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A LUZ

DA ARTE
GREGA
[PHYSIS - PHWS - TECHNE] Qual princípio rege a arte grega?
Na Grécia, LUZ = PHWS é o princípio de tudo, ARCHE
PANTWN, da vida e do pensamento, da arte e da Cidade, do conheci-
EMMANUEL CARNEIRO LEÃO
mento e da pro-dução, do agir e do prestar ou servir.
[Professor emérito da Universidade O QUE é ser princípio e em que sentido a LUZ é
Federal do Rio de Janeiro]
princípio?
Só é possível pensar em princípio, porque a realidade, PHY-
SIS, não é estática, é dinâmica. Só é possível pensar em princípio
porque a dinâmica da realidade não é linear, é circular. Só é possível
pensar em princípio, porque a circulação da realidade não é finita,
é infinita. Só é possível pensar em princípio, porque a infinitude da
realidade não é de exclusão, é de inclusão. Assim, pois, não é possí-
vel não pensar em princípio quando a realidade faz pensar, em pro-
fundidade, a realização, OYSIA, de qualquer real, ON. Agitado pelo
movimento irrequieto da realidade, o grego, por ser e para ser real-
mente grego, só podia pensar mesmo o princípio de tudo na LUZ e
pela LUZ.
Em que sentido a LUZ se faz princípio de tudo?
Não se deve reduzir LUZ à claridade. A escuridão também
pertence à LUZ e por isso nunca deixa de ser luminosa. LUZ é tensão
ontológica, a tensão da unidade de claridade e escuridão no próprio
ser dos seres. É desta unidade que Heráclito de Éfeso diz que tudo é
UM: HEN PANTA EINAI (Diels, 50). Pois a LUZ provém e, provin-
do, remete para o combate originário, POLEMOS PANTWN MEN
PATER ESTIN, PANTWN DE BASILEUS (Diels, 53), “pai e guia” de

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ARTE NO PENSAMENTO ANTIGO A LUZ DA ARTE GREGA [PHYSIS - PHWS - TECHNE]

toda energia poética. Neste sentido, para um grego, LUZ é sempre Ó Luz Celeste!
energia irradiante em todo ser e não ser de tudo que é e está sendo, Não me ensinaram os homens. Já vai longe o tempo em que em
de tudo que não é, nem está sendo. Energia de pura irradiação, LUZ meu coração ardente, não sabendo encontrar a terra toda viva,
concentra em si a força poética do raio de Zeus, que rege e acata me voltei para ti e, confiante, como a planta, abracei-me contigo
todas as coisas: PANTA OIKIZEI KERAUNOS (Diels, 66). longa e cegamente em minha alegre piedade. Pois um mortal mal
E qual será esta obra universal da LUZ? reconhece os Puros. Mas quando o espírito floresceu em mim,
A obra universal da LUZ é a morada de todas as coisas. como tu floresces, eu te reconheci e gritei: és vida. E porque viajas
Trata-se de uma EN-ERGEIA, uma operação ontológica que põe entre os mortais e, jovial, como o céu, lanças de ti a graça de raios
tudo em obra, por constituir em tudo o que, antes de ser, já sem- brilhantes sobre cada coisa, a fim de que todas as coisas tenham a
pre era ser: TO TI EN EINAI, que Boécio traduziu para o latim cor de teu espírito, foi por isso que também para mim a vida se fez
com uma expressão corrente em toda a Idade Média: quod quid poesia. É que em mim estava a tua alma. E assim como tu, meu
erat esse. coração se entregou livremente à terra grávida, à terra sofredora.
Desta unidade dinâmica de claridade e sombra em toda rea- E, muitas vezes na noite santa, prometi amá-la fiel e sem medo
lização falou a maior poetisa de todos os tempos, Safo de Lesbos, até a morte, amar esta terra toda carregada de destino e nunca
integrando o brilho da aurora com o escuro da véspera, num fa- desdenhar nenhum de seus Mistérios.
moso verso:
Na Grécia, a arte dá espetáculos de brilho e sombra, deixando apa-
HESPERE. PANTA PHEREIS, HOSA PHAINOLIS ESKEDAS’ recer e desaparecer a realidade nas peripécias de realização do real.
AIWS: Não se trata apenas nem sobretudo da competência de saber fazer,
PHEREIS OIN’ nem da perícia de fazer passar do não ser para o ser, nem da sur-
PHEREIS AIGA presa de uma inspiração. Trata-se de uma experiência de LUZ que a
PHEREIS APY MATERI PAIDA cidadania faz na e com a matéria. Toda arte erige em obra uma lumi-
nosidade material em que surgem e se instalam possibilidades de
Véspera, carregas tudo que dispersou a brilhante aurora: ser e não ser que, entregue e deixada a si mesma, a realidade nunca
carregas vinho (aos lábios) chegaria a produzir e a deixar vir a ser. Na obra, a arte vive sempre
carregas rebanho (ao redil) as tensões de sua união com a realidade. Uma identidade circular de
carregas da mãe o filho posições e oposições compõe as diferenças exclusivas de uma com
as diferenças próprias da outra. Por isso não é possível compreender
A SAFO no século VII antes de Cristo, poetisa da LUZ grega, faz em profundidade o que se ilumina e brilha na arte grega sem um
eco no século XIX. Hölderlin, poeta da luz moderna, pela boca mori- confronto de suas relações com a realidade: sem PHYSIS não se dá
bunda de Empédocles, cidadão da tecnologia: TECHNE.

