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UNIVERSIDADE DE FRANCA
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
MESTRADO EM LINGUÍSTICA

AS PERFORMANCES DISCURSIVAS E AS ORDENS


DE INDEXICALIDADE DE GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE
NO DESABAFO DE UMA MULHER NEGRA VEICULADO
NO YOUTUBE

Romilda Pinto da Silveira

Franca
2016
2

ROMILDA PINTO DA SILVEIRA

AS PERFORMANCES DISCURSIVAS E AS ORDENS


DE INDEXICALIDADE DE GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE
NO DESABAFO DE UMA MULHER NEGRA VEICULADO
NO YOUTUBE

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Universidade de Franca,
como exigência parcial para a obtenção
do título de Mestre em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Glenda Cristina


Valim de Melo

FRANCA
2016
3

Catalogação na fonte – Biblioteca Central da Universidade de Franca

Silveira, Romilda Pinto da.


S591p As performances discursivas e as ordens de indexicalidade de
gênero, raça e sexualidade no desabafo de uma mulher negra
veiculado no YouTube; Romilda Pinto da Silveira ; orientador: Glenda
Cristina Valim de Melo. – 2016
78 f. : 30 cm.

Dissertação de Mestrado – Universidade de Franca


Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestre em Linguística

1. Linguística – Gênero. 2. Performances discursivas. 3. Ordem


de Indexicalidade. 4. Raça – Sexualidade. 5. Teorias Queer. I.
Universidade de Franca. II. Título.

CDU – 801.553:82-5
4
5

DEDICO este trabalho à minha mãe Zilda, pelo carinho, apoio,


e por ter me ensinado a nunca desistir de meus objetivos. E à
memória do meu pai, Messias Pinto da Silveira.
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AGRADECIMENTOS

Infinitas graças, primeiramente, a Deus;


à orientadora desta dissertação, Profa. Dra. Glenda Cristina Valim de
Melo, pela paciência, carinho, dedicação, motivação e amizade, por não desistir de
suas orientandas, pela presença constante e profissionalismo;
ao IFSULDEMINAS pela motivação e apoio para a qualificação;
às professoras e aos professores do Mestrado em Linguística;
às funcionárias e aos funcionários da Pós-Graduação Stricto Sensu;
aos membros da banca, Dra. Joana Plaza Pinto e Dra. Luciana Garcia
Manzano;
a toda a minha família, por compreender meus momentos de ausência,
cansaço e ansiedade durante a realização deste trabalho; em especial, a Milena
Guimarães da Silveira Nobres, minha afilhada, pelo apoio na configuração de
minhas apresentações;
às colegas do Mestrado, pelo companheirismo e palavras de incentivo,
em especial, Adriana, Érika, Juliana e Valéria;
às amigas e aos amigos que estiveram ao meu lado nos momentos de
fragilidade;
às amigas bibliotecárias, Andréia Damasceno, Mirtes Soares e Maria
Aparecida Campos, pelo apoio, incentivo e carinho;
a todas as mulheres negras brasileiras.
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MULHERES NEGRAS

Enquanto o couro do chicote cortava a carne,


A dor metabolizada fortificava o caráter;
A colônia produziu muito mais que cativos,
Fez heroínas que pra não gerar escravos matavam os filhos;
Não fomos vencidas pela anulação social,
Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial;
O sistema pode até me transformar em empregada,
Mas não pode me fazer raciocinar como criada;
Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo,
As negras duelam pra vencer o machismo,
O preconceito, o racismo;
Lutam pra reverter o processo de aniquilação
Que encarcera afros descendentes em cubículos na prisão;
Não existe lei maria da penha que nos proteja,
Da violência de nos submeter aos cargos de limpeza;
De ler nos banheiros das faculdades hitleristas,
Fora macacos cotistas;
Pelo processo branqueador não sou a beleza padrão,
Mas na lei dos justos sou a personificação da determinação;
Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador
Falharam na missão de me dar complexo de inferior;
Não sou a subalterna que o senhorio crê que construiu,
Meu lugar não é nos calvários do brasil;
Se um dia eu tiver que me alistar no tráfico do morro,
É porque a lei áurea não passa de um texto morto;

Não precisa se esconder segurança,


Sei que cê tá me seguindo, pela minha feição, minha trança;
Sei que no seu curso de protetor de dono praia,
Ensinaram que as negras saem do mercado
Com produtos em baixo da saia;
Não quero um pote de manteiga ou um xampu,
Quero frear o maquinário que me dá rodo e uru;
Fazer o meu povo entender que é inadmissível,
Se contentar com as bolsas estudantis do péssimo ensino;
Cansei de ver a minha gente nas estatísticas,
Das mães solteiras, detentas, diaristas.
O aço das novas correntes não aprisiona minha mente,
Não me compra e não me faz mostrar os dentes;
Mulher negra não se acostume com termo depreciativo,
Não é melhor ter cabelo liso, nariz fino;
Nossos traços faciais são como letras de um documento,
Que mantém vivo o maior crime de todos os tempos;
Fique de pé pelos que no mar foram jogados,
Pelos corpos que nos pelourinhos foram descarnados.

Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria


É atrair gringo turista interpretando mulata;
Podem pagar menos pelos os mesmos serviços,
Atacar nossas religiões, acusar de feitiços;
Menosprezar a nossa contribuição na cultura brasileira,
Mas não podem arrancar o orgulho de nossa pele negra;
Mulheres negras são como mantas kevlar,
Preparadas pela vida para suportar;
O racismo, os tiros, o eurocentrismo,
Abalam mais não deixam nossos neurônios cativos.

Compositor: Eduardo - Facção Central


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RESUMO

SILVEIRA, Romilda Pinto da. As performances discursivas e as ordens de


indexicalidade de gênero, raça e sexualidade no desabafo de uma mulher
negra veiculado no YouTube. 2016. 78 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade de Franca, Franca.

De acordo com Giddens (1991), a Modernidade Reflexiva é um momento de


reflexividade sobre nós mesmos, uma característica que define a ação humana nas
práticas sociais e nos corpos considerados abjetos tradicionalmente legitimados
pelos ideais modernistas. Esta pesquisa pretende analisar as performances
discursivas de raça, gênero e sexualidade em um desabafo gravado por uma mulher
negra, divulgado no canal YouTube, ao tecer críticas sobre a minissérie de televisão
intitulada “Sexo e as Negas”. Além disso, propõe, especificamente, identificar as
ordens de indexicalidade de raça, gênero e sexualidade mobilizadas nas
performances discursivas de Dandara. Neste estudo, optamos pelo vídeo de uma
mulher negra, advogada e de classe média porque, segundo dados do IBGE, há
poucas mulheres negras ocupando cargos de destaque, pelos quais recebem os
piores salários do mercado já que se situam no nível mais baixo da pirâmide social
(MELO; MOITA LOPES, 2013). Para realizar esta investigação, consideramos a
linguagem como atos de fala performativos na perspectiva de Austin (1962) e
Derrida (1972), que afirmam que ao proferir, produz-se. Derrida acrescenta, ainda,
que os atos de fala performativos ganham a ideia de substância pela iterabilidade e
pela citacionalidade. Embasamo-nos, também, nas concepções de raça, gênero e
sexualidade como construções sociais, históricas, discursivas e performativas
segundo as Teorias Queer (LOURO, 2000; BUTLER, 1990/2014; BARNARD, 2004;
MELO; MOITA LOPES, 2013). Quanto à metodologia, o construto teórico-analítico se
ancora na concepção de ordem de indexicalidade proposta por Blommaert (2010), e
o material de geração de dados é o desabafo de Dandara, em forma de vídeo,
veiculado no YouTube. Para a análise das performances discursivas e das ordens de
indexicalidade, fazemos uso dos índices linguísticos sugeridos por Silverstein
(1985), nos quais foram inseridas as categorias de Wortham (2001). A presente
pesquisa aponta para várias performances discursivas, tais como, mulher negra bem
sucedida, contestadora de estereótipos que inferiorizam as mulheres negras, e
mobiliza diversas ordens de indexicalidade, dentre elas: profissão de prestígio,
referências que inferiorizam a mulher negra, representatividade positiva da mulher
negra.

Palavras-chave: Performances discursivas; Ordem de indexicalidade; Gênero, raça e


sexualidade; Teorias Queer.
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ABSTRACT

SILVEIRA, Romilda Pinto da. As performances discursivas e as ordens de


indexicalidade de gênero, raça e sexualidade no desabafo de uma mulher
negra veiculado no YouTube. 2016. 78 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade de Franca, Franca.

According to Giddens (1991), Reflexive Modernization is a moment of reflexivity


about ourselves, a defining characteristic of human action in the social practices and
in the bodies considered abject traditionally legitimized by modernist ideals. This
research aims to analyze the discursive performances of race, gender and sexuality
in an outburst recorded by a black woman, posted on YouTube channel with the
purpose of criticizing a television miniseries entitled "Sex and the Niggaz". It also
proposes to specifically identify indexicality orders of race, gender and sexuality
mobilized in the discursive performances of Dandara. In this study, we chose the
video of a black woman, a lawyer from the middle class because, according to data
from IBGE (Brazilian Institute of Geography and Statistics), there are few black
women occupying key positions, for which they earn the worst market wages since
they are at the lowest possible level of the social pyramid (MELO; MOITA LOPES,
2013). In order to conduct this research, we consider language as performative
speech acts in the perspective of Austin (1962) and Derrida (1972), who claim that in
uttering, one produces. Moreover, Derrida adds that the performative speech acts
gain the idea of substance by iterability and citationality. We also based ourselves in
the conceptions of race, gender and sexuality as social, historical, discursive and
performative constructs, according to Queer Theories (LOURO, 2000; BUTLER,
1990/2014; BARNARD, 2004; MELO; MOITA LOPES, 2013). As regards to
methodology, theoretical and analytical construct is anchored to the concept of
indexicality order proposed by Blommaert (2010), and the data generation material is
the outburst of Dandara, in video form, broadcasted on YouTube. For the analysis of
discursive performances and indexicality orders of Blommaert (2010), we resorted to
using the linguistic indexes suggested by Silverstein (1985), which included the
categories of Wortham (2001). This research points to several discursive
performances, such as, successful black woman challenging stereotypes that
depreciate black women. It also mobilizes several indexicality orders, such as:
prestigious profession, references that make the black woman inferior, positive
representation of black women.

Keywords: Discursive performances; Indexicality order; Gender, race and sexuality;


Queer Theories.
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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Slogan com as protagonistas da minissérie............... 46

Figura 2 – Imagem de boicote à minissérie.................................. 47

Figura 3 – Hashtag Sexo e as nega não me representa................ 48

Figura 4 – Conclamação para Ato Público................................... 48


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12
1 LINGUAGEM COMO ATO DE FALA PERFORMATIVO............................ 18
2 RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE PELO VIÉS DAS TEORIAS
QUEER....................................................................................................... 25
2.1 TEORIAS QUEER: DESESTABILIZANDO NORMAS................................ 25
2.2 MULHERES NEGRAS: RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE PELA
TEORIA QUEER ........................................................................................ 29
3 METODOLOGIA DA PESQUISA .............................................................. 43
3.1 A WEB: UM ESPAÇO DO HÍBRIDO .......................................................... 43
3.2 CONTEXTO DE PESQUISA ..................................................................... 45
3.3 GERAÇÃO DE DADOS E INSTRUMENTAL TEÓRICO-ANALÍTICO........ 53
4 AS PERFORMANCES DISCURSIVAS E AS ORDENS DE
INDEXICALIDADE DE GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE NO
DESABAFO DE DANDARA...................................................................... 56
4.1 CENÁRIO: PERFORMANCES DISCURSIVAS E ORDENS DE
INDEXICALIDADE...................................................................................... 56
4.2 AS PERFORMANCES DISCURSIVAS E AS ORDENS DE
INDEXICALIDADE NO DESABAFO .......................................................... 58
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 65
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 67
ANEXOS ............................................................................................................ 73
ANEXO A – Transcrição do vídeo desabafo de Dandara................................... 74
ANEXO B – Carta aberta ao senhor Miguel Falabella ....................................... 75
12

INTRODUÇÃO

Na Modernidade Reflexiva (GIDDENS, 1991), o foco das pesquisas


está na reflexividade sobre nós mesmos, uma característica que define a ação
humana nas práticas sociais e na monitoração do comportamento e seus contextos.
Vista como um período de transformação, transição, contestação, mutações,
mudança de pensamento etc. no campo das pesquisas científicas, a Modernidade
Reflexiva – como alguns teóricos no campo das Ciências Humanas e Sociais a
denominam – tem sido cada vez mais reconhecida como a grande
representatividade da linguagem na compreensão da vida social na
contemporaneidade.
Ainda podemos observar que esse período refere-se comumente à
pós-modernidade – em oposição ao tradicional – que em sentido geral corresponde
a estar vivendo uma “nítida disparidade do passado” e “que nada pode ser
conhecido com alguma certeza” (GIDDENS, 1991, p. 45); ou seja, o conhecimento
pode ser revisado através de novas práticas sociais, uma nova geração está sendo
reinventada, segundo proposta de Giddens (1991). Contudo, nos tempos atuais é
desafiador pensar novas formas que colaborem com essas práticas sociais na era
da globalização “que trouxe à tona diversas transformações na vida pessoal, criando
novas demandas e ansiedades” (SILVA JUNIOR, 2014, p. 2).
Nesse contexto, questões como raça, gênero e sexualidade têm sido
discutidas nas diversas mídias. No Brasil, estamos presenciando o crescimento
constante de movimentos sociais negros que lutam pela valorização dos/as
negros/as, uma gama de discussões online sobre racismo e diversas demonstrações
de repúdio a insultos raciais. Citamos como exemplo o caso da jornalista da TV
Globo Maria Júlia Coutinho, a Maju, que foi vítima de comentários preconceituosos;
ou ainda, uma jovem negra que postou sua foto com o namorado branco em uma
rede social e foi ofendida com comentários racistas na web. Podemos citar dois
casos recentes de personalidades da TV, como o de Taís Araújo, atriz, vítima de
racismo nas redes sociais, sendo atacada por frases ofensivas como: “Quando vai
13

voltar para a senzala?”, “negra escrota”, “cabelo de esfregão” e “pensava que o


Facebook era para humanos e não para macacos” (PRAGMATISMO POLÍTICO,
2015, p. 1)1; e de Sharon Menezes, atriz, que recentemente sofreu ataques racistas
por usuários com perfis falsos no Facebook, com a montagem de uma foto da artista
com o rosto de um macaco, e a seguinte legenda: “Qualquer semelhança é mera
coincidência” (CORREIO BRASILIENSE, 2015, p. 1)2. Mais recentemente, de acordo
com agência de comunicação criativa na web, o Coletivo Metranca (2016, p. 2),
houve também o caso da cantora joinvilense Da Lou, que, ao postar uma foto sua
com outro cantor em seu perfil no Facebook, recebeu de um de seus seguidores o
seguinte comentário: “Axei que era um zoológico”. Casos como estes são
observados cotidianamente na vivência de muitos/as negros/as (crianças,
adolescentes e/ou adultos) em diversos contextos. A penalidade para tais ofensas,
agressões e discriminação é a Lei 7.716, que pune o racismo e tem sido cada dia
mais apropriada por celebridades ou pessoas comuns. As questões de raça, gênero
e sexualidade são também abordadas na TV, como pode ser observado na
minissérie “Sexo e as Negas”, um programa de televisão exibido pela TV Globo no
período de setembro a dezembro de 2014, que propiciou debates fervorosos nas
redes sociais em virtude do tema abordado.
Assim, elucidando brevemente a gênese das minisséries e suas
evoluções na década de 1980, mais precisamente na emissora Globo de Televisão,
ocorreu a primeira transmissão de uma minissérie. Estruturalmente, essas
produções têm características específicas – por exemplo, menor quantidade de
capítulos se comparada à transmissão de uma novela –, não têm duração
estipulada, podem ter inúmeras temporadas, levam conhecimento cultural à
sociedade (em relação à história do país, por exemplo), o uso da linguagem é mais
coloquial, a transmissão ocorre, em geral, após às 22h, e abordam temáticas
variadas, como drogas, traição, violência, questão racial, relacionamentos
homoafetivos etc., (POMA; VIÉGAS, 2009). De acordo com Pallotini (1996, p. 71), “A
minissérie é obra fechada, de autor e não sofre interferências das oscilações da
1
PRAGMATISMO POLÍTICO. Vítima de racismo, Taís Araújo é ironizada por ‘colega’ da
Globo. Disponível em:
<http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/11/vitimaderacismotaisaraujoe
ironizadaporcolegadaglobo.html.>. Acesso em: 1 fev 2016.
2
CORREIO BRASILIENSE. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/
diversao-e-arte/2015/12/07/interna_diversao_arte,509592/atriz-sheron-menezzes-sofre-ata-
ques-racistas-nas-redes-sociais.shtml>. Acesso em: 01 fev 2016.
14

audiência como ocorre com a telenovela”, ou seja, não passa por modificações
enquanto estiver no ar – uma característica, portanto, que a difere das demais
teleficções brasileiras, como a novela, que é uma obra em aberto, passível de
alterações no decorrer dos capítulos, e cujo sucesso ou insucesso dependerá do
êxito de audiência ou de outras circunstâncias. Ainda de acordo com a autora,

[...] torna-se evidente pelas próprias dimensões de ambas que a minissérie


exige menos conteúdo ficcional, basta-se com histórias mais simples e mais
curtas, com menor número de personagens, de sets e de complicações. Em
comparação ao grande romance de folhetim que seria a telenovela, a
minissérie é um romance curto, uma símile da novela literária, se podemos
utilizar essa comparação. (PALLOTINI, 1996, p. 72)

Entretanto, as minisséries recentes apresentam um novo estilo de


abordagem: antes se constituíam em adaptações criadas para manter uma conexão
com as obras literárias, ao passo que a minissérie “Sexo e as Negas”, transmitida no
dito “horário nobre” da emissora Globo e exibida entre 16 de setembro de 2014 e 16
dezembro de 2014, em 13 episódios, tendo Miguel Falabella como idealizador, levou
ao telespectador uma discussão próxima à realidade da vida cotidiana de alguns
grupos sociais brasileiros – quatro mulheres negras, amigas. Como protagonistas, o
programa trouxe atrizes e atores negros/as 3 encenando performances identitárias do
cotidiano de algumas comunidades cariocas.
A minissérie “Sexo e as Negas” girou em torno do cotidiano de quatro
mulheres negras amigas, do subúrbio carioca Cidade Alta de Cordovil,
representadas pelas personagens Zulma, camareira; Lia, recepcionista em uma
churrascaria; Soraia, cozinheira de uma família no Leblon, e Tilde, desempregada,
vivendo de “bicos” e trabalhos temporários. A história das quatro amigas é narrada
pela personagem Jesuína (o elo entre elas), dona de um bar e da rádio local. Em
alguns episódios, a história é narrada pelo próprio idealizador da minissérie, Miguel
Falabella. Segundo Falabella, a minissérie foi inspirada no seriado novaiorquino
“Sex and the city”, cujas protagonistas são quatro mulheres com dramas próximos
aos das mulheres de Cordovil. Por outro lado, segundo Borgesi (2014, p. 1),
“Falabella escolheu parodiar a matriz norte-americana sem o glamour das classes
abastadas”, já que em “Sex and the city” as personagens são bem-sucedidas,
brancas, de classe média/ média alta, com carreiras como advogada, escritora etc.;
andam sempre bem vestidas com roupas de grife; e o cenário é Manhattan, contexto
3
Adotamos o uso “os/as” neste trabalho para indicar as diferentes possibilidades de gênero e a
sua inclusão.
15

bem diferente da comunidade de Cordovil.


