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Quando as sensibilidades tomam posição ... a obra de Sandra Jatahy Pesavento e


sua importância para a historiografia brasileira

Nádia Maria Weber Santos1

“O mundo do sensível é difícil de ser quantificado, mas é fundamental que seja buscado e avaliado pela História Cultural. Ele
incide justo sobre as formas de valorizar, de classificar o mundo, ou de reagir diante de determinadas situações e personagens
sociais. Em suma, as sensibilidades estão presentes na formulação imaginária do mundo que os homens produzem em todos os
tempos.
Pensar nas sensibilidades é, pois, não apenas mergulhar no estudo do indivíduo e da subjetividade, das trajetórias de vida, enfim. É
também lidar com a vida privada e com todas as suas nuances e formas de exteriorizar – ou esconder – os sentimentos.
Enfim, se estudar sensibilidades é um desafio, é um ir além, talvez resida nisto o charme que se encontra presente em toda aventura
do conhecimento....Porque não aceitar o desafio?”
[Sandra Jatahy Pesavento, “História & História Cultural”]

Introdução
Parafraseando o filósofo e historiador da Arte Georges Didi-Huberman em sua
obra “Quand les images prennent position”, não há expressão melhor para designar uma
historiadora e sua obra, como Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009): quando as
sensibilidades tomam posição. Posição em sua vida profissional e posição intelectual,
ou seja, uma vida feita de escolhas, posições sensíveis e conscientes que tiveram seu
bônus ... e seu ônus..., dentro do campo fértil da História Cultural. De historiadora da
História Econômica, de vertente marxista, à historiadora da Cultura, Pesavento
descortinou um campo historiográfico absolutamente novo no Brasil e com ele atuou
como professora e pesquisadora, assim como a partir dele pensou e escreveu seus
textos. Os campos temáticos preferenciais, nos últimos vinte anos de sua vida
profissional, sob a luz da História Cultural foram: história do urbano, a relação entre
história e literatura, a relação história/imagem, o mundo dos excluídos e a história das
sensibilidades.
Não há como eu deixar de lado, aqui, a memória de minha experiência e de
minha trajetória na História, pois está completamente atrelada à professora Pesavento,
durante os onze anos em que convivemos. O aprendizado com ela foi muito profundo e
único em minha vida, pois, sendo médica-psiquiatra (junguiana) e indo fazer o

1
Historiadora e Médica Psiquiatra. Mestre e Doutora em História pela UFRGS. Professora do PPG em
“Memória Social e Bens Culturais” e do Curso de Graduação em História, do Unilasalle/Canoas.
Pesquisadora associada ao EFISAL da EHESS (École des Hautes Études em Sciences Sociales) de Paris.
Membro do Comitê Científico do GT Nacional de História Cultural da ANPUH. Editora assistente da
Revista Mouseion/Unilasalle-Canoas. Contato: nnmmws@gmail.com
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Mestrado e, posteriormente, o Doutorado em História no PPG de História da UFRGS


(onde ela atuava como coordenadora naquela época), foi Sandra Pesavento que me
acolheu e, em profundo diálogo com minhas inquietações históricas sobre a loucura e a
psiquiatria no Rio Grande do Sul, deu-me o espaço e a interlocução necessários para
que minhas pesquisas começassem e avançassem neste campo. Assim, tanto o contato
com a historiadora, pessoa e obra, como com a História Cultural (HC) e com o mundo
das sensibilidades (história das sensibilidades) deram um rumo à minha vida
profissional. O que me ajuda agora a compreender, debruçando-me sobre sua trajetória
como pesquisadora e professora, enfim, como uma historiadora brasileira com uma forte
entrada em outros países, como na França, o seu pioneirismo e a importância de sua
obra para a história e para a historiografia brasileira do século XX. Sua obra realmente
transcendeu o regionalismo gaúcho e ajudou a consolidar o campo da pesquisa histórica
no país.2 É o que veremos adiante, nas breves pinceladas que posso dar no espaço
restrito de um capítulo de livro, sobre uma obra tão vasta de alguém que foi uma das

2
Por ocasião de seu prematuro falecimento, organizamos um dossiê de artigos em sua homenagem,
“Dossiê Sandra Jatahy Pesavento: a historiadora e suas interlocuções”, publicado em três volumes (19,
20, 21 de 2009) na Revista Eletrônica Fênix de História e Estudos Culturais, disponíveis a partir dos
endereços http://www.revistafenix.pro.br/volumedezenove.php;
http://www.revistafenix.pro.br/volumevinte.php; http://www.revistafenix.pro.br/volumevinteum.php.
Neste, seus colegas no campo da História Cultural escreveram dando ênfase a conteúdos que os ligavam a
ela, como referencial neste campo e como colega interlocutora. Também foram publicados na França, na
Revista americanista Nuevo Mundo – Mundos Nuevos/ Nouveau monde - Mondes Nouveaux (vinculada
à EHESS de Paris e na qual a pesquisadora muito publicou), em 2009, em sua homenagem, um dossiê
feito por alguns de seus colegas interlocutores franceses e uma resenha de seu último livro, surgido em
2008 (“Os sete pecados da capital”, editora Hucitec, 2008a nas referências ao final), escrita por colegas
gaúchos que foram seus alunos (bolsistas de IC ou mestrandos/doutorandos) ou mesmo colegas de GT de
História Cultural do RS. Cada um escreveu sobre um dos sete capítulos, dos sete “pecados”, ou crimes
que envolviam mulheres na cidade de Porto Alegre, que ela magistralmente expos na obra. Em minha
humilde opinião, esta é a obra prima de Sandra Jatahy Pesavento, mostrando a maturidade intelectual da
pesquisadora, onde ela traz à tona, a partir de suas pesquisas em arquivos, o “crème de la crème”
(expressão que ela muito usava) da articulação dos conceitos da História Cultural com as fontes. Neste
livro, ela se supera na sua capacidade de apresentar versões verossímeis dos fatos acontecidos, o que é
uma característica marcante em toda a sua obra historiográfica. Resenha disponível no endereço:

http://nuevomundo.revues.org/56988.
Outras homenagens foram feitas para a professora Pesavento em Porto Alegre (exposição de sua obra,
jornadas sobre temáticas de sua carreira de pesquisadora, um pequeno documentário editando alguns
momentos dela na mídia gaúcha e do Brasil) e no âmbito dos Simpósios Nacionais de História Cultural
(que ela idealizou desde 2002). E outras homenagens estão ainda sendo preparadas, como por exemplo, o
lançamento em 2014 do Prêmio Tese Sandra Jatahy Pesavento em História Cultural, concedido pelo GT
Nacional de História Cultural da ANPUH para as duas melhores teses de doutorado neste campo de
estudo e pesquisa, em parceria com as editoras Edições Verona (SP) e Editora UniLasalle (Canoas).
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responsáveis pela criação do campo da História Cultural no país. Em conformidade com


a idealização dos organizadores do presente livro, pretendemos refletir sobre a formação
e as “influências” da historiadora, bem como a conjuntura histórica de sua obra e os
temas estudados, as abordagens e os conceitos utilizados e, por fim, a importância de
sua obra e seu lugar na história da historiografia – não necessariamente seguindo esta
ordem.

