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Modernismo no Ceará (1922 – 1931)

Direção Editorial

Lucas Fontella Margoni

Comitê Científico

Prof. Dr. Gleudson Passos Cardoso

Prof. Dr. Erick Assis de Araújo

Prof. Dr. Adelaide Maria Gonçalves Pereira


Modernismo no Ceará (1922 – 1931)

Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Thiago da Silva Nobre


Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

NOBRE, Thiago da Silva

Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética [recurso
eletrônico] / Thiago da Silva Nobre -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022.

212 p.

ISBN - 978-65-5917-474-4
DOI - 10.22350/9786559174744

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Modernismo; 2. Estética; 3. Cotidiano; 4. Cultura; 5. Brasil; I. Título.

CDD: 900

Índices para catálogo sistemático:


1. História 900
Ao vô Luís
que tanto tempo viveu
e mesmo assim
nos deixou tão cedo.
Lutou a vida inteira,
guerreiro veterano que era.
Só aceitou tombar assim,
em trincheira de guerra.
Pela última vez
brigou
pelejou
teimou
e tombou,
como todo guerreiro,
Lutando
corajoso
destemido
imprudente
até o fim.
O meu herói
tem bravura e brilho,
enfim.
Sumário

Apresentação 11
Thiago da Silva Nobre

Prefácio 13
Lívia Verena Cunha do Rosário

Introdução 16

Capítulo 01 24
A Metrópole Formidável
1.1 – Modernidade, Modernização e Modernismo(s) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
1.2 – Os canibais daqui. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
1.3 – A mocidade bradou o alarme, está iniciada a reação! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

Capítulo 02 69
Literatura como Diversão
2.1 - Uma proposta irrecusável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
2.2 – O canto novo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
2.3 - Rita de Queluz e o seu livro invisível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Capítulo 03 120
Imprensa como trincheira
3.1 - Falando do Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
3.2 - Uma desvairada match literária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
3.3 - A Trindade Capenga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166

Considerações Finais 195

Fontes 202

Bibliografia 205
Apresentação

Thiago da Silva Nobre

Este livro que agora o leitor tem em mãos foi fruto da minha disser-
tação de mestrado, defendida na Universidade Estadual do Ceará em 2018,
intitulada A Tribu de Antropofagia: Práticas Letradas, Cotidiano e Moder-
nismo(s) em Fortaleza (1922 – 1931). Esta pesquisa foi iniciada ainda na
licenciatura, em meados de 2010, quando pesquisei outro movimento lite-
rário de Fortaleza para a monografia, o Grupo Clã, que é considerado a 2ª
geração modernista, tendo iniciado seus trabalhos na década de 1940.
À época e ainda hoje os livros e fontes sobre esse movimento literário,
ou seja, a 1ª geração modernista de Fortaleza, são fragmentárias e disper-
sas. Por isso acho, sem falsa modéstia, que esse trabalho poderá ajudar
pesquisadores interessados no tema e também poderá, porque não, diver-
tir e entreter o leitor curioso sobre esse movimento estética ocorrido no
início do século XX, em uma capital que se modernizava rapidamente mas
ainda guardava ares de província.
Tentei reconstruir o contexto da cidade de Fortaleza do período utili-
zando documentos oficiais, relatos memorialísticos, jornais e historiadores
que escreveram sobre o tema. Tentei, também, reconstruir o movimento
real dessa geração de intelectuais que se uniu em torno da promoção e
divulgação do modernismo no Ceará, publicando livros e escrevendo in-
tensamente nos periódicos do seu tempo. Por fim, mas não menos
importante, debati sobre o cotidiano da cidade articulando literatura e jor-
nalismo para mostrar a recorrência de temas, opiniões, polêmicas,
disputas, propostas, etc.
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Como o ditado popular afirma: elogio em boca própria é vitupério.


Então, convido o leitor a enfrentar esta travessia e decidir se o escrito que
aqui se coloca à prova tem alguma qualidade ou valia. Espero que sim!
Boa leitura.

Macapá – AP / Fortaleza - CE, 12 de dezembro de 2021.


Prefácio

Lívia Verena Cunha do Rosário 1

Em 2022, a Semana de Arte Moderna completa 100 anos. As come-


morações e reflexões sobre a importância do Modernismo Brasileiro
tornam ainda mais relevante a publicação do livro do professor Thiago
Nobre. Em Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidi-
ano e Experiência, o autor nos convida a atravessar as fronteiras entre
História e Literatura e pensar para além do contexto paulistano sobre a
primeira fase do movimento artístico-literário.
Recorro à escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2019), ela tão
distante no tempo e espaço da literatura tratada aqui, mas cujo alerta tão
bem cabe na proposta de Thiago Nobre. Adichie adverte sobre o perigo da
história única. As histórias são importantes, mas devemos ouvir muito
mais histórias de modo a encontrar um equilíbrio de narrativas, experiên-
cias e realidades diversas. É sempre tempo de romper a história única
sobre os acontecimentos, como neste livro, que destaca a pluralidade do
Modernismo Brasileiro, cujos grandes mestres não habitavam somente a
Terra da Garoa, mas também a Terra da Luz.
Ao longo dos três capítulos deste livro, o autor se distancia de uma
hierarquização entre o Modernismo Paulista e Cearense, mas se aproxima
de um enfoque nas particularidades e contribuições dos antropofágicos da
Metrópole formidável, como intitula o primeiro capítulo. Considerando a
conjuntura histórica que favoreceu o processo de industrialização no sé-
culo XIX, Thiago discorre sobre Modernidade e Modernização a partir do

1
Doutoranda em Estudos de Literatura - UFF
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contexto europeu para situar o Brasil e então o Ceará na atmosfera social


e econômica que antecederam os anseios e rupturas modernistas. En-
quanto os principais nomes da primeira fase modernista paulista, como
Oswald de Andrade e Mario de Andrade, deixaram vários diários e uma
consequente gama de material para desvendar-lhes a intimidade, a escas-
sez biográfica marca os modernistas cearenses, mas ainda assim
conhecemos no primeiro capítulo as redes de sociabilidades de grandes
figuras dos primeiros anos do Modernismo Cearense, como Jáder de Car-
valho, Sidney Neto, Mozart Firmeza e Franklim Nascimento.
Em 1925, o poeta paulista Guilherme de Almeida, um dos participan-
tes da Semana de 1922, percorreu o Brasil para divulgar os princípios do
movimento modernista; com os desdobramentos da proposta irrecusável
recebida por Almeida - visitar Fortaleza e discursar no Theatro José de
Alencar - que Thiago Nobre abre o segundo capítulo de sua pesquisa, no
qual somos apresentados ao livro O Canto Novo da Raça, publicado em
1927 e marca definitiva da participação dos intelectuais cearenses no pro-
jeto modernista nacional.
Ainda em Literatura como diversão, título do segundo capítulo, Thi-
ago Nobre trata da produção poética de Rachel de Queiroz durante a
década de 1920 no Ceará, ainda sob o pseudônimo Rita de Queluz. Com-
preendo o destaque para Rachel de Queiroz como um dos pontos mais
significativos do capítulo, por dois motivos: a raríssima presença de mu-
lheres escritoras no período e a possibilidade de perceber a produção da
autora fora do lugar comumente atribuída a ela, de romancista da segunda
geração modernista.
No último capítulo, Imprensa como Trincheira, Thiago expõe a im-
portância do jornal O Povo na divulgação da estética modernista na capital
cearense, ademais de explorar os jogos de poder envolvidos na preferência
pelas folhas modernistas em detrimento da publicação de livros, tendo em
Lívia Verena Cunha do Rosário | 15

vista que “a história da imprensa se confunde com o próprio desenvolvi-


mento da sociedade capitalista”.
O perigo da história única vale para pensar também o Modernismo
Cearense em si mesmo, como explana Thiago em seu capítulo final, ao
abordar as divergências entre os intelectuais naquela Fortaleza desvairada,
também efervescente nas primeiras décadas do século XX. O pesquisador
então instiga sobre a construção de discursos no ensino de História e Lite-
ratura no Brasil, que costumam deixar em segundo plano ou mesmo
ignorar as produções locais.
Embora o presente livro seja fruto de uma dissertação de mestrado,
há um quê de texto literário na escrita de Thiago, nuances de um estilo
que por vezes escapa da usual objetividade do texto acadêmico, especial-
mente ao dialogar com o leitor e comentar certas escolhas temáticas. Um
estilo de escrita de fato inspirado pelas ousadias modernistas.
O livro do professor Thiago Nobre é a culminância de uma apurada
pesquisa acadêmica iniciada ainda na graduação e que segue em desenvol-
vimento mesmo após o mestrado, desbravando uma História ainda pouco
contada e que merece nossa atenção, mas é sobretudo uma bela homena-
gem à Literatura, ao Modernismo, ao Ceará.

Fortaleza - CE, 4 de fevereiro de 2022.

Referência

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
Introdução

Esta pesquisa analisa a produção poético-narrativa e o engajamento


na imprensa dos intelectuais entusiastas do Modernismo 1 na cidade de
Fortaleza, através dos periódicos e livros, entre os anos 1922 e 1931. Temos
como objetivo compreender as sensibilidades e as percepções desses letra-
dos, expressas nos seus escritos, acerca das práticas cotidianas, da cidade
e do movimento estético em que eles se inseriram.
As fontes primordiais foram os seus principais periódicos: o jornal O
Povo (1928-1931), as folhas literárias Maracajá (1929) e Cipó de Fogo
(1931) e as suas obras literárias. Dentre os intelectuais à época, destaca-
ram-se Jáder de Carvalho 2, Sidney Neto 3, Franklin Nascimento 4, Mozart
Firmeza 5 e outros 6. Procuramos articular produção literária com a escrita
na imprensa, identificando a congruências de temas, sensibilidades, opini-
ões, críticas e experimentações estéticas com a palavra. Podemos defini-
los como a primeira geração 7 modernista do Ceará.

1
Sabemos o quanto conceito Modernismo é impreciso e que vários autores têm perspectivas diferentes. Entendendo
isto, a pesquisa se limita ao caso brasileiro, especificamente o cearense, buscando as suas peculiaridades e as suas
especificidades, não esquecendo, é claro, a influência que as vanguardas europeias proporcionaram para tal, bem
como os centros difusores de cultura (Rio de Janeiro e São Paulo) à época. Sendo assim, adotaremos o conceito de
Modernismos, proposto por Monica Pimenta Velloso (2010), e do qual se procurará discorrer devidamente em
momento oportuno no decorrer do texto.
2
Bacharel em Direito, exerceu a advocacia e o magistério, porém também foi jornalista. Fora entusiasta do
comunismo.
3
Foi tipógrafo, funcionário na Rede de Viação Cearense e inspetor de ensino na Diretoria de Instrução Pública do
Estado.
4
Foi funcionário do Ministério da Viação, lotado na Rede Viação Cearense.
5
Foi oficial de gabinete no governo de Matos Peixoto, em 1928.
6
Pode-se citar, também, Rachel de Queiroz, Paulo Sarasate, Demócrito Rocha, Mario Sobreira de Andrade, etc.
7
Conceito elástico que periodiza, entre a década e o século, a sucessão humana no espaço e no tempo. A geração,
semelhante a uma respiração, é um produto da cultura, existindo a partir do momento em que cria uma existência
autônoma, uma identidade. Ela é modelada pelo acontecimento, muitas vezes fruto da autorepresentação e da
autoproclamação. Ou seja, o sentimento de pertencer ou ter pertencido (SIRINELLI, 2006).
Thiago da Silva Nobre | 17

Tal experiência singular do período gerou ideias, sensibilidades, prá-


ticas, movimento intelectual, subjetividades, discursos e debates.
Iniciaremos a delimitação temporal em 1922, pois nesse ano foram publi-
cadas duas coletâneas de poesia e miscelânia importantes em Fortaleza: A
Poesia Cearense no Centenário, organizada por Sales Campos, e Os Novos
do Ceará no Primeiro Centenário da Independência do Brasil, organizada
por Aldo Prado. No que percebemos evidentemente a dicotomia entre duas
gerações, uma anterior com nomes mais ou menos consagrados e outra
com literatos estreantes, munidos de ideias diferentes e percepções estéti-
cas contrastantes. Concluiremos em 1931, período em que foi publicada a
folha modernista Cipó de Fogo 8, último jornalzinho desta geração e, tam-
bém, em que se arrefece as empreitadas coletivas em prol do Modernismo.
Nesse interlúdio entre 1922 e 1931 podemos mencionar também ou-
tros acontecimentos importantes como as polêmicas a favor e contra o
futurismo na imprensa da época (1923), a criação da revista Ceará Ilus-
trado (1924), a palestra de Guilherme de Almeida sobre poesia moderna
(1925), o primeiro livro autointitulado modernista foi a coletânea de poe-
sias O Canto Novo da Raça (1927), que teve como autores Jáder de
Carvalho, Sydney Neto, Franklin Nascimento e Mozart Firmeza, a criação
do jornal o Povo (1928) e a publicação de Maracajá (1929). Esses são ape-
nas alguns fatos importantes, mas evidentemente abordaremos e
articularemos outros no desenvolver do texto.
Mas antes vamos falar um pouco sobre a cidade que esses intelectuais
vivenciaram e tanto os influenciou.
A cidade de Fortaleza, juntamente com outras cidades do Brasil, es-
tava inserida em um contexto particular. Esboçado a partir do final do
século XIX e prosseguindo pelas primeiras décadas do século XX, qual seja

8
Cipó de fogo apareceu, em 27 de setembro de 1927, sob os auspícios dos intelectuais Mário Sobreira de Andrade,
João Jacques e Heitor Marçal.
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a abolição da escravatura, a implantação do trabalho assalariado, a instau-


ração do regime republicano no século XIX. No século XX, podemos
mencionar a crise oligárquica, a modernização dos equipamentos urbanos
e a dinamização das trocas comerciais “[...]desencadeados pela emergên-
cia de novas forças e valores sociais e das injunções demandadas pelo
capitalismo que então se mundializava[...]” (PONTE, 2010, p. 17).
Desse modo, a cidade de Fortaleza foi se inserido no ritmo frenético
do capitalismo mundial, vindo à ordem do dia questões como controle so-
cial, higiene, urbanidade e civilização 9. A cidade de Fortaleza se consolidou
como polo político e econômico do Ceará. A vida ficou mais veloz e o
mundo se estreitou. O fluxo de mercadorias, ideias e pessoas se intensifi-
cou também. Os sujeitos sociais, bem como os agentes letrados, não
passaram imunes a essas mudanças na tessitura cotidiana e ao processo
civilizador 10 instaurado, experienciaram e sentiram de maneiras diversas
as novas relações surgidas. Os letrados e os intelectuais escreveram e pro-
duziram acerca do que vivenciaram, concordaram ou não com o peso
incomensurável das mudanças históricas, sustentaram debates intelectu-
ais fervorosos sobre os caminhos a serem seguidos pela sociedade,
propagandearam ideias e defenderam estéticas.

9
A partir do debate de Norbert Elias (1994), sabe-se que o conceito de civilização não significa o mesmo nas diferentes
nações ocidentais. Para britânicos e franceses o termo demonstra o seu orgulho em relação à importância de suas
nações para o progresso do ocidente. Pode se referir a fatos políticos ou econômicos, religiosos ou técnicos, morais
ou sociais. Descreve um processo ou o seu resultado, é algo que está sempre em movimento. Em certa medida, o
conceito de civilização minimiza as diferenças nacionais e enfatiza o que é comum entre os indivíduos, ou,
supostamente, deveria ser. Em suma, é a manifesta autoconfiança de povos cujas fronteiras e a identidade nacional
foram estabelecidas e consolidadas há tempos, podendo, assim, expandir sua influência. Em contrapartida, para os
alemães o mesmo conceito (Zivilisation) significa algo útil, mas com importância menor, compreendendo aparência
externa dos seres humanos, a superfície da existência. A palavra que expressa o orgulho alemão em seus feitos e em
seu ser, é Kultur. Ele alude a fatos intelectuais, artísticos e religiosos de um lado, separando para outro lado os fatos
políticos, econômicos e sociais. Kultur dá ensejo às diferenças nacionais e à identidade particular dos grupos. Em
suma, reflete a situação de um povo que consolidou os seus limites nacionais e a sua unificação política tardiamente,
e que sempre teve que constituir incessantemente a sua identidade política e cultural.
10
Ainda segundo Nobert Elias (1994), o comportamento e vida afetiva dos ocidentais mudou gradualmente após a
Idade Média e a criação dos Estados nacionais. Mudança que segue em uma direção específica, rumo à “civilização”.
O processo civilizador propõe uma mudança peculiar aos sentimentos de vergonha e de delicadeza, muda o padrão
do que a sociedade exige e proíbe, move as perspectivas do desagradável, do que é socialmente aceito.
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Nesse sentido, o conceito de práticas letradas se torna interessante ao


trabalho, pois surge do cruzamento do diálogo entre Roger Chartier e Mi-
chel de Certeau. Para Chartier (1996), a prática da leitura, que também é
uma prática cultural, consiste na percepção dos usos, das suas formas de
apropriação e dos materiais impressos (os suportes). A leitura é uma prá-
tica criadora, inventiva, produtora. Por isso, não se deve anulá-la no texto
lido, como se o sentido desejado pelo autor se impusesse a priori, sem a
resistência, apropriações e inventividades dos leitores. Os atos de leitura
dão aos textos significações plurais e móveis, situam-se no encontro de
maneiras de ler, coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas
ou públicas. Ele propõe entender como os agentes letrados praticam a es-
crita no seu cotidiano, em que condições produzem seus escritos, se
organizam em redes de sociabilidades, fazem circular seus textos.
Para Certeau (2002) as práticas cotidianas (procedimentos, maneiras
de fazer), que são esquemas de manipulação, operação técnicas modos de
ação dos indivíduos comuns. Tratam-se das práticas (ler, falar, circular,
comprar, etc.) dos sujeitos ordinários, pelo qual eles percorrem os siste-
mas racionais e expansionistas de produção (televisiva, comercial,
urbanística, etc.) dando respostas inesperadas. Os procedimentos popula-
res jogam com os mecanismos de disciplina e não se conformam com ela
a não ser para alterá-los.
Gleudson Passos Cardoso (2016) sintetiza o conceito de práticas le-
tradas como sendo as atividades cotidianas realizadas a favor das letras e
do letramento, qual seja a interiorização de ideias através da leitura, a di-
fusão da escrita através da circulação de textos impressos, os debates, as
contendas e as polêmicas intelectuais, bem como a própria ritualização e
sacralização do conhecimento letrado.
No entanto, não se pode olvidar a existência do espaço em que se de-
senrolam as ações dos sujeitos. Espaço este que é cenário e personagem da
20 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

trama. A cidade. Para Sandra J. Pesavento (1995), a cidade é lida e inter-


pretada através das suas representações, considerando a cultura como
uma rede de significados socialmente estabelecidos. O lócus urbano é com-
preendido como uma seara privilegiada para a construção destes
significados. Ou seja, a historiadora propõe a inteligibilidade do real atra-
vés da leitura da cidade, ou, melhor dizendo, das suas representações. Elas
são partes integrantes daquilo que se convenciona chamar de realidade.
Tal fato se dá porque elas são matrizes de práticas sociais, bem como de-
monstram uma relação de força entre as imagens reais (cenários,
paisagens de rua, arquitetura) e as imagens metafóricas (pintura, prosa,
poesia, discurso higienista). Portanto, a urbe proporciona o cruzamento
entre o dado objetivo, o vestígio e as leituras feitas sobre o real.
O que, geralmente, se entende como Modernismo? Ora, quando fa-
zemos referência sobre o tema, associamos de imediato aos movimentos
artísticos que percorreram o final do século XIX e o século XX, dos quais
muitas concepções filosóficas, políticas e estéticas estavam em jogo e em
que vários grupos artísticos (expressistas, cubistas, futuristas, simbolistas,
dadaístas, surrealistas) fizeram parte (VELLOSO, 2010).
Peter Gay (2009) e Raymond Williams (2011) concordam que o Mo-
dernismo foi um fenômeno eminentemente urbano, advindo das novas
relações capitalistas nas demasiadas aglomerações humanas das grandes
cidades. Para Peter Gay (2009), o Modernismo se formou a partir da pros-
peridade social nos Estados em fase de industrialização e urbanização. O
sistema fabril, surgido na Inglaterra, e posteriormente expandido pelo
mundo, foi o pré-requisito indispensável para a produção e consumo de
massa dos bens de consumo, entre eles as belas-artes. A estrada de ferro,
bem como tantas outras novas tecnologias, transformaram definitiva-
mente os padrões populacionais e as oportunidades comerciais. Novos
Thiago da Silva Nobre | 21

mecanismos financeiros e vastos impérios bancários forneceram o capital


para formação de um mercado de riqueza inédita.
Já para Williams (2011), complementando a assertiva acima, o Mo-
dernismo se constituiu como o local novo e específico dos artistas e dos
intelectuais desse movimento dentro do ambiente cultural em transforma-
ção da metrópole. Na segunda metade do século XIX e primeira metade do
século XX, a metrópole se moveu rumo a uma dimensão cultural diversi-
ficada. Ela era agora muito mais do que a cidade imensa, ou mesmo, muito
mais do que a capital de uma nação importante. Ela era o lugar no qual
novas relações sociais, econômicas e culturais começavam a ser formadas.
No Brasil, segundo Antonio Candido (2000), o movimento Moder-
nista foi um brado de independência cultural e de valorização identitária,
apesar de ter em sua origem a influência das vanguardas europeias, bus-
cou a sua própria identidade, temas, formas, entendimentos de mundo,
modos de escrever e de falar. O Modernismo brasileiro foi muito impor-
tante em sua fase heroica, pois trouxe à tona vários assuntos recalcados
ou eufemisados através da idealização, como, por exemplo, a grande mes-
tiçagem do povo brasileiro e a forte herança cultural indígena e africana.
É o fim do diálogo de inferioridade perante Portugal. O que era idealizado
para esconder as contradições ou era interpretado como desvantagem e
deficiência, transmutou-se em superioridade e peculiaridade de um povo.
No primeiro capítulo pretendemos fazer um voo panorâmico na ci-
dade de Fortaleza, contextualizando a cidade e as práticas cotidianas dos
indivíduos em 1920. Transparecendo uma cidade que mantem uma rela-
ção tensa entre o moderno e o antigo, entre o novo e o antiquado, entre a
modernidade e a tradição. Logo em seguida, procuramos destrinchar a
trajetória de alguns intelectuais que serão importantes na trama desenvol-
vida, bem como a sua rede de relações. Podemos citar os nomes de
Demócrito Rocha, Paulo Sarasate, Franklin Nascimento e Jader de
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Carvalho, como alguns exemplos, mas a lista é bem maior. Encerrando o


capítulo se tentou falar um pouco sobre a revista Ceará Ilustrado e sobre
a conferência, de Guilherme de Almeida, sobre a poesia moderna.
No segundo capítulo procuramos tratar sobre a produção literária
dos letrados engajados na divulgação do modernismo em Fortaleza. Em
um primeiro momento se faz um balanço das atividades intelectuais e mo-
vimentos literários ocorridos na capital alencarina, passando, logo adiante,
para análise de dois livros de poesia: O Canto Novo da Raça (Jader de Car-
valho, Franklin Nascimento, Mozart Firmeza, Sidney Neto) e Mandacaru
(Rachel De Queiroz).
As duas obras são muito interessantes para perceber os temas recor-
rentes e maneira como os letrados percebiam a sua realidade em volta.
Usando geralmente a blague e a ironia para discutirem o que eles achavam
reprovável e errado, construíram as suas representações sobre a cidade de
Fortaleza. Podemos afirmar que duas construções discursivas estavam em
jogo. Uma mostrando uma urbe em desenvolvimento e que possuía vários
elementos de modernidade, apesar de entrarem em choque elementos
provincianos ainda muito arraigados. Enquanto outra delineava um lugar
atrasado, tradicional, miserável e sujeito ao êxodo humano. Apesar de
muitos conteúdos se repetirem nas duas obras, é perceptível enxergar for-
mas diversas de abordagem. Permitindo compreender os anseios,
esperanças e frustrações dos seus autores em relação à realidade.
No terceiro capítulo intentamos trabalhar com produção letrada vin-
culada aos periódicos e ao engajamento na campanha em prol do
modernismo literário na imprensa. Primeiramente, analisamos o jornal O
Povo, desde a sua fundação em 1928 até 1931, bem como outros jornais.
Prosseguindo, estudamos, também, duas folhas modernistas organizadas
por esses intelectuais. Maracajá (1929) é uma delas, em que saiu como
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suplemento literário do jornal O Povo. E Cipó de Fogo (1931) é outra,


saindo de forma independente.
Desta forma, pretendemos contribuir com o conhecimento acerca das
relações sociais e práticas cotidianas que tiveram existência no desenrolar
da década de 1920 e início de 1930. Relações estas que estavam em embate
constante com as novas demandas do capitalismo que se expandia e se
desenvolvia, trazendo a inovação técnica como o seu principal aspecto. O
trabalho se detém, sobremaneira, nos sujeitos letrados que estavam no
“olho do furacão” e experienciaram de forma subjetiva e pessoal as mu-
danças, nas pessoas e nas coisas, que estavam ocorrendo na cidade.
O próprio movimento Modernista foi uma forma de diálogo com as
novas questões que eram postas todos os dias aos intelectuais, que preci-
savam de novos olhares e novas repostas para aquilo que era totalmente
inédito e inesperado. Dialogando com essas novidades os agentes letrados
aqui trabalhados viram e fizeram ver a cidade em que moraram, que tra-
balharam, que amaram, que se divertiram e que se aborreceram, bem
como colocaram as suas propostas e as suas opiniões sobre os rumos que
sociedade ia trilhando.
Compreender estes jovens escritores e a sua produção sobre a cidade
e sobre as práticas cotidianas se torna uma empreitada muito frutífera, no
sentindo de perceber a tensão que a existência humana no tempo e no
espaço produzem. Distância temporal que agora completa cem anos, o que
é, com certeza, um grão de areia na ampulheta de Clio, mas que nos traz
à tona a profusão de possibilidades e de sentidos dos sujeitos no tempo.
Capítulo 01

A Metrópole Formidável

1.1 – Modernidade, Modernização e Modernismo(s)

Modernidade, Modernização e Modernismo são conceitos que usual-


mente se confundem, não raro sendo usados como possuindo significados
sinônimos. No entanto, cabe aqui diferenciar e delimitar as suas acepções
devidas. Os debates e as polêmicas entre os estudiosos do tema não são
poucos.
Modernidade é aquele estado das coisas que surgiu devido às mudan-
ças políticas, econômicas, sociais, técnicas, culturais e mentais advindas
com a consolidação e desenvolvimento do capitalismo, que perduram até
a contemporaneidade. Se aceitarmos, é claro, que a Modernidade ainda
não tenha sido superada. Já o Modernismo é o conjunto de manifestações
intelectuais e vanguardas artísticas que pulularam entre o século XIX e o
XX. Por fim, a modernização estaria ligada ao desenvolvimento da tecno-
logia e da técnica. Passemos a um exame mais detalhado destas questões.
Segundo Jacques Le Goff (2004), o par antigo e moderno está ligado
à historicidade do Ocidente de uma maneira indelével, pois durante o pe-
ríodo pré-industrial (séc. V ao séc. XIX) marcou o ritmo da divergência
cultural. Desembocando, entre o fim da Idade Média e durante o Ilumi-
nismo, em grandes polêmicas intelectuais. No século XIX, apareceu o
conceito de Modernidade, que constituiu como uma reação ambígua da
cultura em relação às investidas do mundo industrial contra a tradição.
Nas sociedades ditas tradicionais, a antiguidade tinha um valor consoli-
dado de porto seguro. Os antigos seriam aqueles fiéis depositários da
Thiago da Silva Nobre | 25

memória coletiva, das certezas para as dúvidas ontológicas e das respostas


para as perguntas cósmicas.
O Renascimento passou a designar como antigo tudo aquilo que re-
metia à tradição greco-romana, tendo aí um modelo para copiar. O
combate entre passado e presente, entre tradição e novidade, colocaram
em campo duas possibilidades: a do eterno retorno, do tempo circular, que
põe a Antiguidade como exemplo supremo e intransponível ou, em con-
trapartida, o do progresso, da temporalidade evolutiva e linear.
Com o advento da revolução industrial e das instituições políticas mo-
dernas, houve uma radicalização na aceleração da História, entre os
séculos XIX e XX. Em primeiro lugar, movimentos intelectuais, sejam eles
literários, artísticos ou religiosos, ganharam o rótulo de Modernismo. Em
segundo lugar, a expansão do capitalismo colocou em contato países de-
senvolvidos e subdesenvolvidos, colocando em questão o problema da
Modernização e de posição periférica dos mesmos.
O Modernismo representava a certeza e a arrogância, a Modernidade
trazia consigo a interrogação e a reflexão. Ambos caracterizados como in-
separáveis do mundo moderno (FEVBRE, 1962). A Modernidade é o
resultado ideológico do Modernismo. Expressão do inacabado, da dúvida
e da crítica, ela é também é criação e ruptura com o passado (LE GOFF,
2004).
A Modernidade designava um tipo de experiência vital, ligada ao
tempo e ao espaço, compartilhada por homens e mulheres. Processo esse
paradoxal e contraditório, que prometia aventuras, poder, transformação,
descobrimentos, ao mesmo tempo que, também, ameaçaria destruir todas
as referências da tradição. As fronteiras eram ignoradas, estabelecia-se
uma unidade que desunia. Toda solidez se desmanchava no ar. A existên-
cia moderna engendrou vários elementos constitutivos: as grandes
descobertas das ciências (física, química, etc.), a industrialização da
26 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

produção, a explosão demográfica nas cidades, os sistemas de comunica-


ções de massa, o fortalecimento dos Estados Nacionais, a consolidação do
mercado capitalista mundial, etc. Todos eles imbricados, no século XX, co-
ligiram um processo de modernização (BERMAN, 1987).
Usualmente marca-se o século XVIII como o período definido como
Modernidade (Modernité). Não é por acaso, duas grandes experiências iné-
ditas marcaram o final dessa época: a Revolução Francesa e Revolução
Industrial. Este revolucionar duplo da política e da técnica transformou a
Europa e, consequentemente, o mundo. Seja por meio diplomático ou por
guerras, o capitalismo foi se espalhando e modificando, uma a uma, soci-
edades tradicionais antiquíssimas. Vínculos comunitários constituídos na
religião e nos valores consuetudinários de lealdade foram substituídos por
novos referenciais de conduta, melhor alinhados com a nova comunidade
internacional que surgiu.
O Modernismo reuniu um conjunto de transformações ocorridas nas
artes entre a década de 1870 e o início da Primeira Guerra Mundial. Os
intelectuais vivendo essa época tentaram criar linguagens e expressões
que buscassem traduzir o caos social decorrente da mudança radical de
referenciais civilizatórios. A Primeira Guerra foi um momento chave para
a destruição de muitas vidas e das certezas no progresso da humanidade
rumo à perfectibilidade (VELLOSO, 2010).
A Modernidade marcou o surgimento de duas categorias novas e apa-
rentemente contrárias, antinômicas e contraditórias: o indivíduo e a
multidão. Facetas opostas de um mesmo prisma, ao mesmo tempo que se
repelem, completam-se em suas incongruências. A Declaração dos Direitos
do Homem teria marcado o triunfo do indivíduo. Porém, ainda no século
XIX, permaneceu como uma categoria abstrata. O cidadão foi conquis-
tando lentamente os seus direitos. Ocorreu de formas diferentes conforme
o meio social e o lugar, desencadeando um aflorar abrupto do individual,
Thiago da Silva Nobre | 27

tanto nas ideias como nos costumes. As pessoas insurgiram-se contra as


disciplinas das coletividades, as servidões, as imposições familiares, o es-
magamento do eu, ansiando um tempo e um espaço para si. Dormir
sozinho, ler um livro ou jornal, vestir-se como quiser, ir e vir como bem
entender, consumir sem freios, amar quem se deseja, pressupõe a busca
da felicidade pessoal e a escolha do próprio destino. Mas, para além dessas
questões, seria a voluntária e desprendida escolha pela solidão. O dândi, o
artista e o intelectual revoltaram-se contra os conformismos de massa. No
entanto, indo além destes personagens minoritários, existiram outros ma-
joritários que reivindicaram e ainda reivindicam o direito à existência
autônoma: as mulheres e os trabalhadores. Elas colocando por terra o pa-
triarcalismo e eles buscando a superação da ordem “burguesa”. Em
tempos da ampliação dos movimentos de multidões, o indivíduo afirmou-
se como categoria política e existencial. Essa prodigiosa descoberta de si
foi geradora de novos laços de alteridade tomando em conta diferença do
outro (PERROT, 2009).
Girando o prisma chegamos a sua outra face, a multidão. Ela foi um
dos fenômenos que muito chamaram a atenção dos intelectuais do século
XIX. Vitor Hugo, Émile Zola, Charles Baudelaire, Eugène Sue, Edgar Allan
Poe e Charles Dickens são apenas alguns exemplos. Eles tentaram enten-
der essa manifestação de maneiras diversas. Em primeiro lugar, pela
abrangência do espaço aberto, do coletivo, da cidade e das ruas, a massa
anônima e automática fazendo e refazendo os seus percursos todos os dias.
Em segundo lugar, através do ato de pinçar o indivíduo, apartando-
o do todo do qual integra e procurando perceber os detalhes, as minucias
e as diferenças. O fluir e o refluir compassado da multidão representa es-
teticamente o palimpsesto que é a cidade.
A multidão marcou profundamente duas grandes metrópoles do sé-
culo XIX: Paris e Londres. Foi considerada pelos contemporâneos como
28 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

um fato perturbador e inquietante. Incontáveis transeuntes descolando-se


rotineiramente no simples ato de ir trabalhar, despertou o fascínio e o ter-
ror dos espíritos mais sensíveis. Gestos automáticos e naturalização
obediente ao tempo do relógio compõem o fervilhar de homens e mulheres
cotidianamente se deslocando. Frequentemente, essa massa anônima é as-
sociada às metáforas como a do caos, do turbilhão, de ondas sucessivas,
todas elas imagens relacionas à força incontrolável da natureza. Figuras
taciturnas que, apesar de se cruzarem todos dias, mal se conhecem
(BRESCIANI,1989). A multidão na metrópole contém o indivíduo e au-
menta a sua solidão.
A Modernidade imprimiu o progressivo dilaceramento das convic-
ções das identidades e das referências. Além de se caracterizar, também,
pela crise e estilhaçamento das estruturas mentais. Engana-se o leitor que
acha que a aparente natureza nebulosa e volátil das novas questões advin-
das da Modernidade podiam trazer alento e tranquilidade aos indivíduos
seduzidos pelas fantasmagorias da técnica. Muito pelo contrário, sabemos
muito bem o quanto é difícil existir e viver sem referências em uma reali-
dade que muda a sua fisionomia a todo instante. Sentimos
desesperadamente a vertigem do vazio, em um cenário desolador onde as
maravilhas mecânicas, apesar de ainda proporcionarem admiração, curi-
osidade e espanto, não mais promovem o mesmo impacto avassalador de
outrora.
É com a ferrovia e o navio a vapor que o mercado mundial ganhou a
sua concretude, liberando e consolidando a forma-fetiche das mercadorias
para encantar toda a humanidade. Desta forma, a sociedade das trocas de-
siguais e do maquinismo como espetáculo é delineada em seu esboço
básico. Na Europa e no Brasil Colônia e Império, é possível detectar pa-
drões das formas e cadencias da modernidade industrial, suas relações
técnicas com o trabalho e a paisagem, seus impactos psicológicos, gerados
Thiago da Silva Nobre | 29

pelos destroços de culturas implodidas de dentro para fora. Tanto nos cen-
tros como nas periferias do capitalismo, a alucinação fantasmagórica dos
homens e das mulheres na Modernidade possuem o mesmo contexto. Mu-
dam-se apenas as formas e as intensidades. Porém, a sensação de
descolamento, de desraizamento, de ilusões óticas e de deriva, foram fe-
nômenos experimentados desde o início da Idade Moderna, cada vez mais
em escala global e planetária.
O século XIX reagiu, em um misto de incredulidade, espanto e encan-
tamento, às invenções concebidas pelo moderno sistema fabril e no vasto
e intricado panorama que se rascunhou em torno das novas relações entre
técnica e sociedade. Exemplo disso foi, em 1830, a massa de 400 mil ex-
pectadores que assistiram atônitos e maravilhados à viagem de
inauguração da linha ferroviária Liverpool-Manchester, umas das primei-
ras do mundo. Com o advento das ferrovias a técnica se desgarrou das
formas que a produziram e assumiu feição sobrenatural (HARDMAN,
1988).
Esse aspecto sobrenatural que recobre a tecnologia não é à toa. Tanto
é que uma das primeiras exibições comerciais de um filme (L'Arrivée d'un
train à La Ciotat), realizada pelos irmãos Lumière, em 1896, no qual se
retratou a chegada de um trem à estação, ficou marcado pela fuga atrapa-
lhada e ingênua da sala de exibição pelos expectadores mais
impressionáveis e sensíveis. Muitos deles, imersos na prestidigitação da
imagem reproduzida na tela, realmente acharam que seriam atropelados
e esmagados pelo imenso trem negro da película.
A Europa em meados do século XIX assistiu à consolidação do sistema
fabril, ao triunfo da ordem burguesa, ao advento das máquinas e novas
invenções, às transformações urbanas e aos avanços da ciência. Dois pro-
cessos fundamentais foram expressão da expansão do capitalismo e
constituição do imaginário burguês: o sistema fabril e a Modernidade. A
30 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Modernidade, ao mesmo tempo individual e social, caracterizou-se pela


postura dialética de celebração e resistência perante as transformações
matérias e mentais do mundo que se fizeram à imagem e semelhança da
burguesia. Neste contexto, as exposições universais se constituíram em
uma das principais armas de propaganda para o capitalismo, sendo possí-
vel demonstrar o seu triunfo e a sua exemplaridade. As exposições
funcionaram como vitrine de exibição dos inventos e das mercadorias. Ti-
veram caráter pedagógico e didático sobre o progresso, a produtividade e
a disciplina do trabalho. Elas não visavam os lucros vultosos, também era
objetivo difundir ideias e crenças pertinentes ao ethos burguês. Esses
eventos promoveram o capitalismo, bem como difundiram o imaginário
burguês (PESAVENTO, 1997).
As exposições universais se mostraram como o grande santuário do
exibicionismo burguês e o congraçamento universal da civilização capita-
lista. A taxinomia didática dos produtos feitos pelo trabalho humano,
mostrava o magnífico mosaico das curiosidades nacionais e estimulava o
culto religioso da mercadoria-fetiche. O Palácio de Cristal (1851), de Lon-
dres, e a Torre Eiffel (1889), de Paris, promoveram a alquimia da
combinação de materiais, como o vidro e o ferro, sendo exemplos dessa
atmosfera entusiasta do progresso técnico. Esses eventos da segunda me-
tade do século XIX e início do século XX, representavam o otimismo
progressista que impregnava o pensamento da sociedade burguesa da
época. Ali saltava aos olhos o ideal obsessivo do saber enciclopédico e do
eurocentrismo, travestido de cosmopolitismo liberal.
No entanto, é preciso ser cuidadoso para não tomar esse clima de
excitação pela máquina e entusiasmo cego pelo progresso material como
evidência de uma industrialização já desenvolvida, consolidada e descen-
tralizada na Europa. O setor industrial, apesar de seus visíveis avanços,
era minoritário tanto nas exibições como na sociedade europeia
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oitocentista. Porém, no que diz respeito ao aspecto da inovação técnica, da


transferência tecnológica, do sistema de trabalho fabril, da publicidade e
do consumo massificado, a exposições internacionais do século XIX beira-
vam as experimentações de vanguarda.
Em 1855 foi mostrada pela primeira vez a versatilidade do alumínio
como nova matéria-prima para o uso industrial. A sensibilidade das pes-
soas foi persistentemente mobilizada pelos inventos engenhosos saídos da
indústria moderna, que ficaram maravilhadas e atônitas diante os novos
espetáculos mecânicos. Esse processo de sedução teve como ponto de par-
tida a arquitetura. Ao mesmo tempo prosaica e reencantada, a nova
monumentalidade foi sendo erguida no alicerce do triunfalismo e na auto-
confiança burguesa: o Cristal Palace (1851), o Palais de l’Industrie (1855),
o Trocadéro (1889), a Tour Eiffel (1889), Galerie des Machines (1889).
Vale salientar, também, uma das principais características das expo-
sições, a sua faceta de celebração das efemérides nacionais e
internacionais, rearticulando o nacionalismo europeu revigorado pela ex-
pansão imperialista. Esse imperialismo tomou para si a ilusão do
entrelaçamento fraternal entre os povos. A divisão social do trabalho cris-
talizou-se como a separação produtiva naturalizada entre as nações. Os
estandes não classificaram somente produtos, mas também países e cul-
turas (HARDMAN, 1988).
No último quartel do século XVIII, na Inglaterra, a Revolução Indus-
trial foi um marco decisivo para a agudização das relações capitalistas.
Podemos distender três fases características dessa experiência, que se es-
tende até os nossos dias e ainda continua a se desenvolver. O primeiro
período (1770 – 1870) se particularizou pelo papel de liderança da Grã-
Bretanha, que se tornou a oficina, o banco, o segurador e o transportador
mundial.
32 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

O segundo momento, durante a Revolução Francesa e as Guerras Na-


poleônicas (1789 – 1815), a França disputou a hegemonia política e
econômica, porém, após Waterloo e a derrota de Napoleão, o Império In-
glês consolidou a sua primazia na economia mundial. Em paralelo, as ex-
colônias espanholas, portuguesas e inglesas da América inseriram-se no
sistema global, produzindo produtos primários para o mercado externo
como, por exemplo, fumo, algodão, açúcar, café, salitre, cobre, prata, etc.
A partir de 1870, as relações de servidão e de escravidão, ao redor do globo,
foram sendo abolidas. Em 1861 – 65, a escravidão fora extinta nos Estados
Unidos, concomitantemente, na Rússia, a servidão fora extirpada. Entre
1868 e 1871, deu-se a unificação territorial da Itália e da Alemanha, criando
condições favoráveis para a industrialização dessas nações. Em 1867, ocor-
reu a Revolução Meiji, no Japão, permitindo a ocidentalização e a
modernização. É nessa mesma época, também, que as potências capitalis-
tas impõem a abertura compulsória da África ao capital. Com a
consolidação do capitalismo industrial, foi possível a sua expansão selva-
gem sobre os sistemas sociais ditos fechados, como o sul dos Estados
Unidos, a Rússia, o Japão, o sul da Itália, a África subequatorial, que su-
cumbiram à força do “progresso”. Esse período, também, marcou o
progressivo fim da primazia econômica e industrial britânica. Potências
outras surgiram no cenário mundial: Estados Unidos, Alemanha, França,
Japão.
Por fim, e sendo característico do terceiro momento, a crescente ri-
validade entre essas nações imperialistas acabou, como sabemos, na
Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), a qual modificou profundamente
o capitalismo. O conflito significou o esgotamento da prática política do
fatiamento de territórios de influência pelo globo. A partir de 1918, o mo-
vimento de expansão capitalista começou a refluir. Até então a atividade
industrial se acercava aos países centrais do capitalismo, que se
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desenvolviam nas suas colônias ou em pátrias recém-criadas (instáveis po-


lítica e economicamente) e a produção de artigos primários, bem como
atividades infraestruturais, como transportes, energia e serviços urbanos
em geral.
Entre 1870 e 1918, o Brasil se inseriu na divisão internacional do tra-
balho como produtor de artigos primários, como o café, a borracha, o
algodão, o fumo, o cacau, etc. Apesar disso, a integração brasileira no mer-
cado internacional era bastante parcial, durante o século XIX e mesmo
ainda nos primeiros três decênios do século XX. Interessa notar, sendo um
produtor primário, o país enfrentou vários fracassos. Teve o seu algodão
superado pelos Estados Unidos duas vezes, após a Guerra de Independên-
cia e depois da Guerra de Secessão. Já o açúcar foi suplantado pela
produção das ex-colônias espanholas, particularmente Cuba, logo após o
seu processo de emancipação política. A borracha foi substituída, na vés-
pera da Primeira Guerra Mundial, pelo produto do Extremo Oriente. O
Brasil apenas manteve o predomínio do café e, em menor abrangência, do
cacau (SINGER, 2000).
Qual a inserção do Brasil, do Ceará e, especificamente, de Fortaleza
nesse contexto planetário? Dentro da seção estabelecida entre países pro-
dutores de mercadorias industrializadas e aqueles fornecedores de
matéria-prima, o Brasil encaixou-se no de segunda categoria, como men-
cionado acima. Tendo como mercadoria de importância nacional o café,
consolidou-se como uma nação agroexportadora, ficando sujeito às flutu-
ações dos preços internacionais, imprevisibilidade econômica que causava
instabilidade política nas frágeis instituições democráticas do país. Esta
tendência persistiu por todo o período da Primeira república (1889 –
1930), tal qual chaga aberta.
A entrada do Brasil na Modernidade se deu de forma contraditória.
Anoiteceu Império escravista para amanhecer República Liberal. Bastou
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um golpe militar para destituir o regime que já vinha dando sinais de es-
gotamento há tempos. Modos de viver, valores, costumes, instituições e
códigos, tidas como progressistas e civilizados, foram transplantados feito
rascunhos mal esboçados. Um otimismo desvairado inundou as mentes e
os corações dos indivíduos, acreditando eles que as conquistas da ciência
e da técnica colocariam a humanidade nos trilhos do progresso. A barbárie,
a guerra, a pobreza e o atraso seriam solapadas pelo desenvolvimento ir-
resistível. Novos mecanismos transmutaram a economia mundial, as
grandes potências perceberam a possibilidade de altos lucros em tratar
com mercados periféricos, onde a mão-de-obra era mais barata, os direitos
sociais exíguos e as matérias-primas abundantes. O capitalismo financeiro
através de trustes e cartéis deu novas formas às políticas monopolistas. Os
cada vez mais numerosos pobres das cidades amontoavam-se em habita-
ções minúsculas, pardieiros, pensões, tugúrios, choças, choupanas,
cabanas, cortiços, casas de taipa, em bairros empobrecidos ou logradouros
periféricos distantes. A multidão, novidade recente das grandes aglomera-
ções urbanas, enchia em torrentes as ruas, as calçadas e as praças todos os
dias. Não obstante a profusão de homens e de mulheres indo e vindo, a
consciência da solidão, do anonimato e do desamparo só aumentavam.
Para contê-los, diverti-los, discipliná-los e educá-los a cidade foi reformada
amplamente (NEVES, 2008).
A cidade de Fortaleza, mesmo que em posição periférica, não foi ex-
ceção à regra. O final do século XIX foi marcado pela intensificação da
política de exportação empreendida pelos governos republicanos, ampli-
ando setores ligados ao capitalismo mundial. O conflito de Independência
do Estados Unidos, em 1850, e a Guerra de Secessão, em 1866, construí-
ram para a dinamização da economia do Nordeste brasileiro. O produto
valorizado foi o algodão, destacando-se aquele do Ceará cuja condição cli-
mática garantia o desenvolvimento da espécie de fibra longa, preferido no
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mercado internacional. A elevação da demanda externa do algodão esta-


beleceu o Ceará na dianteira das exportações, fomentando o comércio e a
economia. Tal desenvolvimento exigiu dos governantes a criação de uma
infraestrutura capaz de agilizar e racionalizar o escoamento da produção,
tanto é que os primeiros trilhos já foram construídos em 1873 (ALMEIDA,
1989).
Outros produtos também tinham valor internacional como, por
exemplo, o cacau, a laranja, as sementes de mamona e oiticica, madeiras e
seda bruta. Porém, as mercadorias tradicionais eram o algodão e o café.
Uma das casas comerciais emblemáticas da época foi a Boris Frères, esta-
belecimento importador-exportador de origem francesa (TAKEYA, 1995).
É a partir de 1840 que a Instrução Pública primária e secundária foi
organizada oficialmente, mudando do ensino abstrato e literário para o
positivismo pragmático. Deste modo, o ensino foi estruturado como um
mecanismo de estratificação social. Para as classes subalternas a instrução
se voltou para a preparação ao trabalho na lavoura e para as atividades
mecânicas e braçais, em que os sentimentos de ordem e de obediência à
Igreja e ao Estado eram instilados. Para as elites a instrumentalização edu-
cacional se deu para formação de uma classe opulenta destinada a
conduzir os negócios públicos e privados. Na prática esses indivíduos pri-
vilegiados seguiram carreiras políticas, tornando-se burocratas e
intermediários entre os interesses das elites e o Estado, bem como pole-
mistas na imprensa.
O surgimento dos primeiros espaços urbanos do Ceará se deu em re-
lação de dependência com Pernambuco. O comércio local e interprovincial
de gado e carne de charque produziu vilas como Aracati e Icó. O algodão
criou Sobral, que se beneficiou com o mesmo e com outra matérias-pri-
mas, que eram todas escoadas, através da ferrovia, para o porto de
Camocim, enquanto Fortaleza ficava distante dos interesses comerciais
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mais diretos. Tal fato mudou com a emancipação econômica do Ceará pe-
rante Pernambuco, em 1799, tornando o porto de Fortaleza o principal
escoadouro das mercadorias do Estado. Anteriormente, todas as mercado-
rias passavam pelos portos de Recife (PIMENTEL, 1998).
Como sabemos, o final do século XIX e os primeiros decênios de sé-
culo XX foram marcados por várias mudanças importantes no
desenvolvimento econômico, social, cultural e político no Brasil. Transfor-
mações essas estimuladas pelo surgimento de novos valores e demandas
sociais perante o capitalismo que se mundializava compulsoriamente por
todo globo. No bojo dessas mutações, várias das principais cidades do Bra-
sil foram submetidas a uma série de intensas reformas estruturais e sociais
na malha urbana.
Consequência dos desejos e anseios das elites dominantes de acertar
o ritmo das suas cidades ao compasso frenético e feérico do capitalismo,
modernizando, remodelando e alinhando os centros urbanos tal qual os
padrões e modelos civilizacionais das metrópoles europeias.
Durante a segunda metade do século XIX e com maior ímpeto na Pri-
meira República (1889 – 1930), na cidade de Fortaleza, capital do Ceará,
ocorreram semelhantes ações reformadoras com o objetivo de regenera-
ção urbana. Os principais agentes promotores dessas transformações, em
Fortaleza, foram os grupos ligados ao comércio, consolidados pelos lucros
dos negócios de importação e exportação, bem como o montante de pro-
fissionais liberais (médicos, advogados, jornalistas, funcionários públicos,
engenheiros, sanitaristas, etc.) produzidos pela República brasileira. As eli-
tes intelectuais foram fundamentais na construção e na imposição da
ordem social, legitimadas pela racionalidade cientificista e positivista eu-
ropeia, servindo de base ideológica para as classes dominantes e para o
Estado implementarem as modificações necessárias aos seus anseios ime-
diatos.
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Galgando prestígio social, político e científico, os grupos intelectuali-


zados conceberam novos saberes-poderes e representações sobre a cidade,
instilando verdades voltadas ao ajustamento da população às novas con-
venções e regras de manutenção da existência concreta e das relações de
trabalho. A capital do Ceará alicerçou-se como polo econômico-social he-
gemônico regional já na segunda metade do século XIX, a partir da
crescente demanda de algodão para o mercado externo (1860 – 1870).
Ainda no final do século XIX, Fortaleza se tornou a sétima capital brasileira
em densidade populacional. Sendo assim, o porto foi melhorado, a estrada
de ferro Fortaleza-Baturité (1873) foi implantada e firmas estrangeiras se
multiplicaram. As mudanças na paisagem urbana prosseguiram: sobra-
dos, casarões, mansões, chalés, palacetes, prédios públicos, calçamento
nas vias principais, bondes à tração animal, iluminação a gás carbônico,
lojas e cafés afrancesados, armazéns, cinemas e estabelecimentos de toda
sorte (PONTE, 2010).
Todas essas inovações permitiram, aos moradores da cidade, a ex-
pansão das possibilidades cotidianas bem como a distensão temporal. A
noite já não representava empecilho intransponível ao deslocamento e ao
divertimento público, a técnica venceu a treva.
No que tange acerca dos estudos mais recentes sobre o capitalismo e
o seu impacto no Ceará, um grupo de professores vem desenvolvendo es-
tudos e pesquisas prolíficos, no qual contribuições interessantes e
possíveis percursos foram delineados. Podemos mencionar Antônio Pádua
Santiago, Gleudson Passos Cardoso, Erick Assis de Araújo e Marco Aurélio
de Ferreira da Silva.
O objetivo geral da incursão pretendeu compreender a expansão do
capitalismo e a influência nos grupos socais na construção das culturas
urbanas do Ceará, especificamente nas cidades de Fortaleza, Aracati, Qui-
xadá, Sobral e Crato. Três conceitos balizaram a compreensão
38 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

epistemológica do objeto, a saber: capitalismo, civilização e tradução cul-


tural. A problemática desenvolvida por esses historiadores está
intimamente ligada ao entendimento sobre o significado de civilização ca-
pitalista, bem como a sua propensão a tecer conexões e interdependências,
que impuseram a hegemonia do capital sobre a vida.
Já durante a colonização das terras que viriam a ser o Brasil, ocorreu
o primeiro processo de europeização, tendo como como base cultural a
monarquia portuguesa. A segunda europeização e deu sob a influência da
Inglaterra e da França. Sem falar, também, na dominação cada vez maior,
dos Estados Unidos, exercida no Brasil logo após a Segunda Guerra Mun-
dial. Deste modo, Pádua Santiago (2016) propõe entender a inserção do
Ceará no capitalismo internacional sob a égide da tradução cultural, ferra-
menta conceitual desenvolvida por Peter Burke, que a concebe como a
interpretação constante do outro, implicando a apropriação e a distorção
do sentido original. Ou seja, os indivíduos munidos de suas subjetividades
e da sua realidade específica estabelecem aproximações e distanciamentos,
criando novas possibilidades e repostas insuspeitas. O capitalismo para
além da acumulação do capital, era civilização também. Sendo assim, deu-
se como um processo e uma experiência, que não sendo linear e uniforme,
tendeu a estandardizar os homens e as mulheres, direcionando os seus
desejos, sonhos, crenças e paixões, todos eles direcionados para a lógica de
acumulação do capital, tanto o material e como o simbólico.
Na difícil empreitada de compreender a cidade de Fortaleza, nos de
1920, perscrutamos documentos oficiais, jornais, revistas e livros de me-
mória. Tendo assim, a possibilidade do vislumbre daquela cidadezinha
indecisa, ao mesmo tempo que se desenvolvia e se metropolizava, guar-
dando ainda práticas provincianas e tradicionais.
O campo e a cidade se interpenetravam em ondas concêntricas de
temporalidades variadas. Conta-nos Otacílio de Azevedo que, chegando à
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capital de trem em 1910, surpreendeu-se com a profusão de pessoas na


