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OS MISERÁVEIS: ESPELHO ATEMPORAL DA SOCIEDADE

Stefhanye Natálya Seade Campos¹ (UEPA)


Orientadora: Profª. Drª. Renilda Rodrigues Bastos.² (UEPA)

RESUMO: Este estudo sobre a obra Os Miseráveis de Victor Hugo, tem o intuito de observar
os principais espaços físicos por onde a personagem central, Jean Valjean, passa, para isso
usou-se o método etnográfico, não somente pela observação, mas para despertar a percepção
de que uma obra literária, tal qual a vida, é um rico campo de estudo, que, tendo resultados
positivos, corrobora para uma melhor compreensão social, além de fomentar o surgimento de
uma consciência empática e mais humana quanto às problemáticas sociais que são uma
constante desde os tempos em que as sociedades se estabeleceram e que são retratadas com
sensibilidade e riqueza de detalhes em obras como Os Miseráveis. Aqui o campo de
observação é a obra, além da pesquisa bibliográfica nas áreas de Literatura e Antropologia,
dessa forma, é possível visualizar nesses espaços, as condições as quais as “pessoas”, na
figura de Jean Valjean, são submetidas quando não há igualdade e dignidade para se viver
devido à exploração por parte do Estado.

PALAVRAS-CHAVE: Etnografia do romance. Os Miseráveis. Victor Hugo. Literatura.


Antropologia.

EIXO TEMÁTICO: 5.8 Literatura e Estudos culturais.

1. Introdução

O presente trabalho é um estudo etnográfico acerca da obra Os Miseráveis de Victor


Hugo e tem como principal foco, a observação dos espaços físicos da personagem central,
Jean Valjean, com o intuito de compreender a sociedade daquela época que foi descrita a
partir dos olhos do autor, traçando um paralelo entre a obra e a realidade não-ficcional que
perdura na atualidade, podendo-se ter a compreensão de que uma produção literária pode ter
caráter atemporal, com a capacidade de produzir não apenas leitores críticos, mas capazes de
transformar seu meio social.
A etnografia é um método específico da pesquisa antropológica, e, no entanto, quando
se tem em mãos uma obra literária que reflete com riqueza as trajetórias humanas dentro de
¹Pós-graduanda em Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa e suas Práticas Literárias - Fibra. E-mail:
stefhanyeseade@gmail.com
²Doutora em Ciências Sociais – Área de Antropologia –UFPA. E-mail: renildabastos@hotmail.com
uma sociedade organizada, embora ficcional, é possível fazer uso do método etnográfico para
demonstrar que a literatura, além de arte, de fruição e entretenimento, é fonte de vida e
absorção de conhecimento sobre si e sobre o outro.

A pesquisa de campo etnográfico consiste em estudarmos o Outro, como uma


Alteridade, mas justamente para conhecer o Outro. A observação é então esta
aprendizagem de olhar o Outro para conhecê-lo, e ao fazermos isto, também
buscamos nos conhecer melhor. [...] O observar na pesquisa de campo implica na
interação com o Outro evocando uma habilidade para participar das tramas da vida
cotidiana, estando com o Outro no fluxo dos acontecimentos. Isto implica em estar
atento(a) as regularidades e variações de práticas e atitudes, reconhecer as
diversidades e singularidades dos fenômenos sociais para além das suas formas
institucionais e definições oficializadas por discursos legitimados por estruturas de
poder. (ECKERT, ROCHA, 2008, p. 4).

Embora, a etnografia seja resultado de uma pesquisa de campo, é possível produzir


