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“O mundo do sensível é difícil de ser quantificado, mas é fundamental que seja buscado e avaliado pela História Cultural. Ele
incide justo sobre as formas de valorizar, de classificar o mundo, ou de reagir diante de determinadas situações e personagens
sociais. Em suma, as sensibilidades estão presentes na formulação imaginária do mundo que os homens produzem em todos os
tempos.
Pensar nas sensibilidades é, pois, não apenas mergulhar no estudo do indivíduo e da subjetividade, das trajetórias de vida, enfim. É
também lidar com a vida privada e com todas as suas nuances e formas de exteriorizar – ou esconder – os sentimentos.
Enfim, se estudar sensibilidades é um desafio, é um ir além, talvez resida nisto o charme que se encontra presente em toda aventura
do conhecimento....Porque não aceitar o desafio?”
[Sandra Jatahy Pesavento, “História & História Cultural”]
Introdução
Parafraseando o filósofo e historiador da Arte Georges Didi-Huberman em sua
obra “Quand les images prennent position”, não há expressão melhor para designar uma
historiadora e sua obra, como Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009): quando as
sensibilidades tomam posição. Posição em sua vida profissional e posição intelectual,
ou seja, uma vida feita de escolhas, posições sensíveis e conscientes que tiveram seu
bônus ... e seu ônus..., dentro do campo fértil da História Cultural. De historiadora da
História Econômica, de vertente marxista, à historiadora da Cultura, Pesavento
descortinou um campo historiográfico absolutamente novo no Brasil e com ele atuou
como professora e pesquisadora, assim como a partir dele pensou e escreveu seus
textos. Os campos temáticos preferenciais, nos últimos vinte anos de sua vida
profissional, sob a luz da História Cultural foram: história do urbano, a relação entre
história e literatura, a relação história/imagem, o mundo dos excluídos e a história das
sensibilidades.
Não há como eu deixar de lado, aqui, a memória de minha experiência e de
minha trajetória na História, pois está completamente atrelada à professora Pesavento,
durante os onze anos em que convivemos. O aprendizado com ela foi muito profundo e
único em minha vida, pois, sendo médica-psiquiatra (junguiana) e indo fazer o
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Historiadora e Médica Psiquiatra. Mestre e Doutora em História pela UFRGS. Professora do PPG em
“Memória Social e Bens Culturais” e do Curso de Graduação em História, do Unilasalle/Canoas.
Pesquisadora associada ao EFISAL da EHESS (École des Hautes Études em Sciences Sociales) de Paris.
Membro do Comitê Científico do GT Nacional de História Cultural da ANPUH. Editora assistente da
Revista Mouseion/Unilasalle-Canoas. Contato: nnmmws@gmail.com
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Por ocasião de seu prematuro falecimento, organizamos um dossiê de artigos em sua homenagem,
“Dossiê Sandra Jatahy Pesavento: a historiadora e suas interlocuções”, publicado em três volumes (19,
20, 21 de 2009) na Revista Eletrônica Fênix de História e Estudos Culturais, disponíveis a partir dos
endereços http://www.revistafenix.pro.br/volumedezenove.php;
http://www.revistafenix.pro.br/volumevinte.php; http://www.revistafenix.pro.br/volumevinteum.php.
Neste, seus colegas no campo da História Cultural escreveram dando ênfase a conteúdos que os ligavam a
ela, como referencial neste campo e como colega interlocutora. Também foram publicados na França, na
Revista americanista Nuevo Mundo – Mundos Nuevos/ Nouveau monde - Mondes Nouveaux (vinculada
à EHESS de Paris e na qual a pesquisadora muito publicou), em 2009, em sua homenagem, um dossiê
feito por alguns de seus colegas interlocutores franceses e uma resenha de seu último livro, surgido em
2008 (“Os sete pecados da capital”, editora Hucitec, 2008a nas referências ao final), escrita por colegas
gaúchos que foram seus alunos (bolsistas de IC ou mestrandos/doutorandos) ou mesmo colegas de GT de
História Cultural do RS. Cada um escreveu sobre um dos sete capítulos, dos sete “pecados”, ou crimes
que envolviam mulheres na cidade de Porto Alegre, que ela magistralmente expos na obra. Em minha
humilde opinião, esta é a obra prima de Sandra Jatahy Pesavento, mostrando a maturidade intelectual da
pesquisadora, onde ela traz à tona, a partir de suas pesquisas em arquivos, o “crème de la crème”
(expressão que ela muito usava) da articulação dos conceitos da História Cultural com as fontes. Neste
livro, ela se supera na sua capacidade de apresentar versões verossímeis dos fatos acontecidos, o que é
uma característica marcante em toda a sua obra historiográfica. Resenha disponível no endereço:
http://nuevomundo.revues.org/56988.