Praça da Estação, uma verdadeira multidão. Toda praça servia de fundos
da fábrica Proença, abarrotando-a de carroças, e, em outro ponto, havia
um amontoado de lenha que formava uma pirâmide, escondendo quase
por completo a figura pétrea e inconsolável da estátua do General Sampaio
(AZEVEDO, 1992).
A cidade contava com uma população de 65.816 habitantes. Dez anos
depois, em 1920, os moradores já contabilizavam 78.536. E, por fim, em
1931, os números chegaram a 129.827 residentes (NIREZ, 2001). Como
percebemos, o contingente humano cresceu numa velocidade espantosa e
muito desse aumento vertiginoso da população se deveu às secas que as-
solavam o estado periodicamente, levando muitos homens e mulheres a
migrar para a capital em busca de condições melhores de vida.
Outro relato interessante sobre a cidade de Fortaleza, foi o do inte-
lectual Rodolfo Teófilo (2006). No livreto O Caixeiro, escrito no Alto
Balança em 1927, ele narrou as suas desventuras de juventude como cai-
xeiro vassoura. Mas para além das suas peripécias, o escritor registrou
costumes, hábitos e práticas do cotidiano, bem como deixou as suas im-
pressões sobre a cidade no século XIX, em que se começou o seu
vertiginoso desenvolvimento urbano e populacional.
Ainda com o céu escuro, era acordado às cinco da manhã com em-
purrões, expurgos e xingamentos, para varrer a loja e a rua. Naquele
tempo a limpeza pública era feita pelos proprietários e pelos inquilinos,
que varriam as sujeiras até o meio da via para serem coletadas pela car-
roça. Segundo o autor, tal especificidade deixava a limpeza pública da
cidade mais barata e efetiva. Já em outro dia, à meia noite, era acordado
de sobressalto para acompanhar o Santíssimo, anunciado pelas badaladas
da Sé. E assim as pessoas iam chegando para integrar a multidão amorfa
40 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

que seguia em procissão na madrugada. A cidade tinha outro ritmo na-


quele tempo.
Em 1877, 1888, 1900, 1915, 1919, 1932 foram anos de estiagem, de
carestia e de êxodo. Homens e mulheres não conseguindo mais garantir a
sua existência, extenuados e dilacerados, viam-se obrigados a voltar as
costas ao sertão calcinado e iniciar a viagem para o litoral, rumo à capital.
Algumas famílias conseguiam vir de trem, outras, menos afortunadas, ti-
nham que fazer o percurso caminhando. Não era raro que ficassem pelo
caminho mais uma Maria ou mais um José, sem vida e sem sonhos, pro-
vando que ali naquela estrada erma e esquecida a luta duríssima pela
sobrevivência se dera até o último instante.
A seca longe de ser apenas um fenômeno natural é também social e
político, modificando-se no tempo. No caso do Ceará, as relações oscilaram
entre caridade desinteressada dos indivíduos, muito calcada no catoli-
cismo, e entre a obrigação estatal de garantir o mínimo (víveres e moradia)
para os desterrados em sua própria terra, em troca de serviços feitos nas
obras públicas da cidade. Nos primeiros contatos, as relações entre a po-
pulação urbana e os pobres camponeses eram um misto de surpresa e
curiosidade depois se tornando temor e desprezo (NEVES, 2002).
Rodolfo Teófilo, que foi testemunha ocular, descreve literariamente a
situação desoladora dos expulsos da terra.

Foi na tarde de um desses dias, no ano de 1877, o ano da fome, que na Jacare-
canga, um dos arrabaldes de Fortaleza, arranchava-se à sombra de um
cajueiro uma família de retirantes, que, depois das torturas de uma viagem de
cem léguas, vinham aumentar a onda dos famintos. Sentado em um toro de
madeira, na primeira manhã, em frente ao rancho, meditava um homem
pouco mais de cinquenta anos: era o chefe da família. Profundamente triste
olhava para os alojamentos dos companheiros de infortúnio, abrigados tam-
bém à sombra de árvores. A fome com o cortejo de dores não pudera apagar
os traços daquela carnação. (TEÓFILO, 1979, p. 4)
Thiago da Silva Nobre | 41

As secas periódicas e o consequente afluir de retirantes miseráveis,


esfarrapados, famintos e trôpegos para a capital cearense, sempre repre-
sentou uma mácula e um desafio para as elites e para os intelectuais que
achavam que era possível inserir a sua cidade na Modernidade, sem levar
em conta a histórica desigualdade e exclusão da grande maioria da popu-
lação, que sempre esteve à parte das mudanças e decisões coletivas
nacionais.
Até agora viemos falando sobre o espaço que se desenrola essa nar-
rativa. Modernidade, Modernismo e Modernização filhos diretos do
desenvolvimento capitalista foram alguns conceitos abordados, bem como
a inserção do Brasil no sistema capitalista e as suas consequências. Dimi-
nuindo a escala chegamos até a cidade de Fortaleza e na sua inclusão no
sistema mundial e globalizado de trocas de mercadorias, ou seja, o Capita-
lismo. No entanto, quem eram os atores que fizeram parte do movimento
estético literário ocorrido na capital de Alencar? Quais os seus locais de
sociabilidade? Quais as suas ideias e perspectivas de moderno? Como se
construiu a rede de trocas entre esses intelectuais? É que o que pretende-
mos abordar no próximo tópico, no qual o leitor está mais do que
convidado, quiçá até mesmo convocado à apreciação.

1.2 – Os canibais daqui

Em carta endereçada à Raul Bopp e publicada na Revista de Antropo-


fagia nº 12, em 1929, Antônio Sales comentava que não poderia ser mais
o fiel intermediário entre os modernistas paulistas e os cearenses. Segundo
ele, estava velho demais para essas coisas de ideias revolucionárias e que
seria melhor que os rapazes se entendessem diretamente, sem atravessa-
dores:
42 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Bopp amigo. Tenho recebido e transmitido promptamente aos carnivoros da-


qui o que lhes mandam por meu intermedio os antropofagistas de S. Paulo.
Mas estou muito velho já para ser a fiel antena receptora das ondas revoluci-
onarias que vocês estão irradiando por todo estes Brasis. Seria melhor para
uns e outros que vocês se entendessem directamente com os nossos canibaes,
cuja fera simbólica o Maracajá tem sua tóca da redação d’O Povo, à rua Barão
do Rio Branco, n 239. E abro os braços sob o pretexto de abraça-los mas real-
mente para não ser engulido. (Revista de Antropofagia, 26 jun., 1929, p. 01)

Não se sabe muito bem como se procedeu tal intermédio, ou se real-


mente se deu assim. A verdade é que, desde o início da década de 1920,
Antônio Sales e o grupo de jovens entusiastas do modernismo trocavam,
vez outra, farpas nos jornais e nas revistas. Basta lembrar os poemas satí-
ricos sobre o futurismo publicados no jornal Correio do Ceará, em 1923,
por Antônio Sales sob o criptônimo de Arthunino Valles. Sem falar, tam-
bém, na seção Saco de Gatos da revista Jandaia, em que Edgar de Alencar
retribuía os vitupérios contra os inimigos das novidades estéticas.
Para reconstruir essas redes de sociabilidades seria necessário fazer
o cruzamento de fontes variadas como relatos memorialísticos e cartas,
que no caso do Modernismo no Ceará são escassíssimas. Muitos dos indi-
víduos que participaram dessa efervescência em torno do Modernismo,
não se preocuparam em escrever suas memórias ou suas impressões para
a posteridade, o que facilitaria a vida dos pesquisadores contemporâneos.
Talvez para eles não fizesse mais sentido escrever algo sobre, pois na ve-
lhice já estavam muito bem resolvidos com aquela época de juventude, não
precisando fazer exercícios mnemônicos para lidarem com assuntos se-
pultados. A própria questão da ausência de memória é assunto para a
problematização, quando se trata de reparar o irreparável, a perda irre-
mediável é sempre vizinhança. Todo historiador deve ter esse sentimento
de desapego em si, mas sem nunca esgotar a esperança da descoberta
inaudita.
Thiago da Silva Nobre | 43

Outro problema é a escassez biográfica dos intelectuais participantes


do movimento. Talvez o grande exemplo seja o caso de Franklin Nasci-
mento. Mesmo tendo participado ativamente nesse período, publicando
em vários jornais (O Povo, Maracajá, Cipó de Fogo, Revista de Antropofa-
gia e revista Movimento), bem como fazendo parte do primeiro livro
modernista do Ceará (O Canto Novo da Raça), faleceu esquecido literaria-
mente. Triste fim.
Porém, o cronista e escritor Raymundo Neto conseguiu encontrar
mais informações sobre esse enigma. Ele coordenou a publicação da 2ª
edição da obra O Canto Novo da Raça, saída somente oitenta e quatro anos
depois. Pasmem. Sentindo grande falta das informações sobre a vida desse
poeta, ele conseguiu encontrar algumas informações novas através dos fa-
miliares.
Seu verdadeiro nome era João Abreu do Nascimento e nasceu em 21
de abril de 1901. Filho de Adbon Franklin Nascimento e Adele Abreu do
Nascimento. Acreditamos que o pseudônimo adotado foi em homenagem
ao seu pai. Foi criado pela avó materna, dona Manuelina, no Modumbim
velho, nos arredores da estação de trem da Estrada de Ferro de Baturité.
Mesmo antes de completar dezoito anos, aprendeu código Morse e come-
çou a trabalhar como radiotelegrafista. Mais tarde, tornou-se funcionário
na Rede de Viação Cearense. Era ateu, comunista e boêmio (não necessa-
riamente nessa ordem). Em 1933, casou-se com Francisca Aguiar com a
qual concebeu dez filhos. Em 24 de janeiro de 1978, João Abreu do Nasci-
mento (Franklin Nascimento) faleceu inesperadamente devido a um
infarto.
Porém, quatro anos antes, em 1974, enviou alguns poemas ao poeta
Carlos Drummond de Andrade, pelo qual nutria grande admiração. Nessa
carta é possível perceber, mesmo depois de tanto tempo, o quanto a escrita
44 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

do poeta permanecia criativa, irônica e sintética, tal qual os seus poemas


modernistas do início da carreira.
Há tempos que ele pensava em escrever ao poeta de Itabira, mas com
73 anos finalmente havia chegado o momento. “Não é de hoje que venho
tramando essa abordagem e a hora é esta. Sabe como é, atingi a ‘extrema
curva do caminho extremo’ (73 aninhos), e, pelo visto, a Grande Impor-
tuna já começou a contagem regressiva...” (NASCIMETO apud NETTO,
1974, p. 1). Não desejava partir enquanto não soubesse da opinião de
Drummond sobre os seus versos. E prosseguiu:

Sou um velho poeta emparedado aqui na província, boêmio sem exagerar,


bom de pinga e sempre às voltas com “dinheiros curtos pela porta da rua”...
Cultura? Bem, que tal – livresca? [...] Ao longo do meu papelônico perpassar
por este “vasto mundo” [...], entre outras coisas irrelevantes, produzi um
monte de versos que dariam alentado livro. Mas cadê tutu para editá-lo? E
como não sei forçar a barra tipo “entre amigos” (sou a negação do pracista), o
jeito que tenho é levá-lo comigo quando o zero fatal for atingido. [...] Você vai
notar que eu não sou de nada no que respeita ao lirismo, o que inclusive me
dá uma raiva danada. Tentar, tentei (no fundo, sou um sentimentalista), mas
foi aquele fiasco, [...] ainda da fase adocicada do penumbrismo. Por isso acabei
desistindo e me deixei ficar mesmo no que parecia mais conveniente, em ter-
mos de afinidade, como: a sátira, o humorismo, o social, o folclórico e o
conceitual, ou filosófico [...]. Só outra coisa: gosto da síntese. (NASCIMENTO
apud NETTO, 1974, p. 1)

Sabendo dessa dificuldade em se reconstruir um quebra-cabeça em


que a maioria das peças faltam, fizemos uso do paradigma indiciário para
tentar, ao menos, dar inteligibilidade e racionalidade a esses fragmentos
esparsos e vestígios lacunares que teimam em se dispersar. Faltando tan-
tas informações assim fica difícil aprofundar o conhecimento sobre a rede
de sociabilidades desses intelectuais, mas é possível com esforço, método
e teoria restituir minimamente o panorama geral.
Thiago da Silva Nobre | 45

Segundo Carlos Ginzburg (1999), a partir do final do século XIX, um


modelo epistemológico foi desenvolvido no seio dos estudos em humani-
dades. Ele pode auxiliar o pesquisador a não ficar preso no atoleiro das
polêmicas entre racionalismo e irracionalismo. O criador desse método foi
o italiano Giovanni Morelli, divulgando-o incialmente em artigos publica-
dos entre 1874 e 1876. Basicamente, ele propunha uma nova forma de
atribuição e de confirmação de autoria a quadros antigos. Em que consis-
tia? Não se deveria se concentrar nas características mais vistosas e
evidentes, facilmente reproduzidas em imitações, mas sim perceber as mi-
núcias negligenciadas como orelhas, dedos das mãos e dos pés. Inclusive o
“método morelliano” é comparada com as técnicas investigativas quase
sobrenaturais do personagem literário Sherlock Holmes, que possuindo
apenas indícios ínfimos e imperceptíveis para maioria das pessoas, conse-
guia chegar ao culpado do delito. Coincidência não tão coincidente assim,
pois Henry Doyle (pintor e crítico de arte), tio de Conan Doyle, conheceu
o próprio Morelli bem como o seu método. O que levaria a crer que Conan
Doyle teve acesso a essa técnica através do seu parente. Hipótese essa fru-
tífera, mas ao mesmo tempo difícil de comprovar em última instância.
Aceitemos a coincidência. Já Sigmund Freud não se furtou a reconhecer o
legado intelectual de Morelli para si antes da descoberta da Psicanálise.
Morelli, Doyle, Freud: intelectuais que enxergaram nas pistas infinitesi-
mais e nos pequenos gestos impensados, a possibilidade de alcançar
realidades complexas e íntimas. Mas o que será que uniu um italiano, um
inglês e um austríaco? Evidentemente, foi o modelo semiótico da medi-
cina, ou seja, o diagnóstico de doenças através da observação de sintomas
superficiais, muitas vezes invisíveis ao olhar leigo. Para além dos parale-
lismos de biografia, no final do século XIX começou a se consolidar nas
ciências humanas um paradigma indiciário fundamentado na semiótica.
Porém, suas raízes remontariam a períodos mais antigos e remotos. Essa
46 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

abordagem metonímica, que lida com a parte para poder generalizar sobre
o todo, pode nos ajudar muito na falta de abundância de vestígios.
Mas nem tudo está perdido. Apesar da dificuldade é possível sim re-
construir minimamente as trajetórias e as redes de sociabilidades desses
personagens da trama. Talvez a pista inicial seja fundação do grupo cha-
mado Tribu Cearense de Antropofagia. A notícia saiu no jornal O Povo do
dia 31 de maio de 1929, relatando que na manhã anterior havia sido fun-
dada na redação do vespertino, ao soar do boré 1, a Tribu Cearense de
Antropofagia.

Na redacção [...] reuniram-se ás 9 horas de hontem os modernistas do Ceará,


lançando as bases da nova aggremiação antropofagista. Acudiram ao soar do
boré e compareceram á reunião os srs.: Jader de Carvalho, Antonio Garrido,
Mario de Andrade, Silveira Filho, Filgueiras Lima, Paulo Sarasate, Heitor Mar-
çal, Mozart Firmeza, Renato Soldon, Franklin Nascimento, e Sydney Netto e a
snha. Suzana de Alencar Guimarães. Appareceram tambem, mas não quize-
ram tomar parte nas discussões os srs. Josaphat Linhares e Fellipe Rodrigues.
A sessão decorreu animadissima e não houve necessidade de presidente. (O
Povo, 31 maio 1929, p. 5)

Ainda ficara acordado de que as eleições da diretoria seriam mensais


e decididas por voto secreto, do qual saíram eleitos Jader de Carvalho (pre-
sidente), Mário Sobreira de Andrade (secretário) e Suzana de Alencar
(tesoureira). Por fim, ficou encaminhado que seria patrocinado pelo
grupo, na semana seguinte, um concurso chamado “Hora Antropofágica”,
no qual, segundo eles, participariam todos os modernistas da cidade. A
verdade é que depois da fundação oficial do grupo não encontramos mais
notícias sobre o mesmo nos periódicos da época. Porém, geralmente
quando algum texto dos integrantes da agremiação era publicado no jornal

1
Flauta indígena feita com osso.
Thiago da Silva Nobre | 47

O Povo, aparecia logo abaixo de seu nome a descrição “da Tribu Cearense
de Antropofagia”. Fora isso, e como mencionamos acima, notícias outras
não foram encontradas sejam elas de ações ou empreitadas coletivas do
grupo.
No entanto, a pista que podemos tirar daí é a importância que as
redações de jornais e revistas tinham como locais de sociabilidades para
os intelectuais. Rachel de Queiroz teve a sua iniciação literária através das
páginas do jornal O Ceará, de coordenação de Júlio Ibiapina. O interesse
do público e do matutino se deu com a carta aberta, de uma tal Rita de
Queluz, que comentava sobre a primeira Eleição das Rainhas dos Estudan-
tes. Ninguém sabia ao certo quem era aquela moça e muitos afirmavam
que era homem usando nome de mulher com certeza. Quem dirimiu a
dúvida foi Jáder de Carvalho: era a filha mais velha do seu primo Daniel.
Certa vez a moça e a sua família vieram a Fortaleza, permitindo ao seu pai
apresentá-la aos seus colegas do jornal.

Ficava a redação de O Ceará no antigo prédio da Fênix Caixeiral, perto da


Igreja do Patrocínio. Na sala grande, assobrada, de janelas abertas para a praça
e para a rua Gal. Sampaio, era a redação. E, enquanto, o conversava com Ibi-
apina junto à mesa do diretor do jornal, a môça foi levada à mesa do diretor
literário (que para êsse mister usava o nome de Barão de Almofala). Era um
homem de cabelo revolto, olhos salientes, inteligentíssimos, bôca de riso fácil.
Acabou de escrever umas linhas, levantou-se devagar da cadeira, estendeu a
mão e perguntou à menina: Então você existe? A menina era eu; o diretor
literário, o Barão de Almofala, era Demócrito Rocha. (QUEIROZ, 1968, p. 16)

Os cafés também cumpriram importante papel na sociabilidade dos


escritores de Fortaleza. Na década de 1920, o Café Riche foi um dos mais
frequentados pela intelectualidade. Segundo relato de Otacílio Colares
(1992), de 1913 a 1926, o Café Riche foi um local agregador para literatura
cearense. Sentados nas mesas reuniam-se vários intelectuais, como Beni
48 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Carvalho, Irineu Filho, Antônio Furtado, Clóvis Monteiro, Sabóia Ribeiro,


Herman Lima, Leonardo Mota, Mozart Pinto, José Albano, Quintino Cu-
nha, Pedro Sampaio, Sílvio Júlio, Rubens Falcão, Martins Capistrano, Sales
Campos, Jáder de Carvalho e outros. Segundo eles próprios, qualquer es-
crito avaliado e aprovado em plenária poderia ser publicada nos melhores
jornais do Sul.
O café funcionava na parte inferior de um antigo sobrado de três an-
dares, na rua Guilherme Rocha, na esquina onde atualmente jaz
imponente o Excelsior Hotel. Foi aberto em 1913 e pertencia a uma socie-
dade empresarial entre Luís Severiano Ribeiro e Alfredo Salgado, mas foi
arrendado a terceiros. O Café Riche também possuía um restaurante con-
tíguo que pertencia à firma Ramon & Jucá. Garçom espanhol radicado em
Fortaleza e com muita experiência no ramo, que segundo o relato de Ota-
cílio Colares teria sido um dos percursores dos restaurantes à beira-mar
na cidade (ALENCAR, 1980).

Os escritores e poetas ali se acotovelavam num vaivém continuo, em amistosas


palestras de onde saiam frequentemente anedotas e piadas [...]. Nos domin-
gos, pela manhã, era eu um dos primeiros a chegar. A seguir, de fraque e
“bacorinha” à cabeça, calça listrada, rebenque às mãos, Clóvis Monteiro. Ru-
bens Falcão e Jáder de Carvalho vinham com farda do Liceu. (COLARES, 1992,
p. 86)

Apesar de ter tido a existência breve, o Café Riche foi fevilhantemente


frequentado, principalmente na hora do almoço. O que não significou o
lucro ou o aumento do fluxo de caixa aos proprietários, pois a maioria dos
frequentadores só pediam um copo d’água e um palito. A confraria diária
se dava com rodas ruidosas e divertidas de pessoas, na meia hora ou na
hora inteira que lhes sobravam do almoço (ALENCAR, 1980).
Thiago da Silva Nobre | 49

O Riche se enchia de fregueses que ali iam pontualmente discutir assuntos de


clubes, cinemas, diversões, política, mexericos e novidades. Era o fino da mo-
cidade do comércio ou estudantes que ali se sentavam diante das mesas
oitavadas, de mármore cinza. Os estudantes, literatos e doutores eram mais
do horário da tarde. (ALENCAR, 1980, p. 86)

E aí o cronista Edigar de Alencar polemizou com Raimundo Girão


acerca da cor do mármore das mesas do Riche. Girão no livro Geografia
Estética de Fortaleza descreveu alvura das mesas do Café. Porém, Edigar
de Alencar afirmou que talvez por engano ou por pura fantasia o historia-
dor teria errado nos pormenores da informação, porque a cor mesmo era
cinza. A memória tem seus meandros.
O fato é que o Café Riche foi um importante local de sociabilidade
tanto da geração anterior como da nova. Inclusive foi lá que vários intelec-
tuais da nova geração, influenciados pelo livro Jardim das Confidências,
discutiam e recitavam Ribeiro Couto na pausa do almoço. Mesmo não fa-
zendo a mínima ideia de qual era a diferença entre o chuvisco daqui e a
garoa de lá. A pirotecnia da poesia simbolista não tinha o mesmo impacto
na juventude do século XX do que outrora teve nos jovens do século XIX.
A escola literária havia envelhecido e perdido força.
Se pegarmos em perspectiva os intelectuais que participaram do Mo-
dernismo em Fortaleza, podemos perceber que a maioria deles eram
profissionais liberais: Bacharéis em Direito, jornalistas, funcionários pú-
blicos, professores, inspetores escolares, tipógrafos e dentistas. De alguma
forma tiveram uma base educacional para que pudessem desenvolver o
jornalismo e a literatura. Infelizmente dispomos de pouco ou quase nada
sobre essas redes de sociabilidades, o que dificulta muito a pesquisa. Po-
rém, sabe-se que, em 1918, Otacílio Colares (1992) conheceu Jáder de
Carvalho ainda estudante do Liceu, sempre acompanhado de Martins D’Al-
varez, Edigar de Alencar, Sobreira Filho e Aldo Prado.
50 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Essas redes se entrelaçaram em vários espaços da cidade, como esco-


las, praças, cafés, redações de jornais e revistas. Sem falar nas trocas de
cartas. No entanto, sem dispor desses vestígios fica complicado aprofundar
o conhecimento sobre esses emaranhados sociais. O que nós podemos afir-
mar é que a inserção literária se dava, principalmente, por meio do
jornalismo. Nessa época as barreiras entre jornalismo e literatura eram
pouco perceptíveis. O primeiro esforço da nova geração para mostrar ao
Campo Literário de Fortaleza que ela existia, foi a publicação da coletânea
Os Novos do Ceará no Primeiro Centenário da Independência do Brasil
(1922). Logo depois, outras plataformas foram possibilitando o estreita-
mento dessas relações como jornais e revistas da época: O Ceará, Ceará
Ilustrado, A Fortaleza, O Povo, A Esquerda e outros.
Apesar da dificuldade, devido ao caráter lacunar e fragmentário das
fontes, foi possível reconstruir um panorama dos indivíduos que partici-
param do Movimento Modernista em Fortaleza. Podemos perceber que
todos tiveram algum tipo de instrução e eram, em sua maioria, profissio-
nais liberais ou funcionários públicos. As redes de colaboração foram
sendo montadas e diversificadas através dos encontros nos cafés e nas re-
dações dos jornais. Em sua maioria homens com algumas exceções, como
Rachel de Queiroz e Suzana de Alencar Guimarães. No próximo tópico pre-
tendemos aprofundar o estudo sobre essa nova geração no alvorecer do
século XX, já muito influenciada pelo aperfeiçoamento da técnica, que per-
cebia, sentia e queria se expressar de outra maneira diferente daquela do
século XIX.

1.3 – A mocidade bradou o alarme, está iniciada a reação!

1922, centenário da Independência do Brasil, data cabalística para a


recém república brasileira, com seu panteão neófito de heróis e com efe-
mérides ainda na infância do calendário republicano instituído. Ano em
Thiago da Silva Nobre | 51

que várias celebrações nas cidades do Brasil comemoraram e fizeram lem-


brar o primeiro século da Independência. Ano da ruidosa Semana de Arte
Moderna de São Paulo e da criação do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Ano também em que duas coletâneas de escritores foram publicadas
em Fortaleza, ambas em homenagem ao centenário. Foram elas A Poesia
Cearense no Centenário, organizado por Salles Campos, e Os Novos do Ce-
ará no Primeiro Centenário da Independência do Brasil, organizado por
Aldo Prado. A primeira reuniu os intelectuais antigos e já reconhecidos no
Campo Literário de Fortaleza, bem como alguns estreantes. A segunda
congregou os escritores mais jovens, que não se identificavam tanto assim
com as práticas e a lógica corrente, sentindo-se eles um tanto quanto ex-
cluídos do jogo e nem um pouco reconhecidos. Fique o leitor atento para
esta data e para estes fatos, retornaremos a eles adiante. Porém, agora, é
mais interessante fazer uma discussão panorâmica sobre os primórdios
das atividades intelectuais da província, passando pelo século XIX e retor-
nando até o século XX, de onde inciamos.
Segundo os célebres e referenciais estudiosos da História da Litera-
tura Cearense, Dolor Barreira (1986) e Sânzio de Azevedo (1976), os
iniciais balbucios e os primeiros espasmos das atividades literárias no Ce-
ará remontam ao século XVIII, especificamente aos anos de 1813 ou 1814
com os Oiteiros, que não era propriamente um grupo definido e organiza-
do 2, mas que consistia, outrossim, em reuniões, saraus e tertúlias, tendo
como figura articuladora o Governador Manuel Inácio de Sampaio. Ele as-
sumiu o governo em 12 de março de 1812 e permaneceu até 12 de janeiro
de 1820, “era homem inteligente, culto, assim dado às armas como ás le-
tras. [...] Preocupado, também, com as coisas do espírito, introduziu, em
Fortaleza, [...] o uso dos chamados Oiteiros [...]” (BARREIRA, 1943, p.

2
Dolor Barreira (1986) afirma que Oiteiros não constituíam rigorosamente uma sociedade literária, mas antes
reuniões sob a presidência de Inácio de Sampaio.
52 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

149), no qual se congregavam no palácio do governo para recitar poesia. A


alcunha adveio das festas celebradas, em Portugal, nas cidades e nos su-
búrbios, detidamente nos conventos de freiras, onde os poetas glosavam
sobre os motes propostos. Podemos citar nomes dos participantes como,
por exemplo, José Pacheco Espinosa, Cônego Antônio de Castro e Silva,
Pedro José da Costa Barros, Padre Lino José Gonçalves de Oliveira e Ma-
nuel Correia Leal.
José Pacheco Espinosa nasceu na Ilha da Madeira, em data não men-
cionada, e fora tenente-coronel das guardas de Aquiraz. Fora, também,
importante comerciante à época. Escreveu sonetos 3, décimas 4 e um ro-
mance heroico, falecendo em 20 de dezembro de 1814. Cônego Antônio de
Castro e Silva nasceu em Sobral, em 21 de dezembro de 1787 e pertencera
à Congregação do Oratório, da casa da Madre de Deus, de Pernambuco.
Fez odes 5 e sonetos, falecendo em Arronches, a 13 de julho de 1862, viti-
mado por cólera-morbo. Pedro José da Costa Barros nasceu em 07 de
outubro de 1779, em Aracati, empreendendo os seus estudos de humani-
dades em Coimbra. Fora presidente do Ceará e do Maranhão e, ainda,
Senador no parlamento brasileiro. Escrevera odes, um ditirambo 6 e uma
cantata 7 que mereceu ser reunido no livro Florilégio da Poesia Brasileira,
de Francisco Adolfo de Varnhagem, falecendo no Rio de Janeiro, em 20 de
outubro de 1839. De Padre Lino José Gonçalves de Oliveira e de Manuel
Correia Leal não se sabe muito das suas trajetórias pessoais, apenas que
participaram dos eventos literários promovidos pelo Governador Sampaio
(BARREIRA, 1971).

3
Poema construído com 14 versos, sendo mais usados, geralmente, os versos decassílabos ou os alexandrinos.
4
Poema composto por 10 versos octossílabos.
5
É uma composição poética para ser cantada ou declamada, em homenagem a pessoa amada ou para enaltecer uma
personalidade, seja numa solenidade ou numa festiva.
6
Poema, muito em voga no Arcadismo, em que se exalta um feito ou uma pessoa, caracterizado pelo tom
excessivamente elogioso.
7
Composição musical de cunho erudito, de inspiração profana ou religiosa, destinada tanto ao coro como ao solo.
Thiago da Silva Nobre | 53

A produção literária destes poetas ficou definida, nos estudos subse-


quentes, como sendo pertencente ao neoclassicismo. Apesar de Sânzio de
Azevedo problematizar a questão colocando em pauta que “talvez devês-
semos apresentar[...] sob a denominação ampla de Classicismo
(englobando o termo as manifestações que vão do Renascimento ao Arca-
dismo): é que, se a obra dos poetas [...] está liberta da maioria dos
maneirismos barrocos, o certo é que também não apresenta [...] [a] emo-
ção [...] [dos] sonetos [...] árcades mineiros (AZEVEDO, 1997, p. 19). O
historiador da literatura cearense prefere manter, mesmo assim, a defini-
ção de neoclássica.
No entanto, falar de escritores e de suas obras descolados do “chão
social” e de processos mais amplos no qual estavam inseridos, guia o es-
tudo em direção àquela historiografia mais tradicional que preza pelos
grandes vultos heroicos e pelos seus feitos, pelos intelectuais de renome e
pelas suas ideias, inserindo a escrita na chamada “História das Ideias”.
Sendo assim, procuramos aproximar o estudo das vertentes da “História
Cultural” e da “História Social da Cultura”, entendendo que a ideias têm
conexões fortes com a vida material, as instituições, os processos sociais,
os eventos, bem como a experiência humana de existência no espaço e no
tempo, com todas as suas agruras, dificuldades, conflitos, dúvidas, benes-
ses, incertezas e alvissaras (SOUSA, 2002).
Dito isso, o século XIX em Fortaleza se mostrou como possuindo um
campo intelectual em efervescência. Muito disso proporcionado pelo de-
senvolvimento da cidade enquanto capital econômica do Ceará, pela
dinamização e pelo aumento das trocas comerciais com o exterior, bem
como a sua maior inserção no ritmo do capitalismo mundial.
Entre 1860 e 1880 se pode notar o aumento das atividades portuárias
de Fortaleza. Na década de 1860 atracaram aqui 707 navios de longa dis-
tância, transportando cerca de 214 mil toneladas. Já os navios de
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cabotagem foram 1.800, trazendo cerca de 960 mil toneladas. Entre os


anos de 1870 e 1880, os navios de longo percurso trouxeram 463 mil to-
neladas, enquanto os navios de cabotagem transportaram 1.812.500
toneladas (POMPEU FILHO, 1873). O porto de Fortaleza tinha movimen-
tação, nacional e internacional, garantida nos dias 05, 11, 18, 20, 25 e 30.
Trazendo a bordo produtos comerciais, vidas e ideias, ou seja, pessoas,
bens materiais, livros, revistas e correspondências, fazenda inglesa e fran-
cesa, ferragens, bebidas alcoólicas, louças e cristais, calçados,
instrumentos musicais, perfumes e outras bugigangas (OLIVEIRA, 2002).
Já os produtos saídos daqui eram, via de regra, primários.
Outro fato que estimulou o desenvolvimento intelectual na cidade foi
a criação do Liceu do Ceará, em 1845, que passou a proporcionar formação
escolar secundária à elite. Até então os estudantes que terminassem as pri-
meiras letras tinham que, impreterivelmente, procurar outros centros
urbanos para prosseguirem com os estudos, como Recife, Salvador ou Rio
de Janeiro. Nos anos de 1870, outras instituições de ensino também influ-
enciaram a formação educacional dos indivíduos que tiveram a
oportunidade de usufruí-los, como, por exemplo, o Atheneu Cearense, o
Colégio Cearense, Colégio São José, Instituto de Humanidades, Pantheon
Cearense e Colégio Universal (OLIVEIRA, 2002).
Desse modo, entendendo as melhorias materiais, a disseminação da
cultura escrita, bem como o desenvolvimento educacional, mesmo que in-
ferior às cidades mais ricas, o século XIX em Fortaleza apresentou uma
profusão de grupos literários e científicos, podendo-se indicar a Fênix Es-
tudantal (1870), a Academia Francesa (1872), o Gabinete Cearense de
Leitura (1875), o Clube Literário (1886), a Padaria Espiritual (1892), a Aca-
demia Cearense (1894), o Centro Literário (1894).
A Fênix Estudantal instalou-se em 17 de julho de 1870, que é conside-
rada a primeira associação literária do Ceará. Foram seus fundadores
Thiago da Silva Nobre | 55

Raimundo Antônio da Rocha Lima, Fausto Domingues da Silva, João Lopes


Ferreira Júnior e Manuel do Nascimento Castro e Silva. Todos muitos jo-
vens e sem terem chegado aos vinte anos. No qual se toma nota da
aparente falta de repercussão no meio intelectual. Rocha lima com 15 anos,
João Lopes com 16 e Fausto Domingues com 19. Rocha Lima e João Lopes,
posteriormente, integrariam a Academia Francesa (BARREIRA, 1971).
Segue-se com a estética literária do Romantismo, tendo no livro Pré-
ludios Poéticos de Juvenal Galeno, publicado em 1856, o seu primeiro
exemplar do gênero no Ceará. Corrente esta que teve, também, José de
Alencar como intelectual expoente.
Dolor Barreira, logo no início de seu livro História da Literatura Ce-
arense, repara acerca de uma peculiaridade do Campo Literário de
Fortaleza, comentando sobre a preponderância e a quase via de regra dos
intelectuais criarem agremiações, associações, academias ou grêmios lite-
rários para tocar à frente os seus projetos e empreitadas literárias. Sem
esquecer, é claro, da criação também dos seus veículos de disseminação de
ideias, sejam eles jornais, hebdomadários, folhas, boletins ou revistas. A
causa remota deste fato seria a imitação das academias portuguesas, já
muito em voga naquelas plagas no século XVIII, mas o estudioso aponta
outras causas mais determinantes que seriam as condições objetivas e ma-
teriais (BARREIRA, 1971). Convenhamos que é muito mais árduo e
complicado publicar um livro ou manter um jornal sozinho, do que fazer
as mesmas coisas com companheiros em torno de um grupo e de uma
coletividade, pois as dificuldades são amenizadas. A historiadora Cláudia
Freitas de Oliveira (2002) vai, também, em um caminho parecido, afir-
mando que durante o século XIX era prática recorrente entre os letrados
de Fortaleza formarem grupos de caráter político, literário, cientifico e/ou
filosófico. Tais agremiações serviam, sobremaneira, para a produção e
56 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

divulgação dos seus trabalhos, através dos seus veículos informacionais,


sendo eles jornais ou revistas.
Pode-se dizer que, à época, existiram duas gerações de intelectuais
que atuaram no Campo Literário de Fortaleza do final do século XIX, bem
como se engajaram em campanhas em prol da regeneração política e ins-
titucional durante a transição do regime monárquico para o republicano.
Foram elas a Mocidade Cearense 8 e os Novos do Ceará 9. Todos eles distri-
buídos pelas sociedades literárias e científicas, bem como imiscuídos em
movimentos intelectuais, políticos e sociais (CARDOSO, 2000).
Já pelos idos de 1922 podemos afirmar que se desenvolvia uma outra
geração de intelectuais jovens e recém ingressos na vida literária de For-
taleza, que não se identificavam com os escritores veteranos devidamente
consolidados nos seus espaços e com a cultura beletrística ainda usual-
mente praticada no período. Como sabemos, 1922 foi o ano do centenário
da Independência no Brasil. Muitas comemorações e homenagens foram
feitas no país todo, a cidade de Fortaleza não foi exceção. Basta lembrar
que a famosa Semana de Arte de 1922, como o nome já diz, foi levada a
cabo justamente no ano do centenário.
Uma campanha cívica foi empreendida pelo jornal O Nordeste, cha-
mando a atenção da população para a importância da efeméride. A partir
do mês de julho de 1922, vários textos relacionados ao assunto foram pu-
blicados no jornal, dando a entender a importância de tal evento para a
cidade: “O Centenario e o Contracto Civil” (25 de julho de 1922), “O cen-
tenario e o cidadão” (31 julho de 1922), “Como Fortaleza vae celebrar o

8
Antigos integrantes da Academia Francesa (Rocha Lima, Araripe Júnior, Capistrano de Abreu, Tomáz Pompeu de
S. Brasil Filho, João Lopes) e aos Abolicionistas de 1884, como, por exemplo, Guilherme Studart, Oliveira Paiva,
Justiniano de Serpa, Antônio Bezerra, Rodolfo Teófilo, Júlio César da Fonseca, dentre outros (CARDOSO, 2009).
9
Membros da Padaria Espiritual e aos moços que fundaram o Centro Literário, como Antônio Sales, Lívio Barreto,
Adolfo Caminha, Lopes Filho, Ulisses Bezerra, Valdemiro Cavalcante, Xavier de Castro, Jovino Guedes, José Nava,
Sabino Batista, Temístocles Machado, Álvaro Martins, Soares Bulcão, Pádua Mamede, dentre outros (CARDOSO,
2009).
Thiago da Silva Nobre | 57

Centenario” (8 de agosto de 1922), “O centenario em Fortaleza” (11 de


agosto de 1922), “As festas do Centenario” (12 de agosto de 1922), “A cele-
bração do centenario” (17 de agosto de 1922) e por aí seguiu o jornal de
índole católica.
Existiu até uma comissão especial para a organização oficial dos fes-
tejos patrióticos na cidade. Era ela a Comissão Central dos Festejos do
Centenário. Após longos debates no Palácio do Governo e de uma carta
enviada pelo Vigário Geral aos organizadores do evento, pedindo a reti-
rada dos bailes públicos presentes na primeira programação veiculada na
imprensa, pois “em bem dos costumes, seria altamente louvavel e sobre-
modo conveniente que fossem retirados do programma os bailes publicos,
que constituem uma inovação de consequencias nefastas para a collectivi-
dade social” (O Nordeste, 11 ago., 1922, p. 01), foi estabelecido as atividades
festivas oficiais para a celebração do dia 7 de setembro de 1922, em Forta-
leza.
O alvorecer do dia seria iniciado com salva de tiros pela Fortaleza de
N. S. da Assunção, seguido de missa campal, desfile dos estudantes diante
da estátua de D. Pedro II, execução do Hino Nacional e juramento da Ban-
deira. Prosseguindo com parada militar na boulevard Duque de Caxias,
sessão cívica no Theatro José de Alencar, diversões públicas e cinemas ao
ar livre na praça Marquês de Herval, entre outras atividades. A notícia ter-
minou conclamando a população da cidade para que

[...] todos [...] concorram, com verdadeiro patriotismo, para o brilhante exito
da celebração memorável da data que assignala o primeiro século da Indepen-
dencia do Brasil. Toda a bôa vontade deve ser demonstrada em factos que
falem bem alto do elevado grau de civismo e da solida educação moral do povo
cearense. O dia 7 de Setembro ha de marcar em nossa amada terra, com a
mercê de Deus, o inicio de um novo cyclo de progressos edificantes. Para que
a cidade apresente o aspecto festivo e alegre que se lhe pretende dar, todas as
58 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

familias devem pintar as frentes das suas casas, concorrendo, assim, para o
maior lustre da grandiosa commemoração. Não haverá cidadão brasileiro,
digno deste nome, que se recuse a prestar o seu adminiculo a tão alto fim pa-
triotico. (O Nordeste, 11 ago. 1922, p. 1)

Passagem importante e reveladora da importância simbólica da data


para uma nação que ainda era uma jovem república e buscava a consoli-
dação das suas também recentes instituições. Para além disso, percebemos
o intuito de congregar a sociedade civil em prol da identificação com o
projeto de nação brasileira, conclamando as pessoas a pintarem as suas
casas e estabelecendo várias atividades comemorativas em vários logra-
douros públicos. Desde a missa campal, passando por desfiles militares,
canto do hino de Independência e bandas de música, finalizando com re-
tretas e cinemas ao ar livre. A notícia é bem mais extensa e as
comemorações, com variadas atividades, prosseguiram adiante pelos dias
subsequentes (dias 8 e 9).
E nesse ambiente de comemorações e festas cívicas, dois livros foram
publicados para, também, homenagear o primeiro centenário da Indepen-
dência brasileira. Foram eles A Poesia Cearense no Centenário, organizado
por Salles Campos, e Os Novos do Ceará no Primeiro Centenário da Inde-
pendência do Brasil, organizado por Aldo Prado, ambos sendo noticiados
na imprensa. O Primeiro, com tom mais oficial, reuniu os intelectuais já
consagrados no Campo Literário de Fortaleza, como Antônio Sales, Ro-
dolfo Teófilo, Juvenal Galeno, padre Antonio Thomaz e outros. O segundo
reuniu os jovens poetas que começaram a surgir e a escrever em Fortaleza,
a maioria estreantes, como Jáder de Carvalho, Edgar de Alencar, Aldo
Prado e outros. O periódico O Nordeste, à época, divulgou e comentou so-
bre os dois lançamentos.
Thiago da Silva Nobre | 59

