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422 MONTAIGNE

CAPITULO VIII
Da arte de conversar

É costume de nossos tribunais condenar al- exemplos, valho-me dos maus, cuja _lição é
guns para exemplo dos outro?. _Condená-los acessível. Esforcei-me por me tornar tao agra-
unicamente porque erraram sena mepto, como dável quanto os outros eram irritantes, tão
diz Platão. O que está feito não se desfaz; mas firme quanto eram moles, tão brando quanto
é para que não tornem a errar ou a-fim de que eram duros, tão bom quanto eram maus. Mas
os outros atentem para o castigo. Não se éorri- a tarefa é irrealizável.
gc quem se enforca; corrige·m-se, os demais O mais proveitoso e natural exercício de
com ele. Eu faço a mesma coisa. E certo que nosso espírito é, a meu ver, a- conversação.
os meus erros são naturais e incorrigíveis, mas É-me a sua prática mais agradável do que
assim como os homens de bem oferecem ao qualquer outra. Eis por gue, se me coubesse
povo o exemplo do que este deve fazer, eu os escolher antes consentiria, penso, e.11 perder a
convido a não me imitarem: "Não vedes como vista do' que o ouvido ou a fala. Os atenienses
o filho de Albo vive mal e como Barro se tor- e os roman.os tinham esse exercício em grande
nou miserável? Bom exemplo: que vos ensine a conta em suas academias. Em nosso tempo os
não dissipar vosso patrimônio 1 6 2 ." Publi- italianos ainda tiram bom proveito dos restos
cando e criticando minhas imperfeições, ensi- que conservaram, como se vê da comparação
narei alguém a temê-las. As qualidades que de nDsso talento. com o deles. A freqüentação
mais aprecio em mim, mais se honram em me dos livros é uma atividade calma e fraca, que
criticar do que em me elogiar. Eis por que não entusiasma, enquanto a conver?ação ensi-
volto amiúde a isso, e tanta vez me demoro no na e exercita ao mesmo tempo. Se converso
assunto. Mas não é possível tudo contar de si com um espírito forte, e rude discutidor, ele
próprio sem que algum prejuízo advenha: acre- aperta-me, fere-me à direita e à esquerda e suas
ditam no mal que dizemos e duvidam do bem. idéias sugerem as minhas. O ciúme, o amor-
Não sei se haverá alguém como eu que mais próprio, a atenção excitam-me ~ elevam-me
se eduque contrariando os modelos do que os acima de mim mesmo. O acordo e, na conver-
imitando, e deles fugindo mais do que os sação, qualidade bem aborrecida. Mas assir:i
seguindp. A essa espécie de disciplina referia- como o nosso espírito se fortalece na convi-
se Catão, quando disse que os sensatos apren- vência com os espíritos rigorosos e sensatos,
dem mais com os loucos do que estes com também se empobrece e degenera pelo comér-
aqueles. E Pausânias conta que um velho toca- cio com os vulgares e doentios. Não há doença
dor· de lira tinha por hábito mandar seus discí- que tão facilmente se espalhe. Sei por expe-
pulos ouvirem um mau músico que morava em riência quanto custa. Gosto de discutir e con-
frente, a fim de que aprendessem a odiar às versar, mas é com pouca gente e para meu pro-
desafmações e os compassos errados. O horror veito. Pois servir de espetáculo aos grandes -e
à crueldade incita-me mais à clemência do que fazer exibição de espírito, são coisas que não
o (aria um modelo de generosidade. Um bom considero recomendáveis em um homem de
picador não corrige melhor minha maneira de bem ..
montar a cavalo do·que um procurador ou um
A tolice é péssima qualidade, mas n ão. a
\lene-z.i.ano. E um vício de linguagem, mais do
que um falar correto, emendà o meu modo de poder suportar e moer-se por sua causa, como
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exprimir. Todos os dias a tola conduta dos ou- me acontece, é também uma doença que hada
tros me adverte e aconselha. O que magoa fica a dever à tolice. É o que quero critidr em
impressiona e desperta mais do que o· que mim, agora. J

agrada. O tempo em que vivemos só nos corri- Entro em conversa e discussão com grande
ge as avessas, mais por desacordo do que por liberdade e facilidade, tanto mais quanto as
acordo e mais por divergência. do que por opiniões encontram em mim terreno pouc?
semelhança. Aprendendo mal com os bons propício a seu desenvolvimento em profundi-
dade. Nenhuma afirmação me espanta, nenhu-
ma crença me fere, por contrária que seja às
1 6 2 Horário. minhas. Não há fantasia, por frívola e extrava-
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gante, que não me pareça compatível com as tejo a verdade, venha de quem vier; rendo-me
produções do espírito humano. Nós, que priva- com alegria, en,trego-lhe as armas, vencido de
mos a nossa inteligência do direito de julgar, antemão ao avistá-la de longe. E se não o
encaramos sem antipatia as idéias alheias e fazem com demasiada agressividade, aceito
damos-lhes ouvidos embora não as acatemos. quaisquer críticas a meus escritos; corrigi-os
E, em estando completamente vazio um dos mais de uma vez, antes por cortesia do que por
pratos da balança, que oscile o outro mesmo achá-los errados; gosto de encorajar as pes-
com histórias de mulheres desfrutáveis. soas a me criticarem livremente e procuro
Acho desculpável preferirem-se os números recompensá-las, embora a expensas minhas.
ímpares; a quinta à sexta-feira; e ser o décimo Todavia, é sem dúvida difícil levar os homens
segundo ou décimo quarto à mesa a· ser o déci- de minha época a pensarem de igual modo;
mo terceiro; se, quando, em viagem, vejo de não se animam a corrigir os outros porque não
bom grado uma lebre a correr ao longo do têm a coragem de suportar que os corrijam; e
caminho do qu'e a afravessá-lo; calçar primeiro sua linguagem, quando em presença uns dos
o pé esquerdo a calçar o direito. Toàas essas outros, carece de franqueza. Tenho tanto pra-
bobagens em qque acreditam merecem ao zer em ser julgado e apreciado, que me é indi-
menos .que se escutem. Para mim pesam mais ferente a maneira por que o fazem. Minhas
do que nada, mas ainda assim pesam alguma idéias são amiúde tão contraditórias que se
coisa. Em matéria de peso, as opiniões do condenam sozinhàs e pouco me importa qu~
vulgo, embora sem fundamento, importam outro as condene também, tanto mais quanto
mais cio que o nada e quem as desdenha total- dou à crítica uma jmportância relativa. Mas
mente, em. querendo evitar a superstição, peca aborrece-me quem assume uma atitude supe-
por obstinação. A contradição das opiniões rior (como alguém que conheço) e se ofende se
não me ofende nem me exalta, apenas me for- não o seguimos.
