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Literatura e Política

por Alexsandro M. Medeiros


lattes.cnpq.br/6947356140810110
postado em 2015
atualizado em mar. 2017

Uma breve análise de diferentes obras, dos mais variados autores, de


diferentes épocas revela algo aparentemente simples: os escritores refletem seu
contexto social. Esta ideia simples é corroborada por Ezra Pound (1970, p. 71
apud MONTEIRO, 2016, p. 2) quando esta afirma que “os artistas são como
antenas de suas épocas. Eles captam os acontecimentos de suas épocas e os
refletem em suas obras”. E por mais que não haja uma intencionalidade do autor
ou por mais involuntário que se pretenda ser ao escrever uma obra literária,
Pereira, Lopes e Lima (2010) afirmam que uma obra sempre está impregnada por
aspectos da realidade social na qual foi concebida. E mesmo que um certo
conteúdo literário esteja distante no tempo e no espaço, em muitos casos ele
reflete as experiências da realidade, tornando impossível separar um escritor do
homem político e social, tornando clara a presença da política na literatura.
Na realidade uma obra literária pode ser estudada a partir de vários
aspectos. Mas aqui vamos nos deter principalmente no aspecto social de uma
obra literária.
Segundo Antônio Cândido (2014), podemos falar tanto de uma crítica
literária quanto de uma sociologia da literatura e, de certo modo, é este segundo
aspecto que mais nos interesse nesta seção, no sentido de uma sociologia da
literatura que não propõe especificamente a questão do valor estético de uma
obra mas interessa-se pela origem social dos seus autores, pela relação entre as
obras e suas ideias, a influência da organização social, política e econômica.
Podemos falar na realidade de uma relação dialética sociedade ↔ arte. "Vendo os
problemas sob esta dupla perspectiva, percebe-se o movimento dialético que
engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências
recíprocas" (id., 2014, p. 34).
Para a crítica literária, procura-se mostrar como a importância de uma
obra “deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma
peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos,
sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão” (id.,
2014, p. 13). Para a sociologia literária procura-se mostrar o seu valor e
significado a partir do ponto em que exprime certo aspecto da realidade e que tal
aspecto constitui o que uma obra tem de essencial. Vemos assim como na
verdade são dois pontos de vista que se integram e não podem ser dissociados
sendo necessário fundir “texto e contexto numa interpretação dialeticamente
íntegra” (id., 2014, p. 13).
Quando fazemos uma análise deste tipo [literária], podemos dizer que levamos
em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite
identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma
sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo
historicamente; mas como fator da própria construção artística estudado no nível
explicativo e não ilustrativo (p. 16-17).
A análise literária assimila a dimensão social como fator estético, os
aspectos da história sociologicamente orientada como fator de arte. No nível da
análise da crítica literária, o ponto de referência não é tanto a estrutura histórica
e social, quanto a estrutura estilística e estética.
Já uma sociologia da literatura toma por objeto de estudo o fato literário
como fato social (ESCARPIT, 1958). Analisa a literatura como fenômeno social. E
é naturalmente neste aspecto que podemos analisar como a Literatura ocupou-se
da política em incontáveis momentos, não apenas jornalisticamente descrevendo
e repercutindo os fatos políticos como criando ficções sensacionais, por vezes
baseadas no cenário político que vivenciavam seus escritores, alguns com caráter
de protesto ou resistência, como, por exemplo, todos os livros que têm como pano
de fundo os golpes militares na América do Sul ao longo do século XX.
Embora o nosso objeto de estudo aqui não seja especificamente uma
Sociologia da Literatura e sim procurar entender como a Literatura ocupou-se
intensamente das relações políticas e sociais ao longo da história é inegável como
um ponto de vista se aproxima do outro. Sobretudo se entedermos, sem esgotar
as perspectivas que um estudo sociológico literário aborda, como este procura
“relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um gênero, com as
condições sociais” (CÂNDIDO, 2014, p. 18) ou ainda como um estudo “que
investiga a função política das obras e dos autores, em geral com intuito
ideológico marcado” (id., ibidem, p. 20).
Segundo Antônio Cândido (2014), Taine no século XVIII e Sílvio Romero
no caso brasileiro são alguns dos principais expoentes do estudo sociológico
literário a partir da analise de suas condições.
