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Mulheres em perspectiva:

trajetórias, saberes e resistências


na Amazônia Oriental
Idelma Santiago da Silva
Ailce Margarida Negreiros Alves
Airton dos Reis Pereira
Hiran de Moura Possas
Jerônimo da Silva e Silva
(Organizadores)

Mulheres em perspectiva:
trajetórias, saberes e resistências
na Amazônia Oriental

Belém – 2017
Copyright  2017 do Grupo de Pesquisa “Culturas, Identidades e Dinâmicas Sociais
na Amazônia Oriental Brasileira”, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.

Publicação apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq) – Edital MCTI/CNPQ/MEC/Capes n. 22/2014 – Ciências
Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, através do Projeto de Pesquisa “História de
mulheres do campo: memórias e identidades na luta pela e na terra no sudeste do
Pará”, coordenado pela Profa. Idelma Santiago da Silva (Unifesspa).

Diagramação: Conselho Editorial:


Carneiro Design Aldrin Moura de Figueiredo
Ernani Pinheiro Chaves
Capa: Gutemberg Armando Diniz Guerra
Evandro Medeiros José Alves de Souza Junior
José Maia Bezerra Neto
Foto da capa: Paulo Jorge Martins Nunes
Mulheres na posse da direção do Paulo Maués Corrêa
Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Conceição do Araguaia em Editora Paka-Tatu
1985. Autor desconhecido. Arquivo Editor Geral:
da Comissão Pastoral da Terra – Armando Alves Filho
Xinguara
Todos os direitos reservados aos Autores.
Revisão Português:
Tânia Rejane Alves Gonçalves Editora Paka-Tatu
Rua Bernal do Couto, 785 - Umarizal
Revisão Espanhol: CEP: 66055-080 - Belém - Pará - Brasil
Santiago Abel Telefone: (91) 2121-1169
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www.editorapakatatu.com.br

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M922 Mulheres em perspectiva : trajetórias, saberes e resistências na Amazônia


Oriental / organização Idelma Santiago da Silva. - 1. ed. - Belém [PA] : Paka-
Tatu, 2017.
356 p. ; 21cm.

ISBN: 978-85-7803-365-1

1. Mulheres - Brasil - Condições sociais. 2. Violência contra as mulheres.


3. Mulheres e violência. I. Silva, Idelma Santiago da.

17-42606 CDD: 305.4


CDU: 316.346.2-055.2
Introdução

M arabá, quarta-feira, 17 de abril de 1996. Nesta data, o anoitecer


trouxe consigo, na carroceria de um caminhão, 19 corpos de traba-
lhadores rurais assassinados pela Polícia Militar do Pará. Enquanto os
corpos dos trabalhadores eram despejados no Instituto Médico Legal
(IML) e seguiam-se as autópsias, a escuridão noturna se intensificou: as
repentinas ausências de energia elétrica no lugar forçaram os médicos
a realizar a perícia com lanternas, dividindo o espaço com os policiais
militares comandados pelos algozes da “Curva do S”. Ali, estava em an-
damento a tentativa da segunda morte, o acobertamento do crime sob o
manto do esquecimento (NEPOMUCENO, 2007: 110-113).
A escuridão prosseguia implacável. Naquela mesma noite, os so-
breviventes que saíram da mata e se deslocaram da “Curva do S” para
a cidade de Eldorado dos Carajás, também sem energia elétrica, foram
intimidados por policiais que ficavam próximos aos leitos e macas do
hospital noite adentro (GUEDES, 2002). A escuridão, aqui entendida
como um símbolo do acobertamento da violência, do silenciamento
e do esquecimento opressor, também pode ser convertida, em deter-
minadas circunstâncias, em estratégia de resistência. Como pode ser
isso possível? O relato da professora e militante Deusamar Sales, desde
1994 presença constante nas fileiras do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), talvez ensine que a luta contra o esqueci-
mento é a luta pelo direito de evocar uma lembrança, sempre com
outra perspectiva.
Assistir os feridos e desorientados após o massacre, acompanhar o
destino dos corpos no IML e, ao mesmo tempo, manter a mínima mobi-
lização dos acampados, mesmo com as mortes das principais lideranças,
era condição indispensável para a busca por justiça e pela continuidade
da luta. Em outubro de 2016, passadas duas décadas, Deusamar Sales re-
visitou episódios daquele dia nas memórias para informar a respeito do
papel das mulheres na tarefa de comunicar, soturnamente, à Secretaria
Nacional do MST e aos setores da sociedade civil o que o poder público
local e o estadual insistiam em silenciar:

Ficamos a noite inteirinha no escuro, era o único telefone


que a gente tinha na época. Na época, tinha um dos (co-
laboradores) na cidade da Pastoral, aí nós ficamos a noite
inteirinha atendendo o telefone e passando informação
para a Secretaria Nacional e daí pro mundo inteiro. E a
gente estava no escuro e ficava ouvindo toda movimen-
tação na delegacia, porque ficava quase na esquina. E a
gente tinha medo de eles perceberem que a gente estava
ali e ir lá matar nós [...] e aí a gente ficava a noite inteir-
inha descalço pra não fazer barulho, no assoalho, que era
de madeira, né? Com as luzes tudo apagada, nós ficamos
a noite inteira no escuro [...] telefone tocava nós tirava
logo do gancho, e falando baixinho... do dia 17 para o dia
18 (SILVA, 2016).

As primeiras narrativas elaboradas dos acontecimentos foram


feitas na penumbra, mas não na escuridão forçada; estrategicamen-
te, as mulheres mantiveram as luzes apagadas para narrar e, assim,
melhor denunciar a violência, isto é, a falta de energia agora acober-
tara, semelhante a um manto protetor, o ato de ouvir. Ouvir e narrar.
Nesses casos, como ensinou Walter Benjamin, a narrativa feita pe-
los explorados e injustiçados é sempre uma contranarrativa (narrar
a contrapelo), pois se trata de uma narrativa feita para desalinhar o
relato dos poderosos, desfiar a versão oficial dos opressores (BENJA-
MIN, 2012: 13).
A potência da memória não reside apenas na construção das lem-
branças, mas principalmente na capacidade de lembrar sob outra pers-
pectiva, de assumir o compromisso ético na dissonância dos discursos
totalizadores. É a força do desfiar, do dizer uma memória em oposição
“à...” que permite torcer a escuridão da violência em disfarce de resis-
tência. A luta pela memória é a maior cobiça ao término de uma guerra.
Em outro lugar, numa passagem mui conhecida da literatura grega,
a rainha Penélope teve seu marido Ulisses convocado para a guerra de
Troia, e, no intuito de dissimular os pretendentes, pois crente estava no
retorno de seu rei, determinou que, tão logo terminasse de tear uma
manta para o seu sogro, estaria disposta a receber os pretendentes que
se banqueteavam e dilapidavam a casa do monarca. O arabesco urdido
por Penélope consistia em desmanchar, desfiar na calada da noite o tear
do ofício diário (HOMERO, 2014: 13):

Esta desculpa ingênuos aceitamos.


Ela, um triênio, desmanchava à noite
À luz da lâmpada o lavor diurno;
Ao depois, avisou-nos uma escrava,
E a destecer a teia a surpreendemos

Ganhar tempo e esperar o melhor requer o trabalho redobrado de


resistência; assim, desfiar o tecido é já construir outro tipo de tear, uma
trama com outros suportes éticos. Nesse sentido, se, de um lado narrar
a contrapelo se põe na tarefa noturna de desmanchar a teia da versão
opressiva, termina, por outro, através do desmanche, propor uma nar-
ração ética hábil em enfrentar o silêncio da violência e conjurar a ouvir
os sentidos dos linhos que sempre nos diziam ser desordenados.
Dedilhar o telefone na madrugada, sentir a aspereza do assoalho
entremeada ao perigo, de, ao dizer a morte dos pares, correr o risco de
ter a vida tirada, é a tribulação que assombra o imperativo político de
desalinhar memórias “oficiais”.
Qual a relevância deste paralelo? O que tem esse tear metafórico
com o livro Mulheres em perspectiva: trajetórias, saberes e resistências
na Amazônia Oriental? As pesquisas dispostas neste título são reflexões
voltadas para as múltiplas vidas, paisagens e olhares de mulheres nesses
recortes territoriais, donde se erguem vozes contra violências de todos
os tipos, e anunciam formas de organização e negociação contra a du-
reza de uma sociedade desigual e preconceituosa. Almeja-se que cada
artigo seja uma linha já desfiada à espera do leitor comprometido com
a coragem de retomá-la contra as forças opressivas, forças estas que, nos
últimos anos, não têm se acanhado de estampar o ódio e o preconceito
em território nacional.
O que permitiu a materialização do presente volume é resultado
do projeto de pesquisa “História de mulheres do campo: memórias e
identidades na luta pela e na terra no sudeste do Pará”, apoiado pelo
Edital CNPq n. 22/2014, de Ciências Humanas e Sociais, bem como das
ações e do suporte do Grupo Interinstitucional de Apoio à Erradicação
do Trabalho Escravo – Gaete.
Na primeira parte do livro, “Mulheres em movimentos: participa-
ção e luta pela terra/pelo território”, os autores ensejaram apontar sin-
gularidades da luta pela terra mobilizada pelas mulheres da região. Em
“A participação das mulheres trabalhadoras rurais na luta pela terra, no
sul e sudeste do Pará (1975-1990)”, Airton dos Reis Pereira buscou apre-
sentar em diálogo com os relatos orais dois importantes aspectos da luta
pela terra: de um lado, reuniu episódios em que mulheres testemunha-
ram e viveram violências de todos os tipos contra seus corpos, familia-
res e amigos; de outro, mostrou a ação estratégica de outras formas de
resistência. Carregar munições, facões e armas de fogo escondidos em
produtos agrícolas e nas vestes, despistar pistoleiros nos picos, açudes e
descampados, participar da dinâmica organizacional nos conflitos, nos
assovios de aviso nas vicinais são exemplos mais gerais da ação des-
sas mulheres. Embora a profusão de fontes de pesquisa regurgitadas na
trama textual e as conexões estabelecidas com as vozes forneçam uma
instigante descrição das relações sociais e do cenário geográfico – mes-
mo para o leitor neófito –, o autor não se absteve de problematizar com
solidez aspectos do modus operandi da pistolagem, do latifúndio e do
poder público.
Rosemayre Lima Bezerra e Ailce Margarida Negreiros Alves, em
“Luta pela terra: participação e invisibilidade feminina no sudeste do
Pará”, analisaram, em pesquisas nos municípios de São Domingos do
Araguaia, São João do Araguaia e Itupiranga, um tema que vem ganhan-
do importante relevo nos estudos sobre os “sindicatos rurais” na Ama-
zônia, qual seja, a tarefa de rever o papel das mulheres na luta pela terra.
As referidas autoras apresentaram no escrito as memórias de lideranças
femininas no passado e no presente a respeito da relação conflituosa
entre homens e mulheres no cotidiano do trabalho, da família e da ação
sindical, mostrando que, além de essas fronteiras estarem borradas, a
luta contra a reprodução desses estereótipos é um processo em constru-
ção que se entrelaça com a invisibilidade das injustiças sociais no cam-
po. A luta contra a invisibilidade, nesse caso, acontece em duas frentes.
Quais locais e posturas adotam as “mulheres dirigentes” em mo-
vimentos sindicais tradicionalmente ocupados por homens? As refle-
xões de Kézia Vieira de Sousa Farias, Idelma Santiago da Silva e Hiran
de Moura Possas, inscritas no artigo “Gênero e participação na pers-
pectiva de mulheres dirigentes do movimento sindical dos trabalha-
dores rurais no sudeste do Pará”, sinalizam para especificidades dessa
complexidade com análises detidas no interior da estrutura organiza-
cional dos sindicatos. Neste texto, percebe-se, primeiro, a tentativa de
relegar às mulheres cargos de secretaria e geração, por exemplo, evi-
denciando certa “divisão sexual”; segundo, a emergência das mulheres
no processo cotidiano de luta, como mostram as análises das mulheres
no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Rondon do
Pará. Com cuidado analítico, ainda que tenham sido demonstrados os
conflitos de ordem cultural nas relações intrassindicais, o argumento
não se fecha no círculo viciante das dicotomias, na medida em que
procura costurar o avanço do papel das mulheres no interior das di-
nâmicas de luta pela terra ao paulatino avanço das conquistas sociais
e políticas das mulheres.
O artigo de María de los Ángeles Arias Guevara, por sua vez,
voltou-se para a compreensão das relações de poder e exercícios de re-
sistência de “trabalhadoras artesanais e extrativistas”. Em “Poder y resis-
tencia em el sudeste do Pará: desde la experiencia vivida y narrada por
mujeres rurales del GTAE”, a autora analisou o contexto da criação do
Grupo de Trabalhadoras Artesanais Extrativistas, desde 2006, e buscou
interpretar, nos relatos e no cotidiano dessas mulheres, as relações de
enfrentamento com as práticas discursivas preconceituosas sobre elas
impostas. A percepção do manejo consciente e a gestão ambiental dos
recursos naturais representam, segundo María Guevara, não um mero
resultado de atividades econômicas propostas, mas principalmente um
dos elementos discursivos que legitimam a crítica ao modelo explora-
tório e danoso das carvoarias locais, bem como dinamiza o empode-
ramento dessas subjetividades na região. O Projeto Agroextrativista
Praialta/Piranheira, em Nova Ipixuna, no Pará, sob a pena de María
Guevara, é um indício, dentre tantos outros, de linhos de memória e
luta de trabalhadoras rurais.
Kecieni Nunes da Silva finaliza esta seção com um texto que deslo-
ca o olhar do leitor para um tema ainda, grosso modo, pouco explorado
na região. Se, cada vez mais, tem se problematizado a força invisibiliza-
dora que insiste em deitar sobre a existência das mulheres camponesas
na região, a pesquisadora forneceu elementos para a compreensão das
subjetividades femininas, uma analítica das emoções, na luta pela terra.
Assim, “Recontando histórias: gênero e subjetividades na luta pela terra
no sudeste do Pará” fez emergirem, nas narrativas das mulheres do As-
sentamento Palmares II, Parauapebas, as trajetórias individuais, a cons-
trução das memórias e a elaboração das emoções no espaço que se afir-
ma ser “região de fronteira”. O investimento emocional sobre o contexto
de luta fez as narradoras construírem inúmeras representações sobre a
terra, a família e o MST. Outrossim, na leitura dos silêncios, dúvidas e
incessantes lutos, os leitores são apresentados a um local onde cuidar
das crianças, fazer comida, cuidar de porcos e galinhas é tão político e
questionador (e sempre o foi) quanto enfrentar milícias de fazendeiros!
A segunda parte do livro, “Memória, gênero e interculturalidade”,
abriga reflexões, de um lado, sobre o protagonismo de mulheres
indígenas sob os ditames do contato, fazendo perceber, na cosmologia
desses grupos, uma crítica aos discursos do poder público e dos saberes
não indígenas; por outro lado, e ainda nesses trilhos, aos leitores são
evidenciados processos cosmológicos do “fazer-se” de mães de santo em
religiões de matrizes afro-brasileiras.
Ivânia dos Santos Neves e Ana Shirley Penaforte Cardoso,
atravessadas de uma ponta a outra pela presença hipostasiada da
indígena Verônica Tembé, compartilharam no texto “Festa do Moqueado
e cosmologias: encontros com Verônica Tembé”, raros momentos em
que as experiências de pesquisa vazam e intensificam a interlocução de
mundos. Envolvendo documentos e narrativas anteriores da história
indígena na Amazônia e as apreensões cosmológicas da Festa do
Moqueado entre os Tembé-Tenetehara, Terra Indígena Alto Rio Guamá,
as autoras referenciadas lançaram compreensões sobre as trajetórias de
mulheres indígenas em posições de lideranças, demonstrando, para
tal, sinuosidades do caminhar de Verônica Tembé, desde a juventude,
passando pelo matrimônio, até as reivindicações junto ao poder público,
particularmente na defesa de “manter viva a língua Tenetehara e a
tradição tupi”. O último encontro entre as pesquisadoras com Verônica
Tembé, já em idade avançada, deitada na rede, foi o ponto alto para os
interessados no “abrir e fechar a rede” dado pela interculturalidade em
paisagens amazônicas.
No artigo “Relações de gênero entre os mebêngôkre xikrin do Djudjê-
Kô – comportamentos e papéis do masculino e do feminino nos dias
de vigência do convênio com a Vale”, Mirtes Emília Manaças recortou
elementos de seus estudos de mestrado e doutoramento para discutir
transformações na forma como homens e mulheres mebêngôkre xikrin
passaram a vivenciar os casamentos nas últimas décadas. Hábitos como
a aquisição de objetos belos (joias, miçangas, adornos), oriundos de lojas
kuben, esse “outro” não indígena, se infiltraram no comportamento da
aldeia, e, segundo os narradores e narradoras apresentados, passaram a
determinar a escolha das mulheres indígenas de possíveis pretendentes.
Nestes casos, possuir dinheiro para adquirir tais objetos tornou-se
um passo fundamental para constituir os sujeitos mejx (belos), no
“sentido de fabricar continuamente uma sociedade xikrin”. O papel do
casamento para manter boas alianças políticas, associado com a noção
de uma pessoa mejx pela aquisição de mercadorias, acolhe e expande
componentes estéticos, éticos e políticos quando a autora inferiu que
tais mudanças têm relação direta com o convênio realizado com a
Companhia Vale do Rio Doce.
Demonstrando o protagonismo de mulheres em espaços de
vivências religiosas, Mayane Rumão de Souza Arruda e Sariza Oliveira
Caetano Venâncio convidam a conhecer o processo de feitura de uma
mãe de santo e a dinâmica social na qual está inserida. “Fazer-se mãe de
santo: a trajetória espiritual de Maria Luiza da Conceição” parte de uma
etnografia na cidade de Esperantina (Tocantins), localizada na região do
Bico do Papagaio, entre o Pará e o Maranhão, e almeja conduzir o leitor
para observar a trajetória da mãe de santo Dona Luizinha, indo desde
os cenários de conflitos históricos por terras na infância e mocidade
da narradora até o contato inicial com as entidades do panteão dos
encantados. O processo de sofrimento físico e espiritual que envolveu
o aprendizado iniciático para maturação das “correntes”, na qual se
agregavam caboclos e caboclas, é vinculado às relações de trocas e
reciprocidade que permeiam não apenas os terreiros, mas escapam para
as relações sociais em maior escala.
Um dos grandes desafios das políticas de extensão das universidades
brasileiras nas últimas décadas é a entrada e a permanência de povos
indígenas nesse contexto. Tal dilema, entretanto, só pode ser enfrentado
a partir do momento em que o modus operandi acadêmico for capaz
de problematizar seus pressupostos e aprender com a cosmologia dos
povos indígenas, ultrapassando a crítica meramente retórica. O artigo
“Fazendo o caminho de volta: memória e crítica a partir de Concita
Sompré”, assinado por este prefaciador e Hiran de Moura Possas,
resultou de um diálogo construído com a professora indígena kỳikatêjê
Concita Sompré – Terra Indígena Mãe Maria, sudeste paraense – entre os
anos de 2014 e 2016. Testemunhou-se, nessas páginas, Concita Sompré
falar sobre um pensamento que se dobra no retorno de si (o caminho
de volta), coluna basilar do que nomeou de “Ciência dos Índios”; este
pensar que luta incessantemente contra o “sistema da morte”, segundo
Concita, do qual, muitas vezes a própria universidade é conivente,
propõe abrir diálogos não somente entre as demandas dos vários povos
indígenas e a universidade, mas abre potenciais simetrizações com as
ações dos trabalhadores rurais e comunidades quilombolas.
A terceira e última parte do livro, “Memória, educação e gênero”,
apresenta a lida cotidiana de mulheres em duas tarefas aparentemente
distintas, mas entrelaçadas. A produção e reprodução de saberes
de professoras em deslocamentos por territórios amazônicos, e
o redimensionamento dessas memórias a partir de experiências,
negociações e lutas no presente.
O artigo “Memórias de professoras migrantes: razões, sociabilidades
e tensões em Melgaço, Pará”, assinado por Ilca Pena Baia-Sarraf, Agenor
Sarraf-Pacheco e Albêne Lis Monteiro, constitui-se numa reflexão sobre
o que é “ser professora” a partir de relatos de deslocamentos migratórios
e reconfigurações de memórias das gerações de professoras na cidade
de Melgaço, região do Marajó. “Ser professora”, nessa perspectiva, é uma
constituição discursiva elaborada no registro das várias “razões” que
levaram as mulheres a se deslocarem até Melgaço, de modo que a ânsia
por melhores condições de vida e a segurança salarial do funcionalismo
público conversam, umbilicalmente, com as tensões enfrentadas
por essas mulheres nos primeiros anos de trabalho: a relação com
a capilaridade dos “apadrinhamentos” das políticas municipais, os
conflitos na casa que hospedavam as novas professoras e as típicas
fofocas e boicotes com as novas agregadas revelam as vicissitudes desta
importante faceta da história da educação banhada pelo rio Amazonas.
No artigo de Agenor Sarraf-Pacheco, “Mulheres nos labirintos da
memória: lutas de si no (re)fazer-se na/da cidade-floresta”, as memó-
rias das mulheres de Melgaço, no “Marajó das Florestas”, Pará, são en-
tremeadas às documentações escritas e escritos literários para desvelar
outros sentidos da história e do “(re)nascimento da cidade de Melgaço”.
Dividido em labirintos, o texto tem sua arcada delineada num exercício
de interpretação paralela entre as memórias, lutas, negociações e resis-
tências das mulheres desde momentos específicos da história local com
outros tempos advindos da plasticidade do lembrar feminino. O labirin-
to por onde passam as memórias tem as paredes rebocadas pelos jogos
de representação tecidos por festas, lutas políticas, atividades econômi-
cas e demais vicissitudes que a cidade impõe aos viventes. A instigante
aproximação entre “mulher e cidade”, nascida da pena do autor, avista e
premia a multiplicidade de perspectivas arroladas no livro.
“A vida me fez professora: narrativas de vida de professoras aposen-
tadas de história”, de Dernival Venâncio Ramos Júnior e Bruna da Silva
Cardoso, suscita, através de memórias de cinco professoras de História,
as experiências e representações dadas para o sentido de ser professo-
ra. Atravessados pela metodologia de história de vida e história oral,
os signatários do artigo em tela alcançaram o cotidiano da educação
nas décadas de 1970 e 1980, na microrregião da cidade de Araguaína
(Tocantins), para esgarçar o cotidiano, as dinâmicas culturais e os este-
reótipos engendrados no exercício do magistério feminino. O discurso
que aproxima maternidade e feminização, o intercâmbio envolvendo a
crença no dom de ensinar e a busca de melhores condições de vida no
falar dessas mulheres intensificaram-se, no escrito, com os discursos
morais e moralizantes espraiados na sociedade brasileira. A presença
dos militares na região, com todas as suas implicações – medo, rigidez
e controle –, recobriu e complexificou espaços ora de subserviência, ora
de resistência; e, quando se fala em resistir, não se olvida de que essa
prática se mantém pelo “dom”, pelo “amor” ou pelo “sacrifício”.
Osnera Silva Vieira não pretendeu dizer nada de novo sobre Do-
rothy Mae Stang. Não a heroificou nem se revestiu do pranto enlutado.
O artigo “Educação e memória no legado de Dorothy Mae Stang em
Anapu, Pará” comunica que, embora a violência física seja real e atordoe
o indivíduo, ela pode servir para intensificar a vida. Não se limitando
apenas a transcrever relatos de pessoas sobre a trajetória, o cotidiano e o
compromisso social de Irmã Dorothy, a pesquisadora avançou para falar
de uma memória capaz de edificar testemunhas. No dígito, testemunha
aqui não é aquele que diz ter visto ou ouvido; testemunha é aquele que
se dispõe a coparticipar das experiências, de fazê-las prosseguir, apesar
do assombro de milícias e pistoleiros.
Os assentados e assentadas dos Projetos de Desenvolvimento Sus-
tentável (PDSs), vítimas de ações criminosas de fazendeiros e madei-
reiros na região de Anapu, oeste do Pará, trouxeram nos relatos o que a
autora chamou de “força de Dorothy”. A preocupação com o desmata-
mento e o combate às desigualdades sociais no campo apareceram nas
vozes dos narradores e narradoras como obstáculos que só poderiam
ser superados, segundo Dorothy Stang, com uma educação ávida em
orientar na compreensão dos direitos, de “melhorar a vida de todos/as e
ensiná-los/as a resistir”.
Se “a memória pode ter um valor emancipatório”, seguindo as pistas
de Osnera Silva Vieira, não é necessariamente pela pretensa fidelidade
do relembrado, mas principalmente por fazer daquele que se põe a es-
cutar uma testemunha real e atual do vivido, isto é, atribuir, na escuta, o
compromisso ético contra as formas constituídas de violência e terror.
No alvorecer da escrita dessa “introdução”, ao se deitar no Word o
relato da Professora Deusamar Sales Matos sobre episódios da noite de
17 para 18 de abril de 1996, atendeu-se ao chamamento de quem viu e
ouviu o que se passara. E, tendo visto e ouvido, nada mais lhe restou do
que narrar, entrar na tarefa de desfiar e dispor outros fios (da memória)
noite adentro.
Boa leitura.

Jerônimo da Silva e Silva


Antropólogo (Fecampo/PDTSA)


Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História (1940). In: BENJA-


MIN, Walter. O anjo da história. Organização e tradução de João Bar-
rento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

GUEDES, Carlos. “A luta contra a impunidade do massacre de Eldorado


dos Carajás”, advogado da CPT. Boletim do MST, agosto, 2002.

HOMERO. Odisseia. Tradução de Manuel Odorico Mendes [1928]. São


Paulo: Poeteiro Editor Digital, 2014.
NEPOMUCENO, Eric. O massacre: Eldorado de Carajás, uma história
de impunidade. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007.

SILVA, Jerônimo da Silva e. Memória social e luta pela terra: a renovação


do conteúdo escolar a partir das memórias das lutas pela terra no assen-
tamento Palmares II. Narrativa oral da professora e militante Deusamar
Sales Matos. Programa Institucional de Bolsa de Extensão (Proex). Ma-
rabá: Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, 2016.
Sumário

Parte I – Mulheres em movimentos:


participação e luta pela terra/pelo território ........................................... 21

A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES TRABALHADORAS


RURAIS NA LUTA PELA TERRA NO SUL E SUDESTE
DO PARÁ (1975-1990) ...................................................................................... 23
Airton dos Reis Pereira

LUTA PELA TERRA: PARTICIPAÇÃO E INVISIBILIDADE


FEMININA NO SUDESTE DO PARÁ .......................................................... 47
Rosemayre Lima Bezerra
Ailce Margarida Negreiros Alves

GÊNERO E PARTICIPAÇÃO NA PERSPECTIVA DE


MULHERES DIRIGENTES DO MOVIMENTO SINDICAL
DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS
NO SUDESTE DO PARÁ .................................................................................. 71
Kezia Vieira de Sousa Farias
Idelma Santiago da Silva
Hiran de Moura Possas
PODER Y RESISTENCIA EN EL SUDESTE DEL PARÁ
DESDE LA EXPERIENCIA VIVIDA Y NARRADA POR
MUJERES RURALES DEL GTAE (GRUPO DE
TRABAJADORAS ARTESANALES Y EXTRACTIVISTAS) ............... 109
María de los Ángeles Arias Guevara

RECONTANDO HISTÓRIAS: GÊNERO E SUBJETIVIDADES


NA LUTA PELA TERRA NO SUDESTE DO PARÁ ............................... 133
Kecieni Nunes da Silva

Parte II – Memória, gênero e interculturalidade ................................. 159

FESTA DO MOQUEADO E COSMOLOGIAS:


ENCONTROS COM VERÔNICA TEMBÉ .............................................. 161
Ivânia dos Santos Neves
Ana Shirley Penaforte Cardoso

RELAÇÕES DE GÊNERO ENTRE OS MEBÊNGÔKRE


XIKRIN DO DJUDJÊ-KÔ – COMPORTAMENTOS E
PAPÉIS DO MASCULINO E DO FEMININO NOS DIAS
DE VIGÊNCIA DO CONVÊNIO COM A VALE ................................... 187
Mirtes Emília Manaças

FAZER-SE MÃE DE SANTO: A TRAJETÓRIA ESPIRITUAL


DE MARIA LUIZA DA CONCEIÇÃO ...................................................... 203
Mayane Rumão de Souza Arruda
Sariza Oliveira Caetano Venâncio

“FAZENDO O CAMINHO DE VOLTA”: MEMÓRIA


E CRÍTICA A PARTIR DE CONCITA SOMPRÉ ................................... 219
Jeronimo da Silva e Silva
Hiran de Moura Possas
Parte III – Memória, educação e gênero .................................................. 249

MEMÓRIAS DE PROFESSORAS MIGRANTES: RAZÕES,


SOCIABILIDADES E TENSÕES EM MELGAÇO, PARÁ .................... 251
Ilca Pena Baia-Sarraf
Agenor Sarraf-Pacheco
Albêne Lis Monteiro

MULHERES NOS LABIRINTOS DA MEMÓRIA: LUTAS


DE SI NO (RE)FAZER-SE NA/DA CIDADE-FLORESTA ................... 281
Agenor Sarraf-Pacheco

A VIDA ME FEZ PROFESSORA”: NARRATIVAS DE VIDA


DE PROFESSORAS APOSENTADAS DE HISTÓRIA ........................ 315
Dernival Venâncio Ramos Junior
Bruna Da Silva Cardoso

EDUCAÇÃO E MEMÓRIA NO LEGADO DE


DOROTHY MAE STANG EM ANAPU, PARÁ ...................................... 335
Osnera Silva Vieira

Sobre os Autores ............................................................................................... 351


PARTE I

Mulheres em movimentos:
participação e luta
pela terra/pelo território

21
A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES
TRABALHADORAS RURAIS NA LUTA PELA TERRA
NO SUL E SUDESTE DO PARÁ (1975-1990)

Airton dos Reis Pereira

As análises que mais marcaram as discussões acerca da questão


agrária na Amazônia brasileira, nas décadas de 70 e 80 do século XX,
apresentam a expulsão e a expropriação de posseiros por empresas e
proprietários rurais do centro-sul do País como o principal fator dos
conflitos e das violências que ocorreram em razão das disputas por ter-
ras. Muitos desses trabalhadores rurais eram migrantes que, há muito
tempo, haviam se deslocado para Amazônia. Ali ocuparam as terras de-
volutas e passaram a viver sem nenhum tipo de documento que os le-
gitimasse como proprietários de seus lotes. Já os empresários chegaram
comprando grandes extensões de terras dos governos estaduais e federal
e instalaram sobre as áreas já ocupadas por esses posseiros os seus em-
preendimentos agropecuários. Contudo, esses trabalhadores, uma vez
cansados de migrar e de ser expulsos, resolveram resistir. Foi por meio
desse choque que os conflitos se agudizaram (MARTINS, 1991; HÉBE-
TTE, 2004; ALMEIDA, 1993).
Conforme esses estudos, a luta dos posseiros não foi concebida
como parte de um plano político deliberado para tal. Esses trabalha-
dores foram colocados diante da falta de alternativas. Ou resistiam ou
seriam expulsos. Noutras palavras, a luta pela terra surgiu “espontânea”
e defensivamente como resistência dos posseiros à sua expulsão e expro-
priação. Martins (1991) denominou esse processo de superposição da

23
“frente pioneira” sobre a “frente de expansão”. Para ele, um movimento
essencialmente empresarial e capitalista de ocupação do território – a
grande fazenda, o banco, a casa de comércio, a ferrovia, o juiz, o cartó-
rio, o Estado etc., (a “frente pioneira”) – passou a expulsar e expropriar
os trabalhadores rurais ocupantes de terras devolutas – os posseiros (a
“frente de expansão”) – que viviam de uma economia de base familiar e
sem nenhum documento que legitimasse a sua posse da terra. Cansados
de migrar e de ser expulsos, resolveram a resistir. Aí estava, segundo o
mesmo autor, a origem dos conflitos e da violência no campo. “Quando
se dá a superposição da frente pioneira sobre a frente de expansão”, afir-
mou ele, “é que surgem os conflitos pela terra” (p. 68).
Por meio dessas análises, os conflitos de terra na Amazônia só
ocorreram porque os direitos dos posseiros passaram a ser violados por
empresários do centro-sul do País, que chegaram ao território amazôni-
co com o apoio político e financeiro do Estado. Na maioria dos casos, os
trabalhadores rurais se viram diante da falta de alternativas: ou eles re-
sistiriam ou seriam expulsos com as suas famílias da terra. Estava aí, por
conseguinte, a dimensão política dos conflitos e da violência no campo
na Amazônia brasileira.
Mas essas análises não apresentam as experiências das mulheres
trabalhadoras rurais nos processos de luta pela terra na Amazônia.
Quando algumas mulheres aparecem nas narrativas sobre a problemá-
tica em torno dos conflitos de terra, são tratadas de forma marginal, e
não como sujeitos políticos, de notória participação nos movimentos
sociais, capazes de protagonizar ações coletivas.
Este trabalho, portanto, partiu de outras considerações que dire-
cionam a problemática em torno da questão agrária entre a segunda
metade da década de 1970 e início dos anos de 1990, no sul e no sudeste
do Pará, na Amazônia Oriental. Não só procurou-se dar ênfase à parti-
cipação das mulheres nos processos de luta pela terra, objetivando ex-
plicitar a violência a que muitas vezes foram submetidas tanto por parte
de pistoleiros como por membros dos aparelhos de Estado, como a Po-
lícia Militar, a Polícia Civil e o Grupo Executivo de Terras do Araguaia
e Tocantins (Getat), dentre outros, mas problematizar os conflitos e as

24
disputas por terra como consequência das ocupações de imóveis im-
produtivos com títulos definitivos ou de aforamentos por trabalhadores
rurais, principalmente migrantes do Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste
do Brasil, que nessa época também se denominavam como posseiros.
Ou seja, o conceito de posseiro trabalhado neste artigo abrange tanto
o trabalhador rural, que há muito tempo ocupava áreas de terras de-
volutas na Amazônia e ali vivia sem nenhum tipo de documento que o
legitimasse como proprietário de terra, quanto o trabalhador migrante
de diversas regiões do País, que chegou ao Pará atraído pelas políticas
de desenvolvimento do Governo Federal para a Amazônia e passou a
ocupar grandes imóveis improdutivos com títulos definitivos ou de afo-
ramentos. A categoria “sem terra”, como se conhece hoje, nasceu em ou-
tro contexto e teve a participação direta de agentes da Pastoral da Terra.
Para a construção deste texto, além das fontes bibliográficas, foram
fundamentais as informações propiciadas por diversos documentos,
como bilhetes e cartas de trabalhadores rurais enviados às autoridades e
aos agentes de pastorais da Igreja Católica, assim como ofícios, panfletos,
abaixo-assinados, cartas pastorais e relatórios da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) e de Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs). Foram
indispensáveis ainda os relatos orais de trabalhadores e trabalhadoras
rurais, membros de partidos políticos, religiosos, advogados e de
representantes de STRs, da CPT e do Incra, que se apresentaram como
imprescindíveis.
Essa documentação oral não só possibilitou colocar em relevo
as práticas dos grupos sociais nas disputas por terra, como também
revelou posicionamentos políticos ou pontos de vistas dos sujeitos
envolvidos na temática estudada, que dificilmente seriam encontrados
nos documentos de outra natureza (ALBERTI, 2005). Assim como
os documentos escritos, os relatos orais não foram tomados como
comprovação do real, mas como “índice, sinal ou outras vezes signo
daquilo que se nomeia real, realidade” (MONTENEGRO, 2011: 231).
Eles não são espelhos do passado, portadores de significados evidentes
que se encontram impressos e expressos no acontecido, mas narrativas

25
que se vislumbram inseridas na rede das relações sociais e são, antes
de tudo, articuladores de discursos que devem ser lidos “(...) como um
texto onde se inscrevem desejos, reproduzem-se modelos, apreendem-
se fugas” (GUIMARÃES NETO, 2006: 47).
O sujeito que narra o passado é um sujeito impregnado do
presente. Isto quer dizer que as leituras que as pessoas fazem do passado
são interpretadas e ressignificadas no tempo presente, como escreveu
Regina Guimarães Neto:

[...] as “história relatadas” são, antes de tudo, vidas ou


acontecimentos lembrados. As recordações não são
meras exposições da memória, mas um olhar através do
tempo múltiplo, um olhar que reconstrói, decifra, revela
e permite a passagem de um tempo a outro e, especial-
mente, trazem a possibilidade de atualização do passado
no presente (GUIMARÃES NETO, 2000: 103).

O ato de lembrar é uma reconstrução orientada sempre pela vida


atual, onde passado e presente ora se aproximam, ora se distanciam,
ora coexistem. “Percorrer a trilha do relato construído”, assinalou o
historiador Antônio Torres Montenegro, “[...] é visitar um labirinto
de muitas voltas, de muitas dobras que, ao se desfazerem, aproximam
passado e presente, distanciam passado e presente, numa tensão de quem
conhece o poder das palavras, de quem sabe quanto elas significam: um
perigoso campo minado” (MONTENEGRO, 2010: 43).
Estes relatos em diálogo com essas outras fontes possibilitaram
perceber aspectos e detalhes até então não registrados e analisados a
respeito da atuação das mulheres na luta pela terra.

Apropriação privada da terra, os posseiros e os conflitos agrários

A Secretaria de Obras, Terras e Viação do Pará, posteriormente o


Instituto de Terras do Estado do Pará (Iterpa), dividiu sobre mapas, em
mesas de seus burocratas na capital, parte das terras do Estado em lo-
tes de 4.356 hectares, agrupou-os em glebas e cedeu-os a baixos preços

26
às empresas privadas e/ou às famílias mais abastadas e detentoras do
poder local para a instalação de suas fazendas. Não é difícil ouvir falar
nas glebas Café, Marabá, Itaipavas, Joncon, Carajás, Tracoá, Ipitinga e
Itacaiúnas, dentre outras. Parte desses títulos incidiu sobre áreas já ocu-
padas por antigos posseiros que habitavam as margens dos rios.
Entre 1924 e 1976, o governo do Pará já havia vendido à iniciati-
va privada quase 7 milhões de hectares de terras (TRECCANI, 2001;
PETIT, 2003). No período compreendido entre 1959 e 1963, emitiram-
-se mais títulos do que em todos os períodos anteriores e elevou-se a
área média de cada terra vendida de 165,5 hectares para 3.585 hectares
(SANTOS FILHO & PORTO, 1984). Somente no sul do Estado, entre
1961 e 1964, foram emitidos, segundo Fernandes (1999), 759 títulos de-
finitivos, medindo 4.356 hectares cada um, totalizando 3.306.204 hec-
tares. Só João Lanari do Val, por exemplo, adquiriu do Estado, em 1962,
80 lotes de 4.356 hectares cada, totalizando 348.480 hectares, formando,
assim, a Companhia Mata Geral (SILVA, 2009). Nos municípios de Itu-
piranga, São João do Araguaia, Marabá, Tucuruí e Jacundá, entre 1955 e
1966, o governo do Estado chegou a expedir 218 títulos de aforamentos
perpétuos (795.155 hectares) a proprietários rurais que já vinham ex-
plorando a castanha-do-pará. Embora o tamanho da área para cada re-
querente não pudesse exceder 3,6 mil hectares, conforme a Lei Estadual
n. 913, de 1954, grande parte dessas terras concentrou-se nas mãos de
algumas famílias, como os Mutran, Azevedo, Moraes, Chamié e Miran-
da, dentre outras (EMMI, 1987).
Mas, durante a década de 1970, a apropriação de terras devolutas
ao longo da PA-150 pôde também ser verificado. Conforme avançava a
abertura dessa rodovia, diversos fazendeiros, comerciantes e empresá-
rios do centro-sul abriram fazendas, disputando, palmo a palmo, as ter-
ras devolutas com trabalhadores rurais que também chegavam atraídos
pelas políticas de desenvolvimento do Governo Federal. Estas grandes
áreas, uma vez tituladas, receberam também recursos oriundos dos in-
centivos fiscais. Segundo Fernandes (1999), a Sudam1 havia aprovado só

1
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia. (N. do R.) 

27
para o Estado do Pará, entre 1966 e 1983, 72 projetos agropecuários. A
grande maioria, num total de 62, concentrou-se no sul do Pará, sendo
que 53 desse total (33 para o município de Conceição do Araguaia e 20
para o município de Santana do Araguaia) foram aprovados entre 1966
e 1975. Os 33 projetos destinados às empresas instaladas em Conceição
do Araguaia, analisados por Octávio Ianni (1978: 221), acumulavam,
segundo ele, um total de 430.189,92 hectares de terras. Quanto maior
fosse o tamanho do imóvel, maior seria o volume de recursos que pode-
riam ser obtidos com base nele (COSTA, 2000).
Quer dizer, o modelo de desenvolvimento concebido pelos gover-
nos da ditadura civil-militar para a Amazônia foi pautado na grande
propriedade da terra e na transferência massiva de recursos públicos a
inúmeros grandes proprietários rurais e empresas privadas nacionais e
estrangeiras sediadas no centro-sul do Brasil, inclusive aquelas que se
dedicavam ao ramo financeiro e à indústria de veículos automotores.
Esses grupos econômicos passaram a adquirir terras e a acessar volumo-
sos recursos provenientes dos incentivos fiscais para a criação de gado
bovino, exploração de madeiras nobres (mogno, cedro, ipês, angelim
etc.) e comercialização da castanha-do-pará.
Mas a notícia que percorria sobre as facilidades de se conseguir ter-
ras e emprego na Amazônia, veiculada pela propaganda governamental
que exaltava a instalação dos projetos agropecuários e a colonização às
margens da Transamazônica, ecoou longinquamente. Milhares de mi-
grantes irromperam do Maranhão, do Piauí, da Paraíba, do Ceará, de
Minas Gerais, da Bahia, do Espírito Santo, do Paraná e de Goiás, den-
tre outros locais. Centenas de famílias atravessaram os rios Araguaia e
Tocantins em busca da terra e do emprego (HÉBETTE, 2004). Onde
ainda existiam terras devolutas, estas foram paulatinamente ocupadas.
Outros, porém – a maioria –, passaram a ocupar imóveis com títulos de-
finitivos ou de aforamento e a enfrentar a violência de policiais e de pis-
toleiros a mando dos grandes proprietários de terra. Ou seja, no sul e no
sudeste do Pará, até meados da década de 1990, o conceito de “posseiro”
era empregado também para designar os trabalhadores rurais, princi-
palmente migrantes de diversas partes do Brasil, que passaram a ocupar

28
inúmeros imóveis improdutivos com títulos definitivos ou de aforamen-
tos. Quer dizer, os trabalhadores rurais que se instalaram em diversos
imóveis com títulos definitivos ou de aforamentos até a primeira metade
dos anos de 1990 apropriaram-se de uma designação até então usada
para significar os ocupantes de terras devolutas consideradas antigas
para ajustar-se a uma nova situação ou prática social. Esta apropriação
atualizada do conceito de posseiro passou a ter uma dimensão política
inusitada na luta pela terra na Amazônia.
Foi possível constatar que, em 11 municípios localizados no sul do
Estado2, entre 1975 e 1997, 258 propriedades haviam sido ocupadas por
trabalhadores rurais que se identificavam como posseiros, como foi o
caso das fazendas Canaã, Tupaciretã, Vale da Serra, Jocon/Três Irmãos,
Agropecus, Batente, Pecosa, Bela Vista e Colônia Verde Brasileira, dentre
outras. Essas ocupações de terra não aconteciam de maneira organizada
como as promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) em algumas regiões do Brasil. Ou seja, motivados pela
necessidade imediata de sobrevivência, estes trabalhadores rurais
formavam pequenos grupos, entravam numa área e, aos poucos,
demarcavam os seus lotes no interior das matas. A iniciativa de cada
ocupação partia sempre dos interessados, e não de uma coordenação
centralizada de um partido político ou de qualquer instituição civil
ou religiosa. Contudo, não se tratava de um movimento aleatório e
desorganizado ou mesmo constituído por pessoas desinformadas que
vagavam acidentalmente em busca da terra.
Entre 1975 e 1984, a média de ocupações de imóveis com título
definitivo ou de aforamento foi na ordem de 12,20 por ano. Já o período
compreendido entre 1985 e 1990, essa média foi de 14,83. E, embora
seja possível averiguar uma certa intensidade de ocupações dessas
propriedades no final da década de 1970 e início dos anos 1980, a média

2
Conceição do Araguaia, Redenção, Floresta do Araguaia, Pau D’Arco, Santana do
Araguaia, Santa Maria das Barreiras, Xinguara, Rio Maria, Sapucaia, São Geraldo
do Araguaia e Piçarra. Até maio de 1982, esses municípios pertenciam unicamente
aos municípios de Conceição do Araguaia e Santana do Araguaia.

29
de ocupações no período da Nova República foi maior, levando-se em
consideração o período anterior.
Foi justamente nesse lapso de tempo que se intensificou a violência
dos grandes proprietários de terra contra os trabalhadores rurais.
Segundo os dados da CPT3, dos 905 assassinatos de trabalhadores
rurais, religiosos e advogados por questões de terras no Estado do Pará,
entre 1970 e 2010, 647 foram somente no sul e sudeste do território
paraense. A década de 1980 é apontada como aquela em que se registrou
o maior número de assassinatos no campo. Sozinha, com 349 mortes,
superou todas as outras que, em conjunto, somaram 298, com destaque
para os anos compreendidos entre 1983 e 1987, que juntos acumularam
245 assassinatos, 135,58% maior em comparação aos outros cinco anos,
os quais abrigaram 104 mortes. Pode-se observar também que o ano
de 1985 foi aquele que sobressaiu em relação aos demais, pois sozinho
contabilizou 108 assassinatos (PEREIRA, 2015).
Quer dizer, no sul e sudeste do Pará, o maior número de mortes
no campo pode ser verificado no período compreendido entre os
últimos anos da ditadura civil-militar e o antepenúltimo ano da Nova
República, quando as ocupações de terra, por parte dos trabalhadores
rurais, e os debates sobre a reforma agrária ampliaram-se, sobretudo
em 1985, quando o Governo Federal lançou o PNRA4 e os proprietários
e empresários rurais criaram a União Democrática Ruralista (UDR).
A esperança depositada na execução do PNRA, que foi apresentado
como forma de amenizar os conflitos de terra e corrigir as distorções
da estrutura fundiária brasileira, estimulou a luta por terras em todo
o País. A reação dos proprietários e empresários rurais, sobretudo
aqueles ligados à UDR, foi a contratação de milícias armadas que, com a
participação e a conivência da polícia, de alguns promotores de justiça,
de alguns juízes e de funcionários do Getat/Incra e do Iterpa, expulsaram,
prenderam, espancaram e assassinaram centenas de posseiros.

3
Comissão Pastoral da Terra. (N. do R.)
4
Plano Nacional de Reforma Agrária. (N. do R.)

30
A participação das mulheres na luta pela terra

Os conflitos e a violência no sul e sudeste do Pará tenderam a se


intensificar na medida em que proprietários de terra passaram a resistir
às ocupações de seus imóveis por parte dos posseiros e às desapropriações
pelo Governo Federal (PEREIRA, 2004). Enquanto, para alguns, a
desapropriação do imóvel surgia como um caso inevitável, pois haviam
“perdido o controle” sobre a terra, para outros, a ocupação por posseiros
e a desapropriação de seu imóvel representavam a perda não só da renda
da terra, mas de posição social, política e de poder (MELO, 1999). Nesse
sentido, talvez seja pertinente mencionar aqui as reflexões que Hannah
Arendt e Leonilde Servolo Medeiros realizaram sobre a violência. Para
Arendt (1994), nada “é mais comum do que a combinação de violência
e poder, e nada é menos frequente encontrá-los em sua forma pura e,
portanto, extrema” (p. 38). Aparecem combinados e só se percebe a
clivagem entre eles sob as condições extremas. Ainda segundo esta autora,
a violência surge onde o poder está em risco. A diminuição do poder
é sempre o convite à violência. Já para Medeiros (1996), a emergência
dos trabalhadores rurais, com as suas reivindicações, colocando-se na
cena pública como iguais, como portadores de direitos, implica que os
proprietários de terra tenham que aceitar outro interlocutor, “significa
ter de reconhecer um ‘outro’, abrir espaço para a negociação e colocar
em risco os privilégios e a capacidade de mando que se assentam sobre
a propriedade da terra” (p. 133). Esta seria, talvez, uma das principais
razões dos conflitos e da violência no campo nessa parte do território
amazônico.
Para o sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, a violência deve
ser entendida como “(...) uma rede de exercício de poder marcada pela
força, pela coerção e pelo dano, em relação a um outro” (TAVARES DOS
SANTOS, 1995: 288). É uma relação social inegociável, uma vez que
atinge as condições de sobrevivência, materiais e simbólicas, daqueles
que são vistos como desiguais pelos praticantes ou agentes da violência.
A violência, afirmou ele, é

31
[...] como um dispositivo de poder, no qual se exerce
uma relação específica com o outro, mediante o uso da
força e da coerção: isto significa estarmos diante de uma
modalidade de prática disciplinar, um dispositivo, que
produz um dano social, ou seja, uma relação que atinge
o outro com algum tipo de dano (p. 290).

Quer dizer, a violência dilacera não só o corpo, mas a participa-


ção social daqueles que são atingidos. Instaura-se como uma prática
disciplinar, indo da prescrição de estigmas à exclusão, efetiva ou sim-
bólica. Uma prática que procura explicitar o poder sobre os corpos
das vítimas.
Ainda tecendo reflexões sobre a problemática da violência no
campo, vale considerar as análises que Regina Bruno tem desenvolvido
nos últimos anos. Para Bruno (2002), a violência não aparece como ato
individual e esporádico. É uma “violência ritualizada e institucionalizada,
que implica a formação de milícias, a contratação de capangas, a lista
dos marcados para morrer e os massacres” (p. 194). E tão forte quanto a
violência física é a desqualificação dos trabalhadores e seus mediadores.
Os trabalhadores rurais, ainda segundo Bruno, são considerados
como “vagabundos”, “preguiçosos”, “especuladores” que “merecem ser
expulsos a pontapés”, os quais são manipulados pela esquerda e pela
Igreja Católica. Esta última é acusada de incentivar as “invasões” de terra
em todo o País. Os seus representantes são considerados os “agitadores”
que querem levar caos ao campo.
Nesse sentido, é possível perceber que, provavelmente, uma das
principais razões do desencadeamento da violência no campo tem sido
a emergência dos trabalhadores na cena pública como iguais, como
portadores de direitos, apresentando as suas reivindicações. Em diversas
situações, como é o caso das ocupações de terra, criam-se fatos políticos
que tornam visível essa demanda e, para isso, por vezes, eles têm que
se confrontar com a força de pistoleiros e da polícia. Os proprietários
rurais são, de certa forma, forçados a aceitar um outro interlocutor onde
antes havia espaço apenas para o seu controle.

32
É certo que, nos registros sobre as ocupações de imóveis com títulos
definitivos ou de aforamentos que ocorreram no sul e sudeste do Pará,
entre a segunda metade da década de 1970 e primeiros anos de 1990,
a presença das mulheres, em muitos casos, só foi constatada quando
não existiam ameaças explícitas de violência por parte de pistoleiros
ou da polícia. Mas, além desses fatos, é preciso considerar também que
muitas ocupações de imóveis, em várias ocasiões, ocorriam em lugares
distantes das cidades, vilas e povoados, em áreas de difícil acesso. Eram
locais às vezes longe das povoações, onde os trabalhadores conseguiam,
sem maiores problemas, ocupar um imóvel, fazer a sua roça e edificar
um barraco. Embora não pudessem livrar-se da presença de pistoleiros
contratados para expulsá-los das terras, era mais difícil o deslocamento
da Polícia Militar até a área. Quer dizer, as condições em que ocorriam
as ocupações de terra muitas vezes favoreciam a presença masculina
que, em muitos casos, tinha que se deslocar por longos caminhos no
meio da floresta carregando utensílios, ferramentas de trabalho e
mantimentos necessários. Contudo, isso por si só não foi suficiente para
que se reduzissem as ocupações de terra no sul e no sudeste do Pará, as
“ocupações masculinas da terra”.
Por outro lado, é preciso cuidado ao serem analisados os dados
de assassinatos no campo. Se esses números não forem verificados
com devida atenção e for esquecida a existência de outros tipos de
documentos, observa-se a possibilidade de haver uma indução à
percepção da não participação das mulheres nas ocupações e nos
conflitos de terra, e também negligenciar as violências sofridas por elas
nos processos de luta pela terra na região.
Se forem computados os dados da Comissão Pastoral da Terra, talvez
a única entidade que tem conseguido registrar com maior precisão o
número de assassinatos no campo, por exemplo, poderá ser constatado
que, das 647 pessoas assassinadas por questões de terras no sul e sudeste
paraense, entre 1970 e 2010, somente 27 eram mulheres, ou seja, uma
cifra de apenas 4,17% do total. Mas isso não significa que, sendo os
homens que aparecem de forma esmagadora nos referidos dados, as
mulheres não tiveram participação efetiva na luta pela terra e não foram

33
vítimas da violência física e simbólica dos grandes proprietários de terra
e dos aparelhos do Estado.
Em muitas ocupações de terra, diversas mulheres participaram
ativamente nas frentes dos confrontos e foram, em diversos momentos,
submetidas a uma série de violências. Mulheres que muitas vezes
passaram por dificuldades enfrentando as intempéries da natureza, o
problema da malária, a escassez de comida nos primeiros anos dentro
da área pretendida, a obrigação de cuidar da casa, dos filhos e também
da roça enquanto os seus esposos revezavam-se nas trincheiras ou nas
emboscadas para se livrar de pistoleiros.
Dona Cleuza Alves dos Santos, posseira da Fazenda Bela Vista,
em Floresta do Araguaia, contou que, em 1987, depois que alguns
pistoleiros passaram a ameaçá-los de expulsão de suas terras, os homens
foram obrigados a se entrincheirar. Certa noite, ela e algumas mulheres
da área ocupada tiveram de fugir junto com os seus filhos à procura de
um lugar seguro:

[...] peguei um lençol, joguei em cima de uma cama e


joguei lençol e joguei lençol e joguei coisa em cima, e
peguei outro e mandei a menina jogar umas vasilhas,
umas panelas, uns pratos. Joga aí, faz aquela trouxa, as
meninas botando ali e eu, chorando agoniada, amar-
rei. Com isso, já estava de noite. Eu fiz aquela trouxona
de trem [...]. Peguei uma lamparininha e botei aquela
menina no braço e as coisas na cabeça, de noite. Sim,
tinha uma filha minha que morava do outro lado, mais
perto mesmo, também. Que é minha filha. Eu morava
de cá, ela morava de lá. Eu já tinha mandado avisar
ela: “pode arrumar as coisas lá mais o Alfredo”, que é
o marido dela. Quando eu cheguei lá, ela estava toda
se tremendo, chorando. Tinha uma menininha dela. Aí
nós saímos. Chegamos na casa da outra vizinha, minha
cunhada, já estava com os trem arrumados também.
Outras arrumaram também. Nós saímos aquela fila de
noite. Cada uma com uma luzinha, uma lamparininha

34
na mão aí no meio da mata. Aquela fileira. Fomos para
o 41. Lá era seguro. Lá já tinha tido conflito, já tinha
liberado, já era do povo. Eu vou é pra lá. Todo mundo
na companhia. Fomos. Deu muito tarde. Era longe.
Nós dormimos no final do 42. Botemos as cobertas nos
chão e deitemos. Botemos os meninozinhos que tinha.
Minha cunhada tinha um bocado de netos, trazia das
filhas, acompanhando tudo. A fila de gente. Passamos
a noite lá no chão, sem jantar. A janta tinha ficado em
cima da mesa. Eu ainda tinha feito uma marmitinha as-
sim pros meninos. Ficou tudo lá (Entrevista concedida
em 2 de agosto de 2003).

Na fazenda Fortaleza, de Almir Morais, no município de Xingua-


ra, por exemplo, Hamilton Rodrigues dos Santos, um dos integran-
tes do grupo do pistoleiro Sebastião da Teresona, jovem, negro, ca-
belos cacheados e barba abundante, magro, musculoso, voz tranquila
e olhos baixos, afirmou ao Jornal do Brasil poucos dias depois de ter
sido preso:

Nós chegamos lá e o Sebastião mandou a gente logo


prender três homens, os posseiros. A gente amarrou eles
e baixamos fogo neles na frente da sede da fazenda. Daí
saíram as mulheres chorando de dentro dos barracos. Era
uma velha duns 40 anos e duas novinhas, de 14 e 16. A
velha nós matamos logo, as novas Bastião, o Mineirinho
e mais dois levaram para dentro da casa. Depois de cur-
radas, as duas moças foram trazidas de novo para fora do
barraco. Daí Bastiãozão gritou que elas iam contar tudo
para a polícia, e furou elas de faca. Nós pusemos fogo
em tudo e deixamos os mortos lá dentro queimando. A
polícia veio oito dias depois buscar o que sobrou (Jornal
do Brasil, 8 de dezembro de 1985).

O que pode ser destacado deste fragmento, além da crueldade dos


pistoleiros e da omissão e negligência da polícia, é a presença das mu-

35
lheres na luta pela terra no Pará. Embora muitos grupos de posseiros
tenham sido formados, no primeiro momento das ocupações, só por
homens, muitas mulheres estavam lá fazendo parte do confronto arma-
do. Outras, porém, cumpriam inúmeros papéis da luta pela terra fora da
área ocupada, como trabalhar para sustentar o marido, os filhos maiores
ou o pai que resistiam na posse, por exemplo, e ainda cuidar dos filhos
menores que ficavam em sua companhia.
Outro episódio que revelou a presença direta de mulheres nos con-
frontos por terra foi a Chacina do Castanhal Terra Nova, ocorrida em 12
de agosto de 1984, em São Geraldo do Araguaia, pelo pistoleiro Sebas-
tião da Teresona e seu grupo. Quatro posseiros foram mortos: Joaquim
Ribeiro de Souza, de 36 anos; João Batista Alves, o Caolho, que deixou
dois filhos menores e a esposa grávida de seis meses; José Leite Caval-
cante e Cícero Pereira Cavalcante, de 34 anos, pai de nove filhos. Outros
três saíram feridos: Raimunda Leite Cavalcante, de 32 anos, esposa de
Cícero Cavalcante, levou um tiro na perna direita; Adão Cavalcante, de
16 anos, filho do casal, foi atingido por cinco balas (costa, abdômen,
braços e pernas); e um menino de 14 anos, também filho do casal, so-
freu diversos golpes de coronha de carabina5.
O pistoleiro Sebastião da Teresona e seu grupo foram acusados
também pela chacina de 17 posseiros na Fazenda Surubim, de João Al-
meida, entre maio e junho de 1985. No dia 1o de maio daquele ano, Tere-
sona e seus homens entraram onde os posseiros estavam e assassinaram
Julimar Barbosa Lima, de 17 anos. Cortaram uma de suas orelhas e le-
varam-na como troféu. O seu corpo ficou exposto durante sete dias até
que a polícia fosse resgatá-lo para o sepultamento6. O resgate ocorreu
porque o pai de Julimar, o Sr. Artur Barbosa Dias, acompanhado pela
CPT e por organizações de direitos humanos denunciou o crime, em
Brasília, ao Ministro da Justiça, na época Fernando Lyra, e ao titular do

5
Depoimento de Maria Rosário dos Santos, esposa de João Batista Alves, tomado
pela CPT em 9 de outubro de 1985 (Arquivo da CPT de Xinguara).
6
Depoimento de Luiz Barbosa Lima, irmão de Julimar Barbosa Lima, em 11 de
março de 1985 (Arquivo da CPT de Xinguara).

36
Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (Mirad), Nelson
Ribeiro. No dia 23 do mesmo mês, a mando de João Almeida, o mes-
mo grupo de pistoleiros assassinou Francisco Pereira Morais, sua espo-
sa Leonildes Resplandes da Silva e seu irmão Manoel Pereira Morais,
também posseiros da Fazenda Surubim. O filho do casal, com apenas
dois anos, foi também assassinado. Leonildes foi estuprada antes de ser
morta. Para completar o serviço, os pistoleiros atearam fogo nos corpos.
Os restos foram resgatados três dias depois pela polícia numa carroça
(Processo Criminal n. 043/91, vol. I; CPT Norte II, 1985). Entre 19 de
maio e início de junho, o mesmo grupo de pistoleiros entrou novamente
na área e assassinou, além dos posseiros conhecidos por Gilberto e Ro-
berto, mais dez trabalhadores. Os seus corpos ficaram tão desfigurados
que nunca foram identificados.
O Secretário Estadual de Segurança Pública do Pará, Lélio
Alcântara, pressionado pela repercussão das mortes de Francisco,
Manoel e Leonildes Resplandes, declarou à imprensa que os pistoleiros
apenas haviam atirado para cima, embora o Capitão da PM Antônio
Alfredo Gibson tenha feito a prisão de três7 dos 25 acusados do en-
volvimento nas mortes naquela propriedade. Na Delegacia de Polícia
de Xinguara, o escrivão recebeu um telefonema do Delegado Lourival
Santos, que se encontrava em Belém no dia da prisão, pedindo que os
três pistoleiros fossem liberados (JORNAL DO BRASIL, 12 de junho de
1985). Determinou também que os policiais escoltassem os envolvidos
até a cidade de Marabá, onde tinham residência. Ordenou ainda que a
caminhoneta abandonada pelo grupo na Vila Rio Vermelho (também
conhecida por Gogó da Onça) fosse devolvida ao fazendeiro João Al-
meida, dono da Fazenda Surubim, patrão dos pistoleiros. Segundo o
Jornal do Brasil, Flávio Teles de Menezes, presidente da Sociedade Rural
Brasileira (SRB), foi questionado sobre o episódio quando participava
de um evento em São Paulo. Disse que era “profundamente lamentável
a morte dos posseiros de Xinguara”, mas não deixou de acrescentar: “Se

7
Os pistoleiros presos eram Leovergildo Aísio Mota Leite, Valdir Pereira Araújo e
Raimundo Alves Bezerra. Cf. Jornal do Brasil, 12 de junho de 1985, 1o caderno, p. 7.

37
existem, no País, alguns tanques de gasolina na forma de tensão social, o
Governo acendeu a centelha com o Plano de Reforma Agrária (...)”. “Os
bancos têm guardas armados e as residências também. Eu vejo a deci-
são de alguns proprietários rurais como uma consequência indesejável
da situação social. Essa defesa é permitida pelo Código Penal” (Jornal
do Brasil, 12 de junho de 1985). Até que um inquérito foi instaurado
para apurar esses crimes, mas, por falta de provas contra os acusados,
a justiça arquivou o processo em 1o de outubro de 1990 (O Liberal, 20
dezembro de 2006).
Contudo, é preciso salientar que a violência em decorrência dos
conflitos agrários era praticada também pelos aparelhos do Estado,
como a polícia e, às vezes, o Incra/Getat. Múltiplos foram os despejos
e/ou expulsões efetivados pela polícia, em muitas ocasiões, segundadas
por pistoleiros. Nos 11 municípios localizados mais ao sul do Estado
do Pará, onde a CPT da Diocese de Conceição do Araguaia atuava,
segundo consta nos dados dos arquivos dessa entidade, entre 1982 e
1992, 4.352 famílias que ocupavam imóveis com títulos definitivos
foram expulsas com a participação direta de pistoleiros ou da polícia;
884 casas foram queimadas ou destruídas e 28.439 famílias foram
ameaçadas de despejos. Nesse mesmo período, segundo ainda estes
dados, 840 trabalhadores rurais foram ameaçados de morte; 1.647
foram espancados e feridos; e 870 foram detidos ou presos8. Em
muitos desses casos, recaía sobre as mulheres o cuidado com a família
e com os pertences domésticos: não deixar a família sair do local
sem se alimentar; proteger os seus filhos da polícia ou de pistoleiros
armados; ser obrigada a embalar as roupas, os utensílios domésticos
e as ferramentas de trabalho etc. Ou seja, é preciso reconhecer a
especificidade de participação da mulher na luta. Ela quase sempre
esteve envolvida diretamente nas disputas por terra, mesmo que não
estivesse presente na área litigiosa; até porque, em diversos momentos,
era ela que procurava providências contra qualquer tipo de violência
direcionada aos posseiros, como denunciar os casos às entidades de

8
Arquivos da CPT – Xinguara (PA).

38
mediação ou aos aparelhos de Estado, ou mesmo testemunhar contra
fazendeiros e pistoleiros responsáveis pelos atos de violência, além de
criar os filhos e ser a responsável pela alimentação e pelos remédios,
dentre outros afazeres, para o marido no imóvel em questão.
Vale ressaltar que, na grande maioria dos despejos realizados pela
polícia, autorizados ou não pela justiça, as famílias de trabalhadores
rurais sofriam uma pressão muito grande. Não só é possível verificar
a ostentação de armas de grosso calibre por parte da polícia e, às
vezes, por parte de pistoleiros, o que por si só já era intimidatório,
mas a forma arrogante e truculenta como muitos policiais se dirigiam
aos trabalhadores e trabalhadoras. Espancar, gritar e usar palavras,
parte de um vocabulário depreciativo e preconceituoso, quase sempre
ocorreu por parte da polícia nas ações de reintegração de posse.
Além disso, bolsas e baús, dentre outros receptáculos, quase sempre
eram revistados sob o discurso de encontrar armas e munições.
Nesses casos, os pertences dos trabalhadores eram espalhados pelo
chão, sendo os próprios trabalhadores obrigados a reorganizá-los.
Por outro lado, não é difícil encontrar afirmações destes mesmos
trabalhadores com relação a sumiço de dinheiro, relógios, rádios,
lanternas e outros objetos nessas revistas por parte da polícia
(ANISTIA INTERNACIONAL, 1988).
No final de outubro de 1987, num outro caso exemplar, a pos-
seira Maria de Jesus dos Santos, da gleba Ararandeua, município de
Rondon do Pará, terras essas pretendidas pelos irmãos Hermínio e
Joaquim José Branco, procurou a Delegacia de Polícia da Vila Goia-
nésia para denunciar o assassinato de Sebastião Ferreira de Souza, seu
esposo, de Clésio Silvino Silva, seu filho de três anos, e de João Passa-
rinho, o “Ventinha”. No entanto, o sargento da PM, que respondia pelo
cargo de delegado naquela localidade, recusou-se a fazer a ocorrência,
alegando não ter papel na delegacia e aconselhou a viúva a desaparecer
de Goianésia se “quisesse continuar vivendo”. No dia 27 de outubro,
Maria de Jesus e um advogado deslocaram-se por 150 quilômetros até
Marabá e procuraram a Polícia Federal. O delegado não só se negou
a registrar a ocorrência como fez comentários pouco agradáveis, afir-

39
mando que “quem nasceu tem que morrer mesmo” (Jornal do Brasil,
18 de janeiro de 1988)9.
Contudo, não se pode considerar os trabalhadores e trabalhadoras
rurais como passivos e vítimas de todos os processos. Mesmo compondo
grupos heterogêneos, dispersos e distintos, esses trabalhadores,
denominando-se posseiros, conseguiram se organizar para defenderem-
se das reações dos grandes proprietários de terra. Não só estabeleceram
alianças com sindicatos, parlamentares e com a Igreja Católica, formada
por agentes de pastorais, padres, bispos, dentre outros membros,
sensíveis às suas lutas, mas conseguiram montar estratégias de defesa
e de confrontos armados, como trincheiras e emboscadas, além de um
sistema de comunicação interna e externa à área litigiosa, roças coletivas,
trabalho solidário, fabricação de armas rudimentares e munição etc.
Estes posseiros, normalmente nos primeiros anos de uma ocupação
de terra, às vezes se estabeleciam em lugares de difícil acesso, trabalha-
vam em grupos e contavam com algumas pessoas que eram encarrega-
das de avisá-los quando algo de estranho se aproximasse, fazendo algum
sinal sonoro compreensível somente ao grupo, como o sopro no cano
de uma espingarda, por exemplo, um assovio ou a imitação do canto de
um pássaro etc. Até mesmo um determinado latido de um cão alertava o
grupo do perigo. Rastros nos caminhos e barulhos estranhos poderiam
também alertá-los dos problemas. “O carro não tem o seu sinal? Nós tí-
nhamos o nosso também. Tinha a lógica do sinal, ter segurança”, contou
Francisco de Assis Soledade, o D’Assis, posseiro da Fazenda Veneza e,
atualmente, diretor da Fetagri10 (entrevista concedida em 1o dezembro
de 2006). Outros recursos simples, como pontes precárias, caminhos es-
treitos, valas ou troncos de árvores nas estradas ou nas trilhas, obstruin-
do o acesso, eram meios que evitavam, por vezes, as ações imprevistas
de pistoleiros e de policiais.

9
O Tribunal de Justiça do Estado do Pará descobriu recentemente que o processo
que apura a morte desses trabalhadores sumiu da Comarca de Jacundá. Cf. O Esta-
do de S. Paulo (09 de janeiro de 2005); Diário do Pará (19 de junho de 2011).
10
Federação dos Trabalhadores em Agricultura. (N. do R.)

40
Mas, quase sempre, os grupos de posseiros contavam também com
algumas pessoas de sua confiança nas cidades, vilas ou áreas vizinhas aos
litígios que podiam informar de possíveis contratações de pistoleiros por
parte dos proprietários rurais, do desencadeamento de alguma operação
policial junto às áreas, de algum noticiário na imprensa que pudesse
interessá-los, ou mesmo transportando armas, projéteis, cartuchos etc.
Esse papel era desempenhado, às vezes, por posseiros de áreas próximas
onde os conflitos já haviam cessado, por sindicalistas e, principalmente,
por mulheres, normalmente esposas de alguns posseiros dos imóveis
onde se desenrolavam os conflitos agrários. Segundo Francisco de Assis
Soledade,

[...] uma grande batalha na época era como se organizar


para não deixar os pistoleiros entrarem. A gente sabia
que tinha o espião do lado dos proprietários, mas tinha o
espião nosso também. Então nós tínhamos gente dentro
e fora da ocupação que era capaz de buscar informação,
como que estava rodando as informações (Entrevista
concedida em 1o de dezembro de 2006).

Já Ricardo Rezende Figueira, ex-coordenador da CPT Araguaia-


Tocantins, contou que, certa vez, a CPT teve contatos com um grupo de
posseiros de uma área conflituosa próxima de Xinguara, mais ou menos
no final de 1979 e início de 1980, e pôde perceber que uma senhora
de uma igreja pentecostal, de cabelos e vestidos longos, sempre com
uma Bíblia debaixo do braço, levava informações e munição para o
grupo armado ao mesmo tempo que trazia as queixas e as denúncias
dos posseiros para a CPT. “Ela entrava na área levando informações e
munição para o pessoal e trazia também informações de lá”, afirmou ele.
“Ninguém podia imaginar que uma senhora com uma Bíblia, vestido
comprido, cabelos compridos estava levando munição (...). A polícia
não a vistoriava e nem os pistoleiros” (Entrevista concedida em 26 de
setembro de 2003).

41
Considerações finais

Como foi demonstrado ao logo do texto, no sul e no sudeste do


Pará, as mulheres trabalhadoras rurais, no processo da luta pela terra,
não apenas desenvolviam trabalhos nas roças, nas construções de casas
e se faziam presentes nas reuniões dos membros de suas comunidades,
mas foram também vítimas da violência não só porque viram os seus
esposos, filhos, pais e amigos sendo torturados e assassinados, mas
porque foram estupradas, espancadas e também assassinadas. Em
diversos momentos, recaía sobre elas a responsabilidade de proteger os
seus maridos, filhos e amigos, escondendo-os dentro ou no quintal da
casa, enfrentando, às vezes, fisicamente, os pistoleiros e pedindo, sob
lágrimas, que não os assassinassem, ou mesmo fugindo para direções
opostas àquelas onde estavam os homens escondidos para despistar os
criminosos. Houve casos em que elas se colocaram em fuga, levando
crianças e alguns utensílios domésticos, no meio da noite, à procura de
um lugar seguro. Em outros momentos, estando na cidade, enviavam
recados para os grupos de posseiros, avisando-os sobre alguma diligência
da polícia ou de um suposto ataque de pistoleiros. Em certas situações,
eram elas que levavam munições para os homens entrincheirados,
passando por barreiras policiais ou, mesmo, fazendo chegar ao STR,
ao bispo, ao padre e à CPT as informações ou denúncias da violência
contra comunidades de posseiros.

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45
LUTA PELA TERRA: PARTICIPAÇÃO E
INVISIBILIDADE FEMININA NO SUDESTE DO PARÁ

Rosemayre Lima Bezerra


Ailce Margarida Negreiros Alves

Notas introdutórias

Esse artigo tem como objetivo analisar a participação das mulheres


trabalhadoras rurais no processo de luta da terra, por direitos e políticas
públicas. Procurou-se ainda evidenciar a inserção dessas agricultoras
no movimento sindical e na organização das mulheres da região e, con-
sequentemente, perceber os reflexos dessa participação na reprodução
social da família e do campesinato regional.
A pesquisa priorizou três municípios: São João do Araguaia, São
Domingos do Araguaia e Itupiranga, especialmente pela forte atua-
ção do movimento sindical no processo de enfrentamento à estrutura
agrária concentracionista, imposta pelo modelo de desenvolvimento
implantado na região amazônica. Outro elemento da escolha dos muni-
cípios foi por conta da forte participação e incidência política das mu-
lheres no movimento sindical e na organização das mulheres, marco do
protagonismo feminino no enfrentamento ao exclusivo controle mascu-
lino da luta sindical, em especial a experiência de São João do Araguaia
e São Domingos do Araguaia.
Este estudo se baseia particularmente na pesquisa qualitativa, que
“[...] trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspi-
rações, das crenças dos valores e das atitudes” (MINAYO, 2007: 21).

47
Para tanto, priorizou-se o uso da história oral, tendo em vista que, na
perspectiva de Portelli (2006) segundo Matos & Senna (2011: 101), “as
fontes orais” revelam as intenções dos feitos, suas crenças, mentalidades,
imaginário e pensamentos referentes às experiências vividas; e mobili-
zam a memória, elemento importante para entender o lugar e a parti-
cipação das mulheres, por elas mesmas, no processo de constituição do
campesinato local. Dessa forma, possibilitou-se um repensar sobre os
papéis desempenhados pelas mulheres no processo de luta pela terra na
região, que normalmente, são percebidos como ações exclusivamente
masculinas. Foram priorizadas entrevistas com mulheres atuando como
lideranças, dirigentes sindicais e aquelas que participaram ativamente
das lutas camponesas e movimentos sociais.

As mulheres: quem são elas?

Pois é, eu sou Morena, meu nome popular é esse, mas


meu nome é Olindina de Oliveira Paiva. Eu nasci no Ma-
ranhão, numa cidade chamada Brejo Paraíba, de lá eu
vim parar no Tocantins. Eu cheguei aqui em São Domin-
go em 19 de junho de 72, lá no povoado que chama Vila
São Jose, é... Daí pra cá né, morei, lá dez anos nessa vila,
dez anos no Cuxiú, que é uma área de assento, e tenho
12 anos que estou, mudei pra São Domingo do Araguaia
(OLINDINA, 2004).
Meu nome é Dulcimar Ferreira da Silva, sou maranhen-
se, nasci no estado [cidade] de Dom Pedro [...] me casei
em 68 [...] no dia 25 de março. Sou filha de agricultor
(DULCIMAR, 2004).
Meu nome? Maria Moreira Gomes [...] tenho 50 anos,
vou completar 54 agora no dia 2 de maio [...] sou cea-
rense e índia [...] minha mãe, eu sou de Jaquerepará, eu
sou da aldeia de lá Jaquerepará, eu morava em Fortaleza,
Ceará (MARIA, 2004).
Então, eu nasci no Maranhão, né; sou filha de agricultor,
nasci no município de Lago da Pedra, numa vila chama-
da por Lagoa Seca. Então, nós somos uma família gran-

48
de, de 13 irmãos, e lá meu pai sempre trabalhou na roça
(TOINHA, 2004).

