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OS FILHOS DA TERRA DE

RIO PARDO GRANDE DO SUL


Editor: Jornalista João Carlos Agostinho Prudêncio

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OS FILHOS DA TERRA DE
RIO PARDO GRANDE DO SUL
Editor: Jornalista João Carlos Agostinho Prudêncio

1ª edição

Rio Pardo
2021

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REDE DE TROCA DE SABERES E
FAZERES COM OS FILHOS DA TERRA
DE RIO PARDO GRANDE DO SUL

REALIZAÇÃO: Dr. Domingos Oscar Soares Luz;


ONG MOVIMENTAÇÃO – Associação Mestre Griô: Pedro Lúcio Silveira;
Humanística de Ações Social, Cultural e Vitor Emanuel Alves Zambarda;
Educativa.
Historiadores (as):
Direção: Mestre Griô Prudêncio; Professor Ernesto Gustavo Machado Horn
Assessoria de Direção: SP Vídeo; – Neco Machado;
Apresentação: Conceição Matos e Cláudia Professora Aida Aparecida dos Santos
D`Avila Melo; Ferreira;
Apresentador e Produção Executiva: Profa. Dra. Marta Regina dos Santos Nunes;
Mestre Griô Prudêncio; Profa. Dra. Viviane Inês Weschenfelder;
Assessoria de Produção: Débora de Professora Cláudia D`Avila Melo;
Castro Barros; Profa. Dra. Marisa Antunes Laureano;
Assessoria de Produção e Mediação Professora Escritora Ceni Correa da
Cultural: Cláudia D`Avila Melo; Fontoura.
Convidado: Mestre Griô Laudelino Frantz.
Produtor de Vídeo: João Vitor Silveira e
Pedro Ferreira – SP Vídeo ASSESSORIA TÉCNICA:
Coordenadora de Produção de Vídeo: Coordenadora Editorial: Conceição Matos;
Marta Silveira – SP Vídeo Revisão: Débora de Castro Barros;
Captação de Imagens: Assessoria de Imprensa: Luiza Faleiro
Diego Fontoura; João Vitor da Silveira Silva; Goulart;
Luan Campos; Mateus Trindade; Oneide Criação Gráfica: Avante Comércio e
Moura; Pedro Ferreira; William Ramos; Produção Cultural;
William Silva; Imagem Fotografias & Diagramação Visual: Erva Doce
Filmagens. Produções;
Facilitadora: Cláudia Bernadete Alves
TRILHA SONORA: Freitas;
Compositor Neco Machado: - com as Contadora: Juliana Machado;
músicas: "Quem por aí me encontrar" e
Assessoria Jurídica: Dr. Domingos Oscar
"Água de Rio Pardo".
Soares Luz.
Autor: João Carlos Agostinho Prudêncio –
PESQUISADORES E HISTORIADORES Mestre Griô Prudêncio.
Pesquisadores (as):
Professora Cláudia Bernadete Alves Freitas;
Professor Mauro Ubirajara Conceição
Pereira;
Mestra Baobá Loni Lopes da Silva – Teka
Lopes;
Mestra Griô Vera Lúcia de Souza – Vera
Macedo;

Realização Financiamento

Projeto realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020


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AGRADECIMENTOS:

Prefeitura Municipal de Rio Pardo


Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul
Prefeitura Municipal de Venâncio Aires
Prefeitura Municipal de Santa Maria
Prefeitura Municipal de São Lourenço do Sul
Prefeitura Municipal de Pelotas
Prefeitura Municipal Encruzilhada do Sul
Prefeitura Municipal de General Câmara
Prefeitura Municipal de Alvorada
Prefeitura Municipal de Nova Hartz
Prefeitura Municipal de Porto Alegre
Sociedade Cultural e Beneficente União – Santa Cruz do Sul
Associação Zeladora da Igreja São Francisco de Assis – Rio Pardo
Casa de Aula da Prof. Claudinha – Rio Pardo
Jornal Gazeta do Sul
Jornal Rio Pardo; Rádio Rio Pardo
Centro Regional de Cultura Rio Pardo
Arquivo Histórico Biágio Soares Tarantino – Rio Pardo.

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SUMÁRIO

09 APRESENTAÇÃO: CONTANDO HISTÓRIAS NAS “TRAVESSIAS


DOS RIOS”
João Carlos Agostinho Prudêncio

27 REALIZAR RODAS DE TROCAS DE SABERES E FAZERES É UMA


EXPERIÊNCIA MUITO GRATIFICANTE MAS TAMBÉM MUITO
DESAFIADORA.
Conceição Matos

31 MURALHAS HUMANAS
Ernesto Gustavo Machado Horn

37 REVELANDO A NEGRITUDE DA NOSSA SÃO LOURENÇO


Vera Macedo
(Mestra Vera Macedo)

45 UMA NOITE ENCANTADA: CONTANDO HISTÓRIAS NAS


"TRAVESSIAS DOS RIOS" A PROMESSA PARA NOSSA SENHORA
DA BOA MORTE
Cláudia D’Avila

51 O PROTAGONISMO NEGRO NA HISTÓRIA COMUNITÁRIA DE


VENÂNCIO AIRES/RS
Viviane Inês Weschenfelder

65 AS BAOBÁS DE VENÂNCIO AIRES


Loni Lopes da Silva
(Teka Lopes)

69 IMIGRAÇÃO: UMA HISTÓRIA DE AVENTURA NOS TRILHOS DO


DESTINO
Vitor Zambarda

77 UMA NOVA NARRATIVA PARA RECONHECER A MÃO AFRO-


BRASILEIRA NA REGIÃO CENTRAL DO RIO GRANDE DO SUL
Marta Regina dos Santos Nunes

93 CHICO DIABO
Pedro Lúcio

97 RIO PARDO: AS ORIGENS, O COMÉRCIO E AS IGREJAS


Ceni Fontoura

6
109 FILHOS ILUSTRES DE ENCRUZILHADA DO SUL
Domingos Oscar Soares Luz

117 PROJETO DE DOCÊNCIA OLUKÓ AyÓ: VALORES AFRO-


BRASILEIROS RESGATANDO A IDENTIDADE DAS CRIANÇAS - OS
GRIÔS NA EDUCAÇÃO
Cláudia Freitas

127 A CHEGADA DOS AÇORIANOS EM RIO PARDO E SEU LEGADO


Aida Aparecida dos Santos Ferreira

137 A ÚLTIMA VONTADE: A HISTÓRIA DE ROSA MARIA FILHA DA


ÁFRICA E DE RIO PARDO
Marisa Laureano

151 RODAS DE TROCA DE SABERES E FAZERES DE FORMAÇÃO


CONTINUADA PARA REDE PÚBLICA DE ENSINO DO MUNICÍPIO
DE NOVA HARTZ: GERANDO A HISTÓRIA DO PROTAGONISMO
AFRO-DESCENDENTE NO RIO GRANDE DO SUL.
Mauro Pereira

7
8
Apresentação
Contando histórias nas "travessias dos rios".

Jornalista João Carlos Agostinho Prudêncio

Rio Jacuí visto do


porto de Rio Pardo

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Apresentação
Contando histórias nas “travessias dos rios”
1
Mestre Griô Prudêncio

Projeto Rede de Troca de Saberes e Fazeres com os Filhos


da Terra de Rio Pardo Grande do Sul

A Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul e a


ONG MovimentAÇÃO apresentam o Projeto Rede de Troca
de Saberes e Fazeres com os Filhos da Terra de Rio Pardo
Grande do Sul – Edital Sedac nº 09/2020, Secretaria de
Estado da Cultura – Edital de Concurso Produções Culturais
– Lei Aldir Blanc.
(Projeto financiado pela Lei nº 14.017/2020).
#leialdirblanc #leideemergênciacultural
#novasfaçanhasnacultura

Circulação do Documentário da Rede de Troca de


Saberes e Fazeres.

1 João Carlos Agostinho Prudêncio é jornalista, publicitário, artista plástico, escritor e


produtor executivo do conjunto dessa obra.
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Nosso objetivo

O projeto tem por objetivo colocar no centro dos debates


a diversidade étnico-racial do Sul do país, procurando
“desesconder” as etnias afro-ameríndias na perspectiva de
uma nova narrativa da história da identidade cultural do Rio
Grande do Sul, contrapondo-a à chamada “supremacia
europeia”.
As ações estão centradas em narrativas históricas
realizadas online com a produção de 12 lives com
(gravações de vídeos), um documentário e este e-book,
envolvendo 12 municípios do estado, atendendo aos
protocolos de distanciamento social.

Nosso desafio

Esta obra se pautou pelo desafio de garantir o direito de


expressão de cada sujeito em seu lugar de fala,
considerando a pluralidade cultural do Rio Grande do Sul.
Portanto, cada pesquisador(a), historiador(a), mestre e
mestra griô contribuiu livremente com seus olhares e suas
vivências para retratar o conceito de diversidade étnico-
racial no município de Rio Pardo e nos demais municípios do
estado.

Descendo a Rua da Ladeira em Rio


Pardo - hoje Rua Júlio de
Castilhos, considerada a primeira
rua calçada da Capitania de São
Pedro/RS (1813), Patrimônio
Histórico construído pela mão de
meus ancestrais.

11
Caminhando sobre o tempo: Mestre Griô Laudelino
Frantz em entrevista subindo a Rua da Ladeira em Rio
Pardo, a rua que acompanhou a formação da
diversidade étnica-racial no Rio Grande do Sul.

Há pesquisas no âmbito da academia, a exemplo do


trabalho da professora doutora Marisa Antunes Laureano,
“A última vontade: a história de Rosa Maria filha da
África e de Rio Pardo”, uma história cheia de simbolismo,
que remete à metáfora de nossas travessias dos rios.
No âmbito das ações afirmativas, apresentamos a
pesquisa da professora doutora Marta Regina dos Santos
Nunes, “Uma nova narrativa para reconhecer a mão afro-
brasileira na região central do Rio Grande do Sul”. As
narrativas da professora Marta Nunes evidenciam a
importância da historiografia levantada em seu trabalho
entre os municípios de Santa Cruz do Sul e Santa Maria.
Situamos também o discurso da comunidade,
apresentado pela professora doutora Viviane Inês
Weschenfelder, “O protagonismo negro na história
comunitária de Venâncio Aires/RS”, que ressalta o
protagonismo negro em Venâncio Aires/RS.
Na pesquisa do professor Ernesto Gustavo Machado
Horn (Neco Machado), “Muralhas humanas”, observo um
olhar para “desesconder” a presença negra e indígena na
defesa das divisas territoriais e na construção do patrimônio
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histórico e cultural de Rio Pardo. Para Neco Machado, a
historiografia precisa reconhecer na fundação de Rio Pardo
as identidades negra e indígena. “Mesmo que esse
processo de valorização das etnias fundantes da povoação
ainda permaneça lento, fica um convite à reflexão sobre
onde estão os monumentos que deveriam representar a
resistência que motivou a primeira necessidade de defesa”,
afirma o professor.
A narrativa histórica apresentada pela professora Aida
Aparecida dos Santos Ferreira encontra-se na pesquisa “A
chegada dos açorianos a Rio Pardo e seu legado”. Em
seu texto, ela ressaltar a trilha dos casais açorianos,
passando por Viamão, Porto Alegre, Santo Amaro e General
Câmara até chegar a Rio Pardo.
O trabalho da professora escritora Ceni Correa da
Fontoura, “Rio Pardo – as origens, o comércio e as
igrejas”, é uma visita a seus ancestrais. Ela faz uma
releitura da fundação de Rio Pardo a partir da chegada de
Mateus Simões Pires ao Rio Grande do Sul.
Caminhado no campo das escolas públicas, passando
pelos municípios de Alvorada e Porto Alegre, nessa
“caminhada griô”, tenho que ressaltar o trabalho da
professora Cláudia Bernadete Alves Freitas, que dialoga
com os mestres e mestras griôs de cultura de tradição oral
na área do ensino formal no artigo “Projeto de docência
Olukó Ayó: valores afro-brasileiros resgatando a
identidade das crianças – os griôs na educação”.

Mirante da Avenida
Perimetral - Rio Pardo

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No artigo apresentado pelo pesquisador professor
Mauro Ubirajara Conceição Pereira, “Rodas de troca de
saberes e fazeres de formação continuada para a rede
pública de ensino do município de Nova Hartz”, ele
retrata um alargamento do conceito de diversidade étnico-
racial, expressando uma experiência pioneira de igualdade
racial, consolidando, assim, a Lei nº 10.639 por meio do
projeto realizado pela ONG MovimentAÇÃO.
Na esteira das narrativas para “desesconder” as
personalidades negras da história brasileira, o pesquisador
Domingos Oscar Soares Luz traz o artigo “Filhos ilustres
de Encruzilhada do Sul”, uma discussão histórica da
trajetória de vida de João Cândido Felisberto, o “Almirante
Negro” — protagonista da “Revolta da Chibata” —, bem
como de outras personalidades do município de
Encruzilhada do Sul.
Nas “travessias dos rios”, em uma metáfora da Rede de
Troca de Saberes e Fazeres que se formou com “os filhos da
terra de Rio Pardo Grande do Sul”, está a narrativa da
pesquisadora e mediadora cultural, professora Cláudia
D’Avila Melo, retratando as lendas de Rio Pardo no texto
“Uma noite encantada. Contando histórias nas
travessias dos rios. A promessa para Nossa Senhora da
Boa Morte”.
O pesquisador Vitor Emanuel Alves Zambarda, que
também é um filho de Rio Pardo, reforça o conceito de
diversidade étnico-racial indo buscar sua ancestralidade
italiana e apresentando-a no texto “Imigração: uma
história de aventura nos trilhos do destino”.
Dialogando com nossos mestres e mestras da cultura de
tradição oral das vivências de Troca de Saberes e Fazeres,
o Mestre Griô Pedro Lúcio Silveira apresenta suas
narrativas sobre as personalidades populares de
Encruzilhada do Sul no texto “Chico Diabo”, em que traz a
figura de José Francisco de Lacerda, o popular Chico Diabo,
e de Sinhá Pretinha, garantindo, assim, o lugar de fala de
nossa história oral.
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A Mestra Griô Baobá Loni Lopes da Silva (Teka Lopes)
traz em sua narrativa as vivências das Rodas de Troca de
Saberes e Fazeres ancestrais com o trabalho “As Baobás
de Venâncio Aires”, representando-nos nos municípios de
Venâncio Aires, Vale do Taquari e Vale do Rio Pardo.
Para a Mestra Griô Vera Lúcia de Souza (Vera Macedo),
as Rodas de Troca de Saberes e Fazeres com as
comunidades quilombolas de São Lourenço do Sul têm
revelado um caminho para a diversidade étnico-racial na
região, como afirma seu texto “Revelando a negritude da
nossa São Lourenço: um relato da mestra Vera
Macedo”.

Pois é. Nossas “travessias dos rios” por meio da “Rede


de troca de saberes e fazeres com os filhos da terra de Rio
Pardo Grande do Sul” também foi a Pelotas referendar a
memória da Mestra Griô Sirley Amaro, do Mestre Giba, do
Mestre Batista e do maior símbolo da resistência negra
daquela região, o lendário Manuel Padeiro — considerado o
“Zumbi dos Pampas”.

Vista aérea de Rio Pardo


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Santa Maria, Santo Amaro e General Câmara completam
o mosaico da rede que tecemos entre os 12 municípios do
estado do Rio Grande do Sul e que serviu de parâmetro para
nossa pesquisa para trazer à luz do Estado brasileiro outro
paradigma para reconhecer e respeitar nossas diferenças.
É nesse lugar de fala de jornalista que ouso afirmar que
os produtos culturais da “Rede de Troca de Saberes e
Fazeres com os filhos da terra de Rio Pardo Grande do Sul”,
no âmbito dos objetivos ressaltados em nossas ações
culturais partilhadas, cumprem um papel preponderante
para unir os discursos da academia às narrativas da cultura
de tradição oral dos mestres e mestras griôs.

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Encontrando nossas raízes. Honrando nossos
ancestrais

Em Porto Alegre, 14 de julho de 2018 (no Memorial do Rio Grande do Sul).


Celebração do Livro "Vivências do Negro Contemporâneo - A Mão Afro
Brasileira na Construção do Patrimônio Imaterial do Rio Grande do Sul".

As “travessias dos rios” começaram no dia 14 de julho de


2018, quando cheguei do Rio de Janeiro revisitando o Rio
Grande do Sul para celebrar a edição do livro Vivências do
negro contemporâneo: a mão afro-brasileira na construção
do patrimônio material e imaterial do Rio Grande do Sul
(projeto realizado com recursos do Fundo de Apoio à
Cultura: Pró-Cultura RS FAC, Lei nº 13.490/2010). Naquele
momento, encontrei minhas raízes e me reconheci como
filho de Rio Pardo.

Capela da Bela Cruz - Rincão dos


Negros - Arroio das Pedras- Rio Pardo

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Sou o sétimo dos dez filhos da Mestra Griô Josefina
Agostinho Prudêncio e do Mestre Griô Manoel do
Nascimento Prudêncio. Meu pai é um remanescente do
Quilombo Rincão dos Negros, município de Rio Pardo;
minha mãe é natural de Santo Ângelo das Missões. Sou
neto, por parte de mãe, de Manoel Pedro Agostinho e Maria
Apolinária Agostinho, e, por parte de pai, de Santiago
Prudêncio e Leonilda do Nascimento Prudêncio, os avós
paternos sendo quilombolas do Rincão dos Negros,
município de Rio Pardo.

Revisitando Rio Pardo em


18 de julho de 2019.
Procurando minhas origens,
iniciando a pesquisa com a
professora Cláudia D`avila.
Foto: Centro Regional de
Cultura Rio Pardo

Em 2019, uma nova caminhada começou a se desenhar


com um pedido de ajuda à professora Cláudia D’Avila, de
Rio Pardo, para que eu pudesse rememorar minha infância
e revisitar minhas vivências daqueles tempos de 1947-
1960. E, a partir de alguns dados revisitando minhas
memórias, passei para a professora um pouco da trajetória
da ancestralidade da família Prudêncio: de Josefina
Agostinho Prudêncio e de Manoel do Nascimento
Prudêncio, casal que formou sua família em Rio Pardo na
década de 1930, ela, de Santo Ângelo das Missões, e ele,
um remanescente do Quilombo Rincão dos Negros de Rio
Pardo.
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Dia 20 de julho de 2019, em Pelotas/RS nas
gravações do Documentário "Vivências da Negra
Contemporâneo - Mestra Griô Sirley Amaro.

Naquele dia, 18 de julho de 2019, após um ano do


lançamento do livro Vivências do negro contemporâneo,
uma nova obra se apresentava para sociedade, o
documentário As vivências da negra contemporânea, com a
saudosa Mestra Griô Sirley Amaro, cumprindo nossa
proposta de contemplar nessa temática a relação de
gênero.

Vista aérea da cidade de Rio Pardo,


aparecendo a escola Ernesto Alves
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Foi ainda em 2019, em uma “caminhada griô” em Santa
Cruz do Sul, observando uma família de indígenas
vendendo artesanato no calçadão da Rua Marechal
Floriano, conhecida como “Rua do Túnel Verde”, no centro
da cidade, que entendi que ali estavam os verdadeiros
donos da terra do Rio Grande do Sul e do Brasil… Assim
surgiu o nome deste livro: Os filhos da terra de Rio Pardo
Grande do Sul. De lá pra cá, a saga dos(as)
pesquisadores(as), contadores(as) de histórias (mestres e
mestras griôs) de Rio Pardo e de outros 11 municípios do
estado vão tecendo uma “teia” que tem “desescondido”
personalidades que fazem parte do imaginário popular do
Rio Grande do Sul.

Na Linha da História.
Estrada de Ferro que leva a
Pederneiras, interior de Rio
Pardo, no caminho dos
meus ancestrais.

Em minhas pesquisas, venho procurando “desesconder”


os ancestrais das famílias Agostinho e Prudêncio e de
outros personagens, que foram escondidos por
historiadores alinhados com uma ideologia branca europeia
colonizadora e autoritária. Reza a lenda que lá pelas bandas
do Rincão dos Negros em Rio Pardo, pelas décadas de
1880-1930 havia “um negro brigão” chamado João
Prudêncio, destemido por suas habilidades (“destrezas” nas
brigas de facão).
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Conta-se, nas rodas de conversas pelo Vale do Rio
Pardo e de outras regiões, que o “negro brigão” escapara de
mais de 200 emboscadas, sugerindo que ele, João
Prudêncio, tinha pacto com “forças estranhas”. A fama do tal
“negro brigão” se alargou para além das fronteiras do estado
do Rio Grande do Sul.
Apesar das inúmeras tentativas de seus algozes de
eliminá-lo, não há nenhum indício de que João Prudêncio
tenha sido capturado ou morto, mesmo porque seu corpo
nunca foi encontrado, fortalecendo o mito do “negro brigão”
que sumiu no vento, reforçando a lenda do imaginário
popular. De concreto, sabe-se apenas que João Prudêncio
seria primogênito do casal Santiago Prudêncio e Leonilda
do Nascimento Prudêncio, portanto o irmão mais velho de
meu pai.

Quilombo Rincão dos Negros, interior de


Rio Pardo - Lugar de Memórias e
Histórias dos meus Ancestrais dos
Prudêncio: por lá nasceu Manoel
Prudêncio, meu pai, o irmão mais novo do
lendário "Negro Brigão", João Prudêncio.

A cultura de tradição oral nos oferece alguns elementos


na linha do tempo que vão tecendo uma teia que vão revelar
um desenho dos fatos da época. Desse lugar de fala,
considera-se que a lenda do “negro brigão” compreende o
tempo em que viveu João Prudêncio (1880-1930?), sendo
ele contemporâneo de João Cândido Felisberto, conhecido
como “Almirante Negro”, que comandou a Revolta da
Chibata, nascido em 24 de junho de 1880. Tais períodos
marcaram o nascimento de algumas lideranças negras no
Brasil que entraram para história: Abdias do Nascimento,
em 14 de março de 1914; Milton Santos, em 3 de maio de
1926.
21
Busto do Almirate Negro, João
Cândido Felisberto, no município
de Encruzilhada do Sul é um dos
nossos referenciais negros que
fizeram as Travessias dos Rios
pelo Brasil e pelo mundo.

