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ARTE NO

PENSAMENTO DE
PLATÃO Aquilo que um compatriota contemporâneo entenderia imediata-
mente ao escutar, do título, a palavra “arte” não tem correspondência
direta na língua do tempo de Platão. A autonomia da arte, princípio
LUÍS FELIPE BELLINTANI RIBEIRO batido com o qual o hodierno sempre já conta para discernir o
[Professor adjunto da Universidade campo de discussão da estética, não se aplica à Antiguidade. Essa
Federal de Santa Catarina] interdição tem sua razão de ser, para bem ou para mal, e vale como
um fato histórico positivo. Palavra por palavra, “arte” em português
corresponderia a téchne em grego. Mas téchne tem um significado
amplo e se aplica também, por exemplo, à carpintaria, à agricultura,
à medicina, à estratégia. Se for o caso de discernir, nesse universo
genérico, a especificidade das belas-artes, que é o que se entende
imediatamente pela palavra portuguesa “arte” do título, então será
preciso considerar outras palavras. Em primeiro lugar, poíesis, já que
a poesia antiga não se restringe ao texto, mas abrange o canto, a
dança e a totalidade da experiência musical, não obstante poíesis em
sentido lato ser passível da mesma ambivalência de téchne. O sentido
estrito da primeira se diz também por um qualitativo da segunda,
mousiké téchne, derivado de moûsa, a palavra cantada, que por sua
vez englobava a tragédia, a comédia, a pantomima e até a astrono-
mia (cujo sentido pode se estender até a filosofia), por intermédio da
musa Urânia.
A essa questão de vocabulário acrescenta-se uma outra, filo-
sófica, a saber, o fato de, a despeito da importância que a arte, a
poesia, em toda sua envergadura semântica, e a música assumem
para o pensamento de Platão, não haver uma doutrina platônica da
arte coerente e à parte, separada da discussão de temas de todas
as ordens. Considerando inicialmente a palavra téchne, por exem-
plo, vemo-la aparecer em diversos contextos cumprindo um papel

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fundamental para o projeto platônico em seu caráter anti-sofístico, na arte de tocar flauta, respectivamente. Quando Protágoras deter-
o de prova empírica da existência de um critério que permita hierar- mina sua arte como “arte política” (politikè téchne), surge a questão
quizar os saberes, os pareceres, os discursos, recusando a tese de de saber se a política pode ou não ser ensinada, que, em última
índole relativista, segundo a qual há para cada coisa dois discursos instância, equivale a saber se ela de fato é uma arte, já que está
opostos. Afinal de contas, em se tratando de viajar por alto mar, não no conceito de arte a possibilidade de ser ensinada e aprendida.
é indiferente admitir a opinião do piloto ou a do leigo. Um primeiro Nesse ponto do diálogo, Protágoras intervém com um mito, no qual
sentido de “arte” é esse: uma competência que se aprende e se exer- o conceito de arte aparece em dois contextos diferentes, igualmente
cita, pela qual os que de fato a aprenderam e a exercitaram se dis- fundamentais, quando da passagem de um estado de total carência
tinguem dos demais, constituindo-se em autoridades “naturais” nos de recursos e inferioridade aos demais animais a um estado em
seus respectivos domínios. Mas o ponto mais importante não é de que a sabedoria técnica é capaz de compensar aquela inferioridade:
ordem gnosiológica e sim ontológica: os domínios de coisas teriam [“sem saber como achar salvação para o homem, Prometeu rouba
um modo de ser próprio, teriam um “em-si”, vale dizer, que o experi- de Hefesto e Atena a sabedoria nas artes, juntamente com o fogo
ente conheceria e dominaria pouco a pouco, tirando partido posteri- (...) e os dá de presente ao homem.” 321 c7-d3: aporía oûn schómenos
ormente daquilo que não escolheu, mas a que se rendeu, a essência ho Prometeùs héntina soterían to anthrópo heúroi, kléptei Hephaístou
da própria coisa? A existência de várias artes parece atestar que sim. kaì Athenâs tèn éntechnon sophían syn pyrí (...) kaì hoúto dè doreîtai
Assim, no Protágoras, Sócrates logo põe em xeque a convic- anthrópo] e quando de uma segunda concessão, dessa vez da parte
ção do jovem Hipócrates, de que valia gastar toda a fortuna para de Zeus, do pudor (aidós) e da justiça (díke), sem os quais os ho-
ter lições com o sofista que dá nome ao diálogo, utilizando um cri- mens se dispersavam e eram dizimados pelos animais, “pois não
tério tirado do modo de ser da téchne. Pois, se Hipócrates procu- tinham a arte política, da qual faz parte a arte militar” [322 b5: poli-
rasse seu homônimo de Cós, famoso médico da estirpe de Asclépio, tikèn gàr téchnen oúpo eîchon, hes méros polemiké].
certo seria que para tomar lições de medicina no intuito de se tornar Arte, portanto, é algo inscrito na própria condição humana,
médico, o mesmo em relação a Policleto ou Fídias, a escultura e o pelo que ela se afirma frente à luta de garras e chifres da Natureza,
tornar-se escultor. Sócrates reclama que a sofística seja uma arte embora o fato de ter sido acrescentada de modo violento por decisão
e pergunta pela determinação de seu domínio. “Em que trabalho alheia faça com que, ao mesmo tempo, seja algo que não pertença
ele é perito?” [312 d5: poías ergasías epistátes;]. À resposta “no fazer propriamente ao homem, em si esse abandonado absoluto, carente
alguém terrível no falar” retruca: terrível no falar sobre o quê? (perì de tudo, mas que pertença ao divino, em tudo abundante e cheio de
hoû;), como o citaredo faz alguém terrível no falar sobre a arte de recursos. A participação pelo roubo é, em todo caso, participação, por
tocar cítara? Depois, diante já do mesmo Protágoras, que dizia “edu- isso o homem é o único animal que considera os deuses, ergue-lhes
car homens” [317 b4-5: paideúein anthrópous] e torná-los melhores à altares e deles cria imagens [322 a3-5: Epeidè dè ho ánthropos theías me-
cada lição, se vale dos exemplos de Zeuxipo e Ortágoras, que, afinal, tésche moíras, próton mèn dia tèn toû theoû syngéneian zóon mónon theoús
educam homens e os tornam melhores a cada lição na pintura e enómisen, kaì epeicheírei bomoús te hidrýesthai kaì agálmata theôn].