As entrevistas revelam que as mulheres, em sua totalidade, são por-


tadoras de trajetórias marcantes. Trata-se de mulheres deslocadas de
suas origens, em busca de melhorias. Migrantes nordestinas, em par-
ticular do Estado do Maranhão, o que reafirma a forte migração mara-
nhense na constituição do campesinato regional. São descendentes de
famílias agricultoras e de indígenas, normalmente de famílias nume-
rosas, com muitos filhos e de condições socioeconômicas vulneráveis,
razão motivadora da mobilidade permanente em busca de novas áreas
de terra.
A migração é uma constante na vida dessas mulheres, tornando-
-se, portanto, um componente importante em suas trajetórias. Elas
tiveram várias passagens por distintos lugares antes de se estabelece-
rem na fronteira do sudeste do Pará, conforme revelam as narrativas
abaixo:

É, o Pará pra mim, era assim, falar do Pará né, muitas ve-
zes o povo falava que aqui era uns dos melhores lugares,
e meu pai, ele [veio] do Maranhão, do Tocantins, Estado
do Pará, morando aqui também no oeste do Pará, que é
Itaituba, ele correu sempre em busca de uma terra, por-
que ele é trabalhador rural, [...] hoje ele não executa mais
a profissão porque está muito velho, mas a busca era um
pedaço de terra, que ele pudesse trabalhar (MORENA,
2004).
Em 84, a gente mudou de lá dessa região. [...] Então, a
gente mudou de lá, meu pai veio pra o Alto Brasil, mu-
nicípio de Grajaú, e continuamos. Meu pai continuou
trabalhando na roça [...] foi lá onde eu me casei com o
Nilton. E daí a gente saiu, foi morar no Nazaré [...], na
época era município de Tuntun, [...] acho que em 81.
Lá foi assim, um inverno muito difícil, então nossa roça
num deu muito certo. Nós fiquemos muito desaminado,

49
né, e viemos pra cá” [...] a gente via falar, né, que no Pará
tem muita terra (TOINHA, 2004).

As falas evidenciam que as famílias dessas mulheres tiveram uma


trajetória de migração forçada pela impossibilidade de sua reprodução
social e por uma estrutura agrária que impossibilitava o acesso à terra
ou dela a expulsava. A migração para Amazônia, neste caso, representa-
va uma estratégia de se reproduzir econômica e socialmente, especial-
mente a partir do acesso à terra. Foram as condições reais provocadas
por múltiplas situações que forçaram essas andanças, como descreveu a
fala: “Lá foi assim um inverno muito difícil, então nossa roça num deu
muito certo, nós fiquemos muito desaminado, né, e viemos pra cá”.
Musumeci (1988: 30) explicou que “o processo de colonização e de
desenvolvimento da fronteira agrícola, e do campesinato, nos chamados
vales úmidos do Maranhão, que antes foram áreas receptoras de cam-
poneses de outras regiões, transformam-se em áreas expulsoras desse
mesmo campesinato”. Hall (1991: 96), citando Asselin (1982), também
fez referência a esse processo.

Chegada à região: mulheres, ocupações e conflitos

Ao chegarem à região, o sonho da “terra liberta” das famílias de


migrantes se desfazia à medida que as dificuldades se apresentavam. As
ocupações se colocavam como estratégia e, nessa região de fronteira,
estas sempre foram marcadas por conflitos. Na perspectiva de Martins
(1996), o que define a fronteira no Brasil é justamente a situação de con-
flito social, o que marca o processo de formação do campesinato na re-
gião. Com isso, não encontrando a terra livre procurada, a saída foi se
incorporar na disputa pela terra, e, como relatou Dulcimar no momento
da ocupação da Fazenda Cristo Rei, em Itupiranga, sua influência na
decisão da família de permanecer na região foi fundamental:

Ele, o marido falou assim: “Dulcimar, vamo embora?


Vamo embora daqui? Eu sei que eu vou morrer aqui!”

50
Falei assim: “Mas home, pra onde é que nós vamo? Nós
não tem mais pra onde nós ir. [...] Então, você não vai
morrer aqui, viu. Aqui é que nós vamo ter que viver.”
(DULCIMAR, 2004).

Nesta fala, verifica-se que a mulher foi decisiva para a continuida-


de da família na ocupação, encorajando o marido à permanência nesse
contexto de fronteira em constante disputa. O que significa dizer, nes-
te caso, que ela foi também responsável pela resistência na ocupação.
Quando o marido queria desistir, ela o encorajava a continuar. Isso é
ilustrativo da efetiva participação dela na luta pela terra, muitas vezes
ocultada porque lhe é negada a sua existência enquanto sujeita e partíci-
pe da construção do campesinato regional, uma vez que se privilegiam
as ações públicas em detrimento daquilo que ocorre no espaço familiar/
privado. A invisibilidade da presença feminina no processo de luta pela
terra está caracterizada por conta da hierarquia social sexista que impõe
uma subordinação/negação às iniciativas das mulheres. Esse fenômeno
incide diretamente na determinação do lugar secundário atribuído a ela
na sociedade, na história.
Scott (1992), em A história das mulheres, produziu uma reflexão que
é fundamental para o entendimento da tendência de se considerar o “ho-
mem” enquanto referência, dando a esse personagem o status de narrador
universal, elemento que condicionou a produção literária a se expressar a
partir de uma única voz, enquanto as mulheres assumem posição “com-
plementar”. Nesse caso, esse debate contribui para a compreensão da tra-
jetória trilhada pelo campesinato do sudeste paraense, por questionar as
premissas que condicionam um olhar diferenciado à participação de ho-
mens e mulheres, uma vez que tem privilegiado a voz masculina, muito
embora ambos tenham atuado juntos nos confrontos pela posse das áreas
de castanhais e, principalmente, na organização da resistência à violência
praticada pelas oligarquias da região. Scott questionou ainda:

Embora todos os historiadores das mulheres não apre-


sentem diretamente estas questões, seu trabalho impli-

51
ca-as: através de que processos as ações dos homens
vieram a ser consideradas uma norma, representativa
da história humana em geral e as ações das mulheres
foram subestimadas, subordinadas ou consignadas a
uma arena particularizada, menos importante? [...] que
perspectiva estabelece os homens como atores primá-
rios? Qual é o efeito sobre a pratica estabelecida da his-
tória de se olhar os acontecimentos e as ações pelo lado
de outros sujeitos, as mulheres, por exemplo? (SCOTT,
1992: 78).

Dessa maneira, o reconhecimento e a afirmação da participação das


mulheres na formação do campesinato no sudeste do Pará constituem
uma forma de romper com a perspectiva da negação desse protagonis-
mo, bem como com a noção do homem como um narrador universal,
e de um discurso hierarquizante, possibilitando uma leitura dos fatos
reais, fazendo emergir a versão das mulheres sobre a vida, a luta, a resis-
tência, os conflitos.
Na dinâmica de ocupação camponesa de castanhais e fazendas,
áreas que foram apropriadas ilegalmente na maioria das vezes, e ainda
consideradas improdutivas, destaca-se o caso do Castanhal Cuxiú, em
São Domingos do Araguaia, ocupado em 1981, experiência que se tor-
nou referencial para que outras iniciativas de ocupação ocorressem.
Como afirmou Hébette (2004: 111), “[...] a organização do Cuxiú ser-
viu como exemplo e de apoio a outras áreas vizinhas, como Almescão
e Consulta.”
Na fala de uma das narradoras, a ocupação desse castanhal signifi-
cou um momento importante para posseiros e posseiras, pois foi a pri-
meira grande ocupação de castanhal na região, além de ser um exemplo
significativo da presença das mulheres no processo de ocupação e re-
sistência camponesa. Nesse caso, destaca-se a participação da mulher
como educadora e como posseira.

[Em] 83 mudei pro Cuxiú porque foi uma área de in-


vasão, área de posse. O povo entraram para adquirir essa

52
posse de terra, e lá eles exigiam uma pessoa para trabal-
har na área da educação, né? e por isso meu marido foi
pra lá, que foi um dos posseiros que entraram de início. E
meu marido foi pra lá pra essa terra de ocupação e eu fui
junto, isso em 81, mudei pro Cuxiú e lá fiquei, trabalhei,
né, ficamos trabalhando na agricultura mas com muito
medo, dos pistoleiros, com medo, que era uma terra dos
Mutran (MORENA, 2004).

Nota-se a efetiva presença e participação das mulheres na área de


posse, na condição de educadoras, animadoras de comunidade, compa-
nheiras, agricultoras e sindicalistas (BEZERRA, 2008), apesar dos pe-
rigos que a vida na área de posse oferece. Mesmo assim, elas assumem
conscientemente a luta, seja na condição de posseiras, que residem na
área, seja na condição de mantenedora da família enquanto o marido
está na posse (BEZERRA, 2008). Os posseiros e posseiras enfrentaram
ameaças e retaliação por parte dos “donos dos castanhais”, as denomi-
nadas oligarquias locais (EMMI, 1999), muito conhecidas na região pela
forma violenta com que lidavam com posseiros e posseiras, como nar-
rou Morena:

Nesse tempo, tinha muita força da pistolagem né, e a


gente entende que trabalhar a forma de organização, se
organizar melhor, nessa área de posse. Fomos formar
uma vila né, porque tinha muito medo né. Formemos
essa vila, nós formemos também um sindicato, uma
delegacia do sindicato dos trabalhadores rurais, porque
por intermédio de uma entidade a gente fortalecia mel-
hor, e aí a gente se uniu mesmo, era muito unido, nesse
tempo porque fazia assim ou não conseguia a terra, né
(MORENA, 2004).

Nesse contexto, a organização política nasceu como uma necessi-


dade, tornando-se fundamental para a garantia da posse da área, bem
como a própria sobrevivência dos ocupantes, a solidariedade mútua,

53
uma vez que o isolamento nesse cenário era quase certeza de morte,
conforme bem frisou Hébette (2004: 192).
A narrativa abaixo evidencia que, nessa dinâmica embrionária de
organização, a participação feminina se deu de forma gradativa, através
de um aprendizado e da mobilização diária diante do cotidiano de en-
frentamento e pressão por parte da polícia e de pistoleiros:

[...] Nessa época, os homens tinha uma organização


muito forte. Era preciso, né, em dados momentos, ficar
em vigilância, né, vigiar mesmo, porque era polícia, era
pistoleiro, era morte de posseiro. Era isso, nós tinha que
ficar. [...] E esse sindicato, nós fazia reunião e, nós ficava
nessa vila, [...] tinha um barracão e nesse barracão nós
fazia, nós ia fazer comida, né, pra que os homens que
tivesse lá em vigilância, né, que eles quando chegasse
tivesse a comida e também a gente conversava muito.
Muitas mulheres era da diretoria e a gente dialogava
muito, por exemplo, eu me recordo agora, uma vez que
a polícia entrou, e que ia levando nossos maridos presos.
Nós tivemos que fazer barreiras, né, fazer barreiras na
frente do carro da polícia (MORENA, 2004).

Observa-se que as ações das mulheres se dividiam entre as ativi-


dades domésticas, familiares, comunitárias, tecendo articulações com
outras mulheres, instâncias e entidades de assessoria com o objetivo de
garantir a integridade e a liberdade de seus companheiros perseguidos
pela polícia e no enfrentamento direto ao fazer barricadas e trincheiras.
Além das iniciativas internas da ocupação, as mulheres cumpriam
um importante papel de mediadoras entre as demandas da organização
e as entidades de assessoria e apoio, uma vez que seus companheiros
mais visados tinham sua mobilidade reduzida em função das ameaças
de morte e de prisão. Essa mediação permitiu que as mulheres fossem
assumindo cada vez mais tarefas na organização, o que lhes permitiu
um gradativo empoderamento, garantindo que muitas delas estivessem
nas estruturas sindicais, como relatou a narradora:

54
Nós tivemos que correr atrás de alguém que pudesse nos
dar uma força, como no caso de alguém da CPT1. Ademir
Martins, Ademir Andrade que naquela época era depu-
tado estadual né, nós mulheres, os homens ficavam em
tocaia, nós ficava lá, fazendo alimentação pra eles. Nós
ainda corria pra fazer alguma coisa pra que a polícia não
levasse nossos maridos naquela época e nem os nos-
sos amigos, nossos companheiros que estavam lá. E era
assim que a gente foi ganhando força né, por exemplo,
quando eles eram que tava de tocaia mesmo porque não
podia deixar de ligar né, porque eles eram fortemente ar-
mados e nós tinha momentos que até oração, nós ficava
ajoelhado fazendo oração, pedindo a força a Deus pra
que livrasse daquelas coisas, né (MORENA, 2004).

Essa fala permite perceber os diferentes papéis desempenhados


por homens e mulheres no complexo contexto de ocupação, como en-
fatizou a narradora. As mulheres no Cuxiú tiveram papel ímpar na
articulação de saídas para enfrentar as retaliações e as ofensivas contra
os ocupantes dessa área. Assim, asseguraram a conquista do castanhal.
Morena ressaltou que, além dela, existiam mais outras mulheres que
eram lideranças, como “a Maria do Vicente, a Dona Conceição, que
inclusive já faleceu, a Maria do Vicente, a Dona Conceição, a Helena
do Domingos” (MORENA, 2004), mostrando que a contribuição fe-
minina foi expressiva.

Aí que não tem mesmo pra onde correr, o meu pensa-


mento né, era assim fazer a janta essas horas assim, né
essa hora assim e tinha que comer cedo, lavar as vasilhas
e enfiar dentro da parede de palha porque, quando ele
(pistoleiro) chegar, não vê os pratos, nem as colher pra
ele achar que não tinha ninguém era assim um medo. Na
casa do vizinho, tinha um vizinho assim perto, chamado
seu Bacaba, e aí eu botava o feijão no fogo de manhã,

1
Comissão Pastoral da Terra. (N. do R.)

55
botava o feijão no fogo e corria pra casa do seu Bacaba,
quando eu chegava lá, botava muita água no feijão, so-
cava muito fogo de lenha, que era pra ficar lá cozinhando
e eu lá, mas era medo de vim olhar (MORENA, 2004).

A narrativa acima mostra o quanto a violência era constante e


as mulheres enfrentavam essa realidade com espertezas cotidianas, a
exemplo de quando a narradora escondia utensílios domésticos nas pa-
redes de palha para driblar pistoleiros ou policiais, pois, se os mesmos
não vissem sinais de pessoas habitando o lugar, deduziam que lá não
morava ninguém e, assim, iam embora. No entanto, essas iniciativas não
conseguiam evitar todas as ações de pistolagem. Muitos foram os que
tombaram nessa empreitada.

Mulheres e a violência no campo

A violência sempre foi uma permanência na vida das mulheres pos-


seiras, seja na forma de violência cometida contra seus familiares, es-
pecialmente, os maridos, seja na forma de violência direcionada a elas.
Essa questão da violência e as mulheres nas ocupações merecem aqui
uma importante reflexão.
A década de 1980 foi um período extremamente violento no cam-
po, em especial na região chamada de “Bico do Papagaio”, que abrange
os Estados do Pará (região sudeste), Maranhão (Mearim, Itapecuru e
Imperatriz) e Tocantins (ao norte), onde a disputa pela terra e os recur-
sos naturais foram e são intensamente alvos de conflito. Hall (1991) afir-
mou que, no Bico do Papagaio, as regiões onde a concentração fundiária
é acentuada, as taxas de violência foram altas, principalmente durante
os anos de 1985-86.
As mulheres vivenciavam a realidade da violência no campo de di-
versas formas. A começar pelo próprio espaço da ocupação, onde o cli-
ma de constante ameaça de morte, prisão e despejos já provocava inten-
sa violência psicológica no conjunto das famílias posseiras. Dulcimar
narrou muito bem essa difícil vida na posse.

56
Era difícil, foi muito difícil, que de repente você tava
aqui, quando pensava que não, chegava aquele monte
de gente tudo armado: aí entrou uma turma de pisto-
leiros e as companheira curria com as crianças, dentro
daqueles panacu, com panela de arroz, e aí misturam
tudo, elas curriam e saíam, botava as crianças dentro
do panero, dentro, tudo misturado assim (DULCI-
MAR, 2004).

A partir dessa narrativa, pode-se perceber o grau de responsabili-


dade que recaía sobre essas mulheres, pois assumiam a tarefa de con-
tribuir na proteção de companheiros, na sua própria segurança, bem
como na dos filhos pequenos e dos poucos utensílios domésticos que
possuíam: “Às vezes, ela é sozinha, ela é uma viúva; ela tem a casa cheia
de filhos pequenos e não tem condição de pagar, e ela é obrigada a se
submeter e assim com o machado a derrubar a mata. E ela mesma é
quem faz a roça do começo ao fim, até quando colhe” (HÉBETTE, 2004:
228). Observa-se uma situação de dupla ou tripla jornada, enfrentando
uma sobrecarga de trabalho.
Além disso, a violência física através de espancamentos e assassi-
natos dos maridos e filhos gerava uma situação de extremo sofrimento
emocional. Elas, muitas vezes, tinham que assumir também a tarefa do
marido que fora assassinado, e assim ia se acumulando o trabalho da
roça com os afazeres domésticos, o que, para elas, era uma situação di-
fícil, uma vez que as mulheres foram relegadas historicamente à esfera
doméstica pela divisão sexual do trabalho (LORGUIA & DUMOULIN,
1981: 32). Para Woortmann & Woortmann:

A direção do processo é determinada pelo pai da famí-


lia, detentor do governo do trabalho. É ele quem “dá
direção”. O fato de ser o homem quem define a direção
do deslocamento espacial indica que ele também detém
o controle do processo como um todo. A mulher, pelo
contrário, é remetida a um movimento inverso, de fora
para dentro, trazendo para dentro da casa os produtos

57
da roça, transformando em mantimentos, para torná-los
comida, inserida em sua própria “direção” a do consumo
(WOORTMANN & WOORTMANN, 1997: 37).

As mulheres, além de enfrentarem a violência praticada contra


seus companheiros e filhos, também eram alvos de violência, situações
que historicamente têm passado despercebidas nos registros e análises
dos conflitos de terra. Do ponto de vista numérico, os assassinatos, as
agressões físicas e as ameaças foram feitas mais expressivamente aos
homens; no entanto, isso não diminui a gravidade da questão, pois,
nos casos de violência contra as mulheres, somavam-se atos violentos
baseados no gênero, como foram os casos de abusos sexuais.
Foi esse contexto de violência no campo envolvendo a agressão
contra as mulheres que levou, em 1987, o Conselho Nacional dos Di-
reitos da Mulher (CNDM) a encomendar em conjunto com a Co-
ordenadoria de Conflitos Agrários, ligado ao antigo Ministério da
Reforma e Desenvolvimento Agrário – Mirad, um levantamento de-
nominado Violência contra mulheres e menores em conflitos de terras,
realizado em nível nacional, que apontou vários casos de agressão às
mulheres.
Segundo o referido relatório, durante todo o ano de 1985 e entre
janeiro e setembro de 1986, foram assassinadas no Brasil 29 mulheres
em conflitos agrários. Desse total, os assassinatos de mulheres ocor-
ridos em “1985 representam 6,2% dos mortos naquele ano, um nú-
mero significativo que não pode ser desconsiderado. Compreendem
situações em que se verificam atos de violência caracterizados por
sevícias, delitos sexuais, estupros e lesões corporais resultando em
assassinatos e suicídios” (BRASIL, 1987). De acordo com os dados
levantados pelo relatório, no Pará foram registrados 11 assassinatos
de mulheres. Dessas, nove eram trabalhadoras rurais, as outras duas,
uma era freira e a outra foi classificada como proprietária, conforme
o observado na tabela.

58
Quadro 01
Mulheres mortas em conflitos de terra entre janeiro de
1985 e novembro de 1986 – Estado do Pará

Data Nome Profissão Observação Fonte Município


sobre o caso
04/1985 Carmem Trabalhadora Diante das CPT Conceição do
Lucia rural ameaças feitas Araguaia
da Silva por pistoleiro,
suicidou-se/
Fazenda
Joncon
14/04/1985 Adelaide Freira Assassinada CPT/ Marabá
Molinari em atentado Contag2
ao delegado
sindical Arnaldo
23/05/1985 Leonides Trabalhadora Foi estuprada CPT/ Xinguara
Resplandes rural e depois Contag
da Silva assassinada,
teve o corpo
queimado
por pistoleiro
na Fazenda
Surubim
13/06/1985 Francisca Trabalhadora Adolescente CPT/ São João do
da Souza rural assassinada Contag Araguaia
por pistoleiro
na chacina da
Fazenda Ubá,
estava grávida
06/1985 Não Trabalhadora Tinha 40 Jornal Xinguara
identificada rural anos, sendo do
assassinada Brasil/
por pistoleiro CPT
na Fazenda
Fortaleza

2
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. (N. do R.)

59
06/1985 Não Trabalhadora Tinha 14 anos, Jornal Xinguara
identificada rural foi estuprada do
e depois Brasil/
assassinada, CPT
tendo o corpo
queimado
por pistoleiro
na Fazenda
Fortaleza
06/1985 Não Trabalhadora Tinha 16 anos, Jornal Xinguara
identificada rural foi estuprada do
e depois Brasil/
assassinada, CPT
tendo o corpo
queimado
por pistoleiro
na Fazenda
Fortaleza
14/05/1986 Maria Proprietária Assassinada O Itupiranga
Antonieta por pistoleiro Globo/
de Souza Jornal
do Brasil
12/09/1986 Eliza TR Sem dados STR Paragominas
Santana
de Oliveira
24/09/1986 Maria da TR Grávida, morreu Contag Marabá
Conceição durante despejo
Oliveira violento na área
indígena Mãe
Maria
17/12/1986 Doralice TR Assassinada CPT/ São Caetano
Pereira por pistoleiro Belém de Odivelas
Cordovil

Fonte: Mirad/CNDM (1987).

O quadro acima mostra o quanto a violência no campo atinge gran-


demente as mulheres em várias idades e fases da vida: adultas, crian-

60
ças e adolescentes, e com uma crueldade impressionante. Além de essa
violência não ter visibilidade, o que mais chama atenção é como as di-
versas formas de violência se apresentam: (i) patrimonial, quando os
pistoleiros queimam casas e utensílios domésticos e de trabalho; (ii)
psicológica, através de pressões e ameaças, provocando casos de sui-
cídios, conforme observado no Quadro 01; (iii) sexual, como assédio e
estupros; (iv) física, em alguns casos contra a vida. Alguns desses casos
aconteceram com requintes de crueldade, com a queima dos corpos,
como indicou, a seguir, o fragmento do relatório:

Francisco Pereira Moraes, lavrador, morava em Xinguara.


No dia 23/05/85, os pistoleiros da Fazenda Surubim (de
João Almeida Nelito) assassinaram este lavrador, violen-
taram sua mulher, Leonildes Resplandes da Silva, depois a
assassinaram e queimaram seu corpo (BRASIL, 1987: 23).

Nesse contexto, o relatório apontou uma conclusão alarmante:


“o respeito pela figura da mãe, da irmã, da esposa, da comadre e da
vizinha,transfigura-se em ódio extremo, levando a necessidade de não
apenas matar, mas antes violentar a vítima e de queimar seu corpo”
(BRASIL, 1987: 23).

Militância, trabalho e família

Os anos 1980 representaram uma década importante para a luta


camponesa e para a análise do processo de organização sindical dos tra-
balhadores/as rurais do sudeste do Pará, pois foi nesse período que se
intensificaram as ações de resistência e enfrentamento dos movimentos
sociais do campo diante das investidas da oligarquia agrária da região
(GUERRA, 2001; HÉBETTE, 2004). Nesse contexto, os sindicatos de
trabalhadores/as rurais tornaram-se instrumento de resistência institu-
cionalizada (HALL, 1991), essencial na luta pela terra.
Dentro das áreas ocupadas, a organização do sindicato através das
delegacias sindicais começou a se firmar, mesmo com muita resistência

61
de alguns trabalhadores/as, que tinham uma visão negativa da atuação
do sindicato: “quando a gente chegou pra lá é, encontrei uma aldeia de
índio brabo [...] achava que sindicato era uma coisa que só servia pra
atrapalhar, pra gerar briga, pra essas coisas assim... não queriam saber
de organização”. (TOINHA, 2004). No entanto, diante da necessidade,
as formações das delegacias sindicais na região de São João do Araguaia
avançavam, ao passo que o trabalho de mobilização junto às famílias se
intensificava e as mulheres estavam lá, contribuindo para a conscienti-
zação, como descreveu o relato de uma das diretoras da época:

[...] mas nós tinha que implantar a delegacia, e eu já,


já participava, então a pessoa mais indicada era eu pra
começar né, a conversar com o pessoal, a fazer, a se as-
sociar. Aquele um lá, que se interessasse, a gente ia con-
versando aos poucos... seu Almir foi muitas vezes lá, o
Goda, né, a Renilde tentando conscientizá-los, porque
precisava realmente né, é de uma organização e era a en-
tidade representativa que pudesse, que pudia representar
os trabalhadores (TOINHA, 2004).

A fala revela a clareza da mulher quanto à importância da luta sin-


dical para as famílias conquistarem a terra. Nesse contexto, as mulheres
iam se inserindo nas atividades sindicais. Guerra (1991: 142) pontuou
que, nas organizações sindicais camponesas, “é relevante a participação
das mulheres destacadamente nos municípios de Jacundá e São João do
Araguaia”, participação esta resultante de um processo de abertura para
inserção das mulheres nas instâncias de direção sindical, provocado
pelo amadurecimento do debate político da necessidade de organização
que levasse em consideração os elementos das relações de gênero. As
narrativas a seguir revelam a participação ativa das mulheres em vários
momentos:

Com certeza, a gente no sindicato [...] muitas mulheres


se associaram e nós trabalhamos muito essa questão do
direito das mulheres né, fizemos muitas reuniões e eu fui

62
diretora tesoureira do sindicato, é... por muito tempo, né
[...] Depois passei mais quatro anos tesoureira do sindi-
cato outra vez e passei quatro anos secretária até quando
outras pessoas preparadas assumiram a diretoria né, a di-
retoria do sindicato e muitas mulheres (MORENA, 2004).
Nós chegamos, a gente não tinha entrosamento com o
negócio do movimento né, mesmo sendo filha de lavra-
dor e esposa de [...] lavrador, mas gente não tinha aquele,
aquele entrosamento com o movimento, né, aí, depois
disso, a gente passou a se entrosar no movimento porque
a gente achou que tinha necessidade, que era o meio
mais fácil de nós alcançar o que nós queria [em virtude
disso] fui delegada do sindicato lá na região da Cristo Rei
(DULCIMAR, 2004).
É... em relação à minha participação como mulher, eu
considero assim, que tive em tudo né, desde a venda do
lote, na compra do lote, de consegui o lote né, a gente
sempre teve essa participação. Nos movimentos soci-
ais, eu trabalhei no sindicato desde, aí nem sei mais o
ano. Quando eu morava nos Cróa, eu fui a delegada de
lá, e depois, antes de vim eu já, fui, passei, é participei
da diretoria do sindicato de São João. Na época, seu
Almir era o presidente e depois a gente criou o nosso
né, e tive a honra de ajudar a criar o nosso sindica-
to, fui secretária da Caixa Agrícola como conselheira
fiscal, então eu acho que dei a minha contribuição
(TOINHA, 2004).

As falas mostram o esforço e o envolvimento dessas mulheres no


trabalho de convencimento das outras de participarem como sócias do
sindicato, deixando claro ainda que a participação se deu pela consciên-
cia da necessidade de estar organizada, porque “era o meio mais fácil de
nós alcançar o que nós queria”, até assumirem cargos de direção: dele-
gadas sindicais, tesoureiras, diretoras, secretárias, conselheiras fiscais e
outros. Elas expressam um sentimento de orgulho ao dizerem: “eu tive a
honra de ajudar a criar o nosso sindicato”. Assim, constata-se o protago-

63
nismo das mulheres na luta pela terra, contribuindo de forma direta ou
indireta, desde a organização política do sindicato até a conscientização
das mulheres e homens da importância do sindicato como instrumento
de luta pelos direitos.
Ao se buscar problematizar o debate sobre o papel político das mu-
lheres na luta sindical e a sua respectiva inserção, nota-se que essa atua-
ção resultou em diferentes conquistas. O debate da necessidade da par-
ticipação das mulheres, de sua conscientização perante os desafios tanto
na condição de trabalhadora rural como de mulher, aprofundou-se a tal
modo que se chegou à conclusão de que não só as mulheres deveriam
ser formadas, mas também os homens, entendendo que eles igualmente
precisavam ser “libertados”:

Primeiro nós reunia nós. Fizemos vários encontros só


mulher e depois chegou a conclusão, porque muitas
vezes a gente vai conversando, conversando e junto
com os homens sempre dá atrito no início. Então,
nós fizemos várias reuniões só a gente pra vê quem
somos nós. Quando nós se aprontamos, aí nós bus-
camos eles pra fazer uma reunião mista onde ia eu e
ele [marido e mulher] pra confrontar. Eu me lembro,
confrontar, concordar, discordar, eu me lembro até de
uma certa feita né, que a gente fez um encontro e fo-
mos mostrar o que era uma companheira, um compan-
heiro né, e eu me lembro que tinha seu Dominguinho,
seu Dominguinho Vieira, que ele disse que naquele
dia que ele ia entender que ele não foi um bom com-
panheiro pra mulher dele, que ele sempre quis ser o
machão, o primeiro, sempre queria ordenar, agora
aquele dia, ele tava reconhecendo. Chegou a pedi
perdão a esposa dele né, foi massacrar sem entender
que ele estava massacrando que pra ele bater é tinha
que pegar um chicote ou então uma porrada né, [...]
eu sou o tal e só ele tinha direito (MORENA, 2004).
(Grifo das autoras)

64
Essa inclusão dos homens no debate de gênero, saúde e sexualidade
partiu do entendimento das mulheres, segundo o qual os homens atua-
vam de forma autoritária porque a sociedade lhes ensinava a agir dessa
maneira. Eles passaram a ser vistos também como vítimas, tanto quanto
as mulheres, da matriz formativa do sujeito social, baseada na dominação
que atinge tanto os homens quanto as mulheres, “pois ele ou ela interio-
rizou, na forma de esquemas inconscientes de percepções, as estruturas
sociais históricas da lei masculina” (BOURDIEU, 2003: 13) que situa o
homem no papel de poder nas relações sociais. Observou-se, na narrati-
va, que as mulheres perceberam que precisavam formar novos homens e
mulheres, provocar a construção de outra concepção da relação homem/
mulher. Esta foi uma particularidade estratégica dentro do Sindicato do
São João do Araguaia e São Domingos do Araguaia: a formação conjunta.
Esse debate foi fundamental para garantir a inserção das mulheres
nas organizações, pois possibilitou a ampliação do debate, por meio do
qual se questionou a dominação masculina, que historicamente foi res-
ponsável pela “fabricação social do nosso corpo, das formas simbólicas
com as quais construímos o mundo, mas que, tendo-se originado desse
mundo, estão o mais das vezes em concordância com ele” (BOURDIEU,
2003: 14), tendo que ser questionadas de forma que não se contribua
para sua perpetuação.

Quando eu cheguei, eu já encontrei as militantes mul-


heres, que a Dona Maria já tava lá pra Metade, era mili-
tante, eu já achei Metade, porque ela já era pessoa que já
fazia trabalho, era militante. Eu já achei Dona Mariana
e outras: a Morena, Cledineuza, a Luzimar, a Creuzi-
mar. Então, eu já achei essas mulheres, já de certa forma
[...] participando de movimento social, na Igreja, então
quando começa na Igreja [...] desse trabalho que foi
feito através da Igreja que as mulheres chegaram lá, a
ocupar o sindicato. Eu digo assim, fazer parte, dirigi,
dirigi o sindicato de São Domingos, porque na época a
diretoria era praticamente todas mulheres (TOINHA,
2004). (Grifo das autoras)

65
O aprendizado feminino foi enorme, no caso de São Domingos do
Araguaia, em que a maioria da diretoria era integrada por mulheres,
como ressaltou Toinha: “O nosso sindicato, foi assim o sindicato, mais
assim, que teve a maior participação das mulheres, era mais de 50% da
diretoria era mulher”. Essa entrada nos espaços de decisão foi resultado
não só do debate dentro do sindicato, mas de uma discussão que, para
algumas delas, se iniciou na atuação em outros espaços, como a Igreja
Católica, que durante muitos anos teve uma participação fundamental na
mediação dos conflitos agrários e na formação de militantes camponeses.
As entrevistas com essas mulheres levantaram novas questões para
a reflexão, como as relacionadas às questões internas na família, por
exemplo, pois a participação das mulheres no processo de constituição
campesina na região se desenrolou para além do sindicato, das organi-
zações. O espaço da casa também se tornou um lugar de resistência, de
modo que a atuação das mulheres não se limitou ao espaço do sindica-
to, tendo em vista que eram as mulheres, principalmente aquelas que
não atuavam de maneira direta no movimento sindical, que garantiam
o andamento da família quando seus companheiros eram sindicalistas,
viajavam para participar de reuniões, assembleias, congressos de traba-
lhadores/as, encaminhando demandas à categoria. A ausência frequente
dos companheiros no cotidiano familiar obrigava as mulheres a assumi-
rem e darem conta de uma série de obrigações, tendo que se desdobrar
para suprir tal ausência, de modo a garantir a dinâmica necessária do
trabalho, como narrou Maria:

Cansei de quebrar coco pra sustentar ele no sindicato.


Eu passava a semana todinha, eu sofria, passava a se-
mana todinha, cumadre, eu quebrando coco, quando
eu começava segunda-feira, eu quebrava segunda,
terça, quarta, quinta, sexta, sábado... eu ia quebrar pra
tirar azeite e fazer a caiera. Domingo eu levantava cedo
pra tirar a caiera e quebrar coco pra tirar gongo, [...]
pescar os mandi pra mim, pra fazer comida, pra se-
gunda-feira já tá no jeito de novo, era assim... (MARIA
GOMES, 2014).

66
A fala de Maria revela uma vida corrida e ilustra como as mulhe-
res são fundamentais para luta, não só quando assumem as direções
de sindicato, mas ainda quando asseguram e garantem a reprodução
da família no período em que seus maridos militam no sindicato. A
luta diária das representações dos trabalhadores/as nas reivindicações
e nos debates sobre as demandas e carências dessa categoria impossi-
bilita muitos homens sindicalistas de estarem presentes no trabalho no
roçado e outras atividades, como a caça e a pesca, que são elementos
importantes na garantia de uma melhor condição alimentar, provocan-
do, nesse caso, restrições e dificuldades de sustentação da família. Em
decorrência disso, as mulheres passaram a assumir esse papel, o que,
ao fim e ao cabo, também contribui para a organização política, espe-
cialmente nessa fase em que os sindicatos se formavam e não tinham
condições de liberar financeiramente sua militância. Então, ela assumiu
definitivamente ambos os papéis: o dela e o dele, para que ele pudesse
estar na luta sindical. Trata-se de uma dimensão da luta assumida exclu-
sivamente pelas mulheres.

Considerações finais

A análise das narrativas mostrou que a atuação das mulheres na


luta pela terra deu-se de diversas formas e em diferentes espaços: como
lideranças nas ocupações de terra, dirigentes ou delegadas sindicais,
animadoras de comunidades ligadas à Igreja, em casa como arrimo de
família quando seus maridos precisavam se ausentar por conta de mo-
bilizações, acampamentos dos trabalhadores, ou por serem viúvas. A
atuação dessas mulheres se dava articulando a luta pelo acesso à terra
concomitantemente ao pleito para a maior inserção das mulheres nas
instâncias organizativas como diretoras do sindicato, delegadas sindi-
cais, dirigentes de associações, caixas agrícolas, bem como pela constru-
ção de novas relações de gênero na família e nos espaços organizativos.
O fato de as mulheres ocuparem cargos no sindicato não significou,
no geral, divisão de tarefas nas famílias e no trabalho. Essas mulheres
continuaram acumulando diversas atividades, convivendo com uma

67
jornada de trabalho muito carregada, que acumulava responsabilidades,
uma vez que, ao assumirem a luta sindical, não deixaram de cumprir as
tarefas domésticas. A inserção das mulheres no sindicato possibilitou
ações que se direcionavam para uma maior sindicalização das outras
mulheres camponesas, e isso exigiu que o sindicato começasse a pautar
demanda das mulheres como crédito e maior inclusão das mulheres nos
espaços deliberativos dos movimentos sociais.
Nos casos estudados, na ocasião da pesquisa, nenhuma das mulhe-
res se elegeu para presidência de STTR; no entanto, estiveram em car-
gos como secretária e/ou tesoureira, contribuindo decisivamente para
a organização dos sindicatos, que sempre se caracterizaram como um
espaço hegemonicamente masculino. Por essa razão, muito existia de
resistência a ter “um sindicato mandado por mulher”. Sendo assim, a
luta das mulheres posseiras na região não se simplificava ou se resu-
mia à luta por melhores condições de vida, luta pela terra, resistindo
contra a opressão e perseguição por parte dos donos dos castanhais e
fazendeiros, mas também pela construção de novas relações de gênero,
possibilitando assim o reconhecimento social de sua atuação política,
social e econômica. Sua participação na organização sindical qualificou
o debate com a inserção de outros temas, como gênero, saúde da mu-
lher, sexualidade etc.
Outro dado a ser considerado é que, embora as mulheres estivessem
na luta cotidiana, pouco se tem registro dessa participação. Isso revela a
tendência de tomar os homens como referência, relegando-se à mulher
um papel secundário, como reflexo da forma por meio da qual as rela-
ções de gênero se estabelecem na sociedade. Exemplo disso são os regis-
tros de violência contra as mulheres no campo. Quantas mulheres foram
vítimas nesses conflitos? Sobre isso, pouco ou quase nada se sabe: “as
mulheres vítimas não têm seu nome explicitado e nem sempre são for-
necidos maiores elementos sobre sua real condição” (BRASIL, 1987: 08).
Portanto, a luta e a conquista da terra pelos posseiros e posseiras
dos diversos castanhais e fazendas dessa região são frutos de uma ação
coletiva de homens e mulheres, que conjuntamente garantiram o direito
ao acesso à terra e assim asseguraram a sua constituição e reprodução

68
social enquanto categoria social importante na construção do espaço
regional, a partir do protagonismo camponês na reconfiguração desse
mesmo espaço. Contando com a contribuição de mulheres como Toi-
nha, Morena, Maria da Metade, Dulcimar, Cledineuza, Maria, Creuzi-
mar, Renilde, Maria de Jesus, Raimundinha e diversas outras, elas es-
tiveram presentes de forma direta, ao lado de seus companheiros nos
confrontos, assumindo a condição de sujeitas dessas lutas. Basta ouvir
seus relatos e não negligenciar sua atuação muitas vezes silenciosa.

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70
GÊNERO E PARTICIPAÇÃO NA PERSPECTIVA
DE MULHERES DIRIGENTES DO MOVIMENTO
SINDICAL DOS TRABALHADORES E
TRABALHADORAS RURAIS, SUDESTE DO PARÁ

Kezia Vieira de Sousa Farias


Idelma Santiago da Silva
Hiran de Moura Possas

A pesquisa: “a mulher dentro do movimento tá ainda muito, é muito


discriminada pelos homens”

Na presente pesquisa, procurou-se analisar a participação de mu-


lheres do campo no movimento sindical, no sudeste do Pará. Percebeu-se
o aumento significativo de suas presenças na direção das organizações
sindicais de trabalhadores rurais, mas elas têm ocupado principalmente
funções socialmente reconhecidas como femininas. Cargos que tratam
de finanças, produção agrícola e política agrária são ocupados, majo-
ritariamente, por homens, enquanto os cargos referentes às questões
da juventude, terceira idade e secretaria geral são exercidos, em alguns
casos, exclusivamente por mulheres. Há, por essas chaves de leitura,
evidências de que, na divisão sexual do trabalho político-organizativo,
existem certas gradações de valor social nas atribuições de funções as-
sumidas por homens e por mulheres
Foram analisadas narrativas orais de cinco mulheres camponesas
que se constituíram lideranças e dirigentes do Movimento Sindical dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MTTR), no sudeste do Pará, es-

71
pecialmente dirigentes do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras
(STTR) de Rondon do Pará: Josefa Sousa Silva Albuquerque (Zefa), cujo
locus de enunciação é o da mulher que se constituiu liderança do STTR
de Itupiranga e da Associação dos Assentados do PA Grande Vitória, as-
sumindo também a Secretaria de Gênero da Federação dos Trabalhado-
res da Agricultura do Estado do Pará (Fetagri) – Regional Sudeste; Ma-
ria Joel Dias da Costa (Joelma), presidente do STTR de Rondon do Pará,
esposa do sindicalista Dezinho, assassinado em 2000, e ex-presidente da
Fetagri – Sudeste do Pará; Zudemir dos Santos de Jesus (Nicinha), lide-
rança e dirigente do STTR de Rondon do Pará; Dorilene Alves Pinto, fi-
lha de agricultores nordestinos, atuando no sindicato desde 2008 como
secretária e, atualmente, na Secretaria de Políticas Sociais do STTR de
Rondon do Pará; Edilene, filha de assentados, no primeiro mandato na
Secretaria de Juventude Trabalhadora Rural. Também foi realizada uma
entrevista oral com Ailce Margarida Negreiros Alves, atualmente pro-
fessora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa)
que, desde a década de 1990, tem desenvolvido ações de assessoria aos
movimentos de mulheres camponesas no sudeste do Pará.
Metodologicamente, foram realizadas entrevistas temáticas, grava-
das e, posteriormente, transcritas. Essa metodologia é constitutiva de
práticas de saberes que se realizam pelo reconhecimento mútuo, en-
quanto sujeitos que colaboram em práticas de conhecimento e de in-
tervenção na realidade. Sua lida transcorre com processos de afirmação
e reconstrução de subjetividades (individuais e coletivas), o que pode
configurar a narrativa oral como uma estratégia de comunicação de ex-
periência; crítica social; busca de reconhecimento e mobilização das en-
trevistadas na interpretação sobre suas histórias e seus modos de com-
preender o mundo. Abertura, talvez, de possibilidade da composição de
repertórios de pontos de vista e dos saberes das mulheres, bem como
a mobilização da memória social, polemizando-a com os processos de
exclusão impostos pelas memórias públicas1.

1
Compreendidas, nessa escrita, numa perspectiva relacional: reconstruções cole-
tivas de “eus”.

72
Um histórico da participação política das mulheres rurais no Brasil:
“o medo e a culpa são dois grandes limites das mulheres”

De acordo com Amaral (2007), a participação das mulheres rurais


no Brasil ganhou destaque no movimento sindical, no processo de ocu-
pação das terras, especialmente a partir da década de 1980. As prin-
cipais demandas diziam “respeito ao reconhecimento da profissão de
agricultora, e não como doméstica, a luta pelo direito à saúde da mulher,
o direito à sindicalização, ao salário-maternidade e à aposentadoria”
(AMARAL, 2007: 49).
Além de participarem do coletivo dos movimentos sociais, as mu-
lheres camponesas procuraram criar movimentos autônomos – cujo sur-
gimento teve seu nascedouro nas Comunidades Eclesiais de Base e no
novo sindicalismo (DEERE, 2004) – a exemplo do Movimento das Mu-
lheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR/NE); do Movimento
de Mulheres Agricultoras em Santa Catarina e o Movimento de Mulhe-
res Trabalhadoras Rurais no Rio Grande do Sul (ESMERALDO, 2013;
AGUIAR, 2015). Outro exemplo foi a articulação das Quebradeiras de
Coco Babaçu no Norte-Nordeste do Brasil (Maranhão, Piauí, Tocantins
e sudeste do Pará), e suas articulações-reflexões-tensionamentos para as
questões de classe, de gênero e de meio ambiente (AMARAL, 2007).
Somando-se a essas articulações e conquistas, na Constituição Fe-
deral de 1988:

[...] como resultado da pressão e organização do movi-


mento de mulheres rurais e das lideranças femininas
dos sindicatos, articulados com o Conselho Nacional
de Direitos da Mulher, criado pelo Ministério da Justiça
em 1985, os direitos das mulheres foram expandidos em
relação à legislação do trabalho, aos benefícios de previ-
dência social, à inclusão de mulheres na reforma agrária
(SCHWENDLER, 2013: 209).

Na década de 1990, houve o predomínio do enfoque na categoria


“gênero” e nas mobilizações pelos direitos das mulheres trabalhadoras

73
rurais, a exemplo da Caravana das Trabalhadoras Rurais em Brasília,
com participação de 16 estados brasileiros, realizada em 1991. Para Pau-
lilo (2009), as reivindicações dessa caravana podiam ser classificadas
como classistas e de gênero. Em grande medida, elas faziam referência
aos direitos previstos na Constituição Federal.
Nos anos 2000, as mobilizações das mulheres do campo e da flo-
resta – uma categoria que evidencia o autorreconhecimento da diver-
sidade dos movimentos de mulheres rurais – reivindicavam e faziam
proposições de direitos nas políticas públicas (sociais, econômicos,
políticos, sexuais e reprodutivos). Dentre essas iniciativas, destacou-
-se a Marcha das Margaridas, realizada em 2000, 2003, 2007, 2011 e
2015, coordenada pela Comissão Nacional da Trabalhadora Rural da
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
As manifestações das mulheres da Via Campesina, em 8 de março, Dia
Internacional da Mulher, foi outro exemplo de ação política das mu-
lheres, que rompia com a tentativa de invisibilidade pública de suas de-
mandas, assim como constituiu uma prática de participação democrá-
tica e construção crítica sobre as desigualdades de gênero (BRUNO et
al., 2013). Também podem ser compreendidas como espaços de trocas
de experiências pessoais relacionadas à vivência da divisão sexual do
trabalho, no meio dito rural: lá, tarefas relacionadas ao “feminino” so-
brecarregavam e dificultavam a participação em outras esferas, dentre
elas a política. Aguiar (2015) mostrou que, pelas marchas, as mulheres
vieram a se tornar ainda mais visíveis, não apenas para a sociedade,
mas, sobretudo, para elas mesmas.
As mulheres camponesas procuravam, desse modo, um afastamen-
to dos processos de naturalização relacionados à divisão sexual do tra-
balho. Ainda assim, nas diferentes escalas de participação (micro-ma-
cro), persistem representações falocêntricas extremamente assimétricas
e conservadoras. Em parte, isso explica no surgimento dos movimentos
específicos de mulheres, como os espaços para tratarem de suas reivin-
dicações específicas de gênero, já que “eram consideradas irrelevantes
ou menos importantes do que as reivindicações de classe e econômicas
que motivavam” as organizações sindicais no geral (AGUIAR, 2015: 82).

74
Nas “entranhas” desse processo, crescia também a participação das
mulheres nas direções sindicais. Em 1991, a política de cotas já havia
sido adotada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Uma iniciativa que
foi seguida pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), garantindo
o mínimo de 30% de mulheres nos cargos de direção. Segundo Mota
(2006: 349), a política de cotas que “vem sendo adotada no movimen-
to sindical de trabalhadores rurais é um indicativo da estruturação de
uma nova ordem de definição das posições de homens e mulheres na
estrutura sindical, dando conta da instituição de um lugar feminino”.
Também, para Edilene (2016), no último congresso nacional da Contag
(Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais), o aumento percen-
tual para 50%, mesmo sendo conquista significativa, é ainda mera for-
malidade distante de uma prática.

Mulheres no movimento sindical, sudeste do Pará: “Se não tivesse


cota, mulher nem falava”

No Estado do Pará, a sindicalização e a participação das mulhe-


res camponesas nos cargos de direção ocorreram aliadas à criação
de novas secretarias (“novos temas”) e a adoção da cota de 30% nos
STTRs. Em relação à filiação, segundo Amaral (2008: 2), na “década
de 70, as mulheres representavam somente 3%. No final da década
de 80, esse percentual passou para 7%”. Já na década de 1990, esse
percentual foi dobrado.

Na amostra de 40% dos STTRs ligados à Federação, as


trabalhadoras constituem o maior número de sindical-
izadas, mas não estão em cargos de direção, não estando
devidamente representadas, ao menos, numericamente
nas diretorias. No caso de cargo de presidência, elas rep-
resentam 23% enquanto os homens são 77% (AMARAL,
2007: 97).

Nos cargos de direção, a presença masculina é predominante, es-


pecialmente naqueles considerados de maior prestígio na hierarquia de

75
poder e que se ligam ao trabalho que, nas representações sociais, cor-
responde a maior valor social. Ainda segundo Amaral (2008: 2), para os
períodos de “2000-2002 e 2003-2005, o número de sindicatos fundados
é menor, mas o número de mulheres em cargos de direção aumenta,
representando 22% e 33%, respectivamente”.
Dados da Fetagri – regional sudeste do Pará2, 2014 – mostram que,
nas diretorias dos sindicatos, predominava a presença dos homens. As
mulheres ocupavam geralmente os cargos de secretaria e de gênero nos
STTRs. Dos 27 sindicatos, 21 eram dirigidos por homens e seis por mu-
lheres. Por outro lado, as 17 secretarias de mulheres existentes estavam
ocupadas por mulheres.
Nas últimas quatro direções da Fetagri – sudeste do Pará (2002-
2016), a ocupação dos cargos revela a mesma lógica presente nos STTRs.
Enquanto os homens ocupam a posição de presidente (três), as mulhe-
res, de vice-presidente (três). Nesse período, a única presidente mulher
da Fetagri foi justamente Joelma, uma das vozes em análise neste artigo.
As secretarias de política agrária e agrícola foram assumidas exclusiva-
mente por homens3; por outro lado, a secretaria de mulheres/gênero
somente por mulheres. Uma das mulheres a assumir a secretaria de gê-
nero foi Zefa. Na sua avaliação, mesmo com a política das cotas, a voz
das mulheres parece ainda inaudível.

[...] a mulher dentro do movimento tá ainda muito, é


muito discriminada pelos homens. Se não tivesse cota,
mulher nem falava. Como tem essa cota de 30%, a mul-
her ainda tem a voz lá dentro, ainda fala alguma coisa,
ainda tem como ficar na diretoria, e se não tivesse a mul-
her nem essa oportunidade não tinha. [...]
Mas o preconceito é muito grande, ainda hoje aqui tem.
Ainda hoje tem esse tipo de preconceito. Quando é pra

2
Pesquisa documental (atas das eleições e posse de STTRs) realizada na sede da
Fetagri – sudeste do Pará, em junho de 2014, por Kezia Vieira de Sousa.
3
O que explica parcialmente essa composição dos cargos e funções é que elas se
ligam às práticas tradicionalmente consideradas produtivas e implicadas nas rela-
ções do espaço público.

76
ir pra um encontro do sindicato, aí só “vai” as mulher,
mesmo porque tem a cota das mulheres, porque, se não
fosse, não ia não. Aí fica, escolhe fulano de tal, e vai di-
zendo o nome, dizendo o nome, aí quando a gente vai
uma e diz: ”E mulher? Cadê a cota das mulheres aí?” “Ah,
tem que tirar fulano pra botar mulher, umbora escolher
as mulheres” (ZEFA, 2013).

Além dessa questão do prestígio do cargo, está presente uma prática


de delegação da participação em que às mulheres é atribuída “autono-
mia em certos campos ou jurisdições” e, simultaneamente, interditada
ou limitada noutros (BORDENAVE, 1983: 32). Ademais, a ocupação de
cargos em que a atividade é socialmente reconhecida como feminina
implica a conservação dos papéis tradicionais de gênero, inclusive na
família, porque, para o exercício desses cargos, ajustam-se papéis e tem-
pos que não as desvinculam de “suas” obrigações domésticas.
A transposição das representações e dos papéis de gênero do espa-
ço doméstico-familiar para o espaço da organização social reproduz(ia)
nos discursos e práticas as relações de poder sexistas, obstáculos à socia-
lização da mulher como sujeito político.

Aí o outro dizia assim: “vai mulher, eu já te disse pra tu


ir!” Então... e dizia isso rindo, porque é como se ele tivesse
rindo do limite dela, como se ele tivesse dizendo que ela
não dava conta de ir e ser representada e conversar de
igual pra igual. Ele ria. Algumas lideranças faziam muito
isso aqui na região, rir das suas companheiras, dizer: “Lá
em casa, eu mando a mulher ir, mas ela não quer ir... eu
mando!” Além dele dizer “eu mando”, ele ria, porque ele
dizia que ela não sabia nada, ela não sabia falar, não sabia
se expressar: “Vai fazer o quê?” Outros diziam logo: “Vai
fazer o que lá? Tu não sabe falar, o que tu vai fazer lá?” De
certa maneira, jogavam água fria nela, um balde de água
fria que ela já sentia dentro da própria casa dela (AILCE
MARGARIDA, 2016. Grifo dos autores).

77
A naturalização de estereótipos e, consequentemente, dos precon-
ceitos de gênero, sobretudo nos discursos dos homens sindicalistas, foi
responsável pela resistência à sindicalização feminina e à sua participa-
ção em funções executivas (CARNEIRO & TEIXEIRA, 1995), ou ain-
da uma tentativa de circunscrever sua presença aos espaços de micro-
participação mais ligados às atividades em grupos primários. Trata-se
de uma violência simbólica simultaneamente produzida e produzindo
uma ordem de dominação masculina.

Subalternização como experiência comum: “Tem muitas terras aqui


em Rondon do Pará, por que não a gente fazer uma luta pela terra?”

A cidade de Rondon do Pará surgiu como núcleo de apoio às ati-


vidades madeireiras e pecuárias, que se implantaram como empreen-
dimentos econômicos pela concentração da terra. Na década de 1960,
a localidade era, como relatou Joelma (2016), “o garimpo da madeira”,
atraindo migrantes de várias regiões do País. A “população é em sua
maioria composta por mineiros, baianos, capixabas e maranhenses: fa-
zendeiros empresários, comerciantes, funcionários, pequenos madeirei-
ros, trabalhadores das serrarias, lavradores, peões” (HÉBETTE, 2004:
108). Segundo Souza (2008), a ocupação do município era, ao mesmo
tempo, livre e arbitrária no entorno da PA-70, atual BR-222. De acordo
com Hébette (2004: 145):

[...] ao lado de pequenos posseiros, gente simples que


cultivava apenas para a subsistência do grupo familiar,
encontravam-se grandes fazendeiros, proprietário de
centenas de alqueires de terra [...], o que causou instabi-
lidade e conflito na região.

A narrativa de Joelma delineou melhores contornos ao contexto,


quando noticiou os paradoxos e os conflitos sociais existentes: “Por-
que, no Pará, a riqueza era para uns e para outros, não”. Ela, sindicalista
ameaçada de morte, cujo esposo, o também sindicalista Dezinho, fora

78
assassinado pelo latifúndio, em Rondon do Pará no ano de 2000. Joel-
ma e Dezinho, maranhenses, migraram para o Pará em 1984. A mãe
de Joelma, que já morava na vila Rondon do Pará (então município de
São Domingos do Capim), informava na época à família “a fartura” de
trabalho no Pará.
Ela morava em Rondon do Pará. Quando ela foi me
visitar, ela me falou do Estado do Pará, que era um
estado muito rico, muita fartura, tinha emprego para
todo mundo. Então, o Dezinho tinha que vir procurar
um emprego em Rondon do Pará porque o Pará [é]
que era terra para se morar. Então, ela falou a forma
do trabalho, mas não explicou de que forma eram esses
trabalhos, de que forma era essa fartura em Rondon do
Pará. [...]
Então, você teria que saber cortar de motor-serra,
tinha que fazer aqueles arrastões porque a mão de obra
naquele período, em 84, quando nós chegamos em Ron-
don para fazer esses arrastões para tirar madeira, era o
homem que fazia, a máquina que tinha era o motor-serra
(JOELMA, 2011).

O conflito agrário e a violência no campo tornaram-se os eventos


principais da história recente do sudeste paraense, marcada pelas con-
tradições inerentes às políticas oficiais de ocupação da região, na se-
gunda metade do século XX, cujos motes persistem em gravitar pelo
controle geopolítico e pela exploração econômica do território, possi-
bilitando, por um lado, a apropriação e a concentração da terra; por
outro, a estruturação de mercado de trabalho (BECKER & MACHA-
DO, 1982). Em consonância a essas práticas desenvolvimentistas pre-
datórias, ocorreram deslocamentos de contingentes populacionais para
essas áreas estratégicas do capital, especialmente reservas de recursos
minerais e de fronteira agrícola, com empreendimentos agropecuários;
também provocou a organização dos posseiros na luta pela terra: esses
trabalhadores/as são provenientes predominantemente da migração in-
tergeracional nordestina em direção à Amazônia.

79
Nesses espaços, os STTRs passaram a ser disputados (retomados
dos pelegos ligados ao governo militar) e/ou criados para servir de ins-
trumento de luta e representação dos trabalhadores na luta pela terra. O
sindicato de Rondon do Pará foi fundado em 1983, com uma caracterís-
tica assistencialista e que, para Joelma (2016):

[...] era um sindicato que era chamado sindicato pelego


e que os próprios fazendeiros eram sócios do sindicato,
tinha aquela questão de assistencialismo. [...] nessa épo-
ca, aqui, não tinha essa questão da luta pela terra: refor-
ma agrária. Tinha uma área ocupada que era a Gavião,
que era a gleba Catitu, mas ninguém se envolvia com
essa questão de terra.

A ascensão de Dezinho, como dirigente do sindicato em 1993, mar-


cou uma guinada para uma atuação combativa e centrada na luta pela
terra e na organização dos/as trabalhadores/as rurais.

Aí, pelo Dezinho ver a cidade que era uma cidade rica,
mas ao mesmo tempo com muita pobreza, que muitas
vezes nem farinha não tinha praquelas famílias comer
que morava na periferia. Aí ele, como vinha de uma
família que lutava pela terra, que tinha agricultura, que a
sobrevivência se tirava da terra, tinha o arroz, a farinha,
o milho, o feijão, então ele avaliou: “tem muitas terras
aqui em Rondon do Pará, por que não a gente fazer uma
luta pela terra” [...].
Então, quando entrou o Dezinho, aí a coisa já foi com-
plicando, porque mexer com a terra, terra onde tem
poderio muito grande em Rondon do Pará, aí só sei
te dizer que foi muito difícil a nossa vida aqui, porque
Dezinho foi uma liderança combativa, uma liderança
que fez acontecer em Rondon do Pará, que não tinha
agricultura, que não tinha agricultor, que tinha terra e
esses que tavam na periferia passaram a possuir, a ocu-
par terra. Então, foi muito difícil a nossa vida aqui, o

80
sindicato passou a ser um sindicato não de assistência,
mas sim um sindicato combativo, inclusive da luta pela
terra. O Dezinho foi ameaçado, essas ameaças, meus
filhos tudo pequeno a gente acompanhou, foi muito so-
frimento que a gente teve aqui nesse município pra ter
hoje uma história que tem, e tanto é que foi dois man-
datos do Dezinho, foi oito anos de ameaça, mataram o
Dezinho! (JOELMA, 2016).

Na década de 1990, os STTRs, já sob a direção dos/as trabalhado-


res/as, criaram a Fetagri – sudeste do Pará. Além disso, novos atores
surgiram na região, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), propiciando intercâmbios e a adoção de novas estratégias
na luta pela terra, o que se caracterizou como um processo de transição
da “luta posseira” à “luta sem terra” (PEREIRA, 2015).
Nas últimas décadas, esses conflitos permaneceram intensos, com
massacres e chacinas (Chacina da Ubá, Massacre de Eldorado dos Cara-
jás, dentre outros) e assassinatos seletivos de lideranças, como Zé Cláu-
dio e Maria do Espírito Santo, o sindicalista Dezinho (José Dutra) em
Rondon do Pará, esposo de Joelma, dentre outros (Ribamar Francisco
dos Santos, Domingos dos Santos Silva).
Rondon do Pará permanece como um espaço de conflitos históri-
cos entre fazendeiros-empresários e trabalhadores rurais e sindicalistas,
uma luta contra o trabalho escravo e pela posse da terra “porque a gente
ver que [o trabalhador] vive lá sendo escravo de fazendeiros e da serra-
ria, e que, os grandões, eles não querem ser incomodados” (NICINHA,
2014). “Aí, eu só sei que foi muito enfrentamento, eu recebi visita no
sindicato de fazendeiro ir lá e dizer qual era o projeto dele, me enfrentar,
dizer que não tinha medo” (JOELMA, 2011). E os sindicalistas que ou-
saram lutar a favor desses trabalhadores foram ameaçados, perseguidos
e, algumas vezes, mortos. A participação das mulheres na luta pela terra
perpassou por inúmeros enfrentamentos:

Então todo enfrentamento: a minha casa ser depredada;


rodar ali caminhonete preta e apontar pra minha casa

81
várias vezes; pessoa ir dentro do sindicato pra me matar,
além de todos os recados que receber os telefonemas de
ameaça dizendo o preço da minha morte, e dizer que
iam tirar uma pessoa de perto de mim. Quando mata-
ram o Ribamar, que era um parceiro muito combativo,
também que tava sempre presente comigo nas lutas
(JOELMA, 2011).

A inserção das mulheres nas diretorias dos STTRs tem represen-


tado a ocupação de um espaço político-organizativo nas lutas contra a
exploração e expropriação de trabalhadores/as. A violência contra essas
mulheres totaliza-se a outras tantas e pode atuar como instrumento de
intimidação ao surgimento de novas lideranças femininas. “Devido essa
questão de ameaça, as mulheres elas não querem muito ficar na frente
de coordenação” (NICINHA, 2014). Após o assassinado de Dezinho, a
direção do STTR de Rondon do Pará passou a ser assumida majorita-
riamente pelas mulheres.
Nicinha é também dirigente do STTR de Rondon do Pará desde
2002. Ela é natural da Bahia e veio para o Pará, passando pelo Mara-
nhão, em 1977, em busca de terra. Da sua experiência na direção do
STTR, ela ressaltou a continuidade de discriminação às mulheres em
virtude da estrutura masculinizada dos sindicatos.

[...] porque muitas vezes pelo fato da gente ser mulher,


ainda mais a questão da direção do sindicato de Ron-
don, você sabe que os homens, eles não quiseram ficar
na frente, devido todos os assassinatos, que tem tanta
violência que eles se recuam, mas a gente sente assim,
quando a gente vai colocar as propostas que a gente sente
assim uma discriminação só porque nós somos mulheres
(NICINHA, 2014).

Sob a direção de mulheres, o STTR de Rondon do Pará tem man-


tido seu caráter combativo no enfrentamento do trabalho escravo e no
apoio às ocupações de terra e luta pela reforma agrária. Em decorrência

82
de suas ações, tem sido alvo de ameaças contra suas vidas, cotidiana-
mente, sob muitas tensões.

Quando eu estou na igreja, têm momentos quando as


coisas estão com muitos problemas, muitas ameaças
pra mim, eu não sei se eu oro ou se eu estou aqui com
o pensamento: “quem vai chegar aqui dentro da igre-
ja?” (JOELMA, 2011).
[...] início de fevereiro, lá pro dia quatro, dia seis de
fevereiro, o Ribamar foi assassinado, e de lá pra cá eu
não tive mais sossego: telefone; eu sofri ameaça por
telefone; era no telefone fixo; era no meu celular; pes-
soas que “via” alguém falar coisas; vizinho que via
o cara parar carro na minha porta e diversas vezes.
Muitas coisas eu vivia numa tensão muito grande
(NICINHA, 2014).

Além de enfrentar esses conflitos na luta pela terra, essas mulheres


são envolvidas em tensões dentro dos próprios sindicatos, em decorrên-
cia das relações assimétricas: “muitas vezes, a gente vê mais a discrimi-
nação é nos que está mais próximo da gente, muitas vezes que trabalha
junto e quer ser autoritário, não quer por ser mulher que fale” (NICI-
NHA, 2014).
Por muito tempo, as mulheres foram impossibilitadas de assu-
mir cargos nas direções do STTRs: “Naquele tempo, a mulher era
dependente. O marido se associava ao sindicato e a mulher já encos-
tava” (JOELMA, 2011). Para os homens, a ação nos espaços públicos
é tida como natural e obrigatória, enquanto que, para as mulheres,
essa ação é tradicionalmente concebida como sendo imprópria e
indesejável.
Por isso, nas tessituras dessas narrativas, são tensionadas temá-
ticas como classe social e gênero, expondo(-se) as mulheres como
“objetos” históricos de uma pedagogia sexista, bem como “sujeitos”
de um processo de significação (BHABHA, 2011). Isso implica enun-
ciações produzidas de um lugar ainda desigual da “autoridade” cultu-

83
ral e do protagonismo político no interior da própria cultura parcial4
do campesinato.

Reelaborando identificações: “nós já perdemos quase tudo, só falta


perder o medo”

Josefa Sousa e Silva Albuquerque (Zefa), casada, 48 anos, negra,


residente no Projeto de Assentamento Grande Vitória5, município de
Marabá, foi constituída liderança camponesa do MTTR a partir de sua
decisão de participar de um acampamento, em 1996. Esse foi um mo-
mento de transição nas estratégias e identidades dos coletivos de luta
pela terra na região.
Zefa não viveu a experiência da migração nem o trabalho na terra
anterior à sua constituição como assentada. Ela vivia na cidade de Ma-
rabá e trabalhava numa serraria quando decidiu ir para o Acampamen-
to Santa Maria, às margens da Rodovia Transamazônica, em 1996. Seu
locus de enunciação é o da mulher que se constituiu liderança do STTR
de Itupiranga e da Associação dos Assentados do Grande Vitória, assim
como assumiu a Secretaria de Gênero da Fetagri – regional sudeste.
A decisão de ir para o acampamento foi de Zefa, mas sua chave
de acesso teria de contar com a “concordância” do marido, simples-
mente porque entrar na lista dos acampados teria de ser com “o nome
do seu esposo”.

Quando eu fui no acampamento pra colocar meu nome,


eu fui junto com esse vizinho lá que eu tinha falado. Meu
marido pro serviço. Aí, quando nós chegou lá, ele [viz-
inho] me apresentou, na mesma hora veio um líder que

4
A cultura parcial entendida como a “dupla inscrição da parte no todo, ou da posi-
ção minoritária vista como o fora do dentro”. “A cultura parcial e minoritária enfa-
tiza as diferenciações internas, os ‘corpos estranhos’ no seio da nação – os interstí-
cios de seu desenvolvimento injusto e desigual, que dão a deixa para o ‘se bastar a si
mesma’” (BHABHA, 2011: 89).
5
O PA Grande Vitória até recentemente pertencia a outro município, Itupiranga.

84
era um senhor de João Piauí, aí disse: “Olha, mas a sen-
hora não pode botar seu nome não, a senhora não pode
botar seu nome, tem que botar o nome do seu esposo”
(ZEFA, 2013).

Esse dado tem duas genealogias: o gênero operando como uma


“forma primária de dar significados às relações de poder” e o gênero
como “constitutivo de relações sociais” (SCOTT, 1995). Na primeira si-
tuação, trata-se de uma permanência da luta posseira: papéis de gênero
eram definidos em termos tradicionais (patriarcais), ainda que, na prá-
tica, as mulheres assumissem uma polivalência de atividades.

Ele disse [o líder do acampamento]: “Não, negócio


aqui em acampamento é duro, quem tem que vir e ficar
mesmo é os homens, as mulher não, ainda não. Quando
chegar a vez da mulher vim, as mulher vão vim, mas por
enquanto tem que ficar são os homens” (ZEFA, 2013).

Mesmo assim, Zefa e outras duas mulheres permaneceram no


acampamento. Elas desempenhavam atividades do âmbito doméstico
(cozinhar para os acampados), mas num contexto de ação coletiva.
Neste espaço, o gênero continuava operando e significando para
além das relações primárias (essas recorrentemente naturalizadas), de-
rivado não somente da cultura camponesa, mas das políticas públicas:
a conquista da terra estava interditada às mulheres. Mais do que uma
formalidade jurídica – o fato, naquele momento de a mulher não poder
ser titular de uma terra da reforma agrária – a fazia inexistente juridica-
mente, política e produtivamente. Essa política pública exerce um poder
formador na reprodução de uma divisão sexista do trabalho, desdobra-
da nas esferas pública e privada.

A esfera pública é o lugar da visibilidade das pessoas, dos


fenômenos, dos processos sociais e da construção das
ideias e simbologias que fazem girar o mundo da vida.
É o lugar da grande política, como diz Habermas (1987).

85
É aqui que o trabalho dos homens se realiza com toda a
sua carga de simbologia, tido como racional e impregna-
do de valor social. Enquanto que a esfera privada, onde
se realiza o trabalho da mulher, considerado imanente
e improdutivo, é carregada de estereotipia e sem valor
social (TORRES, 2012: 206).

De certa forma, a centralidade da atuação sociopolítica presente


na narrativa de Zefa serviu de indício de como essa mulher se via (re)
elaborando suas identificações, nomeando um locus para seus agen-
ciamentos. Ela assumiu a decisão de lutar pela terra como um projeto
para a família: a cidade não era lugar adequado para criar os filhos. No
Acampamento Santa Maria, ela insistiu em permanecer e assumir uma
atividade. Quando conquistaram a terra, seis meses depois, ela já era
uma referência naquele espaço coletivo.
A pedagogia sexista não forma as mulheres para a atuação na vida
pública. Quando Zefa foi convidada a ingressar no sindicato de Itupi-
ranga, pediu um tempo para pensar “porque eu não sabia, eu não en-
tendia nada [...] aí eu vou aprender, a minha intenção era só aprender,
porque eu não sabia mesmo de nada” (ZEFA, 2013).

Porque as mulheres não foram educadas para protago-


nizar, a nossa educação é outra, é preciso romper muito
essas barreiras formativas pra que a gente não tenha
medo. O movimento de mulheres até diz assim: “nós já
perdemos quase tudo, só falta perder o medo”. Elas colo-
cam, sempre afirmam, o medo e a culpa são dois grandes
limites das mulheres (AILCE MARGARIDA, 2016).

Em busca de outros protagonismos, Zefa passou a se ocupar com


questões além do lar; assumiu tarefas e funções no movimento. Tensões
relacionadas a gênero passaram a fazer parte de suas vivências e a ocu-
par espaços nas suas reflexões, com menor grau quando se referiam às
experiências nos espaços de microparticipação: o exercício das funções
de direção na Associação dos Assentados e no STTR de Itupiranga. Foi

86
como dirigente da Fetagri – regional sudeste (espaço de macropartici-
pação) que ela elegeu o foco principal de suas tensões e limites de atua-
ção: a experiência dos silenciamentos estratégicos.

[...] e eu ficava calada no meu canto, às vez, o Zuca que


puxava alguma prosa comigo: “Zefa, conversa, Zefa”.
“Eu vou conversar o que que vocês não deixa, vocês tão
aí conversando só coisa de vocês mermo, eu vou me
entrar na conversa”. Aí, eu não me sentia bem nesses
momentos.
[...] aí então, através desse tipo de coisa assim acho que
foi onde eu fui, como é que fala? Criando outra Zefa,
me soltando mais, porque eu era muito tímida, eu não
era, eu era boa pra dançar forró, mas pra mim tá con-
versando assim, me abrir assim pra conversar, eu não
gostava muito não, eu não me soltava. Aí, depois que eu
vim pro movimento é que eu tô me soltando assim aos
poquim. Hoje, o menino lá da Imatel, [...], diz assim:
“Zefa, mas tu mudou demais, Zefa! Mudou. Ainda bem
que tu mudou pra melhor! Que a Zefa de antigamente
mal abria a boca”. Mas era mermo, eu mal conversava,
eu não gostava de conversar, às vezes eu passava o dia
todim numa reunião e ninguém me via, assim ou dizia
assim: “A Zefa tá aqui”. Eu não, eu dizia: “Meu Deus,
o que que eu vou falar?” Eu não sabia nem por onde
começar, o que que eu ia perguntar e eu morria de
medo de falar alguma coisa e eu não tá falano no sen-
tido que era aquele tema (ZEFA, 2013).

Na Fetagri, Zefa assumiu a Secretaria de Gênero, o que era o indício


de que deveria tratar de assunto das “mulheres”. Como já mencionado,
nas diretorias dos sindicatos, como na Fetagri, predominava a presença
dos homens e uma divisão sexual do trabalho marcada por represen-
tações e atribuições de papéis masculinos e femininos. Por isso, para a
narradora, não se tratava apenas de ocupar espaços no movimento de
luta pela terra, mas sim o desejo de autorressignificação: solta, falan-

87
te, convicta de seus pensamentos: dispositivo-mulher6. Para Zefa, essa
era a síntese dos seus limites e de conquistas no movimento: a sua pa-
lavra teve que ser constituída – o que não significa emancipação das
práticas misóginas – e a sua pronúncia precisou ser audível para ter um
lugar conquistado. Nada lhe foi gratuitamente concedido: “Aí eu não
falava nada, ficava só ouvindo, aí nesse meu ouvindo eu fui aprendeno
e aprendeno e aprendeno mais e mais, aprendi com o tempo mesmo
dentro do movimento, foi que eu aprendi a me soltar” (ZEFA, 2013).
A fala de Zefa também possibilitou apontar algumas questões per-
tinentes para o debate sobre conquistas das mulheres no movimento
sindical. Uma primeira seria o domínio da palavra como um exercí-
cio do poder, “porque a palavra é um ato de poder, o que equivale afir-
mar que ela não é apenas um entre seus símbolos, mas o seu exercício”
(BRANDÃO, 2006: 8). Uma segunda, o poder da palavra vinculado à
autoridade socialmente reconhecida de quem fala. Nessa situação em
análise, a caracterização do papel dirigente, como próprio para o exercí-
cio do homem, reserva e naturaliza para ele o poder legítimo da palavra,
aquele que possui como “direito próprio ou delegado, o poder de dizer
a palavra que se apresenta como conhecimento legítimo e necessário
e que, portanto, consagra uma ordem social que, por sua vez, garan-
te a ‘verdade’ e o poder da palavra legítima” (BRANDÃO, 2006: 13).
Trata-se do exercício de um poder simbólico supondo o reconhecimen-
to exatamente pelo desconhecimento da violência exercida através dele
(BOURDIEU, 2012).
Uma terceira questão seria: sem a visibilidade e a exposição que
essa representação política proporcionou, as mulheres permaneceriam
silenciadas e não ouvidas (SPIVAK, 2010). Necessidade de articulação
de uma agência e de um discurso, ocupando um espaço institucional
e de uma performance discursiva. Nesse último aspecto, sobressalta-se
o domínio da semântica e os jogos de linguagem do campo discursivo

6
A metáfora foi pensada, a partir de Giorgio Agamben (2009), quando este pensou
o dispositivo como uma função estratégica e concreta se inscrevendo sempre em
uma relação de poder.

88
do movimento. O efeito da fala não se vincula somente à posição de
quem fala, mas a uma capacidade de comunicação no mesmo campo
discursivo – certamente não limitada à posição ou ao conteúdo de
classe social. Certa engenerización7 para a organizativa estrutural do
movimento se ramificou também para a reformulação dos discursos
sobre/para/das mulheres. Nesse caso, tornando o campo discursivo do
movimento um domínio pelo qual o termo “mulher” é marcado em
contraste ao termo não marcado de “homem” (HALL, 2008). Poderia
ser profícuo, por exemplo, nas investigações sobre a produção de iden-
tificação por esses discursos institucionais específicos, um questiona-
mento sobre os usos dos tropos literários em discursos de homens e
mulheres nesses espaços.
Segundo Schaaf (2003), os movimentos formam “espaços de repre-
sentação na conflitante vida cotidiana, nos quais as tensões são eviden-
tes, e as mulheres se tornam atores públicos, capazes de interpretar as
desigualdades sociais, de reclamar pelas injustiças feitas e de entrar em
um diálogo público”. Dessa maneira, as mulheres camponesas foram
rompendo com as hierarquias que as excluíam e discriminavam, pas-
sando a reelaborar suas necessidades.
De acordo com Mota (2006: 350),

[...] as mulheres trabalhadoras rurais a partir des-


sas vivências vão construindo uma narrativa própria e
temporal em que se referem a um antes do movimento,
quando não falavam, eram escravizadas, sem valor, não
sabiam de nada, tinham medo [...] a conquista da fala é
o demarcador de um novo tempo e uma possibilidade
concreta pela qual podem contar a própria história. E
nesse contar se reposicionam no mundo.

7
O termo “engenerar” e suas derivações – usados a partir da década de 1990 nos
circuitos dos estudos feministas, na América Latina – apontam para o sentido de
descrever processos a validar-reforçar diferenciações assimétricas de gênero. Dis-
positivo articulado com os processos recolonizadores do capitalismo eurocentrado
(LUGONES, 2014).

89
A palavra como exercício do poder (BRANDÃO, 2006) se tor-
na uma dessas arenas de luta das mulheres dirigentes. Foi o conjunto
de novas ações e relações que fez Zefa se expor à dinâmica de novos
aprendizados: “Agora eu aceito, agora já me sinto dentro do movimento,
porque eu já tava mais ou menos sabendo por onde entrar e por onde
sair, porque eu não sabia de nada” (ZEFA, 2013). As novas aquisições de
“identidade” se sobrepõem às “obrigações” antes assumidas, especial-
mente naquilo que parece ser uma permanência dos papéis sociais de
gênero: à mulher cabe conciliar sua atuação sociopolítica e doméstica.

E era muito corrido, chegava, tinha dia que eu chegava,


teve dia que eu chegava em casa, não tinha o que botar
no fogo pra cozinhar, porque na mão só de homem a
casa, a mulher que era de casa não ficava em casa, não
tinha uma galinha mais no terreiro, no caso assim tem
que matar uma galinha pra almoçar, não tinha, e se aca-
bando sabe como era que tava se acabando assim, porque
a gente se envolve muito no movimento e esquece das
coisas da gente. Eu cheguei a receber proposta ainda na
Fetagri que eu mudasse pra rua (ZEFA, 2013).

