Você está na página 1de 228

ed.

25
SERTÕES:
IMAGINÁRIOS,
MEMÓRIAS E POLÍTICAS

As invenções do Nordeste:
quais são os imaginários que definem os
sertões brasileiros?

Convivência com o semiárido:


um campo para o desenvolvimento
local e sustentável

Artes e ciências
contemporâneas sertanejas:
busca de novas narrativas
A Revista Observatório 25 trata dos
sertões brasileiros. O tema figura como um
manancial de mundos, de imaginários, de
significados e da diversidade simbólico-
cultural e territorial que o definem. A
edição traz um repertório contemporâneo
desse sertão, tentando abordar como
se entendem as representações e as
identidades, que se manifestam nas artes
do sertão, e como se dão as memórias e as
resistências, trazendo reflexões sobre a
política cultural e os modelos sustentáveis
nela inseridos.
4 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
AOS LEITORES 5
Memória e Pesquisa / Itaú Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural - N. 25 (maio/novembro 2019). –


São Paulo : Itaú Cultural, 2007-.

Semestral

ISSN 1981-125X (versão impressa)


ISSN 2447-7036 (versão on-line)

1. Política cultural. 2. Cultura sertaneja. 3. Arte sertaneja. 4. Sertão


– memória. 5. Nordeste. 6. Cultura de resistência. 7. Música sertaneja.
8. Sertão - mulher. I. Itaú Cultural
expediente
REVISTA Design NÚCLEO DE
OBSERVATÓRIO Girafa Não Fala INOVAÇÃO/
OBSERVATÓRIO
Conselho editorial Produção gráfica
Alemberg Quindins Lilia Góes Gerência
Andreia Schinasi Marcos Cuzziol
Carlos Costa Ensaio artístico
Carlos Gomes J. Cunha Coordenação
Claudiney Ferreira Luciana Modé
Edson Natale Ilustração
Elder Patrick André Toma Produção
Galiana Brasil Marcel Fracassi
Glaucy Tudda Supervisão de revisão
Juliano Ferreira Polyana Lima
Kety Nassar NÚCLEO DE
Luciana Modé Revisão COMUNICAÇÃO E
Marcel Fracassi Karina Hambra e RELACIONAMENTO
Pedro Diniz Coelho Rachel Reis
de Souza (terceirizadas) Gerência
Sofia Fan Ana de Fátima Souza
Tânia Rodrigues
EQUIPE ITAÚ Coordenação editorial
Edição CULTURAL Carlos Costa
Elder Patrick
Presidente Curadoria de imagens
Preparação de textos Milú Villela André Seiti
Tatiana Diniz
Diretor Produção editorial
Projeto gráfico Eduardo Saron Luciana Araripe
Marina Chevrand/
Serifaria Superintendente
administrativo
Sérgio Miyazaki
aos leitores

E
sta edição da Revista Observatório competitiva a partir da década de 1970 não
Itaú Cultural tem como objeto um diluíram esse repertório telúrico, sentimen-
tema/mundo. Esse tema/mundo tal e mágico que define o mosaico dos mun-
não sugere imprecisão na escolha do tema, dos rurais brasileiros. Antes, o contrário.
mas, antes, que o tema evocado figura como Esses mundos se multiplicaram ainda mais,
um manancial de mundos, de imaginários, de principalmente por meio da música popu-
repertórios de significados e da diversidade lar, da televisão e do cinema. Há uma senha
simbólico-cultural e territorial que define os que os acessa, e, tal qual sugere o sociólogo
sertões brasileiros. Significa assinalar que, Norbert Elias, essa senha diz respeito a um
em uma sociedade predominantemente ru- símbolo conceitual portador de um formi-
ral até por volta dos anos 1960, as experiên- dável acervo de significação. Esse símbolo
cias simbólicas, afetivas e orais dos mundos conceitual diz respeito à palavra sertão. Pou-
rurais brasileiros constituem uma parte cas palavras na língua portuguesa falada e
vibrante e recôndita do mosaico da nossa escrita no Brasil são tão prenhes de signifi-
identidade nacional. São memórias lúdicas, cados quanto “sertão”. Seu conteúdo é consti-
gustativas e comunitárias que repousam nas tutivo do nosso complexo e sinuoso processo
sensibilidades de grupos, classes e coletivi- de nacionalização dos sentimentos e afetos
dades mais amplas e que compõem os fluxos (ELIAS, 1991). Há um naco vibrante de ser-
de fantasias de milhões de brasileiros – nor- tão em cada brasileiro e em cada brasileira.
destinos, caipiras paulistas, gaúchos, goia- Não há oportunidade mais alvissarei-
nos, mineiros e pantaneiros, entre outros. ra e fecunda para se tratar do sertão do que
A densidade urbana e a consolidação no final da segunda década do século XXI.
de uma sociedade industrial, impessoal e Por três razões fundamentais. A primeira
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

porque as políticas públicas que tencionam desses artefatos que compõem esses mes-
promover a cidadania cultural e o exercício mos mundos, como as Indicações Geográfi-
dos direitos culturais têm nos sertões e nos cas (IGs), que contribuem para a promoção
mundos rurais brasileiros um grande desafio. do turismo rural e ambiental sustentável,
Por um lado, essas políticas, levadas a termo para a busca de novas experiências e para a
por instituições nacionais, locais e organis- valorização da diversidade socioambiental
mos transnacionais (como a Unesco), con- e histórico-cultural. São essas tecnologias,
tribuíram para a valorização dos saberes, dos combinadas a novos engajamentos empre-
fazeres e das crenças das comunidades rurais sariais e a ativismos culturais e ambientais,
(indígenas, quilombolas etc.), assim como de que permitem a emergência de modelos de
determinadas coletividades, como artesãs, la- negócios sustentáveis, capazes de gerar tra-
vadeiras, cordelistas, cozinheiras, rezadeiras, balho, emprego, renda e dignidade.
vaqueiros, pescadores e agricultores, entre Por fim, a terceira razão que torna
outras. Logo, os mundos rurais brasileiros, já essa escolha temática tanto mais relevan-
ricos em seus repertórios expressivos, ganha- te concerne à necessidade de recuperação
ram um novo reconhecimento, atestando, de e pesquisa acerca da gênese das memórias
modo institucional e jurídico, a sua diversida- e das narrativas envolvendo as identidades
de e pluralidade de mundos – um patrimônio regionais. É aqui que repousam as maiores
imaterial digno de promoção e valorização. tensões, resultado da construção de estigmas
Por outro lado, diante da escassez de recursos seculares, formas de silenciamento e domi-
econômicos e da dificuldade de gestão polí- nação. Em um momento global de disputas
tica, promoção e valorização desses mundos, pelas afirmações das memórias, as políticas
os governos locais e estaduais têm declinado de memórias – ancoradas na recuperação de
da proteção e da promoção dos mundos e dos traços do passado, na gênese dos significados
sertões que nos constituem, cedendo a pres- e na desnaturalização de verdades aparente-
sões momentâneas e, logo, aos fechamentos mente incontestes – tornam-se também uma
dos mundos, reduzindo, assim, os horizontes nova arena de busca pelo reconhecimento e
de fruição da diversidade cultural brasileira. pela afirmação da diversidade regional, étni-
A segunda razão para se tratar dos ca, geracional, racial e de gênero. As políticas
sertões decorre da possibilidade do desen- da memória se expressam, por exemplo, nas
volvimento local sustentável, seja por meio ações de valorização das memórias africanas
da valorização de saberes e fazeres rurais e indígenas no Brasil e na América Latina, por
encarnados em produtos (artesanatos, culi- meio da criação de museus específicos, espa-
nária, gêneros agrícolas, aguardente e cria- ços culturais, bibliotecas, rotas e destinos tu-
ções artísticas, entre muitos outros), seja por rísticos, centros de documentação, pesquisas,
meio da difusão de tecnologias de valorização eventos acadêmicos.
AOS LEITORES 11

Essas três razões fazem da pesquisa, do seu território, a cidade de Salvador e a re-
análise e reflexão acerca dos sertões brasilei- gião do Recôncavo. A autora desnuda como
ros um tema tão candente e necessário. Para um estado que tem 75% do seu território
abarcar e explorar essa pluralidade de mun- localizado no semiárido, com uma grande
dos, são necessários também recursos multi- multiplicidade simbólico-cultural, tem sua
facetados. Precisamente por esse aspecto, os identidade hegemonizada por apenas uma
trabalhos aqui reunidos, artigos e entrevistas, representação específica.
são necessariamente multifacetados. São Ainda na primeira parte, tem-se a con-
depoimentos e relatos que cobrem a diver- tribuição de Henrique Fontes. Trata-se de
sidade dos nossos sertões, das suas distintas um relato muito valioso. É formidável como
geografias sentimentais, das suas tensões e o sucesso de um texto acadêmico (o livro A In-
disputas, dos seus fluxos e refluxos, das atua- venção do Nordeste e Outras Artes, de autoria
lizações e ressignificações contemporâneas, do historiador Durval Muniz de Albuquerque
da mutação dos sentidos e das cristalizações Jr.) tenha circulado e motivado a feitura de
no tempo, no espaço e nas memórias. uma obra teatral que percorre o país. Fontes
Abrindo esta edição, logo em sua primei- descreve como o livro resultou no espetácu-
ra parte, temos o artigo de Durval Muniz de lo A Invenção do Nordeste, do Grupo Carmin.
Albuquerque Jr. Sobejamente conhecido, o Explorando as veredas do sertão-Nordeste,
historiador revela, com maestria e contun- logo em seguida figura o artigo de Adones Va-
dência, o processo de “rapto” do Nordeste e do lença. Prodigioso artista popular sergipano,
sertão nordestino. Já o artigo da pesquisadora Adones foi descoberto pela exitosa política
Maria Geralda explora outro sertão, aquele do projeto Rumos, criado e consolidado pelo
do Centro-Oeste, onde duas diversidades se Itaú Cultural. O seu relato confere ainda mais
combinam para revelar mundos simbólico- força simbólica ao sertão nordestino e tudo
-culturais e ambientais. Na imensidão dos que o constitui – o cangaço, o isolamento ter-
biomas do Pantanal e do Cerrado também se ritorial, as lendas, os coronéis, os vaqueiros
encontram crenças, danças, rituais e formas e o messianismo religioso. Como desdobra-
de transmissão de memórias que fazem dos mento, João Júnior elege como objeto um
sertões brasileiros verdadeiros enigmas. Na dos fenômenos socioculturais mais densos
sequência, o premiado trabalho de Cláudia e dramáticos da história do Brasil, o grande
Pereira Vasconcelos traz uma contribuição ciclo migratório vivido pelo numeroso con-
notável. Intitulado Ser-tão Baiano, nele a tingente de sertanejos-nordestinos para São
autora problematiza o processo de silencia- Paulo desde os anos 1950. O autor mobiliza
mento e invisibilidade de uma identidade ru- o relato de migrantes cuja existência esteve
ral, interiorana e pastoril nos limites de um marcada pela necessidade do deslocamen-
estado identificado com apenas uma porção to e da sobrevivência, pela saudade, pelas
12 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

memórias fraturadas e reconstruídas, pelos trajetória que se apresenta, permitindo ana-


dilemas do pertencimento e pela paulatina lisar a regularidade dos processos migratórios
adaptação ao desconhecido. de muitos artistas dos sertões brasileiros.
Abrindo a segunda parte está o traba- Abrindo a terceira parte, o relato rea-
lho deste organizador. Devotado ao tema e à lizado por Fernanda Castello Branco, inti-
gênese de significado do sertão nordestino, tulado Véio, um Ser(tão): Relato sobre uma
indaga-me sobre como ocorreu o processo Viagem Sertaneja, traz a riqueza da mul-
de justaposição de significado entre sertão e tiplicidade de mundos a que aludimos no
Nordeste e como foi possível que o sertão nor- início desta apresentação. Por meio de per-
destino tenha monopolizado para si a ideia sonagens-mundos como Véio, percebemos
e o significado de sertão por excelência. Já a multiplicidade dos mundos interiores
Brian Henrique de Assis Fuentes Requena cristalizados nos objetos e nas coisas ma-
apresenta a pujança econômica e tecnológica teriais da existência. Já o artigo de Juliana
da música sertaneja pop contemporânea, o Funari, intitulado No Encontro das Águas:
gênero mais ouvido, cantado e consumido no Mulheres Camponesas do Sertão do Pajeú
Brasil nos últimos dez anos. Estamos diante Transformando o Semiárido, demonstra
de uma música sertaneja que tematiza pou- como o desenvolvimento também pode ser
co o mundo rural – tanto o paulista como o organizacional e político. Por meio de sua
nordestino ou o gaúcho –, mas que construiu pesquisa, a autora revela como a luta pelo
um novo repertório lírico poderoso que arre- direito à água na região do Sertão do Pajeú,
gimenta multidões e confere novo tratamen- em Pernambuco, também se combinou à luta
to ao clássico trio amor/paixão/sexo. Por sua pela igualdade de gênero, permitindo novas
vez, Maria Hirszman fornece insumos para formas de organização e militância política
se compreender os impactos imagéticos e em uma região tão secularmente marcada
iconográficos das artes visuais sobre a repre- por assimetrias entre homens e mulheres.
sentação do sertão nordestino. Em seguida, Por sua vez, Moacir Carvalho explora
Isabelly Moreira nos desvela uma criação/ novos fenômenos que ocorrem nos sertões
resistência que tem feito um novo e encan- ou que evocam os sertões. Em O Sertão Não É
tador dueto na região do Pajeú. A autora de- Longe Daqui: Tradição e Migração das Almas
monstra a existência de uma poética do canto entre Católicos e Evangélicos no Novo Semiá-
das mulheres sertanejas e se pergunta acerca rido, evidencia as mudanças religiosas nos
das razões pelas quais repentistas e cantado- sertões brasileiros, concentrando a análise
res homens são tão conhecidos, enquanto a na penetração do protestantismo brasileiro
poesia das mulheres é quase desconhecida. A e nas tensões e disputas político-religiosas
entrevista de Cacá Malaquias, realizada por com o catolicismo popular rural brasileiro.
Marcel Fracassi, é dotada de riqueza pela O relato de Carlos Costa, intitulado Arco-Íris
AOS LEITORES 13

Sertanejo: a Luz da Obra de Elomar Decom- Piauí, Paraíba e Sergipe como Roteiros, revela
posta em um Espectro de Cores, em torno da as potencialidades do turismo cultural e os
poética musical do cantor e trovador Elomar, usos dos direitos autorais coletivos permiti-
é uma poderosa vereda mítica, pois mobiliza dos pelas Indicações Geográficas, cruzando
a criação de um artista contemporâneo cria- aspectos como economia criativa, Indicações
dor e recriador do medievalismo do sertão Geográficas e desenvolvimento regional/
do Nordeste brasileiro. Já a entrevista com local. Trata-se de uma agenda que pode ser
a arqueóloga Niède Guidon revela uma face convertida em políticas sistemáticas, do-
ainda mais longínqua, de uma longa duração tadas de maior capilaridade e abrangência,
histórica, geológica e arqueológica que re- capaz, portanto, de revelar novos mundos. No
monta aos primeiros habitantes do território mesmo diapasão, Wanderson José Francisco
brasileiro das Américas. Niède traz, em suas Gomes descortina os impactos econômicos
vivências de pesquisadora e experiências de locais no município de Piranhas, em Alagoas,
gestora, décadas de conhecimentos e propos- decorrentes da construção e consolidação
tas de desenvolvimento do Parque Nacional de um destino turístico até recentemente
da Serra da Capivara. É uma personagem muito pouco conhecido. Em seguida, temos
digna de reverência e muita inspiração. o trabalho de Alexandre Barbalho. Um dos
Abrindo a quarta e última parte está o pesquisadores mais competentes no que
trabalho de Juracy Marques, intitulado Eco- tange à investigação das políticas culturais
logia e Política do Projeto de Transposição do no Brasil, Barbalho realiza um elucidativo
Rio São Francisco. O autor destaca os inte- balanço histórico e regional sobre a temática.
resses econômicos em torno de um bem cada Já o relato de Alemberg Quindins, músico de
vez mais escasso, a água, e as possibilidades formação popular, historiador autodidata e
de organização institucional para regular o criador da Fundação Casa Grande – Memo-
capital e os seus interesses no processo de rial do Homem Kariri, é um exemplo categó-
privatização desse recurso tão valioso. Em rico de um artista, produtor e gestor cultural
consonância com Juracy, Fernanda Cruz que traz o sertão nordestino nos punhos e
mobiliza com muita propriedade as relações nas fábulas das quais é resultado. Trata-se
complexas entre o processo de convivência de um fabulador e tradutor de mundos, que,
com o semiárido e a luta feminista pela orga- de modo muito vibrante e criativo, organiza
nização social em torno da agroecologia e da formas de criação e produção cultural sobre
agricultura familiar, revelando o êxito formi- a mitologia nordestina, contribuindo direta-
dável de instituições e movimentos sociais. mente para inseri-la nos fluxos digitais e nos
Na sequência, o criativo e rigoroso tra- mecanismos de globalização das imagens.
balho de Janaina Cardoso de Mello, intitula-
do Turismo Cultural & Indicação Geográfica: Elder Patrick
7. Aos leitores
Elder Patrick

1. SERTÕES, IDENTIDADES
E REPRESENTAÇÕES
2. ARTES E CULTURA NO SERTÃO

67. O sertão nordestino como um


19. O rapto do sertão: a captura monopólio de sentido
do conceito de sertão pelo discurso Elder Patrick
regionalista nordestino
Durval Muniz de Albuquerque Júnior 88. O passado, o presente e o pretérito
imperfeito da música sertaneja
34. Sertão, identidades e Brian Henrique de Assis
representações no Centro-Oeste Fuentes Requena
Maria Geralda de Almeida
96. O sertão que as artes ajudaram a criar
44. Ser-tão baiano Maria Hirszman
Cláudia Pereira Vasconcelos
103. A mulher na poesia do Pajeú
52. A invenção do Nordeste, Isabelly Moreira
descaminhos sísmicos de uma peça
documental do Grupo Carmin 109. Entrevista – O sertão
Henrique Fontes instrumental de Cacá Malaquias
Marcel Fracassi
56. Aqui era o spa de Lampião
Adones Valença

62. Portar(ia) silêncio: o ser-tão


migrante das portarias de edifícios
da cidade de São Paulo
João Júnior

Os textos/entrevistas desta revista não necessariamente refletem a opinião do Itaú Cultural.


sumário

3. MEMÓRIAS E
RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES
4. POLÍTICAS CULTURAIS &
MODELOS SUSTENTÁVEIS:
EM BUSCA DA CONVIVÊNCIA COM
119. Véio, um ser(tão): relato sobre O SEMIÁRIDO
uma viagem sertaneja
Fernanda Castello Branco 155. Ecologia e política do projeto de
transposição do Rio São Francisco
125. No encontro das águas: Juracy Marques
mulheres camponesas do
Sertão do Pajeú transformando 170. Agroecologia e convivência com
o semiárido o semiárido: quebrando paradigmas,
Juliana Funari transformando vidas
Fernanda Cruz
134. O sertão não é longe daqui:
tradição e migração das almas 184. Turismo cultural & indicação
entre católicos e evangélicos no geográfica: Piauí, Paraíba e Sergipe
novo semiárido como roteiros
Moacir Carvalho Janaina Cardoso de Mello

140. Arco-íris sertanejo: a luz da 190. Do Velho Chico ao cangaço:


obra de Elomar decomposta em um a construção do destino turístico
espectro de cores Piranhas no sertão alagoano
Carlos Costa Wanderson José Francisco Gomes

144. Entrevista – Ciência e 196. Estado e cultura no


ancestralidade na Serra da Capivara Nordeste: uma leitura das políticas
Niède Guidon culturais nordestinas
Alexandre Barbalho

210. Um dedo acima do chão: encanto


e produção cultural como atalho para a
sustentabilidade sertaneja
Alemberg Quindins
José Antonio Cunha é artista plástico, designer gráfico, cenógrafo e figurinista. Dezoito
anos no curso livre da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, participou
de importantes bienais e exposições individuais e coletivas, entre elas The Refugee Project,
no Museu de Arte Africana de Nova York, em 1997; e Exposição de Arte Contemporânea: as
Portas do Mundo, na Europa e na África, em 2006.
Também é autor de inúmeras marcas e logotipos, ilustrações para livro e capas de
discos, estamparias, ambientações de show e eventos. Seu trabalho se caracteriza pelo
mergulho imaginário nas culturas afro-indígenas e popular nordestina, através da
pesquisa, da assimilação e da transformação num universo próprio mítico e mágico,
simbólico e intuitivo.
1. SERTÕES, IDENTIDADES
E REPRESENTAÇÕES

19. O RAPTO DO SERTÃO: A CAPTURA


DO CONCEITO DE SERTÃO PELO DISCURSO
REGIONALISTA NORDESTINO
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

34. SERTÃO, IDENTIDADES E


REPRESENTAÇÕES NO CENTRO-OESTE
Maria Geralda de Almeida

44. SER-TÃO BAIANO


Cláudia Pereira Vasconcelos

52. A INVENÇÃO DO NORDESTE,


DESCAMINHOS SÍSMICOS DE UMA PEÇA
DOCUMENTAL DO GRUPO CARMIN
Henrique Fontes

56. AQUI ERA O SPA DE LAMPIÃO


Adones Valença

62. PORTAR(IA) SILÊNCIO: O SER-TÃO


MIGRANTE DAS PORTARIAS DE EDIFÍCIOS
DA CIDADE DE SÃO PAULO
João Júnior
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 21

O RAPTO DO SERTÃO:
A CAPTURA DO CONCEITO DE SERTÃO PELO
DISCURSO REGIONALISTA NORDESTINO
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Este texto trata das motivações históricas que fizeram com que a categoria sertão, que
até o século XIX descrevia qualquer área do país que ficava para além do litoral e das cidades,
fosse capturada paulatinamente pelo discurso regionalista nordestino, a ponto de o sertão ser
oficialmente incorporado como uma sub-região do espaço nordestino. Aborda-se como, ao longo
do final do século XIX e do século XX, o sertão foi sendo associado, pelos discursos literários,
parlamentares, técnicos, jornalísticos e artísticos, a temas como a seca, a semiaridez, a caa-
tinga, o cangaço, o messianismo e o coronelismo, raptando o sertão para o espaço nordestino.

A
té o início do século XX, o sertão timentos mais primários de um ser humano.
era todas as terras que ficavam O sertão seria marcado pela ausência do Es-
afastadas da costa, que ficavam tado, pelo poder discricionário dos mandões,
distantes das aglomerações urbanas que se dos valentes, dos destemidos, impérios das
distribuíam por todo o litoral brasileiro. O armas e do crime, da luta em defesa da honra,
sertão estava em todas as províncias, em to- terra a exigir destemor e coragem.
dos os estados, terras que eram de todos, ter- Na primeira metade do século XIX, o
ras que eram de ninguém. O sertão era visto e conceito de sertão ainda guarda os sentidos
dito na literatura, nos discursos parlamenta- ligados a sua origem etimológica, pois sertão
res e no discurso jornalístico como o outro da viria do latim sertãnu ou sertu, significando
civilização, do progresso, do adiantamento, “bosque, do bosque”, ou da palavra latina
da ilustração. Em O Sertanejo (1875) e Irace- desertãnu, significando “região deserta”. Há
ma (1865), de José de Alencar (ALENCAR, ainda quem a derive de uma palavra de ori-
1987, 1997), a terra habitada pelo sertanejo gem angolana, mulcetão, que significava “terra
e/ou pelos indígenas era marcada por uma entre terras”, “local distante do mar”, “lugar
natureza luxuriante, ao mesmo tempo idíli- interior”. A palavra surge grafada na docu-
ca e inóspita. Em Memórias de um Sargento mentação do século XV de várias maneiras:
de Milícias (1853), de Manuel Antônio de sartão, sertaão, ssertaão, sertão (CUNHA,
Almeida, era a terra da vida simples, rude, 2010). Ela já aparece na Crônica do Descobri-
primitiva, sem artifícios, movida pelos sen- mento e Conquista de Guiné, de Gomes Eanes
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de Zurara, (ZURARA, 1841), provavelmente A produção algodoeira, que havia se ex-


composta entre 1452 e 1453, designando as pandido durante a década anterior em razão
terras que ficavam para o interior do conti- da guerra civil norte-americana, que retirou
nente africano, inacessíveis aos navegado- do mercado a produção do sul daquele país,
res portugueses. Desde o primeiro dicionário vê-se às voltas com o retorno do concorrente
da língua portuguesa, composto pelo padre e com os efeitos da estiagem. A expansão da
Rafael Bluteau e publicado em 1728, em que economia algodoeira havia levado a migração
a palavra tem como definição “o interior, o para o interior de uma parcela considerável
coração das terras, opõe-se ao marítimo e à da população, que se vê obrigada a migrar, em
costa”, o sertão “toma-se por mato longe da precárias condições, para o litoral por causa
costa”, “região agreste, distante das povoações da seca, dando origem à figura do retirante,
ou das terras cultivadas” (BLUTEAU, 1728). que se tornará um personagem constante na
Mas, para entendermos o processo de produção cultural nortista e, posteriormente,
captura do conceito de sertão pelo discurso na nordestina. Embora em termos relativos
regionalista nordestino, os primeiros acon- essa seca tenha levado à morte de propor-
tecimentos relevantes ocorrem na segunda cionalmente uma porcentagem menor da
metade do século XIX, mais especificamen- população (cerca de 18%, enquanto secas
te a partir do final da década de 1870. Entre anteriores haviam matado até 25% da popu-
1877 e 1879, ocorreu mais uma das secas pe- lação), em termos absolutos, ela matou um
riódicas que acontecem na região hoje co- número estarrecedor de pessoas. Apanhadas
nhecida como semiárido nordestino, e que em um momento de fragilidade econômica
já se manifestavam desde o início da colo- e de declínio de poder político, as elites nor-
nização. Embora do ponto de vista natural tistas não têm como evitar, como ocorrera
ela nada tivesse de excepcional em relação em secas anteriores, que a estiagem as atin-
a episódios anteriores do mesmo fenômeno, ja diretamente. É por esse motivo que a seca
o contexto econômico, político e cultural em de 1877-1879 entrará para a memória como
que acontece a elevou à condição de “a gran- a “grande seca” e dará origem ao discurso da
de seca de setenta”. Ainda denominada “seca seca, tornando essa temática central no emer-
do Ceará”, província que era tida como o es- gente discurso regionalista do Norte e base
paço privilegiado de ocorrência das secas, para a montagem do que passou a se chamar
dá-se em um momento de debilidade eco- de indústria da seca, ou seja, o uso desse fe-
nômica das chamadas províncias do Norte. nômeno como argumento e justificativa para
A produção açucareira, prejudicada por sua a reivindicação de recursos, obras públicas,
obsolescência tecnológica, não conseguia fa- cargos públicos e criação de instituições que
zer frente à concorrência do açúcar antilha- vêm em benefício dos interesses das elites do
no e àquele produzido a partir da beterraba, espaço da seca, que tende a se ampliar já com a
perdendo parcela do mercado internacional e ocorrência do fenômeno, uma vez que a seca
tendo que concorrer com a crescente produ- deixa de ser do Ceará e passa a ser do Norte
ção açucareira das províncias do Sul. (ALBUQUERQUE JR., 1988).
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 23

É durante a ocorrência desse fenômeno para que o Governo Central se voltasse com
que se dá uma das primeiras demonstrações maior atenção para esse espaço do país. Em-
explícitas da existência de um discurso re- bora sendo elites da Zona da Mata, elas não
gionalista que começava a emergir nas cha- deixam de olhar para o sertão e dar visibili-
madas províncias do Norte. Alijadas pelo dade ao que seria o seu problema.
Império do convite feito aos grupos agrários A seca de 1877-1879 é a primeira a ter
para um congresso agrícola a se realizar no repercussão nacional, o que dá a ela também
Rio de Janeiro, visando debater os angus- a sua especificidade. Tendo ocorrido após
tiosos problemas da lavoura cafeeira – o fim um período de cerca de 25 anos da última
do tráfico de escravos e a consequente imi- ocorrência do fenômeno, a seca de setenta
nência do fim da escravidão, acarretando a encontra uma imprensa já bastante presente
chamada falta de braços para em todo o território nacional.
a lavoura, a falta de crédito, a A seca de 1877-1879 Ela é a primeira a levar para
questão cambial etc. –, as eli- entrará para a memória as páginas dos jornais as nar-
tes açucareiras do Norte do como a “grande seca” e rativas chocantes de pessoas
Império realizam, em 1878, dará origem ao discurso vítimas da fome extrema, da
da seca, tornando essa
o Congresso Agrícola do Re- miséria absoluta, morrendo
temática central no
cife, no qual a denúncia da pelas estradas e pelas ruas
emergente discurso
política discriminatória do regionalista do Norte e de inanição, desidratação e
Império em relação à agri- base para a montagem do vítimas das inúmeras doen-
cultura nortista ganhou foros que passou a se chamar ças que se espalhavam nos
de separatismo em algumas de indústria da seca. ajuntamentos dos retirantes.
falas. Tendo sido palco, desde Ela também conta com o sur-
o início do século XIX, de movimentos que gimento e desenvolvimento da tecnologia
iam da defesa do federalismo até a defesa fotográfica, que permitirá que as elites letra-
da secessão em relação ao restante do país, das de outras partes do país vejam, pela pri-
Pernambuco era mais uma vez palco de um meira vez, as imagens chocantes dos corpos
movimento de contestação à centralização cadavéricos de crianças filhas dos retirantes.
monárquica (MELLO, 1999). Esboça-se aí O jornalista negro José do Patrocínio de-
uma solidariedade entre as elites dirigentes sempenhou um importante papel na trans-
das províncias do Norte que será fundamen- formação da seca do Ceará em uma temática
tal para o surgimento, no início do século nacional, pela comoção que suas reportagens
XX, do recorte regional Nordeste (ALBU- para o jornal Gazeta de Notícias do Rio de Ja-
QUERQUE JR., 2011). Até o momento em neiro provocaram na capital do país. Enviado
que ocorre, o Congresso Agrícola do Recife, ao Ceará como correspondente para cobrir os
embora dominado pelos interesses das elites acontecimentos que lá se passavam, acom-
açucareiras, de uma área não sujeita às secas panhado de um fotógrafo, Patrocínio escre-
periódicas, não deixa de tratar do chamado ve crônicas marcadas por sua solidariedade
problema da seca e tomá-lo como argumento com os retirantes e pela denúncia contra os
24 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

poderes públicos, que, além de não socorre- ocorrências de 1877-1879. Além de Patrocí-
rem a população, passaram a se aproveitar nio, vários escritores vão dedicar ao fenôme-
dos socorros públicos e privados que come- no da seca do Norte alguns de seus escritos.
çaram a chegar, vindos do governo imperial e Seguindo o chamamento feito ainda em 1876
da caridade de particulares em todo o país. As pelo escritor cearense Franklin Távora para
reportagens que enviou, acompanhadas das que fosse constituída uma literatura do Norte
fotos extremamente chocantes de corpos ca- (TÁVORA, 1981), autores como Rodolfo Theó-
davéricos, fizeram a seca do Norte surgir como filo e Domingos Olímpio, e livros como A Fome
um problema a ser enfrentado nacionalmente, (1890) e Luzia-Homem (1903) foram dando
e não apenas pelas províncias figurabilidade às secas, a seus
que eram por ela afetadas. Ao As teorias raciológicas se personagens e ao seu espaço:
transformar o que presenciou imbricavam com as teorias as terras sertanejas, o sertão
em um romance, que nomeou geodeterministas para (TEÓFILO, 2011; OLÍMPIO,
Os Retirantes (PATROCÍNIO, explicar o grande evento 1998; ALBUQUERQUE JR.,
1973) e publicou em 1879, ano ocorrido nos sertões 2017). Mas, sem dúvida, o
em que teve fim o fenômeno, baianos, numa narrativa grande monumento literário
forjada em poderosas
dando visibilidade a esse per- que definitivamente introduz
imagens que se torna
sonagem e definindo seu perfil a temática do sertão, inclusi-
um arquivo inesgotável
em grande medida, Patrocínio de tropos, temas e ve na discussão da questão da
vai colaborar para a emer- enunciados acerca da nacionalidade, da brasilidade,
gência da associação entre o paisagem e do da identidade nacional, foi es-
conceito de sertão e o espaço homem sertanejo. crito e publicado nos primei-
de ocorrência das secas. Pau- ros anos do século XX pelo
latinamente, estabelece-se a sinonímia entre jornalista, escritor e militar paulista Eucli-
sertão, semiárido e ocorrência das secas, terra des da Cunha. Fruto de sua experiência como
dos retirantes. correspondente do jornal O Estado de S. Paulo
Mas não é apenas José do Patrocínio que na cobertura da Guerra de Canudos, Euclides
contribui para iniciar esse processo de asso- fez de sua vivência do sertão baiano e de seu
ciação entre o espaço de ocorrência das secas contato com os sertanejos – que resistiram,
e o conceito de sertão. A chamada grande seca quase até o último homem, na defesa do seu
de 1877-1879 foi objeto de atenção também arraial contra as forças do governo republica-
dos discursos parlamentares, governamen- no – uma narrativa que se pretendia analítica
tais, técnicos e até religiosos, em que quase e interpretativa do fenômeno do fanatismo
sempre figurava essa remissão ao espaço religioso, utilizando para isso as mais moder-
sertanejo como aquele em que estavam se nas teorias de interpretação do social de base
dando os acontecimentos ligados à estiagem. positivista, naturalista e social-darwinista.
Entre esses discursos, destacam-se o da cha- As teorias raciológicas se imbricavam com as
mada literatura das secas, resultado justa- teorias geodeterministas para explicar o gran-
mente da emergência dessa temática com as de evento ocorrido nos sertões baianos, numa
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 25

narrativa forjada em poderosas imagens que Não é mera coincidência que os sertões das
se torna um arquivo inesgotável de tropos, Gerais e seus moradores tenham inspirado a
temas e enunciados acerca da paisagem e do segunda obra-prima sobre o espaço dos ser-
homem sertanejo. O livro Os Sertões (1902) tões, o romance do médico, diplomata e es-
torna-se uma fonte permanente de imagens critor mineiro João Guimarães Rosa, Grande
e textos, sempre consultada quando se quiser Sertão: Veredas (1956) (ROSA, 1967).
dizer e fazer ver o sertão. Os livros de estreia Mas, antes do monumento literário es-
de grandes nomes do que será a literatura crito por Rosa, outros escritores cariocas,
nordestina e o chamado romance de 30 tive- mineiros e paulistas já haviam escrito sobre
ram no livro vingador de Euclides da Cunha a temática sertaneja. Ainda em 1872, o cario-
a sua inspiração (CUNHA, 1902). É possível ca Visconde de Taunay publicou Inocência,
encontrar as imagens euclidianas tanto em um romance de temática sertaneja, que re-
A Bagaceira (1928), de José Américo de Al- forçava a imagem de rusticidade e, ao mes-
meida, quanto em O Quinze (1930), de Rachel mo tempo, de ambiente regido por estritos
de Queiroz, obras que serão muito importan- códigos de moralidade e honra masculinas
tes nesse processo de captura do sertão pelo e femininas. É dele também uma obra pu-
regionalismo nordestino (ALMEIDA, 1978; blicada postumamente, em 1923, intitulada
QUEIROZ, 2010). Visões do Sertão (TAUNAY, 1981 e 1923). Em
No entanto, no início do século XX, o ser- 1898, o jornalista, jurista e escritor mineiro
tão ainda é tema de escrita e preocupação por Afonso Arinos de Melo Franco publicou o
parte de autores de outras áreas do país. Em conjunto de contos intitulado Pelo Sertão
São Paulo, notadamente, onde a conquista (ARINOS, 1981), fazendo desse espaço o
dos sertões pelo bandeirantismo serviu de lugar da naturalidade, da autenticidade,
narrativa mestra na construção da identi- mas também do inusitado, do sobrenatural
dade regional, com a destacada participação e do místico. Assim como acontecerá com o
de autores ligados ao Instituto Histórico e sertão figurado pelas narrativas nordestinas,
Geográfico de São Paulo, fundado em 1894, marcado pela violência do cangaço, pelo po-
ainda é muito presente a temática sertaneja, der discricionário, pela defesa de um estrito
ao lado da temática do caipira, quase sempre código de honra e virilidade pelos coronéis,
um personagem destacado nas narrativas sa- pelo misticismo dos beatos, essa produção
tíricas ou humorísticas. Outro estado do país em torno do sertão, que vem de autores de
em que a temática dos sertões continua tendo outros espaços do país, traz sempre consor-
uma presença marcante é Minas Gerais. Sua ciadas a fé e a violência, o poder sem peias e
condição de território sem acesso ao mar e o a coragem pessoal.
fato de seu desenvolvimento histórico ter se O rapto da categoria sertão pelo discur-
dado com a procura e exploração das minas so regionalista nordestino foi antecedido e
por parte de expedições de bandeirantes e en- possibilitado por discursos e práticas institu-
tradistas tornam a temática sertaneja muito cionais que antecederam a própria invenção
presente em sua cultura artística e literária. do Nordeste. Ainda se utilizando da categoria
26 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Norte para descrever a parte setentrional do seu complementar jaguncismo, o cangaço e


país, esses discursos prepararam o terreno o messianismo.
para a associação entre sertão e semiárido As obras de autores como João do Norte
nordestino, na medida em que o descreve- (codinome de Gustavo Barroso), Leonardo
ram e o definiram a partir de temas, eventos Mota, Catulo da Paixão Cearense e Ildefonso
e personagens típicos daquele espaço. Além Albano foram fundamentais para ir se crian-
da temática da seca, que seria responsável do uma dada forma de ver e dizer o sertão
por dar ao sertão certa paisagem – marca- que é incorporada pelo discurso regionalista
da pela terra gretada, pela caatinga seca e nordestino, que, curiosamente, teve a cidade
esgalhada, por um sol abrasador, uma luz do Recife, a Zona da Mata e as elites ligadas à
branca e intensa, pela presença das cactá- atividade açucareira como centro de articu-
ceas –, esses discursos associarão o sertão lação e difusão (BARROSO, 2006, 1917, 1949,
a três outras temáticas: o coronelismo, com 1979; MOTA, 1961, 1962, 1965; CEARENSE,
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 27

1918, 194-; ALBANO, 1969). Obras como Ter- literárias e poéticas de suas gentes, nas suas
ra do Sol (1912), Heróis e Bandidos (1917), Ao formas de ser, em seus comportamentos e
Som da Viola (1921), Praias e Várzeas: Alma gestos, considerados estranhos e distintos
Sertaneja (1923), de João do Norte (Gustavo em relação às gentes do litoral e das cidades.
Barroso), que carregava a identidade nortis- Essas obras vão contribuir para definir
ta até no pseudônimo; Cantadores: Poesia e outro elemento que particularizaria e daria
Linguagem do Sertão Cearense (1921), Vio- perfil distinto ao sertão que será posterior-
leiros do Norte (1925), Sertão Alegre (1928), mente chamado de nordestino, ou seja, esse
de Leonardo Mota; Meu Sertão (1918), Alma sertão que, além de uma paisagem, de uma
do Sertão (194-), de Catulo da Paixão Cearen- natureza distinta, da qual as secas e a caa-
se; e Jeca Tatu e Mané Xiquexique (1919), de tinga seriam os principais elementos defi-
Ildefonso Albano, dão ao sertão o que seria a nidores, possuiria uma cultura própria. Os
sua alma, plasmada nas produções culturais, sertões do Norte e, em seguida, os sertões
28 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

nordestinos representariam um arquivo, uma do órgão federal que estava sendo criado.
reserva de expressões culturais considera- Embora fosse um recorte meramente terri-
das autenticamente nacionais, manifestações torial, não se constituindo ainda um conceito
culturais não maculadas e deturpadas pelas que designasse uma identidade regional, o
influências externas, do estrangeiro ou da termo Nordeste passa a ser associado, nes-
cidade. Notadamente as camadas populares se discurso técnico, insistentemente às pro-
e suas matérias e formas de expressão cultu- blemáticas das secas e às obras e medidas
rais, definidas por esses autores como sendo que deveriam ser levadas a efeito pelo poder
folclóricas, significariam um repositório de público para solucionar esse problema (AL-
inspiração para a produção de uma cultura, BUQUERQUE JR., 1988).
de uma literatura e de uma arte nacionais. Esse fato é motivo de queixa por parte
Esse sertanismo, que depois é rotulado de de Gilberto Freyre quando escreve o livro
pré-modernista, traz a marca de um olhar, ao Nordeste, publicado em 1937, texto que se
mesmo tempo, de superioridade e distância, constitui na certidão definitiva de nascimen-
de condescendência, curiosidade e empatia to e existência dessa região como um todo à
de letrados da cidade em relação às produ- parte no país (FREYRE, 1985). Ao iniciar o
ções culturais, aos modos de vida das gentes texto, Freyre constata, com certa contrarie-
simples do sertão. Uma diferença que apare- dade, que o conceito de Nordeste, que a pala-
ce na própria narrativa, entre a fala erudita e vra Nordeste seria uma “palavra desfigurada
competente do narrador e a fala deficitária pela expressão ‘obras do Nordeste’, que quer
do narrado, muitas vezes tornando-se mo- dizer: ‘obras contra as secas’”. E prossegue di-
tivo de riso. O sertão é também esse lugar da zendo que a palavra Nordeste “quase não su-
distância cultural, o espaço do anacronismo, gere senão a seca”. Ou seja, de saída, o autor
de um passado, de tradições, de costumes que constata a sinonímia entre Nordeste e secas,
atravessam os tempos, infensos a mudanças. estabelecida pela atuação da Ifocs, e a reper-
O sertão é uma distância no tempo e no espa- cussão, inclusive em termos de escândalos
ço (ALBUQUERQUE JR., 2013). de corrupção, das chamadas “obras contra
A produção escrita nascida do trabalho as secas”, expressão popularizada ainda no
de técnicos ligados à Inspetoria Federal de governo Epitácio Pessoa, primeira gestão
Obras contra as Secas (Ifocs) também em de atuação desse órgão. Mas ele prossegue,
muito contribui para a afirmação inicial da dizendo que a palavra Nordeste remetia
singularidade do sertão nordestino e, poste- também “aos sertões de areia seca rangendo
riormente, para que ele apareça como sendo debaixo dos pés. Os sertões de paisagens du-
o sertão, relegando as outras partes do país ras doendo nos olhos” (FREYRE, 1985, p. 5).
a terem apenas interior e não mais sertões. Ou seja, além da sinonímia entre Nordeste e
É no documento de criação da Ifocs, em seca, havia já se estabelecido, nesse final dos
1919, que aparece pela primeira vez em um anos 1930, uma sinonímia entre Nordeste e
documento oficial a designação “Nordeste” sertão, entre Nordeste e dados sertões, en-
para dar conta de definir a área de atuação tre Nordeste e dada imagem e paisagem do
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 29

sertão, aquele marcado pelo seco, pelo duro, verdadeiro arquivo audiovisual vinculan-
pelo anguloso, pelo pouco, pelo menos, pelo do os conceitos de Nordeste e de sertão. Os
espinhoso, como aparecerá na obra-prima do lamentos de Freyre no livro Nordeste são o
escritor alagoano Graciliano Ramos, publica- sinal eloquente de que, embora o Nordeste
da um ano após o livro de Freyre, Vidas Secas como região tenha seu epicentro de elabo-
(1938) (RAMOS, 1984). Essa produção de ração em Pernambuco, em Recife e nas eli-
um discurso técnico terá continuidade com tes ligadas à produção açucareira – como
órgãos como o Departamento Nacional de ele procurará plasmar no final da década de
Obras contra as Secas (DNOCS), surgido da 1970, com a criação do Museu do Homem
reformulação da Ifocs em 1945, o Banco do do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabu-
Nordeste, fundado em 1952, e a Superinten- co, fruto de sua atuação como parlamentar
dência do Desenvolvimento na legislatura de 1946-1950
do Nordeste (Sudene), cria- Notadamente as camadas –, foi a produção intelectual
da em 1959. O Boletim da populares e suas matérias e artística ligada ao sertão
Inspetoria Federal de Obras e formas de expressão e, mais particularmente, ao
contra as Secas se consti- culturais, definidas por Ceará que terminou por pre-
esses autores como sendo
tuiu no veículo privilegiado valecer na hora de definir o
folclóricas, significariam um
desse discurso técnico, que que é o Nordeste.
repositório de inspiração
contou com os trabalhos e a para a produção de uma Ora, sendo desde o
colaboração de engenheiros cultura, de uma literatura e século XIX o espaço de
agrônomos, veterinários, de uma arte nacionais. ocorrência da seca por ex-
zoólogos, botânicos, geólo- celência, sendo o estado
gos, como Rodolpho Theodor von Ihering, nordestino em que até o litoral se encontra
José Augusto Trindade, José Guimarães Du- praticamente no sertão, a prevalência do
que, Alberto Löfgren, Paulo de Brito Guerra, imaginário criado pela produção cultural
Teófilo Pacheco Leão, Inácio Ellery Barreira cearense contribuiu decisivamente para
e tantos outros. Eles vão definir tecnicamen- estabelecer a sinonímia entre Nordeste
te o que politicamente ficaria definido como e sertão, sertão e semiaridez. O próprio
sendo o Polígono das Secas, ou seja, a área Freyre colaborou enormemente para isso
afetada por esse fenômeno meteorológico, ao patrocinar a publicação – no mesmo ano
objeto de disputa e interesse, notadamente que deu a lume o seu próprio livro sobre o
após a criação da Sudene, que tomaria essa Nordeste, na coleção Documentos Brasi-
demarcação como sua área de atuação, em- leiros, da editora José Olympio, da qual era
bora fosse um órgão destinado ao planeja- diretor na oportunidade – da obra do juris-
mento do desenvolvimento do Nordeste. ta e sociólogo cearense Djacir Menezes O
Esse rapto do sertão pelo regionalis- Outro Nordeste (1937). Essa obra, única na
mo nordestino não teria sido possível sem trajetória de um estudioso do pensamen-
a contribuição de uma poderosa produção to de Hegel, articula todas as temáticas
literária, artística, sem a produção de um que configuram o imaginário em torno do
30 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

sertão nordestino: as secas, as retiradas, o da música. Em toda a produção musical de


coronelismo, as querelas de sangue entre Luiz Gonzaga, cantor que atinge sucesso
famílias, a violenta conquista dos sertões nacional nos anos 1940, a sinonímia en-
que teria dado origem a uma psicologia que tre Nordeste e sertão se faz presente. Sua
apareceria representada em personagens música, criada em grande medida para um
como o jagunço, o cangaceiro e o beato. As- público composto de migrantes nordesti-
sim como acontecerá mais tarde na filmo- nos desterrados em terras do Sul, remete
grafia de Glauber Rocha, Menezes toma a sempre à saudade de um sertão idílico, a um
polaridade maniqueísta entre cangaceiros pé de serra onde se deixou ficar o coração,
e fanáticos, dicotomia que será posterior- um sertão de mulheres sérias e homens tra-
mente retomada, em 1963, por um conter- balhadores, um sertão distante das terras
râneo de Djacir, um militante civilizadas, um sertão em
do Partido Comunista, para Os clássicos glauberianos que ainda se anda a pé (SÁ,
explicar os dilemas da trans- Deus e o Diabo na Terra do 2012). Gonzaga produz
formação social no sertão Sol (1964) e O Dragão da com gêneros e ritmos como
(FACÓ, 1976), para figurar Maldade contra o Santo o baião, o xote e o xaxado
Guerreiro (1969) fazem
as polaridades extremadas uma sonoridade distinta e
do sertão nordestino o
da psique do sertanejo, que específica para esse sertão,
espaço onde se travam as
podia ir da fé mais irrestrita lutas ontológicas da vida diferente da sonoridade da
à violência mais sanguinária. humana e da própria vida tradicional música serta-
O que se desenha é um sertão social entre o bem e o mal, neja ou caipira, que marca
e um sertanejo incapazes de a reação e a revolução. a produção sonora que se
racionalidade, tomados pe- remete a outros sertões.
las paixões e pela crença mais primitiva. Não houve, antes ou depois dele, nenhum
Faltava ao sertão educação e racionalida- cantor que, assumindo uma dada identidade
de. Ainda hoje, os nordestinos, principal- regional para seu trabalho, tivesse tamanha
mente os sertanejos, são vistos como pouco repercussão, não só quanto à recepção, mas
racionais em suas decisões (notadamente no próprio campo da música popular brasi-
políticas), como afeitos ao messianismo e leira. É somente em anos recentes que uma
ao populismo. música sertaneja comercial reivindicando
Esse sequestro do conceito de ser- um sertanejo sem sertão, um sertanejo
tão pela Região Nordeste é inseparável da desterritorializado, sem fronteiras nítidas
qualidade e do impacto no imaginário e na e definidas, tem ganhado notoriedade nos
cultura brasileiros das obras no campo da meios de comunicação (ALONSO, 2015).
literatura e da ensaística que já comenta- Quem dele se aproximou, como Jackson do
mos até aqui, bem como do discurso técnico Pandeiro, também tinha a Região Nordeste
e político parlamentar, mas sem dúvida ele e o sertão nordestino como referência iden-
foi favorecido por obras no campo das artes titária de sua obra. A música de Gonzaga foi
plásticas e visuais, do cinema, do teatro e uma das referências da geração tropicalista,
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 31

no final dos anos 1960, bem como da cha- Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953),
mada geração Nordeste, um conjunto de de José Lins do Rêgo, cuja obra, como a de
grandes nomes de compositores e canto- Freyre, privilegia a temática do engenho e
res vindos da região (Zé Ramalho, Fagner, da cana na hora de pensar o Nordeste, mas
Geraldo Azevedo, Ednardo, Elba Ramalho), termina por se render à temática do sertão,
em cujas obras a sinonímia entre Nordeste e pela força que esta adquire na definição da
sertão já aparece estabelecida e trabalhada região (RÊGO, 1979, 1973). O mesmo ocor-
com grande sofisticação poética e sonora. re com Jorge Amado, que, embora tenha na
Nenhum dos outros sertões do país zona da produção do cacau e no Recôncavo
pôde contar com a força plástica e visual Baiano o centro espacial de sua produção,
de uma série de quadros como Retirantes, não deixa de dedicar um livro ao sertão, Sea-
de Candido Portinari, as obras de maior re- ra Vermelha (1946) (AMADO, 1983). O ser-
percussão do nosso mais festejado pintor. tão é o espaço privilegiado na definição do
A força dessa visualidade só é comparável Nordeste em autores do quilate de um Luís
à dos filmes do Cinema Novo, que fizeram da Câmara Cascudo, embora este fosse um
do sertão e do Nordeste suas espacialidades citadino habitante do litoral, de um João Ca-
preferidas. Mesmo dois grandes clássicos bral de Melo Neto e de um Ariano Suassuna
do cinema brasileiro que antecederam o e seu movimento armorial, produzindo um
Cinema Novo, como O Cangaceiro (1953), sertão medievalizado, um sertão construído
uma produção da Companhia Vera Cruz por emblemas, mitos, lendas, narrado como
com direção do cineasta Lima Barreto, e romance de cavalaria, como auto de Natal.
O Pagador de Promessas, filme dirigido por O poema “Morte e Vida Severina”, de
Anselmo Duarte e ganhador da Palma de João Cabral de Melo Neto, é um dos mais
Ouro no festival de Cannes, em 1962, es- conhecidos e reproduzidos da poética bra-
tavam relacionados a esse imaginário do sileira, tendo se tornado um premiado pro-
sertão e sua vinculação com o Nordeste. grama de televisão, com direção de Walter
Os clássicos glauberianos Deus e o Diabo na Avancini e música de Chico Buarque de
Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Hollanda, no ar em rede nacional em 1981.
contra o Santo Guerreiro (1969) fazem do Tanto a produção de Câmara Cascudo como
sertão nordestino o espaço onde se travam a de Ariano Suassuna também se tornaram
as lutas ontológicas da vida humana e da filmes e séries televisivas de sucesso, rea-
própria vida social entre o bem e o mal, a limentando e reafirmando no imaginário
reação e a revolução (ROCHA, 1965, 1985). nacional o rapto do espaço sertanejo pelo
As forças da morte enfrentam as for- Nordeste e pelo discurso regionalista des-
ças da vida numa dialética bastante ma- sa região (MELO NETO, 2007; CASCUDO,
niqueísta. A estética da fome tem o sertão 1984; SUASSUNA, 1971, 1977) .
nordestino como seu protótipo (ROCHA, Ao longo do século XX, principalmen-
1981). Esses filmes se alimentaram de toda te após a invenção do Nordeste, os sertões
a riqueza imagética de obras literárias como foram sendo nordestinizados, a ponto de
32 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

obras que tratavam desse espaço antes da duração, com a diferenciação desde a co-
existência do Nordeste, como Os Sertões, lônia da área açucareira, da área dedicada
de Euclides da Cunha, ou tratavam de ou- à pecuária e depois ao plantio do algodão,
tros sertões, como Grande Sertão: Veredas, tendo um lastro político que se materiali-
de João Guimarães Rosa, serem conside- zou, ao longo do tempo, em disputas e que-
radas algumas vezes, de forma equivocada, relas entre as elites do litoral e do interior,
como obras sobre o Nordeste. Mas o passo essa distinção de sertão e litoral estruturou
definitivo, que oficializa e materializa essa toda uma produção cultural e intelectual,
captura do sertão pelo Nordeste, foi a sub- que terminou por fazer do sertão e do ser
divisão da região em quatro sub-regiões, sertanejo um atributo exclusivo das gentes
sendo uma delas o sertão. Essa subdivisão, nascidas no interior do Nordeste.
feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Quando Ulysses Lins de Albuquerque
Estatística (IBGE), se deu em 1969. Ao lado escreve um livro como Um Sertanejo e o
da Zona da Mata, do agreste e do meio-nor- Sertão (1957), está expressando o arraigo
te, o sertão passou a figurar oficialmente subjetivo a uma identidade que já não en-
como uma parte da Região Nordeste, sen- contramos em outras áreas do país (AL-
do, aliás, a sua maior parte, correspondendo BUQUERQUE, 2012). Nas demais regiões
ao que também se denomina de semiárido, brasileiras, as gentes nascidas longe da
área de ocorrência privilegiada das secas costa tornaram-se interioranas, matutas,
periódicas. Da mesma forma que, em 1945, caipiras, capioas, bugres, mas não mais
ao realizar a primeira divisão regional do sertanejas. Essa designação, marcada pelas
país, o IBGE reconheceu uma situação de sagas dolorosas e repetidas das secas, pelas
fato já existente, incorporando o Nordeste retiradas, pelos êxodos, pelas migrações,
como uma das cinco regiões do país, sendo pelos saques de feiras e armazéns públicos,
as demais o Norte, o Centro-Oeste, o Leste pelos campos de concentração, pelos abar-
e o Sul, meras convenções político-adminis- racamentos, pelas frentes de emergência,
trativas que não tinham amparo nas iden- pelas obras contra as secas, pelos socor-
tidades regionais vividas e incorporadas ros públicos, pela indústria da seca, pela
pela população. viagem dramática em paus de arara, vai
Dessas cinco regiões, somente o Nor- se tornando indesejável para grande parte
deste era efetivamente incorporado pelas das pessoas que vivem longe das pancadas
pessoas em suas identidades. Podemos di- do mar, como diria Câmara Cascudo. Ser
zer que o mesmo ocorre com o sertão. Ao sertanejo foi se tornando, ao longo do sé-
definir o sertão como uma subárea do Nor- culo XX, sinônimo de ser nordestino e de
deste, o IBGE deu reconhecimento oficial viver o drama das secas periódicas. Mes-
a uma situação de fato, situação essa fruto mo as elites desse espaço, que estão lon-
desse longo processo histórico que tenta- ge de ser afetadas da mesma forma que os
mos tratar em suas linhas gerais neste ar- mais pobres pelas estiagens, se assumem
tigo. Tendo um lastro econômico de longa como sertanejas.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 33

Durval Muniz de Albuquerque Júnior


Possui licenciatura plena em história pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
e mestrado e doutorado em história pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Atualmente é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Uni-
versidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor titular da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). É também coordenador do Comitê da Área de História do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Tem experiência
na área de história com ênfase em teoria e filosofia da história, atuando principalmente
nos seguintes temas: gênero, Nordeste, masculinidade, identidade, cultura, biografia
histórica, produção de subjetividades e história das sensibilidades.

Referências

ALBANO, Ildefonso. Jeca Tatu e Mané Xiquexique. Fortaleza: Secretaria de Cultura do


Ceará, 1969.

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário


nordestino – de problema à solução (1877-1922). Dissertação de mestrado em
história. Campinas: Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1988.

_______. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste,


1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013.

_______. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

_______. As imagens retirantes: a constituição da figurabilidade da seca pela literatura


do final do século XIX e início do século XX. Varia História, v. 33, n. 61, abr. 2017, p.
225-251.

ALBUQUERQUE, Ulysses Lins. Um sertanejo e o sertão. Recife: Cepe, 2012.

ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 1997.

_______. O sertanejo. São Paulo: Ática, 1987.

ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias.


São Paulo: Ática, 2001.

ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

AMADO, Jorge. Seara vermelha. São Paulo: Record, 1983.

BARROSO, Gustavo (João do Norte). Ao som da viola.


Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa e Propaganda, 1949.

_______. Heróis e bandidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917.

_______. Praias e várzeas: alma sertaneja. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949.

_______. Terra de sol. São Paulo: Abc, 2006.

BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...


Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728.

CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.

CEARENSE, Catulo da Paixão. Alma do sertão. Rio de Janeiro: A Noite, 194- [s.n.].

_______. Meu sertão. Rio de Janeiro: A. J. Castilho, 1918.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Rio de
Janeiro: Lexikon, 2010.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Paulo Azevedo Ltda., 1902.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. São Paulo: Bertrand, 1976.

FREYRE, Gilberto. Nordeste. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio;


Recife: Fundarpe, 1985.

MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte agrário e o Império (1871-1889).


Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007.

MENEZES, Djacir. O outro Nordeste. São Paulo: Artenova, 1970.

MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense. 3. ed.


Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 35

_______. Sertão alegre. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1965.

_______. Violeiros do Norte. 3. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.

OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. São Paulo: Ática, 1998.

PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. São Paulo: Editora Três, 1973.

QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 52. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1984.

RÊGO, José Lins do. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

_______. Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

ROCHA, Glauber. Deus e o diabo na terra do sol.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.

_______. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Embrafilme/Alhambra, 1981.

_______. Roteiros do Terceyro Mundo. Rio de Janeiro: Embrafilme/Alhambra, 1985.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Victor Civita, 1967.

SÁ, Sinval. Luiz Gonzaga: o sanfoneiro do Riacho da Brígida. Recife: Cepe, 2012.

SUASSUNA, Ariano. O rei degolado ao sol da onça caetana.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

_______. Romance da pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.

TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Ática, 1981.

_______. Visões do sertão. São Paulo: Melhoramentos, 1923.

TÁVORA, Franklin. O cabeleira. São Paulo: Ática, 1981.

TEÓFILO, Rodolfo. A fome: cenas da seca do Ceará. São Paulo: Tordesilhas, 2011.

ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do descobrimento e conquista de Guiné...


Pariz: Officina Typographica de Fain e Thunot, 1841.
34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

SERTÃO, IDENTIDADES E
REPRESENTAÇÕES NO
CENTRO-OESTE
Maria Geralda de Almeida

Discute-se o imaginário e as representações presentes na construção dos sertões, ilus-


trando com uma trajetória das diversas representações que foram feitas sobre o Centro-Oeste.
As identidades sertanejas emergem com a relação com o outro e com a natureza diversa. Po-
rém, ressalta-se que aquelas esboçadas sobre os sertanejos são dinâmicas e podem se mesclar.
São múltiplas.

I
A etnoterritorialidade do sertanejo do o território. E a identidade territorial do ser-
Centro-Oeste é o cerne para compreen- tanejo aparece como indispensável para a
der o sertão a partir de suas representa- existência e a manutenção da biodiversidade
ções associadas ao bioma Cerrado. Para e do horizonte de vida do sertão brasileiro.
tanto, serão evidenciadas as concepções No século XVIII, surgiu um interesse
de sertão e as dimensões culturais cons- pelo sertão a fim de descobrir o que a ter-
truídas “no mundo rústico, sertão, onde ra incógnita ainda poderia oferecer como
estariam nossas raízes e nossa autentici- recursos. Naquele período, havia um ca-
dade”, conforme nos lembra Martins (2000, minho que cruzava o Planalto Central até
p. 28), para entender esse sertanejo e, sob Mato Grosso – era o mais extenso da época
essa perspectiva, compreender a nossa colonial, conhecido como a Estrada Geral
essência brasileira. do Sertão, e confundia-se com o Caminho
Claval (1995) clareia essa discussão de Goiás ou Picada de Goiás. No total, o
ao afirmar que é pela cultura que homens e chamado Caminho de Goiás estendia-se
mulheres fazem a sua mediação com o mun- por 266 léguas (cerca de 1.500 km), sepa-
do, constroem um modo de vida particular e rando Vila Boa de Goiás do Rio de Janeiro,
se “enraízam” no território. Há, assim, uma e consumia cerca de três meses de viagem
herança cultural que permeia a relação com (ROCHA JR. et al., 2006).
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 35

Por essa estrada, estrangeiros chegaram Criava-se, assim, uma ideia da


ao Brasil central e registraram seus olhares letargia social, de dias iguais a todos os
em relatos. Penetrando nessas terras longín- dias, de solidão que tinha no sertão o ce-
quas no ano de 1819, o naturalista Auguste de nário ideal.
Saint-Hilaire assim as descreveu: No século XXI, embora os caminhos,
as redes e o meio técnico-científico-tec-
[...] aqueles que falam do sertão garan- nológico tornem os sertões tão familiares,
tem que ele se parece a um jardim e essa estes permanecem ainda misteriosos. E o
comparação tornou-se uma espécie de que então pode ser chamado de sertão e
provérbio. Eu admito, com efeito, que esta de sertões? Acredita-se que o termo ser-
região possa ter o aspecto que lhe atribuem tão seria uma corruptela de grande deser-
quando os campos possuem todo verdor e to, deserto sertão.
que estas árvores e arbustos tão numero- No período colonial, “o Brasil litorâ-
sos, tão variados, estão cobertos de flores neo, o interior era o lugar deserto, a so-
tão brilhantes (1975, p. 53). lidão, o vazio que não faz sentido senão
como lugar de frequentação, passagem”
Apresentando o sertão com uma ca- (STURM, 1995, p. 94). O sertão trazia
racterística próxima àquela predominante consigo as marcas do processo colo-
na Europa civilizada, Auguste de Saint- nizador, refletia a linguagem do outro,
-Hilaire se empenha para fazer o europeu do civilizado.
imaginar o sertão apoiando-se em uma Leonardi (1996) defende que o con-
imagem conhecida. ceito de sertão tem algo a ver com a ideia
No sertão, onde o ritmo de vida era de fronteira do período colonial, quando
mais lento, a percepção do tempo também eram imprecisos os limites entre o mundo
o era. E a cultura que surgia absorveu essa português e o mundo espanhol na Améri-
característica no estilo de vida próprio do ca. O sertão referido aqui se materializa
sertanejo. O escritor lusitano Oscar Leal, no nos limites dos estados de Goiás, de Mato
século passado, observou espantado: Grosso do Sul e de parte de Mato Grosso.
Contudo, esses estados englobam vários
[...] se tendes percorrido os nossos sertões. Ab’Sáber (1999, p. 95), por exem-
sertões, os lugares onde a vida é fácil por plo, distingue outras tipologias, como
causa da caça e da pesca, deveis saber que “sertão bravo” (áreas mais secas), “altos
essa gente caminha para o entorpecimento, sertões” (áreas semiáridas rústicas e típi-
para o túmulo. Esta gente não fala – boceja, cas existentes nas depressões colinosas)
não anda –, arrasta-se, não vive – vegeta. ou “agrestes regionais”. Assim, o uso esta-
Para ela não há ambição, nem luxo, nem beleceu que o sertão são as terras ásperas
dinheiro, nem conforto: não há nada e que do interior, o que culminou por histórica e
corra a vida como o barco à mercê da cor- socialmente aproximar-se aos biomas do
rente (apud CHAUL, 1995, p. 19). Cerrado e da Caatinga.
36 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

II
As representações são fundadas sobre a mero coadjuvante do processo de construção
aparência dos objetos e não sobre o objeto da unidade nacional e da formação do sen-
em si. São criadas para expressão do real no timento patriótico. Eram representações
bojo de uma ideologia. As representações so- que faziam parte do imaginário social das
ciais também regem nossas relações com o populações que habitavam o exterior ou o
mundo e os outros, orientam e organizam os litoral brasileiro.
comportamentos e as comunicações sociais Este olhar negativo e preconceituoso
(BAILLY, 1992). sobre o oeste brasileiro pelos habitantes mais
Jodelet (1991) é mais enfática ao afir- próximos à costa não é recente, como foi vis-
mar que a representação corresponde a um to. O “sertão”, como por vezes Goiás e Mato
ato do pensamento pelo qual o indivíduo Grosso foram denominados, seria o oposto
se relaciona com um objeto. Isso pode ser do que existia no litoral – considerado como
uma pessoa, um objeto, um evento material um espaço de progresso e desenvolvimento.
físico ou social, um fenômeno natural, uma O resultado foi a construção de uma
ideia, uma teoria; pode ser real, imaginário imagem negativa dos sertões e dos costu-
ou mítico. mes e tradições das suas populações. Em
Representação, para Chartier (1990, p. resposta, ocorreu também a construção de
20), é uma forma de discurso que permite representações locais, que buscaram se con-
“ver uma coisa ausente”, ou também que se trapor às primeiras e negá-las, originando,
manifesta como a “exibição de uma presença assim, uma verdadeira luta de representa-
[...] de algo ou de alguém”; processo de articu- ções. Embora identificado como sertão, o
lações simbólicas por meio do qual se estabe- Centro-Oeste negava a originalidade da cul-
lece uma acepção do real, uma significação tura sertaneja, a sertanidade que refletiria o
da realidade. Pesavento, complementando Brasil autêntico (LIMA, 1999; SENA, 2003).
esse entendimento, afirma: O olhar dos estrangeiros aqui chegados,
de um continente que conhecia já os benefí-
As representações construídas sobre cios da industrialização, ressentiu as marcas
o mundo não só se colocam no lugar deste materiais do progresso lá visto. Contudo, es-
mundo, como fazem com que os homens ses sertões goianos tiveram vários olhares. O
percebam a realidade e pautem a sua exis- conceito de sertão da decadência e do atraso
tência. Indivíduos e grupos dão sentido ao que perpassa a reconstituição feita por Luis
mundo por meio das representações que Palacín do passado dessa sociedade difere do
constroem sobre a realidade (2005, p. 39). sertão de abastança e de paraíso caboclo que
se encontra em Paulo Bertran (1994). Já sob
O Centro-Oeste era representado como a visão artística de Hugo de Carvalho Ramos,
um lugar distante e de difícil acesso, povoado na obra Tropas e Boiadas (1917), surge um
por uma esparsa população, violenta e pou- sertão poético, de horror e beleza, sertão ao
co civilizada, sendo, por vezes, exibido como mesmo tempo dramático e belo.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 37
38 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

III
Os homens não agem em função do real, mas Entendo que o sertão, território em
em função da imagem que fazem dele, já bem questão, também se define e se singulariza
nos disse Claval (1992). Contudo, se uma por características simbólicas e culturais e
imagem presente não faz pensar em uma destaca-se por ser uma construção social.
imagem ausente, se uma imagem casual não Por isso, considero que tais aspectos devem
determina uma explosão de imagens, não há ser levados em conta na compreensão de
imaginação. Bailly (1990) e Carlos (1994) nos processos históricos mais amplos, os quais
chamam a atenção para os lugares vividos trazem em seu bojo as marcas do vínculo
que são também espaços imaginários. En- com o lugar em que se originaram.
tre os espaços da vida próximos ao distante
e apenas imaginado, todos os territórios vi-
IV
vidos e/ou pensados o são por meio de cate- O sertão resulta como produto da cultura
gorias que refletem situações da experiência ecológica e os sertanejos ilustram essa cul-
relacional de vida. tura. A sociedade localizada em um ambien-
Uma definição inspirada em Casto- te de sertões, apesar de constituir-se uma
riadis, e também expressiva, unidade totalizada, é múlti-
considera o imaginário como Essa paisagem resulta em pla. Uma sociedade – convém
“um sistema de ideias e ima- alterações substanciais destacar – resultante de im-
no próprio entendimento
gens de representações cole- bricações de diversos povos
do rural, fazendo emergir,
tivas que os homens, em todas associados aos cerradeiros
além do agronegócio,
as épocas, construíram para novas ruralidades no geraizeiros, aos chapadeiros,
si, dando sentido ao mundo” cenário do Centro-Oeste, aos negros aquilombados,
(PESAVENTO, 2005, p. 43). como turismo rural, aos indígenas, aos barran-
Uma crítica às interpreta- pesque-pague e spas. queiros/ribeirinhos dos rios
ções de sertão é feita por Mo- Araguaia, Paranaíba, Para-
raes (2002-2003). Para ele, o sertão não é um guai, Paraná, Teles e Cuiabá, entre tantos
lugar, mas uma condição atribuída a variados outros, e aos vazanteiros e pantaneiros ou
e diferenciados lugares – ideia com a qual con- de outros alagados e, ocasionalmente, áreas
cordo e busco abordar nesta discussão. inundadas dos sertões.
Espindola (2004, p. 3) destaca que Esses signos identitários que infor-
o “sertão foi um discurso sobre espaços e mam as especificidades das populações
pessoas, uma construção simbólica com locais vinculam-se a algumas das diversas
fins determinados”. Esse argumento enfa- ecologias que compõem os sertões. Os cer-
tizei anteriormente, quando afirmei que: “a radeiros e chapadeiros encontram-se nas
construção discursiva sobre o sertão espelha faixas de cerrado e chapadas. Os vazanteiros
a maneira como ele é pensado e uma manei- e pantaneiros estão situados nas áreas de
ra específica de ‘ver’ o mundo” (ALMEIDA, vazantes dos rios e lagoas existentes no ter-
2003a, p. 71). ritório regional; os habitantes das margens
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 39

dos rios são associados ao gênero de vida do alimento tradicional das plantas pelas
que ali estabelecem. populações a elas associadas.
Desde os anos 1950, o vasto território Somente 1,5% do território do Centro-
do Centro-Oeste passou a se constituir em -Oeste encontra-se protegido na forma de
uma extensa fronteira agrícola propiciada Unidades de Conservação. Com a destrui-
pela sua capacidade de receber população ção sistemática a que o bioma é submetido, o
e seu potencial econômico a ser explorado. país perde um potencial biológico e uma im-
Atentos a essas características, os inves- portante alternativa socioeconômica basea-
tidores governamentais e multinacionais da na utilização sustentável da diversidade
procuraram transformar aquele território biológica do Cerrado. Os sertões transmu-
em um grande produtor, principalmente dam-se na paisagem e no imaginário.
de gado e de grãos, para o abastecimento
do mercado mundial. Eles historicamente
V
fizeram a ocupação dos sertões, bem como Se a identidade é “a fonte de significado e
a mineração e a silvicultura foram selecio- experiência de um povo”, como nos afirma
nadas como os principais produtos de des- Castells (2006, p. 22), um primeiro elemen-
taque regional. to que materializa a identidade dos serta-
Para o ideário desenvolvimentista nejos, sua sertanidade, é a existência de
que caracterizou as principais políticas uma natureza sertaneja, rural, e se sentir
governamentais desde a década de 1950, pertencente ao sertão. É o caso da socieda-
as vastas terras do cerrado significavam, e de goiana, que está impregnada de valores
ainda significam, um espaço com viabilida- e traços rurais, afirma Nogueira (2009). Ela
de econômica, dessa forma obscurecendo está, assim, prenhe de sertanidade.
seu potencial enquanto biodiversidade. A Sertanidade implica ser parte da natu-
expansão da monocultura da soja, embora reza do sertão, estar nas redes de sociabili-
venha favorecendo a balança comercial bra- dade e solidariedade que permitem ampliar
sileira, também está afetando sensivelmen- os vínculos de amizade e parentesco, que se
te o ecossistema e as populações sertanejas. tornam cada vez mais sólidos e presentes no
No caso da biodiversidade, posta como imaginário construído em torno do lugar.
território culturalizado (ALMEIDA, 2003b), Le Bossé (2004) nos auxilia a com-
há a perda de habitat de inúmeras espécies preender a identidade apresentando refe-
animais e vegetais, o que reflete sobre aque- renciais que são estabelecidos a partir de
las populações gradualmente privadas de subjetividades individuais e coletivas. O
sua base de recursos, comprometendo, as- autor destaca o aspecto dinâmico e variável
sim, sua identidade cultural enquanto ser que a entidade adota e assume.
sertanejo. Também deve-se considerar que Na visão de Castells (2006), a identi-
a devastação da vegetação natural significa a dade é uma forma de distinção entre o eu e
perda do conhecimento acumulado ao longo o outro. Segundo ele, os atores sociais dão
dos tempos sobre o uso medicinal e o uso significado às suas ações a partir de um ou
40 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mais atributos culturais que prevalecem com qualidades específicas, pela combina-
no processo de construção das identida- ção de fatores que se interagem diferen-
des. Ele também adota a premissa de que ciando a qualidade de solos, a vegetação,
toda identidade é uma construção social as influências sutis deixadas pela rede de
que se serve de conhecimentos provindos drenagem do presente e do passado. Os cer-
de instituições, pela memória coletiva e por radeiros constroem um mosaico de atribu-
fantasias pessoais, pelos aparatos de poder tos ecológicos e culturais que se realiza pela
e de religião. Porém, homens, grupos sociais sua interação, conformando uma unidade
e sociedade reorganizam seu significado em da paisagem, fato já relatado nos estudos
função de projetos culturais enraizados e de Rigonato (2005).
sua estrutura social, bem como em sua visão Conforme Costa (2005), na década de
de tempo/espaço. 1970, o Governo Federal, principal interven-
Tais argumentos reforçam ser o ser- tor com seus financiamentos subsidiados
tão e os sertões um espaço vivo e dinâmico, e seus incentivos fiscais, deu início à mo-
que comunica e traz consigo uma forte carga dernização dos sertões. Sertanejos foram
simbólica transmitida por valores e práti- desprezados, privilegiando-se as oligarquias
cas por todos que partilham o espaço. Não tradicionais, o agronegócio e as agroindús-
importa qual signo identitário ele comunga trias da sociedade dominante.
dessa natureza sertaneja. Desde então, ocorre a constituição de
A paisagem que compõe esse território uma nova paisagem, que afetou as bases de
está vinculada àquela formação denomina- sustentação da agricultura familiar tradi-
da os gerais, ou seja, os planaltos, as encos- cional, com impactos nos recursos natu-
tas e os vales das regiões de cerrados, com rais cerradeiros, acelerando seu processo
suas vastidões que dominam as paisagens de deterioração. Essa paisagem resulta em
dos sertões. A denominação geraizeiro é alterações substanciais no próprio enten-
usada mais em Minas Gerais, e cerradei- dimento do rural, fazendo emergir, além do
ros é o termo defendido por Bertran (1994), agronegócio, novas ruralidades no cenário
referindo-se às populações do cerrado de do Centro-Oeste, como turismo rural, pes-
modo geral. que-pague e spas.
Os sertões, com seus tabuleiros, espi- A partir dessas significações do rural
gões e chapadas, fazem parte da estratégia tradicional, Pereira (2002) traça o novo
produtiva e garantem suas reproduções imaginário em construção em Goiás, no
com diversos produtos do extrativismo. processo de superação de uma cultura rural,
Este desempenha, cada vez mais, um papel apontando para o quadro dos novos tempos
importante na geração de renda pela comer- de Goiás. Processo semelhante existe na
cialização de frutos, óleos, plantas medici- zona rural de todo o Centro-Oeste.
nais e artesanatos. Atualmente, os horizontes dos sertões
Conforme já mencionado, os cerradei- do Centro-Oeste têm outros protagonis-
ros reconhecem inúmeras zonas ecológicas tas. Em Goiás, as usinas canavieiras, com
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 41

produção de açúcar, etanol e energia, têm empobrecer os sertões vendo-os como uma
sua produção ampliada sobremaneira nos sociedade e um território únicos. Pode-se,
últimos anos. Em 2017, eram 38 usinas em pois, afirmar que a identidade cultural dá
funcionamento no estado de Goiás, o que nos sentido ao território e delineia as territo-
coloca na segunda posição nacional, liderada rialidades que se apoiam sobre as paisa-
pelo estado de São Paulo. Em Mato Grosso, gens sertanejas.
soja, milho, algodão e cana-de-açúcar res-
pondem a incríveis 94,7% de todo o valor da
produção da agricultura do estado. Em Mato
Grosso do Sul, Rio Brilhante é o município
do país com maior quantidade produzida de
cana-de-açúcar; e o estado lidera o cresci-
mento da produção de soja no país.
Na contramão, os diversos movimentos
sociais dos sertões demonstram experiên-
cias de luta para a conservação dos cerra-
dos e pelo seu uso não destrutivo. Esses
sertanejos veem a necessidade de incorpo-
rar técnicas que causem menos impactos Maria Geralda de Almeida
nos cultivos – agora mais intensivos, com É sertaneja de Brasília de Minas, no Vale do
restrição das terras, restrição da oferta de São Francisco. Já morou em Rio Branco (AC), Ara-
água e perda da biodiversidade. Também a caju (SE), Fortaleza (CE) e atualmente vive em
percepção de que sertanejos têm uma convi- Goiânia (GO), sempre trabalhando em universi-
vência estreita com a natureza nessas áreas, dades federais. É professora titular no curso de
e eles dispõem de saberes e interesses da geografia no Instituto de Estudos Socioambientais
manutenção da biodiversidade, da qual de- da Universidade Federal de Goiás (Iesa/UFG). Tem
pende a sua sobrevivência, tem fortalecido diversos artigos publicados e organizou os seguin-
a compreensão de que eles são sujeitos so- tes livros: Geografia: Leituras Culturais (2003),
ciais importantes nas discussões e políticas com A. Ratts; Tantos Cerrados (2005); Geografia
que envolvem os cerrados. e Cultura: Lugares de Vida e a Vida nos Lugares
Uma tipologia identitária do sertanejo, (2008), com E. Chaveiro e H. Braga; Território e
embora grosseira, foi esboçada. Porém, re- Cultura (2009), com B. A. Nates; Territorialidades
conheço a natureza dinâmica presente na na América Latina (2009); É Geografia, É Paul
identidade. Há, além disso, a possibilidade Claval (2013), com Arrais; Território e Comunida-
de mesclar tipos identitários. Portanto, as de Kalunga (2015); Paisagem e Desenvolvimento
identidades sertanejas são traços gerais, Chibuto (Moçambique) (2015); Atlas de Festas
e somente singularizam a diversidade dos Populares de Goiás (2015); Atlas de Celebrações
sertanejos, conforme já referi. Reconhe- (2016), com M. A. Vargas; e Territórios de Tradições
cê-los em sua diversidade evita o risco de e Festas (2018).
42 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Referências

AB’SÁBER, Aziz N. Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida. Estudos


Avançados, São Paulo, v. 13, n. 36, 1999, p. 7-59.

ALMEIDA, M. G. Em busca da poética do sertão: um estudo de representações. In:


ALMEIDA, M. G.; RATTS, A. J. P. (Org.). Geografia: leituras culturais. Goiânia:
Alternativa, 2003b. p. 71-88.

ALMEIDA, M. G. Cultura ecológica e biodiversidade. Mercator, ano 2, n. 3, 2003a, p. 71-82.

BACZKO, B. A imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopédia Einaudi.


Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1985.

BAILLY, A. Les représentations en geógraphie. In: BAILLY, A.; FERRAS, R.; PUMAIN, D.
Encyclopédie de Geógraphie. Paris: Economica, 1992.

BERTRAN, P. História da Terra e do Homem no Planalto Central: eco-história do Distrito


Federal: do indígena ao colonizador. Brasília: Solo, 1994.

CARELLI, M. Cultures croisées: histoires des échanges culturelles entre la France et le


Brésil de la découverte aux temps modernes. Paris: Nathan, 1993.

CARLOS, A. F. A. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1994.

CASTELLS, M. O poder da identidade. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt.


São Paulo: Paz e Terra, 2002.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1990.

CHAUL, N. F. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da


modernidade. Ciências Humanas em Revista: História, Goiânia: UFG, v. 2, jul.-dez.
1995, p. 11-26.

CLAVAL, P. Champs et perspectives de la géographie culturelle. Geographie et


Cultures, v. 1, n. 1, 1992, p. 7-38.

COSTA, J. B. A. Cerrados do norte mineiro: populações tradicionais e suas identidades


territoriais. In: ALMEIDA, M. G. Tantos cerrados: múltiplas abordagens sobre a
biogeodiversidade e singularidade cultural. Goiânia: Ed. Vieira, 2005.

ESPÍNDOLA, H. S. Um olhar sobre a paisagem mineira do século XIX: os sertões são


vários. Disponível em: <http://www.ufop.br/ichs/conifes/anais/CMS/ccms17.html>.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 43

GALETTI, L. S. G. Mato Grosso: o estigma da barbárie e a identidade regional. Textos


de História, Brasília, v. 3, n. 2, 1995, p. 48-81.

JODELET, D. Les représentations sociales. Paris: PUF, 1991.

LE BOSSÉ, M. As questões de identidade em geografia cultural. In: CORRÊA, R. L.;


ROSENDAHL, Z. (Org.). Lugar, identidade e imaginário: paisagens, textos e
identidade. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2004, p. 157-179.

LEONARDI, V. Entre árvores e esquecimentos: história social dos sertões do Brasil.


Brasília: Paralelo 15, 1996.

LIMA, N. T. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da


identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan/Iuperj-Ucam, 1999.

MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na


modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000.

MENDONÇA, M. Os novos movimentos sociais cerradeiros: a territorialização do MAB


em Goiás. In: ALMEIDA, M. G. (Org.). Tantos cerrados. Goiânia: Ed. Vieira, 2005.

MORAES, A. C. R. Sertão: um outro geográfico. Terra Brasilis, Rio de Janeiro, n. 4-5,


2002-2003.

PEREIRA, E. M. C. M. Goiânia, filha mais moça e bonita do Brasil. In: BOTELHO, T. R.


(Org.). Goiânia: cidade pensada. Goiânia: Ed. UFG, 2002, p. 13-69.

PESAVENTO, S. J. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário.


Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, 2005, p. 9-27.

RAMOS, H. C. Tropas e boiadas. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1917.

RIGONATO, V. D. A dimensão sociocultural das paisagens do Cerrado goiano: o distrito


de Vila Borba. In: ALMEIDA, M. G. (Org.). Tantos cerrados. Goiânia: Ed. Vieira,
2005, p. 49-71.

ROCHA JR., D.; VIEIRA JR., W.; CARDOSO, R. C. Viagem pela Estrada Real dos Goyazes.
Brasília: Paralelo 15, 2006.

SAINT-HlLAlRE, A de. Viagem à Província de Goiás. Belo Horizonte: Itatiaia;


São Paulo: Edusp, 1975.

SENA, C. S. Interpretações dualistas do Brasil. Goiânia: Ed. UFG, 2003.

STURM, S. Por uma prática visual do sertão. Ciências Humanas em Revista.


Goiânia: UFG, v. 2, jul.-dez. 1995, p. 93-103.
44 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

SER-TÃO BAIANO
Cláudia Pereira Vasconcelos

Este trabalho visa discutir como o propagado texto identitário da baianidade se construiu
de modo a suprimir a visibilidade de uma presença rural/sertaneja em um estado culturalmente
muito plural e do qual 70% do território é classificado como semiárido. Apresenta resultados de
uma pesquisa sobre o assunto realizada em 2007 e, de forma breve, se propõe a pensar na atua-
lização do tema a partir da questão: estariam hoje a baianidade e a sertanidade no mesmo lugar?
Para compreender tais reflexões, dialoga com autores e experiências que atravessam a temática.

1. O Sertão, esse ser eterno

Sertão – se diz –, o senhor As formas de dizer do sertão tanto do


querendo procurar, nunca não encontra. marcante personagem de Guimarães Rosa,
De repente, por si, quando a gente não Riobaldo, quanto da música esbraseante e
espera, o sertão vem. contemporânea do Cordel do Fogo Encantado
revelam que esse conceito-personagem pode
Guimarães Rosa ser ao mesmo tempo geográfico e simbólico.
Um ente perene entre nós que nada mais é do
que um longe perto, pode estar em toda parte,
Quando chove no sertão ser o mundo todo e, ao mesmo tempo, estar
O sol deita e a água rola dentro da gente... A única certeza que se tem é
O sapo vomita espuma que “nenhuma palavra é mais ligada à história
Onde um boi pisa se atola do Brasil e, sobretudo, à do Nordeste do que a
E a fartura esconde o saco palavra sertão” (BARROSO, 1962, p. 35).
Que a fome pedia esmola O presente texto propõe um breve pas-
seio por diferentes tempos, lugares e sentidos
Trecho de poema de João Paraibano em para, mais uma vez, pensar a dimensão e o
música do Cordel do Fogo Encantado papel do sertão na contemporaneidade. No
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Cláudia Pereira Vasconcelos 45

caso específico, trataremos de como a Bahia, na mídia local e nacional e especialmente na


esse estado de tão ricas e variadas represen- concepção e implementação das políticas
tações culturais, elegeu como referência ape- culturais do estado da época.
nas uma região, Salvador e o Recôncavo, para Em linhas gerais, o estudo aponta que a
compor o seu texto identitário, deixando de ideia de Bahia – a baianidade – foi construída
fora uma gama de elementos culturais repre- por meio de uma estratégia imagético-dis-
sentativos de outros recantos desse vasto es- cursiva que a colocou como algo à parte, sui
tado, especialmente do sertão. Vamos a ele! generis, como bem diz o verso de Caymmi:
“A Bahia tem um jeito que nenhuma terra
2. O (não) lugar do sertão na configuração tem”. Aparece no imaginário nacional e in-
da identidade baiana ternacional como a terra da felicidade, um
Em 2005, iniciava um estudo de mestra- lugar diferente, místico e sensual, o berço de
do na Universidade Federal da Bahia (UFBA) uma cultura mestiça marcada pela herança
cuja investigação, concluída em 2007 e publi- africana, um caso à parte do Nordeste e, mais
cada em 2011, traria o título Ser-Tão Baiano: ainda, um caso à parte do Brasil.
o Lugar da Sertanidade na Configuração da Imagens que foram se organizando por
Identidade Baiana. A chamada do livro inten- meio de múltiplas linguagens, na literatura,
cionava claramente provocar no leitor uma na música, nas artes cênicas e visuais, tanto
dupla reflexão: levantar a questão do que, de fora para dentro1 como de dentro para fora.
afinal, é ser baiano e por que sua pretensa Sendo o vigoroso discurso literário de Jorge
intensidade foi tão bem construída, e, em Amado um dos principais suportes para que
segundo lugar, marcar que a Bahia também a Bahia se tornasse conhecida nos diversos
é feita de sertões. cantos do mundo, dos anos 1930 até os dias
A pesquisa nasceu de uma inquietação de hoje. A sua obra, acompanhada da música
pessoal; por ser oriunda de uma pequena ci- de Dorival Caymmi, da pintura de Carybé e
dade do semiárido baiano (Serrolândia) e re- da fotografia de Pierre Verger, encontrou eco
cém-chegada à capital da Bahia, percebi como em diversos tipos de descendentes que foram
em diversas situações o lugar do interiorano/ atualizando essa narrativa. Poderíamos citar
sertanejo na relação com a Soterópolis era (é) a irreverência dos tropicalistas, a explosão da
demarcado por um sentido de “outridade”, axé music, o teatro negro do Bando de Tea-
perpassado por uma sutil e perversa ironia, tro Olodum, além de tantos outros aparatos
que numa espécie de subtexto tenta colocar estéticos nascidos do olhar amadiano ou
esse “outro” em um lugar de estranho e muitas que dele partilham de alguma forma. Desse
vezes de subalterno. Em síntese, poderia dizer modo, construiu-se uma estreita relação en-
que, de fato, o que me levou a problematizar tre o real e o imaginário desta terra.
o discurso oficial da cultura baiana foi a ex- A ideia de “cultura baiana” ganhou
periência de viver em Salvador e de ver que a maior força e definiu melhor os seus contor-
Bahia soteropolitana se apresentava como he- nos pela forma como fora apropriada pelos
gemônica nos discursos de pessoas comuns, discursos oficiais do poder público local em
46 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

suas políticas estaduais de cultura e turismo,2 desenvolvimento; por isso mesmo, não in-
constituindo-se, por sua vez, numa poderosa tegraria ao seu discurso identitário questões
estratégia para alavancar a economia local que pudessem associá-la à região da qual
a partir da representação da singularidade faz parte geograficamente: o Nordeste, um
como motivação para o consumo do entre- território concebido historicamente como
tenimento. Neste período, que vai aproxima- sinônimo de sertão, que por diversas razões
damente dos anos 1970 até o ano de 2006, a também foi construído no imaginário nacio-
permanência no poder de um mesmo grupo nal como representação de pobreza, analfa-
político, liderado por Antônio Carlos Maga- betismo, seca e violência, entre outros signos
lhães, foi determinante para a legitimação da associados ao passado e ao atraso (ALBU-
baianidade, bem como o azeitamento realiza- QUERQUE JÚNIOR, 2003).
do pela mídia local, especialmente pela Rede Para melhor compreender essa constru-
Bahia, de propriedade da família Magalhães, ção histórica do conceito de sertão e as formas
retransmissora da Rede Globo na Bahia. Essa de utilização dos seus múltiplos sentidos na
lógica política e midiática conseguiu construir construção da brasilidade, o estudo adentrou
um texto unificador em torno da ideia de Bah- um contexto mais amplo, entre o final do sécu-
ia, por meio de uma eficaz estratégia da positi- lo XIX e o início do século XX, quando o projeto
vidade pela qual se recorta e evidencia aquilo de constituição da identidade nacional apre-
que interessa e se esconde ou esquece o que sentou-se como uma das principais discussões
não convém (MOURA, 2005). entre os pensadores brasileiros. Em suma, po-
Diversos estudiosos da baianidade, demos afirmar que o sertão foi ocupando lugar
entre eles Antonio Risério (1993), apontam nos discursos sobre a nacionalidade de forma
que o olhar centrado na cultura de Salvador, ambivalente e, por vezes, contraditória, sendo
“Cidade da Bahia”, deve-se ao fato de que as visto tanto como o cerne da brasilidade mais
elites tradicionais locais, após o lento pro- pura quanto como uma mancha que dificulta
cesso de declínio econômico e político que o projeto de modernização e desenvolvimen-
se inicia no final do século XVIII, sentem a to urbano gestado e implementado a partir do
necessidade de ostentar o seu passado glo- século XX. É interessante notar que, mesmo
rioso, buscando a antiga referência da capital divergentes, essas linhas de pensamento se
colonial do Brasil. Desse modo, no período fundamentaram em teorias científicas da
em que o texto da baianidade começa a ser época, de cunho evolucionista, racista e na-
elaborado – início do século XX –, a Bahia turalista. Das diversas narrativas em disputa,
ainda se encontra em crise econômica e po- dois blocos regionais destacam-se ao travar
lítica, perdendo o compasso do desenvolvi- uma batalha discursiva na afirmação de uma
mento que se verificava no centro-sul do país. brasilidade mais legítima.
Como o objetivo central desse proje- De um lado estavam os representantes
to será o de gerar recursos financeiros, a das elites do Norte/Nordeste, região que, mer-
Bahia não se deixará mostrar como mais gulhados numa longa crise política e econô-
um estado pobre que perdeu o passo do mica, buscavam reafirmar sua legitimidade
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Cláudia Pereira Vasconcelos 47

como os verdadeiros representantes da nação, apagamento dos baianos do interior, especial-


de modo que se apropriam de imagens rela- mente do sertão, que não combinam com esse
cionadas ao sertão, elegendo como seu repre- modelo “produto Bahia”. Além de ocasionar o
sentante símbolo o sertanejo, que, por ser visto desconhecimento do território não litorâneo,
como um homem forte e resistente, seria capaz fomentando o preconceito contra o interio-
de recolocar aquele pedaço de Brasil no centro rano, essa prática centralizadora impossibi-
do poder. Do lado oposto estavam as elites do litou, durante décadas seguidas, o acesso às
Sul/Sudeste, região que, a partir do apogeu do políticas estaduais de cultura e, mais ainda, a
café, desponta como novo polo econômico e visibilidade de suas ricas e diversificadas ma-
político do Brasil, e, por isso mesmo, surge a nifestações culturais.
necessidade de criar sentidos de brasilidade, Por fim, todas as questões levantadas têm
assegurando-lhe, para além do poder econô- como propósito pensar como o poder simbóli-
mico, validar-se pelo viés histórico e cultural. co (BOURDIEU, 2005) presente nos discursos
Para se afirmarem, essas elites constroem um identitários colonialistas se reproduz nos di-
discurso referenciado nas noções de futuro e versos âmbitos sociais ou territoriais e, a partir
progresso, apontando, portanto, o sertão/Nor- daí, interrogarmo-nos por que esses antigos
deste como uma espécie de entrave ao projeto estereótipos ainda povoam o imaginário de
de modernização e urbanização da nação. tantos brasileiros em pleno século XXI. Espe-
Seja para valorizar, seja para macular, cialmente daqueles que pouco viajam e pouco
tanto os discursos regionalistas citados quan- conhecem a diversidade deste Brasil profundo,
to a literatura da primeira metade do século composto de múltiplos sertões: verdes, secos,
XX apontam o sertão como um conceito-per- conectados, explorados, futuristas e descola-
sonagem associado ao passado, a uma rurali- dos, sertões contemporâneos e multifacetados.
dade rudimentar. Mesmo quando enaltecem No que refere à Bahia, seguimos perguntando:
as qualidades do seu habitante ou denunciam
o descaso com que os governos tratam essas 3. Estariam a sertanidade e a baianidade
populações, acabam por impingir uma série de no mesmo lugar?
estereótipos que fixam a imagem do sertane- Baseando-me em observações e expe-
jo como um eterno resistente à modernidade, riências como ativista das políticas culturais,
representante do atraso e da barbárie. Acen- bem como na análise de dados de estudos
tuam-se, assim, estigmas que o reduzem a ima- específicos mais recentes,3 após 13 anos de
gens cristalizadas, essencializadas e limitantes. conclusão da citada pesquisa, arrisco-me a
As consequências dessa insistente estig- afirmar que houve mudanças. No que se refe-
matização são inúmeras. No caso específico re à hegemonia do texto da baianidade e sua
da Bahia, podemos dizer que a opção por uma relação com a sertanidade, não estamos mais
imagem oficial e hegemônica na qual todo o no mesmo lugar. Para argumentar, destaco três
potencial cultural, as belezas e a capacida- fatores importantes.
de de desenvolvimento se concentram em O primeiro e mais significativo deles
um só espaço, Salvador e Recôncavo, gera o é que, a partir de 2007, com a mudança de
48 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

grupo político no governo estadual, que O reconhecimento de que a Bahia não


passou a ser liderado pelo Partido dos Tra- se limita apenas ao recôncavo e às cidades
balhadores4, a política estadual de cultura turísticas representa uma mudança não só
sofreu mudanças profundas, a começar pela em termos administrativos e estruturais,
separação das pastas de turismo e cultura. mas principalmente em termos simbólicos.
Seguindo a lógica de descentralização e de- Outro ganho importante foi a valorização
mocratização da cultura das gestões Gilberto das culturas populares e da diversidade
Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultu- cultural do estado. O processo de territo-
ra (Programa Cultura Viva), a Secretaria de rialização da cultura é sem dúvidas o mais
Cultura da Bahia vem implementando, desde emblemático no sentido de sintetizar as di-
2007 (com mais ênfase nas gestões Márcio ferenças entre os dois projetos, não só por
Meirelles e Albino Rubim), uma política de tentar acolher um repertório que vai além
promoção da diversidade cultural do estado e do texto da baianidade, por estimular as cul-
de descentralização de recursos, por meio da turas populares, a integração com o interior,
realização de conferências, da execução de mas também por buscar dentro da própria
editais de apoio em diversas áreas, da dispo- capital do estado espaços alternativos fora
nibilização de formações sistemáticas para do circuito onde se concentram os princi-
qualificação de projetos e grupos e da reali- pais equipamentos culturais (2015, p. 182).
zação de eventos de valorização das culturas
dos sertões, entre outros exemplos. Além dessa mudança de perspectiva na
Tais ações são executadas tendo como política cultural/territorial, considero que a
base a política de planejamento territorial ampliação da presença das instituições de
que o governo da Bahia adotou ao reconhe- ensino superior no interior do estado, como a
cer a existência de 27 territórios de identi- Universidade Estadual da Bahia, dos institu-
dade para implementação de suas políticas tos e universidades federais tem fortalecido
estruturantes. Não será possível aprofundar pesquisas sobre espaços e temáticas antes
nem trazer mais detalhes sobre essas políti- invisibilizados. Pautadas por concepções
cas nem sobre seus resultados, em razão do contemporâneas do fazer científico que con-
formato deste texto, porém é possível afirmar sideram possível e importante o estudo de
que a “cara da Bahia” tem mudado. As produ- pessoas e lugares antes tidos como sem his-
ções artísticas, a circulação e os espaços de tória, acabam por expandir o leque de objetos
troca, os eventos, as festas, a cobertura mi- e de saberes e construir novas narrativas, que
diática, a multiplicação dos pontos de cultura, contribuem para o alargamento da ideia de
entre outros fatores, têm feito emergir novas Bahia e de Brasil.
e diversificadas gramáticas sobre a Bahia, não Aliada a essa dinâmica de relativizar as
se limitando à capital nem ao centro da cida- noções de “centro” e “periferia”, aponto, por
de de Salvador. Como conclui Lima em seu fim, a presença de inúmeros movimentos so-
estudo que compara as políticas culturais dos ciais que trazem uma nova dicção sobre o ser-
governos Paulo Souto e Jaques Wagner: tão por meio do conceito de convivência com
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Cláudia Pereira Vasconcelos 49

o semiárido, alertam-nos para sua diversida-


de, para a historicidade da sua construção e
sugerem possibilidades de sustentabilidade,
autonomia e emancipação social, rompen-
do com a ideia de combate à seca. A atuação
resistente desses movimentos também tem
provocado o rompimento com as narrativas
coloniais, politizando a discussão sobre os
sujeitos e os sentidos dos sertões.

Cláudia Pereira Vasconcelos


É doutoranda em estudos de cultura (Uni-
versidade de Lisboa), com pesquisa no campo da
música e identidade brasileira, mestra em cultura e
sociedade (UFBA), especialista em arte e educação
(PUC/MG) e licenciada em história [Universidade
Estadual da Bahia (Uneb)]. Coordenou projetos
de arte-educação e educomunicação em ONGs de
Salvador, como o Centro de Referência Integral de
Adolescentes (Cria), o Liceu de Artes e Ofícios e a
Cipó Comunicação Interativa. Foi diretora de Cida-
dania Cultural na Secretaria de Cultura do Estado
da Bahia (SecultBA). Atualmente é professora da
Uneb, Campus IV (Jacobina/BA). Seus interesses de
pesquisa remetem às discussões sobre cultura, mú-
sica e identidades, bem como suas relações com os
recortes regionais correspondentes a sertão, Bahia,
Nordeste e Brasil, com livros e artigos publicados. É
mãe de Pepeu e atua também como atriz e cantora.
50 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Cláudia Pereira Vasconcelos 51

Referências

ALBUQUERQUE JR., Durval M. Nordestino: uma invenção do falo – uma história do


gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Editora Catavento, 2003.

BARROSO, Gustavo. À margem da história do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária


do Ceará, 1962.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2005.

LIMA, Hanayana Fontes. Políticas culturais na Bahia: gestões de Paulo Souto (2003-
-2007) e Jaques Wagner (2007-2009). Dissertação de mestrado. Programa de
pós-graduação em cultura e sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Salvador, 2015.

MOURA, Milton. Identidades. In: RUBIM, Antonio Albino C. (Org.). Cultura e atualidade.
Salvador: Edufba, 2005.

RISÉRIO, Antônio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva. 1993.

RUBIM, Antonio Albino C. Políticas culturais na Bahia contemporânea. Coleção Cult.


Salvador: Edufba, 2014.

VASCONCELOS, Cláudia Pereira. Ser-tão baiano: o lugar da sertanidade na configuração


da identidade baiana. Salvador: Edufba, 2011.

Notas

1 Como Gilberto Freyre no poema “Baía de Todos os Santos e de Quase Todos os


Pecados”; Aluísio Azevedo em seu romance O Cortiço, quando destaca o jeito e o
comportamento da mulher tipicamente baiana – mulata, sensual e maliciosa –; e
Denis Brean com a música Bahia com H, entre muitos outros exemplos.

2 Não será possível aprofundar aqui o tópico referente às políticas culturais do


estado da Bahia. Para uma leitura mais aprofundada, ver o site do Centro de
Estudos Multidisciplinares em Cultura Cult/UFBA: <http://www.cult.ufba.br/
wordpress/?page_id=108>.

3 Para mais informações a respeito das políticas culturais contemporâneas na


Bahia, ver LIMA, 2015 e RUBIM, 2014.

4 Refiro-me aos governos Jaques Wagner, de 2007 a 2014, e ao governo Rui Costa,
de 2015 até os dias atuais.
52 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A INVENÇÃO DO NORDESTE,
DESCAMINHOS SÍSMICOS DE
UMA PEÇA DOCUMENTAL DO
GRUPO CARMIN
Henrique Fontes

O Nordeste, invenção com menos de um século de existência, tem seus estereótipos e nar-
rativas reducionistas questionados de forma ácida pelo Grupo Carmin em sua montagem
A Invenção do Nordeste. A peça, que vem circulando pelo Brasil em festivais e em unidades
do Sesc, é inspirada no livro homônimo do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. e tem
gerado reações diversas por onde passa.

Inventando na história corretíssima das organizações atléticas. É


desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” -Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade
típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem
As palavras escritas por Euclides da aprumo, quase gingante e sinuoso, aparen-
Cunha no livro Os Sertões, de 1902, e repe- ta a translação de membros desarticulados.
tidas em inúmeros contextos para retratar Agrava-o a postura normalmente abatida,
o brasileiro pobre que mora no interior do num manifestar de displicência que lhe dá
Brasil, sobretudo na Região Nordeste, como um caráter de humildade deprimente. A pé,
um bravo lutador que enfrenta na seca um quando parado, recosta-se invariavelmente
dos piores inimigos naturais, raramente são ao primeiro umbral ou parede que encontra.
citadas em sua completude. Pois o que vem [...] É o homem permanentemente fatigado”
a seguir não é lá muito enaltecedor. (CUNHA, 1956, p. 101).

“[...] Não tem o raquitismo exaustivo A descrição desse ser meio homem,
dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua meio bicho talvez possa, para fins literários,
aparência, entretanto, ao primeiro lance de ter contribuído para o propósito de Euclides
vista, revela o contrário. Falta-lhe a plás- da Cunha de confundir a figura humana com
tica impecável, o desempeno, a estrutura a paisagem árida do sertão nordestino, ou
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Henrique Fontes 53

melhor, baiano, pois a Bahia foi tudo que ele unidade significativa chamada Nordeste
conseguiu conhecer na sua jornada rumo a se constituísse perante nossos olhos, foi
Canudos. No entanto, a criação euclidiana necessário que inúmeras práticas e dis-
alimenta um imaginário que foi repetido à cursos “nordestinizadores” aflorassem de
exaustão pela literatura, pelas artes plásti- forma dispersa e fossem agrupados pos-
cas, música, teatro, cinema e, mais recen- teriormente (ALBUQUERQUE JR., 2009,
temente, pelas novelas e séries televisivas. p. 78-79).
Se é o Nordeste que precisa ser retratado,
há sempre uma cara, uma paisagem, uma E por quê? Para que finalidade uma
cor que aparece pintada ou descrita. Você região formada por nove estados e quase
certamente já imaginou algo semelhante. 1.800 municípios precisaria ter uma única
Consegue visualizar um tom ocre? Uns ga- identidade e tão ligada à seca, à pobreza e
lhos secos? Um chão de terra rachada? Um ao atraso?
homem em trajes de vaqueiro? E, se essa
imagem tivesse som, você ouviria uma mu- Essa figuração de uma origem linear
sicalidade particular na fala? Um jeito en- e pacífica para o Nordeste se faz preciso
graçado ou rude de se expressar? Se foram para negar que ele é algo que se inventa no
essas as imagens que lhe vieram à mente, presente. Visa negá-lo como objeto político
elas não surgiram por acaso. cultural, colocando-o como objeto “natu-
Sendo eu nortista, radicado no Nordeste ral”, “neutro” ou “histórico” desde sempre
litorâneo urbano, a pelo menos 200 km do (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 80).
sertão, em Natal (RN), posso dizer que para
mim também é difícil escapar desse imagi- Essa identidade inventada nasce de
nário. Essa representação simplificada vem uma necessidade de dominação política e
sendo ao longo dos anos reiterada e já está constitui uma estratégia da elite aliada à
fortemente incorporada à narrativa até dos classe política para reduzir o impacto que
próprios nordestinos. No entanto, como toda as secas e a perda da mão de obra escrava
simplificação, ela esconde algo. exerciam sobre seus lucros.
Segundo o historiador Durval Muniz de
Albuquerque Jr., autor do livro A Invenção do O Nordeste nasce da construção de
Nordeste e Outras Artes, o Nordeste enquanto uma totalidade político-cultural, como rea-
região nasce após a criação de sua suposta ção à sensação de perda de espaços econô-
identidade regionalista. Ela é criada, ou me- micos e políticos por parte dos produtores
lhor, inventada, como um lugar anacrônico e tradicionais de açúcar e algodão, dos co-
sem muitos recursos. merciantes e dos intelectuais a eles ligados.
[...] Unem-se forças em torno de um novo
A região Nordeste, que surge na pai- recorte nacional, surgido com as grandes
sagem imaginária do país [...], foi fundada obras contra a seca (ALBUQUERQUE JR.,
na saudade e na tradição. [...] Antes que a 2009, p. 80).
54 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Inventando no teatro de ser nordestino” – aliás, outro falso enal-


Investigando mais a fundo essa histó- tecedor – esteja amalgamada de forma tão
ria tão bem relatada por Albuquerque Jr. em sólida que mover essas placas tectônicas
sua obra, e motivado pelas reações xenófo- do regionalismo provoca um pavor de que
bas e de ódio ao povo nordestino manifes- o chão se abra e nos engula a todos.
tadas por internautas do Sudeste e do Sul Em Petrolina, primeira cidade em que
quando da reeleição de Dilma Rousseff, em apresentamos o espetáculo fora de Natal,
2014, o Grupo Carmin, conduzido pela di- fomos recebidos por um público acolhedor,
retora Quitéria Kelly, decidiu reinterpretar que se divertiu com a crítica ácida aos coro-
a obra acadêmica e criar uma peça de tea- néis, mas que também se espantou quando
tro que, ao invés de reiterar os estereótipos Gilberto Freyre é criticado e quando Per-
nordestinos, pudesse colocá-los em xeque. nambuco é retirado do mapa do Nordeste na
Após dois anos e meio de pesquisa, a peça. Em Juazeiro do Norte, a cena do coro-
escrita dramatúrgica e a montagem ganha- nel padre Cícero Romão Batista aquietou as
ram forma e a peça estreou em agosto de risadas que a antecederam, mas não causou
2017. A Invenção do Nordeste, criada num constrangimento ou reação adversa. Talvez
formato que fricciona o teatro documental a verdade sobre o coronel de chapéu e batina
e a autoficção, conta a história de dois ato- seja mais popular do que imaginamos.
res nordestinos que são pré-selecionados Em São Paulo, fizemos 16 apresenta-
para um teste, promovido por uma grande ções na unidade do Sesc Belenzinho e tive-
produtora de audiovisual, para representar mos um público crescente, que se envolvia
um personagem nordestino. Eles são prepa- com todas as questões levantadas em cena,
rados por um diretor, também nordestino, mas quase sempre, ao final de cada apre-
contratado pela produtora, que tem sete se- sentação, um silêncio de constrangimento
manas para deixá-los prontos para a seleção se instaurava no teatro. Talvez fosse uma
final. Durante esse período, atores e diretor mensagem inconsciente enviada ao público
investigam a “nordestinidade” e vão perce- pelos pais, avós ou amigos nordestinos que,
bendo que essa invenção de identidade tem há décadas, vão para São Paulo trabalhar
muitos aspectos curiosos, cômicos e, muitas nos empregos que ninguém mais quer, na
vezes, doloridos. busca de oferecer condições de vida mais
Nesse primeiro ano de existência, além dignas aos filhos e netos. Talvez também
da temporada em Natal, a peça circulou por tenha pairado sobre um ou outro especta-
festivais e realizou temporadas no Sesc Be- dor uma nuvem de vergonha, ao reconhe-
lenzinho, em São Paulo, e no Sesc Copaca- cer que alguma vez se sentiu superior por
bana, no Rio de Janeiro. Circulou também ter sido criado mais ao sul do país, e que
pelas cidades pernambucanas de Petrolina e aqueles “lá de cima”, por um acaso geográ-
Recife, além de Juazeiro do Norte, no Ceará. fico e climático, eram fortes, mas inferio-
As reações ao texto e à encenação variam res – Hércules-Quasímodos, na imagem
sempre, talvez porque a defesa do “orgulho de Euclides da Cunha.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Henrique Fontes 55

No Rio de Janeiro, nossa temporada


mais recente, tivemos a impressão de estar Henrique Fontes
em casa. Um público caloroso nos recebeu em É ator, dramaturgo, diretor e gestor cultu-
12 apresentações com casa lotada, com direito ral com mais de 20 anos de atuação profissional.
a fila de espera. Foram muitas risadas em mo- Formado em comunicação e mestre em ciências
mentos que até não pensávamos que seriam sociais pela Universidade Federal do Rio Grande
engraçados, mas, mesmo sendo os cariocas do Norte (UFRN), é sócio-fundador e atual presi-
mais abertos para o riso, ao final de cada dente do espaço cultural Casa da Ribeira, além de
apresentação sempre nos procuravam para fundador e colaborador do Grupo Carmin, ambos
comentar aspectos xenófobos sobre os quais em Natal (RN).
nunca haviam pensado. Muitos afirmaram
que, a partir daquele momento, iriam obser-
var o quanto estavam reforçando estereótipos
ou repetindo uma defesa inútil de identidade.
Acredito que haja marcas culturais que Referências
nos identificam às nossas origens familiares,
ou vícios de linguagem e hábitos que traduzem ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção
do Nordeste e outras artes. 4. ed. São Paulo:
parcialmente quem somos. Mas reduzir a cul- Globo, 2009.
tura de nove estados brasileiros a um conjunto
de signos e desígnios, sotaques e trejeitos, va- CUNHA, Euclides da. Os sertões. 24. ed. São
lores e religiosidades torna-se inútil se a ideia Paulo: Editora Paulo de Azevedo Ltda., 1956.
é identificar e reconhecer origens. E mesmo
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como
que haja um “DNA coletivo”, como afirma Jes-
vive. 3. ed. São Paulo: Contracorrente, 2018.
sé Souza ao se referir à construção da identi-
dade brasileira, é fundamental saber que

Podemos também, porventura, “mu-


dar o nosso DNA simbólico e cultural”, na
medida em que nos apropriamos dele sem
ilusões e sem fantasias compensatórias
(SOUZA, 2018, p. 38).

Então, que esse Nordeste inventado


sirva de lembrete e alerta para outras tantas
invenções produzidas pela elite brasileira,
que constrói narrativas simplificadoras com
o intuito bem-sucedido de continuar no topo
de sua complexa pirâmide, sem olhar para
baixo e sem sofrer ameaças sísmicas.
56 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

AQUI ERA O SPA


DE LAMPIÃO
Adones Valença

Este é um conjunto de passagens escritas por um artista durante a execução de um projeto


itinerante. São anotações do caderno de viagem, dados e resultados de pesquisa que refletem
sobre arte, lugar, desenho e geografia. Tomando por referência as proposições de Hélio Oiticica
e utilizando o desenho como estratégia, o autor investiga o sertão atual, revendo narrativas e
identificando discursos acerca dessa região do país.

