Você está na página 1de 68

A Densidade do Próprio

na Folia de Reis:
uma investigação acerca de tempo, mito,
memória e sentido
Editora da UCG Editora Kelps
Pró-Reitora da Prope Presidente
Presidente do Conselho Editorial Antônio Almeida
Profa. Dra. Sandra de Faria
Coordenador Geral da Editora da UCG Coordenadores da Editora Kelps
Prof. Gil Barreto Ribeiro Ademar Barros
Waldeci Barros
Conselho Editorial Leandro Almeida
Prof . Dra. Regina Lúcia de Araújo
a

Profa. Dra. Heloisa Selma Fernandes Capel Conselho Editorial


Profa. Dra. Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Prof. Abrão Rosa Lopes
Profa. Dra. Elane Ribeiro Peixoto Escritora Sandra Rosa
Prof. Dr. Aparecido Divino da Cruz Escritor Brasigóis Felício
Prof. Dr. Cristóvão Giovani Burgarelli Prof. Alaor Figueiredo
Escritora Maria Luisa Ribeiro
Ms. Heloísa Helena Campos Borges
Escritor Ubirajara Galli
Jornalista Iúri Rincon Godinho
Andréa Luísa Teixeira

A Densidade do Próprio
na Folia de Reis:
uma investigação acerca de tempo,
mito, memória e sentido

Goiânia, GO
2009
Copyright © 2009 by Andréa Luísa Teixeira

Editora Kelps
Rua 19 nº 100 - St. Marechal Rondon
CEP 74.560-460 - Goiânia - GO
Fone: (62) 3211-1616 Fax: (62) 3211-1075
E-mail: kelps@kelps.com.br
homepage: www.kelps.com.br

Comissão Técnica

Sandra Rosa
Diagramação
Wolney Unes
Revisão
Laerte de Araújo Pereira
Projeto Gráico e arte-inal da capa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP


BIBLIOTECA MUNICIPAL MARIETTA TELLES MACHADO

T264d Teixeira, Andréa Luísa.


A Densidade do Próprio na Folia de Reis: uma investigação acerca de tempo, mito,
memória e sentido./ Andréa Luísa Teixeira. -- Goiânia: UCG/Kelps 2009.

64p. (Coleção Goiânia em Prosa e Verso)

ISBN:

1. Folia de Reis – Simbologia. 2. Folclore brasileiro. I. Título.

CDU: 398(81)

DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem
a autorização prévia e por escrito da autora. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9610/98) é
crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2009
Este livro é dedicado
à luz de minh’alma, a família que tenho.

Agradecimentos especiais:
Secretaria Municipal de Cultura - todos os funcionários
em nome de Kleber Adorno;
Binômino da Costa Lima,
Horieste Gomes,
Salma Saddi.
Densidade

O trabalho de Andréa Luísa Teixeira, A Densidade do


Próprio na Folia de Reis: uma investigação acerca de tempo, mito,
memória e sentido é uma obra que se impõe desde o seu título.
Não é uma investigação etnológica comum, e não é comum
exatamente por trazer consigo uma originalidade que não é
apenas metodológica.
A Densidade do Próprio na Folia de Reis: uma investigação
acerca de tempo, mito, memória se inicia com uma expressão
cunhada pela própria autora e que orienta toda a pesquisa
trazendo-lhe um sentido próprio tal como anuncia. Um próprio
como densidade, ou melhor, um próprio que se caracterize
com a densidade que todo e qualquer próprio tem. Ora, dizer
que qualquer próprio tem uma densidade não seria esvaziar ou
generalizar esse próprio? Não! Deinitiva e peremptoriamente
não! Precisamente porque todo próprio tem na sua densidade a
única dimensão possível para o seu próprio. Esse é um fenômeno
singular. É, na verdade essa singularidade que caracteriza todo
e qualquer próprio enquanto tal. É com essa singularidade que
se podem constituir tempo, espaço, mito, memória, sentido
sem que estes sejam meros conceitos genéricos, meros gêneros
dos quais todos nós participemos de mesmo modo. O próprio,
reinvidica, pede e exige o que lhe pertence. Não o que lhe
pertence como uma aquisição qualquer, mas, o que não pode
deixar de ser seu – o seu ivlo”. Esse ivlo” é o que lhe possibilita
ter densidade; instituir tempo e espaço; conigurar-se com um
dizer original, isto é, ser mito; estabelecer memória como o que
traz à presença e não pode deixar de trazer.
Andréa Luísa Teixeira foi quem foi capaz de trazer na
sua investigação da Folia de Reis essa nova percepção de uma
experiência quiçá centenária, essa experiência de constituição
de mundo que se segue neste trabalho. A experiência de partir
como investigadora das questões que se izeram encontrar e se
realizaram em seu excelente trabalho.
Entusiasmo quer dizer, em grego, estar pleno de deuses.
É assim que me sinto quando leio este trabalho, espero que o
leitor possa comigo compartilhar um pouco dessa experiência
de criação constituída pela obra A Densidade do Próprio na
Folia de Reis: uma investigação acerca de tempo, mito, memória
e sentido. É o máximo que posso desejar nesta apresentação.

Dr. Antônio Jardim


Compositor e Professor da UFRJ e UERJ
Folia de Reis: tradição que resiste
ao tempo

Apresentar Andréa Luísa Teixeira, como a virtuose da


lauta, é papel para musicista, porém, neste livro, ela estuda a
música contida nas folias de reis, descobrindo as suas origens
e enveredando-se com empenho nas pesquisas. Aí, neste caso,
podemos dar a nossa sincera opinião.
Foram pesquisas de campo, ao longo de vários anos,
retratando as apresentações do evento religioso, em diversas
localidades do Centro-Oeste, que são quase as mesmas em
todas as partes do Brasil, onde existem folias de reis, vindas ao
Brasil, de Portugal, pelos padres jesuítas, permanecendo já há
mais de quatro séculos, sendo a música, a essência, a base.
Apesar de ser temática de povo, a autora usa a linguagem
acadêmica, dando sentido de tese neste seu trabalho, pois
se fundamentou no estudo das questões ilosóicas ligadas
aos mitos, à memória e aos ritos, nas semelhanças com a
mitologia grega.
Para os foliões reiseiros, os mitos se tomam reais e são
reverenciados como sagrados, sendo o maior, o Menino Jesus.
As palavras, os versos variam, inclusive louvando os
‘donos da casa’, mas a música no canto é sempre a marca,
consolidando a memória.
Andréa estuda, detalhadamente, a inluência dos símbolos.
Todos os agradecimentos são feitos pelo chapéu, símbolo
da Coroa, a Estrela-guia, o Manto e a Lapinha, que são a
simbologia mítica do nascimento de Jesus.
As folias de reis, por serem da crença do povo simples,
humilde, portanto, praticada na região rural, com o êxodo
para as cidades, a tendência seria de acabar, mas, como prova
a autora, está cada vez mais intensa, os grupos se formando
nas cidades, juntando foliões emigrados.
Este A Densidade do Próprio na Folia de Reis é,
propriamente, trabalho de tese, usando 38 autores na sua
bibliograia, principalmente M. Havelock e A. Jardim.
O leitor, interessado, será compensado pela leitura-
estudo deste bom trabalho.
Parabéns, musicista-folclorista Andréa Luísa Teixeira!

Macktub!

Bariani Ortencio
Da Academia Goiana de Letras
Andréa na Folia de Reis

Certa noite, em Pirenópolis, tive o privilégio de


acompanhar Andréa Teixeira a um pouso de folia, que se
realizava numa fazenda, no município. Quando chegamos,
Andréa retirou do veículo, dirigido por ela, três malotes
contendo filmadora, com tripé, máquina fotográfica e
mais objetos relacionados ao seu trabalho de pesquisadora
de campo.
Era mês de maio, véspera da festa do Divino na cidade
com as folias de reis cumprindo o seu ritual e Andréa não
podia perder aquela oportunidade. A noite escura acasalava
as estrelas que cintilavam no universo de nossos olhos. A sede
da fazenda lotada de pessoas, familiares, vizinhos, curiosos e
o que motivava o espetáculo: os foliões! Ali estava presente,
entretanto, o folião maior dos foliões pirenopolinos: Christovam
Pompeu de Pina! Andréa chegou, preparou o maquinário de
trabalho e icou quase duas horas ilmando e anotando o ritual
proporcionado pelos fervorosos foliões.
Eu, que conhecia a Andréa musicista, pianista, lautista,
possuidora de invejável currículo cultural, com mestrado em
Musicologia pelo Conservatório Brasileiro de Música do Rio
de Janeiro, com apresentações de piano em vários países da
Europa e também nos Estados Unidos e no México, vi que ali
se encontrava uma persistente e apaixonada pesquisadora. Agora,
ao ler os originais de seu livro A Densidade do Próprio na Folia de
Reis dá para entender o porquê daquela sua paixão pelo folclore
goiano. Neste livro, ela vai fundo na análise desse ritual sagrado na
história do folclore brasileiro, num levantamento sucinto, objetivo e
histórico das manifestações da Folia de Reis. Valendo-se de preciosa
bibliograia, busca o início do rito na antiguidade para se chegar ao
território brasileiro e, inalmente, em Goiás, transmitido de geração
em geração.
A Folia de Reis “é uma manifestação cultural de caráter
religioso, que representa o percurso dos três Reis Magos: Melchior,
Gaspar e Baltazar à procura do Menino Jesus”, diz a autora,
explicando como foi feito o seu trabalho de campo, objetivando a
presença do mito, da música, da oralidade e os símbolos, tradições
marcantes na Folia de Reis.
Com este trabalho, Andréa Teixeira mostra sua perspicácia e
perseverança ao dominar um campo tão difícil da cultura brasileira,
o folclore, que, em virtude dos avanços tecnológicos, vem sofrendo
variações e mutações, mesmo com a presença marcante de seus mitos
e símbolos. Parabéns, Andréa!

