sobrevivência em áreas ainda menores.
Em contrapartida, os indígenas não aceitam os motivos da
ganância dos “brancos” em dominarem suas terras e territórios,
subjugarem seus povos e restringi-los a espaços que não condizem com
as práticas culturais, coletivas de caça e pesca, espiritualidades e
sociabilidades anteriores ao contato com a sociedade envolvente. Nessa
intrincada e tensa relação, entra o jogo do poder que muitas vezes
prioriza o interesse dos mais fortes e resulta na sobreposição dos que
encontram-se vulneráveis historicamente.
Uma das possíveis saídas parece-nos que seja o diálogo e
conhecer as especificidades do outro. Assim, esperamos ter contribuído
para o debate e a reflexão que é necessário e urgente para o
estabelecimento de boas relações, mesmo que num sistema econômico e
político pleno em contradições.

208
ALMEIDA SILVA (ORG.)

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212
MARCADORES TERRITORIAIS NA TERRA INDÍGENA IGARAPÉ
LAGE EM RONDÔNIA: IDENTIDADE WARI’ 1
Francisco Marquelino Santana
Josué da Costa Silva
Adnilson de Almeida Silva

O presente analisa o modo de atuação das missões


evangelizadoras na Aldeia Lage Velho, especificamente conduzidas
pelas Missões Novas Tribos do Brasil (MNTB), que aproximadamente há
cinquenta anos dedicam-se em converter esse coletivo indígena à
religiosidade cristã. Outro aspecto aqui analisado é a identidade cultural
Wari’, suas experiências ancestrais, sua cosmogonia, territorialidade e
todo seu aporte simbólico com a natureza.
Em seguida relacionamos esses dois aspectos aqui mencionados
com os marcadores territoriais estruturantes e estruturadores, de modo
que procuramos identificar e distinguir quais ações são consideradas
originárias à coletividade e quais ações são características da sociedade
envolvente. O trabalho é resultante de uma atividade de campo realizada
com o povo Wari’ na Terra Indígena Igarapé Lage, localizada entre os
municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré no estado de Rondônia.
Apresenta em seu contexto as percepções obtidas e suas respectivas
análises alicerçadas em abordagens metodológicas construídas por meio
de referenciais bibliográficos, entrevistas, em que a fenomenologia
constitui-se como base principal às análises em questão.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

De família linguística Txapacura, os Oro Wari’ possuem uma


população estimada em 4.000 pessoas (SIASI/SESAI, 2014) distribuída

1 Publicado com o título “Wari’: conversão, identidade cultural e marcadores


territoriais na Terra Indígena Igarapé Lage em Rondônia”, na Revista Ateliê
Geográfico, em 2020.

213
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

por 32 aldeias e está subdividida em oito povos: Oro Nao’, Oro Eo, Oro
At, Oro Mon, Oro Waran, Oro Waran Xijein, Oro Jowin, OroKao’Oro
Waji. A autodenominação Wari’ que engloba todos esses povos possui
como significado “gente”, “nós”, ou ainda “gente como nós”, com o
sentido de se distinguir dos demais povos originários da região, assim
como em relação à sociedade envolvente.
Esse universo de Wari’ encontra-se distribuído em sete terras
indígenas da região e ainda outras pessoas dessas etnias em outros
municípios rondonienses. O estudo em questão é focado na Terra
Indígena Igarapé Lage (TIIL), localizada nas confluências dos rios
Guaporé e Mamoré em Rondônia, entre os municípios de Guajará-Mirim
e Nova Mamoré, numa área 107.321 ha (1.073,21 km²), a qual abriga uma
população estimada em 1.100 indígenas (FUNAI, 2017).
O trabalho de campo e a pesquisa foram realizados em agosto de
2017, durante duas semanas, na Aldeia Lage Velho (ALV) em Guajará-
Mirim na TIIL (Fig. 1), oportunidade em que dialogamos com os
sabedores (anciões e anciãs), lideranças e jovens. Este coletivo faz parte
do povo Wari’. A atividade realizada foi um trabalho complementar à
disciplina de Geografia Cultural do Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR e coordenado
pelo Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas
Amazônicas - GEPCULTURA.
Neste sentido, propomo-nos investigar o processo de conversão
do povo Wari’ ao cristianismo através de ações evangelizadoras
coordenadas pela Missão Novas Tribos do Brasil - MNTB, que
transcreveram parte da Bíblia para a língua originária dos Wari’. Os
evangelizadores traduziram, organizaram e confeccionaram cartilhas
para uso didático à serem utilizadas nas escolas indígenas.

214
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Figura 1: Mapa da Terra Indígena Igarapé Lage

Fonte: Municípios IBGE. TI FUNAI. Drenagem e malha viária: Sedam

O segundo eixo da pesquisa é a identidade cultural desse


coletivo, que historicamente teve essa vasta diversidade de valores
sociolinguístico-culturais e espirituais, como vítima de ações da
sociedade envolvente que fez com que parte considerável de suas
atividades e etnoconhecimentos fossem ressignificados, cujos resultados
são percebidos na espacialidade, como resultado desse processo de
aproximação entre culturas distintas.
O último aspecto são os “marcadores territoriais estruturantes e
estruturadores”, dos quais procuramos estabelecer uma relação dessa
temática com as atividades originárias da identidade Wari’ e com o
processo de conversão cristã desse coletivo em virtude das ações
promovidas por influências externas.
Com os três eixos propostos no trabalho (conversão, identidade
cultural e marcadores territoriais), faremos o detalhamento em cinco
tópicos expostos no desenvolvimento, os quais procurarão demonstrar a
relevância dos modos de vida do povo indígena Wari’, sob à luz do
método fenomenológico abordado por Ernest Cassirer (1992 [1925];

215
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

2001 [1926]; 2004 [1926]; 1953-1957 [1929]; 2005 [1942]; 1968 [1944];
1978 [1944]; 1994 [1944]; 1976 [1946]; 2005 [1951]; 1975 [1956].
As obras de Cassirer caracterizam-se pela abordagem de que a
consciência no campo fenomenológico é marcada pela análise
intencional e descritiva da consciência e consideram que as definições
quanto às relações essenciais entre atos mentais e mundo externo, ou
seja, a verificação no mundo das exterioridades e objetos são
identificáveis aspectos imutáveis da percepção dos objetos e a produção
de atributos da realidade, com isso permite qualificá-los ou percebê-los
ao que realizamos em relação ao mundo. De modo, que o ser e se fazer
representar no mundo, é o representar-se e ser representado no mundo.
Os aportes teóricos e metodológicos de Cassirer se concretizam
na filosofia da cultura na qual desenvolveu a teoria dos símbolos e
formas simbólicas que revelam o fato mítico, estético e social e tem se
constituído com relevantes caminhos para discutirmos e abordarmos
questões relacionadas à linguagem, mitos, espiritualidade, entre outras
conexões interpretativas. Com isso, conceitos como espaço de ação,
formas simbólicas, pregnância simbólica, linguagem, substância, formas
e função, representações simbólicas.
Sua fenomenologia se dá na perspectiva do espaço-ação,
motivada pelas representações e formas simbólicas, nas quais o ser
humano está inserido no mundo e está contida na compreensão
oferecida pela lógica, relacionada sobre o ser e não sobre o dever ser, em
que a compreensão das coisas respalda-se na existência concomitante do
real e ideal, caracterizadas como existência fenomenal.
Metodologicamente, os caminhos percorridos em nosso trabalho
são alicerçados nos levantamentos de dados realizados durante a
pesquisa de campo, tais como, entrevistas, visitas a entidades públicas e
não governamentais. Utilizamos a revisão bibliográfica pertinente, bem
como participamos de eventos promovidos pela coletividade, o que nos
possibilitou melhor compreensão sobre o povo Wari’, no que tange seu
modo de experienciar o mundo.

216
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Sobre “A evangelização dos Wari’”, como resultado das primeiras


ações missionárias da MNTB, atuação do Serviço de Proteção ao Índio –
SPI e o surgimento das epidemias, temos como elemento de análise a
contribuição de Vilaça (2007), a qual é uma grande pesquisadora sobre
o povo Wari’.
No “Território cultural Wari’, procuramos demonstrar o vasto
domínio histórico desse território pela etnia, seu sufocamento e
encurralamento em consequência da exploração do látex por
seringalistas e as ancestrais/tradicionais festividades ritualístico-
culturais, conforme apontam os estudos realizados por Vilaça (2006).
Na “Conversão cristã e identidade cultural a análise dessa relação
inicia com o estabelecido dos marcadores territoriais” (ALMEIDA
SILVA, 2015a) como condição para a compreensão dos fenômenos que
produzem repercussões territoriais, sociais, culturais e políticas. Para
tanto, a investigação inicia-se com os marcadores estruturadores
produzidos pela sociedade envolvente em detrimento às ritualísticas
originárias dos Wari’, conforme apontam os trabalhos de Almeida Silva
(2015a); Vilaça (2006; 2007; 2008; 2017); Conklin (1994); Gallois e
Grupioni (1995; 1999).
Em “Algumas características dos marcadores territoriais
estruturantes” (ALMEIDA SILVA, 2015a), apresentaremos alguns
constructos peculiares da coletividade Wari’, tais como, o
cosmopolitismo interétnico-feminino, a arte ritualística-ancestral
feminina, a mulher mitológica-cosmogônica e a roda de conversa dos
anciãos, assim encontramos aporte teórico em Almeida Silva (2015a),
bem como nas considerações realizadas por Vilaça (2017) e nas
relevantes narrativas de Oro Waran (2017) e Oro Mon (2017).
No último tópico trataremos da “identidade Wari’ como
marcador territorial estruturante”, mediante a especificação de alguns
dos marcadores nominados por Almeida Silva (2015a), os quais nos
auxiliam na compreensão do modo como esse povo se organiza interna
e externamente.

217
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

A evangelização dos Wari’

A MNTB é originária da New Tribe Mission, instituição norte-


americana criada no início da década de 1940 que trabalha na
evangelização de indígenas através de seus missionários que ao se
estabelecerem nas mais diversas etnias, implantam seus templos para
atuarem no processo de conversão cristã, além de realizarem a tradução
da Bíblia para as línguas desses povos. Deste modo, afirmam Gallois e
Grupioni (1995, p. 4) que:

A “New Tribes Mission poderá ilustrar o quanto esse


caleidoscópio acerca do que vem a ser ‘índio’ e ‘cultura
indígena’ representa para esses povos um difícil obstáculo
aos seus esforços de diálogo e de intercâmbio com a
sociedade envolvente”.

Fixados na Amazônia, na porção Sul-Ocidental (fronteira Brasil-


Bolívia), esses evangelizadores iniciaram seus primeiros contatos e
instalaram-se em Guajará-Mirim em fins da década de 1940, até serem
reconhecidos oficialmente pelo governo brasileiro em 1953. A partir daí
e através do seu primeiro missionário no país, Virgílio Sharp, iniciou-se
um assíduo processo de conversão cristã com o povo Wari’ (CONKLIN,
1994).
A MNTB fortalece suas ações através de intensificada
metodologia linguística, em que busca conhecer a língua materna dos
indígenas para em seguida fornecer subsídios didáticos, tais como,
cartilhas de alfabetização bilíngue e transcrição bíblica para atender
esses coletivos. Esses materiais são utilizados, inclusive, nas escolas
indígenas.
Destarte, e antes de alcançar esse patamar didático-
metodológico, a MNTB precisou adentrar no território Wari’ munida de
recursos materiais, tais como remédios, com a finalidade de suprir a
fragilização do aparelho estatal, na época representado pelo Serviço de
Proteção aos Índios – SPI. Essa ação facilitou e contribuiu para que os

218
ALMEIDA SILVA (ORG.)

processos de pacificação e evangelização desse povo, conforme expõe


Conklin (1994, p. 162): “Os missionários trouxeram microscópicos para
que os Wari’ pudessem ver os microrganismos com seus próprios olhos.
Também escreveram uma cartilha na língua Wari’ sobre saúde, nutrição
e prevenção de doenças”.
Problemática semelhante sobre a fragilidade institucional, a qual
propiciou que os missionários se instalassem com facilidade entre os
indígenas, por meio da oferta de assistência médica e ao mesmo tempo
aprendessem sua língua, é apontada por Vilaça (2007, p. 16):

Diante das precárias condições materiais do SPI (que se perpetuam


até hoje na FUNAI) e dada a disponibilidade dos missionários
protestantes, que ofereciam recursos materiais e humanos para a
empresa da pacificação, estes se tornaram peças-chave no
processo de pacificação dos Wari’, acompanhando e mesmo
organizando as primeiras expedições de contato, nas quais o SPI
atuava como coadjuvante.

Instalados na aldeia, os missionários passaram a atuar de maneira


frequente na área de saúde, de modo que contribuíram no combate às
diversas epidemias que acometiam com gravidade os Wari’. Essas ações
são reconhecidas como de grande relevância para os Wari’, visto que o
órgão estatal de proteção aos indígenas não tinha preocupação em
atender na saúde, até mesmo em função da própria fragilidade
institucional.
Quanto ao processo de evangelização, os missionários atuaram
durante toda a década de 1960 e não mediram esforços no sentido de
levar os princípios dessa “nova” doutrina cristã aos Wari’. Para tanto,
esses evangelizadores organizavam-se em barracas improvisadas no meio
da floresta e pregavam as mensagens bíblicas aos “pagãos” que de acordo
com suas pregações seriam mais tarde “salvos” por se tornarem
convertidos ao cristianismo.
Como resultado desse processo, Vilaça afirma que os Wari’
estiveram crentes durante toda a década de 1970 e nos primeiros anos
1980, e esclarece que: “entre 1986 e 1994, quando realizei as duas

219
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

primeiras fases de minha pesquisa de campo, havia dois ou mais


missionários em praticamente todos os postos da FUNAI. Mesmo assim,
nessa época, os Wari’, com raras exceções, diziam-se pagãos” (VILAÇA,
2007, p. 16).
Gradativamente seus modos de vida foram alternados, e os
saberes-fazeres ancestrais (etnoconhecimentos) também foram
esquecidos ou abandonados no cotidiano Wari’, enquanto as práticas
religiosas eurocêntricas e judaico-cristã se consolidavam de modo mais
intenso na ALV.
É relevante destacar, conforme manifestaram alguns indígenas
da ALV, no período em que lá estivemos em 2017 – durante duas
semanas 2 – revelaram que a evangelização trouxe alguns aspectos
positivos, em suas avaliações, o processo de paz interna, visto que havia
um alto índice de brigas, consumo de bebidas alcoólicas, desunião entre
os casais e outros comportamentos considerados prejudiciais a esse
coletivo indígena.
Como componente dessa constatação, procuramos estabelecer a
conexão com a “ideia de transformação na Amazônia” no contexto da
descrição antropológica fundamentada na conversão Wari’, e em tal
sentido, Vilaça (2008, p. 196) considera que “ao se consubstancializarem
com os missionários, e através deles com Deus (que se faz pai), os Wari’
vivem uma metamorfose corporal, e passam a experimentar um mundo
completamente novo, ou seja, uma nova natureza, embora não uma nova
cultura”.
Não concordamos em parte com a afirmação da autora ao
inferir que não se tratar de uma nova cultura. No nosso entendimento,
argumentamos que tal condição nos parece ser inexorável, visto que

2 Apesar do tempo relativamente curto na Terra Indígena Igarapé Lage e na


Aldeia Lage Velho, estabelecemos diálogos constantes com Francisco Oro
Waram, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal de Rondônia, durante o período de 2017-2019, o que foi
relevante para a construção do presente trabalho.

220
ALMEIDA SILVA (ORG.)

ao serem inseridos no conjunto da sociedade envolvente, com esta,


apreendem novos significados, códigos e representações que hibridiza
seus etnoconhecimentos. Não se pode recusar que embora os indígenas
ou povos originários vivenciem o presente, muitas de suas práticas são
perpetuamente referenciadas na ancestralidade.
Entendemos, assim, três dimensões distinções de temporalidade:
a primeira marcada pela relação mítica com a criação do homem e as
coisas; a segunda pela ancestralidade com os relatos antes do encontro
com a sociedade envolvente; e atual com o encontro ou aproximação
com a sociedade envolvente e estendida aos dias atuais, em que essa se
ancora também nas temporalidades míticas e de ancestralidades, de jeito
que se caracterizam com o que Sahlins (2003, p. 7 e 181 [1985]; 1997a,
p. 41-73; 1997b, p. 116) denominam de “mudança e permanência”.
Assim, compreendemos que as mudanças e permanências não se
dissociam do conceito de cultura elaborado por Hoebel e Frost (2005, p.
16 [1976]), os quais consideram que a cultura é um fenômeno dinâmico,
portadora de uma lógica própria, projeta, a qual constrói e reconstrói o
destino dos coletivos não como um processo natural, mas de aquisição
de representações com seus significados, representações, sentidos e
ressemantizações.
Na abordagem referente ao processo de evangelização, trata-se
de novas significações e representações – ainda que estranhas – as quais
foram introduzidas e disseminadas na cotidianidade Wari’. Em
consequência, as ações evangelizadoras, apesar de serem vistas como
benéficas por considerável parcela do coletivo, trouxe profundas
reconfigurações nos originais modos de vida da ALV, inclusive com
repercussões na dinâmica territorial e cultural de seu povo.
Essas repercussões propiciaram que ficassem vulneráveis,
especialmente no que se refere à fragilidade para a defesa do território,
onde a TIIL tem sofrido sucessivas invasões territoriais pelos mais
distintos atores sociais (madeireiros, latifundiários, grileiros, pescadores,
caçadores, dentre outros). Isso se dá em função de terem abandonado

221
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

suas armas e não partirem para o confronto como ocorria nos tempos dos
seringais nos séculos XIX e XX, conforme narrativas memoriais dos
indígenas mais idosos.
Do mesmo modo, a cultura também sofreu importantes
modificações, inclusive, no âmbito espiritual, vez que uma série de rituais
e festividades não puderam ser mais realizadas, em virtude de tais ações
repercutirem negativamente. Tanto a defesa territorial, espiritual,
cultural (incluso a questão linguística) e como efeito sobre o meio e a
organização social e de parentesco são tidas pelos Wari’ da ALV como
um sintoma de fraqueza – as ações que faziam no passado, atualmente
são tidas como pecaminosas.

O TERRITÓRIO CULTURAL WARI’

Inicialmente mencionados por Pakaa Nova, devido terem sido


avistados primeiramente no rio homônimo, os Wari’, além de possuírem
uma histórica convivência nos rios Pacaás Novos e Lage, ambos
afluentes do rio Mamoré; estendiam seu domínio territorial que acolhia
outras rotas, tais como o rio Jaci-Paraná e rio Ribeirão, afluentes do
Madeira, conforme contextualizado por Vilaça (2017, p. 44):

Os Pakaa Nova foram mencionados pela primeira vez na


literatura em 1870, por Ricardo Franco, que os encontrou na
margem direita do rio do mesmo nome (MEIRELES, 1986, p.
72). De acordo com Meireles (idem; 121), os Pakaa Nova
estavam localizados, por volta de 1840, “nas margens do rio
Pacaas Novos e – provavelmente – de alguns de seus
afluentes, onde permaneceram até 1930.

Com o advento dos seringais seu território foi asfixiado,


enquanto eram mortos e/ou encurralados, com isso distanciavam-se
cada vez mais dos percursos fluviais utilizados pelos colonizadores; a
saída foi procurar um maior isolamento no interior da floresta. Por outro
lado, as epidemias surgidas durante o contato, principalmente a partir de
1956 dizimaram parte de seus membros (VILAÇA, 2017).

222
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Os efeitos da sociedade envolvente, apesar de sua extrema


violência, não foram suficientes para provocar seu extermínio, assim
sobrevivem com sua bravia resistência a uma caótica e negligente
política indígena estatal e as sequelas de demais fatores externos que tem
provocado um genocídio histórico e promove ações persuasivas,
marcado pelo etnocídio; um exemplo desse cenário é o crime de se
querer exterminar seus valores culturais, sociais, espirituais, bem como a
ocupação ilegal e expropriação das riquezas naturais presentes no seu
território, dentre outros fatores que impactam o modo de vida. Essas
constatações são pormenorizadas na descrição de Almeida Silva (2007;
2012; 2015b), em que o autor apresenta eventos que rotineiramente
ocorrem em Rondônia.
Durante nossa pesquisa na ALV, constatamos por meio das
entrevistas com os Wari’ que há uma predominância de valores
evangélicos que foram implantados na comunidade, com isso se percebe
que uma grande parcela da população se dedica à uma rígida dedicação
aos estudos bíblicos, ao mesmo tempo em que ocorre um acentuado
apagamento das práticas culturais originárias daquele coletivo.
A identidade Wari’ e sua territorialidade estão ancestralmente
imbricadas em seus valores simbólico-cosmogônicos. Para Cassirer
(1978, p. 50 [1944]), “O homem já não vive num universo puramente
físico, mas num universo simbólico”. Neste sentido, Francisco Oro
Waran (2017), pertencente ao povo Wari’ e morador da ALV explica
como ocorreu a gênese de seu povo:

A caverna deles era uma gruta com uma entrada estreita, os


pais como eram muito gordos, não puderam sair, ficaram
presos na gruta e então gritaram: - Suas mulheres vão ficar
pequenas e não vão passar de suas cinturas, é por isso hoje
que as mulheres são menores do que os homens. As filhas
tiveram filhos, netos e bisnetos, e assim foi o surgimento dos
subgrupos Oro Wari’.

São justamente essas peculiaridades que mantêm, fortalecem e


dinamizam esses relevantes aspectos da rica diversidade cultural

223
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

material e imaterial que devem permanecer impregnados no imaginário


social e simbólico desse espaço vivido. “É vivido não em sua positividade,
mas com todas as parcialidades da imaginação” (BACHELARD, 1989, p.
19).
Neste sentido, tratam-se de valores entrelaçados a seus modos de
vida e herdados de seus antecedentes que os Wari’ compreendem que
precisam ser resgatados, são saberes-viveres presentes na simbologia
xamânica, nas narrativas cosmogônicas, nos relatos memoriais sobre a
antropofagia funerária e as brigas de bordunas, e no retorno aos festivo-
ritualísticos como a Tamara, a Huroin e Hwitop (VILAÇA, 2006).
Essas festas são relevantes atividades ritualística-culturais,
necessárias à organização interna dos Wari’, ao fortalecimento da
identidade e a proteção vigilante do seu território, visto que através
dessas atividades, os subgrupos Wari’ estabeleciam interligações por
clareiras abertas na mata, fator que possibilitava a identificação da
presença de algum inimigo no seu território. Para esclarecer alguns
aspectos, elementos e fenômenos das festividades ritualísticas desse
povo, Vilaça (2006, p. 118) considera que:

O huroroin’ é a festa mais complexa das três, pois envolve


uma diferenciação de gêneros interna ao grupo dos
convidados e ao grupo dos anfitriões. Até possivelmente o
início dos anos 1900, ou um pouco depois, essa festa se
realizava entre os diversos subgrupos.

A festividade mencionada pela autora é caracterizada por rituais


de danças, bebidas como a chicha, comidas, músicas, aberturas de
clareiras na mata, pinturas corporais, tambores, flautas e demais
simbologias que constituem a organização social Wari’, alicerçada à
natureza espiritual.
Para além dessas qualificações, entendemos que do ponto de
análise geográfica – mas não exclusivamente por ela –, essas atividades
servem para fortalecer os laços de parentesco, de vizinhança, visto a
existência da relação com a natureza, além de proteção territorial e se

224
ALMEIDA SILVA (ORG.)

constituem como importantes marcas identitárias, aqui denominadas de


marcadores territoriais estruturantes, pois são considerados constructos
da coletividade, diferentemente dos marcadores estruturadores, que são
ações procedentes da sociedade envolvente (ALMEIDA SILVA, 2015a).

CONVERSÃO CRISTÃ E IDENTIDADE CULTURAL: RELAÇÃO COM OS


MARCADORES TERRITORIAIS

Neste tópico, utilizamos o aporte teórico de Almeida Silva (2010;


2015a) para definir os marcadores territoriais e demarcadores territoriais.
O primeiro conceito é caracterizado como estruturantes e o segundo
como estruturadores. Para o autor (2010, p. 105), marcador territorial
tem a seguinte definição.

A concepção de “marcadores territoriais” pode ser


compreendida a partir dos símbolos que ocorrem enquanto
espaço de ação, definem territorialidades vinculadas à
cosmogonia e experiências socioespaciais e possibilitam a
formação das identidades culturais e do pertencimento
identitário. [...] são experiências, vivências, sentidos,
sentimentos, percepções, espiritualidade, significados,
formas, representações simbólicas e presentificações que
permitem a qualificação do espaço e do território como
dimensão das relações do espaço de ação, imbricados de
conteúdos geográficos.

O outro conceito (demarcador territorial) é descrito por Almeida


Silva (2010, p. 116-117) como aqueles que “estão relacionados a um
processo da sociedade envolvente e ocorre por imposição jurídica, ou
seja, de fora para dentro do espaço, como afirmação das políticas
territoriais do Estado”. Deste modo, muitas vezes não se considera o
legado cultural e a ancestralidade coletiva daqueles que habitam suas
territorialidades desde tempos imemoriais. O autor considera que para
além do Estado existe ainda as influências e interferências externas que
são inseridas por diversos atores sociais no meio das populações
indígenas ou originárias e povos tradicionais.

225
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

O autor define os marcadores estruturantes como aqueles que


são promovidos internamente pela coletividade e encontra-se
relacionados à uma territorialidade composta pela cosmogonia e pela
relevância de suas simbologias, o que se caracteriza como base
fenomenológica. Os marcadores estruturadores ou “demarcadores
territoriais”, por sua vez, na proposição do autor, refere a fatores
externos, os quais exercem influências na coletividade e que resultam na
alteração de seus modos de vida. Neste sentido podemos dizer que o
processo de conversão cristã Wari’ é um “estruturador”, enquanto sua
identidade cultural é um “estruturante”.
Entendemos que não se trata de um dualismo ou polaridade
dualística, visto que se alude a situações de temporalidade e
territorialidade que são construídas em momentos específicos da
trajetória da coletividade. Essas condições não implicam em afirmar que
uma é superior a outra, mas que na situação vivenciada pelos Wari’
remete à concepção de hibridismo. Neste sentido, as expressões dos
indígenas consideram que existe uma complementaridade, isto é, o
contato não trouxe apenas “coisas” ruins, mas também apresenta
virtudes – para tanto, colocam a saúde e a educação como algo que tem
possibilitado o acesso daquilo que não possuíam antes do contato – de
modo que apreenderam e aprenderam códigos, significados e
representações que permitem dialogar com a sociedade abrangente.
As concepções de marcadores territoriais defendidas por
Almeida Silva (2010; 2015a) aproximam-se sob certos aspectos ao que
Pacheco de Oliveira (2019) considera como “situações de fronteira”, aqui
compreendida como um instrumento de análise que relaciona menos ao
espaço geográfico, e sim a uma situação presente nas relações entre
povos, uma territorialidade, onde se constituem modos de dominação e
exploração, inclusive simbólica.

226
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Figuras 2 e 3: Casa de alvenaria e abertura de ruas em Lage Velho

Fonte: GEPCULTURA (2017)

As construções de casas de alvenaria e a abertura de ruas na ALV,


são, por exemplo, aspectos de marcadores estruturadores, visto que não
fazem parte dos modos de vida ancestrais/tradicionais deste povo, e sim
da sociedade envolvente (Figuras 2 e 3), como são os casos tipificados e
demonstrado nas figuras, as quais foram inseridas após o contato e
aproximação com o não indígena.
Assim, descrevemos algumas características de “marcadores
territoriais estruturadores”, antes de tratarmos especificamente da
temática da conversão cristã Wari’. Apresentamos por meio de imagens
alguns aspectos relacionados a esses “marcadores” identificados na
pesquisa. As imagens e as relações estabelecidas com os modos de vida
ancestrais originários, não se configuram que somos a favor ou contra os
divergentes tipos de lazeres, mas sim, respeitar as decisões tomadas pelo
coletivo. Desta maneira:

O que se questiona, entretanto, não é a manutenção


tradicionalista de uma “cultura do passado”, mas a
necessidade da cultura amazônica, como expressão de um
presente histórico, manter-se como processo, procedendo
suas trocas simbólicas com outras culturas, sem mutilações

227
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

ou substituição, permanecendo respeitada e integra no ethos


ético-estético que constitui (LOUREIRO, 2001, p. 404).

Realizamos um paralelo com as antigas moradias Wari’, em que


o número de casas de uma aldeia de roça era bastante variável. Algumas
delas tinham apenas duas casas, enquanto outras chegavam a nove
(VILAÇA, 2006, p. 71). O que atualmente é considerado um “marcador
estruturador”, antigamente era um “estruturante”.

Figuras 4 e 5: Jogos de bilhar e futebol em Lage Velho

Fonte: GEPCULTURA (2017)

Apresentamos dois exemplos de atividades de lazer utilizadas na


ALV e considerados “marcadores estruturadores”. São os jogos de bilhar
e futebol (Figuras 4 e 5), em que esses substituíram ao longo do tempo e
por influências externas, as festividades ritualísticas como a Tamara, o
Huroin e o Wytop’, de acordo com os relatos dos Wari’ e confirmado por
Vilaça (2006).
Outra comemoração extinta – que compreendemos que era de
forte impacto e abolida, por influência missionária, a qual tem como
princípio que tal ação é contrária aos valores religiosos exercidos nas
sociedades ocidentais – era originária das vitórias conquistadas sobre
povos rivais, em que o crânio do guerreiro inimigo (wijam) era tido como
um trunfo, conforme destaca Vilaça (2017, p. 125):

228
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O crânio era, muitas vezes, guardado como troféu.


Amarravam-se os maxilares e pintava-se o conjunto com
urucum. Depois, era pendurado em uma casa. Algumas vezes,
moradores de outras aldeias chegavam para apreciar o troféu.
Segundo alguns, os Wari’ costumavam usar esses crânios
como gaiola de passarinhos.

Outras características ligadas aos “marcadores estruturadores”


são os meios de comunicação atuais como as antenas de televisão e de
telefonia móvel. (Figuras 6 e 7). Essas tecnologias são consequências da
relação do coletivo com a sociedade envolvente. São exemplos de
marcadores presentes no cotidiano Wari’.
Essas tecnologias, como parte do processo de relação com a
sociedade envolvente, substituíram o uso de rios e fumaças considerados
importantes meios de comunicação para os povos originários e se
constituem como instrumentos que permitem se interconectar com o
mundo, de modo, que facilitam na realização de denúncias contra o
território e o povo, além de atender outras necessidades do coletivo.

Figuras 6 e 7: Antena parabólica e telefonia móvel em Lage Velho

Fonte: GEPCULTURA (2017)

Na compreensão dos Wari’, seus antepassados eram habilidosos


guerreiros, os quais procuravam encontrar estratégias de defesa que os
colocassem em posição de segurança. Buscavam se distanciar das rotas
fluviais para que não fossem identificados com facilidade pelos
colonizadores e povos rivais. Com isso trabalhavam incansavelmente,

229
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

abriam extensas clareiras no interior da floresta, as quais serviam dentre


outras finalidades, de meios de comunicação entre os povos que
compõem o microcosmo Wari’.
Eram por meio dessas clareiras que se comunicavam para
organizarem encontros festivos e ritualísticos, o que proporcionavam
que seus contatos fossem mais frequentes e evitavam assim o
distanciamento dos demais coletivos indígenas regionais. Nas clareiras
eles também armazenavam “peixes moqueados, pamonha, chicha doce,
mel e também farinha de mandioca” (VILAÇA, 2017, p. 178).
O notável é que através de uma comunicação ancestral como
essa, surgiu outro importante objeto, o assovio, considerado essencial à
integração dos coletivos Wari’. Eles aconteciam principalmente no meio
das clareiras, durante os intervalos das viagens, assim como da
aproximação da realização das festividades ritualísticas; serviam para
anunciar o encontro entre os convidados e anfitriões da aldeia. Essa
importância é destacada por Selma Oro Nao:

Enquanto se organiza a festa, os visitantes que estão no


acampamento mandam quatro rapazes para avisar a
comunidade na aldeia. Eles não entram na aldeia, eles
assoviam três ou quatro vezes e voltam para os seus grupos
no acampamento. Na aldeia quando sabem que os visitantes
estão chegando, cada pessoa tem que levar a comida para o
visitante. Então os visitantes dançam e cantam para receber
o povo, e recebem a comida, eles ficam três dias na mata.
Depois vão entrar na aldeia e começar a cantar até
amanhecer (ORO NAO, 2016, p. 11).

As clareiras e os assovios são considerados importantes


“marcadores estruturantes”, pois integram o conhecimento ancestral do
povo, visto que refere-se a códigos e representações de linguagem
apreendidas e vivenciadas por eles.
Além das características mencionadas anteriormente situaremos
a seguir mais um aspecto de “marcador estruturador” identificado
durante a pesquisa; trata-se da utilização de aparelhamento de som e

230
ALMEIDA SILVA (ORG.)

instrumentos musicais eletrônicos introduzidos na aldeia devido à


influência externa. Esses substituíram no espaço e tempo os
instrumentos ancestrais como as flautas e tambores utilizados nas festas
ritualísticas da Tamara, Huroin e Hwitop’, realizadas pelos Wari’.
As três festas ritualísticas estão entrelaçadas à simbologia
artística, visto que Tamara “é o nome da música, caracteristicamente
masculina cantada nessa festa” (VILAÇA, 2017, p. 180); Huroin “é uma
flauta comprida de bambu que mede cerca de dois metros, com uma
pequena cabaça na ponta” (p. 190); o Hwitop acontecia “no final da festa,
nesse mesmo primeiro dia, os anfitriões dançavam Hwitop em linha,
soprando pequenas flautas e tocando o tambor por um pequeno período”
(p. 199).
Enquanto os jovens Wari’ cantavam, tocavam e se divertiam com
suas modernas aparelhagens de som. Indagamos à uma jovem indígena
qual música cantava, e assim respondeu: “Xiri nain tamatrakon iri yiam
na timixi” (nosso coração é a casa do Senhor). Em seguida outra jovem
entoou uma canção, cujo título era “Kair xima Ken win mó ne. Auri na
pain ka’ houva mon iri yam” (Sem Deus você não é nada. Você tem que
acreditar e louvar a Deus).
As consequências do contato propiciaram que suas atividades
culturais ancestrais passassem por transformações e que várias dessas
práticas tornassem-se extintas, esquecidas, não mais realizadas ou ainda
hibridizadas, conforme esclarece Canclini (2008, p. 29) o qual afirma que
essas apresentam maleabilidades em “[...] nomear não só as combinações
de elementos étnicos ou religiosos, mas também a de produtos das
tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós-modernos”.
Parece não ser mais possível reproduzir antigas práticas
inerentes aos seus modos de vida, de maneira integral. “Novas” canções
e composições musicais de inspiração bíblica surgiram com o advento
da evangelização protestante que culminou posteriormente no
aparecimento da conversão cristã, e é sobre este “marcador estruturador”
que trataremos a seguir.

231
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Partimos da afirmação que o processo de conversão nesses


coletivos é um “marcador territorial estruturador”, visto que se refere à
“[...] inserção de segmentos religiosos estranhos à cosmogonia, a
inserção de línguas, entre outros fatores constituem importantes
elementos desses marcadores” (ALMEIDA SILVA, 2015a, p. 108).
Esses elementos introduzidos pela MNTB no território Wari’
com a aplicação de ensinamentos do protestantismo, fez com que
preceitos cristãos adquirissem considerável aceitação. A intensificação e
propagação dos ensinamentos bíblicos trouxeram-lhe uma visão
ocidentalizada (europeia, judaico-cristã) baseada em novos princípios
morais para o estabelecimento de mudanças em suas relações sociais,
culturais, espirituais, dentre outras, e oferecem um “sucesso” pessoal e
familiar em sua coletividade.
Neste sentido, a conversão ao evangelho levaria prosperidade a
suas vidas, e a superação de problemas como desavenças familiares,
atrito entre os parentes e o consumo de bebidas alcoólicas, dentre outros
comportamentos “ofensivos” à fé cristã e consideradas produtoras de
pecado.
Na abordagem de Vilaça é constatado que tiveram dificuldades
em aceitar esse Deus criador, do qual falavam os missionários no início
da catequese, mas que facilmente aceitaram como prática cristã, visto
que “pareciam ter em sua cosmologia um espaço para esse Deus criador,
que aconteceu aí não um encontro de cosmologias, mas sim de
sociologias” (VILAÇA, 2007, p. 18).
Neste caso, a autora analisa este “encontro de sociologias”,
dentro de sua visão, que a adoção cristã não interrompeu o interesse do
coletivo de encontrar-se na constante busca pela “captura do outro”, em
razão que “o interesse pelo cristianismo esteve desde sempre
fundamentado em um problema interno à cultura Wari’” (VILAÇA, 2008,
p. 194).
Ressalta-se que apesar da “aparente” aceitação ao protestantismo
por acentuada parcela dos Wari’ não caracterizou-se o processo de

232
ALMEIDA SILVA (ORG.)

conversão algo estável. Tanto poderá aumentar, como poderá haver


redução significativa de seus “fiéis” por esse meio de “salvação”.
De certa maneira haverá continuidade nesse processo, mesmo
que em alguns aspectos, existam rupturas no espaço e tempo, mas
ocorrerá dinamismo na relação cultural originária e a sociedade
envolvente, e constitui-se como hibridização ou novas representações.
Ao estudar o “sistema médico Wari’, Conklin (1994, p. 169-170)
apresenta:

Em 1969-1970, grande parte dos Wari’ passou por uma


ampla, ainda que breve, conversão ao cristianismo sob a
influência da Missão Novas Tribos, que tentou persuadi-los a
abolir o xamanismo de suas práticas. Desde o final dos anos
70, no entanto, tem sido observado o ressurgimento desta
prática em quatro das maiores aldeias: Rio Negro-Ocaia,
Santo André, Lage e Ribeirão. Em parte, isto reflete a
flexibilidade da cultura Wari’ e o renascimento recente do
interesse por suas tradições, em especial determinadas
cerimônias, música e dança.

Desta maneira, a constatação apresentada é revisitada por


Almeida Silva (2015a, p. 108) ao expor que “tais fatos,
consequentemente metamorfoseiam o modo de vida e da própria
coletividade, o que resulta em novas apreensões de representações e
figuras simbólicas”.
Concordamos com o autor, e esclarecemos que não nos
reportamos, exclusivamente à conversão cristã, mas a todos os aspectos
de “marcadores estruturadores” citados anteriormente. Porém, é
importante enfatizar que os ensinamentos procedentes das práticas
ocidentais cristãs de certo modo se sobrepõem às práticas culturais
indígenas.
Durante nossa pesquisa na ALV, tivemos a oportunidade de
conhecer a programação dominical desenvolvida pela MNTB. As tarefas
de evangelização eram organizadas de acordo com a faixa etária dos

233
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

indígenas. Três cultos dominicais foram realizados naquele dia. Na igreja


foi realizado um culto para adultos e era conduzido por pastor indígena.
Geralmente a formação de pastores passa por uma série de
recomendações fundamentadas a partir da fidelidade à doutrina religiosa,
o que exige gradativamente requisitos destinados à assimilação de
preceitos que fortaleça a difusão e pregação eficiente do discurso cristão.
Nos anexos existentes próximos à igreja foram realizados distintamente,
o culto para as crianças (Figura 8) que era coordenado por uma jovem
Wari’ (Fig. 9); o direcionado aos jovens a pregação era de
responsabilidade da missionária da MNTB.

Figuras 8 e 9: Culto dominical para crianças e jovens em Lage Velho

Fonte: GEPCULTURA (2017)

As atividades evangelizadoras nesses coletivos partem


principalmente da premissa com a predominância do aspecto religioso-
assistencialista destinadas especialmente à educação e aos estudos
bíblicos.
Este desenvolver se situa no “contexto da insuficiência da
assistência leiga oficial e da violência nas relações que a população
envolvente mantém com os índios, os missionários se tornam
rapidamente um apoio julgado indispensável pelos povos alcançados”
(GALLOIS; GRUPIONI, 1995, p. 47). Estes autores destacam ainda a
atuação das missões e ressaltam que essas partem do campo institucional

234
ALMEIDA SILVA (ORG.)

e ideológico que continua a propor no campo indigenista, atribuições de


humanidade aos povos originários, por meio da difusão de uma igualdade
que necessariamente destrói os particularismos indígenas e justificam
remodelar essas culturas em função da concepção unilinear de evolução.
Para tanto, estabelecem a crítica que:

É nesse campo amplo de disputas ideológicas e não no micro


– debate entre missionários e “defensores da perpetuação da
cultura”, que deveriam ser avaliados os impactos do
universalismo entre os índios. A continuidade desta
indagação deverá partir do ponto de vista dos nativos, para
verificar se estes povos conseguem assumir a igualdade
proposta pelos missionários sem aceitar, ao mesmo tempo, a
inviabilidade de suas especificidades culturais. (GALLOIS;
GRUPIONI, 1995, p. 52).

Percepção semelhante é encontrada em Vilaça, a qual esclarece


que entre 1986 e 1994, havia missionários entre os Wari’, e que estes com
raras exceções, diziam-se pagãos. Posteriormente a autora afirma que em
“2002, quando retornei a pesquisa de campo, encontrei grande parte das
pessoas dizendo-se crentes, e hoje há cerca de oito missionários não-
indígenas vivendo com eles. Na maioria, os cultos são conduzidos por
pastores nativos” (VILAÇA, 2007, p. 16).
Notadamente entre eles o cristianismo surgiu como relevante
suporte no sentido de contribuir para a diminuição de “atos
pecaminosos”, procedentes ou não, da sociedade envolvente. Nessa
“busca pelo outro” (VILAÇA, 2008, p. 196), afirma que: “O cristianismo é
para eles, ao menos nesse momento, antes de tudo uma nova perspectiva
sobre as relações, instituída por um ato criador de origem inimiga”.
A propósito, a demonstração da relevância de análise dos
“marcadores estruturadores” na temática de estudo sobre a cultura
indígena e a sociedade envolvente, propicia que “na esmagadora maioria

235
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

das ocasiões não pondera sobre os divíduos 3 e coletividades, não


considera a anterioridade e atuam como propagadores de rupturas
dessas identidades” (ALMEIDA SILVA, 2015a, p. 107).

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DE “MARCADORES TERRITORIAIS


ESTRUTURANTES”

Os “marcadores estruturantes” compartilham a ideia de


construção a partir da visão dos divíduos de determinada coletividade e
envolve os aspectos fundantes da cosmogonia (ALMEIDA SILVA, 2010;
2015a). No entrelaçamento deste conceito procuramos detectar algumas
características desses marcadores que demonstrassem possuir relação
com os valores culturais dos Wari’.
O primeiro item analisado é o que chamamos de
“cosmopolitismo interétnico-feminino” que está estritamente
relacionado à força e união das mulheres indígenas (Fig. 10), durante
encontro de grande relevância para o fortalecimento da luta
protagonizada pelas Wari’, inclusive que culminou com a feira cultural
de arte ritualística-ancestral feminina (Fig. 11).
O encontro foi coordenado por Leonice Tupari, presidente da
Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (Agir), entidade que
busca construir importante rede de formação, organização e articulação
com vista a contribuir para a autonomia e empoderamento dessas
coletividades.