Essa reformulação identificatória se associa a uma nova fala. Agora,


não é mais apenas uma fala doméstica, mas uma fala com marcas dos
conflitos de uma figura humana envolvida em interesses sociais. Segun-
do Schaaf (2003), a participação mais estrutural das mulheres no mo-
vimento tem ampliado os espaços de negociação no âmbito doméstico,
como na superação de seu próprio sentimento de culpa. Por mais que
a participação política seja avaliada como um direito das mulheres, ela
não significa necessariamente a superação de papéis e representações de
gênero cristalizados.
A construção da memória e “a sua organização em função das pre-
ocupações pessoais e políticas do momento mostram que a memória é
um fenômeno constituído” (POLLAK, 1992: 204). E, nessa construção
da memória, Zefa valorizou a sua constituição como liderança e os es-
paços coletivos, exigindo dela ideias e argumentações. O fio condutor

90
de sua narrativa, como produção de sentido para suas experiências, foi
o aprendizado da palavra. E é assim que ela também se representa num
projeto de futuro, evidenciando o fenômeno da articulação entre me-
mória, identidade e projeto (VELHO, 1994).

Eu acho que foi a convivência, a convivência com o


pessoal, com todos do movimento. E eu acho que foi a
convivência. Hoje, eu falo pro meu marido: “O ano que
vem eu vou prestar, vou prestar vestibular, né, na hora
que chegar num eu vou entrar”. Eu me acomodei, sem-
pre meu sonho era fazer, passar num vestibular e ir pra
faculdade, E, quando eu fui pro movimento, tanta opor-
tunidade que teve e eu nunca me alertei pra isso. Agora,
depois que eu me afastei mais do movimento, que eu vim
pensar isso, que eu tenho que continuar meus estudos,
eu vendo minhas fias tudo se formando, aí elas me cob-
rando também: “Mãe, a senhora não pode ficar parada, a
senhora tem que continuar, tem que estudar, mãe, a sen-
hora tem que ver que a senhora é a Zefa, não pode parar
não”, E aí por as minha filha, e o apoio que o meu esposo
dá ele diz: “Não, nega, é pra estudar, e eu vou estudar, vou
voltar” (ZEFA, 2013).

Nos limites de sua participação no movimento, Zefa formalizou sua


discursividade com vivências pessoais e coletivas, pilares para a cons-
trução de suas identificações. Para esse contexto, Mota (2006) demons-
trou que as vivências no movimento social permitem às mulheres um
refazer-se permanente nas relações sociais e consigo mesmas.

Identidade como identificação...: “E ser essa pessoa aqui que fala não
foi fácil e nem é”

Porque só quem sabe é quem vive toda essa his-


tória, e não é simplesmente algo que aconteceu
lá no passado, isso é muito presente (Joelma).

91
O texto da epígrafe reporta à importância da discussão sobre me-
mórias públicas e processos de democratização da memória. O confina-
mento das vozes femininas à esfera privada está sendo contestado nes-
sa fala pela reivindicação de sua agência no espaço da história pública,
enquanto fazer histórico, mas também como relato. A história oral de
mulheres pode cumprir importante papel ao enfocar a “necessidade de
um arcabouço público no qual as memórias de todos possam ser re-
conhecidas e, ao mesmo tempo, elas próprias possam se reconhecer”
(SALVATICI, 2005: 36).
A memória é uma arena da polêmica. A sua organização em função
das preocupações pessoais e políticas do momento, mostra ser não so-
mente um fenômeno constituído (POLLAK, 1992), mas que se constrói
como intervenção social (CERTEAU, 1998) e, portanto, em referência a
outras memórias concorrentes. No fragmento de fala de Joelma, acima,
embaralharam-se, no campo discursivo, a produção de fronteiras sim-
bólicas reivindicando sua legitimidade nos agenciamentos.
Quem são os outros que interpelam o discurso de identidades de
Joelma? Além de uma remissão difusa à sociedade – talvez na sua cul-
tura patriarcal, sexista e classista –, pode-se pensar na hipótese de uma
perspectiva dialógica com os discursos de autoridade dos homens diri-
gentes do movimento sindical. Às mulheres não cabe mais apenas uma
agência que afinal permanece “silenciada” nos relatos e nos discursos
que igualmente produzem subjetividades, reconstruindo os sujeitos da
fala (HALL, 2008). Assim, “ser essa pessoa aqui que fala não foi fá-
cil e nem é”, remetendo à historicidade (a contingência) dos processos
de identificação como “a produção não daquilo que nós somos, mas
daquilo no qual nos tornamos” (HALL, 2008: 109), numa perspectiva
relacional e posicional.

Como ele [Dezinho] iria arriscar a sua vida com a ta-


manha situação, com os filhos todos pequenos, como
ele iria arriscar a vida por tantas pessoas? Então, eu não
compreendia. [...] uma coisa é você acompanhar a pessoa
que tá na linha de frente, você tá no projeto de defesa,

92
vamos dizer assim apoiando, a outra coisa é você ir pra
linha de frente já com todos esses acontecimentos. [...]
Quando foi o convite dos trabalhadores, aí “só quem
pode levar esse trabalho é a Joelma”. Eu pensei muito.
Eu pensei muito e foi muita resistência por parte de
meus filhos porque, como era que nós estávamos a um
ano e meio do assassinato do Dezinho, como eu iria
me envolver, porque sempre tinha a fala do Dezinho
(JOELMA, 2011).

A narradora evocou nas interpelações dos seus processos de


identificação novamente aquela articulação de discursos e práticas
pelos outros – a agência do marido assassinado e a convocação dos
sindicalizados – para legitimar seu investimento na posição de mu-
lher dirigente sindical. Desde esse local institucional específico que é
o movimento sindical – das suas práticas e seus discursos atravessa-
dos pelo gênero: a mulher é o termo marcado – a narrativa de iden-
tidade de Joelma se constituiu naquilo que se tornou (historicidade
das interpelações e investimentos numa posição), ao mesmo tempo
no que poderá se tornar: representações em processo – não foi fácil
e nem é.
A narrativa de Joelma chamou atenção para uma questão apontada
por Spivak (2010) quando ressaltou a importância da representação po-
lítica para que sujeitos subalternos possam se representar e ser ouvidos.
A reivindicação de uma agência diante das contingências da vida fami-
liar e da luta sindical – sua dramaticidade e suas conquistas – percorre a
fala da narradora: “E, quando saiu os primeiros projetos de assentamen-
tos, isso foi uma revolução. Eu era chamada de mulher revolucionária,
que veio pra revolucionar Rondon do Pará, que entrava numa nova era,
uma mudança” (JOELMA, 2011).
Conforme salientou Velho (2003: 97), é “evidente que existe uma
básica diferença entre uma identidade, socialmente já dada, seja étnica,
seja familiar etc., e uma adquirida em função de uma trajetória com
opções e escolhas mais ou menos dramáticas”. A construção e reformu-

93
lação dessas identidades se associam a uma nova fala, identificações li-
gadas às estruturas discursivas e narrativas.
As mulheres líderes camponesas passaram a romper com a cultura
dos papéis cristalizados. “Porque eu acho que a gente tem que denunciar
mesmo, se a gente quer viver, eu sempre tenho colocado a minha cara
a tapa pra isso, compreendendo que a sociedade não pensa igual, mas
eu tenho que denunciar” (JOELMA, 2011). Mas, ainda “[...] tem com-
panheiro que não valoriza, que não acredita, acho que não confia nas
mulheres, acho que não confia, acha que se fosse um homem ia fazer um
serviço melhor” (NICINHA, 2014).

Porque, por mais que aqui no sindicato de Rondon


hoje as lideranças maiores no sindicato são mulheres,
mas ainda nós enfrenta barreiras, enfrenta barreiras,
só não enfrentamos tanto porque a gente tem o em-
poderamento de para igual para igual, mas, quando se
trata do contexto no geral dos movimentos, ainda tem
muitas barreiras no movimento pelo conhecimento
que ainda os homens não sabem trabalhar a questão
de gênero, não vê a mesma capacidade de mulher e
homem, juntar e fazer grandes lideranças, seja homem
ou seja mulher, ainda temos muitas dificuldades (JO-
ELMA, 2016).

Evidencia-se a mudança objetiva na composição da represen-


tação das mulheres nas direções do STTRs, não acompanhada ne-
cessariamente de mudanças nas representações sobre os papéis de
gênero.

[…] Qualquer que seja sua posição no espaço social, as


mulheres têm em comum o fato de estarem separadas
dos homens por um coeficiente simbólico negativo que,
tal como a cor da pele para os negros, ou qualquer outro
sinal de pertencer a um grupo social estigmatizado, afeta
negativamente tudo que elas são e fazem (BOURDIEU,
2012: 111).

94
De acordo com Bourdieu (2012), nas sociedades patriarcais, o po-
der simbólico estrutura as relações de poder. Nesse sentido, no interior
dos grupos subalternos também se reproduzem as relações de subordi-
nação, desenhadas pelas gradações nas relações de poder e de domina-
ção, levando em consideração categorias de classe, de gênero, não raro
de raça e etnia, em múltiplas interseções.

Mas que eu vendia roupa nas portas pra garantir o tra-


balho do Dezinho no sindicato, que nessa época não
tinha remuneração, o sindicato só era trabalho, trabalho,
trabalho, luta, luta, luta, ameaça, ameaça, não tinha din-
heiro, e aí foi a gente fazendo o trabalho de resgate da
importância que o sócio teria que ser sócio, mas tinha
que ter uma contribuição e essa contribuição quem deu
primeiro foi essa mulher que fez com que aquele homem
fosse uma grande liderança pra ter respeito dos trabal-
hadores, pra dizer por aqui meus companheiros que nós
vamos [nesse momento, ela chora]... Então, não é fácil,
então hoje tu ser diretora de um sindicato, quando a
gente convida alguma mulher ou algum companheiro,
não é fácil passar o que tu passou pra ter história nesse
sindicato, nesta casa, então isso daqui quando o Dezinho
era presidente, que não tinha recurso, era só uma casinha
ali. Isso tudo já foi a gente que construiu, então não é
fácil, é isso, minha amiga, a história do sindicato é essa,
a história de Rondon é muito grande, muita luta, muita
persistência mesmo, e ser essa pessoa aqui que fala não
foi fácil e nem é, não é fácil porque, pra dar conta das
minhas filhas e do meu filho, que eu tenho um filho úni-
co, só o único, pra nenhuma ser prostituta, pra o respeito
não foi fácil (JOELMA, 2016).

Outras temáticas dessas vozes carregadas de discursos eviden-


ciam questões da dupla jornada de trabalho, da experimentação de
certa invisibilidade e da sobrecarga quando as mulheres passam a atu-
ar nas organizações coletivas: “[...] então, eu que não era vista, eu só

95
era vista como a mulher do Dezinho, mas eu não aparecia, porque
quem tava à frente era o Dezinho, e não eu” (JOELMA, 2016). No
momento posterior ao assassinado do esposo, a classificação operada
reproduzia, se não em intensidades maiores, pelo menos os mesmos
termos: ela passou a ser identificada como “a viúva do Dezinho”. Em
alguns discursos, essa identificação associada a outras classificações
desqualificadoras – “mulher louca”, “mulher que não tem amor à vida”,
“mulher que não cuida dos filhos” – foi reproduzida exatamente para
tentar lembrá-la de sua suposta inferioridade e consequente deslegiti-
mação em seus pronunciamentos.

[...] “Que diabos que essa mulher quer fazer na frente


do sindicato, o marido num já morreu, ele que era
homem lutou pela terra não conseguiu nenhum projeto
de assentamento” [...] Mas ele deixou quatro áreas ocu-
padas na época e aí “não criou nenhum assentamento,
mataram ele e como é que essa mulher, essa mulher vai
ser morta”. Aí me deram vários nomes: mulher louca,
mulher que não tem amor à vida, “vai cuidar dos teus
filhos, se o homem não fez, como é que mulher vai
fazer”. Então, foi muitos apelidos que me colocaram
(JOELMA, 2016).

O movimento sindical, como local institucional específico de prá-


ticas e de discursos, reproduz efeitos de uma identidade de gênero nos
quais a marcação recai sobre as mulheres – ou o termo “mulher”.

Nosso colega mesmo sindicalista de outro sindicato cos-


tuma dizer que “Rondon é o sindicato das mulheres”,
com um tom meio que ironizado, no sentido de ser-
mos a maioria mulher. Mulheres por sermos mulheres
na direção e com cargos elevados. Então, pra nós é uma
conquista, conquista das mulheres de dizer que estamos
ocupando um espaço, que também podemos buscar a
luta, fazer a luta com nossos companheiros e com os tra-
balhadores (EDILENE, 2016).

96
Trava-se uma luta de poder e de exclusão; contexto em que a mar-
cação visa a produzir e domesticar o outro – nesse caso, a mulher: fron-
teira atravessada de diferenças e de desigualdades.

Todos os sindicatos, eu falo no geral, digamos que tinha


um empoderamento machista, aonde era visto e entreg-
ue os cargos mais, digamos assim, elevados apenas pros
homens, aonde só os homens era presidente, era secre-
tário-geral, era secretário de finanças. As mulheres eram
apenas secretárias ou copeira, era assim que era dividido
as tarefas, é como se a mulher não tivesse capacidade, ela
não tivesse competência, nem potencial, nem força, nem
garra pra dirigir pra tá à frente de algo, então aqui a gente
tenta dialogar, tenta mostrar esse outro lado que não é
bem assim (EDILENE, 2016).

Ainda que no movimento sindical se mantenha uma perspectiva da


participação delegada, no sentido de restringir a atuação das mulheres
a papéis socialmente cristalizados como femininos, esses mesmos pro-
cessos de participação têm possibilitado reformulações das relações e
representações de gênero.

Primeiro que não é fácil, porque, quando tu fala, quando


tu fala em sindicato, tu já fala da figura homem, e não uma
figura mulher, tu não fala da mulher, tu fala do homem,
porque sindicato é coisa que vai lidar com questões, va-
mos dizer, a luta pela terra, a luta pelo direito, a luta pela
agricultura, então é serviço pesado, serviço de homem,
e não serviço de mulher. Porque a mulher é vista mais
é pra ser uma secretária do sindicato, e não pra ser uma
liderança de frente do sindicato, então é isso que é visto
pra sociedade. Mas, aqui em Rondon do Pará e hoje com
o movimento, a gente não vê mais assim, a gente vê de
igual para igual (JOELMA, 2016).

No STTR de Rondon do Pará, as mulheres estão potencializando


conquistas. A participação delas como dirigentes sindicais possibilita

97
estabelecer relações e atuações no espaço público e seus efeitos políticos
a outras mulheres.

Os espaços também têm que ser ocupados pelas mulheres


né... Então, a gente procura fazer um trabalho da melhor
qualidade, porque a gente precisa honrar o nosso nome
de mulher, né... Então, eu acho, pra mim, eu me sinto
elogiada né de fazer parte de um processo desses. Desde
2002, sempre eu tô vindo aqui na executiva do sindicato,
pra mim eu me sinto elogiada de tá fazendo parte dessa
direção, e tá fazendo trabalho, agora mesmo a gente quer
fazer um trabalho, trabalho de grupos de mulheres nos
assentamentos e acampamentos, pra tá fazendo cursos
de formação pra essas mulheres. Eu me sinto assim que
sou mais uma das mulheres, eu me sinto elogiada de tá
fazendo parte desse movimento (NICINHA, 2014).
Então aqui em Rondon nós temos várias mulheres lider-
anças, inclusive são presidentes de associações, são tes-
oureiras, são do conselho fiscal, o próprio sindicato hoje
a maioria, nós temos apenas dois diretores homens, os
outros são todas mulheres. Então, teve uma mudança
muito grande em relação à participação, porque as mul-
heres era só ficando em casa cozinhar e cuidando de fil-
ho. Hoje não, hoje aqui no nosso município de Rondon
nós temos várias mulheres que são lideranças e que par-
ticipam mais que os homens às vezes agora, em encon-
tros em reuniões nos debates mesmo pra movimentação.
As mulheres estão aqui sempre participando junto com
as diretoras aqui do sindicato (DORILENE, 2016).

Repercussões não restritas à questão do gênero, mas na luta pela


terra; pela vida digna; na luta contra as desigualdades nos diferentes
domínios da vida social.

Acho que foi assim pela perda de companheiros, da


gente vê os direitos do nosso povo que é menos fa-

98
vorecido ser desrespeitado, não ter um direito que é
direito e que não é adquirido, foi com as perdas mes-
mo dos direitos, de ser negado o direito de homens e
de mulheres. Foi por essa visão que a gente teve, pela
conquista que foi tendo pelo espelho que a gente teve
de uma grande liderança que queria o melhor para os
trabalhadores de igual para igual dos seus direitos ser-
em respeitado, e a gente pegou isso com muita garra,
com muito empoderamento, com aquela ansiedade de
dizer assim, nós vamos conseguir, nós somos capazes,
então eu acho que pela... O meu trabalho que eu tive
e tenho de não ser uma liderança que se corrompeu
de ser uma mulher que visualizou um trabalho, um
trabalho de direitos, e não de direito adquirido, e sim
direitos, então isso a gente se empoderou, se capacitou
e de ver assim na nossa luta outras mulheres sendo
beneficiadas, outras famílias, dizer assim: “Eu tenho
hoje a minha terra, eu tenho a minha casa pra morar,
eu fiz o meu projeto, deu certo”. Hoje eu posso andar
de cabeça erguida, não mentindo [...] então, eu acho
que foi por isso de eu ser uma pessoa que dei respeito
e tenho respeito e faço tudo na maior transparência
e ética possível no meu trabalho, eu acho que foi por
isso que as outras mulheres, que hoje a gente conse-
guiu convidar mulher pra vim pra diretoria do sin-
dicato, mas que tem uma liderança na frente que tem
respeito e tem ética pelo que faz, então eu acho que
é por isso que Rondon do Pará tem uma história de
mulheres (JOELMA, 2016).

As dirigentes do STTR de Rondon do Pará têm desenvolvido es-


tratégias para que outras mulheres participem da diretoria do sindica-
to. Uma delas tem sido a motivação para que se tornem lideranças nos
acampamentos e nas associações dos assentamentos. Desde 2002, com a
eleição de Joelma para o cargo da presidência, as mulheres têm se man-
tido dirigentes do STTR de Rondon do Pará.

99
Teve a Eva, que foi a minha irmã, que foi a primeira
mulher aqui no município, além da minha pessoa, a
primeira mulher que foi presidente de sindicato por to-
dos os enfrentamentos, ela foi a primeira mulher a ser
presidente de uma associação, inclusive nessa área da
Gavião, também foi diretora dessa casa, secretária de
políticas agrícolas e política para as mulheres. A Nice,
que veio na política social também junto comigo, então
foram três mulheres logo de início que enfrentou tudo
comigo, a Zudemir [Nicinha] e a Maria Eva. Aí, depois
com a minha história, com a minha luta junto com elas,
aí que outras mulheres vieram presidentes de associa-
ção, coordenadora de acampamento, então foi empode-
rando outras mulheres por essa luta que a gente teve
esse enfrentamento, e aqui tá nossa história de muita
luta (JOELMA, 2016).

Segundo Antunes (2002), “a construção de uma autoimagem e


confiança positiva, o desenvolvimento da habilidade para pensar cri-
ticamente, a construção da coesão de grupo, a promoção da tomada
de decisões e a ação” (ANTUNES, 2002: 98) tem uma relação, antes de
tudo, com a alteração das configurações do poder. Assim, participação é
educar-se para a participação, pois ela é “vivência coletiva e não indivi-
dual, de modo que somente se pode aprender na práxis grupal” (BOR-
DENAVE, 1983: 64).

[...] eu vejo a participação assim que eu tenho muito re-


speito por aquelas mulheres que continuam na luta, pra
nós é assim, um motivo da gente dizer assim nós somos
capazes, nós temos o mesmo direito que o homem tem
o mesmo dever, mas nós temos a mesma capacidade
de ser sindicalizada, de ser diretora do sindicato, de ser
presidente, de ser presidente de associação ou coorde-
nação, de juntos a gente coordenar o sindicalismo em
Rondon do Pará. Nós temos essa mesma capacidade,
mas acima de tudo as mulheres se empoderaram. Saber

100
o que quer, seja mulher jovem, seja mulher de meia-
idade ou da melhor idade, nós temos essa capacidade,
então eu vejo assim com muito respeito, mas acima de
tudo essa mulher saber o que que ela quer e ter conhe-
cimento (JOELMA, 2016).

A palavra “empoderamento” tem sido recorrente nas narrativas


dessas mulheres, o que pode evidenciar uma categoria operacional e es-
tratégica nos seus discursos de identidade.

[...] então, nesse sentido, eu comecei a olhar pra mim


mesma com um olhar diferente, particularmente, até
então eu tinha vergonha de dizer de onde eu era, a minha
origem e a minha história. [...] hoje, eu não tenho ver-
gonha em dizer a minha origem, da onde eu vim do que
eu me identifico que é minha bandeira que hoje somos
sindicalistas (EDILENE, 2016).

Nos processos de identificação dessas vozes-mulheres, o termo


“empoderamento” parece operar para múltiplos pertencimentos e para
a interseção deles, em especial da classe social e do gênero, um inves-
timento nas posições, enquanto camponesas, e também como lideran-
ças e dirigentes sindicais. Outra reflexão não menos importante sobre o
uso do termo pelas vozes edificando esse texto refere-se ao fato de que
empoderamento deixa de ser simplesmente o discurso do querer – ou
o discurso vazio de certos segmentos da sociedade civil querendo ser
organizada – para, de fato, o de se fazer.

De “subterrâneos e inaudíveis”...: “Rondon é o sindicato das mulheres”

As experiências das mulheres líderes e dirigentes camponesas, no


sudeste do Pará, transcorreram num espaço, em certa medida, conser-
vador em termos das relações de gênero. Tendo em vista essa relação,
as diferenças estabelecidas, a partir da categoria de gênero, foram uti-
lizadas para marcar as desigualdades nos cargos dentro dos STTRs. É

101
recorrente essa relação quando os cargos de direção são ocupados quase
que exclusivamente por homens. O desembaraço desse contexto evi-
dencia-se nos discursos de mulheres rompendo com modelos patriar-
cais presentes nos sindicatos e ganhando visibilidade na luta para serem
reconhecidas como agentes no espaço público.
A participação das mulheres no STTR de Rondon do Pará, após o
assassinato de Dezinho, foi fundamental e decisiva na organização do
sindicato e na conquista dos assentamentos de reforma agrária. Elas e
outras mulheres, lideranças e dirigentes, elaboraram suas memórias re-
ferenciadas na atividade exercida na esfera pública, em espaço de micro/
macroparticipação.
Esses discursos, parecendo subterrâneos e inaudíveis, parecem de-
sautorizar as forças majoritárias e redutoras, desenhando o papel femi-
nino na luta pela terra, reinscrevendo, sem abrir mão dos medos, das
hesitações e dos silêncios estratégicos, o destino de um coletivo. Que-
rem ser linhas de fuga dos silenciamentos e proibições de suas experi-
ências micro/macrossociais, assumindo protagonismos nas dinâmicas
familiares e na luta pela terra.
Protagonizaram, nesse breve espaço de reflexão, mulheres exercen-
do o poder da palavra, numa perspectiva relacional. São vozes ainda
partindo de um lugar de poder desigual, mas não mais inexistentes no
interior das versões hegemonizadas por homens. Não são, necessaria-
mente, narrativas de oposição, mas que apresentam diferenças e, por
isso, alargam o campo da resistência camponesa na produção de senti-
dos para suas lutas.

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107
PODER Y RESISTENCIA EN EL SUDESTE DEL PARÁ
DESDE LA EXPERIENCIA VIVIDA Y NARRADA POR
MUJERES RURALES DEL GTAE1

María de los Ángeles Arias Guevara

Introducción

Los estudios sobre mujeres rurales y relaciones de género en Brasil


se han tornado expresivas desde los años 2000. Ello se debe, entre otros
factores, a la lucha de las mujeres por el acceso a la tierra, por el recono-
cimiento de sus derechos como trabajadoras, así como al empuje social
de los movimientos de mujeres campesinas y a su activismo dentro otros
movimientos sociales. El diseño e implementación de políticas públicas
que ubicaron a las mujeres como principales beneficiarias y la existencia
de programas de posgrado que tienen al feminismo, a las mujeres y a
las relaciones de género líneas de investigación son otros factores que
contribuyen a su visibilidad.
Este abordaje es emergente en estudios sobre territorios y ruralida-
des. Los investigadores brasileros más reconocidos en estudios rurales
siguen dedican muy poca o ninguna atención a los estudios de género,
considerando lo masculino como universal perpetuando así, la invisibi-
lización de las mujeres como importantes agentes de cambio. Con ello,
se desaprovecha las potencialidades teórico-metodológicas que brindan
los estudios de género para problematizar lo rural desde una perspecti-
va interdisciplinar.

1
Grupo de Trabalhadoras Artesanais Extrativistas – GTAE

109
Entre la bibliografía sobre la temática, escrita por mujeres, con
perspectiva de género o sobre las mujeres rurales en Brasil se destacan
Carneiro (1995, 2001) Paulilo (1988 y 2004), Deere e León (2001, 2004),
Brumer (2000, 2004), Butto (2003), M Texeira (1994), Pellegrini da
Rosa, E. (2004), Menezes e Alburquerque (2007), Cordeiro, R. (2007),
Almeida (2010), Cordeiro (2007) y Siliprandi (2009). Los estudios foca-
lizados en el norte y el nordeste son apenas perceptibles en el conjunto
de la producción bibliográfica existente.
Entre los temas referidos se encuentran: la división sexual del tra-
bajo, la Reforma Agraria y el acceso a la tierra, con especial atención
a los asentamientos rurales y la agricultura familiar. Otros tienen que
ver con el posicionamiento de la mujer como sujeto político, referidos a
la economía solidaria, su participación en los movimientos sociales, el
empoderamiento de las mujeres, la construcción de nuevas identidades
como productoras rurales y el análisis del discurso de los movimientos
sociales, etc. Se destacaron, particularmente, los estudios sobre violen-
cia, sobre la condición y posición de las mujeres rurales, identidades,
género y generación, el papel de las políticas públicas, la generación de
renda, agregación de valor a las productos primarios entre otros.
En los últimos años, adquieren relevancia los estudios que relacio-
nan género, medio ambiente, el papel de las mujeres en la agroecolo-
gía, estudios sobre las mujeres y la economía solidaria. Dichos estudios
crecen bajo el influjo de los movimientos sociales, las organizaciones
feministas y el interés académico.
El objetivo propuesto es comprender las experiencias colectivas de
las mujeres rurales como expresión de resistencia al modelo dominante
en lo productivo, en lo cotidiano familiar de las relaciones de género y
el impacto que estas relaciones producen en sus vidas como mujeres.

Metodología

Para entender las desigualdades existentes en la condición y


posición de las mujeres, y las fisuras que producen las prácticas que
desenvuelven, nos auxiliamos de la categoría analítica género aporta-

110
da por el feminismo, incorporando al análisis la perspectiva Género,
Medio Ambiente y Desarrollo. Se tiene en cuenta las dinámicas de las
desigualdades sociales como factores determinantes en el deterioro
de los recursos naturales, considerando la multiplicidad de media-
ciones socioculturales que permean la relación sociedad-naturaleza,
pues estas relaciones dependen de complejos conjuntos de mediacio-
nes sociales, económicas, culturales y políticas que operan a diferen-
tes niveles, desde la unidad doméstica, la comunidad, y el territorio,
para los que hay tener en cuenta los múltiples factores de diferencia-
ción social.
Para comprender dichas mediaciones y relaciones es imprescin-
dible identificar cómo las mujeres se relacionan con el uso, manejo
y control de recursos naturales. Los conocimientos que las mujeres
tienen sobre las potencialidades de la floresta amazónica y sus habi-
lidades para producir valor agregado sobre productos naturales solo
existentes en este espacio, sumado a la búsqueda de articulaciones en
el espacio y fuera de él, perfilan nuevas formas de relaciones socia-
les apoyadas en la solidaridad e interacción social. Tareas y respon-
sabilidades las empoderan socialmente. Un poder que emana desde
abajo, que es ejercido por ellas desde su cotidianeidad, construyendo
sus propias resistencias. En este sentido, nos remitimos a Foucault
(2001), para comprender que poder y resistencia son procesos que
mutuamente implicados, constituyen relaciones entre sujetos de for-
ma dispar y heterogénea, en constante transformación, una microfí-
sica, de micropoderes que atiende a los individuos -en la concreción
de sus cuerpos- penetra en lo cotidiano y lo disemina en toda la es-
tructura social.
Siguiendo a este autor, entendemos que toda relación de poder
posibilita acciones de resistencia como prácticas que fragmentan el
poder e introducen modos de existencia alternativos, no dados, en
el campo de las luchas contra la sumisión de la subjetividad (FOU-
CAULT, 1995). Las resistencias no son exteriores, sino engendradas
dentro de las propias tramas, donde el poder transita por los indi-
viduos (FOUCAULT, 1999). Para Foucault, saber y poder están es-

111
trechamente relacionados. El saber tiene carácter político, porque su
génesis está en las relaciones de poder, implicándose mutuamente.
En este sentido, saberes y poderes se reúnen en las mujeres tanto en
la atención y cuidado en actividades de la reproducción, como en la
agregación de valor a productos naturales de la floresta amazónica.
Ellas hacen emerger, hacia lo público un conocimiento sumergido en
la red de relaciones sociales de las comunidades, y ese saber que se
solidifica genera poder, en la misma medida que reconstruyen una re-
lación distinta, no esencialista con la naturaleza. “El poder debe ser
analizado como algo que circula, o mejor, como algo que solamen-
te funciona en cadena. Nunca está localizado aquí o allá, nunca está
en las manos de algunos, nunca es apropiado como una riqueza o un
bien”. (FOUCAULT, 2004 p. 183-184).
En la perspectiva foucaultiana, las relaciones de poder, generan
siempre posibilidades de resistencia, de estrategias, de fugas que invier-
ten la situación del sujeto. La experiencia vivida por las mujeres en lo
cotidiano, las estrategias que en este sentido diseñan en la apropiación
y uso del territorio, crean relaciones que resignifican las prácticas socio
productivas apoyadas en principios de la agroecología o en los valo-
res de la Economía Solidaria, como un posicionamiento emancipatorio
frente al “asujetamiento” al modelo agropecuario dominante. En este
resistir, se construyen nuevas subjetividades, nuevas formas de existir
como sujetos colectivos.
Entender lo rural significa incorporar el uso del espacio y del te-
rritorio como conceptos. Para Bernardo Fernandes (2005), “el territo-
rio es el espacio apropiado por una determinada relación social que
lo produce y lo mantiene a partir de una forma poder”. Teniendo en
cuenta su carácter multidimensional, se usará su dimensión econó-
mica para valorar las capacidades de las mujeres rurales en el espacio
estudiado para innovar en productos, diversificar las fuentes de renta a
partir de la gestión de los recursos naturales de sus lotes, generar opor-
tunidades de trabajo colectivo que articulan a las mujeres del asenta-
miento agroextractivista; también, desde su dimensión sociocultural,
se refiere a un proceso de reapropiación del territorio a partir de la in-

112
clusión social, los valores de solidaridad y saberes históricamente acu-
mulados en la memoria colectiva. Será utilizado, además, desde una
dimensión ambiental, en tanto las mujeres resisten a la hegemonía del
modelo pecuario depredador de la floresta y a los intereses de los trafi-
cantes de madera. Es a escala local y familiar que la gestión ambiental
de la floresta sostendrá su emprendimiento. La dimensión política del
territorio permitirá visibilizar las relaciones de poder sobre el espacio
del asentamiento, inherentes al tejido social. Dimensiones analizadas
por Haesbaert (1997).
Las perspectivas seguidas por Raffestin (1993) y Saquet (2003)
permiten analizar procesos construidos socialmente sobre un espacio
apropiado, donde se articulan relaciones de poder y sus respectivas re-
sistencias que actuarán como “micropoderes”. Así también para la com-
prensión de procesos de desterritorialización y reterritorialización, la
interacción de los agentes sociales y económicos, entre ellos las mujeres,
que desde estrategias de resistencias modifican las estructuras de do-
minación a nivel micro reterritorializando el espacio desde lo social,
económico y cultural.
Las prácticas sociales por ellas desarrolladas pueden ser conside-
radas como de apropiación y construcción del territorio. Este proceso,
definido por Fernandes (1999) como de “territorialización de la lucha
por tierra”, se materializa a nivel territorial en el crecimiento exponen-
cial del número de asentamiento, campamentos y ocupaciones2. Este
proceso de ninguna manera es lineal, pues las condiciones diversas,
el acceso o no a políticas públicas, la lentitud jurídica, los obstáculos
en la comercialización, entre otras, hacen que, en determinadas condi-

2
Entre 1987 e 2007, fueron creados unos 169 proyectos de asentamiento en los mu-
nicipios del Territorio del Sudeste Paraense, representando 1.205.254,0 habitantes,
o unos 32,4% de la superfície total (Ver Michelotti F. Luta pela Terra e Assenta-
mentos no Sudeste do Pará). Ate31 de agosto de 2014, o maior número de projetos
de assentamentos, totalizando 502 e envolvendo em torno de 83.952 mil famílias
nessas áreas (INCRA, 2014). Hasta el 31 de agosto de 2014, encontramos el mayor
número de proyectos de asentamientos, un total de 502, envolviendo alrededor de
83.952 mil familias en esas áreas.

113
ciones, el acto de obtención de la tierra no signifique en sí misma una
estabilidad en el espacio.
El acceso a la tierra se abre paso por la presión de los movimien-
tos sociales organizados, porque la existencia de dispositivos legales
por sí solos, no logran la realización de la ansiada Reforma Agraria.
Con ello se coloca la lucha por la tierra a través de los campamentos,
ocupaciones y la construcción de asentamientos en el sudeste del Pará,
como la expresión más profunda de lucha y resistencia a las relaciones
de poder.
La información de campo se apoyó en entrevistas no estructura-
das, donde las protagonistas realizan un recorrido por sus vidas, en
las que se destaca el momento actual y las motivaciones que llevan a
las mujeres al diseño colectivo de estrategias como la conformación
del grupo productivo, ellas pasan revista a su historia de vida, la me-
moria sobre la movilidad espacial constante (forzada o voluntaria),
de los puntos de llegada y los puntos de partida, de las violencias
sufridas, de su poca o ninguna posibilidad de acceso a la escolariza-
ción; las angustias y sueños por el acceso a la tierra o las decisiones
tomadas. La diversidad de temáticas relacionadas a la salud, al medio
ambiente y a su posición y condición como mujeres no solo permiten
comprender sus experiencias individuales y colectivas, sino también
constituyen la ventana a través de la cual como investigadora puedo
dialogar con la sociedad mayor, con la complejidad territorial del su-
deste de Pará.
Se realizaron, además, entrevistas grupales en los propios espacios
de trabajo dejando libertad de expresión, interviniendo apenas en la
orientación del debate en torno a un eje central y facilitando interacción
y la posibilidad de que todas las voces fueran escuchadas.

Microcontexto estudiado

El grupo productivo de mujeres, objeto de la investigación, son


agricultoras del asentamiento agroextractivista Praialta de piranheira,
cuya ubicación geográfica está contenida en la figura 01.

114
Figura 1: PA Agroextrativista del município Nova Ipixuna3 – PA.

Fonte: Tomada de: Souza Araujo. “REFORMA AGRÁRIA E SUSTENTABILI-


DADE: Impactos de 16 anos de criação do PAE Praialta Piranheira na busca de
agroecossistemas sustentáveis, no município de Nova Ipixuna, Pará”.

Entre los estudios realizados sobre el asentamiento están el de Ri-


beiro (2005), enfocado a las contradicciones de sociales en el proceso
de creación del asentamiento; el de Almeida (2008), estudio antropo-
lógico sobre la movilidad espacial y la condición campesina de quienes
hoy componen el asentamiento. Por otra parte, la investigación reali-

3
Sobre el município Nova Ipixuna puede consultarse “Plano diretor do município
de Nova Ipixuna, 2006. También www.IBGE.br. y www.associaçaodosmunicipio-
sdoAraguaTocantins. Ver también: www. http://cidades.ibge.gov.br/ consultado 18
abril 2016.

115
zada por Cruz, W., Feitosa L. et al (2009), constituye una tipificación
de un Grupo de Agricultores Familiares del Proyecto de Asentamiento
Agroextrativista Praialta-Piranheira (PAE), en especial de aquellos que
residen en las márgenes del Rio Tocantins y el más reciente realizado
por De Souza (2015), dirigido a la evaluación de la sustentabilidad am-
biental de los socioagroecosistemas. Todos ellos son importantes ante-
cedentes de la investigación realizada. Sin embargo, las mujeres quedan
diluidas en otras categorías como agricultores familiares, campesinos
o poseros, reproduciendo la perspectiva seguida sobre lo rural por los
estudios tradicionales.
Si bien el Proyecto de Asentamiento Agroextractivista fue diseña-
do para la articulación de las actividades extractivistas con actividades
agrícolas y pecuarias, la asunción del modelo productivo hegemónico
por cada vez mayor número de productores pone en peligro la soste-
nibilidad de los agroecosistemas y también la actividad económica del
Grupo de Mujeres objeto de estudio. La pecuaria se convirtió en la prin-
cipal estrategia productiva diseñada por las familias, por ser la única
actividad que goza de estímulos crediticios, tiene mercado seguro, y
constituye una fuente de ingreso y ahorro que da estabilidad a la familia.
Las observaciones y entrevistas realizadas mostraron que más del
75% de los agricultores tienen la pecuaria como principal actividad
productiva. Pocos lotes, combinan pesca, con agricultura de subsisten-
cia y actividades extractivistas de la castanha y cupuaçu. Por el ais-
lamiento, la principal vía de comercialización realizada es la venta a
intermediarios de la mayor parte de los productos sobre todo los de
carácter extractivista.
El desmatamiento por actividades lucrativas de traficantes de ma-
dera ha sido práctica continua, originando no pocos conflictos que lle-
gan hasta el asesinato de quienes defienden la floresta4. Las decisiones
de desarrollar actividades más rentables como la pecuaria para la co-
mercialización de carne y leche, así como el uso de la madera como

4
En 2013 fueron asesinados en una de las estradas del asentamiento Jose Claudio y
María, su cra. Lideranzas ambientales.

116
combustible doméstico y para la producción de carbón ejercen una se-
vera presión sobre la floresta.
Se agrega la rapacidad de la minería desarrollada por la empresa
Vale que constituye la principal amenaza al potencial extractivo de los
bosques amazónicos en el sur y sudeste del Pará. Comprometiendo la
salud de la población que lo habita debido al impacto negativo que la
mayoría de las actividades económicas que allí se desarrollan ejercen
sobre la población, de manera general, y sobre trabajadoras y trabajado-
res, en lo particular.

El Grupo de trabajadoras Artesanales Extractivistas. Entre el poder


y la resistencia

Este apartado resulta del trabajo de campo realizado, interrogando


y revisitando las bases epistemológicas que permiten una mejor com-
prensión de la realidad. Fue desde los múltiples recorridos, las observa-
ciones de las prácticas cotidianas de las mujeres y desde sus narrativas
que pudimos develar la realidad colocada ante nuestros ojos.
Con trayectorias de vida marcadas por la pobreza, la marginalidad
y la exclusión social un grupo de mujeres diseña estrategias de resisten-
cia desde donde se recrea el enfrentamiento al modelo pecuario pro-
mocionado por los patrones de desarrollo en el territorio. Comprender
ese proceso era mi motivación principal. Realizarlo desde las narrativas
generadas por las propias mujeres daba la posibilidad de la escucha del
drama histórico de una vida en movimiento, de llegadas y salidas, de
violencias, de enfermedades y de muertes, de la escaza escolarización,
de empleos precarios, de la pobreza y la vulnerabilidad5; pero también

5
“Impressionava-nos essa dupla e inquieta mobilidade sem fim dos migrantes, tan-
to no espaço brasileiro quanto na sua trajetória profissional, no afan de sobrevi-
vência, sua precária saúde, os pedaços marginais de terra que os latifundiários e os
poderes públicos reservavam para aquela gente tida como analfabeta, cronicamente
nómade, desprovida de experiência de gestão agrícola, sem ambição de lucro…… “
(HEBETTE, Jean. Cruzando fronteira. 30 anos de estudo do campesinato na Ama-
zônia. Volumen III. Editora Universitaria, UFPA, Belém, 2004) (notas del prefacio)

117
de sus conquistas, de defensa de la floresta, de sus huertos, de sus dichas
en el trabajo colectivo y de los reconocimientos conquistados.
Las actividades tradicionales que desenvuelven están relacionadas
con el cuidado del entorno en que se envuelven sus tareas cotidianas.
Desde pequeñas, ellas se relacionaron directamente con la gestión del
agua, de plantas medicinales, de la leña como combustible, con el cui-
dado de animales domésticos. Todas estas actividades sirven de cúmu-
lo a saberes sobre el medio ambiente y sobre los bienes que vienen de
la floresta.
En el asentamiento se percibe una división de espacios según sexo,
el trabajo con la pecuaria (ganado de corte y leche) es un trabajo mas-
culino, así como la pesca y manejo de canoas. Las mujeres dominan
el espacio más cercano a la casa, la atención a animales domésticos, el
huerto, el cuidado de plantas medicinales, etc. El espacio de cuidado
y reproducción de la vida es un espacio por excelencia femenino. Las
mujeres del grupo “Grupo de Trabalhadoras Artesanais Extrativistas –
GTAE”, tienen un papel importante en la gestión ambiental de las pocas
áreas boscosas en sus lotes. Ellas son catadoras de castañas, andiroba,
procesadoras del açaí, entre otras.
Los tiempos en las trayectorias de vida de hombres y mujeres en el
espacio estudiado se divide en un antes y un después del asentamiento
agroextractivista. Un antes más vinculado a la economía de subsisten-
cia ligado a la pesca, o a la pequeña rosa, algunos de ellos como pose-
ros, o como trabajadores temporales, en el campo o ciudad. El tiempo
presente está más relacionado a las dinámicas del mercado, incluido el
subterráneo, dominado por traficantes de madera o la venta a interme-
diarios, la fabricación de carbón, la venta de pescado. También para las
mujeres, las nuevas prácticas socioproductivas introducen otro sentido
al antes y al después, pues incluye el lucro a partir de sus saberes, sin que
la producción para la subsistencia u otras relacionadas a la tradición
de la unidad doméstica hayan perdido sentido, viejas y nuevas prácticas
se complementan.
Entre las actividades económicas generadoras de renta familiar es-
tán la pecuaria con carne y leche (tener ganado significa tener un ahorro

118
para eventos imprevistos), venta de “farinha” de mandioca, frutales del
extractivismo, pescado, otras en menor cantidades por el control am-
biental como carbón y madera. Se agrega los cosméticos y artesanías
exclusivamente producidas por el grupo de mujeres, como forma para
generar renta.

¿Cuál es el perfil de las mujeres entrevistadas?

Conforman un grupo heterogéneo, entre 19 y más de 60 años, ne-


gras y mestizas, llegadas de todas partes, dos no escolarizadas y una
universitaria, unas realizan estudios tecnológicos y otras tres tienen la
cuarta serie de la enseñanza fundamental. El ingreso familiar no supera
dos salarios mínimos, como promedio tienen unos cuatro hijos/as, aun-
que una de ellas tiene 16.
“El grupo nació de la lucha” esa fueron las primeras palabras de su
coordinadora. Fue un proceso que se gestó desde el año 2006, ancla-
do en los saberes tradicionales sobre la práctica de agregar valor a pro-
ductos extraídos de la floresta. La economía de subsistencia durante los
primeros tiempos en el asentamiento era insuficiente para el manteni-
miento de las familias, eso hace que una parte de los miembros decidan
generar otras formas de ingresos dentro y fuera del asentamiento.
La iniciativa de las mujeres contó apoyo de la Comisión Pastoral de
la tierra, el Sindicato de Trabajadores Rurales y de la UFPA cuya contri-
bución fue fundamental en la gestación del proyecto6, en la capacitación,
en la investigación, y evaluación de las producciones, testando la calidad
del óleo de andiroba. El diagnóstico participativo con las 15 mujeres
que inicialmente conformaron el grupo, mostró saberes, intereses y el
descubrimiento de potencialidades, en conocimientos tradicionales y
en los recursos con los que contaba cada lote. Luego de varias capacita-

6
Con el financiamiento obtenido se construyó la casa del grupo, el laboratorio, la
compra de productos para embalaje. También han sido importantes las donaciones
financieras recibidas y que el colectivo decide cómo y en qué invertir para ampliar
o diversificar las producciones. Para el grupo la universidad es una importante par-
cera, al igual que la Comisión Pastoral de la Tierra.

119
ciones, las mujeres determinaron que anclarían sus producciones sobre
los recursos forestales7 de sus lotes, teniendo como pilar los derivados
del fruto andiroba como aceites, cremas, jabones, repelentes, champú,
gel, pomadas, entre otros. Esta decisión colectiva enfrentaría a las muje-
res directa e indirectamente al marcado interés por la pecuaria presente
en cada unidad doméstica, que, además, es promocionado oficialmente
por los créditos bancarios a los traficantes de madera y a los fabricantes
de carbón, muchas veces sus propios esposos.
Si bien, cada mujer recolecta en su lote y produce el aceite de for-
ma individual, luego aportan en cantidades iguales y se produce y co-
mercializa de forma colectiva. Luego de las ventas se decide también en
colectivo qué cantidad se distribuye y cual queda en el fondo de inver-
siones. Fue la capacitación lo que les permitió introducir cambios en la
tecnología para mejorar su calidad, conocer de los principios de la eco-
nomía solidaria y tomar conciencia sobre la preservación de la floresta.
Ellas aprovechan todos los espacios posibles para comercializar y
exponer sus productos en eventos, en marchas, en los espacios del sin-
dicato, también por encomiendas, en espacios de la Feria en Marabá y
de casa en casa.
Durante el trabajo de campo entrevisté a todas las mujeres del gru-
po, participé de su cotidiano familiar y del trabajo colectivo realizado
durante la producción. Cada una de sus narrativas marcan los sufri-
mientos de una vida en movimiento, las pérdidas, los miedos, la violen-
cia, pero también las alegrías, el trabajo en sus huertas donde producen
los condimentos de la cocina familiar, el cuidado y mantenimiento de
la floresta y los no pocos desafíos que hoy enfrentan. Todas hacen refe-
rencia a las amenazas de muerte y al asesinato de María8 (primera coor-

7
Si bien la castanha, el açai y la andiroba, son los más importantes recursos con
que trabaja el grupo. También lo hacen con buriti, cacau-da-mata, cupuaçu, jatobá,
maçaranduba, entre otros.
8
Luego de asesinato de María do Espiritu Santo Silva y de su esposo el grupo sintió
un reflujo, hubo un impase, reduciéndose su número a ocho mujeres. El hecho se
convirtió en el acontecimiento que marca toda narrativa e imprime sentidos di-
ferentes al ahora. Pero ella se convirtió en un símbolo de lucha ambientalista en

120
dinadora del grupo), a las presiones que se ciernen sobre el grupo de
mujeres como defensoras del medio ambiente, esas presiones están en
sus propias casas y a escala local, es una presión del modelo pecuarista
dominante. Una de ellas comenta:

Las presiones de los hacenderos son moneda corriente,


es angustiante guardar silencio, pero es mejor seguir.
El hacendero que mandó a matar compró tres lotes
del asentamiento... todo el tiempo recibimos presio-
nes de los hacenderos y todo el tiempo recibimos pre-
siones cuando se compran lotes.... (Coordinadora, 09
sept/2015).

Al interrogar sobre los desafíos a la sostenibilidad del grupo


dado el avance de la desforestación, ella explicó: “Los mismos due-
ños están deforestando. El mayor agravante es la carbonería... La
floresta está disminuyendo, se está sustituyendo a la floresta por
capín, nosotros no aceptamos eso..., pero los créditos estimulan la
cría de ganado”
Una de las cuestiones más discutidas a nivel de grupo era cómo
preservar la floresta, si esta es económicamente sustentable. Se dis-
cutía sobre la posibilidad de hacer viveros de andiroba, cupuaçu,
ipé, açai, castanha, de articular acciones con la escuela. Muchas de
las mujeres muestran que la resistencia comienza en casa ante las
decisiones de los maridos de sustituir la floresta por pasto para el
ganado. Una mujer de 60 años, llegada de Marañón en 1975, madre
de 16 hijos, confiesa que aprendió a leer y a escribir hace muy poco
tiempo y cuenta que sentía la agonía de no saber firmar un docu-
mento. Ahora, logró un espacio completo para andiroba, luego de
discusiones en la familia dice: “del 80% de floresta cubierta que te-
níamos, hoy nos queda solo un 20%, esto es un desastre para los que

defensa de la amazonia “…mina relação com a floresta me completa” tal era su


identidad camponesa relacionada al espacio del asentamiento que convirtió en su
espacio de lucha contra traficantes de madera y latifundistas.

121
vivimos de esto”. Una de mis entrevistadas se refirió al significado
de la participación en un grupo productivo. Para esta, cuyo nombre
simulado es Doña Né, significa:

El grupo es confianza, va más allá del dinero que repar-


timos, tenemos que tener un fondo que nos sirva de
garantía. Aun cuando algún mes fue posible repartir,
después de discutir qué hacer, qué materiales nos falta-
ban, qué materiales precisábamos para trabajar.

Otras hablaron de lo importante de la capacitación9, de compartir


conocimientos, de la confianza, de las conversaciones en grupo que
disipan las tensiones familiares, de salir de casa, de participar en la
Marcha de Las Margaritas en Brasilia y sin interrogar sobre posturas
agroecológicas o de los principios de la economía solidaria, las prácti-
cas cotidianas de trabajo y relacionamiento solidario de estas mujeres
son muy coincidentes con lo que se viene sistematizando sobre el tema
en la literatura especializada. Para la coordinadora la Marcha de las
Margaritas fue importante por “La discusión sobre la cuestión de la
tierra, las políticas públicas, moradias. La participación de nosotras,
las mujeres en la marcha fue muy importante, esa es la mayor marcha
de América Latina, expusimos nuestros productos, e incluso vendi-
mos y repartimos entre nosotras…”

9
En la capacitación aprendimos a hacer jabones, jabón líquido y en barra, hidra-
tantes para la piel, repelentes, shampoo y acondicionador, pomadas, trabajar con
açaí. Dios nos dejó la andiroba. Mantener el grupo es mantener el respeto a Doña
María. Hasta el día de hoy no tenemos cuenta corriente ni CNJO. Tenemos que re-
gistrar nuestro grupo Ahora es muy difícil. Nuestros productos son muy conocidos
gracias a Dios. En cada reunión hablamos de la situación de desmantelamiento, es
una lucha muy difícil, ellos nos tienen rabia, piensan que es cosa del sindicato. En
1994 teníamos mucha andiroba, muchos mataderos han traficado mucha madera.
No conocíamos la importancia de la andiroba” (del habla de Antonia)

122
Productos que tradicionalmente fabrican las mujeres en sus casas.
Oleo de andiroba10 y jabón

La formación del grupo permite el compartir conocimientos tras-


mitidos de generación en generación.

Aprendí a hacer el jabón en polvo con mi madre. De


esta forma hoy les enseñé a las mujeres del grupo y
a los muchachos a calcula. La gente ahora mucho con
mi jabón, así ellos hacen las cuentas en un papel y en la
escuela. Allí descubrieron que gasto siete reales en casa
producto que da una ganancia de cuarenta a cincuenta
reales. Hasta la profesora me pidió la receta. (Antonia11).

Luego de las capacitaciones, ellas aplicaron una nueva tecnología


para la producción de óleo de andiroba que eleva la calidad, haciéndolo
más transparente. Considerando este, un proceso de experimentación
compartida con las otras mujeres del grupo, entre un ir y venir entre los
viejos y los nuevos saberes que refieren el antes y el después.

la experiencia con el óleo es una práctica que conocí


siendo una niña porque mi madre extraía el óleo de and-
iroba y babaçú. Desde 2006 cuando comencé a extraer el
óleo, fui observando cómo podría usar algunos cambios

10
Los conocimientos que sobre la andiroba tienen las mujeres que viven en la ama-
zonia data de hace más de un siglo. Ellos han sido trasmitidos de generación en
generación, e madres a hijas. Ellas difunden sus propiedades medicinales. Ha sido
utilizado como cicatrizante, para combatir la gripe, dolores de cabeza, oído y es-
tómago. Usada contra garrapatas y piojos, en el tratamiento de picadas de cobras,
arañas, escorpiones e insectos. Además de su uso como repelente, se usa en la
generación de energía, biodiesel, producción de velas. Más reciente en el tiempo
se ha difundido su uso en la fabricación de cosméticos como jabones y cremas
hidratantes.
11
Hija de asentados cuando tenía 8 años sus padres adquirieron la tierra. Padre de
Maranhao y madre cearence. Ella misma agricultora. Formó parte del GTAE desde
sus inicios.

123
con base en el proceso de aprendizaje que vivencié con
mi madre” (coordinadora del grupo, 10/09/2015).

A pesar de la baja escolarización de las mujeres que conforman el


grupo, ellas son capaces de llevar cuentas y colocar con exactitud los
rótulos a los productos como medio de identificación de los fitocosme-
ticos y fitoterápicos. Dona Dalvina, cuando se desarrolló la actividad de
colocar los rótulos en los produtos, dice “miren la importacia de esto
(el rótulo), para la fecha de vencimiento, así las personas van a tener
certeza de que nuestros productos son frescos e van a saber de qué están
hechos” comenta la coordenadora del grupo.
Si bien la participación en un grupo productivo es importante para
las mujeres, ellas enfrentan las dificultades de una doble y, a veces, una
triple jornada “Hacer de todo al mismo tiempo, lavar ropa, cocinar, tra-
bajar en la huerta, cuidar los óleos, madrugar para dejar el almuerzo
listo para mi marido y así poder participar del GTAE, porque él siempre
está trabajando” (Marilene). Otras resaltan las distancias a caminar para
participar de las reuniones del grupo, al no disponer de transporte.
Para Dalvina, mujer negra, de más de 50 años la participación en el
grupo resignifica su vida:

Para mí es importante porque el pueblo nos valora y


nuestros hijos también.... Me siento valorizada porque
participo de las reuniones, ocupo un espacio en la socie-
dad, soy valorada por mi marido porque lo ayudo y él me
ayuda. Antes las mujeres no podíamos hablar, no tenía
voz, hoy la cosa está mejorando para nosotras, las mu-
jeres... Participo del GTAE, que para mí es muy impor-
tante, en el aprendí mucho, porque tengo a mis compa-
ñeras, y también aprovecho la floresta. El dinero es para
ayudar a compara comida, por esto he ayudado mucho
en el aumento de la renda de la familia...

Otra de mis entrevistadas fue Antonia, quien trabaja en sindicato


municipal y sigue participando del grupo, aunque se vio obligada a ven-

124
der su parte en el lote para escapar de la violencia a que era sometida por
su marido y emigró a la cabecera del municipio. Para ella el grupo “Sig-
nificó un importante avance para mí, que me mostró la organización
y la solidaridad que nosotras que nos cambió como mujeres, que nos
permitió soñar, que nos permitió hablar... todavía tenemos mucho por
conquistar, necesitamos el apoyo de políticas públicas” (19, nov, 2015).
En esta y otras narrativas se observa que se habla en plural, de “noso-
tras” las mujeres, como identidad social construida en la solidaridad de
las prácticas cotidianas, dada a partir de un sentido colectivo de perte-
nencia donde la subjetividad hace dejación del “Yo” para transformarse
en “Nosotras”. Ella también valora que “Los principales desafíos son la
falta de organización, la necesidad de la conformación de un grupo, de
apoyo externo y los caminos que dificultan la comercialización”. Esta
entrevista muestra que las relaciones establecidas en el grupo van más
allá de los contemplados para la obtención de renta, tiene carácter polí-
tico al transformar a las mujeres en sujetos de sus propias vidas, mujeres
que, según sus narrativas fueron pisadas primero por el padre y luego
por el marido, y ahora se sienten valorizadas. Ellas construyen a partir
del cuidado de los recursos forestales y de sus propias huertas una nueva
aptitud, una nueva forma de relacionarse con el ambiente, entre ellas y
las demás personas. Lo que reconfigura sus propias trayectorias de vida.
Este grupo de mujeres, algunas de ellas sin saber que están hacien-
do economía solidaria, reconocen el significado del grupo en su valora-
ción como mujeres. El grupo les da fuerza para enfrentar lo cotidiano
familiar y la vida en el entorno.
A pesar de las dificultades que aún confrontan, ellas cuentan con
un espacio colectivo como patrimonio, que no solo es lugar de produc-
ción, de reunión, de toma de decisiones colectivas, también tiene un
valor simbólico como espacio conquistado, como lugar de encuentro, de
formación y de confesiones, de escucha, de risas y de llantos. Allí ellas
se superan a sí mismas, encuentran el alivio y la solidaridad. Allí cons-
truyen su utopía colectiva y discuten sobre plantar los árboles de los que
depende su materia prima, de sus huertos agroecológicos, de cómo ex-
perimentar nuevas producciones, de la necesidad de crecer en número.

125
Las narrativas expresan la situación de las mujeres en un contexto
de desigualdades estructurales, sus vivencias cotidianas, sus dobles jor-
nadas, incluso hasta sus silencios ante la violencia familiar y las negati-
vas que impone aún la dominación patriarcal a su movilidad espacial,
solo conversadas en el espacio del grupo, El grupo es un espacio en que
sus vidas se resignifican, que va más allá de la pequeña renda que obtie-
nen. Se aprecia un proceso de concienciación sobre el mantenimiento
de la floresta. Han planificado tener una reserva de las plantas nativas,
la coordinadora considera que las mujeres tienen conciencia sobre la
preservación de la floresta: “…no tanto, sabemos que tenemos que con-
servar, las mujeres tienen miedo a hablar sobre lo que pasa en los lotes,
acciones de desmatamento y venta de madera. Luego del asesinato de
María y José Claudio el silencio sobre estos temas han aumentado, la
gente tiene miedo…”. En el marco del grupo, se discute y se tiene la pre-
ocupación de mantener la floresta, esto fue planteado en diversos foros,
y son las mujeres quienes presentan mayor preocupación, ellas son las
guardianas de la floresta, lo ven no es solo como una cuestión del pre-
sente, sino del futuro.

A modo de conclusión

El grupo estudiado emerge de dinámicas socioeconómicas y am-


bientales conflictivas y de procesos históricos de resistencia en que se
mueven las relaciones de poder en el sudeste del Pará. Su comprensión
solo fue posible a través del lente que brindan los contextos específicos
seleccionados de toda la realidad social, significativos para el objetivo
de la propuesta.
Las mujeres se apoyan en el uso de los bienes que brinda el bioma
amazónico y, por tanto, están interesadas en su sostenibilidad. El poten-
cial ético y político del emprendimiento se apoya en la solidaridad; la
diversidad de trayectorias de vida marcadas por el movimiento espacial
no fue un obstáculo para articularse en torno a acciones colectivas.
Las mujeres tienen un conocimiento diferenciado, relacionado con
las maneras con que sus prácticas cotidianas las han vinculado histórica-

126
mente al cuidado de la salud y del ambiente, a sus responsabilidades con
la reproducción familiar y a las actividades de producción de alimentos.
Ello tiene su incidencia en las estrategias colectivas de resistencia ante el
control que ejerce el modelo hegemónico capitalista y patriarcal sobre la
tierra, los recursos forestales, entre otros. El grupo estudiado constitu-
ye, además de espacio de generación de renda, espacio de participación
democrática en la gestión, de solidaridad, autonomía y empoderamien-
to. Lo que Boaventura de Sousa ha denominado espacios liberados de
capitalismo dentro del capitalismo12.
El grupo productivo de las mujeres del asentamiento de Praialta de
Piranheira en el municipio Nova Ipixuna se constituye como espacio de
lucha y de resistencia en un tejido social nada favorable a su desarrollo,
dada la confrontación de clases existentes, donde la violencia se estable-
ce como práctica de dominación, tanto en el interior de los hogares por
el ejercicio de la dominación masculina, como en su exterior por lati-
fundistas y traficantes de madera. El espacio colectivo se convierte así,
en un territorio conquistado, un espacio de producción y de sueñosen
que las mujeres reconstruyen sus propias existencias.
La recreación del trabajo familiar que antecede al trabajo colectivo
relacionado a la gestión ambiental de su lote, los cursos recibidos, las de-
cisiones colectivas sobre su aún pequeño patrimonio, los encuentros ex-
ternos que permiten dialogar con otras experiencias se concretan en un
proceso de concientización de los derechos conquistados como mujeres.
El mejor aprovechamiento individual y colectivo de los saberes tra-
dicionales, más los adquiridos en las capacitaciones, se constituyen en
herramientas para problematizar el contexto. Sus actividades favorecen
una postura favorable al medio ambiente, mostrando también una acti-
tud crítica y reivindicativa sobre la cultura patriarcal.
La participación en actividades generadas dentro y fuera del
grupo deviene factores facilitadores del empoderamiento social al

12
Boaventura De Sousa Santos. Las luchas por la igualdad en América Latina: por
un nuevo ciclo constituyente. Curso internacional América Latina: ciudadanía, de-
rechos e igualdad. En www.clacsovirtual.org. Consultado 4 de julio de 2016.

127
transgredirse espacios tradicionales y extender sus relaciones mu-
cho más allá del microespacio familiar y, así, tomar sus propias de-
cisiones sobre la transgresión. La generación de renta y la gestión
colectiva de la producción facilitan el protagonismo, la elevación de
la autoestima y el reconocimiento social de aquellas actividades ge-
neradas por estas mujeres.

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RECONTANDO HISTÓRIAS:
GÊNERO E SUBJETIVIDADES NA LUTA
PELA TERRA NO SUDESTE DO PARÁ

Kecieni Nunes da Silva

Parecem coisas tão pequenas diante de um


objetivo maior – conseguir que todas as pes-
soas tenham acesso à terra. Entretanto, essas
são coisas pequenas para quem? Não são para
quem as vive no cotidiano das relações. [...] a
forma escrita dá aos relatos do dia a dia cores
muito vivas, essas coisas “pequenas” ganham
força, explicação e respeito.

(PEDRO, 2004).

Introdução

Este artigo tem como objetivo responder às perguntas acerca das


experiências que homens e mulheres vivenciam no processo de ocu-
pação e posse da terra, entre elas as que apontam as especificidades de
gênero. Uma vez pensando o gênero como uma categoria de análise,
vislumbrou-se uma possibilidade de outros olhares aos recantos da his-
tória da luta pela terra nesta região.
Dessa forma, algumas histórias de vida apresentadas a seguir mar-
caram as diferenciações de gênero e as experiências dentro do Assenta-
mento Palmares II, localizado no município de Parauapebas, sudeste do
Pará. Este assentamento, organizado pelo MST (Movimento dos Tra-

133
balhadores Rurais Sem Terra) a partir do ano de 1994, possui uma área
de 15,9 mil hectares, onde estão assentadas 517 famílias em lotes de 25
hectares. A vila, espaço urbano do assentamento, fica localizada a 22
quilômetros da sede do município de Parauapebas.
O MST, dentro do quadro dos novos movimentos sociais, tem
mesclado projetos de alcance global com aqueles mais localizados. Para
Scherer-Warren (1996), os “novos” movimentos sociais almejam atuar
no sentido de estabelecer um novo equilíbrio de forças entre Estado e
sociedade civil, bem como no interior da própria sociedade civil, nas
relações de força entre dominantes e dominados, entre subordinantes e
subordinados. Guatarri & Rolnik (1986) apontaram que os novos mo-
vimentos sociais não somente se caracterizam por essas resistências ao
processo geral, mas também pela tentativa de produzir novas subjetivi-
dades singulares. Os indivíduos/sujeitos podem, em alguns momentos,
se submeter aos processos de subjetivação, mas eles também podem se
apropriar, criar e reapropriar outros componentes dessas subjetividades,
produzindo singularidade (SILVA, 2004).
Nesse sentido, é possível, a partir dos estudos de gênero, movimen-
tos sociais e subjetividades, perceber que as lutas, os embates travados
não estão restritos a uma ordem econômica ou política (num sentido
macro), mas também o são entre as diferentes maneiras pelos quais os
indivíduos ou grupos têm a percepção da sua existência. E, partindo
da consideração de que os espaços dos assentamentos em que o MST
propõe as transformações sociais, o Assentamento Palmares II pode ser
pensado como um local que, apesar de estar inserido num projeto de
transformações da sociedade local, vive experiências singulares.
O uso, nos itens a seguir deste texto, das entrevistas como principal
fonte é fundamental, inicialmente por considerar as diversas faces, os
conjuntos de atores e as trajetórias que constituem o sudeste do Pará.
Assim como a análise das relações que os sujeitos da pesquisa construí-
ram a cerca da terra, da família, da região de fronteira e do MST envol-
vem subjetividades que apenas através das suas falas, com as reticências,
supressões e silêncios, podem ser lidas, pois é por meio delas que suas
experiências e seus projetos vêm à tona.

134
As histórias que passarão a ser conhecidas são narrativas que
expressam a luta pela terra. Histórias que traduzem desejos de dias
melhores. São narrativas colhidas no âmbito projeto “Educadoras do
Campo: Gênero e Identidades”1, a partir das quais se escreveu o tra-
balho de conclusão de curso2 do qual este artigo é resultante. Assim,
apresenta-se aqui parte de uma etnografia das experiências que ho-
mens e mulheres vivenciam no processo de ocupação e posse da terra
no sudeste paraense.
No primeiro momento, apresentam-se histórias de mulheres3 e ho-
mens com o intuito de mostrar o quanto sua presença é significativa na
região. São memórias que demonstram os diversos espaços que essas
mulheres e homens transitaram. No segundo momento, é narrado o en-
contro com MST, descrito como uma alternativa para a realização do
sonho da “terra prometida”, que parecia não mais existir. O recurso à
memória permite trabalhar com uma história contada por quem viveu
e vive as experiências da luta pela reforma agrária no sudeste do Pará,
estabelecendo um diálogo com uma história vivida.
Considerando-se a discussão de Pollak (1989: 08), a análise da me-
mória possibilita um olhar nos recantos e nos significados dos não ditos,
pois as lembranças que a constituem “são zelosamente guardadas em
estruturas de comunicações informais e passam despercebidas pela so-

1
Projeto de pesquisa apoiado pelo Programa Integrado de Apoio a Pesquisa, En-
sino e Extensão – Proint/UFPA, coordenado pela Professora Gisela Villacorta, do
curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará, campus de Marabá
(UFPA). As atividades do projeto foram realizadas juntamente com Marinete Sil-
va, Leizamar Araújo e Wellington Sousa, estudantes do curso de Ciências Sociais,
configurando um momento de profícuas discussões e crescimento acadêmico e de
vida, que ocorreu no período de outubro de 2004 a dezembro de 2005.
2
SILVA, Kecieni Nunes da. “Cada lugar aqui eu sinto que tem minha contribuição”
– gênero e subjetividades na luta pela terra no sudeste do Pará: Assentamento Pal-
mares II / Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Trabalho de Conclusão
de Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Colegiado de Ciências Sociais da Uni-
versidade Federal do Pará, Marabá, orientado por Joseline Simone Barreto Trindade.
3
Metodologicamente, decidiu-se usar nomes fictícios para preservar a identidade de
mulheres e homens que falaram sobre suas vidas, seus sonhos, suas frustrações, sobre
os entendimentos e desentendimentos com os/as companheiros/as nas lutas diárias.

135
ciedade englobante”, desnudando experiências de construção de novos
lugares e de novas relações entre os diversos sujeitos que compõem o
cotidiano da luta pela terra.
De acordo com Halbwachs (1990: 66), a memória está apoiada,
de um lado, no passado vivido e, de outro, ela se conserva no grupo.
Possuindo uma relação com o grupo ao qual o indivíduo pertence, é
possível, por meio dessa, então, reconstruir as experiências das lutas e
conquistas até o presente, uma vez que “não somente os fatos, mas as
maneiras de ser e de pensar de outrora se fixam assim, dentro de sua
memória”. As lembranças narradas possibilitam visualizar as diferentes
experiências de mulheres e homens neste espaço da luta pela reforma
agrária no sudeste paraense.

O começo de tudo... ou para falar da vida numa região de fronteira...

Minina, a minha história de vida, é uma


história tão longa, tão, tão cheia de... de idas
e vindas, né!? (SIMONE, assentada).

As histórias que foram ouvidas remetem a uma mobilidade: a bus-


ca de um lugar, um pedaço de terra, para garantir a sobrevivência da
família. As entrevistas mostraram as separações e os reencontros dos
familiares, uma vez que as redes de parentesco possibilitam o contato
com novos lugares e outras possibilidades de vida. São histórias longas,
de maneira que é preciso calma para ouvi-las. Foi assim quando se en-
trevistou Dona Margarida, a primeira afirmativa dela foi “é tanta coisa
que acho que não vai caber [risos]”.
A história de Dona Margarida demonstrou várias dessas caracte-
rísticas, e assim como outras, falou dos lugares que a família construiu.
Quando se iniciou a entrevista, solicitando que ela contasse como foi
sua vida desde o local onde nasceu, Dona Margarida não tinha certeza,
daí perguntou à sua mãe.

[Kecieni –... E, assim, a senhora nasceu onde?...].


Dona Margarida – Eu nasci no Maranhão... Nasci no

136
Maranhão num lugá... Chamado Paiol de estopa.
[Kecieni – Hum! Nossa! Nunca ouvi falar, não.].
Dona Margarida – Num foi, mãe?
Dona Laudelina – Não foi no Paiol de Estopa, não?!
Dona Margarida – E onde foi?
Dona Laudelina – Não, lá era município de Conceição,
perto de um... a estação, fica perto da estação da Con-
ceição.
Dona Margarida – E como era o nome do lugá lá?
Dona Laudelina – Lá num tinha lugá, o lugá quem fez
foi nóis. [Grifo do autor.]
[Risos...].
Dona Margarida – Lá tinha lugá, tinha lugá, sim.
Dona Laudelina – Tinha não, lá num tinha nome. Que
nóis tava inté viajano, quais viajano, lá nóis só passemo
um ano, lá eu tive ela...

Nascida na década de 1960, no Estado do Maranhão, Dona Mar-


garida viveu junto à mãe, aos irmãos, avós, primos e tios, e relatou uma
vida de intensas mudanças entre várias localidades do Maranhão, pas-
sando pelas cidades de Codó, Floresta, Novo Paraíso, seguindo prin-
cipalmente as decisões do avô, sendo que toda a família trabalhava na
roça. Na cidade de Novo Paraíso, residiram por um período maior em
relação às outras localidades, por mais de dez anos, período em que
conheceu o seu Júlio.
As trajetórias do seu Júlio e Dona Margarida4 estão entremea-
das. Ele nasceu no Maranhão, no município de Paulo Ramos, e foi
criado apenas com a mãe, pois o pai separou-se da mãe quando o
menino tinha dez anos. Quando se pediu que contasse a sua história,
ele disse:

4
Foram realizadas entrevistas em dois momentos diferentes (em 20 de novembro
de 2005, foi realizada a entrevista com Dona Margarida; em 19 de dezembro de
2005, com o seu Júlio), sendo que, durante a entrevista com seu Júlio, Dona Marga-
rida estava presente. Ambas foram gravadas e caracterizam-se como entrevistas de
história de vida e temática.

137
Pra começar, eu fui criado sem pai, né?! Meu pai sepa-
rou da minha mãe, aí eu fiquei junto com minha mãe, o
tempo todo, aí ela é uma velha muito batalhadora pela
vida, aí a gente ficou, ficou mermo nessa vida de roça
(JULIO, 2005).

A trajetória da família de seu Júlio, assim como a da família de


Dona Margarida, foi marcada pelas constantes andanças. Sua família
morou em diversas cidades do Estado do Maranhão, até o momento em
que encontrou com Dona Margarida na cidade de Novo Paraíso. Nesta
cidade, de acordo com Dona Margarida, tiveram dois filhos. Ainda des-
se lugar, ela relembrou o tempo de festa e “rezas”, avaliando que poucos
tinham acesso aos estudos e, por essa razão, apenas “levavam a vida
trabalhando nas roças, rezando e tendo filhos”.
Depois, a família mudou para a localidade de Novo Caroço, onde
tiveram mais quatro filhos. Quando moravam num lugarejo do muni-
cípio de São João do Caru, resolveram mudar para o Pará. Os trechos
abaixo descrevem as razões para a vinda da família e como se deu o
processo de migração.

[...] A nossa vinda aqui pro Pará foi bem assim, ela
aqui, a minha irmã, mãe dela ali [Anita] vei, aí passou
uns quatro ano pra cá pro Pará, no Trinta [atual cidade
de Curionópolis], aí ela apareceu lá, ela chamou meu
marido pra vim que tinha garimpo pra ele trabalhá em
garimpo... (MARGARIDA, 2005).
Eu disse: “Mulher, eu vou pro ouro, eu vou caçar ouro”.
Ela falou assim: “Eu não acredito, tu num vai, não”. Eu
falei: “Vou”. Aí, fui i vim, vim cum a irmã dela mais nova
do que ela, aí viemo pra Curionópolis, viemos i chegamo
lá, isso em 86, tive lá já pertim do dia sete de setembro
chegano lá, mais ou menos dia quatro de setembro de 86
fui lá fui garimpar i ela ficô no Maranhão cum os filho
(JÚLIO, 2005).

138
Diante do convite, o seu Júlio resolveu tentar a vida no garim-
po enquanto Dona Margarida ficou com os filhos, a mãe e a avó no
Maranhão. Pouco tempo depois, ela resolveu vir, para ver o marido e
conhecer a cidade, e decidiu que não ficaria sozinha lá no Maranhão.
Assim, com pouco menos de um ano, juntou as malas, os filhos, a
avó e embarcou no trem rumo a Curionópolis. Nesse período, sua
mãe já residia em Curionópolis junto com outra filha. Quando che-
gou à cidade, não encontrou o marido, que havia ido para um garim-
po no atual município de Tucumã (Pará). Grávida de quatro meses,
ficou na casa da irmã, tentando manter contato com o seu Júlio, que
retornou quando ela já estava próxima de ter a filha. Seu Júlio narrou
esse reencontro.

[...] aí, fiquei lutando, incucado cum o garimpo, aí o


garimpo secou, acabou tudo, daí saí pra Tucumã. Quan-
do saí pra Tucumã, fiquei pra lá, trabalhei o quê... uns
cinco meses pra lá, aí chegou a carta dela já chegando
mermo. Janeiro... isso, já de 88, de 87 pra 88, né!? Aí o
rapaz chegou: “Rapaz, deixa eu falar um negócio aqui”.
“Que foi?” “A tua “mulher chegou, tá lá em Curionópo-
lis”. “Conversa, moço”. “Tá, taqui a carta que ela mandou”.
“Tá bom, num tem problema não”. Terminei o barranco,
ainda bem que esse barranco me deu uma grana boa, aí
eu vim, ela já gestante, justamente é de uma menina que
nós tem [...] aí mais nova (JÚLIO, 2005).

As falas apresentam a importância das redes de parentescos nesses


processos de migração e a importância das mulheres nessas decisões.
Seu Júlio encontrou apoio por meio da cunhada e da sogra, e Dona Mar-
garida também se assegurou a estas, que já residiam nesta região. Seu
Júlio, após o retorno a Curionópolis, continuou trabalhando nos garim-
pos mais próximos. Foi quando resolveu ir trabalhar numa fazenda, só
que lá a renda era pequena, mal pagava o que deviam na “casa” de onde
tiravam mercadorias, como explicou Dona Margarida:

139
[...] lá nessa fazenda, passemo dois ano lá nessa fazen-
da trabalhando, oh! trabaio!.., só ele que trabaiava lá, e
eu com os meninos tudo pequeno achei ruim oh! Não,
num vô ficá não! Os menino tudo pequeno e aí o home
pagava pouco demais pra nóis quando recebia o dinheiro
só dava pra despesa, pagá a casa lá, porque nóis ficava
tirando as, tudo coisa pra comê, aí quando ia acertá não
tirava saldo de jeito nenhum, o dinheiro só dava de cu-
brir [...] (MARGARIDA, 2005)

Diante dessa situação descrita pela interlocutora, a família resolveu


procurar outra solução. Foi quando o cunhado de Dona Margarida fez o
convite a seu Júlio para ocuparem um pedaço de terra que ficava próxi-
mo à atual cidade de Eldorado dos Carajás. O relato de Dona Margarida
apresentou este cenário:

Lá tava tendo é invasão de terra, né!? Aí eles foram e já


num arranjaram mais nem a terra do tamanho dos out-
ros, eles já foram por derradeiro, arranjaram só uma
sobrazinha, uma sobra parece que treis alqueire, treis
ou quatro alqueire. A terra lá era pequena... Minha
irmã! tinha um rio, mas lá que dava peixe, quando
dava o inverno a água vinha pertim, os menino pu-
lava dentro daquela águona, achano bom, e eu lavava
roupa, criava pato e criava galinha, e era aquele..., eita
aqui, mas que era bom [risos]. E ele fez um sítio e plan-
tou tudo assim, fez uma abertura, plantou meio mundo
de arroz, muié, mas era bom... Ah! Minha fia! Quando
passou uns tempos, caiu a malária em nóis, começô
(MARGARIDA, 2005).