A sua maior virtude consiste no esforço de discernir uma ordem geral, um
arranjo, que facilita o entendimento das sequências históricas e traça o panorama
das épocas. O seu defeito está na dificuldade de mostrar efetivamente, nesta
escala, a ligação entre as condições sociais e as obras. Daí quase sempre, como
resultado decepcionante, uma composição paralela, em que o estudioso enumera
os fatores, analisa as condições políticas, econômicas, e em seguida fala das obras
segundo as suas intuições ou os seus preconceitos herdados, incapaz de vincular
as duas ordens de realidade (id., ibidem, p. 19).
Em todo caso, sempre que se desloca o interesse de uma obra tomando
como elementos essências de sua matéria seus aspectos sociais, as circunstâncias
do meio que influíram na sua elaboração ou sua função social, estamos em meio a
uma análise sociológica e política da literatura. Tais aspectos são essências para o
historiador, o político, o sociólogo, “mas podem ser secundários e mesmo inúteis
para o crítico” (CÂNDIDO, 2014, p. 18), ou seja, para a análise crítica literária. O
que não significa dizer que tais aspectos sejam excludentes, pois tanto os aspectos
internos quanto os aspectos externos de uma obra são decisivos para a análise
literária. Além disso, “pretender definir sem uns e outros [aspectos internos e
externos] a integridade estética da obra é querer, como só o barão de
Münchhausen conseguiu, arrancar-se de um atoleiro puxando para cima os
próprios cabelos” (CÂNDIDO, 2014, p. 22).
Sob vários aspectos podemos pensar a literatura como um “instrumento”
da política, um instrumento que utiliza os meios de comunicação para produzir
resultados políticos e sociais. Muitos escritores tiveram suas obras censuradas
por terem sido usadas como instrumento de denúncia política e em épocas de
proibição da liberdade de expressão, o artifício literário pode ser usado para
propagar certas mensagens e chamar os indivíduos à luta. Se, contudo, a
literatura é uma forma plausível de representação do real, esta se distingue da
política pelo seu discurso e pela forma de abordagem e compreensão da realidade
social e histórica. Na literatura a realidade é criada ou recriada, inventada ou
reinventada, imaginada, fantasiada, através de metáforas, alegorias, linguagem
simbólica mas nem por isso a literatura, neste caso, deixa de contribuir para
desvendar aspectos das relações sociais e de poder. Por meio da literatura somos
levados a nos relacionar imaginariamente com a realidade histórica. Entretanto,
enquanto a política ocupa-se do real, a “literatura política” ocupa-se com o
possível.
Vejamos um pouco dessa relação entre Literatura, Sociedade e Política ao
longo da História.
Literatura, Sociedade e Política
A relação entre a literatura, a sociedade e a política pode ser percebida
desde a literatura clássica, nas epopeias e nas tragédias gregas. As mais
conhecidas são a Ilíada e a Odisseia de Homero. Embora o aparente motivo da
guerra de Troia narrada na Ilíada seja uma disputa amorosa entre o príncipe
Paris e Menelau, sabemos que o rapto de Helena por Paris serviu apenas de
pretexto aos distintos povos gregos para se unir em uma expedição e “recuperar”
a mulher de Menelau quando, na verdade, a Ilíada nos traz o pano de fundo da
guerra entre gregos e troianos. A questão da guerra, muito além do rapto e
sedução de Helena por Paris, é uma tentativa de fortalecer o estado nacional
grego. A Ilíada está carregada de ideias políticas, leis, códigos, tanto quanto de
questões míticas e religiosas.
Por sua vez,
os episódios da Odisseia, cantados nas festas gregas, reforçavam a consciência
dos valores sociais, sublinhavam a unidade fundamental do mundo helênico e a
sua oposição ao universo de outras culturas [...] estabeleciam entre os ouvintes
uma comunhão de sentimentos que fortalecia a sua solidariedade, preservavam e
transmitiam crenças e fatos que compunham a tradição da cultura (CÂNDIDO,
2014, p. 55-56).
Na verdade podemos ir ainda mais longe no tempo ao analisar a
configuração de uma obra do ponto de vista sociológico com seus valores sociais,
ideologias e sistemas de comunicação que contribuem para o seu conteúdo desde
as sociedades ditas primitivas.
É o caso do poema esquimó citado por Boas [1938], no qual as mulheres
celebram a volta de uma caçada feliz [...] Aí está um caso em que determinada
atividade se transforma em ocasião e matéria de poesia, pelo fato de representar
para o grupo algo singularmente prezado, o que garante o seu impacto emocional
(CÂNDIDO, 2014, p. 40-41).