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Mas essa dimensão artificiosa não basta para que os homens e3-4: tò tà opheilómena hekásto apodidónai díkaión esti], Sócrates retru-
não sucumbam. Eles precisam ainda de uma arte específica, dife- ca: assim como a arte da medicina dá aos corpos os remédios e as
rente de todas as outras, pois com todas as outras ocorre de um artí- dietas que lhes são devidos, e a culinária dá aos alimentos os tem-
fice tornar a arte proveitosa para muitos homens, ao passo que a peros que lhes convêm [aqui, diferentemente do que aparece no
política é, de certo modo, uma arte que todos dominam e têm de Górgias, a culinária é uma téchne e não apenas uma kolakeía, “adula-
dominar se de fato vivem em uma cidade e pretendem continuar ção”], a que é que dá o que é devido e conveniente à arte da justiça?
vivendo. E isso porque aquilo que constitui seu fundamento, pudor [332 c5-d3] E, diante da resposta de Polemarco, de que a justiça “dá
e justiça, foi distribuído a todos, e não ao modo das demais artes. ajuda aos amigos e prejuízo aos inimigos”, [332 d5: he toîs phílois te
Mas, seja uma arte diferente, porém arte, conforme o mito contado kaì echtroîs ophelías te kaì blábas apodidoûsa] Sócrates insiste: assim
por Protágoras, seja outra coisa que não arte, fica assinalada uma como a medicina, em matéria de saúde e doença, é a mais capaz de
diferença a partir, em todo caso, do modelo fornecido pela arte. beneficiar amigos e prejudicar inimigos, em que ação (en tíni práxei)
Importa para Platão o que vem a seguir, quando Protágoras abando- e para que obra (pròs tí érgon) o justo (ho díkaios) é o mais capaz
na o mito em favor do lógos. Primeiro o sofista pergunta: “há ou não de fazê-lo? A própria oposição benefício-prejuízo e amigo-inimigo
há algo uno, do qual é necessário que todos os cidadãos participem faz Polemarco perceber a justiça assim definida no âmbito militar.
para que uma cidade chegue a existir?” [324 d7-9: póteron éstin ti hèn Sócrates logo recusa essa restrição, pois nesse caso a justiça seria
è ouk éstin hoû anankaîon pántas toùs polítas metéchein, eíper méllei inútil em tempos de paz. Mas ela deve ser útil, continua, como a
pólis eînai;] Depois sugere que esse algo uno não seja nem a arte agricultura é útil para a aquisição de víveres e a arte do sapateiro,
do arquiteto nem a do ferreiro nem a do oleiro, mas justiça, tempe- para a aquisição de sapatos. Nova tentativa de restrição: em tempos
rança, piedade, numa palavra, virtude do homem. [324 e2 - 325 de paz a justiça (ou a injustiça) estaria no âmbito, diga-se “jurídico”,
a2: ei mèn gàr éstin, kaì toûtó estin to hèn ou tektonikè oudè chalkeía dos contratos (sýmbola) e das parcerias (koinonémata). Nova recusa
oudè kerameía allà dikaiosýne kaì sophrosýne kaì to hósion eînai, kaì pelo mesmo caminho: o parceiro mais útil para dispor as peças do
syllébden hèn autò prosagoreúo eînai andròs aretén]. xadrez é o enxadrista; o pedreiro, para empilhar pedras e tijolos; o
“A virtude”, no singular, é tema caro a Platão, bem como “as citarista, para tocar. A justiça chega, então, ao âmbito “financeiro”,
virtudes”, no plural, e a relação daquela unidade com esta multipli- pois o justo seria o parceiro mais útil nos contratos e parcerias que
cidade. Mas, por ora, importa constatar que também o exame da envolvessem dinheiro (eis argýrion). O dinheiro, entretanto, pura
virtude e de suas formas se faz a partir do parâmetro da téchne. convenção sem nenhum substrato natural, é ainda uma determi-
No livro I da República, por exemplo, desde o princípio, todas as ten- nação completamente vaga, cuja precisão compensatória Sócrates,
tativas de definição da justiça são, passo a passo, rejeitadas com base outra vez, pretende encontrar na determinação concreta da arte,
na expectativa, lançada por Sócrates, de que a justiça fosse uma arte pois, se é para usar o dinheiro na compra ou na venda de um cavalo,
ou se comportasse como tal. Desse modo, à máxima de Simônides, é melhor se associar ao hípico e, se na de um navio, ao construtor
segundo a qual “justo é restituir a cada um o que lhe é devido” [331 de navios ou ao piloto.

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Sócrates já estava em vias de “demonstrar” que a justiça não própria arte, mas à de uma “arte dos salários” (misthotiké téchne) que
poderia ser a arte de prejudicar o inimigo ou quem quer que seja, se lhe acrescenta.
já que nenhum artífice pode, através de sua arte, tornar outrem pior Exemplos “técnicos” ainda ocorrem no livro I, quando se
em relação à perfeição de seu domínio (como o músico não pode trata de mostrar que nenhum artífice pretende exceder outro artífice
tornar outrem ignorante em música através da música), quando da mesma arte, mas somente o leigo. Assim o justo se assemelha
ocorre a célebre intervenção intempestiva de Trasímaco, que coloca ao que sabe, pois o justo não pretende exceder outro justo, mas pre-
a justiça no seu devido lugar, a política. tenderia exceder o injusto. O injusto, por sua vez, se assemelha ao
Curiosamente, é o sofista que recorre à analogia com a arte, ignorante, pois pretende exceder toda gente. A lição aqui mais uma
após a tentativa de Sócrates de refutar a tese, segundo a qual a justiça vez é a afirmação de um ser em si para cada coisa ou cada domínio
é a conveniência do mais forte, pela alegação de que o mais forte pode de coisas, que se impõe como medida universal, a qual o sábio “obe-
errar na avaliação do que lhe é conveniente ou não. O sofista diz, no dece” e não determina arbitrariamente.
eco de uma velha tese sofística como radicalização de Parmênides O livro I termina tematizando não a téchne, e sim o érgon.
(não há o não-ser, logo não há o falso, não há o erro), mas também Mas é aí que aparece, em toda evidência, a teleologia que determina
ao modo socrático, tirando da sabedoria evidente dos artífices a pro- a compreensão platônica do sentido da arte. É essa teleologia que, de
va da existência de sua própria sabedoria, no caso a sofística. Artífice resto, permite Platão religar arte e natureza, contra os sofistas que as
algum, nem o médico, nem o contador, nem o gramático, pelo me- separaram. Pois não são apenas os artefatos que têm um érgon (uma
nos enquanto assim os designamos, jamais erra [340 d1-e1]. Isso obra, um trabalho) a cumprir, que têm uma “função”, e isso é aquilo
facilita a equivalência que Sócrates quer estabelecer entre conheci- ou que somente cada qual faz ou que ele faz melhor, como o érgon
mento e verdade, por um lado, e ignorância e erro, por outro. da foice é podar, ainda que se o possa fazer com uma faca. Também
Se é Trasímaco que insiste no sentido rigoroso de arte, o cavalo tem um érgon, também os órgãos dos sentidos, também
como essa competência que jamais erra, então que se leve às últimas a alma, e o érgon da alma é superintender (epimeleîsthai), governar
conseqüências esse rigor: o objetivo do médico é tratar os doentes e (archeîn), deliberar (bouleúesthai). Para tudo que tem um érgon há
não ganhar dinheiro, como o do piloto é cuidar da boa viagem dos uma areté, uma “virtude”, no sentido de “excelência”, de “grau ótimo
viajantes e, de um modo geral, o objetivo de cada arte é proporcio- de realização”. Excelência é o cumprimento pleno do érgon. A perfei-
nar aquilo que convém às coisas que lhe são subordinadas, e não ção, pensada nesses termos, estaria do lado do limite. Perfeito é o
aquilo que convém a si mesma, pois, na condição de soberana, é que realiza, até o fim, o seu poder de atingir um fim determinado, e
perfeita, enquanto as coisas subordinadas são imperfeitas. A arte não o que pode tudo.
visa à conveniência do mais fraco, portanto a definição de Trasímaco Esse último postulado intervém novamente no livro II, em
para a justiça não pode estar correta, admitido, como parece estar outra passagem em que a arte aparece ligada à condição humana,
admitido, que a justiça é uma arte. O fato de um artífice receber dessa vez sem o intermédio de um mito. Diante da dificuldade em
eventualmente um salário não se deve à “potência” (dýnamis) de sua definir a justiça e a injustiça no homem justo e no homem injusto,