José Mendonça Teles


Da Academia Goiana de Letras
Em busca da Estrela Guia

Contam que quando o clarão de uma estrela diferente


apareceu para iluminar a escuridão daquele céu límpido, três
Reis de reinados próximos, movidos por fenômenos mágicos
perceberam que algo novo havia acontecido na história da
humanidade.
Prepararam seus camelos, juntaram alguns presentes, e
saíram em direção ao local que aquela estrela indicava.
Depois de peregrinarem durante sete dias pelo deserto, eis
que os três reis deparam com uma lapinha (gruta pequena) e lá
encontraram José e Maria que mostraram aos Reis uma criança
acomodada numa manjedoura. Os reis então se sentiram
iluminados por uma luz divina e acreditaram estar em frente
ao “Messias”, conforme anunciavam suas escrituras. Deixaram
então os presentes, ouro, incenso e mirra e retornaram aos seus
mágicos reinados.
Este episódio icou conhecido como a peregrinação dos
três Reis Magos. E foi incorporado na Península Ibérica, nos
festejos religiosos do cristianismo.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil a partir de
1500, trouxeram com eles este festejo, que icou conhecido no
Brasil, de modo geral, como “Folia de Santo Reis”. Entretanto, a
sociedade brasileira que foi se formando, incorporou nas suas
manifestações religiosas, elementos localizados, tanto indígenas
como africanos, conforme o local e sempre mediatizados pelo
meio ambiente. Foi assim que este festejo ganhou no Brasil
conigurações múltiplas.
No oeste da Bahia, por exemplo, recebe a denominação
de “Reiseiros de Lapinha” e se constitui numa manifestação
com várias nuanças singulares, só percebidas por pessoas com
grande conhecimento e alto grau de sensibilidade, adjetivos que
convivem de forma bem próxima com a autora Andréa Luísa
Teixeira, e, que a possibilitou escrever uma obra de signiicado
mérito. Isto foi possível, porque Andréa Luísa soube como
ninguém, tecer e organizar emaranhados de conhecimentos que
perpassam pela Música, pela Filosoia, pela Antropologia, sem
nunca dissociá-los do Meio Ambiente, tanto físico e social, no
qual se inserem os grupos de reiseiros que estudou.
Dessa forma a professora e pesquisadora Andréa pôde
nos honrar com um trabalho singular, que servirá como modelo
e objeto para outras pesquisas, tanto para estudantes, como
para professores na área da Música e nos diversos campos da
Antropologia Cultural.
Mais que isso; dotada de instrumentos de análise que têm
raízes na formatação musical e na vivência, ora em linguagem
narrativa, ora em linguagem cientíica, a autora nos presenteia
com uma grande obra cultural e cientíica.

Goiânia, novembro de 2009.

Prof. Dr. Altair Sales Barbosa


Pontifícia UCG
Sumário
Introdução ........................................................................................................17
Tempo, mito e rito na Folia de Reis ..............................................................23
Memória na Folia de Reis ...............................................................................29
A importância dos símbolos na Folia de Reis..............................................35
Oralidade: presente na discussão das culturas ............................................43
A Densidade do Próprio na Folia de Reis ....................................................53
Conclusão .........................................................................................................57
Bibliograia .......................................................................................................63
Introdução

A Folia de Reis é uma manifestação cultural de caráter


religioso, que reapresenta o percurso dos três Reis Magos: Melchior,
Gaspar e Baltasar à procura do menino Jesus. Os grupos de Reis
saem à meia-noite de Natal e retornam no dia de Santo Reis, seis
de janeiro. Habitualmente, a Folia organiza-se inicialmente por
causa de uma promessa para alcançar uma graça desejada. Esta
manifestação acontece praticamente em todo o Brasil, desde a
colonização portuguesa.
O trabalho de pesquisa foi centrado inicialmente sobre o
não-temperamento, evidente nas gravações feitas em itas de rolo
na década de 1970. Na pesquisa, icou claro que, com o passar das
décadas, o temperamento ia se consolidando nas lautas, que, em
pares, deinem alguns grupos de Reis. Partimos depois para questões
conceituais, que estavam ligadas ao mito, à memória, ao rito, ao
tempo e ao sentido. Após o desvelamento do objeto de estudo e das
pesquisas de campo, cunhamos uma expressão que resumiria nossa
busca: a densidade do próprio.
Este termo se refere à integridade do Folião, à concretude, à
essência da Folia, e o relacionamento que o grupo de Reis tem com
o real. A densidade do próprio na Folia havia então sido instaurada
por ela mesma.
18

O primeiro passo utilizado foi a pesquisa de campo observando


os Reiseiros no dia a dia sem muitas interferências, mesmo sabendo
que a partir do momento que existe um elemento estranho ao grupo
pesquisado, o processo da Folia ou o próprio Folião já não é mais o
mesmo, por mais que o pesquisador tente se mostrar neutro.
As entrevistas foram feitas para vários grupos de Reis em
três etapas: a primeira, após contato inicial e observação diária dos
Reiseiros. Esta entrevista teve como ponto principal aspectos de suas
vidas. A segunda entrevista foi feita cinco meses após a primeira, e
os questionamentos tiveram a música como referência. A última
aconteceu seis meses após a segunda, e foi a mais abrangente, já que
os Reiseiros estavam mais familiarizados com os pesquisadores e já
possuíam também certo grau de coniança.
Quando estávamos procurando grupos de Reis na zona rural
passando pelas estradas, entrando em pequenos sítios, todos sabiam
dar informações de quantos grupos de Reis estavam percorrendo
aquela região e qual seria o itinerário deles.
Para tentarmos colocar no papel tudo que havíamos pesquisado
e reletido, versamos sobre a constituição do grupo. A partir destas
relexões, veriicamos que a Folia de Reis existe a partir do momento
que ela quer guardar seu próprio modo de constituir o mundo.
O tempo dos Foliões é mítico. Eles revivem o tempo através de
seus mitos, pois o mito representando a realidade torna-se sagrado.
Este tempo mítico é um eterno presente, pois a periodicidade da Folia
de Reis demarca esta temporalidade. A cultura continua no seu tempo,
e a Folia de Reis revive o tempo através de seus mitos.
O mito na Folia de Reis é verdade do modo como ele se
apresenta. A viagem dos três Reis Magos procurando o menino Jesus
reapresenta esta passagem mítica. Revivendo esta caminhada, os
foliões têm a possibilidade de recuperar concretamente sua condição
de instaurar seu mundo.
Viver e sentir o mito são características dos foliões, a cada ano
eles revivem esta passagem. O signiicado da repetição da manifestação
19

representa a Criação para os Reiseiros, é o novo nascimento, cujo mito


está representado pelo menino Jesus.

O mito não se toca e não se vê, mas dá coerência para as


questões da humanidade. O mito é a questão que está aí.
Sua densidade é muito maior que a aparência do real que
está aí. Ele tem uma possibilidade de aparecer a partir da
totalização do real. (Jardim, 1998)

A Folia de Reis abarca três datas importantes: o Natal, o Ano


Novo e o dia de Santo Reis. O ritual que tem o Ano Novo como cenário
é conhecido por toda a humanidade há séculos.

Séculos antes do aparecimento dos indo-europeus na Ásia


Menor, o complexo mítico-ritual do Ano Novo, considera-
do como uma repetição da Criação, já era conhecido dos
sumério-acadianos, com alguns dos mais importantes ele-
mentos encontrados entre os egípcios e os hebreus... tanto
na parte ocidental como nas regiões orientais da Eurásia, o
conjunto de cultos dos “visitantes” (as almas dos mortos,
os deuses, etc.), desenvolveu-se antes do período histórico.
Isto serve como mais uma conirmação do caráter arcaico
do Ano Novo. (Eliade, 1991, p. 67)

Por ser um rito que está há milhares de anos ligado ao


mundo, demonstra sua força também na Folia de Reis. Os doze
dias da folia podem representar os doze meses do ano, doze meses
para o reinício.
Para cada parte da reapresentação da Folia existe um rito,
que é respeitado e seguido por todos, foliões e donos das casas que
os recebem.
Os foliões se ajoelham frente à lapinha (o altar) fazendo
reverência com o chapéu, colocando-o ao lado da lapinha. Após
este ritual, eles cantam Reis da Lapinha para depois entoarem Reis
do Morador, canto que faz homenagem e agradece os anitriões. A
20

letra desta música pode ser modiicada de acordo com o nome dos
donos das casas. Se estes oferecem algo para os foliões comerem, estes
cantam Louvação da Mesa, repetindo o mesmo ritual da lapinha,
deixando desta vez o chapéu sobre a mesa.
Os ritos na Folia de Reis persistem através dos anos, mesmo
sofrendo as mutações inerentes à cultura.
A memória e a oralidade podem ser mais bem compreendidas
a partir dos conceitos de Havelock e mesmo de Jardim.

A memória se mostra fundamental no processo de consti-


tuição do sentido musical. Sendo a música uma arte cons-
tituidora de uma temporalidade e de uma espacialidade
próprias, acaba por estabelecer uma relação ontológica
com a memória. [...] De um modo ou de outro se poderia
dizer que toda a música é memória, ao mesmo tempo
em que toda memória é música, ou ao menos, musical.
(Jardim, 1993, pp. 9-10)

Jardim lembra que a memória é fundamental no processo de


constituição do sentido musical. Essa ideia encontra eco em nossa
visão acerca da Folia de Reis, uma manifestação que se dá através da
música, a essência é a música.
Toda manifestação cultural persiste pela memória através da
oralidade. Tudo que é memorável persiste no tempo. Quando os
foliões rememoram o acontecimento estão articulando a herança
cultural, e esta articulação é feita através da música. Toda música
da Folia de Reis tem um signiicado, e esta é transmitida aos novos
foliões com letras que dizem respeito ao menino Jesus, à sua história
e passagens da vida dos Reiseiros.

A escrita, presume-se, toma de assalto o espírito da


composição oral e corrompe-o de maneira que a origi-
nalidade dele dá lugar à repetição mecânica. (Havelock,
1994, p. 17)
Para Havelock, a escrita torna-se uma repetição. Enfocamos neste
trabalho o cuidado que o pesquisador deve ter quando for descrever a
manifestação estudada. Devemos antes de tudo viver, sentir e estar na cultura
para somente depois transcrever.
O conhecimento é transmitido em forma de música, e a memória
cuida da música. Compreender a importância da memória e da oralidade
nas manifestações culturais é ser com a cultura.
Os símbolos da Folia de Reis ajudam na concretização da realidade
criada por essa manifestação. Em algumas regiões, as enormes lapinhas que
são construídas, é o grande símbolo da fé. Os Reiseiros não cantam onde não
há a presença do menino Jesus para louvarem e pedirem a sua bênção. O
chapéu como símbolo de coroa traduz a possibilidade de reapresentarem os
Reis Magos durante toda a peregrinação da Folia. Todos os agradecimentos
gestuais são feitos através do chapéu.
Como símbolo de proteção, os Reiseiros se utilizam da estrela, fazendo
seu desenho no tambor e no pandeiro, pois acreditam que a estrela protegerá
todo o grupo. Os reis Magos foram ao encontro do menino Jesus seguindo
a estrela. Os Reiseiros tomaram o símbolo da estrela como proteção e guia,
da mesma forma que Gaspar, Melchior, e Baltasar.
Os símbolos estão presentes em qualquer comunidade, através dos
símbolos pode-se chegar a estudos de civilizações antigas. Na Folia de Reis,
a lapinha, o chapéu e o manto carregam a simbologia-mítica do poder do
nascimento do menino Jesus.
O não-temperamento nas lautas, como já foi dito, mereceu um papel
de destaque na pesquisa. O não-temperamento que aparecia nas gravações
da década de 1970 estava praticamente extinto no inal do século XX. Além
disso, a tessitura da lauta icou mais aguda, como pôde ser demonstrado
nos vários gráicos comparativos elaborados na pesquisa.
Os Reiseiros estão preocupados em fazer com que suas notas se
pareçam com as notas que eles escutam no rádio e na televisão. Quando tiram
uma dessas músicas de ouvido, os Reiseiros têm a preocupação de imitar
o que ouvem na mídia, e com isso o temperamento vai se irmando. Esse
processo faz parte da dinâmica da cultura, faz parte da vida dos Reiseiros,
22

já que eles aprendem pela música. Eles querem apenas apresentar da


melhor maneira, e com isso vão deixando as lautas não-temperadas
de lado.
Por im, trabalhamos o conceito de densidade do próprio. A
fé que os Reiseiros sentem é vivenciada com intensidade. A música
leva o folião a ser ele mesmo quando toca ou dança. A integridade
com que o folião reapresenta a folia é intensa. O próprio é lançado
junto com a Folia de Reis. A Folia de Reis se apresenta e se faz, ela é,
e se ritualizando, ganha a densidade do seu próprio.
Desvelar a densidade do próprio implica desvelar a concretude,
o movimento. O Reiseiro enquanto Ser é ele mesmo, e a música o
leva a caminhar com intensidade nesta manifestação. As Folias de
Reis persistirão no tempo à medida que os foliões permanecerem
próprios na sua densidade.
Tempo, mito e rito na
Folia de Reis

A Folia de Reis tem seu tempo determinado; tempo este que é


respeitado por cada elemento que compõe o grupo de reis.
A palavra mito, em sua origem grega, está associada ao ato da
fala: a verbalização é que dá início à criação, gera o compromisso de
uma promessa.