O legado de Sandra Jatahy Pesavento para a historiografia do século XX e para a


História Cultural no Brasil
Sandra me apresentou à História Cultural (HC). Aliás, esta disciplina a fez
aproximar-se da interdisciplinaridade e é assim que eu entro em sua vida e ela na minha.
Sendo médica-psiquiatra e trabalhando com Psicologia Analítica, eu trazia comigo larga
experiência profissional e um rol de postulados de uma área que aos poucos estava
começando a se relacionar com a História. Entre conceitos, fontes e metodologias, como
por exemplo, a análise junguiana do inconsciente e a questão dos arquétipos e dos
símbolos, comecei a dialogar com a História, mais especificamente com a HC e muito
sensivelmente com a pessoa e com a obra da professora Sandra Pesavento.
Assim como Sandra era uma pessoa sem preconceitos e agregava pessoas de
várias áreas entre seus alunos de pós-graduação, seus companheiros de projetos, de
pesquisas, eventos e publicações, ela possibilitava diálogos profícuos entre as diversas
áreas do saber e isto é visível em sua obra: arquitetura e o urbano, literatura, psicologia,
psiquiatria, comunicação, antropologia, direito, artes, entre outros.
O que mais me chamava atenção na pessoa de Sandra, e sem dúvida também
em sua obra, era a grande capacidade de transformação, jovialidade e a sensibilidade
com que sempre se apresentava a novas chamadas, a novos desafios, a falta de medo de
mudar, a abertura para todas as questões novas, a curiosidade pelas pessoas, pelos
alunos novos, pelas novas interlocuções. E isto também no sentido historiográfico. Ela
abarcava a pesquisa de seus alunos nas fontes mais variadas, dialogava com eles e os
fazia dialogar com suas fontes e novas metodologias de pesquisa histórica – sempre
tendo uma nova pergunta a fazer.
A noção de sensibilidade, muito pertinente aos atuais estudos da HC, foi uma
das mais caras a esta historiadora da cultura. Postulada como uma outra forma de
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apreensão do mundo, para além do conhecimento científico, as sensibilidades


corresponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência humana
no mundo que se encontra no âmago da construção de um imaginário social. O
conhecimento sensível opera como uma forma de reconhecimento e tradução do mundo
que brota não do racional ou das construções mentais mais elaboradas, mas dos
sentidos, que vêm do íntimo de cada indivíduo. Às sensibilidades compete esta espécie
de assalto ao mundo cognitivo, pois lidam com as sensações, com o emocional, a
subjetividade, os valores, os sentimentos.
Sandra diz: “medir o imensurável não é apenas um problema de fonte, mas de
uma concepção epistemológica de compreensão da história”. Ela refere que a
preocupação da História Cultural com as sensibilidades trouxe para os domínios de Clio
a emergência da subjetividade nas reflexões do historiador. É a partir da experiência
histórica pessoal que se resgatam emoções, sentimentos, ideias, temores ou desejos, o
que não implica abandonar a perspectiva de que esta tradução sensível da realidade seja
historicizada e socializada para os homens de uma determinada época. Os homens
aprendem a sentir e a pensar, ou seja, a traduzir o mundo em razões e sentimentos.
As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e grupos se
dão a perceber, comparecendo como um reduto de representação da realidade
através das emoções e dos sentidos. Nesta medida, as sensibilidades não só
comparecem no cerne do processo de representação do mundo, como
correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a capturar no
passado, à própria energia da vida. Sensibilidades se exprimem em atos, em
ritos, em palavras e imagens, em objetos da vida material, em materialidades
do espaço construído. Falam, por sua vez, do real e do não real, do sabido e
do desconhecido, do intuído ou pressentido ou do inventado. Sensibilidades
remetem ao mundo do imaginário, da cultura e seu conjunto de significações
construído sobre o mundo. Mesmo que tais representações sensíveis se
refiram a algo que não tenha existência real ou comprovada, o que se coloca
na pauta de análise é a realidade do sentimento, a experiência sensível de
viver e enfrentar aquela representação. Sonhos e medos, por exemplo, são
realidades enquanto sentimento, mesmo que suas razões ou motivações, no
caso, não tenham consistência real. (PESAVENTO, 2003, p.58)
Mas como chegou até estas noções? Será que podemos perseguir um pouco
deste caminho?
Tendo feito uma Graduação em História na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), entre 1966 e 1969, a trajetória acadêmica da historiadora gaúcha (nos
moldes como hoje é preconizada) iniciou em 1973, quando cursou seu Mestrado em
História, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),
defendendo em 1978 a dissertação “Charqueadas, frigoríficos e criadores: um estudo
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sobre a República Velha Gaúcha”, de foco neo-marxista, econômico e social. Segundo


Roberto Pesavento, neste momento, Sandra começou a fazer uma leitura da história do
Rio Grande do Sul diferente daquela tida como “oficial” de cunho positivista, dando um
novo enfoque aos acontecimentos e isto foi uma “revolução” na forma de fazer história
no Estado e de pensar a história do RS. Ou seja, foi a partir das novas posturas
epistemológicas e analíticas da historiadora que uma transformação no enfoque
historiográfico em nosso meio aconteceu.3
Em 1987 foi detentora de um diploma de Doutorado em História Econômica,
pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese “Empresariado industrial,
trabalho e Estado: contribuição a uma análise da burguesia industrial gaúcha (1889-
1930)”. Datam da década de 1980 algumas de suas obras publicadas mais importantes
sobre estas temáticas e sobre o Rio Grande do Sul. Entre elas, ressaltamos: “História no
RGS” (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980); “ RS: a economia e o poder nos anos
trinta (1930-1937)” (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980); “República Velha Gaúcha:
charqueadas, frigoríficos e criadores” (Montevideo: IEL, 1980); “RS: agropecuária
colonial e industrialização” (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983); “A Revolução
Farroupilha” ( São Paulo: Brasiliense, 1985); “Pecuária e indústria; formas de realização
do capitalismo na sociedade gaúcha do século XIX” (Porto Alegre: Movimento, 1986);
“A burguesia gaúcha: dominação do capital e disciplina do trabalho (RS 1889-1930)”
(Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988); “Emergência dos subalternos: trabalho livre e
ordem burguesa” (Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1989).4
Em “A Burguesia Gaúcha” (p. 181), por exemplo, e utilizando-se do referencial
gramsciano entre outros, ela analisa o papel que o Estado (como conjunto de
mecanismos institucionais) assume no Rio Grande do Sul, a partir da proclamação da
República, afirmando que estava ligado “à incapacidade da velha classe dominante,
aliada a uma economia pastoril, de manter sua hegemonia a partir do momento em que a

3
Agradeço a contribuição de Roberto Pesavento, também professor na UFRGS e marido de Sandra
Pesavento, seu companheiro desde os primórdios de sua vida profissional, na leitura atenta deste texto e
na discussão de alguns detalhes importantes.
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A historiadora e pesquisadora Sandra Pesavento escrevia e publicava muito, desde o início da década de
1980. O Currículo Lattes da professora ainda se encontra na Plataforma do CNPq e foi atualizado por sua
antiga secretária, a pedido de sua família, em junho de 2012. Acessível no endereço:
http://lattes.cnpq.br/1760145213009265. Assim, não colocaremos no corpo do texto as referências
completas, pois estão de forma completa em seu C. Lattes. Uma lista de referências bibliográficas
escolhidas (pois somente os livros que ela publicou, individualmente ou em parceria, somam 51 obras)
encontra-se ao final deste artigo.
6

sociedade começa a transformar-se no sentido capitalista.” Por outro lado, afirma, “a