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Sócrates propõe tentar essa definição na cidade justa e na cidade a cidade atinge o ponto de garantir sua subsistência, mas Gláucon
injusta, pressupondo que a justiça é a mesma na dimensão “psico- lembra que os homens não são como os porcos e não vão se conten-
lógica” e na dimensão política, que a alma (psyché) e a cidade (pólis) tar com esse limite. Hão de querer comer carne, dormir em leitos,
têm a mesma estrutura tríplice, uma parte que comanda, uma que vestir-se com túnicas, enfeitar-se com ouro. Muitos outros artífices,
combate e uma que provê. então, ingressam na cidade para dar conta das novas necessidades
Para tanto, Sócrates cria com o discurso (tô lógo) uma cida- de uma “cidade de luxo” (tryphôsan pólin), dentre esses, médicos, evi-
de desde o princípio. O princípio da cidade é a condição carente dos dentemente, mas também, finalmente, aqueles que seriam os pro-
homens e a necessidade de que eles se associem para que possam fissionais da arte em sentido estrito: “imitadores, muitos dos quais
prover os víveres que lhes faltam. E como é melhor que eles se asso- se ocupam de formas e cores, outros de música, poetas e seus servi-
ciem? Acaso devem todos executar todas as tarefas, na fração de dores, rapsodos, atores, coreutas, empresários, artífices de toda espé-
tempo correspondente, ou cada qual deve se dedicar em tempo inte- cie de utensílios, dentre os quais adereços femininos.” [373 b5-c1: hoí
gral a uma única tarefa e compartilhar de seu produto na expectativa te mimetaí, polloì mèn hoi perì tà schématá te kaì chrómata, polloì dè
de também receber dos outros seus respectivos produtos? É desse hoi perì mousikén, poietaí te kaì toúton hyperétai, rhapsódoi, hypokritaí,
último modo, ao que parece, e por uma simples razão: os homens choreútai, ergoláboi, skeuôn te pantodapôn demiourgoí, tôn te állon kaì
nascem diferentes e não iguais, o que equivale a dizer que têm natu- tôn perì tòn gynaikeîon kósmon].
rezas (phýseis) diferentes. Têm naturezas diferentes em muitos sen- Se a arte em sentido lato, portanto, está no homem desde
tidos, mas importa para Platão aquela diferença que se concretiza o começo, a arte em sentido estrito surge quando o homem supera
como diferença de ofícios, de profissões, de téchnai. o patamar da mera subsistência e se entrega à dimensão supérflua
Em sentido próprio, a execução perfeita de uma arte de- de sua existência. O preço dessa superação é caríssimo, mas o fato
pende de uma natureza propícia, embora não apenas dela, mas tam- de os homens estarem sempre dispostos a pagá-lo revela o elemento
bém, claro, do efetivo pôr mãos à obra, que não deixa passar o tempo trágico de sua condição. Afinal de contas, o fogo e a arte, presen-
certo (kairós). Fica assim estabelecido um dos pilares da constituição teados por Prometeu, continuam com o homem, mesmo depois de
(politeía) dessa cidade (pólis): cada um faz uma só coisa, conforme ele já ter descontado a anterior desvantagem perante os demais ani-
sua natureza e no tempo certo, e deixa em paz os outros. [370 c3-5: mais, e continuam a incitá-lo a fazer por si a própria vida. E a região
Ek dè toúton pleío te hékasta gígnetai kaì kállion kaì rhâon, hótan heîs da cidade, outrora suficiente para o sustento dos cidadãos, deixa de o
hèn katà phýsin kaì en kairô scholèn tôn állon ágon, prátte]. ser, com o afluxo de tanta gente. A cidade que já tem, dentre outras
A comunidade se constitui, então, como comunidade de tantas coisas, pintura, escultura, música, teatro e poesia terá tam-
artífices: lavradores, pedreiros, tecelões, pastores para fornecer ani- bém de fazer guerra. Seus guerreiros devem seguir o princípio já
mais de carga para os primeiros, e pele e lã para os últimos, comerci- estabelecido e se dedicar somente, e de modo excelente, à guerra
antes para levar o que ali sobra e trazer de alhures o que falta, e as- e à luta, que também correspondem a uma arte, a polemiké. Surge,
sim por diante. Sócrates pensa haver terminado sua criação quando então, não apenas um outro ofício, mas um outro génos, “gênero”

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ou “classe”, frente ao primeiro génos, composto por todos os artí- pergunta pelo ser da justiça, como penhor do êxito da própria vida
fices mencionados até então. Do seio do segundo génos surgirá ainda (bíos), concluirá pela impossibilidade de desvincular a tematização
um terceiro, o dos chefes (que deverão ter natureza filosófica e ser da arte em sentido estrito da problemática pedagógica, política, ética,
educados no tempo certo para a filosofia), completando a estrutura até “psicológica” e “biológica”, bem entendidos os étimos. Em últi-
tríplice supracitada, que corresponderia aos três eíde, “espécies” ou ma instância, é na educação das crianças pela música que está em
“elementos”, da alma, o “racional” (logistikón), o “irascível” (thymoei- jogo o tema central de todo diálogo, a justiça e a injustiça na alma e
dés) e o “concupiscente” (epithymetikón). na cidade, pois, afinal de contas, “de toda obra o mais importante é
Os artífices encarregados da guerra são considerados o princípio”. [377 a12: arché pantòs érgou mégiston]
guardiões (phýlakes). Na verdade, o livro VI (428 c11- d7) fala não de A educação do corpo pela ginástica e da alma pela música
uma “arte da guarda”, mas de uma “ciência da guarda” (phylakikè é uma tradição de muitos anos. Mesmo que conclua pela exclusivi-
epistéme). Da estreita relação, porém, entre téchne e epistéme se falará dade da alma como objeto da verdadeira educação, Platão segue o
adiante. Os guardiões são assim chamados porque guardam a fron- impulso elementar dessa tradição. O motivo, no que diz respeito à
teira da cidade, o limite que a mantém una e coesa, como cada parte música, é simples: é pela música que se molda as almas das crian-
da cidade deve ser também una e coesa. Enquanto cada cidadão cuida ças, é pelo mito que se imprime nelas o tipo determinado, tanto
de sua obra no interior da cidade, os guardiões cuidam dos muros, mais “porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma
tanto dos materiais, de pedra, quanto dos espirituais, as leis. Para tan- e afetam-na mais facilmente” [401 d6-7: hóti málista katadýetai eis tò
to, a natureza dos guardiões precisa ser dupla, amável com os seus e entòs tês psychês hó te rhythmòs kaì harmonia] . Note-se que Platão usa
impetuosa contra os inimigos, e precisa discernir constantemente o os verbos plátto (plasmar, modelar, esculpir) e ensemaíno (gravar um
próprio do alheio. Mas qual é o tempo certo de realizar essa natureza? sinal). Platão pensa a eficácia da arte (a música) por analogia com
Isso equivale a perguntar: como educar essa natureza? É aqui que uma arte, a escultura. O pedagogo é um escultor de almas. A arte
aparece, enfim, a tematização da arte das Musas, cujos artífices ape- não é apenas instrumento da pedagogia, mas a própria pedagogia é
nas tinham sido admitidos na cidade, quando da irrupção do lúdico. uma arte, garantida pela contrapartida material da plasticidade das
Aquele que pretende extrair uma estética das páginas almas das crianças.
subseqüentes dos livros II e III da República deve ter sempre em Além da escultura, outra arte também fornece um parâme-
mente o fato de que a análise da “música” aí operada é totalmente tro para Platão pensar a essência da arte. Mais recorrente é a ana-
determinada por uma intenção pedagógica, no sentido etimológico logia com a pintura, da qual se retira, segundo ele, a sua principal
de “condução das crianças e jovens”, e de uma pedagogia direcio- determinação: ser “imitação” (mímesis). Platão leva muitíssimo a
nada para formar os guardiões da cidade, e não de uma pedagogia sério a estranha capacidade da pintura de forjar uma imagem, uma
em geral. Se, além disso, considerar que a necessidade dessa peda- forma, em tudo semelhante ao modelo real, mas sem sua consistên-
gogia se desdobrou de uma análise da condição do homem na sua cia ontológica. A poesia é uma espécie de pintura porque produz
dimensão individual (psyché) e social (pólis), e isso para responder à simulacros (phantásmata) de pessoas, coisas e ações, na imaginação

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do ouvinte. A imagem é um totalmente outro, que é o mesmo na mitos e incluir após exame os que fazem mitos belos, e os que não
aparência. Não é à toa que, além da arte, também a sofística tenha fazem, excluir após exame”. [377 b11-c2: Prôton dè hemîn, hos éoiken,
sido caracterizada por Platão como “mimética”. Fica a questão de epistatetéon toîs mythopoioîs, kaì hòn mèn àn kalòn [mûthon] poiésosin,
saber se a compreensão da arte é que já é predeterminada pela dis- enkritéon, hòn d’àn me, apokritéon.] No “após exame” (-kritéon) do
junção metafísica essência-aparência, verdade-falsidade, ou se, ao incluir ou excluir (en-, apo-kritéon) patenteia-se a condição de krí-
contrário, a metafísica é que é fruto de uma preocupação radical sis (decisão) da tarefa e a necessidade de explicitação do critério.
com o modo de ser da arte. O exame começa com aquela parte do mito que é lógos, já que o
O sentido e a importância da imitação, entretanto, não se mito é mais que apenas lógos, em todo caso, o inclui, como um de
esgotam aí. Não é só o artista que imita ao produzir sua obra, tam- seus elementos. Dir-se-ia hoje em dia: “a música inclui uma letra”.
bém o que acolhe a obra, o ouvinte ou espectador – e em maior Esse “texto”, por si, extraído de seu contexto de canto, dança etc.
medida quão mais jovem for – passa a imitar, em sua vida ordinária, é que deve primeiro ser examinado pelo lógos naquilo que tem de
os modelos de ação e discurso que recolhe das obras de arte. Que lógos. Trata-se de uma disputa pelo cetro da paidéia helênica, já que
as crianças aprendem imitando as realizações circunstantes, é uma Platão sabe que rivaliza com aquele que “educou a Grécia”. [606
evidência que Platão não pretende questionar, apenas regular por e2: tèn helláda pepaídeuke] O exame não pretende apresentar mitos,
seu critério. O domínio “instintivo” que cada qual tem de sua língua mas somente os “tipos” (týpous), segundo os quais eles devem ser
materna é o signo mor da eficácia da imitação, que age em camadas compostos. O critério é ético, pròs aretèn, embora aqui também se
muito mais profundas do que as da representação consciente, deter- pudesse pensar que é a ética que está sendo determinada pelo belo
minando, inclusive, de saída, o horizonte de possibilidades dessa e pela arte.
representação. As realizações circunstantes, por sua vez, incluem O exame do lógos, por sua vez, começa com o lógos acerca
tudo o que chegue pelos olhos e pelos ouvidos, e nesse ponto vale de deus (theós), com theología, em sentido arcaico. A primazia se
lembrar o sentido primário da palavra “estética”, como o “relativo à justifica, porque aquilo que os poetas apresentam como próprio
sensação (aísthesis)”. Nenhuma forma, cor, ruído, silêncio, textura, dos deuses funciona como o modelo por excelência a ser imitado.
cheiro ou sabor é indiferente ou “inofensivo” nesse processo de for- Sócrates exige, então, que deus sempre seja representado como
mação do caráter (êthos). Muito menos disposição de humor, gesto, “acontecer de realmente ser” [379 a7: hoîos tynchánei ho theòs ón] Se
ação, exortação, censura, lamento. O atesta o exemplo do livro X, do deus é essencialmente bom (tô ónti agathós), forçoso é que jamais
homem que normalmente continha pela razão o riso despudorado prejudique, mas sempre beneficie, jamais seja causa do mal, mas
diante do ridículo e, de tanto dar vazão a ele durante as imitações da sempre do bem, pois uma causa não pode produzir um efeito con-
comédia, termina, como quem não quer nada, por dar uma de ator trário à sua essência. Argumento semelhante já havia sido usado a
cômico na própria casa. [606 c2-9] propósito da arte, quando Sócrates tentava refutar a tese de que o
Por isso, os “construtores de cidade” (oikistaì póleos), Sócrates sábio usa a sabedoria em proveito próprio e em prejuízo do objeto
e seus companheiros, precisam “começar por vigiar os fazedores de do seu saber. Daí se segue que as desgraças que os homens sofrem