3Esse conceito reflete a noção de corpo e pessoa entre os melanésios, o qual é


caracterizado por Strathern (2006, p. 40-41) “as pessoas são frequentemente
construídas como o lócus plural e compósito das relações que a produzem”.

236
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Figuras 10 e 11: Mulheres Wari’ e Tambor (Towa) feminino em Lage


Velho

Fonte: GEPCULTURA (2017)

Outra importante liderança rondoniense, Gasodá Suruí, presente


no encontro e em entrevista em 2017, nos falou sobre a importância da
luta e organização das indígenas:

A Leonice Tupari é uma guerreira, é uma liderança. Ela


motiva as mulheres a lutarem pelos seus direitos. Essa luta é
muito importante, porque precisamos hoje no Estado, de um
movimento indígena que corresponda a altura de todas as
comunidades, para que só assim, a gente possa garantir um
futuro melhor para nossas comunidades, sejam homens,
mulheres, jovens, crianças. Tudo isso, a luta das mulheres
fortalece o nosso movimento como um todo. A AGIR é uma
organização indígena voltada para as mulheres e tem três
anos de existência e o que está acontecendo hoje aqui, pra
mim é uma coisa inédita, porque nenhum movimento
indígena chegou a esta base como o que tem acontecido com
as mulheres. Esse movimento tem buscado essas mulheres
dentro das comunidades, dentro de suas aldeias, pra poder
articular com elas sobre o momento que nós estamos
vivendo diante do descaso dos governantes do nosso país
para com os povos indígenas.

237
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

A luta dessas mulheres é uma realidade emergente de visão


eminentemente cosmopolita, pois promove articulação singular e plural
dessas guerreiras na incansável luta pela conquista de seus direitos
individuais e coletivos, pois realiza a interlocução entre a aldeia e o
mundo urbano, para além dos limites regionais e nacionais.
Com isso, por meio da organização estabelece contatos, acordos,
convênios e cooperações com distintos atores sociais, instituições
públicas e não governamentais, exigem o estabelecimento e o
cumprimento de políticas públicas, de modo que se presentificam e
constroem narrativas para consolidação do protagonismo a partir de
suas necessidades prementes.
O segundo identificado e relacionado aos “marcadores
estruturantes” foi a “arte ritualística-ancestral feminina” apresentada
durante feira cultural em ALV. Neste cenário artístico-cultural indígena
foi exposto, além de diversas peças artesanais, o tradicional tambor
feminino de caucho (towa), ancestral simbologia que esteve presente nas
ritualísticas e festividades dos Wari’.
Desde tempos imemoriais os towa eram utilizadas nos rituais e
festividades dos Wari’ e variavam de tamanho conforme as
especificações de exibição das ritualísticas. Em conformidade com
Vilaça (2017), o towa era feito de uma panela cônica de argila (tapaxi’) e
constituía-se como trabalho feminino e competia aos homens recobri-lo
com tiras de caucho.
O tambor era tocado com o auxílio de vareta coberta com linha
de algodão tingida de urucum; tem na parte superior uma alça, a qual
serve para pendurá-lo no ombro do tocador. Durante a festa denominada
Huroroin’, o towa era utilizado pelas indígenas:

As mulheres convidadas, sentadas em linha na clareira,


cantam ao som de um pequeno tambor de caucho, towa
(miniatura daquele que se toca no tamara), as ijain jê e’,
canções femininas. A voz é fina, agudíssima. A batida do towa
feminino, ritmada, é mais rápida que aquela do tamara. A
melodia é única – e diferente do tamara – e as letras parecem

238
ALMEIDA SILVA (ORG.)

constituir um repertório finito, de origem ancestral,


preservado na memória das mulheres (VILAÇA, 2017, p.
194).

Essas práticas de rituais entre os gêneros é um modo evidente da


importância da mulher na construção dos modos de vida de seu povo. O
towa feminino é apenas uma das grandes demonstrações de luta e
resistência das Wari’. Ele permanece vivo em seus rituais e constitui- se
peculiar simbologia de uma ancestral história de vida construída e
desenvolvida no espaço e tempo desse coletivo que conseguiu
sobreviver às mais diversas situações de pressões e ameaças.
Na ALV visitamos a Escola Indígena Won Kanum Oro Waran e
tivemos a oportunidade de presenciar uma atividade desenvolvida por
estudantes e organizada por Francisco Oro Waran – uma das lideranças
Wari’ e na época discente de mestrado do PPPG/UNIR. A atividade
tratava da “mulher mitológica-cosmogônica” como terceira
característica dos “marcadores estruturantes” identificada nessa
coletividade.
Entendemos que esses valores culturais estão relacionados à
cosmogonia, indissociáveis de uma ancestral axiologia mitológica.
Considerada imprescindível ao resgate da identidade coletiva, a
atividade foi desenvolvida através de encenação teatral que revelou a
criação mitológica dos Wari’, que ocorreu depois de grande inundação
na terra, conforme Francisco Oro Waran (2017):

Nossos pais contavam que naquele momento começou a


chover. Chovia dia e noite sem parar, os dias passavam,
passavam e a chuva continuava. Os rios saíram do seu leito e
invadiu a terra firme. Alagaram os caminhos, as casas e os
roçados. Uma velha caminhava debaixo da chuva com um
paneiro 4 nas costas, era o espírito da chuva e a dona da chuva.
Ela aproximou-se de uma aldeia, fingindo que ia passando, os

4 Termo regional amazônico para um cesto feito de fibras vegetais e utilizado


para guardar, transportar, enfeitar, dentre outras funções. De modo
interpretativo, guarda semelhanças com balaios e/ou cestos de colocar roupa.

239
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Wari’ chamaram: – Vem cá vó! Venha se aquecer no fogo. Ela


sentou próximo ao fogo, depois entrou numa casa, ajeitou
suas roupas, se despediu e disse: – Já vou meninos.

– Espere vó. Disseram eles. – Não, eu tenho que ir. Eu vou


embora. Disse ela. Começou novamente a chover mais forte
e subiu todos os peixes, era matrinchã, surubim, cará, mandi,
tucunaré. Os Wari’ flecharam muitos peixes e a chuva
continuava a cair, não se via nem o mato nem a terra, só se via
água, era água por todo canto. Um homem apareceu e avisou
aos meninos, ele foi embora e chamou os parentes, que
estavam mais preocupados em flechar os peixes, eles não
quiseram ir. A esposa dele concordou em ir embora com ele e
o casal saiu da aldeia, subiram num paiol de milho e se
acomodaram. Pela madrugada eles ouviram um grande
barulho, era a terra que afundou de uma vez. O pai pensou
que os seus parentes devia ter morrido, e chorou, chorou até
amanhecer o dia, depois foi reparar a aldeia, e nem encontrou
nenhuma casa e nem gente, os parentes tinham se
transformado em passarinhos e em jacaré. Eles choraram
muito e passaram dois anos numa grande tristeza, no terceiro
ano o homem que só tinha filhas disse para a esposa: – Vou
atrás de gente. Ele saiu devagarzinho e foi, procurando rastros,
mais voltou muito triste sem encontrar. No dia seguinte ele foi
de novo, naquele momento ele encontrou os rastros do povo
Oro Wari’. Voltou novamente com as filhas pequenas para o
mato, quando viu umas mulheres apanhando mamão. O
homem se aproximou delas e contou para uma das moças
que os parentes dele tinham morrido numa grande alagação.
Ele perguntou se elas, as moças, tinha pais e irmãos, pois
queria conversar com eles. Então ela levou ele até onde eles
moravam. Eles moravam numa caverna de pedra. Morava
uma família nessa caverna. Então o homem ofereceu suas
filhas para se casarem. – Saíam depressa da caverna, casem
com minhas filhas para que vocês possam se multiplicar. E
assim os homens vão saindo da caverna. Então assim vão
casando as meninas. Os pais dos meninos não conseguiram
sair da caverna, devido os corpos deles serem muito grande.
Então o pai dos meninos falou, ele disse o seguinte: – Vocês
vão se multiplicar, vocês vão crescer muito e um dia vocês
vão morrer, e as esposas de vocês também. A caverna deles

240
ALMEIDA SILVA (ORG.)

era uma gruta com uma entrada estreita, os pais como eram
muito gordos, não puderam sair, ficaram presos na gruta e
então gritaram: – Suas mulheres vão ficar pequenas e não vão
passar de suas cinturas, é por isso hoje que as mulheres são
menores do que os homens. As filhas tiveram filhos, netos e
bisnetos, e assim foi o surgimento dos subgrupos Oro Wari’.

Momentos singulares como essa narrativa se fundem na


pluralidade espírito-natureza, uma multiplicidade de valores
entrelaçadas na vastidão de suas simbologias e coloca a mulher Wari’
como protagonista de sua própria criação.
A quarta característica mencionada aqui como “marcador
estruturante” é a “Roda de conversa dos anciãos”. Neste encontro de
gerações, os anciãos demonstram a preocupação com a vida e com a
natureza. Os relatos nos leva à compreensão de fatores que perpassam
da organização político-social do território às dimensões cultural-
cosmogônicas de seus modos de vida ancestrais, com isso refletimos
nessa vivência a importância destacada por Dardel (2011) em sua obra
O homem e a terra.
Nos relatos de Xowa Oro Mon (2017): a primeira narrativa
reporta-se à relação homem com a natureza e as consequências sofridas
pela floresta após o contato com a sociedade envolvente:

A natureza é para nós como se fosse o nosso pai, a nossa mãe.


Nós índios gostamos muito do mato. A gente gosta mesmo.
Antigamente quando a gente queria comer uma fruta a gente
subia e tirava pra comer, não tem necessidade de derrubar a
planta. A castanheira dá sombra, dá muita saúde a terra a
folha da castanheira, porque a castanheira é grande. Nós
dormíamos e comia embaixo das árvores. Por isso que a gente
gosta da natureza. Agora não, quando os brancos chegaram
aqui e os madeireiros, não entenderam que a madeira sofre.
Estão derrubando, estão matando cada vez mais a natureza.
A madeira da natureza está se acabando, a castanheira a
mesma coisa. A natureza tem saúde também, como a gente
tem saúde. É a mesma coisa. A natureza respira como a gente
tá respirando. Era para ter muito peixe no rio. Antigamente

241
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

eu matava um tucunaré que dava pra família toda comer. Nós


matávamos os peixes, cortava e botava numas folhas grandes
para assar e todo mundo comia, umas duas mil pessoas. Hoje
em dia, não. Você vê tem tanto pescador aí que pega mil
quilos de peixe e querem ganhar muito com isso.

Os fatores exógenos à coletividade Wari’ prosseguem descritos


por Xowa Oro Mon (2017) que após demonstrar sua insatisfação quanto
ao modo dos não indígenas tratarem a floresta, nos mostra dois cenários
distintos da saúde indígena, ao abordar sobre o surgimento de doenças
que acometeram seu povo após o contato, e como viviam antes de serem
vitimados por essa aproximação com agentes externos:

Antes de o branco chegar não tinha doença grave como está


tendo agora. Não tinha dor de barriga, não tinha vômitos,
tosse, sofrimento, catapora. Não tinha essas coisas no mato.
Não era assim quando a gente vivia no mato. Sabe por que a
gente tá morrendo, porque a doença é da cidade. A doença é
do branco. A gente pegou tudo. De onde vem esse veneno?
Vem do açúcar, do sal, bebida, fumo. Tudo isso traz doença
pra gente. Quando nós vivíamos no mato, a gente não tinha
essas coisas. Você ver agora, o que é que os nossos índios
aprenderam com os brancos? Branco ensina a gente a beber,
ensina fazer besteira, ensina roubar, um bocado de coisas. Se
fosse como o índio vivia no mato, seria muito melhor, porque
a doença é tudo na cidade. Tem muita gente que rouba, que
fuma droga, não sei se já tem índio fumando droga, porque
branco ensina, assim como ensinou a gente a fumar o cigarro.

Outro relato seu que o deixa muito triste foi a violência como
foram praticamente dizimados pelo homem branco, detalha como era
seu habitat anterior e narra a crueldade dos “civilizados” e dos momentos
difíceis que passou com sua família na maloca, ainda na infância:

Ali na quinta linha, não sei se vocês conheceram ou vão


conhecer ainda, ali era uma maloca velha, maloca do Oro
Waran. O pessoal saía daqui para pescar La nas pedras de
Guajará. Nossos índios levavam as cestas para trazer os
peixes, que quando o rio começava a vazar, ficava tudo preso

242
ALMEIDA SILVA (ORG.)

nas pedras. Só que os brancos começaram a chegar, matava


o índio pra ficar no lugar do índio. Não era pra ser assim. Os
cara vieram aqui e atacaram o pessoal. Mataram não sei
quantos índios. Foram chegando e afastando a gente cada vez
mais para trás. Mataram muito índio, não foi pouco não. Os
brancos matavam todos os pais, todas as mães. Depois
pegavam as crianças, jogavam para cima e aparava com a
faca, que maldade. Eu conto isso porque eu vi essa
arrumação. Não era pra fazer isso. Um dia esses caras foram
atacar a minha maloca, quando eu tinha dez, doze anos, eu
acho, por aí assim. Aí atacaram minha maloca, mataram não
sei quantas pessoas, nesse dia minha mãe foi morta por um
tiro. Aí o chumbo pegou aqui no meu braço, aqui não tem
osso, aí ficou chumbo aqui. Aí meu pai teve que fugir pra
outra maloca, chamada Oro Eo, meu pai foi pra lá. Tinha um
pajé lá. Curou o lugar do chumbo, mas não é doença para o
pajé curar. Por que é outro gosto, sentir o gosto do chumbo é
um veneno pra ele. Pajé não cura esse tipo de doença, porque
o chumbo fede, é outro cheiro pro pajé. Se fosse a doença
mesmo, pajé cura.

A sua última parte do seu relato diz respeito a convivência dos


pajés e aborda sobre a atuação xamânica no processo de cura das
doenças e como se manifestavam os espíritos diante do fatídico encontro
entre vida e morte:

O pajé naquele tempo era assim. O espírito mal botava


doença na gente, em qualquer canto, nos pés, no peito, na
cabeça, no ombro. Então o pajé vai lá curar essa doença do
espírito mal. O pajé ver, aí o pajé fala que dá de curar. O pajé
vai e cura. Fica bom. Tem pajé que tira a doença de dentro da
barriga, do pulmão, do coração, porque o pajé vê. Porque o
espírito do bem faz ver a doença no corpo de uma pessoa.
Então o pajé cura aquela doença, tira essa doença e a pessoa
fica boa. Porque que ele tira? Porque o espírito bom cura e
ajuda tirar essa doença do corpo dessa pessoa. O espírito mal
não, o pajé quando não dá de curar aquela doença, a pessoa
morre. Então, esse pajé sofre muito, Sabe por que pajé tanto
sofre? É assim, esse espírito que ele quis trabalhar com ele
junto, para curar a pessoa doente, e se pajé não curar essa

243
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

doença direito, se não tirar bem a doença, aí esse espírito dele,


que tá trabalhando junto com ele, castiga o pajé, e o pajé sofre
muito. Esse espírito que tá trabalhando junto com ele, castiga
ele. Aí a pessoa morre e o pajé pode morrer também. Sabe por
que ele morre? Porque o espírito mal não tá trabalhando
direito com ele.

As características mencionadas, tais como, a roda de conversa, a


criação mitológica, as artes ancestrais e o cosmopolitismo interétnico,
são aspectos que possuem elementos e fenômenos, os quais mantém
estreita vinculação com os “marcadores territoriais estruturantes”, e que,
destarte, contribuem significativamente para a manutenção da memória
e a busca por estratégicas que possibilitam a valorização e o
fortalecimento da identidade Wari’.

A IDENTIDADE WARI’ COMO “MARCADOR TERRITORIAL


ESTRUTURANTE”

No contexto de seus dinamismos ritualísticos-ancestrais e de


suas singularidades cosmogônicas, constitui-se como espaço de ação,
uma vasta rede de valores originários que simboliza e fortalece com
autenticidade a sua peculiar identidade cultural (CASTELLS, 2008). É
neste cenário de heterogeneidades socioespaciais, apesar de ataques
etnocidas, que consideramos a identidade Wari’, como relevante
“marcador estruturante”, na afirmação de Almeida Silva (2015a, p. 71)
como decorrente das [...] relações estruturantes nos “marcadores
territoriais” produzem e desenvolvem mecanismos específicos que
codificam as relações cosmogônicas e suas variáveis como
espiritualidade, experiências socioespaciais ou vivência, articulação
social e política, economia, parentesco, externalidade, internalidade,
através do espaço de ação como construções simbólicas responsáveis
pela instituição da espacialidade ou territorialidade.
O referido autor encontrou em Henriques (2003, 2004), algumas
identificações de marcadores – embora Henriques não desenvolvesse o
conceito, entretanto tenha proposto uma estrutura hierárquica de como

244
ALMEIDA SILVA (ORG.)

esses se organizam. A partir de tais apreensões, consideramos no nosso


entender, como de considerável importância no embasamento
esquemático de suas investigações, e aprofundou a análise iniciada pela
autora dos “marcadores territoriais Vivos; Simbólicos; Fabricados;
Históricos; Musicais e Funcionais”.
Para além disso, Almeida Silva (2010; 2015a), elaborou o
conceito de “marcador territorial”, o qual nos trouxe relevante
contribuição nos estudos sobre às territorialidades e coletividades
humanas, e especialmente às indígenas. Consideramos que as
representações simbólicas étnicas são precisas como “marcadores
territoriais estruturantes”: Linguísticos; Cosmogônicos; Perceptovisual-
sensoriais e Estéticocorporais, além dos “estruturadores” anteriormente
descritos.
Em conformidade com o autor, o marcador linguístico
“proporciona um universo de representações e formas simbólicas e
presentificações que permitem a realização da comunicação” (2015a, p.
102); os cosmogônicos, “organizam a vida coletiva por meio dos valores
cosmogônicos, morais e espirituais” (p. 104); os perceptovisual-
sensoriais, “fundam-se na materialidade, imaterialidade e no inatingível
como se constata nos odores, sons e ruídos [...]” (p. 105); e os
estéticocorporais, “são aqueles que têm relação direta com o indígena,
representam a própria identidade cultural que carrega no corpo e no
espírito e revela a relação íntima com a espiritualidade” (p. 106).
A identidade Wari’ possui significativa relação com os
“marcadores estruturantes” identificados e caracterizados por Almeida
Silva (2010; 2015a). Os “estéticocorporais” podem estar representados
nas pinturas feitas com urucum e jenipapo para os preparos das festas do
Tamara, Huroroin e Hwitop, ou nas pinturas de enfrentamento das
expedições de guerra contra os inimigos (wijam).
Os perceptovisual-sensoriais estão presentes no vento (hotowa),
no som do towa, nos cheiros da roça (xitot) e do corpo (kwere-), nas
premonições da chegada do estranho (wijam), nas batidas das brigas de

245
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

borduna (mixita), no cantar das aves (me), no zumbido das abelhas


(tawi) e numa infinita rede de simbologias materiais e imateriais que
contextualiza a identidade Wari’.
Suas canções ancestrais e de rituais funerários, assim como os
assovios ritualísticos que anunciam as festividades e ritualidades,
consideramos como “marcadores linguísticos” Wari’, enquanto suas
cosmogonias, mitologias e práticas xamanísticas ancestrais vislumbram
como “marcadores cosmogônicos”.
Destarte, encontramos nos “marcadores” o aporte teórico na
perspectiva de melhor nos situarmos diante da temática da identidade
Wari’, pois para Almeida Silva (2015a, p. 207) “a lógica da construção da
territorialidade e dos marcadores territoriais indígenas consiste em
estruturas estruturantes, alicerçadas na cosmogonia e nas experiências
socioespaciais inseridas na cotidianidade de seu espaço de ação”.

CONSIDERAÇÕES ÚLTIMAS

Os Wari’ atravessaram durante décadas uma série de atrocidades


que trouxeram profundas transformações em seu modo de vida. Os
impactos procedentes da sociedade envolvente resultaram numa espécie
de metamorfose identitárias: parte da população morreu em decorrência
de doenças e confrontos no período do contato, além de constantes
ameaças em seu território pelos mais distintos atores sociais
(latifundiários, madeireiros, dentre outros), bem como da ausência do
Estado no quesito proteção territorial desde os tempos do SPI.
Por outro lado, procuram desenvolver estratégias que
possibilitem a valorização e fortalecimento cultural – a escola parece ser
um dos caminhos possíveis – mas são conscientes que o retorno à
originalidade vivida pelos ancestrais é algo quase impossível em
decorrência da realidade que se coloca, compreendem ainda que apesar
dos desdobramentos do contato algumas das ações promovidas pelo não
indígena foram relevantes até mesmo para assegurar a sobrevivência

246
ALMEIDA SILVA (ORG.)

como povo. Em nossa pesquisa procuramos esclarecer no bojo desta


pesquisa através dos marcadores territoriais.
Merece destacar que a compreensão da realidade colocada no
século XXI com a “modernidade” é algo que as pessoas mais idosas do
povo Wari’ observam com ressalvas e preocupações, enquanto os mais
novos – muitos dos quais perderam, em conformidade com o que
afirmam, grande parte o idioma originário – aceitam com menor
resistência esse processo. Para além disso, pode ser constatado que a
sociedade brasileira ainda insiste em promover o apagamento de seus
sítios simbólicos, bem como a realização de verdadeira dilaceração de
valores identitários, e a supressão de direitos constitucionais em meio a
um conjunto de estereótipos, estigmatizações e violências, que tentam
negar ou escamotear as ancestrais experiências socioespaciais desse
povo originário.O processo de evangelização e sua particular relação com
a identidade Wari’ prossegue e constitui-se como palco de discussões
promovidas com intensidade por diversos autores de áreas como a
Sociologia, Antropologia, Direito, Linguística, dentre outras, as quais se
dedicam aos estudos dessa problemática, considerada de difícil
contorno, devido a distintos modos de análises, posturas e
procedimentos teórico-metodológicos.
O encontro da ancestralidade com os agentes exógenos propicia
a necessidade de se persistir com estudos investigativos, todavia, deve-se
atentar para que se priorizem os interesses dessa coletividade,
especialmente, com respeito a seus valores sociais, culturais, espirituais,
dentre outros. Há um longo trajeto a ser percorrido, no sentido de
entendermos um pouco mais sobre os povos originários. A geografia e
outras áreas do conhecimento podem oportunizar esses desenlaces, não
somente como modelos teóricos, mas que propiciem debates e apontem
caminhos possíveis de diálogos.
Por fim, afirmamos que o estudo dos “marcadores territoriais” é
uma relevante contribuição no âmbito do entendimento da apreciação
analítica voltada a essas coletividades, os quais resistem e se adequam às
transformações produzidas e difundidas pela sociedade envolvente. São

247
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

atores sociais metamorfoseados no espaço e tempo em seus territórios, e


como a identidade não é estática, superam determinadas rupturas e
constroem caminhos e perspectivas no seu dinâmico e fundamental
processo de autonomia.

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Disponível em: www.revistas.ufg.br/atelie/article/view/58456/
35261. Acesso em: 10 nov. 2020.

Agradecimentos
Estudo desenvolvido com fomento da Fundação de Amparo ao
Desenvolvimento das Ações Científicas e Tecnológicas e à Pesquisa do
Estado de Rondônia – FAPERO. Projeto “Geografia e Marcadores
Territoriais: Sentidos e Representações Socioculturais Amazônicas” -
Chamada 003/2017 – PQR, ao Programa de Pós-Graduação Mestrado
e Doutorado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia –
PPGG/UNIR pelo apoio.

252
REPRESENTAÇÕES KAXARARI SUAS VIVÊNCIAS E SENTIDOS
CULTURAIS 1

Francisco Ribeiro Nogueira


Josué da Costa Silva
Américo Costa Kaxarari
Adnilson de Almeida Silva

No presente trabalho apresentamos os resultados de uma


atividade realizada com o povo indígena Kaxarari, que habita a Terra
Indígena Kaxarari (TIK), cujo território encontra-se localizado nos
estados de Rondônia e Amazonas. Trata-se de um povo originário que,
desde a década de 1960, tem recebido pressões externas sobre seu
território, notadamente pelo avanço da fronteira econômica na porção
sul-ocidental da Amazônia brasileira.
A motivação deve-se ao fato de que, praticamente, não existe
material acadêmico- científico que aborde a trajetória de vida desse povo
indígena, apesar de ser um dos mais sofrido com uma série de pressões
ao longo de décadas. Vivências, sentidos e representações Kaxarari,
trata-se da construção de diálogos culturais estabelecidos entre este
povo e pesquisadores, com vista ao registro de suas memórias, ainda que
fragmentadas, ao tempo que busca situá-lo como visível na sociedade
abrangente.
Metodologicamente o trabalho está centrado na fenomenologia.
As informações foram obtidas por meio de registros, em diálogos
abertos, como: entrevistas, imagens, relatos e narrativas. Alguns aportes
teóricos e conceituais são provenientes de revisão bibliográfica. Os
resultados obtidos são demonstrados por esses registros, os quais
procuramos mapear suas vivências, seus sentidos e representações.
Alertamos, todavia, que é necessário aprofundar as discussões acerca dos

1 Publicado com o título “Vivências, sentidos e representações Kaxarari:


diálogos culturais”, na Revista Ciência Geográfica, em 2020.

253
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Kaxarari em todas as áreas do conhecimento, mas que, no presente


momento, a Geografia com uma abordagem cultural, traz à tona o início
de relevante temática.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O trabalho origina-se de uma atividade de campo desenvolvido


por professores, discentes da graduação e do Programa de Pós-
Graduação Mestrado da Universidade Federal de Rondônia por meio dos
Grupos de Estudos e Pesquisas Modos de Vida e Culturas Amazônicas
(GEPCULTURA) e Geografia, Mulher e Relações Sociais de Gênero
(Gepgênero), junto ao povo indígena Kaxarari.
Para tanto, foi concebido o projeto Viver Kaxarari com o objetivo
de in loco, vivenciar, sentir e aprendermos sobre as representações desse
povo, em seus aspectos culturais, saberes, fazeres e etnoconhecimentos.
A motivação do projeto se deu em virtude de um convite do Presidente
da Organização das Famílias Indígenas Kaibu Kaxarari – OFIKK, Edson
Costa da Silva Kaxarari, para conhecermos a realidade vivenciada por
seu povo, nos aspectos culturais, sociais, organizativos, os quais
pudessem ser retratados e inseridos no contexto acadêmico- científico,
mas também como afirmação política.
É imperativo mencionar que durante o trabalho de campo foi
realizado o I Encontro das Mulheres Kaxarari, o qual oportunizou o
intercâmbio de conhecimentos e a reflexão sobre o povo, além da
apresentação da cultura e valores culturais, representações da
espiritualidade e do sagrado (valores, objetos, lugares, espaços,
territórios, símbolos, tradições, danças, ritos, rituais, etc.). O encontro foi
realizado no período de 30 de outubro a 2 de novembro de 2018, na
Aldeia Barrinha, distante 37 km do Distrito de Extrema de Rondônia.
Essa é uma das mais antigas aldeias, outras oito complementam e
compõem o povo Kaxarari, o qual possui aproximadamente 150 famílias
e totaliza um universo de 620 indígenas, conforme informações obtidas
junto ao povo.

254
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Em conformidade com os relatos do povo Kaxarari, desde muito


tempo, especialmente, a partir da década de 1960, com a intensificação
da colonização da fronteira econômica da porção sul-ocidental da
Amazônia tem sofrido uma série de pressões externas, as quais tem
deixado marcas em seu modo de vida.
Tais marcas são provenientes de conflitos armados, na luta
contra as invasões de seu território – que resultou em perdas territoriais.
Para além disso, a exploração desautorizada e ilegal tem provocado o
esvaziamento das riquezas minerais, vegetais e animais. Também
sofreram em períodos anteriores à década de 1960 quando seus
membros eram submetidos a trabalhos análogos à escravidão, com
patrões caucheiros peruanos e seringalistas, marreteiros e garimpeiros
brasileiros, realizavam a exploração da mão de obra; todo esse quadro
resultou em inúmeras mortes de seus entes queridos, as quais foram
potencializadas, sobretudo, pela malária, doenças respiratórias e outras
que não conheciam e que são decorrentes do contato humano.
A aproximação com a sociedade envolvente brasileira e
boliviana 2 tem possibilitado que os Kaxarari acessem alguns
equipamentos modernos, tais como: saúde, educação (inclusive
superior), comercialização, profissionalização, energia elétrica, água
encanada, residências construídas com madeira (a maioria em condições
não muito adequadas), televisão e internet. Salienta-se que postos de
saúde e atendimento de saneamento, assim como escolas até o ensino
fundamental completo funcionam nas aldeias em condições não
satisfatórias, mas que poderão ter melhorias, visto que as usinas
hidrelétricas do Complexo do rio Madeira a título de compensação
ambiental e social realizam a construção de prédios para essas
destinações específicas.

2 Parte da TIK situa-se no Distrito de Extrema pertencente ao município de


Porto Velho, o qual limita-se com a Bolívia – aproximadamente 120 km da
fronteira. Os Kaxarari mantêm algumas relações sociais com os bolivianos que
constantemente frequentam o mencionado Distrito.

255
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

PERCURSO METODOLÓGICO

A abordagem descrita no presente trabalho se apoia nos


princípios da Fenomenologia, notadamente em Cassirer (1992 [1925];
2001 [1926]; 2004 [1926]; 1953-1957 [1929]; 2005 [1942]; 1968 [1944];
1978 [1944]; 1994 [1944]; 1976 [1946]; 2005 [1951]; 1975 [1956]), que
modo geral considera que a consciência decorre da análise intencional e
descritiva da consciência, cujas definições remetem às relações
essenciais entre atos mentais e mundo externo.
Com isso, o autor considera que a constatação no mundo das
exterioridades e objetos são detentores de aspectos inflexíveis da
percepção dos objetos e a produção de atributos da realidade, isso faz
com que possamos qualificar ou perceber nossas ações no mundo, ou
seja, como somos e como representamos e somos representados perante
o mundo.
Na fenomenologia proposta por Cassirer, encontramos conceitos
como espaço de ação, formas simbólicas, pregnância simbólica,
linguagem, substância, representações simbólicas, formas e função. Estas
nos oferecem a perspectiva do espaço-ação, originada pelas
representações e formas simbólicas, o que possibilita o ser humano se
inserir no mundo e compreender sua lógica sobre o ser e não sobre o
dever ser, de modo que compreendemos as coisas pela existência
concomitante do real e ideal, caracterizadas como existência fenomenal.
Os caminhos percorridos em nosso trabalho são alicerçados nos
levantamentos de dados realizados, por meio de registros em diálogos
abertos, como: entrevistas, imagens, relatos e narrativas. A característica
principal é oferecer dentro da perspectiva fenomenológica uma vertente
aproximativa com a etnografia, a qual tem como base o estabelecimento
de relação intersubjetiva entre o pesquisador e os demais atores – aqui
entendido como intercâmbio de conhecimentos e vivências. Para além
dos meios de aquisição de dados também utilizamos a revisão
bibliográfica pertinente, com a finalidade de fundamentar nosso texto.

256
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Deste modo, estabelecemos diálogos com as lideranças de todas


as aldeias Kaxarari, para obter dados e informações, durante o período
de duração do I Encontro das Mulheres daquele povo. Dialogamos com
professores, agentes indígenas de saúde (AISS), agentes indígenas de
saneamento (AISANS), presidentes das associações, que representam
tanto a etnia como um todo, quanto um clã e/ou uma aldeia Kaxarari.
Interagimos com outros indígenas que se dispuseram ou que tivemos
melhor facilidade ou empatia para conversar, trocar ideias e conversar
sobre a sua cultura.
Ressaltamos que o diálogo com a liderança da Aldeia Kawapu,
ocorreu somente no final do evento, pois afirmaram que não foram
convidados a participar das atividades do I Encontro das Mulheres
Kaxarari, realizado na Barrinha.
Na nossa percepção existe um código de condutas entre os
Kaxarari para receber e conversar com os visitantes, pois nem tudo pode
ser falado sem o aval da liderança, isto significa que existe o respeito e
hierarquia interna, como regra, em que ninguém se pronuncia além do
necessário. Qualquer informação mais aprofundada ou sobre símbolos e
representações, e a depender da natureza da pergunta, precisa ser
autorizada pela liderança, o que caracteriza para a segurança e
preservação de seu povo.
Entendemos como liderança, o cacique homem ou mulher, que é
o chefe geral e autoridade máxima de cada aldeia, responsável por tudo
e todos, é aquele que autoriza ou não o acontecimento de quaisquer
eventos em suas comunidades. É importante destacar que essas
lideranças em tempos idos eram os antigos caciques ou tuxauas, que
poderiam inclusive exercer atividades de pajés, caso fosse preparado
para isso. A terminologia mudou, mas a essência do conceito permanece,
como representação de poder.
As lideranças das aldeias Kaxarari com as quais mantivemos
diálogos estão apresentadas na Tabela 2. Em geralmente as vice-

257
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

lideranças ou vice caciques são quase sempre é o/a companheiro/a ou


um/a sobrinho/a.
A título de informação e esclarecimento, de acordo com o senhor
Vitorino Cézar Kaxarari, da Aldeia Pedreira, primo do cacique Américo
(Manu) Costa Kaxarari 3, da Aldeia Barrinha, antigamente o chefe das
aldeias era o tuxaua - autoridade máxima no meio indígena.
Depois esse nome foi substituído por cacique, com o mesmo
poder e liderança, mas com nome diferente. Nos dias atuais, por
influência do mundo moderno e o contato com a sociedade envolvente
passaram a ser chamados de lideranças.
Afirma o senhor Vitorino que os Kaxarari têm seu nome civil
registrado no cartório em português, como se fosse um deles, como
“homem branco”, acrescentado a etnia para dar o respaldo oficial. Assim,
todos os indígenas de seu povo têm no registro civil no final a palavra
Kaxarari, preservam, contudo, o seu nome original na língua materna,
visto que tem seu significado, importância e valor.

APORTES TEÓRICO-CONCEITUAIS

A construção do trabalho se apoia na fenomenologia por meio


dos conceitos de espaço de ação, formas simbólicas, pregnância
simbólica, linguagem, substância, representações simbólicas, formas e
função, descritos por Cassirer (1992 [1925]; 2001 [1926]; 2004 [1926];
1953-1957 [1929]; 2005 [1942]; 1968 [1944]; 1978 [1944]; 1994[1944];
1976 [1946]; 2005 [1951]; 1975 [1956]), como condução filosófica.
Para além disso estão presentes outros conceitos como o de
geograficidade em Dardel (2011), pois entendemos que as ações dos
povos originários em suas coletividades, valores, representações
simbólicas, organização social, política, cultural, espiritual e territorial

3 No I Encontro das Mulheres Kaxarari, ele estava com 79 anos de idade, pois
afirma que nasceu no início da década de 1940. Seu RG e CPF apontam o dia 24
de abril de 1940, como data de nascimento.

258
ALMEIDA SILVA (ORG.)

retratam suas experiências, vivências, sentidos e representações


Kaxarari possibilitam e aproximam diálogos culturais, como
expressividade do ser, como uma:

[...] geograficidade, a qual expressa a própria essência


geográfica do ser-e-estar- no- mundo. Enquanto base da
existência, a associação entre geograficidade, lugar e
paisagem tem sido fértil, permitindo uma compreensão
fenomenológica da experiência geográfica (DARDEL, 2011,
p. XII).

Pela concepção dardeliana é possível estabelecer uma relação


como os povos indígenas realizam sua feitura e leitura de mundo, onde a
terra é extensão e integrante de suas vidas e do modo de bem viver com
sua geograficidade. Esta aproximação é oportunizada pela reflexão de
Dardel (2011, p. 48) ao considerar que:

[...] a ligação do homem com a terra recebeu, na atmosfera


espaço-temporal do mundo mágico-mítico, um sentido
essencialmente qualitativo. A geografia é mais do que uma
base ou elemento. Ela é um poder. Da terra vêm as forças que
atacam ou protegem o homem, que determinam sua
existência social e seu próprio comportamento, que se
misturam com sua vida orgânica e psíquica, a tal ponto que é
impossível separar o mundo exterior dos fatos propriamente
humanos.

Tal concepção aproxima-se da descrição de Almeida Silva (2010;


2015) ao conceituar os marcadores territoriais e demarcadores
territoriais. O primeiro é qualificado como estruturantes e o segundo
como estruturadores. Assim, o autor considera que:

A concepção de “marcadores territoriais” pode ser


compreendida a partir dos símbolos que ocorrem enquanto
espaço de ação, definem territorialidades vinculadas à
cosmogonia e experiências socioespaciais e possibilitam a
formação das identidades culturais e do pertencimento
identitário. [...] são experiências, vivências, sentidos,
sentimentos, percepções, espiritualidade, significados,

259
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

formas, representações simbólicas e presentificações que


permitem a qualificação do espaço e do território como
dimensão das relações do espaço de ação, imbricados de
conteúdos geográficos (ALMEIDA SILVA, 2010, p. 105).

Na proposição de Almeida Silva (2010, p. 116-117),


demarcadores territoriais são aqueles que “relacionados a um processo
da sociedade envolvente e ocorre por imposição jurídica, ou seja, de fora
para dentro do espaço, como afirmação das políticas territoriais do
Estado”. Como tal, muitas vezes o legado cultural e a ancestralidade
coletiva daqueles que habitam suas territorialidades desde tempos
imemoriais não são ponderadas pelos agentes externos, os quais
influenciam e interferem nos modos de vida das populações originárias
e povos tradicionais.
Ao refletirmos sobre tais questões, abre-se espaço para
discutirmos o conceito de cultura. Neste sentido, utilizamo-nos da
contribuição de Claval (2007, p. 63) ao abordar que:

A cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das


técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos
indivíduos durante suas vidas e, em outra escala, pelo
conjunto dos grupos de que fazem parte. A cultura é herança
transmitida de uma geração a outra. Ela tem suas raízes num
passado longínquo, que mergulha no território onde seus
mortos são enterrados e onde seus deuses se manifestaram.

A afirmação do autor é relevante no caso indígena e entendemos


que se situa em três dimensões apropriadas de temporalidade com
repercussões no espaço de ação, em que a primeira ocorre pela relação
mítica com a criação do homem e as coisas; a segunda é marcada pela
ancestralidade antes do encontro com a sociedade envolvente; e a última
ou atual com o encontro ou aproximação com a sociedade envolvente,
ancorada também nas temporalidades míticas, nas ancestralidades e nos
espaços de ação, com isso podem ser caracterizadas como “mudança e
permanência” na definição de Sahlins (2003, p. 7 e 181 [1985]; 1997a, p.
41-73; 1997b, p. 116).

260
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Deste modo, as mudanças e permanências estão relacionadas à


cultura, o que para Hoebel e Frost (2005, p. 16 [1976]), constituem-se
como um fenômeno dinâmico, que opera numa coerência própria, a qual
projeta, constrói e reconstrói a coletividade não como um processo
natural, porém se realiza pela aquisição de representações, significados,
sentidos e ressemantizações.
Entendemos que as descrições conceituais dos autores
mencionados estão, de algum modo, referendadas nas proposições de
Cassirer, especialmente por abarcar temáticas que envolvem a
subjetividade e intersubjetividade humanas.

TERRA INDÍGENA KAXARARI: A ETNOGEOGRAFIA VISTA PELO POVO


KAXARARI

Com uma área total de 145.889 ha (1.458,89 km²), está


legalmente constituída e localizada na jurisdição territorial da Amazônia
Legal, na porção sul-ocidental, foi demarcada e homologada pelo
governo federal. Situa-se próxima ao limite com o Acre, incide sobre os
estados de Rondônia (aproximadamente 35% da área) e Amazonas
(65%).
Os Kaxarari habitam a parte limítrofe inferior da TIK (Figura 1),
exclusivamente na parte rondoniense, com isso ocupam uma faixa
aproximada de 40 km a partir do limite demarcado, com um total de nove
aldeias distribuídas pelo território, e, algumas delas distante até 15 km
em relação a outras. O limite inferior da TIK, em Rondônia, está distante
acerca de 25 km da BR-364, cujos limites são paralelos à essa rodovia
federal.

261
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Figura 1: Terra Indígena Kaxarari entre Amazonas e Rondônia

Fonte: Instituto Socioambiental – ISA (2019)

Em conformidade com as informações fornecidas pelo cacique


Américo, líder da Aldeia Barrinha – onde aconteceu o I Encontro das
Mulheres Kaxarari – lembra que durante as décadas de 1940 e 1950,
quando ele ainda era criança, seu povo tinha muitas terras e era um vasto
território onde se habitava, andava, caçava e pescava, ao tempo que
observava e mapeava a área. Por isso lembra-se com bastante precisão
de toda a terra, onde o povo realizava as atividades.
Relata que a terra de seu povo é bem drenada por vários rios e
igarapés, e citou alguns nomes, pois não se lembra de todos. Entre os rios
cita o Marmelo, o qual deu origem a uma das atuais aldeias, a
Marmelinho; o Azul e seus afluentes Barrinha e Maloca, bem como o
igarapé Macurenem e seu afluente Calaicá. A então Aldeia Azul situava-
se à margem esquerda do rio de mesmo nome, assim como o igarapé
Barrinha, deu origem ao nome da Aldeia Barrinha antiga, que são as duas
primeiras daquele período, e ali iniciou- se a formação dos clãs Kaibu e
Yamaku.
De acordo com o senhor Américo, todos os rios e igarapés foram
muito ricos em peixes, mas que atualmente existe uma escassez grande

262
ALMEIDA SILVA (ORG.)

dessa fonte proteica, devido à diminuição do volume de água, além dos


leitos dos rios e igarapés estarem assoreados. Um dos motivos para tanto,
aponta, por exemplo, que o rio Azul teve seu cursodesviado devido às
explosões na região para a retirada de basalto, granito e calcário, como
atividade minerária – neste local está localizada atualmente a Aldeia
Pedreira.
A exploração descontrolada da brita se deu pela retirada da pedra
natural das jazidas ou minas, através do processo de decapagem do
terreno e desmonte das rochas. A decapagem consiste em limpar as
bancadas dos terrenos, derruba-se a floresta com todas as suas espécies
florestais existentes e retira-se a camada de solo e argila que estão sobre
as pedras, o que ocasiona a degradação total do solo. Enquanto que o
desmonte é conhecido pelas explosões com dinamites, em que estes são
colocados em locais estratégicos na rocha e nela são efetuados furos
profundos que propiciam sua fratura e desmonte em pedaços menores.
Assim, em decorrência dessas ações antrópicas, as atividades
realizadas pelos não indígenas nas cercanias dos leitos dos rios e
igarapés, somadas ao desmatamento, a exploração predatória de
madeiras, a escavação para garimpagem de jazidas de minérios (ouro,
diamantes e outras pedras preciosas) 4 destinadas à comercialização, a
detonação explosiva de dinamites para exploração de pedreiras e cristais
valiosos, tudo isso contribui para o bloqueio e o desvio de leito de rios e
igarapés, de modo que resultou na morte e fuga de espécies de peixes e
da fauna aquática.