Com poucos recursos financeiros e afastados do núcleo urbano,


a família saiu da terra para tratamento de saúde e, diante dessas difi-
culdades, todos voltaram a morar em Curionópolis. E, como relatou
Dona Margarida, encontraram outras estratégias para a sobrevivência
da família:

140
O Júlio ficou só trabaiando de fazenda e eu fiquei na rua
trabaiando, com eles assim, já tava tudo grandim, né?!
Uns vendia pão, a mais veia trabaiava nas casas, outros
vendia bolo na escola, eu fazia bolo e botava eles prá
vendê na escola (MARGARIDA, 2005).

Essas estratégias e a partida do lugar de origem em busca de ou-


tras opções de sobrevivência da família não são exclusivas da família de
Dona Margarida. Outras histórias, como as de Olga e Simone, entrevis-
tadas entre julho e dezembro de 2005, mostraram que, além da febre do
ouro, havia a promessa de empregos oriundos da instalação dos grandes
projetos5, como outras possibilidades de sobrevivência durante a década
de 1980 para as pessoas que por ali chegavam.
No ano de 1981, na cidade de Cajari, no Maranhão, nasceu Olga.
Com dois anos de idade, ela passou a viver com os avós enquanto a mãe,
após a separação do marido, veio para a Serra dos Carajás, no Pará, a
fim de trabalhar como doméstica. Aos oito anos de idade, Olga, junta-
mente com os avós, mudou-se para a cidade de São Luís. Aos 11 anos,
mudou-se para Parauapebas com o propósito de morar com sua mãe.
Essa mudança foi difícil para Olga, que até então morava com os avós,
sendo difícil sua adaptação com a nova família, constituída por sua mãe,
com quem não tinha muita vivência, pelo padrasto e a irmã. Olga consi-
derou que foi um pouco complicado, nos anos seguintes nasceram seus
dois irmãos. No ano de 1995, o padrasto, por intermédio de um amigo,
ingressou no acampamento Palmares. E Olga ficou trabalhando na casa
da madrinha do seu irmão para ajudar nas despesas até a conclusão do
ano letivo na escola.
Era também na cidade de Parauapebas que morava a família de Si-
mone, quando resolveram ir para o acampamento do MST. Vale ressal-
tar que os motivos que levaram a mãe de Simone a morar nesta cidade
se cruzam com aqueles descritos por Olga, mas a narrativa de Simone

5
Almeida (1994) trouxe um relato sobre o PGC – Programa Grande Carajás e os
outros projetos impulsionados para a implantação do mesmo, apresentando como
esses acabaram reconfigurando as regiões por eles atingidas.

141
trouxe outros detalhes da vida na fronteira. Filha mais velha de uma
família de oito irmãos, Simone contou que nasceu no ano de 1973, na
cidade de Olho D’ Água das Cunhãs, no Estado do Maranhão. O pai
trabalhava de empreita em fazendas – derrubar matas, plantar pastos,
construir currais, cuidar de gado etc. De acordo com Simone, em fun-
ção da profissão do pai, não se fixaram em nenhum lugar. Dessa forma,
a família do Maranhão morou no Mato Grosso do Sul; e no Estado do
Pará moraram nas cidades de Castanhal e Paragominas. Nesta última
cidade, o pai de Simone deixou a família numa rodoviária quando iriam
mudar para outra cidade, e desapareceu sem deixar notícias, sem dar
direção à mãe de Simone. Dona Luiza, grávida e com os filhos, recebeu
apoio de uma desconhecida e retornou para o Maranhão, onde, duran-
te algum tempo, residiu na cidade de Açailândia. Depois, à procura de
emprego, Dona Luiza se deslocou com os filhos para a cidade de Curio-
nópolis, no Pará, e conseguiu trabalho num hotel próximo à rodoviária,
no qual trabalhava o dia inteiro até a noite, enquanto Simone, com oito
anos, cuidava dos irmãos menores, conforme sua narrativa.

Ela chegava quatro horas do trabalho tinha que fazer


comida [...] Era numa época assim de muita [...] se mui-
to movimento, era na [incompreensível] de Serra Pelada
praticamente, né, e essa idas e vindas [...] era uma época
de muito movimento, e aí ela [...] e próximo à rodoviária
também. Ela chegava quatro horas da manhã e começava
a lavar roupa, quando era, dava sete da manhã, ela tinha
que voltar de novo pro trabalho, né. Trabalhava o dia in-
teiro; quatro da manhã novamente. E assim [...], às vezes
deixava a gente trancado em casa. E aí eu como era a
mais velha era que tomava de conta de todo mundo, né!?
(SIMONE, 2005).

As narrativas expõem as precárias condições de trabalho das mu-


lheres nesses espaços, além da sobrecarga do sustento e cuidado da
família que passou a ser dividida com a filha mais velha, numa clara
condição de gênero, como se pode observar noutra situação em que

142
Dona Luiza começou a trabalhar com uma horta e Simone, a filha mais
velha, era quem ficava cuidando dos irmãos, enquanto a mãe ia tra-
balhar na horta. Assim como na narrativa de Dona Margarida, eram
também as crianças que se encarregavam de vender a produção nos
dias de feiras. Simone contou que, juntamente com o irmão e amigos,
pegavam com outros moradores verduras e frutas para vender. Esse
relato também se fez presente na narrativa de Anita, sobrinha de Dona
Margarida. Além disso, as narrativas muitas vezes falam da infância
numa região de fronteira, das poucas alternativas de brincadeira e do
trabalho para ajudar os pais. Alguns rapazes relembraram o tempo em
que iam para o garimpo acompanhando o pai, dentre outras lembran-
ças. Essas narrativas provocaram curiosidade, estimulando mais um
olhar sobre essa região.
Os relatos acima ainda convergem para a alternativa de sobrevi-
vência relacionada à horticultura, que ainda hoje no assentamento é um
meio de renda para diversas famílias as quais, naquele momento, co-
meçaram a criar estratégias de sobrevivência, longe das promessas de
desenvolvimento dos grandes projetos instalados na região.
Simone ainda relatou mais outro movimento da família, quando fo-
ram morar na cidade de Parauapebas. Ela contou que, enquanto morava
em Curionópolis, a mãe “tinha arrumado um companheiro, que aí “aca-
bou, ela viveu com ele muito tempo, teve uma filha com ele e [...] e não
deu certo, né?!... e não deu certo [...]”. Após a separação, Simone relem-
brou que a mãe estava grávida e vieram para Parauapebas em busca de
melhor acompanhamento médico, pois a gravidez era de risco, gêmeos,
que não sobreviveram. Em Parauapebas, Dona Luiza passou a trabalhar
vendendo comida na beira da rodovia, numa barraquinha de madeira.
Naquele momento é que os filhos começaram a ir à escola.
Após algum tempo em que a família organizou sua morada em Pa-
rauapebas, Simone relatou que tiveram seu casebre demolido por ordem
da administração municipal de Parauapebas. Nesse período, a alterna-
tiva para a família conseguir uma casa onde pudesse morar foi o Bairro
da Paz, parte de uma fazenda ocupada por várias famílias no início dos
anos 1990. Apesar da denominação “bairro da paz”, durante a ocupação,

143
as famílias viveram momentos de terror; no entanto, resistiram brava-
mente às tentativas de expulsão.
Dois anos se passaram. Nesse intervalo de tempo, Dona Luiza teve
contato com militantes do MST, que estavam realizando trabalho de
base na periferia de Parauapebas, e participou do acampamento Rio
Branco, onde foi assentada. Hoje, praticamente toda a família reside
no Assentamento Palmares, com exceção de três irmãos: um que vive
no Maranhão, outro cujo paradeiro Simone disse não saber e o tercei-
ro, que se tornou membro da coordenação do movimento e mora na
cidade de Marabá.
A fundação do Bairro da Paz antecedeu os acampamentos do MST,
demonstrando que as famílias que os constituem já realizavam emba-
tes e tentativas de conquistar um espaço para viver. E marcou outros
relatos, como o de Dona Joselina, que contou com orgulho sobre sua
atuação na criação do Bairro da Paz, na construção da creche para as
crianças, depois arrecadando junto às famílias mais abastadas alimentos
para fazer sopão e distribuir entre as famílias do bairro. Ela também
dava assistência aos moradores, encaminhando-os aos hospitais e far-
mácias. Essas experiências foram acionadas quando Dona Joselina se
tornou uma assentada, pois continuou a realizar esta assistência (MA-
CEDO, 2006: 108).
O contexto narrado acima também apresenta outra característica
da região de fronteira: o crescimento não planejado das cidades. A ci-
dade de Parauapebas está localizada no entorno do núcleo urbano de
Carajás, que foi construído com toda uma estrutura urbanística para
abrigar os funcionários de alto escalão da Vale S.A. Parauapebas foi sen-
do forjada por aqueles que ali chegavam, seja pelas rodovias seja, poste-
riormente, através do trem, e traziam o desejo de conquistar um lugar
onde as promessas de desenvolvimento emergiam. No entanto, se viam
numa luta pela vida que antecedia a luta pela terra. Muitas encontraram
saída como empregadas domésticas na Serra dos Carajás, outras em ho-
téis, outros em fazendas como peões, e ainda aqueles que continuaram
se mobilizando em busca de garimpos. Dessa forma, a região que apa-
rentemente seria o destino de muitos para uma vida melhor, tornou-se

144
lugar para sua exclusão. Foi nesse cenário de diversas desigualdades e
muitos conflitos sociais que se inseriram os movimentos organizados
de luta pela terra, que foi engendrado pelos Sindicatos dos Trabalhado-
res Rurais (STRs) dos municípios, sendo que, posteriormente, essa luta
adquiriu maior espaço com o MST.
Os relatos acima apontam para complexidade dessa região. Neste
primeiro momento, privilegiou-se contar as histórias de mulheres com
intuito de mostrar o quanto sua presença foi/é significativa na região,
desde a Serra Pelada com seus garimpeiros até as rodovias e fazendas
com seus peões. De forma genérica, acaba-se, muitas vezes, por redu-
zir a região aos espaços da mineração e da agropecuária, enquanto as
narrativas aqui apresentadas trouxeram outros detalhes, que compuse-
ram esses espaços de chegada. Assim, existem as histórias de mudanças
(quando a mãe põe os filhos pequenos no trem e vem atrás do marido),
das plantações em áreas de terceiros (hortas, arrendamentos), da vida
nas cidades que vão surgindo, da comercialização da pequena produção
pelos filhos, da venda de comida na beira da rodovia, dentre outras.
São relatos que demonstram ser necessário incluir nas análises sobre o
sudeste do Pará, enquanto uma fronteira, os atores sociais ali presentes,
pois ela não se finda em sua estrutura econômico-produtiva e espacial.
E, embora estes relatos pareçam comuns para muitos, é necessário es-
crevê-los e pensar a riqueza que eles carregam sobre a vida numa região
de fronteira.
As diversas memórias aqui relatadas demonstram os variados espa-
ços pelos quais essas mulheres e esses homens transitaram, informados,
principalmente, por uma luta pela vida que permeia a luta pela terra.
Pensa-se que o ato de relembrar e contar suas histórias de vida, como
um trabalho da memória, possibilita a emergência de experiências vivi-
das que vão sugerindo a construção da identidade de ser um sem-terra
no sudeste do Pará. Isso sinaliza que:

A despeito de variações importantes, encontra-se um


núcleo resistente, um fio condutor, uma espécie de leit-
motiv em cada história de vida. Essas características de

145
todas as histórias de vida sugerem que estas últimas
devem ser consideradas como instrumentos de recon-
strução da identidade, e não apenas como relatos fac-
tuais (POLLAK, 1990: 13).

A memória e identidade estão imbricadas, assim a memória das


lutas contra doenças em terras longínquas, as lembranças dos trabalhos
em terras de terceiros servem para marcar que, mesmo antes da inser-
ção no MST, já eram sem terra e que, a partir do ingresso no movimen-
to, a conquista se tornou possível.

“Como foi que você chegou aqui no Palmares II?”: as escolhas e os


desafios nas histórias da luta pela terra dos/as sem-terra

–“Júlio, bora pros sem-terra!?”


– “Hum! Vou nada, menina. Esse negó-
cio de sem terra num presta não!”.
(Dona Margarida)

Foi no espaço/tempo de conflito, em que ainda se mantinha o so-


nho da partida de ter um lugar para “viver melhor” guardado na me-
mória, que o MST encontrou condições para se constituir enquanto um
movimento junto aos outros que ali já lutavam para alterar o curso da
fronteira. O encontro com o MST foi relatado com o mesmo entusiasmo
e com certa alegria, por ter sido uma boa alternativa para a realização do
sonho da “terra prometida”, que parecia não mais existir.
Quando a militância do MST começou a fazer o trabalho de base
no município de Curionópolis junto aos vizinhos da Dona Margarida,
esta insistiu com o seu esposo para também se cadastrarem:

Aí eu fiquei “Júlio, bora pros sem-terra?” “Vou nada, de


jeito nenhum. Óia lá no sem-terra, aquilo dali é uma
sem-vergonhice, negócio de toma a terra dos outro isso
daí faz é dá é muita morte”, mas já tinha surgido a Rio
Branco e ninguém morreu (MARGARIDA, 2005).

146
Na luta pela terra, Dona Margarida teve sua primeira batalha: con-
vencer o marido de que valia a pena esse sonho, que era possível. A sua
insistência e a resistência de seu Júlio ressaltaram a importância dela
na decisão de ir para a luta. Após um ano, Dona Margarida ouvia as
histórias dos/as vizinhos/as sobre o acampamento, da resistência com a
polícia. Ficava temerosa, mas acreditava que podia ser uma chance de
conseguirem uma terra. Ela, então, assumiu a decisão de lutar pela terra
como uma possibilidade de reprodução da família e, certo dia, no ano
de 1995, quando seu Júlio foi para a fazenda onde trabalhava de emprei-
tada, Dona Margarida falou com filho mais velho:

“Bora vendê um leitão desse, pra mim ir lá nos sem-ter-


ra!”. “Mãe, o pai vai brigá”. Eu digo: “Briga não, besta,
se ele perguntá diga que nóis matou e comeu e ele num
briga não”. “Mãe, a senhora tem coragem de ir?”. Eu digo:
“Eu tenho (MARGARIDA, 2005).

E teve coragem. E foi. O filho vendeu o porco e Dona Margarida, com


os documentos da mãe, pois não tinha nenhum documento dela própria,
se cadastrou, passando a ficar no acampamento durante a semana.

E eu fiquei, minha irmã! Cadastrada com a identidade


dela, e eu fazia bem assim: ele chegava sábado, né?! As-
sim, com 15 dia, ele vinha, aí dava sábado, né?! Aí, eu
pegava, sexta-feira eu chegava, eu ia segunda, aí deixa-
va só esses meninos em casa, muié, e levava só a mais
pequena, eles se cuidava. Eu passava 15 dia, pra completá
os 15 dia que nem amanhã, que nem hoje eu chegava.
É, minha irmã! Eu fiquei nessa luta um tempão sem ele
sabê, um tempão [...] (MARGARIDA, 2005).

Dessa forma, Dona Margarida criou estratégias tanto de se incor-


porar ao acampamento usando o documento de sua mãe, já que ela
mesma não tinha nenhum – e este era um critério para conseguir a terra
–, quanto de contrariar a concepção negativa de seu marido sobre os

147
sem-terra, e ficar durante a semana no acampamento, enquanto o seu
esposo estava trabalhando nas fazendas; portanto, não podia impedi-la
de ir. Quando este retornava no fim de semana, ela já estava em casa,
fazendo com que ele não notasse sua ausência. Nessa condição, ela per-
maneceu durante quase um ano, até convencê-lo de que a luta pela terra
proposta pelo movimento seria uma boa alternativa para a sobrevivên-
cia da família. Convencê-lo não foi muito fácil. Ela contou:

Aí, quando foi um dia, eu falei: “– Júlio, eu me cadastrei


lá no sem terra”. Aí brigou. Eu digo: “Menino! Eu cadas-
trei foi dez reais e num vou..., lá tá bom e o pessoal tá
animado e eu num vou saí não”, “– E eu nunca que vou
pisa lá, pode ficá lá arrumano tua terra pra lá que eu num
vou nada” [...] (MARGARIDA, 2005).

Na lida do acampamento, Dona Margarida se encorajou para desa-


fiar o desequilíbrio de poder na relação com o marido, pois, ao longo do
seu relato, observou-se que ela sempre enfrentou as consequências dos
caminhos do marido, mas este resistia à proposta dela, aos desafios que
ela agora se propunha a afrontar. No entanto, ela se manteve segura de
sua decisão, criando estratégias e argumentos para enfrentá-lo. E como
seu Júlio parecia irredutível, Dona Margarida passou a contar com os
vizinhos, que decidiram conversar com o seu esposo.

Siá lá no local que eu ficava era mais só vizinho lá, eu


falei pra eles... aí ele (vizinho) chegou lá, ele disse: “Ra-
paz, deixe de sê besta que lá num tem isso não, moço, vai
lá rapaz, nóis vamo é recebê é terra e a Margarida vai é
perdê já com um tanto tempo desse, ela vai perdê, mais
rapaz que coisa, não, vai lá, rapaz!” “Não, rapaz, num
vou não que eu num tenho documento, num sei o quê
(MARGARIDA, 2005).

A narrativa de Dona Margarida expôs hierarquias de gênero dos


costumes rurais, e muitas vezes reforçadas pelas políticas públicas de

148
acesso à terra e às organizações de acampamentos, em que a parcela
da terra é destinada ao homem tanto social quanto legalmente. Após
várias conversas dos vizinhos, homens falando de iguais, e a insistência
de Dona Margarida, seu Júlio decidiu ir, e então:

[...] ele fez a identidade, aí fez os outro documento


tudo, aí ele veio, quando ele chegou, ele num queria
vim, aí quando ele veio ele pegou e ficou foi animado
inté mais do que eu, já aí eu que era que já vinha pra
vê ele, que ele nem ia mais lá, ia não. Aí foi bom, eu fui
trabaiá mais os menino e comprá rancho ia deixá pra
ele toda animada.
Eu já tava na vila das baratas, mas nesses outro tempo
atrais era eu sozinha, enfrentei tudo. Veiz em quando
eu digo assim: “Meu fio, essa terra num é tua não, é
minha. Eu que enfrentei a dificuldade toda”, “mais eu
passei fome” eu digo e “eu muito mais”. Tinha que fica,
é... tinha que ficá, 15 dia era quem tinha família, quem
num tinha era só deiz , e eu levei uma sorte grande,
pra mim/ tem hora que eu fico assim pensando... eu
fui a pessoa que mais deu sorte nessa terra, oh! minha
fia! Teve gente aí, que eles expulsava por nada, logo
assim que eles viram que ganharam a terra mermo
por nada eles expulsava, tinha gente que mermo lar-
gava porque quiria, outros eles botava pra vigiá, muié
tudo, eles botava pra vigiá, eles nunca me botaram pra
vigiá, teve uma veiz que/que nem dessa vez do massa-
cre, nóis passemo um mês sem vim pro acampamento
com medo, né?!, e aí eles num falaram nada pra gente/
pra nóis, nóis deu foi muito sorte nessa terra, acho que
era mermo pra nóis ganhá. Aí viemo pra cá, chegue-
mo aqui, fiquemo por aqui, logo que nóis mudemo/
que nois viemo aqui mermo, que nóis já tava aqui, nóis
ainda num tinha ganhado as terra, mais nóis já tava
aqui, aí nóis ganhemo esse lote aqui pra fazê essa casa
(MARGARIDA, 2005).

149
Ao narrar esse momento, Dona Margarida refletiu sobre a mudan-
ça de comportamento do marido, mas ressaltou seu papel fundamental
na conquista da terra, uma vez que ela permaneceu, cotidianamente,
enfrentando vários desafios e, inclusive, descrença dele; portanto, a terra
era muito mais dela do que dele, embora ele pudesse constar como o
beneficiário assentado.
Ainda relatando as agruras da conquista da terra, Dona Margarida
contou que, nesse período em que ganharam o lote, o seu Júlio ficou do-
ente e teve que voltar para Curionópolis, e ela, juntamente com o filho e
o cunhado, conseguiu construir a casa, cobrir com lona, palhas e dividir
com caixas de papelão. Infelizmente, o filho mais velho que a acom-
panhou desde o acampamento cortou os dedos da mão, e ela também
ficou doente por ter sido ferroada por formigas quando pegava palhas e
madeira na mata. Mas, enfim, conseguiram cobrir a casa, e trazer toda a
família que estava em Curionópolis. Os detalhes da construção na fala:

[...] sei que nóis tampemo, aí fiquemo até que ele fi-
cou bom, aí ele ficou bom, ele veio, quando ele chegou:
“Mais menino, cêis estão desse jeito?”, “É e tá muito é
bão”. Aí comecemo, aí disse: “As menina já vão vim, aí
nóis vamo, eu vô arrumá um carro pra trazê nossa mu-
dança”. Eu disse: “Pois é, nóis vamo ficá debaixo desse
nosso barraquim aqui”. Aí, trouxemo os menino tudo,
aí nóis tinha essa casa lá no 30, aí fechemo essa casa lá,
a casinha lá, aí troxemo ela, a mãe [...] Trouxemo todo
mundo, todo mundo pra cá. “Não vai surgi um dinheiro
aí pra fazê as casas”. Aí apareceu um dinheiro e fizemo
essa casinha, num cabemo de fazê, o dinheiro foi pouco,
aí tamo aqui, óh! Mas pra nóis chegá aqui o sofrimento
foi grande, grande mermo, depois nóis aqui as coisa mel-
horou muito, muito mermo, aí nóis tem a nossa rocinha
lá, tem uns gadim, tem minha criação de galinha, nóis
criava muito porco também, mas aí nossos porcos deu...
de o Júlio ficou muito cansativo de lutá, porque nosso
lote é seco, nóis colocá água pro gado, pra porco [...]
(MARGARIDA, 2005).

150
E, então, encerrou sua fala com o sentimento de conquista de uma
vida melhor, de um espaço deles, mas ainda admitindo que havia outras
lutas para garantir a permanência nesse espaço. O registro do seu relato
é fundamental para que vozes silenciadas, por não serem militantes/
lideranças, apresentem os detalhes, as subjetividades presentes e cons-
truídas nesse tempo/espaço de resistência e (re)existência.
Outro relato, que trouxe essas subjetividades da composição do es-
paço de luta pela terra no sudeste paraense, foi apresentado por Márcia
em entrevista realizada em 20 de julho de 2005. Pouco tempo antes de
Dona Margarida se juntar ao acampamento Palmares, Márcia resolveu
visitar a mãe que estava acampada em frente ao Incra (Instituto Nacio-
nal de Colonização e Reforma Agrária), no dia 12 de outubro de 1994.
Era dia de festa, e Márcia se encantou com a alegria e a organização
do acampamento. Sua mãe estava acampada, enquanto o pai trabalhava
nas fazendas, mas Márcia julgava a atitude da mãe como ilusão, e que
precisaria convencê-la de que aquilo não daria muito certo. No entanto,
foi surpreendida com o acolhimento que teve numa assembleia, quando
foi apresentada pela mãe aos demais acampados, e aos poucos acabou se
envolvendo na organização do acampamento. Após quatro meses, tor-
nou-se coordenadora de um grupo. E como disse: “de acampamento em
acampamento, chegamos à terra prometida, aprendi a ser rebelde, pre-
cisava mudar meu jeito autoritário, e enquanto coordenadora precisava
ouvir o que outro diz” (MARCIA, 2005). Após a fixação do acampamen-
to em Parauapebas, foi criada a Escola “Crescendo na Prática”, e Márcia
tornou-se uma educadora, participando do setor de educação. Com o
passar do tempo, tornou-se funcionária da prefeitura de Parauapebas.
Enquanto Dona Margarida tentava convencer seu Júlio de que o
acampamento do MST era uma possibilidade para conseguirem um lu-
gar, uma terra para plantar e morar, Simone tentava convencer a mãe
de que ela também queria ter sua terra e fazer parte do MST, integrar a
militância. Assim começou a história de Simone, ao se envolver na luta
pela terra. Morando com a mãe, que era assentada no PA Rio Branco,
começou a se empolgar ao ver as reuniões da militância que acontecia
em sua casa, pois o irmão fazia parte do grupo que realizou o trabalho

151
de base nos municípios de Parauapebas, Curionópolis e Eldorado dos
Carajá. Então, formaram o acampamento Palmares com a ocupação da
Cinturão Verde, daí Simone resolveu fazer parte do acampamento, mes-
mo contrariando a mãe, que não queria que ela fosse, e ela tinha 20 anos
na época. Insistiu e ingressou na luta. Ela contou:

Aí a primeira atividade que eu participei na minha vida:


“O Grito da Terra Brasil”. E aí eu já me apaixonei assim,
né, e falei assim eu acho que é isso aí que eu vou, vou
fazer na vida (SIMONE, 2005).

A partir dessa experiência, Simone passou a fazer parte do acam-


pamento Palmares, em 1994. Destacou que deixou o filho com a mãe.
Com alguns meses de acampada, foi nomeada coordenadora do núcleo
do qual fazia parte, juntamente com seu namorado, que era coordena-
dor. E, assim, Simone foi pouco a pouco se inserindo na organização
do movimento.
As histórias de Dona Margarida, Márcia e Simone possuem um
ponto comum: o momento da decisão de ir para o acampamento e de
acreditar que era possível adquirir um pedaço de terra, após tanto tem-
po, de um lado para outro, à procura da sobrevivência da família. Esse
fato se aproxima muito dos estudados por Brenneisen (2004), que de-
monstrou, através da análise sobre a constituição do assentamento no
Paraná, que muitas vezes a decisão de ocupar, e a resistência necessária à
conquista da terra, é feita pelas mulheres, e que elas fazem, em sua maio-
ria, pensando em oferecer aos filhos condições mais dignas de vida. O
relato sobre o tempo de acampamento não significa apenas a resistência
contra a estrutura social mais englobante, mas ela está na esfera das re-
lações micro, em que está em jogo o convencimento do parceiro na luta
pela terra, que muitas vezes pode levar ao rompimento das relações.
As trajetórias acima indicam que as mulheres são fundamentais no
processo de luta pela terra. Isso ocorre frequentemente no Brasil todo, a
exemplo da trajetória de mulheres em dois assentamentos no Estado de
São Paulo, analisadas por Silva, M. (2004), apontando que estas mulheres,

152
em determinado momento, romperam com as condições de dominação
e marginalização social que lhes foram impostas. E que, por meio de um
processo de ganho de poder, ao participarem de um acampamento, da
organização de um movimento, contribuem para o desenho dos projetos
de vida de suas famílias, bem como acrescentam novas possibilidades de
mudanças e construção de outros sonhos nunca antes esperados.
E, ainda de acordo com Silva (2004), assim como as atividades do
movimento – ocupação de terras, ida aos órgãos do governo, marcha
dos sem-terra, são manifestações de recusas deste movimento às polí-
ticas do Estado para o campo. As narrativas demonstram uma recusa,
em microespaços, das desigualdades sociais; elas trazem detalhes das
singularidades das experiências de vida de cada um/a, e são importantes
na compreensão do mundo que são os assentamentos.

Considerações finais

Talvez haja quem diga que a luta pela terra no sudeste do Pará seja
feita apenas pelos homens. Após a presente pesquisa, é possível dizer
que essa é uma afirmativa não condizente com a realidade. Não foi pre-
ciso escavar toda a Palmares para serem encontradas histórias em que
mulheres foram protagonistas na escolha de ir à luta pelo pedaço de
terra, e que foram fundamentais nessa luta, acreditaram quando mui-
tos diziam o contrário. Rua & Abramovay (2000), a partir de pesquisa
em assentamentos rurais brasileiros, implantados entre 1995 e 1998,
analisaram as relações sociais de gênero, o que possibilitou visualizar a
presença e a participação das mulheres no processo de conquistas dos
assentamentos.
Foi necessário apenas o desejo de outro olhar, um olhar que perce-
besse outras nuances dessas lutas. Ainda que alguém diga que as mulhe-
res fixadas nesses assentamentos restringem-se apenas à cozinha e não
participam das lutas, as histórias ouvidas levariam qualquer observador
mais atento a perguntar: como se define o que é participar da luta? Por
acaso, quem cuida das crianças, faz a comida, cuida dos porcos e das
galinhas seria insignificante nessas lutas?

153
De acordo com Silva, C. (2004), a efetiva participação das mulheres
nas lutas cotidianas travadas dentro e fora do MST denota questões que
vão além da retórica, pois a todo o momento ela é vivenciada, posta
em prática. As mulheres dimensionam suas devidas contribuições, não
como exceções ou casos isolados, mas como práticas costumeiras. Seja
tomando a frente em confrontos a fim de protegerem os “homens do
movimento”, seja trabalhando na produção, cuidando dos filhos e da
casa, enquanto os maridos e irmãos estão envolvidos nas mobilizações,
participando das questões políticas das comunidades em que vivem,
reafirma-se aqui o caso de Simone, cujo namorado era coordenador e o
irmão era envolvido no trabalho de base. E, sob essa ótica, o que parece
ser pequeno não é a participação das mulheres no movimento, mas sim
os investimentos na construção dessa participação enquanto atitude im-
portante e significativa.
É preciso que se visualizem todos os aspectos dessa trama, que se
tenha a capacidade de questionar todas as definições das funções que
são destinadas a cada ser humano pela cultura tradicional do País, fun-
ções sociais que possuem sua base nas diferenças sexuais, o que impede
que homens e mulheres se comportem como desejam. Como indicou
Mead (1988: 303):

Se quisermos alcançar uma cultura mais rica em valores


contrastantes, cumpre reconhecer toda a gama das po-
tencialidades humanas e tecer assim uma estrutura so-
cial menos arbitrária, na qual cada dote humano dife-
rente encontrará um lugar adequado.

A realização deste trabalho, ao possibilitar uma observação das tra-


jetórias dos assentados e das assentadas do Palmares II, demonstrou que
estas são marcadas por deslocamentos, como a história de vida dos cam-
poneses e das camponesas da região sul e sudeste do Pará, evidenciando
uma vida marcada por mudanças: de lugar, de relações, de atividades
(VIEIRA apud SANTIAGO, 2006) e de construção de outros espaços e
papéis sociais, à medida que incorporam a organização e a luta pela ter-

154
ra e pela vida na fronteira como mais uma dimensão do fazer feminino
e de expor social e politicamente outras capacidades dessas mulheres.
Foi possível perceber, nas narrativas, a marca das dificuldades de
sobrevivência e uma ênfase numa atuação durante o processo de con-
quista da terra. E que os sujeitos desta conquista estão construindo seus
projetos a partir da memória, da luta pela vida e pela terra, com o desejo
de construir um espaço que lhes garanta “viver dignamente”.
A abordagem antropológica, efetuada sob a ótica do gênero, permi-
tiu visualizar outras faces da luta pela terra nessa região, outros cami-
nhos percorridos, outras histórias de conquistas, que juntamente com
muitas outras compõem o assentamento Palmares II. Enfrentamentos,
sonhos reconstruídos, subjetividades que se expressam e outras que ain-
da serão construídas.

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157
PARTE II

Memória, gênero e
interculturalidade

159
FESTA DO MOQUEADO E COSMOLOGIAS:
ENCONTROS COM VERÔNICA TEMBÉ

Ivânia dos Santos Neves


Ana Shirley Penaforte Cardoso

Entre o patriarcado e o imperialismo, a cons-


tituição do sujeito e a formação do objeto, a
figura da mulher desaparece, não em um va-
zio imaculado, mas em um violento arremes-
so que é a figuração deslocada da “mulher do
Terceiro Mundo”, encurralada entre a tradi-
ção e a modernização.
Gayatri Spivak

Os processos de subjetivação a que foram expostos os povos indí-


genas, desde o início da colonização brasileira, sempre os fizeram caber
dentro de uma generalização, como se existisse apenas uma sociedade
e uma única cultura, sem perspectiva histórica. Em relação, especifica-
mente, à mulher indígena, esta situação é um pouco mais complicada e,
ainda hoje, há bem poucas pesquisas que enfrentem a pluralidade desta
cambiante e plural condição.
A colonização foi, em primeiro plano, instituída pelos homens e
narrativizada por eles. Naturalmente que o desejo da mulher ficou do
lado de fora e só lhe coube a posição de vítima ou de selvagem. Não te-
mos os registros escritos do que pensaram aquelas indígenas que viram
pela primeira vez os europeus, a não ser pela fala cristã dos escrivães e

161
pelos padres católicos. Mas, certamente, este encontro, este começo se
discursivizou em suas histórias e em seus corpos.
A condição em que os povos indígenas vivem atualmente no Bra-
sil ainda está marcada por uma série de desrespeito aos direitos huma-
nos. Em relação às mulheres, este processo é ainda mais dramático, pois
muitas vezes ainda são subalternas aos homens indígenas.

A negação dos espaços e a disputa política com os ho-


mens são ainda difíceis de ser superados. No povo Kain-
gang, que conheço bem, talvez essa questão seja uma das
mais complicadas. Estendo essa observação para a maio-
ria dos grupos indígenas, onde os homens ainda não
admitem que as mulheres ocupem papéis políticos de
destaque, relegando a elas sempre um lugar secundário,
como forma de reforçar sua autoridade. Isso continua a
ocorrer [...] (KAINGANG, 2012: 418).

Existiram e sempre existirão mulheres, no entanto, que não aceitam


esta condição única de passividade. Desejamos visibilizar esta forma de
resistência das mulheres indígenas a partir da história de Verônica Tembé.
Escrito, de certa forma, a seis mãos, este texto é a convergência da
trajetória de três mulheres amazônicas. Nosso objetivo aqui é propor
desaprendizagens sobre as mulheres, especialmente as Tembé-Tene-
tehara. Para isso, entrecruzamos nossas histórias com Verônica Tembé,
uma das principais lideranças indígenas da Amazônia. Muito pouco se
conhece sobre ela além das fronteiras indígenas, ainda que sua voz per-
corresse a mídia e ela fosse identificada como a grande mestra dos sabe-
res de sua sociedade. No final de sua vida, uma de suas maiores tristezas
era justamente o não retorno dos pesquisadores.
Não pretendemos assumir, aqui, a condição de sujeito do discur-
so, pois nem sabemos como se constitui esta posição nas fronteiras de
diferentes universos culturais. Como seria este sujeito na cosmologia
Tembé-Tenetehara? Então, a partir das nossas “mulheridades”, destes lu-
gares tão diferentes que nós reconhecemos como mulheres, dividimos
com Verônica Tembé a posição de “sujeitas”, parceiras, interlocutoras,

162
menos por uma perspectiva epistemológica e mais pelos novos contor-
nos que os encontros com esta mulher provocaram em nossas vidas.
Nossos fragmentários processos de subjetivação, depois da convivência
com as mulheres Tembé-Tenetehara, passaram a pluralizar a perspecti-
va de ser mulher na Amazônia, agora com o reconhecimento da intensa
memória indígena em nossas práticas cotidianas. Quando olhamos para
o espelho, ele estava partido e o confortável, e singular lugar de mulher
ocidental havia se dissolvido.
Neste capítulo, vamos apresentar a história destes encontros em
três atos, os dois primeiros aconteceram no final dos anos 1990, em dois
momentos: na Aldeia Tekohaw, durante a realização da Festa do Mo-
queado, e em Belém, na inauguração do Planetário do Pará, quando lá
esteve acompanhada de um grupo de mais 19 Tembé. Estes primeiros
encontros nos deixaram diante do que havia de mais precioso para Ve-
rônica Tembé: os saberes e os rituais Tupi, que ela tanto se empenhou
em manter vivos. O último encontro aconteceu durante a realização do
projeto Patrimônio Cultural Tembé-Tenetehara, quando nós três nos re-
encontramos, desta vez juntas, em 2013, poucos dias antes de ela falecer.
Como nosso interesse é marcar as singularidades desta mulher
Tembé-Tenetehara, optamos inicialmente por apresentar alguns dos
primeiros registros sobre as mulheres Tupinambá. Conhecer um pouco
das dinâmicas destas mulheres, a partir dos escritos de cronistas e via-
jantes que estiveram na Amazônia no século XVII, evidencia que as di-
ferentes posições das mulheres indígenas não constituem uma realidade
apenas de nossos dias. Também nos ajuda a visibilizar os fios de uma
memória tupi que enreda as mulheres do passado e as práticas atuais das
mulheres Tembé-Tenetehara.

Um pouco da história das mulheres indígenas, contada por homens


brancos europeus

Ali andavam entre eles três ou quatro moças,


bem novinhas e gentis, com cabelos muito
pretos e compridos pelas costas; e suas

163
vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão
limpas das cabeleiras que, de as nós muito
bem olharmos, não se envergonhavam.
Carta de Caminha

Embora sejam de homens europeus brancos os primeiros registros


sobre os povos indígenas a que temos acesso, o título deste tópico sugere
três perspectivas discursivas bastante conflitantes com as possíveis au-
torrepresentações das mulheres indígenas. Não queremos, no entanto,
incorrer no equívoco de afirmar que estas mulheres, ou qualquer sujeito
ou grupos de sujeitos, estão fora das teias do discurso e que suas posi-
ções imperativamente seriam diferentes. Assim sendo, antes de tudo,
é mister identificar o lugar de enunciação (CLIFFORD, 2001) de onde
falam as descrições e as análises sobre estas mulheres.
Também a expressão “mulher indígena” deve ser problematizada,
pois não existe esta singularidade, da mesma forma como há décadas
insistem os estudos feministas, não é possível uma definição única de
mulher (BUTLER, 2001). Atualmente, no Brasil, mais de 280 sociedades
indígenas continuam escrevendo suas histórias singulares e é bem pos-
sível que existam 280 concepções diferentes sobre ser mulher, que ainda
podem variar de acordo com a faixa etária e com a condição social em
que vivem.
Desde os primeiros registros, a estrutura de parentesco e as dife-
rentes posições que as mulheres assumiam nas sociedades Tupinambá
já demarcavam, por exemplo, uma profunda diferença entre elas e o es-
tereótipo das mulheres europeias cristãs. E, mesmo entre as próprias
mulheres Tupinambá, havia diferenças: a condição de filha do cacique,
ou de uma mulher que decidisse assumir a posição de guerreira eram
duas situações bem diferentes.

A canalização dos sentimentos amorosos em direção a


indivíduos do mesmo sexo, como forma de distensão
emocional e satisfação sexual, ocorria também entre as
mulheres. Pero Correia escrevia: “Há cá muitas mul-

164
heres, que assim nas armas como nas outras coisas seg-
uem ofício de homens e têm outras mulheres com quem
são casadas. A maior injúria que lhes podem fazer é
chamá-las de mulheres”. As mesmas observações foram
registradas por Gandavo (FERNANDES, 1968: 160).

As descrições realizadas por pesquisadores, assim como a autorre-


presentação das mulheres indígenas, devem considerar suas singulari-
dades, que não começaram a ser demarcadas com a colonização. Não
há como se produzir uma subjetividade imune às relações de poder, que
investem o corpo do sujeito tanto na perspectiva macro, estabelecida
pelas leis, pelo discurso hegemônico das mídias corporativas, pelas dou-
trinas religiosas, pela escola, como na perspectiva micro, negociada no
cotidiano, nas relações mais íntimas, impressas no próprio corpo (FOU-
CAULT, 2007).
Nos primeiros registros feitos por viajantes e religiosos europeus,
podemos acompanhar uma série de regularidades no que se refere à pre-
sença da mulher indígena. Há um silenciamento em relação aos nomes
de mulheres, são quase todas reduzidas a índias, no máximo mulher do
cacique, filha de um homem, escrava de um senhor. Existe um discurso
dicotômico bastante visibilizado em relação a elas: a passividade iden-
tificada com a Virgem Maria ou a volúpia associada à Eva; portanto,
visto com lentes cristãs (NEVES, 2009). Tanto em suas descrições das
práticas culturais como no julgamento destas mulheres, só existem estas
duas posições para o desejo das mulheres, ainda que em suas narrativas
deixem escapar uma realidade observável bem mais plural.

Abrange o terceiro grau, desde sete até quinze anos,


nessa idade se chama kugnantin “moça”, neste tempo, or-
dinariamente perdem, por suas loucas fantasias, o que
este sexo tem de mais caro e sem o que não podem ser
estimadas diante de Deus (D’EVREUX, 2007: 81).

Estes registros nos permitem conhecer um pouco mais da tradição


Tupi, antes da sistemática invasão do continente americano. Na verda-

165
de, eles fazem um retrato da história daquele momento e não podemos
tomá-lo como estático, imutável, que sofreria transformações apenas a
partir da chegada do colonizador, pois sempre houve agitações históri-
cas entre os povos indígenas. Como estamos apresentando a trajetória
de Verônica Tembé, uma mulher indígena que assumiu a liderança de
seu povo, aqui nos interessou, especialmente, compreender como se es-
tabeleciam as diferenças entre mulheres e homens Tupinambá.
Os Tembé-Tenetehara constituem uma sociedade de língua e tra-
dição Tupi, que sempre viveram na Amazônia. As práticas culturais dos
antigos Tupinambá, descritas nos primeiros registros, revelam que, de
certa forma, as trajetórias de mulheres e homens ligados a esta tradi-
ção ainda mantêm alguma semelhança. A trajetória de Verônica Tembé,
em seu segundo casamento, com Lourival Tembé, de uma geração bem
mais jovem que ela, guarda algumas semelhanças com as mulheres Tu-
pinambá. O principal critério de ordenamento dos casamentos entre os
Tupinambá residia na exigência de que os indivíduos pertencessem a
gerações alternadas; por isso, mulheres e homens mais velhos se relacio-
navam com pessoas bem mais novas.

Roger Barlow, que esteve nos princípios do século XVI


entre os Tupi de Pernambuco, ficou seriamente preocu-
pado com as diferença de idade existente entre os côn-
juges. Por isso perguntou-lhes a causa de tão “impróprio”
comportamento. Explicaram-lhe que as mulheres novas
nada sabiam do mundo. Casavam-se com homens vel-
hos porque estes podiam instruí-las, ensinando-as a
governar uma casa. Do mesmo modo, os moços nada
sabiam do mundo e de como deviam viver. As mulheres
velhas encarregavam-se de sua instrução (FERNANDES,
1948: 154).

Apesar da distância temporal que nos separa destes registros, nas


sociedades tupis contemporâneas, podemos encontrar atualizações des-
ta prática. Entre os Asuriní do Xingu, os Suruí-Aikewára e os Tembé-
Tenetehara, por exemplo, encontramos, com frequência, casais de gera-

166
ções alternadas, sobretudo no segundo casamento. É possível ver, nestas
primeiras descrições, uma regularidade em relação à estrutura familiar
que se atualiza na contemporaneidade destes povos, a partir das novas
condições de possibilidades históricas, marcadas por muitas dispersões.
Neste novo momento, são bastante recorrentes casos de mulheres e
homens indígenas que se casam com não indígenas ou com “parentes”
de outras sociedades. Já faz muito tempo que as cidades avançaram para
dentro das florestas e as fronteiras entre aldeia e cidades ficaram bem
mais fluidas. Outro acontecimento significativo no atual momento foi
a organização do movimento indígena em torno das discussões sobre a
Constituição de 1988, quando o intercâmbio entre povos de diferentes
regiões se intensificou. A chegada da mídia massiva com bastante força
e da Internet, mais timidamente, somadas à política de cotas nas uni-
versidades públicas, também interferem bastante na complexidade do
momento em que vivemos.
Retomando os registros das práticas culturais dos Tupinambá, um
outro aspecto, a poligamia, ainda hoje presente em várias sociedades in-
dígenas, sempre mereceu destaque dos cronistas e viajantes, sobretudo
no que dizia respeito aos privilégios dos homens:

A pluralidade de mulheres lhes é permitida, podem ter


quantas desejarem. As mulheres, porém, não tem o mes-
mo privilégio, devem contentar-se com um só marido e
não podem, tampouco, abandoná-lo para se entregarem
a outro homem. Entretanto, embora a poligamia seja
permitida, os homens, satisfazem-se eles em sua maio-
ria, com uma só mulher. Somente a fim de ganhar certo
prestígio tomam muitas mulheres. São nesse caso julga-
dos grandes homens e se tronam os principais da aldeia
(D’ABBERVILLE, 2008: 300).

A partir deste recorte, poderíamos supor que a condição das mu-


lheres Tupinambá era bastante submissa ao marido, o que, sem dúvi-
da, traduzia a realidade de uma boa parte delas. Ficar com o marido
em uma relação poligâmica, no entanto, não era a única alternativa

167
destas mulheres. Há de se fazer uma diferença entre as faixas etárias,
porque certamente, como ainda existe hoje nas práticas de muitas so-
ciedades indígenas, as jovens, no primeiro casamento, assumem uma
postura mais passiva, bem diferente de quando vivem o segundo ou o
terceiro, já com mais idade. Sabemos também da existência de situa-
ções diferentes, provocadas pela morte dos homens em guerras, que
motivaram a poligamia praticada por mulheres em muitas sociedades
(CLASTRES, 2006).
Entre as mulheres Tembé-Tenetehara da atualidade, a presença
feminina em posições de cacique, como Célia Tembé, ou de ativis-
tas políticas como Puyr Tembé, mulheres que casaram a primeira vez
com pouca idade, mas que viveram novos relacionamentos e passaram
a assumir outra posição diante de sua sociedade, são bons exemplos
de como a maturidade as inscreve em uma nova condição. Entre as
mulheres Tupinambá, o segundo casamento ou mesmo a insubmissão
às ordens do marido poderia alterar a posição que ocupavam. Os re-
gistros, no entanto, enunciados por europeus comprometidos com o
falocentrismo e a ordem cristã se tensionavam com a poligamia e lhes
perturbava uma estrutura social mais flexível em relação à condição
das mulheres.

Um Tupinambá, exasperado com a conduta da mulher,


agarrou-a pelos cabelos e deu-lhe uma terrível sova de
pau. A mulher reagiu violentamente, munindo-se por
sua vez de um pedaço de pau, enfrentando o marido com
decisão. Os demais membros da maloca, todavia, espe-
ravam outros desfechos. Pensavam que a mulher, casti-
gada nas vistas de todos, fugisse das mãos do marido. Em
consequência, o resultado da contenda foi desfavorável
ao marido. Afirmaram que ele não conseguiu dominar
a mulher com a devida superioridade. [...] Os velhos
reuniram-se na Casa Grande e comentaram a ocorrên-
cia. Afinal de contas, decidiram que ele devia ficar com
a mulher, já que conhecia anteriormente seu comporta-
mento (FERNANDES, 1968: 248).

168
Não pretendemos, aqui, exaurir os registros sobre mulheres Tu-
pinambá, fizemos este passeio em função dos fios que ligam algumas
práticas destas mulheres à trajetória das Tembé-Tenetehara da atualida-
de. Verônica Tembé, assim como suas sobrinhas, netas e parentas, estão
todas enredadas em práticas de subjetivação complexas, num processo
que transformou todos nós que vivemos neste continente em sujeitos
fragmentados, por isso nossas enunciações são fraturadas. Desde o iní-
cio sistemático da colonização do continente americano, a cosmologia
eurocêntrica passou a delinear uma ordem hegemônica, que determina
inclusive as línguas oficiais da ciência ocidental, todas europeias. Este
processo contínuo e difuso produziu nas sociedades latino-americanas
uma condição de “estar ou sentir-se entre”:

A diferença colonial cria condições para situações di-


alógicas, nas quais se encena, do ponto de vista subalter-
no uma enunciação fraturada como reação ao discurso e
à perspectiva hegemônica. Assim, o pensamento liminar
é mais do que uma enunciação híbrida. É uma enuncia-
ção fraturada em situações dialógicas com a cosmologia
territorial e hegemônica (MIGNOLO, 2003: 11).

O colonialismo europeu não se extinguiu com o grito de Dom Pe-


dro I, às margens do Ipiranga, em 1822; ele se atualizou. Em relação às
mulheres Tembé-Tenetehara, cabe a nós:

[c]ontar as histórias não apenas a partir do interior do


mundo “moderno, mas também a partir de suas fron-
teiras”. Estas não são apenas contra-histórias ou histórias
diferentes, são histórias esquecidas que trazem para
o primeiro plano, ao mesmo tempo uma nova dimen-
são epistemológica da, e a partir da margem do sistema
mundial colonial/moderno, ou se quiserem, uma episte-
mologia da diferença colonial que é paralela à epistemo-
logia do mesmo (MIGNOLO, 2003: 80).

169
Hoje, a história destas mulheres e de suas sociedades se inscreve
nas histórias de resistência e lutas pelo direito à diferença nesta nossa
tão fraturada América Latina. A trajetória de Verônica Tembé marcou
um momento singular da história da Amazônia, que está no mesmo
diapasão da valente Tuíra e seu terçado ameaçador no rosto do enge-
nheiro responsável por Belo Monte, das guerreiras Tupinambá do sécu-
lo XVII e em grande medida afinada com homens e mulheres indígenas
que insistiram e insistem em inscrever processos de subjetivação fora da
nova ordem mundial.

Verônica Tembé e a tradição Tenetehara em três atos

E o que torna uma mulher indígena? No caso


Kaingáng (já que isso muda muito de povo
para povo), em primeiro lugar, o pertenci-
mento: de onde você veio? Quem é você? De
que família? Neta de quem? Filha de quem?
Em segundo, vem o sentimento de ser indíge-
na, o sentimento genuíno, claro.
Azelene Kaingáng

A sociedade Tembé-Tenetehara vive, atualmente, na Terra Indígena


Alto Rio Guamá – Tiarg, no espaço delimitado entre os rios Gurupi, ao
sul, e Guamá, ao norte. “A Aldeia Cajueiro, no Gurupi, e a Aldeia Sede,
no Guamá, muito em função da infraestrutura (pois nelas há escolas,
postos de saúde, energia elétrica) reúnem o maior número de morado-
res” (NEVES & CARDOSO, 2015: 37). Estima-se que a população atual
seja de, aproximadamente, 2,1 mil pessoas, organizadas em 22 aldeias.
Para Neves & Cardoso (2015: 37):

Os dois maiores rios que estabelecem os limites da Tiarg


são o Gurupi (ao sul), e o Guamá (ao norte), e acabam
definindo dois espaços geográficos, históricos e culturais
ente os Tembé-Tenetehara, por isso existem as Alde-

170
ias do Gurupi e as Aldeias do Guamá. Segundo Sérgio
Muxi, da Aldeia Tekohaw, Eles também se denominam
de Y’riwara, porque suas aldeias estão nas margens dos
rios. Em seus processos migratórios, sempre seguiram
os contornos dos leitos dos rios, “Y” e Y’riwara significa
povo da água.

Este povo, com mais de 300 anos de contato, tem uma história marr-
cada pelo constante processo de luta e resistência para reafirmar sua tra-
dição indígena. Eles fazem parte do ramo ocidental dos Tenetehara, sua
língua e sua cultura são de tradição Tupi, do ramo Tupi-Guarani. Eles e
os Guajajara do Maranhão compartilham a língua Tenetehara, apesar de
cada um manter suas singularidades.

A história dos Tembé-Tenetehara é de diáspora e de luta.


Em meados do século XIX, grande parte dos Tenetehara
rumou do Alto Rio Pindaré e Rio Caru, no Maranhão,
em direção aos rios Gurupi, Guamá e Moju, já no Estado
do Pará (“rio” no tronco linguístico Tupi). Os próprios
Tembé nos contam que o contato existe há três séculos
e que seus antepassados vinham de rio em rio fugindo
dos karaiw (nome que dão aos não indígenas) (JORDY
FILHO, 2016: 13).

Uma das mais importantes lideranças do povo Tembé-Tenetehara,


Verônica nasceu na Aldeia do Cocal, na região do Gurupi, em 1917,
embora os documentos oficiais não atestem a presença dos Tembé nes-
ta região. Faleceu em 2013, na Aldeia Tekohaw, já bem velhinha, sem
enxergar e com limitações físicas. A partir dos relatos dos mais velhos,
obtidos durante pesquisas de campo entre os Tembé, em diferentes mo-
mentos, foi possível reconstituirmos uma parte da história de Verônica
Tembé. Segundo Lourival Tembé, marido de Verônica, eles e a família
moraram alguns anos na Terra Indígena Alto Turiassu, homologada em
1982, também situada às margens de um afluente do rio Gurupi, onde
havia um pouco mais de segurança para as populações indígenas da re-

171
gião. Viviam, portanto, com os Kaapor e já enfrentavam alguma dificul-
dade com esta situação.
Em 1993, quando finalmente a Tiarg foi homologada, seu Louri-
val Tembé atravessou o rio e deu início à construção da Aldeia Teko-
haw, para onde se mudou com Verônica e os parentes mais próximos.
O nome da aldeia, que significa a casa dos Tenetehara, traduzia bem
o desejo deste grupo de Tembé, bastante impulsionados por Verônica
Tembé, transformaram, em pouco tempo, esta aldeia na principal refe-
rência dos saberes Tenetehara.
Profunda conhecedora da medicina tradicional, da história e dos
rituais, Verônica Tembé, durante décadas, foi responsável pela organi-
zação das festas, pelo preparo de remédios, pelo aconselhamento dos
mais jovens. Empenhou-se em manter viva a produção dos objetos
culturais Tenetehara, assim como foi uma grande incentivadora do
grafismo corporal. Ela respeitava os animais, a floresta, as estrelas e
seu ideal da vida era conseguir uma harmonia com todos os elementos
da natureza.
Fazia questão de ensinar aos mais novos a cosmologia e a língua
Tenetehara. Havia um desejo bastante compartilhado por sua família de
manter a língua viva, dentro de suas dinâmicas culturais. Embora fosse
bilíngue, em público, sobretudo quando estava diante das câmeras e de
interlocutores não indígenas, fazia questão de falar em Tenetehara.
A “capitoa” Verônica, como muitos a conheciam, foi casada duas
vezes e teve apenas dois filhos, Sérgio Muxi e Kaparaó Tembé, hoje ca-
ciques da Aldeia Tekohaw. Sua sobrinha Célia Tembé, cacique da re-
cém-fundada Aldeia Ka’aPitepehar e sua neta mais velha, Kuzã’í Tembé,
professora da língua Tenetehara da Aldeia Sede, são duas mulheres in-
tensamente empenhadas em dar prosseguimento aos anseios de Verô-
nica Tembé. As duas, agora, são também as responsáveis pela realização
dos rituais tradicionais em suas aldeias e se preocupam em fazer circular
os saberes da tradição Tenetehara entre eles.
A seguir, vamos apresentar como nos encontramos separadamen-
te com Verônica Tembé, em diferentes momentos no final dos anos de
1990, e o reencontro das três, o terceiro ato, um mês antes de sua morte.

172
Primeiro ato: a Festa do Moqueado e as primeiras fotografias

O Estado colocou a gente dentro deste lugar


chamado aldeia, mas até hoje não sabe o que
fazer com a gente.
Verônica Tembé

As reflexões acerca da imagem fotográfica vão além de suas possi-


bilidades de uso técnicos, estéticos e visuais. Para as ciências sociais, a
análise da imagem e de sua potencialidade de circulação, de forma geral,
delineia gestos de leitura, estabelece verdades, traduz relações de poder,
evidencia as singularidades da história. A fotografia também pode ser
pensada como uma materialidade para a construção de uma memória
social institucionalizada, que estabiliza discursos generalizantes sobre
os povos indígenas e circula em documentos oficiais, está presente nos
museus, nos livros didáticos. Por outro lado, de forma mais particulari-
zada, ela também pode revelar imagens silenciadas, interditadas, e mos-
trar uma versão mais singular da história, a partir das micro-histórias.
Para Samain (2012: 159):

A imagem fixa é complexa. Para se dar conta disso, basta


prolongar o tempo de um olhar posto sobre ela, sobre
sua face visível para, logo, descobrir que a imagem nos
leva em direção a outras profundidades, outras estratifi-
cações, ao encontro de outras imagens.

Entendo, portanto, as fotografias como ativadores de memória,


como instrumentos que dialogam com a percepção do que se viveu ou
que ainda poderá ser vivido. Neste sentido, as imagens por mim produ-
zidas naquele momento não foram apenas registros, mas documentos
que versam sobre uma história.
Minha relação com a fotografia se intensificou no início dos anos
de 1990, quando comecei a atuar profissionalmente como fotojornalista
na imprensa paraense. Simultâneos a essa experiência, desenvolvi, tam-

173
bém, alguns projetos pessoais como fotógrafa. Essa empiria no contexto
da imagem fotográfica contribuiu bastante para minha trajetória acadê-
mica, pois as atividades no jornalismo diário e o desempenho em pro-
jetos fotográficos me aproximaram do cotidiano das pessoas e de suas
singularidades.
O processo fotográfico mais utilizado, neste período, era o analógi-
co, no formato 35mm, colorido. A dinâmica da revelação das imagens
à época era bastante diferente do modo como se experiencia com os
modelos digitais na contemporaneidade; no entanto, seus efeitos, assim
também como hoje, podiam alcançar dimensões incalculáveis.
Em 1996, minhas atividades como fotojornalista me levaram, pela
primeira vez, para Tiarg, mais especificamente à Aldeia Tekohaw. Eu e a
repórter Mirtes Morbach realizaríamos uma matéria para a revista Ver-
o-Pará sobre uma das mais famosas manifestações culturais Tembé-Te-
netehara: a Festa da Moqueado, o ritual de matrimônio dos mais novos
desta sociedade. Havia muita expectativa para viver esta experiência.
Embora já conhecesse bastante os pequenos municípios do Pará,
de matérias anteriores, estava bastante ansiosa, a ponto de não perceber
o quanto a viagem, com 12 horas de duração, havia sido cansativa. Per-
corrermos os 200 quilômetros de asfalto entre Belém e o município de
Paragominas, depois mais um extenso pedaço de estrada de terra, que
estava bastante molhada e provocou vários atolamentos até chegarmos à
Aldeia Cajueiro, de onde partimos de barco para Tekohaw.
As paisagens da viagem mudaram bastante, saímos de uma área ur-
bana, com prédios delineados pelo concreto duro e frio, uma região mar-
cada pelo intenso tráfego de automóveis e o ruído de suas buzinas. Mesmo
em face ao tamanho territorial e populacional, encontramos traços desta
urbanidade de Belém também no município de Paragominas. No entan-
to, ao adentrarmos a estrada que dá acesso às aldeias Tembé-Tenetehara,
encontramos uma nova paisagem com árvores de diferentes tamanhos,
pássaros e a presença do rio Gurupi e seus respectivos igarapés.
À tarde, chegamos, finalmente, à aldeia e a festa já havia iniciado.
Ouvia-se ao longe o som dos maracás, que os homens balançavam com
força. O som deste instrumento musical se confundia com o som dos

174
pés ao tocarem o chão de terra batida da ramada, nas danças, ininter-
ruptamente, por três dias e três noites ou mais. Para assim desejarem
felicidade aos novos casais, mas foi a melodia, produzida pela entonação
da voz aguda das mulheres, uma das primeiras observações que me cha-
mou a atenção, naquele momento. Passei três dias na aldeia e não con-
seguia dormir, pois estava muito envolvida com toda aquela festividade.
As práticas descritas a seguir fazem parte da tradição Tembé-Tene-
tehara e, apesar das adaptações, modificações e atualizações que sofre-
ram e que, provavelmente, ainda sofrerão, ao longo da história, continu-
am a acontecendo.
Toda a cerimônia era muito bem organizada, com as divisões de
tarefas específicas, mas que as pessoas poderiam revezar ou trocar, de
acordo com a necessidade e o interesse. O mais importante é que não
parassem de acontecer, para não quebrar o ritual. Havia o grupo de dan-
ça, o grupo de músicos, o grupo que se encarregava das pinturas corpo-
rais, dos adornos e da comida. Algumas destas atividades só podiam ser
realizadas pelas mulheres e outras, entretanto, eram realizadas somente
pelos homens. A pintura à base de jenipapo ou de urucum e adornos
com penas de pássaros, usados pelos noivos, eram realizados por mu-
lheres e homens, mas o preparo das comidas ficava inteiramente a cargo
das mulheres. A comida servida na festa era à base de aves e veados, e
eram oferecidas pelos pais das meninas que caçavam, durante vários
dias, na floresta para oferecer muita comida aos convidados.
A maior concentração do ritual acontecia no interior da rama-
da, uma construção tradicional Tembé-Tenetehara, coberta de palha,
de formato circular, apoiada em estacas de madeira, sem paredes. No
primeiro momento da cerimônia, o espaço da festa era divido em três
lados: de um lado, as mulheres ficavam sentadas, cantando muito alto,
enquanto os homens tocavam maracás e formavam um desenho em “L”
na sala. O centro do local ficava livre para a dança circular que eles fa-
ziam. Um dos componentes da dança, geralmente a mais velha ou o
mais velho, dançava, carregando nos braços um macaco guariba mo-
queado, que foi saboreado, ao final da “brincadeira”, maneira como eles
se referem às suas cerimônias.

175
Havia também todo um preparo alimentar e visual dos casais pro-
tagonistas da festa. As meninas ficavam trancadas, em uma casa de pa-
lha, sem poderem sair, durante o todo o período de sua primeira mens-
truação. Elas eram alimentadas apenas com pequenos e determinados
tipos de peixes e recebiam a comida por debaixo da porta. Os meninos
aguardavam o momento de receber as pinturas corporais e seus ador-
nos. Eles também tinham as mesmas restrições alimentares. Em outra
fase do ritual, os casais, ainda separados, foram levados ao centro da
aldeia para serem iniciados à vida adulta, sentados recebiam as rezas, os
cantos e as pinturas. É aí que seus corpos são preparados com jenipapo,
grafismos, adornos para os cabelos das meninas e cocares para os me-
ninos. Eles não podiam esboçar qualquer sentimento, emoção, emitir
qualquer tipo de som ou expressar movimentos.
Foi assim que, pela primeira vez, fotografei as saias brancas das me-
ninas e as saias de palha dos meninos, ainda sem compreender muito
bem o que esta diferença significava. A partir deste acontecimento, ini-
ciou-se o processo de aproximação com as mulheres e com os homens
da sociedade Tembé-Tenetehara.
Como já vimos, fazem parte da tradição Tupi os casamentos de ho-
mens e mulheres de gerações alternadas, mas entre eles estas diferenças
são mais visíveis no segundo ou no terceiro casamento. O primeiro ca-
samento geralmente acontece com pessoas que regulam a mesma idade.
Foi nesta oportunidade que conheci uma das mais influentes li-
deranças indígenas da Amazônia paraense: Verônica Tembé. Durante
décadas, foi a principal responsável pela organização desta festa e sua
alteridade e liderança representaram fatores relevantes e surpreendentes
aos olhos de uma jornalista iniciante. Uma mulher preparava as pintu-
ras e, com seu timbre extremamente agudo, puxava as músicas durante a
cerimônia. Era ela também que dava entrevistas, apresentava os objetos
usados na festa, assim como preparava e mostrava a comida a ser consu-
mida pelas meninas e pelos meninos durante os dias de comemoração.
Minha surpresa diante de Verônica Tembé, principal liderança
Tembé-Tenetehara naquele momento, evidenciava uma questão bas-
tante significativa. Seu protagonismo contrariava minha expectativa

176
de encontrar um homem à frente da festa. Já neste primeiro momento,
fui convidada a repensar o papel das mulheres na dinâmica de diferen-
tes sociedades, o que me levou à reflexão sobre suas diferenças e suas
subjetividades. Realmente, não se deve tomar como algo definido, fe-
chado um único conceito do que é ser mulher na contemporaneida-
de. Mesmo quando se admitem os atributos biológicos, não podemos
nos esquecer de que esta definição é uma invenção historicamente
construída. Como nos esclareceu, na metade do século XX, Beauvoir
(1949: 9):

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Num destino


biológico, psíquico, econômico define a forma que a
fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjun-
to da civilização que elabora esse produto intermediário
entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.

Hoje, estas fotografias produzidas em 1996 fazem parte do meu


acervo pessoal, mas também estão presentes na Internet, nos arquivos
da revista Ver-o-Pará, no livro Patrimônio cultural Tembé-Tenetehara
(NEVES & CARDOSO, 2015), e ajudam a construir uma memória visu-
al do povo Tembé-Tenetehara. Para Gregolin (2011: 93):

A imagem é um operador de memória social, compor-


tando no seu interior um programa de leitura, um per-
curso inscrito discursivamente em outro lugar. Esse pro-
grama de leitura está inscrito na própria materialidade
da imagem, mas é um percurso que, lógico, não nasce
na imagem, há todo um processo de intertextualidade,
de interdiscursividade, da memória das imagens que vão
produzir isso que é um acontecimento, mas que não pre-
scinde, de maneira nenhuma, da história.

Estes primeiros registros fotográficos ganharam novos signifi-


cados à medida que eu pesquisava questões relacionadas à fotografia
com mulheres indígenas. É possível pensar, a partir destas imagens,

177
que elas podem agir como uma matriz social em determinados pe-
ríodos; no entanto, seus significados podem se modificar a partir da
dinâmica da sociedade.

Segundo ato: entre histórias e estrelas

Menino não pode casar com mãe,


nem com tia. Isso dá problema!
Verônica Tembé

Meu interesse pelas culturas indígenas brasileiras, em especial


pelo conhecimento sobre os céus indígenas, foi motivado, a princí-
pio, por um trabalho que desenvolvi durante dois anos com a primei-
ra equipe pedagógica interdisciplinar do Planetário do Pará. Com o
objetivo de chegar a uma linguagem didática sobre astronomia, que
dialogasse com a realidade de professores e alunos da rede pública e
privada do Estado do Pará, em 1999, pela primeira vez, tive acesso à
astronomia indígena.
O céu, sob o ponto de vista dos índios Tembé-Tenetehara, etno-
grafado, nos anos de 1950, por Eduardo Galvão (1996) e revisitado pela
equipe do Planetário do Pará, sob a supervisão de Afonso Germano
Bruno, em 1999, representou meu contato inicial com a cultura Tupi.
Desta visita à Aldeia Tekohaw resultou um relatório, que coube a mim
revisar. A leitura deste texto foi muito provocativa e, junto com uma
equipe do Planetário, decidimos escrever um livro didático sobre os re-
ferenciais astronômicos dos Tembé-Tenetehara. Assim, surgiu “O céu
dos índios Tembé” (NEVES et al, 1999).
Até o ingresso no Planetário, eu atuava profissionalmente como
professora de Língua Portuguesa e, embora o trânsito por escolas de
diferentes classes sociais me permitisse identificar as diversidades cul-
turais, não conseguia perceber as culturas indígenas. Quando, pela pri-
meira vez, notei que os povos indígenas não eram a abstração de que
nos falavam na escola, tomei um grande susto. A descoberta de que so-
ciedades indígenas, aqui mesmo no Pará, davam um outro tratamento

178
metodológico à astronomia fraturou minha forma de olhar para a ciên-
cia e acabei me sentindo meio ingênua diante do poder simbólico do
sistema colonial.
Estava, pela primeira vez conscientemente, diante de pensamentos
diferentes, de uma cosmovisão que, embora negociasse com os saberes
ocidentais, constituía-se com uma memória Tupi. O céu não poderia
mais ser explicado apenas pela astronomia “oficial”, o conhecimento
respaldado pelo saber ocidental. Passou a ser imperativo compreender
como se organizavam racionalidades e subjetividades diferentes da es-
tabelecida pela ciência moderna.
Suas narrativas orais, suas constelações, suas estações do ano, assim
como as denominações particulares para as posições de Kwarahy, o Sol
e Zahy, a Lua, deixavam ver a diversidade cultural presente no conheci-
mento produzido sobre astronomia.
“O nascimento de Zahy”, registrada no livro, foi a primeira história
Tupi que conheci com a consciência de que se tratava de uma narrativa
oral indígena. Depois, descobri que conhecia muitas destas narrativas,
algumas sob a rubrica de folclore. A forma poética de explicarem o nas-
cimento da Lua também não me era de todo estranha, pois remontava
às narrativas de minha avó materna. A seguir, uma versão reduzida des-
ta história, em que há uma clara interdição ao incesto.

O nascimento de Zahy

Zahy era o filho mais velho do cacique. Ainda muito


novo, se apaixonou por uma mulher proibida, sua tia. À
noite, ia até sua cabana deitar com ela. A tia não sabia
quem era o índio misterioso e ficou preocupada. Pediu
conselhos à índia mais velha da aldeia para descobrir
quem era o homem que deitava com ele.
A tia, seguindo os conselhos, preparou um unguento
de jenipapo e aguardou a chegada do índio. Passou-lhe
no rosto, várias vezes, o unguento. Pela manhã, quan-
do Zahy foi lavar o rosto, viu que estava manchado. Ao
voltar para a aldeia, todos souberam quem era o índio

179
misterioso. Ele foi expulso da terra e se transformou na
Lua. Ainda hoje, tenta tirar as manchas de jenipapo, mas
não consegue (NEVES et al, 1999).

Às vésperas da inauguração do Planetário, a equipe de técnicos


teve a oportunidade de estar com um grupo de 20 indígenas Tembé em
Belém. Na ocasião, Chico Rico, Lourival Tembé e Verônica Tembé me
chamaram bastante atenção. Eles demonstravam uma preocupação es-
pecial com a astronomia, inclusive na cúpula, quando o grupo fazia a
identificação das constelações Tembé, os dois eram os mais empenha-
dos em localizá-las.
Verônica Tembé, uma das mulheres mais velhas do grupo, era a
principal liderança naquele momento. Embora fosse franzina, quando
começou a falar, impôs silêncio a todos. Não era difícil perceber sua im-
portância. No instante em que fui recebê-los na porta de entrada do Pla-
netário, a visão desta mulher foi definitiva para selar meu interesse pelas
culturas indígenas. Infelizmente, não pude entendê-la plenamente, pois,
na maioria do tempo, como é de costume, por uma questão política, ela
falou em Tenetehara.
Este encontro mudou minha trajetória e uma fala daquela velha
indígena passou a conduzir os caminhos acadêmicos que eu percorre-
ria depois deste momento. A maior parte do tempo ela falou em Te-
netehara, mas, pelo menos em duas ocasiões, usou o português: “Vai
estudar sobre os índios! Isso faz parte da tua vida!” e “Menino não pode
casar com mãe, nem com tia. Isso dá problema!”. Quatorze anos de-
pois, quando nos reencontramos em Tekohaw, os ecos destas falas ainda
eram muito sonoros.
Sua semelhança com minha avó materna, uma pessoa muito im-
portante em minha história de vida, marcaria para sempre o meu olhar
e o meu corpo. Até aquele momento, embora tenha nascido e vivido
em Belém, eu não conseguia me identificar com as culturas indígenas.
Ainda bastante afetada pelos estereótipos, a pele morena predominante
em minha família e na população da cidade era explicada apenas pela
presença africana. Os indígenas eram “amarelos” e estavam muito dis-

180
tantes, na floresta. Ainda hoje, nas grandes cidades amazônicas, como
Belém e Manaus, embora as práticas culturais e a aparência da maior
parte da população remetam à presença indígena, há uma negação em
assumir esta identidade, ou pelo menos esta memória.
Encontrar Verônica Tembé, no entanto, atravessou meu próprio
corpo. Hoje, revivendo este encontro, imagino que, diferentemente da
posição de estranhamento que assumíamos diante deles, aquele grupo
de Tembé deve ter olhado para a equipe do Planetário com bastante
familiaridade. Entendo, inclusive, por que Verônica Tembé, desde que
chegou ao Planetário, ficou ao meu lado. Da mesma forma como ela se
parecia com minha avó, eu também era muito semelhante às mulheres
de seu povo e, sem muita dificuldade, podia passar por sua filha, sobri-
nha ou neta.
Diante daquela mulher, falava em meu próprio corpo uma memó-
ria sempre tão evidente, mas silenciada por uma sociedade preconceitu-
osa, bastante delineada pelo discurso colonial. Como afirmou Orlandi
(2004), no Brasil, a descendência africana é tomada como uma espécie
de segunda classe, pois todos querem ser de origem europeia, mas em
relação à descendência indígena, ela não figura em nenhum estatuto,
simplesmente é silenciada.

Terceiro ato: encontros e despedidas

– Mas vocês vão mesmo voltar? – perguntou


Verônica Tembé, naquela chuvosa tarde, em
sua casa, no Tekohaw.
– Vamos, sim.
– Muita gente já veio aqui e nunca voltou!
– Sabe, na verdade, não é a primeira vez que a
gente se encontra!

Pela primeira vez, estivemos as três juntas no mesmo ambiente, na


Aldeia Tekohaw, em dezembro de 2013. Verônica Tembé, já bem velhi-
nha, não enxergava mais e estava bem doente. Integrávamos uma equi-

181
pe de trabalho do Iphan1, junto com uma técnica e Maurício Neves, com
o objetivo de dar andamento ao projeto que resultaria no livro Patrimô-
nio cultural Tembé-Tenetehara (NEVES & CARDOSO, 2015). Quando
chegamos, fomos recebidos por Sérgio Muxi, o cacique, Sandra Tembé,
professora da escola indígena, e Lourival Tembé, marido de Verônica.
Conversamos bastante com eles, explicamos o projeto, trocamos algu-
mas ideias. Ao final, pedimos para ver Verônica Tembé.
Todos nos disseram que ela não nos atenderia, pois se recusava a
falar com não indígenas. Seu Lourival gentilmente nos conduziu até sua
casa, mas avisou que seria difícil. Assim que entramos na casa, Verônica
Tembé fechou a rede e, em Tenetehara, disse a seu Lourival que não
falaria com a gente. Estávamos na cena, eu, Shirley Penaforte, com a
máquina na mão, Maurício Neves, seu Lourival, Verônica e uma nora
do casal. A atitude de Verônica parecia irredutível.
Eu me aproximei, falei sobre o Planetário do Pará e sobre o conse-
lho que ela havia me dado naquele período. Disse que tinha ido estudar
sobre povos indígenas. Ainda argumentei que, embora não fosse indíge-
na, era inegável a descendência indígena de nós três que estávamos na-
quela sala. Nós, tão fraturadas, não éramos tão “brancas” assim. Verôni-
ca Tembé abriu a rede e perguntou em português: “Quem é tu?”. Todos
ficaram em silêncio. Uma emoção tomou conta do ambiente. Shirley
Penaforte não se conteve, ainda que não quiséssemos, e fez o último
registro fotográfico de Verônica, naquela tarde chuvosa.
A “capitoa”, tão acostumada às câmeras, mesmo sem enxergar, sabia
que estava sendo fotografada. Na sua fala, contestou a atuação dos pes-
quisadores e dos jornalistas. Falou com muita tristeza de um ex-gover-
nador, que lhe prometera resolver os problemas de infraestrutura da al-
deia, sem qualquer retorno. Explicamos nossas intenções em relação ao
livro, mas ela duvidou. Quando lançamos o livro, Verônica Tembé não
estava mais entre nós, mas o lançamento representou, acima de tudo,
nosso compromisso com ela.

1
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. (N. do R.)

182
Palavras finais

As mulheres nativas da América entraram para a história do Oci-


dente a partir de dois estereótipos: ou são desavergonhadas e imorais,
ou puras e inocentes, que vão sofrer toda sorte de violência sexual
praticada pelos europeus e, depois, pelos próprios brasileiros. E não
são poucos os relatos que dão conta desta situação muito deplorável a
que, de fato, elas foram submetidas. Por outro lado, o discurso estabili-
zado sobre estas mulheres as coloca eternamente como aquela mulher
que estava sem roupas, na beira da praia, bem semelhante à pecadora
Eva da gênese bíblica. Supostamente, sempre eram passivas diante dos
homens, sem direito a tomar posição política e sem o direito de sentir
desejos.
Verônica Tembé foi uma mulher que não aceitou a condição de
passividade diante da grave situação política dos Tembé-Tenetehara,
nos anos de 1980. Assumiu a liderança de seu povo e se empenhou deci-
sivamente para manter viva a língua Tenetehara e a tradição Tupi entre
eles. No processo de reunificação dos grupos que viviam na região do
Gurupi, mais ao sul, e do Guamá, mais ao norte, separados pelas inva-
sões incentivadas por políticas de governo à Tiarg, Tekohaw, a aldeia
que ajudou a construir, significou o grande lugar da resistência.
Atualmente, depois da liberação de parte das invasões de suas ter-
ras, os Tembé estão cada vez mais integrados e o intercâmbio entre eles
está mais intenso. Contudo, ainda assim é possível sentir como as es-
tratégias linguísticas e culturais orquestradas por Verônica Tembé e seu
grupo repercutem nesta nova realidade. Seu Lourival, ainda bastante
atuante, viaja muito pelas aldeias das duas regiões.
Assim como esta grande mulher foi líder de sua sociedade, hoje, há
outras mulheres indígenas, como Sônia Guajajara ou Valdenice Verón,
que estão à frente do movimento indígena brasileiro, enfrentando os de-
safios do atual momento político. Com novas estratégias e subvertendo
as estruturas sexistas de suas próprias sociedades, estas mulheres deses-
truturam o discurso de subalternalização a que foram (e continuam a
ser) historicamente submetidas.