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Nenhum real se desenvolve perfeitamente em sua realização, tudo. É um entendimento técnico que só entende transformação e
nem chega à plenitude de surgir e cumprir-se por si mesmo num mudança por um influxo causal, segundo o modelo de agente e paci-
mundo, sem a vigência da arte nas obras. É o templo que faz apa- ente. É uma experiência não grega da experiência grega.
recer e deixa brilhar a paisagem. Ora, se, por um lado, é a claridade Tomemos um exemplo. O mármore é HYLE TIS, uma maté-
do templo que introduz no mundo a paisagem como paisagem, por ria, no sentido de ser um real dotado de peso, densidade, dureza,
outro, é a tensão das diferenças entre país e paisagem que permite ao cor, mas tudo isso em uma tensão constante consigo mesmo e com
templo surgir em todo o esplendor de sua identidade de obra de arte. outras matérias. Sendo pesado, o mármore tende para baixo, a mora-
Nesta recíproca constituição entre arte e real se exerce a circularidade da da terra, por ter cor tende a brilhar na claridade do sol, sendo
do círculo de ser e não ser. A obra é o encontro das circulações den- denso e duro, tende a resistir à penetração da chuva. A tudo isso o
tro deste círculo. Ser artista grego consiste em suportar a ascese de mármore pode tender pelo simples fato de ser mármore.
morar no interior deste círculo com as tensões entre arte e realidade Tornar-se, porém, estátua de Apolo nas mãos de Policleto
numa obra. ou chegar a frisas no Partenão ou vir a ser escadaria no templo de
Entretanto, se ambas se identificam, ao fazerem e por faze- Paesto, a nada disso o mármore pode tender pelo simples fato de ser
rem parte do mesmo círculo, arte e realidade, PHYSIS e TECHNE mármore. Nenhuma destas obras – nem a estátua, nem a frisa, nem
se diferenciam no próprio interior desta identificação. Pois as obras a escadaria – realiza uma possibilidade que tenha o princípio de sua
da realidade, TA PHYSEI ONTA, de que fala Aristóteles, trazem em origem e vir a ser no próprio mármore. Brilhar ao sol, ocupar o lugar
si mesmas, EM HEAUTOIS, o princípio de sua realização. São, pois, de baixo, respingar os pingos da chuva, tudo isso o mármore pode
obras luminosas. É a LUZ em si e de si mesma que dá origem e realizar entregue a si mesmo e por si mesmo. São possibilidades
mantém em vigência o eclodir e o perdurar de suas vigências, en- hiléticas que se vão atualizando ao sabor dos contatos da matéria do
quanto as obras da arte encontram o princípio de sua realização fora mármore com outras matérias, enquanto tornar-se estátua, frisa ou
de si, EN ALLW, em outro. São, pois, obras iluminadas, que não têm escadaria pressupõe possibilidades hiléticas do mármore, não rea-
luz própria, mas a recebem de outro. liza uma possibilidade a que o mármore pudesse satisfazer morfeti-
Numa primeira aproximação, trata-se de uma diferença camente por si mesmo.
curiosa e surpreendente. Quando, ao ar livre, uma pedra se aquece E por que não? – Porque cada um destes vir a ser pressupõe
no rigor do estio, não é em si mesma e sim em outro, no calor do e exige um outro princípio de origem e determinação. É indispensá-
sol, que colocamos o princípio de seu aquecimento. Será, então que, vel uma MORPHE ontológica, uma outra condição, um modo de ser
para um grego, o aquecimento da pedra é obra da arte e não da natu- diferente de simples matéria. Pois supõe um vigor de transcendên-
reza? Como se vê, a distinção entre PHYSIS e TECHNE pela diferen- cia que suspenda a matéria do mármore num perfil de sentido uni-
ça entre “em si mesmo” e “em outro” não é fácil de se aceitar. Sem versal. Para tanto, o mármore não pode ser apenas mármore, mas
dúvida. Mas trata-se de uma dificuldade salutar. Pois nos ajuda a tem de assumir em seu ser todos os outros seres e modos de ser.
depor o hábito do homem moderno de unidimensionar e generalizar Da mesma maneira, o mar pode vir a ser por si mesmo o movimento

