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UNIVERSIDADE DE FRANCA
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
MESTRADO EM LINGUÍSTICA
Franca
2016
2
FRANCA
2016
3
CDU – 801.553:82-5
4
5
AGRADECIMENTOS
MULHERES NEGRAS
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12
1 LINGUAGEM COMO ATO DE FALA PERFORMATIVO............................ 18
2 RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE PELO VIÉS DAS TEORIAS
QUEER....................................................................................................... 25
2.1 TEORIAS QUEER: DESESTABILIZANDO NORMAS................................ 25
2.2 MULHERES NEGRAS: RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE PELA
TEORIA QUEER ........................................................................................ 29
3 METODOLOGIA DA PESQUISA .............................................................. 43
3.1 A WEB: UM ESPAÇO DO HÍBRIDO .......................................................... 43
3.2 CONTEXTO DE PESQUISA ..................................................................... 45
3.3 GERAÇÃO DE DADOS E INSTRUMENTAL TEÓRICO-ANALÍTICO........ 53
4 AS PERFORMANCES DISCURSIVAS E AS ORDENS DE
INDEXICALIDADE DE GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE NO
DESABAFO DE DANDARA...................................................................... 56
4.1 CENÁRIO: PERFORMANCES DISCURSIVAS E ORDENS DE
INDEXICALIDADE...................................................................................... 56
4.2 AS PERFORMANCES DISCURSIVAS E AS ORDENS DE
INDEXICALIDADE NO DESABAFO .......................................................... 58
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 65
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 67
ANEXOS ............................................................................................................ 73
ANEXO A – Transcrição do vídeo desabafo de Dandara................................... 74
ANEXO B – Carta aberta ao senhor Miguel Falabella ....................................... 75
12
INTRODUÇÃO
audiência como ocorre com a telenovela”, ou seja, não passa por modificações
enquanto estiver no ar – uma característica, portanto, que a difere das demais
teleficções brasileiras, como a novela, que é uma obra em aberto, passível de
alterações no decorrer dos capítulos, e cujo sucesso ou insucesso dependerá do
êxito de audiência ou de outras circunstâncias. Ainda de acordo com a autora,
HENRIQUE, 2007; GIACOMINI, 2012; PACHECO, 2013). Essa questão é vista por
nós como interseccionada por gênero, raça e sexualidade.
Quanto à metodologia de pesquisa, este estudo se caracteriza como de
cunho etnográfico virtual na perspectiva de Hine (2000, 2005), e o instrumento
etnográfico é o desabafo de uma mulher negra criticando a minissérie “Sexo e as
Negas”, disponibilizado no YouTube em 14 de setembro de 2014. Para análise das
performances discursivas e das ordens de indexicalidade, usaremos aqui os índices
linguísticos de Silverstein (2003), caracterizados pelas pistas indexicais de Wortham
(2001).
Esta dissertação está organizada em quatro capítulos. O capítulo 1
abordará teorizações sobre linguagem como atos de fala performativos. O capítulo 2
tratará das questões de raça, gênero e sexualidade na concepção das Teorias
Queer, englobando uma perspectiva que contesta convenções sedimentadas e
naturalizadas. No capítulo 3 serão apresentadas a metodologia e o contexto de
pesquisa. O capítulo 4 incluirá a análise das performances discursivas e as ordens
de indexicalidade no desabafo da mulher negra no vídeo do YouTube. Por fim,
apresentaremos as considerações finais.
18
explica que filósofos e gramáticos haviam aceitado sentenças sem limites, e que
muitas declarações eram apenas pseudo declarações.
Em outro momento, ainda de acordo com Austin, surgiram
questionamentos entre os filósofos – se tais declarações seriam mesmo pseudo
declarações, considerando-se que alguns proferimentos tinham a função de
“registrar ou transmitir informação direta acerca de fatos” (p. 22). Austin ([1962]1990,
p. 22), então, argumenta em favor do reconhecimento de certas palavras
(a) ‘Aceito esta mulher como minha legítima esposa’ – do modo que é
proferido no decurso de uma cerimônia de casamento. (b) ‘batizo este navio
com o nome de Rainha Elizabeth’ – quando proferido ao quebrar-se a
garrafa contra o casco do navio. (c) ‘Lego a meu irmão este relógio’ – tal
como ocorre em um testamento. (d) ‘Aposto cem cruzados como vai chover
amanhã’.
porque trata da produção dos sons pelo falante; já o ato ilocucionário consiste na
realização do dizer algo – produz-se, então, a ação; e o ato perlocucionário
caracteriza-se como o efeito gerado pelo ato de dizer algo.
Ottoni (2002) prefere chamar de “visão performativa” (p. 122) as
reflexões austinianas sobre a abordagem da linguagem cotidiana. Por conseguinte,
vale notar o que diz esse autor sobre o rompimento de Austin com a postura
tradicional, ao se preocupar com a interseção “linguagem humana e o humano” (p.
138); em outras palavras, Austin já apontava com clareza o que o humano, o corpo e
a linguagem não se separam.