uma etnografia do romance, quando o campo é a obra, quando se observa as características
contextuais, tais como, época, personagens, sociedade, espaços, ou seja, os elementos
culturais de uma sociedade. Levando esses fatores em consideração, é seguro dizer que Os
Miseráveis é um riquíssimo campo de observação para a compreensão da sociedade da época
de sua produção, e mesmo a atual.
A obra Os Miseráveis traça em si um panorama de extrema riqueza de detalhes no que
concerne às condições humanas, não apenas social, mas também psicológicas.
O próprio autor reconhece a relevância social de sua obra e mais do que isso, confere a
ela a capacidade de romper as barreiras do tempo e permanecer enquanto os problemas que
sufocam e mantêm os homens à mercê da miséria, persistirem.
Muito mais que uma obra da Literatura Romântica, Victor Hugo delegou à sua arte a
função de disseminar uma mensagem que daria ao homem o poder de evoluir ao obter
conhecimento a respeito de sua história. Para Victor Hugo (1827 apud CHAUVIN, 2014, p.
19), a arte tinha muito mais a dizer do que ser apenas objeto de apreciação e entretenimento,
“Derrubemos a golpes de martelo as teorias, as poéticas, e os sistemas. Atiremos por terra o
velho revestimento de estuque que mascara a fachada da arte!”.
Enquanto que a Sociologia, História e Antropologia são ciências de observação do
comportamento e desenvolvimento humano, a Literatura é a arte que enlaça tais ciências em
uma composição harmoniosa de emoções e ideais que objetiva alcançar, por meio de enredos
e personagens, a proximidade com a sensibilidade do leitor, tornando-lhe empático quanto ao
que o outro e ele mesmo vivencia. Pesquisas como esta pretendem enriquecer o estudo da
Literatura e contribuem para o despertar do interesse do leitor que busca a compreensão mais
ampla acerca do mundo em que vive e o impulso para ser um sujeito transformador em sua
sociedade.
Os Miseráveis pode ser uma evidência de que a arte literária, além de ser influenciada
pela vida, também tem a força persuasiva capaz de construir o homem e contribuir em sua
evolução social.

2. Jean Valjean: Espaços, esconderijos e vida1

No transcorrer da obra, Jean Valjean percorre sua vida dividida em fases. É possível
perceber que há uma evolução nos aspectos pessoais da personagem e tais evoluções têm por
testemunha os espaços em que ele passou. Mais do que isso, as relações entre Valjean e outras
personagens nesses espaços, dentro da cidade de Paris também tem sua importância
evidenciada, visto que, de acordo com Michel Agier (2011, p. 54) “A proposta de uma
antropologia urbana, ou uma antropologia da cidade, reside num esforço de teorização no qual
se evidenciam certos tipos de relações entre as pessoas.”.
Embora os espaços aqui colocados sejam mais isolados, como casas, conventos,
esgotos, etc., ter a compreensão de que esses espaços estão inseridos dentro da cidade de Paris
é poder visualizar as influências culturais, políticas, filosóficas que se dão na vida dessas
personagens, pois se algo lhes acontece de forma afetar suas vidas, é porque essas influências
externas estão agindo de alguma maneira.

[...] há a antropologia da cidade cultural: nesses reagrupamentos, nessas


investigações de pessoas que produzem o sentido da sua própria existência, elas
produzem o quadro desse sentido, a sua simbólica, a sua bricolagem, que pode
desencadear momentos de festa: é também o laço cultural entre as pessoas que faz a
cidade. O laço político é ainda uma outra maneira de fazer a cidade, quando atores
aparecem e as pessoas, através da mediação desses atores, artistas ou líderes, se
identificam com um conjunto, um coletivo, “uma comunidade” mais ou menos
imaginária. É por isso que, na minha opinião, falar de uma antropologia da cidade é
falar de tudo aquilo que faz a cidade. Apesar de não conseguir apreender a cidade,
como totalidade. (AGIER, 2011, p. 55, 56).

É por meio dessas relações, desses entremeios, que Paris como um todo tem grande
influência na vida dos miseráveis que nela habitam. É impossível olhar para esses
microespaços em que Valjean passou e não enxergar qualquer relação com as condições de
caráter sócio-político, por exemplo.

1
Nomes que Jean Valjean adotou : Jean Valjean/ Espaço: Faverolles, Digne; 24601/Espaço: Galés de Toulon;
Pai Madeleine/ Espaço: Montreiul-Sur-Mer; 9.430/ Espaço: Galés de Toulon
Ultime Fauchelevent/ Espaço: Convento da rua Picpus; Senhor Leblanc/ Às proximidades do casebre Gorbeau.
Segundo o Dicionário de Narratologia:

O espaço constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas
articulações funcionais que estabelece com as restantes categorias, mas também
pelas incidências semânticas que o caracterizam. Entendido como domínio
específico da história (v.) o espaço integra, em primeira instância, os componentes
físicos que servem de cenário ao desenrolar da acção (v.) e à movimentação das
personagens (v.): cenários geográficos, interiores, decorações, objetos, etc. [...]
(LOPES, REIS, 2002, p. 135).