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incessante de ondas, mas não pode ser por si mesmo o sorriso in- construir. A forma homérica TECHNE diz arte na acepção ampla de
cansável da libertação que fala Prometeu tão logo Hércules lhe solta indústria, habilidade, perícia, expediente, processo.
a língua. É-lhe possível tornar-se por si mesmo o mar revolto de Em seus escritos, Aristóteles conhece quatro usos princi-
força indomável, mas não lhe é possível vir a ser por si mesmo o pais de TECHNE:
mar de vagas abismadas de raiva na tempestade do vento sulino, a) em oposição a PHYSIS, sorte, e AUTOMATON, o que
que canta o Coro de Antígona. Também não é por si mesmo, por funciona por si mesmo, TECHNE diz um processo contro-
virtude de sua própria realização que as ondas dão passagem às lado de fazer e operar;
naus gregas ou sustentam os remos das trirremes durante a batalha b) em oposição a PHYSIS, realização originária da realidade
de Salamina. e original do real, TECHNE indica que todo processo con-
Para chegar a realizar-se, uma possibilidade deste nível pres- trolado de fazer supõe sempre uma matéria, como material,
supõe uma tal diferença de essência que atinja a universalidade do e um princípio universal de constituição e determinação de
que, antes de ser, já sempre era ser. Não basta simples diversidade uma forma;
de agente e paciente, possibilidade esta meramente hilética já asse- c) em oposição a EPISTEME, conhecimento universal e ne-
gurada por mera igualdade entre duas ou mais coisas sem nenhuma cessário, TECHNE remete para um saber fazer adquirido
identidade de diferenças. Tal diferença essencial brota do vigor de por generalização da EMPEIRIA, que, por dar-se dentro de
uma linguagem ontológica ou na palavra de Heráclito de um LO- limites, tem sempre limitações;
GOS, i. e, daquele poder de reunião que recolhe na identidade de d) em oposição a POIESIS, criação oriunda de um advento
todas as coisas as diferenças de ser, não ser e vir a ser, de ter, não ter inesperado da realidade em diferenças numa identidade,
e conter, de nascer, crescer e morrer. TECHNE diz invenção de novas realizações.
Pois bem, é esta linguagem de integração das diferenças
numa identidade que aciona nas obras a arte, enquanto um modo Cada área semântica do uso de TECHNE em Aristóteles inclui não
primordial de conduzir-se e saber ser da cidadania. Na obra de arte, uma, mas muitas questões. Esta multiplicidade, no entanto, não
surgem e se instauram possibilidades sempre novas e inesperadas tem importância decisiva, por um motivo bem simples. Todas as
que a realidade não pode pro-duzir. questões da TECHNE estão operando em todos e em cada um dos
TECHNE é um termo técnico em Aristóteles. A palavra vem usos. Para o estagirita, a TECHNE, no sentido de belas-artes, não
de um substantivo homérico TEKTWN, que designa quem trabalha é nem técnica, no uso moderno, nem procedimento; não se reduz
a madeira, de qualquer maneira, seja de maneira refinada, o marce- nem à natureza nem à ciência, não se identifica nem com a inven-
neiro, seja de maneira tosca, o carpinteiro. A diferença entre artesão ção nem com a repetição. E, no entanto, toda esta negatividade de
e artista é moderna, não é nem grega, nem medieval. De TEKTWN “não” inclui sempre afirmação de um “sim”, para vir a ser arte. Por
derivou-se o verbo TEKNAINW, com o significado primeiro de talhar isso a arte não é técnica, sendo técnica. É no próprio procedimento
a madeira, depois de tecer, tramar, maquinar, de fabricar elaborar, de seus recursos que a arte supera todo procedimento. É na ciência