Diferentemente da série americana, ao final de cada episódio era
apresentado ao público um clipe com as quatro atrizes cantando. Vale ressaltar que,
de acordo com Falabella, elas não são cantoras na minissérie, apenas se
materializam em sonho como as “Marvelletes” (grupo vocal composto por quatro
mulheres negras norte-americanas na década de 60). A minissérie provocou uma
reação negativa na mídia e gerou alguns protestos na rede – críticas, denúncias,
debates etc. – em virtude dos significados estereotipantes e estigmatizantes
vinculados às personagens protagonistas da minissérie – mulheres negras
construídas para reforçar os estereótipos negativos de tais mulheres, a começar
pelo título.
Nessa direção, ao discutirmos a questão racial, tema central desta
pesquisa, e em tempos de Modernidade Reflexiva, buscamos refletir sobre os
discursos que inferiorizam e desqualificam corpos negros considerados à margem
pela sociedade brasileira. Segundo Melo e Moita Lopes (2013, p. 241), a
propagação e os efeitos desses discursos “são perceptíveis nas práticas sociais”.
Neste sentido, tendo como foco a interseccionalidade entre raça,
gênero e sexualidade, o objetivo geral do presente estudo é analisar as
performances discursivas de raça, gênero e sexualidade em um desabafo gravado
por uma mulher negra e divulgado no YouTube, ao tecer críticas sobre a minissérie
de televisão intitulada “Sexo e as Negas”. Como objetivo específico, pretende-se
identificar as ordens de indexicalidade de raça, gênero e sexualidade mobilizadas
nas performances discursivas desta mulher negra. Desse modo, a presente
investigação pretende responder às seguintes questões de pesquisa:
1. No texto desabafo, veiculado no YouTube, que performances
discursivas de raça, gênero e sexualidade são observadas?
2. No texto em análise, que ordens de indexicalidade de raça, gênero e
sexualidade são mobilizadas nas performances discursivas
observadas?
Neste estudo, optamos por analisar o desabafo em forma de vídeo de
uma mulher negra, advogada e de classe média porque, conforme Ribeiro (2009), a
propagação do machismo e do racismo produz diversos “estigmas de objeto sexual,
serviçal e subserviência” (p. 89) sobre essas mulheres; e, segundo dados do IBGE,
há poucas mulheres negras que ocupam cargos de destaque (MELO; MOITA
16

LOPES, 2013). Além disso, a personagem do desabafo teve este vídeo


compartilhado em diferentes redes sociais, alcançando mais de dois milhões de
visualizações, como veremos ao longo deste estudo, tornando-se uma voz contrária
aos discursos estereotipados apresentados na minissérie aqui em questão. Percebe-
se, portanto, a necessidade de um estudo aprofundado sobre as questões de raça,
gênero e sexualidade, pela relevância e para a valorização das mulheres negras, e
por proporcionar maior visibilidade e legitimidade àquelas que cotidianamente
rompem barreiras para serem reconhecidas como sujeitos sociais.
Para realizar esta investigação, consideramos a linguagem como ato
de fala performativo na perspectiva de Austin ([1962]1990) e Derrida ([1972]1991),
os quais afirmam que, ao proferir, produz-se. Derrida ainda acrescenta que tais atos
de fala performativos ganham a ideia de substância pela iterabilidade e
citacionalidade, como veremos no capítulo 1.
Embasamo-nos, também, nas concepções de raça, gênero e
sexualidade como construções sociais, históricas, discursivas e performativas,
segundo as Teorias Queer (LOURO, 2000; BUTLER, 1990; BARNARD, 2004;
MELO; MOITA LOPES, 2013). Elas contestam os atos de fala performativos que
trazem sofrimento humano. Em outras palavras, tais teorias propõem desestabilizar
as regras, normas e práticas reguladoras, e podem ser entendidas como de
oposição e contestação, ou seja, são teorias que se colocam contra a normalização.
De acordo com Louro (2001), “queer representa claramente a diferença que não
quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais
transgressiva e perturbadora” (p. 546). São, portanto, teorias que criticam também
binarismos e essencialismos nas práticas sociais.
Neste sentido, a raça é compreendida como uma construção histórica,
social e performativa nas perspectivas das Teorias Queer. Segundo Sullivan (2003),
ser negro/a, branco/a ou amarelo/a, por exemplo, seria resultado dos diversos atos
de fala performativos a que os sujeitos são cotidianamente expostos desde seu
nascimento, ou seja, os sujeitos são sociais e constituídos performativamente.
Levando em conta a concepção de linguagem como performance proposta por
Austin ([1962]1990) e Derrida ([1972]1991) e os conceitos de iterabilidade e
citacionalidade postulados por este último ([1972]1998), a construção discursiva e
performativa de raça ocorre como efeito dos atos de fala performativos da
escravidão, da abolição, de democracia racial e miscigenação (GONZALES, 1984;
17

HENRIQUE, 2007; GIACOMINI, 2012; PACHECO, 2013). Essa questão é vista por
nós como interseccionada por gênero, raça e sexualidade.
Quanto à metodologia de pesquisa, este estudo se caracteriza como de
cunho etnográfico virtual na perspectiva de Hine (2000, 2005), e o instrumento
etnográfico é o desabafo de uma mulher negra criticando a minissérie “Sexo e as
Negas”, disponibilizado no YouTube em 14 de setembro de 2014. Para análise das
performances discursivas e das ordens de indexicalidade, usaremos aqui os índices
linguísticos de Silverstein (2003), caracterizados pelas pistas indexicais de Wortham
(2001).
Esta dissertação está organizada em quatro capítulos. O capítulo 1
abordará teorizações sobre linguagem como atos de fala performativos. O capítulo 2
tratará das questões de raça, gênero e sexualidade na concepção das Teorias
Queer, englobando uma perspectiva que contesta convenções sedimentadas e
naturalizadas. No capítulo 3 serão apresentadas a metodologia e o contexto de
pesquisa. O capítulo 4 incluirá a análise das performances discursivas e as ordens
de indexicalidade no desabafo da mulher negra no vídeo do YouTube. Por fim,
apresentaremos as considerações finais.
18

1 LINGUAGEM COMO ATO DE FALA PERFORMATIVO

Para realizar esta investigação, consideramos a linguagem como atos


de fala. Neste capítulo, discutiremos os atos de fala performativos e constatativos,
as condições especiais e a articulação dos três níveis dos atos de fala performativos
na perspectiva austiniana. Trataremos, ainda, dos conceitos de iterabilidade e
citacionalidade nas concepções de Derrida ([1972]1991) e, por fim, de algumas
contribuições de Butler (1997) para a questão da concepção de linguagem discutida
aqui.
A proposta da linguagem como ato de fala é apresentada por John
Langshaw Austin, que nasceu na Inglaterra em 1911 e faleceu em 1960. Estudou
Letras Clássicas na Universidade de Oxford, e seus seminários informais exerceram
grande influência naquela instituição4. Austin propôs, de maneira inédita, a questão
da linguagem cotidiana em uso. Após sua morte prematura aos 48 anos, houve uma
disseminação rápida de suas ideias por meio das anotações de seus alunos e
colegas, que tiveram de recompô-las em virtude da complexidade do pensamento
austiniano.
Segundo Ottoni (2002), Austin tornou-se um dos pensadores mais
influentes na discussão sobre a linguagem cotidiana, e seu olhar sobre a questão
rompeu com a linguística e a filosofia tradicionais. Por sua originalidade filosófica, foi
considerado o mais importante filósofo de Oxford. No período conhecido como pós-
estruturalista, um de seus objetivos foi estudar o funcionamento da linguagem, a
partir de dificuldades com o seu uso e antes de estabelecer modelos lógicos,
modelos ideais que dessem conta de questões filosóficas (OTTONI, 2002). Portanto,
a preocupação de Austin não era a de estudar uma linguagem ideal; seu interesse
maior concentrava-se em fortalecer os estudos das complexidades geradas pela
linguagem ordinária.
Na apresentação da obra Quando Dizer é Fazer (AUSTIN, [1962]1990),
Marcondes (1990, p. 7) situa o leitor sobre as teorias “dentro da chamada 'virada
linguística', característica de grande parte da atividade filosófica de nosso século”.
4
Conf. nota bibliográfica (AUSTIN, [1962]1990, p. 16).
19

Marcondes expõe, ainda, as propostas austinianas sobre as teorias da linguagem e


da análise filosófica da linguagem ordinária. Para Austin ([1962]1990), a linguagem
não deve ser considerada em abstrato; isto é, sendo ela uma prática social,
expressões podem ser reexaminadas de acordo com o contexto em que estão
sendo empregadas; assim, vale analisar outras relações, outros aspectos e outras
situações em que estão atuando. Marcondes ainda acrescenta:

Podemos afirmar, então, que quando analisamos a linguagem nossa


finalidade não é apenas analisar a linguagem enquanto tal, mas investigar o
contexto social e cultural no qual é usada, as práticas sociais, os
paradigmas e valores, a “racionalidade”, enfim, desta comunidade,
elementos estes dos quais a linguagem é indissociável. A linguagem é uma
prática social concreta e como tal deve ser analisada. Não há mais uma
separação radical entre “linguagem” e “mundo”, porque o que consideramos
a “realidade” é constituído exatamente pela linguagem que adquirimos e
empregamos. (MARCONDES, apud AUSTIN, [1962]1990, p. 10)

Ainda de acordo com Marcondes (apud AUSTIN, [1962]1990), a


linguagem como ação e forma de atuação sobre o real não é tão somente uma
representação, mas suplanta barreiras entre linguagem e mundo. Esses novos
paradigmas partem da nova visão proposta por Austin ao considerar que não há
fronteiras entre linguística e filosofia, sendo elas, portanto, indissociáveis.
Elucidando um pouco mais o método de análise do contexto de
práticas de uso linguístico cotidiano, Austin ([1962]1990, p. 10) afirma que:

Quando examinamos o que se deve dizer e quando se deve fazê-lo, que


palavras devemos usar em determinadas situações, não estamos
examinando simplesmente palavras (ou seus “significados” ou seja lá o que
isto for) mas sobretudo a realidade sobre a qual falamos ao usar estas
palavras – usamos uma consciência mais aguçada das palavras para
aguçar nossa percepção [...] dos fenômenos.

Inicialmente, Austin ([1962]1990, p. 21), em sua I conferência sobre os


atos de fala performativos e constatativos, considerava como um “fenômeno a ser
discutido” as concepções distintas entre filósofos e gramáticos sobre sentenças e
declarações – de um lado, os filósofos discutiam que as declarações tinham
somente a função “de ‘descrever’ um estado de coisas, ou declarar um fato, o que
deveria fazer de modo verdadeiro ou falso” (p. 21). Por outro lado, os gramáticos
“[...] indicaram com freqüência que nem todas as sentenças são (usadas para fazer)
declarações [...]” (p. 21). Em vista disso, Austin argumentava não ter sido dada a
atenção devida às dificuldades apresentadas por esse fenômeno. Surgiram,
portanto, dúvidas ao longo de sua argumentação. Em minuciosa análise, Austin
20

explica que filósofos e gramáticos haviam aceitado sentenças sem limites, e que
muitas declarações eram apenas pseudo declarações.
Em outro momento, ainda de acordo com Austin, surgiram
questionamentos entre os filósofos – se tais declarações seriam mesmo pseudo
declarações, considerando-se que alguns proferimentos tinham a função de
“registrar ou transmitir informação direta acerca de fatos” (p. 22). Austin ([1962]1990,
p. 22), então, argumenta em favor do reconhecimento de certas palavras

[...] que causam notória perplexidade quando inseridas em declarações


aparentemente descritivas não destinam a indicar algum aspecto adicional
particularmente extraordinário da realidade relatada, mas são usadas para
indicar (e não para relatar) as circunstâncias em que a declaração foi feita,
as restrições às quais está sujeita ou a maneira como deve ser recebida ou
coisas desse teor.

Diante disso, deixar de considerar essas proposições seria uma falácia


“descritiva”, mas Austin recusa esse termo por considerá-lo muito específico; assim,
propõe que “nem todas as declarações verdadeiras ou falsas são descrições, razão
pela qual prefiro usar a palavra ‘constatativa’” (p. 23). O estudioso ([1962]1990, p.
23) conclui então que as incertezas filosóficas tradicionais “surgiram de um erro – o
erro de aceitar como declarações factuais diretas proferimentos que ou são sem
sentidos [...] ou então foram feitos com o propósito bem diferente”. Austin
([1962]1990, p.22) não teme dizer que tais concepções produziram uma “revolução
em filosofia”, propondo-nos considerar que a enunciação de uma ação é realizada
pela linguagem, sendo, portanto, performativa.
Nessa direção, Austin ([1962]1990, p. 23) abre uma discussão com o
objetivo de examinar as “expressões que se disfarçam”. Em uma primeira fase, ele
toma alguns proferimentos como exemplos e que terão naturalmente “verbos usuais
na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa” (p. 24). São
eles: “aceito”, “batizo”, “lego” e “aposto”. Sobre esses verbos, o estudioso esclarece
“que nada ‘descrevam’ nem ‘relatem’, nem constatem, e nem sejam ‘verdadeiros ou
falsos’” (p. 24). Assim, ele argumenta que “o proferimento da sentença é, no todo ou
em parte, a realização de uma ação, que não seria normalmente descrita consistindo
em dizer algo” (p.24). Na visão austiniana, ao enunciarmos estamos agindo, ou seja,
uma ação está sendo realizada e não se está somente descrevendo algo. Para
melhor entendimento, apresentamos exemplos clássicos aplicados em algumas
sentenças (AUSTIN, [1962]1990, p. 24):
21

(a) ‘Aceito esta mulher como minha legítima esposa’ – do modo que é
proferido no decurso de uma cerimônia de casamento. (b) ‘batizo este navio
com o nome de Rainha Elizabeth’ – quando proferido ao quebrar-se a
garrafa contra o casco do navio. (c) ‘Lego a meu irmão este relógio’ – tal
como ocorre em um testamento. (d) ‘Aposto cem cruzados como vai chover
amanhã’.