Mýthos é uma das muitas palavras de a língua de Homero


e de Hesíodo dispõe para designar o ato da fala. Nessa
riqueza vocabular, corresponde à espantosa exatidão
com que o homem na grande época do mito do mundo
percebe e dá conta dos diversos matizes da concretude e
da pluralidade. (Torrano, 1988, p. 19)

Mas através de Heidegger podemos compreender melhor o


tempo mítico da Folia de Reis, quando ele diz que:

O passado pode ser entendido como ponto de partida


ou fundamento das possibilidades porvindouras, e o fu-
turo como possibilidade de conservação ou de mudança
do passado, em limites determináveis. (Abbagnnano,
1998, p. 948)
24

Esta deinição nos traz um ponto de relexão à nossa cultura,


no caso, a Folia de Reis pesquisada, pois o futuro como possibilidade
de conservação determina um pensamento de preservação, de
continuidade. Quando ele coloca “ou de mudança do passado”,
recorremos ao conceito de que a cultura é dinâmica, e que ela pode ser
transformada com “limites determináveis”, de acordo com a dinâmica
e o tempo de cada cultura.
Podemos dizer que o tempo da encenação dos três Reis
Magos percorrendo o caminho da estrela-guia para encontrar o
menino Jesus, é um tempo mítico. Tempo que os foliões revivem;
ele é sagrado, pois trazem junto de si todo seu signiicado. O folião
acredita plenamente que, cumprindo a promessa para os Santos Reis
de percorrerem a região levando a sua fé, será agraciado com a cura.
Na Folia, os mitos são perfeitas peças de encaixe. Comecemos da
data, que passa pelo Ano Novo.
O recomeçar de um “novo tempo”, recorda o início da “criação
do mundo”, e os mitos fazem o homem lembrar como aconteceu o
início do mundo. O mito representa a realidade, e neste ínterim, se
torna sagrado.
O mito não se distingue da Folia de Reis, e ela é a ritualização
desse mito. “O mito é verdade quando ele se formatiza” (Jardim,
1998). O mito é verdade do modo como ele se apresenta. A verdade
não é o que é certo ou errado, ela tem que ser verdade como
desvelamento, ou seja, não encobrir nada; essa verdade não pode
ser diferente do mito. O mito não se distingue da Folia, ele é o que
é contado, é o conto, é a narração. A Folia de Reis, ritualizando este
mito, o atualiza e o torna um ato. O mito se concretiza não somente
quando contamos, mas quando se canta, se dança, quando eles entram
nas casas para fazer as oferendas, para festejar o menino Jesus; este
mito torna-se a verdade na sua presença. Ele é verdade do modo como
ele apresenta, não é, portanto, nem certo nem errado. Ele é tudo, ele
é o que se apresenta.
25

Eis o modo mais decisivo de os gregos antigos pensarem


a verdade: ilatência, alétheia... Ilatência é o traço mais
característico do ser enquanto presença, pois é o que em
todo presente constitui a presença, e, para todo ser latente,
a possibilidade mesma de sua latência. [...]
A ilatência de certas formas divinas do mundo libera
no homem o impulso de realizá-las, reproduzi-las, para
conservar-se o máximo possível à luz dessa ilatência.
Reproduzem-se estas formas através da ação em que o
homem se empenha como arrebatado por um sentido
que o ultrapassa. Se as formas se realizam na ação mesma
que busca realizá-las, trata-se de formas existenciais,
formas de vida, pois os Deuses para os gregos antigos
não são somente formas elementais do mundo, mas as
fontes e as formas do espírito, para as quais a origem
e o princípio constitutivo de todo sentido é ilatência.
(Torrano, 1988, p. 12-13)

As formas divinas na Folia de Reis liberam o impulso para que


eles possam reproduzi-las através dos atos e das músicas. É a ação
que os Reiseiros desempenham nas formas existenciais.
A partir do momento em que os foliões acreditam e demonstram
seus mitos, eles se tornam verdadeiros porque se manifestam. Cada
Reisado é uma versão do mito originário, ou seja, a viagem dos três
Reis Santos à procura do menino Jesus. A circularidade do mito está
contida na sua possibilidade de resgatar concretamente a sua condição
de instaurar mundo. Negar o círculo é negar o mito na sua dinâmica,
é como negar a própria dinâmica da cultura.
Reviver o momento do nascimento na Folia de Reis é tentar
esgotar o conhecimento, para que ele possa ser transmitido com
todo seu poder mítico e religioso. A origem de tudo não está
apenas no conhecimento de como tudo aconteceu, é preciso saber
diferenciar e reintegrar aquele momento; no caso, o nascimento do
menino Jesus: “Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem
das coisas” (Eliade, 1994. p. 18).
26

Desta forma, o mito é essencial para a humanidade, pois


através dele não deixamos de aprender como se dá o relacionamento
originário com todos os acontecimentos. O que não se explica, torna-
se mito, ele se apresenta. O mito torna-se indispensável a qualquer
cultura. Cabe então, referirmos a Malinowski:

O mito não é uma simples narrativa, nem uma forma


de ciência, nem um ramo de arte ou história, nem uma
narração explicativa. Cumpre uma função sui generis inti-
mamente ligada à natureza da tradição, à continuidade da
cultura, à relação entre maturidade e juventude e à atitude
humana em relação ao passado. (Malinowski, p. 674)

A continuidade da cultura é exempliicada pela Folia de Reis


que revive o tempo através de seus mitos.
Para viver estes mitos, tocar e cantar na Folia é decisivo, a
experiência “simples” de cada um. Conhecer, fazer parte, “viver” o
mito e senti-lo, são as características destes foliões, pois acreditam
que enquanto continuarem a participar da Folia de Reis, estarão
protegidos juntamente com sua família de todo mal.
O mito da proteção eleva nestas pessoas a devoção e a cura,
que encontramos em Heidegger, que é o cuidado, o cuidar da
manifestação. A festa é a comemoração do sagrado, do mito e do
rito se concretizando.
O tempo mítico reestrutura uma memória. A periodicidade
da Folia faz dela um eterno presente, e sendo ela um eterno presente,
signiica que está inserida no tempo mítico. Esta periodicidade
deine o tempo transcorrido entre duas datas ou fatos marcantes,
vem envolver os foliões para restauração do tempo mítico através
do rito.
A criação e interpretação do passado para o presente traduz
a personiicação das atividades arquetípicas, ou seja, das atividades
dos modelos que foram criados. Em relação ao fato religioso em si
27

da Folia de Reis, o arquétipo reproduz aquilo que ocorreu no início,


passando esta manifestação a fazer parte da história.
A Folia de Reis carrega em seu campo vital o arquétipo dos Reis
Magos, pois percorrem o caminho das fazendas ou cidades, tendo
como objetivo inal encontrar a salvação. O sentido do mito se tornará
compreensível através das ações dos foliões. A representatividade
das iguras e a personiicação dos componentes da Folia de Reis,
juntamente com o cenário do im de ano, auxiliam os expectadores
a presenciarem, neste rito, toda uma história que vem passando de
geração a geração.
Apesar da Folia de Reis ser uma tradição, existem aspectos que
devem ser levantados; por exemplo, Aristóteles no último período da
ilosoia grega frisava que a tradição deveria libertar-se dos elementos
míticos. Ora, será que, se livrarmos estes elementos da tradição, haverá
continuidade das formas de expressões culturais?
Se a função do mito é a instauração de mundo, dos ritos, eles
sempre andarão juntos com a tradição. A tradição é a transmissão
oral de fatos ou lendas através de gerações. Devemos tomar em conta
então, a tradição e o respeito a ela, pois como manifestação folclórica,
traduz, transporta o passado ao presente, com vias ao futuro.
A manifestação deste folclore com uma essência ritualística
e mítica traz consigo sentimentos de descoberta da criação. O mito
da polaridade, o bom e o mau, pode também ser presença marcante
nos instrumentos de alguns grupos de Folia de Reis.
A louvação que os foliões fazem diante da lapinha é seguida
de um rito. Todos, de um a um, tiram o chapéu e fazem o sinal da
cruz (outro símbolo), enquanto os outros tocam determinado ritmo.
Somente após o último folião terminar sua louvação é que se dá
prosseguimento na manifestação. Quando o dono da casa oferece
comida, os foliões procedem da mesma forma, louvam a mesa em
gesto de agradecimento e pedem proteção para dono da casa, que,
de uma forma, participa e acredita dos mesmos mitos.
Memória na Folia de Reis