De acordo com Ottoni (2002), é complexo “situar e justificar” Austin no
contexto pós-modernidade (p. 118), mas julga necessária uma melhor compreensão
de suas considerações sobre a linguagem que “pressupõe uma nova concepção de
linguagem através do fenômeno da performatividade” (p. 123). Assim sendo, uma
releitura feita por um filósofo francês renomado, Jacques Derrida, entra em cena
para interpelar as proposições dos atos de fala de Austin. Derrida, pós-estruturalista
que tem seu nome ligado à teoria da desconstrução, preocupou-se com a noção da
linguagem nos estudos do pensamento filosófico ocidental. Derrida tece algumas
críticas sobre a intenção pré-discurso sugerida por Austin e julga não haver
necessidade de condições especiais para que o ato de fala performativo se realize.
O autor ([1972]1991) ainda acrescenta que todos os atos de fala são performativos e
ganham a ideia de substância pelas noções de iterabilidade – “(iter, de novo, viria de
itara, outro em sânscrito, e tudo o que se segue pode ser lido como exploração
desta lógica que liga a repetição à alteridade” (p. 356) – e citacionalidade, ou seja,
por meio da repetição de tais atos nas práticas sociais e sua propagação
institucionalizada.
Nessa perspectiva, cabe ressaltar que, nas concepções derridianas, a
intenção não existe fora do discurso, pois ela se dá na interação. De acordo com
Strathern (2002), Derrida insiste no argumento de que “não há nada fora do texto”
(p. 5). Haveria, então, diversas possibilidades de novas interpretações em qualquer
texto, ou seja, um texto não poderia ter apenas uma compreensão. Embora
corrobore as proposições austinianas, Derrida questiona algumas concepções
daquele autor e faz uma releitura dos atos de fala, propondo uma nova interpretação
através do conceito de iterabilidade – “A repetição da linguagem é mais que cópia: é
uma repetição com potencial transgressivo; é uma repetição que ocasiona rupturas,
23
Ainda de acordo com essa estudiosa, todo ato de fala performativo tem
efeitos, a linguagem é ação corpórea e acontece pela iterabilidade e pela
citacionalidade do discurso, aumentando, assim, nossa responsabilidade sobre os
nossos atos discursivos. Para Butler (1997), a linguagem constrói e marca os
corpos. Elas os legitima como corpos que importam ou não importam. Segundo
Rocha (2013, p. 45), à luz de Pinto (2009), “entender que a linguagem é uma
repetição de atos de fala que tem poder de produzir ou aniquilar vidas significa que o
que fazemos com a linguagem não pode estar separado da materialidade –
principalmente dos corpos”.
Assim, compreendemos que o desabafo veiculado no YouTube de
Dandara5 contesta os atos de fala performativos que naturalizam discursos sobre as
mulheres negras, colocando-as em posições sociais de desprestígio e como objeto
sexual. Com base em Austin e Derrida, podemos dizer que tais atos de fala
performativos sobre as mulheres negras se normalizam pela iterabilidade e
citacionalidade; além disso, apontam para discursos que inferiorizam ou naturalizam
o estereótipo da mulher negra como hiperssexualizada, fogosa e apta, apenas a
ocupar cargos de desprestígio. Tais atos de fala performativos marcam corpos,
afetam vidas e legitimam tais mulheres como inferiores às mulheres brancas.
Percebemos que, em seu desabafo, Dandara contesta os atos de fala performativos
de gênero, raça e sexualidade que naturalizam esses discursos estereotipados e
interseccionados sobre essas mulheres, repetidos há séculos em contexto brasileiro.
No próximo capítulo discutiremos como raça, gênero e sexualidade são
interseccionados e compreendidos pelas Teorias Queer.
5
Referimo-nos à autora do vídeo como Dandara, para fins de preservação de sua identidade.
25
Nos dias atuais, muito se tem falado e discutido sobre Teorias Queer.
De acordo com Miskolci (2009), o termo queer, originalmente, tem seu significado
associado negativa e agressivamente contra aqueles que rompiam com normas de
gênero e sexualidade nos Estados Unidos da América; em outras palavras, uma
agressão verbal, um xingamento a essas pessoas que contrariavam as normas
instituídas pela sociedade.
Diante disso, movimentos das Teorias Queer vêm ganhando espaço
para ação, após o surgimento de uma política pós-identitária, proposta por
teóricos/as queer, que criticam a oposição heterossexual/ homossexual, enfatizando
uma visão pós-estruturalista. Esta visão pós-estruturalista parte de uma vertente do
pensamento ocidental contemporâneo, um grupo de intelectuais dentre os quais se
destacam Freud, Lacan, Althusser e Foucault, e corresponde a “teorizações que
problematizaram de forma radical a racionalidade moderna” (LOURO, 2001, p. 547).
Partindo dos pressupostos de que os movimentos queer aparecem em
virtude de discussões sobre sexualidade, Louro (2001) ressalta que a
homossexualidade6 no século XIX era patologizada, ou seja, os sujeitos que
6
O termo “homossexualidade”, em conjunto com “sujeito homossexual”, segundo Louro (2001, p.
