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ATE O ULTIMO. HOMEM VI CARIOCAS DA ADMINISTRAGAO ARMADA DA VIDA SOCIAL 6506 io stand ae siTI0 FELIPE BRITO -e . PEDRO ROCHA DE QLIVEIRA (orgs.) EDITORIAL Copyright © Boitempo Editorial, 2013 Coordenacio editorial Ivana Jinkings Editorer-adjuntos Bibiana Leme e Joao Alexandre Peschanski Assisténcia editorial ani Livia Campos Preparasito Mariana Echalar Alc Revisio Mariana Tavares Capa Antonio Kehl sobre fotografia de Bruno Itan, “Vista do alto do morro do Alemio" Diagramagio ¢ produséo Livia Campos CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A885 Até 0 ltimo homem : visbes cariocas da administragio armada da vida social / organi- adores Felipe Brito ¢ Pedro Rocha de Oliveira. -Sio Paulo : Boitempo, 2013. (Estado de sitio) ISBN 978-85-7559-287- 1. Violéncia - Rio de Janeiro (RJ) 2. Rio de Janeiro, Regiéo Metropolitana do (RJ) - Condigéessociais, 3. Rio de Janeiro, Regido Metropolitana do (RJ) - Condigées econémi- cas. I. Brito, Felipe Il. Oliveira, Pedro Rocha, CDD: 307.76098161 12-5409. CDU: 316,334.560815.6) 31.07.12 08.08.12 037774 E vedada a reprodusio de qualquer parte deste livo sem a expressa autorizacao da editora r0 de 2009, Este lvro atende as normas do acordo ortogrifico em vigor desde ja Os direitos autorais deste livro foram doados a0 Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) 1 edigéo: junho de 2013 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda, Rua Pereira Leite, 373 5442-000 Séo Paulo SP Tel.fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869 editor@boitempoeditorial.com.br | www:boitempoeditorial.com.br www: blogdaboitempo.com.br | www.facebook.com/boitempo vwww.twitter.com/editoraboitempo | www.youtube.com/imprensaboitempo 2 CONSIDERACGOES SOBRE A REGULAGAO ARMADA DE TERRITORIOS CARIOCAS Felipe Brito Agradeci muito em nome da cidade o trabalho ex- cepcional das forcas da seguranca publica que li- bertam um territério. E um dia de muita alegria, é quase uma refundacao do Rio de Janeiro. Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro, 28 de novembro de 2010 Era dezembro de 2007 quando centenas de homens do Exército instalaram-se no morro da Providéncia para cumprir um “convénio” ou “acordo” entre os Ministérios da Defesa e das Cidades que visava oferecer “garantias” 4 execugao de um projeto de reforma de casas de- nominado “Cimento Social”, vinculado ao pastor e senador da Repti- blica Marcelo Crivella (PRB-RJ). Pouca visibilidade obteve a situa- ¢40, apesar de varias dentincias por parte dos moradores de violages de direitos fundamentais e de algumas iniciativas (minoritdrias, mas importantes) de questionamento por parte de entidades politicas ou figuras publicas a respeito da constitucionalidade e do significado da inusitada participacao do Exército. Na verdade, algum espanto e questionamento mais percucientes sé foram suscitados depois que militares sequestraram, torturaram e entregaram (ou negociaram) trés jovens a membros da facc4o que controla o comércio varejista de dro- gas ilicitas no morro da Mineira, rival do grupo que controla o mes- mo comércio no morro da Providéncia. Segundo consta, 0 caso rece- beu mais atengio apenas por motivo vicdrio, ligado 4 contenda entre os dois maiores impérios televisivos do pais, a Globo ¢ a Record. E not6ria a proximidade do senador Crivella com a segunda. 80 * Aré 0 tltimo homem ‘Tempos atrds (mas nem tanto assim), quando homens de farda verde-oliva sai: im das casernas com armamentos pesados, aparecendo ia e quantidade pelas ruas da cidade, era sinal de que com mais frequén a ordem normativa do pais estava no minimo ameacada. Hoje essa apa- rigdo continua é veiculo da reprodugio da ordem normativa como tal ¢ indica um entrelagamento crescente entre os regimes democriticos vigentes, em especial na periferia do sistema capitalista, ¢ a acumulagao de violéncia. A democracia brasileira comporta tal acumulagio, na me- dida em que engendra focos (com didmetros cada vez maiores) de sus- pensio da ordem normativa, do estado de direito, em nome da preser- vacio da propria ordem normativa, do proprio estado de diteito. Em dezembro de 2008, foi publicado o Decreto n. 6.703 (que aprovou a Estratégia Nacional de Defesa), ratificando “a participacio [das Forcas Armadas] em operacées internas de Garantia da Lei e da Ordem, nos termos da Constituicao Federal, e os atendimentos as requisig6es da Justiga Eleitoral”. O Decreto deu mais espaco as Forgas Armadas para exercer papel de policia nas ruas das cidades brasileira. Nesse mesmo periodo, incursées realizadas pela Policia Militar na Ci- dade de Deus, bairro situado na Zona Oeste da cidade do Rio de Ja- neiro, além da truculéncia habitual, jd sinalizavam algumas “especifi- cidades”: mediante deciséo tomada pelo comando do 18° Batalhdo, foram estabelecidos toque de recolher, restrigao do uso e circulagao de motocicletas, proibicao de mototaxis etc. Medidas como o toque de recolher, sobretudo quando decididas no ambito de um batalhao da Policia Militar, deveriam ser tratadas como sinal inequivoco de uma suspensdo da ordem normativa. Seria de esperar que a chamada sociedade civil esbocasse uma reacdo a altura dessa les4o institucional. No entanto, nada aconteceu. Raras vozes dissonantes desafinaram 0 “coro dos contentes” da grande midia, que, além de nao contestar, saudou com entusiasmo a iniciativa. De forma pouco sorrateira — ou talvez nem um pouco sorrateira —, a ordem normativa na Cidade de Deus foi suspensa e a defesa dessa mesma ordem foi conclamada. Em 2009, uma propaganda televisiva que fez parte das comemo- ragées dos duzentos anos da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro estetizou essas vicejantes tendéncias. Consistia no seguinte: eae s Consideragées sobre a regulagio armada de territérios cariocas * 81 sn camburso da Policia Militar, acelerado ¢ estrepitoso, sobe a rue- u lade uma fave vquebra brecheiana “asistentes sociais etc. Nesse momento, comega tocar ° a carioca € para; um sisudo policial sai e, como numa (), abre a cagamba, de onde surgem médicos, professoress tama idilica tr nada da cidadania”, Por um revestimento adequado, a “seguran- ca isto & 0 aparato Fepressivo do Estado, nao dé apenas sustentagio } “cidadania”, mas é antes responsavel por seu “acionamento”. Con- tha sonora e um narrador diz: “Seguranca, a porta de vido, essa estetizagio nao prescinde do viés ideoldgico, na medida sae gue a presen “socal” do Estado nas periferias, requerida pela Constituicao Federal de 1988; tem sido escassa. Essa iniciativa preludiou a institucionalizagio de uma “gest&o” po- ficial dos territérios, conduzida pelas chamadas Unidades de Policia Pacifcadora (UPPS). Ess “gestio” condensa politica de seguranga pi blica (em perspectiva militatizada) e politica de intervenga0 urbana. As UPPs consagram © paradigma da “seguranga como porta de entrada da cidadania”, conferindo nao s6 sustentagao, mas também e especial- mente 0 acionamento da “cidadania”. E a “policia como agente de rer ormagio social”, como diz a encusiasmada proclamagio do “co- mentarista de seguranga” Rodrigo Pimentel (roteirista ¢ fonte inspira- dora para a criagao do protagonista do filme mais assistido do cinema brasileiro, Tropa de elite), em seu enaltecimento continuo do projeto de UPP. Entretanto, as UPPs veiculam nio s6 um padrio de seguranca publica, mas também uma proposta de intervencéo urbana, em um contexto de crise urbana ou de crise de “planejamento urbano” (uma das determinagoes da crise estrutural do capital), no qual o “planeja- mento”, na verdade, converteu-se em “planejamento” de uma “cidade- -empresa” — uma cidade nao apenas voltada para os grandes negdcios empresariais, como também administrada propriamente como uma grande empresa. Nesse cendrio, sobressai o papel dos megaeventos €s- portivos ¢ culturais, sorvedouros sequiosos de recursos publicos ¢ baluartes do empresariamento urbano em voga". Em novembro de 2011, essa avida succéo de recursos piblicos jé havia excedi- do-em cerca de R$ 2 bilhdes 0 orcamento original das obras da Copa do Mun- 82 * Aréo tiltimo homem O enaltecimento da regulagéo armada de territérios, espalhado em unissono pela grande midia, adquiriu contornos especiais duran- te a maior incursio das forcas repressivas do Estado brasileiro em 4reas urbanas favelizadas. Arquitetada ¢ executada em novembro de 2010, numa a¢éo conjunta entre as Forsas Armadas ¢ as policias, incluindo a Forca Nacional de Seguranga Publica e a Policia Rodo- vidria Federal, ceve como palco, em especial, o Complexo do Ale- mao ea Vila Cruzeiro. Na verdade, Complexo do Alemao, Vila Cruzeiro, Caixa D’Agua, Grotéo, Parque Proletario, Chatuba e Cascatinha, entre outros, entrelagam-se por uma espécie de “conurbagao” de favelas, incrustadas em morros ¢ espraiadas também por terrenos planos, abrangendo cinco bairros do suburbio carioca: Penha, Inhatima, Bonsucesso, Ramos e Olaria. No tocante a formagio especifica do Complexo do Alemio, séo consideradas doze comunidades: Ale- mio, Grota, Nova Brasilia, Alvorada, Alto Florestal, Itararé, Baiana, Esperanga, Joaquim Queiroz, Cruzeiro, Palmeiras e Adeus. A popu- lacao estimada é de 400 mil pessoas, muito acima da apresentada pelo ultimo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) (69.143 pessoas), com um aumento de apenas 6,33%, em relacao ao censo anterior. Em 9 de dezembro de 1993, 0 complexo de favelas do Alemio foi incluido no nebuloso conceito de “bairro” da cidade do Rio de Janeiro, por medida da prépria prefeitura’. Dos do de 2014. Ver Rafael Moraes Moura, “Poder puiblico perde controle e obras da Copa jé esto R$ 2 bilhdes mais caras”, O Estado de S. Paulo, 28 nov. 2012; disponivel em: ; acesso em abr. 2013. Trata-se de um gesto institucional muito ilustrativo de nossos tempos (“pés- -modernos”?) ou, na verdade, uma performance, uma representagao, emba- lada pelo culturalismo balsimico de nossa época. Alids, em um ano (de agosto de 2010 a agosto de 2011), a cidade do Rio de Janeiro deixou de ter 438 favelas, transmutadas em “comunidades urbanizadas” por decreto mu- nicipal. Com isso, o Executivo municipal passou a considerar a existéncia de nao mais do que 582 favelas no Rio de Janeiro (Mauricio Dias, “Rea- lidade na ficcéo”, CartaCapital, Sao Paulo, 29 jul. 2011; disponivel em: Considerasdes sobre a regulagao armada de territérios cariocas * 83 160 bairros da cidade, o Complexo do Alemao apresenta certamen- te um dos menores (se nao 0 menor) Indice de Desenvolvimento Humano (IDH), espelhando variadas ¢ intensas fraturas sociais. A caréncia ¢ a precarizagao dos servigos de satide e educagao sao osten- sivas, e © mapeamento desse quadro de iniquidades sociais perma- nece lacunar, débil, fragmentério®. A rigor, dentro do complexo ha apenas uma escola — 0 Ciep Theéphilo de Souza Pinto — ¢ nenhuma creche’, Compéem a paisagem do entorno galpées abandonados, alguns dos quais ocupados pela expansao e diversificacao do proces- so de favelizagao da cidade. Um dos amargos efeitos do moneta- tismo neoliberal dos anos 1990 foi a extingao de cerca de 20 mil postos de trabalho na regido, em decorréncia de uma forte desin- dustrializacao na chamada zona da Leopoldina (composta dos bair- ros mencionados anteriormente e outros, como Cordovil, Mangui- nhos, Engenho da Rainha etc.). Essa “conurbagao” de favelas foi manchada de sangue inimeras vezes. Por exemplo, ao longo més de junho de 2007, no Complexo do Alemio, a0 menos 125 pessoas foram atingidas pela violéncia ; acesso em abr. 2013). O relatério “Violacao dos direitos educativos da comunidade do Complexo do ‘Alemao (Rio de Janeiro)”, elaborado em 2007 pela Relatoria Nacional para 0 | Direito Humano 4 Educacio, apresenta um IDH de 0,711 no Complexo do Aleméo e uma expectativa de vida na comunidade de 64,8 anos (disponivel em: chtip://www.ineesite.org/uploads/files/resources/relatorio_alemao_Rio_de_ Janeiro.pdf>; acesso em abr. 2013). Jé Simony Oliveira e Liliana Vargas, em referéncia a dados registrados no site oficial da prefeitura do Rio de Janeiro, indicam IDH de 0,587 e expectativa de vida de 56, 72 anos (“Direito a sauide ¢ saneamento bésico na estratégia Satide da Familia no Complexo do Alemac”, Acta Scientiarum — Health Sciences, v. 32, 2007). 3 4 (Os Centros Integrados de Educagio Publica (Cieps) foram criados na primeira gestio de Leonel Brizola (1983-1987), por intermédio do I Programa Especial de Educaco, fortemente influenciado pelo entao secretério de Educagao Darcy Ribeiro. Baseavam-se num projeto de educacéo de tempo integral: além das aulas, a escola proporcionava atividades esportivas, culturais, estudos dirigidos, atendimento médico e odontoldgico ¢ refeicdes balanceadas. Atualmente, os Cieps nao seguem o projeto original, ou seguem apenas parte dele, 84 * Atéo tiltimo homem estatal, das quais 44 foram assassinadas. Esse morticinio fez parte do contexto dos preparativos para a viabilizagao do Pan-Americano no mesmo ano. O secretario estadual de Seguranga do Rio de Janei- ro, reforgando 0 monstruoso “coro dos contentes”, saudou com impressionante entusiasmo a incurséo, executada por 1.200 poli- ciais civis e militares e 150 agentes da Forca Nacional de Seguranga, inclusive o fatidico 27 de junho, cujo saldo mortifero chegou a 19 pessoas, todas com variados indicios de execugéo suméria’. Numa anilise retrospectiva, podemos captar conexées intimas entre os acontecimentos de 2007 e de 2010, a ponto de considerar o primeiro uma espécie de ensaio do segundo. De acordo com a reconstituigao oficializada pela consonancia entre a grande midia e os governos federal, estadual ¢ municipal, o evento emblematico de novembro de 2010 foi “a” resposta necessdtia (¢ néo apenas uma resposta) 4 “onda” orquestrada de violéncia sob 0 comando dos “chefoes” do “crime organizado” no Rio de Janeiro, quando énibus, automéveis e vans foram queimados ou destruidos ¢ estabeleci- mentos policiais — especialmente cabines ao longo de avenidas — foram alvo de tiros. Iniciada em 21 de novembro de 2010 (ou no 5 No Rio de Janciro, as execugées sumarias so qualificadas em geral como “au- tos de resistencia”. Com isso, adquirem assimilacao institucional, A origem desse “dispositivo juridico” remonta a Ordem de Servigo n. 803, de 2 de ou- tubro de 1969, da Superintendéncia da Policia Judiciéria do antigo Estado da Guanabara. Tal ordem dispoe: “em caso de resisténcia [os policiais] poderio usar dos meios necessérios para defender-se e/ou vencé-la” e “dispensa a lavra- tura do auto de prisio em flagrante ou a instauracéo de inquérito policial nes- ses casos” (citado em Marcelo Salles, “Maquina mortifera’, Caros Amigos, out. 2009, p. 29). Quando uma ocorréncia é registrada como “auto de resistencia’, 6 delegado tem trinta dias para efetuar as investigagoes ¢ enviar suas conclu- ses a0 Ministério Pablico Estadual. Na condigéo de titular da acio penal, 0 Ministério Piblico decide se devolve o material & delegacia (Solicitando mais ce melhores apuracées), oferece dentincia contra o policial ou encaminha o pro- cesso com pedido de arquivamento ao juiz. Se o juiz nao concordar com o pedido de arquivamento, a decisao final passa & Procuradoria-Geral de Justia, cujo titular é indicado pelo governador. Diante da acintosa situagao, 0 delega- do da Policia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, asseverou: “Quem mata é a policia, mas quem enterra é 0 Judiciério” (citado em Marcelo Sales, “Maquina mortifera’, cit). Consideracées sobre a regulagio armada de territdrios cariocas * 85 dia anterior, para algumas abordagens mididticas), a tal “onda” nao se restringiu & cidade do Rio de Janeiro, mas alcangou também Ni- terdi, S40 Gongalo, Nova Iguacu, Mesquita, Sao Joao de Meriti, Cabo Frio e Macaé. Em 23 de novembro, todo 0 efetivo policial do Rio de Janeiro ja estava de prontidao, a Policia Federal ¢ a Policia Rodovidria Federal ja haviam sido acionadas, bem como as Forgas Armadas. Ao longo da semana, o efetivo empregado foi de 22 mil policiais ¢ militares das Forgas Armadas, o que representa quase 0 dobro do total de militares empregados na intervencao no Haiti (11.449 militares, de 31 paises) e um quinto do contingente militar dos Estados Unidos mobilizado na invasao do Afeganistao’. Desde entio, é importante nao esquecer, Vila Cruzeiro e Complexo do Alem4o encontram-se em situacao de ocupacao militar. Segundo consta, nao houve decretacdo de estado de defesa, estado de sitio ou intervencao federal. Apés um ano de ocupacio, 0 ntimero de mili- tares empregados atingia a casa dos 1.860, e os gastos puiblicos en- volvidos beiravam R$ 160 milhdes’. Enquanto o desenho das operacées se realizava, 0 acimulo de danos ¢ traumas (leia-se: cadaveres, ferimentos, fobias etc.) ja se manifestava. Em 28 de novembro, considerado 0 “Dia D da vité- tia’, foi celebrada uma ceriménia de hasteamento da bandeira na- cional no alto de um dos morros, e 0 odor nauseabundo dos cada- veres abandonados impregnava as vielas, sobretudo as do topo da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemao, conforme constataram agentes publicos, militantes politicos e organizagées da sociedade civil. Oficialmente, na operacao de 24 de novembro na Vila Cru- zeito, houve onze feridos (entre os quais uma estudante uniformiza- 6 Trineu Machado, “Efetivo da ‘guerra ao trafico’ no Rio € 0 dobro da misséo da ONU no Haiti e 20% das tropas dos EUA no Afeganistao”, BOL Noticias, 26 nov. 2010. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. Waleska Borges, “Alemao: ocupacio jé custou até R$ 160 milhées”, O Globo, Rio de Janeiro, 29 nov, 2011, p. 14. 86 * Atéo tiltimo homem da e dois idosos, um de 68 € outro de 81 anos) ¢ quatro mortos (uma adolescente de 14 anos também trajando uniforme escolar, um idoso de 60 anos, uma mulher de 43 anos e um homem de 29 anos, que chegou morto ao hospital com claros sinais de execucao). Completando a empedernida e sempre reinventada lista de atroci- dades oficiais e oficiosas, despontaram os expedientes de tortura, extorsao, ocultagao de cadaveres, furto e roubo de moradores ¢ pe- quenos comerciantes etc. Na visita mencionada, observou-se 0 que veio a ser denunciado — inclusive por alguns veiculos da grande imprensa — como uma sistemdatica e minuciosa “garimpagem” do espélio do trafico, tratado como “butim de guerra” (dinheiro, joias, celulares, drogas, armamentos etc.), além de bens de moradores e pequenos comerciantes. O comandante da Policia Militar do Rio de Janeiro declarou publicamente que a “ordem” era “vasculhar ca- sa por casa”, insinuando ainda que o morador que tentasse impedir a entrada dos policiais seria tratado como suspeito. E perceptivel que, diante desse cendrio, um “mandado de busca e apreensao” pas- sa a ser um obstdculo ostensivo ou simples ninharia. Cabe frisar ainda que muitos relatos de moradores denunciaram a fuga benefi- ciada das principais liderancas do comércio varejista de drogas da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemao em viaturas da policia. O numero exato de mortos e feridos durante as incursées inicia- das em 22 de novembro de 2010 continua uma incégnita. Enquan- to a énfase recaia na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemao, a prédiga colecao de autos de resisténcia prosseguia em outras favelas, como no Jacarezinho, onde nove pessoas morteram numa mesma noite. Contudo, autoridades puiblicas proeminentes insistem em classificar esses mérbidos acontecimentos como “efeitos colaterais” inevitaveis da “justa” luta do “bem” contra o “mal” que assola e rom- pe uma suposta “harmonia” intrinseca a sociedade®. O préprio go- ® Um