nece oportunidades de me exercitar. Não gos- Vendo-se Sócrates acolher sorridente as
tamos de ser corrigidos, e qualquer observação observações que lhe faziam, pode-se dizer que
nesse sentido deve fazer-se em tom de conver- era por causa de seu v~lor e porque vencia
sa. Não procuramos saber se é justa e sim sempre. Aceitava portanto os reparos como
como a repelir; em lugar de acolhê-la, arrega- pretexto para conquistar novas glórias. Na
nhamos os dentes. A mim seria desagradável realidade, nada nos toma a sensibilidade mais
que meus amigos me criticassem com rudeza: delicada do que o valor que atribuímos ao
"és um tolo, estás a sonhar"; entretanto, gosto adversário e o desprezo em que ele nos tem;
que sejam sinceros e que suas palavras expri- por isso, nem que seja por prudência, deve o
mam exatamente seu pensamento. Cumpre for- mais fraco aceitar de· bom grado as críticas
tificar os ouvidos contra o som lisonjeiro das que o corrijam e fortaleçam. No que me diz
palavr·as cerimoniosas. Aprecio uma convi- respeito, procuro mais a convivência dps que
vência e familiaridade fortes e viris, umà ami- se mostram severos do que a dos temerosos. É
zade feita de aspereza e energia, que se desen- prazer insípido e prejudicial tratar com gente
volva como o amor, com mordidas e que nos admira sempre e sempre nos segue.
arranhões. Não será bastante vigorosa e gene- Antístenes recomendava a seus filhos que não
rosa, se não for algo brutal, se se mostrar fossem reconhecidos a quem os louvasse.
demasiado educada, artificial, contrafeita: Muito mais me orgulho com a vitória obtida
''Não há conversação sem contradição 1 6 3 ." A sobre mim mesmo quando, no ardor da discus-
mim, quando me contradizem, despertam-me a são, me curvo sob o peso das razões do meu
atenção, não a cólera; aperto meu interlocutor adversário, do que com a sua derrota se se re-
e tiro partido de seus argumentos. A busca da vela fraco. Em suma, recebo e acuso todos os
verdade não deve ser o alvo de· ambOs os golpes leais,_por mais fracos que sejam, mas
contraditares? Que responder, se a cólera suporto com dificuldade aqueles cuja forma
toma conta do espírito e o turva logo de iní- deixa a desejar Importa-me pouco o assunto
cio? Seria útil que se fizessem apostas nas em debate, as opiniões emitidas são-me indife-
discussões, apostas que seriam ganhas por rentes, bem corno a vitória. Discutirei um dia
quem tivesse razão. Constituiriam testemu- inteiro, se a discussão se processar com ordem.
nbos preciosos das nossas vitórias ou derrotàs Interessam-me menos a sutileza e o vigor do
e nos obrigariam a cuidar de não ouvir nosso que a ordem nas idéias, essa ordem que sub-
criado advertir-nos de quando em vez: ~'no ano siste entre os pastores e caixeiros, mas não
passado, custou-vos cem escudos o terdes sido entre nós. São por vezes indelicados e o
ignorante e teimoso vinte vezes". Acolho e fes- mesmo fazemos, mas suas irnpaçiências não o.s
afastam do assunto; a discussão prossegue e,
1 6 3 Cícero. se falam sem aguardar sua vez, ao menos
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entendem-se. Qualquer resposta me satisfaz se palavrório das regateiras do que nos di.scursos
vem a propósito, mas quando a discussão se dos profissionais? Preferiria que um filho meu
perturba e se torna desordenada, abandono o aprendesse a falar antes nas tabernas do que
assunto, prendo-me à forma, indiscretamente, nas escolas de eloqüência. Escolhei um profes-
e ponho-me a discutir com uma malícia·e uma sor de eloqüência; conversai com ele. Por que
agressividade que, ao depois, me envergo- motivo não se contenta com fazer-nos sentir a
nham. É impossível discutir de boa fé com um sua superioridade nessa arte, com deslumbrar
toio. E não é apenas, ~ntão, meu julgamento as mulheres, e os ignorantes como nós,
que se corrompe, é também minha consciência. mediante a admirável precisão de suas razões e
As discussões deveriam ser regulamentadas a beleza de seus discursos? Por que não se
como outros crimes .verbais. Quantos vícios satisfaz com dominar-nos e persuadir-nos a
suscitam e acumulam eJi nós, govemadàs pela seu talante? Por que razão esse homem tão
cóler.a ! Começamos por hostilizar os argu- avantajado em saber e talento mistura a suas
mentos e acabamos inimigos dos homens! Só possibilidades naturais, injúrias, insultos e
aprendemos a discutir para c~ntraditar, e furores? Que se desfaça da toga e do latim, e
acontece, em meio às contradições recíprocas, não nos encha os ouvidos com Aristóteles nu e
perder-se e aniquilar-se a verdade. Por isso cru, e o tomareis por um de nós, ou menos
Platão, em sua República, proíbe tal exercício ainda. As combinações e requintes de lingua-
aos espíritos ineptos e mal formados. Por que gem com que nos aborrecem semelham-se a
buscar a verdade em companhia de quem não passes de pelotiqueiros; sua sutileza vence nos-
tem capacidade para tentá-lo? Não se preju- sos sentidos mas não nos abala a convicção;
dica o assunto discutido, quando o deixamos fora de tais peloticas nada fazem que não seja
um momento de lado, a fim de acertar o méto- vulgar e vil. E não é porque são sábios que são
do de tratá-lo; não me refiro aos métodos esco- menos tolos. Amo e honro o saber, bem como
lásticos e artificiais e sim aos meios naturais, os que o possuem: empregado com critério é a
peculiares às inteligências sadias. Que se veri- mais nobre e poderosa aquisição do homem.
fica de outro modo? Cada qual puxa para seu Mas naqueles (e são em número infinito) que
lado; perde-se de vista o essencial na confusão nele assentam sua capacidade e seu valor,
do acessório. Ao fim de uma hora de disputa já naqueles cuja inteligência se encontra inteira
não se sabe o que se procura. Uín se distancia, na memória (abrigados à sombra alheia, como
outro se desvia; um se apega a uma palavra, diz Sêneca), que nada podem sem seus. livros,
outro a uma analogia. Outro, ainda, no auge eu os detesto mais ainda que a imbecilidade.