burguesia emergente também se mostra por demais frágil para assumir o comando e,
neste contexto, como mediador, emerge o aparelho do Estado, materializado claramente
no longo reinado borgista.” Os textos de Pesavento nesta área tornaram-se, na década de
1980 e 1990, referências para pensar a história do Rio Grande do Sul a partir da sua
economia e política sob um outro viés historiográfico.
Porém como professora, sua carreira iniciou ainda em 1970 na UFRGS, onde
permaneceu até o fim de sua vida. Foi professora auxiliar de ensino de 1970 a 1977. Em
1977, prestando concurso público, efetivou-se na Universidade como servidora pública,
passando pelos cargos de professora assistente, adjunto e em 1991 tornou-se professora
Titular do curso de História. Exerceu, a partir daí, vários cargos e funções na UFRGS e
por ser professora da UFRGS em outras entidades de ensino e pesquisa, como por
exemplo, foi chefe de departamento, coordenadora do PPGH, membro da equipe
editorial de vários periódicos acadêmicos no Brasil e no exterior, membro de conselhos
consultivos, membro de algumas associações de historiadores internacionais, membro
de Centros de Pesquisas (como o CERMA da EHESS de Paris), consultora AD HOC e
membro de comitês de algumas FAPs, membro fundadora de alguns núcleos de
pesquisa importantes (como o NIPI - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o
Imaginário da PROREXT/UFRGS), criadora de Grupos de Trabalho (GT) de História
Cultural na ANPUHRS (1997) e na ANPUH Nacional (2001), coordenadora de alguns
Acordos CAPES/COFECUB (França/Brasil) e, muito importante, tornou-se
pesquisadora nível 1A do CNPq.
Embora tenhamos consciência de que seus estudos em História Econômica no
viés marxista, sobre, por exemplo, as Charqueadas no Rio Grande do Sul, a Burguesia
Gaúcha, ou seus textos sobre a Revolução Farroupilha e a História do Rio Grande do
Sul, ainda sejam muito utilizados como fontes bibliográficas em estudos atuais e por
pesquisadores destas temáticas, foi realmente sua guinada para a História Cultural,
ocorrida a partir de seu primeiro pós-doutorado, que originou a maior parte de sua obra
escrita e das orientações em pós-graduação. Sandra Pesavento foi responsável pela
formação de várias gerações de historiadores, tendo tido mais de 57 orientandos de
Mestrado (desde 1990) e mais de 15 orientandos de Doutorado (desde 1995).
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Os quatro pós-doutorados5 que ela fez em Paris foram decisivos para esta
‘virada’, a qual se deu durante a década de 1990, até se sedimentar em 1997, na criação
do Grupo de Trabalho (GT) de História Cultural na ANPUHRS e na palestra proferida
neste ano, no Museu Júlio de Castilhos, na I Jornada de História Cultural. O conteúdo
desta palestra originou, de forma aprofundada, seus seminários na disciplina Teoria e
Metodologia da História I, no PPGH da UFRGS em 1998/1º semestre e, anos mais
tarde, surgiu adaptado em um dos capítulos da obra intitulada “História & história
cultural” (editora Autêntica, 2003). E, também, os vários textos escritos neste enfoque,
na década, atestam a historiadora preocupada em pensar e trabalhar as premissas da
História Cultural (no início, chamada de Nova História Cultural), como, por exemplo, a
redescoberta do conceito de representação (“estar no lugar de”), o apagamento da
distinção entre o real e o não-real (“potencial de criação do ‘efeito de real’), a noção de
imaginário (sistema de valores e ideias compartilhados), a valorização do simbólico (o
‘sentido’ das práticas sociais), a distinção entre o passado e a passeidade (aquilo que
passou e não volta mais), a questão da narrativa histórica (a organização e o sentido da
história é dada pelo historiador; narrativa é a representação sobre uma representação já
feita), as relações entre verdade, veracidade e ficção (que remontam às representações
do que passou), um novo olhar de observação do real e a questão da estrangeiridade (o
historiador pensa em um outro no tempo), o princípio da dúvida e da incerteza, a
6
transdisciplinaridade e a vinculação das práticas sociais com as representações.
Em 1998, quando do início de meu mestrado em História (ela acabou por ser
minha orientadora de mestrado e doutorado), ela recém havia chegado de seu último
estágio pós-doutoral, e me lembro que fiz a prova da seleção (cujo ponto sorteado era
sobre um viés da história do RS e da cidade) escrevendo sobre a virada que ela dera em
sua linha de pensamento e pesquisa dentro do mundo historiográfico. Do marxismo para
a História Cultural (e na época, muito ligada à História Cultural do urbano, atuando
também no PROPUR – Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRGS).

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Em 1990 ela fez seu primeiro pós-doutoramento na École des Hautes Études em Sciences Sociales de
Paris (EHESS) de Paris, sob a supervisão do professor Jacques Leenhardt; em 1992-3, o pós-doc (como
chamamos na gíria acadêmica) foi na Université Paris Diderot - Paris 7; em 1995-96, na Universite de
Paris IV (Paris-Sorbonne) e, por último, em 1996-7 novamente na EHESS com o mesmo colega Jacques
Leenhardt. Em todos estes momentos ela foi Bolsista Capes e todas suas experiências pós-doutorais
resultaram em obras publicadas, como por exemplo, o livro sobre as Exposições Universais (Exposições
Universais – espetáculos da Modernidade do século XIX, Editora Hucitec, 1997).
6
Fonte: Anotações de aula da autora deste artigo. Disciplina Teoria e Metodologia da História I, 2008/1.
PPGH UFRGS.
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Tornou-se um pressuposto aceito, a partir das décadas finais do século XX, de


que os historiadores expressam, nos textos historiográficos, sua própria “cosmovisão”, o
que por tanto tempo deixaram de admitir que o faziam, como nos positivistas, cujos
relatos e escritos mostravam uma “segurança além da dúvida”, sendo como base de
conhecimento totalitário e dogmático. A historiografia rio-grandense nos anos 1990
passou a assumir, problematizar, ou melhor, a explicitar o ponto de vista do historiador.
A História Cultural veio a quebrar com o pressuposto de segurança e neutralidade, como
bem colocou a professora Pesavento em uma de suas primeiras conferências em Porto
Alegre, sobre este campo da História.7 Ela referiu-se a sete desafios e três impasses
referentes à História Cultural, sendo um dos desafios a questão da dúvida, a dúvida
como princípio do conhecimento, o que abre espaço para a incerteza. É a História
podendo ter várias interpretações; é a possibilidade de contar a História, não partindo de
um pressuposto de segurança sobre o que aconteceu, mas a História sendo sempre uma
versão do que se passou, relativizando, assim, seu contexto científico. A História é
ciência, por suposto, mas ela também lida com narrativas e com versões dos fatos. A
única segurança do historiador, que trabalha não mais com a verdade absoluta dos fatos,
mas com a verossimilhança, é seu embasamento nas fontes. A ficção do historiador é
controlada pelas fontes e pelo seu método de pesquisa: isto o diferencia do ‘fazer
literatura’. (PESAVENTO, 2003) Fontes e métodos continuam a dar o caráter científico
da História. Mas ... mudam os métodos, mudam as teorias, surgem novos desafios.
Resumindo aqui estes desafios ao historiador contemporâneo da Cultura,
conforme Pesavento explicita no último capítulo (Os riscos da empreitada: alerta geral)
de seu livro “História & História Cultural” (2003), podemos dizer com ela que ainda há
um horizonte de expectativas para com a História, onde dela se espera a versão
verdadeira, sobretudo, a explicação de como aconteceu o passado – explicação esta que
se coloca como resposta às perguntas do historiador às suas fontes. E, importante, as
respostas serão múltiplas, várias, provisórias. Dentre os desafios apontados por ela,
elencamos aqueles que merecem uma sincera dedicação do historiador na sua reflexão:
o fim das certezas e o trabalho com a verossimilhança; o risco da superinterpretação, ao
buscar os vários sentidos que o passado oferece; a nostalgia da totalidade ou dos
modelos globais macro-explicativos; incorporação da subjetividade no trabalho do
7
Fonte: Anotações da palestra proferida por Sandra Jatahy Pesavento, no âmbito da I Jornada de História
Cultural, realizada no museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre/RS, em outubro de 1997.
9