ex-comandante do Batalhao de Operacées Especiais (Bope), convertido a uma denominacdo religiosa evangélica, declarou em uma reportagem: “Vive- mos uma luta do bem contra o mal. E o bem vai vencer. Eu me considero um soldado do Senhor. Acredito que sé Jesus Cristo salva” (“Caveiras de Cristo unidos pela oragao”, O Dia, Rio de Janeiro, 4 nov. 2007). Consideragées sobre a regulagéo armada de territérios cariocas * 87 vernador, ao pronunciar-se, manifestou esse brutal maniqueismo, revelando inclinag6es autoritarias muito tipicas entre os endinheira- dos cariocas e a chamada classe média, com perigosas ressonancias em setores proletarizados. A correlacao imediata entre violéncia urbana no Rio de Janeiro e favela continua sendo fomentada pelo Estado, alardeada pela grande midia (em conjunto com outros segmentos da indtistria do entrete- nimento) e reverberada pela “sociedade civil”. A favela é tratada co- mo 0 locus do mal, e 0 favelado é identificado como um inimigo po- tencial, iminente ou mesmo posto. Os cantos e lemas das tropas de elite policiais exprimem essa tendéncia daninha. Como exemplo, po- \ demos citar os seguintes: “O interrogatério é muito facil de fazer: pega o favelado e dé porrada até doer. O interrogatério é muito facil de acabar: pega o bandido e da porrada até matar”; “Bandido fave- lado nao se varre com vassoura, se varre com granada, com fuzil e metralhadora”; “O homem de preto, qual é sua miss4o? Entrar na favela e deixar corpo no chao”; “A mae da & luz, a Rota apaga”!”. A dramatizacao sensacionalista da violéncia cotidiana contra os pobres atingiu niveis (ainda mais) alarmantes quando a midia, tal como nas invas6es do Iraque e do Afeganistao, transmitiu ao vivo e in loco a “guerra” na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemio, assim como os preparativos das incursées e a entusidstica exibigao do po- derio bélico mobilizado pelo Estado, que descambou em uma aber- ta monumentalizac4o e glamorizac4o do potencial de violéncia esta- tal'. Mais do que violéncia exposta, a situac4o analisada envolve Batalhao de Operagoes Especiais (Bope) da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro e Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Policia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Lema oficioso das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), referindo-se obviamente aos “bandidos” e “potenciais bandidos” que nascem nas periferias paulistas. E importante sublinhar que, beneficiando-se desse exibicionismo (e, de certo modo, complementando-o), encontra-se o rentavel mercado de seguranga pri- vada, componente relevante do vasto arcabougo da “industria do controle do crime” (Nils Christie, A indistria do controle do crime, Rio de Janeiro, Forense, 88 * Atéo tiltimo homem violéncia enaltecida. Destacaram-se nesse exibicionismo repressivo do Estado tipos variados de armamentos, munigées, carros de com- bates, helicdpteros etc. Segundo as divulgagées oficiais (e as frené- ticas imagens ao vivo), a “megaoperacao” empregou diversos tipos de carros de combate da Marinha, utilizados pelo Corpo de Fuzilei- ros Navais'. Além dos fuzileiros, outra unidade de elite das Forgas Armadas participou da operagio: a Brigada de Infantaria Paraque- dista do Exército Brasileiro, adestrada para “atuar com rapidez nas agoes de defesa externa e de garantia da lei e da ordem em qualquer parte do territério nacional e, eventualmente, em miss6es de paz”. Dentre os carros de combate, podemos citar 0 M-113, de fabricagio norte-americana, utilizado na guerra do Vietna ¢ ainda muito soli- citado nas guerras em curso no Oriente Médio; 0 Mowag Piranha, de fabricacéo suica, amplamente utilizado pela Minustah"'; 0 CEN Anfibio 7A1, também conhecido como Clanf (Carro Lagarta Anfi- bio), de fabricagdo norte-americana, empregado em diversas incur- s6es ao redor do mundo por sua ampla capacidade “anfibia”; o SK 105 adaptado, fabricado na Austria e modificado pela industria mi- litar brasileira; o Urutu, um blindado nacional muito usado pela Minustah. Além disso, a cobertura midiatica destacou os helicép- teros utilizados pela Aeronautica, em especial o H-1H (usado na 1998), que comporta desde empresas privadas de “seguranca patrimonial” até escritérios de arquitetura especializados em construir abrigos subterraineos em mansées (que, como bunkers, servem de esconderijo), passando por blindagem de automéveis ¢ outros. “Uma das suas tarefas [da Marinha] é a projecéo de poder sobre terra. Para tanto, além do bombardeio naval e aeronaval da costa, poderé a Marinha valer-se dos fuzileiros navais para, a partir de operagées de desembarque, con- trolar parcela do litoral que seja de interesse naval. Essas operagées, comu- mente conhecidas como Operagées Anfibias, sio consideradas por muitos como sendo as de execugio mais complexa dentre todas as operagées milita- res” (site oficial da Marinha do Brasil; disponivel em: ; acesso em abr. 2013). "Site oficial da Brigada de Infantaria Paraquedista. Disponivel em: ; acesso em 15 jan. 2012, «Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haiti (Missio das Nag Unidas para a Estabilizacao no Haiti), cujo comando ¢ brasileiro. Consideragées sobre a regulagao armada de territérios cariocas * 89 Guerra do Vietna) e 0 H-34 Super-Puma. Todo esse cortejo bélico serviu para fortalecer o arsenal das policias civil e militar do Rio de Janeiro, composto de fuzis 7.62, 5.56 « M-16, pistolas 380 e 9 mi- limetros, do Caveirao ¢ do Caveirao aéreo (helicéptero de 3,5 tone- ladas, com 240 quilos de blindagem capaz de suportar tiros de cali- bre 30 e com capacidade para 15 tripulantes), entre outros. Do lado do comércio de drogas ilicitas, foram encontrados fuzis AR-15 e 7.62, uma bazuca AT-4, utilizada pelo Exército dos Estados Unidos na Guerra do Iraque, uma submetralhadora 9 milimetros de ori- gem italiana, granadas, bombas caseiras, pistolas 9 milimetros, re- volveres calibre 38 etc. O exibicionismo do Estado insere-se num contexto histérico confuso e viscoso, abundante em oscilacées, deslizes e derretimentos semanticos, que nao servem exatamente para escamotear (embora haja certo escamoteamento), mas para “florear” ou “estilizar” o hor- ror social'®. O Estado reatualiza sua autoproclamagao (ideolégica) de guardiao da “universalidade”, do “bem comum’” e do “interesse geral”, ea grande midia, juntamente com outros setores da industria do entretenimento, reverberam-na com seus poderosos meios tec- noldgicos e performaticos operadores, sequiosos de numeros, cifras e estatisticas do horror. Mas os que efetivamente acreditam nos clas- sicos epitetos do Estado democritico de direito sao muito poucos na imensidao de pessoas que apenas se comportam como se acredi- tassem neles. Nos tempos atuais é 0 que basta, j4 que a adesao con- tempordnea dispensa a mediacao do convencimento. '5 Nesse sentido, o sanguindrio Caveirao, veiculo blindado do Bope, todo negro com uma caveira prateada estampada na lateral, simbolo também presente em helicépteros e tratores — alids, estes tiltimos séo conhecidos como “trans- formers? -, é denominado “veiculo pacificador urbano”. Os “policiais media- dores de conflito”, valendo-se do poder subjacente das armas, tém licenca institucional para judiciar e até mesmo legislar nos territérios “pacificados”. O big business apresenta-se a0 mundo com “responsabilidade social e ambien- tal”, e as reformas neoliberais sao enaltecidas por seu carater eminentemente “progressista” e “modernizante”, executadas por partidos de esquerda em va- rias partes do mundo. Por outro lado, o partido que sustentou a ditadura civil-militar no Brasil entre 1964 e 1985 adota a designacao “Democrata’. Assim, a violéncia, monumentalizada como fratura exposa multiplica experiéncias sociais imbicadas para o sentido centripero da imantagéo a uma forma social arrastada pela crise estutural do capitalismo. No que diz respeito a0 Rio de Janeiro, a acumulacio seletiva de cadaveres, envelopada pela figura institucional do “auto de resisténcia” e aclamada por boa parte do puiblico carioca, coloca- -se como uma de suas varias expressées. Entre 2000 e inicio de 2009, de acordo com o Instituto de Seguranca Publica, houve 9.179 dbitos registrados como “autos de resisténcia” — 0 que equivale a 2,67 mor- tes por dia. A antropdloga Ana Paula Miranda foi exonerada do car- go de diretora do instituto, em fevereiro de 2008, apés cruzar os dados referentes ao ntimero dos mortos por autos de resisténcia com © ntimero de presos em flagrante delito e constatar um aumento Pproporcional do primeiro em relacdo ao segundo. Durante o II Fé- “rum Violéncia, Participagao Popular e Direitos Humanos, realizado ~na Pontificia Universidade Catélica do Rio de Janeiro, Miranda de- clarou que “o governo nao contabiliza os autos de resisténcia na so- ma final de homicidios dolosos” e “alguns casos que sao claramente homicidios, como os corpos carbonizados encontrados, estao sendo registrados como encontro de cadaveres ¢ ossadas”"’. Abaixo repro- duzimos dados da comparacio realizada pela antropéloga”’: Tabela 1. Relacao de presos em flagrante por cada pessoa morta pela policia Ano 2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 Relacao de presos ; 4 | 21,8 | 167 | 17,3 | 122 | 15, a 75,4 | 58,2 | 27,5 | 204 67 | 17,3 | 122 | 15,2 morto Rio ‘fabricou’ queda de homicidios, diz ex-diretora do ISP”, UOL Nos, 18 set. 2008. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. "” Citado em Marcelo Salles, “Maquina mortifera’, cit., p. 31. Consideragées sobre a regulagao armada de territ6rios cariocas * 91 Cabe registrar ainda que o niimero de mortos entre os operado- res do aparato repressvo estatal também aumentou, No Rio de Ja- (\dbi Y Gq neiro em particular, a policia é a que mais mata, mas também a que mais morte. Sem negligenciar esse dado, contudo, devemos subli- nhar o elevado ntimero de mortes ocorridas fora dos horarios e lo- cais de servigo, decorrente, ao menos em parte, dos diversos niveis de participagio desses operadores em atividades ilicitas, como jogo do bicho, méfias de caca-niqueis ¢ milicias. Conforme registrado por Ignacio Cano, em 2007, no Rio, 41 opositores foram mortos para cada policial vitimado em confronto"*. Em relagao a isso, é preciso atentar para o problema das milicias, fundamental para a andlise ¢ a exposigéo da atual acumulacéo de violéncia no Rio de Janeiro. Em 2007, 0 deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) requereu a instalagao de uma Comissao Parla- mentar de Inquérito (CPI) para tratar dessa questao. Depois de mais de um ano de “hibernac4o”, alimentada pela maioria da Assembleia Legislativa, a CPI foi enfim instalada — sobretudo em virtude do se- questro de trés jornalistas do jornal O Dia por milicianos da Zona Oeste, em maio de 2008. Os jornalistas foram torturados a socos, pontapés, choques elétricos, roleta-russa, sufocamento com saco plastico, entre outros. O relatério final da CPI, apresentado em 14 de dezembro de 2008, caracterizou as milicias como grupos ar- mados que dominam territérios, liderados por agentes ptiblicos da drea de seguranga e com ramificagées politicas”. A milicia envolve sobretudo uma pratica violenta de territoriali- za¢4o cujo intuito é explorar economicamente atividades que mistu- ram, de maneira inextricdvel, licitude ¢ ilicitude. No bojo de sua atuagao, os meandros burocraticos do Estado e das organizagées po- liciais e militares comunicam-se com os labirintos do crime, confun- Ignacio Cano, “Seguranga a sangue ¢ fogo”, O Globo, 24 ago. 2007. % Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), “Relatorio final da Comissio Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a acio de milicias no mbito do estado do Rio de Janeiro” (Rio de Janeiro, Alerj, 2008). Disponivel em; ; acesso em abr, 2013). A principal milicia da Zona Ocs- te organizou a invasao de mais de duzentos iméveis do programa Minha Ca- sa Minha Vida, visando uma negociacdo paralela e a cobranca de “taxa de seguranca” de compradores ou antigos moradores que foram autorizados pe- los milicianos a permanecer em suas casas (Sérgio Ramalho, “Milicianos to- maram iméveis do Minha Casa Minha Vida e passaram a vendé-lo por até 40 mil”, O Globo, 26 maio 2011; disponivel em: ; acesso em abr. 2013). Ver também “Milicia teria invadido casas do programa Minha Casa Minha Vida, diz secretario de Habitacao”, R7, 14 abr. 2011; disponivel em: : acesso em abr. 2013. Odo 10 Consideragoes sobre a regulagio armada de territérios cariocas * 93 assim considerados. A venda é feita para o tréfico ou para quem te- nha interesse”?*. ‘A chamada Operacao Guilhotina, conduzida pelo Ministério Pia- blico Estadual pela Policia Federal no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2011, indicou vinculos estreitos entre algumas milicias ¢ 0 varejo de drogas ilicitas. Ademais, por contar com individuos treinados em academias militares ¢ com experiéncia do dia a dia do confront com traficantes, as milicias tém atuado também como agéncias de merce- nrios, vendendo (e alugando) seus servicos para expulsar faccdes de tréfico de drogas de determinado territério em beneficio de faccées rivais que desejam expandir ou retomar territérios. Uma reportagem sobre a operacao atesta a complexidade das operacées milicianas: Segundo a PF, 0s policiais [envolvidos] se dividiam em quatro organiza- ges: duas atuavam no fornecimento de armas ¢ munigées a traficantes de drogas; uma terceira estaria ligada a atividades de milicias que atuam em comunidades do Rio e também fornecia armas ¢ munigdes ao traficos ¢ outra faria seguranga privada de grupos criminosos. O Ministério Pé- blico Estadual, que instaurou inquérito para apurar a conduta de poli- ciais, diz que a suspeita é que eles também se apropriavam de bens ¢ va- lotes confiscados em apreensoes da policia. [...] O objetivo da acio [...] € “dar fim & atuagao de um grupo criminoso formado por policiais — civis e militares — ¢ informantes envolvidos com o trafico ilicito de drogas, ar- mas € munigdes, com a seguranca de pontos de jogos clandestinos (mé- quinas de caca-niqueis ¢jogo do bicho) e vendadeinformagées sigilosas’.* O relatério da CPI demonstrou que em todos os territérios do- minados ha altfssimos indices de homicidios. Apesar disso, as mi- licias ainda mantém prestigio entre setores da sociedade, agentes % Alerj, “Relatorio final da Comissio Parlamentar de Inquétito”, cit. p. 44. 4 “Policiais se dividiam em quatro operacées no Rio, diz PE”, Folha de S.Paulo, 11 fev. 2011. Disponivel em: ; acesso em 15 jan, 2012. E importante registrar que, depois da execugio “cinematografi- ca” do traficante Marcelinho Niteréi, alvejado de um helicéptero por atirado- res de elite da Policia Civil, foram reveladas negociagées entre ele proprio e as milicias. Ver Marcos Nunes, “Marcelinho Niterdi articulava negociagao com as milicias”, Extra, Rio de Janeiro, 3 nov. 2011, p. 3. 48 Atéo ultimo homem ptiblicos ¢ representantes governamentais. Mas a aceitagao entu- sidstica jd foi pior. O escancaramento foi tamanho que 0 maior império televisivo do pais colocou no ar, entre 1° de outubro de 2007 ¢ 31 de maio de 2008, uma telenovela denominada Duas ca- ras, cuja trama girava em torno da atuacao de uma milicia “florea- da’, A ex-deputada federal Marina Maggessi (PPS-RJ), policial ci vil que, como chefe da Coordenadoria de Inteligéncia Policial (Cinpol), nunca investigou as milicias, foi convocada pela CPI cita- da e, em seu depoimento, acusou 0 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de envolvimento com o tréfico da Roci- nha, alegando que essa suposta ligac4o a preocupava mais do que as milicias, O ex-prefeito Cesar Maia (DEM-RJ) qualificou a milicia de “autodefesa comunitaria”, ¢ 0 atual prefeito Eduardo Paes (PMDB-RJ) indicou como exemplo de policia que funciona 126 a “policia mineira de Jacarepagua”’’. As milicias se proclamavam combatentes do narcotrafico e da “bandidagem” em geral, 0 que serviu como fonte intensa de mistificagao e estimulou a conivéncia a assimilacao. Entretanto, o relatério da CPI revelou que 65% das areas dominadas por milicia nunca tiveram varejo de drogas. Carentes de policiamento oficial e tomadas pelo tréfico, muitas comu- nidades, num primeiro momento, viram o surgimento das milicas co- mo um beneficio, A ilusio se desfez em pouco tempo. Para assegurat seu dominio sob o tetritério, quando no hé tréfico no local almejado ea populagao resiste, os milicianos passam a assaltar as casas € 0 comér- Ver Alerj, “Relatorio final da Comisséo Parlamentar de Inquérito”, cit, ¢ Lue ciana Lima, “Deputada nao esclareceu tolerancia com as milicias, diz presiden- tede CPI”, Agéncia Brasil, 23 set. 2008. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. 26 Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. Antes de ganhar visibilidade mididtica, as milicias eram comumente chamadas de “policia mineira’, A rigor, 0 termo ‘milicia’ tornou-se uma espécie de eufemnismo que, embora tena a vantagem de remeter diretamente ao processo global de militarizacao, ofusca a presenca de agentes piblicos nessas organizagdes extraoficiais ¢ escamoteia o nexo de continuidade ¢ descontinuidade entre forcas estatais ¢ paracstatais. Consideragdes sobre a regulago armada de territérios cariocas * 95 cio. Os moradores ¢ comerciantes, intimidados e acuados pela situacéo, passam a contribuir financeiramente com valores mensaisestipulados pelos milicianos.” Alimentando-se das prerrogativas nocivas da relagao entre a crise urbana, a do Estado e a da sociedade do trabalho, as milicias expan- dem seu processo coercitivo de territorializacao, ancoradas no poder das armas e na penetragdo da estrutura do Estado. Na época do lan- gamento do relatério da CPI, pelo menos 170 areas do Estado do Rio de Janeiro eram dominadas por milicias. Atualmente, esse nui- mero ultrapassa 300. Com isso, as milicias intervém em setores tipi- cos de infraestrutura urbana, servicos ptiblicos e habitacao, conse- guindo abocanhar cargos politicos e angariar votos para candidatos ligados direta ou indiretamente a seus interesses. Além do mais, as praticas de territorializagao incluem a ordenacao do espago destina- do as atividades do chamado comércio ambulante. Tais praticas mol- dam uma atuacdo militarizada e, de certo modo, paraestatal no espa- 0 urbano, visto que ultrapassam os lacos indissolitveis com 0 Estado. O dominio territorial desses grupos revela uma fragmenta¢éo do espaco urbano metropolitano, vulnerdvel a uma “ordenacao” coerci- tiva, a despeito de seus habitantes e, se preciso, contra eles. Decerto © processo de territorializac4o militarizada da milicia encontra situa- ées favordveis numa cidade em que a favela acabou sendo uma “so- lugéo” popular (e, muitas vezes, do préprio Estado) para o problema da moradia e da auséncia secular de programas publicos de habitagio €, mais especificamente, num contexto em que a expansio espacial no interior da cidade encontrou limites, empurrando a fronteira ur- bana para dreas cada vez mais longiquas, vinculadas 4 cidade por uma acodada conurbagao. No que tange 8 relac4o com o territério € 4 atuagao espacial, é importante ressaltar diferencas entre as faccdes de comércio varejista de drogas ilicitas ¢ as milicias. As primeiras instrumentalizam e fun- cionalizam territérios para viabilizar a venda de drogas ilicitas, ou seja, tentam tirar proveito da geografia “labirintica” de favelas e lotea- ” Alerj, “Relatério final da Comissao Parlamentar de Inquérito”, cit., p. 123. 