O estudioso deixa claro que, ao proferir essas palavras em


“circunstâncias apropriadas, evidentemente” (p. 24), ou seja, ditas por alguém
legitimado, o ato não seria descrito, nem declarado ou praticado, mas sim exercida
uma ação. Austin ainda afirma que são necessárias condições especiais para que
um ato performativo se realize, como no exemplo “eu te batizo”; neste caso somente
um padre, por exemplo, estaria legitimado a exercer a ação de batizar alguém; isto
é, na concepção austiniana este ato seria anulado ou sem efeito caso fosse
proferido por qualquer outra pessoa. A partir dessas constatações, Austin nomeia
tais sentenças ou proferimentos como “um performativo”

O termo “performativo” será usado em uma variedade de formas e


construções cognatas, assim como se dá com o termo “imperativo”.
Evidentemente que este nome é derivado do verbo to perform, verbo
correlato do substantivo “ação”, e indica que ao se emitir o proferimento está
– se realizando uma ação, não sendo, consequentemente, considerado um
mero equivalente a dizer algo. (AUSTIN, [1962]1990, p. 25)

No exemplo tradicional, quando se diz: “eu prometo” sem a intenção de


cumprimento da ação, realiza-se uma falsa promessa. Neste caso, duas das três
forças estariam sendo atribuídas ao enunciado performativo: as forças ilocucionária
e perlocucionária, como veremos ao longo do capítulo.
Posteriormente, ao enfatizar a importância dessas reflexões sobre a
linguagem sob a perspectiva dos atos de fala, Austin ([1962]1990) reexamina com
maior rigor algumas sentenças anteriormente aceitas sem discussão, percebendo a
ineficácia da dicotomia constatativo versus performativo. Assim, o estudioso
compreende que todos os atos de fala são performativos. Entende-se, portanto, que
uma ação é performativa a partir do momento em que ela é realizada pela
linguagem.
Retomando a questão da força dos atos de fala, vale destacar que
Austin ([1962]1990) volta às bases fundamentais dos proferimentos para considerar
a articulação de três importantes níveis dos atos de fala performativos: o
locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário. Sintetizando o conceito desses
atos, Austin afirma que dizer algo é fazer algo – corresponde a um ato locucionário,
22

porque trata da produção dos sons pelo falante; já o ato ilocucionário consiste na
realização do dizer algo – produz-se, então, a ação; e o ato perlocucionário
caracteriza-se como o efeito gerado pelo ato de dizer algo.
Ottoni (2002) prefere chamar de “visão performativa” (p. 122) as
reflexões austinianas sobre a abordagem da linguagem cotidiana. Por conseguinte,
vale notar o que diz esse autor sobre o rompimento de Austin com a postura
tradicional, ao se preocupar com a interseção “linguagem humana e o humano” (p.
138); em outras palavras, Austin já apontava com clareza o que o humano, o corpo e
a linguagem não se separam.
De acordo com Ottoni (2002), é complexo “situar e justificar” Austin no
contexto pós-modernidade (p. 118), mas julga necessária uma melhor compreensão
de suas considerações sobre a linguagem que “pressupõe uma nova concepção de
linguagem através do fenômeno da performatividade” (p. 123). Assim sendo, uma
releitura feita por um filósofo francês renomado, Jacques Derrida, entra em cena
para interpelar as proposições dos atos de fala de Austin. Derrida, pós-estruturalista
que tem seu nome ligado à teoria da desconstrução, preocupou-se com a noção da
linguagem nos estudos do pensamento filosófico ocidental. Derrida tece algumas
críticas sobre a intenção pré-discurso sugerida por Austin e julga não haver
necessidade de condições especiais para que o ato de fala performativo se realize.
O autor ([1972]1991) ainda acrescenta que todos os atos de fala são performativos e
ganham a ideia de substância pelas noções de iterabilidade – “(iter, de novo, viria de
itara, outro em sânscrito, e tudo o que se segue pode ser lido como exploração
desta lógica que liga a repetição à alteridade” (p. 356) – e citacionalidade, ou seja,
por meio da repetição de tais atos nas práticas sociais e sua propagação
institucionalizada.
Nessa perspectiva, cabe ressaltar que, nas concepções derridianas, a
intenção não existe fora do discurso, pois ela se dá na interação. De acordo com
Strathern (2002), Derrida insiste no argumento de que “não há nada fora do texto”
(p. 5). Haveria, então, diversas possibilidades de novas interpretações em qualquer
texto, ou seja, um texto não poderia ter apenas uma compreensão. Embora
corrobore as proposições austinianas, Derrida questiona algumas concepções
daquele autor e faz uma releitura dos atos de fala, propondo uma nova interpretação
através do conceito de iterabilidade – “A repetição da linguagem é mais que cópia: é
uma repetição com potencial transgressivo; é uma repetição que ocasiona rupturas,
23

pois nunca é a mesma” (ROCHA, 2013, p. 43). Desse modo, o performativo


naturaliza-se e torna-se essência pela repetição exaustiva da linguagem que
sedimenta:

A possibilidade de repetir e, portanto, identificar as marcas está implícita em


qualquer código, fazendo deste uma grelha comunicável, transmissível,
decifrável, iterável por um terceiro, depois por qualquer utente possível em
geral. (DERRIDA, [1972]1990, p. 356)

Para Derrida, a repetição é um fator essencial no uso da linguagem,


mas a noção de iterabilidade aparece para entendermos que a repetição nunca será
a mesma cada vez que for dita. Dessa forma, Rocha (2013, p. 43) destaca a
vulnerabilidade da linguagem, pois “a iterabilidade só é possível, então, porque
repetimos o mesmo produzindo outro, chamando a atenção para o caráter não
natural do ‘original’ do qual se copia’”; portanto, a iterabilidade naturaliza verdades
pela repetição, que pode viajar séculos.
Nesse sentido, de acordo com Salih ([2002]2012), em consonância
com essa visão performativa da linguagem, está Judith Butler. Ainda de acordo com
Salih ([2002]2012), nas palavras de Butler “o ‘sujeito’ de Butler não é um indivíduo,
mas uma estrutura lingüística em formação” (p. 11), ou seja, o sujeito é formado pela
linguagem; por isso, um dos objetivos centrais nas teorizações bluterianas é
preocupar-se “em questionar continuamente ‘o sujeito’, indagando através de que
processos os sujeitos vêm a existir, através de que meios são construídos e como
essas construções são bem-sucedidas (ou não)” (p. 11).
A partir dessas reflexões, pode-se perceber uma releitura de Butler
sobre os atos de fala performativos austinianos. Para a autora, linguagem é ação e
por meio dela construímos pessoas – como mostra esta citação sobre a sua
concepção de linguagem:

Fazemos coisas com a linguagem, produzimos efeitos com a linguagem e


fazemos coisas à linguagem, mas a linguagem também é aquilo o que
fazemos. Linguagem é o nome para nossa ação: tanto o ‘quê’ fazemos
(nome para a ação que caracteristicamente encenamos) e aquilo que
fazemos, o ao e suas consequências. (BUTLER, 1997, p. 8)

Ao analisarmos a forma como a autora discute questões que envolvem


a linguagem no que se relaciona a raça, gênero e sexualidade, pode-se perceber
sua preocupação com os efeitos pela ação realizada através das palavras, ou seja, o
performativo austiniano. Vale destacar que Butler (1990, p. 49)
24

[...] supõe, todavia, a existência de um “fazedor” por trás da obra.


Argumenta-se que sem um agente não pode haver ação e, portanto,
potencial para iniciar qualquer transformação das relações de dominação no
seio da sociedade.

Ainda de acordo com essa estudiosa, todo ato de fala performativo tem
efeitos, a linguagem é ação corpórea e acontece pela iterabilidade e pela
citacionalidade do discurso, aumentando, assim, nossa responsabilidade sobre os
nossos atos discursivos. Para Butler (1997), a linguagem constrói e marca os
corpos. Elas os legitima como corpos que importam ou não importam. Segundo
Rocha (2013, p. 45), à luz de Pinto (2009), “entender que a linguagem é uma
repetição de atos de fala que tem poder de produzir ou aniquilar vidas significa que o
que fazemos com a linguagem não pode estar separado da materialidade –
principalmente dos corpos”.
Assim, compreendemos que o desabafo veiculado no YouTube de
Dandara5 contesta os atos de fala performativos que naturalizam discursos sobre as
mulheres negras, colocando-as em posições sociais de desprestígio e como objeto
sexual. Com base em Austin e Derrida, podemos dizer que tais atos de fala
performativos sobre as mulheres negras se normalizam pela iterabilidade e
citacionalidade; além disso, apontam para discursos que inferiorizam ou naturalizam
o estereótipo da mulher negra como hiperssexualizada, fogosa e apta, apenas a
ocupar cargos de desprestígio. Tais atos de fala performativos marcam corpos,
afetam vidas e legitimam tais mulheres como inferiores às mulheres brancas.
Percebemos que, em seu desabafo, Dandara contesta os atos de fala performativos
de gênero, raça e sexualidade que naturalizam esses discursos estereotipados e
interseccionados sobre essas mulheres, repetidos há séculos em contexto brasileiro.
No próximo capítulo discutiremos como raça, gênero e sexualidade são
interseccionados e compreendidos pelas Teorias Queer.

5
Referimo-nos à autora do vídeo como Dandara, para fins de preservação de sua identidade.
25

2 RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE PELO VIÉS DAS TEORIAS QUEER

As Teorias Queer, fundamentalmente, têm se preocupado com o


sujeito nas práticas sociais (MELO; MOITA LOPES, 2013). Portanto, sua proposta
central é desconstruir, questionar e contestar normas sedimentadas de raça, gênero
e sexualidade e que causam sofrimento humano (LOURO, 2000; BUTLER, 1990;
BARNARD, 2004; MELO, MOITA LOPES, 2013).
Neste capítulo, discutiremos as concepções de raça, gênero e
sexualidade de acordo com as Teorias Queer. Para tal, primeiro abordaremos o que
são as Teorias Queer e, em seguida, passaremos para a elucidação de raça, gênero
e sexualidade na perspectiva citada.

2.1 TEORIAS QUEER: DESESTABILIZANDO NORMAS

Nos dias atuais, muito se tem falado e discutido sobre Teorias Queer.
De acordo com Miskolci (2009), o termo queer, originalmente, tem seu significado
associado negativa e agressivamente contra aqueles que rompiam com normas de
gênero e sexualidade nos Estados Unidos da América; em outras palavras, uma
agressão verbal, um xingamento a essas pessoas que contrariavam as normas
instituídas pela sociedade.
Diante disso, movimentos das Teorias Queer vêm ganhando espaço
para ação, após o surgimento de uma política pós-identitária, proposta por
teóricos/as queer, que criticam a oposição heterossexual/ homossexual, enfatizando
uma visão pós-estruturalista. Esta visão pós-estruturalista parte de uma vertente do
pensamento ocidental contemporâneo, um grupo de intelectuais dentre os quais se
destacam Freud, Lacan, Althusser e Foucault, e corresponde a “teorizações que
problematizaram de forma radical a racionalidade moderna” (LOURO, 2001, p. 547).
Partindo dos pressupostos de que os movimentos queer aparecem em
virtude de discussões sobre sexualidade, Louro (2001) ressalta que a
homossexualidade6 no século XIX era patologizada, ou seja, os sujeitos que
6
O termo “homossexualidade”, em conjunto com “sujeito homossexual”, segundo Louro (2001, p.
26

possuíam desejos sexuais contrários aos que a sociedade impunha tinham apenas
um destino: o segredo e a segregação. De acordo com a pesquisadora, os anos
1970 foram um marco na divisão dessas ideias tradicionalistas sobre
homossexualidade, com o surgimento de alguns movimentos subversivos nos EUA e
na Europa. No Brasil, que também reflete o que ocorre mundialmente, surge então o
Movimento Libertação Homossexual, a partir de 1975, do qual participam pessoas
exiladas pela ditadura, e que trouxeram do exterior inquietações políticas, feministas,
sexuais, ecológicas e raciais que por lá circulavam. A ambiguidade sexual começava
a ganhar espaço, e alguns artistas se apresentavam com suas performances
provocadoras, como era o caso do cantor Ney Matogrosso.
O aparecimento da AIDS nos anos 80 e sua expansão contribuíram
também para a sua associação à homossexualidade 7 na sociedade brasileira. Esses
acontecimentos permeavam o mundo ocidental e despontavam na sociedade
acadêmica internacional, mais interessada em contestar discursos tradicionais que
traziam normatização e que provocavam sofrimentos naqueles sujeitos sociais
considerados anormais, como os homoafetivos. Ainda de acordo com Louro (2001),
essa luta continua em evidência na contemporaneidade: “Em termos globais,
multiplicam-se os movimentos e os seus propósitos: alguns grupos homossexuais
permanecem lutando por reconhecimento e por legitimação” (p. 545). As Teorias
Queer nascem nos Estados Unidos nesse contexto de discussão sobre a
sexualidade, mas não se resumem apenas a ela.
Nas propostas de Louro (2001), queer, então, “pode ser traduzido por
estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também
se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres
homossexuais” (p. 546). Dessa forma, a autora ainda destaca que alguns grupos
homoafetivos assumem o termo como forma de oposição e contestação,
significando colocar-se contra normalizações, independentemente de onde vier. A
heteronormativade é o alvo principal. A abrangência das concepções e definições do
termo pode ser discutida ainda por diversas/os teóricas/os. A exemplo disso citamos
Miskolci (2009), que afirma ter sido Teresa Lauretis, em 1990, que “empregou pela
primeira vez a denominação Queer Theory para contrastar o empreendimento queer
com os estudos gays e lésbicos” (p. 151).

542) trata de “invenções do século XIX”.


7
27

Segundo Louro (2001), o queer é um movimento subversivo, que não


traz propostas nem soluções, mas provoca questionamentos. Considerando Butler
(apud PRINS; MEIJER, 2002)8, Louro salienta que queer denuncia vidas que não
importam, vidas que não merecem ser vividas, seres que são considerados abjetos,
seres que vivem na ambiguidade e na clandestinidade. No entanto, Butler ressalta
que “[...] o abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e
heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são ‘vidas’
e cuja materialidade é entendida como ‘não importante’” (p. 161). Queer vem
desconstruir o lugar da abjeção, mostra como esse lugar foi construído – lugar
construído pelos discursos de ódio, pela força dos insultos e das injúrias. Miskolci
(2009) acrescenta, ainda, que os estudos queer cresceram significativamente em um
momento de muito conservadorismo no Brasil.
De acordo com Melo e Moita Lopes (2014), as Teorias Queer se
propõem a questionar e desestabilizar cristalizações sobre questões raciais, de
gênero e sexualidade em contexto brasileiro. Segundo Melo (2015, p. 166), “os
estudos que trazem à visibilidade negrxs podem colaborar para desestabilizar as
sedimentações de raça que indexicalizam discursos que transitam pela sociedade e
percorrem espaços outrora impensáveis”. Eles/as ainda consideram a importância
da expressão de Louro (2004), “venha ela de onde vier”, para desconstruir alguns
discursos que foram assimilados e naturalizados pela iterabilidade e pela
citacionalidade, tornando-se verdade ao serem repetidos ao longo do tempo por
diversas instituições: família, escola, igreja, política etc., e que reforçam sentidos
negativos sobre negras/os.
Assim sendo, um grande desafio para as Teorias Queer, que concentra
seus esforços no sentido de dar mais visibilidade às chamadas “minorias” 9, é
entender que não basta

[...] apenas, assumir que as posições de gênero e sexuais multiplicaram e


escaparam dos esquemas binários; mas também em admitir que as
fronteiras vêm sendo constantemente atravessadas e que o lugar social no
qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira. (LOURO, 2001, p. 541)

8
Entrevista com Judith Butler em maio de 1996, na Holanda.
9
De acordo com Miskolci (2009, p. 1), “Hoje, critica-se o termo minoria que, sob a pretensa
neutralidade numérica, desvaloriza grupos subordinados pelos hegemônicos (propositalmente
confundidos com maioria). Um exemplo claro é a incoerência de se referir às mulheres como
minoria já que elas constituem numericamente a maior parte da humanidade”. Por outro lado,
ressaltamos que, nesse contexto, Louro (2004) afirma que “minorias” não significa uma questão
numérica, mas sim de uma maioria silenciada.
28

Por conseguinte, a proposta dessas teorias é romper com binarismos,


rico/ pobre, homem/ mulher, negra/o branca/o. Propõe, também, que outras/os
exerçam o poder nas microrrelações, objetivando a produção de novos discursos
que contribuam para mudar as regras de dominação, fazendo surgir, assim, o efeito
queer (SILVA JÚNIOR, 2014).
Nesta perspectiva, consideramos que todo esse movimento de pensar
o outro, um princípio da alteridade, de contestar normas arraigadas e que causam
sofrimento humano na perspectiva butleriana, e o enquadramento de sujeitos, entre
outros, são efeitos das propostas em um contexto de Modernidade Reflexiva. Se
considerarmos o contexto brasileiro, observa-se que muito se tem discutido sobre a
questão da mulher negra, o que pode ser percebido na web através de blogs, redes
sociais etc. Partindo da questão sexualidade trazida por Louro, podemos dizer que,
também em termos globais, encontramos a questão racial sendo questionada e
colocada em pauta. A luta por direitos e oportunidades vem sendo realizada por
movimentos negros, coletivos, e por pessoas que reconhecem essa luta como válida
e necessária para se construir uma sociedade mais justa e menos sofrida. Exemplos
disso podem ser identificados como grupos, nas redes sociais de todo o planeta. No
Brasil, um breve olhar pelo Facebook nos mostra coletivos, como as Blogueiras
Negras; ongs como Geledés, grupos diversos e cidadãos comuns, como é caso da
participante desta pesquisa, ou seja, uma mulher, negra e bem-sucedida, que
contesta discursos estereotipados de mulheres negras. As Teorias Queer também
têm se voltado para os estudos interseccionados de sexualidade, gênero e raça,
como veremos ao longo deste trabalho. Compreendemos que elas podem se
constituir em um instrumental teórico que traga contribuições para a concepção de
raça também no Brasil.
Desta forma, discutiremos a seguir como certos discursos sobre as
mulheres negras as constroem na sociedade brasileira, e como as Teorias Queer
podem contribuir com a desestabilização dessas construções históricas, culturais,
discursivas e performativas. Neste estudo, especificamente, as Teorias Queer, com
sua perspectiva de contestação de discurso sedimentado, podem contribuir para se
compreender a interseccionalidade entre raça, gênero e sexualidade que constituem
as performances discursivas de Dandara.
29