I
Para Hélio Oiticica (1937-1980), a arte é um platônica viria pelas sombras, primitivas
campo de possibilidade capaz de modificar a imagens projetadas, primeiros indícios da
realidade. Assim como Oiticica, Cildo Mei- arte, conhecimento que Platão criticava por
reles, em sua obra Inserções em Circuitos estar a três pontos da verdade. Para Platão, o
Ideológicos (1975), busca efetivar uma ação que liberta é a verdade. Para Oiticica, a arte
que, neste caso, não recria uma realidade ou é uma verdade criadora de mundos possí-
sensação, mas se insere na realidade para veis que libertam os sujeitos; seu projeto é
subverter. Uma obra que se infiltra para co- também um projeto político.
municar no silêncio de um sistema. Assim como Oiticica e Meireles, uma
Oiticica trabalha com as categorias de série de artistas tentou, ao longo do século
tempo e espaço para propor ao seu público XX, tirar a arte de museus e galerias, tor-
um mundo de coisas livres de sentidos a nando-a presente na vida cotidiana. Essa
priori. Ele quer um descondicionamento; tentativa culminou no registro de tais ações
já Meireles, uma revolução política. Seria como produtos, dentro dos espaços dos
curioso pensar que a libertação da caverna quais deveriam ter saído.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Adones Valença 57

II
“Aqui nós somos muito esquecidos”, denun- “Foi aqui que teve aquelas guerras.
ciou seu Manoel em Sozinho (PB). Ele tra- Está vendo?”, disse ele. Quando me voltei
balha para finalizar um tanque de pedras e para Renata, a parte branca dos seus olhos
criar peixes.  se fazia vermelha como sangue. Perguntei
se ela estava sentindo alguma irritação, dis-
III se que não. Saímos e, na calçada, encontro
Quando delimitei a área em que ocorreria o desenho de um revólver gravado no piso.
o projeto Viagens Não Têm Títulos,1 elabo- Faço um frottage no caderno que levava. De
rei um conjunto de rotas que passava pelo lá, viajamos até Sozinho. 
interior dos estados da Paraíba, Rio Gran-
de do Norte, Ceará, Bahia e Pernambuco.
V
Como artista viajante, não iria apenas pro- As capitais regionais do interior do Nor-
duzir, mas também mostrar uma obra a um deste recriaram seu capital cultural atuali-
público previamente escolhido. Este foi o zando seus modos de fazer arte. Cito como
objeto do projeto. exemplo os Centros Culturais do Banco do
Deslocar um item da prateleira da arte Nordeste em Sousa (PB), Juazeiro do Norte
subverte a lógica de uma estrutura social. (CE) e Cariri (CE); as ações de formação e
É como colocar um quadro debaixo do braço fruição do Centro de Arte e Cultura Ana das
e fazer uma viagem, mostrando-o às pessoas. Carrancas e do Sesc em Petrolina (PE); os
O projeto ocorre então como um jogo em que cursos de artes visuais dos campi da Univer-
é preciso o outro para que a obra aconteça. É sidade Federal do Vale do São Francisco e
a troca que efetiva a poética. Este é um tra- de design na Universidade Federal do Cariri.
balho que só é possível a partir do encontro Esses espaços constituem um lugar de fluxo
com o outro, com o público, que muitas vezes criativo com ação de realizadores locais e cir-
não é passivo. Existe uma ética nesse sistema culação de artistas e projetos. Desenvolvem
de trocas. Esta é uma obra tecida com outros importantes ações de formação e estímulo no
que vivem e produzem naqueles lugares, âmbito cultural, por meio de editais públicos
onde cada um, a seu modo, continuamente anuais e programação sistemática.
reinventa sua existência. 
VI
IV Conheci várias Sousas porque me perdi na
“Aqui era o spa de Lampião! Era aqui que cidade em vários momentos. Sousa é cheia
Lampião vinha descansar!”, disse-nos um me- de dinossauros. Tem esculturas deles espa-
morialista, no alpendre de sua casa, na estrada lhadas por todos os lugares. Há um ar de Mi-
para Sozinho. Um pouco mais à frente, avista- chelangelo na postura das estátuas brancas
mos um casarão abandonado; o motorista que ao lado da matriz. Marquei com Rayra de
nos levava apontou e disse que iria parar ali. nos encontrarmos. Às 7h30, ela apareceu na
As ruínas estavam cheias de marcas de bala.  pousada de D. Geralda. De lá fomos comprar
58 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

IX
pão e café. Ela é uma artista que mora em Sete da manhã, sento numa praça em
Sousa e trabalha com fotografia. O que Sousa à espera de uma lotação que me
propus foi que ela fosse uma médium entre levaria até Marcelino Vieira (RN), onde
mim e as pessoas que encontraríamos nas teria início a rota 2. Começo a desenhar,
rotas. Além disso, faria registros fotográfi- por observação, a carroça de Maria, que
cos desse trecho da viagem. Ela concordou. vende café e tapioca e serve de rodoviária.
Sendo artista que vive e trabalha em Quatro ou cinco pessoas percebem o que
Sousa, o começo da carreira de Rayra está es- estou fazendo e ficam em volta, dizen-
treitamente atrelado às atividades do Centro do: “Como é interessante aquilo, olha só,
Cultural Banco do Nordeste como possibilida- é a barraca de Maria!”. Depois chega um
de de mundo. Mantivemos contato e frequen- homem curioso olhando com minúcia, um
temente conversamos sobre nossos trabalhos tanto desconfiado daquilo que eu fazia.
e sobre a vida. Desde que estive por lá, ela fez“Este é um bom desenho, eu reconheço
duas exposições individuais e, recentemente, um bom desenho! Você faz quadros?”
a fotografia de um filme. Rayra reflete sobre Respondi que sim.
seu lugar de mulher, o corpo feminino e o peso “Eu sei que você desenha bem, eu
das tradições que vêm sendo questionadas por já fui um pintor letrista. Mas vocês con-
rompimentos como os que ela provoca. seguem dar volume às coisas, conse-
guem efeitos que nós não conseguimos”,
VII disse ele.  
O desenho tem o mesmo poder mágico das Mostrou-me, no caderno, que sabia
palavras. Ele é uma ação do espírito que atin- fazer letreiros e disse que nos anos 1990
ge determinadas ondas de sensibilidade. Sua ganhou muito dinheiro como pintor de
frequência atrai. As primeiras sociedades já letreiros em São Paulo e no Rio Grande
sabiam disso. do Norte. Mostrou a propaganda de Elias,
o “deputado da água”, tipo de político ca-
VIII racterístico da indústria da seca, que vem
Cada lugar em que andei possui um ritmo de acabando por causa da transposição do
tempo próprio. Há lugares como Pintadas Rio São Francisco. Ficou empolgado com
(BA), em que ao meio-dia todas as ativida- o encontro, mostrei-lhe meus pincéis e
des do comércio se encerram, pois cessa o os materiais que trazia. Disse-me que
transporte para outras cidades. Há lugares depois, em São Paulo, vendia limão. Em
como Gangorra (RN) e Simpatia (PE), onde seguida, foi cantor de banda de forró e fa-
as pessoas se recusaram a participar da mi- zia sucesso, mas, por causa das andanças,
nha proposta. Lugar de encontro é todo lugar preferiu ficar mais próximo da família.
onde pode ocorrer a experiência entre artista, Mostrei-lhe o projeto, as rotas que faria
público e objeto. Se o cientista experimenta no e o que levava: uma mala que virava uma
laboratório, o artista experimenta no mundo.   galeria de arte.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Adones Valença 59
60 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

X
Ao projeto, então, é necessário corrigir os avança pelo céu com uma revoada de uru-
processos de produção de sentido estabe- bus à espera de que algum daqueles desva-
lecendo uma relação significativa com a neça. Não são faces alegres, são máscaras
aprendizagem. Se arte implica modificação encaveiradas. Todo tom do quadro é som-
da realidade, os produtos do artista devem brio. A luz que dissolve o horizonte ao fun-
subverter as sensações de tempo e espaço, do serve para destacar as figuras tristes.
para descondicionamento dos sujeitos. Isso Algumas nos fitam. São uma família, o con-
é possível na área da educação e da arte. junto ao centro deixa isso claro. Carregam
Em seu Les Beaux-Arts Réduits à un Même consigo tudo que restou: duas trouxas, uma
Principe (1746), o abade Charles Batteux na cabeça e outra nos ombros.
dedica parte do texto à formação do gosto, A imagem, criada em 1944 pelo pin-
apontando a importância de se trabalhar a tor Candido Portinari, foi amplamente
sensibilidade ainda na infância. O que ele reproduzida em cartazes, livros didáticos
chama de formação do gosto é aqui enten- e revistas. A pintura de Portinari foi acom-
dido como formação da sensibilidade. panhada de um discurso que reforça uma
determinada ideia de sertão e de sertane-
XI jo. Se quisermos entender o sertão atual,
Foram percorridos mais de 3.484 quilô- é preciso atravessar essa imagem, ir para
metros, entre os dias 10 de janeiro e 18 de além das sombras que por tanto tempo fo-
fevereiro de 2017. Foram realizados 203 ram expostas ao nosso olhar.
atendimentos, entre escolas, alpendres e
terreiros, sendo 89 professores e 17 artistas
XIII
e artistas-professores. Na garupa, apoiando a maleta portátil na
perna, segui por estradas de terra. Para
XII percorrer os caminhos de Sozinho até
As figuras parecem estar mascaradas. Nas Passagem (BA) é preciso subir em algumas
roupas que vestem faltam peças e as que motos sem capacete, com algum motorista
existem estão em farrapos. Nos corpos desconhecido, até os lugares traçados nas
faltam gorduras. Ao que parece, a fome de- rotas. Atendia pela manhã e, à tarde ou à
vorou a derme, restando os músculos. A pai- noite, no quarto do hotel ou da pousada em
sagem que serve de fundo a esse conjunto é que estava, me sentava, abria o computa-
um deserto com restos de ossos, pedras no dor e ia escrever sobre aqueles lugares e
chão e montinhos de terra que se asseme- personagens. Era escrevendo que eu fazia
lham a covas. a obra existir.
O grupo, intitulado “retirantes”, des-
loca-se para algum lugar. Parecem fugir da
morte, que não está apenas na terra, mas
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Adones Valença 61

Adones Valença
Nasceu em 1989 em Belo Jardim (PE). O artista vive e trabalha em São Cristóvão
(SE), onde é estudante de artes visuais na Universidade Federal de Sergipe. A partir de
2008, sistematiza sua produção em artes visuais, tendo participado de exposições indi-
viduais e coletivas e da execução de projetos. Publicou Viagens Não Têm Títulos, trabalho
que reúne relatos da pesquisa homônima realizada em 2017 com apoio do Rumos Itaú
Cultural 2015-2016.

Nota

1 O projeto Viagens Não Têm Títulos (publicação disponível em: https://issuu.com/


jamelo.aurora/docs/vntt_2018), realizado em 2017, foi apoiado pelo Rumos Itaú
Cultural 2015-2016. Consistiu na viagem de um artista, com uma mala contendo
desenhos, escultura, objetos e poemas, pelo interior de cinco estados do
Nordeste brasileiro.
62 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

PORTAR(IA) SILÊNCIO:
O SER-TÃO MIGRANTE DAS PORTARIAS DE
EDIFÍCIOS DA CIDADE DE SÃO PAULO
João Júnior

O espetáculo teatral Portar(ia) Silêncio é uma espécie de diário-manifesto migrante que


foi criado a partir dos depoimentos de nove porteiros da cidade de São Paulo vindos de áreas
rurais do Nordeste. O atrito da experiência rural num contexto urbano gera implicações exis-
tenciais para aquele que migra. A migração do ator se adensa às camadas dos depoimentos que
encontraram nas portarias a metáfora para olhar a cidade. A memória se torna um exercício
de resistência, revelando como a cidade se ergue diante do corpo desse migrante, mas também
como tal experiência constrói a cidade.

O
sertão do Seridó potiguar é o lugar paulistano, por exemplo, foi se expandindo
mais próximo do céu que a minha a partir desse fluxo migratório, que criou
vista pode alcançar. Deitar no chão ali um Nordeste que se reproduz na orali-
da terra seca trouxe uma sensação de que, ao dade, nas áreas de convívio, no comércio e
esticar o braço, uma estrela podia ser toca- na vizinhança.
da. É lá que a imensidão se fez vista diante Ao migrante é necessário a reconstru-
do meu olhar. Há um casamento entre céu ção de boa parte daquilo que lhe garante a
e terra que tem o sertanejo como testemu- segurança existencial. Assim, é funda-
nha. Mas as terras secas do Nordeste fazem mental recriar o lugar de origem na cidade.
com que homens e mulheres migrem para Segundo Fontes, São Miguel Paulista foi
as grandes cidades do país. se expandindo a partir do estabelecimen-
O fluxo migratório do Nordeste na to de redes sociais pautadas nessa expe-
década de 1950 se deu por conta de uma riência migrante.
grande seca. São Paulo se tornou um dos O ato de migrar gera implicações exis-
principais lugares de destino do desejo de tenciais profundas no indivíduo, que parece
migrantes que partiram em busca de aplacar viver em um estado de suspensão na busca
o sol que ardia dentro de suas barrigas va- por pertencimento. No silêncio da experiên-
zias. Segundo Paulo Fontes (2008), o bair- cia urbana e na invisibilidade de sua própria
ro de São Miguel Paulista, no extremo leste condição, o exercício com a memória se faz
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES João Júnior 63

estratégia de sobrevivência na aventura vida – daquela que ele estava buscando


que é a cidade. Ela é um oceano inteiro a até então, o trabalho.
ser navegado e o devaneio é um exercício O processo com Severino se deu a par-
constante no processo de sustentação da tir de conversas curtas na portaria do edi-
experiência urbana no corpo. fício em que morava. Aos poucos, ele abria
O recorte aqui apresentado sobre a o seu baú de lembranças e me revelava que
migração nordestina para a cidade de São outros porteiros também vinham das áreas
Paulo se dá por meio do olhar de homens rurais do Nordeste. Rapidamente, fui colo-
que encontraram na profissão de porteiro cado em uma rede com diversos porteiros
de edifícios e condomínios de São Paulo um da região central da capital paulista.
meio de sobreviver na cidade, mas também Os nove depoimentos recolhidos para
um dispositivo para se relacionar com ela a construção da dramaturgia do espetá-
num espaço de trabalho que revela, em seu culo teatral Portar(ia) Silêncio revelaram
próprio modelo de operação, as implicações traços em comum: o trabalho infantil nas
existenciais de um processo migratório. áreas rurais, a curiosidade em relação à
A busca por elaborar a minha própria cidade de São Paulo, a projeção de uma
experiência migrante me fez vida melhor e o desejo de re-
abrir o olhar para esse Nordes- A saudade se torno à terra natal. Porém,
agigantava dentro do
te que vive em São Paulo e que o depoimento de Severino
corpo e a distância
estava ali invisível aos meus trazia a poesia que tanto era
me fazia mergulhar
olhos a cada dia que cruzava nos vazios que foram necessário reencontrar para
a portaria do meu prédio. A criados por meio dar conta da minha expe-
saudade se agigantava dentro da migração. riência de cidade.
do corpo e a distância me fazia O processo com as en-
mergulhar nos vazios que foram criados por trevistas foi fazendo com que Severino
meio da migração. desbravasse sua memória com alegria. Ele
A palavra foi se tornando um exercí- estava ali esperando um momento para po-
cio de comunhão com a memória. Assim, der falar de si e revelar, por meio de suas
o cumprimento diário na portaria do meu lembranças, que a saudade que eu sentia
condomínio revelou um sotaque que me era partilhada. Cada um, em seu barco,
trazia a estrela que havia deixado para trás navegava pela cidade mirando as estrelas.
no sertão do Seridó potiguar. Agora era Elas agora estavam mais perto e as águas
preciso tocar as estrelas para navegar no profundas da cidade viravam sertão sob
oceano-cidade. os meus pés.
Severino Lima da Silva migrou de Li- A cada entrevista realizada, ele fazia
moeiro, em Pernambuco, há cerca de 35 questão de tocar alguma música em sua
anos, para a cidade de São Paulo. O trabalho gaita e falar da arte. Do desejo de ser artista.
como porteiro foi o que lhe garantiu apo- “[...] eu queria ser artista, mas não tenho
sentadoria e certo nível de segurança na estudo. mas o artista, assim... ninguém, às
64 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

vezes, nem entende do artista, mas gosta as-


sim mesmo. Eu queria entrar na escola para João Júnior
o professor dá todas as notas. Eu tenho um É ator, dramaturgo e diretor teatral. Fundou o Cole-
amigo, Marcone. Ele sabe tirar todas as no- tivo Estopô Balaio de criação, memória e narrativa,
tas no teclado. Ele gravou até um DVD. Mas que mantém uma residência artística no Jardim Ro-
é difícil esse negócio de artista, porque ele mano que se dá a partir da relação com a memória
vendeu só dez. Um para a mãe, namorada e social construída pela migração nordestina e pelas
o outro para mim. Os outros sete ele vendeu enchentes. Dirigiu os espetáculos da trilogia das
fiado e inté hoje não recebeu [...]”1 águas numa relação entre atores, moradores e des-
O depoimento de Severino ecoa até locamento urbano pela linha de trem. Atualmente,
hoje dentro de mim. Migrar é um desejo desenvolve trabalhos e pesquisas pautados em
atendido de expandir-se para o desconheci- processos biográficos e autobiográficos.
do. Eu escolhi e atendi o desejo da arte den-
tro de mim e foi ele que fez eu me lançar na
experiência de cidade como um estrangeiro.
Certo dia, encontrei Severino cami-
nhando na rua próxima à minha casa. Ele
disse que recebeu suas contas e estava Referências
voltando para o sítio. Eu perguntei quando
voltaria e ele mudou de assunto. Lançou- BACHELARD, Gaston. A poética do espaço.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
-me um olhar assustado e desviou a rota da
conversa. Parece-me que agora teria que dar FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo.
conta de tudo isso que viveu, e finalmente se São Paulo: FGV, 2008.
descobrir artista com sua gaita no Sítio Fi-
gueira. O trabalho já não era mais aquilo que
importava em sua vida, mas seu olhar me
fez pensar sobre o tempo da grande cidade.
Em São Paulo, corre-se tanto para dar con- Nota
ta do pouco tempo que sobra que trabalhar
se torna um estado de ocupar-se e o tempo 1 Trecho extraído da entrevista realizada com
perde a dimensão da experiência. Severino Lima da Silva.

Severino agora pode voltar e tocar a es-


trela que ilumina o céu do sertão, mas pare-
ce que para isso vai ter que deixar o tempo
se perder novamente dentro dele. Enquan-
to escrevo, resisto em perder o tempo com
estas palavras para que as estrelas estejam
sempre ao alcance de minha mão neste céu
cinza que me olha agora.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES João Júnior 65
2. ARTES E CULTURA
NO SERTÃO

67. O SERTÃO NORDESTINO COMO


UM MONOPÓLIO DE SENTIDO
Elder Patrick

88. O PASSADO, O PRESENTE


E O PRETÉRITO IMPERFEITO DA
MÚSICA SERTANEJA
Brian Henrique de Assis Fuentes Requena

96. O SERTÃO QUE AS ARTES


AJUDARAM A CRIAR
Maria Hirszman

103. A MULHER NA POESIA


DO PAJEÚ
Isabelly Moreira

109. ENTREVISTA – O SERTÃO


INSTRUMENTAL DE CACÁ MALAQUIAS
Marcel Fracassi
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 67

O SERTÃO NORDESTINO COMO UM


MONOPÓLIO DE SENTIDO
Elder Patrick

O sertão nordestino construiu em torno de si um monopólio de significado. Durante as


décadas de 1930 e 1970, embora existissem diversos espaços rurais identificados como sertões,
apenas um em específico passou a condensar em torno de si a imagem da síntese do mundo
rural brasileiro, do sertão por excelência. Esse ganhou força simbólica e política à medida que
se ampliaram as formas de produção, circulação e consumo de linguagens artístico-culturais
específicas, tornadas bens de consumo simbólico, como a literatura, o cinema, a música popular
e as telenovelas. Tal monopólio de sentido somente se tornou possível em meio à modernização
cultural brasileira, processo que corresponde à integração de dispositivos tecnológicos e indus-
triais, como o cinema, o rádio, o disco e a televisão. No âmbito desse processo, o sertão nordestino
passou a concentrar um poder simbólico de representação do mundo rural brasileiro, esvaziando
de sentido e poder os demais sertões e as suas respectivas representações rurais, como o interior
de São Paulo, Minas e Goiás. Esse processo consolidou um monopólio de sentido, ancorado em
quatro registros socioculturais: 1) o registro sociocultural da fome, 2) o registro sociocultural da
violência; 3) o registro sociocultural da resistência; e 4) o registro sociocultural da criação artís-
tico-popular e da ludicidade. Conjugados, esses quatro registros exercem uma força de atração
simbólico-cultural no imaginário social brasileiro semelhante ao ímã – ao se falar de sertão, ao
se mobilizar essa palavra, emergem significados, imagens e tipos, como o retirante, o vaqueiro, o
cantador popular, a seca, o coronel, as festas juninas, o líder messiânico religioso, o sanfoneiro,
a paisagem árida e tórrida da caatinga, o cangaço, a literatura de cordel e a culinária típica.

Introdução

A
palavra sertão é uma corruptela do urbanos mais povoados – no caso brasileiro,
aumentativo “desertão”, criada pe- os centros litorâneos costeiros. Tratava-se
los colonizadores portugueses du- de um lugar abstrato, evasivo e indefinido.
rante os séculos XVII e XVIII, quando esqua- Poderia estar bem ali, após o sítio central da
drinhavam o território da colônia em busca cidade, ou bem acolá, matas e rios adentro.
de riquezas. Etimologicamente, designa lu- Nos dicionários da língua portuguesa, o ad-
gar distante, ermo, separado dos locais habi- jetivo correspondente de sertão, sertanejo,
tados. O sertão era simplesmente um espaço diz-se de alguém rude, silvestre, do sertão.
rural desconhecido e distante dos espaços Todavia, no decurso do século XX, especial-
68 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mente entre os anos 1930 e 1970, um espaço tradições rurais e pastoris, da culinária espe-
geográfico e simbólico-cultural específico cífica, da migração, da resistência, da cultura
passou a reter para si a ideia do sertão por popular, da literatura de cordel, das festas ju-
excelência, do espaço que melhor traduzia ninas e das criações artísticas, do forró e do
e representava o mundo rural brasileiro – o baião, das quadrilhas juninas e das danças.
sertão nordestino. Todos esses aspectos exercem uma de-
Entre as décadas de 1930 e 1970, os masiada força de atração, como uma espé-
muitos sertões existentes no extenso terri- cie de ímã simbólico-espacial: ao se falar de
tório nacional sofreram um esvaziamento sertão e de rural brasileiro, emerge com toda
e uma diluição de significado, ao passo que força o interior da Região Nordeste. Essa não
um sertão específico, um espaço geográfico é, contudo, uma defesa estética e/ou norma-
e simbólico-cultural determinado, o espa- tiva do sertão nordestino, não significa que
ço que compreende a região semiárida do outras regiões não sejam sertões, tampouco
interior da antiga Região Norte, o interior que outros espaços rurais não tenham cons-
daquela imensa região, passou a monopoli- truído e projetado as suas identidades, como
zar para si um conjunto de significados que os espaços rurais do Rio Grande do Sul, de
o fizeram se descolar dos demais sertões e São Paulo e de Goiás, para citar apenas os
espaços rurais brasileiros. Com corolário, mais conhecidos. O conceito de monopó-
o sertão nordestino passou a exercer um lio de significado diz respeito à retenção de
monopólio de significado sobre os demais um dado significado coletivo (uma crença,
sertões brasileiros e sobre a representação um valor, uma representação, uma imagem,
geral do imaginário rural nacional. Significa um estigma, uma identidade, uma ideia ou
dizer que, entre os muitos sertões possíveis todos esses aspectos em conjunto) que um
e os respectivos espaços rurais narrados, determinado grupo, classe, instituição, país
representados e projetados no imaginário ou região construiu, sedimentou e projetou
nacional, o mais conhecido, nacionalizado, sobre os demais, exercendo poder simbólico,
definido e delimitado é o sertão nordestino. político e econômico sobre esse significado.
Ao se falar de sertão, ao se mobilizar Esse conceito foi urdido e aplicado pelo
essa palavra no contexto sociocultural bra- sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990),
sileiro contemporâneo, invariavelmente em seu livro clássico O Processo Civilizador.
imagens, signos, ideias, valores, represen- De acordo com o autor, durante os séculos
tações, estigmas e estereótipos se vinculam XV e XIX, as principais sociedades estado-
diretamente a um espaço rural específico -nacionais ocidentais, França e Inglaterra,
do interior do Brasil – o sertão nordestino. construíram um monopólio de significado
São imagens, lendas, canções, livros, filmes em torno da ideia e do conceito de civilização.
e documentários acerca da seca e da caatinga Em O Processo Civilizador, volumes I e II,
ressequida, das lideranças messiânicas e da Elias realiza um esforço interpretativo para
religiosidade popular, do cangaço, do coronel explicar, a um só tempo, a direção da mu-
e do vaqueiro, dos jagunços, do latifúndio, das dança ocorrida no padrão da sensibilidade
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 69

e da agressividade das principais socieda- se perceberam e se diziam mais civilizadas,


des ocidentais; a criação e consolidação do logo, superiores.
monopólio legal do uso da força física e da O processo civilizador descrito e anali-
tributação por parte dos Estados ocidentais; sado por Elias não advoga ou imputa qualquer
e a maneira como essas mesmas sociedades superioridade civilizadora imanente às socie-
se autorrepresentaram e construíram as suas dades ocidentais. Quem o fez foram os grupos
autoimagens, julgando-se mais civilizadas e, e camadas das intelligentsias francesas, ingle-
logo, superiores. sas e alemãs, que lançam mão de conceitos
O processo civilizador diz respeito ao como kutor, volk, civilização, indivíduo, co-
modo particular como as principais socieda- letividade, humanidade e muitos outros para
des ocidentais construíram, lenta e gradati- infundir significações e ideais positivos sobre
vamente, uma economia psíquico-pulsional si e o mundo, estabelecendo um monopólio de
(um sistema de autocontrole das emoções, significado em torno da ideia e da positivação
das pulsões e dos instintos) que, em meio a atribuída à palavra civilização, que contém e
idas e vindas, resultou na for- aciona noções comportamen-
mação dos Estados nacionais O sertão nordestino tais como polidez, racionalida-
instaurou um significado
e nos seus monopólios legais de, autocontrole, equilíbrio,
que, na longa duração,
do uso regular da força física. se autonomizou em erudição e conhecimento.
Esse feixe de processos de relação aos demais Tomo de empréstimo a cate-
longa duração não possui um sertões e interiores goria de monopólio de sentido
sentido preestabelecido, não nacionais e projetou para compreender e explicar a
foi calculado e planejado pre- a regionalidade do construção do significado do
viamente, não foi empreen- próprio Nordeste. sertão nordestino no decur-
dido tão somente por um so de formação da sociedade
indivíduo ou uma camada social específica, brasileira. O sertão nordestino instaurou um
tampouco está concluído ou é irreversível, significado que, na longa duração, se autono-
mas passou a ser perseguido por determina- mizou em relação aos demais sertões e inte-
dos grupos, transmitido entre as gerações, e riores nacionais e projetou a regionalidade do
formou estruturas sociais de personalidades próprio Nordeste. Ao longo do século XX, o
(ELIAS, 2001) e instituições corresponden- termo sertão passou a dispensar o qualificati-
tes, como as cortes, os Estados, os órgãos vo. É isso que significa um monopólio de sen-
judiciários, os exércitos profissionais, as tido. Esse conceito busca designar e capturar
polícias, os parlamentos etc. A categoria de a construção de um axioma, que encerra em
civilização é, para Elias, uma construção na- torno de si um conjunto de referências que
tiva. Trata-se de um imperativo moral, um dispensa maiores explicações, que, paulati-
valor simbólico e uma projeção normativa namente, tende a naturalizar os significados
extremamente positivada, cunhada por de- e suas origens.
terminados grupos e segmentos das socieda- Até a primeira década do século XX ha-
des ocidentais que se projetaram no mundo, via no Brasil apenas duas grandes regiões: o
70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Agreste
MA CE Meio-Norte
RN

PB
PI
PE

AL
SE Sertão

BA

Zona da Mata

MG
Semiárido

Figuras 1 e 2: Mapas da antiga Região Norte do Brasil (hoje Nordeste)


Fonte: Banco do Nordeste (2018).

Sul (ou Centro-Sul, localizado da Bahia para assim como o era também a extensa zona ári-
baixo) e o Norte, localizado acima da Bahia. A da e ressequida afastada do litoral. Do mes-
gigantesca Região Norte abrigava três zonas mo modo, eram sertão também as zonas mais
mais ou menos diferenciadas e distintas: 1) afastadas dos principais centros urbanos de
o imenso e pouco conhecido território que povoamento do Sul (ou Centro-Sul) do país
recobre a úmida Floresta Amazônica; 2) o – Rio de Janeiro e São Paulo. Com efeito, no
litoral costeiro, coberto pela Mata Atlânti- início do século XX, em um país eminente-
ca (também conhecido como Zona da Mata, mente rural e agrícola, quase tudo era sertão.
principal núcleo de povoamento até o início Os mapas acima demonstram aspectos da
do século XIX, onde estavam situadas as ci- circunscrição espacial das zonas 2 e 3 que
dades de São Luís, Recife e Salvador); 3) e a compunham o gigantesco Norte.
contínua zona seca e árida que se estendia Se até a segunda década do século XX
depois do litoral, abarcando parte do interior quase todo o território nacional era visto
da província/estado de Minas Gerais, Bahia, como um sertão, por que então um sertão
Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Ceará, Rio específico, um espaço em particular, mono-
Grande do Norte e Piauí. Portanto, até por polizou para si determinados significados e a
volta da década de 1920, ainda não havia a ideia de sertão por excelência? Minha hipó-
Região Nordeste. A vastíssima faixa que re- tese é que esse espaço em particular, o sertão
cobre a Floresta Amazônica era um sertão, nordestino, foi objeto, mais do que os demais
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 71

sertões e espaços rurais, de uma represen- território brasileiro. Foi nessa zona litorânea e
tação literária, fílmica e musical muito mais nas suas imediações que se estabeleceu, com
potente, poderosa, nacionalizada e politica- maior pujança entre os séculos XVII e XIX, o
mente interessada por parte de diferentes modelo de exploração econômica agroexpor-
gerações de intelectuais e artistas entre as tador da plantation. Portanto, o Norte do lito-
décadas de 1930 e 1970. Esse foi exatamente ral – com seus núcleos urbanos de povoação e
o período de maior ampliação da produção, atividade econômica – era bastante conheci-
da circulação e do consumo do conteúdo de do nas duas primeiras décadas do século XX.
determinadas linguagens artístico-culturais, Muito menos conhecidas, no entanto, eram
como a literatura, o cinema, a música popu- as duas outras zonas que compunham o an-
lar e a televisão. Foi em meio ao processo de tigo Norte – a vasta área úmida que recobre
modernização cultural brasileira, ou seja, de a Floresta Amazônica e a longa zona árida e
integração dos sistemas técnicos, tecnológi- seca que se estendia desde o Piauí até parte
cos e industriais de transmissão, circulação de Minas Gerais. Essa vasta área seca, pouco
e consumo de bens simbólico-culturais (jor- fértil e distante do litoral somente aos poucos
nais, livros, revistas, filmes, músicas, novelas foi sendo povoada e explorada.
etc.), que o sertão nordestino passou a figurar Durante o primeiro e o segundo século
como o sertão nacional e o espaço rural por de colonização, o espaço caracterizado pe-
excelência. A literatura, o cinema, a música los vastos planaltos áridos e irregulares, e
popular e a televisão (telenovelas) projetaram que tem como expressão vegetal os cactos e
e nacionalizaram – cada um a seu modo, e xerófilas que caracterizam a caatinga, per-
abrangendo diferentes públicos e camadas de maneceu incólume à presença do coloniza-
consumidores – tipos humanos, instituições, dor português. O elemento socioeconômico
crenças e uma determinada realidade socioe- dinamizador desse embrionário povoamento
conômica. A combinação entre essa realidade e penetração pelo interior adentro foi a busca
econômica, política e cultural e a sua projeção por metais preciosos, a captura e escraviza-
e nacionalização literária, cinematográfica, ção das populações indígenas e a criação dos
musical e televisiva resultou em quatro regis- rebanhos bovinos. Os primeiros rebanhos bo-
tros socioculturais específicos: 1) o registro vinos ocuparam o agreste pernambucano e o
da fome; 2) o registro da violência; 3) o re- Recôncavo Baiano, em uma margem segura
gistro da resistência; 4) o registro da criação de distância para que não danificassem as
artístico-cultural e da ludicidade encantada. plantações de açúcar e outras culturas tro-
picais dos primeiros séculos de colonização
1. O registro sociocultural da fome e atividade econômica, como o fumo, por
Das três grandes zonas que compunham exemplo. Durante os séculos XVIII e XIX,
o imenso e antigo Norte brasileiro até a se- multiplicaram-se as criações bovinas em
gunda década do século XX, a mais conhecida direção ao interior dos estados, chegando até
era exatamente a zona litorânea/costeira, nú- o Rio São Francisco e, mais tarde, dirigindo-
cleo inicial do povoamento e colonização do -se ao interior do Ceará e do Piauí. Segundo
72 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Darcy Ribeiro, em meados do século XVII, exímio condutor de boiadas, produziu no


os rebanhos bovinos nessas regiões já tota- encadeamento geracional um dos cantos do
lizavam mais de 700 mil cabeças de gado, trabalho mais pungentes, dolentes e como-
definindo e consolidando aquilo que o autor ventes da cultura popular rural brasileira – o
chamou de civilização dos currais. canto do aboio. Um canto masculino, criado
À medida que se expandiram os grandes e difundido entre as gerações de vaqueiros
rebanhos bovinos, especialmente nas zonas que viveram nessa extensa faixa árida e res-
mais áridas e distantes do interior dos esta- sequida do antigo Norte brasileiro.
dos da Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, A isolada, distante e pouco conheci-
Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí, chega- da civilização dos currais, com seus tipos
-se ao século XIX com a organização desse humano-sociais específicos (o coronel lati-
território marcada pelo complexo socioeco- fundiário, o vaqueiro, o beato messiânico, o
nômico do grande latifúndio pastoril (exten- cangaceiro, os rebanhos e a paisagem tórri-
sas propriedades de terras pertencentes às da), passou a ser mais conhecida e esquadri-
aristocracias rurais); tendo no seu entorno nhada à medida que os principais núcleos de
pequenas vilas e um número povoamento, São Paulo e Rio
grande de trabalhadores ru- A presença do de Janeiro, passaram a tomar
rais dependentes do latifún- vaqueiro definiu um conhecimento de um dos fe-
dio pastoril, notadamente os tipo humano muito nômenos mais dramáticos e
específico, tornado
vaqueiros – trabalhadores que recorrentes da história natu-
um dos diletos ícones
lidavam com os rebanhos bo- ral e social daquele território:
e símbolos literários,
vinos, domesticando-os, ma- cinematográficos e as secas. Foi esse fenômeno
nuseando as crias, marcando musicais presentes no o principal responsável pela
a posse do dono dos rebanhos imaginário nacional. construção do registro so-
e, principalmente, protegendo ciocultural da fome, um dos
o patrimônio, pois do gado se extraía grande aspectos que marcam a construção e a de-
parte da dieta alimentar (leite, carne, queijo finição do monopólio de sentido em torno
etc.), e a circulação de mercadorias, como do sertão nordestino. Embora as secas e as
o couro e o próprio rebanho. A presença longas estiagens fossem um fenômeno re-
do vaqueiro, a sua tão relevante atuação no corrente na zona árida e distante do antigo
manuseio dos rebanhos, superando muitas Norte, somente no final do século XIX esse
vezes longas distâncias para conduzir gran- fenômeno passou a impactar as elites polí-
des contingentes de animais para áreas mais ticas e intelectuais de então. Esse impacto
úmidas e com mais alimentos durante os somente pôde ocorrer em razão do surgi-
períodos de secas, definiu um tipo humano mento de novas tecnologias de captura e
muito específico, tornado um dos diletos íco- produção de imagens, como a fotografia e o
nes e símbolos literários, cinematográficos e cinema. Por meio dessas técnicas urbanas
musicais presentes no imaginário nacional. e industriais, uma porção do antigo Norte
O vaqueiro das caatingas áridas e ermas, começou a ser descoberta.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 73

No dia 20 de julho de 1877 foram publi- calamidade nacional. Já no final da década


cadas no jornal O Besouro, do Rio de Janei- de 1880, assistia-se a espetáculos teatrais no
ro, as primeiras imagens acerca das vítimas Rio de Janeiro representando o sofrimento
do fenômeno das secas. Tratava-se de um dos retirantes no trajeto de chegada aos cen-
conjunto de registros fotográficos exibindo tros urbanos do litoral.
corpos de crianças e adultos esquálidos e A seca não era um problema humani-
famintos, vítimas de uma prolongada seca tário, político e social existente para a outra
que acometia os estados do Ceará e Piauí.1 porção do antigo Norte conhecido, aquela
São em sua maioria fotografias de crianças que, de acordo com Gilberto Freyre, era úmi-
subnutridas em franca aparência cadavérica. da, fértil e cheia de árvores gordas, e abrigava
Essa foi apenas a primeira leva de fotografias o complexo sociocultural da casa-grande e da
que, naquele ano, inundariam e recheariam senzala. Paulatinamente, nas duas primei-
as páginas dos principais jornais e suplemen- ras décadas do século XX, o termo Nordeste
tos literários do Rio de Janeiro. O realismo da surge em substituição do termo Norte. O ad-
linguagem fotográfica, exibindo o aspecto ca- vento do termo Nordeste foi resultado das
davérico de uma população em fuga, faminta injunções políticas e simbólico-culturais tri-
e aterrorizada pelos influxos impiedosos da butárias do impacto causado pelo fenômeno
aridez tórrida da caatinga, instaura os pri- das secas, quando então passou a existir um
meiros liames sociológicos de uma rede de Norte/Nordeste do interior, em oposição a
significação que chega aos nossos dias. um Norte/Nordeste do litoral.
As denúncias que subjazem às próprias O termo Nordeste é usualmente utiliza-
fotografias, assim como os debates e discur- do para designar a área de atuação da Inspe-
sos ensejados por conta da publicação das toria Federal de Obras contra a Seca (Ifocs),
mesmas, modulam e redirecionam a sen- criada em 1919. Nesse dispositivo institucio-
sibilidade intelectual-artística exatamente nal, o Nordeste surge como a parte do Norte
no momento em que a narrativa literária do sujeita às estiagens e, por essa razão, mere-
nativismo romântico começa a dar os pri- cedora de especial atenção do poder públi-
meiros sinais do seu ocaso. Foi nesse mo- co federal. O Nordeste é, em grande medida,
mento específico que, no interior da esfera filho das secas; produto imagético-discursivo
cultural cortesã do Império brasileiro, um de toda uma série de imagens e textos produ-
campo semântico, estruturado em torno zidos a respeito desse fenômeno, desde que
de uma nova ordem simbólica e discursiva a grande seca de 1877 veio colocá-la como
(como seca, caatinga, jagunço, fome, bandi- problema mais importante dessa área. Es-
tismo etc.), pouco a pouco vai se instauran- ses discursos, bem como todas as práticas
do. É na passagem para a penúltima década que esse fenômeno suscita, paulatinamente
do século XIX que, mediante a tessitura e instituem-no como um recorte espacial es-
o encadeamento de certos bens culturais, pecífico (ALBUQUERQUE, 1996).
como a imprensa e a literatura (uma espécie O chamado romance social da década
de imprensa literária), a seca se torna uma de 1930 ou o regionalismo dos anos 1930
74 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

reforçou e nacionalizou o registro sociocul- verdes. Espaço da luz que cega, da indefini-
tural da fome em torno do sertão nordestino. ção entre homens e animais, da loucura, da
Em uma década de profunda agitação políti- prostituição, dos retirantes. Romances con-
co-ideológica, os romances da década de 1930 sagrados, como Vidas Secas (1939), de Graci-
contêm uma identificação integral dos auto- liano Ramos, e O Quinze (1931), de Rachel de
res e intelectuais com sua paisagem humana Queiroz, além de muitos outros, exploram a
e natural, com sua natureza, passando a sen- linguagem simbólica e política desse registro
ti-la, a vê-la e a dizê-la como sociocultural demasiado forte
nunca antes se fez. O romance Para autores como e contundente – a fome. Esta
Rachel de Queiroz e
da década de 1930 dotou uma passa a ser identificada e loca-
Graciliano Ramos, foi
parte do antigo Norte de uma lizada nos corpos esquálidos
a civilização do couro
visibilidade que passou pelo ou dos currais, e não a dos sertanejos migrantes. A
trabalho de consecução de civilização do açúcar, fome é resultado da aridez
uma nova linguagem e uma formada pelo complexo inóspita do meio, mas princi-
nova maneira de se narrar o litorâneo da casa-grande palmente do descaso político
encadeamento das histórias. e da senzala, que gestou e dos mecanismos de domina-
Na estruturação da narrativa nossa nacionalidade. ção econômica existentes na-
dos romances de 1930, o Nor- quele território, cada vez mais
deste (palavra já relativamente difundida nos identificado como um espaço-fome.
meios oficiais, a partir do que destaca Albu- O drama da seca e de tudo que ela de-
querque Jr.) é sempre o espaço das caatingas, sencadeia atravessa as escolas estéticas e
das pequenas cidades empoeiradas, onde se os movimentos de renovação da linguagem
destacam entre as construções a igreja e en- literária existentes nos anos 1930 e 1940. No
tre as pessoas e personagens locais o padre, o final da década de 1930, em razão do impac-
cangaceiro, o vaqueiro e o coronel. to dessas obras e do regionalismo como um
Para autores como Rachel de Queiroz e todo, já é possível perceber claramente uma
Graciliano Ramos, foi a civilização do couro justaposição entre Nordeste e sertão. Ou seja,
ou dos currais, e não a civilização do açúcar, há muitos sertões no território nacional, mas
formada pelo complexo litorâneo da casa- somente um começa a definir um conjunto
-grande e da senzala, que gestou nossa nacio- de significados claros e delineados, e um dos
nalidade, nossa personalidade mais íntima e mais fortes e contundentes é o registro socio-
inconfessa. Fazer um levantamento afetivo cultural da fome. Essa justaposição causou
e político desse espaço, de seus espinhos e incômodo a um dos maiores intelectuais
seus sonhos, é traçar a própria história da regionalistas, o sociólogo pernambucano
resistência e, por conseguinte, da revolução. Gilberto Freyre, um dileto representante do
Trata-se do espaço físico e social do fogo, da antigo Norte conhecido e celebrado, o norte
brasa, da cinza, do céu transparente, da ve- costeiro do litoral. Assim se pronunciou Gil-
getação rasteira, espinhosa, onde somente berto Freyre, logo no primeiro capítulo (“A
o mandacaru, o juazeiro e o papagaio são cana e a terra”) do seu livro Nordeste:
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 75

A palavra Nordeste é hoje uma pala- acerca do Norte distante do litoral, do Nor-
vra desfigurada pela expressão “obras do te dotado de “paisagens duras doendo nos
Nordeste”, que quer dizer “obras contra as olhos”, como assinala Freyre. Essa filmogra-
secas”. E quase não sugere senão as secas. fia, devotada aos aspectos políticos, econô-
Os sertões de areia seca rangendo debaixo micos e sociais dessa região, responde pelo
dos pés. Os sertões de paisagens duras doen- epíteto de Cinema Novo. O Cinema Novo bus-
do nos olhos. As sombras leves como umas cou na temática regionalista dos romances
almas do outro mundo com medo do sol [...] sociopolíticos da década de 1930 as imagens e
Mas esse Nordeste de figuras de homens e de os enunciados que falam da realidade coletiva
bichos se alongando quase em figuras de El do país, de sua miserabilidade e das condi-
Greco é apenas um lado do Nordeste. Outro ções de privação que acometiam boa parte
Nordeste. Mais velho que ele é o Nordeste da população nacional. Em seu manifesto de
de árvores gordas, de sombras profundas, de 1965, Uma Estética da Fome, o cineasta baia-
bois pachorrentos, de gente vagarosa e às ve- no Glauber Rocha defende a ideia de um cine-
zes arredondada quase em sanchos-panchas ma faminto, filmes que demonstrassem toda
pelo mel de engenho, pelo peixe cozido com a fome e tristeza das populações latino-ame-
pirão, pelo trabalho parado e sempre o mes- ricanas; filmes que não tratassem da fome e
mo, pela opilação, pela aguardente, pela gara- da violência como temas, mas que também
pa de cana, pelo feijão de coco, pelos vermes, fossem famintos em razão da pobreza de seus
pela erisipela, pelo ócio, pelas doenças que meios de produção, a pobreza material de es-
fazem a pessoa inchar, pelo próprio mal de tilo sinalizaria a pobreza do mundo real. Para
comer terra. Um Nordeste onde nunca deixa Glauber, a originalidade da América Latina
de haver uma mancha de água: um avanço de era a fome, e a manifestação cultural mais no-
mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma bre da fome seria a violência. Tudo o que fosse
lagoa (FREYRE, 2013, p. 93 ). preciso e demasiado urgente seria, tal qual
o guerrilheiro cubano que pegou em armas
A citação de Albuquerque Jr. e de Gil- anos antes, a intervenção do cineasta com
berto Freyre permite antever que, por meio uma “câmera na mão e uma ideia na cabeça”.
do fenômeno das secas e suas repercussões
político-culturais, ocorreu a sertanização 2. O registro sociocultural
paulatina do antigo Norte, e, por conseguin- da violência
te, o nascimento do Nordeste. A consolidação O paulatino processo de sertanização
do registro sociocultural da fome, por meio do Norte, o respectivo nascimento do Nor-
da privação causada pelas secas, foi decisiva deste e, por conseguinte, a justaposição entre
para o advento do Nordeste. Outro aspecto sertão e Nordeste ganham ainda mais força
que consolidou o registro sociocultural da com a construção e projeção do registro so-
fome que compõe o monopólio de sentido ciocultural da violência. Em 1896, eclodiu no
exercido pelo sertão nordestino diz respei- longínquo interior da Bahia, às margens do
to ao advento de uma filmografia específica Rio Vaza-Barris, um conflito que imprimiu
76 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

novos traços socioculturais à constelação de insumos discursivos e simbólicos sobre os


significados do sertão. A campanha de Canu- quais se ergueu o regionalismo literário da
dos foi objeto de quatro campanhas milita- década de 1930. Na obra, aparecem formu-
res, teve duração, com intervalos esparsos, lados os pares de opostos que irão perpassar
de dois anos, mobilizou por parte do Exército os discursos e recursos mobilizados em tor-
Brasileiro os mais sofisticados recursos bé- no da nacionalidade brasileira: litoral versus
licos disponíveis na época. O arraial de Ca- sertão, urbano versus rural, sertanejo versus
nudos foi o segundo núcleo de povoamento paulista etc. Atuando como uma espécie de
mais populoso da Bahia no final do século painel histórico e semiológico da sociedade
XIX, superado apenas pela capital Salvador. brasileira, instaura uma dupla tensão. Na
Abrigou, no ápice do conflito, mais de 5 mil pena de Euclides da Cunha, ora se execra o
casas. Teve em sua frente de batalha quatro sertanejo – tratado muitas vezes como fa-
correspondentes permanentes de guerra, cínora e fanático –, ora se exalta o caráter
enviados pelos principais de resistência e tenacidade
veículos de comunicação Os Sertões ganha dele, tratado como “rocha
do Centro-Sul do país, entre importância histórica para viva da nação”. A resistência
a construção da produção
eles Manoel Benício e Eu- revelada por Canudos, amal-
literária brasileira. O livro
clides da Cunha. Do punho gamada em três vitórias dos
foi publicado no Rio de
desses dois corresponden- Janeiro quando a cidade conselheiristas contra as
tes brotaram dois dos livros experimentava um conjunto tropas republicanas, evi-
mais importantes para a de intensas transformações denciava, segundo os cro-
formação do monopólio de urbanas e culturais. nistas de então, o recurso,
sentido exercido pelo sertão a todo custo, do expediente
nordestino. Ambos foram publicados poucos da violência por parte da população serta-
anos após o fim do conflito de Canudos. Ma- neja. Segundo as mesmas crônicas, era uma
noel Benício era correspondente do Jornal prova inconteste do perfil bárbaro daquela
do Comércio, do Rio de Janeiro, e publicou, sociedade, do regime de atraso endêmico
em 1899, O Rei dos Jagunços; já Euclides ao qual estava submetida. “Do apego febril
da Cunha acompanhou de perto as encar- às coisas da terra e da obediência cega a um
niçadas batalhas de Canudos como corres- fanático messiânico.”
pondente do jornal O Estado de S. Paulo, da Durante os anos do conflito, a impren-
cidade de São Paulo, e publicou, em 1902, sa do Centro-Sul publicou artigos, revistas,
Os Sertões. fotografias, imagens, folhetins, registros
Os Sertões ganha importância históri- iconográficos, enfim, toda sorte de mate-
ca para a construção da produção literária riais literários e não literários atinentes ao
brasileira. O livro foi publicado no Rio de conflito. Na capital da República, as pugnas
Janeiro quando a cidade experimentava de Canudos, os rechaços sofridos pelas ex-
um conjunto de intensas transformações pedições enviadas pelo Exército Brasileiro
urbanas e culturais. Os Sertões forneceu os eram objeto de discursos no Congresso, de
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 77

anedotas nas confrarias e nos cafés, de ar- de Silvino, ao mesmo tempo que anuncia
tigos nos jornais, de peças e encenações nos uma recompensa oferecida pelo governo bra-
teatros, de temor nas escolas, de espanto e sileiro para quem soubesse notícias de seu
surpresa nas faculdades e de alerta geral nos paradeiro e de seu bando. O aparecimento
quartéis. Os relatos dos atos de violência, do cangaço, do messianismo e do infortúnio
decapitações e mutilações cometidos pelos das secas traça um registro duplo de identifi-
conselheiristas contra os soldados do Exér- cação do sertão: fome e violência. Esses dois
cito, assim como a fúria “fanática” do líder registros só se consolidam à medida que o
religioso Antônio Conselheiro, impregnavam espaço mais interior da antiga Região Norte
a imprensa e constituíam a opinião pública ganha nova visibilidade na produção literária
corrente. Notícias acompanhadas de foto- pós-1930 e na produção cinematográfica dos
grafias e fotogramas surpreendiam e repug- anos 1950 e 1960. Não é por acaso que os ele-
navam essas populações. Eram cadáveres e mentos como o cangaço, o messianismo e o
corpos mutilados, quando não ciclo das secas serão trabalha-
em completo estado de priva- O aparecimento dos e escolhidos pelas narrati-
ção. Uma batalha que se travava do cangaço, do vas literária e cinematográfica
messianismo e do
em um ambiente inteiramente para sustentar um projeto de
infortúnio das secas
inóspito, uma população de fa- denúncia política.
traça um registro
cínoras, guiada por um fanático duplo de identificação O Cinema Novo e o cinema
messiânico em trajes e aspecto do sertão: brasileiro de modo geral tam-
bárbaros, desafia a República fome e violência. bém corroboraram diretamen-
e a boa ordem do mundo civi- te para a construção do registro
lizado. Esse era o tom das manchetes e das sociocultural da violência. Ao todo, entre a dé-
2

colunas políticas veiculadas nos principais cada de 1950 e meados dos anos 1960, foram
jornais do Centro-Sul do país. mais de 20 filmes tematizando o fenômeno do
Dezessete anos após o término do con- cangaço, ora narrando a vida de seu principal
flito de Canudos, relatos jornalísticos em líder, Lampião, ora mobilizando o cangaço no
1915, publicados em revistas e jornais do interior de uma complexa trama narrativa,
Centro-Sul, dão conta de diversos bandos como fez Glauber Rocha. Trata-se de uma
armados espalhados pelos rincões do Norte problemática formadora de uma geração de
do país, fazendo suas próprias leis e ofere- intelectuais e cineastas. Sob os mais diversos
cendo seus serviços bélicos a quem pudes- ângulos, o cangaço se inscreve na teia narra-
sem interessar. Um desses grupos, o mais tiva e discursiva do cinema brasileiro. O can-
propalado naquela década, era liderado pelo gaço representa um dos traços do sistema de
ex-agricultor Antônio Silvino (1887-1934), assimetrias que marcou o interior do antigo
uma espécie de precursor do líder do cangaço Norte durante os primeiros séculos de ocupa-
Virgulino Ferreira da Silva – o Lampião. Em ção. Para os cineastas do Cinema Novo (como
março de 1916, a revista Selecta, sediada no Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos),
Rio de Janeiro, publica algumas fotografias tomados pela verve de um cinema crítico e de
78 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

denúncia, realista por excelência, importava cinematográfico nacional. Ao contrário de


acentuar e exibir, por meio do cangaço, esse produções como O Cangaceiro, de Lima Bar-
choque de violência, Estado versus cangaço, reto, que olha para os rincões rurais a partir
violência versos violência. da cidade e dos códigos urbanos, os filmes do
Cinema Novo olham para a cidade a partir
3. O registro sociocultural do interior do território, olham para o mar a
da resistência partir do deserto. Assim, pretende-se olhar
Na década de 1960, o fenômeno do can- o Brasil não a partir da sociedade urbano-in-
gaço foi convertido em um polo de positivida- dustrial-profissional-burguesa, mas, antes,
de e tenacidade das populações do interior do a partir de seu núcleo interiorano subde-
antigo Norte. Se na década de 1930 as obras senvolvido, prenhe de todas as assimetrias,
literárias têm mais um tom de denúncia, ma- fome, isolamento e violências.
nifestando certo proselitismo, nas décadas O interior do antigo Norte, agora cada
seguintes as linguagens artísticas passam a vez mais delimitado como o grande e má-
ser vistas e utilizadas enquanto mecanismo ximo interior nacional, o espaço rural que
de intervenção direta na realidade, como sintetiza os demais rurais, é visto pelos ci-
militância junto ao “povo”. O movimento de neastas do Cinema Novo como síntese da
cultura popular (o Centro Popular de Cul- situação de subdesenvolvimento, de aliena-
tura da União Nacional dos Estudantes e ção, de submissão, de uma sociedade cindi-
outras organizações políticas e culturais), da entre classes e estamentos; uma visão
por exemplo, elegeu as figuras do cangaceiro, exemplar que poderia ser generalizada para
do vaqueiro e do jagunço para fazer desses qualquer país do então Terceiro Mundo. Em
personagens símbolos de forças sociais de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol,
resistência e tenacidade. O sertão/Norte (o os atos de violência e insubmissão se seguem
Nordeste) torna-se um tema e um espaço a momentos rotinizados de aceitação, sendo
privilegiado à medida que expressaria a área emoldurados por uma imagem e um som que
mais subdesenvolvida e, ao mesmo tempo, denunciam certa imobilidade e lentidão das
a área mais “autenticamente” nacional do coisas. Os momentos de silêncio preparam,
ponto de vista simbólico-cultural, em que a como em uma acumulação progressiva de
alienação política e cultural era menor, dadas contradições, o terreno da irrupção de for-
as suas tradições populares e o isolamento ças incontroláveis. Deus e o Diabo na Terra
natural. Para a esquerda nacionalista bra- do Sol é marcado por uma verdadeira cos-
sileira, a construção da nação se daria com mologia do interior do Nordeste. Os mitos,
o encontro entre a Região Sul, que fornece- as histórias e os signos dialogam com os
ria o desenvolvimento técnico e político, e o processos de longa duração histórica; como
Nordeste/sertão, que forneceria as tradições menciona o próprio diretor, “as coisas que
culturais, entre elas a resistência popular. pertencem ao mundo material, concreto,
De modo geral, o Cinema Novo ope- histórico, misturam-se às coisas de um
rou uma inversão no olhar e no discurso mundo criado artificialmente”.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 79