No caso das sociedades primitivas e mais antigas e até mesmo as
sociedades iletradas, onde uma “arte contextualizada” não cedeu espaço ainda
para uma “arte individualizada”, a arte sempre desempenha uma função social
importante. Função social que “comporta o papel que a obra desempenha no
estabelecimento de relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e
materiais, na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade”
(CÂNDIDO, 2014, p. 55). A arte e, com ela, a literatura, nestes casos, se liga
diretamente a vida coletiva. Suas manifestações são mais coletivas do que
individuais ou pessoais. O “artista” expressa aspectos que interessam a todos.
E o que dizer da influência decisiva dos valores cristãos nas artes ao
longo dos séculos, seja em pinturas, esculturas, música e literatura, como é o caso
da Divina Comédia de Dante Alighieri? “Construída em torno de princípios
teológicos, dividida em um número ritual de versos e cantos, desenvolvendo um
sistema alusivo em torno dos valores intelectuais e afetivos da religião”
(CÂNDIDO, 2014, p. 41).

Essa relação também está presente no Humanismo Renascentista com as


utopias de Tomas More (2004), Tomaso Campanella, Francis Bacon e um dos
poemas épicos do Renascimento, Os Lusíadas, de Luiz de Camões, é possível
perceber também que a história literária caminha passo-a-passo com os grandes
eventos. Na tradição luso-brasileira, Os Lusíadas faz transparecer a expansão
europeia, não obstante haver incorporado em seu texto parte da mitologia grega.
Com valores literários, fiéis às exigências retóricas do Neoclassicismo, pode servir
igualmente de fonte da História, se submetido ao estudo das ruínas culturais e à
coleta de tópicos não diretamente ligados ao relato causal-temporal.
Modernamente, na ficção e nos poemas engajados, as obras literárias
abordam as mais variadas temáticas desde ordem moral, política, psicológica e
inclusive social. No período da Modernidade, quando a sociedade urbana e
industrial se torna mais e mais complexa, as obras literárias exprimem e retratam
essa mudança.
Como a sociedade humana tem-se revelado desigualitária, violenta e
excludente, a fim de estabilizar o grupo dominante, minoritário, dissociado do
grupo dominado, majoritário, muitos escritores, sensíveis a essa injusta
organização, não deixam de registrar, na criação literária, o espelhamento das
turbulências que os atingem. Diagnosticam os males e pretendem, inclusive,
apontar saídas.
Vemos assim como ao longo do tempo uma análise política e sociológica
de uma obra literária aborda as possíveis influências exercidas pelo meio social
sobre a obra de arte
Dizer que ela [a obra literária] exprime a sociedade constitui hoje verdadeiro
truísmo; mas houve tempo em que foi novidade e representou algo
historicamente considerável. No que toca mais particularmente à literatura, isto
se esboçou no século XVIII, quando filósofos como Vico sentiram a sua
correlação com as civilizações, Voltaire, com as instituições, Herder, com os
povos. Talvez tenha sido Madame de Staël, na França, quem primeiro formulou e
esboçou sistematicamente a verdade que a literatura é também um produto social,
exprimindo condições de cada civilização em que ocorre (CÂNDIDO, 2014, p.
29).
Nenhuma escola literária mais recente esteve tão próxima, talvez, da
questão política e social quanto o Realismo, onde é possível observar como uma
de suas características mais marcantes uma linguagem próxima da realidade e
denúncias das injustiças sociais. No Brasil encontramos essa expressão literária
em autores como Machado de Assis e Aloísio Azevedo.
Um exemplo disto é o Romance Esaú e Jacó (1904) de Machado de Assis
que fornece dados da dinâmica sócio-política do Brasil na transição do Império
para a República. Um dos momentos excepcionais do romance é exatamente o
momento da proclamação da República, no dia 15 de novembro de 1889, narrado
no romance. E de acordo com Astrojildo Pereira (1991), este romance é onde os
laços da ficção se entrelaçam frequentemente com acontecimentos e episódios
políticos reais e que tem nos irmãos gêmeos Pedro e Paulo, a representação da
monarquia e do regime republicano, encarnando, inclusive, um certo jogo
dialético entre o velho e o novo – nas palavras de Astrojildo. Acontecimentos
históricos e políticos são representados, ficcionalizados e tratados literariamente,
artisticamente. Há também no romance um personagem típico da vida política
brasileira do Império: Batista. Com uma postura clientelista e patrimonialista.