2.2 MULHERES NEGRAS: RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE PELAS TEORIAS


QUEER

Ao discutir sobre raça, gênero e sexualidade, vale ressaltar que, nas


concepções das Teorias Queer, tais categorias não são compreendidas como
biológicas, mas sim como uma construção histórica, social, discursiva e
performativa. Partindo da proposta de gênero, para Butler (1990), ele é
culturalmente construído e imposto por práticas reguladoras. Com base no exposto,
percebemos neste estudo que raça também é uma construção discursiva, social,
histórica, cultural e performativa, imposta por práticas regulatórias que afetam os
corpos negros. Isso pode ser observado, por exemplo, pelos lugares ocupados por
negras/os no mercado de trabalho, ao longo da história brasileira; no senso comum,
se atentarmos para as práticas sociais, podemos identificá-las/os, em sua maioria,
em cargos como empregadas domésticas, babás, segurança etc., construídos
discursiva e performativamente como menos valorizados e remunerados, além de
legitimados como inferiores aos demais cargos.
Um outro aspecto relevante, de acordo com Barnard (2004) e Wilchins
(2004), é tratarmos a questão racial interseccionalizada ao gênero, à sexualidade
etc., para podermos entender melhor o fenômeno estudado e as práticas sociais.
Além disso, como tudo passa pelo discurso (SANTOS, 2004), a retomada da história
racial brasileira e dos discursos sobre a mulher brasileira, construída discursiva e
perfomativamente como hiperssexualizada desde a escravidão, mostra-nos como,
por meio de atos de fala performativos de raça, sexualidade e gênero, tais mulheres
são construídas.
Voltando a considerar as questões de gênero para se pensar raça,
Judith Butler contesta normas reguladoras, coloca certos valores tradicionais em
xeque – como o conceito de gênero, de corpos que não importam –, questiona
fronteiras e critica a repressão imposta pelo poder, além de contestar a “estrutura
binária em que se pensa o conceito de gênero” (1990, p. 8), tão importante para esta
investigação. Assim, de acordo com Butler, que parte dos estudos de Simone de
Beauvoir,

Ser mulher constituiria um “fato natural” ou uma performance cultural, ou


seria a “naturalidade” constituída mediante atos performativos
30

discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das


categorias de sexo e por meio delas? (BUTLER, 1990, p. 8-9)

Podemos, então, embasados em Butler, também contestar os


discursos raciais que viajam séculos e que continuam a construir os corpos negros
como inferiores e legitimados para ocupar certos espaços e cargos, e morar em
determinadas regiões, além de pessoas cuja uma única possibilidade de encenar
performances de raça seria por meio da exposição de corpos, estereotipando-os
como observado na minissérie “Sexo e as Negas”. Desse modo, ser negra ou negro
é uma construção performativa por meio de atos de fala produzidas dentro da
categoria raça, ou mais, dentro de categorias interseccionadas de raça, gênero,
sexualidade, classe social etc.
De acordo com Louro (2013, p. 1), Butler considera que a construção
de gênero é iniciada quando se anuncia o ato de fala performativo “é uma menina”
ou “é um menino”. Butler (1990) questiona o gênero imposto por atos de fala
performativos, as repetições ritualizadas por normas, ou seja, a produção do corpo
por meio de discursos regulados. Nessa perspectiva, estrategicamente, as reflexões
butlerianas trabalham no sentido de

[...] descaracterizar e dar novo significado às categorias corporais, descrevo


e proponho uma série de práticas parodísticas baseadas numa teoria
performativa de atos de gênero que rompem as categorias de corpo, sexo,
gênero e sexualidade, ocasionando sua re-significação subversiva e sua
proliferação além da estrutura binária. (BUTLER, 1990, p.11)

Para compreender essa construção, consideramos a proposta de


Butler (1990) na construção de gênero. A autora se preocupa com os efeitos
discursivos de certos discursos biologizantes, excludentes, e que privilegiam e
legitimam alguns corpos em detrimento de outros. Assim, entende gênero como uma
construção realizada pelos atos de fala performativos que se repetem pela
iterabilidade e pela citacionalidade na sociedade. Além disso, para Butler, sexo é
distinto de gênero, entendendo sexo como uma norma regulatória imposta pela
materialização e que se dá através de “práticas altamente reguladas” (BUTLER,
2000, p. 109), ou seja, é construído e reiterado através do tempo, sendo, portanto,
performativo.

O fato de que essa reiteração seja necessária é sinal de que a


materialização não é nunca totalmente completa, que os corpos não se
conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua
materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as
31

possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam


um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela
mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força
hegemônica daquela mesma lei regulatória. (BUTLER, 2000, p. 109)

Dessa forma, Butler (1990, p. 59) argumenta, alinhada à teoria da


desconstrução através dos conceitos derridianos de iterabilidade e citacionalidade,
que

[...] o gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos


repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se
cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma
classe natural de ser.

Desse modo, ao discutirmos a questão da mulher negra em contexto


brasileiro, percebemos diversos discursos naturalizados, sedimentados e
cristalizados social, cultural e historicamente. De acordo com Melo e Moita Lopes
(2014, p. 545),

[...] transformar a mulher negra em sujeito social envolve desconstruir tais


discursos cristalizados de raça na sociedade, assim como os discursos
solidificados sobre gênero e sexualidade, possibilitando outras
performances.

Para Salih (2012), “Butler, está empenhada em questionar


continuamente ‘o sujeito’, indagando através de que processos os sujeitos vêm a
existir, através de que meios são construídos e como essas construções são bem-
sucedidas (ou não)” (p. 10). Observa-se aqui como Butler traz as discussões sobre
os atos de fala performativos para suas reflexões. Cabe ainda ressaltar, de acordo
com Salih, que as teorias bluterianas não possuem linearidade, não seguem uma
linha direta. Pode-se observar um conhecimento que se opõe ou um estudo que
nega; a certeza absoluta não é encontrada, e as verdades não podem ser algo
concreto, podendo ser refutadas.
Nesse sentido, partindo da perspectiva de gênero proposta por Butler
(1990), compreendemos que raça é também uma construção discursiva e
performativa que pode ser alterada de acordo com o momento histórico. Assim, para
tratar de raça em uma perspectiva de construção discursiva e performativa,
entendemos que se torna necessário retomarmos alguns atos de fala performativos
sobre mulheres negras.
De acordo com Giacomini (2012), na época da escravidão a
possibilidade de considerar a existência de uma família escrava pela sociedade
32

patriarcal era nula, visto que “constituir uma família, ter uma prole é algo inacessível
àqueles que não possuem nem a si próprios”, e que “a noção de privacidade e de
família refere-se a uma esfera própria que o escravo não possuía por sua condição
de ‘coisa’” (p. 31). Desse modo, a mulher escrava não tinha uma relação familiar
com seu filho, visto que seu corpo pertencia ao senhor de engenho. Havia famílias
escravas, mas – por serem consideradas mercadorias – elas eram vendidas em
separado, mostrando que a concepção de família não era legitimada para aqueles
corpos. Temos aqui um ato de fala performativo de que tais mulheres negras eram
propriedade de um/a senhor/a de engenho, e como tal não lhes era possível e nem
permitido ter uma família nos moldes das famílias brancas. Dessa forma,
compreendia-se como família escrava apenas a relação mulheres escravas-filhos,
ou seja, somente a mãe possuía uma relação parental entre os escravos. Essas
mulheres negras e escravas tinham a responsabilidade de realizar todo o trabalho
forçado.
Além disso, de acordo com Gorender (2012), havia ainda um discurso
distorcido de que “as escravas fisicamente bem-dotadas atraíam o interesse sexual
dos homens livres da casa, particularmente dos patrões e dos seus filhos” (p. 15),
justificando assim o fato de serem exploradas sexualmente e violentadas pelos
homens da casa, ou seja, era objeto de desejo sexual. A recusa às abordagens
sexuais era algo que as levava a sofrer castigos cruéis, e também à violência sexual.
Em vista disso, Giacomini (2012) salienta que essas mulheres negras e escravas
eram reduzidas a “coisas”, a mercadorias pertencentes ao senhor de engenho,
sendo portanto usadas, tratadas – e, considerando o que Butler (2004) diz sobre
gênero, mas focando na raça, legitimadas como objeto sexual por seus senhores, a
recusa não sendo sequer considerada. Nesse pensamento escravocrata, às
escravas não cabia a decisão de permanecerem virgens, pois a virgindade era
prerrogativa das moças brancas da sociedade. Assim, as escravas negras eram
também obrigadas a conviver e a suportar essa exploração sexual.
Ainda em relação aos atos de fala performativos que constroem as
mulheres negras como escrava e objeto sexual, Henrique (2007) ressalta que elas
eram “objeto de desejo sexual dos senhores, e vítima permanente dos seus abusos
sexuais”; ou seja, cruelmente estupradas, consequentemente odiadas por suas
senhoras, vítimas de ciúmes, já que para as segundas, as escravas negras
provocavam seus maridos e os seduziam (GIACOMINI, 2012), mostrando assim a
33

perspectiva distorcida da senhora de engenho branca sobre a escrava negra, cujo


corpo era uma mercadoria também sexual. Neste sentido, Henrique afirma que

Se a mulher negra e escrava tinha os olhos belos, eram estes arrancados e


servidos no jantar. Estavam lá eles servidos na tigela de sopa. Se seu rosto
era belo, e encantava o senhor, a esposa lhe arrancava a beleza com água
fervendo, e o sorriso, quebrava-os a sangue frio até que não sobrasse um
dente na boca. (p. 9)

Segundo Giacomini (2012), as escravas se submetiam a tais violências


sexuais no intuito de evitar castigos severos; contudo, não se tratava de uma
submissão passiva; na verdade, não havia possibilidade de escolha, já que eram
legitimadas pelos atos de fala performativos que interseccionam raça e gênero como
mercadorias, cujos corpos não tinham o direito da branquitude de manter sua
virgindade, por exemplo. Assim, as escravas negras eram discursiva e
performativamente construídas como sedutoras, sensuais e provocadoras dos
senhores feudais, discursos do senso comum que afetavam seus corpos e suas
vidas, traduzidos como diversas violências sexuais, psicológicas e morais de que
eram vítimas. Havia ali
[...] um sofrimento geralmente subestimado, e, no entanto, quotidiano. A
possibilidade sempre presente, concretizada ou não, independente de sua
vontade, de ser solicitada sexualmente pelo senhor sem recusa possível,
foi, sem dúvida, uma contingência com a qual a escrava teve que conviver.
(GIACOMINI, 2012, p. 72)

A obra de Giacomini (2012) sobre as mulheres escravas relatava que,


além de serem usadas como objeto e coisa pela sociedade patriarcal, antes da
puberdade as escravas eram criadas como “animal de estimação” (p. 90); portanto,
a puberdade marcava um período de transição, ou seja, de animal de estimação
para objeto sexual. Além disso, não bastassem todas essas humilhações, a mulher
negra escrava da casa grande havia de suportar também os maus tratos das
senhoras brancas, qualquer que fosse o motivo.
A ideologia corrente que associa a negra ao prazer sexual do branco,
identificando em seu corpo o agente do estupro institucionalizado, fez recair
também sobre a escrava, como se não bastasse a objetificação sexual,
inconfessáveis sentimentos de inveja das senhoras. As mutilações,
extirpações, deformações e outras atrocidades praticadas por senhoras no
corpo das negras, das quais abundam exemplos na literatura da época,
privilegiaram, não por acaso, as regiões corporais comumente identificadas
a seu poder de sedução: nádegas, dentes, orelhas, faces etc. (GIACOMINI,
2012, p. 91).

Ainda de acordo com Giacomini (2012), existia também a relação


34

intrigante entre a senhora da família patriarcal e a escrava, pois “senhoras, mães,


castas, puras e brancas contrapõem-se a escravas, infanticidas, sensuais, lascivas,
imorais, sem religião e negras” (p. 89). Nesse sentido, percebe-se ainda que a
mulher branca da sociedade patriarcal tinha privilégios sobre a mulher negra e
escrava. Obviamente, o antagonismo na relação entre essas mulheres colocava sua
sexualidade ainda mais em evidência, uma (a branca) como objeto de procriação, a
outra (a escrava) como objeto de desejo sexual. Tais discursos afetavam a vida das
mulheres negras. Cabe observar também que havia ali um poder sendo exercido
sobre ambas – o poder do patriarca. Nenhuma delas tinha sua subjetividade
respeitada, ou seja, seus corpos eram o que tão somente importava nessa relação
de poder. Uma servia para dar à sociedade a satisfação de ser a mulher que era
“boa”, que cuidava do lar, dos serviços domésticos e que procriava, ao passo que a
mulher escrava servia somente para satisfazer os desejos sexuais dos senhores,
sofrendo os efeitos de tais atos de fala performativos, inclusive das senhoras de
engenho. Giacomini (2012) acrescenta:

O corpo das senhoras é produto de condicionantes materiais e ideológicos


que nele imprimiram e acentuaram características distintas de brancura e
ociosidade. Ele revela o confinamento e a procriação consecutiva. O corpo
da escrava, por sua vez, responde a um minucioso processo de seleção no
qual a aparência funciona como índice de seu ‘valor de uso sexual’. (p. 88)

Nessa relação de poder entre senhora e escrava, algumas atrocidades,


também relatadas pela autora, reportam senhoras que mandavam cortar os seios,
arrancar as unhas ou queimar o rosto das escravas que fossem elogiadas por seus
maridos. Diante disso, Melo e Moita Lopes (2014) concordam que os discursos de
ódio historicamente instituídos, como pode ser observado nos relatos mencionados,
potencializam os atos de fala performativos sobre mulheres negras como coisa e
objeto sexual que se manifestam até hoje em nossa sociedade. Mulheres negras
ainda carregam marcas da exclusão, são construídas discursiva e
performativamente como unas, e as diversas possibilidades de encenarem
performances discursivas são apagadas ao serem vistas apenas como
hiperssexualizadas, inferiores, boas em serviços domésticos etc.
Ainda no período da escravidão, temos o discurso sobre a ama-de-
leite. Ao abordar a questão das mães negras que estivessem amamentando,
Giacomini (2012) afirma que as mesmas eram oferecidas, por seus senhores, para
aluguel às mães brancas como “mercadoria-escrava-leiteira” (p. 55). A autora
35

ressalta que a subjetividade da mulher negra escrava era reconhecida apenas nesse
caso.
A figura da “mãe-preta” suscita diferentes reflexões nas nossas fontes.
Privilegiado “exemplo de corrupção” na maior parte de nossas referências,
mas também “alma de sentimentos extraordinariamente nobres” e “coração
transbordando de sublimes dotes” em outros textos, a ama de leite parece
ser figura de proa das “inevitáveis” conclusões a que chega cada autor. O
componente subjetivo presente nos atos de amamentar, ninar, cuidar do
filho do senhor, serve em cada caso, negado, diluído ou aumentado, a
conformação de visões específicas: seja na visão racista e etnocêntrica, que
só reconhece a subjetividade da escrava na sua “nefasta influência” nas
crianças brancas, seja na visão da “boa ama” enunciada em nossas fontes,
cuja expressão acabada em nossos dias é obra de Gilberto Freyre. (p. 67)

Ainda sobre as mães negras, em alguns casos eram também


obrigadas a colocar seus filhos na “roda dos expostos” (GIACOMINI, 2012, p. 59),
também conhecida como Casa da Roda ou Casa dos Enjeitados, objetivando o
recolhimento de crianças abandonadas. Tratava-se de um cilindro de madeira que
girava em torno de um eixo, apenas com uma lateral aberta, onde podiam ser
deixadas as crianças sem que ninguém do lado de dentro pudesse ver o que ocorria
do lado de fora. Em alguns casos, as mães escravas utilizavam esse recurso na
tentativa de livrar seus filhos da escravidão. Vale conjecturar se essa roda dos
expostos serviria também para camuflar infanticídios, pois relatos indicam que eram
ali depositadas crianças já mortas, e que mesmo a maioria das crianças colocadas
vivas não conseguiam sobreviver. Esses relatos indicam um grande índice de
mortalidade infantil entre o período de 1861 a 1874. Dessa forma, os senhores se
beneficiavam dessas mães negras exclusivamente na amamentação de seus filhos.
Em alguns casos, talvez muitas evitassem engravidar ou fizessem abortos para não
serem forçadas a abandonar seus filhos para irem servir aos poderosos como ama-
de-leite. De acordo com Giacomini (2012, p. 61),

Numa sociedade cuja ideologia dominante atribui à maternidade o papel de


função social básica da mulher, a escrava transformada em ama de leite
conhece, na negação de sua maternidade, a negação de sua condição de
mulher. Por paradoxal que pareça, é a sua fisiologia feminina – capacidade
de lactação – que se contrapõe à realização de sua potencialidade materna.