do entusiasmo, não entende o que se lhe obje- Em minha terra, nesta época, a sabedoria endi-
ta; cada qual pensa em si somente, e não em reita as bolsas mas só raramente melhora os
nós. Há quem, sentindo-se fraco, tudo con- espíritos; se estes são obtusos, sufoca-os com
funda de entrada, tudo baralhe, tudo recuse; ou sua massa informe e indigesta; se são agudos
finja concordar, afetando, por ignorância e toma-os tão sutis que os esgota. É coisa sem
despeito, um orgulhoso desdém ou uma estú- qualidade ·própria; utilíssimo acessório às
pida humildade. Outro, conquanto fira, não se inteligências bem formadas, mas pernicioso às
importa se se descobre. Outro, pesa as pala- outras,ou antes,preciosíssimo, ·porém de custo
vras e as toma por argumentos. Outro faz valer elevado. Em certas mãos é um cetro e noutras
a voz e os pulmões; ou conclui contra si o chocalho do bobo do rei. Mas passemos
mesmo. E há quem nos ensurdeça com intrói- adiante.
tos e digressões inúteis. E há também quem se Haverá mais bela vitória do que mostrar ao
arme de injúrias e levante objeções sem funda- adversário que não nos pode vencer? Quando
mento para se libertar da companhia e da o assunto vence, vence a verdade; quando ga-
conversação de um espírito que o perturba. nham a ordem e o método, ganhamos nós.
Outro enfim não raciocina de .modo nenhum, Acho que, em Platão e Xenofonte, Sódrates
discute mais para os participantes do que~pela
mas envolve-nos em uma dialética de cláusulas 1

e fórmulas. discussão mesma, e mais para instruir·' uti-


Ora, quem não há de desconfiar da ciência, demo e Protágoras acerca de suas pró rias
"das letras que nada curam 1 6 4 ." e duvidar que tolices do que de sua arte. Qualquer assunto
delas se tire algum resultado sério, dado o uso serve de pretexto, porque seu objetivo está
que fazemos delas? A quem deu, a lógica, inte- menos em elucidar do que ser útil, isto é, escla-
ligência e juízo? Que é feito de suas promes- recer os espíritos que sonda e exercita. A caça
sas? "Não ensina nem a viver melhor nem a é de nossa alçada, não é desculpável que a con-
bem pensar 1 6 5 " Haverá mais confusão no duzamos mal; quanto a errar o goipe, é outra
1 6 4 Sêneca. coisa. Não está, como dizia Demócrito, enter-
1 6 5 Cícero. rada no fundo de um abismo; antes se eleva ao
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infinito até se tornar conhecida unicamente de deparamos com gente disforme, ou aleij~da
Deus. O mundo não passa de uma escola de sem que nos irritemos? A irritação provem
investigação. Não ganha quem corre mais, antes do juiz que do crime. Tenhamos sempre
mas quem corre melhor. E tanto pode dizer em mente estas palavras de Platão: "O que
tolices qu~m diz a verdade como quem mente, considero errado, não o considerarei por estar
pois aqui não se trata do assunto e sim da eu próprio em condições anormais? Não serei
forma. Quanto a mim, olho igualmente para o eu o culpado? Não poderá minha observação
conteúdo como parà o continente, tanto para o voltar-se contra mim?" Sábio e divino preceito
advogado como para a causa, seguindo nisso o que fustiga o erro mais comum e universal dos
conselho de Alcibíades. Todos os dias divirto- homens! Não somente as censuras que faze-
me com ler autores, sem cuidar do que sabem, mos uns aos outros como também as razões e
analisando-lhes a maneira e não o tema. Ocor- argumentos e os temqs de nossas controvérsias
re-me também procuràr entrar em relações podem voltar-se contra nós e ferir-nos. A esse
com dado espírito famoso, não para que me propósito legou-nos a antiguidade exemplos
ensine, mas para o conhecer. Todos podem eclificantes. Falou muito bem e agudamente
dizer verdades, mas dizê-las com ordem, sen- quem disse que "cada qual aprecia o odor de
satez e pertinência poucos o fazem. Por isso seu esterco". Nossos olhos não vêem para trás.
não me ofendo com o erro que vem da igno- Cem vezes por dia zombamos de nós mesmos
rância e sim com a inépcia. Rompi várias ao zombarmos de nosso vizinho; os defeitos
negociações, úteis para mim, só por causa da que detestamos em outrem são ainda mais visí-
estupidez das contestações daqueles com quem veis em nós e no entanto os admiramos com
eu negociava. Não me irrito sequer uma vez maravilhosa impudência sem perceber a con-
por ano com as faltas de meus subordinados, tradição. Ainda ontem pude ver um homem
mas no que concerne à burrice e à teimosia de inteligente e fidalgo zombar com graça e justi-
suas desculpas, e à imbecilidade delas, diaria- ça de outro que anda a aborrecer meio mundo
mente me aborreço com eles. Não entendem o com suas genealogias e parentescos quase
que lhes dizem, nem atinam com o porquê; e todos falsos (são os que têm qualidades mais
de igual modo respondem: é de desesperar. duvidosas que se abalançam com maior entu-
Somente outra cabeça pode impressionar a siasmo a tais pesquisas); mas ele próprio, se
minha e acomodo-me melhor com as insufi- houvesse reparado em si, não se acharia menos
ciências dos meus do que com sua audácia, cacete em valorizar fora de propósito a linha-
impertinência e estupidez. Que façam menos, gem da mulher. Que infeliz vaidade leva esse
mas alguma coisa que saibam fazer. Vive-se na marido a fornecer armas à sua própria esposa!
esperança de excitar-lhes a vontade, mas nada Se nos putiesse entender, caberia dizer-lhe:
há que arrancar de um pedaço de pau. "Coragem! se a não achas bastante louca,
Talvez, entretanto, julgue eu as coisas dife- excitas-lhe ainda a. loucura 1 6 7 .'' Não quero
rentes do que são. Eis por que censuro minha sugerir com isso que somente os poros têm o
impaciência e confesso que é uma falha, tanto direito de criticar, pois então não haveria críti-
em quem tem razão como em quem não a tem, cos; não nego tampouco esse direito a quem
porque é sempre rispidez ºtirânica não suportar exibe falha idêntica à censurada; mas acho
maneiras diferentes da nossa, e não há maior que, quando criticamos alguém, não nos deve-
tolice, nem mais absurda, do que impressio- mos poupar. É dever de caridade tentar arran-
nar-nos e irritar-nos com as tolices alheias. Em . car dos outros um defeito, ainda que não o
geral isso nos aborrece a nós mesmos, e o filó- possa arrancar de si próprio quem o faz. Não
sofo antigo 1 66 nunca houvera perdido a opor- me p·arece certo dizer .a quem me adverte de
tunidade de chorar se se olhasse para ·Si um defeito que também o encontro nele. E por
mesmo. Míson, um dos sete sábios, cujo espí- quê? Porqu~ uma advertência justificável é
rito tinha algo de Tímon e de Demócrito, inter- sempre. útil. Se tivéssemos bom olfato, senti-
rqgado por que se ria sozinho, respondeu: ríamos mais .desagradavelmente os nossos
"Exatamente porque estou a rir sozinho." maus "odores exatamente porque são nossos.