O foco da narrativa e da mobilização do O discurso do beato se compõe de várias es-


registro da violência tem no personagem do catologias que acompanham os muitos mo-
vaqueiro Manoel o núcleo central. Ao con- vimentos messiânicos que, desde Canudos,
trário de Fabiano, de Vidas Secas (romance reaparecem de tempos em tempos no interior
e filme), que resolve seguir o caminho da paz do Nordeste. A retórica de Sebastião, assim
e da obediência, Manoel, após assassinar seu como os beatos de Pedra Bonita, Caldeirão
patrão, ingressa no séquito de seguidores do Grande e Santa Brígida, oferece um mundo
beato Sebastião, e depois no bando armado restaurador à fome e ao sofrimento do serta-
de Corisco. O filme começa capturando a pai- nejo nordestino pobre e desamparado.
sagem do interior do Nordeste. A primeira Canudos, Corisco, Antônio Conselheiro,
sequência exibe a primeira força da trama, o Padre Cícero e Lampião são todos nomes-
beato Sebastião vagando pelas paisagens das -força, evidenciam a permanente atualização
caatingas seguido por um pequeno grupo de de uma memória mítico-simbólica, com cla-
fiéis. Sebastião é a síntese da religiosidade ros contornos de escatologias, de fantasias
salvacionista do mundo rural coletivas e conteúdos mági-
brasileiro, em particular do A justaposição entre cos de encantamento, mui-
interior do Nordeste; aquele sertão e Nordeste é total to recorrentes também nas
que incorpora o sofrimento e e o processo paulatino canções populares dos anos
a resignação (ainda mais por de sertanização do 1960 e 1970, nos conteúdos
se tratar de um homem negro), antigo Norte, iniciado cinematográficos e nos tea-
mas ao mesmo tempo anuncia no final do século XX, trais. O narrador se debruça
se completa mediante
e oferece como compensação sobre ela, faz emergir seus
a consolidação dos
a este mundo um reino de fer- aspectos mais significantes
registros socioculturais
tilidade e fartura, um paraíso da fome, da violência e e contundentes. Condensa
feito de abundância para da resistência. personagens e sujeitos his-
compensar a fome e a priva- tóricos em um mesmo plano
ção. Sebastião exorta o Império e condena narrativo, em uma temporalidade síntese.
a República, sustenta, assim como Antônio Assim como em Vidas Secas, Deus e o Diabo
Conselheiro, uma rigorosa ética de vida. na Terra do Sol não circunscreve um espa-
As falas de Sebastião são prédicas atua- ço geográfico preciso. Canudos poderia es-
lizadas de Antônio Conselheiro. Sebastião é tar na Bahia ou em qualquer outra unidade
o encontro mítico de todos os líderes messiâ- federativa do Nordeste-sertão; o massacre
nicos – Antônio Conselheiro, Pedro Batista da Grota do Angico foi em Sergipe, na fron-
e Padre Cícero, entre tantos outros. Não por teira com Alagoas, mas poderia ter sido em
acaso, o lugar das pregações de Sebastião é qualquer outro local; da mesma maneira, a
o morro de Monte Santo, localizado no inte- comunidade de Monte Santo poderia estar
rior remoto da Bahia, próximo à antiga sede no norte da Bahia ou em qualquer latitude do
de Canudos, local muito visitado, desde o fim vasto sertão/Nordeste. Os filmes dialogam
do século XIX, por romeiros e peregrinos.3 bastante, criam possibilidades para pensar
80 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

a produção cultural brasileira e sua avidez baião é uma corruptela da palavra baiano,
por experimentação estética e denúncia po- derivada de danças e festejos existentes
lítica. A essa altura, em meados da década de no interior da Bahia, durante o século XIX.
1960, a justaposição entre sertão e Nordeste Diferentemente do coco de embolada (ori-
é total e o processo paulatino de sertanização ginário da Zona da Mata costeira do antigo
do antigo Norte, iniciado no final do século Norte) e da moda de viola caipira (originária
XX, se completa mediante a consolidação dos do interior dos estados de São Paulo e Mato
registros socioculturais da fome, da violência Grosso), o baião não é um gênero musical
e da resistência. de matriz rural. Ao contrário desses gêne-
ros musicais, eminentemente rurais, não
4. O registro da criação artística havia no interior do antigo Norte brasileiro
popular e da ludicidade (o Norte das caatingas e das secas) um gê-
O registro sociocultural da criação ar- nero musical definido e sistematizado em
tística popular e da ludicidade tem diversas suas linhas rítmico-melódicas. O que havia
fontes e partiu de diversas direções. Desde a era um gênero poético-musical, o repente,
profusão da literatura de cordel e do repente, que continha uma unidade sonora chamada
passando pela valorização literária e cine- baião, mas não um gênero musical, nuclea-
matográfica das lendas, anedotas, cantigas do pela canção popular, como foi o caso do
e cosmologias rurais. No entanto, nenhuma baião urbano-comercial criado, sistematiza-
linguagem artística foi mais eficaz do que a do e difundido por Luiz Gonzaga e Humberto
música popular para projetar, nacionalizar Teixeira a partir de 1945.
e positivar o sertão nordestino. A música O chamado baião de viola (trecho sono-
popular que realizou esse feito diz respeito ro que marca a introdução dos desafios e a
ao gênero musical baião. Em sua poética poética musical dos cantadores repentistas)
musical, o gênero baião condensou os três não foi suficiente para engendrar um gênero
registros culturais destacados anteriormen- musical nucleado pela forma da canção po-
te, positivando-os e projetando o imaginá- pular. Esse material sonoro foi utilizado por
rio rural-pastoril-árido do interior do antigo Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira como um
Norte (o novo Nordeste) por todo o território mecanismo de orientação dos seus processos
nacional durante os anos 1940 e 1950 atra- criativos, desencadeado por um complexo
vés do rádio – o mais moderno, dinâmico e e tortuoso processo de reativação e recria-
popular veículo de comunicação e consumo ção das memórias lúdico-musicais de am-
cultural do período. bos, após uma longa ausência do interior do
O gênero musical baião foi construído, antigo Norte. A trajetória dos autores, bem
sistematizado e difundido em suas linhas como a incorporação de disposições artís-
rítmico-melódicas pelos músicos e compo- ticas e aprendizados múltiplos nos espaços
sitores Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, musicais urbanos, nos estúdios de rádio e nas
no transcorrer da década de 1940, no espaço gravadoras de disco, resultou num proces-
urbano da cidade do Rio de Janeiro. O termo so constante de experimentação e criação
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 81

musical, que resultou no gênero musical da antiga região Norte) para o centro da cria-
baião. O gênero musical baião, difundido e ção lúdico-musical, e, por conseguinte, para
nacionalizado nos anos 1940 e 1950, aproxi- o consumo musical que se ampliava. O baião
mou a festa de Momo, o calendário junino e acentuou o monopólio de significado ligado
o gênero musical, resultando na definição de ao sertão nordestino porque, por um lado,
uma pauta musical para os festejos que cele- potencializou os registros socioculturais da
bram a tríade de santos populares católicos. fome e da violência, presentes no interior
Antes do advento do samba e das mar- da sua grade temática musical; por outro,
chinhas carnavalescas, não havia gêneros mediante as especificidades da linguagem
musicais específicos de Carnaval, tocava-se, musical e dos recursos tecnológicos do rádio
até o final dos anos 1920, toda sorte de músi- e do disco, criou o polo de positividade ligado
cas – inclusive gêneros musicais originários ao sertão nordestino, a própria criação lú-
da Zona da Mata costeira do antigo Norte, dica e artística. Uma dessas especificidades
como o coco de embolada. A consistiu em fazer da própria
ascensão e a consolidação O chamado baião de viola seca e do drama da migração
do samba, nos anos 1930, (trecho sonoro que marca matéria-prima da aceleração
conjugado às derivações a introdução dos desafios rítmica e dos estímulos cor-
e a poética musical dos
das marchinhas carnavales- porais direcionados à dança.
cantadores repentistas)
cas, passaram a dinamizar A seca e a migração, além de
não foi suficiente para
o caráter lúdico da festa de engendrar um gênero mote lírico-dramático, foram
Momo, confundindo-se com musical nucleado pela também temas dançantes e
ela, forjando uma unidade forma da canção popular. eminentemente lúdicos.
– principalmente no Rio de O gênero musical baião
Janeiro – entre Carnaval, samba e marchi- foi decisivo para potencializar o processo já
nha. Com o baião, o processo foi semelhante. em curso de sertanização do antigo Norte e,
Até meados dos anos 1940, não havia gêneros por conseguinte, de nascimento definitivo
musicais juninos, sobretudo porque a festa do Nordeste, justapondo sertão e Nordeste.
abrigava um caráter gregário de matriz re- Um único exemplo evidencia a relevância
ligiosa e familiar. A partir dos anos 1950, as do gênero musical baião para o processo
marchas juninas e os baiões mais dançantes de monopolização de sentido construído e
imprimiram, aos poucos, uma pauta musical exercido pelo sertão nordestino entre 1930
às noites de São João, São Pedro e Santo An- e 1970. Trata-se da série musical No Mundo
tônio, fundindo a festa, o calendário e o baião. do Baião, transmitida pela rádio mais ouvi-
O gênero musical baião foi decisivo para da no Brasil, e uma das emissoras mais mo-
a construção do monopólio de significado dernas e potentes da radiodifusão mundial,
exercido pelo sertão nordestino, posto que, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A série
mediante o alcance da sua poética musical no foi ao ar pela primeira vez no primeiro se-
decurso dos anos 1940/50, trouxe um sertão mestre de 1951, ocupando o horário nobre
específico (o interior seco, árido e desértico do rádio brasileiro, as 21h, às terças-feiras.
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Apresentada pelo locutor Paulo Roberto, as sociedades pastoris, como a lida com os
contava com a presença regular do sanfo- rebanhos (notadamente o bovino) e o traba-
neiro Luiz Gonzaga, sendo escrita e diri- lho com a terra. Esses aspectos, produzidos
gida pelo médico e compositor Zé Dantas e reproduzidos no rádio como uma espécie
e supervisionada pelo advogado e compo- de pedagogia auditiva, colaboraram para,
sitor Humberto Teixeira. Compareciam à paulatinamente, circunscrever os limites
série diversos cantores e grupos musicais, sonoros do sertão brasileiro, cada vez mais
conhecidos e desconhecidos. Os números identificado e representado por um sertão
musicais recebiam a orquestração e os ar- em particular, o nordestino. As narrações do
ranjos do maestro Guio de Moraes (parceiro locutor Paulo Roberto, eivadas de lirismo e
de Gonzaga na canção “Pau de Arara”), cujos de um apelo bucólico, desenhavam verda-
temas e o teor das canções eram sempre se- deiras paisagens sonoras.
guidos de explicações, muitas delas forne-
cidas pelos “doutores” do baião, Humberto Na penumbra da tarde, o sol enciman-
Teixeira e Zé Dantas. do as serras clareia o horizonte distante [...]
A música que organizava o programa Êta sertão bonito! O sol tinge de vermelho
era conduzida como uma espécie de quadro escarlate esparsos tufos de nuvens que pa-
geral, cuja moldura era tecida pelas melo- recem marcas de beijos da noite que chega,
dias e poesias do baião, mas também consis- na boca do dia que se despede [...] O gado
tia numa chave de acesso a um Brasil mais gordo e sadio, com mugido de alegria; o
“denso” e “profundo”, distante e eminente- coachá das rãs nos açudes e lagoas; a re-
mente rural, que saltava e sensibilizava por voada das aves nas árvores mais frondosas
meio de personagens, estórias, anedotas, e o fazendeiro (sorri) deitado numa rede no
piadas, fontes de informação, digressões alpendre da casa grande [...] O vaqueiro do
explicativas etc. Esses elementos concorre- Nordeste, este homem valente e ágil, que
ram para dotar o baião e o sertão nordestino com sua vestimenta de couro enfrenta os
de uma gramática específica de pertenci- maiores perigos dentro do mato atrás de um
mento, que não poderia mais prescindir boi, consegue dominar a brabeza de toda
de termos como tradição, autenticidade e uma boiada, cantando uma canção caracte-
criatividade. No Mundo do Baião era mar- rística. É o aboio. Ouvindo a cantiga, o gado
cado, além de por músicas (xotes, xaxado, caminha lentamente na estrada, parecen-
coco, maracatu, que gravitavam em torno do entendê-la [barulho de gado mungin-
do baião), pela narração de anedotas, crôni- do] (narração da série No Mundo do Baião,
cas e contos do sertão nordestino, reprodu- apud VIEIRA, 2000, p. 165).
zindo reminiscências orais (a prosopopeia
característica, o uso de determinados ver- A transcrição acima revela, entre ou-
bos, a atualização de palavras e os feitos tros aspectos, o caráter didático da locução
idílicos de mitos e personagens do sertão e de parte dos conteúdos veiculados na sé-
nordestino) que marcam profundamente rie. O perfil lúdico-instrutivo da série não
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 83

diferia muito dos programas realizados Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) passou
pelos folcloristas do rádio nos anos 1940 a ser o prefixo de diversas rádios espalha-
e 1950 (Almirante, Zé do Norte e Renato das pelos rincões nordestinos, algumas
Murce, entre outros); o que o diferenciava, inclusive fora do Nordeste.
no entanto, era a produção do programa. A Outro gênero musical, a moda de viola
série contava com os poetas, os músicos e caipira, embora bem menos do que o baião,
os próprios “pesquisadores” especialistas também falou e cantou o sertão, nesse caso
em sertão, uma vez que, diferentemente o sertão caipira paulista, presente no rádio
dos folcloristas do rádio, Dantas e Teixeira e no disco entre os anos 1930 e 1950. Essa
(além de Gonzaga) não eram apenas pro- representação rural específica, projetada
dutores, mas também criadores e siste- e nacionalizada pela canção popular, a li-
matizadores de expressões e informações, teratura e o cinema, não obteve, todavia, o
figurando como “autoridades nativas”, o mesmo poder cultural e político alcançado
que lhes permitia prescindir de maiores pelo sertão nordestino. Foi o baião o grande
auxílios e assessorias, pois eram eles mes- responsável pela diferenciação assumida
mos os principais tradutores do sertão e entre os sertões brasileiros no plano mu-
também as fontes mais “fi- sical: o sucesso comercial e
dedignas”. Por isso mesmo, “Asa Branca” (de Luiz artístico do baião conden-
No Mundo do Baião poderia Gonzaga e Humberto sou e vinculou o sertão ao
ser facilmente chamado de Teixeira) passou a ser Nordeste, dotando aquela
No Mundo do Sertão ou de o prefixo de diversas região de um gênero musi-
No Mundo do Nordeste – o rádios espalhadas pelos cal de grande alcance nacio-
Nordeste do sertão, o sertão rincões nordestinos, nal, nucleado pela forma da
nordestino. Se o folclorista algumas inclusive fora canção popular. Os demais
Câmara Cascudo é ainda do Nordeste. sertões (São Paulo, Minas,
hoje reputado como o maior Goiás) progressivamente se
professor de sertão, a série musical foi uma diluíram, ao passo que o sertão do Nordes-
espécie de escola lúdico-musical radiofô- te se tornou a representação acabada do
nica avançada e bastante criativa sobre sertão brasileiro, do mundo rural nacional,
mitologia, cosmologia, cosmogonia, an- inteiramente definido pelos quatro regis-
tropologia, fauna, flora, folclore, religião e tros socioculturais explorados aqui: a fome,
música do sertão nordestino. A recorrência a violência, a resistência e a criação artís-
do baião nos programas radiofônicos con- tico-popular. Este último registro socio-
tribuiu sobremaneira para a nacionaliza- cultural, muito em decorrência do gênero
ção do gênero. Assim como, em 1939, “Luar musical baião, incorporou em seus temas
do Sertão” (de João Pernambuco e Catulo e motes os três primeiros registros, valori-
da Paixão Cearense) havia sido escolhida zando-os, positivando-os e nacionalizan-
como o prefixo da maior rádio da história do uma identidade e um pertencimento
brasileira (a Nacional), “Asa Branca” (de regional específico.
84 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 85
86 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Elder Patrick
Possui graduação em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e mestrado e doutorado em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-douto-
rado em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj). Atualmente
é professor associado I do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade Federal de
Alagoas (Ufal) e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS-Ufal).
Realiza pesquisa na área de sociologia dos mercados culturais, economia criativa; eco-
nomia da cultura; mercados culturais no Brasil; sociologia econômica; políticas culturais,
consumo cultural; estratificação social e desigualdade; cultura popular, sertão nordestino
e desenvolvimento regional. É membro do comitê Sociólogos do Futuro da Sociedade
Brasileira de Sociologia (SBS). Em 2010, venceu o Prêmio de Pesquisa em Cultura – Polí-
ticas Públicas de Cultura, do Ministério da Cultura (MinC), e o Prêmio Estudos e Pesquisas
sobre Arte e Economia da Arte no Brasil, da Fundação Bienal de Arte de São Paulo, com
o livro A Economia Simbólica da Cultura Popular Sertanejo-Nordestina. Em 2012, foi lau-
reado com o Prêmio Funarte Centenário de Luiz Gonzaga, da Fundação Nacional de Arte
(Funarte), com o livro A Sociologia de um Gênero: o Baião.

Referências

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez, 1997.

ALVES, Elder P. Maia. A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina.


Maceió: Edufal, 2011.

_______. A sociologia de um gênero: o baião. Brasília: Iphan, 2017.

BANDEIRA, Luiz Alberto Muniz. O feudo. A casa da torre de Garcia D’Ávila: da conquista
dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização, 2007.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Bertrand Brasil, 2001.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador, v. I e II. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 87

FREYRE, Gilberto (2013). Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do
Nordeste do Brasil. São Paulo: Global, 2013. Disponível em: http://lelivros.love/book/baixar-
livro-nordeste-gilberto-freyre-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/. Acesso em: 16 dez. 2018.

LEVINE, Robert. O sertão prometido: o massacre de Canudos. São Paulo: Edusp, 1998.

MOREL, Marcos. O poder da palavra: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2003.

VIEIRA, Sulamita. O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. São Paulo:


Annablume, 2000.

VILELA, Aloísio. O coco de Alagoas. Maceió: Edufal, 2003.

XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. São Paulo: Graal, 2003.

Notas

1 FARIA, João Roberto. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil, 2001.

2 Ver: https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,canudos-diario-de-uma-expedicao-
euclides-da-cunha-781897,11951,0.htm. Acesso em: 16 dez. 2018.

3 Hoje em dia, a cidade de Monte Santo, localizada no nordeste da Bahia, sede das locações
de Deus e o Diabo na Terra do Sol, abriga uma das maiores procissões de romeiros do
sertão nordestino.
88 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O PASSADO, O PRESENTE E O
PRETÉRITO IMPERFEITO DA
MÚSICA SERTANEJA
Brian Henrique de Assis Fuentes Requena

Este artigo tem como intuito apresentar as principais particularidades sociais da música
sertaneja, conjugando assim o passado, o presente e o pretérito imperfeito do gênero. Em menos
de duas décadas, a música sertaneja tem movimentado um mercado milionário na indústria
do showbiz brasileiro, transformando-se em um império nacional. Paralelamente a isso, a
modernização do gênero tem despertado a contestação daqueles que se autorreferenciam como
defensores da tradição da música sertaneja. Portanto, um dos intuitos deste ensaio é abordar
as configurações atuais desse debate histórico.

Introdução

O
sucesso comercial da música ser- as principais particularidades sociais do
taneja é um fenômeno sem-par na gênero sertanejo. Então vamos lá.
história social da música popular Dos anos 1940 em diante, os artistas
brasileira. Em 1929, o folclorista Corné- sertanejos têm adotado uma estratégia de
lio Pires foi o responsável pela gravação mercado estruturalmente simples, embo-
das primeiras modas de viola em disco, e, ra muito funcional, para assegurar a hege-
de lá para cá, o gênero se modernizou e se monia do gênero na indústria da música:
adaptou aos ditames do mercado fonográ- o casamento entre a “tradição” da música
fico brasileiro. Mais do que isso, a música sertaneja – o formato de duetos, o canto de
sertaneja acompanhou as transformações dupla em terças, o uso predominante do vio-
sociais, econômicas, políticas e culturais da lão, o bucolismo, os enredos sertanistas – e a
sociedade brasileira contemporânea. Do in- “modernização” do gênero – os instrumen-
terior às capitais, dos subúrbios às megaca- tos eletrificados, as narrativas urbanas, os
sas de espetáculos, dos shows tradicionais vestuários modernos, os espetáculos tec-
às baladas pop, o Brasil se tornou sertanejo. nológicos. E, concomitantemente a isso,
Mas como a música sertaneja logrou esse graças à apropriação de ritmos estrangeiros
êxito nacional? Eis o ponto de partida deste no repertório, a música sertaneja pôde se
artigo. E, para isso, temos que apresentar ajustar às diretrizes impostas pela indústria
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Brian Henrique de Assis Fuentes Requena 89

fonográfica de tempos em tempos. Nos anos O império da música sertaneja


1940 e 1950, o gênero incorporou a ranchei- Em meados dos anos 2000, a indús-
ra mexicana, as harpas e guarânias para- tria fonográfica brasileira enfrentou o
guaias e o bolero caribenho. Em 1960, foi a aumento da comercialização e da distri-
vez do rock’n’roll inspirado no modelo da buição do mercado ilegal da música pirata.
Jovem Guarda. Entre os anos 1970 e 1980, Simultaneamente ao colapso da discofilia,
foi o pop rock internacional. Na década de a expansão das tecnologias digitais muda-
1990, a febre do country norte-americano ria definitivamente o acesso e o consumo
tomou conta dos subcircuitos culturais do musical. Gradualmente, as gravadoras
gênero, como as festas do peão de boiadeiro aceitaram uma posição menos mandatária
e as feiras agropecuárias. A partir dos anos na administração da carreira dos músicos.
2000, estilos como o folk, o pop, o rock, o No entanto, não se tornaram totalmente
hip-hop, o reggaeton e a balada eletrônica indispensáveis: elas ainda mantêm as cre-
compõem o gênero sertanejo. denciais de acesso aos meios de comuni-
Na prática, sem tais atualizações, a cação de massa, como o rádio e a televisão,
música sertaneja não sobreviveria muito que, por sua vez, são imprescindíveis para
tempo. Em contrapartida, se o gênero aban- a consagração nacional. Em meio a isso, o
donasse integralmente o universo sertanejo, sertanejo foi um dos gêneros precursores
como parte da bibliografia especializada no do formato acústico de gravação de DVDs
tema tanto apregoa, não haveria legado aos e shows ao vivo. O formato se tornaria a ga-
sertanejos. Trocando em miúdos, a música linha dos ovos de ouro da música sertaneja.
sertaneja se modernizou muitas vezes ao Hoje em dia, a rentabilidade econômica
longo desses anos, mas não abriu mão intei- dos sertanejos depende quase que exclusi-
ramente do seu passado, ainda que forjado. vamente do faturamento das apresentações
Parafraseando Ortiz (1989), eis a moderna ao vivo, isto é, da venda dos ingressos e dos
tradição da música sertaneja. Trazendo o cachês pagos pelos contratantes. No quadro
pretérito para o presente, o gênero sertanejo Bem Sertanejo (2014) do programa Fantás-
pôde reunir um grande público consumi- tico, o produtor musical Marcos Mioto fez
dor em um mesmo repertório. Conjugando a as contas: os dez principais artistas sertane-
tradição da audiência clássica com a moder- jos fazem cerca de 180 shows anualmente.
nização da audiência urbana, a música ser- Os espetáculos atraem mais de 18 milhões
taneja tomou as rédeas do mercado musical de espectadores ao ano. Em média, cada
e se transformou em um império nacional. apresentação custa R$ 175 mil, ou seja, em
Olhando para o passado, sabemos como o um ano, somente os dez principais artistas
gênero sertanejo se tornou um dos maio- do gênero movimentam mais de R$ 315 mi-
res fenômenos da música brasileira. Mas, lhões no mercado do showbiz. O DVD em
olhando para o presente, como os sertane- si não é tão rentável, mas é usado como um
jos têm mantido o seu reinado? Trataremos chamariz para atrair milhares de especta-
disso a partir de agora. dores aos estádios espalhados pelos quatro
90 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

cantos do país. Uma das modalidades de radiofônica entre os meses de janeiro e ju-
show ao vivo é a balada sertaneja. Em São lho de 2017, com mais de 41 bilhões de exe-
Paulo, por exemplo, casas noturnas como cuções nas rádios brasileiras. “Acordando o
a Wood’s, na Vila Olímpia, e bares como Prédio”, de Luan Santana, foi a música mais
Brook’s, na Chácara Santo Antônio, se tor- tocada de 2017. Outros artistas, como Jorge
naram parte do reduto boêmio da capital & Mateus, Victor & Leo, Fernando & Soro-
paulistana. Pelo interior do Brasil afora, o caba, Marcos & Belutti, Henrique & Juliano,
agronegócio e seus subcircuitos culturais, Zé Neto & Cristiano, João Neto & Frederico,
como as festas do peão de boiadeiro e os Simone & Simaria, Maiara & Maraísa, Paula
festivais agropecuários, são os principais Fernandes e Marília Mendonça, estavam no
financiadores dos shows dos sertanejos. topo do ranking 100 do ano passado.
Quanto ao público consumidor de músi- Em 2018, a música sertaneja assegu-
ca sertaneja, o conhecemos rou sua liderança nas rádios:
ainda muito pouco. Segundo Em 2018, a música das dez faixas mais tocadas,
o levantamento Tribos Musi- sertaneja assegurou sua sete são desse gênero (74%).
cais, realizado pelo Ibope em liderança nas rádios: Já nas plataformas de strea-
2013, os ouvintes de música das dez faixas mais ming, o sertanejo tem dois
sertaneja têm entre 25 e 34 tocadas, sete são desse gêneros concorrentes: o funk
anos, são predominantemen- gênero (74%). e o pop. No YouTube, o funk
te da classe C (52%), têm o domina os principais lugares
diploma do ensino fundamental e estão da lista (55%). No ranking do Spotify, o ser-
majoritariamente no interior e nas capitais tanejo (40%) concorre com o pop (32%) e
do Centro-Sul brasileiro. Em sua extensa o funk (22%), conforme o monitoramento
pesquisa de campo, Requena (2016) assis- da Connectmix. E sobre o público consu-
tiu aos shows de Victor & Leo e Fernando midor de música digital? Setenta e cinco
& Sorocaba em São Paulo. Para o autor, os por cento dos usuários do YouTube e 70%
sertanejos têm um público bem mais hete- dos ouvintes do Spotify têm menos de 34
rogêneo do que isso. anos. Por outro lado, entre os radiouvin-
Em relação aos meios de comunicação, tes, apenas 50% compõem tal faixa etária,
o rádio e a internet são os maiores respon- de acordo com os dados do Ibope de 2017.
sáveis pela divulgação dos sertanejos na Das 50 músicas mais executadas no país em
audiência nacional. Em 2017, por exemplo, 2017, em plataformas como Apple Music,
das dez músicas mais tocadas nas emisso- Deezer, Google Play, Napster e Spotify, 20
ras radiofônicas, nove eram do gênero serta- eram sertanejas, 40% ao todo, conforme o
nejo. De acordo com a listagem da Crowley levantamento da empresa BMAT. Segundo
Broadcast Analysis, das cem músicas do o relatório da Federação Internacional da
ranking, 87 eram sertanejas. Segundo os da- Indústria Fonográfica (IFPI, na sigla em
dos da Kantar Ibope Media e da Crowley, a inglês), a indústria fonográfica brasileira
música sertaneja compôs 32% da audiência faturou mais de US$ 295,8 milhões em 2017,
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Brian Henrique de Assis Fuentes Requena 91

com 17,9% de crescimento, o maior índice e os romances fortuitos, sem deixar de lado
em mais de uma década. Somos o maior a “sofrência” clássica do gênero. Mas essa
mercado da música na América Latina e o atualização do universo da música sertaneja
nono no ranking mundial. não veio sem custos. O bucolismo não foi
Nos últimos 18 anos, a música se completamente extirpado, porém, concorre
transformou em um negócio milionário no com o hedonismo e o individualismo. O vio-
Brasil. Não foi à toa que alguns sertanejos lão em cordas de aço e o acordeom têm que
se tornaram empreendedores da música competir com os instrumentos eletrifica-
(REQUENA, 2016). Não obstante, o império dos. O investimento em tecnologia digital de
sertanejo se estendeu ainda mais além. Em ponta transformou os shows de música ser-
uma década, o gênero musical tomou a lide- taneja em baladas eletrônicas. Consequen-
rança das listas de arrecadação de direitos temente, tudo isso suscitou a contestação
autorais. De acordo com o Escritório Cen- daqueles que se autorreferenciavam como
tral de Arrecadação e Distribuição (Ecad), defensores da música sertaneja tradicional,
a cantora Marília Mendonça é a artista da caipira, genuinamente de raiz. Na realidade,
vez. Com mais de 300 fonogramas de sua essa defesa de uma suposta autenticidade
autoria, foi a compositora com maior rendi- musical tem atravessado a história social
mento no setor de música ao vivo no ano de do gênero (ALONSO, 2011). Então, temos
2017. Fernando Fakri de Assis “Sorocaba” que voltar ao passado da música sertaneja
foi o líder do ranking em 2016, 2012 e 2011, e para entendê-lo no presente.
vice-líder em 2010 e 2009. Victor Chaves foi
o compositor que mais arrecadou direitos Sobre o universo sertanejo
autorais pelo Ecad entre 2008 e 2009. Interpretar o passado da música ser-
Em um meio tão competitivo quanto o taneja não é uma incumbência simples.
da música sertaneja, sobressaem-se aqueles Seguindo as pistas dadas por Bourdieu
que têm repertório estritamente autoral. E (2004), isso demanda muito exercício de
quem não tem? Em tais casos, é corriqueiro reflexividade sociológica. Primeiramente
que um mesmo compositor seja o autor de porque a bibliografia sobre a música ser-
dezenas de músicas aclamadas nas vozes taneja é relativamente escassa – sendo ela
de outros intérpretes. Geralmente, esses caipira, sertaneja, de raiz, tradicional, mo-
autores são anônimos ou desconhecidos derna, romântica ou universitária. Quan-
do grande público, mas movimentam um do existente, os autores dão depoimentos
mercado bem lucrativo de compra e venda acusatórios, apoiados em argumentos nor-
de composições na música sertaneja. De- mativos. Na maior parte das vezes, esse
pois do relâmpago do movimento univer- mal-estar consubstanciava um diagnósti-
sitário, que tanto atraiu a audiência jovem co comum: música caipira não era sinôni-
e urbana, alguns sertanejos têm apostado ma de música sertaneja – ainda que parte
em enredos mais modernos, como a farra, as dos intelectuais e artistas aceitasse a pri-
festas, as baladas, a bebedeira, a embriaguez meira como legítima porta-voz do povo e a
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

segunda como simples produto comercial a “prostituição” da música sertaneja. Em


da indústria cultural. contraposição a isso, o músico incorporou
Pensando nos termos de Williams o sertão místico e o condão caipira em seu
(1979), a música caipira seria a música do repertório. Victor também pedia a “resis-
povo – pura, popular, autêntica, de raiz – e tência” do universo sertanejo. Para tanto,
a música sertaneja seria a música para o propôs parcerias musicais com Renato Tei-
povo – deturpada, popularesca, alienada, xeira, Almir Sater e outros ícones da MPB
sem raiz. Esse debate está presente na bi- caipira dos anos 1980.
bliografia especializada no tema dos anos Não obstante, por unanimidade, o pas-
1970, 1980 e 1990, embora na literatura o sado mais reverenciado pelos sertanejos é o
bate-boca tenha se iniciado nas décadas de sertanejo romântico dos anos 1990, ou seja,
1910 e 1920, com Monteiro Lobato e Cor- um passado mais ou menos presente. Nas
nélio Pires. A partir dos anos 2000, autores apresentações dos “modões” de viola, por
como Alonso (2011), Olivei- exemplo, as modas sertanejas
ra (2009) e Vilela (2011) têm O passado não mais aclamadas são de Chi-
foi abandonado
contribuído significativa- tãozinho & Xororó, Leandro
inteiramente pelos
mente para a revisão dessa & Leonardo, João Paulo &
sertanejos. Pelo
discussão. Na atualidade, os contrário, o passado Daniel e Zezé Di Camargo &
músicos sertanejos são des- ainda está em disputa, Luciano. Por sua vez, os ser-
cendentes desse processo pois estrategicamente é tanejos dos anos 1990 são os
histórico de demarcação e, ao um selo legitimador. padrinhos encarregados da
mesmo tempo, são os coau- “bênção” à carreira dos músi-
tores dessa trama delimitadora. E assim, cos sertanejos contemporâneos. Já por volta
dialeticamente, esse legado da tradição da dos anos 2000, os sertanejos denominados
música sertaneja subsistiu ao processo de “universitários” dispensaram as benesses
modernização do gênero. Ou seja, ainda que do passado e, assim, se arriscaram em um
efabulado, o passado não foi abandonado in- jogo de diferenciação estética em relação
teiramente pelos sertanejos. Pelo contrário, ao sertanejo romântico dos anos 1990. O
o passado ainda está em disputa, pois estra- relacionamento amoroso, melodramático
tegicamente é um selo legitimador. e mal-acabado, ou seja, o enredo de fossa,
Na história social recente da música foi substituído pelo enredo de farra. Essa
sertaneja, o compositor mineiro Victor Cha- atualização no universo temático da músi-
ves, do duo Victor & Leo, destaca-se como ca sertaneja incomodou os sertanejos mais
embaixador desse pretérito imperfeito. O veteranos, como Zezé Di Camargo, e os re-
compositor foi responsável por trazer à cém-chegados, como Victor Chaves. Sem
tona o bucolismo do sertão, sem abrir mão consenso estético, o sertanejo universitário
do seu próprio contexto musical. No auge do se tornou apenas um subgênero da músi-
movimento universitário, a partir de 2007, ca sertaneja, não um movimento propria-
ele contestou a “falta de originalidade” e mente universitário.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Brian Henrique de Assis Fuentes Requena 93

Em meados dos anos 2000, o termo


universitário foi somente uma estratégia Brian Henrique de Assis
de mercado da indústria fonográfica para a Fuentes Requena
atualização da fachada da música sertaneja, É doutorando em sociologia pela Universi-
tornando-a assim mais “moderna” para o dade de São Paulo (USP) e mestre em sociolo-
seu público consumidor, e não um demar- gia pela mesma universidade. Tem experiência
cador estético adotado pelos sertanejos. De na área de sociologia, com ênfase em sociologia
acordo com Alonso (2011), tematicamente, da cultura e da ciência.
o sertanejo universitário deu um giro de 180
graus em relação ao sertanejo romântico
dos anos 1990. O autor até delimitou as três
temáticas do “movimento” universitário: a
poética do amor afirmativo, a poética da
farra e a poética do “tô nem aí”. Na prática,
essas três poéticas universitárias consti-
tuem uma só: a poética da farra. Mas, ainda
assim, o enredo de farra dos universitários
não arrebatou o universo temático da músi-
ca sertaneja, tão somente o atualizou.
Nos últimos 18 anos, o romantismo
clássico do gênero não foi abandonado pelos
sertanejos. O melodrama rasgado do ser-
tanejo romântico dos anos 1990 se trans-
formou hoje em “sofrência”. E o bucolismo
resistiu como “sertão místico”. Eis então as
quatro estéticas temáticas que compõem o
universo contemporâneo da música serta-
neja: (1) a estética da farra, (2) a estética do
romantismo, (3) a estética da “sofrência” e
(4) a estética do bucolismo. Enfim, a cada
atualização, a música sertaneja não renun-
cia ao seu passado, apenas o reconstitui,
ajustando-o no presente. E assim, conjugan-
do magistralmente o passado, o presente e
esse pretérito imperfeito, a música serta-
neja se tornou um império nacional. Se no
imaginário intelectual o samba consagra-se
como gênero musical nacional, o Brasil dos
brasileiros é sertanejo.
94 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Referências

ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira.


Tese de doutorado em história. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense
(UFF), 2011.

BOURDIEU, Pierre. A profissão de sociólogo. Petrópolis: Vozes, 2004.

OLIVEIRA, Allan de Paula. Miguilim foi pra cidade ser cantor: uma antropologia
da música sertaneja. Tese de doutorado em antropologia. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2009.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São
Paulo: Brasiliense, 1989.

REQUENA, Brian Henrique de Assis Fuentes. A universidade do sertão: o novo retrato


cultural da música sertaneja. Tese de mestrado em sociologia. São Paulo:
Universidade de São Paulo (USP), 2016.

VILELA, Ivan. Cantando a própria história. Tese de doutorado em psicologia. São Paulo:
Universidade de São Paulo (USP), 2011.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo & literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.


ARTES E CULTURA NO SERTÃO Brian Henrique de Assis Fuentes Requena 95

Programas de TV

BEM SERTANEJO. Michel Teló mostra negócio milionário que a música sertaneja
movimenta. Fantástico, Rede Globo, 19 out. 2014.

Websites

BMAT Music Innovators: <https://www.bmat.com>.

Connectmix: <https://www.connectmix.com>.

Crowley Broadcast Analysis (Brasil): <http://www.crowley.com.br>.

Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad): <http://www.ecad.org.br>.

Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI): <http://www.ifpi.org>.

Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope): <http://www.ibope.com.br>.

Kantar Ibope Media: <http://www.kantaribopemedia.com>.


96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O SERTÃO QUE AS ARTES


AJUDARAM A CRIAR
Maria Hirszman

As artes visuais têm uma longa e íntima relação com o sertão. A região não apenas
alimentou uma ampla produção de pinturas, esculturas e fotografias relativas ao seu povo
e à sua natureza, ajudando a cunhar uma imagem de resistência e simplicidade, como é
também a origem – em termos geográficos e simbólicos – de muitos dos mais importantes
artistas populares do país.

A
s artes visuais são amplamente res- com o traje típico de couro – necessário ao
ponsáveis pela imagem do sertão enfrentamento da vegetação bruta da caa-
formada ao longo do último século tinga. Na obra do artista inglês, que integrou
no país, fortemente ancorada na ideia de rus- uma missão diplomática em visita ao país em
ticidade, miséria e resistência. Imagem que 1825, o homem parece integrar-se natural-
se traduz seja numa temática baseada em mente com o solo seco e árido. Essa mesma
figuras simbólicas, como as do retirante, do fusão entre homem e paisagem, em que a
cangaceiro e do beato, seja numa materiali- brutalidade de um ecoa na secura do outro e o
dade mais tosca, que remete a certa aspereza tom de terra predomina, vai se fazer presente
na forma e no gesto. Quer na produção local, em uma ampla gama de representações pro-
quer nos diferentes modos de representação duzidas ao longo desses quase dois séculos,
visual dessa cultura nas ditas formas cultas, por artistas nordestinos ou não.
prepondera a noção da força, da resistência Em alguns momentos, domina certa
às agruras da seca, da pobreza e das ameaças ternura e um sentimento de pertencimen-
de dissolução de uma cultura tradicional. to, como no caso das gravuras de Pelo Sertão
A aquarela pintada por Charles Land- feitas na década de 1940 por Lívio Abramo.
seer é uma das primeiras imagens relativas Em outros, a denúncia da miséria e da seca,
ao tema encontradas na Enciclopédia Itaú em sintonia com uma ideia de transforma-
Cultural e mostra a figura do sertanejo já ção social por meio da arte, se faz presente.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Maria Hirszman 97

Esse fenômeno se torna bastante evidente, Janeiro, principais polos culturais do país,
sobretudo na segunda fase do modernismo ela se torna uma importante bandeira para os
brasileiro. Pintores como Fulvio Pennacchi, movimentos locais que começam a surgir e a
Clóvis Graciano, Henrique Oswald e, sobre- reivindicar os temas e as formas de fazer arte
tudo, Candido Portinari – cuja série sobre no Nordeste como núcleo de um processo de
os retirantes deu visibilidade nacional à desenvolvimento regional.
triste sina dos refugiados da seca – trans- É possível citar duas dessas iniciativas
formaram em tema a tragédia recorrente e que renderam importantes frutos: o Ateliê
corporificaram em imagens uma situação de Coletivo, movimento fundado por Abelardo
desalento que já vinha sendo da Hora e outros companhei-
trabalhada de forma intensa Ao mesmo tempo ros em 1952, e o Movimento
pela literatura. O realismo que artistas com Armorial, fundado em 1970
social e a defesa de uma óp- formação profissional por Ariano Suassuna. Nos
tica regionalista, capaz de e reconhecimento se dois movimentos há uma cla-
dar conta da história local alimentam dos hábitos ra incorporação de elemen-
de uma população vitimada do povo simples, tos de cultura popular, uma
pela natureza inclemente e abre-se um caminho tentativa de integrar arte
para esses produtores
pelo descaso das autoridades, erudita e raízes populares,
anônimos, responsáveis
fortemente presentes na lite- buscando desenvolver uma
pela perpetuação
ratura da primeira metade do dessas tradições. produção regional genuína,
século XX, também tiveram que reunisse as tradições lo-
sua contrapartida nas artes visuais, ganhan- cais, absorvendo processos, técnicas, temas
do visibilidade por meio de obras de grandes e vivências do povo. Gilvan Samico, um dos
mestres, como Cícero Dias. E continuaram, mais virtuosos gravadores do país e próximo
nas décadas seguintes, a conquistar um es- dos dois movimentos citados, promove uma
paço crescente nessa produção. interessante aproximação entre um universo
Foram, por exemplo, as cenas de viagem mítico e arcaico e uma forte tradição da cultu-
no pau-de-arara, as vendeiras e os cangacei- ra popular nordestina. Essa aproximação en-
ros representados no álbum Cenas da Seca do tre o mundo culto e a riqueza popular tem um
Nordeste que garantiram a Aldemir Martins o duplo sentido. Ao mesmo tempo que artistas
Prêmio Aquisição na 1ª Bienal Internacional com formação profissional e reconhecimento
de São Paulo e a inserção no circuito artís- do circuito se alimentam da cultura das ruas,
tico do Sudeste. É importante frisar que há dos hábitos do povo simples, se apropriando
um duplo movimento nessa incorporação de narrativas e formas de fazer, abre-se tam-
da temática do sertanejo. Ao mesmo tempo bém um caminho duro, porém em ampliação,
que tal absorção permite uma abertura para para esses produtores anônimos, responsá-
além dos limites regionais, garantindo uma veis pela perpetuação dessas tradições.
identidade mais definida a artistas nordes- O artesanato e a arte dita primitiva, cos-
tinos que migram para São Paulo e Rio de tumeiramente anônimos, vão adquirindo um
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

estatuto mais elevado, ganhando espaço nas barraquinhas da feira que ajudou a notabili-
pesquisas não apenas antropológicas, mas zar, ainda era considerado um ceramista sem
artísticas, e conquistando lugar nas cole- identidade. Curiosamente, é nesse mesmo
ções de arte, nas galerias especializadas e ano que nasce a Comissão Nacional de Fol-
nos espaços institucionais de exibição. Há clore, um indício do crescente interesse por
uma espécie de biografia comum a essas fi- esse tipo de manifestação cultural. A saída
guras: em sua maioria, artistas de baixo es- paulatina de Vitalino do anonimato ocorreu
trato social, com nenhuma ou pouquíssima de forma quase simultânea a esse processo
educação formal, e marcados por um desejo de resgate de trabalhos como o dele, nos
anormal de expressão artística, que os faz quais predominam grande talento, forte im-
desviar do caminho natural de produção de pulso criativo e uma verdadeira obsessão em
objetos de uso cotidiano para desenvolverem dar formas tangíveis às tradições e vivências
expressões de grande potência plástica. Há da população em seu entorno.
uma lista grande de artistas que, por meio Outro artista cuja notabilidade afirma-
da pintura ou da escultura (com destaque -se aos poucos, mas torna-se incontornável
para o uso do barro, desviado das olarias, ou quando se trata de pensar em cultura popular
da madeira, facilmente en- sertaneja, é J. Borges. Nascido
contrável), acabam forjando Um caso paradigmático em Bezerros (PE), frequentou
formas bastante particulares é o de Mestre Vitalino, a escola por dez meses apenas.
de criação e adquirindo amplo que traduz em singelas Foi marceneiro, mascate, pin-
reconhecimento, muitas vezes figurinhas de barro a tor de parede e oleiro, entre
até formando escolas. ampla diversidade da outras profissões. Em 1956,
Um caso paradigmático cultura nordestina. começou a vender literatura
nesse sentido é o de Mestre de cordel e rapidamente se
Vitalino, que traduz em singelas figurinhas tornou ele próprio um ilustrador, inicial-
de barro a ampla diversidade da cultura nor- mente produzindo as imagens para os fo-
destina, retratando desde figuras emblemáti- lhetos que comercializou e paulatinamente
cas, como a de Lampião, a festas, profissões e conquistando maior autonomia e reconheci-
hábitos de sua gente. Com grande maestria, mento nacional e internacional, tornando-se,
criou modelos que até hoje são seguidos por nas palavras de Suassuna, o maior gravador
seus descendentes e por novas gerações de popular do Brasil.
artesãos de Caruaru, com os quais ele sempre Para além desses dois nomes, é possí-
compartilhou suas técnicas e sua maneira de vel citar inúmeros artesãos e artistas que
dar forma ao barro, que, como muitos, apren- foram lentamente conquistando um lugar
deu a manusear ainda menino, em pedaços nesse amplo segmento da arte popular. É in-
subtraídos da mãe, que se ocupava de fazer teressante notar os vínculos existentes entre
utensílios para serem vendidos. eles. Nhô Caboclo, por exemplo, foi apren-
No entanto, em 1947, quando suas diz de Mestre Vitalino, antes de definir seu
primeiras peças surgem para além das próprio caminho, dedicando-se à escultura
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Maria Hirszman 99
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

em madeira, na qual reelabora mitos e his- chamados outrora de “primitivos”, “rústicos”


tórias tradicionais. Um outro fenômeno, no ou outros termos pejorativos. É indiscutível
entanto, marca essa produção nas últimas a importância da escultura tradicional, em
décadas: a aproximação entre a obra contem- especial dos ex-votos, na obra de Efrain Al-
porânea e a criação popular. meida. Ou a referência às narrativas do in-
Muitos dos artistas que vêm surgindo terior nordestino reelaboradas por Virginia
na cena contemporânea acabaram por vol- de Medeiros, que viajou pelo sertão da Bahia
tar, de alguma maneira, seu olhar para as recolhendo e gravando histórias para depois
tradições regionais. Essa base é então ree- exibir esses vídeos dentro da Kombi que uti-
laborada em poéticas bastante particulares lizou nessa peregrinação, transformada em
e diversas, mas que indicam, como estopim, uma curiosa sala de projeção.
uma atenção para a cena local, para os seus Seria equivocado pensar a expressão
hábitos e tradições. poética e plástica do sertanejo como algo es-
Podemos citar a produção de Juraci Dó- tanque, passadista, que fique – e precise ficar
rea, que trabalha suas memórias/acúmulos – protegido das influências do mundo “ex-
sobre sua região de origem criando a série terno”. Essa visão conservadora só faz isolar
Histórias do Sertão. Notam-se algo que é potente exatamente
nessa série não apenas um Seria equivocado pensar por sua capacidade de diálo-
interesse em representar as a expressão poética e go, interlocução e resistência
narrativas e tradições nordes- plástica do sertanejo diante das pressões diluidoras
tinas, mais especificamente como algo estanque, do mercado. Um exemplo des-
relativas ao interior da região, passadista, que fique – e sa inserção ao mesmo tempo
mas também uma necessida- precise ficar – protegido inovadora e forte é o trabalho
de de incorporar e reelaborar das influências do de Cícero Alves dos Santos,
formas de expressão tradicio- mundo “externo”. o Véio, artista sergipano fas-
nalmente vinculadas ao meio cinado com as formas, cores
em questão. Não se trata somente de narrar e histórias de sua terra natal (que ajuda a
aspectos da vida cotidiana, da paisagem, preservar no seu Museu do Sertão, criado
dos animais e das plantas da caatinga, mas em Feira Nova) e autor de uma obra bastante
também da absorção, na construção plásti- singular, que se apropria de restos de madei-
ca, de elementos característicos da cultura ra para criar trabalhos de grande potência
local, como a xilogravura de fio, técnica in- expressiva. Nos últimos anos, a produção
timamente relacionada com a literatura de de Véio – que teve uma grande retrospecti-
cordel e que remete a expressões mais dire- va em 2018 no instituto Itaú Cultural – vem
tas, de cunho popular e que não requerem recebendo atenção nacional e internacional.
um conhecimento técnico detalhado por Segundo a crítica, sua escultura não apenas
parte do autor. Esse movimento radicaliza e expressa uma visão singular do universo cul-
aprofunda o processo de mimese das formas tural que a nutre, como remete à liberdade e
e dos procedimentos dos artistas populares, à síntese da escultura modernista.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Maria Hirszman 101

Fenômeno diferente, mas não menos A diversidade de expressões ajuda a dis-


importante, desse processo de conhecer, sipar os estereótipos, a deixar claro o caráter
entender e interpretar o sertão é a fotogra- diverso dos vários sertões. Da mesma manei-
fia. Desde o século XIX, temos importantes ra que não existe um só sertão, são inúmeras
registros históricos, vitais para a constitui- as maneiras de representá-lo ou de usá-lo
ção da ideia que fazemos hoje dessa região, de como referência simbólica, poética e mental.
sua paisagem e de seus principais persona- Ter consciência dessa pluralidade de sentidos
gens. Apesar de a fotografia ter sido tratada e potências não apenas enriquece a visão so-
como arte menor durante muito tempo, é bre a enorme diversidade da criação artística
impossível não levar em conta legados como como amplia ainda mais as possibilidades de
os de Benjamin Abrahão Botto, autor de um uma maior riqueza interpretativa.
conjunto amplo de imagens de Lampião e
seu bando, e Flavio de Barros, que registra a
fase final da campanha do exército contra os
revoltosos de Canudos. Mais do que registros
visuais que embasam as narrativas literárias,
essas fotos são documentos de extrema im-
portância, como resultado de um olhar ao
mesmo tempo escrutinador e assustado em
relação a esse universo.
Décadas depois, com a popularização
cada vez maior da técnica fotográfica, muitos
autores são tentados a voltar a dialogar com
o sertão, por meio de intervenções ao mesmo
tempo poéticas e afetivas. Duas mulheres, em
especial, se notabilizam por seus trabalhos
nessa direção: Maureen Bisilliat e Anna Ma-
riani. Cada uma à sua maneira, debruçam-se
sobre esse universo. O foco não mais recai
sobre a paisagem desolada, em termos cli- Maria Hirszman
máticos e humanos, mas sobre as calorosas É jornalista e crítica de artes, colaborando em
fachadas das casas, contrapondo-se à visão diversas publicações, como o Jornal da Tarde, o Es-
estereotipada da região como local desértico tado de S. Paulo e as revistas Fapesp e Arte!Brasi-
e bruto. Questões como o trabalho tradicio- leiros. É também pesquisadora em história da arte,
nal e feminino, o percurso literário de João com mestrado pela Escola de Comunicações e Artes
Guimarães Rosa ou o encantamento com a da Universidade de São Paulo (ECA/USP), além de
arquitetura vernacular e suas fachadas caia- integrar o Grupo de Estudos Arte & Fotografia da
das de múltiplas cores tornam-se motivos ECA/USP e o conselho editorial da Enciclopédia Itaú
poéticos para esquadrinhar o sertão. Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
102 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Isabelly Moreira 103

A MULHER NA POESIA DO PAJEÚ


Isabelly Moreira

A efervescência poética no Pajeú pernambucano revela mulheres poetas que também


escreveram esta história. As diferentes gerações de poetisas carregam nos versos a memória e
a relação da escrita nos contextos local e social.

A
poesia sempre escreveu a história homens: a presença masculina era mais nu-
da microrregião do Pajeú. Os vio- merosa – e até hoje é – na cantoria de viola e
leiros repentistas e os cordelistas a maior parte de títulos publicados de cordel
do sertão pernambucano conduziram essa também era assinada por homens, e assim
narrativa pelo mundo afora. A partir de uma se estendia para os recitais. Com isso, eles
cultura predominantemente oral, eles rom- ganhavam mais visibilidade.
peram barreiras sociais e limites geográficos Torna-se evidente que os motivos não
para mostrar à poesia o lugar onde ela mere- se restringem a dados matemáticos. Os va-
ce estar: na boca do povo. tes ganhavam fama porque, para realizarem
Fazendo uma visita rápida às nossas suas cantorias, as viagens eram frequentes
memórias, verifica-se que as mulheres poe- e os públicos eram sortidos. As poetisas,
tas (ou poetisas, de acordo como cada uma em geral, por sua vez, cuidavam dos filhos
prefira ser chamada) desenvolveram papel e da família e executavam as tantas ativi-
fundamental na poesia da região. No entan- dades domésticas que o sistema patriarcal
to, poucos nomes ganharam destaque – se por tanto tempo impôs. Assim, viajar por
comparado à quantidade de homens poetas aí improvisando versos estava fora de co-
que tiveram notoriedade – pelos pesquisado- gitação para elas. E, ainda que não fossem
res, apologistas e pela mídia. Os motivos são casadas, “não pegava bem moça solteira sair
vários para que a ênfase tenha sido dada aos pegada em braço de viola”, nas palavras de
104 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Maria Batista, mãe da cantadora Luzia Ba- da nossa gente no trecho do poema “Hino às
tista, natural da zona rural de São José do Avessas”: “Nosso hino nasceu desafinado/
Egito (PE). Numa conversa informal, ela Entoando uma falsa liberdade”. A bisneta
acrescentou que só deixou a filha cantar Ana Luiza, aos 16 anos, demonstra o quan-
porque o pai a acompanhava. Luzia se or- to a poética passeia por diferentes idades:
gulha de ter cantado com figuras renoma- “Perdi esperanças sofrendo ilusões/Calei-
das e de ter conseguido o seu espaço, muito -me no tempo e na fala precisa/Nos versos
embora tenha parado de cantar logo após o de moça, artesã, poetisa/Juntando pedaços
casamento, fato que hoje la- de vis corações”.
menta. O livro, recém-publi- Severina Branca Também de uma família
cado, traz um recorte das suas igualmente bebeu do de poetas, Bia Marinho (São
produções poéticas, além de elixir da eternidade José do Egito), mesmo com
ao propor o mote “O
quebrar paradigmas, uma todos os percalços do mun-
silêncio da noite é que
vez que Luzia é analfabeta e do artístico independente,
tem sido/Testemunha
quase cega. Os versos “Meu das minhas amarguras”. nunca esteve fora dos palcos.
Jesus, meu Deus, por que/A Como uma das primeiras mu-
mulher é massacrada?/Por mais que ela se lheres do Pajeú que se propôs a viver de mú-
esforce/Termina discriminada” trazem a sica, o seu canto é, antes de tudo, um canto
dura realidade de muitas mulheres. de resistência. Poetisas como Bia trilharam
Curioso pensar que, mesmo sendo de caminhos para outras tantas vindouras,
um chão tão fértil culturalmente, ela nunca como Eriberta Leite, Naldirene Barros,
tenha duelado na viola com outra mulher. Jéssica Gomes e Ana Clara Meneses.
Atualmente, a dificuldade de se encontrar A Tabira (PE) de Cármem Pedrosa e de
cantadoras em festivais de improvisos per- Dulce Lima abriu as portas (inclusive para a
manece. Nomes como Anita Catôta (glosa- literatura em prosa) para as novas gerações,
dora de primeira), Rafaelzinha (“poetisa da como as poetisas Verônica Sobral, Andreia
saudade”), Zefa Tereza (coquista) e Das Ne- Miron, Alecssandra Ramalho, Pepita Lins e
ves Marinho provam que nem a morte apaga Wandra Rodrigues. Andreia, que também é
o legado construído por elas. cordelista, deu o recado no seguinte trecho:
Severina Branca igualmente bebeu do
elixir da eternidade ao propor o mote “O si- Distante de preconceito
lêncio da noite é que tem sido/Testemunha Rasguemos o nosso peito
das minhas amarguras”. Os pesos carrega- Pra falar de feminismo
dos durante a vida de prostituição foram
desabafados nos seus versos. A também Que busquemos ser iguais
conterrânea Beatriz Passos é a matriarca Pra que as lutas sociais
poetisa de uma família de poetas. Suas fi- Não tenham nome
lhas Cármem Beatriz e Cláudia também são “modismo”
poetisas. A neta Simone resume a história
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Isabelly Moreira 105

Da geração atual, as mulheres têm Nos eventos locais, é perceptível o


aparecido mais, ocupando mais espaços quanto os temas de teor crítico têm se in-
que também são seus. Na modalidade da troduzido com mais veemência e, paula-
mesa de glosas, um quarteto de improvi- tinamente, as chagas das sociedades vêm
sadoras arranca aplausos da plateia a cada ganhando atenção. A escrita da poesia po-
mote dado. Francisca Araújo (Iguaracy/PE), pular, principalmente pelas gerações atuais,
Dayane Rocha (Brejinho, Tabira) e as irmãs não gira unicamente em torno do regiona-
Elenilda e Erivoneide Amaral (Afogados da lismo e dos romanceiros. Este papo de que a
Ingazeira/PE) ocupam cadeiras quentes, poesia nordestina fala predominantemente
pois a mesa de glosas, durante muito tempo, da seca e dos amores é verdade e é até ne-
foi formada unicamente por homens. cessário para darmos uma aliviada nos pe-
As rodas de glosas sempre aconteceram sos da vida real. Mas a poesia não deve ser
de uma maneira mais informal, em mesas enclausurada apenas a esses temas.
de bares, conversas de calçada e até como É até natural que essa poética beba
brincadeira para passar o tempo e ilustrar bem mais da fonte do regional, pois a iden-
o papo de colegas. Aqui, novamente, temos tidade com o meio no qual se vive é imensa.
um ponto relevante: em ci- Contudo, o fato de morarmos
Fazer da poesia um
dades de interior que não nos interiores sertanejos não
amplificador da voz
têm cinema, teatro, parques, nos coloca à margem do cená-
feminina é poder afirmar
museus, os bares são fortes que a arte também é rio mundial. Fazer da poesia
alternativas de lazer, e por política e que as poetisas um amplificador da voz fe-
isso era natural que os poetas avançam nesse contexto. minina é poder afirmar que a
se encontrassem nos bares e arte também é política e que
protagonizassem glosas por horas a fio. E as as poetisas avançam nesse contexto.
poetisas continuavam de fora, pois, se hoje Não uso desse argumento para afirmar
ainda se encontra quem implique com mu- que a poetisa tem que escrever sobre tema
lher bebendo rodeada de amigos, imagine no de amor porque vai arrancar mais aplausos
tempo de nossos avós. Talvez também por ou que tem que asseverar a crítica porque
isso não se tenha registros de glosadoras que o momento sempre pediu. Aliás, ninguém
frequentavam as rodas. Talvez. tem que nada! A poesia popular, embora siga
Monique D’Angelo, Izabela Ferreira e regras rígidas de escrita, é livre por senti-
Dayane Lopes integram essa nova turma em mento. Pois desse sentimento, sendo sin-
Itapetim/PE. As três são poetisas e decla- cero e coletivo, a revolução social se torna
madoras. Izabela estimula a luta coletiva o próprio mote.
ao dizer: “Quanto mais nos oprimem, nossa O verso libertador deve ser uma cons-
fala/Vai bradar como a história nunca viu”. tante em nossas vidas, pois esse sertão de
Do outro lado, em Tuparetama/PE, a “cabra macho”, de “menino homi”, de “muié
parelha de Marianas (Teles e Véras) tam- sera” e outras tantas aberrações que aumen-
bém integra um time forte. tam o estigma e estimulam a violência contra
106 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

a mulher, infelizmente, está longe de virar só Para dar fala a quem não tem e para ocupar
causo. Bem disse Celeste Vidal nos versos: os espaços que também são nossos. Uma
“Acordas/Para a luta da vida/Mulher. Já que causa jamais anula outra, apenas se somam.
não podemos dormir diante dos machismos Uma mulher sertaneja, antes de ser flor, é
disfarçados de piadas e gentilezas”. espinho. Antes de ser musa, é guerreira.
É fundamental cultivar as nossas raí- Encerro com uma poesia de minha au-
zes, vates que nos antecederam. Contudo, toria em nome de todas as mulheres poetas
é igualmente crucial furarmos as bolhas idas e vivas, anônimas e que não caberia
regionais para ampliar as vozes e as lutas. citar aqui.

Nós mulheres morremos todo dia Um fiasco contorna a profissão


Pelas mãos de maridos, namorados. Que também é cenário de assédio.
O jornal sanguinário anuncia: Vira e mexe a figura do patrão
Mortes, mortas, destinos desgraçados. É a causa de um trauma sem remédio.
Uma ossada encontrada num terreno; Mexe e vira, o transporte coletivo,
Um pulmão perfurado leva um dreno; Filas bancos e becos são motivo
Na cintura: uma faca dele, nela; Para que a mulher se apavore
Os sinais de defesa em cada mão, Com o gesto obsceno do agressor
Ironia cruel da criação Ou qualquer falsa forma de amor
Quando a fêmea fratura uma costela Faz com que cada caso só piore.