183
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TEMBÉ. Direção: Lília Afonso. (Documentário). TV Cultura do Pará,


Belém, 1990. Duração: 50 minutos.

185
RELAÇÕES DE GÊNERO ENTRE OS MEBÊNGÔKRE
XIKRIN DO DJUDJÊ-KÔ: COMPORTAMENTOS E
PAPÉIS DO MASCULINO E DO FEMININO NOS DIAS
DE VIGÊNCIA DO CONVÊNIO COM A VALE

Mirtes Emília Manaças

Introdução

O presente artigo visa a uma breve introdução acerca de algumas


alterações nos modos de pensar e viver de homens e mulheres me-
bêngôkre xikrin a partir dos casamentos ocorridos nos últimos anos
(final do século XX e início do século XXI), e como o convênio com
a Vale possui ligação direta com esses novos comportamentos. Para
tanto, será feito uso de parte das reflexões propostas na dissertação
de mestrado da signatária desta pesquisa, quando foram estudadas as
ressignificações e transformações existentes entre os xikrin, desenca-
deadas a partir da vigência do convênio com a Vale. Complementou-
se o trabalho com parte das reflexões feitas para a tese de doutorado
desta pesquisadora, onde se direcionou o foco para um pensar os pa-
péis das mulheres na produção de sujeitos mejx/belos no intuito de
fabricar continuamente uma sociedade xikrin cada vez mais mejx. As
fontes utilizadas foram principalmente os cadernos de campo sobre
os indígenas da Aldeia Xikrin do Djudjê-kô, os quais foram acompa-
nhados nos últimos 12 anos.

187
Os xikrin – uma breve introdução

Pertencentes ao tronco linguístico jê, do grupo kayapó-mebêngôkre,


os xikrin dividem-se oficialmente em quatro aldeias, sendo a Aldeia Ba-
cajá na região do rio Xingu, distante das demais aldeias que estão si-
tuadas próximas ao rio Cateté, ligadas ao município de Parauapebas e
conhecidas como Aldeia Kateté, Aldeia Djudjê-kô e Aldeia O’odjã. A
Reserva Indígena Xikrin do Cateté é banhada pelos rios Cateté e Ita-
caiúnas, e está situada em uma terra de mata tropical conhecida como
mata do cipó. Ela possui grande riqueza em mogno e castanheiras, bem
como regiões pantanosas. Os xikrin costumam construir suas casas per-
to de rios e igarapés, em terrenos bem drenados, e o centro social (a
casa dos homens, espaço masculino, político, jurídico e ritual) fica no
meio da aldeia, entre as casas. Ao redor da aldeia é comum encontrar
pequenas roças de macaxeira, batata, banana e abóbora, dentre outros
gêneros. O modelo das casas em ordem estável é mantido até mesmo
quando estão acampando na floresta.
É ali, no centro da aldeia, que se desenvolvem as cerimônias rituais
e a vida pública em geral. Segundo Giannini (1994), a aldeia reproduz
a ordem do mundo xikrin, pois, para os xikrin, existe a terra, dividida
em clareira e floresta, o céu, o mundo aquático e o mundo subterrâneo.
Cada parte possui seus atributos e habitantes distintos, bem como uma
maneira diferente de se relacionarem entre si. Os xikrin entendem que
a neutralização do que consideram/compreendem como agressividade
deve ser realizada na clareira, no lugar da aldeia e das roças, e ainda por
meio de espécies animais domesticadas e das plantas cultivadas. A cla-
reira é o lugar das relações de parentesco e alianças, da socialização do
indivíduo, enfim, da definição da humanidade xikrin, é ali que o xikrin
se firma como sujeito.
A vida cerimonial xikrin está relacionada a todos os domínios aci-
ma mencionados, e esses rituais são de extrema importância por ser ne-
les que se dão a conhecer, dentre outras coisas, as relações de parentesco,
as relações de amizade formal e os aspectos da organização e reprodu-
ção social dos xikrin. O local é, ainda, o espaço onde produzem e repro-

188
duzem toda a beleza esperada dos sujeitos e da comunidade mebêngôkre
xikrin como um todo.

Os xikrin e o “outro”

Todo sujeito não xikrin é tido como o “outro” pela sociedade xikrin,
e, nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, eles têm
acentuado seu convívio de forma intensa com esse “outro”, em especial
com a sociedade envolvente, que eles chamam de kuben. Porém, apesar
das muitas ressignificações e adaptações vividas nas últimas décadas, as
comunidades mebêngôkre, dentre elas os xikrin, não desprezaram seus
costumes; pelo contrário, sua cultura tornou-se central para resistência
e conquista ao mundo do “outro”. Entre os xikrin, a cultura é acentuada
através das cerimônias rituais, as quais são celebradas com muita ênfa-
se e esforço de todos. Para tanto, homens e mulheres possuem papéis
distintos, mas de suma importância para o perfeito funcionamento da
cerimônia ritual.
Quanto a esses rituais feitos na comunidade, eles quase sempre
acontecem no centro da aldeia e possuem a característica de enorme
capacidade criativa. Segundo Gordon (2006), essas cerimônias também
geram uma aproximação corporal e psíquica nas pessoas que deles par-
ticipam, pois elas dançam, cantam, comem e relembram parentes mor-
tos e histórias de antepassados comuns. Algo que, para o pesquisador,
desencadeia determinados sentimentos e afetos que, no cotidiano, são
partilhados apenas pelo círculo mais restrito de parentes, e que nos mo-
mentos proporcionados pelas cerimônias rituais podem ser reconheci-
dos mais amplamente em todos os corresidentes, uma vez que tais pro-
cessos se constituem pela fabricação dos corpos (afetos e sentimentos),
tornando-os todos em um só corpo, como dizem os xikrin, “nhipydji”,
“corpo único”, “carne única”, característico dos parentes próximos.
E é pelo fato de os rituais serem compostos por tantos elementos
capazes de interferir diretamente na construção da pessoa e, ainda,
de expressar valores e sentimentos, que se acredita que os xikrin utili-
zem, em seu cotidiano ritual, itens, elementos e comportamentos que

189
demonstram muito de seu tempo presente e como têm lidado com as
transformações ocorridas em seu novo modo de viver e ver mundo.
Vale frisar que essas acentuadas transformações no modo de viver
e ver o mundo na vida dos xikrin se deram principalmente após ser
estabelecido o convênio de assistência entre os xikrin e a então CVRD
(Companhia Vale do Rio Doce), desde meados dos anos 1980, para
compensar os impactos das operações minerárias na Serra dos Carajás,
por essa área fazer divisa com a reserva da Terra Indígena Xikrin do Ca-
teté. O convênio foi firmado mediante exigência do Fundo Mundial de
Investimentos, que, por sua vez, só financiaria parte do Programa Gran-
de Carajás (projeto do governo), caso fosse desenvolvido um programa
assistencialista para os indígenas (dentre outras exigências) daquela re-
gião, que teriam suas vidas afetadas direta e indiretamente em função
das explorações do minério. Esse programa assistencialista foi então um
dos pré-requisitos para que o governo brasileiro conseguisse executar
parte das obras para a exploração do minério pela Companhia Vale do
Rio Doce (GORDON, 2006: 195).
A priori, até o ano de 1998, o programa era gerenciado pela Fu-
nai , mas, depois de muitas desconfianças e reclamações por parte dos
1

xikrin, passou a ser administrado pela Associação Indígena Bep-Nói,


que, por sua vez, contratou os funcionários necessários para cuidar
da burocracia, e montou sua equipe indígena de “guardiões/olheiros”
para estarem formalmente ligados à referida associação e morando
em Marabá, sempre participando das tomadas de decisão (GORDON,
2006: 195-202).
A fim de serem conhecidas algumas das transformações ocorri-
das dentro da comunidade xikrin, após o intenso convívio com o “outro”,
e as novas possibilidades geradas pelo convênio, pensou-se em refletir
um pouco em como homens e mulheres têm enfrentado esses novos
tempos a partir do casamento na sociedade xikrin dos dias atuais.

1
Fundação Nacional do Índio. (N. do R.)

190
Sobre comportamentos de mulheres e homens em relação ao
casamento

Vidal (1977) assinalou, em suas pesquisas, que, na comunidade


xikrin, cabia ao rapaz duas escolhas: tornar-se jovem guerreiro e res-
peitado antes do casamento e dos filhos, ou casar-se cedo e perder a
oportunidade de ser um guerreiro respeitado e futuro líder na comu-
nidade. Segundo o costume, recomendava-se evitar casarem-se cedo
(cedo aqui seria tão logo que a moça entrasse na puberdade). Isto se
deve à consideração de que o jovem ainda era um sujeito “mole”, fraco.
Daí a recomendação corrente de que se esperasse mais tempo, de modo
a participar das atividades diversas dentro de seu grupo de homens sol-
teiros, a fim de conquistar o amadurecimento físico e maior acúmulo de
conhecimentos, sobretudo a respeito das obrigações esperadas de um
autêntico xikrin.
O costume também recomendava evitar que os filhos nascessem
logo. Isto pode estar relacionado ao fato de que, após o quarto filho,
independentemente da idade, o casal é considerado velho e, se os filhos
nascessem muito cedo, os pais seriam velhos em quantidade de filhos,
mas sem os conhecimentos e as experiências necessárias aos velhos, o
que resultaria em pessoas sem prestígio algum.
Diante desses pensamentos, os homens não se casavam muito cedo;
ao contrário, esperavam a moça crescer e amadurecer um pouco mais.
Um solteirão maduro e forte poderia ser chefe e mentor dos jovens
solteiros, o que geraria prestígio, uma vez que estava sem obrigações
domésticas que o privariam de situações como expedições mais longas
e perigosas. E, apesar de um chefe de grupo dos solteiros não ter efe-
tivamente poder de decisão em nada, o prestígio acumulado, quando
do casamento, pode resultar em liderança, alguém em quem as pessoas
acreditam e cujas ideias seguem voluntariamente. Sim, porque só um
homem casado alcança verdadeiramente o prestígio e maturidade dian-
te da comunidade.
Mas, segundo a autora há pouco citada (VIDAL, 1977: 133), o grupo
doméstico (mãe e irmãs) do rapaz sempre o incentivava a casar-se an-

191
tes, encorajando-o a integrar-se à família, deixando a casa dos homens.
A necessidade de um homem estar integrado a uma família através do
casamento se dava pelo fato de que um homem xikrin sem esposa era
considerado um homem sem teto. E não apenas isso, é que o casamento
sempre fora considerado vital para um homem enquadrar-se no esque-
ma sociocultural. Enquanto isso, as mulheres podem passar vários anos
solteiras e, às vezes, nunca se casar, e mesmo assim permanecerão sem
qualquer dificuldade diante da sociedade. Nem mesmo se forem mães
solteiras ou se possuírem diversos namorados (LEA, 2012: 112-113).
Sobre essa situação, presenciou-se algumas vezes o diálogo de uma
jovem com sua família sobre os benefícios e malefícios de estar casada, e
a família dizia, em algumas conversas, que ela, estando solteira, poderia
ter vários namorados e ganhar muitos presentes. E, em virtude de uma
das visitas realizadas à aldeia, ela foi encontrada com um celular desses
ultramodernos e logo tratou de dizer que ganhara de um namorado. Na
ocasião, tentou-se argumentar com suas avós, suas tias e seus pais, que
estavam na casa, se fazia diferença uma mulher estar casada ou solteira,
se isso era bom ou ruim para ela. Muito se surpreendeu esta pesquisa-
dora diante da constatação de que a família até considerava positivo a
moça estar solteira, pois assim poderia ganhar muitos presentes dos na-
morados e estar sempre com itens que ela desejasse, coisa que, estando
casada, o marido poderia não possuir o dinheiro necessário para dar a
ela tudo o que queria. Questionou-se, então, como a comunidade iria
olhar para ela, como uma mulher namoradeira, mas as colocações e os
questionamentos expressados simplesmente não faziam muito sentido
para aquela família, e sua mãe respondeu: “Somos mebêngôkre”. Enten-
deu-se então que se estava tentando medir aquele comportamento pelos
valores de uma sociedade majoritariamente cristã.
Em outra situação, nutria-se um particular carinho por determi-
nada mulher da aldeia e nunca foram notadas diferenças entre ela e as
outras nos mais diversos momentos da convivência, chegando-se a pen-
sar que ela fosse viúva, até que, após muito tempo convivendo com ela,
descobriu-se que nunca fora casada e gostava mesmo era de manter seus
“namorados”, com especial apreço aos que lhe davam melhores presen-

192
tes, como um determinado senhor viúvo que sempre lhe trazia presen-
tes, como vestidos, compras de supermercado e dinheiro em espécie.
Mas ela preferia manter os namorados a casar-se, e, em determinados
momentos das conversas, ela dizia que “casar-se é ruim... bom mesmo
é namorar”.
Ao longo do convívio em campo, foram observadas algumas mu-
danças na conformação dos casamentos. O ideal de maturidade mas-
culina como pressuposto para o matrimônio vem dando espaço para
outros encaminhamentos. O casamento entre jovens de idades próxi-
mas vem se tornando frequente, como resultado de namoros estáveis
(que permanecem por determinado tempo). O fator preponderante,
nesses casos, é a aceitação do genro pela sogra. Este é um pressuposto já
apontado pela literatura especializada: a palavra final em relação ao ca-
samento é da mãe da moça, e, para Lea (2012), isso se dá provavelmente
porque é ela que vai agregar o genro em casa e ter que conviver com ele
enquanto o casamento durar.
Quanto às mudanças em relação ao momento certo para se casa-
rem, acredita-se que se deram em função do novo contexto histórico
vivido pelos xikrin, pois a ideia de que, para alcançar prestígio e des-
tacar-se junto à comunidade como possível liderança futura, o rapaz
precisava permanecer solteiro por mais tempo a fim de que não tives-
se compromissos domésticos com filhos e esposa, e pudesse participar
tranquilamente das longas expedições de caça, pesca e/ou guerra, dedi-
cando-se para sobressair-se entre os demais, parece que foi substituída
pelas novas possibilidades após o convênio realizado com a Vale. Isso
se justifica porque, através do convênio, tornou-se possível a existência
de novas funções e lugares para jovens solteiros e casados, uma vez que
a distribuição dos recursos do convênio permitiu ou, mesmo, desen-
cadeou novas funções e papéis a serem almejados pelos jovens e suas
respectivas famílias, perpassando a distribuição de renda, alcançando
também o âmbito das tomadas de decisões (GORDON, 2006: 239-358).
E, então, nesse contexto histórico atual em que estão inseridos, o casar-
se mais cedo não “atrapalha” os planos/sonhos de um jovem que deseja
tornar-se alguém de destaque na comunidade.

193
Porém, apesar das acentuadas mudanças no período em que pas-
sou a vigorar o convênio com a Vale do Rio Doce, as sogras continua-
ram a escolher seus genros e, pelas conversas mantidas com informan-
tes, as qualidades esperadas dos genros variam de família para família.
No entanto, espera-se que, além de bom marido, ele contribua com a
família nas aquisições consideradas necessárias, especialmente para
as grandes festas. Por isso, segundo muitas mulheres relataram, é bom
que o marido da filha possua renda extra à verba mensal destinada
a todos, podendo, assim, exibir sua esposa e seus filhos lindamente
adornados e potencialmente belos nos grandes cerimoniais. É comum
repetirem que miçanga boa é muito cara! Vale esclarecer aqui que, ao
longo das pesquisas realizadas, não se conseguiu na literatura infor-
mações suficientes para determinar um marco sobre o momento em
que começaram as mudanças na forma de pensar/ver o casamento,
mas se acredita, sim, que essas mudanças tenham sido desencadea-
das pelas novas possibilidades encontradas através do convênio, assim
como tantos outros aspectos que acabaram ressignificados desde o en-
contro acentuado com o “outro”.
Ainda segundo os informantes, os casamentos raramente aconte-
cem com mulheres de outra comunidade kayapó, mas, por vezes, al-
gumas mulheres do Djudjê-kô casam-se com homens do Bacajá e até
Gorotire,. Houve, também, em tempos mais distantes, dois casamentos
com homens “gavião”. Há cerca de três anos, uma jovem viúva em esta-
dia por Marabá enamorou-se de um rapaz de uma aldeia dos xikrin do
Bacajá e causou grandes transtornos para sua família, que relutou muito
em aceitar o casamento. Como o rapaz não foi aceito de imediato na
casa da sogra, levou a esposa para a aldeia de sua família, mas os pais
dessa moça foram buscá-la, alegando que aquela aldeia era pobre e não
poderia dar a ela e aos futuros filhos o plano de saúde e os cuidados
diários que os Djudjê-kô recebem.
Depois de alguns dias no Bacajá, e muita conversa, ele foi aceito
pela sogra e retornou com a esposa para o Djudjê-kô. Vale frisar que o
rapaz, uma vez aceito pela família, passou a morar no Djudjê-kô e foi
integrado à sociedade de homens através do grupo de homens de sua

194
idade, passando então a estar legalmente incorporado à comunidade
e, também, a receber a parcela da verba mensal destinada aos mem-
bros daquele grupo a fim de prover o sustento de sua esposa e seus
futuros filhos.
Outro ponto importante a ser mencionado, em relação aos casa-
mentos atuais, é referente às jovens meninas que estão em idade de na-
moro, pois essas meninas, quando falam em namorados ou casamento,
destacam a capacidade de prover, dentre as qualidades esperadas, para
que possam presentear com relógios, celulares modernos, miçangas bo-
nitas, vestidos, havaianas e calcinhas novas. Quando estão em passagem
pelos centros urbanos, Marabá ou Parauapebas amiúde, essas meni-
nas esperam visitar o centro comercial e comprar o que lhes agrada e,
para isso, precisam de dinheiro, e um bom namorado ou marido ideal
é aquele que pode satisfazer tais desejos. Esta é uma condição assumida
por praticamente todas as meninas com quem se conversou. É comum
os rapazes afirmarem que as meninas mais interessantes da comunidade
namoram ou casam somente com aqueles que têm mais a oferecer. Daí
que, para muitos deles, arrumar emprego e, consequentemente, renda é
condição para conseguir as parceiras desejadas. Todavia, é importantís-
simo lembrar que isso não é regra, lógico que existem meninas que pen-
sam diferente, mas no geral, quando se conversou sobre essas questões,
esse é o ponto de vista da maioria consultada. Quanto às meninas que
não conseguem ou não se interessam por tais parceiros, estas namoram
e pedem presentes mais simples, como alimentos e coisas que não pre-
cisem necessariamente de dinheiro. Mas é importante que se diga que,
independentemente do que seja o agrado, o namorado deve sempre pro-
videnciar presentes para as suas namoradas.
Importa mencionar que a questão é a seguinte: para aumentar a
renda e, assim, conseguir realizar, dentre outras coisas, os desejos das
namoradas e esposa, esses homens xikrin só buscam emprego através da
Prefeitura de Parauapebas, na Associação Indígena ou no posto de saú-
de, e só trabalham nesses postos através da indicação da comunidade
por intermédio de seus representantes no conselho de homens. Geral-
mente, quem assume os cargos são pessoas que, em momento anterior,

195
foram enviadas pela família para estudar o curso necessário em Marabá.
Até onde se conversou e se teve conhecimento, “qualquer” pessoa da
comunidade pode enviar seu filho para estudar na cidade, desde que o
filho queira e a família possa sustentá-lo nos estudos. Isso significa um
esforço por parte da família para pagar os estudos dos membros mascu-
linos de sua casa. Sim, porque às mulheres não é permitido aprender das
profissões consideradas externas às da cultura delas.
Ora, manter os filhos estudando demanda grande esforço, até para
convencê-los como jovens de que, quanto mais estudarem, melhor,
lembrando que se trata de uma cultura que só sentiu essa necessidade
após o convênio com a Vale, e isso faz pouco tempo. Frisa-se também
que algumas famílias não conseguem esse êxito, ou por não consegui-
rem convencê-los ou por não disporem de meios para pagar os estudos
desses filhos. Vale ressaltar que, geralmente, as famílias que possuem
os recursos necessários estão direta e/ou indiretamente ligadas aos car-
gos/posições de liderança, o que lhes garante a renda mensal maior do
que a grande maioria da comunidade, podendo assim usá-la como me-
lhor lhes convém. Segundo Gordon (2013), desde os tempos antigos,
os chefes são tidos como pessoas que sempre possuem mais que a co-
munidade, e salientou que não é porque estão vivendo em um tempo
de recursos financeiros fáceis que adotaram esse modelo; ao contrário,
para o pesquisador, a diferença existe apenas porque agora as lideranças
possuem o dinheiro/moeda em si, enquanto em outros tempos possuí-
am, por exemplo, mais alimentos, pois tinham um grupo de pessoas que
lhes ajudavam com as roças comunitárias, e quem administrava esses
alimentos “excedentes” eram os chefes, e isso lhes garantia maiores re-
cursos, poder de negociação e prestígio.
Conversando com as mães e pais desses jovens que estudam, perce-
beu-se que a família considera que estudar, profissionalizar ou capacitar
esse membro de sua casa é importantíssimo não apenas pelo salário que
ele receberá a mais, mas também para ampliar as chances nas alianças
políticas e, consequentemente, seus “poderes” dentro da comunidade.
E não se deve esquecer de que o casamento, por outro lado, pode ser
usado como boa e essencial aliança política, por isso as mães orientam

196
suas filhas no sentido de namorarem rapazes também com esse perfil
desejado aos garotos de sua casa.
Pode-se dizer, então, com essa breve introdução às questões sobre
o casamento e as relações de gênero na aldeia xikrin dos dias atuais que,
para as meninas xikrin do tempo presente, casar-se com homens que
tenham profissão significa, entre outras coisas, trazer à família mais po-
der de consumo, inclusive mais aquisições de bens não duráveis, como
itens e elementos potencialmente ritualísticos. E, sobre isso, Cesar Gor-
don (2009) já explicou que, para os xikrin, a aquisição de mercadorias
está diretamente ligada aos valores mais importantes existentes entre
eles, que é a fabricação de pessoas belas. E essas aquisições de itens e
elementos ritualísticos potencialmente belos certamente ficaram bem
mais fáceis nos tempos vigentes do convênio, pois, nas conversas man-
tidas com homens e mulheres da comunidade, eles sempre salientaram
as facilidades quanto à produção dos rituais em função das facilidades
proporcionadas pelo convênio.
Considerando-se, então, que a aquisição de mercadorias em geral,
inclusive dos itens e elementos ritualísticos e potencialmente belos, está
diretamente ligada aos valores mais importantes existentes entre os xi-
krin, que é a fabricação de pessoas belas, acredita-se que é pelo desejo
em comprar/adquirir itens e elementos ritualísticos potencialmente be-
los que as meninas gostam de namorados e maridos que lhes possam
dar maior poder de compra. E acredita-se também que as mães orien-
tem seus filhos a estudarem a fim de que possam gerar mais possibili-
dades, tanto política quanto financeiramente, para si e para os seus; e às
suas filhas a casarem-se com rapazes também com esse perfil no intui-
to de gerar maiores possibilidades de compras desses itens e elementos
necessários à produção de uma família bela e, ainda, para que possam
agregar pessoas potencialmente belas à sua casa/família, parentela e
convivas, conseguindo manter ao seu redor sujeitos que poderão servir
como mola propulsora para que elas mesmas e os seus sejam elevados
cada vez mais à categoria de pessoas mejx e autenticamente xikrin. E,
com esse comportamento, cotidianamente e nas cerimônias rituais, essa
mulher terá mais facilidade em exibir-se e exibir sua casa/família linda-

197
mente adornados e potencialmente belos, contribuindo de forma direta
e indireta para a fabricação de uma família, uma geração e uma socie-
dade xikrin cada vez mais autenticamente mejx.
Então, pode-se dizer que os grandes momentos cerimoniais fa-
zem parte das condições necessárias para que um sujeito se transfor-
me em autêntico xikrin. Assim, quanto maior, mais bonita e original
for a festa, mais chances o sujeito terá de, passo a passo, ir se transfor-
mando em autêntico xikrin. Nesse sentido é que grande parte do di-
nheiro recebido pelos homens da família costuma ser utilizado pelas
mulheres da casa no consumo de bens não duráveis, como alimentos
para as festas, miçangas e adornos diversos destinados aos membros
de sua família e ao homenageado nas grandes festas, algo que se tor-
nou um elemento considerado de suma importância no processo de
produção/fabricação de pessoas belas, autênticas e cada vez mais ge-
nuinamente xikrin.
Pode-se dizer, então, que a autenticidade de tais rituais é direta-
mente proporcional à grandeza e à beleza das cerimônias, incluindo
os sujeitos nelas envolvidos, e isso está profundamente relacionado
à forma xikrin de ver o mundo e a si mesmo. Para Gordon, (2009), a
categoria fundamental a partir da qual está forma pode ser entendida,
é BELEZA, e é evidente que a referência aqui não considera um ideal
puramente estético, mas também, e sobretudo, ÉTICO. Importa, en-
tão, compreender esse ideal, consubstanciado em uma categoria xikrin
denominada mejx. O xikrin é fascinado pelo mejx (belo), e inclusive é
em decorrência dessa busca permanente pelo belo que o xikrin torna-
se apaixonado pelas compras, gastando grande parte do dinheiro re-
cebido através do convênio.
Segundo as pesquisas de Gordon (2009), o mejx, no sentido de belo/
beleza, não se restringe à esfera material, pois a palavra serve para quali-
ficar tanto as coisas físicas (objetos e corpos) quanto as coisas imateriais,
como nomes e pessoas, pois, para além do valor estético, o belo/mejx
também exprime os valores morais e éticos que compõem uma pessoa.
O autor citado frisou ainda que, no cotidiano xikrin, o mejx pode ser
entendido como tudo que é bom, belo, bonito, correto, ótimo, excelente

198
e perfeito, opondo-se a kajkrit (coisa comum, vulgar, trivial), punure
(tudo que é negativo, ruim, feio, errado, mal feito, mal intencionado)
e, acredita-se ser importante acrescentar aqui, a palavra kaygo (falso,
aquilo que não é exatamente o que parece ser).
Assim, o mejx é essencial ao xikrin por designar um conjunto de
valores fundamentais a um sujeito verdadeiramente xikrin. Gordon
(2009: 8) lembrou que produzir e/ou obter coisas mejx parece ser a fi-
nalidade última de um xikrin no mundo, e que as qualidades e os po-
tenciais do belo perpassam diferentes planos, encontrando-se tanto em
objetos quanto em sujeitos, e alcançando, assim, das pessoas às coisas,
de formas e padrões concretos aos grandes nomes rituais de natureza
mítica. Nesse sentido, Gordon resumiu a beleza como sendo o resultado
de um encadeamento complexo de relações articuladas essencialmente
em torno do sistema ritual xikrin, sendo que os limites conceituais entre
objetos e sujeitos não são facilmente determinados. É nesse sentido que
se acredita que a importância do belo está presente em todo e qualquer
processo produtivo do universo xikrin, pois coisas belas são elementos
necessários para se construir pessoas belas, e pessoas belas são necessá-
rias para se construir coisas belas.

Considerações finais

Acredita-se, então, que é na busca pelo mejx/belo que grande


parte das mulheres e homens xikrin procuram agregar em torno de
si, inclusive através das alianças do casamento, pessoas que possuam
maiores facilidades em adquirir itens e elementos que as permitam
fazerem-se/fabricarem-se pessoas belas, numa busca permanente pelo
que acreditam ser seu ideal de mundo mejx para sujeitos xikrin auten-
ticamente mejx.
Julga-se ainda que essa busca permanente pelo mejx/belo foi re-
forçada no tempo de vigência do convênio com a Vale em função das
possibilidades desencadeadas através do mesmo, gerando novas pers-
pectivas para as gerações mais jovens do tempo presente, permitindo-
lhes comportamentos e pensamentos ligeiramente diferenciados das

199
gerações que os antecederam, inclusive em relação ao tempo ideal
para casarem-se. E, ainda, desencadeando nas mulheres um olhar di-
ferenciado quanto às suas antecessoras em relação às expectativas para
com os namoros e o casamento, pois as mulheres de tempos distantes
certamente não possuíam as possibilidades compartilhadas por essa
geração dos anos em que vigora o convênio. Logo, acredita-se que a
vigência do convênio contribuiu em muito para que houvesse altera-
ções no modo de viver e pensar, tanto de homens quanto de mulhe-
res xikrin do tempo presente, em relação a muitas das escolhas feitas
quanto ao modo de vida ideal diante do processo histórico atual em
que se viram inseridos.

Referências

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mico dos recursos florestais: a experiência xikrin. Em Aberto, v. 14, n.
63, p. 117-121, Brasília, Inep, julho/setembro, 1994.

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dios xikrin. São Paulo: ISA/Nuti/Unesp, 2006.

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gia da Universidade de Brasília, 2009. Série Antropologia, volume 424.

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tre os índios xikrin (mebêngôkre). Tellus, ano 13, n. 25, p. 57-82, Campo
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LEA, Vanessa R. Riquezas intangíveis de pessoas partíveis: os mebêngôkre


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VIDAL, Lux Boelitz. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira:


os kayapó-xikrin do rio Cateté. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1977.

200
Entrevistas

Otore Kayapó, em janeiro de 2007.

Nhok-ae Xikrin, em julho de 2007.

Nhok-ae Xikrin, em abril de 2012.

Pure Xikrin, em agosto de 2012.

Nhok-ae Xikrin, em janeiro de 2013.

Ingrei-to Xikrin, em junho 2015.

Uká Xikrin, em setembro de 2015.

Otore Kayapó, em maio de 2016.

Takak-Nhoti Xikrin, em abril de 2016.

201
FAZER-SE MÃE DE SANTO: A TRAJETÓRIA
ESPIRITUAL DE MARIA LUIZA DA CONCEIÇÃO

Mayane Rumão de Souza Arruda


Sariza Oliveira Caetano Venâncio

Sabendo que as identidades são múltiplas e construídas ao longo


da história de um sujeito, esse processo de construção será compreen-
dido como algo em constante movimento, em constante fazer-se. Des-
te modo, procurar-se-á narrar como Maria Luiza da Conceição fez-se
mãe de santo. Lançou-se mão da etnografia, de conversas e observações
realizadas para traçar a trajetória de vida da dirigente religiosa. É inte-
ressante observar como experiências com migração, conflitos de terra
e preconceitos surgiram em suas memórias ao contar como se tornou
umbandista. Essas experiências serão entendidas como formadoras.
Assim, optou-se pela utilização da teoria de Josso (2004) para explicar
como estas experiências de vida, boas ou não, foram fatores importantes
para o fazer-se mãe de santo.

Contextualizando Esperantina

A cidade de Esperantina fica na região do Bico do Papagaio e


está localizada geograficamente entre dois estados, Pará e Maranhão.
O município é o mais próximo dos rios Araguaia e Tocantins. Ele
fica 680 quilômetros distante da capital Palmas, próximo às cidades
de Buriti do Tocantins, São Sebastião do Tocantins e São Domingos
do Araguaia.

203
Muitos dos municípios dessa região fazem parte da Floresta Ama-
zônica, inclusive o município de Esperantina, o que, para os campo-
neses, era considerado um ponto positivo. Para eles, ocupar uma área
florestal era vantajoso, sobretudo pelo modo de vida que levavam, pois
viviam de agricultura de subsistência, a chamada “roça de toco1”, e dos
recursos naturais vindos da floresta (SOARES, 2009: 62).

Foi na etapa de ocupação da região pela frente cam-


ponesa e por pessoas que fugiam da seca e da grilagem
no Nordeste, depois da saturação da frente extrativista
na Amazônia Ocidental e início da decadência do ciclo
da borracha, que se percebem os primeiros embriões do
processo emancipatório (2009: 63).

Assim, o extrativismo e a pecuária foram os mecanismos que de-


ram base para a formação da região do Bico do Papagaio, não só pela
importância alimentícia como também porque os camponeses viam
nessas bases um comércio promissor. É a partir desse contexto que se
pode compreender a grande presença de nordestinos, em especial aque-
les oriundos dos estados do Maranhão e Piauí em Esperantina. Atual-
mente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
cerca de 35% da população é oriunda da região Nordeste do País. Da
população total, estima-se que 61,9% são nascidos na própria região
Norte, mas não necessariamente em Esperantina ou no Tocantins.
Esperantina foi emancipada em 10 de fevereiro de 1991, depois
do desmembramento do município de São Sebastião do Tocantins.
A cidade teve como seu primeiro prefeito Deumar Alves dos Santos,
que a administrou de 1993 a 1996. Apesar da data de emancipação,
Esperantina começou sua povoação por volta de 1966, quando che-
gou à região o senhor Zé Mulato, que mais tarde daria nome a um

1
Roça de toco é o nome que se dá ao cultivo realizado em uma pequena área na
qual foi feito o corte das árvores, a queima desta localidade e, depois das chuvas,
com a terra adubada, é feito o plantio. Essa prática é realizada, geralmente, com
trabalho braçal e familiar.

204
dos municípios da cidade, “Centro do Zé Mulato”, hoje chamado de
Vila Tocantins.
O nome de Vila Tocantins foi criado por uma associação de mora-
dores, e posteriormente políticos, que buscavam recursos para a comu-
nidade já que esta surgiu primeiro que a cidade de Esperantina. Teriam
que escolher entre “Mulatins”, nome que fazia junção do nome do pio-
neiro do lugar com o nome do estado, ou Vila Tocantins. Decidiram
pelo último. José Alves Rodrigues, um dos líderes desta associação, e
atualmente político do município, contou em entrevista que somente a
partir de 1992-1993 foi que nomearam a Vila.
Contam os mais velhos que Zé Mulato, quando veio à região, trouxe
seu filho Adroaldoe Vitorino Carvalho Nascimento para lhe ajudar na
procura de terras para trabalhar. Eles passariam a conhecer melhor a
região devido à atividade de caça – um dos meios de vida mais comuns
no período. Nas terras devolutas2, do então Estado de Goiás, de muita
fertilidade e muita fartura, segundo entrevistados, Zé Mulato fixou re-
sidência com sua família. Assim como ele, Vitorino e, depois, Gregório
Rumão fizeram o mesmo. Este último ainda reside no povoado de Vila
Tocantins nos dias atuais.
Em 1972, chegou ao Centro do Zé Mulato o Sr. Pedro da Cruz Sou-
sa, índio da aldeia de Guajará e natural de Pindaré, Maranhão. Migrou
do estado vizinho para a cidade de São Miguel, Tocantins, e depois para
Esperantina, onde reside até então. Pedro Sousa, como se tornou po-
pularmente conhecido, foi recebido na região por Zé Mulato e, um ano
após sua chegada, deslocou-se mais de 12 quilômetros de distância do
povoado a fim de conquistar uma terra que chamasse de sua, fundando
uma vila que também carregou seu nome, “Centro do Pedro Sousa”.
Pedro Sousa relatou, em entrevista concedida às signatárias do
presente estudo, que andou muito por estas terras, pois era caçador e
vendia couro de onça por 700 cruzeiros. Disse ainda que Gregório Ru-

2
Terras devolutas são terras do Estado das quais muitos camponeses e/ou fazen-
deiros tomaram posse, sobretudo nos séculos XIX e XX, e foram devolvidas, ainda
que outras, não.

205
mão foi quem o ajudou a andar na mata, “foi ele que me ajudou a abrir
as varedas3 dessas terras”. Ainda narrou que, quando chegou à região
localizada hoje como centro da cidade, não havia nenhuma família por
lá e que deu morada para mais de 30 famílias, as quais também vieram
para a região em busca de terras.
O mesmo sofreu violência e muitas ameaças de fazendeiros que ti-
nham o apoio do Estado. Ele disse que, “por isso, fui baleado e preso”.
As terras de que Pedro Souza e muitas outras famílias tomaram posse
integravam uma região estratégica entre os dois rios e de uso do Exér-
cito. Estas terras já teriam sido dadas a militares aposentados, segundo
Albino Cardoso de Sousa, atual prefeito de Esperantina, e filho do pio-
neiro da cidade citado anteriormente.
O prefeito e seu pai disseram que estes camponeses ganharam força
quando vieram estudantes como Nicola, estudante de Medicina, Lur-
dinha, padres italianos e, por último, um sacerdote muito querido na
região, o Padre Josimo:

Quando Josimo veio para dar apoio ao movimento, os


camponeses não depositaram muita confiança nele. To-
dos os padres que tinham visto eram brancos e Josimo,
negro. Achavam que era pistoleiro, mas participou ati-
vamente do movimento, alfabetizando os camponeses e
ajudando nas estratégias de defesa do movimento (Al-
bino Cardoso de Sousa, entrevista concedida em 11 de
fevereiro de 2016).

Desta forma, pode-se perceber que a criação da cidade de Espe-


rantina e o município de Vila Tocantins foram também influenciados
por ideais da Igreja Católica. De acordo com a fala do prefeito, neste
período, o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat),
junto coma igreja, foi o órgão que cortou as terras e as dividiu entre os
camponeses.

3
Para os entrevistados, “varedas” é uma espécie de planta na floresta que fica en-
trançada (cipó) e que dificulta a passagem.

206
A história desses pioneiros nos mostra um silenciamento, por parte
dos mesmos e da literatura acadêmica, sobre a participação das mulhe-
res nesse pioneirismo. Foi nessa lacuna que se encontrou Dona Luizi-
nha, com histórias de busca por terra e melhor lugar para viver, seme-
lhante àquelas contadas acima.
Segundo Dona Luizinha, foi neste contexto histórico de conflitos
por terras e origem de cidades/comunidades que ela chegou com sua
família, vinda de uma realidade muito diferente: uma nordestina que,
junto com a família, fugia da seca e procurava uma terra onde pudesse
viver da mesma. Foi em Esperantina que ela encontrou contexto para
escrever uma outra parte de sua história, esta marcada por muitos desa-
fios e muitas conquistas.

Conhecendo Dona Luizinha

Para compreender as experiências de vida que construíram a iden-


tidade da dirigente4 umbandista, será usado o conceito de experiência
formadora de Marie-Christine Josso (2004). A autora em referência fa-
lou que os saberes e hábitos dos sujeitos históricos fazem parte de uma
formação identitária criada pelas experiências adquiridas ao longo da
vida, determinando então suas práticas sociais. Foi desta forma que as
experiências de vida, sejam elas positivas, sejam negativas, fizeram de
Dona Luizinha uma mãe de santo.
As diversas experiências, boas e ruins, narradas por Maria Luiza
da Conceição, a principal interlocutora desta pesquisa, sobre seu pro-
cesso de desenvolvimento espiritual tornaram-se fundamentais para
compreender como ocorreu a construção de sua identidade enquan-
to dirigente. Para explicar como ocorre este processo formador, Josso
(2004) destacou que: “Formar-se é integrar-se numa prática o saber-
fazer e os conhecimentos, na pluralidade de registros [...] Aprender

4
Mais comumente conhecida como mãe de santo pelo senso comum. Mas es-
ses líderes religiosos não se autodenominam assim, preferindo ser chamados de
dirigentes.

207
designa, então, mais especificamente, o próprio processo de integra-
ção” (2004: 39).
A pluralidade de registros aludida por Josso foi encontrada nas con-
versas tecidas com Dona Luizinha. A dirigente nasceu em 9 de junho de
1949, em Pernambuco. Ela é casada com Seu Sérgio e mãe de dez filhos,
sendo que dois morreram ainda recém-nascidos. Contou que, mesmo
sem fazer ideia do que era Umbanda, sentiu os primeiros sintomas de
mediunidade aos 17 anos de idade, quando ainda era solteira e residia
no município de Tuntum, no Estado do Maranhão.
Dona Luizinha relatou que migraram do Estado de Pernambuco
para o Maranhão devido a uma grande seca. O período exato ela não
lembrou, mas se recordou de que sua família viu na migração uma opor-
tunidade de achar um lugar onde pudessem viver da terra. Em muitas
conversas realizadas com ela, esta falou das dificuldades que enfrentou,
e ainda tem passado, desde seu primeiro contato com a religião afro-
-brasileira. Narrou como se deu o processo de se aceitar e conviver com
esta realidade, e ainda contou como sua família e a comunidade onde
vivia reagiram à sua adesão à Umbanda.
Nas primeiras tentativas de abordagem para realizar a pesquisa, fo-
ram encontradas algumas resistências por parte de Dona Luizinha. Ela
contaria depois que reagiu dessa forma “por causa do preconceito [...]
já sofri muito com isso”. Compreendeu-se que as críticas que ouviu ao
longo de sua vida e a não aceitação social, da qual por muitas vezes foi
alvo, contribuíram para a desconfiança da dirigente. Inicialmente, per-
cebeu-se o desconforto e o medo da rejeição dela durante as conversas.
Viu-se como a discriminação social e a exclusão marcaram seu dia a dia.
Já se aprendeu que a sociedade, de modo geral, não conhece e não quer
conhecer o outro, preferindo marginalizá-lo. Percebe-se que é por ques-
tões como essas, dentre outras, que às religiões afro-brasileiras é negado
um espaço maior no seio social e na História.
No trabalho de Concone (1987), Umbanda: uma religião brasileira,
a autora falou de um medo do desconhecido, do que não se compreen-
de. Com isso, entende-se que determinadas posturas do homem são re-
petitivas por causa de uma memória que tem sido construída ao longo

208
de sua história, uma memória de preconceito, de desrespeito e de medo.
Diante disto, não é de se admirar que as pessoas adeptas das religiões
afro-brasileiras se retraiam ao serem abordadas. Apesar de ser cada vez
mais comum, tanto em redes sociais como nas pesquisas acadêmicas
essa temática, a rejeição tem se perpetuado e se difundido também. Os
locais onde estas religiões realizam seus cultos, na maioria dos casos,
são afastados dos centros das cidades e sempre atrás da casa onde reside
o líder religioso. Tal característica só vem corroborar a marginalização
das religiões de matriz africana.

Fazendo-se mãe de santo

Dona Luizinha, ao narrar sobre seu início no mundo da espiritua-


lidade, lembrou que sentia muitas dores de cabeça, tinha desmaios e
“ficava como se fosse louca”; tudo isso quando ainda era adolescente,
aos 17 anos de idade, em Pernambuco. Sentia febres altas e chegou a
ficar mais de 30 dias prostrada em uma cama. Seus pais, recordou ela,
de tudo fizeram para que ficasse melhor, mas somente aos 22 anos con-
seguiu tratamento. Neste período, já casada com seu Sérgio,, ela morava
no Estado do Maranhão.
Dona Luizinha lembrou-se, com gratidão, de que foi com o apoio
de vizinhos, amigos e de seu compadre, Paulo, que ela chegou até um pai
de santo, conhecido pelo nome de Regino. Ele residia na cidade de In-
garana, Maranhão, próximo à cidade de Tuntum, onde ela morava. Ele
não tinha terreiro, trabalhava somente na mesa5. Segundo a dirigente,
foi ele que a “ensinou a rezar “Com sete chaves de ouro”, que é uma reza
própria de abrir mesa [...] e só às quartas-feiras. Ele rezava, fazia cura e
cuidava das pessoas”. Regino foi quem retirou os espíritos maus que a
atormentavam e deixou somente aqueles que a iriam acompanhar por
toda a vida. Estes seriam os “espíritos bons e de luz”: Banzeiro d’Água,

5
Dentro da Umbanda, o trabalho na mesa consiste em rezar, benzer e curar, tendo
somente um altar. Não há o uso da gira, bailado com os médiuns. A esse respeito,
ver Venâncio (2013).

209
Caboclo de Areia, Rainha do Mar, Velho Légua, Zé Légua, Rainha Ma-
dalena (moça), Manoelzinho (criança), Princesa Rosa (moça), Caboclo
Teixeira, Caboclo Pena Verde, dentre outros.
A princípio, a família de Dona Luizinha não aceitava bem o trata-
mento oferecido pelo umbandista porque não tinham noção do que se
tratava. Quando perceberam que somente dessa maneira ela ficava bem,
e que os sintomas que apresentava não eram decorrentes de doença,
mas sim de mediunidade, deixaram-na livre para desenvolver-se. As-
sim como sua família, Dona Luizinha também não compreendia o que
acontecia consigo. Lembrou, entre risos, que acreditava ser “coisa do
demônio” e que, inicialmente, sofreu muito por rejeitar sua “missão”,
mas logo percebeu que não tinha outra opção.
Em 1984, Dona Luizinha mudou-se de Tuntum, no Maranhão,
para o município de Esperantina, em Tocantins, no período ainda norte
goiano, com seu esposo e filhos. Ela descreveu como era o município no
período: “quase não tinha casas, era uma casa aqui, outra acolá e muita
mata”. A dirigente narrou que, quando chegou à região, ela e sua família
foram à luta por um pedaço de chão. Contou que decidiram vir do Ma-
ranhão porque moravam em uma terra aparentemente sem dono, mas
este apareceu e só permitiu que ficassem se fosse por arrendamento,
mas era um custo muito alto. Então, foram para o povoado Centro do
Zé Mulato, atual Vila Tocantins, onde iniciaram a luta pela conquista
de uma terra onde pudessem viver da mesma. Dona Luizinha, parti-
cipante deste processo, lembrou que o “Estado veio para tirar nós e os
outros camponeses o que o Getat já tinha cortado e dado para nós, mas
continuamos na terra”. Foi com o apoio da família e de outros vizinhos
que se encontravam na mesma situação que conseguiram terra para tra-
balhar e dali tirar o sustento.
A dirigente relatou que, quando chegaram a Esperantina, pensou
em parar com os trabalhos de mediunidade. Ela chegou a se desfazer
de seus instrumentos de trabalho, os santos, porque não sabia como
as pessoas ali iriam reagir. Ainda ingênua, segundo ela, acreditava
que não iria sentir mais nada. Contudo, mais uma vez iniciaram-se os
sofrimentos, os desmaios, as febres, e agora com maior intensidade.

210
Além dos filhos, que tinham aumentado, ela narrou que as dificulda-
des para a sobrevivência eram grandes, visto que seu esposo se dividia
entre permanecer na terra onde demarcaram que seria deles, fazendo
uma espécie de vigilância, e ter que trabalhar em outros lugares para
aumentar a renda da família.
Foi por perceber que estava atrapalhando e prejudicando a família,
por não ter como cuidar da roça nem das crianças, que Dona Luizinha
resolveu procurar alguém para se tratar. Encontrou Francisco Ando-
rinha, umbandista de mesa, que cuidou dela. A esposa de Francisco,
Dona Luka, é atualmente uma das médiuns mais velhas da dirigente.
Dona Luizinha contou que não quis ficar se tratando durante muito
tempo com ele porque “ele queria que eu largasse tudo, meus filhos, mi-
nha casa; parasse o que eu estava fazendo só pra atender ele... e eu não
podia fazer isso”. Foi quando conheceu seu Bernardo por intermédio de
uma de suas comadres. Ele tinha um salão com gira e passou a cuidar
dela, orientando-a a ter seu próprio terreiro.
Desde o princípio, segundo a dirigente, Bernardo já a teria coloca-
do para participar da gira. Dona Luizinha passou a frequentar o salão
dele de oito em oito dias por um ano. Durante este tempo, ela aprendeu
com seu “professor” somente a “ligar as correntes6”, porque o resto já
tinha aprendido “com Regino e com a vida”. Segundo a dirigente, ela
só conseguiu abrir uma mesa com mais facilidade, desde o início de
seu desenvolvimento, por conta das rezas aprendidas quando ainda era
criança; rezas que iam desde um simples Pai Nosso e Ave-Maria, até
aquelas mais elaboradas para benzeduras e curas.
Passado o um ano, Dona Luizinha relatou que seu Bernardo disse
que ela já tinha condições de abrir seu próprio salão. A dirigente comen-
tou que muitos médiuns da comunidade de Vila Tocantins que “brin-
cavam” no salão do umbandista, que era localizado mais ao centro de

6
Ligar as correntes é sinônimo de abrir os trabalhos em uma gira. Correntes ou
linhas são termos utilizados no campo para se referir a um conjunto de entidades
que são agrupadas a partir de determinadas semelhanças. Exemplos: corrente das
águas, corrente das matas, linha de caboclo, linha de preto-velho etc.

211
Esperantina, também a apoiaram na abertura de seu terreiro. Foi assim
que ela decidiu abrir seu salão e percebeu que já não poderia abandonar
mais os ritos umbandistas.
Ela sabia que o dia de abertura do salão tinha que ser especial, por
isso escolheu o dia do festejo de São Francisco de Assis. Dona Luizinha,
juntamente com sua família, fez um salão de barro, coberto com palha
de babaçu ao lado de sua casa. Ela não se lembrou ao certo da data, mas
declarou acreditar ter sido por volta do ano de 1989. Ela declarou que “a
primeira vez foi muito bonito [...] as pessoas que tinha [sic] costume de
brincar com ele (Bernardo) tudo veio este dia. [...] as pessoas diziam que
o lugar agora vai dar só macumbeira”.
Da relação com Bernardo, Dona Luizinha ganhara, além dos en-
sinamentos, três estátuas de pretos-velhos, os quais ficam à direita de
quem entra em seu salão atualmente e as entidades recebidas pelo di-
rigente. Destas, a que aparece com mais frequência na “coroa” dela é o
Velho Légua.
Mesmo animada com a abertura do salão, ela falou: “eu tinha muito
medo, medo do preconceito”. Sua fala e seu pensamento na época já de-
monstravam a relação do povoado com as religiões de matriz africana.
O medo que a umbandista sentia era reflexo de um processo histórico
de perseguição a estas religiões, que vinha desde o final do século XIX
e início do XX. A conjuntura político-social deste período foi marcada
no Brasil pelas tentativas de apagar e silenciar, sobretudo, o período da
escravidão (ROHDE, 2009).
Dona Luizinha narrou que, quando iniciou os trabalhos com gira
e tambor, o preconceito foi logo sentido. Pessoas a chamavam de “fei-
ticeira e de bruxa”, como as próprias filhas também relataram. As filhas
da dirigente comentaram que nunca foi uma situação fácil para elas,
porque eram sempre lembradas como as “filhas da macumbeira, da te-
recoseira”, tanto dentro como fora do seio escolar. A família de Dona
Luizinha, filhos, netos e sobrinhos são participantes ativos no seu salão.
Eles ajudam a manter o ritual, seja como médiuns ou não, seja dançando
ou batendo tambor, e a defendem das críticas da população local.
Apesar de ser o foco dos preconceitos, a dirigente disse de forma

212
triste que seus netos, todos em idade escolar, são as mais novas vítimas
da intolerância religiosa. Eles, frequentemente, chegam a casa relatando
ter sofrido preconceito dentro da escola, inclusive por parte dos profes-
sores. Um dos netos contou que um professor, ao ver um aluno batucar
em uma carteira, teria dito de forma pejorativa o seguinte: “se quiser
bater terecô, vai lá pra casa da Dona Luizinha”. Percebeu-se, com a fala
do professor, que qualquer som que se assemelhe a tambor é automa-
ticamente classificado como vindo de origem não somente negra, mas
afro-religiosa. É certo que a fala deste mais que educativa, carrega uma
acusação e caráter negativo dessas sonoridades de matriz africana. São
os imaginários negativos, que muitas pessoas em geral constroem sobre
a África, seus povos e costumes, e que se cristalizam na fala do professor.
Anderson Oliva (2007), em um estudo recente, chamou a atenção
para os ambientes, sujeitos e situações que mantêm o imaginário nega-
tivizado sobre a África. Nesse artigo, o referido autor apontou os prin-
cipais responsáveis pelas imagens mantenedoras sobre o continente e
seus povos: a imprensa escrita e televisiva, as relações sociais cotidianas,
a formação escolar e o livro didático.
O historiador citado mostrou que a escola acaba por ser o espaço de
reforço para as imagens negativas sobre o continente africano, uma vez
que o livro didático traz consigo pouco conteúdo da África, e estes nem
mesmo sugerem uma reflexão sobre os temas propostos. Os professores,
a exemplo do aqui citado, também não contribuem, na maioria dos ca-
sos, para um olhar ressignificador sobre esses imaginários; eles acabam
por fazer o inverso, estimulando o uso de alguns estereótipos negativos,
com símbolos de fracassos, mazelas e interferências demoníacas.
Exatamente por causa de experiências como as sofridas por Dona
Luizinha, suas filhas e seus netos que a líder religiosa e sua família reve-
laram se preocupar quanto ao que a sociedade pensa sobre elas. Muito
dos questionamentos feitos sobre os rituais realizados no terreiro tive-
ram como resposta constante a ênfase no fato de se trabalhar com linha
branca. Esta defesa de Dona Luizinha remete à explicação que Prandi
(1995-96) fez sobre a divisão da Umbanda em duas linhas: a de direita,
que seria a linha branca, e a linha de esquerda, que seria a negra:

213
A umbanda se divide numa linha da direita, voltada para
a prática do bem e que trata com entidades “desenvolvi-
das”, e numa linha da “esquerda”, a parte que pode trab-
alhar para o “mal”, também chamada quimbanda, e cujas
divindades, “atrasadas” ou demoníacas, sincretizam-se
com aquelas com aquelas do inferno católico ou delas
são tributárias (PRANDI, 1995-96: 73).

Quimbanda, então, seria a linha de esquerda ou negra, usada para


fazer o mal. Mas também seria qualquer prática ritual onde a presença
de exus e pombagiras é invocada. É importante ressaltar que a análise
de Reginaldo Prandi sobre a dicotomia das linhas não representa um
padrão analítico nem compreende a totalidade das práticas encontradas
em diversos terreiros, visto que muitos entendem as linhas não como an-
tagônicas, mas como complementares. Desse modo, apesar da ênfase de
Dona Luizinha em afirmar que trabalha somente na linha branca, e que
“foi Deus que deu esse dom porque ninguém ensinou nada sobre isso”,
a mesma confidenciou que, em alguns momentos, é necessário chamar
a linha de esquerda, na figura dos exus, para resolverem demandas mais
terrenas que as entidades da linha branca não conseguem. Contudo,
ela afirmou que isso só ocorre se for após a meia-noite. Assim, viu-se
que a compreensão da dirigente das linhas foi tomando formas distin-
tas, dependendo do contexto e dos interlocutores. Se, em um discurso
preliminar e oficial, ela enfatizou a diferença das linhas pautadas em
um julgamento moral entre bem e mal, próximo da distinção apontada
por Prandi (1995-96), posteriormente observou-se que Dona Luizinha
mostrou a importância não somente de se ter uma linha de esquerda na
casa, assim como de trabalhar com ela em momentos específicos.
Ainda dentro da preocupação da dirigente acerca do olhar dos ou-
tros sobre ela e sua família, foi possível perceber durante a observação
da Festa de São Francisco como isso ocorre de fato. A festa, que é heran-
ça familiar de promessas, acontece todo ano no mês de outubro. Dentre
os festejos, há uma procissão pela Vila Tocantins, que sempre é acom-
panhada por crianças e vizinhos, na sua maioria mulheres. Durante a

214
procissão, que é realizada com rezas e cânticos, percebeu-se que muitas
pessoas saíam de suas casas para ver o que estava acontecendo. Muitos
olhavam e balançavam a cabeça de forma negativa, indicando reprova-
ção do ato. Algumas pessoas riam e apontavam de forma debochada
para os que caminhavam, e podiam-se ouvir frases como “achei que isso
não tinha mais”, ou perguntas para os pesquisadores do tipo “o que tá
fazendo com esse povo?”. Podia-se observar o mal-estar nos rostos de
alguns na procissão, mas nada que impedisse o bom andamento e o des-
fecho da mesma.
Dona Luizinha percebeu todo esse preconceito como ignorância por
parte daqueles que a insultavam, e como “missão” a ser cumprida por ela.
Se antes, segundo a mesma, não gostava de fazer o que fazia, atualmente
amava e dizia que iria cumprir sua “missão até morrer”, pois “foi algo que
Deus me deu para fazer o bem para as pessoas”. Seu relato de resistência
e negação ao se descobrir médium encontra similitudes com outras ex-
periências de iniciação não somente ouvidas em comentários e conversas
informais, como lidas em outros trabalhos acadêmicos. O processo de
sofrimento mental e físico, a dificuldade de encontrar cura na medicina
normativa, a resistência em aceitar tratamento espiritual vindo de matriz
afro-brasileira, a cura através da iniciação e, por fim, a aceitação são eta-
pas que caracterizam todas as narrativas de vida espiritual de dirigentes,
tanto lidas e como ouvidas, com raríssimas exceções.
Se as etapas, como se viu, são semelhantes em diversas narrativas,
o discurso da “missão” recebida também o é. Assim, a teoria do “dom”,
explicitada pelo sociólogo Marcel Mauss, que percebeu o dom como um
sistema de trocas e obrigações simbolicamente culturais que orienta as
relações sociais, parece contribuir para a compreensão dessa “missão”
dada por Deus. O autor mencionado explicou em seu trabalho “Ensaio
sobre a dádiva”, inserido na obra Sociologia e antropologia (2003), o que
ele chamou de sistema de reciprocidade entre os indivíduos, ou seja,
consiste na obrigação de dar, receber e retribuir. O dom é como um
presente dado e recebido, e que deve sempre ser retribuído da melhor
maneira possível. Para recompensar o presente recebido, exige-se que se
retribua para a sociedade o que o indivíduo pode dar de melhor. Para

215
Mauss (2003: 209), “a dádiva é a obrigação de retribuir”. Nessas socie-
dades, esse sistema é algo cultural, de maneira que os indivíduos têm
honra ao retribuir o “dom” ofertado, pois este é como uma imposição,
que, se recusado, perde o valor moral e social.
É deste modo que a “missão” de Dona Luizinha parece se comportar.
Foi um dom, dádiva concedida por Deus, e que não pode ser guarda-
do ou negado. É certo que seus guias e entidades a auxiliaram e ainda
auxiliam no desenvolvimento de sua missão, quer ensinando-a pontos
cantados ou remédios, quer curando as pessoas e ela mesma, aliviando
seu cansaço, dando-lhe forças etc. Estes, assim como ela, parecem se
portar como instrumentos nas mãos de Deus para ajudar os que mais
precisam. Sendo assim, sua retribuição para o recebido está em ajudar
aqueles que a buscam, seja curando, seja desenvolvendo espiritualmente
ou dando uma palavra de conforto. Nesse presente/missão, a dirigente
parece ter consciência dos ônus e bônus dele, ou seja, preconceitos e
dificuldades sofridas em prol de ajudar a si mesma e diversas pessoas.
Sendo assim, foi possível perceber que as experiências que Dona
Luizinha teve durante sua vida – as festas, o sofrimento, o preconceito, o
desenvolvimento mediúnico, as mudanças, junto aos saberes recebidos
pelos umbandistas que lhe ensinaram e apresentaram a Umbanda – fo-
ram relevantes para seu processo de formação enquanto mãe de santo.
Tudo isso caminha paralelamente ao pensamento de Josso (2004), que
ensinou o seguinte:

Começamos a perceber que o que faz a experiência for-


madora é uma aprendizagem que articula, hierarquica-
mente: saber-fazer e conhecimentos, funcionalidade e
significação, técnicas e valores num espaço-tempo que
oferece a cada um a oportunidade de uma presença para
si e para a situação, por meio da mobilização de uma plu-
ralidade de registros (2004: 39).

Ainda, segundo a mesma autora, falar das experiências é funda-


mental para alguém se tornar o que é. Vale ressaltar que todas as expe-
riências são válidas, sejam positivas, sejam negativas, como foi o caso

216
dos preconceitos sofridos. Percebeu-se que Dona Luizinha aprendeu a
conviver com o medo, com a rejeição, com as dificuldades de se en-
tender como umbandista e viver numa sociedade que a exclui e critica.
Aprendeu a conviver com os críticos que, de forma ambígua, falavam
mal dela, mas que, no almoço e no jantar servidos durante as festas,
apareciam por lá. Aprendeu a rezar, a ter paciência e sabedoria para
aconselhar e curar aqueles que a procuram. Aprendeu, ao longo de sua
vida, a ser mãe de santo.

Referências

CONCONE, Maria Helena Villas Bôas. Umbanda, uma religião brasi-


leira. São Paulo: CER-FFLCH/USP, 1987. Coleção Religião e Sociedade
Brasileira.

JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Tradução de


José Claudino e Júlia Ferreira. São Paulo: Cortez, 2004.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. Tradução de Paulo Neves.


São Paulo: Cosac Naify, 2003.

PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil: para uma sociologia


dos cultos afro-brasileiros. Revista USP, n. 28, p. 65-83, São Paulo, de-
zembro/janeiro/fevereiro, 1995-1996.

OLIVA, Anderson Ribeiro. O espelho africano em pedaços: diálogos


entre as representações da África no imaginário escolar e os livros di-
dáticos de História, um estudo de caso do Recôncavo Baiano [on-line].
Disponível em: <http://docplayer.com.br/4431943-O-espelho-africano-
-em-pedacos.html>. Acesso em: 15 de março de 2016.

ROHDE, Bruno Faria. Umbanda, uma religião que não nasceu: breves
considerações sobre uma tendência dominante na interpretação do uni-
verso umbandista. Revista de Estudos da Religião – Rever, ano 9, p. 77-
96, São Paulo, março, 2009.

217
SOARES, Zaré Augusto Brum. Agricultura familiar, movimentos sociais
e desenvolvimento rural na região do Bico do Papagaio – Tocantins: um
estudo sobre as relações entre sociedade civil e desenvolvimento. 2009.
175p. Dissertação (Mestrado em Ciências) – Curso de Pós-Graduação
em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro. Seropédica: CPDA/UFRRJ.

SOUSA, Albino Cardoso de. Albino Cardoso de Sousa: entrevista [feve-


reiro de 2016]. Entrevistadora: Mayane Rumão de Souza Arruda. Espe-
rantina, Tocantins: 2016.

VENÂNCIO, Sariza Oliveira Caetano. Tenda Espírita Umbandista Santa


Joana d’Arc: a Umbanda em Araguaína. 2013. 200p. Dissertação (Mes-
trado em Ciências Sociais) – Curso de Pós-Graduação em Ciências So-
ciais da Universidade Federal do Maranhão. São Luís: CPGCS/UFMA.

218
“FAZENDO O CAMINHO DE VOLTA”: MEMÓRIA
E CRÍTICA A PARTIR DE CONCITA SOMPRÉ

Jeronimo da Silva e Silva


Hiran de Moura Possas

O que nos separa não são as nossas diferen-


ças, e sim a resistência em reconhecer essas
diferenças e enfrentar as distorções que resul-
tam de ignorá-las e mal interpretá-las. Quan-
do nos definimos, quando eu defino a mim
mesma, quando defino o espaço onde eu sou
com você e o espaço onde não sou, não estou
negando o contato entre nós, nem estou te ex-
cluindo do contato – estou ampliando nosso
espaço de contato (LORDE, 1984)1.

Apresentação

As informações desse texto são resultantes de dois anos de ativida-


des de extensão e de pesquisa junto ao povo gavião-kỳikatêjê – a Terra
Indígena Mãe Maria –, sudeste paraense, entre os anos de 2014 e 2016.
A colaboração entre o programa de extensão “Mito-poéticas orais: re-
pertórios ‘tectônicos’ em devir com a educação bilíngue”, coordenado
por Hiran de Moura Possas, e o projeto de pesquisa “Cosmologias re-

1
Transcriação para a poética em inglês.

219
ligiosas entre os gaviões-kỳikatêjê: Xamanismo(s) e Cristianismo(s)”,
coordenado por Jerônimo da Silva e Silva, permitiram, para a temática
circunscrita, articular transcrições de narrativas orais com notas etno-
gráficas apresentadas e analisadas a seguir.
É válido ressaltar – e as razões serão esclarecidas posteriormente –
que o desenvolvimento das ações de extensão e de pesquisa foi marcado
não somente pela visita constante à aldeia em “festas” e momentos peri-
ódicos, mas ainda pela participação das lideranças indígenas em eventos
da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará, principalmente na condição de críticos-colaboradores preocu-
pados com a inserção de povos indígenas nesta instituição de ensino. A
partir do diálogo entre lideranças, professores e professoras indígenas,
na universidade e na aldeia, os respectivos projetos ensejaram ações,
de certo modo interdisciplinares, seguindo distintas direções, de modo
que os aspectos dispostos no texto representam um recorte particular de
pesquisa mais dilatada.
A ênfase, no recorte acima, não significa “redução” ou tentativa
de minorar o escrito. A proposta é proveniente da valorização de um
desafio que se impõe e escapa no chamamento para conversar com as
memórias, portanto, saberes da indígena Concita Sompré. Dizemos que
se impõe porque tem solo no sentido dado às experiências da indígena a
respeito das dinâmicas sociais e territoriais de povos indígenas, comuni-
dades quilombolas e lutas camponesas nesta área da Amazônia; escapa,
pois, ao fazer avançar através da reelaboração memorial de si, isto é, no
“carregar a aldeia dentro”, apresenta alguns rastros, podendo resultar em
chaves de leitura, a serem perseguidas, para que se revisem as ações de
pesquisa e extensão no diálogo entre as populações locais e o exercício
de pesquisas na região.
As narrativas reivindicatórias de Concita Sompré a respeito das
demandas de povos indígenas, nesse território, são compostas por
elementos que remontam, desde a trajetória familiar na infância do
sudeste do País, à inserção junto ao povo gavião, na Terra Indígena
Mãe Maria; o deslocamento para a cidade de Marabá, em momen-
tos alternados, e, mais “recentemente”, a sua ação como professora e

220
liderança na Associação Indígena Gavião Kỳikatêjê Amtàti. No tecer
dessas memórias, faz-se emergir a noção de um caminho percorrido
que não se impõe. Dito de outra forma: algo não realizado, enquanto
percurso causal, e sim um certo caminhar que precisa retornar, ou
melhor, tornar-se de outro modo, recorrentemente na expressão: “fa-
zendo o caminho de volta”.
O artigo apresenta, em seguida, o contexto da ocupação dos povos
gaviões no sul e sudeste do Pará e as nuances dessa histórica ocupação,
dos fluxos migratórios e da interação com outras populações indígenas
e não indígenas, sublinhando alguns conflitos decorrentes do avanço
de práticas capitalistas. No segundo momento, será dado relevo, a par-
tir das memórias da narradora, à constituição de sua história familiar;
experiências formativas no espaço universitário e à manifestação das
emoções impressas nas perdas e nas conquistas, valorizando as possi-
bilidades de leitura de pressupostos cosmológicos do que significaria
“o caminho de volta”, não somente como um termo oriundo da cos-
mologia da narradora, mas na atenção ao movimento que se dilata e se
inflaciona noutros campos semânticos nos contatos com não indígenas.
Daí emerge a ancoragem intercultural do “caminho de volta” com o “ser
kýikatêjê”. A valorização da língua indígena e o deslocamento de jovens
kýkatêjê para o cenário das universidades de Marabá, ocorrendo a in-
tensificação desse processo.
No terceiro momento, o texto finda demonstrando como os rela-
tos e as análises da Professora Concita se impõem como uma crítica
aos fundamentos econômicos e políticos da sociedade do “branco”, e
o quanto essa fragilidade resulta de uma compreensão de mundo que
rejeita a “ciência dos índios” ou a “sabedoria dos indígenas”. Mesmo,
ante a especificidade das dinâmicas sociais na região envolvendo uma
pluralidade de camponeses, comunidades quilombolas, povos indíge-
nas, dentre outros, não há de se negar seus engates culturais. Graças
a essa interação intercultural, os autores fazem vazar contribuições da
“ciência indígena” para elaborações não indígenas. O “caminho de vol-
ta” – esboçado a seguir – poderá conversar com os caminhos de outras
populações, igualmente flageladas pelo poder público? Há um “cami-

221
nho de volta” para a forma como lidamos e construímos nossa “ciência
universitária”? Segue o apontamento.

Contexto aberto no esporro da onça

A ocupação histórica do sul e do sudeste paraense foi marcada


por inúmeros fluxos migratórios, motivados, dentre tantos aspectos,
pelas demandas econômicas do poder público e de investimentos
particulares. Processos migratórios construídos, grosso modo, por
práticas desordenadas de povoamento, resultando conflitos sociais e
lutas pela posse da terra, e alterando, por conseguinte, as dinâmi-
cas territoriais. Mesmo não tão aguda no texto, é válido lembrar que
a própria noção de “ocupação” e de “desenvolvimento” carrega uma
historicidade, dizendo mais sobre os interesses de grupos políticos
e econômicos interessados em explorar os recursos da região, do
que na forma como distintas populações se alojaram nestes espaços
em busca de melhores condições de vida, no passado e no presente
(PETIT, 2010: 271-283). Reflexões de Otávio Velho (2009) acerca do
que ele denominou de “microrregião de Marabá”, por volta de 1970,
dão conta da instabilidade populacional, do caráter aventureiro e do
“signo da turbulência” que passaram a compor as narrativas sobre a
região. Tratava-se, segundo o referido autor, de aspectos decorren-
tes das chamadas “frentes de expansão”. Ainda para Velho (2009), na
ocasião, uma das formas de se analisar a diversidade das atividades
econômicas do que se chama de “Amazônia Oriental” seria a compre-
ensão do “inter-relacionamento entre frentes diversas e o estudo da
frente de expansão agropecuária” (2009: 9).
A criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
(Sudam), a construção inicial da Transamazônica associada ao cresci-
mento das atividades agropecuárias, do cultivo e da exportação em lar-
ga escala de castanhas e outros produtos, bem como o início do “ciclo
do minério”, conforme sinalizou o historiador Pere Petit (2003), permi-
tiram a configuração de grupos sociais em ininterrupto contato: traba-
lhadores rurais, grileiros, madeireiros, garimpeiros, religiosos, pistolei-

222
ros, servidores públicos, fazendeiros e comerciantes; alguns formando
núcleo comum da diversa e robusta elite empresarial.
Nesse cenário de múltiplos interesses e de tantas negligências do
poder público, a histórica violência contra povos indígenas, comunida-
des quilombolas e trabalhadores rurais se manifesta sob a faceta som-
bria da “pistolagem” ou “morte sob encomenda” na região, prática, diga-
se de passagem, em determinados momentos agenciada por servidores
de segurança pública (PEREIRA, 2015; SILVA, 2010). Longe de editar
apenas o exercício truculento de parte da elite local, cabe ressaltar a ca-
pacidade dessas populações de se mobilizarem na tarefa da resistência e
de conquistas. No caso dos trabalhadores rurais, visibilizamos avanços
nas ocupações de propriedades improdutivas ou griladas, originando
agrupamentos momentâneos na propriedade almejada – acampamen-
tos, e, posteriormente, a posse reconhecida do local, os assentamentos
(ALMEIDA, 2006; MORENO, 2011; SOUZA, 2010).
O impacto dessas formas de ocupação também desafia a manu-
tenção de territórios habitados por comunidade quilombolas. As va-
riadas formas de pertencimento e interação de populações quilombo-
las com o seu passado e a busca de afirmação territorial-política, no
presente, dialoga com as demandas cosmológicas dessas pessoas, acio-
nando saberes de manejo do solo e de recursos florestais específicos, o
que possibilita, por sua vez, a crítica às políticas de Estado e aos pro-
cedimentos jurídicos que não levam em consideração os “costumes”
desses povos (MARIN & CASTRO, 1999); igualmente, o contato des-
sas pessoas de matrizes culturais afro-brasileiras termina por ajuizar
formas próprias de discernir exercícios de alteridade, ante a complexa
diversidade cultural na qual estão inseridas, tanto nas comunidades
quilombolas quanto aqueles resultantes de processos migratórios do
Nordeste brasileiro (SILVA, 2010).
A contextualização das dinâmicas populacionais, na luta por terri-
tórios e pela afirmação cultural elencada acima, faz-se necessária para
que nos situemos a respeito desse cenário, no qual os gaviões estão in-
seridos. Nesses casos, a estreita relação entre o contato e a violência se
estabelece com mais nitidez quando nos referimos ao processo histórico

223
de encontro envolvendo povos indígenas e o homem não indígena ou,
como preferem os kỳikatêjê, o kupẽ2.
Se, por um lado, o processo colonizador, em séculos anteriores,
e as ações ou omissões por parte do Estado brasileiro resultaram no
extermínio de centenas de povos indígenas, por outro, muitas foram
as formas de resistência, de modo que o contato – ao contrário do que
se imaginava via de regra – engendrou a reelaboração das ações indí-
genas – uma busca pelas conquistas – e na impossibilidade de gene-
ralizar a especificidade dos contatos étnicos. A esse respeito, o antro-
pólogo Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro, ainda que preocupado em
empreender uma análise “macrocultural” dos elementos formativos
que dão “sentido” ao Brasil – pautando-se basicamente na influência
lusitana, indígena e africana –, não deixou de perceber que as “matri-
zes étnicas” indígenas, graças ou pela diversidade, além de não sofre-
rem “a perda de autonomia étnica” (1995: 74), poderiam ultrapassar
a dominação no movimento designado como “transfiguração étnica”
(RIBEIRO, 1996).
Participantes de um conjunto de povos indígenas do tronco jê
ou jê-timbira, e classificados como pertencentes à família linguística
macro-jê, os kỳikatêjê atualmente residem na Reserva Indígena Mãe
Maria (RIMM), também abrigando os parkatêjê, os rõhôkatêjê e os ak-
rãtikatêjê. Conhecidos como o “povo do rio acima” ou “Turma do Ma-
ranhão”, os kỳikatêjê, segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), se
nomeiam assim devido à sua localização em relação ao rio Tocantins3.
Já em dezembro de 1949, na região do Gurupi, fronteira entre Pará e
Maranhão, Darcy Ribeiro registrara no seu diário de campo aspectos do
deslocamento de alguns grupos gaviões (identificados alternadamente
por “timbiras” também). O autor citado descreveu que muitos desses

2
A palavra é aplicada para nomear genericamente povos não indígenas. As pala-
vras indígenas enunciadas em kỳikatêjê estão em itálico e foram grafadas conforme
informação recebida. Nesses casos, reconhecemos a existência de razoável variação
entre os falantes (POSSAS et al., 2016).
3
A esse respeito, consultar Ferraz em: <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/
gaviao-parkateje/print>.

224
“grupos” ou “famílias” viviam empregados em fazendas, aproximando-
se gradativamente do antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) graças
ao processo de “pacificação”; também salientou a impressionante dimi-
nuição desses indígenas, na área, ao receber o que chamou de “uma me-
lancólica lista dos timbiras do Gurupi” (RIBEIRO, 1996: 84-85), com-
posta por 23 pessoas!
A dinâmica anterior desses povos tangencia para constantes confli-
tos e alianças associados a percursos variáveis, desde o Estado do Mara-
nhão inclusive, onde, segundo a indígena e antropóloga Rosani Fernan-
des, “se refugiaram das violentas perseguições e das inúmeras tentativas
de contato feitas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e posterior-
mente pela Funai, até a RIMM (Reserva Indígena Mãe Maria), no Esta-
do do Pará, onde se encontram atualmente” (FERNANDES, 2010: 17).
Durante décadas, as alianças com outros povos gaviões se consolida-
ram, mas não a ponto de estabelecer a unidade das etnias na mesma
aldeia, pelo menos no que tange à noção de “unidade” imaginada por
não indígenas. Por volta de 2001, os kỳikatêjê decidiram formar sua pró-
pria aldeia, na Reserva Mãe Maria, e, passadas as dificuldades iniciais,
esse povo da floresta terminou por se consolidar entre as demais aldeias
(FERNANDES, 2010: 27-35; FERRAZ, 1983).
Obviamente, mais do que qualquer pesquisa ou reflexão sobre
a história do contato, é impossível mensurar a violência desses epi-
sódios. Nesse sentido, e para exemplificar, é válido apresentar certas
compreensões cosmológicas descritas mais recentemente através das
memórias dos mais velhos, provocando justamente um “contexto
aberto”, com perspectivas múltiplas e relacionais. No dia 12 de setem-
bro de 2015, os autores deste texto estiveram na Aldeia Kỳikatêjê para
assistir ao “jogo de flecha” e ouvir alguns velhos indígenas, exercen-
do a função de professores na Escola Tatakti Kỳikatêjê. Na ocasião,
sentado em um banco de madeira, debaixo de uma árvore e cercado
por crianças, o professor indígena Ajanã Katykti, enquanto “apertava
o arco” e limpava a ponta das flechas arremessadas, contava a respeito
dos antigos “jogos de flecha”, no interior da mata, acionando “seu” re-
pertório sociocosmológico.

