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Machado de Assis

“A Semana”, 24 de abril 1892

Na segunda-feira da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das


galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente
era uma charada; mas o nome de problema dá dignidade, e excita para logo a atenção
dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que já não fazem benefício, mas festa
artística. A coisa é a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em número, seja
em preço; o resto, comédia, drama, opereta, uma polca entre dois atos, uma poesia,
vários ramalhetes, lampiões fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o
retrato à beneficiada.
Tudo pede certa elevação. Conheci dois velhos estimáveis, vizinhos, que esses
tinham todos os dias a sua festa artística. Um era cavalheiro da ordem da Rosa, por
serviços em relação à guerra do Paraguai, o outro tinha o posto de tenente da guarda
nacional, a que prestava bons serviços. Jogavam xadrez, e dormiam no intervalo das
jogadas. Despertavam-se um ao outro desta maneira: “Caro major!” — “Pronto,
comendador!”.
Variavam às vezes: “Caro comendador!” — “Aí vou, major”. Tudo pede certa
elevação.
Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta
semana o centenário do grande mártir. A prisão do heróico alferes é das que devem
ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse
patriotismo é outra coisa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas.
A capital portou-se bem. Dos estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de
acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos
Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração de glória. Merecem, decerto, a
nossa estima aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os
pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos
seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado, o
decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por
todos, visto que pagou por todos.
Um dos oradores do dia 21 observou que, se a Inconfidência tem vencido, os
cargos iam para os outros conjurados, não para o alferes. Pois não é muito que, não
tendo vencido, a história lhe dê a principal cadeira. A distribuição é justa. Os outros
têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das
Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a
linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é
envolvido na conflagração geral das coisas. Mas, principalmente, ouvi as palavras de
Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas: “Dei o fogo aos homens; esse
mestre lhes ensinará todas as artes”.1 Foi o que nos fez Tiradentes.
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma coisa, a alcunha.
Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem
tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade no
nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar
pela imaginação um século e despachar-se cirurgião-dentista. Era o mesmo herói, e o
ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Pode ser até que, com o tempo, viesse
a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.
Há muitos anos, um rapaz — por sinal que bonito — estava para casar com
uma linda moça —, a aprazimento de todos, pais e mães, irmãos, tios e primos. Mas o
noivo demorava o consórcio; adiava de um sábado para outro, depois quinta-feira,
logo terça, mais tarde sábado; — dois meses de espera. Ao fim desse tempo, o futuro
sogro comunicou à mulher os seus receios. Talvez o rapaz não quisesse casar. A
sogra, que antes de o ser já era, pegou do pau moral, e foi ter com o esquivo genro.
Que histórias eram aquelas de adiamentos?
— Perdão, senhora, é uma nobre e alta razão; espero apenas...
— Apenas...?
— Apenas o meu título de agrimensor.
— De agrimensor? Mas quem lhe diz que minha filha precisa do seu
ofício para comer? Case, que não morrerá de fome; o título virá depois.
— Perdão; mas não é pelo título de agrimensor, propriamente dito, que
estou demorando o casamento. Lá na roça dá-se ao agrimensor, por
cortesia, o título de doutor, e eu quisera casar já doutor...

1
A referência é à segunda cena de Prometeu acorrentado; os versos citados são o 254
e o 256.
Sogra, sogro, noiva, parentes, todos entenderam esta sutileza, a aprovaram o
moço. Em boa hora o fizeram. Dali a três meses recebia o noivo os títulos de
agrimensor, de doutor, e de marido.
Daqui ao caso eleitoral é menos que um passo;2 mas, não entendendo eu de
política, ignoro se a ausência de tão grande parte do eleitorado do dia 20 quer dizer
descrença, como afirmam uns, ou abstenção como outros juram. A descrença é
fenômeno alheio à vontade do eleitor; a abstenção é propósito. Há quem não veja em
tudo isto mais que a ignorância do poder daquele fogo que Tiradentes legou aos seus
patrícios. O que sei, é que fui à minha seção para votar, mas achei a porta fechada e a
urna na rua, com os livros e ofícios. Outra casa os acolheu compassiva; mas os
mesários não tinham sido avisados e os eleitores eram cinco. Discutimos a questão de
saber o que é que nasceu primeiro, se a galinha, se o ovo. Era o problema, a charada, a
adivinhação de segunda-feira. Dividiram-se as opiniões; uns foram pelo ovo, outros
pela galinha; o próprio galo teve um voto. Os candidatos é que não tiveram nem um,
porque os mesários não vieram e bateram dez horas. Podia acabar em prosa, mas
prefiro o verso:
Sara, belle d’indolence,
Se balance
Dans un hamac...3

2
A eleição referida foi para preencher uma vaga no Senado, para a qual foi eleito
Aristides Lobo. A Gazeta de Notícias, após informar que, dos 25.026 eleitores da
Capital Federal, só 3.112 compareceram, comenta: “Cumpre, porém, reconhecer (...)
que as circunstâncias em que foi feita a eleição de anteontem justificam em parte essa
abstenção e esse indiferentismo. \ Por mais que sejam os esforços dispensados para se
provar que estamos atravessando uma época normal, e pelo fato de estar promulgada
uma constituição estamos rigorosamente no regime constitucional, os fatos estão
bradando bem alto que ainda não passamos do período revolucionário (...) \
Certamente não vale a pena usar de um direito que dá resultados dessa natureza. É por
estar convencido dessa verdade e que o seu direito é perfeitamente platônico, que o
eleitorado se absteve (...). Urna e espadas não são feitas para andar juntas.”
3
Versos de abertura de “Sara la baigneuse”, de Victor Hugo, Les orientales. Machado
cita a partir desse livro umas quatro ou cinco vezes nos dois primeiros anos de “A
semana”. Em 21 de outubro de 1897 (A Semana [Ed. Jackson, vol. 28], 56-59), ele
diz: “Se és do meu tempo não esqueceste que tu e eu, quando expeitorávamos os
primeiros versos que os rapazes trazem consigo, as Orientais contavam já trinta anos
e mais. Mas era por elas que ainda aprendíamos poesia”.

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