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não devem ser atribuídas aos deuses, mas a eles próprios, que, se A inimizade entre “congêneres” (syngeneîs) entre “os de casa” (oikeíous)
em algum momento o deus faz sofrer, isso deve ser interpretado não é boa medida para os que deverão viver como concidadãos.
como expiação de uma falta, e é melhor para o injusto ser punido, Outro preceito fundamental acerca de deus é ser ele sim-
pois a injustiça prejudica, pela sua essência prejudicial, no próprio ples, não composto, pois o composto é derivado do simples e corrup-
ato injusto, o autor desse ato, e a expiação é uma chance de se livrar tível, quando da decomposição, mas deus está na origem e é imortal.
desse mal. Correlata a essa assunção de responsabilidade, por parte O simples, por constituição, permanece sempre igual a si mesmo,
dos homens, pelos seus erros, deve vir representada a idéia de que assim como deus também permanece, já que, sendo o melhor, não
as boas ações, por outro lado, não são atribuíveis ao mérito humano, tem porque mudar, o que só poderia ocorrer para pior. Além disso,
mas à dádiva divina. A despeito da nobreza desse preceito, contrário quão mais bem constituídas as coisas, tanto maior a tendência a
àquele hábito mesquinho de se gabar pelos acertos e atribuir os erros guardar o mesmo aspecto e a invulnerabilidade à ação corrosiva do
a uma instância exterior, fica a constatação de que o banimento da devir. Com isso, ficam rejeitadas as representações de deus como
tragédia, enquanto gênero inteiramente imitativo sem narração, que um “feiticeiro” (góeta), que assume formas muito variadas e ilude
vai ocorrer mais adiante, começa antes, com a paulatina superação no aparecer mutante dessa polimorfia. Aqui, de novo, subjaz um
do espírito trágico em favor de uma razão otimista. Por exemplo, princípio caro à metafísica platônica, de que o fundamento é da
Sócrates considera anoétos, “absurdo”, o dizer de Homero (Ilíada ordem da forma, da unidade, da identidade e da permanência (diz
XXIV 527-528): Sócrates no Banquete acerca do belo: “ele mesmo, por si mesmo,
consigo mesmo, de aspecto uno, sempre sendo”) [211 b1-2: autò
No limiar de Zeus repousam duas vasilhas kath’autò meth’autoû moneidès aeì ón]
Cheias de destinos, uns bons, outros maus Não ilude por metamorfose um deus, nem por palavras, o
que equivale a dizer que deus não engana nem mente, por ser total-
[379 d3-4: Hos doioí te píthoi katakeíatai en Diòs oúdei/ Kêron mente “isento de falsidade” (apseudés). E as razões que os homens
émpleioi, ho mèn esthlôn, autàr hò deilôn. Tradução de Maria Helena teriam para justificar a mentira, um deus não as tem. Os próprios
da Rocha Pereira] deuses não precisam de mitos, essas mentiras necessárias por causa
do desconhecimento do passado, nem temem os inimigos, nem
No mais, as lutas entre pais e filhos pelo trono, como no caso de ficam loucos. “Por conseguinte, deus é absolutamente simples e
Urano e Crono, e Crono e Zeus, em Hesíodo, cenas de mutilação, verdadeiro, em atos e em palavras, e não se transforma a si mesmo,
de inimizade, de ódio, gigantomachías e theomachías, são todas consi- nem ilude os outros: nem por aparições, nem por discursos, nem
deradas impróprias por Sócrates para a formação das crianças, que por envio de sinais, na vigília ou em sonhos”. [382 e8-11: Komidê ára
são ainda “privadas de discernimento” (áphronas) e não atingem ho theòs haploûn kaì alethès én te érgo kaì lógo, kaì oúte autòs methísta-
o significado profundo dessas histórias. Não se as deve contar em tai oúte állous exapatâ, oúte katà phantasías oúte katà lógous oúte katà
mitos (mythologetéon), nem pintar em cores variadas (poikiltéon). semeíon pompás, oúth’hýpar oud’ónar]

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Em seguida, na busca de um outro fim, “para que sejam porquanto “quase sempre que alguém se entrega a um riso violento,
corajosos” (os futuros guardiões), surge outra prescrição aos educa- tal fato lhe causa mudança também violenta”. Muito menos os deu-
dores: dizer-lhes palavras que façam com que temam a morte o me- ses, contrariamente ao que diz Homero (Ilíada I 599-600):
nos possível, que prefiram-na à derrota e à escravidão. Têm de incu-
tir sentimento avesso ao das palavras da sombra de Aquiles morto a Um riso inextinguível se ergueu entre os deuses bem aventurados
Ulisses (Odisséia XI 489-491): Ao verem Hefesto afadigar-se pelo palácio afora

Antes queria ser servo da gleba, em casa [389 a5-6: ásbestos d’ár’enôrto gélos makáressi theoîsin/ hos ídon
de um homem pobre, que não tivesse recursos, Hephaístion dià dómata poipnýonta. Tradução de Maria Helena da
do que ser agora rei de quantos mortos pereceram Rocha Pereira]

[386 c5-7: bouloímen k’epaúros eòn theteuémen állo/ andrì par’aklêro, Na seqüência, Sócrates apresenta outros dois critérios para o jul-
hô mè bíotos polùs eíe/ è pâsin nekýessi kataphthiménoisin anássein. gamento da poesia, como virtudes que o guardião deve ter: tempe-
Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira] rança (sophrosýne) e domínio de si (enkráteia). Mantém os versos que
incitam à obediência aos chefes e rejeita os que apresentam heróis
Nesse intuito, cabe recusar a literatura acerca do Hades, que o entregues à embriaguez, ou deuses ao desejo amoroso (tèn tôn aph-
caracteriza como “pavoroso” (smerdaléos), “bolorento” (euroénta), rodisíon epithymían), como Zeus apaixonado por Hera na cena de
onde as almas dos mortos esvoaçam como morcegos no interior de seu dolo no canto XIV da Ilíada. Depois, então, de recusar aos heróis
uma caverna, soltando pequenos gritos, como “ídolos” (eídola) sem – descendentes diretos dos deuses, que a eles deveriam ser seme-
consciência (phrénes). Todo o vocabulário horripilante dessa litera- lhantes – a arrogância, a impiedade, como as das palavras de Aquiles
tura, como “Cócito”, “Estige”, “infernais”, “sem-sangue”, [387 b9-c1: a Apolo (Ilíada XXII 15, 20):
Kokytoús te Stýgas kaì enérous kaì alíbantas] pode amolecer aqueles
que devem ser livres e temer a escravidão mais que a morte. Prejudicaste-me, deus que acertas de longe, o mais funesto de todos!
Depois dos deuses e do Hades, os heróis. É preciso elimi- Bem me vingava eu de ti, se tal poder me fosse dado!
nar-lhes lamentos e gemidos, como os de Aquiles pela morte de
Pátroclo, afinal de contas, o homem comedido (ho epieikès anèr) bas- [391 a6-7: éblapsás m’hekáerge, theôn oloótate pánton./ ê s’àn tisaí-
ta a si mesmo (autárkes) para viver bem (eû zên) e haverá de lamen- men, eí moi dýnamís ge pareie. Tradução de Maria Helena da Rocha
tar-se menos e suportar melhor ser privado de um filho ou irmão, de Pereira]
riqueza, glória ou qualquer outra coisa. No contexto de uma tal esté-
tica, a velha fórmula “ai de mim” (oí-moi) torna-se inútil. Também Sócrates pensava em passar à análise do que caberia à poesia dizer
não devem ser “amigos de rir” (philogélotas) os guardiões da cidade, acerca dos homens, mas se dá conta de que, para isso, já deveria