Entendemos, pois, pelo exposto que o romance machadiano em questão (Esaú e
Jacó) não pode ser lido ou visto como mera interpretação ou alegorização da
história brasileira na transição do Império para a República. O que, a nosso juízo,
é plausível indicar é que ao ficcionalizar a política e as relações de poder,
Machado de Assis [...] realiza uma reflexão artística profunda sobre a dinâmica
histórica do país em fins do século XIX, evidenciando alguns traços que seriam
permanentes e recorrentes na vida política nacional (SEGATTO, 2007, p. 91).
Outro exemplo onde é visível perceber a relação entre Literatura e
Política é na obra de Graciliano Ramos, marcada por forte inserção nos contextos
sociopolíticos e econômicos, pela solidariedade com os oprimidos e pelo
compromisso com o ideal da emancipação humana. O marco desse processo foi a
Revolução Russa de 1917. Embora ainda não fosse comunista (só se filiaria ao
Partido Comunista Brasileiro em agosto de 1945), Ramos logo simpatizou com
ideias libertárias, numa reação às imposturas e desigualdades da época. Seus
romances e contos abordam a complexidade da vida social e, não raro,
denunciam as tramas da baixa política, as ambições de poder e as
marginalizações daí decorrentes. Porém, para o autor de “Vidas secas”, a
literatura não pode ser reduzida à ideologia, pois a especificidade do trabalho
criativo se sobrepõe às exigências políticas imediatas e aos fervores partidários. A
raiz da equação era entrelaçar arte e política, sem que uma subjugasse a outra.
Considerando ainda o contexto da Revolução Russa e saindo um pouco
do universo literário brasileiro, temos também a figura de Leon Tolstoi que, em
Guerra e Paz, faz um relato do período que antecede a Revolução Russa.
Já na História Contemporânea da Literatura é possível observar dois
eventos traumáticos que ainda hoje inspiram a reflexão e o poder criador de
poetas e ficcionistas: a Segunda Grande Guerra, de escala planetária, e, no caso
brasileiro, o golpe militar de 1964.
Considerando o contexto da guerra é válido mencionar que em 2009, o
Nobel de Literatura foi entregue a Herta Müller, representante de uma
minoria alemã discriminada e perseguida na Romênia, que fez das motivações
políticas fonte de seu trabalho, como se vê em Tudo o que Tenho Levo Comigo
(publicado pela Companhia das Letras com tradução de Carola Saavedra). Uma
história baseada em relatos de sobreviventes de campos de trabalho forçados
russos.
Contemporaneamente é preciso destacar que foi por intermédio do
Existencialismo de Jean-Paul Sartre que se desenvolveu o princípio de que a
narrativa é sempre comprometida. A necessidade de engajamento também
fustigou outros intelectuais contemporâneos, como Érico Veríssimo e Jorge
Amado, mas foi Sartre que deu maior amplitude a essa ideia de uma “Literatura
Engajada”, comprometida com as questões sociais. E por sua importância iremos
dedicar uma texto específico a este tema.
A produção literária de Jorge Amado sempre abordou questões sociais e
políticas, inclusive com fortes tendências a ideais comunistas. Como um destes
exemplos tem-se o romance Cacau (publicado em 1933), que apresenta de forma
crítica a sociedade baiana da época, a vida dos trabalhadores das fazendas de
cacaus no interior da Bahia, abordando questões como a exploração do trabalho
desumano e escravo, a desigualdade social, a luta de classes e a estrutura de uma
sociedade oligárquica e fundamentada em relações de poder coronelistas (veja
também em nosso website um texto sobre o Coronelismo na Literatura; acesse:
Coronelismo e Relações de Poder na Literatura). Jorge Amado revela nesta obra
um forte valor social e político, narrando a história do personagem José Cordeiro,
que depois de perder tudo o que tinha viu-se obrigado a ir trabalhar nas fazendas
de cacau em Ilhéus. Narrado em primeira pessoa, Cacau, traz o questionamento
proletário da visão do trabalhador sobre seu único e maior problema: o
explorador. Um romance que reflete um nítido engajamento ideológico (uma
análise sobre os efeitos da relação entre ideologia e estética na construção das
cenas da obra é feita por Pelinser, 2012) do autor na época, evidenciado desde a
epígrafe: “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um
máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da
Bahia. Será um romance proletário?” (AMADO, 2000).