Justo nela? Do elo em criatura! Que se tore o machismo matador


Sim. O barro que faz é o que enterra Inquilino de irmãos, amigos, pais...
E o homem que beija é o que tortura Que o Estado se torne protetor
E que tenta explicar da vez que erra, Para que não sejamos numerais.
Joga a culpa pra ela e pra o ciúme Que a voz da mulher não silencie,
Culpar vítima aqui virou costume. E nenhum dedo em riste atrofie
Sinto nojo da frase de um carrasco Frente à cara covarde e à covardia.
Que vomita jargão de um bem eterno Toda causa exige compromisso
E o que foi paraíso vira inferno E enquanto alguém se cala omisso
Se a palavra do amor se torna asco. Nós mulheres morremos todo dia.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Isabelly Moreira 107

Isabelly Moreira
Nasceu em São José do Egito, no sertão pernambucano. Iniciou seus trabalhos como
declamadora. Autora de vários cordéis, incluindo títulos voltados para a literatura infantil,
Belinha, como também é conhecida, publicou em 2017 o seu primeiro livro, intitulado
Canta Dores. A poetisa também produz eventos culturais e integra projetos musicais.

Referências

BATISTA, Luzia. Poetisa sonhadora: versos e canções. 1. ed. São José do Egito: RS
Gráfica Editora Ltda., 2018.

NA CAATINGA não tem só mandacaru. Direção: Tauana Uchôa. Produção: Que Tau
Produções. Recife, 2016.

TEM CRIANÇA no repente. Direção: Francisco Eduardo Alves Crispim. Produção: Madre
Filmes. São José do Egito, 2018.

VIDAL, Celeste. Metade sol, metade sombra. 1. ed. Tabira, 1994.


108 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ilustração: xx
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Marcel Fracassi 109

O SERTÃO INSTRUMENTAL
DE CACÁ MALAQUIAS
Marcel Fracassi

E
ducador, palestrante, pesquisador, produtor cultural, compositor,
arranjador e multi-instrumentista, Cacá Malaquias vem de família de
músicos. A música começa em casa, com seu pai, Petronilo Malaquias,
que na época era professor e maestro de uma série de bandas filarmônicas no
Sertão do Pajeú. Nascido em Carnaíba, cidade nessa região, Cacá sempre trouxe
a influência do sertão na sua música. E do sertão foi para o mundo, tocando
com diversos nomes da música nacional e internacional, de João Bosco a Ray
Conniff, da Banda Mantiqueira a Lenine, entre outros. Dedicou-se também a
lecionar no conservatório de sua cidade.
110 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

VOCÊ NASCEU EM CARNAÍBA, CIDADE NO SE VOCÊ FOSSE PENSAR EM UM RITMO QUE


INTERIOR DE PERNAMBUCO, NO SERTÃO REPRESENTA O SERTÃO, QUAL ESCOLHERIA?
DO PAJEÚ. QUAL SEU PRIMEIRO CONTATO HÁ ALGUMA CANÇÃO QUE, EM SEU IMAGINÁ-
COM A MÚSICA? RIO, REPRESENTE O SERTÃO? POR QUÊ?
Meu contato com a música começou A música nordestina é muito rica no
cedo, no berço. Minha família é de músicos que diz respeito a três importantes elemen-
tradicionais na região. Meu pai, Petronilo tos: melodia, harmonia e ritmo. Especial-
Malaquias, foi professor e maestro de vá- mente no sertão, existem vários estilos que
rias bandas filarmônicas no Sertão do Pa- influenciaram compositores da MPB e da
jeú. Como nossa casa funcionava como uma música instrumental. O aboio, o bendito, a
espécie de escola de música, isso fez com que toada, o coco, o baião e o xote são estilos que
ele ensinasse música para os membros da fa- continuam na vida do sertanejo. O coco é o
mília, incluindo as mulheres. ritmo de que mais gosto, tendo Jackson do
Pandeiro como representante. “Asa Branca”1
funciona como uma espécie de hino para o
sertanejo; por fazer parte do nosso imaginá-
rio, uso a melodia para começar o curso de
musicalização das crianças.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Marcel Fracassi 111

QUAL A INFLUÊNCIA DO SERTÃO NO SEU COMO FOI SEU PRIMEIRO CONTATO COM A
TRABALHO? MÚSICA INSTRUMENTAL?
O Sertão do Pajeú tem uma riqueza A Banda Filarmônica de Santo Antô-
cultural imensa e uma natureza belíssima. nio, o trio de forró pé de serra e a banda de
A culinária, a música, a poesia, a dança, a re- pífanos são grupos instrumentais com que
ligião, a geografia e o sotaque são importan- convivi desde menino. O forró pé de serra
tes para nosso povo e isso influenciou muito e a banda filarmônica são meus primeiros
meu trabalho como compositor, arranjador contatos com a música instrumental, já que
e instrumentista. O pifeiro, o repentista, a toquei com essas formações.
banda de música, o coco de roda, o aboia-
dor e o pastoril são elementos fortes dentro
desse contexto.
112 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

EM SUA CARREIRA, VOCÊ TEM UMA FORTE NO FINAL DA DÉCADA PASSADA, VOCÊ
RELAÇÃO COM O CHORO. COMO SE DEU ISSO? VOLTOU PARA TRABALHAR COMO PROFES-
Cresci dentro de um ambiente musi- SOR NA ESCOLA DE MÚSICA DE CARNAÍBA.
cal, meu pai tocava violão, era seresteiro no QUAIS FORAM SUAS IMPRESSÕES DEPOIS DE
interior nordestino, havia muitos saxofonis- TANTO TEMPO FORA? COMO FOI O CONTATO
tas, acordeonistas, violonistas e clarinetistas COM OS JOVENS MÚSICOS?
que tocavam choro. Meu pai tinha um cader- Em 2006, fui convidado pelo gestor An-
no com melodias escritas com caneta pena, chieta Patriota, que é filho do maestro Israel
melodias que serviam como metodologia de Gomes, que dá nome à escola, para partici-
desenvolvimento, muitos choros de Severino par de uma oficina de música durante a festa
Araújo, K-ximbinho, Ratinho e Luiz Américo. do poeta carnaibano Zé Dantas, parceiro de
Como não existiam métodos de instrumen- Luiz Gonzaga. Fiquei impressionado com a
tos de sopro, éramos obrigados a praticar dia- estrutura da escola, com professores de acor-
riamente esse estilo, que, junto com o frevo e deom, sopros, violão, percussão, piano, com
o forró, exige muito do instrumentista! uma banda filarmônica e uma quantidade
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Marcel Fracassi 113

surpreendente de instrumentos sendo usa- com os alunos ocorreu com facilidade, pelo
dos por crianças, jovens e adolescentes. fato de a escola ter um bom número de es-
Assim como com a mistura social, a musi- tudantes, mas esse número triplicou. For-
calidade e o interesse dos pais, o acompa- mamos grupos instrumentais, reforçamos
nhamento etc. a oficina com a participação de músicos
Chamaram-me atenção, ainda, as apre- como Nailor Proveta, Maestro Spok, Paulo
sentações dos artistas e dos grupos tradicio- Moura, Dominguinhos, UH e professores do
nais de cultura popular, coisas difíceis de se Conservatório Pernambucano de Música.
ver em centros culturais como São Paulo. Conseguimos formar uma banda sinfônica
Em conversa com o administrador do mu- com cerca de 50 crianças e adolescentes e
nicípio, que era músico e tocava comigo na gravar um DVD no Teatro de Santa Isabel,
banda, falei da possibilidade de voltar para no Recife, em 2009. Atualmente, temos or-
Carnaíba para coordenar a Escola de Músi- questra sanfônica, zabumbada (grupo de
ca, conviver com as crianças, a cultura e a percussão), banda sinfônica jovem e grupos
comunidade, ensinar e aprender. O contato de câmaras.
114 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O MAESTRO MOACIR SANTOS TAMBÉM ERA Ainda Não Ouviu Nada (Philips, 1964). Não
DO SERTÃO DO PAJEÚ. VOCÊ CHEGOU A TRA- acreditei quando vi sua foto, seus arranjos e
BALHAR COM ELE EM ALGUM MOMENTO? FOI a música “Nanã”.2 Troquei um relógio pelo
INFLUENCIADO PELO TRABALHO DELE? disco e, quando cheguei a São Paulo, no
Cresci escutando as histórias de “Ne- mesmo ano de 1978, comprei o disco The
guin” – era assim que os amigos chamavam Maestro (Blue Note, 1972), no Museu do
Moacir Santos. Meu primeiro contato com Disco. Não trabalhei com ele, mas quando
a música dele ocorreu em 1978, quando ele veio ao Brasil para participar do Festival de
passou pela cidade do Crato/CE. No Car- Inverno de Campos do Jordão, perguntou
naval, fui tocar em uma orquestra daque- justamente ao Nailor Proveta se me conhe-
la cidade e um cara tinha chegado do Rio cia. Passaram meu contato para o Moacir e
de Janeiro vendendo um monte de discos ele me telefonou, foi inacreditável. Tenho
de jazz. O que me chamou atenção foi um muita influência dele na minha música,
disco do Sergio Mendes & Bossa Rio: Você na minha vida.

COMO VOCÊ PERCEBE O FREVO E OUTROS Quando falamos em forró, encontra-


RITMOS REGIONAIS HOJE COM SEUS mos estilos como o baião, o xote, o coco e
ALUNOS? QUAL A RELAÇÃO QUE ELES TÊM? a marchinha (quadrilha). Na Escola de
O frevo é um estilo que surgiu na capital Música, usamos o frevo em várias forma-
de Pernambuco, Recife, já o forró surgiu no ções, grupos instrumentais criados para o
interior, no sertão. O frevo de rua, assim como desenvolvimento dos alunos mostrando as
o choro, exige muito do instrumentista, por ter deficiências técnicas. Eles gostam, princi-
em suas melodias frases com grupos de semi- palmente dos frevos tradicionais. Com o
colcheias, síncopes, intervalos e andamento forró é diferente, porque há um repertório
rápido. O frevo, diferentemente do forró, é to- amplo, existem muitos arranjos para bandas
cado no período carnavalesco. O forró é muito filarmônicas, tem as bandas de pífanos, o
tocado no período junino, mas você o escuta trio pé de serra – e tudo isso acontecendo
durante o ano todo nos programas de rádio. Os durante o ano inteiro. Com relação ao fre-
músicos e alunos esperam um ano para ir ao vo, é preciso descentralizar, tem que haver
Recife tocar no Carnaval, já o forró é tocado incentivo para os músicos do sertão na cria-
o ano todo, faz parte da cultura do sertanejo. ção de orquestras, big bands e festivais.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Marcel Fracassi 115

Marcel Fracassi
É bibliotecário pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP/
SP), com especialização em gestão e políticas culturais pela Universidade de Girona. Atua
como pesquisador do Observatório Itaú Cultural. Dirigiu o documentário Música ao Lado.

Notas

1 <https://www.brasildefato.com.br/2017/05/25/setenta-anos-de-asa-branca-o-hino-
-do-rei-do-baiao>. Acesso em: 13 ago. 2018.

2 <http://rollingstone.uol.com.br/edicao/37/noticia-3999>. Acesso em: 16 ago. 2018.


116 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Meu pai tinha


um caderno com
melodias escritas
com caneta pena,
melodias que
serviam como
metodologia de
desenvolvimento,
muitos choros de
Severino Araújo,
K-ximbinho, Ratinho
e Luiz Américo.”
3. MEMÓRIAS E
RESISTÊNCIAS
DOS SERTÕES

119. VÉIO, UM SER(TÃO):


RELATO SOBRE UMA VIAGEM SERTANEJA
Fernanda Castello Branco

125. NO ENCONTRO DAS ÁGUAS:


MULHERES CAMPONESAS DO SERTÃO DO
PAJEÚ TRANSFORMANDO O SEMIÁRIDO
Juliana Funari

134. O SERTÃO NÃO É LONGE DAQUI:


TRADIÇÃO E MIGRAÇÃO DAS ALMAS
ENTRE CATÓLICOS E EVANGÉLICOS NO
NOVO SEMIÁRIDO
Moacir Carvalho

140. ARCO-ÍRIS SERTANEJO :


A LUZ DA OBRA DE ELOMAR DECOMPOSTA
EM UM ESPECTRO DE CORES
Carlos Costa

144. ENTREVISTA – NIÈDE GUIDON


MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Fernanda Castello Branco 119

VÉIO, UM SER(TÃO):
RELATO SOBRE UMA
VIAGEM SERTANEJA
Fernanda Castello Branco

Relato sobre breve vivência no sertão de Sergipe, durante viagem de pesquisa para
produção de conteúdo para a exposição Véio – a Imaginação da Madeira (que ficou em car-
taz de março a maio de 2018 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). O texto tem como tema
tanto os vários significados que o sertão pode oferecer a uma pessoa que não é de lá como a
relação do artista Véio com o seu local de origem, explicitada no seu trabalho artístico e na
sua forma de encarar a vida.

Como um homem pode paulista, maior cidade do Brasil, entendi que


ser tão palavra? é assim que o apreendo. Essa compreensão se
deu na ida para Sergipe, em 2017, para colher
Como uma palavra pode material a fim de produzir a publicação da
ser tão? exposição Véio – a Imaginação da Madeira

T
(que ficou em cartaz de março a maio de 2018
ão além dos limites do que o dicio- no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). Não era
nário e a língua portuguesa colocam minha primeira vez naquela região, mas cer-
como seus? Dentro da cerca semân- tamente foi o momento preciso em que co-
tica, sertão é “1. região do interior, com po- mecei a compreender a palavra para além da
voação escassa e longe dos núcleos urbanos, palavra. Para além da definição linguística.
onde a pecuária se sobrepõe às atividades A fronteira entre os estados de Alagoas
agrícolas; 2. região de vegetação esparsa e e Sergipe já tinha me deslumbrado alguns
solo arenoso e salitroso, sujeito a secas pe- anos antes. Mas foi ali, naquele novembro
riódicas; 3. terreno coberto de mato, afastado de 2017, que conheci o significado que ser-
da costa; 4. o interior do país”.1 tão tem hoje para mim. Foi quando também
Tão além do próprio significado, o ser- conheci Véio. No seu lugar de origem. Onde
tão é um estado de espírito. Uma sensação. ele habita e cria. E talvez tenha sido mesmo
Um sentimento. Nascida em uma ilha nor- o contato com o homem que tenha me feito
destina e habitando há duas décadas a capital entender melhor a terra.
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Artista sertanejo, nascido Cícero Alves Quando se coloca no mundo como


do Santos, em 1947, Véio carrega em si – e em guardião da memória, Véio vai do propósito à
tudo o que faz – o significado de sertão como prática não apenas em seu trabalho artístico.
o lugar onde se preservam costumes e tradi- Nas dependências de sua casa, em Feira Nova,
ções antigos. Ao contrário do que se pensa perto de Nossa Senhora da Glória (SE), onde
nas grandes cidades, essa preservação – es- nasceu, ele construiu casinhas temáticas que
pecialmente em um mundo globalizado – se abrigam o que chama de Museu do Sertão. Ali
dá a custo de muita luta. E de pessoas como é possível ver a casa da farinha, a casa serta-
ele, que não se cansa de se colocar como o neja, a casa do ferreiro, uma pequena igreja
guardião de uma memória sertaneja prati- com noivos e presépio. Sem ajuda de nenhuma
camente em extinção. “Pego uma coisa que pessoa ou instituição, ele guarda e preserva
existiu há muito tempo e que está abandona- inúmeros objetos que recontam a história do
da e resgato essa história e essa memória. Te- povo sertanejo desde o começo do século XX.
mos muitas coisas no Nordeste que ficaram “Tudo o que guardei fala da história, da vida,
abandonadas e perdidas”, diz ele, em uma de da linguagem, dos costumes e da tradição”, diz.
suas muitas contações de causos.
Suas obras, nascidas de troncos de ma- E esse tudo é mesmo vasto.
deira, recontam histórias e apresentam per-
sonagens da região – que ainda sobrevivem Véio aprecia o muito.
pela tradição oral, mas, segundo o criador, Véio é tão.
convivem com a dificuldade de encontrar
ouvintes. “É difícil, hoje em dia, encontrar A coleção imensa é formada por inúme-
quem conta histórias. E quem ouve também. ros objetos: desde as ferramentas de vários
Ninguém quer saber do passado. Porque está ofícios, passando por brinquedos artesa-
todo mundo moderno, querem falar é da no- nais, até chegar a aparelhos eletrônicos do
vela, é de política, é de quem carrega mala de começo dos anos 2000, como os mais antigos
dinheiro”, garante. modelos de telefones celulares, máquinas de
De palitos de fósforo a grandes tron- escrever, além de maquetes e documentos
cos, Véio cria nas dimensões mais variadas históricos da cidade de Nossa Senhora da
de madeira. Apesar de garantir que prefe- Glória. Entre outras coisas. Muitas coisas.
re as obras minúsculas, fala com orgulho Quem chega ao quilômetro 8 da BR 206, no
de todas as criações e para todas também sítio que está sempre com a porteira aberta,
tem uma história. As peças grandes têm se der sorte, é recebido pelo próprio Véio, que
como característica, além das cores (em faz questão de guiar o visitante nessa viagem
geral, azul, vermelho, branco e verde), a ao passado por meio de tantos objetos. A cada
presença do “V”, inicial do apelido e nome história que conta – e elas se repetem com
artístico, que aparece talhado na madeira uma fidelidade detalhista aos fatos –, o artis-
ou, algumas vezes, já nas formas naturais ta faz questão de explicar que está falando de
da matéria-prima. um tempo realmente muito antigo.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Fernanda Castello Branco 121
122 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Tudo. Muito. Tão. engana-se quem pensa que de lá ele retira


Sertão. material para criar obras. Seu pedaço de
mata foi comprado também para preservar.
E como uma palavra “Isto aqui foi um investimento que
pode ser tão? eu fiz, com retorno cultural, mas não com
retorno financeiro. Tem muita gente que
Como um homem pode gosta de caçar à noite, mas aqui não entra.
ser tão palavra? Quem é que vai entrar de noite aqui, no
escuro? Todos os dias eu estou aqui. Aqui
Nesse amontoado de coisas colecio- eu venho ver se alguém mexeu, olhar uma
nadas por Véio, assim como no imenso árvore, olhar uma coisa... se aconteceu al-
mundo que é o seu acervo, com cerca de guma coisa diferente. Ou eu venho só para
17 mil obras (cuja venda é vetada, por uma curtir mesmo”, conta.
decisão do artista), o sertão vive e sobre- Sentado no centro da mata, sob a
vive. Entrar nessas pequeninas casas que sombra das árvores, Véio gosta de falar
abrigam tantas peças, especialmente ou- do que mais sabe. Das coisas que via na
vindo a sua narrativa para cada uma delas, infância, das coisas que ainda consegue
é se conectar com a terra tanto quanto pi- observar como preservadas. Ali, onde só
sar o chão ou espiar o luar; aquele ao qual, se ouve canto de alguns pássaros, ele se
segundo Luiz Gonzaga, não existe igual. transfigura no próprio sertão. Ensimes-
Tanta informação e eu sentia muita mado, quieto, parece falar pouco, mas, de
necessidade de guardar isso em algum lu- repente, começa a contar inúmeras his-
gar. Um caderninho de anotações estava tórias. Mais que um sertanejo, é o sertão.
sempre a postos e, vez por outra, também Ensimesmado e cheio de significados. “Até
recorria ao gravador de voz do celular. Ain- hoje sou uma pessoa que, se me contam
da lá, já tinha entendido: registrar era bom, um segredo, não conto a ninguém. Não tem
até pela natureza do trabalho, mas o sertão quem me arranque um segredo. Tenho essa
era (e é) dentro. O sertão é dentro e, uma forma de pensamento e de vida. E gosto de
vez apreendido, ele permanece. estar sozinho na mata. Muita gente acha
que é loucura”, explica.
A mata Podem achar que é loucura, mas Véio
Além de toda a imensidão do sertão de não dá a mínima importância. Podem achar
Véio, ainda há a mata. Localizado perto da que é loucura, mas Véio segue ritualístico
sua casa, no povoado de Umbuzeiro, muni- na sua missão de manter viva a memória
cípio de Feira Nova, esse pedaço de chão foi da sua região e do seu povo. Como escreveu
comprado por ele e serve sobretudo como Euclides da Cunha, “o sertanejo é, antes de
um refúgio. A natureza é sua “parceira”, tudo, um forte”2 e “a natureza toda protege
como ele faz questão de ressaltar, mas o sertanejo”.3
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Fernanda Castello Branco 123

Fernanda Castello Branco


Nasceu em São Luís (MA), mora em São Paulo desde 1999, é jornalista e trabalha
como editora de conteúdo no Itaú Cultural. Esteve à frente da edição de conteúdo de
diversas publicações do instituto, como da Ocupação Conceição Evaristo e da exposição
Véio – a Imaginação da Madeira, o que lhe rendeu a relatada viagem ao sertão de Sergipe.

Notas

1 Dicionário Michaelis.

2 Trecho retirado de Os Sertões, de Euclides da Cunha.

3 Ibidem.
124 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Juliana Funari 125

NO ENCONTRO DAS ÁGUAS:


MULHERES CAMPONESAS DO SERTÃO DO PAJEÚ
TRANSFORMANDO O SEMIÁRIDO
Juliana Funari

Na problemática sociopolítica da água no semiárido, as mulheres camponesas do Sertão


do Pajeú constroem resistências a partir de outra racionalidade, desenvolvem conhecimentos e
práticas de valorização da água como bem comum. Na direção do direito à água com igualdade
de gênero, abordamos seu fortalecimento político a partir da auto-organização, em uma cons-
trução feminista, ecológica e popular, que contribui para a gestão participativa e equitativa
desse elemento vital para uma convivência emancipatória com o semiárido.

T
emos como ponto de partida as política (LEFF, 2006; PORTO-GONÇAL-
relações históricas das mulheres VES, 2008), percebemos que as múltiplas
camponesas do Sertão do Pajeú – formas de gestão da água se dão a partir
um território do semiárido pernambucano1 dos modos de vida, das cosmovisões e das
– com a água. Sertanejas, catingueiras, tra- diferentes perspectivas dos sujeitos ati-
balhadoras rurais, agricultoras, indígenas, vamente transformadores da natureza. O
negras – que, diante das injustiças e opres- acesso e a gestão das águas estão atrelados
sões que permeiam suas vidas, (re)existem, às condições de gênero, classe, etnia e raça,
semeiam e colhem as águas das veias da assim como aos conflitos socioambientais
terra, raízes e nuvens. Mulheres que há ge- resultantes das relações de poder estabele-
rações lutam cotidianamente pelo acesso cidas no território, de forma conectada ao
à água para suas famílias, que enfrentam contexto global capitalista, no qual existe
barreiras materiais e simbólicas para o re- um processo intenso de mercantilização
conhecimento de seu trabalho e que, mesmo da natureza.
nas adversidades, afirmam gostar de con- No semiárido brasileiro, as estiagens
viver com a natureza do sertão, com a qual prolongadas, ou as chamadas grandes se-
profundamente se identificam. cas, são um elemento central na questão
Por meio das lentes do ecofeminismo da água. Características do clima da região
construtivista (PULEO, 2011) e da ecologia obedecem a uma lógica natural e cíclica,
126 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

podendo chegar a durar seis anos consecuti- empregavam os homens camponeses atin-
vos. Entretanto, a estrutura da problemática gidos pelas estiagens na construção de
da água no semiárido é sociopolítica, pois se estradas e em obras hídricas. Na prática,
funda não apenas em aspectos ambientais, essas obras beneficiavam as elites locais e
mas sobretudo na sua integração em um se estabeleciam sob péssimas condições de
contexto histórico de dominação e de in- trabalho e baixos salários (MEDEIROS FI-
justiças socioambientais2 (FUNARI, 2016). LHO E SOUZA, 1988). No Sertão do Pajeú,
O problema da “seca” é tão antigo esses fatos levaram os trabalhadores rurais
quanto a colonização, estruturando-se des- a se organizarem contra a chamada “emer-
de o século XVIII na concentra- gência do patrão” na grande
ção de terra e água nas mãos de Produziam-se, como seca de 1979-1984.
uma restrita elite agrária e na uma construção Para compreendermos
ausência de políticas públi- social, os cenários os desafios das mulheres é
onde as mulheres
cas adequadas à convivência preciso considerar que tudo
caminhavam
dos(as) sertanejos(as) com a isso ocorre dentro do sistema
quilômetros com
natureza (ANDRADE, 1973). latas na cabeça para patriarcal e da decorrente
As estiagens atingiam intensa- acessar fontes de divisão sexual do trabalho,4
mente a produção camponesa, água voltadas para segundo a qual as mulheres
constituída de sistemas de se- usos vitais, como são responsabilizadas pelos
queiro3 – dependentes das chu- beber e cozinhar. trabalhos reprodutivos, pela
vas do inverno. Produziam-se, preparação de alimentos,
como uma construção social, os cenários pelos cuidados com a saúde da família e
onde as mulheres caminhavam quilômetros pelo abastecimento de água e lenha. Pre-
com latas na cabeça para acessar fontes de cisam garantir que tais insumos cheguem
água voltadas para usos vitais, como be- aos membros da casa mesmo durante as
ber e cozinhar. estiagens – quando os recursos se tornam
As(os) camponesas(es) desenvolveram mais escassos –, o que suscita um grande
estratégias de convivência com o semiárido peso nas vidas das sertanejas. As mulheres
como forma de resistência. Buscavam cons- percebem e respondem de forma muito par-
truir sociedades autossustentáveis e adap- ticular às mudanças no acesso aos meios
tadas aos sertões. Exemplos históricos são de sobrevivência, sendo frequentemente as
o Arraial de Canudos, no século XIX, e a fa- primeiras a reagirem contra a escassez, a
zenda Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, privatização e a deterioração da natureza
no início do século XX (MARTINS, 1990). (SHIVA, 2006).
De 1950 a 1980, a ação do Estado se li- As camponesas participantes de nossa
mitou ao combate à seca, resumindo-se a pesquisa5 vivenciaram na pele essas dificul-
frentes de emergência, abastecimento das dades. Uma das agricultoras entrevistadas
populações com carros-pipa e distribuição conta sobre as mudanças e permanências
de cestas básicas. As frentes de emergência entre a grande seca de 1960 e a de 1980:
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Juliana Funari 127

Tinha aqueles períodos de seca, meu Plano de Emergência, enviado ao governo,


pai saía para trabalhar nas emergências, lá a jornais e à OAB, em 1983.
no São Serafim, que hoje é Calumbi, ia fazer Quando o governo permitiu o alista-
estradas. De 15 em 15 dias, ele vinha trazer mento das mulheres, estava socialmente
aquele pouco de dinheiro pra gente fazer estabelecido que seria para realização de
as compras. A emergência era por causa da “trabalhos de mulher”, como cozinhar. Elas
seca, davam aquele emprego pra consertar queriam mais. Indo além das margens do
estrada, bater tijolos. Eu mesma bati tijolo, patriarcado, as mulheres do Sertão do Pajeú
o tijolo dessa cacimba comunitária eu mes- conquistaram seu espaço na construção de
ma ajudei a fazer, era comunitária a cacim- pequenas obras hídricas comunitárias.
ba. Nisso já estava um tempo melhorzinho,
quando eu bati tijolo, mas quando meu pai Elas queriam trabalhar diretamente
trabalhava no São Serafim... Minha mãe nas obras. Pressionaram e conseguiram.
com os filhos pequenos, eu era pequena e Os homens não acreditavam que elas eram
ajudava com os meninos. Minha mãe arran- capazes de fazer um barreiro. As mulheres
cava os balaios de mandioca, porque a man- deram a resposta: começaram a fazer bar-
dioca é uma raiz resistente, mesmo na seca reiros igual aos homens e até melhor (AL-
ela está lá, acudiu muito as necessidades. E MEIDA, 1995, p. 117).
o guandu, que a minha mãe nunca deixava
de plantar. Ela catava aquele guanduzinho A luta pela água permeia a aproxi-
verde, ralava mandioca no ralo, fazia beiju. mação das mulheres do Sertão do Pajeú e
Minha mãe foi toda vida batalhadora, ela torna-se um importante elemento para im-
organizou e comprou uma vaca que estava pulsionar sua auto-organização política. A
esperando bezerro. Dessa vaca era o sus- participação das mulheres nas frentes de
tento da casa. Pai saía pra trabalhar e nós emergência, na grande seca de 1980, foi fun-
pequenos ficava, minha mãe ia pra casa de damental para a mobilização de lideranças
farinha, arrancava o balaio de mandioca, comunitárias e a construção de uma cons-
botava na cabeça e ia lá fazer (agricultora, ciência coletiva. Em 1984, foram criadas
município de Santa Cruz da Baixa Verde, as condições para o primeiro encontro do
Sertão do Pajeú). Movimento de Mulheres Trabalhadoras
Rurais do Sertão Central (MMTR-SC) 7
A partir do mote da geração de renda (JALIL, 2014).
e superação da fome, dentro do movimento Na estiagem de 1993, elas reivindica-
sindical dominado por homens, Vanete Al- ram o alistamento nas frentes de emergência
meida6 – assessora da Federação dos Tra- e fizeram exigências para o reconhecimento
balhadores na Agricultura do Estado de de seus direitos nos próprios sindicatos. No
Pernambuco na época – conseguiu apoio mesmo ano, participaram do primeiro acam-
dos sindicalistas e elaborou com outras mu- pamento na Superintendência do Desen-
lheres o documento Mulheres Excluídas do volvimento do Nordeste (Sudene), no qual
128 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

cerca de mil trabalhadores e trabalhadoras Em 2002, o MMTR-SC11 iniciou uma


se instalaram na sede daquela autarquia campanha para recuperação do Riacho
para pressionar o governo. Olho d’Água, inspirando importantes ações,
Baptista e Campos (2013) apontam como a Caravana em Defesa do Rio Pajeú,
que, nas décadas de 1990 e 2000, a socieda- que ocorreu pela primeira vez em 2004 e
de civil organizada influen- até hoje é um potente pro-
ciou fortemente para que o As mulheres cesso coletivo. 12 O objetivo
semiárido se tornasse uma desenvolveram uma é fortalecer a articulação da
pauta política permanente, relação de cuidado com a sociedade civil para reativar
atrelando esse fato àquelas água, por elas percebida o Comitê da Bacia Hidrográ-
ações históricas de resis- como uma condicionante fica do Rio Pajeú; contribuin-
tência camponesa e, mais para a reprodução da do para mudanças culturais
recentemente, à articulação vida e o bem viver de a partir de ações coletivas de
suas famílias.
social para a convivência educação ambiental e fun-
com o semiárido baseada cionando como uma meto-
na valorização de alternativas locais. Essa dologia participativa de monitoramento e
mobilização culminaria na criação da Ar- incidência política sobre as condições so-
ticulação do Semiárido Brasileiro (ASA)8 cioambientais das águas da bacia.
em 1999. Nas últimas duas décadas, as ações das
Nesse novo contexto, que influenciou mulheres vêm sendo potencializadas por
significativamente o Pajeú, as lutas e os políticas públicas inéditas na região – dras-
olhares das mulheres sobre a água se inte- ticamente reduzidas pelo governo ilegítimo
gram e se transformam, havendo um forta- de Michel Temer. As políticas de Assistência
lecimento da água enquanto sua bandeira Técnica e Extensão Rural – Ater Mulheres13 e
de luta na perspectiva da agroecologia e da Ater Agroecologia14 – favoreceram suas prá-
convivência com o semiárido. ticas ecológicas com a água. Por sua vez, os
As mulheres camponesas atuam de programas da ASA15 disseminaram o acesso
forma ativa para a conservação das águas a tecnologias sociais, como as cisternas para
por meio de práticas ecológicas de mane- armazenamento de água da chuva, por meio
jo da natureza, e também de suas práticas de amplos processos de controle social nas
políticas. Auto-organizadas no MMTR-SC, chamadas comissões municipais da ASA.
em grupos comunitários, na Rede de Mu- Para além dos percalços e da necessi-
lheres Produtoras do Pajeú,9 inclusive com dade permanente de incidência dentro de
apoio da ONG feminista Casa da Mulher ambientes políticos permeados pela cultura
do Nordeste,10 dedicam-se a ações volta- machista, as mulheres e suas organizações
das para a recuperação do Rio Pajeú e seus têm construído práticas que rompem pa-
riachos; para mobilizações e formações em drões e preconceitos, bem como contribuem
torno das tecnologias sociais de água; e para para a apropriação das tecnologias sociais
a Caravana em Defesa do Rio Pajeú. pelas mulheres.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Juliana Funari 129

A gente não era da ASA ainda, mas em Como elemento da natureza próximo
2004 a gente se desafiou. Fomos a primeira das mulheres e direito a ser conquistado,
organização no Nordeste a fazer um curso a água conecta as camponesas no Sertão
de formação para mulheres pedreiras cis- do Pajeú. A partir de uma relação históri-
terneiras. Porque esse campo da constru- ca com a água, elas trazem outros olhares,
ção civil é dominado pelos homens, e havia conhecimentos e práticas para a constru-
algumas mulheres que tinham interesse ção de uma convivência com o semiárido
em aprender. Foi fantástico, houve muitas emancipatória para as mulheres e, de fato,
críticas dos homens. Elas construíram as transformadora da sociedade.
cisternas. [...] hoje a ASA apoia totalmente, Por fim, considerando que não há
em muitos estados existem muitas mulhe- questão ecológica que não seja uma ques-
res cisterneiras (coordenadora da Casa da tão humana, os movimentos e organizações
Mulher do Nordeste, no Sertão do Pajeú). de mulheres camponesas constituem um
campo político socioambientalista, femi-
Houve também uma relativa redução nista e popular, contribuindo para a ges-
do tempo e dos esforços gastos na realização tão participativa e equitativa da natureza
dos serviços de casa a partir do armazena- em direção ao direito à água com igual-
mento e da gestão da água acarretados pelas dade de gênero.
tecnologias sociais, porém, a divisão sexual
do trabalho continua afastando-as dos espa-
ços políticos, existindo barreiras materiais
e simbólicas mais profundas que precisam
ser quebradas.
Em contraste à lógica da “indústria da
seca” que ainda permeia as relações com
a água no território – desde grandes obras
hídricas caríssimas e ineficientes até venda
e desvio de água, uso da água como moeda Juliana Funari
política –, as mulheres desenvolveram uma É gestora ambiental pela Universidade de
relação de cuidado com a água, por elas São Paulo (USP) e mestra em desenvolvimento
percebida como uma condicionante para a e meio ambiente pela Universidade Federal de
reprodução da vida e o bem viver de suas Pernambuco (UFPE). É membro do Núcleo de
famílias. Uma relação radical no sentido Educação, Pesquisa e Práticas em Agroecologia
de ser ligada à raiz da vida e contra a mer- e Geografia (Neppag-Ayni) da UFPE e do Dadá
cantilização da natureza, que se baseia na – Grupo de Pesquisa em Relações de Gênero,
perspectiva da água enquanto um bem co- Sexualidade e Saúde, da Unidade Acadêmica de
mum – público e de gestão coletiva –, uma Serra Talhada, da Universidade Federal Rural de
das bases do paradigma da convivência com Pernambuco (UFRPE). Integra a Rede Feminismo
o semiárido. e Agroecologia do Nordeste.
130 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Referências

AB’SÁBER, A. N. Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida. Estudos


Avançados, v. 13, n. 16, 1999, p. 5-59.

ALMEIDA. V. Ser mulher num mundo de homens: Vanete Almeida entrevistada por
Cornélia Parisius. Serra Talhada: Sactes/DED – MMTR/NE, 1995.

ANDRADE, M. C. de. A terra e o homem no Nordeste. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973.

BAPTISTA, N. de Q. e CAMPOS, C. H. Formação, organização e mobilização social no


semiárido brasileiro. In: CONTI, I. L. e SCHROEDER, E. O. (Org.). Convivência com
o semiárido brasileiro: autonomia e protagonismo social. Brasília: Iabs, 2013.

FUNARI, J. N. Um sertão de águas: mulheres camponesas e a reapropriação social


da natureza no Pajeú. Tese de mestrado em desenvolvimento e meio ambiente.
Pernambuco: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), 2016.

JALIL, L. M. As flores e os frutos da luta – o significado da organização e da


participação política para as mulheres trabalhadoras rurais. Tese de doutorado
em ciências sociais. Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), 2013.

KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES,


M. J. et al. Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

LEFF, H. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2006.

MARTINS, J. de S. Os camponeses e a política no Brasil. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1990.

MEDEIROS FILHO, J.; SOUZA, I. A seca do Nordeste: um falso problema. Petrópolis:


Vozes, 1988.

PORTO-GONÇALVES, C. W. A luta pela apropriação e reapropriação social da água na


América Latina. Oceania, v. 7, n. 4.570, 2008, p. 2-510.

PULEO, A. H. Ecofeminismo para outro mundo possível. Feminismos. 1. ed. Madrid, 2011.

SHIVA, V. Guerras por água: privatização, poluição e lucro. São Paulo: Radical Livros,
2006.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Juliana Funari 131

Notas

1 A delimitação que adotamos nesta análise é a do Programa Territórios da


Cidadania, realizado em 2008 pelo Governo Federal como parte de uma nova
abordagem territorial de desenvolvimento rural.

2 Na ecologia política, o conceito de injustiça ambiental está atrelado às


desigualdades no acesso e no controle dos recursos naturais, bem como na
distribuição dos ônus ou impactos socioambientais gerados pelo modelo de
desenvolvimento. Nessa perspectiva, o que define o poder e as condições dos
sujeitos envolvidos nos conflitos socioambientais são as condicionantes de classe,
raça, etnia e gênero. Para maior aprofundamento, ver o livro Conflitos ambientais
no Brasil, de Henri Acselrad.

3 A produção de sequeiro é característica dos sistemas produtivos camponeses


no semiárido, não possui irrigação e consiste no desenvolvimento dos cultivos
por meio dos ciclos de águas das chuvas, sendo as sementes estrategicamente
plantadas no período do esperado inverno.

4 A divisão sexual do trabalho é sedimentada em uma específica separação – o


trabalho masculino é diferente do trabalho feminino – e hierarquização – o
trabalho masculino tem um valor superior ao trabalho feminino. Essa forma de
organização do trabalho, arraigada no sistema patriarcal, tem responsabilizado
as mulheres pelos trabalhos reprodutivos, socialmente desvalorizados e
invisibilizados. Ao mesmo tempo que as subjuga aos espaços privados e
domésticos, as exclui dos espaços públicos e políticos (KERGOAT, 1996).

5 Este artigo foi construído a partir de um recorte de nossa pesquisa de


mestrado, Um sertão de águas: mulheres camponesas e a reapropriação
social da natureza no Pajeú, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal de
Pernambuco, em 2016. Metodologicamente, partimos de uma aproximação com
a realidade de sete mulheres camponesas do território por meio de entrevistas
semiestruturadas e oficinas participativas de mapeamento, ambas voltadas para
a identificação das relações de gênero nos processos de gestão da água nas
propriedades, nas comunidades rurais e nos espaços políticos do território.

6 Maria Vanete Almeida (1943-2012), mulher sertaneja, feminista e uma das


idealizadoras do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste e
Sertão Central. Na década de 1980 era uma das poucas mulheres no movimento
sindical, lutando pelo reconhecimento das mulheres como trabalhadoras rurais e
por seus direitos. Inspirou o livro Ser mulher num mundo de homens, de Cornélia
Parisius. Presidiu o Centro de Educação Comunitária Rural (Cecor) em Serra
Talhada (PE), integrou o Conselho Nacional de Políticas para Mulheres de 1996
132 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

a 2003 e, em 2005, foi indicada pela ONG suíça Mulheres pela Paz ao Redor do
Mundo ao Prêmio Nobel. A partir de 1996, tornou-se coordenadora internacional
da Rede de Mulheres Rurais da América Latina e do Caribe, que ajudou a fundar.

7 O território do Sertão do Pajeú abrange dois polos sindicais, o Polo Sindical do


Sertão do Pajeú e o Polo Sindical do Sertão Central. O Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do território nasce da articulação com o Polo Sindical do
Sertão Central.

8 A Articulação do Semiárido Brasileiro é uma rede de organizações da sociedade


civil de distintas naturezas (sindicatos rurais, associações de agricultores e
agricultoras, cooperativas, ONGs, Oscip etc.), hoje abrangendo mais de 3 mil
organizações. Inicialmente, foi constituída por 61 organizações da sociedade
civil, as quais lançaram o documento Declaração do Semiárido: Propostas da
Articulação no Semiárido Brasileiro para a Convivência com o Semiárido e
Combate à Desertificação, uma proposta de ruptura com a filosofia e as ações de
combate à seca. A declaração apontava a necessidade de medidas estruturantes
para o desenvolvimento da região, pleiteava medidas políticas permanentes e
fomento de práticas de convivência com o semiárido. Hoje, a ASA tem um papel
central na incidência política, na formulação e na execução de políticas públicas
baseadas na perspectiva da convivência com o semiárido e a agroecologia. Para
mais informações, ver o site da articulação: <http://www.asabrasil.org.br/>.

9 A Rede de Mulheres Produtoras do Pajeú é composta de mais de 30 grupos


comunitários de mulheres produtoras e artesãs, articulando mais de 500 mulheres
camponesas. Nasceu em 2006, a partir de um projeto idealizado pela ONG Casa
da Mulher do Nordeste integrado à metodologia da Rede de Mulheres Produtoras
do Nordeste. Este era voltado para o fortalecimento da auto-organização das
mulheres para conquista de sua autonomia política e econômica. Hoje se articula
como uma organização autônoma.

10 A Casa da Mulher do Nordeste é uma ONG feminista criada em 1980 em Recife.


Sua missão é o empoderamento econômico e político das mulheres a partir
da perspectiva feminista. Desenvolve no território do Pajeú, desde 2003, o
Programa Mulher e Vida Rural, que visa fortalecer a capacidade de produção e
de participação política das mulheres em espaços rurais por meio da construção
de conhecimentos agroecológicos e da auto-organização em rede. Site:
<www.casadamulherdonordeste.org.br>.

11 Estiveram envolvidos na recuperação do Riacho Olho d’Água o Sindicato dos


Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santa Cruz da Baixa Verde e a ONG
Centro de Educação Comunitária Rural (Cecor).
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Juliana Funari 133

12 Como parte da metodologia da pesquisa, participamos da Caravana em Defesa


do Rio Pajeú em 2014, a qual foi organizada no território por organizações não
governamentais, movimentos sociais, sindicatos rurais e uma universidade,
atuantes na região em defesa da agricultura familiar, do meio ambiente e de
justiça socioambiental. Participaram 56 pessoas, entre equipe técnica das ONGs,
pesquisadores(as), sindicalistas e agricultores(as) oriundos(as) dos 28 municípios
que compõem a bacia hidrográfica do Rio Pajeú.

13 A partir de 2003, o movimento de mulheres conquista uma nova metodologia


e política dentro da Assistência Técnica e Extensão Rural, a denominada Ater
Mulheres. Essa política pública é voltada para implementação de ações de
assessoria técnica com mulheres rurais e agricultoras, no desenvolvimento de
estratégias que fortaleçam sua autonomia produtiva, economia e política. Ver
livro Ater Mulheres – autonomia e luta: experiências de metodologias feministas,
do Ministério de Desenvolvimento Agrário, 2017.

14 A Ater Agroecologia é uma conquista do movimento agroecológico do Brasil


visando promover a agroecologia enquanto base para o desenvolvimento rural.
Dentro da metodologia dessa política, as mulheres do campo agroecológico
conseguiram garantir que pelo menos 30% dos recursos fossem destinados a
atividades específicas com as mulheres rurais. Além disso, o público beneficiário
deveria ser constituído por 50% de mulheres rurais.

15 O Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) se consolidou como um programa


voltado para a descentralização e democratização da água no governo Lula,
em 2003. É voltado para a construção de cisternas de placas de primeira água,
ou seja, água destinada ao consumo humano doméstico, ao redor da casa das
famílias. A cisterna e o sistema de captação são construídos pela própria família
e comunidade, havendo a proposta de apropriação da tecnologia social pelos
sujeitos envolvidos. O programa prevê ainda formações sobre Gerenciamento
de Recursos Hídricos (GRH), que foca o acesso à água enquanto direito e para
a convivência com o semiárido. O Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2),
iniciado em 2007, é voltado para a construção de tecnologias sociais de segunda
água, ou armazenamento de água para a produção agrícola e criação de
pequenos animais, integrando essas com o fomento à produção agroecológica.
O programa envolve formações para a convivência com o semiárido por meio de
capacitações em Gerenciamento da Água para Produção de Alimentos (Gapa) e
em Sistema Simplificado de Manejo da Água (SSMA).
134 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O SERTÃO NÃO É LONGE DAQUI:


TRADIÇÃO E MIGRAÇÃO DAS ALMAS ENTRE
CATÓLICOS E EVANGÉLICOS NO NOVO SEMIÁRIDO
Moacir Carvalho

O sertão tem sido considerado um lugar espiritualmente denso, de um catolicismo sin-


crético, messiânico e festivo. Todavia, tal visão, embora não totalmente falsa, tem bloqueado
leituras alternativas da espiritualidade sertaneja em tempos de mercado. Procuro explorar
certas dinâmicas relativas à concorrência entre católicos e evangélicos, concentrando-me no
quanto demandas por formas expressivas voltadas para a autorrealização têm crescido. Com
isso, redirecionam-se os padrões de oferta de serviços espirituais também nessa região.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Moacir Carvalho 135

N
o ano de 1962, estreia filme sobre o ao artificialismo autointeressado da cúpula
tema religioso que faria história no ilustrada e citadina. Evidentemente, qualquer
cinema brasileiro. Nele, não só se- semelhança com a Teologia da Libertação não
riam relacionados litoral e sertão na composi- será mera coincidência.
ção dos conflitos que dariam sentido à trama, Todavia, mesmo que o cosmos religioso
mas também seriam explorados os dilemas oferecido em O Pagador de Promessas seja
entre uma determinada religiosidade popular extremamente rico, capaz de promover a vi-
e os desiguais processos e velocidades moder- sibilidade de uma diversidade de expressões
nizadoras nacionais. Trata-se de O Pagador de espirituais, nele não vemos “crentes”. Como
Promessas, de Anselmo Duarte, filme baseado se, no esforço integrativo do popular numa
na peça de Dias Gomes. Somos aí apresenta- narrativa em que estava em jogo o futuro da
dos a Zé do Burro, personagem principal que, nação, tivesse sido difícil integrar o protes-
com sua pureza e moralidade inflexíveis, por- tantismo como cultura contra o pano de fun-
taria um tipo de grandeza cativante, síntese do da profusão católica e afro-brasileira que
dos ideais de um popular sobrevivente em um então se estetizava em meios profanos com
Brasil profundo. seus ritos, êxtases e cerimoniais festivos. Se
Na tentativa de cumprir promessa feita o catolicismo rústico (QUEIROZ, 1968) era
em terreiro visando à cura de Nicolau, seu a nossa história, como os protestantes pode-
burro, o protagonista tensiona-se em longa riam tomar parte nela?
refrega com um pároco de Salvador. Curado Fato é que eles tomaram, começando a
o burro, Zé do Burro carregaria imensa cruz chegar no século XIX, após a abertura dos por-
ao interior da igreja de Santa Bárbara e – fator tos em 1808 e a Constituição de 1824 – sobre-
geralmente esquecido – dividiria suas terras tudo anglicanos e luteranos, que se dirigiam
entre os mais pobres. Chegando, porém, às preferencialmente às regiões Sul e Sudeste.
portas da igreja, o pároco lhe nega entrada! Todavia, o ritmo da protestantização seguiria
Começa o verdadeiro padecimento de Zé do lentamente, dependendo da entrada de imi-
Burro: não o trajeto entre sertão e litoral, mas grantes entre fins do século XIX e início do
o que lhe aguarda na cidade. XX. Isso mudaria com o protestantismo de
O sertão parideiro de fanatismos vai missão e com os pentecostais. Estes últimos
desaparecer para dar lugar ao motor urba- vieram com a Congregação Cristã em 1910 e
no da história. E, com o sertão feito lonjura a Assembleia de Deus em 1911. Ambas carac-
esquecida em meio a nossa aventura civili- terizadas por rigor moral e aversão ao mundo.
zatória, o urbano se torna o campo das ten- É a chamada primeira onda pentecostal asso-
sões constituintes do agora. É aí que Zé do ciada à glossolalia – o falar em línguas.
Burro deverá converter o mito do sertanejo, Principais responsáveis pelo crescimen-
politizando-o em história. Enfim, inverte-se to evangélico no país, nas décadas de 1950 e
a relação entre catolicismo oficial e popular, 1960 adviria sua segunda onda, com Evange-
fazendo desse catolicismo rural, festivo e ile- lho Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus
trado expressão do autêntico em oposição é Amor. A partir daí, o fenômeno pentecostal
136 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

chamaria mais atenção, ainda que perma- Nesse contexto, não só católicos e afro-
necesse marginal e, eventualmente, fosse -brasileiros se mostrariam especialmente
considerado mero modismo ou fanatismo. alarmados. Também setores leigos da socieda-
Enfim, começariam a ser acusados pelo en- de temeram que o avanço do segmento em sua
fraquecimento católico dos anos 1970 e 1980, preferencial afinidade ao conservadorismo po-
ao mesmo tempo que seu avanço seria tomado lítico ameaçasse a laicidade estatal. No limite,
como expressão de desenraizamento rural, levando-nos a um tipo de teocracia evangélica.
migrações, consumismo, proletarização, ur- Leitura essa que ganha força diante do impres-
banização e modernização. sionante crescimento numérico do segmento,
Na década de 1970, enquanto as CEBs1 que, segundo pesquisa do Datafolha de 2016,
católicas avançariam sertão adentro apos- estaria alcançando 30%. Também, de acordo
tando numa solução coletivista à tensão entre com o Pew Research Center, nos anos 2030 o
este e o outro mundo, os chamados neopen- Brasil já não será majoritariamente católico.
tecostais pareceram preferir, inclusive por E não se trata apenas de números, mas
logística, as cidades. Nesse caso, oferecendo de uma inovação cultural capaz de alterar o
modelo menos politizado, mas que se mostra- campo religioso. Aliás, é possível que esteja-
ria bem adaptável. Contrapondo-se à rejeição mos presenciando os desdobramentos não
ao mundo dos seus “ancestrais” pentecostais, planejados das inovações neopentecostali-
tal modelo proporcionaria um formato cultu- zantes ocorridas nos anos 1970 e 1990, algo
ral espetacular, mesclando música, dança e que excederia as expectativas das primeiras
esfuziantes exorcismos. Universal do Reino lideranças. Por exemplo, se nos primeiros
de Deus (IURD), Renascer, Internacional da anos do fenômeno o doador preferencial de
Graça de Deus, entre outras, são exemplos “fiéis” foi o catolicismo urbano, grande parte
desse formato. da mobilidade religiosa atual se daria no inte-
Tal corrente, empunhando um proseli- rior do próprio espectro evangélico. Sendo que
tismo mais agressivo, se mostraria particular- esse fenômeno estaria sendo acompanhado
mente habilidosa em atrair para si polêmicas. pelo crescimento dos confessionalmente não
Bastando rápida pesquisa nas matérias jor- determinados. Ao mesmo tempo, se os neo-
nalísticas a partir dos anos 1990, encontram- pentecostais foram habilidosos em incorpo-
-se desde chutes na santa até acusações de rar festivamente rituais e símbolos católicos,
exploração monetária dos fiéis, lavagem de também os católicos incorporariam recursos
dinheiro e associação ao tráfico, com prisões pentecostalizantes via Renovação Carismáti-
de pastores, casos de insulto e mesmo agres- ca. Tudo muito complexo.
são. Além, é claro, das controversas aproxi- Não se pode esquecer, o catolicismo é
mações entre evangélicos, meios massivos de nosso cristianismo mais velho. Contando com
comunicação e política – tendo ocorrido, mais recursos e rede de relações globais, tem se per-
recentemente, a eleição de Marcelo Crivella, petuado com sucesso por quase 2 mil anos. E,
figura de peso da IURD, para prefeito do Rio com isso, sendo capaz de até os dias de hoje
de Janeiro pelo PRB. combinar elementos novos com práticas
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Moacir Carvalho 137

EVANGÉLICOS POR REGIÃO % (1940-2010)

1940 1970 1980 1991 2000 2010


BRASIL 2,6 5,16 6,6 9,57 15,4 22,2
Norte 1,2 4,8 8,43 12,16 19,8 28,5
Nordeste 0,73 2,55 3,40 5,54 10,3 16,4
Sudeste 2,30 5,47 7,11 10,71 17,5 24,6
Sul 8,92 8,88 10,17 12,17 15,3 20,2
Centro-Oeste 1,3 5,45 7,8 11,43 18,9 26,8

Fonte: IBGE.

antigas, muitas delas com particular apelo que os patamares de 2010, por região, ha-
lúdico-festivo e já bem consolidadas: roma- viam se multiplicado em relação aos de 1940,
rias, procissões, festas aos santos e devoções chegamos a um quadro bastante distinto.
domésticas. Desde São João a Frei Damião, Agora as regiões Norte (com aumento de 24
passando pelas hierópolis do Juazeiro de Pa- vezes), Nordeste (22 vezes) e Centro-Oeste
dre Cícero, São Francisco do Canindé e Bom (20 vezes) aparecem, respectivamente, como
Jesus da Lapa, ou a encenação da Paixão de aquelas de protestantização mais acelerada,
Cristo, o sertão parece ainda oferecer vitali- seguidas por Sudeste (11 vezes) e Sul, com
dade espiritual impressionante. pouco mais que duas vezes.
E se, por um lado, o catolicismo não tem Assim, se a Região Nordeste é ainda
impedido o avanço dos evangélicos no sertão, a de mais catolicismo – 72,2% em 2010 –, a
é certo que aí os católicos continuem mais re- queda deste aí só ficou atrás da Região Norte.
presentados que a média nacional, com quase Enquanto isso, Pernambuco (32,3%), Bahia
90% das 485 cidades brasileiras com menos de (17,4%) e Maranhão (17,2%) são, respectiva-
3% de evangélicos no sertão. Buscando rever- mente, os mais protestantes. Já a Região Sul,
ter esse quadro é que iniciativas como o Mo- que em 1940 era disparada a mais protestante,
vimento Nacional de Evangelização do Sertão deverá se tornar a mais católica nos próximos
Nordestino têm acontecido. Em sua página, anos. No quadro atual, de fato, o semiárido se
lê-se: “Esforçando-nos para levar o evange- confirma como ainda mais católico (80%) e
lho onde Cristo ainda não é conhecido”. Com menos protestante (12%) que a média nor-
cerca de 23 milhões de habitantes, o sertão destina. Todavia, ultimamente tem seguido
tornara-se fatia do mercado espiritual parti- o ritmo de evangelização da região, ou seja,
cularmente compensadora ao investimento. mais rápido que a média nacional.
A princípio, se focamos índices absolu- Além do mais, entre os anos 1970-2010, o
tos, confirma-se um Nordeste mais católico índice de urbanização no Nordeste passou de
que as demais regiões, com o Piauí dispara- 41,78% para 73,13%. No mesmo período, a taxa
do em primeiro – 85,1%. Por certo. Todavia, nacional se ampliou de 55,98% para 84,36%.
se nos voltamos para a quantidade de vezes Ou seja, não só o Nordeste, com 53 milhões
138 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de habitantes, mas também o sertão já não tempo. Mas esse é o espetáculo que se abre
seriam essencialmente rurais. E, mesmo que aos que vivem da religião, empenhados em
o semiárido ainda possua alguns dos piores garantir casa cheia e motivada. O outro lado
IDHs do país, ele vem se desenvolvendo mais da moeda é que os antigos ideais confessionais
rapidamente que a média brasileira. Talvez espiritualmente monogâmicos estariam per-
estejamos vivendo um processo de integração dendo legitimidade.
no qual determinadas formas de vida estariam O sertão não deverá ser muito diferente.
se propagando mais homogeneamente, ainda Lugar de gente com “Deus” – ou deuses –, mas
que com diferentes velocidades. Os próprios cada vez com “menos igreja”; assim, ofertado-
sentidos de “espiritual”, “povo”, “tradicional” res quaisquer já não poderão contar com uma
e “moderno” estão mudando. representação submissa ou incapaz do serta-
Decerto, o sertão continuará por um bom nejo, se é que já puderam um dia... Não seria
tempo muito católico, sim! Mas resistente à essa incompreensão parte da tragédia que as-
novidade e criatividade religiosas? Dificil- solou Canudos ou, de forma mais discreta, im-
mente. Precisa-se lembrar: a velha espiri- pôs tantos padecimentos a tantos feito Zé do
tualidade popular retratada em O Pagador de Burro? Nesse sentido, a combinação de ofertas
Promessas era tudo, menos resistente à inven- festivas entre Renovação Carismática, velhos
ção. Diante dela, se nossa recepção do protes- catolicismos e neopentecostalismo parece
tantismo ainda no século XIX teria oscilado conferir ocasião celebrativa àqueles desejosos
entre a esperança de modernização e o medo por formas lúdicas de autoexpressão. O prati-
de infecção, em anos recentes têm prevalecido cante de hoje, sobretudo o mais jovem, parece
a maleabilidade e a atratividade das agências; querer experimentar todo acepipe espiritual
generaliza-se a importância de experiências que lhe aprouver nesta vida. Mas, diversidade
de plenitude e mesmo prazer. Sobre seu en- eventualmente marcada por conflitos mais
contro com o Espírito Santo, comunicou-me abertos e mesmo casos de insulto e agressão,
certa vez uma praticante da IURD: deverá tender, espera-se, a resolver suas dife-
renças mediante um sentido celebrativo, de
Sabe quando você se lembra de uma coisa tolerância e consideração às garantias estatais
gostosa, e dá aquela risadinha assim... Você está legais para todos.
ali, meu Deus, eu Te amo, eu Te adoro. Você
só tem vontade de louvar, de agradecer [...] O
Espírito Santo é de paz, é uma intimidade [...]
Então você sente aquela presença mais gostosa.

