Você está na página 1de 102

CAOS

TERRORISMO POÉTICO &


OUT ROS CRI MES E XEMP LARES
©
CONRAD EDITORA DO BRASIL LTDA.
DIREÇÃO
André Forastieri
Cristiane Monti
Rogério de Campos
GERENTE DE PRO D U TO
André Martins

CONRAD LIVROS
DIRETOR EDITORIAL
Rogério de Campos
COORD EN A DO RA EDITORIAL
Priscila Ursula dos Santos
ED ITO R DE TEXTO
Ricardo Liberal
ASSISTENTE EDITORIAL
Arthur Dantas
ED ITO R D E ARTE
Johnny Freak
C / A / O \ S
TERRORISMO POÉTICO E OUTROS CRIMES EXEMPLARES

H A K I M B E Y

V-
CAPA: Johnny Freak
FOTO Dl' CAPA: Daryl Benson (AGB Photo)
1'KADUÇÀO: Patrícia Decia & Renato Resende
PRODUÇÃO GRÁFICA: Ed Wilson
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: Alessandra Vieira
i

D ados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


__________ (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)__________
Bey, I lakim
Caos : terrorismo poético e outros crimes exem plares /
I lakim Bey ; [iraduçito Patricia Decia, Renato Resende]. —São
Paulo : Conrad Kditora do Brasil, 2003.

Título original: Chaos


ISBN 85-87193-93-7

1. Anarquismo I. Título.

03-1052 CDD-320.57
índices para caUllogo sistemático:

1.Anarquismo ontológlco : Clfcncia política


320.57

CONRAD LIVROS
Rua Simão Dias da Fonseca, 93 Aclimação
São Paulo - SP 01539-020
Tel: 11 3346.6088 Fax: 11 3346.6078
e-mail: livros@conradediu >ra.com.br
site: www.conradeditora.com.br,
S U M A R I O

CAOS: OS PANFLETOS DO
ANARQUISMO ONTOLÓGICO.....................9
• caos • 11 • terrorismo poético (tp) • 13 • amor louco (al) • 15 • crianças
selvagens *17 «paganismo • 19 • arte sabotagem (as) *21 • os assassinos
• 23 • pirotecnia • 25 • mitos do caos • 27 • pornografia • 31 • crime • 33
• feitiçaria • 35 • publicidade • 37

COMUNICADOS DA ASSOCIAÇÃO
PARA A ANARQUIA ONTOLÓGICA....... . 39
• com unicado I • 41 • com unicado II • 45 • com unicado III • 47
• com unicado IV • 49 • comunicado V • 51 • comunicado VI *55
• comunicado VII • 59 • comunicado VIII • 63 • comunicado IX • 65
• comunicado X • 69 • comunicado XI • 73 • comunicado especial do dia
das bruxas • 77 • comunicado especial • 81 • anarquia do pós-anarquismo
• 83 • coroa negra & rosa negra • 87* instruções para KaliYuga • 93 • contra
a reprodução da morte • 97 • sonora denúncia do surrealismo • 101
• por um congresso de religiões estranhas • 103 • terra oca • 107 • Nietzche
& os dervixes • 109 • boicote à cultura policial!!! *113
C A O S : OS P A N F L E T O S D O
ANARQUISMO ONTOLÓGICO

V-
(Dedicado a U stad M ahm ud Ali Abd al-Khabir)
C A O S

O CAOS N U N C A M ORREU. Bloco intacto & primordial, único


monstro digno de adoração, inerte & espontâneo, mais ultravioleta
do que qualquer mitologia (como as sombras anteriores à Babilônia),
a original & indiferenciada unidade-do-ser ainda resplandece,
imperturbável como as flâmulas negras frenética & perpetuamente
embriagadas dos Assassinos1.
O caos é anterior a todos os princípios de ordem & entropia, não é ne
um deus nem um a larva, seus desejos primais englobam & definem toda coreo­
grafia possível, todos éteres ôí flogísticos sem sentido algum: suas máscaras, como
nuvens, são cristalizações da sua própria ausência de rosto.
Tudo na natureza, inclusive a consciência, é perfeitam ente real: não há
absolutam ente nada com o que se preocupar. As correntes da Lei não foram ape­
nas quebradas, elas nunca existiram. Dem ônios nunca vigiaram as estrelas, o Im ­
pério nunca com eçou, Eros nunca deixou a barba crescer.
Não. O uça, foi isso o que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe idéias
de bem & mal, infundiram -lhe a desconfiança de seu próprio corpo & a vergonha
pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor
molecular, hipnotizaram -no com a falta de atenção, entediaram-no com a civiliza­
ção Sc todas as suas emoções mesquinhas.
N ão há transformação, revolução, luta, caminho. Você já é o m onarca
de sua própria pele - sua liberdade inviolável espera ser com pleta apenas pelo
am or de outros monarcas: um a política de sonho, urgente com o o azul do céu.
Para lograr abrir mão de todos os acertos & hesitações ilusórias da história, é
preciso evocar a economia de um a Idade da Pedra lendária - xamãs & não padres,

1 O au to r refere-se aos Hassasin ou Hassisin (“consum idores de haxixe”), m em bros de um a seita islâmica secreta
que d u ran te as Cruzadas em boscavam líderes cristãos. Eles agiam supostam ente sob a influência do haxixe, daí seu
nome. Ver página 23. (N .T.)
CAOS

bardo» ÍV na. 1 m iiIioicn, i tuiorcs & não policiais, coletores paleoliticamente pregui­
çosos, (m1 1 n ■. . nino •..!!ip.nc*, i|iic ficam nus para simbolizar algo ou se pintam como
l>.lv„ihi\, i*i|iiílilii.u|iix .sobre a onda da presença explícita, o agora-sempre atemporal.
Ap,rnir.< do caos lançam olhares ardentes a qualquer coisa ou pessoa ca­
pa/ «I. suportar ser testem unha de sua condição, sua febre por lux et voluptas.
I siou desperto apenas no que am o & desejo até o lim ite do terror - todo o resto
i! apenas mobília coberta, anestesia diária, m erda para cérebros, tédio sub-réptil
de regimes totalitários, censura banal & dor desnecessária.
Avatares do caos agem com o espiões, sabotadores, crim inosos do am or
louco, nem generosos nem egoístas, acessíveis com o crianças, semelhantes a bár­
baros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualm ente perturbados, an­
jos terríveis, espelhos para a contem plação, olhos que lem bram flores, piratas de
Iodos os signos & sentidos.
Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do
listado, da Escola & da Empresa, todos os m onolitos paranóicos. Arrancados da
tribo pela nostalgia selvagem, escavamos em busca de m undos perdidos, bombas
imaginárias.
A últim a proeza possível ó aquela que define a própria percepção, um
invisível cordAo dc ouro que nos conecta: dança ilegal pelos corredores do trib u ­
nal. Se eu losse beijar você aqui, cham ariam isso de um ato de terrorism o - então
vamos levai n o s s o s revólveres paia .1 1 .1 1 11. 1 tk acordar .1 cidade à m eia-noite como
b;rndidos bêbados celebrando a mensagem do sabor do caos com um tiroteio.

XII
TERRORISMO POÉTICO (TP)

DANÇAR DE FORM A BIZARRA durante a noite inteira nos cai­


xas eletrônicos dos bancos. Apresentações pirotécnicas não autoriza­
das. L and-art2, peças de argila que sugerem estranhos artefatos
alienígenas espalhados em parques estaduais. Arrombe apartamen­
tos, mas, em vez de roubar, deixe objetos Poético-Terroristas. Seqües­
tre alguém & o faça feliz.
Escolha alguém ao acaso & o convença de que é herdeiro de uma enor­
me, irfütit & im pressionante fortuna - digamos, 5 mil quilôm etros quadrados na
Antártica, um velho elefante de circo, um orfanato em B om baim ou uma coleção
de manuscritos de alquimia. Mais tarde, essa pessoa perceberá que por alguns
m om entos acreditou em algo extraordinário &C talvez se sinta m otivada a procurar
um m odo mais interessante de existência.
C oloque placas de bronze com emorativas nos lugares (públicos ou pri­
vados) onde você teve um a revelação ou viveu um a experiência sexual particular­
m ente inesquecível etc.
Fique nu para simbolizar algo.
O rganize um a greve em sua escola ou trabalho em protesto por eles não
satisfazerem a sua necessidade de indolência & beleza espiritual.
A arte do grafite em prestou algum a graça aos horríveis vagões de m etrô
& sóbrios m onum entos públicos - a arte-T P tam bém pode ser criada para lugares
públicos: poemas rabiscados nos lavabos dos tribunais, pequenos fetiches abando­
nados em parques & restaurantes, arte-xerox sob o lim pador de pára-brisas de
carros estacionados, slogans escritos com letras gigantes nas paredes de playgrounds,
cartas anônim as enviadas a destinatários previam ente eleitos ou escolhidos ao aca­
so (fraude postal), transmissões de rádio piratas, cim ento fresco...

2 C orrente que pretende utilizar os espaços naturais com o m aterial de criação artística. Para isso, fazem coisas
com o em pilhar pedras, traçar imensas linhas de gesso em desertos, cavar tum bas etc. (N .E.)
CAOS

A i>■.ti,,t<>do |ui111u i>ou o choque-estético produzido p elo T P tem de ser


um i i nu m, iii | mI........ tu is i.tu forte quanto o terror —profunda repugnância, tesão
.1 mi il, i<-111■11 Mi|iri*.i u ioso, súbitas revelações intuitivas, angústia dadaísta —não
iiii|iuitii m o I I’ t< dirigido a apenas um a ou várias pessoas, se é “assinado” ou
.iiinnimn se ii.io m udar a vida de alguém (além da do artista), ele falhou.
T P 6 um ato num Teatro da Crueldade sem palco, sem fileiras de poltro­
nas, sem ingressos ou paredes. Para que funcione, o T P deve afastar-se de forma
categórica de todas as estruturas tradicionais para o consum o de arte (galerias,
publicações, mídia). M esmo as táticas da guerrilha Situacionista do teatro de rua
talvez já tenham se tornado conhecidas & previsíveis demais.
U m a prim orosa sedução praticada não apenas em busca da satisfação
m útua, mas tam bém com o um ato consciente de um a vida deliberadam ente bela
- talvez isso seja o T P em seu mais alto grau. O s Terroristas-Poéticos com portam -
se com o um trapaceiro totalm ente confiante cujo objetivo não é dinheiro, mas
T R A N SFO R M A Ç Ã O .
N ão faça T P para outros artistas, faça-o para aquelas pessoas que não
perceberão (pelo menos não imediatam ente) que aquilo que você fez é arte. Evite
categorias artísticas reconhecíveis, evite politicagem, não argum ente, não seja sen-
tim cntal. Seja brutal, assuma riscos, vandalize apenas o que deve ser destruído,
faça algo de que as crianças se lembrarão por toda a vida - mas não seja espontâ­
neo a menos que a musa do T P tenha se apossado de você.
Vista-se de forma intencional. Deixe um nom e falso. Torne-se um a lenda.
O m elhor T P é contra a lei, mas não seja pego. Arte como crime; crime com o arte.
»

AMOR LOUCO ( AL)

O A M O R L O U C O NÃO É uma social-democracia, não é um par­


lamentarismo a dois. As atas de suas reuniões secretas lidam com
significados amplos, mas precisos demais para a prosa. Nem isso, nem
aquilo - seu Livro de Emblemas treme em suas mãos.
N aturalm ente, ele caga para os professores & para a polícia, mas tam ­
bém despreza os liberais & os ideólogos - não é um quarto lim po & bem ilum ina­
do. U m topógrafo em busteiro projetou seus corredores & seus parques abando­
nados, criou sua decoração de emboscada feita de tons pretos lustrosos & vermelhos
maníacos membranosos.
C ada um de nós possui m etade do m apa — com o dois potentados
renascentistas, definim os um a nova cultura com a nossa excomungada união de
corpos, fusão de líquidos — as fronteiras imaginárias da nossa cidade-Estado se
borram com o nosso suor.
O anarquism o ontológico nunca retornou de sua últim a viagem de pes­
ca. C o nquanto ninguém nos denuncie para o FBI, o CAOS não se im porta nem
um pouco com o futuro da civilização. O am or louco procria apenas por acidente
- seu objetivo principal é engolir a Galáxia. U m a conspiração de transm utação.
Seu único interesse pela Família está na possibilidade do incesto (“A m ­
plie o seu Eu!”, “Toda pessoa é um Faraó!”) —Ó , mais sincero dos leitores, seme­
lhante meu, m eu irm ão/irm ã! - & na masturbação de um a criança ele encontra,
oculta (com o um a caixa-surpresa japonesa com flores de papel), a imagem do
esfarelamento do Estado.
As palavras pertencem àqueles que as usam apenas até que alguém as
roube de volta. O s surrealistas se desgraçaram ao vender o am or louco para a
m áquina de sombras do Abstracionismo - a única coisa que procuraram em sua
inconsciência foi o poder sobre os outros, & nisso foram seguidores de Sade (que
queria “liberdade” apenas para que hom ens brancos & adultos pudessem estripar
mulheres & crianças).
CAOS

ü amor louco í saturado dc sua própria estética, enche-se até as bordas


com a trajetória dc seus próprios gestos, vive pelo relógio dos anjos, não é um desti­
no adequada para comissários ou lojistas. Seu ego evapora-se com a mutabilidade
do desejo, seu espírito com unal murcha em contato com o egoísmo da obsessão.
O am or louco pede um a sexualidade incom um , da mesma form a que a
feitiçaria exige um a consciência incom um . O m undo anglo-saxão pós-protestan-
te canaliza toda sua sensualidade reprim ida para a publicidade & divide-se entre
m ultidões conflitantes: caretas histéricos versus clones promíscuos & ex-ex-soltei-
ros. O AL não quer se alistar no exército de ninguém , não tom a partido na G uerra
dos Sexos, entedia-se com os argum entos a favor de iguais oportunidades de tra­
balho (na verdade, recusa-se a trabalhar para ganhar a vida), não reclama, não
explica, nunca vota & nunca paga impostos.
O AL gostaria de ver todo bastardo (“filho natural”) chegar ao fim de
sua gestação & nascer - o AL vive de aparelhos antientrópicos —o AL adora ser
m olestado por crianças - o AL é melhor que preces, m elhor que sensimilla* - o AL
leva para onde for suas próprias palmeiras & sua própria lua. O AL adm ira o
tropicalism o, a sabotagem, a break dance, Layla & M ajnun4, o cheiro de pólvora
& de esperma.
O AL é sem pre ilegal, não im porta se disfarçado de casamento ou de um
grupo de escoteiros - sempre em briagado do vinho de suas próprias secreções ou
do fum o de suas virtudes polimorfas. N ão é a deterioração dos sentidos, mas sim
sua apoteose - não é o resultado da liberdade, mas seu pré-requisito. L ux et voluptas.

3T ipo de m aconha feita a partir dos brotos e das flores da cannabis e que apresenta 7,5 % d e T H C , seu com ponente
psicoativo. (N .E.)
4 Lendários am antes do m undo árabe. Ver o livro de Nizam i Laila & M ajnun - A Clássica História de Am or da
Literatura Persa, Jorge Z ahar Editor. (N .E.)

XVI
C R I A N Ç A S SELVAGENS

O IN SO N DÁ V EL RASTRO DE LUZ da lua cheia - meados de


maio, meia-noite em algum Estado americano que começa com “I”,
tão bidimensional que mal se pode dizer que possui uma geografia —
o luar é tão urgente & tangível que é preciso fechar as cortinas para se
poder pensar em palavras.
N em pense em escrever para as Crianças Selvagens. Elas pensam em im a­
gens - para elas a prosa é um código ainda não inteiram ente digerido & sedim en­
tado, assim com o, para nós, ela nunca será totalm ente confiável.
Você pode escrever sobre elas, para que outros, que tenham perdido o
cordão de prata, possam nos com preender. O u escrever por elas, fazendo da
H IS T Ó R IA &c do EM BLEM A um processo de sedução de suas próprias m e­
m órias paleolíticas, um a bárbara tentação para a liberdade (o caos n a com preen­
são do p róprio CA O S).
Para essa espécie do outro m undo, ou “terceiro sexo”, les enfants sauvages,
ilusão & Imaginação ainda são indissociáveis. JO G O licencioso: de um a só vez &
ao mesmo tem po a fonte de nossa Arte & de todo o mais precioso erotismo da raça.
Abraçar a desordem com o fonte de estilo & com o armazém de volúpia,
um fu n d a m e n to de nossa civilização alienígena & o cu lta, nossa estética
conspiratória, nossa espionagem lunática - essa é a ação (reconheçamos) de um
certo tipo de artista ou de um a criança de 10 ou 13 anos.
As crianças, denunciadas por seus próprios sentidos purificados, pela
brilhante feitiçaria de um prazer belo, espelham algo de fatal & obsceno na pró­
pria natureza da realidade: anarquistas ontológicos naturais, anjos do caos - seus
gestos & cheiros em anam para seu entorno um a selva de presença, um a floresta de
presságios repleta de cobras, armas ninja, tartarugas, xam anism o futurístico, con­
fusão incrível, urina, fantasmas, luz do sol, ejaculações, ninhos &Covos de pássaros
- agressão cheia de alegria contra os crescentes gemidos daquelas Regiões Inferio­
CAOS

res incapazes il<' en^lolui (imio cpifanias destruidoras quanto a criação com o farsa
frágil, m as afiada', o bastante para cortar o luar.
No entanto, os habitantes dessas insignificantes províncias inferiores
acreditam que realmente controlam os destinos das Crianças Selvagens —& aqui
embaixo, tais crenças viciadas m oldam , de fato, a m aior parte da substância da
casualidade.
O s únicos que realmente desejam compartilhar o destino travesso dos
fugitivos selvagens ou crianças guerrilheiras (em vez de tentar controlá-lo), os
únicos que podem entender que am ar & libertar são o mesmo ato —são, em sua
maioria, artistas, anarquistas, pervertidos, heréticos, um bando à parte (distantes
um do outro & do m undo), ou capazes de se encontrar apenas com o as crianças
selvagens se encontram , trocando olhares secretos à mesa de jantar enquanto os
adultos tagarelam por detrás de suas máscaras.
Jovens demais para helicópteros de guerra - fracassados na escola, dan ­
çarinos de break, poetas púberes de vilarejos à beira da estrada - um m ilhão de
centelhas caindo em cascata dos rojões de R im baud & Mogli —frágeis terroristas
cujas b om bas espalhafatosas são am or polim o rfo & preciosos fragm entos
com pactados de cultura popular - franco-atiradores punks sonhando em furar as
orelhas, ciclistas animistas deslizando no crepúsculo cor de estanho pelas ruas
com flores acidentais nos bairros mais miseráveis — mergulhadores ciganos nus
fora de tem porada, ladrões sorridentes, de olhar enviesado, de totens poderosos,
troco pequeno & navalhas de pantera —estão em todos os lugares, nós os vemos —
publicam os esta oferta para trocar a corrupção do nosso próprio lux et gaudium
por sua perfeita & gentil imundície.
Com preenda: nossa realização, nossa libertação depende da deles - não
porque im itam os a Família, estes “avaros do am or” que m antêm reféns para um
futuro banal, ou o Estado, que nos ensina a afundar num horizonte de eventos de
enfadonha “utilidade” - não - mas porque nós & eles, os selvagens, somos o espe­
lho um do outro, unidos & lim itados por aquele cordão de prata que define as
fronteiras entre a sensualidade, a transgressão & a revelação.
N ós tem os os mesmos inimigos & nossos meios para o escape triunfal
tam bém são os mesmos: um jogo delirante & obsessivo, energizado pelo brilho
espectral dos lobos &C seus filhotes.

XVIII
P A G A N I S M O

CONSTELAÇÕES PO R O N D E dirigir o barco da alma.


“Se o m uçulm ano entendesse o Islã, ele se tornaria um adorador de ído­
los.” - M ahm ud Shabestari.
Eleguá5, o porteiro horroroso com um gancho na cabeça &C conchas no
lugar dos olhos, charutos negros de m acum ba & copo de rum - como G anesh6, o
deus dos Inícios, garoto gordo com cabeça de elefante m ontado n um rato.
O órgão que com preende as atrofias numinosas com os sentidos. Aque­
les que não podem sentir o barakaJ não conhecem as carícias do m undo.
H erm es Poim andres8 ensinou a animação de ídolos, a perm anência m á­
gica dos espíritos nos ícones —mas aqueles que não podem realizar esse ritual em
si mesmos & em todo o tecido palpável do ser material vão herdar apenas m elan­
colia, dejetos, decadência.
O corpo pagão torna-se um a C orte de Anjos que experim enta este lugar
—este arvoredo —com o o paraíso (“Se existe um paraíso, com certeza é aquil” —
inscrição no pórtico de um jardim m ongol9).
Mas o anarquism o ontológico é paleolítico demais para a escatologia -
as coisas são reais, feitiçaria funciona, os espíritos dos arbustos são unos com a
Imaginação, a m orte é um vago desconforto - o enredo das Metamorfoses de Ovídio
- um épico de m utabilidade. O cenário mitológico pessoal.
O paganism o ainda não inventou leis - apenas virtudes. N en h u m
m aneirism o de padres, n en h u m a teologia, ou metafísica, ou m oral - apenas

5 N om e que em C uba se dá a Exu, um dos quatro orixás guerreiros da religião iorubá. (N.T.)
6 U m dos deuses mais cultuados do panteão hinduísta, invocado no início de qualquer atividade com o aquele que
retira obstáculos. (N.T.)
7 C onceito sufista, que significa benção, graça, a força vital de toda criação. (N.T.)
8 O u H . Trismegisto, mitológico fundador do hermetismo, doutrina ligada ao gnosticismo, no Egito, no século I. (N.T.)
9 Im pério m uçulm ano na índia (1526-1857), fortem ente influenciado pela estética persa. O mais conhecido im ­
perador m ongol foi A kbar (1542-1605). (N.T.)
CAOS

um xam anisino universal no qual ninguém obtém real h u m an id ad e sem um a


revelação.
C om ida dinheiro sexo sono sol areia & sensimilla —am or verdade paz
liberdade 6i justiça. Beleza. Dionísio, o garoto bêbado num a pantera - rançoso
suor adolescente - Pã, meio hom em , meio cabra, avança pesadam ente na terra
sólida até a cintura com o se fosse o mar, com a pele suja de m usgo & líquen - Eros
se m ultiplica em um a dúzia de pastorais rapazes nus de um a fazenda no Iowa,
com pés sujos de barro & musgo dos lagos em suas coxas.
Raven, o trapaceiro d o potlatch10, às vezes um garoto, às vezes um a velha,
um pássaro que roubou a lua, agulhas de pinho flutuando num lago, totens com
cabeças de Faísca & Fumaça, coral de corvos com olhos prateados dançando sobre
um a pilha de lenha - com o Semar, o corcunda albino & herm afrodita, fantoche-
som bra patrono da revolução javanesa.
Iem anjá, estrela azul deusa-do-m ar & padroeira dos homossexuais -
com o Tara, aspecto azul-acinzentado de K ali11, colar de crânids, dançando no
lingam n enrijecido de Shiva13, lam bendo nuvens de m onções com sua língua
com pridíssim a - com o Loro K idul, deusa-do-m ar verde-jade javanesa que co n ­
fere o poder da invulnerabilidade aos sultãos por meio de intercurso tântrico
em torres & cavernas mágicas.
Sob um ponto de vista, o anarquism o ontológico é extrem am ente nu,
despido de todas as qualidades & possessões, pobre com o o próprio CAOS - mas,
sob outro ponto de vista, ele pulula de barroquismos com o os templos de foda de
K atm andu ou um livro de símbolos alquímicos - ele se derram a em seu divã
com endo loukoum14 & divertidas idéias heréticas, um a mão perdida dentro de
suas calças largas.
O casco de seus navios piratas é laqueado de preto, as velas triangulares são
vermelhas, as flâmulas são negras, ostentando o emblema de uma am pulheta alada.
U m m ar do sul da C hina dentro da m ente, próxim o a um litoral selva­
gem coberto por palmeiras, ruínas de templos de ouro construídos para deuses
desconhecidos & bestiais, ilha após ilha, a brisa com o um a seda amarela & úm ida
sobre a pele nua, navegação por estrelas panteístas, hierologia sobre hierologia, luz
sobre luz contra a escuridão reluzente & caótica.

10 Festival de inverno celebrado pelos índios da costa noroeste dos EUA, com distribuição e troca de presentes, e
eventuafclissipação dos bens do anfitrião. (N.T.)
11 N o hinduísm o, a form a da M ãe D ivina em seu aspecto dissoluto c destruidor. (N.T.)
12 O mais im portante dos sím bolos de Shiva, que tem a forma de um falo, e representa o aspecto impessoal de
Deus. (N .T.)
13 N om e d a Realidade Suprem a para o shaivismo da Caxemira; ou, no hinduísm o, um dos três deuses principais
(ao lado de V ishnu e Brahm a), representando Deus em sua form a destruidora. (N.T.)
14 D oce turco. (N .E.)

XX
ARTE- SABOTAGEM (AS)

A ARTE-SABOTAGEM ASPIRA ser perfeitamente exemplar, mas,


ao mesmo tempo, retém um elemento de opacidade - não propagan­
da, mas choque estético - aterradoramente direta, mas ainda assim
sutilmente transversal - ação-como-metáforâ.
A A rte-Sabotagem é o lado negro do Terrorismo Poético - criação-atra-
vés-da-destruição mas não pode servir a nenhum partido ou niilismo, nem
mesmo à própria arte. Assim com o a destruição da ilusão eleva a consciência, a
dem olição da praga estética adoça o ar no m undo do discurso, do O utro. A Arte-
Sabotagem serve apenas à percepção, atenção, consciência.
A AS vai além da paranóia, além da desconstrução —a crítica definitiva —
ataque físico à arte ofensiva - cruzada estética. O m enor indício de um egotismo
m esquinho ou mesmo de um gosto pessoal estraga sua pureza & vicia sua força. A
AS não pode nunca procurar o poder - apenas renunciar a ele.
O bras de arte individuais (mesmo as piores) são am plam ente irrelevantes
- a AS procura causar danos às instituições que usam a arte para dim inuir a cons­
ciência & lucrar com a ilusão. Este ou aquele poeta ou pin to r não pode ser conde­
nado por falta de visão - mas Idéias malignas podem ser atacadas através dos
artefatos que eles criam. O M U Z A K 15 foi feito para hipnotizar & controlar - seu
m ecanism o pode ser destruído.
Q ueim a pública de livros - porque caipiras reacionários & funcionários
das alfândegas devem monopolizar essa arma? Livros sobre crianças possuídas pelo
dem ônio; a lista de best sellers do The N ew York Times; tratados feministas contra
a pornografia; livros escolares (especialmente de Estudos Sociais, Educação M oral
e Cívica & Saúde); pilhas do N ew York Post, Village Voice & outros jornais de
supermercado; um a compilação de editoras cristãs; alguns romances populares -
um a atm osfera festiva, garrafas de vinho &C baseados num a tarde clara de outono.