Quantas tolices ouço dizer e responder diaria- Sócrates era de opinião que se alguém come-
mente! E quantas, em maior número ainda, tesse algum crime, juntamente com seu filho e
devem os outro~ ouvir de mim ! Se mordo os um estran·ho, deveria começar por se apresen-
lábios para delas não rir, que farão os outros? tar ao carrasco e provocar sua própria puni-
.Afinal cumpre-nos viver com os vivos e deixar ção; só depois faria o mesmo com ·o filho e por
correr o marfim, sem nos preocuparmos ou, ao Último com o estranho. Esse preceito pode
menos, sem nos encolerizarmos. Pois não parecer algo severo, mas quem se acha culpa-

1 6 6 Heráclito. 1 61 Tcrênéio.
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do deve ser o primeiro a entregar-se ao castigo Detesto toda espécie de tirania, tanto de
da própria consciência. palavras como de fatos. Reteso-me contra as
Os sentidos são nossos próprios juízes e os circunstâncias vãs que iludem nosso julga-
primeiros a julgar-nos; como só percebem as mento pelos sentidos;· e observando atenta-
coisas pelos acidentes exteriores, não é de mente esses homens que cumulam grandezas,
estranhar que, em todos os atos da sociedade, verifiquei tratar-se na maioria dos casos de
haja sempre, em toda parte, quantidade de gente como outra qualquer e "o bom senso se
cerimônias em que as aparências desempe- encontra raramentct em pessoas de tão alto
nham papel importante e constituem a parte coturno 1 7 º". Não raro, porque empreendem
mais eficiente dos regulamentos. Temos sem-· coisas mais ousadas e se expõem mais, julga-
pre que tratar com hoIDiens, e nestes o que é mo-las e vemo-las menores. do que são, pois
tangível se sobrepõe ao que não o é.· Os que não suportam então o fardo que tentam carre-
quiseram 'introduzir nestes últimos anos um gar. É preciso que o carregador tenha mais
culto exclusivamente contemplativo e imate- vigor do que pesa a carga, pois assim nos suge-
rial 1 6 9 , não se devem admirar de .haver quem re que pode carregar mais e que' não está
pense que não seria mantido, se já não se hou- dando tudo. E o que sucumbe ao peso revela a
vesse tornado, entre nós, instrumento de divi- fraqueza de seus ombros. Daí verem-se tantos
são e discórdia; graças a isso é que vai duran- tolos entre os sábios, gente que teria dado bons
do. O mesmo se verifica na conversação: a criados, agricultores, artífices. Para tanto não
gravidade, o traje, a condição social de quem careceriam de habilidade natural. A ciência é
fala dão muitas vezes crédito a palavras vãs e pesada demais para eles e os esmaga. Seu
ineptas; pois é de presumir que um senhor tão engenho e vigor não bastam para que possam
cortejado e temido tenha dentro de si alguma mostrar e distribuir, empregar e manejar tão
qualidade invulgar, e que um homem que rico e poderoso material. Só as naturezas for-
ocupa cargos tão importantes e se mostra tão tes são capazes de tal esforço, e elas são raras.
insolente e altivo, seja mais talentoso do que o Os fracos; diz Sócrates, em a exercendo, cor-
outro que o saúda de longe e ninguém empre- rompem a dignidade da filosofia. Torna-se ela
ga. E não somente as palavras, mas também os inútil e viciada quando entregue aos incapazes,
gestos e as caretas dessas pessoas são notadas os quais a estragam e prejudicam. "Como um
e interpretadas de modo lisonjeiro. Se se dig- macaco que um menino vestiu de vestes de
nam conversar com outros, e não recebem seda para fingir de homem, mas deixol:l o tra-
toda aprovação e deferência, esmagam-nos seiro descoberto, para alegria dos convi-
com a autoridade de sua experiência. Ouviram, vas, 71 ."
viram, fizeram e enchem-nos de exemplos. ~ Assim, os que nos regem e governa, os que
Gostaria de dizer-lhes qÚe o fruto da expe- tem o mundo nas mãos, não devem possuir
riência de um cirurgião não consiste apenas apenas uma inteligência vulgar e poder o que
em historiar suas operações, nem em lembrar podemos; se não estiverem muito ·acima de
que curou quatro pestíferos e três gotosos, mas nós, ficarão muito abaixo. Prometem mais
em saber tirar da prática maior perspicácia e logo devem mais. Portanto, o silêncio serve~
em demonstrar que se fez mais hábil em sua lhes não só para assumirem uma atitude ceri-
arte. Deve ser como um concerto, em que não moniosa e grave, mas também para se precave-
se ouve o alaúde, ou a espineta, ou a flauta, rem e auferirem proveitos da situação.
mas uma harmonia total, soma de todos os· Megabizo fora visitar Apeles e permanecera
instrumentos. Se as viagens e os cargos os muito tempo sem dizer nada. Tendo-se deci-
melhoraram, que o comprove seu espírito. Não dido a discorrer, em seguida, acerca das obras
basta enumerar experiências; é preciso ainda do pintor, recebeu esta rude reprimenda:
classificá-las e ponderar-lhes o valor; cumpre "Enquanto te conservaste-calado, eras soberbo
examiná-las de perto, analisá-las, a fim de com teus colares e tua magnificência; agora
extrair as conclusões e as razões que compor- que te puseste a falar, até os meus aprendizes
tam. Nunca houve tantos historiadores. É sem- se riem de ti." Seus adornos, sua condição so-
pre útil e agradável ouvi-los porque nos fran- cial não lhe autorizavam uma ignorância igual
queiam o armazém de sua memória, cheio de à do vulgo e a falar ineptamente de pintura.
informações belas e dignas de elogios. Trata-se Devera ter-se mantido silencioso para conser-
por certo de um grande auxílio na vida, mas var a presunção de capacidade que seu exterior
não é, no momento, o que buscamos. O que sugeria. A quantos espíritos medíocres um ar
queremos saber é se esses compiladores e nar- taciturno e distante tem servido de marba de
radores são eles próprios louváveis.
1 70
Juvenal.
1 6 9 Os protestantes. 1 71
Claudiano.