Outras homenagens foram feitas para a professora Pesavento em Porto Alegre (exposição de sua obra,
jornadas sobre temáticas de sua carreira de pesquisadora, um pequeno documentário editando alguns
momentos dela na mídia gaúcha e do Brasil) e no âmbito dos Simpósios Nacionais de História Cultural
(que ela idealizou desde 2002). E outras homenagens estão ainda sendo preparadas, como por exemplo, o
lançamento em 2014 do Prêmio Tese Sandra Jatahy Pesavento em História Cultural, concedido pelo GT
Nacional de História Cultural da ANPUH para as duas melhores teses de doutorado neste campo de
estudo e pesquisa, em parceria com as editoras Edições Verona (SP) e Editora UniLasalle (Canoas).
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Agradeço a contribuição de Roberto Pesavento, também professor na UFRGS e marido de Sandra
Pesavento, seu companheiro desde os primórdios de sua vida profissional, na leitura atenta deste texto e
na discussão de alguns detalhes importantes.
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A historiadora e pesquisadora Sandra Pesavento escrevia e publicava muito, desde o início da década de
1980. O Currículo Lattes da professora ainda se encontra na Plataforma do CNPq e foi atualizado por sua
antiga secretária, a pedido de sua família, em junho de 2012. Acessível no endereço:
http://lattes.cnpq.br/1760145213009265. Assim, não colocaremos no corpo do texto as referências
completas, pois estão de forma completa em seu C. Lattes. Uma lista de referências bibliográficas
escolhidas (pois somente os livros que ela publicou, individualmente ou em parceria, somam 51 obras)
encontra-se ao final deste artigo.
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Os quatro pós-doutorados5 que ela fez em Paris foram decisivos para esta
‘virada’, a qual se deu durante a década de 1990, até se sedimentar em 1997, na criação
do Grupo de Trabalho (GT) de História Cultural na ANPUHRS e na palestra proferida
neste ano, no Museu Júlio de Castilhos, na I Jornada de História Cultural. O conteúdo
desta palestra originou, de forma aprofundada, seus seminários na disciplina Teoria e
Metodologia da História I, no PPGH da UFRGS em 1998/1º semestre e, anos mais
tarde, surgiu adaptado em um dos capítulos da obra intitulada “História & história
cultural” (editora Autêntica, 2003). E, também, os vários textos escritos neste enfoque,
na década, atestam a historiadora preocupada em pensar e trabalhar as premissas da
História Cultural (no início, chamada de Nova História Cultural), como, por exemplo, a
redescoberta do conceito de representação (“estar no lugar de”), o apagamento da
distinção entre o real e o não-real (“potencial de criação do ‘efeito de real’), a noção de
imaginário (sistema de valores e ideias compartilhados), a valorização do simbólico (o
‘sentido’ das práticas sociais), a distinção entre o passado e a passeidade (aquilo que
passou e não volta mais), a questão da narrativa histórica (a organização e o sentido da
história é dada pelo historiador; narrativa é a representação sobre uma representação já
feita), as relações entre verdade, veracidade e ficção (que remontam às representações
do que passou), um novo olhar de observação do real e a questão da estrangeiridade (o
historiador pensa em um outro no tempo), o princípio da dúvida e da incerteza, a
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transdisciplinaridade e a vinculação das práticas sociais com as representações.
Em 1998, quando do início de meu mestrado em História (ela acabou por ser
minha orientadora de mestrado e doutorado), ela recém havia chegado de seu último
estágio pós-doutoral, e me lembro que fiz a prova da seleção (cujo ponto sorteado era
sobre um viés da história do RS e da cidade) escrevendo sobre a virada que ela dera em
sua linha de pensamento e pesquisa dentro do mundo historiográfico. Do marxismo para
a História Cultural (e na época, muito ligada à História Cultural do urbano, atuando
também no PROPUR – Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRGS).