4 Em conformidade com https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-


indigenas/3727 existem quatro requerimentos de pesquisa na TIK pelas
seguintes empresas e áreas: 1) C.R. Almeida S/A Engenharia de Obras (3.306,67
ha); 2) Getúlio Dornelles (6.909,07 ha); 3) Brita Norte Mineração Engenharia e
Terraplanagem Ltda. (7.069,31 ha) — todas essas com estanho; 4) Mlm
Mineração Ltda. (7.035,12 ha – ferro). Assim, esses pedidos de exploração
mineral totalizam 24.320,17 ha (243,20 km²), correspondentes a 16,66% da área
total da TI oficialmente demarcada.

263
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

De acordo com o relato do senhor Américo, um dos mais antigos


remanescentes de seu povo, as terras conhecidas, habitadas e
referenciadas pelos Kaxarari abrangiam desde a Ponta do Abunã, na
travessia da balsa no rio Madeira, onde o rio Abunã encontra-se com o
Madeira. Seguiam pelo distrito de Vista Alegre do Abunã, margeavam-
se em subida pelo rio Abunã, que divide o Brasil da Bolívia, passavam
pelo distrito de Extrema de Rondônia, adentravam uma parte de terras
acreanas, dali prolongavam-se até o estado do Amazonas, depois
desciam até às margens do rio Madeira e margeavam até a Ponta do
Abunã.
Com as informações prestadas pelo senhor Américo,
processamos manualmente uma “demarcação virtual” no Google Earth,
conforme Figura 2, para termos a noção do tamanho que seriam suas
terras referenciadas nas décadas de 1940-1960, quanto tudo por ali ainda
era floresta virgem e havia uma grande biodiversidade de flora e fauna,
com isso podermos comparar com a atual área demarcada e homologada
pelo governo federal.

Figura 2: A TIK memorial nas décadas de 1940-1960

Fonte: Informações do senhor Américo Kaxarari. Organ. Por Nogueira (2019)

264
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Ao observarmos a “demarcação virtual”, as terras de ocupação


tradicional dos Kaxarari em meados da década de 1950, eram de
aproximadamente 15.600 km², equivalentes a 1.560.000 ha; hoje a maior
parte do que foi essa área é composta pelos distritos de Extrema de
Rondônia, Vista Alegre do Abunã e Nova Califórnia, todos em Rondônia,
várias fazendas, colônias e sítios nos estados de Rondônia, Amazonas e
Acre, com alto índice de ações antrópicas, principalmente
desmatamento, e ocupações por vastos campos de pastagens para
criações de animais, culturas de subsistência, entre outras plantações de
lavouras com fins estritamente comerciais, como a soja.
Com a afirmação do senhor Américo que “no período de 1900 a
1940, nossa Terra Indígena era ainda maior, passava por três estados:
Acre, Amazonas e Rondônia, pois chegava a emendar com os municípios
amazonenses de Lábrea e pedaço do Humaitá”, isso nos leva a concluir,
que as terras ocupadas (povoadas) no início do século XX pelos Kaxarari,
poderia totalizar aproximadamente 50.000 km², equivalente a 5.000.000
ha.
Se considerarmos as terras que os Kaxarari ocupavam no início
do século passado com a atual área demarcada, vemos que houve uma
redução de quase 97% original, o que representa menor espaço para sua
sobrevivência, locomoção e realização de atividades originárias, como
caçar, pescar, plantar e extrair alimentos, frutos, folhas, dentre outros
encontrados na floresta e nos rios.
Conforme relata o senhor Américo, por volta de 1950, aos poucos
tiveram a terra invadida pelos não indígenas com suas atividades
comerciais, tais como garimpo, borracha, castanha, pedreira e madeira,
estas duas últimas principalmente, o que contribuiu para a diminuição
da área acima referida.
Em meados de 1970, a liderança da antiga Aldeia Azul, cacique e
pajé Antônio Alves Costa Kaxarari (Kaibu), um dos maiores e
destemidos, reconhecidos e altivos guerreiros e lideranças, ainda
venerado nos dias atuais pela maioria do seu povo, procurou pela

265
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

primeira vez a FUNAI, em Porto Velho para reivindicar a demarcação e


delimitação de suas terras, que eram invadidas pelos não indígenas, os
quais utilizavam armas de fogo. Além disso, pediu assistência médica,
visto que a malária era um dos maiores focos de mortandade, a qual era
potencializada pelos conflitos territoriais com os “estrangeiros”, que
disputavam suas terras.
Em conformidade com o senhor Américo, ainda na década de 1970,
os caucheiros5 peruanos, seringueiros, marreteiros, garimpeiros,
fazendeiros brasileiros começaram a invadir suas terras indígenas, para a
extração do látex (borracha natural, o sernambi), colheita da castanha,
retirada de madeira para beneficiamento pelas serrarias, pedras e
minerais diversos, enfim, uma gama de situações invasivas, o que gerou
conflitos armados, com morte de muitas pessoas de seu povo e alguns
poucos não indígenas – vez que estes possuíam armas de fogo e os
indígenas apenas arcos e flechas, ou seja, era uma luta com desigualdade
de condições de defesa.
Os Kaxarari durante décadas também atuaram no extrativismo
vegetal com o corte do caucho e da seringueira, árvores nativas da
Amazônia, tiravam a borracha natural e o sernambi que são produtos
primários obtidos da coagulação do látex dessas duas espécies. Nessas
atividades, inclusive, faziam trabalhos análogos à escravidão, de acordo
com seus relatos, para atender os patrões seringalistas.
O extrativismo vegetal, a mais antiga atividade humana, que
antecede à agricultura, à pecuária e à indústria, é ainda existente e muito
atuante nos dias atuais no nordeste e norte brasileiros, com relevada
importância para a sobrevivência de muitos povos, como: catadores de
castanhas diversos, cocos diversos, açaí Euterpe spp., patauá Oenocarpus

5 Caucheiro também fazia o papel de seringueiro amazônico, ou seja, “tirador”

do leite das árvores de caucho Castilla ulei Warb e seringueira Hevea


brasiliensis. Era um desbravador das florestas amazônicas, que morava na mata
e vivia da caça, pesca e extrativismo vegetal. A atividade permaneceu até
meados da década de 1970, no Brasil.

266
ALMEIDA SILVA (ORG.)

bataua ou Jessenia bataua, bacaba Oenocarpus bacaba, buriti Mauritia


flexuosa, babaçu Attalea speciosa, pupunha Bactris gasipaes, tucumã
Astrocaryum aculeatum, palmito, palmas, palmeiras, folhas diversas, entre
outras frutas e frutos silvestres de origem e exclusividade da Amazônia.
No caso Kaxarari muitas dessas espécies são utilizadas para alimentação,
como a castanha-do-brasil Bertholletia excelsa 6, além de construção de
residências, dentre outras finalidades.
A regularização e legalização da TIK foi concluída somente em
1991, sendo que os Kaxarari perderam consideráveis parcelas de seu
território originário.Após a regularização, a TIK passou a receber outras
pressões externas, notadamente, pela extração ilegal de madeira e pelo
avanço da pecuária que ameaça a integridade física, territorial e humana.

BREVE HISTÓRIA DO POVO KAXARARI

De acordo com o senhor Américo a história do seu povo é muito


triste, permeada por brigas entre clãs, conflitos e mortes com o não
indígena, que invadia em busca de terras e riquezas minerais e da
biodiversidade. Na realidade, as narrativas são fragmentadas, mas
relevantes para se entender os Kaxarari.
Ele afirma que “os homens brancos quase dizimaram o nosso
povo, devido a ataques sangrentos, com mortes de vários parentes, e que
foram mortos mais de 1.000 indígenas Kaxarari nos últimos 80 anos”,
isso em decorrência de conflitos armados com os brancos, em luta pela
defesa de suas terras e das riquezas existentes. A Terra foi invadida e
apossada, especialmente por madeireiros antes da demarcação da TIK e
nos últimos 30 anos tem aumentado essa ação ilegal, inclusive com a
participação de alguns membros do povo.
O cacique Américo afirma que seu povo foi tão explorado pelo
sistema predatório, visto que viveram um período quase que de
“cativeiro” durante as décadas de 1950 e 1960, ou seja, trabalhavam

6 É comercializada no Brasil e na Bolívia, depois segue para outros países.

267
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

apenas pela comida. O seringalista ou patrão obrigava todos a exercer


atividades nas estradas de seringa, em troca dava-lhes alimentos para as
refeições e, todas as noites quando chegavam em casa, tinham com
fartura comida e bebidas alcoólicas, que os deixavam meio
embriagados e nem tinham tempo para reclamar, mas no início da
década de 1970 tudo foi mudado com a demarcação de suas terras,
formada pela TIK, concluída oficialmente em 1991.
Em sua narrativa conta que o contato com o não indígena como
caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros foi um trauma muito
grande para seu povo, o que resultou na depopulação Kaxarari, a qual
tinha um pouco mais de dois mil habitantes no início do século XX, por
volta de 1910, mas, com os conflitos com mortes, houve ainda doenças
endêmicas, como a malária e a febre amarela, que ao longo dos anos
ceifaram inúmeras vidas. Ficaram reduzidos a menos de 800 pessoas, por
volta da década de 1980, quando ainda moravam nas duas últimas e
tradicionais aldeias Kaxarari, no caso, a Azul e a Barrinha Antiga.
Essas duas aldeias que deram origem às atualmente existentes
foram lideradas por dois primos legítimos, os então tuxauas (caciques) e
pajés Kaibu, líder da primeira, e Artur César Kaxarari (Yamaku), da
Barrinha Antiga. Eles eram descendentes de uma mesma linhagem
clãnica, provenientes de outra aldeia localizada num seringal, na
colocação Boa Esperança, cuja liderança era do tio de ambos guerreiros,
o também tuxaua e pajé Joaquim Pereira Kaxarari (Kumã), já falecido em
meados do início da década de 1950, e sepultado em Boa Esperança; a
localização dessa aldeia não foi possível identificar, pois se trata de três
gerações antes das atuais lideranças e que não sabem realmente onde se
encontra.
Kumã era o líder único e maior de todo o povo Kaxarari, teve
quatro filhos, Maria Alves de Souza Kaxarari (Maniká), Maria Altilha
Alves de Souza Kaxarari (Txanta), Dalziza Alves de Souza Kaxarai
(Myu) e Alcides Alves de Souza Kaxarari (Mayá), este que veio a falecer
justamente quando Kumã tinha a obrigação familiar e compromisso de
ensinar e preparar alguns indígenas para escolher seu sucessor como pajé

268
ALMEIDA SILVA (ORG.)

de todo seu povo, para dar continuidade à preservação dos valores


culturais e espirituais, o que inclui os rituais de pajelança, dentro das
representações simbólicas Kaxarari.
Assim, sem descendente masculino direto para treinar, ensinar e
transmitir os seus conhecimentos de pajé e ordenar outros sucessores a
dar continuidade aos valores culturais, espirituais e sociais, dentro da
lógica de responsabilidade masculina, em decorrência da postura
patriarcal e patrilinear Kaxarari, Kumã escolheu então os dois sobrinhos
e primos para repassar seus conhecimentos e prepará-los como
lideranças e como seu sucessor.
No sistema de organização social do patriarcado, a característica
é o domínio e poder total dos homens sobre todos, a mulher não tinha
chance nenhuma de ascender a cargos, muito menos de liderança. Já no
sistema de organização social patrilinear, a característica é a forma da
sucessão, descendência e hereditariedade, que também privilegia a figura
masculina para ser o sucessor, descendente e herdeiro de tudo: poder,
domínio, posse e propriedade patrimonial.
Foi assim, então, pela total ausência de descendente masculino
direto, que Kumã escolheu Kaibu e Yamaku, únicos parentes colaterais,
para lhes ensinar o ofício, por meio de conhecimentos, saberes, fazeres e
os riscos dessas funções. Uma vez escolhido o sucessor, este seria
ordenado e empossado por Kumã no ofício de pajé e seria o seu sucessor
e daria continuidade ao modo de conduzir o povo Kaxarari.
Em vida Kumã não conseguiu escolher, nomear, ordenar e
empossar no ofício de pajé, pois faleceu antes de realizar o intuito.
Todavia, as instruções fizeram com que Kaibu e Yamaku, assumissem-se
como tuxauas e pajés. É imperativo destacar que Kumã faria sucessor
apenas um deles, ainda que ambos fossem capacitados para tais funções.
Na década de 1950, Kaibu e Yamaku se tornaram tuxauas e pajés e
deram continuidade às suas atividades para preservar, manter e perpetuar
as origens e valores culturais Kaxarari, como língua, cultura, espiritualidade

269
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

e organização. Cada um deles, no entanto, formou sua própria aldeia e para


exercer a liderança, conforme compreendiam sua visão de mundo.
Assim foi que surgiu o que ainda se sabe nos dias atuais sobre os
antigos tuxauas e pajés Kaibu e Yamaku é que foram os últimos a
praticarem as atividades de liderança e espiritualidade nos antigos
moldes da cultura Kaxarari. Kaibu era casado com Iraci Alves Costa
Kaxarari (Kamikô), pais do cacique Américo, que oportunizou as
narrativas no presente estudo.
Após Kaibu e Yamaku, nenhum outro Kaxarari foi efetivamente
preparado por eles e pronto oficialmente para exercer as funções de pajé
dentro das aldeias Kaxarari. Alguns dos atuais caciques, como o senhor
Américo, foram apenas iniciados por Kaibu no ofício de pajé e demais
conhecimentos ancestrais e rituais e representações simbólicas, sem,
contudo, concluir a preparação.
O senhor Américo afirma que tinha medo e, então, teve um
pouco de aprendizado do ofício da pajelança ao longo da convivência
com seu pai Kaibu, que lhe ensinou fazer remédios para parto,
hemorragia, reza para a criança não morrer na barriga da mãe. Kaibu
aplicou-lhe o kupá 7 em Américo, o qual teve uma visão de Tsurá (Deus)
que lhe explicou a origem dos Kaxarari.
Por este motivo o pajé deixou efetivamente de existir e ter
sucessor, em razão do não interesse no aprendizado, além do não
incentivo aos filhos para serem preparados e aprenderem a pajelança.
Com isso há certa ruptura para preservar a memória cultural, embora se
compreenda que para o povo seria um aprendizado e uma herança muito
fortes. Alguns dos atuais líderes das aldeias Kaxarari iniciados no ofício

7 É uma árvore, sem identificação botânica, da qual se extraí uma solução


decoctiva, usada exclusivamente por homens adultos Kaxarari, para conexão
espiritual com o sagrado, mediante expansão da consciência. Não se trata do
cipó kupá Cissus gongylodes Burch conhecido como cipó babão ou mandioca
aérea, utilizado como alimento tradicional pelos Kayapó, Xerente, Canela e
Krahô.

270
ALMEIDA SILVA (ORG.)

da pajelança por Kaibu e Yamaku, apenas guardaram os seus


instrumentos e preparativos desses rituais, mas não exerceram ou
pretendem exercer as atividades e a função de pajé em suas aldeias, isto
se dá por dois motivos. O primeiro pelo respeito e consciências de saber
que não estão devidamente preparados e seguros para realizar os rituais
espirituais. O segundo, devido ao fato de que perderam estes
instrumentos e preparativos, pois deles foram “roubados” e literalmente
“queimados” por orientação religiosa evangélica, o que deixou-os
impossibilitados de exercer a função, ainda que quisessem assumir, a
qualquer tempo, os riscos e a responsabilidades de tal função, sem
estarem plenamente preparados e seguros para o exercício do ofício.
Em conformidade com o senhor Américo, os líderes Kaibu e
Yamaku foram os últimos tuxauas tradicionais da etnia, pois, com a
criação da FUNAI, em dezembro de 1967, passaram a ser chamados de
caciques, e a nomenclatura anterior deixou de existir no meio do seu
povo. Para ele, o cacique passou a ser conhecido e respeitado pela
população indígena e sociedade urbana, como verdadeiros líderes de suas
aldeias, o que fez com que posteriormente, passassem a ser denominados
de liderança indígena, o que em sua análise trata-se de uma visão
empresarial, capitalista, de gestão de negócios, pessoas e conhecimentos,
do que propriamente reflete aquilo que realmente seja uma liderança
indígena.
A consideração do senhor Américo Kaxarari é que a mudança da
nomenclatura para liderança foi uma estratégia do governo para
desqualificar a o cacique, ou seja, é um termo eminentemente político
que deixa transparecer uma visão de liderança, de poder político, mas
sem efetivamente algum poder, pois, na prática, são apenas meros
representantes de cada aldeia específica e nada mais do isso.
De acordo com o senhor Américo, essas lideranças – os ditos
caciques – não têm mais voz ativa para nada, não são reconhecidos pela
FUNAI, não têm controle de muitos acontecimentos que ocorrem no seio
de sua aldeia e nas suas matas, mesmo porque existem atos e abusos
praticados pelo seu próprio povo, o que gera conflitos e rivalidades, de

271
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

modo que deixa-os sem ação para agir de modo mais firme e justo, no
sentido de manter a ordem, pois correm o risco até de serem ameaçados
internamente pelas pessoas que compõem a etnia.
Não existe efetivamente um representante geral Kaxarari que
possa defender os interesses comuns desse povo, pelo contrário, estão
divididos nos clãs Kaibu e Yamaku. Para além disso, existe associação de
moradores somente da sua aldeia, o que transparece existir uma desunião
dos seus membros, tanto dentro de cada aldeia, como entre as aldeias e
os clãs entre si, o que evidencia a falta de liderança geral, para que possa
evitar ou amenizar os conflitos internos da TIK. O clã Kaibu mantém
“certa” união entre todas as suas seis aldeias, ainda que cada uma delas
tenha a sua independência, individualidade e liberdade de ação, mas se
preservam unidos e atuam juntos nos eventos comunitários sociais que
realizam.
Assim, os antigos caciques passaram a ser conhecidos como
lideranças das atuais aldeias Kaxarari, o que transmite a visão moderna
proveniente da cultura do não indígena, como líder de equipe ou de uma
“empresa”, com isso são tidos como dirigentes, gestores, presidentes de
grandes empresas nacionais, vez que em meados do final do século XX,
segue o princípio da “ordem mundial capitalista”, ditada naquele
momento, para uso conceitual da palavra, a exemplo do que acontece
com a palavra agronegócios nos dias atuais.
Ainda como tuxauas e pajés, Kaibu e Yamaku, morreram com
esse digno título, devidamente preparados e treinados por Kumã, os
quais lideraram por longos anos as aldeias Azul e Barrinha Antiga,
respectivamente, e preservaram toda a cosmogonia e organização
Kaxarari.
Na avaliação deste coletivo indígena quase nada foi mantido ou
preservado pelos seus descendentes e sucessores, visto que não praticam
mais atividades com essa finalidade, entretanto, ainda realizam algumas
danças em datas específicas e pontuais.

272
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Por outro lado, incorporaram valores culturais do não indígena


como a celebração do dia do índio (19 de abril), Natal (25 de dezembro)
e Confraternização Universal (1º de janeiro), entre outras datas festivas,
as quais aparecem elementos da cultura Kaxarari.
O senhor Américo, em seu relato memorial, afirma que no início
da década de 1980, a Construtora Mendes Júnior invadiu as terras de seu
povo, na região da atual Aldeia Pedreira. Ali a empresa se instalou e
começou a fazer grande exploração da jazida mineral monolítica de
basalto, a pedra brita, implodida com dinamites, e depois moídas em
britador, para usar na pavimentação da BR-364 e construção de
conjuntos habitacionais em Rio Branco-Acre. As escavações
desordenadas da Mendes Júnior deixaram várias crateras e grandes
buracos que acumulam água das chuvas – verdadeiras piscinas, sem
irrigação corrente, e servem como focos e criadouros do mosquito
anófeles, agente transmissor da malária e febre amarela, com isso
tornou-se o segundo maior agente causador de mortandade e
depopulação do povo Kaxarari.
De acordo com o senhor Américo, a área explorada ilegalmente
pela empresa foi muito grande, mas não sabe precisar exatamente o
tamanho, estima que era mais de 200ha de floresta derrubada para as
escavações da mina de pedras.
O senhor Américo prossegue e diz que no dia 3 de agosto de 1985
o sarampo matou seu pai Kaibu, o qual era muito querido e respeitado
pelo tuxaua Yamaku, justamente pela luta empreendida no processo de
demarcação da TIK. Em seu leito de morte, Kaibu, reuniu seu clã e fez
três pedidos, a saber: O primeiro foi sobre seu desejo de ser sepultado
na área da Aldeia Azul, e indicou o local onde deveria ser. Assim foi
cumprido seu desejo, de acordo com os rituais fúnebres Kaxarari.
O segundo informou ao seu povo que todos deveriam se mudar
da Aldeia Azul logo após o seu falecimento, pois se permanecessem ali
correriam risco de morrerem, por algum motivo, alguma peste ou algo
sobrenatural aconteceria, e não sobraria ninguém para contar a história.

273
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Possivelmente, essa mudança de local tenha sido um compromisso


espiritual que Kaibu tenha feito no passado, quem sabe até para proteger
o seu povo de possível malogro, e a retirada de seus descendentes tenha
sido a contrapartida combinada para ser cumprida. De fato, todo seu clã
se mudou para a atual Aldeia Pedreira.
O terceiro pedido foi que ninguém de seu povo deveria voltar ao
local da Aldeia Azul e ao seu túmulo por muitos anos, mas não explicou
por quanto tempo seria, nem as motivações e tampouco as
consequências para quem desobedecesse. Este pedido final de Kaibu
corrobora o seu possível compromisso para proteger seu clã de terrível
ameaça.
O senhor Américo também não soube dizer qual seria esse tempo
em anos que não poderiam voltar ao local da Aldeia Azul, ainda que por
visitação. Ele apenas respeitou a recomendação de seu pai Kaibu e, até os
dias atuais, jamais regressou naquele local, nem mesmo visita ou passa
perto dali. Assim, todos se mudaram para a Pedreira, até o momento em
que a Construtora Mendes Júnior passou a explorar rochas na localidade,
e ali estabeleceu conflitos em decorrência da atuação da empresa. Então
o clã Kaibu se uniu aos membros da Aldeia Barrinha, pertencente ao de
Yamaku, para defender os interesses maiores do Kaxarari que o território
que sofria com a devastação e exploração da construtora.
Destarte, essas duas aldeias Kaxarari, uniram-se e mudaram-se
para a região da Pedreira, para combater a exploração da empresa, o que
na ocasião gerou confrontos e conflitos e resultou em algumas mortes
indígenas. Contudo, o povo Kaxarari instalou-se e estabeleceu-se
naquele espaço, além do que adotaram o nome como Aldeia Pedreira.
Em sua narrativa sobre a história dos Kaxarari, o senhor Américo
afirma que com essa união dos clãs Kaibu e Yamaku para defender as
suas terras na pedreira, muitos fatos ruins sucederam-se, e não durou
muito tempo a convivência entre eles. Dentre esses fatos, enumera que:
a) logo na chegada aconteceram mortes de parentes pelo conflito
armado com a construtora; b) durante a convivência no local, outros

274
ALMEIDA SILVA (ORG.)

parentes morreram em decorrência de doenças adquiridas na região das


pedreiras, que tinham muitas poças de água das chuvas, formavam
piscinas de águas paradas, ambiente ideal para a criação e proliferação
do mosquito da malária e da febre amarela.
Em conformidade com seu relato, entre os anos de 1985 e 1989,
muitos indígenas morreram na Aldeia Pedreira, com gripe, sarampo,
catapora, malária e febre amarela. A malária foi quem propiciou o maior
número de baixas humanas em seu povo, visto que naquele período, não
tinham remédio, agentes de saúde e nem como levá-los à cidade para
serem medicados, tratados e curados dessa e de outras enfermidades que
os acometiam.
Em outubro de 1995 faleceu o último tuxaua e pajé Kaxarari,
Yamaku, treinado no ofício da pajelança, junto com Kaibu, pelo tio Kumã.
Yamaku foi sepultado na Aldeia Pedreira, como preceitua o ritual de seu
povo.

ORGANIZAÇÃO FAMILIAR KAXARARI E ALDEIAS

Está organizada e agrupada por linhagem patrilinear, em que as


aldeias Pedreira, Paxiúba, Kawapu pertencem ao clã Yamaku, enquanto
a Barrinha, Txakuby, Central, Nova, Marmelinho, Buriti são do clã Kaibu.
Em conformidade com o cacique Américo, seu pai Kaibu e sua
mãe Kamikô (Iraci) geraram dez filhos. Outros 28 de Kaibu foram com
outras indígenas de seu povo, no entanto, não soube informar mais
detalhes, como nome, situação de sobrevivência, local de moradia,
dentre outros.
Os dez irmãos Alves Costa Kaxarari, filhos de Kaibu e Kamikô,
são: Joseva, Maria (Xaripá), Joana, Cecília (Tchanto), Rita, Américo
(Manu), Merciano, Paulo, Miguel (Ruir) e Camilo. Somente estão vivos
Cecília, Paulo, Miguel e Américo (o mais velho dentre estes e que desde
criança começou a trabalhar).
A mãe de Kaibu, Margarida Alves Costa Kaxarari, foi sepultada
às margens do Remansinho, um igarapé afluente do rio Azul. Américo

275
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

nasceu na Colocação 8 Buriti, onde desde os sete anos de idade, começou


a auxiliar seu pai na extração do látex da seringueira; aos dez anos tomava
conta de uma estrada de seringa, com mais oitenta extrativistas.
Todo o látex apurado pelos Kaxarari na área da atual TIK era
vendida aos marreteiros, que compravam toda a produção naquela
época, esses ditavam o preço e pagavam com mantimentos, pois essa era
a moeda de troca, uma espécie de escambo, pois não havia
movimentação de papel moeda nas transações de compra e venda da
borracha.
Ainda criança, Américo observava a vida sacrificada de seu pai,
então pediu-lhe que queria crescer para ajudá-lo; Kaibu realizou um
ritual do nascimento na beira do rio Azul para atender o desejo do filho,
com isso seu crescimento biológico foi muito acelerado e aos dezoito
anos passou trabalhar para o seringalista, o que lhe conferiu certa
autonomia e renda própria.
Além de Kaibu, outra grande liderança como cacique e pajé foi
Yamaku, ambos eram primos e foram da época em que os Kaxarari ainda
andavam nus, viviam totalmente à vontade na floresta, sobreviviam com
extração para o sustento com a caça, pesca, coleta de frutos e frutas
silvestres, além de plantarem espécies domesticadas como macaxeira e
mandioca Manihot esculenta Crantz, milho Zea mays, feijão Phaseolus
spp., arroz Oryza sativa e diversas árvores frutíferas.
A Aldeia Azul, era a antiga moradia do clã Kaibu, localizava-se às
margens do rio Azul, e distante aproximadamente 4 km estava a Barrinha
Antiga, situada na Colocação Bom Lugar e era onde a antiga residência

8 É uma área explorada individualmente por família de seringueiros, nela


contém a casa do extrativista e as plantações de subsistência que ficam no
centro, rodeadas pela floresta. Uma colocação é formada por no mínimo três
estradas de seringa, que começam e termina no mesmo ponto. Cada estrada tem
em média 160 árvores e abrange uma área aproximada de 100 ha, com diversas
outras espécies florestais nativas. O conjunto dessas colocações compõe um
seringal.

276
ALMEIDA SILVA (ORG.)

do clã Yamaku. Posteriormente se juntaram e mudaram para o local da


atual Pedreira.
Depois de alguns meses de convivência, houve sucessivos
desmembramentos e criação de novas aldeias, até atingir o número de
nove em 2018, conforme pode ser constatado ainda nesta seção.
A Barrinha Antiga, antes era moradia do clã Yamaku, mas
atualmente é dos descendentes de Kaibu. A Bueira, foi uma aldeia de
transição do clã Kaibu, depois que se desmembraram da Pedreira, pois
teve uma existência curta, em torno de seis anos, até fundarem a atual
Barrinha, e se fixarem por lá.
Como podemos perceber nos relatos até aqui apresentados, os
Kaxarari se organizam nesses dois clãs, no entanto, se conseguíssemos
relacionar a um elemento/fenômeno de retrospecto cosmogônico, ou
seja, anterior a essas duas famílias clãnicas, possivelmente
encontraremos à gênese determinada por um ou mais demiurgos que
suscitaram o processo organizativo social, cultural e espiritual desse
povo.
A organização atual, conforme o senhor Américo, se deu com a
junção entre os dois clãs em 1985 para defesa do território e em menos de
meia década ocorreu sua separação e a criação de novas aldeias por
linhagem clãnica.
O processo de separação e desmembramento começou em 1989,
por famílias Clã Kaibu, que saíram da Aldeia Pedreira para fundarem a
Bueira, a qual em 1995 foi dividida na Barrinha e Marmelinho. A Barrinha
se desmembrou mais uma vez e deu origem a outra, denominada
Txakuby. Na mesma direção a Marmelinho foi desmembrada e formou-se
a Central, a Buriti e a Nova.
A Aldeia Pedreira, com familiares do clã Yamaku, também sofreu
processo semelhante e desmembrada em outras unidades familiares, de
modo a constituir a Kawapu e a Paxiúba. O clã Yamaku hoje é maior, em
quantidade de famílias e de pessoas, e de acordo com os relatos tem
adotado uma postura mais próxima à cultura do não indígena no que diz
respeito ao aproveitamento de seus recursos naturais.

277
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Como uma recapitulação, os dois clãs conviveram por um tempo


na Aldeia Pedreira, mas devido às doenças tropicais como a malária que
causou baixas populacionais, somou-se ainda os conflitos armados –
abre-se um parêntese que nos mais de 90 anos de contato, esses
produziram inúmeras mortes dos Kaxarari.
Por coincidência, a primeira separação dos Kaxarari se deu pelas
famílias descendentes de cada clã. A Aldeia Pedreira permaneceu com os
pertencentes a Yamaku”, os demais indígenas em meados de 1989
algumas famílias do clã Kaibu decidiram migrar para outro local, devido à
problemática da saúde, com isso fundaram a Aldeia Bueira, onde viveram
por seis anos.
Depois de morarem por seis anos na Aldeia Bueira, parte das
famílias do clã Kaibu estavam insatisfeitos ali e resolveram se mudar
novamente para outro lugar mais seguro e livre de doenças. Assim, em
meados de 1995, estabelecem-se e criam nova aldeia, a Barrinha, a qual é
atualmente a segunda mais antiga entre as nove habitadas, a primeira é
a Pedreira. Cabe destacar ainda que menos de um mês sozinhos na
Bueira, outras famílias Kaibu em meados de 1995, também se retiraram
e formaram a Marmelinho.
Depois de quase vinte anos de convívio familiar na Aldeia
Barrinha, parte dela se desmembrou em meio de 2014 quando famílias
buscaram um novo local de moradia e fundaram a Txakuby.
Decorridos nove anos de convívio na Marmelinho, ocorreu a
separação de famílias que se mudaram no final do primeiro semestre de
2004 e fundaram a Aldeia Central. Nos últimos dez anos, a Marmelinho
sofreu ainda dois desmembramentos, visto que fundaram as aldeias
Buriti e Nova.
Deste modo, as dissenções familiares são algo comum nos dois
clãs. Neste sentido, famílias Yamaku que estavam na Aldeia Pedreira
saíram e construíram em meados de 1991 a Paxiúba, enquanto outras
fundaram a Kawapu.
Este é o retrato do processo de separação das aldeias Kaxarari,
que, ao longo de décadas, tem-se fragmentado e adquirido novas

278
ALMEIDA SILVA (ORG.)

reconfigurações, as quais na atualidade estão dispostas entre os clãs


Kaibu (seis aldeias ao todo) e Yamaku (três aldeias ao todo). Muito
provavelmente, haverá nos próximos anos o desmembramento e a
formação de novas aldeias. Impede-nos afirmar que o processo de
separação e desmembramento das aldeias tenha sido realizado, em parte,
num processo de expansão familiar, no interior de cada clã – a união e
manutenção dos laços familiares clãnicos persistem, ainda que existem
relações interétnicas ou com não indígenas – ou se tratou de rupturas
devido a divergências internas ou ainda se por influências da sociedade
abrangente.
Em anos anteriores na TIK existiam as aldeias Azul e Barrinha
Antiga, as quais servem como grande referência histórica e geográfica
dos Kaxarari; elas são frequentemente visitadas pelo povo, até em função
de nesses espaços estarem sepultados seus entes queridos, como Kaibu.
Na Azul encontra-se ainda vestígios da primeira escola construída na
TIK. O motivo de deixarem essas aldeias deve-se a vários fatos, dentre
eles o surgimento de várias doenças e da dificuldade de acesso até as
estradas e daí seguir para áreas urbanas.
Nos dias atuais são nove aldeias (Figura 3) distribuídas ao longo
do território, onde todas estão situadas no estado de Rondônia, em
virtude de melhor acesso até às áreas urbanas rondonienses e acreanas,
assim compõe-se da Kawapu, Pedreira, Paxiúba, Txakuby, Barrinha,
Central, Nova, Marmelinho e Buriti.
A Figura 3, no formato de croqui, dá a visualização de como estão
dispostas essas aldeias no interior da TIK, assim como sua organização
socioespacial, o que dá dimensão tanto ao acesso entre elas, a partir da
rodovia federal BR-364, por meio de três linhas ou estradas vicinais e/ou
ramais, a saber: a Linha-02, o Ramal do Jacaré e a Rodovia do Boi,
identificadas como pontos A, B e C.
A Aldeia Kawapu é a primeira que encontramos na entrada da
TIK e é a mais próxima do entorno. Situa-se ao final da Linha-2 e está à
uma distância de 23 km do distrito de Extrema de Rondônia, a partir da

279
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

intersecção da BR-364. Ao continuarmos por mais 5 km está a Pedreira e


3 km após chega-se à Paxiúba.
A Aldeia Kawapu é a primeira que encontramos na entrada da
TIK e é a mais próxima do entorno. Situa-se ao final da Linha-2 e está à
uma distância de 23 km do distrito de Extrema de Rondônia, a partir da
intersecção da BR-364. Ao continuarmos por mais 5 km está a Pedreira e
3 km após chega-se à Paxiúba.
Da Kawapu, vira-se à direita da Linha-2, prossegue-se por um
ramal ou estrada vicinal ou ramal, por 11 km e chega à Txakuby, após esta,
a uma distância de 3 km encontra-se Barrinha, a qual está localizada à
margem direita do rio Barrinha, que é afluente do rio Azul. A partir da
Barrinha o ramal possui uma bifurcação, ao seguirmos pela esquerda por
7 km chegaremos à Central; pela direita, aproximadamente 10 km estará
a chamada Aldeia Nova – seu nome deve- se em razão de ser uma das
últimas que foi instalada na TIK.

Figura 3: Croqui locacional das aldeias Kaxarari em 2019

Fonte: Informações do senhor Américo Kaxarari. Organ. Por Nogueira (2019)

280
ALMEIDA SILVA (ORG.)

A Nova localiza-se à margem direita do rio Azul, o qual possui


grande vazão de água, de correnteza forte e parece ser bastante piscoso,
pois se constata presença de muitos lambaris Astyanax e piabas
Leporinus Spix e Schizodon Agass, o rio é também um balneário natural
com beleza cênica, de modo que propicia momentos confortantes de
lazer.
Para se chegar à aldeia Marmelinho, toma-se inicialmente a
partir de Extrema em direção à Porto Velho pela BR-364, depois de
aproximadamente 30 km vira-se à esquerda no Ramal do Jacaré,
percorre-se mais 26 km até chegar à localidade. Ainda pelo mesmo
ramal, percorre-se mais 45 km e lá se encontra a aldeia Buriti, esta
também pode ser acessada da seguinte maneira: após 20 km do Ramal do
Jacaré está a Rodovia do Boi, a qual nos levará diretamente à localidade,
a qual está distante 62 km da rodovia federal.
Salientamos que as duas aldeias Kaxarari mais isoladas e
distantes das demais, tem a população descendente do clã Kaibu. Da
aldeia Barrinha, onde foi realizado o evento I Encontro das Mulheres
Kaxarari, a distância é de 93 km para a Marmelinho e 149 km para a
Buriti, isso com a partida pela Rodovia do Boi, direto pela BR-364.

VALORES ESPIRITUAIS KAXARARI

Os valores espirituais dos Kaxarari no passado eram


caracterizados como xamanismo, presentes na floresta, nos rios e no ar
com seres divinos, com valores intrínsecos à cultura e eram manifestados
nas festas (danças e músicas), rituais de pajelança e outros fenômenos e
elementos que envolviam o povo. Ali se pintavam, se vestiam de palhas
de buriti Mauritia flexuosa, se adornavam com penas de pássaros
diversos, couro de animais, máscaras e artesanatos peculiares, com
dentes e ossos de animais da floresta, que tinham sido caçados.
Tsurá é o Deus que cultuavam até recentemente, e será descrito
na seção símbolos e representações simbólicas como um dos
significativos para o povo Kaxarari. Antes da inserção da religiosidade
cristã-ocidental, notadamente pelos evangélicos na cultura espiritual do

281
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

povo, de acordo com o cacique Américo, os pedidos de fartura nas


plantações, de chuva para os seus plantios, os animais que queriam caçar
para comer, tudo isso era fácil, pois era só pedir e tudo acontecia. Tsurá
dava, mas hoje em dia não acontece mais, nem adianta mais invocá-lo.
Essa condição de não serem mais atendidos por Tsurá, para eles é como
um castigo pela aceitação de outra espiritualidade, de outro Deus, o qual
não conheciam antes do contato com os não indígenas.
Os Kaxarari não evangélicos ainda cultuam a memória de Tsurá,
mas apenas em respeito ao que Ele representa espiritualmente, por isso
são fiéis, mas sabem que a divindade está com raiva do povo, não atende
mais aos seus pedidos, pelo fato que os demais escolheram outro Deus
para seguir.
Essa minoria de não evangélicos corresponde aproximadamente
40% de todo o povo, se consideram cristãos católicos, apesar de não
haver nenhuma visita de padres ou qualquer outro membro da Igreja
Católica. Esses estão desgostosos com aqueles que se tornaram
evangélicos, visto que nas suas percepções, todos perderam a ajuda e
proteção de Tsurá. É um conflito sem brigas aparentes, mas que nada
poder fazer, enquanto os evangélicos avançam na conquista de novos
membros Kaxarari para suas denominações religiosas.
Não obstante, voltamos ao relato da espiritualidade do povo,
apresentado pelo cacique Américo, o qual afirma que nos rituais
xamânicos, usavam também outros elementos sagrados à cultura e que
ofereciam a percepção de bem-estar, leveza, paz, harmonia e êxtase, tais
como o rapé e o kupá, acompanhados de banhos, defumações,
cachimbadas, baforadas, pontos e chamadas espirituais, cânticos,
danças, dentre outros. A defumação é sagrada e consagrada pelo mundo
inteiro, em diversas religiões e rituais, desde os monges tibetanos até os
padres católicos. A defumação serve para limpar cargas pesadas que se
acumulam no nosso corpo astral, durante a nossa vida cotidiana, seja por
pensamentos, frequência de ambientes carregados, ódios, rancores,
invejas, preocupações, estresse, etc.
Assim como nas defumações a fumaça é um depurador e
purificador das energias deletérias e cargas pesadas, ela é exalada pela

282
ALMEIDA SILVA (ORG.)

boca e narinas de um cerimonialista, em transe com os seus guias


espirituais.
Os antigos pajés ou xamãs realizavam suas práticas ritualísticas
de cura, de modo que os indígenas doentes eram medicados
naturalmente com plantas da floresta, por meio de chás, banhos,
emplastos, infusões, soluções decoctivas, dentre outras. Nos casos de
maior gravidade, esses eram avaliados pelo pajé que, sob efeitos do kupá,
tinha poderes para identificar a enfermidade existente ou o espírito que
o afligia.
É comum a possessão espiritual por “encosto” 9, um
“sanguessuga” que pode ser enviado por quem deseja o mal a outrem ou
ser atraído pela negatividade da própria pessoa – por ter amor, vontade e
decisão próprias –, ou seja, faz tudo sob o domínio e submissão, assume
culpa que não é sua, mesmo sob ofensas morais imerecidas e à sua
dignidade, mesmo que isso pode lhe trazer consequências muito sérias,
inclusive a sua morte.
O pajé Kaxarari, como líder, tinha pleno e total domínio sobre
todo o seu povo. Seus conhecimentos de cura espiritual e das magias da
floresta, eram provenientes das bênçãos de Tsurá. Com isso poderia
realizar os mais distintos procedimentos de cura contra os males do
corpo e do espírito.
Hoje não existe, conforme afirmam, nenhum pajé naTIK, ou seja,
não contam com essa representatividade espiritual para dar sequência
aos rituais de cura, mencionado anteriormente por uma série de fatores
internos e externos, de modo que os mais idosos consideram que há uma
fragilidade espiritual na proteção dos moradores e de seu território.
Alguns indígenas mais novos se arvoram em dizer que o seu pai
ou tio é o pajé da sua aldeia, apenas pelo fato de terem pretendido ou

9 É um fenômeno espiritual maligno, provocado por um espírito mundano


“perdido”, não desenvolvido, que vaga pela terra, a mando de alguém que é
malicioso, perverso, pernicioso à alma e ao corpo, que “encostam” em uma
pessoa para sugar as suas energias, e dissemina uma série de problemas físicos,
espirituais e psíquicos.

283
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

terem sido iniciado nesse ofício, ou por terem ainda em sua posse e poder
algum instrumento de pajelança, relíquia de seus ancestrais que
exerceram tal dom, ou ainda por ser um cristão fervoroso ou praticante
de religiões dos não indígenas, especialmente a evangélica, que oram
pelos demais da TIK.
O senhor Vitorino, da Aldeia Pedreira, é considerado o “pastor”
para a maioria de seu povo, especialmente do clã Yamaku, por ser o mais
fervoroso e praticante evangélico dentre eles. Foi ele quem fez a abertura
e encerramento do I Encontro das Mulheres Kaxarari, proferiu orações
arrebatadoras evangélicas, nos moldes propagados pelas igrejas
protestantes de matriz pentecostal.
Ao dialogarmos com o senhor Vitorino indagamos se era
evangélico e há quanto tempo tinha se convertido, e se tornará um
exímio orador na transmissão da palavra de Deus. Ele, simplesmente
respondeu com uma afirmação indagativa, simples e direta: “quem disse
que eu sou evangélico!?”. Alguns Kaxarari que não são evangélicos, se
dizem católicos, mesmo sem qualquer visita de padres ou contato com a
Igreja Católica.
No seu íntimo, percebemos que o senhor Vitorino guarda em sua
memória fragmentos da espiritualidade indígena, praticadas pelos seus
ancestrais, os últimos pajés, mas ele não tem como resgatar tais práticas,
as quais foram perdidas e/ou substituídas pela religiosidade externa, a
evangélica, de modo que exerce de coração, pois sabe que se reporta a
Deus, mas não é como gostaria, do jeito que nasceu, cresceu e viveu parte
de sua vida, quando havia Kumã, Kaibu e Yamaku com seus rituais.
Em relatos dos senhores Vitorino e Américo, estes afirmam que
alguns pastores tocaram fogo pessoalmente nos adereços que alguns
caciques guardavam os aparatos ferramentais dos pajés – então ficaram
reféns do ponto de vista de sua religião praticada nas aldeias. Esses
pastores diziam que os pajés não temiam a Deus, cultuavam outros
deuses, os quais não eram do bem, mas sim o bicho feio, e assim
influenciaram aos poucos, seus conceitos religiosos em várias das aldeias
Kaxarari.