A história da criação do mundo vem trazendo desde há muito


tempo, a memória mítica, e como a nossa forma mais antiga de
expressão é a música, ela traz em seu âmago características míticas
inerentes. O fato de achar que cada ritual deve ter uma determinada
música, parte da memória mítica.
O agradecimento à mesa na Folia de Reis é uma rememoração
ritualística do mito. Eles creem que, louvando a mesa, estarão
atualizando a ação dos três Reis Magos e com isso conseguirão
alcançar o mito.
A história se passa e os foliões conseguem guardá-la na
memória: “Pode-se entender a memória como a instância de inventar,
meditar, reletir e velar, no sentido de cuidar, a unidade” (Jardim,
mimeo, p. 12). Aprender a rememorar a unidade, traz aspectos
singulares às músicas da Folia de Reis. “Aprender é rememorar,” diz
Platão (apud Eliade, 1994, p. 111).
A música é o elo que deixa livre a criação das letras dos foliões
sem perder sua unidade, seu início. A música articula uma memória
que, no caso da música da Folia de Reis não é apenas uma memória
retrospectiva, ela é uma memória no sentido de ter conigurado algo
como um acontecimento. O que importa não é resgatar todas as
30

manifestações das Folias de Reis que ocorrem no Brasil, e sim resgatar


o extraordinário, que é a música da Folia. A música é articuladora do
ser do Reisado porque ela não é mediadora.
A memória traz à tona a tradição, a herança cultural; sem
ela, a Folia de Reis não existiria. Ela vive existindo no próprio ser
humano. Para tentar recuperar este material, o aspecto que mais
nos impressionou foi à memória musical, pois se trocam as letras
dos versos, mas a música continua a mesma. A memória biológica
faz manter determinados cantos, e este processo não é consciente.
À medida que o indivíduo vai sendo iniciado na tradição, os
conhecimentos são transmitidos em forma de música.
Partindo deste princípio, a dualidade memória/mito está
totalmente relacionada aos Cantos dos Reis. Na Ilíada, Homero
escreve que “graças às Musas e a Apolo há na Terra cantores e músicos”.
Mas pelo problema da imperfeição do registro, ou mesmo porque na
época não havia quem o izesse, a música grega não icou conhecida.
Talvez, não somente a música, mas também muitas teorias podem
ter deixado de serem transcritas.
O inventor do canto e de vários instrumentos seria Orfeu,
e a oralidade vem através da memória, que na mitologia é ilha de
Urano (Céu) e Gaia (Terra). Mnemósine, que tem um irmão sem
piedade (Cronos [Saturno]), é a única que preserva com a memória
os atos insaciáveis do irmão. Apesar de Cronos ter devorado seus
ilhos, sua esposa se uniu a Gaia e conseguiu esconder o ilho que,
mais tarde, derrotaria e destronaria seu implacável pai. Este ilho foi
Zeus (Júpiter).
A história destes mitos vem encher nossa mente de poesia,
mostrando-nos que tanto no mito quanto na oralidade, é a Mnemósine
que socorre as várias facetas do esquecimento. Durante nove noites,
Zeus e Mnemósine estiveram juntos, daí nasceram as nove musas.
Euterpe é a musa do deleite, e protege a música. Mas temos também
o protetor de todas as artes, Apolo.
31

Homero medeia entre a musa, quem quer que ela seja, e


a sua audiência, como se os versos não fossem dele, mas
derivados de uma fonte exterior a si próprio, uma fonte a
quem ele chamou “musa”. (Havelock, 1996, p. 32)

As musas inspiraram inúmeros poetas, artistas e músicos. Tanto


as musas quanto Homero, enim, a cultura grega, deve estar presente
no que concerne à oralidade, porque foi lá que tudo começou. Robert
Wood lembra que “Homero era uma obra da memória, não da escrita”
(apud Havelock, 1996, p. 54).
Na Grécia antiga, o cantar significava o modo como a
Divindade interpelava os mortais. Quem cantava era o aedo, que
invocava a presença das Musas. O aedo então relembra as músicas.

Musa(s), por ser(em) ilha(s) de Zeus, ela(s) sim pode(m)


revelar as palavras de Zeus Olímpio aos Deuses reunidos
em seu palácio. O canto do aedo servo das Musas dá-se
por mimesi e é assim imagem do canto das Musas: por que
outro modo senão por participação divina poderia vir ao
canto do aedo o sentido do que Zeus diz aos Deuses no
Olimpo? – Mimese, no sentido de méthexix “participação”,
é o modo de ser do canto do aedo enquanto imagem, que
se percebe sobre a terra, do canto percebido por Zeus
dentro do Olimpo.
Posto que o sentido do canto do aedo entre os homens vem
do canto da Musa a Zeus no Olimpo, o canto pode revelar
num feixe de relações mais amplo o sentido do percurso
do homem multívio. (Torrano, 1988, p. 67)

A musa revela o canto,

elas são o próprio canto, não são capazes de serem sem


ele. Tal como seu nome, seu canto se apresenta em seu
ser. O canto das musas é com elas. Por isso, airmamos
que dizer musas é dizer música. O aedo é aquele que
32

apresenta quando canta seu canto, um outro canto, uma


outra instância, uma outra dimensão e é por este canto,
que se estabelece o seu poder, através do encanto e do
fascínio maior ou menor que seu canto seja capaz de
exercer. Seria a música, desse modo, a arte das musas.
(Jardim, 1997, p. 189)

A Folia de Reis é instituída pelo seu canto, e os Reiseiros não


são capazes de se apresentarem sem ele. O canto conta a história, a
vida do menino Jesus e a vida dos Reiseiros, o canto apresenta o ser,
este signiica o Ser Divino e o ser entiicado. O aedo está nas passagens
de felicidade e tristeza dos Reiseiros que eles colocam para fora
enquanto cantam seu canto. É pelo canto que os Reiseiros expõem
a apresentação de suas verdades. A verdade deles se apresenta como
desvelamento. Aquilo que se mostra é a verdade.
A memória vem como consequência da oralidade ou a
oralidade vem como consequência da memória? Bem, elas tiveram sua
fonte na Grécia e as musas podem ser interpretadas e aceitas como as
guardiãs da memória social, tendo o ritmo como base da linguagem
da memória. A oralidade poderia se enfraquecer se não tivesse uma
tradição do saber ouvir/repetir memorizado.
Mnemósine, enquanto vigência do que é memorável, permeia
a Folia de Reis. Seus cantadores e instrumentistas têm uma tradição
memorizada. Quando querem agradar alguém, se colocam à vontade
para improvisar, pois sabem que o ritmo e a melodia estarão bem
velados pela memória.

Em seu relacionamento estabelecido com a música, a me-


mória se mostra fundamental no processo de constituição
do sentido musical. Sendo a música uma arte constituidora
de uma temporalidade e de uma espacialidade próprias,
acaba por estabelecer uma relação ontológica com a me-
mória... o sentido musical é estabelecido pela memória
(Jardim, 1997, p. 151)
33

Podemos observar através de Jardim, que as características da


música, como uma arte constituidora de uma tempo-oralidade, traz a
tríade fundamental da cultura de Reis estudada, que seria justamente:
o tempo, a oralidade e a memória.
A memória dos Reis é a condição para que o fato ocorra,
para que todos os anos, na data prevista, a memória possa ressurgir,
revigorar. A palavra surgir nos lembra chegar. A Folia chega, surge nas
casas, nos povoados e procura a lapinha para lembrar o nascimento,
porém toda a história de Jesus, seu ressurgimento, ressurreição, e sua
morte são rememoráveis por todos que acompanham esta festa.

À medida que se aperfeiçoa o instrumento que permite


projetar na memória das gerações as palavras e as frases,
o registro desenvolve-se, alargando-se a níveis mais pro-
fundos do conhecimento, mas, até mesmo em relação à
própria Antiguidade clássica, a hierarquia dos valores
sociais limita os domínios muito precisos a soma dos
fatos que devem passar de geração em geração, sendo a
grande massa constituída para além de textos ilosóicos
por documentos religiosos, históricos e geográicos; por
outras palavras, nos planos divino e humano, em que a
aliança constitui o tema fundamental, o triplo problema
do tempo, do espaço e do homem representa a única
matéria digna de memorização. A agricultura surge-
nos em poemas cujo elemento motor são as estações do
ano, a arquitetura em descrições que integram o espaço
cósmico nos templos e nos palácios. As matemáticas e
a música surgem juntamente com a medicina, como os
primeiros elementos especiicamente cientíicos apesar
de envoltos no halo da arte mágica e religiosa. (Leroi-
Gourhan, 1987, p. 61)
A importância dos símbolos na
Folia de Reis

Os símbolos encontrados na Folia de Reis reforçam a


importância deste elemento desde nossas reminiscências. Eles foram
os primeiros sinais de comunicação, aparecendo antes mesmo da
linguagem. A imagem de iguras e símbolos são materiais de grande
importância para os pesquisadores. Os primeiros sinais de que houve
pessoas morando em determinadas cavernas ou perto de paredões,
são os símbolos.
Para as civilizações gregas, egípcias, incas, etc., os símbolos são
guardados como grandes tesouros, como realmente o são. Eles estão
guardados no inconsciente da humanidade, por isto, não podemos
escondê-los nem tampouco ingir que não existem.
Os homens produzem cultura à medida que haja outros
homens para passarem a experiência e os acontecimentos do passado
para o presente. Os símbolos representativos em uma manifestação
cultural, como a Folia de Reis, deixam explícita a importância do
símbolo para a preservação cultural: “O símbolo revela certos aspectos
da realidade” (Eliade, 1991, p. 8). É justamente esta realidade que o
homem procura entender cada vez mais.
36

O símbolo é o lançar-se junto. Símbolo é o mesmo que


signo. Segundo Peirce, “um signo pode ser interpretado em
consequência de um hábito ou de uma disposição natural”
(Abbagnano, 1998, p. 901).
Para discutirmos a simbologia da Folia de Reis, faz-se mister
que analisemos os símbolos signiicativos como o chapéu, a estrela
e o manto. O chapéu pode signiicar uma coroa, ou seja, ele tem um
papel que representa a soberania. Como ele cobre a cabeça, pode
simbolizar também a cabeça e o pensamento.

É ainda, símbolo de identiicação, usar o chapéu signi-


ica, em francês coloquial (porter le chapeau), assumir
uma responsabilidade, mesmo por uma ação que não
se tenha cometido. (Chevalier, J. & Gheerbrant, A.
1997, p. 232)

Partindo desta premissa, verificamos a responsabilidade


assumida pelos Reiseiros como se eles fossem realmente os Reis
Magos com sua peregrinação ao encontro do menino Jesus. Eles não
cometeram a ação de encontrar Jesus, porém, assumem o papel.
Alguns chapéus são adornados pelos próprios Reiseiros. Todo
trabalhado com itas coloridas e reluzentes pode signiicar uma coroa
repleta de joias.
Para Heidegger:

alegoria e símbolo fornecem o enquadramento em cuja


perspectiva se move desde há muito a caracterização da
obra de arte... Quase parece que é o caráter de coisa na
obra de arte que constitui como que o suporte no qual e
sobre o qual o outro e o autêntico estão ediicados. (Hei-
degger, 1989, pp. 13-14)

O chapéu é o que Heidegger diz sobre alegoria e símbolo. A


alegoria expõe um pensamento de uma forma igurada, que em um
primeiro signiicado especíico,
37

indica um modo de interpretar as Sagradas Escrituras e de


descobrir, além das coisas, dos fatos e das pessoas de que
elas tratam, verdades permanentes de natureza religiosa
ou moral... No mundo moderno a alegoria perdeu valor
e negou-se que ela possa exprimir a natureza ou a função
da poesia. (Abbagnano, 1998, pp. 23-24)

Fazendo uma pequena análise deste trecho, podemos dizer


que também na Folia, o chapéu como alegoria pode retratar verdades
permanentes de natureza religiosa ou moral. O chapéu é tão
signiicativo, que alguns foliões nos presentearam com um chapéu
ao término da pesquisa. Além de ser uma obra de arte, carrega sua
história e toda sua representatividade. E é com esta alegoria, este
símbolo, que eles demonstram a sua fé.
O aspecto da soberania, do poder dos foliões, está demarcado
pela própria denominação da manifestação cultural: Reiseiros, Folia
de Reis, Reiseiros de Lapinha, Terno de Reis, Reisado, quer dizer, eles
são a soberania, são eles os próprios Reis. Mas, etimologicamente, há
outro signiicado de “reinar”, do latim regnare, “brincar, traquinar”,
fato que não deixa de ser real, pois eles “brincam” nas rodas das danças
tocando marchas. O poder admite a temporalidade e a espacialidade
do ócio, do divertimento, admite e possibilita.
O símbolo do chapéu carrega então, aspectos de responsabilidade,
de pensamento e poder. Quando nos referimos ao aspecto do
pensamento, estamos nos referindo ao pensamento intuitivo dos
Reiseiros, pois como eles mesmos disseram, aprenderam vendo e
ouvindo, mas, muitas vezes, utilizam-se da intuição para criarem
na Folia; como se baseiam na fé, acreditam que a intuição vem pela
devoção aos Santos Reis e ao menino Jesus.