26
possuíam desejos sexuais contrários aos que a sociedade impunha tinham apenas
um destino: o segredo e a segregação. De acordo com a pesquisadora, os anos
1970 foram um marco na divisão dessas ideias tradicionalistas sobre
homossexualidade, com o surgimento de alguns movimentos subversivos nos EUA e
na Europa. No Brasil, que também reflete o que ocorre mundialmente, surge então o
Movimento Libertação Homossexual, a partir de 1975, do qual participam pessoas
exiladas pela ditadura, e que trouxeram do exterior inquietações políticas, feministas,
sexuais, ecológicas e raciais que por lá circulavam. A ambiguidade sexual começava
a ganhar espaço, e alguns artistas se apresentavam com suas performances
provocadoras, como era o caso do cantor Ney Matogrosso.
O aparecimento da AIDS nos anos 80 e sua expansão contribuíram
também para a sua associação à homossexualidade 7 na sociedade brasileira. Esses
acontecimentos permeavam o mundo ocidental e despontavam na sociedade
acadêmica internacional, mais interessada em contestar discursos tradicionais que
traziam normatização e que provocavam sofrimentos naqueles sujeitos sociais
considerados anormais, como os homoafetivos. Ainda de acordo com Louro (2001),
essa luta continua em evidência na contemporaneidade: “Em termos globais,
multiplicam-se os movimentos e os seus propósitos: alguns grupos homossexuais
permanecem lutando por reconhecimento e por legitimação” (p. 545). As Teorias
Queer nascem nos Estados Unidos nesse contexto de discussão sobre a
sexualidade, mas não se resumem apenas a ela.
Nas propostas de Louro (2001), queer, então, “pode ser traduzido por
estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também
se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres
homossexuais” (p. 546). Dessa forma, a autora ainda destaca que alguns grupos
homoafetivos assumem o termo como forma de oposição e contestação,
significando colocar-se contra normalizações, independentemente de onde vier. A
heteronormativade é o alvo principal. A abrangência das concepções e definições do
termo pode ser discutida ainda por diversas/os teóricas/os. A exemplo disso citamos
Miskolci (2009), que afirma ter sido Teresa Lauretis, em 1990, que “empregou pela
primeira vez a denominação Queer Theory para contrastar o empreendimento queer
com os estudos gays e lésbicos” (p. 151).
8
Entrevista com Judith Butler em maio de 1996, na Holanda.
9
De acordo com Miskolci (2009, p. 1), “Hoje, critica-se o termo minoria que, sob a pretensa
neutralidade numérica, desvaloriza grupos subordinados pelos hegemônicos (propositalmente
confundidos com maioria). Um exemplo claro é a incoerência de se referir às mulheres como
minoria já que elas constituem numericamente a maior parte da humanidade”. Por outro lado,
ressaltamos que, nesse contexto, Louro (2004) afirma que “minorias” não significa uma questão
numérica, mas sim de uma maioria silenciada.
28
patriarcal era nula, visto que “constituir uma família, ter uma prole é algo inacessível
àqueles que não possuem nem a si próprios”, e que “a noção de privacidade e de
família refere-se a uma esfera própria que o escravo não possuía por sua condição
de ‘coisa’” (p. 31). Desse modo, a mulher escrava não tinha uma relação familiar
com seu filho, visto que seu corpo pertencia ao senhor de engenho. Havia famílias
escravas, mas – por serem consideradas mercadorias – elas eram vendidas em
separado, mostrando que a concepção de família não era legitimada para aqueles
corpos. Temos aqui um ato de fala performativo de que tais mulheres negras eram
propriedade de um/a senhor/a de engenho, e como tal não lhes era possível e nem
permitido ter uma família nos moldes das famílias brancas. Dessa forma,
compreendia-se como família escrava apenas a relação mulheres escravas-filhos,
ou seja, somente a mãe possuía uma relação parental entre os escravos. Essas
mulheres negras e escravas tinham a responsabilidade de realizar todo o trabalho
forçado.
Além disso, de acordo com Gorender (2012), havia ainda um discurso
distorcido de que “as escravas fisicamente bem-dotadas atraíam o interesse sexual
dos homens livres da casa, particularmente dos patrões e dos seus filhos” (p. 15),
justificando assim o fato de serem exploradas sexualmente e violentadas pelos
homens da casa, ou seja, era objeto de desejo sexual. A recusa às abordagens
sexuais era algo que as levava a sofrer castigos cruéis, e também à violência sexual.
Em vista disso, Giacomini (2012) salienta que essas mulheres negras e escravas
eram reduzidas a “coisas”, a mercadorias pertencentes ao senhor de engenho,
sendo portanto usadas, tratadas – e, considerando o que Butler (2004) diz sobre
gênero, mas focando na raça, legitimadas como objeto sexual por seus senhores, a
recusa não sendo sequer considerada. Nesse pensamento escravocrata, às
escravas não cabia a decisão de permanecerem virgens, pois a virgindade era
prerrogativa das moças brancas da sociedade. Assim, as escravas negras eram
também obrigadas a conviver e a suportar essa exploração sexual.