284
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Algumas lideranças informaram que, há muitos anos, quando do


contato, alguns pastores evangélicos foram muito duros e incisivos quanto à
cultura Kaxarari, de modo que orientaram o povo a abandonar todos os
rituais; a preservação do que restou é muito insubsistente e precária. Com
essas ações, foram eliminadas a cultura sagrada e espiritual do povo.
A maioria das aldeias Kaibu não aceitou a construção de templos
evangélicos em sua área residencial (Tabela 1), entretanto, as do clã
Yamaku permitiu a edificação de espaços religiosos, onde se predomina
os conceitos de valores distintos daqueles vividos pelos seus
antepassados.
Na Tabela 1 é constatado como os clãs, Kaibu e Yamaku se
territorializaram em termos de filiação religiosa. A maioria dos
moradores são cristãos evangélicos, com mais de 60% da população de
cada clã, o que indica a ação evangelizadora passou a ser hegemônica
entre os Kaxarari nos dias atuais, com isso os moradores frequentam
regularmente igrejas em suas próprias aldeias.

Tabela 1: Igrejas e seus adeptos na TIK


Clã Seq Aldeia Igreja construída Fam. Pes.
1 Barrinha Nenhuma 8 37
2 Txakuby Nenhuma 9 50
3 Central Nenhuma 3 27
Kaibu 4 Nova Assembleia de Deus 8 35
5 Marmelin Assembleia de Deus 15 69
ho
6 Buriti Assembleia de Deus 15 75
Total – Kaibu 58 293
Cristã evangélica 179 61,09%
Cristã Católica 114 38,91%
7 Pedreira Assembleia de Deus 36 125
Yamaku 8 Paxiúba Assembleia de Deus 20 80
9 Kawapu Nenhuma 33 122
Total – Yamaku 89 327
Cristã evangélica 205 62,69%
Cristã católica 122 37,31%
Total da Etnia 147 620
Cristã Evangélica 384 61,94%
Cristã Católica 236 38,06%
Fonte: Atividade de campo. Organ. por Nogueira (2019)

285
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Assim, em algumas aldeias tem-se os templos que congregam o


povo, enquanto em outras são permitidas apenas o ingresso do pastor nas
instalações da aldeia, apenas para realizar os seus cultos, nos dias
combinados, normalmente no espaço da escola.

DENOMINAÇÃO E ORIGEM DA ETNIA

Quanto ao nome da etnia, a palavra ao que tudo indica, seja um


nome cunhado pelos próprios indígenas, e os clãs compõem o povo,
conforme explanação dos sabedores e sabedoras, na apresentação final
do evento I Encontro das Mulheres Kaxarari.
No entanto, ressaltamos que é indispensável o aprofundamento de
pesquisa para que se chegue a origem e ao significado do nome, inclusive do
ponto de vista etimológico e epistemológico, pois, mesmo dentre os
caciques com os quais dialogamos, nenhum deles teve a firmeza para
responder claramente sobre a origem da denominação que identifica tal
povo.
Todavia, como não temos nenhuma história oficial, nem oficiosa,
sobre os Kaxarari para que possamos afirmar alguns dados com precisão
dessa população indígena, mas o nome da etnia já foi usado também com
outras grafias como: Cacharari, Caxarary, Kacharari. Hoje o nome
preservado e aceito por eles é Kaxarari, com “K”, “X” e “I”.
Pelos relatos do senhor Américo, seu povo já habitou a região
próxima à cidade de Lábrea, no Amazonas, mas se deslocaram por algum
motivo ou necessidade em direção ao Acre. No início do século passado,
ocupavam parte do Acre, Rondônia e Amazonas, mas sem precisar a
origem de seu povo, ou seja, quais seriam os primeiros indígenas
Kaxarari. Para sabermos disso, vemos que é necessário, aprofundarmos
e compreendermos as narrativas míticas relacionadas à sua cosmogonia,
visto que nela é possível que se encontre a gênese do povo.
Algumas pistas podem ser encontradas ao relacionarmos que o
povo afirma que teve origem a partir de animais como a onça, o papagaio,
o jabuti, a cobra, o tamanduá, dentre outros, os quais constituem o

286
ALMEIDA SILVA (ORG.)

universo simbólico e representacional Kaxarari, como formadores das


linhagens familiares. Cada animal representa simbolicamente uma
linhagem de família, fato que aceitamos como narrativas de seus valores
culturais.

LÍNGUA MATERNA KAXARARI

Os Kaxarari têm a língua materna de mesmo nome e pertencem


à família linguística Pano, a qual integra os Kaxinawá, Yawanawá,
Shawanawá (ou Shawadawã), Shanenawá, Jaminawá, Marubo, Shipibo,
dentre outros, que habitam o Brasil, a Bolívia e o Peru, na Pan-Amazônia.
Para além da língua materna, também são fluentes no idioma
português. O contato e o convívio com o não indígena, fez com que sua
língua quase que fosse substituída por esse segundo recurso de
linguagem, razão pela qual o português é o mais utilizado no cotidiano
das aldeias.
Os mais idosos dialogam entre si na língua materna, enquanto os
mais jovens exercem o português com maior fluência. As crianças, por
sua vez, falam e entendem o português, e pouco entendem a língua
Kaxarari, por ouvirem seus parentes conversar em casa, mas não
conseguem falar o idioma originário.
Apesar de falar o português, alguns Kaxarari adultos não leem ou
escrevem em português. Os mais idosos possuem alto grau de
dificuldade em compreender a língua oficial nacional, fato que necessita
ser explicado seguidas vezes para que possam estabelecer determinada
conversação convencional. É um claro processo de erosão linguística,
mas somente eles podem ou não preservar a língua originária como seu
patrimônio cultural, portanto, existe a necessidade das escolas e dos
sabedores em promovê-la e valorizá-la como tal.

SÍMBOLOS E REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS

Conforme apontado pelo senhor Américo, na estrutura cultural,


espiritual e social de seu povo Kaxarari existem representações

287
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

simbólicas que, embora, as práticas não sejam exercitadas atualmente se


fazem presentes memorialmente, tais como: o xamanismo, objetos
guardados e utilizados pelos antigos pajés.
Esses símbolos e suas representações guardam a história dos
Kaxarari e estão relacionados aos lugares, elementos, fenômenos,
objetos, rituais, valores espirituais e culturais, de modo que se
caracterizam como “marcadores territoriais” expressivos. A disposição
desses não se dá por ordem hierárquica de relevância, mas como
explicação didática. Neste sentido, afirma o senhor Américo, que:
O primeiro fenômeno/elemento mais importante para os
Kaxarari é Tsurá, o Deus que o povo Kaxarari cultuava até recentemente,
antes do contato com o homem urbano, os não indígenas. Mas agora,
devido a maioria do povo ser evangélico, Tsurá não é mais tão
reverenciado e até está zangado com aquele povo, a quem deixou de
proteger, ajudar e atender aos pedidos, segundo o cacique Américo
Kaxarari, por terem escolhido outro Deus para seguir.
Apenas os Kaxarari não evangélicos, correspondente a 40% da
etnia, ainda são fiéis e cultuam a memória de Tsurá, em respeito ao que
Ele representa espiritualmente, ainda que saibam que não têm mais a sua
bênção e proteção, e se consideram católicos.
O segundo fenômeno/elemento, muito importante para os
Kaxarari é o casamento, que tem uma representação simbológica muito
especial, pois a família é como uma árvore frondosa plantada, cultivada e
que dá bons frutos – os filhos que crescem, casam e terão filhos, com isso
perpetua-se o povo e seus clãs.
O terceiro e mais reverenciado para eles é o kupá, um fruto da
árvore de mesmo nome, a qual possui propriedade enteógena 10 e propicia
a expansão da consciência, ao ser absorvido pelo organismo humano. É

10 É toda e qualquer substância que altere a consciência da pessoa, induz a


alteração de consciência, leva ao estado xamânico, de êxtase, propicia a
expansão da consciência, e pode permitir uma conexão com a espiritualidade,
com divindades e com o sagrado.

288
ALMEIDA SILVA (ORG.)

a árvore, do fruto, da solução e, principalmente, do ritual xamânico que


era utilizado aproximadamente 25 anos decorridos por Yamaku, último
pajé Kaxarari.
O kupá nos rituais xamânico proporcionava poderes espirituais
para ter visões, mediante expansão da consciência e da visão espiritual,
inclusive até para perceber enfermidades contraídas pelos indígenas
e/ou espíritos obsessores que afligissem pessoas – caso se tratasse de
uma possessão espiritual – e, assim, poderia indicar o melhor remédio
para esses males, de modo, a reduzir ou acabar com o sofrimento físico e
espiritual daqueles que fossem acometidos desses problemas.
O kupá é uma espécie de solução, como um chá. Sua obtenção se
dava da seguinte maneira: o fruto da árvore é torrado e moído, similar ao
café, depois é fervido e obtêm-se o produto por meio de decocção, então
era utilizado somente por homens adultos para que assim se conectasse
com a espiritualidade e os seres espirituais que habitavam o universo
cósmico de cada pajé.
A utilização se dava por um procedimento rudimentar de
introdução de líquidos pelo ânus, como uma lavagem intestinal, ou seja,
mediante aplicação tópica da solução, via anal, para absorção e
metabolização através do intestino.
A mucosa anal é a mais rápida fonte de absorção e metabolização
de substâncias ou componentes químicos pelo organismo humano e, talvez
por isso, seja o motivo de uso do ritual do kupá por enema – via anal. Caso
fosse absorvido oralmente, provavelmente o seu estômago não
conseguisse metabolizar com a mesma eficácia, com isso geraria um efeito
rápido e de alta conexão espiritual e elevado poder xamânico. A ingestão
oral poderia até mesmo causar uma rejeição da solução pelo estômago,
além de vômito ou qualquer outra reação.
O senhor Américo afirma que o efeito do uso do kupá durava em
média até 12 horas, e dependia da situação de êxtase, pois, quando era
necessário, se a pessoa necessitasse por algum motivo sair do “transe”, o

289
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

pajé cortava o efeito de imediato, com um simples sopro de baforada de


tabaco.
O quarto é o rapé, que é um pó natural, composto de folhas do
tabaco, casca de cacau e ervas aromáticas, os quais são torrados e moídos
juntos, com isso forma um pó utilizado por aspiração ou inoculação nasal
nos rituais de pajelança, para uma expansão da consciência e conexão
com a espiritualidade.
A mucosa nasal é a segunda melhor e também mais rápida fonte
de absorção e metabolização do organismo humano, motivo pelo qual a
aspiração ou inoculação substâncias que contenham elementos
enteogênicos ou químicos agem mais rapidamente no organismo
humano, com resultado mais eficazes para os objetivos a que se pretenda
com o uso da substância.
No passado o rapé era utilizado pelos nossos avós, como um
remédio, unicamente como um descongestionante nasal, potente e
poderoso contra dores de cabeça e mal-estar. Nos dias atuais possui
outros fins além do medicinal, isto é, utilizado individualmente ou em
grupo, em rituais espirituais ou não, atividades psicodélicas ou
relaxantes.
Diferentemente do uso que os indígenas fazem do rapé, é comum
nos dias atuais, a presença de misturas diversas e estranhas, como cinza,
cocaína, maconha, dentre outros produtos que são prejudiciais à saúde,
os quais são utilizados por dependentes químicos e outras pessoas que
querem experimentar seus efeitos desses coquetéis, até mesmo para
esquecer de seus problemas existenciais.
O quinto é o hustahi, um remédio das matas, que é um “fortificante”
para a saúde feminina, pois restabelece o vigor e é usado somente no pós-parto,
para fazer a limpeza do organismo e faz com que a mulher até engorde, de

290
ALMEIDA SILVA (ORG.)

acordo com os caciques Américo e Miguel, da Aldeia Nova. Esse remédio é


um laxante natural, cujo resultado é semelhante à “aguardente alemã”11.
É obtido a partir da raspagem da casca da árvore de mesmo
nome, cujo pó é colocado de molho na água no final da tarde, para
extração dos princípios ativos da planta – medicamentosos e
alimentícios – e, administrado rigorosamente, como tradição ancestral,
às quatro horas da manhã, ocasião em que é coada e ingerida ao
amanhecer, com o estômago vazio e propício à metabolização da
solução, assim, causa reação energética potencial.
O sexto corresponde aos túmulos de Kaibu e Yamaku
considerados lugares sagrado e de muito respeito para as famílias desses
clãs. O respeito é grande, como se verificou no caso de Kaibu, em que o
cacique Américo não foi nem visitar a Aldeia Azul e nem o túmulo de seu
pai, conforme anteriormente descrito.
O sétimo é a antiga Aldeia Azul, um lugar sagrado e de muito
respeito para as famílias Kaibu. O cacique Américo abordou com muito
carinho, saudosismo e amor de seu pai Kaibu e assim não visita aquele
local apenas por obediência a ele, para atender um dos seus últimos
pedidos e aconselhamentos.
O oitavo é a Pedreira, um lugar considerado sagrado, visto que ali
há um significado simbólico e de muito respeito, pois era um barreiro de
papagaios, animais também considerados seres espirituais pelos
Kaxarari.
Assim como alguns animais são sagrados para os Kaxarari, a
pedra tem um significado e uma representação simbólica para sua
espiritualidade, pois ela representa a criação de uma das linhagens
clãnicas, ela foi a responsável em originar algumas pessoas Kaxarari, de

11Remédio homeopático, fitoterápico, uma tintura de jalapa, com propriedades


laxativas – purgante –, de uso muito popular no pós-parto, encontrado nas
farmácias urbanas, serve inclusive para problemas de constipação intestinal e
outras patologias do trato intestinal.

291
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

acordo com o relato do senhor Américo, que, no entanto, não ofereceu


maiores detalhes de como isso ocorreu.
O nono são os cemitérios considerados lugares de grande
relevância espiritual, em função de guardar os restos mortais de seus
ancestrais, seus entes queridos. Eles não visitam com frequência esses
espaços, mas acendem velas nas épocas devidas, fazem suas orações para
os espíritos dos seus mortos, ou seja, com isso mantêm vivas as memórias
daqueles que formaram e perpetuaram o povo.
O décimo eram as pajelanças, consideradas rituais de
espiritualidade e proteção, e de acordo com seus relatos, na atualidade
existe somente como memórias.
O décimo primeiro eram as danças culturais realizadas
sistematicamente, mas que na atualidade, apenas parte delas, são feitas
em momentos específicos, com a entoação de músicas em língua
materna. Durante o I Encontro das Mulheres Kaxarari em dois
momentos foram apresentadas à noite em volta de uma fogueira. Há um
desejo do povo em restaurar e valorizar músicas e danças originárias,
pois entendem como necessárias à continuidade da cultura.
O décimo segundo é a caiçuma, considerada como uma de suas
tradições, é usada nos eventos culturais e religiosos do Kaxarari,
juntamente com danças e outras atividades culturais. A caiçuma também
remete à espiritualidade, visto que nos rituais de pajelanças era um
elemento presente.
Trata-se de uma bebida natural fermentada e produzida a partir
da macaxeira cozida. O preparo é deixá-la de molho na água por uns dias
para fermentar, depois é amassada manualmente, coada, temperada e
servida. Não apresenta teor alcoólico, todavia, se passar do ponto de
fermentação ideal, ela passa a possuir teor etílico.
O décimo terceiro é a chicha, usada nos eventos culturais e
espirituais como as danças, momentos culturais, e no passado em rituais
de pajelanças. O processo de preparação é semelhante ao da caiçuma,

292
ALMEIDA SILVA (ORG.)

entretanto, o ingrediente é o milho verde cozido, que também pode


apresentar teor alcoólico, caso supere o tempo ideal de fermentação.
O décimo quarto é a Terra Indígena Kaxarari, pois é o lugar de
nascimento, de crescimento, de vivência, de pertencimento, de caça e
pesca e demais atividades que possibilitam seu espaço de ação, ainda que
repleto de dificuldades, de superação frente às realidades existentes. Em
síntese, é seu lar, é seu lugar, é seu porto seguro, é sua natureza, é seu solo,
é a razão de sua existência.
O décimo quinto são os animais da floresta, como a onça, o
papagaio, o jabuti, a cobra, o tamanduá, dentre outros, os quais
representam a criação de cada uma das linhagens Kaxarari. No
imaginário do povo, são eles que deram origem à existência de todo o
povo, por isso reflete a visão de suas origens, e cada animal tem seu
significado e simboliza uma força da natureza. Neste sentido, cada pessoa
se identifica a uma representação específica, de maneira que entende
“determinado animal como se fosse seu pai de sangue”, com isso sente
que pertence àquela linhagem, em que cultua como seu parente, seu
criador.
O décimo sexto é o resguardo do primogênito, um ritual para
cumprir a tradição sagrada que consistia no resguardo do filho
primogênito. Era cumprido pelos homens, pai do recém- nascido e
consistia em seu recolhimento na maloca por três dias seguidos, sem sair
ou ver a luz do sol, sem comer nada, nem beber água, deitado com a
cabeça virada e fixa para o mesmo lugar, caso descumprisse isso
representaria riscos para a saúde da criança.
No final do último dia do recolhimento, o pai saía da maloca, se
dirigia direto ao rio, dava três mergulhos, voltava para a moradia e comia
três castanhas-do-brasil, enfileiradas individualmente, depois bebia um
litro de chá de um cipó, tão amargo quanto à quina- quina Coutarea
hexandra.
O pai ainda no final do ritual, esperava um pouco, aí a ânsia de
vômito vinha. Se a regurgitação corresse reta, o filho teria vida longa, caso

293
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

contrário, logo morreria. O cipó cortado para o chá também era avaliado
depois, se brotasse e crescesse, o pai que fez o ritual teria vida longa.
Hoje em dia, esse ritual não é mais realizado, pois essa variável
cultural foi abandonada, a partir da colonização e o convívio com os não
indígenas e outras representações e sentidos foram incorporados, o que
se consubstancia como hibridização.
O décimo sétimo é o resguardo da menstruação, que consistia no
resguardo da menina- moça quando menstruava pela primeira vez, e
estaria apta ao casamento e pronta para a procriação, ou seja, passava
assumir sua plenitude como mulher, assim como para a vida sexual ativa.
A menina-moça ficava recolhida na maloca por cinco dias
seguidos, sem sair ou ver a luz do sol, nem beber água, comia apenas
mingau de milho e milho, deitada com a cabeça virada três dias para uma
direção e mais dois para o outro lado contrário, se descumprisse isso, sua
saúde correria sérios riscos.
No final do último dia, saía da maloca, se dirigia direto para o rio,
ali dava três mergulhos e voltava para a moradia. Como parte do ritual
espiritual para garantir uma boa saúde feminina às mulheres, no caminho
para o rio e depois do resguardo por um período de seis dias, a moça
deveria coçar a sua barriga com uma palha de patauá Oenocarpus
bataua, para evitar que aparecessem estrias quando engravidasse. Hoje
em dia, esse ritual não é mais realizado pelos Kaxarari, devido a fatores
de influência externa.
O décimo oitavo é a língua e as reminiscências memoriais e
culturais, é de grande relevância, pois são essas que (re)afirmam as
representações identitárias do povo Kaxarari.

CASAMENTO KAXARARI

Na organização familiar Kaxarari, o casamento era uma união


prometida desde muito jovens, às vezes, até quando crianças, mas uma
promessa que se cumpria à risca, sem perigo de não dar certo, pois, como
uma união sagrada, tudo era respeitado para esse povo.

294
ALMEIDA SILVA (ORG.)

A menina se casava muito nova, entre 10 e 12 anos. Na afirmativa


do senhor Américo Kaxarari a motivação era um desígnio das
ancestralidades culturais sagradas de seu povo, isto é, se a menina-moça
tivesse sonhos eróticos e engravidasse no sonho, teria o seu aparelho
reprodutor afetado e poderia adoecer, inclusive até de não poder mais ter
filhos, o que seria um risco ter uma mulher que não procriaria na aldeia.
Assim, casava muito nova para não correr o risco desse presságio.
Então para não correr o risco de perder uma indígena com a
capacidade de procriação, ela era orientada pelo pajé a se casar muito
jovem, a fim de evitar de sofrer as consequências de sonhos eróticos,
acompanhados também de polução noturna – comuns aos homens, mas
também ocorre às mulheres.
Já os jovens masculinos, poderiam ter sonhos eróticos e, se
fossem com mulher a engravidar, o espírito daquele filho do sonho viria
buscar o pai – devido a saudades, com isso o genitor morreria, em
decorrência de sua cobrança, visto que havia gerado o filho durante o
sonho.
Assim, do mesmo modo que as moças jovens eram orientadas
pelos pajés, estes também aconselhavam os moços a se casarem, para
evitar que tivessem sonhos eróticos e, então, corressem o risco perder o
guerreiro, que fatalmente morreria se engravidassem alguma mulher,
conforme mencionado anteriormente.
Todavia, nos dias atuais o casamento nas aldeias Kaxarari
ocorrem naturalmente como acontecem com o não indígena, isto é, não
existe mais a promessa, de modo que os nubentes é que se conhecem, se
gostam, se casam, convivem e constituem suas famílias e até se separam.
Casam-se com homens e mulheres não indígenas. Não tem mais a
promessa, visto que toda essa cultura foi descontruída pela influência da
religiosidade evangélica, conforme atesta o senhor Américo Kaxarari.
É necessário, no entanto, destacar que o casamento tem uma
simbologia muito grande para os Kaxarari, visto que representa uma

295
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

árvore (união sólida), que é plantada, cultivada e dará frutos (os filhos),
que também crescerão e perpetuarão o clã de seus pais e de seu povo.

VISITA À ALDEIA AZUL E AO TÚMULO DE KAIBU

A curiosidade de alguns pesquisadores da Universidade Federal


de Rondônia - UNIR para visitar a Aldeia Azul deu-se pela representação
simbólica, geográfica e histórica da localidade, visto que nela habitou o
cacique e pajé Kaibu. Sua importância é por ser o berço de dois terços das
aldeias Kaxarari, além de ser ali que está sepultado o antigo líder, dentro
dos rituais de seu povo.
O cacique Américo, filho de Kaibu, deveria acompanhar os
pesquisadores na visita. Cecilia (Tchanta) que insistiu muito que seu
irmão fosse, pois seria uma oportunidadede rever a aldeia em que esse
nascera, todavia, ele ficou reticente, talvez pela idade avançada, dores no
corpo, indisposição e cansaço. Ambos resolveram não ir até a Azul.
Em contrapartida, para comandar a missão foi designado o
senhor Jorge Pinheiro Costa Kaxarari que é um agente indígena de saúde
(AIS) na Aldeia Central, o qual conduziu por todo trajeto. Assim,
apresentou o local da antiga aldeia, bem como o túmulo e a primeira
escola formal e apontou que ali perto ficava uma pista de avião que dava
suporte à saúde indígena, no tempo que a TIK foi demarcada.
Para chegar na Aldeia Azul, percorremos com veículo
aproximadamente 10 km a partir da Barrinha, e depois uma caminhada
de cerca de 5 km em trilhas apagadas pelo desuso, repletas de madeiras,
palheiras e árvores caídas em direções diversas no meio do caminho, o
que nos obrigava a desviar, ou passar por cima ou por debaixo em todo
o trajeto.
Mediante essa situação, entendemos porque não seria possível o
senhor Américo caminhar até a Aldeia Azul e ao túmulo de Kaibu, pois
haviam muitos espinhos, unha-de-gato Uncaria tomentosa, formigas,
marimbondos diversos, tocos, pedras incrustadas no chão, de modo a
propiciar topadas e quedas. Foi muito difícil alcançarmos a localidade,

296
ALMEIDA SILVA (ORG.)

todavia, foi compensador ao vermos a rica biodiversidade de plantas e


animais, sobretudo os cantares de pássaros, o que nos deu sensação de
paz e tranquilidade naquele ambiente florestado e pleno de
representações e significados para os Kaxarari.
Depois de visitar a localidade e o túmulo, fomos até às margens
do rio Azul, o qual passa aproximadamente 100 m da antiga aldeia. Nele
tomamos um banho, as águas estavam turvas devido à chuva ocorrida na
noite anterior, mas aparentemente pura. Assim, parecia mais um igarapé,
por ter pouca água, visto que reflete o barramento feito há vários anos
pela Construtora Mendes Júnior e que fora motivo dos vários conflitos
entre a empresa e os Kaxarari.
Posteriormente, entendemos a motivação da não ida do senhor
Américo à localidade. Ele reafirmou que não poderia desobedecer as
solicitações que Kaibu fizera antes de falecer que a Aldeia Azul é sagrada,
de respeito e de obediência, com isso não violou o terceiro pedido de seu
pai, ou seja, que não voltasse naquele por alguns anos.

POPULAÇÃO KAXARARI NOS DIAS ATUAIS

Ao dialogarmos com as lideranças de todas as nove aldeias


podemos constatar que a etnia Kaxarari tem uma população de 620
indígenas, organizada em famílias, pessoas e lideranças por aldeia e
aldeias agrupadas por clãs. Em termos populacionais, a Pedreira é que
conta com o maior contingente (125 pessoas), seguida da Kawapu (122)
e da Paxiúba (80), a menor delas é a Central (27), conforme dados
apresentados na Tabela 2, a seguir.

297
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Tabela 2: Famílias e População Kaxarari, por Aldeia/Clã e lideranças


Clã Seq Fam. Pes. Aldeia Liderança/vice-
liderança
Américo Costa Kaxarari
1 8
37 Barrinha (Manu)/Maria das Graças
Martins Kaxarari
Paulo Alves Costa
2 9
50 Txakuby Kaxarari/Antônia Bessa
Pinheiro Kaxarari
Ivaneide Saide de Souza
3 3
27 Central Kaxarari (Porexá)/Jorge
Pinheiro Costa Kaxarari
Kaibu 4 8 Miguel Alves Costa
35 Nova Kaxarari/Maria Costa
Kaxarari
Domingos Martins
5 15
69 Marmelinho Kaxarari/Rita Alves Costa
Kaxarari
Manoel Monteiro Mariano
6 15
Kaxinauá (Maru)/
75 Buriti Raimunda Martins Costa
Kaxarari (Nauaria Koiké)
Total– 58
293
Kaibu
Marizina Cézar Kaxarari
7 36 Pedreira
125 (Ynaipá)/Joabe (Negão)
Kaxarari
Lucilene Souza da Silva
8 20 Paxiúba
Yamaku 80 Kaxarari/Franco Cézar
Kaxarari
José Cézar Kaxarari
9 33 Kawapu
122 (Mayá)/João Souza da
Silva Kaxarari(Rixá)
Total– 89
327
Yamaku
Total Etnia 147 620
Fonte: Atividade de campo. Organ. por Nogueira (2019)

298
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O clã Kaibu possui a maior quantidade de aldeias, todavia o


número de famílias e pessoas é inferior ao que se constata no clã Yamaku.
Um dado interessante é que no primeiro clã a média é de 5,05
pessoas/famílias, enquanto no segundo é de 3,67. Os dados da Tabela 3
demonstram o quantitativo de pessoas, famílias por origem clãnica e
servem para se compreender o universo populacional Kaxarari
verificado em novembro de 2018.

Tabela 3: Aldeias, Famílias e População Kaxarari, por clãs


Clã Aldeia % Fam. % Pes. %

Kaibu 6 66,7 58 39,5 293 47,3


Yamaku 3 33,3 89 60,5 327 52,7

Total Etnia 9 100,0 147 100,0 620 100,0


Fonte: Atividade de campo. Organ. por Nogueira (2019)

Os dados indicam que num período de 25 anos, a contar de 1993


(Figura 4) a população Kaxarari mais que triplicou, possivelmente em
função da ação do Estado com algumas ações de saúde, principalmente,
no que se refere a campanhas de vacinação, além da própria
regularização da TIK pode ter contribuído para isso.

Figura 4: Evolução populacional – Terra Indígena Kaxarari

Fonte: FUNAI-Rio Branco (1993 e 2002); FUNASA (2006); SIASI/FUNASA


(2008 E 2010); SIASI/SESAI (2013 e 2014) disponibilizado em
https://terrasindigenas.org.br/pt-br. Organ. por Nogueira (2018)

299
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Todavia, pelas narrativas do cacique Américo Kaxarari, percebe-


se que o quantitativo atual está muito distante daquele existente no
início do século passado em que se estimava em aproximadamente 2.000
pessoas.

REPRESENTAÇÕES POLÍTICAS KAXARARI

Na avaliação de um dos representantes, ele considera que o nível


de entrosamento entre os clãs Kaibu e Yamaku, não é dos melhores, tanto
que existem cinco associações e organizações de defesa dos interesses e
direitos sociais do povo Kaxarari (Quadro 1). Essas entidades
encontram-se em fases jurídicas e de atuação distintas, isto é, umas
legalizadas e outras em processo de legalização, o que reflete a
dificuldade de gestão, inclusive pelo maior envolvimento dos associados.

Quadro 1: Organizações representativas Kaxarari


Aldeia que
Clã Organizações
defende
Todas OFIKK – Organização da Família Indígena Kaibu
Kaibu
Kaibu Kaxarari
AKCIK – Associação dos Kaxarari da
Kawapu Comunidade Indígena Kawapu
Yamaku
ACIKP – Associação da Comunidade Indígena
Pedreira
Kaxarari da Pedreira
Povo ACIK – Associação das Comunidades Indígenas
Todas
Kaxarari Kaxarari
Fonte: Atividade de campo. Organ. por Nogueira (2018)

Todas as organizações possuem objetivo geral semelhante, o


qual consiste na defesa de interesses pessoais e sociais dos indígenas
Kaxarari, em conformidade com sua área geográfica de atuação. Assim,
temos: a) Organização da Família Indígena Kaibu Kaxarari (OFIKK),
voltada a todos os indígenas do clã Kaibu, que corresponde 66,7% do
total das aldeias Kaxarari, com 58 famílias (39,5%) e 293 pessoas
(47,3%). Presidida por Edson Costa da Silva Kaxarari; b) Associação dos
Kaxarari da Comunidade Indígena Kawapu (AKCIK), criada em 26- 06-

300
ALMEIDA SILVA (ORG.)

2015, tem como presidente é João Souza da Silva Kaxarari; c) Associação


da Comunidade Indígena Kaxarari da Pedreira (ACIKP), constituída em
10 de novembro de 2015.O presidente é Edmilson Oro Waram Xijein; d)
Associação das Comunidades Indígenas Kaxarari (ACIK), instalada no
distrito de Extrema, tem como presidente o indígena Cosmo Ambrósio
da Silva.
Outra constatação que encontramos, de acordo com o afirmado
pelas lideranças da Associação dos Kaxarari da Comunidade Indígena
Kawapu (AKCIK), é que sua coletividade realiza no primeiro sábado de
cada mês uma reunião para tratar das problemáticas existentes, buscar
soluções e realizar projetos que possam contribuir na salvaguarda
territorial e melhoria da qualidade de vida da população. Das demais
entidades não obtivemos informações quanto a seu funcionamento.
Em nosso campo constatamos ainda que a Aldeia Pedreira, com
sua associação ACIKP, é a única com veículo próprio para uso exclusivo
daquela localidade, o que facilita a locomoção das pessoas para as áreas
urbanas afim de resolver questões relacionadas à saúde, aquisição de
mercadorias, além de outras atividades. Nas demais aldeias a população
para se deslocar contam com carroças de tração animal, bicicletas e
motocicletas, o que nem sempre se traduz em um meio de transporte
eficaz e confortável.
Para além das entidades mencionadas, Cleiciana Costa César
Kaxarari – de descendência de Yamaku e esposa Edson Costa da Silva
Kaxarari, do clã Kaibu, é a representante das mulheres na OFIKK, com
isso tem o respaldo do clã de seu marido. Ela tem lutado para criar uma
associação institucional, exclusivamente de mulheres, com CNPJ e
outros dados necessários para respaldar e legitimar as ações femininas.
Na perspectiva de Cleiciana, que inclusive idealizou e foi
principal organizadora do I Encontro das Mulheres Kaxarari, a
constituição da associação voltada ao público feminino indígena deverá
ocorrer em breve. Com isso poderá colocar em prática as ideias e
demandas das mulheres, por meio de projetos que possam melhor suas

301
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

vidas, de suas famílias e consequentemente do próprio povo. O evento


foi visto como uma oportunidade, especialmente, de cunho político de
empoderamento feminino, na luta pelos seus direitos e protagonismo no
interior e fora da TIK.
Como primeira experiência, quase todas as aldeias participaram
desse Encontro e foi favorecida pela relativa proximidade geográfica das
localidades habitadas pelos Kaxarari. Somente a Kawapu não participou,
vez que afirma o não recebimento de convite. Para os indígenas, os
alunos de graduação e pós-graduação em Geografia da UNIR ativamente
contribuíram em várias das atividades com palestras, oficinas e as mais
diversas orientações. É importante ressaltar que por algumas horas,
ainda que de modo passageiro e informal, o senhor Ari Ferreira Simão
Kaxarari (Wayamá), um dos líderes da Kawapu, representante de várias
organizações indígenas pelo Brasil, esteve presente no local do evento,
com o objetivo de apenas se informar e ter noção do que ocorria no
mencionado Encontro.
Essa informação foi obtida junto ao próprio Wayamá, no
momento que voltávamos para o distrito de Extrema, uma vez que a
Kawapu é a primeira aldeia na entrada da TIK, a qual situa-se a 14 km da
Barrinha. Ali paramos para fazer registro fotográfico da arquitetura de
uma maloca existente, que possui um estilo diferenciado e de grande
beleza original do modo de construir Kaxarari, bem como para um
diálogo de meia hora com as lideranças locais como o senhor Wayamá e
José Cézar Kaxarari (Mayá), os quais nos convidaram para reuniões e
interlocuções em outras oportunidades que estivermos na TIK.

INFRAESTRUTURAS DE MORADIA, SAÚDE E SANEAMENTO E EDUCAÇÃO


KAXARARI

Os Kaxarari, na atualidade, habitam em residências similares às


da sociedade envolvente, as quais são feitas em madeira e a maioria delas
cobertas com telhas de fibrocimento e umas poucas com telhas de barro.

302
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Com isso, não se existem malocas, palhoças, tapiris, casas de pau-


a-pique/taipa e cabanas, que eram cobertas com palha paxiúba Socratea
exorrhiza ou babaçu Attalea speciosa ou de sapé Imperata brasiliensis. A
única estrutura que percebemos foi na Aldeia Kawapu com a maloca
construída no modelo arquitetônico ancestral, porém com piso de
cimento queimado. A não existência de construções como ocorrera no
passado não significa que os Kaxarari deixaram de ser indígenas, e sim
que incorporaram outros valores representativos que entendem como
necessários à sua qualidade de vida.
Basicamente, todas as aldeias contam com acesso à energia
elétrica, água encanada, televisão, internet, postos de saúde e
atendimento de saneamento e escolas. No entanto, com a nossa visão
externa, os Kaxarari encontram-se numa situação desfavorável, pois
parte desses aparatos modernos não atendem satisfatoriamente suas
necessidades.
É preciso enfatizar que as famílias possuem suas roças e cultivam
principalmente culturas de subsistência, como mandioca, macaxeira,
bananas, feijão, arroz e frutíferas. Eles entendem que se tivessem tratores
para aragem da terra isso aumentaria sua produção, consequentemente
precisariam de veículos para transportar e comercializar nas áreas urbanas.
Quanto ao sistema de saúde, apenas três aldeias possuem postos
construídos e em funcionamento para o atendimento de seus membros.
Os recursos humanos que realizam atividades na TIK (Quadro 2) são
compostos por oito agentes indígenas de saúde (AISS) que são
responsáveis pelas atividades dos postos, e sete agentes indígenas de
saneamento (AISANS) que atuam na coleta de lixo produzidos nas
aldeias.
Os AISS e AISANS são contratados por empresa terceirizada, a
qual presta serviços à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) –
responsável em coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à
Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema

303
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS) no Sistema Único de Saúde


(SUS).
Quadro 2: AISS e AISANS Kaxarari
Seq Aldeia AISs Aisans
Barrinha Lenildo Alves Costa Zilda Alves Costa Kaxarari
1
Kaxarari
2 Txakuby
Rosana Souza Costa
3 Central Jorge P. Costa Kaxarari
Kaxarari
4 Nova Ailton Costa Kaxarari
5 Marmelinho Jair Martins Kaxarari Jailton Martins Kaxarari
Angelita Ambrósio
6 Buriti Adílio Martins Kaxarari
Kaxarari
Creuza Costa C.
7 Pedreira Edinilson Alves Kaxarari
Kaxarari
8 Paxiúba Lucilene Souza Kaxarari Valdilson César Kaxarari
9 Kawapu Valdilene César Kaxarari Flávio César Kaxarari
Fonte: Atividade de campo. Organ. por Nogueira (2019)

Nenhuma das aldeias contam com médicos e os AISS só realizam


atendimentos simples, curativos, entrega de medicação que não precisa
de indicação médica, analgésicos, antitérmicos, etc. Caso existam
pacientes em situações mais graves (cirurgia, internação, dentre outros),
esses são encaminhados para o sistema de saúde pública em Extrema,
onde funciona uma pequena estrutura da Secretaria Especial de Saúde
Indígena - SESAI. A TIK possui dois cemitérios, que por coincidência
ficam situados próximos às aldeias que contam com o posto de saúde e
com escolas. Cada clã possui seu próprio cemitério (Quadro 3). As que
não contam com esse espaço sagrado encaminham seus entes queridos
para sepultamento para aquelas que são detentoras de cemitérios.
Constatamos que a Marmelinho atende a Buriti com o sepultamento dos
mortos.

304
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Quadro 3: Postos de saúde e cemitérios – Terra Indígena Kaxarari


Clã Seq Aldeia Posto Saúde Cemitério
1 Barrinha PS na Escola
2 Txakuby
3 Central PS na Escola
Kaibu
4 Nova PS na Escola
5 Marmelinho PS na Escola Cemitério próprio
6 Buriti PS na Escola
7 Pedreira PS Individual Cemitério próprio
Yamaku 8 Paxiúba Tem AIS
9 Kawapu PS na Escola
Fonte: Atividade de campo. Organ. por Nogueira (2018)

De acordo com as informações obtidas no campo, atualmente,


não existe mais o ritual de sepultamento específico Kaxarari. Apenas
ocorre o velório e o sepultamento nos moldes realizados pela sociedade
envolvente. Em algumas ocasiões os não evangélicos costumar acender
velas em respeito memorial aos que partiram para a eternidade.
Em relação à educação formal, todas as aldeias possuem escolas
públicas, umas somente até a 5ª série do Ensino Fundamental e duas
oferecem até o Ensino Médio completo – estas são construídas em
alvenaria, as demais em madeira.
As escolas passam por um processo de reforma, com vistoria e
melhoria da estrutura. Outras duas estão em construção como
compensação ambiental e social das usinas hidrelétricas do complexo do
rio Madeira. Os sete professores e oito professoras, quase todos são os
indígenas e moram em suas respectivas aldeias. O quadro 4 apresenta as
escolas, o ensino oferecido e os professores.
Esses recursos humanos pertencem aos quadros da Secretaria de
Estado da Educação (SEDUC-RO) e consideram que dentre as grandes
dificuldades encontradas, semelhantes ao que ocorre na educação indígena
em outras terras indígenas, estão: a) escassez de material didático; b)
inexistência de material didático na língua Kaxarari; c) a merenda escolar
não tem certa regularidade; d) ao terminar os estudos nas aldeias, a maioria

305
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

dos estudantes não conseguem prosseguir, pois os pais tem limitações


financeiras para mantê-los na cidade; e) salas multisseriadas e professores
que ministram várias disciplinas distintas.

Quadro 4: Escolas, nível de ensino e professores


Ensino Ens. Médio
Clã Aldeia Professores
Fund. Máx. Máx.
Ilma Alves Kaxarari;
Barrinha Completo Sebastiana Costa Martins
Kaxarari
Txakuby 5ª Série Edvaldo Costa Kaxarari
Marcondes Rodrigues
Central 5ª Série Kaxarari; Elinês Said de
Ka

Souza Vieira
Regiane Alves Costa
Nova 5ª Série
Kaxarari (Yrianá)
Marmelinh Edimilson Mariano
Completo
o Kaxarari
Buriti 4ª Série Edinei Martins Kaxarari
Rosinalda Kaxarari; Said
de Souza
Pedreira Completo Completo Kaxarari; André Alves da
Yamaku

Silva; Dionísio
César Kaxarari
Celso Souza; Alcileine
Paxiúba Completo Completo
Souza; Regina Ribeiro
Denizete Simão Kaxarari;
Kawapu Completo Rosângela do Nascimento
Kaxarari
Fonte: Atividade de campo. Organ. por Nogueira (2019)

Outra informação, mas sem dados concretos, é quanto à


escolarização, em que os mais idosos não tiveram a oportunidade de
cursar a educação formal, no entanto, atuam como sabedores e
sabedoras nas escolas das aldeias. Por outro, a professora Regiane Yrianá
em 2019 concluiu o curso de Pedagogia numa instituição particular de
ensino superior.

306
ALMEIDA SILVA (ORG.)

CONSIDERAÇÕES NÃO CONCLUSIVAS

Nosso propósito foi demonstrar, ainda que de maneira


fragmentada, aspectos, fenômenos e elementos representativos do modo
de viver e compreender o mundo Kaxarari, por meio de sucessivas
expressões e formas simbólicas descritas por esse coletivo humano. Foi
possível estabelecer algumas conexões que se entrelaçam como
linguagem no processo de compreensão do espaço de ação e na definição
de formas e funções atribuídas às territorialidades/espacialidades de seu
universo representativo, como se constata não somente nas narrativas
que remete ao mítico, mas também àquelas vinculadas a realidades
vivenciadas por eles.
Neste sentido, temos ainda que de modo provisório, incompleto,
a geograficidade, a cultura, os marcadores e demarcadores territoriais, os
quais sintetizam a trajetória dos Kaxarari na porção sul-ocidental da
Amazônia brasileira, de modo que, pelos relatos memoriais, há mais de
um século esse povo tinha muitas terras e um contingente populacional
bem mais expressivo. No decorrer desse tempo, muitas transformações
sociais, culturais, espirituais e ambientais ocorreram no universo
Kaxarari, notadamente, pelo estabelecimento do contato com a sociedade
envolvente, com isso o povo passou a sofrer uma série de desafios e
pressões que resultou em mortalidade de seus membros por meio de
ações como: a) a subjugação análoga à escravidão; b) a perda territorial
com ocupações ilegais; c) danos ambientais imensuráveis
(desmatamento, mineração, extração ilegal de madeiras, dentre outros)
e impactantes à biodiversidade; d) o surgimento de doenças que não
conheciam; e) a proliferação de malária e
febre amarela.
Tal situação veio a contribuir ainda com o aprofundamento das
questões internas Kaxarari, que de modo geral, encontra-se, na
atualidade, aparentemente sem estratégias efetivas para o enfrentamento
da realidade existente, vez que os problemas são de grande extensão e
complexidade. Neste sentido, a confirmação do quadro encontrado é a

307
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

existência de cinco associações – uma delas em processo de formalização


e de iniciativa das mulheres. Ao contrário do que se pensa, pois
transparece dessa maneira, o aumento do número de entidades
necessariamente não aglutina e/ou fortalece o povo, acirra certas
tensões e perde-se o objetivo maior que é o de defender os direitos e
interesses dos Kaxarari.
Mediante ao apresentado no presente trabalho, entendemos
como relevante, pois pouco há escrito sobre o povo Kaxarari, com isso as
lacunas existentes podem e devem ser cobertas com estudos de maior
profundidade teórico-conceitual, o que implica ainda em se ter maior
vivência empírica para a compreensão das manifestações e
representações simbólicas de seu universo.