Bem inspiradamente andou Salles Campos organizando uma colectanea da


Poesia Cearense no Centenario. A idéa que contou com sympathia e o aplauso
da intellectualidade conterrânea, está convertida em realidade. Temos sobre a
banca esta bela edição do livro da poesia do Ceará e muito rogamos em ver
que as musas, nesta terra de luz, possuem cultores do mais fino quilate. O
estro dos nossos poetas, palpitante nestas paginas sonoras, ha de, aqui e fôra
do nosso Estado, muito exalçar e recommendar os creditos do Parnaso Cea-
rense. (O Nordeste, 26 set. 1922, p. 1)

E ainda sobre a outra coletânea, feita pelos intelectuais mais jovens,


o jornal trouxe:

Temos sobre nossa mesa de trabalho um tomo do livro organizado por Aldo
Prado e denominado <<Os Novos>>. Contendo colaboração farta, em prosa
e verso, de jovens cultores das letras, em nossa terra. [...] Foi uma idéa louva-
vel e que devéras ha de estimular a mocidade patrícia afim de prosseguir na
faina nobilitante de aprender e produzir, tendo, sempre em mira a honra os
creditos mentaes da Terra da Luz. (O Nordeste, 28 ago. 1922, p. 01)

Otacílio Colares em um estudo feito sobre o assunto, intitulado “O


pré-modernismo no Ceará”, discorreu sobre, afirmando que se tratava de
uma publicação “materialmente pobre, que organizaram e editaram jo-
vens cearenses, [...] e que não foram convidados a participar, como
naturalmente esperavam os que faziam versos, de uma outra coletânea,
apontada como oficiosa [...]” (COLARES, 1979, p. 167).
Ele ainda trouxe algumas transcrições do livro Os Novos do Ceará no
Primeiro Centenário da Independência do Brasil, com os dizeres existentes
na página seguinte à capa: “A nova geração de intelectuais cearenses que
se apresenta ao certâmen do primeiro centenário da Independência do
Brasil [...]” (COLARES, 1979, p. 167).
Participaram na poesia: Jáder de Carvalho, Sobreira Filho, Aristóteles
Bezerra, Ramalho Coelho, Eva de Oliveira Paiva, B. Pontes e Edigar de
60 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Alencar. Já os representantes na prosa foram: Hélio Caracas, Josafá Linha-


res, Aldo Prado, Raimundo de Menezes, José J. de Oliveira Paiva, M.
Picanço Filho e Elias Mallmann. Valendo salientar que muitos deles ainda
nem tinham os seus 20 anos completos.
A coletânea iniciou com um texto à guisa do prefácio, intitulado “Duas
Palavras”, escrito por Aldo Prado, o organizador. Ele inicia o escrito co-
mentando sobre a tradição no mercado editorial na publicação de
antologias, que não é lá grande empresa, se for de escritores conhecidos e
festejados. Porém, o desafio principal estava, segundo ele, na organização
de uma antologia de trabalhos inéditos e pouco divulgados, pois em um
lugar “completamente hostil á cultura literaria, é tarefa quase sobrehu-
mana” (PRADO, 1922, p. 8).
Contudo, tais agruras não foram obstáculo para que “[...] a mocidade
de nossa terra desprezasse um momento tão auspicioso quanto o em que
a alma nacional se movimenta e expande” (PRADO, 1922, p. 8), referindo-
se à passagem do primeiro centenário da Independência do Brasil. Prosse-
guindo, o escritor menciona outro motivo para a publicação, que era a falta
de incentivo oficial para com os jovens intelectuais de Fortaleza, bem como
a “campanha soez e injusta que uma pretendida corte de medalhões favo-
ritos moveu contra a verdadeira iniciação literária [...]” (PRADO, 1922, p.
8). E arrematou a sua fala assim:

Que são, aliás, os Novos, senão os futuros vultos da intellectualidade patrícia


muito mais recomendáveis ao apoio dos homens de responsabilidade que os
literatos forjados na caldeira da adulação e do protecionismo official? Uma
consolação no resta, porém: é que, desajustados e sósinhos, estamos aqui a
fazer obra de patriotismo, irmanados no mesmo ideal, sem ciumes nem riva-
lidades, o que não acontece com as sumidades literarias, onde o enthusiasmo
pedante aniquila as legitimas glorias do Ceará. (Os Novos do Ceará no Primeiro
Centenário da Independência do Brasil, 1922, p. 8)
Thiago da Silva Nobre | 61

Sendo assim, é possível perceber o mote principal destes jovens: a


insatisfação. Do qual pode-se destrinchar duas questões específicas: a falta
de incentivo estatal e as dificuldades de inserção no Campo Literário, que
os levou, destarte empecilhos econômicos, a publicação do livro coletivo.
Neste sentido, a contribuição teórica de Pierre Bourdieu (1983) sobre
os campos sociais nos ajuda a avançar. Para Bourdieu, O campo se define
como o lócus aonde se travam disputas de interesses específicos entre os
indivíduos interessados. Ou seja, é possível dividir a realidade em vários
campos de poder, mais ou menos autônomos, citando como exemplo o
campo da ciência, o da alta costura, o artístico, dentre outros, aonde bens
culturais particulares são concorridos entre os agentes. No caso do estudo,
interessa-se pelo Campo Literário de Fortaleza nas décadas de 1920 e início
do decênio de 1930. Desse modo, o campo se particulariza como um espaço
em que se manifestam as relações de poder, estruturando-se de forma que
a legitimidade social e o capital simbólico são distribuídos desigualmente.
A luta entre os sujeitos é feita em busca do aumento do capital simbólico,
que, geralmente, pode ser convertido em vantagens monetárias.
A “estrutura óssea” do Campo, por assim dizer, pode ser apreendida
em dois polos antagônicos, mas ao mesmo tempo complementares: os do-
minantes e os dominados, pois um não pode existir sem o outro. Os
dominantes são aqueles sujeitos que já estão reconhecidos e consagrados
no Campo, detentores de grande montante de capital simbólico. Em con-
trapartida, os dominados se caracterizam pela ausência ou raridade no
acumulo de capital simbólico. Desta forma, a dicotomia apresentada entre
as posições sociais influencia diretamente nas práticas dos agentes de uma
forma binária, a que se dá o nome de ortodoxia e de heterodoxia. Ao qui-
nhão dominante correspondem às práticas de ortodoxia que pretendem
conservar o capital social acumulado. Por isso eles buscam conservar as
suas posições já consolidadas, criando e mantendo uma séria de
62 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

instituições e mecanismos que lhe assegurem manutenção do poder. De


outro lado, aos dominados resta aplicação das práticas heterodoxas, bus-
cando deslegitimar e desacreditar o capital social dos adversários.
É justamente o que se pode ver com a publicação da obra Os Novos
do Ceará no Primeiro Centenário da Independência do Brasil. Escritores
jovens e insatisfeitos com as barreiras e com a falta de reconhecimento,
duvidando acerca das qualidades intelectuais e literárias dos veteranos le-
trados. E por aí não fica, caso não tenhamos deixado ficar evidente de
antemão.
Logo em seguida, aparece uma espécie de prefácio-manifesto, sem
autoria, daquela juventude intelectual que ali se lançava. Texto ácido e
cáustico que não deixava pedra sob pedra, ou, melhor dizendo, nenhum
escritor consagrado a salvo dos vitupérios. Era uma mocidade que ansiava
o seu espaço intelectual e o reconhecimento de sua produção estreante.
Doendo a quem doer, não economizaram nas críticas e na aquisição de
desafetos. Segundo Otacílio Colares (1981), a pena irreverente por detrás
do escrito panfletário fora a de Jáder de Carvalho. Para o intelectual, o Ce-
ará estava passando por uma fase literária original e interessantíssima. A
nova geração, cheia de vida, de talento e imbuída de ideias recentes, estava
a construir os alicerces de um edifício bem maior, para o desespero dos
escritores medalhões. Diferentemente do que se percebia de outros cen-
tros urbanos do país, os rapazes daqui tinham que transpor uma
infinidade de dificuldades e obstáculos, pois a legião de nulos compenetra-
dos, que nada ou parcamente produziam, conquistaram com
apadrinhamento o seu status literário, procurando a todo instante impedir
o seu desenvolvimento.

O temor á competencia, realmente, acovarda esses intellectuais de igrejinha,


apreciaveis apenas pela estupidez da sua pretenção ou, melhor, pela superio-
ridade irrisoria que se funda na sua consciencia. Vivem mais de elogios baratos
Thiago da Silva Nobre | 63

e bajulações vergonhosas do que, propriamente, da penna e do livro. Vestem


fracks bem talhados, fundam academias de letras e declamam versos e discur-
sos bombasticos em todos os palcos e salões, quer da capital, quer dos mais
infimos arrabaldes. São verdadeiros palhaços de feira. [...] Os semi-deuses não
morrem de amor pelas discussões. Qualquer periodico da terra, que, a quebrar
a monotonia de suas colunas recheiadas de elogios ás entidades politicas, pu-
blica uma nota, pequena que seja, que os desabone, a celeuma está feita! Um
escandalo! E’ logo ouvido o director da folha que infringiu a lei natural das
coisas, isto é, de nada dizer contra a arte, a poetica, a personalidade literaria,
emfim, deste ou daquelle filhote. Ponderados, sensatos, fazem vêr, então, a
inconveniencia de uma polemica, que terminaria, fatalmente, em retaliações
pessoaes... E assim vão vivendo, os nullos, os espertalhões cá da terra. [...]
Contra a turba ignara e fôfa, a mocidade que pensa, a mocidade que trabalha
e produz, deu, de há muito o brado de alarma. A onda raivosa e inconsciente
passará – porque a futilidade, ephemera como é, jamais edificou! A reacção,
agora, mais do que nunca, se faz mister. A hostilidade dos medalhões contra
os novos mostra-se franca, decidida, manifesta, embora que impotente. Cabe
tão somente aos rapazes de merito expurgar o pequeno mundo intelectual ce-
arense do grupo indecoroso e indesejável dos charlatães, dos embusteiros, que
são a vergonha dos tempos que correm. Contra esses cabotinos – expoentes
de miséria moral e deficiência intellectiva – está iniciada a reacção! (Os Novos
do Ceará no Primeiro Centenário da Independência do Brasil, 1922, p. 9-10)

Como podemos perceber, o autor do texto não economiza em ne-


nhum momento as críticas e os ataques aos escritores, ditos “intelectuais
de igrejinha”. Isso faz parte do que se entende como estratégias de subver-
são. Ou seja, tais estratégias dos indivíduos tendem a se estruturar como
rituais sacrílegos, pois, geralmente, destinam-se a serem sacralizadas e a
consolidar uma nova crença. Entretanto, esses estratagemas simbólicos
não contestam fundamentalmente os princípios que regem o campo. A
contestação é, no entanto, puramente simbólica, situando-se ao patamar
do ritual. Não se coloca em causa os princípios de poder que estruturam o
64 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

campo, provavelmente tais questões fossem imperceptíveis aos indiví-


duos, fazendo todo o sentido, a eles, agirem desse modo e não de outro.
Dessa forma, a heresia em relação às questões pré-definidas e estru-
turadas do campo literário, funcionam como um reforço de consolidação
da ordem. Na verdade, as práticas heterodoxas e as ortodoxas, embora
antagônicas e divergentes, encerram os mesmos pressupostos que orde-
nam o funcionamento do campo. Os dominantes e os dominados são, em
certo sentido, coniventes, adversários cumplices, que a através do antago-
nismo delimitam o que é legítimo para o debate. O consenso dissensual
dos agentes pressupõe o que é aceito, ou seja, o que merece ser levado em
consideração. A concordância se fundamenta no desconhecimento de que
o espaço social é um lugar de conflito, de concorrência entre indivíduos e
de grupos com interesses diversos (BOURDIEU, 1983).
Edigar de Alencar em carta dirigida ao Otacílio de Colares, comentou
sobre a publicação ter sido uma forma de reação e protesto aos intelectuais
oficiais, à “turba ignara e fofa” e à “legião de nulos compenetrados”, di-
zendo que “A turma daí, a que organizou a Poesia Cearense no Centenário,
foi cheia de fricotes. Parcial e aduladora. Injusta e servil. Daí a reação dos
novos, que publicaram na época também uma coletânea fracota mas que
fez história e significa como protesto” (EDIGAR apud COLARES, 1979, p.
171).
Ainda segundo Edigar de Alencar (1984), o livro Jardim das Confidên-
cias de Ribeiro Couto, lançado em 1921, entusiasmou os jovens intelectuais
de Fortaleza. A poesia, trazia algumas inovações nos temas e na forma,
falando de fatos do cotidiano da cidade de São Paulo e não obedecendo à
risca as métricas tradicionais, o que se convencionou chamar de Penum-
brismo.
Segundo ele, o Penumbrismo encontrou um grande reverberar nas
camadas jovens e nos intelectuais de segunda classe, a que pertenciam ele
Thiago da Silva Nobre | 65

e Jáder de Carvalho, bem como estudante e comerciários atentos aos mo-


vimentos intelectuais do Estado. Nas mesas do Café Riche no qual
amesendavam após o almoço, discutiam e recitavam Ribeiro Couto. Em-
bora fosse um livro paulista e eles não fizessem a mínima ideia da
diferença entre o chuvisco daqui e a garoa de lá, por uma espécie de fadiga
solar, eles se identificaram com esse tipo de lirismo e, também, com os
novos temas.

[...] Estávamos cansados dos parnasianos brilhantes e bem arrumados, dos


versos esculturais e lantejoulantes, de poesia eloquente, cheia de estardalhaço,
de cores e luzes. [...] Rapazes e mocinhas românticas lhe decoraram os poemas
veludosos, de títulos longos e medievalescos, de versos musicais, de desres-
peito aos alexandrinos consagrados, medidos ou partidos ao meio, fazendo-os
ousados e balouçantes, em ritmo ternário [...]. A temática do poeta santista
era outra novidade. Não mais fidalgas e castelãs e sim raparigas doentes de
bairros pobres transformadas pelo poeta em princesinhas sem coroa. Estu-
dantes enfermos. Lâmpadas morrentes. Alcovas sombrias, quase solitárias,
tresando a tristeza e remédio. Pregoes de vendedores, crepúsculos enevoados
pela neblina. Estaçõezinhas modestas de subúrbios. Portões fechados a cade-
ado, parques desertos, arrabaldes ermos. Elegias e baladas, mas tudo bem do
terra-a-terra, do cotidiano humilde de São Paulo, sem imagens atrevidas, sem
rutilâncias e sem delírios. (ALENCAR, 1984, p. 30-31)

Ao que parece, os jovens poetas que fizeram parte da coletânea Os


novos do Ceará no primeiro Centenário da Independência do Brasil, esta-
vam fortemente influenciados pelas inovações do penumbrismo de Ribeiro
Couto, que trazia novidades tanto nos temas como na forma, como já men-
cionamos.
Segundo Antonio Candido apud Goldstein (1983), o termo penum-
brismo foi criado por Ronald de Carvalho para definir algo que lembrava
o crepuscolarismo italiano, uma espécie de poeira esfumaçada do Simbo-
lismo. Alguns dos poetas pré-modernistas transitaram entre dois jardins
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secretos, entre o de Verlaine e o de Leconte de Lisle, ou seja, entre o Sim-


bolismo e o Parnasianismo. Esse passeio produziu itinerários insuspeitos
e inflexões diferentes. O universo poético deles era construído a partir de

atenuações da visão, abrangendo o interior da casa, o exterior da paisagem,


mas também o recesso da alma, [em que] se traduzem no gosto pelo meio-
tom, a nuance, o contorno esfumado, a bruma, até resultarem em melancolia,
indecisão e certa anemia sentimental, que não vai sem alguma futilidade pro-
gramada e pode chegar à mentalidade de omissão e renúncia. Desse modo
menor resulta um mundo menor, que o poeta tende a ver como espetáculo,
vendo-se também como espetáculo. (CANDIDO apud GOLDSTEIN, 1983, n. p.)

Para Goldstein (1983), a produção poética em tom menor de ramifi-


cação crepuscular, no caso brasileiro, estava mais ligado a Verlaine. E, em
sentido mais geral, podia ser considerado filho do decadentismo. Tratar-
se-ia de um estado específico de espírito, uma atmosfera inquietante e uma
pesquisa metafísica. O decadentismo já se encontrava em Baudelaire, ca-
racterizando-se pela preferência de temas mórbidos e pela insatisfação
com o destino da humanidade. O Simbolismo transmitia essa sensação de
inadequação através do uso do símbolo-imagem, sugerindo mais do que
descrevendo. Mais tendência poética do que um grupo específico, ele se
caracterizava por uma “melancolia agridoce, pelos temas ligados ao quoti-
diano, por uma morbidez velada – atitude doentia de perplexidade em face
do progresso e da técnica, traduzida no plano afetivo, por uma atenuação
dos sentimentos” (GOLDSTEIN, 1983, p. 5).
Em 1909, Marinetti lançou o seu “Manifesto Futurista” em Paris e,
pelo que podemos verificar, que em 1923 as novidades estéticas do futu-
rismo começaram a repercutir em Fortaleza. Não sem as reações das mais
diversas.
Antônio Sales sob o criptônimo de Arthunino Valles publicou no jor-
nal Correio do Ceará dezoito poemas satíricos sobre o futurismo, no
Thiago da Silva Nobre | 67

decorrer do ano de 1923, intituladas “Estâncias Futuristas”. Outros inte-


lectuais investiram contra a escola em outros periódicos: Lúcio Várzea
(Júlio Maciel) pelo O Nordeste e Manfredo Rutilo (Cruz Filho) pela revista
Jandaia. O negócio fez tanto sucesso que o órgão A Tribuna publicou, se-
guindo o caminho de sucesso aberto pelo Arthunino Valles, “Literatura
sem Futuro” de J. Bernardo (Eurico Pinto), que foram 11 poemetos. Cedeu
espaço, também, ao Conde de Messejana (Terêncio Guedes Filho) com
“Distâncias Futuristas” (BÓIA, 1984).
Mas um bom combate só é aquele que se tem adversário à altura, que
seja aguerrido tanto quanto o algoz. Edigar de Alencar não deixou por me-
nos, e, em contrapartida, criou a seção “Saco de Gatos” na revista Jandaia.
Distribuindo arranhões e arengas a todos aqueles que eram contra as no-
vas ideias. “Para contrabalançar essa guerrinha e também para dar os
meus arranhões, que sempre fui arranhento, criei na mesma revista a se-
ção “Saco de Gatos”, onde também perpetrei pilhérias com o futurismo,
sem poupar igualmente os que combatiam: Leonardo Mota, Antônio Sales,
Sales Campos, Cruz Filho, Elias Mallman e outros.” (ALENCAR, 1984, p.
33).
Foram dezoito as estâncias produzidas, mas apenas duas foram loca-
lizadas. Uma está registrada no livro Antônio Sales e sua Época, de Wilson
Bóia, e a outra foi encontrada pelo pesquisador Rodrigo Marques (2015),
trazendo-a em sua tese de doutorado. Publicadas no Correio do Ceará, em
uma primeira fase, entre o dia 13 e o dia 20 de junho, do número I ao VIII.
Reaparecendo, depois, entre o dia 23 de julho e o dia 01 de agosto, dos
números IX ao XVIII, e que se pretendia serem enfeixadas em brochura
nomeada de Mistificações (BÓIA, 1984).
Como podemos acompanhar, os debates e os conflitos de geração fo-
ram aguerridos e criativos. Nos primeiros anos do século XX, em Fortaleza,
começaram a surgir novos intelectuais em busca de reconhecimento e de
68 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

um “lugar ao sol”, porém perceberam que tinham que aceitar as regras do


jogo para lograrem êxito. Com as velozes mudanças na técnica e na vida
em coletividade, a forma e os temas da literatura não podiam permanecer
incólumes e inalterados. Estava iniciada a reação dos jovens contra as ve-
lharias do tempo e da tradição que teimavam em permanecer irresolutas.
Uma das armas para deslegitimar e polemizar com os escritores muito
bem consolidados em suas carreiras literárias, foi a ironia, o chiste, a bla-
gue, a pilhéria, o sarcasmo, o escárnio e o debique. É o que
acompanharemos no capítulo seguinte.
Capítulo 02

Literatura como Diversão

2.1 - Uma proposta irrecusável

Em 1925, a convite de Joaquim Inojosa, um grande defensor do mo-


dernismo em Recife, Guilherme de Almeida percorreu os estados do
Nordeste proferindo palestras sobre o recente movimento renovador. Em
Fortaleza teve o apoio do jornalista e crítico Gilberto Câmara, onde pro-
nunciou a palestra “A Revelação do Brasil pela Poesia Moderna” no
Theatro José de Alencar. Porém, não nos atropelemos. Talvez um exercício
interessante seja recuar um pouco no tempo, para entender como foi cri-
ado a revista Ceará Ilustrado e o porquê do grande interesse do seu
fundador pelo movimento Modernista na época.
Otacílio de Azevedo (1992), em seu livro memorialístico Fortaleza
Descalça, nos conta sobre a sua ideia de fundar uma revista destinada a
publicizar a produção literária dos intelectuais da terra. Em 1919, depois
da visita e de uma boa prosa com o seu amigo Orlando Luna Freire, ficou
combinado que fundariam uma revista chamada Ceará Ilustrado. Orlando
ficou encarregado de confeccionar os clichês, sendo possível a ilustração
das produções literárias, bem como registrar aspectos da cidade e das pes-
soas da época. Já Otacílio juntou farta colaboração entre os intelectuais de
Fortaleza. A impressão ficou a cargo da Tipografia Orlando Gadelha, situ-
ada na rua Floriano Peixoto. No entanto, no meio da composição da revista
acabou o dinheiro dos dois amigos e sócios-fundadores. O que fazer?
Uma saída possível seria angariar investimentos através de propa-
gandas. Porém, segundo o próprio Otacílio “arranjar publicidade era quase
impossível naquela época de comércio bisonho e incipiente. Era uma tarefa
70 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

digna de Hércules [...]. Os poucos tostões que tínhamos amealhado eva-


poraram-se” (AZEVEDO, 1992, p. 221). Mas quis o destino aprontar uma
das suas. Ao lado da tipografia havia o consultório de um cirurgião-den-
tista, seu nome era Demócrito Rocha. Tomando conhecimento das
desventuras dos dois, foi ter uma conversa com os rapazes e fazer uma
proposta irrecusável: ele se prontificava a pagar pela revista e continuar a
sua publicação, com uma única condição de se tornar proprietário do pe-
riódico. Era pegar ou largar. E assim, desde o seu primeiro número, a
Ceará Ilustrado passou para os auspícios de Demócrito Rocha.

Demócrito Rocha sacrificava parte da verba auferida com o seu trabalho no


consultório e aplicava-a, com a maior boa vontade, na revista. Era de vê-lo
então, feliz, fazendo a distribuição da revista nos quiosques da Praça do Fer-
reira. Orlando realizava os “clichês” com perfeição. A tipografia caprichava e a
Ceará Ilustrado, impressa em papel “couchê”, corria a cidade, fazendo a delícia
dos apreciadores das letras provincianas. (AZEVEDO, 1992, p. 221)

Apesar da ideia ter sido concebida em 1919, o primeiro número do


semanário saiu em 1924. Tendo como diretor Demócrito Rocha, como re-
dator-chefe Tancredo Moraes e como gerente Adalgisa Cordeiro do Carmo.
Ainda em 1924 e se prolongando até janeiro de 1925, foi organizado o con-
curso “O Príncipe dos Poetas Cearenses”, em que qualquer um poderia
votar. Bastava remeter o voto à redação. Ao que parece o concurso foi um
sucesso na época. “[...] era de se ver o dia todo, na pequena Redação, assi-
nantes e afeiçoados ao Nordeste uma chusma de padres e pessoas
religiosas votando no Padre Antônio Tomás, cuja a votação tomou propor-
ções astronômicas” (AZEVEDO, 1992, p. 221-222). O fato é que o pe.
Antônio Tomás terminou em primeiro lugar, Antônio Sales em segundo,
Júlio Maciel em terceiro, Cruz Filho em quarto e Carlos Gondim em quinto.
Thiago da Silva Nobre | 71

Era prática usual naquela época os periódicos abrirem concursos para as


pessoas votarem, seja lá de que tema fosse.
Mais à frente no tempo, já proprietário do Jornal O Povo, Demócrito
aprimorará esse tipo de concurso. No entanto, não nos antecipemos. Outra
sessão curiosíssima da Ceará Ilustrado era a intitulada “Graphologia” e ao
que tudo indica, era escrita por Demócrito Rocha. No período a grafologia
era reconhecida como ciência, que tinha o objetivo de determinar segura-
mente a natureza psicológica do escrevente através do gesto fixado pela
grafia.
Na Ceará Ilustrado de 08 de novembro de 1925, apareceu a primeira
notícia sobre a visita de Guilherme de Almeida à cidade de Fortaleza. Atra-
vés da notícia é possível perceber o grande entusiasmo e excitação do
jornalista, que provavelmente devia ser Demócrito Rocha. O texto comen-
tava sobre a grata notícia de que brevemente Guilherme de Almeida, que
estava em Recife, visitaria Fortaleza para proferir conferência sobre a arte
moderna. O poeta da Terra dos Bandeirantes, em um claro sorriso, viria à
Terra da Luz trazer a boa nova. A palavra atraente, sedutora, calorosa,
mágica, misteriosa e encantadora da poesia nova. A metáfora não era por
acaso.
A figura do bandeirante usualmente é relacionada à bravura, cora-
gem, valentia, intrepidez, exploração e pioneirismo. Adjetivos estes que
remontam ao colonizador português, do qual o bandeirante é filho legí-
timo. Sérgio Buarque de Holanda (1995) analisou brilhantemente essa
questão, em Raízes do Brasil, relacionando os costumes e tradições ibéri-
cos, bem como o seu legado para a formação da nação brasileira. A
tentativa e consolidação da implantação da cultura europeia em vasta
terra, dotada de condições naturais adversas e estranhas, seria um fato
rico em consequências e possibilidades para as origens da sociedade bra-
sileira. Tendo herdado formas de convívio, instituições, ideias estranhas,
72 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

seríamos ainda hoje desterrados da nossa terra. Quais eram os fundamen-


tos das formas de vida social na indecisa região entre a Europa e a África,
que se deita dos Pirineus a Gibraltar? Sem titubear o historiador paulista
afirmou que era a cultura da personalidade, que consistia traço decisivo na
evolução dos povos ibéricos. Tal concepção se mostrava na palavra sobran-
ceira, indicando a ideia de superação. Porém, trazia consigo um sentido
mais amplo de luta e de sofrimento, que também eram admitidos e admi-
rados. Dela resultava a peculiar fraqueza das formas de organização, de
qualquer ação que envolvesse solidariedade e colaboração entre as pes-
soas.
O possível acordo coletivo e durável só era possibilitado por uma
força exterior, temida e implacável: o Estado. A frouxidão da estrutura so-
cial, a falta de hierarquia organizada seriam elementos que sempre
frutificavam aqui, contando com a solidária, indolente e displicente ajuda
das instituições e dos costumes. Mesmo quando construtivas, as iniciativas
coletivas foram no sentido da desagregação e não da união. A falta de coe-
são da vida social não representava um fenômeno moderno, tinha
profundas raízes na tradição. O fato importante que não se pode esquecer
na análise das mentalidades dos povos ibéricos era a repulsa da moral fun-
dada no culto ao trabalho. Entre portugueses e espanhóis a moral do
trabalho disciplinado tinha algo de exótico e quimérico, não surpreen-
dendo que fossem precárias os laços de solidariedade, pois entre eles a
solidariedade só era concebível na vinculação sentimental do âmbito do-
méstico e privado. Círculos restritos e particulares de amizade, tendo a
obediência como a virtude suprema. Deste modo, a exploração e a coloni-
zação dos trópicos não se deu por empresa metódica e racional, não tendo
a sua origem em uma vontade construtiva e disciplinada. Fez-se com um
tanto de desleixo e um certo abandono. Nas formas de vida coletiva existi-
riam dois princípios que regulam as atividades dos indivíduos. Essas
Thiago da Silva Nobre | 73

diretrizes sociais se manifestam em dois tipos ideias 1: o aventureiro e o


trabalhador.
O aventureiro era aquele que ignorava as fronteiras, seu ideal era
apenas o de colher os frutos sem plantar a árvore. O mundo se apresentava
como uma grande possibilidade generosa, aonde houvesse qualquer obs-
táculo, ele era feito trampolim para ir mais longe ainda. Vivia somente
para a exploração dos espaços desconhecidos, dos projetos grandiosos, dos
horizontes longínquos. O trabalhador era, pelo contrário, aquele que valo-
rizava o esforço lento e persistente. Ele visualizava primeiro a dificuldade
de vencer, tendo o triunfo como laboriosa consequência da paciência e do
tempo. Ele sabia medir as possibilidades de desperdício, sabendo tirar pro-
veito do insignificante e do ínfimo. Seu campo era o do restrito e do
particular. Para ele o ideal era plantar a árvore para futuramente colher a
abundância dos frutos semeados.
Guilherme de Almeida, bandeirante moderno, veio à Terra da Luz
trazer a novidade. Imagem esta que também não é coincidência. Uma das
primeiras capitanias a abolirem a escravidão, o Ceará ganhou a alcunha
logo em seguida. O que sabemos muito bem não foi por heroísmo, mas
sim pelas peculiaridades da formação política, econômica e social, bem
como da histórica pobreza da província. Porém, os mais tradicionalistas
custam a desacreditar a versão oficial. Seguindo a linha de raciocínio do
autor do texto, parece estava destinado que o representante da Terra dos
Bandeirantes viesse trazer a novidade para os representantes da Terra da
Luz. Estavam predestinados.

1
Sob a influência da sociologia weberiana, Sérgio Buarque (1995) faz uso dos tipos ideias para entender a formação
e evolução das sociedades. Entre eles não há uma oposição radical e absoluta, ambos influenciam, em maior ou menor
grau, as decisões dos indivíduos. Tais tipos não existem em estado puro e fora do mundo das ideias. No entanto, não
há dúvida que os conceitos permitem compreender melhor os sujeitos e as suas relações em sociedade.
74 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Desde já, porém, cumprimos o dever de externar todo o alvoroço com que
aguardamos o instante de abraça-lo e de ouvi-lo, - e o que importa dizer: de
nos rendermos captivos ao encanto de sua palavra falada, que de ha muito nos
seduziu e de sua palavra escripta, cantante, para nós, até agora, apenas, atra-
vez das estrophes maravilhosas de seu verso [...]. (Ceará Ilustrado, 08 nov.
1925, p. 4)

No mesmo número da Ceará Ilustrado, já no final da revista, há um


artigo muito interessante e intrigante. De autoria de Djacir Lima Menezes 2,
o texto se intitula “Literatos por Obsequio”. Segundo os seus dados bio-
gráficos ele fora da turma de 1925 do Liceu do Ceará, deduzindo-se que na
época em que o artigo fora publicado ele ainda estava cursando o colégio.
Fato este que não impediu o jovem de traçar a sua percepção, em linhas
gerais, os principais aspectos da literatura nacional e da sua intelectuali-
dade.
Ele propôs, ao que parece, uma taxinomia intelectual e literária do
que vinha sendo escrito e publicado no Ceará até então. A juventude não
impediu a arguta e lúcida análise da realidade intelectual da época. Para
ele, a classe dos literatos cearenses, sempre engrossada e sempre engros-
sando de iniciantes incautos, poderia muito bem ser dividida em variadas
classificações taxonômicas. Muitas delas que provocariam o riso e a gar-
galhada.
Os escritores do primeiro grupo seriam os “apara farelos” da litera-
tura nacional. Não seriam propriamente literatos, seriam apenas sombras
mirradas e vultos esquálidos de autores de renome e de prestígio nacional.
Seriam parasitas das letras, quase como o personagem João Ega 3 de Eça

2
Nasceu em Maranguape, em 16 de novembro de 1907. Estudou no Liceu do Ceará (turma de 1925). Tornou-se
bacharel, em 1930, pela Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. Foi do Instituto do Ceará e da Academia
Cearense de Letras.
3
João da Ega é a projeção literária de Eça de Queirós. É um personagem contraditório. Por um lado, romântico e
sentimental, por outro, progressista e crítico, sarcástico do Portugal Constitucional. Boémio, excêntrico, exagerado,
Thiago da Silva Nobre | 75

de Queiroz, mas bem menos espirituosos. Capachos para os famosos es-


critores, mesmo assim conseguiam fama. Mas como? Fácil. Diversos
seriam os meios. Ficariam no encalço de algum mestre intelectual de fama
indiscutível, não economizando nos elogios, na adulação e na bajulação,
esperando o exato momento em que o autor, embevecido em vaidades,
atirasse uma ideia ou uma referência, tal qual se jogaria um osso ao fiel
cachorro esfomeado, que nos fitaria com o olhar demorado e comprido
como o do poeta Guerra Junqueiro 4. Então os seguidores de ocasião cor-
reriam a editá-la, verso por verso. Assim ganhariam renome na sua
ingênua cidade. Sempre que seus nomes fossem comentados em conver-
sas desinteressadas, logo se falava: “o que! Fulano? Teve uma polemica
com Candido de Figueiredo! Sicrano? Obteve referencias de Fialho; aquelle
homem é o diabo, menino!... E’ a gloria da literatura cearense. Não sabias?
– Que livro produziu? – Ah, isso não sei bem. O que sei é que é um genio”
(Ceará Ilustrado, 8 nov. 1925, p. 15).
Celebrizar-se-iam repetindo maquinalmente a operação de louva-
ções, farejando os possíveis descartes de ideias, abanando a cauda prontos
a saltarem para abocanhar possíveis temas premiados. Bastaria um estalo
dos dedos. Seriam escritores a custa do capachismo e da curvatura da es-
pinha, já bastante flexível.
Destes citados poucos escreveriam medianamente, muitos cavalga-
riam a gramática com espora, fazendo-a dar coices e gemidos. Sem
mencionar o chicote na ortografia e na sintaxe. Dentre eles haveria alguns
que conheceriam melhor o português, deleitando-se em nebulosas narra-
tivas lendárias. Seriam os “poetas gregos”, representantes do segundo

caricatural, anarquista sem Deus e sem moral. É leal com os amigos. Sofre também de diletantismo (concebe grandes
projetos literários que nunca chega a executar).
4
Abílio Manuel Guerra Junqueiro foi alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta.
Foi o poeta mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada "Escola Nova". Poeta panfletário, a
sua poesia ajudou a criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República.
76 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

grupo. Estes seriam mais instruídos, porém teriam o defeito de quererem


ser gregos ao versejarem. Mal começariam e já romperiam em dourados
ditirambos sem liga. Esmerariam roncantes alexandrinos em passada de
procissão, mencionando Apolo, Júpiter, Mercúrio e Vênus. E diante de
Afrodite amoleceriam em um desfalecimento eunuco de impotência, ri-
mando luxúrias em casca pudica. Não cantariam uma noite de luar sem
aparecerem com greguismos, em alusões neurastênicas de sentimentali-
dade amarela, de quem sofresse de lombrigas. Como herói geralmente
utilizariam Leônidas em Termópilas, já para traidor usariam Ephialtes. E
se cantassem o amor. “Ah, então é o diabo. Especialidade da casa. Vemo-
os as filas” (Ceará Ilustrado, 8 nov., 1925, p. 15). Seriam lamúrias em um
sentimentalismo gorduroso, morno e estafante de alexandrinos, que fala-
riam de luares fantásticos, mundos etéreos e realidades atemporais.
Narrativas dolentes de bardos medievais de cabeleiras sem caspas. Descre-
veriam a noite diabolicamente negra, escura e sem estrelas, em que o poeta
olímpico atacado de priapismo, alucinado, suporia ter em seus braços a
amada que ofereceria o colo desnudo ao beijo. Não passariam de um ma-
gote de chorões com retórica equestre. Para Djacir Menezes, seria
necessário um cordão sanitário e creolina para impedir o avanço dessa li-
teratura repleta de queixumes, mágoas e cretinice.
Desse mesmo tronco sairia a vertente dos “poetas da pátria”, repre-
sentantes do terceiro grupo. Esses seriam orgulhosamente patriotas e
nacionalistas, mas com um ufanismo de odes fumegantes e de uma moleza
viscosa. Cantariam o Brasil revirando o olho de regozijo, derramando ri-
mas enternecidas sempre seguindo a mesma cartilha: enaltecer a grandeza
e o futuro luminoso da nação, devido as suas riquezas naturais intocadas
nas florestas ainda desconhecidas. Tudo isso como quem admiraria uma
perna bem torneada. Seria um patriotismo dolente, estéril e clangoroso.
Porém, o que a nação realmente precisava era de braços e energia. O que
Thiago da Silva Nobre | 77

no máximo eles acudiriam com uma retórica pujante e bem martelada.


Não haveria maior escarnio do que dar a um mendigo faminto um buque
de rosas.
Em seguida haveria o ramo dos prosadores e representantes do
quarto grupo, os “escritores inofensivos”. Eles rabiscariam com a preocu-
pação e objetivo de não caluniar ninguém. Talhariam pacientemente as
frases e os períodos, perscrutando todos os significados e as ideias possí-
veis, só aí dariam à luz a grandes artigos com imponência de obelisco.
Encheriam os jornais com escritos ressoantes e vazios em um tom de
quem descobriu algo totalmente novo. Teorizariam sobre as estrelas, os
habitantes de Marte e as manchas solares, em linguagem que lembraria ao
do padre Vieira.
E por último os representantes do quinto grupo, os “os autores de
estatisticas, os criticos d’elogios a tudo, os remendões, - quem pode lá
agrupa-los, ó manes de Cuvier? – em gradações infinitas, numa escala zo-
ologica interminavel...” (Ceará Ilustrado, 8 nov. 1925, p. 17).
Como se pode ver, a leitura irônica e em muitos momentos ácida de
Djacir Menezes sobre a produção literária nacional da época, possui um
aspecto essencial que liga toda a sua argumentação. É a da mediocridade
e da degeneração da produção literária brasileira. Ou seja, nada de novo
estaria sendo produzido ou experimentado no campo estético da palavra.
Tudo se resumiria à cópia, à replicação e à imitação. O ambiente literário
já embolorado estaria sofrendo efeitos seríssimos de esclerose e de senili-
dade devido ao seu envelhecimento prolongado. Esse é o eco da angústia
do escritor em relação a grande parte da produção narrativa e poética do
seu período. Mal sabia o que lhe esperava.
Flora Süssekind (2006) propõe a análise das relações entre literatura
e técnica a partir de 1880 até a década de 1920. Esse período é geralmente
rotulado com os prefixos “pré” ou “pós”, sem terem características
78 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

próprias. Porém, a experiência como o novo horizonte técnico e o processo


de profissionalização do escritor se intensificavam, bem como a revisão da
ideia de literatura, vista no período também como técnica. A autora trava
um diálogo com três estudos (todos da década de 1980) que revisão o pe-
ríodo comumente conhecido como “Pré-Modernismo”. Todos eles
seguindo perspectivas interpretativas distintas.
A primeira é a de José Paulo Paes, que no artigo “O art-nouveau na
literatura brasileira”, reinterpreta o Pré-modernismo a partir de uma série
de práticas e procedimentos estéticos que se moveriam livremente entre
as artes visuais e a literatura. De um lado a ornamentação dos poemas, o
floreio verbal e os versos escandidos, do outro o art-nouveau no desenho
e nas artes aplicadas, propondo que se conceba uma literatura art-nouveau
para se conseguir integrar a crônica mundana de João do Rio e de Théo
Filho, o ambiente regionalista de Valdomiro Silveira e Afonso Arinos, o
ornato lírico de Coelho Neto e a narrativa com pretensões cientificistas de
Euclides da Cunha. Para ele, as chaves do problema são correspondências
e transmissões plástico-verbais, bem como contornos art-nouveau para a
produção cultural de fins do século XIX e início do XX.
A segunda é de Nicolau Sevcenko, que em Literatura como Missão,
toma para si a perspectiva de diferenciação entre os intelectuais da época
usando a periodização da história política, estabelecendo as relações entre
os grupos literários com o campo intelectual e político, a partir do qual a
literatura é observada e ilustrada.
A terceira é de Francisco Foot Hardman, que em Nem pátria, nem
patrão!, analisa a produção cultural brasileira entre 1890 e 1922, tendo
como principal interesse detectar como se deu a transição rumo à moder-
nidade. Para isso recusa as interpretações dualistas acerca do
Modernismo, que conceberam essa experiência como consequência unila-
teral da importação de pressupostos das vanguardas europeias e que os
Thiago da Silva Nobre | 79

aspectos conservadores e retrógrados foram resultado de resistências in-


ternas. Para o historiador interessa saber como se deu a integração desses
aspectos estrangeiros no processo nacional de elaboração artístico-intelec-
tual que salientou a crise dos discursos e ao mesmo tempo trouxe
respostas. Foot estudou a literatura social libertária de Avelino Fóscolo,
Curvelo de Mendonça, Cornélio Pires, Rocha Pombo, Fábio Luz, Elísio de
Carvalho, Martins Fontes e da imprensa operária do início do século XX. A
constituição do alicerce para o Modernismo seria o aumento os trabalha-
dores imigrados e do proletário industrial. O cosmopolitismo modernista
não seria concebível sem as brechas produzidas pela crescente mão-de-
obra internacional anônima, que já está acontecendo a pelo menos três
décadas.
Já para a autora a perspectiva de interpretação incide em perceber o
que diferenciava a produção literária da época. A partir do exame da crô-
nica, da poesia e da prosa de ficção, delinear-se-ia confronto e um atrito
para depois tornar-se flirt, tendo como plano de fundo a paisagem técnico-
industrial em formação.
Em primeiro lugar, rastreando diferentes manifestações literárias e
artefatos modernos, passando pelos meios de locomoção e comunicação,
pela recente indústria do reclame, da propaganda e da imprensa que se
consolidava no Brasil no início do século XX.
Em segundo lugar, de que forma os contatos cada vez mais intensos
com o horizonte técnico passou a dar forma a produção cultural. Não se
trataria mais de compreender como a literatura representaria a técnica,
mas como a literatura se apropriaria de procedimentos da fotografia, do
cinema, do cartaz, tornando-os em discurso próprio. A própria técnica em
si se tornaria a técnica literária. Transformações estas em coerência com
as mudanças nas percepções e na sensibilidade de mulheres e homens,
habitantes das grandes cidades brasileiras. “Em sintonia com o império da
80 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

imagem, do instante e da técnica como mediações todo-poderosas no


modo de se vivenciar a paisagem urbana, o tempo e uma subjetividade sob
constante ameaça de desaparição” (SÜSSEKIND, 2006, p. 16).
Segundo Alfredo Bosi (1967), o termo Pré-Modernismo foi cunhado
por Tristão de Ataíde para definir o período cultural do Brasil entre o final
do século XIX e o início do XX, tendo a Semana de Arte Moderna de 1922
como um momento de ruptura. Há dois sentidos possíveis para o termo.
Em primeiro lugar, o prefixo “pré” estipularia um significado apenas
de anterioridade temporal.
Em segundo lugar, o conceito daria um sentido de precedência temá-
tica e formal em relação ao Modernismo. Fazendo-se valer do primeiro
sentido o crítico alerta para o perigo de se negligenciar os autores de verve
realista, parnasiana ou simbolista, já que as gerações sempre estão imbri-
cadas e há permanências de certos valores tradicionais nesse momento de
transição conhecido como Pré-Modernismo. Entretanto, a conservação
sempre traz consigo o germe da renovação, o que justifica também a se-
gunda concepção para o Pré-Modernismo. Euclides da Cunha, Graça
Aranha, Monteiro Lobato e Lima Barreto são exemplos de algo de novo na
literatura, posto que se interessaram pela realidade e pela particularidade
nacional.
A Primeira República foi erigida sob os auspícios de uma mentalidade
positivista, agnóstica e liberal, persistindo e marcando a cultura letrada do
último quartel do século XIX. A corrente simbolista, praticada por poetas
como Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, não interessou verdadei-
ramente as classes intelectualizadas a não ser superficialmente,
mantendo-se praticamente incólume a dominação e a hegemonia parna-
siana. Somente por volta de 1920 quando as vanguardas europeias
afetaram a consciência brasileira, é que teria se dado a revolução estética
trazida no interior do Simbolismo. Deste modo, o Simbolismo dos fins dos
Thiago da Silva Nobre | 81

séculos XIX não passou de um episódio, um breve suspiro dentro do inter-


valo de um longo respirar. Em geral, os gêneros literários (lírica, ficção,
crítica, etc.) desse período indicaram a continuidade e a estilização das for-
mas e conteúdos já desenvolvidos pelos escritores realistas, naturalistas e
parnasianos.
No Segundo Império brasileiro a literatura foi praticada, sobrema-
neira, sob a observação indireta e estritamente literária da sociedade
burguesa da época. Podemos dar como exemplo ficcionistas como Raul
Pompeia, Machado de Assis e Aluízio de Azevedo. Após um período de exo-
tismo europeizante, seja na forma parnasiana ou simbolista, veio o
interesse de perscrutar e compreender os problemas sociais e as questões
morais do país. O termo regionalismo usado para definir a prosa desen-
volvida nesta época é impreciso embora sintomático. Narradores como
Xavier Marques, Alcides Maia, Simões Lopes Neto, Afonso Arinos, Valdo-
miro Silveira são exemplos. O que não exaure e delimita propriamente o
romance da época, pois prende-se unicamente ao fator ambiental e geo-
gráfico. Melhor seria utilizar o termo nacionalismo, incluindo atitudes
polêmicas, sentimentais ou irônicas, passando por Euclides da Cunha,
Monteiro Lobato, Graça Aranha e Lima Barreto.
Fato notório é que a descoberta do nacional, o olhar para dentro de
si mesmo, já vislumbrada pelo Romantismo, passou por uma expansão e
revisão crítica, cujas características gerais foram um amoroso ressenti-
mento e um pessimismo mascarado. É mais interessante perceber as
continuidades temáticas e as sínteses tradicionais, os desvios e as conver-
gências correspondentes às necessidades e aos anseios da cultural
nacional, sem se pensar em unidades histórico-literárias essencialmente
diferentes. Tomando o conteúdo e a problemática, a literatura dita pré-
modernista refletiu situações históricas novas e até então despercebidas: a
imigração alemã no Espírito Santo (Graça Aranha), as mudanças e
82 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

alterações na paisagem urbana e na vida dos moradores das grandes capi-


tais (Coelho Neto e Lima Barreto), a miséria do caboclo nas zonas de
decadência econômica (Monteiro Lobato) e o sertanejo nordestino e sua
situação precária (Euclides da Cunha). Em alguns prosadores revelou-se o
interesse regionalista mais pujante, incorporando o dialeto local à lingua-
gem literária. Síntese do romantismo nostálgico e da observação natural,
como por exemplo nos contos paulistas de Valdomiro ou nos contos gaú-
chos de Simões Lopes Neto. Já na poesia não se pode afirmar a existência
de grandes personalidades. Excetuando figuras como Augusto do Anjos e
Raul de Leoni, apenas encontraremos uma poesia epigônica, feita por ne-
oparnasianos, neosimbolistas, neoclássicos e neorromânticos,
evidenciando o caráter sincrético e a ausência de originalidade. Só é depois
da guerra que essa literatura cedeu aos golpes de uma radical revisão de
valores. Vivia-se ainda sob o manto do século XIX, tranquilos e moral-
mente assentados em convicções sociais e morais sólidas. Os ecos do
fascismo e do comunismo abalaram os pilares do liberalismo provinciano
brasileiro. A Belle Époque não era tão bela assim quanto se presumia.
Em 29 de novembro de 1925, na Ceará Ilustrado, foi vinculada uma
interessante entrevista com Guilherme de Almeida. Intitulada “Uma curi-
osa communicação espirita”, coordenada por Gilberto Câmara. Em uma
palestra descuidada sobre as impressões do convidado sobre Fortaleza, o
repórter, tomando um lápis e um pedaço de papel, entre jocoso, sério e
empertigado, começou a interview elétrica: “Uma entrevista, sim. Com to-
dos os rigores da pragmatica. Todos os requisitos do estylo. Mas coisa
rapida. Tranchante. Genero Pink pills for pale people” (Ceará Ilustrado, 29
de novembro, 1925, p. 14).
Caso o leitor não tenha percebido, Gilberto Camara faz referência à
famosa propaganda de remédio da época, utilizando-a como sinônimo de
síntese e de velocidade na vinculação das ideias. Um dos principais pontos
Thiago da Silva Nobre | 83

do “programa” modernista, pois não era mais possível narrar ao modo do


XIX em pleno século XX. O slogan “Pink Pills for Pale People 5” nos revela
as grandes mudanças infringidas ao cotidiano e à vida das pessoas pelo
desenvolvimento da técnica. Em uma realidade cada vez mais veloz e re-
pleta de estímulos aos sentidos, o transeunte moderno não tem muito
tempo para admiradas divagações e para longas reflexões, seja a pé, de
bonde, de ônibus, de carro ou de bicicleta, a mensagem publicitária tem
que ser certeira, sintética e célere para conquistar o possível comprador
da mercadoria. Não se trata mais de ir de encontro à razão ou ao consci-
ente, trata-se de excitar diretamente, e sem entrepostos, o inconsciente e
o irracional. Esse é um ótimo exemplo para mostrar o que foi a influência
causada pela publicidade e pelo desenvolvimento da linguagem jornalística
ao conteúdo e à forma literária.
E eis que Gilberto Câmara (1925) lança a primeira pergunta sobre o
que é o espirito moderno e quais os iniciadores da arte nova na Europa e
no Brasil? O que prontamente responde Guilherme de Almeida, afirmando
que não é possível saber o que ele é, mas outrossim o que é dele. Não teve
percursores e não veio de ninguém, existe no ar e na atmosfera do pós-
guerra, como a gripe espanhola e o bolchevismo. Cuidado! É altamente
contagioso e qualquer medida profilática é inútil.
E prossegue Gilberto perguntando como se operou a sua transição do
passadismo ao modernismo, quando se deu a mudança e se renegou intei-
ramente as formas antigas? Ao que Guilherme rebate dizendo que não
adotou e não renegou nada, apenas evoluiu. Adotar ou renegar é coisa
nouveau riche, pois detesta apóstolos e convertidos. Tudo se deu pelo con-
tágio do ar.