Ainda em relação aos atos de fala performativos que constroem as
mulheres negras como escrava e objeto sexual, Henrique (2007) ressalta que elas
eram “objeto de desejo sexual dos senhores, e vítima permanente dos seus abusos
sexuais”; ou seja, cruelmente estupradas, consequentemente odiadas por suas
senhoras, vítimas de ciúmes, já que para as segundas, as escravas negras
provocavam seus maridos e os seduziam (GIACOMINI, 2012), mostrando assim a
33
ressalta que a subjetividade da mulher negra escrava era reconhecida apenas nesse
caso.
A figura da “mãe-preta” suscita diferentes reflexões nas nossas fontes.
Privilegiado “exemplo de corrupção” na maior parte de nossas referências,
mas também “alma de sentimentos extraordinariamente nobres” e “coração
transbordando de sublimes dotes” em outros textos, a ama de leite parece
ser figura de proa das “inevitáveis” conclusões a que chega cada autor. O
componente subjetivo presente nos atos de amamentar, ninar, cuidar do
filho do senhor, serve em cada caso, negado, diluído ou aumentado, a
conformação de visões específicas: seja na visão racista e etnocêntrica, que
só reconhece a subjetividade da escrava na sua “nefasta influência” nas
crianças brancas, seja na visão da “boa ama” enunciada em nossas fontes,
cuja expressão acabada em nossos dias é obra de Gilberto Freyre. (p. 67)
considera ser “através dos discursos científicos do final do século XIX” (p. 102) a
divulgação desses atos de fala performativos que produzem efeitos de verdade até
os dias atuais, ou seja, estereótipos negativos de mulher negra brasileira,
sexualmente disponível, fogosa e quente. Essas construções se confirmam nas
palavras de Helborn (2006, p. 49):
escolares cotidianamente.
3 METODOLOGIA DE PESQUISA
.
Atualmente, presenciamos grandes transformações e reinvenções na
vida cotidiana dos sujeitos sociais, promovidas pela globalização. Segundo Milton
Santos (2000), o mundo globalizado é também um lugar onde tudo passa pelo
discurso. Diante disso, gera-se a necessidade de expor nossos sentimentos, de
transgredir e também contestar nos espaços online, como redes sociais, blogs etc.
Contamos, hoje, com diversos meios de comunicação que nos
propiciam essas possibilidades de exposição. Citamos aqui a Web 2.0,
compreendida como um espaço para prática social, um meio em que os sujeitos
podem interagir, questionar, transgredir etc. Segundo Melo e Moita Lopes (2014), “os
sujeitos sociais contemporâneos se apropriam das diversas TICs (Tecnologias de
Informação e Comunicação) e de recursos da web 2.0 e, ao assim fazerem,
encontram outras possibilidades de contar histórias sobre quem são [...]” (p. 543).
De acordo com Pellegrini et al. (2010, p. 1):
Vale também destacar que, de acordo com Melo e Moita Lopes (2014)
“a web é um lugar do híbrido e de coexistências de discursos” (p. 658), ou seja, no
ambiente online os diversos sujeitos sociais encontram “menos dificuldades para as
discussões sobre raça, gênero etc.”, como é o caso da Dandara, negra, que utilizou
o YouTube para fazer seu desabafo, aliviar-se e desoprimir-se.
Pellegrini et al. (2010) ressaltam que “é notável o impacto trazido pela
internet e todas as maravilhas proporcionadas por ela [...]” (p. 1). Contamos com
recursos ampliados cotidianamente para comunicação, transmissão de dados e
rápido acesso a informações por intermédio da Web 2.0. Uma das ferramentas
proporcionadas pela Web 2.0, muito utilizada pelos usuários para assistir e postar
vídeos, entre outras coisas, é o YouTube, um site que oferece recursos audiovisuais.
De acordo com os autores, esse website tem características relevantes: pode ser
utilizado por quem queira se autopromover, como um meio de propagação da
imagem, por quem queira ver e ser visto; os sujeitos sociais podem se abastecer de
conteúdos sem dono, passíveis de ser possuídos por qualquer um que tenha acesso
à Web 2.0.
Diante dessas tecnologias, meios pelos quais os sujeitos sociais
podem transgredir e contestar, quebrando barreiras, ultrapassando fronteiras e
também se construindo, entre outras possibilidades, é que se situa o desabafo de
Dandara, divulgado no YouTube, como meio de legitimar-se como pessoa que
importa, questionar atos de fala performativos de gênero, raça e sexualidade, que
inferiorizam mulheres negras, sem o receio de ter sua face agredida
presencialmente. Mesmo com as ofensas sofridas nas redes sociais, a web é
também um espaço de esperança para os corpos não legitimados e marcados como
inferiores (MELO, no prelo), porque eles têm a possibilidade e a oportunidade de
contestar.