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Em 1990 ela fez seu primeiro pós-doutoramento na École des Hautes Études em Sciences Sociales de
Paris (EHESS) de Paris, sob a supervisão do professor Jacques Leenhardt; em 1992-3, o pós-doc (como
chamamos na gíria acadêmica) foi na Université Paris Diderot - Paris 7; em 1995-96, na Universite de
Paris IV (Paris-Sorbonne) e, por último, em 1996-7 novamente na EHESS com o mesmo colega Jacques
Leenhardt. Em todos estes momentos ela foi Bolsista Capes e todas suas experiências pós-doutorais
resultaram em obras publicadas, como por exemplo, o livro sobre as Exposições Universais (Exposições
Universais – espetáculos da Modernidade do século XIX, Editora Hucitec, 1997).
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Fonte: Anotações de aula da autora deste artigo. Disciplina Teoria e Metodologia da História I, 2008/1.
PPGH UFRGS.
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Diz ela: “Mas a História Cultural apresenta riscos e põe exigências: é preciso teoria, sem dúvida, ela
exige o uso desses óculos, conceituais e epistemológicos para enxergar o mundo. A História Cultural
pressupõe um método, trabalhoso e meticuloso, para fazer revelar os significados perdido do passado.
Pressupões ainda uma carga de leitura ou bagagem acumulada, para potencializar a interpretação por
meio da construção do maior número de relações possível entre os dados. Como resultado, propõe versões
possíveis para o acontecido, e certezas provisórias. Parece difícil, mas talvez resulte dessa condição o seu
maior encanto, fazendo do fazer História uma aventura, sempre renovada, do conhecimento.”
(PESAVENTO, 2003, p.119)
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Referências completas ao final.
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Esta lista não esgota as produções de Pesavento na década de 1990. Ver Currículo Lattes, como
mencionado anteriormente, para as obras completas da autora.
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Estas obras encontram-se em: PESAVENTO, Sandra J. Um novo olhar sobre a cidade: a nova história
cultural e as representações do urbano. In: MAUCH, Cláudia et. al. {org.}. Porto Alegre na virada do
século 19: cultura e sociedade. Porto Alegre: Editora da Universidade/URFGS, 1994. PESAVENTO, S.
J. (Org.). O espetáculo de rua.. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992. v. 1. PESAVENTO, S. J. .
Os Pobres da Cidade. 1. ed. PORTO ALEGRE: UFRGS, 1994. v. 1. 149 p. PESAVENTO, S. J. (Org.) ;
SOUZA, C. F. (Org.) . Imagens Urbanas. 1. ed. PORTO ALEGRE: UFRGS, 1997. v. 1. 292 p.
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No já citado PESAVENTO, S. J. . Da Cidade Maravilhosa Ao País das Maravilhas: Lima Barreto e O
Caráter Nacional. REVISTA ANOS 90, PORTO ALEGRE, v. 8, p. 30-44, 1997.
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analisa uma parte da sociedade carioca e do Rio urbano, a partir do conto “O Alienista”
de Machado de Assis, também já citado aqui.
Há duas obras de Pesavento que são “maiores”, no meu entender, em relação à
temática do urbano e que congregam algumas de suas preocupações (problemas) de
pesquisa, entre eles, o imaginário urbano, o mundo dos excluídos (“a história desde
baixo”) e a relação história e literatura. São elas: “O Imaginário da cidade – visões
literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre”, publicado pela editora da
Universidade/UFRGS em 1999 e “Uma outra cidade – o mundo dos excluídos no final
do século XIX”, publicado em 2001 pela Companhia Editora Nacional.
No primeiro, a autora aprofunda as noções de imaginário urbano a partir de
referenciais da literatura das três cidades enfocadas, onde o imaginário da cidade tenta
construir uma forma de acesso ao urbano, a partir da visão literária (de autores
franceses, cariocas e gaúchos) que “dá a ver” (expressão que Pesavento muito usava em
seus textos) como as ideias e imagens são reapropriadas, em tempos e espaços
diferentes. De Paris a Porto Alegre, passando pelo Rio de Janeiro, as especificidades do
local se articulam com a ressemantização do mito da modernidade urbana, em toda a
plenitude da imaginação.