A característica do conceito de pensamento como intuição


é a sua identidade com o objeto. Neste sentido, pensamen-
to é atividade do intelecto intuitivo, ou seja, do intelecto
38

que é visão direta do inteligível, segundo Platão, ou que,


segundo Aristóteles, identiica-se com o próprio inteligível
em sua atividade. (Abbagnano, 1998, p. 752)

Em relação ao símbolo da estrela encontrada no pandeiro e


nos tambores, em alguns grupos, é um símbolo totalmente ligado ao
nascimento de Jesus, pois os três Reis Magos o encontraram seguindo
a orientação da estrela. Eles desenham a estrela nos tambores e
pandeiros, acreditando que o mal está sempre por perto, e o símbolo
da estrela os protegerá. É o mito da polaridade, o bem e o mal.
O símbolo do homem pré-histórico até os dias atuais
desempenham papéis importantes, tanto nas comunidades orientais
como nas ocidentais. O homem, dependendo de suas manifestações,
dá um valor e uma característica para determinados símbolos,
principalmente nas experiências religiosas.
Quando o dono da casa oferece comida, os foliões procedem
da mesma forma, louvam a mesa em gesto de agradecimento e pedem
proteção para o dono da casa, que, de uma forma, participa e acredita
nos mesmos mitos.
Retornando ao símbolo da estrela, ela é um símbolo celeste, e
o céu revela todo seu poder, pois provoca na consciência primitiva a
força do ininito e a criação do universo. A força do ininito pelo céu
tem seu lugar também no pensamento a seguir:

Mesmo quando a vida religiosa já não é dominada pelos


deuses celestes, as regiões siderais, o simbolismo urania-
no, os mitos e os ritos de ascensão etc. conservam um
lugar preponderante na economia do sagrado. Aquele
que está “no alto”, o “elevado”, continua a revelar o trans-
cendente em qualquer conjunto religioso. Afastado do
culto, e relegado às mitologias, o céu mantém-se presente
na vida religiosa por intermédio do simbolismo. (Eliade,
1996, p. 108)
39

As estrelas, o sol, a lua, os raios são símbolos muito arraigados


no homem. O fato é que estes símbolos identiicam as situações, o rito
e o mito na Folia de Reis. Independente do contexto, a revelação de
um símbolo traz à tona as inluências de cada um. Mais tarde, icamos
sabendo que aquele símbolo desenhado no couro dos instrumentos
era muito importante para que todo o grupo fosse protegido de
qualquer ação que os impedissem de cumprir a Folia até o último
dia, ou seja, de cumprir uma promessa.
A estrela, simbolicamente, carrega a responsabilidade de
cura, uma possibilidade de extermínio de todo mal. O caminho dos
Reiseiros revela seus símbolos. A crença neste caminho percorrido
se insere no cuidado que cada componente tem um pelo outro.

O apelo do Caminho do Campo só fala enquanto houver


homens que nascidos em sua atmosfera, puderem escutá-
lo. São obedientes à sua origem e não escravos de artifícios.
(Heidegger, 1984, p. 326)

É o homem, o responsável pela propagação da cultura, o


indivíduo e o agrupamento permitem a realização da ação, da folia.
Sem a ação humana já deixa de existir a tradição cultural. A origem e
as raízes são partes especiais no processo de conservação de qualquer
manifestação. Esta raiz pode ser transplantada para outro local, mas
levará consigo sua origem.
A chegada do Natal também vem simbolizada com a estrela,
pois os presépios têm uma estrela sobre a gruta e, inconscientemente,
talvez, a maioria das pessoas prefere colocar uma estrela no topo da
árvore de Natal de suas casas.
Já o manto, como os Reiseiros chamam, é uma toalha bordada
pelas suas esposas. Apesar de ser uma toalha que é colocada sobre
os ombros ou em volta do pescoço, carrega realmente o sentido
do manto.
40

Na tradição celta, os homens do grande mundo do leste


dizem a Dagda: aquele que se veste com o manto toma o
aspecto, a forma e o rosto que quer pelo tempo em que
o leva sobre si. Símbolo das metamorfoses por efeito de
artifícios humanos e das personalidades diversas que um
homem pode assumir.
O monge ou a monja, no momento de se retirar do
mundo, ao vestir o hábito e pronunciar seus votos, se
cobre com um manto ou capa. Esse gesto simboliza a
retirada para dentro de si mesmo e para junto de Deus,
a consequente separação do mundo e de suas tentações,
a renúncia aos instintos materiais. Vestir o manto é sinal
da escolha da Sabedoria (o manto do ilósofo). É também
assumir uma dignidade, uma função, um papel, de que a
capa ou manto é emblema. (Chevalier & Cheerbrant,
1997, pp. 588-589)

O manto, portanto, vem também traduzir a personiicação de


uma divindade. Os Reiseiros, utilizando-se destes símbolos, o chapéu
(coroa), a estrela e o manto, demonstram a história de sua crença com
a maior realidade possível. A fé dos Reiseiros é comprovada então
pelos seus símbolos também.

A fé cristã é sustentada por uma revelação histórica: é a


manifestação de Deus no Tempo que assegura, aos olhos
do cristão, a validade das Imagens e dos símbolos... A
história acrescenta continuamente novos signiicados,
sem que estes últimos destruam a estrutura do símbolo.
(Eliade, 1996, p.161)

O simbolismo, desta forma, está intrinsecamente ligado à


cultura. Observando os símbolos, a história se justiica.

É a presença das Imagens e dos símbolos que conserva


as culturas “abertas”: a partir de qualquer cultura, tanto
a australiana como a ateniense, as situações-limite do
41

homem são perfeitamente reveladas graças aos símbolos


que sustentam essas culturas. Se negligenciarmos esse
fundamento espiritual único dos diversos estilos culturais,
a ilosoia da cultura estará condenada a permanecer em
um estudo morfológico e histórico, sem nenhuma vali-
dade para a condição humana como tal. Se as Imagens
não fossem ao mesmo tempo uma “abertura” para o
transcendente, acabaríamos por sufocar qualquer cultu-
ra, por maior e admirável que a supuséssemos. (Eliade,
1996, p. 174)

Os Reiseiros carregam esta trilogia simbólica, que transcende


a consciência. Esta Folia tem a singularidade de ter a presença de
uma imagem no estandarte, entretanto, não é esta imagem que para
outras regiões do país signiica tanto, que fará a diferença em termos
de fé ou crença.
Oralidade: presente na
discussão das culturas

O predomínio da oralidade, enquanto ferramenta para o


conhecimento, nos faz repensar todo um processo de evolução da
escrita. É através da oralidade que, até os dias atuais, conseguimos
captar um pouco, outras culturas que preservam ou tentam dar
continuidade a seu mundo. O isolamento parcial de determinadas
culturas, como é o caso de alguns grupos de Reis, proporciona o
estudo acerca da oralidade.
Como diz Havelock:

as cidades-estado gregas, entre o nono e o sexto século,


aperfeiçoaram um sistema de instrução oral envolvendo
dança, música instrumental e recitação, por cujo meio
certas obras de composição oral foram seletivamente
memorizadas, recitadas, ampliadas, mas de uma forma
disciplinar, imposta pelos mais velhos aos moços como
parte de sua iniciação numa sociedade oral, de que deviam
tornar-se membros iéis. (Havelock, 1994, p. 22)

Podemos transportar esta sociedade caracterizada pela


oralidade do século IX a.C. até o início do século XXI, quando
encontramos comunidades voltadas para a tradição oral. A Folia de
44

Reis mantém a dança, a música e a recitação, sendo que esta última


pode sofrer variações de acordo com o lugar, a hora e a criatividade
do dia, sempre levando em conta a disciplina e o respeito em todos
os momentos. Eles são devotos iéis do menino Jesus e dos Três Reis
Magos; e pela devoção, os mais velhos ensinam aos ilhos e familiares
mais jovens a seguirem a tradição de, na data prevista, saírem com a Folia
para agradecer e louvar suas crenças e participarem de seus ritos.
Esta continuidade de tempo vem nos mostrar o quanto ainda é
forte a tradição oral em várias partes do Brasil, pois é um fenômeno
que ocorre em todo território brasileiro, em alguns lugares mais
marcantes, e é pela memória que ela se sustenta.
Os gregos denominavam mousiké as práticas orais antigas, que
consistiam de uma articulação do ritmo, da métrica verbal com os
ritmos da dança, dos instrumentos musicais e da melodia. “Um poema
é mais memorizável do que um parágrafo em prosa; uma canção é
mais memorizável do que um poema” (Havelock, 1994, p. 189).
As práticas orais da Grécia antiga utilizando-se do ritmo, ganha
espaço ainda hoje para que as crenças de determinadas culturas
sobrevivam.
O ritmo e a música dão a sustentação para a oralidade. A
Mnemósine personiicava a memória, e sua técnica, que deu o nome a
mousiké é conhecida como “ilha da Recordação”. Nasceram as musas,
de onde deriva o nome mousiké, isto é, a arte das musas. A poesia
oral destes tempos proclamava ocasiões que pudessem dispor uma
audiência, grande ou pequena, com repetitivas execuções.
A Folia de Reis também pratica estas execuções constantes
para que seus aspirantes a Reiseiros aprendam sua arte, e no período
adequado, possam percorrer com eles para aprenderem diante da
comunidade a agirem de acordo com cada ritmo, cada dança e versos
improvisados ou não das músicas.
A improvisação dos versos fazia parte também da educação
oral das classes ociosas na Grécia. Porém,
45

a música grega original era composta para acompanhar a


recitação oral em verso, e era serva, não ama, da dicção.
Em vez de dar tratos às palavras para conformá-las à
música, exigia-se que esta se conformasse ao ritmo das
palavras. (Havelock, 1994, p. 351)

Com o passar do tempo, a música se consolidou, irmando-se


com suas particularidades, e tornou-se independente das palavras
para suas composições. A letra começou a adaptar-se à música já há
muitos anos, e hoje, na Folia de Reis, com a improvisação dos versos
isso não é diferente à música, nossa musa.
Falar em cultura oral ou cultura sem escrita, não signiica
analfabetismo. Na cultura moderna, o iletrado se constitui analfabeto,
isto é, sobre a palavra letrado se deposita um juízo de valor. No Brasil,
as manifestações culturais são mantidas também por pessoas que
não detêm um conhecimento da escrita, mas isto não impede que
tenham algum conhecimento. Podemos dizer que a cultura oral passa
de geração a geração seguindo a dinâmica das sociedades.
A poesia dos versos da Folia nos mostra toda a sua beleza e
crença, como a que se segue:

Deus lhe pague a bela mesa que nos deu nesse dia,
Santo Reis que alumeia você com sua família,
Olha que mesa bonita, tem uma lor e a linda palma,
Quando chegar lá no céu, tem uma cama pra sua’lma.