Sendo assim, a presente pesquisa tem um cunho etnográfico virtual,
realçando a preocupação com a visão dos participantes no contexto social
(CAVALCANTI; MOITA LOPES, 1991). De acordo com o Laboratório de Etnografia e
Estudos em Comunicação, Cultura e Cognição da Universidade Federal Fluminense
(2002, p. 1),
10
ACONTECE.COM. Disponível em: <http://www.acontece.com/?p=33182. Acesso em: 30 out
2014.
11
O POVO ONLINE. A polêmica da série Sexo e as Negas. Disponível em: <http://www.opovo.-
com.br/app/opovo/vidaearte/2014/10/08/noticiasjornalvidaearte,3327661/a-pole-
mica-da-serie-sexo-e-as-negas.shtml>. Acesso em: 07 out. 2015.
47
12
SACRAMENTO, M. O erro de avaliação de Jean Wyllys ao defender a série “O Sexo e as
Nega”. Diário do Centro do Mundo (DCM). Disponível em: <http://www.diariodocentrodomun-
do.com.br/o-erro-de-avaliacao-de-jean-wyllys-ao-defender-a-serie-o-sexo-e-as-nega/ > Aces-
so em: 27 jan 2016.
50
Negas”, sob o título “Ver TV entrevista a advogada Dandara”. Nesta entrevista, ela
rebatia as críticas recebidas pelo desabafo em vídeo e também analisava o
posicionamento da televisão em relação ao racismo. Vê-se ainda a intervenção do
marido, após algum tempo, demonstrando preocupação com a imagem da
advogada. Em algumas mensagens, Dandara posta os pedidos do marido para que
cessasse com os comentários e publicações sobre as questões polemizadas.
A Web 2.0, como já mencionado, apresenta um espaço de
coexistências – uma “terra de ninguém”, termo utilizado pelos usuários para designar
que as redes são um território sem dono, em que os sujeitos sociais sentem-se livres
para se expor, seja por imagem, discursos etc. Neste caso, percebe-se que
Dandara, inicialmente, não presumia a repercussão do vídeo desabafo.
Posteriormente, em 24 de junho de 2015, constatamos que a mesma havia retirado
o vídeo do seu canal no Youtube, verificando em seguida que sua página pessoal no
Facebook também havia sido excluída. Ao pesquisar por “Dandara” no YouTube,
notamos que o vídeo estava em outro canal, publicado por outro usuário.
Igualmente, ao buscarmos por seu nome no Facebook, localizamos apenas
“Dandara, figura pública”. A partir de então passamos a acompanhar essa página do
Facebook. Após alguns meses, no dia 03 de dezembro de 2015, o administrador da
página de Dandara, Douglas Daniel de Sá, postou a seguinte mensagem:
anel) sinalizam uma profissão de status. Tudo isso mostra que Dandara se distancia,
assim, das personagens da minissérie “O sexo e as Nega”.
Dandara apresenta sotaque carioca; sua voz muda de entonação ao
longo da fala, e o registro é o oposto ao utilizado no Direito, ou seja, uma fala
coloquial que pode atingir uma audiência diversificada. Ao longo do desabafo,
Dandara muda a posição do corpo, encostando-se um pouco mais na cadeira, e se
expressa com a mão esquerda ao apontar as predicações de Cris Vianna. Ao longo
de sua fala, ela mantém uma postura sempre vertical, posicionando-se frente à
câmera com avidez e demonstrando com clareza o seu objetivo. Dandara sinaliza
uma performance discursiva de uma mulher negra estudada, firme, conhecedora dos
estereótipos raciais atribuídos às mulheres negras, contestadora desses
estereótipos.
Em outro momento de seu desabafo, ao falar da necessidade de outros
discursos sobre a mulher negra, Dandara aponta para a decoração que está em
segundo plano, especificamente para duas esculturas da Deusa da Justiça, uma
delas menor, que, de acordo com o Dicionário de Símbolos (2008) 14, representa “um
conceito abstrato de aplicação universal, e é somente através dela que se pode
organizar e equilibrar o caos do mundo, e o caos que vive em nós mesmos”. Há
também a representação de três elementos: a Deusa com olhos vendados, que
simboliza “a imparcialidade e transmite a ideia de que diante da lei, todos são
iguais”; a balança “é representada sempre imóvel e nivelada, simbolizando o
equilíbrio das forças desencadeadas, correntes antagônicas, a ponderação e
imparcialidade da justiça”; e a espada “simboliza a capacidade de exercer o poder
de decisão da justiça, e o rigor da condenação. Quando representada em riste,
simboliza a justiça que se impõe pela força”. Nesse sentido, Dandara aciona uma
performance discursiva de mulher negra indicando que há outras profissões e outras
áreas em que essas mulheres atuam.
Já em terceiro plano, observa-se atrás das esculturas um porta-retrato
com uma foto de Dandara com o marido, foto de duas crianças negras e outras sem
possibilidade de definição; um grampeador e ao lado uma fruta (pera), a bolsa na cor
bege atrás da cadeira – elementos que reforçam a performance identitária de mulher
14
Dicionário de símbolos. 2008. Disponível em: <http://www.dicionariodesimbolos.com.br/sim-
bolos-justica/>. Acesso em: 14 out. 2015.