Buscando na historiografia do Brasil, entre 1880 e 1930


(nas expressões da oralidade), conta-se que muitas famílias
negras nasceram sob o signo do dia 13 do maio de 1888.
Mais do que hoje, os negros e as negras daqueles tempos
tinham que se valer de sua coragem, criatividade, astúcia,
perseverança, para sobreviver a partir do dia seguinte à
farsa da “Abolição”, refletida no dia 14 de maio, quando
milhares de famílias negras foram jogadas nas ruas deste
país, sem casa e sem comida. Como diz o Movimento
Quilombista Contemporâneo, do Rio Grande do Sul,
liderado pelo mestre griô pernambucano Waldemar Moura
Lima: “Te vira negrão, te vira negrona”. Foi nesse cenário
que cresceram e viveram muitos de nossos heróis, como
João Cândido, João Prudêncio, o “Negro Brigão”, Abdias do
Nascimento, Milton Santos, entre outros.

Rua da Ladeira
Rio Pardo

22
As histórias contadas nas rodas de conversas entre as
comunidades do Rio Grande do Sul dão conta da “valentia”
dos negros gaúchos. Certamente, esses mitos têm um
ingrediente cultural da forma de afirmação das
comunidades negras com sua arte de defesa, fosse pela
capoeira, fosse pela destreza com “armas brancas”: facas,
facões, espadas, lanças, protagonizada pelas lutas dos
Lanceiros Negros.

2
Manoel Padeiro

Outro mito que habita o imaginário da comunidade negra


do Rio Grande do Sul é o do líder quilombola Manoel
Padeiro, conhecido como “Zumbi dos Pampas”, que viveu
entre 1776 e 1855 na
localidade, hoje 7º distrito,
denominado Quilombo, zona
rural de Pelotas. Contam que
Manoel Padeiro, mesmo
pertencendo a um rico
fazendeiro da região chamado
Boaventura Rodrigues
Barcelos, não usava o
sobrenome de seu senhor,
contrariando os costumes da
época, tendo adotado seu ofício
“padeiro” como sobrenome. É
provável que Manoel Padeiro
tenha vindo escravizado de
Gana, país que a Europa
denominava “Costa do Ouro” do
continente africano.
Criação do Cartaz
Rodrigo Elste

2 Textos, fotos e imagens sobre Manoel Padeiro foram pesquisados com o cineasta Duda Keiber e no
livro Os calhambolas do general Manoel Padeiro: práticas quilombolas na Serra de Tapes (RS,
Pelotas 1835), de Natália Garcia, Paulo Roberto Staudt Moreira e Caiuá Cardoso Al-Alam.
23
Jornalista: A. F. Moonquelat C. P. de Almeida

24
Em 1835, com o início da “Revolução Farroupilha”,
muitos escravizados fugiram das senzalas. Supõe-se que
foi nesse período que Manoel Padeiro iniciou a liderança do
maior quilombo que leva seu nome, entre outros tantos
quilombos que se organizaram na Serra dos Tapes, interior
de Pelotas. Quando a equipe de Fernando e Duda Keiber,
junto a professores da Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), projetou um festival de cinema para a cidade, um
dos objetivos principais foi estimular a criatividade dos
futuros cineastas e que a cidade se beneficiasse desse foco
cultural, também como centro econômico e turístico.

Mestres Laudelino e Prudêncio Ponte sobre o Rio Pardo


na Rua da Ladeira-Rio Pardo

Já com tradição cultural e artística, Pelotas ainda


precisaria desenvolver-se como referência regional e
nacional na área cinematográfica. Foi nessa cidade, há
cerca de cem anos, que os primeiros filmes brasileiros foram
rodados, mas a falta de recursos minimizou a criação de
empresas e de novas obras.

Histórias sem fim

Ressalto que minhas narrativas, trazidas à luz desta obra


do projeto “Rede de Troca de Saberes e Fazeres com os
25
filhos da terra de Rio Pardo Grande do Sul”, foram
embasadas em nossas rodas de conversas nos 12
municípios por que caminhei conversando com mestres
griôs, especialmente em Pelotas, durante as gravações, em
2019, do documentário Vivências da negra contemporânea,
com a saudosa Mestra Griô Sirley Amaro.

In Memóriam a saudosa Mestra Griô Sirley Amaro, Pelotas/RS.


Celebração do seu Documentário - "As Vivências da Negra
Contemporânea" no dia 14 de julho de 2020, em Porto Alegre no
Memorial do Estado do Rio Grande do Sul.

Concluo aqui meu texto pedindo bênção a todos os meus


ancestrais, que me antecederam nessas trajetórias griô pelo
Rio Grande do Sul e pelo Brasil, na perspectiva de encontrar
nossas raízes, honrando nossos antepassados.

26
Realizar Rodas de Trocas de Saberes e Fazeres
é uma experiência muito gratificante, mas
também muito desafiadora.
Conceição Matos

Ações Culturais Partilhadas da ONG MOVIMENTAÇÃO:


Roda de Conversa em 2018 na Universidade Federal de
Goiás UFG, em Goiana

27
Realizar Rodas de Trocas de Saberes e Fazeres é
uma experiência muito gratificante, mas também
muito desafiadora.

Reunidos em círculo, cada participante leva consigo


intenções, expectativas e sentimentos de pertencimento.
Mas também histórias de vida, preconceitos e crenças
limitantes.

Conceição Matos
Coordenadora editorial, presidenta da ONG
MovimentAÇÃO

E
ntretanto, a roda de troca de saberes e fazeres é
tão potente que o Fórum Social Mundial (FSM)
pode ser considerado um evento com os mesmos
princípios, ou seja, promove o diálogo entre a cultura
científica e a cultura tradicional e fortalece a disposição de
movimentos sociais, ONGs e instituições públicas do mundo
inteiro para materializar uma nova ordem social.
Com disposição, recebi o convite para participar dessa
importante celebração da diversidade.
Na edição do FSM de 2012, durante um intervalo de
programação, os agentes de pastoral negros se reuniram
em Porto Alegre para ouvir narrativas de remanescentes
dos quilombos da região Sul. Nesse dia, tive a honra de
conhecer a Mestra Griô Ana Hermelinda Centeno. De fala
firme e empolgante, ela me encantou com as narrativas de
sua ancestralidade.
Fui saber que a Mestra Ana Centeno é uma das
principais lideranças em São Lourenço do Sul. Sua história
de militância começou nas Comunidades Eclesiais de Base,
nas Pastorais da Saúde e na Pastoral da Terra, até que se
tornou muito conhecida no Brasil e na América Latina por
sua luta em defesa da desconstrução do racismo
institucional.

28
Faz nove anos que ocorreu meu primeiro encontro com
essa militante lourenciana, Essa simpática artesã despertou
em meu coração o desejo de conhecer a cultura e a
religiosidade afrocatólica daquela região. De lá para cá,
muitos motivos tive para revisitar o Rio Grande do Sul.
Muitas aprendizagens surgiram. Uma delas foi a
possibilidade de integrar práticas comunitárias, com as
Rodas de Trocas e Saberes e Fazeres da ONG
MovimentAÇÃO. Do compromisso com a cidadania nasceu
o Projeto Filhos da Terra de Rio Pardo Grande do Sul (sob o
apoio da Lei Aldir Blanc), cuja importância reafirma a
inclusão da diversidade de culturas, escolaridades,
gêneros, etnias e classes sociais.
Também aprendi que o diálogo com a diversidade é uma
construção que precisa do compromisso com novas ideias,
novas religiosidades, novos pertencimentos. Por isso,
entendemos que realizar Trocas de Saberes e Fazeres é um
ato de resistência. Afinal, a roda é um símbolo ancestral, e
nela é possível alimentarmos o sonho de ressignificação da
vida em comunidade.

Mestra Griô Ana Hermelinda


Centeno, a Mestra Griô Vera
Macedo, a Presidenta da ONG
Movimentação, a Mestra
Conceição Matos e João Carlos
Agostinho Prudêncio em visita à
São Lourenço do Sul (novembro
2019).

29
30
Muralhas
humanas
Professor Ernesto Gustavo Machado Horn
(Neco Machado)

Canhão do Forte Jesus


Maria José - Rio Pardo

31
Muralhas humanas

Professor Ernesto Gustavo Machado Horn


(Neco Machado)

A
fim de que a demarcação do Tratado de Madri, de
1750, na região ao sul, tivesse êxito para os
interesses de Portugal, fazia-se necessário que
em cada ponto avançado fossem alojados povoadores fiéis
à Coroa portuguesa. A partir de 1752, acompanhou a
investida política e militar, mesmo que em sigilo, para não se
indispor com a Coroa espanhola, um efetivo de povoadores
para esse fim. No contexto das demarcações, algumas
famílias se assentaram nas proximidades da fortificação
Jesus, Maria, José do Rio Pardo, permanecendo mesmo
após os anos 1761 e 1763, com o Tratado de El Pardo, que
revogava o de Madri, e com a invasão castelhana, tornando
impossível a condução desses povoadores aos Sete Povos
das Missões.

Vista aérea da Igreja Matriz


Nossa Senhora do Rosário -
Rio Pardo

32
Inicia-se aqui a inquietação que motivou minha pesquisa:
poderia a dita “fortaleza” de Jesus, Maria, José do Rio Pardo
nunca ter sido concluída por evoluir para uma povoação, e,
assim, sua planta, de 1754, corresponderia à localização da
atual Praça da Matriz do Rosário e suas imediações, onde se
originou o município de Rio Pardo?
Dessa forma, o objetivo central de meu trabalho de
pesquisa foi invocar a possibilidade de que a disposição dos
elementos da única planta existente refere-se à organização
física remanescente da Praça da Matriz do Rosário e
arredores, sugerindo esse local como o merecido dispositivo
dessa memória.
Na busca de alcançar os objetivos propostos, a presente
pesquisa teve, inicialmente, uma observação na relevância
do tema para a história da formação do povoamento na
região. A narrativa existente enfatiza a origem açoriana e
europeia, sem muito destaque para a participação dos
autóctones e negros. Busquei informações em obras e
documentos que pudessem trazer registros e
acontecimentos com outra perspectiva.

Canhão do Forte Jesus Maria José -


Rio Pardo

33
Procurei reunir informações para embasar argumentos
de que a legenda “O”, referente a “Cazas dos moradores” da
planta da fortaleza, faz parte do projeto da Coroa portuguesa
de povoação dos limites, apresentando, assim, a
possibilidade argumentativa desta pesquisa, a fim de que
possa contribuir para o entendimento sobre a colonização
da região e a relevância histórica que este estudo merece.
Portanto, na prática da demarcação do Tratado de Madri, a
fundação do município não seria apenas de origem militar,
por conter o elemento civil dos povoadores, que
representam essa intenção de uma política de expansão e
ocupação territorial.
Preserva-se, até os dias atuais, a fortaleza ideológica da
Coroa portuguesa na fronteira mais avançada para a
demarcação dos limites. Porém, não se poderiam ostentar
baluartes ou muralhas de pedras como monumentos da má-
fé praticada por Portugal no acordo do Tratado de Madri. Rio
Pardo surgiu de uma estratégia de expansão e ocupação
territorial; portanto, por muito tempo manteve a imagem
dessa importante atuação para a história de conquista,
enraizada na memória de seus habitantes pelos discursos
carregados de ufanismo. No entanto, a importância de maior
relevo descortina-se na tarefa não concluída, que
possibilitou o início da povoação, povoação esta constituída
de um amalgama étnico que não fugiu de uma seleção

Vista aérea da Igreja Matriz


Nossa Senhora do Rosário -
Rio Pardo

34
eurocêntrica do que se deveria eleger para representar seus
feitos. Os canhões velhos apontados para o sul sugerem
que o inimigo mais temível em sua origem era o europeu da
invasão espanhola, enquanto a primeira razão da
fortificação para proteção contra a revolta genuína dos
guaranis ficou esquecida. Entretanto, em contraponto a
essa tentativa de orientação da posição dos canhões,
permanece a figura de um baluarte destacado em direção
contrária na planta de 1754, que não só comprova sua
preocupação de origem como determina a identidade do
inimigo que a motivou. Mesmo que esse processo de
valorização das etnias fundantes da povoação ainda
permaneça lento, fica um convite à reflexão sobre onde
estão os monumentos que deveriam representar a
resistência que motivou a primeira necessidade de defesa.

35
36
Revelando a negritude da nossa São Lourenço:
um relato da mestra Vera Macedo
Mestra Griô Vera Lúcia de Souza
(Vera Macedo)

37
Revelando a negritude da nossa São Lourenço: um
relato da mestra Vera Macedo
1
Mestra Griô Vera Macedo

Apresentação

A
história dos(as) pretos(as) vem sendo
redescoberta por meio de iniciativas que trazem
um novo olhar para o papel social, político e
cultural que nós, quilombolas, descendentes de
africanos(as), temos nos espaços que ocupamos. A história
oral, ou seja, aquela que vem sendo transmitida de geração
em geração, é a nossa fonte de inspiração, é o nosso legado
para quem se interessa em conhecer o outro lado da
história, que não vem escrita e referendada pela produção e
pela reprodução eurocêntrica, que carrega na sua escrita
um olhar único dos homens brancos,
considerados, infelizmente até os
dias de hoje, por parte da academia
e das pessoas do mundo
globalizado, como o centro do
mundo e da história.
Em São Lourenço, isso não é
muito diferente, pois temos muitas
escritas sobre as famílias brancas
que aqui se instalaram a partir das
charqueadas da região sul do Rio
Grande do Sul, ainda nos séculos
XVIII e XIX, esquecendo-se de
mencionar, valorizar o papel da esquerda para direita: Vera Lúcia de
Souza (Mestra Griô Vera Macedo),
fundamental dos(as) pretos(as) Almerinda Centeno e Ana Hermelinda
nessa região. Centeno, em São Lourenço do Sul

1 Militante do Movimento Negro e da Pastoral Negra do município de São Lourenço, mestra


griô reconhecida pela comunidade local e regional. Entrevista realizada pela historiadora
Bianca Caetano, São Lourenço do Sul, em 22 de fevereiro de 2021.
38
Nós, homens e mulheres pretos(as) e negros(as), fomos
responsáveis pela construção histórica, social e cultural,
assim como por outras manifestações étnico-raciais, e temos
que nos esforçar para que tenhamos nossa visibilidade
reconhecida.
É nesse contexto que venho declarar, relatar o que
conheço, o que aprendi com os(as) meus(minhas)
antepassados(as), a fim de que nossas gerações, do
presente e do futuro, possam ter nossa presença perpetuada
como pessoas que sempre lutaram e resistiram à falta de
reconhecimento, à invisibilidade da nossa cor, em prol de uma
falsa superioridade daqueles que vêm, ao longo dos séculos,
nos explorando e evitando expressar nossa importância para
a sociedade. Com uma forte crítica ao racismo estrutural, que
é sistêmico e está impregnado na hierarquização de poder da
sociedade neoliberal, apresento um pouco da nossa história,
que se mistura com as minhas vivências pessoais e coletivas.
Tenham todos e todas uma ótima leitura!

Eu sou de lá

Sou de lá d'África, sou de lá


Os meus pais são de lá d'África,
Sou de lá d'África
Se eu não sou de lá
Meus avós são de lá d'África
Sou de lá d'África
Se eu não sou de lá d'África
Os meus ancestrais são de lá d'África
Pela minha cor, sou de lá d'África
Pelos meus valores, pela minha raça
Pela minha dança
Pela minha cultura
Pelo meu sangue guerreiro
Pelo meu gingado
Pelo meu terreiro
Pela minha luta
Pela minha fé
Pela minha reza
Pelo meu axé
(Autor desconhecido)

39
Introdução

Eu nasci nessa cidade que está debruçada à margem da


Lagoa dos Patos e que tem como característica ser um lugar
encantador, tranquilo, que nos oferece praia, cachoeiras,
coqueirais, figueiras centenárias e uma diversidade cultural
muito grande, que se revela nas diferentes etnias, nas
manifestações culturais pomeranas, alemãs e de matriz
africana. Nesse lugar em que eu nasci, em que minha família
criou suas raízes, existem comunidades tradicionais, que
estão reveladas nos quilombos, na pesca artesanal. Aqui tem
preto e preta, sim. E vou contar um pouco de como eu
(re)existo nesse universo de luta e resistência.
São Lourenço do Sul está localizado na região turística da
Costa Doce, microrregião centro-sul do Rio Grande do Sul, e
tem uma área extensa, que se distribui entre zona urbana e
zona rural, com uma população de mais de 45 mil pessoas.
Tem no seu interior sete distritos, com uma economia de base
familiar, agroecológica e pecuária. Destaca-se pelo comércio
e por ter a cultura do cooperativismo e do associativismo.

Em frente à Lagoa dos Patos-


São Lourenço do Sul

40
E onde, como e quando surgem as organizações dos
pretos e pretas? É sobre isso que vou conversar com vocês,
sobre a importância socioeconômica e cultural da nossa etnia,
sobre nossas raízes, sobre nossas lutas e resistências. Nós,
pretos e pretas, negros e negras, nos estabelecemos aqui, no
Rio Grande do Sul, em pequenas propriedades de terra,
geralmente vindos(as) fugidos(as) dos maus-tratos dos
senhores brancos das grandes fazendas.
Vamos conversar sobre vida, cultura, modo de conviver,
experiências e tudo que envolve nossas manifestações e
contribuições para a história.

O início da nossa caminhada

Desde muito cedo, eu ouvi minha bisavó e meu bisavô me


contarem como sempre foi difícil ter cor, raça e etnia diferente
de quem é branco. Vi a maneira simples, digna e amável
como levavam uma vida difícil, mas com esperança e fé.
Minha família me ensinou a
ser quem sou hoje, mulher
negra, mulher de garra,
mulher que fica em pé diante
de tantas e tantas
adversidades que a
sociedade nos impõe, que a
vida nos carrega.
Minha avó e meu avô Mestra Da esquerda para direita, Pedro Deoclecio Prestes,
Griô Vera Macedo, Almerinda Centeno e Ana
também me ajudaram a me Hermelinda Centeno em frente à Secretaria
Municipal de Cultura de São Lourenço do Sul
formar, assim como minha
mãe e meu pai, tias e tios, numa experiência única de troca de
saberes. Fiz de mim uma maneira de ensinar outras
mulheres, jovens pretos e pretas, negros e negras, a entender
o lugar que devemos ocupar para que nossa cultura continue
se perpetuando.
A história não é a de um povo livre, valorizado; a história é
dura, e, por isso, somos fortes, mas ainda temos que
aprender a ter o nosso lugar na sociedade.
41
As primeiras formas de luta que aprendi ainda vêm do
período da escravidão,
formas de resistência que
tinham muitas variantes:
ora eram atos isolados,
individuais, ora eram
organizados, fugas
coletivas. A maneira de
resistir estava presente na
capoeira dentro das
senzalas e nas danças de
manifestações africanas
também, vividas em
silêncio, escondidas nas
senzalas; das mais simples
manifestações até as mais Em frente à Lagoa dos Patos-
São Lourenço do Sul
duras, que poderiam levar à
morte, ao suicídio, para não
sofrer com os maus-tratos, com os estupros, açoites do
tronco, das correntes.
No Rio Grande do Sul, a maioria das
comunidades negras foram se instalando
em pequenas propriedades, com
fragmentações dos núcleos de moradia e
convivência, em especial em São
Lourenço, onde temos núcleos no interior
e na cidade. Temos cinco quilombos
reconhecidos pela Fundação Palmares e
dois em processo de reconhecimento. Na
cidade, temos núcleos espalhados em
diversos bairros e vilas. Em frente à Lagoa dos Patos-
Segundo a Ong Capa (2010), são as São Lourenço do Sul
seguintes as comunidades reconhecidas:
Monjolo (Serrinha), Picada, Vila do Torrão (Cantagalo),
Coxilha Negra e Rincão das Almas; e, em processo de
reconhecimento: Faxinal (Campos Quevedo) e Boqueirão.
42
A última tem especial atenção minha, porque lá ainda se
encontram familiares. Nesse local, está sendo instalado o
empreendimento Quilombo dos Nascentes, com o objetivo de
resgatar, valorizar e promover as manifestações da cultura
afro. Estou envolvida diretamente nesse projeto, que está
suspenso pelo momento da pandemia causada pela Covid-
19. Pretendemos reviver os costumes e saberes de maneira
pedagógica, buscando oferecer toda a diversidade da cultura
afro: capoeira, literatura, artesanato, memória e identidade,
moda, espaço infantil e uma cozinha voltada para os pratos
típicos da nossa gente; mais uma maneira de viabilizar o
acesso à nossa história.
Na nossa São Lourenço, temos outros espaços
importantes, como o clube de negros(as) 15 de Novembro.
Mas, onde atuei e militei, onde estou até hoje, contribuindo
para o Movimento, é na Pastoral Negra. No ano 2019, fizemos
o I Seminário da Consciência Negra, trazendo convidados(as)
de fora do município para conversar com o nosso povo. Nesse
seminário, foi discutida a importância dos espaços que
promovem as políticas afirmativas para o nosso povo. Lá
estiveram quilombos do município e da região, e sempre me
emociono ao lembrar esses momentos únicos, quando nos
sentimos em casa e podemos mostrar para todos e todas
quem somos e nossa importância na sociedade.
Finalizando, deixo aqui uma música que aprendi com
minhas antepassadas e desejo que sigamos fortes diante de
tantos retrocessos que, nos últimos tempos, estamos
vivendo. E, nunca se esqueçam, “Vidas negras importam!”.
Nossa história é parte da construção deste país, e ninguém
poderá nos tirar isso! Vamos escrever e registrar, com o nosso
olhar, tudo o que construímos e ainda vamos construir.

43
La vem das senzalas

Lá vem das senzalas de ontem, lá vem das


senzalas de hoje,
oferta que é sangue e suor de um povo em
clamor, que quer livre cantar!
Recebe Olorum nossos dons, recebe, ó, Tupã.
Nossos dons, recebe, ó, Pai.
Obá, obá, obá
a oferta de nossas nações
Obá, obá, obá, recebe, Senhor,
pão e vinho, obá, obá, obá
ô, as conquistas de um povo a caminho.
Lá vem das aldeias de ontem,
lá vem das aldeias de hoje, oferta de fé e
resistência de um povo que pena, que livre brincar!
(Autor desconhecido)

44
Uma noite encantada
Contando histórias nas "travessias dos rios"
A promessa para Nossa Senhora da Boa Morte
Professora Cláudia D’Avila

Igreja São Francisco


Rio Pardo

45
Uma noite encantada
Contando histórias nas “travessias dos rios”
A promessa para Nossa Senhora da Boa Morte
1
Professora Cláudia D’Avila *

R
io Pardo, cidade histórica do interior do Rio Grande
do Sul, é conhecida por seu passado de lutas, por
sua formação militar, por seus prédios antigos, por
seus rios Pardo e Jacuí, pela culinária e pela riqueza material
e imaterial de sua cultura. Cultura que se destaca pela
contribuição da diversidade étnica, pelos saberes populares
e, principalmente, pela transmissão de conhecimentos para
novas gerações, por meio da oralidade nas narrativas de
acontecimentos históricos e imaginários.