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saber o que é a justiça, tema perseguido desde o início do diálogo e (pantodapòn gígnesthai kaì mimeîsthai pánta chrémata), não obstante
ainda não alcançado, para em seu molde produzir os tipos a serem a aprovação de apenas uma das “duas espécies de expressão” (dýo
entregues à poesia. Fica a constatação de que o estado atual da poesia eíde tês léxeos) da poesia, Platão, ele mesmo, usou mais imitação que
a respeito dos assuntos humanos é de uma total impropriedade. narração em seus diálogos filosóficos e, mesmo no caso da narração,
Diante dessa impossibilidade momentânea, o diálogo pros- sempre pôs outrem a narrar por ele. Não obstante reclamar por uma
segue com uma teoria geral da poesia mitológica. “Tudo quanto di- estética “mais austera e menos aprazível” (austerotéro kaì aedestéro),
zem os mitólogos e poetas é narração (diégesis) de acontecimentos seu texto é, na história da filosofia, aquele em que mais intervém
passados, presentes ou futuros”. Mas há três modos de fazê-lo: ou o elemento patético, pela presença dramática, não raro trágica ou
por simples narração (haplê diegései), quando o poeta narra os fatos cômica, dos personagens. E é também o mais aprazível.
em terceira pessoa, sem falar como se fosse um dos personagens, Depois da consideração da parte literária da música, vem a
é o caso dos ditirambos; ou por imitação (dià miméseos), quando o do caráter do canto, da melodia (perì odês trópou) e das outras duas
poeta fala através do personagem, tentando fazer crer o mais possí- partes da melodia (tò mélos), fora o logos: harmonia (harmonías) e rit-
vel que é o personagem, e não ele, que fala, é o caso da tragédia e mo (rhythmoû). O princípio regulador é de que esses devem seguir
da comédia; ou através de ambos (di’amphotéron), é o caso da epo- o lógos. Baseado, então, numa correspondência entre os tipos de dis-
péia. Uma primeira sugestão, aparentemente sensata, de que o curso e os tipos de harmonia, são excluídas a mixolídia e a sintolídia,
melhor é o gênero misto, é suplantada por uma recusa integral do por serem próprias para acompanhar lamentos e gemidos, a jônia e a
gênero mimético, devido à insistência no princípio de que, nesta lídia, ditas “frouxas” (chalaraì), usadas nos banquetes, e que sugerem
cidade, cada um realiza uma obra e não se mete na dos outros, e embriaguez (méthe), moleza (malakía) e preguiça (argía). São manti-
“as imitações,” – como já se disse – “se se perseverar nelas desde a das a dória e a frígia, a “violenta” (bíaion) e a “voluntária” (hekoúsion),
infância, se transformam em hábito (éthe) e natureza (phýsin) para o apropriadas para imitar o ressoar da voz (phthóngous) e as inflexões
corpo (sôma), a voz (phonás) e o pensamento (diánoia)”. O guardião (prosódias) do homem temperante, que deve, por um lado, lutar com
não deve imitar outros artífices em suas competências, nem escra- coragem na guerra, ainda que sofrendo os piores revezes da fortuna
vos procedendo como tais, nem homens a criticar os deuses, nem (týche) e prestes a morrer, e que, por outro lado, deve, em tempos de
mulheres a reclamar dos maridos ou dominadas por desgostos ou paz, persuadir com preces e admoestações, ensinando aos outros, ou
pelas dores de parto, muito menos devem imitar os sons da natureza a eles se submetendo, se persuadido por seus ensinamentos.
e os grunhidos dos animais. Se tiverem de imitar algo, que imitem, A imitação de um caráter assim constante dispensa tam-
como lhes convém desde a infância, os corajosos (andreíous), tempe- bém o serviço de instrumentos de muitas cordas e de muitas harmo-
rantes (sóphronas), pios (hosíous), livres (eleuthérous). Mas a falta de nias, como trígonos e harpas, bastando a lira e a cítara, nas cidades,
liberdade (aneleuthéra) não devem praticar nem imitar. e a siringe, nos campos. A flauta, também rejeitada, por ser o ins-
A esse respeito, convém notar que, não obstante a exclusão trumento que emite mais sons (e menos distintos, acrescente-se),
desse saber “tornar-se e imitar, de todos os modos, todas as coisas” é lembrada como o instrumento do sátiro Mársias, derrotado por

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Apolo em concurso musical julgado pelas Musas. O caráter apolíneo lado, euarmostía (“boa-harmonia”), euschemosýne (“boa-proporção de
dessa estética vai de par com o caráter apolíneo do projeto platônico figura”), eurhythmía (“bom-ritmo”), de outro lado, anarmostía, asche-
como um todo, aqui na República manifesto na versão política do mosýne, arrythmía, seus contrários. A relação com a “ética” se mostra
principium individuationis, que é o preceito de que cada um realiza na extensão da lista ao par euétheia-kakoétheia, que por sua vez fun-
uma única obra. damenta a oposição, de caráter “lógico”, eulogía-kakología. Aquelas
Quanto aos ritmos, Sócrates não se decide dentre os vários categorias estéticas, além disso, não se aplicam apenas à poesia e
que apresenta, “enóplio composto” (enóplion sýntheton), “dáctilo” às suas partes, mas se estendem também à pintura (graphikén), à
(dáktylon) e “heróico” (herôon), modificados e combinados pelo tem- tecelagem (hyphantiké), à arte de bordar (poikilía), à construção de
po dos pés, porque não é capaz de apontar o tipo de vida que cada prédios (oikodomía) até mesmo à marcenaria e à fabricação dos de-
um imita. Limita-se a repetir o princípio já estabelecido na avaliação mais utensílios (he tôn állon skeuôn ergasía), já que todas as suas res-
das harmonias, segundo o qual é o ritmo e a harmonia que devem pectivas obras afetam os olhos e ouvidos dos jovens, incitando-os à
se adaptar às palavras (ao lógos), e não vice-versa. De saída, claro, virtude ou ao vício.
pode-se afirmar, analogamente, que a cidade ora em construção não Não há nesse ponto nenhuma subordinação unilateral,
terá necessidade de ritmos muito variados, cheios de pés. Mas como envolvendo ética e estética, mas, ao contrário, há a consciência do
o modo de expressão é uma função do caráter da alma, a legisla- nexo arcaico entre sensibilidade, inteligência, ação e discurso. A
ção acerca do ritmo depende do conhecimento das relações entre equivalência entre belo e bom não é nenhuma invenção de Platão.
os tipos de ritmo e os tipos de caráter. Por isso Sócrates prefere dei- Em última instância, também a pergunta “por que o bom e não an-
xar o trabalho para Dâmon, professor de música que estudou pre- tes o mau?” se responde “porque assim é belo e não feio.” Os belos
cisamente essas relações. Uma tipologia rigorosa demandaria uma éthe no interior da alma devem aparecer, na mesma medida (ho-
minuciosa especificação, o que não impede Sócrates de propor uma mologoûnta), no aspecto exterior (en tô eídei), e vibrar em consonân-
dicotomia simples fundamental, que é a que está posta desde o início cia (symphonoûnta). Esse é o sentido do belo como o brilho do bom,
do diálogo pelo par justiça-injustiça: a partir da ambivalência da pala- como a superfície da virtude. A bondade do demiurgo se deduz da
vra eu-étheia, “bom-caráter”, o filósofo rechaça o sentido vulgar de beleza de sua obra: o belo é o presente não economizado pelo bom,
“ingenuidade”, já que a ingenuidade é “sem inteligência” (á-noian), ao transbordar sem inveja sua bondade. O homem que participa
e reivindica o rigor do étimo, que opõe a perfeição do eu- à privação (metéchonta) desse tipo é, ele próprio, “o mais belo espetáculo para
ou deformação do alfa privativo, ligando na origem o bom caráter à quem puder contemplar” (kálliston théama tô dynaméno theâsthai).
inteligência (diánoian), única capaz de “constituir o êthos de modo Com isso fecha-se o círculo que patenteia o caráter de princípio da
verdadeiro, bom (eû) e belo”. [400 e2-3: tèn hos alethôs eû te kaì kalôs relação em questão: a obra dessa arte, a educação, é a alma modelada
tò êthos kateskeuasménen diánoian] através da arte, ela própria modelo para arte.
Dessa oposição de sufixos, surge um quadro de noções Mais justo seria dizer que o pensamento platônico, que
que poderiam ser classificadas como puramente “estéticas”. De um coloca a idéia de bem no topo da hierarquia, é movido sempre por