58
Eu:: não consigo imagina... que... em nenhum lugar do mundo uma mulher
linda como a Cris Viana... por exemplo... longilínea magérrima com aquele
sorriso aquele cabelão... seria empregada do/doméstica... SÓ::... nas
novelinhas...
60
Meu trabalho... tá aqui óh... é esse aqui... eu faço isso para ganha a vida...
Então POR que que toda HOra na TV... tem essa história de PREta
gostosa... PREta com a bunda na laje... PREta assim...PRE...? CHEga!
Miguelito... MUda de assunto... VAmo faze outra COIsa... sabe? vamos falar
de OUtra coisa... eu quero OUtras referências... eu quero OUtro tipo de
preta na televisão... não a preta do pagode... não a preta do samba... não
quero a preta do esquenta... não quero a preta do funk... NÃO... eu quero
OUtro tipo de mulher negra sendo retratada na televisão...
notar que Dandara direciona seu desabafo para o idealizador da minissérie “Sexo e
as Negas”, Miguel Falabella, ao qual ela intimamente chama Miguelito, com certo
tom de crítica. Dandara sinaliza em sua performance discursiva de raça, através dos
índices linguísticos evidenciados pelo verbo quero, presente do indicativo, pelos
índices linguísticos outras referências e outro tipo de preta na televisão, pelo não,
advérbio de negação, pelas referências e predicações preta do pagode, preta do
samba, preta do esquenta e preta do funk, conotando uma exigência e proposição
de Dandara sugerindo que a TV retrate a mulher negra em condições que a
valorizem. Isto pode ser percebido pelos índices linguísticos indicados pelos
modalizadores epistêmicos eu quero outro tipo de mulher negra sendo retratada na
televisão.
Por conseguinte, por meio dos índices linguísticos mencionados aqui,
observa-se que as performances discursivas de Dandara são de questionar a
desvalorização das mulheres negras ao serem representadas pelos programas de
televisão. Outra performance discursiva, observada pelos usos dos índices
linguísticos quero outro tipo de preta na televisão, não a preta do pagode, não a
preta do funk, é de uma mulher negra, segura, exigente e conhecedora de que as
mulheres negras podem ocupar outros espaços e trabalhar em carreiras de
prestígio. Aqui Dandara aciona as ordens de indexicalidade de novas
representações para as mulheres negras, de contestação da única forma de retratar
essas mulheres. Verifica-se novamente uma ordem de indexicalidade de
comparação entre a mulher preta e a mulher negra, a primeira construída como
aquela que ocupa espaços estereotipados pela mídia, e a segunda como aquela que
tem a possibilidade de ocupar novos espaços.
Já no excerto abaixo, Dandara ressalta não ter televisão por não se
ver retratada nos programas, o que pode ser constatado através dos índices
linguísticos aliás, expressão que indica um complemento ao que já foi exposto, e
pelas frases é por isso que eu não tenho TV e meus amigos todos sabem disso. Por
meio dos descritores metapragmáticos na boa, percebe-se que Dandara faz
bastante uso da linguagem coloquial do meio carioca, não se preocupando com
termos complexos e sem dar muita atenção à gramática, como já mencionamos.
Dandara ainda afirma que, como mulher negra, não se vê retratada em nenhum
programa, justificado pelo índice linguístico modalizador epistêmico porque, eu e
me, pronome pessoal, não, advérbio de negação, vejo, verbo presente do indicativo,
64
retratada, verbo transitivo que indica também representada, e pela frase em nenhum
desses programas.
Aliás... é por isso que eu não tenho TV... né? já falei... meus amigos todos
sabem disso... porque... eu não/não me vejo retratada em nenhum desses
programas... então... na boa...
Na sua fala final ela se coloca como preta, mas usa o termo quadril e
não o termo bunda, como mencionado nos índices linguísticos anteriores para se
referir à mulher preta, sinalizando que não faz uso do corpo para ganhar dinheiro.
Aqui ela aciona, através dos índices linguísticos mencionados, a ordem de
indexicalidade de comparação entre a mulher preta, como alguém que passa o
tempo sambando, e a mulher negra, como alguém que trabalha.
Quando Butler (2000) aborda o sujeito abjeto (o diferente), o que se
impõe contra as normas regulatórias, esse sujeito é então considerado uma ameaça
a essas normas, ou seja, vai contrariar uma sociedade normativa. Nesta perspectiva,
podemos constatar que Dandara age assim tentando desestabilizar essa
legitimidade de inferiorização que é dada aos corpos ébanos, e lutando para
rearticular essas normas sociais que colocam as mulheres sempre em situações de
desprestígio, que causam sofrimentos. Podemos dizer então, de acordo com as
teorias butlerianas, que Dandara é um corpo que emerge e que tem peso crítico.
Por meio dos índices linguísticos mencionados, a autora do vídeo mobiliza as ordens
de indexicalidade de que nem todo mulher negra dança para trabalhar.