No segundo, ela traça a “geografia da exclusão”, a partir do estudo dos becos de
Porto Alegre e de locais que abarcavam os excluídos na cidade. O primeiro capítulo
desse livro, “A construção da diferença: cidadania e exclusão social”, é paradigmático e
serve de referencial até hoje para os estudos urbanos e estudos sobre o mundo dos
excluídos.
Uma ideia na cabeça, o mundo dos arquivos diante dos olhos e das mãos. Por
onde começar, era a pergunta inicial, uma vez definido o problema. Um
quebra-cabeça de informações, para abordar talvez uma questão eterna para o
historiador: como os homens foram capazes, ao longo de sua história, de
representar-se a si mesmos e ao mundo. Mas nosso problema tinha um
espaço, uma temporalidade e um recorte específico. Queríamos estudar Porto
Alegre no final do século XIX e ver como, um século atrás, era construída a
diferença, qualificando a realidade urbana de então em construções bem
definidas: a exclusão e a cidadania. Isto implicava percorrer os caminhos do
imaginário social que definiam uma outra cidade, aquela dos excluídos:
trilhar espaços condenados e malditos da urbs, as zonas perigosas, os lugares
de uma alteridade condenada; apreciar atores desses espaços, definidos por
um léxico urbano indicador de apreciações e juízos; contemplar as práticas
condenáveis e chegar aos crimes e os criminosos, trajeto no qual se percebem
outras ordens e valores, outros códigos e sentidos. (PESAVENTO, 2001,
contra-capa)
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Em 1997, houve a criação do já referido GT (Grupo de Trabalho) em História Cultural, no seio da
ANPUHRS, por iniciativa de Sandra Pesavento, que congregava muitos de seus orientandos em Mestrado
e em Doutorado e alguns poucos colegas do PPGH da UFRGS. A I Jornada de História Cultural no
Museu Júlio, citada na nota 7 deste artigo, teve como convidado especial o historiador francês François
Hartog da EHESS de Paris e foi um primeiro evento ligado a este GT. Ela coordenou o grupo de trabalho
de 1997 a 2001, dando periodicidade anual (e depois bianual) às Jornadas de História Cultural, no âmbito
da UFRGS e em outros locais de pesquisa em Porto Alegre. Após seu falecimento, um grupo coeso de
pesquisadores e professores universitários de História, no qual me incluo, deu continuidade ao trabalho de
Pesavento, coordenando o GT e levando adiante os eventos. Hoje, somos um dos três GTs mais atuantes
na ANPUHRS e nossos eventos permanecem com grande número de inscritos e de ouvintes, como foi o
caso da XI Jornada de História Cultural, que ocorreu em agosto de 2013 nas dependências do Museu Júlio
de Castilhos em Porto Alegre (comemorando os 15 anos do GT). Em 2001, ela, em parceria com colegas
historiadores de Uberlândia, Rio de Janeiro e São Paulo, fundaria o GT Nacional de História Cultural,
vinculado à ANPUH Nacional. Se, O GT vinculado à ANPUHRS teve um grande peso na formação do
campo da História Cultural no Rio Grande do Sul, através das pesquisas de pós-graduação, o GT
Nacional teve este mesmo papel no âmbito do Brasil. Até a morte prematura da professora Sandra em
2009, este GT nacional já havia realizado quatro edições bianuais (sempre temáticas) do Simpósio
Nacional de História Cultural (SNHC): I SNHC, 2002, na PUCRS, em Porto Alegre; II SNHC, 2004, na
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro; III SNHC, 2006, na UFSC em Florianópolis; IV
SNHC, 2008, na UFG em Goiânia. Todos os eventos contaram com apoio de financiamento da CAPES e
do CNPq e chega a sua sétima edição em 2014 (V SNHC, 2010, na UnB, em Brasília; VI SNHC, 2012,
na UFPI, em Teresina), que ocorrerá na USP, em São Paulo. É um evento considerado importante no
âmbito nacional, contando com um número expressivo de participantes: aproximadamente em torno de
mil inscritos nas duas últimas edições do evento. Também todos os eventos do GT Nacional geraram
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No artigo que escreveu no livro coletivo, organizado por ela, por mim e pela
colega Miriam de Souza Rossini, comemorativo dos 10 anos do GT de História Cultural
aqui no Rio Grande do Sul (Narrativas, imagens e práticas sociais – percursos em
História Cultural, 2008b, editora Asterisco), ela demonstra que o mundo da imagem é
um território da História Cultural. Explica que as imagens “são e têm sido sempre um
tipo de linguagem, ou seja, são representações dotadas de um sentido, produzidas a
partir de uma ação humana intencional. E, nesta medida, as imagens partilham com as
outras formas de linguagem a condição de serem simbólicas, ou seja, são portadoras de
significados para além do que é mostrado” (p.99) Dessa forma, os historiadores buscam
nas imagens traços visíveis do passado.