REFERÊNCIAS

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Kawahib da Terra Indígena Uru-Wau-Wau em Rondônia: “Orevaki
Are” (reencontro) dos “marcadores territoriais”. Tese (Doutorado em
Geografia). Curitiba: PPGG/UFPR, 2010. 301f. Disponível em:
https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/24230/Adnilson
KawahibUFPR2010.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.

ALMEIDA SILVA, A. Territorialidades, identidades e marcadores


territoriais Kawahib da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau em
Rondônia. Jundiaí: Paco, 2015.

CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I. A linguagem.


Tradução de Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1926].

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cultura. 5. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1968 [1944].

308
ALMEIDA SILVA (ORG.)

CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da


cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994 [1944].

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University Press, 1953- 1957 [1929]. v. III: The Phenomenology of
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CLAVAL, P. A geografia cultural. 3. ed. Florianópolis: EDUFSC, 2007.

DARDEL, E. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São


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HOEBEL, E.A.; FROST, E.L. Antropologia cultural e social. 7. ed. São


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NOGUEIRA, F.R.; SILVA, J.C.; KAXARARI, A.C.; ALMEIDA SILVA, A.


Vivências, sentidos e representações Kaxarari: diálogos culturais. Revista

309
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Ciência Geográfica – Bauru, Vol. XXIV(3), 2020. p. 1286-1320.


Disponível em: www.agbbauru.org.br/publicacoes/revista/ano
XXIV_3/agb_xxiv_3_web/agb_xxiv_3-19.pdf. Acesso em 20 dez 2020.

SAHLINS, M. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica:


porque a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (parte I)”. Mana
Estudos de Antropologia Social. Museu Nacional. Rio de Janeiro: UFRJ,
v. 3, n. 1, p. 41-73, 1997a.

SAHLINS, M. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica:


porque a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (parte II)”. Mana
Estudos de Antropologia Social. Museu Nacional. Rio de Janeiro: UFRJ,
v. 3, n. 2, p. 103-150, 1997b.

SAHLINS, M. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003 [1985].

Apoio
Programa de Apoio ao Pesquisador Rondoniense (PQR), Chamada n.
003/2017/PQR/FAPERO, Outorga 042/2017, Protocolo
33897.521.20813.06102017, por meio do projeto “Geografia e
Marcadores Territoriais: Sentidos e Representações Socioculturais
Amazônicas”.

310
OS PAITER SURUÍ E O RITUAL MAPIMAÍ COMO “MARCADOR
TERRITORIAL” 1

Kelli Carvalho Melo


Adnilson de Almeida Silva
Almir Narayamoga Suruí

Os Paiter Suruí que se autodenominam de “Gente de Verdade”


ou “Povo Verdadeiro”, vivenciam um cenário que se encontra em
constante processo de novas representações e apropriações culturais, no
entanto, alguns de seus rituais permanecem, ainda, que tenham que
adaptarem-se à cultura e aos valores dos yara ey ou não indígenas. Eles
vivem na Terra Indígena Sete de Setembro (autodenominada Paiterey
Karah) nos municípios de Cacoal-RO e Rondolândia-MT, espacialmente
distribuídos, atualmente em 25 aldeias.
Neste capítulo analisaremos o modo de vida, as representações e
presentificações que este coletivo manifesta e estabelece suas relações
com os “marcadores territoriais” – lócus privilegiados para se
compreender sua territorialidade, sendo que o Mapimaí ou criação do
mundo, que consiste em uma ritualística 2 pautada nos valores
cosmogônicos e ancestralidades que oportuniza uma análise geográfica
mais próxima do seu modo de vida.

1Publicado com o título “Os Paiter Suruí e o Mapimaí: a representação como


“marcador territorial”, na Revista Acta Geográfica, em 2015.
2 “No contexto da organização cosmogônica os Tupi Mondé possuem uma
extensa gama de seres espirituais e rituais festivos, tais como: a) Paiter Suruí
com Palob (demiurgo ou herói mítico criador), Hoeyateim, Goanei, Goraei, e
realizam rituais espiritualizados e festivos como o Mapimaí (criação do mundo),
Ngamangaré (roça nova), Weyxomaré (pintura), Hoeyateim (para o xamã
controlar os espíritos da aldeia), Lawaãwewa (construção de casa nova), Ytxaga
(pesca com timbó), Festa da Menina Moça; b) Zoró com Gorá (demiurgo),
Gojanej, Gere Baj, Doka, Gere Bai; c) Cinta-Larga tem Gorá (demiurgo) e Pavu,
e a Festa do Porcão; d) Ikolen Gavião com Gorá (demiurgo) e Gonjan-ei; e) Karo
Arara — este povo com a língua Tupi Ramarama, com o ritual festivo Wayo ou
Festa do Jacaré” (ALMEIDA SILVA, 2015, p. 9).

311
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

O INÍCIO
Os coletivos indígenas de Rondônia buscam sua sobrevivência,
que se torna um desafio, essa é uma situação que não se diferencia em
muito às demais etnias que se encontram em território brasileiro. Entre
os múltiplos desafios encontram-se a luta para a demarcação do
território; a superação dos impactos do colonizador na cultura, marcada
em muitos casos pela discriminação étnica-racial; a inserção de novos
valores que resultam em crises psicológicas. Todavia, a relação estreita
com a natureza e os valores cosmogônicos e espirituais são algumas das
características que unem os coletivos entre si em seu modo de apreensão
e compreensão de mundo.
O coletivo indígena Paiter Suruí, que se autodenomina de “Gente
de Verdade” ou “O Povo Verdadeiro, Nós Mesmos” – pois acreditava que
seria os únicos habitantes da terra – pertence ao tronco Tupi da família
linguística Mondé. Sua organização sociopolítica (Figura 1) possui como
característica a ordenação em um sistema clânico de parentesco e
matrimônio, composto pelos Gameb (marimbondos pretos), Gabgir
(marimbondos amarelos), Makor (taboca, que é uma espécie de bambu
da Amazônia) e Kaban (mirindiba Glycydendron amazonicum).

Figura 1: Organização política da chefia dos Paiter Suruí e distribuição


de poderes

Fonte: Cardozo (2011)

312
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Constituem uma população de 1.172 pessoas


(http://pib.socioambiental.org/pt/povo/surui-paiter/1763. Acesso em:
10 mar. 2014) em um território de 248.147 ha (2.481,47 km²), localizado
no sudeste de Rondônia e noroeste de Mato Grosso. O contato entre esse
coletivo e a sociedade envolvente produziu grandes transformações em
sua cultura, principalmente devido a pressões que contribuíram para
novas e diversas representações internas, embora mantenham vivo
muito de seus valores culturais e cosmogônicos.
Os dois principais responsáveis pelas mudanças sociais, políticas,
territoriais e culturais entre os Paiter Suruí foram o processo de
colonização no final da década de 1960, posteriormente ampliado pelo
Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil –
Polonoroeste. Esses dois fatores propiciaram em consequências diretas
para as populações indígenas de Rondônia e Mato Grosso e culminou na
perda significativa de seus territórios ancestrais, os quais foram
“ocupados” pelos novos migrantes com o apoio estatal.
A “ocupação” desses territórios foi marcada por conflitos, dos
quais alguns deles ainda em evidência, o que caracteriza o que Galvão
(1979) qualifica como “encontro de sociedades”, ou seja, distintas
culturas humanas com distintas apreensões e visões de mundo, o que
inclui a compreensão sobre a utilização da natureza.
O coletivo Paiter Suruí, com isso vivencia um novo cenário,
essa afirmativa está na afirmação do Labiway eSaga (líder) Almir
Narayamoga Suruí, assim como em alguns meios de comunicação.
Acreditamos se tratar de um dos coletivos mais bem organizados
politicamente do Brasil, devido principalmente ao conhecimento e o
contato que esse líder possui nacional e internacionalmente, em virtude
da consolidação de parcerias e projetos implantados e em preparação
para implantação na Terra Indígena Paiterey Karah – TIPK (Sete de
Setembro - TISS).
O contato com a sociedade envolvente fez com que alguns
rituais e valores fossem esquecidos, outros permaneceram, porém

313
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

sincretizados devido principalmente aos conflitos ideológicos, e


interesses causados pela inserção de religiões introduzidas na TIPK, de
modo a configurar o que Sahlins (1997a, 1997b, 2003 [1985])
conceitua como “mudanças e permanências”.
Dentro do contexto que os coletivos indígenas passaram a viver,
com os novos sentidos, significados e representações oriundas da
apreensão da cultura da sociedade envolvente, é indispensável à
realização de estudos técnicos e pesquisas científicas que enfoquem as
etnias em Rondônia. No caso específico a abordagem é sobre os Paiter
Suruí, desenvolvemos a perspectiva geográfica inserida no contexto de
sua territorialidade, em que os “marcadores territoriais” a base
conceitual do presente estudo.
Com isso a análise discorrerá sobre seu modo de vida, suas
representações e relações com os “marcadores territoriais”, com o
enfoque no ritual Mapimaí (criação do mundo), o qual é concebido pelos
Paiter Suruí de forma simbólica e empiricamente no espaço onde vive, e
realiza a apreensão e representação do mundo com suas vivências e
experiências imprescindíveis ao pertencimento identitário e ao
constructo da territorialidade.
Esses aspectos aparecem no ritual Mapimaí cuja relevância é a
apreensão do mundo Paiter Suruí, em que a construção é plena de
valores espirituais e ancestrais e dá a afeição e particularidade da
dimensão de representação e presentificação cosmogônica, de modo que
é uma das explicações para a sua existência material, espiritual e
fenômenos de seu mundo.
Os “marcadores territoriais”, conforme Almeida Silva (2010)
compõem-se de elementos materiais e imateriais que ocorrem no
território, carregam qualidades que definem a espacialidade e
territorialidade. A definição dessas categorias está vinculada às
vivências, experiências, valores e cosmogonia que os coletivos indígenas
trazem em seu espaço de ação, que constituem identidades culturais e
pertencimento identitário.

314
ALMEIDA SILVA (ORG.)

CONSIDERAÇÕES DE CASSIRER SOBRE REPRESENTAÇÃO

Os Paiter Suruí concebem e produzem o espaço onde vive de


modo específico, ou seja, por meio de apreensão e representação do
mundo, cujo sentido está vinculado às formas simbólicas e cosmogônicas
que detém em seu território, e que por seu turno é distinto – devido essas
representações – em relação aos outros coletivos humanos. Essa ação
dos Paiter Suruí no espaço é considerada estruturante, em virtude das
representações simbólicas que constituem a vivência e a visão do
coletivo.
A apreensão do mundo se realiza nessa construção de valores
ancestrais e cosmogônicos, em que o Mapimaí se caracteriza como um
processo de (re)constructo de valores intrínsecos os quais implicam em
uma série de atributos como a defesa territorial, a territorialidade, a
cultura e a espiritualidade e assim contribui categoricamente na
organização de seu espaço de ação.
Neste contexto, o aporte teórico do artigo tem como fundamento
as formas simbólicas e o espaço de ação (CASSIRER, 1992 [1925]; 1998a
[1964]; 1998b [1929]; 1975 [1956]). O estudo das formas simbólicas
possibilita uma inserção metodológica na Nova Geografia Cultural e está
ancorada na Fenomenologia – como um modo de pensar e compreender
a ação humana no espaço, onde as vivências sensíveis do ser humano
serão de primordial valor.
A fenomenologia desenvolvida em Cassirer trabalha o espaço-
ação é a principal abordagem, com suas representações e formas
simbólicas. O conhecimento em Cassirer incorpora vivências imediatas
com experiências antecedentes, ou seja, não é um mero processo de
imitação mental da realidade, mas um processo de aprendizagem que o
ser humano passa ao longo da vida (CARVALHO MELO, 2013).
Dessa maneira a compreensão decorrente do conhecimento
humano se dá a partir de três modos que evoluem gradualmente: o

315
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

concreto (ideal), o perceptual (sensorial) e o simbólico. O simbólico atua


como o intercessor entre o espírito e a matéria e une o concreto e o
perceptual (ALMEIDA SILVA, 2010).
No desenvolvimento do pensamento cassireriano constata-se
que no modo concreto não existe desagregação entre o que pode ser visto
e atingido, isso porque nele as emoções se apresentam e valorizam a
aparência das coisas, e estabelece relações no espaço-tempo. O
perceptual é onde as coisas se estabelecem e permitem coordenar esse
espaço-tempo, é nele que se realiza a distinção do significado, e o
entendimento da realidade. Já o modo simbólico é aquele lugar
conhecido subjetivamente que se familiariza com o conhecimento
meditativo. Ele é o modo que permite o despertar das experiências por
meio das representações.
Este autor defende que o todo conhecimento até mesmo o
científico é simbólico em sua essência, logo toda relação efetuada pelo ser
humano com o mundo ocorre na esfera das “formas simbólicas”, visto que:

por "forma simbólica" há de entender-se aqui toda a energia


do espírito em cuja virtude um conteúdo espiritual de
significado é vinculado a um signo sensível concreto e lhe é
atribuído interiormente. Neste sentido, a linguagem, o
mundo mítico-religioso e a arte se nos apresentam como
outras tantas formas simbólicas particulares. (CASSIRER,
1975 [1956], p. 163).

Compreende-se a partir desse enunciado que a percepção do


mundo se baseia essencialmente da capacidade criadora humana em
apreender o mundo por meio de “formas simbólicas”, as quais reúnem
um conteúdo significativo com um signo concreto sensorial. As formas
simbólicas são energias espirituais que se regulam por meio dos signos,
o mundo exterior das coisas e o mundo interior dos homens.
Toda relação do homem com a realidade não é imediata, mas sim
mediada por meio das diversas construções simbólicas, uma vez que
essas construções são realizadas por meio da energia do espírito, sendo

316
ALMEIDA SILVA (ORG.)

o que o sujeito efetua espontaneamente, e as captura com signos


sensíveis significativos (CASSIRER, 1975 [1956], p. 164). Logo, se tem
que os signos e símbolos são produtos das atividades humanas e devem
ser vistos como a condição que possibilita sua relação com o mundo
espiritual e ao mundo sensível.
Os símbolos permitem a realização da inter-relação social e que
possibilita a harmonia do sentido do mundo, isso porque são
instrumentos de conhecimento e comunicação que contribuem para a
(re)construção e organização dos coletivos humanos. Ao mesmo tempo
podem ser entendidos como integrantes de fenômenos que
operacionalizam esse ordenamento material e espiritual.
Assim a compreensão do mundo pelos coletivos indígenas é
construída pelos valores cosmogônicos e de ancestralidades e suas
formas de representação ocorre de diversas maneiras, como pode ser
sentidos, percebidos e representados por meio de danças, cantos,
pinturas corporais, ritos, mitos, narrativas, entre outras manifestações
culturais e espirituais.
As formas simbólicas se apresentam intermediadas pela
linguagem, pela espiritualidade, pela religião, pela arte e pelo mito que
integram o universo simbólico, de modo que se interliga e constitui a teia
simbólica e consequentemente a experiência humana. O progresso do
ser humano enquanto ser social é reafirmado por essa teia.
Nas sociedades em geral e não somente nas etnias indígenas, essa
experiência é modificada com o transcorrer do tempo, ela e seu conjunto
apresentam dinamicidade própria. A essência original – núcleo central,
enquanto ideia e concepção – da criação do mundo continua a mesma,
embora vários de seus aspectos tenham adquirido novos sentidos,
significados e representações.
Essas constatações são caracterizadas como um dos pilares do
constructo da territorialidade, em decorrência dos fenômenos estarem
imbricados nos valores morais e éticos do coletivo e tem como
desdobramento a defesa do território, da territorialidade e da cultura

317
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

(CARVALHO MELO, 2013), as quais integram a teia cosmogônica dos


Paiter Suruí.
Destarte, o mundo se (re)presenta para nós através de
fenômenos, visto que não somos capazes de conhecer a coisa por si só
em sua essência, logo a realidade é uma construção simbólica com várias
formas de construir simbolicamente a objetivação da realidade
(CASSIRER, 1998a [1964]).
Os seres humanos vivem em um universo simbólico, e não
apenas de um universo meramente físico onde a religião, a arte, a
linguagem e o mito são partes integrantes desse universo simbólico que
formam os fios da rede ou teia simbólica, cujo entrelaçado é a
experiência do homem (CASSIRER, 1998a [1964]) e nela se encontra
todo o seu conhecimento e relação com o mundo. Esse conjunto é
entendido como o sistema de símbolos, o qual atua como mediação entre
os seres humanos e suscita seu próprio mundo de representação, em que
a essa mediação é engendrado como

[...] o mito, a arte, a linguagem e a ciência aparecem como


símbolos: não no sentido de que designam na forma de
imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um real
existente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e
parteja seu próprio mundo significativo. Neste domínio,
apresenta-se este auto desdobramento do espírito, em
virtude do qual só existe uma “realidade”, um ser organizado
e definido. Consequentemente, as formas simbólicas
especiais não são imitações, e sim, órgãos dessa realidade,
posto que, só por meio delas, o real pode converte-se visível
para nós. (CASSIRER, 1992 [1925], p. 22).

Essas teias são utilizadas pelo homem em sua forma material, de


tal modo o pensamento simbólico se apresenta também como uma
construção, cujo material sensível é o ponto de partida comum das
distintas formas simbólicas. O material simbólico se transforma num
conteúdo significativo dotado de sentido, em que o símbolo e a forma
definem a vida em suas múltiplas relações com o espaço.

318
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Essas relações estão interligadas a uma organização espacial e se


caracterizam como um lugar carregado de emoções, de afeto, sentido e
lembrança do indivíduo, de conhecimentos ligados à vivência, da
observação e do acúmulo da ancestralidade e cosmogonialidade,
portanto, trata-se de uma simbologia da experiência e vivência.
Esse contexto é o que compreendemos como a construção
interpretativa do mundo, sendo as marcas dos modos de vida dos
coletivos que são incorporadas e percebidas no espaço (CARVALHO
MELO, 2013). O arranjo e a reinterpretação espacial para os coletivos
indígenas incidem essencialmente na função que atribuem ao espaço,
por meio do espaço de ação, oqual a territorialidade e as representações
são inerentes para a apreensão de mundo.

O ENTENDIMENTO DOS “MARCADORES TERRITORIAIS” NO ESPAÇO DE


AÇÃO

Os primeiros estudos sobre a temática de “marcadores


territoriais” foi realizado por Isabel Castro Henriques sobre a Angola
colonial, no entanto a autora admite “a não existência de “uma teoria dos
‘marcadores’ ou dos ‘sinais’ que definem e caracterizam a originalidade
dos territórios” (HENRIQUES, 2004, p. 22). Esse reconhecimento como
uma lacuna conceitual, entretanto, ganha uma importante dimensão no
momento em que a autora se propõe ainda que em caráter transitório
uma organização de categorias (ALMEIDA SILVA, 2010, p. 113).
O trabalho desenvolvido por Henriques visava analisar e
compreender os diferentes modos que influenciam os seres humanos na
escolha e construção de seu espaço de ação, e com isso ela descreve cinco
“marcadores territoriais” (vivos, simbólicos, fabricados, históricos,
funcionais e musicais), os quais são de natureza diversa, evidenciam
múltiplos sentidos e representações, e podem apresentar funções
sobrepostas, que marcam e determinam os territórios, de modo que
definem a “originalidade dos territórios, impondo a sua própria estrutura

319
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

e a afirmação da autonomia de cada um dos participantes”


(HENRIQUES, 2004, p. 9-12).
Ao propor uma conceituação sobre “marcadores territoriais”,
Almeida Silva (2010, p. 106) afirma que sua concepção “pode ser
compreendida a partir dos símbolos que ocorrem enquanto espaço de
ação, definem territorialidades vinculadas à cosmogonia e experiências
socioespaciais e possibilitam a constituição das identidades culturais e
do pertencimento identitário”.
Deste enunciado concordamos com o autor, em razão de nos
conduzir para a análise sobre a cultura dos coletivos indígenas, o que nos
permite compreender que os “marcadores territoriais” viabilizam a
defesa dos territórios ancestrais indígenas, ao tempo que delimitam suas
fronteiras pelos sistemas de representações e símbolos (CARVALHO
MELO, 2013).
No caso específico dos Paiter Suruí um desses “marcadores” é o
ritual do Mapimaí com uma contribuição decisiva da construção
identitária, inclusive desempenha o papel de registro cultural, e permite
a firmação de marcas em sua territorialidade. O Mapimaí incorpora não
somente os aspectos materiais, mas, sobretudo, aqueles relacionados à
espiritualidade. É nele que o coletivo se realiza e encontra o equilíbrio
cosmogônico e as forças necessárias para desenvolver seu espaço de
ação.
O ritual Mapimaí, como metáfora de criação de mundo, está
diretamente ligado às experiências de ancestralidade, cosmogonialidade
e identidade. A identidade cultural e territorialidade Paiter Suruí se
fortalecem em cada ato de representação ritualística, pois são plenas de
sentidos, valores e sentimentos que possibilitam o construir e se inserem
nos “marcadores territoriais” – os quais são lócus relevantes para a
constituição da territorialidade e do espaço de ação.
O Mapimaí engloba outros “marcadores”, como: a pintura
corporal do ritual, a dança, o encontro entre os clãs, a troca simbólica que

320
ALMEIDA SILVA (ORG.)

se configuram na junção entre o mundo imaterial e o material, a chicha 3


como elemento purificador, entre outros que conformam as identidades
pessoais, coletivas e territorialidades, de modo que constituem-se em
autêntico código de registro cultural.
A cosmogonia é produzida pelas representações e
presentificações e concomitante define o modo de vida – ou seja,
qualifica a espacialidade e territorialidade indígena. É nela que
encontramos a possibilidade de leitura geográfica dos “marcadores
territoriais” e do “mundo”, em virtude de sua representação como
construção do universo e assegura a continuidade e sobrevivência dos
Paiter Suruí com o exercício e vivência nos rituais.
Neste sentido a cosmogonia não está dissociada do rito e esse
tem um caráter de imposição - uma vez que se destina a determinado fim
e se dá no social, e é definido por sua eficácia, acontece dentro de um
espaço determinado, no tempo e na história. E esta imposição e eficácia
acabam por organizar o espaço por ser um fato social e cultural inserido
de história (MAUSS; HUBERT, 2003 [1902-3]).
Para Almeida Silva (2010) é, a partir dos fenômenos materiais e
imateriais que ocorre a construção cosmogônica dos “marcadores
territoriais”, os quais possibilitam a compreensão das formas e
representações simbólicas e presentificações como mediadoras do modo
de vida dos coletivos indígenas.

3 É uma bebida fermentada feita de cará Dioscorea alata L., mandioca Manihot
esculenta e Manihot utilissima, milho Zea mays ou qualquer outro farináceo, e
utilizada nos rituais dos Paiter Suruí. A bebida no interior da cosmogonia Paiter
Suruí atua como purificação espiritual. A bebida é chamada por eles como
makaloba ou iatir, conforme Medeiros et al. (2018, p. 33) “A bebida possui nomes
como chicha, caiçuma, cauim, dentre outros nomes dados por outros povos
indígenas, é feita com milho, mandioca ou macaxeira, cará ou outro tubérculo
fermentado com leve teor alcoólico e para ser servida em rituais ou
compartilhadas em rodas de conversas. A makaloba é mais fraca do que iatir,
visto que não é fermentada”.

321
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

A espacialidade e territorialidade indígenas como produtos da


ação humana ocorrem no espaço e por meio das representações e modos
de vida dos coletivos, e são compreendidos principalmente pelo caráter
cosmogônico com seus sentidos, sentimentos, valores, símbolos, signos
e significados que se inserem nos rituais, no caso específico o Mapimaí.
A partir daí, nota-se que, o Mapimaí é importante para a
qualificação e definição da territorialidade Paiter Suruí, pois, é do ritual
que o coletivo expressa a produção do imaginário, da construção do
cosmo, da construção territorial e do processo social que possibilita a
intersecção e a interpretação de mundo original em consonância com a
contemporaneidade.
Ainda que a espacialidade e territorialidade tenham distintas
interpretações, ambas são dotadas de identidade, porque estão
relacionadas ao processo de produção espacial e carregam
representações de diferentes formas, tanto no que concerne a concreção
cultural, política, social e religiosa (CARVALHO MELO, 2013).
Neste sentido, Almeida Silva (2010) enfatiza que o “marcador”
territorial pode ser entendido por relações que estruturam a vida e se
apoiam nas representações e formas simbólicas, ou seja, nas vivências,
experiência, percepções, sentimentos, valores, costumes que irão
qualificar e classificar o espaço de um grupo social como espaço de ação.
O autor considera que os “marcadores territoriais” não estão
ligados apenas aos aspectos físicos ou naturais que compõem o universo,
mas a um conjunto de relações simbólicas ligadas aos seres e não seres4.
E são essas características que produzem a noção de territorialidade e
espacialidade, mediada pela simbologia e suas manifestações que se são
presentificadas nos coletivos humanos.

4 Referem-se a fenômenos, os quais não são materiais, mas que podem ser
sentidos, percebidos e ter significados como os espíritos, os encantados, por
exemplo.

322
ALMEIDA SILVA (ORG.)

A territorialidade se configura na ideia de pertencimento


cultural, isso porque é um elemento no espaço de ação e que carrega a
compreensão de relação espacial. Esse vínculo de pertencimento com o
espaço é realizado no ritual do Mapimaí e que é manifestado pelos
sentimentos e a valoração que se opera sobre esse território.
Os “marcadores territoriais” legitimam múltiplos sentidos dos
indivíduos arquivados no inconsciente, que entraram para a
normalidade, eles não deixam de ser a forma material desses sentidos
(símbolos). Os “marcadores territoriais” em sua essência seriam a busca
pela manipulação do dado sensível para torna visível e palpável os signos
e símbolos (CARVALHO MELO, 2013). Essa manipulação finaliza-se
com as representações, as quais definem o território e interpretam o
cosmo.

MAPIMAÍ – CRIAÇÃO DO MUNDO DOS PAITER SURUÍ

A visão que os coletivos indígenas possuem a respeito de


território é que esse constitui seu microcosmo, enquanto o outro
“mundo” se caracteriza como o “desconhecido” e pertence à sociedade
envolvente – não é amistoso, em razão dos traumas ocorridos com o
processo de colonização, mas que de fato não está apartado de suas
realidades, visto que esse outro propicia novas apreensões de sentidos,
significados, representações e valores sociais, políticos, econômicos,
entre outros.
A distinção existente é que na territorialidade indígena, os Paiter
Suruí exercem ações específicas de sua cultura e que constituem o
microcosmo, o qual é organizado em conformidade com a vontade de
heróis míticos criadores, em que Palob 5 é a grande referência
cosmogônica. Essa configuração encontra respaldo na constatação de
Eliade (1992b, p. 26): “para viver num mundo, é preciso fundá-lo – e
nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e relatividade

5 Palob é o significado da palavra Deus para os Paiter Suruí.

323
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

do espaço profano [...]”. Logo, compreendemos que a territorialidade não


está apartada da cosmogonia.
Em direção semelhante ao proposto por Eliade, Almeida Silva
(2010) corrobora que os coletivos indígenas compreende o mundo a
partir da construção de valores que são herdados ancestralmente, na
representação e presentificação cosmogônica. Essa visão cosmogônica é
um processo sociocultural dos coletivos, o qual é realizado por meio das
representações simbólicas e possibilita entre outros desdobramentos a
defesa física, cultural e territorial.
Os Paiter Suruí representam o mundo de diversos modos, mas
nos parece mais nítido que o ritual de criação de mundo seja um dos mais
significativos, pois transporta consigo fenômenos que são apreendidos
por formas e representações simbólicas que operacionalizam e
organizam seu microcosmo. Essa característica é encontrada em Lévi-
Strauss (2007 [1978]) ao realizar pesquisas com outras etnias, visto que
essas são motivadas por uma necessidade ou anseio de conhecer o
mundo ao seu redor, e tudo quanto os envolvem. Compreendemos que o
desejo indígena de conhecer a origem de tudo que o rodeia implica no
(re)conhecimento de cada “coisa” e à ela atribuído, inclusive, uma aura
espiritualizada, seja um dos fenômenos que dá sentido a sua
territorialidade.
O exercício memorial de referência à criação do mundo pelos
Paiter Suruí no Mapimaí implica diretamente na afirmação de que é a sua
consciência com base numa verdade que é inerente à etnia e que
oportuniza e resulta no sentido de sua existência, de sua presentificação
no mundo, num domínio mágico sobre a origem das coisas. É dessa
configuração que os mitos, ritos são tão importantes dentro da sua
cultura.
Consoante com Eliade (1992, p. 86), “cada mito mostra como
uma realidade veio à existência, seja ela a realidade total, o Cosmos, ou
apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição

324
ALMEIDA SILVA (ORG.)

humana”. Para os Paiter Suruí a existência pessoal e coletiva só pode ser


explicada e compreendida por meio dos rituais e narrativas míticas, em
que esta última se refere a acontecimentos primordiais que podem
adquirir novas representações, pois a própria vida e a cultura são
dinâmicas. Deste modo, não se trata de uma fábula ou um sofisma, mas
sim, de algo com sacralidade e está impregnada de sentidos de origem, de
produção, de valores e de devires.
Ainda sobre o mito esse pode ser entendido como elemento que
participa da construção do espaço, é ainda organizador das
representações imaginarias e míticas dos seres humanos, que por meio
de sua percepção grupal e ou individual, da explicação do seu mundo, de
seus valores e sua organização (SILVA, 2007).
O ser humano é dotado de uma significativa faculdade
simbolizadora em sua vida sociocultural, consequentemente, cria
símbolos e imagens que permanecem no inconsciente do grupo, e esse
regime de imagens se apresenta como mediadoras na percepção das
ideias racionais (DURAND, 1997). Como parte integrante do mundo, e
para a construção desse mundo, o ser humano produz significante e
significados que se expressam nos mitos e símbolos.
O Mapimaí é referencial desses aspectos, uma vez é pleno de
memória e ancestralidade e é considerado como “regeneração periódica
do tempo [...] uma nova criação, ou seja, uma repetição do ato
cosmogônico”, como um eterno retorno que ajuda a resgatar valores que
foram “esquecidos” ao longo dos anos (ELIADE, 1992).
Em tal sentido, o ritual tem origem e é representado por três
elementos da natureza: a floresta, o rio que faz referência à chicha, e o
gavião real Harpia harpya, que se configuram como espíritos protetores,
sendo também parte do fenômeno que explica a cosmogonia e a
territorialidade Paiter Suruí. A presença deles é necessária ao coletivo,
pois mantém o equilíbrio da vida e da natureza. Na conexão entre esses
elementos, evidencia-se uma manifestação de sacralidade, pois ela é

325
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

sentida, presenciada e vivenciada pelo coletivo (CARVALHO MELO,


2013).
Esses três elementos fenomenológicos são referenciados pelos
Paiter Suruí, pois é uma manifestação da floresta, que Palob presenteou-
os. A própria floresta é origem e ao mesmo tempo manifestação, e assim
encontra-se a maneira de ser e do ser no microcosmo, o que situa o
coletivo diante de sua própria existência, uma existência sagrada.
A floresta oferece todos os elementos para o ritual de criação,
sendo o símbolo regulador do ritual. Para retirar e usufruir dos elementos
os Paiter Suruí pedem um tipo de permissão espiritual para a floresta,
não possuem nenhum de ritual sacralizado para esta atividade apenas
um respeito, como Bastos et al. (2009, p. 7) reiteram que o vínculo que
os indígenas possuem com a floresta “[...] supera a objetividade material,
em que essa faz parte da sua cosmologia, da sua simbologia e de todos os
reflexos que as interações e percepções produzem em sua cultura,
sociedade e espaço”.
Cada elemento possui sua função no cosmo, a floresta é a
responsável pela existência dos outros dois elementos, o rio e o gavião
real, pois se apresenta como a fonte de energia e estabilidade na vida dos
Paiter Suruí. O gavião real simboliza o poder de demarcar território e
impor sua força e o rio alude à chicha – o transcorrer da vida com as
experiências e vivências, ou seja, o próprio modo de vida.
O papel da chicha está relacionado ainda à medição da força e
expulsão dos espíritos ruins, a renovação do corpo para um novo ciclo.
São os emanados da natureza, os reguladores da vida e é o alimento para
o corpo e o espírito, o equilíbrio entre a cultura e o ser humano.
A chicha é a bebida principal do Mapimaí, em que o clã anfitrião
do ritual a oferece aos seus convidados, os demais clãs. Ela deve ser
ingerida em grandes dosagens, com isso ocasionará a regurgitação, ou
melhor, a expulsão dos espíritos ruins. Ela também é um elemento que
testa a força dos clãs convidados, o que implica dizer que se não for

326
ALMEIDA SILVA (ORG.)

ingerida em sua totalidade significa demonstração de fraqueza. Esse


procedimento exerce intervenção sobre os canais de contato entre o
corpo, o mundo espiritual e o mundo material, de maneira que estabelece
a “fabricação de corpos” (VIVEIROS DE CASTRO, 1987).
Durante o Mapimaí os clãs são divididos entre o clã anfitrião do
ritual e os clãs convidados, essa divisão representa dois cosmos, um
material (dos Paiter Suruí) e espiritual (o de Palob). O ápice do ritual é
quando ocorre o encontro dos mundos. Essa é mais uma referência que as
representações contidas no ritual que é a manifestação de sua visão de
mundo, onde a linguagem se apresenta como preponderante às
representações.
A linguagem surge como algo que manifesta a visão de mundo de
cada cultura, e possibilita a existência do sentido e do significado, os
quais os Paiter Suruí atribuem aos signos, floresta, gavião real e rio, e
ainda o encontro do cosmos possuem um significado complexo e
abstrato, o que denota um sentimento de profunda intimidade
(CARVALHO MELO, 2013). A linguagem desempenha a função de
conectar o mundo dos fatos ao mundo dos símbolos.
Essa intimidade que os indígenas possuem em relação aos
elementos da floresta está diretamente ligada ao modo de como se veem
diante da dela, se consideram parte intrínseca, o que para Viveiros de
Castro (2004) trata-se de perspectivismo, em virtude dos povos
originários constatarem que sua espécie a partir de como se trata em sua
própria cultura está interligada às demais materialidades e
imaterialidades, ou seja, como ele próprio interpreta sua existência física
e espiritual.
Essa manifestação e representação é um modo de valorização da
cultura Paiter Suruí. O ritual Mapimaí é um meio de reconciliação e
busca de equilíbrio para a tríade ser humano, cultura e natureza que
corrobora para a espiritualidade, cosmogonialidade e territorialidade
(CARVALHO MELO, 2013).

327
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

O Mapimaí se configura em três dias 6, o primeiro é quando os


clãs se separam, os anfitriões do ritual ficam na aldeia, os convidados se
retiram para a metareilá 7 ou metare. Os convidados preparam a tinta do
ritual (Figura 2) que é feita do fruto do jenipapo 8 e posteriormente
pintam os corpos dos participantes (indígenas e não indígenas). Nesse
dia ao entardecer acontece o primeiro encontro entre os clãs, em que o
anfitrião avalia as pinturas corporais e oferece a primeira degustação da
chicha – como amostra do que os espera nos próximos dias da ritualística
e do encontrar-se com o microcosmo.
No dia seguinte os convidados ainda permanecem na metareilá,
onde passam o dia na ornamentação e preparam indumentárias com
palha de coqueiro (Figura 3), cocares, flechas e arcos e caracterizam-se
como guerreiros. Nesse dia acontece o que eles chamam de desafio da
chicha, um clã convidado é desafiado a bebê-la até que ocorra a expulsão
dos espíritos, por meio da regurgitação.

Figuras 2 e 3: Extração do jenipapo, preparação da tinta e do ritual

Fonte: Claudia Nascimento Oliveira (2011). Aldeia Apoena Meireles (TIPK)

6
Antes do contato, conforme relatam, o ritual se estendia por semanas e meses;
na atualidade não é mais possível devido à uma série de compromissos que
impedem-os de realizar totalmente.
7
Metareilá é o nome que os Paiter Suruí designam a floresta ou mata, na língua
Tupi-Mondé.
8
Jenipapo Genipa americana é um fruto de uma árvore nativa da América do
Sul e Central, quando não maduro fornece um suco de cor azulada e é muito
utilizado como corante para as pinturas indígenas.

328
ALMEIDA SILVA (ORG.)

No ritual do Mapimaí as músicas são cantadas e não podem ser


repetidas e cada uma delas deve formular algo novo que o microcosmo os
proporciona, como: a) uma caçada; b) uma guerra; c) algo relevante que
aconteceu em suas vidas; d) sobre a natureza, animais, frutas, dentre
outros. O que valoriza sua história e a riqueza de fato é que sutilmente
destacam a passagem de cada um no universo coletivo.
Esse dia é tido como o ápice do ritual, pois, é nele que ocorre o
encontro do microcosmo espiritual e material (Palob com os Paiter
Suruí). Em cada Mapimaí são escolhidos do clã convidado, um casal que
terá a missão de realizar esse encontro desses mundos. Eles são
chamados de chefes cerimoniais, seus ofícios são de grande importância,
e o casal escolhido é aquele que possui o conhecimento dos valores
cosmogônicos. Sua esposa deverá conduzir uma tocha acesa por todo o
trajeto do ritual e é denominada “a chama da vida” (Figura 4) e
simbolicamente trata-se de um presente de Palob para iluminar os
caminhos da etnia.
Durante todo o trajeto a chama não pode se apagar, pois isso
pode trazer presságios inevitáveis como doenças e mortes e que Palob não
fará visitação à etnia até o próximo Mapimaí ou seja, que os Paiter Suruí
não terão a proteção espiritual durante o período. Quando finalmente
ocorre o encontro, o casal e as lideranças clânicas sentam-se num local
especial e pleno de espiritualidade e de sentido representativo, um
tronco chamado de yama ou trono da recepção (Figura 5).
Figuras 4 e 5: Tocha da vida. Rei e rainha do ritual, sentados no yama

Fonte: Sérgio Pereira Cruz e Kanindé (2012). Aldeia Joaquim (TIPK)

329
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Ainda nesse dia, acontece uma rememorização de ataques que


sofreram tanto dos colonos, quanto de outros coletivos indígenas. Nessa
parte do ritual são utilizadas flechas e arcos, as quais buscam com essa
representação demostrar sua origem guerreira, sua força e que não
temem quaisquer tipos de inimigos.
Após essa etapa ritualística ocorrem trocas simbólicas, isto é, o
casal anfitrião que conduziu o cerimonial recebeu presentes dos demais
clãs e convidados como se fosse uma espécie de “pagamento pela festa e
bebida oferecida” (CARVALHO MELO, 2013). Essas trocas adquirem
proeminência para o coletivo na medida em que possibilitam o
fortalecimento dos laços afetivos e de parentescos, renovam as alianças
entre a etnia Paiter Suruí e reafirmam o fortalecimento para a defesa
cultural, física e territorial da Terra Indígena Paiterey Karah.
Mas o término desse dia de ritual somente ocorre quando os
anfitriões, assim como os convidados indígenas e não indígenas realizam
a passagem sobre o yama e possui o sentido representativo do equilíbrio
da vida. Na passagem aqueles que não se mantem firmes e caem,
simbolicamente, pode se dizer que seus espíritos estão desarmonizados
com a natureza e com sua própria existência, em razão de considerarem
que todos os seres integram o mesmo conjunto cosmogônico.
O terceiro e último dia é dedicado à caçada e captura de animais
da floresta e é realizado pelos clãs convidados. Essa manifestação é uma
prova que os convidados estão agradecidos pelo ritual, pela bebida e de
acordo com o que o cosmo lhes proporciona. O sucesso do
empreendimento resulta na celebração de um banquete em que todos
participam e saciam a fome.
Ainda nesse último dia os convidados em sistema análogo a um
mutirão realiza a limpeza de novas áreas, onde posteriormente, o
anfitrião efetuará o plantio de lavouras para sustentar sua família. Deste
modo, verifica-se que o ritual além de apresentar como espiritual e
festivo tem o sentido de solidariedade e reciprocidade no contexto da
etnia.

330
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Tal condição aponta Carvalho Melo (2013) que o Mapimaí se


configura como um dos constructos da territorialidade, o próprio espaço
de ação da qual menciona Cassirer, em que cada ato do ritual reporta a
visão e a interpretação do mundo, oferece e fortalece o pertencimento
étnico-cultural – marcado pelo sentimento, percepção, valoração,
vivências, experiências ancestralmente construídas – e possibilita, dessa
maneira, compreender as espacialidades/territorialidades, como
conjunto indissociável dos “marcadores territoriais”.

[...] Pelo vínculo de pertencimento, essa conexão com o


espaço é traduzida pelos sentimentos e a valoração que se
opera sobre esse, de modo que é possível pensar o espaço de
ação como um dos elementos que contribuem diretamente
na construção cultural, identidade, pertencimento e
enraizamento de um determinado coletivo. [...] A
cotidianidade indígena permite que se processe entre os
divíduos e a coletividade o sentimento de pertencimento que
está ligado ao sistema de formas, às representações
simbólicas, às presentificações e às práticas socioespaciais.
(ALMEIDA SILVA, 2010, p. 83, 118).

O ritual está intrínseco de formas e representações simbólicas


que definem a espacialidade e territorialidade do coletivo, e interpretam
as suas relações afetivas. Essa representação da criação do mundo com
seu intricado de simbolizações consubstanciam como uma estratégia de
classificar o que está a sua volta, o conhecido e o desconhecido, o visível
e o inacessível que compõem o microcosmo Paiter Suruí.