O espaço é fundamental para o desenrolar do enredo e, muito mais que isso, é um fator
determinante às condições sociais e psicológicas das personagens envolvidas na trama.
Rousseau defendia que “o homem é produto do meio”, levando-se tal pensamento em
consideração e observando os espaços presentes em uma obra como Os Miseráveis e sua
ligação com as personagens, percebe-se que há uma relação de caráter até mesmo ideológico
entre ambos.
Em função do que ficou dito, parece óbvio que o espaço, enquanto categoria
narrativa detentora de inegáveis potencialidades de representação semântica, pode
ser entendido como signo ideológico. Quando é possível observar nele a presença
variavelmente explícita de atributos de natureza social, econômica, histórica, etc., o
espaço adquire então uma certa contextura ideológica, remetendo, em articulação
com outros signos, para o sistema ideológico que na narrativa predominantemente se
representa; os espaços físicos de Esteiros de S. Pereira Gomes ou do sertão
nordestino em Vidas Secas de G. Ramos (associados, naturalmente, às personagens,
às suas acções e aos juízos do narrador) remetem para a opressão que no romance se
denuncia, como aspecto particular de um universo socioeconômico atravessado
pelos excessos de uma exploração desumana e brutal. (LOPES, REIS, 2002, p. 139).

Ora, sendo Os Miseráveis uma obra de cunho literário-histórico, que revela as


condições as quais a população francesa estava submetida no século XIX, é natural que os
espaços descritos por Victor Hugo reflitam o caráter desmoralizante em que se localizam as
personagens e o que esses espaços significam enquanto aspecto de conotação ideológica.

Assim, inferências sociológicas, filosóficas, estruturais, etc., fazem parte de uma


interpretação do espaço na obra literária. Ela também não se restringe à análise da
vida íntima, mas abrange também a vida social e todas as relações do espaço com a
personagem seja no âmbito cultural ou natural. (BORGES FILHO, 2008, p.1).

No artigo de Borges Filho (2008), há a enumeração de funções do espaço que ajudam


a compreender o seu significado, dentre as quais estão: caracterizar as personagens, situando-
as no contexto socioeconômico e psicológico em que vivem; influenciar as personagens e
também sofrer as suas ações; propiciar a ação; situar a personagem geograficamente;
representar os sentimentos vividos pelas personagens; estabelecer contraste com as
personagens; antecipar a narrativa.
Tomando por base tais características e levando em consideração o espaço realista
presente em Os Miseráveis, será possível analisar a obra com foco na personagem Jean
Valjean e entender como se dá a relação personagem/espaço dentro de uma sociedade que,
embora seja ficcional, reflete com sensibilidade uma sociedade real.
É em Faverolles que a trajetória de Jean Valjean inicia seu percurso. Aos 25 anos de
idade, após o falecimento de seu cunhado recebe a responsabilidade de sustentar seus sete
sobrinhos e sua irmã, portanto dedica-se ao trabalho árduo e rude de podador.
Jean Valjean e sua família tinham necessidades de sobrevivência, a fome de seus
sobrinhos perturbava seu espírito e lhe fazia trabalhar o máximo que podia em todas as
oportunidades que lhe aparecessem, afinal, mesmo com a ajuda de sua irmã que trabalhava ao
seu lado, sustentar sete crianças em um período em que a miséria apenas aumentava, não era
tarefa fácil.

Aconteceu de haver um inverno rigoroso, em que Jean Valjean ficou sem trabalho.
A família ficou sem pão. Sem pão, literalmente. Sete crianças.
Um domingo à noite, Maubert Isabeau, padeiro estabelecido no largo da igreja, em
Faverolles, ia deitar-se quando ouviu uma violenta pancada na vidraça gradeada de
sua loja. Chegou a tempo de ver um braço passando por uma abertura feita com um
murro na grade e na vidraça. O braço pegou um pão e levou. Isabeau saiu correndo;
o ladrão fugia muito rápido, mas Isabeau o alcançou e o agarrou. O ladrão havia
jogado o pão fora, mas ainda tinha o braço ensanguentado. Era Jean Valjean.
(HUGO, 2014, p. 124).

O desespero alcançou seu limite, transformando um homem bom em um ladrão,


apenas porque não enxergava saída para sanar a fome de sua família. A miserabilidade não
vinha de Valjean, mas do Estado. Valjean foi vítima, ainda assim, foi tratado como criminoso.
Em Faverolles passou fome, roubou um pão e foi levado a julgamento.
Esse fato conduziu Valjean ao espaço que desencadeou em sua alma uma escuridão
oriunda do descaso que transforma homens em bichos, em número, em nada.