5
Pílulas rosadas para pessoas pálidas.
84 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Ao que Gilberto investe questionando sobre o seu modo atual de criar


os versos. Obedece a regra de metros, de rima e de ritmo? Ao que que
Guilherme interpola falando que a sua ideia já nasce metrificada e ritmada.
Ao contrário de antes, a ideia é o principal e o ritmo o acessório. Para ele
agora os versos são feitos e não recheados. A poesia de hoje é criadora, cria
livremente e subconscientemente o seu ritmo, não é escrava da forma. O
lirismo da poesia moderna não é o mesmo do que se concebia em 1830.
“Houve um instante de silencio [...]. E emquanto me admirava de suas
respostas [...] incisivas, espirituosas, seu olhar passeiava [...] pelos livros
da estante, onde os clássicos portuguezes faziam um curioso contraste, [...]
claro-escuro, ao lado dos poetas modernos da França e do Brasil” (Ceará
Ilustrado, 29 nov. 1925, p. 14).
Na mesma edição da Ceará Ilustrado, de 29 de novembro de 1925, foi
publicado quase na íntegra a conferencia de Guilherme de Almeida, inti-
tulada “A Revelação do Brasil pela Poesia Moderna”. O que mostra vivo
interesse do dono do semanário, no caso Demócrito Rocha. Segundo o re-
dator da matéria, o certame se deu em um Theatro José de Alencar com
uma reduzida mas seleta audiência, inclusive com a presença do Presi-
dente do Estado.
Guilherme de Almeida (1925) começou a sua palestra contextuali-
zando o movimento modernista, a sua ideia e os seus objetivos. Para ele, a
Semana de Arte Moderna de 1922, foi uma divisor de águas entre o pas-
sado e o atual (contemporâneo). Tal qual um teorema matemático
metodicamente lançou as suas questões: Que é o Brasil? Que é Revelação?
Que é Moderno? Não se tratava de entender o que o Brasil foi ou era, mas
sim o que ele estava sendo. Estávamos dormindo, inconscientes e distantes
de si mesmos, ignorando o presente e cultuando uma falsa tradição. O des-
pertar da modorra só aconteceu com o choque brusco da ideia moderna,
fazendo abrir os olhos para a realidade prática do dia e concebendo a pátria
Thiago da Silva Nobre | 85

como uma vasta terra moderna, civilizada, mecanizada, industrializada,


útil e eficaz. Toda arte, bem como as religiões, guardava a sua dogmática.
O artista se revelava revelando. Cabe a ele reproduzir o progresso de
seu tempo. É preciso extrair a essência do progresso da técnica para lhe
dar feição intelectual e artística. Exprimir pela arte o progresso presente
era dar-lhe existência inteligente. Segundo o conferencista, a poesia nunca
foi arte de fazer versos. Nunca! Como era possível fazer algo já feito? Nin-
guém criava versos, pois eles eram apenas preenchidos. Havia fôrmas,
mas não formas. Existiam fundidores, mas não escultores. Então o que era
a poesia antes? Era a arte de encher versos. Procurava-se imitar a música,
a pintura e a escultura, esquecendo-se de si e da sua finalidade própria,
para experimentar harmonias, tintas e volumes. O acessório era o princi-
pal. Tudo era conteúdo viscoso a tomar a forma do recipiente duro e
teimoso do metro. O ouvido do homem do século XIX se acostumou àquela
uniformidade. Porém, a guerra o atropelou e a barroada foi o sinal das
mudanças do porvir. Seu filho já não estranhava as novidades, entendia e
explicava tudo: Televisão, Fascismo e Einstein.
Para ele, o século XX exigia uma outra poesia, tinha que ser a sua
imagem e semelhança: sadio e inteligente. Para novas inspirações novas
expressões. O ritmo de procissão de um alexandrino era capaz de traduzir
a marcha suntuosa de um elefante, mas não podia exprimir um aeroplano
riscando de cinza o céu carregado do Polo Norte. Antigamente o ritmo cri-
ava a ideia, hoje a ideia cria o ritmo. Tudo tinha seu próprio ritmo, tudo
era matéria de poesia. Os valores foram invertidos. A poesia de antes tinha
a pretensão de se resumir as outras artes (música, pintura, escultura), hoje
ela era poesia pura, bastar-se-ia em si mesma.
O segredo dessa poesia prática, útil, de precisão e de força, como a
sua própria época, era a síntese. Nessa palavra de três silabas se resumiam
todos os esforços, preocupações, tendências e energias da atualidade.
86 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Gravitava-se em torno dela, tal qual um sistema planetário ao redor do seu


astro rei. A síntese era a lei, a essência de tudo que representava a vida
atual: comércio, industrial, lavoura, ciência, arte. Síntese significava rapi-
dez, o máximo no mínimo. Um automóvel buscava diminuir os percursos,
um transatlântico podia transportar uma cidade inteira cômoda e confor-
tavelmente para outros continentes, um elevador simplificava as escadas
perigosas e quiçá mortais, um telefone dispensava toda a criadagem lus-
trosa por um eletroímã e alguns fios. A vida ficou mais fácil e mais
prazerosa. Todos entenderam essas mudanças no cotidiano, mas não que-
riam aceitar que a arte também se modificava. Paciência para eles,
coragem para nós, arrematou o poeta.
Em seguida ele usou o exemplo didático de um passeio de carro junto
com um outro senhor apressadíssimo. Ao que o distinto senhor respondeu
que não poderia prosear, pois a bolsa fecharia às três. Em um Ford saíram
os dois, aonde a paisagem da cidade se deformava, as distâncias se acha-
tavam, o tempo se comprimia e a vida dos pedestres tornava-se nada.
Nessa velocidade os dois eram incapazes de ler um romance francês ou
uma carta de um parente pedindo alguma quantia em dinheiro. Porém, a
propaganda “Pink Pills for Pale People” em um arranha-céu podia muito
bem ser lida, memorizada, traduzida e comentada. Mas se ao invés dos
quatros pês sintéticos, houvesse um longo parágrafo descritivo e estafante:

Porventura estará Vossa Senhoria contaminado de um mal muito commum,


chamado vulgarmente anemia, que se caracteriza por excessiva pallidez, dimi-
nuição dos globulos vermelhos do sangue, descoloração das mucosas,
palpitações, inappetencia, etc.? si assim é, procure nas boas pharmacias e dro-
garias umas pillulas chamadas Pillulas Rosadas [...]. (Ceará Ilustrado, 29 nov.
1925, p. 15)
Thiago da Silva Nobre | 87

Para o literato obviamente isso não funcionava. Nem mesmo com


toda a boa vontade do mundo era possível chegar ao fim de semelhante
insipidez, mas a vida balanceia as coisas. Os homens apressadíssimos em
carros velozes leram o anúncio, entenderam a mensagem e compraram a
droga. A vida atual era um vertiginoso Ford, a arte era um fármaco. A
síntese e o sintetizado. Todos tinham que ler e compreender. Não havia
mais tempo para o devagar, o depressa era o agora. Não se podia perder
mais tempo com descrições de Virgílio, tinha que expressar a vida de hoje.
Havia uma necessidade imprescindível de uma nova poesia. Apesar de
combatidos, caluniados, ridicularizados, os poetas novos do Brasil já sen-
tiram o essencial e começaram a revelar o Brasil pela sua poesia: a poesia
moderna.
Ficando a plateia impressionada ou não pela pujante conferência de
Guilherme de Almeida, a verdade é que dois anos depois, em 1927, saiu o
livrinho de poesias modernas O Canto Novo da Raça. É o que trataremos
no tópico a seguir.

2.2 – O canto novo

Em um artigo pulicado no Diário do Ceará com o título de “Pasma-


ceira Intellectual”, datado de 1926, o cronista Antonio Theodorico da
Costa, muito sensível ao ambiente intelectual da cidade de Fortaleza no
período, teceu várias críticas sobre o atual estado de modorra, paralisação,
infertilidade e esterilidade nas letras e nas atividades do espírito.
Segundo ele, estávamos atravessando uma “epocha de completa pas-
maceira intelectual” (Diário do Ceará, 21 fev. 1926, p. 1). Escritores, poetas
e cientistas eram cúmplices de uma preguiça criminosa. Não se via mais o
surgimento de livro nacional, seja de literatura, poesia, novela, conto ou
novela. As tipografias estavam lotadas de anúncios, cartões de visitas, ta-
lões do jogo do bicho. As livrarias não importavam as novidades literárias,
88 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

pois tinham medo de apenas estocarem alimento para traças. Nenhuma


vivalma comentava sobre agremiações literárias, parecia que elas tinham
sido extintas anos atrás.

Comprehenderam que estavam perdendo tempo em uma epocha de tanto in-


dustrialismo, de negócios e lucros, de compras e vendas, de infinitas
transações para ser alcançado o ouro com que se tem de enfrentar as difficul-
dades da vida actual, ás crescentes exigencias do modernismo precipitado e
tumultuario. [...] Os apertos da era presente não permittem de modo algum
essas elocubrações do espirito. Tempo é dinheiro e é com dinheiro que nos
alçamos ás posições sociaes, suavisando as accidentações e agruras da existen-
cia humana. [...] Novos horisontes. Outras directrizes. A mocidade não deve
entregar-se a essa tam amofinate inercia. O repouso é para a velhice. A juven-
tude é a alvorada, e na alvorada o sol tem mais bellezas, tudo é alegria e
esperança. (Diário do Ceará, 21 fev. 1926, p. 1)

Como podemos atentar, Theodorico da Costa vai tecendo uma gama


de relações entre a diminuição das atividades literárias em detrimento das
atividades comerciais e monetárias, em que o lucro e o dinheiro estavam
ganhando cada vez mais importância na sociedade em detrimento das
questões do espírito. Segundo ele, os intelectuais estavam opacos e inertes,
as tipografias não publicavam nada de novo, as livrarias não traziam ne-
nhuma novidade literária e as associações letradas estavam em plena
extinção. Eram tempos de modernismo precipitado e tumultuário. Mesmo
com essa apreensão um tanto quanto apocalíptica do contexto intelectual
e cultural da época, o autor em tom esperançoso exorta a mocidade e a
juventude a se movimentarem e agirem contra essa situação.
Sua fala ganhou ares premonitórios, pois desde o início da década de
1920 vinha se esboçando o desenvolvimento de uma nova geração de in-
telectuais no Campo Literário de Fortaleza, diferentes daqueles que
nasceram e vivenciaram o século XIX, referentes a geração Mocidade
Thiago da Silva Nobre | 89

Cearense e dos Moços Cearenses. O século XX trouxe consigo novas expe-


riências, percepções, sensibilidades e práticas. Sem falar na cidade que se
transformava num ritmo frenético.
Foi em 1927, pela Tipografia Urania, que saiu o primeiro livrinho au-
todeclarado modernista do Ceará, nomeado com o emblemático título de
O Canto Novo da Raça. Livreto em formatação verticalizada e sem pagina-
ção nas suas quarenta páginas, trazendo em sua capa a homenagem ao
poeta Ronald de Carvalho. De autoria coletiva de quatro poetas estreantes:
Jáder de Carvalho, Sydney Neto, Franklin Nascimento e Mozart Firmeza.
Atentemo-nos um instante à capa do livro, logo à primeira vista
chama a atenção o título enigmático. E o leitor mais arguto irá se pergun-
tar: Que canto novo foi esse? E que raça era essa? Bom, aqui levantamos
a hipótese de que o “canto novo”, que os autores pensaram, referia-se às
formas narrativas utilizadas e as experiências introduzidas pelos adeptos
do modernismo literário no Brasil. Marcadamente tendo como carro chefe
o verso livre, sem métrica e sem rimas. Ronald de Carvalho em um verda-
deiro aforismo poético e de forma concisa e certeira, no poema Teoria, fala
justamente da liberdade de criação do poeta moderno: “Cria o teu ritmo
livremente, como a natureza cria as árvores e as ervas rasteiras. Cria o teu
ritmo e criarás o mundo!”. Porém, podemos mencionar, também, outras
formas de experiências narrativas como o poema-piada, a escrita automá-
tica, o texto jornalístico, a propaganda, a fotografia, o cinema e por aí vai...
Podemos relacionar com a teoria narrativa benjaminiana. Para ele a
experiência coletiva, calcada na identificação entre o narrador e o ouvinte
ainda existente nas comunidades mais tradicionais e pré-capitalistas, es-
tava em vias de extinção. Pois o desenvolvimento do capitalismo esfacelava
tal possibilidade, dando lugar à experiência vivida e solitária do indivíduo
moderno, que não podia ser compartilhada e nem comungada plena-
mente, já que a identificação entre os sujeitos era interdita pelo abismo das
90 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

gerações, que não conseguiam assimilar as questões postas na ordem do


dia devido a rapidez frenética do século XX.
Benjamin não deixa evidente, no entanto nos lega pistas, mas é pos-
sível superar a condição de mudez das experiências coletivas e narráveis
advinda da nova ordem mundial. Seria necessário a invenção de outras
formas de narrar, mais sintéticas e em sintonia com o contexto da época,
empreendido justamente por aqueles que reconheceram a impossibilidade
da experiência tradicional na sociedade moderna e que se recusaram a se
contentar com a privacidade da experiência vivida individual (BEJAMIN,
1994; GAGNEBIN, 1994).
É só imaginar a quantidade de experimentalismos tentados, nem to-
dos exitosos, nas mais variadas linguagens (música, pintura, artes
plásticas, literatura, teatro, cinema, dança, fotografia e outras) ocorridos
desde o final do século XIX e acentuadas ainda mais no decorrer do século
XX, com as propostas estéticas das vanguardas artísticas, como, por exem-
plo, o Futurismo, o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo, dentre outras.
A brochura coletiva contém seis poemas de Jáder de Carvalho, cinco
de Mozart Firmeza (pseudônimo Pereira Júnior), quatro de Franklin Nas-
cimento e, por fim, dois de Sydney Neto. Como podemos esperar, alguns
escritos são mais óbvios e nos legam acesso a informações interessantes,
sem a exigência de peripécias mentais de interpretação, enquanto outros,
pelo contrário, não se deixam deslindar nas primeiras leituras e investidas.
Massaud Moisés (2007) alerta para o problema que a distância no tempo
pode acarretar as análises do leitor contemporâneo, pois “à medida que
recuarmos no tempo, mais opaco se torna o tecido verbal e, portanto, mais
espinhosa a sua compreensão (MOISÉS, 2007, p. 15).
O livro começa com um poema de Jáder de Carvalho, nomeado de
“Poema da Raça”, em que na primeira estrofe já vemos uma alusão direta
ao poeta Walt Whitman. De onde podemos afirmar acerca da coincidência,
Thiago da Silva Nobre | 91

e, porque não dizer, da proposital referência a Ronald de Carvalho e, logo


em seguida, a Walt Whitman 6.
Segundo Wilson Martins (1969), Ronald de Carvalho encontrou em
Whitman o grande mestre da poesia telúrica e do verso livre, por isso ele
também quis cantar a América. Mas a verdade é que, quando Whitman
cantava a América, cantava o seu próprio país e o seu continente, a Amé-
rica do Norte. Ronald de Carvalho, em contrapartida, quando cantava a
América do Sul, cantava também o Brasil.
Jáder de Carvalho trovou também, ao seu modo, o seu país, o Brasil,
e a sua terra, o Ceará. O autor seccionou o Brasil em quatro eixos princi-
pais: extremo Sul, Sudeste, Nordeste e extremo Norte. Identificando os
lugares através de suas características regionais, vai traçando o perfil geral
do continente brasileiro. Primeiro se refere ao extremo sul, aludindo à pai-
sagem corriqueira de lá, com as suas coxilhas 7 e com seu o pampa 8.
Logo em seguida, fala de São Paulo e dos seus arranha-céus, símbolos
de modernidade e cosmopolitismo. Depois passa ao sertão dos cantadores
e dos cangaceiros, referindo-se ao Nordeste. Sertão este, geralmente, iden-
tificado com tipos sociais em extinção (cantadores e cangaceiros) e,
também, com a falta, com a precariedade, com a necessidade (árido e nu).
Promovendo a construção discursiva de um “Nordeste” enquanto recorte
geográfico, temporal, cultural e social (MUNIZ, 2008). Por fim, menciona
o Acre, local depositário do emigrante cearense fugido da seca e da cares-
tia, indo trabalhar na extração do látex da seringueira.
Para além da caracterização espaço-regional, o escritor assinala as
peculiaridades gerais que, a seu ver, possuiriam o povo brasileiro: bárbaro,
amoroso, insofrido, capaz de todas as audácias e de todas as bravuras.

6
Poeta norte-americano, nascido na cidade de Huntington em 1819. Grande expoente do verso-livre.
7
Campina com pequenas e contínuas elevações arredondadas, típica da planície gaúcha.
8
Grande planície coberta de vegetação rasteira, na região meridional da América do Sul.
92 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Eu falo, no Continente brasileiro, a linguagem profética de Walt Whitman!

Meu povo
vive, comigo, a inquietude contemporanea:
- Batalhando, em toda a extensão das coxilhas,
no pampa luminoso, infinito e marcial!
- Estuando, dynamisado, á sombra dos arranha-céos, em São Paulo!
- Vibrando,
versejando,
desafiando,
Ao som de cordas nostalgicas:
barbaro,
amoroso,
insoffrido,
capaz de todas as audacias,
capaz de todas as bravuras:

No sertão arido e nú do cantadores e dos cangaceiros!


No Acre – exílio das violas do Ceará!
(CARVALHO, Jáder de. O Canto Novo da Raça, 1927, n.p.)

Coincidências à parte, e entendendo que este tipo de afirmação pode


ser escorregadia, é bem provável que os integrantes da publicação tenham
tido contato, ou até mesmo lido, Toda a América de Ronald de Carvalho.
Publicado em 1926, ou seja, dois anos antes do O Canto Novo da Raça. E,
talvez, Jáder de Carvalho tenha sido o mais influenciado.
Veja bem transeunte leitor, aqui falamos da possibilidade, traba-
lhando com uma hipótese embasada em algumas pistas. A primeira,
obviamente, foi a dedicatória, em letras garrafais na capa, a Ronald de Car-
valho. O que de início gerou a desconfiança. A segunda foi quando
tomamos para leitura o livro Toda a América, logo percebemos similitudes
Thiago da Silva Nobre | 93

entre alguns poemas (“Advertência”, “Brasil” e “Toda América”), de Ro-


nald de Carvalho, com os escritos de Jáder de Carvalho.
“Advertência” foi escrito como um poema em prosa, desenvolvendo-
se em um espaço geográfico binário: Europa e América. Empenha-se em
caracterizar descritivamente as diferenças entre os espaços, as culturas e
os sujeitos. Inicia aludindo a disposição em xadrez das vilas europeias, para
em seguida descrever as casas, que eram de madeira, pequenas e cobertas
de heras, com as suas cercas paralelas repletas de trepadeiras florindo.
Prosseguindo, ele se desloca para a sala de jantar, com o seu fogão de azu-
lejos cheirando a resina de pinheiros e faia. Lugar de conversas mais
íntimas e veladas, aonde se discutiam casamentos, colheitas e enterros. E
prossegue:

Europeu!
Em frente da tua paisagem, dessa tua paisagem com estradas, quintalejos,
campanários e burgos, que cabe toda na bola de vidro do teu jardim; deante
dessas tuas arvores que conheces pelo nome – o carvalho do açude, o choupo
do ferreiro, a tília da ponte – que conheces pelo nome como os teus cães, os
teus jumentos e as tuas vaccas; Europeu! Filho da obediencia, da economia e
do bom-senso. Tu não sabes o que é ser americano! (CARVALHO, Ronald de.
Toda a América, s. d., p. 10)

Como podemos perceber, a Europa era um espaço dominado e co-


nhecido, em que já não dispunha de surpresas a apresentar. Os indivíduos
comedidos, prudentes e polidos. Em contrapartida, a América era uma
terra de “alegria virgem de rios-mares, enxurradas, planicies cosmicas, pi-
cos e grimpas, terras livres, ares livres, florestas sem lei!” (CARVALHO, s.
d., p.10). A liberdade de criar caminhos outros era a tônica. A diferença
residia, principalmente, nas possibilidades quase infinitas de um lugar
aonde a natureza era selvagem e não fora ainda domesticada, aonde o
94 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

laboratório das raças fora executado com maestria. Seara aonde se podia
inventar, descobrir e correr, criando os caminhos com a planta do pé.
É sintomático perceber a tensão entre a tradição consolidada e a re-
sistência às novas práticas sociais, em relação às pressões e às
possibilidades ocorridas no cotidiano fortalezense e surgidas das experi-
ências advindas do capitalismo, da modernidade e da urbanização das
cidades, presentes nos temas dos poemas. Entre os assuntos mais comuns
do livro estão os novos modos de sociabilidade na cidade, o problema da
seca, a modernização urbana de Fortaleza, as moças da cidade, os retiran-
tes, as grandes obras no sertão, a miscigenação, as manifestações
operárias, a pátria, entre outros. O poema “Modernismo”, de Jáder de Car-
valho, exemplifica bem essa tensão existente:

Teu cabelo á Rodolpho,


tuas olheiras romanticas,
teus quadris inquietos e atordoadores,
teus seios bico-de-passaro
– dão-me a idéa cabal deste século ultra chic!
Hontem, quando deixavas o cinema,
– o collo nú,
os braços nús,
a perna escandalosamente núa,
eu tive a súbita impressão de que,
na bolsa de ouro a te pender da mão,
vinha, (de precavidas que és!),
– o teu vestido...
(CARVALHO, Jáder de. O Canto Novo da Raça, 1927, n. p.)

Jáder de Carvalho, mesmo sendo um entusiasta modernista, descon-


fiou das novas forças históricas específicas surgidas. Em seu poema há
uma abundância de símbolos “modernos” e estranhos às práticas usuais:
o cabelo ao estilo de Rodolfo Valentino (repleto de brilhantina), o cinema,
Thiago da Silva Nobre | 95

as olheiras “românticas” (provavelmente de noites mal dormidas pela as-


siduidade em tertúlias noturnas). Para o escritor era um escândalo a moça
mostrar os braços, o colo e as pernas, o que na sua concepção, deixava-a
praticamente nua, atiçando as percepções masculinas alheias. Essas novas
relações proporcionaram a esse intelectual a ideia, vivíssima, das novida-
des nas práticas cotidianas advindas das mudanças do século XX.
No decorrer da pesquisa fomos percebendo algumas intersecções,
coincidências e repetições de temas tanto na produção literária como na
imprensa da época. Fazendo-nos perceber o quão é rico e produtivo o cru-
zamento desses dois tipos fontes.
No poema “Cabaret”, de Franklin Nascimento, é possível exemplificar
tal observação:

Quando eu cheguei no salão sonoro,


Apparatoso, á nouveu-riche,
A orchestra ria um riso violento de cascata:
Caracolava um maxixe.
E homens vestidos de pixe,
E mulheres com vestigios de veste sobre si,
Pulavam no soalho de borracha.
(Ainda ha pouco pisavam sobre brasas)
Em charlestonizações epilépticas de cabritos montezes...)
Ella tinha olheiras fumarentas,
Olheiras de tarde londrinas
E olhos de polimento...
Os quadris bamboleantes, a resmungar alcovitices,
Algumas, passando a meus pés,
Poisavam e mim os tristes limpa-chaminés...
<<Partamos, minha joia...>>
Era a que eu escolhera na vitrine...
Pouco depois arrebatava-nos a limousine,
Que, abrindo as suas duas longas mangueiras de luz,
Escorreu pela rua a businar...
96 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

(NASCIMENTO, Franklin. O Canto Novo da Raça, 1927, n. p.)

Como podemos ver, o escrito trata de um local de sociabilidade espe-


cífico, o cabaret. Espaço eminentemente masculino, onde os homens
trajavam indumentárias escuras, cor de “pixe”, e as mulheres com roupas
que seriam “vestígios de vestes”, fazendo alusão aos vestidos da moda que
eram mais decotados e mostravam um pouco mais as pernas e as costas.
A década de 1920 representou um momento de mudança no que diz
respeito aos hábitos e trajes femininos. Em um universo até então polari-
zado em volta da figura masculina, as novidades da vida moderna foram
aceitas com entusiasmo pelas moças. Ao invés de adereços pesados, enchi-
mentos, agregados de roupas brancas, perucas, armações e anquinhas,
objetos tão caros ao século XIX, tinha-se, agora, tecidos leves, transparen-
tes e colantes. O rosto ao natural, a cabeça descoberta e os cabelos cortados
extremamente curtos (a la garçonne), quase raspados na nuca. Sem falar,
também, no encurtamento das saias e dos decotes (SEVCENKO, 1992).
A banda, que provavelmente deveria ser de jazz, não tocava uma
polca ou uma valsa europeia, mas sim um maxixe. O Maxixe era um dos
ritmos modernos da época que estavam em voga, bem como o Tango, o
Fox-Trotter, o One and Two Steps, o Cake-Walk, o Ragtime, o Jazz, o Char-
leston, etc. Não agradava nem um pouco a ala mais conservadora da
sociedade, por ser relacionado ao sensualismo, ao primitivismo, à alcovi-
tice e à pouca vergonha.
Foi o que encontramos no jornal O Povo de 18 de janeiro de 1928,
através das reclamações de um senhor que se denominava Dêbê, autointi-
tulando-se como “um que tem ogeriza ás novas dansas”:

Tudo tem sua phase de pujança. Agora se nos apresenta o charleston com seus
passos anti-estheticos ao ruido ensurdecedor do jazz. Valsa, rige-time, lan-
ceiro, polka, tudo emfim desapareceu dos nossos salões, outr’ora tão
Thiago da Silva Nobre | 97

decantados, para dar ingresso ao charleston - a dansa dos cabarès de Paris.


[...] Aqui mesmo em Fortaleza o chicpegou. [...] Admira que certos paes dei-
xem suas filhas, ainda jovens e inexperientes de braços enlaçados ao pescoço
de um Zé Ninguém, rodopiar num salão ao passo vertiginoso do charleston. E’
incrivel e mesmo, absurdo que um moça possuindo certa dose de educação
esteja com trejeitos aliás não mui decentes, pulos e saracoteios de quadris para
um e para outro lado. Bem avisadas andaram as directorias do Iracema e dos
Diarios prohibindo a tal dansa como ofensiva á moral. [...] Sei e sabem todos
onde o charleston tivera sua origem – nos cabarés de Paris, cidade conhecida
pela sua devassidão. [...] Que o sr. dr. Chefe de Policia igual proibição ponha-
o em execução. (O Povo, 18 jan. 1928, p. 3)

O próprio Franklin Nascimento cria imagens poéticas muito criativas


e irônicas sobre a sua percepção acerca dos ritmos modernos, descrevendo
homens e mulheres dançando em um assoalho que parecia ser de borracha
e repleto de brasas incandescentes, devido ao fato do Charleston ser dan-
çado pulando. E, por fim, arremata com “charlestonizações epilépticas de
cabritos monteses”, referindo-se, evidentemente, de forma pejorativa à
dança, que para ele deveria ser desengonçada, antiestética, feia e de mal
gosto.
Segundo Nicolau Sevcenko (1992), a popularidade, a ascensão e a
proliferação epidêmica dos ritmos frenéticos nos gostos, nos ouvidos, nas
sensibilidades, nos salões, nos clubes, nos bailes e nos cabarés teve estreita
relação com a emergência da indústria do lazer e da democratização do
acesso à música. Por detrás disso tudo estava a universalização da indús-
tria fonográfica, destacando-se as distribuidoras norte americanas. O ano
de 1919 foi a transição tecnológica no mercado do gramofone para a ver-
sátil vitrola, que era, sobretudo, mais potente e mais acessível.
Nos anos de 1920 a cidade surgiu, ao mesmo tempo, como fonte e
foco da produção cultural, tornando-se um tema recorrente, seja de forma
explícita ou implícita. Os sistemas simbólicos e perceptivos da coletividade
98 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

estavam sendo reordenados em função do ritmo alucinante e da veloci-


dade avassaladora da vida moderna citadina. Extrapolando o conceito de
pólis grega, que era entendida como o paradigma da ordem, ou, também,
indo além da definição de comunidade civil perfeita e centro do mundo,
como se concebia a antiga sociedade romana. A metrópole moderna pas-
sou a ser o espaço da origem de um caos sem precedentes e se torou o
dínamo gerador de uma nova vitalidade emancipadora.
Ela, também, geriu e recebeu muitas outras adjetivações possíveis
que “engrossaram o caldo” borbulhante e instável que era a cidade nesse
contexto. Podia ser apocalíptica, revolucionária, misteriosa, monumental,
ciclópica, desorientadora, bizarra, ameaçadora, fluída, fragmentária, des-
contínua.... Sendo assim, a emergência da cidade moderna, tal qual um
leviatã monstruoso, gerou efeitos desorientadores e incongruentes, le-
vando consigo ritmos desconexos de fragmentação das escalas humanas
de tempo e de espaço. Dissiparam-se as bases de uma cultura de referên-
cias estáveis e contínuas. No entanto, a Grande Guerra, e
consequentemente a sua destruição em massa, tenha sido o gatilho prin-
cipal e disparo fatal que desterrou das posições de poder decisivas os
homens ligados à tradição de séculos anteriores (SEVCENKO, 1992).
Dentre os poetas do livro, talvez Franklin Nascimento tenha sido o
mais sensível às mudanças ocorridas em Fortaleza. Mudanças que coloca-
vam na ordem do dia as relações entre tradição e modernidade,
exacerbando o conflito entre o novo e o antigo. No poema de título “Em
Louvor da Princesa do Verde-mar” o autor, quase fotograficamente, des-
creve o seu amor pela cidade de Fortaleza, bem como a sua natureza, os
seus lugares, a sua gente e as suas práticas cotidianas através de figurações
poéticas. Devido ao tamanho excessivo do escrito se decidimos dividi-lo
em duas partes para melhor empreender a análise. Sem mais delongas,
vamos ao poema:
Thiago da Silva Nobre | 99

Amo-te, Fortaleza, amo-te


com teu céo côr do Sonho, de onde, á noite, escorre, lenta
a cocaina de alluminio do luar;
com teu mar de legenda, que, recuando, recuando,
mais te affaga e te beija, com saudade de ti;
com teu sol de oiro candente
que é bem
- na plenitude do beijo em que te abrasa –
o mais real e mais sincero de todos os sóes;
com tuas praias de arminho, onde ainda hoje esvoaça
o bando alvinitente das jangadas heroicas!
Quero-te, Fortaleza, quero-te
com tuas rodas nas calçadas
enluaradas;
com teus burricos de canequinhos de madeira
a cruzarem, em todas as direções,
o xadrezado ingênuo
de tuas ruas polvilhadas de poeira;
com teus <<serenos>> tulmutuosos e brejeiros;
com teus combustores de cabeça cubista, arguerentos,
chorando num choro azinhavrado
a inutilidade dos companheiros cegados pela crise;
com teu cemiterio ensombrado de tristonhos Jeremias vegetaes;
com teus templos christãmente nus, graves, e rectos como nossos avós;
com teus jardins de placidez bovina,
e canteiros floridos e bancos amarellos;
com teu calçamento aggressivo, escamoso,
onde rolam, ruidosas, grandes rodas raiadas
de carroças plebéas;
com teu mercardo zunzurento e borrado onde se vendem cajus, muricys e
mangabas;
com teu povinho, que após o café das 6 horas,
vae permutar com o visinho os palpites e os sonhos... [...]
(NASCIMENTO, Franklin. O Canto Novo da Raça, 1927, n. p.)
100 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

O letrado começou caracterizando aspectos naturais da cidade, fa-


lando do céu cor de sonho, da cocaína de alumínio do luar, do mar que
afaga e beija, do sol de ouro cadente (o mais sincero e real de todos os sóis)
e das praias de arminho com suas jangadas heroicas. Logo adiante, passou
a descrever aspectos da cidade em si, como o calçamento escamoso e em-
poeirado, os burricos levando carroças para cima a para baixo no
xadrezado das ruas, os serenos tumultuosos e brejeiros, os jardins de pla-
cidez bovina com canteiros floridos e bancos amarelos. Arremata com a
menção ao mercado, apinhado de gente, aonde se vendia cajus, muricis e
mangabas. E, também, à prática muito famosa entre os populares, a fofoca,
o mexerico, o boato e a maledicência. Esta passagem salta aos olhos mos-
trando uma capital ainda provinciana, apesar dos esforços administrativos
em torna-la um lugar moderno, aformoseado e modelar, tal qual as capi-
tais europeias.
Talvez o leitor mais apressado não tenha percebido, mas nessa pas-
sagem há duas menções à Lua, com as palavras “luar” e “enluarada”. Em
uma cidade em que a iluminação pública ainda se desenvolvia, a Lua de-
sempenhava um papel muito importante nas sociabilidades das pessoas,
bem como estimulava a sensibilidade dos poetas à época.
A iluminação pública, em Fortaleza, iniciou-se em 1848. Fora dado a
ordem para que fossem instalados quarenta e quatro lampiões, em que se
mantivessem sempre limpos e brilhantes, sendo conservados desde às 18
horas até o amanhecer do outro dia. Porém, nas noites de lua não se fazia
necessário acende-los, a não ser que o astro desaparece por completo, seja
por indisposição ou por velamento dos raios por nuvens ciumentas. Os
lampiões eram alimentados com azeite de peixe e tinham quatro faces
mais estreitas embaixo do que as de cima, possuindo fundo e tampa de
metal. Pendiam em uma corda por duas roldanas, uma das quais ficava na
Thiago da Silva Nobre | 101

extremidade da armação, permitindo serem baixadas à altura do funcio-


nário que fazia a manutenção (NOGUEIRA, 1939).
Logo após veio a iluminação a gás carbônico, em 1866, que fora a que
nossos intelectuais tiveram contato. Os combustores (“arguerentos” e de
cabeça cubista) foram implantados em ziguezague, em uma distância de
30 metros para o próximo, ficando todos no mesmo lado da rua. Tinham
dois metros e quarenta centímetros de altura e possuíam “uma chama
[que chorava um choro azinhavrado] em forma de leque, [...] a tampa
pintada de branco por dentro [...] espalhando luz pelas calçadas e ruas.
Tudo isto no alto de uma coluna de ferro fundido, elegante, esguia e cane-
lada. Eram todos numerados” (NOGUEIRA, 1939, p. 144).
A seguir a outra parte do poema:

Amo-te, Fortaleza, amo-te


com tua querida Praça irrequieta:
a medalha de oiro e esmeralda
que ostentas ao collo, presa
ao trancelim inextricavel dos mil fios electricos;
com teus bondinhos verdes e cinzentos;
com os baratões coloridos de teus omnibus bojudos;
com teus autos chispantes, senhoris, de mistura
com fordzinhos pernaltas;
com teus gazeteiros a apregoarem,
mettalicos, cantantes,
tuas folhas tagarelas como as comadres;
com teu Passeio Publico de estatuas helênicas e kermesses;
vitrine onde se expõe, semanalmente,
tuas joias tropicaes de bellesa gritante,
de bellesa gritante, gritante! Como um cartaz americano;
com teus jovens fícus-benjamin
afogados em saiotes-gradis,
ao lado dos quaes vae grelando, a pouco e pouco,
a séara dynamica das bombas de gasolina;
102 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

com teus garotos modernos, que já não sonham


com pinhões, baladeiras, cara-ou-crôa,
mas com os projecteis dos pelotaços no grammado
e a epopéa dos músculos no ring!
com as antenas de tua primeira estação radiográfica,
que são teus seios rijos, perfurando, já,
a setineta diáfana do teu corpete azul...
Quero-te, Fortaleza, quero-te
Por que – ah, bem o pressinto! –
lateja no teu seio fecundo de cabocla
o Homem-Labôr que um dia
ha de extrair das moleculas de aço da machino-factura,
– vertiginosa!
febril!
allucinante! –
a Metropole formidavel do Ouro-Pluma!
(NASCIMENTO, Franklin. O Canto Novo da Raça, 1927, n. p.)

O autor prosseguiu na descrição da cidade que viu e sentiu. A praça


irrequieta, a infinitude dos fios elétricos inextricáveis, os bondinhos verdes
e cinzentos juntamente com o fordzinhos e ônibus bojudos, levando uma
massa indefinida de pessoas desconhecidas. Os gazeteiros a gritarem no-
tícias do mundo inteiro e as quermesses, que conseguiam tirar de suas
moradas as mocinhas jovens e cativantes. A vida moderna proporcionava
um incontável número de possibilidades.
O fundamento psicológico principal que se esbatia sobre o indivíduo
nas cidades grandes é a intensificação da vida nervosa, resultante das mu-
danças rápidas e ininterruptas de impressões interiores e exteriores, bem
como o volumoso montante de estímulos dirigido aos sujeitos. A cada saída
na rua o indivíduo era bombardeado a todo instante, ao contrário e em
oposição aos habitantes do campo, aonde o ritmo seria mais lento e menos
estimulante. Fato este ocasionava o caráter intelectualista dos residentes
Thiago da Silva Nobre | 103

das metrópoles enquanto o morador do campo estava mais afeito às rela-


ções pautadas pelos sentimentos. Deste modo, o citadino tem que se
proteger contra o desenraizamento do social e as discrepâncias do meio
exterior através da razão. Em um lugar aonde se coadunavam tantas exis-
tências diversas, cada uma delas com interesses diferentes, faz-se
necessário a pontualidade na realização das promessas, pois, sem tal, o
todo se esfacelaria em um caos inextricável. A técnica da vida nas cidades
grandes não se concebia sem que as atividades e relações mutuas tenham
sido ordenadas em um esquema fixo e supra objetivo. Atitudes como pon-
tualidade, contabilidade e exatidão são interessantes para a vida moderna
(SIMMEL, 2005).
Basta lembrarmos o quanto o desenvolvimento das cidades e a dina-
mização das relações capitalista modificaram a relação do homem com o
tempo. Uma categoria muito cara à existência humana. E o que é que con-
segue mensurar e quantificar algo tão fugidio quanto o tempo? O relógio.
Visto com frequência em vários logradouros da cidade, aonde imperava a
tirania da exatidão: nas estações de trem, nos aeroportos, nos edifícios pú-
blicos, nas lojas, nos correios, nas praças e nas ruas. O relógio exprimia
uma sociedade rigidamente ditada pelo tempo mensurável. Convencio-
nou-se, assim, a dividir em vinte e quatro horas iguais, cada uma de
sessenta minutos, separando-se, por sua vez, o minuto em sessenta segun-
dos (POMIAN, 2007).
No entanto, e dentre as características mencionadas anteriormente,
o sentimento blasé seja o que mais se adeque à impessoalidade da existên-
cia na modernidade. Ou seja, a incapacidade de reagir aos estímulos novos
de uma forma adequada e enérgica. Esse caráter específico se define como
a indiferença frente à distinção das coisas, destoando do entendimento
usual de que elas não sejam percebidas, mas sim tendo como significado
da nulidade dos valores e das distinções. Esse sentimento citadino da
104 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

modernidade tem estreitas relações com a economia monetária. O di-


nheiro se impõe como o mais terrível nivelador da pluralidade, valorando
tudo em perspectivas de quantificação. Eis porque as cidades, centros de
circulação do dinheiro, são os verdadeiros lócus da cultura blasé, aonde a
autopreservação e a reserva se mostram como práticas usuais entre os in-
divíduos, que mesmo compartilhando os mesmos espaços são completos
desconhecidos uns dos outros. Sendo eles mais uma parte integrante da
massa borbulhante que é a multidão nas cidades (SIMMEL, 2005).
Franklin Nascimento, em feliz menção e arguta percepção, menciona
uma sensível mudança nas práticas das crianças à época. Segundo ele, os
garotos modernos já não davam trela para brincadeiras inocentes como
soltar peão, atirar de baladeira e cara ou coroa, mas preferiam os projeteis
dos pelotaços no gramado (o futebol) e a epopeia dos músculos no ringue
(o boxe). Tanto o futebol como o boxe bem como outras modalidades 9 de
esportes foram definidos por Sevcenko (1992) como rituais de desempe-
nho físico, que representavam a fonte de uma identidade ainda recente e
de um novo estilo de vida.
Paulo Sarasate em texto saudoso escrito à sessão Mundanismo do jor-
nal O Povo, reitera a afirmação de Franklin Nascimento sobre as mudanças
na infância: “Ah! Quantas saudades do meu tempo de garôto! Daquelles
dias venturosos em que eu soltava arraia e jogava pião pelas calçadas. [...]
Era um regalo comtemplar o papagaio nos ares, sereno, inflexivel, numa
cambiancia rutila de cores [...], furando o espaço.” (O Povo, 23 fev. 1928,
p. 6).
Os esportes modernos eram a celebração inédita do corpo, dos mús-
culos, das ações coordenadas. Corroborando a ideia, no período, de que o

9
Provas pedestres, náuticas, ciclísticas, motociclísticas, automobilísticas, provas de natação, nado coordenados, saltos
ornamentais, provas de tiro, esgrima, pólo, luta romana, ginástica sueca, ginástica com aparelhos, ginástica rítmica,
demonstrações coletivas, beisebol, etc.
Thiago da Silva Nobre | 105

corpo humano e a sociedade poderiam ser semelhantes à máquina, tais


quais dínamos geradores de energia elétrica (SEVCENKO, 1992).
É gritante aos olhos a progressiva massificação de tais práticas na
população de Fortaleza. É possível achar notícias diárias sobre esses espor-
tes, sobremaneira o futebol, nos periódicos da época. Reclamações
também apareciam nas folhas. Como foi o caso do jornal católico O Nor-
deste, que não via com bons olhos as partidas diárias de futebol praticadas
por “menores desocupados e mal educados na praça do Carmo” (O Nor-
deste, 20 de jul. 1922, p. 2), que teimavam em reincidir justamente na hora
do culto.

[...] pedimos à policia providencias para um incoviniente jogo de foot-ball que


existe na praça do Carmo, justamente ás horas da missa e da benção, aos do-
mingos. [...] Ante-hontem, á hora da missa conventual pela manhã, repetiu-
se o jogo, até parecendo com maior intensidade, por entre formidavel gritaria.
[...] Por parte de um pae de família, que reside naquella Praça, recebemos pe-
dido de que bradassemos contra o tal foot-ball, que segundo nos garantiu, é
diário, acrescentando o referido cavalheiro que, alé, da balburdia da meninada,
que incomoda grandemente os moradores d’ali, por vezes ha ditos pouco de-
centes proferidos em alto e bom som pela mesma. (O Nordeste, 11 jul. 1922, p.
1)

Ao mesmo tempo que a prática futebolística ganhava o gosto do


vulgo, instituições mais conservadoras da sociedade não tomavam com
bons olhos. Tanto é que para o pároco as partidas eram responsabilidade
da polícia, cabendo ao delegado dissipar aquela bagunça e vagabundagem
de desocupados.
Para Nicolau Sevcenko (1992), os jogos improvisados de futebol, em-
preendidos por “garotos”, “moleques”, “vadios” e “desocupados”, nas ruas,
nas praças e nos terrenos baldios, eram identificados como perturbadores
da ordem social. Eles podiam, também, ser entendidos como contravenção
106 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

da lei, caso de polícia. Por essa perspectiva ele era visto como uma pre-
sença conturbadora e sua difusão como uma ameaça crescente. O futebol
gerava o embaralhamento das posições relativas, suscitava identificações
desautorizadas, conquistava espaços outros e desafiava o tempo do traba-
lho e do lazer. Esse componente indisciplinado se voltava contra as
restrições discriminadoras, incomodando alguns grupos, mas por outro
lado atraindo multidões ensandecidas.
Continuando, o literato fez menção à primeira estação radiofônica de
Fortaleza, comparando com o seio rijos de uma moça, perfurando o cor-
pete azul do céu. A primeira estação radiotelegráfica de Fortaleza foi
instalada na Praia de Iracema, antiga Praia do Peixe, em 1922 (NIREZ,
2001). E o primeiro radio receptor foi construindo por Clóvis Menton de
Alencar. Contando apenas com algumas peças, bugigangas e uma válvula
receptora 216-A comprada no Rio de Janeiro, conseguira ouvir no dia 04
de outubro o sinal da Rádio Clube do Brasil (MENEZES, 2000).
E já finalizando a sua lírica, o poeta pressentiu a futuro ciclópico da
sua cidade. Para ele o novo homem, nascido da cabloca, da mestiça, seria
capaz de extrair as moléculas de aço maquino fatura e, assim, conceber a
metrópole formidável de ouropluma que surgiria, sendo ela vertiginosa,
febril e alucinante.
O advento da metrópole surgiu como um fenômeno surpreendente
para muitos, tanto espacialmente como temporalmente, pois representou
uma ruptura crítica com o passado recente. Afora uma pequena minoria
da população, a grande maioria das pessoas ignoravam por completo a
experiência de viver na modernidade, até o momento súbito em que foram
engolidas por ela. A cidade moderna proporcionou o contato da massa ur-
bana com uma gama variada de tecnologias usadas no transporte, na
comunicação, na produção, no consumo e no lazer. Essas circunstâncias
imprevistas modificaram as práticas cotidianas e se impuseram
Thiago da Silva Nobre | 107

rapidamente sobre o contingente humano citadino, dificultando a assimi-


lação de tais experiências.
Até agora viemos discutindo as mudanças ocorridas pelo desenvolvi-
mento do Capitalismo e da Modernidade sobre as mentes e os corações
dos indivíduos, a partir da sensibilidade de intelectuais que escreveram no
livrinho O Canto Novo da Raça. Todos eles com percepções próprias e pe-
culiares sobre a realidade em que estavam inseridos. Porém, todos eles
homens. É evidente que em uma sociedade ainda marcadamente machista
e patriarcal, as experiências históricas de gênero eram bem distintas. É por
isso que no tópico a seguir falaremos sobre uma jovem e inteligente estu-
dante que mandou uma carta a um jornal, ganhou celebridade e espaço da
redação. Nos interessa saber como ela percebeu e sentiu esse momento
específico. Seu nome era Rachel de Queiroz.