225
Para Ajanã, o “jogo de flecha”, mesmo praticado nas trilhas da
mata, nos antigos caminhos de caça – numa época em que “a mata
não estava mexida” –, não diz respeito somente a um tempo que ante-
cede o contato com não indígenas e toda sorte de intempéries vividas
por consequência, mas principalmente ao que denominou de “ciência
dos índios”, um conjunto de saberes manejados no “tempo que viviam
na mata”. Ajanã informou que o “caminho na mata” nasce, a partir da
ação dos caçadores e guerreiros ancestrais e de uma sucessão de ras-
tros de animais perseguidos por lanças e flechas, o que gradualmente
levou à criação de um percurso na mata. O caminho estabelecido pe-
los caçadores para chegar aos locais diletos de caça tornaram-se even-
tualmente um lugar onde os mesmos caçadores ou guerreiros eram
atingidos por alteridades, assim, cobras, onças e entidades ou “espíri-
tos da mata” aproveitando-se do caminho para “atocaiar” indígenas.
Nesse perspectiva relacional, o caminho do caçador torna-se repen-
tinamente a força que metamorfoseia o caçador na caça, o predador
na presa, o aliado no inimigo, podendo-se distinguir justamente os
“caminhos na mata” revividos nas memórias dos velhos indígenas da-
queles caminhos (estradas, ferrovias etc.), abertos pelos garimpeiros,
madeireiros e mineradoras, na medida em que o último, ao destruir
o entorno, o contexto de alteridades, fecha-se em si mesmo e quer
fundar o caçador universal que não reconhece a instabilidade de sua
ação – expresso na figura do kupẽ.
Falar de caça, lanças e flechas é contar histórias de cobras, onças e
jacarés. Dentre tantas histórias contadas por Ajanã, fomos confronta-
dos com os relatos sobre as onças: elas emergem como uma caçadora
da caça indígena; caçadora de índios, ao mesmo tempo que, através
dos “esporros” (aqui significando rugido), indica os melhores locais
de caça. Nesses ensinamentos, o “esporro” da onça significa os rastros
que orientam a vida do caminhar na mata. Se, atualmente, nos comu-
nica que raramente se ouve “esporros” de onça na Terra Indígena Mãe
Maria, o mesmo não ocorria no passado, exigindo-se mais cuidado e
preparo dos jovens justamente pela cautela em não serem surpreen-
didos por esses animais. Talvez este seja um dos motivos que tenha

226
levado o uso de arco e flecha no passado, no interior da mata, a se
tornar atualmente “jogos” (termo concebido após contato) de arco e
flecha4. A esse respeito, vale lembrar a ironia de Ajanã ao afirmar que
os pesquisadores nunca viram uma “onça mesmo”, alegando que a
onça vista no “Museu de Belém” (Emílio Goeldi) não seria uma “onça
de verdade”, e sim uma “onça fraca”. Ser-onça-mesmo, aqui, se man-
tém justamente pela intensidade predatória das relações com a mata-
mesma, cenário não controlado da relação entre os vivos, ambiente
onde se mata... Mesmo! Ora, a onça faz um caminho na mata através
de odores, marcações pela urina e “esporros”, do mesmo modo que
os indígenas fazem pela recorrência das pegadas, marcações e mapa
memorial. Ambos fazem caminhos, mas também entram, percorrem
e ultrapassam os caminhos uns dos outros, deixando sempre percur-
sos abertos.
Que isto significaria? Não estar mais vivendo “na mata mesmo”,
com a “onça mesmo”, e assim por diante. Isso nos pôs a ouvir que a
feitura do contexto histórico e cosmológico desses povos não é uma
ambientação fechada apenas pelas relações humanas, mas que levam
em consideração a ação de alteridades, digamos, “não humanas” (VI-
VEIROS DE CASTRO, 1996). Não seria possível fazer essa brevíssima
apresentação do contexto dessa região sem apresentar minimamen-
te a perspectiva desses povos a respeito de si e do kupẽ, no senti-
do de mostrar que, entre indígenas e não indígenas, existem outros
caminhos, rastros e “esporros”, sendo prudente reconhecer, nessa
multiplicidade, o quiasma na abertura desses contextos tensionados.
A abertura de caminhos e a dinâmica dos rastros exploradas, nesse
preâmbulo, têm como mote a aproximação com os relatos elencados
abaixo por Concita Sompré.

4
Ajanã não está construindo uma interpretação fatalista; na verdade, o retorno dos
“jogos de arco e flecha” atualmente representa uma forma de autoafirmação das me-
mórias e cosmologias locais, na medida em que são formas de integração entre as
aldeias da Terra Mãe Maria, conforme nos foi comunicado pelo Cacique Zeca Gavião.

227
A memória e o enfrentamento do silêncio: Concita Sompré

O caminho de Concita “começaria” quando seu pai, indígena xe-


rente, peregrinando de aldeia em aldeia5, graças às “políticas públicas
inclusivas” do SPI e da Funai, deslocando, removendo e desintegrando
etnias pelo Brasil. O então jovem xerente aportou em um convento je-
suíta, em São Paulo, graças a uma jovem clara e alta, guarani. Já com a
jovem devidamente “raptada”6, o casal “desceu” o rio Araguaia, morou
com os carajás, até a chegada na cidade de Marabá, no Pará.

Meu pai foi parar nesse convento e lá ele raptou minha


mãe [risos] e aí eu tô contando um pouco dessa história
porque vocês.... Vocês têm que entender um pouco, né?
Porque é que muitos índios vem parar em vários lugares,
né? Teve um ciclo aí pra ele ter ido parado em algum
lugar... E aí a gente veio descendo rio Araguaia, chega-
mos a Marabá na década de 70. Aí, chegamos em Marabá,
em Marabá nós moramos ali no [bairro] Amapá, temos
uma relação muito forte ali no Amapá, foi um bairro que
nos acolheu então todo mundo conhece assim a famí-
lia do índio se vocês chegarem no Amapá e perguntar
onde é que moram os índios aqui todo mundo sabe dizer
aonde... É DE LÁ!A gente veio pra terra indígena Mãe
Maria na década de 80, 79, 78 pro 80, a gente chegou na
Terra Indígena Mãe Maria porque minha mãe tinha uma
família lá de Guarani, parente da minha mãe casado com
um gavião... Então, a gente foi pra morar na Terra Indí-
gena Mãe Maria e lá nós tivemos essa relação que está
até hoje, então fomos casando, tivemos filhos, parentes e
tudo mais (SOMPRÉ, 2015).

5
Segundo Concita, seu pai, após um conflito familiar, foi remanejado para várias
aldeias: passou pelos carajás e pelos craôs.
6
O “rapto” consistia, conforme nos disse Concita Sompré, em laçar mulheres in-
dígenas de outras etnias pelo pescoço, deslocando-as para outras áreas a fim de
constituir família. O rapto bem-sucedido seria marcado pelo “amansamento” da
mulher e sua aceitação da vida em comum com o raptor.

228
O relato destacou inicialmente a recorrente noção na fala da
narradora sobre um “ciclo” presente no percurso de diversos povos
indígenas, de um percurso que não diz respeito apenas ao desloca-
mento de um povo motivado por guerras locais ou fugas, mas ainda
vinculado à ideia de que indígenas “remanejados” de suas aldeias por
agentes da Funai ou mesmo da interação com outros grupos étni-
cos, guardando em suas memórias aspectos culturais dos povos com
quem viveram, reformulando inúmeras experiências de “integração”,
“contato” ou “conflito”, sem, entretanto, abandonar elementos cos-
mológicos de sua cultura. Daí o termo “ciclo” ser manuseado pela
narradora para valorizar um movimento dinâmico que não abando-
na literalmente os elementos do pertencer; ao contrário, sai, irriga
e volta-se a partir dele. Esse entendimento perfaz todo o relato de
Concita Sompré e fundamenta particularmente o sentido, inclusive,
das memórias de sofrimento.
Outro ponto a ser sublinhado são as lembranças que remetem à
aceitação de sua família na cidade de Marabá, Pará, durante a década
de 1970, vivida no bairro Amapá, hoje chamado de Cidade Nova. Ao
ressaltar a pacífica e boa relação com os moradores do bairro, enfatizou
justamente o respeito dos não indígenas à “casa” dos índios. Rememorar
os bons momentos de viver, no antigo bairro do Amapá, emerge entrela-
çando à manutenção de determinados hábitos indígenas na localidade.
Por exemplo, a narradora associou os “bons momentos” ao ato de co-
tidianamente toda a família acordar cedo, “antes de o sol nascer”, para
fazer fogueira no quintal e iniciar as atividades diárias. Notemos que,
no caso de Concita Sompré, particularmente, se a vivência entre os não
indígenas reforçou certa memória positiva do período em que esteve no
bairro mencionado, tais recordações não minimizam o seu testemunho
acerca da luta pela aquisição das terras e, marcadamente, os atos de vio-
lência decorrentes das dinâmicas territoriais.
Na década de 1980, a mudança para a Reserva Mãe Maria – política
pública compensatória do governo federal para “territorializar” povos
indígenas da região – “coincidiu” com a construção da estrada de ferro
Carajás, na Reserva Mãe Maria.

229
Chega lá um grande agronegócio, né? Aí, vê aquela terra
linda maravilhosa com aquele tantão de árvores que dá o
oxigênio PERFEITO pros nossos pulmões, [...] não aqui
tem muita madeira vou derrubar e plantar soja, vamos
fazer disso aqui um grande agronegócio.... Vamos pro-
duzir, vamos fazer, vamos acontecer, aí tá, aí.... né? Então,
somos tachados de preguiçosos porque o nosso tempo
não é o tempo do branco... MAS AÍ tão tentando trazer o
tempo pra cá, né? (SOMPRÉ, 2015).

A distinção entre o “tempo do índio” e o “tempo do branco” se


dá inicialmente na forma como os indígenas se relacionam com as
atividades de cultivo, coleta e outras formas de manuseio do solo, re-
sistindo às exigências das demandas comerciais capitalistas. Assim, o
“tempo do branco” que chega é o tempo dos movimentos sistematiza-
dos e acelerados, que fatiam calculadamente o tempo de colher, plan-
tar, coletar, o uso de tecnologias voltadas para a produção em larga
escala e, principalmente, a exploração de trabalhadores agrícolas com
pagamentos ínfimos.
Para a professora kỳikatêjê, revelou-se indispensável, além de falar
de seu processo de chegada e adaptação entre o povo gavião, desnudar
momentos vividos na cidade, assim não deixando de marcar encontro
com o tratamento preconceituoso nos termos “preguiçoso” e “selvagem”.
Desse modo, ela evocou momentos de extremo “sofrimento” e “dúvida”
quando resolveu se movimentar entre a Terra Indígena Mãe Maria e a
cidade de Marabá, no intento de desenvolver seus estudos de gradua-
ção. O relato a seguir foi extraído de uma palestra realizada em evento
da Pró-Reitoria de Extensão, na Unifesspa, em 2015; uma ação voltada
para problematizar a permanência e fazer avançar a presença de povos
indígenas na graduação e na pós-graduação. Na ocasião, Concita mobi-
lizou toda a sua memória no ambiente e agregou relatos e percepções de
outros indígenas a respeito, extrapolando o teor factual do relato e de-
senvolvendo críticas à postura etnocêntrica de docentes e outros setores
institucionais nas instituições de ensino superior da região.

230
MAS EU sei que, se eu valorizar aquilo e eu sair desse
mundo aonde eu vivo, eu num vou conseguir me adap-
tar, é o que acontece com os nossos estudantes que che-
gam nas universidades, eles QUEREM tá aqui nesse
mundo... Mas eles não tão sendo preparados pra isto
aqui, né? Então, o que é que acontece? Vem pra cá o
professor, tá falando, ele não tá conseguindo entender
até mesmo porque as palavras que tão sendo falada, né?
São palavras – como diz... O linguajar são grego, né? Ali
mal tá entendendo o português, aí ele não vai entender
mais ainda... SÓ QUE ele tem um diferencial ainda, ele
tem vergonha de perguntar, ele tem vergonha de abrir
a BOCA e de falar em público e aí ele fica calado... aí
ele volta com dúvida... Não entendeu o que foi pedido...
Não conseguiu pedir ajuda e ele se fecha e aí ele retorna.
Chamado de incompetente, não conseguiu! Porque teve
uma fala de um professor de Medicina que chamou um
índio, acho que é um índio uaiuai... Na sala de aula, ele
falou: “Não sei por que você tá aqui... você não conseg-
ue entender o que a gente fala, pede [...] você tá já no...
acho que no terceiro ou no quarto período, a turma já
tava lá na frente e ele continuava lá... Se eu fosse você,
eu voltava pra sua tribo... voltava pra sua aldeia, lá você
vai ser mais útil do que aqui”... Uma fala de um profes-
sor de Medicina... Ele disse assim: “Não, eu vou ficar, eu
vou ficar e eu vou aprender, eu sei que eu vou aprender”
[choro] Então existe isso, esse impedimento. MAS EU
MORAVA na aldeia e não falava minha língua... né? Ne-
nhuma! Nem guarani, nem xerente, nem gavião... então,
por esse motivo, eu entrei na faculdade pra... tentar ver
se eu consigo trabalhar isso e aprender, fazer com que o
meu filho pelos menos QUEIRA aprender. Isso é um de-
safio hoje nosso enquanto professor indígena lá na aldeia
é TRANSMITIR essa valorização do “eu” porque hoje
eu tenho cinco filhos, moro na aldeia e que não falam a
língua... A língua nossa lá nos kỳikatêjê só é falada pelos
mais velhos e alguns de 45, 46 falam, mas não falam mui-

231
to, alguns de 30 e 25 entendem, mas não falam, e alguns
pequenininhos falam palavras solta, como “vamos tomar
água” né? “olha a caça” algumas... então, eu comecei a
fazer o caminho de volta, eu fui até um certo limite pra
conhecer a cidade, a formação e me formar, e agora eu es-
tou fazendo um retrocesso, fazendo o caminho de volta...
E, nesse caminho de volta, eu me descobri! E não tenho
que ter vergonha de mim, eu não tenho que ter vergonha
por não FALAR... Mas eu também descobri um outro
lado que eu tenho orgulho de ser quem eu sou, mas eu só
senti esse orgulho depois de um certo tempo, porque até
então eu tinha vergonha, eu tinha vergonha de me pintar
quando eu num tava no meio do meu grupo, eu tinha
vergonha de usar meus artesanatos quando eu num tava
no meio do grupo... NO MEIO do grupo, eu me sentia
fortalecida, fora do grupo eu me sentia só, então eu tinha
vergonha... E ISSO é característica da maioria dos indí-
genas hoje do Brasil (SOMPRÉ, 2015. Grifo dos autores).

Uma das primeiras observações sobre os obstáculos enfrentados


pelos indígenas, na relação com a universidade, é a incompatibilidade
entre a intenção do indígena e a demanda do saber acadêmico. A de-
cisão de percorrer o caminho em direção à universidade, e ainda as-
sim manter-se “fixo” ao que ocorre na cultura indígena, é o desafio de
construir uma nova perspectiva do outro e de si. Se a construção da
cosmologia indígena passa, grosso modo, pelas relações dadas no inte-
rior da aldeia e, posteriormente, no limite com outras sociedades, desta
vez, sendo periodicamente lançado ao convívio com não indígenas, o
estudante indígena vê-se compelido a construir percepções desse outro
imerso cotidianamente nele e, ainda, confrontar-se com a intensidade
do olhar não indígena, isso num quadro de solidão (“longe da aldeia”)
extremamente difícil; entretanto, ir para universidade, como afirmou
Concita, passou a ser um ato de reafirmação indígena. Então, para além
de conhecer o “mundo do branco”, há um entendimento sobre a feitu-
ra e a riqueza de um “retorno” necessário para manter diálogo com os

232
kupẽ. Entre “valorizar” coisas do “mundo do branco” e “querer” estar na
aldeia, passam conhecidos elementos da complexa relação desses povos
na área: a existência de estratégias das lideranças indígenas no sentido
de formar profissionais, para atender às suas demandas e facilitar a pos-
sibilidade de negociar conquistas nas políticas públicas, particularmen-
te na área da engenharia, saúde, educação e do direito.
Entre o “sair” da aldeia e o efetivo “retorno”, com as conquistas
almejadas, existem percalços extremamente variados. Se a suposta in-
compatibilidade de mundos dada pela inadequação das linguagens é um
desafio imediato nas políticas de inclusão, acrescente-se a vergonha de
“abrir a boca” para perguntar o que não entendeu, suscitando dúvidas
e dificuldades habituais de aprendizagem. Seguramente, este não é um
caso de simples “vergonha de abrir a boca” ou timidez. O que Concita
Sompré nos relatou foi um cenário acadêmico onde a voz do outro, “do
indígena”, não encontra possibilidade para emergir, para ser escutada.
Que cenário é esse? É o cenário de uma narrativa disciplinar acadêmica
convencional e hermética; é o cenário do monopólio do lugar da fala do
docente; é, principalmente, o lugar de um diálogo técnico que pouco va-
loriza a se disponibilizar e ouvir as demandas do outro. Este é o cenário
fazendo naufragar qualquer apelo à alteridade; é o ambiente da pobreza
do pensamento e da vida; do retorno pobre, daquele retorno de quem
“não conseguiu pedir ajuda”, não foi ouvido; daquele que “se fecha”.
O exemplo do professor de Medicina que aconselhou o indígena
a voltar para a aldeia por não conseguir “acompanhar” o restante da
turma não é apenas uma queixa básica de um docente por não ser en-
tendido como pretende. Denota, dentre outros aspectos, a visão insti-
tucionalizada de uma universidade enrijecida pelos ditames curricula-
res do tempo hábil para o aprendizado; da observância radical de que
a comunicação e o esforço “intercultural” devem partir tão somente
do discente indígena, e, por último e mais importante, a problemática
ideia de que o indígena acadêmico de Medicina será mais útil na “tribo”
do que na universidade, uma total dissonância do significa de “utilida-
de” do professor, que sequer suspeita que o enfrentamento da adversi-
dade pelo estudante é parte de um grande projeto de valorização e de

233
resistência do seu povo. Ao falar de “utilidade”, estaria ele a pensar nos
“louros” mercadológicos de ter uma clínica? De trabalhar num hospital
“reconhecido”?
Os cenários laboratoriais, as estantes das bibliotecas e as “frias” sa-
las de aula no ambiente acadêmico parecem ter pouco espaço para a
sensibilidade desse outro. A postura do professor não deve gerar revolta
pessoal, pois, falando objetivamente, é a posição que todos os docentes
praticamente já tiveram, ainda que “inconscientemente”, nas faculdades
e pós-graduações. Raramente, digamos, em eventos bem específicos, há
momentos de sensibilização diante do outro. Ali, num trabalho hercú-
leo de memória, com o rosto marcado de lágrimas, Concita Sompré nos
apresentou o quanto ainda precisamos avançar...
Apesar de algumas coincidências, o caminho percorrido pela nar-
radora guarda, de certa forma, distinções do jovem graduando em Me-
dicina, pois, se Concita era descendente de guarani e xerente, no atual
momento se identificava com o povo gavião, mais precisamente a etnia
kýikatêjê. Desse modo, na condição de pertencente a este povo, além de
se ver envolvida nas demandas referidas, também se incomodara tre-
mendamente com o fato de não saber falar em nenhuma das línguas que
compunham sua história de vida. O que nos chamou a atenção nesse
momento não foi exatamente o passado ancestral da professora indíge-
na, e sim o caminho escolhido para adquirir o conhecimento indígena
que aparentemente não havia conseguido. Para uma melhor compre-
ensão da análise a seguir, é necessário salientar que a língua kýkatêjê
é, atualmente, pouco falada na aldeia, sendo restrita apenas a alguns
velhos, quando muito entendida razoavelmente pelos adultos, fato asso-
ciado ao predomínio da inserção do não indígena a tempos pretéritos,
tornando a língua portuguesa a primeira língua (COSTA; BARBOZA &
SOMPRÉ, 2016). Não têm sido poucos os esforços das lideranças locais
em estimular, no cotidiano e nas escolas, o exercício da língua. Con-
cita revelou não pensar em apenas aprender a falar a língua kýkatêjê,
também mostrou-se preocupada em desenvolver estratégias eficazes de
aprendizagens que se adéquem ao momento atual do “contato”, deno-
tando que, mesmo as formas de aprendizagens do passado, precisam

234
mudar graças à relação com o kupẽ. Ir para a faculdade aprender, então,
seria uma maneira de, a partir dos processos educativos universitários,
construir formas de adaptação que estimulassem o ensinar e o “querer”
aprender dos mais jovens! Aprender a língua seria a guarnição que vela
pela “valorização do ‘eu’”. A valorização deste “eu” só poderia existir no
reconhecimento dessa ancestralidade – fonte cosmológica de seus mo-
dos de vida.
A narradora propôs pensar na manutenção e no aumento de fa-
lantes da língua em mediação com referências não indígenas, para,
em seguida, ensejar o fortalecimento desse “eu” kýikatêjê, tanto na
retomada de aspectos culturais diminutos quanto na criação de um
espaço de reivindicação junto ao poder público. Não podemos, então,
deixar de ver no “caminho de volta” uma estratégia cosmológica ela-
borada no e para o “contato”. A esse respeito, torna-se necessária uma
brevíssima digressão.
Grosso modo, “fazer o caminho de volta”, “fazer o retorno” ou “cum-
prir o ciclo”, por exemplo, são expressões recorrentes, derivadas e pre-
sentes em determinadas cosmologias ameríndias, podendo ser associa-
das a deslocamentos habituais vinculados ao manejo do solo, da caça
e da pesca (MONTEIRO, 2001; TAYLOR, 1996). Também à guerra, a
seus ritos e à trajetória mesma do guerreiro marcadamente, associados
ao imaginário de um percurso, de uma sucessão de eventos. Além, é
claro, dos ditos movimentos “messiânicos” ou “milenaristas”, bastante
expressivos entre os guaranis (VAINFAS, 1995; NAVARRO, 1995). Mais
recentemente, Renato Sztutman (2012), em seu O profeta e o principal,
problematizou a literatura anterior que dissertou sobre o tema, inqui-
rindo-a e sinalizando cosmologicamente outras percepções de como
sociedades ameríndias acionaram formas de “contra-poder” no curso
da colonização, mediante o que denominou de uma “cosmopolítica e
seus vetores” (2012: 96-105). Ainda que possível, não nos colocamos
a perseguir uma interpretação do “caminho de volta” da indígena, no
sentido de evocar sua ascendência guaranítica, o que faria o texto de-
saguar numa reflexão da “etno-história” ou da etnologia indígena mes-
mo, como o fez recentemente Almyres Martins Machado (2015) na tese

235
doutoral intitulada De sonhos ao Oguatá Guassú em busca da(s) terra(s)
isenta(s) de mal, e sim fazer, quando muito, tais relevantes aspectos con-
versarem com a sua compreensão memorial.
Dito isso, o “caminho de volta” partiu da aldeia para a “cidade” e da
graduação em Administração e em Licenciatura Intercultural Indígena,
alcançando o “limite” necessário para fazer o retorno do caminho. Fazer
o retorno é resolver parar dentro de um campo de satisfação para voltar
com a experiência do trajeto. No caso de Concita Sompré, foi no retor-
no, nessa atividade de voltar marcada pela rememoração, a maturação
do vivido na descoberta de si. Não se trata de afirmar que Concita se
descobriu como indígena! Ela descobriu que não precisava ter vergonha
de si por “não falar”; não deveria ter vergonha por não falar na universi-
dade e não deveria ter vergonha por não falar na língua indígena. Veja-
se, ainda que o sentimento de vergonha seja semelhante, o silêncio pro-
duzido por ele não é. Preside possibilidades semânticas imensuráveis,
porque, quanto mais se excede, mais movimentos e regiões de sentidos
estão por vir. Ora, o silêncio imposto pelo etnocêntrico espaço acadêmi-
co é brutal, porque resulta de séculos de violências praticadas contra os
povos indígenas, de maneira que, na maioria dos casos, na esmagadora
maioria, relembra as “antigas” práticas de conversão catequética. Quase
sempre serão reveladas, a partir de uma totalidade histórica, políticas de
silenciamentos reproduzindo representações mundanas. Este é o silên-
cio preenchido pela memória do contato, aqui a falta de força para falar
e a consequente rarefação de movimentos e desdobramentos de senti-
dos advindos dos efeitos do terror (TAUSSIG, 1993) na forma narcísica
social de sentido absoluto (ORLANDI, 2007).
O outro silêncio evocado por Concita configurou-se como mais
impiedoso, porque não se faz presente apenas quando se sai da aldeia
e encontra o “branco”. Este é o silêncio daquele que nunca falou, nunca
conseguiu ouvir a própria voz. Que isso poderia dizer? Concita Sompré,
mulher indígena que, mesmo tendo a história familiar marcada pelo
convívio entre tantos povos indígenas, jamais aprendeu língua indíge-
na alguma. Por isso, ainda que se saiba indígena, precisará se descobrir
numa fala, mesmo “enfraquecida”, que desafiasse esse silêncio, entre o

236
dizer e o não dizer. Para sermos menos imprecisos, não se trata mais de
aprender uma língua indígena; agora, na descoberta, na “volta”, o que se
conquistou foi uma fala que passa a trabalhar no interior da asfixia im-
posta por esse silêncio peculiar. “Língua de espuma”, ressignificando-se
numa região restrita desse contexto hegemônico (ORLANDI, 2007: 99);
este simulacro de silêncio que se manifestou como ausência, semelhante
à ausência dos rastros de uma presa perseguida pelo caçador, isto é, não
é um silêncio/ausência definitivo, trata-se de uma ruptura que pode ser
ultrapassada, rastreada no ir e vir das trilhas. A analogia permite en-
tender que a superação da vergonha e do silêncio da indígena ocorreu
justamente na volta, no retorno, na retomada dos rastros na trilha.
O “caminho de volta”, insistentemente enfatizado aqui nos relatos
de Concita, tornou-se um elemento fundamental para a constituição
de uma fala que nada tem a ver somente com aspectos linguísticos –
segundo a conveniência deste texto, claro, e sim como uma estratégia
cosmológica da narradora para dialogar com a complexidade das ex-
periências interculturais desta região. Nesse sentido, uma fala capaz de
perscrutar as vicissitudes da alteridade e retornar com riqueza como um
evidente instrumento de lutas e negociações políticas, propondo não
apenas manter o “orgulho” indígena no “meio do grupo”, onde é efeti-
vamente forte, como nos informou Concita, mas combater a “vergonha
(...) fora do grupo”, fragilizando-a, sobretudo, no espaço kupẽ. Este se-
ria um problema que é “característica da maioria dos indígenas hoje do
Brasil” para a narradora.
Concita colecionou falas de experiências indígenas na universidade
consonantes com os números bem guardados dessas instituições para
as significativas evasões desses povos. Questionou o fato de que as po-
líticas de inclusão se resumam apenas ao acesso à academia. É preciso
também garantir permanência no que chamou de uma escola intercul-
tural, reconhecendo o direito à diferença, à luta contra todas as formas
de discriminação e desigualdades sociais. Lugar de uma tentativa, pelo
menos, de promoção de relações dialógicas e igualitárias entre pessoas
e grupos pertencentes a universos culturais diferentes, trabalhando os
conflitos inerentes à multiplicidade. Essa escola não ignora as relações

237
de poder presentes nas relações sociais, interpessoais e pedagógicas,
mas reconhece seus conflitos, procurando estratégias mais adequadas
para enfrentá-los (POSSAS, 2016).

Então, a escola, ela tem esse papel; ela tem essa importân-
cia muito grande no que está sendo ensinado desde a
base [...] se aquilo que está sendo ensinado vai valori-
zar o meu “eu” enquanto kỳikatêjê, vai valorizar minha
cultura enquanto kỳikatêjê, vai fortalecer meu pertenci-
mento. Kỳikatêjê... eu vou ser o primeiro a ser o defensor
da minha língua, eu vou querer a falar a minha língua, eu
vou querer defender a minha língua, eu vou querer to-
mar como primeira vontade de aprender a língua, então
é eu sujeito, eu querendo a mudança, eu querendo ter
orgulho daquilo que é meu, porque eu não posso chegar
para você e colocar em você uma cultura, você tem que
querer abraçar aquela cultura, viver aquela cultura, se
identificar com aquela cultura e, a partir daí, você tem
como fazer alguma coisa. Porque a cultura daqui de fora
é diferente da cultura lá de dentro [aldeia], então há um
choque, e isso tem se visto na nas relações no crescimen-
to desse relacionamento entre índios e não índios, e aí as
universidades hoje abriram essas portas pra nos receber,
nós estamos lá dentro. Já vi muita coisa do branco lá den-
tro [quando] você chega lá, né? Ontem, teve uma festa e
você já vê as máquinas fotográficas e povo falando em
português, o povo usando a roupa, SÓ QUE é UM ex-
terior. O interior mesmo, o interior mesmo, ele tá muito
assim, eu costumo chamar que ele tá numa zona assim
de barco, sabe? Ele tá assim [...] não tá assim FIRMADO,
ele nem tá SER... EU SOU kỳikatêje: “ô eu sô não índio
aqui”, não ele tá aqui no meio termo. Por quê? Porque
quando eu passo a não valorizar aquilo que é meu e valo-
rizar aquilo que vem de fora (SOMPRÉ, 2015).

A noção do “eu” kýikatêjê explorada se mantém pela manutenção


de elementos da cultura indígena nos pertencimentos indicados pela

238
narradora. A ênfase no fortalecimento da cultura kýikatêjê transparece
como um desafio quando o indígena sai da aldeia e lá, na cidade, na
universidade, defronta-se com os elementos do mundo “exterior” – não
indígena. Ao recordar uma festa realizada dias atrás, no espaço universi-
tário no qual estavam presentes várias etnias indígenas, Concita Sompré
não deixou de notar a força de um cenário não muito comum entre
alguns indígenas, no sul e sudeste do Pará. O uso massivo de tecnolo-
gias eletrônicas, o predomínio da língua portuguesa e todo um modo
de vestir a roupa fizeram-na construir uma reflexão sobre a postura dos
jovens indígenas quando imersos no referido cotidiano.
Nesse sentido, a professora indígena evidenciou não acreditar em
uma oposição radical dos hábitos dos “brancos”; o que ela questionou
foi o modo como os jovens se apropriam desses elementos. Durante o
convívio com a indígena e retomando notas do diário de campo, nota-
mos que a utilização de tecnologias eletrônicas, embora presentes na al-
deia, tem seus usos minimizados no correr dos jogos de flecha e durante
as refeições, tendo o seu apelo fotográfico manuseado para espaços que
não agridam as conversas e os ensinamentos dos velhos. Ainda seguin-
do essas ponderações, no que diz respeito ao uso da língua portuguesa,
mesmo que os kýkatêjês façam de sua língua – considerada étnica – mi-
noritária na aldeia, determinadas expressões ou palavras mesclam-se
ao português, ocorrendo uma “torção” no ritmo, na composição e no
humor destas, graças à infiltração das dinâmicas sociocosmológicas in-
dígenas, ao contrário da maneira adotada pelos indígenas quando falam
o português na universidade, donde Concita percebeu o que designou
de uma “fala pensada”, “vigiada”. Da mesma forma, o “vestir roupa”, na
aldeia, trata-se da utilização de vestidos, bermudas e camisas “leves”,
com inexpressivo uso de sapatos, enquanto o “vestir roupa” procurando
colocar “tudo fechado”, numa referência a camisas, bermudas e sapatos
ou camisas, calças compridas e sapatos com meia, são considerações
destacadas. Tais rápidas considerações não podem ser generalizadas e
merecem apreciação em outras circunstâncias. O que buscamos é de-
monstrar a observação da narradora demonstrando a postura instável
do indígena, quando inserido na cidade. Não por acaso a comparação

239
entre o indígena nas festas ou eventos do kupẽ com a condição movente
e imprevisível de um barco.
A importância de fazer as crianças aprenderem a gíria7, segundo
a professora e a liderança kỳikatêjê, é o que permite pensar subsídios
tanto de reflexão quanto de ação. Os movimentos de desconstruções
discursivas não são tecidos apenas por estruturas do fora. Novamen-
te, a estratégica mediação requerida pela narradora para ultrapassar os
dilemas do “dentro” e do “fora”, isto é, da segurança do habitar a “terra”
versus à deriva inquietante do “barco”, voltam-se para um “caminho de
volta” revisitado criticamente.

A ciência indígena contra o sistema da morte: uma breve aula sobre a


renovação do pensamento

No início deste texto, foram evocados os saberes de professores


indígenas durante o “jogo de flecha” para falar sobre a compreensão
acerca do que significa construir caminhos. Relembremos. Os cami-
nhos são resultados dos rastros de caçadores, guerreiros ou aldeias em
deslocamento, bem como de toda vida que passa e marca o lugar na
mata, originando todo um sistema predatório no qual as cosmologias
indígenas, em geral, não estabelecem uma determinação ontológica en-
tre o caçador e caça, haja vista que, dependendo das circunstâncias de
quem é estritamente “atocaiado”, a relação poderá mudar. O caçador que
segue o rastro da onça facilmente é condicionado a deixar no seu rastro
a condição de presa: essa é a condição dos autores deste texto.
No ofício dos pesquisadores voltados para o estudo de memórias,
preocupados com indícios, reminiscências elaboradas a partir de deter-
minado passado, sempre fomos tomados por uma interpretação da ana-
logia enunciada por Ginzburg (1989) entre o pesquisador da cultura e o
caçador agachado a farejar a presa. Igualmente, também inspirados em
recepção específica de Geertz (2012), nos posicionávamos para melhor
ler “piscadelas” ou desfiar redes simbólicas numa eventual “briga de ga-

7
Uso recorrente para a língua dita língua étnica.

240
los”. Essa condição monolítica daquele que se põe a espreitar e caçar,
sem ao menos suspeitar de um olhar que nos devolve o limite, é justa-
mente o pano de fundo em que vai pousar a crítica de Concita Sompré.

INCAPAZ, incapaz! Há 500 anos estão dizendo que nós


continuamos na mesmice, que os índios não progridem,
que os índios não valem a pena. Por quê? Porque nós
não conseguimos pensar em ganhar mais nem destruir
mais, em matar tudo aquilo que faz parte da nossa vida.
Nós não queremos aprender isso, nós queremos apren-
der MAIS para os novos desafios que tão vindo agora...
Mas se você for, né? [Porque] pra nossa ciência, tem esse
olhar voltado pra nossa ciência, voltar pra sabedoria do
indígena, você vai ter que aprender e ensinar... Porque
você vai chegar com um velho daquele e vai dizer como
é que você conseguiu viver até hoje com uma saúde que
você tem sem destruir o meio ambiente que você vive. Eu
acho que o sistema tem que perguntar pras populações
indígenas como é que eles conseguiram preservar o meio
ambiente e ainda conseguiu resistir a todo tipo de inves-
tida pra nos matar... Pra nos matar... Na realidade, [o]
que se cria são sistemas pra matar e ele matava mesmo,
no sentido literal de matar. Hoje não, ela vem matando
aos poucos... né? Nas entrelinhas... e esse é o desafio
nosso aqui... está aqui dentro como indígena... É alme-
jar assim algo dele [o indígena], chegar aqui, ter a for-
mação dele e dizer assim:“Eu vou voltar pro meu povo”.
Muitos se perde no meio do caminho. Como que ele se
perde? Ele veio pra universidade daqui e ele começa a
receber as ideologias que é passado e aí ele vai olhando
pro mundo dele [e] vai desvalorizando MAIS do que já
é desvalorizado, aí ele fica aqui, ele fica um índio da ci-
dade, né? Um DESALDEADO! Eu odeio essa palavra...
Quem me chamou de desaldeado? Por que é que eu sou
desaldeado? Porque eu carrego minha aldeia dentro de
mim... EU CARREGO MEU CONHECIMENTO DEN-
TRO DE MIM (SOMPRÉ, 2015).

241
O discurso de progresso arvorado pelo “branco” e a suposta “inca-
pacidade” dos povos indígenas em acompanhar são imediatamente des-
construídos a partir da crítica à busca desenfreada por riqueza pautada
na destruição do meio ambiente, ou melhor, dos recursos fundamentais
para a manutenção de sua existência. O modo distinto de ver o mundo
se acomoda no fato de as “ciências dos índios” ou “sabedoria indíge-
na” se apresentarem, de um lado, em um movimento que se reconhece
na ancestralidade, na capacidade de se dispor a “ouvir”, “aprender” e
“ensinar” os velhos narradores como basilares para o segredo da longe-
vidade e conservação da vida; por outro lado, de um pensamento que
se movimenta, mesmo após “contato”, para escolher outras maneiras de
enfrentar “os novos desafios que tão vindo agora”. Trata-se de um po-
sicionamento que não faz apologia à vociferada oposição entre “nós” e
“eles”, de um pensamento que sabe da condição simétrica, qual seja, da
condição de rastro que todos compartilhamos ontologicamente.
Esse movimento que se volta para a ancestralidade e o perten-
cimento do “ser kýkatêjê” avança elementos de afirmação a partir de
aspectos do mundo kupẽ, mobilizados para combater o que ela deno-
minou de “sistema pra matar”. A referência a esse “sistema” aparece
inicialmente no sentido de que as verbas e liberações de recursos do
governo para os indígenas raramente chegam à sua totalidade, produ-
zindo transtornos e sofrimento para povos que, muitas vezes, esperam
meses ou anos para usufruir das ditas ações de políticas públicas. Esse
trâmite carregado de burocracia é uma forma – comunicou Concita
– de “minar” a resistência indígena, é o sistema que mata nas “entre-
linhas”, “aos poucos”. Deste modo, ela não vê muita diferença entre a
intenção do “sistema”, que escravizava e matava em séculos anteriores,
e o que agora se apresenta.
Fazer o “caminho de volta”, pelo discurso de Concita Sompré, é o
próprio movimento intercultural, destacado acima, que se desloca para
a alteridade e, ainda assim, retorna, conservando e ampliando sua po-
tência. Não por acaso, a título de exemplificação, podemos ressaltar que
a crítica ao termo “desaldeado” é uma formulação que recusa a aceitar
a posição corrente de que um indígena vivendo na cidade ou momen-

242
taneamente fora da aldeia seja desprovido de aldeia, seja “desgarrado”.
Notemos que, ante o desafio dos povos indígenas, na Terra Indígena
Maria, de se deslocarem cada vez mais para atividades comerciais, lutas
políticas, desenvolvimento de atividades esportivas e busca de “forma-
ção” nas universidades, a aldeia, embora exista num plano territorial e
comunitário, passa a ser também locus do “ser kýikatêjê”, colocar seus
pés na aldeia carregada nos saberes acumulados culturalmente, uma
pretensão de reforçar o ser indígena onde quer que esteja.
Sabendo que fazer o “caminho de volta” é um trabalho cosmológi-
co para criar outras possibilidades de pensar e de viver, e levando em
consideração que esta região, além de ser marcada por especificidades
culturais, é também dinamizada por inúmeras interações culturais em
diversidades de camponeses (catadores e catadoras de castanhas, traba-
lhadores rurais), comunidades quilombolas, dentre outros grupos, tor-
na-se visível nestes agrupamentos a luta constante pelo reconhecimento
territorial e cultural, no que concerne às ações do Estado e ao avanço
das práticas capitalistas, corriqueiramente excludentes em países fragi-
lizados pela corrupção e pela pouca efetividade de seu aparato legal.
Ora, além da violência material e simbólica que se debruça sobre
essas populações, acenamos aqui para a possibilidade de construir re-
sistências a partir da interação dos saberes forjados neste campo diver-
so. O “caminho de volta” esboçado por Concita pode conversar com
os caminhos de outras populações igualmente flageladas pelo poder
público? Quais aspectos das cosmologias edificadas em comunidades
quilombolas ou sujeitos de matrizes afro-brasileiras se conectam, nesse
sentido, com matrizes indígenas? O que pensar quando ouvimos narra-
tivas de uma professora-militante que lutou bravamente pela conquista
de assentamento nos anos 1990, afirmando que os “movimentos sociais”
precisam sempre retornar ao que foram para não perderem a força da
luta? A constatação desse fato não é novidade, conforme nos atestou,
dentre outras referências, a recente publicação Saberes e práticas de edu-
cadores e educadoras do campo (RIBEIRO & ANJOS, 2016), mas o que
propomos é o exercício de um entrelaçamento conceitual, a partir das
construções interculturais dos habitantes desta região.

243
Na condição de professores da Faculdade de Educação do Campo,
tivemos o privilégio de perceber na sala de aula e nas viagens de cam-
po importantes ensinamentos na própria ação de estudantes de assen-
tamentos, acampamentos, aldeias indígenas e quilombos. Tal fato nos
despertou para a importância de se criarem condições para aproximar
percepções dessas culturas, denominadas por alguns também de “sabe-
res locais”. A dificuldade de realizar essa tarefa, evidentemente, diz mais
sobre as limitações de nossa ciência e de nosso etnocentrismo do que
qualquer outra coisa, afinal de contas não estamos acostumados à con-
dição de aprendizes, repugnamos o fato de sermos alvo predatório do
olhar do outro. Levar os ensinamentos de Concita Sompré para nossas
práticas diárias já pode ser um passo significativo para algum professor
kupẽ fazer também do seu “caminho de volta”, uma guinada ontológica e
epistemológica para “minar” o “sistema pra matar” em que vive enclau-
surado, na maioria das vezes...

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248
PARTE III

Memória, educação e gênero

249
MEMÓRIAS DE PROFESSORAS MIGRANTES:
RAZÕES, SOCIABILIDADES E TENSÕES EM
MELGAÇO, PARÁ

Ilca Pena Baia-Sarraf


Agenor Sarraf-Pacheco
Albêne Lis Monteiro

Percursos da educação: entrada

A história da educação de Melgaço, no arquipélago de Marajó, Pará,


após seu processo de emancipação em 1961 até meados da década de
1990, foi tecida pelas mãos de professoras migrantes. Na pesquisa de-
senvolvida por Sarraf-Pacheco (2006) e na investigação que Baia-Sarraf
(2015) realizou, dois momentos emergem a respeito dessa história de
deslocamentos de docentes para esse município. O primeiro ocorreu
em 1971, quando chegaram a Melgaço quatro professoras da cidade de
Capanema para trabalhar na Escola Estadual Bertoldo Nunes, cujo pré-
dio foi inaugurado em 1968 pelo Governador Alacid Nunes, em plenos
tempos de regime civil-militar no Brasil. O segundo deu-se na década
de 1980, quando chegou um número mais significativo de professoras
para fazer parte da trajetória educacional no município e consolidar a
educação básica no local.
É sobre esse segundo momento que este capítulo deita suas pre-
ocupações. A partir de entrevistas realizadas, em três distintas oca-
siões (2002; 2003 e 2014), pelo primeiro e segundo autores, com as
professoras Dilma, Wilma, Rose, Jurema e Fátima, serão analisadas

251
as razões da migração para Melgaço e os sentidos das convivências
pessoais e profissionais, destacando sociabilidades, tensões e supera-
ções, especialmente entre o grupo que residiu na famosa “Casa dos
Professores”.
Desse modo, é preciso assinalar que as professoras migrantes che-
garam a partir dos primeiros anos da década de 1980 para construir
suas histórias com o lugar e com a educação do município. A escolha do
estudo de suas trajetórias justifica-se, entre outros importantes aspec-
tos, porque foram as professoras que “permaneceram, apesar das per-
seguições enfrentadas na década de 1990 pela administração pública”
(SARRAF-PACHECO, 2006: 142). Por suas opções de vida e profissão,
assumiram variados desafios e defenderam diversas bandeiras de luta,
dentre elas a melhoria da qualidade da educação, políticas de formação
de professores, garantia dos direitos profissionais, além de permanentes
afirmações pela própria vida em terra não familiar.
Os fatores considerados como justificáveis para um número signifi-
cativo de migração de professores até Melgaço pautaram-se na carência
de formação dos filhos da terra para exercerem a profissão-professor;
na ampliação da demanda estudantil; e nas exigências do direito à edu-
cação e da necessidade de promover a expansão e melhorar a qualidade
da educação básica no município. Essas mulheres saíram de suas terras
– algumas desde criança, outras na juventude – em busca de realizações
de seus sonhos e foi nessas idas que se encontraram com a cidade de
Melgaço e nela fizeram-se professoras.
De acordo com pesquisa de Baia-Sarraf (2003), é possível compre-
ender o percurso que o município realizou no processo de formação
de professores para atuarem no ensino fundamental e, posteriormente,
no ensino médio. O ensino médio em Melgaço chegou em 1990, por
meio do Sistema de Organização Modular de Ensino (Some), implanta-
do pela Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc) em 1980. O
curso de Magistério foi a área contemplada pelo município. Com isso,
iniciava-se na própria sede a política de formação de professores, pois
antes a grande maioria dos professores da educação básica era oriunda
de outros municípios do Pará.

252
Em 2001, com a extinção do Magistério, o ensino médio passou a
integrar a educação geral. Baia-Sarraf (2003) ainda demonstrou que a
migração das professoras para Melgaço, na década de 1980, contribuiu
para que, em 1984, o município conseguisse formar a primeira turma
de quinta série. Assim, em 1987, a localidade festejava a conclusão da
primeira turma de oitava série com 14 alunos. Essa demanda, todavia,
precisou esperar a chegada de 1990 para se começar a cursar o Magis-
tério pelo Some.
Nos depoimentos recuperados em 2003 sobre a formação de pro-
fessores em Melgaço, Baia-Sarraf expôs que os entrevistados anun-
ciaram o desejo de os próprios filhos da terra exercerem a docência.
Enfatizaram, ainda, a importância de investimentos para a formação
de professores no próprio município com o propósito de não mais
dependerem de profissionais vindos de outros lugares. Era necessário
que o ensino, principalmente de primeira a quarta série, fosse minis-
trado pelos filhos da terra.

O Some surgiu para atender essa necessidade, possi-


bilitar a ampliação do universo profissional e diminuir a
carência de profissionais de Magistério, Administração e
Contabilidade, já que eram os cursos a princípio oferta-
dos pelo projeto e também para diminuir a má qualidade
da educação no Estado (BAIA-SARRAF, 2003: 24).

A criação do Some pelo governo do Estado tinha como filosofia


básica garantir o acesso ao ensino médio em comunidades longínquas
em relação a Belém. Sem estrutura para organizar um sistema regular de
ensino, a Seduc possibilitou a Melgaço iniciar a formação do professor
e, lentamente, melhorar o quadro docente1 da rede municipal de ensino.
Depois do segundo momento de migração de professores na déca-
da de 1980 e com a implantação do curso de Magistério, outra demanda

1
De 1990 a 2001, período em que o Sistema de Organização Modular de Ensino
(Some) esteve em Melgaço, foram formadas dez turmas e 115 alunos concluíram o
curso de Magistério.

253
de professores migrantes chegou a Melgaço na década de 1990. Desta
vez, porém, foram professores migrantes itinerantes, pois o tempo de
moradia era provisório, perfazendo um período de 55 a 60 dias, esta-
belecido pela organização funcional do projeto Some. A partir de 2003,
quando os professores para ministrar aulas no ensino médio deixaram
de vir da capital do Estado, a direção da Escola Tancredo de Almeida
Neves, única instituição escolar da rede estadual na cidade, precisou
criar o ensino médio regular e solicitar contração de professores para
esse nível de ensino.
A passagem do ensino modular para o ensino regular em Melgaço
foi extremamente conturbada, pois a Seduc demorou a contratar os do-
centes e os alunos ficaram alguns meses sem aula. Em diálogo espontâ-
neo com os ex-alunos que vivenciaram essa transição, hoje já formados
em diferentes cursos, como Medicina, Engenharia Civil, Contabilidade,
Psicologia, Serviço Social, Informática na Educação, Pedagogia, Bio-
logia, Ciências Naturais, Letras e Geografia, dentre outros, emergiram
lembranças de dois professores que, segundo eles, salvaram o ano letivo
e ministraram uma multiplicidade de disciplinas pendentes: professor
Elias Sarraf-Pacheco, que ministrou Língua Portuguesa, Redação e Li-
teratura, e Professor Agenor Sarraf-Pacheco, que ministrou História,
Estudos Amazônicos, Filosofia e Sociologia.
Nos anos seguintes, o ensino médio regular foi se consolidando.
A Seduc realizou concursos tanto para docentes quanto para técnicos,
conformando um quadro efetivo de profissionais que passaram a atuar
diretamente com esse nível de ensino. Uma especificidade desse pro-
cesso foi o fato de que a Escola Estadual Tancredo Neves em Melgaço,
diferentemente de outros lugares, continuou ofertando o ensino fun-
damental, já que o município não aderiu à municipalização do ensino.
Somente nos dois últimos anos (2014-2016), por decisão da gestão
escolar e do corpo docente, a escola passou a ofertar apenas uma tur-
ma de nono ano, objetivando não perder o vínculo entre ensino fun-
damental e médio.
Assim, nessa primeira década do século XXI, é possível afirmar
que o quadro de professores do ensino médio regular em Melgaço foi

254
formado com professores migrantes da década de 1980, alunos das
primeiras turmas de Magistério que se graduaram pelos campi de Sou-
re e Breves e alguns novos professores migrantes. Como se vê, a prática
da migração inscreveu-se em momentos importantes da educação de
Melgaço e ainda hoje atravessa sua história, mas isso é assunto para
outra pesquisa.
De agora em diante, pelos caminhos da composição de memória
(THOMSON, 1997), será efetuado um mergulho na cartografia de sen-
timentos que as professoras migrantes da década de 1980 teceram acer-
ca de suas trajetórias, dando ênfase aos motivos das partidas e chegadas
e ao cotidiano compartilhado na terra hospedeira. Antes, será apresen-
tada a perspectiva teórico-metodológica da cartografia em sua interface
com a história oral, como caminhos escolhidos para convidar as profes-
soras a socializarem suas experiências vividas.

Cartografia de sentimentos: caminhos da pesquisa

A escuta das histórias das professoras explica o desejo de registrar


as razões que as levaram a migrar para Melgaço. Igualmente, ao serem
mapeados trabalhos com a temática “Mulher, Educação e Migração”,
os pesquisadores depararam-se com uma certa carência de estudos até
os anos de 1990. Almeida (1998), ao estudar a presença feminina na
educação brasileira, revelou o lugar restrito a que foram relegadas. Tal
dimensão associa-se à exclusão do sexo feminino no mundo social e
do trabalho, mesmo sendo elas determinantes nos rumos tomados pela
profissão docente no País.
Desse modo, se a carência de tais estudos, denunciada por Almei-
da, já vinha sendo enfrentada com novas investigações, no mundo ama-
zônico, essa temática voltada para compreender o movimento trilhado
por professoras migrantes ainda está por ser construído2. Ao se visar a

2
A partir de pesquisa em bancos de teses e dissertações em Programas de Pós-Gra-
duação em Educação no Brasil ou sites de busca, foram encontrados Tanus (2002);
Nobre (2009); Alexandre (2011); Campos (2011). E, agora, Baia-Sarraf (2015).

255
contribuir com a tessitura do mapa de pesquisas sobre a temática, im-
portante para o campo da História da Educação, traçou-se um percurso
teórico-metodológico que procura inter-relacionar cartografia e histó-
ria oral para compreender motivações que levaram as professoras à prá-
tica migratória e, nesses meandros, apreender complexos sentidos na
experiência do deslocamento.
A cartografia é um campo teórico-metodológico interdisciplinar,
aberto a diferentes interesses e perspectivas analíticas. O questiona-
mento das dualidades da ciência moderna e o mergulho na direção de
um pensamento arquipélago (GLISSANT, 2005) possibilitaram pensar,
registrar e refletir a complexidade dos caminhos que trilha uma inves-
tigação científica humanizadora e inclusiva. Ao se propor a romper
fronteiras estabelecidas pelo pensamento abissal (SANTOS, 2010), a
cartografia aqui adotada procurou operar com uma outra gramática nas
etapas da pesquisa. Evitaram-se, por isso, termos como dados, sujeito-
objeto, procedimentos, técnicas, dentre outros, por fazerem parte de um
sistema de pensamento científico que negou a arte da escrita e da vida
(HISSA, 2013).
Nesse contexto, Homi Bhabha (2003: 198), adepto do fazer carto-
gráfico, refletindo sobre o tempo de formação da nação para esclarecer
que ela se constituiu nas teias de deslocamentos, diásporas, exílios, lín-
guas e culturas diversas, reunindo margens de culturas “estrangeiras”
em fronteiras, incisivamente orientou: “Precisamos de um outro tempo
de escrita que seja capaz de inscrever as intersecções ambivalentes e
quiasmáticas de tempo e lugar que constituem a problemática experiên-
cia moderna da nação ocidental” (idem: 201).
Optou-se pela cartografia por valorizar todo e qualquer registro,
seja ele oficial, seja popular, tal como ensina a história cultural (BURKE,
1992; 2005). Entre esses registros, narrativas orais ganham forte re-
presentação por permitirem valorizar trajetórias de vida que ficaram,
quase sempre, no anonimato ou reduzidas a dados estatísticos em es-
crituras oficiais. A despeito do encanto com a riqueza das trajetórias
profissionais e pessoais, a cartografia interessa-se por captar conflitos,
negociações, afetividades, posicionamentos políticos, religiosos, sociais

256
e por contribuir com o campo das pesquisas em educação, ao valorizar
histórias de vida de professoras migrantes a partir de um mergulho no
universo das memórias.
Para estabelecer diálogos com as professoras migrantes, recorreu-se
à orientação de Oliveira (2005) por explorar a metodologia da História
Oral, permitindo compreender a simbiose entre migração e trabalho na
docência. Via processos de afloramento de memórias, a autora enfatizou:

[...] o processo de reavivamento das lembranças através


de um trabalho mais refinado da memória é visualizado
nos projetos de investigação/formação de professores.
Os baús, as caixinhas e os álbuns, ao serem trazidos
para o trabalho de escrita autobiográfica, ou no mo-
mento da entrevista, permitem que as pessoas recon-
struam imagens com mais detalhamento e sentimento
(OLIVEIRA, 2005: 96).

O ato de rememorar é uma intervenção no caos das imagens guar-


dadas. Quando as professoras acionaram suas lembranças dos atos mi-
gratórios, houve um enorme esforço para selecionar e organizar as que
consideraram mais significativas. Nesse processo, o passado e o presente
se entrelaçam, tornando-se difícil separar seus fios (MALUF, 1995). Na
mesma perspectiva, Bosi (2003: 53) afirmou que “a memória é, sim, um
trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultu-
ra e pelo indivíduo” e, ainda, “do vínculo com o passado se extrai a força
para a formação de identidade” (BOSI, 2003: 16).
A interação com reminiscências de memórias narradas pelas pro-
fessoras migrantes e com elas fazer o desembarque em suas histórias de
vida, foi necessária “uma troca de olhares” (PORTELLI, 2010: 20), que
exigiu a construção de laços de confiança. Na dinâmica do percurso,
seguiu-se orientação do estudioso italiano da História Oral:

Uma entrevista é uma troca entre dois sujeitos: literal-


mente uma visão mútua. Uma parte não pode realmente
ver a outra a menos que a outra possa vê-lo ou vê-la em

257
troca. Os dois sujeitos, interatuando, não podem agir
juntos a menos que uma espécie de mutualidade seja es-
tabelecida (PORTELLI, 1997: 09).

Amado & Ferreira (2001) também apontaram ser necessário um pri-


meiro contato com o informante para socializar os interesses do pesqui-
sador e situá-lo a respeito de sua colaboração no processo de investigação.
Orientações de Alberti (1989) concatenaram-se à compreensão aqui so-
bre a postura que se deve adotar em relação ao retorno das narrativas aos
entrevistados como componente fundamental para estreitar o diálogo.

É a continuidade da relação entre entrevistado e entrev-


istador que permite a ambos se conhecer melhor, esta-
belecer pontes e aproximações entre o que foi dito em
sessões diferentes, identificar as peculiaridades de cada
um e as situações que parecem conduzir a um diálogo
mais proveitoso para o objetivo comum: enfim, é a con-
tinuidade da relação que muitas vezes permite criar
as condições de sucesso de uma entrevista (ALBERTI,
1989: 71).

A postura foi de retornar as narrativas às professoras, para possibi-


litar avaliações do que socializaram de seus baús de memória. A opor-
tunidade de lerem o oral deitado no papel permitiu a elas realizarem
reflexões, retirarem ou complementarem aspectos que consideraram
importantes à compreensão de suas histórias de vida. O exercício pos-
sibilitou ainda acompanharem o desfecho de suas trajetórias e certifica-
rem-se da integridade da transcrição.

Razões da partida

Toda partida, seja qual for sua motivação, sempre vai trazer sen-
sações de encantamento ou desencantamento no encontro com o ou-
tro e com o lugar de chegada. Segundo Nobre (2009: 105), “o migrante,
quando chega ao lugar determinado, não está carregado somente de

258
seus pertences materiais, mas apresenta, além de sua história de vida,
uma carga de valores morais e culturais, suas esperanças e vontades,
estabelecendo então uma relação de troca”.
Nas bagagens dos migrantes, viajam equipamentos materiais e
dimensões ou capitais simbólicos, sociais ou culturais, todos são sig-
nificativos para negociações e adaptações às novas relações que serão
vividas e para a realização dos projetos que foram traçados na espe-
rança de tornar a vida melhor naquele novo lugar. Nos rastros desse
pensamento, a representação do lugar para o que chega foi assim des-
crita por Tanus (2002: 80):

Para alguns, os espaços são locais de passagem, andaril-


hos sempre. Para outros, ainda o espaço de sobrevivên-
cia, onde procuram se integrar ao novo cotidiano a ser
vivido e sorvido, muitas vezes, com voracidade. São
presos ao encantamento do desconhecido. De qualquer
forma, as mudanças propiciam mutações na visão de
mundo, fecham, mas também abrem horizontes. Nada
fica igual e, no mesmo movimento, modificam-se, sobre-
tudo, as pessoas.

Melgaço emergiu inicialmente como território de passagem que, na


década de 1980, recebeu as professoras Wilma, Dilma, Rosiete e Fátima,
as quais pela primeira vez começariam a plantar dentro de si a semente
do magistério. A Professora Jurema, quando chegou, já havia exercido a
profissão e veio para assumir a secretaria de educação.
Wilma Vilar, depois de experimentar o trabalho doméstico em vá-
rias casas de família em Belém, no final do terceiro ano do curso de ma-
gistério, recebeu um convite inesperado para exercer a futura profissão
em um município desconhecido.

Estava terminando o meu terceiro ano, era doméstica


quando conheci um senhor chamado Jair que era juiz
aqui no município de Melgaço. Um dia, ele chegou e per-
guntou se eu não queria exercer um cargo de professora

259
em Melgaço. Perguntei para ele onde ficava, ele disse: “é
na ilha do Marajó”. Falou que seria bom, eu iria ganhar
um salário, o prefeito Alberto Felipe dava uma ajuda de
custo. Assim, vim embora para Melgaço, isso aconte-
ceu em 1982. O nível de escolaridade em Melgaço era a
quarta série, todos os professores vinham de Belém dar
aula aqui, às vezes, tinha aquela que ficava quatro anos
ou então conseguia construir sua família, casava com
alguém e aqui ficava. Geralmente, vinha um grupo, pas-
sava quatro anos, vinha outro grupo ou então passava
dois anos, um ano, e assim ia acontecendo (Professora
Wilma, 2014).

O exercício de recuperar trajetórias passadas no presente aciona


a dinâmica da memória. Bosi permitiu compreender que “a memória
aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente
e penetrante, oculta e invasora” (BOSI, 2003: 36). Neste sentido, talvez
como invasores de sua caixinha de memórias, continuou-se a escuta a
respeito da expectativa na terra hospedeira.

A minha expectativa era de melhorar meu salário,


ajudar mais a minha mãe, o meu filho que ficou para
eu poder mandar as coisas para ele, dinheiro para ele
[emocionada] e eu queria mais para a minha vida, eu
não queria ficar só naquilo. [...] Eu tinha um orgulho de
ver me chamarem de “Professora Wilma”, eu comecei
a criar essa nova identidade, por onde eu passava diz-
iam: “olha, essa aqui é a Professora Wilma” (Professora
Wilma, 2014).

Concluído o curso de Magistério, Wilma aceitou o convite feito


pelo juiz e deslocou-se para assumir a profissão que escolhera: “ser pro-
fessora”. Para ela, não seria apenas uma aventura, mas o desejo de mudar
de vida e se estabilizar profissionalmente para ajudar a mãe e o filho. No
percurso da viagem, Wilma viveu muitas emoções e solicitou permissão
para relatar.

260
Posso relatar a minha viagem? Eu vim embora, peguei
um barco que era enorme, quando chegamos à Baia das
Araras pregou, passamos uns três dias, quando conse-
guimos chegar em Melgaço depois de uns cinco dias,
descia na baia, passava para um outro barco, então
eu chorei, “o que eu vim fazer para cá?” Quando en-
trei na comunidade tão pequeninha que eu imaginava
um Marajó brilhante, bonito que eu ouvia falar, eu me
decepcionei no primeiro momento. No primeiro mo-
mento, veio eu, a Dilma, a Graça e a Isabel, eu comecei
a chorar e a Graça disse: “Wilma, não fica triste, não
volta, vamos enfrentar, eu fui levando, entrei na comu-
nidade e fui pegando o gosto, então eu fui descobrir a
minha verdadeira vocação, que era para ser professora
(Professora Wilma, 2014).

O choro na chegada pode ter sido gerado por um misto de sensa-


ções, seja pela insegurança ou medo de habitar em um lugar, na época,
de difícil acesso, seja de alegria pela esperança de ter uma vida melhor
economicamente. O depoimento da Professora Wilma permitiu dia-
logar com Castoriadis (1982: 163), quando o referido autor assinalou
que “um acontecimento só é traumático porque é vivido como tal pelo
indivíduo”. Assim, percebeu-se como cada professora sentiu e viveu a
viagem, o que, para a Professora Wilma, se tornou um trauma em vir-
tude do acontecimento com o barco e, talvez por ser sua primeira expe-
riência em transporte típico da região marajoara, acabou representando
insegurança, medo e tribulação. Para a Professora Rosiete, o estranho se
tornou emoção, prazer; o percurso e a paisagem foram elementos que
inspiraram reflexões que lhe preencheram lembranças vividas, ameni-
zando as saudades.

Cheguei aqui no dia 11 de agosto de 1983, num período


em que Portel estava em festa, não lembro no momento
a santa que estavam festejando. E, nessa viagem, eu vim
com a Professora Graça Alves, que já trabalhava e con-

261
hecia Melgaço. Chegando aqui, a lancha foi nos buscar,
já que nós tínhamos que descer no meio do rio, da baía.
Mas essa viagem para cá, eu vou falar um pouquinho, ela
foi gostosa, prazerosa, porque fiquei observando muito,
senti saudades, sim, do que eu deixei para trás, mas foi
uma saudade que não deu para chorar, que não deu para
se desesperar, porque eu achei a viagem maravilhosa,
nunca havia andado de navio ou de barco, um barco de
maior porte. Havia andado de canoa de pequeno porte,
porque muitas viagens eu fazia para Belém, eu vinha,
muitas vezes, de canoa pequena com meu pai. Então, eu
já conhecia um pouquinho dessa experiência, mas de
navio, de barco de maior porte, não! Foi muito interes-
sante aquela grande quantidade de verde que ficava em
cima do mar. Achei lindo, fiquei maravilhada e também
comecei a observar essas moradias, porque para lá para
o meu lugar, Colares, especialmente Itajurá, eu pratica-
mente não saía, só ia na cidade e nas outras comunidades
(Professora Rosiete, 2002).

Por essa perspectiva, é possível pensar a viagem das professoras não


apenas por um percurso linear e programado, mas uma transição cheia
de improvisos e significações que ganham dinamicidade a partir do que
é vivido e imaginado por cada uma delas. Igualmente, os sentidos que as
impulsionaram a migrar para Melgaço foram emergindo em relações e
distinções. Em Rosiete, a força e a vivacidade da narrativa pareciam dese-
jar que o pesquisador também sentisse as mesmas emoções do passado,
filtradas pelos enredos e pela capacidade de fazer emocionar no presente.
Desse modo, “o passado não só vem à tona das águas presentes, mistu-
rando com as percepções imediatas, como também empurra, ‘descola’
estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência” (BOSI, 2003: 36).

Pra eu vim para Melgaço, aconteceu da seguinte forma:


em 1983, início mais ou menos do ano, eu ainda estava
trabalhando na Marmobrás, foi quando reencontrei a
Dilma e mais uma vez lançou-me o convite para vir trab-

262
alhar em Melgaço. Nesse período, ela já estava exercendo
o cargo de diretora da Escola Bertoldo Nunes e me falava
das experiências daqui de Melgaço, das pessoas, dos pas-
seios que elas faziam de barco, das amizades que tinha,
do apoio da prefeitura. De todas as coisas que me falou
fiquei encantada, então ela até brincou comigo: “Rosiete,
vamos para lá, quem sabe tu não vais conhecer um fazen-
deiro também e tal”. Eu disse: “É mesmo!” E respondeu:
“Vais ver que tem muita fazenda e vais gostar muito!” Eu
disse: “É verdade?” Depois, falou-me que aqui a prefei-
tura também cedia casa, dava uma ajuda de custo e tinha
uma funcionária que fazia os trabalhos na residência dos
professores (Professora Rosiete, 2002).

Os motivos que fizeram Rosiete migrar para Melgaço articulam-


se ao posicionamento de Demartini (2010) acerca do movimento de
deslocar-se de um lugar para o outro, ampliando, inclusive, perspectivas
analíticas apontadas pela autora. Se a migração não pode ser analisada
como uma dinâmica forçada, a única saída para a sobrevivência, mas,
como bem enfatizou, um projeto de vida, a realização de um sonho, o
desejo de desvelar o estranho e viver novas aventuras, na experiência da
professora apareceram como uma provocação para o casamento com
um fazendeiro marajoara, rico e poderoso. Contudo, foi a necessida-
de de conseguir um emprego melhor, ganhar estabilidade funcional e
tornar-se uma profissional formada e reconhecida que falou mais alto
no “sim” dado pela professora.

As expectativas foram tremendas quando acordei estava


na Baía de Melgaço. O que me chamou muita atenção em
minha chegada foi que a baía estava coberta de mururé,
um vegetal típico da região em tempos de maré grande,
mas também o que me aguardava [...]. Quanto à docên-
cia, a minha preocupação era se eu iria dar conta de en-
sinar os conteúdos propostos para a quarta série, como
seriam esses jovens? Como eu iria me relacionar com
eles? Eles iriam me obedecer? Pois a ideia de ser profes-

263
sora era ter uma boa idade, apesar de ter 25 anos eu apa-
rentava ser bem jovem. Outra coisa que me preocupava
era se os alunos perceberiam se eu estava segura daquilo
que explicava. Então, o professor ainda estava impreg-
nado de comportamentos autoritários, que o aluno lhe
devia obediência, de uma relação distante – era o chama-
do manejo de classe – fazer o aluno ficar no seu lugar.
Além de que eu estava me sentido muito importante,
professora aqui era muito respeitado pela comunidade e
chamava muito atenção, principalmente por ser de outro
lugar (Professora Rosiete, 2002).

As preocupações de Rosiete acerca das representações que mora-


dores e alunos de Melgaço teriam sobre sua pessoa revelam que buscar
um novo lugar para morar e trabalhar é ir “em busca de si mesmo”.
Conquistar a estabilidade profissional é encontrar-se consigo e tornar-
se alguém situado na profissão e no meio geo-histórico em que está in-
serido. Pode-se analisar que as interrogações feitas pela professora, de
acordo com Teixeira (2002: 12-13), “procura[m] compreender como o
migrante representa a sua realidade e como recompõe a identidade aba-
lada a cada mudança, já que ele anda com a raiz na mão”. Portanto, esses
questionamentos significam um olhar no presente a questionar a sua
aceitação e permanência no município.
A Professora Dilma, assim como Wilma, Rosiete e Jurema, também
já trabalhava quando se deslocou para Melgaço. Diferentemente de sua
prima Rosiete, Maria Dilma Corrêa instaurou os sentidos do desloca-
mento como desígnios do destino, a inquietações de ordem transcen-
dental ou a uma espécie de chamado porque ali encontraria um grande
amor com quem viveria os momentos mais especiais de sua vida, mes-
mo sem desconsiderar o aspecto financeiro. Dilma narrou e interpretou
sentidos da experiência migrante como um insight, um click para uma
decisão que mudaria completamente sua trajetória de vida.

Quando ela mostrou o contracheque dela que eu vi,


eu me admirei e perguntei: “Você é de Melgaço?” E ela

264
disse: “Sim”. E ela contou a história dela. Era uma profes-
sora que já estava com três anos em Melgaço, mas que
estava pedindo transferência para Belém, porque a famí-
lia dela era de Belém. Outros professores também, na
faixa de quatro ou cinco anos que estavam em Melgaço
estavam vindo transferido e, ela inclusive, me falou das
condições que Melgaço oferecia e que nesse período a
escola iria ficar sem professor. Eram condições que no
momento me chamaram a atenção, despertou o meu in-
teresse, então parece assim, não sei, na hora deu um click,
eu gostei da proposta. Ela falando para mim eu gostei.
Ela disse: “Você é professora?” Eu disse: “Sou, mas não
sigo a profissão” (Professora Dilma, 2014).

Foi num dia de trabalho, em um encontro casual, quando tudo


aconteceu. Dilma, ao preencher o cadastro da cliente, descobriu que ela
era professora em Melgaço, ficou surpresa, porque em sua adolescência
havia conhecido o município, na época em que morava com um casal
amigo dos avós. As histórias contadas pela professora despertaram em
Dilma o desejo de retornar àquele lugar.
A entrevistada mostrou-se interessada, o apoio da prefeitura era
tentador e a possibilidade de ter um emprego pelo Estado foi irresis-
tível. Então, por intermediação daquela professora, Dilma entrou em
contato com o prefeito e, “com um mês, estava chegando em minhas
mãos a passagem e a portaria do Estado, tudo para que eu viajasse para
Melgaço, foi isso que aconteceu”. A atitude de Dilma causou espanto
em sua família, cujos membros não acreditavam que iria largar o em-
prego, deixar Belém e ir morar no Marajó. Com alegria no olhar, no
entanto, confessou:

Olha, Ilca, eu acho que é o destino [risos]. Não sei por


que motivo, foi uma questão de desafio, de querer voltar
também lá, eu não sei, alguma coisa me dizia que eu teria
que voltar, talvez porque eu já conhecida, foi um lugar
também acolhedor e era bem pequenininho na época
e foi minha vontade, despertou o interesse, financeira-

265
mente também. Só o fato de você ter um lugar pra trab-
alhar, uma casa para morar, uma pessoa para fazer a sua
alimentação, viver apenas para trabalhar no seu serviço,
morar em comunidade, você vai conviver com outras
pessoas, eu acredito que as coisas foram se encaixando e,
também o destino, porque eu saí quarta-feira de Belém e
cheguei numa quinta-feira em Melgaço, na sexta-feira eu
conheci o meu futuro esposo, é impressionante, quinta-
feira a gente se conheceu, no sábado a gente começou a
namorar e com ele vivemos mais de 30 anos (Professora
Dilma, 2014).

Os relatos cheios de detalhes e expectativas que a professora so-


cializou do seu encontro com Melgaço e com o futuro esposo fizeram
lembrar reflexões de Maluf (1995: 70), ao dizer: “ao relembrar, o indi-
víduo memorizador constrói paisagens e imagens que são verdadeiros
campos de significado para o lembrado. A memória não pode ser en-
tendida, então, como revelação”, mas como uma interpretação de suas
lembranças.
Já a Professora Jurema foi uma professora migrante que, diferen-
temente das demais professoras, vinha de experiências docentes no
interior de Breves antes de fazer o deslocamento para Melgaço, assim
como também não veio inicialmente para exercer esse ofício, mas as-
sumir função administrativa na gestão municipal. Em seu relato, so-
cializou motivações para deixar seu município e migrar para o muni-
cípio vizinho.

O meu padrinho Hermógenes ganhou para prefeito em


Melgaço e me convidou para ser chefa do setor de edu-
cação. Naquele momento, o que me levou a aceitar esse
convite foi a oportunidade de ter um salário melhor, pois
pensava nas condições de vida de minha família. Se eu
não tivesse recebido uma boa proposta, eu teria ficado
em Breves e lutaria por uma vaga. Naquele final de ano
de 1982, eu ganhava seis mil cruzeiros velhos e passei a
ganhar 45 (Professora Jurema, 2014).

266
O convite do padrinho de Jurema para assumir no município um
cargo de confiança aumentou-lhe o desejo em galgar degraus mais al-
tos da profissão, por exemplo, ser chefa, ter status social e ganhar um
bom salário. Portanto, na iminência de não rescindir o contrato por
Breves, arrumou as malas e embarcou com toda a família3 para fazer
residência em Melgaço. Levava consigo a certeza de melhorar as con-
dições de vida da família que, naquele momento, vivia uma crise finan-
ceira em função do tratamento de saúde de um irmão. Nesse viés de
compreensão, Nobre (2009: 34) foi esclarecedora quando afirmou que
“o trabalho confere ao professor um determinado status, proveniente
dos direitos e obrigações que lhe são socialmente impostos dentro da
organização social e que se fundem profundamente na constituição de
sua identidade”.
Se Wilma, Dilma e Rose migraram para ser professoras da rede es-
tadual e Jurema para ser secretária municipal de Educação, Fátima foi
a única que migrou por outro motivo: veio, a princípio, exercer a pro-
fissão de babá. O convite foi feito por uma amiga enfermeira que era
de Belém, mas prestava serviço no município. Por estar grávida, assim
como Fátima, e conhecendo as dificuldades que ela estava vivendo para
conseguir emprego, fez-lhe a proposta. Fátima, com um sorriso meio
tímido, desvelou suas memórias:

Na verdade, quando eu vim com ela eu não tinha mui-


tas expectativas, até porque eu não conhecia Melga-
ço, eu pensava que eu iria passar um tempo e depois
voltaria para Belém. Eu não conhecia Melgaço, quando
a enfermeira me convidou, eu vim só para cuidar da
filha dela e da minha, eu não pensava em ficar e ser
professora aqui. Eu não pensava muito o que iria acon-
tecer depois e foi acontecendo ao acaso na minha vida,
a Dilma me viu, eu não sei como souberam que eu era
professora, eu acho que foi a Irene que falou para al-

3
A Professora Jurema foi a única migrante que trouxe a sua família para residir em
Melgaço.

267
guém, daí a Dilma pegou o meu documento e levou,
não foi planejado de dizer eu vou lá, eu nem sabia que
precisava de professor, como era a situação aqui em
Melgaço, isso aconteceu mesmo por acaso (Professora
Fátima, 2014).

Para Fátima assumir a profissão docente em Melgaço, foi questão


do acaso, era seu desejo desde criança ser professora, mas sempre pen-
sou em oficializá-lo em Belém, porém, depois de inúmeras tentativas
malsucedidas, o sonho se concretizou no Marajó. Migrar para Melgaço
foi questão de necessidade financeira, esperava um bebê e, sem pers-
pectiva de trabalho na capital, precisou tomar outras decisões para ter
condições de oferecer o mínimo de conforto à sua filha que chegaria.
O contrato de professora pelo Estado foi a realização de um sonho e a
oportunidade de escrever uma nova história de vida.
Na escuta atenciosa das histórias de vida de cada professora mi-
grante, percebeu-se que cada uma construiu enredos relacionais e espe-
cíficos em suas trajetórias. Numa visão ampla, a migração para Melga-
ço justificou-se, em linhas gerais, pela busca do trabalho. Nos detalhes
das narrativas, contudo, surpreenderam-se outras razões e significações
para a travessia. Por esse prisma, dizeres de Teixeira (2002: 14) articu-
lam-se à cartografia de sentimentos em tessitura nesse texto: “a história
de cada um é um mergulho que, impulsionado pela superfície social,
vai em busca das profundezas, do labirinto imaginário. Labirinto que,
simbolicamente, conduz à Terra Prometida, pois não é outro o mito que
move o migrante”.

Laços & tensões cotidianas

Se Melgaço foi a “Terra Prometida” para as professoras fazerem suas


histórias com a educação, elas se encontraram e viveram intensamente
essa relação, alinhavando complexos laços de convivência. A narrativa
da Professora Wilma tornou-se abre-alas para se adentrar no segundo
objetivo do texto.

268
A turma que veio comigo realmente, nós, abraçamos
Melgaço, só foi embora a Graça e a Isabel, o resto ficou
aqui, às vezes, eu fico conversando com a Rose: “Rose,
eu acho que a gente nunca vai embora daqui”. Um dia
desses, ela estava com uma conversa que ela ia fazer um
concurso para Cametá e, se ela passasse, ela ia embora,
eu disse: “Tu vais nada” [risos] (Professora Wilma, 2014).