Nesse contexto, destacam-se


as lendas. E Rio Pardo tem muitas
lendas a contar e a encantar.
Mistérios capazes de questionar o
real e a fantasia, a verdade e a
incrível capacidade de inventar
Imagem da Nossa Senhora
histórias e convencer sobre elas. da Boa Morte

Uma das lendas mais famosas da cidade é a da Noiva da


Igreja São Francisco e de sua promessa para Nossa
Senhora da Boa Morte.
Nos tempos da Escola Militar em Rio Pardo, uma moça,
filha de um oficial de família tradicional, apaixonou-se por um
soldado. O pai proibiu o namoro, impedindo que a filha se
encontrasse com o rapaz.
A moça prometeu para Nossa Senhora da Boa Morte
entregar seu vestido de noiva, para que sua súplica fosse
atendida: casar-se com seu grande amor. Mas o tempo foi
passando, e a moça foi perdendo a esperança, ficando sem
comer, muito fraca e doente.

1*
Professora de artes e mediadora cultural da ONG MovimentAÇÃO.
46
O pai, muito preocupado,
decidiu aceitar o casamento.
No dia da cerimônia, uma
tragédia acontece: a noiva morre
antes de chegar ao altar da Capela
São Francisco.
A partir disso, muitas moças
começaram a fazer promessas na
intenção de conseguir um bom
casamento.
Minha devoção a Nossa
Imagem da Nossa Senhora Senhora da Boa Morte começa
da Boa Morte (abaixo) e
Nossa Senhora da Glória
quando soube dessa lenda. Ao
(acima) na Igreja São visitar, por muitas vezes, a Capela
Francisco - Rio Pardo São Francisco, ficava admirando a
imagem vestida de noiva e
imaginando essa bonita e triste história de amor, refletindo
sobre o quanto os valores mudam de acordo com as
pessoas, os lugares e as épocas.
O casamento representa a celebração de vidas que se
unem… para sempre, ou não!
Quando fiz a promessa de ofertar meu vestido de noiva
para Nossa Senhora da Boa Morte, meu pedido foi para que
ela ajudasse no resgate das histórias das famílias, para que
houvesse mais harmonia e união nos lares, e
para que avós, pais e filhos estivessem mais
próximos por laços de fé, sabedoria e afeto.
Prometi levar sua imagem de Mãe,
Mulher e Educadora às pessoas e contar, por
meio de narrativas de poesia e
encantamento, como era viver em outros
tempos… de outros modos… com outros
valores.
Afirmo que fui plenamente atendida.
Precisamos conhecer e valorizar o tempo
passado, para entender o tempo presente e
Vestido de noiva da autora
então ressignificar o tempo futuro.
47
De quem e de onde viemos?
Quem somos e onde estamos?
Quem nos tornaremos e aonde vamos chegar?

A ancestralidade e a tradição do Sacramento do


Matrimônio

Com o passar do tempo, os valores familiares foram


mudando significativamente. Se analisarmos os costumes
de uma época, não tão distante, veremos o quanto tudo
mudou.
O namoro, o noivado, o casamento, a chegada dos filhos
e dos netos fazem parte de um "ritual de passagem", que
acontece a seu tempo, e em seu lugar. Mas, atualmente, os
valores estão invertidos. As relações perderam o
romantismo e o encantamento, dando lugar à sensualidade,
à vaidade e aos encontros casuais, sem compromissos.
Nesse contexto, com o objetivo de mostrar para as novas
gerações, ou seja, crianças e
adolescentes, como eram os costumes,
as vestimentas, o comportamento, os
valores de outras épocas, coleciono
fotografias antigas e atuais de
casamentos, de aniversários e de
família.
Ao comparar e fazer relações sobre
as épocas, os lugares, as roupas e as
Foto do casamento
maneiras de viver, é possível fazer da autora
comentários, questionamentos e
vivenciar, pela imagem, uma viagem a outros tempos, com
seus respectivos valores.
Guardar fotos e documentos de família, objetos
pessoais, organizar álbuns de fotografias, fazer anotações é
de fundamental importância para registrar a história das
famílias e dos lugares.

48
A noite de núpcias

Tempos atrás, a noite mais esperada da vida era a noite


do casamento, a cerimônia, a noite de núpcias, também
chamada de lua de mel.
A preparação, nos mínimos detalhes, a camisola branca,
as pérolas e as rendas, as toalhinhas, os perfumes, a
maquiagem, os lençóis bordados à mão, as toalhas com as
iniciais do casal e o enxoval cuidadosamente preparado.
Outro valor era construir a casa antes do casamento.
O casamento, por mais que mudem os costumes, ainda
desperta emoções, encantamento, esperança e os mais
sublimes sentimentos.
A troca de alianças simboliza o enlace de vidas que se
unem para formar uma família, para começar uma nova
história. Aliança de amor e cumplicidade, que envolve o
casal e transmite para os filhos a essência da continuidade,
que se eterniza nos laços afetivos.

49
50
O protagonismo negro na história
comunitária de Venâncio Aires/RS
Profa. Dra. Viviane Inês Weschenfelder

Casal Alaor e Suely Lopes


Fonte: Acervo da família, 2021.

51
O protagonismo negro na história comunitária de
Venâncio Aires/RS

Profa. Dra. Viviane Inês Weschenfelder

Introdução: por que tornar histórias negras visíveis?

E
ste texto pretende visibilizar o protagonismo e a
participação negra na vida comunitária do
município de Venâncio Aires/RS. Para isso, tenho
a honra de apresentar as histórias de vida de Alaor José
Lopes (87 anos) e Suely Ferreira Lopes (81 anos), casal
negro venâncio-airense. Moradores do bairro Coronel Brito
desde 1963, quando o bairro ainda era uma localidade do
interior de Venâncio Aires, suas trajetórias se confundem
com a formação da comunidade. Essas histórias deixam
evidente que a religiosidade e o trabalho comunitário, bem
como a dedicação para com as famílias em situação de
vulnerabilidade, são também práticas culturais dos
afrodescendentes, assim como em outras regiões do Brasil.
Conhecê-las, portanto, é uma forma de não só reconhecer a
presença da diversidade étnico-racial no município, mas
também de respeitar e valorizar a histórica contribuição
negra para o desenvolvimento da cultura comunitária de
Venâncio Aires.

Registro do segundo dia de


entrevista.
Fonte: Acervo da pesquisadora,
2021. Na foto, o casal Lopes e
Teka Lopes, em pé. De
máscara, a pesquisadora.

52
Em que pese o fato de a realização de pesquisas como
esta ser importante em todo o Brasil, pois elas contribuem
para o respeito às diferenças e para a produção de
conhecimento sobre a população negra brasileira, no Rio
Grande do Sul esse tema adquire ainda mais relevância.
Isso porque a história da imigração europeia no estado e sua
herança cultural nas regiões de colonização alemã e italiana
acabaram por invisibilizar a presença e a participação de
outros grupos étnico-raciais na história, especialmente
indígenas e negros. Esse tema foi abordado por diversos
historiadores, inclusive no Vale do Rio Pardo (tais como
Pereira, 2004; Silva, 2007; Skolaude, 2008; Weschenfelder,
2015), mas é fundamental trazer novos elementos que
colaborem para que mais histórias negras sejam
reconhecidas.
Em pesquisa realizada anteriormente em Venâncio
Aires, nos acervos do jornal Folha do Mate, foi possível
identificar um discurso potente no município, nomeado de
discurso da comunidade (Weschenfelder, 2015). Esse
discurso apresenta a vivência comunitária como um dos
principais valores do município e encontra-se vinculado à
tradição alemã. “A vivência comunitária, assim, é descrita
como responsável pelo progresso e pelo desenvolvimento
do município” (Weschenfelder, 2015, p. 104). Aparecem de
forma destacada nesse discurso a manutenção do idioma
alemão, o culto à tradição, a fé religiosa e o associativismo.
De fato, como mostrou Neumann (2006), a organização
entre as famílias próximas e a construção da escola e da
igreja são elementos comuns oriundos de uma tradição de
imigrantes europeus, que valorizava a educação e a
religiosidade.
O que problematizo é: será mesmo que a vivência
comunitária em Venâncio Aires é somente resultado das
práticas culturais germânicas? Diversas formas de
associativismo negro têm sido identificadas por
historiadores nas últimas décadas, e muitas delas são
anteriores à Abolição. Em Venâncio Aires, temos registros
53
de uma irmandade religiosa, formada por escravos e alguns
homens livres, denominada Irmandade São Sebastião
Mártir. A primeira festividade em homenagem ao santo teria
ocorrido em 1876 (Rosa; Kist, 2004). Vale ressaltar que São
Sebastião Mártir é o padroeiro da Igreja Matriz do município.
Temos, portanto, uma importante participação negra na
cultura religiosa venâncio-airense.
A trajetória de Suely Ferreira Lopes e de seu esposo,
Alaor José Lopes, adiciona novos elementos na história do
município, evidenciando o protagonismo negro na formação
do bairro Coronel Brito e em sua vida comunitária. As
vivências desse casal mostram que práticas culturais
valorizadas no município, historicamente delegadas à
tradição alemã, foram protagonizadas também por pessoas
negras. Homens e mulheres que, apesar do preconceito
racial, optaram por auxiliar muitas pessoas (brancas e
negras), foram atuantes na comunidade e contribuíram para
o desenvolvimento da região.

Igreja Matriz de São


Sebastião Mártir - Venâncio
Aires

54
Sem dúvida, essa narrativa merece ser conhecida e
valorizada como uma das histórias que formaram a cidade e
fortaleceram a religiosidade de Venâncio Aires. Merece
estar na escola e ser contada para nossas crianças e jovens
venâncio-airenses, especialmente do próprio bairro. Essa
também é uma forma de atender à Lei nº 10.639/2003, que
incluiu o ensino da história e da cultura afro-brasileira e
africana nas escolas.

Registrando os saberes e fazeres: abordagem da


pesquisa

O modo como fazemos nossas pesquisas vai


depender dos questionamentos que fazemos, das
interrogações que nos movem e dos problemas que
formulamos. (Paraíso, 2014, p. 26).

Conheci o casal Lopes por meio de Loni Lopes, mais


conhecida como Teka, ativista negra venâncio-airense e
Griô Baobá, integrante do projeto “Os filhos da terra de Rio
Pardo Grande do Sul”. Em nossa primeira conversa sobre o
projeto, ficou evidente a importância de registrar a trajetória
desse casal. Teka Lopes é a mais nova de dez irmãos, e
Alaor José Lopes, nosso protagonista, é seu irmão mais
velho. Por essa razão, as duas vezes em que os visitei, em
sua casa no bairro Coronel Brito, Teka esteve junto e
contribuiu para a pesquisa. Além disso, Teka foi a
interlocutora com Dona Suely, inclusive levando esta
produção escrita para sua leitura e apreciação.
Para realizar as entrevistas, segui os direcionadores da
metodologia de história oral. “A história oral é uma
metodologia de pesquisa que consiste em realizar
entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar
sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de
1
vida ou outros aspectos da história contemporânea.” Na
primeira visita, entrevistei a sra. Suely. Elaborei algumas
1 Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/acervo/historiaoral. Acesso em: 23 fev. 2021.

55
questões como base e, durante quase duas horas, pude
ouvir e gravar sua narrativa. Na segunda visita, duas
semanas depois, entrevistei também o sr. Alaor. Além de
gravar nossa conversa, fotografei alguns registros e
documentos do casal, muito bem organizados em pastas
por Suely Lopes.
Nessa segunda oportunidade, Dona Suely já havia lido o
resumo que anunciava o resultado da pesquisa. Disposta a
auxiliar e também a garantir que o material final tivesse uma
coerência, ela muito gentilmente escreveu um relato de sua
história e entregou-me. Desse modo, fui compondo os
diversos elementos (narrativas, documentos, registros
escritos) para escrever este texto. É um privilégio poder
registrar a história de sujeitos que tanto contribuíram para
sua localidade e ainda contar com eles para validar a
produção final. Sem dúvida, a história oral é uma ferramenta
potente para o registro de histórias de vida como essas.
Como nos diz Albuquerque Jr. (2007), ela permite que novos
olhares sobre o passado sejam possíveis. Permite também
que as localidades sejam percebidas de outras formas e que
mais pessoas sejam reconhecidas por sua constituição.
Embora este texto procure contribuir para a história do
bairro Coronel Brito, ele não tem a pretensão de contar A
história do bairro. Produzir uma história oficial não é o
objetivo deste trabalho. Também não busca, de modo
algum, desvalorizar as histórias das pessoas reconhecidas
na localidade por sua contribuição. Sua função é mostrar
que a história pode ir além do que consta nos registros
oficiais, que destacam quase somente sobrenomes
alemães entre os fundadores e padrinhos das comunidades
d o m u n i c í p i o . E m Ve n â n c i o A i r e s , t a m b é m o s
afrodescendentes foram protagonistas de suas localidades,
e reconhecer sua participação é um compromisso ético e
político. Por isso, é importante nos perguntarmos sempre:
Quais histórias circulam em nossas localidades? Quais são
as pessoas com nomes e trajetórias conhecidos pelas
pessoas? Como historiadora, minha tarefa é tornar visível
56
as histórias de pessoas negras do município e, juntamente
com outros colegas de profissão, criar condições para que
novos futuros sejam construídos, com respeito e dignidade
para todos.

Uma trajetória de empreendedorismo e vivência


comunitária

Alaor José Lopes nasceu em 15 de dezembro de 1933, e


Suely Ferreira Lopes, no dia 9 de dezembro de 1939. Ambos
venâncio-airenses, casaram-se em 5 de outubro de 1957.
São 63 anos de união, da qual se originaram sete filhos, seis
homens e uma mulher. Ao longo da trajetória profissional,
Alaor trabalhou em diferentes funções, especialmente como
auxiliar de mecânico. Após 24 anos de trabalho em uma só
empresa, esta decretou falência. A indenização paga pela
empresa contribuiu para a aquisição de um lote de dois
hectares de terra, em Linha Coronel Brito. Além disso, o
casal já era proprietário na casa onde residia anteriormente.
Depois de seis anos de casados, em 1963, mudaram-se
para a localidade, na época ainda uma região rural.
Durante os anos seguintes, Alaor Lopes foi agricultor,
além de trabalhar na criação de gado e corte de mato. Para
garantir a subsistência e completar o período necessário
para sua aposentadoria, vendia lenha e leite. A lenha era
entregue por toda a cidade, com o auxílio dos filhos. O modo
de vida simples da família contribuiu para a aquisição de
mais dois hectares de terra, próximo à sua propriedade. A
partir daí, foi iniciado o processo de loteamento dessas
terras, o que tornou o casal bastante conhecido na
localidade. Com os loteamentos, os compradores, muitos
dos quais famílias brancas migrando do interior para a
cidade, negociavam diretamente com Alaor e Suely Lopes.
Na imagem a seguir, observamos o documento referente ao
Loteamento Alaor, aprovado em 1987, com certa de 60
terrenos.

57
“A gente não era comerciante”, foi uma das falas de Suely
Lopes, ao relatar o processo de venda dos terrenos. Ela
contou que o objetivo nunca foi lucrar com esses negócios,
mas contribuir, da melhor forma possível, para o
desenvolvimento local. Muitos compradores parcelavam
direto com o casal, e esse período é relatado por eles com
tranquilidade e satisfação. Por essa razão, sua história
articula-se com a história de crescimento do bairro. Com os
loteamentos, era necessário estruturar o bairro. A
associação de moradores fez com que muitas melhorias
fossem conquistadas, desde luz elétrica, ainda nos anos
1960, até atendimento de saúde e escola infantil, nas
décadas seguintes. Hoje, Coronel Brito conta com mais de 4
mil habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), sendo o terceiro maior bairro de
Venâncio Aires.
Além dos loteamentos, o casal também foi proprietário
de uma serralheria, onde produzia e vendia lenha, uma
fruteira e um salão de baile. O salão de baile foi inaugurado

Loteamento Alaor
Fonte: Acervo do casal,
2021.

58
em 1976 e é um capítulo à parte na história da família. Seu
Alaor conta que o salão fez muito sucesso, e gente de toda a
cidade ia aos sábados e domingos para as festividades.
Todas as pessoas poderiam frequentá-lo, mas apenas
homens e mulheres negros podiam dançar na pista.
Homens brancos tinham um local reservado e podiam
consumir durante o evento. Segundo o casal, esse era o
funcionamento da época, e não havia muitos
questionamentos. Nos domingos à tarde, as discotecas
faziam sucesso com os jovens e seus cabelos black. Depois
de seis anos, o casal decidiu fechar o salão, preocupado
com o aumento do consumo de drogas. Os filhos eram
jovens, e essa proximidade deixava-os de certo modo
vulneráveis. Certamente, essa fase do salão de baile
mereceria mais detalhes.

Certificado de formação de
líder da Pastoral da Criança.
Fonte: Acervo da família, 2021.
59
A história do casal Lopes sinaliza um perfil
empreendedor. Ao longo do tempo, eles souberam
aproveitar as oportunidades e construíram, com isso, não só
uma condição financeira confortável para sua família, mas
também um legado importante. De acordo com o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(Sebrae), “empreendedorismo é a capacidade que uma
pessoa tem de identificar problemas e oportunidades,
desenvolver soluções e investir recursos na criação de algo
positivo para a sociedade”.2 Por essa e outras razões, sua
trajetória é motivo de orgulho para ambos e também para
seus familiares.
Outro aspecto importante da vida de Alaor e Suely é a
religiosidade. Católicos praticantes, o casal foi atuante na
comunidade Nossa Senhora Rainha, localizada no bairro,
desde sua fundação, em 1964. Embora os registros
históricos apontem outros nomes de referência na
comunidade, Dona Suely relata que atuou em diversas
atividades, sendo a principal delas como líder na Pastoral da
Criança.
Como movimento nacional, a Pastoral da Criança teve
início em 1983, como uma organização de ação social da
Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB). Em
Venâncio Aires, coordenada pelas irmãs da Divina
Providência, a Pastoral iniciou em 1985, com uma equipe de
18 mulheres, atuando diretamente com as crianças e mães
em situação de vulnerabilidade. Esse apoio familiar, de
auxílio das mães, de entrega de alimentos, como a
multimistura, e de pesagem mensal das crianças, foi
importante para a redução da mortalidade infantil e da
desnutrição, problemas graves enfrentados junto com a
pobreza. Desse modo, antes das políticas públicas de
assistência social e de saúde da família, a Pastoral da
Criança realizou um trabalho de grande relevância.

2 Disponível em:
https://atendimento.sebrae-sc.com.br/blog/o-que-e-empreendedorismo/. Acesso em: 23 fev. 2021.

60
“Nosso objetivo era fazer as mães acreditarem nelas.”
Dona Suely Lopes relata esse trabalho e mostra com
carinho as pastas com muitos registros desse período.
Mensalmente, as mães se encontravam na sede da
comunidade Nossa Senhora Rainha. Nesses momentos de
dedicação à vida comunitária, Seu Alaor cuidava dos filhos.
Em 2019, a Folha do Mate fez uma reportagem sobre a
história do casal e trouxe informações sobre a Pastoral da
Criança.3
Quando questionados sobre eventuais conflitos raciais,
ambos responderam que perceberam, ao longo da vida,
algumas situações em que as pessoas os trataram de forma
preconceituosa, mas essa nunca foi a regra. Além disso,
preferiram seguir atuantes na comunidade, onde a
convivência com pessoas brancas foi constante. Sobre a
participação no Movimento Negro do município, Dona Suely
conta que recebeu o convite para integrar a Pastoral Afro-
Brasileira, mas optou por permanecer na Pastoral da
Criança, diante das necessidades da localidade.
Em 2010, Suely Lopes recebeu o Troféu Zumbi dos
Palmares na Câmera de Vereadores. O casal ainda reside
em Coronel Brito, na rua principal do bairro. Vários de seus
familiares residem na proximidade. Sentada com Dona
Suely em frente à sua casa, pude ver várias pessoas a
saudarem, demonstrando o quanto é conhecida e querida
na comunidade. Seu Alaor divide seus dias em sua chácara,
no interior do município, e em sua residência, no bairro.
Após uma trajetória de protagonismo e dedicação à família e
à comunidade, pude perceber como o casal conta sua
história com alegria e leveza. Certamente, podem inspirar
seus netos e muitos jovens, negros e brancos, na busca de
sentido para sua existência.

3 A reportagem chama-se “Família Lopes é responsável em fazer da Coronel Brito um


bairro” e está disponível em: https://folhadomate.com/noticias/familia-lopes-e-
responsavel-em-fazer-da-coronel-brito-um-bairro/. Acesso em: 23 fev. 2021.

61
Finalizando este texto, entendo que muitos outros
aspectos da vida de Alaor e Suely Lopes poderiam ser
relatados. Todavia, o objetivo aqui foi visibilizar a trajetória
de um casal negro protagonista de sua própria história
familiar, mas também disposto a contribuir para o bem
comum. Foi um prazer realizar esta pesquisa. Que muitas
vidas negras ainda possam compor as cenas de nossa
história. Os filhos de Rio Pardo Grande do Sul agradecem!

Referências

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de


inventar o passado. Bauru: Edusc, 2007.

NEUMAN, Marinês Teresinha. Narrativas identitárias e


associativismo de tradição germânica na região de Santa
Cruz do Sul: o discurso da identidade regional (1850-1950).
Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Metodologias de pesquisas pós-


críticas em educação e currículo: trajetórias, pressupostos,
procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, Dagmar
E.; PARAÍSO, Marlucy A. (org.). Metodologias de pesquisas
pós-críticas em educação. 2. ed. Belo Horizonte: Mazza,
2014.

PEREIRA, Jair Luiz. A presença da população


afrodescendente em Venâncio Aires. In: VOGT, Olgário
Paulo (org.). Abrindo o baú de memórias: o Museu de
Venâncio Aires conta a história do município. Santa Cruz do
Sul: Edunisc, 2004.

ROSA, Angelita da; KIST, Rita de Cássia. Aspectos da


religiosidade. In: VOGT, Olgário Paulo (org.). Abrindo o baú
de memórias: o Museu de Venâncio Aires conta a história do
município. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.
62
SILVA, Mozart Linhares da. Educação, etnicidade e
preconceito no Brasil. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007.

SKOLAUDE, Mateus. Identidades rasuradas: o caso da


comunidade afro-descendente de Santa Cruz do Sul (1970-
2000). Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008.