Um antigo carcereiro daquela prisão, que hoje tem perto de noventa anos, lembra-se
ainda perfeitamente daquele infeliz que foi acorrentado na extremidade do quarto
cordão, no ângulo norte do pátio. Estava sentado no chão como todos os outros, e
parecia nada compreender de sua situação, a não ser que era horrível. É provável
que, por entre suas vagas ideias de homem ignorante, lhe parecesse haver algo de
excessivo. Enquanto o prendiam, a golpes de martelo, à argola de ferro, ele chorava,
e as lágrimas sufocavam-no, impedindo-o de falar; de tempos em tempos apenas
conseguia dizer: “Eu era podador em Faverolles”.
[...] Partiu para Toulon. Lá chegou após uma viagem de vinte e sete dias sobre uma
charrete e com a corrente no pescoço. Em Toulon, colocaram-lhe a vestimenta
vermelha. Desde então, tudo o que construíra sua existência se apagou, até mesmo
seu nome; não era mais Jean Valjean, era apenas o número 24.601. (HUGO, 2014,
p.125).

Cinco anos foi o tempo de condenação de Jean Valjean por roubar um pão, contudo,
dentre algumas tentativas de fuga, sua pena se estendeu para dezenove anos. Foram dezenove
anos em que as galés deram a Valjean a oportunidade de refletir acerca de seu erro e de sua
pena, a qual aceitou ter sido justa, mas não excluiu da sociedade a culpa das circunstâncias
que o levaram àquele lugar.
Alcançar a liberdade deveria lhe restaurar a esperança, mas agora carregava em mãos
um documento amarelo que lhe marcava para sempre como um ex-condenado.
Ao chegar a Digne, seu aspecto era rude e cansado, despertava a atenção dos
moradores do lugar pela sua aparência miserável. Estava cansado e precisava descansar,
porém, o que encontrou foi a rejeição.
De Faverolles a Digne, em um percurso de 19 anos, o jovem inocente tornara-se, por
consequência das circunstâncias proporcionadas pelo meio em que se construiu, um ladrão; e
por sua força descomunal e tentativas de fuga das galés, um criminoso de extrema
periculosidade. Sua imagem refletia o descaso a que fora submetido desde a infância, como
uma alusão ao que a França causava aos humildes pertencentes ao terceiro estado. Ela
segregava, explorava, tirava o direito ao pão, humilhava e lhes levava ao limite, deixando-lhes
sem saída. Por fim, quando a degradação lhes alcançava por completo, lhes criminalizavam.
De vítimas, passavam a vilões.
Ainda em Digne, após ter sido rejeitado em todos os locais os quais havia procurado
abrigo, a porta de Monsenhor Bienvenu se abriu para ele. Neste local, embora estivesse
coberto por trapos e portando o documento amarelo que o definia como um criminoso, Jean
Valjean foi recebido com grande honra e tratado como igual.
Não apenas a porta da casa do bispo havia sido aberta para ele, como simbolizava o
surgimento de uma esperança para este miserável.

[...] a casa era repartida de tal modo que, para passar ao oratório, onde ficava a
alcova, ou sair dele, era preciso atravessar o quarto do bispo.
No momento em que ambos o atravessavam, a senhora Magloire guardava os
talheres de prata no armário que ficava à cabeceira da cama. Era o último serviço
que fazia todas as noites antes de deitar-se.
O bispo instalou seu hóspede na alcova; uma cama limpa e fresca estava preparada.
O homem colocou o castiçal sobre uma mesinha. (HUGO, 2014, p. 121).

A disposição da casa era propícia às ideias que perturbavam Valjean. Aquele homem
sentia-se completamente perdido e desconhecia a si próprio. As sombras de seu passado ainda
recente lhe perturbavam o espírito e, portanto, achava-se incapaz de ver qualquer sinal de
bondade em sua alma.
Para sair da alcova era necessário passar pelo quarto do bispo. Nesse momento, o
espaço não é apenas um espaço em que há objetos e paredes e sombras, mas detentor de
intenções. A disposição dos espaços da casa do bispo parecem ter sido desenhadas por Hugo
para que Valjean confrontasse seu próprio espírito ao esgueirar-se para roubar a prataria e
fugir silenciosamente.
Borges Filho (2007, p. 2) diz que alguns espaços são favoráveis a determinadas ações
das personagens, pois existem fatores que corroboram no desenvolvimento dessas ações. No
caso de Valjean e a casa do bispo, os fatores foram a exposição das pratarias, a facilidade de
acesso graças à confiança do bispo em deixar as portas destrancadas, e a crença de Valjean de
que era um homem mau.