De acordo com as narrativas das professoras, Melgaço não foi so-


mente um espaço de realização profissional, mas de múltiplas relações.
O primeiro contato entre elas foi na conhecida “casa dos professores”.
Nesse contexto, Sayad (1998) ajudou a discutir a concepção de espaço
para o migrante, explorando o aspecto solidário de sua partilha como
fator fundamental para mostrar a sociabilidade e a acolhida entre os
que chegam. Com exceção de Jurema que, antes de casar, morava com
os pais, essa foi uma marca presente entre as professoras migrantes
que chegaram a Melgaço. Elas dividiam a mesma moradia e sua dinâ-
mica interna.
Muitas situações vividas e sentidas, projetos traçados e nem sempre
realizados em terra familiar proporcionaram trânsitos que fizeram as
professoras migrantes embarcar com o desejo de realizá-los em terra
estrangeira. O encontro aconteceu na casa dos professores, lugar de me-
mórias, espaço de construção e partilha de sentimentos para as docentes
que ali residiam. Com grande entusiasmo, Wilma seguiu a narrativa das
convivências e dos laços urdidos naquele emblemático hábitat.

Nós morávamos todas só em uma casa, tanto profission-


almente quanto a parte sentimental. A gente era com-
panheira realmente, se uma estava passando por dificul-
dade, todas nós ajudávamos, então, a relação social de
todas nós era de amizade, porque todas nós estávamos
fora da nossa família, era de você se comprometer com
a causa, ter a coragem de falar, mas ao mesmo momen-
to pedir desculpas e não ficar remoendo coisas ruins.
Então, a minha relação social quando eu morei na casa,

269
praticamente mais de oito ou nove professores, cada um
tinha seu modo de pensar, mas eu fui uma pessoa que
sempre prestei a atenção e respeitei os outros. Eu tenho
essa facilidade de abertura, de diálogo e de respeito pelo
outro. Então, a relação social que eu desenvolvi com es-
sas pessoas que trabalharam nesse tempo foi de irmã, de
companheirismo (Professora Wilma, 2002).

Na interpretação da professora, morar na casa, dividir o mesmo


espaço serviu-lhe de aprendizagem para viver em comunidade. Saber
compartilhar o material e o sentimental, dialogar e escutar o outro fo-
ram atitudes fundamentais para manter o ambiente mais familiar, pois
todas estavam na mesma condição de estrangeira. A casa alcançou, nes-
se contexto, a condição de território em que estranhos se tornam fami-
liares e, nas diferenças, podem construir um novo sentido de família em
espaço estrangeiro.
Esse tipo de relação estabelecida na casa dos professores, pela ótica
de Wilma, dialoga com o posicionamento de Tanus (2002) por conside-
rar que o migrante busca constantemente em terra não familiar recriar
uma nova relação com as pessoas como estratégias de substituir “os elos
perdidos do afeto”, tornar o encontro menos resistente e mais afetuoso.

Aqui dentro dessa casa eu vivi muitos momentos feliz-


es, o meu crescimento educacional e cultural aconteceu
quando eu morava aqui. Por exemplo, eu fiz estudos adi-
cionais, passei no vestibular, morando aqui dentro dessa
casa, engravidei da minha filha Viviana, que me acom-
panhou no período todinho da universidade, convivi
com muitas colegas que tenho saudade, como a Luíza,
a Lúcia, a Graça que foi embora, a Edina, muitas pes-
soas que deram um trabalho significativo para Melgaço
foram embora, foram em busca de outros horizontes
(Professora Wilma, 2002).

Para a Professora Wilma, a moradia compartilhada ajudou, além


da relação de amizade, no seu desenvolvimento profissional, cultural,

270
social e afetivo. Comungando dessa experiência, a Professora Dilma
considerou que a principal contribuição foi dividir com as colegas as
dificuldades do ofício para juntas buscarem superação através da troca
de experiências, já que, na época, não havia no município profissionais
de equipe pedagógica nas escolas. O morar coletivamente

[...] ajudava muito porque nós nos reuníamos para dis-


cutir o que estava acontecendo, como trabalhar, como
fazer. [...] Nós procurávamos trabalhar em conjunto,
sempre passando de um para outro. [...] Mas não foi fácil
no momento para a gente iniciar uma carreira. Sem ex-
periência nenhuma em uma sala de aula, onde você en-
contra várias diversidades para trabalhar [...] (Professora
Dilma, 2014).

Sayad (1998), ao discutir a moradia como “habitação-alojamento”


do migrante, tratou-a como questão de uma comunidade por viverem
nas mesmas condições de vida, de espaço, habitação e seguirem a mes-
ma dinamicidade do ser migrante, podendo reforçar o sentimento de
solidariedade e de proximidade social.
Caminhando em outra direção para explorar sentidos que aflora-
vam no presente acerca da complexa convivência na casa dos professo-
res, colocamo-nos à escuta de Rosiete:

Nessa residência moravam médicos, enfermeiros, pro-


fessores, dentistas, todos viviam nesta casa. Eu já tinha
também um pouco dessa experiência de morar com
colegas e já estava com os meus 25 anos, pelo menos
eu já estava vivendo essa experiência de dividir aluguel
com algumas companheiras. E eu sempre fui uma pes-
soa muito calma, sempre eu ouvia muito as pessoas,
acabava nunca revidando o que as pessoas me diziam,
sempre ficando ouvindo, não discutia. Na maioria das
vezes, quando alguma coisa me ofendia, na verdade, eu
acabava chorando e não me defendia (Professora Ros-
iete, 2002).

271
Nas rememorações da professora, vieram à tona outros tempos de
experiências de viver em moradia compartilhada, dentre as quais emer-
giram situações nem sempre fáceis de resolução. A omissão, a passivi-
dade, o silêncio, o choro tornaram-se, no primeiro momento, a solução
encontrada para encarar os momentos conflitantes.

Aqui em Melgaço, existia uma competição, digamos,


quem chegou primeiro sempre tinha prioridade frente
a quem chegou depois, era parecido calouro, sofria algu-
mas penalidades, algumas punições para aprender, para
ir se adaptando, e isso aconteceu comigo. Algumas co-
legas que já estavam mais tempo se achavam donas do
espaço A, do espaço B, e eu sempre fazendo concessões,
achando que elas tinham razões. Mas o meu trabalho,
minha experiência de professora, leitura e o convívio,
eu fui aprendendo que você tem que ceder as coisas,
mas você tem que olhar que também tem direito, e eu
fui aprendendo a conviver com isso e sabendo falar. Eu
sempre fui uma pessoa muito tímida, que ouvia muito,
chorava, ficava me lamentando, e fui vendo que não po-
dia viver desse jeito, isso fez eu ir aprendendo a viver,
conviver e fazer as pessoas também me respeitarem. Eu
fui me impondo em muitas questões, fui vendo esse re-
lacionamento, eu não devia me comportar como eu me
comportava em Belém, não que eu fosse assanhada, não
é nesse sentido, mas tudo para mim eu achava que era
fácil, que podia ser desse jeito, de chegar, conversar e
comentar algo, hum! Eu fui ver que não era bem assim,
que eu não poderia estar envolvida em fofocas, em con-
fusões, eu fui me policiando. Apesar disso, eu tinha um
bom relacionamento com as professoras, não me lembro
que tenha ficado de mal com alguma, que tenha brigado;
pelo contrário, nós vivíamos realmente num grupo, num
coletivo trabalhando em prol da comunidade (Profes-
sora Rosiete, 2002).

272
Quando a professora falou da competição entre as moradoras da
casa pelo espaço A e B, aquela que chegou primeiro e aquela que chegou
depois, isso pode ser compreendido a partir de Campos (2011) por con-
siderar o espaço geográfico e de sociabilidade como espaço de fronteira
humana, e aqui se enfatiza como fronteira de relações e seus simbolis-
mos. Portanto, a demarcação da residência significa fronteira de resis-
tência por atitudes de preconceito, discriminação, rejeição e, como bem
disse a professora, pelas penalidades. O tempo de moradia parecia criar
hierarquia na prioridade dos usos dos espaços.
A Professora Rosiete buscou conciliar os contrários através de seu
modo de ser, superando a passividade, uniu esforços dedicados ao tra-
balho, o reconhecimento da comunidade e dos alunos para exigir seus
direitos de moradora. “Eu fui aprendendo que você tem que ceder as
coisas, mas tem que olhar que você tem direito e eu fui aprendendo a
conviver com isso e a falar, lutar pelo meu reconhecimento”.
Para debater sentidos de convivências entre as professoras migran-
tes, recorreu-se a Assis (2007) quando esta autora, pesquisando o pro-
cesso relacional em rede social, considerou a dinâmica das experiências
estabelecidas entre os migrantes não apenas pela perspectiva da solida-
riedade, mas também pelo conflito e pela exploração dos próprios con-
terrâneos entre si. No depoimento da Professora Rosiete, ficou evidente
a questão da rejeição inicial entre o grupo de professoras na luta pelo
melhor espaço na casa.

Se, por um lado, a compreensão do processo migratório


a partir do enfoque nas redes sociais aponta para a im-
portância das relações de solidariedade [...], por outro
lado, revela que tais redes são também fonte de ambigu-
idade e conflito. Em decorrência disso, muitas vezes os
migrantes recém-chegados são explorados por seus con-
terrâneos; assim, tais relações seriam a base não só para
a solidariedade e a ajuda mútua, mas também para a di-
visão e o conflito étnico (ASSIS, 2007: 752-753).

273
Enquanto Rosiete interpretou as relações de poder instaladas na
casa dos professores pelo viés da disputa de espaço, Fátima trouxe à tona
outras dificuldades para conseguir residir ali.

Eu trabalhava com cem horas. Naquele tempo, quem


trabalhava como serviço prestado passava de três a
quatro meses para receber, era muita dificuldade, eu
tinha a minha filha para criar, eu morei um tempo na
casa da Naza do Herculano, a Cris ficava jogada por lá,
naquele tempo ela começou a ir para a pré-escola. Era
muito difícil eu trabalhar e cuidar dela, eu não tinha
como pagar alguém para cuidar dela, então eu levei a
Cris para a casa da minha mãe para ficar lá até melho-
rar a situação, porque eu não recebia, ela tinha um ano
e pouco, só que ela adoeceu, quase morreu para lá, eu
tive que ir buscar, só que nesse período eu fui morar na
casa dos professores lá na frente, tinha a Célia Rosa, a
Sebastiana, o Luiz, que também era professor, a Luiza, a
Graçona, moravam todos lá, mas lá eu não podia morar
porque eu tinha criança, então foi uma regra que foi
quebrada porque a Cris andava atrás de todo mundo
por lá, a Graça cuidou dela um tempão, levava para o
pré. A Cris ficava o dia todo na pré-escola e eu trabal-
hava (Professora Fátima, 2014).

“Sentir o pertencimento é mais do que um desejo, é uma necessi-


dade para aqueles que se deslocam” (NOBRE, 2009: 115). Morar na casa
dos professores para Fátima foi sentir-se pertencente àquela comunida-
de e acolhida pelo grupo. Antes disso, era uma migrante sem teto, mo-
rou com Irene depois com Naza, tinha um destino incerto e duvidoso.
A migração era o seu endereço, a sua permanência.
Para fazer parte do grupo das professoras, foi preciso fazer concilia-
ção, tinha uma filha e, na casa, não podia morar criança. Com o apoio
de uns e a resistência de outros, o jogo de articulação foi feito entre o
individual e o coletivo, a instabilidade e a estabilidade, a mudança e a

274
permanência. Nessa partida, a regra foi quebrada para melhorar a situa-
ção estrutural de Fátima no município. Ao fazer parte do grupo, Fátima
narrou como a amizade com as professoras, especialmente com Graça e
Rosiete, fez o tempo de convivência com sua filha na casa dos professo-
res ser rememorado com grande alegria, entusiasmo e saudade.

A Graça, meu Deus! me ajudava muito, cuidava da


minha filha, ficava com ela, a própria Célia Rosa, que
era a mais rabugenta [risos], não gostava de criança,
mas a Cris às vezes andava atrás dela. Mas a Rose, para
mim, tudo que eu precisar, até dinheiro se eu estiver
aperreada... Ela disse: “Fátima, eu te ajudo”. Depois eu
conheci o Ivan, fui morar com o Ivan, a Rose também
casou com o Mauro e todo mundo casou, a casa lá aca-
bou (Professora Fátima, 2014).

Ter um endereço, estar com o grupo foi para a Professora Fátima


o apoio de que precisou para dar outro sentido à sua vida na terra hos-
pedeira. Nessa passagem da narrativa, ela deixou ver que o casamento
fez com que a história das professoras migrantes em Melgaço encerrasse
um importante capítulo dessa trajetória. Sayad (2000: 11) afirmou que
“o imigrante [...] só deixa de sê-lo quando não é assim denominado e,
consequentemente, quando ele próprio assim não mais se denomina,
não mais se percebe como tal”. Já em Demartini, a ideia de ser migrante
está para além do “deslocamento” ou de “trânsito”, é um estado de acei-
tação ou negação; portanto, faz parte da subjetividade, da forma como
cada um se denomina.

Chegada

Depois que as professoras contraíram enlace matrimonial, tor-


naram-se mães e foram habitar em casa própria na cidade, a antiga
habitação assumiu outros usos e funções, mesmo que a memória local
ainda revitalizasse o prédio como a “casa dos professores”. A prefeitura

275
municipal reformou a residência e a transformou em órgão ligado ao
Departamento de Merenda Escolar, inconscientemente deixando co-
nexões com a educação.
No balanço que as professoras realizaram de suas trajetórias de
vida pessoal e profissional em Melgaço, hoje aposentadas ou em pro-
cesso de aposentadoria, elas destacaram que ali dedicaram e viveram
o tempo mais importante de sua existência. A experiência lhes pos-
sibilitou saírem do anonimato e serem enxergadas, respeitadas e va-
lorizadas pela comunidade local. Adotaram o município como terra-
mãe, já que a identidade profissional foi alinhavada em meio a um
conjunto de ações compartilhadas. Contíguo ao fazer educacional,
as professoras migrantes tornaram-se importantes lideranças políti-
cas, sociais e religiosas. Passagem do depoimento de Wilma pareceu
trazer à tona a polifonia de sentidos do que significou Melgaço para
todas as narradoras.

Melgaço me deu tudo o que eu tenho hoje [emocionou-


se], a minha bagagem cultural eu devo a Melgaço. Foi
aqui que eu trabalhei, consegui pagar meus cursos,
fazer duas pós-graduação, consolidar-me profissional-
mente. [...] Se eu tivesse trilhado outro caminho, talvez
eu não tivesse alcançado esses degraus e o reconheci-
mento. [...] Outro dia, eu recebi uma carta de gratidão
da Ludimila, hoje psicóloga formada pela Universidade
da Amazônia. Eu nunca pensei que um dia isso acon-
teceria comigo, mas aconteceu e eu fiquei lisonjeada
(Professora Wilma, 2014).

Certamente, esse balanço positivo deve muito aos lugares e senti-


dos que o passado vivido assume no presente. A esse respeito, Nobre
(2009: 21) foi esclarecedor: “A análise sobre a história de vida de profes-
sores migrantes ajuda a entender o indivíduo na relação com a história
do seu tempo, ao esclarecer, assim, as escolhas, investimentos e opção
com que se depararam, bem como a percepção de imagens que constro-
em sobre a profissão”.

276
Na cartografia de sentimentos que se procurou urdir para ana-
lisar conquistas, conflitos, limites e superações, as professoras mi-
grantes revelaram o que consideraram importante publicizar naque-
le momento da conversa. Talvez, em outro momento e com outras
pessoas, novas histórias sejam ditas ou silenciadas. Cada uma viveu
e construiu sua história com/em Melgaço de acordo com seus prin-
cípios e da forma que acreditava ser correto. Portanto, a história de
cada uma revela especificidades e relações, as quais ajudam a enten-
der um singular capítulo da história da educação nesse município
marajoara.

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280
MULHERES NOS LABIRINTOS DA MEMÓRIA:
LUTAS DE SI NO (RE)FAZER-SE NA/DA
CIDADE-FLORESTA1

Agenor Sarraf-Pacheco

Entrando no labirinto: percursos da memória

O passado não revela verdades escondidas,


ele apenas permite possíveis novas interpreta-
ções. Isto talvez porque o olhar para o passa-
do seja sempre o olhar do presente, um olhar
amalgamado pela experiência daquele(a) que
olha, pelas escolhas que faz, pelo lugar social
que ocupa (SOARES, 2002: 70. Com grifo).

As memórias de luta pela vida e pelo (re)nascimento da cidade de


Melgaço, no Marajó das Florestas2, no Pará, compostas por Benedita

1
O autor deste artigo sente-se grato a Josiane Martins Melo, ex-aluna e orientanda
do bacharelado em Museologia, co-orientanda de Mestrado em História Social da
Amazônia (PPHIST/UFPA) e integrante ativa do Grupo de Estudos Culturais na
Amazônia (Geca/CNPq/UFPA), pela leitura atenta, empolgante e sugestiva do ca-
pítulo. Agradece-se à genial ideia para pensar, na Saída do labirinto, a relação entre
a luta pela emancipação da cidade e a emancipação da mulher melgacense.
2
Apreendeu-se o arquipélago de Marajó ou a Amazônia Marajoara em duas regiões
distintas e relacionais. O Marajó das Florestas, formado pelos municípios de Afuá,
Gurupá, Anajás, Breves, Melgaço, Portel, Bagre, Curralinho e São Sebastião da Boa
Vista, e O Marajó dos Campos, constituído pelos municípios de Soure, Salvaterra,
Cachoeira do Arari, Santa Cruz do Arari, Chaves, Ponta de Pedras e Muaná. >>

281
Nogueira, Antônia Farias, Apolônia Dias, Maria Corrêa, Raimunda No-
gueira, Osmarina Alves e Martinha Sanches, contextualizadas entre as
décadas de 1940 a 1990, correlacionando o tempo do vivido e o tempo
do narrado nas teias da labirintuosa relação passado/presente/futuro,
revelam a forte presença e atuação da mulher melgacense na sinuosa
tessitura das histórias de si e da cidade-floresta3.
O trânsito realizado por essas mulheres entre a floresta e a cidade
decadente no final da Segunda Guerra Mundial, quando a cultura e a
economia da borracha em sua segunda fase já estavam em derrocada,
apontou que o viver no espaço urbano, mesmo em suas precárias con-
dições, poderia ser menos difícil e agressivo. A cidade emergiu, então,
como território de liberdade, do direito a uma vida melhor, do acesso a
comércios, ao trabalho nas terras em suas cercanias e a serviços de saú-
de e educação. A complexidade da realidade, todavia, mostrará outras
faces e a emergência de outras formas de luta.

“O uso dos termos ultrapassa a ideia da paisagem predominante nestes dois lados
da região. Sua divisão é realizada em perspectiva geopolítica para marcar diferenças
e semelhanças na constituição da região, pois, em termos físicos, esses ambientes
estão presentes em toda a Amazônia Marajoara. A região vem sendo interpretada
como terra de grandes contrastes: de um lado suas riquezas humanas, arqueológi-
cas e naturais, mas, pelos jogos do político e de interesses particulares de grandes
latifundiários e empresários, foi soterrada numa profunda miséria social, reverbe-
rando diretamente nas populações mais carentes de trabalho, de formação escolar
e profissional, além de condições para lutar e exercitar seu direito a uma vida mais
digna e cidadã” (SARRAF-PACHECO & SILVA, 2015: 99).
3
O conceito “cidade-floresta” foi elaborado durante o mestrado realizado no Pro-
grama de Pós-Graduação em História Social, na PUC-SP, sob a orientação da Pro-
fessora Maria Antonieta Antonacci. Ao se trabalhar com memórias de morado-
res do espaço florestal de Melgaço, migrantes para a cidade em busca de melhores
condições de vida a partir de 1950, percebeu-se que as formas como abriram ruas,
construíram habitações e quintais sustentaram criações e plantações ou relaciona-
ram-se com novos vizinhos e o meio ambiente circundante, estiveram assentadas
em saberes e experiências do mundo rural/florestal. Desse modo, a cidade passou a
ser vista não apenas como resultado das intervenções de técnicos da administração
pública, mas também como ações das relações estabelecidas por populações ribei-
rinhas com o espaço urbano em construção (SARRAF-PACHECO, 2004; 2006).

282
O contato com a história de vida dessas mulheres começou e se in-
tensificou entre os anos de 1998 a 2003, quando foram iniciadas as pes-
quisas para a monografia de conclusão do curso de Licenciatura Plena
e Bacharelado em História, pela Universidade Federal do Pará (UFPA),
e as pesquisas para a dissertação de mestrado em História Social, pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Naquele pri-
meiro trabalho (SARRAF-PACHECO, 1999), houve a preocupação em
analisar o conteúdo dos modos de narração da vida urbana e do tra-
balho por parte de diferentes trabalhadores rurais e moradores antigos
da cidade. Já no segundo trabalho (SARRAF-PACHECO, 2004), além
de documentos escritos e iconográficos mapeados e interpretados, fo-
ram acompanhados sinais e sentidos do movimento de deslocamento
de pessoas do espaço rural para a decadente e depois emergente cidade
de Melgaço entre as décadas de 1930 a 2000.
Nas duas pesquisas realizadas sobre o cotidiano de trabalho, a reli-
giosidade, as lutas políticas, os tempos de penúria, abandono, emanci-
pação, as manifestações artístico-culturais e os modos viver na cidade-
floresta, a presença de mulheres, tudo isso ganhou destaque. Não por
acaso, houve a preocupação de se escutar as trajetórias de cada uma
delas e desvendou-se uma multiplicidade de experiências que constru-
íram uma singular vida urbana em Melgaço. Percebeu-se que reconsti-
tuir aspectos do fazer-se da cidade estava imbricado com o fazer-se de
si nas vozes femininas.
Desse modo, revendo manuscritos com os muitos interlocutores
que colaboraram com aquelas investigações, selecionaram-se, para a
feitura do presente capítulo, as narrativas de mulheres da floresta ma-
rajoaras, situadas em Melgaço, ouvidas quando já habitavam o espa-
ço urbano do município. Apreendeu-se o inédito exercício de redigir
textos sobre/com mulheres no front da história como mergulho num
complexo labirinto em que facilmente é possível perder-se pelas muitas
entradas e raras saídas existentes. Ao se encarar o desafio da escrita,
revisitando memórias já trabalhadas em outras produções acadêmicas,
serão trazidos à baila enredos de dificuldades no mundo do trabalho, da
educação escolarizada e do relacionamento afetivo. Em último plano,

283
recompôs-se o universo das manifestações populares na tensa relação
entre tradições e mudanças provocadas pelos circuitos da modernidade
na região.
O contar das memórias tornou-se possível porque a relação pes-
quisador/pesquisado era orientada por sentidos do pertencimento ao
lugar. As mulheres de Melgaço acompanharam o constituir-se pes-
soa do signatário desse artigo, ainda na infância, pelas ruas da cidade
como vendedor de pão, chope, estudante do antigo Primeiro Grau. À
medida que se foi penetrando nos territórios movediços, fascinantes
e cheios de labirintos das memórias femininas, percebeu-se que o es-
forço da pesquisa ganhava consistência. Foram atingidas lembranças
para além de expectativas iniciais, alcançando nuances que tinham
para distintas mulheres as pequenas frases, os monossílabos, os ges-
tos, o calar, o riso, as lágrimas. Esses sinais específicos do processo
comunicativo enriqueceram os significados das narrativas, especial-
mente quando recompunham situação de tristezas, perdas e ganhos
nos atos da relembrança (BRESCIANI & NAXARA, 2001). A partir
de agora, optou-se por interagir com memórias destas mulheres para
tecer um capítulo de aspectos significativos que compõem a história
social de Melgaço.

Labirinto 1: memórias de si e do lugar

A história de Melgaço vem sendo escrita com foco na valorização


das vozes de seus muitos moradores (SARRAF-PACHECO, 1999; 2004;
BAIA, 2004; 2015; VIEGAS, 2015). São mulheres, homens, crianças,
jovens, adultos e idosos, filhos nativos ou adotivos do município, que
viveram ou aprenderam a contar eventos constituintes da identidade
sociocultural do lugar.
Por entre memórias escritas, visuais e orais, emergiram informa-
ções que contam a constituição jesuítica da aldeia Guarycuru em me-
ados do século XVII, habitada por índios Nheengaíba, Mamaianás e
alguns poucos Chapouna (DANIEL, 2004). Com a expulsão da Compa-
nhia de Jesus da Amazônia (1759), a aldeia transformou-se na vila São

284
Miguel de Melgaço e, no contexto da Primeira República (1889-1930),
foi elevada ao predicado de Intendência Municipal de Melgaço, quando
a cultura econômica da borracha, sem esquecer outros produtos extra-
tivistas, agenciaram tempos, esforços e interesses de uma multiplicidade
de mulheres e homens de dentro e de fora da região.
A queda das exportações da borracha, os conflitos políticos entre
Melgaço, Breves e Portel, a guerra entre criadores de gado e agriculto-
res nas cercanias da Intendência, no famoso episódio da Revolta dos
Guedes, em 1930 (PACHECO, 2004; 2006), e a derrota de Melgaço
com a chegada de Magalhães Barata ao cargo de interventor no Pará,
levaram o município aos chamados tempos de penúria e abandono
(1930-1960), passando a ser governado por Breves (1930-1932) e por
Portel (1932-1960).
Ao longo das pesquisas produzidas sobre a história social da ci-
dade, as narrativas de prosperidade e decadência entrelaçaram-se nos
labirintos da memória dos entrevistados. As mulheres, por exemplo, ao
recordarem as imagens da cidade-floresta decadente entre os anos de
1930 a 1960, não a fizeram da mesma maneira, pois os significados dos
seus espaços não se apresentaram de uma única forma. Os caminhos da
roça, a frente do povoado, o trapiche, a rua onde ficava o prédio da velha
intendência e/ou sua primeira residência tornaram-se suportes para a
construção dos sentidos que aquele lugar possuía na memória de cada
uma delas.
“Quando eu cheguei pra cá, uma beira de rio era mais alegre. Não
tinha nada, tinha só duas famílias: Nogueira e Mamede” (entrevista re-
alizada com Benedita Lima Nogueira, 71 anos, Melgaço, em abril de
2002). As lembranças da antiga cidade imersa em abandono foram des-
critas por Dona Benedita (falecida) como o espaço marcado pela ausên-
cia de tudo, quando ali chegou em 1945, com 15 anos, logo após ter-se
feito esposa de seu Benevenuto Nogueira.
Traços de uma cidade abandonada e sem vida administrativa reve-
laram-se marcantes nas memórias das mulheres entrevistadas, quando
abordaram histórias vivenciadas por antigos moradores. Nesse cenário,
inseriram-se as reminiscências de Dona Apolônia.

285
Quando eu cheguei aqui em Melgaço, quem governava
era inspetor – aquelas pessoa que governavam aí, tira
mercadorias lá no patrão dele e botava o pessoal pra tra-
balhar de limpeza na rua. As ruas era só aquelas duas, a
que nós mora (12 de Outubro, antiga rua de trás) e a da
frente (Av. Senador Lemos, atualmente).A frente da ci-
dade era só um aturiazal que virge si homem, era bambu-
zal mesmo que desde bucubeira dessa grossura (mostra),
tinha açaizal, tudo tinha, e aturiá, si homem, era uma
coisa horrive, aquele trapiche municipal que dizem, si
homem, aquilo era só um pedacinho, eu sei até aonde é
a parage, eu sei tudo isso (Apolônia Dias da Conceição,
entrevista concedida em setembro de 1998 – Melgaço).

Recompondo as características físicas de Melgaço, quando ali che-


gou em 1954, Dona Apolônia Dias, 88 anos no ano da entrevista, hoje
falecida, revelou o papel desempenhado pelos inspetores, indicados pe-
los intendentes de Portel, e suas relações com os moradores do povoado
que já sonhavam e lutavam pela emancipação política do município.
Nas lembranças desses habitantes, foram vários os inspetores indicados
por Portel para acompanhar a vida do pequeno vilarejo. Nessas narrati-
vas, alguns nomes foram mencionados, outros apagados, demonstran-
do que a cronologia histórica se embaralha nos labirintos da memória
vivida. Como a ação dos inspetores raramente apareceu na memória das
mulheres, inferiu-se que suas interferências no ritmo de vida do lugar
não enraizaram significados capazes de ser relidos pelas lembranças do
presente da narrativa.
Diante da necessidade de demonstrar a veracidade dos fatos nar-
rados como agente ativa da história vivida pelos habitantes do lugarejo,
Dona Apolônia marcou com palavras e gestos o direito de contar a his-
tória social da cidade.

Olhe, eu conto do começo ao fim todo sacrifício que eu


enfrentei quando cheguei aqui, o que já passei. Quando
nós chegamos aqui, isso aí era tudo mata. Aquela rua que

286
nós morava (referindo-se à Rua 12 de Outubro) ia pro
bambo. Aquela frente era um grande aturiazal, nós pas-
sava semanas com meus filhos sem beber uma xícara de
água quente, nós num tinha condição (Dona Apolônia,
em depoimento citado).

As dificuldades enfrentadas para continuar lutando pela existên-


cia de si e da família marcaram a narrativa das mulheres de Melgaço.
Para mostrar que a cidade foi construída com suor, sacrifício, priva-
ções sofridas quando estava presa às amarras do município de Portel,
a entrevistada narrou os sofrimentos experimentados ao passar a ha-
bitar aquele lugar. No entanto, sua narrativa não foi construída apenas
pelo olhar sentimental ao relembrar os tempos difíceis que viveu com
carências materiais, ausência de comércios na cidade decadente e falta
de representatividade política. Em outros momentos, trouxe imagens
de diferentes situações experimentadas. “No interior do município, pra
mim, foi tudo bem, graças a Deus, nós ia em festas, nós se divertia, nos
dias santos nós saía pra passear por aí”. Essa mudança de sentimento
ajuda a pensar, conforme sinalizou Raphael Samuel (1997: 44), tendo
em vista que

[...] a memória é historicamente condicionada, mu-


dando de cor e forma de acordo com o que emerge no
momento; de modo que, longe de ser transmitida pelo
modo intemporal da “tradição”, ela é progressivamente
alterada de geração em geração. Ela porta a marca da ex-
periência, por maiores mediações que está tenha sofrido.
Tem, estampadas, as paixões dominantes em seu tempo.
Como a história, a memória é inerentemente revisioni-
sta, e nunca é tão camaleônica como quando parece per-
manecer igual.

As mulheres, no momento em que narraram suas lembranças, re-


criaram experiências, atribuindo-lhes sentidos outros a partir de sensa-
ções, sentimentos, emoções vividas que estavam recolhidas nos silêncios

287
da vida, cuja criação emergiu apenas na relação entrevistador e entrevis-
tado. Nessas condições, cabe ao pesquisador surpreender cruzamentos
de movimentos de memórias em labirintos do passado com as novas
vivências desses sujeitos sociais, na perspectiva de pensar as alterações,
incorporações, mutações e continuidades que essas memórias enfrenta-
ram. Por esse enredo, pode-se compreender que

[...] a memória, longe de ser meramente um receptáculo


passivo ou sistema de armazenagem, um banco de ima-
gens do passado, é, isto sim, uma força ativa, que molda;
que é dinâmica – o que ela sintomaticamente planeja es-
quecer é tão importante quanto o que ela lembra – e que
ela é dialeticamente relacionada ao pensamento históri-
co, ao invés de ser apenas uma espécie de seu negativo
(SAMUEL, 1997: 44).

No terreno das lembranças e dos esquecimentos de situações vi-


vidas no passado, as mulheres que se fizeram moradoras da cidade em
tempos de penúria e prosperidade, (re)encenaram os fatos socialmente
experimentados, mediados pelas relações amalgamadas entre passado,
presente e futuro. Nesse processo, foram reapresentando as imagens do
lugar para onde se dirigiram (SILVA & SARRAF-PACHECO, 2011). Os
traços rememorados por Dona Apolônia, por exemplo, refizeram a pai-
sagem de uma típica cidade-floresta fantasma.

Melgaço era um aturiazal medonho, traça, traça, nessa


cidade que não se podia quase entrar numa canoa. Num
tinha um comércio, num tinha nada. Só era tristeza
mesmo, os moradores era família de Mamede e família
de Nogueira. Isso aqui, as ruas só era essa duas (Dona
Apolônia, em depoimento citado).

O difícil viver dos poucos moradores que residiam em Melgaço,


de acordo com as lembranças de Dona Apolônia, foi enfrentando com
estratégias de luta. “Naquela época, a gente passava o dia inteiro reman-

288
do até a casa do nosso patrão, que era o Cabecinha, para trocar farinha
com mantimento, porque nós não tinha as condições de pagá ” (Dona
Apolônia, em depoimento citado).
Para realizar transações de compra e venda, as quais, na maioria das
vezes, eram de troca, as mulheres, filhos e/ou maridos e amantes, em
viagens comumente nos finais de semana, precisavam embarcar gêneros
agrícolas e extrativistas no casco – farinha, tapioca, milho, arroz, maxi-
xe e melancia, dentre outros – e deixar a cidade decadente ainda pela
madrugada, a fim de amanhecerem na casa dos comerciantes. Quando
regressavam para o lugarejo com as mercadorias adquiridas, a felicidade
tomava conta das famílias. “O patrão dele despachou o João com toda
mercadoria, si homem, quando ele vinha com o casco que cabia cinco
homem cheio de mercadoria, era uma alegria pra nós” (Entrevista com
Dona Apolônia, depoimento citado).
As alegrias provisórias pareciam comungar com o trabalho pesado
e o viver com sacrifícios. Para garantir seu sustento, mulheres, homens
e crianças envolveram-se nas mais diferentes atividades braçais: derru-
bada da mata virgem, coivara e plantio da roça de mandioca, macaxeira,
milho, arroz, tabaco, passando para a coleta do leite da seringa, pela pes-
ca artesanal, caças de animais na floresta, até a extração do açaí, do pal-
mito e da madeira, da produção artesanal de paneiros, peneiras, algui-
dares, panelas e tigelas de barro. Com isso, forjaram condições materiais
para viver em meio às dificuldades e alegrias da vida, entre rios e matas,
numa cidade-floresta que experienciava a dominação administrativa e
política e, por isso, assumiu a identidade de inspetoria.
O trocar farinha por mantimento, atividade tão presente nos mo-
dos de vida rural, remete ao pensamento de duas questões desencadea-
das nesse universo: a prática do comércio que se estabeleceu há muitos
anos na região amazônica e marajoara; e as relações sociais existentes
entre os antigos comerciantes e as moradoras.
Para obter alguns produtos complementares de sua alimentação,
as mulheres e seus familiares aguardavam a chegada na inspetoria de
um regatão, dirigiam-se para a casa dos comerciantes no interior do
município e/ou, em algumas ocasiões, para os municípios de Breves e

289
Portel. Esse tipo de comércio funcionava, na maioria das vezes, através
de relações de troca. Trocavam a produção com os gêneros que os co-
merciantes vendiam. Havia vários comerciantes espalhados pelos rios
de Melgaço. De acordo com as relações sociais estabelecidas, mulhe-
res e homens optavam por realizar transações de compra e venda com
cada um deles, muitas vezes comercializando seus produtos extraídos
do solo, da floresta e dos rios com comerciantes que ficavam muito dis-
tantes da inspetoria.
Para poder chegar a tais lugares, as mulheres, seus maridos e/ou
filhos tinham que passar até dois dias viajando de casco, principal meio
de transporte da época, pois as famosas rabetas do século XXI não ha-
viam mostrado seu sinal. As relações entre as trabalhadoras rurais com
os comerciantes do interior de Melgaço estabeleciam-se tanto no plano
da exploração e da resistência quanto das sociabilidades. Esse processo
de exploração dava-se pelo aumento do dobro ou triplo do preço das
mercadorias que vendiam, desvalorizando o produto apresentado pe-
las mulheres e sua gente. Por sua vez, muitas dessas mulheres também
constituíam formas de resistência quando decidiam abandonar o patrão
para vender sua produção a outros comerciantes, ou então demorando
para pagá-los. Por outro lado, patrão e trabalhadoras rurais construí-
am laços de amizade e territórios de sociabilidades que se expressavam
em festas populares, batizados, casamentos, aniversários e festas juninas
que naquele tempo eram realizadas.
Tais práticas ainda hoje são comuns nos espaços rurais marajoaras,
paraenses e, até mesmo, em algumas regiões do Brasil. Nesse univer-
so relacional entre comerciantes/patrões e trabalhadoras, destacou-se
a prática do compadrio, resíduo de relações de dominação e resistência
presente nos recônditos da Floresta Amazônica. Estudando os modos
de vida de trabalhadores do Recôncavo Baiano, Santana (1998: 52) as-
sinalou que: “os trabalhadores do campo viviam envoltos em uma pro-
fusão de redes de compadrio, integrando todos entre si no bojo da mais
expressiva e tradicional forma de sociabilidade”.
As festas, naquele período, eram organizadas, na maioria das vezes,
nas pequenas vilas de propriedade desses comerciantes. De acordo com

290
a distância, os moradores deixavam a inspetoria na quinta ou sexta-feira
para participar desses festejos e retornavam somente no domingo à tar-
de. Muitas dessas festas eram eventos anuais organizados por proprietá-
rios rurais para prestar culto ao padroeiro de sua localidade. Na cidade
de Melgaço, de acordo com as memórias femininas, aparece a realização
de algumas festas religiosas, tais como de Santo Antônio, Santo Ono-
fre, São Benedito e, especialmente, São Miguel Arcanjo, padroeiro do
município. Sobre esta última, costumam enfatizar que nunca deixou de
realizar-se, mesmo nos difíceis tempos de dominação portelense. Essas
festas eram o momento em que, com a presença do padre da paróquia
de Portel ou Breves, as moradoras realizavam os sacramentos do batis-
mo, crisma, confissões, comunhões e casamentos. No bojo das alegrias
e dificuldades, as mulheres criaram formas de preservar seus costumes,
tradições, crenças, formas de lazer e diversão.
O tempo das festas estava ligado ao tempo do trabalho. Nas ati-
vidades desenvolvidas no interior do município ou na vila abandona-
da, mulheres e homens planejavam o dia em que se encontrariam para
festejar o sucesso do plantio, da colheita, do nascimento do filho, do
“ajuntamento” com a filha do vizinho, mediado pelos mandos e intera-
ções com a natureza. Nesse universo de modos de vida desencadeados
em territórios de rios e matas, essa dinâmica relacional entre natureza e
cultura possibilita diálogos com Thompson (1998: 271-272), quando o
referido autor assinalou que, nesse tipo de vivência, “parece haver pouca
separação entre ‘o trabalho’ e a ‘vida’. As relações sociais e o trabalho são
misturados – o dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tare-
fa – e não há grande senso de conflito entre o trabalho e ‘passar do dia’”.
O trabalho nas atividades sazonais foi e ainda hoje é prática so-
cial muito frequente nos modos de vida dos moradores melgacenses,
especialmente os que continuam a habitar a zona rural do município
ou os que moram na cidade e trabalham em estradas, sítios e rios do
município. Sobre essa dinâmica, Baia (2015: 8), em pesquisa de mes-
trado, percorreu “rastros de produtores rurais, caçadores, pescadores
para entender as motivações que os colocam cotidianamente nesses
trânsitos”.

291
Muitas trabalhadoras rurais vivem em movência constante nos
espaços cercados por rios e matas à procura de formas outras de exis-
tência física e espiritual, em função do esgotamento de certas atividades
nos lugares que habitam. Em palestra ministrada na cidade de Melgaço,
em março de 2003, por intermédio da realização do I Fórum Muni-
cipal de Educação, comentou-se que um dos aspectos que se mostra
explicativo para se compreender o alto índice de evasão escolar presente
nas escolas rurais do município é a constatação de uma espécie de “mi-
gração interna” que acontece, dado o ritmo e o tempo das atividades
sazonais. Conforme as observações efetuadas para a elaboração deste
artigo, famílias localizam-se provisoriamente em uma determinada área
e depois debandam em busca de melhores condições de vida para outras
áreas. As atividades de madeira, palmito, farinha, arroz, camarão, pes-
cado, existentes no município, têm se apresentado como um dos fatores
presentes nessa dinâmica social.
Extrair madeira da floresta, pescar o camarão ou certos tipos de
peixe, fazer roçados são exemplos desse tipo de atividade. Lutar pela
existência era, para as moradoras, forjar diferentes tipos e modos de
trabalho. Tais práticas revelam-se diferentes e relacionais na geopolítica
local. Entre os quatro roteiros que recebem nomes de importantes rios
do município, mulheres e homens batalham para conseguir “o pão nos-
so de cada dia” em atividades sazonais ou permanentes. O Tajapuru, um
famoso braço do Amazonas, ficou conhecido como o rio de extração
da madeira e do açaí, de pesca do camarão e do pescado, apesar de hoje
estar perdendo essa identificação para se tornar o corredor da explo-
ração sexual de menores, venda ilegal de óleo, assalto a balsas, dentre
outros crimes; o Anapu, como o rio da produção da farinha, extração da
madeira em terra firme, pesca de peixes variados; o Campinas, como o
rio do pescado, criação e venda do camarão; e o Laguna, como o rio da
extração da madeira e da pesca.
Neste complexo território da cultura marajoara, as mulheres tecem
a vida e a história. São agentes de luta, enfrentamento e, ao mesmo tem-
po, vítimas das estruturas de poder em contínuo refazer da dominação
política, religiosa e familiar. A maioria, mesmo sendo mulheres pobres,

292
afro-indígenas, negras, mestiças e/ou caboclas sem oportunidades para
estudar na infância, como será visto a seguir, usaram as armas que es-
tavam à disposição para não sucumbirem perante as contradições do
sistema cultural vigente.

Labirinto 2: memórias da escola e da vida íntima

Muitos foram os entraves que as mulheres melgacenses enfrenta-


ram em suas trajetórias de vida. Na escuta de suas histórias pessoais
e articuladas ao constituir-se da cidade-floresta entre a dominação e a
liberdade política, as temáticas de trabalho, moradia, saúde, educação e
relacionamento conjugal, por exemplo, não passaram batidas. Contudo,
neste tópico, serão focalizadas as expressões de lutas e dificuldades para
estudar e o lidar com o poder e o sentimento masculino.
Depois do mandato dos intendentes em Melgaço (1889-1930), a ci-
dade abandonada ficou vários anos sem professor. A partir da década de
1950, com a chegada de um novo inspetor na localidade, Daniel Quin-
tas, a escola voltou a funcionar porque sua esposa, Dona Neide Pimenta
Quintas, decidiu dar aulas para as crianças que ali moravam. Raimunda
Nogueira, negra, professora leiga aposentada, nascida em 1948 na cida-
de, filha de seu Benevenuto e Dona Benedita, trouxe em suas lembran-
ças as dificuldades que enfrentou para estudar.

Quando estava se aproximando a época da chegada dos


vendedores na vila, o papai com a mamãe diziam “um-
bora, filha”, aí eu tinha que ir pra roça, às vezes eu pas-
sava semanas, eu cheguei até ficar mês sem botar o pé
na escola, já pensou, por causa da grande dificuldade
que a gente passou, né, às vezes eu ficava com raiva que
eu não ia na escola, mas tinha hora que eu entendia
a situação. Quando chegava a época da prova, eu can-
sei de levar os meus cadernos pra roça, levava, lá eu
colocava já tudo aberto, sabe, o piquero de mandioca
desse tamanho e os meus cadernos lá, aí eu sentava lá
raspando mandioca, mas eu não dava uma palavra com

293
ninguém, sabe, só estudando, quando eu tinha dúvida
eu só dava uma carreira lá no caderno. Eu estudava no
intermediário, aí a mamãe dizia “não dá pra ti ir estu-
dar amanhã”, aí eu corria lá com a diretora, né, dizia:
“Diretora, quebra o meu galho, vai ter prova amanhã
e a mamãe tá dizendo que não dá pra mim vim”. E ela
gostava de mim, ela quebrava o meu galho, quando
dava de noite, eu chegava cinco, seis horas, eu ia fazer
a minha prova lá na casa dela, já pensou, assim eu vivia
(Raimunda de Lima Nogueira de Alcântara, 52 anos,
entrevista em maio de 2002 – Melgaço).

As difíceis situações que Raimunda Nogueira enfrentou para es-


tudar e terminar a quarta série do antigo ensino primário retratam o
cotidiano vivido por várias outras mulheres e homens que residiam em
Melgaço no tempo da inspetoria. O descaso com que o lugar era tratado
por seus representantes e o valor que a educação possuía, tanto para eles
como para os pais dos alunos, naquele tempo, evidencia os sentidos da
precariedade do ensino não só em Melgaço, mas nos outros municípios
marajoaras. O pouco incentivo para o ensino pôde ser percebido na voz
de Raimunda quando ela falou sobre a inexistência de alimentação na
escola. “Todo mundo levava a sua merenda, sabe, pra gente ficar até 11h,
a gente levava merenda, cada um levava a sua merenda, quando dava 9h,
todo mundo saía e ia merendar, mas por conta própria, não tinha esse
negócio de merenda do governo”.
Nas lembranças de mulheres e homens de Melgaço, a primeira es-
cola em que estudaram era uma sede dançante, localizada ao lado de
onde foi construída, na década de 1980, a Biblioteca Municipal Améri-
co Brasil, na Avenida Senador Lemos, hoje demolida para dar espaço à
Feira Municipal em demorada construção. Segundo seu Firmino Caval-
cante, essa escola foi inicialmente uma casa de morada que o inspetor
Daniel Quintas doou para ser a sede dançante de São Miguel Arcanjo.
Foram tirados os compartimentos e transformados num único salão
(Firmino Cavalcante dos Santos, 59 anos, entrevista concedida em mar-
ço de 2003 – Melgaço).

294
No tempo da intendência, foi construída uma escola de alvenaria,
porém estava desativada e tomada por matos. Com a chegada de outro
inspetor, de nome Emiliano, a escola abandonada foi posta para funcio-
nar e o antigo salão de festas, onde os alunos estudavam, foi demolido
para a construção do mercado municipal, nos finais da década de 1970,
em exemplar redefinição de espaços e territórios.
Poucos moradores tiveram oportunidade de estudar, especialmente
do gênero feminino. Por isso, quando se questionou sobre a educação
desenvolvida na cidade do passado, por unanimidade as mulheres trou-
xeram em seus relatos angústias por não terem experimentado esse tipo
de atividade quando eram crianças.

Eu não tive a oportunidade de estudar. Com oito anos,


a minha mãe me butu pru mato pra trabalhar, eu ia fa-
zendo todo tipo de serviço que eu dava conta. Hoje, eu
sei fazer tudo quanto é trabalho do mato. E o maior arre-
pendimento que eu tenho no dia da minha vida é de não
ter estudado (Benedita Lima Nogueira, em depoimento
citado).

O valor que a educação passou a assumir no cotidiano das famílias


de Melgaço, na virada do século XX para o XXI, fez com que, no presen-
te da memória, Dona Benedita tenha se ressentido em não ter trilhado
uma carreira estudantil, a exemplo de algumas de suas filhas e netas que
já estavam formadas ou em formação em nível de ensino médio e, até
mesmo, superior. Nesse horizonte de dificuldades para estudar, inseriu-
se também o depoimento de Dona Maria Corrêa Oliveira, expressando
forte ressentimento pela atitude tomada por seus pais diante de sua von-
tade de frequentar a escola.

Nunca estudei porque meus pais não deixavam, eles


falavam que não era para eu escrever cartas pra namo-
rado, hoje me sinto culpada por não ter aprendido ler
e nem escrever, isso tudo é culpa de meus pais, por não
deixar eu estudar. Quando mandam uma carta pra mim,

295
eu tenho que pedir pra alguém ler. Teve pessoas que até
me enrolavam, mas eu não podia fazer nada. Meus pais
tinham tanto ciúme de mim que não deixavam eu levar
uma xícara de chá a uma visita (Maria Corrêa Oliveira,
79 anos, entrevista, agosto de 1998 – Melgaço).

Das narrativas dessas mulheres surgiu a valorização atribuída, na


atualidade da memória narrada, à educação escolarizada, direito social
negado no tempo em que podiam estudar. Trouxeram à tona as ten-
sões que essa questão provocou no seio de suas famílias, culpando os
pais como responsáveis por não dominarem os códigos linguísticos do
mundo letrado. A cidade aparece, então, como o lugar do aprendizado
da escrita e da redenção da vida.
As dificuldades de acesso à escola, expressão do caráter excludente
que o arquipélago de Marajó vivia e, especialmente, Melgaço, somado com
a formação dos pais, podem ser questões que descortinem significados da
escolarização feminina naqueles tempos. A escola, além de ser espaço de
poucos, em sua proposta de ensino negava a própria formação humana e
cultural das gentes que habitavam tanto a singular cidade quanto à beira
dos rios do município. O projeto de escola pautado em letramento im-
posto a esses habitantes, formados no âmago de matrizes culturais orais,
na interface com os conhecimentos da natureza, negava seus saberes. Ao
mesmo tempo que muitos tinham vontade de estudar, a exemplo de Dona
Benedita, sua filha Raimunda Nogueira e Dona Maria Corrêa percebiam
a diferença que existia em seu cotidiano de vida e de trabalho com os en-
sinamentos que a escola valorizava e tentava transmitir.
O conflito entre os saberes locais e os conhecimentos escolares evi-
dencia e justifica a emergência de estereótipos que denominam habi-
tantes de florestas como “analfabetos” pelas formas de educação escolar
que se instituíram em todo o Brasil. Incorporando esses preconceitos,
as mulheres e suas famílias, ao decidirem deixar suas antigas proprie-
dades nas margens de rios e matas e vir para a vila com o interesse de
envolver os filhos no universo do mundo letrado, vislumbraram a edu-
cação como válvula de escape para tecerem outras trajetórias, diferentes

296
daquelas que marcaram suas vidas. O horizonte de possibilidades, no
entanto, nem sempre foi alcançado porque muitos não conseguiram se
enquadrar na proposta de formação imposta pelo modelo de escola ins-
tituído na cidade.
Dentre as dificuldades para estudar vividas por aquelas mulheres,
inseriram-se conflitos nas relações afetivas. A partir da década de 1950,
quando a produção da borracha começou a diminuir em função do
término da Segunda Guerra Mundial e retomou-se a luta pela eman-
cipação de Melgaço dos domínios de Portel, algumas mulheres soltei-
ras ou casadas que haviam migrado do interior de outros municípios
marajoaras, para trabalhar no corte da seringa nas matas de Melgaço,
resolveram cortar rios e florestas rumo à inspetoria, a fim de ingressa-
rem na construção de roças. Muitas foram as motivações que as fizeram
vivenciar aquele processo.
A vontade de mudar de vida, proporcionar educação escolarizada
para os filhos, por exemplo, marcou a vinda de Dona Maria Osmarina
em 1977 do rio Carutá, espaço rural de Melgaço, para a emergente cida-
de-floresta (Maria Osmarina Gomes Alves, entrevista em setembro de
2003 – Melgaço). Apesar de ter carregado o sonho de desfrutar de uma
vida melhor no lugar para onde estava se dirigindo, Osmarina, esposo e
filhos, para viver, tiveram que encarar novamente, nas matas no entorno
da cidade-floresta, o trabalho braçal que estavam cansados de realizar
na beira de rios, furos, igarapés e matas no interior do município.
Esse processo vivido por muitas mulheres e homens deixou ver
que, na Amazônia, a migração para as cidades que ali foram se consti-
tuindo não representou ruptura nos modos de viver e trabalhar desses
sujeitos históricos que povoam a região. Pelo contrário, viveres urbanos
forjaram-se em consonância com viveres rurais, saberes orais demar-
caram escrituras de ruas, avenidas, casas, prédios e tantos outros bens
erigidos para dar existência e sentidos a uma multiplicidade de cidades-
florestas espraiadas pelo vasto mundo marajoara.
Em direção à vila, diferente do que aconteceu com Dona Osmarina,
os motivos que trouxeram para Melgaço Dona Martinha, adentraram o
campo das relações afetivas e conjugais. São lembranças de tristeza e dor.

297
Com a idade de 14 anos, eu fui por bem induzida por
um homem casado. Vivi com ele 23 anos, tive oito filhos,
se eu contar vocês não vão acreditar, o sacrifício que eu
passei no mundo pra criar meus filhos. Pra criar eles, eu
aprendi tudo no mundo, aprendi a cortar cana no roça-
do, a cortar seringueira, tapar garapé, lanciar4 de noite,
qualquer hora, qualquer meia noite. Aí, principiei a ter
meus filhos, quando eu findava o resguarde, me jogava
pro mato, meus filhos foram muito judiados, o pai deles
era um homem muito perigoso. Ele era um homem que
bebia demais, quando ele chegava de noite, desde pelo
mato ele me butava, cansei de correr. Ele puxava a faca
pra me esfaquear, puxava arma de fogo pra me atirá,
houve dias de eu correr pra dentro do mato, aí pra banda
da meia-noite ele puxava pela arma de fogo, dava cin-
co tiros me procurando pra dentro do mato, o senhor
acredita isso que estou lhe contando. [...] Aí foi vivendo
a minha vida cruel, sofrendo, os meus filhos foram cre-
scendo vendo eu apanhar, vendo o meu sangue escurrê.
[...] Eu tenho tistimunha do meu corpo, eu mostro se for
preciso. [...] Ele butava a faca, eu aparava. [...] Eu fiquei
na fulha da faca ele puxu, levou este meu dedo e este aqui
apareceu o osso, depois de ele me corta, ele pegou um
muntueiro de pano amarrou assim meu dedo tudinho e
mandou eu cortar cana no roçado. [...] Era assim, eu ia
vivendo parece que quase uma escrava (Martinha Sanch-
es da Silva, 86 anos [hoje falecida], entrevista concedida
em dezembro de 1998 – Melgaço).

Dor, revolta e compaixão foram sentimentos que afloraram quan-


do se acompanhou a trajetória de vida de Dona Martinha. A maneira
como foi tratada por seu amante e a luta que empreendeu para conse-
guir criar seus filhos deixaram marcas profundas em sua vida e seu ser
mulher, mãe e trabalhadora rural. Os gestos, as marcas no corpo, sinto-

4
Lanciar, jogar a lança. A lança aqui é a rede de malha que pescadoras utilizam para
pegar o peixe.

298
nizadas com a narrativa, denunciavam exercícios cotidianos de explo-
ração e subordinação vividos. Enquanto contava sua história, lágrimas
não cessavam de rolar em todo seu rosto, como que tentando acertar as
contas com um passado que tanto a atormentava, o qual só foi possível
contar pelos laços de confiança e afetividade que urdiam entrevistador
e entrevistada; o espaço e o tempo da narrativa – o confessionário da
Igreja de São Miguel, em Melgaço, numa manhã em que as crianças
brincavam na praça da matriz – e as mais de quatro décadas a separar
o vivido do narrado.
Na condição de pesquisador, ouviu-se calado e com um choro tam-
bém preso na garganta. Pulsava a vontade de fazer justiça, de restituir
a condição humana roubada da senhora entrevistada. Porém, sabia-se
que era impossível, já que se apresentava além das possibilidades ma-
teriais e legais de ação em função do tempo passado e do falecimento
do algoz.
O depoimento de Dona Martinha foi revelador do papel desempe-
nhado pelas mulheres no universo das florestas e as condições que lhes
foram impostas por maridos, companheiros e/ou amantes. A experiên-
cia de trabalho descrita pela entrevistada mostra que a divisão sexual do
trabalho foi rompida, não sendo possível definir os lugares e as ativida-
des onde a mulher deveria se fazer presente. A mulher melgacense da
floresta estava em todas as atividades braçais e nos momentos em que
se distanciava desses serviços, assumia os afazeres domésticos e o papel
que lhe foi tão difícil, ser mãe.
Ser maltratada e desvalorizada são práticas ainda hoje comuns no
cotidiano de vida de muitas mulheres que habitam o meio rural melga-
cense. O machismo e a condição de superioridade impostos pelos ma-
ridos ou amantes, exigindo dedicação exclusiva dessas mulheres, retira-
lhes a condição de exercerem seus direitos na relação conjugal.
Assistindo diariamente à mãe ser espancada, os filhos de Dona
Martinha, não suportando mais ver aquelas cenas doloridas, decidi-
ram trazê-la para a decadente cidade de Melgaço nos primeiros anos
da década de 1950. Ao chegarem ali, a depoente foi se envolvendo com
os agricultores que produziam farinha. Trabalhou na propriedade de

299
vários farinheiros, dividindo com estes o produto beneficiado até que
conseguiu seu próprio pedaço de terra.
A chegada de mulheres e homens do espaço rural, que se tornaram
novos habitantes da inspetoria em luta por emancipação e seu envol-
vimento com os inspetores que ali governavam, fizeram o espaço em
tentativa de mutação em sua infraestrutura ganhar outros aspectos. A
vitória da luta dos moradores pela libertação do município, no entan-
to, só aconteceu em 1961. Entre os tempos de inspetoria, emancipação
e afirmação da identidade municipal, mulheres e homens de Melgaço
atravessaram os acontecimentos com seus saberes e fazeres artísticos
populares. A partir de agora, sugere-se o acompanhamento do narrar e
do sentir de algumas dessas expressões.

Labirinto 3: memórias de manifestações culturais

Ao enunciarem suas experiências sociais, torna-se perceptível que


o viver das mulheres da floresta melgacense foi entrecortado por nu-
merosas dificuldades: o trabalho pesado, os perigos da mata, a falta de
assistência médica, a desvalorização de sua produção por parte dos co-
merciantes, a falta de oportunidades para estudar, a violência do ma-
chismo. No entanto, não se pode esquecer que a vida também possuía
outras dimensões, e isso permitiu ao universo das narrativas femininas
relembrar outras experiências e situações, em que a amargura cedeu es-
paço para alegrias, entretenimentos e formas de diversão experimenta-
das na decadente e emergente cidade do passado. Duas manifestações
artísticas construídas em Melgaço, entre o período de abandono e de
restauração do município, estão muito presentes em suas lembranças: o
Cordão do Boi Estrela e o Cordão do Pássaro Japiim.
Nos dizeres de Maria Clarice Leonel e Ivone Maria Xavier de Amo-
rim Corrêa (2001: 58-69), essas expressões da cultura popular são ma-
terializadas em forma de teatro popular, em que são narradas a morte
e a ressurreição do pássaro ou do boi. Do ponto de vista antropológico,
constitui-se em um ritual de rua, cujos personagens tomam forma e voz,
narrando a saga desses animais que são mortos por um caçador e res-

300
suscitados por um pajé ou curador. Partindo de elementos do cotidia-
no local, são maneiras de expressar como mulheres e homens pensam
sobre si e o mundo que os rodeia. A manifestação desvela a visão de
mundo da mulher e do homem da mata, as relações contraditórias e
conflituosas entre patroa/patrão e empregada, a relação entre o bem e o
mal, materializadas na convivência que os personagens mantêm com a
figura central do enredo: o japiim ou o boi.
Na voz das narradoras, quando começaram a falar dessas manifes-
tações e das brincadeiras que realizavam, não só a paisagem do lugar se
modificava, como a própria fisionomia e o semblante da depoente. O
corpo incorporou-se à fala, traduzindo a um só tempo oralidade, visua-
lidade e performance (ANTONACCI, 2001; VIEGAS, 2015).

Era lindo aquelas brincadeiras, no mês de junho vinha


gente de Portel todas as noites nos assistir aqui. [...]
Quando eu era criança, eu dançava o Japiim, com três,
quatro anos, eu era o Japiim. [...] O boi eu não dançava,
mas eu ia assistir toda noite, corria com medo da Cati-
rina que ela corria pra pegar menino pra meter debaixo
do cu do boi, todo mundo corria com medo gritando
(Antônia de Vasconcelos Farias, entrevista concedida em
maio de 2002 – Melgaço).

Nas rememorações de Dona Antônia Farias, no universo das diver-


sões que os moradores forjaram na cidade, o lúdico da infância aflorou
em sua narrativa igualmente. A despeito das disputas por poder e territó-
rio entre Melgaço e Portel, havia um circuito cultural de interação entre
o município emancipado e a cidade subordinada. Ao falar dos cordões
do Japiim e do Boi Estrela, manifestações que envolviam e mobilizavam
os moradores do decadente espaço rural, seu corpo movimentou-se, sua
voz ecoou e, não contendo a vontade, pediu para cantar a melodia do
cordão do Japiim que tantas vezes ouvira, cantara e dançara.

Japiim canta,
Já na árvore da arara,

301
O Senhor dono de casa,
Japiim já vai embora
1,2,3,4,5,6,7,8,9 Japiim vai de uma vez
1,2,3,4,5,6,7,8,9 Japiim vai de uma vez

“Tinha também a do caçador, era assim...”

Caçador eu venho pra te prender


A arde que eu tenho eu vou fazer
Agora sim nós queremos ver,
Quem é que tem razão
Se é o caçador com seu valor
Canta bonito ou não.
Nós já cumprimos a nossa missão
Nós queremos ver,
Nós queremos ver quem
Quem fizer questão.

“Essa é a música do caçador, aí o caçador falava para dona do Japiim”:

Bom dia, comadre eu vim pra matar o seu japiim


Como é que você quer que mate meu Japiim?
Que é um bichinho tão querido,
Como ele dentro do meu coração
Um bichinho desse, querido que se chama de Xexéu
Que no entanto sinhô Jeca até o povo do Sul
Chama ele de Xexéu.

Ao ecoar sua voz para cantar os versos da cantoria do Cordão do


Pássaro Japiim, Dona Antônia Farias, como que se inspirando para falar
do tempo em que podia dançar, cantar, pular e divertir-se, fez viagem
nas asas da imaginação para trazer à tona um passado marcante em sua
formação humana e cultural. No contexto da entrevista de 2002, tomada
por uma doença que contraíra nos tempos em que era roceira, a qual,

302
somada a outras complicações, a levaram ao falecimento em 2014, os
caminhos do trabalho na roça e diversão nas ruas de Melgaço, na virada
do século XX para o XXI, cederam lugar para um único espaço: o ca-
minho da igreja.
Nessa perspectiva, o sentido de morar na cidade se reelaborou e o
uso dos bens culturais tornaram-se outros, definindo-se muito em fun-
ção de ir à igreja rezar, trocar palavras com as amigas do apostolado de
oração e os membros da Paróquia de São Miguel Arcanjo. A narrativa
de Dona Antônia fez lembrar Certeau (1998: 202), ao refletir “o espaço
como um lugar praticado. Assim, a rua geometricamente definida por
um urbanista é transformada em espaços pelos pedestres”.
As novenas, danças dos cordões, festas juninas, festas dançantes
e religiosas eram práticas socioculturais que expressavam as variadas
formas de perceber e compreender o mundo por parte de mulheres e
homens que habitavam a cidade-floresta decadente. Naquele tempo, o
trabalho e o lazer eram tarefas que se entrelaçavam, conformando a di-
nâmica social dos moradores de Melgaço, em que eram regidos pelo
tempo do plantio, da espera e da colheita.
Considerando-se a dimensão espacial e diferencial entre práticas
sociais desenvolvidas pelas moradoras, pode-se aprofundar essas re-
flexões, dialogando com Edinelia Souza que, ao estudar os modos de
viver de trabalhadores rurais do município de Dom Macedo Costa, no
Recôncavo Sul da Bahia, surpreendeu em suas formas de interpretar
o trabalho de ex-escravos e mestiços pobres, maneiras específicas de
construção da cultura e dos saberes locais.

As maneiras de viver desses moradores eram influen-


ciadas pelo tempo da natureza e das festas, numa con-
tiguidade entre todas as relações de vivências no campo,
onde cada dia tinha seu ritmo baseado nas atividades a
serem realizadas. O cotidiano era construído a partir do
cruzamento dos eixos temporais diversos, relativos às ex-
periências concretas dos sujeitos, que se articulava numa
cultura (SOUZA, 1999: 145).

303
Todas essas formas de expressão, elementos da cultura material e
imaterial da população local, com destaque para os folguedos, surgiram
entre os anos de 1930/1940 e prolongaram-se após a recriação do mu-
nicípio, em 1961. Durante as décadas de 1980 e 1990, houve algumas
tentativas na cidade para recuperar essas tradições construídas por es-
ses antigos moradores. Porém, cantar e dançar as melodias que compu-
nham o enredo do drama do Japiim e do Boi Estrela não possuía o mes-
mo significado para os novos moradores que foram convidados para
fazer as apresentações. Na virada do século XX para o XXI, as escolas
em suas programações culturais tentaram, ora uma ou outra, reencenar
esses cordões. A sensação que se tem pelo olhar etnográfico é que parece
existir uma falta de identificação, pertencimento e afetividade das novas
gerações com essas manifestações.
Por esses termos, as diversas formas de expressões artísticas e cul-
turais criadas ou recriadas pelos antigos habitantes da cidade-floresta
entraram em choque com os novos costumes que, aos poucos, ali foram
surgindo, afastando os moradores de suas antigas tradições e as colo-
cando em desuso5. Na compreensão das mulheres melgacenses, espe-
cialmente as mais idosas, as festas juninas perderam o caráter de lazer,
de sociabilidade, e acabaram se tornando palcos de disputas, compe-
tições, inserindo o lugar nas sendas das formas de expressões criadas
pela modernidade. Tal alinhamento parece mutilar práticas sociais que
humanizavam e tornavam as relações entre os sujeitos mais afetivas.
Certamente, a dinâmica cultural do presente faz o popular e o massivo
se interpenetrarem e produzirem novas sociabilidades com outras sig-
nificações (GARCÍA CANCLINI, 2000).

5
Thompson (1998) ajudou a pensar nas tensões entre expressões de uma cultura
tradicional construídas em outros tempos e ritmos com as de uma cultura mo-
derna, que foi se constituindo no contexto da revolução industrial. Seguindo essa
perspectiva analítica, ainda que em outros tempos e lugares, e trabalhando com a
proposta de desconstrução de uma cultura hegemônica interessada em condensar
elementos do popular no erudito, destaca-se o papel desempenhado pela propa-
ganda dos meios de comunicação. A esse respeito, ver García Canclini (2000) e
Martín-Barbero (2001).

304
A presença do poder público na valorização, revitalização e/ ou
patrimonialização dos bens culturais de natureza material e imaterial
do lugar passou a ser decisiva. Os agentes culturais, ao defenderem a
institucionalização das manifestações criadas pela população no calen-
dário de eventos da Secretaria Municipal de Cultura, acabaram lidando
com sentidos ambíguos: de um lado, há um desejo de salvaguardar as
tradições; de outro lado, elas se veem desterritorializadas, descontextu-
alizadas do sentido atribuído por mulheres e homens que dirigiam tais
práticas fora dos circuitos e domínios do poder local.
Assim, aos poucos, criaram-se grupos de dança de quadrilha que
se dedicam, doam-se para alcançar um só objetivo: ganhar o concur-
so implantado na cidade-floresta em 2001 pela Secretaria Municipal
de Cultura. O sentido de fazer-se ator do enredo das apresentações foi
adormecido para dar lugar a uma espécie de ser treinado para não sair
do compasso, forma e ritmo das músicas mecanizadas, popularizadas
em escala nacional.
Para os jovens que participam do concurso de quadrilha, o muni-
cípio está conseguindo avançar e ampliar as formas de entretenimento,
lazer e diversão. Nessa perspectiva, há que se considerar que os signifi-
cados da diversão e da alegria são historicamente construídos. Não exis-
te padrão único cortando tempos e espaços que defina o que traz ou não
alegria às pessoas. Para os antigos moradores de Melgaço, as alegrias
eram tecidas pelos referenciais do trabalho, das celebrações religiosas,
do lazer nos jogos de bola, passeios em canoas, brincadeiras tradicionais
diversas, danças do Japiim, Boi Estrela, dentre outras. Todas elas são
formas de engajar-se na vida sociocultural do lugar, as quais têm sofrido
alterações significativas no cotidiano da cidade em processo de urbani-
zação de suas manifestações tradicionais.
As tradições constituídas por um viver na floresta cederam espaço
para o surgimento de práticas sociais de outros meios urbanos, dada
a chegada da tecnologia de massa na cidade-floresta. Esse processo de
substituição de práticas culturais não aconteceu de forma linear, cro-
nológica e harmônica; tensões, transgressões, resistências e recriações
foram expressas nas atitudes dos moradores. Por exemplo, o antigo e

305
atual bater-papo à noite na frente das casas, na praça, nos trapiches re-
encenaram a floresta na cidade, mas as salas de video games intensifica-
ram a comunicação de crianças, jovens e adultos com o mundo virtual.
Nas relações entre comunicações da floresta e da cidade, não há
circuitos fechados, mas relações versáteis que as tradições, os saberes e
costumes vão tecendo nas convivências que se constituem nesses con-
textos. “Não podemos compreender as tradições sem compreender as
inovações”, comentou José Jorge de Carvalho (1992: 25), etnomusicólo-
go brasileiro. Isso ajuda a compreender dimensões das relações sociais
alinhavadas por grupos sociais na constituição de vidas urbanas.
Todas essas práticas sociais na decadente cidade do passado, e que
ainda hoje resistem contra inovações na emergente cidade do presente,
estão enraizadas não apenas nas atividades que as pessoas desenvolvem,
mas também nos espaços onde elas estabelecem relações e por onde ca-
minham. Como assinalou Certeau (1998: 188), “num corolário, pode-se
medir a importância dessas práticas significantes como práticas inven-
toras de espaços”.

Para sair do labirinto: tentativas

Ao longo do capítulo, procurou-se reconstituir experiências de si e


da/na cidade tecidas por mulheres da floresta, migrantes para a antiga
vila São Miguel de Melgaço, entre as décadas de 1930 a 1960, tempos
que envolveram os domínios brevenses e, especialmente, portelenses e
as lutas pela emancipação, e entre as décadas de 1960 a 2000, tempos de
esforços para consolidar a emancipação e inserir Melgaço no cenário re-
gional. Revendo percursos e modos de narrar o constituir-se da cidade-
floresta, foram apreendidas marcas e sentidos de memórias pessoais na
composição da história social de Melgaço.
Para se penetrar nos horizontes das memórias femininas e apreender
significados que as entrevistadas atribuíram às suas experiências na flores-
ta e na cidade, foi preciso compreender que muitas desventuras já haviam
acontecido em suas vidas, e isso havia remodelado suas identidades e seus
modos de explicar o mundo (PORTELLI, 1997; THOMSON, 1997). Essas

306
alterações contribuíram para que suas memórias fossem reelaboradas e
acompanhassem lado a lado o curso de suas trajetórias (POLLAK, 1992;
BOSI, 2003). Por isso, quando narraram as lutas pelo sustento, direito à
escola, ao relacionamento afetivo pacífico e os conflitos entre tradição e
modernidade nas manifestações culturais, fizeram com base em continui-
dades e mudanças em seus modos de viver no presente.
Nos quadros da memória narrada, compreendeu-se que o passado
por elas vivido não retornou nas mesmas dimensões e circunstâncias
com que foi partilhado, mas “apresentou-se como vidro estilhaçado de
um vitral antes composto por inúmeras cores e partes” (DELGADO,
2003: 14-15). Nesse sentido, se o passado compartilhado que se expres-
sou na narrativa das mulheres melgacenses foi filtrado pela forma como
vivem o presente, pode-se compreender que a memória humana pos-
sui um caráter inesgotável. Por mais que se tente, nunca se conseguirá
apreendê-la na sua dimensão mais profunda, pois sempre estará reno-
vando e reconstruindo aquilo que o tempo lhe rouba. A memória pos-
sui artimanhas, armadilhas e muitos labirintos, semelhantes aos modos
de viver em um arquipélago como o de Marajó. Para além das muta-
bilidades da dimensão psíquica do humano, é preciso concordar com
Pollak (1992: 200), segundo o qual “determinado número de elementos
tornam-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa,
muito embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modifi-
car em função dos interlocutores, ou em função do movimento da fala”.
Na complexa teia entre o lembrar, o esquecer e o reter certo número
de imagens da experiência vivida, ficou claro que o diálogo da memória
com o passado sofreu mediações do presente, fazendo com que essa se
movimentasse em múltiplas direções, pois as mulheres melgacenses, ao
narrarem as memórias vividas, selecionaram, avaliaram, revelaram, silen-
ciaram, recriaram o que consideraram importante para continuar existin-
do. Dois exemplos marcantes foram a narrativa de Dona Antônia acerca
das memórias afetivas do Cordão do Pássaro Japiim e a narrativa de Dona
Martinha em torno das memórias do sofrimento. Tais episódios deixaram
ver como as mulheres viveram experiências-limite no lidar com os am-
bientes da floresta e da cidade, seja em afeto, seja em desafetos.

307
Se, para o historiador que trabalha com a memória de agentes
históricos, é preciso conviver com o indeterminado, o imprevisível, o
provisório, sem ela, as experiências das mulheres que interagiram com
variados homens em diferentes tempos e ritmos desapareceriam nas
bordas do silêncio e do esquecimento. Nessa perspectiva, David Lowen-
thal (1998: 103) foi esclarecedor:

Lembranças não são reflexões prontas do passado, mas


reconstruções ecléticas, seletivas, baseadas em ações e
percepções posteriores e em códigos que são constan-
temente alterados, através dos quais delineamos, sim-
bolizamos e classificamos o mundo à nossa volta.

Ao serem estudadas trajetórias vividas por ribeirinhos que se fize-


ram moradores da antiga vila de São Miguel de Melgaço, que, a partir
da década de 1960, deu origem à “cidade-floresta”, tentou-se tornar au-
díveis vivências femininas de um tempo passado, (res)significadas pelo
presente. Ficou claro que as mulheres, ao recordarem suas experiências
de trabalho, dificuldades, lutas, resistências, sociabilidades e diversões
vivenciadas na vila e cidade do passado, à luz do momento atual pas-
saram a reinterpretá-las e ampliar o valor e o significado atribuídos a
determinados acontecimentos. Nesse universo de reflexão, Carmem So-
ares (2002) lembrou que o papel do pesquisador, enquanto estudiosos
da memória, é conectar fios rompidos, rebobinar anos, décadas, traba-
lhando com as ausências, silêncios e presença de pequenas aparições.
Na tentativa de rearticular fios rompidos pelo tempo e pelas novas
experiências e situações vivenciadas no presente, acompanhou-se, neste
capítulo, a dinâmica social construída e experimentada pelas mulheres
de Melgaço. Tentou-se surpreender, no entrelaçar dos “tempos da me-
mória”, como elas esforçaram-se para explicar a si e as trajetórias pelas
quais Melgaço passou em momentos pretéritos, através de lembranças
que flutuam entre as lutas de si e da/na cidade-floresta.
Finalmente, no contexto das lutas e negociações em torno da re-
cuperação da autonomia política do município, é importante enfatizar

308
que, apesar de muitas mulheres não terem sido as negociadoras diretas
com a classe política que solicitou aos deputados e governadores o pe-
dido de emancipação de Melgaço, elas foram agentes presentes e atu-
antes nesse processo, pois de sua maneira, com seu jeito de ser e agir,
historicamente vinham lutando para que tal objetivo fosse alcançado.
O empenho na retirada cotidiana do matagal que invisibilizava a cidade
dominada para quem trafegava pela Baía Guarycuru, a limpeza de ruas
e abertura de novos caminhos, as exigências por postos de comércio,
médico e escola, são exemplos da participação feminina no refazer-se
da cidade-floresta.
Foram duas tentativas para emancipar Melgaço de Portel, de acor-
do com os registros escritos e orais. Uma em 1954 e a segunda em 1961.
Em 1954, quando Armando Pinto Gomes, prefeito de Portel, estando
no último ano de sua administração e percebendo que seus candida-
tos, tanto a prefeito quanto a governador, poderiam perder as eleições,
apoiado pelo então governador Alexandre Zacarias de Assunção, deci-
diu desmembrar do município de Portel uma parte das terras, fundar o
município de São João do Acangatá e garantir a autonomia política de
Melgaço, a fim de enfraquecer seus candidatos de oposição, o qual não
encontrou condições para tal feito (SARRAF-PACHECO, 2004).
Assim, depois de esperar mais sete anos, “apesar de o povo não per-
der as esperanças”, como comentou seu Francisco de Oliveira e Sou-
za, em Caderno de memórias, sobre a vida pessoal, familiar e a história
de Melgaço, em 1961, através de novas negociações dos moradores e
representantes políticos locais com os deputados estaduais e federais,
destacando-se Newton Bulamarque de Miranda – na época, deputado
que acumulava o cargo de vice-governador do Estado –, incluiu o nome
de Melgaço na lista dos vários municípios que foram emancipados6.

6
De acordo com o Diário Oficial, n. 19.759, ano LXX, 73o da República, Belém, sá-
bado, 30 de dezembro de 1961, a Lei n. 2.460 criou 22 municípios, sendo: Augusto
Corrêa, Aveiro, Bagre, Benevides, Bonito, Capitão Poço, Colares, Jacundá, Limo-
eiro do Ajuru, Magalhães Barata, Melgaço, Peixe-Boi, Primavera, Salvaterra, Santa
Cruz do Arari, Santana do Araguaia, Santa Maria do Pará, Santarém Novo, Santo
Antônio do Pará, São Félix do Xingu, São João do Araguaia e Senador José Porfírio.