15 Sistema de distribuição de música am biente. (N.T.)


CAOS

Jogar dinheiro |>aia o alio no meio da bolsa de valores seria um Terrorismo Poéti­
co bastante la/o.ivel mas destruir o dinheiro seria um a excelente Arte-Sabota­
gem. Intel ierii mmia transmissão de T V & colocar no ar alguns m inutos de arte
iuccndiilria caótica seria um grande feito de T P - mas sim plesm ente explodir a
torre de transmissão seria um ato de Arte-Sabotagem perfeitam ente adequado.
Se certas galerias & museus merecem, de vez em quando, receber um a
tijolada pela janela - não a destruição, mas sim um a sacudida na sua com placên­
cia então o que dizer dos BANCOS? Galerias transform am beleza em m ercado­
ria, mas bancos transm utam a Imaginação em fezes & dívida. O m undo não
ganharia um pouco mais de beleza com cada banco que tremesse... ou caísse? Mas
como? A A rte-Sabotagem provavelmente deve ficar longe da política (é tão chata!)
- mas não dos bancos.
N ão faça piquetes - vandalize. Não proteste —desfigure. Q uando feiúra,
design pobre & desperdícios estúpidos estiverem sendo impostos a você, transforme-
se num luddita16, jogue o sapato no mecanismo, retalie. Esmaguemos símbolos do
Império, mas não o faça em nom e de nada que não seja a busca do coração pela graça.

16 M em bro dos grupos de trabalhadores ingleses que, no início da revolução industrial, révoltaram-se contra o
desem prego causado pelo novo m aquinário têxtil, procurando destruí-lo. (N.T.)

XXII
ASSA2 2I NOS

ATRAVESSANDO O BRILHO do deserto & ganhando as m onta­


nhas policromadas, nuas & ocre, violeta pardo & terracota, no alto
de um vale dissecado azul, os viajantes encontram um oásis artificial,
um castelo fortificado em estilo sarraceno, guardando um jardim es­
condido.
C om o convidados de Hassan-i Sabbah, o Velho da M ontanha, eles so­
bem os degraus cortados na pedra que levam até o castelo. Aqui, o D ia da Ressur­
reição Vèio '& passou - os do lado de dentro vivem fora do Tem po profano, que é
m antido a distância com lanças & veneno.
Por trás de torres crenuladas & de longas janelas talhadas, estudiosos &
fedains velam em estreitas celas monolíticas. Mapas do céu, astrolábios, destiladores
& retortas, pilhas de livros abertos sob a luz da m anhã - um a cimitarra descoberta.
C ada um dos que entram no reino do Imã-de-seu-próprio-ser transfor-
ma-se num sultão de revelação inversa, num m onarca da anulação & da apostasia.
N u m aposento central, entrecortado pela luz & adornado com um a tapeçaria de
arabescos, eles se recostam em almofadas & fum am longos narguilés de haxixe
perfum ado com ópio & âmbar.
Para eles, a hierarquia do ser com pactou-se num ponto adim ensional do
real - as correntes da Lei foram quebradas - eles term inam seu jejum com vinho.
Para eles, o exterior de todas as coisas é o interior delas, sua face verdadeira revela-
se diretam ente. Mas os portões do jardim estão camuflados com terrorism o, espe­
lhos, rum ores de assassinatos, trompe loeil, lendas.
Romãs, vários tipos de amoras, caquis, a melancolia erótica dos cipres­
tes, rosas de Shiraz de delicadas pétalas cor-de-rosa, jardineiras com aloé & benjoim
de Meca, os caules rígidos das tulipas otom anas, tapetes abertos com o jardins
artificiais sobre gramados verdadeiros - um pavilhão inteiro decorado com um
mosaico de caligramas — um salgueiro, um riacho repleto de agriões do brejo -
CAOS

uma fonte sol) i risuis geométricos - o escândalo metafísico que são as odaliscas
banhando sc, o s criados negros brincando de esconde-esconde, m olhados, por
entre .1 folhagem "água, verdura, belos rostos”.
Ao cair da noite, Hassan-i Sabbah, com o um lobo civilizado de turban­
te, debruça-se 110 parapeito sobre o jardim & contem pla o céu, estudando peque­
nos asterismos de heresia no ar fresco & sem rum o do deserto. É verdade que
nesse mito alguns discípulos aspirantes podem receber o com ando de arremessa­
rem-se do alto das muralhas para a escuridão - mas tam bém é verdade que alguns
deles vão aprender a voar com o feiticeiros.
O em blem a de Alam ut persiste em nossas mentes, um a mandala ou cír­
culo mágico perdido na história, mas entalhado ou impresso na consciência. O
Velho passa rapidam ente, com o um fantasma, por dentro das tendas dos reis &
dos aposentos dos teólogos, atravessa todas as trancas & passa por todas as senti­
nelas que usam técnicas ninja/m uçulm anas já esquecidas, deixando pesadelos,
estiletes sobre os travesseiros, subornos poderosos.
O perfum e de sua propaganda embebe-se nos sonhos crim inosos do
anarquism o ontológico, a heráldica de nossas obsessões exibe as lustrosas bandei­
ras negras dos Assassinos... todos pretendentes ao trono de um Egito Imaginário,
um contínuo espaço/luz oculto consum ido por liberdades ainda não imaginadas.

XXIV
P I R O T E C N I A

INVENTADA PELOS CHINESES, mas nunca desenvolvida para a


guerra - um bom exemplo de Terrorismo Poético - uma arma usada
para disparar choques estéticos em vez de matar - os chineses odia­
vam a guerra & costumavam entrar em luto quando os exércitos se
levantavam - a pólvora era mais útil para espantar demônios malig­
nos, deleitar crianças, saturar o ar com uma bruma de bravura &
com o cheiro de perigo.
Rojões de terceira categoria da província de Kwantung, foguetes, borbo­
letas, M -8 0 ’s, girassóis, “U m a Floresta na Primavera” - clima de revolução - acen­
da seu cigarro com a espoleta cham uscada de um rojão negro - imagine o ar
repleto de lêmures &C íncubos, espíritos opressores, policiais fantasmas.
C ham e um garoto com um bastão em brasa ou um fósforo aceso - após-
tolo-xam ã de enredos de verão de pólvora - estilhace a noite escura com pitadas &
cascatas de estrelas infladas, arsênico & antim ônio, sódio & calomelano, um co­
risco de magnésio & um silvo estridente de picrato de potassa.
M ande brasa (negro-de-fum o & salitre) a ferro & fogo - ataque o banco
ou a horrível igreja do seu bairro com velas romanas & foguetes púrpura-doura-
dos, de sopetão & anonim am ente (talvez lançados da carroceria de um a picape
em m ovim ento).
C onstrua estruturas entrelaçadas com vigas de metal nos tetos dos edifí­
cios de com panhias de seguro ou escolas - serpente cundalini ou dragão do Caos
verde-bário enrolado contra um fundo de amarelo-sódio - N ão Pise em M im -
ou m onstros copulando & arremessando bolas de fogo na casa de velhos batistas.
Escultura de nuvens, escultura de fumaça & bandeiras = Arte do Ar.
O bras de Terra. Fontes = A rte da Água. E fogos de artifício. N ão se apresente
patrocinado pelos Rockefeller & com a autorização da polícia para um a audiência
de am antes da cultura. Evanescentes bom bas-m entais incendiárias, mandalas as­
CAOS

sustadoras inllam.imlo-se cm csfumaçadas noites suburbanas, alienígenas nuvens


verdes da prsie em ocional detonadas por raios vajrau azuis de orgônio18, fogos de
artifício a laser.
Com etas que explodem com odor de haxixe & carvão radioativo —de­
mônios do pântano & fogos-fátuos assombrando os parques públicos - falso fogo-
de-santelmo piscando sobre a arquitetura da burguesia - correntes de pequenos
fogos de artifício caindo no chão da Assembléia Legislativa - salam andras-
elem entais15 atacando conhecidos reformadores da moral.
Gom a-laca flamejante, açúcar do leite, estrôncio, piche, água viscosa,
fogo chinês - por alguns m om entos o ar é puro ozônio - um a nuvem opala de
pungente fumaça de dragão/fênix se espalhando. Por um instante, o Im pério cai,
seus príncipes & governadores fogem para sua podridão satânica &C nebulosa,
penachos de enxofre dos elfos atiradores de chamas queim ando suas bundas cha­
muscadas, enquanto eles recuam. O Assassino-criança, psique de fogo, m antém o
poder por um a breve noite escaldante da estrela Sírio.

17 N o budism o e no hinduísm o, um raio ou arm a m ítica, geralm ente controlado pelo deus Indra. (N .E.)
18 N a teoria desenvolvida por W illiam Reich, orgônio é a energia vital, a energia que é a.fonte da vida. (N .E.)
19 D esde a A ntigüidade, a salam andra tem sido reconhecida com o a personificação d o fogo, um anim al que
sobreviveria ileso no fogo. (N .E.)

XXVI
MI TOS DO CAOS

Caos invisível (po-te-kitea)


Indomável, intransponível
Caos da escuridão absoluta
Intocado & intocável
canto M aori

O Caos em poleira-se num a m ontanha do céu: um pássaro gigantesco, com o um a


asa-délta amarela ou um a bola de fogo vermelha, com seis pés & quatro asas —ele
não tem rosto, mas dança & canta.
O u o Caos é um cão negro de pêlos com pridos, cego & surdo, sem as
cinco vísceras.
Caos, o Abismo, é anterior a tudo, depois vem a Terra/Gaia, & então o
Desejo/Eros. Desses três surgiram dois pares - Érebo & N oite ancestral, Éter &
Luz diurna.

Nem Ser, nem Não-ser


Nem ar, nem terra, nem espaço:
o que estava escondido? onde? sob a proteção de quem ?
O que era a água, profunda, insondãvel?
Nem morte, nem imortalidade, dia ou noite...
mas o U N O soprado por si mesmo, sem vento.
N ada mais. Escuridão envolvendo escuridão,
água não-manifesta.

O UNO , escondido pelo vazio,


sentiu a geração do calor, tornou-se ser
na form a do Desejo, primeira semente da Mente...
CAOS

O que estava por cima e o que, por baixo?


/{xistiam semeadores, existiam poderes:
energia embaixo, impulso em cima.
Mas quem pode ter certeza ?

Rig Veda

Tiam at, o O ceano de Caos, expele lentam ente de seu ventre Lama &
Saliva, os H orizontes, o C éu & Sabedoria líquida. Esses rebentos crescem baru­
lhentos &C pretensiosos —ela pensa em destruí-los.
Mas M arduk, o deus da guerra babilônico, levanta-se em rebelião contra
a Velha Bruxa & seus M onstros do Caos, totens infernais - o Verme, a Ogre
Fêmea, o G rande Leão, o Cachorro Louco, o H om em Escorpião, a Tem pestade
Trovejante - dragões vestindo suas glórias com o deuses - & a própria T iam at é
um a serpente m arinha gigante.
M arduk a acusa de fazer os filhos se rebelarem contra os pais - ela ama
N eblina & N uvens, princípios da desordem. M arduk será o prim eiro a reinar, a
inventar o governo. D urante a batalha, ele trucida Tiam at & com seu corpo enco­
m enda o universo material. Inaugura o im pério da Babilônia - & então, com os
m iúdos & as tripas sangrentas do filho incestuoso de Tiam at, ele cria a raça hum a­
na para servir aos deuses para sempre - & aos altos sacerdotes & reis sacramentados.
Zeus Pai & os deuses do O lim po travam guerra contra M ãe Gaia & os
Titãs, esses partidários do Caos, das velhas formas de caça & coleta, das longas
andanças sem destino, da androginia & da licenciosidade das bestas.

ffl.
lV /W W W
000
| r ^

A m on-Ra (Ser) senta-se sozinho no O ceano do Caos prim ordial da M A ­


D R E m asturbando-se &C criando todo os outros deuses - mas o Caos tam bém se
manifesta com o o dragão Apophis a quem Ra deve destruir (juntam ente com seu
estado de glória, sua som bra &C sua mágica) para que o faraó possa governar com
segurança - um ritual de vitória recriado diariam ente nos templos Imperiais para
confundir os inimigos do Estado, da O rdem cósmica.
Caos é H u n Tun, Im perador do C entro. Um dia, o M ar do Sul, Im pera­
dor Shu, & o M ar do N orte, Im perador H u (shu hu = relâmpago), visitaram H un
Tun, que sem pre os recebeu bem. Desejando retribuir sua gentileza, eles disseram:
“Todos os seres têm sete orifícios para ver, ouvir, comer, cagar etc. - mas o pobre
velho H u n T un não tem nenhum ! Vamos perfurar alguns nele!” E assim fizeram -
um orifício por dia —até que, no sétimo dia, o Caos morreu.

XXVIII
H akim Hcy

M as... o Caos tam bém é um enorm e ovo de galinha. D entro dele, P’an-
Ku nasce & cresce por 18 mil anos - finalm ente o ovo se abre, divide-se entre céu
& terra, yin & yang. Então P’an-Ku transforma-se na coluna que sustenta o u ni­
verso - ou talvez se torna o universo (respiração » vento, olhos » sol & lua, sangue
& fluídos » rios & mares, cabelo & cílios » estrelas & planetas, esperma » pérolas,
m edula » jade, suas pulgas » seres hum anos etc.).
O u, ainda, transforma-se no hom em /m onstro, Im perador Amarelo. O u
transforma-se em Lao-tsé, profeta do T ao. N a verdade, o pobre velho H u n Tun é
o próprio Tao.
“A música da natureza não existe além das coisas. As várias aberturas,
gaitas, flautas, todos os seres vivos, juntos, form am a natureza. O ‘Eu’ não pode
produzir coisas & as coisas não podem produzir o ‘Eu’, que existe por si mesmo.
As coisas são o que são espontaneam ente, não por causa de alguma outra coisa.
Tudo é natural sem saber por que o é. As 10 mil coisas têm 10 mil estados diferen­
tes, todos em m ovim ento com o se existisse um Senhor Verdadeiro para movê-las
- mas, se procuram os por evidências desse Senhor, não conseguimos encontrá-
las.” (Kuo Hsiang).
C ada consciência ilum inada é um “im perador”, cuja única form a de
reinado é não fazer nada para não atrapalhar a espontaneidade da natureza, o Tao.
O “sábio” não é o próprio Caos, mas um dos seus servidores leais - um a das
pulgas de P ’an-K u, um pedaço da carne do filho m onstruoso de Tiam at. “C éu e
Terra”, diz Chuang-tsé, “nasceram no mesmo m om ento em que eu nasci, & eu &
as 10 mil coisas form am os um ser único”.
O A narquism o O ntológico tende a discordar apenas da total quietude
do taoísmo. Em nosso m undo, o Caos tem sido destituído por jovens deuses,
moralistas, falocratas, padres-banqueiros, senhores adequados para escravos. Se a
rebelião provar-se impossível, pelo menos algum tipo de guerra santa clandestina
deve ser iniciada. Q ue ela siga as bandeiras de guerra do dragão negro anarquista,
T iam at, H u n Tun.
O Caos nunca morreu.

XXIX
%

P O R N O G R A F I A

NA PÉRSIA EU VI que a poesia é feita para ser musicada & cantada


- por uma razão simples - porque funciona.
U m a com binação perfeita de imagem & m elodia coloca o público num
h a l (algo en tre u m estado de espírito em ocional/estético & u m transe de
supraconsciência), explosões de choro, impulsos de dança - um a m ensurável res­
posta física à arte. Para nós, a ligação entre poesia & corpo m orreu ju n to com a
época dos bardos - lemos sob a influência de um gás anestesiante cartesiano.
N o N orte da índia, mesmo a recitação não-musical provoca barulho &
m ovim ento, todo bom verso é aplaudido, “Bravo!”, com elegantes m ovim entos
de mãos, & rúpias são lançadas - enquanto nós ouvimos poesia com o um daque­
les cérebros de ficção científica em um pote de vidro - na m elhor das hipóteses,
um sorriso am arelo ou um a careta, vestígios dos rituais símios - o resto do corpo
longe, em algum outro planeta.
N o O riente, às vezes os poetas são presos —um a espécie de elogio, já que
sugere que o autor fez algo tão real quanto um roubo, um estupro ou um a revolu­
ção. Aqui, os poetas podem publicar qualquer coisa que quiserem —o que em si
mesmo é um a espécie de punição, um a prisão sem paredes, sem eco, sem existên­
cia palpável - reino de sombras do m undo impresso, ou do pensam ento abstrato
—um m undo sem risco ou eros.
A poesia está m orta novam ente - & mesmo que a m úm ia d o seu cadáver
possua ainda algumas de suas propriedades medicinais, a auto-ressurreição não é
um a delas.
Se os legisladores se recusam a considerar poemas com o crim es, então
alguém precisa com eter os crimes que funcionem com o poesia, o u textos que
possuam a ressonância do terrorismo. Reconectar a poesia ao corpo a qualquer
preço. N ão crimes contra o corpo, mas contra Idéias (& Idéias-dentro-das-coisas)
que sejam letais & asfixiantes. N ão libertinagem estúpida, mas crim es exempla­
res, estéticos, crimes por amor.
CAOS

Na Inglaterra, alguns livros pornográficos ainda estão banidos. A porno­


grafia produz um efeito físico mensurável em seus leitores. C om o propaganda, ela
às vezes m uda vidas por revelar desejos secretos.

Nossa cultura gera a maior parte de sua pornografia m otivada pelo ódio
ao corpo - mas, com o em certas obras orientais, a arte erótica em si mesma cria
um veículo elevado para o aprim oram ento do ser/consciência/glória. U m a espécie
de pornô tântrico ocidental poderia ajudar a galvanizar os cadáveres, fazê-los bri­
lhar com um a pitada de glam our do crime.
O s Estados Unidos oferecem liberdade de expressão porque todas as pala­
vras são consideradas igualmente insípidas. Apenas as imagens contam - os censores
am am cenas de m orte & mutilação, mas horrorizam-se diante de um a criança se
m asturbando - para eles, aparentemente, isso é um a invasão de seu fundam ento
existencial, sua identificação com o Império & de seus gestos mais sutis.
Sem dúvida, nem m esmo o pornô mais poético faria o èadáver sem rosto
reviver, dançar & cantar (como o pássaro do Caos chinês) - mas... imagine o
roteiro de um filme de três m inutos am bientado num a ilha m ítica povoada por
crianças fugitivas que m oram nas ruínas de antigos castelos ou em cabanas-totens
&C ninhos construídos com detritos —um a m istura de animação, efeitos especiais,
com putação gráfica & vídeo - editado de form a com pacta, com o um comercial
de fast-food...
... mas insólito & nu, penas & ossos, tendas abotoadas com cristais, ca­
chorros negros, sangue de pombos - vislumbres de membros cor de âm bar enrola­
dos em lençóis - rostos, cobertos por máscaras cheias de estrelas, beijando dobras
macias de pele - piratas andróginos, faces abandonadas de colombinas dorm indo
em altas flores brancas —piadas sujas de se mijar de tanto rir, lagartos de estimação
lam bendo leite derramado - pessoas nuas dançando break - banheiras vitorianas
com patos de borracha & pintos cor-de-rosa - Alice viajando no pó...
... p u n k reggae atonal para gamelão, sintetizadores, saxofones & baterias
—boogies elétricos cantados por um etéreo coro de crianças —antológicas canções
anarquistas, um m isto de Hafiz20 & Pancho Villa, Li Po21 & Bakunin, K abir22 &
Tzara - chame-o de “C H A O S - T he Rock V ideo”.
N ão... provavelmente é só um sonho. M uito caro para produzir &, além disso,
quem o assistiria? N ão as crianças a quem ele gostaria de seduzir. A T V pirata é
um a fantasia fútil; o rock,-outra mera mercadoria - esqueça o gesamtkunstwerk20
m alandro, então. Inunde um playground com obscenos folhetos inflam atórios -
propaganda pornô, excêntricos manuscritos clandestinos para libertar o Desejo
dos seus grilhões.

20 Até hoje, um dos mais queridos e lidos poetas místicos da Pérsia (1320-1389). (N.T.)
21 O u Li Pai, poeta chinês (701-762 a.C .). (N.T.)
22 Poeta santo cultuado tanto por m uçulm anos quanto por hinduístas, viveu em Benares (1440-1518). (N.T.)
23 Term o alem ão contem porâneo que, grosso m odo, im plica diferentes formas simultâneas de se apreciar algo,
especialm ente um a obra de arte com putacional ou um a instalação. (N.T.)

XXXII
C R I M E

A JUSTIÇA N ÃO P O D E ser obtida sob nenhum a Lei que seja -


uma ação que está de acordo com a natureza espontânea, uma ação
justa, não pode ser definida por dogmas. Os crimes defendidos nes­
tes panfletos não podem ser cometidos contra o “si mesmo” ou o
“outro”, mas apenas contra a mordaz cristalização de Idéias em estru­
turas de Tronos & Dominações venenosas.
O u seja, não crimes contra a natureza ou contra a humanidade, mas contra
a ordem legál. Mais cedo ou mais tarde, o descobrimento & a revelação do ser/nature-
za transformam um a pessoa num bandoleiro - como se ela visitasse outros mundos &,
ao retornar, descobrisse que foi declarada traidora, herege, um ser exilado.
A Lei espera até que você tropece num m odo de ser, um a alma diferente
do padrão de “carne apropriada para o consum o” aprovado pelo Sistema de Inspe­
ção Federal —&, assim que você começa a agir de acordo com a natureza, a Lei o
garroteia & o estrangula - portanto, não dê um a de m ártir abençoado &C liberal
da classe m édia - aceite o fato de que você é um crim inoso & esteja preparado
para agir com o tal.
Paradoxo: adotar o Caos não é escorregar para a entropia, mas emergir
para um a energia sem elhante à das estrelas, um espécime de graça instantânea -
um a organização orgânica espontânea com pletam ente diferente das pirâmides
sociais putrefatas dos sultãos, m uftis, cádis & carrascos,
Depois do Caos, vem o Eros - o princípio da ordem im plícito no vazio
do U no inqualificável. O am or é estrutura, sistema, o único código não contam i­
nado pela escravidão & pelo sono drogado. Precisamos nos tornar vigaristas &
persuasivos para proteger sua beleza espiritual num bisel de clandestinidade, num
secreto jardim de espionagem.
N ão apenas sobreviva, enquanto espera que a revolução de alguém ilu­
m ine as suas idéias, não se aliste no exército da anorexia ou bulim ia - aja com o se
CAOS

já fosse livre, i .ilculi is probabilidades, pule fora, lembre-se das regras de duelo -
Fume M aconh.i/( !oma G alinha/Tom e Chá. Todo hom em tem sua própria vinha
ôí sua figucirn {(Urde Seven Koran, N oble D rew Ali24) - carregue seu passaporte
m ouro com orgulho, não fique parado no meio do fogo cruzado, proteja-se - mas
arrisque-se, dance antes que fique calcificado.
O modelo social natural para o anarquism o ontológico é um a gangue de
crianças ou um bando de ladrões de banco. O dinheiro é um a m entira - esta
aventura deve ser possível sem ele - o resultado das pilhagens &C saques deve ser
gasto antes que se torne pó novamente. H oje é o D ia da Ressurreição - o dinheiro
gasto com a beleza será alquim icam ente transform ado num elixir. C om o o meu
tio M elvin dizia, melancias roubadas são mais doces.
O m undo já foi recriado segundo o desejo do coração - mas a civilização
é dona de todas as locações & da maioria das armas. Nossos anjos ferozes exigem
que invadamos a propriedade alheia, porque se manifestam apenas em solo proi­
bido. O Ladrão de Estrada. A ioga da clandestinidade, o asíalto relâmpago, o
desfrute do tesouro.

24 Líder religioso norte-am ericano, fundador do Templo da C iência Islâmica em 1913, em C hicago. (N .T )

XXXIV
F E I T I Ç A R I A

O U NIVERSO Q U E R BRINCAR. Aqueles que por ganância espi­


ritual se recusam a jogar & escolhem a pura contemplação negligen­
ciam sua humanidade - aqueles que evitam a brincadeira por causa
de uma angústia tola, aqueles que hesitam, desperdiçam sua oportu­
nidade de divindade - aqueles que fabricam para si máscaras cegas de
Idéias & vagam por aí à procura de uma prova para sua própria soli­
dez acabam vendo o m undo através dos olhos de um morto.
Feitiçaria: o cultivo sistemático de um a consciência aprim orada ou de
um a percepção incom um & sua aplicação no m undo das ações & objetos a fim de
se conseguir os resultados desejados.
O aum ento da am plitude da percepção gradualm ente bane os falsos eus,
nossos fantasmas cacofônicos - a “magia negra” da inveja &C da vingança volta-se
contra o autor porque o Desejo não pode ser forçado. Q uan d o o nosso conheci­
m ento da beleza harm oniza-se com o ludus naturae, a feitiçaria começa.
N ão, não se trata de entortar colheres ou fazer horóscopos, não é a “A u­
rora D ourada” nem um xam anism o de brincadeira, projeção astral ou um a Missa
Satânica - se você quer mistificação, procure as coisas reais, bancos, política, ciên­
cia social —não esta baboseira barata da M adam e Blavatsky.
A feitiçaria funciona criando ao redor de si um espaço físico/psíquico ou
aberturas para um espaço de expressão sem barreiras - a m etam orfose do lugar
cotidiano num a esfera angelical. Isso envolve a m anipulação de símbolos (que
tam bém são coisas) & de pessoas (que tam bém são simbólicas) - os arquétipos
fornecem um vocabulário para esse processo &, portanto, são tratados ao mesmo
tem po com o reais & irreais, com o as palavras. Ioga da Imagem.
O feiticeiro é um A utêntico Realista: o m undo é real —mas a consciência
tam bém o deve ser, já que seus efeitos são tão tangíveis. Um obtuso acha que até
m esm o o vinho não tem gosto, mas o feiticeiro pode se em briagar sim plesm ente
CAOS

olhando |>.u.i .1 A qualidade da percepção define o m undo do inebriam ento


mas, MiMrni.i Io & expandi-lo, para incluir os outros, exige um certo tipo de
atividade feitiçaria.
A feitiçaria não infringe nenhum a lei da natureza porque não existe
nenhum a Lei N atural, apenas a espontaneidade da natura naturans, oT ao. A fei­
tiçaria viola as leis que procuram deter seu fluxo - padres, reis, hierofantes, m ísti­
cos, cientistas & vendedores consideram a feitiçaria um a inim iga porque ela re­
presenta um a ameaça ao poder de suas charadas & à resistência de sua teia ilusória.
U m poem a pode agir com o um feitiço & vice-versa — mas a feitiçaria
recusa-se a ser um a m etáfora para um a m era literatura - ela insiste que os sím bo­
los devem provocar incidentes assim com o epifanias particulares. N ão é um a crí­
tica, mas um refazer. Ela rejeita toda escatologia & metafísica da remoção, tudo
que é apenas nostalgia turva & futurism o estridente, errí favor de um paroxismo
ou captura da presença.
Incenso & cristal, adaga & espada, cetro, túnicas, rum , charutos, velas,
ervas com o sonhos secos —o garoto virgem com o olhar fixo num pote de tinta —
vinho & haxixe, carne, iantras & gestos - rituais de prazer, o jardim de huris &
sagüis - o feiticeiro escala essas serpentes & escadas até o m om ento totalm ente
saturado por sua própria cor, em que m ontanhas são m ontanhas & árvores são
árvores, em que o corpo torna-se eternidade & o amado torna-se vastidão.
As táticas do anarquism o ontológico estão enraizadas nesta Arte secreta
—os objetivos do anarquism o ontológico aparecem no seu florescimento. O Caos
enfeitiça seus inim igos & recompensa seus devotos... este estranho panfleto am a­
relado, pseudoním ico & m anchado de pó, revela tudo... passe-o adiante por um
segundo de eternidade.