E, pode-se dizer, durante o atual acirra-


mento concorrencial, o fluxo de praticantes Moacir Carvalho
entre grupos se assemelharia mais a movi- É sociólogo com doutorado pela Universidade
mentos multidirecionais em contínuo, com os de Brasília (UnB). Tem pesquisado os temas da cultu-
concorrentes sofrendo perdas e ganhos a todo ra popular, religião, consumo e economia simbólica.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Moacir Carvalho 139

Referências

ALVES, J.; CAVENAGHI, S.; BARROS, L.; CARVALHO, A. Distribuição espacial da transição
religiosa no Brasil. Tempo Social, v. 29, n. 2, 2017, p. 215-242.

DATAFOLHA. Perfil e opinião dos evangélicos no Brasil, São Paulo, 7 e 8 dez. 2016.

FUSCO, Wilson; MOREIRA, Morvan de Mello. Dinâmica demográfica do Nordeste. Relatório


de Pesquisa. Fundação Joaquim Nabuco, 2015.

LOPES JR.; Orivaldo P. A Conversão ao Protestantismo no Nordeste do Brasil. Lusotopie.


Paris: Karthala, 1999, p. 291-308.

MARIANO, Ricardo. Sociologia do crescimento pentecostal no Brasil: um balanço. Disponível


em: http://oaji.net/articles/2017/6000-1529605659.pdf. Acesso em: 16 dez. 2018.

MARIANO, Ricardo. Mudanças no campo religioso brasileiro no censo 2010. Debates do


NER, Porto Alegre, ano 14, n. 24, jul./dez. 2013, p. 119-137.

MELLO, Adilson da Silva. Cunha: relações religiosas e transformações, tradição e transição


cultural. Tese de doutorado em ciências sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), 2008.

PONTES, E. T. M. Fé e pragmatismo no sertão. Mercator, Fortaleza, v. 13, n. 2, p. 155-168, mai./


ago. 2014, p. 155-168.

QUEIROZ, M. I, Pereira de. Sociologia – o catolicismo rústico no Brasil. Revista do Instituto de


Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 5, 1968, p. 104-123.

SANTOS, Magno. No sertão e na capital, salve Aparecida: peregrinações em Sergipe


no tempo presente. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 28, n. 55, jan./jun. 2015,
p. 169-187.

STEIL, Carlos Alberto; HERRERA, Sonia Reys. Catolicismo e ciências sociais no Brasil:
mudanças de foco e perspectiva num objeto de estudo. Sociologias, Porto Alegre, v.
12, n. 23, jan./abr. 2010, p. 354-393.

Nota

1 As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são grupos inclusivistas ligados à Igreja


Católica que, incentivados pela Teologia da Libertação após o Concílio Vaticano II (1962-
1965), multiplicaram-se no Brasil e na América Latina ao longo dos anos 1970 e 1980.
140 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ARCO-ÍRIS SERTANEJO:
A LUZ DA OBRA DE ELOMAR DECOMPOSTA
EM UM ESPECTRO DE CORES
Carlos Costa

“Todo cantador errante traz no peito uma mazela; na alma a lua brilhante, estrada e som
de cancela.” A frase está em “Desafio”, o último canto da ópera Auto da Catingueira, de Elomar
Figueira Mello (Vitória da Conquista, Bahia, 1937). Recorro à frase como a um prisma, para
o exercício de decompor a luz do artista em suas cores.

A
primeira cor é a da formalidade uma das mais povoadas regiões de terras
apurada dessa frase e dessa obra secas do planeta), situações (histórias de
– nos campos da literatura e da amor e desencontros, morte e vida) e, inclu-
música. Elomar surgiu na cena cultural em sive, um idioma próprio chamado “serta-
1968 e seguiu um caminho particular, em nezo”. O sertão profundo eternizado nesse
que garantiu espaço no segmento mais re- vasto e vivo conjunto, com lua minguante e
finado, manteve diálogo com uma legião fiel som de cancela.
de fãs e nunca cedeu a apelos do mercado. Mais uma cor para a sensibilidade que
Escreveu romances, peças de teatro e cons- faz sua arte universal. Esse cantador erran-
truiu um monumento musical que se divide te é um pouco de Elomar, de mim, dos meus
em duas veredas: o cancioneiro e um con- ídolos; é um pouco de você, se você quiser se
junto de músicas cultas (óperas, antífonas, perder e se achar. Representa um homem que
concertos e sinfonias). Em tudo, reprocessa assume as feridas do peito e segue seu des-
influências diversas e imprime sua verdade. tino. Samurai, monge, beduíno, vagamundo,
Outra cor para o conteúdo – um retrato cangaceiro, águia cruzando os ares. Atraves-
lírico e profundo do universo arquetípico sa tempos, territórios e culturas.
sertanejo, com seus personagens (pessoas O prisma revela mais cores. As cores
simples, que erram pela terra em busca do da obsessão, da solidão e da incompatibili-
destino), paisagens (o semiárido nordestino, dade entre esse artista errante e o mundo. A
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Carlos Costa 141

frase está na canção de uma ópera, territó- povoado da Gameleira, zona rural de Vitó-
rio que Elomar explora há mais de 30 anos, ria da Conquista (BA), que funciona como
mas a maior parte continua inédita. Nos um centro cultural e é onde o músico vive,
shows que realiza, interpreta uma ou outra compõe, cria bodes e, às vezes, se apresenta.
peça, cenas dispersas sempre intercalan- Formado em arquitetura, Elomar fez o
do com músicas do cancioneiro. “Quem vai projeto do edifício do acervo, que é redondo
montar uma ópera sertaneja de um músico como um curral de bodes, com vidros no teto
autodidata recluso no sertão da Bahia?”, e nas laterais para aproveitamento da luz da
questiona há anos. caatinga. Batizou de Arquivos Implacáveis
E assim chegamos à cor da contra- da Casa dos Carneiros.
dição. Elomar move um público que lota Em 2015, integrando a equipe de pes-
todas as suas apresentações. Mas ele não quisa do Itaú Cultural, estive pela primeira
canta o que quer, como quer. Está sempre se vez na Casa dos Carneiros. O acervo estava
equilibrando entre o cancioneiro e o projeto em pleno processo de organização e higie-
da música culta. nização, mais vivo que nunca. Inclusive
porque, durante essa atividade, em que um
Ocupação Elomar grupo de pesquisadores organizava manus-
Em 2015, Elomar foi homenageado no critos, partituras, fotos e outros documen-
programa Ocupação Itaú Cultural (itau- tos, o artista invadia o espaço, geralmente
cultural.org.br/ocupacao/elomar/) – uma sem ser visto, e levava papéis, fitas cassete
das principais atividades do instituto, que e outros objetos para seu quarto, sem dar sa-
consiste em uma série de exposições a par- tisfação a ninguém. Afinal, aquilo tudo era
tir de acervos representativos no conjunto dele e um pouco ele.
da cultura brasileira, com o objetivo de res- Em 2015, eu me apaixonei por Elomar
gatar essa memória no contexto contempo- e mergulhei em sua obra. Com o cancionei-
râneo. A exposição ocorreu na sede do Itaú ro, vivi minha epifania. Vasculhei minhas
Cultural, em São Paulo, e contou com três origens, descobri que parte dos meus an-
concertos no Auditório Ibirapuera. cestrais vieram do sertão. Tornei-me um
Elomar costuma dizer que o tempo or- cavaleiro do mestre Elomar.
dinário, que marca os relógios e os calen- Um dia, na feira em Vitória da Con-
dários, não importa, o que torna memória quista, olhando uma barraca de flores, eu
e contemporaneidade faces da mesma es- e mais uma integrante do grupo, Cristiane
sência, a vida. Zago, resolvemos levar um buquê para Elo-
Em paralelo com o processo de pesqui- mar. Receoso de sua reação, esquivei-me da
sa para a Ocupação, o Banco Itaú apoiou a entrega, deixando para a dama a graça. Logo
digitalização do acervo do artista e a cons- depois, as flores estavam na sala de pesqui-
trução de um arquivo para a guarda do mate- sa, em um jarro, e Cristiane contava que ele,
rial. A obra foi finalizada neste ano, na Casa emocionado ao receber, revelou que era a
dos Carneiros – uma fazenda localizada no primeira vez na vida que ganhava flores.
142 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Jerusa e Juraci a Ocupação e ir embora antes da abertura


O prisma segue gerando cores diversas oficial. Esperamos Elomar para lhe mos-
no arco-íris sertanejo. Elomar é exagero e trar o espaço na expectativa de sua reação.
multiplicidade, ao mesmo tempo que sim- A chegada dele foi mágica, como tudo que
ples e único. Pode passar horas falando sobre o envolve. Educado, sensível, passeou pela
o tempo, os ciganos, as criações; mas pouco mostra, reconheceu-se, agradeceu e foi em-
fala de si mesmo. Para acessá-lo melhor, a bora, deixando suas bênçãos.
equipe que organizou a exposição recorreu
a outras pessoas. A primeira foi a ensaísta e A toada e o rompante
professora Jerusa Pires Ferreira (Feira de Minha maior surpresa, com todo o pro-
Santana, Bahia, 1938), especialista em li- cesso, foi perceber como um dos temas ca-
teratura medieval e de cordel, entre outras ros a Elomar, o aboio, se transformou em um
qualificações, e amiga pessoal de Elomar. elemento de ligação em tudo o que fizemos,
Na casa de Jerusa, ocorreram encon- sem a intenção consciente de ninguém. O
tros para conversar sobre o Bode – alcunha aboio é um canto ancestral usado para guiar
que Elomar carrega desde jovem e diz, sem boiadas, que foi passando dos mouros para
pudor, que vem de sua aversão à água. Ou- os portugueses, para os sertanejos. O va-
vindo músicas, recebendo outros convida- queiro aboiador é um pouco de Pã, flautista
dos sertanejos, como o músico Lirinha (José mágico, dos encantadores de serpentes, dos
Paes de Lira Filho, Arcoverde, Pernambuco, xamãs indígenas, dos sacerdotes africanos;
1976) e a poeta Micheliny Verunschk (Re- dos que fazem da música uma ponte com
cife, Pernambuco, 1972), admiradores do o sagrado e comandam espíritos, animais,
artista, ouvimos histórias do Bode em São a natureza.
Paulo, na Bahia, na Europa e aprendemos Há uma música espetacular do cancio-
sobre o diálogo da tradição medieval com neiro, “Chula no Terreiro”, que narra uma
a sertaneja. sequência de mortes, com uma melodia do-
Outro integrante se juntou ao grupo, o lente em que o violão de Elomar caminha
artista visual Juraci Dórea (Feira de Santa- pelas mazelas que moram em nosso peito.
na, Bahia, 1944), que além de suas histórias No final da canção, um aboio encantado soa
chegou com a missão de munir a equipe do pela Serra da Carantonha, evocada na mú-
projeto de desenhos para ilustrar desde a di- sica e real na paisagem do sertão profundo.
vulgação da exposição até os produtos que Foi nesse lugar que eu vi Elomar cantar
seriam desenvolvidos – site, publicação etc. o aboio encantado a primeira vez. O canto
–, porque Elomar não se deixa fotografar nem gravado na Bahia chegou a São Paulo e foi
filmar. “Imagem não revela obra”, defende. escolhido para ser a paisagem sonora da
Seguindo o processo, a equipe mon- entrada da exposição. Na apresentação de
tou a exposição na Avenida Paulista e re- Elomar no Auditório Ibirapuera, esse aboio
cebeu o artista no dia da inauguração, de abriu e fechou o show, outra vez vivo na
manhã cedo, pois o cantor queria conhecer voz do Bode.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Carlos Costa 143

As cores do amor
Voltei a ver Elomar se apresentar, Carlos Costa
além dessa noite, outras tantas vezes. Sem- É jornalista. Nascido no Recife (PE), tem apre-
pre, a casa cheia e filas enormes de admira- ço por lua, estrada e som de cancela, mas está há
dores após os espetáculos. Em todos eles, oito anos morando em São Paulo. É coordenador
ouvi o aboio. de comunicação do Itaú Cultural, onde participou
O último concerto que vi foi em Sal- dos processos curatoriais da Ocupação Elomar e da
vador, em julho de 2018. O teatro estava Ocupação Nise da Silveira, além de outras mostras.
lotado. Elomar dividiu o palco com alguns
amigos, entre os quais estava o cantor
Fábio Paes (Serrinha, Bahia, 1951), e se
configurou uma situação de encanto, que
outras vezes vi surgir na fricção do sertão
profundo de Elomar com a contempora-
neidade, para ele degenerada pelo monstro
do moderno.
Elomar e seu discurso anacrônico
sobre os costumes relacionados às liber-
dades sexuais encontraram em Paes um
contraponto político e filosófico; e certos
modos de pensar que hoje geram um lin-
chamento sem perdão, naquele palco, fo-
ram uma lição de amor. Enquanto Elomar
fazia pouco das liberdades individuais,
Paes louvava a Guerra de Canudos (1896-
1897), Che Guevara (Ernesto Guevara de
la Serna, Argentina, 1928 – Bolívia, 1967)
e as tradições libertárias.
Elomar e seu monumento ao sertão
brasileiro estão a salvo do tempo e, por mais
que ouça suas músicas, elas não deixam de
me tocar. Por mais que ouça falar de amor,
ele não deixa de me emocionar. Em suas
muitas faces. Uma delas é o respeito: como
não respeitar o diverso, o contrário? É mais
fácil enveredar por caminhos de ódio e de-
fesa de uma opinião do que aprender com
o diferente, o oposto. Para digerir o sertão,
abrace o oposto e cante seu aboio.
144 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ilustração: André Toma


MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES ENTREVISTA: NIÈDE GUIDON 145

CIÊNCIA E ANCESTRALIDADE
NA SERRA DA CAPIVARA

C
onhecida mundialmente, Niède Guidon é uma das maiores referências
na arqueologia. Formada em história natural pela Universidade de São
Paulo e doutora em pré-história pela Sorbonne, com especialização
na Université de Paris, Niède fez carreira na França. Em 1973, fez parte da
Missão Arqueológica Franco-Brasileira, concentrando seu trabalho no Parque
Nacional da Serra da Capivara. Em 1992, foi convidada pelo governo brasileiro
para assumir a gestão do parque, e se torna presidente da Fundação Museu
do Homem Americano (Fumdham). Desde que voltou para o Brasil, Niède
tenta provar a sua tese sobre o povoamento da América. Por e-mail, do Parque
Nacional da Serra da Capivara, onde vive, a arqueóloga respondeu a algumas
questões feitas pelo conselho editorial da Revista Observatório.
146 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

OS SERTÕES E OS SERTANEJOS

EXISTE PARALELO ENTRE O PRIMEIRO HOMEM AMERICANO E O


HOMEM SERTANEJO?
Não. Há diferenças raciais e culturais.

COMO VOCÊ DEFINE O SERTÃO?


Uma região com belas formações geológicas, mas com solo muito raso e
arenoso, atualmente com problemas de seca, o que faz com que as produções
agrícola e de criação não sejam suficientes para garantir um bom nível de vida
para a população.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES ENTREVISTA: NIÈDE GUIDON 147

SERTÃO ANCESTRAL

COMO ERAM A REGIÃO HOJE COMPREENDIDA PELA CAATINGA E O SERTÃO NA


ÉPOCA DA CHEGADA DO PRIMEIRO SER HUMANO, NO QUE DIZ RESPEITO A CON-
DIÇÕES CLIMÁTICAS, FAUNA, FLORA E MODO DE VIDA DOS PRIMEIROS POVOS?
POR QUE HÁ TANTOS VESTÍGIOS ARQUEOLÓGICOS E PINTURAS RUPESTRES NA
REGIÃO DA SERRA DA CAPIVARA?
A região passou por diversos períodos climáticos. Até cerca de 10 mil
anos atrás, no planalto, tínhamos a Floresta Amazônica; e, na planície, a Mata
Atlântica. Aqui era a fronteira entre esses dois biomas extremamente diver-
sificados e ricos em fauna e flora. Até os anos 1970, o Rio Piauí corria dentro
da cidade de São Raimundo Nonato, com cerca de 40 metros de largura. A
cidade tinha cerca de 12 lagoas, com peixes e jacarés bem grandes. A população
pescava diariamente. Hoje, tudo está destruído pela ação do homem moderno.
O Rio Piauí não corre mais na cidade, as lagoas secaram. Há muitos vestígios
arqueológicos porque os povos que aqui chegaram e permaneceram há 130 mil
anos se desenvolveram e ocuparam toda a região. Os índios que foram mortos
pelos invasores brancos viviam em aldeias, tinham uma estrutura social como
todos os índios do Brasil. Nos anos 1973 e 1975, cheguei a encontrar alguns
desses índios, que viviam escondidos na região onde hoje é o Parque Nacional.

COMO AS MUDANÇAS NESSAS CONDIÇÕES IMPACTARAM A SOBREVIVÊNCIA


DESSES PRIMEIROS POVOS? QUANDO O SERTÃO ASSOCIADO À CAATINGA PAS-
SOU A EXISTIR?
Com a mudança climática, a região se transformou a partir de cerca de
10 mil anos, tornando-se cada vez mais seca.
148 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

MITOS SERTANEJOS EM
CONTRAPONTO À CIÊNCIA

QUANDO VOCÊ COMEÇOU O TRABALHO NA SERRA DA CAPIVARA, NOS ANOS 1970,


COM A MISSÃO ARQUEOLÓGICA FRANCO-BRASILEIRA, QUAL ERA A EXPLICAÇÃO
DADA PELOS MORADORES LOCAIS PARA AS PINTURAS RUPESTRES? DE ACORDO
COM AS HISTÓRIAS, QUEM AS HAVIA PINTADO? EXISTE UM IMAGINÁRIO POPU-
LAR QUE PERSISTE EM RELAÇÃO A ESSAS PINTURAS?
Quando comecei a trabalhar aqui, os moradores locais me perguntavam
por que eu me interessava por aqueles desenhos que haviam sido feitos “pelos
índios, aqueles bichos pelados que andavam por aqui”. Não existe no Brasil
nenhum respeito pelas culturas indígenas.

QUAIS POVOS INDÍGENAS HABITAVAM A REGIÃO ANTES DA CHEGADA DOS PRI-


MEIROS COLONIZADORES? QUANDO VOCÊ COMEÇOU SUAS PESQUISAS, HAVIA
INDÍGENAS?
Como foram totalmente dizimadas, não existe nenhum estudo sobre
essas tribos indígenas, mas os índios que aqui encontrei e os descendentes
deles têm características africanas e não asiáticas, como as tribos indígenas
de outras regiões do Brasil.

COMO É A RELAÇÃO DAS OCUPAÇÕES HISTÓRICAS NA REGIÃO ONDE HOJE É O


PARQUE NACIONAL DA SERRA DA CAPIVARA COM O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
E AS PINTURAS RUPESTRES? POR QUE ERAM HABITADOS OS MESMOS LOCAIS
QUE OS POVOS ANTIGOS?
As pesquisas aqui feitas demonstram que a evolução cultural e tecnoló-
gica partiu desses primeiros habitantes até os indígenas massacrados pelos
invasores. Ocupavam os mesmos locais porque era uma região muito favorável,
com muitos lagos, rios e áreas planas nas quais podiam fazer as aldeias, as
cavernas e os abrigos, onde realizavam seus rituais, as pinturas e podiam se
esconder de animais perigosos.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES ENTREVISTA: NIÈDE GUIDON 149

PELA SERRA DA CAPIVARA:


LINHA HISTÓRICA DE DESAFIOS
POLÍTICOS E FINANCEIROS

COMO FOI TRABALHAR EM MEIO AO CONTRASTE DO MODUS OPERANDI CIENTÍ-


FICO E O MODO DE VIDA SERTANEJO EM PLENA DÉCADA DE 1970?
Os sertanejos participaram desde o início da pesquisa. Eram os guias que
nos mostravam os sítios de arte rupestre. Aprenderam a trabalhar conosco e
participavam das escavações. Hoje, a maioria dos funcionários da Fumdham
são habitantes locais que estudaram, fizeram mestrado, doutorado.

COMO A ELITE LOCAL VIU A PROPAGAÇÃO DA ARQUEOLOGIA E A CRIAÇÃO DO


PARQUE NACIONAL E DA FUMDHAM NA REGIÃO?
Acho que de maneira positiva. Viram como esta pequena cidade, que nos
anos 1970 era igual ou menor que as atuais cidades vizinhas, sem correios nem
bancos, mudou, prosperou.

COMO FOI FEITO O TRABALHO DE DOCUMENTAÇÃO ARQUEOLÓGICA DAS OCU-


PAÇÕES HISTÓRICAS E RECENTES E A INTRODUÇÃO DO CIRCUITO DOS MANI-
ÇOBEIROS NO PARQUE?
Foi feita a documentação por dados escritos, fotografias, cinema e gravações.

NA SUA OPINIÃO, POR QUE A POPULAÇÃO LOCAL VISITA POUCO O PARQUE?


Porque não reconhece a cultura indígena.
150 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COMO FUNCIONA O REPASSE DE RECURSOS, PRINCIPALMENTE ESTADUAIS E


MUNICIPAIS, PARA O PARQUE E POR QUE O TEMA DAS DIFICULDADES FINAN-
CEIRAS É TÃO RECORRENTE?
Até cerca de 2015 não tínhamos problemas. A Petrobras fazia doações
anuais e havia a lei da compensação ambiental, que obrigava as empresas,
cuja ação prejudicava o meio ambiente, a doar uma porcentagem de seus
lucros para instituições que protegiam a natureza. Muitas empresas grandes
escolhiam a Fumdham, por exemplo, a Vale do Rio Doce. A lei foi alterada,
criando-se em Brasília o Fundo de Compensação Ambiental, e desde então
não recebemos mais esses recursos. Além disso, a Petrobras entrou em uma
época de graves problemas.
Como não temos orçamentos fixos do Ministério da Cultura e do Mi-
nistério do Meio Ambiente, ficamos sem recursos. Atualmente, a Petrobras
voltou a fazer doações e conseguimos recursos do ICMBio, do Iphan e do
governo do Piauí, além de emendas parlamentares. A OAB do Piauí fez um
processo e conseguiu recursos para o parque. Desse modo, estamos garan-
tidos até o fim de 2018.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES ENTREVISTA: NIÈDE GUIDON 151

LUTA E LIDERANÇA FEMININA NO


SERTÃO E NA CIÊNCIA

COMO FOI O DESAFIO DE SER UMA CIENTISTA MULHER DE OUTRO ESTADO E


COMEÇAR A TRABALHAR NO CONTEXTO SERTANEJO, PREDOMINANTEMENTE
MASCULINO?
Nunca tive problema nenhum. Nunca na vida me senti diferente por
ser mulher.

A INTRODUÇÃO DA CIÊNCIA POR MEIO DA ARQUEOLOGIA TEVE ALGUM IMPACTO


NA VIDA DAS MULHERES DA REGIÃO?
Sim, porque permitiu que encontrassem trabalho e pudessem ser in-
dependentes.

COMO O PROTAGONISMO FEMININO DOS DIAS DE HOJE SE COMPARA AO MO-


MENTO EM QUE VOCÊ COMEÇOU A VISITAR A REGIÃO?
Muita coisa mudou e penso que não conheço muito bem a situação atual.
152 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

CAMINHOS PARA DESENVOLVIMENTO


SUSTENTÁVEL DOS SERTÕES

EM QUE MEDIDA A ARQUEOLOGIA E A INTRODUÇÃO DA CIÊNCIA IMPACTARAM


O DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO DA SERRA DA CAPIVARA?
Tudo mudou e a região poderá se desenvolver ainda mais quando o ae-
roporto estiver funcionando e tivermos bons hotéis. Os patrimônios da hu-
manidade em todo o mundo recebem cerca de 5 milhões de turistas por ano,
aqui chegamos a 25 mil em 2015, mas no ano seguinte já caiu para 16 mil. As
notícias internacionais sobre a violência no Brasil, os tiroteios no Rio de Ja-
neiro e turistas assassinados prejudicam o turismo.

EM SUA OPINIÃO, COMO A FUMDHAM FOI IMPORTANTE PARA O DESENVOLVI-


MENTO DA REGIÃO? CITE ALGUMAS INICIATIVAS.
Foi bastante importante. Promoveu a cerâmica artesanal e a criação de
escolas para formar a juventude para que pudesse trabalhar nas atividades
de pesquisa e de turismo.

COMO É TER PASSADO GRANDE PARTE DE SUA VIDA NO SERTÃO NORDESTINO?


O QUE VOCÊ ACHA QUE ESTÁ NO CAMINHO CERTO E O QUE AINDA PRECISA SER
MUDADO EM TERMOS DA “REALIDADE DO SERTÃO”?
O que precisamos é que o país atinja um equilíbrio político e econômico.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES ENTREVISTA: NIÈDE GUIDON 153
4. POLÍTICAS CULTURAIS &
MODELOS SUSTENTÁVEIS:
EM BUSCA DA CONVIVÊNCIA
COM O SEMIÁRIDO

155. ECOLOGIA E POLÍTICA DO PROJETO


DE TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
Juracy Marques

170. AGROECOLOGIA E CONVIVÊNCIA


COM O SEMIÁRIDO: QUEBRANDO
PARADIGMAS, TRANSFORMANDO VIDAS
Fernanda Cruz

184. TURISMO CULTURAL & INDICAÇÃO


GEOGRÁFICA: PIAUÍ, PARAÍBA E SERGIPE
COMO ROTEIROS
Janaina Cardoso de Mello

190. DO VELHO CHICO AO CANGAÇO:


A CONSTRUÇÃO DO DESTINO TURÍSTICO
PIRANHAS NO SERTÃO ALAGOANO
Wanderson José Francisco Gomes

196. ESTADO E CULTURA NO NORDESTE:


UMA LEITURA DAS POLÍTICAS CULTURAIS
NORDESTINAS
Alexandre Barbalho

210. UM DEDO ACIMA DO CHÃO: ENCANTO


E PRODUÇÃO CULTURAL COMO ATALHO PARA
A SUSTENTABILIDADE SERTANEJA
Alemberg Quindins
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 155

ECOLOGIA E POLÍTICA DO PROJETO


DE TRANSPOSIÇÃO DO
RIO SÃO FRANCISCO1
Juracy Marques

O presente artigo discute aspectos políticos e ambientais relacionados ao Projeto de Trans-


posição do Rio São Francisco. Propondo uma visão ecossistêmica desse empreendimento ini-
ciado desde o século XIX, mas somente efetivado no século XXI, contraditoriamente, no governo
do Partido dos Trabalhadores (PT), optou-se por enraizar o debate em torno da transposição
aos diversos problemas socioambientais observados em toda a bacia do Velho Chico. Como se
pode observar no corpo deste trabalho, o modelo de apropriação da água como uma mercadoria
a serviço do capital é replicado também na gestão das águas do São Francisco. Assim, conclui-se
que o que estamos vivenciando neste momento na bacia é a materialização de um modelo de
desenvolvimento etno e ecocida sem dias para acabar, a menos que o povo ribeirinho se rebele.

Disputas das águas

S
egundo Vandana Shiva, em seu livro Nesse sentido, estima-se que exista
Guerras por Água (2006), a partir do 1,37 bilhão de km3 de água no planeta. Desse
fenômeno chamado globalização, a volume, 97% constituem as águas dos oceanos
água vem sendo privatizada e transformada e apenas 3% são de água doce. Do total de água
em fonte de lucro para grandes empresas mul- doce, 2/3 estão nas calotas polares e nas geleiras,
tinacionais e transnacionais, ou seja, trata-se restando apenas 1% do volume para consumo da
da apropriação da natureza “com o único ob- população humana. O Brasil é detentor de 12%
jetivo de reproduzir continuamente o capital, da água doce que escorre superficialmente no
numa acumulação sem fim e sem sentido”. É mundo; 72% desses recursos estão localizados
nesse cenário que discutiremos, neste ensaio, na região amazônica e apenas 3% no Nordeste.
a gestão da água na bacia do São Francisco e o Essa desigualdade de porcentuais, com visível
projeto de transposição de suas águas. desvantagem para o Nordeste brasileiro, é con-
A água é um bem natural essencial à ma- sequência das características geoambientais da
nutenção de todas as formas de vida no plane- região (SUASSUNA, 19992). A perspectiva da es-
ta. Setenta por cento da superfície da Terra são cassez de água no Nordeste passará a ser a base
cobertos por esse precioso líquido. Entretanto, do discurso de sustentação para a efetivação do
apenas 1% desse grandioso volume de água é projeto de transposição do São Francisco, hoje
potável e adequado ao consumo humano. chamado de Integração de Bacias.
156 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Nesta primeira década do século XXI, As questões evidenciadas aqui serão


o mundo percebeu que a água potável, base pensadas a partir das grandes problemáti-
para a manutenção da vida, é o maior indica- cas socioambientais que envolvem a gestão
dor da riqueza de uma nação. Dos 7 bilhões e os usos das águas do Velho Chico; entre
de habitantes que somos em todo o mundo, elas, a decisão de consolidar um dos proje-
2 bilhões são atingidos pela escassez de água tos mais polêmicos que envolve toda a sua
potável. Segundo a Organização das Nações bacia: a transposição do Rio São Francisco.
Unidas (ONU) (MMA, 2005), se não forem
adotadas medidas de preservação dos ma- Mudanças do clima e
nanciais e de racionalização do consumo, vulnerabilidade hídrica
em 2025, esse porcentual pode atingir mais A disponibilidade de água no planeta
de 4 bilhões de habitantes do planeta, mais se agravou com as alterações climáticas,
da metade da população mundial. Segundo que mudaram em todo o mundo as dinâ-
Vandana Shiva (2006), a cada dia morrem micas das águas doce e salgada, fundamen-
4.500 crianças com menos de cinco anos tais para comunidades humanas, animais,
de idade por causa da falta de acesso a água plantas e base para a economia global. Des-
potável e de saneamento básico. de o fim do século XIX, o planeta está quase
Segundo a Unesco (MMA, 2005), nos 1 ºC mais quente. Parte desse aquecimento
últimos 50 anos, a disponibilidade de água agravou-se após a década de 1960, com o
para cada ser humano diminuiu 60%, ao processo de industrialização.
mesmo tempo que a população cresceu O mundo está preocupado com as mu-
50%. Cerca de 1,4 bilhão de pessoas não danças do clima e suas consequências para
tem acesso a água potável em toda a face da a vida das pessoas e toda a biodiversidade
Terra, e mais de 2,4 bilhões não têm aces- planetária. O assunto foi pauta da 21ª Con-
so aos serviços de saneamento ambiental. ferência das Partes das Nações Unidas para
Isso porque 70% do consumo da água doce Mudanças Climáticas (COP21), que acon-
no mundo vão para a agricultura – respon- teceu de 30 de novembro a 11 de dezembro
sável por 40% de todos os produtos agrícolas de 2015, em Paris. Estima-se que, até 2020,
produzidos no mundo –, 20% para a indús- o clima pode aumentar 1 ºC, devendo che-
tria e apenas 10% para o consumo humano gar ao alarmante índice de 2 ºC em 2050.
(MALVEZZI, 2010). Esse aumento climático é decorrente da
A água é, hoje, um bem natural que está excessiva emissão de carbono (CO2) e me-
no centro das grandes questões da huma- tano (CH4), gases de efeito estufa, gerados
nidade. A água doce, adequada ao consumo a partir das intervenções humanas na na-
humano, foi apropriada como uma merca- tureza. Consequências como a extinção
doria, tornando-se objeto de lucro do capi- de espécies vegetais e animais, além do
tal. A água doce, juntamente com as terras aumento do número de refugiados am-
adequadas ao cultivo de alimentos, é hoje o bientais, comporão as agendas ambientais
“novo petróleo da humanidade”. neste século.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 157

É importante destacar que as grandes supervisão de Paulo Artaxo, um dos maiores


corporações econômicas globais, respon- especialistas nesse assunto no mundo. Um
sáveis por parte significativa das alterações trabalho que descola os discursos, a favor e
climáticas, influenciam quase a totalidade contrários, até aqui ventilados sobre a polê-
das agendas políticas no mundo, particular- mica obra da transposição.
mente nos Estados Unidos, criando um falso Essas novas configurações climáticas,
discurso de que as alterações climáticas não naturais e produzidas pelas ações humanas,
estão acontecendo, o que torna as resoluções somam-se às novas preocupações com o El
pensadas ainda mais lentas. Niño, fenômeno caracterizado pelo aque-
Em 2018, o superaquecimento em di- cimento das águas do Oceano Pacífico, que
ferentes partes do globo, acompanhado dos provoca a ocorrência de chuvas no Sul e no
dramáticos incêndios envolvendo a Euro- Sudeste do Brasil e secas no Nordeste.
pa, a Austrália e os Estados Unidos, fez a A Bacia do São Francisco inclui 58% da
humanidade refletir sobre a materializa- área do Polígono das Secas (CBHSF, 2011),
ção das previsões de diferentes centros de espaço geo-humano com períodos críticos
pesquisas sobre o aquecimento da Terra, de estiagens e diferentes índices de aridez,
bem como sobre as desastrosas decisões do qual participam mais de 270 municípios
políticas, como a saída dos EUA do Acordo brasileiros, a maioria na Região Nordeste.
de Paris. Nesses espaços, temos observado intensos
Em 1995, havia 25 milhões de refugia- processos de êxodo populacional, sobretudo
dos ambientais e 27 milhões de refugiados para o Sul e o Sudeste do país.
políticos ou de guerras. Até 2020, o número Hoje, a presença humana nas diferentes
de refugiados ambientais chegará a 50 mi- paisagens da Terra é pensada a partir dessas
lhões. Nos próximos 30 anos, 200 milhões novas configurações apresentadas pelos pro-
de pessoas deixarão seus lugares em razão da blemas ambientais complexos, entre os quais
falta de água.3 No caso do Nordeste brasilei- a questão do clima e seus impactos para a
ro, estima-se que o processo de desertifica- vida humana. Na região do São Francisco,
ção agravado com as mudanças climáticas, veem-se as consequências de um prolonga-
que já atinge uma área de 55.236 km2, tem do ciclo de estiagem, um agravante processo
afetado mais de 750 mil4 brasileiros; parte de morte do cerrado e da caatinga. Além da
desse contingente migrou para os grandes história de agressões socioambientais que
centros do país. vem sofrendo atualmente, o rio agoniza e
Recentemente, no Programa de Pós- evidencia sua morte.
-Graduação em Ciência Ambiental (Pro-
cam) da Universidade de São Paulo (USP), O Rio São Francisco e o
foi apresentada uma dissertação de mestrado Projeto de Transposição
intitulada A Transposição do São Francis- Pela primeira vez na história, em 2014,
co como Potencial Medida de Adaptação às observamos que a nascente do São Francisco,
Mudanças Climáticas, de Nádia Pontes, sob a na Serra da Canastra, em Minas Gerais, secou.
158 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Também pela primeira vez, em novembro de a transposição do Rio São Francisco


2015, o maior lago artificial da América Lati- nada acrescenta ao potencial de água do
na, Sobradinho, construído na década de 1970, Nordeste, isso porque o poder regulador
com taxas de evaporação de água de 250 m3/s, das represas através da sua capacidade vo-
três vezes mais que a vazão prevista para o lumétrica ultrapassa as estiagens e derruba
Projeto de Transposição (FILHO, 2012), atin- o mito da escassez.
giu seu limite morto. Esses são apenas dois
dos dados que o ecologista José Alves, no seu Sobre a transposição, sabemos que o
importante livro Flora das Caatingas do Rio governo sustenta o argumento de que a obra
São Francisco (2012), analisa como a extinção levará água para 12 milhões de habitantes do
inexorável do Rio São Francisco. Os indicado- semiárido, contemplando 390 municípios,
res que ele apresenta são assustadores, mas com capacidade para irrigar mais de 300
perturbadoramente reais. mil hectares de terras. Tal obra inclui ainda
Com extensão de 2.700 km, parte no se- a construção de dois eixos (Norte e Leste),
miárido brasileiro, a Bacia do São Francisco duas barragens hidrelétricas (Pedra Branca
é formada pelo Velho Chico, principal curso e Riacho Seco), nove estações de bombea-
d’água, e por um conjunto de afluentes (90 na mento, 27 aquedutos, oito túneis, 35 reserva-
margem direita e 78 na margem esquerda5) tórios, redes de energia, linhas de transmissão
temporários e permanentes. É a terceira ba- e quatro túneis – para transpor águas da Bacia
cia do Brasil, única a cortar todo o território do São Francisco para os estados do Ceará,
nacional, integrando 504 municípios (9% Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
do total de municípios do país). Percorre os O Eixo Norte, a partir da captação em Cabro-
estados de Minas Gerais, Goiás, Distrito Fe- bó, com cerca de 400 km, levará água aos rios
deral, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Salgado e Jaguaribe, no Ceará, Apodi, no Rio
Tem, hoje, uma população humana estimada Grande do Norte; e Piranhas-Açu, na Paraíba
em mais de 17 milhões de habitantes (MP, e no Rio Grande do Norte. O Eixo Leste, que
2014), ou seja, trata-se de um rio que corta o sai da região da Barragem de Itaparica, em
“semiárido mais populoso do mundo”. Floresta, tem cerca de 220 km, levará águas
O cenário que caracteriza o que se pen- para as bacias do Pajeú, do Moxotó e da Região
sa como escassez hídrica no semiárido foi Agreste de Pernambuco – um ramal de 70 km
base para justificar uma das intervenções interligará o Eixo Leste à bacia do Rio Ipojuca
mais violentas no São Francisco: o Projeto (BARROS, 2017). Seu custo total pode chegar
de Transposição. A questão, em si, não diz a mais de 20 bilhões de reais. É um dos maio-
respeito ao volume de água que cai (um ar- res investimentos do Programa de Aceleração
mazenamento de 10% desse volume seria do Crescimento (PAC), inicialmente orçado
suficiente para o desenvolvimento do semiá- em 8,2 bilhões de reais (MARQUES, 2006).
rido), mas à capacidade de armazená-la e de Luciana Khoury (2010), promotora da
evitar as altas taxas de evaporação. Segundo área ambiental do MP da Bahia, a respeito
Tomaz (2010), dessa obra, esclarece:
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 159

O Projeto de Transposição do Rio São Social no Projeto de Transposição do Rio São


Francisco contraria o Estado Democrático Francisco, de Juliana Neves Barros (2017):
de Direito: viola a Constituição Federal, pois
não foi ouvido o Congresso Nacional e o pro- A decisão política de executar tais pro-
jeto afeta terras indígenas; afronta as normas jetos é, via de regra, criticada por estar asso-
ambientais, pois foram lacunosos os estudos ciada a dinâmicas de superfaturamentos, de
de impacto ambiental quanto aos aspectos clientelismo e de vinculação das estratégias
do meio físico, biótico e socioeconômico, de negócios das empreiteiras às síndromes
além de as audiências públicas terem sido de um sistema político caracterizado pela
convocadas para lugares distantes da Bacia, falta de transparência e pela falta de abertu-
inviabilizando a participação da população ra para a participação social nos processos
afetada; e viola as normas de recursos hídri- decisórios, que, com frequência, são corrom-
cos, pois fere o Plano de Bacia aprovado pelo pidos para fins negocistas e eleitoreiros.
Comitê que decidiu que alocação externa das
águas do São Francisco é possível apenas Esse projeto não é novo na história do
para consumo humano e animal, nos casos Brasil. As primeiras ideias sobre essa obra
de comprovada escassez da bacia recepto- remontam ao século XIX, quando as elites do
ra e é fato notório que a transposição tem Ceará a denominaram “canalização do Rio
finalidades de uso econômico das águas. O de São Francisco”. Em 1958, é retomado pelo
mais grave de tudo é que tramitam no STF engenheiro Mário Ferracuti; em 1983, pelo
14 ações judiciais ainda sem decisão defini- candidato à Presidência da República Mário
tiva e as obras estão acontecendo sob égide Andreazza; em 1990, no governo de Itamar
de uma liminar, e ao final, certamente, serão Franco, pelo ministro da Integração Nacio-
comprovadas as ilegalidades, mas os danos nal, Aluízio Alves; e em 1994 e 1998, nos dois
já estarão consumados. mandatos do presidente Fernando Henrique
Cardoso (BARROS, 2017).
Além desses indicadores de ilegalidade, No governo de Fernando Henrique Car-
a obra da transposição também está na mira doso, a obra não vingou. Paradoxalmente, sem
dos escândalos de corrupção do Brasil. Em o apoio de parte dos movimentos sociais do
dezembro de 2015, a Polícia Federal pren- Brasil e do próprio partido (PT), a transposi-
deu executivos do consórcio de empresas ção ganhou pernas logo no início do governo
responsáveis por parte da obra, acusadas de do presidente Lula, em 2003. Com uma reor-
desviarem 200 milhões de reais. O Tribunal de ganização na proposta, particularmente o des-
Contas da União (TCU) apontou, entre 2005 e ligamento da transposição do Rio Tocantins, e
2013, irregularidades que somam 734 milhões agora nomeada Projeto de Integração do Rio
de reais nas obras da transposição.6 São Francisco com as Bacias Hidrográficas do
Como pondera Henri Acselrad no pre- Nordeste Setentrional (Pisf ), a transposição
fácio do livro O Desencantamento das Águas ficou sob a responsabilidade do então ministro
no Sertão – Crenças, Descrenças e Mobilização da Integração Nacional, Ciro Gomes, desde
160 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

sempre favorável ao projeto, haja vista que mais de 5 mil pessoas, a um custo de mais
o Ceará, seu estado natal, é um dos maiores de 207 milhões de reais aos cofres públicos.
beneficiários da obra. Mais de dez anos se passaram e, hoje, essas
Com partes de sua megaestrutura em fun- pessoas encontram-se em estado de abando-
cionamento, a obra acumula vários impactos no nessas vilas quase fantasmas.
socioambientais, entre os quais: perda tempo-
rária de emprego e renda por efeito das desa- Precisamos da transposição?
propriações; modificação da composição das A Região Nordeste tem o maior índice de
comunidades biológicas aquáticas nativas nas açudes do mundo. São mais de 70 mil açudes,
bacias receptoras; risco de redução da biodiver- com capacidade para acumular 37 bilhões de
sidade nas bacias receptoras; risco de tensões m3 de água, o suficiente para atender ao uso hu-
durante a fase de obra; interferências no patri- mano e à dessedentação animal (SAID, 2010).
mônio cultural (sítios históricos); risco de in- O Brasil possui uma das maiores redes
trodução de espécies de peixes exóticos; perdas hidrográficas do mundo, mas a poluição hídri-
de áreas produtivas; deslocamento compulsó- ca em todo o país cresceu drasticamente desde
rio de 1.889 famílias, sendo que 70% são de não seu processo de urbanização e industrializa-
proprietários, mediante desapropriação de 24 ção. Podemos citar a dramática situação do
mil hectares de terra, entre outros (BARROS, Rio Tietê, em São Paulo, ou mesmo o assassi-
2017). Para Juliana Barros (2017), o Estudo nato do Rio Doce, a partir do rompimento das
de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de barragens de mineradoras em Minas Gerais,
Impacto Ambiental (RIMA) da transposição: um dos maiores desastres ambientais da his-
tória da Terra. Mas olharemos para a agoni-
Constituem-se numa importante síntese zante situação do Rio São Francisco.
do discurso oficial, do discurso político auto- Repetindo: pela primeira vez na história,
rizado para registro, apropriação e circulação sua nascente secou. Pela primeira vez na his-
em vários segmentos [...] tratando-se de um tória, o lago de Sobradinho, maior da América
documento longo, na prática pouco acessível Latina, construído na década de 1970, atingiu
à população geral, importará vários exercícios a cota de 0% por causa da seca no rio, quan-
de tradução, recortes, seleção de destaques, do, em 2014, era de 57%; pela primeira vez
omissões e representações cartográficas, que na história, todos os moradores da Bacia do
serão construídas a favor dos interesses espe- São Francisco ficaram aflitos com a evidente
cíficos dos grupos que as veiculam e disputam morte do dantes Rio-Mar (Opara). Em muitos
interpretações – visões sobre o projeto. lugares da bacia, escuta-se a angustiante per-
gunta: “Será que o rio vai morrer?”.
Como parte das mitigações dos danos Parte dos grandes problemas socioam-
que seriam causados às famílias impactadas bientais do São Francisco foi causada pela
com a transposição, em 2007, foram planeja- implantação das grandes hidrelétricas.
das 18 Vilas Produtivas Rurais (VPRs) pelo Construídas desde 1913 (Angiquinho), todo
Ministério da Integração, que abrigariam o corpo do São Francisco fora acorrentado
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 161

com paredes de concreto, o que, além de re- 3.450 barragens em território europeu. Até
sultar na destruição de dezenas de cidades e 2008, foram removidas, somente na Espanha,
da vida de milhares de pessoas, atingiu dras- 300 barragens de pequeno e médio portes.
ticamente toda a diversidade biológica que Famílias ribeirinhas, em toda a extensão
dependia do ciclo natural do São Francisco. do São Francisco, têm enfrentado dificuldades
Estima-se que, no mundo, existam mais para o abastecimento humano e a dessedenta-
de 45 mil barragens construídas, responsá- ção animal. As margens do Velho Chico estão
veis pela expulsão de mais de 80 milhões de secas. A vida ao longo do seu vale está seca,
pessoas7 (MAB, 2007). No caso do Rio São morta. Sacrificá-lo é a alternativa para levar
Francisco, foram construídas mais de uma águas aos sedentos? Afirma-se que a capta-
dezena de grandes hidrelétricas, atingin- ção de água do São Francisco pelo projeto
do mais de 250 mil pessoas8 de transposição será de cerca
(MARQUES, 2008). Trata-se Quase toda a água de 3,5% da sua vazão disponí-
do rio com a maior cascata de do Velho Chico está vel. Quase toda a água do Velho
negociada, e esse
barragens do Brasil (Três Ma- Chico está negociada, e esse por-
porcentual não se
rias, Sobradinho, Itaparica, centual, que não se aproxima da
aproxima da realidade
Complexo Paulo Afonso I, II, da quantidade de realidade da quantidade de água
III e IV e Xingó). água que sairá nessa que sairá nessa nova “sangria”,
Não podemos esquecer: nova “sangria” pode representar o “golpe de mi-
são estruturas que envelhecem sericórdia” a esse imenso corpo
e precisam ser removidas com o tempo. Não hídrico que agoniza.
são obras eternas. Esse complexo de proble- O São Francisco passa pela pior seca
mas que o Velho Chico enfrenta requer que dos últimos cem anos, mas essa não é a cau-
se coloque na pauta a retirada desses “ossos sa da sua morte. Apesar do triste cenário, os
de cimentos” que mataram o rio. Isso não é projetos econômicos em toda a bacia não
delírio, mas parte da política socioambiental foram paralisados. A indústria, a mineração
de diversos países do mundo. e a irrigação, juntas, são responsáveis por
O American Rivers,9 centro de restau- mais de 80% das águas retiradas do Velho
ração de rios nos EUA, desde 1973 vem res- Chico. Segundo a Agência Nacional de Águas
taurando rios, resguardando mais de 150 mil (ANA),11 de toda a água retirada do São Fran-
milhas desses corpos d’água. Esse centro de cisco, 76% são consumidos pela irrigação. No
restauração menciona a restauração de mais vale, essa área é de 120 mil hectares (FILHO,
de 1.100 barragens nos EUA, resultando em 2012). De acordo com a ONU,
benefícios para as águas dos rios, os peixes e
outras espécies, inclusive para nós humanos. aproximadamente 70% de toda a água
De acordo com a Dam Removal Euro- potável disponível no mundo é utilizada
pe,10 a partir dos levantamentos de dados para irrigação, enquanto as atividades in-
referentes a Suécia, Espanha, Reino Unido, dustriais consomem 20% e o uso doméstico
Portugal, França e Suíça, foram removidas 10% (TERRA AMBIENTAL, 2013).
162 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Sabemos que a gestão das águas do ainda vai para a irrigação, para a indústria e
Velho Chico, hoje sobre a responsabilida- para a geração de energia, principais usuá-
de do Comitê da Bacia Hidrográfica do São rios da bacia. A água no sertão é represen-
Francisco (CBHSF), tem na liberação de tada e usada pelos grupos econômicos que
cotas para usos diversos o seu maior cam- controlam a política no nosso país.
po de disputa. Esperamos que esse comitê, A transposição, ao que transparece,
pensado para ser democrático e responsável consolida-se como um projeto ligado às es-
pela vida do Velho Chico, não seja o lugar do truturas políticas ecocidas e à capacidade
agenciamento de sua morte. de influência, nesse cenário, das grandes
Diante desse cenário, onde prevalece construtoras. Esconde-se, por trás do dis-
um conceito de desenvolvimento centra- curso de dessedentação humana e animal no
do nos grandes projetos de irrigação, na semiárido, a engenharia do capital, que pro-
construção de barragens sem duz riqueza transformando
pensar nos impactos e nos Ações e as políticas a natureza em mercadoria e,
sujeitos ali imbricados, pen- públicas voltadas diga-se de passagem, usando
samos que as ações e as polí- para a convivência os destinos de vidas simples
ticas públicas voltadas para a com o semiárido, como as que estão jogadas nas
convivência com o semiárido, tendo como foco o vilas quase fantasmas cons-
tendo como foco o acesso e a acesso e a captação truídas para depositar os ex-
captação de água de chuva, de água de chuva, propriados dessa obra sem pé
têm se colocado como
têm se colocado como expe- nem cabeça.
experiências inovadoras
riências inovadoras e propo- O Velho Chico agoniza
e propositivas.
sitivas diante desse gigante com graves problemas so-
discurso que insiste em ope- cioambientais intensificados
racionalizar de qualquer forma, indo de en- nesses dois últimos séculos de sua história.
contro com qualquer possibilidade de diálogo Além da salinização dos seus solos e da for-
com a sociedade civil organizada, como no mação de núcleos de desertificação, quase
caso da Transposição do Rio São Francis- toda a cobertura vegetal das suas matas
co – e de tantas outras frentes, muitas de- ciliares foi destruída, restando apenas 4%,
las ainda desconhecidas e obscurecidas na o que aumenta os processos erosivos nas
profecia e no discurso do desenvolvimento suas margens, ocasionando o assoreamento
que é anunciado. do rio e tornando-o inviável como hidrovia
A Lei nº 9.433, de 1997, Lei Nacional (FILHO, 2012).
de Recursos Hídricos, diz que, em situação Em todo o Vale do São Francisco, obser-
de escassez, o uso prioritário dos recursos vamos o uso indiscriminado de agrotóxicos
hídricos é para o consumo humano e para a na fruticultura irrigada, o que tem trazido
dessedentação animal. Isso não é respeita- certo nível de vulnerabilidade à saúde do tra-
do no caso do Rio São Francisco. Um volume balhador e de todos os consumidores. Somos
substancial de toda a água do Velho Chico o país que mais usa agrotóxicos no mundo,
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 163

cabendo a cada brasileiro o consumo de 5,2 Estou convencido da extinção ine-


litros de venenos agrícolas por ano.12 xorável do São Francisco. Eu gostaria de
O espelho d’água do Velho Chico, que apreciar e documentar com maior preci-
em parte do ano tem uma bela coloração são a biodiversidade desse pedaço do Brasil,
verde-azulada, antes habitat de centenas de mas não tive esse privilégio. A minha gera-
espécies de peixes, plantas e outros organis- ção falhou na documentação do inventário
mos, hoje é o tablado para o insano espetá- da diversidade biológica e na conservação
culo de potentes lanchas e motos náuticas, dos ecossistemas naturais. Agora resta-nos
parte delas de uma classe média alienada e a restauração e a revitalização, mais dis-
indiferente aos problemas socioambientais, pendiosas, e a consciência de que resgatar
que tomou conta das suas margens e do que a condição original é uma impossibilidade.
ridiculamente chamamos de áreas de prote-
ção permanente no nosso país. Apesar da perplexidade e da inoperân-
Mais de 95% dos municípios situados cia de todos diante dessa catástrofe am-
às margens do São Francisco ainda jogam biental que seria a morte do São Francisco,
esgotos urbanos sem tratamento no rio ainda se vive com a ilusão de um morto que
(MARQUES, 2006). Podemos falar ainda parece vivo, como é o estado atual do que
dos impactos causados pelas mineradoras, dantes fora chamado pelos nativos de Opa-
pelas carvoarias, enfim. Parte dos graves rá, Rio-Mar. O Projeto de Revitalização do
problemas socioambientais da Bacia do São São Francisco, usado como moeda de troca
Francisco é analisada na obra do Ministério para justificar a implantação do Projeto de
Público da Bahia (MP) Velho Chico: a Expe- Transposição, é uma das ações fracassadas
riência da Fiscalização Preventiva Integrada de diversos governos brasileiros desde 2003.
na Bahia (2014). Há que se pensar: como um rio que
Se olharmos para a história socioam- agoniza nessa proporção ainda é base para
biental do São Francisco, desde a presença a sustentação direta de um contingente hu-
de grupos originários anteriores, há 13 mil mano de quase 17 milhões de habitantes? O
anos, passando por sua invasão, em 1501, até que será da vida dos ribeirinhos se a vida do
o início do século XIX, perceberemos que foi Velho Chico acabar? Essa vida que, obser-
nesses dois últimos séculos que a carnifici- vamos, está morta.
na do Velho Chico se efetivou. Atualmente, Um recorte para ilustrarmos esse des-
o que estamos fazendo com o Velho Chico, caso: um dos seus afluentes, o Rio Olhos
como o Projeto de Transposição, é ape- d’Água Amarelo, que nasce na Serra dos
nas o “golpe de misericórdia”. Seo Manoel Morgados, em Jaguarari/BA, em decor-
(2004), pajé do povo Xocó, disse: “Já tira- rência da perfuração excessiva e irres-
ram o couro do Rio São Francisco, agora só ponsável de poços artesianos, associada
falta espichar”. A fala de José Alves (2012) ao intenso processo de desmatamento e
também é reveladora dessa morte iminente das próprias mudanças climáticas, secou,
do Velho Chico: junto com outras nascentes, cachoeiras e
164 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

cacimbas; entretanto, nada foi feito para


minimizar essa situação. Se mergulharmos Juracy Marques
nesse exemplo, veremos que a destruição É professor titular da Universidade do Estado
da natureza tem sido fonte de renda para da Bahia (Uneb) (Programa de Pós-Graduação em
uma rede política e econômica, que assal- Ecologia Humana/PPGEcoH e Programa de Pós-
tou os espaços de decisão sobre a gestão -Graduação em Educação, Cultura e Territórios Se-
dos recursos hídricos no Brasil, excluindo miáridos/PPGESA), doutor em cultura e sociedade,
a população dessas decisões. Isso também pós-doutor em antropologia (UFBA) e em ecolo-
vale para os comitês de bacias onde essas gia humana (UNL/PT) e doutorando em ecologia
águas hoje são negociadas. humana (FCSH – UNL). É membro da Sociedade
Há uma diferença substancial entre Brasileira de Ecologia Humana (Sabeh).
morrer vivo e viver morto. O São Francis-
co, como tantos outros rios do mundo, está
sendo vítima de um modelo civilizacional
etno e ecocida, baseado no consumo capi-
talista e na concentração de riquezas de
poderosos grupos econômicos, internacio-
nais e nacionais, que contam com a per-
versa complacência de corruptos grupos
políticos e, assim, legitimam seus planos.
Escancaradamente, estão visibiliza-
dos seus enraizamentos. Parte das agendas
político-econômicas falaciosamente sus-
tenta um discurso pelo cuidado socioam-
biental do Brasil, que hoje está entregue ao
mais vil e covarde modelo de gestão polí-
tica e econômica. Como o Madeira, sacri-
ficado pela autorização de hidrelétricas,
e o Doce, assassinado com a amarga lama
das mineradoras de Minas, o São Francis-
co teve, definitivamente, seu destino sela-
do nas mãos da cruel, estúpida e covarde
agenda política ambiental brasileira. Não
há saída para o Velho Chico pelas vias go-
vernamentais. Só o povo do rio pode salvar
o Rio do Povo!
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 165

Referências

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed.
São Paulo: Cortez, 2011.

ASA, Articulação do Semiárido. Caminhos para a convivência com o semiárido. 10. ed.
Recife/PE, jul. 2011.

ASA BRASIL. O semiárido. Disponível em: <www.asabrasil.org.br/portal/informacoes.


asp?cod_menu=1>. Acesso em: 22 out. 2014.

BARROS, Juliana Neves. O desencantamento das águas no sertão: crenças, descrenças


e mobilização social no Projeto de Transposição do Rio São Francisco. Rio de
Janeiro: Letra Capital, 2017.