Diante disso, coloca-se aqui uma reflexão em evidência: como ficaria a


subjetividade dessa escrava? Nas referências da autora, uma discussão de grande
relevância é a condição da mulher escrava construída enquanto ama-de-leite e
objeto sexual. Giacomini (2012) relata que, na sociedade hegemônica e patriarcal, o
corpo da escrava “não lhe pertence pela lógica da escravidão” (p. 69).
36

Nessa perspectiva, ao observarmos os discursos sobre mulheres


negras na escravidão, percebemos construções discursivas, históricas, culturais e
performativa sobre elas, tais como, corpos femininos não humanizados, ou seja,
animais sem alma, que podem ser domesticados, mercadoria, corpo como objeto de
desejo sexual etc. De acordo com Melo e Moita Lopes (2014), são discursos
historicamente disseminados por instituições, pela mídia e pela literatura, entre
outros.
Especificamente em relação à sexualidade das mulheres negras,
vemos discursos que viajam no tempo e chegam aos romances brasileiros. Diante
disso, Henrique (2007) faz críticas à “produção de ideias” e à difusão das
“maravilhas da miscigenação”, considerando a literatura brasileira como meio para a
propagação desses discursos estereotipados sobre as mulheres negras, como nas
obras “Escrava Isaura” e “Gabriela, cravo e canela”, entre outras, que trazem em
seus conteúdos arquétipos das personagens como a valoração “mulata=prazer”,
exposta como irresponsável, amoral, sem pudor, que desperta apetite sexual etc.
Esse estudioso ainda argumenta que os termos “cravo e canela”, presentes no título
da obra de Jorge Amado, “são uma alusão às duas especiarias e enchem de
sexualidade a perfeita harmonia entre cor e sabor” (p. 9). Vale ressaltar que Balestrin
(2011) também discute a relação desses discursos da questão racial, sobre esse
mesmo romance; para a autora, a mulher negra é construída com a sexualidade
exacerbada. Henrique nos lembra que “estes elementos constituem a tríade: (a)
branca para casar, (b) negra para trabalhar e (c) mulata para fornicar” (p. 9). Apesar
desses discursos, as mulheres negras seguem suas vidas, tentando reconstruí-las,
libertar-se desses estigmas, dar novo significado a seus corpos. São essas heranças
históricas, discursivas, culturais e performativas, que ainda lhes causam dores e as
colocam como ocupantes de um único lugar, apagando assim as infinitas
possibilidades de agirem como mulheres e negras.
Outra autora que trata da mulher negra é Lélia Gonzales (1984),
militante política no Movimento Negro Unificado, que pesquisa racismo e sexismo no
Brasil, rejeitando e criticando a aceitação do mito da democracia racial, bem como a
“identificação do dominado com o dominador” (p. 224). Nesse sentido, a estudiosa
indaga “Como a mulher negra é situada no seu discurso?” (p. 224).

O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o


duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui
37

como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse


sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos
violentos sobre a mulher negra em particular. Conseqüentemente, o lugar de
onde falaremos põe um outro, aquele é que habitualmente nós vínhamos
colocando em textos anteriores. E a mudança foi se dando a partir de certas
noções que, forçando sua emergência em nosso discurso, nos levaram a
retornar a questão da mulher negra numa outra perspectiva. Trata-se das
noções de mulata, doméstica e mãe preta. (GONZALES, 1984, p. 224)

Em outras palavras, o discurso propicia uma produção violenta de


efeitos que articulam sexo versus mulher negra, tratada pejorativamente como
mulata e associada ao sexo e ao carnaval, uma construção discursiva e
performativa. Gonzales (1984) contesta diversos discursos que constroem
negativamente a mulher negra, apontando o ocultamento das marcas da
africanidade dessa mulher no processo de formação cultural na sociedade brasileira,
no qual ela cita a dialética, consciência e memória, em que a consciência é “o lugar
do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do
saber” (p. 226), e a memória “esse lugar da emergência da verdade, dessa verdade
que se estrutura como ficção” (p. 226). A autora ressalta ainda que a consciência “se
expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso)” (p. 226), enquanto a
memória se encarrega de buscar tudo que estava esquecido na história, ou seja,
“consciência exclui o que a memória inclui” (p. 226).
Nesse sentido, Henrique (2007, p. 9), alinhado às reflexões de
Gonzales (1984), condena a exaltação da mulher negra brasileira em tempos de
carnaval. Temos lá na tela da TV a linda “mulata” e mulheres negras, com corpos
exuberantes e sambando lindamente; no entanto, a maquiagem esconde outro
significado histórico “facilmente digerido pelo público comum” (p. 9). Gonzales
(1984) também critica os atos de fala performativos de endeusamento da mulher
negra em tempos de carnaval:
E é nesse instante que a mulher negra transforma-se única e
exclusivamente na rainha, na “mulata deusa do meu samba”, “que passa
com graça/fazendo pirraça/figindo inocente/ tirando o sossego da gente”. É
nos desfiles das escolas de primeiro grupo que a vemos em sua máxima
exaltação. Ali, ela perde seu anonimato e se transfigura na Cinderela do
asfalto, adorada, desejada, devorada pelo olhar dos príncipes altos e loiros,
vindos de terras distantes só para vê-las. [...] Ela dá o que tem, pois sabe
que amanhã estará nas páginas das revistas nacionais e internacionais,
vista e admirada pelo mundo inteiro. Isto, sem contar o cinema e a televisão.
E lá vai ela feericamente luminosa e iluminada, no feérico espetáculo. (p.
228)

Por outro lado, a estudiosa chama atenção para a transfiguração da


38

mulher negra na empregada doméstica do cotidiano. Através dessas reflexões,


percebe-se que os termos mulata e doméstica “são atribuições de um mesmo
sujeito” (p. 228). Valoração e nomeação dependerão da forma como serão vistas
essas mulheres negras. Para Gonzales (1984), isso se reflete em “violência
simbólica” e em “fortes cargas de agressividade” exercidas sobre essas mulheres.
Por meio da repetição de atos de fala performativos e dessas relações de ódio,
essas mulheres foram construídas. A trajetória desses atos de fala performativos as
vem acompanhando, como indaga Henrique (2007, p. 9): “Às custas de quanto
sangue inocente temos hoje essa maravilha chamada miscigenação?”.
Ao considerarmos a noção de seres abjetos, ou seja, seres excluídos,
apagados, cujas vidas não importam, mencionamos, assim, alguns corpos negros.
Para Butler (apud PRINS; MEIJER, 2002), não é fácil apreender a noção de abjeção,
pois engloba qualquer pessoa ou grupo que tenha seu corpo excluído, desprezado
pela sociedade. Diversos exemplos considerados pela estudiosa, vistos como “a
abjeção de corpos” (p. 162), poderiam ser enumerados; assim, ela ainda acrescenta:
“Mas seria um grave erro pensar que a definição do abjeto se esgota nos exemplos
que dou”.
Entretanto, prevenindo qualquer mal-entendido antecipado: o abjeto para
mim não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade.
Relaciona-se a topo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’
e cuja materialidade é entendida como ‘não importante’. (BUTLER, apud
PRINS; MEIJER, 2002)

Ao observarmos os discursos sobre a mulher negra na escravidão,


essencialmente, sob uma única forma de ser – a de objeto sexual, coisificada, como
mercadoria, em situações em que não são construídas discursiva e
performativamente como invisíveis e cujos corpos são ilegítimos e não importam,
não são reconhecidos, percebemos que os discursos que legitimam tais mulheres a
certas ações viajam no tempo e são acionados no presente com sentidos
semelhantes aos do passado. Entendemos, portanto, que mesmo se passando
séculos, esses corpos que não importam, essas vidas que não são vidas, continuam
sendo construídos performativamente como menores, insignificantes, e se encaixam
nas concepções butlerianas de abjeção. Basta atentarmos para o Carnaval, por
exemplo, período em que os corpos de mulheres negras saem da insignificância,
expostos nus em rede nacional como no caso da Globeleza, uma mulher negra,
sempre nua, com um corpo escultural que sabe sambar, e que reforça assim o
39

discutido anteriormente por Gonzales.


Trazendo uma perspectiva da afetividade das mulheres negras,
Pacheco (2013) aborda também a solidão dessas mulheres em contexto brasileiro.
Segundo a autora,

Torna-se difícil não reconhecer como os discursos de ideologias raciais e de


gênero são estruturantes e ordenam um conjunto de práticas corporais
racializadas vividas pelo gênero, na sexualidade, no trabalho, na afetividade
e em outros lugares sociais que são “destinados” às mulheres negras, na
Bahia e no Brasil. (PACHECO, 2013, p. 24)

Dessa forma, Pacheco confirma que em Salvador há uma


concentração maior de mulheres negras, reforçando em seus estudos as
construções históricas, discursivas e performativas das mulheres negras. Ela analisa
os estereótipos da mulher negra baiana, ou seja, da mulata sexual, Baiana do
Acarajé, em paralelo aos da empregada doméstica, da criada, da ama-de-leite. Os
discursos que permeiam a vida dessas mulheres são de que a afetividade e a
solidão sejam consequências da modernidade e estejam ligados a raça e gênero.
Salvador, segundo Pacheco (2013) é considerada a cidade das mulheres. Em sua
pesquisa, alguns fatores justificam a solidão dessas mulheres, como já
mencionamos, um deles relacionado ao fato de a mulher branca ser construída para
casar, ao passo que a mulher negra é construída para encontros sexuais.
Com base nas Teorias Queer, podemos entender que os discursos aqui
mencionados acerca das mulheres negras são repetidos ao longo do tempo,
perpassam a história e o tempo, e justificam desabafos – como o de Dandara – que
questionam justamente os atos de fala performativos que naturalizam os corpos das
mulheres negras como objeto sexual, legitimados para determinados cargos,
inferiorizados etc., e que podem trazer sofrimentos para essas mulheres.
Considerando a minissérie, as mulheres negras nela retratadas reforçam apenas um
tipo de mulher negra: a fogosa, objeto sexual, hiperssexualizada, disponível, e que
ocupa, em sua maioria, cargo de desprestígio. As Teorias Queer questionam estas
normalizações e naturalizações, já que há diversas possibilidades de performances
e mulheres negras.
Em contrapartida aos discursos que objetificam estas mulheres e
questionam os efeitos desses discursos estereotipantes, há movimentos que lutam
em prol da desconstrução dos atos de fala performativos, envolvidos com questões
raciais, de gênero e sexualidade. Em seus estudos, Carneiro (2003) levanta algumas
40

particularidades importantes sobre as mulheres negras; por exemplo, não serem


tratadas fundamentalmente pela questão do gênero. Diante disso, percebe-se que
combater o racismo é uma prioridade política para muitas mulheres negras
brasileiras. Isso explica o engajamento de Dandara na luta contra os atos de fala
performativos que marcam os corpos negros, como ocorre com a minissérie “Sexo e
as Negas”, isto é, que constrói essas mulheres como objetos sexuais,
hiperssexualizadas e sempre em posições sociais de desprestígio.
Vale ressaltar, ainda de acordo com Carneiro (2003), as desigualdades
de gênero. Homens negros têm mais possibilidades de se relacionarem com
mulheres brancas do que mulheres negras com homens brancos, o que institui,
assim, o racismo contumaz. “A recorrência abusiva, inflação de mulheres loiras, ou
da ‘loirização’, na televisão brasileira, é um exemplo dessa disparidade” (p. 119).
Diante disso, Carneiro (2003) encontra na história uma culpabilidade pela
subvalorização dos gêneros:

A fortiori, essa necessidade premente de articular o racismo às questões


mais amplas das mulheres encontra guarida histórica, pois a “variável” racial
produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a identidade feminina
estigmatizada (das mulheres negras), como a masculinidades
subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior ao do gênero
feminino do grupo racialmente dominante (das mulheres brancas) (p. 119).

Dessa forma, Carneiro ressalta que, desde a década de 1980, o


engajamento das mulheres negras nos Movimentos de Mulheres vem crescendo
paulatinamente no combate ao racismo, às desigualdades de gênero, e em prol de
maior visibilidade e reconhecimento às mulheres negras. Percebe-se, também, que
esses movimentos contestam os discursos que podem naturalizar, no tempo e na
história, as mulheres negras estereotipadas no contexto da sociedade brasileira.
Diante disso, podemos apontar “os principais vetores que nortearam as propostas do
movimento, o que resultou em mudanças efetivas na ótica feminista” (CARNEIRO,
2003, p.120), que são: mercado de trabalho, violência, saúde, meios de
comunicação, entre outros. Tais movimentos sociais e coletivos negros, por meio de
atos de fala performativos, buscam valorizar as mulheres negras, enfatizam a beleza
de seus cabelos, contestam os discursos que constroem tais mulheres como
inferiores, e lutam por igualdade de direitos.
Ainda na atualidade, Balestrin (2011) realça em seus estudos o
discurso de “mito da sexualidade brasileira”, relacionado à imagem da mulata, e
41

considera ser “através dos discursos científicos do final do século XIX” (p. 102) a
divulgação desses atos de fala performativos que produzem efeitos de verdade até
os dias atuais, ou seja, estereótipos negativos de mulher negra brasileira,
sexualmente disponível, fogosa e quente. Essas construções se confirmam nas
palavras de Helborn (2006, p. 49):

Esse mito está presente também na divulgação de um tipo de propaganda


do país, na publicidade do turismo, que promove, por exemplo, a imagem da
mulata: uma mulher sexualmente muito liberada, “quente” e “fogosa”, o
resultado da miscigenação de um homem branco com uma mulher negra.

Observamos que por meio da iterabilidade de certos atos de fala


performativos, as mulheres negras são construídas e normalizadas como unas,
fogosas, destinadas a alguns lugares sociais. Mesmo com discursos que valorizam
as mulheres negras, que questionam os discursos de inferioridade e que colocam
essas mulheres como objeto sexual, ainda observamos que eles viajam pelas redes
sociais, por exemplo, marcando tais corpos como não pertencentes a certos
espaços etc. Sendo as Teorias Queer contrárias a todo e qualquer tipo de
sedimentação e normalização da vida social, elas também contestam atos de fala
performativos que constroem as mulheres negras como unas. De acordo com Melo
e Moita Lopes (2013, p. 245), embasados nas Teorias Queer, torna-se necessário
questionar rigorosamente esses efeitos discursivos de raça que constroem a mulher
negra de maneira estereotipada e essencializada, com uma única possibilidade de
ser mulher negra, a de objeto sexual ou empregada doméstica, de sexualidade
exacerbada, gerando assim grande sofrimento.
Ainda de acordo com esses autores, “os efeitos discursivos dessas
tentativas de escamotear a hegemonia branca racial e de controlar os negros e as
negras geraram sofrimentos e dores que se propagaram ao longo dos anos” (2013,
p. 241), ou seja, discursos de mulher negra como objeto sexual, mercadoria, mãe
preta, serviçal, não humanizada, hiperssexualizada, que a levou à exclusão.
Segundo Melo (2015, p. 165), ao analisar esses atos de fala
performativos, entendemos por que nas

[...] práticas sociais, homens negros e mulheres negras ainda são


construídos como sujeitos sociais perigosos, inferiores, aptos para exercer
funções cujo nível de escolaridade não seja elevado, com desempenho
sexual considerado acima da média, habilidosos em esportes que exigem
resistência física etc. Tais construções históricas, sociais, discursivas e
performativas são assimiladas, reproduzidas e apropriadas pela sociedade
brasileira, e seus efeitos discursivos são perceptíveis nas práticas sociais e
42

escolares cotidianamente.

Em outras palavras, e de acordo com Melo e Moita Lopes (2014), a


propagação de tais discursos tem sido historicamente disseminada pela mídia e por
diversas instituições, sendo assimilados e reproduzidos pela sociedade. Os efeitos
discursivos são visíveis nas práticas sociais. É nesse contexto que as Teorias Queer
entram para interpelar a questão da raça, gênero e sexualidade, entremeada
“unicamente pelos discursos da escravidão, da abolição, da Ciência da Raça e da
democracia racial” (MELO; MOITA LOPES, 2014, p. 547). Considerando os estudos
queer, desconstruir os discursos que inferiorizam as mulheres negras seria contestar
os atos de fala performativos que as constroem como uma única forma de ser, seria
mostrar como esses discursos foram construídos ao longo do tempo pela história,
pela cultura, pelas instituições, e como tais construções afetam a vida dessas
mulheres até os dias atuais.
43

3 METODOLOGIA DE PESQUISA

Neste capítulo, abordaremos a Web 2.0 como meio de propagação de


discursos e espaço de interação social através das diversas redes sociais, sobre o
qual Guimarães (2000, p. 141) nos relata: “As redes telemáticas configuram, mais
que um meio de comunicação, um espaço de sociabilidade no interior do qual se
desenvolvem culturas relativamente autônomas”. Discutiremos, ainda, nosso
percurso metodológico, passando pela questão dos instrumentos de geração de
dados, índices linguísticos, ordens de indexicalidade e categorias de análises.