W E S C H E N F E L D E R , Vi v i a n e I . P r o c e s s o s d e
(in)visibilidade do sujeito negro: o jornal de Venâncio
Aires/RS em questão. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2015.

63
64
As Baobás de Venâncio Aires
Mestra Baobá Loni Lopes da Silva
(Teka Lopes)

65
As Baobás de Venâncio Aires

Mestra Baobá Loni Lopes da Silva


(Teka Lopes)

O
baobá é uma árvore nativa da África continental,
de Madagascar e da Austrália. É uma árvore de
grande porte, que armazena água
em seu tronco. Suas folhas servem de
alimento, bem como os frutos e as sementes,
pois são muito nutritivos. Também é utilizada
para fins medicinais. O baobá tem um
simbolismo todo especial, pois serve de
moradia em seu tronco, por ser de grande porte e por ser
uma árvore acolhedora, que protege e ampara.

No candomblé, o significado do nome é “Árvore da Vida”.


É o símbolo fundamental das culturas africanas. Por ser
forte, com raízes firmes, tronco grosso e copa grandiosa,
proporciona uma sombra maravilhosa, aconchegando e
refrescando quem esteja por perto. Uma árvore africana que
traz consigo todo o poder ancestral.

Cuia Farroupilha e Chafariz - Praça


Coronel Thomaz Pereira - Venâncio Aires

66
Com a Coordenadora Editorial do Projeto
Conceição Matos e autor do Projeto,
jornalista João Carlos Agostinho Prudêncio

Com a Mediadora Cultural


d o P ro j e t o, p ro f e s s o ra
Cláudia D’Ávila e Autor do
projeto, jornalista João
Carlos Agostinho Prudêncio,
em frente a igreja São
Com a Mediadora Cultural Sebastião Mártir de
do projeto, Cláudia D´Ávila, em dia de Venâncio Aires
gravação do Documentário

Venâncio Aires é uma cidade do interior do Rio Grande do


Sul conhecida como a Capital Nacional do Chimarrão, em
razão do cultivo de erva-mate. Localizada na região central
do estado, tem como característica a hospitalidade de seus
moradores.
O chimarrão é uma bebida tradicional gaúcha que tem
todo um ritual para seu preparo, começando pela escolha de
uma boa erva-mate, a cuia feita de porongo, a bomba de
prata e a água aquecida na temperatura certa. Uma roda de
conversa com um bom chimarrão aproxima e reúne as
pessoas.
Desses encontros surgem grandes amizades, profundas
e verdadeiras, que permanecem firmes e fortes por toda a
vida. A amizade muitas vezes é uma construção que inicia
desde a infância, compartilhando segredos, brincadeiras,
estudos, passeios, parcerias em todos os momentos. Nesse
contexto, as amizades se enraízam, sustentam-se e dão
bons frutos…
67
Assim acontece com “As Baobás de Venâncio Aires”, um
grupo de mulheres negras, fortes, determinadas,
acolhedoras, mães, avós, que valorizam a cultura africana, a
família, a religiosidade e os bons momentos juntas. Festas
populares, como o carnaval, e religiosas, como a Festa de
Santo Amaro e a de São Sebastião Mártir, fazem parte dos
eventos prestigiados pelas Baobás.
O grupo se formou há aproximadamente seis anos. As
Baobás viajam, reúnem-se para compartilhar saberes, fazer
artesanato, trocar receitas, divertir-se, participar de
campanhas de caridade, estudar e viver intensamente.
Benzeduras, rezas, novenas, culinária afro, contação de
histórias e valorização da cultura popular do município e do
estado são ações que traduzem a importância desse grupo
para a sociedade de Venâncio Aires.
Com o passar do tempo, as Baobás foram florescendo,
saboreando seus frutos e já estão deixando as sementinhas,
pois suas filhas e netas, desde cedo, estão seguindo a
tradição de boas vivências e aprendendo com o suporte e a
experiência o valor de ser Mulher Empoderada… Uma
autêntica Baobá.

Encontro do grupo Baobá de Venâncio Aires

68
Imigração:
Uma história de aventura nos trilhos do destino.
Vitor Emanuel Alves Zambarda

Casa da Família em Pederneiras,


interior de Rio Pardo

69
Imigração: Uma história de aventura nos trilhos do
destino.

Vitor Emanuel Alves Zambarda

N
o ano 1870, no Rio Grande do Sul, começou o
período de imigração italiana, quando milhares
de italianos saíram de suas terras natais para
tentar vida nova em outro país, pois a Europa estava
passando por muitas dificuldades. A fome e a miséria
fizeram com que muitos buscassem o incentivo brasileiro, a
fim de ganhar um pedaço de terra para plantar e alimentar
suas grandes famílias e ao mesmo tempo obter lucro.
Nossa história terá como personagem, um imigrante
italiano, que representará toda essa etnia, mostrando a luta,
coragem e vontade de trabalhar para buscar uma vida mais
digna. A escolha desse personagem é importante para
representar famílias da cidade pois serve de espelho para
essas com um histórico muito parecido.

Trevo de acesso a Rio Pardo

70
Giovanni Zambarda nasceu em 20 de maio de 1853 em
Calavino, uma cidade na província de Trento, região do
Trentino, conhecido como Tirol, ao norte da Itália, em uma
família de mais quatro irmãos. Esse pequeno italiano, na
época, nem sonhava em conhecer Rio Pardo, assim como
tantos outros que em um futuro próximo para lá iriam.
Giovanni vivia uma vida simples, muito pobre, e sua
alimentação dependia de uma planta em especial, o milho,
do qual vinha a polenta, que era a base alimentar da parte
pobre da Itália. Viveu junto à família até completar 18 anos,
quando então foi para o serviço militar obrigatório, que tinha
a duração de seis longos anos e era imposto pelo Império
Austro-Húngaro. Contudo, ao entrar para o serviço militar,
Giovanni e outros jovens garantiriam uma alimentação
bastante robusta, além de um pequeno soldo para ajudar
com os custos na casa dos pais.

Mapa: Local enlaçado


sinalizando a província de Trento.

71
Trem chegando na Estação
Férrea de Rio Pardo

Depois de servir no regime militar, ao sair do quartel,


lendo os jornais, percebeu a possiblidade de morar em um
país com terras férteis para plantar e ter uma vida melhor.
Foi então que começou a grande viagem para conhecer
esse novo mundo.
Na pesquisa que foi feita, pode-se descobrir todo o
caminho percorrido por Giovanni. Ele saiu de Calavino e, em
novembro de 1877, comprou um bilhete de navio no porto de
Gênova com o pouco dinheiro que tinha em direção a Le
Havre, na França, levando apenas algumas roupas e
alimentos para a viagem. Aos 24 anos, embarcou no navio a
vapor Ville de Bahia, de bandeira francesa, que partiu do
porto em 2 de dezembro de 1877, uma viagem longa, de 26
dias. O navio atracou no Rio de Janeiro em 28 de dezembro
de 1877, e Giovanni ficou hospedado em uma pequena
hospedaria, onde passou o ano-novo sozinho, ficando oito
dias no Rio de Janeiro.
72
Naquela época, normalmente ocorria o mesmo com as
outras famílias; muitas decidiam ficar em São Paulo, pois
era mais perto, mas o aventureiro Giovanni decidiu comprar
um bilhete e embarcou em um paquete com destino a Rio
Grande, cuja viagem durou sete dias. Depois, em um barco
menor, pela Lagoa dos Patos, seguiu até Porto Alegre, onde
ficou por mais alguns dias, com pouco dinheiro no bolso já
àquela altura. Ele então comprou uma passagem com
destino a Rio Pardo, pois havia ganhado terras para plantar
e também um emprego na ferrovia Uruguaiana-Porto
Alegre.
Ao chegar a Rio Pardo, Giovanni conheceu uma jovem
chamada Francisca e foi amor à primeira vista. Pode-se
dizer que esse foi o principal motivo para ele permanecer em
Rio Pardo; o amor de uma rio-pardense fez com que ele
realmente ficasse na cidade. Francisca era uma jovem
muito respeitada, e seu pai então decidiu que eles deveriam
se casar. Giovanni então agendou o casamento na Igreja
Matriz de Rio Pardo. Uma festa pequena, mas que trouxe
alegria para aqueles corações, pois ali se iniciava uma nova
família.

Encontro dos rios Pardo e Jacuí


em época de cheia - Rio Pardo

73
Giovanni agora sabia que não estaria mais sozinho em
Rio Pardo, pois teria uma grande aliada para continuar a
vida e prosperar.
Os anos foram passando, o já não tão jovem Giovanni
percebeu que o inverno em Rio Pardo chegava a uma
temperatura boa para plantar uvas, e começou a produzir o
próprio vinho, tornando-se também um grande plantador de
arroz e milho, pois havia
aprendido com os outros rio-
pardenses a maneira
c o r r e t a d e p l a n t a r.
Pederneiras tem o rio que
passa perto, o que seria
bom para o plantio do grão
do arroz. Seus filhos deram
Giovanni Zambarda e seguimento à plantação de
Francisca Zambarda
Fonte: Acervo da família arroz até 1980, e durante
muito tempo esse grão foi o
sustento da família. Com os filhos já grandes, todos
ajudavam na produção do arroz, e então começaram a criar
gado de corte.

Rua da Ladeira - Rio Pardo

74
Enquanto os filhos estavam cuidando de suas terras,
Giovanni estava trabalhando como chefe da estação de
Pederneiras. Ele trabalhava para manter a ordem do local, e
toda a sua produção de arroz era escoada pelos trens que
por lá passavam.
Giovanni acabou falecendo em 1936, e Francisca, em
1937, deixando dez filhos, que se multiplicaram e hoje
somam mais de 250 rio-pardenses.
Essa foi uma história de luta e perseverança em
acreditar em dias melhores, assim como à de outros tantos
italianos que migraram para o Rio Grande do Sul. Se
pudéssemos definir com uma palavra como foi a imigração
italiana para o Rio Grande do Sul, seria “difícil”, pois deixar
sua família em busca do novo, do desconhecido era
complicado. Dar adeus aos pais sem a certeza de que
voltaria a vê-los, perder sua família e ter que construir uma
nova, pois a base do mundo é a família… Hoje em dia, existe
a tecnologia para a comunicação, mas no século XIX não
era tão fácil. Enviar cartas era caro e demorava demais. Os
telefones começavam a surgir no mundo, mas poucas
pessoas tinham acesso a eles, pois também eram
extremamente caros. Mas, apesar de tudo isso, eles
prosperaram e continuaram prosperando, e a união desse
povo fez com que se mantivessem em crescimento.

Barcos no Rio Jacuí - Rio Pardo

75
76
Uma nova narrativa para reconhecer a mão afro-brasileira
na região central do Rio Grande do Sul
Profa. Dra. Marta Regina dos Santos Nunes

Museu Treze de Maio-


Santa Maria

77
Uma nova narrativa para reconhecer a mão afro-
brasileira na região central do Rio Grande do Sul
1
Profa. Dra. Marta Regina dos Santos Nunes

Vale do Rio Pardo


Santa Cruz do Sul: Um pedaço do Brasil

A
cidade de Santa Cruz do Sul, elevada à condição
de município em 1877, é um dos maiores polos
econômicos da região central e do Vale do Rio
Pardo, caracterizando-se pela produção de tabaco e pela
marcante colonização alemã. Além dos Bonecos Fritz e
Frida, presentes no pórtico da cidade, representando uma
família “típica” local, a cidade tem um hino explicitamente
excludente, que celebra um suposto heroísmo dos
imigrantes. Sem evidenciar qualquer outra contribuição
étnica, a hegemonia cultural se mantém por meio das
narrativas de seus residentes e da criação de uma “tradição
germânica”, que foi inclusive absorvida por aqueles que não
descendem de imigrantes. Não muito diferente, os demais
municípios do Vale do Rio Pardo se reafirmam a todo tempo
como o “europeus” e, portanto, diferentes do resto do Brasil.
Os padrões impostos nessa região do Rio Grande do Sul,
baseados nessa memória construída, estão muito distantes
da realidade histórico-social, uma vez que escondem,
inclusive nos registros oficiais, a contribuição diversa na
formação local. O fenômeno da invisibilização histórica
sempre esteve combinado com tratamentos
desqualificantes, referências pejorativas ou explicitamente
racistas. Como resultado disso, e como acontece com boa
parte dos indivíduos negros nessa condição, eles não são
considerados como pertencentes, nativos daquele lugar.

1 Professora adjunta da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Griô


aprendiz do Mestre João Agostinho Prudêncio. E-mail: marta.martanunes@gmail.com.
78
O processo de imigração de indivíduos vindos da Europa
iniciou-se em 1824 no Brasil, a partir de uma política do
Governo Imperial que tinha como objetivo aumentar a
demografia do território e substituir a mão de obra de negros
escravizados em acelerado processo de emancipação e
busca de liberdade. Naquela época, a escravidão negra
havia terminado em boa parte do mundo, e, no Brasil,
algumas leis haveriam de garantir certo contingente de
libertos, como a Lei do Ventre Livre, de 1871. Além disso, o
Império brasileiro sofria pressão interna e externa e tinha de
lidar com recorrentes revoltas em todo o território nacional.
Em Santa Cruz do Sul, os primeiros imigrantes, que
chegaram em 1849, em sua maioria da região de Colônia,
foram assentados na sesmaria do João de Faria. As terras
eram de propriedade de um latifundiário, João de Faria
Rosa, cujo avô recebera o lote do presidente da província
em 1822. Quando da chegada dos 12 imigrantes pioneiros,
residiam proprietários de terras portugueses e seus cativos,
juntamente com suas famílias, ou seja, apesar da
reconhecida importante trajetória dos colonos imigrantes,
estes não foram os primeiros desbravadores da região.
É importante ressaltar que, mesmo que houvesse a
proibição da compra e da posse de cativos pelos imigrantes
alemães, era permitido o aluguel para a realização de
tarefas nas terras colonizadas. Os registros mostram que de
fato isso acontecia e que eles eram alugados de fazendas
próximas a Santa Cruz. Em outras palavras, o
desenvolvimento da colônia também se deu a partir do uso
da mão de obra de africanos e de seus descendentes
escravizados, evidenciando uma contribuição diversa para
o progresso local.
Conforme o historiador Mateus Silva Skolaude, a região
tinha relações de sociabilidade e poder entre os atores
sociais (luso-brasileiros, afrodescendentes, índios,
caboclos) que aqui residiam, não se constituindo, portanto,
na história local a partir do nada, de um espaço vazio e de
memórias e registros pós-colonização.
79
As narrativas de constituição étnica única são
reafirmadas a partir de uma suposta superioridade dos
imigrantes e de seus descendentes em relação aos demais
atores, sejam eles de um passado recente ou atual.

Assim, o mito civilizador do imigrante, bem como a


língua, a coragem e o trabalho, são os sinais diacríticos
reivindicados frente a outros grupos étnicos que deram
origem ao povo santa-cruzense, o afrodescendente, o
luso-brasileiro e o indígena. Desta forma, a
historiografia regional cumpre um papel importante na
construção da narrativa de pertencimento identitário,
caracterizando-se por um instrumento pedagógico
privilegiado na evocação de uma identidade étnica
como triunfo civilizatório, legitimando assim as
narrativas de pertencimento por exclusão e contraste.
(Skolaude, 2010).

Esse passado local, constituído por elementos objetivos


e subjetivos, fez com que os municípios do Vale do Rio
Pardo também se caracterizassem por estabelecer espaços
segregados, em que os descendentes de europeus, teuto ou
luso-brasileiros, ocupassem territórios privilegiados, em sua
maioria. O que se entende por espaços segregados
evidencia lugares nos quais grupos sociais diferentes não se
misturam. Além disso, tais espaços evidenciam também o
racismo estrutural orgânico, pois se constituem em espaços
marcados por um diferencial seletivo de acesso a
praticamente todos os bens e serviços, além de a educação
e equipamentos culturais.

As diversas organizações evidenciam um protagonismo


negro ativo

Os municípios da região do Vale do Rio Pardo são


bastante heterogêneos, tanto cultural quanto
economicamente, mas todos são marcados pela fundação e
pela formação diversa etnicamente. Nos últimos anos,
diversos pesquisadores têm produzido uma historiografia
que respeita e traz à tona essas contribuições. Segundo o
80
historiador Jair Luiz Pereira, a presença da população negra
africana e de seus descendentes tem origem nas primeiras
sesmarias dos municípios da região, em sua maioria negros
e negras escravizados acompanhando seus senhores
(portugueses ou espanhóis). Segundo a historiadora
doutora Fernanda Silva, foi nesse contexto que foram
fundados os clubes sociais negros, uma categoria histórica
própria das sociedades nas emancipações e no pós-
Abolição. Os clubes negros são espaços associativos
criados nos séculos XIX e XX, por e para pessoas negras,
mantidos por associados e associadas, instalados em uma
sede física, própria ou não, na qual desenvolviam ou
desenvolvem atividades sociais, culturais, políticas e
beneficentes.
Segundo registros locais, os municípios que tiverem (ou
que ainda mantêm) clubes sociais negros são: Rio Pardo,
com a Associação Beneficente Reino de Oxum e a
Sociedade Velha Guarda; Venâncio Aires, com a Sociedade
Négo Football Club São Sebastião Mártir; Encruzilhada do
Sul, com o Clube Recreativo Tabajara, o Candelária e o
Clube Brasil. Até o momento, registros orais apontam para a
existência de cinco clubes negros em Santa Cruz do Sul: o
15 de Novembro e o Rio Branco, que deram origem ao Sport
Club União (atual Sociedade Cultural e Beneficente União),
o Guarani e a Sociedade Recreativa Operário. A região teve

9o Encontro dos Clubes Sociais Negros do


Rio Grande do Sul em 2015

81
um total de, pelo menos, dez sociedades negras
encontradas até o momento.

Senhos sócios de Esporte Club União aus 22 de dias


do mês de abril do 1923 avia nesta cidade de santa cruz
2 sociedade que era o 15 de Novembro eo Rio branco
sociedades estas que era o orgulho de seus
Deregentes e de seus socio porque era a forssa viva da
cor preta da nossa terra mais meus esta cidade era
ainda muito pequena para ter 2 sociedade da cor. Pois
que elas viviao em constantes descordias uma com a
outra foi então que 3 cidadão tiveram uma idéa
luminosa a defender uma outra sociedade e convidar
de presidente da 2 a se unir afin de por fin nas entrigas
que avia em nossa classe. foi então que este 3 cidadão
que são eles João Lopes Jovenal Bibiano e Romualdo
Ferreira sendo
1 este último o que teve a idea a união. a
primeira reunião foi na casa do Sro Romualdo a rua
Thomas flores contando já com um serto numero de
sócios. E Deus estava au nosso lado porque pelo a qu
tempo chegou aqui o Sro João cuilimaco Garibaldi um
cidadão que possuía alguns recursos se prontificou a
fazer uma sede para a nova sociedade que venho ter o
nome de união e progresso o que mais tarde veio a(?) a
ser E. Club União nome que prevaleceu. Sua 1º seção
para escolher a sua 1 º deretoria foi no dia 1º Julho de
1923 dia de sua fundação tendo como seu primeiro
presidente o Sro João Garibaldi, João antonio Lopes
visse. ormiro Bastos 1º secretario Manuel flores fiscal
geral França Garibaldi 1º capitão Agenor garibaldi 2
capitão ari do prado Jorge antonio machado. João
Generso otacilio da silva e graciano Benevite de
Oliveira todos já auzente.2

As sociedades negras tinham a relevante função de


servir como referência positiva à população negra, quanto à
sua capacidade de organização, socialização, lazer e cultura
aos indivíduos impedidos de frequentar outros ambientes
em razão do racismo e da discriminação. Nesses espaços
centenários, constituíram-se famílias, e muitos prosperaram
no campo econômico e educacional, sendo esses também,
com certeza, os primeiros espaços de luta e resistência da
maior parte dos indivíduos negros do Vale do Rio Pardo.
2 Registro, de autoria desconhecida, em livro-ata de 1923.

82
O município de Santa Cruz do Sul foi onde as
associações negras mais frutificaram, sediando um total de
cinco sociedades mapeadas até o momento. Algumas delas
sobreviveram até meados dos anos 1980-1990, quando
sucumbiram às exigências das novas regulamentações e à
especulação imobiliária, bem como aos fenômenos da
gentrificação. O fenômeno da gentrificação tem sido
encontrado em quase todos os grandes centros urbanos,
mas também ocorre em pequenos municípios, onde clubes
centenários acabam tendo de fechar suas portas e se
submeter a novas regras de distribuição territorial.
Em Santa Cruz do Sul, isso não foi diferente. Entidades e
associações vinculadas à população mais pobre ou à classe
trabalhadora durante décadas resistiram bravamente em
seus endereços de origem, que passaram a ser
considerados centrais e, portanto, objeto de interesse
imobiliário. Infelizmente, algumas entidades acabaram
fechando suas portas em definitivo, e outras, como o União,
realocaram seus locais de atuação e resistem bravamente
às dificuldades, remodelando sua forma de ação por meio
de projetos.

Foto da Diretoria de 1935 da Sociedade União


(Sport Club União) Fonte: acervo dos sócios

83
Atualmente, o espaço se configura em uma das únicas
referências negras do Vale do Rio Pardo ainda em atividade,
tendo obtido, em 2014, o reconhecimento como Ponto de
Cultura do Rio Grande do Sul, um espaço sociocultural de
base comunitária, empenhado na luta por equidade, no
combate ao racismo, na promoção da educação popular e
da cultura afro-brasileira.
É importante ressaltar que os espaços negros em Santa
Cruz do Sul e no Vale do Rio Pardo, além de se constituírem
em referências positivas para a comunidade negra, como
locais de sociabilidade, foram responsáveis pela
constituição de diversas famílias negras. Além das
atividades de resistência cultural e política, relações de
pertencimento e afeto prosperaram, resultando em
comunidades diversas e plurais que, infelizmente, nem
sempre são reconhecidas localmente.

Santa Maria da Boca do Monte


Um acampamento da diversidade

Na região central do Rio Grande do Sul, encontramos


aspectos da história de Santa Maria que guardam
similaridades com Santa Cruz do Sul.