BREVES CONSIDERAÇÕES NÃO CONCLUSIVAS

O Mapimaí está diretamente interligado às experiências de


ancestralidade, de cosmogonialidade e de territorialidade, logo
caracteriza como identidade cultural própria dos Paiter Suruí. Sua
realização, em cada ato ritualístico, permite o fortalecimento étnico-
cultural pleno de valores e sentimentos de construção material e
imaterial, portanto, configuram como “marcadores territoriais” que são

331
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

vividos, compreendidos e exercitados como experiências pela etnia por


meio de seus sentidos, símbolos e representações.
A cosmogonia dada pelas representações e presentificações se
operacionaliza no Mapimaí como indispensável elemento
fenomenológico de qualificação e definição da sua territorialidade, as
quais são possibilitadas pela leitura geográfica dos “marcadores
territoriais”, visto que contêm a produção do imaginário e da
materialidade que edificam a explicação possível do microcosmo Paiter
Suruí.
O estudo se torna imprescindível uma vez que esses coletivos
têm experimento um processo de aquisição de novas representações e
novos valores culturais devido ao contato com a sociedade não indígena,
sendo que as permanências e as mudanças no Mapimaí – o reinventar-se
intermitentemente propicia assegurar a continuidade e sobrevivência
dos Paiter Suruí, visto que o processo cultural não é inerte.
As permanências no ritual Mapimaí implicam em afirmar que a
concepção do que realizam como apreensão simbólica é mantida como
forma estruturante em seu núcleo de origem, enquanto as mudanças se
referem às novas adaptações, representações, sentidos e significados que
são adicionados devido ao estabelecimento de relações com as demais
etnias e com a sociedade não indígena. Para elucidar essa questão é
preciso situar as passagens temporais em três passagens específicas:
a) Antes do contato, os Paiter Suruí desenvolviam o Mapimaí
por várias semanas, prioritariamente no período das
colheitas de lavoura com práticas coletivas de
solidariedade e reciprocidade;
b) Com o contato vieram doenças que não conheciam e
acirradas pelos conflitos interétnicos (governo com as
obras de infraestruturas e com a colonização e chegada de
migrantes, de modo que perderam porções consideráveis
do território ancestral). Essas questões de impacto com o
novo produziram efeitos psicológicos profundos nos Paiter

332
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Suruí e assim o ritual foi “esquecido”, portanto, não foram


realizados por mais de uma década;
c) O retorno ao Mapimaí com a reafirmação e fortalecimento
da identidade étnica, todavia, os novos sentidos e desafios
mediante a realidade atual de compreensão dos valores de
outras culturas não indígenas, como: formação de
parcerias em projetos; protagonismo em ações de políticas
públicas, educação, saúde; proteção do território contra
invasores, madeireiros, pescadores, palmiteiros; entre
outros fatores que propiciaram um reordenamento na
realização do ritual, o que diminui o quantitativo de dias
para a celebração em somente três. Há de considerar ainda
que na atualidade as aldeias encontram-se dispersas pelo
território, enquanto no passado ficavam mais próximas
entre si.
Destarte, o ritual é um dos mais valiosos “marcadores
territoriais”, uma vez que incorpora os elementos fenomenológicos
materiais e imateriais. É nele que os Paiter Suruí encontram as forças
necessárias para desenvolver o espaço de ação através das experiências
e vivências que oferecem sentido e sustentação a sua territorialidade e
reafirmam sua identidade étnica.

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336
A CULTURA DOS PAITEREY E A APREENSÃO TECNOLÓGICA:
ANTROPOFAGIA PÓS-MODERNA 1

Kelli Carvalho Melo


Adnilson de Almeida Silva

Na atualidade os Paiter Suruí se tornaram referência na luta


incessante de reconhecimento por meio de projetos grandiosos e
planejados para longo prazo como o REDD (Redução de Emissões
Provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal), Ecoturismo
Paiter Suruí, parceria com a Google Earth no desenvolvimento de seu
mapa cultural, inclusive disponível na internet.
O uso de objetos tecnológicos para o desenvolvimento desses
projetos se tornou regular na Terra Indígena, o que faz como que os
Paiter Suruí assumam um protagonismo sem abdicar de seus valores
culturais e identitários e o resguardo territorial.

INTRODUÇÃO

A situação dos coletivos indígenas de Rondônia não se diferencia


em muito das demais etnias encontradas no território brasileiro, o que se
constitui um grande desafio na luta pela sobrevivência. Assim, podem ser
enumeradas entre os múltiplos desafios: a luta pela demarcação e a
garantia de um território, onde possam assegurar a permanência física,
social, cultural e espiritual; a superação dos impactos do colonizador na
cultura, marcada em muitos casos pela discriminação étnica-racial; a
necessidade de obter os conhecimentos da sociedade abrangente, dentre
outros.
Entretanto, é preciso destacar que mesmo com toda a influência
externa, há um sentimento forte de pertencimento, o qual está vinculado

1 Publicado com o título "Os Paiterey e a tecnologia: antropofagia pós-


moderna", na Revista Percurso (Núcleo de Estudos de Mobilidade e Mobilização
– NEMO), em 2016.

337
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

à estreita relação com a natureza e os valores cosmogônicos e espirituais


que marcam algumas das características que unem os coletivos entre si
em sua maneira de apreensão e compreensão de mundo e configuram
modos de vida e culturas distintas.
O trabalho aqui apresentado procura analisar o uso das
tecnologias utilizadas pelos Paiter Suruí, como tentativa de estratégia
transcultural-territorial para o fortalecimento cultural- identitário e
enfrentamento dos discursos pós-colonial. Para tanto, os Paiter Suruí ou
Paiterey que se autodenominam de “Gente de Verdade” ou “Povo
Verdadeiro”, que vivenciam um cenário de constante processo de
apreensões e novas representações e apropriações culturais, em virtude
do avanço econômico, notadamente em Rondônia e Mato Grosso, a
partir do final da década de 1960, o qual tem provocado mudanças
profundas não apenas na paisagem geográfica, mas, sobretudo, em
relação às coletividades e às culturas.
Os Paiterey por sua vez têm apresentado iniciativas inovadoras
que contribuem não somente na gestão de terras indígenas, mas lançam
perspectivas promissoras que é possível a realização do
desenvolvimento econômico com geração de renda e de melhoria social
(qualidade de vida) e a manutenção da natureza e seus ecossistemas,
inclusive como modelo para a sociedade envolvente.

ANTROPOFAGIA PÓS-MODERNA

As relações que se apresentam na atualidade nas mais diferentes


dimensões política, econômica, cultural, social e ambiental, estão
conectadas aos discursos culturalistas de dimensão identitária, os quais
se consubstanciam como relevantes para a conquista de direitos, ou seja,
como cidadãos protagonistas de sua história perante à sociedade
abrangente. A questão da identidade, é desse modo, um fator
preponderante nas discussões de políticas públicas, sobretudo, em razão
de se configurar como elemento de visibilidade das minorias étnicas, que
bradam pelo reconhecimento como cidadão na sociedade brasileira.

338
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Os povos originários são considerados como de grande


relevância nos discursos culturalistas identitários, vez que apresentam
novas demandas, as quais permitem produzir e articular a defesa de suas
terras, de modo que perpassam o território demarcado e se inserem no
centro das discussões – inclusive em âmbito internacional – como
protagonistas, que realizam suas próprias articulações políticas, o que
nos permite refletir o papel da identidade indígena frente à sociedade
abrangente. Assim, os Paiter Suruí também influenciam certos setores
interna e externamente ao país, como é o caso do projeto Carbono Suruí
e da vigilância territorial por meio tecnológico, os quais serão
posteriormente detalhados.
Entendemos a identidade como algo não folclórica. Ou
identificado por aspectos particulares como acredita-se no senso
comum, mas enquanto práticas sociais vivenciadas cotidianamente
pelas pessoas.
Neste sentido, considera Carvalho (2009, p. 5), que “[...] a visão
do índio defendida por muitos leigos é a “mítica”, a qual o índio “puro”
deve viver nu, morar nas matas, usar adereços constantemente, pintar o
corpo, falar línguas ou dialetos diferentes etc.”. tal visão, além de
equivocada, isolada, é preconceituosa, não faz mais parte dos coletivos
originários, pois estes mantêm relações com a sociedade envolvente e
nem por isto, perdem sua identidade, mas incorporam outros valores que
são importantes para o estabelecimento de múltiplas relações.
A identidade que caracteriza os agrupamentos ou coletividades
humanos é importante para leitura da organização e lutas, pois cada vez
mais as lutas ocorrem não apenas pelas organizações de classe, mas por
grupos étnicos e minorias.
Em nosso trabalho abordaremos a identidade relacionada ao
conceito de antropofagização. A metáfora da antropofagia utilizada e
discutida por Rolnik (1998), é meritória, em virtude de contribuir como
ferramenta estratégica para o entendimento de questões territoriais e

339
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

identitárias no contexto que os povos étnicos vivenciam na atualidade, os


quais são marcadas pelas constantes pressões externas.
A antropofagia é a seleção de elementos potenciais, que consiste
em conformidade com Rolnik (1998, p. 2) em “deixar-se afetar por estes
outros elementos desejados a ponto de absorvê-lo no corpo, para que
partículas de sua virtude se integrassem à química da alma e
promovessem seu refinamento”. O pensamento antropofágico considera
que todos os elementos culturais são potencialmente equivalentes
enquanto fornecedores de recursos para produzir sentidos, sem
hierarquia cultural. Ainda para a autora (1998, p. 7):

Esta estratégia do desejo definida pela justaposição


irreverente que cria uma tensão entre mundos que não se
roçam no mapa oficial da existência, que desmistifica todo e
qualquer valor a priori, que descentraliza e torna tudo
igualmente bastardo – esta estratégia do desejo põe em
funcionamento um modo de subjetivação que chamarei de
“antropofágico”.

Deste modo o espaço se apresenta como “esfera da possibilidade


da existência da multiplicidade, no sentido de pluralidade
contemporânea (...) no qual distintas trajetórias coexistem” (MASSEY,
2008, p. 29), o espaço é produto das inter-relações dos sujeitos, é no
espaço que as reinvenções se fazem, reinvenção do território e da
territorialidade. Pensamos o território dos Paiterey como uma entidade
aberta, o qual possibilita encontros, desencontros e confrontos, que
permitem estratégias de antropofagização dos projetos como o REDD+,
Mapa Cultural Suruí 2, e o Plano de Negócio de Turismo, no qual se insere
o Centro Cultural Indígena Paiter Wagôh Pakob (Força da Floresta)3.

2 O Mapa Cultural Suruí é uma ferramenta que recebe atualizações do povo


Paiterey, através de jovens que são treinados em informática e outras
tecnologias. Apresenta-se de modo interativo e encontra-se disponível em
www.youtube.com/watch?v=zxAOYAPHc0s. Acesso em: 14 out. 2015.
3O Centro foi "idealizado por Gasodá Wawaeitxapôh Suruí, foi inaugurado no
dia 22 de novembro de 2016 com o principal objetivo de ser um espaço de

340
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Diante do sistema capitalista e dos processos globalizantes há


uma maior circulação das pessoas, mercadorias e informações, o que leva
a uma grande interação entre as culturas. O que leva a um processo de
transculturação étnica, isto é, o contato com outras culturas diferentes da
sua, mas sem a perda de sua identidade.
Em conformidade com Young (2005, p. 5 [1995]) e Haesbaert
(2011, p. 20), existe uma autoconsciência e segurança identitária, mesmo
ao aderir elementos externos, o faz para fortalecimento do grupo e como
estratégias de resistência, como no processo antropofágico. Desta
maneira, os Paiterey ao se apropriarem do discurso do desenvolvimento
sustentável e da economia verde, conduz-os a gerir a floresta de outros
modos possíveis, o que se caracteriza como uma antropofagização de
estratégia, resistência, manutenção e divulgação de sua cultura.
Esses projetos são estratégias de fortalecimento
cultural/identitária para o indígena do/no século XXI. Os Paiterey mais
do que quaisquer outros povos originários, se apropriaram da
antropofagia pós-moderna, “devora” os elementos e territórios
pertencentes a outras culturas, e incorpora de algum modo como “seu”,
porém de um jeito do “Gente de Verdade”.

UM POUCO DA TRAJETÓRIA DOS PAITEREY NO SÉCULO XX

Em relação às várias transformações, constata-se, porém que


muitas ritualísticas culturoespirituais e sociais dos povos originários
permaneceram, ainda que apresentem certas adaptações e influências
externas provenientes da cultura e dos valores não indígenas. Os
Paiterey vivem na Terra Indígena Sete de Setembro (autodenominada

recepção e convivência de modo a contribuir para o resgate e valorização da


cultura Paiterey, que começou a sofrer transformações devido ao contato com
a sociedade abrangente há quase 50 anos. Essa preocupação ocorre porque os
mais idosos são poucos e diminuem a cada ano, e são eles que detêm o
conhecimento, e necessitam transmitir aos mais jovens essas referências
culturais, sociais, políticas e espirituais” (MEDEIROS et al., 2018, p. 14).

341
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Paiterey Karah) com área aproximada de 250.000ha (2.500 km²),


localizada nos municípios de Cacoal-Rondônia e Rondolândia-Mato
Grosso, e estão espacialmente distribuídos em 27 aldeias (Figura 1).
O povo Paiter Suruí possui uma população 4 de 1.172 pessoas,
cuja organização sociopolítica é ordenada por um sistema clânico de
parentesco e matrimônio, composto pelos Gameb (marimbondos
pretos), Gabgir (marimbondos amarelos), Makór (taboca) e Kaban
(marindiba), em que este último é considerado parentes distantes dos
demais clãs, pelo fato de ser procedente de uma relação matrimonial
entre uma indígena Cinta Larga 5 e um Paiter Suruí.

4 Dados da Funasa (2010) disponíveis em http://pib.socioambiental.org/pt/


povo/surui-paiter/1763. Acesso em: 5 dez. 2015. Dados de 2014 da Siasi/Sesai
apontavam 1.375 indígenas, na Terra Indígena Sete de Setembro distribuídos
em Mato Grosso e Rondônia (https://pib.socioambiental.org/pt/
Povo:Surui_Paiter). Acesso em: 6 jun 2018. As informações dos próprios
Paiterey em 2018 indicam aproximadamente 1.700 pessoas, distribuídas em 28
aldeias nos 248.146 ha (2.481,46 km²), que compõe a área territorial da
mencionada Terra Indígena.
5
Se autodenominam Maat'petamej “os peritos no arco” e usam o termo Panderej
“nós mesmos”, “gente”. “Assim como os Paiterey são povos de língua Tupi-
Mondé. Internamente se organizam nos seguintes clãs Paábiey (os de cima), ou
Obiey (das cabeceiras), Pabirey (os do meio) e os Paepiey (os de baixo) devido
à relação com o rio Roosevelt (ALMEIDA SILVA, 2015, p. 2).

342
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Figura 1: Localização da Terra Indígena Sete de Setembro (Paiterey


Karah)

Fonte: www.equipe.org.br/mapas_dentro.php?tipoid=5. Acesso em: 5 dez


2015.

A organização política dos Paiterey consiste nos Labiway (chefes


de clãs) e do Labiway eSaga (liderança maior) escolhido pelo povo e que
na sociedade não indígena teria uma representatividade semelhante a
um primeiro-ministro. A Figura 2 demonstra como ocorre a articulação
política e a distribuição de poderes entre os Paiter Suruí.
Na composição da organização social, esta é estruturada por
meio da exogamia clânica, a qual é imprescindível para o
estabelecimento das relações sociopolíticas do povo. O casamento só é
permitido entre clãs diferentes. A organização política da chefia dos
Paiter Suruí é muito específica, cada clã e aldeia possui um chefe. Ela
ocorre hereditariamente, ou seja, é transmitida de pai para filho, além de
poder ser permitida a um irmão no caso do chefe não possuir filhos do
sexo masculino.
Assim, pode-se constatar dois modos de organização, a interna
conforme descrita no parágrafo anterior e a externa que reflete as

343
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

preocupações com a sociedade envolvente e que não estão diretamente


vinculadas ao contexto cosmogônico. Logo, as lideranças que atuam
externamente mudam de tempos em tempos, e, que na atualidade os mais
jovens são escolhidos para chefiar devido à facilidade com a língua
portuguesa.
Os Paiterey são um dos povos que compõem o mosaico indígena
Tupi Mondé nos estados de Rondônia e Mato Grosso, cujo
reconhecimento de organização como atores da construção territorial
ocorre por meio de diálogos que possibilitam o estabelecimento de suas
relações históricas dentro de seu território ancestral/tradicional e com
outros povos originários com os quais possuem relação de convívio.

Figura 2: Organização política da chefia dos Paiter Suruí e distribuição


de poderes

Fonte: Cardozo (2011; 2014).

344
ALMEIDA SILVA (ORG.)

No século XIX os Paiterey teriam emigrado de Cuiabá, até então


sua terra natal, para Rondônia, isso se deve ao fato de fugas causadas pela
perseguição de não indígenas, o que posteriormente resultou em
choques com outros povos originários pela disputa de território. O início
do século XX foi marcado por várias intervenções estratégicas – como a
ocupação não indígena da porção sul amazônica – e outras não, mas de
qualquer modo provocaram mudanças no território rondoniense.
Dentre essas estratégias de ocupação podem ser destacadas o
ciclo da borracha, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e
a instalação das linhas telegráficas, o que culminou num crescente fluxo
migratório para essa região, cujos efeitos nas populações indígenas
foram de diminuição substancial ocasionado por conflitos interétnicos.
Anteriormente ao contato oficial, os Paiterey tiveram relações
esporádicas, marcadas por embates acirrados com outros povos
indígenas, seringueiros e com os telegrafistas de Marechal Rondon,
acontecidos nas primeiras décadas do século XX.
As migrações compulsórias dos Paiterey fizeram com que
estabelecessem-se nos limites entre Rondônia e Mato Grosso em um
território muito maior do que atualmente encontra-se demarcado e que
foi expropriado em virtude da colonização empreendida nesta região.
É preciso asseverar que o contato com a sociedade envolvente fez
com que alguns rituais e valores fossem abandonados, outros
permaneceram, porém sincretizados devido principalmente aos
conflitos ideológicos, e interesses em razão da inserção de religiões
introduzidas na Terra Indígena Paiterey Karah, de modo a configurar o
que Sahlins (1997, 1997a, 2003 [1985]) conceitua como “mudanças e
permanências”, e Galvão (1979) entende como “encontro de
sociedades”.
Alguns períodos importantes ajudaram na ocupação humana
não indígena, por meio da expansão capitalista da região Amazônica, e
consequentemente tiveram impacto sobre os povos indígenas, e
provocaram mudanças em seus modos de vida, bem como redução de

345
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

seus territórios ancestrais. Assim, a região desde o início de sua ocupação


– ainda que rarefeita com a ação dos bandeirantes nos séculos XVII e
XVIII com a extração de drogas do sertão. Posteriormente, a região
sofreu fluxos migratórios procedentes diretamente dos ciclos
econômicos, como os da borracha, da mineração, e ainda devido aos
assentamentos do INCRA, que geraram povoados e cidades (OLIVEIRA,
1991).
A colonização de Rondônia não foi diferente do constatado em
toda a Amazônia, isto é, passou pelos mesmos ciclos econômicos, porém
com a ascensão dos governos militares, em meados da década de 1970,
no país ocorreu uma dinamicidade com a “integração nacional” e a
“ocupação dos vazios demográficos”. Para tanto, foram implantados e
executados os mais variados projetos de infraestrutura, de ocupação e
colonização no território amazônico, ao tempo em que a região passou a
ser uma terra de oportunidades para os migrantes principalmente do sul
e sudeste, de modo a se constituir como “fronteira econômica” aberta à
expansão do capital.
Os povos indígenas em Rondônia até o início da década de 1970
foram massacrados pelos seringalistas, isso devido à ascensão da
borracha que tinha grande valor. Concomitante ocorre a atividade
mineradora e com o “fim” de ambas, outros atores se fizeram presentes
no território rondoniense, como os assentados pelo INCRA. Por meio dos
projetos de colonização, colocaram o Estado como o grande indutor de
transformações socioespaciais, cujos projetos foram implantados pelos
governantes da época com maior expressividade na década de 1970 e
foram instrumentos geopolíticos importantes para a consolidação da
ocupação rondoniense.
Esses instrumentos utilizados pelo poder central estatal tiveram
impactos nas terras indígenas e ocasionaram em muitos momentos em
casos embates emblemáticos. A proximidade geográfica dos projetos de
colonização com as terras dos povos originários acarretou conflitos,
devido a diferentes visões de mundo e de relações com a natureza,
conforme expõe Almeida Silva (2015b, p. 87):

346
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Essa forma de apreender o mundo, como fonte inesgotável de


recursos econômicos e possibilidades de auferir lucro, resulta
no encontro de uma concepção diferenciada em relação aos
coletivos indígenas e outros coletivos “tradicionais”. O
entendimento desses coletivos é que como corporificado ao
meio exploram somente o necessário à sustentabilidade das
sobrevivências física e espiritual, sendo que uma intervenção
como a realizada pela sociedade envolvente, significa o
extermínio de algo que se encontra enraizado no íntimo e
que orienta a condução da vida coletiva.

Assim, se tem que a relação com o território decorre das relações


de vivência e cotidianidade, o que no caso é rompida com a chegada do
novo, do imprevisível, e que provoca mudanças profundas nos povos
indígenas, o que no caso dos Paiterey ocorreu com o primeiro contato
oficial em sete de setembro 1969, através da expedição da FUNAI,
chefiada pelo sertanista Francisco Meirelles. No período de contato, os
Paiterey contavam com aproximadamente 5.000 pessoas e devido aos
impactos, a maior parte da população foi morta por doenças até então
desconhecidas para eles, o que resultou no início dos anos 1980, em cerca
de 250 indígenas (CARDOZO, 2011).
O choque com o colonizador causou impactos tanto nas
estruturas físicas, com o decréscimo populacional, de modo a atingir as
representações do coletivo em seus aspectos sociais, culturais e
espirituais, além da perda de grande parte de seu território de ocupação
imemorial.
Um exemplo foi o Projeto Integrado de Colonização Gy-Paraná
que incidiu sobre a Terra Indígena Sete de Setembro, o que resultou em
perda de terra dos Paiterey e consequentemente na disposição de lotes
para os colonos beneficiados pelo INCRA. Destarte, Oliveira (1991)
comenta que o processo de ocupação da região amazônica representou
uma espoliação aos territórios das populações indígenas.
É neste período que inicia-se a colonização oficial em Rondônia,
o qual trouxe grandes e significativos impactos de diversas ordens, com
destaque para o conflito de terras que envolveram “agricultores,

347
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

madeireiros de um lado e de outro os povos indígenas e as populações


tradicionais. Na realidade produziu uma série de desordenamento com
profundas alterações no território” (ALMEIDA SILVA, 2012; 2015a, p.
215).
Além da colonização promovida pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA, na esteira desse processo, o
Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil –
Polonoroeste que financiou a pavimentação da rodovia BR-364 cortou
parte do território Paiterey e contribuiu de modo significativo para a
perda deste. Na colonização, vários migrantes foram atraídos para a
região em decorrência de serem beneficiados com lotes de terras doados
pelo INCRA, e com a abertura de novas estradas próximas à TIPK, isso
resultou em expressivos impactos sociais e ambientais, o que ainda nos
dias atuais é marcado pelas constantes pressões na mencionada Terra
Indígena.
Rondônia apresenta uma diversidade grande de coletivos
originários, o que leva às discussões de demarcação e ampliação de terras
indígenas. A demarcação e ampliação de reservas ainda é uma questão
debatida, isso porque causa, via de regra, impactos na atividade agrícola
e pecuária do Estado.
As demarcações coincidentemente ocorreram com o período da
chegada de grande contingente de migrantes em busca de oportunidades
e espaços para produzir, com isso foram ampliados e gerados novos
conflitos interétnicos – ou “encontros de sociedade” – além do aumento
de danos ambientais, através de desmatamento e das queimadas, os quais
tinham como finalidade expandir a agropecuária e consequentemente o
capital.
O processo de colonização foi avassalador ao ponto do
Polonoroeste, que havia sido financiado pelo Banco Mundial receber as
mais pesadas críticas devido aos impactos causados, sobretudo, com
desmatamento e queimadas. Para amenizar a problemática, foi
igualmente financiado pela mesma instituição o Plano Agropecuário e

348
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Florestal de Rondônia – Planafloro, no início dos anos 1990, voltado às


questões ambientais, com isso possibilitou que fossem “criadas a maioria
das UCS e TIS6 de Rondônia, a despeito que o componente indígena
recebeu o menor nível de investimento quando comparado aos demais”
(ALMEIDA SILVA, 2012; 2015a, p. 217).
O contato, como se constata, provocou e produz mudanças que
são vistas e sentidas pelos Paiterey, de modo que as pressões sofridas
contribuíram para distintas e novas representações internas. Este povo
ainda mantém muito de seus valores culturais e cosmogônicos, que se
relacionam ambos, com a cultura de outros Tupi Mondé.

OS PAITEREY NO SÉCULO XXI

Em virtude do contato e suas consequências, ainda no final dos


anos 1990 os Paiterey buscaram as primeiras estratégias para saírem de
uma condição de grande vulnerabilidade e se colocarem como
protagonistas, para tanto em parceria com a Kanindé Associação de
Defesa Etnoambiental e a participação de técnicos das mais diversas
áreas concebem o Diagnóstico Agroambiental Participativo, o qual
serviu como princípio para a implantação do Plano de Gestão da Terra
Indígena e de outros instrumentos que permitem encontrar meios
adequados para a manutenção física do território, da cultura, da
espiritualidade e da existência como povo originário.
Assim, se constata que os Paiterey têm procurado se firmar nesse
contexto de insegurança, de (o)pressão, logo, são um dos poucos povos
indígenas do Brasil que conseguiram reverter (ainda que parcialmente)
ao seu favor as consequências inevitáveis do sistema capitalista.
Discursos colonialistas que os indígenas são parados no tempo,
primitivos, não se aplicam nos dias atuais, visto que os Paiter Suruí
tornam-se em grande exemplo para os demais povos indígenas, como
um dos mais bem articulados do Brasil, política e economicamente, com
visibilidade internacional, inclusive utilizam-se tecnologias no

6 Unidades de Conservação (UCS) e Terras Indígenas (TIS)

349
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

cotidiano, as quais servem como instrumentos de proteção e gestão de


seu território.
Na atualidade, os Paiterey são referência na luta permanente de
reconhecimento por meio de projetos concebidos para serem aplicados
em longo prazo, com horizonte de 50 anos, como o REDD+ (Redução de
Emissões Provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal),
Ecoturismo Paiter Suruí, cooperação com a Google Earth no
desenvolvimento de seu mapa cultural, o qual encontra-se com acesso
disponível na internet.
A utilização de objetos tecnológicos para o desenvolvimento
desses projetos se tornou regular na Terra Indígena, de modo que o povo
assume um protagonismo e uma resiliência frente ao processo expansivo
da fronteira agrícola na região, sem abdicar de seus valores culturais e
identitários. Essa condição implica no resguardo territorial e na adoção
de alternativas econômicas (reflorestamento, projeto carbono ou
REDD+), ainda que para tanto, adquirem concepções externas à sua
cultura e aos seus valores sociais, o que caracteriza-se no processo de
transculturalidade.
Para entendermos esse processo de ressignificação utilizamos o
conceito de antropofagização, ou seja, o devorar dos objetos externos a
sua cultura, como as tecnologias e os projetos. Utilizaremos ainda os
conceitos de transculturalidade, identidade na pós- modernidade com
base em Rolnik (1998), Haesbaert (2008, 2011), Haesbaert e Mondardo
(2010).
As tecnologias são utilizadas justamente como mecanismo de
proteção do seu território, fortalecimento cultural, e afirmação da
identidade e da luta indígena. Com isso, os Paiterey incorporaram o
discurso do “desenvolvimento sustentável”, na medida em que os
projetos concebidos e implantados em sua Terra encontram-se
alicerçados no conceito de “economia verde” 7, e almejam que sejam

7É aquela que resulta em melhoria do bem-estar humano e da igualdade social


ao mesmo tempo que reduz significativamente o tempo os ricos ambientais e a

350
ALMEIDA SILVA (ORG.)

reaplicados em outras terras indígenas, inclusive nas propriedades de


entorno, pois, compreendem que tanto o problema, como sua resolução
depende de um esforço conjunto dos mais distintos setores da sociedade.
A nova geração de lideranças com o atual Labiway eSaga (chefe
maior) Almir Suruí, levou a luta do seu povo a um patamar nunca antes
imaginado, com repercussões nacionais e internacionais. Hoje os
indígenas têm suas próprias associações que os representam, buscam
suas parcerias com parceiros governamentais e não governamentais no
território nacional e do exterior.
Os Paiterey conseguiram se posicionar no século XXI com o
advento da globalização do modo capitalista de viver e conseguiram
aprovar projetos como o Carbono 8 Florestal Suruí, pautado no REDD
(Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação), cujo objetivo
é aumentar sua renda e proteger a floresta e consequentemente a cultura,
ao tempo em que contribui com a qualidade ambiental do Planeta.
Exemplos disso é que durante a Copa do Mundo realizada no Brasil
comercializaram toneladas de créditos de carbono para a Federação
Internacional Associação – FIFA; nos últimos dois anos tem produzido
café de excelente qualidade, premiado, de modo a comercializar dentro
e fora de Rondônia.
De acordo com Romero (2014) esse projeto foi validado em 2012
sob o Padrão de Carbono Verificado (VCS) e o Padrão Ouro de Clima,
Comunidade e Biodiversidade (CCB), que são os principais para creditar
projetos que visam reduzir as emissões de gases do efeito estufa
produzidos pelo desmatamento e pela degradação florestal. Assim, o
Carbono Florestal Suruí constitui-se como a primeira grande e inédita

escassez ecológica. Sustenta-se sobre três pilares: é pouco intensiva em carbono,


é eficiente no uso dos recursos naturais e é socialmente inclusiva.
www.radarrio20.org.br/index.php?r=conteudo/view&id=12&idmenu=20.
Acesso em: 14 out 2015.
8 Na atualidade, devido a questões internas, o projeto está suspenso.

351
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

experiência que se tem notícia no mundo concebido e implantado por


um povo indígena, cujos primeiros resultados são muito promissores.
Outro projeto em desenvolvimento é o Mapa Cultural Suruí
concebido em parceria com o Google Earth, com horizonte de sete anos
e possui como objetivo a utilização da gigante da tecnologia e
informação, Google e tudo que oferece ao seu favor, de modo, a
expressarem sua cultura à sociedade envolvente que pouco ou nunca
tiveram um contato com povos indígenas. Essa parceria se mostra muito
propícia, porque ao mesmo tempo que os Paiterey valorizam sua cultura,
protegem o território que está totalmente georreferenciado e garantem
a sobrevivência física e social. O mapa cultural interativo apresenta
pontos essenciais, no qual é possível compreender algumas variáveis
culturais, sociais e espirituais do povo, além de cenários que pretendem
desenvolver nos próximos 50 anos dentro da Terra Indígena e seu
entorno.
O Plano de Negócio de Turismo do Povo Indígena Paiter Suruí é
fruto de três anos de pesquisas e discussões participativas, com vários
estudos e levantamentos de campo para a implantação do Ecoturismo
Indígena. Faz parte das atividades do Projeto Karah Itxa– Corredores
Etnoambientais na Amazônia Brasileira e tem como objetivo fortalecer as
ações dos indígenas e suas associações, ou seja, consiste em uma
estratégia de conservação amparada no Corredor Etnoambiental Tupi
Mondé que compreende Terras Indígenas de Rondônia e Mato Grosso.
O plano de ecoturismo, é apenas um daqueles que os Paiterey
desenvolvem em seu território, a exemplo do Centro Cultural Indígena
Paiter Wagôh Pakob (Força da Floresta) em operação, e de outras
iniciativas a serem implantadas, os quais buscam apoios de órgãos
públicos e não governamentais municipal, estadual, nacional e
internacional. Com a solidificação desses apoios já é possível a geração
de renda, e consequentemente servir como uma estratégia de visibilidade
cultural que possibilita o fortalecimento de sua identidade diante da
sociedade envolvida.

352
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Compreendemos que esses projetos e a incorporação com


ressignificação do uso das tecnologias, dos projetos, e até da própria
língua portuguesa brasileira é um meio de protagonismo. Essas
incorporações são estratégias antropofágicas, que auxiliam no
fortalecimento do povo Paiter Suruí.
Destarte, as transformações advindas da incorporação das
tecnologias, celulares, computadores, internet, e-mail, GPS, até mesmo
de projetos e conceitos não indígenas, proporciona a transculturação
identitária, visto que se considera aqui, a identidade como aquela que é
caracterizada por um conjunto de práticas sociais vivenciadas entre os
membros de determinada coletividade ou da sociedade, em que o
conjunto de tecnologias que se territorializa no meio, ao contrário de
enfraquecer, fortalece o coletivo.
Entendemos que os reflexos dessas estratégias antropofágicas
utilizadas pelos Paiterey são importantes no processo de fortalecimento
transcultural-sócio-ambiental-político-territorial e que dará cada vez
mais autonomia e liberdade ao coletivo e, que não tem pretensão de ser
modelo único aos demais povos indígenas, mas serve para reflexão e
estratégia.
No sentido de protagonismo, os Paiterey resolveram dar forma a
um conjunto de conhecimentos que era transmitido oralmente e
sistematizaram em documento como Códigos e Normas Paiter Suruí
(CARDOZO, 2014), que possivelmente seja o primeiro no mundo
relacionado e construído por um povo originário.
De acordo com o Código, este “estabelece princípios, diretrizes,
normas, direitos e deveres do povo Paiter Suruí, garantindo qualidade de
vida, sustentabilidade e organização Social” (CARDOZO, 2014, p. 8)
(sic). Entendemos que o referido Código trata-se de um relevante
instrumento que visa mostrar, especialmente, para os mais novos, a
importância do fortalecimento de relações internas.

353
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente buscou analisar o uso das tecnologias realizadas pelos


Paiterey, como tentativa de estratégia transcultural-territorial para o
fortalecimento cultural-identitário mediante um protagonismo
concebido a partir de suas experiências imemoriais e das vivências atuais.
É necessário ressaltar que nesses contextos não podem ser descartados
o papel exercido pelo colonialismo cujos desdobramentos ainda
persistem, embora não se apresente nos moldes do século XIV, como se
observa em discursos homogeneizadores, nos quais são necessárias
rupturas, visto que em si demonstram o subjugo e o preconceito.
Entendemos que as estratégias antropofágicas utilizadas pelos
Paiterey significa uma quebra desses discursos, com isso institui um
ambiente mais autônomo e preparado para enfrentar as demandas que o
futuro impõe a eles e outros povos originários. A utilização das
tecnologias auxiliam na autonomia, e em um não assistencialismo do
Estado nacional em relação ao “Povo Verdadeiro” e se constitui em
alternativa a ser seguida por outros indígenas, caso esses possuam o
desejo de serem protagonistas na sociedade envolvente.
Essa transculturação ocasionada pela antropofagização reforça a
alteridade do coletivo tanto no contexto sócio-ambiental-político-
territorial e cultural, pois suas políticas superam o avanço do
desmatamento e do agronegócio. Questões essas que nos colocam a
refletir sobre o papel da identidade no atual contexto em que vivemos e
do que queremos para as atuais e futuras gerações.
E por fim, compreendemos que o protagonismo dos Paiterey
ajuda a questionar as demais práticas que são adotadas em nossa
sociedade, a qual é marcada pelo consumismo, individualismo e ainda
pelo niilismo ao considerar que os valores ancestrais/tradicionais não
são necessários e que não existe quaisquer sentidos ou utilidades de
existência os modos de vida dos povos originários.

354
ALMEIDA SILVA (ORG.)

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357
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

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358
A FORÇA DA FLORESTA E O CONHECIMENTO PARINTINTIN
SOBRE A SAÚDE: AS PLANTAS MEDICINAIS E SUAS
REPRESENTAÇÕES DE CURA 1

Juliano Strachulski
Nicolas Floriani
Adnilson de Almeida Silva
Luís Carlos Maretto
Severino Parintintin

O capítulo propõe-se em discutir as relações do povo Parintintin


autodenominado Pykahu2, habitante da Terra Indígena Nove de Janeiro,
no município de Humaitá, estado do Amazonas, com a floresta. Esta
relação é construída pelas vivências desde tempos imemoriais, isso tem
permitido que se utilize das plantas 3 para fins de cura do corpo físico e
do espírito.
O método de construção se ancora no empirismo e nos relatos
orais produzidos por esse povo originário, utilizamos também a técnica
“bola de neve” para obter melhores resultados. Sobre estes, destacam-se
os conhecimentos e os modos de utilização necessários à cura, aos quais
estão vinculados ao desenvolvimento das atividades sociais e culturais.
Por outro lado, ocorre a hibridização com a utilização de fármacos
procedentes da medicina convencional (não indígena), de modo que os
dois conhecimentos coabitam para garantir a saúde desse povo.

1Este texto é um excerto da tese de doutorado do primeiro autor, elaborada e


orientada pelo segundo e terceiro autores. Trata-se de um texto inédito, visto
que não foi publicado em periódicos ou livro.
2 O significado está relacionado à avoante Zenaida auriculata, uma pomba
campestre existente na região do rio Madeira (Kanindé, 2012).
3
Na concepção cosmogônica dos indígenas as plantas, os animais, demais seres
e não seres materiais ou não materiais possuem espíritos, os quais podem
favorável ou contrariadamente à humanidade.

359
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

INTRODUÇÃO

A relação dos seres humanos com as plantas se confunde com a


própria história da humanidade, as quais são responsáveis por transformar
a vida e os aspectos culturais de várias sociedades ao longo do tempo e ao
largo do espaço. Desde remotos tempos os seres humanos têm-se utilizado
de espécies vegetais para a cura de inúmeras enfermidades e mal-estares, por
meio dos princípios ativos dos vegetais de maneira empírica e/ou instintiva,
baseados em tentativas e erros.
Os povos indígenas são aqueles coletivos humanos que dão
continuidade à essa antiga valorização das plantas, em razão de serem
integrados e terem uma visão holística da natureza. Eles possuem essa forte
ligação, pois são exímios conhecedores dela e possuem manejos sustentáveis
de interação, mediante suas ações práticas e simbólicas. Uma das grandes
dificuldades dos povos dos trópicos, após o contato com a sociedade não
indígena e mesmo antes disso, são as doenças, as quais associam à
espiritualidade. Para tanto, desenvolveram um acervo de conhecimentos
acerca do uso de espécies vegetais para a cura das várias enfermidades.
Neste sentido, parafraseamos a Oliveira (2016, p. 91), a qual afirma
que “Cada rio canta uma história, cada curva nos mostra uma nova
geografia”, a partir da visão dos povos originários que para cada planta
existe uma história, uma vida, uma cura, uma possibilidade de se
compreender a natureza e compartilhar novos conhecimentos como uma
novageografia.
Na cosmovisão desses povos cada ser vivente ou mesmo inanimado
possui espírito e o que acontece aos seres humanos devem-se a ação dos
espíritos, ou seja, a doença, a cura faz parte desse corolário, o qual podemos
nominar como etnoconhecimentos (ALMEIDA SILVA, 2010; 2015). Deste
modo, a doença e a saúde para os indígenas são representações que dizem
respeito ao físico e ao espírito, com isso, se uma pessoa adoece não deve ser
levado em conta apenas o tópico da dor ou da doença, mas o corpo como
um todo e tudo que envolve o local onde vive, habita, trabalha e estabelece
suas múltiplas relações.

360
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Ao contraporem sobre os conceitos de saúde e doença propostos


pela Organização Mundial de Saúde, Segre e Ferraz (1997) contribuem com
o debate ao considerar que tais enunciados não conseguirem explicar o que
seria bem-estar para as pessoas, visto que tratam-se de subjetividades. Os
autores consideram a cultura como um fator que pode proporcionar a
compreensão acerca da temática, no entanto, esbarram-se no fato de
trabalharem com outro recorte territorial, isto é, em suas concepções os
autores encontram-se inserido dentro de um ambiente urbano, portanto,
distante da realidade vivida pelos povos originários (estes ainda
acrescentam as temporalidades, com isso explica-se o grau de dificuldade
de se conciliar o que a medicina que conhecem com a medicina
convencional, a dos não indígenas).
No caso específico dos Parintintin – designação que teria sido
empregada por um povo indígena rival, os Munduruku4, integram o
conjunto de outros povos que se autodenominados Kawahíb
(NIMUENDAJÚ, 1924). Outro termo empregado em alguns trabalhos para
se referir a eles é Pykahu (CARDOZO; VALE JÚNIOR, 2012), além de, em
algum momento de nossa pesquisa terem mencionado a palavra
Tandewkuhu.
Contudo optamos pelo vocábulo Parintintin, que será empregado
de agora em diante nesse texto, em vista de serem assim conhecidos na
sociedade envolvente, e também por não haver um estudo mais
aprofundado de sua etnohistória, nem informações suficientes para se
confirmar a origem de tais termos, não se percebe suas disseminações por
eles, de modo específico na aldeia Traíra, ou empregados em sua luta
política e no seu fortalecimento cultural. Não obstante, o termo Parintintin

4
Pertencem à família linguística de mesmo nome, do Tupi. Se autodenominam
Wuy jugu ou Wuyjuyu (povo, pessoas, gente). A qualificação Munduruku
(formigas vermelhas) teria sido pelos Parintintin, em referência que
empreendiam ataques massivos em territórios de outros povos. Por seu espírito
guerreiro ficaram também conhecidos como “cortadores de cabeças humanas”
utilizadas como triunfos que simbolizavam o poder.

361
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

é aceito pelos seus membros e utilizado como bandeira de luta e possui


grande relevância político-cultural.
Os Parintintin da Aldeia Traíra têm aproximações com outros
povos originários, em que constata-se que possuem mais séculos de
convívio com a natureza local e desenvolveram vários saberes e técnicas no
que se refere ao uso sustentado de espécies vegetais. Destarte, apontam
Albuquerque e Andrade (2002, p. 275) que os seres humanos atuam como
agente seletivos, “[...] alterando ciclos de vida, padrões de mortalidade,
reprodução e sobrevivência de suas populações, bem como modificando e
tirando vantagens das defesas químicas para seu benefício”.
Em direção análoga, Diegues et al. (2001, p. 1) afirmam que as
espécies vegetais “[...] são objeto de conhecimento, de domesticação e uso,
fonte de inspiração para mitos e rituais das sociedades tradicionais [...]”. A
utilização de espécies vegetais pelos Parintintin para a cura de enfermidades
se dá tanto para males físicos como espirituais, a partir da compreensão, que
a doença pode ser de duas ordens: a) do corpo, causada por micro-
organismos; b) da alma, provocada por espíritos.
As práticas de curas biológicas ocorrem principalmente por meio de
chás, mas também maceração e xarope, a partir das folhas, casca e raiz são
as mais comuns. Entretanto, em alguns momentos, como no falecimento de
um indígena, as práticas simbólicas se fazem vivas, como no benzimento
com urucum Bixa orellana L. para desprender o espírito do morto. A partir
do diálogo de saberes com a sociedade envolvente (não indígena), os
Parintintin também englobaram ao seu acervo de práticas tradicionais
elementos extra culturais, como a busca por benzimentos com premissas da
sociedade envolvente, num processo contínuo e inacabado de adaptação e
ressignificação de práticas e saberes.
Nesse diálogo de saberes, num processo de hibridação, com outros
agrupamentos humanos, além de incorporarem práticas de benzimentos
não indígenas, inseriram também práticas de manejo desta ao utilizarem
plantas medicinais plantadas em seus quintais, e ao mesmo tempo buscam,
conforme Almeida Silva (2007; 2010; 2015) mohanga (remédios ou

362
ALMEIDA SILVA (ORG.)

medicamentos) da floresta, herança de seu etnoconhecimento, muitas


vezes com a associação de ambas espécies vegetais por eles manuseadas.
Portanto, nosso objetivo é o de compreender esses conhecimentos
Parintintin, ainda que parcialmente, acerca das espécies vegetais utilizadas
como fármacos e os processos de cura.