2.3 - Rita de Queluz e o seu livro invisível

Talvez com a leitura desta primeira linha escrita, juntamente com o


título um tanto quanto estranho, já tenham sido levantadas inúmeras
questões e dúvidas ao leitor. A explicação é simples. Rita de Queluz foi o
pseudônimo que Rachel de Queiroz usou na década de 1920 e nos idos de
1930 na imprensa fortalezense, quando estava no início da sua carreira
literária e jornalística. Já o título Mandacaru foi o nome dado ao manus-
crito que enfeixava vários poemas escritos pela intelectual em 1928.
Escrito antes mesmo antes do seu aclamado romance de estreia O Quinze,
mas que nunca fora publicado em vida. Ficou guardado durante toda a sua
existência terrena e só veio ao lume através da publicação do Instituto Mo-
reira Salles em 2010, sob os auspícios e organização de Elvia Bezerra.
Talvez se explique a falta de interesse e a resistência da autora em
publicar estas poesias da sua juventude, por ela nunca ter se considerado
poeta e, também, nunca ter se sentido à vontade com essa forma de
108 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

expressão. Prosadora por excelência que se transformara. “Poesia pra mim


é quase uma religião, é um gênero sagrado, inacessível[...]. Tentei, quando
comecei. Era tão ruim que eu escondia, mas eu sempre li muita poesia. Até
Hoje” (QUEIROZ, 1997, p. 32).
Também pode ter sido falta de oportunidade ou insegurança, são
conjecturas possíveis, mas difíceis de serem provadas. A verdade é que na
imprensa da época algumas notícias saíram sobre a possibilidade da pu-
blicação do livro Mandacaru. A poetisa até fez uma leitura a uma plateia
dos seus dez poemas manuscritos. “Ha poucos dias, na residencia do dis-
tincto casal Beni Carvalho, perante um pequeno, mas distinctissimo
auditorio, Rachel de Queiroz (Rita de Queluz), a jovem e brilhante poetisa
e prosadora – conterranea, leu o seu famoso livro de estréa – “Mandacarú”,
a sair brevemente” (O Ceará, 5 set. 1928, n. p.).
No ano seguinte, em 1929, foi encontrada outra menção a publicação
do livro Mandacaru no jornal O Povo. Em artigo intitulado “Poesia Mo-
derna”, Paulo Sarasate comentou sobre vários escritores que estavam
versejando e praticando a lira modernista, como Jader de Carvalho, Mario
de Andrade, Franklin Nascimento, Filgueiras Lima até chegar na poetisa
Rita de Queluz, mencionando a sua futura obra. “Rita de Queluz – affirma-
ção exhuberante da literatura feminina no Brasil, vae offerecer-nos em
breve dias um volume de versos modernos: <<Mandacaru>>. Aguar-
demo-lo. Esperemo-lo. Desejemo-lo. Para melhor appalaudir o talento e a
cultura da artista” (O Povo, 7 de jan., 1929, p. 35).
O livro nunca fora publicado em vida da autora, mas é possível ob-
servar uma apreciação feita na imprensa da época sobre o mesmo.

Como é facil induzir de seu titulo symbolico, – “Mandacarú” é um poema em


versos trabalhados ao gosto da esthetica modernista, cultuada, no Sul, por um
grupo de espiritos moços, plenos de calor e vibração. Para muita gente, falar
em “modernismo” suscita, ainda, algo de prevenção, por isso que,
Thiago da Silva Nobre | 109

confundindo, por muitos, com o chamado “primitivismo”, que tantos produtos


de insânia ha apresentado, - não se tem dado áquelle a sua legitima interpre-
tação. “Mandacarú” é um poema regional, em dez cantos, filiado a essa
corrente de arte, isto é, ao modernismo, na bôa acepção do termo. Sua fulgu-
rante criadora focalizou, nessas dez partes, os mais interessantes e
surprehedentes aspectos da vida cearense, quiçá nordestina, apanhando-os
com a objectiva maravilhosa de seu espirito, enamorado duma Belleza nova e
liberta de todos os preconceitos decadentes. Rachel de Queiroz fez, até certo
ponto, uma obra de sociologia aplicada, porque os nossos mais impressionan-
tes problemas, os nossos mais turbilhonantes anseios e aspirações – todos se
sentem dentro de sua Arte. Ahi está o melhor elogio que se lhe pode fazer.
Muitos, certo, isto é, os misoneistas do Bello, não se agradarão da sua technica,
do seu ritmo, dos seus motivos estheticos; mas esses mesmos não poderão
negar o seu poema uma obra de pensamento, de fé apostólica nos nossos des-
tinos, de dynamismo sadio e constructor. [...] Estas linhas apressadas, que,
nem de longe, devem ser tidas com um apreciação da obra encantadora e forte
de Rita de Queluz, visam, apenas, um fim unico: levar-lhe a nossa homena-
gem, o nosso applauso, a nossa authentica admiração. (O Ceará, 5 set. 1928,
n. p.)

Como se viu, o ator apresentou de uma forma de passagem obra, te-


cendo vários elogios, bem como legando a sua admiração pelo talento da
jovem escritora. Talvez a apreciação fosse diferente, se fosse em outro jor-
nal, mas O Ceará foi aonde a intelectual fez a sua inserção na imprensa, e
em que posteriormente passou a ter uma coluna própria intitulada “Jazz-
band”.
Porém, antes de se tornar Rita de Queluz a escritora nasceu Rachel
de Queiroz. Foi a primogênita de uma família de cinco filhos. Sendo sua
mãe Clotilde Franklin e sendo seu pai Daniel de Queiroz. Nasceu em 17 de
novembro de 1910, no número 86 da rua da Amélia, atual rua Senador
Pompeu, em Fortaleza. Nascera na casa de sua avó materna, Maria de Ma-
cedo, dona Miliquinha. Seu pai fora do ramo jurídico, o que levava a família
110 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

a constantes mudanças de lugares e deslocamentos. Já a sua mãe fora uma


dona de casa ávida por leitura.
Ela teve um bom alicerce educacional advindo da família, em que re-
cebeu muito estimulo à leitura e ao aprendizado de línguas estrangeiras.
Seu pai a ensinou a ler, a escrever, a montar e a nadar. Sua avó incentivava
no estudo do inglês e do francês. “Eu nasci numa casa de intelectuais, onde
todo mundo lia muito. E por isso, naturalmente, eu comecei a ler também”
(QUEIROZ, 1997, p. 22).
No entanto, estudo formal mesmo só foi com os dez anos. Rachel con-
tava sempre em entrevistas que uma vez sua avó paterna, dona Rachel,
pediu para que ela fizesse o sinal da cruz, já bem desconfiada que a neta
não estivesse sendo educada devidamente na religião cristã. A criança exe-
cutou prontamente e com maestria o sinal da cruz, mas com a mão
esquerda, para o desgosto da avó. Horrorizada a dona Rachel exigiu a ma-
trícula da neta no Colégio Imaculada Conceição. Isso foi em 1921. E já em
1925 Rachel de Queiroz concluiu o curso da escola normal.

[...]quando eu tinha 12 anos e estudava em colégio de freiras. Eu estava lendo


em francês um desses livrinhos de moça, que contava a história de uma jovem
que vê dois namorados se beijando e fica com aquele homem na cabeça; minha
mãe se aproximou e disse: “Minha filha, não fique lendo esses livros que só
falam de sexo. Venha cá que vou lhe dar coisa melhor”. E me botou na mão A
cidade e as serras, de Eça de Queiroz. Foi assim que teve início, de fato, minha
educação literária. Quando comecei a escrever em jornal, aos 16 anos de idade,
eu já tinha uma enorme familiaridade com esse universo da literatura.
(QUEIROZ, 1997, p. 22)

A inserção da jovem Rachel de Queiroz na imprensa e no círculo in-


telectual de Fortaleza, sob o pseudônimo de Rita de Queluz, foi através de
uma carta enviada à redação do jornal O Ceará, parabenizando Suzana de
Alencar que fora eleita Rainha dos Estudantes. A carta datava de 23 de
Thiago da Silva Nobre | 111

janeiro de 1927, e fora publicada pelo jornal no dia 3 de fevereiro do mês


seguinte. Eis que surge Rita de Queluz.
Eis a criativa carta, escrita pela jovem Rachel, e publicada pelo jornal
O Ceará:

Minha graciosa magestade. Quero primeiro dar-lhe os parabens calorosos pelo


triumpho que sua bella intelligencia de mulher culta alcançou sobre a dolorosa
mediocridade de nossas melindrosas. Nada mais justo que o acto das classes
estudiosas do Ceará, elegendo-a. mas, agora que vae ter sobre a fronte o dia-
dema real, pergunto-me se são de facto os parabens, que lhe devo dar. Não os
acha mal cabidos, dada actual desvalorização do sangue azul? E já pensei
quantos inconvenientes acarretam actualmente o sceptro e a corôa! Porque
isso de ser rei, exige etiqueta, séquitos, uma infinidade de trapalhadas em que
a nossa embriaguez do primeiro triumpho, nem siquer imaginou. [...] Eu, que
na minha ingenuidade de tabaroa, só compreendia rei à antiga, de carruagem,
manto e coroa, não posso conceber essa rainha ‘made ás pressas’, que anda
comigo no bonde, não conduz pajens nem batedores [...]. É por isso que avento
a ideia de lhe mudarem o título; e, em vez de ser chamada ‘Sua Magestade
Suzana I, Rainha dos Estudantes’, proclamem-na como ‘Chefe do Soviet Estu-
dantal do Ceará’. Veja que titulo pomposo! E não lhe acarretaria o absurdo e
anachronico ‘Magestade’; bastar-lhe-ia, quando muito o ‘Excellencia, ou o
mais sympathico e democrata ‘Cidadã-Chefe’. (O Ceará, 3 fev. 1927, pág. n. p.)

Como se pode ver, Rachel de Queiroz, ou, melhor dizer dizendo, Rita
de Queluz, teceu uma linha de raciocínio muito interessante acerca da ma-
nutenção do título de rainha, bem como levantou alguns argumentos para
mudar a alcunha carcomida e anacrônica por algo mais moderno, demo-
crático e condizente com a época. Muitos pensaram que tinha sido homem
que escreveu a carta. Mas logo Jáder de Carvalho, amigo da família, extir-
para a dúvida: “Isso é coisa da Rachelzinha. Filha do Daniel. É RQ, eu
conheço, o carimbo de Quixadá” (CARVALHO, 2007, p. 47).
112 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

A fina galhofa e a ousadia garantiram o primeiro emprego da moça


na redação do jornal O Ceará. O escrito da jovem caiu nas graças do dono
do periódico, Júlio de Matos Ibiapina, que conseguiu a remuneração de 100
mil-réis por mês pela colaboração na sessão “Jazz-Band”. Pouco tempo de-
pois a coluna passou a sua coordenação, mas especificamente em março
de 1928.
O jornal O Ceará surgiu em 1925 e pertenceu a Júlio de Matos Ibia-
pina. Segundo Geraldo da Silva Nobre (2006), o periódico representou
uma renovação no jornalismo cearense, pois, até então, os jornais da capi-
tal só contavam com as suas quatro páginas de noticiário resumido e
colaborações. O hebdomadário trouxe a novidade nas suas edições de oito,
doze e dezesseis páginas.
Como já se mencionara, Rachel de Queiroz escrevera os manuscritos
de poemas com o título Mandacaru, em 1928, que ela pretendeu publicar
mas que não veio a cabo, como já se sabe. Coincidentemente ou não, ele
fora escrito um ano depois o primeiro livro modernista publicado em For-
taleza, O Canto Novo da Raça. A autora, apesar de jovem, era muito
sensível às mudanças que se desenvolvia na época, bem como da ampli-
tude da renovação intelectual que se empreendia.
Um livro não publicado também possuí a sua valia, é o registro das
percepções e experiências de um indivíduo num dado tempo e espaço.
Mesmo que não tenha tido contato com o público da época e tido algum
tipo de repercussão. O fato importante é que interessa por demais saber
os temas, os assuntos e forma que a autora entendeu a sua época, organi-
zando o caos em figuras narrativas, em imagens líricas. Isso tudo interessa
ao historiador.
O trabalho iniciou com um prefácio da autora, em que ela travou um
diálogo direto com os intelectuais do sul, os de São Paulo, irmanando o
norte com os objetivos renovadores deles, apesar da distância geográfica.
Thiago da Silva Nobre | 113

A jovem intelectual ansiava a acolhida dos de lá, apresentando as figuras e


imagens mais representativas, no seu entender, da sua a região: a seca, o
calor, o sol escaldante, a rês faminta, o mandacaru. Para ela, os novos do
Sul tinham iniciado um grande movimento de brasilidade. Mesmo de tão
longe, “daqui da terra sempre iluminada pelo fogo de um sol eterno”
(QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010, p. 63), ela acompanhava os triun-
fos, as lutas e as contendas empreendidas por eles para substituírem o
velho e surrado casaco europeu por um produzido com o algodão da terra.
Para que se pudesse criar sem as amarras e impedimentos.
Era por isso que ela aplaudia esse programa, porque acreditava no
caráter messiânico do movimento e compartilhava do mesmo objetivo e
ambição. Foi nessa confusão de seitas artísticas, bem como da reforma que
há muito se impunha, que ela se maravilhava com as expressões “[...] de
arte sadia, original e espontânea” (QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010,
p. 63). Dessa forma, era por isso que elas os amava e pedia uma acolhida
fraternal e carinhosa com o que eles sempre recebiam empreitadas bem-
intencionadas. Mandacaru era um dos gaguejos com o que os do Nordeste
tentavam colaborar com a “[...] grande harmonia nacional que vocês exe-
cutam (QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010, p. 63). Por isso mesmo era
indeciso e hesitante como em todas as estreias. E prosseguiu:

Vê-se bem, pelo aferro com que me cinjo a preceitos talvez comezinhos do
novo código, a intolerância apaixonada de recém-iniciada, o entusiasmo pueril
de uns dezoitos anos ainda incompletos; e ao mesmo tempo o velho calo sim-
bolista ainda se faz sentir, os voos de Condoreirismo barato ainda se iniciam,
ainda permanecem fragmentos dessa crosta lírica, que nós os da grande terra
verde e amarela só conseguiremos extirpar depois de alguns anos e muita boa
vontade, porque ela traz em si a força atávica de várias gerações [...]. Talvez
os traços do Simbolismo romântico se denunciem logo no título que os escolhi;
mas convenhamos! Creio que a arte moderna não nos proíbe o uso de uma
imagem que reputamos feliz. E eu nada encontrei que melhor exprimisse a
114 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

alma de nossa raça do que o mandacaru bisonho, isolado, de aparência inútil


e agressiva, que resiste sozinho aos fogaréus do sol, na tortura da seca, e é a
nutrição, a salvação de pobre rês faminta e insolada, quando rodas as árvores
morrem, a clorofila foge, e a frescura da terra emigra, atraída pelo céu. Eu quis
abrir o coração de minha gente e mostra-lo a vocês. Aí o envio, com toda a
ternura carinhosa de que dispõem minhas mãos de mulher, com todo o ardor
entusiástico em que vibra a saúde brasileira de minha mocidade. (QUEIROZ,
Rachel de. Mandacaru, 2010, p. 65-67)

Apesar da pouca idade, Rachel de Queiroz tem uma percepção arguta


sobre o contexto cultural da época. Entendeu o grande movimento que se
desenrolava no Brasil, enxergando como polo irradiador a cidade de São
Paulo. Percebeu, também, que os tempos estavam mudando, eram outros.
Seguiu de perto “os triunfos, as indecisões, as lutas em que vocês se deba-
tem, no afã de despirem o Brasil da velha e surrada casaca europeia, de o
fazerem vestir uma roupa mais nova” (QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru,
2010, p. 63). A roupa que servira tão bem ao corpo brasileiro havia enco-
lhido, não o comportava mais, estava muito acochada. A vestimenta,
agora, tinha que ser feita de algodão da terra, mais adequada ao calor cons-
tante de searas tropicais.
É interessante perceber que, aparentemente, a autora não se coloca
como protagonista, mas sim como coadjuvante. Aplaudindo o programa e
acompanhando o messianismo deles, os modernistas de São Paulo. Porém
comunga da mesma ambição: desenvolver uma literatura nacional. Não
imaginava ela que o que se desenvolvia em Fortaleza, apesar das seme-
lhanças, era algo totalmente diverso. O modernismo cearense foi por
caminhos outros, muitas vezes contraditórios, mas não menos rico em sig-
nificados e propostas. Orientando-se em um tumultuoso começo, em que
houve uma profusão e uma confusão de seitas, a intelectual compreendeu
a necessidade de uma reforma dos parâmetros culturais do país. As
Thiago da Silva Nobre | 115

manifestações literárias deveriam ser sadias, originais e espontâneas, em-


belezando e individualizando as obras.
Logo em seguida, a autora se colocou à disposição da avaliação e da
acolhida dos cavalheiros da Paulicéia desvairada. Segunda ela, o livro Man-
dacaru foi a sua contribuição balbuciante para a harmonia nacional que se
desenrolava e se produzia. Sabemos muito bem, no entanto, que tal har-
monia fora fictícia, muitas foram as propostas, os paradigmas, as
diretrizes e o caminhos. Basta lembrar da polêmica entre os do Pau-Brasil
e os da Anta. Sem falar nas várias possibilidades impensadas e desenvol-
vidas em outros estados, como foi o caso do Ceará também.
Prosseguindo com sua avaliação, a poetisa fez a sua mea-culpa admi-
tindo alguns vícios literários atávicos presentes no seu trabalho de
iniciante. “[...] o velho calo simbolista ainda se faz sentir, os voos de Con-
doreirismo barato ainda se iniciam, ainda permanecem fragmentos dessa
crosta lírica [...]” (QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010, p. 65). Apenas
após alguns anos e com grande esforço de boa vontade extirpariam tais
apegos de linguagem consolidado por gerações.
Afirmado isso, Rachel de Queiroz encaminhou-se para o fim da sua
apresentação. Apesar de admitir o resquício de traço simbolista romântico
na imagem escolhida para o título, ela reitera que não encontrara nada
melhor que expressasse a sua gente, se não o mandacaru “bisonho, iso-
lado, de aparência inútil e agressiva, que resiste sozinho aos fogaréus do
sol, na tortura da seca, e é a nutrição, a salvação de pobre rês faminta e
insolada, quando rodas as árvores morrem, a clorofila foge, e a frescura da
terra emigra, atraída pelo céu” (QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010, p.
65).
A jovem Rachel, ao contrário dos seus pares de O Canto Novo da Raça,
preferiu centrar o seu texto em temas tradicionais, como a seca, o êxodo,
a carestia, o banditismo, religiosidade sertaneja, os açudes, os tipos
116 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

populares, entre outros. Não que os poetas de O Canto Novo da Raça não
colocassem em questão tais temas, mas os botavam em relação direta com
elementos da modernidade e com o desenvolvimento da cidade, mos-
trando as contradições.
O poema que iniciou o livro é intitulado Nheengarêçaua. Em nheen-
gatu significa cantoria. No desenrolar da primeira parte do texto a autora
travou um diálogo possível entre as diferenças do homem do Sul e do ho-
mem do Norte. Primeiramente, acentuando as peculiaridades naturais das
duas regiões específicas. Vejamos:

Homem do Sul, você que conhece a geada e o frio,


você que já viu primavera,
inverno, outono como na Europa,
você não sabe o que é o sol!
Você não imagina o que é o céu sem nuvens por meses seguidos;
o que é o sol bater de chapa na terra fulva
trezentos dias encarrilhados!...
Ao meio-dia
nos tempos de fogo em que o sol é rei,
o ar é tão fino e tão frágil,
que treme...
o sol fura-o de luz, igualzinho à rendeira
pinicando de espinhos a trama das bilros...
Você nunca veio até cá...
“ - Ceará!...
Retirante, sol quente, miséria...”
(QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010, p. 69)

De início, a escritora impõe uma dicotomia basilar entre os dois lu-


gares, a saber: frio/quente. Divisão esta que poderia se desenvolver em
outras, como, por exemplo, chuva/seca, clima temperado/clima tropical,
abundância/carestia, progresso/atraso, pobreza/riqueza e por aí vai.
Thiago da Silva Nobre | 117

Desse modo, os senhores do sul são conhecedores do frio e da geada, bem


como das quatro estações (primavera, verão, outono, inverno) do ano cer-
tinhas, tal qual na Europa. Desta maneira, os sulistas fazem ideia de como
é a vida no outro extremo do continente. Não podem conceber “o céu sem
nuvens por meses seguidos; [...] o sol bater de chapa na terra fulva tre-
zentos dias encarrilhados! (QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010, p. 69).
A primeira grande diferença que se impõe entre os territórios é o cli-
mático. Ela vai criando no poema essa ambiência árida e turbulenta, no
qual o astro solar reina imponente o ano inteiro. Tanto é que ela usa o
substantivo “sol” cinco vezes, impondo essa realidade de calor e quentura.
Ao meio-dia o ar se torna tão fino e o sol tão implacável, que chega a fazê-
lo tremer. E arremata, ao fim, “Ceará! Retirante, sol quente, miséria...”
(QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010, p. 69). A crueldade e a inclemên-
cia do clima gera a pobreza e o êxodo.

O sol do Nordeste foi feito somente


pra os olhos com medo dos filhos da terra...
o filho da terra, pequeno e feioso,
que é como um mandacaru:
quando a tragédia seca escorraça a vida e absorve as seivas,
só ele, isolado
no meio da caatinga que se apinha
e estende para o céu a lamúria em cinza dos galhos secos,
luta, verdeja, encontra seiva e vive
macambúzio e eriçado...
E, entanto, essa gente que mora tão longe
é a mesma que mora nas terras do Norte...
Se o sangue do Sul caldeou-se com o branco imigrante
numa fecunda mistura,
ainda existe em suas veias mestiças
esta seiva que o Norte tem pura...
E, se somos irmãos,
118 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

por que um laço mais forte de amor não nos prende?


Irmão longínquo, senhor das fábricas,
dos cafeeiros, das minas, do ouro,
eu quero que o meu poema
faça as vezes de um vidro esfumado
através do qual seu olhar deslumbrado
possa ver esta terra candente do Norte...
Irmão longínquo, detentor da riqueza da Pátria,
eu quero que as folhas abertas de meu poema
sejam mãos estendidas
para um abraço de fraternidade!
(QUEIROZ, Rachel de. Mandacaru, 2010, p. 71-73)

Para a autora, o filho da terra seria pequeno e feioso, mas não menor
perseverante diante da agrura, tal qual um mandacaru. Quando a seca vi-
nha expulsando a vida dos rincões e esturricando a seiva vegetal, só eles,
sertanejo e mandacaru, isolados no meio da caatinga, conseguem sobrevi-
ver. O Homem estendendo suas mãos calejadas ao céu, rogando piedade e
clemência, enquanto O vegetal abre seus braços espinhosos ao sol incle-
mente, realizando a fotossíntese. Ambos parceiros de infortúnio, buscam
o apego à vida, lutando macambúzios e eriçados até o fim.
No entanto, tantos os habitantes do Norte como os do Sul, são a
mesma gente, são brasileiros. Mesmo que seu sangue tenha sido invadido
pelo europeu, a mestiçagem de várias gerações continua. E o Norte ainda
o teria puro. São todos irmãos, apesar das diferenças geográficas, técnicas,
culturais e de desenvolvimento. Porém, e apesar de falar da equidade das
populações diametralmente opostas, a escritora reconhece a liderança e o
poder econômico do Sul, especificamente São Paulo. O irmão longínquo,
senhor das fábricas, dos cafeeiros e do ouro. Ela ansiou que, mesmo com
todas as diferenças e peculiaridades do nortista, fosse possível estabelecer
relações fraternas e de cooperação, em um abraço.
Thiago da Silva Nobre | 119

Segundo Durval Muniz (2006), o Nordeste é filho legítimo da deca-


dência da antiga geografia do país, segmentada entre “Norte” e “Sul”.
Gestada em um momento em se rompiam que os padrões de sociabilidade
tradicional. As cidades muito se transformavam com as suas diretrizes ur-
banísticas com os olhos voltados para modelos europeus. É na década de
1920 que um novo tipo de regionalismo surge. Não mais aquele difuso e
provinciano do século XIX e início do século XX, mas sim um que reflete
as diferentes formas de se perceber e representar o espaço nas diversas
áreas do país. Devido às transformações no campo econômico e técnico,
como, por exemplo, a industrialização, a urbanização, a imigração em
massa, a região Centro-Sul, e notadamente São Paulo, vai se destacando
das outras áreas do território. Ademais, pode-se juntar, também, as novas
formas de sensibilidade artística e cultural trazidas pelo modernismo, os
novos códigos de sociabilidade que aí se desenvolveram, bem como as no-
vas concepções acerca da sociedade, da modernização e da modernidade.
Neste tópico analisamos a inserção intelectual da escritora Rachel de
Queiroz e o seu livro publicado postumamente, bem como os temas, as
demandas, as questões e a sua compreensão sobre o movimento de reno-
vação nacional da cultura. No capítulo a seguir trataremos, sobremaneira,
da produção letrada da imprensa. Quais os jornais que estes intelectuais
transitavam? Quais foram as polêmicas? Quais as estratégias? A plata-
forma da palavra imprensa foi o espaço principal para as contendas
literárias e intelectuais do período. É o que tentaremos mostraremos em
seguida.
Capítulo 03

Imprensa como trincheira

3.1 - Falando do Povo

Depois do amadurecimento ocasionado pela experiência com a re-


vista Ceará Ilustrado, Demócrito Rocha quis alçar voos maiores no
jornalismo cearense. Então em 07 de janeiro de 1928 saiu o primeiro nú-
mero do jornal O Povo, importante plataforma de divulgação do
modernismo na cidade de Fortaleza. Obviamente que o vespertino era
mais do que um simples meio de divulgação da nova estética, como se verá
adiante.
No primeiro editorial Demócrito explica o motivo do surgimento do
jornal, o programa e as dificuldades de tal empresa no período. Com o
título “Falando ao Povo”, ele faz um inteligente jogo de palavras com o
título do texto e com os possíveis leitores. Em sua opinião e contradizendo
a convicção de muitos, o surgimento de um novo jornal nunca é demais. A
própria diversidade e complexidade da existência moderna, veloz, agitada,
apressada e vertiginosa, prontamente justificaria a preferência dos perió-
dicos perante os livros. A visão não se acostuma mais ao estudo paciente,
metódico e lento dos gabinetes de estudo, mas limita-se a passar despreo-
cupadamente pelos títulos e parar o olhar só aonde lhe interessa o tema,
seguindo as suas necessidades mentais e matérias do momento. Evidente-
mente o livro está restrito às elites enquanto o jornal é do povo. No jornal
a maioria da população encontra o seu pão espiritual diário, revelando o
mundo e transpondo as lonjuras. Lanterna mágica do progresso e força
condutora das massas insatisfeitas e espoliadas de seus direitos pela cáfila
de magnatas. O jornal é o sangue novo e forte a nutrir as células
Thiago da Silva Nobre | 121

adormecidas e os neurônios amortecidos de uma população que jaz alge-


mada em cativeiro. O povo necessita de voz que falem de seus anseios e eis
o porquê da criação do jornal. A bandeira erguida flamula pelos ideais de
justiça e liberdade, não se deixando enganar pela ofuscação da vitória, pois
a alvorada redentora ainda está muito longe. Apesar de grão de areia O
Povo é

[...] uma bateria descoberta para os embates francos e leaes, na arena da im-
prensa. E o futuro dirá da nossa fidelidade ao programma aqui traçado. O
caminho, que temos que percorrer, embora seja bordado de precipicios e se-
meado de espinhos, não será a picada sinuosa dos hypocritas, mas a estrada
real por onde marcham, alheiados de si mesmos, aquelles que se acostumaram
a fitas a claridade dos infinitos desnublados. Alenta-nos a confiança de chegar-
mos, incólumes, ao término da jornada. Mas se porventura, rolarmos no
abysmo, os que ficarem empunhando a pena poderão dizer como o poeta: Um
cadáver de mais, um sonhador de menos... (O Povo, 7 jan. 1928, p. 1)

Demócrito em seu arremate final estava falando do contexto adverso


que era criar e manter um periódico na época, assim como eles surgiam
eles desapareciam, muitos nem chegando a completar um ano de vida. Ele
tinha isso muito óbvio em sua mente, pois publicar semanalmente era to-
talmente diferente de publicar diariamente. O imprenso também mostrou
uma predisposição à questão social, procurando ser um porta-voz dos des-
validos e desamparados pelos poderes públicos.
E aqui cabe uma passagem panorâmica sobre o surgimento e desen-
volvimento da imprensa para que o leitor seja contextualizado
propriamente. A história da imprensa se confunde com o próprio desen-
volvimento da sociedade capitalista. O controle e manipulação dos meios
difusores de informações e ideias que se se verifica ao longo da trajetória
da imprensa, representa a contenda entre organizações e indivíduos com
interesses e aspirações divergentes, seja no âmbito político, social, cultural
122 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

e econômico. A conexão entre a imprensa e o capitalismo se dá de forma


dialética. Essa ligação dialética se mostra pela influência que a imprensa
exerce sobre o comportamento das pessoas e das multidões. A tendência
geral se dá rumo à unidade e à uniformidade. Apesar das barreiras nacio-
nais, linguísticas e culturais (não de todo intransponíveis), bem como
tomando em conta o modo como a imprensa é operada e gerida pelas re-
gras gerais da ordem capitalista no que diz respeito à produção e à
circulação, tudo isso levando à homogeneidade pela universalização dos
comportamentos humanos. Buscando-se ampliação da divulgação, as ino-
vações técnicas acompanharam e influenciaram em direção à
uniformidade.
Há uma relação paralela entre o esforço técnico de produção na im-
prensa e o progresso tecnológico dos meios de comunicação e de
transporte, afetando diretamente no volume e no espaço geográfico que a
notícia e a informação podem alcançar. Há também um estreito vínculo
entre a imprensa e o capitalismo, que sem ostra na evolução da liberdade
de informar e de opinar. O princípio de liberdade de imprensa desenvol-
vido na Inglaterra, encontrou as suas bases tanto na Revolução Francesa
quanto na Revolução Americana. Nos países com larga tradição feudal a
liberdade de imprensa sofreu ataques e retaliações. Já no caso dos Estados
Unidos da América ela foi implantada e assegurada pela primeira emenda
à constituição, afirmando que o congresso não poderia censurar o livre
exercício das religiões, a liberdade de expressão, a imprensa e as reuniões
pacíficas de grupos de pessoas. Sendo assim, o stamp tax 1 só desapareceu
em 1855 na Inglaterra e, na França, a liberdade de imprensa permaneceu

1
O imposto do selo foi implantado na Inglaterra, em 1694, consistindo na cobrança sobre os documentos. O que
incluía a maioria dos documentos legais, como por exemplo, cheques, recibos, comissões militares, licenças de
casamento e transações de terras. Um selo físico devia ser anexado ao documento para indicar que o imposto tinha
sido devidamente pago.
Thiago da Silva Nobre | 123

relativa até 1881. Porém nos EUA ela foi consolidada amplamente com a
independência.
Várias inovações técnicas como o telégrafo, o cabo submarino, o tele-
fone e o rádio, dinamizaram o fluxo de informações e a velocidade de
impressão. Tão logo a grande imprensa percebeu a possibilidade de influ-
enciar e orientar a opinião através do fluxo de notícias. As associações
especializadas na coleta, preparação e distribuição dinamizaram o traba-
lho dos jornais quando o custo do telegrafo se tornou inviável em relação
ao baixo preço unitário do impresso. A partir da segunda metade do século
XIX a concorrência estava nas mãos das agências de notícias, que estavam
associadas aos monopólios industriais. A relação entre informação e opi-
nião não foi a única, mas logo surgiu a vinculação entre a opinião e a
publicidade, consistindo na forma organizada que a propaganda assumiu.
No entanto, o fato é que o anúncio surgiu de modo secundário, recebendo
grande resistência dos profissionais da imprensa, ao seu avanço gráfico,
que receavam ameaçar os valores éticos e estéticos da linha editorial, da
paginação e da arte gráfica. A passagem do século XIX para o XX, no Brasil,
marcou o aparecimento de numerosos jornais tanto nas capitais como no
interior. Exemplo disso foi a torrente de pasquins (ridículos, caricatos,
obscenos, despudorados e imorais) surgidos no Ceará: A Coisa (1902), o
Ceará Nu (1901) e o Nuzinho (1902). A imprensa prosseguiu o seu desen-
volvimento técnico, pois nas capitais ela ingressou na sua fase industrial,
tornou-se empresa com estrutura comercial. A informação aceitou de bom
grado a sua vocação, tornou-se mercadoria (SODRÉ, 1996).
As bases do jornalismo moderno foram criadas na Inglaterra. John
Walter introduziu nas oficinas do Times, fundando em 1814, a imprensa a
vapor, além de enviar os primeiros correspondentes estrangeiros e de
guerra para o continente, publicando os primeiros artigos de fundo. No
entanto, preservou o seu caráter aristocrático, expressão fidedigna da elite
124 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

intelectual inglesa. Por isso o grande público preferiu o Daily Telegraph,


que conquistava os seus leitores pelo discurso inflamado em favor do libe-
ralismo, fortemente em voga no período. Mas foi da experiência francesa
a revolucionária invenção do romance publicado em folhetim. Objetivando
a garantia do sucesso e da rentabilidade para os anunciantes do seu jornal,
Émile de Girardin 2, inovou publicando no seu folhetim um romance seri-
ado, o que criou um público leitor permanente e estável. O êxito foi tão
estupendo que outros jornais mais antigos e de larga tradição conserva-
dora (Journal des Débats e Mystéres de Paris) tiveram que seguir o
exemplo. Foi aí que se consolidou uma das grandes alianças entre jorna-
lismo e literatura, em que as bordas e as fronteiras sempre foram tênues
e flexíveis. De certa maneira, a literatura começou a viver do público dos
jornais, no século XIX, dando aso a hegemonia da prosa sobre os outros
gêneros textuais. Pela primeira vez na trajetória da literatura ocidental, a
prosa se tornou mais importante do que o verso. O romance (uma das
formas da literatura em prosa) quase fagocitou completamente todos os
outros gêneros, tornando-se a expressão máxima e soberana da realidade
burguesa. Honoré Balzac foi a personagem mais importante, na experiên-
cia francesa, no processo de transição entre o romantismo e o realismo-
naturalismo, o que representou sobremaneira o advento e a ascensão da
burguesia (CARPEAUX, 2001).
A Primeira República (1889 – 1930) diversificou a imprensa em uma
realidade de crescimento urbano e desenvolvimento da técnica. Nessa
época de transformações pujantes, a imprensa sofreu várias inovações tec-
nológicas que permitiram o uso da ilustração diversificada (charges,
caricatura, fotografia), bem como o aumento das tiragens, a melhoria da

2
Foi um político e jornalista francês, nascido em Paris. Ele foi o criador do jornal "La Presse", e inovou colocando
romances e propagandas nos seus periódicos. Émile também era muito conhecido por ser um grande defensor da
liberdade de imprensa e dos direitos dos cidadãos.
Thiago da Silva Nobre | 125

qualidade da impressão e a diminuição do seu valor, dinamizando a comu-


nicação de massa no Brasil. Os setores essenciais à indústria impressa
conheceram avanços, como a produção interna de papel, enquanto o mer-
cado consumidor se desenvolvia também. A imprensa estava se tornando
uma grande empresa, estimulada pela conjuntura que encontrou no peri-
odismo o lugar ideal para as novas relações de mercado. A imprensa se
tornou um segmento polivalente, devido ao desenvolvimento da lavoura,
comércio, indústria e finanças, já que esses setores utilizavam a propa-
ganda e a publicidade em jornais e revistas. Os veículos de comunicação
de massa aliados ao desenvolvimento dos transportes, ampliaram a comu-
nicação e potencializaram as possibilidades de consumo. O tripé de
sustentação da empresa editorial se balizou na evolução técnica do im-
presso, na difusão da alfabetização e na fabricação nacional de papel. Não
esquecendo de mencionar o telefone e o telegrafo, que se constituíram em
elementos dinamizadores da vinculação de informações para as redações
(EULETÉRIO, 2008).
O natalício tardio da imprensa no Brasil não envolveu necessaria-
mente em uma atividade escassa e minguada dos intelectuais, pois ao
longo do século XIX vários foram as publicações, tendo uma diversidade
de duração, de periodicidade e de temas. Desde o início que a imprensa
brasileira lançou as suas raízes no lodaçal da política, constituindo-se a
partir de grupos políticos que utilizavam a imprensa para propagar as suas
ideias e projetos. Esse movimento teve grande reverberação nas campa-
nhas de abolição da escravidão e em favor da República, resultando na
proliferação de inúmeras folhas de periodicidade vacilante. Os múltiplos
espectros políticos não se demonstravam na aparência material dos jor-
nais. Até que o desenvolvimento técnico permitisse a diferenciação, os
impressos, via de regra, permaneceram semelhantes com quatro folhas e
duas colunas. Tomando em consideração a precariedade e deficiência da
126 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

indústria gráfica brasileira, muitos editores mais exigentes se viram obri-


gados a imprimir fora do país, como foi o caso da revista Klaxon (1904).
Esse entrave material se modificou no início do século XX, possibilitando
o aumento do número das páginas, a elaboração de capas refinadas e a
ampliação da tiragem. Multiplicaram os títulos de jornais expostos nos lo-
cais de grandes deslocamentos humanos (estações ferroviárias,
charutarias, quiosques, papelarias, livrarias e café). Os jornais diários atin-
giram porte considerável devido à introdução das rotativas, ao
desenvolvimento da publicidade, bem como o aumento da rede de distri-
buição devido ao avultamento da malha ferroviária e a difusão de
assinaturas vendidas por agentes espalhados pelo país. A expansão do se-
tor desembocou na diferenciação entre jornais e revistas. O jornal,
geralmente diário e vespertino, divulgaria as notícias ordinárias e corri-
queiras, um instantâneo de calor do momento, comentando desde os fatos
políticos até o atropelamento de um transeunte em uma avenida movi-
mentada. A revista, normalmente semanal, trataria de um espectro
enorme de temas, tendo em vista os diferentes segmentos sociais. Ambos,
apesar de suas especificidades, servindo como meio de divulgação de va-
lores, ideias, representações e discursos (COHEN, 2008).
No decênio de 1920 a 1930, o periodismo cearense passou por efetivas
mudanças e progressos notáveis. Cabe salientar de que essas modificações
foram mais no sentido qualitativo do que no quantitativo, pois as publica-
ções do Estado na época foram de cento e noventa quatro enquanto na
década anterior (1910 a 1919) foram de mais trezentos impressos. O início
da década de 1920 marcou uma grande renovação no periodismo vesper-
tino, porque apenas o Correio do Ceará, dos que circulavam antes de 1920,
continuou a existir. Vale citar também outros periódicos da época como o
Diário do Ceará (1920), A Tribuna (1921), O Nordeste (1922), o Jornal do
Comercio (1924), O Ceará (1924), a Gazeta de Notícias (1927), O Povo
Thiago da Silva Nobre | 127

(1928), a Gazeta do Ceará (1921), O Ceará Jornal (1921), A Noite (1924), A


Esquerda (1928), A Reação (1928), O Debate (1929), A Tarde (1929), a Re-
ação (1929), a Voz Proletária (1929), etc. (NOBRE, 2006).
Já no sétimo número, d’ O Povo, que a seção “Modernos e Passadis-
tas” foi criada. Basicamente, para divulgar seja os intelectuais que
flertavam ou os que já tinham aderido à nova estética, seja os praticantes
de estéticas tradicionais. Mas não só ela que ficou na linha de frente da
divulgação do modernismo, a folha contatava, quase todos os dias, com a
vinculação de notícias, de transcrições de cartas, de artigos, de poemas, de
depoimentos em prol da difusão do modernismo. Exemplo disso foram as
seções “Mudanismo”, “De Antropofagia”, “Literatura Antropofagista” e a
enquete literária entrevistando os intelectuais da cidade sobre o Moder-
nismo.
Vários artigos de feição didática, por assim dizer, empreenderam esse
balanço sobre literatura da época, levando em conta a tradição e as novas
experiências feitas na linguagem a partir do final do século XIX, tanto na
forma como no conteúdo. O primeiro artigo, intitulado “O periodo esthe-
tico da literatura contemporanea”, saiu n’O Povo nº 22 de 1928, possuindo
autoria de Gastão Justa. O segundo, intitulado “O modernismo no Ceará”,
saiu logo em seguida no nº 26, tendo como autor Paulo Sarasate. Então
comecemos pelo começo, como aconselha vivamente o senso comum.
Gastão Justa faz um retorno à antiguidade para iniciar a sua reflexão
sobre a arte, passando pelos períodos históricos e movimentos literários
em uma síntese insólita e criativa. Para ele as expressões artísticas seriam
inerentes à emoção humana. Levando em conta as diferenças etnológicas,
sociológicas e psicológicas que influenciaram nas representações simbóli-
cas acerca da concepção do sublime e do grotesco, bem como o fator
mesológico, como seus coeficientes siderais, físicos e químicos, exerceriam
grande influxo no processo evolutivo das civilizações pretéritas. Sem
128 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

esquecer, evidentemente, a religião como grande catalisador e influencia-


dor. Sendo por isso perceptível a hegemonia dos temas religiosos e
sagrados na arte das civilizações antigas. Os povos da antiguidade clássica
ainda teriam as funções mentais embrionárias, deixando-se embevecer
pelo maravilhoso espetáculo da natureza, o que povoou o seu cotidiano de
figuras transcendentais e formas divinas. Dessas teogonias romperam a
fixação poligonais dos egípcios, o esplendor colossal dos babilônios e dos
assírios e a genialidade artística dos hindus. Porém, a expressão da arte
grega e o helenismo humanizaram a expressão estética antiga através do
antropomorfismo da cultura e religião helena.
Depois da queda de Bizâncio seguiu-se a Idade Média, período de cin-
zas bolorentas, repleto dede misticismo, de cortante decepções e abandono
histérico. E dele adveio a Renascença, trazendo a retomada dos clássicos
antigos. Mas, segundo o autor, todo ciclo artístico, científico e religioso se
modificaria, consequentemente a Renascença elanguescida e pálida foi
substituída pela revolução e pela espirito enciclopédico. O romantismo fe-
riu gravemente os grandes autores clássicos, escritores como Goethe,
Schiller, Hoffmann, Verner, Wieland foram o estopim da investida literária
na Alemanha. O ocidente europeu seguiu o exemplo alemão como Byron,
Shelley, Chatterton, Scott, Garnet, Herculano, Leopard, Chateubriand, La-
martine, Hugo, Dumas, Musset, George Sand e outros. No entanto, a
fantasia excessivamente colorida acabou cansando algumas sensibilidades
arredias e veio ao palco o romance realista com Didetot, Balzac, Flaubert,
Zola, Daudet, Eça de Queiroz, Dickens, Elliot, Tolstói, Dostoievski e Poe. A
arquitetura também sofreu transformações renovadoras, pois tudo nesta
vida seria morte e ressureição.
Chegando ao período renovador, o escritor prossegue a sua reflexão,
afirmando que não seria possível após meio século de espantosos avanços
nas ciências, nas experiências políticas e sociais, na ética e nas religiões, a
Thiago da Silva Nobre | 129

sensibilidade pudesse suportar teogonias arcaizantes colocando homens e


mulheres em um fatalismo fúnebre. A época do telefone, dos aeroplanos e
do determinismo saudável da escola positivista teria expandido ao alcance
da vista do homem moderno. O socialismo, a ciência criminal, a crítica
literária científica, bem como os canhões de guerra despejando destruição
e morte a vinte quilômetros de distância, apagando as silhuetas imponen-
tes e impávidas de Aníbal, de Alexandre, de César e de Napoleão, todos eles
amortalhados, ao lado das histórias lendárias árabes. Sendo a literatura a
expressão da sociedade, não haveria mais espaço para Quixotes e D’Ar-
tangnans, nem para tragédias de Sófocles e Ésquilo. A vida no momento
atual seria uma brochura aberta a todos os olhos. Ninguém mais teria pa-
ciência para esperar longamente, pois a existência seria uma ininterrupta
pulsação. O lirismo piegas e exagerado entrou em franco declínio. Ainda
haveria sentido em cantar loas, às castelãs, em noite enluaradas de Ve-
neza? Ainda existiria o amor é verdade, pois ele seria a razão do viver.
Porém, a definição sobre esse sentimento se humanizou, tornando-se não
mais uma finalidade mas sim o motivo estético da alegria. A dinamização
da sociedade contemporânea abalou os alicerces da tradição. Os costumes
modernos, a mecânica e a química aplicadas a indústria, a medicina, a mi-
crobiologia e os estudos históricos em pleno desenvolvimento colocaram
o gênero humano como imperativo absoluto, reformulando tudo aquilo
que não fizesse mais sentido à razão. A experiência da grande guerra
transformou repentinamente a ordem geral das sociedades. E, também, a
promiscuidade cultural das civilizações (europeia, americana, asiática e
africana) modelou um certo tipo de psicologia específica e complexa. Foi
daí, reitera o autor, que irradiou o movimento reformador da literatura.
Com a guerra e a intensidade social do momento impôs-se sobre a menta-
lidade humana o ditame da síntese. O poeta, o prosador, o pintor, o
músico, o escultor e o arquiteto não necessitariam mais de aparatos
130 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

excessivos para expressar a emoção, a subjetividade e a intimidade, o prin-


cipal objetivo agora seria atingir o conjunto e não mais o particular.
Após Margueritte e Benjamin Constallat teria sido o Brasil um dos
grandes expoentes do estilo moderno. Ronald Carvalho, Menotti Del Pi-
chia, Manoel Bandeira, Cassiano Ricardo, Mario de Andrade estavam
experimentando, a partir do sul, novos matizes para a literatura. No Ceará
o modernismo também empolgou a mentalidade moça. Para ele, a van-
guarda teria sido formada inicialmente por Franklin Nascimento, Jáder de
Carvalho e Silveira Filho. E analisado os versos de cada um, Gastão Justa
percebeu profunda emotividade. Sendo Franklin Nascimento um entusi-
asta da civilização moderna e antevendo o futuro iluminado do seu povo.
Em contrapartida, Jáder de Carvalho acreditou nas possibilidades latentes
da água, estaria nos lagos artificiais a redenção da terra. Já Silveira Filho
debulhou um helenismo tropical repleto de renúncia e saudade. Por fim,
Júlio Maciel (Lúcio Várzea) e Luis de Castro, segundo ele poetas passadis-
tas, burilavam versos elegantes em ritmo simultâneo. O movimento
literário contemporâneo não era mais uma dúvida, era uma afirmação,
sendo a tendência geral dos escritores modernos um profundo anseio de
renovação dos temas, dos processos, dos ritmos e das formas. A síntese
seria a formosura do estilo, bem como seria, também, a artesania das ima-
gens poéticas a expressão simbólica da arte.
Poucos números depois foi publicado, no nº 26, o artigo de Paulo Sa-
rasate, intitulado “O Modernismo no Ceará”. O jornalista identificou no
aparecimento do livro O Canto Novo da Raça, em 1927, o aparecimento de
“um sangue mais vivo [que] se infiltrou em as veias literarias da terra ce-
arense, sacudindo-as do torpor em que amodorravam” (O Povo, 7 fev.
1928, p. 2). Se não conseguiu mais, prosseguiu o intelectual, o livreto dos
jovens poetas, teve o benefício de acordar as mentalidades adormecidas,
encorajando-as a vislumbrar o horizonte de um novo movimento literário.
Thiago da Silva Nobre | 131