Suas últimas reflexões na História Cultural estão neste campo da imagem,
quando então começa a pensar o estatuto da imagem na (e para) História Cultural, e
também a paisagem, através de obras de arte, como a de Jean- Baptiste Debret14, ou da
obra de Gilberto Freyre 15, entre outros tantos textos. As imagens são narrativas que se
prestam ao decifrar do historiador, tanto quanto textos e documentos escritos16.
Da interlocução com seu colega francês, Jacques Leenhardt (diretor de estudos
na EHESS de Paris) e daquela com os colegas do Grupo Clíope (um grupo internacional
interdisciplinar autônomo e cambiante, que Sandra Pesavento ajudou a criar, formado
por pesquisadores das áreas de História e Letras, que investigava e debatia a relação
entre História e Literatura17) nasceram também profícuos encontros de intelectuais, nos
quais pensavam e discutiam obras, autores e temas, entre eles, por exemplo, ficção,
paisagem, imagens, Érico Veríssimo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda,
Jean-Baptiste Débret, sempre relacionando os campos da História e da Literatura.18
Por último, menciono um livro que foi, em papel, sua obra póstuma, porém não
foi a última que escreveu em sua vida: Visões do Cárcere. A obra havia surgido em e-
book, em 2003, pela Jeweb Digital, numa época em que ainda não era comum a edição
de livros eletrônicos. Pouco antes de morrer, a historiadora colocou esta obra em uma
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Alguns nomes de intelectuais que passaram pelas formações do Grupo Clíope: Jacques Leenhardt,
Antonio Dimas, Chiara Vangelista, Roberto Vecchi, Flávio Aguiar, Ligia Chiappini, Ettore Finazzi-Agrò,
Ria Lemaire, entre outros. Ao pesquisar sobre a criação do Grupo Clíope, recebi um e-mail da professora
Dra. Ligia Chiappini, do Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin. Reproduzo aqui, com seu
consentimento, alguns trechos: “Cliope foi um grupo muito interessante, divertido e produtivo. E, para
tanto, a contribuição de Sandra foi fundamental. (...) Clíope (o nome apareceu muito depois do início do
nosso trabalho de grupo, num encontro internacional em que visitamos um museu com as figuras de Clio
e Calíope) nasceu de uma conversa de Sandra comigo em uma de suas vindas a São Paulo (...) e
continuada num café de Paris. Aí combinamos a participação dela nas atividades do Centro Angel Rama
que havíamos criado na USP e do qual eu era a primeira diretora. No bojo desse centro, ainda em
formação, iniciamos na USP um grupo de trabalho de literatura e história ao qual, mais tarde, juntou-se
Sandra e outros colegas da Unicamp, mais os estrangeiros que acabaram constituindo Cliope. Um
congresso determinante foi o da Suécia, quando em discussão com José Carlos Sebe Bom Meihy,
lançamos o desafio de organizar um seminário internacional sobre Gêneros de Fronteira, o que foi feito e
cujas atas acabaram virando um dos livros do grupo que, no entanto, ainda não se chamava assim. A
primeira vez em que os membros do grupo fizeram questão de escrever o nome Clíope no seu currículo
foi para publicar o livro resultante do primeiro congresso que organizei em Berlim, em 1998, intitulado
"Brasil, país do passado?". Pode ver isso no livro, que saiu pela Boitempo/ Edusp, no final, na lista de
autores. (...). Sandra era grande pessoa e grande intelectual, pesquisadora e professora, como você bem
sabe.”. E-mail trocado em 13/03/2014. Nota da autora: o livro logo acima mencionado por Ligia
Chiappini trata-se de DIMAS, Antonio (Org.); CHIAPPINI, Lígia (Org.); ZILLY, Bertold (Org.). Brasil,
país do passado? São Paulo: Boitempo/EDUSP, 2002, cuja contribuição de Sandra Pesavento foi o
capítulo “Stefan Zweig: uma janela para a história”.