Sociedade União em evento em 2020


84
O município surgiu a partir de um povoado utilizado para
que os militares e comandantes da Comissão Demarcadora
do Império acampassem. Essa Comissão era responsável
pelo estabelecimento dos limites entre os territórios
espanhol e português. Nesse local, entretanto, circulavam
senhores de escravizados e seus cativos, uma vez que as
terras pertenciam ao padre Ambrózio José de Freitas, que
havia concedido liberdade condicional a um de seus cativos,
Amado José, designando-o, juntamente com sua família,
para administrar a propriedade e o gado naquela região.
Conforme o historiador Ênio Grigio (2016), em sua tese de
doutorado, Santa Maria nasceu sob o signo da escravidão.
Esse primeiro movimento de povoamento da região
iniciou-se em 1797, com a família do liberto Amado José e a
instalação do acampamento da Comissão Demarcadora até
meados de 1801, quando chegaram, ao já denominado
Acampamento de Santa Maria, 50 famílias de indígenas
vindas da região das missões. Também se evidencia, nessa

Diretoria da Sociedade União (Gestão 2017-2019)


no aniversário de 96 anos

85
época, a chegada de imigrantes europeus (alemães e
italianos). A Santa Maria que nasce a partir de negros e
mestiços agora se torna, de modo definitivo, diversificada
etnicamente. No recenseamento de Santa Maria, em 1872,
a composição de uma população multiétnica fica visível,
pois são nominados os grupos brancos, pardos, pretos e
caboclos, sendo este último provavelmente composto de
mestiços com forte contribuição indígena. Cerca de 50% da
população eram de indivíduos não brancos naquele
período.
Durante os anos que se seguem, Santa Maria torna-se
um polo mercantil, atraindo diversos tipos de indivíduos
interessados em explorar a fronteira, as missões e atraídos
pela possibilidade de escoamento da produção agropastoril
local.
A historiografia atual tem mostrado que, assim como em
Santa Cruz do Sul, os imigrantes alemães da região fizeram
uso, inclusive por meio da posse, da mão de obra cativa,
apesar das restrições do Governo Imperial e da legislação
de imigração.
A partir de 1870 e da promulgação da Lei do Ventre Livre,
foram criados, em vários locais da província de Rio Grande,
espaços associativos religiosos, como as Irmandades de
Nossa Senhora do Rosário. Essas irmandades, vinculadas
à população negra e mestiça, escravizada ou liberta,
constituíam-se em uma forma de separar os senhores de
seus cativos, uma vez que estes não podiam participar das
irmandades constituídas pelos brancos.
A criação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de
Santa Maria se deu em 1873 e, apesar dos poucos registros
de sua trajetória no período, foi a primeira organização
negra da região, servindo como elemento aglutinador da
comunidade e de vital importância para o desenvolvimento
de outras entidades que surgiram posteriormente. Em razão
de a irmandade evidenciar o protagonismo da comunidade
negra, ela foi dissolvida em 1875 pela Igreja, dando lugar,
em 1889, à Sociedade Beneficente Religiosa Irmandade do
86
Rosário, agora vinculada à e sob responsabilidade da
Capela Católica Nossa Senhora do Rosário, que existe até
hoje no Bairro do Rosário, em Santa Maria.

Classes econômicas emergentes e organizações negras

O aparecimento de novas organizações negras em


Santa Maria não por acaso coincide com o início da
construção da malha ferroviária, que trouxe o
desenvolvimento urbano e econômico local.
O Grupo de Estudos sobre o Pós-Abolição
(Gepa/UFSM), que se empenha em pesquisar, descrever e
discutir as experiências das liberdades negras na região e
no estado do Rio Grande do Sul, publicou um e-book
histórico-pedagógico em 2020, no qual aponta a existência
de 30 organizações negras somente em Santa Maria. A
obra, intitulada Organizações negras de Santa Maria:
primeiras associações dos séculos XIX e XX (Grigio et al.,
2020) é rica em detalhes sobre a fundação, a localização e a
constituição de organizações bastante diversas, como
clubes sociais, clubes de futebol, sociedades
carnavalescas, sociedades políticas, irmandades religiosas
e jornais de uma imprensa negra atuante.

Mapa da Organizações negras de Santa Maria

Fonte:https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/19900/Organ
izacoes_negras_de_Santa_Maria.pdf?sequence=1&isAllowed=y

87
Entre as entidades negras listadas, destacam-se o papel
do Clube União Familiar, o mais antigo, e a Sociedade Treze
de Maio, atualmente denominada Museu Treze de Maio, um
museu comunitário.
A mestra em história pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM) Franciele Rocha de Oliveira (2016) descreve
com precisão as memórias do Clube Social Negro mais
antigo da cidade, o União Familiar.
Fundado em 15 de março de 1896 como local de lazer de
parte da comunidade negra, tinha relação com o mundo do
trabalho, como as mais de 50 organizações negras
catalogadas por todo o estado do Rio Grande do Sul.
A massa de pretos e pardos, agora libertos, buscava
respeitabilidade, dignidade e inserção social. Como isso não
podia ser feito em organizações brancas, a alternativa foi
criar seus próprios espaços de sociabilidade.
A Sociedade Treze de Maio, fundada em 13 de maio de
1903 por ex-escravizados ou nascidos livres a partir da Lei
do Ventre Livre e por seus descendentes, surge com a
intenção de comemorar a Abolição da Escravidão no Brasil.
Os 47 cidadãos fundadores vinham de uma classe
trabalhadora negra vinculada à estação férrea ou aos
diversos grupos e estruturas militares que existiam e foram
eficientes na gestão do clube, pois ele chegou a ter sede
própria, biblioteca, além de uma sede campestre.

Encontro de sócios na Sociedade União Familiar. Fonte: Trabalho


de Conclusão de Curso de Franciele R. Oliveira (2016)

88
Considerações finais

Apesar de distintas, as trajetórias de Santa Cruz do Sul e


de Santa Maria se entrelaçam em alguns aspectos, pois
ambas insistem em invisibilizar as contribuições negras em
suas formações e constituições. Nas últimas décadas,
entretanto, têm surgido pesquisas e uma historiografia que
trata não somente de registrar essas histórias, bem como de
evidenciar o protagonismo da comunidade negra em todo o
Rio Grande do Sul. Esse incipiente material produzido até o
momento tem o associativismo e a coletividade como
estratégias fundamentais para a sobrevivência e o progresso
de negras e negros escravizados ou libertos em solo gaúcho.
Os clubes sociais negros que resistem até os dias atuais
se organizaram a partir de estruturas estaduais e nacionais:
Clubes Sociais Negros do Rio Grande do Sul e Clubes
Sociais Negros do Brasil. Em razão dos processos de
hibridização que aconteceram ao longo de suas histórias,
eles se apresentam atuantes em vários segmentos da
sociedade na qual estão inseridos, sendo-lhes atribuído
papel essencial com relação à socialização de indivíduos de
todas as etnias. Nos dias atuais, além das atividades citadas,
são importantes locais de preservação e de valorização da
cultura afrodescendente no Rio Grande do Sul. As lutas
contra a violência, a discriminação, o preconceito e as
desigualdades somente foram (e são) possíveis a partir de
várias mãos, em espaços rurais ou urbanos de
aquilombamento, como nos ensinou Palmares.
Apenas a partir do entendimento da formação não
somente do povo brasileiro e gaúcho, mas daqueles espaços
ditos “europeus”, será possível superar as narrativas que
privilegiam um grupo apenas e têm como função a
manutenção da supremacia racial. Somos fortes porque
estamos unidos, porque temos um legado de ancestralidade
e memória de lutas e vitórias, pois pertencemos a esse lugar
que tem, definitivamente, como contribuinte para seu
engrandecimento, a mão afro-brasileira.
89
Referências

GRIGIO, Ênio. No alvoroço da festa, não havia corrente de


ferro que os prendesse, nem chibata que intimidasse: a
comunidade negra e sua Irmandade do Rosário (Santa
Maria, 1873-1942). 2016. Tese (Doutorado em História),
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2016.

GRIGIO, Ênio et al. (org.). Organizações negras de Santa


Maria: primeiras associações dos séculos XIX e XX. Santa
Maria: Gepa/UFSM, 2020. E-book. Disponível em:
https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/19900/Organ
izacoes_negras_de_Santa_Maria.pdf?sequence=1&isAllo
wed=y. Acesso em: 3 maio 2021.

OLIVEIRA, Franciele Rocha de. Moreno rei dos astros a


brilhar, querida União Familiar. Santa Maria: Câmara
Municipal de Vereadores (Lei do Livro), 2016.

PAIM, Eduardo Tesche. História, identidade e racismo na


formação da sociedade santa-cruzence. 2014. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí,
2014.

Estação Férrea de Santa Cruz do Sul, com o


trem de passageiros - Santa Cruz do Sul

90
SKOLAUDE, Mateus Silva. História e identidade em uma
cidade de colonização alemã no Sul do Brasil: o caso de
Santa Cruz do Sul. Recife: Eutomia, 2010. v. II.

SKOLAUDE, Mateus Silva. Identidades rasuradas: o caso


da comunidade afro-descendente de Santa Cruz do Sul
(1970-2000). Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008.

91
92
Chico Diabo
Mestre Griô Pedro Lucio da Silveira

Vista aérea de Encruzilhada do Sul.


Em primeiro plano a avenida Rio Branco

93
Chico Diabo

Mestre Griô Pedro Lucio da Silveira

J
osé Francisco de Lacerda, o popular Chico Diabo,
nasceu aos 23 de fevereiro de 1848, na freguesia
de São José do Patrocínio, e foi batizado aos 20 de
fevereiro de 1860, na Igreja São José do Patrocínio.
Foi para a Guerra do Paraguai como voluntário, cabo de
ordens do coronel João Nunes da Silva Tavares, o Joca
Tavares. No combate de Aquidabã, com um golpe de lança,
feriu na barriga o ditador do Paraguai Francisco Solano
Lopes, que morreu, terminando, assim, com a Guerra do
Paraguai.
O berço do herói Chico Diabo hoje pertence a Amaral
Ferrador (RS), que foi desmembrada de Encruzilhada do
Sul (RS).
(Fonte: Antonio Bica.)

João Cândido

Nasceu no distrito de Encruzilhada do Sul, hoje cidade de


Dom Feliciano, e ainda jovem foi para a Marinha brasileira,
ficando conhecido por um grande feito de nossa história, a
Revolta da Chibata, na qual os marinheiros rasos se
rebelaram contra os maus-tratos que sofriam.

Vista aérea de
Encruzilhada do Sul

94
João Cândido é reconhecido como herói em vários
estados do Brasil, e em muitas cidades, como Encruzilhada
do Sul, há um busto em sua homenagem.
Também foi criada uma associação de capoeira com seu
nome. Todos os anos, a Associação de Capoeira Almirante
João Cândido promove palestras sobre consciência negra,
cultura do povo negro, saúde da população negra e vários
outros temas relacionados com o povo negro.

Sinhá Pretinha

Sinhá Pretinha era uma mulher negra guerreira, que


nasceu ainda no período da escravidão.
Tia Pretinha, como muitos a chamavam, morava na
Aldeia Nova, conhecida como Lava-Pés. Ela tinha como
profissão trabalhar nas casas das famílias brancas da
cidade como doméstica, mas sua maior especialidade era
fazer seus doces de tacho.

Igreja Matriz de Santa Bárbara -


Encruzilhada do Sul

95
Tia Pretinha era famosa por desfilar em todos os
carnavais, e participava de todas as escolas de samba,
bem como visitava os três clubes da cidade.

Ela era uma pessoa bem quista em nossa


comunidade, e o que chamava mais a atenção das
pessoas era sua forma de vestimenta: um vestido
comprido rodado e grandes brincos de argola, sempre
muito bem maquiada. Era uma pessoa que por onde
passava era respeitada.

96
Rio Pardo-
as origens, o comércio e as igrejas
Professora e escritora Ceni Correa da Fontoura

Solar do Almirante Alexandrino de


Alenca construído por Mateus Simões
Pires-Rio Pardo
97
Rio Pardo – as origens, o comércio e as igrejas

Professora e escritora Ceni Correa da Fontoura.

R
io Pardo, situado na margem esquerda do rio
Jacuí, junto à foz do rio Pardo, é um dos quatro
municípios mais antigos do estado e
desempenhou papel de relevo na história do Brasil durante o
século XVIII, como sua fronteira ao sul, além de ser o lugar
de origem de muitos cidadãos que se destacaram como
militares, políticos, médicos, artistas, escritores.
Inicialmente, seu território foi habitado por índios tapes,
mas, a partir do século XVII, passou a ser disputado por
portugueses e espanhóis, misturando várias culturas.
A cidade teve sua origem no Tratado de Madri e na
consequente disputa pelo território entre as nações ibéricas.
Em 1751, o capitão-general Gomes Freire de Andrade
chefiou a comissão demarcadora portuguesa,
determinando a construção de um depósito de provisões
para seus soldados próximo à foz do rio Pardo. Com a
evolução das negociações determinadas pelo Tratado, a
partir de 1752, no mesmo local, foi construída a Fortaleza
Jesus Maria José, que ficou conhecida como Tranqueira
Invicta, por jamais ter sido tomada pelos espanhóis.
Seu primeiro núcleo populacional foi formado por
militares e suas famílias, agregando-se a eles
comerciantes, sesmeiros, tropeiros, colonos açorianos,
imigrantes alemães.
Após a conquista do território, desenvolveu a função de
entreposto comercial, atendendo às necessidades de uma
vasta região que constituiria seu imenso território a partir de
1809, quando se tornou uma das primeiras vilas do Rio
Grande do Sul, juntamente com Santo Antônio da Patrulha,
Porto Alegre e Rio Grande. Além da função comercial, foi um
grande centro produtor de trigo e de criação de gado.
98
Ao longo de sua história, foram construídos vários
sobrados, que serviam como casas comerciais e
residências de seus ricos produtores agropecuários.
Formaram-se várias irmandades, que construíram a Igreja
Matriz (1801), a Capela São Francisco de Assis (1812) e a
Igreja Senhor dos Passos (1815).

Família Fontoura

João Carneiro da Fontoura nasceu em Chaves, Vila


Real, Portugal, provavelmente em 1679, e faleceu em Rio
Pardo em 1729.
Em 1763, o coronel Francisco Barreto Pereira Pinto era o
comandante dos Dragões de Rio Pardo. Já estava na região
desde 1755 e casara-se com uma filha do capitão João
Carneiro da Fontoura, português vindo para o Sul em 1737,
acompanhando os Dragões Reais de Minas Gerais para
constituir o Regimento de Cavalaria, e fundador da linhagem
dos Fontouras sul-rio-grandenses. O capitão Fontoura era o1
pai da esposa do alferes de Dragões Antônio Adolfo Charão.
Outra filha sua casou-se com o tenente de Dragões João
Batista d’Agan, francês ao serviço de Portugal, de onde
procedem os Fontouras Casados sul-rio-grandenses. Os
Charões aparecem ativamente em muitos grandes feitos da
história rio-grandense.

Teto da Igreja Matriz Nossa


Senhora do Rosário-Rio Pardo

1
Corruptela de Schramm
99
Eram filhos de João Carneiro da Fontoura: Francisca
Veloso da Fontoura, capitão de Dragões José Carneiro da
Fontoura, Joana Veloso da Fontoura, João Carneiro da
Fontoura Filho, Angélica Veloso da Fontoura, Inácia Maria
Veloso da Fontoura, entre outros.
Os descendentes de João Carneiro da Fontoura
espalharam-se por diversas cidades do Rio Grande do Sul,
como Dom Pedrito, Porto Alegre, Rio Pardo, Viamão, pelos
demais estados próximos e até pelo Paraguai. Participaram
ativamente da Guerra dos Farrapos e, por meio de
casamentos com as famílias mais importantes da região,
originaram ramos como os Barreto Pereira Pinto, Simões
Pires, Charão, Silveira Casado, Menna Barreto, Barreto
Viana, Palmeiro.

Família Simões Pires

Mateus Simões Pires nasceu em 1724, em Angra do


Heroísmo, Ilha Terceira, no Arquipélago dos Açores. Chegou
a Rio Pardo por volta de 1765 e se estabeleceu,
inicialmente, como comerciante, abastecendo o Regimento
de Dragões. Recebeu doação de sesmaria e se transformou
em estancieiro, fornecendo também gado e cavalos para o
Exército. Seus negócios prosperaram e tornou-se um
elemento positivo e atuante na comunidade rio-pardense.
Em 1761, casou-se com Catarina Inácia da Purificação
Gonçalves Borges, nascida em 1741 nos Açores. O casal
teve dois filhos: Antônio Augusto Simões Pires e Vicência
Joaquina Simões Pires. Seu filho Antônio Augusto Simões
Pires casou-se com Maria do Carmo Violante de Queiroz e
Vasconcelos, com quem teve 14 filhos, uma vasta geração,
que se localizou inicialmente em Rio Pardo, depois em
Encruzilhada, São Sepé, Bagé e Dom Pedrito. Nas duas
últimas localidades, houve interligação com a família
Fontoura.

100
Manoel José Ferreira de Faria

Maria Esméria Simões Pires, uma das filhas de Antônio e


Maria do Carmo, casou-se, em 27 de novembro de 1806, em
Rio Pardo, com Manoel José Ferreira de Faria, natural da
freguesia de Santa Maria, termo de Barcellos, Portugal, filho
de Sebastião Manoel da Fonseca e de Maria Rosa de Faria.
Foi juiz ordinário e próspero comerciante em Rio Pardo, aí
possuindo moinho de trigo, atafona e curtume.
Desse matrimônio nasceu Ana Ubaldina, em 18 de
outubro de 1819, que seria a mãe do almirante Alexandrino
de Alencar.
Minha avó paterna, Honorina Farias, era descendente de
Manoel Farias.

Significado econômico

Mateus Simões Pires teve intensa participação


econômica, política e religiosa no início da formação de Rio
Pardo. Foi comerciante, pecuarista e fornecedor de
produtos necessários. No plano religioso, participou da

Rio Jacuí - Rio Pardo

101
criação da Ordem Terceira de São Francisco de Assis e
ajudou a financiar a construção da Capela de São Francisco
de Assis.
Antônio Simões Pires e seu genro Manoel José Ferreira
de Faria assistiram à primeira divisão territorial do estado,
que criou a Vila de Rio Pardo, instalada em 20 de maio de
1811, quando foram abertos os pelouros e conhecidos os
nomes dos juízes, vereadores e demais oficiais da Câmara.
Nos anos seguintes, participaram do governo municipal:
Manoel José Ferreira de Faria, avô do almirante Alexandrino
Faria de Alencar, foi eleito vereador em 26 de junho de 1815
e, em seguida, juiz ordinário, tendo participado da criação
das primeiras posturas municipais. Seu sogro, Antônio
Simões Pires, tomou posse como capitão da Primeira
Companhia do Distrito de Encruzilhada em 1819 e foi eleito
vereador em 1820 e em 1824.

Simões Pires e a construção da Capela de São


Francisco de Assis

Além de sua participação no desenvolvimento


econômico da Vila de Rio Pardo, a partir de 1806 Mateus
Simões Pires custeou as obras de construção da Igreja de
São Francisco de Assis, junto com Manoel Macedo de Brum.

Solar do Almirante Alexandrino


de Alencar- Rio Pardo
102
Atualmente, a Capela de São Francisco é referência
religiosa e turística na cidade. Possui preciosas imagens
barrocas esculpidas em madeira, que representam
estações da Paixão de Cristo. Em sala anexa à Capela,
desde 1975 existe o Museu de Arte Sacra, com rico acervo
de peças religiosas.

Via Sacra

A Via Sacra é uma representação das 14 estações do


caminho percorrido por Jesus Cristo ao carregar a cruz
desde o pretório de Pôncio Pilatos até o Monte Calvário,
onde foi crucificado.
Na Igreja de São Francisco, existem apenas cinco
estações, representadas por belíssimas imagens colocadas
na nave, e o Cristo Crucificado, junto do São Francisco, no
altar-mor da Capela.

Capela São Francisco


de Assis - Rio Pardo 2

Altar de Nossa Senhora


da Boa Morte e Nossa
Imagens de Cristo Senhora da Glória 3

2 Disponível em: https://br.pinterest.com/. Acesso em: 3 maio 2021.


3 Wikiwand.
3 Ivan Machado
103
Por muitos anos, existiram verdadeiras lendas, que
passaram de geração em geração, para explicar a origem
das imagens da Capela de São Francisco. Em meados de
1945, o general de Paranhos Antunes teve acesso aos
manuscritos do Ementário das igrejas gaúchas, escrito pelo
arcediago Zeferino Dias Lopes, no século XIX, nos quais
revela que as imagens de São Francisco do Rio Pardo foram
encomendadas pelo vice-ministro da Ordem Terceira,
Joaquim José de Oliveira, com a condição de nunca serem
emprestadas. Infelizmente, esse documento não esclarece
a origem das imagens.
Essas imagens, que representam as cinco principais
estações da Via Crucis, têm os traços característicos do
Barroco do final do século XVIII, época presumível de sua
chegada a Rio Pardo: cuidadoso ondulado do cabelo, olhos
de vidro, estigmas da flagelação e perfeita anatomia.

Nossa Senhora da Assunção

Também conhecida como Nossa Senhora da Glória.


A devoção à Nossa Senhora da Assunção é
provavelmente o mais antigo dos cultos prestados à Virgem
Maria.
Maria foi concebida sem pecado. Como graça de Deus à
Virgem Maria, ela foi elevada ao céu em corpo e alma pelos
anjos. Esse Evento, chamado de Assunção, foi proclamado
pelo Papa Pio XII como dogma da fé.

Diferença entre Assunção e Ascensão

A palavra “assunção” significa elevação. Aplicada à


Nossa Senhora, significa que Maria foi elevada aos céus
pelo poder de Deus, e não por próprio poder.
Jesus, por sua vez, viveu a “ascensão”, significando que
Ele subiu ao céu por seu próprio poder.
Portanto, Maria foi “assunta”, ou seja, elevada; e Jesus
ascendeu, ou seja, subiu ao céu.

104
A festa da Assunção, ou Glória, é comemorada no dia 15
de agosto.

História da proclamação da Assunção

No século XIV, em Portugal, D. João I ganhou a batalha


com o reino de Castela, graças à proteção da Virgem Maria.
Num gesto de gratidão, ele ordenou que as catedrais de
Portugal fossem consagradas à Nossa Senhora da
Assunção, como também a construção do Convento da
Batalha. O fato aconteceu dias antes da Festa da Assunção
de 1385. O culto chegou ao Brasil, onde diversas paróquias
adotaram-na como Padroeira.
Na Bahia, difundiu-se a veneração à Nossa Senhora da
Boa Morte, com uma tradição de sincretismo religioso, isto
é, incorporando elementos do catolicismo e das religiões
afro-brasileiras. Tudo indica que a devoção chegou à cidade
de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, tendo sido
reconhecida pela Igreja Católica. Nessa cidade, foi criada
uma Irmandade da Boa Morte por mulheres negras, que
fundaram o primeiro movimento feminista do Brasil.
A cada ano, os rituais promovidos pela Irmandade baiana
atraem turistas e pesquisadores de vários países,
principalmente dos Estados Unidos.
Na Igreja São Francisco de Assis de Rio Pardo existe
uma rara imagem de roca de Nossa Senhora da Boa Morte,
acima da qual, no mesmo altar, está a imagem de Nossa
Senhora da Glória e Anjos, talhada em cedro, formando o
conjunto do “Dogma da Assunção”. Esse é um conjunto
pouco conhecido no Brasil.