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prudência e capacidade! As dignidades e os convenientes? E se os mais baixos e mais gas-


cargos dão-se necessariamente mais por acaso tos melhor se adaptan1 aos empreendimentos?
do que pelo mérit_o; mas não temos razão de Para que o Conselho dos Reis conserve sua
censurar os reis. E aináa espantoso que acer- autoridade é preciso que os profanos não assis-
tem com tão reduzidas possibilidades de infor- tam às sessões. Quem quiser que se mantenha
mação. "A maior qualidade dos príncipes é intata a sua reputação, deve acatá-lo sem lhe
conhecer os que empregam 1 7 2 '', pois, não lhes discutir as determinações. Quando me consul-
tendo dado a natureza uma vista suficiente to, esboço apenas o tema de minhas reflexões e
para alcançar tanta gente, e discernir os o encaro superficialmente nos seus primeiros
melhores, e ver dentro de cada um seu valor aspectos; o principal da tarefa, tenho por hábi-
próprio, são forçados a escolher por intuição, to confiá-lo ao céu: "Deixa aos deuses o
às apalpadelas, pelo sangue, pelas riquezas, resto 1 7 5 ."
pelo saber, pela voz do povo, indíci~s, to~os, A boa e a má sorte são, a meu ver, dois
bem fracos. Quem· encontrasse o meio de Jul- poderes soberanos. É insensato pensar que a
gar os homens com razão e justiça, asseguraria sabedoria humana possa desempenhar o papel
uma perfeita organização dos serviços públi- do destino. Vã é a empresa de quem presume
cos. Mas, ouve-se dizer "mas ele deu conta do abraçar causas e conseqüências e conduzir os
recado". É uma razão, mas não basta, pois há fatos pela mão. Principalmente nas coisas mili-
uma máxima que diz: "não se deve julgar o tares. Nunca se viu na guerra tanta circunspe-
valor das idéias pelos resultados". Os cartagi- ção e prudência como entre nós; será porque
neses puniam seus capitães quando julgavam temem perder-se em caminho e se reservam
más as medidas tomadas, ainda que o resul- para a catástrofe final?
tado final as corrigisse. O povo romano recu- Vou mais longe, e sustento que a nossa pró-
sou muitas vezes as honras do triunfo a gene- pria sabedoria e as nossas deliberações são, as
rais que haviam alcançado grandes e úteis mais das vezes, guiadas pelo acaso. Minha
vitórias, por considerar que seu procedimento vontade e meu raciocínio pendem ora paia um
não correspondia à sua sorte. Vê-se não raro lado ora para outro e muitos desses movimen-
neste mundo o acaso comprazer-se em dimi- tos se produzem sem minha intervenção.
nuir nossa presunção, como que para mostrar Minha razão é sujeita a impulsos e agitações
quanto pode. Não podendo tornar avisados._os diárias e fortuitas. "Nada varia tanto quanto
incapazes, torna-os felizes, em oposição ao que as disposições da alma; uma paixão perturba-
determinaria a virtude. Amiúde favorece as a, mas mudem os ventos e outra a arrasta-
empresas que tramou sozinho. Por isso vemos rá 1 7 6 ." Observe-se quem ~ão os mais podero-
diariamente os mais simples dentre nós levar a sos nas cidades e quem vence nos negócios.
cabo grandes cometimentos públicos ou parti- São em geral os menos hábeis. Tem ocorrido
culares. O persa Siranez respondeu a ~guém que mulheres, crianças e lo~cos governem
que se espantava com a má situação de seus grandes nações tão bem como os mais capa-
negócios, embora tão sensatos fossem seus pla- zes. Entre os príncipes que triunfaram afirma
nos, que só podia responsabilizar-se por estes; Tucídides serem mais comuns os grosseiros do
quanto ao resultado, dependia do destino. Essa que os sutis. Atribuímos entretanto à sua sabe-
gente inábil e feliz a que aludi, poderia dar a doria os êxitos que deveram ao acaso: "Se vos
resposta inversa. Na verdade, as coisas do elevardes pela sorte hão de louvar-vos o talen-
mundo fazem-se, em sua maioria, por si mes- to 1 7 7 ." Isso demonstra que os acontecimentos
mas "o destino abre-lhes o caminho 173 ". O são frágeis testemunhos de nosso valor e
resuÍtado justifica muitas vezes uma conduta capacidade.
inepta; nossa intervenção é quase um hábito
Dizia, acima, que basta considerar um
rotineiro e as mais das vezes provócada pelos
homem de elevada situação social; ainda que o
usos e costumes e não pela razão. Espantado
julgássemos sem valor três dias antes, insensi-
com as conseqüências de uma empresa capital
ve~mente passamos a imaginar que devia ter
em nossa época1 7 4 , procurei saber, dos que a
cipacidade e persuadimo-nos, ante sua condi-
levaram a cabo suas razões e meios; verifiquei
çao presente e sua importância, de que seus
que eram vulgares. Ocorre que os mais V;1.l_ga- mbritos também se ampliaram. Apreciamo-lo
res são os mais eficientes e seguros na pratica,
n~o mais segundo o seu valor, mas de acordo
conquanto não sejam os mais sedutores. Que
cdm as suas prerrogativas. Que a sorte mude
fazer, se os que têm menos valor são os mais
pd,rém, que ele caia e volte a misturar-se à muJ-
1 7 2 Marcial.
1 73 1 7 5 Horácio.
Virgílio.
1 7 6 Virgílio.
1 1 4 Provavelmente os sucessos da noite de S.
1 7 7
Bartolomeu. Plauto.
428 MONTAIGNE

tidão -logo indagaremos com espanto por que sem lhes perceber o alcance exato. Não assimi-
moti~o se guindara tão alto. Diremos: "será o lamos tudo o que tomamos de empréstimo.