CAMPOS, Nivalda Aparecida. A grande seca de 1979 a 1983: um estudo dos grandes
projetos de desenvolvimento rural implementados na região semiárida do
Nordeste do Brasil. XI Congresso Brasileiro de Sociologia, Universidade Estadual
de Campinas, 2003.

CARVALHO, Luzineide Dourado. Natureza, território e desenvolvimento no semiárido.


In: REIS, Edmerson dos Santos; NÓBREGA, Luciana da Silva; CARVALHO,
Luzineide Dourado (Org.). Educação e convivência com o semiárido: reflexões por
dentro da Uneb. Juazeiro, 2011.

CBHSF. Guardiões do Velho Chico: Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco.


Salvador, 2011.

FAVERO, Celso Antonio; SANTOS Stella Rodrigues dos. Semiárido: fome, esperança,
vida digna. Salvador: Uneb, 2002.

FILHO, José Alves de Siqueira (Org.). Flora das caatingas do Rio São Francisco: história
natural e conservação. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2012.

KHOURY, Luciana. Um atentado ao Estado de Direito. In: ZINCLAR, João.


O Rio São Francisco e as Águas no Sertão. São Paulo: Silvamarts, 2010.

MALVEZZI, Roberto. Mercado de águas. In: ZINCLAR, João. O Rio São Francisco e as
águas no sertão. São Paulo: Silvamarts, 2010.

MARQUES, Juracy. Barrando as barragens: o início do fim das hidrelétricas.


Manaus: UEA, 2018.
166 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

_______. Cultura material e etnicidade dos povos indígenas do São Francisco afetados
por barragens: um estudo de caso dos tuxás de Rodelas, Bahia, Brasil. Tese de
doutorado. Salvador: Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2008.

__________. Ecologias do São Francisco. Paulo Afonso: Fonte Viva, 2006.


MMA. Água é vida: a importância da água para a vida no planeta. Rio Grande do Sul:
MMA, 2005.

MP. Velho Chico: a experiência da fiscalização preventiva integrada na Bahia. Salvador:


Ministério Público da Bahia e Órgãos Parceiros do Programa FPI, 2014.

OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião: Sudene, Nordeste. Planejamento
e conflito de classes. Estudos sobre o Nordeste, v. 1, 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1981.

PONTES, E. T. M; MACHADO. T. A. Programa Um Milhão de Cisternas Rurais no


Nordeste Brasileiro: políticas públicas, desenvolvimento sustentável e convivência
com o semiárido. XIX Encontro Nacional de Geografia Agrária, São Paulo, 2009,
p. 1-25.

SAID, Magnólia. Água no semiárido. In: ZINCLAR, João. O Rio São Francisco e as águas
no sertão. São Paulo: Silvamarts, 2010.

SHIVA, Vandana. Guerra por água: privatização, poluição e lucro. São Paulo: Radical
Livros, 2006.

SILVA, Érica Daiane da Costa. A mídia e as dizibilidades sobre o semiárido brasileiro.


Revista de Comunicação e Cultura no Semiárido, Universidade do Estado da
Bahia, v. 1, n. 1, jul./2013-dez./2014.

SOUZA, Uilson Viana de. O que fica no “ar”? Discursos e representações da seca
do semiárido brasileiro no telejornalismo da Rede Globo. Dissertação de
especialização em Educação, Universidade do Estado da Bahia (Uneb), 2013.

TERRA AMBIENTAL. Irrigação é responsável pelo consumo de 72% da água no Brasil.


Disponível em: <http://www.teraambiental.com.br/blog-da-tera-ambiental/
bid/320413/>. Acesso em: 28 dez. 2015.

TOMAZ, Alzeni. O semiárido: um lugar exponencial de encanto, dor e alma. In: ZINCLAR,
João. O Rio São Francisco e as águas no sertão. São Paulo: Silvamarts, 2010.

ZINCLAR, João. O Rio São Francisco e as Águas no sertão. São Paulo: Silvamarts, 2010.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 167

Notas

1 Parte deste texto encontra-se no livro Barrando as barragens (MARQUES, 2018).

2 Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_


content&view=article&id=681&Itemid=376>. Acesso em: 5 dez. 2018

3 BLANC, Claudio. Refugiados ambientais. In: Guia aquecimento global.


São Paulo: 2015.

4 O Globo, 2015.

5 MP. Velho Chico: a experiência da fiscalização preventiva integrada na Bahia.


Salvador: Ministério Público da Bahia e Órgãos Parceiros do Programa FPI, 2014.

6 Ver: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/pf-deflagra-
operacao-contra-desvios-na-transposicao-do-sao-francisco-com-doleiros-da-
lava-jato/>. Acesso em: 15 dez. 2018.

7 MAB. Hidrelétricas do Rio Madeira – energia para quê e para quem? Rondônia:
MAB, 2007.

8 MARQUES, J. Cultura material e etnicidade dos povos indígenas do São Francisco


afetados por barragens: um estudo de caso dos tuxá de Rodelas, Bahia, Brasil.
Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade.
Salvador: Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2008.

9 Disponível em: <http://www.americanrivers.org/initiative/dams/projects/2013-


dam-removals/>. Acesso em: jul. 2017.

10 Disponível em: <http://damremoval.eu/>. Acesso em: jul. 2017.

11 Ver: <www.ana.gov.br>.

12 Ver: <http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2014/12/brasileiro-consome-52-
litros-de-agrotoxico-por-ano-alertam-ambientalistas>. Acesso em: 15 dez. 2018
168 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 169
170 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

AGROECOLOGIA E CONVIVÊNCIA
COM O SEMIÁRIDO:
QUEBRANDO PARADIGMAS,
TRANSFORMANDO VIDAS
Fernanda Cruz

O sertão dos dias atuais não é mais o mesmo de outrora. A agroecologia tem se mostrado
uma chave para construção de novas relações no campo, para a recuperação de paisagem e para
a garantia da segurança alimentar e nutricional das pessoas, deixando para trás a escassez que
já foi tão presente na vida do povo sertanejo. Essa realidade também tem favorecido pequenos
grupos e cooperativas, revelando toda a potência de um povo, que, por meio da comercialização
do que produz, gera renda e amplia a sua capacidade de investimento local.

S
ertão. Região do interior, com po- Eles e elas viviam de modo nômade para
voação escassa e longe dos núcleos fugir das secas anuais, das longas estiagens
urbanos, onde a pecuária se sobrepõe e das enchentes nos anos chuvosos (ME-
às atividades agrícolas; região de vegetação DEIROS FILHO, 1988 apud SILVA, 2004).
esparsa e solo arenoso e salitroso, sujeito a Após esse período, a ocupação branca está
secas periódicas; terreno coberto de mato, centrada: (i) na exploração de minerais pre-
afastado da costa; o interior do país. Eis que ciosos nas margens do Rio São Francisco; (ii)
o “interior do país”, como conceitua o Dicio- na pecuária; (iii) e na fuga dos colonizadores
nário Michaelis, foi por muito tempo visto do litoral em razão da ocupação holandesa
como lugar de atraso e de miséria. As intem- (SILVA, 2004, p. 33).
péries do clima, atreladas à falta de políticas Segundo Bursztyn (2008), é no contex-
públicas estruturantes, sobretudo de acesso to histórico baseado em relações paternalis-
à água, forçaram as populações camponesas tas da sociedade patriarcal que a estrutura
a viver em estado de êxodo. social rural se constitui. A pecuária acabou
Até a primeira metade do século XVII, ocupando um papel central na ocupação,
o sertão nordestino era território indígena. fazendo largo uso de mão de obra negra e
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Fernanda Cruz 171

indígena escravizada, além de uma parcela são parte da realidade nordestina, como as
da população livre empobrecida, que não se neves perenes são parte do mundo dos es-
enquadrava no regime escravocrata (CER- quimós. Ninguém duvida que o impacto das
QUEIRA, 1989, p. 38 apud PORTO, 2018). Ou secas seria menos negativo se a economia
seja, estamos falando de uma região onde a nordestina fosse mais bem adaptada à reali-
agricultura teve como base a escravidão e o dade ecológica regional, particularmente se
monocultivo, cujas consequências geraram a estrutura agrária não a tornasse tão vulne-
conflitos que se refletem até os dias atuais. rável à produção de alimentos populares. Se
o rápido crescimento das décadas de 1960 e
No caso da sociedade local, o paterna- 1970 aumentou a vulnerabilidade da região,
lismo funciona como instrumento essencial é porque o verdadeiro problema não está em
para o esquema de legitimação dos coronéis. aumentar a produção, e sim na improprieda-
[...] porque se apresenta como um mecanis- de das estruturas (FURTADO, 2009, p. 24).
mo eficaz na consolidação das relações de
dependência que subordinam os trabalhado- A ocupação e as atividades econômi-
res aos caciques locais, tanto em nível eco- cas sem qualquer preocupação com a fauna
nômico como social. [...] e como dependência e flora locais acabam por aumentar os efeitos
lógica, essa dependência irá refletir-se no ní- da seca, que passa então a ser um problema
vel político, onde os poderosos locais sempre para o desenvolvimento rural e intensifica
lograram impor sua vontade, desde a época a migração, pois o próprio povo desacredita
colonial [...] (BURSZTYN, 2008, p. 41). na capacidade de produção do solo. É esse
sertão pobre e seco que inspira clássicos da
Soma-se a essa realidade tão incrusta- literatura, da música e das artes.
da na vida do povo sertanejo a opção políti- Essas obras registraram fatos poéticos
ca por projetos de desenvolvimento social e e também históricos, entre eles as principais
econômico centrados nas grandes estruturas secas ocorridas na região e seus impactos. Ao
hídricas, em benefício de grandes extensões mesmo tempo, também ajudaram a construir
de terra. Para o economista Celso Furtado, o o imaginário sobre a região, na qual a culpa
problema estava na política nacional de in- de todas as mazelas é a falta de chuva. Isso
dustrialização a partir do Sudeste, na con- sem contar a representação midiática, que,
centração de terra em latifúndios e no uso embora em proporção muito menor, até os
dos poucos solos agricultáveis para uma dias atuais estereotipa o sertanejo como um
agricultura de exportação em detrimento povo retirante e somente isso.
da produção de alimentos.
O sertanejo era apresentado ao Brasil
Nada é mais importante para o desen- pelas lentes da imprensa da capital, da im-
volvimento do Nordeste do que o aumento prensa do Sudeste, para onde os migrantes
da resistência da região aos efeitos das se- se dirigiam, com todas as distorções que o
cas. Nunca será demais afirmar que estas preconceito pode gerar. Mas não foi apenas
172 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

a imprensa que criou a imagem da misé- destaque as Comunidades Eclesiais de


ria atribuída à região. Nas artes plásticas, Base (CEBs), com o método “ver, julgar e
Candido Portinari pinta, em 1944, a série agir”, foi fundamental para a valorização
Os Retirantes, apresentando figuras esque- do conhecimento local e a revitalização das
léticas que partem do sertão. Na literatu- comunidades rurais. Ainda não se falava em
ra, Rachel de Queiroz publica, em 1930, o agroecologia, mas as práticas apontavam
romance O Quinze e João Cabral de Melo para uma agricultura alinhada com o conhe-
Neto escreve, entre 1954 e 1955, o poema cimento local e com a natureza.
“Morte e Vida Severina”. Em 1965, o poema
foi adaptado para o teatro, por Chico Buar- Do ponto de vista sócio-organizativo,
que de Hollanda, e em 1976 ganhou versão disseminaram-se diversificados processos
para o cinema, sob a direção de Zelito Viana coletivos e de ajuda mútua para a gestão de
(BROCHARDT, 2013, p. 29). recursos ou para a execução de serviços co-
munitários. As casas de farinha, as roças co-
As secas e a migração ainda são realida- letivas, os bancos de sementes, os mutirões
des no sertão e as vítimas continuam sendo e outras modalidades de associativismo são
os mais pobres. Os grandes latifúndios e o alguns exemplos dessas iniciativas. Do pon-
coronelismo, embora em menor proporção, to de vista técnico, irradiaram-se processos
ainda permanecem vivos e assombram os pe- de experimentação de práticas e métodos
quenos agricultores. Silva (2004) explica que alternativos aos pacotes tecnológicos da Re-
as políticas de modernização implementadas volução Verde, tais como adubação orgânica,
ao longo dos anos acabaram favorecendo a a adubação verde, as plantas medicinais, os
concentração de terra e água, aumentando métodos naturais de controle de pragas etc.
assim as desigualdades. Ao que tudo indica- (PETERSEN e ALMEIDA, 2006).
va, o futuro do sertão brasileiro, que também
ficou conhecido como o Nordeste das Secas e Em 1980, com o fim da ditadura, novas
atualmente é chamado de semiárido,1 parecia organizações de assessoria protagonizaram
pouco promissor. o debate sobre o que seria a “agricultura
Mas quem nunca ouviu a clássica ex- alternativa”, em contraponto à Revolução
pressão “O sertanejo é, antes de tudo, um Verde. Para Petersen e Almeida (2006), a
forte”? Canudos,2 na Bahia; Pau de Colher,3 construção do movimento agroecológico
entre Pernambuco e Piauí; e Caldeirão,4 no só foi possível graças à interação das comu-
Ceará, são exemplos da tentativa de romper nidades e organizações rurais estimuladas
com o coronelismo, de pensar novos modos pelas CEBs com as instituições, algumas
de produção e de partilha da terra, da água e delas já atuantes no Nordeste, comprometi-
de alimentos, numa demonstração de resis- das com a viabilidade social e econômica da
tência e sabedoria do povo. agricultura familiar. Ana Maria Primavesi
A partir da década de 1970, a ação da já era uma referência no tema, a partir dos
sociedade civil organizada, tendo como seus estudos sobre solos, e é nesse período
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Fernanda Cruz 173

que ocorre o I Encontro Brasileiro de Agri- foi diferente. Em vez de ficar apenas espe-
cultura Alternativa (Ebaa). rando pelas ações emergenciais do Estado,
a sociedade civil organizada ocupou a Supe-
Em 1983, a Federação de Órgãos para rintendência do Desenvolvimento do Nor-
a Assistência Social e Educacional – FASE deste (Sudene), cobrando do governo ações
(uma das ONGs brasileiras mais antigas) permanentes de desenvolvimento. Mais do
passa a apoiar o Projeto Tecnologias Al- que um movimento de reivindicação, esse foi
ternativas (PTA), que foi o embrião para a um período de articulação de diversos atores,
construção do movimento agroecológico no que se reuniram posteriormente no Fórum
Brasil e sendo responsável – em boa medida Nordeste, dando origem a diversos fóruns lo-
– pela criação das principais ONGs do campo cais, a exemplo do Fórum Seca (PE), do For-
da agroecologia no Brasil. Inicialmente, esse campo (RN) e da Articulação no Semiárido
“campo de atuação” passou a se reconhecer Paraibano. Em 1998, a sociedade civil ocupou
como “agricultura alternativa”, na perspecti- novamente a Sudene, cobrando respostas do
va de ser uma alternativa ao modelo hegemô- governo ao pleito de anos atrás.
nico da Revolução Verde, que se intensificava
no país e no mundo (PORTO, 2018, p. 31). Em 1993, a ocupação da sede da Sudene
no Recife por mais de 400 trabalhadores e
Nessa mesma década, a Empresa Bra- trabalhadoras rurais potencializou o papel
sileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e as reivindicações dos movimentos sociais
e a então Empresa Brasileira de Assistência frente ao Estado. Naquele ano, outra estia-
Técnica e Extensão Rural (Embrater) publi- gem atingia a região e os agricultores e agri-
cam o documento Convivência do Homem cultoras, assim como movimentos sociais
com a Seca. Essa foi uma primeira propos- atuantes na ocupação, pautavam a necessida-
ta governamental que apontava uma pers- de de políticas mais efetivas e estruturantes
pectiva de diálogo e não de enfrentamento para fazer frente à situação em que se encon-
à questão climática. Segundo Silva (2004), trava a população. Ainda em 1993, em decor-
“a linha básica de ação do programa era a rência da mobilização proporcionada pela
criação de infraestrutura de captação e ar- ocupação da Sudene, mais de 300 entidades
mazenamento de água de pequeno porte, em envolveram-se na organização do seminário
propriedades de pequenos agricultores [...]”. “Ações Permanentes para o Desenvolvimen-
Foi nesse mesmo período que o sertão passou to do Semiárido Brasileiro”, que teve como
a ser denominado semiárido.5 principal desdobramento a criação do Fórum
Ao longo dos anos – desde a época do Nordeste e a proposta de um “Programa de
Brasil Colônia –, mais de 1 milhão de pes- Ações Permanentes”. Este Fórum tornou-se
soas já havia morrido no semiárido em de- um aglutinador das distintas organizações
corrência da seca. O ano de 1993 marca um sociais que criticavam as ações de combate à
novo ciclo para o povo sertanejo. Mais uma seca e pleiteavam alternativas de convivência
seca estava instalada, mas a reação popular com o Semiárido (Porto, 2018, p. 32).
174 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A agroecologia e a convivência teorizou outrora. Organizações Não Go-


com o semiárido vernamentais (ONGs) como o Centro de
Entender esse contexto histórico é Assessoria e Apoio aos Trabalhadores e Ins-
fundamental para compreender a relação tituições Não Governamentais Autônomas
entre as práticas de convivência com o se- (Caatinga) e o Centro de Desenvolvimento
miárido e as práticas agroecológicas na re- Agroecológico Sabiá, em Pernambuco; o
gião. Segundo Monteiro e Londres (2014), Serviço de Assessoria a Organizações Po-
a agroecologia é uma ciência que aplica os pulares Rurais (Sasop), na Bahia; o Centro
princípios da ecologia para o estudo e mane- de Agricultura Alternativa (CAA), em Minas
jo dos agroecossistemas, associando a isso o Gerais; e a própria Assessoria e Serviços a
estudo dos sistemas agrícolas tradicionais e Projetos em Agricultura Alternativa (AS-
aproximando esses saberes do conhecimen- -PTA), com escritório no Rio de Janeiro e,
to desenvolvido pela pesquisa. posteriormente, na Paraíba, são algumas das
Já a convivência com o semiárido está precursoras do movimento agroecológico e
baseada na crença de que para viver na re- que trabalham na região até os dias atuais,
gião é preciso ter estratégias que permitam reforçando os princípios agroecológicos com
conviver com as secas, ao invés de enfren- base na convivência com o semiárido (PE-
tá-las. Para Malvezzi (2007), o segredo da TERSEN e ALMEIDA, 2006).
convivência com o semiárido passa pela De acordo com Monteiro e Londres
produção e estocagem dos bens em tempos (2013), o adensamento desse processo de
chuvosos para se viver adequadamente em experimentação em nível local, bem como o
tempos sem chuva. fortalecimento das organizações da agricul-
Embora a convivência com o semiárido tura familiar e de comunidades tradicionais,
seja um conceito recente, o agrônomo José além do crescimento das lutas reivindicató-
Guimarães Duque foi um grande defensor e rias dos movimentos sociais do campo, deu
estudioso do tema, e já apontava elementos origem a redes de abrangência regional. Um
que demonstram a semelhança com a agroe- exemplo é a própria Articulação Nacional
cologia. Ele defendia o aproveitamento dos de Agroecologia (ANA), que congrega movi-
recursos naturais, afirmando existir uma mentos, redes e organizações da sociedade
interdependência entre solo, planta, clima civil brasileira que defendem a agroecologia
e os demais seres vivos que estabelecem como forma de garantia de direitos e de pro-
limites à atividade agrícola. Segundo ele, moção de vida digna para pessoas do campo
o desrespeito ao código não escrito na na- e da cidade; bem como a promoção de ações
tureza produz efeitos imediatos ou tardios, que visem fortalecer a produção da agricul-
sutis ou graves, conforme a intensidade da tura familiar e a construção de alternativas
transgressão (DUQUE, 2001, p. 18 apud sustentáveis de desenvolvimento rural.
SILVA, 2004). A Articulação Semiárido Brasileiro
A ação das organizações fruto da Rede (ASA) também é fruto dessas lutas. Com
PTA passa a colocar em prática o que Duque a sua ação centrada prioritariamente na
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Fernanda Cruz 175

formação e mobilização social por meio da Isso tem demonstrado o quanto a água
democratização da água, a ASA contribuiu é vital para a manutenção da qualidade de
não só para a desconstrução da imagem de vida e para o fortalecimento da agroecologia
região problema, como também para eman- na região. A simples condição de ter água ao
cipação de mais de 1 milhão de famílias na lado de casa vem provocando os camponeses
região por meio das cisternas. Elas e camponesas a refletirem sobre a sua real
capacidade de convivência, garantindo-lhes
têm impacto direto na saúde da famí- autonomia e coragem para experimentar
lia, aliviam o trabalho feminino de buscar novas formas de produção, em alinhamen-
água e produzem maior independência em to com o que propõe a agroecologia. Expe-
relação ao carro-pipa; quando bem adminis- riências de captação de água de chuva para
tradas, têm mudado a qualidade de vida das produção de alimentos, a exemplo de cister-
famílias no Semiárido (MALVEZZI, 2007). nas-calçadão, barragens subterrâneas, tan-
ques de pedras etc., têm permitido a criação
Embora estejamos falando de uma re- de pequenos animais, o cultivo de roçados e
gião com certo grau de aridez, o semiárido hortas, de plantas ornamentais e medicinais
brasileiro é o mais chuvoso do mundo, com no quintal de casa, e a conservação e troca
uma pluviosidade de até 800 mm/ano. das sementes crioulas.

É o Semiárido mais chuvoso do plane- Estes homens e mulheres aprenderam


ta: a pluviosidade é, em média, 750 mm/ano a arte de conviver com o meio ambiente
(variando, dentro da região, de 250 mm/ano olhando os ciclos das chuvas e das secas, o
a 800 mm/ano). É também o mais populoso, comportamento das plantas, dos animais e
e em nenhum outro as condições de vida são as características do clima e do solo. Neste
tão precárias como aqui. O subsolo é formado movimento, foram múltiplas as iniciativas e
em 70% por rochas cristalinas, rasas, o que estratégias construídas pelas famílias para
dificulta a formação de mananciais perenes suprir suas necessidades, sobretudo para a
e a potabilidade da água, normalmente sali- garantia do acesso à água e aos alimentos
nizada. Por isso, como veremos, a captação da (BARBOSA e BAPTISTA, 2014).
água de chuva é uma das formas mais simples,
viáveis e baratas para se viver bem na região. É importante destacar que isso não
Há déficit hídrico. Mas essa expressão não significa que a centralidade das práticas
significa falta de chuva ou de água. O grande agroecológicas no semiárido esteja unica-
problema é que a chuva que cai é menor do que mente nas tecnologias sociais, sendo elas
a água que evapora. No Semiárido brasileiro, acessíveis ou não, mas sim pautada numa
a evaporação é de 3.000 mm/ano, três vezes lógica de vida, produção e desenvolvimento
maior do que a precipitação. Logo, o jeito de alinhada com a descentralização de bens,
agasalhar a água de chuva é fundamental para com foco na partilha, na justiça e na equi-
aproveitá-la (MALVEZZI, 2007, p. 10). dade, querendo bem à natureza e cuidando
176 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de sua conservação. Nesse sentido, é funda- construção do conhecimento agroecológico.


mental estocar: água (para beber, cozinhar, Ainda no início do movimento pela agroecolo-
plantar, dessedentar os animais, para o meio gia no Brasil, as redes de inovação existentes,
ambiente e para o uso comunitário), alimen- baseadas no Movimento Campesino a Cam-
tos (grãos, e feno e silagem para os animais) pesino, deram início à promoção de intercâm-
e sementes (vegetais e animais) (BARBOSA bios entre agricultores. Segundo Monteiro e
e BAPTISTA, 2014). Londres (2017), “esse método de comunica-
Mesmo com toda essa mudança de con- ção horizontal potencializou enormemente
cepção expressa pela convivência com o se- os processos sociais de inovação tecnológi-
miárido e reforçada pela agroecologia como ca”. Olhando para a realidade do semiárido
ciência e modo de vida, os desafios para o povo de 2007 até os dias atuais, 53.5157 homens e
sertanejo continuam latentes. O agro e hidro- mulheres participaram de intercâmbios mu-
negócio se fazem cada vez mais presentes na nicipais e estaduais.
região, seja por meio da transposição do Rio A história de luta, resistência, desafios e
São Francisco ou da Transnordestina. O III aprendizados do povo sertanejo também tem
Encontro Nacional de Agroecologia (ENA),6 sido espelho para regiões áridas e semiáridas
realizado em 2014, em Juazeiro (BA), mos- no mundo. Apenas em 2018, por meio de uma
trou claramente essas disputas existentes nos ação em conjunto com a Organização das Na-
territórios. No caso do semiárido, três tive- ções Unidas para Agricultura e Alimentação
ram destaque: o semiárido mineiro, que vem (FAO), cerca de 50 pessoas, entre homens e
sofrendo com a monocultura do eucalipto; mulheres, estão levando suas experiências
o sertão do Araripe, com o polo gesseiro; e a para o Corredor Seco da América Central e
Chapada do Apodi, com projetos de irrigação para a região do Sahel, na África. Alguns agri-
e uso desenfreado de agrotóxicos. cultores e agricultoras dessas regiões, além de
Os Encontros Nacionais de Agroecologia técnicos de organizações que prestam asses-
(ENA) têm sido importantes espaços de tro- soria, também têm visitado o semiárido bra-
ca de conhecimento sobre as inovações dos sileiro para conhecer de perto as experiências
agricultores e agricultoras, além de espaços de de organização social, de captação e manejo da
fortalecimento de uma ação mais integrada e água e de produção de alimentos agroecológi-
em rede. Esse espaço também tem permitido cos, numa demonstração de que a língua não
o aprofundamento de questões que ainda são representa uma barreira para o aprendizado
desafiadoras para o movimento agroecológico, e a adaptação de técnicas de cultivo e de ma-
como a permanência da juventude no campo nutenção da vida em regiões semelhantes ao
e os temas correlatos, como a sucessão rural; nosso sertão.
a violência contra as mulheres, uma realidade
cada vez mais frequente no campo; e o enfren- Sem feminismo não há agroecologia
tamento do agro e hidronegócio. “Sem feminismo não há agroecologia.”
Essas trocas, também chamadas de Essa frase é repetida com frequência pelas
intercâmbios, sempre foram relevantes na mulheres sertanejas organizadas em torno
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Fernanda Cruz 177

da agroecologia. Mais do que um chamado, Desde 2010, um grupo de mulheres


demonstra como a agroecologia tem con- do semiárido paraibano passou se reunir
tribuído para estabelecer novas relações de anualmente na Marcha pela Vida das Mu-
gênero no campo. lheres e pela Agroecologia.8 Organizada pelo
Não é preciso viver no meio rural para Polo da Borborema, que reúne 14 sindica-
reconhecer que o machismo e o patriarcado tos rurais, e pela AS-PTA, a marcha saiu
têm muito mais força na região. As mulhe- de 900 para 5 mil mulheres no último ano,
res não têm direito à terra dos pais; deixam reforçando a importância das mulheres e do
a escola cedo para casar ou para seu trabalho na agricultura
ajudar os pais na lavoura; histo- Nas últimas edições, familiar e camponesa.
ricamente são as responsáveis a Marcha das Esse não é o único mo-
pelo lar e, consequentemente, Margaridas pautou vimento nesse sentido. A
o desenvolvimento
por garantir água para a famí- Marcha das Margaridas é
rural sustentável e
lia; se permanecem solteiras, um movimento feminista
inclusivo, associado à
são malvistas pela comunida- agroecologia, colocando do campo, de âmbito na-
de; quando casam, são eternas o enfrentamento ao atual cional, surgido no início
ajudantes dos maridos, mesmo sistema alimentar na dos anos 2000 com caráter
dividindo-se entre o trabalho na centralidade do debate. formativo, de denúncia e
agricultura e o trabalho domés- pressão em torno da pauta
tico, somando muito mais horas de trabalho de gênero, tendo inclusive contribuído na
que os homens. Enfim, ser mulher no sertão proposição e no controle social de políticas
torna a condição de vida ainda mais difícil, públicas para as camponesas, como a Polí-
quando não invisível. tica Nacional de Agroecologia e Produção
Segundo Pacheco (2003), Orgânica (Pnapo),9 em agosto de 2012 (KA-
LIL e MARRA, 2016).
embora elas participem de numerosas Nas últimas edições, a Marcha das
atividades agrícolas e extrativas em dupla ou Margaridas pautou o desenvolvimento
tripla jornada, a invisibilidade de seu traba- rural sustentável e inclusivo, associado à
lho permanece. Quando mulheres e crianças agroecologia, colocando o enfrentamento
realizam o mesmo trabalho que o homem, é ao atual sistema alimentar na centralidade
comum dizer-se que estão “ajudando”. do debate.

Apesar de esse debate na agroecologia A Marcha das Margaridas identifica


ser bem mais recente do que os demais pen- na agroecologia um caráter político muito
samentos que consolidaram essa ciência, importante, sendo diretamente associada
quanto mais essas questões são visibiliza- ao feminismo, à emancipação feminina e
das, mais se fortalecem a releitura dos pa- ao combate a todas as formas de violência
péis e a construção de novas relações entre e opressão contra as mulheres (KALIL e
homens e mulheres. MARRA, 2016).
178 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Economia que transforma vidas sustentável dos recursos naturais e da oferta


Produzir agroecologicamente passou a e consumo de alimentos saudáveis”.
ser um diferencial para os agricultores e agri- Somam-se a isso políticas como o Pro-
cultoras do semiárido. Apesar de a agroeco- grama de Aquisição de Alimentos (PAA) e o
logia exigir bastante investimento de tempo, Programa Nacional de Alimentação Escolar
dedicação e mudança em alguns modos de (Pnae), exemplos de como o Estado também
plantio enraizados culturalmente, como a pode incentivar e contribuir para a valoriza-
queimada e o monocultivo, com o tempo, os ção da economia local e geração de renda no
agroecossistemas, além de garantirem a se- campo. João Ribeiro é agricultor em Bom Jar-
gurança alimentar e nutricional das famílias, dim (PE). Numa área de 5 hectares, dividida
possibilitam a comercialização do excedente entre roçado, agrofloresta, quintal produtivo
em mercados de circuito curto,10 gerando ren- e criação de pequenos animais, ele possui
da para os camponeses. mais de 150 espécies. Toda essa diversidade
A primeira feira agroecológica no Brasil garantiu que, em 2015, ele comercializasse
foi criada em 1997, no Recife, capital pernam- mais de 8 mil reais em produtos para o PAA
bucana, e existe até os dias atuais. Atualmente, (ASA, 2018).
já são mais de 20 feiras agroecológicas11 apenas Hoje é possível ver, nos quatro cantos
em Pernambuco, sem contar as feiras de pro- do semiárido, experiências que ratificam o
dutos orgânicos, numa demonstração de que a quanto a economia familiar é emancipadora,
cidade também se interessa pelo que é produzi- permitindo que milhares de pessoas tenham
do no campo, e, mais que isso, está interessada segurança alimentar, produção diversificada
em saber a procedência do que consome. e renda aliadas à preservação do meio am-
biente. No semiárido baiano, a Cooperativa
É também da mesma década o início da Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e
criação de um aparato legislatório para regu- Curaçá (Coopercuc) é um exemplo do quanto
lação da produção e da comercialização de a organização familiar e comunitária aliada ao
produtos gerados nos termos de uma matriz extrativismo e valorização de frutas nativas –
orgânica (ARAÚJO, 2015, p. 269). neste caso, o umbu e o maracujá da caatinga
– promove a transformação na vida das famí-
Em 2012, fruto da luta de organizações lias agricultoras, em especial das mulheres, e
sociais e do movimento agroecológico, o go- garante a permanência das pessoas no campo.
verno instituiu a Política Nacional de Agroe- No início, a coleta do umbu era feita pe-
cologia e Produção Orgânica (Pnapo), com las mulheres e vendida a preços muito bai-
o objetivo de “integrar, articular e adequar xos, mas, com o apoio de organizações como
políticas, programas e ações indutoras da o Instituto Regional da Pequena Agropecuária
transição agroecológica e da produção orgâ- Apropriada (Irpaa), elas despertaram para a
nica e de base agroecológica, contribuindo valorização do fruto por meio do beneficia-
para o desenvolvimento sustentável e a qua- mento. Em 2005, quando foram construídas
lidade de vida da população, por meio do uso 15 minifábricas nas comunidades e uma
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Fernanda Cruz 179

fábrica central em Uauá, os grupos de mulhe-


res viram a oportunidade de melhorar a quali- Fernanda Cruz
dade e aumentar a produção. Daí em diante, o É jornalista, graduada pela Universidade Ca-
negócio cresceu, os homens se interessaram e tólica de Pernambuco (Unicap), e trabalha há 15
também se engajaram na cooperativa. Atual- anos no campo da comunicação popular como
mente, dezenas de famílias têm sua renda estratégia para o desenvolvimento rural e para a
baseada na produção da cooperativa. convivência com o semiárido. Atualmente, integra
Como explicita Paixão (2007), a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

[...] a economia familiar tem sido, para


o campo (mas não só), apontada como uma
das grandes oportunidades de inclusão dos
produtores familiares de recursos escassos,
sobretudo os mais humildes, na periferia
do processo de exclusão social, agregando
as noções de diversidade, solidariedade,
cooperação, respeito à natureza, cidadania
e participação, enquanto valores contrários
à lógica da globalização e da padronização.

A Coopercuc, além da renda, prima pela


capacitação e pelo fortalecimento dos seus só-
cios e sócias. Hoje, 450 famílias e 18 comuni-
dades estão envolvidas na produção de doces,
sucos, geleias, compotas e polpas, que com-
põem a linha Graveteiro da cooperativa. Os
produtos que possuem o selo FLO Fair Tra-
de e Certificação Orgânica são reconhecidos
no mercado nacional e já foram exportados
para países como França, Áustria, Alemanha
e Espanha.
“A Coopercuc tem um reconhecimento
não só pelo fato de ser cooperativa, mas por
ser um instrumento de transformação social
aqui na região, e também pelos espaços onde
estamos e do mercado que conseguimos al-
cançar graças à organização coletiva”, ratifica
a presidente da cooperativa, Denise Cardoso
dos Santos.
180 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Referências

III ENCONTRO NACIONAL DE AGROECOLOGIA. Anais. Rio de Janeiro: ANA, 2014.

ARAÚJO, T. et al. Feiras Agroecológicas – institucionalidade, organização e importância


para a composição da renda do agricultor familiar. Instituto de Desenvolvimento
do Trabalho e Núcleo de Economia Solidária da UFPE, 2015.

BARBOSA, A.; BAPTISTA, N. A convivência com o semiárido como condição sine qua
non para a produção sustentável de alimentos na região. Realidade, desafios
e perspectivas. Disponível em: <http://www.osemiáridoébelo.com/2014/09/a-
convivencia-com-o-semiarido-como.html>. Acesso em: 25 set. 2018.

BRASIL. Decreto nº 7.794, de 20 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de


Agroecologia e Produção Orgânica. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7794.htm>. Acesso em: 1 out. 2018.

BROCHARDT, Viviane dos Santos. Comunicação popular na construção de políticas de


acesso à água no semiárido: a experiência da ASA. Brasília: UnB, 2013.

BURSZTYN, M. O poder dos donos – planejamento e clientelismo no Nordeste. 3. ed.


Rio de Janeiro: Garamond; Fortaleza: BNB, 2008.

Caderno de Experiências Agroecológicas em Pernambuco. Recife: ASA, 2018.

FURTADO, Celso. O Nordeste: reflexões sobre uma política alternativa de


desenvolvimento. In: ____ et al. O pensamento de Celso Furtado e o Nordeste
hoje. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas
para o Desenvolvimento; Banco do Nordeste do Brasil, 2009.

KALIL, L.; MARRA, C. As contribuições da Marcha das Margaridas para o avanço da


pauta agroecológica no Brasil. Disponível em: <http://revistas.aba-agroecologia.
org.br/index.php/cad/article/view/18433/13292>. Acesso em: 1 out. 2018.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Fernanda Cruz 181

MALVEZZI, R. Semiárido: uma visão holística. Brasília: Confea, 2007.

MONTEIRO, D.; LONDRES, F. Para que a vida nos dê flor e frutos: notas sobre a
trajetória do movimento agroecológico no Brasil. In: SAMBUICHI, R. et al. A
Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica no Brasil – uma trajetória
de luta pelo desenvolvimento rural sustentável. Ipea, p. 53-83, 2017.

PACHECO, M. E. A questão de gênero no desenvolvimento agroecológico. Encontro


Nacional de Agroecologia, Rio de Janeiro, Anais... Rio de Janeiro: AS-PTA, 2003.

PAIXÃO, Clodoaldo Almeida. Economia familiar. Disponível em: <http://www.moc.org.


br/download/eco_fam.pdf>. Acesso em: 1 out. 2018.

PETERSEN, P.; ALMEIDA, S. G. de. Rincões transformadores: trajetória e desafios do


movimento agroecológico brasileiro: uma perspectiva a partir da Rede PTA. Rio
de Janeiro: Aspta (mimeo), 2006.

PORTO, S.; FROEHLICH, G. Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) – sistematização da


experiência de convivência com o semiárido. ASA, 2018.

SILVA, M. Entre o combate à seca e a convivência com o semiárido – transições


paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Série BNB Teses e
Dissertações, n. 12, 2008.

VEZZANI, F. M. et al. Agroecologia: práticas, mercados e políticas para uma nova


agricultura. Curitiba: Kairós, 2013.
182 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Notas

1 Atualmente, cerca de 27 milhões de pessoas vivem no semiárido, que ocupa


1,03 milhão de km². Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/semiarido-
brasileiro>. Acesso em: 20 set. 2018.

2 Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=j_nZzqJbWGQ>. Acesso em: 8 dez. 2018.

3 Ver: <http://www.youtube.com/watch?v=oxoZOR_qhS0&ab_
channel=RTVCaatingaUnivasf>. Acesso em: 16 dez. 2018.

4 Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=Z2DVrL_dEcI&ab_
channel=FreiGilvanderLutapelaterraeporDireitos>. Acesso em: 16 dez. 2018.

5 Oficialmente, a primeira delimitação da região ocorreu em 1986, com o Polígono


das Secas, mas o conceito técnico é decorrente de uma norma da Constituição
Brasileira de 1988, mais precisamente do Artigo 159, que institui o Fundo
Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE).

6 Ver: <http://enagroecologia.org.br/>. Acesso em: 25 set. 2018.

7 Disponível em: <http://www.asabrasil.org.br/mapatecnologias/>. Acesso em: 1


out. 2018.

8 Ver: <http://aspta.org.br/2018/05/video-ix-marcha-pela-vida-das-mulheres-e-
pela-agroecologia/>. Acesso em: 2 out. 2018.

9 Ver: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7794.
htm>. Acesso em: 2 out. 2018.

10 Ainda não existe uma definição oficial no Brasil sobre circuito curto (CC), mas
os representantes do setor agroalimentar na França têm utilizado o termo
para caracterizar os circuitos de distribuição que mobilizam, no máximo, um
intermediário entre produtor e consumidor.

11 Disponível em: <http://www.centrosabia.org.br/feiras-agroecologicas>. Acesso


em: 30 set. 2018.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Fernanda Cruz 183
184 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

TURISMO CULTURAL
& INDICAÇÃO GEOGRÁFICA:
PIAUÍ, PARAÍBA E SERGIPE
COMO ROTEIROS
Janaina Cardoso de Mello

As Indicações Geográficas (IGs) do artesanato em joias de opalas-azuis (PI), da bebida


Cajuína (PI) e das rendas renascença (PB) e irlandesa (SE) valorizam as tradições locais,
as singularidades, a notoriedade e o território, promovendo maior visibilidade e geração de
renda por meio da comercialização. Roteiros turísticos integrados à economia criativa das
regiões com IGs favorecem o desenvolvimento regional, assim como oferecem a vivência de
experiências únicas e sustentáveis.

O
registro das Indicações Geográfi- vivência de elementos significativos rela-
cas (IGs) no Instituto Nacional da cionados ao patrimônio cultural e aos even-
Propriedade Industrial (Inpi) des- tos que promovem e valorizam a cultura.
taca as particularidades dos produtos de Os bens, de natureza material e imaterial,
distintas regiões, valorizando suas caracte- possuem traços de memória e da identida-
rísticas, originalidade, história, notoriedade de das populações.
e territorialidade, o que contribui para maior As tradições de povoados, a vida rústica
visibilidade, valor de oferta e consumo de e o saber-fazer das comunidades são com-
uma experiência exclusiva em espaços com partilhados, na experiência de produção,
potencial turístico. com visitantes que desejam consumir um
As IGs culturais podem ser atrativos momento que pode durar uma eternidade
turísticos desde que ocorra uma roteiriza- nas memórias. No campo das sensações, o
ção turística definida e estruturada para produto é efêmero, mas abriga-se na subjeti-
fins de planejamento, gestão, promoção e vidade dos indivíduos de forma mais durável.
comercialização via turismo das localida- Um roteiro dos espaços com IGs cul-
des do roteiro. O turismo cultural traz a turais contém histórias interconectadas e
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Janaina Cardoso de Mello 185

incentiva a economia que valoriza o bem- sustentabilidade, identidades locais e prota-


-estar social e a qualidade de vida dos pro- gonismo dos sujeitos versus mundialização.
dutores tradicionais. Orienta o turista para A economia criativa está balizada por
a coletividade, para a rede de solidariedade “ativos criativos que potencialmente geram
entre associações e artesãos e para o cuida- crescimento e desenvolvimento econômico”
do com o ambiente. (UNCTAD, 2012, p. 10), incidindo em gera-
A rede insere a participação de vários ção de renda, criação de empregos e exporta-
pequenos agentes sociais nas decisões sobre ção de ganhos, ao mesmo tempo que promove
o desenvolvimento econômico sustentável, inclusão social, diversidade cultural e desen-
os impactos sociais e ecológicos do turismo. volvimento humano.
Articula várias unidades, troca de elemen- Os princípios econômicos na comer-
tos, fortalece a reciprocidade e multiplica a cialização de produtos com IGs, em um
noção de conjunto em expansão e com equi- mercado preocupado com a qualidade,
líbrio sustentável (MANCE, permitem a sobrevivência das
2002, p. 24). O modelo de turismo identidades culturais múlti-
Quando não existe hos- criativo/cultural plas e singulares, além do in-
pedagem nas comunidades, constrói uma cadeia teresse das novas gerações em
os municípios do interior são de significados que perpetuar a cultura.
conectados à infraestrutura perpassa o modo de A sustentabilidade cul-
turística adjacente com su- vida comunitário. tural em comunidades tradi-
porte para a concretização cionais afastadas dos grandes
da experiência do turismo e da econo- centros depende cada vez mais dos vetores
mia criativos, retirando aquele espaço de comercialização de seus produtos. Em
do isolamento. 2012, mais da metade das artesãs da renda
Diferentemente do que é praticado renascença no Cariri paraibano (48,6%) ob-
no turismo de massa, o modelo de turismo tinha 100 reais de renda mensal. Uma a cada
criativo/cultural constrói uma cadeia de três mulheres mantém a tradição da renda
significados que perpassa o modo de vida renascença, embora a sobrevivência esteja
comunitário, o controle do número de turis- na agricultura. Os desafios das artesãs são a
tas (em visitas, atividades culturais e hos- falta de água, de matéria-prima e de recur-
pedagem). Evoca-se a qualidade, em vez da sos para investir na produção, além dos atra-
quantidade. Disso depende a manutenção vessadores, que escoam 22% dos produtos
do ambiente, a sustentabilidade ecológica. (WSCOM, 2013).
A felicidade turística na criatividade rea- Nas áreas com IGs, a ocupação em
liza-se como experiência sensorial, e não serviços manteve-se alta de 2007 a 2013.
apenas como compra. Para o Nordeste, em 2013, consideraram-se
São novos paradigmas norteando a os municípios de Teresina (62,5%) e Pe-
discussão do patrimônio cultural, do tu- dro II (73,9%), no Piauí; Amparo (97,5%),
rismo e da economia criativos, afirmando Caraúbas (93,5%) e Cabaceiras (77,8%),
186 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

na Paraíba; e Divina Pastora (90,2%), em da Austrália (GUIMARÃES, 2011). A la-


Sergipe (IBGE, 2014). pidação e a transformação das gemas em
Nos portais de transparência gover- artesanato geram até 70 mil reais men-
namentais, o Piauí obteve o melhor índice sais aos ourives.
de investimentos em turismo, dispondo em De 2007 a 2011 houve um crescimento
2015 de R$ 18.903.597,00, ampliado em 2016 exponencial de turistas em Teresina, tendo
para R$ 21.325.838,00 e mantendo o cres- em 2015 o maior quantitativo. Destes, 99%
cimento em 2017, com R$ 38.792.221,00. são compostos por brasileiros do Ceará
Sergipe revelou um aumento no orçamento (12,5%) e do Maranhão (12,5%), seguidos
de 2015 (R$ 15.799.916,50) para 2016 (R$ por São Paulo (9,9%), na faixa de 36 a 50
23.547.066,23) e um decréscimo para 2017 anos (42,2%) e predominantemente do
(R$ 18.742.840,45). Na Paraíba, os valores sexo masculino (61%), com nível superior
de 2015 (R$ 8.685.879,95) aumentaram em (60,3%) (PMT; SEMDEC, 2011, p. 29-32).
2016 (R$ 9.123.460,56), caindo em 2017 A renda renascença do Cariri (PB),
(R$ 7.791.279,41). com IG desde 2013, revelou o potencial das
O registro de Patrimônio Cultural artesãs na economia local. Surgida entre os
Brasileiro da Produção Tradicional e Prá- séculos XV e XVI, símbolo do artesanato
ticas Socioculturais Associadas à Cajuína italiano na Ilha de Burano (Veneza, Itália),
no Piauí pelo Iphan, em maio de 2014, reco- encantou a realeza e a burguesia france-
nheceu o simbolismo da bebida/alimento, sas no século XVIII. Chegou ao Nordeste
representativo da hospitalidade e dos laços brasileiro no século XIX, com as freiras
entre as famílias produtoras. A IG veio em francesas do Convento Santa Teresa. Em
agosto de 2014, e no final do ano a comer- 1930, o ofício foi apropriado por mulheres
cialização da Cajuína movimentou mais mais humildes. Nos anos 2000, a atividade
de 2 milhões de reais (PORTAL AZ, 2015). se tornou importante na economia da re-
A história do Piauí emerge de violen- gião, constituindo-se também em atrativo
tos conflitos interétnicos e disputas entre turístico (GIESBRECHT, 2014, p. 53 e 55).1
oligarquias em aguda clivagem social. A O abraço à herança cultural faz em-
instalação de Teresina, a modernização da preendedores artesãos construírem e
sociedade e a nova socialização cívica ba- promoverem a imagem das regiões, man-
lizadas por rituais de etiqueta colocaram a tendo vivas as tradições, inovando-as nos
Cajuína no centro das práticas culturais de mercados contemporâneos, cuidando da
fortalecimento de vínculos, solidariedades qualidade e autenticidade da produção e
e parcerias (IPHAN, 2008/2009, p. 15-16). reforçando identidades, reputação e com-
As opalas- azuis e as joias de opalas petitividade nas regiões do artesanato
de Pedro II (PI) receberam o registro de (PRET; COGAN, 2018, p. 11).
IG em 2012, tendo o município a única re- A renda irlandesa chega ao municí-
serva de gemas nobres de opala no país e pio de Divina Pastora (SE) no início do
a segunda maior do mundo, atrás apenas século XX, com a utilização do fio de lacê
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Janaina Cardoso de Mello 187

ensinada pela missão de freiras irlandesas


(AMARAL, 2011, p. 29). Janaína Cardoso de Mello
Popularizou-se com o registro de pa- É doutora em história social (UFRJ), mestra
trimônio imaterial pelo Iphan e a obtenção em memória social (Unirio) e em turismo (PPM-
da IG pelo Inpi em 2012. Os municípios TUR-IFS) e graduada em história (Uerj). É profes-
sergipanos de Laranjeiras, Riachuelo e Ma- sora da Universidade Federal de Sergipe (UFS), do
ruim também possuem artesãs da renda. mestrado em ensino de história e do mestrado em
Roteiros integrados das IGs podem história (PPGH-UFAL). Sua pesquisa MAPTOUR-IG
incentivar o empreendedorismo artesa- & QR Codes Culturais em Aeroportos: Novos Des-
nal e a oferta de serviços e produtos tu- tinos Turísticos Inteligentes para Cidades Criativas,
rísticos, fortalecer a identidade regional, Desenvolvimento Territorial e Revitalização Urbana
além de aumentar as visitas e os gastos a Partir da Economia da Cultura foi uma das selecio-
em torno de experiências únicas. Por isso, nadas no Programa Observatório Itaú Cultural de
desenvolveu-se um Guia da Roteirização Pesquisa em Economia da Cultura 2017, na carteira
Turística das IGs Culturais & Infraestru- Pesquisa em Andamento.
tura via leitura digital de QR Code para o
download em PDF.
Possui 13 IGs culturais – registro que
atesta que certa região se especializou na
oferta de um artigo ou serviço diferen-
ciado e de excelência, caracterizado por
tradições ancestrais e pelo saber-fazer
imaterial – com textos, imagens, geolo-
calização, sugestões de hospedagem em
projetos de Turismo de Base Comunitária
(TBC), eco-hotéis, espaços de acomodação
sustentável e turismo solidário, indicando
contatos. Há boxes dos aeroportos próxi-
mos. Foi produzido no Mestrado em Turis-
mo do IFS, com apoio do CINTTEC-UFS e
financiamento do Programa Observatório
Itaú Cultural de Pesquisa em Economia
da Cultura.
188 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Referências

AMARAL, J. L. A produção de renda irlandesa e seu aprendizado em Campos dos


Goytacazes – RJ. Tese de mestrado em museologia e patrimônio. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), 2011.

GIESBRECHT, H. O. et al. Indicações geográficas brasileiras. Artesanato: Brazilian


geographical indications – Crafts: indicaciones geográficas brasileñas – Artesanía.
Brasília: Sebrae, Inpi, 2014.

GUIMARÃES, H. Opala: preciosidade do sertão ganha o mundo. 2011. Disponível em:


<http://revistagloborural.globo.com/Revista/Common/0,,ERT211452-18071,00.
html>. Acesso em: 15 mar. 2017.

IBGE. Cidades. 2014. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/>.


Acesso em: 14 dez. 2017.

IPHAN. Dossiê Produção Artesanal e práticas socioculturais associadas à Cajuína no


Piauí. Piauí: Iphan, 2008/2009.

MANCE, E. A. Redes de colaboração solidária – aspectos econômico-filosóficos:


complexidade e libertação. Petrópolis: Vozes, 2002.

MELLO, J. C. Roteirização turística das IGs & infraestrutura. Aracaju: Ed. GEMPS, 2018.

PMT; SEMDEC. Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável (PDITS) –


Teresina. Teresina: PMT/Semdec, 2011.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Janaina Cardoso de Mello 189

PORTAL AZ. Cajuína ganha cada vez mais espaço no mercado. 2015. Disponível em:
<http://www.pi.agenciasebrae.com.br/sites/asn/uf/PI/cajuina-ganha-cada-vez-
mais-espaco-no-mercado,6b6324349e57b410VgnVCM1000003b74010aRCRDh
ttps://www.portalaz.com.br/noticia/geral/323227/cajuina-ganha-cada-vez-mais-
espaco-no-mercado>. Acesso em: 17 dez 2018.

PRET, T.; COGAN, A. Artisan entrepreneurship: a systematic literature review and


research agenda. International Journal of Entrepreneurial Behavior & Research,
2018, p. 1-24. Disponível em: <https://doi.org/10.1108/IJEBR-03-2018-0178>.
Acesso em: 25 abr. 2018.

TEIXEIRA, S. J.; FERREIRA, J. J. M. Entrepreneurial artisan products as regional tourism


competitiveness. International Journal of Entrepreneurial Behavior & Research,
2018, p. 1-23, Disponível em: <https://doi.org/10.1108/IJEBR-01-2018-0023>.
Acesso em: 20 mar. 2018.

UNCTAD. Relatório de economia criativa 2010: economia criativa, uma opção de


desenvolvimento. Brasília: Secretaria da Economia Criativa/Minc; São Paulo: Itaú
Cultural, 2012.

WSCOM. 50% das produtoras do Cariri ganha R$ 100. Economia & Negócios. 2013.
Disponível em: <https://www.wscom.com.br/noticia/metade-das-mulheres-
produtoras-do-cariri-paraibano-tem-renda-mensal-de-ate-r-10/>. Acesso em: 20
mar. 2018.

Nota

1 Disponível em: <https://caixacolonial.club/blog/renda-renascenca-do-cariri-


paraibano-231/>. Acesso em: 10 out. 2017.
190 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Janaina Cardoso de Mello 191
192 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

DO VELHO CHICO AO CANGAÇO:


A CONSTRUÇÃO DO DESTINO TURÍSTICO PIRANHAS
NO SERTÃO ALAGOANO
Wanderson José Francisco Gomes

Neste trabalho, considera-se a apresentação de fatores determinantes para o desenvolvi-


mento socioeconômico da cidade de Piranhas, localizada no sertão alagoano, enquanto destino
turístico ecológico e histórico-cultural. A partir de consultas teórico-bibliográficas, a seguinte
análise propõe uma discussão em torno da recente profissionalização turística do estado bra-
sileiro e suas estratégias de regionalização, que buscam criar mecanismos para o progresso
de produtos alternativos ao segmento Sol e Mar.