96 * Atéo dltimo homem mentos irregulares para garantir essa arriscada atividade econdmica. A penetragao e a fixagao do varejo de certas substancias ilicitas em tais localidades devem-se basicamente a oferta abundante de forga de tra- balho e¢ aos “meios de defesa” oferecidos pelo terreno. O grosso do mercado consumidor das drogas vendidas nessas dreas provém das camadas sociais médias e endinheiradas, mas houve um aumento do consumo interno de drogas mais baratas, feitas com sobras ou resi- duos de outras drogas, como o crack ¢ 0 oxi, ambos derivados da co- caina. As milicias, por sua vez, promovem uma territorializacao pro- priamente dita, ou seja, a fundamentagao espacial de suas praticas ¢ mais estrutural: o controle territorial é tanto o dominio de uma area de atuacao (e, por consequéncia, a delimita¢4o contra grupos concor- rentes) quanto seu sustentaculo politico ¢ econdmico. Os servigos prestados e “impostos” pelos milicianos enraizam-se no dominio ter- ritorial, assim como a delimitag4o organizativa do grupo alavanca-se politicamente por meio da constituigao de “currais eleitorais’. A ter- ritorializagdo das praticas milicianas torna-se, portanto, tanto 0 meio quanto o fim, e essa peculiaridade é fortalecida pela decadéncia da infraestrutura dos bairros, pela auséncia de servigos e equipamentos publicos em favelas ou comunidades pobres, pela seletividade da oferta de determinados servigos (internet, gés encanado, televisio a cabo etc.), além da crénica fragilidade habitacional. Para avancarmos na exposi¢4o e andlise da acumulacio atual de violéncia no Rio de Janeiro, é indispensavel tratar das UPPs. E ilus- trativo que, em evento organizado pela Associagio Comercial do Rio de Janeiro em outubro de 2011, o secretario de Seguranca Pi- blica José Mariano Beltrame tenha divulgado a estimativa de inves- timentos na seguranca dos megaeventos (incluindo a Rio+20): Sao R$ 3 bilhdes até 2016. Nisso estd toda a estrutura que se precisa vi- sando grandes eventos. E uma conta macro que envolve todos os tipos de investimentos, inclusive alguma coisa visando 4 UPP nesse pacote.” 8 “Estado investira R$ 3 bilhGes em seguranga de grandes eventos até 2016, diz Beltrame”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 out. 2011. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. Ana Claudia Costa e Luiz Ernesto Magalhaes, “Prefeito desautoriza represen- tante que divulgou cronograma de implantacao de UPP”, Extra, 25 mar. 2010. “W Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. » “A partir de hoje, a gest4o dos servicos puiblicos em parte da regio portuaria do Rio de Janeiro comegara a ser feita pelo Consércio Porto Novo (formado pelas empresas OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia). Ao longo de quinze anos, 0 * 98 * Atéo tiltimo homem mente dirigida aos megaeventos, tende a se converter em “cidade de excecio”>!, seguindo uma tendéncia global em que a “excegao” vira a propria “regra”, e o “paralelo” vira o “oficial”. Em 2007, o Rio de Janeiro sediou os Jogos Pan-Americanos e, em 2011, os Jogos Mundiais Militares. Também sediard outros trés mega- eventos esportivos de Ambito internacional: a Copa das Confedera- g6es de Futebol em 2013, a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olimpicos de Veréo em 2016. O modelo (empresarial) de cidade requerido por esse tipo de evento leva a amplas intervengdes ptiblico-privadas e causa impactos socioespaciais profundos, como os despejos, que se revelam medidas significativas de “limpeza urbana” dentro de processos de “gentrificagao” e/ou especulacao imobilidria. Passados apenas trés meses da escolha do Rio como sede dos Jogos Olimpicos, a prefeitura anunciou a intengao de remover 119 comu- nidades, ou seja, mais de 12 mil domicilios*”. Mais de um ter¢o dessas consé6rcio receberd R$ 7,6 bilhdes da prefeitura para o investimento em obras € para a realizagao de servigos como coleta de lixo, troca de iluminagao e gestio do transito na regiéo. Além disso, como parte da operacao urbana Porto Maravi- lha — como é chamado o projeto de revitalizac4o da zona portuaria do Rio - a prefeitura realizou [...] 0 leilao dos Cepacs [...] da area. O Fundo de Investimen- to Imobilidrio Porto Maravilha, da Caixa Econémica Federal, arrematou todos os titulos por R$ 3,5 bilhdes. Cada um dos 6,4 milhdes de Cepacs foi vendido por R$ 545. O curioso é que a maior parte dos terrenos que fazem parte da ope- racdo urbana Porto Maravilha, que ocupa uma rea de 5 milhées de metros qua- drados, so terras publicas, principalmente do governo federal, que foram ‘ven- didas’ para a prefeitura do Rio, a partir de avaliagées feitas por...? Pela propria Caixa, que, agora, através do fundo que ela mesma criou, com recursos do FGTS que ela administra, buscar vender os Cepacs no mercado imobilidrio para cons- trutoras interessadas em construir na regiao” (Raquel Rolnik, “Porto Maravilha: custos puiblicos, beneficios privados?”, Blog da Raquel Rolnik, 13 jun. 2011; dis- ponivel em: ; acesso em abr. 2013). 5 Carlos Vainer, “Cidade de excecao: reflexdes a partir do Rio de Janeiro”. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. Diana Brito, “Prefeitura anuncia remogao de 119 favelas em area de protecdo até fim de 2012”, Folha de S,Paulo, 8 jan. 2010. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. Consideragées sobre a regulagio armada de territérios cariocas * 99 comunidades localizam-se na Barra da Tijuca, no Recreio dos Bandei- ny rantes ¢ em Jacarepagud, que concentrarao a maior parte dos equipa- % | mentos destinados aos jogos (além de corresponder & regido de maior " expansio da fronteira urbana, empurrada por forte especulacio)”. (. ‘As UPPs promovem, portanto, uma regulacao armada de deter- a minados territérios considerados estratégicos para a realizacao desse . modelo empresarial de cidade, uma regulagao que ¢ impulsionada, ‘y em grande medida, pelos megaeventos. Com isso, elas aglutinam os modalidades de intervengao urbana e seguranga publica num con- ne texto marcado pela conjugagao de crise urbana ¢ crise do Estado in| (duas determinagées da crise estrutural do capital). Nessa perspecti- 7 va, reatualizam de maneira direta e indireta a vocagao secular do Es- tado brasileiro para tratar a questao social como “caso de policia” € compéem o volumoso aparato vigilante, coercitivo e repressivo (em parte, privatizado) que, articulado a politicas pontuais e fragmenté- rias de compensacao social (a base de doses cavalares de “onguis- mo’), formam um quadro de “administracao” da crise e da barbarie 3 Entre as varias comunidades afetadas na regio, a titulo de exemplo, podemos citar: Vila Autédromo, Arroio Pavuna, Restinga, Vila Harmonia, Vila Re- cteio, Rio Morto, Beira do Canal, Vila Taboinha, Canal do Cortado ¢ Asa Branca. Na Zona Sul, podemos indicar a Matinha, localizada na Rocinha, 0 Horto, no Jardim Botanico, ea Estradinha, situada na Ladeira dos Tabajaras, em Botafogo. Na regio préxima aos bairros do Maracani, Cidade Nova, Sao Crist6vao e Benfica, as comunidades sob a mira das obras sio sobretudo as do Metrd Mangueira, CCPL e Telégrafos e, no Engenho de Dentro, a comu- nidade Belém-Belém, localizada nas adjacéncias do Estidio Olimpico Joao Havelange, Outta fonte de despejo é a construcéo da Transcarioca, um cor- redor de Bus Rapid Transit (BRT) que ligara 0 Aeroporto Internacional Tom Jobim a Barra da Tijuca: conforme indica Decreto Municipal n. 31.567, de 11 de dezembro de 2009, preveem-se 3.600 desapropriagdes, majoritaria- mente de residéncias populares, localizadas nos bairros de Jacarepagua, Cam- pinho, Madureira, Vaz Lobo, Penha, Vicente de Carvalho, Vila Kosmos, Pra- a Seca, Madureira, Cavalcanti, Cascadura ¢ Vila da Penha. No Centro, 0 Porto Maravilha ameaca as comunidades da Providéncia, Conceigio, Pinto, Pedra Lisa e Pedra do Sal, além de comunidades formadas por ocupagdes de iméveis ociosos, como a Quilombo das Guerreiras, na rua Francisco Bicalho (préxima & Rodovidria Novo Rio), ¢ as ocupagoes das ruas do Livramento ¢ Machado de Assis. 100 * Atéo tiltimo homem social resultante™. As pretensdes de politicas sociais com cardter uni- versalista, de integracao social por meio de reformas estruturais ga- rantidoras de direitos, naufragam com o creptsculo desenvolvimen- tista, a despeito da promulgacao e da vigéncia da Constituigéo “cidada” de 1988. Nesse percurso de erosao, amplia-se uma tendén- cia da politica de afunilar-se em “politica de seguranca”, nao apenas pelo agigantamento do aparato estatal vigilante, coercitivo e repres- sivo, mas também pelo fato de que, em certa medida, outras areas significativas da atuacao do poder publico séo perpassadas pelo vetor de “seguranca”. Nao ¢ fortuito que o secretério municipal de Assis- téncia Social do governo de Eduardo Paes tenha sido o responsivel pela implementacao da Operagao Choque de Ordem na cidade*. E nao é a toa que, na cidade de Sao Paulo, mais de 80% das subprefei- turas séo comandadas por oficiais da reserva da Policia Militar, e também hd presenga policial na Secretaria de Transportes, na Defesa Civil, na Companhia de Engenharia de Trafego, no Servico Ambu- latorial Municipal e até mesmo no Servigo Funerdrio™. As UPPs mostram um viés ideolégico andlogo 4 propaganda dos duzentos anos da Policia Militar do Rio de Janeiro. A escassa presen- ¢a “social” do Estado convive com a disseminagao de um modelo de cidadania mediado pelo consumo, com o requentamento ¢ 0 requin- tamento da ideologia (neo)liberal da “livre-iniciativa’, do “livre-em- preendedorismo”, do “empresariamento de si mesmo”. Exemplo dis- so € 0 que ocorreu na favela Dona Marta, no bairro de Botafogo, a primeira a receber uma UPP. LA, sob os auspicios do “armamento pacificador”, a Light acabou com os “gatos” e 98% das residéncias 4 Sobre o conceito de barbérie, ver Marildo Menegat, Depois do fim do mundo: a crise da modernidade ¢ a barbarie (Rio de Janeiro, Relume Dumard/Faper, 2003) ¢ O olho da barbdrie (Sao Paulo, Expresséo Popular, 2006). Rodrigo Bethlem, responsavel pela implantacao do Choque de Ordem, pas- sou de secretério de Ordem Piiblica da gestio Eduardo Paes a secretério mu- nicipal de Assisténcia Social em novembro de 2010, Em maio de 2012, foi ainda “promovido” a a secretério municipal de Governo. Gabriela Moncau, “Kassab reforca estado policial em Sao Paulo”, Caros Amigos, 2) ese | Consideragdes sobre a regulagio armada de territérios cariocas * 101 foram ligadas a rede oficial de consumidores’”. O curioso € que os comentaristas apologéticos exaltam a suposta dignidade de “poder” pagar a energia consumida quando, na verdade, o verbo mais ade- quado seria “dever”: doravante os moradores do Dona Marta devem pagar a Light. Segmentos empresariais manifestam interesse em ex- plorar o “mercado consumidor em potencial” espalhado pelas mais de mil favelas cariocas, objeto de pouca atengao por parte do circui- to comercial de mercadotias e servicos®. Na mesma favela Dona Marta, 0 governo do estado abriu uma linha de microcrédito para “moradores empreendedores”, “micro- empresétios” locais. Essa linha de crédito é um programa da Investe Rio, uma agéncia ligada a Secretaria de Desenvolvimento Econémi- 37 Fabio Vasconcellos, “UPPs abrem caminho para servicos em favelas”, O Globo, 19 dez. 2010. yP?s 8 “Deacordo com André Urani, economista do Instituto de Estudos do’ Trbah S € Sociedade (lets), a Light perde, pelo menos, US$ 200 milhées por ano em decorréncia [do consumo de] energia clandestina nas favelas. (...] Enfatizando 0 potencial de mercado das favelas, Urani declarou: ‘Imagine os ganhos em re- ceita se a Light conseguisse transformar os um milhao de consumidores ilegais dos seus servicos em clientes” (Eduardo Tomazine Teixeira, “A ‘pacificacio’ de favelas no Rio: a contrainsurgéncia preventiva?”, Alterinfos América Latina, 14 mar. 2011; disponivel em: ; acesso em abr. 2013). Os sites da UPP e da “UPP Social” mostram bem esse Serre ee ae : fato. Ainda sobre isso, é interessante registrar: na espessa camada apologética, que contou com um forte estimulo do secretario de Seguranca, este manifestou ) uma episédica preocupacao, aparentemente sem repercussées significativas pa- ; ra 0s rumos do projeto das UPPs: “Nao ser um policial com um fuzil na en- trada de uma favela que vai segurar, se Id dentro das comunidades as coisas no funcionarem. E hora de investimentos sociais, Embora as UPPs estejam agra- dando, eu tenho meus temores em relagio ao pés-UPP. Aquilo a que efetiva- mente a UPP se presta nada mais é que proporcionar, viabilizar a chegada da dignidade ao cidadao. Essa é a razio da existéncia da UPP: criar um terreno fértil para a geracao de dignidade. E isso que vai garantir o projeto, ¢ ndo apenas apresenea da policia” (Elenilce Bottari e Liane Gongalves, “Beltrame quer pres- sa em investimentos sociais pés-UPPs: ‘Nada sobrevive sé com seguranca”, O Globo, 28 maio 2011; disponivel em: ; acesso em abr, 2013). 102 * Até 0 tiltimo homem co, Energia, Indhistria e Servigos, que visa, segundo informagées ofi- ciais, “aproveitar 0 potencial econémico da comunidade” ~ no caso especifico de uma comunidade da Zona Sul, 0 “potencial turistico”. Os empréstimos variam de R$ 300 a R$ 6 mil, pagiveis em até um ano, com juros de 1,25% a 1,30% ao més®. Uma das moradoras beneficiadas foi entrevistada e relatou que pegou R$ 2 mil empres- tados, comprou uma méquina de costura, um transfer e tinta para montar uma “estrutura minima” para produzir cerca de cem cami- setas, vendidas a R$ 25 cada. Pagou quatro prestagées, mas ainda faltavam trés. Quando pagasse esse empréstimo, tentaria obter mais um para comprar um computador e, assim, completar a estamparia; depois s6 precisaria montar uma batraca ao lado da “laje Michael Jackson” para vender as camisetas aos turistas®’. A mise-en-scene da “favela S.A.” exibe a comunidade e sua territorializacao precaria co- mo uma mercadoria mais ou menos exética a ser vendida no nicho de mercado multiculturalista. O “potencial econémico turistico” é uma dimens4o importante desse viés culturalista. Na apresentacao de um projeto-piloto de “in- ser¢4o econdmico-social [das ‘comunidades pacificadas’] por meio da atividade turistica”, 0 ex-ministro do Turismo Luiz Barretto pro- clamou: “As Unidades de Policia Pacificadora (UPPs) esto mudan- do o Rio, e 0 turismo esta acompanhando essa revolucao, abrindo oportunidades de geragao de emprego e renda para a populacio”™". % “Estado abre microcrédito para moradores de comunidades com UPPs’, R7, 4 jan. 2011. Disponivel e1 estado-abre-microcredito-para-moradores-de-comunidades-com-upps- 20110104.html>; acesso em abr. 2013. “© [dem. Em 1996, Michael Jackson gravou parte do clipe “They don't care about us” na favela Dona Marta. Na laje em que a gravacio foi realizada, uma estétua do cantor pop, feita de bronze e com 1,80 m de altura, foi inaugurada em 26 de junho de 2010. Ministério do Turismo, “Projeto ‘Top Tour é langado no Ric”, 30 ago. 2010. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. A ceriménia de apresentagio do projto ocorreu no Rio de Janeiro, em 30 de agosto de 2010. Durante o evento, 0 pres- dente Lula afirmou que “visitando, andando pelas ruas é que temos a certeza de ep://noticias.t7 .com/rio-de-janeirol noticias! : . Consideragées sobre a regulacao armada de territérios cariocas * 103 Ainda em relag4o a esse “potencial econdmico turistico”, cabe frisar que o setor de albergues, voltado sobretudo para o “turismo alterna- tivo”, concentra-se nas favelas “pacificadas”, como mostra 0 “Favela Inn’, no alto do morro Chapéu Mangueira, no Leme, e o “Pura Vi- da Hostel”, na subida do morro Pavao-Pavaozinho, em Copacaba- na, inaugurados em fevereiro de 2011*. Portanto, o que temos, no fundo, sao as UPPs como suporte para um processo de instrumen- talizagao da pobreza e da cultura como alavancagem para a valori- zacao imobilidria e fundiaria’. As UPPs tendem a jogar muita 4gua no moinho da especulacao imobilidria, no que diz respeito tanto aos iméveis situados nas favelas “pacificadas” quanto aqueles do “asfalto” em torno delas. Na Cidade de Deus, por exemplo, houve uma elevagao de até 400% no prego dos imédveis*’. Tal processo, somado a regularizacao de servicos ba- sicos como luz e gua (além de TV a cabo, que atualmente é tratada nos grandes centros urbanos como servico bdsico), eleva o custo de manutengao e reproducao da subsisténcia e dificulta a permanéncia que a comunidade est4 em paz. Por isso, é que vim de branco. Para simbolizar esse momento” (idem). Simone Candida, “Turistas estrangeiros tam optado por se hospedar em areas pacificadas”, O Globo, 1° out. 2011. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. 8 Ver David Harvey, A produgdo capitalista do espago (Sao Paulo, Annablume, 2005). “A construgao de puxadinhos e de mais um andar, para criar novos quitinetes e abrir espaco para mais gente, virou um cendrio comum em favelas pacificadas. As associacées de moradores dizem que agora ¢ dificil achar iméveis para alugar ou vender. E os poucos disponiveis tiveram uma valorizacao de até 400% — ca- so de um quarto e sala 4 venda na Cidade de Deus, que foi de R$ 2 mil para R$ 10 mil -, de acordo com levantamento feito pelo Estado. As casas de dois quartos nessa comunidade sao negociadas a R$ 60 mil (100% de aumento). O aluguel de uma loja dentro da favela custa R$ 500, 150% a mais do que antes da inauguracao da UPP, em fevereiro de 2009” (“Iméveis em favelas com UPP sobem até 400%”, O Globo, 29 maio 2010; disponivel em: ; acesso em abr. 2013). 104 * Até o ultimo homem de moradores tradicionais. Esse encarecimento das condigées basi- cas de vida suscita um fendémeno sociourbano significativo. Podemos ~” observar que, ao longo da histéria da proliferacao de comunidades favelizadas no Rio de Janeiro, a favela foi tratada, a uma s6 vez, como “problema” e “solucao”. Quando afastada das areas nobres e econo- micamente relevantes da cidade, a favela servia (de maneira oficiosa, mas também oficial em alguns momentos) como a prépria “solugao” para o problema da moradia das classes esbulhadas, ¢ ainda com a possibilidade de promover uma espécie de distens4o da conflituosi- dade socioespacial por meio de um “espalhamento” para além dos limites da area central da cidade. Além disso, historicamente ofereceu uma resposta bizarra a dificuldade dos trabalhadores assalariados e informais de usufruir de servi¢os basicos e comércio, responsdveis por abocanhar volumosas fatias dos saldrios e rendas. As tentativas de driblar esses obstaculos provinham (e ainda pro- vém) da formacao de uma economia subterranea, voltada para o atendimento das demandas cotidianas de uma imensa parcela de trabalhadores que foram atraidos e atingidos pela explosio urbana e tornaram-se vulnerdveis em raz4o da incapacidade estrutural das economias e dos Estados periféricos de promover uma “integracao social”. Denominada por Milton Santos “circuito econémico infe- rior”, essa economia subterranea derivou de um heterogéneo e flui- do leque de atividades de pequena dimensio e infimo suporte tec- nolégico, sem a mediacao estatal, com prevaléncia de informalidade, utilizagdo intensiva de mao de obra e configuragao espacial predo- minantemente locais“. Esse leque de atividades contribuiu para a *® © “circuito inferior também poderia ser bem definido segundo a formula de Lavoisier: ‘Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma’ [...]. O jornal usado torna-se embalagem, o pedago de madeira se transforma em cadeira, as latas, em reservatérios de 4gua ou em vasos de flores etc. Isso ocorre também com as roupas que passam de pai para filho, do irmo mais velho para o itmao mais novo, se j4 nao foram compradas de segunda mo; na construcao das casas aproveitam-se todos os tipos de materiais abandonados ou vendidos a baixo pteco” (Milton Santos, O espago dividido: os dois circuitos da economia urbana dos paises subdesenvolvidos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1979, p. 156). 