Jean Valjean, de pé e imóvel no escuro, com o candeeiro na mão, estava assombrado


diante da serenidade do velho. Nunca vira coisa semelhante. Tal confiança o
espantava. O mundo moral não conhece espetáculo mais grandioso: uma consciência
perturbada e inquieta, à beira de uma má ação, contemplando o sono de um justo.
Esse sono, em tal isolamento, e com um vizinho igual a ele, tinha algo de sublime
que ele próprio sentia, de forma vaga, mas imperiosa.
[...] Não tirava os olhos do velho. A única coisa que claramente deixavam
transparecer sua atitude e sua fisionomia era uma estranha indecisão. Parecia hesitar
entre dois abismos, o da perdição e o da salvação. Parecia prestes ou a esmagar
aquele crânio ou a beijar aquela mão.
[...] Um reflexo da lua tornava confusamente visível, acima da chaminé, o crucifixo,
que parecia abrir os braços para ambos, com a bênção para um e o perdão para o
outro. (HUGO, 2014, p. 141, 142).

Nesse momento o espaço torna-se testemunha de dois opostos: o santo e o profano. O


que merece a bênção e o que precisa de perdão, mas para receber perdão é preciso
arrependimento, e Valjean não estava pronto para tê-lo, visto que conclui a ação do roubo e
foge.
No dia seguinte, Valjean é capturado e levado diante do bispo para confirmar o roubo,
entrementes, o bispo aproveita a oportunidade para apresentar-lhe o perdão. Em troca da
prataria, entrega a alma de Valjean para Deus, compra-lhe, concede-lhe o direito de
recomeçar sua vida.
E assim Jean Valjean segue atordoado, comete um último ato fraudulento, mas logo
cai em si, e decide por se tornar o melhor dos homens. Decide apagar o nome Jean Valjean de
sua mente e passa a se chamar Pai Madeleine.
Chegou a Montreiul-sur-Mer e acabou ficando após arriscar sua vida para salvar os
dois filhos do capitão da guarda em um incêndio no conselho municipal, pois devido a esse
fato, seu passaporte não lhe foi pedido:

[...]Desde os tempos mais remotos, Montreiul-sur-Mer tinha como indústria especial


a imitação das miçangas inglesas e dos vidrilhos pretos da Alemanha, indústria que
sempre vegetara por causa da carestia das matérias-primas, que recaía sobre a mão
de obra.
[...] Em fins de 1815, viera estabelecer-se na cidade um homem, um desconhecido, a
quem ocorreu a ideia de substituir, na fabricação desses artigos, a resina pela goma-
laca e, em particular, no caso dos braceletes, as correntes soldadas por simples
correntes engatadas. Essa pequena mudança foi uma revolução.
Essa pequena mudança, com efeito reduzia espantosamente o custo da matéria-
prima, o que permitiu: primeiro, elevar o custo da mão de obra, beneficiando a
localidade; segundo, melhorar a fabricação, o que era vantagem para o consumidor;
terceiro, vender mais barato, triplicando os lucros, o que era proveito para o
fabricante.
[...] Em menos de três anos, o inventor desse processo tornara-se rico, o que foi bom,
e fizera tudo enriquecer em torno dele, o que foi ainda melhor. Era alguém estranho
à região; de sua origem, nada se sabia; de como começara, muito pouco.
Contava-se que tinha vindo para a cidade com bem pouco dinheiro, algumas
centenas de franco, se tanto.
Foi desse pequeno capital, posto a serviço de uma engenhosa ideia, fecundada pela
ordem e pelo pensamento, que ele tirara toda a sua fortuna e a fortuna de toda aquela
localidade. (HUGO, 2014, p. 201, 202).

O homem que havia trazido tantos benefícios para Montreiul-sur-Mer era Jean
Valjean, que deu ao povo o que o povo precisava. Não apenas havia aceitado o perdão, como
resolveu dar aos mais necessitados a chance de viver com dignidade. Esse espaço é
diretamente afetado pelas transformações de Valjean, o surgimento de um novo homem, um
homem bom, faz surgir uma cidade próspera.