XXXVI
P U B L I C I D A D E

O Q U E ISTO D IZ a você não é prosa. Pode ser pendurado no qua­


dro de avisos, mas ainda está vivo & retorcendo-se. Não pretende
seduzi-lo, a não ser que você seja de extrema juventude & beleza
(anexe uma foto recente).
H akim Bey m ora num decadente hotel chinês onde os proprietários ba­
lançam a cabeça de um lado para o outro enquanto lêem os jornais & escutam
transmissões estridentes da Ó pera de Pequim. O ventilador de teto gira com o um
dervixe indolente - suor pinga sobre a página - o cafetã do poeta está encardido,
seus cinzeiros derram am cinzas no tapete —seus monólogos parecem desconexos
& levemente sinistros - por trás das janelas fechadas, o gueto desaparece entre
palmeiras, o ingênuo oceano azul, a filosofia do tropicalismo.
N um a estrada em algum lugar a leste de Baltimore, você passa por um trailer
Airstream, &C enxerga um a grande placa plantada na grama: LEITURAS ESPIRI­
TUAIS, com a imagem de uma rude mão negra sobre um fundo vermelho. Lá dentro,
você encontra livros sobre sonhos & numerologia, panfletos sobre vodu & macumba,
revistas de nudismo velhas & empoeiradas, um a pilha de Boys Life, tratados sobre
briga de galos... & este livro, Caos. Com o palavras ditas num sonho, portentosas,
evanescentes, transformando-se em perfumes, pássaros, cores, música esquecida.
Este livro se m antém a distância por um a certa impassibilidade em sua
superfície, quase que visível através de um vidro. Ele não abana o rabo & não
grunhe, mas m orde & estraga a mobília. Ele não tem um núm ero ISBN & não o
quer com o discípulo, mas pode seqüestrar seus filhos.
Este livro é nervoso com o o café ou a malária —ele cria, entre si & seus
leitores, um a rede de desertores & outsiders - mas é tão cara-de-pau & literal que
praticam ente se codifica —fum a a si próprio em estupor.
U m a máscara, um a autom itologia, um m apa sem nom e de lugar algum
— hirto com o um a p intura egípcia que, no entanto, logra acariciar o rosto de
CAOS

algulm iV, ilc icpcntc, cncontra-sè na rua, num corpo, envolvido em luz, andan­
do, iKordudo, i|Uiise satisfeito.

Nova York, I a de maio a 4 de julho de 1984

XXXVIII
COMUNICADOS DA ASSOCIAÇÃO
PARA A ANARQUIA ONTOLÓGICA
C O M U N I C A D O I
( P R I M A V E R A DE 1 9 8 6 )

I. Slogans & Motes para Pichar no Metrô & para Outros Propósitos

C O S M O P O L IT IS M O D E SE N R A IZA D O
T E R R O R IS M O P O É T IC O
(para rabiscar ou carim bar em outdoors publicitários:)
ESTE É O SEU V ER D A D EIR O D ESEJO
M A R X ISM O -ST IR N E R ISM O
E N TR E EM G REV E PELA IN D O L Ê N C IA & BELEZA ESPIRITUAL
C R IA N C IN H A S T Ê M PÉS L IN D O S
AS C O R R E N T E S DA LEI FORAM QUEBRADAS
PO R N O G R A FIA T Â N T R IC A
A R IST O C R A T ISM O RADICAL
G U ER R IL H A URBANA PARA A LIBERTAÇÃO DAS CRIANÇAS
XIITAS FA N Á TIC O S IM A G IN Á R IO S
B 0 L 0 ’B 0 L 0 25
S IO N IS M O GAY
(S O D O M A PARA O S SO D O M ITA S)
U TOPIAS PIRATAS
O CAOS N U N C A M O R R E U

Alguns desses slogans da Associação para a Anarquia O ntológica (AAO)


são “sinceros” - outros têm como objetivo despertar temores & apreensão pública -
mas não sabemos bem qual é qual. Nossos agradecimentos a Stalin, Anon, Bob

25 Espaço dc convivência libertária descrito na obra de mesmo nom e publicada no Brasil nos anos 1990 pela
Editora C orrecotia. (N .E.)
CAOS

Bl;u k, l*ii Mi in (.ii i .« ii nome ser mencionado, que reine a paz), F. Nietzsche,
I l.ml I «. II |i I*M c\' ii m.io A bujehad al-Salah do Templo Islâmico de Dagon.

II. Algumas Idéias Poético-Terroristas que ainda Continuam em Triste


Languidez no Reino da “Arte Conceituai”

1. E ntre na área dos caixas eletrônicos do C itibank ou do C hem bank num a hora
de m uito m ovim ento, cague no chão & vá embora.
2. Chicago, Maio de 1886: organize uma procissão “religiosa” para os “mártires” do
H aym arket26 - grandes faixas com retratos sentimentais coroados com flores & trans­
bordando de fitas & lantejoulas, carregadas por penitentes vestidos em trajes com
capuzes negros no estilo KKKatólico - escandalosos & efeminados acólitos de TV
borrifam a multidão com água benta & incenso —anarquistas com rostos emplastra-
dos de cinzas flagelam-se com pequenos relhos & chicotes - um “Papa” de túnica
negra abençoa minúsculos caixões simbólicos carregados reverentemente para o cemi­
tério por punks chorosos. Um espetáculo desse tipo deve ofender quase todo mundo.
3. Cole em lugares públicos um cartaz xerocado com a foto de um lindo garoto de
12 anos, nu &c se m asturbando, com o título bem à vista: A FACE D E D EUS.
4. Envie elaboradas & requintadas “bênçãos” mágicas pelo correio, anonim am en­
te, para as pessoas ou os grupos que você adm ira, por exemplo, por sua capacidade
política ou espiritual, por sua beleza física ou por seu sucesso no m undo do crime
etc. Siga o mesmo procedim ento descrito no item 5 a seguir, mas utilize uma
estética de bons votos, am or ou felicidade, o que for mais apropriado.
5. Rogue um a praga horrível contra um a instituição maligna, tal com o o New
York Post ou a empresa M U ZA K. Aqui, um a técnica adaptada dos feiticeiros da
Malásia: envie para a empresa um pacote com um a garrafa tam pada &Cselada com
cera rfegra. E dentro dela: insetos mortos, escorpiões, lagartos & coisas do tipo;
um saco com terra de cemitério (“gris-gris” na term inologia vodu), ju n to com

26Praça em Chicago onde ocorreu o grande confronto descrito no livro/! Bomba, de Frank Harris (C onrad Livros,
2003), entre polícia e operários que faziam unia dem onstração pela jornada de trabalho de o ito horas, em maio de
1886. É o evento que deu origem ao 1“ de M aio com o Dia dos Trabalhadores. (N .E.)

XLII
liaklm Iky

outras substâncias nocivas; um ovo perfurado por pregos & alfinetes de ferro; &
um pergam inho onde está desenhado um em blem a (veja página 78).

(Esse iantra ou veve invoca o D jim ' Negro, a som bra escura do Eu.
Detalhes com pletos podem ser obtidos na A A ().) I Jm bilhete explica que a bruxa­
ria é contra a instituição & não contra os indivíduos mas, .1 menos que a institui­
ção deixe de ser maligna, a praga (como um espelho) começará a infectar as depen­
dências com um destino terrível, um miasm a de negatividade. Prepare um
“com unicado” explicando a maldição &C atribuindo a sua autoria Soc iedade Poé­
tica Americana. Envie cópias para todos os empregados da instituição & para a
mídia. N a noite anterior à chegada dessas cartas, cole nas paredes da instituição
cópias do em blem a do D jim Negro em locais que sejam visíveis a todos os em pre­
gados quando eles chegarem ao trabalho pela manhã.

(Nossos agradecimentos novam ente a Abu Jehad &í a Sri A nam ananda —
o Castelão M ouro do Belvedere W eather Tower —& aos outros camaradas da zona
autônom a do Central Park & do Templo N úm ero 1 do Brooklyn.)

27Ser lendário m uçulm ano que pode tom ar qualquer forma hum ana ou anim al e influir na vida das pessoas. (N.T.)

XLIII
C O M U N I C A D O 2
O MEMORI AL BOLO
K A L L I K A K &c O C A O S
ASHRAM28: UMA PROPOSTA

ALIM ENTANDO UMA OBSESSÃO por trailers Airstream - aque­


les clássicos dirigíveis em miniatura sobre rodas - & também pela re­
gião de Pine Barrens em Nova Jersey, por suas infindáveis vastidões
desertas de riachos arenosos & pinheiros negros, brejos de groselhas
silvestres & cidades fantasmas, população em torno de catorze pessoas
por milha quadrada, estradas não pavimentadas onde samambaias cres­
cem sem controle, cabanas de pinho &Ccasas sobre rodas, enferrujadas
& isoladas, com carros enguiçados no quintal da frente.
terra dos míticos kallikaks —famílias da região estudadas pelos eugenistas
na década de 1920 para justificar a cam panha de esterilização dos pobres da área
rural. Alguns kallikaks fizeram bons casamentos, prosperaram & tornaram -se bur­
gueses, graças aos bons genes - outros, no entanto, nunca tiveram emprego de
verdade & viviam dos bosques - incesto, sodomia, deficiências mentais abundan­
tes - fotografias retocadas para fazê-los parecer absortos & morosos - descenden­
tes de índios vagabundos, mercenários de Hesse29, ladrões pés-de-chinelo, desertores
- degenerados lovecraftianos.

28 Uma com unidade ou instituição espiritual cm que disciplinas espirituais são praticadas; a residência de um santo
ou mestre espiritual (sânscrito). (N.T.)
29 M ercenários contratados pelo exército inglês durante a guerra de independência am ericana. (N. 1.)
CAOS

pens indo l>< in. o\ /•,/////•<//•! talvez tenham produzido alguns seguidores
do ( .iii'., |*i«•< iii ni. tln m ko radical, profetas do Trabalho-Zero. C om o outras
pais.i|',< ir. iiii im itihi.is (desertos, mares, pântanos), a região de Pine Barrens parece
e.st.ti im bnM i il< um poder erótico - que não é nem viril nem orgiástica, mas que
n.iiiMiútc uma desordem lânguida, quase um desmazelo da Natureza, com o se
aquele solo & aquela água fossem feitos de carne sensual, membranas, tecidos
esponjosos eréteis. Q uerem os acam par neste lugar, talvez num a cabana de pesca
& caça abandonada com um velho fogão a lenha & banheiro externo - ou em
decadentes cabanas de férias em alguma estrada secundária fora de uso - ou sim­
plesmente num lugar onde podem os estacionar dois ou três Airstreams escondi­
dos por detrás dos pinheiros & perto de um poço grande o suficiente para nadar.
Será que os kallikaks estavam por dentro de algo bom? Vamos descobrir,
em algum lugar, garotos sonham que extraterrestres virão resgatá-los de suas famílias,
talvez desintegrando seus pais com um tipo de raio alienígena. Então, bem... Trama de
Seqüestro do Pirata Espacial é Descoberta - “Alienígena” Desmascarado é Poeta H o­
mossexual Xiita Fanático - OVNIs avistados sobre Pine Barrens - “Garotos Perdidos
Deixarão a Terra”, afirma Hakim Bey, o Assim Chamado Profeta do Caos.
garotos fugitivos, bagunça & desordem, êxtase & indolência, nadar nus,
infância como insurreição permanente - coleções de sapos, lesmas, folhas - mijar à luz
da lua - 1 1 ,1 2 ,1 3 - crescidos o suficiente para tomar as rédeas da própria história da
mão dos pais, da escola, da previdência social, da T V - Venham viver conosco no Pine
Barrens - nós cultivaremos 11111 tipo local de beberagem para financiar nossa luxúria &
contemplação da alquimia do verão - & além disso não produziremos nada a não ser
artefatos de Terrorismo-Poético & recordações de nossos prazeres.
dar voltas sem destino na velha picape, pescar & coletar alimentos, dei­
tar na som bra lendo quadrinhos & com endo uvas - essa é a nossa Econom ia. A
realidade das coisas quando libertas da Lei, cada molécula um a orquídea, cada
átom o um a pérola para a consciência alerta - esse é nosso culto. O Airstream tem
tapetes persas em todas suas paredes, a grama está cheia de ervas satisfeitas.
a casa na árvore torna-se um a nave espacial na nudez de julho & à meia-
noite, sem i-aberta às estrelas, aquecida por um suor epicuriano, apressada & de­
pois tranqüilizada pela respiração dos pinheirais.
(Caro Diário de Bordo Bolo\ Você pediu um a utopia prática & possível
—aqui está ela, não apenas um a fantasia pós-holocausto, nada de castelos na lua
de Júpiter - um esquema que poderíamos adotar am anhã - a não ser pelo fato de
que todos os seus aspectos violam certas leis, revelam alguns dos tabus absolutos
da sociedade norte-am ericana, ameaçam a própria tram a social etc. etc. etc. Azar.
Esse é nosso desejo verdadeiro & para realizá-lo precisamos contem plar não ape­
nas um a vida de arte pura, mas tam bém o crime puro, a insurreição pura. Amém.)

(Nossos agradecimentos a G rim Reaper &C a outros mem bros do Templo


Si Fan da Divina Providência em prol de YALU, G A N O , SILA & suas idéias.)

XI.VI
C O M U N I C A D O 3
O TEMA HAYMARKET

“PRECISO APENAS M EN C IO N A R enpassantquz


existe um curioso ressurgimento da tradição de bagres
na popular série de filmes Godzilla, surgida após o
caos nuclear lançado sobre o Japão. Na verdade, os
■* detalhes simbólicos da evolução de Godzilla no cine­
ma de cultura pop são surpreendentemente paralelos
aos mais tradicionais & folclóricos temas japoneses &
chineses de combate a uma ambivalente criatura do
caos (alguns dos filmes, como Mothra, lembram dire­
tamente os antigos motivos do ovo/cabaça/casulo cós­
mico) que é geralmente domesticada, após o fracasso
da ordem civilizada, pela ação especial & indireta de
uma criança.” - Girardot, Myth & Meaning in Early
Taoism: The Theme o f Chaos (hun-tun).

Em algum antigo Templo da Ciência Islâmica (em Chicago ou Baltimore),


um amigo afirm ou ter visto um altar secreto no qual descansavam pares com bina­
dos de seis revólveres (em caixas de veludo) & um fez negro. Supostam ente, a
iniciação ao círculo mais secreto requer do neófito m ouro o assassinato de pelo
m enos um policial. III E quanto a Louis Lingg30? Foi ele um precursor do
A narquism o Ontológico? “Eu o desprezo” —não podem os deixar de adm irar tais

J0Um dos hom ens acusados de lançar a bom ba que m atou vários policiais duran te a manifestação em H aym arket
Sq., em 1886. Julgado e condenado, suicidou-se na prisão. (N.T.)
CAOS

sentim entos M .i. o lioim m m dinam itou aos 22 anos para enganar a forca... esse
n.u> é cxiii.inu ntc o i am inho que escolhemos. III A IDÉIA de PO LÍCIA é como
.1 lúdi.i <in «111< i le.sccm cem novas cabeças para cada um a que é decepada - &
todas (••.■.,is cabeças s.io policiais vivos. C ortar fora as cabeças não nos ajuda em
ii.ul.i, apenas aum enta o poder da besta até que ela nos engula. III Primeiro assas­
sine .i 11)KIA - exploda o m onum ento dentro de nós - & então, talvez... o equilí­
brio do poder se inverterá. Q uando o últim o tira em nosso cérebro for assassinado
pelo últim o desejo não satisfeito - talvez até mesmo a paisagem ao nosso redor
comece a m udar... III O Terrorismo Poético propõe tal sabotagem dos arquétipos
com o a única tática prática de insurreição para o presente. Mas, com o extremistas
xiitas ávidos pela derrubada (por qualquer meio) de toda polícia, aiatolás, ban­
queiros, carrascos, padres etc., reservamo-nos a opção de venerar até mesmo os
“fracassos” do excesso radical. III Uns poucos dias liberto do Império das M enti­
ras pode m uito bem valer um sacrifício considerável; um m om ento de realização
exaltada pode pesar mais do que uma vida inteira de trabalho & tédio microcefálico.
III Mas esse m om ento deve tornar-se nosso - & nossa posse sobre ele é seriamente
com prom etida se precisamos com eter suicídio para preservar sua integridade.
Então, m isturam os ironia à nossa veneração - não é o m artírio que propom os,
mas a coragem do dinam itador, a autoconfiança de um m onstro do Caos, a reali­
zação de prazeres crim inosos & ilegais.

XLVIII
C O M U N I C A D O 4
O FI M DO M U N D O

A AAO DECLARA-SE oficialmente entediada com o Fim do M un­


do. A versão canônica tem sido usada desde 1945 para nos manter
acovardados diante do medo da Inevitável Destruição M útua & em
chorosa servidão aos nossos políticos super-heróis (os únicos capazes
de lidar com a fatal C riptonita Verde)...
Q ual a im po rtân cia de term os descoberto um a form a de d estru ir a
vida na Terra? Q uase nenhum a. N ós imaginamos isso com o um a form a de
fuga da contem plação de nossas próprias m ortes individuais. C riam os um
em blem a para servir com o im agem -espelho de um a im ortalidade descartada.
C o m o ditadores dem entes, desfalecem os ao pensar em levar tudo conosco para
o fu n do do A bism o.
A versão não oficial do Apocalipse envolve um a nostalgia lasciva pelo
Fim & por um Éden pós-H olocausto onde os sobreviventes (ou os 144 mil eleitos
das Revelações) podem se entregar indolentem ente às orgias de histeria dualista,
aos intermináveis confrontos finais com um dem ônio sedutor...
Vimos o fantasma de René G uénon31, cadavérico & usando um fez (como
Boris Karloff interpretando Ardis Bey cm A M úm ia), liderando um a funérea ban­
da de rock noise industrial em altos zum bidos de moscas negras pela m orte da
C ultura & do Cosmos: o fetichismo elitista de niilistas patéticos, o autodesprezo
gnóstico dos intelectualóides “pós-sexuais”.
N ão seriam essas baladas som brias sim plesm ente im agens-espelho de
todas as m entiras & superficialidades sobre o Progresso & o F u tu ro , berradas
em todos os alto-falantes, & em itidas, no m u ndo do C onsenso, com o ondas
31 M ístico francês (1886-1951) que abraçou as tradições orientais e proclam ou o declínio do O cidente cm suas
obras. (N.T.)
CAOS

cerebrais pai .iuóh .r. il> i|iialc]iier livro escolar & da TV? A tanatologia dos
sofisticado* n1 ili i1 .1 i im.is brota com o pus da falsa saúde do Paraíso de T raba­
lhadores & ( onsum idores.
(Qualquer um que pode ler a história com os dois hemisférios do cérebro
sabe que um m undo term ina a todo instante - as ondas do tem po lavam tudo &
deixam apenas as memórias de um passado fechado & petrificado - m emória
imperfeita, ela mesma m oribunda & outonal. E a todo instante tam bém é gerado
um m undo novo - apesar dos protestos dos filósofos & dos cientistas cujos corpos
se paralisaram - um a atualidade na qual todas as impossibilidades se renovam, em
que arrependim entos & prem onições dissipam-se em nada num único gesto
presencial, psicom ântrico & hologramático.
O passado “norm ativo” ou a futura m orte do universo significam tão
pouco para nós quanto o PIB do ano passado ou a degeneração do Estado. Todos
os passados Ideais, todos os futuros que ainda não passaram, sim plesm ente obs­
truem a nossa consciência da vivida presença total.
Certas seitas acreditam que o m undo (ou “um ” m undo) já chegou ao fim .
Para as Testem unhas de Jeová, aconteceu em 1914 (isso mesmo, senhores, estamos
vivendo o Livro das Revelações agora). Para certos ocultistas orientais, aconteceu
durante a grande C onjunção dos Planetas em 1962. Joaquim de Fiore proclam ou
aTçrceira Era, a do Espírito Santo, que substituiu a do Pai & do Filho. Hassan II
de A lam ut proclam ou a G rande Ressurreição, a imanência do eschaton, o paraíso
na Terra. O tem po profano term inou em algum ponto da Idade M édia. Desde
então, vivemos em tempos angelicais - só que a maioria de nós não sabe disso.
O u, partindo de um ponto de vista m onista ainda mais radical: o Tempo
nunca começou. O Caos nunca morreu. O Im pério nunca foi fundado. N ão so­
mos & nunca fomos escravos do passado ou reféns do futuro.
Sugerimos que no Fim do M undo seja declarado um fa it acompli\ a data
exata não im porta. O s rantersi2, em 1650, sabiam que o M ilênio se inicia agora
em cada alma que desperta para si mesma, para o seu próprio centro & divindade.
“Regozije-se, com panheiro”, era o cum prim ento que usavam. “Tudo é nosso!”
Eu não quero participar de qualquer outro Fim do M undo. Um garoto
sorri para m im na rua. Um corvo negro pousa num a árvore de magnólias rosadas,
grasnando enquanto o orgônio se acum ula &C é liberado num a fração de segundo
sobre a cidade... o verão começa. Eu posso ser seu am ante... mas cuspo em cima
do seu Milênio.

52 G rupo radical inglcs de proem inência entre os anos 1649-54; influenciados pela ordem herege da Fraternidade
do Espírito Livre (séc. XIV) e pela “Era do Espírito” de Joaquim de Fiore (séc. XII). (N .T.)

L
C O M U N I C A D O 5

“O Sadomasoquismo Intelectual é o Fascismo dos Anos 1980 - A


Vanguarda Come Merda e Gosta”

CAMARADAS!
Recentem ente um a certa confusão sobre “Caos”, levantada por certos
setores revanchistas, im portunou a AAO, forçando-nos (a nós, que desprezamos
polêmicas) a enfim participar de um a Sessão Plenária devotada para denúncias ex
cathedra, nefastas com o o inferno; nossas faces rubras de retórica, perdigotos voando
de nossos lábios, as veias do pescoço inchadas com o fervor do púlpito. Devemos,
por fim, nos resumir com cartazes com slogans raivosos (em caracteres de 1930)
declarando o que a A narquia O ntológica não é.
Lembrem-se de que só na física clássica o Caos tem qualquer coisa a ver com
entropia, morte térmica &C decadência. Em nossa física (Teoria do Caos), o Caos
identifica-se com o Tao, mais além tanto do yin-como-entropia quanto do yang-como-
energia, sendo mais um princípio de criação contínua do que qualquer nihil, urti vazio
no sentido de potentia, não exaustão. (Caos como “a soma de todas as ordens”.)
Dessa alquim ia, quintessencializamos uma teoria estética. A arte do Caos
pode ser aterrorizante, pode até atuar num grand guignol, mas jamais pode deixar-
se encharcar em negatividade pútrida, tanatologia, schadenfreude (deleite com o
sofrim ento dos outros), sussurrando sobre memorabilia nazista & assassinatos em
série. A A narquia O ntológica não coleciona filmes pedantes & entedia-se profun­
dam ente com elites que vom itam filosofia francesa. (“N ão há esperança alguma
& eu já sabia disso antes de você, seu merda. Ha!”)
W ilhelm Reich foi quase levado à loucura total & assassinado por agen­
tes da Praga Emocional. Talvez metade de seu trabalho derive da mais absoluta
paranóia (conspirações de O V N Is, hom ofobia, até mesmo sua teoria sobre o or-
gasmo), MAS em um ponto nós concordam os com pletam ente —sexpol: repressão
sexual alim enta a obsessão pela morte, o que origina más políticas. Uma grande
CAOS

parte il.i .uit- tlt v.11ipii.1111.1 c-m.í ..linr.ida com Raios de O rgônio M ortal (RO M ). A
A 11.ir<111 i.t ( >niul('i| it i it in com o objetivo construir detonadores de nuvens estéti-
cas (aiinas H( )) paia dispersar o miasma do sadomasoquismo cerebral que hoje
cm dia «'• lonsidc iado m oderno, brilhante, inteligente, o máximo, o novo. Artistas
"|k-i loi m.iiico.s" autom utiladores são para nós banais & estúpidos - sua arte deixa
iodo m undo mais infeliz. Q ue tipo de bosta barata conivente... que artistas babacas
com cérebro de m inhoca prepararam esse cozido apocalíptico?
É claro que a vanguarda parece “inteligente” - com o M arinetti & os
huturistas, com o Pound & Celine. Em com paração com esse tipo de inteligência,
preferimos a estupidez real, a idiotice insossa & bucólica do New Age —preferimos
ser idiotas a ficar obcecados pela morte. Mas, felizmente, não precisamos esvaziar o
cérebro para alcançar nosso próprio tipo raro de satori33. Todas as faculdades,
todos os nossos sentidos são nossos, nossa propriedade - coração ÔC cabeça, espí­
rito & intelecto, alma &: corpo. A nossa não é um a arte de mutilação, mas de
excesso, superabundância, assombro.
O s distribuidores da melancolia sem sentido são os Esquadrões da M or­
te da estética contem porânea - & nós somos os “desaparecidos”. Seu salão de
bailes de fantasia com ocultos bricabraques do Terceiro Reich & assassinatos de
crianças atrai os m anipuladores do Espetáculo - a m orte fica m elhor na TV do
que na vida - nós, artistas do Caos, que pregamos um a alegria rebelde, somos
encurralados & m antidos no silêncio.
N ão é preciso dizer que rejeitamos toda a censura da Igreja & do Estado
- mas, “depois da revolução”, de bom grado assumiremos a responsabilidade indi­
vidual & pessoal pela queim a de todo o em bolorado lixo artístico dos Esquadrões
da M orte & pela sua expulsão da cidade em caravana. (No contexto anarquista, a
crítica torna-se um a ação direta.) Em meu espaço não cabe nem Jesus & seus
senhores das moscas nem Charles M anson &C seus adm iradores literários. Eu não
quero nenhum a polícia m undana - nem assassinos cósmicos & seus machados;
nenhum massacre com serra elétrica na TV, nenhum sensível rom ance pós-estru-
turalista sobre necrofilia.
N o m om ento, a AAO nutre vaguíssimas esperanças de poder sabotar o
m ecanism o sufocante do Estado & seu circuito fantasmagórico - mas podemos
chegar a ser capazes de fazer algo para dim inuir as manifestações da praga dos
R O M , com o os com edores de cadáveres do Lower East Side & outros lixos artís­
ticos. Apoiamos artistas que usam materiais aterradores para alguma “causa nobre”
—que usam material sexual/afetivo de qualquer tipo, não im porta se chocante ou
ilegal - que usam sua raiva & asco & seus desejos verdadeiros de cam inhar em
direção à auto-realização, beleza & aventura. “Niilismo Social”, sim - mas não o
niilismo m orto do autodesprezo gnóstico. Mesmo se for violento & abrasivo,
qualquer um com um vestígio do terceiro olho consegue enxergar as diferenças
entre a arte revolucionária pró-vida & a arte reacionária pró-m orte. O s RO M

33N o zen-budism o, o estado de ilum inação espiritual; o alcance repentino desse estado. (N.T.)