Este é um pequeno trecho de uma canção chamada Louvação


da mesa, que os foliões cantam quando o dono da casa lhes oferece
alguma comida. Estes versos fazem parte de uma poesia, de um ritmo,
que levam para o dono da casa o conforto de um agradecimento
sincero. Diferentemente deste tipo de poesia da Folia de Reis,
a “poesia” significava na Grécia uma composição rítmica. Os
intelectuais da época eram poetas que trabalhavam com a tradição
46

oral. Ou seja, antes da invenção do alfabeto, que aconteceu cerca de


700 a.C., a tradição oral se manteve através de seus poetas.
A concentração necessária na cultura oral é muito mais
exigente e comum do que nas sociedades letradas, bem como a
capacidade de improvisar versos e acompanhamento, quer dizer, que
muitas vezes, a competência musical de um Reiseiro, pode ser muito
maior que a de um músico acadêmico. Pude observar nesta pesquisa
a arte do repente, a arte do improviso; tendo sempre a melodia e o
ritmo como sustentação.

E, entretanto, muitos da grande cidade e os turistas


e, não por último, os esquiadores, frequentemente, se
comportam no povoado e na casa dos camponeses como
se estivessem “divertindo-se” nos salões de recreação da
grande cidade. Tal saliência destrói numa noite muito
mais do que poderá construir a estandardização de um
doutrinamento cientíico, de vários decênios, sobre o
popular. Aprendamos a levar a sério lá em cima aquela
existência simples e dura. Só então é que ela poderá voltar
a dizer-nos alguma coisa. (Heidegger, 1984, p. 324)

No inconsciente a memória das músicas dos Reis permeia suas


vidas. A cultura oral destes Reiseiros traz inerente sua criatividade.
Quando a cultura oral nos mostra sua força, vem nos dizer e fortalecer
o quanto ela é imprescindível para o ser humano, pois se formos
pensar nos milhares de anos que o homem se comunicou através
da oralidade, o ato de ler e escrever são peças recentes no museu da
história evolutiva do homem. A sociedade não pode deixar de dar à
oralidade o papel que ela desempenha até hoje.
A oralidade tem o seu espaço, e deve permanecer mesmo
sabendo da dinâmica cultural. Não podemos mudar estes caminhos,
mas devemos crer na presença da memória de um passado remoto,
seja de um presente marcado pela atualidade. Sabemos que por mais
47

que a escrita seja perfeita, a língua falada será sempre mais luente
e rica. Por mais que tentemos registrar ielmente a oralidade, por
qualquer meio representacional, por qualquer suporte, pecaremos
em não captar, uma mera respiração sequer: “Os gregos, entre 1100
e 650 a.C., o que lograram realizar izeram sem apoio em nenhuma
escrita” (Havelock, 1994, p 99).
A linguagem forma-se através da respiração, de sons, do
aparelho humano responsáveis pela fala; através das letras, esse
processo se dá de outra forma. A preservação da linguagem oral,
para a transcrição de um documento, é ainda mais valorizada quando
dispomos de recursos que garantam sua forma.
A conformação cultural a ser seguida, pode ser alterada através
dos tempos, levando-se em consideração os complementos de que
cada cultura necessita ou acha importante acrescentar. Como exemplo,
o modelo da música Louvação da Mesa pode ser complementada
com estruturas rítmicas diferentes de outros tempos, levando-se em
consideração os complementos incorporados de cada cultura, ou seja:
podiam não ter acontecido cinquenta anos atrás, mas os Reiseiros de
hoje acham importante acrescentar.
Não podemos esquecer que existe um fator muito forte na Folia
de Reis que faz com que a oralidade desta manifestação transcenda
os tempos, que é a religiosidade.
O Grupo de Reis encontra sua identidade nesta prática, e
acredita que, enquanto existir uma semente da família, a Folia de Reis
irá continuar. Eles não se importam com o dinheiro que pode não ser
arrecadado, ou se não irão conseguir ganhar as roupas para sair na
Folia, tampouco se preocupam com a aquisição de instrumentos, pois
muitas vezes eles inventam e constroem a sua ferramenta de trabalho
(chocalho; lautas de tabocas, alumínio ou pvc; tambor, triângulo e
reco-reco). Mesmo sabendo que este trabalho dura somente de dez
a quinze dias por ano, os Reiseiros mantêm na lembrança durante
48

todo o ano, o que izeram e o que poderão continuar a fazer para


conservar esta conformação cultural.
Apesar da tecnologia avançada e dos vários recursos de que
dispomos atualmente para fazer uma transcrição da cultura oral,
no caso, a Folia de Reis, devemos nos preocupar com os pequenos
detalhes, para não cometermos o mesmo erro da transcrição alfabética
de Homero, que:

Foi um processo de erosão da “oralidade” que se estendeu


ao longo de séculos de experiência européia, um fato que
deixou a cultura moderna desigualmente dividida entre
modos de expressão, experiência e vivência, em uns casos
letrados, em outro, orais. (Havelock, 1994, p. 163)

Os jovens e aspirantes a foliões, exercitam na prática vivencial


desde a infância com seus familiares foliões.
A Folia de Reis abarca três categorias: a criação, a declamação e
o aprendizado. Os foliões criam os versos que serão cantados quando
os versos já foram criados, podendo ainda mudar uma palavra
ou outra, como já foi dito anteriormente. Eles também declamam
ao inal de cada reapresentação em forma de agradecimento para
aqueles que os acolheram, e inalmente o processo mais importante, o
aprendizado da manifestação cultural da Folia de Reis. A transmissão
de um conhecimento através da oralidade nos faz retornar, de certo
modo, à cultura grega:

A cultura grega foi sustentada por uma base inteiramente


oral até cerca de 700 a.C. e, caso isso tenha sido verda-
de, os primeiros dos assim chamados ilósofos viviam e
falavam numa época em que ainda estavam se ajustando
às condições de uma possível alfabetização futura, con-
dições que, segundo minha conclusão, seriam realizadas
lentamente, pois dependiam do domínio não da arte de
escrever por uma minoria, mas de uma leitura luente da
maioria. (Havelock, 1996, p. 13)
49

Podemos observar neste trecho uma semelhança com as


manifestações culturais do século XXI. A Folia de Reis, por exemplo,
é sustentada por longos anos através da oralidade. Os foliões não
dependem do domínio da arte de escrever por uma minoria, mas de
valores que podem paulatinamente se extinguir, como a crença, a fé
e a alegria de saírem na Folia de Reis. A leitura luente da maioria
poderia signiicar o desprezo e o esquecimento de uma manifestação
cultural. Mesmo sabendo que a cultura é dinâmica, torcemos para
que a palavra “leitura luente” signiique respeito, ou que façam uma
leitura no sentido igurado, uma leitura de admiração e de relexão
naquilo que os olhos veem e os ouvidos ouvem na Folia de Reis. A
“leitura” da Folia, o ato de assistir e ouvir traz como consequência a
vigência de um predomínio da transmissão oral e da possibilidade
de que pessoas que não tiveram a oportunidade de fazer uma “leitura
luente”, possam fazê-lo.
Os foliões representam a crença da realidade na passagem
dos Três Reis Magos à procura do menino Jesus, e o ritmo os
acompanham, tanto nos passos da caminhada para representarem sua
arte, como para o ritmo dos versos, da dança e da música, que para
esta última, já é inerente. E da mesma forma que na cultura grega a
poesia estava ligada à teoria educacional, a poesia da Folia de Reis
com seus ritmos provoca a consideração da transmissão oral como
dado (acontecimento) e fundamento originário. A instrução básica
do poeta está contida na música, assim como a música está para os
aprendizes a foliões.
A linguagem faz parte das relações humanas e permeia
todos os modos interacionais possíveis de qualquer ser humano.
“O poema oral foi o instrumento de uma doutrinação cultural,
cujo objetivo final era a conservação da identidade do grupo”
(Havelock, 1996, p. 118).
50

Antes que instrumento, o poema é fundamento do ser. Na


Folia de Reis, a música com seus versos e ritmos são condições de
possibilidade de uma outra constituição de mundo, isto é, cultura, ela
constitui em seu ser a possibilidade de estruturação, e a identidade
do grupo é conservada devido à estas transmissões. A cada passo que
damos, a oralidade persiste. Utilizamos mais a palavra que a escrita.
Ainda que notemos um predomínio da escrita no encaminhamento
de novas formas do saber, isso não quer dizer que a oralidade deixa
de ter sua relevância. O processo de transição da transmissão oral
para a transmissão escrita foi lento e difícil. Para os foliões, não
existe a hipótese deles mesmos escreverem todos os passos da Folia
de Reis, como agem, como cantam, o processo é totalmente oral. Os
instrumentos ajudam nesta inalidade.
O comportamento dos foliões com suas vestes e adornos, são
indissociáveis da linguagem, pois deriva da realidade sob a forma de
seus símbolos gestuais e verbais. Mesmo que transcrevamos para o
papel todos os passos dos foliões bem como as partituras das músicas,
devemos enfatizar que somente a tradição oral pode perpetuar a
maneira de interpretação, da entonação fonética nas músicas da Folia
de Reis. “A linguagem audiovisual tende a concentrar a elaboração
total das imagens nos cérebros” (Leroi-Gourhan, 1990, p. 213).
A linguagem, através da oralidade, tem a função de obter e
exprimir sentidos. A comunicação, a transmissão de signiicados,
dependem também da interpretação do outro, ela não é somente um
processo imitativo, senão não seria arte.

A comunicação não consiste na transmissão de signii-


cados. Os sentidos não são transmissíveis, não são trans-
feríveis. Somente as mensagens são transmissíveis, e os
sentidos não estão na mensagem, estão nos que usam as
mensagens. (Berlo, 1997, p. 173)
51

A comunicação oral é diferente da linguagem. O poeta articula


a linguagem, e não a comunicação oral.
Para captarmos as prerrogativas da cultura oral e sua
posterior compreensão, devemos entender que a oralidade nasceu
provavelmente, primeiro que qualquer outro modo de comunicação.
Os gestos também eram acompanhados por sons, e por isso, a
oralidade foi e será sempre importante para nós.
A Densidade do Próprio
na Folia de Reis

A densidade do próprio é o si mesmo, é o que é importante


e a consciência conclama para isto. Conclamar é clamar junto.
Este clamor é de dentro para dentro na Folia de Reis, e o que
mantém esta manifestação é a cura, o cuidado. O clamor da cura
é o mais essencial.
Quando o Reiseiro diz que tem prazer em construir
instrumentos, isto dá prazer, tem todo outro aspecto de se sentir parte
de um todo, e isto não é cobrança. O Reiseiro não faz o instrumento
achando que se não izer irá acontecer algo ruim.
O dia da Folia é o dia em que o Reiseiro tem mais presente a
densidade própria do seu relacionamento com o real. Então, conclama
para clamar junto. Nada é como uma expressão de prazer que ele
possa apresentar. O folião é íntegro na hora de tocar, é ele mesmo, e
a cultura é com ele.