Graças aos rápidos progressos dessa indústria, que ele havia tão admiravelmente
inovado, Montreiul-sur-Mer tornara-se um considerável centro de comércio. A
Espanha, que consome muita miçanga preta, fazia ali enormes encomendas por ano.
Nesse ramo de comércio, Montreiul-sur-Mer praticamente fazia concorrência a
Londres e a Berlim. Os lucros de Pai Madeleine foram tais que, já no segundo ano,
permitiram-lhe construir uma grande fábrica na qual existiam duas vastas oficinas
[...]. Quem quer que tivesse fome podia ali se apresentar, e estar certo de achar
emprego e pão. [...] sua vinda fora um bem, e sua presença, uma providência. Antes
de sua chegada, tudo esmorecia naquela terra; agora, tudo ali tinha a vida sadia do
trabalho. Uma forte corrente aquecia tudo e penetrava em toda parte. Miséria e
desemprego eram desconhecidos. Não havia bolso, por mais obscuro que fosse, em
que não houvesse algum dinheiro, nem uma casa tão pobre em que não houvesse um
pouco de alegria.
[...] O hospital estava mal dotado; ele acrescentou mais dez leitos. Montreiul-sur-
Mer era dividida em cidade alta e cidade baixa. A cidade baixa, onde ele habitava,
tinha apenas uma escola, péssimo casebre em ruínas; construiu mais duas, uma para
meninas e outra para meninos.
Pagava do próprio bolso aos dois professores o dobro do magro ordenado oficial
[...]. Criara, a suas expensas, uma casa de asilo, coisa então quase desconhecida na
França, e uma caixa de assistência para os operários velhos e enfermos. Sendo sua
fábrica um centro, rapidamente surgiu em torno dela um novo bairro, onde havia
grande número de famílias indigentes; ali estabeleceu uma farmácia gratuita.
(HUGO, 2014, p. 202, 203).

O que Madeleine causara na cidade parecia refletir seu próprio caráter e ainda assim,
não podia evitar as especulações maldosas a seu respeito. Todavia, à revelia das opiniões
ruins, tornou-se prefeito após ter-se recusado anteriormente. E assim ficou até ter seu passado
revelado.
Acontece que Montreiul-sur-Mer logo sentiu a perda do prefeito. Sua existência
naquela cidade era o que dava equilíbrio ao seu funcionamento, e, no entanto, sua partida
significou o fim da paz e da bondade.
Com o surgimento de Pai Madeleine, Montreiul-sur-Mer tornou-se Pai Madeleine, o
próspero, feliz, digno, alimentado. Então, Pai Madeleine se vai, Jean Valjean é revelado, e a
cidade se perde, volta à sua miserabilidade, não há mais o pilar da bondade e do amor ao
próximo.
Valjean é preso novamente, é dado como morto durante sua fuga e aproveita a
oportunidade para cumprir sua promessa à Fantine (submetida à prostituição por ser mãe
solteira) de que cuidaria de Cosette, filha que ela deixou órfã com sua morte. Ele foge com
Cosette para um sótão no Casebre Gorbeau. Aquele sótão feio era para a pequena menina o
lugar mais bonito, pois estava em paz, sentia-se livre. Neste lugar, Valjean pôde vivenciar um
novo sentimento, a infelicidade agora era insignificante para ele. Cosette era felicidade.

Ele nunca amara coisa alguma. Havia vinte e cinco anos era só no mundo. Nunca
fora pai, amante, marido, amigo. Nas galés era mau, sombrio, casto, ignorante e
arisco.
O coração daquele velho estava cheio de virgindades [...].
Quando viu Cosette, quando a tomou, levou e libertou, sentiu suas entranhas
revolvendo-se. Tudo o que havia de paixão e afeto dentro dele despertou e se
precipitou sobre aquela criança. Aproximou-se da cama em que ela dormia e tremia
de alegria; experimentava espasmos dolorosos como uma mãe, mas não sabia o que
era; pois é uma coisa bem obscura e bem terna esse grande e estranho movimento de
um coração que se põe a amar.
Pobre velho coração tão novo!
Como ele tinha cinquenta e cinco anos e Cosette oito, todo amor que poderia ter em
toda a sua vida fundiu-se em uma espécie de clarão inefável.
Era a segunda aparição branca que ele encontrava. O bispo fizera levantar em seu
horizonte a aurora da virtude; Cosette fazia levantar-se a aurora do amor. (HUGO,
2014, p. 480, 481).