LII
H akim IWy

fedem, & o nariz do artisia «l<»( a o s pode senti-lo - da mesma forma que discerne
o perfum e da alegria (.'spirim.il/M-xuul, mesmo quando soterrado ou mascarado
sob outros odores mais sombrios Mesmo .1 Direita Radical, com todo seu horror
da carne & dos sentidos, 01 .isionalmciiu aparece com 11111 m om ento de percepção
& aprim oram ento da consciência mas os Esquadrões da M orte, com todo seu
cansativo discurso & suas abstrações revolui ion.ii ias modernas, oferecem-nos tanta
energia libertária quanto o FBI, o PDA & os b.itisi.is recalcados.
Vivemos num a sociedade que faz propaganda de suas mercadorias mais
caras com imagens de m orte & mutilação, enviada diretam ente para a parte sub-
reptícia do cérebro das m ultidões através de aparelhos carcinógenos geradores de
ondas alfa que distorcem a realidade - enquanto algumas imagens da vida (como
a nossa favorita, de um a criança se m asturbando) são banidas & punidas com
um a ferocidade incrível. N ão é preciso coragem para ser um Sádico da Arte, pois
a m orte libidinosa está no centro estético do Paradigma do Consenso. “Esquerdis­
tas” que gostam de se fantasiar & brincar de polícia & ladrão, pessoas que se
m asturbam olhando para fotos de atrocidades, pessoas que gostam de pensar &
intelectualizar sobre a arte de “qualquer jeito”, a pretensiosa falta total de esperan­
ça, m onstruosidade terrível, as desgraças dos outros — tais “artistas” não são nada
além de policiais-sem-poder (um a definição perfeita tam bém para m uitos “revo­
lucionários”). N ós temos um a bom ba negra para esses fascistas estéticos - ela
explode em esperma &C estalos, ervas hilariantes & pirataria, estranhas heresias
xiitas & fontes paradisíacas borbulhantes, ritm os complexos, pulsações da vida,
tudo o que for sem forma &C raro.
Acorde! Respire! Sinta o hálito do m undo em sua pele! Aproveite o dia!
Respire! Respire!

(Nossos agradecim entos a J. M ander por seu livro Four Argumentsfor theAbolition
o f Television, a Adam Exit & ao m ouro cosmopolita de W illiamsburg.)

LIII
C O M U N I C A D O 6

I. Salão do Apocalipse: “Teatro Secreto”

C O N Q U A N T O N E N H U M Stalin fungue em nossos pescoços, por


que não fazer alguma arte a serviço de... uma insurreição?
Não importa se é “impossível”. O que mais devemos aspirar atingir senão o
“impossível”? Devemos esperar que outras pessoas revelem nossos verdadeiros desejos?
Se a arte morreu, ou o público desapareceu, então nos encontram os li­
vres de dois pesos mortos. Em potencial, todos nós somos algum tipo de artista -
& potencialm ente todo público recuperou sua inocência, sua capacidade de tor­
nar-se a arte que experiencia.
Desde que possamos escapar dos museus que carregamos dentro de nós
mesmos, desde que consigamos parar de nos vender ingressos para as galerias que
existem dentro de nossos próprios crânios, poderemos começar a contem plar um a
arte que recrie o objetivo do feiticeiro: m udar a estrutura da realidade pela m ani­
pulação dos símbolos vivos (neste caso, as imagens que nos foram “dadas” pelos
organizadores desse salão - assassinato, guerra, fome & ganância).
Podemos agora contem plar ações estéticas que possuam um pouco da
ressonância do terrorism o (ou “crueldade”, como definiu A rtaud) & cujo objetivo
é destruir as abstrações em vez de destruir as pessoas, a libertação em vez do poder,
o prazer em lugar do lucro, a alegria & não o medo. “Terrorismo Poético.”
As imagens que escolhemos têm a potência da escuridão - mas todas as
imagens são máscaras, &C por trás dessas máscaras existem energias que podem os
direcionar para a luz &C o prazer.
Por exemplo, o hom em que inventou o aikido era um samurai que se
tornou pacifista & se recusou a lutar pelo imperialismo japonês. Ele acabou viran­
do um eremita, vivia num a m ontanha sentado sob um a árvore.
Um dia, um ex-colega samurai foi visitá-lo & acusou-o de traição, co­
vardia etc. O erem ita não disse nada, apenas continuou sentado - & então o
CAOS

soldado, iiado, p im ni .na espada & atacou-o. E spontaneam ente, o mestre de­
sarm ado tom ou .t e.pada tio soldado &C devolveu-a em seguida. Várias vezes o
soldado tentou matá-lo, usando todos os golpes mais sutis de seu repertório -
mas a partir dc sua m ente vazia o erem ita inventava, todas as vezes, novas m a­
nei i as dc desarmá-lo.
O soldado, é claro, tornou-se seu primeiro discípulo. Mais tarde, eles
aprenderam a esquivar-se de balas.
Podemos contem plar alguma forma de m etadram a criado para capturar
um pouco do sabor dessa atuação, que deu origem a um a arte totalm ente nova,
um m odo totalm ente não violento de luta - guerra sem assassinato, “a espada da
vida”, & não a da morte.
U m a conspiração de artistas, anônim a com o qualquer bom bardeador
maluco, mas voltada para um ato de generosidade gratuita no lugar da violência -
para o m ilênio em vez de para o apocalipse - ou, ainda, dedicado ao momento
presente do choque estético no serviço da realização & da libertação.
A arte conta maravilhosas mentiras que se tornam realidade.
É possível criar um T E A T R O S E C R E T O onde ta n to o artista q u a n ­
to a audiência desaparecem com pletam ente - apenas para reaparecer em o u ­
tro plano, onde a vida & a arte se tornam a m esm a coisa, o puro oferecim ento
das dádivas?

(Nota: O “Salão do Apocalipse” foi organizado por Sharon Gannon em julho de 1986.)

II. Assassinato - Guerra - Fome - Ganância


A
OS M ANIQUEUS & OS CÁTAROS acreditavam que o corpo pode
ser espiritualizado - ou melhor, que o corpo simplesmente contami­
na o espírito puro 6>C portanto deve ser rejeitado totalmente. Os
gnósticos perfecti (dualistas radicais) não se alimentavam até morrer
para escapar do corpo & retornar ao pleroma da luz pura.
H akitn IWy

Então: para fugir d<>s malefícios da carne - assassinato, guerra, fome,


ganância —paradoxalm ente apenas existe- um cam inho: o assassinato do próprio
corpo, guerra contra a carne, fome ,n< .1 morre, ganância por salvação.
Os monistas radicais, no <-ni.mto (ismaeliias", ranters, antinomianos35), con­
sideram que corpo & espírito sao uma coisa só, «|ii< o mesmo espírito que impregna
uma pedra negra também infunde a carne com sua lu/; que indo vive & tudo é vida.
“As coisas são o que são espontaneamente... tudoé natural tudo está cm movimento
como se existisse um Verdadeiro Senhor para move1 Ias ma ., se procurarmos por
evidências desse Senhor, não conseguiremos enconn.í Ias (Kuo I Isiang)
Paradoxalmente, o cam inho monista também nao pode sei seguido sem
algum tipo de “assassinato, guerra, fome, ganância ”: a iianslorm açao da m orte em
vida (comida, entropia negativa) - guerra contra o Império das Mentiras - “o
jejum da alma”, ou a renúncia à M entira, a tudo o que não é vida - & ganância
pela própria vida, o poder absoluto do desejo.
Mais ainda: sem o conhecim ento da escuridão (“conhecim ento carnal”)
não pode existir o conhecim ento da luz (“gnose”). O s dois conhecim entos não são
m eram ente com plem entares: são idênticos, como a mesma nota tocada em duas
oitavas diferentes. H eráclito afirma que a realidade persiste num estado de “guer­
ra”. Apenas notas opostas podem construir a harm onia. (“O Caos é a soma de
todas as ordens.”)
D ê a cada um desses quatro term os um a máscara de linguagem diferente
(chamar as Fúrias de “as G entis” não é um mero eufemismo, mas um a maneira de
revelar ainda mais significados).
M ascarados, ritualizados, percebidos com o arte, os termos assumem sua
beleza tenebrosa, sua “Luz Negra”.
Em vez de assassinato, diga caçada, a pura economia paleolítica de todas
sociedades tribais arcaicas &C não autoritárias - venery36, tanto a caça & o consumo
da carne quanto o encanto de Vênus, do desejo. Em vez de guerra, diga insurreição,
não a revolução de classes & poderes, mas a do eterno rebelde, o sombrio que revela
a luz. Em vez de ganância, diga ânsia, desejo inconquistável, amor louco. E, em vez
de fome, que é um tipo de mutilação, fale de completitude, inteireza, superabun-
dância, generosidade do eu que sobe em espirais em direção ao O utro.
Sem esse baile de máscaras, nada seria criado. A mais antiga m itologia faz de
Eros o prim eiro rebento do Caos. Eros, o selvagem que pode dom ar, é a porta
pela qual o artista volta ao Caos, ao U no, &c depois retorna, reaparece novam en­
te, trazendo um a das formas da beleza. O artista, o caçador, o guerreiro: aquele
que é ao m esm o tem po apaixonado & equilibrado, ganancioso & altruísta ao

MA deptos do ismaelismo, seita m uçulm ana xiita surgida das disputas geradas no ano 765.
d .C e que teve sua m aior influência política no m undo islâmico entre os séculos X e XII. (N .E.)
MSectários da doutrina luterana de Johannes S chnittcr (1492-1566); que afirma ser a fé, e não os atos, a única
condição para a salvação. (N.T.)
34 Venery, cm inglês, tem dois sentidos bem diferentes. O primeiro, que vem do latim venus (amor, desejo sexual), è de
satisfação sexual. O outro, do francês venerie, que por sua vez tem origem no latim vetuiri (caçada), é de caçada como
esporte. (N.E.)

LVII
CAOS

extrem o I )evem o. •.< i . ih n . ,|, todas as salvações que querem salvai-nos de nós
mesmos, d«» ,1 'inn.il que c tam bém nossa anim a, nossa própria força de vida, &
tam bém n o s s o anitnus, nosso auto-apoderam ento vitalizador, que pode até mes­
mo s r m anifestar com o raiva & ganância. A BA BILÔ N IA ensinou-«<w que a
nossa carnc é im unda - escravizou-nos com esse argum ento & a promessa de
salvação. Mas, se a carne já estiver “salva”, já for l u z - &C se até mesmo a própria
consciência for um tipo de carne, um éter sim ultaneam ente palpável & vivo - ,
então não precisam os de nenhum poder para interceder a nosso favor. A selva,
com o diz O m ar, é o paraíso agora mesmo.
A verdadeira posse do assassinato pertence ao Império, pois apenas a li­
berdade é vida com pleta. A guerra também é babilônica - nenhum a pessoa livre
m orrerá pelo engrandecim ento de um a outra. A fom e passa a existir apenas com a
civilização dos salvadores, os reis-padres - não foi José quem ensinou ao faraó a
especular sobre as colheitas futuras? A ganância - pela terra, pela riqueza sim bóli­
ca, pelo poder de deform ar os corpos & as almas dos outros para sua própria
salvação - a ganância tafnpouco surge da “natureza natural”, mas do represamento
& da canalização de todas as energia para a glória do Império.
C ontra tudo isso, o artista tem o baile de máscaras, a radicalização total
da linguagem, a invenção de um “Terrorismo Poético” que vai atacar não seres
hum anos, mas idéias malignas, pesos mortos na tam pa do caixão dos nossos dese­
jos. A arquitetura da asfixia & da paralisia será destruída apenas pela nossa cele­
bração total de tudo - incluindo a escuridão.

Solstício de Verão, 1986


C O M U N I C A D O 7
PALEOLIT1SMO PSÍQUICO &
ALTA T E C N O L O G I A : UM
ENSAIO DE POSICIONAMENTO

SÓ PORQUE A AAO fala de “paleolitismo” o tempo todo, não fique


com a impressão de que queremos nos mandar de volta à Idade da Pedra.
N ão temos o m enor interesse em “voltar à natureza” se o pacote de via­
gem incluir a entediante vida de camponês chutador-de-bosta - nem queremos o
“tribalism o” se ele vier com tabus, fetiches & má alimentação. N ão temos nada
contra o conceito de cultura — incluindo a tecnologia; para nós, o problem a com e­
ça com a civilização.
O que gostamos da vida no Paleolítico foi resumido pela escola de antropo­
logia dos povos sem autoridade: a elegante preguiça da sociedade do caçador/coletor,
o trabalho de duas horas por dia, a obsessão pela arte, dança, poesia & afetividade, a
“democratização do xamanismo”, o cultivo da percepção - em suma, a cultura.
O que nós detestamos na civilização pode ser deduzido da seguinte p
gressão: a “revolução agrícola”; a emergência das castas; a cidade & seu culto do
controle hierático (“Babilônia”); escravidão; dogma; imperialismo (“Roma”). A
supressão da sexualidade no “trabalho” sob a égide da “autoridade”. “O Império
nunca term inou.”
Um paleolitismo psíquico, baseado na Alta Tecnologia - pós-agrícola, pós-
industrial, “Trabalho-Zero”, nôm ade (ou “Cosm opolita Desenraizado”) - um a
Sociedade de Paradigma do Quantum - essa constitui um a visão ideal do futuro
segundo a Teoria do Caos & a “futurologia” (no sentido que Robert A nton W il­
son & T. Leary dão para o term o).
CAOS

( Jii.into .iti pnsem e: rejeitamos todo tipo de colaboração com a Civi-


li/.açao d.i Anorexi.i ÍV da Bulimia, com pessoas tão envergonhadas de nunca
terem sofrido que inventam máscaras penitentes para si mesmas & para os o u ­
tros ou aqueles que se em panturram sem dó & depois despejam o vôm ito de
sua culpa suprim ida em grandes acessos m asoquistas de exercícios & dietas.
I odos os nossos prazeres &C autodisciplina nos pertencem por natureza - nunca
nos negamos, nunca desistimos de nada; mas algumas coisas desistiram de nós
& nos deixaram , porque somos m uito grandes para elas. Sou ao mesmo tem po
o hom em da caverna, o m utante das estrelas, o seu conterrâneo & o príncipe
livre. Um a vez um chefe indígena foi convidado para um banquete na Casa
Branca. Q u an d o a com ida foi servida, o chefe encheu seu prato ao m áximo
possível, não apenas um a, mas três vezes. Enfim , o branquelo sentado ao seu
lado disse: “Chefe, he, he, he, você não acha que é um pouco dem ais?” “U h”,
disse o chefe, “um pouco demais é perfeito para o Chefe!”
No entanto, certas doutrinas da “futurologia” continuam problem áti­
cas. Por exem plo, m esm o que aceitem os o potencial lib ertad o r das novas
tecnologias com o a TV, os com putadores, a robótica, a exploração espacial etc.,
ain d a percebem os um a grande distân cia en tre p o ten cial & realização. A
banalização da TV, a “burguesificação” dos com putadores & a militarização do
espaço sugerem que essas tecnologias, por si só, não oferecem n enhum a garan­
tia “específica” para seu uso libertário.
Mesmo se rejeitarmos o holocausto nuclear com o apenas mais um a di­
versão espetacular orquestrada para distrair nossa atenção dos problemas reais,
devemos adm itir que a “Inevitável Destruição M útua” & a “G uerra Pura” tendem
a dim inuir nosso entusiasm o por alguns aspectos da aventura da Alta Tecnologia.
A A narquia O ntológica m antém sua afeição pelo luddism o com o tática:
se um a dada tecnologia, não im porta o quão admirável em term os de potencial
(no futuro), é usada para oprim ir-m e aqui & agora, então eu devo ou em punhar
a arm a da sabotagem, ou dom inar os meios de produção (ou, talvez mais im por­
tante, os meios de comunicação). N ão há hum anidade sem téchne - mas não há
téchne mais valiosa do que m inha hum anidade.
Desprezamos o anarquism o panaca & antitecnológico - pelo menos no
que nos diz respeito (há aqueles que dizem que gostam da vida do campo) - &
rejeitamos tam bém o conceito de uma Solução Tecnológica. Para nós, todas as
formas de determ inism o são igualmente insípidas - não somos escravos nem de
nossos genes nem de nossas máquinas. O que é “natural” é aquilo que imaginamos
&c criamos. “A N atureza não tem leis —apenas hábitos.”
* Para nós, a vida não pertence nem ao passado — a terra dos famosos
fantasmas am ontoando seus fúnebres e desbotados bens nem ao futuro, cujos
cidadãos m utantes com cérebro em forma de bulbo guardam com zelo os segredos
da im ortalidade, do vôo mais rápido que a velocidade da luz, dos genes desenha­
dos artificialm ente & do encolhim ento do Estado.

LX
Hakim IWy

A u t nunc aut nihil. I«>d<> m om ento contém um a eternidade a ser pene­


tra d a —no entanto, perdem o-nos em visões assimiladas através dos olhos de cadá­
veres, ou na nostalgia por uma peileiçao ainda não nascida.
As realizações dos meus anccsiiais iV descendentes não são, para mim ,
nada mais do que um conto instrutivo & interessante eu jamais os verei com o
superiores, mesmo para desculpar m inha própria pequenez. M andarei im prim ir
para mim mesmo um a licença para roubar deles tudo o que eu quisei paleolitismo
psíquico ou alta tecnologia - ou, que seja, os belos detritos da própria i ivilização,
os segredos dos Mestres O cultos, os prazeres da nobreza frívola & la vie bohemc.
La décadence. Nietzsche, ao contrário & apesar dela, possui um papel
tão profundo na A narquia O ntológica quanto a saúde - cada um tom a o que
quiser do outro. Estetas decadentes não travam guerras estúpidas nem subm er­
gem sua consciência no ressentim ento & na ganância microcefálicos. Eles buscam
aventura na inovação artística & na sexualidade não ordinária, em vez de buscá-la
na desgraça alheia. A AAO adm ira &c em ula sua indolência, seu desdém pela estu­
pidez & norm alidade, sua expropriação das sensibilidades aristocráticas. Para nós,
essas qualidades harm onizam -se paradoxalm ente com aquelas da Idade da Pedra
& sua abundante saúde, ignorância de qualquer hierarquia, cultivo da virtu em
vez da Lei. Exigimos decadência sem doença, & saúde sem tédio!
Assim, a AAO oferece apoio incondicional para todos os povos indíge­
nas & tribais em sua luta por com pleta autonom ia —&, ao mesmo tem po, para
todas as especulações & aspirações m ais doidas & fora da realidade dos
futurologístas. O paleolitismo do futuro (que, para nós, m utantes, já existe) será
alcançado cm grande escala apenas através de um a maciça tecnologia da Imagina­
ção, & de um paradigm a científico que vá além da mecânica quântica para o reino
da Teoria do Caos ÔC das alucinações da ficção especulativa.
C om o cosmopolitas desenraizados, reivindicamos todas as belezas do
passado, do O riente, das sociedades tribais - tudo isso deve & pode ser nosso,
mesmo os tesouros do Império: nosso para com partilharm os. E, ao mesmo tem ­
po, exigimos um a tecnologia que transcenda a agricultura, a indústria, a sim ulta-
neidade da eletricidade, um hardware que faça a interseção com o aparelho vivo
da consciência, que abranja o poder dos quarks, das partículas que viajam no
tem po, do quasares & dos universos paralelos.
C ada ideólogo enfurecido do anarquism o & do indeterm inism o pres­
creve alguma utopia análoga aos vários tipos de visão que eles têm, da com una
camponesa à cidade espacial L-5. Nós dizemos: Deixemos que um milhão de
plantas floresçam - sem nenhum jardineiro para arrancar ervas daninhas & proi­
bir brincadeiras de acordo com algum esquema moralizante ou eugenista. O ú ni­
co conflito verdadeiro é entre a autoridade do tirano & a autoridade do ser reali­
zado - todo o resto é ilusão, projeção psicológica, verborragia.
N um certo sentido, os filhos & filhas de G aia n u n ca deixaram o
Paleolítico; noutro, todas as perfeições do futuro já são nossas. Apenas a insurrei-

LXI
CAOS

ção '‘resolveu'’ i .•,« p.n.uloxo apenas o levante contra a falsa consciência tanto
em nós mesmos quanto nos outros vai varrer a tecnologia da opressão & a pobreza
do I .pet.u 11Io Nessa batalha, uma máscara pintada ou o chocalho de um xamã
pode vn .1 sei vital para a captura de um satélite de com unicações ou de um a rede
sei let.i de com putadores.
Nosso único critério de julgar um a arma ou um a ferram enta é sua bele­
za. De certo m odo, os meios já são os fins. A insurreição já é nossa aventura.
Tornar-se É Ser. Passado & futuro existem dentro de nós & para nós, alfa 6c
ômega. N ão existem outros deuses antes ou depois de nós. Estamos livres no
T E M P O —& estaremos livres no ESPAÇO também .

(Nossos agradecimentos a H agbard Celine, o sábio de H ow th & redondezas.)


C O M U N I C A D O 8
A TEORIA DO CAOS & A
FAMÍLIA NUCLEAR

D O M IN G O , N O PARQUE DE RIVERSIDE, os pais colocam se


filhos no lugar certo, “pregando-os” à grama como se por mágica,
com sinistros olhares enfeitiçantes de camaradagem leitosa, & os for­
çam a jogar bolas de beisebol para um lado & para o outro durante
horas. Os garotos quase parecem pequenos São Sebastiões perfura­
dos por flechas de tédio.
O s pretensiosos rituais de diversão familiar transform am todos os úm i­
dos gramados do verão em parques temáticos; cada filho, um a alegoria inconsciente
da riqueza do pai, um a representação pálida, duas ou três vezes distanciadas da
realidade: a criança com o metáfora de uma-coisa-ou-outra.
E aqui eu chego ao cair da tarde, chapado de pó de cogumelos, meio
convencido de que essas centenas de vaga-lumes surgem da m inha própria consciên­
cia - O nde andavam eles todos esses anos? Por que tantos, tão de repente? - cada
um ascendendo num m om ento de incandescência, descrevendo rápidos arcos como
gráficos abstratos da energia do esperma.
“Famílias! Os avaros do amor! Com o eu as odeio!” Bolas de beisebol voam
sem rum o na luz vespertina, algumas se perdem, as vozes elevam-se em exaustão
nervosa. As crianças sentem que o pôr-do-sol carrega as últimas horas da liberdade
mendigada, mas ainda assim os Pais insistem em estender o tépido poslúdio de seu
sacrifício patriarcal até a hora do jantar, até que as sombras comam a grama.
Entre os filhos da plebe há um cujo olhar por um m om ento cruza com o
meu - transm ito telepaticam ente a imagem da doce licença, o cheiro do T E M P O
CAOS

liberto ile toda-. .r. am aiias da escola, das lições de música, dos acam pam entos de
férias, ilas noites familiares ao redor da lV , dos dom ingos no parque com papai -
tem po autêntico, tem po caótico.
Agora a família está deixando o parque, um pequeno batalhão de insatis-
façáo. Mas aquele menino se volta & sorri para m im , em cum plicidade - “M ensa­
gem Recebida” - & dança atrás de um vaga-lume, encorajado por meu desejo. O
pai ladra um m antra que dissipa meus poderes.
O m om ento passa. O garoto é engolido pela textura da semana - desa­
parece como um pirata sem inu ou um índio que foi levado prisioneiro pelos mis­
sionários. O parque sabe quem eu sou, mexe-se sob mim com o um jaguar gigante
pronto para despertar para sua meditação noturna. A tristeza ainda o detém , mas
ele continua indom ado na sua essência mais profunda: um a estranha desordem
no coração da noite da cidade.

LXIV
C O M U N I C A D O 9
DUPLAS D E N Ú N C I A S

I. Kristianismo

UMA VEZ MAIS ESPERAMOS que aquele cadáver moralista fi­


nalmente dê seu último suspiro rançoso & se transforme definitiva­
mente em abóbora. Uma vez mais imaginamos a derrota daquele
obsceno espectro da morte pregado nas paredes de nossas salas de
estar, nunca mais a lamentar sobre nossos pecados...
mas, uma vez mais, ele ressuscita & volta, arrastando-se para nos caçar como
o vilão de um chatíssimo filme pornô de quinta categoria - a milésima refilmagem de
A Noite dos Mortos Vivos - trilhando seu rastro de lesma de humilhação lacrimosa...
logo quando você pensou que estava salvo no inconsciente... eis as MANDÍBULAS37
de JESUS. Atenção! É o ataque dos Batistas Barra-Pesada da Serra Elétrica!
e os Esquerdistas, nostálgicos pelo Ponto ô m eg a do seu paraíso dialético,
saúdam cada renascimento galvanizado da fé putrefata com arrulhos de delírio: Va­
mos dançar um tango com todos os bispos marxistas da América Latina —cantar
uma balada para os pios estivadores poloneses - sussurrar canções espirituais para o
mais recente & promissor afro-metodista presidenciável do C inturão da Bíblia38...