Percebe-se, também, que Dandara sinaliza um distanciamento das
performances identitárias padronizadas da mulher negra, como por exemplo, ela é
construída não como a negra da favela, ela potencializa – por meio das
características apresentadas do cenário – que se orgulha da profissão, sendo uma
referência positiva de mulher negra para a sua audiência, “as mulheres negras
65
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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ANEXOS
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ANEXO A
ANEXO B
Racismo não é polêmica, muito menos rancor ou falta de humor. Mais que ninguém, que se pensa um de -
fensor dos direitos de seus pares negros e portanto um aliado na luta contra o racismo, deveria saber dis -
so. Deveria saber também que cogitar tal hipótese e ainda enumerar amigos negros para se defender, é vi -
ver num mundo tal de privilégio onde se pode rebater a crítica dizendo que as vozes de mulheres negras
são apenas controvérsia, ou fazer um grande esforço para esconder o próprio racismo. Quem sabe os
dois.
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Ah! Branco, dá um tempo! Você diz que “dói” ver luta de seus colegas negros, menosprezados e invisibili -
zados por sua cor. No caso da mulher negra, tudo se agrava. Você certamente tem ciência das recentes e
tristes notícias sobre Neuza Borges, uma das maiores atrizes que temos, mas que por seu lugar de mulher
negra não encontra lugar na televisão brasileira. Vive na carne a falta da carne em seu prato porque a pró-
xima novela não acontecerá tão cedo. Vai depender da “boa vontade” de alguém, não do seu talento.
Você me pergunta se o problema é o sexo ou “as nega”, querendo desacreditar nossas críticas fundamen -
tadas não em pré-julgamento, mas em fatos veiculados na mídia. Notícias essas que agora dão conta que
de repente a Globo, antes tão entusiasmada com seu projeto, parece que já não está tão feliz assim. Você
argumenta que se trata de uma prosódia pura e simplesmente. Alega que o título da série veio de uma mu -
lher negra. Aliás, me pergunto se essa mesma mulher recebeu os devidos créditos e bufunfa por sua cola-
boração já que foi descrita por você como nada mais que um estereótipo, alguém que não merece nome,
muito menos sobrenome.
Tal expressão transforma o corpo da mulher negra em peça, como eram chamados os escravizados, a ser
consumida por uma sociedade racista. Nos coloca no lugar de mercadoria de segunda mão que não rece -
berá o mesmo tratamento da carne branca e delicada, aquela que não é “suas nêga”. A expressão é embu-
ída não apenas de pensamento escravocrata, mas também de machismo, cujas consequências sentimos
na pele por sermos mulheres negras. Trata-se portanto de uma dupla violência que categoriza mulheres de
acordo com sua cor de pele, qualidade que determinará qual o valor e o lugar que têm.
Ainda sobre o nome da série, temo que muitas pessoas não saibam a diferença entre um adjetivo racista e
um adjetivo comum. Na Bahia, nego e nega tem conotações diferentes das que tem em Recife, por exem-
plo. E dependendo do uso da frase, do tom com que se fala, de quem recebe e de quem envia a mensa -
gem, você ofende ou elogia. No entanto, a construção “não sou tuas nega” não permite outro significado
possível que não o racismo num contexto hediondo de 350 anos de escravização. E se alguém perpetua
adjetivo racista, que nome isso deve ter? Ah! Branco, me diga você!
Sua idéia, aos olhos poucos atentos ou interessados apenas em gerar lucro, pode até parecer de grande
monta. Porém, está longe de gerar visibilidade ou dignidade. Aliás, exatamente o contrário. Como quase
sempre acontece com literatura e dramaturgia feita por brancos sobre negros, nos trata como simples obje-
to de estudo, algo que pode ser manipulado e observado justamente como você faz, nos ensina a profes -
sora Lígia Fonseca Ferreira. Nada mais é que negrismo e não negritude, como tem insistido o escritor e
jornalista Oswaldo de Camargo.
Sim, estou dizendo com todas as letras que quem deve escrever para o negro e pelo negro deve ser ele
mesmo, não uma pessoa branca. Chame isso de racismo reverso se quiser. Para gente o nome disso é vi -
sibilidade, esta sim capaz de nos ter algum benefício, com poderes para mudar o modo como seremos re -
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tratadas na próxima novela, na próxima minissérie. Sem isso, nada mudará, seguiremos sendo uma socie-
dade estruturalmente racista e machista onde a mulher negra nada mais é que um estereótipo para racista
se divertir ou entreter.
Uma sociedade em que nós, mulheres negras, não somos protagonistas nem mesmo num seriado a quem
damos o nome. Sim, as notícias têm mudado, mas as primeiras davam conta de uma branca como a atriz
principal. Ela que, atrás de um balcão de bar, vai nos observar como animais num zoológico, ela quem fala
em nosso lugar. Nossa história, sofrimento e capacidade de discursar sobre nós mesmas são meros deta-
lhes. A narradora da trama, nesse caso narrador, é alguém isento desse mesmo sofrimento. Não é boba-
gem, nem caretice, nem ditadura do politicamente correto como alguns vão afirmar. É critica e zelo por
nossa memória e existência.