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Algumas das várias obras originadas por este grupo de intelectuais são: LEENHARDT, Jacques (Org.).
A construção francesa do Brasil. São Paulo: Editora Aderaldo & Rothschild, 2008. PESAVENTO, S.
J. (Org.); DIMAS, A. (Org.); LEENHARDT, J. (Org.). Reinventar o Brasil: Gilberto Freyre entre
história e ficção. São Paulo/Porto Alegre: Editora da Universidade – EDUSP/Editora da Universidade –
UFRGS, 2006. PESAVENTO, S. J. (Org.); LEENHARDT, J. (Org.); FINAZZI-AGRO, E. (Org.);
VECCHI, R. (Org.); VANGELISTA, C. (Org.). Um historiador nas fronteiras. O Brasil de Sérgio
Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005. PESAVENTO, S. J. ; LEENHARDT,
J.; CHIAPPINI, L.; AGUIAR, F. (Orgs). Érico Veríssimo: o romance da história. São Paulo: Nova
Alexandria, 2001; DE DECCA, E. S.; LEMAIRE, R. (Org.). Pelas Margens. Outros caminhos da
História da Literatura. Porto Alegre/São Paulo: Editora da Universidade/Editora Unicamp, 2000.;
PESAVENTO, S. J.; LEENHARDT, J. (Orgs.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas:
UNICAMP, 1998.; AGUIAR, F.; MEIHY, J. C. S., VASCONCELOS, S. (Orgs.). Gêneros de fronteira:
cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997. As obras citadas não esgotam a
produção intelectual do Grupo Clíope. Conforme informação recebida, do professor Jacques Leenhardt
(e-mail datado de 26/03/2014), as obras citadas acima de 1997 a 2000 são oriundas do Primeiro Grupo
Clíope. As demais, de 2001 a 2008, são exemplos de produções do mesmo Grupo, em sua segunda
formação, reduzida e focalizada sobre um autor somente (“Segundo Grupo Clíope”), após deliberação de
reunião em Roma.
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editora (editora Zouk, em Porto Alegre) e a mesma foi, então, publicada em 2009, após
o falecimento da professora em março. Também é uma obra magistral, assim como os
“Sete Pecados da Capital” (sua última obra escrita) e merece aqui ser um pouco
comentada, pois ela congrega alguns dos temas mais caros à sua trajetória como
pesquisadora: o mundo dos excluídos, a cidade, as imagens e as sensibilidades. É o
resultado de uma pesquisa que ela iniciou no final da década de 1990 – com apoio da
FAPERGS e do CNPq - e se estendeu até o início dos anos 2000. O tema desta pesquisa
era ‘Cidadania e Exclusão Social no final do século XIX em Porto Alegre’.
Resumidamente, o conteúdo do livro é: ela resgata a história de presos na Casa de
Correção de POA, cruzando os achados de várias fontes: relatório do médico legista
Sebastião Leão, um livro de fotografias dos presos na Cadeia Pública, os processos
crimes destes e o Livro de Sentenciados desta instituição. No primeiro capítulo,
Pesavento remonta à virada do século XIX para XX, mesclando narrativas do cronista
Achylles Porto Alegre sobre sua visão da Cadeia Pública na cidade e as
narrativas/teorias existentes sobre criminalidade. Ênfase é dada à Antropologia
Criminal, doutrina criada pelo médico italiano Césare Lombroso, a qual se constitui no
fio condutor do livro. Lombroso lançou a primeira versão de seu livro “O homem
delinqüente” em 1876. Assim, entrava em cena uma nova personagem: o homo
criminalis. Ou seja, os criminosos constituiriam uma ‘sub-raça’, uma ‘espécie à parte’,
cuja natureza própria o predestinava ao crime. Por sua vez, Alphonse Bertillon, um
francês considerado o pai do retrato falado, em 1879 criara um sistema detalhado de
medição (a Antropometria), catalogando tipos de orelhas, narizes e bocas, tamanho do
crânio, distância entre os olhos, conformação dos lábios, etc. Método também
conhecido como Berthillonage foi adotado pela polícia de Paris em 1882 e depois no
resto do mundo. No Brasil, em 1894. E com o advento da fotografia, também no final
do século, dando novo impulso a esta série de estudos sobre expressões humanas,
incluindo as de criminosos - foi possível criar álbuns fotográficos destes. Desta forma,