3.1 A WEB: UM ESPAÇO DO HÍBRIDO

.
Atualmente, presenciamos grandes transformações e reinvenções na
vida cotidiana dos sujeitos sociais, promovidas pela globalização. Segundo Milton
Santos (2000), o mundo globalizado é também um lugar onde tudo passa pelo
discurso. Diante disso, gera-se a necessidade de expor nossos sentimentos, de
transgredir e também contestar nos espaços online, como redes sociais, blogs etc.
Contamos, hoje, com diversos meios de comunicação que nos
propiciam essas possibilidades de exposição. Citamos aqui a Web 2.0,
compreendida como um espaço para prática social, um meio em que os sujeitos
podem interagir, questionar, transgredir etc. Segundo Melo e Moita Lopes (2014), “os
sujeitos sociais contemporâneos se apropriam das diversas TICs (Tecnologias de
Informação e Comunicação) e de recursos da web 2.0 e, ao assim fazerem,
encontram outras possibilidades de contar histórias sobre quem são [...]” (p. 543).
De acordo com Pellegrini et al. (2010, p. 1):

Vive-se a era da informação e das novas tecnologias. A propagação de


informações acontece num ritmo incrivelmente veloz e, nesse cenário de
intensas mudanças tecnológicas, muitas coisas são agregadas à nossa vida
diária. Novas ferramentas, acessórios e instrumentos são incorporados e
continuamente somos modificados por eles, na medida em que precisamos
nos adaptar e reconhecer essas novas formas de comunicação.
44

Vale também destacar que, de acordo com Melo e Moita Lopes (2014)
“a web é um lugar do híbrido e de coexistências de discursos” (p. 658), ou seja, no
ambiente online os diversos sujeitos sociais encontram “menos dificuldades para as
discussões sobre raça, gênero etc.”, como é o caso da Dandara, negra, que utilizou
o YouTube para fazer seu desabafo, aliviar-se e desoprimir-se.
Pellegrini et al. (2010) ressaltam que “é notável o impacto trazido pela
internet e todas as maravilhas proporcionadas por ela [...]” (p. 1). Contamos com
recursos ampliados cotidianamente para comunicação, transmissão de dados e
rápido acesso a informações por intermédio da Web 2.0. Uma das ferramentas
proporcionadas pela Web 2.0, muito utilizada pelos usuários para assistir e postar
vídeos, entre outras coisas, é o YouTube, um site que oferece recursos audiovisuais.
De acordo com os autores, esse website tem características relevantes: pode ser
utilizado por quem queira se autopromover, como um meio de propagação da
imagem, por quem queira ver e ser visto; os sujeitos sociais podem se abastecer de
conteúdos sem dono, passíveis de ser possuídos por qualquer um que tenha acesso
à Web 2.0.
Diante dessas tecnologias, meios pelos quais os sujeitos sociais
podem transgredir e contestar, quebrando barreiras, ultrapassando fronteiras e
também se construindo, entre outras possibilidades, é que se situa o desabafo de
Dandara, divulgado no YouTube, como meio de legitimar-se como pessoa que
importa, questionar atos de fala performativos de gênero, raça e sexualidade, que
inferiorizam mulheres negras, sem o receio de ter sua face agredida
presencialmente. Mesmo com as ofensas sofridas nas redes sociais, a web é
também um espaço de esperança para os corpos não legitimados e marcados como
inferiores (MELO, no prelo), porque eles têm a possibilidade e a oportunidade de
contestar.
Sendo assim, a presente pesquisa tem um cunho etnográfico virtual,
realçando a preocupação com a visão dos participantes no contexto social
(CAVALCANTI; MOITA LOPES, 1991). De acordo com o Laboratório de Etnografia e
Estudos em Comunicação, Cultura e Cognição da Universidade Federal Fluminense
(2002, p. 1),

A pesquisa etnográfica apresenta e traduz a prática da observação, da


descrição e da análise das dinâmicas interativas e comunicativas como uma
das mais relevantes técnicas.
45

Segundo Hine (2000, 2005) e Guimarães (2005), a etnografia


necessita ser repensada e adaptada para novos contextos, como por exemplo, o
ambiente online. Isso se deve à grande demanda do cotidiano, permeada pelas
TICs. Ainda segundo Hine, por intermédio da etnografia virtual seria possível
investigar as práticas e interações vivenciadas em contexto online, e de que forma
isso ocorre através das TICs. Nesse sentido, e de acordo com Pieniz (2009), a
etnografia virtual é um espaço onde “os sujeitos têm um ambiente onde podem
desenvolver todo o seu poder de imaginação, simulacro e dissimulação com as
artimanhas das tecnologias e por isso este é um espaço fértil para pesquisa acerca
do ser humano e suas potencialidades” (p. 11). Considerando, ainda, Melo e Moita
Lopes (2014), na etnografia virtual “as noções de presença, espaço e temporalidade”
(p. 551) são conduzidas para essa mediação tecnológica, possibilitando a
compreensão do universo on/ off-line; como exemplo, nesta investigação temos o
YouTube, uma ferramenta de interação que nos proporcionou observar como as
práticas sociais e interações ocorreram a partir da veiculação do vídeo desabafo.
Assim sendo, a presente pesquisa é de cunho etnográfico virtual
porque, primeiramente, acompanhamos a publicação do site YouTube por mais de
seis meses, observando os comentários e também o compartilhamento no
Facebook. Ressaltamos que no Facebook, inicialmente, a seguimos em sua página
pessoal, passando em um segundo momento a acompanhá-la com mais
regularidade em sua página “Dandara Figura Pública”, visto a sua página pessoal ter
sido excluída, como mencionaremos a seguir.

3.2 CONTEXTO DE PESQUISA

Durante o mês de agosto e início do mês de setembro de 2014, com o


anúncio e a divulgação da minissérie “Sexo e as Negas” na TV, surgiram vários
debates fervorosos sobre o tema abordado nessa minissérie nas diversas mídias
sociais. A minissérie estreou logo depois, no dia 16 de setembro de 2014, sendo
transmitida pela emissora Globo às terças-feiras, após às 22h (Figura 1).
46

Figura 1 – Slogan com as protagonistas da minissérie


Fonte: Rede Globo de Televisão

Como já mencionado, de acordo com o autor, Miguel Falabella, em


entrevista ao site Acontece.com (2014)10, a minissérie foi inspirada na série norte-
americana “Sex and the city”, como uma paródia brasileira. O elenco traz quatro
mulheres negras como protagonistas, baseando-se no cotidiano dessas mulheres
em uma comunidade carioca, Cidade Alta de Cordovil.
No próprio mês de setembro de 2014, após veiculação de chamadas
na emissora sobre a nova minissérie “Sexo e as Negas”, as notícias e os debates
prosseguiram. De acordo com o jornal O Povo online11, matéria de Paulo Renato
Abreu publicada em 08 de outubro de 2014, a série dividiu a opinião pública. Houve
denúncias de racismo e ameaças de boicote (Figura 2), e muitas reclamações foram
recebidas pela Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
Nesse contexto de turbulências, protestos e críticas à minissérie, foi publicado no
YouTube o desabafo de Dandara, negra de posição social e profissional de
destaque, graduada em Direito, com um desabafo sobre as referências difundidas
pela TV em relação às mulheres negras.

10
ACONTECE.COM. Disponível em: <http://www.acontece.com/?p=33182. Acesso em: 30 out
2014.
11
O POVO ONLINE. A polêmica da série Sexo e as Negas. Disponível em: <http://www.opovo.-
com.br/app/opovo/vidaearte/2014/10/08/noticiasjornalvidaearte,3327661/a-pole-
mica-da-serie-sexo-e-as-negas.shtml>. Acesso em: 07 out. 2015.
47

Figura 2 – Imagem de boicote à minissérie


Fonte: O Povo online (8 out 2014)

Outras manifestações aconteceram nas mídias e nas redes sociais,


como por exemplo, a página do Facebook “Mulher negra”, criada em 05 de
setembro de 2014, logo após a divulgação da minissérie. Cabe observar que o
intuito dessa página era o de lançar a hashtag #sexoeasnegasnaomerepresenta
(Figura 3), promovendo assim uma grande manifestação nas redes sociais, com o
objetivo de boicotar a apresentação da minissérie. Isto pode ser constatado pela
mensagem deixada no perfil da página: “Após criarmos uma mobilização nacional
contra o programa da rede globo ‘Sexo e as Negas’ seguiremos refletindo sobre a
representação da mulher negra na tv” . Diversas pessoas se envolveram, publicando
e compartilhando a hashtag, que logo se propagou pelas redes. Ressaltamos
também a abertura da página “Sexo e as Negas, não me representa”, em 08 de
setembro 2014, com a manifestação e publicação da hashtag
“sexoeasnegasnãomerepresenta” por diversas pessoas.
48

Figura 3 – Hashtag Sexo e as nega não me representa


Fonte: Mulher Negra, Facebook (8 set 2014)

Vale lembrar, também, que ocorreram dois atos públicos contra a


minissérie “Sexo e as Negas” em Salvador (BA), o primeiro com o slogan “Desligue
o racismo, assuma o controle”, em 30 de setembro de 2014, às 12h00, em frente à
Rede Bahia, afiliada da Rede Globo. O segundo ato aconteceu com a legenda já
mencionada (“Cala a boca, Falabella”), no dia 03 de outubro de 2014, às 19h00, em
frente à Casa do Comércio. A divulgação do Ato Público “Cala a boca, Falabella”
(Figura 4) foi postada na página da “Mulher Negra”. Como se pode observar, a
legenda é um trocadilho com o bordão “Cala a boca, Magda!”, criado pelo autor da
minissérie em questão.

Figura 4 – Conclamação para Ato Público


Fonte: Mulher Negra, Facebook
49

De acordo com o Conselho Regional de Assistência Social da Bahia


(2014), o ato declara que “a discussão e o combate ao histórico processo de
esteriotipação e cristalização da mulher negra como objeto sexual é uma pauta
fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária”. Com isso,
pode-se perceber que a sociedade não está mais alheia aos atos de fala
performativos que levam à exclusão e causam sofrimentos, passando a se fazer
presente nas redes sociais, nas ruas e na TV para manifestar repúdio à
disseminação desses estereótipos sobre as mulheres negras, que foram construídos
social, cultural, histórica e discursivamente.
Em 10 de setembro de 2014, o blog “Blogueiras Negras” lançou uma
carta aberta a Miguel Falabella sob a frase “Ah! Branco, dá um tempo!”,
questionando-o sobre a minissérie (ver ANEXO B). Algumas frases se destacam na
carta: “Isso não é sobre sexo. É sobre denunciar um sistema perverso que exclui as
mulheres negras de todas as esferas e nos torna menos que humanas”. A respeito
da perpetuação das imagens estereotipadas, a carta declara:

Repudiamos suas palavras porque fomos estupradas nas senzalas e


continuamos a ser na dramaturgia feita por brancos sobre nós através de
imagens estereotipadas em seriados, novelas e minisséries. Esse é um dos
mecanismos que a aliança entre o racismo usa para se perpetuar:
hipersexualizando a mulher negra que se torna desprezível para outros papéis
sociais. Você fala da mulata quente, gostosa, fogosa. Somos muito mais que
isso. Precisamos ser mostradas como as mulheres do dia-a-dia, que trabalham,
dançam, fazem festa e querem sexo sim, mas que não são apenas isso.
(BLOGUEIRAS NEGRAS, 2014)

O Diário do Centro do Mundo (DCM) 12, em dia 22 de novembro 2014


publicou matéria criticando a minissérie por colocar negras como protagonistas,
contudo sem conseguir deixar de “associá-las à pobreza, baixa qualificação e
sexualidade exacerbada”. Atenta, ainda, para o racismo que já se apresenta logo no
título da minissérie: “Remete ao passado colonial onde senhores usufruíam
livremente dos corpos das suas escravas”. Nessa perspectiva, observamos que
Giacomini (2012) atenta para o modo como os atos de fala performativos sobre
essas mulheres estão ainda em evidência nas práticas sociais nos tempos atuais.

12
SACRAMENTO, M. O erro de avaliação de Jean Wyllys ao defender a série “O Sexo e as
Nega”. Diário do Centro do Mundo (DCM). Disponível em: <http://www.diariodocentrodomun-
do.com.br/o-erro-de-avaliacao-de-jean-wyllys-ao-defender-a-serie-o-sexo-e-as-nega/ > Aces-
so em: 27 jan 2016.
50

Vale destacar que a matéria também cita a crítica da romancista moçambicana


Paulina Chiziane, que vê o Brasil como um país branco por considerar os programas
da TV brasileira propagadores da imagem negativa das/os negras/os. De acordo
com o DCM (2014), a romancista acrescenta: “Só vemos negros como carregadores
ou como empregados domésticos. No topo estão os brancos. Esta é a imagem que
o Brasil está vendendo ao mundo”; ou seja, o branco mandando e negro varrendo,
completa Chiziane (p. 2). De acordo com Derrida ([1972]1991), pela noção de
iterabilidade a assimilação desses atos de fala performativos torna-se,
aparentemente, naturalizada pela sociedade.
O vídeo sob o título “Dra. Dandara sobre a série ‘Sexo e as Negas’”
tem duração de 1m46s, tendo sido publicado em 13 de setembro de 2014 no canal
da Dandara no YouTube, com a seguinte abertura: “Fiz esse vídeo na quinta...
Nunca esperei que alguém quisesse vê-lo nesse canal... Enfim, era um desabafo! E
espero que as pessoas o tenham como desabafo mesmo...”.
A autora do vídeo o disponibilizou também em sua página no Facebook
no dia 11 de setembro de 2014. O vídeo se propagou pelas redes sociais em
grandes proporções, sendo curtido e comentado por diversas pessoas – alguns/mas
alinharam-se ao desabafo, fizeram elogios, identificaram-se com Dandara, e houve
também quem se opusesse às críticas ali presentes. Dandara fez o vídeo antes da
minissérie ir ao ar, após ter acesso a blogs, sites, compartilhamentos de pessoas no
Facebook e diversos comentários de movimentos que lutam em prol de negros/as,
pelo próprio título que sedimenta estereótipos sobre mulheres negras.
Percebemos que, na página do Facebook, cotidianamente Dandara
postava questões sobre raça, relatava algumas questões sobre seu dia a dia – por
exemplo, livros que estava lendo ou havia adquirido, alguns sobre história de
negros/as ou romances, falava sobre questões políticas e sociais, fazia alguns
desabafos; enfim, tinha uma rotina de postagens que, a nosso ver, a revelava como
uma pessoa contestadora, o que podia ser observado por meio das mensagens
postadas. Havia Também constante interação dos/as amigos/as, que comentavam e
curtiam seus posts.
Paralelamente, Dandara gravou alguns vídeos, um deles publicado em
16 de setembro de 2014, sob o título “Vídeo debatendo sobre a questão do vídeo
anterior e visibilidade”; outro, em 24 de novembro de 2014, continha entrevista dada
à TV Brasil para discutir sua crítica e posicionamento sobre a minissérie “Sexo e as
51

Negas”, sob o título “Ver TV entrevista a advogada Dandara”. Nesta entrevista, ela
rebatia as críticas recebidas pelo desabafo em vídeo e também analisava o
posicionamento da televisão em relação ao racismo. Vê-se ainda a intervenção do
marido, após algum tempo, demonstrando preocupação com a imagem da
advogada. Em algumas mensagens, Dandara posta os pedidos do marido para que
cessasse com os comentários e publicações sobre as questões polemizadas.
A Web 2.0, como já mencionado, apresenta um espaço de
coexistências – uma “terra de ninguém”, termo utilizado pelos usuários para designar
que as redes são um território sem dono, em que os sujeitos sociais sentem-se livres
para se expor, seja por imagem, discursos etc. Neste caso, percebe-se que
Dandara, inicialmente, não presumia a repercussão do vídeo desabafo.
Posteriormente, em 24 de junho de 2015, constatamos que a mesma havia retirado
o vídeo do seu canal no Youtube, verificando em seguida que sua página pessoal no
Facebook também havia sido excluída. Ao pesquisar por “Dandara” no YouTube,
notamos que o vídeo estava em outro canal, publicado por outro usuário.
Igualmente, ao buscarmos por seu nome no Facebook, localizamos apenas
“Dandara, figura pública”. A partir de então passamos a acompanhar essa página do
Facebook. Após alguns meses, no dia 03 de dezembro de 2015, o administrador da
página de Dandara, Douglas Daniel de Sá, postou a seguinte mensagem:

Bem amigos aqui é o Douglas De Sá administrador e criador da página da


Dra. Dandara, a tempos não a vejo e não tenho contato, não acho mais sua
conta no Facebook ela não me deu noticia, não notificou nada, era uma
pessoa sempre presente aqui e em seu Facebook então ela está realmente
afastada eu não sei o que houve ou o porque. Este é só um esclarecimento
a todos que curtiram e colaboraram com a página meu muito obrigado.