Você argumenta que “um programa que refletisse um pouco a dura vida daquelas pessoas, além de em-
pregar e trazer para o protagonismo mais atores negros” seria desejável. E na verdade seria mesmo. Des -
de que escrito, produzido e protagonizado por negros. Não por alguém que nem se deu ao trabalho de cre-
ditar a mulher negra que deu o título à série. Esse detalhe é causa e ao mesmo tempo consequência de to -
dos os outros: a fetichização de nossa sexualidade e corpos, a ênfase nos estereótipos, a violência simbó-
lica que a série representa.
Como pretender que nos desumanizar é visibilidade? Desde quando nos tratar como a carne mais barata
do mercado como canta Elza, a Soares, é ser aliado? Ah! Branco, dá um tempo! Suas palavras apenas en-
fatizaram suas intenções, a cada parágrafo tivemos a certeza de que nossas críticas são fundamentais e
muito bem fundamentadas, por isso incomodam tanto. Seguiremos denunciando o racismo e o machismo
daqueles que se fiam no privilégio para destilar veneno e cometer tais violências contra a mulher negra.
Isso não é sobre sexo. É sobre denunciar um sistema perverso que exclui as mulheres negras de todas as
esferas e nos torna menos que humanas. Sistema esse que também incide sobre o homem negro, alvo pri-
meiro e preferencial da violência policial e da hipersexualização do seu corpo: o “homem do pau grande” é
resultado da brutal animalização do corpo negro, sempre pronto pro sexo. Onde está a crítica desse siste -
ma na televisão brasileira? De certo não está em seu seriado, muito menos em sua fala.
Repudiamos suas palavras porque fomos estupradas nas senzalas e continuamos a ser na dramaturgia
feita por brancos sobre nós através de imagens estereotipadas em seriados, novelas e minisséries. Esse é
um dos mecanismos que a aliança entre o racismo usa para se perpetuar: hipersexualizando a mulher ne-
gra que se torna desprezível para outros papéis sociais. Você fala da mulata quente, gostosa, fogosa. So-
mos muito mais que isso. Precisamos ser mostradas como as mulheres do dia-a-dia, que trabalham, dan -
çam, fazem festa e querem sexo sim, mas que não são apenas isso.
Não estamos aqui menosprezando nem dizendo que não somos camareiras, domésticas, cabeleireiras:
também somos trabalhadoras domésticas, cuidadoras. Mas sobretudo, com as nossas conquistas e a nos -
sa luta, galgamos lugares, posições: somos diretoras, bailarinas, advogadas, publicitárias, escritoras, pro-
fessoras e médicas. Onde elas estão no seu seriado? Será que elas não moram em Cordovil? Será que
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elas não estão nas periferias? Duvido muito. NÃO aceitaremos mais ser caricaturas! Por isso a critica vai
além do nome da série, o que por si só é deveras problemático.
Ah! Branco, dá um tempo! Nem queremos crer que você está se comparando e recorrendo a Spike Lee
para credibilizar seu trabalho. Não, nos recusamos. E não é somente porque Spike Lee é preto, é porque
não vemos nada, absolutamente nada de crítica racial em “Sexo e as Nega” como vemos em “Faça a coisa
certa”. O gueto é paisagem, mas também é a vida, é a teia, é o sangue do autor que não está só observan -
do e contando sua versão dos fatos: Spike Lee está no gueto, ele é o gueto. E não alguém que não é “as
nega”, alguém que pretende que nosso único objetivo de vida é ter um parceiro sexual.
E por favor, respeite nossa memória e retire suas palavras ao nos chamar de capitães do mato. Não esta-
mos perseguindo as atrizes negras desse seriado, muito menos as mulheres reais que são representadas
pelas suas personagens. Quem conhece um pouquinho de história e dela faz um uso bem intencionado,
sabe que existem outras versões além daquela em que fomos escravizados sem lutar, viemos sem resis-
tência num navio negreiro. Não se faça de desentendido, quem criou capitães do mato não foram os pró-
prios negros.
Acusar alguém de “se tornar capitão do mato” é algo muito mais complexo do que formular uma frase. É
impossível que sejamos algozes de nós mesmos, isso é falácia. Retire sua fala e reflita sobre o que signifi-
ca nosso boicote e critica que têm como alvo um modelo e um sistema historicamente racistas, em que
nem o direito de falar, contar nossas próprias histórias e tecer criticas nós temos. Repito: isso não é uma
caçada ao povo negro nem à mulher preta e pobre. É sobre o racismo enrustidamente manifesto, sem nem
se sentir ou admitir.
Manifestamos profunda oposição a esse mundo, de quem bate e finge entender a dor daquele que apanha.
Esse mundo onde racismo agrada, é piada pronta para gerar audiência e naturalizar o racismo. Estamos
fartas do seu discurso, de programas que usam blackface, que transformam toda mulher negra em empre -
gada doméstica ou mulata globeleza. Nossos corpos não são espaço para seu deleite, divertimento, lucro
ou usufruto. Nós somos mulheres negras de pena e teclado, ciosas e autoras de nossos próprios enredos
e objetivos de vida.