A AAO denuncia a Teologia da Libertação com o um a conspiração das


freiras stalinistas - o acordo secreto escarlate da Puta da Babilônia com o fascismo
vermelho dos trópicos. Solidarnosc? O próprio Sindicato do Papa - apoiado pela
Federação Americana do Trabalho/Congresso de Organizações Industriais (AFL-
C IO ), pelo Banco do Vaticano, pelo G abinete de Propaganda da M açonaria &C
17Jaws no original, que tam bém pode significar “sermão”, “conversa m açante”. (N .E.)
MBible Bell, estados norte-am ericanos sulistas e do meio oeste de maioria cristã conservadora. (N .E.)
CAOS

pela M.íli.i I , •.(■ nós alguma vez votarmos, jamais gastaremos esse gesto vazio
com algum t.i<> kristão, não im porta sua raça ou cor.
Q u an to aos kristãos reais, esses tediosos fanáticos autolobotom izados,
esses m órm ons assassinos de crianças, esses Guerreiros Estelares da Escravidão
pela Moralidade, televangelistas autoflageladores, esquadrões de zum bis da A ben­
çoada Virgem M aria (que paira num a nuvem cor-de-rosa sobre o Bronx, vom i­
tando ódio, excomunhões & bile sobre a sexualidade das crianças, das adolescen­
tes grávidas &C das bichas)...
Q u a n to aos que cultuam verdadeiram ente a m orte, canibais ritualís-
ticos, freaks do A rm agedom - a D ireita C ristã - só podem os rezar para que o
ÊXTASE A C O N T E Ç A & arranque -os de detrás dos volantes de seus carros,
dos program as de auditório & das camas castas, leve-os todos-para o céu &
deixe-nos viver nossa vida hum ana.

II. Pró-aborto & Antiaborto

OS CAPIAUS RETRÓGRADOS Q U E jogam bombas em clínicas


de aborto pertencem à mesma categoria grotesca de estupidez depra­
vada que os bispos que pregam a Paz & ainda assim condenam a
sexualidade humana. A natureza não tem leis (“apenas hábitos”), &:
todas as leis não são naturais. Tudo pertence à esfera da moralidade
pessoal/imaginária - até mesmo o assassinato.
N o en ta n to , segundo a T eoria do Caos, nós não som os obrigados a
gostar & aprovar o assassinato - ou o aborto. O Caos gostaria de ver toda
criança bastarda gerada & nascida; óvulo & esperm a, separados, são apenas
secreções adoráveis, mas com binados em D N A tornam -se consciência em
potencial, a en tro p ia negativa, alegria.
Se “com er carne é assassinato!”, com o os vegetarianos afirm am , o que
é o aborto? O s totem istas que dançavam para os anim ais que caçavam, que
m editavam para se unir ao seu alim ento vivo & com partilhavam de sua tragé­
dia, dem onstravam valores m uito mais hum anos do que a m édia da claque das
feministas liberais “pró-aborto”.

LXVI
Hakim IH-y

Em toda “questão" .1 sei considerada para debate no livro de regras do


Espetáculo, ambos os lados sáo invariavelm ente cheios de merda. A “questão do
aborto” não é um a exceção.

LXVII
COMUNI CADO 10
SESSÃO PLENÁRIA LEVANTA
NOVAS DEN ÚNCI AS -
EXPURGOS SÃO ESPERADOS

PARA CONTRABALANÇAR QUALQUER carma viscoso que pos­


samos ter adquirido com o nosso irado sermãozinho de púlpito con­
tra os cristãos & outros desagradáveis adeptos do fim do m undo (ver
o último comunicado) & apenas para deixar tudo muito claro: a AAO
também denuncia todos os ateus renascidos imbecis & sua fétida ba­
gagem vitoriana de materialismo científico vulgar. //// Nós aplaudi­
mos os sentimentos anticristãos, é claro - & todos os ataques a todas
religiões organizadas. Mas... ao ouvir alguns anarquistas falarem, pode-
se pensar que os anos 1960 nunca aconteceram & que ninguém to­
mou LSD. //// A maioria dos cientistas, com Alices nos Loucos Países do
Q uantum & da Teoria do Caos, parte para o taoísmo & para o vedanta (para não
falar no dadaísmo) —& ainda assim, se lermos The M atch ou Freedomò<), podere­
mos pensar que a ciência foi embalsamada com o príncipe K ropotkin - & a “reli­
gião”, com o bispo Ussher. /// / É claro que desprezamos os nazistas da era de
Aquário, o tipo de guru louvado recentem ente pelo The New York Times por sua
contribuição aos Grandes Negócios, o culto aos zumbis yuppies que outorgam
franquias, a metafísica anoréxica da banalidade New Age... mas N O SS O esoterismo

39 Publicações anarquistas. (N .E.)


CAOS

continua int|«linível para esses medíocres contadores de dinheiro & seus servos
descerei» .idos. IIII ( )s místicos heréticos & antinom ianos do O riente &C do O ci­
dente desenvolveram sistemas fundam entados na libertação interior. Alguns des­
ses sistemas estão maculados pelo misticismo religioso & até mesmo pela reação
social - outros parecem mais puram ente radicais ou “psicológicos” —& alguns até
mesmo se cristalizaram em movimentos revolucionários (os igualitários milenaristas,
os Assassinos, os taoístas de turbante amarelo etc.). Q uaisquer que sejam suas
falhas, eles têm um a certa arma mágica que o anarquism o dolorosam ente não
possui: (1) Um sentido de meta-racional (“m etanóia”), formas de ir além do pen­
sam ento fragm entado, para se chegar a um pensam ento & percepção uniformes
(ou nômades, ou “caóticos”); (2) um a definição verdadeira da consciência auto-
realizada ou liberada, um a descrição positiva de sua estrutura, & as técnicas utili­
zadas para se chegar até ela; (3) um a visão arquetípica coerente da epistemologia -
ou seja, um a form a de conhecim ento (sobre história, por exemplo) que usa a
fenomenologia herm enêutica para descobrir padrões de significado (algo com o a
“crítica paranóica” dos surrealistas); (4) um ensinam ento sobre sexualidade (nos
aspectos “tâ n tric o s” de várias do u trin as) que valoriza o prazer em vez da
autonegaçao, não apenas por puro deleite, mas tam bém com o meio para uma
consciência ou “libertação” aprimoradas; (5) um a atitude de celebração, que pode
ser cham ada de “conceito de júbilo”, o cancelam ento de débitos psíquicos por
meio de um a generosidade inerente à própria realidade; (6) um a linguagem (in­
cluindo gestos, rituais, intenção) com a qual ativar & com unicar esses cinco as­
pectos da cognição; & (7) um silêncio. //// N ão é surpresa alguma descobrir quantos
anarquistas são ex-católicos, padres & freiras à paisana, ex-coroinhas, batistas re­
nascidos que escapuliram ou mesmo ex-xiitas fanáticos. O anarquism o oferece
um a missa negra (& vermelha) para des-ritualizar todos os cérebros assombrados
por fantasmas - um exorcismo secular - , mas então trai a si mesmo ao criar com
remendos sua própria Igreja, toda ela coberta pelas teias de aranha do H um anism o
Ético, do Pensamento Livre, do Ateísmo M uscular & da rude Lógica Cartesiana
Fundam entalista. /// / H á duas décadas demos início ao projeto de nos tornar
Cosm opolitas Desenraizados, determ inados a peneirar os detritos de todas as tri­
bos, culturas &C civilizações (inclusive a nossa) atrás de fragmentos viáveis — &
sintetizar, dessa bagunça pós-ortodoxias, o nosso próprio sistema de vida - a últi­
m a coisa que querem os (como advertiu Blake) é nos tornar escravos de alguém. /
III Se algum feiticeiro javanês ou xamã de um a tribo de índios americanos possuir
algum fragm ento precioso que eu necessite para m inha própria “maleta de m édi­
co”, devo eu olhá-lo com desprezo, zom bar dele & citar a frase de Bakunin sobre
enforcar padres com as vísceras dos banqueiros? O u devo lem brar-m e de que a
anarquia não conhece dogma, que o Caos não pode ser m apeado —&C servir-me
de tudo sem me sentir acorrentado? /// / Encontram os as primeiras definições de
anarquia no Chuang Tzu & outros textos taoístas; o “anarquismo, místico” ostenta
um a linhagem bem mais antiga do que o racionalismo grego. Q uando Nietzsche

LXX
Hakim Bcy

escreveu sobre os “hiperboieano.", ,u lio que estava profetizando a n ó s - que fomos


além da morte de Deus ÍV il<> icii.im imeiito da Deusa - a atingir um reino onde o
espírito & a matéria são uma coisa só Itxla manifestação desta hierogamia, todo
objeto material & toda vida, tornam .sc n.io apenas "sagrados” em si mesmos, mas
também algo simbólico de sua própria "essêiu ia divina”. //// ( ) ateísmo nada mais é
do que o ópio do povo (ou melhor, o paladino que cie mesmo escolheu) - & não
uma droga m uito fascinante ou sensual. Sc formos seguii o conselho de Baudelaire
& “estarmos constantem ente embriagados”, a AAO preferiria algo como os cogu­
melos, m uito obrigado. O Caos é o mais velho de todos os deuses - & o Caos nunca
morreu.

LXXI
COMUNI CADO 11
ESPECIAL E BOMBÁSTICA
DECLARAÇÃO DE FÉRIAS
SOBRE ALI MENTOS:
ABAIXO O LIGHT!

A ASSOCIAÇÃO PARA A ANARQUIA O N TO LÓ G IC A conclama


um boicote de todos os produtos comercializados sob a senha de
LIG H T - cerveja, carne, doces, cosméticos, música, “estilos de vida”
pré-fabricados, o que for.
O conceito de L IG H T (no jargão situacionista) desdobra um complexo
de simbolismos através do qual o Espetáculo espera controlar toda a repulsa contra
o seu mercantilismo do desejo. O produto “natural”, “orgânico”, “saudável” é desig­
nado para um setor do mercado constituído por pessoas levemente insatisfeitas que
apresentam um quadro mediano de horror do futuro & possuem uma aspiração
m ediana por um a autenticidade tépida. Um nicho foi preparado para você, suave­
mente ilum inado pelas ilusões de simplicidade, limpeza, elegância, um a pitada de
ascetismo &Cautonegação. Claro, custa um pouco mais caro... afinal, o que é L IG H T
não foi feito para primitivos pobres & famintos que ainda consideram comida n u ­
trição & não décor. Tem de custar mais - senão, você não compraria.
A classe média americana (não sofisme, você sabe o que quero dizer)
divide-se naturalm ente em duas facções opostas, mas com plementares: os exérci­
tos da Anorexia &C os da Bulimia. Casos clínicos dessas doenças representam ape­
nas a espum a psicossomática sobre a onda de um a patologia cultural profunda,
CAOS

difus.i fV .impl.imentc inconsciente. O s que sofrem de bulim ia são os yuppies que


se lart.im com margaritas &c videocassetes, & depois se purgam com alimentos
1 lC.il I I , jogging & ginástica (an)aeróbica. Os anorexos são rebeldes por um “esti­
lo de vida”, seguidores da últim a m oda em alimentação, comedores de algas, tris­
tes, desespiritualizados & abatidos - mas presunçosos em seu zelo puritano & em
seus instrum entos de autoflagelo com design sofisticado. A grotesca ju n k food
sim plesm ente representa o outro lado da vampiresca health food: —nada tem gosto
de nada que não seja isopor ou aditivos - tudo é ou entediante ou cancerígeno -
ou ambos —& incrivelmente estúpido.
Seja ela crua ou cozida, a com ida não pode escapar do simbolismo. Ela é,
&C sim ultaneam ente tam bém representa, aquilo que é. Toda com ida é com ida para
a alma; ignorar isso é cortejar uma indigestão, tanto crônica quanto metafísica.
Mas na abóbada sem ar da nossa civilização, em que praticam ente toda
experiência é m ediada, em que a realidade é filtrada através da malha m ortífera da
percepção-consenso, perdemos o contato com a com ida com o nutrição-, começa­
mos a construir para nós mesmos personas baseadas naquilo que consum im os,
tratando produtos com o projeções da nossa aspiração pelo autêntico.
A AAO às vezes visualiza o CAOS como um a cornucópia de criação
contínua, um tipo de gêiser de generosidade cósmica. Portanto evitamos advocar
qualquer dieta específica, a últim a coisa que querem os é ofender a Sagrada
M ultiplicidade &c a Divina Subjetividade. N ão vamos azucriná-los com mais uma
prescrição N ew Age para a saúde perfeita (só os mortos têm saúde perfeita); temos
interesse pela vida, não por “estilos de vida”.
Adoramos leveza verdadeira, & o denso & elaborado nos deleitam na sua
hora apropriada. O excesso nos cai perfeitamente; a moderação nos agrada, & apren­
demos que a fome pode ser o mais fino dos temperos. Tudo é leve, & as flores mais
exuberantes crescem ao redor da privada. Sonhamos com mesas falansterianas &
com os cafés de BoloBolo onde todo grupo festivo de convivas com partilhará a
genialidade individual de um Brillat-Savarin40 (aquele santo do bom gosto).
O xeque Abu S aid41 nunca economizou dinheiro ou mesmo guardou-o
de um dia para o outro - portanto, sempre que algum patrono doava um a quantia
generosa para a sua fraternidade de religiosos, os dervixes celebravam com um
banquete; &, nos outros dias, todos passavam fome. A idéia era apreciar os dois
estados, cheio & vazio...
O produto L IG H T faz um a paródia do vazio espiritual & da ilum ina­
ção, assim com o o M cD onalds traveste o imaginário da com pletitude & da cele­
bração. O espírito hum ano (para não m encionar afome) pode conquistar &C trans­
cender todo esse fetichismo - a alegria pode irrom per mesmo num Burger King,
&C até um a cerveja L IG H T talvez esconda um a dose dionisíaca. Mas por que
deveríamos continuar lutando contra esta maré suja de produtos insossos, fajutos

40Advogado, economista e gastrônom o francês (1755-1826), conhecido por seu tratado sobre a arte de comer. (N.T.)
41 M estre sufi famoso por seu misticism o expansivo, sua boêm ia e seu senso de h um or (967-1049). (N.T.)

LXXIV
Hakim Ik y

&c caros, quando poderíam os rM.u bebendo o vinho do Paraíso agora mesmo, sob
nossas próprias parreiras & liguei i.r.
A com ida pertence .10 leino da vid.i diária, a arena principal de todo ato
insurrecional de tornar-se poderoso, dc i<»la auto elevação espiritual, de toda re­
tom ada do prazer, de toda revolta contia a M á q u i n a Planetária do Trabalho &
seus desejos de imitação. M antenham o-nos longe dc iodo dogmatism o. Q ue o
caçador de um a tribo indígena americana possa alimentai sua alegria com um
esquilo frito; & o anarco-taoísta, com um punhado de damascos secos. Milarepa,
o tibetano, depois de dez anos de sopa de macarrão, comeu um bolo de manteiga
& alcançou a iluminação. Um bronco não percebe eros nenhum num cham panhe
fino; um feiticeiro pode se em briagar com um copo d ’água.
Nossa cultura, asfixiando-se em seus próprios poluentes, grita (como Goethe
gritou por luz ao morrer) “Mais LIG H T!” - como se esses efluentes poliinsaturados
pudessem de algum modo aliviar nosso sofrimento, como se a sua insossa falta de
peso, paladar &C características pudesse nos proteger da escuridão crescente.
Não! Esta últim a ilusão finalm ente nos parece cruel demais. Apesar de
nossas próprias tendências indolentes somos forçados a nos posicionar & protes­
tar. Boicote! Boicote! ABAIXO O LIGHT!

Apêndice: Cardápio para um Banquete N egro A narquista


(vegetariano & não vegetariano)

Caviar & blinis42; ovos com mais de cem anos; lulas & arroz
cozido na tinta; berinjelas cozidas com casca com alho preto
em conserva; arroz silvestre com nozes negras & cogumelos
negros; trufas na manteiga enegrecida; carne de caça marinada
em vinho do porto, grelhada no carvão, servida com fatias de
pão preto & guarnecida com castanhas assadas. Cuba-libres,
Guiness-&-champanhe; chá preto chinês. Musse de chocola­
te amargo, café turco, uvas negras, ameixas, cerejas etc.

42 Panquecas pequenas e finas, geralm ente servidas com caviar e um a espécie de coalhada. (N.T.)

LXXV
COMUNICA n o ESPECIAL DO
DI A DAS B R UXAS
MAGIA NEGRA COMO AÇÃO
REVOLUCIONÁRIA

PREPARE UMA TIN TU R A de açafrão puro & genuíno misturado


com água de rosas, adicionando, se possível, um pouco de sangue de
um galo negro. Num quarto silencioso, instale um altar com uma
vasilha cheia da tintura, uma caneta com ponta de ferro, sete velas
negras, incenso & um pouco de benjoim. O feitiço pode ser escrito
num papel ou pergaminho virgem. Desenhe o diagrama às 4 horas
da tarde de uma quarta-feira, de frente para o Norte. Copie o diagra­
ma de sete pontas (veja ilustração) sem levantar a caneta do papel,
numa operação contínua, prendendo a respiração & apertando a lín­
gua contra o céu da boca. Isso é o Barisan Laksamana, ou o Rei dos
Djins. Daí desenhe a Estrela de Davi (que representa um djim de
cinco pontas) & as outras partes do diagrama. Sobre a Estrela de
Davi, escreva o nome da pessoa ou instituição que será amaldiçoada.
M antenha o papel sobre a fumaça do benjoim & evoque os djins
branco & negro dentro de você:

Bismillah ar-Rahman ar-Rahim


as-salaam alikum
CAOS

( K Ura m o Djim, Resplendor de M aom é


rei de todos os espíritos dentro de m im
(), Negro Djim, sombra de m im mesmo
VÃO, destruam meu inimigo
— e se não o fizerem
considerem-se traidores de Alá —
pelo efeito do f eitiço
La illaha iliAllah
M oham m ad ar-Rasul Allah

Se a maldição for direcionada para um a pessoa opressora, um a boneca


de cera pode ser preparada & o feitiço, instalado.
a

Sete agulhas devem ser inseridas de cima para baixo no topo da cabeça, nas
axilas esquerda & direita, quadris esquerdo & direito, lábios ou narinas. Embrulhe a
boneca num a mortalha branca &Centerre-a no solo sobre o qual o inimigo com certeza
passará. Enquanto isso, recrute a ajuda dos espíritos da terra do local:

Bismillah ar-Rahman ar-Rahim


Ó, D jim da Terra, Espirito-sujo
O, Negro D jim que vive debaixo da terra
escute, vampiro do solo
Eu vos ordeno que marque e destrua
o corpo e a alma d e ______________
Obedeça minhas ordens
pois eu sou o verdadeiro e originalfeiticeiro
pelo efeito do feitiço
k La illaha iliAllah
M oham m ad ar-Rasul Allah

Se, no entanto, a maldição for direcionada a um a instituição ou em pre­


sa, colete os seguintes itens: um ovo cozido, um prego de ferro & três alfinetes de
ferro (enfie o prego &t os alfinetes no ovo); um escorpião, lagarto e/ou besouros

LXXVIII
I lakim Hcy

secos; um a pequena bolsa d< camurça com terra de cemitério, retalhos de ferro
magnetizado, goma fétida ÍV enxofre, fV .unarradacom um laço vermelho. C ostu­
re o feitiço num a seda amarela i\' sele o com cera vermelha. Coloque tudo isso
num a garrafa de boca larga, fcche com mlli.i ÍV sele com cera.
A garrafa pode agora ser cuidadosam ente em pacotada ôí enviada pelo
correio para a instituição-alvo - por exemplo, um programa de televisão evangéli­
co, o New York Post, a empresa M UZAK, uma escola ou universidade com uma
cópia da seguinte declaração (cópias extras podem ser enviadas para os funcioná­
rios, e/ou espalhadas de forma furtiva pelo prédio):

M aldição do D jim Negro M alaio

Estas instalaçõesforam amaldiçoadas por magia negra. A mal­


dição fo i realizada de acordo com rituais corretos. Esta insti­
tuição é amaldiçoada porque tem oprimido a Imaginação e
desonrado o Intelecto, degradado as artes a fim de estupidificá-
las e promovido a escravidão espiritual, a propaganda para o
Estado e o Capital, reações puritanas, lucros injustos, mentiras
e arruinamento estético.
Os funcionários desta instituição agora correm perigo. Nenhum
indivíduo fo i amaldiçoado, mas o local fo i infectado com má
sorte e malignidade. Aqueles que não despertarem epartirem, ou
* que não começarem a sabotar o local de trabalho, irão gradual­
mente sofrer os efeitos desta feitiçaria. Destruir ou remover o
instrumento destefeitiço não surtirá nenhum efeito. Ele fo i visto
neste local, e o local está amaldiçoado. Recupere sua humanida­
de e revolte-se em nome da Imaginação - ou será considerado
(sob o espelho deste feitiço) um inimigo da raça humana.

Sugerimos que o “crédito” desta ação seja dado a alguma outra institui­
ção culturalm ente ofensiva, com o a Sociedade Poética Americana ou a Cruzada
de Mulheres contra a Pornografia (dê o endereço com pleto).
Para contrabalançar o efeito que a evocação do djim negro pessoal possa
ter sobre você, tam bém sugerimos que envie um a benção mágica para alguém ou
algum grupo que você ame e/ou admire. Faça isso anonim am ente, & envie um
belo presente. N ão é necessário seguir nenhum ritual preciso, mas você deve per­
m itir que o im aginário brote da fonte da consciência num estado meditativo in ­
tuitivo/espontâneo. Use incenso aromático, velas vermelhas &C brancas, balas co­
loridas, vinho, flores etc. Se possível, inclua no presente prata, ouro ou jóias.
Este m anual da M aldição do D jim Negro Malaio foi preparado pelo
C om itê de Terrorismo Cultural da Câm ara dos Adeptos iniciados da H M O C A 4-’

43Sagrada Igreja O rtodoxa M uçulm ana na América. (N .E.)

LXXIX
CAOS

(“Terceiro Paraíso") de acordo com rituais autênticos & completos. Nós somos
Hsotéi icos N i/.m i.smaelitas; ou seja, xiitas heréticos & fanáticos cuja linhagem
espiritual provém de Hassan-i Sabbah através de Aladdin M oham m ad III, “o Lou­
co”, sétimo & últim o Pir de A lam ut (& não através da linhagem de Aga Khans).
Adotam os o m onism o radical & o antinom inalism o puro, & nos opom os a todas
as formas de lei & autoridade, em nom e do Caos.
Atualmente, por razões estratégicas, não recomendamos violência ou feiti­
çaria contra indivíduos. Proclamamos ações contra instituições & idéias- arte-sabo-
tagem & propaganda clandestina (incluindo rituais mágicos & “pornografia tântrica”)
- &c especialmente contra a venenosa mídia do Império das Mentiras. A Maldição
do D jim Negro representa apenas o primeiro passo na campanha do Terrorismo
Poético, que - acreditamos - vai gerar outras formas menos sutis de insurreição.

I.XXX
COMUNI CADO ESPECIAL
A AAO ANUNCIA EXPURGOS
NO MOVIMENTO DO CAOS

A TEO RIA D O CAOS deve, é claro, fluir impuramente. “O roceiro


preguiçoso ara sulcos tortos.” Qualquer tentativa de precipitar a for­
mação de um cristal ideológico iria gerar uma rigidez desconjuntada,
fossilizações, o uso de armaduras & uma aspereza a que preferiríamos
então renunciar, junto com toda a “pureza”. Sim, o Caos regozija-se
numa certa falta de forma desleixada semelhante à erótica desordem
daqueles que amamos por sua capacidade de destruir hábitos & reve­
lar mutabilidades. No entanto, essa flexibilidade não significa que a
Teoria do Caos deva aceitar todo sanguessuga que procura se prender
às nossas membranas sagradas. Certas definições ou deformações do Caos
merecem ser denunciadas, & nossa dedicação para com a desordem divina não
pode nos deter em desbancar os traidores & artistas oportunistas & vampiros
psíquicos que agora zum bem ao redor do Caos sob a impressão de que esta é a
tendência da moda. N ão propom os um a Inquisição em nom e de nossas defini­
ções, mas sim um duelo, um a disputa, um ato de violência ou de repúdio em ocio­
nal, um exorcismo. Primeiro, gostaríamos de definir & mesmo nom ear nossos
inimigos. (1) Todos estes artistas com fixação na m orte & mutilação que associam
o Caos exclusivamente com miséria, negatividade & uma pseudolibertinagem sem
alegria —aqueles que pensam que “além do bem & do mal” significa fazer o mal -
os intelectuais sadomasoquistas, seresteiros do apocalipse - os novos gnósticos
CAOS

dualisi.is, gcntc que odeia «> m undo & niilistas atrozes. (2) Todos estes cientistas
que vendem o ( aos tanto como um a força destruidora (por exemplo, armas com
raios dc partículas) quanto como um mecanismo para im por a ordem , com o no
caso do uso da m atem ática do Caos para estatísticas sociológicas & controle das
massas. Faremos um esforço para descobrir nomes & endereços nesta categoria.
(3) Iodos aqueles que se apropriam do Caos em nom e de algum esquema New
Age. Claro, nós não faremos nenhum a objeção se você quiser nos dar todo o seu
dinheiro, mas vamos deixar bem claro: vamos gastá-lo com prando m aconha ou
viajando para o M arrocos. Você não consegue vender água na beira do rio; o Caos
é a matéria sobre a qual os alquimistas falaram, que os tolos consideram mais
valiosa do que o ouro, em bora possa ser encontrada em qualquer pilha de lixo. O
maior inimigo nesta categoria é W erner Erhard, fundador do estAi, que agora está
engarrafando “Caos” & tentando vender franquias para os yuppóides. Segundo,
listaremos alguns dos nossos amigos, para dar um a idéia das tendências díspares
que desfrutamos dentro da Teoria do Caos: Caótica, a zona autônom a imaginária
descoberta por Feral Faun (tam bém conhecido por Feral Ranter); a Academia de
Artes Caóticas de T undra W ind; a revista KAOS, de Joel Birnoco; Chaos Inc., um
boletim inform ativo associado ao trabalho de Ralph Abraham, um proem inente
cientista do Caos; a Igreja de Eris; o Zen da Discórdia; a Igreja O rtodoxa Islâmica;
certas facções da Igreja dos Subgênios; a Sagrada Cruzada de Nossa Senhora do
Caos Perpétuo; os escritores associados com o “anarquism o tipo-3” &C periódicos
com o o Popular Reality etc. O s postos estão tomados. Caos não é entropia, Caos
não é morte, Caos não é um a mercadoria. Caos é criação contínua. O Caos nunca
m orreu.