MATERIAIS E MÉTODOS

Na busca de aproximar-se dos Parintintin, para compreendermos


seus etnossaberes e etnoconhecimentos, fez-se necessário realizar trabalho
de campo, numa pesquisa compreendida como estudo de caso, uma
investigação empírica com coleta de dados, possibilitada pela convivência
diária com esse povo originário.
A realização da pesquisa, ocorreu uma primeira passagem pela
Aldeia Traíra no ano de 2015, mediante o estágio de doutorado-sanduíche
na Universidade Federal de Rondônia, o qual teve duração de 14 semanas
divididas em três estadias de mais de 30 dias cada uma. Já a segunda
passagem que deu-se em 2017 durou mais de seis semanas consecutivas na
Terra Indígena Nove de Janeiro.
Para aproximar-se dos atores sociais e de seus saberes,
primeiramente se fez-se uso da técnica da observação participante. De
acordo com Albuquerque, Lucena e Cunha (2010) esta metodologia
permite uma análise de dentro da realidade estudada e possibilita captar os
conhecimentos desenvolvidos e aplicados no cotidiano.
Com a convivência e aproximação às pessoas, aos poucos foi
possível identificar aquelas que poderiam ser consideradas como
fundamentais, devido seus conhecimentos tradicionais que se destacam em
relação aos demais. Ao identificarmos tais pessoas utilizamos a técnica da
“bola de neve” (ALBUQUERQUE, LUCENA; CUNHA, 2010). Assim, ao
final de entrevista com essa, a mesma era instigada a indicar outra pessoa
de interesse para a pesquisa.
Outra técnica de grande importância é a história oral enquanto
história de vida, que tanto pode se referir a experiência de vida geral de uma

363
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

determinada pessoa ou sua afinidade com um determinado tema, como o


conhecimento etnomedicinal das espécies vegetais (ALBUQUERQUE,
LUCENA; CUNHA, 2010). Em corroboração a história oral, se fez uso das
entrevistas semiestruturadas, que possibilitaram compreender as
“perspectivas que as pessoas entrevistadas têm sobre sua vida, suas
experiências, sobre as instituições a que pertencem e sobre suas realizações,
expressas em sua linguagem própria” (MACEDO, 2010, p. 105).
É guiada por um roteiro, que nossa pesquisa foi caracterizada por
proporcionar compreender os saberes locais acerca da utilização de
espécies vegetais, tanto às cultivadas, como às nativas, com a finalidade de
curar enfermidades do corpo e da alma.
De acordo com a vivência e uso da técnica de “bola de neve” foi
possível identificar as pessoas chave, o que proporcionou a participação de
seis atores sociais, dos quais três homens e três mulheres. A princípio foram
seguidos alguns critérios para a escolha dos entrevistados, como tempo
mínimo de 20 anos de residência na aldeia e idade acima de 40 anos, por
entendermos que os mais idosos e aqueles que viveram mais tempo no
território Parintintin são as que possuem conhecimentos mais significativos
sobre a cultura e natureza locais. Contudo, praticamente todos participaram
da pesquisa, pois, a vivência diária permitiu dialogar com a maioria dos
moradores da Aldeia Traíra.
Para aquelas dúvidas que permaneceram mesmo com a realização
da entrevista semiestruturada fez-se uso das conversas denominadas de
entrevistas informais (GIL, 2008) ou entrevistas não-estruturadas
(ALBUQUERQUE, LUCENA; CUNHA, 2010), o que permitiu uma visão
geral acerca do objeto da pesquisa. Sua utilização decorreu em função de
tentar realizar um detalhamento relativo aos subsídios obtidos nas
entrevistas semiestruturadas e dúvidas e/ou curiosidades que persistiam ao
longo do tempo. Normalmente utilizava-se um diário de campo e/ou um
gravador para registro dos dados, ambos com o consentimento dos
entrevistados.

364
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Em alguns momentos acompanhávamos os indígenas em que estes


se direcionavam para suas áreas de roçados, em outros combinávamos com
eles para irmos à floresta, na ocasião pedíamos para que nomeassem as
espécies que viam e suas respectivas utilidades, e na medida do possível
realizávamos os registros fotográficos e anotações sobre elas.
Em outro momento, juntos realizamos duas etnocaminhadas na
floresta com o sentido de validar seus conhecimentos sobre a vegetação
narrados nas entrevistas. Essas etnocaminhadas tiveram por objetivo
verificar a nomenclatura indígena dessas espécies.
Primeiramente foram citados nomes em português e depois
buscou-se na língua materna Tupi-Kawahib. Muitas das espécies vegetais
não possuíam os nomes na língua materna, pois no passado não eram
conhecidas e/ou utilizadas pelos Parintintin. Nestes termos, fez um grande
esforço por parte de alguns deles (em especial dona Maria das Graças
Parintintin) que falavam e/ou escreviam em Tupi-Kawahib para dar nomes
as espécies que conheciam, as quais não possuíam nomes na língua
indígena. Foram nomeadas a maioria das espécies identificadas localmente,
inclusive aquelas que não possuíam correlação científica.
Também visou-se identificar locais onde se encontravam as
espécies mais importantes, além de terem possibilitado a localização de
antigos caminhos em meio à floresta, dos quais alguns ainda são usados e
outros que somente deixaram marcas e lembranças.
Nestes dois dias, desfrutamos da companhia de dois experientes
mateiros locais e profundos conhecedores da área, em dias diferentes e com
a presença de um expert engenheiro florestal da região Amazônica, senhor
Luís Carlos Maretto, que ajudou na identificação em campo de algumas
espécies citadas pelos indígenas e que não haviam sido levantadas em
trabalho anterior (em 2005 e 2006 foi realizado o Diagnóstico
Etnoambiental Participativo pela Kanindé Associação de Defesa
Etnoambiental, e um dos eixos temáticos abordados foi a vegetação, este
culminou na elaboração de uma lista com 174 espécies e etnoespécies
levantadas por esses mateiros locais e pelo engenheiro florestal). Além de

365
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

excursões à floresta, foram identificadas, com a colaboração dos indígenas e


do engenheiro Maretto, algumas espécies cultivadas em quintais e nos
terreiros próximos às residências da Aldeia Traíra.
Não houve coleta botânica devido a vários fatores, como não ter
parceiros nas universidades locais que naquele momento estavam em
período de greve; longas distâncias a serem percorridas, uma logística difícil
de ser executada – acesso a certos locais para coletas; além de não se
dispormos de recursos financeiros para custearmos um levantamento mais
minucioso. Por outro lado, por se tratar de uma pesquisa participativa,
também dependeríamos do tempo que os indígenas poderiam empregar
para tal atividade.
Deste modo, buscou-se citar somente as espécies vegetais
identificadas no Diagnóstico Etnoambiental realizado pela Kanindé (no
prelo), e acrescentamos a elas dados coletados em nosso estudo. Cabe
destacar que os mateiros que acompanharam a presente pesquisa foram os
mesmos que estavam com os pesquisadores daquela instituição. Portanto,
os nomes populares referidos no trabalho anterior são os mesmos que foram
citados em nosso trabalho.
Quando possível, parte das espécies identificadas pelos nomes
populares foram registradas por meio de fotografias e comparadas com as
imagens das plantas contidas em Reflora (2016). Neste site também foram
consultadas a grafia das taxonomias e dos autores, a origem das espécies, a
característica de vida e o tipo de componente vegetal a que se encontram.

CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO E DO POVO PARINTINTIN

A Aldeia Traíra (Figura 1) pertencente à Terra Indígena Nove de


Janeiro (TINJ) habitada pelo povo Parintintin, está localizada cerca de cinco
quilômetros da Rodovia Transamazônica (BR-230) no município de
Humaitá (Amazonas) e com distância aproximada de 45 km da sede urbana,
cujo trajeto é todo em estrada sem pavimentação asfáltica, o que dificulta a
locomoção no período chuvoso, entre novembro e abril. Por ser
considerada uma distância relativamente curta para os padrões da região,

366
ALMEIDA SILVA (ORG.)

permite-se grande mobilidade dos indígenas da Aldeia Traíra para irem à


área urbana de Humaitá ou mesmo para dialogarem com os regionais que
vivem no entorno da TINJ.
Os Parintintin – designação que teria sido empregada pelos rivais
Munduruku – englobam o conjunto de povos indígenas que se
autodesignam por Kawahíb, Kawahíwa ou ainda Kagwahíwa, logicamente,
em sua própria língua (Kawahib).
De acordo com Menendéz (1989) os primeiros registros acerca dos
Kawahib datam do século XVIII, que foram localizados em 1750 na
confluência dos rios Arinos e Juruena, formadores do Tapajós, junto ao povo
Apiaká, dentreoutros.
Em meados do século XIX os Kagwahiva foram expulsos do rio
Tapajós (no Pará) pelos portugueses e pelos Munduruku, de modo que se
deslocaram para o oeste, rumo ao rio Madeira, onde os Parintintin situam-
se atualmente, mas também para outras regiões como o rio Machado e ao
longo deste até a região central de Rondônia (MENENDÉZ, 1989).

Figura 1: Mapa de localização da Terra Indígena Nove de Janeiro e da


área de estudo

Fonte: Mapa elaborado por Strachulski (2016)

367
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Os Parintintin eram referidos como um pequeno grupo de


guerreiros que entre o final do século XIX e início do XX estiveram em
conflito com os seringueiros ao longo de um trecho de 400 km do rio
Madeira, após terem sido expulsos de sua área original pelos Munduruku.
Atualmente, a maior parte da população vive em duas Terras
Indígenas, Ipixuna e Nove de Janeiro, ambas em Humaitá, no Estado do
Amazonas, com um total estimado em 480 pessoas (SESAI [2014] apud ISA
[2018]). De acordo com os próprios Parintintin, a população estimada em
relação a cada aldeia é a seguinte: 60 pessoas em Canavial; 117 em Pupunha;
e 135 em Traíra, o que perfaz um total de 312 residentes, além dos
desaldeados ou que habitam em áreas urbanas da Amazônia, conforme
Cardozo e Vale Júnior (2012), em cidades como “Manaus e Manicoré, no
Amazonas, Porto Velho, Ji-Paraná, Guajará-Mirim e Costa Marques, todas
em Rondônia, locais que os membros da etnia escolheram para morarem e
também onde buscam oportunidades, as quais não encontram nas aldeias”;
também se registra a presença de famílias de Parintintin em “aldeias dos
povos indígenas Tenharin, Jiahui (Amazonas) e Gavião (Rondônia)” (CIMI,
2015) (sic), e com estes povos estabeleceram relações de matrimônio
(MIRANDA et al., 2017, p. 57).
Apesar das dificuldades enfrentadas, tais como: falta de apoio
governamental, confrontos com povos vizinhos e contato constante com
seringueiros, a partir do final dos anos de 1990, os Parintintin conseguiram
a regularização de seu território ancestral, ou parte dele. O controle
definitivo começou a ganhar corpo em 1992, ocasião em que foram
declaradas de posse permanente e imemorial, a demarcação ocorreu em
1995/96 e a homologação em 3 de novembro de 1997 (BRASIL, 1997), com
situação fundiária registrada no Cartório de Registros de Imóveis – Cri, e na
Secretaria de Patrimônio da União – SPU, em 1998. A Terra Indígena possui
este nome, devido ao fato que foi no dia 9 de Janeiro no igarapé de mesmo
nome que ocorreu o primeiro contato entre eles e os não indígenas. Sua área
oficial é de 228.777 ha (2.287,77 km²).
As características físicas da Terra Indígena Nove de Janeiro
apontam que a maior parte da vegetação local é coberta por florestas, das

368
ALMEIDA SILVA (ORG.)

quais: 68,27% referentes à Floresta Densa e 18,84% à Floresta Aberta. As


demais áreas estão divididas entre Savanas (0,69%); Áreas de Formações
Pioneiras (0,84%) e 11,36% em Áreas de Tensão Ecológica (contatos entre
Savana/Floresta e Formações Pioneira/Floresta) (Kanindé, no prelo).
Em conformidade com Veloso, Rangel Filho e Lima (1991), as
florestas ombrófilas abertas são características das paisagens de várias áreas
amazônicas, sendo fáceis mais claras da floresta ombrófila ou da floresta
pluvial tropical. Pires e Prance (1985) inferem acerca da presença de quatro
faciações distintas: 1) florestas abertas com palmeiras; 2) florestas abertas
com bambus; 3) florestas abertas com cipós; 4) florestas abertas com
sororocas.
Kanindé (no prelo) identificou regiões de Floresta Tropical Aberta,
além da comum ocorrência de palmeiras em associação com a
campinarana (popularmente denominada de campina). Verificou também
que esta constituição vegetal é caracterizada pelo domínio de palmeiras
(campinas) que ocorre predominantemente no entorno da Aldeia Traíra.
Com atividade in loco e com a colaboração dos estudos da Kanindé
(no prelo), percebeu-se que nas cercanias da Aldeia Traíra predomina a mata
de igapó, a floresta de terra firme, as campinas e as capoeiras (floresta
secundária em vários níveis de sucessão) originárias da abertura da mata
primária para a criação de seus roçados. A floresta é uma grande fonte de
recursos medicinais em seus vários ambientes e constituições florestais, em
especial a mata de terra firme.
Os Parintintin possuem forte relação com a floresta, em virtude que
a maior parte de suas atividades nela ocorrem, como a caça, a coleta e a
pesca. Neste sentido, o conhecimento, modo de coleta, preparo e uso de
mohanga delas provenientes são elementos intrínsecos da cultura local. Por
outro lado, os quintais implantados pelos indígenas, uma herança cultural
adquirida da sociedade envolvente, também se revelam uma boa fonte de
espécies medicinais utilizadas pelos Parintintin da Aldeia Traíra e,
diferentemente das espécies da floresta, são cultivadas em áreas abertas

369
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

perto de suas casas. Os quintais normalmente são ambientes de domínio das


mulheres, mas também de conhecimento dos homens.
Característica interessante dos povos indígenas, em especial o
povo Parintintin, é a capacidade de uso e manejo da vegetação, pois ao
longo do tempo, na localidade onde hoje é a Aldeia Traíra houve muita
exploração da vegetação local pelos seringueiros e demais regionais. Revela-
se a capacidade de ajustamento de suas práticas produtivas e culturais ao
meio ecológico local, em vista do plantio de espécies medicinais tanto
adquiridas da sociedade envolvente como tiradas da mata, com vista a
recomposição e o equilíbrio daquilo que foi perdido com os novos
elementos em jogo. Em termos medicinais, permanecem muitas de suas
práticas ancestrais e a essas se somam outras modernas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Na cosmovisão indígena, a Terra com tudo que existe nela, seja


visível ou não, palpável ou não, sentido ou percebido, integra o mesmo
conjunto, logo a ação que nela ocorre possui repercussões no todo. Assim,
as plantas não são meros objetos ou coisas, elas encontram-se com uma
utilidade, um propósito ou sentido, o qual é compreendido em decorrência
das experiências e da relação estabelecida como explicação à própria vida.
Deste modo, a percepção e representação de seu mundo tem o significado
descrito por Dardel (2011 [1952], p. 48) que:

[...] a ligação do homem com a terra recebeu, na atmosfera


espaço-temporal do mundo mágico-mítico, um sentido
essencialmente qualitativo. A geografia é mais do que uma
base ou elemento. Ela é um poder. Da terra vêm as forças que
atacam ou protegem o homem, que determinam sua
existência social e seu próprio comportamento, que se
misturam com sua vida orgânica e psíquica, a tal ponto que é
impossível separar o mundo exterior dos fatos propriamente
humanos.

Neste sentido, em decorrência das informações obtidas na vivência


cotidiana sobre o uso de plantas medicinais e mohanga da floresta na Aldeia

370
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Traíra, foi possível evidenciar ainda que a população utiliza-se de espécies


cultivadas em quintais e terreiros. Os Parintintin nomeiam e classificam as
espécies em conformidade com suas próprias categorias e nomes. Assim, se
tem que “[...] essa diversidade da vida não é somente vista como ‘recurso
natural’, mas sim como um conjunto de seres vivos que tem um valor de
uso, um valor simbólico, integrado numa complexa cosmologia”
(DIEGUES et al, 1999, p. 31-32) (Grifo nosso).
Os vegetais são utilizados por inúmeros agrupamentos humanos e
sucessivas gerações, com destaque para os povos originários, os quais
possuem uma relação de reciprocidade com a natureza. Através de sua
sabedoria e vivência, esses povos potencializam o valor medicinal das
plantas como um meio de promover a saúde e o bem-estar espiritual, de
modo que essas atuam tanto terapêutica como culturalmente na mitigação
ou cura de doenças do corpo e da alma. Tais atributos aproximam- se da
constatação efetuada por Haesbaert (2004, p. 42), por se tratar de:

[...] uma dimensão simbólica, cultural, por meio de uma


identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como
forma de controle simbólico sobre o espaço onde vivem
(sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma
dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a
apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio
e disciplinarização dos indivíduos.

No caso específico dos indígenas afirmamos que a identidade


territorial é estabelecida e aperfeiçoada pela relação que possuem com a
terra, como elemento aglutinador e que possibilita a vivência e interação
com os demais seres (vivos, inanimados e os que são visíveis
materialmente), o que se caracteriza como representações simbólicas, as
quais oportunizam o sentido à vida desses povos. Pode-se, então ponderar
que se trata da afeição com à terra como pertencimento identitário
vinculado ao sentimento topofílico (TUAN, 2012 [1974]).
O pertencimento identitário por sua vez está conectado à cultura, o
que na afirmação de Bonnemaison (2002, p. 101-102) isso ocorre “[...] pela

371
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

existência de uma cultura que se cria um território e é por ele que se


fortalece e se exprime a relação simbólica existente entre cultura e espaço”.
Deste modo, os povos originários como coletivos buscam perpetuar
os valores ancestrais adquiridos pelas sucessivas experiências em continuas
gerações, visto possuírem forte conexão com a natureza, além de a
conhecerem profundamente e praticarem modos sustentáveis, assim como
empregarem experiências plenas de simbologias. Uma das grandes
problemáticas enfrentadas por esses povos, deve-se ao contato estabelecido
com a sociedade não indígena e mesmo antes disso, são as doenças, as quais
associam ao desígnio dos espíritos (MEDEIROS et al., 2018, p. 7). No
processo de cura e a sanidade também atribuem a interseção dos espíritos
que encontram-se presentes nas plantas, águas, ar, rochas, animais, etc.
A doença pode se referir tanto à ampla gama de distúrbios
orgânicos promovidos por agentes biológicos que precisam ser expulsos,
bem como de personificações espirituais, cujos elementos presentes no
corpo do hospedeiro representam materialmente a ação de espíritos, no caso
Parintintin os anhanğ ou anhangá (representação do mal ou diabo). Em sua
compreensão de mundo, um corpo debilitado abre possibilidades para
enfraquecer a alma e o inverso igualmente é válido.
De modo que a doença pode ser “concebida não apenas como
uma disfunção orgânica, biológica, mas como um distúrbio das forças de
natureza social, física e cósmica”, conforme apontado por Santos (2007,
p. 79). Isto significa para os indígenas, que encontrar-se doente é estar
em desarmonia com a natureza e com o coletivo, além do corpo e da
alma, enfim, com as energias que sustentam o meio onde vivem. Para os
Parintintin a doença pode ter duas concepções, conforme mencionado
pelo cacique Severino Parintintin em entrevista em 2015:

Existe uma doença que pode trazer causa de doença mesmo,


às vezes a pessoa trabalha muito, às vezes não tem a
alimentação correta né, pode existir uma doença. Agora,
existe malvadeza, inveja, assim fica de olho na pessoa né! Por
exemplo: existe malvadeza de uma forma que natureza,
normal né. Quem é pajé... faz alguma coisa pra pessoa ficar

372
ALMEIDA SILVA (ORG.)

doente. Aí já é diferente né! É muito difícil um médico fazer


curativo pra aquela pessoa ficar bom né! Se não for espiritual
né, um pajé, uma pessoa que sabe rezar né, não tira aquela
doença daquela pessoa né! Ele vai sofrer, sofrer até morrer né.
Por isso que quem sabe, quem entende as coisas... tem gente
que sabe. Tem coisa que o médico resolve, mas tem coisa que
não dá nem previsão. Às vezes não dá nada. É assim, dá pra
perceber duas coisas, a doença que é normal, que vem do ar
pode ser e tem coisa que vem de malvadeza mesmo né, a
pessoa malvada faz ao outro pra ficar doente né! Esse é mais
perigoso, porque pode ser que esse não tem mais cura. Se não
for rezador, não descobrir aquela doença daquela pessoa ela
morre.

Entender que encontra-se doente pode se referir tanto a aspectos


materiais como simbólicos, mas que se refletem na prática, fisicamente
perceptíveis, há a necessidade de se realizar procedimentos de cura que
podem ser rituais ou não, o que depende da enfermidade ou fenômeno que
se queira expulsar. Nestas circunstâncias as espécies vegetais recebem um
papel primordial, visto que atuam como instrumentos de cura e sinônimo
de saúde física e bem-estar espiritual.
A história da vinculação do povo Parintintin da Aldeia Traíra com
os elementos vegetais encontrados na floresta se estende desde tempos
imemoriais. A relação do ser humano com as espécies vegetais é tão antiga
quanto à própria história humana, e é responsável por transformar a vida e
os aspectos culturais de várias sociedades ao longo do tempo e ao largo do
espaço.
Como meio de se adaptar as mudanças culturais e biofísicas que
ocorrem na relação de espécies vegetais com os seres humanos, esses
passaram a desenvolver saberes empíricos sobretudo daquilo que os cerca,
de seu meio ambiente. Dentre os saberes, os conhecimentos sobre a
utilização das espécies para curar enfermidades é um dos mais valiosos
elementos, os quais são imprescindíveis por assegurar saúde aos povos
originários que sofrem com diversas enfermidades, causadas pela presença
constante de animais, insetos, micro-organismos, espíritos maus, dentre
outros agentes.

373
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Na afirmação de Diegues et al. (1999, p. 30) se constata que esse


conhecimento pode ser “definido como o conjunto de saberes e saber-fazer
a respeito do mundo natural, sobrenatural, transmitido oralmente de
geração em geração”. Em outros termos, significa dizer que a cultura dos
povos indígenas e populações tradicionais está intrinsecamente ligada ao
usufruto da natureza, de maneira que se torna difícil existir uma
classificação dualista, algo que separe ou desassocie vida em relação aos
elementos do meio biofísico das práticas socioculturais, ao contrário, seria
mais comum se observar uma trajeção (BERQUE, 1999, p. 322; BERQUE,
2012, p. 7) um caminhar conjunto entre ambos.
No caso dos povos indígenas, podemos ainda acrescentar que
trata-se de uma transcendência (ALMEIDA SILVA, 2010; 2015), visto que
perpassa a materialidade e incorpora valores adquiridos pelas vivências e
experiências dessas coletividades, as quais não são inteligíveis pelas
sociedades externas.
É mais que um saber prático resultante de acontecimentos diários
e socialmente construídos, em virtude dos vínculos instituídos entre seus
membros, a partir das intersubjetividades e compartilhamentos de vivências
e experiências diversas, que fornecem o alicerce para a construção do
conhecimento, e do desencadeamento na disseminação de valores morais,
culturais, sociais e espirituais, nos quais a natureza é o todo presente nessas
coletividades.
Contudo, não é fechado, guardado em uma “caixa preta”, mas aberto
a novas contribuições, pois, não se resume apenas em acúmulos de saberes
e conhecimentos transmitidos ao longo do tempo, mas em processos
complexos e em perpétua evolução de construção de conhecimentos, que
são constantemente testados pelo movimento do espaço-tempo. São o
resultado daquilo que foi transmitido, do que se aprendeu por conta própria
e da necessidade de se reinventar para seguir seu continuum com a natureza.
Uma imbricação de elementos temporais e espaciais que interconectados
traduzem a gama variada de fenômenos e processos que permeiam a
relação entre humanidade e natureza (STRACHULSKI, 2014).

374
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Tais saberes e conhecimentos versam acerca dessa gama complexa


de elementos cognoscíveis que não se restringem somente acerca de plantas
medicinais ou meras listagens de espécies vegetais, conforme atesta
Almeida (2004, p. 39): “[...] compreendem as fórmulas sofisticadas, o
receituário e os respectivos procedimentos para realizar a transformação.
Eles respondem a indagações de como uma determinada erva é coletada,
tratada e transformada num processo de fusão”.
No presente estudo foram citadas no total 95 espécies utilizadas
para fins medicinais. Nele foram elencadas 16 etnoespécies mais
proeminentes, isto é, com três ou mais citações, sejam elas cultivadas em
quintais ou provenientes da floresta na Terra Indígena Nove de Janeiro
(Quadro 1 e 2).
As espécies de interesse medicinal identificadas na Aldeia Traíra e
seus arredores, pelos Parintintin, podem ter diferentes fontes ou ambientes
de origem como a mata de terra firme “primária” ou secundária (floresta em
seus vários níveis de sucessão), com predomina as arbóreas, mas também
apresenta-se também as lianas; nas áreas de lavouras (cultivos abandonados
ou ativos) sobressaem as herbáceas; e nos quintais e terreiros existem
arbóreas e herbáceas.
O local de coleta e o modo de manusear as espécies depende de
vários fatores, desde a disponibilidade temporal (fases da lua, tempo,
estações do ano), necessidade e interesse por um recurso em especial. Para
utilizar uma espécie e não outra, justifica-se tanto pela disponibilidade na
região e/ou pela configuração sociocultural da comunidade/coletividade
(valores, saberes, etc.), conforme apontam Amorozo (2002); Strachulski e
Floriani (2013); Strachulski et al. (2018).
Isto demonstra certa seletividade em termos de uso de espécies
vegetais, pois grande parte delas não possui nome na língua Kawahib, ou
seja, no passado não eram de seu conhecimento ou de seu interesse e
somente após o contato com o não indígena é que essas passaram a ter
alguma relevância, com isso, receberam os nomes atribuídos pela
população não indígena pelos quais, atualmente, elas são identificadas.

375
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Ressalta-se que muitos dos nomes de espécies vegetais também


podem ter sido esquecidos em virtude das perseguições sofridas pelos
Parintintin, principalmente no período dos seringais e na construção da
Rodovia Transamazônica, além do fato que com o falecimento dos
sabedores (idosos) muito desses conhecimentos foram perdidos ou
substituídos por fármacos não indígenas. A não utilização por sucessivas
gerações podem ter levado ao esquecimento dessas espécies.
Verificou-se que os Parintintin da Aldeia Traíra utilizam as plantas
no seu cotidiano, principalmente a folha, administrada como chá, outras
partes foram citadas em menor grau de uso, tais como casca, seiva, raiz,
fruto, flor e a planta inteira no que se refere a herbáceas. Existem outras
maneiras de preparo dessas espécies, como xarope, garrafada, massagem,
inalação, benzimento e incineração, com respeito a modos particulares de
fabricação, o que inclui ainda as contraindicações. Eles compreendem que
em determinadas situações as pessoas não podem fazer uso de mohanga
com riscos à saúde, como a da saracura por uma gestante, pois a planta
provoca aborto.
No Quadro 1 e 2 foram citadas 23 enfermidades tratadas pelos
Parintintin com a utilização de plantas medicinais e mohanga da floresta.
Dentre as doenças destacam-se: gripes, sistema digestório, trato genital-
urinário e doenças infecciosas como a malária. As plantas podem ser
utilizadas sozinhas ou em conjunto destinadas à uma ou mais moléstias.

376
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Quadro 1: Espécies vegetais mais citadas para o uso medicinal


Nome Nome
Nome Nativa
Família cientí- popu- Usos indicados
indígena Exótica
fico lar
Diarreia; gastrite;
malária; alergia;
problemas de
Jagwarapohã’
Saracura Nativa fígado; dor no
ğa
corpo; dor nas
costas; dor de
estômago
Acmella Jambu/
Asteraceae Mõ’ã’tai Nativa Gripe; tosse
oleracea Cremoso
Bixa Hepatite; hérnia;
Bixaceae orellana Urucum Uruku Nativa infecção urinária,
L. cisto; benzimento.
Tagets Cansaço; começo
Asteraceae Cravo Mõ’ã’tai Exótica
spp. de derrame
Anemia; hepatite;
Euterpe
infecção urinária;
Arecaceae precator Açaí Karadywuhua Nativa
diarreia; dor de
ia Mart.
estômago
Orbigny
a Gastrite; ferrada
speciosa de arraia, formiga
(Mart. tucandeira, cobra;
Arecaceae Babaçu Jubytahu’a Nativa
ex garganta
Spreng.) inflamada;
Barb. benzimento
Rodr.
Bidens Malária; infecção
Asteraceae Picão Nhu’hũ’di Exótica
pilosa L. urinária
Protium
hebetat Breu-
Burseraceae Adywi Nativa Tontura
um D. branco
Daly
Bryophy
llum
Escama-
pinnatu
Crassulaceae de-pira- Ipe’a Exótica Asma
m
rucu
(Lam.)
Oken)
Copaifer Derrame; gripe,
a dor no peito;
Fabaceae Copaíba Mbakupa'yv Nativa
multijug ferida; o mau de 7
a Hayne dias; inflamação

377
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Hymena
Jutaí/Jut
ea
aí- Diarreia; dor de
Fabaceae oblongif Jutay'va Nativa
grande/ estômago
olia
Jutaizão
Huber
Endople
Tosse; diarreia;
ura uchi
Humiriaceae Uxi-liso Madu’uwa Nativa câncer inicial;
(Huber)
inflamação no rim
Cuatr.
Mentha
Gãpya-
Lamiaceae piperita Hortelã Exótica Cólicas
verawa*
L.
Machucadura
(hematomas,
Carapa
Meliaceae Andiroba Tirova Nativa torções, feridas);
spp.
gripe, secreção
nasal.
Syzygiu
m
Myrtaceae Azeitona Ivahũ’di* Exótica Diarreia
cumini
L.
Diarreia; o mal
(criança fica toda
Ruta Hovi’uhu’ve’ea
Rutaceae Arruda Exótica preta e enrola os
spp. *
pés); começo de
derrame; proteção
Fonte: Povo Parintintin. Organizado por Strachulski (2015)
Nota: *Espécies vegetais que não possuíam o nome na língua Tupi-Kawahib
Parintintin, foram denominados por dona Maria das Graças Parintintin, como
uma aproximação linguística em relação a outras espécies de seu conhecimento.

378
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Quadro 2: Espécies vegetais mais citadas para o uso medicinal


Nome Parte Contraindi- Local Modo de
Administração
popular usada cações crescimento propagação
Gestante não
pode tomar
Saracura Raiz Macerado Mata Muda
(risco de
aborto).
Jambu/ Folha/
Xarope/Chá - Quintal Muda
Cremoso flor
Chá/
Mata/Ter-
Urucum Raiz Benzimento - Semente
reiro
Não pode
tomar banho
logo após
Macerado/ tomar o Semente/
Cravo Folha Quintal
Chá líquido (3 muda
horas sem
entrar na
água).
Mata/Ter- Semente/
Açaí Raiz Chá -
reiro muda
Não pode
Garrafada/ tomar se
Fruto/ Mata/Ter-
Babaçu incineração/ estiver com o Semente
folha reiro
xarope colesterol
elevado.
Planta
toda/
Picão Chá - Terreiro Semente
folha/
raiz
Breu-
Seiva Inalação - Mata
branco
Escama-de- Macerado/
Folha - Quintal Muda
pirarucu xarope
Não pode sair
de manhã
Massagem/ (pegar
Seiva/
Copaíba chá/ friagem), Mata Semente
Casca
cicatrizante senão provoca
inchaço no
corpo.
Jutaí/Jutaí-
grande/ Casca Chá - Mata -
Jutaizão

379
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Gestante não
pode tomar
(risco de
Xarope/chá/ aborto); quem
Uxi-liso Casca Mata Semente
garrafada tem
deficiência
mental (“ruim
da cabeça”).
Hortelã Folha Chá - Quintal Estaca
Massagem/ Mata/Ter-
Andiroba Fruto - Muda
Chá reiro
Semente/
Azeitona Casca Chá - Terreiro
muda
Não pode
tomar outro
remédio, nem Estaca/muda/
Arruda Folha Chá Quintal
caseiro nem semente
industriali-
zado.
Fonte: Povo Parintintin. Organizado por Strachulski (2015)

Em vários momentos, durante a entrevista semiestruturada ou


não estruturada, a planta saracura é a mais citada e que praticamente
todos os Parintintin conhecem, pois dela fizeram uso para o tratamento
de várias enfermidades. A espécie é uma daquelas que não foram
identificadas cientificamente, para tanto, buscou-se preservar a identidade
de tal planta, em virtude da mesma possuir um grande poder de cura para o
povo: “O pessoal vem procurar de muito, porque já curou muito sintoma de
câncer” (SEVERINO PARINTINTIN, entrevista em 2015).
O significado de utilidade de uma espécie vegetal varia dentro de
um mesmo coletivo e entre as mais distintas sociedades (Floriani et al,
2016). A saracura, como indicado nos Quadro 1 e 2, é uma planta de uso
essencialmente material. Outros exemplos de uso prático ocorrem com a
aplicação de óleo de copaíba e de andiroba por meio de massagens para
tratamento de lesões e machucaduras (Figura 2).

380
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Figura 2: Utilização do óleo de andiroba – Aldeia Traíra

Fonte: Strachulski, 2015.

Na atualidade, com a ação da Secretaria Especial de Saúde Indígena


– SESAI, os Parintintin utilizam-se de fármacos químicos junto com as
plantas medicinais e/ou os mohanga da floresta. Os fitoterápicos para o
tratamento de moléstias mostram-se muito frequentes e eficientes,
conforme avaliam e transmitem entre as gerações e compartilham no
cotidiano (Figura 3). Tal assertiva é confirmada pelo cacique local Severino
Parintintin (entrevista em 2015): “O Parintintin pode dizer que não usa
remédio do mato, mais usa mais do que da farmácia. Olha aí, todo uxi tem
casca descascada”.
O uxi-liso, citado pelo cacique, é uma espécie muito utilizada por
seu povo na cura de enfermidades, por isso há riscos e a necessidade de
cuidados em extrair partes dessa planta. “Até aqui foi tirado a casca e cresce
de novo. Se tirar tudo ela morre. Tem que tirar só até a metade.
Porque o que segura a vida da árvore é a casca, a água dela”, de
acordo com o cacique Severino (entrevista em 2015).

381
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Figura 3: Cacique Severino indica uxi-liso na mata

Fonte: Strachulski (2015)

Esses conhecimentos sobre as espécies medicinais, levam em


consideração não somente a identificação e classificação de uma planta,
mas incluem também modos de preparo, uso e não obstante os melhores
processos de coleta do recurso, para que não se torne escasso ou deixe de
existir (ALMEIDA, 2004).
As práticas originárias são ressignificadas em novas práticas
híbridas, referentes tanto ao modo de preparo e ingestão do mohanga como
na aquisição das espécies vegetais, que podem ser encontradas tanto
naturalmente na mata (Figura 3) como naquelas plantadas nos quintais e
terreiros (Figura 4).
Os quintais implantados pelos indígenas, uma herança cultural
adquirida da sociedade envolvente aliada a um projeto pretérito (sobre
horta medicinal) da organização não governamental Operação Amazônia

382
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Nativa - OPAN, também se revelam uma boa fonte de espécies medicinais


utilizadas pelos Parintintin da Aldeia Traíra e, diferentemente das espécies
da floresta, são cultivadas em áreas abertas perto de suas casas. Esses
normalmente são ambientes de domínio das mulheres, mas de
conhecimento dos homens também. Por outro lado, as matas são de
domínio quase que exclusivo dos homens.

Figura 4: José Cláudio indica no quintal a espécie escama-de-


pirarucu

Fonte: Strachulski (2015)

Após o contato e ao longo do convívio com a sociedade urbano-


industrial os povos originários tendem a incorporar elementos culturais
externos, para tanto, buscam reequilibrar o que foi perdido ao longo do
tempo. Agregam ao seu complexo sistema cognitivo-cultural práticas e
conhecimentos modernos, os quais se metamorfoseiam e hibridizam
elementos, que se percebem claramente na vida cotidiana, aqui é

383
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

caracterizado pelo manejo de espécies vegetais para uso medicinal


(STRACHULSKI; FLORIANI, 2013).
Os conhecimentos originários, a partir do contato entre
agrupamentos humanos com práticas culturais distintas, seriam “a soma
dos comportamentos, dos saberes, e dos valores acumulados pelos
indivíduos durante suas vidas e em uma outra escala, pelo conjunto de
grupos que fazem parte” (CLAVAL, 2007, p. 63), de modo que integram,
portanto, os elementos internos, próprios de uma cultura, além daqueles
que surgiram do diálogo com outros povos.
Neste sentido, o conhecimento originário, a cultura e a natureza
integram um conjunto único como afirma Aguilera Urquiza (2006, p. 3): “As
populações indígenas, normalmente, têm como base a percepção da
profunda interdependência entre o mundo da natureza (vegetais e animais)
e o mundo dos humanos, entendendo a natureza como algo vivente com
quem podem interagir e estabelecer uma comunicação constante,
apoiada numa visão cosmológica”.
De modo que, além de serem utilizadas para fins práticos, as plantas
podem conter poderes sobrenaturais, pois estão ligadas a práticas
simbólicas de cura, as quais constituem o patrimônio cognitivo de um povo,
que é composto tanto de saberes práticos, como de crenças
(STRACHULSKI; FLORIANI, 2013), de valores culturais e cosmogônicos-
espirituais (ALMEIDA SILVA, 2010, 2015).
Há uma cosmovisão comum relacionada ao mundo vegetal que as
espécies vegetais podem auxiliar no tratamento tanto de doenças físicas
como simbólico-espirituais. Desta maneira, existem plantas que são
indicadas para a cura do organismo e outras para tratar das doenças de sua
alma, como contra maus presságios, mau-olhado, para o espírito do morto
não perturbar os vivos e para proteção como demonstrado nos Quadro 1 e
2, o que encontra respaldo na afirmação dada por Albuquerque (1997, p. 7):
“Paralelo a prática empírica, geralmente vem subjacente todo um sistema de
crendices e ritos vinculados ao emprego das plantas que perdem a visão
objetiva do cientista” (grifo nosso).

384
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Assim como há um hibridismo de utilização prática das espécies


vegetais, no tocante ao uso espiritual também se vê um amálgama de
possibilidades. Para tanto, há a procura dos moradores locais tanto para
receber benzimentos feitos a partir da cosmovisão da cultura indígena
(Figura 5) como daquelas que foram absorvidas pelo estabelecimento do
contato com as populações não indígenas (Figura 6) que habitam às
proximidades da Terra Indígena Nove de Janeiro, inclusive com a
instauração de relações que resultaram em parentesco (casamento
interétnico).
As doenças do corpo naturalmente são tratadas mediante uso
prático das espécies vegetais medicinais, enquanto as espirituais, da alma,
culturais com a realização de benzimentos – também com plantas, em razão
destas serem dotadas de espíritos. Os benzimentos são realizados em
qualquer momento ao se referir a práticas não indígenas, por outro lado as
que se referem aos indígenas, são pontuais e ocorrem em momentos
especiais e com a utilização de urucum, como se verifica em caso de
falecimento.
Os benzimentos Parintintin são rituais que servem para a
prevenção, proteção, cura de doenças, além de afastar os anhanğ, daqueles
que morreram no local e considerados como inimigos, os quais aparecem
numa situação de fragilização espiritual para trazer maus presságios ou
desunião entre o povo. Estes seriam espíritos dos mortos, bestas ou
demônios que representam simbolicamente ainda ameaças à saúde,
produzem desorientação, demência e morte (KRACKE, 1984).
Para amenizar a ação dos anhanğ é preciso realizar rezas e rituais
provenientes dos saberes e do auxílio de espíritos elevados (demiurgos) que
com seu poder cosmogônico e dotados de experiências territoriais e
culturais que inibem astutamente espíritos causadores de males e,
consequentemente, orientam e promovem o fortalecimento espiritual e
físico dos vivos (ALMEIDA SILVA, 2010; 2015). No mesmo sentido, Carlos
Parintintin (entrevista em 2015) corrobora com a ideia expressa, ao
considerar que “Esse é feito só quando morre alguém, é pra pessoa gozar de

385
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

saúde pra frente, pra não pegar alguma doença feia. Faz-se com o urucum,
porque ele não morre nunca”.

Figura 5: Benzimento com urucum, após o falecimento de Parintintin

Fonte: Strachulski (2017)

O ritual de benzimento feito por Maria das Graças Parintintin deu-


se em virtude do falecimento de seu esposo, cacique Manuel Lopes
Parintintin, no dia seguinte à sua passagem terrena para outra dimensão da
vida. Para tal, ela utilizou-se de galhos de urucum e benzeu várias pessoas
da Aldeia Traíra, no período da manhã, o que simbólica e espiritualmente
tinha o significado para que essas pudessem gozar de saúde e juventude,
além de libertar o espírito do falecido do plano terreno e para que passasse
a proteger seu povo. Ela passava as folhas principalmente no rosto das
pessoas idosas e jovens, bem como nas pernas, braços, costas, etc.
Outro modo de libertar, afastar o espírito e/ou evitar que ele venha
a trazer sentimentos negativos para os parentes é fazer uma pulseira com

386
ALMEIDA SILVA (ORG.)

abacaxi e amarrar no punho, conforme descreve dona Maria das Graças


Parintintin (entrevista em 2015):

Esse aqui tem um segredo. A folha de abacaxi a gente tira e


faz pulseira e amarra no braço, na perna, que é pra pessoa não
chorar, não ter sentimento, esse aqui não morre nunca. Não
dizer que viu sombra da pessoa, que ela está aparecendo,
chamando. O Joel já tá todo amarrado, eu amarrei nos braço
e nas perna dele.