A noiva da Igreja São Francisco de Rio Pardo


Lenda ou realidade?

Trata-se de uma história oral, não documentada,


passada por muitas gerações e contada em versões
diferentes. É sobre um amor impossível, que inspirou a

105
procura de uma graça na Igreja São Francisco, tornando-se
uma lenda popular no local.
Conta a lenda que a filha de um rico fazendeiro teve seu
amor proibido pelos pais e, por ser impedida de se casar,
definhou.
Apaixonados um pelo outro, o casal opôs-se à família
dela por ser ele pobre e soldado. O candidato foi então
destacado para a fronteira; ela foi protegida pela família, que
a convenceu da indiferença e até da morte do soldado. Mas
a jovem descobriu a traição e não se conformou.
Diante da Imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, na
Igreja São Francisco de Rio Pardo, ela fez o pedido pela
união com seu amado, prometendo entregar seu vestido de
noiva à Santa após o casamento.
Temendo pela saúde da filha, os pais cederam. Mas a
pobre moça apaixonada ficou sem se alimentar e,
enfraquecida, não resistindo à traição, morreu antes de
chegar ao altar.
O episódio tornou-se popular, ganhou as ruas, e a
“Santa” ficou conhecida por ajudar a realizar casamentos
difíceis ou impossíveis. Desde então, conhecida a lenda em
todo o estado, de longas distâncias chegam vestidos de
noiva para Nossa Senhora, doados por moças que
conseguiram a graça do casamento.

O Barroco

A civilização medieval cristã teve seu fim com a Reforma


religiosa, uma revolução que originou o protestantismo. A
Reforma provocou uma reação dentro da Igreja Católica,
concretizada num movimento chamado Contrarreforma.
A Contrarreforma tornou-se um fato concreto. A
renovação da fé entre os católicos afetou todas as formas de
arte. O movimento Barroco manifestou-se na pintura, na
escultura, na arquitetura, caracterizando-se pela arte
dramática e emocional.

106
O começo do Barroco

As autoridades católicas queriam usar a arte para definir


as ideias e os ensinamentos de sua Igreja. Os artistas
faziam pinturas religiosas realistas, que inspiravam reações
emocionais de natureza religiosa nos observadores. Essas
características foram a base da arte barroca.
Uma importante força na Contrarreforma foi a Ordem dos
Jesuítas, ou Sociedade de Jesus, fundada por Santo Inácio
de Loyola em 1534. Essa ordem religiosa não foi criada para
combater o protestantismo, mas ajudou a conter e a
recuperar áreas que estavam sob a influência protestante.

Jesuítas no Sul do Brasil e o Barroco na construção de


igrejas e na escultura missioneira

Entre os séculos XVII e XVIII, desenvolveu-se no Sul do


Brasil uma arte associada à catequese que os padres
jesuítas realizavam com os indígenas. Desse período,
destaca-se a Igreja de São Miguel das Missões, que abriga
hoje o Museu das Missões e que reúne fragmentos
arquitetônicos e esculturas da época: obras de arte
concebidas segundo princípios europeus, mas feitas pela
criativa mão de obra guarani.
O que se visava com as imagens sacras era despertar
devoção. E isso, ao que parece, foi plenamente alcançado.
A prova disso é que, ainda hoje, das quase 2 mil peças
missioneiras conhecidas, muitas se encontram em altares
domésticos, recebendo piedade e místicas reverências de
seus devotos — o mesmo tipo de reverência, aliás, que
recebiam e continuam recebendo as imagens da Igreja de
Rio Pardo, que se impõe sejam setecentistas. Constituem
elas, principalmente os Cristos flagelados e
semidesfalecidos por inauditos sofrimentos físicos e morais,
os mais significativos exemplos típicos do Barroco sacro
europeu que se reuniu no estado.

107
Referências

ADMIN. Família Carneiro da Fontoura. Judeus Sefarditas, 7


out. 2020.Disponível em: ttps://judeussefarditas.com/familia-
carneiro-da-fontoura/. Acesso em: 3 maio 2021.

CARNEIRO da Fontoura. Disponível em:


http://www.carneirodafontoura.com/. Acesso em: 3 maio
2021.

ENCICLOPÉDIA Rio-Grandense. O Rio Grande antigo.


Canoas: Regional Ltda., 1956. v. 1.

FONTOURA, Ceni. Igreja São Francisco de Assis. Porto


Alegre: Edigal, 2020.

GENEALOGIA dos Carneiro da Fontoura. Disponível em:


http://www.carneirodafontoura.com/genealogia-dos-
carneiro-da-fontoura/. Acesso em: 3 maio 2021.

MACEDO, Francisco Riopardense de. O Solar do Almirante.


Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul:
IEL, 1980.

MACHADO, Cesar Pires. Simões Pires: um quarto de


milênio. Porto Alegre: Edigal, 2008.

SOLAR do Almirante Alexandrino de Alencar. Governo de


R i o P a r d o , 2 8 m a r. 2 0 1 7 . D i s p o n í v e l e m :
https://www.riopardo.rs.gov.br/portal/noticias/0/3/1162/sola
r-do-almirante-alexandrino-de-alencar. Acesso em: 3 maio
2021.

108
Filhos ilustres de Encruzilhada do Sul
Dr. Domingos Oscar Soares Luz

Praça Barão do Quaraí


Encruzilhada do Sul

109
Filhos ilustres de Encruzilhada do Sul

Dr. Domingos Oscar Soares Luz

E
ncruzilhada do Sul é um município localizado no
Vale do Rio Pardo que, ao longo de sua história, já
foi conhecido como Santa Bárbara de
Encruzilhada, Encruzilhada e, por fim, Encruzilhada do Sul.
É o 20º município mais antigo do estado do Rio Grande do
Sul, tendo sido criado em 19 de julho de 1849.
Pioneiros instalaram-se onde hoje existe a atual Praça
Barão do Quaraí, na qual abriram um caminho até a Capela
de Santa Bárbara. Em 1799, o povoado foi elevado à
condição de capela curada e, em 1837, passou à condição
de freguesia. A Lei nº 178, de 19 de julho de 1849, deu
autonomia política ao município.
O município se estende por 3.348,3 km². Situado a 348
metros de altitude, é o lar do Parque Estadual do
Podocarpus. Encontra-se entre duas bacias hidrográficas: a
bacia hidrográfica do Baixo Jacuí e a bacia do rio Camaquã.
Faz divisa com os municípios de Rio Pardo, Pântano
Grande, Dom Feliciano, Canguçu, Amaral Ferrador,
Cachoeira do Sul, Santana da Boa Vista e Piratini.
A economia encruzilhadense se baseia no comércio, na
fruticultura, na silvicultura e na agropecuária, com produção
de soja, trigo, arroz, bovinos e ovinos, sendo o município
com maior área plantada para o cultivo de melancias do
estado. Há também grande potencial para a extração de
rochas graníticas, tanto ornamentais quanto de
revestimento.
A silvicultura é uma das áreas que mais cresceram no
município nos últimos anos, com uma área plantada de mais
de 80 mil hectares, com qualidades de pinus, eucaliptos e
acácias.

110
No município, estão localizados afloramentos de grande
importância e que têm contribuído para a paleobotânica na
formação Rio Bonito, datando do Sakmariano, no Permiano.

Filhos ilustres de Encruzilhada do Sul

Ÿ Antero Ferreira d’Ávila: em Porto Alegre, colaborou no


jornal A Reforma e mais tarde voltou para Encruzilhada,
onde trabalhou como advogado, depois como primeiro
juiz do município, promotor público interino, inspetor
escolar e vereador. Por serviços prestados durante a
Guerra do Paraguai, foi agraciado cavaleiro da Imperial
Ordem de Cristo. Em 1879, eleito deputado na
Assembleia Provincial, transferiu-se novamente para
Porto Alegre, onde continuou como advogado. Lá foi
também procurador fiscal da Fazenda e diretor-geral de
Instrução Pública. A Câmara de Porto Alegre lhe conferiu
o título de benemérito, por haver alforriado grande
número de escravos a suas custas. Após a Proclamação
da República, foi eleito intendente do segundo distrito do
Rio de Janeiro.

Porta de entrada da Fazenda da Lapa


Encruzilhada do Sul

111
Ÿ Feliciano José Rodrigues de Araújo Prates: Dom
Feliciano Prates assumiu a Capela de Santa Bárbara de
Encruzilhada do Sul, onde viveu de 1841 a 1852, sendo
nomeado o primeiro bispo do Rio Grande do Sul. Do
município, dirigiu a igreja no Rio Grande do Sul, saindo
para fixar-se em Porto Alegre, onde faleceu aos 76 anos.

Ÿ João Cândido Felisberto: também conhecido como


“Almirante Negro”, foi um militar brasileiro da Marinha de
Guerra do Brasil, líder da Revolta da Chibata (1910).
Filho dos ex-escravos João Felisberto e Inácia Cândido
Felisberto, nasceu na fazenda Coxilha Bonita, que ficava
no vilarejo Dom Feliciano — o quinto distrito do município
de Encruzilhada, que fora distrito de Rio Pardo até 1849.
Apresentou-se, ainda com 13 anos de idade, em 1894, na
Companhia de Artífices Militares e Menores Aprendizes
no Arsenal de Guerra de Porto Alegre. Em 1895,
conseguiu transferência para a Escola de Aprendizes
Marinheiros de Porto Alegre, e em dezembro do mesmo
ano, como grumete, para a Marinha do Brasil, na capital,
a cidade do Rio de Janeiro. Teve uma carreira extensa de
viagens pelo Brasil e por vários países do mundo nos 15
anos em que esteve na ativa da Marinha de Guerra.
Muitas delas foram viagens de instrução, no começo
recebendo e depois dando instrução de procedimentos
de um navio de guerra para marinheiros mais novos. O
uso da chibata como castigo na Marinha brasileira já
havia sido abolido em um dos primeiros atos do regime
republicano, o Decreto nº 3, de 16 de novembro de 1889,
assinado pelo então presidente marechal Deodoro da
Fonseca. Todavia, o castigo cruel continuava de fato a ser
aplicado, a critério dos oficiais da Marinha de Guerra do
Brasil. Em um contingente de 90% de negros e mulatos,
centenas de marujos continuavam a ter seus corpos
retalhados pela chibata, como no tempo da escravidão.
Entre os marinheiros, insatisfeitos com os baixos soldos,
com a má alimentação e, principalmente, com os
112
degradantes castigos corporais, crescia o clima de
tensão. Esgotadas as tentativas pacíficas e propositivas
dos marinheiros, incluindo uma audiência de João
Cândido no Gabinete do presidente anterior, Nilo
Peçanha, e na presença do ministro da Marinha,
Alexandrino de Alencar, sem qualquer providência efetiva
para o fim dos castigos físicos, os marinheiros decidiram
que iriam fazer uma sublevação, uma revolta pelo fim do
uso da chibata, em 25 de novembro de 1910. Entretanto,
menos de uma semana após a posse do marechal
Hermes da Fonseca, o marinheiro Marcelino Rodrigues
de Menezes foi punido, em 21 de novembro, com 250
chibatadas, que não se interromperam nem mesmo com
seu desmaio, conforme noticiado pelos jornais da época,
aplicadas na presença de toda a tripulação do
encouraçado Minas Gerais, nau capitânia da nova
esquadra. Esse fato antecipou a data programada de 25
para 22 de novembro de 1910. Seria na noite desse dia
porque o comandante do navio Minas Gerais, o capitão
João Batista das Neves, dormiria fora do navio, e então

Praça Dr Ozy Teixeira - Encruzilhada do Sul

113
os marujos tomariam posse das armas, dominariam os
oficiais em seus camarotes e teriam o controle do navio-
mãe, e depois de todos os demais que estavam na Baía
da Guanabara. No dia 22 de novembro de 1910, João
Cândido, ao assumir, por indicação dos demais líderes, o
comando geral de toda a esquadra revoltada, controlou o
motim, fez cessar as mortes e enviou radiogramas,
pleiteando a abolição dos castigos corporais na Marinha
de Guerra brasileira. Foi designado à época, pela
imprensa, como Almirante Negro. Por quatro dias, os
navios de guerra Minas Gerais, São Paulo, Bahia e
Deodoro apontaram seus canhões para a capital federal.
No ultimato dirigido ao presidente Hermes da Fonseca,
os revoltosos declararam: “Nós, marinheiros, cidadãos
brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a
escravidão na Marinha brasileira.” A rebelião terminou
com o compromisso do governo federal de acabar com o
uso da chibata na Marinha e de conceder anistia aos
revoltosos. Entretanto, no dia seguinte ao desarmamento
dos navios rebelados, dia 27, o governo promulgou, em
28 de novembro, um decreto permitindo a expulsão de
marinheiros que representassem risco, o que era uma
nítida quebra de palavra, uma traição do texto da lei de
anistia aprovada no dia 25 pelo Senado da República e
sancionada pelo presidente Hermes da Fonseca,
conforme publicação no Diário Oficial de 26 de
novembro, levado ao Minas Gerais pelo capitão Pereira
Leite.

Ÿ José Francisco Lacerda: vulgo Chico Diabo, foi um


militar brasileiro que lutou na Guerra do Paraguai e ficou
famoso por ter matado o ditador paraguaio Francisco
Solano López, na Batalha de Cerro Corá. Chico nasceu
em uma família de poucos recursos e ainda menino
empregou-se na carniçaria de propriedade de um
italiano, em São Lourenço do Sul. Em 1863, quando
contava apenas 15 anos, descuidou-se da vigilância e um
114
cão entrou no recinto onde estava guardada a carne,
devorando alguns pedaços. Ao tomar conhecimento do
ocorrido pelo próprio Chico, o italiano passou a agredi-lo.
O menino tomou de uma faca usada no trabalho e matou
o patrão. De imediato, fugiu a pé para a casa dos pais,
aonde chegou na manhã do dia seguinte, caminhando,
portanto, um dia e uma noite sem parar para descanso.
Os pais, com medo de que o filho sofresse represálias,
providenciaram sua mudança para a propriedade de seu
tio Vicente Lacerda, em Bagé. Em 1865, passou pelo
local um destacamento dos Voluntários da Pátria,
comandado pelo então Coronel Joca Tavares, que ia se
juntar às forças brasileiras que combatiam no Paraguai.
Convidado a integrar o contingente, Chico aceitou. Na
Guerra do Paraguai, já então promovido a cabo, Chico
celebrizou-se por haver matado, na Batalha de Cerro
Corá, o ditador Francisco Solano López, com um certeiro
golpe de lança na virilha. O golpe foi aparentemente fatal.
Ao matar o ditador, teria descumprido ordens superiores,
que determinavam que ele fosse capturado vivo. No
entanto, Chico recebeu como recompensa cem
vaquilhonas. Tomou ainda para si a faca de prata e ouro
que López levava quando foi morto e na qual constavam,
gravadas em ouro, as iniciais FL, coincidentemente as
mesmas do nome de Chico.

Ÿ José Sperb Sanseverino: fundou o Partido Democrata


Cristão, em 1953, no Rio Grande do Sul, do qual foi o
primeiro presidente estadual. Foi eleito, em 1959,
vereador de Porto Alegre e, em 1962, deputado estadual.
Foi secretário de Justiça no governo de Sinval Guazzelli e
mais tarde procurador do Estado junto ao Tribunal de
Contas. Em 1996, assumiu o cargo de provedor da
Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto
Alegre, sucedendo ao cardeal Dom Vicente Scherer.

115
Ÿ Julia Malvina Hailliot Tavares: ou Malvina Tavares, foi
uma das mais ativas militantes anarquistas brasileiras,
poeta e pioneira da educação libertária na região Sul do
Brasil. Foi responsável pela criação de uma escola aos
moldes da escola moderna de Francisco Ferrer.

116
Projeto de docência Olukó Ayó:
valores afro-brasileiros resgatando a identidade
das crianças – os griôs na educação

Professora Cláudia Freitas

117
Projeto de docência Olukó Ayó: valores afro-
brasileiros resgatando a identidade das crianças -
Os griôs na educação

Professora Cláudia Freitas

O
projeto Olukó Ayó (Professora da Alegria) é o
projeto de docência da professora Cláudia
Bernadete Alves Freitas, tendo como princípios
basilares os valores africanos e afro-brasileiros na
educação, efetivamente aplicado desde 2011 no município
de Alvorada e levado para o município de Porto Alegre em
2014. Os princípios civilizatórios e filosóficos africanos e
afro-brasileiros apresentam-se como uma das alternativas
ao que está posto em nossa sociedade, ou seja, opressões
como racismo, machismo e várias outras mazelas que
desejamos ver descontinuadas em nosso meio social.
Levando em consideração essa busca da proposta de
aplicação dessa pedagogia, apresento (de forma bastante
resumida) os princípios orientadores que acompanham
minha prática docente, que são os valores civilizatórios
africanos e afro-brasileiros.
Àse ou Axé, Ancestralidade, Senioridade,
Transgeracionalidade, Memória, Oralidade, Circularidade,
Complementaridade, Corporeidade, Musicalidade,
Ludicidade, Cooperação e Coletividade.

Àse (axé): perceber o sagrado


que existe no outro;

Ancestralidade, Senioridade e
Transgeracionalidade: três princípios que se
articulam entre si: o respeito aos antepassados, ao
saber dos idosos e à troca de saberes geracionais
entre os idosos e os jovens/crianças;
118
Oralidade e Memória: referem-se ao
poder de expressão, por meio da
comunicação, e ao resgate da memória
ancestral enquanto revitalizadores da
autoestima;

Circularidade e Complementaridade: são


dois princípios que nos fazem pensar em nosso
caráter de ontologicamente iguais e necessários
uns aos outros;

Corporeidade, Musicalidade e Ludicidade: são as


maneiras de manifestação, de estar no mundo, de
ocupar o território, com expressão corporal, com
música e dança, com jogos, enfim com alegria, com àse;

Cooperação e Coletividade: são os modos de


vida em grupo, de interagir sempre circularmente e
em comunidade, maneira de se compreender em
constante troca colaborativa com os irmãos.

119
Justificativa

A opressão que o racismo acarreta na sociedade em


geral, e, em particular, nas escolas, principalmente em meio
às crianças, gera violência e concorre para o aumento das
desigualdades. Tendo em vista o acentuado número de
crianças afro-brasileiras nas escolas da cidade e das
periferias em especial, fazem-se necessários o resgate das
raízes e o conhecimento da importância do povo negro
africano e afro-brasileiro para que as crianças possam se
compreender dentro dessa sociedade que lhes é imposta e
aprender a valorizar suas origens.
O viés criativo é utilizado em cada sequência didática
atrelada ao projeto, pois muitas vezes as crianças não
encontram recursos cognitivos de criação para resolução de
situações-problema expostas em sala de aula. No projeto,
serão constantemente desafiadas a encontrar soluções
criativas para a apresentação de produtos das sequências
didáticas e/ou oficinas realizadas.

Objetivos

Ÿ Aplicar os princípios civilizatórios e filosóficos de base


afro-brasileira como norteadores da prática
pedagógica.
Ÿ Auxiliar no processo de conhecimento e
reconhecimento de saberes ancestrais e criativos,
que proporcionarão maior capacidade de análise dos
fatos, aumentando a facilidade de compreensão dos
assuntos tratados no ambiente escolar em geral.
Ÿ Compreender os modos de atuação do racismo, como
estrutural e estruturante de nossa sociedade, e buscar
estratégias de resistência para fortalecimento
identitário das crianças.
Ÿ Oferecer literatura africana e afro-brasileira para tratar
os diversos assuntos do cotidiano escolar, inclusive
em parceria com os demais professores da escola.
120
Da esquerda para a direita: Professora Cláudia
Bernadete Alves Freitas, Mestre Griô João
Carlos Agostinho Prudêncio, Mestra Griô
Conceição Matos, Professor de Educação
Física Hugo Macedo Leffa e Mestre Griô Cica de
Oyó em 07 de novembro de 2015, sábado letivo
na EMEF Lidovino Fanton, Porto Alegre/RS.

Ÿ Incentivar os processos de criação para solucionar


desafios trazidos a cada sequência didática e/ou
oficina do projeto.
Ÿ Reduzir os índices de violência entre os alunos e
alunas, uma vez que muitos dos conflitos entre eles
surgem de provocações referentes à questão
étnica/racial.
Ÿ Contribuir para práticas integradoras nos espaços da
escola, favorecendo convivências e culturas de paz
na escola.

Competências e habilidades desenvolvidas

As habilidades e competências desenvolvidas serão as


de: escrever, operar com lógica, refletir e agir
multidisciplinarmente, desenvolver e/ou aumentar o
potencial criativo, interpretar e reinterpretar (o mundo, as
normas, os conflitos, os outros e a si mesmo), conviver,
aceitar e/ou tolerar as diferenças e as transformações,
conviver com a diversidade, criar novos pressupostos,
enriquecer o repertório e o vocabulário, questionar,
organizar e se organizar, encantar-se e aguçar seus
sentidos para uma percepção do mundo e do outro de novos
ângulos.
121
Com a fundamentação
desses princípios,
instauramos práticas
pedagógicas de cunho
antirracista e contra as
opressões sociais às quais
estamos expostos. Uma gama expressiva de
conhecimentos africanos e/ou afro-brasileiros
é apresentada às crianças e aos adolescentes
em aula ou em atividades letivas de sábados da
escola desde 2014. Em 2016, foi aplicado o
Momento Ilê Ayó com três turmas de B20, na
volância, e quinzenalmente encontros com as
três turmas em formato de aula expositiva ou
oficinas, tratando um dos temas específicos
referentes a questões afro-brasileiras e de combate ao
racismo e outras opressões, apresentando ou finalizando.
Vários momentos importantes foram vivenciados com as
crianças em virtude das atividades desenvolvidas, como:
encontros com mestres griôs, saída externa para um
seminário de filosofia, premiação da feira do livro no Projeto
Quintanares, em que as crianças de B10 ganharam bônus-
livros (três turmas), sempre contando com o suporte da
equipe diretiva e de colegas da escola.
Como descrito, as mestras e os mestres griôs podem ser
os fiéis depositários desses valores, levando-os para dentro

Encontro do Mestre Prudêncio com três


turmas de B10 (4º ano) da EMEF Lidovino
Fanton, em 05 de setembro de 2017, ao final
do encontro, os alunos da turma B11 fizeram
um cartaz que era a compilação de todos os
cartões de gratidão pela visita do Mestre
Griô João Carlos Agostinho Prudêncio.