44 Sigla de Erhard S em inarsT raining Inc., empresa criada pelo guru da adm inistração W erner Erhard, popular nos
anos 1970 e 1980. (N .E.)

I.XXXII
A N A R Q U IA D O P Ó S -
A N A R Q U I S M O

OS M EM BRO S DA AAO reúnem-se em conclave, turbantes ne­


gros & túnicas reluzentes, esparram ados sobre tapetes persas
bebericando café turco &C fum ando narguilé. A Q U ESTÃ O : Q ual
nossa posição diante de todas essas retiradas & deserções do
anarquism o (especialmente na Califórnia): condenam os ou tole­
ramos? Expurgamos a todos ou os saudamos como vanguarda?
Elite gnóstica... ou traidores?
Na verdade, nutrim os um a profunda sim patia pelos desertores & suas
várias críticas ao anarquISM O . Com o Simbad & o Velho M edonho, o anarquismo
cambaleia por aí com o cadáver de um m ártir magicamente preso aos seus ombros
- perseguido pelo legado do fracasso & pelo masoquismo revolucionário - a es­
tagnada água negra da história perdida.
Entre um passado trágico & um futuro impossível, o anarquism o parece
carecer de um presente - com o se tivesse medo de se perguntar, aqui & agora,
QUAIS SÃO M EU S V ERD A D EIRO S DESEJOS? - & o que PO SSO fazer an­
tes que seja tarde demais?... Isso mesmo, imagine-se diante de um feiticeiro que
perniciosam ente lhe encare & pergunte: “Q ual é o seu Verdadeiro Desejo?” Você
disfarça, gagueja, se refugia em platitudes ideológicas? Você possui tanto imagina­
ção quanto força de vontade, pode Sonhar & O usar ao mesmo tem po —ou você é
um crédulo incauto de um a fantasia impotente?
Olhe-se no espelho &C tente... (pois uma de suas máscaras é o rosto de um feiticeiro)...
O “m ovim ento” anarquista de hoje virtualm ente não possui nenhum
negro, hispano-am ericano, índio ou criança... m uito em bora, em teoria, esses gru­
pos realmente oprim idos seriam os que mais ganhariam com qualquer revolta
antiautoritária. Será que o anarquISM O não oferece um program a concreto atra­
CAOS

vés tl<> qual os i|iic s.io realmente destituídos poderiam satisfazer (ou pelo menos
dc forma n-alisia lutai para satisfazer) suas necessidades & desejos reais?
Sc- isso for verdade, então este fracasso explicaria não apenas a falta de apelo
que o anarquismo exerce sobre os pobres & marginais, mas também a insatisfação &
deserções dentro de seus próprios quadros. Manifestações, piquetes & reedições dos
clássicos do século XIX não geram uma conspiração ousada & vital para a autolibertação.
Se quisermos que o movimento cresça ao invés de definhar, muito peso morto deve ser
lançado fora & algumas idéias arriscadas precisam ser aceitas.
O potencial existe. A qualquer m om ento, um grande núm ero de am e­
ricanos irá notar que está sendo forçado a engolir um a porção de lixo reacioná­
rio, entediante, histérico & artificialm ente arom atizado. Um am plo coro de
gem idos, grunhidos & ânsias de vôm ito... m ultidões enfurecidas invadindo os
shopping centers, destruindo & saqueando... etc. etc. A Bandeira N egra pode­
ria prover um foco para o ultraje & canalizá-lo para um a insurreição da Im agi­
nação. Poderíam os resgatar o esforço que foi abandonado pelo Situacionism o
em 1968 &; pelo A utonom ism o nos anos 1970, & levá-lo ao próxim o estágio.
Poderíam os ter revolta nos nossos tem pos - &, nesse processo, poderíam os com ­
preender m uitos de nossos verdadeiros desejos, mesmo que se por apenas uma
tem porada, um a breve U topia Pirata, um a pervertida zona-livre den tro do ve­
lho contínuo do espaço-tem po.
Se a AAO retém sua afiliação com o “m ovim en to ”, isso ocorre não
por um a rom ântica predileção por causas perdidas - pelo m enos não só por
isso. D entre todos os “sistem as políticos”, o anarquism o (apesar de suas fa­
lhas, & precisam ente porque não é nem político nem um sistem a) é o que
mais se aproxim a de nossa com preensão de realidade, ontologia, natureza do
ser. Q u a n to aos desertores... concordam os com suas críticas, mas notam os
que eles parecem não oferecer nenh u m a alternativa poderosa. Por isso, por
en q u a n to , preferim os nos concentrar em transform ar o anarquism o por d en ­
tro. C am aradas, este é nosso program a:
1. Procure compreender que um racismo psíquico substituiu o preconceito
escancarado como um dos mais repugnantes aspectos da nossa sociedade. Participação
imaginativa em outras culturas, especialmente aquelas com as quais convivemos.
2. Abandone toda pureza ideológica. Abrace o anarquismo “T ipo-3” (para
usar o slogan de Bob Black): nem coletivista nem individualista. Limpe o templo
dos ídolos da vaidade, livre-se do Velho M edonho, das relíquias & dos martirológicos.
3. O m ovim ento antitrabalho ou “Trabalho-Zero” é extrem am ente im ­
portante, incluindo um ataque radical & talvez violento à Educação & ao servilis­
mo cias crianças.
4. Desenvolva um a rede sam izdat45 americana, substitua as táticas ultra­
passadas de publicação/propaganda. Pornografia & entretenim ento popular como
veículos de um a reeducação radical.

Publicações clandestinas na antiga U nião Soviética. (N.T.)

LXXXIV
Hakim Bcy

5. Na música, a hegemonia tia batida 2/4 & 4 /4 deve ser destruída.


Precisamos de um a músii a nova, totalm ente insana mas que afirme a vida, ritm i­
camente sutil mas poderosa, ÍV piei r..mios dessa música AGORA.
6. O anarquism o necessita alasiat se <|o maierialismo evangélico & do
banal cientificismo bidim ensional do séi 111o XIX. Estudos mais elevados de cons­
ciência” não são meros FANTASMAS inventados poi padtes malignos. O O rien­
te, o oculto, as culturas tribais possuem técnicas que podem sei "apropriadas” de
uma forma verdadeiram ente anarquista. Sem “estados mais elevados de consciên­
cia”, o anarquism o acaba &C se resseca num certo tipo de miséria, a reclamação
chorosa. Precisamos de um tipo prático de “anarquism o místico”, livre de toda
merda New Age &C inexoravelmente herético &C anticlerical; ávido por todas as
novas tecnologias de consciência & metanóia - uma democratização do xamanismo,
embriagada & serena.
7. A sexualidade sofre um forte ataque, obviam ente da Direita, de forma
mais sutil do m ovim ento de pseudovanguarda da “pós-sexualidade”, & de forma
ainda mais sutil da Recuperação Espetacular na mídia & na propaganda. É chega­
do o m om ento para um passo adiante na conscientização de um a política sexual,
um a reafirmação explosiva do eros polimorfo - (até mesmo & especialmente diante
do flagelo &c da depressão) - , um a glorificação literal dos sentidos, um a doutrina
do deleite. A bandone todo ódio ao m undo & toda vergonha.
8. Experim ente novas táticas para substituir a obsoleta bagagem das Es­
querdas. C oloque ênfase nos benefícios práticos, materiais & pessoais de um
networking radical. O m om ento talvez possa não parecer apropriado para violên­
cia ou militância, mas um pouco de sabotagem & rupturas imaginativas nunca é
demais. Trame & conspire, não pragueje nem gema. O M undo da Arte, em parti­
cular, merece um a dose de “Terrorismo Poético”.
9. A desespacialização da sociedade pós-industrial traz alguns benefícios
(por exemplo, a com unicação via com putador), mas pode tam bém se manifestar
com o um a form a de opressão (abandono, massificação, arquitetura despersona-
lizada, destruição da natureza etc.). As com unas dos anos 1960 tentaram ludibriar
essas forças, mas fracassaram. A questão do terreno recusa-se a desaparecer. Com o
podem os separar o conceito de espaço dos mecanismos de controle? Os gângsteres
do território, as Nações/Estados, tom aram o mapa inteiro. Q uem pode inventar
para nós um a cartografia da autonom ia, quem pode desenhar um mapa que in­
clua nossos desejos?

A narquIS M O em últim a análise implica anarquia - & anarquia é caos.


Caos é princípio da criação contínua... & o Caos nunca morreu.

Sessão Plenária da AAO


Nova York, março de 1987

LXXXV
COROA NEGRA &
R O S A N E G R A
ANARCO-MONARQUISMO &
ANARCO-MISTIC1SMO

Q U A N D O D O R M IM O S, SON H A M O S com apenas dois tipos


de governo - anarquia & monarquia. A raiz primordial da consciên­
cia não compreende nenhuma política & nunca joga limpo. Um so­
nho democrático? Um sonho socialista? Impossível.
N ão im porta se meus REMs revelem vertiginosas visões quase proféticas
ou meras satisfações de desejos vienenses, apenas reis & povos selvagens povoam
meus sonhos. M ônadas & nômades.
Um dia nublado (quando nada brilha com luz própria) induz & insinua
& sugere que nos com prom etam os com um a realidade triste & sem lustro. Mas
em sonho nada nos governa a não ser o am or ou a feitiçaria, que são habilidades
de seguidores do caos & sultãos.
N o meio de um povo que não pode criar nem brincar, que sabe apenas
trabalhar, os artistas tam bém não têm nenhum a alternativa a não ser a anarquia
ou a m onarquia. C om o o sonhador, eles necessitam possuir, &c de fato possuem,
suas próprias percepções, & para isso precisam sacrificar o que é m eram ente social
a favor de um a “musa tirana”.
A arte morre quando é tratada “sensatamente”. Ela precisa deleitar-se na
selvageria dos hom ens das cavernas ou então ter a boca cheia de ouro pela mão de
algum príncipe. Os burocratas &C o departam ento comercial envenenam -na, os
professores mastigam -na & os filósofos cospem-na. A arte é um tipo de barbarida­
de bizantina feita apenas para nobres & bárbaros.
CAOS

Sc você tivesse conhecido a doçura da vida com o poeta no reino venal,


corrupto, decadente, disfuncional & ridículo de algum paxá ou emir, algum xá,
dc algum rei Farouk, de alguma rainha da Pérsia, você saberia que é exatamente
isso <> que todo anarquista deve querer. C om o aqueles voluptuosos insensatos já
mortos amavam poemas &C pinturas, como eles absorveram todas as rosas & bri­
sas, todas as tulipas & alaúdes!
Sim, odeie sua crueldade & seus caprichos - mas pelo menos eles eram
hum anos. O s burocratas, por outro lado, que besuntam as paredes da m ente com
sujeira inodora —tão gentis, tão gemutlich - que poluem a atmosfera interior com
entorpecim ento —não são dignos nem de merecer o ódio. Eles mal existem para
além das idéias sem vida a que servem.
Ademais: o sonhador, o artista, o anarquista - não com partilham um quê
de capricho cruel com o mais abominável dos mongóis? Pode a vida genuína ocorrer
sem alguma loucura, algum excesso, alguns acessos de “contendas” heraclitinianas?
Nós não governamos —mas não podemos ser &C não seremos governados.
Na Rússia, os anarquistas narodnik46 às vezes forjavam um ukase, ou
manifesto em nom e do czar, no qual o autocrata reclamava que lordes ganancio­
sos & oficiais sem coração o haviam trancado em seu palácio & o separado do seu
am ado povo. Ele proclamava o fim do servilismo &í conclamava os camponeses &
trabalhadores a se rebelarem contra o governo em Seu Nome.
Várias vezes esse estratagema logrou conflagrar revoltas. Por quê? Porque
um soberano único & absoluto funciona m etaforicamente com o um espelho para
o singular & profundo absolutism o do ser. Cada camponês ou camponesa olhou
profundam ente para esta lenda esfumaçada & encontrou nela sua própria liberda­
de - um a ilusão, que rouba sua magia da lógica dos sonhos.
Um m ito semelhante deve ter inspirado os ranters, os antinom ianos & os
homens da quinta monarquia, no século XVII, a congregarem-se sob a bandeira
jacobina com suas intrigas eruditas & conspirações sangrentas. Os místicos radicais
foram traídos primeiro por Cromwell & depois pela Restauração - portanto, por
que não se aliarem a cavaleiros irreverentes & condes afetados, aos homens da rosa-
cruz & maçons do rito escocês, para colocar um messias oculto no trono de Albion?
Entre aqueles que não conseguem conceber um a sociedade hum ana sem
um monarca, os desejos radicais talvez possam ser expressos em term os m onár­
quicos. Entre aqueles que não podem conceber a existência hum ana sem um a
religião, desejos radicais talvez falem o idiom a da heresia.
O taoísm o rejeitou toda a burocracia confuciana, mas manteve a im a­
gem do Im perador-Sábio, que se senta silencioso em seu trono m irando um a
diieção propícia & não fazendo absolutam ente nada.
N o Islã, os ismaelitas tom aram a idéia do Imã da Família do Profeta & a
m etam orfosearam em Imã-de-seu-próprio-ser, o ser perfeito estabelecido além de

46 M em bro do m ovim ento socialista russo do século XIX, que acreditava no despertar das massas pela propaganda
política. D o russo narodnik, “populista". (N.T.) <

LXXXVIII
Hakim Bcy

toda Lei & regra, reconciliado com o Uno. F. essa doutrina levou-os a se revolta­
rem contra o Islã, a sofrerem ......... :. homicídio em nome de um a realização do
ser puram ente esotérica & da total lilx ita*,ao.
O anarquism o clássico tio sei ulo XIX definiu se em meio à batalha con­
tra a coroa &C a igreja, &, portanto, num nível const iente, considerava-se igualitá­
rio & ateísta. N o entanto, essa retórica obscurece o que de lato ocorre: o “rei”
torna-se o “anarquista”, & o “sacerdote”, um “herege”. Nesse estranho dueto de
m utabilidade, não há lugar para o político, o dem ocrata, o socialista, o ideólogo
racional: eles não podem escutar a música & não têm ritm o nenhum , ü terrorista
& o monarca são arquétipos; os outros são meros funcionários.
Flouve um tem po em que o anarquista & o rei estrangulavam a garganta
um do outro & valsavam um totentanz —um a batalha esplêndida. Agora, no en­
tanto, os dois estão relegados à lata de lixo da história - “já-eras”, curiosidades de
um passado ocioso & mais sofisticado. Eles giram tão rápido que parece que se
fundem ... poderiam eles de algum m odo terem se tornado um a coisa só, com o
gêmeos siameses, um a Juno, um a unidade exótica? “O sonho da Razão...” ah! os
monstros mais desejados & desejosos!
O Anarquism o O ntológico declara de forma direta, abrupta & quase
sem pensar: sim, os dois agora se tornaram um. O anarquista/rei renasceu como
uma única entidade; cada um de nós é o m andante de sua própria carne, de suas
próprias criações —& de tudo o mais que puderm os agarrar &C segurar.
Nossas ações são justificadas por decreto & nossos relacionamentos se
moldam por acordos com outros autocratas. Fazemos as leis para os nossos pró­
prios dom ínios —& as correntes da lei foram quebradas. N o m om ento presente,
talvez, sobrevivemos com o meros Pretendentes - mas mesmo assim alcançamos
alguns instantes, alguns metros quadrados de realidade sobre o qual impom os
nossa vontade, nossa realeza. L ’etat, cest moi.
Se nos limitarmos por qualquer ética ou moral, é necessário que seja uma
que nós mesmos tenhamos imaginado, fabulosamente mais exaltada & libertária que
o “ácido moral” dos puritanos & humanistas. “Sois como os deuses” - “Sois Isto.”

As palavras monarquismo &C misticismo estão sendo empregadas aqui em


parte sim plesm ente pour épater/i7aç[\ic\es anarquistas igualitários &C ateístas que
reagem com pio horror a qualquer menção de pom pa ou com portam entos su­
persticiosos. N enhum a revolução com cham panhe para eles\
Por outro lado, nosso ramo de antiautoritarism o prospera em paradoxos
barrocos; prefere estados de consciência, emoção & estética a todos os dogmas &C
ideologias petrificadas; abraça as m ultidões &C deleita-se em contradições. O
A narquismo O ntológico é um bicho de sete cabeças para G RA N D ES mentes.
A tradução do título (& palavra-chave) do opus magnum de Max Stirner por
O Ego & Seu Próprio acarretou num sutil erro de interpretação do que é o “individua-

<7Em francês no original: “para chocar, em basbacar”. (N .E.)

LXXXIX
CAOS

lismo". A p.il.ivi.i .mglo l.itiiu ego está carregada & saturada com um a carga freudiana
& proicsianu\ I Jma leitura cuidadosa de Stirner sugere que O Único & Sua Proprieda­
de talve/ refletisse melhor as suas intenções, uma vez que ele nunca define o ego em
oposição à libido ou ao id, ou em oposição à “alma” ou “espírito”. O Unico (derEinzige)
talvez seja mais bem compreendido simplesmente como o ser individual.
Stirner não se com prom ete com nenhum a metafísica, no entanto, outorga
um certo valor absoluto ao Unico. De que forma então este Einzige difere do Ser do
advaita vedanta? Tat tvam asi: Sois (o ser individual) Isto (o Ser Absoluto).
M uitos acreditam que o misticismo “dissolve o ego”. Besteira. Apenas a
m orte faz isso (ou pelo menos de acordo com nossos pressupostos saduceus). E o
misticismo tam bém não destrói o ser “carnal” ou “anim al” - o que tam bém acar­
retaria suicídio. O que o misticismo realmente tenta superar é a falsa consciência,
a ilusão, a realidade consensual ÒC todos os fracassos do ser que acom panham essas
enfermidades. O verdadeiro misticismo cria um “ser em paz”, um ser com poder.
A m eta mais alta da metafísica (alcançada, por exemplo, por Ibn Arabi, Boehme,
Ramana M aharshi) é, de certo modo, a autodestruição, a identificação U NA do
metafísico & do físico, do transcendente & do imanente. Certos monistas radicais
levaram essa doutrina para além do mero panteísm o ou misticismo religioso. A
percepção da im anente unidade do ser inspira certas heresias antinom ianas (os
ranters, os Assassinos) a quem nós consideram os nossos ancestrais.
O próprio Stirner parece surdo às possíveis ressonâncias espirituais do
individualism o - & nisso ele pertence ao século XIX: nascido m uito depois da
decadência do cristianismo, mas m uito antes da descoberta do O riente & da se­
creta tradição ilum inista da alquim ia ocidental, da heresia revolucionária & do
ativismo oculto. Stirner corretam ente desprezou o que ele com preendeu por “mis­
ticismo”, um a mera sentim entalidade piedosa baseada em auto-abnegação & ódio
do m undo. Nietzsche cerrou as portas para “D eus” alguns anos mais tarde. Desde
então, quem ousaria sugerir que o individualismo & o misticismo poderiam ser
reconciliados & sintetizados?
O elem ento que falta em Stirner (Nietzsche chegou mais perto) é o uso
de um conceito de consciência não ordinária. A compreensão do ser único (ou
ubermensch) deve reverberar & expandir-se com o ondas ou espirais ou música
para abranger a experiência direta ou a percepção intuitiva da singularidade da
própria realidade. Essa compreensão engolfa & dissolve toda dualidade, dicotom ia
& dialética. Ela carrega em si, com o um a corrente elétrica, um senso de valor
intenso & indescritível: ela “diviniza” o ser.
Ser/consciência/êxtase {satchitananda) não pode ser descartado m eram en­
te com o mais um a “excentricidade” ou um “castelo nas nuvens” de Stirner. Esse
conceito não invoca nenhum princípio transcendente exclusivo para o qual o
Einzige deve sacrificar a sua individualidade própria. Ele sim plesm ente constata
que um a intensa consciência da própria existência acarreta “êxtase” —ou, num a
linguagem menos carregada, “consciência valorativa”. Afinal de contas, o objetivo
do U nico é possuir tudo\ o m onista radical obtém isso através da identificação
XC
Hakim IU y

entre ser & percepção, com o o pimoi i liinês de bico de pena que “se transforma
no bam bu” para que “ele mesmo se pinte".
Apesar das misiei ios.is alu.i ><•. de Stu nei á “união dos Únicos” & apesar dos
eternos “vivas” & da exaltação da vida leita poi Nietzsche, o individualismo deles
parece estar, de alguma forma, moldado poi uma cena fric.ui r/n rcLição ao outro. Isso
se deu, em parte, porque eles cultivavam uma tonificante & purificadora distância da
estufa de sentimentalidade &C altruísmo do século XIX; em parte, porque eles
simplesmente desprezavam o que alguém (M encken?)cliam oude"l lomo l .stupidus”.
N o entanto, lendo por trás & por baixo da camada de gelo, descobrimos
traços de um a doutrina ardente - que G aston Bachelard poderia ter cham ado de
“um a Poética do O u tro ”. A relação do Einzige com o O utro não pode ser definida
ou lim itada por nenhum a instituição ou idéia. E ntretanto, de forma clara, ainda
que paradoxal, o U nico depende do O utro para ser com pleto, & não pode não
será um ser realizado em isolamento.
O s exemplos dos “m eninos-lobo”, ou enfants sauvages, indicam que um
infante hum ano desprovido da com panhia hum ana por m uito tem po jamais atin­
girá um nível de hum anidade consciente - nunca adquirirá um a linguagem. A
Criança Selvagem talvez proporcione um a metáfora poética para o Unico - &
ainda assim, ao mesmo tem po, marca o ponto preciso onde o U nico & o O utro
devem se encontrar, se fundir, se unificar — para não fracassarem em atingir &
possuir tudo aquilo de que são capazes.
O O u tro espelha o Ser - o O u tro é nossa testemunha. O O u tro com ­
pleta o Ser —o O u tro nos dá a chave da percepção da unidade-do-ser. Q u an d o
falamos de ser & consciência, apontam os para o Ser; quando m encionam os
êxtase, referim o-nos ao O utro.
A aquisição da linguagem coloca-se sob o signo de Eros —toda com uni­
cação é essencialmente erótica, todas as relações são eróticas. Avicena &C D ante
declararam que é o am or que move as estrelas & os planetas —tanto o Rig Veda
quanto a Teogonia, de Hesíodo, proclamam o Amor como o prim eiro deus a nas­
cer depois do Caos. Afeições, afinidades, percepções estéticas, criações de beleza,
convívio - todas as mais preciosas posses do Unico surgem da conjunção entre o
Ser & o O u tro na constelação do Desejo.
Novamente, o projeto iniciado pelo individualismo pode ser desenvolvido
& revigorado com um enxerto de misticismo - especialmente o tantra. Com o uma
técnica esotérica distanciada do hinduísm o ortodoxo, o tantra provê um contexto
simbólico (“Rede de Jóias”) para a identificação do prazer sexual & consciência não
ordinária. Todas as seitas antinomianas contiveram alguns aspectos “tântricos”, des­
de as famílias de Amor & Fraternidade Livres &c adamitas48 da Europa aos sufis
pederastas da Pérsia &C aos taoístas alquimistas da China. Até mesmo o anarquismo
clássico usufruiu seus momentos tântricos: os falanstérios de Fourier; o “Anarquismo

48 M em bro de seita que surgiu no século II e reapareceu no século XV. Seus adeptos apresentavam -se nus para
im itar o estado original de inocência de Adão. (N.T.)

XCI
CAOS

M ístico” ilc* ( . Iv.mov <!V outros simbolistas russos do fim do século; o erotismo
incestuoso dc S/tninc, dc Arzibashaev; a estranha combinação de niilismo & adora-
ção deusa Kali que inspirou o Partido Terrorista de Bengala (ao qual meu guru
tAntrico, Sri Kamanaransan Biswas, teve a honra de pertencer)...
Nós, no entanto, propom os um sincretismo m uito mais profundo entre
anarquia & tantra do que qualquer um desses exemplos. De fato, sim plesm ente
sugerimos que o Anarquism o Individual & o M onism o Radical sejam, daqui por
diante, considerados um único & mesmo movimento.
Este híbrido tem sido cham ado de “materialismo espiritual”, um termo
que queim a toda a metafísica no fogo da unidade entre espírito & matéria. Tam ­
bém gostamos de “A narquia O ntológica”, porque sugere que o ato de ser perm a­
nece num estado de “Caos divino”, de total potencialidade, de criação contínua.
Nesse fluxo, apenas um jiv a m ukti, ou “indivíduo liberado”, atinge a
auto-realização &C é, portanto, senhor & proprietário de suas percepções & rela­
ções. Nesse fluxo incessante, apenas o desejo oferece qualquer princípio de or­
dem , &, portanto, a única sociedade possível (como bem com preendeu Fourier) é
aquela formada por amantes.

O anarquismo está morto, vida longa para a anarquia! Já não precisamos


da bagagem do masoquismo revolucionário & do auto-sacrifício idealista - nem da
frigidez do individualismo com o seu desdém pelo convívio, pelo viver ju n to - ou
das superstições vulgares do ateísmo, cientificismo & progressismo do século XIX.
Todo esse peso morto! Ao lixo com as maletas maltratadas dos proletários, com as
pesadas malas de viagem burguesas, com os entediantes sobretudos filosóficos.
Desses sistemas, queremos apenas sua vitalidade, sua força-vital, sua
ousadia, sua intransigência, sua raiva, sua im prudência - seu poder, sua shakti.
Antes de jogar fora toda a tralha &C mochilas velhas, vamos vasculhar o depósito à
procura de dinheiro, revólveres, jóias, drogas &C outros itens úteis - ficar com o
que gostarmos & lançar mão do resto. Por que não? Somos lá sacerdotes de algum
culto, para rezar por sobre restos mortais & resmungar nosso martirológio?
O m onarquism o tam bém possui algo que queremos —um a certa graça,
um a certa leveza de ser, um orgulho, uma superabundância. Ficaremos com isso,
&C jogaremos o peso do autoritarism o & da tortura na lata de lixo da história. O
misticismo tem algo que queremos - “auto-superação”, consciência exaltada, re­
servatórios de potência psíquica. A propriaremos-nos disso em nom e do nosso
levante - & deixaremos que os infortúnios da moralidade &c da religião apodre­
çam & se decom ponham .
* C om o os ranters diziam quando cum prim entavam qualquer “criatura
com panheira” —de um rei a um trom badinha —, “Regozije-se! Tudo é nosso!”