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uma exigência estética. Qual a índole da reclamação constante por “artífice da natureza” (phytourgós) e não o simples “artesão público”,
nitidez, distinção, consistência; da preocupação com as bordas, com “demiurgo”. Claro que pode ser só uma metáfora para falar da eterni-
medidas e simetrias; do recurso ao critério de ordem (“cosmético”) dade da idéia, e de seu caráter ingênito, já que a situação de um
e harmonia; da preocupação com sombras e reflexos; da economia fiturgo produzindo a idéia traz a reclamação por um modelo além da
matemática que serve de base, tanto à suposição de um inteligível idéia, que ele pudesse contemplar para precisamente engendrá-la.
puro, quanto ao gosto pela contenção e pelo gesto minimalista, o O que importa é que Platão não hesitou em empregar essa metáfora,
qual implica até uma decisão a respeito da indumentária e do corte apesar do mal-entendido que poderia provocar. Pois queria mostrar
de cabelo? o fundamento impregnado de teleologia, e é o modo de ser da arte
A discussão sobre a música termina momentaneamente no que fornece o protótipo da “causa final”. Arte e natureza não apa-
livro III, quando Sócrates deixa, de passagem, uma tese de cunho recem em oposição, como na sofística, mas são determinadas pelo
metafísico, que só será explicitada no livro X, com a retomada da mesmo esquema ontológico: “Acaso a excelência, a beleza e a corre-
determinação da poesia como imitação. Essa tese se vale da analogia ção de cada artefato, de cada ser vivo ou de cada ação é outra coisa
com as imagens refletidas na água ou em espelhos para dizer que que a chreía (utilidade/ função?) para a qual cada um ou foi feito
a verdadeira música depende do conhecimento das “formas” (eíde) ou nasceu?” [601 d4-6: Oukoûn aretè kaì kállos kaì orthótes hekástou
da temperança (sophrosýnes), da coragem (andreías), da generosidade skeúous kaì zóou kaì práxeos ou pròs állo ti è tèn chreían estín, pròs hèn
(eleutherióthetos), da grandeza de espírito (megaloprepeías), das quais àn hékaston ê pepoieménon è pephykós;]
a materialidade da música é uma imagem. Mas, além da idéia de cama e da cama concreta feita pelo
No livro X, a poesia em sentido estrito, a arte das musas, vol- marceneiro, há uma terceira espécie (eídos), a imagem (eídolon) da
ta a ser tematizada por contraste com a poesia em sentido geral, isto cama pintada num quadro, feita pelo pintor, que tem está estranha
é, com a téchne. Àquela altura já estava bem estabelecida a doutrina característica de ser e não ser uma cama. O autor do ídolo não é
da separação das idéias e da sua participação com as coisas. Sócrates, um demiurgo como os outros dois, o fiturgo e o demiurgo comum.
então, fala de três níveis de realidade e três níveis de operação corres- Não é um produtor, um “poeta”, como eles (o que leva a um para-
pondentes, mas a referência é o modo de ser da produção do artífice doxo: o poeta em sentido estrito não é um “produtor”, um “poeta”
(demiourgós). O marceneiro, por exemplo, faz uma cama, não sem em sentido lato). É precisamente um imitador. Mas que mal há em
método, não sem uma finalidade, mas como que perseguindo desde ser imitador? Todo demiurgo também não “imita” algo? Repetir-se-
o começo o fim a que quer chegar, olhando para a idéia de cama e ia, aqui, o dogma de que um está dois pontos afastado da verdade
imprimindo sua forma na matéria, apesar da resistência dessa últi- (da idéia), enquanto o outro está três, por imitar não diretamente a
ma. A idéia de cama, propriamente, deve ser sempre una e idêntica, idéia, mas seu homônimo sensível, e o lugar-comum de que a obra
para evitar uma regressão ao infinito de idéias de idéias. de arte seria a cópia da cópia. Importante, porém, é interpretá-los.
Mas curioso é que nesse contexto do livro X, Platão apresen- A imitação fracassa por não corresponder ao modo de ser da téchne,
ta a própria idéia como produto de uma poíesis, cujo poeta, deus, é o pressuposto como critério. Em primeiro lugar, a mimética imita

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toda e qualquer coisa, como alguém que caminha com um espelho quatro partes envolvidas em toda operação demiúrgica: o modelo, a
nas mãos, reproduzindo os seres naturais e artificiais com que cruza matéria, o artista e a obra, e que postular a primazia ontológica de al-
no caminho, não se detém, como a téchne, sobre um campo deter- guma parte, isto é, a possibilidade de existência em si, independente-
minado do real [Górgias 450 b1-2: perì tò prâgma hoû hekáste estìn he mente da relação com as outras, é problemático porque cada termo
téchne]. Homero imita um general, um médico e um arauto, sem só é definido a partir da relação. Ora, o velho Platão sabia que, se o
ser perito em nenhum desses domínios. Além disso, a mimética absoluto tivesse de restar impassível, teria de restar incognoscível.
não se preocupa em conhecer como é, em si e por si mesmo, o real Veja-se a esse propósito o modo como refuta no Sofista os “amigos
correspondente a cada arte que imita, já que lhe basta o aparente das formas”, caricaturas de platônicos, ou o resultado da primeira
(phainómenon) para agradar o grande público ignorante, que julga hipótese acerca do uno no Parmênides. A rigor, na origem está a
pela cor (chrôma) e formato (schêma). A mimética não é conheci- trama que envolve os quatro termos, mesmo que um dos termos
mento (epistéme), não se atém às determinações universais e ne- cumpra na trama o papel de transcendente. A trama como tal é una,
cessárias das coisas, ao contrário, nutre-se de explorar os efeitos de intrinsecamente una, pois não é resultado de justaposição. Mas sua
perspectiva sempre cambiantes, os efeitos de luz e sombra particu- unidade não exclui multiplicidade, sua ipseidade não exclui relação.
lares, com o intuito de agradar. A valorização da téchne como modelo A estrutura quádrupla, no caso da cosmogonia, é bem
chega a tal ponto, que Platão prova, circularmente, que o poeta não conhecida: 1) o modelo (parádeigma), 2) o elemento passivo e resis-
conhece estratégia pelo fato de não ter se tornado efetivamente gene- tente, chamado chóra, e cognominado “receptáculo” (hypodochén)
ral e ter sido forçado a resignar-se com a condição de poeta. 3) o demiurgo e 4) o mundo. Mas ela aparece também em outros
O termo “demiurgo”, entretanto, notabilizou-se não pelo contextos não menos fundamentais. No Filebo, a propósito agora de
seu significado comum de “artífice em geral”, como marceneiro e “todos os seres” (pánta tà ónta), Sócrates fala a Protarco de quatro
sapateiro, mas como designação de um demiurgo especial, aquele “gêneros” (géne): 1) o ilimitado (ápeiron), 2) o limite (péras), 3) a subs-
que engendrou não camas ou sapatos, mas o próprio mundo (kós- tância mista gerada dos dois primeiros (ek toúton meiktèn kaì gegen-
mos), esse ser vivo, animado e inteligente, em sua totalidade e uni- eménen ousían), 4) a causa da mistura e da geração (tèn tês meíxeos
dade múltipla, por cujo modo de ser as camas, sapatos e todas as de- aitían kaì genéseos). Suposto está que toda geração, todo vir-a-ser, é
mais coisas são como são. É que, para Platão, a gênese, pelo menos uma mistura de ilimitado e limite, e que nada vem a ser sem cau-
do que é belo, é sempre uma poese. E, sendo o mundo a mais bela sa. A tal mistura se dá do seguinte modo: o campo absolutamente
obra, só pode ter como causa o melhor poeta. Normalmente o que se indeterminado de oscilação entre o mais (mâllon) e o menos (hêtton)
retém como lição fundamental do platonismo do fato de o mundo recebe medida pela imposição de um número, ganha proporção, e
ser uma obra de arte é o aspecto depreciativo em relação ao sensível, precisamente esse determinar-se é o vir-a-ser. O quarto gênero, que
seu caráter de mera imagem, duplo derivado, e ainda por cima imper- é a causa, é explicitamente chamado de demiurgo, de poioûn (agente/
feito. Mas há muitas outras lições a tirar desse fato, que ensinam produtor), por oposição ao poioúmenon (paciente/ produzido), que é
sobre o modo de ser da arte e do mundo. Em primeiro lugar, que há o próprio gerado.