Mesmo que muitos negassem, há tempos Fortaleza vivia em um ambiente


esclerosado e imobilizado nas suas letras. Agora seria diferente. Sem apro-
fundar as análises, Paulo Sarasate afirmou que uma palpitação vibrante e
sincera surpreendeu os três mil intelectuais de Fortaleza. O Canto Novo da
Raça foi um grito de alerta, o que gerou, utilizando uma expressão do
vulgo, uma pedrada em casa de marimbondo. Daí saiu a agitação e o alvo-
roço, produzindo várias opiniões deturpadas e julgamentos
desencontrados em torno do que se denominou modernismo. E eis que
aqui o autor se colocou como um apaixonado admirador da escola poética
de Ronald de Carvalho, ao contrário dos inimigos agourentos e irritados
que insistem em maldize-la, que tomaram proveito do momento contem-
porâneo tumultuado. Para ele, os que arremessaram pedras e porcarias à
nova escola, de maneira geral, canalizaram os seus vitupérios e as suas
críticas no fato da poesia moderna desdenhar tanto a métrica como a rima,
sem falar nos temas exóticos também. Mas porque a métrica e a rima de-
veriam ser as bases fundamentais da poesia? Indagou-se Sarasate. Antes
de mais nada, a poesia seria essencialmente sentimento, o que faria que
outros elementos como a forma e o ritmo se tornassem secundários. Exis-
tiria um elemento mais profundo, oculto, misterioso, inexplicável inerente
à obra de arte, estimulando o sonho e o onírico, sugestionando lugares
fantásticos e criando mundos. Em que se pese a preferência em favor de
escolas tradicionais ou do modernismo, não importava muito, a questão
precípua estaria na artesania do verso, na beleza das expressões e na ha-
bilidade de exprimir sensações, sentimentos e sensibilidades. Enfim, tudo
o que pudesse engrandecer a expressão do poético. Trechos belíssimos sa-
íram de Olavo Bilac e de Raimundo Correia, bem como a mesma pujança
poética com Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida e Menotti del Pi-
chia. Apesar de aproveitadores sem talento tomarem vantagem do
modernismo, motivo suficiente não seria para aniquilar todo o progresso
132 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

do movimento. Esses poetas postiços e fingidos, mereceriam somente o


desprezo. “E’ a poesia que, no phrasear de Sylvio Romero, é uma festa do
espirito, uma exuberancia dalma, um transbordamento de certas nature-
zas ricamente dotadas. E’ á poesia-sentimento, á poesia-vibração, á poesia-
arte” (O Povo, 7 fev. 1928, p. 2).
Como se percebeu, Paulo Sarasate colocou a questão central da poesia
na expressão do sentimento, não importando o ritmo, a forma ou a mé-
trica, contanto que a essência sentimental fosse exprimida. E diplomático,
reconheceu o valor de poetas ditos passadistas à época, um Olavo Bilac e
um Raimundo Correa, bem como enalteceu outros mais recentes como
Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida e Menotti del Pichia. Objetivo
principal da poesia seria invocar quimeras, coisas fantásticas e searas in-
sólitas, não importando como.
Alguns meses depois, em 31 de dezembro de 1928, veio ao lume o
artigo “O Modernismo Brasileiro”, de Mário Sobreira de Andrade, conhe-
cido entre os seus como Mário de Andrade do Norte. Segundo ele, a arte
seria a vida universal, desconhecendo fronteiras. Quando essas ideias lite-
rárias foram adotadas, seus entusiastas e divulgadores não esqueceram a
sua característica essência, que atravessou todas as fases artísticas: a uni-
versalidade. Futurismo e Modernismo, para ele, não guardariam tantas
diferenças assim, pois a vitória da novidade sobre a mesmice envelhecida
já havia sido alcançada. O Brasil inteiro aceitou a nova escola, apesar de
aqui e acolá sonetos ainda serem produzidos e, o pior, declamados, já sem
o vigor potente de outros tempos. Decadência para uns, ascensão para ou-
tros, em que se assomou o objetivo da pugna: “o corte das peias da
escravatura intellectual" (O Povo, 31 dez. 1928, p. 2). Mário de Andrade
reconheceu o potencial da geração, do qual ele mesmo era integrante, mas
percebeu, também, uma investida em uma direção incerta e perigosa. Os
modernistas daqui entendiam que havia uma diferença irreconciliável
Thiago da Silva Nobre | 133

entre universalismo e regionalismo. O que seria um preconceito ridículo e


despropositado. Filgueiras Lima e Franklin Nascimento cantaram o Ceará,
com os seus galos campinas, rios secos e florestas. Jáder de Carvalho foi o
mais talentoso, quiçá um dos grandes que o Ceará produziu ontem e hoje.
Porém, sua lira era cearense demais, faltou o aturdimento e a loucura do
século. O Ceará seria pouco vertiginoso. Não se poderia cair no apatismo,
era necessário cantar belezas novas: o Brasil-vertigem; o mundo-dínamo.
Lúcio Várzea (Júlio Maciel) engrandeceu o penumbrismo modernista, po-
rém ainda sendo acompanhado de um romantismo excessivo. Pereira
Júnior foi o que mais se afastou do regionalismo. Sydney Neto não se inte-
ressou pelos costumes da terra, prova de sensibilidade modernista, apesar
de ainda metrificar a sua poesia em alexandrinos. Rita de Queluz fazia pri-
mitivismo, o que era paradoxal, mas em nada diminuindo o seu talento. E
por fim, Mário Sobreira de Andrade sublinhou a sua concepção sobre o
movimento modernista:

Modernismo é força. Sentimento na força, mas força sempre. Dinamo. Tudo


virado para o <<Objectivismo Dinamico>> de Marinetti. Modernismo é o sol-
no-crepusculo das coisas sem vibração. Agitação. Amor ao canto-delirio das
sirenas. Disparo de luz-eletricidade. E não este pedaço de Brasil que os moder-
nistas do Ceará exaltam. E’ preciso auxiliar <<a derrocada dos totens>>. (O
Povo, 31 dez. 1928, p. 2)

Ao contrário dos seus conterrâneos, que entenderam o Modernismo


como expressão do regional, Mário de Andrade do Norte contrapôs o con-
ceito de universalidade. Impunha-se necessariamente transpor a região
para cantar o Brasil-novo, Mundo-eletrificado e o devaneio-secular. Lendo
como o texto de Mário Sobreira fora construído e as referências diretas ao
nome de Marinetti, não é de se espantar com a sugestão da hipótese de
que ele tinha o “Manifesto Futurista” (1909) e o “Manifesto Técnico da
134 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Literatura Futurista” (1912), ambos do intelectual italiano, na ponta da lín-


gua. No mesmo ano da publicação do primeiro manifesto pelo jornal Le
Figaro, dois jornais do nordeste brasileiro publicaram meses depois. A Re-
pública (Natal – RN), em 05 de junho, e o Jornal de Notícias (Bahia – BA),
em 30 de dezembro. O Futurismo foi um movimento estético que

exaltou a vida moderna, procurou estabelecer o culto da máquina e da veloci-


dade, pregando ao mesmo tempo a destruição do passado e dos meios
tradicionais da expressão literária, no caso, a sintaxe: usando palavras em li-
berdade, rompia a cadeia sintática e as relações passavam a se fazer através da
analogia. (TELES, 2009, p. 108)

Segundo Marinetti (2009), pousado no tubo cilíndrico-fervente do


aeroplano, sentiu a degenerescência da sintaxe herdada de Homero. As
palavras deveriam ser libertadas furiosamente das presilhas da época la-
tina. Era preciso destruir a sintaxe, colocando os substantivos ao acaso.
Dever-se-ia implementar o verbo no infinitivo, pois ele, por si próprio, po-
deria refletir o sentido da continuidade da vida. O adjetivo precisaria ser
abolido para que o substantivo conservasse a sua essência. O advérbio de-
veria também ser obliterado, pois impunha à frase uma enfadonha
unidade. Cada substantivo necessitaria do seu duplo, sem conjunção,
sendo seguido de outro substantivo por analogia. “Assim como a veloci-
dade aérea multiplicou o nosso conhecimento do mundo, a percepção por
analogia torna-se sempre mais natural para o homem. [...] é necessário
fundir diretamente o objeto com a imagem que ele evoca [...]”
(MARINETTI, 2009).
Desse modo, Mário concebeu o Modernismo como força, energia, ele-
tricidade produzida pelo dínamo, perseguindo sempre o objetivismo
dinâmico do intelectual futurista. No seu texto ele fez uso de vários subs-
tantivos e de seus duplos escolhidos por analogia como “canto-delírio” e
Thiago da Silva Nobre | 135

“luz-eletricidade”, procurando imiscuir a coisa com a imagem que ela su-


gere. Seria preciso, também, destruir todos os totens, ou seja, tudo aquilo
que fosse tradição e impedisse o desenvolvimento e o progresso da huma-
nidade.
Virando o ano, em 7 de janeiro de 1929, publicou-se outro artigo de
Paulo Sarasate no jornal O Povo, intitulado “Poesia Moderna”. Nele o arti-
culista fez direta contraposição às opiniões de Mário Sobreira de Andrade,
em seu escrito de 31 de dezembro de 1928. Vejamos. Assim como Mário de
Andrade do Norte, ele já sentenciou a vitória incontestável do modernismo
e da arte nova. Fato consumado, irradiou-se e espraiou-se na América do
Norte (pátria de Walt Whitman), o modernismo vencera estrondosamente
no Brasil. Mas não o conceito apequenado e limitado. Novidades na esté-
tica, na emoção, no ritmo, na forma, tudo com o espírito dinâmico do
período atual. Sem negar o que fosse aproveitável e de qualidade indiscu-
tível da arte passada. Poesia nova não queria dizer necessariamente falar
sobre as novidades. Eles, os poetas modernistas, não eram obrigados can-
tar somente fatos, coisas e pessoas da ordem do dia e do momento
presente, seria pedir demais. A questão principal seria trovar de um modo
diferente, novas formas e novos ritmos. O Futurismo de Marinetti teria
fracassado justamente por seu caráter radical e fundamentalista. Sem
bombas, explosões e exageros, pois o êxito sempre presenteou os comedi-
dos, os moderados e os sóbrios. Os críticos asseveraram as suas alfinetadas
no fato dos modernistas não concordarem em tudo, gerando uma “alga-
zarra improductiva dum verdadeiro cháos” (O Povo, 7 de jan. 1929, p. 35).
No entanto, Sarasate defendeu os seus e afirmou que todos os movi-
mentos renovadores foram assim. Após mitigada as emoções e os
espíritos, restaria o que de sólido houvesse, até o romper de outro movi-
mento de ideias. No que diz respeito ao modernismo ser o lugar propício
ao cultivo de medíocres, ele reiterou que era tudo mentira, pois
136 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

aproveitadores aflorariam em toda parte. Seja num requintado salão fran-


cês de Luís XV ou num espaçoso hall contemporâneo, seja na armadura
metálica do soneto ou no energético verso moderno. O Modernismo no
Ceará teria aportado com a obra O Canto Novo da Raça, no qual nascendo
temerosa, incerta e indefinida, venceu ao final. Prova disso foi o silenciar
e o enclausuramento do antigos. “O desapparecimento gradativo dos cam-
peões da decrepitude artística” (O Povo, 7 jan. 1929, p. 35). A arte moderna
deveria ser o reflexo da vida dos povos, precisaria ser regionalista se ansi-
asse verdadeiramente a utilidade. E prosseguiu no seu raciocínio dizendo
que

A vida nacional de cada povo, na vida universal de cada época. Dahi a necessi-
dade de crearmos uma arte brasileira – originada na dynamica constructora
da actualidade. E’ de Graça Aranha: Nem a imitação europêa, nem a imitação
americana: a creação brasileira. Que se cante, pois, o que é nosso. Inteiramente
nacional. Exclusivamente brasileiro. Amazonense, gaúcho, paulista, cea-
rense... Canta-se o que é do nosso povo, da nossa raça, das nossas tradicções.
Formem-se a arte nacional, puramente brasileira, sem mystificações africanas,
plangência lusa ou primitivismo de arco e flexa. Porque precisamos de uma
arte brasileira, como precisavamos de uma raça brasileira. (O Povo, 7 jan.
1929, p. 35)

Tendo o Ceará poetas do quilate de Jáder de Carvalho, Franklin Na-


cimento, Mozart Firmeza, Sydney Neto, Júlio Maciel, Filgueiras Lima,
Mário Sobreira de Andrade, Rachel de Queiroz e Silveira Filho, não preci-
saríamos temer ou ter ciúme do “Brasil-sul. Porque a poesia do Norte era
mais brasileira. E o regionalismo tropical ha-de vencer. Vibrante e ardente
com o sol do meio-dia” (O Povo, 7 jan. 1929, p. 35).
E aqui percebemos divergências entre as concepções de arte moderna
de Mário Sobreira de Andrade e de Paulo Sarasate. De um lado a univer-
salidade cosmopolita, do outro a particularidade regionalista. Mário de
Thiago da Silva Nobre | 137

Andrade afirmou que era necessário cantar o novo, a novidade, a loucura


e a velocidade, não se deixando cair na armadilha do provincianismo e do
regionalismo estreito, obviamente muito na trilha concebida por F. Mari-
netti. Já Paulo Sarasate defendeu o meio termo, nem oito e nem oitenta,
precisávamos manter o que tivesse de bom e sólido da arte passada, bem
como encontrar maneiras outras e diversas para expressão da forma e do
ritmo, não renegando temas mais tradicionais.
Quando fazemos esse exercício de diminuição da escala de observa-
ção, percebemos a grande riqueza e variedade de propostas, sugestões e
caminhos possíveis. E eis a nossa tese principal: O Modernismo no Brasil
foi amplo, diverso e plural. Apesar dos jogos de poder envolvidos e das
trocas culturais (muitas vezes desiguais), cada região produziu a sua ver-
tente de Modernismo, elegendo temas, conteúdos, formas e ritmos
singulares, enfim dando a sua cor específica.
É óbvio que não podemos negar a relação entre centro e periferia,
que era muito bem sabido e entendido pelos intelectuais da época. Prova
disso foi como Paulo Sarasate arrematou o seu texto, sustentando que a
poesia do Norte era muito mais brasileira do a do Sul e de que o regiona-
lismo tropical venceria absoluto como o sol de meio-dia.
Mas retornando às diferenças internas do Modernismo Cearense, sa-
bemos que a versão regionalista, no fim das contas, foi a vencedora da
contenda discursiva. Tanto é que a maioria dos modernistas foram por
esse percurso estético do regional, bem como Rachel de Queiroz ganhou
projeção nacional com o seu romance O Quinze, tendo sido acusada um
ano antes de fazer primitivismo por Mário Sobreira de Andrade.
E aqui o conceito de discurso do filósofo francês Michel Foucault
(2014) nos ajuda a compreender a hegemonia de uma vertente sobre a
outra. Para ele a produção do discurso, em toda a sociedade, é controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por procedimentos que possuem a
138 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

função de domesticar, dominar e subjugar o seu acontecimento aleatório


e caótico, impondo interdições e segregações, bem como estabelecendo a
oposição entre o verdadeiro e o falso.
Cabe aqui também fazer um debate sobre a questão da tipicidade do
Modernismo Brasileiro. No qual muitos estudiosos da História da Litera-
tura elegerem um modelo ideal (quiçá platônico?) de Modernismo,
geralmente o paulista, submetendo todas as outras experiências ao seu
crivo e filtro avaliativos. Pois bem, aceitando essa concepção, o Moder-
nismo no Ceará, foi tido como menor e pouco produtivo. Mas a pesquisa e
as fontes mostraram justamente o contrário.
O Modernismo Cearense teve caráter fragmentário, ou seja, grande
parte da produção está diluída nos jornais e nas revistas da época. Isso não
quer dizer que o movimento foi pouco frutífero, mas só atesta o nosso des-
conhecimento e as escassas pesquisas sobre o assunto. Não nos deixemos
cair nesse embuste.
Porém, tudo isso se conecta com um contexto mais abrangente, que
é o do tratamento da cultura no Ceará. Basta alguns exemplos: Hoje em
dia, nas escolas, é estudado algo de História do Ceará ou de Literatura Ce-
arense? As obras de escritores cearenses são reeditadas com que
frequência? As cadeiras de Literatura Cearense são obrigatórias na univer-
sidade? Quantas pesquisas acadêmicas sobre a Literatura Cearense são
produzidas? Tais perguntas são tão simples e óbvias, que se tornam retó-
ricas. Mas não sejamos impertinentes com os leitores e respondamos.
Atualmente quase nada ou muito pouco é visto nas escolas, já que o ENEM
não aborda tais assuntos.
A obra de escritores cearenses, via de regra e excetuando fenômenos
editoriais, permanecem e falecem na primeira edição, logo se tornando
raridade de sebo. Basta usar como exemplo O Canto Novo da Raça, livro
tido como a primeira publicação modernista e um marco para a Literatura
Thiago da Silva Nobre | 139

Cearense, só ter tido sua segunda edição em 2011, oitenta e quatro anos
depois. Pasmem! As cadeiras de Literatura Cearense são optativas na uni-
versidade.
Acerca das pesquisas acadêmicas, há uma preferência temática pelo
final do século XIX, aquele que abrangeu a vigência da Padaria Espiritual.
Deixando um pouco de lado o início do século XX e, consequentemente, o
Modernismo. Basta ver a fortuna crítica dispendida ao objeto, é em dimi-
nuta, confessamos. Não se trataria aqui de defender um “complexo de
vira-lata”, afirmando quem seria o melhor ou o pior, pois “Toda experiên-
cia histórica é [...], em certo sentido, única” (THOMPSON, 2012, p. 79).
Pelo puro acaso caótico nascemos aqui e não em outro lugar, o que custaria
conhecer um pouco do que foi produzido nesse local, permitindo o desen-
volvimento de um sentimento de identidade e pertencimento.
Por isso não nos deixemos paralisar por concepções a priori, do tipo:
o Modernismo no Ceará produziu e publicou tão minguadamente, bem
como durou pouco tempo. Não! Os acervos, as fontes e pesquisa estão aí
para provar o contrário. “A história real revelar-se-á somente depois de
pesquisa muito árdua e não irá aparecer ao estalar de dedos esquemáticos”
(THOMPSON, 2012, p. 135).
O Modernismo no Brasil estaria inserido em um contexto mais
abrangente da tradição cultural, remontando, quem sabe, até o Roman-
tismo. Então Eduardo Jardim se propôs entender as implicações filosóficas
e teóricas do Modernismo com o legado especifico da cultura brasileira.
Ele começou a sua reflexão com a pergunta inicial: Qual seria a inserção
da problemática da brasilidade modernista no panorama da reflexão filo-
sófica do país? Para melhor compreensão do movimento de ideias
nacionalistas da época, devemos concebê-lo em uma dimensão mais am-
pla, não nos bastando resvalar nos aspectos artísticos e literário. Suas
manifestações reverberaram no quadro geral da cultura brasileira. Para
140 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

isso a categoria de solo ideológico é entendida como sendo o pano de fundo


de ideias em que se moveu o ideário modernista, revelando uma dimensão
filosófica dentro da literatura. O próprio movimento modernista se propôs
a definir de uma maneira o pensamento nacional, indicando caminhos e
trajetos para o seu desenvolvimento. A formulação da brasilidade teve as
suas raízes ligadas à tradição do pensamento nacional. O movimento mo-
dernista dividiu-se basicamente em duas etapas. Em primeiro lugar, a
preocupação se direcionou para a renovação estética que se expressou, so-
bretudo, na Semana de 1922. Em segundo lugar, foi o surgimento da
questão da brasilidade, localizado no ano de 1924. Em que duas orienta-
ções, logo que apareceram, distanciaram-se: a de Plínio Salgado e de
Oswaldo de Andrade.
Geralmente a História literária e a crítica abordam o modernismo
matizando três abordagens. Em um primeiro momento, na década de
1940, apresentou-se um balanço negativo do modernismo. Razões de or-
dem política levaram a intelectualidade do período a desvalorizar a
literatura do decênio de 1920. Escritores e analistas (críticos) opuseram à
literatura, que se pretendeu ser de feitio politicamente engajada, ao mo-
dernismo politicamente despolitizado. Desconhecendo a produção
modernista a fundo, sua contribuição foi recusada. A década de 1940 e a
geração de 45 não teve acesso ao acervo da produção modernista. Por isso,
o seu julgamento foi a resposta de uma preconcepção nutrida pela própria
experiência social e literária vivida na época.
Em um segundo momento, nos anos de 1950 e 1960, modificou-se a
perspectiva sobre a literatura. Para isso corroborou a criação das faculda-
des de filosofia e letras, havendo uma sensível valorização. No entanto,
vale salientar, grande fatia do esforço de reabilitação do modernismo se
deveu a críticos como Antonio Candido. A sua análise reorientada propor-
cionou, nas décadas seguintes, a revalorização e a reavaliação do período
Thiago da Silva Nobre | 141

modernista, tornando-o em um fato importante da história da literatura


brasileira. Nomes como José Aderaldo Castello, Afrânio Coutinho, Wilson
Martins e Mário da Silva Brito fizeram parte dessa mudança interpretativa.
A revalorização do assunto, bem como da reedição das principais obras
modernistas, abriu caminho para ao surgimento de férteis discussões so-
bre o destino da literatura nacional. Em um terceiro momento,
empreendeu-se o levantamento dos documentos modernistas (revistas,
artigos, suplementos literários, correspondência, etc.)
Usualmente, no que toca sobre a problemática da brasilidade moder-
nista, duas abordagens foram defendidas. A primeira salientou a ideia de
que a compreensão sobre o momento deveria focalizar a relação de depen-
dência cultural com os outros centros europeus e as suas vanguardas. A
segunda preferiu abordar a realidade nacional, estabelecendo nexos com
a revolução paulista de 1924 e os rumos tomados pelo modernismo. Tais
interpretações se mostraram insatisfatória para compreensão da comple-
xidade da brasilidade modernista. A primeira colocava a discussão na
relação de dependência entre os vanguardismos europeus e a produção
cultural brasileira, esquecendo de definir concretamente as gradações e as
formas de influência, obliterando qualquer chance de reelaboração, de des-
locamentos, de apropriações e de reinvenções, por parte dos indivíduos
envolvidos. A segunda, fixando-se no contexto nacional, falhou em não
conseguir articular a dimensão cultural com a política, recaindo em expli-
cações simplistas. Destarte a importância da avaliação e a compreensão da
dependência cultural, bem como da inserção da produção literária entre
as diversas camadas da realidade social do Brasil, seria necessário consi-
derar a antecedência de problemas mais precípuos para a elucidação da
questão.
O debate acerca da brasilidade literária, em 1924, não representou o
surgimento de uma problemática totalmente nova na literatura nacional.
142 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Podemos muito bem remontar ao romantismo o debate e a reflexão sobre


a construção da identidade brasileira pela elite letrada do país. O fato do
modernismo brasileiro ter estabelecido discussões sobre o primitivismo na
arte europeia, isso não excluí a sua direta relação com os momentos ante-
riores de formulação da brasilidade no âmbito cultural do país. Isolar a
experiência de 1924 de todo o contexto nacional, para inseri-lo somente
perante a relação do primitivismo francês, acarretou na deturpação da
análise aprofundada do contexto mais geral. Segundo essa perspectiva, a
compreensão das trocas, reformulações e recusas em torno da tradição li-
terária são simplesmente ignoradas. Se assim fosse, incorreríamos no
mesmo deslize interpretativo em que alguns estudos sobre o romantismo
cometeram. O de considera-la como reflexo espelhado do contexto cultural
da França do século XIX. Sabemos muito bem que o caminho mais frutí-
fero para a sua compreensão se dá acerca da reinterpretação das nuances
e dos matizes do romantismo europeu, reformulados pelo âmbito especí-
fico brasileiro. Sendo assim, o que interessa é compreender a experiência
modernista brasileira dentro de um debate que já vinha sendo enfrentado
pela história literária e pela tradição cultural. Desta forma, poderemos en-
tender o modernismo como a apropriação e o desenvolvimento de um
percurso já desbravado outrora, operando uma releitura da tradicional
discussão em torno da identidade brasileira (JARDIM, 1978).
Neste tópico nos detemos principalmente no jornal O Povo, que foi
um dos principais instrumentos de propaganda dos intelectuais engajados
em prol do movimento renovador. Desse modo, podemos perceber quais
foram as principais estratégias para polemizar com a tradição e os autores
consolidados no Campo Literário. No próximo tópico analisaremos en-
quete, publicada em vários números do periódico, com as opiniões dos
intelectuais sobre o Modernismo. Documento importantíssimo para per-
cebermos a variedade de opiniões e pontos de vistas, que foram soterradas
Thiago da Silva Nobre | 143

pelo tempo e pelo discurso vencedor. Tentaremos mostrar, em tempos de


experimentação, a profusão de caminhos e propostas para os rumos cul-
turais do país na época.

3.2 - Uma desvairada match literária

Prática corrente na época eram os concursos e as enquetes promovi-


dos pelos jornais e revistas. Podiam ser sobre os intelectuais, os poetas, os
escritores e até a moça mais bonita da cidade. Demócrito Rocha esperto e
arguto como era, bem como já havia tido experiência exitosa com uma
enquete sobre os príncipes dos poetas na revista Ceará Ilustrado, muito
apreciada e comentada pelos leitores, teve a ideia de propor outra. Por que
não fazer um concurso literário arguindo os intelectuais modernos e os
passadistas sobre o Modernismo? Seria um estouro! Assim foi feito. Mário
Sobreira de Andrade, em extenuante trabalho de meia hora pousado em
uma banca de jornal, formulou as perguntas para compor a enquete. Po-
rém, a grande ideia e o “pulo do gato” foi conceber o certame como uma
partida de futebol, uma match futebolística com o tudo o que tinha direito
e, além do mais, aproveitando a rápida difusão e apreciação do esporte
inglês nas cidades brasileiras. Tanto é que a nomenclatura utilizada, por
seu caráter recente, ainda não havia sido aportuguesada utilizando as pa-
lavras em inglês como match, score, off-side, corner, judge e etc...
Os modernos ganharam dos passadistas de lavada, como era de se
esperar. No entanto, uma dúvida permaneceu por muito tempo sobre a
pontuação final. Apesar das partes envolvidas de há muito estarem faleci-
das, bem como a elas não interessar mais a pontuação exata, ao
pesquisador interessa sim. Sânzio de Azevedo (2012) registrou, em seu li-
vro O Modernismo na Poesia Cearense, que o placar final foi de 11 a 2. Na
verdade, no finalzinho do segundo tempo, houve o inesperado décimo se-
gundo gol de Stella Rubens Monte, em 01 de julho de 1929. Quem se
144 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

enfadou e se impacientou (talvez torcendo pelo passadismo), saindo do


estádio antes da partida acabar, perdeu esse último escore para os poetas
novos. O placar final e correto foi mesmo de 12 a 2. Passado quase uma
centúria, nada que tivesse dado desavença, briga ou zanga no calor da par-
tida.
No jornal o Povo de 27 de maio de 1929, saiu a primeira notícia sobre
a enquete com o título “Cerca de quarenta intellectuaes conterraneos vão
julgar o Modernismo”. Logo no início do texto foi feita uma avaliação e
uma indagação dizendo que “A literatura modernista ou antropofágica
vem sendo, depois do apparecimento de Maracajá; objeto de serias cogita-
ções por parte dos circulos literarios cearenses. [...] Mas a revista em
apreço está na berlinda. O Modernismo será Escola Literária? Viavel, sim-
plesmente, ou victoriosa?” (O Povo, 27 maio, 1929, p. 06).
Então resolveu-se endereçar 15 perguntas aos intelectuais da cidade
sobre Modernismo. As perguntas eram: 1) Que pensa do movimento mo-
dernista?; 2) Considera esta reação uma Escola Literária?; 3) Acha-a
simplesmente viável ou já a classifica vitoriosa?; 4) Por quê?; 5) Que pensa
da última modalidade do modernismo, ou seja da influência do indianismo
na literatura nacional?; 6) Julga possível o renascimento de alguma escola
poética?; 7) Qual delas?; 8) Acredita que o Modernismo possa correr para
a formação de uma literatura radicalmente brasileira?; 9) Em separado,
que diz da Poesia Nova?; 10) Qual, na sua opinião, o maior modernista
brasileiro?; 11) Tem acompanhado o movimento modernista no Ceará?;
12) Conhece Maracajá, o orgão official dos novos?; 13) Destes, qual lhe pa-
rece o melhor?; 14) Por quê?; 15) Pode espender alguns conceitos sobre os
motivos desta enquete?
O questionário fora remetido a vários intelectuais da cidade, como
Cruz Filho, José Sombra, Alvaro Bomilcar, Theodoro Cabral, Antônio Sa-
les, Emygdio Barbosa, Antonio Furtado, Eurico Pinto, Gilberto Camara,
Thiago da Silva Nobre | 145

Elias Mallmann, Moreira de Sousa, Matos Ibiapina, Carlos Gondim, Gastão


Justa, Demócrito Rocha, Paulo Sarasate, Mário de Andrade, Jáder de Car-
valho, Sydney Netto, Franklin Nascimento, Mozart Firmeza, Heitor
Marçal, Julio Maciel, Filgueiras Lima, Odette Nascimento, Juracyr Carvalho
Lima, Maria de Lourdes Livino, Alba Valdez, Adelaide Amaral, Adilia de
Albuquerque Moraes, Stella Rubens Monte, Suzana de Alencar e Rachel de
Queiroz. Vale dizer que nem todos os convidados responderam de volta as
perguntas, bem como alguns esquecidos na correria se sentiram à vontade
para opinar também e enviar os seus próprios pensamentos.
A primeira reposta foi publicada em 29 de maio de 1929 e permane-
ceram sendo vinculadas quase todo os dias, em pequenos intervalos de
tempo até dia 01 de julho de 1929. O primeiro gol foi de Elias Mallmann
contra o Modernismo, apesar de rumores alegarem que a bola já tinha sa-
ído de campo. Caso o leitor não se lembre, Elias Mallman foi um dos que
participaram do livro O Novos do Ceará no Primeiro Centenário da Inde-
pendência do Brasil. A coletânea foi publicada para mostrar o que de novo
se estava escrevendo e produzindo literariamente, bem como como para
denunciar os escritores já consolidados em suas torres de marfim e que,
segundo os jovens da coletânea citada, não produziam mais nada de valia.
Talvez impulso inicial tenha sido o sentimento de injustiça sentido por es-
ses jovens intelectuais, poetas uns e prosadores outros, não terem sido
convidados para integrarem a obra A Poesia Cearense no Centenário, que
teve apoio governamental de Justiniano de Serpa. Eles, evidentemente,
sentiam-se parte do que se estava produzindo de intelectual e de qualidade
no Ceará, bem como estavam buscando os seus espaços de inserção, e não
apreciaram o esquecimento. Pois bem, mesmo tendo feito parte desse “ri-
tual herético” perante a intelectualidade tradicional, ele foi contra os
colegas modernistas. Para que fosse compreendido da melhor forma pos-
sível, ele adotou o ensaio para destilar a sua opinião.
146 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Segundo Mallmann, sobre o Modernismo era permitido escrever


muita coisa, mas nunca se chegou a uma definição aceitável para todos. O
movimento atual não passaria de fenômeno banal que a biologia explicava,
tendendo a “reintegrar a mentalidade universal na normalidade que ella
gozava de livre expansão e progresso, antes da phase de perturbação ma-
terial e moral por que passou” (O Povo, 29 de maio, 1929, p. 08). A agitação
percebida nos círculos intelectuais, como se fossem células vivas, que sur-
giram com balburdia para mudar a concepção de arte, tiveram a sua
função prática. Geralmente, a origem do Modernismo era atribuída à Ma-
rinetti (apenas alguns e esporádicos lembraram Papini), que publicou, em
1909, o famoso “Manifesto Futurista”. Porém, já em 1902, teria iniciado o
movimento com o poema “A Conquista das Estrelas”. Passados vintes anos
veio a ebulição nas planícies sul-americanas o proselitismo reacionário.
Porém, antes disso, o grande evento beligerante do início do século XX, fez
a demagogia plebeia querer tomar para si a direção das coletividades, bem
como causou um grande golpe na vida econômica das pessoas, resultando
num “salve-se quem puder pondo o instincto de conservação de parte os
deleites espirituaes. Essa parada momentanea, irracional, surepreendente,
rompeu ex-abrupto o surto natural, a connexão das acquisições espirituaes
feitas pelo homem” (O Povo, 29 de maio, 1929, p. 08). Essa parada mo-
mentânea e irracional teria pausado a evolução natural das aquisições
espirituais da humanidade. Com os ouvidos já bastante habituados aos
bombardeios poderiam se deleitar mais uma vez com Beethoven, Chopin,
Gluck, Lizst, Debussy? Foi exatamente pela escuta, o sentido mais sensível,
que o intelecto recebeu sobressaltado as novas sensações do século. A ver-
tiginosa disseminação dos novos ritmos como o Charleston, Battons, Foxes
e Shimmies, apelando para a exaltação e alvoroço dos temperamentos, ge-
rou a concepção de poesia contrário às formas e à sonoridade. Para
Mallmann, esse tipo de definição, em relação à prosa e à poesia, era
Thiago da Silva Nobre | 147

errônea, pois sendo a prosa a construção de períodos e a melodia sonora


escrita, a poesia era a harmonização dos signos e das palavras. A arte, em
si mesmo, teria como essência a perfeição, não havendo a perfectibilidade
sem universalidade e perpetuidade. A arte era a síntese do acumulo do
trabalho humano, que não passava do legado dos antepassados. E se, as-
severou Mallmann, não tivéssemos suficiente “talento, engenho e genio
para melhorar, pelo menos [...][devêssemos] entregar como o recebemos
aos nossos sucessores” (O Povo, 29 maio, 1929, p. 8).
A sua concepção de humanidade estava baseada em Condillac, afir-
mando que ela era a consciência do que é mais a lembrança do que fora.
Nem o super-espiritualismo de Malebranche e nem o idealismo de Berke-
ley. A moderação representaria o equilíbrio do bem-senso. Nesses termos,
a arte não podia esquecer e abdicar da sua essência, ou seja, a disciplina e
a ordem. Não havendo princípios não haveria estabilidade, generalização
ou síntese. Faltando essa condição precípua ao Modernismo, não poderia
sair desse movimento uma escola. E foi por isso que Elias Mallmann não
o considerou viável e nem vitorioso, porque nada defendia. Valia somente
pela utilidade, preparando o terreno para uma verdadeira escola poética.
Todavia, não era um renascimento, mas sim uma restauração. Poderia ser
o lírico, o romântico ou, quem sabe, outro gênero. A verdade era que o
espirito humano, estava reestabelecendo o senso melódico. A música rein-
tegrar-se-ia ao sentimento, talvez pelo retorno do romantismo, tido por
muitos como arqueológico e sepultado.
Sobre a necessidade da criação de uma literatura nacional, era um
dever e uma questão cívica, porém sem a balburdia e a bagunça deturpa-
dora do idioma já emancipado de Portugal. Acerca do movimento
modernista do Ceará, ele preferiu não cultivar inimizades elegendo algum
colega em detrimento de outro. Em nenhum outro estado, para ele, houve
campanha mais ativa e aguerrida. “Duvido muito que qualquer outra
148 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

província tenha uma mocidade de talento, do arrojo e da intelligencia dos


cearenses. Tenho lido muito do modernismo e outros ismos do sul, e seria
grande injustiça compara-los com qualquer um dos da terra” (O Povo, 29
maio, 1929, p. 8). O maior nome de repercussão nacional no Modernismo,
ou seja, o intelectual que utilizou a mentalidade coerente com as sensações
e as sensibilidades da sua época e da sua terra (reafirmando a beleza já
lapidada pela tradição), era Ronald de Carvalho.
Depois do primeiro gol ser feito a favor dos passadistas, o contra-
ataque em velocidade dos modernistas marcou o seu e deixou tudo empa-
tado. A torcida (ou seja, os leitores) foram ao delírio! Segundo Mozart
Firmeza, debatendo diretamente com o autor de Losango Cáqui, a poesia
era uma senhorita garbosa que não gostava de usar eternamente a mesma
toilette. A vestimenta era o conceito do Belo em Arte, sendo uma invenção
humana e independente do Belo natural. “A mulher, nua, é a Verdade cri-
ada; vestida, é a Verdade que se cria... Assim na Poesia, onde tambem há
duas verdades: intrinseca – a idea; outra, extrinseca – a forma, que lhe dão
os homens, conforme o gosto e a epoca...” (O Povo, 3 jun., 1929, p. 4). Por
isso, o Modernismo era uma reinvindicação para os cultuadores de bele-
zas, que se descobriram pelados em sua liberdade. A confusão da polêmica
não era de todo negativa, pois a diversidade de formas, somente mostrava
como a verdade seria relativa de cada pessoa. Ao menos, experimentar era
uma arte própria, revelando o espírito e fazendo a vida valer a pena ser
vivida. Firmeza não considerou o Modernismo uma escola literária, porém
já era vitoriosa posto a quantidade de idiotismos da época. A grande
guerra, chamando todos à realidade, exterminou de uma vez por todas o
parnasianismo, o que gerou o Futurismo, única planta que podia germinar
(nesse campo de morte e pestilência), dando frutos na maioria azedos, mas
que o tempo em sua paciência trataria de adocicar. O movimento se alas-
trou pelo Brasil, sob vários aspectos e matizes, que com a obsolescência
Thiago da Silva Nobre | 149

criativa veio a se mesclar, gerando uma escola. Muito provavelmente ela


seria seduzida pelo romantismo, que faria parte da índole do povo, mas
desencarcerada de métrica e de rima. Sobre a influência do indianismo o
entrevistado afirmou que o momento atual, com o predomínio do rádio
trazendo notícias do mundo inteiro, não poder-se-ia conceber o india-
nismo como escola. Como metodologia de trabalho e como propaganda
ainda “vá lá”, reiterou Firmeza. Era possível, para o poeta, o retorno de
alguma escola literária, qualquer uma tratasse de amor. A poesia nova se-
ria “falar de synthese, de belleza, imaginação, de alma criadora” (O Povo,
3 jun., 1929, p. 4), não importando os tanka ou hai-kai japoneses ou os
gazel e os rubai persas. Nem tão pouco quem foi o legitimo criador do Fu-
turismo (Papini, Alomar ou Marinetti). Bastaria aceitar que a poesia queria
avidamente mudar de roupa. Para ele o principal modernista do momento
era Guilherme de Almeida. E sobre o melhor poeta moderno da terra ele
asseverou que “Se no Canto novo da raça estivessem todos os poetas mo-
dernistas cearenses, eu recorreria a elle. Mas...” (O Povo, 3 jun., 1929, p.
4). Por fim, a enquete para ele tinha os motivos mais nobres, porque des-
pertaria o entusiasmo e daria coragem para “continuar a diabólica festa
em que o tuchaua 3 da tribu é comido pelo guerreiro mais moço” (O Povo,
3 jun., 1929, p. 4).
Na terceira reposta Suzana de Alencar Guimarães marcou mais um
ponto pelo “team” de Maracajá. É interessante compreender o título do
inquérito: “2 x 1! – Mais um goal marcado pelo Verde e Amarello moder-
nista” (O Povo, 4 jun., 1929, p. 5). Sabemos que já por volta de 1929, em
São Paulo, o grupo dos Antropófagos e o dos Verde-Amarelos não se da-
vam mais tão bem assim, pois que eram duas vertentes do Modernismo
paulista com propostas totalmente opostas. O grupo era composto por

3
Chefe temporal de tribo indígena; cacique, morubixaba.
150 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Candido Mota Filho
e Alfredo Elis. Eles formaram a linha de frente Modernismo conservador.
A inserção do Brasil na Modernidade se daria através do rompimento com
a herança cultural europeia. Seu lema não deixava espaço para titubeios:
originalidade ou morte! A contrapartida política dos verde-amarelos era o
autoritarismo, condição irrevogável da independência cultural do país. Foi
através do Correio Paulistano que eles divulgaram as suas ideias. Esses
artigos foram reunidos, em 1927, na coletânea O Curupira e o Carão. Em
maio de 1929, publicaram o manifesto “Nhengaçu Verde Amarelo”, defen-
dendo a integração étnico-cultural sob a marca da colonização portuguesa
e a manutenção das instituições conservadoras. Na década de 1930, o
grupo se dividiu em duas vertentes: o integralismo e o bandeirismo. Plínio
Salgado rompeu com os demais e fundou, em 1932, a Ação Integralista
Brasileira. Cassiano Ricardo fundou o Bandeirismo com os dissidentes do
grupo inicial. Eles tinham a proposta de fortalecimento do Estado, bem
como eram contra o comunismo e o fascismo, pois era preciso defender os
limites geográficos e culturais do país, interrompendo a penetração de ide-
ologias externas. Mesmo com todas essas divergências, parece que para os
modernistas do Ceará, não haveria essa contraposição irreconciliável. Em
vários momentos eles utilizaram o termo verde-amarelo como sinônimo
de antropofagia.
Essa peculiaridade também foi percebida por Sânzio de Azevedo, afir-
mando que os de Maracajá estavam “desinformados” em relação às
polêmicas paulistas.

Apesar de [...] se dizerem da ‘tribo cearense de antropofagia’ (pelo menos An-


tônio Garrido e Mário de Andrade), falavam dos pontos marcados pelo “Verde
e Amarelo modernista”, quando sabemos que, a esta altura, antropófagos e
verde-amarelistas, não andavam em cheiro de santidade lá pela Paulicéia
(AZEVEDO, 2012, p. 58)
Thiago da Silva Nobre | 151

É muito difícil filtrar propriamente o que esses indivíduos estavam


querendo dizer quando misturaram o termo antropofagia com verde-
amarelismo. Poderia ser, como Sânzio afirmou, desinformação e dificul-
dade de se manterem atualizados ou, nova hipótese, para eles faria muito
sentido usar esses termos como sinônimos. Talvez, para eles, observando
o movimento como um todo harmônico, não haveria tanta diferença as-
sim, sendo tudo parte de uma grande empreitada renovadora e
revolucionária. Apesar das grandes diferenças internas de propostas, mé-
todos e temas, tudo faria parte do mesmo bojo de renovação e
modernização cultural do país.
O próprio Modernismo do Ceará, como viemos demonstrando, foi
específico e peculiar. Várias tendências heterogêneas coabitaram (às vezes
até divergentes) no Modernismo cearense: regionalista, ufanista, futurista,
penumbrista e etc. Com o tempo a vertente regionalista triunfou, basta
observar a produção da geração de 1930, tendo Rachel de Queiroz como o
grande nome saído daqui e que obteve projeção nacional. Podemos dizer
que o Modernismo foi um movimento de uma “pluralidade plural” (ou
seja, Modernismos), pois dentro da diversidade nacional, houve também
uma riqueza de experimentações regionais, depois se consolidando a he-
gemonia de um aspecto em detrimento de outro, que no caso foi o
regionalismo.
Segundo Suzana de Alencar, o movimento modernista era um sonho
de loucos, tal qual a utopia de Carlos Prestes, querendo acabar com a re-
pública brasileira de larápios e afanadores. Sonhadores e loucos tinham a
mesma medida. Prestes foi exilado na Argentina, quem sabe os modernis-
tas não terminariam no asilo de alienados da Porangaba? Para ela, não
mais se precisava de escolas literárias. Cada um por si! Nem mesmo insti-
tuições de ensino eram necessárias para ensinar a ler. Antes de ingressar
152 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

no ensino formal, ela já tinha aprendido a ler e a lançar impropérios, com


o velho João Brígido através das folhas do Unitário. Sobre o indianismo, o
renascimento de alguma escola poética e a fundação de uma literatura bra-
sileira, a poetisa afirmou que não entendia nada de escolas e que as odiava.
O que elas faziam era imitar, estagnando a potência criadora. Os brasilei-
ros não precisavam de escolas, seja lá quais fossem. Ela exultou e aprovou
o regionalismo, o brasileirismo.

Gosto de escrever sobre o que é nosso; nas minhas paginas, sinto remorso
quando não photografo a véla de uma jangada ou silhueta de uma ipê dou-
rado... Que se faça uma literatura brasileira para cantar o Brasil tal qual elle é:
cheio de flores, coberto de estrellas, povoado de heroes e de bandidos. E’ esse
o lindo sonho dos modernistas loucos! (O Povo, 4 jun., 1929, p. 5)

Acerca da poesia nova e do maior modernista brasileiro, ela registrou


que a achava deslumbrante e linda, tal qual poesias antigas que lhe toca-
ram o coração. A língua brasileira não precisava de rima ou de métrica
para ser poesia. Apesar de um banalismo imperdoável, ela admirou vários
poetas como Jorge de Lima, Ronald de Carvalho, Raul Bopp, Rosário Fusco,
Ribeiro Couto, Cassiano Ricardo, Álvaro Moreira e outros apóstolos da
ideia nova, de lá e de cá. Sobre a folha Maracajá e o maior modernista da
terra, ela disse que a considerou um dos melhores que já leu, passando
para trás Arco e Flecha, Festa, Leite Criolo e outras. E finalizou dizendo:
“Deus me livre de dizer qual o melhor modernista do Ceará! Os antropo-
phagos seriam capazes de engulir o Mario de Andrade... Digo lá nada” (O
Povo, 4 jun., 1929, p. 5).
Em 5 de junho de 1929, saiu a quarta reposta à enquete, o terceiro
ponto foi marcado por Mário Sobreira de Andrade: 3 x 1! Segundo Mário
de Andrade, que estava em acordo com a Suzana de Alencar e não abria
por nada, o movimento modernista foi o acontecimento mais fantástico
Thiago da Silva Nobre | 153

dos últimos tempos. E ainda havia quem dissesse que o Ceará era um de-
funto. Sobre o modernismo já ser vitorioso e se tornar escola literária, o
ressurgimento de escola poética, a formação de uma literatura radical-
mente brasileira e a poesia nova, ele falou que não haveria chance alguma,
pois o que se fez “depois do advento do Modernismo foi uma frente unica,
que não é Escola literaria, para combater qualquer gosto tendente a dar á
arte expressão de coisa sempre velha e inutil” (O Povo, 5 jun, 1929, p. 5).
Indiscutivelmente, o movimento já era vitorioso, porque estrangulou o úl-
timo soneto. Não seria possível o retorno de alguma escola poética. O
Modernismo foi o romper de algemas e a legitima expressão brasileira. A
nova arte poética correspondeu ao anseio coletivo de liberdade, pois tanto
a rima e a métrica eram cativeiros. A musicalidade estava dentro do pró-
prio idioma. Acerca do maior modernista brasileiro, ele reforçou a sua
opinião dizendo que acima de Mário de Andrade (o da Paulicéia), de Raul
Bopp, de Oswald de Andrade e de todos os grandes iniciadores do novo
credo, era o cantor do poema “Cabocla”, descrita por ele como a morena
flor dos sambas sertanejos. Jáder de Carvalho era o nome dele. Sobre Ma-
racajá e o melhor modernista do Ceará, ele falou que na prosa era Paulo
Sarasate e na poesia era Antonio Garrido (Demócrito Rocha), desde a es-
crita de “O Jaguaribe é uma Artéria Aberta”.
Em 6 de junho de 1929, veio à lume a resposta inesperada de Renato
Soldon, pois ele estava na reserva da equipe: 4 x 1!
O que não o impediu de marcar o quarto gol dos modernos. Apesar
de esquecido da escalação oficial, ele não conseguiu permanecer fora do
jogo. Sobre o Modernismo e se ele podia ser considerado uma escola, afir-
mou que ele causou uma utilíssima celeuma entre os passadistas
empregadores do metro e que pesavam as suas produções nas balanças
enferrujadas de Guimarães, Passos, Camões, Bilac. E no Ceará, estavam
morrendo de medo de serem devorados. Ele o considerou como escola,
154 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

porém não via com bons olhos esse termo. Pois era antiquado e lembrava
“ordem, regras, professores, sabatinas, etc. devíamos denominar o grande
movimento de Açougue literario. Ou simplesmente: - Açougue” (O Povo,
6 jun, 1929, p. 6). O movimento já era vitorioso, o que faltava era devorar
o resto dos vencidos. Assunto urgentíssimo! Pois esses perdedores eram
“uma infinidade de proselytos. De fetichistas. Já está proclamada a derrota
do passadismo. Vamos beber-lhe o sangue co cauim e comer-lhe a carne
em moquenca” (O Povo, 6 jun., 1929, p. 6).
Acerca do indianismo, do renascimento de escolas literárias, da for-
mação de uma literatura nacional e da poesia, ele comentou que era
assunto complicado, preferindo deixar de lado a explicação, bastaria a sua
prática. Julgou impossível o retorno de uma escola literária, bem como
acreditou na formação de uma literatura genuinamente brasileira através
do Modernismo. Pois ele “foi o período de gestação da antropofagia que
será em breve uma literatura genuinamente brasileira. Sem ll, cç, th, te,
eb, tt, nn, mm, ph, ff, rh, etc. descida antropofagica! Carnificina! ... Inicio
do Brasil brasileiro!” (O Povo, 6 jun., 1929, p. 6).
A poesia nova serviu para delinear os verdadeiros medíocres, nulos e
plagiadores. Eram considerados grandes inteligências, mas tudo não pas-
sava de enganação e ilusão. Debatiam pelos cafés Ruy, Camões, Dante,
Gorky, Camilo, Eça e não saiam disso. Os maiores modernistas brasileiros,
para ele, foi Raul Bopp na poesia e Oswald de Andrade na prosa. Sobre o
movimento no Ceará e Maracajá, ele disse que era ferrenho apoiador “E
com a mais forte demonstração empurrando-o para a frente. A minha pro-
paganda tem sido encarniçadissima!... Em casa. Na rua. Nos cafés. Nos
jornaes” (O Povo, 06 jun., 1929, p. 6). Apesar de conhecer e ter os dois
números publicados de Maracajá, os ingratos ainda não o haviam requisi-
tado nenhuma colaboração. “Injustos!... Exijo que me exijam!...” (O Povo,
Thiago da Silva Nobre | 155

6 junho, 1929, p. 6). O melhor poeta da turma era Filgueiras Lima, pois
concebeu a monstruosidade chamada “Jazz-band da Floresta”.
Em 7 de junho de 1929, foi divulgado a sexta resposta, mas o sabati-
nado (Gustavo Barroso), devido a suas respostas camaleônicas, mandou a
pelota por cima da trave. O placar permaneceu 4 x 1. Segundo Barroso, o
movimento modernista era útil e necessário. Mostraria vida, reação, fer-
mentação e ebulição, produzindo resultados. Ele era, também, o
protestantismo das letras, “cada cabeça uma sentença. Dahi sua antropo-
phagia: comem-se os seus propugnadores uns aos outros... E está certo”
(O Povo, 7 jun., 1929, p. 3). Mas ainda não era vitorioso, era um meio e
não um fim, o sucesso viria do que saísse daí.
Acerca do indianismo, do renascimento de alguma escola poética, da
formação de uma literatura brasileira, da poesia nova e do maior moder-
nista brasileiro, ele afirmou que os antigos representavam o universal pela
imagem da serpente que comia o próprio rabo. Tudo no universo era cí-
clico. Sendo assim, o Modernismo carecia de passado e de tradição para se
enraizar e se consolidar. O que havia de mais velho do que o índio? Só era
possível o retorno de alguma escola poética de forma relativa, pois “[...]
muitas vezes as escolas novas não passam de velhas escolas deisfarçadas
com aquellas penninhas da conhecida adivinhação do caxovro...” (O Povo,
7 jun., 1929, p. 3). O Modernismo contribuiu sim para a formação de lite-
ratura brasileira, pois havia nele um sentimento nacionalista bem
delineado, percebido na sua pesquisa pelo índio, pelo folclore e pelos dia-
letos regionais. Por isso ele tinha simpatia pelos novos. No entanto, ainda
faltava muita coisa para a poesia nova, apesar de trazer em si uma vanta-
gem. Somente os de verdadeiro talento eram toleráveis. Comparando os
dois tipos de poesia, ele usou o exemplo das qualidades de vinhos. Os bons
apreciadores sempre tinham preferência pelos vinhos secos, permitindo
sentir melhor a fragrância e o sabor da uva. Em contrapartida, nos vinhos
156 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

doces de excessivo açúcar impediam a degustação e o julgamento apropri-


ado, porque qualquer zurrapa adocicada caía bem no paladar.