Entendemos que essa ação também possui o sentido que o indígena


falecido ao passar por essa ritualística fúnebre continuará no plano espiritual
a proteger seus parentes e o território.
Deste modo, os Parintintin apresentam uma qualidade singular de
ressignificar e reconstruir seus saberes acerca das espécies medicinais e
rituais utilizados para curar enfermidades e/ou afastar maus presságios, num
processo dinâmico e em perpétua constância, pois realizam trocas com
outros saberes que podem ser complementares e/ou conflitantes.
Com isso incorporam e aceitam também os benzimentos feitos
pelos não indígenas, como se verifica na Aldeia Traíra que há um não
indígena, casado com uma Parintintin que realiza tais práticas. Também
existe indígena que realiza essa prática com preceitos derivados da cultura
externa, assim ocorre a procura de muitos do entorno da TINJ para que
auxilie na cura de males do corpo ou da alma. Por reiteradas vezes
comentavam que o senhor Raimundo Nonato ou a dona Raimunda
Parintintin tinham curado o filho de um ou outro parente da referida Aldeia.
O benzimento realizado pelo não indígena Raimundo Nonato
ocorreu devido à uma ferroada de caba ou vespa no pesquisador Juliano
Strachulski (Figura 6). Contudo, cabe destacar que o mesmo procedimento
anteriormente foi realizado por Marivaldo Parintintin que recomendou
procurar o outro benzedor para dar prosseguimento ao tratamento iniciado,
pois tinha compromisso na cidade para atender as demandas de seu povo. O
sintoma identificado pelos curadores denomina- se de “vermelho”, o que se
pode entender como inflamação.
Para o benzimento, utilizaram-se folhas de uma espécie
popularmente conhecida na região por vassourinha, que era passada no pé
inchado no sentido horizontal e vertical, para tanto, ambos os curadores

387
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

inicialmente fizeram o sinal da cruz, o que está relacionado aos valores do


cristianismo católico, o que reflete, portanto, a hibridização de práticas
culturais e espirituais. O vegetal também era passado do pé para fora, com o
sentido e o objetivo de expulsar a dor e o problema para fora do corpo.
Durante a reza seu Raimundo Nonato passava a planta no pé e no prato com
água e sal. Em seguida, após o término da reza, jogava tudo fora.
Como constatado por Santos (2007) com os Enawene-Nawe e em
outros estudos (STRACHULSKI; FLORIANI, 2013; ALBUQUERQUE, 1997;
AMOROZO, 2002; ALMEIDA SILVA, 2010; 2015), entre os Parintintin os
conhecimentos sobre a utilização de espécies vegetais e a cura de
enfermidades são transmitidos, ao longo do tempo, entre as várias gerações,
ou seja, de pais para filhos e netos, entre as famílias, em vários momentos,
como aqueles que ocorrem com as excursões pela mata, durante a coleta das
plantas e, mesmo, no processo de preparo de mohanga nas suas casas ou em
outros locais.

Figura 6: Benzimento realizado com planta e ensinamento do não


indígena

Fonte: Strachulski (2015)

388
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Enfim, essa relação com a terra, com as plantas nos remete ao início
de nosso trabalho que há a cura, há a possibilidade de compreendemos a
natureza, de compartilhar e adquirirmos novos conhecimentos dentro de
uma perspectiva geográfica, a qual está imbricada de representações
simbólicas e subjetividades estabelecidas a partir das experiências e vivências
concretas ou daquelas resultantes das trajeções ou das transcendências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo acerca dos etnoconhecimentos Parintintin mostra que o


emprego de espécies vegetais para tratamento de enfermidades tem
contribuído para sua permanência e subsistência, o que oportuniza certa
autonomia em relação à medicina moderna. Apesar da existência de uma
farmácia da Sesai na Aldeia Traíra, eles ainda fazem constantes usos dos
mohanga da floresta e das plantas medicinais.
Estudo como o apresentado aqui revela a relevância desses
conhecimentos e saberes originários, daí decorre a necessidade de sua
manutenção e preservação, além de apontar a conscientização refletida por
suas práticas de manejo ambientalmente adequadas acerca das espécies
vegetais, o que proporciona dessa valorização, bem como da cultura do
povo Parintintin.
Os Parintintin da Aldeia Traíra demonstram grande conhecimento
e capacidade de utilização das espécies vegetais para a produção de
mohanga e cura de enfermidades, como pode ser constatada na citação de
95 nomes populares para os mais diversos fins de tratamento de doenças do
corpo e do espírito, ressalta-se, entretanto, aqui foram especificados apenas
aqueles que tiveram maior empregabilidade e expressividade para essa
coletividadeindígena.
Os conhecimentos acerca dessas plantas transmitidos oralmente
por sucessivas gerações e mediante processos de aprendizado prático, tem-
se constituído um destacado acervo, o que caracteriza uma respeitável fonte
de informações, ao tempo que o cuidado e o respeito que os Parintintin
possuem com a natureza e com a biodiversidade deveria receber o devido
reconhecimento pela sociedade envolvente.

389
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

As espécies vegetais conhecidas e manejadas por esse povo


originário apresentam tanto um valor de cura para enfermidades do corpo,
para tratar doenças causadas por micro-organismos, como para fins
espirituais, de modo que na concepção Parintintin busca expulsar os
causadores dos males da alma e proporciona a proteção espiritual com
intermediação das orações, rezas e benzimentos.
Evidencia-se que com o contato e ao longo do convívio com a
sociedade não indígena, os Parintintin adquiriram valores e práticas
culturais externas às suas, mas que permite o convívio de realidades que ora
se apresenta harmônica, ora divergente. Em tal sentido, pode-se utilizar
espécies medicinais da mata edo quintal em conjunto, além dos fármacos
industrializados.
Não obstante, as práticas xamânicas também movimentam-se por
um processo de ressignificado e/ou mudança e em diálogo com novos
sistemas de ideias, pois se presenciou tanto o seu benzimento tradicional
com o urucum, bem como aquele adquirido a partir do intercâmbio cultural
e espiritual com o não indígena. Mas apesar de constantes alterações, as
práticas habituais de curas ancestrais continuam presentes em suas vidas e
não se descaracterizaram com o contato e convívio com a sociedade
envolvente.
Os mohanga encontrados nas florestas e de uso imemorial, ou
plantas medicinais cultivadas em seus quintais e de origem externa, são
espécies amplamente conhecidas e manuseadas pelos Parintintin e com
elas mantêm o respeito, visto entenderem que igualmente às existentes na
floresta, essas são dotadas de espiritualidade, portanto, importantes para a
sanidade do corpo e do espírito.
Assim, somam-se aos seus saberes, etnoconhecimentos e práticas
novos componentes que se hibridizam e mostram a capacidade de
ajustamento dos povos originários aos diferentes contextos histórico-
culturais e ambientais, num processo de reinvenção e ressignificação do
cosmo e de sua apreensão, enquanto protagonistas de seus próprios modos
de vida, ainda que tenham enormes desafios que são colocados em sua
cotidianidade.

390
ALMEIDA SILVA (ORG.)

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KAXARARI MAHI KA WA HUWYTA BILI HÃSHU BILTU
HUIHIMITU Y KUPA HÂSHU WETU HATU IKY WAI HÂSHU
TXULUTU MA’A

O LUGAR KAXARARI – DO JOGO DA BOLA DE CAUCHO AO


RITUAL SAGRADO DO KUPÁ 1

Francisco Marquelino Santana


Josué da Costa Silva
Adnilson de Almeida Silva
Marcondes Kamakuna Alves Rodrigues Kaxarari

Iysatani – Bybu ka lu huni Kaxarari ka lu huwi wyspi hunay iky lu


mahy ka Rondônia. Tshyshpi batxi kãtxuu Tihihi iky y Amazana tshyshpi
hatu y batxi hutxûshu tshyshpi hatu. Bybu ka lu huni ka. Wa lû bcatahi y
lû huimhinitu hatuyo. Iky, y Lû Kaxarari ka wa amazananã tu by huni lu
iky. Ywa lu huwi kaiiky wai pyhileinu ishw makã lu huihumitw e bytahi
ka ika. Yalty ka lu Kaxarari ka pyhi ky ma’a lu beatahi y huitu nitu hatw
ka, yalty ka lu mwluhiy bilhi hatu wakaitxabyk, hayamak. K lu Brasil Ka,
bayamaki. (O povo indígena Kaxarari, de família linguística Pano, habita
um território que fica localizado no Sul do Amazonas e Noroeste de
Rondônia. Seus rituais e mitos são saberes milenares cosmogônicos que
estão imbricados nos seus originais modos de vida da floresta amazônica
sul-ocidental brasileira. No bojo deste artigo nos propomos a
embrenhar-se neste mundo transcendental que do singularao plural são
aspectos considerados de grande relevância para a organização do lugar
Kaxarari, nós buscamos elucidar a problematização dos jogos e
ritualísticas deste povo).

INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado de uma pesquisa de longa convivência


realizada na Terra indígena Kaxarari, mais precisamente a partir da
primeira década de 1990, em que iniciamos as nossas primeiras visitas

1 Trata-se de um texto inédito, visto que não foi publicado em periódicos ou


livro.

397
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

nas aldeias existentes nesta área, a saber: Aldeia Pedreira, Aldeia


Paxiuba, Aldeia Central, Aldeia Barrinha e Aldeia Marmelinho.
Posteriormente foram criadas mais quatro aldeias: Kawapu, Nova e
Buriti e Tshakuby, o que totaliza-se nas atuais nove aldeias indígenas
distribuídas ao longo do território.
O texto é composto por três seções. Na primeira é denominada
“Percurso Kaxarari”, abordamos os procedimentos metodológicos da
pesquisa. O método utilizado foi o da fenomenologia, principalmente a
da imaginação de Gaston Bachelard (1989) e a do imaginário amazônico
de Paes Loureiro (2010). Ainda utilizamos a metodologia da pesquisa
participante, no qual nos apoiamos nas contribuições de Schimdt (2006)
e Brandão e Streck (2006), bem como buscamos mostrar o
entrelaçamento de convivência e participação dos autores como parte
indissociável da coletividade originária Kaxarari.
Na segunda seção, intitulada “O lugar Kaxarari”, utilizamos a
Terra Indígena de mesma denominação étnica como caracterização da
área de estudo e o lugar é aqui ponderado como categoria de análise
geográfica. O lugar traz como aporte teórico num diálogo construído
com Dardel (2015), Tuan (1983) e Holzer (2014).
Na terceira e última seção, denominada “Do jogo da bola de
caucho ao ritual sagrado do Kupá”, utilizamos as contribuições
fornecidas por Masô (1919); Bachelard (1989); Almeida Silva (2015);
Kamakuna (2021) e Eliade (1991).
Neste sentido, apresentamos no contexto dessa população
originária amazônica, uma cosmogonia transcendental poetizante
estabelecida por meio de uma conexão espiritual entre o povo Kaxarari
(Hunikuni), a natureza inebriante e sua relação divinal, e a sua
simbologia estetizante de seus modos de vida devaneantes realizada
através de seus jogos originais e rituais cosmogônicos.

398
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O PERCURSO KAXARARI - PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A Terra Indígena Kaxarari possui uma população estimada em


520 pessoas (FUNAI/Extrema, 2018), distribuída numa área de
145.889ha, localizada parte no sul do Amazonas e no noroeste de
Rondônia.
No contexto deste percurso Kaxarari a nossa pesquisa está
voltada para a vivência desta coletividade no método na fenomenologia
da imaginação e do imaginário amazônico e na técnica da pesquisa
participante.

Figura 1: Localização das Aldeias da Terra Indígena Kaxarari

Fonte: RAISG (2020). IBGE (2019)

A VIVÊNCIA KAXARARI NA FENOMENOLOGIA DA IMAGINAÇÃO E NO


IMAGINÁRIO AMAZÔNICO

No ser do pertencimento Kaxarari não há cisão entre o


sentimento e aos seus modos de vida no ato transcendental de seus

399
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

originários imaginários ancestrais. Neste mundo vivido do imaginário


encontramos suporte teórico na Fenomenologia da imaginação de
Gaston Bachelard (1989), pois é neste mundo vivido cosmogônico onde
nos deparamos com a imaculada essência da imagem.
Na poética do espaço, Bachelard nos proporciona uma
devaneante viagem a um autêntico estado de ser ou a um original
processo que leve a condição humana a um estado da alma. Nesta
peculiar poética divinizante da Fenomenologia da imaginação, a imagem
para a singular reflexão do autor “é uma imagem que emerge na
consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do
homem tomado em sua atualidade” (BACHELARD, 1989, p. 2).
Ainda no contexto da poética desta imaginação cosmogônica,
encontramos em Loureiro (2010), um suporte teórico que nos
encaminha a um imaginário amazônico de “uma poética de estado
reinocentado” (p. 82). Para o mesmo autor esta poética é um singular e
plural entrelaçamento cultural que é cosmogonicamente conduzida por
um conjunto estetizante de devaneios que alça voo em asas de liberdade
através de um processo que emana nas simbologias em “forma” de
exuberantes devaneios míticos da verde mata.
Este singular e plural espaço de ação Kaxarari resultou num lugar
original, imbricado no sentimento, no pertencimento e na alma desta
dadivosa e encantatória coletividade da Amazônia sul-ocidental
brasileira.

A VIVÊNCIA KAXARARI NA PESQUISA PARTICIPANTE

A metodologia utilizada na construção desta produção científica


foi utilizada a pesquisa participante, face à uma convivência de
aproximadamente 30 anos que os autores possuem junto às aldeias
indígenas Kaxarari. Não consideramos nenhuma coletividade humana
como objeto de pesquisa, mas sim, sujeitos, agentes e atores que
convivem entrelaçadamente com estes pesquisadores.

400
ALMEIDA SILVA (ORG.)

Para o desenvolvimento desta pesquisa nos apoiamos nas


contribuições de Schmidt (2006) e Brandão e Streck (2006). A nossa
investigação parte do conceito de almas impregnadas entre pesquisados
e pesquisadores numa abordagem sem estigmatizações ou estereótipos
que nos proporciona uma autorreflexão que une a teoria e a prática no
sentido de investigarmos com mais alteridade, mais originalidade e mais
autenticidade no intuito de cada vez mais renovarmos as práticas
metodológicas de pesquisas, vigentes no campo acadêmico de produção
científica dos programas de pós-graduação.
No caminhar deste mesmo contexto, Schmidt (2006, p. 39),
acrescenta com relevância que “a pesquisa participante, neste cenário,
representa um caminho ou uma via de aprofundamento desta
renovação, pois, buscando, o sentido da alteridade, pressupõe à
autorreflexão”.
O lugar das coletividades originárias amazônicas é um conjunto
imensurável de valores axiológicos, é um aconchego de originalidade,
autenticidade, alteridade e um legado milenar de simbolizações,
significações e presentificações que nos norteiam a tornar a pesquisa
participante uma fonte inesgotável de saberes e fazeres amazônicos,
representado, por exemplo, nas ritualidades mitológicas de seus povos.
(Figura 2).
A exuberância e vivacidades de seus ritos e mitos favorece a
junção prático-teórica de uma pesquisa participante de vivência que, de
acordo com Brandão e Streck (2006, p. 8):

É um convite feito a várias vozes e segundo vários estilos,


para que aprendamos também a não apenas pensar o outro
através de nós mesmos – nossas práticas, nossas ideias,
nossas posturas e teorias - mas a nos pensarmos a nós
mesmos através do outro.

Desta maneira, devemos além de estarmos na coletividade,


estarmos com a coletividade e buscar o sentimento de pertencimento

401
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

desta coletividade por intermédio de seus modos de vida ancestrais e


transcendentais como podemos observar no lugar Kaxarari.

Figura 2: Aldeia Barrinha – Terra Indígena Kaxarari

Fonte: Os autores (novembro de 2018)

O LUGAR KAXARARI

Como podemos observar na seção anterior e suas subseções, a


vivência de várias décadas junto ao povo Kaxarari nos permitiu por meio
do método fenomenológico, vinculado à pesquisa participante, formular
estratégias no sentido de conviver, observar, participar, instigar,
investigar, identificar e internalizar as coletividades identitárias e o seu
lugar.
O território indígena Kaxarari se estendia antigamente do
noroeste boliviano à Amazônia sul-ocidental brasileira e atingia o
tríplice limite nacional entre os Estados do Acre, Rondônia e Amazonas.

402
ALMEIDA SILVA (ORG.)

O território deste brioso povo atravessou diversos períodos


históricos marcados pela dominação e resistência na incansável luta pela
sobrevivência e neste processo de dominação e resistência pelo lugar, os
Kaxarari sempre mantiveram uma relação natural de vinculação com a
natureza e neste espaço de ação, apesar de uma história de
encurralamento e desterritorialização, jamais desistiram da busca pelo
pertencimento do lugar e pela empatia dadivosa do bem viver, sempre
imbricados numa paisagem, ora possuída pelo sentimento inefável da
coletividade, ora alijada pelo descalabro da sociedade envolvente.
Destarte, podemos afirmar que “a paisagem não é em sua
essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar
de um combate pela vida, manifestação do seu ser” (DARDEL, 2015, p.
32).
A indissociabilidade do ser humano no espaço e tempo é produto
de uma desmesurada experiência do espaço vivido. Este processo de
imbricação íntima está divinamente entranhado na ontologia
transcendental da alma. De acordo com Tuan (1983, p. 51), “o espaço
transforma- se em lugar à medida que adquire definição e significado”. A
definição e significado de lugar é resultado da existência humana na
territorialidade, espacialidade e temporalidade das populações
tradicionais e originárias do hibridismo planetário geo-histórico.
O povo indígena Kaxarari no seu espaço de ação possui uma
milenar história de migração sempre à procura de um lugar que lhe
oferecesse segurança, paz e pertencimento aos seus modos de vida
originários identitários de sua peculiar coletividade. Conforme nos
esclarece Tuan (1983), uma identidade de lugar se alcança pela
dramatização das aspirações, necessidades e ritmos funcionais da vida
pessoal e dos grupos.
O povo Kaxarari (Hunikuny) de família linguística Pano
distribuía-se a partir do século XVII nos territórios do noroeste boliviano,
leste do Acre, oeste de Rondônia e sul do Amazonas. Além dos Kaxarari,
outros povos indígenas também faziam parte do grupo Pano, tais como:

403
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Chacobo, Pakawara, Atsahuaca, Yamiaca, inclusive outros povos já


extintos.
Conforme relata o engenheiro da Comissão Tríplice de Limites
Territoriais, Brasil- Bolívia-Peru, João Alberto Masô (1919): “O rio Ituxi,
70 milhas mais abaixo da cachoeira Fortaleza, recebe o seu afluente
direito Curequetê, nas nascentes deste tributário se encontravam os
índios Kaxarari”. Em conformidade com o mesmo autor, o povo Kaxarari
eram do tipo alto, espadaúdo e de cor bronzeada. Trabalhadores, dóceis
e dedicavam-se à agricultura com certo interesse, desenvolviam
especialmente a cultura do fumo, da batata, do milho e da mandioca, mas
que a sua alimentação preferida consistia basicamente em peixes, frutas
e carne selvagem, que eram abundantes naquela região durante as
primeiras décadas do século XX.
Na caudalosa mata, o povo Kaxarari procurou manter uma
relação divinal com a majestosa natureza, mediante o respeito e
valorização de seu habitat natural, protegia-se e percorria seus ancestrais
varadouros em formato de labirinto e alimentava-se apenas o suficiente
para manter-se entrelaçado de modo inefável e equilibrado no seu colo
a mãe-terra divinizada.
De acordo com Masô (1919), a relação deste povo com
determinados animais da mata era de um imbricamento coletivo
encantatório: “Criam no terreiro diversas aves silvestres que servem
exclusivamente de adorno, admirando seu curioso canto e as belas
plumagens”. (p. 98). Por sua vez Bachelard (1989) nos afirma que uma
espécie de atração de imagens, concentra as imagens em torno da casa,
“portanto, é preciso dizer como habitamos o nosso espaço vital de acordo
com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num
canto do mundo” (p. 24).
Ainda para Masô (1919), o espaço de ação Kaxarari quando de
suas passagens pelas aldeias eram basicamente compostas de 15 a 20
malocas, ou para ele, uma espécie de grandes choupanas, toscamente
construídas, cobertas de folhas de jarina Phytelephas sp., cuja palmeira

404
ALMEIDA SILVA (ORG.)

produz um cacho de coco de um belo marfim, próprio para o fabrico de


botões, dados, rosários, fichas, dentre outros diversos adornos culturais
daquela etnia. Sobre o interior das malocas, o autor (1919, p. 98)
apresenta a seguinte descrição:

As malocas são espaçosas, podendo agasalhar até dez


famílias ou aproximadamente umas quarenta pessoas (...)
para evitar a entrada dos morcegos perigosos nas suas
sangrias, as habitações possuem apenas duas aberturas ou
portas, que à noite são tapadas com peles de onça ou de outro
animal quadrúpede.

Atualmente são construídas na Terra Indígena Kaxarari grandes


malocas abertas, conforme Figura 3.

Figura 3: Atual maloca aberta Kaxarari

Fonte: Os autores (junho de 2017)

O lugar Kaxarari em sua ancestralidade é uma deslumbrante


demonstração de sentimento e pertencimento pelo seu espaço de ação,
ao mesmo tempo uma peculiar e estetizante celebração dos sentidos,
onde as realizações de suas memórias coletivas eram fecundadas por

405
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

originárias ontológicas pela diversão da bola de caucho e de seus rituais


xamânicos como veremos a seguir.

O LUGAR KAXARARI – DO JOGO DA BOLA DE CAUCHO AO RITUAL


SAGRADO DO KUPÁ

A ritualidades ancestral Kaxarari é produto identitário milenar


de sua coletividade no entrelaçamento ontológico do espeço vivido e
suas relações simbólicas com a espiritualidade do mundo sagrado nos
seus originais modos de vida. Masô afirma que “além dos
entretenimentos habituais (...) os Kaxarari divertiam-se com o jogo de
bola, o qual se aproxima do futebol” (1919). O autor nos oportuniza a
conhecer detalhes relevantes sobre o jogo da bola de caucho ancestral
Kaxarari:

A bola que empregam é de caucho bem imprensado, pesando


seguramente uns três quilos. Os jogadores revestem o joelho
e o pé correspondente com uma pele qualquer. O jogo é feito
no verão, no tempo da seca, em terreno bem nivelado e limpo,
de dois hectares aproximadamente. Organiza-se a partida e
imediatamente uma comissão visita as malocas amigas para
fazer o convite da festa que terá lugar daqui a tantas luas, e
precisamente, no tempo marcado se unem quase todos os
moradores da tribo, havendo além do tal jogo outras
distrações muito animadas. (MASÔ, 1919, p. 98-99).

Ainda em conformidade com o autor (1919), no jogo de foot-ball


utilizavam a bola de caucho, que se inicia com um grande entusiasmo,
sendo observado as regras estabelecidas. “Os prêmios que se devem
conferir aos vencedores ficam em exposição, que são missangas diversas
muito curiosas da indústria indígena” (p. 99).
Importante ressaltar que o jogo da bola de caucho não era jogado
com os pés, mas sim com os joelhos e os vencedores formados de cada
aldeia, saíam na vantagem aqueles que não deixassem a bola cair no
chão.

406
ALMEIDA SILVA (ORG.)

No mesmo espaço destinado ao jogo da bola de caucho, era


também realizado o Kupá pelos Kaxarari, o qual constitui-se como um
dos muitos dos rituais sagrados das coletividades indígenas amazônicas
– estes rituais por sua vez estão originalmente radicados nos seus modos
de vida ancestrais.
Neste sentido, Almeida Silva (2015) considera que nesses ritos
os espíritos mortos são evocados e evidenciam a depuração psíquica e o
imaginário indígena têm sentido representativo de “forma” física, isto é,
não estão somente evocados, mas também presentificados por meio da
memória e na referência de valores ensinados aos vivos. Em
conformidade com o autor, “O rito se apresenta como o desvelamento da
cultura material e imaterial como manifestações da cultura cosmogônica
estabelecidas no espaço de ação e atuam sobre a territorialidade”.
(ALMEIDA SILVA, 2015, p. 76).
Este autor denomina essas peculiaridades materiais e imateriais
de “marcadores territoriais estruturantes”, pois avalia os valores sócio–
linguístico–culturais dessas coletividades originárias e ainda realiza com
grande relevância, o antagonismo existente entre estas singularidades e
pluralidades dos povos indígenas da Amazônia com a interferência
ardilosa e aterrorizante da sociedade envolvente por intermédio dos
“marcadores territoriais estruturadores”.
Os marcadores territoriais estruturantes das coletividades
indígenas amazônicas estão desta maneira pregnados aos
pertencimentos autênticos e imaculados dos modos de vida desses povos
originários, conforme enfatiza Almeida Silva (2015, p. 76): Assim, o
pertencimento está relacionado à lógica das representações e às formas
simbólicas com que os ritos surgem como fenômenos que possibilitam
as relações socioespaciais, realizam a territorialidade e expressam os
marcadores territoriais. Na realidade, a configuração do espaço como
marcador territorial, está vinculado à relação com o meio, com isso
supera a objetividade material, pois se insere na cosmogonia em que a
simbologia e de todos os reflexos das interações e percepções produzem
cultura, sociedade e espaço.

407
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

O ritual sagrado do Kupá Kaxarari era destinado especialmente


aos representantes dos clãs. Kupá é uma árvore amazônica que produz
uma vagem da qual são extraídas as sementes e que juntas são torradas
e moídas para serem utilizadas durante o ritual. Para Kamakuna Kaxarari
(2021), os anciãos sempre falavam que o líquido produzido para a
fabricação do Kupá era feito da casca do fruto e das sementes. Para Masô
(1919), essa substância era extraída das folhas da árvore:

Esse hábito só é permitido aos patriarcas das tribos. O


preparo é feito de uma planta por eles perfeitamente
conhecida. As folhas são postas em infusão na água numa
panela de barro e depois trituradas dentro de uma cabaça de
castanha até se conseguir um líquido escuro e meloso (p. 99).

O autor em questão prossegue com a afirmação que neste mesmo


campo onde era realizado o jogo da bola de caucho, formava-se uma roda
dos anciãos das aldeais, liderada respectivamente pelo cacique em que
diversos assuntos eram ali discutidos, tais como: das pretensões das
tribos inimigas e dos brancos que despoticamente insistiam em dominá-
los. Ainda durante este ritual eles também utilizavam o rapé, o que
provocava no grupo repetidos espirros.
Kamakuna (2021) afirma que durante o ritual os homens
injetavam o Kupá no orifício corporal anal por meio de um pequeno
instrumento semelhante à uma seringa injetável da atualidade. Esta
seringa era confeccionada de um osso da asa da arara ou do gavião e que
era envolvido por uma cobertura de caucho. As informações de
Kamakuna se assemelham com as informações fornecidas por Masô
(1919):

Cada velho está munido de um saquinho de borracha


contendo um tal líquido meloso e de uma pequena seringa
feita de caucho e canela de Jacamy que injeta na quantidade
de uma colher de sopa. O efeito é rápido: Passados uns cinco
minutos, o índio velho começa a se contorcer, agitar-se, varia,
advinha e que como influenciado pelo ópio ou morfina,
sonha, idealizando cenas maravilhosas ou combates

408
ALMEIDA SILVA (ORG.)

encarniçados. Ouve os toques das buzinas e presencia o


inimigo avançando lá pelas bandas do nascente já
atravessando os igarapés nos seus domínios.

Observemos a original relevância espiritual indígena Kaxarari


durante a realização deste devaneante momento de suas ritualísticas
sagradas ao sonhar com combates da invasão inimiga a suas terras e ao
seu lugar. Neste sentido, tem-se a junção dos símbolos com a realidade, o
que é relevante na análise oportunizada por Eliade (1991, p. 30):

basta termos o trabalho de estudar o problema para


constatarmos que, difundidos ou descobertos
espontaneamente, os símbolos, os mitos e os ritos revelam
sempre uma situação limite do homem e não apenas uma
situação histórica. Por situação limite entendemos aquela
que o homem descobre tomando consciência do seu lugar no
universo.

Ainda durante o ritual sagrado do Kupá havia um momento


considerado muito especial para a coletividade indígena Kaxarari: a
buzina de pedido ao Deus Tsurá para chamar o espírito da onça (Inawá).
O pedido era utilizado por meio de um pedido original de sopro,
confeccionado de barro e denominado Maciná, que provoca um som alto
e grave, semelhante ao som de uma sirene ou buzina de veículos.
O som do Maciná ecoava floresta adentro e o espírito da onça
escutava e ela imediatamente sabia que havia alguém lhe chamado.
Antes, porém, do espírito chegar no ritual sagrado, as mulheres já haviam
preparado o mingau de banana para o espírito beber. Somente as moças
virgens da aldeia deviam levar as cuias de mingau para o cacique, pajé e
demais patriarcado das aldeias que participavam do ritual.
As moças virgens selecionadas individualmente levavam uma
cuia de mingau de banana e colocavam ao redor dos homens. Depois de
ouvir o som do Maciná, o espírito da onça chegava e durante quase meia
hora os homens eram envolvidos com o espírito e que eram possuídos por
várias visões de alerta à defesa do povo do lugar. O espírito só
desaparecia na mata depois que bebia todas as cuias de mingau.

409
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Depois da saída do espírito da onça e próximo do final do ritual,


todos os homens que participavam do ritual sagrado ficavam como que
“ressaqueados”, todos sem força. Era chegado o momento final de ser
injetado a última dose de Kupá, pois esta traria a recuperação física e
espiritual dos que participaram do ritual sagrado, com isso voltava-se
todos à normalidade.
Após o término do ritual as visões obtidas durante todo o
desenvolvimento da ritualísticas por ordem do Deus Tsurá no encontro
com o espírito da onça, eram enfim, reveladas através de uma assembleia
com todos os clãs presentes.
Era o momento de todos retornarem às suas aldeias, cientes da
luta e resistência que mais uma vez teriam que travar contra a dominação
e escravidão do homem branco que insistia em provocar o mais
enfadonho e triste etnocídio contra as originárias coletividades da
Amazônia brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O lugar Kaxarari divinamente entranhado à natureza exuberante


atravessou diversos períodos históricos que culminou com a escabrosa
da extinção da grande maioria do seu povo. Os devaneios divinizados do
Kupá e o original entretenimento do jogo da bola de caucho, ficaram no
imaginário privilegiado e estetizante desta milenar etnia de família
linguística Pano.
Na celebração fascinante dos jogos e rituais sagrados, este
sublime povo encontrava nos seus ritos e mitos uma configuração
cosmogônica de se defender da maldição imposta pela sociedade
envolvente, que encurralava, asfixiava, desterritorializava e exterminava
esse singular e plural povo indígena da Amazônia sul-ocidental
brasileira.
As desmesuradas encantarias simbólico-mitológicas do povo
Kaxarari foram no espaço e tempo, substituídas por práticas religiosas
arbitrárias de ideologias reacionárias, procedentes de diversas missões

410
ALMEIDA SILVA (ORG.)

europeizadas estigmatizadoras e estereotipadas dos saberes e fazeres do


lugar devaneante-cosmogônico desta deslumbrante etnia indígena.
Mesmo com o dilaceramento de suas relações ontológicas
originárias, o povo Kaxarari (Hunikuny) não perdeu a valentia da Inawá
(onça), não perdeu a harmonia de trabalho da Bunapsi (formiga
tucandeira), nem o salto vitorioso do Kahu (veado capoeira). O povo
Kaxarari jamais perdeu o encanto da sua árvore (Hiwi) sagrada do Kupá e
jamais deixou de encher o pote (Mapupahu) da alma da superação, da
esperança e do bem-viver.
O povo indígena Kaxarari continua a se proteger das práticas
ardilosas da sociedade envolvente, inspirada pelos adornos originais do
lugar. Esta inspiração pode está presente no cantar irradiante do tucano
(Xuki), no caminhar paciente e cauteloso do tracajá (Nisa), na rapidez e
astúcia do jacaré (Kapiti) ou no equilíbrio inebriante do macaco (Isuma).
A formosura Kaxarari é a beleza da arara (Kala) e o aconchego e
segurança da casa (Xumitxa), no lugar onde cada ser estende a sua mão
(Mikili) um ao outro, para enfim, poder superar as aflições de um mundo
capitalista globalizado que constantemente insiste em desalojar suas
almas da mais holística e peculiar originalidade.
O Kaxarari (Hunikuny) jamais deixará que a sociedade
envolvente o retire do seu ninho (na‘a) original, ainda que tenha sido alvo
fatal do mundo da Kanatahi (espingarda). No entanto, permanecem e
resistem bravamente de olho (binapu) aberto, e na defesa legal e
constitucional dos seus direitos.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA SILVA, A. Territorialidades, identidades e marcadores


territoriais Kawahib da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau em
Rondônia. Jundiaí: Paco, 2015.

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

DARDEL, E. O homem e a terra. São Paulo: Perspectiva, 2015.

411
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

ELIADE, M. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-


religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

HOLZER, W. Mundo e lugar: ensaio de Geografia fenomenológica. In:


MARANDOLA JR, E.; HOLZER, W.; OLIVEIRA, L. Qual o espaço do
lugar? São Paulo: Perspectiva, 2014.

KAMAKUNA KAXARARI. M.A.R. Entrevista. Terra Indígena Kaxarari,


2021.

LOUREIRO, J.J.P. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. São


Paulo, Escrituras, 2010. MASÔ, J.A. Os índios cachararys. Revista da
Sociedade de Geografia. Rio de Janeiro, 1919.

SCHMIDT, M.L.S. Pesquisa participante: alteridade e comunidades


interpretativas. Psicologia USP, 2006, 17(2), 11-41. Disponível em:
www.scielo.br/pdf/pusp/v17n2/v17n2a02.pdf. Acesso em: 10 mar.
2021.

STRECK, D.R. Pesquisar é pronunciar o mundo: notas sobre método e


metodologia. In: BRANDÃO, C.R.; STRECK, D.R. Pesquisa participante:
o saber da partilha. Aparecida: Ideias e Letras, 2006.

TUAN, Y.F. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. OLIVEIRA, L.


(trad.). Londrina, Eduel, 2015.

412
AUTORAS E AUTORES

ADNILSON DE ALMEIDA SILVA


Graduado em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
Especialista em Análise Ambiental da Amazônia pela UNIR. Mestre em
Geografia pelo Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em
Geografia - PPGG/UNIR. Doutor em Geografia pela Universidade
Federal do Paraná – UFPR. Pós-Doutor em Geografia pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Professor Associado do
Departamento de Geografia e do PPGG/UNIR. Coordenador e
Pesquisador do Grupo de Pesquisa Geografia, Natureza e
Territorialidades Humanas – GENTEH/UNIR e da Rede Casa Latino
Americana e Congresso de Cultura e Educação para a Integração da
América Latina - CASLA/CEPIAL. Membro da Associação Brasileira de
Antropologia – ABA. Autor dos livros Territorialidades, identidades e
marcadores territoriais Kawahib da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau
em Rondônia; Entre a floresta e o concreto: os impactos socioculturais
no povo indígena Jupaú em Rondônia. Organizador das obras:
Marcadores Territoriais e Representações dos povos originários do
Corredor Etnoambiental Tupi Mondé; Representações e marcadores
territoriais dos povos indígenas do corredor etnoambiental Tupi Mondé;
Uma viagem ao mundo dos Pykahu-Parintintin: olhares, percepções e
sentidos; Colonização, território e meio ambiente em Rondônia:
reflexões geográficas. E-mail: adnilson@unir.br

ADRIANA FRANCISCA DE MEDEIROS


Graduada em Pedagogia e Mestre em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Doutora em Desenvolvimento
Regional e Meio Ambiente pelo Programa de Pós- Graduação em
Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente – PGDRA/UNIR.
Pesquisadora do GENTEH/UNIR. Professora Adjunta da Universidade
Federal do Amazonas – UFAM, campus Humaitá. E-mail:
afdemedeiros@gmail.com

413
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

AGNA MARIA DE SOUZA COELHO


Graduada em Letras/Espanhol pela Universidade Estadual do Tocantins
- Unitins. Especialista em Metodologia do Ensino Superior em EaD pela
Faculdade Educacional da Lapa – FAEL. Mestra em Geografia pelo
PPGG/UNIR. Pesquisadora do GENTEH/UNIR. Professora de Ensino
Básico Técnico e Tecnológico Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Rondônia – IFRO, campus Ariquemes. E-mail:
agna.coelho@ifro.edu.br

ALESSANDRA SEVERINO DA SILVA MANCHINERY


Indígena do povo Manchinery. Geógrafa pela Universidade Federal do
Acre. Mestra e Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de
Rondônia – PPGG/UNIR. Pesquisadora do GENTEH/UNIR. E-mail:
amanchinery@gmail.com

ALEXIS DE SOUSA BASTOS


Graduado em Geografia pela UNIR. Mestre em Geografia pelo
PPGG/UNIR. Doutor em Geografia e Pós-Doutor em Engenharia
Florestal pela UFPR. Professor colaborador do PPGG/UNIR.
Coordenador de Projetos do Centro de Estudos da Cultura e do Meio
Ambiente da Amazônia – Rioterra. E-mail: alexisbastos@hotmail.com

ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ


Indígena e Labiway eSaga (líder maior) do povo Paiter Suruí. Graduado
em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás –
PUC/GO. Doutor Honoris Causa em Geografia pela Universidade
Federal de Rondônia – UNIR. E-mail: almirsurui@gmail.com

AMÉRICO COSTA KAXARARI


Indígena do povo Kaxarari. Cacique do povo Kaxarari. Terra Indígena
Kaxarari, Extrema de Rondônia, Rondônia.

414
ALMEIDA SILVA (ORG.)

CLÁUDIA CONCEIÇÃO COIMBRA


Graduada em Geografia pela UNIR. Mestra em Geografia pelo
PPGG/UNIR. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Geografia, Mulher e Relações Sociais de Gênero – GEPGÊNERO/UNIR.
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Rondônia – IFRO, campus Ariquemes. E-mail:
claudia.coimbra@ifro.edu.br

CRISTIANE DE ALMEIDA ANASTASSIOY


Graduada em Letras/Português pela UNIR. Mestra em Geografia pelo
PPGG/UNIR. E-mail: cristiani_almeida@hotmail.com

EMÍLIO SARDE NETO


Graduado em História pela UNIR. Mestre em Geografia pelo
PPGG/UNIR. Doutor em Geografia/UFPR. Centro Universitário
Anchieta de Ensino Superior - Unifaesp. E-mail:
emiliosarde@hotmail.com

FABIANA BARBOSA GOMES


Graduada em Geografia pela UNIR. Mestra em Geografia pelo
PPGG/UNIR. Doutora em Geografia pela UFPR. Coordenadora do
Núcleo de Desenvolvimento Sustentável e Geoprocessamento do
Centro de Estudos da Cultura e do Meio Ambiente da Amazônia –
Rioterra. E-mail: fabiana@rioterra.org.br

FRANCISCO MARQUELINO SANTANA


Graduado em História pela Universidade Regional do Cariri – URCA.
Mestre em Ciências da Linguagem pela UNIR. Doutor em Geografia pelo
PPGG/UNIR. Vice-Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas
Modos de Vidas e Culturas Amazônicas – GEPCULTURA/UNIR.
Professor da rede municipal e estadual de ensino de Rondônia – SEMEC
e SEDUC. E-mail: marquelino@hotmail.com

415
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

FRANCISCO ORO WARAM


Líder Indígena do povo Oro Waram. Graduado em Educação Básica
Intercultural pela UNIR. Mestre em Geografia pelo PPGG/UNIR.
Professor da Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental Wem
Kanum Oro Waram na Terra Indígena Igarapé Lage. Pesquisador do
GEPCULTURA/UNIR. E-mail: franciscorowaram@gmail.com

FRANCISCO RIBEIRO NOGUEIRA


Graduado em Economia pela Universidade Católica de Brasília – UCB.
Mestre em Geografia pelo PPGG/UNIR. Pesquisador do
GEPCULTURA/UNIR. E-mail: fribeiron@hotmail.com

JOSUÉ DA COSTA SILVA


Graduado em Geografia. Mestre e Doutor pela Universidade de São
Paulo – USP. Pós-Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de
Londrina – UEL. Professor Titular do Departamento de Geografia e do
Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Geografia –
PPGG/UNIR. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Modos de
Vidas e Culturas Amazônicas – GEPCULTURA/UNIR. E-mail:
jcosta@unir.br

JULIANO STRACHULSKI
Geógrafo, Mestre e Doutor em Gestão do Território (Geografia) pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG. Pesquisador do Grupo
de Pesquisa Interconexões e da Rede Internacional CASLA/CEPIAL. E-
mail: julianomundogeo@gmail.com

KELLI CARVALHO MELO


Graduada em Geografia pelo Instituto Superior de Educação do Vale do
Juruena-Ajes. Mestra em Geografia pelo PPGG/UNIR. Doutora em
Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. E-
mail: kelli_geo@hotmail.com

416
ALMEIDA SILVA (ORG.)

LAURA DOMINIC GAZZOTTO SORES DE ALMEIDA


Geógrafa pela Universidade Federal de Rondônia. Pesquisadora do
Grupo de Estudos e Pesquisas Geografia e Planejamento Ambiental –
Geoplam e Laboratório de Geografia Planejamento Ambiental –
LABOGEOPA/UNIR. E-mail: lauradominic@hotmail.com

LUCILÉA FERREIRA LOPES


Graduada em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão –
UFMA. Especialista em Geografia e Planejamento Ambiental pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG. Mestre em
Educação pelo Instituto Pedagógico Latinoamericano y Caribeno – Iplac.
Mestra e Doutora em Geografia pela UFPR. Professora Adjunta da
Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão – UEMASUL.
E-mail: lucinead@yahoo.com.br

LUÍS CARLOS MARETTO


Engenheiro Florestal pela Universidade Federal de Rondônia - UFV;
Especialista em Análise Ambiental na Amazônia e em Sensoriamento
Remoto/UNIR; Mestre em Geografia pelo PPGG/UNIR. E-mail:
lcmaretto@gmail.com

MARCONDES ALVES RODRIGUES KAXARARI


Indígena do povo Kaxarari. Professor de língua materna da Escola
Estadual Floresta Maia Kaxarari da Aldeia Marmelinho, Terra Indígena
Kaxarari, Extrema de Rondônia, Rondônia.

MARIA DAS GRAÇAS SILVA NASCIMENTO SILVA


Graduada em Geografia pela UNIR. Mestra em Geografia pela USP.
Doutora em Ciências Socioambiental e Desenvolvimento Sustentável
pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do
Pará - NAEA/UFPA. Pós-doutora pelo Programa de Pós-Graduação em
Geografia pela UEPG. Professora Associada do Departamento de
Geografia e do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em
Geografia – PPGG/UNIR. Coordenadora e Pesquisador do Grupo de

417
EXPRESSÕES, VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS DA E NA AMAZÔNIA

Estudos e Pesquisas em Geografia, Mulher e Relações Sociais de Gênero


– GEPGÊNERO. E-mail: gracinhageo@hotmail.com

NICOLAS FLORIANI
Graduado em Agronomia, Mestre em Ciências do Solo e Doutor em Meio
Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná -
UFPR. Professor do Departamento de Geociências e do Programa de
Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Geografia – UEPG.
Coordenador do Grupo de Pesquisa Interconexões/UEPG e da Rede
Internacional CASLA/CEPIAL. E-mail: florianico@gmail.com

ROSÂNGELA BUJOKAS DE SIQUEIRA


Graduação em Serviço Social, Mestra e Doutora em Ciências Sociais
Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG; Docente
do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual do Centro
Oeste – UNICENTRO – Campus Guarapuava. Pesquisadora do Núcleo
de Estudos e Pesquisas: Estado, Políticas Públicas e Práticas
Sociais/UEPG. E-mail: janja.bujokas@uol.com.br

SEVERINO PARINTINTIN
Cacique e liderança do povo indígena Pykahu-Parintintin. Terra
Indígena Nove de Janeiro - Humaitá, Amazonas.

SOLEANE DE SOUZA BRASIL MANCHINERI


Indígena do povo Manchinery. Bacharela em História e Mestra em Letras
(Linguagens e Identidade) na Universidade Federal do Acre - UFAC. E-
mail: soleanemanchineri@gmail.com

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