No mesmo dia 03 de dezembro, às 16h30, Dandara manifestou-se


sobre a postagem do administrador de sua página de figura pública no Facebook,
utilizando a página de uma amiga para justificar sua saída das redes sociais:

Douglas, estou usando o face da minha amiga Keyla, Coordenadora do LFG


de LFG Resende, sou eu Dandara. Não precisa excluir a página... Mas você
lembra que eu nunca entendi bem como isso funciona!!! Me explica e posto
por aqui algumas coisas... Continuo no ativismo e na vida privada
trabalhando pelas causas que são importantes... Sinto falta das nossas
conversas e do facebook... Eu realmente excluí minha página. Por vários
motivos: meu foco está nos estudos. E a violência de algumas postagens.
Ameaça de estupro, morte e toda essa sorte de violência e impropérios
recebi nos comentário na minha página no youtube e inbox. Fiquei triste e
resolvi sair. Sinto, porque muita gente boa estava no meu face... Fica assim,
como eu sou louca mesmo, anota o meu email: [...] e depois te mando meu
tel! Um beijo cheio de carinho e com muita saudade... Obrigada por tudo...
52

Consideramos relevante ressaltar, ao tratarmos de questões da pós-


modernidade, ou ainda, como já mencionado, da Modernidade Reflexiva, que a
internet é o espaço do híbrido. Segundo Moita Lopes (2010), a Web 2.0 é ao mesmo
tempo um espaço privado e público, que permite que alguns sujeitos sociais a
utilizem para discussões e debates sobre vida política, privada etc., acreditando
poderem transgredir anonimamente, longe de olhares de punição e vigilância, sem
precisar sair de casa, ou seja, longe de possíveis constrangimentos. “A tela do
computador deixa de ser somente um local onde se busca informação e passa a ser
principalmente um lugar de construção, de disputa, de contestação de significados”
(MOITA LOPES, 2010, p. 398).
Ainda de acordo com o estudioso, a ideia da Web 2.0 é ampliar “as
possibilidades de relacionamentos sociais para além dos horizontes tradicionais (do
mundo da família, da escola, dos amigos etc.), colocando-nos de forma dramática
frente a frente com a alteridade e com a politização da vida social” (p. 398). Por
outro lado, entende-se também como um lugar que alguns sujeitos sociais utilizam
para ameaçar, agredir, praticar injúria racial, ofender, oprimir etc.; ou seja, o que
antes poderia de certa forma “protegê-los”, por estarem atrás das telas e não terem
suas faces expostas, hoje oferece essas possibilidades híbridas. Por outro lado,
essa questão coloca o Direito em ação na internet, ambiente em que diversas
pessoas têm se sentido ofendidas, ameaçadas e agredidas, o que as leva, cada vez
mais, a recorrer à justiça com o intuito de se defenderem. Considerando Butler
(1990) e pensando na questão da web, ao fazer seus ataques online o agressor e
aqueles que compartilham ofensas são responsáveis pela ação que realizam ao
enunciarem.
Em 20 de janeiro de 2015, ao pesquisar no YouTube o vídeo desabafo,
notamos que havia mais um vídeo publicado em 03 de dezembro de 2015 por
Dandara, sob o título “Injúria Racial na Rede”. Nesse vídeo ela confirma a exclusão
do vídeo e da sua página pessoal no Facebook, aproveitando para exibir, por meio
de cartazes impressos, as citações das ofensas e ameaças recebidas, das quais
destacamos algumas por considerá-las relevantes para esta investigação: “Não
entendi o que ela disse. Não falo macaquês”, “Pra esse pessoal, tudo é racismo”,
“Essa daí, só serve pra estuprar”. Observa-se, então, que a Web 2.0 é também um
espaço de agressão e comentários depreciativos, que incita discursos de ódio.
53

Percebe-se que Dandara se sentiu acuada diante das hostilidades de alguns


usuários da internet, que a motivaram a se distanciar das redes sociais, mas não de
continuar no ativismo. Considerando Melo e Rocha (2015), podemos observar como
os discursos midiáticos se transformam em ações sociais, ou seja, “não se pode
negar que os discursos que circulam atuam no mundo social de maneiras diversas,
mostrando-nos como é mitigadora do potencial da linguagem a visão de que ela está
desvinculada das ações” (p. 2). Diante disso, ressaltamos também que esses
discursos e ações sociais são postos em evidência por outros sujeitos engajados
contra discursos que ferem e que podem direcionar essas ações sociais,
denunciando e cobrando da sociedade outras formas de combater o racismo e o
preconceito. Dessa forma, é relevante salientar que, a exemplo dessas ações, temos
o cancelamento da minissérie “Sexo e as Negas”, ou seja, não haverá outras
temporadas em virtude das campanhas, protestos e denúncias ocasionadas por
grupos ativistas nas redes sociais.

3.3 GERAÇÃO DE DADOS E INSTRUMENTAL TEÓRICO-ANALÍTICO

Neste estudo, nosso material de geração de dados é o desabafo de


Dandara (ver ANEXO A)13 em seu canal, publicado no site do YouTube, com
duração de 1m46s e publicado em 13 de setembro de 2014. Optamos por esse
desabafo em vídeo de uma mulher negra, advogada e de classe média, pela sua
repercussão no site do YouTube, até dia 18 de junho de 2015 às 9h30, com 60.783
visualizações, 1.569 curtidas e 63 (des)curtidas, e 333 comentários até 27 de abril
de 2015. Paralelamente, na página do Facebook da Dandara, onde foi
compartilhado o vídeo desabafo, contaram-se 2.936.130 visualizações, 18.641
curtidas e 116.508 compartilhamentos até 27 de junho de 2015. Esse vídeo nos
chamou a atenção pelo discurso de raça, gênero e sexualidade feito pela autora,
bem como pela repercussão e pelo número de comentários dele resultantes.
Com base nesse material, vale refletir sobre o construto teórico-
analítico de indexicalidade. Para Silverstein e Urban (1996, apud GUIMARÃES,
2014, p. 73) indexicalidade “é a propriedade do signo linguístico de apontar para
13
Transcrição do vídeo com base em PRETI (1999).
54

projeções semiótico-textuais, que indicam a interpretação de um ato comunicativo ao


ser localmente e culturalmente contextualizado”. Na perspectiva de Blommaert
(2010, p. 4), “indexicalidade é a dimensão do significado em que características
textuais apontam (indexam) significados recuperáveis contextualmente”. Nesse
sentido, entende-se que indexicalidade é um fenômeno léxico que aponta para
valores que categoriza. Trata também de signos que apontam para o significado, ou
seja, a indexicalidade aponta para os Discursos construídos coletiva, social e
historicamente em um contexto (trans)local. Ainda conforme Rocha (2013), o
fenômeno da indexicalidade nos sinalizaria que “[...] não há cisão entre escalas
micro e macrossociais, principalmente porque essa classificação por vezes se dá a
partir de convenções estabelecidas na teoria social” (p. 127).
Já a ordem indexical constrói, na perspectiva de Silverstein (2003),
categorias no mundo social que podem cristalizar ao longo do tempo e da história,
construindo assim “modos essencializados e específicos para certos sujeitos e
grupos sociais” (MELO; MOITA LOPES, 2014, p. 661). Em outras palavras, a ordem
indexical são os discursos, as crenças e os valores acionados no contexto translocal
ou nas grandes narrativas.
Neste processo de indexicalidade, Blommaert (2010) propõe as ordens
de indexicalidade que, segundo Guimarães (2014), obedecem a uma hierarquia: são
sistemas de valoração e normatividades institucionalizados nos processos
interacionais. Conforme Blommaert (2010, p. 32), ordens de indexicalidade são
compreendidas como “os valores, as crenças ou normas que são hierarquizados,
estratificados e apontados no processo de indexicalização de Discursos por meio de
escalas locais e translocais”. Essas escalas representam o deslocamento de
mensagens ou pessoas no espaço e no tempo, simultaneamente, regidos por
normalizações, valores e códigos. Para compreender as ordens de indexicalidade, o
autor parte do conceito de ordem do discurso foucaultiano, e a estratificação se
ancora na proposta de escalas trazidas pela Geografia. Em outras palavras,
entendemos as ordens de indexicalidade como o laço que fazemos entre valores,
crenças, discursos do translocal e para o local ao enunciarmos.
Assim, para análise das performances discursivas e das ordens de
indexicalidades, faremos uso dos índices linguísticos sugeridos por Silverstein
(1985, 2003), entendidos aqui como marcas linguísticas que sinalizam as ações
semióticas dos participantes na interação. Dessa forma, inserimos nestes índices as
55

categorias de Wortham (2001), a referência e a predicação, os descritores


pragmáticos, a citação, os avaliadores indexicais e os modalizadores epistêmicos,
entendidos da seguinte forma: a referência são elementos do mundo ao qual o
sujeito se refere, e a predicação caracteriza esses elementos mencionados. Os
descritores metapragmáticos descrevem a linguagem usual, ou seja, os verbos dos
dizeres, como falar, questionar, afirmar, perguntar, entre outros. A citação é a
referência à citação da fala do outro, recriando um momento da interação. Os
avaliadores indexicais são expressões, modos de falar específicos de alguns grupos.
Já os modalizadores epistêmicos indicam supostas verdades. Essas categorias
serão essenciais na construção de novos sentidos. Quanto à análise do cenário do
desabafo, embasamo-nos nos recursos semióticos multimodais (KRESS; VAN
LEEUWEN, 1996), porque nos ajudam a identificar as performances discursivas de
raça de Dandara.
56

4 AS PERFORMANCES DISCURSIVAS E AS ORDENS DE INDEXICALIDADE DE


GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE NO DESABAFO DE DANDARA

Neste capítulo, analisaremos as performances discursivas e as ordens


de indexicalidade de raça, gênero e sexualidade no desabafo de Dandara. Tomamos
como ponto de partida a análise do cenário, e em seguida apresentamos a análise
do texto desabafo.

4.1CENÁRIO: PERFORMANCES DISCURSIVAS E ORDENS DE INDEXICALIDADE

O desabafo foi veiculado em forma de vídeo, circulando na Web 2.0,


passando pelo Facebook, Twitter e por alguns blogs, entre outros, e foi produzido no
ambiente de trabalho de Dandara, percebido tanto pelo cenário como pelos índices
linguísticos o vídeo é rapidinho porque eu preciso trabalhar. O cenário é composto
por uma mesa, supostamente em L em virtude da disposição dos objetos e das
imagens do cenário, cadeira de couro e objetos de decoração do ambiente como a
estátua da justiça, uma cafeteira, uma xícara e um porta-retrato, todos em cores
escuras – preta e marrom –, que podem sinalizar seriedade e profissionalismo.
Podemos observar que a autora do desabafo está em primeiro plano, sentada em
uma cadeira executiva preta, enfatizando o ambiente profissional. Ela traja uma
camisa social de grife com símbolo Dudalina, na cor rosa pink, com gola e pulso em
detalhes florais, cor associada ao universo feminino; maquiagem discreta e bem
definida, acionando uma performance discursiva de raça de mulher bem sucedida;
usa duas joias no pescoço; cabelos soltos e bem cuidados; óculos de grau na cor
dourada; relógio dourado no braço esquerdo, aliança dourada de casamento e anel
de formatura no dedo anelar da mão esquerda, mostrando sua formação em Direito;
no braço direito, uma pulseira prata larga. Percebemos pelo cenário e pela mulher
negra como centro que ela encena performances discursivas de uma mulher negra,
profissional bem-sucedida, educada e cujos símbolos do direito (estátua da justiça e
57

anel) sinalizam uma profissão de status. Tudo isso mostra que Dandara se distancia,
assim, das personagens da minissérie “O sexo e as Nega”.
Dandara apresenta sotaque carioca; sua voz muda de entonação ao
longo da fala, e o registro é o oposto ao utilizado no Direito, ou seja, uma fala
coloquial que pode atingir uma audiência diversificada. Ao longo do desabafo,
Dandara muda a posição do corpo, encostando-se um pouco mais na cadeira, e se
expressa com a mão esquerda ao apontar as predicações de Cris Vianna. Ao longo
de sua fala, ela mantém uma postura sempre vertical, posicionando-se frente à
câmera com avidez e demonstrando com clareza o seu objetivo. Dandara sinaliza
uma performance discursiva de uma mulher negra estudada, firme, conhecedora dos
estereótipos raciais atribuídos às mulheres negras, contestadora desses
estereótipos.
Em outro momento de seu desabafo, ao falar da necessidade de outros
discursos sobre a mulher negra, Dandara aponta para a decoração que está em
segundo plano, especificamente para duas esculturas da Deusa da Justiça, uma
delas menor, que, de acordo com o Dicionário de Símbolos (2008) 14, representa “um
conceito abstrato de aplicação universal, e é somente através dela que se pode
organizar e equilibrar o caos do mundo, e o caos que vive em nós mesmos”. Há
também a representação de três elementos: a Deusa com olhos vendados, que
simboliza “a imparcialidade e transmite a ideia de que diante da lei, todos são
iguais”; a balança “é representada sempre imóvel e nivelada, simbolizando o
equilíbrio das forças desencadeadas, correntes antagônicas, a ponderação e
imparcialidade da justiça”; e a espada “simboliza a capacidade de exercer o poder
de decisão da justiça, e o rigor da condenação. Quando representada em riste,
simboliza a justiça que se impõe pela força”. Nesse sentido, Dandara aciona uma
performance discursiva de mulher negra indicando que há outras profissões e outras
áreas em que essas mulheres atuam.
Já em terceiro plano, observa-se atrás das esculturas um porta-retrato
com uma foto de Dandara com o marido, foto de duas crianças negras e outras sem
possibilidade de definição; um grampeador e ao lado uma fruta (pera), a bolsa na cor
bege atrás da cadeira – elementos que reforçam a performance identitária de mulher

14
Dicionário de símbolos. 2008. Disponível em: <http://www.dicionariodesimbolos.com.br/sim-
bolos-justica/>. Acesso em: 14 out. 2015.
58

negra bem sucedida, defensora da verdade e da justiça, mobilizando as ordens de


indexicalidade de mulher negra que não se vê representada com os estereótipos
que a minissérie retrata.

4.2 AS PERFORMANCES DISCURSIVAS E AS ORDENS DE INDEXICALIDADE NO


DESABAFO

Nesta seção, apresentamos as performances discursivas e as ordens


de indexicalidade de gênero, raça e sexualidade observadas no desabafo de
Dandara. O texto trata da questão da minissérie “Sexo e as Negas”, de Miguel
Falabella, veiculada no ano de 2014. Como já mencionado anteriormente, esse
desabafo circulou na web e foi visualizado por milhões de internautas, sinalizando a
importância da temática racial interseccionada por gênero e sexualidade.
Salientamos que as performances discursivas identificadas no cenário
estão em consonância com o texto verbal de Dandara. Tal questão pode ser
percebida ao longo desta análise. Mesmo estando em um ambiente de trabalho,
Dandara emprega uma linguagem coloquial, com termos que podem ser
compreendidos por qualquer pessoa, já que a temática não está relacionada
diretamente ao trabalho da advogada. Tal linguagem pode ser percebida, por
exemplo, pelos índices linguísticos fala dessa parada aí, peraí, né, vamo etc.
No trecho a seguir, percebemos uma performance discursiva de uma
mulher negra atualizada, que acompanha a discussão racial ocorrida naquele
momento e escolheu entrar no debate ocasionado pelo lançamento do programa
televisivo:

Éh... então... resolvi fala dessa parada aí do “Sexo e as Nega”...

Os índices linguísticos resolvi, verbo do pretérito perfeito do indicativo;


falar, verbo no presente do indicativo; e os avaliadores indexicais parada aí, termo
informal que não condiz com o ambiente de trabalho em que Dandara se apresenta,
que também indica falta de algo melhor para se referir e uma gíria normalmente
usada por alguns grupos cariocas, sinalizam repulsa pela temática da minissérie
“Sexo e as Negas”. Os termos Éh e então são empregados para introduzir o objetivo
59

do desabafo, que é tratar da minissérie em questão.


Observamos a mesma performance discursiva de mulher negra,
atualizada, e ainda outra performance discursiva de uma mulher negra conhecedora
de discussões sobre a temática racial ao tratar da questão da representatividade de
mulheres negras na televisão. Tal aspecto mostra também uma consonância com
movimentos negros e coletivos. Isso é sugerido por o problema é a referência, as
meninas crescem sem vê uma negra juíza, uma negra promotora, uma negra
defensora e uma negra médica. A repetição dos índices linguísticos sem vê pode
indicar o quanto são raras as mulheres negras ocupando cargos de prestígio, como
discutido na introdução deste estudo, ao mencionarmos o IBGE:

Eu penso o seguinte... o problema é a referência... as meninas crescem


sem vê uma negra juíza... sem vê uma negra promotora... sem vê uma
negra defensora... sem vê uma negra médica...

Dandara, através da expressão eu penso o seguinte, sinaliza que


refletiu sobre o debate que ocorria na época sobre “Sexo e as Negas” e tem um
posicionamento claro sobre a questão. As referências e as predicações negra juíza,
negra promotora, negra defensora e negra médica indicam que Dandara encena
uma performance de mulher negra que gostaria de ver outras representações de
mulheres negras na televisão, em cargos não estereotipados e sim atuando em
carreiras de prestígio. A advogada demonstra preocupação com a representatividade
sempre negativa de mulheres negras, por meio de referências como problema,
referência e meninas; o verbo crescem no presente do indicativo e a preposição sem
mostram ausência de exemplos mais positivos para a nova geração de mulheres
negras. No desabafo, observamos ainda a repetição do verbo ver, dando ênfase a
profissões de notoriedade (médica, juíza, defensora). Nesse sentido, Dandara
encena performances discursivas de mulher negra engajada com a questão racial,
atualizada e conhecedora das discussões de representatividade da mulher negra na
mídia. Quanto à ordem de indexicalidade acionada nas performances discursivas
citadas, por meio dos índices linguísticos problema, referência e meninas, deve-se à
falta de representatividade de mulheres negras.