mesmo?" "Era pois tudo o que sabi<; ?" Não devemos ceder desde logo a um argumen-
"Estávamos em verdade em boas mãos!" E o to por mais belo que se nos afigure. Cumpre
que tenho visto seguidament~. E até no teatro .ª refutá-lo francamente se estamos à altura de
grandeza nos impressiona e ilude. O que admi- fazê-lo, ou bater em retirada sob qualquer pre-
ro. eu próprio nos reis são os admiradores; texto para melhor ponderá-lo, examinando-o
diante deles tudo deve inclinar-se, salvo a no sentido e~pregado pelo autor. Pois poderja,
inteligência, pois não foi à razão que e?sinei a de outra maneira, acontecer que nos lanças-
curvar-se, foi aos joelhos. Tendo alguem per- semos diante do ferro, aumentand9 a violência,
guntado a .Melanto o q\le pensa'.:ª de :im~ tra- do golpe. Apertado pelo adversário, e no
gédia de pionísio, res~ondeu: Nao. a v1, a enfa- tumulto da luta, empreguei não raro réplicas
se ofusca-a. Os que julgam os discursos dos que foram muito mais eficientes do que espe-
grandes .em geral deveriam diz.er também: i;ião rara e que, na realidade, eu dera t~o-somente
os ouvi ofuscavam-nos a gravidade e a majes- para não me confessar sem resposta. Quando
tade d~ suas palavras. Antístenes aconselhou discuto com um adversário vigoroso, aconte-
de uma feita aos atenienses que empregassem ce-me também antecipá-lo nas conelusões,
seus burros nos trabalhos da terra, como fa- poupando-lhe o trabalho de .se explicar e pro-
ziam com os cavalos. Responderam-lhe que o curando adiantar-me às idéias ainda imper-
animal não nascera para tais serviços, ao que feitas que pretende exprimir, pois a ordem e a
ele replicou: não faz mal, basta decretá-lo; justeza de seu raciocínio advertem-me e amea-
pois por mais ignorantes e incapazes que çam-me· de longe. Com outros, proce?o de
sejam, não se tomam logo muito dign.os ~o modo contrário, aguardo que se expliquem
encargo os homens a quem entregais a direçao integralmente. Quando se atêm a generalidades
da guerra? Daí o costume, comum a tantos e acertam, cabe verificâr se não acertaram por
povos, de canonizar os reis que elegem; não se acaso. Insisto para que precisem sua opinião,
contentam com honrá-los, adoram-nos. No que digam como e por quê. As apreciações
México já não ousam olhá-los de frente mal gerais, tão comuns, nada significam. Os que as
terminam as cerimônias da sagração. Como se e{nitem dão a impressão dessas pessoas que
o tivessem divinizado pela realeza, entre os
saúdam um oovo inteiro em bl0co, sem discri-
juramentos que lhes fazem prestar de mante-
rem a religião, as leis, as liberdades, de serem minar. Os que têm conhecimentos reàis, saú-
valentes, justos e urbanos, obrigam-nos a pro- dam pelos nomes, individualmente. Mas a
meterem que o sol continuará a brilhar, que empresa é arriscada. E tenho visto amiúde
haverá chuvas em tempo oportuno, que os rios espíritos mal preparados para a empreitada
seguirão seu curi'o regular e a terra produzirá fazerem-se de perspicazes, anotando na leitura
as coisas necessárias ao povo. de uma obra o trecho mais belo mas o esco-
lhendo tão mai que, em lugar de realçar o
É principalmente· quando a vejo acompa- talento do autor, revelam sua própria igi:lorân-
nhada de grandezas e de popularidade quedes-
'cia. Temos certeza de não errar quando excla-
confio da competência, indo assim de,encontro
a ·uma tendência assaz espalhada. E preciso mamos "como é belo" após a leitura de urr1 tre-
cho de Virgílio, e os espertos assim fazem.
atentar para a vantagem de falar quando se
Mas empreender segui-lo passo a passo e, atra-
quer, de escolher o assunto, de in!erromper ou
vés de juízos lúcidos e pertinente~, mostrar
desviar a discussão com autoridade, · de se
como um escritor se realiza, analisar as pala-
defender das objeções alheias, com um simples
vras e as frases, e os achados, não é coisa da
movimento de cabeça, um sorriso, um silênci~, alçada de qualquer um. "Deve-se não somente
diante de uma assistência que treme de respei- analisar as palavras, mas ainda as opiniões e
to. Um homem de condição social excepcional,
os fundamentos delas 1 7 8 ."
dando sua opinião acerca d_e uma questão de
nonada que se discutia à mesa, assim com~­ Ouço seguidamente tolos dizerem coisas
çou: só um mentiroso ou ignorante poderia acertadas. Resta saber se entendem o que
negar que, etc. Eis um argumento filosófico dizem e de onde o tiraram. Muitas vezes nós é
apresentado de punhal na mão. que os ajudamos a empregar uma frase ou um
Por priu.cípi°o considero também que nas argumento que não são de sua autoria; têm-
discussões e conversas não devemos aceitar nos em reserva e os apresentam ao acaso;,nós
sem reflexão os ditos que nos parecem felizes. é que lhes damos importância e valor. Nós é
A maior parte dos homens é rica de compe- que lhes estendemos a mão. Para quê? Não
tência alheia. Pode ocorrer que uma pessoa
cite uma bela frase, uma resposta ou sentença 178 Cícero.
ENSAIOS - III 429

nos ficam gratos por isso e não se tornam mdtivo, resoluto, desdenhoso, contemplativo,
menos ineptos. Não os ajudemos, portanto, gdve e sério do que um burro?
deixemo-los soltos; manejam essas frases Podemos também tratar, neste capítulo,
como gente que tem medo de se escaldar; não ac~rca da conversa e da discussão, dos propó-
ousam tocá-las, nem mudá-las de lugar, nem sit6s trocados na intimidade, entre amigos que
aprofundá-las. Uma sacudidela bastaria para zoinbam e gracejam uns dos outros. É um
que as deixem cair-, para que as abandonem, exercício em que se compraz minha vivacidade
embora fortes e belas. São boas armas porém natural, e se não é tão sério como aquele de
mal encabadas. Quantas vezes fiz a experiên- que acabo de falar, não é menos fino nem
cia! Mas se nos pusermos a esclarecê-las ~ menos proveitoso. Era o que pensava Licurgo.
confirmá-las, tirarão vantagem da interpreta- Nq que me diz respeito, ponho nele mais liber-
Ção: "era o que queria 'dizer, afirmarão. Era a dade do que sal e mais espírito de oportuni-
minha idéia, .se nã9 a exprimi assi1!1 foi porque da~e do que imaginação; e suporto muito bem
me faltou a palavra". Insistimos. E preciso al- o r:evide, ainda que áspero e excessivo, sem me
guma malícia para corrigir esses vaidosos irr~tar; Se quando me atacam não encontro
'imbecis. A máxima de Hegésias (que é preciso' coin que respo_nder de imediato, não me apego
não odiar nem censurar, mas ensinar) tem sua a respostas aborrecidas e frouxas, teimosa-
razão de ser, porém no caso. parece-me injusto mente; deixo passar, curvo-me de bom grado .e
e desumano· socorrer e emendar quem o não aguardo ocasião propícia para a desforra. Não
sabe aproveitar. Que se enleiem e se embara- há negociante que sempre ganhe. Entretanto,
cem quanto possível para que afinal se em sua maioria, as·pessoas mudam de cor e de
conheçam! voz em lhe faltando força; e em lugar de se vin-
garem denunciam assim sua fraqueza e sua
A tolice e a insensatez não se curam com irritação. Com os gracejos tocamos por vezes
conselhos. Dessa cura pode-se dizer o que Ciro co~das secreta~ de no,ssas imperfeições que,
respondeu a quem o aconselhava a exortar seu serrnamente, nao tocanamos sem nos ofender;
exército antes da batalha: "os homens não se desse modo avisamo-nos uns aos outros de
tornam valentes e guerreiros só por ouvirem no~sos defeitos.