O clamor se faz contra toda espera e mesmo contra toda


vontade. Por outro lado, o clamor, sem dúvida, não pro-
vém de um outro que é e está no mundo junto comigo.
O clamor provém de mim e, no entanto, por sobre mim.
(Heidegger, 1998, p. 61)
54

Se o Reiseiro não sentir que a fé provém dele, ele não institui o


sagrado. Em uma época do ano, existe um espaço sagrado, o percurso
sagrado. Durante todo o ano, ele faz o mesmo percurso, mas no dia
da Folia, não é mais diferença. O espaço se torna diferencial.
O conhecimento dos Reiseiros para poder tomar corpo e ser,
necessita de produção de conhecimentos. Devemos perceber a Folia
de um modo singular. Não podemos chegar lá com um sistema
imposto para depois analisá-los. O conhecimento que nós podemos
constituir não é o conhecimento deles. Esta é a densidade do próprio
da manifestação. Para que possamos produzir conhecimento, não
podemos acreditar que o que os Reiseiros disseram passe por cima
das interpretações.

A presença sempre existe de fato. Ela não é um projetar-


se solto no ar, mas, na medida em que o estar-lançado se
determina como o fato desse ente que ele é, ela sempre já
está e permanece entregue à responsabilidade da existên-
cia. (Heidegger, 1998, p. 62)

À medida que a Folia está lançada, ela se determina como o


fato desse ente que ele é, a presença já está e permanece entregue à
responsabilidade da sua própria existência. O que é essencial na Folia
é a sua densidade, a sua concretude.
O clamor da Folia é o clamor da presença se manifestando
com a existência. Se a Folia de Reis vier a desaparecer, pode ser um
sinal de falta de vontade de viver, pois não existirá mais clamor nem
necessidade. O que a faz permanecer é a sua densidade. O vigor e a
dinâmica que a Folia tem deve tê-lo por sua suiciência.
Percebi que minha presença em algumas Folias tinha sido mais
que o ente, tinha sido uma forma especial de presença, o Dasein, o
ser-aí, o estar-aí. “Este ser-aí é uma modalidade de presença que
não é nunca indiferença, é sempre diferença” (Heidegger, 1998).
55

Foi uma felicidade ver a presença da diferença, ser presenteado


com a diferença e presentear com a diferença. Este ato foi um modo
de relacionamento constituído pelo reconhecimento da diferença.
Não pelo “amar o próximo como a si mesmo”, mas amar o próximo
como o próximo. Este foi um momento de respeito à diferença, ou
de presentiicação da singularidade.
O que vai deinir uma manifestação cultural é o que está se
passando ali. O caminho é a presença. Ser-aí é tudo. É tudo que é
capaz de constituir-se presença, ou seja, o que tem possibilidade
de atingir uma discussão existencial. Os homens, a Folia de Reis,
além de serem, eles existem, eles adquirem articulações suicientes
para instaurar mundo. O que diferencia o homem é a linguagem,
é a densidade do próprio. O homem existe através da linguagem.
“A elaboração concreta de uma estrutura ontológica necessita da
linguagem, porque o ser habita a linguagem” (idem, ibidem). Do
ponto de vista ontológico, o ser é o mais distante, porque nós vivemos
numa relação com as coisas, nós vivemos num racionamento do real,
e isto dá a impressão de que nós somos sempre entes.
Uma interpretação ôntico-ontológica é a trama das ações; a
ilosoia é um questionamento do real, e a música já está na trama
das ações, o nosso questionamento é: como funciona a música na
Folia de Reis?
A trama não é o que permanece, porque a Folia se apresenta em
um ano de um jeito, no outro ano de outro, mas o que permanece é
ontológico, e é o que é essencial. As tramas da história vão encobrindo
o real. A Folia de Reis é um acionamento do real, mas tem sob ela
uma dimensão ontológica, que está neste gesto, na música, que é a
melhor articulação possível de ontologia, porque ela não se deixa
encobrir com a representação, ela é e se apresenta. O ontológico se
dá singularmente, ele não pode se dar por conceito genérico, então,
a Folia de Reis acontecida naquele ano, naquela hora, ela é de uma
56

maneira, ela muda, mas permanece algo, e o que permanece é o que faz
com que ela prossiga; se isto morrer, morre a Folia. Ela não é alguma
coisa que está ausente da sua presença, ela é a sua presença do modo
como a presença se apresenta. É justamente este aspecto que dará a
dinâmica, e é a própria cultura que propõe isto.
A arte constitui mundo, ela não imita. A Folia de Reis é
constituição de um mundo; mas a Folia é a representação da trajetória
dos três Reis Magos, porém, a partir do momento que ela se faz e se
apresenta em Correntina, ela se ritualiza, mas ganha também uma
densidade do próprio.
O mundo não seria o mesmo se não tivesse o Reisado em
nossas cidades, aquilo que constitui mundo, o que é mundo no sentido
heideggeriano? Alguma coisa que se difere da physis, a physis é aquilo
que se dá por si mesmo. Nasce um rio, é physis, o que chamamos de rio
é mundo. O mundo são sempre estes investimentos de transformação.
Os integrantes da Folia tentam fazer permanentemente não mais a si
próprios como indivíduos, mas o próprio evento. Ao fazer permanente
o evento, eles fazem simbolicamente ou alegoricamente, anunciando
outro, eles fazem iguras importantes, rememoráveis e memoráveis
naquele acontecimento.
Eles se lembram, e cada um deles pretende se tornar imortal
naquilo. Os foliões tentam constituir obra. É uma obra de registro
oral, parecida com a obra do aedo grego, porque ele saía cantando,
até que um dia começaram a anotar. A Folia de Reis não precisa disso
para subsistir, ela pode vir a renascer algum dia, mas não quer dizer
que necessite disso.
A música dos Reis é sempre uma performance única. A música
não pode ser reproduzida, ela produz e, produzindo, ela produz o real,
o mundo. A música é essencial na Folia de Reis porque ela provoca
a possibilidade do Dasein, da densidade do próprio.
Conclusão

A essência da Folia de Reis, o que faz dela vigor é a densidade


do próprio, de sua propriedade. É a essência mesma do homem
na sua atualização, no ato de trazer à tona a Folia de Reis, de
reapresentá-la.
Densidade signiica compacto ou algo cujas partes estão unidas
e não apresentam intervalos entre si. Já próprio remete a algo de
feições especiais. Essas deinições evidenciam a união dos foliões.
Todas as partes, quer dizer, todos os atos e ações dos foliões estão
compactados, todos os foliões assumem feições especiais, mesmo que
apenas sazonalmente, durante a realização da folia. A música articula
os atos, os intervalos a partir do momento que ela narra e mobiliza
os acontecimentos que vão se desencadeando para o próprio, para
a feição especial que cada Reiseiro deposita na reapresentação da
Folia. É através da música que existe a possibilidade da densidade do
próprio se instaurar, pois ela é o Ser. O que está articulando na Folia
é o espaço poético trazido pela música. Ela é uma forma de saber
muito especial, como concepção de mundo, como compreensão do
outro. O folião compreende a história e faz dela parte da sua vida pela
58

música, pois ela consolida a manifestação e a reverte em algo de uma


forma memorável naquele acontecimento. A música então tem este
papel de consolidar a memória.
A Folia articula a si própria, mantendo-se presente em sua
totalidade. O que dá unidade ao Reisado para esta articulação é a
música. E a unidade do Reiseiro é ele mesmo enquanto Ser. Enquanto
o folião trabalha fora do período da Folia, planta, colhe, ou viaja para
trabalhar, ele está representando, ele é representação no seu dia a dia.
O folião cumpre realmente seu papel social quando ele é na Folia. O
período de Reis é a única possibilidade de o folião exercer o seu ser.
Ele faz parte e nasceu com este papel; com isto, ele persevera no que
ele é. A persistência em uma determinada manifestação cultural é
justamente este ser que persevera. A mutação varia com a dinâmica
da cultura. É pela diferença que se chega à identidade. O próprio
acontecimento é a diferença, é a densidade do próprio. A concretude
é a inserção do folião naquele contexto.
A música promove a possibilidade de diferença. As respostas
estão nas músicas que os Reiseiros aprendem desde a infância com
seus familiares ou seus pais. A música representa a história de vida
de cada ser instituído naquela cultura.
Se partirmos da grande pergunta “o que é música?”, a tradição
diz que “é a arte de combinar os sons”. Pois para os Reiseiros, a
música é mais que isso, ela é a mola propulsora que dá alegria e vida
à sua manifestação. Compreender a densidade de uma música que
foi feita para determinada manifestação cultural, sem que se esteja
inserido nesta mesma cultura, impõe uma atitude do pesquisador de
“cura”, no sentido heideggeriano, tanto para si próprio como para a
manifestação que está sendo estudada. Se o pesquisador priorizar o
Dasein, a cura e a densidade do próprio em cada cultura que ele for
estudar, o resultado poderá parecer mais cristalino. A presença da
59