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A ação do demiurgo é uma passagem da desordem (ek A natureza mortal busca, conforme o possível, ser sempre, e ser imor-
ataxías) para a ordem (eis táxin), do ilimitado para o limite, embora tal. Isso só lhe é possível com a geração, que sempre deixa um outro
ambos permaneçam sempre como índices ontológicos elementares. novo no lugar do velho, no que cada um dos seres vivos se diz viver, e
O grande problema está em saber em que medida o paradigma pré- ser o mesmo.
determina o ato da produção-geração. Tende-se a pensar que, se a
pré-determinação for total, a arte nada pode. Mas como seria total, [207 d1-5: he thnetè phýsis zeteî katà tò dynatòn aeí te eînai kaì
se cada um dos quatro gêneros cumpre um papel próprio e intrans- athánatos. dýnatai dè taúte mónon, tê genései, hóti aeì kataleípei
ferível na trama originária, e assim “pré-determina” à sua maneira héteron néon anti toû palaioû, epeì kaì en hô hèn hékaston tôn zóon
aquilo que realmente é, o ato da criação? Uma coisa, pelo menos, zên kaleîtai kaì eînai tò autó.]
está totalmente a cargo do artista: o remate, o efetivo pôr mãos à
obra. Dizer que ele obedece a um modelo significa dizer que não A geração tem esse sentido elementar, biológico, que se comprova
cria arbitrariamente. E o modelo, no caso, a idéia, é a unidade que em todo reino da natureza pela tendência de cada espécie de acasa-
garante a multiplicidade, já que o puro múltiplo se auto-aniquila na lar e reproduzir, e de cuidar dos filhotes como a si mesmos. Mas
indeterminação do primeiro gênero (Filebo 24 a3: tò apeíron póll’estí). tem também outros sentidos, especificamente humanos, cujo re-
Nenhuma obra esgota o ser do modelo que imita, mas, de alguma bento não é um corpo para substituir um corpo, mas uma obra de
maneira, a criação contínua de obras pereniza, na dimensão tem- outra espécie, como a lei fundadora de um estado e o poema fun-
poral, nos limites do ser mortal, o caráter eterno desse modelo. dador de uma língua. Os animais atingem a imortalidade somente
O próprio demiurgo do Timeu engendra o tempo como uma imagem pela conservação da espécie. Dentre os humanos, os próprios indi-
da eternidade, e faz isso num outro tempo, que é o tempo do mito. víduos podem atingi-la, através de “imortal glória e memória” (209
O tempo consegue ser imagem da eternidade através do movimento d3: athánaton kléos kaì mnémen), como Licurgo e Sólon, pelos filhos
circular, de poente a poente, de pai para filho, a idéia permanece que deixaram na Lacedemônia e na Ática, como Homero e Hesí-
gravada na matéria que flui sem parar. Por esse viés, a filosofia de odo, dos quais se pode dizer que todos os gregos são filhos. No
Platão não é “filosofia da idéia”, mas “filosofia da arte” (demiurgia/ Banquete, o poeta re-aparece não como aquele que não é “poeta”
poesia/ geração), para a qual a idéia é um dos elementos. (poietés, “produtor”, por ser mero imitador), mas como o produtor
Não é isso que diz também o Banquete? Depois de muita por excelência, o que mais perfeitamente cumpre o sentido de toda
discussão, Sócrates chega à conclusão de que a relação entre o amor geração, que é a imortalidade, com o que seria perfeitamente justi-
e o belo não é apenas a dada pelo genitivo objetivo (“o amor é amor ficável a metonímia que chama a poesia em sentido estrito, essa
do belo”), mas que o amor é da geração e parturição no belo, o belo “bela-arte”, com o nome do todo, embora Sócrates não a justifique.
funcionando como a presença propícia (Moira e Ilitia) para o ato Limita-se a dizer (205 b8-c2), confirmando o nexo já estabelecido
que equivale a um parto, pelo qual o mortal assegura a imortalidade entre arte, poesia e demiurgia:
desejada ao deixar um novo no lugar do velho que morre:

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Poesia (poíesis) é, pois, toda causa de qualquer vir-a-ser do não-ser Então, Hermógenes, não de todo homem é próprio estabelecer o nome,
(ek toû mè óntos) para o ser (eis tò ón), de modo que as operações mas de algum “artífice do nome” (onomatourgoû); este é, como parece,
(ergasíai) em poder de todas as artes (téchnais) são poesias e os artífices o legislador (nomothétes: instituidor do nómos, da convenção), de todos
(demiourgoí) dessas artes, todos poetas. os artífices públicos (demiourgôn), o que mais raramente surge entre
os homens.
Poder-se-ia arriscar uma justificativa para a metonímia dizendo que,
no caso da poesia, isso que é trazido do não-ser para o ser (já se falou [388 e7-389 a3: Ouk ára pantòs andrós, ô Hermógenes, ónoma thést-
em trazer da desordem para a ordem e do ilimitado para o limite) hai [estìn] allá tinos onomatourgoû. hoûtos d’estín, hos éoiken, ho no-
não é um ente qualquer, mas a própria condição de possibilidade mothétes, hòs dè tôn demiourgôn spaniótatos en anthrópois gígnetai.]
de qualquer ente, o horizonte de todo significado possível, que é a
língua. Noutras palavras, um povo se torna povo quando sua auto- Esse outro demiurgo é já um homem, não está nem no nível do demi-
consciência é patenteada num poema inaugural. É possível imagi- urgo do mundo, nem no nível ainda mais fundamental do demiurgo
nar uma sociedade sem sapateiros, porque é possível viver descalço, da idéia, mas está sim, como os outros dois, no tempo do mito, isto
mas não uma sociedade sem poetas, porque não há vida humana é na origem. Em todo caso, o fato de a mesma estrutura se repetir
sem linguagem. em níveis ontológicos distintos, a idéia, o mundo sensível, a lei da
A menção aos legisladores (nomothétai) como criadores cidade e da alma, os animais, os artefatos, os nomes, revela quão
igualmente fundamentais remete ao esforço de Sócrates e seus com- tributária do modo de ser da arte é a concepção platônica do ser em
panheiros na República de criar uma cidade pelo discurso. De fato geral. O onomaturgo atua como todo demiurgo; é até da comparação
o nómos (lei/convenção) é como a cerca que o pastor nômade põe com o ferreiro que se justifica o fato de haver várias línguas particu-
no campo vasto quando quer fixar estada, em cujo limite faz pastar lares, mesmo sendo as coisas as mesmas para todos e cabendo aos
seu rebanho (cf. etimologia de némo/ némomai). A instauração da lei nomes dizer-lhes a essência:
também é uma passagem do indeterminado para o determinado, da
desordem para a ordem, do não-ser para o ser. A recíproca também Então, excelente amigo, acaso não é preciso que aquele nomoteta
é verdadeira: toda passagem do não-ser para o ser, toda criação, tam- saiba estabelecer, voltado para os sons e as sílabas, o nome nascido
bém é a instauração de uma lei que não havia antes. Mas, além dos por natureza para cada coisa, e, olhando na direção daquilo que é
nomotetas particulares enaltecidos no Banquete e desses nomóte- o nome, todos os nomes produzir (poieîn) e estabelecer, se há de ser
tas de conversa da República, a um outro mencionado por Platão um mestre estabelecedor de nomes? E se cada nomoteta os estabelece
no Crátilo, o nomoteta, com artigo definido e no singular, o qual voltado não para as mesmas sílabas, isso em nada deve nos confundir.
está para os nomes (tà onómata), convenção por excelência (nómos), Pois também não é voltado para o mesmo ferro que o ferreiro estabe-
como o demiurgo do Timeu está para o mundo e o fiturgo do livro X lece sua obra, ao produzir o mesmo instrumento com o mesmo fim.
da República está para a idéia. Diz Sócrates: Mas desde que transmita a mesma idéia, ainda que em outro ferro,