Também de Jorge Amado é a conhecida obra Capitães da Areia
(publicado em 1937), adaptado para o cinema em 2011. A obra retrata a vida de
um grupo de menores abandonados, chamados de “Capitães da Areia”,
ambientado na cidade de Salvador dos anos 1930, que praticam “malandragens”
e “ladroagens” para poder sobreviver neste cenário de miséria e pobreza
(AMADO, 2009). A obra destaca não apenas a orfandade familiar (as crianças
abandonadas de Capitães de Areia), mas de todo o aparato político e social do
Estado que os tratam como “delinquentes” e marginais (ROSSI, 2009) e como o
abuso de poder e a “violência”, por parte do Estado, afastam as crianças de
instituições que deveriam acolhê-las fazendo com que estas prefiram viver à
margem da sociedade (FONSECA; ANDRADE, 2011). Esta obra de Jorge Amado
também pode ser analisada seja a partir do que hoje chamaríamos de “políticas
públicas de juventude” (ou melhor, da ausência delas), ou seja, de como os jovens
abandonados pelos pais e pela sociedade veem na “marginalidade” o único
caminho para a sobrevivência (PAULETTI; BATOSO, 2012); seja através da ideia
da construção identitária dos meninos de rua (SENA, 2014); ou seja através dos
estereótipos, representações sociais e estigmas que são criados sobre as condições
de abandono por crianças e adolescentes (AGUIAR; PALMEIRA, 2011);
Além de Jorge Amado, autores como Clarice Lispector ou Lima Barreto,
a primeira através da obra A hora da estrela (publicado em 1977) e o segundo
através da obra Recordações do escrivão Isaias Caminha e Clara dos Anjos,
também podem ser tomados como exemplos de escritores que mesclam a ficção
com fatos característicos da realidade social. Quando vemos a história de um
escritor que se relaciona com uma jovem nordestina pobre – A hora da estrela
(LISPECTOR, 1993) –, que perdeu os pais, foi criada por uma tia e saiu do
Alagoas para o Rio de Janeiro, que se apaixona por um metalúrgico que sonha em
ser deputado e como ela não se enquadra em suas ambições ele não assume
nenhum compromisso com a moça não vemos aí narrada um pouco da história de
milhares de imigrantes nordestinos que fogem dos dramas vividos em sua terra
natal em busca de uma vida melhor e mais próspera nas grandes metrópoles do
sudeste?
E quando lemos Recordações do escrivão Isaias Caminha (publicado em
1917) não vemos aí um romance autobiográfico (FLORÊNCIO, 2010), onde se
mesclam fatos entre a vida do autor e os personagens da obra com questões
étnico raciais[1] e de subordinação “como alguém que sofrera visceralmente a dor
da miséria, da doença, da solidão e do preconceito” (id. ibidem, p.127)? Isaias
Caminha é um mulato que mora no interior do Rio de Janeiro que vai estudar na
capital, mas que para isso precisa de uma carta de recomendação do coronel da
cidade onde mora, que o indica procurar um deputado do seu conhecimento na
capital e entregar a carta a ele. Seu sonho de estudar medicina é frustrado pois ele
não tem a receptividade que esperava na capital, tendo apenas um breve encontro
na casa do deputado. Ele só poderia ter alguma chance se fosse indicado por
alguém e nem mesmo essa indicação o ajudou. Como não teve êxito consegue
emprego em um jornal até que consegue ascender profissionalmente não por
mérito pessoal, mas por descobrir fatos pessoas do editor do jornal e começar a
chantageá-lo (BARRETO, 1995). Já o romance de Lima Barreto, Clara dos Anjos,
leva o seu leitor a refletir simultaneamente sobre as relações de gênero, raça e
classe social. A obra tem como cenário o subúrbio carioca e conta a estória de
Clara, moça negra e pobre que se envolve com Cassi Jones, que é branco e
acostumado a iludir as mulheres e fará o mesmo com a ingênua Clara. E apesar
de ser alertada sobre o rapaz. Clara se deixa levar pela sedução de Cassi Jones. O
auge do drama de Clara é quando ela engravida e Cassi Jones viaja para São
Paulo, dizendo que seria por causa de uma oportunidade de emprego, mas que na
verdade seu objetivo era abandonar Clara. Só então Clara cai em si e se vê grávida
e sozinha, tendo que buscar alternativas para sobreviver e dar um futuro digno ao
seu filho. Através do drama de Clara, Lima Barreto denuncia os problemas raciais,
sociais e de gênero, expondo os preconceitos, submissão e abandono que as
mulheres sofriam na época.