XCII
I N S T R U Ç Õ E S P AR A A
K A L I Y U G A

A KALI YUGA AINDA TEM mais ou menos 200 mil anos para brin­
car - uma boa notícia para advogados & avatares do Caos, mas uma má
notícia para brâmanes, jeovistas, deuses da burocracia & seus lacaios.
Eu sabia que Darjeeling guardava alguma coisa para mim assim que ouvi o
seu nome —dorje ling—cidade do trovão. Cheguei um pouco antes das monções, em
1969. Antiga estação montanhosa britânica, sede de verão para o governo de Benga­
la —ruas com a forma de escadas de madeira curvas, do mercado avistava-se Sikkim
&C o M onte Katchenhunga - templos &c refugiados tibetanos - belas pessoas de
porcelana amarela chamadas Lepchas (os verdadeiros aborígines) - hindus, m uçul­
manos, nepaleses & budistas butaneses, além de ingleses decadentes que perderam
o caminho para casa em 1947, ainda à frente de bancos antiquados & lojas de chá.
C onheci Ganesh Baba, um saddhu gordo & de barbas brancas com um
hiperimpecável sotaque de Oxford - nunca vi ninguém fum ar tanta maconha,
um narguilé cheio após o outro, perambulávamos pelas ruas, onde ele jogava bola
com crianças barulhentas ou arrumava brigas nos bazares, perseguindo funcioná­
rios do comércio assustados com seu guarda-chuva, & m orrendo de rir.
Ele me apresentou a Sri Kamanaransan Biswas, um hom em de meia-
idade, pequeno & delicado, m etido num terno surrado. Era funcionário do go­
verno de Bengala & se ofereceu para me ensinar tantra. O senhor Biswas vivia
num m inúsculo bangalô empoleirado num m orro íngreme, enevoado &C salpica­
do de pinheiros, onde eu o visitava diariam ente com doses de conhaque barato
para puja &C bebericagens —ele me encorajava a fumar enquanto conversávamos,
um a vez que, para Kali, tam bém a m aconha é sagrada.
Em sua selvagem juventude, o senhor Biswas havia sido membro do Parti­
do Terrorista de Bengala, que incluía tanto adoradores de Kali & místicos m uçul­
CAOS

manos lu -iu u <>•. quanto anarquistas & extremistas de esquerda. Ganesh Baba pare­
cia apiovut *-.m passado secreto, como se fosse um sinal da força tântrica oculta do
senhoi Kiswas, escondida por trás de sua aparência externa dócil & acomodada.
Nós discutim os minhas leituras de Sir John W oodruffe (A rthur Avalon)
todas as tardes. Eu caminhava até lá através da neblina fria do verão, de arm adi­
lhas de espíritos tibetanas adejando na brisa úm ida que surgia da brum a & dos
cedros. Praticávamos oT ara-m antra &C oT ara-m udra (ou Yoni-mudra), &C estudá­
vamos o diagram a Tara-iantra para fins mágicos. Uma vez, visitamos um templo
para o M arte hindu (como o nosso, ao mesmo tem po planeta & deus da guerra),
onde ele com prou um anel de dedo feito de prego de ferradura de cavalo & me
deu. Mais conhaque &í maconha.
Tara: um a das formas de Kali, m uito semelhante em atributos. Meio
anã, nua, com quatro braços armados, dançando sobre um Shiva m orto, colar de
crânios de cabeças cortadas, língua gotejando sangue, pele de um profundo azul-
cinzento (a cor precisa das nuvens das m onções). Io d o dia, mais chuva -
deslizamentos de terra bloqueando as estradas. Meu visto de perm anência em área
fronteiriça expira. O senhor Biswas & eu descemos as deslizantes m ontanhas do
Himalaia de jipe &C de trem rum o à sua cidade natal, Siliguri, localizada nas planí­
cies de Bengala, onde o Ganges estende-se num encharcado delta verdejante.
Visitamos sua esposa no hospital. No ano anterior, um a enchente havia
subm ergido Siliguri & m atado dezenas de milhares de pessoas. Houve um a epide­
mia de cólera, a cidade inteira parecia um naufrágio, m anchada de algas &C arrui­
nada, as paredes do hospital ainda estavam empastadas de lodo, sangue, vômito,
os líquidos da m orte. Ela senta-se silenciosa na sua cama olhando sem piscar para
destinos horrendos. O lado negro da deusa. Ele me dá um a litografia colorida de
Tara que m iraculosam ente flutuou sobre a água & foi salva.
N aquela noite assistimos a um a cerim ônia no tem plo local para Kali,
um pequeno, hum ilde & meio arruinado santuário à beira da estrada - a luz
proveniente de tochas era a única ilum inação - cânticos & tambores com uma
síncope estranha, quase africana, totalm ente anticlássica, prim ordial &C no en tan­
to insanam ente complexa. Bebemos, fumamos.
Só no cemitério, próximo a um cadáver meio-queim ado, sou iniciado
no Tara Tantra. N o dia seguinte, febril & distante, dou adeus fk. sigo para Assam,
para o grande tem plo do yoni de Shakti, em G auhati, em tem po para o festival
anual. Assam é território proibido & eu não tenho um visto. À m eia-noite, em
G auhati, caio fora do trem , volto pelos trilhos sob chuva & com lama até os
joelhos em total escuridão, ando às cegas até finalm ente entrar na cidade & en­
contro um hotel cheio de insetos. Estou doente com o um cão. N ão durm o.
De m anhã, viagem de ônibus para o templo, que fica num a m ontanha
próxima. Torres enormes, divindades pululantes, pátios, edifícios anexos - cente­
nas de milhares de peregrinos —saddhus esquisitos vindos de suas cavernas de gelo
atarracados em peles de tigre & cantando. Ovelhas & pom bos estão sendo abati­
dos aos milhares, um a verdadeira hecatom be - (nenhum outro sahib branco em
XCIV
Hakim Ihy

vista) - as sarjetas escoam um.i polegada de sangue - espadas-Kali de lâmina curva


cortam cortam cortam , cabeças mortas rolam nas pedras escorregadias da rua.
Q uando Shiva coi tou Sh.iL.(i <m S \ pedaços & os espalhou sobre toda a
bacia do Ganges, sua vagina caiu l.i Alguir. i. ndo tes amigáveis falam inglês &t
me ajudam a encontrar a caverna omle o yom * i .i exposto. Nessas alturas, sei que
estou seriam ente doente, mas determ inado a terminai o ntual. Uma m ultidão de
peregrinos (todos ao menos um a cabeça mais baixos do que eu) literalm ente me
engolfam com o a correnteza do mar 6c me carregam suspenso enquanto desce­
mos umas escadas curvas, asfixiantes & trogloditas até enttarm os num a i averna-
ventre claustrofóbica onde sou levado, tonto & nauseado, com alucinações, em
direção a um m eteorito, meio cônico, meio disforme, manchado por séculos de
ghee &c ocre. A m ultidão abre-se para mim & me perm ite atirar uma guirlanda de
jasmins sobre o yoni.
Uma semana mais tarde, em K atm andu, dei entrada no I lospital Missio­
nário G erm ânico (por um mês) com hepatite. Um pequeno preço a pagar para
todo aquele conhecim ento - o fígado de algum coronel aposentado de um a histó­
ria de Kipling! - mas eu a conheço, eu conheço Kali. Sim, absolutam ente o arqué­
tipo de todo aquele horror, mas, para aqueles que a conhecem, ela se torna a mãe
generosa. Mais tarde, num a caverna na selva além de Rishikish, meditei sobre
Tara por m uitos dias (com m antra, iantra, m udra, incenso &C flores) & retornei à
serenidade de Darjeeling & de suas visões benéficas.
Sua era deve conter horrores, pois a maioria de nós não pode compreendê-
la ou alcançar a guirlanda de jasmins além do colar de crânios, percebendo até que
ponto são a mesma coisa. Atravessar o Caos, cavalgá-lo com o um tigre, abraçá-lo
(mesmo sexualmente) &í absorver algo de sua shakti, sua força-vital - esse é o
cam inho da Kali Yuga. Niilismo criativo. Para aqueles que seguem o cam inho, ela
prom ete ilum inação &C até mesmo riqueza, um a parcela de seu poder temporal.
A sexualidade &c a violência servem como metáforas num poem a que
age diretam ente sobre a consciência através da Imagem-inação - ou talvez nas
circunstâncias corretas elas possam ser abertam ente distribuídas & gozadas, em ­
bebidas com o sentido do sagrado de cada coisa, desde o êxtase & o vinho até o
lixo & os cadáveres.
Aqueles que a ignoram ou a vêem fora de si mesmos estão arriscados de
destruição. Aqueles que a adoram com o ishta-devata, ou ser divino, degustam de
sua Era do Ferro com o se fosse ouro, conhecendo a alquim ia de sua presença.

xcv
CONTRA A REPRODUÇÃO
D A M O R T E

UM DOS SINAIS DA APROXIMAÇÃO do Fim - que tantos pare­


cem esperar - consiste em um fascínio por todos os detritos mais
negativos &C odiosos da época, um fascínio sentido pelos próprios
pensadores que se consideram os mais perspicazes sobre o assim cha­
mado apocalipse sobre o qual nos alertam. Estou falando de pessoas
que conheço muito bem - aquelas da “direita espiritual” (como os
neoguenonianos, com sua obsessão por sinais de decadência) - &
aquelas da esquerda pós-filosófica, os neutros ensaístas da morte, pro­
fundos conhecedores das artes da mutilação.
Para ambos esses grupos, toda ação possível no inundo é depreciada como
mais um a manifestação da coisa de sempre - tudo se torna igualmente sem senti­
do. Para os tradicionalistas, nada im porta a não ser preparar a alma para a m orte
(não apenas a sua própria, mas tam bém a do m undo todo). Para o “crítico cultu­
ral”, nada im porta a não ser o jogo de encontrar um a razão a mais para o desespe­
ro, analisá-la, adicioná-la ao catálogo.
O Fim do M undo é um a abstração porque nunca aconteceu. Ele não
tem n en h u m a existência no m undo real. Cessará de ser um a abstração apenas
qu an d o ocorrer —se ocorrer. (N ão pretendo conhecer “o pensam ento de D eus”
sobre o assunto — nem possuo qualquer conhecim ento científico sobre um
fu tu ro ainda não existente.) Vejo apenas um a im agem m ental &C suas ram ifi­
cações em ocionais; de tal form a que o identifico com o um tip o de vírus
fantasm agórico, um a estranha doença den tro de m im m esm o, que deve ser
elim inada em vez de ser hipocondriacam ente cozida em b an h o -m aria & tole­
rada. D esprezo o “ Fim do M u n d o ” com o um ícone ideológico ap o n tad o para
CAOS

m in h a cabeç.i |>ol.1 rcli|;ião, pelo Estado & pelo m eio cu ltural, com o um a ra­
zão para não se fazer nada.
C'ompreendo por que a religião & os “poderes” políticos querem manter-me
tremendo de medo. Já que apenas eles oferecem a única chance de se evitar o ragnarok
(através da prece, através da democracia, através do comunismo etc.), devo seguir seus
ditames como uma ovelha & não ousar nada por mim mesmo. No entanto, o caso dos
intelectuais “iluminados” parece ser, à primeira vista, mais complexo. De que poder
eles gozam neste rosário de medo & escuridão, sadismo & ódio?
Essencialmente, eles ganham inteligência. Q ualquer ataque a eles parece
estúpido, já que apenas eles têm os olhos abertos o suficiente para reconhecer a
verdade, apenas eles ousam o suficiente para manifestá-la em desafio aos rudes
censores jecas &C liberais covardes. Se eu os condeno com o parte do mesmo pro­
blema que eles clam am estar discutindo objetivam ente, serei considerado um
capiau, um puritano, um Pollyanna. Se adm ito meu ódio pelos artefatos de sua
percepção (livros, obras de arte, performances), serei dispensado com o um mero
ser desagradável (& , é claro, psicologicamente reprimido) ou, na m elhor das hi­
póteses, com o alguém sem seriedade.
M uitas pessoas supõem que, por eu algumas vezes me expressar como
um anarquista am ante de rapazes, devo tam bém ter “interesse” por outras idéias
ultrapós-m odernas, com o assassinato de crianças em série, ideologia fascista, ou
as "fotografias de Joel P. W itkin49. Pressupõem apenas dois lados para qualquer
questão — o lado da m oda & o lado que não está na moda. Um marxista que
fizesse objeções a todo este culto da m orte como algo antiprogressista seria consi­
derado tão tolo quanto um fundam entalista cristão que o considerasse imoral.
Sustento que (como de costume) m uitos lados existem para essa ques­
tão, mais do que apenas dois. Questões bilaterais (criacionismo versus darwinism o,
choice co n trapro-life 50etc.) são todas, sem exceção, ilusões, m entiras espetaculares.
M inha posição é esta: tenho perfeita consciência da “inteligência” que
direciona a ação. Eu mesmo a possuo em abundância. De vez em quando, no
entanto, tenho conseguido me com portar como se fosse estúpido o suficiente
para tentar m udar m inha vida. Algumas vezes usei perigosos entorpecentes, como
a religião, a maconha, o caos, o am or pelos rapazes. Em algumas poucas ocasiões
alcancei algum grau de sucesso — &C digo isso não para me gabar, mas para dar
testem unho. Através da destruição dos ícones interiorizados do Fim do M undo &c
da Futilidade de toda atividade m undana, tenho (raramente) atingido um estado
que (em com paração com tudo que conheço) parece ser um estado de saúde. As
imagens de m orte & mutilação que fascinam nossos artistas intelectuais me
parepem - à luz da lem brança dessas experiências - tragicam ente inapropriadas
para o potencial real da existência & do discurso sobre a existência.

49 Fotógrafo nova-iorquino especializado em fotos eróticas “chocantes”. (N .E.)


50 Cboicr. m ovim ento em defesa do direito de escolha das mulheres cm relação ao aborto. Pro-tifr. m ovim ento
contra o aborto, ligado a setores da direita, que ficou conhecido por seus ataques a clínicas que prom ovem essa
prática. (N .E.)

XCVTII
I lukim llry

A própria existência pode sei considerada um abismo sem sentido al­


gum. Eu não vejo isso com o um.i alirmaçã o pessimista. Se for verdade, posso tomá-
la som ente com o um a dcc laiação de .uitonomia para m inha imaginação & m inha
vontade —& para o mais belo ato <|iu elas possam conceber, assim conferir signi­
ficado para a existência.
Por que eu deveria em blem ar esta liberdade com um ato com o o assassi­
nato (como fizeram os existencialistas) ou com algum dos gostos demoníacos dos
anos 1980? A m orte pode apenas me m atar um a vez - até lá, estou livre para
expressar & experim entar (ao máximo que puder) um a vida & um a arte de viver
baseada em “experiências de pico” autovalorativas & no “convívio” (que tam bém
possui sua própria recompensa).
A replicação obsessiva do imaginário da m orte (& sua reprodução ou
mesmo mercantilism o) obstrui esse projeto tão veem entem ente quanto a censura
ou a lavagem cerebral feita pela mídia. Ela estabelece circuitos negativos de feedback
- é um tabu maligno. N ão ajuda ninguém a vencer o medo da m orte, &C mera­
m ente inculca um medo mórbido no lugar do medo saudável que todas as criatu­
ras sensíveis sentem ao farejar sua própria mortalidade.
N ão escrevo isso para absolver o m undo de sua fealdade, ou para negar
que no m undo existam coisas verdadeiram ente aterrorizantes. Mas algumas des­
sas coisas podem ser vencidas - desde que nós possamos construir um a estética de
conquista, em vez de um a estética de medo.
Recentem ente assisti a um a perform ance de poesia/dança gay de uma
firme sofisticação: o único dançarino negro da trupe fingia foder uma ovelha morta.
Confesso que parte da m inha estupidez auto-induzida é acreditar (&
mesmo sentir) que a arte pode me transform ar & transform ar os outros. É por
isso que escrevo pornografia & propaganda - para causar transformação. A arte
nunca pode significar tanto quanto um caso de amor, talvez, ou um a insurreição.
Mas... até certo ponto... funciona.
E ntretanto, mesmo se eu tivesse desistido de toda esperança na arte, de
toda expectativa de exaltação, ainda me recusaria a tolerar um a arte que m era­
m ente exacerba m inha miséria, ou se apraz no schadenfreude, “prazer com a misé­
ria alheia”. Eu volto as costas para certo tipo de arte com o um cão se distanciaria
uivando do cadáver de seu com panheiro. G ostaria de poder renunciar à sofistica­
ção que me perm ite dar um a cheirada em tal cadáver - com indiferente curiosida­
de - com o mais um exemplo da decomposição pós-industrial.
Apenas os mortos são verdadeiramente inteligentes, verdadeiramente in­
teressantes. Nada os toca. Enquanto eu viver, no entanto, ficarei do lado da vida
sofredora, desonesta &Ccheia de si, com a raiva em vez do tédio, com a doce luxúria,
a fome & o desleixo... contra a vanguarda gelada & suas chiques premonições do
sepulcro.

XCIX
SONORA DENÚNCIA DO
S U R R E A L I S M O
( P ARA HARRY S M I T H )

NA M OSTRA DE CINEM A SURREALISTA, alguém perguntou a


Stan Brakhage51 sobre o uso que a mídia faz do surrealismo (MTV
etc.); ele respondeu que era uma “vergonha danada”. Bem, talvez seja
& talvez não seja (a kultura popular ipso facto carece de toda inspira­
ção?) - mas, partindo-se do princípio que, em algum nível, a apro­
priação que a mídia faz do surrealismo é de fato uma vergonha dana­
da, vamos acreditar que não havia nada no surrealismo que permitisse
que esse roubo acontecesse?
O retorno do reprim ido significa o retorno do paleolítico — não um
retorno à Idade da Pedra, mas um movim ento espiral em torno de um novo nível
da órbita. (Afinal, 99,9999% da experiência hum ana são de caça & coleta, sendo
a agricultura &C a indústria um a mera m ancha de óleo no profundo poço da não-
história.) O paleolítico eqüivale ao pré-Trabalho (“sociedade de lazer original”).
O Pós-Trabalho (Trabalho-Zero) eqüivale a “Paleolítico Psíquico”.
Todos os projetos para a “liberação dos desejos” (surrealismo), que per­
manecem em aranhados na matriz do Trabalho, podem levar apenas ao m ercan­
tilismo do desejo. O neolítico começa com o desejo por bens (excedente da agri­
cultura), cam inha para a produção do desejo (indústria) &Cterm ina com a implosão
do desejo (propaganda). A liberação surrealista do desejo, apesar dos seus feitos
estéticos, não vai além de ser um subconjunto da produção - daí a rendição em
bloco do surrealismo ao partido com unista &C sua ideologia pró-Trabalho (para
51 C ineasta, professor e ensaísta norte-am ericano. (N . E.)
CAOS

não mencionai su.i misoginia & homofobia). O lazer m oderno, por sua vez, é
sim plesm ente uma subdivisão do trabalho (daí seu mercantilismo) —então não é
por ai . i m > que, quando o surrealismo fechou sua fábrica, os executivos de publici­
dade foram os únicos clientes da liquidação.
A propaganda, usando a colonização do inconsciente feita pelo surrealis­
mo para criar desejo, leva à implosão final do surrealismo. Não é simplesmente uma
"vergonha danada & uma desgraça”, não é uma simples apropriação. O surrealismo
foi feito para a propaganda, para o mercantilismo. O surrealismo é, na verdade, uma
traição ao desejo.
E, no entanto, dos abismos do significado, o desejo ainda se levanta, ino­
cente como uma fênix recém-nascida. O dadaísmo inicial de Berlim (que rejeitou o
retorno da arte-objeto), apesar de suas falhas, fornece um modelo melhor para se
lidar com a implosão do social do que o surrealismo jamais seria capaz de fornecer -
um modelo anarquista, ou talvez (em jargão antropológico), um modelo não auto­
ritário, uma destruição de toda ideologia, de todas as correntes da lei. Assim como a
estrutura do Trabalho/Lazer sucumbe no vazio, como todas as formas de controle
desaparecem na dissolução do sentido, o neolítico também parece estar destinado a
desaparecer, com todos os seus templos & celeiros & polícias, para ser substituído
por algum retorno à caça & coleta em termos psíquicos - uma re-nomadização.
Tudo está im plodindo & desaparecendo - a família edipiana, a educação, até mes­
m o o próprio inconsciente (como disse Andre Codrescu52). Não vamos erronea­
mente tom ar isso como o Armagedom (vamos resistir à sedução do apocalipse, à
conclusão escatológica) - não é o mundo chegando ao fim - são apenas as palhas
vazias do social pegando fogo & desaparecendo.
O surrealismo deve ser lançado ao lixo junto com todos os outros belos
restos das primárias artim anhas clericais & os enfadonhos sistemas de controle.
N inguém sabe o que está por vir, que miséria, que espírito de selvageria, que
alegria —mas a últim a coisa de que nós precisamos em nossa viagem é outro grupo
de comissários - papas de nossos sonhos —pais. Abaixo o Surrealismo...

Naropa, 9 de julho de 1988

,2 Escritor rom eno radicado nos EUA. (N .E.)

CII
POR UM CONGRESSO DE

NÓS TEM O S A PR EN D ID O A DESCONFIAR do verbo ser, da


palavra é — melhor dizendo: note a formidável semelhança entre o con­
ceito SATOR1 & o conceito REVOLUÇÃO D O DIA-A-DIA5i —em
ambos os casos há uma percepção do “cotidiano” com conseqüências
extraordinárias para a tomada de consciência & a ação. Não podemos
usar a frase “parece-se com” porque ambos os conceitos (como todos os
conceitos &, aliás, todas as palavras) vêm carregados de acréscimos -
cada um deles está sobrecarregado por sua carga psíquico-cultural, como
convidados que suspeitosamente chegam com enorme excesso de ma­
las para quem vem apenas passar o fim de semana.
Portanto, perm itam -m e o antiquado uso beat-zen budista do satori, en­
quanto sim ultaneam ente enfatizo —no caso do slogan situacionista —que um a das
raízes de sua dialética pode ser rastreada ao dadaísmo & à noção surrealista do
“maravilhoso”, irrom pendo de (ou dentro de) um a vida que apenas parece estar
sufocada pelo banal, pelas misérias da abstração & da alienação. Defino meus
term os fazendo-os mais vagos, precisamente para evitar as ortodoxias tanto do
budism o quanto do Situacionismo, para escapar de suas armadilhas ideológico-
semânticas —estas m áquinas de linguagem disfuncionais! Em vez disso, proponho
que nós as destruam os em partes, um ato de bricolagem cultural. “Revolução”
significa apenas outra reviravolta dos tim oneiros - enquanto a ortodoxia religiosa
de qualquer tipo origina, de forma lógica, um verdadeiro governo de timoneiros.

53 Revolution ofEveryday Life no original, que é o título do livro TraitédeSavoir-vivreà Lusagedes Jeunes Ginírations,
de Raoul Vaneigem, em suas edições norte-am ericana e inglesa. No Brasil, esse livro foi publicado com o nom e de
A Arte de Viver para as Novas Gerações, pela C onrad Livros. (N .E.)
CAOS

N ão vatnos ulolair.u o satori im aginando-o com o m onopólio de monges m ísti­


cos, ou com o contingente de qualquer código moral; & no lugar de fetichizar o
esqum lisino de 1968, preferimos o termo “insurreição”, ou “levante”, usado por
Stirner, que escapa à artificialidade de um a mera m udança de autoridade.
Esta constelação de conceitos envolve “quebrar as regras” da percep­
ção ordenada para chegar à experiência direta, algo análogo ao processo atra­
vés do qual o caos espontaneam ente se decom põe em ordens fractais não-
lineares, ou o m odo com o a energia criativa “selvagem” transform a-se em jogo
& poesis. U m a “ordem espontânea” a partir do “caos”, por sua vez, evoca o
taoísm o an arquista do Chuang Tzu. O s zen-budistas podem ser acusados de
falta de conh ecim en to sobre as im plicações “revolucionárias” do satori, en ­
q u an to os situacionistas podem ser criticados por ignorar um a certa “espiri­
tu alid ad e” inerente na auto-realização & no convívio que sua causa exige. Ao
identificarm os o satori com a revolução do dia-a-dia, estam os prom ovendo
algo com o um casam ento forçado tão m arcante q u an to a fam osa com posição
surrealista com um guarda-chuva & um a m áquina de costura, ou seja lá o que
fosse. M iscigenação. A m istura de raças defendida por N ietzsche, que, sem
dúvida, foi atraído pela sensualidade das “castas inferiores”.
Sinto-m e im pelido a tentar descrever o m odo com o o satori “assemelha-
se” à revolução do dia-a-dia —mas não posso fazê-lo. O u, m elhor dizendo, prati­
cam ente tudo que eu escrevo gira em torno deste tema; teria de repetir quase tudo
para elucidar este simples ponto. Em vez disso, à guisa de apêndice, ofereço mais
um a curiosa coincidência ou interpenetração de dois termos, um novam ente do
Situacionism o & o outro, desta vez, do sufismo.
O ato de dérive ou “andar a esmo” foi concebido com o um exercício para
deliberadam ente revolucionar o dia-a-dia - um a espécie de vagar sem rum o atra­
vés das ruas da cidade, um nom adism o visionário urbano que envolve um a aber­
tura para a “cultura com o natureza” (se com preendi a idéia corretam ente) - que,
por sua própria duração, inculcaria nos nômades um a propensão a experim entar
o maravilhoso; talvez nem sempre em sua forma benigna, mas, esperamos, sempre
geradora de insights —seja através da arquitetura, do erótico, da aventura, bebidas
& drogas, perigo, inspiração, o que quer que seja - da intensidade de percepções
&C experiências não mediadas.
O term o paralelo no sufismo seria “jornada para os horizontes distan­
tes”, ou sim plesm ente “jornada”, um exercício espiritual que com bina as energias
urbanas & nômades do Islã num a única trajetória, algumas vezes cham ada de
“Caravana do Verão”. O s dervixes fazem votos de viajar num determ inado ritm o,
nunca passando mais do que sete ou quarenta noites num a mesma cidade, acei­
tando o que quer que aconteça, dirigindo-se para onde quer que os sinais & as
coincidências, ou sim plesm ente os caprichos, os levem, movendo-se de um ponto
de poder para outro, conscientes da “geografia sagrada”, do itinerário com o signi­
ficado, da topologia com o simbologia.
I lakim Bey

Aqui outra constclaçim: Ibn Khaldun, Pé na Estrada (tanto o de Jack


Kerouac quanto o de Jack 1 oiulon), .1 forma do romance picaresco em geral, o
barão de M ünchhausen, wanderjabi, M a n o Polo, meninos num a floresta de ve­
rão suburbana, cavaleiros do rei Anlmi p im u ian d o barulho, veados à caça de
meninos, peram bular de bar em bai com Mclvillc, Poe, Baudelaire - ou fazer
canoagem com T horeau em M aine... a viagem com o a antítese ilo turism o, espaço
cm vez dc tempo. Projeto artístico: a construção de um "mapa” em estala 1:1 do
território explorado. Projeto político: a construção de “zonas autônomas" mutáveis
dentro de um a invisível rede nôm ade (como encontros sob o arco-íris). Projeto
espiritual: a criação ou descoberta de peregrinações nas quais o conceito “santuá­
rio” tenha sido substituído (ou “esoterizado”) pelo conceito “experiência de pico”.
O que estou tentando fazer aqui (como sempre) é prover um a base irra­
cional sólida, um a filosofia estranha (se assim preferirem), para o que chamo de
Religiões Livres, incluindo as correntes psicodélica & discordante, neopaganismo
não hierárquico, as heresias antinom ianas, o caos & o caos mágico, o vodu revo­
lucionário, os cristãos anarquistas & “sem igreja”, o judaísm o mágico, a Igreja
O rtodoxa Islâmica, a Igreja dos Subgênios, as fadas, os taoístas radicais, os m ísti­
cos da cerveja, o pessoal da m aconha etc. etc.
C ontrário às expectativas dos radicais do século XIX, a religião não acabou
- talvez tivesse sido melhor se ela tivesse acabado de fato - & tem, em vez disso,
crescido em poder, aparentemente em proporção ao crescimento global em tecnologia
& controle racional. Tanto o fundamentalismo quanto o New Age extraem alguma
força da profunda & difundida insatisfação com o Sistema, que trabalha contra
toda percepção do maravilhoso na vida cotidiana - chame-o de Babilônia ou de
Espetáculo, de Capital ou de Império, de Sociedade de Simulação ou de mecanismo
desalmado —o que você quiser. Mas essas duas forças religiosas canalizam seu pró­
prio desejo pelo autêntico para novas abstrações superpoderosas & opressivas
(moralidade no caso do fundamentalismo, mercantilismo no caso do New Age) &
por essa razão, podem , m uito propriamente, ser chamadas de “reacionárias”.
Assim com o radicais culturais procurarão se infiltrar & subverter a mídia
popular, & assim com o radicais políticos desem penharão funções similares nas
esferas do trabalho, da família & de outras organizações sociais, existe a necessida­
de de os radicais penetrarem na instituição da religião, indo além da mera repeti­
ção afetada dos lugares-comuns sobre o materialismo ateísta do século XIX. Isso
vai acontecer de um jeito ou de outro —é m elhor fazer a abordagem com consciên­
cia, graça &C estilo.
Tendo um a vez vivido perto da sede do Conselho M undial das Igrejas,
eu gosto da possibilidade de um a versão parodiada de um a Igreja Livre - sendo a
paródia um a de nossas principais estratégias (ou chame isso de détournement ou
desconstrução ou destruição criativa) - um a espécie de network solta (eu não gos­
to dessa palavra; vamos chamá-la, então, de webwork) de cultos estranhos & indi­
víduos conversando entre si & oferecendo préstimos uns aos outros, que pode-

CV
CAOS

riam originai um m ino, ou tendência, ou “corrente” (em termos mágicos) forte o


suficiente para causar algum dano psíquico aos fundam entalistas & ao pessoal
New Ayr, até mesmo aos aiatolás & ao papado, sociáveis o bastante para que
discordemos uns dos outros & ainda assim fazermos grandes festas - ou conclaves,
conselhos ecumênicos, Congressos M undiais - o que esperaremos em júbilo.
As Religiões Livres podem oferecer algumas das únicas alternativas espi­
rituais possíveis para televangelistas nazistas & patéticos canalizadores da energia
dos cristais (para não m encionar as religiões estabelecidas), e assim se tornarão
cada vez mais im portantes, cada vez mais vitais num futuro em que a dem anda
pela erupção do maravilhoso dentro do cotidiano se tornará a mais sonora, tocan­
te & tum ultuosa de todas as dem andas políticas - um futuro que começará (espe­
re um instante, deixe-me consultar meu relógio)... 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1... AGORA.