122
Entrega da mandala confeccionada
pelas crianças da EMEF Lidovino
Fanton em 07/11/2015 para o Mestre
Griô João Carlos Agostinho
Prudêncio, em evento de Educação
Antirracista em Alvorada/RS.

dos espaços escolares, usando suas experiências e


histórias de vida para falar às crianças sobre sua própria
importância e a de seus familiares, seus mais velhos, seus
pais e avós. Fazer com que todas as crianças, em especial
as crianças negras e indígenas, possam valorizar suas
origens e tomar ou retomar o orgulho da assunção de si,
honrando, assim, suas ancestralidades.
Por diversas vezes, possibilitamos na escola esse
espaço de troca entre as crianças e alguns griôs de nossa
cidade e da própria comunidade assistida. Foram
momentos extremamente ricos, de contação de histórias de
vida, estratégias de resolução de problemas, histórias da
comunidade, aprendizado de palavras em língua iorubá,
cantando canções, dançando, enfim, vivenciando vários
dos princípios africanos em um único momento, que trouxe
um brilho especial ao olhar das crianças que participaram.

Momento de troca transgeracional


entre as crianças da EMEF Lidovino
Fanton e Mestres Griôs em Oficina
de 07 de novembro de 2015.

123
Várias crianças, após os referidos encontros das Rodas
de Trocas de Saberes e Fazeres (como nomeado pelo
Mestre Griô João Carlos Agostinho Prudêncio), traziam
relatos de terem ficado muito felizes com a visita dos
mestres e mestras. Elas diziam terem conversado com seus
avós sobre o ocorrido na escola e de terem tido a
oportunidade de aprofundar laços familiares no nível de uma
admiração e valorização maior, por reconhecerem no seio
de suas famílias pessoas com conhecimentos semelhantes
aos que foram narrados na escola. A proposição exposta foi
uma provocação dos mestres às crianças, para que
identificassem em sua família ou na comunidade quem
pudesse atender às características de uma mestra ou
mestre em saberes e fazeres.
“É preciso uma aldeia inteira para se educar uma
criança”, diz um provérbio africano. É com esse
ensinamento milenar que constatamos a necessidade da
união de esforços para uma educação mais igualitária, que
preserve e valorize as diferenças étnicas de nosso estado e
país. Nossa gratidão aos mestres e mestras griôs pela
partilha de seus saberes ancestrais balizados por suas
vivências e caminhadas.

124
Referências

ÁFRICANAMENTE. Projeto Ori Inu Erê: uma proposta de


educação étnico-social. Caderno Pedagógico, Porto Alegre,
v. 1, 2006.

ANDREOLA, Balduíno Antônio. Interdisciplinaridade na


obra de Freire: uma pedagogia da simbiogênese e da
solidariedade. In: STRECK, Danilo R. (org.). Paulo Freire:
ética, utopia e educação. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 67-94.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Em campo aberto: escritos


sobre a educação e a cultura popular. São Paulo: Cortez,
1995.

BRASIL. Lei no 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e


Bases (Lei no 9394/1996) e tornou obrigatório o ensino da
história e cultura afro-brasileira no Ensino Fundamental e
Médio. Disponível em: www.ppe.uem.
br/publicacoes/seminario_ppe_2008/pdf/c018.pdf. Acesso
em: 27 jun. 2012.

CORREA, Luis Oscar Ramos. Corporeidade no Ensino


Fundamental de Jovens e Adultos: como área de
conhecimento e de linguagem. Aprendendo com Jovens e
Adultos: Revista do Programa de Ensino Fundamental para
Jovens e Adultos Trabalhadores, Porto Alegre, v. 1, n. 0, p.
67-82, 1999.

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez,


1991.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes


necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
125
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo
ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999.

GOMES, Nilma Lino. Educação cidadã, etnia e raça. In:


SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE REESTRUTURAÇÃO
CURRICULAR: UTOPIA E DEMOCRACIA NA EDUCAÇÃO
CIDADÃ. 7, 2000. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 2000.

LOPES, Nei. Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-


africanos. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2005.

MACHADO, Vanda. Ilê Axé: vivências e invenção


pedagógica: as crianças do Opô Afonjá. 2. ed. Salvador: Ed.
UFBA, 2002.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sankofa: significados e


intenções. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Sankofa:
matrizes africanas da cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro:
Eduerj, 1996. v. I, p. 19-49.

126
A chegada dos açorianos
a Rio Pardo e seu legado
Professora Aida Aparecida dos Santos Ferreira

Vista Aérea de
General Câmara

127
A chegada dos açorianos a Rio Pardo e seu legado

Professora Aida Aparecida dos Santos Ferreira

P
ara que possamos compreender o momento
presente e a construção de um futuro cultural,
econômico e social, o resgate da história e das
memórias se faz necessário.
Rio Pardo teve um passado glorioso, com
acontecimentos que marcaram a história, pois no ano 1809,
juntamente com Rio Grande, Porto Alegre e Santo Antônio
da Patrulha, passou a ser uma das quatro primeiras vilas da
Província do Grande, somando 55% de todo o território,
onde hoje se localizam mais de 200 municípios gaúchos.
Todo esse processo econômico do passado deu-se pela
união e pelo trabalho árduo dos Igreja Matriz São Nicolau
povos que ali chegaram e General Câmara
habitaram, como os índios, pois
o Vale do Rio Pardo abrigou
indígenas desde tempos
remotos. No ano 1634, existia a
Redução de São Cristóvão, no
interior de Rio Pardo, e,
posteriormente, por volta de
1754, abrigaram-se indígenas
vindos dos Sete Povos das
Missões, que foram aldeados no
interior, hoje conhecido como
Aldeia de São Nicolau. No local
existe a igreja construída pelos
índios, mas já descaracterizada,
permanecendo original apenas o
sino.
O local abriga uma festa com
mais de 200 anos em
homenagem ao padroeiro, São
Nicolau.
128
Esses indígenas deixaram muitos descendentes, uma
cultura com seus usos e costumes.
Os portugueses vieram do Forte do Rio Grande, onde,
segundo relatos encontrados no livro Uma luz para a história
do Rio Grande: Rio Pardo, 200 anos de cultura, arte e
memória, estabeleceu-se o Regimento dos Dragões, cujo
deslocamento, em virtude da controvérsia criada pelo
Tratado de Madri, de 1750, Gomes Freire providenciou para
Rio Pardo, para a proteção das novas fronteiras
portuguesas, a construção da futura fortaleza, que levaria o
nome de Jesus Maria José, a formação da vila, a criação de
fazendas e a ativação do comércio.
Juntamente com os portugueses vieram os negros
escravizados, que, com seu trabalho, foram essenciais nas
fronteiras, junto aos militares, para a construção da futura
cidade, erguendo casas e solares, praças, pontes e ruas,
como a Rua da Ladeira, a primeira rua calçada no Rio
Grande do Sul, em 1813, tendo sido tombada pelo
Patrimônio Histórico Nacional e sendo hoje um importante
ponto turístico da cidade de
Rio Pardo.
Lutaram em importantes
combates, como o Combate
do Barro Vermelho, ocorrido
em 30 de abril de 1838,
durante a Revolução
Farroupilha.

Estação Férrea de
Pederneiras - Rio Pardo

129
Entre os imperialistas presos estava a Banda do Maestro
José Joaquim de Mendanha, a quem foi pedido que
compusesse uma melodia para a letra do Hino Farroupilha,
e assim foi feito. No dia 5 de maio de 1838, a melodia foi
entregue a um comandante farroupilha e executada pela
primeira vez em Rio Pardo.
No livro Os dragões de Rio Pardo, Rafael Pinto Bandeira
escreve: “Estes Lanceiros Negros comem pouco, dormem
em pé e não perdem combates.” A fixação das fronteiras
portuguesas e sua proteção tiveram o trabalho ativo dos
negros.
Os primeiros açorianos chegaram por volta de 1752 e em
uma segunda leva, em 1754, contribuindo e influenciando
profundamente a cultura da vila e futura cidade de Rio Pardo
até os dias presentes.
O ano 1748 ficou marcado com a entrada da primeira
leva de açorianos na Ilha de
Santa Catarina, no sul do Brasil, Bandeira do Forte em
segundo Vilson Francisco de Homenagem aos Açorianos -
Santo Amaro
Farias no livro De Portugal ao
sul do Brasil: 500 anos, história,
cultura e turismo. O rei de
Portugal, d. João V, ouvindo o
Conselho de Estado, baixou um
alvará (1746-1747) autorizando
e definindo regras para a
imigração de casais açorianos,
a fim de povoar o sul do Brasil a
partir da Ilha de Santa Catarina,
extensa e pouco povoada.
Em 1752, entraram no Rio
Grande do Sul casais açorianos
juntamente com Gomes Freire
de Andrade, governador do Rio
d e J a n e i r o e c h e f e d a s Canhão do Forte em
d e m a r c a ç õ e s d a s n o v a s Homenagem à Imigração
Açoriana - Santo Amaro
fronteiras portuguesas, pois o
Tr a t a d o d e M a d r i ( 1 7 5 0 )
130
determinava a saída dos indígenas, que seriam levados
para a Colônia do Sacramento, enquanto os açorianos
ocupariam o território dos Sete Povos das Missões.
No ano 1494, as Coroas portuguesa e espanhola
dividiram as terras “descobertas” no século XV, e o Brasil era
praticamente todo espanhol, e com o Tratado de Madri
(1750) estava ocorrendo a troca dessas terras.
Ao chegarem às missões, o território ainda estava
ocupado pelos indígenas em razão da Guerra Guaranítica
(1753-1756), entre índios guaranis e portugueses, pela
imposição do Tratado, então Gomes Freire assentou alguns
casais nos campos de Viamão, ao longo dos rios Taquari,
Tramandaí, Guaíba e Jacuí, formando, assim, os primeiros
núcleos populacionais.
A cidade de Santo Amaro foi essencial, pois por lá
ficaram esperando para retornarem às missões. Por terra,
Gomes Freire de Andrade conduziu os açorianos até Rio
Pardo, na localidade conhecida como Rua Velha. Lá
chegando, as terras já tinham donos, então foram expulsos,
vindo a fixarem-se mais para o interior, nas terras de Diogo
Trilha e João Couto e em outras localidades. Alguns
açorianos foram enviados para a construção da futura
fortaleza Jesus Maria José já a partir de 1752.

Ponte sobre Arroio do


Couto- Rio Pardo

131
Os açorianos ali chegados participaram ativamente da
formação ao desenvolvimento da vila e futura cidade de Rio
Pardo, inserindo-se em todos os segmentos da sociedade:
exército, agricultura, criação de gado, comércio, como é o
caso de Mateus Simões Pires, um dos primeiros açorianos
chegados, que contribuiu ativamente para o comércio,
mandando construir o solar no
ano 1790, que ainda existe e
conserva as características
açorianas. O solar, conhecido
hoje como Solar do Almirante,
serviu de berço para seu
tataraneto, Alexandrino de
A l e n c a r, r e o r g a n i z a d o r d a
Marinha nacional. Também como
católico que era, foi um dos
construtores da Capela de São
Francisco, em 1785, pois era ministro da Ordem Terceira de
São Francisco.
Segundo Lílian Argentina Braga Marques, no livro
Contribuições luso-açorianas no Rio Grande do Sul: “Os
grupos humanos que para cá vieram iniciaram o
desbravamento, utilizando todo o saber tradicional herdado
de seu torrão de origem, como a organização da sociedade
e o conceito de patrimônio.”

Interior da Igreja São


Francisco - Rio Pardo

132
Em Rio Pardo, a influência desse povo é muito forte,
sendo percebida na arquitetura, com solares, portas e
janelas guilhotinadas, comércio no piso inferior e moradia na
parte de cima da casa, telhados com suas eiras e beiras. E
também na culinária salgada, com linguiças, morcilhas de
sangue de porco, toucinhos salgados e defumados, carne
suína frita e guardada na banha. E nos doces, com seus
papos de anjo, suspiros, ovos moles, arroz-doce, fios de
ovos, pães sovados de massa doce, entre outros.
Na religiosidade, destacamos as festas do Divino
Espírito Santo, procissões, foguetórios, Terno de Reis,
novenas, batizados das crianças. Também as benzeduras
para vários males, como para benzer tormentas. Cresci
vendo e ouvindo minha avó Geraldina benzer, assim
dizendo: “Antoninho se vestiu, Antoninho se calçou,
Antoninho pegou seu bordão, Nossa Senhora encontrou e
perguntou: onde vais Antoninho? Vai benzer aquela
tormenta, que lá no alto se formou. Benze bem, Antoninho,
lá pras bandas de Almerão, onde não há pão, nem grão, nem
bafo de Cristão. Reza três vezes fazendo uma cruz.”
Também fazer uma oração e jogar um pedacinho de
sabão em cima do telhado, para melhorar o tempo/limpar.
As brincadeiras de roda, sapata, cinco Marias, carrinho
de madeira, pular corda, entre outras.

Vista aérea de Santo Amaro


aparecendo a Igreja de
Santo Amaro e o Rio Jacuí

133
Os dizeres: “Vai para o Diabo que te carregue”; “Tua
cabeça é tua sentença”; “Filho de peixe peixinho é”; “Parece
a bandeira do Divino”; “Carro de praça”.
Os jogos de cartas, dama, truco e dominó.
As danças tradicionalistas (inicialmente eram dançadas
somente pelos jovens): “pezinho”; “cana-verde”;
“chamarrita”.
Os sobrenomes: Silva, Silveira, Machado, Goulart,
Ferreira, Mello, Simões, Pires, Cardoso, Amaral, Aguiar,
Bittencourt, Barreto, Brum, Andrade, Bernardes, Correa,
Costa, Cunha, Dias, Cordeiro, Duarte, Ávila, Azevedo,

134
Castro, Coelho, Dornelles, entre outros tantos.
A diversificação cultural deixada pelos ancestrais
indígenas, portugueses, afro e açorianos foi essencial para
a formação da cidade de Rio Pardo, que é uma das cidades
gaúchas com mais histórias, de um povo que ama seu torrão
e que tem orgulho de sua rica e histórica cidade,
justificando-se a importância do resgate da história e das
memórias deixadas por nossos antepassados.

Igreja de Santo Amaro, a Quarta


mais antiga do RS, de 1787 -
Santo Amaro

135
Referências

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA. Centenário da Revolução


Farroupilha. Coletânea.

BANDEIRA, Rafael Pinto. Os dragões de Rio Pardo.

FARIAS, Vilson Francisco de. De Portugal ao Sul do Brasil:


500 anos, história, cultura e turismo.

LAYTANO, Dante. Guia histórico de Rio Pardo. Porto Alegre:


Age, 1979.

MARQUES, Lílian Argentina Braga. Contribuições luso-


açorianas no Rio Grande do Sul. v. 1.

UMA LUZ para a história do Rio Grande: Rio Pardo, 200


anos de cultura, arte e memória.

Palácio Farroupilha
Porto Alegre

136
A última vontade:
A história de Rosa Maria, filha da África e de Rio Pardo
Profa. Dra. Marisa Antunes Laureano

Vista aérea de Rio Pardo

137
A última vontade: A história de Rosa Maria, filha da
África e de Rio Pardo.

Profa. Dra. Marisa Antunes Laureano

N
este momento, vamos percorrer parte dos
caminhos de uma pesquisa que vai apresentar
ao leitor as vivências de Rosa Maria, mulher de
origem africana que viveu e morreu em Rio Pardo, no século
XVIII, deixando, além de seu inventário, um testamento.
Esse testamento é revelador de seus negócios, de sua
origem, de suas relações familiares. Permite-nos reconstruir
as formas de sobrevivência no mundo em que vivia essa
mulher. Seguiremos os caminhos pelos quais ela passou e,
com isso, tentaremos perceber os processos vivenciados
por ela.

Rosa Maria, preta forra, morreu em 1799 na Freguesia


de Rio Pardo, local onde viveu, talvez desde sua chegada ao
Brasil, após sua retirada da África. Ela, ao sentir-se
extremamente doente, chamou o testamenteiro para que
ouvisse sua última vontade. E assim foi feito:

Capela de São Nicolau-Aldeia


de São Nicolau-Rio-Pardo

138
Aos 17 dias do mês de junho do dito ano (1797) na
Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo,
nas casas de morada de Rosa Maria, donde eu
gravador de testamento desta Freguesia fui vindo e
sendo e findo ali achei doente de cama a testadora
Rosa Maria, mas em perfeito juízo e claro
entendimento fazendo o meu parecer pelo bom acerto
com que me respondeu a várias perguntas que lhe fiz e
logo das suas as minhas mãos me foram dadas estas
três folhas de papel […] dizendo que este era seu
testamento e última vontade […]. (Inventário nº 6,
1799).

Esse documento nos provocou questionamentos muito


ricos e inusitados. É uma fonte que apresenta testemunhos
fundamentais da vida de uma africana que viveu como
escravizada até conseguir sua carta de alforria. Ela, já forra,
juntou alguns bens e viveu na condição de mulher livre e
reconhecida como tal. Rosa Maria formou uma rede de
relações que envolvia homens brancos, forros e escravos,
e, algo muito importante, ela constituiu uma família,
composta de duas crianças (João e Maria) e do marido
(Joaquim). Diante das situações que a escravidão
apresentava quando Rosa Maria conseguiu a liberdade,
seus filhos e marido permaneceram cativos.
Ao pensarmos sobre Rosa Maria ao longo de sua
história, é importante que a vejamos como parte de uma
família, mas também, e principalmente, como mulher ativa
em um período em que os homens pareciam ser os únicos
1
construtores da história. Esses processos que falam delas,
juntamente com um testamento ditado por uma mulher,
constituem fontes raras e preciosas, que apresentam Rosa
Maria como mãe, trabalhadora, esposa, livre etc.,
possibilitando-nos estudar a família e o papel da mulher
negra na sociedade colonial do Rio Grande do Sul.
1
Em uma significativa opinião sobre a busca de pistas que revelam as mulheres na
história, Michelle Perrot se pergunta: “Mulheres enclausuradas, como chegar até vocês?”.
Esse apelo é feito por ela lembrando que é difícil a tarefa de resgatar a voz feminina nos
documentos oficiais, em sua maioria escritos por homens (Perrot, 1992, p. 186).

139
Ainda em África

É na África, de onde Rosa Maria foi tirada, que estão


suas origens. Em seu testamento, ela se identifica como
2
sendo natural da costa da Guiné, primeira região da África
tropical a ser descoberta pelos europeus (Ki-Zerbo, 1982, p.
46) e que ficava entre a atual Serra Leoa e o delta do Níger
(Rodrigues, 1990, p. 42). O território que foi chamado de
Guiné atraiu os portugueses, em um primeiro momento,
pelo fornecimento de especiarias, principalmente o ouro.
Esse metal não era extraído da região da Guiné, porém a
travessia se fazia necessária para buscá-lo (Person, 1982,
p. 318). O que nos interessa, basicamente, é que logo os
negros escravizados substituiriam o ouro em mercadoria de
valor comercial, transformando a região em fornecedora de
gente para um mercado que crescia, principalmente com a
necessidade de mão de obra para as Américas3 e com o
reconhecimento do lucro que seria alcançado com o tráfico
negreiro. Assim, na Costa da Guiné, muitos africanos foram
escravizados e enviados para o Brasil, entre eles Rosa
Maria.
Das influências africanas que Rosa veio a manter no
Brasil destacamos a religiosidade — provavelmente a que
os pesquisadores chamam de religião africana tradicional
(Ki-Zerbo, 1982) (que aqui foi substituída, ou sincretizada,
pelo catolicismo) — e as relações familiares — ponto alto
das comunidades africanas, que viam nas famílias
estendidas os suportes de sustentação da vida social e de
trabalho nas aldeias africanas de modo geral.
Após a arrancada da Costa da Guiné, Rosa Maria foi
levada para Angola, onde recebeu os sacramentos da
2
O termo Guiné é sinônimo de “Etiópia”, ou “país dos negros”, como foi utilizado
pelos primeiros navegadores portugueses nos apontamentos sobre a África. Cf.
Person (1982, p. 315).
3
Existem algumas discussões sobre a primazia quanto aos interesses pelo
tráfico negreiro, se havia um interesse comercial ou uma necessidade de mão de
obra na Américas. Para Manolo Florentino, em seu livro Em costas negras
(1997), teria vindo primeiro o interesse comercial e depois a necessidade de mão
de obra, tudo muito influenciado pelo lucro que o tráfico apresentaria.
140
religião católica e foi embarcada para o Brasil. Era comum,
nos portos de embarque dos navios negreiros (ou dentro do
próprio navio), o batismo dos negros feito por um sacerdote
que acompanhava a viagem, ou que já estava instalado
dentro do território africano4 com a missão de “levar alguma
fé” aos povos dessas terras.