A poesia antiga tinha o assucar da rima e da metrica para nos enganar o ouvido
e, assim, um soneto trivial bem medido e bem rimado parecerá coisa fina.
Agora, não: nem pés, nem cabeça, nem rima, nem nada. E’ preciso, portanto;
o talento de Guilherme de Almeida e de Ronald de Carvalho para não sosso-
brar. Agora é que é imprescindivel seguir o conselho do espanhol: en el medio
hay poner talento. (O Povo, 7 jun., 1929, p. 3)

Apesar “[...] do labyrinto das seitas modernistas – como diria um


bispo do concilio de Nicéa – [...] é difficil escolher” (O Povo, 7 jun., 1929,
p. 3) o maior modernista brasileiro. Para ele, era o autor de Macunaíma, o
Mário de Andrade de São Paulo. Sobre o movimento modernista no Ceará,
Maracajá e os modernistas daqui, ele comentou que devido a sua situação
de hóspede em sua própria terra e aos poucos dias que tinha chegado, não
podia dar a sua opinião. E, também, “como se trata duma tribu antropo-
phagica e eu não pertenço ao Serviço de Protecção aos Indios, é necessario
uma approximação cautelosa, com o brado celebre de Rodon: Brabos não
sejam!” (O Povo, 07 jun., 1929, p. 3).
Em 8 de junho de 1929, veio a público, de Filgueiras Lima, a sétima
resposta marcando mais um ponto ao Modernismo: 5 x 1!
Para ele, o movimento era a prova de que o Brasil não estava inerte,
caminhava, fixando “[...] no chronometro universal, a sua hora de rebeldia
e de intelligencia” (O Povo, 08 de junho, 1929, p. 03). Não o considerou
uma escola, era um movimento de transição da literatura brasílica. Passa-
ria. Dela permaneceria, como alicerce a verdadeira e genuína arte
brasileira. O Modernismo já era, galhardamente, vitorioso. Porque “[...]
livrou nossa terra da morphina do parnasianismo. Enfim, porque deu aso
a que o coração, hoje, para bem amar e dizer, não precisa mais de sacrificar
Thiago da Silva Nobre | 157

a ternura, como diria o estheta do Atheneu, ás quatro difficuldades de um


soneto” (O Povo, 08 de junho, 1929, p. 03). Sobre o indianismo, o renasci-
mento de escolas poéticas, a formação de uma literatura nacional, a poesia
nova e o grande modernista do Brasil, ele opinou que era um retorno às
épocas atrasadas dos poemas de Gonçalves Dias. “O Brasil-indio é o Brasil
sem sonhos de renovação, nem ideaes de liberdade. Estacionario e bár-
baro” (O Povo, 08 de junho, 1929, p. 03). Toda escola traria consigo
permanências de outras. Ninguém poderia esquecer o passado. Porém, re-
nascer era impossível, pois o mundo e as pessoas mudaram. A vida era
outra. A nova estética contribuiria sim para a consolidação de uma litera-
tura brasileira, pois “Desse kaleidoscopio de idéas e de rythmos – que é o
modernismo – surgirá a genuina literatura da Terra Virgem” (O Povo, 08
de junho, 1929, p. 03). Já a poesia nova era fonte dos ideais de heroísmo,
fé, reconstrução e coragem. Fé no destino da nacionalidade. E sobre

[...] os modernistas actuaes não ha como destacar o maior. Individualizar. To-


dos valem o que vale um homem novo, sem feiticismos. Um espirito moderno.
Dynamico. De hoje. Desta hora de luctas e ascensões. Ronald de Carvalho – no
Rio, e Jader de Carvalho – no Ceará, fazem a poesia que eu quero: Synthese e
verdade, rythmo e emoção. (O Povo, 08 de junho, 1929, p. 03)

Segundo Filgueiras Lima, ele presenciou o nascimento do Moder-


nismo no Ceará e o acompanhou criança de berço, acalentado por Jáder de
Carvalho, Sydney Netto, Pereira Junior, Rachel de Queiroz e Franklin Nas-
cimento e por ele próprio. Maracajá seria a melhor revista moderna do
Brasil, dela pulularia audácia e talento. Porém, não sabia indicar o melhor
da terra, porque cada um teria o seu modo de expressar o que sentia.
Em 10 de junho de 1929, veio a oitava reposta. De autoria de Heitor
Marçal, atirou um balaço no fundo da rede: 6 x 1!
158 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

E aqui pedimos a compreensão dos leitores, por que esta entrevista


(e algumas outras) serão mencionadas apenas de passagem, ou, se prefe-
rirem os francófilos, en passant. Segundo Marçal, o Modernismo no Ceará

[...] entrou de chapeu na cabeça. E de chapeu de sol aberto. Foi o que se fez de
melhor no Brasil. A terra estava cheia de sonetos. Soneto é uma plantasinha
mirrada. Especie de tiririca. Nociva em toda a parte e não servia pra nada. Mas
o caboclo está fazendo a limpa... Vae plantar uma roça... (O Povo, 10 jun., 1929,
p. 3)

Em 11 de junho de 1929, saiu a nona resposta, de autoria de Gastão


Justa que carregou demais na força e mandou a bola por cima da trave: 6
x 1. Segunda Justa, comentou que “[...] toda epoca deve ter a sua arte, a
sua poesia, a sua política. Tudo está de accordo com a mentalidade de cada
periodo historico da evolução humana” (O Povo, 11 jun., 1929, p. 3)
Em 13 de junho de 1929, foi publicado a décima reposta, autoria de
Demócrito Rocha que confiante e decisivo marcou o sétimo gol: 7 x 1!
Segundo o jornalista, o Modernismo foi a herança da “[...]inquietação
universal da hora presente” (O Povo, 13 de jun. 1929, p. 3), fenômeno or-
dinário no rol da história. E a literatura, reflexo da vida, foi a herança que
os povos legaram para os confrontos seculares das ações humanas. Os mu-
ros de Troia tombaram e se fez a epopeia de Homero. A decadência
beligerante de Roma fez os poetas Virgílio, Ovídio, Horácio e Propércio
darem nova perspectiva à poesia. Eles cantavam os destroços da velha
crença, descrevendo os costumes e intrigas, bem como conclamando os
soldados a abandonarem as lanças e adotarem os arados. A tradição poé-
tico-filosófica havia sucumbido. As colunas da acrópole desabaram. E o
latim, apesar de ter morrido de bebedeira, talvez até tenha sobrevivendo
nos seus poetas. A Idade Média tratou de sepultá-los. Mas o mundo conti-
nuou a mudar, acompanhado pela literatura que também se modificava.
Thiago da Silva Nobre | 159

Conforme a angústia dos povos, os problemas se transformaram. A Itália


com os círculos infernais de Dante, as ilhas britânicas com transcendenta-
lismo penumbrista de Shakespeare, a Espanha com crítica mordaz de
Cervantes e Portugal com Camões já empoeirado, porém habilidoso mari-
nheiro.
Mas o que falar do Brasil? Quem foi o seu primeiro literato? O índio
não tinha literatura. Os colonos desembarcaram trazendo a pimenta do
reino e os livros de catequese. A literatura não era brasileira ainda. Foi
portuguesa, flamenga, italiana, francesa. Ainda o hoje o Brasil importava
pimenta e literatura.

Ora, é obvio que nós precisamos conhecer tanto a pimenta do reino, como
literatura estrangeira. Devemos conhecer o commercio, as industrias e a cul-
tura mental de todos os povos. Mas conhecer tudo isso, que é alheio, para fazer
o que é nosso. Acabar de vez com a vassalagem literaria (O Povo, 13 jun., 1929,
p. 3)

Sempre haveria alguns, citou Demócrito, que esbravejavam que o


Modernismo era cópia. Muito pelo contrário, o que houve foi a reação con-
tra uma escola literária que tinha os mesmos códigos, regras, ideias,
técnicas dos europeus. Tudo indo de encontro as exigências vertiginosas
do contemporâneo. Persistia a literatura com os temas que deleitaram os
nossos avós. Para ele, escolas literárias eram coisas do passado, o Moder-
nismo estava em sua fase tumultuária. Ele já era triunfante. Haveria
alguém que ainda lia livros de versos passadistas? Sobre o indianismo, a
volta de alguma escola poética, a formação de uma literatura nacional, a
poesia nova e o maior modernista brasileiro, ele comentou que as mais
pungentes características da brasilidade era o índio. “Afugentá-lo dos nos-
sos livros é repetir o gesto do invasor que o enxotou das nossas mattas”
(O Povo, 13 jun., 1929, p. 3). O renascimento seja lá do que fosse, só era
160 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

privilegio dos vegetais. Até hoje nunca se ouviu falar de um ressurgimento


espontâneo de escolas literárias que haviam percorrido todo o ciclo de vida
(nascimento, maturidade, velhice e morte), permanecendo apenas em mu-
seus para estudos posteriores. A poesia nova tinha que ser comunicativa e
acessível. O seu objetivo era sugestionar e inebriar o leitor e não devia
aceitar a mediocridade de rimas inexpressivas. Escolher o maior do Brasil
era um passadismo, dando ideia de avaliação. “Ademais, eu já não disse
que estamos em phase tumultuaria? Os poetas modernistas do Brasil são
valores heterogeneos. E’ impossivel compará-los” (O Povo, 13 jun., 1929,
p. 3). Acerca de Maracajá e do melhor poeta moderno da terra, ele disse
que o conhecia (bom pai que era), apesar de ser um grato brabo. Para res-
ponder a segunda questão, ele pediu o prazo de no mínimo dois anos.
É interessante perceber como as ideias de Demócrito Rocha, apesar
das heterogenias existentes, eram semelhantes à antropofagia paulista. Al-
guns dos textos mais célebres dessa perspectiva foram o “Manifesto da
Poesia Pau Brasil” 4 e o “Manifesto Antropofágico” 5, que era bem possível
estarem na ponta da língua de Demócrito.
No primeiro manifesto foram sugeridas novas diretrizes para a poe-
sia como a fusão de elementos populares e cultos, incorporação de temas
cotidianos, o registro oral, abolição do falar difícil e do academismo e a
contribuição milionária dos erros e tentativas para criação de uma poesia
tipo exportação. Foi escrito sob a apreciação do Carnaval carioca na com-
panhia de Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars, bem como sob o impacto
da temporada em Paris, em 1923. Aonde Oswald conheceu as vanguardas
europeias e a produção estética recente do velho continente. Ele defendeu
uma revisão radical da cultura do país tomando a valorização do elemento
primitivo, tal qual os cubistas estavam fazendo. Os elementos autóctones

4
Publicado pela primeira vez no Correio da Manhã em 18 de março de 1924, no Rio de Janeiro.
5
Publicado na Revista de Antropofagia em maio de 1929, em São Paulo.
Thiago da Silva Nobre | 161

(tudo o que fosse bárbaro e nosso) deveriam se fundir às conquistas téc-


nicas do século XX.
No segundo, que foi concebido em janeiro de 1928 com a inspiração
no quadro Abaporu de Tarsila do Amaral. Foi proposto a deglutição das
qualidades estrangeiras às nacionais, apresentando uma síntese dialética
que buscou ultrapassar a barreira da dependência cultural através da
transculturação. Suas principais inspirações foram Marx, Freud, Breton,
Montaigne e Rousseau, a partir do qual reconstruiu a história brasileira,
enaltecendo a cultura popular, o índio e o negro, condenando a cultura
europeia como imposição (SCHWARTZ, 2017).
Em 18 de junho de 1929, surgiu a décima primeira resposta. Carlos
Gondim fez um escarcéu, mas ninguém soube dizer se a bola entrou ou
não. Permaneceu 7 x 1. Segundo Gondim, não era empreitada fácil, para
um combatente da velha guarda, debulhar comentários sobre os dragões
do Modernismo. Mesmo assim afirmou que não concordava que existia
uma arte moderna. Sem ser servil e nem escrava, a Arte sempre fora con-
temporânea. A Arte não estava restrita “[à] ordem e [à] proporção, [ao]
verso bem metrificado e parnasianamente polido” (O Povo, 18 jun, 1929,
p. 3). No entanto, o lirismo era a melhor forma de expressar as emoções e
os sentimentos humanos. Ao contrário do que os futuristas acharam, vol-
tar ao lirismo era progredir. Gondim não achava que “a erubia e os borés
e o retroar dos tacapes indianos conseguissem o milagre da lyra de Am-
phião, ao som da qual se reerguiam os muros derrocados de Thebas” (O
Povo, 18 jun., 1929, p. 03). A forma podia se modificar, mas a Arte perma-
necia a mesma.
Em 19 de junho de 1929 veio a décima segunda reposta. Nela o poeta
Júlio Maciel derrubou Lúcio Varzea 6 em uma entrada dura e marcou ponto

6
Lúcio Varzea era o pseudoanônimo do poeta Júlio Maciel.
162 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

contra os modernos: 7 x 2! Segundo Maciel, o Modernismo estava em seu


ápice e com todos os diabos (como havia dito o caboclo Raimundo que foi
comido por uma onça no Amazonas). Era uma pena, pois todo movimento
exagerado e desmesurado acabava aquietando. Os modernistas teriam se
tornado mais radicais do que os seus mestres.

Assim, no art. 3 do manifesto futurista disse Marinetti: ...nós queremos exaltar


o movimento agressivo, a insomnia febril, o passo gimnastico, o salto perigoso,
o supapo e o murro. Olhem que já era muito. Mas os discipulos não se satisfa-
zem. E vae dahi querem comer gente. Do movimento agressivo, do supapo e
do murro, passaram á antropofagia. (O Povo, 19 de junho, 1929, p. 03)

E foi desse ultrarradicalismo que os modernistas caíram no passa-


dismo, em tempos em que a espécie humana já estava se inclinando ao
vegetarianismo.
Em 20 de junho de 1929 foi publicado a décima terceira reposta. Tan-
credo Moraes marcou mais um para as cores verde-amarelas, ou seja, os
modernistas daqui: 8 x 2! Para Morais, o Modernismo resultou de uma lei
natural da evolução. O que a tradição havia consolidado não satisfazia mais
os anseios do momento atual, pois “os espíritos progressivos têm sempre
os olhos pregados na vastidão do futuro, que encerra o segredo de novas
formas, de novas concepções” (O Povo, 20 de junho, 1929, p, 03). Do pa-
ganismo grego passou para o classicismo latino, depois veio o
Romantismo. E o Romantismo passou por diversas fases: a mística, a in-
dígena, a byroniana, a condoreira e a científica. O movimento atual não
seria mais nada do que o esperado do processo evolutivo da humanidade.
Em 21 de junho de 1929 veio ao público a décima quarta reposta. Ra-
chel de Queiroz marcou o seu para o team de Maracajá: 9 x 2! Mas um
pouco antes em carta endereçada a Braga Montenegro, de 14 de junho de
1929, Rachel mencionou brevemente ao seu amigo sobre a enquete do
Thiago da Silva Nobre | 163

jornal O Povo. “Novidades, d’aqui? [...] uma enquête do Povo sobre mo-
dernismo a que ainda não respondi. Ando com uma preguiça!” (QUEIROZ,
1929, p. 01). O que imediatamente nos lembrou de Macunaíma e a sua
frase característica (ai que preguiça!). No entanto, prossigamos com a par-
tida. Segunda a poetisa, o Modernismo brasileiro não era apenas uma
corrente literária consequência da exaustão da tradição poética, bem como
da influência das vanguardas europeias. E afirmou que a avaliava “antes
[como] uma manifestação, ou um symptona – da inquietação fecunda da
geração, que em tudo demonstra a sua anciedade de produzir qualquer
cousa de novo e de nosso” (O Povo, 21 de junho de 1929, p. 03). Porém, o
que saltava aos olhos e causava espanto era a falta de congregação e a ex-
cessiva individualidade nas propostas, em que cada um parecia fundar a
sua própria escola. Bem diferente das escolas anteriores que possuíam
“[...] organização docil e enfileirada [...], onde cada unidade das facções
conclue perfeitamente os itens de seu programma e os segue com consci-
ência e afinco, obedecendo á voz do orientador...” (O Povo, 21 de junho de
1929, p. 03). Para ela, o movimento artístico atual não podia ser definido
como escola literária, não estando sujeitada ao ódio ou ao amor do grande
público. A própria discussão sobre a sua viabilidade era debater um pro-
blema nacional.
Sobre o indianismo, o renascimento de outra escola poética, a forma-
ção de uma literatura nacional, a poesia nova e o maior modernista
brasileiro, ela comentou que seria lastimável que todos os artistas se vol-
tassem somente ao índio, mas é nele que “[...] repousam a força e a belleza
da raça; que na gente abanheênga temos o tronco ethnico que mais nos
honra; e que, se o indianismo não é o único caminho a trilhar, é uma bella
vereda, rica de paysagens inéditas” (O Povo, 21 de junho de 1929, p. 03).
Não havia formas novas, apenas as mais oportunas. Qual das propostas
passadas estavam em coerência com o tumulto inquietante, o abandono
164 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

da rima e do metro, beme como a busca da síntese? O Futuro era incerto


e só o tempo confirmaria se o Modernismo formaria uma literatura radi-
calmente brasileira. A poesia nova, segundo a escritora, não era uma
forma definitiva de beleza. Cumpria de forma honesta a sua obrigação de
“[...] embrião, meio informe, ainda sem linhas determinadas, tentando
atingir com esforço os últimos estagios do desenvolvimento” (O Povo, 21
de junho de 1929, p. 03). No entanto, nela já residia desenvolvida a har-
monia da simplicidade, o abandono consciente de artifícios exagerados e
enfeites ridículos, o que era o ideal supremo de beleza. Outra vantagem
era a redução do poeta à raça, tornando o indivíduo em coletivo. O artista
novo cantava as paixões das multidões ao invés de se fechar em si mesmo.
A autora não soube dizer com certeza o maior nome do modernismo bra-
sileiro. Mário de Andrade? Plínio? Cassiano, Oswaldo, Ronald? Não sabia
ao certo. Acerca do Modernismo no Ceará, de Maracajá e do melhor mo-
dernista da terra, ela registrou que tinha um carinho tão grande pelo
movimento que acabou por se integrar nele. Conhecia muito bem Mara-
cajá, mas não sabia dizer qual o melhor dos novos.
Em 25 de julho de 1929 saiu a décima quinta resposta de autoria de
Franklin Nascimento. Em uma investida tresloucada marcou um golaço de
cabeça: 10 x 2! Segundo o poeta, o Modernismo era a “Fiel codaquização
do Seculo-Minuto. A alma instintiva do homem após-guerra espoucando
de dinamismo e beleza! Sintese. Ritmo. Sinceridade” (O Povo, 25 de julho
de 1929, p. 03). Não era escola literária, pois sem algemas e sem palmató-
rias devia criar o ritmo livremente, como dissera o poeta de Toda a
América. Porém, já vitoriosa. “Foi assim: um saraivada de diretos, e o pas-
sadismo... nocaute! Assistencia: Missa de 7º dia” (O Povo, 25 de julho de
1929, p. 03). Acerca do indianismo, do renascimento de alguma escola poé-
tica, da formação da literatura nacional, da poesia nova e do maior
modernismo brasileiro, ele comentou que existia o indianismo (que não
Thiago da Silva Nobre | 165

era uma escola), mas sim uma guinada antropofágica. “Introspecção. Bra-
silidade ou moquem! (O Povo, 25 de julho de 1929, p. 03). Era loucura o
renascimento de alguma escola poética do passado, “[com] Tangos e
[com] fóquices executadas ao cravo (da Holanda, necessariamente...) [...]
cousa pavorosa! O (Povo, 25 de julho de 1929, p. 03). O movimento, sem
dúvida, levaria à consoloidação de uma literatura brasileira, bastava ver o
verde-amarelismo de Cassiano Ricardo, o tupi or not tupi de Alavro Mo-
reyra e Bopp, bem como o primitivismo de Mário de Andrade (do Sul),
“simplesmente, a fundação ciclopica desse monumento colosso” (Povo, 25
de julho de 1929, p. 03). A poesia nova era similar a uma acrobacia aérea
arriscada sem o equipamento de segurando algum (no caso o paraquedas),
que era a prestidigitação da métrica e da rima. O grande modernista bra-
sileiro ninguém sabia, mas o que mais lhe agradava era Raul Bopp. Sobre
o movimento no Ceará, a folha Maracajá e o melhor da terra, ele comentou
que o conhecia palmo a palmo, bem como Maracajá. O que mais lhe agra-
daria daqui era Jáder de Carvalho, por seus versos possuírem “ritmo e rara
emotividade” (Povo, 25 de julho, 1929, p. 03).
Finalmente, em 26 de junho e 01 de julho, respectivamente, saíram a
décima sexta (Alcides Mendes) e a décima sétima (Stella Rubens Monte)
repostas da enquete literária: 12 x 2! E aqui pedimos desculpa ao leitor
para passar adianta sem aprofundar as opiniões dos escritores. Pois a vi-
tória estava mais do que desenhada, que aceitassem a derrota os
perdedores.
Quando aprofundamos os estudos sobre o Modernismo Literário nos
anos 1920, em Fortaleza, percebemos a profusão de experimentações, ca-
minhos, propostas e ideias envolvidas. Alguns a favor das mudanças,
outros contra. Por isso faz muito mais sentido pluralizar o conceito para
Modernismos, abarcando as várias possibilidades da época. E é nesse ema-
ranhado inextricável de discursos que podemos dar a conhecer o quanto
166 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

esse momento foi frutífero de ideias e quais os caminhos foram sendo tri-
lhados até chegarmos aonde estamos. Muitas experiências ficaram pelo
caminho esquecidas, é o trabalho da pesquisa reconstruir esses meandros
e percalços da experiência humana no tempo para melhor compreender-
mos o nosso presente. Até aqui focamos, sobremaneira, o jornal O Povo,
as suas notícias e a sua campanha em prol do Modernismo. No próximo
tópico abordaremos mais detidamente as folhas modernistas lançadas à
época: Maracajá e Cipó de Fogo.

3.3 - A Trindade Capenga

Três foram as folhas modernistas publicadas em Fortaleza. Duas


como suplementos literários e uma independente. Maracajá, Tangapema
e Cipó de Fogo. A primeira teve dois números (7 de abril e 26 de maio de
1929) e foi suplemento do jornal O Povo. A segunda, ao que sabemos, deve
ter tido apenas um número, porém ainda escondida e esquecida em algum
acervo ou, quem sabe, nem exista mais. Vai saber. Ela foi suplemento do
jornal O Ceará. A terceira teve somente um número (27 de setembro de
1931) e foi edição independente.
A primeira notícia sobre Maracajá saiu em 2 de abril de 1929 no jornal
O Povo, publicizando que a cidade teria uma folha modernista quinzenal,
circulando aos domingos. “Era uma cousa que faltava aos modernos do Ce-
ará. Mas domingo proximo a falta estará concertada. Circulará Maracajá,
revista literaria modernista, sob a orientação de Antonio Garrido, Paulo Sa-
rasate e Mario de Andrade” (O Povo, 2 abr. 1929, p. 6).
Segundo a notícia o periódico seria rigorosamente literário e intelec-
tual. Nada de noticiário ou assuntos políticos, apenas literatura e da nova.
Mal sabiam eles que tomar esse tipo de decisão e diretriz já era ter um posi-
cionamento político. Mais duas notícias sobre a folha saíram antes da
publicação aparecer. Uma de 4 de abril e a outra 6 de abril de 1929. Sendo
Thiago da Silva Nobre | 167

ela sintética e objetiva: “Maracajá um brado de revolução literaria no Ceará;


Circulará Domingo; [...] Supplemento literario do O Povo a 400 réis” (O
Povo, 4 abr. 1929, p. 8). A outra foi apenas uma cópia da primeira notícia.
Em 8 de abril, foi noticiado o aparecimento de Maracajá no dia ante-
rior com uma espécie de antipropaganda que tinha evidentemente a sua
eficácia:

Maracaja’ - a melhor revista do mundo circulou hontem. Foi uma decepção:


apesar de não ser vendida nas ruas, a edição foi esgotada nas agencias. O povo
não entendia nada, mas comprava e fingia que gostava, elogiava – o diabo!
Não correspondeu á expectativa de seus redactores: elles desejavam que nin-
guem a comprasse e toda a gente comprou. (O Povo, 8 abr. 1929, p. 08)

Mas vamos propriamente à edição. As edições de Maracajá são uma


fonte rica para delinear os temas, as preocupações e as propostas dos in-
telectuais envolvidos com a empreitada de renovação estética em
Fortaleza. A redação era de Antonio Garrido, Paulo Sarasate e Mário So-
breira de Andrade. A primeira página trouxe dois textos, um causo de A.
G. (Demócrito Rocha) e um artigo de Paulo Sarasate. O primeiro não ex-
plicava muita coisa sobre o que era Maracajá ou o que eles pretendiam.
Porém tentemos entrever as entrelinhas.
Demócrito Rocha se recusou e bateu o pé, não escreveria artigo lá
nada. “Ora, escrever artigo de fundo! Vocês estão louquinhos! Artigo de
fundo lá o que... Eu vou é contar uma historia que aconteceu” (Maracajá,
7 abr. 1929, p. 1). A história foi sobre um cisco incandescente que caiu na
vista do Mário. Foi mais ou menos assim: Mário de Andrade pegou um
trem da R. V. C. para pernoitar em Soure 7. Sendo inverno generoso, Mário

7
Caucaia é uma denominação de origem indígena significa “mato queimado” ou “queimado”. A Aldeia de Caucaia
ficou na dependência da Vila de Fortaleza até a determinação do Marquês de Pombal que a tornou Vila, juntamente
com mais cinco aldeias existentes na Capitania do Ceará. A Aldeia de Caucaia recebeu o nome de Vila Nova Real de
Soure por determinação da corte portuguesa, sendo oficializada em 15 de outubro de 1759. Vila Nova de Soure, após
a independência do Brasil, tornou-se Soure e depois Caucaia. A Estação de Soure foi inaugurada em 1917.
168 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

foi com a cabeça do lado de fora para sentir a brisa macia e refrescante do
clima ameno e úmido, bem como o cheiro da terra molhada. Mas a cha-
miné da locomotiva, faiscando e fumaçando, jogou um pedaço de carvão
no olho dele. Em Soure, Demócrito tentou tirar o argueiro com um algodão
e nada do objeto estranho sair.

Elle cerrava as palpebras e dizia, cearensemente: Tirou não. Foi quando a Teté
se propoz a tirar [...]. Mandou que elle se assoasse tres vezes e rezou alto: Corre,
corre, cavaleiro/Pela porta de São Pedro/ Vae dizes a Santa Luzia/ Que me tire
esse argueiro/Com a pontinha de seu dêdo (Maracajá, 7 abr. 1929, p. 1)

Foi o quanto bastou para o granulo sair de vez. Teté sabia muito bem
que Santa Luzia não falhava nunca, o bicho foi levado embora na pontinha
do seu dedo. E Demócrito arrematou: “Ah! Teté! Se Santa Luzia me tirasse
uma brasa que está queimando meu coração...” (Maracajá, 7 abr. 1929, p. 1).
À primeira vista não faz muito sentido. Por que começar com uma
história aparentemente corriqueira? Não era melhor, logo de início, apre-
sentar a plataforma e as propostas do grupo? Talvez não. De uma maneira
muito perspicaz Demócrito Rocha mostrou vários temas e ideias defendi-
dos pelos modernistas. Por exemplo, a síntese da linguagem, a valorização
da oralidade, da cultura e das crenças das pessoas humildes, bem como a
pesquisa incessante pelo elemento popular. E no fim das contas, Teté foi a
heroína do conto, uma mulher. Não extrapolando, é óbvio, as possibilida-
des de interpretação desse caso.
Já Paulo Sarasate, apesar de também se apropriar da oralidade e da
síntese da mensagem, foi mais pragmático e escreveu um artigo mirando
a balística contra os possíveis inimigos da empreitada. O título era “Passem
muito bem!”. Sarasate começou o seu texto aludindo a um inimigo que ele
não delineou muito bem, usando palavras como gentinha, eles, vocês, só
permitindo o leitor descobrir esse mistério no quinto parágrafo. Ele
Thiago da Silva Nobre | 169

antecipou o dissabor que publicação de Maracajá causaria nos círculos in-


telectuais da cidade. “Mas o diabo é que a revista não foi feita pra elles.
Danem-se. Mordam-se. Sapateiem. E estarão pregando no deserto... Uma
coisa nós pretendemos. [...] desprezar impiedosamente o remoque de vo-
cês” (Maracajá, 7 abr., 1929, p. 1).
O fato era que a revista era sim destinada aos intelectuais, fossem eles
entusiastas, críticos ou apenas curiosos, sempre é necessário conhecer mi-
nimamente aquilo que se vai apoiar ou zombar. Pois o povo, além de
geralmente não saber ler, está mais preocupado com a labuta diária exte-
nuante e com a garantia da sobrevivência material. Os algozes eram a casta
sensaborona dos intelectuais, que de birra empreenderam uma guerra.
Esses jovens eram doidos e desajuizados, deveriam ser colocados em hos-
pício. Porém, reiterou Paulo Sarasate afirmando que

Todo movimento libertario tem surgido assim. Entre pedradas. Entre asso-
bios. Coberto de apodos. Tal foi com o naturalismo e o parnasianismo, nas
letras. [...] A historia apenas se repete [...] já no tempo de Galileu era assim. E
com um agravante: em vez de assobio, fogo. (Maracajá, 7 abr. 1929, p. 1)

Para Sarasate a História se repetia e possuía um percurso linear evo-


lucionista. Longe de ser um pensamento original, ele representava um
certo tipo de concepção sobre história antiga e corriqueira entre os inte-
lectuais de Fortaleza. Entendido assim, o Modernismo só era consequência
natural das leis históricas universais, bastava apenas aceita-lo como fato
consumado.
Segundo Koselleck (2006), a história compreendida como mestra da
vida (Historie Magistra Vitae), ou seja, aquele tipo de relato que poderia
ser usado como exemplo, possuía uma grande flexibilidade, o que possibi-
litou diferentes concepções sobre o seu significado. Exemplo disso foi que
para Montaigne as histórias (Die Historien) desmentiam qualquer tipo de
170 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

generalizações. Já para Bodin as histórias confirmavam as regularidades


universais. Porém, ambos concordaram sobre o fato das histórias serem
repositórios de exemplos para a vida. Seu uso levou a um entendimento
das experiências humanas em um continuum histórico de validade geral.
Sendo assim, ela permitiria o desenvolvimento moral e intelectual dos con-
temporâneos, que poderiam evitar os mesmos erros cometidos no
passado. Essa definição resistiu praticamente incólume até o século XVIII.
E se, porventura, alguma mudança significativa acontecia, ela transcorria
de maneira tão lenta e vagarosa que os exemplos do passado continuavam
válidos para guiar a ação humana. Na experiência alemã houve um deslo-
camento lexical que foi esvaziando o sentido da história como mestra da
vida. A palavra (Historie) era um estrangeirismo para a língua alemã, que
significava o relato e a narrativa de um acontecimento, designando as ci-
ências históricas. O termo Historie foi sendo preterido pela palavra
Geschichte. O abandono se deu por volta de 1750. A relação entre passado
e futuro foi rearticulada de outra maneira. A história entendida como his-
tória para si criou um novo espaço de experiência. Desta forma, a história
(Geschichte) concebida como acontecimento único ou como complexo de
acontecimentos não poderiam mais capaz de ensinar e instruir como a
história (Historie) como narrativa exemplar.
Walter Benjamin (2005) não muito tempo depois, em suas “Teses
sobre o Conceito de História”, que ele não pretendia publicar, criticou esse
tipo de concepção de História. Para Benjamin o Historicismo se dava por
satisfeito em delinear as causas dos eventos históricos, mas apenas isso
não garantia que eles se tornassem fatos históricos. Isso só poderia acon-
tecer posteriormente pela concatenação de eventos, às vezes, distantes
muitos anos uns dos outros. O historiador precisava captar o momento
exato em que a constelação de acontecimentos da sua época entrou em
Thiago da Silva Nobre | 171

concomitância com outro. O conceito de presente deve ser o tempo de


agora, no qual estão cravejados fragmentos do tempo messiânico.
É aparente que Paulo Sarasate, bem como muitos de seus pares, es-
tivessem imbuídos das leituras clássicas e dessa concepção de História
devido a uma educação eminentemente humanista. A reformulação no en-
sino no Ceará só foi empreendida na década de 1920 por Lourenço Filho.
No texto em seguida com o título de “Encontro de dois batutas: Pas-
choal Carlos Magno e Jader de Carvalho”. Jáder respondeu à visita e ao
discurso de Pascoal Carlos Magno 8 proferido aos estudantes, em 1929. Ele
estava em campanha para fundar a Casa do Estudante do Brasil. O poeta
começou com um pedido de desculpa, pois Carlos Magno desembarcou
sozinho, lotado de livros do sul e fitando a cidade.
Segundo Jáder, o Ceará há três séculos que não tinha tempo para ma-
nifestações, pois o Estado estava sempre a exportar músculos e força para
o trabalho em outras regiões. Acre, São Paulo, Amazônia e até o Peru. “Dá-
se o suor, o braço, o sangue! E depois? Depois... o cearense volta, de mãos
vasias” (Maracajá, 7 abr. 1929, p. 2). Os mais sortudos escapavam do im-
paludismo e do beribéri vivos e sem muitas sequelas. Se era verdade que
o determinismo geográfico impulsionou os portugueses aos mares desco-
nhecidos, porque não entender o destino andejo e andarilho do povo
cearense como uma fatalidade incontornável?
Pascoal não era somente o universitário ou o modernista maluco,
mas sim a chave do Brasil brasileiro. Apesar de filho de imigrantes italia-
nos, nasceu envaidecido pelo céu americano e ritmado pela música
brasileira. “[...]filho do alienigena adaptado. [...] fruto do caldeamento das

8
Nasceu no dia 13 de janeiro de 1906, no Rio de Janeiro, filho de Nicolau Carlos Magno e de Filomena Carlos Magno.
Foi Poeta, escritor, teatrólogo, político, diplomata. Criou, em 1929, a Casa do Estudante Brasileiro e, em 1938, o
Teatro do Estudante do Brasil (TEB).
172 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

raças. E’ o homem que concretiza a victoria do meio modelador. E’ você,


Paschoal!” (Maracajá, 7 abr. 1929, p. 2).
A sua visita tinha objetivo de promover o conhecimento entre os ir-
mãos desconhecidos entre si: nortistas e sulistas. Então, Jáder fez uma
apresentação panorâmica de algumas regiões do Ceará: Baturité com os
seus cafezais e as suas caboclas cheirosas; O Cariri, quem sabe até mais
formoso que o Vale do Paraíba. O poeta só não pode apresentar o rio Ja-
guaribe, pelo fato de Pascoal estar apressado e de passagem. Caso
contrário ele poderia ver a viola triste das várzeas alagadas, que arranca-
vam as carnaúbas dando a impressão de se vislumbrar na enxurrada Peri
salvando Ceci. O Ceará em sua especificidade e peculiaridade era o refúgio
da brasilidade. E se os do Ceará não davam notícia de vida é que a obra
silenciosamente empreendida ainda não terminara: a construção do Bra-
sil. Para Jáder de Carvalho, o fato do Ceará estar atrasado no âmbito das
manifestações culturais seria devido à exportação massiva de mão de obra
para outros Estados. Outro aspecto interessante é perceber que, segundo
Jáder, a mistura das raças se dava positivamente quando a parte europeia
se sobressaía sobre as demais. Pascoal era um homem branco descendente
direto de italianos. Será que não passou pela cabeça do autor pender o
pêndulo para os descendentes de índios ou de negros? Talvez essa pareça
ser uma contradição impensável para ele à época, mas nem por isso apa-
rece em menor exagero para nós contemporâneos.
Porém, um assunto sempre recorrente para os intelectuais compro-
metidos com o Modernismo no Ceará, além da construção da identidade
brasileira, era promover o conhecimento do Brasil pelo Brasil, entre os
povos e as suas regiões, entre nortistas e sulistas, que apesar de comparti-
lharem a mesma nacionalidade ainda conheciam pouco ou quase nada do
seu vasto país continental.
Thiago da Silva Nobre | 173

A empreitada de criação do Brasil brasileiro devia ser um conhecer


sobre si e sobre o outro, uma aproximação entre o estranho e o desconhe-
cido. Os de Maracajá sempre reconheceram essas diferenças entre centro
e periferia, entre bonança e pobreza. E sabendo muito bem dessa condição
fizeram uso da pilhéria, da blague, do chiste, da piada e do gracejo para
brincar com os camaradas intelectuais do sul, explicitando de forma cô-
mica os descompassos de desenvolvimento nacional. “Olhem, vocês do sul:
para que o jecatatú e o manéxiquexique do nordeste saibam que vocês
existem, MARACAJÁ, sempre que encontrar alguma cousa bôa, dahi, irá
transcrevendo por aqui” (Maracajá, 7 abr. 1929, p. 3). Mas que eles não
quisessem cobrar direitos autorais, pois ninguém pagaria. E não pararam
por aí. Até um recado dos tipógrafos que compuseram Maracajá foi publi-
cado. Se realmente foram os tipógrafos ou uma brincadeira dos redatores
não sabemos muito bem, porém a verdade sabida é que o escrito afirmava
que “Vocês do sul desculpem os typographos do Ceará, Elles não poderam
fazer uma revista melhor. Si tivessem mais recurso material, mostrariam
como o cearense saber tirar dois couros de um bóde só. (Maracajá, 7 abr.
1929, p. 2). Eles sempre estavam a se referir com humor às diferenças
tanto materiais como culturais entre as regiões brasileiras.
Talvez o grande exemplo desse espírito brincalhão seja o texto de Má-
rio Sobreira de Andrade intitulado “Cavallos de Corrida”. Nele o poeta
criou uma anedota em forma de fábula, em que os cavalos do turfe eram
ele próprio e o xará bem mais famoso do sul.

Ha um Mario de Andrade no sul. De São Paulo. Outro do Norte. Do Ceará.


Mario de Andrade do sul é poeta modernista. O daqui tambem é poeta moder-
nista. Pode ser que se confundam os nomes. Mas o de lá não tem obrigação de
mudar o nome. Nem o daqui tem a obrigação de mudar o nome. Continuam
como estavam. Faz de conta que são cavallos de corrida. Estão no mesmo lo-
gar. Vamos vêr quem alcança mais depressa maior nome. – Larga! A platéa:
174 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

os do sul zangados porque o de lá é mais corredor e não devia correr com o


nosso; os do Ceará zangados porque o nosso se paralela ao sulista. (Maracajá,
7 abr. 1929, p. 4)

Apesar da brincadeira o texto trouxe à tona as relações de poder exis-


tentes, bem como as diferenças regionais. E o fim da história nós já
conhecemos. Mário de Andrade se tornou um intelectual de renome naci-
onal, é estudado em faculdades e nas escolas, bem como reaparece na
mídia. Mário Sobreira de Andrade foi soterrado pelas areias do esqueci-
mento, a não ser que você leitor seja um pesquisador ou entusiasta da
literatura cearense, ou, por acaso, esteja lendo agora essas linhas. A ver-
dade é que Mário Sobreira de Andrade foi muito importante para o
movimento modernista no Ceará, bem como também atuou como padri-
nho intelectual aos jovens da 2ª geração modernista, daquele grupo que
gravitou em torno da Revista Clã9.
Já no final do primeiro número há um texto da Rachel de Queiroz,
intitulado “Se eu fosse escrever o meu manifesto artístico”. Nele a escritora
debateu sobre a fervorosa questão da universalidade da Arte. Assunto esse
que perpassou as várias escolas, movimentos e tendências literárias. A jo-
vem intelectual se aproximou, em certo sentido, da célebre frase do
escritor russo Leon Tolstói, “Se queres ser universal, começa por pintar a
tua aldeia”. Mas sem deixar de lado também a influência direta e indelével
das leituras do realismo e do regionalismo literário do século XIX, como
Eça de Queiroz, Émile Zola, Rodolfo Teófilo, Domingos Olímpio e Euclides
da Cunha. A própria Rachel em relato falou sobre como tinha se dado sua
educação literária, as suas influências do início da carreira e a escrita do
seu livro O Quinze.

9
Para uma estudo mais aprofundado sobre o tema ver NOBRE, Thiago da Silva. Geração moça desta Gleba:
movimento intelectual de clã e a consolidação do campo literário de Fortaleza na década de 40. Dissertação (Mestrado
em História). Mestrado Acadêmico em História e Culturas. Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013.
Thiago da Silva Nobre | 175

Quando eu tinha 12 anos e estudava e estudava num colégio de freiras. Eu


estava lendo em francês um desse livrinhos de moça, que contava a história
de uma jovem que vê dois namorados se beijando e fica com aquele homem
na cabeça; minha mãe se aproximou e disse: “Minha filha, não fique lendo
esses livrinhos que só falam de sexo. Venha cá que vou lhe dar coisa melhor”.
E me botou na mão A cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. Foi assim que teve
início, de fato, minha educação literária. [...] Na época [de publicação de O
Quinze], eu tinha uma fixação pela seca porque [...] este é um assunto perma-
nente no Nordeste. O que eu tinha lido a esse respeito era aqueles livros do
Rodolfo Teófilo e do Domingos Olímpio, aquela coisa pesada da escola realista
de Zola. [...]. [...] No Colégio, tive que ler Os Sertões, de Euclides da Cunha, e
detestava. (QUEIROZ, 1997, p. 22-24)

Entendendo essas influências prévias da autora não é de espantar


acerca da sua concepção de universalidade tendendo ao regionalismo. Ob-
viamente que ela conversava entre a tradição já estabelecida e o debate
contemporâneo da sua época. Apesar do título criativo o escrito era sim
um manifesto, que representava uma das vertentes modernistas: o regio-
nalismo. Dentre as várias propostas, proposições e experimentações do
período, foi aquela que veio a se tornar dominante e conhecido na História
da Literatura como o Romance de 30.

Eu canto alma de minha terra e a alma de minha gente. Canto o meu sol ar-
dente, amoroso e ruivo, que é o mais pessoal e característico de todos os sóes
do mundo. Eu quizera que meu verbo estrelejando em faiscas, reunisse-as to-
das num só fóco, atrahindo para minha terra os olhares do mundo inteiro.
(Maracajá, 7 abr. 1929, p. 8)

O que fazia sentido para a escritora era falar sobre as gentes e o meio
específico em que estavam inseridas. Ou seja, era narrar a partir das suas
experiências e da sua percepção o lugar aonde cresceu e viveu, podendo
mostrar ao mundo inteiro que lugar era este. Porém, ela ainda admitia a
176 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

fraqueza da sua mensagem, tal qual faíscas a desaparecerem rápido e


apressadamente como os pingos de fogo das estrelinhas de São João. Ape-
sar de muitos terem sentenciado que toda Arte devia ser universal, tão logo
ela se propôs uma indagação: mas afinal de contas, como se dava o pro-
cesso de universalização da nossa Arte? Por acaso, era transformá-la em
uma colcha de retalhos cosmopolitas e descaracterizados ou, ao contrário,
delinear um contorno regional, nacional e caracteristicamente brasileiro,
que a fizesse diferente, distinguível e discernível de outras expressões ar-
tísticas estrangeiras. Esta faina já veio sendo metodicamente
implementada há dois séculos de literatura por outros povos e estéticas
estrangeiras, retalhando, espalhando, fracionando, esquartejando, dilace-
rando a nossa realidade e criando um construto descaracterizado e
anônimo, “dividindo-se pelos deuses da Grecia, pela nevroticas perversões
byronianas, pelo heroico preciosismo de Hugo, pela doentia extravagancia
do nephelibatismo, penumbrismo, futurismo, e quejandas contorsões de
decadencia” (Maracajá, 7 abr. 1929, p. 8).
Para Rachel, a expressão artística só podia ser verdadeiramente com-
preendida e admirável se fosse espontânea e sincera. Aceitando esse
pressuposto, o seu coração e sensibilidade só podia cantar o que sente e o
que pensa a sua raça. A compreensão e interpretação de sentimentos, be-
lezas, paisagens, gestos e costumes, todos eles estranhos e estrangeiros,
era por demais convencional, falso e impessoal. Eis aí o motivo do seu na-
cionalismo e, mais especificamente, do seu regionalismo ensolarado.
Quanto mais próximo e familiar as paisagens e os motivos de inspiração,
mais intimamente poderia se integrar o artista do que ele observava e per-
cebia, podendo ser espontâneo e sincero na sua interpretação da realidade.