historiador (a dele e a dos atores sociais do passado), incluindo o campo das


sensibilidades – que, segundo Pesavento, é o maior desafio da HC. 8
(PESAVENTO,
2003, pp. 116-119)
Até os anos 60-70, o que tínhamos em nossos meios acadêmicos do sul eram
relatos de cunho positivista e também a influência (como referencial teórico para os
gaúchos) marxista e da “escola sociológica” (Emília V. da Costa, Fernando Henrique
Cardoso, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior). Positivismo e “marxismo”
conviviam. As pesquisas de Pesavento, de mestrado e doutorado (elencados acima),
absorviam um pouco destas influências e as discutiam a partir de seu novo viés.
Na década de 1980, com a influência dos Annales, de Foucault e de um
marxismo renovado (neo-marxismo inglês e o italiano Gramsci), a historiografia rio-
grandense foi tomando um novo rumo. Com isto, a tradicional História Política, cedeu
cada vez mais espaço para a História Econômica e/ou Social (esta predominando).
Exemplo disto são algumas publicações de Pesavento deste período, de forte cunho neo-
marxista, como já expusemos, entre elas, “A burguesia gaúcha - Dominação do capital e
disciplina do trabalho, RS, 1889-1930” e “Emergência dos Subalternos”, onde ela
analisa a inserção dos escravos libertos na sociedade gaúcha e porto-alegrense.9
Por décadas, na Europa, os Annales e o marxismo conviveram. Aqui no Rio
Grande do Sul, a influência da Escola Francesa flexibilizou muito a perspectiva dos
marxistas. Então, nos anos 90, temos a influência da Escola dos Annales (e de sua
“herdeira”, a Nouvelle Histoire) francesa, do neomarxismo inglês e, mais recentemente,
da Micro-História italiana (Carlo Ginzburg) e da Nova História Cultural (onde o livro
de Lynn Hunt, “A Nova História Cultural”, foi crucial).
Novos conceitos começaram a fazer parte da necessidade do historiador. Novos
temas (objetos), novos problemas e abordagens surgiram. O ‘fato histórico’ não mais
era trabalhado isoladamente, em si; ele passou a ser visto sempre relativo ao contexto
em que se insere. Aos velhos temas da História também um “novo olhar” foi lançado e a

8
Diz ela: “Mas a História Cultural apresenta riscos e põe exigências: é preciso teoria, sem dúvida, ela
exige o uso desses óculos, conceituais e epistemológicos para enxergar o mundo. A História Cultural
pressupõe um método, trabalhoso e meticuloso, para fazer revelar os significados perdido do passado.
Pressupões ainda uma carga de leitura ou bagagem acumulada, para potencializar a interpretação por
meio da construção do maior número de relações possível entre os dados. Como resultado, propõe versões
possíveis para o acontecido, e certezas provisórias. Parece difícil, mas talvez resulte dessa condição o seu
maior encanto, fazendo do fazer História uma aventura, sempre renovada, do conhecimento.”
(PESAVENTO, 2003, p.119)
9
Referências completas ao final.
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eles fizeram-se novas perguntas. As fontes diversificam-se (jornais, fontes policiais,


judiciárias/processos crime, imagens) e a relação com outras disciplinas (Antropologia,
Psicologia, Literatura e até Medicina, por exemplo) tornou-se mais intensa e efetiva.
Em suma, a partir dos anos 1990 passou a existir a revalorização da pesquisa
empírica (mas não nos moldes positivistas), com os conceitos sendo usados como
ferramentas. O texto historiográfico tornou-se mais narrativo, rico em informação.
Houve a valorização do detalhe, mas não do detalhe em si, e sim o detalhe como brecha,
como pista para apreensão e análise de uma realidade social. Várias temáticas foram
realçadas, nestes novos pontos de vista, com estas novas perspectivas epistemológicas e
estratégias metodológicas, enfatizando uma interdisciplinaridade antes jamais vista na
prática do historiador.
Estando em conformidade com as atualizadas tendências mundiais da disciplina
histórica (principalmente norte-americanas, italianas e francesas – o que, aliás, fez a
historiadora gaúcha ganhar vários parceiros intelectuais nestes países) e citando os
autores da História Cultural e da Nouvelle Histoire (dentre eles principalmente Baczsko,
Chartier, Vovelle), tanto quanto filósofos e críticos da cultura como Walter Benjamin
(que muito trabalhou com o urbano, de Paris, por exemplo) ela mostrou o quanto era
fundamental termos um novo “olhar” sobre a urbe. Neste prisma, novos documentos
puderam ser utilizados como fontes de pesquisa historiográficas (fotos, filmes, arquivos
pessoais, etc.). Eu diria que a “História do Imaginário e das Representações” começou a
ser traçada aqui no Rio Grande do Sul através dos textos da professora Pesavento sobre
a cidade (e também na relação entre história, literatura e representações do urbano).
A História Cultural neste momento, também através dos textos de Roger
Chartier (e anteriormente de Jacques Le Goff), começa a discutir o papel do imaginário,
das representações e da ficção no texto historiográfico. Nesta década (1990), Pesavento
publicou alguns textos (artigos e capítulos de livros), discutindo a questão do imaginário
e da ficção, a partir também, da relação história e literatura, onde esta relação se
explicitava melhor. Citamos como exemplo, os artigos: “Em Busca de Uma Outra
História: Imaginando o Imaginário” (na Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15,
n.29, p. 9-27, 1995); “Com Os Olhos de Clío, Ou a Literatura Sob o Olhar da História a
Partir do Conto 'O Alienista', de Machado de Assis”, também na Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 16, n.31, p. 108-119, 1996; “Da Cidade Maravilhosa Ao País das
11

Maravilhas: Lima Barreto e O Caráter Nacional”, publicado na Revista Anos 90 do


PPGH da UFRGS, Porto Alegre, v. 8, p. 30-44, 1997; “Mulheres no sul: cruzamento
entre a História e a Literatura a partir da obra O tempo e o vento de Érico Veríssimo”
(em Fronteiras Revista de História, Mato Grosso do Sul, v. 2, n.3, p. 83-94, 1998);
“Fronteiras da Ficção: diálogos da História com a Literatura”, publicado em Estudos de
História, v. 6, n.1, p. 67-85, 1999.10 É o texto literário como metáfora do social, é a
literatura sendo uma “historiografia inconsciente”.
Em seus textos vemos uma preocupação bem evidente com a questão das
representações e do imaginário social, desde esta sua “virada historiográfica”. Este
resgate é fundamental, uma vez que por tanto tempo o escrever a História e sua análise
ficou a cargo do estudo das estruturas sociais concretas que excluíam as representações.
O imaginário social, como ela bem mostrou em seus textos, relaciona-se com a
realidade social concreta, fazendo parte dela e com ela entrando numa dialética, ambos
“determinando-se” mutuamente numa real dialética.
A temática do urbano foi cada vez mais trabalhada, e possui um enfoque
importante no fim de século XIX (em Porto Alegre), quando o processo de urbanização
da cidade começou a se dar de forma mais efetiva. Esta temática teve seu expoente nos
trabalhos de Sandra Pesavento, com o enfoque também da História Cultural. Como
exemplos de textos iniciais desta autora sobre este tema cito: “Um novo olhar sobre a
cidade: a nova história cultural e as representações do urbano”, no livro “Porto Alegre
virada do século, Cultura e Sociedade” (1994); também o “Espetáculo da Rua” (1992),
livro coordenado por ela; “Os pobres da cidade”(1994); “Imagens urbanas” (1997),
11
entre várias outras publicações. É claro o transitar desta autora para a História
Cultural, tanto em seus escritos historiográficos sobre a cidade, como em sua produção
teórica. Outros exemplos disto são: seu texto sobre história e literatura e as
12
representações das identidades urbanas no Brasil ; e, quando, em outro texto, ela