Enquanto isso, aquele homem misterioso com sua filha despertava o interesse da
locatária do casebre, além disso, sua bondade para com os necessitados daquela cidade não
passava despercebida. Logo levantou suspeitas. Um dia, ao ajudar um mendigo, sentiu medo
pela sensação que ele lhe causou. Diziam que o tal mendigo era da polícia. E era. Diante
disso, Valjean vê-se obrigado a fugir com Cosette.
O destino agora é o Convento das Bernardinas da Adoração Perpétua. Valjean passa a
habitar o convento como Ultime Fauchelevent e Cosette cresce no convento, recebendo
educação e cuidados.
O convento lhe foi providencial, estava isolado do mundo e, ainda assim, tinha tudo o
que precisava. Cosette estava com ele e a cada dia perdia o ar tristonho de seu passado. Além
disso, trouxe a Valjean uma calmaria que precisava manter.
Deus tem seus caminhos; o convento contribuiu, assim como Cosette, para conservar
e completar em Jean Valjean a obra do bispo. É certo que um dos lados da virtude
termina no orgulho. Essa é uma ponte construída pelo diabo. Jean Valjean, talvez
sem saber, estava muito próximo desse lado e dessa ponte quando a Providência o
impeliu para o convento do Petit-Picpus; enquanto havia se comparado apenas com
o bispo, achara-se indigno e era humilde; mas, havia algum tempo, começava a
comparar-se aos homens e então nascia o orgulho. Quem sabe ele não tivesse,
talvez, voltado lentamente ao ódio.
O convento o deteve nesse declive. (HUGO, 2014, p. 612).

Muitos anos se passaram, Cosette cresceu, Valjean passou a se chamar senhor


Leblanc, e agora vivia às redondezas do casebre Gorbeau. Adquiriu o costume de passear com
Cosette todos os dias, e devido a isso, Cosette não passou despercebida aos olhos de Marius,
assim como Marius despertou o interesse de Cosette.
Marius Pontmercy era um jovem que acabara de descobrir seu interesse pelas causas
republicanas em um período em que a França enfrentava alguns dos horrores enfrentados no
período da revolução francesa. A miséria estava por toda a parte, enquanto a burguesia vivia
na opulência. Marius, embora fosse neto de um burguês, admitira para si, o espírito
revolucionário do pai.
Jovens estudantes estavam prontos para a insurreição, Marius fazia parte desse grupo
que montou uma barricada para ir à luta. Valjean sabia que estava velho, preocupou-se com o
futuro de Cosette quando ele não estaria mais presente. Interceptara uma carta de despedida
que Marius havia enviado para Cosette e dirigiu-se a barricada com a intenção de proteger-
lhe.
Na barricada encontrou Javert e recebeu a responsabilidade de matá-lo. Valjean fez
com que todos acreditassem que Javert havia sido morto, entretanto, não foi o que aconteceu.
A vingança de Valjean não consistiu em matar-lhe após anos de perseguição, mas em salvar-
lhe a vida, deixar-lhe viver.
A barricada foi atacada, todos foram mortos, exceto Marius, a quem Valjean salvou a
vida. Após salvar-lhe foge com ele pelo esgoto.
Sobre o esgoto:

O esgoto tudo revela, mostra a cidade sem suas máscaras e metaforicamente revela-
nos uma metrópole capaz de sufocar a esperança no coração humano. Nele se
encontram todos os resíduos das potencialidades frustradas; nele se configuram,
portanto, as ruínas das ilusões (“ruína de ilusões e de miragens”). Esse verdadeiro
monstro horrendo como a metrópole, que muitas vezes disfarça seu legítimo caráter,
só poderia ter sua consciência alicerçada na podridão do esgoto (“o esgoto é a
consciência da cidade”).
Esta corrupção, no entanto, não é hipócrita como o é sua carapaça, a cidade (“não há
mais segredos”). O esgoto representa, para além das realidades recônditas, a união
dos contrários, a realidade e a desaparição (“Realidade e desaparição.”), a lividez e
as trevas (“Nesse lugar lívido há trevas”), o exterior e o interior. Ali, nem mesmo as
figuras das moedas se sustentam, uma vez que se encontram cobertas pelo azinhavre
(“a efígie das moedas cobre-se de azinhavre”) – é o fim das representações,
inclusive a da representação das representações, o fim da máscara das máscaras,
como é o caso das efígies das moedas. É o último reduto e a verdadeira clausura das
hipocrisias, é o locus horrendus por excelência no qual nenhum disfarce é permitido,
onde nenhum véu se sustenta. Toda a fragmentação da metrópole moderna está atada
visceralmente ao esgoto, aos seus cacos. (PREVIDE E BARBOSA, 2009, p. 117,
118).