A chegada ao Brasil

O tráfico de negros africanos para o Brasil representou


um grande comércio para portugueses e brasileiros, desde
o momento em que se começou o transporte, no século XVI.
De acordo com Florentino, quase 40% dos 10 milhões de
africanos importados da África vieram para o Brasil
(Florentino, 1997, p. 23). Tratava-se o tráfico de uma grande
empresa comercial, que representava para a colônia
brasileira uma das fontes de maior peso nas importações. O
Rio de Janeiro representou, nesse caminho, um dos portos
mais importantes para os brasileiros que negociavam gente
africana no porto de Luanda. Para esse mesmo autor: “Se já
no século XVIII o porto do Rio de Janeiro desfrutava de um
papel privilegiado no circuito Sul — Sul do tráfico Atlântico,
tal posição será reafirmada na centúria seguinte, quando ele
se consolidará como o principal centro de comércio de

Encontros dos rios


Jacuí e Rio Pardo - Rio Pardo

4 Conforme Rodrigues (1990, p. 117) escreveu sobre o tráfico negreiro. “A própria

Igreja Católica obtinha lucro desta atividade desumana: cada negro devia ser
batizado antes de embarcar e o bispado local recebia uma quantia por indivíduo.”
141
homens do Brasil” (Florentino, 1997, p. 64). Homens e
mulheres. Dos escravizados que vieram para o Rio Grande
do Sul, estima-se que 85% eram originários do porto do Rio
de Janeiro. De acordo com Florentino, em dados retirados
da Gazeta do Rio de Janeiro, três em cada 20 embarcações
que vinham para o Rio Grande do Sul saídas do Porto do Rio
de Janeiro eram carregadas de africanos escravizados
(Florentino, 1997, p. 38).
Os homens e as mulheres que fizeram todo esse
percurso da África–porto do Rio de Janeiro–Rio Grande do
Sul são considerados sobreviventes, e temos em Rosa
Maria uma dessas pessoas. Pelo relato de seu testamento,
Rosa foi uma protagonista de todos os passos que
envolviam o processo de escravização: seu início, com o
aprisionamento do africano em seu território; seu
desenvolvimento, com a negociação dos africanos nos
portos de embarque; e seu final, com a venda do africano no
Brasil.
Após percorrer todo esse caminho, o processo doloroso
de escravização de Rosa culmina com sua chegada a Rio
Pardo, onde foi servir de mão de obra, provavelmente, em
uma economia de subsistência, plantação de trigo ou
criação de gado, que eram as atividades despendidas pelos
moradores da região em meados do século XVIII, período
de formação da Freguesia de Rio Pardo e do território sul-
rio-grandense como um todo.
As origens da fundação de Rio Pardo estão diretamente
associadas à construção de fortificações com o intuito de
defesa do território por parte dos portugueses, que se viam
em constante ameaça de índios e espanhóis. A
comandância militar adentrando o território, saindo de Rio
Grande para as missões, chegou ao caminho do Jacuí,
onde, nas proximidades, foi criado o primeiro forte de Rio
Pardo, que recebeu o nome de Jesus Maria José.5

5
Anteriormente, em Rio Grande, já havia sido construído um forte com o mesmo
nome.

142
A construção do forte, que ocorreu em 1752, foi
antecedida por acampamento militar e pela construção de
armazéns para suprimentos, pois, segundo Dante de
Laytano (1979, p. 77): “A construção das fortificações e
aumento da tropa no Rio Pardo foi a terceira das medidas
tomadas para a manutenção da posição portuguesa, tendo
sido primeira a designação duma guarda e segunda a
iniciativa da construção de armazéns e depósitos.”
A fundação da vila ocorreu em torno de fortificações
militares, que foram construídas no Passo do Rio Pardo. É
preciso destacar que os militares, ao chegarem ao caminho
do Passo, já encontraram nessa região estâncias de
espanhóis e de portugueses, fato que demonstra o grau de
circulação das pessoas dos dois impérios (Osório, 1995). As
fortificações, por garantirem proteção a uma região,
estimulariam, teoricamente, a formação do núcleo urbano
de Rio Pardo. A ocupação da região de Rio Pardo
aconteceria efetivamente pelos portugueses, após o
Tratado de Madri (1750), que lhes garantia oficialmente a
região. Além dos militares e dos estancieiros, que já
estavam instalados, formaram a vila casais de açorianos
que tinham como destino as missões, mas que,
arranchados em Rio Pardo, ficaram por lá mesmo. Também
se contou com os negros escravizados que foram levados a
Rio Pardo para servirem de mão de obra.

Chimarródromo de Alvorada -
Alvorada

143
Rio Pardo tornou-se o núcleo mais importante do Rio
Grande do Sul no final do século XVIII e início do XIX. Nesse
período, as atividades principais da região eram a
agricultura e a criação.

Condição de livre

A libertação de Rosa Maria pode ter sido feita por compra


da alforria, feita por ela mesma, ou por benevolência do
senhor pelos serviços prestados. Levando em consideração
as várias atividades que ela exercia quando livre, podemos
dizer que sua alforria talvez tenha sido comprada com o
lucro de seu trabalho como escrava de ganho.
Rosa Maria vivia com simplicidade, e seus pertences
nada apresentavam de luxuoso. Entre seus utensílios
domésticos, possuía três tachos — os tachos eram
utilizados para fazer doces; como tinha três, é possível que
fosse doceira. Havia também um caldeirão de ferro. Sendo
esses os dois únicos apetrechos domésticos declarados em
inventário, eles expressam sua importância para ela,
demonstrando a possibilidade de serem utilizados em
alguma atividade lucrativa para Rosa Maria.
Em termos de vestuário, ela tinha quatro saias: uma de
gala preta, uma de gala encarnada, uma de chita e outra
6
branca de casafina borrada. Tinha também dois covados de
remites e dois apertadores, um de druquete e outro de cetim
preto. Percebe-se a simplicidade da vestimenta de Rosa, já
que nos inventários de proprietários de posses havia
constantes referências às roupas femininas, compostas de
muito luxo: seda, rendas, vestidos coloridos. As vestes de
Rosa Maria poderiam representar o cumprimento dos
desejos das autoridades em impor um traje específico às
mulheres escravas e forras.7
6 Uma medida equivalente a 66 cm.
7 A forma de vestir-se de mulheres negras era preocupação constante em algumas capitanias do Brasil.
Na Bahia e no Rio de Janeiro, os oficiais chegaram a decretar a proibição do uso de roupas luxuosas por
parte de mulheres escravas, e a proibição estendia-se às forras, pois na hora da repressão era a cor que
importava. Eles chegaram, de acordo com Sílvia H. Lara, a dizer que o excesso de luxo das escravas e
mulatas colocava em perigo as casas de família. A preocupação chegou a ponto de essas autoridades
solicitarem ao rei “estender para todo o Estado do Brasil as determinações expedidas para o Rio de
Janeiro. A concordância real foi dada em poucos meses e as necessárias cartas foram expedidas para o
Brasil” (Lara, 2000, p. 179).
144
Pela presença de peças de tecidos, o caso dos covados
sugere a possibilidade de que Rosa fosse também
costureira. Não seria de se estranhar que, ainda
escravizada, ela se ocupasse da função de doceira e
costureira. Lembramos que vários proprietários têm matéria
para costura e fiação em seus inventários. E também muitas
propriedades tinham sua própria produção de alimentos.
Rosa Maria tinha também três juntas de bois e um carro.
Esses equipamentos lhe garantiriam transporte seu ou de
outros, caso ela alugasse o carro.
Já vimos que há várias alternativas possíveis para
explicar o fato de Rosa Maria sobreviver como livre,
sustentando-se e tendo uma moradia em boas condições.
Como doceira, costureira, tabuleira, tocadora de carro, ela
realizava trabalhos que garantiriam algum lucro a uma forra
em período em que não era fácil adquirir algum dinheiro,
quando as pessoas viviam de trocas e empréstimos, já que
muitas das dívidas só eram liquidadas quando da morte do
devedor.
Rosa vivia em uma morada de casas localizada na Rua
Santo Ângelo, tendo a mesma casa duas entradas e sendo
coberta de telhas. O fato de a casa ser coberta de telhas
representa uma boa moradia para a época, demonstrando
que Rosa Maria, após a liberdade, passara a viver em uma
residência bem-constituída e localizada na região central da
Freguesia de Rio Pardo. A Rua Santo Ângelo abrigou
moradores ilustres e homens de boas condições
financeiras. Dante de Laytano, em seu Guia histórico de Rio
Pardo, refere-se à rua dando o seguinte parecer: “O culto de
Santo Ângelo teve grande importância na cidade da
fronteira do Jacuí, pois a principal rua de Rio Pardo, a atual
Andrade Neves, denominou-se, por longos anos, de Santo
Ângelo” (Laytano, 1979, p. 27).
Riopardense de Macedo também faz referência à Rua
Santo Ângelo, informando a relação que ela tinha com a
cidade e destacando que era onde ficavam “a maior parte
das residências e as obras mais importantes” (Macedo,
1972).
145
Para adquirir tal casa, em ótima localização, como vimos,
Rosa fez um empréstimo ao homem que seria seu primeiro
testamenteiro, João de Faria Rosa.
Completando os bens de Rosa Maria, ela possuía uma
escrava de nome Joana, pela qual ainda devia a quantia de
25 mil réis. É importante refletirmos sobre essa questão da
escrava da preta forra. Em um primeiro momento, vem o
questionamento de como saindo da escravidão ela resolve
adquirir uma pessoa para também escravizar? Diante da
mentalidade da época e das formas de trabalho, podemos
dizer que comprar uma escrava significava ter uma mão de
obra que auxiliava ou realizava trabalhos necessários para a
aquisição de dinheiro e o custeio de uma vida de pessoa
livre.
Uma característica da condição de livre que Rosa Maria
tinha era o grande número de negócios com pessoas
influentes. Podemos citar seu testamenteiro João de Faria
Rosa, que recebeu uma sesmaria, cuja posse foi confirmada
pela própria D. Maria, rainha de Portugal (mãe de Dom
João), cujas terras deram origem à cidade de Santa Cruz
(Laytano, 1979, p. 101). Foi dele também que Rosa
conseguiu o empréstimo para comprar a casa em que
morava. Citamos também José de Souza Brazil, homem
que vendeu Joana a Rosa Maria e lhe deixou ficar devendo
uma parte. Era homem de posses, tinha muitas terras,
grande criação de gado, casa na cidade, itens requintados
em casa, joias. Homem de influências e conhecido na
cidade, já que era tão abastado.
Rosa, portanto, tinha uma rede de negociações que a
ajudaram na condição de mulher forra. Além dos homens
brancos importantes, havia os forros com os quais ela
negociava. Podemos citar o forro Fernando, ao qual ela
devia 32 mil réis, e seus compadres Francisco e Amaro
Francisco, que lhe haviam emprestado 12 mil réis.

146
A família de Rosa Maria

Rosa Maria, quando conseguiu sua liberdade, deixou em


cativeiro seus dois filhos: João e Maria. Seu marido,
Joaquim, citado como de origem angolana, também
continuou escravo. Rosa informou em seu testamento que
ela havia sido casada com Joaquim, mas não era mais
mulher dele. Mesmo assim, em alguns momentos, refere-se
a ele como marido, por exemplo quando diz estar
“deserdando o sobre dito seu marido”. Rosa toma uma
posição diante do marido, que, segundo ela, não contribuíra
em nada para tudo que conseguiu com seu trabalho. Ela diz
ter “[…] adquirido tudo que possuo com o suor do meu rosto e
sem ajuda do emprego do meu marido”. Rosa Maria, com o
trabalho que desempenhava, conseguiu manter sua
sobrevivência; não dependeu do marido.
A família de Rosa, quando de sua morte, estava dividida
entre diferentes proprietários. Joaquim pertencia a Joaquim
Soares, Maria era propriedade de José Antônio dos
Prazeres. De João, nada podemos afirmar, pois não há
nenhuma referência sobre ele após a morte da mãe. Em seu
testamento, Rosa fala dos filhos, mas elege apenas Maria
como herdeira. Diz ela: “Declaro que depois de cumpridos os
legados o que sobrar ficará pertencendo a minha filha para
sua liberdade […].”

Os caminhos da fé

Eu Rosa Maria estando gravemente doente e temendo


a morte pensão da humana vida e dispondo por minha
alma no caminho da salvação faço este meu
testamento do teor seguinte: Primeiramente
encomendo a minha alma a santíssima trindade que a
criou e rogo ao eterno padre que pela morte de seu
unigênito filho a queira receber quando deste mundo
partir e a viagem Senhora Nossa a Santa do meu nome
e da minha especial devoção e a todos os santos e
santas da corte so seu rogo sejam meus intercessores
quando minha alma deste mundo […].
147
A citação feita à Nossa senhora do Rosário aparece aí
por se tratar de uma preta forra, pois não era comum em
testamentos de brancos. Ela também era membro da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,8 à qual
deixou uma quantia de 8 mil réis. Rosa devia ser membro
antigo da Irmandade pela quantia deixada e por solicitar que
esta acompanhasse seu enterro. O testamento nos faz crer
que Rosa Maria era uma devota fiel da Irmandade e da
Igreja Católica. Ela solicita em testamento vários ritos
católicos para sua morte, como ser enrolada no hábito de
São Francisco, 200 missas rezadas no Rio de Janeiro por
sua alma, missa de corpo presente. E, mais importante, que
seu corpo seja sepultado dentro da Igreja Matriz da
Freguesia de Rio Pardo. Todos esses pedidos, que seriam
pagos, era sinal de status na época, sendo também indício
de receio de sobrar e ficar entre o mundo dos vivos e dos
mortos, caso não houvesse vários rituais. Mas o mais
intrigante foi a solicitação do enterro dentro da Igreja Matriz,
fato nunca visto para uma preta forra.
Se ela conseguiu realizar essa última vontade,
certamente seus restos estão abaixo do piso da atual Igreja
Matriz, que substituiu a que existia na época da morte de
Rosa Maria. A nova igreja foi inaugurada em outubro de
1779 (Laytano, 1979, p. 28), e Rosa morreu em 1799,
dando, assim, tempo para seu desejo ser realizado. Fica a
dúvida, mas podemos pensar que o corpo de Rosa esteja
abaixo da Igreja Matriz de Rio Pardo, como era sua última
vontade.
O pequeno histórico que tentamos percorrer até aqui tem
como objetivo encaminhar o leitor para a compreensão do
pertencimento dos afro-brasileiros, da mulher negra, sobre
o viés das relações estabelecidas. Relações estas que
envolviam a família, o trabalho e o mundo em que viviam ou,
como disse Genovese (1988), o “mundo que criaram”.

8
A Irmandade teve sua fundação em Rio Pardo, em 1774.

148
Referências

FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do


tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: século
XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

GENOVESE, Eugene. A terra prometida. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1988.

INVENTÁRIO no 6, 1o Cartório de Rio Pardo, Vara de


Família, maço 3, ano 1799.

KI-ZERBO, Joseph (coord.). História geral da África do


século XII ao XVI: I metodologia e pré-história da África. São
Paulo: Ática: Unesco, 1982.

LARA, Sílvia. Sedas, panos e balangandãs: o traje de


senhoras e escravas na cidade do Rio de Janeiro e de
Salvador (século XVIII). In: SILVA, Maria Beatriz N. (org.).
Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.

LAYTANO, Dante. Guia histórico de Rio Pardo. Porto Alegre:


Age, 1979.

MACEDO, Riopardense de. Rio Pardo: a arquitetura fala da


história. Porto Alegre: Sulina, 1972.

OSÓRIO, Helen. O espaço platino: fronteira colonial no


século XVIII. In: Práticas de integração nas fronteiras: temas
para o Mercosul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS: Instituto
Goethe: ICBA, 1995.

149
PERROT, Michelle. Os excluídos da história. 2. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1992.

PERSON, Yves. Os povos da Costa: primeiros contatos com


os portugueses – de Casamance às lagunas da Costa do
Marfim. In: NIANE, D. T. (coord.). História geral da África do
século XII ao XVI. São Paulo: Ática: Unesco, 1982.

RODRIGUES, João Carlos. Pequena história da África


Negra. São Paulo: Ática Globo, 1990.

150
Rodas de troca de saberes e fazeres de formação continuada
para a rede pública de ensino do município de Nova Hartz
Gerando a história do protagonismo afrodescendente no Rio
Grande do Sul

Professor Mauro Ubirajara Conceição Pereira

Vista aérea de Nova Hartz

151
Rodas de troca de saberes e fazeres de formação
continuada para a rede pública de ensino do
município de Nova Hartz
Gerando a história do protagonismo afrodescendente
no Rio Grande do Sul

Professor Mauro Ubirajara Conceição Pereira

1. Introdução

A ONG MovimentAÇÃO, em conjunto com as forças


vivas da comunidade de Rio Pardo e a Prefeitura Municipal,
assumiu um grande desafio:
colocar à disposição do país um
relato que abrange a formação de
parte significativa do estado do Rio
Grande do Sul.
Relatos de historiadores,
pesquisadores e ativistas sociais
trazem um olhar sobre três séculos
de criação, transformação e
consolidação das relações entre
índios, negros e europeus, que
construíram a base de nosso Ações Culturais Partilhadas com a
estado, nos aspectos sociais, ONG Movimentação em Nova Hartz.
culturais, políticos e econômicos.
O trabalho apresenta uma visão plural, destacando as
atividades que os filhos de Rio Pardo realizaram ao longo
dos séculos para construir um verdadeiro tesouro cultural,
que orgulha o país e serve de exemplo para as gerações
futuras, que recebem essa extraordinária herança cultural.
A metodologia escolhida para formatar essa ação e
organizar, de forma dinâmica, um conjunto de informações
agregado pelos diversos autores mostra a capacidade de
vencer desafios.

152
Na era da tecnologia, em que a informação é instantânea
e os aplicativos se tornaram essenciais para manter girando
a roda da vida, relatar os primórdios de Rio Pardo, onde a
roda que girava era a de carretas, parece quase impossível.
As lives possibilitaram recolher e reunir informações
advindas da universidade e do saber popular, transmitidas
de geração para geração através da oralidade. Quanta
tecnologia colocada à disposição para nos possibilitar
“desesconder” parte de nossa história e criar mais uma fonte
de pesquisa para estudantes, professores e a comunidade
em geral.
Contemplando o eixo da diversidade étnico-racial que
caracteriza nosso estado, o trabalho recepcionou inúmeras
contribuições de ativistas sociais, que, por meio de suas
narrativas, ilustram a importância de Rio Pardo e da região
para a formação da cultura gaúcha. Os filhos da terra
resgataram suas origens e inspiram outras regiões do Rio
Grande do Sul a apresentar suas narrativas, construindo e
fortalecendo essa excepcional rede de conhecimento.

2. O princípio da oralidade

A história do negro no Brasil resistiu a inúmeras barreiras


para chegar até nós, no século XXI, e sem dúvida a falta de
fontes provindas de documentos escritos é a principal delas.
A oralidade, que caracteriza a transmissão de
conhecimentos pelos afrodescendentes, tem sido, ao longo
dos séculos, a forma encontrada para perpetuar a cultura
multifacetada de um povo que luta para manter viva a
herança recebida dos antepassados.
Nos depoimentos apresentados nas lives, fica evidente
essa forma de transmissão de conhecimento, que, mesmo
enfrentando barreiras, deixa uma percepção muito nítida
das contribuições afrodescendentes para o Vale do Rio
Pardo Grande do Sul.
A força e a importância da mulher negra ontem e hoje têm
153
merecido destaque no trabalho produzido, mostrando que a
sociedade, mais patriarcal na época, também reconhecia
esse trabalho e os pensamentos de nossos antepassados, o
que nos traz muito orgulho e admiração, servindo de
exemplo para nós, que acreditamos e lutamos por uma
sociedade mais justa e igualitária.
Não é algo fácil usar a escrita para juntar essas peças de
um verdadeiro quebra-cabeça, que foi sendo moldado e
construído por experiências coletivas, que construíram
casas, igrejas, praças, estradas e movimentaram os meios
de produção. Isso requer bom senso e criatividade, para
permitir essa fantástica viagem pelo túnel do tempo de
nossa história.
A narrativa da mulher negra negociante que conquistou
sua liberdade e a de sua família, além de executar
importantes tarefas como negociadora em uma sociedade
em que o poder era exercido por homens, mostra que muitos
ex-escravos ocuparam espaços que precisam ser mais bem
estruturados, dentro da estrutura econômica de Rio Pardo, e
mais bem entendidos, por nossos historiadores e cientistas
sociais.

Entrada de Nova Hartz

154
O Brasil precisa investir cada vez mais em cultura,
possibilitando o acesso e as pesquisas sobre nossa história,
para que possamos entender o muito das contribuições que
nossa gastronomia, música, dança e artesanato atual
receberam dos negros advindos do continente africano. O
princípio da oralidade continuará sendo uma importante
ferramenta para conhecermos a história de um povo que
contribuiu muito para a organização da economia gaúcha ao
longo do tempo.

3. A Lei 10.639/2003

É o instrumento jurídico que a sociedade brasileira criou


para resgatar parte importante de nossa história, que
precisa ser escrita, compilada e contada. Fruto da luta dos
movimentos sociais, essa lei é um marco no ordenamento
jurídico brasileiro e no fortalecimento do regime
democrático. Sua aprovação foi uma prova viva da
importância e do vigor da jovem democracia brasileira.
Resgatar experiências produzidas pelos griôs em todo o
território nacional e fortalecer a rede de pontos de cultura
possibilitou um novo olhar sobre a cultura nacional,
misturando a produção popular com o saber produzido na
academia.

Cascata Nova Hartz


155
A Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, traz para o
âmbito da escola o saber transmitido, por meio da oralidade,
pelas verdadeiras bibliotecas
vivas, com suas histórias Ação preparatória com as diretorias
das escolas em Nova Hartz para os
passadas de geração em encontros de formação continuada.
geração. No Brasil, que tem
um território continental e
uma profunda disparidade
social, política e econômica,
revelar fontes até agora
desconhecidas, apresentar
novas versões dos fatos,
retirar do anonimato
verdadeiros heróis que
ficaram esquecidos no
passado são algumas das enormes tarefas que precisam
ser enfrentadas pela sociedade brasileira.
Uma cidade no Rio Grande do Sul que assumiu a tarefa
de cumprir a lei e encarar o desafio foi Nova Hartz,
localizada na grande Porto Alegre,
Rodas de Troca de Saberes e Fazeres mais precisamente no Vale dos
em Nova Hartz (2016) Formação
Continuada na Rede de Ensino. Sinos, berço da imigração alemã no
estado.
Uma ação da Prefeitura
Municipal, por meio da Secretaria de
Educação, Esporte, Lazer e Cultura,
decidiu pela capacitação dos
professores da rede municipal,
aberta aos professores estaduais
pela ação de educação continuada
realizada em oficinas e seminários, e passou a abordar
temas como: mandalas, capoeira, pedagogia do oprimido,
pedagogia do axé, pedagogia griô, rodas de saberes e
fazeres, artesanato, música, dança, teatro.
Cada escola indicava um grupo de professores para
participar das oficinas e seminários e atuar como
multiplicadores, possibilitando um trabalho multidisciplinar e
transversal em cada escola no município.
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Ações realizadas em parceria com a ONG
MovimentAÇÃO atravessaram os muros da escola, e muitas
rodas de saberes e fazeres foram promovidas por entidades
do município, que colocaram em suas pautas de atuação o
fortalecimento da cultura, interligando as contribuições da
cultura alemã e da cultura afro-brasileira.
A realização de oficinas de dança gaúcha com o olhar da
cultura afro, a valorização da história dos lanceiros negros e
de muitos outros heróis negros, como o “Almirante Negro”
João Cândido, passaram a fazer parte das aulas na cidade.

Pedagogia Griô no protagonismo da


Lei 10.639/2003 em Nova Hartz.

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Realização Financiamento

Projeto realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020

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