10
Esta lista não esgota as produções de Pesavento na década de 1990. Ver Currículo Lattes, como
mencionado anteriormente, para as obras completas da autora.
11
Estas obras encontram-se em: PESAVENTO, Sandra J. Um novo olhar sobre a cidade: a nova história
cultural e as representações do urbano. In: MAUCH, Cláudia et. al. {org.}. Porto Alegre na virada do
século 19: cultura e sociedade. Porto Alegre: Editora da Universidade/URFGS, 1994. PESAVENTO, S.
J. (Org.). O espetáculo de rua.. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992. v. 1. PESAVENTO, S. J. .
Os Pobres da Cidade. 1. ed. PORTO ALEGRE: UFRGS, 1994. v. 1. 149 p. PESAVENTO, S. J. (Org.) ;
SOUZA, C. F. (Org.) . Imagens Urbanas. 1. ed. PORTO ALEGRE: UFRGS, 1997. v. 1. 292 p.
12
No já citado PESAVENTO, S. J. . Da Cidade Maravilhosa Ao País das Maravilhas: Lima Barreto e O
Caráter Nacional. REVISTA ANOS 90, PORTO ALEGRE, v. 8, p. 30-44, 1997.
12

analisa uma parte da sociedade carioca e do Rio urbano, a partir do conto “O Alienista”
de Machado de Assis, também já citado aqui.
Há duas obras de Pesavento que são “maiores”, no meu entender, em relação à
temática do urbano e que congregam algumas de suas preocupações (problemas) de
pesquisa, entre eles, o imaginário urbano, o mundo dos excluídos (“a história desde
baixo”) e a relação história e literatura. São elas: “O Imaginário da cidade – visões
literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre”, publicado pela editora da
Universidade/UFRGS em 1999 e “Uma outra cidade – o mundo dos excluídos no final
do século XIX”, publicado em 2001 pela Companhia Editora Nacional.
No primeiro, a autora aprofunda as noções de imaginário urbano a partir de
referenciais da literatura das três cidades enfocadas, onde o imaginário da cidade tenta
construir uma forma de acesso ao urbano, a partir da visão literária (de autores
franceses, cariocas e gaúchos) que “dá a ver” (expressão que Pesavento muito usava em
seus textos) como as ideias e imagens são reapropriadas, em tempos e espaços
diferentes. De Paris a Porto Alegre, passando pelo Rio de Janeiro, as especificidades do
local se articulam com a ressemantização do mito da modernidade urbana, em toda a
plenitude da imaginação.
No segundo, ela traça a “geografia da exclusão”, a partir do estudo dos becos de
Porto Alegre e de locais que abarcavam os excluídos na cidade. O primeiro capítulo
desse livro, “A construção da diferença: cidadania e exclusão social”, é paradigmático e
serve de referencial até hoje para os estudos urbanos e estudos sobre o mundo dos
excluídos.
Uma ideia na cabeça, o mundo dos arquivos diante dos olhos e das mãos. Por
onde começar, era a pergunta inicial, uma vez definido o problema. Um
quebra-cabeça de informações, para abordar talvez uma questão eterna para o
historiador: como os homens foram capazes, ao longo de sua história, de
representar-se a si mesmos e ao mundo. Mas nosso problema tinha um
espaço, uma temporalidade e um recorte específico. Queríamos estudar Porto
Alegre no final do século XIX e ver como, um século atrás, era construída a
diferença, qualificando a realidade urbana de então em construções bem
definidas: a exclusão e a cidadania. Isto implicava percorrer os caminhos do
imaginário social que definiam uma outra cidade, aquela dos excluídos:
trilhar espaços condenados e malditos da urbs, as zonas perigosas, os lugares
de uma alteridade condenada; apreciar atores desses espaços, definidos por
um léxico urbano indicador de apreciações e juízos; contemplar as práticas
condenáveis e chegar aos crimes e os criminosos, trajeto no qual se percebem
outras ordens e valores, outros códigos e sentidos. (PESAVENTO, 2001,
contra-capa)
13

Os textos historiográficos sobre o urbano passaram a enfocar o imaginário social


e suas representações, de forma mais explícita e articulada com o que de concreto existe
e acontece numa cidade. Assim, foi resgatada uma história mais complexa da urbe, de
suas práticas culturais e simbólicas. A descrição da realidade social, a “volta” da
narrativa, a compilação de informações com análise e teorização, a
interdisciplinaridade, a análise das práticas culturais e das representações, a questão do
sujeito e do cotidiano – tudo isto enriquece nossos textos historiográficos, na análise e
resgate de uma história sociocultural vivida na nossa cidade e nos outros “urbanos”. E
foi Sandra Pesavento a pioneira no RGS desta nova postura historiográfica.
A História Cultural, assumindo, assim, uma nova postura epistemológica e uma
nova estratégia metodológica, aponta para um caminho de complexificação da História
e refinamento da análise (PESAVENTO, 2003). A narrativa histórica produzida sob os
parâmetros deste campo pode manifestar a postura crítica do historiador, bem como
fazer deste um agente indutor da transformação social (ou até ser o próprio agente desta
transformação). Em termos gerais, é a erudição do historiador (sua cultura e
aprendizados) aliada à pesquisa de fontes e a interpretação de seus achados (que inclui
sua subjetividade, sua visão de mundo, bem como sua história pessoal) que dará o tom,
ou a coloração, de sua postura crítica. Pesavento falava sempre sobre a importância da
erudição do historiador, de suas leituras e reflexões prévias à pesquisa. O mote de uma
pesquisa histórica nasce da confluência da erudição do historiador com as perguntas que
faz a determinada(s) fonte(s).
O trabalho do historiador da cultura é sem dúvidas um trabalho detetivesco (sua
metodologia!), seguindo pistas em caminhos até então insondáveis, para encontrar
outros relatos de fatos, outras vozes, outros "documentos" do passado, outros
sentimentos e emoções, que aos olhos do historiador de antigamente (faço questão de
usar a expressão "de antigamente", pois dá a impressão de ultrapassado) não seriam
fontes dignas. Acredito que seja a partir do trabalho de confronto entre fontes e relatos
diferenciados, muitas vezes de escala "micro", às vezes quase imperceptíveis aos olhos
da maioria, que o historiador ousa uma nova interpretação de fatos do passado (e
passados a limpo já inúmeras vezes). E sua postura crítica aparece aí, no momento em
que tem a coragem de lançar um novo olhar sobre o passado, para então agir no sentido
14

de transformar a realidade. E era esta a postura da professora e historiadora Sandra


Pesavento, na sua vida e na sua obra.
Tenho aqui citado partes de seu livro “História & História Cultural”, pois é nesta
obra de 2003 (e que possui já diversas reedições pela Editora Autêntica de BH), que ela
sedimenta e sistematiza tanto a história da História Cultural (nos dois primeiros
capítulos), como as mudanças epistemológicas e as estratégias de um novo método para
a disciplina História (capítulos três e quatro) e também discorre sobre correntes, campos
temáticos e fontes (capítulo cinco), na grande aventura de fazer História, no Brasil e no
mundo (capítulos seis e sete).
Cabe ao historiador diagnosticar e interpretar os fatos do passado – talvez de
forma análoga a um médico - e quem sabe até prognosticar um futuro, conforme a
interpretação do passado. Nesta interpretação está embutida a subjetividade do
historiador e, portanto, sua crítica. Nunca se interpreta sem já ter de antemão uma
postura crítica. Pois esta depende sempre da visão de mundo de quem a emite. Seu
empenho de transformação social é diretamente condicionado a este seu olhar.
E diversificavam-se as parcerias. Ela tinha uma grande capacidade de agregar
pessoas, fazer publicações conjuntas, grupos de pesquisa e eventos que sempre eram
muito prestigiados. 13