Folia se revigora e, enquanto a Folia existir, é a sua própria densidade


que a manterá.
O intuito de buscar algumas respostas para determinados
acontecimentos na cultura popular pode levar a deturpações; a
resposta está na música porque ela não se deixa encobrir. A palavra
música surgiu pelo mito. Música em grego quer dizer a arte da musa,
a arte representa a ação, o desempenho, e a Musa é ilha de Zeus e
Mnemósine. O cantador da Folia de Reis precisa da memória, da
mesma forma que o aedo dela precisava.
O tempo, o mito, a memória e o sentido carregam suas
características na Folia de Reis. O tempo demarca o espaço e
demonstra o ser através da história; o mito é ritualizado pelo seu poder
nas realizações de fé e de cura que a Folia carrega. O mito traz em
seu âmago os valores e a crença da cultura local. O mito, por ser uma
primeira possibilidade narrativa, já possui uma dimensão poética. A
dimensão poética na Folia de Reis está demarcada na vigência dela
mesma; vigência do mito, do tempo, do sentido, do símbolo e da
música. É pela força direcionada pelo mito que a cultura se mostra e
se renova; a memória é a mais bela de todas, pois é através dela que a
cultura se mantém irme para continuar o que os foliões aprenderam
quando eram crianças ou até mesmo adultos.
A memória carrega a sabedoria da oralidade, que está sujeita à
dinâmica da cultura. Querer salvar determinada manifestação cultural
pode ser um processo perigoso, pois não se pode salvar algo que não
esteja preparado para continuar ou que pelo processo natural da
dinâmica da cultura irá se perder no meio do caminho. A memória
é por ela, a memória da cultura vive pelo vigor que a manifestação se
reapresenta. O sentido produz o mundo da Folia de Reis. O sentido
faz provocar os desvelamentos do tempo, do mito e da memória, pois
ele constitui o mundo e, sendo constituidor de mundo, carrega na
60

música dos Reiseiros a possibilidade do Dasein. Esta possibilidade


pertence aos Reiseiros.
A Folia de Reis carrega sem dúvida o palco do tempo, do mito,
da memória e do sentido. Pertence somente a ela constituir o vigor e
poder se reapresentar todos os anos, sazonalmente, por vários anos
seguidos. A densidade do próprio na Folia de Reis está demonstrada
por ela mesma. A cura, no sentido heideggeriano, promove todo o
cuidado necessário de uma comunidade em preservar seus valores.
A densidade é apenas uma consequência do vigor com que a Folia
de Reis se reapresenta. Negar uma densidade perante determinadas
manifestações culturais é negar a si mesmo.
Reapresentar um caminho que foi percorrido há dois mil
anos para encontrar o menino Jesus é um ato próprio da Folia de
Reis. Próprio é o que carregamos conosco, não pode deixar de ser;
a densidade carrega por ela mesma toda a força e todo o vigor da
alma. A densidade do próprio na Folia de Reis está demarcada pela
música, pela fé e pela crença.
A densidade carrega uma memória que também é própria e
imprópria porque possibilita a multiplicidade dos modos de ser da
presença. É uma memória do consciente para o si e por si mesmo.
A Folia neste aspecto, se temporaliza e se deixa caminhar por ela
mesma, por seu vigor. O por si mesmo é o próprio, o para si mesmo
é a densidade.
Os mitos que circundam determinadas culturas permanecem
nelas enquanto a densidade do próprio permanecer presente no
tempo. Os ritos são consequência desta densidade. Juntamente com
os ritos, os símbolos aparecem inerentes a eles. A Folia de Reis vigora
por sua densidade, pelo seu ser, que é o Reiseiro. Este, enquanto Ser,
mantém a Folia participando com, por e para ela. Cada cultura é
particular, cada cultura possui sua dinâmica, cada indivíduo é único.
61

Partindo destes princípios, percebemos também o próprio; a essência


deste próprio ou da música na Folia de Reis não tem encobrimento,
ela é real.
Desvelar a densidade do próprio na Folia de Reis é encontrar
a diferença, é encontrar no acontecimento sua identidade, seu fio
condutor. A densidade do próprio está presente no dia da Folia de
Reis, pois é neste dia que o folião deposita sua fé, é neste dia que o
real está se reapresentando, tornando-se próprio por sua densidade.
O relacionamento que o folião tem com o real neste dia o torna não o
lavrador de todos os dias do ano, mas sim ele mesmo junto com a cultura.
A concretude com que a manifestação acontece faz a Folia vigorar.
Qualquer cultura permanecerá enquanto houver o real,
enquanto houver o próprio. No caso da Folia de Reis, a música é a
articuladora desta densidade. A música não encobre o real, pois este
se apresenta por ela. Todo o percurso dos três Reis Magos é contado
através dela, bem como os agradecimentos e as louvações. Permanecer
na Folia é concreto, é o próprio do folião; ser na Folia é a densidade;
ser-aí na Folia é a densidade do próprio na própria cultura.
A Folia de Reis se mostra por ela mesma, ela continua na
temporalidade, a Folia se faz acontecer na presença dos foliões e
da comunidade que mantêm em suas casas de receberem a Folia.
Preservar um espaço de singularidade é o modo como os Reiseiros
estão no mundo. O Reiseiro enquanto ser é único, só há uma
maneira de estar no mundo: ser ele. A descoberta étnica pode ser
depredatória dependendo da ação externa. Mas a cultura ica feliz
em se perceber na sua identidade, na sua diferença. Muitas vezes
não querem expandir nada, querem apenas preservar e se expressar
da maneira que eles são enquanto ser. Muitas vezes o ideal de quem
está fora da cultura não é a realidade para eles. Não é a linearidade,
não é a sucessividade com que a Folia de Rei acontece, é a densidade
do próprio, é o fato de conviver com tantas possibilidades de cultura
e todas serem tomadas como únicas. É admitir a convivência com o
outro, não é entender o caminho, ele já está lá. Algo sairá por este
caminho e algumas coisas icarão.
Se esta manifestação perdurará ainda por muitos anos, não
sabemos, e tampouco podemos prever. Mas ela persistirá no tempo
enquanto existir na Folia de Reis a densidade do seu próprio.
Bibliografia

ABBAGNANO, N. “Cultura”, In: Dicionário de Filosoia. São Paulo:


Martins Fontes, 1998.
ALMEIDA, R. Música Folclórica e Música Popular. Vol. 22. Porto
Alegre: Comissão Gaúcha de Folclore, 1958.
_________. “Folclore”, In: Cadernos de Folclore nº3. Rio de Janeiro:
Comp. de Def. do Folclore Brasileiro, 1976.
_________. Música Folclórica e Música Popular. Vol. 22. Comissão
Gaúcha de Folclore: Porto Alegre, 1958.
ARANTES, A. A. O Que é Cultura Popular. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1995.
ARAÚJO, A. M. Folclore Nacional. Vol. III. São Pulo: Ed.
Melhoramentos, 1967.
ARETZ, I. “Qué es la Etnomusica”, In: Cuadernos INIDEF. Caracas:
Instituto Interamericano de Etnomusicologia y Folclore, 1977.
BERLO, D.K. O Processo da Comunicação. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
BOLETIM 1, Comissão Goiana de Folclore, Ano 1, nº 1, dez,
Goiânia, 1977.
BORGES, J. L. La Rosa de Paracelso y Tigres Azules. Madri: Ed.
SWAN, 1986.
64

BRANDÃO, C. R. “A Folia de Reis de Mossâmedes”, In: Cadernos


de Folclore, nº 20. Rio de Janeiro: Comp. de Def. do Folclore
Brasileiro, 1977.
BRANDÃO, C. R. O que é Folclore?. Ed. Brasiliense, 1993.
CADERNOS DE FOLCLORE: “Folias de Reis – História e Tradição
em Uberaba”, Arquivo Público de Uberaba, Ano 1, nº 1, jan., 1993.
CASCUDO, L. C. Dicionário d Folclore Brasileiro. Belo Horizonte –
Rio de Janeiro: Ed. Itatiaia, 1993.
CASTRO, M. A. O Acontecer Poético. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
CASTRO, Z. M. & COUTO, A. P. “Folias de Reis”, In: Cadernos
de Folclore, nº 16. Rio de Janeiro: Comp. de Def. do Folclore
Brasileiro, 1977.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio
de Janeiro: Ed. José Olympio.
CLIFFORD, J. A Experiência Etnográica: antropologia e literatura
no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998.
CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1982.
ELIADE, M. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
_________. Mito e Realidade. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
_________. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
FERNANDES, F. O Folclore em Questão. São Paulo: Ed. Hucitec, 1989.
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 1989.
GULLAR, F. Vanguarda e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro:
Ed. Civilização Brasileira, 1969.
65

HAVELOCK, E. A. A Musa Aprende a Escrever. Lisboa: Gradiva, 1996.


_________. A Revolução da Escrita na Grécia. São Paulo: Ed. Paz e
Terra, 1994.
_________. Prefácio a Platão. São Paulo: Papirus, 1996.
HEIDEGGER, M. “A Coisa”, In: Mitologia I: Mistério e Surgimento
do Mundo, Brasília: UnB, 1995, pp.121-131
_________. A Origem da Obra de Arte. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989.
_________. “O Caminho do Campo”, In: A Morada do Homem, Revista
Vozes, p. 326.
_________. “Por que Ficamos na Província?”, In: A Morada do
Homem, Revista Vozes, p. 324.
_________. Ser e Tempo, Parte 1 e 2. Petrópolis: Ed. Vozes, 1998.
JARDIM, A. A Mosca e o Vidro. Rio de Janeiro, julho, 1997.
_________. Electra: Mito e Tragédia.
_________. Música: vigência do pensar poético. Tese de Doutorado,
UFRJ, 1997.
_________. Pássaros não Fazem Música Formigas não Fazem Política.
JOURDAIN, R. Música, Cérebro e Êxtase. Rio de janeiro: Objetiva, 1998.
LEÃO, E. C. Aprendendo a Pensar, Vol. I. Petrópolis: Ed. Vozes, 1991,
pp.11-50.
_________. Aprendendo a Pensar, Vol. II. Petrópolis: Ed. Vozes,
1991, pp. 40-43.
LEROI-GOURHAN, A. O Gesto e a Palavra (1 - Técnica e Linguagem).
Lisboa: Edições 70, 1990.
_________. O Gesto e a Palavra (2- Mémória e Ritmos) Lisboa:
Edições 70, 1990.
LIMA, R. T. ABC de Folclore. São Paulo: Ricordi,1958.
66

MAIAKÓVSKI, V. Poemas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992.


MERRIAM, A. The Antropology of Music, Northwestern
University Press, 1964.
MIRANDA, A. F. As Festas Religiosas, não publicado, Goiânia,
1996, 35pp.
_________. Tradicionalismo e Modernização, Goiânia: Ed. UCG, 2000.
PESSANHA, J. A. M. Mitologia. São Paulo: Victor Civita Ed., 1976.
REVISTA: Folclórica. Instituto Goiano do Folclore, Goiânia, Ano
I – nº 1, ago-out, 1972.
RIBEIRO, D. “Sobre o Óbvio”, In: Encontros com a Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, nº 1, jul. 1978.
SADIE, S. In: Dicionário Grove de Música. Rio de Janeiro: Zahar
Editora, 1994.
SHIBLES, W. Wittgenstein, Linguagem e Filosofia. São Paulo:
Ed. Cultrix, 1974.
SOUZA, J. G. Características da Música Folclórica Brasileira,
In: Cadernos de Folclore nº 9. Rio de Janeiro: Ed. Comp. de Defesa
do Folclore Brasileiro, 1969.
TORRANO, J. O Sentido de Zeus. São Paulo: Roswitha Kempf
Ed., 1988.
_________. Teogonia A Origem dos Deuses. Iluminuras Proj. e Prod.
São Paulo: Editoriais, 1992.
VALLE, F.R. Elementos de Folk-Lore Musical Brasileiro. São Paulo:
Comp. Ed. Nacional, 1936.
Os textos conferem com os originais, sob responsabilidade
integral da autora, inclusive a revisão.

ESTA PUBLICAçÃO FOI ELABORADA PELA


EDITORA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
E IMRPESSA NA GRÁFICA KELPS

Rua 19, 100 St. Mal. Rondon. Goiânia, Goiás. CEP. 74.560-460
Fone (62) 3211-1616 – Fax (62) 3211-1075
site: www.kelps.com.br | email: kelps@kelps.com.br

Você também pode gostar