CVI
T E R R A O C A

REGIÕES SUBTERRÂNEAS D O continente escavadas em caver­


nas ciclópicas, redes fractais de espaços que parecem catedrais, túneis
labirínticos em forma de gargantas, rios subterrâneos vagarosos &
negros, lagos estígios imóveis puros &C levemente luminescentes, es­
treitas cachoeiras sobre rochas alisadas pela água, cortando florestas
petrificadas de estalactites & estalagmites na complexidade dos
desconcertantes peixes cegos exploradores de caverna &: na vastidão
insondável... Q uem escavou esta terra oca debaixo do gelo previsto por Poe,
por certos ocultistas alemães paranóicos, & por ufólogos malucos? feria a Terra
sido colonizada na época de G onduana ou da Lem úria por alguma raça antiga?
Seus esqueletos de répteis ainda estariam se desfazendo nos labirintos mais secre­
tos &C distantes deste sistema de cavernas? Águas paradas & dorm entes, canais
sem saída, poços estagnados distantes dos centros da civilização com o Little
America, Transport City, ou Nan Chi H an, lá embaixo, nos recessos escuros &
poças das cavernas da Antártica, fungos & samambaias albinas. Suspeitamos que
sejam seres m utantes, com os dedos das mãos &C dos pés entrelaçados com o anfí­
bios, hábitos degenerados - kallikaks da Terra Oca, renegados lovecraftianos, ere­
mitas, contrabandistas incestuosos & sorrateiros, criminosos fugitivos, anarquis­
tas forçados a se esconder depois das guerras de entropia, fugitivos do puritanism o
genético, dissidentes das sociedades secretas chinesas & fanáticos do turbante
amarelo, piratas das cavernas da costa da índia, lixo branco pálido & sem vida dos
proletários das majestosas indústrias de Tongue Thw ait, da costa de Walgreen &
da terra de Edsel-Ford - os trogloditas têm m antido viva por mais de duzentos
anos a m em ória folclórica da Zona A utônom a, o m ito de que algum dia ela apa­
recerá de novo... taoísmo, filosofia libertina, bruxaria da Indonésia, culto da C a­
verna M ãe (ou Mães), identificada por alguns estudiosos com o a deusa javanesa
do m ar/lua Loro Kidul, por outros como um a divindade m enor da Seita da Estre­
CAOS

la Poi.ii do Sul, i "deusa |ade"... manuscritos (escritos em Bahasa Ingliss, o dialeto


pidgin d.is cavernas profundas) contêm citações m utiladas de N ietzsche & e
Cliu.m)', tsé... O comercio consiste em ocasionais pedras preciosas &: no cultivo
dc- papoulas brancas, fungos, cerca de uma dúzia de diferentes espécies de cogu­
melos “mágicos”... O raso lago Érebo, com 5 milhas de diâm etro, polvilhado de
ilhotas de estalagmites abarrotadas com samambaias & trepadeiras da C hina &
pequenos pinheiros negros, m antidos num a caverna tão vasta que às vezes cria seu
próprio clima... A vila oficialmente pertence a Little America, mas, em sua m aio­
ria, os habitantes são troglos vivendo de seguro-desemprego —& a caverna pro­
funda do país tribal estende-se no outro lado do lago. A ralé, artistas, viciados em
drogas, feiticeiros, contrabandistas, vagamundos & pervertidos m oram em hotéis
de basalto & gesso caindo aos pedaços, incrustados até a m etade por pálidas tre­
padeiras verdes; ao longo do lago, um a avenida de esquálidos cafés, em pórios de
pedras preciosas defendidos por ninjas armados, botecos chineses que oferecem
sopa de macarrão com pequenos camarões, o hall enfeitado vistosamente de cris­
tal para lentos dançarinos de folk ao som dos gamelões, rapazes praticando seus
m udras em sonolentas tardes eletrônicas azul-escuras ao som de gongos sintéticos
& metalofones... & sob o cais, talvez alguns poucos banhistas vacilantes ao largo
da praia negra; perplexos, genuínos turistas de baixa renda no santuário atrás do
bazar onde troglos pálidos & velhos entram em transe com fungos, babam &C
reviram os olhos, respiram os fumos do incenso pesado, tudo de repente parece
am eaçadoram ente brilhante, piscando com ênfase... uns poucos casos de dedos
entrelaçados, mas os rumores de prom iscuidade ritual são verdadeiros. Estava eu
vivendo num a vila de pescadores troglos, do outro lado do lago de Érebo, num
quarto alugado em cima da loja de iscas... preguiça rural & degenerados ritos
supersticiosos de abandono sensual, o m istério larval & doentio dos troglos
m utantes ctenóides &C oprim idos, preguiçosos &C sem viço... Little America, tão
cristã & livre de mutações, eugênica & ordeira, onde todos vivem conectados ao
reino descarnado de antigos softwares &Cholografias, tão euclidianos, newtonianos,
lim pos & patrióticos - Los Angeles nunca entenderá esta inocente feitiçaria suja,
este “espiritualism o m aterial”, esta escravidão aos desejos vulcânicos de gangues
secretas de rapazes das cavernas como flores sorridentes jorrando em ereções-dí-
nam o, pulsando pura vida, curvados & tesos com o arcos, & o cheiro de água,
musgo do lago, flores brancas que desabrocham durante a noite, jasmins & fi-
gueiras-do-inferno, urina, cabelo m olhado de criança, esperma & lama... possuí­
dos por espíritos das cavernas, talvez os fantasmas de alienígenas antigos agora
vagando com o dem ônios, procurando renovar prazeres da carne & de substâncias
perdidos há muito. O u talvez a Zona tenha já renascido, já um nexo de autono­
mia, um vírus do caos que se espalha em sua mais exuberante forma clandestina,
cogumelos brancos venenosos brotando dos pontos onde garotos troglos se mas­
turbaram sozinhos no escuro...

CVIII
#•
NIETZSCHE & OS DERVIXES

REND AN, “OS ESPERTOS”. Os sufis usam um termo técnico, rend


(adjetivo rendi, plural rendan), para designar alguém “esperto o sufi­
ciente para beber vinho em segredo sem ser pego”: a versão dervixe
da “dissimulação permissível” (tagiyya, que permite aos xiitas mentir
sobre sua verdadeira afiliação para evitar perseguição & favorecer o
propósito de sua propaganda).
Na esfera do “cam inho”, o rend esconde seu estado espiritual (hat) para
contê-lo, trabalhá-lo alquim icam ente, expandi-lo. Esta “esperteza” explica m uito
dos sigilos das O rdens, em bora continue sendo verdade que m uitos dervixes real­
m ente quebram as regras do Islã (shariah), ofendem a tradição (sunnah) & insul­
tam os costumes de sua sociedade - o que lhes dá razão para um segredo real.
Ignorando-se o caso de “crim inosos” que usam o sufismo com o um a
máscara —ou melhor, não o sufismo em si, mas o dervixismo, que na Pérsia é
quase um sinônim o de maneiras transigentes &, portanto, de relaxam ento so­
cial, um estilo de am oralidade genial & pobre, mas elegante - a definição acima
ainda pode ser considerada tanto num sentido literal qu an to metafórico. Isto é:
alguns sufis violam a Lei ao mesmo tem po perm item que ela exista &C continue
a existir; & eles o fazem por motivos espirituais, com o um exercício da vontade
{himmah).
Nietzsche diz em algum lugar que um espírito livre não se move para
que as regras caiam ou mesmo para que sejam reformuladas, um a vez que é apenas
quebrando as regras que ele se conscientiza de sua vontade de querer. Uma pessoa
precisa provar (para si mesma, se não para alguém mais) sua capacidade de rom ­
per com as regras do rebanho, de fazer sua própria lei & ainda assim não cair presa
do rancor & do ressentim ento próprios das almas inferiores que definem a lei &
os costumes em Q U A L Q U E R sociedade. A pessoa precisa, com efeito, de um
equivalente individual da guerra para atingir a transformação do espírito livre -
CAOS

necessita de uma <stupidez inerte contra a qual possa m edir o seu próprio movi­
m ento ÍV inteligência.
Anarquistas às vezes postulam um a sociedade ideal sem lei. O s poucos
experim entos anarquistas que lograram um breve êxito (os m akhnovistas,
( !atalunha) fracassaram em sobreviver às condições da guerra que originaram sua
existência - dessa forma, não temos meios de saber em piricam ente se tais experi­
mentos poderiam ter sobrevivido no início da paz.
Alguns anarquistas, no entanto - com o o nosso falecido amigo, a “M ar­
ca” stirneriana italiana e até mesmo alguns que eram com unistas & socialistas,
participaram de toda sorte de levantes & revoluções, porque encontraram , no
m om ento da insurreição em si, o tipo de liberdade que buscavam. E nquanto a
u to p ia tem , até agora, sem pre fracassado, os anarquistas individualistas ou
existencialistas têm logrado êxito visto que têm obtido (embora brevemente) a
realização de sua vontade durante a guerra.
As restrições de Nietzsche aos “anarquistas” são sempre endereçadas ao
tipo de m ártir comunista-igualitário narodnik, cujo idealismo ele via como mais
um sobrevivente do moralismo pós-cristão - embora ele algumas vezes os elogie por
ao menos terem a coragem de se revoltar contra a autoridade majoritária. Ele nunca
menciona Stirner, mas acredito que teria classificado o rebelde individualista como
um dos mais altos tipos de “criminosos”, que representavam para ele (assim como
para Dostoievski) seres humanos m uito superiores à multidão, mesmo se tragica­
mente traídos por suas próprias obsessões & possíveis motivos de vingança ocultos.
O super-hom em nietzschiano, se existisse, teria de com partilhar, até cer­
to grau, dessa “crim inalidade”, mesmo se superasse todas as suas obsessões &
compulsões, sim plesm ente porque sua lei nunca poderia concordar com a lei das
massas, do Estado & da sociedade. Sua necessidade de “guerra” (seja literal ou
metafórica) poderia até mesmo persuadi-lo a participar da revolta, tenha ela assu­
m ido a forma de insurreição ou apenas de um a boêmia orgulhosa.
Para ele, um a “sociedade sem lei” poderia ter valor apenas enquanto pudesse
medir sua própria liberdade contra a sujeição de outros, contra seus ciúmes & ódios.
As breves “utopias piratas” sem lei de Madagascar & do Caribe, a República de Fiume
de D A nnunzio, a Ucrânia ou Barcelona - essas experiências o atrairiam, porque pro­
metiam o tum ulto do porvir &C até mesmo a possibilidade do “fracasso” em vez da
bucólica sonolência de uma “perfeita” (& portanto morta) sociedade anarquista.
Na ausência de tais oportunidades, esse espírito livre teria desdenhado
perder tem po com agitações para reformas, com protestos, com sonhos visioná­
rios, com todo tipo de “m artírio revolucionário” —em suma, com a m aior parte da
atividade anarquista contem porânea. Para ser rendi, para beber vinho em segredo
& não ser pego, para aceitar as regras a fim de violá-las & assim atingir a elevação
espiritual ou o transe energético do perigo &C da aventura, a epifania privada da
superação de toda polícia interior ao mesmo tem po em que se engana toda auto­
ridade externa —tal poderia ser um a m eta válida pata esse espírito &C essa poderia
ser sua definição de crime.
CX
I l a k i m IWy

(Incidentalm entc, acho que esta leitura talvez explique a insistência dc


Nietzsche pela MÁSCARA, pela natureza dissimulada do proto-super-hom em ,
que perturba até mesmo os com entaristas mais inteligentes, em bora algo liberais,
com o Kaufman. O s artistas, poi mais que Nietzsche os ame, são criticados por
contar segredos. Talvez ele tenha falhado ao considerar que - parafraseando Allen
G insberg — este é nosso m odo de nos tornarm os “grandes '; & também que —
parafraseando Yeats - até mesmo o mais verdadeiro tios segredos torna-se uma
outra máscara.)
Sobre o movim ento anarquista de hoje: pelo menos um a vez, gostaría­
mos nós de pisar num solo onde as leis são abolidas & o últim o padre é enforcado
com as tripas do últim o burocrata? Sim, claro. Mas não nutrim os grandes expec­
tativas. H á certas causas (para citar Nietzsche de novo) que nunca abandonam os
com pletam ente, nem que seja apenas em função da mera insipidez de todos os
nossos inimigos. Oscar W ilde poderia ter dito que não se pode ser um cavalheiro
sem ser um pouco anarquista — um paradoxo necessário, com o a “aristocracia
radical” de Nietzsche.
Isso não é apenas uma questão de dandismo espiritual, mas também de
compromisso existencial com uma espontaneidade subjacente, com um “Tao” filo­
sófico. Apesar do desperdício de energia pela sua própria falta de forma, apenas o
anarquismo, entre todos os ISM OS, aproxima-se daquele único tipo de forma que
pode nos interessar hoje, aquele estranho atrator, a forma do caos- que (uma última
citação) se deve ter dentro de si, no caso de dar à luz uma estrela dançarina.

Equinócio de Primavera, 1989

CXI
BOICOTE À CULTURA
P O L I C I A L ! ! !

SE PO D EM O S D IZER Q U E um personagem ficcional tem dom i­


nado a cultura popular atual, esse personagem é o policial. Os
meganhas desgraçados estão em todo lugar. É pior do que na vida
real. Q ue chateação incrível.
Policiais poderosos - protegendo os mansos & humildes - à custa de
mais ou menos meia dúzia de artigos da declaração dos Direitos Civis - “Dirty
H arry”. ó tim o s policiais, hum anos, lidando bem com a perversidade hum ana,
agridoces, você sabe, durões &c arrogantes, mas mesmo assim, meigos por dentro:
H ill Street Blues - o mais maléfico program a de T V de todos os tempos. Tiras
negros sabichões fazendo observações espirituosas & racistas contra tiras brancos
&C jecas, mas todos se am ando no final —Eddie Murphy, traidor da classe. N um a
dessas histórias masoquistas, vemos policiais corrom pidos que ameaçam im plodir
nossa Realidade Konfortável & Konsensual, com o tênias solitárias desenhadas
por G iger54, mas que naturalm ente são detonados na hora H pelo últim o policial
honesto, Robocop, amálgama ideal de próteses & pieguice.
Somos obsediados por policiais desde o início - mas os guardas de ou-
trora atuavam com o tolos empavonados, Car 54, Where Are You?c>'>, trouxas feitos
na m edida para serem arrasados & ridicularizados por Fatty Arbuckle ou Buster
Keaton. Mas, no dram a ideal dos nossos dias, o “pequeno hom em ”, que um a vez
detonou centenas de varejeiras azuis com aquela bom ba anarquista inocentem en­
te usada para acender um cigarro —o Vagabundo, a vítima com o repentino poder
do coração puro - , não tem mais um lugar no centro da narrativa. Antes, “nós”
éramos aquele vagabundo, aquele herói caótico quase surrealista que, através do

54 H . R. Giger, desenhista suíço, criador do design do filme Alien — O Oitavo Passageiro (1940 - ) . (N .E.)
55 Seriado policial norte-am ericano da década de 1960. (N .E.)
CAOS

wu uri '..ii .( vitorioso sobre ridículos meganhas de um a O rdem irrelevante &


desprezível Mas, agora, “nós” estamos reduzidos ao status de vítimas sem poder, ou
criminosos. ).í não representamos o papel principal; já não somos os heróis de nos­
sas próprias histórias, fomos marginalizados &C substituídos pelo O utro, o policial.
Dessa form a, o show policial possui apenas três personagens —a víti­
ma, o crim inoso & o policial mas os dois prim eiros não logram ser com pleta­
m ente hum anos - apenas o m eganha é real. E stranham ente, a sociedade h u m a­
na de agora (com o percebida pelas outras mídias) algumas vezes parece ser
constituída pelos mesmos três clichês/arquétipos. Prim eiro, as vítimas, as m in o ­
rias chorosas reclam ando por seus “direitos” —&, por deus, quem não pertence
a algum a “m inoria” hoje? Porra, até mesmo os m eganhas reclamaram que seus
“direitos” estavam sendo infringidos. D epois, os crim inosos: em sua m aioria,
não brancos (apesar da obrigatória & delirante “integração” m ostrada pela mídia),
m uito pobres (ou então obscenam ente ricos, & portanto ainda mais distantes)
& pervertidos (isto é, os espelhos proibidos de “nossos” desejos). O uvi dizer que
um a em cada quatro casas nos Estados U nidos é assaltada todo ano &C que todo
ano cerca de meio m ilhão de pessoas são presas só por fum ar m aconha. D iante
de tais estatísticas (m esm o pressupondo que elas não passem de “m entiras
deslavadas”), perguntam os a nós mesmos quem N Ã O é vítim a ou crim inoso em
nosso estado-de-consciência-policial. O s detetives policiais devem fazer a m edia­
ção por todos nós, por mais que a interface seja obscura - eles são apenas sacer-
dotes-guerreiros, em bora profanos.
O Américas Most Wanted - o program a de T V mais bem -sucedido dos
anos 1980 - possibilitou para todos nós o papel de tira amador, até então uma
mera fantasia da m ídia produzida pelos sentim entos de ressentim ento & vingança
da classe média. N aturalm ente, ninguém é mais odiado pelo policial da vida real
do que aqueles que resolvem cuidar da própria com unidade —veja o que acontece
às iniciativas de autoproteção com unitária de vizinhanças pobres e/ou não bran­
cas, com o os m uçulm anos que tentaram elim inar o tráfico de crack no Brooklyn:
os tiras afugentaram os m uçulm anos, os traficantes ficaram livres. Vigias de ver­
dade ameaçam o m onopólio do cum prim ento da lei, lese majesté, o que é mais
abominável do que incesto ou assassinato. Mas os vigilantes da m ídia (mediados)
funcionam perfeitam ente bem dentro do Estado Policial. De fato, seria mais
acurado considerá-los informantes não pagos (eles nem mesmo possuem um con­
ju n to de malas que combinam!): emissários telemétricos, pom bos eletrônicos,
dedos-duros por um dia.
O que é que a “América mais procura”? Essa frase refere-se aos crim ino­
sos - ou a crimes, a objetos de desejo em sua presença real, não representados, não
mediados, literalm ente roubados & apropriados? A América mais procura... dar
um “foda-se” para o trabalho, abandonar o casamento, drogar-se (porque som en­
te as drogas fazem você se sentir tão bem quanto as pessoas que aparecem nos

56 N o taoísmo, a ação que realiza seu propósito fluindo de acordo com a natureza das coisas e eventos. (N.T.)

CXIV
I iakim licy

comerciais de T V parecem se sentir), fazer sexo com ninfetas núbeis, sodomia,


arrom bam entos, sim, o inferno! Q uais prazeres não mediados N Ã O são ilegais?
Até mesmo churrascos ao ar livre violam regulamentos sobre a emissão de fumaça,
hoje em dia. As diversões mais simples acabam por infringir alguma lei; por fim,
o prazer torna-se estressante, apenas a I V permanece & o prazer da vingança, a
traição vicária, a emoção doentia do mexerico. A Améru a não pode ter o que ela
mais procura, então, em vez disso, ela tem o Américas Most Wanted. Uma nação de
bobalhões ginasianos lam bendo o rabo de um a elite de bruiam ontcs ginasianos.
É claro que o program a ainda sofre de algumas poucas & estranhas
distorções da realidade: por exemplo, os segmentos dramatizados são interpreta­
dos no estilo cinema-verdade por atores; alguns telespectadores são tão estúpidos
que acreditam que estão assistindo a um a filmagem real de crimes reais. Por isso,
os atores são continuam ente im portunados & mesmo presos, ju n to com (ou no
lugar de) os verdadeiros criminosos cujas fotos de identificação são exibidas de­
pois de cada pequeno docum entóide. Q ue curioso, não? N inguém experimenta
nada de verdade - todos estão reduzidos ao status de fantasmas - imagens da
mídia se descolam & se deslocam de qualquer contato com a vida real de cada dia
- telessexo - sexo virtual. A transcendência final do corpo: cibergnose.
O s policiais da mídia, assim como os seus precursores televangélicos,
preparam -nos para o advento, a vinda final ou o Êxtase do estado policial - as
“guerras” ao sexo & às drogas - controle total & totalm ente esvaziado de qualquer
conteúdo; um m apa sem coordenadas, em nenhum espaço conhecido; m uito além
do mero Espetáculo; puro êxtase (“perm anência-fora-do-corpo”); simulacro obs­
ceno; violentos espasmos sem significado elevados ao últim o princípio de gover­
no. A imagem de um país consum ido por imagens de ódio a si mesmo, guerra
entre as metades esquizóides de um a personalidade dividida, Super-Ego contra Id
Kid, para o cam peonato de pesos pesados de um a paisagem abandonada, queim a­
da, poluída, vazia, desolada, irreal.
Assim com o o romance policial é sempre um exercício de sadismo, o
seriado policial sempre envolve a contem plação do controle. A imagem do inspe­
tor ou do detetive mede a imagem de “nossa” falta de substância autônom a, nossa
transparência ante o olhar fixo da autoridade. Nossa perversidade, nossa im po­
tência. N ão im porta se o consideramos “bons” ou “maus”, nossa invocação obses­
siva dos espectros policiais revela a extensão da nossa aceitação da perspectiva
m aniqueísta que eles simbolizam. Milhões de meganhas minúsculos formigam
em toda parte, com o larvas de fantasmas fam intos - eles enchem a tela, com o no
famoso filme de Keaton, abarrotando o primeiro plano, um a A ntártica onde nada
se move a não ser m ultidões de sinistros pingüins azuis.
Propomos um a exegese hermenêutica &C esotérica do slogan surrealista
M ort aux vaches! N ão o usamos ao nos referir à morte de policiais individuais (“va­
cas” na gíria da época) - o que seria uma mera fantasia de vingança esquerdista -
sadismo m esquinho às avessas mas à morte da imagem do flie, o C ontrole interior
& suas miríades de reflexos no Lugar N enhum da mídia - o “quarto cinza”, como

CXV
CAOS

Burroughs o i liuma Autocensura, medo do próprio desejo, “consciência” como a


voz interiorizada da autoridade consensual. O assassínio dessas “forças de seguran­
ça" de lato liberaria uma enchente de energia libidinosa, mas não a violenta irrupção
prevista pela teoria da Lei & da O rdem. A “auto-superação” nietzschiana provê o
princípio da organização para o espírito livre (& também para a sociedade anarquis­
ta, ao menos em teoria). Na personalidade do estado policial, a energia libidinosa é
represada & desviada para a auto-repressão; qualquer ameaça ao Controle resulta
em espasmos de violência. Na personalidade do espírito livre, a energia flui desim­
pedida &C portanto turbulenta, mas gentil — o seu caos encontra o seu estranho
atrator, perm itindo que novas ordens espontâneas surjam.
Assim, clamamos por um boicote à imagem do Policial & por um a m o­
ratória da sua produção na arte. Assim...

CXVI
Hakim Ik y

MORT AUX VACHES!

CXVII

Você também pode gostar