13
Em 1997, houve a criação do já referido GT (Grupo de Trabalho) em História Cultural, no seio da
ANPUHRS, por iniciativa de Sandra Pesavento, que congregava muitos de seus orientandos em Mestrado
e em Doutorado e alguns poucos colegas do PPGH da UFRGS. A I Jornada de História Cultural no
Museu Júlio, citada na nota 7 deste artigo, teve como convidado especial o historiador francês François
Hartog da EHESS de Paris e foi um primeiro evento ligado a este GT. Ela coordenou o grupo de trabalho
de 1997 a 2001, dando periodicidade anual (e depois bianual) às Jornadas de História Cultural, no âmbito
da UFRGS e em outros locais de pesquisa em Porto Alegre. Após seu falecimento, um grupo coeso de
pesquisadores e professores universitários de História, no qual me incluo, deu continuidade ao trabalho de
Pesavento, coordenando o GT e levando adiante os eventos. Hoje, somos um dos três GTs mais atuantes
na ANPUHRS e nossos eventos permanecem com grande número de inscritos e de ouvintes, como foi o
caso da XI Jornada de História Cultural, que ocorreu em agosto de 2013 nas dependências do Museu Júlio
de Castilhos em Porto Alegre (comemorando os 15 anos do GT). Em 2001, ela, em parceria com colegas
historiadores de Uberlândia, Rio de Janeiro e São Paulo, fundaria o GT Nacional de História Cultural,
vinculado à ANPUH Nacional. Se, O GT vinculado à ANPUHRS teve um grande peso na formação do
campo da História Cultural no Rio Grande do Sul, através das pesquisas de pós-graduação, o GT
Nacional teve este mesmo papel no âmbito do Brasil. Até a morte prematura da professora Sandra em
2009, este GT nacional já havia realizado quatro edições bianuais (sempre temáticas) do Simpósio
Nacional de História Cultural (SNHC): I SNHC, 2002, na PUCRS, em Porto Alegre; II SNHC, 2004, na
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro; III SNHC, 2006, na UFSC em Florianópolis; IV
SNHC, 2008, na UFG em Goiânia. Todos os eventos contaram com apoio de financiamento da CAPES e
do CNPq e chega a sua sétima edição em 2014 (V SNHC, 2010, na UnB, em Brasília; VI SNHC, 2012,
na UFPI, em Teresina), que ocorrerá na USP, em São Paulo. É um evento considerado importante no
âmbito nacional, contando com um número expressivo de participantes: aproximadamente em torno de
mil inscritos nas duas últimas edições do evento. Também todos os eventos do GT Nacional geraram
15

No artigo que escreveu no livro coletivo, organizado por ela, por mim e pela
colega Miriam de Souza Rossini, comemorativo dos 10 anos do GT de História Cultural
aqui no Rio Grande do Sul (Narrativas, imagens e práticas sociais – percursos em
História Cultural, 2008b, editora Asterisco), ela demonstra que o mundo da imagem é
um território da História Cultural. Explica que as imagens “são e têm sido sempre um
tipo de linguagem, ou seja, são representações dotadas de um sentido, produzidas a
partir de uma ação humana intencional. E, nesta medida, as imagens partilham com as
outras formas de linguagem a condição de serem simbólicas, ou seja, são portadoras de
significados para além do que é mostrado” (p.99) Dessa forma, os historiadores buscam
nas imagens traços visíveis do passado.
Suas últimas reflexões na História Cultural estão neste campo da imagem,
quando então começa a pensar o estatuto da imagem na (e para) História Cultural, e
também a paisagem, através de obras de arte, como a de Jean- Baptiste Debret14, ou da
obra de Gilberto Freyre 15, entre outros tantos textos. As imagens são narrativas que se
prestam ao decifrar do historiador, tanto quanto textos e documentos escritos16.
Da interlocução com seu colega francês, Jacques Leenhardt (diretor de estudos
na EHESS de Paris) e daquela com os colegas do Grupo Clíope (um grupo internacional
interdisciplinar autônomo e cambiante, que Sandra Pesavento ajudou a criar, formado

publicações no campo da História Cultural, principalmente as conferências dos convidados internacionais


(que existem em todos os eventos) e das palestras das mesas redondas, proferidas por colegas
historiadores das mais diversas universidades e instituições de pesquisa brasileiras. Estas publicações de
excelência em História Cultural são obras coletivas que foram idealizadas sempre por iniciativa de Sandra
Pesavento e do comitê científico do GT Nacional de História Cultural. Ver o histórico de ambos os
Grupos de Trabalho idealizados e fundados por ela, assim como seus eventos e produções,
respectivamente, nos sites:
http://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs/index.htm ; http://gthistoriacultural.com.br/
14
Por exemplo, seu texto “Imagens do Brasil no século XIX: paisagens e panoramas”, incluído no livro A
construção francesa do Brasil, organizado por Jacques Leenhardt (Editora Aderaldo & Rothschild,
2008).
15
Seu texto “A Paisagem social como imaginário de sentido”, um dos capítulos do livro Reinventar o
Brasil: Gilberto Freyre entre história e ficção (organizado por ela, Jacques Leenhardt e Antonio
Dimas, em 2006), ressalta o papel de paisagem social na obra Sobrados e Mucambos (1936) de Gilberto
Freyre, como uma categoria de análise, para pensar as transformações no Brasil nos séculos XVIII e XIX.
16
O III Simpósio Nacional de História Cultural, que aconteceu em Florianópolis em 2006, nas
dependências do campus da UFSC, teve como temática “Imagens na História – Objetos de História
Cultural” e resultou em uma obra coletiva, impressa, com as conferências e palestras das mesas redondas,
intitulada Imagens na História (Editora Hucitec, 2008), organizada por alguns componentes do comitê
científico do GT Nacional de História Cultural (a própria Sandra Pesavento, Alcides Freire Ramos e
Rosângela Patriota). O artigo que ela produziu, introduzindo a discussão sobre Imagens na História
Cultural, é o profícuo texto “Imagem, memória, sensibilidades: territórios do historiador”. PESAVENTO,
S. J. (Org.); PATRIOTA, R. (Org.); Ramos, Alcides Freire (Org.) . Imagens na História. 1. ed. São
Paulo: HUCITEC, 2008.
16

por pesquisadores das áreas de História e Letras, que investigava e debatia a relação
entre História e Literatura17) nasceram também profícuos encontros de intelectuais, nos
quais pensavam e discutiam obras, autores e temas, entre eles, por exemplo, ficção,
paisagem, imagens, Érico Veríssimo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda,
Jean-Baptiste Débret, sempre relacionando os campos da História e da Literatura.18
Por último, menciono um livro que foi, em papel, sua obra póstuma, porém não
foi a última que escreveu em sua vida: Visões do Cárcere. A obra havia surgido em e-
book, em 2003, pela Jeweb Digital, numa época em que ainda não era comum a edição
de livros eletrônicos. Pouco antes de morrer, a historiadora colocou esta obra em uma