uma boa arenga, como ninguém se torna Há outros jogos em França que aborreço
imediatamente músico só por ouvir uma bela mdrtalmente; violentos, grosseiros, levam fa-
canção." É preciso uma longa e prévia apren- talfnente às vias de fato. Tenho a pele sensível
dizagem. Cumpre-nos ter esse cuidado com. os e j'á vi enterrarem dois príncipes de sangue
nossos; cabe-nos ensiná-los e corrigi.:los; mas real. E feio bater-se brincando 1 7 9 • E quando
ir pregar ao primeiro sujeito que passa, escla- desejo julgar alguém pergunto-lhe até que
recer qualquer ignorante que se encontre é prá- ponto está satisfeito consigo, em que medida o
tica que reprovo. Raramente o faço, mesmo que pensa e diz o satisfaz. Procuro evitar que
nas minhas conversações, e prefiro susta-las 3: responda com desculpas esfarrapadas: fiz, por
"ter de corrigir como um mestre-escola. Não sei brincadeira, "a obra foi tirada da forja antes de
falar nem escrever para principiantes; e nas terminada 1 ªº", não levei ti.ma hora a fazê-la,
conversações de ordem geral de que partici- não a tornei a ver. A tais desculpas respondo:
po, ou a que assisto, por falso e absurdo que pois deixemos isso de lado e dai-me uma obra
seja o que ouço, nunca procuro contrariar nin- que vos represente bem e pela qual quereis ser
guém; nem por palavras nem por sinais. Nada julgado. ,E acrescemo: Que achais melhor
me irrita mais, porém, na estupidez, do que ª· nesta obra? Isso ou aquilo? A graça, a maté-
satisfação com q~e se exibe, maior do qu~ ' ria, a fantasia, o raciocínio, o saber? Por que
poderia ter, com certa razão, a in~eligência. E vejo que habitualmente tar1to se erra na apre-
pena que a prudência nos proíba a satisfação e ciação do trábalho próprio como na do alheio.
a confiar1ça em nós e nos deixe sempre descon- Não somente pela afeição que interfere mas
tentes e intimidados, enquanto a teimosia e a também por falta de competência. A obra, por
audácia enchem os que as têm de alegria e sua própria virtude e por efeito do acaso, pode
segurança. São sempre os menos capazes que ultrapassar o autor. Quanto a mim nada me
olham os outros de cima e voltam da luta custa tanto a avaliar quanto o meu próprio tra-
Qheios de orgulho e disposição. Não raro a balho; consid~ro os "Ensaios" ora bons ora
fatuidade da linguagem e a jovialidade que ruins, com inconstância e indecisão. Há livros
demonstram já lhes dão ganho de causa peran- úteis pelo assunto mas que não valorizam os
te uma assistência em geral fraca e incapaz de autores, e bons livros à semelhança de certas
julgar a verdadeira superioridade. A obstina-
ção e a convicção exagerada são a prova mais 1 1 5 Montaigne refere-se as Justas. (N. do T.)
evidente da estupidez. Haverá a).go mais afir- 180 Ovídio.
430 MONTAIGNE

tarefas que envergonham o artífice. Posso portam. Dir-se-ia que receia fatigar-nos e ente-
escrever sobre as regras de bem comer e de diar-nos com o seu número. Essa forma da his-
bem vestir, e escrever de má vontade; posso tória é, de muito, a mais útil, pois os
publicar os editos de nosso tempo e as missi- movimentos públicos dependem principal-
vas dos príncipes que desempenharam mis- mente do acaso e os particulares de nós mes-
sões, ou fazer um resumo de um bom livro mos. Tácito julga os fatos ocorridos, mais do
(embora todo resumo de um livro seja absur- que os relata; há nele mais preceitos do que
do) que venha a perder-se, e outras tantas coi- narrativas. Não é Q seu um livro de simples lei-
sas análogas. Tais obras poderão ser de grande tura, e sim de estudo e meditação; tão cheio de
utilidade para os pósteros, mas a honra que sentenças que as encontramos a torto e a direi-
poderei auferir dependerá unicamente da sorte. to. É uma mina de reflexões morais e políticas
Boa parte de livros famosos é desse genero. úteis aos que governam o mundo. Assenta-as
sempre em razões sólidas e vigorosas, incisivas
Anos atrás, lendo Filipe de Comines, bom
e sutis, no estilo afetado daquela época em que
autor por certo, notei essa frase singular: "que
tanto se apreciava a afetação que, se não a ti-
é preciso não prestar ao senhor tantos serviços
nham as coisas, tinham-na obrigatoriamente
que se lhe torne impossível encontrar uma
as palavras. Sua maneira de escrever asseme-
recompensa adequada". A idéia é louvável,
mas não é dele. Encontrei-a não faz muito em lha-se à de Sêneca, mas parece mais d~nsa,
enquanto a de Sêneca é mais viva. É bem ade-
Tácito: "os favores são agradáveis enquanto quada a uma situação perturbada como a
os podemos pagar; além desse limite tomam-se nossa de hoje. E dir-se-ia que é a nós que pinta
odiosos". Sêneca diz também: "Quem acha e critica. Os que duvidam de sua sinceridade
vergonhoso não pagar, não deseja ter credo- demonstq1m que as causas de não o aprecia-
res." E em Cícero encontra-se igualmente: rem são outras na realidade. Suas opiniões são
"Não pode ser nosso amigo quem não se jul- sensatas e ele pertence ao melhor dos partidos
gue quite conosco." O assunto tratado pode, que àividiam Roma. Lamento entretanto que
segundo sua natureza, revelar um homem de tenha julgado Pompeu mais severamente do
saber e memória, mas para julgar o que lhe que os homens de bem que o conheceram, e
pertence de fato, para apreciar a força e a bele- que o coloque ao lado de Mário e Sila, consi-
za de seu espírito, é necessário verificar o que derando-o porém mais dissimulado. Indiscuti-
é seu e o que não é; e, nisto que não é seu, o velmente as pretensões de Pompeu ao .governo
que se lhe deve pela escolha, ordenação e lin- não foram isentas de ambição nem de desejo
guagem. Pode também ter pilhado o assunto e de vingança, e seus próprios amigos receavam
piorado a forma, como acontece muitas vezes. que a vitória o levasse a ultrapassar certos
Nós, que não estamos familiarizados com os limites e a praticar as crueldades e a tirania
livros, vemo-nos embaraçados quando depara- que o historiador lhe imputa. Mas como não se
mos com alguma bela imagem em um poeta deve igualar a suspeita à evidência, não creio
recente, um forte argumento em um pregador; muito no que diz. Poder-se-ia considerar as
não ousamos louvá-los antes de indagar de narrativas de Tácito verdadeiras e sinceras, em
algum sábio se o trecho é' deles ou não. E até lá virtude mesmo de não se adaptarem sempre.