0 “Circuito superior”, ao contrario, constitui-se de empreendimentos grandiosos, -_llrt™~™~— Consideragées sobre a regulagdo armada de territérios cariocas * 105 diminuic¢a4o dos custos da forga de trabalho nos centros urbanos bra- sileiros e para o aumento do estoque de mao de obra voltado para os servicos domésticos (faxineiras, porteiros, pedreiros que fazem “bis- cate” etc.). A elevacao do custo de manuteng4o e reproducao da subsisténcia nas favelas “pacificadas” tende a provocar novas rodadas de distensao da conflituosidade socioespacial, ampliando as frontei- ras da favelizagao, de maneira a reatualizar 0 vaivém histérico das “resolugdes nao resolvidas” dos nossos problemas sociais. A relagao das UPPs com 0 mercado é mais extensa e profunda. Mediante uma heterodoxa parceria publico-privada, um pool forma- do por Coca-Cola, Souza Cruz, Light, Metré, Bradesco e outras em- presas comprometeu-se a criar um fundo destinado as UPPs como reconhecimento as garantias e salvaguardas que estas fornecem e for- necerao aos grandes investimentos. Entusiasmado, o secretario de Se- guranga sublinhou a importancia da parceria para dar “velocidade ao projeto” e sentenciou: “Nao podemos ficar restritos a determinados impedimentos que a legislacao [impée], principalmente a lei de li- citagao. Esse fundo vai suprir esse problema’“’. O empresdrio Eike que incluem sofisticados padrées tecnoldégicos, tem amplitude internacional e contam com subsidio estatal. Todavia, a atividade de fabricacao do circuito superior divide-se em duas formas de organizac4o: uma € 0 circuito superior propriamente dito, e a outra é 0 circuito superior marginal, constituido de for- mas de produ¢ao menos modernas do ponto de vista tecnolégico e organiza- cional. O circuito superior marginal pode ser resultado da sobrevivéncia de formas de produg4o ou uma resposta a uma demanda incapaz de suscitar ati- vidades totalmente modernas. Essa demanda pode vir tanto de atividades mo- dernas quanto do circuito inferior. Portanto, o circuito superior marginal tem um cardter residual e ao mesmo tempo emergencial (ibidem, p. 80). E impor- tante salientar ainda que “relacées de complementaridade e concorréncia resu- mem toda a vida do sistema urbano. Os dois subsistemas [inferior e superior] estao em permanente estado de equilibrio instavel. Sua complementaridade, ocasional ou durdvel, nao exclui a concorréncia; a propria complementaridade nao representa outra coisa senao um momento privilegiado de uma certa evo- lucdo que conduz a uma dialética dos dois circuitos” (ibidem, p. 204). Felipe Werneck, “Eike Batista promete R$ 100 milhées para reforgar seguranga do Rio até 2014”, O Estado de S. Paulo, 24 ago. 2010. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. 46 106 * Atéo dltimo homem Batista, que durante o pronunciamento chamou 0 secretario Beltra- me de o “grande general”, anunciou a doacao de R$ 20 milhées anuais até 2014, no minimo. Além desse pool, a Confederacao Bra- sileira de Futebol (CBF) também prometeu doar recursos ao fundo. A Bradesco Seguros, a Coca-Cola e a Souza Cruz comprometeram-se, respectivamente, com R$ 2 milhdes, R$ 900 mil e R$ 400 mil’. Contudo, a parceria nao se restringe 4 criagao de um fundo: na La- deira dos Tabajaras, a Souza Cruz e a Coca-Cola esto construindo a sede de uma UPP. A fabricante de cigarros também doou um terreno em Manguinhos para a construcéo da Cidade da Policia, local que concentrard todas as sedes de delegacias especializadas do Rio de Ja- neiro. A CBE por seu turno, esté participando da construcao da UPP na Cidade de Deus“. No fim de outubro de 2011, Eike Batista refor- cou a intencdo de comprar a refinaria de Manguinhos (que, além da localizagao estratégica, obteve recentemente licenciamento ambien- tal), mas condicionou a compra 4 instalacao de uma UPP na regio. O fato é que, além de investimentos destinados 4 Copa e as Olimpiadas na ordem de R$ 55 bilhdes®, o Estado do Rio de Janei- ro deverd receber cerca de R$ 181,4 bilhdes em investimentos entre 2011 e 2013*. Por isso, o grande capital tem fortes expectativas em © Jaime Filho, “Empresas vo doar R$ 20 milhées para policiais de UP”, Blog da Pacificagéo, 28 ago. 2010. Disponivel em: ; acesso em jan. 2012. 48 “Rio firma convénio para captar investimentos privados para UPPs”, Ulti- mo Segundo, 24 ago. 2010. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. Segundo levantamento da empresa de consultoria PwC, divulgado em 12 de ju- tho de 2011. Disponivel em: ; acesso em abr, 2013. 9 °° Alana Gandra, “Investimentos projetados para o Rio de Janeiro até 2013 cres- cem 40%”, Jornal do Brasil, 31 mar. 2011. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. Consideragées sobre a regulacao armada de tertitérios cariocas * 107 relagao atuagio das UPPs. Nesse sentido, nao foi fortuita a insta- lacgao da transnacional Procter & Gamble na Cidade de Deus ha cerca de dois anos, mediante redugées ¢ isengdes fiscais. Como res- salta o autor Eduardo Teixeira: a vizinhanga com favelas “pacificadas” parece oferecer uma significativa _ | vantagem estratégica nas decisées locacionais do setor industrial, forne- : cendo terrenos a baixo prego em dreas centrais de uma metrépole em crescimento econémico e a poucos metros de abundantes bolsées de Me forga de trabalho barata, revertendo uma tendéncia locacional histéri- S ca, em que as indiistrias se deslocam para a periferla metropolitana ou » mesmo para fora das metrdpoles em busca, sobretudo, de terrenos me- nos valiosos ¢ vantagens fiscais.*! E indispensavel sublinhar outro aspecto: a rigor, o comércio vare- jista de drogas ilicitas nao foi dissipado nas favelas “pacificadas” pelas UPPs, mas sim reconfigurado™, A exigéncia de discrigdo influenciou © comércio efetuado com a protecao de armas pesadas (como fuzis AR-15 ¢ 7.62), diminuiu a demanda por esse tipo de armamento e ers acarretou uma maior capilarizagao do comércio de drogas para 0 “asfalto”®. E indubitavel que, do ponto de vista dos moradores da 0, % i. te m 5! Eduardo Tomazine Teixeira, “A ‘pacificagao’ de favelas no Rio”, cit. % “Mesmo com a UPP (Unidade de Policia Pacificadora) jé instalada no morro da Babilénia, no Leme, Zona Sul do Rio de Janeiro, o controle de venda de drogas mudou de fac¢ao criminosa, segundo apontam investigagdes da Delega- cia de Copacabana. [...] a UPP que policia a Babilénia também é responsdvel pelo vizinho morro do Chapéu Mangueira que, curiosamente, tem a venda de drogas administrada por outra faccao criminosa ligada a bandidos da Rocinha, af comunidade do baitro Sao Conrado, Zona Sul [...]. A UPP do Borel também = é responsivel pelo morto da Casa Branca. As duas favelas eram comandadas por faccées diferentes e, mesmo com a pacificacao, os remanescentes do trafico néo se misturam. O pessoal do Borel, por exemplo, continua comprando droga na Mangueira, que é do mesmo grupo” (Mario Hugo Monken, “Mesmo com UPP favela da Zona Sul do Rio de Janeiro muda de faccao”, R7, 19 fev. 2011; disponivel em: ; acesso em abr. 2013). “Em uma investiga¢éo que resultou na prisio de dezesscis pessoas em janeiro, policiais da 13* DP descobriram que os traficantes da Babilénia e do Pavio- : ) \ 108 * Até o tiltimo homem regio, esse fato gera certa tranquilidade ou, pelo menos, diminui a tal “sensagao de inseguranga” provocada pela convivéncia didria com adolescentes armados de fuzis. De todo modo, os tiroteios nao aca- baram: “O tréfico permanece ativo nas favelas, ainda que sem a os- tentacéo de fuzis ou armas de grosso calibre. Vez por outra, os solda- dos da forca de pacificagio se envolvem em troca de tiro com os criminosos”*, Além do mais, 0 pagamento de propinas a policiais (vulgo “arrego”) para manter ou, pelo menos, facilitar a atividade das “bocas de fumo” continua vigorando. No caso da UPP dos morros da Coroa, Fallet e Fogueteiro, investigages apontaram que os poli- ciais envolvidos no esquema “ficavam em bases fixas, sem circular pelas comunidades, ou eram deslocados para pontos distantes das areas de atuagao dos traficantes, principalmente nas noites de sexta- -feira, sdbado e domingo”. Afora a reconfiguracao do comércio de drogas ilicitas nas comunidades “pacificadas”, um aspecto que deve- mos considerar é a migrac4o dos chefes do varejo para outras comu- nidades favelizadas, muitas vezes fora da regiao metropolitana do Rio de Janeiro. Em mar¢o de 2010, por meio de nota oficial, a Secretaria de Se- guranca do Rio anunciou um projeto de instalagao de 40 UPPs em cerca de 120 comunidades até 2016 (na época, havia apenas 6 UPPs instaladas). Para isso, 0 efetivo teria de aumentar para cerca de 62 mil policiais militares. No segundo semestre de 2011, a Policia Mi- litar do Rio j4 possufa um efetivo de cerca de 40 mil homens e mu- -Paviozinho estavam associados na distribuicao de drogas para pessoas de clas- se média, entre eles um empresério que vivia em um apart-hotel de luxo no Leblon, Zona Sul da cidade” (Mario Hugo Monken, “Mesmo com UPP, favela da Zona Sul do Rio de Janeiro muda de faccao”, cit.). Rodrigo Martins, “Protecao para quem?”, CartaCapital, Sao Paulo, 16 nov. 2011, p. 25. Para nao cair em simplificacées, é importante salientar que nem todas as “bocas de fumo” das favelas ou comunidades precarizadas do Rio de Janeiro utilizam armas pesadas, 55 “Mensalio do trafico em UPP no Rio chegava a R$ 70 mil”, Epoca, 14 set. 2011. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. hy: Consideragées sobre a regulacao armada de territérios cariocas * 109 i eB Iheres®. E assim, 0 projeto UPP vai injetando doses cavalares de contribuigées ao processo vigente de regulacao armada da vida social no Rio de Janeiro. A “gestao” policial de territérios institucionalizada pelas UPPs EF LF 2 % foi objeto de contestacées e protesto dos moradores, que, em alguns | casos, entraram em confronto com os policiais “pacificadores”. No ly inicio de setembro de 2011, a Cidade de Deus foi palco de intensos my | protestos de moradores; segundo relatos, o estopim foi a interferén- cia de policiais num baile funk*’. Por outro lado, a adesao acacha- pante da grande midia a pacificagao (armada) contou com a invetera- da criminalizagio das manifestag6es nos espagos favelados: salvo raras excecées, a grande midia caracterizou o mal-estar dos mora- dores das favelas como reagdes comandadas por traficantes que per- deram terreno. poll Em margo de 2010, com o apoio da Comissao de Direitos Huma- | nos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, da Ordem dos Ad- vogados do Brasil e do Ministério Publico, foi langada a Cartilha da abordagem policial, cujo objetivo era esclarecer e orientar um publico vulneravel a respeito tanto de seus direitos fundamentais quanto da possibilidade de denunciar abusos ¢ achaques. O rapper Fiell, mora- dor do morro Dona Marta, participou da elaboragao da cartilha; dois meses depois de seu langamento, ele foi preso sob a acusagao de “de- sacato” a policiais que ordenaram o fim de um pagode. Segundo Fiell: Os tiroteios acabaram, mas a verdade é que vivemos aqui uma ditadura branca. Tudo é proibido, tudo sé pode ser feito mediante autorizagao prévia da policia. O funk td vetado, qualquer festa precisa de aval. Os jovens estao sempre sendo submetidos a revistas vexatérias [...]. Para ter paz, perdemos a liberdade. Naqueles prédios vizinhos [aponta], nin- % “Novas UPPs dependem de mais policiais formados”, O Globo, 8 out. 2009. Disponivel em: ; acesso em abr. 2013. 5 “Em menos de 24 horas, populacéo tem problemas com UPP no Alemao ¢ na Cidade de Deus”, Jornal do Brasil, 5 set. 2011. Disponivel em: s acesso em abr. 2013. 110 © Atéo ultimo homem guém diz 0 que eles podem ou nio ouvir, nem a que horas a festa tem de acabar. Além disso, ainda convivemos com esgoto a céu aberto ¢ barracos de madeira. Nao ha hospital, escola ou opgées de lazer. As S obras na comunidade sao paliativas e o governador prefere gastar di- nheiro para murar a favela a investir nas reais necessidades dos morado- res. Honestamente, esse braco do Estado, o da policia, eu conheco des- de crianga. E sei que nao é a solugao para nés.* No mesmo registro, o vigilante André Luiz, do morro da Babilé- nia, ressaltou: Ninguém gosta de tiroteio, de guerra de faccées. Mas 0 que parece é que saimos do jugo do traficante para aquele da policia. As armas pesa- das continuam no morro. A diferenga é que o fuzil nao esté na mao do traficante, e sim da policia. Que paz é essa?” Marcia Honorato, coordenadora da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violéncia e integrante do Conselho de Direi- tos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, denunciou a respeito do Complexo do Alemao: 58 59 Além das prisées arbitrarias, das revistas vexatérias, os soldados agem com violéncia e sao capazes de langar bombas de efeito moral por con- ta de coisas banais, como o som alto do carro ou uma festa que ultra- passou o hordrio determinado por eles. E uma ditadura.” Citado em Rodrigo Martins, “Proteg4o para quem?”, cit., p. 30. “Mas os relatos de abusos sdo recorrentes em diversos outros morros ocupados. ‘Estamos com a favela ocupada ha mais de dois anos, os policiais nos conhecem, sabem quem é trabalhador e bandido, mas insistem em continuar revistando todo mundo, revirando malas, apontando armas para nés. Hoje mesmo encanaram com a minha touca, perguntaram se era uma touca ninja. Nao era, mas e se fosse?’, comenta o agente cultural Anderson José Ribeiro, o Lula, ora engajado na ela- boragao de um jornal comunitdrio para os moradores dos morros vizinhos Ba- bilénia e Chapéu Mangueira, na Zona Sul” (ibidem, p. 31). Citado em ibidem, p. 32. Citado em ibidem, p. 26. “O caso parece singelo, mas a verdade é que estéo prendendo todo mundo por desacato sem qualquer justificativa plausivel. As vitimas nao sao bandidos, até operarios de obras do PAC foram presos. Passa- ram dias na carceragem até serem liberados, Nao se trata de desacato, e sim de abuso de autoridade” (idem). Consideragées sobre a regulacdo armada de territérios cariocas * 111 Em novembro de 2011, numa incursao que contou com a parti- cipagao das Forgas Armadas, a policia ocupou os morros da Rocinha e do Vidigal (ambos em Sao Conrado, na Zona Sul) com o intuito de instalar uma nova UPP. Uma das primeiras medidas foi a instala- c4o de um sistema de cameras, ligado 24 horas por dia, reproduzin- do as experiéncias de outras comunidades j4 monitoradas na época (Dona Marta, Cidade de Deus e Batan). No mesmo més, 0 governo estadual anunciou a intengao de expandir o sistema de monitora- mento ininterrupto via cameras para mais quinze favelas com UPPs‘', A “administracao” policial/militarizada tende a recorrer a um aparato tecnocientifico sofisticado para efetuar uma vigilancia constante dos favelados, historicamente considerados “perigosos” pela elite carioca pretensamente “cosmopolita”. Com isso, torna-se um tipico apanagio do progresso civilizatério burgués, da racionali- zacio irracional subjacente 4 modernizago capitalista, relacionando a racionalidade dos meios técnicos com a irracionalidade dos fins, sem dispensar a brutalidade de expedientes “arcaicos”, como a tor- tura, que se junta as ferramentas de coercao e A destruicao high-tech. Tabela 2. Instalagao de UPPs até novembro de 201 UPP Inauguracao | | Comunidade Bairro Efetivo Dona Marta | 19/12/2008 Dona Marta Botafogo 112 Cidade de Deus 16/2/2009 | Cidade de Deus | Jacarepagua | 344 Jardim Batan | 18/2/2009 Jardim Batan Realengo 106 (continua) ‘ “O pregao eletrénico para escolha da empresa de vigilancia ser em janeiro. O presidente da Comissao de Seguranca Publica da Assembleia Legislativa, depu- A= tado Zaqueu Teixeira (PT), aprovou a medida. ‘Vao permitir vigiar areas em que 1 0 policial nao esta’, disse. Jé o lider comunitdrio da Rocinha, Paulo Roberto ‘ Inacio, 63 anos, é contra. ‘Vai tirar a privacidade’. A manicure Joice Avila, 32, reitera. ‘E se flagrar momentos intimos? Como vou tomar banho de sol na laje?’, = questiona” (Fernanda Alves, Joao Paulo Gondim ¢ Maria Luisa Barros, “Areas + com UPP vio ser monitoradas com cameras”, O Dia, 19 nov. 2011; disponivel em: ; acesso em abr. 2013). x si ¢ a an sty 112 * Atéo ultimo homem (continuagio) UPP Inauguracéo| Comunidade Bairro _| Efetivo Babilénia/ s1A3, b Chapéu | 10/6/2009 | Babildnial Chapéu | 1 ane 96 ; Mangueira Mangueira Cantagalo/ i Pas | ssraro09 | Cantagalol Pavao- | Copacabanae | 6 vas -Pavaozinho Ipanema Pavaozinho Tabajaras/ a Cabritos/ Pico Tabajaras! | 14/1/2010 | do Papagaio/ | C2Pacabanae | 3) Cabritos ‘ Botafogo Mangueira (de Botafogo) ce Providéncial Providéncia 26/4/2010 Pinto/ Pedra Lisa Centro 208 Borel/ Chacara do Céu/ Casa Brancal i Borel 7106/2010 Indiana/ Catrambi/ Tijuca 278 Bananal Formiga 1/7/2010 Formiga Tijuca 102 ‘Andarai/ Nova Divineia/ Joao Paulo Il/ Juscelino Andarai | 28/7/2010 |, Kubitschek Tijuca | 214 Jamelao/ Santo Agostinho/ Borda do Mato! Rodo/ Arrelia Salgueiro | 17/9/2010 Salgueiro Tijuca | 138 ‘Turano/ Chacri- nnha/ Matinha/ 117/ Liberdade! | Rio Comprido Tano | 30/9/2010 |p Ginhedo ew | chway | 178 Paula Ramos/ Rodo/ Sumaré Macacos/ Pauda |. Macacos | 30/11/2010 | Bandeira/ Parque ters 215 Vila Isabel eet Consideragées sobre a regulagio armada de territérios cariocas © 113 (cominuasio) UPP __| Inauguragao | Comunidade Bairro | Efetivo Sio Joao! Sio Jodo! Mattia! | Engenho No- Matriz/ Quieto | 31/1/2011 Quieto vol Sampaio®| 200 Coroal Falled | 5575991, | Coral Falled) | Santa Teresal | 94 Fogueteiro Fogueteiro Catumbi Escondidinbol | ys 4/9911 | Escondidinho! | eee | 179 Prazetes Prazeres Sao Carlos/ Sio Carlos | 17/5/2011 | Querosene/ Esticio 241 Mineiraf Zinco Mangueiral | | Mangueiral ae 3/11/2011 | Mangueiral Tuiuci | M828¥sit2/ | 403 Fonte: UPP Repérter. Disponivel em: . O argumento utilizado para legitimar a pacificag4o (armada) en- contra nas UPPs um projeto antitético ou alternativo ao modelo de “confronto aberto”, tipico de uma policia voltada para a “guerra as drogas”, algo mais ou menos caracterizével como “UPP versus Cavei- ro”. A rigor, as UPPs nao prescindem do Bope (com todo o seu ins- trumental mortifero). Mesmo se todas as mais de mil favelas cariocas recebessem UPPs (0 que é improvavel), ainda assim as UPPs nao pres- cindiriam do Bope. Esse fato fica patente em algumas incursées do Bope (em conjunto com unidades especializadas das policias) nas fa- velas com UPPs. De todo modo, hé uma questao de fundo a ser con- siderada: num contexto de impregnagao social da violéncia, que vice- ja num quadro de “administragao” da crise, os aparatos de vigilancia, controle, coercao e repressao sao cada vez mais requeridos, utilizados, ostentados, e atuam em niveis de complementaridade. O Caveirao é uma viatura de combate, mas é também uma simbologia ininterrup- tamente mantida, ou melhor, alardeada em nosso campo de visao. Eassim, o Rio de Janeiro, cidade brasileira que, de uns tempos pa- ra ca, melhor representou as expectativas de surfar na crista da onda © Regio do Estidio Olimpico Jodo Havelange, vulgo “Engenhao”, 63 Adjacéncias do Maracana. 7 114 « Atéo ultimo homem esa contemporanea, através do decalque local das aises de capitalismo “desenvolvido”, vai oferecen- iidades desenvolvidas de “gestao” da crise... da civilizagéo burgu novidades made in p: do ao mundo modali

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