17
Alguns nomes de intelectuais que passaram pelas formações do Grupo Clíope: Jacques Leenhardt,
Antonio Dimas, Chiara Vangelista, Roberto Vecchi, Flávio Aguiar, Ligia Chiappini, Ettore Finazzi-Agrò,
Ria Lemaire, entre outros. Ao pesquisar sobre a criação do Grupo Clíope, recebi um e-mail da professora
Dra. Ligia Chiappini, do Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin. Reproduzo aqui, com seu
consentimento, alguns trechos: “Cliope foi um grupo muito interessante, divertido e produtivo. E, para
tanto, a contribuição de Sandra foi fundamental. (...) Clíope (o nome apareceu muito depois do início do
nosso trabalho de grupo, num encontro internacional em que visitamos um museu com as figuras de Clio
e Calíope) nasceu de uma conversa de Sandra comigo em uma de suas vindas a São Paulo (...) e
continuada num café de Paris. Aí combinamos a participação dela nas atividades do Centro Angel Rama
que havíamos criado na USP e do qual eu era a primeira diretora. No bojo desse centro, ainda em
formação, iniciamos na USP um grupo de trabalho de literatura e história ao qual, mais tarde, juntou-se
Sandra e outros colegas da Unicamp, mais os estrangeiros que acabaram constituindo Cliope. Um
congresso determinante foi o da Suécia, quando em discussão com José Carlos Sebe Bom Meihy,
lançamos o desafio de organizar um seminário internacional sobre Gêneros de Fronteira, o que foi feito e
cujas atas acabaram virando um dos livros do grupo que, no entanto, ainda não se chamava assim. A
primeira vez em que os membros do grupo fizeram questão de escrever o nome Clíope no seu currículo
foi para publicar o livro resultante do primeiro congresso que organizei em Berlim, em 1998, intitulado
"Brasil, país do passado?". Pode ver isso no livro, que saiu pela Boitempo/ Edusp, no final, na lista de
autores. (...). Sandra era grande pessoa e grande intelectual, pesquisadora e professora, como você bem
sabe.”. E-mail trocado em 13/03/2014. Nota da autora: o livro logo acima mencionado por Ligia
Chiappini trata-se de DIMAS, Antonio (Org.); CHIAPPINI, Lígia (Org.); ZILLY, Bertold (Org.). Brasil,
país do passado? São Paulo: Boitempo/EDUSP, 2002, cuja contribuição de Sandra Pesavento foi o
capítulo “Stefan Zweig: uma janela para a história”.
18
Algumas das várias obras originadas por este grupo de intelectuais são: LEENHARDT, Jacques (Org.).
A construção francesa do Brasil. São Paulo: Editora Aderaldo & Rothschild, 2008. PESAVENTO, S.
J. (Org.); DIMAS, A. (Org.); LEENHARDT, J. (Org.). Reinventar o Brasil: Gilberto Freyre entre
história e ficção. São Paulo/Porto Alegre: Editora da Universidade – EDUSP/Editora da Universidade –
UFRGS, 2006. PESAVENTO, S. J. (Org.); LEENHARDT, J. (Org.); FINAZZI-AGRO, E. (Org.);
VECCHI, R. (Org.); VANGELISTA, C. (Org.). Um historiador nas fronteiras. O Brasil de Sérgio
Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005. PESAVENTO, S. J. ; LEENHARDT,
J.; CHIAPPINI, L.; AGUIAR, F. (Orgs). Érico Veríssimo: o romance da história. São Paulo: Nova
Alexandria, 2001; DE DECCA, E. S.; LEMAIRE, R. (Org.). Pelas Margens. Outros caminhos da
História da Literatura. Porto Alegre/São Paulo: Editora da Universidade/Editora Unicamp, 2000.;
PESAVENTO, S. J.; LEENHARDT, J. (Orgs.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas:
UNICAMP, 1998.; AGUIAR, F.; MEIHY, J. C. S., VASCONCELOS, S. (Orgs.). Gêneros de fronteira:
cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997. As obras citadas não esgotam a
produção intelectual do Grupo Clíope. Conforme informação recebida, do professor Jacques Leenhardt
(e-mail datado de 26/03/2014), as obras citadas acima de 1997 a 2000 são oriundas do Primeiro Grupo
Clíope. As demais, de 2001 a 2008, são exemplos de produções do mesmo Grupo, em sua segunda
formação, reduzida e focalizada sobre um autor somente (“Segundo Grupo Clíope”), após deliberação de
reunião em Roma.
17

editora (editora Zouk, em Porto Alegre) e a mesma foi, então, publicada em 2009, após
o falecimento da professora em março. Também é uma obra magistral, assim como os
“Sete Pecados da Capital” (sua última obra escrita) e merece aqui ser um pouco
comentada, pois ela congrega alguns dos temas mais caros à sua trajetória como
pesquisadora: o mundo dos excluídos, a cidade, as imagens e as sensibilidades. É o
resultado de uma pesquisa que ela iniciou no final da década de 1990 – com apoio da
FAPERGS e do CNPq - e se estendeu até o início dos anos 2000. O tema desta pesquisa
era ‘Cidadania e Exclusão Social no final do século XIX em Porto Alegre’.
Resumidamente, o conteúdo do livro é: ela resgata a história de presos na Casa de
Correção de POA, cruzando os achados de várias fontes: relatório do médico legista
Sebastião Leão, um livro de fotografias dos presos na Cadeia Pública, os processos
crimes destes e o Livro de Sentenciados desta instituição. No primeiro capítulo,
Pesavento remonta à virada do século XIX para XX, mesclando narrativas do cronista
Achylles Porto Alegre sobre sua visão da Cadeia Pública na cidade e as
narrativas/teorias existentes sobre criminalidade. Ênfase é dada à Antropologia
Criminal, doutrina criada pelo médico italiano Césare Lombroso, a qual se constitui no
fio condutor do livro. Lombroso lançou a primeira versão de seu livro “O homem
delinqüente” em 1876. Assim, entrava em cena uma nova personagem: o homo
criminalis. Ou seja, os criminosos constituiriam uma ‘sub-raça’, uma ‘espécie à parte’,
cuja natureza própria o predestinava ao crime. Por sua vez, Alphonse Bertillon, um
francês considerado o pai do retrato falado, em 1879 criara um sistema detalhado de
medição (a Antropometria), catalogando tipos de orelhas, narizes e bocas, tamanho do
crânio, distância entre os olhos, conformação dos lábios, etc. Método também
conhecido como Berthillonage foi adotado pela polícia de Paris em 1882 e depois no
resto do mundo. No Brasil, em 1894. E com o advento da fotografia, também no final
do século, dando novo impulso a esta série de estudos sobre expressões humanas,
incluindo as de criminosos - foi possível criar álbuns fotográficos destes. Desta forma,
foram criados a Antropologia Criminal e seu coadjuvante, o Laboratório Fotográfico,
onde se poderiam estudar os criminosos e não somente os crimes... Seria (e o foi) um
grande passo no Direito Penal, não fossem algumas críticas – como, por exemplo, a de
Lacassagne, que estabelecia que a explicação do crime era, antes de tudo, social e não a
anormalidade biológica. Fica explícita, assim, pela narrativa da autora, a evidente
18

importância da prisão neste período histórico – para encarcerar, segregar, ocultar e


retirar do convívio social o criminoso.
O 2º capítulo, assim, trata da Casa de Correção de Porto Alegre - ou Cadeia
Pública, também conhecida como Cadeião – que ficava ali onde hoje é a Usina do
Gasômetro. Sandra historiciza esta instituição, aqui criada em 1805 e em outro local
(mais ou menos onde hoje é a rua Vigário José Inácio com a rua Annes Dias), chamado
Beco ou Travessa da Cadeia. E menciona, também, as várias lutas, críticas, crônicas,
discussões e mudanças que esta instituição sofreu ao longo do século XIX na capital
gaúcha. A nova Cadeia – longe do centro da cidade e às margens do Guaíba, entre as
ruas do Riachuelo e Duque de Caxias, foi erigida entre 1852 e 1855. Neste capítulo,
ainda, ela ressalta alguns casos “policiais” da época, relacionando-os com a questão
urbana (era necessário que a cidade aos poucos se modernizasse, por exemplo), a partir
de cronistas da cidade e dando ênfase às intervenções político-institucionais na própria
cadeia – que já passava aí pelos problemas da superlotação e promiscuidade.
O livro vai ficando cada vez mais emocionante e no terceiro capítulo, então, a
autora nos apresenta o Dr. Sebastião Leão. Nascido em 1886, formou-se em Medicina
em 1888 no RJ. Veio clinicar no sul, e era conhecido como o médico dos pobres e dos
humildes, dos mais procurados e chamados pela população. Morreu prematuramente em
1903 e seu enterro foi acompanhado por mais de 10 mil pessoas. Também foi jornalista
e escrevia crônicas em jornais (como o Correio do Povo), assinando alguns escritos com
o pseudônimo de Coruja Filho. Era funcionário público e desde 1896 era Diretor do
Gabinete Médico Legal e Diretor da Oficina de Identificação, posteriormente
denominada Oficina de Antropologia Criminal.
Pois bem, Sebastião Leão fez da Casa de Correção seu campo de investigações
científicas. Contando com um atelier fotográfico na cadeia (criado em 1896) e seguindo
a teoria de Lombroso, este distinto médico de nossa sociedade oitocentista, fundou na
capital, na referida instituição, um Laboratório ou Oficina de Antropologia Criminal.
É neste capítulo onde a historiadora nos aproxima mais de suas fontes, trazendo
à luz seus achados: Livro de Sentenciados da Casa de Correção (existente no Museu da
Polícia Civil, e que vai de 1874 a 1900), o Relatório do Dr. Sebastião Leão (no AHRS)
e o Álbum Fotográfico do Laboratório de Antropologia Criminal do Dr. Sebastião Leão
– álbum este inédito como fonte até Sandra Pesavento o encontrar também no Museu da
19