fico de pé atrás. com precisão a seus juízos, nos quais atende a
Acabo de percorrer de um fôlego a história idéias preconcebidas, qualquer que seja o
de Tácito (o que só raramente me acontece, rumo tomado pelos fatos que conta. Aprova as
pois há vinte anos não dedico à leitura mais de crenças de seu tempo e obedece assim ao que
uma hora seguida). Fi-lo a conselho de um lhe ordenavam as leis; não há portanto como
fidalgo que a França muito aprecia, tanto pelo censurá-lo por ignorar a verdadeira religião.
seu valor pessoal como pelos méritos que tem Isso é uma infelicidade1" no seu caso; não um
em comum com seus vários irmãos. Não sei de defeito.
autor que junte aos fatos da história tantas Procurei penetrar seus juízos, mas em: al-
considerações acerca dos costumes e tempera- guns pontos não os entendi inteiramente.
mentos dos indivíduos. Acredito, ao contrário Assim no que diz respeito à carta que Tibério,
do que lhe parece, que, tendo de tratar da vida velho e doente, enviou ao Senado:
dos imperadores de seu tempo, tão diversas e "Escrever-vos-ei, senhores? Como vos escfieve-
excepcionais em tudo, e relatar seus gestos e rei? Ou não vos escreverei? Mas na hora (l.tual
crueldades, tinha assunto mais interessante e os deuses e as deusas resolveram por ce~to a
instrutivo do que se devesse falar de batalhas e minha desgraça, pois sinto-a dia a dia mais
revoluções; por isso, quando passa rapida- apro:ximar-se."Não compreendo por que Táci-
mente por cima de tão belas mortes, acho que to vê nessas palavras a prova de que a cons-
~ão tira delas todos os ensinamentos que com- ciência de Tibério se enchia de remorsos.
ENSAIOS- III 431

Lendo esse trecho não tive essa Ímpressão. todos os historiadores que registram não ape-
Parece-me também pouco corajoso que, nas os acontecimentos importantes, mas i_gual-
tendo de dizer que exerceu em Roma certa mente os boatos e as fábulas populares. E seu
magistratura honrosa, se desculpe a fim de que papel contar e não criticar. Esta parte cabe aos
não se imagine q11e o diz por vaidade. É humil- teólogos e aos filósofos, que são diretores espi-
dade demais para uma alma de tal enverga- rituais. Contudo, como disse Quinto Cúrcio,
dura; não ousar falar com franqueza de si, re- seu confrade ilustre: "conto mais coisas do que
vela falta de coragem. Um espírito franco e as que creio; por um lado não ouso afirmar
elevado, que julga sadia e seguramente, usa aquilo de que duvido e por outro não quero
seus próprios exemplos como coisa alheia e suprimir o que me narram". E outro disse:
apresenta seq testemunho corri'.ô â'.presentaria o "Não vale a pena afirmar ou refutar, temos
de outra pessoa. É preciso desprezai as regras que confiar na tradição 1 81 ."
vulgares da boa educàção, quando sê está a Embora escrevendo em um tempo em que
serviço da verdade e da liberdade. Não somen~ principiava a diminuir a crença nos milagres,
te ouso falar de mim mas ainda falar só de diz que não deseja deixar de registrar nos seus
mim; e quando falo de outra coisa, engano-me, anais as coisas de que tem notícia por inter-
fujo ao assunto. Não me estimo a ponto de não médio de gente de bem e de respeito. E está
poder distinguir-me e considerar-me c'Omo a certo. A história deve escrever-se de acordo
um vizinho ou árvore. Tanto é erro não vet até com os fatos de EJ.ue temos conhecimento e não
onde vai o ºpróprio valor como dizer mais do em atenção à nossa opinião própria. Eu que
que aquilo que se vê. Devemos amar a Deus sou rei no assunto de que trato, que não devo
mais do que a nós mesmos; conhecemo-lo contas a ninguém, não acredito inteiramente
menos; e no entanto falamos d'Ele quando erii mim. Atrevo-me por vezes a expressões que
queremos. considero temerárias e desconfio de certas su ti-
Se seus escritos podem levar-nos a percéher lezas que me escapam. Vejo quem se jacte de·
alguma coisa de sua natureza, Tácito foi urri coisas. semelhantes. Não me cabe julgar sozi-
homem reto e corajoso, sem superstições e nho. Apresento-me de pé e deitado, de frente e
dono de uma alma generosa de filósofo. Pode- de trás, de direita e de esquerda, tal qual sou
remos achá-lo temerário em suas afirmações; realmente. Os espíritos iguais em força não o
como quando conta que um soldado carre.: são sempre em capacidade de apreciaçao e
gando um feixe de lenha teve as mãos geladas gosto.
e coladas à carga, não podendo desprendê-las EÍs. ci que, a respeito desse historiador, me
desta por se terem separado dos braços. O que vem à memória de uni modo geral e assaz
nos diz de Vespasiano, o qual graças à prote- incerto. Nessas condições, quaisquer juízos
ção do deus Serápio curou em Alexandria uma são por éeito vagos e incompletos.
cega untando-lhe os olhos com saliva, é tam-
bém exagerado. Mas ele faz então o 'que fazem 1 81 Tito' Lívib.

CAPÍTULO IX
Da vaidade

Não haverá talvez maior vaidade do que Viam-se expostos em sua casa inúmeros uri-
escrever sobre esta e tão inutilmente. O que nóis com os resíduos de sete ou oito dias; eram
Deus tão divinamente exprimiu, deveria ser o objeto de seus estudos e o assunto de sua
cuidadosa e constantemente meditado pelas conversação; qualquer outro tema o aborrecia.
pessoas inteligentes. Quem não vê que, en- O que exponho aqui é um pouco mais decente:
quanto houver papel e tinta seguirei sem parar as lucübrações mal digeridas de um espírito
o caminho que adotei? Não posso manter um envelhecido ~ora prolixo, ora reservado. E não
diário de minhas ações porque não as valori- · sei quando se aquietará essa agitação das mi-
zou a sorte; reconstituo por isso a minha vida nhas idéias a propósito de todas as matérias,
com minhas idéias. Por que não? Pois não porquanto Diógenes, que se ocupou unica-
conheci um fidalgo que só tomava conhecido o mente de gramática, encheu seis mil volumes
que em sua vida se relacionava com o ventre? com as suas. E se o simples balbucio dos

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