A questão da imigração aliada à questão econômica (SEREZA, 2014), a
pobreza (BAHIA, 2012) e a questão étnico racial aparece no romance O Cortiço
(publicado em 1890) de Aluísio Azevedo. De acordo com Haroldo Sereza “as
personagens são apresentadas de acordo com o papel que cumprem na vida
econômica” (id, ibidem, p. 185). É claramente possível traçar “um paralelo entre
ficção e realidade, através da análise de O cortiço, e a comparação com o contexto
histórico ao qual a obra se refere” (BAHIA, 2012, p. 248). O romance relata o
destino de um imigrante português que chega ao Brasil, Jerônimo, e denuncia a
exploração e as péssimas condições de vida dos moradores das estalagens ou dos
cortiços cariocas do final do século XIX (AZEVEDO, 1997). Jerônimo é branco,
forte, persistente, com gosto pelo trabalho e espírito de cálculo, cuja principal
aspiração é “subir na vida” (ideologia eurocêntrica do branqueamento). Acontece
que Jerônimo conhece no Brasil uma mulata, Rita Baiana e, ao se “aclimatar ao
clima do Brasil”, Jerônimo torna-se dengoso, preguiçoso, amigo das
extravagâncias, sem espírito de luta. No romance aparece também outro
personagem, João Romão, outro português que participa das qualidades étnicas
da raça branca.
(...) o desfecho do romance é parabólico. João Romão, calculista e ambicioso,
ascende socialmente no momento em que se distancia da raça negra (ele se
desvencilha de Bertoleza, com quem viveu grande parte de sua vida); Jerônimo,
ao se abrasileirar, não consegue vencer a barreira de classe, e permanece
“mulato”, junto à população mestiça do cortiço (ORTIZ, 2006, p. 39).
Algo semelhante acontece em O Guarani, um romance que tenta criar
uma identidade nacional brasileira, idealizando o índio com o branco, mas
deixando de lado o negro, que naquele tempo era identificado historicamente
pela sua força de trabalho, “mas até então destituído de qualquer realidade de
cidadania” (ORTIZ, 2006, p. 37).
Por fim cabe aqui uma reflexão: por que o envolvimento das artes
literárias no jogo político? A resposta a esta pergunta pode ser a mais variada e
não temos intenção de esgotá-la em algumas poucas palavras. Contudo podemos
dizer que a Arte, bem entendida, serve de instrumento para a emancipação
humana: sonhos e desejos ganham asas e podem ser saciados com a criação
literária. O artista alimenta a obra com os elementos de sua experiência e,
simultaneamente, exprime as aspirações da maioria. E o leitor/observador que
captar essa mensagem e conduzi-la ao cerne de suas indagações,
sentir-se-á fortalecido na busca de sua emancipação e auto-realização.
Aqui os mistérios da criação literária são questionados com perguntas
fundamentais: por que escrevo? e como escrevo? E especulados sobre o
relacionamento da literatura com o mundo, com a história, seu convívio social.
Como a literatura se comporta? Como tem se comportado? Como deve se
comportar no meio social que lhe dá existência efetiva? A literatura é um fruto
social dos mais importantes e dos mais saborosos. Logo, não é descabido
perguntar o que ela está fazendo aqui. Surgiu para quê? Tem alguma função
social? Entre estas e tantas outras reflexões, a política e as questões sociais
certamente encontram um lugar de destaque entre os escritores. Existe um
público mais exigente que não aceita apenas a ideia de que o compromisso do
escritor é apenas o de escrever bem e empolgar o público ao qual se dirige. A
reflexão literária tem um papel social. O escritor deve engajar-se de algum modo.
Comprometer-se com as questões sociais. Ademais,
[...] tanto quanto sabemos, as manifestações artísticas são inerentes à própria
vida social, não havendo sociedade que não as manifeste como elemento
necessário à sua sobrevivência [...] São, portanto, socialmente necessárias,
traduzindo impulsos e necessidades de expressão, de comunicação e de
integração que não é possível reduzir a impulsos marginais de natureza biológica
[...] a produção da arte e da literatura se processa por meio de representações
estilizadas, de uma certa visão das coisas, coletiva na origem, que traz em si um
elemento de gratuidade como parte essencial da sua natureza (CÂNDIDO, 2014,
p. 79-80).

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