Polícia Civil -, além de processos-crime e prontuários da Santa Casa de Misericórdia. A


partir deste material inédito e com uma destreza analítica e interpretativa, que sempre
foi tipicamente sua e nos excelentes moldes da teoria e metodologia da História
Cultural, ela traça o perfil da população encarcerada, indo além dos dados objetivos
achados, como sexo (mais homens), cor (parda), raça, tipo de crime (homicídio), locais,
idade (jovens de 18 a 30 anos, em plena forma física).
É também neste capítulo que Sandra Pesavento coloca melhor a discussão das
idéias de Lombroso, a partir do Atlas do “Homem Delinqüente”. As várias imagens e
caracterizações de presos e assassinos são apresentadas ao leitor e são relacionadas pela
autora com aquelas que constam no álbum fotográfico do médico gaúcho (álbum este
mostrado no quarto e último capítulo). Os critérios raciais, segundo a autora, eram
perturbadores.
A minuciosa pesquisa do Dr. Leão não deixava dúvidas: revelava plena
concordância com a estereotipização do criminoso, como, por exemplo, o uso das
tatuagens, bem como com o delineamento das tendências, gostos, comportamentos –
ausência de remorso, fraqueza de vontade, predomínio da astúcia sobre a inteligência.
Pesavento fez uma varredura fina em todas as obras e escritos de Sebastião Leão que ela
pôde encontrar e suas análises da cadeia de Porto Alegre.
E, assim, chegamos ao auge do livro, 4º capítulo, o maior de todos, no qual a
historiadora demonstra toda sua maestria interpretativa. Num belo e incansável trabalho
de busca de histórias de vidas perdidas, dos encarcerados na cadeia pública de Porto
Alegre, ela apresenta as 101 fotos do álbum Fotográfico do Dr. Sebastião Leão,
cruzando a interpretação das imagens de seus rostos com a análise dos dados objetivos
encontrados nas demais fontes. Sobre as fotos, essas imagens que são narrativas,
Pesavento diz: “a tarefa parece ser a de um puzzle caprichoso, que ora dá ao historiador
a alegria da descoberta, ora faz deparar-se com discordâncias entre os dados, por vezes
verdadeiras contradições ou lacunas que não é possível preencher”. (p.125) Está aí a
incansável busca de uma historiadora do século XX, mas que viveu à frente de seu
tempo.

A obra não acaba quando termina...


20

Por isso posso dizer que Sandra Pesavento, que formou tantas gerações de
historiadores, adequou sua visão de mundo à sua práxis historiográfica e com isto criou
uma vida e uma obra coerentes. Repito: ela foi uma pessoa inovadora, no que pensou,
no que fez, no que trouxe para o mundo da História neste espaço acadêmico do Sul do
País. E suas ideias atravessaram as fronteiras gaúchas, inspirando e ganhando
interlocutores em vários locais do Brasil e do mundo. Por duas décadas, seus estudos
estiveram identificados com aspectos políticos e econômicos da história gaúcha, mas
isso mudou a partir de seu contato com historiadores franceses, de 1990 em diante. E foi
também o desafio que moveu a vida desta pesquisadora. Desafio por novas concepções
de como contar a História que o mundo já pensava conhecer. Desafio de buscar novos
parceiros intelectuais, nacionais e internacionais. Desafio de trazer para o mundo
acadêmico a interdisciplinaridade, exemplificado no fato de aceitar alunos de pós-
graduação vindos de outras áreas do saber como medicina, arquitetura e comunicação,
por exemplo, o que tornou mais intensa e efetiva a relação de seus estudos com outras
disciplinas. Sandra Pesavento ratificou em suas pesquisas e orientações a ampliação de
fontes, possibilitadas pela História Cultural. Diversificaram-se trabalhos usando:
jornais; registros policiais e jurídicos; processos-crime; prontuários médicos; imagens
de vídeos, filmes, fotografias; objetos de arte como esculturas e pinturas; literatura,
entre tantas outras.
Que a memória de Sandra Jatahy Pesavento sobreviva a partir de sua obra
intelectual e através daqueles historiadores e profissionais que foram seus interlocutores
e daqueles que ela ajudou a formar, dentro e fora do Brasil.

Referências bibliográficas escolhidas (sugestões para leituras da obra de Sandra Jatahy


Pesavento) 19:

PESAVENTO, S. J. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009.


PESAVENTO, S. J.; SANTOS, N. M. W. ; ROSSINI, M. (Orgs). Narrativas, imagens e
práticas sociais: percursos em História Cultural. Porto Alegre: Asterisco, 2008b.
PESAVENTO, S. J. . Os Sete Pecados da Capital. São Paulo: Hucitec, 2008a.

19
A maioria das obras abaixo já possuem edições mais recentes, põem optei em deixar a data da primeira
edição.
21

PESAVENTO, S. J.; LANGUE, F. (Orgs.). Sensibilidades na história: memórias singulares e


identidades sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. PESAVENTO, S. J.; DIMAS, A.;
LEENHARDT, J. (Orgs.). Reinventar o Brasil: Gilberto Freyre entre história e ficção. São
Paulo: Editora da Universidade / EDUSP, 2006.
PESAVENTO, S. J. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
PESAVENTO, S. J. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São
Paulo: Editora Nacional, 2001.
PESAVENTO, S. J. Imaginário da cidade: representações do urbano (Paris, Rio de
Janeiro e Porto Alegre). Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1999.
PESAVENTO, S. J., LEENHRADT, J. (Orgs.) . Discurso histórico e narrativa literária.
Campinas: UNICAMP, 1998.
PESAVENTO, S. J. Exposições Universais: Espetáculos da Modernidade no Século XIX.
São Paulo: Hucitec, 1997.
PESAVENTO, S. J.; SOUZA, C. F. (Orgs.). Imagens Urbanas. PORTO ALEGRE: UFRGS,
1997.
PESAVENTO, S. J. Emergência dos subalternos: trabalho livre e ordem burguesa. Porto
Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1989.
PESAVENTO, S. J. A burguesia gaúcha: dominação do capital e disciplina do trabalho (RS
1889-1930). Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
PESAVENTO, S. J. A Revolução Farroupilha. São Paulo: Brasiliense, 1985.
PESAVENTO, S. J. República Velha Gaúcha: charqueadas, frigoríficos e criadores.
Montevideo: IEL, 1980.
PESAVENTO, S. J. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.

AGRADECIMENTOS
Agradeço ao marido e à filha de Sandra Jatahy Pesavento, Roberto Pesavento e Ana Paula Jatahy
Pesavento da Veiga Cabral, pelas informações prestadas e pela disponibilidade em abrir os arquivos e a
biblioteca da professora para que eu pudesse ter acesso a materiais importantes para este artigo.
Meus mais sinceros agradecimentos à professora Dra Ligia Chiappini, do Instituto Latino-América, da
Universidade Livre de Berlim, pelo depoimento esclarecedor e pelas preciosas informações sobre os
primórdios do Grupo Clíope, e aos professores Dr. Jacques Leenhardt, da EHESS de Paris e Dr. Antonio
Dimas, da USP, pelo companheirismo e pelas informações sobre o trajeto profissional de Sandra
Pesavento, neste Grupo e em outros momentos.
Um ‘muito obrigada’ especial às colegas Daniela Marzola Fialho, que também cedeu a imagem de Sandra
Pesavento que consta neste livro, Maria Luiza Martini, Miriam de Souza Rossini e Monica Pimenta
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Velloso, que compartilham comigo momentos de rememoração de nossa vida em comum com Sandra, de
nossas viagens com ela e de nossas parcerias no campo da História Cultural.
Agradeço aos colegas e editores da Revista Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, Alcides
Freire Ramos e Rosângela Patriota Ramos, que aceitaram, em 2009, publicar o dossiê sobre a historiadora
e suas interlocuções, bem como a todos os colegas que escreveram artigos, que hoje se constituem como
testemunhos da larga influência exercida pela obra de Sandra Jatahy Pesavento.

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