Introdução

A
cidade de Piranhas, fundada em Museu do Sertão), Torre do Relógio, Igreja
1887 e localizada no sertão alagoa- Nossa Senhora da Saúde, Palácio Dom Pedro
no, notabilizou-se pelo estilo arqui- II e o cemitério.2
tetônico predominantemente neoclássico. Além do processo de patrimonializa-
O município, com população estimada de ção e da exploração econômica em torno
25.298 habitantes (IBGE, 2017),1 foi gratifi- dos cânions do São Francisco, a cidade de
cado como um dos conjuntos arquitetônicos Piranhas também tratou de identificar em
mais preservados do país. Seu sítio histórico sua biografia a história do cangaço, que fi-
e paisagístico foi tombado pelo Instituto do gura como um dos fatores determinantes
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para justificar as visitações – notadamen-
(Iphan), sendo acrescentados o distrito de te, o desfecho de Virgulino Ferreira da Sil-
Entremontes e um trecho de 13 km do Rio va (Lampião), Maria Bonita e mais nove
São Francisco. Na área tombada (que inclui cangaceiros, mortos na Grota do Angico,
mil imóveis) estão Estação Ferroviária (hoje, no município sergipano de Poço Redondo
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Wanderson José Francisco Gomes 193

(200 km da capital Aracaju), tendo suas atividades econômicas mais significativas


cabeças expostas na escadaria do prédio de Piranhas, junto ao turismo.
da atual Prefeitura Municipal de Piranhas, A construção de Piranhas enquanto
após perseguição pelas forças policiais em destino passa, portanto, pelos olhares do “Ve-
28 de julho de 1938. lho Chico”, segundo Santos (et al. 2016, p. 53):
Na reunião desses elementos naturais,
patrimoniais e intangíveis, e percebendo a O “Velho Chico”, como é comumente
prática turística como preponderante para conhecido, é um testemunho de transfor-
esse município alagoano, o presente tra- mações geográficas, socioeconômicas e
balho busca percorrer algumas condições culturais. É lugar de construção diária da
sociais determinantes para a elaboração vida ribeirinha que firmam e fortalecem as
de Piranhas enquanto destino turístico, histórias locais. Lugar de mudanças na pai-
elencando como norteadora uma pergun- sagem por ações antrópicas ou intempéries
ta central: quais fatores políticos e sociais naturais. Lugar onde a história do cangaço
foram cruciais para descortinar uma nova tomou corpo e assume a identidade cultural
organização turística na cidade de Pira- da região. Às margens do rio, nos estados
nhas? E mais: qual o papel de instituições de Sergipe, Bahia e Alagoas, a saga do Can-
público-privadas nesse contexto? gaço é contada e recontada para cada novo
Tem-se como hipótese que a constru- turista, conferindo a toda uma cadeia de
ção da usina hidrelétrica de Xingó, asso- empreendimentos uma oportunidade de
ciada às posteriores políticas estatais de desenvolvimento, tendo o turismo como
regionalização, foi crucial à turistificação de agente impulsionador.
Piranhas e dos municípios circunvizinhos.
Podemos previamente indicar que a for-
Destino Piranhas e os agentes mação dos cânions criados em razão do re-
estatais de mercado presamento das águas do São Francisco foi
De acordo com Santos (et al. 2016), a ponto-chave para desencadear a formatação
relação da região do Baixo São Francisco do produto Piranhas e a exploração comercial
com o turismo se dilata ainda na década da região a partir da década de 1990, quando
de 1950, com a construção das usinas hi- o rio passou a ser acessado em catamarãs,
drelétricas, e, com maior vigor, na década iniciando uma intensa procura de visitantes
de 1990, com a usina hidrelétrica de Xingó, e dando origem a um sistema de motivações
alterando a paisagem e a geografia locais. baseado na experimentação do consumo
Assumia o turismo papel decisivo na trípli- subjetivo do lugar (MAIA, 2011), que viria
ce fronteira que obedece Bahia, Sergipe e a se imbricar com os cenários referentes ao
Alagoas. O fato ressignificou os usos para o cangaço enquanto produto histórico, elevando
Rio São Francisco, anteriormente utiliza- Piranhas à condição de destino turístico.
do prioritariamente para a prática da pes- O processo ganha contornos complexos
ca, que hoje ainda desponta como uma das após a participação incisiva das instituições
194 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

públicas como agentes estatais de merca- infraestrutura. A proposta pôs em formação


do (MAIA; GOMES, 2015), corroborando um complexo e multifacetado mapa turísti-
uma postura que passa a atuar de maneira co, que, de 2003 até 2012, contava com 3.635
contundente na estruturação de destinos municípios organizados em 276 regiões tu-
turísticos, respaldado por planos de médio rísticas (PNT, 2013-2016).
e longo prazo, no uso de marcos regulatórios
e projetos organizacionais ambiciosos. Política de regionalização: a
Nessa seara, os agentes estatais de formatação de um destino alternativo
mercado instauram uma pedagogia do novo A recente profissionalização turísti-
empreendedorismo e dissipam uma ética de ca nacional demanda uma série de ações
competitividade entre os próprios agentes voltadas para a melhoria de serviços e in-
estatais regionais e locais, vislumbrando no fraestrutura. Esse foi o perfil implantado
Plano Nacional de Turismo (PNT), lançado no Nordeste, sob orientação de uma política
em 29 de abril de 2003 (ano de formalização desenvolvimentista, a exemplo da perspec-
de um Ministério do Turismo), o principal tiva autossustentável da atuação do Banco
documento regulatório que visualiza as mais do Nordeste (BNB) e do Programa de De-
destacáveis potencialidades turísticas, alme- senvolvimento do Turismo (Prodetur), que
jando incluir o Brasil no mercado competi- propuseram um planejamento participativo
tivo mundial. envolvendo uma vasta rede de relações, com
Destarte, com as versões posteriores instâncias públicas e/ou privadas.
do PNT, se afunila o objetivo de regionaliza- O megaprojeto é fruto da integração
ção e melhoramento dos serviços turísticos, do Banco Interamericano de Desenvolvi-
bandeiras que passam a ser introduzidas nas mento (BID), do Banco do Nordeste (BNB)
pautas regulares do ministé- e das parcerias firmadas en-
rio. Caudatária dessa nova Caudatária dessa tre Banco Nacional de De-
nova conduta
conduta profissional do turis- senvolvimento Econômico
profissional do turismo
mo nacional, Piranhas passa a e Social (BNDES), Instituto
nacional, Piranhas
despontar como uma das mais passa a despontar Brasileiro de Turismo (Em-
importantes cidades turísti- como uma das mais bratur), Ministério do Tu-
cas de Alagoas, requisitando importantes cidades rismo, Empresa Brasileira
sua participação na história turísticas de Alagoas. de Infraestrutura Aeropor-
do cangaço e utilizando tal tuária (Infraero), Comissão
elemento como economicamente rentável. de Turismo Integrado do Nordeste (CTI/
Sendo assim, as etapas de regionaliza- NE), bem como estados e municípios. Visa a
ção passam a buscar uma descentralização investimentos para que regiões-alvo melho-
do turismo nacional, ampliando o leque de rem seus desempenhos de competitividade,
destinos, aperfeiçoando potenciais turís- indicando treinamentos a partir do Serviço
ticos, organizando regiões por segmentos Nacional de Aprendizagem Comercial (Se-
e priorizando a capacitação de serviços e nac), por exemplo.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Wanderson José Francisco Gomes 195

Em Alagoas, a profissionalização do Em particular, a emergência do turis-


governo brasileiro no segmento do turismo mo alagoano fica por conta de que, ao con-
fez com que sua Secretaria de Turismo se trário do fomento das práticas alternativas
concentrasse em uma nova fase de organiza- ocorridas em outros estados, em Alagoas, o
ção dos produtos, realizando um minucioso turismo não se desenvolve através da me-
mapeamento para identificação, por exem- diação dos patrimônios e das manifesta-
plo, das cidades históricas, como Marechal ções culturais situadas, sendo este um dos
Deodoro, Penedo e Piranhas, sendo aportado impasses dessa atividade em Alagoas. Tal
recurso pelo Ministério da Cultura (o que re- problemática deve ser aprofundada a par-
sultou no tombamento já destacado), que tem tir de dois movimentos: o primeiro se refere
participação fundamental na construção do às possibilidades de ser o turismo uma das
destino piranhense. O mapeamento passou a possibilidades de desenvolvimento do es-
ser respaldado por um documento que buscou tado, e o segundo, atrelado ao primeiro, diz
nortear e regulamentar as ações turísticas no respeito às negativas consequências no que
estado, lançado em 2013: o Plano Estratégico se refere à total dominância do atual modelo
de Desenvolvimento do Turismo de Alagoas. turístico e de seus impactos no que se refere
Atualmente, o mapeamento sofreu al- ao desenvolvimento local (BEZERRA; VAS-
terações, caindo de 50 para 28 o número de CONCELOS, 2012, p. 118-119).
municípios participantes de suas regiões
turísticas, entre as quais Piranhas figura no O município se insere numa recente
Caminhos do São Francisco, com os municí- discussão para que o Estado utilize outros
pios de Água Branca, Delmiro Gouveia, Olho recursos e segmentos turísticos, tanto como
d’Água do Casado, Pão de Açúcar, Penedo e forma de desobstruir praias (objetivo origi-
Piaçabuçu.3 As regiões delimitadas no mapa nal das regionalizações) quanto para garantir
turístico de Alagoas são: Agreste, Caminhos a sustentabilidade e a renovação dos produ-
do São Francisco, Costa dos Corais, Lagoas tos e serviços oferecidos, além de envolver
e Mares do Sul, Metropolitana e Quilombos populações periféricas na cadeia econômi-
(MTUR, 2016). Essa ação de delimitação co-produtiva do turismo.
tende a dar maior visibilidade aos poten-
ciais turísticos e determinar ações específi- Considerações finais
cas, desde que se sinalizem suas demandas. A cidade de Piranhas pode ser obser-
A cidade de Piranhas, em seu esforço vada como um exemplo de relativo suces-
para estruturar um produto voltado para so, seguindo ricos referenciais identitários
o turismo ecológico e histórico-cultural, sertanejo-alagoanos e estimulando a cria-
representa, portanto, uma alternativa so- tividade em torno de seu acervo histórico
cioeconômica para o estado de Alagoas, que e cultural ligado à arquitetura colonial, so-
notadamente se concentra na tipificação Sol bretudo após a construção da usina hidrelé-
e Mar, com ênfase na procura de hospeda- trica de Xingó, ainda na década de 1990, que
gens em sua capital, Maceió. concedeu nova funcionalidade ao Rio São
196 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Francisco, redesenhando e consolidando Wanderson José


seu espaço geográfico. Francisco Gomes
O município obteve êxito principalmen- É graduado em ciências sociais e mestre em
te no uso de um fato de relevância nordestina sociologia pela Universidade Federal de Alagoas
e nacional: o cangaço, podendo ser mais bem (Ufal). É secretário da Unidade Regional de Alagoas
identificado após um processo de regionali- da Associação Brasileira de Ensino de Ciências So-
zação e turistificação que passou a pautar as ciais (Abecs). Pesquisa políticas públicas, políticas
ações do Ministério do Turismo em território culturais, políticas de turismo e mercados turísticos
nacional nos últimos 15 anos, gerando uma e culturais no Brasil.
efervescência nas organizações público-pri-
vadas, que perceberam, então, oportunidades
de diversificação, dinamização e mobilização
de outros destinos economicamente viáveis
em regiões sem o aporte de Sol e Mar.
Piranhas reflete o papel dos agentes
estatais de mercado que adequaram políti-
cas ministeriais em seus cotidianos admi-
nistrativos, gerando a mercadologização
territorial a partir da delimitação das po-
tencialidades. Isso ofereceu a Piranhas e à
sua população um contexto fecundo de apro-
priação de uma nova economia, para além
do agronegócio.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Wanderson José Francisco Gomes 197

Referências

ALVES, Elder P. Maia. A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina.


Maceió: Edufal, 2011, p. 447-484.

ALVES, Elder P. Maia; GOMES, Wanderson J. F. Mercados turísticos e desenvolvimento


regional: a atuação dos agentes estatais de mercado na economia do turismo no
Brasil. Revista Latitude, Alagoas, v. 9, n. 2, 2015, p. 343-389.

BEZERRA, Edson José Gouveia; VASCONCELOS, Daniel Arthur Lisboa de. Roteiros
para um novo modelo de turistificação: do turismo de massa a águas alternativas
(e alegorias) em Alagoas. In: Silvana Pirillo Ramos (Org.). Planejamentos de
roteiros turísticos. Porto Alegre: Asterisco, 2012.

BRASIL, Ministério do Turismo. Plano Nacional de Turismo: o turismo fazendo mais pelo
Brasil 2013-2016. Brasília, 2013.

SANTOS, Gabriela Nicolau dos; ANDRADE, Cyntia; SANTOS, Daniele Soares Silva. Para
além dos cânions de Xingó: atrativos potenciais para o turismo cultural e fluvial
nos municípios de Canindé do São Francisco e Poço Redondo (SE). Ponta de
Lança, São Cristóvão, v. 10, n. 19, jun-dez. 2016, p. 50-72.

Notas

1 Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/al/piranhas/panorama>.


Acesso em: 15 ago. 2018.

2 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/111>. Acesso em: 15


ago. 2018.

3 Para mais informações sobre a recente atualização do mapa turístico de Alagoas,


consultar: <http://www.turismo.gov.br/%C3%BAltimas-not%C3%ADcias/6463-
alagoas-tem-novo-mapa-tur%C3%ADstico.html>. Acesso em: 10 ago. 2018.
198 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ESTADO E CULTURA
NO NORDESTE:
UMA LEITURA DAS POLÍTICAS
CULTURAIS NORDESTINAS
Alexandre Barbalho

Partindo do pressuposto de que no Nordeste há um histórico de forte relação clientelista


entre intelectuais e Estado, discute-se como reagiram as políticas culturais na região com a
atuação do Ministério da Cultura a partir da gestão do ministro Gilberto Gil, em seu esforço
de institucionalização dessas políticas por meio da participação social.

1. O Nordeste é uma invenção ajudaram a fixar a região como terra do


O Nordeste, antes de ser uma delimita- atraso e da miséria, ainda hoje vigente no
ção geográfica ou político-administrativa, é imaginário nacional. Em 1878, a Gazeta de
uma invenção cultural. Uma região que foi se Notícias, do Rio de Janeiro, enviou ao Ceará
constituindo a partir de discursos diversos e um de seus jornalistas, o militante abolicio-
dispersos no tempo e no espaço, junto com nista José do Patrocínio, com o objetivo de
a própria criação da nação brasileira e sua mandar notícias sobre a seca que devastava
comunidade imaginada. Remonta, portan- o sertão e causava comoção na capital do
to, à divisão entre o Norte da cana-de-açú- Império – experiência da qual resultou seu
car e o Sul cafeeiro da segunda metade do romance Os Retirantes, publicado em 1879.
século XIX. Em 1897, o jornalista Euclides da Cunha foi
Essa invenção não se dá somente a par- enviado por O Estado de S. Paulo para cobrir a
tir de formulações nativas. Como se disse, guerra dos “bárbaros”, conselheiristas contra
é um processo disperso. Há dois exemplos o Exército Nacional. A estadia de Euclides no
de representação do Nordeste publicizada interior da Bahia virou Os Sertões, publicado
nos anos 1800 na imprensa sudestina que em 1902, sucesso de público para a época e
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 199

revelador do autoritarismo republicano con- onde se encontram poder e linguagem, onde


tra os sertanejos. se dá a produção imagética e textual da es-
Claro que se trata de um outro Norte, pacialização das relações de poder” (ALBU-
futuro Nordeste, esse retratado por Eucli- QUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 23).
des e Patrocínio, e não daquele analisado
pelo pernambucano Gilberto Freyre em Ca- 2. Política cultural de intelectuais e
sa-Grande & Senzala (1933), livro traduzido políticos (e vice-versa)
e editado em várias línguas e países e uma É de se supor que nessa região as relações
das principais (e primeiras) ferramentas de entre os intelectuais e a política, entre a
leitura e interpretação do Brasil para os não cultura e o Estado, se não são exclusivas dela,
brasileiros – vide o depoimento do anglo-ja- ganham ali liames fortes. Há um vai e vem de
maicano Stuart Hall sobre a importância de indivíduos entre os campos cultural e político,
ter lido Freyre nos anos 1950 para sua obra em que o capital amealhado em um é recon-
e suas reflexões sobre hibridismo. vertido em capital do outro, garantindo car-
Trata-se, no primeiro caso, do Nordeste reiras mais ou menos vitoriosas, a depender
seco, de O Outro Nordeste, como revela o títu- das jogadas e tomadas de posição acertadas ou
lo do livro do sociólogo cearense Djacir Me- não de cada um desses dublês de escritores (a
nezes. Publicado em 1937, funcionou como grande maioria) e políticos.
uma espécie de resposta a Casa-Grande & Podemos lembrar do cearense José de
Senzala, pois este, recorrendo à metonímia, Alencar, romancista, autor de, entre inúmeros
pretendia falar de todo o Nordeste referindo- outros, Iracema, uma “lenda” sobre a origem
-se apenas a uma pequena parte, à do litoral não apenas de sua província, mas de todo o
abençoado com o solo de massapê, ou seja, a país, ao estabelecer o encontro amoroso entre
Zona da Mata da Paraíba à Bahia, esquecen- o colonizador e a indígena, daí resultando o
do a parte maior do território, aquela interior, primeiro cearense/brasileiro. Foi também de-
ocupada na trilha do gado – os caminhos de putado pelo Ceará, em constante embate com
dentro e de fora, na clássica formulação do o imperador Pedro II, de quem foi ministro da
historiador cearense Capistrano de Abreu. Justiça. Lembramos também do maranhense
Vê-se, nessa breve digressão, como é José Sarney, imortal da Academia Brasileira
complexa a identificação do que seja o Nor- de Letras e um dos mais longevos políticos
deste, como é impossível fixá-lo em um só brasileiros. Presidente do país, criou o Minis-
sentido. Os discursos que o constituem se tério da Cultura. E, bem antes, quando eleito
espalham por produtos culturais (músicas, governador de seu estado, convidou o cineasta
filmes, romances, poesias, peças teatrais, baiano Glauber Rocha para filmar sua posse
ensaios, textos acadêmicos e jornalísticos) – material que resultou no curta-metragem
desde o século XIX e chegam até hoje, início Maranhão 66 e em várias sequências de Terra
do terceiro milênio. Nessa longa duração, em Transe, filme cujo principal personagem é
pode-se dizer, junto com Durval Muniz de um poeta agitador das massas e conselheiro
Albuquerque Júnior, que “o Nordeste nasce político de um governador populista.
200 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Também não é de se estranhar que esses Se hoje existe o Conselho Federal de


intelectuais em relação íntima com o poder Cultura, com uma larga folha de serviço à
acabem por reivindicar a atuação institu- cultura nacional [...] isso se deve [...] ao fato
cional dos governos estaduais na cultura de eu ter me sentado como secretário-geral
por meio de políticas públicas conduzidas da Academia Brasileira de Letras, ao lado
por eles próprios, ou que assumam posições do Presidente Castelo Branco [...] aproveitei
privilegiadas na elaboração das políticas cul- a vizinhança [...] para lhe sugerir, teimosa-
turais em âmbito federal. mente, a criação [do órgão].1
No contexto estadual, é paradigmático
o caso do Ceará, que criou a primeira Secre- Não é à toa que os elementos fortes do
taria de Cultura do país, em 1966. A ideia pensamento do CFC eram os da mestiça-
surgiu durante o I Congresso Cearense de gem, da tradição e do popular, pois, diante
Escritores, realizado em 1946. Uma das 19 da indiscutível variedade regional, a saída
teses discutidas e aprovadas no evento foi foi apontar esses valores como emblemas da
apresentada pelo historiador Raimundo Gi- diversidade na unidade nacional. A região,
rão, intitulada A Necessidade de uma Secre- longe de ser negada, passou mesmo a ser
taria de Cultura. Escritor profícuo, com mais valorizada e a ter o status de uma “filosofia
de 50 obras publicadas, membro do Instituto social”, como aponta Renato Ortiz (1985).
Histórico e Geográfico de seu estado, Girão Nesse contexto, sobressai o Nordeste como
foi prefeito de Fortaleza e se tornou o primei- pretenso berço das mais autênticas mani-
ro secretário de Cultura. Plácido Castelo, o festações da cultura brasileira, em mais um
governador que o nomeou, também fazia recurso metonímico do poder simbólico.
parte do Instituto do Ceará e era autor de
pesquisas sobre assuntos regionais. 3. Uma hipótese e uma questão
No contexto federal, é reveladora, Diante do contexto esboçado acima, é
durante o Regime Militar, a atuação do factível propor como hipótese que, historica-
Conselho Federal de Cultura (CFC), órgão mente, há no Nordeste um ambiente favorável,
responsável por formular o pensamento so- de um lado, à criação de espaços institucionais
bre o setor naqueles anos de exceção. Criado para as políticas culturais, e de outro, ao estabe-
em 1966 pelo presidente Castelo Branco, cea- lecimento de relações pouco republicanas en-
rense e amigo da escritora e sua conterrânea tre o Estado e a cultura, baseadas no intimismo
Rachel de Queiroz, ela própria integrante do e no clientelismo entre intelectuais e políticos,
Conselho, o CFC reuniu intelectuais reno- e materializadas em políticas de “balcão”.
mados, de perfil conservador – muitos de- Partindo do pressuposto de que essa hi-
les nordestinos. Em depoimento publicado pótese é verdadeira, uma questão, entre outras,
no jornal O Povo, de Fortaleza, o escritor se coloca: como reagiu essa região diante das
maranhense Josué Montello, um dos fun- políticas culturais promovidas pelo Ministério
dadores do CFC e seu primeiro presidente, da Cultura (MinC) a partir da gestão do minis-
entrega o jogo: tro baiano Gilberto Gil, em 2003? A pergunta
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 201

tem pertinência porque, como é sabido por pelo Suplemento de Cultura da Munic 2006.
todos(as) que acompanham essa área, há Ainda que seja um indicador limitado –
um esforço por parte de Gil e sua equipe em aliás, como todos os indicadores; o MinC (BRA-
transformar a cultura em objeto de políticas de SIL, 2010), em seu documento fundante sobre
Estado, e não só de governo, a partir da lógica o SNC, por exemplo, recomenda a combinação
federalista – com o Plano Nacional de Cultura do IGMC com outros indicadores, como os ín-
(PNC) e o Sistema Nacional de Cultura (SNC), dices educacionais, sociais, econômicos etc. –,
por exemplo – e da participação social possi- é importante retomá-lo no sentido de trazer
bilitada por conferências, consultas públicas, elementos que possam esclarecer a configu-
câmaras setoriais e conselho de cultura pari- ração das políticas culturais nordestinas nos
tário e deliberativo, entre outros instrumen- últimos 15 anos.
tos de governança (BARBALHO; BARROS; O IGMC é subdividido em outros índices
CALABRE, 2013; BARBALHO; CALABRE; mais específicos: o primeiro é o de Fortaleci-
RUBIM, 2015; BARBALHO; RUBIM, 2007; mento Institucional e Gestão Democrática.
RUBIM, 2010). Como situa Miranda, esse índice leva em con-
Para ensaiar uma resposta à questão – e sideração que “a existência de instituições que
trata-se somente disto mesmo, um ensaio –, preservem a prioridade do setor através de vá-
vale a pena recorrer aos dados disponibilizados rias administrações é um fato positivo para a
pelo Índice de Gestão Municipal em Cultura e gestão cultural, pois favorece a continuidade
pelos Suplementos de Cultura da Pesquisa de e o seu crescimento”, bem como “o princípio
Informações Básicas Estaduais (Estadic) 2014 de que, quanto mais a população participa das
e da Pesquisa de Informações Básicas Munici- decisões de gestão, mais efetiva será a ação em
pais (Munic) 2014, do IBGE. Ainda que defa- prol da cultura no município” (MIRANDA,
sados, é o que existe de mais atualizado sobre 2009, p. 2). O segundo é o Índice de Infraes-
o setor, que só muito recentemente tem sido trutura e Recursos Humanos. E, por fim, o Ín-
objeto de atenção por parte dos formuladores dice de Ação Cultural, que, diferentemente dos
oficiais de estatísticas. anteriores, voltados para os meios, mensura a
oferta no setor por parte do município.
4. O que dizem os dados De acordo com o Índice de Fortaleci-
No esforço de obtenção de informações mento Institucional e Gestão Democrática,
e construção de índices balizadores para as nenhum município nordestino estava entre
políticas culturais, Rogério Miranda (2009), os dez mais bem avaliados no ano de 2006.
pesquisador do Instituto de Pesquisa Econô- Contudo, em termos de estado, o Ceará esta-
mica Aplicada (Ipea), desenvolveu o Índice de va em quinto lugar, atrás de Distrito Federal,
Gestão Municipal em Cultura (IGMC). Trata- Minas Gerais, Mato Grosso e Mato Grosso do
-se de um primeiro índice estatístico na área, Sul. Também não havia qualquer município
que possibilitou ranquear os municípios bra- nordestino entre os dez primeiros classifi-
sileiros em relação ao quesito gestão cultural cados, segundo o Índice de Infraestrutura e
recorrendo às informações disponibilizadas Recursos Humanos. Mas o estado da Bahia,
202 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

apesar de não fazer parte do grupo com as então se a esse dado se combinam outros que
melhores médias, possuía mais de 50% dos possam apontar para uma nova realidade.
seus municípios com valores acima da média Quando se trata de publicizar e tornar
nacional para esse índice. mais ágil o acompanhamento das políticas,
Quanto ao Índice de Ação Cultural, Re- os órgãos gestores da cultura nos estados
cife liderava o ranking, no entanto, sendo a nordestinos não se destacam, pois apenas
única cidade nordestina a fazer parte do gru- cinco (Ceará, Paraíba, Pernambuco, Ala-
po das dez melhores. Por sua vez, quando se goas e Bahia) utilizavam sistemas informa-
olha o conjunto dos municípios dos estados, tizados de gerenciamento, e nenhum deles
Ceará e Pernambuco estão entre os cinco tinha instalada a total capacidade operativa
mais pontuados. Por fim, en- definida pelo IBGE em seis
tre os dez municípios com os Entre os dez municípios funcionalidades: 1. Cadastra-
com os maiores valores
maiores valores no IGMC, Re- mento de projetos culturais,
no IGMC, Recife aparece
cife aparece na quarta coloca- pelos agentes, para solicitação
na quarta colocação,
ção, com 172,86 [para efeito com 172,86 [para efeito de apoio; 2. Acompanhamen-
de comparação, Caxias do Sul de comparação, Caxias to da execução dos projetos
(RS) estava em primeiro, com do Sul (RS) estava em cadastrados; 3. Cadastro de
179,51]. Quando se restringe o primeiro, com 179,51]. agentes e objetos culturais; 4.
índice somente às capitais, Re- Planejamento orçamentário
cife sobe para primeiro no ranking do IGMC e da política de cultura; 5. Gestão do patrimô-
Teresina aparece na nona colocação. nio cultural; e 6. Gestão de equipamentos
Vamos agora para um conjunto de dados culturais. A ausência geral se refere ao item
mais recentes formado pelo Suplemento da 4, exatamente o mais nevrálgico, por tratar
Estadic e da Munic de 2014. Comecemos com da forma como os recursos são aplicados.
informações que se relacionam com o Índi- Como contraponto ao contexto da ges-
ce de Fortalecimento Institucional e Gestão tão estadual, Pernambuco (16,8%) e Ceará
Democrática. No que diz respeito à gestão, o (15,2%) estão entre os sete estados brasilei-
Suplemento informa que, em 2014, todos os ros que contavam com a maior quantidade
estados nordestinos possuíam algum órgão de municípios com sistemas de informatiza-
gestor específico para a cultura, a despeito da ção, e o segundo se destaca entre aqueles com
diversidade de formatos (secretaria, fundação maior proporção de municípios com páginas
etc.). Quando se observa a realidade munici- de conteúdo exclusivo do órgão gestor de cul-
pal, o Maranhão, entre os estados brasileiros, tura, com 14,3%.
apresenta a maior proporção de municípios Outro ponto importante para o melhor
com estrutura organizacional exclusiva para a desempenho da política pública se refere
política cultural (62,8%). Com certeza, a exis- à capacitação de seus gestores. Esse foi um
tência de secretaria ou fundação de cultura item alvo de grande investimento por parte
não garante a efetividade da política e muito do MinC, no esforço de implantação do SNC,
menos o seu caráter republicano. Vejamos a partir principalmente do segundo governo
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 203

Lula. Entre 2009 e 2010, a Secretaria de Arti- Ainda no quesito formação, agora vol-
culação Institucional (SAI) do Ministério ela- tada para os setores da cultura, todos os es-
borou o Programa de Formação de Gestores tados promoveram cursos em alguma das 13
Culturais, cujo Curso Piloto de Gestão Cultu- categorias consideradas pelo IBGE: música;
ral ocorreu em Salvador. Logo na sequência, artes plásticas; teatro; gestão cultural; dança;
em 2012, a Fundação Joaquim Nabuco, em patrimônio, conservação e restauração; ma-
parceria com o MinC e a Universidade Federal nifestações tradicionais populares; cinema;
Rural de Pernambuco, ofertou o primeiro cur- literatura; vídeo; circo; artesanato; e fotogra-
so de especialização em formação de gestores fia. Pernambuco foi o único estado do país
culturais dos estados do Nordeste. que afirmou promover capacitação em todas
Em grande parte como as áreas, e o Ceará ocupava a
Em grande parte como
desdobramento da atuação do quarta colocação, com 53,3%
desdobramento da
Governo Federal, todos os es- atuação do Governo entre os cinco estados onde
tados nordestinos ofereceram Federal, todos os mais da metade de seus muni-
algum tipo de formação para estados nordestinos cípios ofereceram algum curso.
seus servidores na área da cul- ofereceram algum tipo Quanto ao esforço de
tura, ainda que nenhum tenha de formação para seus transformar a política cultu-
atuado nos sete temas estabe- servidores na área ral em política de Estado, um
lecidos pelo IBGE: 1. Curso de da cultura. dado importante se refere aos
elaboração e gestão de proje- planos. Nesse ponto, todos os
tos; 2. Curso de gestão cultural; 3. Curso de estados nordestinos estavam com seu pla-
editais; 4. Curso de capacitação tecnológica e no de cultura em elaboração em distintos
administrativa; 5. Curso de leis de incentivo; estágios. A exceção da região e do país era
6. Curso de captação de recursos; 7. Curso de Alagoas, que já tinha o seu formalizado e re-
gestão de equipamentos culturais. gulamentado por instrumento legal.
Os cursos mais ofertados estão inseridos Por sua vez, no que diz respeito aos oito
nos itens 1, 5 e 6, de perfis mais tradicionais, objetivos das políticas culturais estabeleci-
orientados muitas vezes pela lógica das leis das pelo IBGE (1. Preservar o patrimônio
de incentivo à cultura. São formações ofereci- histórico, artístico e cultural; 2. Tornar a
das tanto pelo poder público quanto pelo setor cultura um dos componentes básicos para a
privado, desde a criação da Lei Sarney, com qualidade de vida da população; 3. Democra-
incremento na gestão de Francisco Weffort tizar a gestão cultural; 4. Integrar a cultura
no MinC (1995-2002), quando se legitimou ao desenvolvimento local; 5. Dinamizar as
a figura do captador de recursos. O menos atividades culturais do estado; 6. Garantir
ofertado foi o item 7 (apenas Piauí e Bahia), a sobrevivência das tradições culturais lo-
o que pode ser indício da pouca presença de cais; 7. Descentralizar a produção cultural;
equipamentos públicos de cultura sob respon- 8. Ampliar o grau de participação social nos
sabilidade do órgão gestor estadual ou da falta projetos culturais), o Piauí foi o único estado
de profissionalização na sua gestão. nordestino a listar todos eles.
204 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

É revelador de um novo momento das a atuação dos conselheiros basicamente se


políticas culturais na região que o objetivo resume a se pronunciar, a emitir pareceres e,
mais citado não tenha sido o de preservação em menor escala, a elaborar e aprovar planos
do patrimônio nem o de garantir as tradições e propor, avaliar e referendar projetos cultu-
culturais – temas que marcaram as políticas rais. Funções estratégicas, como administrar
culturais nordestinas e brasileiras em tem- o fundo de cultura ou atuar nos temas referen-
pos anteriores –, mas o de democratizar a tes aos convênios, principal via de repasse de
gestão cultural. recursos para a sociedade civil, estão quase ou
Um item fundamental para a questão mesmo totalmente ausentes no cotidiano dos
que estamos enfrentando diz respeito à exis- conselheiros de cultura.
tência, ao tipo e ao funcionamento de conse- Analisando-se as respostas dos estados
lhos de cultura. De acordo com a Tabela 1, nordestinos quanto à conferência de cultura,
todos os estados nordestinos não só possuem todos já haviam realizado conferências, e no
conselhos, como esses são ou paritários ou Piauí, Ceará, Paraíba, Alagoas e Bahia elas
com maior quantidade de conselheiros re- estavam previstas por lei. No âmbito munici-
presentando setores da so- pal, 2.793 municípios tinham
ciedade civil. Dessa forma, É revelador de um realizado suas conferências,
superou-se, pelo menos for- novo momento das sendo que em 811 havia previ-
malmente, o conselho “chapa políticas culturais na são em lei para a realização. O
branca”, no qual predominava região que o objetivo Nordeste foi a região que apre-
mais citado não tenha
o número de representantes sentou o maior porcentual de
sido o de preservação
governamentais e não se atua- municípios com conferências
do patrimônio nem
va, assim, como espaço de me- o de garantir as já realizadas (64,4%, sendo
diação entre o poder público e tradições culturais, mas que 18,7% estavam previstas
os cidadãos. o de democratizar a por lei). Para se ter uma ideia
É igualmente relevante gestão cultural. do alcance desse dado, na Re-
que quase todos, com exceção gião Sul, segunda colocada,
do Piauí, não se restrinjam mais ao papel a porcentagem foi de 46,6%, portanto bem
limitado de assessorar o gestor quando abaixo da realidade nordestina. Entre os seis
consultado, mas que deliberem sobre a estados que tinham mais de 80,0% dos mu-
política a ser implementada pelo Poder Exe- nicípios com conferências realizadas estão
cutivo. Há ainda que avançar no que se refere o Ceará (88,0%, 162 municípios) e a Bahia
aos conselhos assumirem caráter normativo (84,9%, 354 municípios).
e fiscalizador, mas os números apontam uma Quanto ao fomento ou apoio a iniciati-
situação de relativo equilíbrio, sendo que Ma- vas específicas para o campo da diversidade
ranhão, Paraíba e Pernambuco possuem con- cultural, também um indicador importante
selhos que reúnem as quatro características. no que se refere à democratização da ação
Também é preciso ampliar as atribuições do Estado na cultura, todos os estados nor-
desses conselhos. Como indica a Tabela 2, destinos possuem políticas com esse fim. O
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 205

destaque é o Rio Grande do Norte, que só não Estadic e da Munic de 2014, ocorreu o for-
atende a um – o de “pessoa com deficiência” talecimento desse processo. A existência
– dos 13 segmentos listados pelo IBGE, vin- generalizada de órgãos gestores exclusivos
do atrás apenas de São Paulo, que atende a para a área, alguns deles com sistemas in-
todos. Os outros segmentos são: culturas formatizados de gerenciamento – contando
populares; comunidades indígenas; comu- com gestores capacitados, conselhos pari-
nidades afro-religiosas; comunidades qui- tários e deliberativos, planos e conferências
lombolas; crianças e adolescentes; jovens; participativas –, entre outros sinalizadores,
outras comunidades tradicionais; comunida- aponta para um novo modus operandi das
de LGBTT; mulheres; idosos; comunidades políticas culturais nordestinas.
de descendentes de nacionalidades estran- Talvez a melhor expressão da nova
geiras; comunidades ciganas. composição de forças seja a afirmação dos
valores da participação, da democracia e da
5. Algumas considerações finais institucionalização por parte dos gestores
A partir dos dados apresentados acima estaduais de cultura nos períodos imediata-
é factível afirmar que a política cultural no mente anterior e posterior à realização da III
Nordeste se assenta hoje em patamar di- Conferência Nacional de Cultura, entre 27 de
ferente daquele que vigorou entre os anos novembro e 1 de dezembro de 2013, que en-
1960 e 1990, no qual predominava, de um volveu milhares de pessoas nas conferências
lado, a atuação de intelectuais renomados municipais e estaduais que a antecederam
e próximos ao poder político vigente e, de em todo o país.
outro, uma atuação com vistas a expressões Para encerrar, vejamos algumas destas
eruditas e à valorização do popular. Obser- falas das quais destaquei algumas passagens
va-se um esforço de institucionalizar a em itálico. Segundo o então secretário de Es-
relação do governo no campo cultural re- tado da Cultura de Alagoas, Osvaldo Viégas, a
correndo a diversos instrumentos de gestão III Conferência Estadual foi “um momento de
pública, como planos, conselhos, fundos, interlocução entre poder público e sociedade
conferências e, de forma democrática, va- civil no intuito de estabelecer diretrizes para
lorizando a participação da sociedade ci- o desenvolvimento da cultura em Alagoas”.2
vil, mais especificamente dos agentes do Por sua vez, a secretária de Estado da Cultu-
campo cultural. ra de Sergipe, Eloísa Galdino, defendeu que
Percebe-se que, entre a divulgação dos “as conferências municipais visam a mobi-
resultados do IGMC, baseados em dados de lização das comunidades para o debate e a
2006 – em que os estados nordestinos não proposição de políticas de cultura junto a
tiveram muito destaque no cenário nacional, representantes do poder público”, favore-
a não ser, em determinados quesitos, Ceará, cendo a “participação intensa e coletiva dos
Bahia e Pernambuco (nos Índices de Fortale- agentes de cultura, com base em uma visão
cimento Institucional e Gestão Democrática diferenciada sobre como construir políticas
e de Ação Cultural) –, e a do Suplemento da públicas para esta área”.3
206 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

TABELA 1
ESTADOS DO NORDESTE COM CONSELHO DE CULTURA, POR ALGUMAS CARACTERÍSTICAS (2014)

CARÁTER CARÁTER CARÁTER


ESTADO COMPOSIÇÃO CONSULTIVO DELIBERATIVO NORMATIVO
Maranhão Paritário Sim Sim Sim
Piauí Maior representação da sociedade civil Sim Não Não
Ceará Maior representação da sociedade civil Não Sim Não
Rio Grande do Norte Maior representação da sociedade civil Sim Sim Não
Paraíba Paritário Sim Sim Sim
Pernambuco Maior representação da sociedade civil Sim Sim Sim
Alagoas Paritário Sim Sim Não
Sergipe Maior representação da sociedade civil Sim Sim Não
Bahia Maior representação da sociedade civil Sim Sim Sim

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Estaduais 2014.

TABELA 2: ESTADOS DO NORDESTE, POR ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO DE CULTURA (2014)

FISCALIZAR O
PRONUNCIAR- ACOMPANHAR CUMPRIMENTO
SE E EMITIR E AVALIAR A DAS DIRETRIZES PROPOR,
PARECER SOBRE ELABORAR EXECUÇÃO DE E INSTRUMENTOS AVALIAR E
ASSUNTOS DE E APROVAR PROGRAMAS DE FINANCIA- REFERENDAR
NATUREZA PLANOS DE E PROJETOS MENTO DA PROJETOS
ESTADO CULTURAL CULTURA CULTURAIS CULTURA CULTURAIS
Maranhão Sim Sim Sim Sim Não
Piauí Não Sim Não Não Sim
Ceará Sim Não Sim Não Não
Rio Grande do Norte Sim Não Não Não Sim
Paraíba Não Sim Não Sim Não
Pernambuco Sim Sim Não Não Não
Alagoas Sim Não Não Não Sim
Sergipe Sim Não Não Não Sim
Bahia Sim Não Sim Não Não

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Estaduais 2014.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 207

QUANTIDADE DE
CARÁTER ESCOLHA DOS INTEGRANTES REUNIÕES NOS CONSELHEIROS
FISCALIZADOR DA SOCIEDADE CIVIL ÚLTIMOS 12 MESES SÃO REMUNERADOS
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 4 Não
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 48 Sim
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 6 Não
Sim Indicação do poder público e da sociedade civil 80 Sim
Sim Indicação da sociedade civil 12 Não
Sim Indicação do poder público 96 Sim
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 6 Não
Não Indicação do poder público 44 Sim
Não Outra forma de escolha 24 Não

FISCALIZAR AS
APRECIAR
E ATIVIDADES ELABORAR
APROVAR DE ENTIDADES NORMAS E APRECIAR
FISCALIZAR AS NORMAS E CULTURAIS ADMINISTRAR DIRETRIZES E APROVAR
ATIVIDADES DO DIRETRIZES DE CONVENIADAS O FUNDO PARA NORMAS PARA
ÓRGÃO GESTOR FINANCIAMENTO COM A GESTÃO ESTADUAL DE CONVÊNIOS CONVÊNIOS
DA CULTURA DE PROJETOS ESTADUAL CULTURA CULTURAIS CULTURAIS
Sim Sim Sim Não Não Não
Não Não Não Não Não Não
Sim Não Não Não Não Não
Não Não Não Não Não Não
Não Não Não Não Sim Não
Sim Não Não Não Não Não
Não Não Não Sim Não Não
Não Não Não Sim Não Não
Não Sim Não Não Não Não
208 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A secretária de Estado da Cultura do


Maranhão, Olga Simão, falando dos mais Alexandre Barbalho
de 120 municípios que realizaram as con- É doutor em comunicação e cultura con-
ferências municipais no seu estado, avaliou temporâneas pela Universidade Federal da Bahia
que “impõe-se às instituições e à sociedade (UFBA). Professor dos programas de pós-gradua-
civil o dever de caminhar juntas para que o ção em sociologia e em políticas públicas da Uni-
fazer cultural seja também o esforço de criar versidade Estadual do Ceará (Uece) e do programa
condições, facilitar e assegurar a manutenção de pós-graduação em comunicação da Universida-
dos valores que convivemos, enfim, de pensar de Federal do Ceará (UFC).
uma política de Estado para a cultura com a Líder do Grupo de Pesquisa em Políticas de
participação de todos”. Cultura e de Comunicação – CULT.COM. Autor e or-
Para o secretário de Estado da Cultura ganizador de diversos livros e artigos, entre os quais
da Paraíba, Chico César, a Conferência Es- Política Cultural e Desentendimento (Ibdcult, 2016).
tadual foi positiva “por aproximar Governo
e agentes culturais, poder público e sociedade
civil”.4 O processo das conferências, de ela-
boração dos planos e da criação dos conse-
lhos de cultura se dá de forma coletiva e com
participação da sociedade, o que reforça “a
legitimidade e a necessidade dessas alte-
rações” e “o conjunto dos cidadãos, de uma
forma democrática e transparente”, como
avaliou o secretário de Cultura do Ceará,
Paulo Mamede.5
O que os secretários afirmam, portan-
to, é a elaboração da política cultural como
resultado da relação imprescindível entre
Estado e sociedade civil, e não mais a par-
tir das decisões dos intelectuais renomados
fechados em gabinetes com os gestores pú-
blicos. Agora, pode-se afirmar, são outros os
tempos. E que perdurem.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 209

Referências

BARBALHO, Alexandre; BARROS, José Márcio; CALABRE, Lia (Org.). Federalismo e


políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2013.

BARBALHO, Alexandre; CALABRE, Lia; RUBIM, Albino (Org.). Políticas culturais no


governo Dilma. Salvador: Edufba, 2015.

BARBALHO, Alexandre; RUBIM, Albino (Org.). Políticas culturais no Brasil.


Salvador: Edufba, 2007.

BRASIL. Ministério da Cultura. Estruturação, institucionalização e implementação do


Sistema Nacional de Cultura. Brasília: MinC, 2010.

IBGE. Perfil dos estados e dos municípios brasileiros de 2014.


Rio de Janeiro: IBGE, 2015.

MIRANDA, Rogério. Índice de gestão municipal em cultura. In: V Encontro de Estudos


Multidisciplinares em Cultura (Enecult). Anais. Salvador: Edufba, 2009. Disponível
em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19406-3.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2018.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.

RUBIM, Albino (Org.). Políticas culturais no governo Lula. Salvador: Edufba, 2010.

Notas

1 O Povo, 22 mar. 1975, p. 18.

2 Disponível em: <http://primeiraedicao.com.br/noticia/2013/08/30/iv-conferencia-


estadual-de-cultura-e-aberta-e-maceio>. Acesso em: 5 dez. 2018.

3 Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/banner-3/-/asset_publisher/


axCZZwQo8xW6/content/conferencias-nos-estados/10883>.
Acesso em: 5 dez. 2018.

4 Disponível em: <http://paraiba.pb.gov.br/conferencia-estadual-apresenta-


resultados-positivos-para-o-setor-de-cultura/>. Acesso em: 5 dez. 2018.

5 Disponível em: <https://www.secult.ce.gov.br/2014/03/06/aprovada-nova-lei-do-


conselho-estadual-de-politica-cultural/>. Acesso em: 5 dez. 2018.
210 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 211
212 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

UM DEDO ACIMA DO CHÃO:


ENCANTO E PRODUÇÃO CULTURAL COMO ATALHO
PARA A SUSTENTABILIDADE SERTANEJA
Alemberg Quindins

Este artigo propõe a potencialização da sustentabilidade sertaneja a partir do diálogo


com seus mitos, entre eles os das águas e das pedras. O autor observa que os modos de produção
contemporâneos permitem abordagens “encantadas” com a adoção de novas linguagens e o
uso adequado das tecnologias.

S
ão dois os territórios dos mitos: um encantada, por causa de sua escassez cons-
deles fica no chão, o outro está um tante. Um rio passa a maior parte do tempo
dedo acima da terra. Esse território seco e, quando vem o inverno, voltam todos
fincado no chão é o espaço que os mitos, que os peixes. Às margens dos rios, os animais
estão um dedo acima do chão, descem para matam a sede, então a caça também está
habitar. A ocupação do sertão se dá por meio atrelada à água. Quem cuida de tudo isso é
de dois pontos mitológicos: as águas e as pe- a mãe d’água, que faz a maestria desse repo-
dras. As águas são ligadas ao mito da mãe voamento da vida reportando-se a uma prin-
d’água, que remete à vida, ao povoamento, cesa encantada na forma de serpente. Uma
à fauna. Já o mito das pedras está ligado ao vez por outra, a princesa se desencanta e as
castelo encantado. Essas duas esferas dialo- pessoas voltam a vê-la. Nas pinturas rupes-
gam através do encanto. tres do Nordeste, quando se vê uma serpente,
Todos os rios do sertão estão ligados ao é símbolo de água, esse bem precioso da vida
mito da mãe d’água, que tem os caldeirões, que some e volta trazendo repovoamento.
os boqueirões e as camas da mãe d’água. No Já o mito das pedras está ligado às for-
território sertanejo, a água já é, ela mesma, mações rochosas que falam de um reino que
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alemberg Quindins 213

existiu e se encantou, em cujo centro exis- por sua vez, também se avultam em mitos.
tia um lago. Esse reino encantado aparece Outro dia ouvi alguém dizer que Luiz Gon-
e desaparece, e quem adentrá-lo precisa zaga cantava feito um vendedor de jerimum
sair em tempo ou se encantará lá dentro. na feira. E não é que se transformou em de-
Os portugueses já encontraram o sertão as- senvolvimento esse canto?
sim, encantado. Mais tarde, com o início do A Fundação Casa Grande, onde traba-
ciclo do couro no Nordeste, surgem novos lho, fica na casa que deu origem à cidade de
encantamentos, como o mito do boi aruá, Nova Olinda, no Ceará. Essa casa, tida por
que vaqueiro nenhum pegava. O encanto assombrada, foi restaurada para cumprir a
sertanejo engole tudo: cidades, reinados, missão de alavancar o desenvolvimento local
princesas. A boca do sertão é o encanto, como veículo cultural. Até hoje, a casa pode
que tudo degusta e devolve como cultura. A dormir aberta que ninguém entra, por acre-
palavra sertão tem uma ligação muito forte ditar-se que ali vivem fantasmas. Ou seja, o
com a palavra encanto. Todo sertão, para ser espaço continuou mitológico, apesar do seu
sertão, tem que ser encantado. O sertão é um novo papel. Na Mãe d’Água, também em Nova
portal para o encanto e é imaterial, embora Olinda, há um parque com formação rochosa
haja um local físico para ele. Todos os mitos do período Cretáceo. Um lugar ideal para ser
descem do sertão para o encanto. O sertão é tombado – por ter esculturas rochosas – e,
a morada dos mitos. a partir disso, desenvolverem-se produtos
Esse encantamento pode criar cami- ligados à mitologia local.
nhos outros para o desenvolvimento. A prin- Em Nova Olinda, a partir do encontro
cípio, o encanto está no nível imaterial, mas, com o seleiro e o vaqueiro, desenvolvemos
quando se transforma em produto cultural, um produto de design altamente estilizado,
temos desenvolvimento. Veja o Velho Oeste centrado no ciclo do couro e em um mestre
americano: um período curto das fronteiras local. Por isso, esse produto deu certo. O
da habitação que o cinema transformou em desenvolvimento pede origem, profundi-
encanto, gerando produtos que até hoje ali- dade e conteúdo, e o sertão conta com esses
mentam uma cadeia cinematográfica, um elementos. Aprofundados, mitos podem se
segmento da arte. Se há profundidade de transformar em quadrinhos, em cinema,
conteúdo, é possível gerar desenvolvimento em produtos, em todo um mercado cultural.
a partir dos mitos. Hoje, no geral, estamos vivendo um encanta-
Aliás, os mitos são a fonte que alimen- mento mercadológico, mas haverá um futu-
ta a produção cultural sertaneja, da música ro em que produtos locais e exclusivos terão
de Luiz Gonzaga à literatura de Augusto dos mais valor do que produtos de grandes mar-
Anjos e Zé Limeira. Dos mitos pode brotar o cas. Os mitos sertanejos já trazem consigo a
desenvolvimento local, com museus e pro- própria ideia de sobrevivência, desde esses
dutos culturais que permitam desenvolver o rios que secam e que voltam a se encher.
sertão a partir de quem cantou sua mitolo- Minha intenção de formar jovens ser-
gia. E a partir de produtores culturais, que, tanejos em linguagens contemporâneas já
214 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

foi interpretada como um potencial incenti- Assim, universos paralelos existem.


vador de êxodo rural, por supostamente não Quando se conta a lenda de uma serpente
haver mercado de trabalho local. Mas houve que se transformou em mulher, isso é algo
uma mudança de modos de produção e a mi- que se pode construir dependendo do domí-
gração também se encantou. Eu sou filho de nio da tecnologia. Então devemos discutir
retirante. Fui embora do Ceará para Goiás para que essa tecnologia seja apropriada em
com 9 anos e só voltei com 18. Em Goiás, meu todos os cantos, seja no sertão, seja na 7th
pai chamava todo cearense de conterrâneo Avenue. Nossa biblioteca universal é esse
e nós lhe pedíamos a benção. As condições reino encantado, onde bebemos e de onde
financeiras e a falta de chuva até hoje geram trazemos os mitos, os personagens que po-
correntes migratórias que levam o sertanejo dem virar produtos culturais. Por que o povo
a sair. Sertanejos povoaram a Amazônia, as americano conseguiu fazer o faroeste e não
fronteiras, estabeleceram-se nas cidades do conseguimos fazer isso com o cangaço, que
Sudeste. Hoje, posso participar de uma confe- tem toda uma ambiência, território e vestuá-
rência em Londres sentado em São Paulo. As rio característicos?
migrações não são mais aquelas É que ainda precisamos de
que ocorriam em paus de arara. O mito pode se acessibilidade. Os meninos do
O mundo é um imenso êxodo. relacionar com sertão precisam ter conteúdo
Cada vez mais, o merca- turismo, teatro, e tecnologia para transformar
do funciona por meio de apli- educação, museologia. mitos em produtos culturais.
cativos. A tecnologia reforçou A produção cultural Em Nova Olinda, transforma-
possibilidades encantadas. Fui pode acontecer em mos uma casa em ruínas em
a um aniversário de criança e cadeia, com vários museu, mantivemos o mito dela
segmentos em diálogo.
comprei o presente via inter- e criamos lá dentro projetos de
net; quando cheguei na festa, o turismo comunitário, de comu-
brinquedo já estava lá. Esse presente, de certa nicação social, de educação patrimonial, de
forma, veio do reino encantado, a tecnologia biblioteconomia. Em todas essas áreas, há pro-
fez surgir ali o mito do brinquedo. A música fissões. Assim geramos, para uma cidade de 15
já não está mais em discos, e sim no ar. Esta- mil habitantes, uma visitação anual de 70 mil
mos voltando para a tradição oral de maneira pessoas. Criamos restaurantes temáticos que
inesperada. Antigamente, era preciso ter uma contam a história local, que antes era invisível.
estante cheia de livros para adquirir conheci- Produtos culturais geram sustentabi-
mento. E vai chegar o dia em que será inviável lidade a partir da habilidade de descrever
uma universidade física, e professores encan- a cultura local de uma forma qualificada e
tados vão produzir suas aulas em estúdios. digna. E, como canta Raul Seixas, a gente ain-
Se eu contar do boi aruá, alguém pode dizer da nem começou. O mito pode se relacionar
que é mentira, mas, se eu disser que participo com turismo, teatro, educação, museologia. A
de uma conferência estando em outro lugar, produção cultural pode acontecer em cadeia,
hoje se acredita. com vários segmentos em diálogo.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alemberg Quindins 215

A Fundação Casa Grande é um labo- de falar sobre música em uma rádio, por
ratório nesse sentido. Temos, por exemplo, exemplo. Pode contribuir.
um jovem que é produtor cultural, cuja mãe Os pilares de um país são as instituições
é dona de uma pousada domiciliar e que tem e suas políticas, e o conjunto de instituições
um amigo que é dono de um café e outro que brasileiras, hoje, não dialoga em torno de in-
tem uma empresa de turismo. Atualmente, tegridade nacional. Esse diálogo é necessá-
estamos formatando o projeto Museus Or- rio a fim de que o conteúdo mitológico possa
gânicos, que dará aos visitantes a chance de enfim alavancar desenvolvimento de forma
vivenciarem a história local dentro das casas efetiva. A cultura de cada lugar, na prática,
das pessoas, enquanto espaços de memórias. é o que faz a nação. E ainda precisamos co-
Será possível, por exemplo, visitar a casa de nhecer, produzir e consumir a cultura que
um chef, ser recepcionado por sua família e temos. Precisamos saber o que queremos e
viver ali uma experiência gastronômica. reconhecer o valor que temos. Patativa do
Minha guerrilha é não me contentar Assaré dizia que, para onde olhava, via “um
em ser turista no meu próprio país. Em cada verso se bulindo”. É esse olhar que precisa-
bioma brasileiro por onde passo, vejo um po- mos exercitar na direção da sustentabilidade
tencial enorme e uma destruição crescente. sertaneja. É necessária uma política nacional
Quando uma máquina derruba uma mata, ali que encontre um rumo só, uma direção mais
se vão os mitos locais. Não há mais habitação certa. A criatividade brasileira é uma fonte
para a caipora, para o saci. E passamos a con- inesgotável de soluções. Construir essa na-
sumir halloween. Sem regionalismo ou bair- ção não demanda mais horas de trabalho, e
rismo, há um universo de produtos culturais sim mais tempo para desenvolver esse enor-
brasileiros, sertanejos, que ainda precisamos me potencial criativo.
aprofundar, desenvolver e vender.
É importante ressaltar que a infância
no Brasil ainda é muito mal aproveitada, é
preciso aproximar mais as crianças desse
conteúdo. Em vez de se estar discutindo a
maioridade penal, por que não se discute a
partir de quando um jovem é capaz de in-
fluenciar sua comunidade? A partir de que Alemberg Quindins
idade ele contribui com sua inteligência? É músico de formação popular e historia-
Discutimos a idade mínima para votar, para dor autodidata. Em 1992, restaurou a primeira
ser preso, para dirigir. Mas não discutimos casa-grande da fazenda que deu origem ao mu-
a necessidade de tratar uma criança com nicípio de Nova Olinda, no Ceará, e criou a Funda-
respeito, de ouvi-la. A experiência em Nova ção Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, uma
Olinda mostra que uma criança que cresceu organização social que tem como missão ser um
em meio a um acervo musical de qualidade lugar de vivência em gestão cultural e social para
pode se tornar um cidadão brasileiro capaz crianças e jovens.
216 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO

A Singularidade Está A Economia


Próxima Artisticamente Criativa
Raymond Kurzweil Xavier Greffe

A Máquina Parou O Lugar do Público


E. M. Forster Jacqueline Eidelman,
Mélanie Roustan e
Bernardette Goldstein

Com o Cérebro na Mão Identidade e Violência:


Teixeira Coelho a Ilusão do Destino
Amartya Sen
SERTÕES: IMAGINÁRIOS, MEMÓRIAS E POLÍTICAS  217

As Metrópoles Regionais e Cultura e Estado.


a Cultura: o Caso Francês, A Política Cultural na
1945-2000 França, 1955-2005
Françoise Taliano-des Garets Teixeira Coelho

Afirmar os Direitos Cultura e Educação


Culturais – Comentário à Teixeira Coelho (org.)
Declaração de Friburgo
Patrice Meyer-Bisch e
Mylène Bidault

Arte e Mercado Saturação


Xavier Greffe Michel Maffesoli
218 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O Medo ao Pequeno Número Leitores, Espectadores


Arjun Appadurai e Internautas
Néstor García Canclini

A Cultura e Seu Contrário A República dos


Teixeira Coelho Bons Sentimentos
Michel Maffesoli

A Cultura pela Cidade Cultura e Economia


Teixeira Coelho (org.) Paul Tolila
SERTÕES: IMAGINÁRIOS, MEMÓRIAS E POLÍTICAS  219

SÉRIE RUMOS
PESQUISA

Os Cardeais da Cultura Por uma Cultura Pública:


Nacional: o Conselho Federal Organizações Sociais, Oscips
de Cultura na Ditadura Civil- e a Gestão Pública Não
Militar − 1967-1975 Estatal na Área da Cultura
Tatyana de Amaral Maia Elizabeth Ponte

Discursos, Políticas A Proteção Jurídica de


e Ações: Processos de Expressões Culturais
Industrialização do Campo de Povos Indígenas na
Cinematográfico Brasileiro Indústria Cultural
Lia Bahia Victor Lúcio Pimenta de Faria
220 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

AS REVISTAS

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 24 – Itaú Cultural No 21 –
Arte, Cultura e Educação Política, Transformações
na América Latina Econômicas e Identidades
Culturais

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 23 – Itaú Cultural
Economia da Cultura: No 20 – Políticas Culturais
Estatísticas e Indicadores para a Diversidade:
para o Desenvolvimento Lacunas Inquietantes

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 22 – Itaú Cultural No 19 –
Memórias, Resistências Tecnologia e Cultura:
e Políticas Culturais uma Sociedade em Redes
na América Latina
SERTÕES: IMAGINÁRIOS, MEMÓRIAS E POLÍTICAS  221

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 18 – Itaú Cultural No 15 –
Perspectivas sobre Cultura e Formação
Política e Gestão Cultural
na América Latina

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 17 – Itaú Cultural No 14 –
Livro e Leitura: A Festa em Múltiplas
das Políticas Públicas Dimensões
ao Mercado Editorial

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 16 – Itaú Cultural No 13 –
Direito, Tecnologia A Arte como Objeto
e Sociedade: uma de Políticas Públicas
Conversa Indisciplinar
222 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 12 – Itaú Cultural No 9 –
Os Públicos da Cultura: Novos Desafios da
Desafios Contemporâneos Cultura Digital

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 11 – Itaú Cultural No 8 –
Direitos Culturais: Diversidade Cultural:
um Novo Papel Contextos e Sentidos

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 10 – Itaú Cultural No 7 – Lei
Cinema e Audiovisual Rouanet. Contribuições para
em Perspectiva: Pensando um Debate sobre o Incentivo
Políticas Públicas e Mercado Fiscal para a Cultura
SERTÕES: IMAGINÁRIOS, MEMÓRIAS E POLÍTICAS  223

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 6 – Itaú Cultural No 3 –
Os Profissionais da Valores para uma
Cultura: Formação Política Cultural
para o Setor Cultural

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 5 – Itaú Cultural No 2 –
Como a Cultura Pode Mapeamento de Pesquisas
Mudar a Cidade sobre o Setor Cultural

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 4 – Itaú Cultural No 1 –
Reflexões sobre Indicadores e Políticas
Indicadores Culturais Públicas para a Cultura
224 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Esta revista utiliza as fontes Sentinel e Gotham


sobre o papel Pólen Bold 90 g/m2. Os pantones 7710
e 168 C foram os escolhidos para esta edição.
Duas mil unidades foram impressas pela gráfica
Ipsis em São Paulo, no mês de abril do ano de 2019.
Realização

/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 fax 11 2168 1775 atendimento@itaucultural.org.br


avenida paulista 149 são paulo sp 01311 000 [estação brigadeiro do metrô]

Você também pode gostar