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corretamente fará o instrumento, quer se o produza aqui, quer entre e diz. Sua superioridade é evidente, quando aparece em contraste
os bárbaros. com a experiência ingênua, que sabe que é, mas não por que ou mais
ainda, em contraste com a loucura e insensatez. Mas, às vezes, não
[389 d4-390 a2: Ar’oûn, ô béltiste, kaì tò hekásto phýsei pephykòs saber dar a razão pode ser sinal de superioridade ainda maior. É o
ónoma tòn nomothéten ekeînon eis toùs phthóngous kaì tàs syllabàs que Platão descobriu num de seus primeiros diálogos, o Íon. E reafir-
deî epístasthai tithénai kaì bléponta pròs autò ekeîno hò éstin ónoma, mou num de seus mais belos, o Fedro.
pánta tà onómata poieîn te kaì títhesthai, ei méllei kýrios eînai No Íon, Sócrates já é visto confundindo seu interlocutor
onomáton thétes; ei dè mè eis tàs autàs syllabàs hékastos ho nomothétes com perguntas sobre o caráter de arte de sua atividade, através de
títhesin, oudèn deî toûto amphignoeîn. oudè gàr eis tòn autòn síderon exemplos de vários artífices. Íon diz ser o melhor rapsodo dos poe-
hápas chalkeùs títhesin, toû autoû héneka poiôn tò autò órganon, mas homéricos, o prova a coroa de ouro recém-recebida dos homé-
all’hómos, éos àn tèn autèn idéan apodidô, eánte en állo sidéro, hómos ridas em concurso pan-helênico. Sócrates então reclama que a arte
orthôs échei tò órganon, eánte entháde en barbárois tis poiê.] de Íon seja capaz de tratar não só de Homero, mas também de todos
os demais poetas, já que todos tratam dos mesmos assuntos. Afinal,
A multiplicidade efetiva de línguas, aliás, como a de panelas de ferro, com a arte da adivinhação (mântica), a aritmética, a medicina, a pin-
que inclui até o futuro e o não-ser, já que uma nova língua e uma tura, a escultura e a arte de tocar flauta (aulética) (note-se que vários
nova panela sempre poderão ser criadas, vale como exemplo do cará- exemplos são de artes em sentido estrito) é assim: pela mesma arte
ter prolífico e não esterilizante do imperativo de obediência à idéia. o perito conhece e julga a boa e a má obra.
Por outro lado, a concepção do nome como instrumento (órganon) Mas Íon conta que com ele acontece diferente e pede que
vale como exemplo do nexo teleológico a envolver as diferentes artes: Sócrates encontre uma explicação para o fato. Quando é o caso de
como o artífice de instrumentos hípicos produz sua obra para uso recitar Homero, logo fica desperto, as palavras lhe vêm de pronto,
e julgamento do cavaleiro, assim também o onomaturgo produz o fluem majestosas e arrebatam os ouvintes. Mas se precisa recitar
nome para o julgamento daquele que faz uso do nome, e esse é o algum outro poeta inferior, fica sonolento e a récita simplesmente
professor (didáskalos), já que a função do nome é ensinar (o que a não acontece. Ora, a explicação é que a atividade do rapsodo não
coisa é). De resto, o onomaturgo também produz olhando para um se dá por téchne ou epistéme, faculdades tipicamente humanas, mas
modelo, que é critério ontológico, e transmitindo as suas qualidades por força divina (theía dýnamis) e inspiração divina (theía moira).
para uma matéria indeterminada e nos limites de receptividade des- Enquanto o técnico-epistêmico discursa sóbrio, nos limites do dis-
sa matéria, no caso, os sons da voz em estado de grunhido. cernimento (ém-phron), exercendo certo domínio sobre o seu prágma
A presença endêmica, e não esporádica, do parâmetro for- determinado (a etimologia de epistéme remete à ação de “colocar-se
necido pela téchne no seio da obra de Platão não é, entretanto, abso- por cima”), o rapsodo fala fora de si (ék-phron), possuído (katechó-
luta. De fato, para toda atividade humana ele vê um perito, que en- menos), tomado pelo deus (én-theos), entusiasmado (en-thousiázon).
sina sua arte porque é capaz de dar a razão (lógon doûnai) do que faz No campo da arte e da ciência, o indivíduo (idiótes) se mantém nos

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limites de sua idiotia, em última instância porque para tudo está


assegurado o princípio de individuação. No universo da poesia, uma Quem se apresenta às portas da poesia sem estar atacado do delírio das
mesma força oriunda dos deuses passa através das musas, e depois Musas, convencido de que apenas com o auxílio da técnica chegará a
do poeta, e depois do rapsodo, até chegar ao último ouvinte da pla- ser poeta de valor, revela-se, só por isso, de natureza espúria, vindo a
téia, ligando a todos numa única cadeia, que não é uniforme, mas eclipsar-se sua poesia, a do indivíduo equilibrado, pela do poeta toma-
tem anéis oblíquos, de coristas, mestres, subinstrutores, etc., pen- do de delírio.
dendo diretamente da musa. Íon pode não saber dar a razão daquilo
que fala, mas fala, e fala bem aquilo que fala. [245 a5-8: hòs d’àn áneu manías Mousôn epì poetikàs thýras aphíke-
É verdade que, após elevar a rapsódia (e a poesia como um tai, peistheìs hos ára ek téchnes hikanòs poietès esómenos, atelès autós
todo) acima da arte, pela superioridade do dom divino sobre o talen- te kaì he poíesis hypò tês tôn mainoménon he toû sophronoûntos
to humano, o pequeno diálogo acaba com a impressão de que esse ephanísthe. Tradução de Carlos Alberto Nunes]
juízo é só um prêmio de consolação. Pois Sócrates insiste no padrão
da arte-ciência: cada arte conhece uma coisa, só há uma arte para As outras três espécies de delírio divino mencionadas no diálogo,
cada coisa. Como, então, Homero pode falar em seus poemas como além do poético (poietikè manía), atribuído às Musas, são: a inspira-
se fosse um auriga, um adivinho, um médico, um pescador, um pilo- ção mântica ou adivinhação (mantikè epípnoia), atribuída a Apolo;
to? Quem é o juiz apropriado para a questão de saber se Homero fala o delírio teléstico ou de iniciação nos mistérios (telestiké manía),
bem ou mal acerca dessas coisas, o poeta ou o respectivo mestre de atribuído a Dioniso; e o delírio erótico (erotikè manía), atribuído a
cada uma dessas artes? Se Íon sabe o que um general deve falar para Afrodite e a Eros. Interessante, além da proximidade de Apolo, Dio-
exortar os seus soldados, será que a rapsódia é igual à arte militar? niso e as Musas, é o fato de que a espécie erótica acaba por incluir o
Se sim, então, por que Íon não vai à guerra? Sócrates lhe pergunta: filósofo, esse amante da sabedoria, amante por excelência, na classe
“és de parecer que um rapsodo com uma coroa de ouro na cabeça é dos delirantes, dos que já não se determinam pelas potências da
de muita utilidade para os gregos e um general não é de nenhuma? téchne e da epistéme, sugerindo ao final, inadvertidamente, que aquele
[541 c1-2: rhapsodoû mèn dokeî soi chrysô stepháno estephanoménou que procura a arte em sentido estrito deve procurá-la para os lados
pollè chreía eînai toîs Héllesi, strategoû dè oudemía;] da filosofia. Talvez isso indique uma interpretação para a reação de
No Fedro, a diferença da poesia não é apenas assinalada e Sócrates, mesmo diante da incitação recorrente de um sonho para
colocada de lado. A poesia é caracterizada como uma espécie de lou- que fizesse música, de continuar fazendo filosofia (Fédon 61 a3-4):
cura, delírio (manía), mas não a loucura oriunda de doenças huma-
nas (tèn hypò nosemáton anthropínon gignoménen) e sim “a do gênero A filosofia é a forma mais alta de música.
divino, que nos tira dos hábitos cotidianos” (tèn hypò theías exallagês
tôn eiothóton nomímon gignoménen). Essa é superior à razão artifici- [philosophías oúses megístes mousikês]
osa tanto quanto o divino é superior ao humano:

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