309
Após a emancipação, foi nomeado prefeito Francisco Oliveira Leite,
que administrou Melgaço por oito meses, até a realização das primeiras
eleições, prolongando-se até fevereiro de 1963, quando o primeiro pre-
feito constitucionalmente eleito, Orlando Corrêa Amaral, foi empossa-
do. Oficializado o tão esperado e demorado processo de emancipação, o
município de Melgaço pôde então começar a construir novos percursos.
A mudança política, no entanto, não se traduziu em melhorias sociais
para a população de 364 pessoas que moravam na cidade em recons-
trução e de 5.859, que habitavam outras localidades conformadoras do
território municipal. As dificuldades para administrar um município
pobre e sem prestígio social como era Melgaço foram sentidas pelos
prefeitos que assumiram o poder na localidade. Mulheres e homens,
contudo, continuaram (re)criando formas de lutar pela existência física,
cultural e espiritual e, com as ações implementadas pela política local,
foram tecendo novas fisionomias para a cidade-floresta, inscrevendo
nas páginas da história do povoado outras experiências, trajetórias e
enfrentamentos com a chegada dos novos tempos e suas surpresas.
Em últimas palavras, é preciso não olvidar e apostar que a luta das
mulheres pela emancipação do município e o renascimento da cidade-
floresta revelou ser sua própria luta por emancipação e conquista de no-
vos direitos para si e para sua família. “Mulher” e “cidade” são substan-
tivos femininos que se interpenetram, confundem-se e se assemelham
no movimento do fazer-se de Melgaço e nas escrituras de sua história
sociocultural. Não por acaso, Benedita Nogueira, Antônia Farias, Apo-
lônia Dias, Maria Corrêa, Raimunda Nogueira, Osmarina Alves e Marti-
nha Sanches parecem ter visto no processo migratório da floresta para a
cidade não apenas o abandono e o retirar-se de um espaço de carências
materiais, afetivas e violento, mas a própria fuga de si, o desejo de ser ou-
tra mulher, mãe, esposa, amante. Seria possível dizer, então, que Melgaço
só conseguirá libertar-se de seus precários índices de desenvolvimento
humano (IDH), tão noticiados a partir de 2013 em rede nacional, docu-
mentos e sites oficiais, quando reconhecer e criar condições para o pro-
tagonismo feminino (SPIVAK, 2012). Para dizer de outro modo, quando
defender que, nesta história, a mulher pode, deve e precisa falar.

310
Referências

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iconografia na literatura de folhetos: Nordeste do Brasil, 1890/1940.
Projeto História, v. 22, p. 105-138, São Paulo, janeiro/junho, 2001.

BAIA, Hélio Pena. A cidade no tempo, o tempo da cidade: elementos para


a compreensão da formação histórica e geográfica da cidade de Melgaço-
PA. 2004. Monografia (Conclusão do Curso de Licenciatura Plena e Ba-
charelado em Geografia) – Universidade Federal do Pará. Breves: UFPA.

______. Rurbanidades marajoaras: produção, consumo e mudanças cul-


turais no espaço da cidade de Melgaço-PA. 2015. Dissertação (Mestra-
do em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano) – Universidade da
Amazônia. Belém: Unama.

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314
“A VIDA ME FEZ PROFESSORA”:
NARRATIVAS DE VIDA DE PROFESSORAS
APOSENTADAS DE HISTÓRIA

Bruna da Silva Cardoso


Dernival Venâncio Ramos Junior

Introdução

O presente texto analisa histórias de vida de cinco professoras apo-


sentadas de História1. O dom, pensava-se de início, seria a principal jus-
tificativa para a escolha profissional. As entrevistas, como será visto a
seguir, deram um panorama mais rico de categorias em torno das quais
elas colocaram as suas escolhas profissionais. Assim, interessam, sobre-
tudo, tais categorias, sob as quais elas subordinaram essas vivências:
dom, amor, sacrifício, reconhecimento etc.
As professoras aposentadas que participam desta pesquisa inicia-
ram sua carreira por volta das décadas de 1970 e 1980 e atuaram na mi-
crorregião da cidade de Araguaína, Tocantins. Os critérios para a sele-
ção das entrevistadas foram os seguintes: ser professora aposentada e ter
formação superior em História. Realizaram-se entrevistas de histórias
de vida, que foram as fontes utilizadas nesta pesquisa. As entrevistadas
assinaram o termo de cessão de direitos, autorizando os pesquisadores

1
Este texto é resultante de uma monografia de conclusão de curso entregue no ano
de 2014 no curso de História da Universidade Federal do Tocantins. Foi intitulada:
Dom e docência nas histórias de vida de professores de História de Araguaína-TO.

315
a usarem as suas narrativas no presente estudo. As entrevistas foram
transcritas e as representações que as sustentaram foram analisadas a
partir de uma relação entre dom e docência.

Destaques sobre o referencial teórico-metodológico

Como método, optou-se pela utilização da história oral no proces-


so de produção da pesquisa. Trabalhou-se com a técnica “história de
vida” para que as professoras aposentadas relatassem suas experiências.
Segundo Thompson (1992), o objetivo era que as entrevistadas fizes-
sem “um registro ‘subjetivo’ de como um homem ou uma mulher olha
para trás e enxerga a própria vida” (p. 258). Fez-se o uso do termo de
cessão de direitos para que as professoras autorizassem os pesquisado-
res a fazerem o uso dos relatos efetuados. Na realização dos entrevistas,
utilizou-se um gravador. Posteriormente, as entrevistas foram transcri-
tas e analisadas.
Não havia, inicialmente, a pretensão de entrevistar apenas profes-
soras. Buscava-se encontrar professores aposentados, mas não foi possí-
vel. O campo da História na região, até bem pouco tempo atrás, parece
ter sido feminino.
Como se partiu da ideia de que o discurso do dom marcaria as en-
trevistas, autores como Mauss (2003) e Bourdieu & Passeron (2009) fo-
ram pontos de partida importantes.
Marcel Mauss (2003) analisou a relação das trocas de dádivas nas
sociedades estudadas por ele no “Ensaio sobre a dádiva”, dentre elas Me-
lanésia, Polinésia e Noroeste Americano. O referido sociólogo mostrou
que as relações do dar, receber e retribuir tornaram-se obrigatórias, mas
ocorriam de forma voluntária. “Essas prestações se estabelecem de uma
forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes, embora elas
sejam no fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra priva-
da ou pública” (MAUSS, 2003: 191). Segundo o mesmo autor, dádiva,
liberdade e obrigação acabam se misturando, até mesmo porque “[...]
a dádiva não retribuída ainda torna inferior quem a aceitou, sobretu-
do quando é recebida sem espírito de reciprocidade [...] é preciso retri-

316
buir mais do que se recebeu. A ‘devolução’ é sempre maior e mais cara”
(MAUSS, 2003: 294).
Bourdieu & Passeron (2009), ao fazerem um estudo sobre o sistema
de ensino francês, mostraram que, mesmo após o processo de demo-
cratização do ensino superior na década de 1970, as classes populares
continuavam a ingressar nos cursos de Letras e Ciências, enquanto as
classes privilegiadas se destinavam aos cursos de Medicina e Direito.
Dessa forma, é possível

[...] ver uma simples sobrevivência do “culto aristocrático


do valor” na ideologia carismática do “dom” e do virtuo-
sismo que pode ser encontrada em alto grau na França,
tanto entre os estudantes quanto entre os professores, é
não perceber que, em sua forma escolar, essa ideologia
(com as práticas que ela mantém ou convoca) constitui
uma das maneiras possíveis – sem dúvida a mais ajusta-
da a uma forma histórica de exigência de reprodução e
de legitimação da estrutura das relações de classe [...]
(BOURDIEU & PASSERON, 2009: 221-222).

Os autores em referência trouxeram a seguinte questão: “não con-


tribui ele para convencer cada sujeito social de ficar no lugar que lhe
cabe por natureza, de se manter nele e de manter nele [...]”? (BOUR-
DIEU & PASSERON, 2009: 250). Assim, torna-se crucial a questão sim-
bólica, pois a escola tem papel importante ao reproduzir as ideologias
burguesas – nesse caso, a ideologia do dom.
Assim, ao justificarem a escolha pela profissão através do dom, os
professores acabam naturalizando as versões socialmente mais aceitas
de, por exemplo, como se escolhe uma profissão, no caso a docência,
ou seja, ocorre o que os autores acima mencionados chamaram de pro-
cesso de naturalização. A ideologia do dom, nesse sentido, determina
que nascessem para ser professor, e não outra coisa, desconsiderando as
condições socioeconômicas dos indivíduos.
Bourdieu (1989) ressaltou que as representações servem para apre-
ender a realidade, tendo em vista que, para uma coisa existir, antes ela

317
precisa ser pensada. As representações são constituídas não apenas pe-
los intelectuais, mas também pelos grupos sociais, pois não estão sepa-
radas da realidade. Tanto que, no processo de construção das identida-
des, os elementos concretos e as representações de determinado grupo
devem ser levados em consideração.
Ainda sobre as representações, Moscovici (2003) chegou a algumas
conclusões ao se debruçar sobre o poder das ideias, em como as pesso-
as partilham o conhecimento. As representações sociais são “sistemas
de valores, noções e práticas” que proporcionam a comunicação entre
indivíduos de um mesmo grupo. Tais representações sociais envolvem
vivências, conhecimentos e modelos que são compartilhados e circu-
lam na sociedade, sendo transmitidos pela escola, pelas famílias, pelas
mídias etc. Tanto em Bourdieu (1989) como em Moscovici (2003), é
possível entender as representações sociais como “construções mentais”
que são criadas pela necessidade e servem para orientar as ações do dia
a dia. Dessa forma, elas constituem o comum daquilo que determinado
grupo considera realidade social.
Para entender a feminização do magistério em História na região,
recorreu-se a Carlindo (2011) e Santos & Allain (2009). De acordo com
essas autoras, vários foram os fatores que contribuíram historicamente
para esse processo. A ideia é de que as mulheres teriam aptidão para a
docência como extensão da maternidade (dom feminino) e uma estra-
tégia de inserção no mercado de trabalho, único espaço profissional que
poderia ser ocupado pelas mulheres.
Os tópicos que se seguem trazem a análise das narrativas relaciona-
das com as representações sobre a profissão docente.

Perfil das entrevistadas

Neste tópico, foi traçado o perfil das professoras aposentadas


com o propósito de situar quem são estas profissionais do ensino, sua
origem, idade etc. O objetivo foi fazer uma breve apresentação das
docentes aposentadas. Para tanto, elaborou-se uma tabela com infor-
mações mais gerais sobre elas. As histórias de vida apresentadas neste

318
texto são das professoras Maria Cecília, Maria Félix, Amancia, Telma
Maria e Maria Helena.

Tabela 1: Perfil das professoras de História aposentadas


Ano de Ano em
Nome Idade Natura- chegada Instituição Ano de que Tempo
lidade ao antigo em que fez conclu- começou de atua-
norte o curso de são do a exercer ção como
goiano História curso a pro- profes-
(atual superior fissão sora
Tocantins) docente
Amancia 82 Porto 1944 Universidade 1995 1951 40 anos
anos Franco-MA do Tocantins
(Unitins)
Maria 60 Oeiras-PI 1971 Faculdade 1992 1972 25 anos
Cecília anos de
Educação,
Ciências e
Letras de
Araguaína
(Facila)
Maria 72 Jerumênia 1964 Faculdade 1988 1976 25 anos
Félix anos -PI de
Educação,
Ciências e
Letras de
Araguaína
(Facila)
Maria 57 Babaçu- Nasceu na Faculdade 1991 1981 34 anos
Helena anos lândia-TO região de
Educação,
Ciências e
Letras de
Araguaína
(Facila)
Telma 65 Araguari-MG 1976 Fundação 1976 1977 25 anos
Maria anos Municipal de
Araguari-MG

Fonte: Pesquisa “Dom e docência nas histórias de vida de professores de


História de Araguaína”.

Sobre a tabela acima, cabem alguns destaques. Quatro das profes-


soras são oriundas de outros estados brasileiros, o que leva a pensar

319
sobre o pequeno número de professores na região nos anos 1970, 1980,
algo que poderia ser consequência da ausência de instituições de ensino
superior ou até mesmo das dificuldades de acesso à escola por parte da
população da região. Essa questão foi exemplificada a seguir pela Pro-
fessora Maria Cecília.

Na época que eu cheguei aqui, ter oitava série do ginásio


podia significar hoje ter doutorado, porque os profes-
sores aqui de Araguaína tinha a quarta série [...] então
logo comecei a trabalhar [...] num tinha professor, não
tinha mão de obra qualificada, é quando eu cheguei aqui
em Araguaína que já era mais desenvolvida que eu falava
que tinha a oitava série, era assim digamos um assom-
bro, porque os professores que davam aula aqui tinham
a quarta série, quinta série, não tinham formação, prin-
cipalmente quem dava aula de quinta a oitava, primário
eram professores que não tinham formação.

O que também dialoga com o relato acima é o fato de a maioria das


professoras ter iniciado a atuação em sala de aula antes de fazer o curso
superior. Isso porque, quando chegaram à cidade de Araguaína, não ha-
via instituição de formação de professores em nível superior. A primeira
faculdade que funcionou no referido município foi a Faculdade de Edu-
cação, Ciências e Letras de Araguaína (Facila). Como relatou a Professora
Maria Félix a seguir sobre o curso superior, a primeira turma de História
da Facila teve início em 1985. “Sou da primeira turma da Facila, passei no
primeiro vestibular da Facila, que foi em 1985, terminou em 1988”.
As professoras, com exceção de Telma Maria, fizeram o curso su-
perior na cidade de Araguaína, na mesma instituição, que surgiu como
Facila e, posteriormente, passou a ser Unitins. Tal fato mostra que o
contato com a universidade foi algo posterior em sua formação e o que
entendiam sobre a profissão docente aprenderam na prática em sala de
aula e/ou na socialização em outros lugares, como igreja, família etc. As
histórias de vida das professoras aposentadas se mostraram uma rique-
za para a pesquisa.

320
Nesse momento, optou-se por um direcionamento específico do
foco deste trabalho, agora voltado para as relações entre dom e docên-
cia, as relações entre a profissão docente e a feminização do magistério
e o contexto de início de atuação das professoras, que ocorreu durante a
ditadura militar. Dessa forma, entende-se que as cinco histórias de vida
aqui apresentadas são exemplares de como as professoras/mulheres se
inseriram na profissão docente.

As mulheres e a docência

Percebe-se que, nas décadas de 1970 e 1980, por exemplo, as possi-


bilidades de inserção das mulheres no mercado de trabalho eram míni-
mas, como no caso da Professora Maria Félix, que ou seria dona de casa
ou professora. A história de vida desta senhora revelou-se interessante,
tendo em vista que a mesma afirmou que, desde criança, pensava em
ser dona de casa, casar-se e ter filhos, mas que a vida a direcionou para
outro caminho. Tal relato estimula a discussão sobre “feminização do
magistério”. Aragão & Kreutz (2010: 14-15) afirmaram que

[...] a realidade construída acerca do papel social femini-


no permeia o âmbito doméstico, estando fortemente as-
sociada à maternidade e ao casamento. Desde pequena,
a mulher era criada para casar e ter filhos, sendo estas as
únicas formas possíveis de realização feminina e, camin-
hando na mesma linha de pensamento, apresentava-se a
capacidade de ensinar. Em meados do século XX, quan-
do a inserção feminina no mercado de trabalho ainda era
tímida, lecionar poderia ser a saída para as mulheres que
desejavam se dedicar a outras atividades, sem precisar
abandonar o lar e os filhos, já que era possível trabalhar
somente meio período, recebendo um salário razoável e
ainda ter tempo para cuidar da vida pessoal.

O magistério seria, então, uma “extensão do lar” em que a mulher


praticaria as suas habilidades inatas: “paciência, o cuidado, a sensibili-

321
dade, o educar”. Destaca-se também o entusiasmo expresso por Maria
Félix, como se o fato de ter se tornado professora a tivesse libertado
desse possível sonho que ela declarou ter. A questão fica mais clara neste
trecho: “Eu nunca pensei nisso, em ter uma profissão. A profissão veio
pra mim como consequência da necessidade, do destino, das amizades
que foi aparecendo e aí foi acontecendo e deu certo, graças a Deus” (Ma-
ria Félix).
Pode-se entender, segundo Carlindo (2011), que o fato de a maio-
ria dos professores pertencer ao gênero feminino está ligado à ideia de
que a mulher tem maior aptidão ao exercício da docência. Segundo a
autora citada, o discurso da vocação é bastante utilizado para justificar
a escolha da mulher como professora. De acordo com a mesma autora,
existem outros motivos que levam essas mulheres a se tornar professo-
ras, “como as oportunidades sociais a que se têm acesso e as condições
financeiras familiares” (CARLINDO, 2011: 86). Não foi por acaso que
essas mulheres se direcionavam à docência, até mesmo porque os lu-
gares que, nesse período por volta de 1970, 1980, o espaço reservado
às mulheres no mercado de trabalho ainda era muito restrito – e ser
professora era um desses espaços.
Santos & Allain (2009) desenvolveram uma discussão sobre o que
leva as mulheres a se tornarem professoras, tendo como fator princi-
pal a feminização do magistério. Segundo estas autoras, a docência foi
o primeiro lugar que acolheu a mulher no mercado de trabalho. Esse
discurso do dom ainda permeia a profissão docente, inclusive para as
mulheres isso se mostra mais forte, pois haveria um “dom feminino”
que estaria relacionado com a questão da maternidade. Quando se trata
da educação infantil, isso fica mais evidente ainda, um espaço ocupado,
em sua maioria, por mulheres.
Embora não seja o objetivo deste trabalho, é curioso que todas as
professoras aposentadas entrevistadas foram mulheres destinadas às sa-
las de aula não por acaso, mas pela função social que a mulher podia
exercer e o espaço para ocupar: conforme já foi dito, ou seriam donas de
casa ou professoras. Em meados do século XX, ocorreu a feminização
do magistério quando a mulher passou a ser percebida como alguém

322
que “nascia” para dar aula. “Carinho” e “docilidade” foram atributos de-
signados às mulheres para justificar seu direcionamento para as salas de
aula, sendo a escola vista como a extensão do lar.
Segundo Aragão & Kreutz (2010), a mulher entrou no cenário
escolar “tardiamente”. Até o século XIX, a educação feminina era ba-
seada em ensinamentos de como ser uma boa esposa e uma boa dona
de casa. Apenas no século XIX, começou-se a ter abertura de escolas
para as meninas.

[...] a realidade construída acerca do papel social femi-


nino permeia o âmbito doméstico, estando fortemente
associada à maternidade e ao casamento. Desde pequena,
a mulher era criada para casar e ter filhos, sendo estas as
únicas formas possíveis de realização feminina e, camin-
hando na mesma linha de pensamento, apresentava-se a
capacidade de ensinar (ARAGÃO & KREUTZ, 2010: 14).

A precarização da profissão está ligada a esses fatores, tendo em


vista que o trabalho da mulher ainda é mais desvalorizado que o mascu-
lino. Assim como nesta pesquisa, Santos & Allain (2009) destacaram a
presença do discurso da vocação nos relatos das docentes entrevistadas.
Nessas histórias de vida, observou-se um sempre retorno à infância para
justificar a escolha docente, como a influência das outras professoras,
as aulas de brincadeira. Assim, o sentimento de “doação” foi enfatizado
por todas elas, e ele não se separa da ideia de missão. É perceptível, en-
tão, que ter vocação para ser professora implica “doar” o seu trabalho, e
não se preocupar em “cobrar” por ele.

As professoras, a ditadura e a docência

Acredita-se ser importante trazer esta problemática, tendo em vista


que as professoras a destacaram em suas histórias de vida. A ditadura
militar (1964-1985) influenciou na prática docente das professoras, pois
foram alunas e também professoras durante esse período. As professo-
ras aposentadas relataram sobre os impactos causados pelo regime auto-

323
ritário nas escolas e as interferências que os militares faziam dentro das
instituições. Amancia contou que havia uma supervisão nas escolas em
decorrência do cenário político ditatorial implantado no País. Assinala-
se que Amancia foi professora no município de Xambioá, Tocantins
(antigo norte goiano), entre as décadas de 1950 e 19702.

Eles tomaram de conta, nós ficava sendo uns em-


pregadinhos deles [...] a senhora vai dar aula por este
plano bem aqui [...] eu sofri, foi horrível naquele tempo
[...] eles mandavam nós fazer, nós fazia [...] os professo-
res ficaram tudo com o rabo entre as pernas, obedecendo
tudinho, não podia dizer nada, nada, nada (Amancia).

Ela ainda narrou que colocavam os estudantes para cantar o hino,


e os alunos tinham que cantar “dentro da sala e lá fora tinha que cantar
todo mundo junto. E na sala cantar também, quando entrava todo mun-
do em pé e ninguém dava um pio, todo mundo tinha medo deles [...]”
(Amancia). Maria Cecília também relatou sobre esse período em que “era
obrigatório o hino nacional, inclusive a gente tinha aula de canto para
aprender o hino” (Maria Cecília). E Telma Maria reafirmou que era obri-
gatório cantar o hino nacional, “[...] todo mundo em fila cantava o hino
nacional, uma vez por semana tinha a hora cívica e, na sala de aula, existia
a matéria, tinha disciplina Educação Moral e Cívica” (Telma Maria).
Como se pode ver nos autores Bittar & Ferreira Júnior (2006),
a ditadura militar foi responsável pela “proletarização” do professor,
referindo-se à nova situação a que foi submetida a categoria.

A política educacional do regime militar abrangeu, ao


longo dos seus vinte e um anos de duração, todos os

2
Relevante destacar que a Professora Amancia foi estudante e professora no pe-
ríodo da ditadura militar no Brasil. Ela chegou ao município por volta de 1957 e lá
morou até 1977. Outro dado interessante a mencionar é o fato de que a cidade de
Xambioá foi uma das localidades em que ocorreu a Guerrilha do Araguaia, durante
a década de 1970.

324
níveis de ensino, alterando a sua fisionomia e provocan-
do mudanças, algumas das quais visivelmente presentes
no panorama atual. Pautado pela repressão, o Estado ed-
itou políticas e práticas que, em linhas gerais, redunda-
ram no tecnicismo; na expansão quantitativa da escola
pública de 1o e 2o graus às custas do rebaixamento da
sua qualidade; no cerceamento e controle das atividades
acadêmicas no interior das universidades; e na expan-
são da iniciativa privada no ensino superior (BITTAR &
FERREIRA JÚNIOR, 2006: 1.162).

Maria Félix contou que chegou a sofrer repressão, pois se arriscava


a fazer reflexões sobre o que estava ocorrendo naquele momento e tam-
bém liderava movimentos a favor de melhorias para a educação. “Era
tida como uma professora subversiva porque [...] comparava a história
do passado com a história do momento, eu fazia reflexão e não podia”
(Maria Félix). As professoras afirmaram que eram muito rígidas na ava-
liação de seus alunos. Essa rigidez expressada pelas professoras pode
estar relacionada ao fato de que foram tanto alunas como professoras
no período da ditadura.

Narrativas sobre a escolha pela docência: as faces do dom

Analisou-se, neste tópico, como as professoras aposentadas signi-


ficaram suas vidas a partir da “escolha” da docência. Mostrou-se, nos
trechos que se seguem, como as docentes entrevistadas narraram a rela-
ção entre dom e docência, explicando por que se tornaram professoras.

[...] eu creio, eu creio não, eu tenho certeza que, pra ser


mestre, fazer com amor, é tem que ser dom, só que não
concordo com aquela questão de ser um sacerdócio,
porque professor também come e tem suas despesas, não
é? Então não vai dar aula só por amor, digamos assim,
mas eu digo também que seria assim, até como um vício,
porque na realidade eu nunca pensei de ser professora,

325
é a vida me fez professora, só que eu aprendi a gostar e
procurei fazer da melhor forma possível. Acima de tudo
gostar, porque, se você não gosta do que faz, você não vai
fazer benfeito, você não vai fazer com amor. Então, a par-
tir do momento que você gosta, você procura se dedicar,
então a minha vida, enquanto professora, eu corrigia,
podia ter cem turmas, mas eu corrigia todos os trabal-
hos religiosamente e entregava para o aluno em tempo
recorde corrigido (Maria Cecília).

Esse excerto mostra que a professora aposentada Maria Cecília rela-


tou ser apaixonada pela profissão, ressaltando a importância do “amor”,
do “gostar”, do “dom” – para ela, a condição de ser uma boa professora
estaria ligada a essas características. Interessante ressaltar o momento
em que ela declarou acreditar no dom, mas não no “sacerdócio”. Esta
argumentação pode ser explicada pelas condições financeiras em que se
encontrava, pois estava viúva e com os filhos para criar quando se tor-
nou professora, provavelmente por isso enfatizou a questão financeira.
Esse relato facilita o entendimento de que a crença no dom per-
passa o seu discurso, mas sofre modificações. Maria Cecília, ao mesmo
tempo que afirmou ser necessário ter “amor” e “dom”, também declarou
que “nunca pensei de ser professora” e que “aprendeu” a gostar. Lembra-
se, por exemplo, das trocas de dádivas as quais analisou Mauss (2003),
então o dom se modifica no sentido de que Maria Cecília não narrou
abertamente que nasceu para ser professora, que a docência era fruto
de um dom recebido. Mas o dom está presente, levando-se em conside-
ração que o trecho “nunca pensei em ser professora” foi utilizado para
remeter a um dom que estava guardado, pois “aprendeu a gostar”, tem
que “fazer com amor”, é como um “vício”.
Maria Félix também revelou que não esperava se tornar professora:

Eu não esperava. Então, eu fui ser professora por uma


questão assim que foi acontecendo na minha vida, aí eu
gostei, foi consequência da vida, foi vindo uma coisa
sempre puxando a outra. E aí foi dando certo, mas eu

326
não havia programado isso. Na verdade, o que eu pen-
sei quando eu era criança, pensava de crescer e casar e
constituir família e pronto, só isso que eu pensava (Ma-
ria Félix).

Maria Cecília e Maria Félix afirmaram que a vida as tornou profes-


soras. Mas destacaram também que gostavam de ser professoras e que
não pensaram em nenhum momento na mudança de profissão. Maria
Félix acrescentou: “ainda bem que eu mudei de vida. Eu digo assim, eu
não tenho mais projeto, meu projeto é de Deus” (Maria Félix). Mais
adiante, afirmou que, em relação à vocação, “não, não existe isso, sabe
por quê? Porque eu não nasci para ser professora” (Maria Félix). E, em
seguida, declarou que não é qualquer pessoa que pode ser professora
“[...] não pode, qualquer pessoa não pode, se ele vai, assim como acon-
teceu comigo, mas, se ele não se identificar, ele não deve ficar porque
não será bem-sucedido e vai ser um fracassado na vida” (Maria Félix).
Nas narrativas de Maria Félix, foi possível dialogar com Marcel
Mauss (2003). Dessa forma, o dom está presente orientando a forma
como justificou, no caso, a não escolha profissional, pois foi “consequ-
ência da vida”. E, mesmo demonstrando por meio das palavras que não
foi uma escolha, quando o foco da pesquisa se deteve na sua história
de vida, constatou-se que a religião, o dom divino, permanecia como
pano de fundo, pois ela atribuiu a todo o momento as suas conquistas
a Deus. Como se ela não tivesse feito nada para que elas acontecessem,
mas sim ocorressem por meio de ajuda divina, pois o seu “projeto é de
Deus” (Maria Félix). Foi a partir dessas contradições que se começou a
entender como o dom ainda faz parte desse meio. Conforme afirmaram
Bourdieu & Passeron (2009), ele está naturalizado.
Maria Félix também trouxe narrativas sobre o reconhecimento so-
cial. Segundo ela, “dá a sensação [de] que valeu a pena, algo ficou, não
foi vazio, não foi em vão”, passando a ideia de dever cumprido. As pro-
fessoras estão preocupadas com o reconhecimento. Estão preocupadas
com o que vão lembrar a seu respeito, e para elas é essencial que sejam
reconhecidas como boas professoras. A partir da análise das entrevistas,

327
é possível afirmar que o status que a profissão tinha quando essas pro-
fessoras aposentadas se tornaram docentes foi um fator que beneficiou a
fala positiva sobre a profissão. O contradom da sociedade para com elas
contribuiu para a continuação do interesse pelo magistério.
Percebeu-se que as relações envolvem tanto uma retribuição de
forma material como simbólica, pois, além de devolver o “presente”,
os membros do grupo sabem que precisam cumprir as etapas para se-
rem aceitos dentro de um sistema de prestações totais existentes nessas
sociedades. Para os professores, ao receber o dom da docência, devem
retribuí-lo, como um contradom, com dedicação e amor pela profissão,
aceitando e cumprindo sua missão, retribuindo aos alunos o dom re-
cebido, “[...] o mais importante, entre esses mecanismos espirituais, é
evidentemente o que obriga a retribuir o dom recebido” (MAUSS, 2003:
193). Sendo um sistema de prestações totais, baseadas nas trocas de pre-
sentes, a questão envolve não apenas a obrigação de retribuir o presente,
mas a “obrigação de dar de um lado, obrigação de receber de outro”
(MAUSS, 2003: 201).
A professora aposentada Telma Maria contou que escolheu ser pro-
fessora porque era o que estava ao seu alcance naquele momento. “O
curso de História foi a segunda opção no vestibular, mas eu queria fazer
o curso de Pedagogia”. Mesmo não desejando fazer o curso de História
como primeira opção, Telma queria ser professora.

Olha, na maioria das vezes, eu acho que a pessoa vai


pela facilidade daquilo que você pode adquirir no mo-
mento, às vezes ela almeja um outro curso, mas não tem
condição de fazer aquele outro curso, financeiramente,
então ela escolhe um curso mais simples, não é? [...]
Olha, eu acho que, se não gostar daquilo que faz, não vai,
você não faz um bom trabalho, você tem que gostar do
que tá fazendo (Telma).

Telma Maria, nos trechos acima, trouxe narrativas sobre a profissão


docente que podem ser compreendidas quando se sabe que esta profes-
sora cursou graduação antes de começar a trabalhar como professora, o

328
que pôde contribuir para que ela demonstrasse uma postura narrativa um
pouco diferente das demais professoras que concluíram o ensino superior
depois de já atuarem como professoras. A formação inicial antes do in-
gresso na sala de aula pode ter contribuído para que Telma não mobilizas-
se a justificativa pela profissão docente através da representação do dom.
Maria Helena revelou que sua escolha pela docência foi influencia-
da por uma professora com quem estudou, que a incentivou bastante. A
mesma fez História porque gostava da disciplina: “é importante você es-
tudar História, porque um historiador ninguém engana ele, ele conhece
a realidade”. Maria Helena mostrou acreditar que, para ser professor,
é preciso ter vocação, mas também afirmou que a vocação não deve
deixar a busca por melhores salários de lado, ou seja, o professor tem
que ter vocação, mas não pode se esquecer de que é preciso lutar por
melhorias, como ela mesma explicitou:

Sim, precisa ter vocação sim, porque eu não queria ser


professora [...] sou uma pessoa sadia e feliz, sabe, porque
eu adoro ser professora, eu adoro trabalhar com gente.
Então, não adianta, se você não tiver a vocação e ir pra
sala de aula, você não vai ser uma boa professora, porque
aí você vai ficar reclamando do salário o tempo todo, en-
tendeu? E você sabe que o salário de professor [...] não
é lá essas coisas [...] não é uma profissão para ganhar
muito dinheiro, para enricar, não. Se você quer enricar,
você tem que procurar outra profissão, agora tem que
ter vocação. Eu digo que o professor... a gente trabalha
com amor, mas não por amor, a gente tem que trabalhar
por amor, mas por dinheiro. Seja pouco, mas dá pra você
viver, agora, se você quer uma vida de rico, aí num dá pra
ser professor, não (Maria Helena).

É possível ver esse trecho da narrativa de vida da professora apo-


sentada Maria Helena como um fragmento que mostra como ela repre-
sentou a sua vida a partir do dom: “precisa ter vocação” [que, no caso
dela, se intercambiava com a ideia de dom], “se você quer ter uma vida

329
de rico, aí não dá pra ser professor, não”, “se você não tiver vocação, aí
você vai ficar reclamando do salário” (Maria Helena). Nota-se que sua
narrativa é orientada pelo dom como dádiva, conforme apresentado por
Mauss (2003), o que pode ser explicado pela presença do habitus de
classe, já que o dom perpassa todas as narrativas analisadas no trabalho.
Outra história de vida enriquecedora é a da Professora Amancia
Gomes, que afirmou sempre ter gostado de dar aula e que queria mesmo
ser professora. “Eu gostava de dar aula. Eu ia pra aula com febre, eu ia
pra aula doente” (Amancia). A professora aposentada Amancia, dentre
as entrevistadas, foi a que se mostrou mais na posição de “devolver o
presente” ao qual Mauss (2003) se referiu, que é a retribuição do dom
recebido. Em sua fala, percebeu-se o quanto ela era apaixonada pelo que
fazia, chegando a relatar que “[...] achava bonito, chegar naquela sala,
horror de aluno lá e a gente lá na frente, eles tudo sentado ali e eu sendo
como diz ali a maioral dando aula ali, explicando tudo pra eles lá, eu
gostava. Eu ficava muito exibida, sabe” (Amancia).
Amancia destacou que não é qualquer pessoa que pode ser pro-
fessor, “[...] tem gente que quer ser professor para ganhar dinheiro,
mas ele não domina a classe [...] e ele não sabe explicar o que apren-
deu, nem o que ele tá vendo na realidade do mundo pra ele ensinar os
alunos”. Segundo ela, se a pessoa não gosta, tem que procurar outra
coisa. O que aparece como algo que se repete nas narrativas de vida
das professoras aposentadas é a ideia de que existem dentro das esco-
las o “bom” e o “mau” professor, sendo que isso é explicado pelo fato
de se ter ou não o dom.
Segundo Amancia, para ser professor, é preciso ter dom, tem que
ter amor, “nasceu pra fazer aquilo. Ele tem aquele dom, ele tem o dom
de ser professor”. Observa-se, na narrativa dessa docente, que, para ser
professora, além de gostar e de se dedicar, é preciso que se preocupe
com o aluno. Para Amancia, “o verdadeiro professor vai atrás do aluno,
se preocupa com o aluno [...] quando ele abraça a profissão, ele já tem
que ir sabendo que vai acontecer [...] a carga que pesa muito, da família
e do colégio, tem que deixar um pouco a casa e cuidar do magistério”.
Ela evidenciou que a vida dela era ser professora, vivia para a profissão,

330
a prioridade era a sala de aula, a escola. O dom em seus relatos aparece
constantemente, de modo que foi possível perceber que ela significava
a sua vida como docente a partir da justificativa de que nasceu para ser
professora, não tinha lamentações, nem reclamações – ser professora foi
uma realização.
Amancia também narrou como o reconhecimento se faz importan-
te enquanto professora. “No dia do mestre, não é me gabando não, [...]
a minha sala ficava cheia de presente, era preciso eles trazer pra casa [...]
eu tenho muito presente dado aqui por aluno. Por onde eu ando nes-
sas festa aí, quando enxerga, olha a minha professora, ainda hoje fala”.
(Amancia). Vicentini & Lugli (2009) destacaram que o dia do professor
era sinônimo da comemoração de uma “visão fortemente idealizada da
profissão”, reconhecendo a “nobreza da profissão” em que a principal
marca “era o sorriso da professora diante de seus alunos durante a en-
trega de presentes e de flores”.
Para Mauss (2003), ao se receber a dádiva, é preciso devolver um
contradádiva, que pode ser, por exemplo, por meio do trabalho, mas
isso implica que o grupo ao qual o sujeito pertença o reconheça como
portador desse dom e esteja a todo o momento demonstrando a sua
importância enquanto autoridade, enquanto professora, enquanto for-
madora das novas gerações. O reconhecimento é essencial para Aman-
cia, que não consegue ver a profissão docente sem este elemento. Seria
aquilo a que Vicentini & Lugli (2009) se referiram como “a recompensa
simbólica” da profissão, que está ligada a relacionar a docência como
tendo caráter “sacerdotal”.

Considerações finais

As intenções iniciais da pesquisa, entrevistar professores e profes-


soras aposentados de História, e as hipóteses teóricas, o discurso do
dom se sobressairia, sofreram algumas modificações à medida que se
partiu para a sua realização.
As mulheres dominavam até recentemente o magistério na área de
História na região. Foi preciso então entender o processo de feminiza-

331
ção do magistério. Dois principais vieses: pela abertura do magistério
como espaço profissional para a mulheres e, conectado a esse ponto,
como extensão da maternidade ou como dom feminino.
De um ponto de vista teórico, a discussão de Bourdieu & Passe-
ron (2009), de que o dom seria uma ideologia a serviço da dominação
social deve, à luz da análise, ser matizada por um tipo de sociabilidade
que pressupõe a reciprocidade entre dom e contradom (MAUSS, 2003).
A ideia de reciprocidade, baseada no contrato simbólico, aparece em
algumas das categorias que as professoras usaram para nomear as suas
experiências: amor, vocação, reconhecimento e nas recordações que as
professoras narraram sobre os tempos de sala de aula, como situações
ligadas ao dia dos professores, por exemplo.
Por fim, através desta pesquisa, foi possível destacar algumas repre-
sentações sociais que as professoras aposentadas de História mobiliza-
ram em suas narrativas, como dom, dedicação, responsabilidade, amor
etc. O núcleo das justificativas pela profissão é a representação do dom,
seja ressignificado como vocação, seja como amor etc. As professoras
aposentadas também elencaram o reconhecimento social como impor-
tante. O objetivo da pesquisa foi problematizar como as representações
sobre a docência orientaram as narrativas das professoras. Isso porque
as docentes afirmaram: “não me vejo fazendo outra coisa” e “nunca tive
outro intuito na vida”. Amor e retribuição podem ser vistos como con-
tradom, essas são também representações sobre a docência. As narra-
tivas do mestre que se dedica, que ama “dar aula”, são representações
sociais acerca da docência.
Aqui, houve a preocupação em trazer também algumas conside-
rações sobre a feminização do magistério e sobre a atuação das profes-
soras durante a ditadura militar, objetivando contextualizar o período
em que as mesmas começaram a trabalhar como professoras, proble-
matizando o ingresso na docência por serem mulheres e alguns desafios
que enfrentaram pela atuação como professora nos tempos de ditadura
militar no Brasil.
As narrativas de vida das professoras aposentadas configuram um
leque de possibilidades de pesquisa. Ao serem levadas em considera-

332
ção as cinco histórias de vida aqui apresentadas, percebe-se que um
diálogo com as narrativas pode resultar em um trabalho significativo.
Trabalhar com fontes orais possibilita ouvir o que o outro tem a falar,
que não existe certo ou errado, mas sim diferentes formas de significar
a profissão, a vida. Ser professor pode ser, ao mesmo tempo, dom, for-
mação, porém pode ser também gratificação ou sacrifício, ter ou não
o reconhecimento social.

Referências

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entre o dom e a maternidade. InterMeio – Revista do Programa de Pós-
Graduação em Educação, v. 16, n. 32, p. 13-26, Campo Grande, julho/
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BITTAR, Marisa & FERREIRA JÚNIOR, Amarílio. A ditadura militar


e a proletarização dos professores. Educação & Sociedade v. 27, n. 97, p.
1.159-1.179, Campinas, setembro/dezembro, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A gênese dos conceitos de habitus e campo. In:


BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz.
2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 107-132.

BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elemen-


tos para uma teoria de sistema de ensino. Tradução de Reynaldo Bairão.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

CARLINDO, Eva Poliana. Professoras brasileiras: o imprescindível in-


vestimento em aquisição de capital cultural. São Paulo: Cultura Acadê-
mica, 2011.

MAUSS, Marcel. Ensaios sobre a dádiva – forma e razão da troca


nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropo-
logia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p.
183-315.

333
MOSCOVICI, Serge. O fenômeno das representações sociais. In:
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psico-
logia social. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes,
2003. p. 29-109.

SANTOS, Elisângela Martins dos & ALLAIN, Luciana Rezende. Ser


professora: escolha, vocação ou falta de opção? Revista Extra-Classe, v.
2, n. 2, p. 106-137, Natal, julho/dezembro, 2009.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução de Lólio


Lourenço de Oliveira. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

VICENTINI, Paula Perin & LUGLI, Rosario Genta. História da profissão


docente no Brasil: representações em disputa. São Paulo: Cortez, 2009.

Fontes primárias

Entrevista realizada no dia 20 de janeiro de 2012 com a professora apo-


sentada de História Maria Cecília, na cidade de Araguaína, Tocantins.

Entrevista realizada no dia 22 de maio de 2012 com a professora apo-


sentada de História Telma Maria, na cidade de Araguaína, Tocantins.

Entrevista realizada no dia 19 de outubro de 2012 com a professora apo-


sentada de História Amancia, na cidade de Araguaína, Tocantins.

Entrevista realizada no dia 3 de abril de 2013 com a professora aposen-


tada de História Maria Félix, na cidade de Araguaína, Tocantins.

Entrevista realizada no dia 4 de julho de 2013 com a professora aposen-


tada de História Maria Helena, na cidade de Wanderlândia, Tocantins.

334
EDUCAÇÃO E MEMÓRIA NO LEGADO DE
DOROTHY MAE STANG EM ANAPU, PARÁ

Osnera Silva Vieira

Introdução

Nós somos o tempo em que vivemos. Vive-


mos nos três momentos, da espera, da aten-
ção e da memória, e um não existe sem o
outro. Você não consegue se projetar para o
futuro porque perdeu o seu passado (UM-
BERTO ECO, 2005).

Nesse artigo, o tempo é o da memória. Assim, será feita a tentativa


de mostrar que a memória pode ter um valor emancipatório na medida
em que dialoga com sentimentos e razões, a partir das narrativas daque-
les e daquelas que conviveram com Irmã Dorothy Stang e que foram (e
ainda são) perseguidos pela violência, tanto instituída quanto oriunda
de fazendeiros e madeireiros na região de Anapu, oeste do Pará. Outro
propósito do presente estudo é deixar aqui um registro da força que
Dorothy representava – e ainda representa – e que serve de apoio aos
assentados e às assentadas dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável
(PDSs). A força que vem da memória e dos ensinamentos dela ajuda-
os a seguirem em frente, porque a luta está presente no seu dia a dia.
Esse lembrar, embora doloroso, é como se fosse uma “memória para

335
uso diário”1, que é importante no sentido de não deixar esquecer que, se
são o que são hoje, devem isso a ela, Dorothy. Esse lembrar não significa
que precisam apenas ter a coragem de denunciar os responsáveis pela
violência. É, sobretudo, uma necessidade de protagonizar a narrativa
da história da atuação de Dorothy, buscando sempre a continuação da
luta pela conquista de um mundo melhor, o seu mundo, ancorados na
coragem que ela ensinou. Essa é uma fala recorrente entre as pessoas
entrevistadas.
O processo de construção dessa memória é coletivo, mas também
individual. Em muitos momentos, a pessoa que estava sendo entrevis-
tada sugeria ao seu interlocutor que falasse com outra que “sabia mais”
sobre um determinado assunto relacionado ao “tempo de Dorothy”.
Essa memória pode ser entendida também como uma memória edu-
cativa que se reveste de uma certa moral de reparação e de construção
de uma verdade a partir das vozes e experiências dos entrevistados
e entrevistadas, mas também – e sobretudo – dos ensinamentos que
Dorothy deixou, entendendo essa educação como um processo infor-
mal (fora da sala de aula). O que se viu e viveu pode ser convertido
num ato educativo através do contar e partilhar essas experiências,
transformando-as num saber que leve os demais a compreenderem
que estão livres, mesmo quando sentem medo. Além do mais, lembrar
de forma comum e solidária, ou seja, numa ação coletiva, torna mais
fácil o enfrentamento do medo dos vivos “fantasmas” que rondam
suas casas, seus lotes.
Para Dorothy Stang, era muito importante construir escolas
onde jovens e adultos pudessem se preparar. Para ela, era necessário
que as pessoas conhecessem seus direitos. Nesse sentido, algumas
questões nortearam a tessitura desse artigo: Em que medida isso era

1
O filme Memória para uso diário documenta o trabalho que vem sendo elaborado
pelo Grupo Tortura Nunca Mais, cujo ponto de partida são as pessoas comuns que,
a despeito das memórias traumáticas, fazem questão de lembrar, de fazer com que
as suas histórias não sejam esquecidas. Ver mais em: FORMAGGINI, Beth. Memó-
ria para uso diário. Rio de Janeiro: Grupo Tortura Nunca Mais/ União Europeia e 4
Ventos, 2007. 94min. (Documentário).

336
importante para sua missão religiosa? Como a educação para a com-
preensão desses direitos capacita os sujeitos para poderem superar
o medo e a dor?

Simplicidade, obediência e caridade

Conhecida como Irmã Dorothy ou Dot, Dorothy Mae Stang era


norte-americana naturalizada brasileira, pertencente à ordem religiosa
das Irmãs de Nossa Senhora de Namur, mais conhecidas como irmãs
de Notre Dame de Namur, uma congregação religiosa católica fundada
em 1804 por Santa Júlia Billiart (1751-1816) e Françoise Blin de Bour-
don (1756-1838) (COSTA, 2010). Essa congregação reúne milhares de
mulheres para realizarem trabalhos missionários por todo mundo em
lugares, como Congo, Quênia, Nigéria, África do Sul, Zimbábue, Bélgi-
ca, Grã-Bretanha, França, Itália, Escócia, Japão, Estados Unidos, Nica-
rágua, Peru e Brasil, dedicando-se à educação das pessoas mais pobres.
Um dos preceitos da congregação era o seguinte: simplicidade, obediên-
cia e caridade. Dorothy, que sonhava em servir na China, veio trazer sua
alegria e simplicidade para a Amazônia (MURPHY, 2009).
Dorothy chegou ao Brasil em 1966, passando pelo Rio de Janeiro,
de agosto a dezembro desse ano, período em que morou e estudou no
Centro de Formação Intercultural (Confi), localizado na Serra do Mar.
Fazia uma espécie de curso intensivo para aprender a língua portugue-
sa, história do Brasil, política etc. Nesse Centro, havia pessoas de vá-
rias partes do mundo (MURPHY, 2009: 41). Depois dessa temporada
no Rio de Janeiro, Dorothy viajou com suas companheiras para a ci-
dade de Coroatá, no Estado do Maranhão, onde passou a desenvolver
as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), num cenário de relações
semifeudais de “dominação e subserviência” (idem, p. 48) e também
de medo porque o Brasil vivia o período da ditadura militar. Vale di-
zer que, durante o regime militar instaurado no Brasil, aqueles/as que
os militares achavam que eram contra o governo poderiam ser per-
seguidos, presos, torturados, mortos e desaparecidos numa evidente
supressão aos direitos humanos.

337
Em Coroatá, ela desenvolveu trabalhos junto aos agricultores no
sentido de ajudá-los a compreender e a lutar por seus direitos e sua
dignidade. Muitos não sabiam ler e havia muitas crianças sem escolas.
As lideranças da comunidade de Santo Antônio resolveram construir
uma edificação onde a escola funcionaria uma vez que, na comunida-
de, havia 50 crianças. Essa foi a apenas primeira. Além dessa, houve
outras escolas, todas construídas com o apoio e incentivo de Dorothy a
partir do sistema de mutirão. Depois da escola pronta, Dorothy inter-
mediava junto à Secretaria de Educação, solicitando o pagamento do/a
professor/a e também treinamento didático para que pudesse organizar
suas classes. Além das escolas, ajudou também na criação do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais (ibidem, p. 57).
No início da década de 1970, o governo brasileiro lançou uma pro-
paganda de incentivo para ocupar a Amazônia e integrá-la ao restante do
País. A ideia era promover o assentamento em larga escala, utilizando-
se de um modelo similar ao do oeste norte-americano, promovido por
fazendeiros e cowboys, onde os migrantes sem terras seriam assentados
nos projetos de colonização e as fazendas de gado seriam estabelecidas
por indivíduos particulares. Para levar adiante esse projeto, a chama-
da era “há terras sem homens para homens sem terra”. Ora, isso atraiu
muita gente que tinha dinheiro e outras tantas que viviam em precárias
condições e acreditavam que aquela seria a oportunidade de ter um pe-
daço de chão para trabalhar. Para muitas pessoas no Maranhão, esse era
um sonho que se tornava realidade, então juntaram família e bagagem e
vieram para o Pará (LE BRETON, 2008: 95-96).
As irmãs de Notre Dame decidiram que uma delas deveria sair de
Coroatá e ir para o Pará com o propósito de desenvolver ações diversas
junto aos trabalhadores. Dorothy acreditava que a comunidade de Co-
roatá já dava conta de se defender sozinha. Então, aceitou o convite de
Dom Estevão Cardoso de Avelar, bispo da Prelazia de Marabá, para atu-
ar na região, na primeira metade da década de 1970, passando a residir
em Vila Abel Figueiredo, na PA-70, hoje BR-222 (GUZZO & SANTA-
NA, 2009: 20). Nessa localidade, atuou na organização dos trabalhado-
res rurais e na criação de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) (idem:

338
102). Não custa lembrar que, após o Concílio Vaticano II, a Igreja pas-
sou por um reordenamento e voltou sua atenção para os pobres. Muitos
pobres também optaram pela Igreja e passaram a construir seu espaço
religioso nas CEBs e nas Pastorais Populares.

As CEBs e Pastorais Populares apontam como resposta


a função profética. Recuperando as raízes que remon-
tam ao século XIII a. C., quando as tribos de Israel se
confederaram para construir uma sociedade fundada na
igualdade e na solidariedade comunitária, elas propõem
à igreja a tarefa de resgatar a utopia como valor teológico
e assim justificar um projeto de democracia econômica,
política e ecológica (ADRIANCE, 1996: 10).

Esse era então o projeto que Dorothy procurava levar adiante em


seu trabalho missionário. E é claro que esse projeto encontrou forte opo-
sição na sociedade e até mesmo dentro da própria Igreja, mas as CEBs
ainda resistem em alguns lugares, como Anapu, por exemplo. O Padre
Amaro contou que trabalhava com 80 comunidades e que as pessoas até
se assustavam com essa quantidade e perguntavam por que tinha tanta
comunidade. E ele respondia que “é porque foi a base que ela deixou”
(Entrevista concedida em 5 de outubro de 2016). Mas, antes de ir para
Anapu, onde atuou por mais de 20 anos, Dorothy passou por Vila Ar-
raias (hoje Jacundá), indo para lá no final dos anos de 1970, onde ajudou
também a organizar diversas Comunidades Eclesiais de Base e escolas
rurais. Conforme relatou o Padre Paulo Joanil,

Ela, desde que chegou, se empenhou junto à luta pela


terra, com os posseiros, iniciando ao mesmo tempo as
escolinhas, mesmo que improvisadas em barracos, sem
ajuda alguma da Prefeitura. Mas, ao mesmo tempo, exigia
do Poder público apoio, criação e formação das escolas,
bem como dos professores. [...] Ajudava no transporte
do material para as áreas rurais, bem como a merenda e,
sobretudo na valorização dos professores, salários justos

339
e direitos. Em várias ocasiões, organizava encontros com
os professores para criar os laços de classe. Pois todos
tinham os mesmos problemas e que somente uma luta
articulada e unida poderia conquistar melhores resulta-
dos. (Entrevista concedida em 21 de outubro de 2016).

Organizar os trabalhadores e levar educação onde não havia. Criar


escolas para prover conhecimento e permitir a compreensão dos direi-
tos aos mais empobrecidos e/ou menos favorecidos economicamente.
Isso ajudaria a melhorar a atuação de todos no mundo e a qualidade de
vida. Era evangelho vivenciado. A caridade não era somente doação do
ser e do saber. Era ensinamento na ação.
E, em 1982, foi convidada pelo bispo da Prelazia do Xingu, Dom
Erwin Kräutler, para desenvolver trabalhos com os trabalhadores rurais
da região do Xingu, mais precisamente em Anapu, oeste do Pará, que
à época era pertencente ao município de Senador José Porfírio (Sosel,
como era chamado). Sua atividade missionária tinha como objetivo
central a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores rurais, e isso
passava pela geração de emprego e renda entre os pequenos agriculto-
res, levando até eles também projetos de reflorestamento de áreas degra-
dadas, bem como a conservação da floresta através do manejo sustentá-
vel (GUZZO & SANTANA, 2009: 25).
Para pôr em funcionamento os projetos acima mencionados, era
necessário assentar os/as trabalhadores/as. Terra para manejo onde pu-
dessem plantar e colher fugindo sempre da monocultura. “Dorothy en-
sinava que se deve plantar de tudo um pouco”, disse a Professora Maria
José da Silva Araújo (Entrevista concedida em 6 de outubro de 2016),
pois acreditava que o pequeno agricultor precisava ter de tudo um pou-
co para garantir o seu sustento. A sua atuação nos Projetos de Desenvol-
vimento Sustentável foi muito além dos limites da Vila de Sucupira, no
município de Anapu, e ganhou o reconhecimento em âmbito nacional
e internacional.
Em 2004, recebeu da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) um
prêmio pelo trabalho desenvolvido em favor dos mais empobrecidos

340
(GUZZO & SANTANA, 2009). Ela acreditava que todos tinham direito
a uma vida melhor. Que podiam viver numa terra de onde pudessem
tirar seu sustento. Eles possuíam o sagrado direito a uma vida melhor
numa terra onde pudessem viver e produzir com dignidade, porém
sem devastá-la.
Dentre as diversas iniciativas em favor dos mais empobrecidos,
Irmã Dorothy ajudou a fundar a Escola Brasil Grande, a primeira escola
de formação de professores na Rodovia Transamazônica, que corta ao
meio a pequena Anapu. Para além da fundação das escolas, ela também
empreendeu uma grande luta pela reforma agrária e pela criação dos
PDSs. Por defender a reforma agrária, mantinha uma agenda de diá-
logo com lideranças camponesas, políticas e religiosas, na tentativa de
encontrar soluções para os diversos conflitos ligados à posse e à explo-
ração da terra (BINGEMER, 2009: 2).

A relação com o ensinar

Dorothy iniciou sua vida missionária trabalhando em escolas. Gos-


tava de ensinar. Sua primeira experiência como professora foi na Escola
São Victor, em Calumet City, Illinois (EUA), numa turma de terceira
série. A segunda experiência foi na Escola Elementar São Patrício, em
Columbus, Ohio (EUA). Ensinava 55 crianças desde o jardim da infân-
cia ao secundário, todos juntos na mesma sala (MURPHY, 2009: 24).
Enfim, ensinar era um dos princípios de sua ordem religiosa. Ensinar
onde houvesse pessoas pobres. Santa Júlia Billiart, que fundou a Con-
gregação em fins do século XIX, abriu escolas na França e na Bélgica
exclusivas para meninas pobres (idem: 18). Educar, ensinar era parte
intrínseca do seu trabalho missionário.
Em Anapu, dentre as diversas iniciativas por ela engendradas em
favor dos/as mais empobrecidos/as, Irmã Dorothy ajudou a fundar a
primeira escola de formação de professores na Rodovia Transamazô-
nica, no Centro Nazaré: a Escola Brasil Grande. Mas esta não foi a úni-
ca. Foram muitas. Principalmente nas vicinais e nos PDSs. De acordo
com os entrevistados e as entrevistadas, onde ela via a possibilidade de

341
ter uma escola, reunia os moradores e moradoras, e todos construíam
o barraco de madeira, de palha ou taipa e, após isso, comunicava à
Secretaria Executiva de Educação do Pará (Seduc). A Professora Maria
José da Silva Araújo, ativa ainda hoje, afirmou que começou a traba-
lhar assim: abriu-se a escola e, no começo, segundo a mesma, Dorothy
pagava a ela algum dinheiro “do próprio bolso” para que ficasse tra-
balhando até que a Seduc aceitou contratá-la. A mesma relatou ainda
que a secretária de educação da época muitas vezes reclamava dizen-
do que “primeiro abrem as escolas sem comunicar e depois exigem
pagamento”.(Entrevista concedida em 6 de outubro de 2016). Apesar
das reclamações, o Estado acabava contratando os/as professores/as
e demais servidores, e foi assim que Anapu, em apenas quatro anos,
saltou de sete escolas para 23 (GUZZO & SANTANA, 2009: 31). Nesse
projeto, Dorothy conseguiu envolver os agricultores e elevado núme-
ro de jovens para construir as escolas (muitas vezes pequenos barra-
cos cobertos de palha) e buscou os meios para a contratação dos/as
professores/as junto ao Governo do Estado. Ajudou também a trazer
cursos de formação para esses/as profissionais. Segundo o Padre José
Amaro Lopes de Sousa,

Falar de Dorothy e não falar da questão da educação...


aqui em Anapu, não é por acaso que ela levou o nome
dela na Casa Família Rural Dorothy Stang, né? Ali, no
quilômetro 120. Então assim, falar de Dorothy é falar de
educação, sabe? É falar da questão da conquista da terra,
falar da conquista do direito de cidadão, de cidadã, né?
É falar com que esses pequenos que às vezes não tinham
voz, nem tinham vez... assim, não era que ela ia...dizer
assim: ah, Dorothy era a que ia na frente. Ela preparava
e quem ia era o próprio povo. E assim... e ela dizia que se
um município se cria... tudo e se não tem uma educação,
no sentido assim... as pessoas não estão preparadas para
isso, é muito fácil se deixar enrolar por sabidos e sabidas
que aparecem, né? (Entrevista concedida em 5 de outu-
bro de 2016).

342
Percebeu-se, na fala do Padre Amaro (como revelou gostar de ser
chamado), que, durante os 23 anos em Anapu, as ações de Dorothy não
se resumiram somente à criação de escolas, mas passou por outras con-
quistas, como a terra, a formação e preparação dos trabalhadores/as
para enfrentar com maior igualdade as pessoas que, segundo sua fala,
apareciam com a intenção de enganar o povo. Dorothy atuou também
no processo de formação de associações de trabalhadores/as, na abertu-
ra e conservação de estradas vicinais, na emancipação do município de
Anapu e em muitos outros projetos, inclusive a criação dos PDSs para
assentar os/as pequenos/as agricultores/as sem terra. Tudo isso tinha
um objetivo maior: melhorar a vida de todos/as e ensiná-los/as a resistir
(GUZZO & SANTANA, 2009). Ensiná-los sobre seus direitos através do
conhecimento das leis.

Irmã Dorothy, conhecendo a lei, se esforça por ensinar


aos camponeses e aos trabalhadores da floresta que têm
“direitos”, além de deveres. Direitos reconhecidos a to-
dos os seres humanos. Direitos que têm o seu funda-
mento no Evangelho, o qual põe à luz a nobreza absolu-
ta de toda pessoa, que tem um lugar específico, único
e irrepetível no mundo, na sociedade e na igreja. Sua
principal preocupação é dar aos leigos espaços concre-
tos nos quais agir, emergir e exercer a sua vocação de
serem “profetas, sacerdotes e reis”, por força do Batismo
(SALVOLDI, 2012: 27).

Ensinar a agir e emergir. Ensinar os direitos. Ensinar para a autono-


mia a partir de uma ótica evangélica, dando às pessoas o conhecimento
necessário para entenderem seu lugar no mundo. Por isso, as escolas
eram (são) tão necessárias. Segundo o Padre Paulo Joanil:

A Irmã Dorothy tinha sim uma preocupação muito


grande com a Educação. Nos anos em que trabalhou na
Diocese de Marabá, além de ser agente pastoral da CPT,
era também uma educadora do MEB (Movimento de

343
Educação de Base), órgão da CNBB2 que utiliza o méto-
do Paulo Freire (Entrevista concedida em 21 de outubro
de 2016).

Paulo Freire usava um método que buscava ensinar a partir do


conhecimento que o aluno já tinha, ou seja, a proposta é estimular o
adulto que ainda não é alfabetizado a inserir-se no seu contexto social
e político, na sua realidade, promovendo assim o seu despertar para
a vida, para a cidadania e para sua transformação social. Em outras
palavras, cada pessoa precisa ter seu pensamento próprio, ser ques-
tionadora, partícipe da construção de sua história. O Movimento de
Educação de Base (MEB) – que ainda está atuante em alguns estados
brasileiros – compreende a educação de base como processo de cons-
cientização dos seus alunos, para a valorização plena do ser humano e
também para uma consciência crítica da realidade, buscando sempre
transformá-la. Transformar a realidade das pessoas por onde passava
era, sem dúvida, o grande trabalho empreendido por Dorothy e, para
isso, ela não media esforços.

Dorothy Mae, Dorothy mãe

Em Anapu, muita gente se lembra dela como se fosse uma mãe


pelos muitos serviços prestados e pelos muitos ensinamentos deixa-
dos. Para formação das professoras, conseguiu levá-las até Uruará a
fim de que estudassem no Projeto Gavião. Esse projeto era – e ainda
é – de responsabilidade da Universidade Federal do Pará (UFPA) em
parceria com a Secretaria Executiva de Educação (Seduc) e Secretarias
Municipais de Educação e Cultura (Semec). Nesse sistema de parce-
rias, objetivava-se promover a habilitação dos professores leigos ao
nível de Ensino Fundamental e Médio (área de magistério). O nível
fundamental era ofertado pelo Projeto Gavião I e o magistério, pelo
Projeto Gavião II (TAVARES, PINHO & CABRAL, 2002). As pri-

2
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. (N. do R.)

344
meiras professoras das escolinhas que iam sendo criadas nas vicinais
passaram todas pelo Projeto Gavião, segundo contaram a Professora
Maria José e o Padre Amaro.
Além desse trabalho de formação das professoras e professores,
Dorothy criou um movimento de mulheres para trabalhar num pro-
jeto chamado de “revendinha/revendão”. Segundo Rosária. não havia
comércio em Anapu e o mercado mais próximo ficava em Altamira
há cerca de 140 quilômetros. Muito distante numa estrada bem ruim.
Era muito difícil para comprar mantimentos. Então, criou-se um mo-
vimento de mulheres e Dorothy conseguiu uma forma de comprar di-
reto do fornecedor. No Centro Nazaré, estocavam os alimentos e, daí,
distribuíam-nos para as revendinhas. Em cada vicinal, criou-se uma
revendinha que era administrada por um grupo de mulheres, as quais,
durante os sábados, se revezavam na comercialização dos produtos.
O dinheiro arrecadado era revertido na compra de novos produtos.
Rosária assim explicou:

Aí, bolado por ela, né? Vamos arrumar um jeito de a


gente comprar direto da fábrica, a mercadoria direto da
fábrica, e nas comunidades, essas comunidades foram
criadas por ela, onde tinha as escolinhas e tal, em cada
comunidade dessa a gente colocava uma revendinha. A
gente chamava de revendinha. É a mercadoria vindo di-
reto da fábrica, colocava nas revendinhas e lá um grupo
de mulheres, é... abria todo sábado [...] revezavam, cada
sábado uma ou duas, um grupo, uma equipe, e vendia
esses produtos. Revendia, no caso ou trocava por outro
produto que eles colhiam: arroz e outros. Trocavam ou
então vendiam mesmo e, com esse dinheiro, compravam
outros produtos. Com o dinheiro, então, a gente fazia
nova compra e trazia prá revendinha. Tinha o revendão,
que era o local onde a gente... trazia a mercadoria di-
reto da fábrica... comprava em grande quantidade e no
Centro Nazaré era onde a gente depositava. Lá era um
depósito grande onde ficava toda a mercadoria e de lá

345
a gente passava para as revendinhas, distribuía. Na ver-
dade, o revendão era uma distribuidorazinha que abas-
tecia as revendinhas que funcionavam nas vicinais (Ma-
ria Rosária Souza Guzzo. Entrevista concedida em 5 de
outubro de 2016).

Esse projeto não só proporcionou a facilidade na aquisição dos pro-


dutos a custo baixo, já que a mercadoria era adquirida direto do for-
necedor, como também ensinou esse grupo de mulheres a administrar
a renda obtida com a comercialização. A troca dessa mercadoria por
produtos in natura também facilitava as negociações para quem preci-
sava do mantimento e não possuía dinheiro. Percebe-se que, em Ana-
pu, Dorothy trabalhou em várias frentes. Lutou pela educação, saúde,
emancipação do município e, principalmente, pelas pessoas em razão
de sua condição desfavorecida. Sua atuação trouxe alegria para mui-
ta gente, mas também incomodou outras tantas e, por conta disso, ela
recebeu diversas ameaças de morte. Todavia, não se deixava intimidar
facilmente e declarou que não ia fugir. Entendia que não podia deixar
Anapu porque seu trabalho ainda não estava terminado. No cenário dos
conflitos agrários no Brasil, seu nome se juntou a tantos outros nomes
de homens, mulheres e crianças que morreram e morrem todos os dias
sem ter seus direitos respeitados.

Conclusão

A memória em torno do que a Irmã Dorothy deixou vem sendo


transmitida pelas lideranças dentro dos Projetos de Desenvolvimento
Sustentável no município de Anapu. Essa memória está sendo construí-
da em meio aos conflitos e disputas pela conquista da terra. A violência
por parte dos latifundiários e pistoleiros da região dá o tom da conversa,
mas não consegue intimidar o povo nem fazê-lo desistir da busca pela
dignidade. Nessa disputa, percebem-se dois modelos de posse da terra:
um, pela perspectiva dos latifundiários, que é tipicamente comercial,
a partir da visão do modo capitalista de mercado; e o outro, o manejo

346
da terra, que é altamente sustentável, estabelecido pelos colonos com o
apoio de Dorothy Stang. Nessa disputa tensa onde muitos tombaram,
há uma memória de resistência camponesa que ganha força no legado
de Dorothy Mae Stang, reflexo da sua coragem e ousadia na defesa dos
pobres e oprimidos da terra. Mesmo aqueles que não estiveram com
ela ou os que não participaram de suas lutas se sentem parte das ações
rememoradas em cada ato de recordação coletiva nas reuniões. Os ensi-
namentos deixados por Dorothy Stang nos projetos de desenvolvimento
sustentável e na cidade de Anapu são resultado das experiências de en-
frentamento dos muitos entraves na reivindicação do direito à educação
e à terra. Dessa forma, tanto as pessoas comuns quanto as lideranças
formadas dentro dos projetos, por influência dessa missionária, por
eles chamada de “nossa mártir”, continuam resistindo ainda hoje contra
aqueles que desejam destruir seu projeto de uma vida mais digna. Nessa
luta, muitas são as vozes que já foram silenciadas, mas a voz de Dorothy
continua a se fazer ouvir. Sua coragem permanece encorajando e sua
força, fortalecendo: Dorothy está mais viva do que nunca!
A morte de Irmã Dorothy no meio da Floresta Amazônica, na área
do PDS Esperança (Anapu I), é um legado de resistência que se mantém
vivo hoje através das lideranças e de todos/as os/as moradores e mora-
doras que continuam mantendo essa memória como fonte de inspiração
para suas ações. Uma memória “historicamente construída” (POLLAK,
1992) é sempre uma experiência em disputa, um legado que vai sendo
fixado na memória dos trabalhadores e trabalhadoras dentro dos PDSs
e uma memória construída à base da disputa e da resistência. Nessa
perspectiva, Elizabeth Jelin (1998), em sua pesquisa Los trabajos de la
memoria, propiciou a análise das memórias coletivas como processos de
lutas, de tensões em busca do reconhecimento entre aqueles que estão
envolvidos e as possíveis negociações intrínsecas a esses processos. Para
Elizabeth Jelin (1998), as crises internas a um grupo em geral implicam
a reinterpretação da memória e o questionamento da própria identida-
de desse grupo. Assim, é a partir desse pressuposto que os grupos que
hoje resistem nos PDSs buscam ressignificar sua luta após a morte de
Dorothy Mae Stang.

347
Para Umberto Eco (2005), os indivíduos vivem os momentos da
espera, da atenção e da memória, e nenhum desses momentos existe
sem o outro. Para todos os que conviveram com Dorothy e aprenderam
com ela o valor da educação e da terra, mas principalmente o valor da
vida em qualquer esfera social, o tempo é o da memória. Esse é o tempo
que os projeta para o futuro, mas é também o da atenção e da espera.
Atenção ao que acontece ao seu redor e espera por um tempo em que
a palavra substitua violência e o diálogo seja possível na construção de
uma vida mais justa.

Referências

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eclesiais de base e os conflitos rurais. São Paulo: Paulinas, 1996. Coleção
Sociologia e Religião.

BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Mulheres da história recente do Brasil:


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site/index.php/testemunhos/ir-dorothy-stang-testemunhos/mulheres-
da-historia-recente-do-brasil-dorothy-stang>. Acesso em: 20 de fevereiro
de 2011.

COSTA, Luciana Miranda. Sangue na Floresta: a cobertura da impren-


sa local e nacional sobre o assassinato da Missionária Dorothy Stang
e sobre a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto. In: V ENANPPAS
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Anais... Florianópolis, Anppas/UFSC, 4 a 7 de outubro de 2010. São
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ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana. Romance ilustra-


do. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005.

348
FORMAGGINI, Beth. Memória para uso diário. Rio de Janeiro: Gru-
po Tortura Nunca Mais/ União Europeia e 4 Ventos, 2007. 94min.
(Documentário).

GUZZO, Maria Rosária Souza & SANTANA, Nivalda Silva de. Irmã Do-
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JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo Veintiuno


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LE BRETON, Binka. A dádiva maior: a vida e a morte corajosas de Irmã


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MURPHY, Roseanne. Mártir da Amazônia: a vida da irmã Dorothy


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TAVARES, Hilda de Lima; PINHO, Vera Lúcia Fernandes de & CA-


BRAL, Danilo do Carmo Quadros. Projeto Gavião. (Relatório/2002 –
área temática: Educação) – Universidade Federal do Pará/UFPA. Dis-
ponível: <http://www.prac.ufpb.br/anais/Icbeu_anais/anais/educacao/
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Entrevistas

Maria José da Silva Araújo, 52 anos. Entrevista concedida em sua resi-


dência, no PDS Esperança/Anapu I, em 6 de outubro de 2016.

Maria Rosária Souza Guzzo. Entrevista concedida em sua residência, na


cidade de Anapu, em 5 de outubro de 2016.

349
Padre José Amaro Lopes de Sousa, 40 anos. Entrevista concedida na
casa paroquial da Paróquia de Santa Luzia, em Anapu no dia 5 de outu-
bro de 2016.

Padre Paulo Joanil da Silva. Entrevista concedida em 21 de outubro de


2016, via e-mail.

Outros documentos

Biografia de Irmã Dorothy. Homepage Canção Nova – Notícias, Ca-


choeira Paulista, 14 de maio de 2007. Disponível em: <http://noticias.
cancaonova.com/brasil/biografia-de-irma-dorothy/>. Acesso em: 21 de
março de 2011.

CELEBRAÇÕES lembram seis anos da morte de Dorothy Stang. Portal


ORM, Belém, 16 de fevereiro de 2011. Disponível em: <http://noticias.
orm.com.br/noticia.asp?id=515613&|celebra%C3%A7%C3%B5es+le
mbram+seis+anos+da+morte+de+dorothy+stang#.WKYa01UrI_4>.
Acesso em: 20 de fevereiro de 2011.

350
Sobre os Autores

Agenor Sarraf-Pacheco é pós-doutor em Comunicação, Linguagens


e Cultura, pela Universidade da Amazônia (PPGCLC/Unama); doutor
em História Social, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PPHIST/PUC-SP); e professor dos Programas de Pós-Graduação em
Antropologia (PPGA) e História Social da Amazônia (PPHIST) da Uni-
versidade Federal do Pará (UFPA).

Ailce Margarida Negreiros Alves é professora da Universidade Federal


do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa); graduada em Ciências Sociais,
pela Universidade Federal do Pará (UFPA); mestra em Ciências Sociais,
pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris,
na França; membra do Grupo de Pesquisas e Estudos Linguísticos, Li-
terários e Culturais da Pan-Amazônia (GPELLC-PAM); e assessora das
organizações de mulheres do sudeste do Pará.

Airton dos Reis Pereira é doutor em História, pela Universidade Fede-


ral de Pernambuco (UFPE) e professor da Universidade do Estado do
Pará (UEPA), Campus de Marabá, e do Programa de Pós-Graduação em
Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA) da Univer-
sidade Federal do Sul e Sudeste do Para (Unifesspa).

Albêne Lis Monteiro é doutora em Educação, pela Pontifícia Univer-


sidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e professora do Programa de

351
Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade do Estado do
Pará (UEPA). É também membra da Associação Nacional de Pós-Gra-
duação e Pesquisa em Educação (Anped).

Ana Shirley Penaforte Cardoso é mestra em Comunicação, Lingua-


gens e Cultura, pela Universidade da Amazônia (Unama); doutoran-
da do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
(PPGSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA); e professora do
curso de Comunicação da Faculdade de Estudos Avançados do Pará
(Feapa).

Bruna da Silva Cardoso é mestranda do Programa de Pós-Graduação


em Estudos de Cultura e Território (PPGcult) da Universidade Federal
do Tocantins (UFT), Campus de Araguaína.

Dernival Venâncio Ramos é doutor em História, pela Universidade de


Brasília (UnB), e professor do curso de História e do Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Cultura e Território (PPGcult) da Universi-
dade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Araguaína.

Hiran de Moura Possas é professor da Faculdade de Educação do Cam-


po (Fecampo) e da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Uni-
fesspa), além de doutor em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Idelma Santiago da Silva é professora da Faculdade de Educação do


Campo (Fecampo) e do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas
Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA) da Universidade Fede-
ral do Sul e Sudeste do Para (Unifesspa), além de doutora em História,
pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Ilca Pena Baia-Sarraf é mestra em Educação, pelo Programa de Pós-


Graduação em Educação (PPGED) da Universidade do Estado do Pará
(Uepa).

352
Ivânia dos Santos Neves é doutora em Linguística, pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), e professora do Instituto de Letras
e Comunicação (ILC), do Programa de Pós-Graduação em Letras e do
Programa de Pós-Graduação de Comunicação, Cultura e Amazônia da
Universidade Federal do Pará (UFPA).

Jerônimo da Silva e Silva é doutor em Antropologia, pelo Programa


de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará
(PPGA/UFPA); professor adjunto na Universidade Federal do Sul e Su-
deste do Pará (Unifesspa); lotado na Faculdade de Educação do Campo
(Fecampo) e no Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais
e Sociedade na Amazônia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do
Pará (PDTSA/Unifesspa).

Kecieni Nunes da Silva é professora de sociologia na educação básica,


da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc-PA) e graduada
em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia, pela Universidade
Federal do Pará (UFPA).

Kezia Vieira de Sousa Farias é graduada em Ciências Sociais, pela Uni-


versidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).

Mayane Rumão de Souza Arruda é graduada em História, pela Uni-


versidade Federal do Tocantins (UFT), e atua como auxiliar de apoio
na Escola Família Agrícola do Bico do Papagaio Padre Josimo Tavares.

María de los Ángeles Arias Guevara é pesquisadora Capes1 no Pro-


grama de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na
Amazônia (PDTSA) da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(Unifesspa) e professora titular da Universidad de Holguín, em Cuba;
mestra em Sociologia e doutora em Ciências Filosóficas, pela Universi-
dad de La Habana, em Havana, Cuba; pós-doutora em Sociologia, pela

1
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. (N. do R.)

353
Universidade Federal do Pará (UFPA) e pelo Colegio de Postgraduados
de México; pesquisadora visitante CNPq2 no Curso de Pós-Graduação
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Fede-
ral Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ – 2009-2010). É membra
da Asociación Latinoamericana de Sociología Rural (Alasru), da Latin
American Studies Association (Lasa) e do Consejo Latinoamericano de
Ciencias Sociales (Clacso).

Mirtes Emilia Almeida Manaças é mestra em História Social e dou-


toranda em História Social da Amazônia, pela Universidade Federal
do Pará (UFPA), com pesquisas voltadas para as questões indígenas na
Amazônia brasileira.

Osnera Silva Vieira é mestra em História Social, pela Universidade Se-


verino Sombra (USS), em Vassouras, no Rio de Janeiro; doutoranda em
Ciências da Educação, pela Universidad Americana, em Assuncão, no
Paraguai; e professora da rede pública estadual de ensino.

Rosemayre Lima Bezerra é professora de Sociologia, atuando na rede


pública estadual de ensino. Graduada em Ciências Sociais, com ênfa-
se em Sociologia, pela Universidade Federal do Pará (UFPA), e mestra
pelo Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Socieda-
de na Amazônia (PDTSA) da Universidade Federal do Sul e Sudeste do
Pará (Unifesspa).

Sariza Oliveira Caetano Venâncio é graduada em História e especia-


lista em História Cultural, pela Universidade Federal de Goiás (UFG);
mestra em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA); doutoranda em Antropologia Social, pela Universidade Esta-
dual de Campinas (Unicamp); e professora do Colegiado de História da
Universidade Federal do Tocantins (UFT).

2
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. (N. do R.)

354
Este livro foi composto em Minion para
a Editora Paka-Tatu, Belém, Pará, Brasil.
O miolo foi impresso em papel Off Set
75 gr e a capa em triplex 250 gr.

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