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que a arte deixa a ciência. É tornando-se natureza que a arte sai da


natureza. Na invenção instrumental e na repetição técnica das obas, Traduzindo não os vocábulos, mas a linguagem das pala-
a arte supera ambas, enviando-nos à realidade em retração. vras, queria concluir esta fala sobre a LUZ NA ARTE GREGA:
Matéria, técnicas, instrumentos, procedimentos e meios são
mecanismos, em que a arte cria uma obra. Toda obra provém assim Em todo seu jogo, arte, de um lado, consume coisas que a reali-
da ação de mecanismos. Mas de onde provêm e de onde retiram sua dade é incapaz de pôr em obra, de outro, re-produz coisas que a
força artística os mecanismos? – Não será da obra? Pois é a obra que realidade produz.
impõe determinados mecanismos e, impondo, lhes expõe a força
artística e o poder criador. Temos aqui, pois, uma conjuntura circu-
lar: dos mecanismos provém a obra, da obra provêm os mecanismos. Rio de Janeiro, Natal de 2005
Nenhum dos dois, nem mecanismo, nem obra, origina sozinho o
outro. Ao contrário, tanto os mecanismos, como as obras são cada
qual à sua maneira e na reciprocidade diferente de sua proveniência
por um terceiro, pela LUZ da realidade na arte. Desta Luz valem as
palavras oraculares do Fragmento 45 (Diels) de Heráclito:

PSYCHES PEIRATA IWN OUK AN EXEYROIO PASAN EPIPO-


REYOMENOS HODON; HOYTW BATHYN LOGON ECHEI

Por mais que sigas os vestígios dos caminhos, nunca chegarás aos
confins da arte de uma obra, tão fundo mora nela o LOGOS, a
Linguagem da unidade.

Foi de certo pensando na profundidade do LOGOS que Aristóteles


condensou numa formulação lapidar as tensões de identidade e dife-
rença entre arte e realidade nas obras. Na PHYSICA, II, 194a 21, diz
Aristóteles da arte em suas relações com a realidade as seguintes
palavras seculares:

HOLWS TE HE TECHNE TA MEN EPITELEITAI HÁ HE PHY-


SIS ADYNATAI APERGASASTHAI, TA DE MIMEITAI

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