Valjean, em um momento da vida havia sido o criminoso que também era vítima, seus
dias eram repletos de tristeza tal qual a podridão do esgoto, mas ele também aprendeu a ser
santo, não sem antes depositar no esgoto a sujeira que tinha em parte de sua história.
Ao sair daquele buraco encontrou Javert, e agora estava disposto a se entregar, pois já
havia cuidado do futuro de Cosette, ela não ficaria sozinha, mas para a surpresa de Valjean,
Javert lhe deixou em paz.
Em anos de perseguição, desde as galés até o momento de salvar Marius, Javert não
conseguia aceitar que a bondade pudesse nascer em um criminoso, ele não entendia que
espécie de santo era Vajean e isso o leva ao suicídio, enquanto que a Valjean, a paz é
finalmente alcançada quando falece nos braços de Marius e Cosette. Havia pagado sua dívida
com Fantine, e mais do que isso, descobriu o afeto, a ternura, o amor e a fé.

Considerações Finais

Ao fim deste estudo, após receber o privilégio de viver as páginas de uma das maiores
(senão a maior) obras de Victor Hugo, deixar de refletir acerca das problemáticas das
sociedades atuais, seria invalidar a pesquisa e desperdiçar a chance de compreender como se
dá a relação homem versus espaço numa perspectiva social, política e humanitária.
O título deste trabalho indica Os Miseráveis como sendo um espelho atemporal da
sociedade. Ora, considerando-se que os problemas enfrentados pelas personagens, mesmo que
sendo de uma sociedade no século XIX, ainda se fazem constantes hoje, em pleno século
XXI, tal qual, a prostituição, a opressão do homem pelo capitalismo, a fome e o abandono das
crianças, etc., significa dizer que ainda há muito que se fazer para conseguir uma verdadeira
mudança nessas realidades.
Diante disso, conseguir enxergar, por meio de Jean Valjean, que há uma real
possibilidade de transformação, é dar à sociedade a chance de visualizar a si mesma num
processo de evolução.
Com sensibilidade e respeito aos seus iguais, Victor Hugo leva o leitor a perceber o
que há além de seu universo particular e enxergar que há quem precise de dignidade e
oportunidades. É nos espaços os quais ele insere Valjean que ele dá exemplos de como é
possível transformar uma realidade. Se no início, ele apresenta um Valjean necessitado e
faminto vivendo em uma pequena cidade sob condições degradantes, e que, portanto, comete
um roubo por ter chegado ao limite do desespero, é por meio da bondade de Monsenhor
Bienvenu na cidade de Digne, que ele diz para o leitor que as boas ações trazem bons frutos.
Se nas galés ele endurece o coração e aprende a odiar, no casebre Gorbeau, ao ter Cosette para
si, ele aprende a amar. E dessa forma, o autor vai mostrando que há sempre uma resposta boa
para uma situação ruim. Que a misericórdia faz florescer a fé e o perdão, e que, mais do que
isso, desarma os opressores, como é o caso de quando Valjean salva a vida de Javert.
A literatura, associada a outras áreas do conhecimento, é de grande valia para se
entender os conflitos, os problemas, os sentimentos, as relações humanas, etc. Olhá-la por um
viés mais humanitário é dar a ela uma utilidade que está além do simples entretenimento.

Referências

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BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Franca: Ribeirão


gráfica e editora, 2007.

CHAUVIN, Jean Pierre. A pena de Victor Hugo em Os Miseráveis: romance


historiográfico e reparação social. In: HUGO, Victor. Os Miseráveis. Tradução: Regina
Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2014, pp. 19 – 33.

ECKERT, Cornélia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia: saberes e práticas.
In:PINTO, Céli Regina Jardim; GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. Ciências humanas:
pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2008.

HUGO, Victor-Marie. Os Miseráveis. Edição Especial, São Paulo: Martin Claret, 2014.

LOPES, Ana Cristina M.; REIS, Carlos. Dicionário de narratologia. 7ª edição. Coimbra:
Almedina, 2002.

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em os miseráveis, romance de Victor Hugo: dite, sodoma, babilônia. Linguagem – Estudos
e Pesquisas, Catalão, v.13, p.107-122, 2009.

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