foram criados a Antropologia Criminal e seu coadjuvante, o Laboratório Fotográfico,
onde se poderiam estudar os criminosos e não somente os crimes... Seria (e o foi) um
grande passo no Direito Penal, não fossem algumas críticas – como, por exemplo, a de
Lacassagne, que estabelecia que a explicação do crime era, antes de tudo, social e não a
anormalidade biológica. Fica explícita, assim, pela narrativa da autora, a evidente
18
Por isso posso dizer que Sandra Pesavento, que formou tantas gerações de
historiadores, adequou sua visão de mundo à sua práxis historiográfica e com isto criou
uma vida e uma obra coerentes. Repito: ela foi uma pessoa inovadora, no que pensou,
no que fez, no que trouxe para o mundo da História neste espaço acadêmico do Sul do
País. E suas ideias atravessaram as fronteiras gaúchas, inspirando e ganhando
interlocutores em vários locais do Brasil e do mundo. Por duas décadas, seus estudos
estiveram identificados com aspectos políticos e econômicos da história gaúcha, mas
isso mudou a partir de seu contato com historiadores franceses, de 1990 em diante. E foi
também o desafio que moveu a vida desta pesquisadora. Desafio por novas concepções
de como contar a História que o mundo já pensava conhecer. Desafio de buscar novos
parceiros intelectuais, nacionais e internacionais. Desafio de trazer para o mundo
acadêmico a interdisciplinaridade, exemplificado no fato de aceitar alunos de pós-
graduação vindos de outras áreas do saber como medicina, arquitetura e comunicação,
por exemplo, o que tornou mais intensa e efetiva a relação de seus estudos com outras
disciplinas. Sandra Pesavento ratificou em suas pesquisas e orientações a ampliação de
fontes, possibilitadas pela História Cultural. Diversificaram-se trabalhos usando:
jornais; registros policiais e jurídicos; processos-crime; prontuários médicos; imagens
de vídeos, filmes, fotografias; objetos de arte como esculturas e pinturas; literatura,
entre tantas outras.
Que a memória de Sandra Jatahy Pesavento sobreviva a partir de sua obra
intelectual e através daqueles historiadores e profissionais que foram seus interlocutores
e daqueles que ela ajudou a formar, dentro e fora do Brasil.
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A maioria das obras abaixo já possuem edições mais recentes, põem optei em deixar a data da primeira
edição.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao marido e à filha de Sandra Jatahy Pesavento, Roberto Pesavento e Ana Paula Jatahy
Pesavento da Veiga Cabral, pelas informações prestadas e pela disponibilidade em abrir os arquivos e a
biblioteca da professora para que eu pudesse ter acesso a materiais importantes para este artigo.
Meus mais sinceros agradecimentos à professora Dra Ligia Chiappini, do Instituto Latino-América, da
Universidade Livre de Berlim, pelo depoimento esclarecedor e pelas preciosas informações sobre os
primórdios do Grupo Clíope, e aos professores Dr. Jacques Leenhardt, da EHESS de Paris e Dr. Antonio
Dimas, da USP, pelo companheirismo e pelas informações sobre o trajeto profissional de Sandra
Pesavento, neste Grupo e em outros momentos.
Um ‘muito obrigada’ especial às colegas Daniela Marzola Fialho, que também cedeu a imagem de Sandra
Pesavento que consta neste livro, Maria Luiza Martini, Miriam de Souza Rossini e Monica Pimenta
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Velloso, que compartilham comigo momentos de rememoração de nossa vida em comum com Sandra, de
nossas viagens com ela e de nossas parcerias no campo da História Cultural.
Agradeço aos colegas e editores da Revista Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, Alcides
Freire Ramos e Rosângela Patriota Ramos, que aceitaram, em 2009, publicar o dossiê sobre a historiadora
e suas interlocuções, bem como a todos os colegas que escreveram artigos, que hoje se constituem como
testemunhos da larga influência exercida pela obra de Sandra Jatahy Pesavento.