Eis porque eu canto o sertão, o sol, o Orós, as carnahubas, o algodão, os serin-


gueiros, os jagunços, os cantadores e os vaqueiros, a caatinga, a Amazonia, a
praça do Ferreira e o Cariry; eis porque canto o presente tumultuoso de minha
Thiago da Silva Nobre | 177

terra e o seu passado tão curto, tão claro, tão cheio de expansão e vitalidade
que é quase outro presente. (Maracajá, 7 abr. 1929, p. 8)

O manifesto de Rachel de Queiroz estava ligado a uma extensa tradi-


ção intelectual, que os estudiosos geralmente remontam ao século XIX.
Iniciando a partir de Baudelaire e Rimbaud, passando por Verlaine, Ana-
tole Baju, Jean Moréas, Mallarmmé e Jules Romains. No século XX
podemos citar o Futurismo de Marinetti, o Expressionismo, o Cubismo de
Apollinaire, o Cubofuturismo dos russos, o Dadaísmo de Tristan Tzara, o
Espiritonovismo, o Surrealismo de André Breton, a vanguarda portuguesa
representada por José de Almada-Negreiros e Fernando Pessoa. Isso só to-
mando em conta o velho continente europeu. No Brasil podemos
mencionar as conferências de Graça Aranha e Menotti del Picchia lidos na
Semana de Arte Moderna, os prefácios de Mário de Andrade, os manifestos
da Poesia Pau-brasil e Antropófago de Oswald de Andrade e muitos outros
escritos produzidos na época.
No entanto, existem autores que recuam ainda mais o ponto de infle-
xão da escrita de manifestos modernistas, chegando até o Manifesto no
Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado em 1848.
Para Francisco Foot Hardman (1988), o século XIX trouxe consigo o esma-
ecimento dos referenciais basilares da sociedade moderna. A própria
cidade (uma das grandes invenções da humanidade) se tornou uma es-
finge a ser decifrada, no qual homens e mulheres traçavam trajetos
labirínticos, oblíquos e inesperados, esperando credulamente que as suas
convicções e crenças não fossem totalmente destruídas. É nesse sentido
que a célebre frase “Tudo o que é sólido e estável se volatiliza” ou “Tudo o
que é sólido se desmancha no ar” (dependendo da tradução) pressente e
define muito bem a natureza etérea e liquefeita da Modernidade, ou, nas
palavras de Marx e Engels, da moderna sociedade burguesa. Por isso que
178 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

esse texto emblemático pode ser entendido como o primeiro manifesto


modernista, se compreendemos a Modernidade como uma totalidade ar-
ticulada com os vários aspectos e matizes da existência humana concreta.
Esse diagnóstico ácido e lúcido estava inserido no contexto das convulsões
e revoluções europeias que fizeram parte do seu plano de fundo temático.
A expressão alegorizou o impacto das grandes mudanças políticas da
época, as consequências destruidoras do impacto e fricção entre forças so-
ciais e históricas incompatíveis, a desarticulação das bases materiais e
intelectuais, a implosão dos sustentáculos culturais da sociedade ocidental.
Segundo Marshall Berman (1986), Marx tentou compreender a vida
moderna como uma totalidade concreta. Ou seja, não há uma separação
visível entre vida e experiência, abrangendo a política e a psicologia, a in-
dústria e a espiritualidade, as classes dominantes e as classes dominadas.
Essa compreensão da realidade como um todo concreto esbarra na frag-
mentação do conhecimento contemporâneo. Geralmente, as
interpretações atuais se dividem em dois grupos que não dialogam entre
si. Em primeiro lugar, a modernização que abrange a economia e a polí-
tica. Em segundo lugar, o modernismo que engloba a arte, a cultura e a
sensibilidade. Via de regra Marx sempre é requisitado na literatura sobre
a modernização como fonte primária e como referência obrigatória. Já no
que diz respeito sobre a literatura que trata do modernismo, ele não é re-
conhecido nem como nota de rodapé. Os estudiosos costumam adotar a
geração de 1840 como o início, elegendo intelectuais como Baudelaire,
Flaubert, Wagner, Kierkegaard, Dostoievski. Marx só é lembrando, por-
ventura, com um resquício de uma época anterior, primitiva e primeva,
cujos sólidos valores tinham sido destruídos pelo Modernismo. No en-
tanto, quanto mais nos aproximamos de Marx percebemos que essa
dicotomia aparente não faz sentido algum. Tomemos novamente de
Thiago da Silva Nobre | 179

empréstimo a frase do Manifesto “Tudo o que é sólido se desmancha no


ar”, que para Berman se propõe como

A ambição cósmica e a grandeza visionária da imagem, sua força altamente


concentrada e dramática, seus subtons vagamente apocalípticos, a ambuigui-
dade de seu ponto de vista – o calor que destrói é também energia
superabundante, um transbordamento de vida –, todas essas qualidades são
em princípio traços característicos da imaginação modernista. Representam
com exatidão a espécie de coisas que estamos preparados para encontrar em
Rimbaud ou Nietzsche, Rilke ou Yeats [...] (BERMAN, 1986, p. 88)

Essa imagética consolida, na compreensão Marx, a moderna socie-


dade burguesa. O grande drama histórico da Modernidade é que tudo que
fora sagrado até então era profanada e obliterado. Qualquer aura ou halo
de santidade desapareceu e não podemos compreender nós mesmos sem
lidar sobriamente com essa ausência. Apesar da perturbadora realidade,
estamos todos juntos (homens e mulheres), agentes ativos e passivos den-
tro de um processo vertiginoso e alucinante que desmantelou tudo o que
um dia teve algum tipo de solidez.
Porém, voltemos ao Ceará que é o que nos interessa por aqui. O se-
gundo número de Maracajá só veio circular em 26 de maio de 1929. A. G.
(Demócrito Rocha) logo disparou sobre a divulgação e distribuição do pri-
meiro número da folha:

O primeiro número de Maracajá foi espalhado por todo o globo e até por fora
do referido esteroide. A esta hora qualquer habitante de Marte já estará fa-
zendo antropofagia. Vocês lá do sul que escreveram sobre o gato selvagem do
nordeste toquem nos ossos. Isso! Nós estamos ligados por um sentimento
unico - o da voracidade. Juntemo-nos para comer tudo o que deva ser comido
no Brasil. (Maracajá, 26 maio 1929, p. 2)
180 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Segundo Demócrito, com um certo exagero brincalhão, afirmou que


o jornal foi divulgado por todo a orbe terrestre e até fora dela. Quiçá che-
gando ao planeta Marte e aos marcianos. O importante é que o barulho
feito aqui foi notado no Sudeste (centro econômico e cultural do país), ar-
ticulando uma rede de sociabilidades em nível nacional. Apesar das
diferenças aparentes, eles estavam irmanados por um único sentimento:
a voracidade. Devorando tudo aquilo que precisasse ser deglutido.
Nos dois textos de entrada do folheto esses temas foram explorados.
O primeiro com o título de “A Matança dos Inocentes”, de Demócrito Ro-
cha. O segundo intitulado “Tocando a mesma inúbia”, de Paulo Sarasate.
Para Demócrito, o Brasil precisava ser sitiado e trancar toda fronteiras.
Incorporar o espírito de Herodes e iniciar o assassinato dos inocentes, pois
o país estava infestado deles. Se tal gente estava predestinada a servir de
pasto a todas as pragas estrangeiras, porque não morrer todos logo? Pre-
ferível assim do que definhar pelas concessões aos estrangeiros, a exemplo
daquela dada a Henry Ford 10. É de praxe que os organismos sempre se
defendam contra os antígenos. O Brasil, muito pelo contrário, elogiava,
gozava e batia palmas, sem ter febre alguma. Como evitar então essa ino-
cência? A resposta era fazer brasileirismo intuitivo igualzinho ao que os
cearenses e os sulistas estavam fazendo, mobilizando-se para salvar a
gleba do elemento alienígena.

Ha, porem, uma diferença entre nós e os do sul. Influencia do clima. Elles met-
tem excessiva erudição no que fazem. E bancam sisudez. Nós somos alegres por

10
Muito provavelmente Demócrito Rocha estava se referindo ao projeto Fordlândia. Consistiu na concessão, pelo
estado do Pará, de uma vasta área de terras às margens do rio Tapajós ao empresário norte-americano Henry Ford,
que emprestou o nome ao atual distrito de Aveiro. O projeto foi aprovado pela Assembleia Legislativa, em 30 de
setembro de 1927. Ford tinha a intenção de usar Fordlândia para abastecer sua empresa de látex, que necessário para
a confecção de pneumáticos, tentando escapar da dependência da borracha produzida na Malásia (colônia britânica
à época). Os termos da concessão isentavam a Companhia Ford do pagamento de qualquer taxa de exportação de
borracha, látex, pele, couro, petróleo, sementes, madeira e outros bens produzidos na gleba. Oficialmente foi
encerrado em 24 de dezembro de 1945, em acordo entre Henry Ford II (neto do fundador) e o governo federal.
Thiago da Silva Nobre | 181

indole. Em São Paulo, os rapazes para fazer a sua antropofagia precisam dar laço
á gravata. [...] Aqui não. Nós rimos de tudo. MARACAJA’ espirra de uma furna
saturada de jovialidade. E os brasileiros gostem disso. Gostam de tudo quanto
apparece risonho e cantante. Gostam do canto da jandaia (o canto da jandaia
nunca foi triste! historias de Alencar!) (Maracajá, 26 maio 1929, p. 2)

Reconhecendo os símiles entre os grupos e os movimentos culturais


nos Estados, ele também sublinhou as diferenças entre os do Ceará e os de
São Paulo. Os do Sul eram sérios demais, quem sabe influenciados pelo
clima frio e pela garoa fina, os do Norte eram brincalhões incorrigíveis e
tudo era matéria de galhofa, quem sabe influenciados pelo clima quente o
ano inteiro, só interrompido pela quadra invernosa ou pela chuva do caju,
se não fosse ano de seca brava. E prosseguiu o jornalista, a novíssima ori-
entação tinha a agitação como aspecto positivo. E por laborioso e árduo
trabalho era colocado na cabeça do povo o amor à terra.
Já no texto de Paulo Sarasate, expressou a sua felicidade aos da An-
tropofagia, pois era assim que essa relação devia se dar. “O sul chamando
o norte. E o norte chamando o sul. Convidando-o para a luta. Assanhando
as energias moças do lado de cá e de lá” (Maracajá, 26 de maio, 1929, p.
01). Era assim que o movimento deveria ser, união e articulação das par-
tes, juntamente com o oeste do Brasil. Todos comendo e partilhando a
mesma cuia, brasileiramente e antropofagicamente. Que os de São Paulo
tratassem de devorar os italianos, que os daqui iam garantir as possessões
por estas plagas. E reiterou: “não passará camarão pela malha. O landuá
está bem trançado e há de pegar tudo. Com tripas, etc” (Maracajá, 26 maio
1929, p. 1).
Beligerância contra tudo o que fosse estrangeiro. Murro na literatura
importada cheirando a água de praia, prevalecendo o elemento nacional.
Espontâneo, sincero e iluminado como o alvorecer tropical. Atroz, feroz e
insolente como o gato do mato Maracajá. Somente assim se podia ter uma
182 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

literatura nacional, advinda dos boqueirões e esturricado pela insolação


tupiniquim. Escorrida, curtida e sem manchas de estrangeirismo. Litera-
tura que ainda não era Literatura, confessou Sarasate, pois ainda estava
sendo criada e inventada. “Mas que triumphará gloriosamente. Desabro-
chando do atascal com um cheiro de coisa bôa. Como a agua-pé á beira
dos pântanos e dentro dos charcos. Doce como o favo da jaty. Brasileira
como o Brasil que nós queremos” (Maracajá, 26 maio 1929, p. 1).
Em carta publicada no jornal O Povo, em 01 de maio de 1929, Raul
Bopp alertou que recebeu um telegrama noticiando o aparecimento de Ma-
racajá. Estava ansioso sobre lê-la. Segundo Bopp, “MARACAJA’ é a onça
pintada que defende a castidade da terra. Força virgem do matto contra a
civilização” (O Povo, 1 maio 1929, p. 4). Enquanto isso ia mandando artigos
que ainda iam ser publicados na Revista de Antropofagia (segunda denti-
ção). Dessa forma, o material poderia aparecer em vários estados ao
mesmo tempo, alimentando e fortalecendo a rede nacional de sociabilida-
des. E finalizou assim:

Vamos ver si recebemos tambem coisas do Norte para maior divulgação por
estas bandas. Coisa boa. Cheirando a sol. Vocês que têm o mandacarú, a serra
da ibiapaba, o padre Cícero. Receita pra acabar com a epidemia: cada pessoa
soltar três foguetes. Viva. Isso é o maior poema da nossa historia. Estorou fo-
guete no Nordeste: acabou-se a tristeza brasileira. Vamos ver si vocês nos
mandam contar coisas dahi muito em breve. Por ora em abraço de camarada-
gem com o maracajá. (O Povo, 1 maio 1929, p. 4)

Dias depois Raul Bopp enviou uma carta a Heitor Marçal, falando so-
bre a recepção de Maracajá em São Paulo.

O Maracajá foi um dia de festa por aqui. Manda coisas do Garrido, do Mario
de lá, para correr uma carreira com o daqui. Turf. E o Franklin Nascimento?
Mande prosa. Prosa irreverente, Pau. Isso agora é uma espécie de thermidor
Thiago da Silva Nobre | 183

antropofagico. Pau em tudo, na alta burguesia das letras. Sem essa derrubada
não pode haver plantio novo que preste. (O Povo, 15 maio 1929, p. 5)

Em seguida perguntou ao poeta Heitor Marçal para que jornais devia


mandar os seus escritos, que fossem livres, independentes, sem conformi-
dade com o catolicismo e outras doenças nacionais. O movimento estava
se consolidando, era empreitada séria, sincera, brasileira e indígena. Sem
os malefícios da catequese, das reprimendas sexuais, pois foi com o nosso
silvícola penetrando na enciclopédia que a Revolução Francesa foi influen-
ciada. A idealização do índio foi iniciada com Rousseau e o romantismo de
Chateaubriand, passando pela pena de José de Alencar e de Gonçalves Dias.
O que gerou o índio teórico, ideal e totalmente fora do seu meio. É interes-
sante perceber que, Raul Bopp e os seus pares, acreditavam realmente que
estavam pintando o índio com objetividade e como realmente ele era, sen-
tia e pensava. Mal sabiam eles que estavam inventando uma representação
possível (a sua imagem e semelhança), que trazia em seu âmago muito da
sua subjetividade, anseios, expectativas e das pesquisas sobre a cultura po-
pular. O autóctone pretensamente verdadeiro e real que eles
preconizavam, falava muito mais deles próprios (seus criadores) do que
propriamente da criatura.
Heitor Marçal em reposta a Raul Bopp prosseguiu refletindo sobre o
índio e o desenvolvimento da identidade nacional. E, sobremaneira, gostou
da forma como Bopp se dirigiu a ele e aos seus demais, sem pedantismos.
“Meu caro Raul Bopp: Você me escreveu sobre Maracajá [...] e pediu-me
cousas do norte. Ora, você sabe, que para o sul, o norte é, pelo menos em
literatura: Menino amarello, comedor de broa” (Maracajá, 26 maio 1929,
p. 4).
Não é de admirar que os intelectuais tivessem claramente em suas
percepções as diferenças e descompassos culturais entre os centros
184 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

urbanos do Brasil. E prosseguiu dizendo que os antropófagos do Ceará


eram bons de boca e com esse fato já estavam melhor posição perante o
antepassado de canitar vermelho e cocar verde e amarelo. O índio só não
abocanhou o português porque na hora sentiu muita gastura dele. A bor-
doada ia ser certeira. O indígena precisava se tornar verdadeiramente
brasileiro, sem sanfona obesa de ares importados ou a viola de encordoa-
mento estrangeiro. Por mais que se tentasse compensar esse problema
com a escolha de madeiras nacionais para a produção de timbres repletos
de brasilidade, o som terminava atravessado. Era inadiável a destruição da
viola. “Quebrar de vera. Musica brasileira com berimbau. Mas berimbau
brasileiro. Berimbau feito de bambu. Com uma quenga de coco na ponta.
E corda brasileira. Tripa de gato do mato espichada no sól. Acabar com o
môfo portuguez que esta sujando os cantos da terra. Tudo Brasileiro” (Ma-
racajá, 26 maio 1929, p. 4).
O índio cearense, prosseguiu Marçal, foi corajoso, arredio, aguerrido
e intrépido, devorando o padre Pinto. Mão não foi o suficiente, deveriam
também ter assado na própria banha e comido o padre Luis Figueira. O
indianismo alencarino foi fabuloso e inverossímil, mas todo mundo caiu
na balela. “Como se fosse possivel arranjar um romance de amôr entre
uma gazela e uma onça sussuarana” (Maracajá, 26 de maio, 1929, p. 04).
Iracema deveria ter assado o branco no moquém para a tribo inteira se
empanturrar e se melar com a gordura derretida de Martin Soares Mo-
reno. Viva Iracema! E logo o poeta elaborou uma proposta de como devia
ser a linguagem e expressão genuinamente brasílica: “O verso no Brasil
deve ser nú. Nú como o índio éra. Sem ponto. Sem virgulas. Sem nada.
Mais adiante arranjam-se signaes convencionais. Tirados de motivos da
ceramica primitiva” (Maracajá, 26 maio, 1929, p. 4).
Paulo Sarasate continou em outro texto essa espécie de revanche car-
nívora contra Alencar, reinterpretando e reformulando a história de
Thiago da Silva Nobre | 185

Iracema pelo viés antropofágico. Ele citou uma passagem da obra que nar-
rava os últimos momentos do chefe Batuireté que, mesmo sem forças,
conseguiu olhar para o seu neto e o para Soares Moreno (Gavião branco),
murmurando “Tupan quiz que estes olhos vissem antes de se apagarem o
gavião branco junto da narceja” (Maracajá, 26 maio 1929, p. 6). Batuireté
significa narceja ilustre e na forma figurada pode ter o sentido de valente
nadador. Combateu as tribos tabajaras percorrendo do litoral ao rio Jagua-
ribe. Mas quando envelheceu, perdendo a força e a agilidade, passou o
tacape e a liderança ao seu filho Jatobá. Após isso iniciou uma peregrinação
para só terminá-la na serra de Maranguape, aonde assentou exílio. Os che-
fes pitiguaras sempre iam visitar o velho Manguarab (o grande sabedor da
guerra) para receber conselhos sobre as melhores estratégias bélicas.
Certa vez o seu neto Poti foi visitá-lo trazendo consigo Soares Moreno. Foi
nesse derradeiro momento do último suspiro, entre morte e iluminação,
que Batuireté chamou o estrangeiro de gavião branco e o seu neto de nar-
ceja. Segundo o alumbramento premonitório do ancião, a ave de rapina ia
caçar e matar brutalmente a sua presa, ou seja, as etnias indígenas iam ser
todas dizimadas pelo colonizador europeu. “Que tal? Não foi trouxa o ve-
lho Batuireté? O que elle devia ter feito era comer o gavião branco. Elle
não era antropofago? (Maracajá, 26 maio, 1929, p. 6).
Demócrito Rocha continuou esse exercício de reescrita da História do
Ceará com o texto “Philosofia de Antropófago”, que inclusive foi publicado
na Revista de Antropofagia nº 15 (2ª dentição), no mesmo sentido do es-
crito de Heitor Marçal mencionado acima. Para ele, o centenário de
Alencar acabou se tornando uma questão familiar, pois “Todo o Brasil fi-
cou sabendo o que somente os eruditos sabiam: que elle era filho de um
padre...antropofágo” (Maracajá, 26 maio 1929, p. 7). O dentista e poeta fez
186 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

uma brincadeira ácida com o fato do pai 11 de José de Alencar mesmo sendo
padre ter se casado e gerado filhos. O grande erro de Alencar foi a estiliza-
ção do índio. A mesma coisa aconteceu com Tapir e Cipiao de Olavo Bilac.
Mentira! A primeira negociação obscura dos brasileiros foi a de Poti se ali-
ando aos portugueses para expulsar os holandeses. Se Poti tivesse refletido
melhor, teria liquidado os dois com um só golpe de tacape. “Depois que
elle se chamou don Antonio, deveria ter sido comido summariamente”
(Maracajá, 26 maio 1929, p. 7). Esse negócio de canção dos tamoios nunca
existiu, foi invencionice dos românticos obcecados por epopeias. Dizima-
ram assim todas as tribos. Muito antes do dr. Serge Voronoff 12 começar a
enxertar glândulas sexuais de primatas em pessoas, os silvícolas já comiam
macacos. O rejuvenescimento vinha pela barriga, que esse negócio de en-
xerto não pegava direito. Gonçalves Dias (deglutido pelos peixes) meteu
uma capa de estudante de Coimbra no timbira. “Resultado: o indio ficou
cheio de espermatozoide e de bacilos de Koch. E quase morreu tísico” (Ma-
racajá, 26 maio 1929, p. 7).
Seguindo a mesma linha dos colegas, Franklin Nascimento também
produziu a sua contribuição acerca da reinterpretação do índio romântico
de Alencar. No poema “O Erro do Pagé” ele misturou o imaginário da
grande seca de 1915 e a narrativa da obra Iracema.

Foi no 15,
alencar,

11
José Martiniano Pereira de Alencar nasceu no Crato dia 16 de outubro de 1794 e faleceu no Rio de Janeiro dia 15 de
março de 1860. Foi padre, jornalista e político. Pai do escritor José de Alencar e do diplomata Leonel Martiniano de
Alencar (Barão de Alencar). Participou da Revolução de 1817 e da Confederação do Equador (1824) juntamente com
sua mãe (Bárbara de Alencar) e seus irmãos (Tristão Gonçalves e Carlos José dos Santos).
12
Serge Voronoff (1866 – 1951) foi um médico russo que prometia o rejuvenescimento e efeitos afrodisíacos aos
idosos através de xenotransplantes das glândulas sexuais de símios em humanos. Voronoff apareceu na imprensa
brasileira pela primeira vez em 1928. No mesmo ano veio ao Brasil dar palestras e realizar procedimentos cirúrgicos.
Realizou uma intervenção Feliciano Ferreira de Moraes e outra em um bode. As experiências foram aparentemente
bem-sucedidas, o que gerou uma grande receptividade popular na época. Essa figura enigmática se cristalizou no
imaginário virando até tema de músicas como Seu Voronoff (1929) de Lamartine Babo e João Rossi, bem como
também foi citado em música de Noel Rosa no mesmo ano.
Thiago da Silva Nobre | 187

iracema andava pelas ruas de fortaleza,


esmolando...
(a alma de irapuan
enrodilhara-se no sol)
iracema,
alencar!
coberta de trapos que nem bruxa velha!
cadê a tanga
vistosa
(sempre na moda)
e o lindo cocar
de penas vermelhas,
azues, amarellas,
de todas as cores?!
esmolando,
alencar!
e moacyr presso ao collo,
chorando,
com fome!...
pobre curumi!
cariman se acabou
e tudo por causa de araken,
alencar!
elle bem devia ter comido moreno!...
(Maracajá, 26 maio 1929, p. 7)

No poema a personagem Iracema se tornou uma retirante andeja pe-


rambulando e esmolando pelas ruas de Fortaleza. Já não tinha mais a
tanga vistosa e o cocar com toda a sorte de penas coloridas, para se cobrir
restou-lhe apenas trapos velhos. A alma de Irapuã 13 estava enredada ao
Sol. Trazia em seu colo Moacir chorando e esfomeado, pois o carimã 14

13
Chefe dos guerreiros tabajaras, que era apaixonado por Iracema e consequentemente inimigo de Martins Soares
Moreno.
14
Refeição feita a partir da farinha de mandioca.
188 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

havia acabado. Tudo culpa de Araquém 15 que não devorou prontamente


Martins Soares Moreno.
Podemos perceber alguns pontos em comum nesses escritos, que re-
pudiam a idealização e romantização da figura do índio, bem como a
colonização europeia como o grande ponto de degeneração e de decadên-
cia cultura indígena. O peculiar é que em nenhum momento eles
perceberam que o seu índio também era uma idealização e uma represen-
tação, que aglomerava os seus anseios e as suas expectativas. A redenção
e a salvação só podiam ser efetivadas pela antropofagia do homem branco,
sem acordos ou diplomacia, todos abocanhados e deglutidos para que a
sua força e a sua coragem fossem assimiladas pelos guerreiros da tribo.
Antropofagia ou morte. Porém, os indígenas erraram na estratégia e na
execução, perceberam tarde demais o seu grande erro. A História tem seus
mistérios. Em linhas gerais, essa a era a avaliação feita pelos modernistas
de Maracajá.
O terceiro número de Maracajá nunca saiu. Em três cartas trocadas
entre Rachel de Queiroz e Braga Montenegro, possivelmente todas de
1929, podemos perceber o arrefecimento da intenção de publicar a folha.
Na primeira carta Raquel começou a desconfiar do hiato espaçado de pu-
blicação. “Nada de novo, aqui. Só um livro de poesia moderna ‘Meteoros’
que... quasi não vale nada... Maracajá, nem notícia” (QUEIROZ, s. d., p. 1).
Na segunda ela pensou que empreitada estaria terminada de vez, in-
clusive ficava amolando Demócrito Rocha por causa disso. “Maracajá anda
com cara de quem tem vontade de dar o prégo... O Democrito nega muito,
mas ha tempo que eu maldo isso...” (QUEIROZ, s. d., p. 1).
Finalmente, na terceira ela sentenciou o fim do suplemento literário,
apesar de Demócrito continuar negando. “Maracajá enfurnou-se, que não

15
Pai de Iracema e pajé da tribo tabajara.
Thiago da Silva Nobre | 189

tem mais geito... Mas o Democrito falla numa sahida para breve”
(QUEIROZ, s. d., p. 01). E não saiu mesmo mais nenhum número. Mara-
cajá foi abatido e seu couro virou tamborim. O que nós percebemos foi a
guinada política do jornal O Povo e do seu criador Demócrito Rocha, de-
vido ao movimento político acontecido no país conhecido na historiografia
como Revolução de 1930, que na verdade foi um golpe de estado que en-
cerrou a Primeira República brasileira.
A crise política ocorrida na Primeira Republica, após a Primeira
Guerra Mundial, teve duas características principais. Em primeiro lugar, o
descontentamento de uma parte do exército. Em segundo lugar, a insatis-
fação das camadas médias urbanas. As tensões regionais apareceram
insufladas em 1922, diminuindo por volta de 1926 e se reaqueceram em
1929. A maior inserção da população urbana pode ser percebida na eleição
de 1919. O pleito foi realizado, excepcionalmente, pelo falecimento do pre-
sidente Rodrigues Alves. Apesar de derrotado em 1910 e 1919, Rui Barbosa
se apresentou como candidato sem apoio algum do maquinário eleitoral.
Venceu com cerca de um terço dos votos, apresentando um programa de
governo moderado e reformista, no qual propôs uma legislação com pre-
ocupações trabalhistas e maior autoridade para o governo federal.
A aproximação entre os militares e a elite política do Rio Grande do
Sul, teve relação com o retraimento de poder do Estado gaúcho do âmbito
federal para o regional. O Rio Grande do Sul era uma importante região
de fronteira, aonde se aglomeravam os maiores efetivos do Exército (vari-
ando entre um terço e um quarto do efetivo nacional). Criada em 1919, a
III Região Militar constituiu um trampolim social para os altos cargos ad-
ministrativos, pois vários comandantes seus chegaram ao Ministério da
Guerra. Conhecendo muito bem a influência e a importância da instituição
militar no Estado, as famílias gaúchas mais abastadas incentivaram os
seus filhos a seguirem a carreira militar, contribuindo para o aumento de
190 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Ministros de Guerra e de presidentes do Clube Militar. Outro motivo que


favoreceu o estreitamento das relações entre os partidos políticos e os ofi-
ciais do exército foram os vários conflitos armados ocorridos
historicamente na região.
O pensamento político também serviu como agente agregador, que
foi o caso do positivismo. Além disso, a política financeira e econômica
atendeu os anseios dos militares. O Rio Grande do Sul representava um
núcleo de oposição à política estritamente agroexportadora, pelo qual os
militares não tinham tanta simpatia. Os gaúchos defenderam uma política
de estabilização dos preços e de conservadorismo fiscal com o objetivo de
estagnar o crescimento da inflação, que consequentemente diminuía o po-
der de compra dos consumidores da carne de charque. O produto era
consumido pela população mais pobre do Nordeste e do Distrito Federal.
A inflação significava em restrição da demanda. Uma política financeira
conservadora era vista com bons olhos pelo alto escalão militar dos oficiais
e, também, pelo médio escalão dos tenentes, que em suas reivindicações
apontaram a inflação e o desequilíbrio orçamentário como mal gerador de
fraudes e das desigualdades regionais (FAUSTO, 2000).
A política oligárquica historicamente excluiu grande parte da popu-
lação do processo social e político da sociedade, pois eles eram entendidos
como inaptos, despreparados, imaturos e inconscientes. Sendo assim, os
setores dominantes sempre tentaram impedir a participação dos trabalha-
dores no processo político formal e nas organizações de classe,
frequentemente fazendo uso da força para impedir qualquer inserção po-
lítica. Do outro lado, a população enxergava a República e as suas
instituições com desconfiança, pois eram totalmente excluídos e margina-
lizados.
A década de 1920, no Ceará, representou o surgimento do movimento
operário através da associação gráfica e do seu órgão de divulgação Voz do
Thiago da Silva Nobre | 191

Gráfico. A publicação tinha orientação anarquista, que rejeitava a colabo-


ração com os patrões, criticavam as instituições burgueses como formas
possíveis de inserção política e a consolidação de reformas, ao contrário,
prezavam pela ação direta.
Em 1925, houve uma grande greve dos motorneiros e condutores que
trabalhavam para a companhia inglesa The Ceará TramWays, Light and
Power Co. O motivo principal foi o baixo salário. Os trabalhadores queriam
30% de aumento. A população também se revoltou contra a empresa por
causa do aumento das passagens e da mudança dos horários dos bondes
2ª classe. Na ida e na volta do serviço os bondes ficavam escassíssimos, o
que gerou muita insatisfação.
A década de 1920 foi um período de intensa mobilização dos traba-
lhadores brasileiros. A revolução social poderia dar espaço a reformas
sociais e políticas, modificando as relações de trabalho no campo e na ci-
dade. Em contraste com os anarquistas, o PCB pensava a revolução nos
moldes democrático-burgueses. Para eles a burguesia e o imperialismo de-
veriam ser derrotados nos espaços devidamente democráticos, abrindo a
possibilidade do aprofundamento das reformas sociais. O que intensificou
a aproximação dos comunistas, setores liberais, oligarquias dissidentes e
tenentes contra as oligarquias mineira e paulista. A “revolução” concebida
pelos tenentes e pelas oligarquias regionais deveria respeitar os tramites
institucionais da democracia liberal, reformando e modernizando as es-
truturas estatais para o melhor desenvolvimento do capital.
O programa da Aliança Liberal propunha, em linhas gerais, a reorga-
nização e a reformulação econômica, social e política do Estado brasileiro.
Por seu viés modernizante, à primeira vista, a Aliança Liberal atraiu o in-
teresse de amplas camadas a sociedade, como os trabalhadores urbanos,
as oligarquias dissidentes, as classes médias e os tenentes. Porém, nas elei-
ções para Presidente da República, Getúlio Vargas foi derrotado por Júlio
192 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Prestes. Então o governo eleito foi deposto pelas oligarquias regionais e


pelos tenentes, instituindo o governo provisório e desfazendo os mecanis-
mos da Primeira República, partidos políticos, casas legislativas e
nomeando interventores para os Estados. Na década de 1930, as interven-
torias representaram um processo de centralização do poder em relação
ao sistema federativo bem ao gosto e nos moldes norte-americanos. Os
interventores foram nomeados pelo governo federal para reorganizar a
máquina política administrativa dos Estados (SOUZA, 2002).
Cipó de fogo apareceu, em 27 de setembro de 1927, nesse contexto de
transição e de exacerbação política. Segundo Filgueiras Lima (1966), os
diretos responsáveis pelo surgimento da folha modernista foram os inte-
lectuais Mário Sobreira de Andrade, João Jacques 16 e Heitor Marçal.
Segundo o expediente da revista, colaborava no jornal

[...] todos os modernistas do Ceará, sem exceção. E alguns dos outros Estados.
Cada um diz o que entende nas suas nas suas produções. O diretor, por en-
quanto, para efeitos gerais, é Mario de Andrade. Um exemplar [...] custa $300.
Cipó de Fôgo circula em todo o mundo civilizado. Consequentemente, será
pouco lido no Ceará. Os anuncios são caros. E dependem de combinação (Cipó
de Fogo, 27 set. 1931, p. 4)

No texto “Mario de Andrade explica o que Cipó de Fôgo vai fazer”, o


poeta teceu explicações sobre o pensamento e o posicionamento dos que
faziam dos que faziam parte de Cipó de Fogo. Para Mário Sobreira de An-
drade, Maracajá tinha sido uma ação em direção da derrubada das
velharias, pois desde a Bahia ao Amazonas se vivia em uma estagnação e
um modorra cultural no campo literário. “Na poesia, de um modo parti-
cular, santo Deus! Ainda se perpetravam sonetos!” (Cipó de Fogo, 27 de
setembro de 1931, p. 05). De Salvador chegou Arco & Flexa às mãos dos

16
Irmão de Paulo Sarasate.
Thiago da Silva Nobre | 193

modernistas de Fortaleza, sugerindo a publicação de Maracajá. Mas agora


tinha chegado a hora de Cipó de Fogo. “Coisa seria. Para edificar. A obra
literaria do Modernismo Cearense” (Cipó de Fogo, 27 de setembro de 1931,
p. 05). No entanto, não ficaria restrita à província com a sua antecessora,
nem somente ao Brasil. Os do sul ainda não haviam entendido os daqui,
precisavam ser devorados. O objetivo era penetrar na América e no mundo
inteiro.
O programa era este: “construir, dentro da terra. E dentro da inten-
sidade real do momento” (Cipó de Fogo, 27 set. 1931, p. 5). Cipó de Fogo
era mais movimento do que o nome da folha. “Vamos fazer poesia con-
temporanea. E para o futuro. Viva. Forte” (Cipó de Fogo, 27 set. 1931, p.
5). O bloco abarcava Heitor, Jáder, Rachel, Sidney, Franklin, Jacques, Sil-
veira e muitos outros. Nenhum deles sonetistas. Far-se-ia, também, prosa
real, agitada e intensa. “Passou a hora lamuriosa dos liricos. Precisamos
avançar, crear uma alma brasileira, bem brasileira, contra a esterilidade
dolorosa dos romanticos. Mas não um espirito regionalista. Uma alma bra-
sileira para a alma universal” (Cipó de Fogo, 27 set. 1931, p. 5). E depois de
tudo isso seria feito o teatro moderno. O Ceará ainda ressonava nas ope-
retas importadas de Viena. Cipó de Fogo “[...] fará o desalojamento dessa
ultima velharia. Maracajá conseguiu a morte oportuna do soneto. Cipó de
Fôgo irá adiante” (Cipó de Fogo, 27 set. 1931, p. 5).
A verdade é que se prometeu mundos e fundos, mas a publicação não
saiu mais. O teatro moderno teve que esperar Eduardo Campos e o movi-
mento de Clã. A Revolução de 30 enterrou as várias experiências estéticas
em choque e fricção do Modernismo. Ao contrário do que defendeu So-
breira de Andrade, o regionalismo saiu vencedor da contenda entre o
cosmopolitismo. Talvez o jornalzinho tenha saído um pouco fora do “ti-
ming”, já quando as preocupações estavam sendo eminentemente
políticas.
194 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

Com o assentamento do regime, coube à geração seguinte desenvol-


ver o legado do frutífero período do Modernismo heroico. Podemos citar
nomes como Fran Martins, Moreira Campos, Eduardo Campos, Milton
Dias, Artur Eduardo Benevides. Todos eles ligados ao movimento que se
deu em torno da Revista Clã, a partir do final da década de 1930 e seguindo
pelo decênio de 1940 em diante. Mas aí é outra História.
Considerações Finais

O intuito desta pesquisa foi compreender as práticas cotidianas rela-


cionadas com produção poética e narrativa dos intelectuais que
participaram do Modernismo literário em Fortaleza, no decênio de 1920.
Geralmente as pesquisas sobre o tema centralizaram as suas preocupa-
ções, sobremaneira, no período da publicação do livro O Canto Novo da
Raça, em 1927, e na fundação do jornal O Povo, em 1928, bem como nas
folhas modernistas publicadas em seguida (Maracajá e Cipó de Fogo). Ape-
sar de darem algumas indicações sobre eventos antecedentes como as
publicações das coletâneas A Poesia Cearense no Centenário e Os Novos do
Ceará do Primeiro Centenário da Independência, a influência do Penum-
brismo de Ribeiro Couto sob os intelectuais jovens, a visita de Guilherme
de Almeida para fazer conferência no Teatro José de Alencar e a criação da
Ceará Ilustrado, não aprofundaram a contento acerca desses eventos que
foram importantíssimos para o amadurecimento e desenvolvimento do
movimento na capital. Para Friedrich Nietzsche em Genealogia da Moral,
é tarefa precípua de qualquer espírito minimamente positivo “substituir o
improvável pelo provável, e ocasionalmente um erro por outro”
(NIETZSCHE, 2009, p. 10). Foi exatamente o que tentamos esboçar nesse
trabalho, procurando expandir os limites já conhecidos e dispostos sobre
Modernismo Literário, em Fortaleza, na década de 1920 e início de 1930.
Muitos historiadores da Literatura incorreram no mesmo erro inter-
pretativo de um São Paulo centrismo, tomando-o como exemplo, medida
e forma para todo as outras experiências de renovação estética ocorridas
em concomitância no Brasil, avaliando negativamente aquelas que desto-
assem e positivamente aquelas que mais se aproximassem do caso
196 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

paulista. Essa perspectiva foi baseada no próprio esforço memorialístico


dos modernistas da Paulicéia empreendido no decorrer dos anos para res-
saltarem o seu papel de liderança, vanguarda e protagonismo em âmbito
nacional. O que gerou um corte epistemológico entre tudo aquilo que fora
escrito antes (Pré-Modernismo) e aquilo que fora produzido durante e logo
depois da Semana de 22 (Modernismo). Como se essa experiência histó-
rica representasse uma ruptura total com a tradição sem qualquer marca
de continuidade, tanto é que a partir do decênio de 1980 foram propostas
revisões acerca do Pré-Modernismo e com análises diferentes entre si,
como o artigo “O Art-Nouveau na Literatura Brasileira” de José Paulo Paes,
Literatura com o Missão de Nicolau Sevcenko e Nem Pátria, Nem Patrão
de Francisco Foot Hardman.
José Paulo, a partir das correspondências, reinterpretou o período
tradicionalmente definido como Pré-Modernismo em função de várias téc-
nicas estéticas que transitaram das Artes Visuais para a Literatura, entre
ornamentações e floreios discursivos, bem como o art-nouveau no dese-
nho e nas artes aplicadas. Desta forma, ele propôs o conceito de literatura
art-nouveau para congregar tanto a crônica urbana de João do Rio (Paulo
Barreto) ou de Théo Filho quanto o ambiente regionalista de Valdomiro
Silveira ou Afonso Arinos, tanto a ornamentação superficial de Coelho
Neto e o vocabulário cientificista de Euclides da Cunha. As chaves da sua
interpretação estão baseadas nas correspondências plásticas e verbais bem
como a decoração art-nouveau para produção cultural do final do século
XIX e início do XX (SÜSSEKIND, 1987).
Segundo Nicolau Sevcenko (2003), os intelectuais brasileiros esta-
vam engajados em um grande processo de transformações sociais, todos
eles voltados para a experiência civilizacional europeia, tomando-a como
alicerce e fundamento para a redenção do passado alquebrantado de uma
ex-colônia escravista. Assim um novo mundo liberal, democrático e
Thiago da Silva Nobre | 197

progressista, de possibilidades insuspeitas, poderia surgir. O mote dessa


geração de 1870 era sepultar de uma voz por todas o Império através das
grandes reformas: a abolição, a república e a democracia. O posiciona-
mento político se tornou condição ética principal dos sujeitos letrados. As
principais exigências urgentes para a mudança da realidade brasileira
eram a transfiguração da sociedade para os moldes europeus, a moderni-
zação da nação e a sua entrada no sistema capitalista internacional, bem
como a melhoria intelectual e material da população. Esses objetivos só
seriam alcançados com a dinamização da economia nacional, o estímulo
das iniciativas privadas e a ampliação da participação política. Esses per-
sonagens eram quase todos abolicionistas, liberais democratas e
republicanos, trazendo na sua argumentação as novas ideias europeias.
Tobias Barreto, Aluízio Azevedo, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco são exem-
plos. Euclides da Cunha e Lima Barreto eram vértices convergentes de um
leque de contradições que transpassavam a sociedade na época, pois esta-
vam eximidos dos processos decisórios, excluídos pelas elites e não
reconhecidos pelo seu trabalho intelectual, eles sentiram o peso da arbi-
trariedade dos donos do poder. Por isso a sua identificação com a
população marginalizada, cada um a seu modo. Através das suas obras eles
delinearam propostas concretas para a salvação deles próprios e dos en-
jeitados, tudo pela palavra. Todo discurso assinala um ato fundador, no
momento em que nomeia os seres e as coisas, dá-lhes existência no inte-
rior de hierarquias que as delimitam e nos dão a conhecer a realidade
conhecida e compreendida.
Em Literatura como Missão, Nicolau Sevcenko optou pela compreen-
são das diferenças entre grupos intelectuais da época, criando uma
tipologia intelectual baseada em uma periodização emprestada da História
Política. Os grupos eram formados pela camada dos vencedores (Coelho
Neto, Olegário Matos, etc.), pelos autores da moda, pelos marginalizados
198 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

resignados (simbolistas, nefelibatas, decadentistas e remanescentes do ro-


mantismo) e pelos missionários (Euclides da Cunha e Lima Barreto)
(SÜSSEKIND, 1987).
Foot Hardman (1983) nos relata que a historiografia literária no Bra-
sil sempre teve muitas dificuldades em estabelecer uma escola ou
tendência hegemônica entre o final do século XIX e o advento Moder-
nismo, tanto com relação à prosa quanto à poesia, passando a denominar-
se genericamente de Pré-Modernismo todo aquele momento literário cujas
principais características eram a da heterogenia e da contradição. Um
longo intervalo de mais ou menos trinca anos em que a cultura estava em
efervescência. O termo Pré-Modernismo além de marcar um não-lugar e
uma transição, tomou como ponto de partida da sua periodização um mo-
vimento literário a posteriori, baseando-se em aspectos específicos que
prenunciavam a ruptura. Nesse sentido, separaram-se as obras que tra-
ziam o germe da crise e da fratura e as que traziam o peso do repetido e
do idêntico. Pré-Modernismo é uma definição que não expressa o contexto
da época, mas apenas uma promessa, que se daria no desenrolar da década
de 1920. Essas dificuldades interpretativas foram geradas pela disritmia
na explicação das origens do Modernismo, no qual um consenso ensimes-
mado se cristalizou, a saber, os contatos com as vanguardas europeias
teriam sido determinantes para produzir o rompimento de temática,
forma e linguagem a partir de 1922. Sem essa influência externa não ha-
veria sido possível aos intelectuais brasileiros transpor a estreiteza mental,
o reacionarismo provinciano e a cultura bacharelesca das elites oligárqui-
cas da República. O que produziu a hipótese de que a nossa experiência
cultural foi somente resultado da importação de estéticas estrangeiras (fu-
turismo, dadaísmo, cubismo, pós-impressionismo, etc.) e que seus
aspectos conservadores e passadistas eram de determinação internas,
como, por exemplo, o nacionalismo reacionário e a dominação oligárquica.
Thiago da Silva Nobre | 199

No entendimento de Monica Pimenta Velloso (2010), hoje em dia


muitos trabalhos, apesar das revisões, ainda se utilizam das categorias de
Pré-Modernismo e de antecedentes como sinônimos de esvaziamento cul-
tural para definir a tessitura artística intelectual, no Brasil, na passagem
do século XIX para o XX. O ano de 1922 foi considerado um grande divisor
na História Literária e todas as experiências que estavam acontecendo nas
primeiras décadas do século XX só poderiam ter sentido e existência se
estivessem em coerência e antecipassem os temas e propostas de 1922.
Basta recordar as literaturas regionalistas nordestina, paulista, mineira e
gaúcha, que buscavam a valorização dos dialetos locais, do caipira, do fol-
clore, dos tipos e costumes rurais estabelecendo uma contraposição entre
campo e cidade, entre rural e urbano, sendo o citadino relacionado ao cos-
mopolitismo e ao estrangeirismo. É nesse âmbito que as literaturas
regionais foram identificadas com a nomenclatura equivocada e simplista
de Pré-Modernismo. Tal equivoco comprometeu a própria análise e com-
preensão da experiência histórica, que deixou de lado as especificidades
das ideias e dos grupos intelectuais, em que as tensões internas geraram
fricções entre tradição e modernidade e ocasionaram dinâmicas peculia-
res. Esse tipo de interpretação juntou tudo em um conglomerado
indiferenciado de experiências literárias diversas, a saber, parnasianos, de-
cadentistas, simbolistas, penumbristas e regionalistas, perdendo-se as
especialidades de cada grupo e as articulações mentais com o moderno.
Ainda persiste de forma inclemente o consenso da experiência modernista
delimitada à São Paulo e ao seu grupo de intelectuais. Em grande parte,
essa narrativa hegemônica foi construída pelo esforço dos escritores pau-
listas entre 1930 e 1950. Essa rede também foi reforçada por instituições
de saber (Faculdade de Filosofia e Letras da USP), a imprensa (Folha de S.
Paulo, o Estado de S. Paulo), revistas (Anhembi e Clima) e editoras
200 | Modernismo no Ceará (1922 – 1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética

(Nacional e Martins). Em resumo, privilegiou-se um grupo intelectual es-


pecifico e um marco cronológico que foi a Semana de 1922.
Já a partir da década de 1960 com as contribuições de Antonio Can-
dido, Luis Costa Lima, Alfredo Bosi, Silviano Santiago, seguindo pelas
revisões da década de 1980 mencionadas anteriormente, produziram re-
leituras sobre o Modernismo brasileiro, todos eles buscando elaborar uma
reflexão crítica sobre o paradigma de 1922. A delimitação do Modernismo
a um único evento inaugural (Semana de Arte Moderna) levou à perda da
dinâmica causado pelo impacto do processo de experiência estética, acio-
nando uma rede de representações, subjetividades, imaginários e práticas
culturais pelo Brasil. O Modernismo não se restringiu ao eixo Rio – São
Paulo, mas irrompeu quase que espontaneamente em várias cidades do
Brasil, no qual as trocas intelectuais provocaram discussões, movimentos,
manifestos, revistas, jornais e ideias: Arco e Flecha (Salvador), Madrugada
(Porto Alegre), Maracajá de Cipó de Fogo (Fortaleza). Nessa abordagem
crítica, o Modernismo deixa de ser compreendido como ruptura, mas sim
como parte do processo histórico em que se engendraram várias tradições,
ideias, experimentações e temporalidades. É “em função dessas ideias que
enfatizam o caráter complexo da experiência modernista brasileira torna-
se procedente adotar o termo ‘modernismos’ (VELLOSO, 2010, p. 29). E
nesse caso não se trataria de um jogo de palavras ou de sentido, mas a
defesa de uma hipótese que considera a mutabilidade do social em cons-
tante processo de construção, reelaboração e adaptação, enxergando
melhor as contradições e ambiguidades do que o aspecto calculado e raci-
onalizável. Essa posição teórica permite pensar o Modernismo brasileiro
como “o desencadeamento de vários movimentos que, ocorrendo em dis-
tintas temporalidades e espaços, atingiram de forma diferenciada [...] todo
o país. Captado nos seus vários momentos [...][e] configurações [...]
(VELLOSO, 2010, p. 29). Nessa abordagem crítica, o Modernismo deixa de
Thiago da Silva Nobre | 201

ser compreendido como ruptura para ser parte do histórico em que se en-
gendravam várias tradições, ideias, experimentações e temporalidades.
E. P. Thompson (2012) também nos dá uma indicação interessante
sobre o debate tipológico de experiências históricas. Em Peculiaridades dos
Ingleses, o historiador britânico, teceu críticas ao modelo Anderson-Nairn 1
que interpretou negativamente a experiência revolucionária britânica em
relação à Revolução Francesa, seguindo a tradição marxista hegemônica
pré-1917. Thompson se opôs à análise que concentra a abordagem em um
episódio dramático (a Revolução) no qual tudo o que aconteceu antes e
depois deve ser relacionado, instituindo um tipo ideal de revolução, contra
a qual todas as outras deveriam ser julgadas. Inteligências aferradas a um
platonismo prontamente são frustradas pela história real. Apesar da Re-
volução Francesa haver sido um momento fundamental na história
ocidental, bem como a sua profusão de eventos subsequentes. Mas, pelo
fato de ter sido um importante acontecimento não foi necessariamente tí-
pico. Aconteceu de um jeito na França e de outro na Inglaterra, o que não
coloca em questão a importância da diferença, mas sim a tipicidade. Pois
“toda experiência histórica é obviamente, em certo sentido, única
(THOMPSON, 2012 p. 79)
Amparados por essa reflexão, podemos afirmar que a experiência
modernista foi de um modo em São Paulo e de outro no Ceará, bem como
em todos os lugares em que ela se deu. O que não nos permite valorar em
melhor ou pior, se foi mais profícuo ou não, o que nos cabe é aprofundar
a análise nas diferenças e peculiaridades. Sendo assim, o Modernismo Ce-
arense foi rico e frutífero nos restando ainda muito o que descobrir,
analisar e entender.

1
O artigo exemplar que defende essa hipótese criticada está em “Origins of the present crisis”, de Perry Anderson.
Fontes

Relatórios

Relatórios do Governo do Estado do Ceará


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1926 (Fevereiro)
O Nordeste
1922 (Julho, Agosto, Setembro)
O Ceará
1928

O Povo
1928, 1929, 1930, 1931
Maracajá
1929 (Abril, Maio)
A Esquerda
1928
Cipó de Fogo
1931

Revistas

A Jandaia
1924
Ceará Ilustrado
1925
Thiago da Silva Nobre | 203

Almanaques

Almanaque Estatístico, Administrativo, Mercantil, Industrial e Literário do Estado


do Ceará
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2 - Carta a Braga Montenegro (Sem data. Possivelmente de 1929)

3 - Carta a Braga Montenegro (Sem data. Possivelmente de 1929)

4 - Carta a Braga Montenegro (14/06/1939)

5 - Carta a Braga Montenegro (06/03/1930)

6 - Carta a Braga Montenegro (29/06/1930)

7 - Carta a Braga Montenegro (Sem data. Possivelmente de 1930)

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