Eu:: não consigo imagina... que... em nenhum lugar do mundo uma mulher
linda como a Cris Viana... por exemplo... longilínea magérrima com aquele
sorriso aquele cabelão... seria empregada do/doméstica... SÓ::... nas
novelinhas...
60

Além disso, no excerto acima, identificamos três performances


discursivas: a primeira delas se refere à crítica de representar na televisão as
mulheres negras apenas como domésticas; tal aspecto pode ser percebido pelas
referências e predicações mulher, longilínea, magérrima, linda, pela expressão não
consigo imagina, nas novelinhas empregado pelo diminutivo “inha”, sugerindo uma
fala irônica e sinalizando que a TV costuma trazer para as telas referências
inferiorizantes sobre as mulheres negras. A segunda se refere à performance
discursiva de uma mulher que compreende, através dos índices linguísticos eu,
consigo, imaginar, nenhum e pelos marcadores de lugar lugar do mundo, pelas
referências e predicações mulher linda, longilínea, magérrima, com aquele sorriso e
aquele cabelão, pelo verbo no futuro do pretérito seria e pela profissão empregada
doméstica, que para exercer a tal função não se pode ter uma boa aparência. Pelos
mesmos índices linguísticos, observamos a terceira e última performance discursiva
da autora do desabafo, a de que as mulheres negras, com cabelão, com aquele
sorriso etc. ocupariam cargos de prestígio. Todas as marcas corporais citadas por
Dandara estão relacionadas ao corpo da mulher negra, mas dão a dimensão de
como o corpo, ainda que por suas partes, instaura sujeitos, sobretudo, mulheres.
Nas performances discursivas mencionadas, Dandara mobiliza
localmente as ordens de indexicalidade de que as mulheres negras são apenas
apresentadas na televisão como domésticas, e de beleza como critério para exercer
profissões de notoriedade, sugerida pelos índices linguísticos mulher, linda,
longilínea, empregada doméstica, seria, consigo, imaginar e novelinhas.
Percebe-se também que, por meio dos índices linguísticos então,
peraí, né, vamo, muda, e das referências assunto e foco, Dandara exige uma
mudança na forma de retratar as mulheres negras na televisão. Identificamos aqui
uma performance discursiva de uma mulher negra crítica que exige mudanças na
representatividade de corpos negros femininos:

Então... peraí né? vamo muda de assunto... vamo muda o foco...

Através dos índices linguísticos de referências e predicações preta que


sacode a bunda, preta extremamente sexy e gostosa; do verbo pega no presente do
indicativo; e dos avaliadores indexicais tá chato e tá cansando, Dandara encena
uma performance discursiva de uma mulher negra que reivindica outras
61

representatividades para as mulheres negras na televisão. Outra performance


discursiva da advogada é de crítica à exploração ao corpo dessas mulheres como
objeto, sugerido pelos mesmos termos linguísticos citados.
Além disso, percebe-se uma ordem de indexicalidade na comparação
entre preta e negra. Nesta hierarquização, o primeiro compreendido como negativo –
preta que sacode a bunda, preta extremamente sexy, gostosa, preta com a bunda
na laje, preta assim, preta na televisão, preta do pagode, preta do samba, preta do
esquenta, preta do funk; e o segundo como positivo, através das referências e
predicações negra juíza, negra promotora, negra defensora, negra médica e eu sou
negra:
Essa coisa de/da preta que sacode a bunda para ganhar dinheiro... da preta
extremamente sexy... gostosa... que pega todo mundo... tá CHAto... tá
cansando...

Já em relação à sexualidade, Dandara mobiliza uma performance


discursiva de raça, mencionada pelos recursos linguísticos eu, pronome de primeira
pessoa do singular; sou, verbo do presente do indicativo; da predicação e referência
negra, do pronome possessivo no singular meu e pelo modalizador epistêmico sexo
é privado e da expressão foro íntimo, que significa “juízo da própria consciência” de
acordo com o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2004). Estes termos
sinalizam que Dandara defende para as mulheres negras uma sexualidade que não
diz respeito a outros, como algo que pertence somente a cada uma das mulheres
negras intimamente, que não deve ser discutido publicamente:

Eu sou NEgra e o meu sexo é privado... é assunto de fôro íntimo...

Quanto às ordens de indexicalidade na performance discursiva


mencionada, Dandara aciona crenças, discursos do translocal para sua fala de que
a sexualidade não deve ser discutida com estranhos, tampouco publicamente.
Por meio da expressão meu trabalho ta aqui óh, é esse aqui e faço
isso para ganha a vida, Dandara aponta para a escultura Deusa da Justiça, como
percebido nas performances discursivas do cenário, encenando uma performance
discursiva de distanciamento com as pretas do pagode e da minissérie. Ao apontar
para a estátua e pelos índices linguísticos meu trabalho, faço isso, ela também
encena uma performance discursiva de advogada, bem sucedida e de prestígio:

Meu trabalho... tá aqui óh... é esse aqui... eu faço isso para ganha a vida...

Aqui Dandara mobiliza, por meio dos índices linguísticos apresentados,


62

as ordens de indexicalidade de trabalho digno e trabalho indigno, ou ainda de


influência, a partir do momento em que se volta para a estátua da Deusa da Justiça,
que representa sua profissão, o Direito. Ela ainda aciona a ordem de indexicalidade,
em seu contexto local, de outras representatividades para as mulheres negras para
além daquelas que inferiorizam tais corpos e os objetificam.
A performance discursiva de uma mulher negra contestadora, que
questiona a representação negativa das mulheres negras na televisão, sempre
mostradas em performances discursivas depreciativas, pode ser observada pela
pergunta Então por que que toda hora na TV... tem essa história de preta gostosa...
preta com a bunda na laje... preta assim... pre...? No mesmo excerto, Dandara
encena a performance discursiva de uma mulher negra, cansada da repetição dos
mesmos atos de fala discursivos e corpóreos sobre as mulheres negras, sugerido
pelo índice linguístico chega.

Então POR que que toda HOra na TV... tem essa história de PREta
gostosa... PREta com a bunda na laje... PREta assim...PRE...? CHEga!

Portanto, a autora do desabafo aciona em sua fala ordens de


indexicalidade de hierarquia de classe social – preta pertence a classes menos
favorecidas e negra a classes favorecidas. Nesse sentido, através dos índices
linguísticos apontados, Dandara mobiliza, ainda localmente, a ordem de
indexicalidade de distanciamento entre a mulher negra bem sucedida e a mulher
negra em posição inferior, que é indexicalizada no uso da predicação negra para
profissões de status e da predicação preta para se referir à mulher negra em outros
ambientes, contrariando assim as propostas das Teorias Queer, pois apaga outras
possibilidades de ser mulher negra (BARNARD, 2004).

Miguelito... MUda de assunto... VAmo faze outra COIsa... sabe? vamos falar
de OUtra coisa... eu quero OUtras referências... eu quero OUtro tipo de
preta na televisão... não a preta do pagode... não a preta do samba... não
quero a preta do esquenta... não quero a preta do funk... NÃO... eu quero
OUtro tipo de mulher negra sendo retratada na televisão...

No excerto acima, observamos uma performance discursiva de uma


mulher negra cansada dos atos de fala performativos que constroem as mulheres
negras de uma única maneira (preta do pagode, preta do funk). Dandara exige que
se trate a mulher negra de outras formas, o que é observado pelas expressões
muda de assunto, vamo faze outra coisa e vamos fala de outra coisa. Pode-se ainda
63

notar que Dandara direciona seu desabafo para o idealizador da minissérie “Sexo e
as Negas”, Miguel Falabella, ao qual ela intimamente chama Miguelito, com certo
tom de crítica. Dandara sinaliza em sua performance discursiva de raça, através dos
índices linguísticos evidenciados pelo verbo quero, presente do indicativo, pelos
índices linguísticos outras referências e outro tipo de preta na televisão, pelo não,
advérbio de negação, pelas referências e predicações preta do pagode, preta do
samba, preta do esquenta e preta do funk, conotando uma exigência e proposição
de Dandara sugerindo que a TV retrate a mulher negra em condições que a
valorizem. Isto pode ser percebido pelos índices linguísticos indicados pelos
modalizadores epistêmicos eu quero outro tipo de mulher negra sendo retratada na
televisão.
Por conseguinte, por meio dos índices linguísticos mencionados aqui,
observa-se que as performances discursivas de Dandara são de questionar a
desvalorização das mulheres negras ao serem representadas pelos programas de
televisão. Outra performance discursiva, observada pelos usos dos índices
linguísticos quero outro tipo de preta na televisão, não a preta do pagode, não a
preta do funk, é de uma mulher negra, segura, exigente e conhecedora de que as
mulheres negras podem ocupar outros espaços e trabalhar em carreiras de
prestígio. Aqui Dandara aciona as ordens de indexicalidade de novas
representações para as mulheres negras, de contestação da única forma de retratar
essas mulheres. Verifica-se novamente uma ordem de indexicalidade de
comparação entre a mulher preta e a mulher negra, a primeira construída como
aquela que ocupa espaços estereotipados pela mídia, e a segunda como aquela que
tem a possibilidade de ocupar novos espaços.
Já no excerto abaixo, Dandara ressalta não ter televisão por não se
ver retratada nos programas, o que pode ser constatado através dos índices
linguísticos aliás, expressão que indica um complemento ao que já foi exposto, e
pelas frases é por isso que eu não tenho TV e meus amigos todos sabem disso. Por
meio dos descritores metapragmáticos na boa, percebe-se que Dandara faz
bastante uso da linguagem coloquial do meio carioca, não se preocupando com
termos complexos e sem dar muita atenção à gramática, como já mencionamos.
Dandara ainda afirma que, como mulher negra, não se vê retratada em nenhum
programa, justificado pelo índice linguístico modalizador epistêmico porque, eu e
me, pronome pessoal, não, advérbio de negação, vejo, verbo presente do indicativo,
64

retratada, verbo transitivo que indica também representada, e pela frase em nenhum
desses programas.

Aliás... é por isso que eu não tenho TV... né? já falei... meus amigos todos
sabem disso... porque... eu não/não me vejo retratada em nenhum desses
programas... então... na boa...

No próximo trecho, Dandara termina seu desabafo repetindo os índices


linguísticos vamo avança e vamo muda de assunto. Observa-se, por meio dos
índices linguísticos o vídeo é rapidinho porque eu preciso trabalha e porque nem
toda preta sacode o quadril para ganha dinheiro, uma performance discursiva de
uma mulher negra que trabalha em carreira de prestígio.

Vam/vamo avança... vamo muda de assunto... e:: aqui... o vídeo é rapidinho


porque eu preciso trabalha... porque nem toda preta saCOde o QUAdril para
ganha dinheiro... ((beijo))

Na sua fala final ela se coloca como preta, mas usa o termo quadril e
não o termo bunda, como mencionado nos índices linguísticos anteriores para se
referir à mulher preta, sinalizando que não faz uso do corpo para ganhar dinheiro.
Aqui ela aciona, através dos índices linguísticos mencionados, a ordem de
indexicalidade de comparação entre a mulher preta, como alguém que passa o
tempo sambando, e a mulher negra, como alguém que trabalha.
Quando Butler (2000) aborda o sujeito abjeto (o diferente), o que se
impõe contra as normas regulatórias, esse sujeito é então considerado uma ameaça
a essas normas, ou seja, vai contrariar uma sociedade normativa. Nesta perspectiva,
podemos constatar que Dandara age assim tentando desestabilizar essa
legitimidade de inferiorização que é dada aos corpos ébanos, e lutando para
rearticular essas normas sociais que colocam as mulheres sempre em situações de
desprestígio, que causam sofrimentos. Podemos dizer então, de acordo com as
teorias butlerianas, que Dandara é um corpo que emerge e que tem peso crítico.
Por meio dos índices linguísticos mencionados, a autora do vídeo mobiliza as ordens
de indexicalidade de que nem todo mulher negra dança para trabalhar.
Percebe-se, também, que Dandara sinaliza um distanciamento das
performances identitárias padronizadas da mulher negra, como por exemplo, ela é
construída não como a negra da favela, ela potencializa – por meio das
características apresentadas do cenário – que se orgulha da profissão, sendo uma
referência positiva de mulher negra para a sua audiência, “as mulheres negras
65

brasileiras”, evidenciando ainda que sua sexualidade não é algo a se discutir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No desabafo de Dandara, veiculado no YouTube, fica evidente sua


performance discursiva de uma mulher negra que contesta os atos de fala
performativos que sedimentam discursos que constroem as mulheres negras
negativamente e as colocam em posições sociais de desprestígio. Ela encena
também, em sua performance discursiva de raça, gênero e sexualidade, de uma
mulher negra para além desses discursos inferiorizantes. Em seu desabafo, a autora
do vídeo exige que se dê outra perspectiva de mulheres negras na TV, com outras
referências para “as meninas”. De acordo com o seu argumento, os idealizadores da
minissérie reforçam a condição de inferioridade das mulheres negras, sedimentando
os atos de fala performativos, que colocam a mulher negra sempre em uma única
situação, a de objeto de desejo sexual e empregada doméstica.
Ao longo de sua performance discursiva, Dandara mobiliza algumas
ordens de indexicalidade de raça para retratar a mulher negra na televisão,
demonstrando preocupação com as referências para a nova geração de mulheres
negras. Ao mostrar no vídeo a sua posição profissional por meio do ambiente do
trabalho, ela encena uma performance discursiva de orgulho pela profissão que
exerce enquanto mulher negra, indicando que existem diversas áreas e
possibilidades em que essa mulher pode ser retratada. Por outro lado, a
performance discursiva de raça de Dandara demonstra essencialismo no momento
em que considera a mulher negra somente em profissões de prestígio, apagando
assim outras possibilidades de ser dessas mulheres. De acordo com as Teorias
Queer, ser essencialista é algo que contraria as propostas dessas Teorias que
compreendem as subjetividades raciais como interseccionadas por gênero, raça,
classe social etc.
Ao confrontar a concepção de assunção mencionada por Butler (2000),
levando em conta a forma como Dandara se assume como mulher e negra, sem
66

demonstrar receio ao fazer um vídeo criticando as referências sobre mulheres


negras em uma minissérie, quando diz que não se vê representada em nenhum
programa etc., podemos então considerar que essa Dandara está se assumindo
socialmente como mulher negra, pertencendo então à significação de “ser levado
para uma esfera mais elevada” (p. 113), pois emerge se opondo às sedimentações
inferiorizantes impostas pela sociedade.
As mulheres negras não são representadas enquanto aquelas que
lutam por seu país, aquelas geradoras da vida, aquelas que fizeram e fazem
diferença na construção social e cultural de um país, mas que são representadas
como símbolo de sexualidade e prostituição, portadoras de uma sexualidade
antirromântica. De acordo com Henrique (2007, p. 9):

Não pode o negro continuar ocupando o lugar de exótico e selvagem”. Brasil


de mulheres com dotes avantajados, curvas e aromas de sexo na areia da
praia; bundas no fio-dental, estupro e violência praticadas pelo “homem-
pênis.

Espera-se aqui contribuir para a desconstrução e desnaturalização


desses discursos de inferiorização e a falta de visibilidade das mulheres negras,
sedimentadas histórica, social, cultural e discursivamente. Almeja-se, também,
incentivar a linha de estudos sobre a linguagem, raça, gênero e sexualidade, tão
pouco explorados cientificamente.
67

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72

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73

ANEXOS
74

ANEXO A

TRANSCRIÇÃO DO VÍDEO DESABAFO DE DANDARA

Éh... então... resolvi falar dessa parada aí do “Sexo e as Nega”... Eu penso o


seguinte... o problema é a referência... as meninas crescem sem vê uma negra
juíza... sem vê uma negra promotora... sem vê uma negra defensora... sem vê uma
negra médica... eu:: não consigo imaginar... que... em nenhum lugar do mundo uma
mulher linda como a Cris Viana... por exemplo... longilínea magérrima com aquele
sorriso aquele cabelão... seria empregada do/doméstica... SÓ::... nas novelinhas...
então peraí né? vamos mudar de assunto... vamo mudar o foco... essa coisa de/da
preta que sacode a bunda para ganhar dinheiro... da preta extremamente sexy...
gostosa... que pega todo mundo... tá CHAto... tá cansando... eu sou NEgra e o meu
sexo é privado... é assunto de fôro íntimo... meu trabalho... tá aqui óh... é esse
aqui... eu faço isso para ganha a vida... então POR que que toda HOra na TV... tem
essa história de PREta gostosa... PREta com a bunda na laje... PREta
assim...PRE...? CHEga! Miguelito... MUda de assunto... VAmos fazer outra COIsa...
sabe? vamos fala de OUtra coisa... eu quero OUtras referências... eu quero OUtro
tipo de preta na televisão... não a preta do pagode... não a preta do samba... não
quero a preta do esquenta... não quero a preta do funk... NÃO... eu quero OUtro tipo
de mulher negra sendo retratada na televisão... aliás... é por isso que eu não tenho
TV... né? já falei... meus amigos todos sabem disso... porque... eu não/não me vejo
retratada em nenhum desses programas... então... na boa... vam/vamo avança...
vamo muda de assunto... e:: aqui... o vídeo é rapidinho porque eu preciso trabalha...
porque nem toda preta saCOde o QUAdril para ganha dinheiro... ((beijo))

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xF1acmDLkio>


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ANEXO B

Ah! Branco, dá um tempo! Carta aberta ao senhor Miguel


Falabella.
Por Blogueiras Negras - set. 10, 2014 5457 101

Você me pergunta se vou dizer que você é racista, me responda você!

Racismo não é polêmica, muito menos rancor ou falta de humor. Mais que ninguém, que se pensa um de -
fensor dos direitos de seus pares negros e portanto um aliado na luta contra o racismo, deveria saber dis -
so. Deveria saber também que cogitar tal hipótese e ainda enumerar amigos negros para se defender, é vi -
ver num mundo tal de privilégio onde se pode rebater a crítica dizendo que as vozes de mulheres negras
são apenas controvérsia, ou fazer um grande esforço para esconder o próprio racismo. Quem sabe os
dois.
76

Ah! Branco, dá um tempo! Você diz que “dói” ver luta de seus colegas negros, menosprezados e invisibili -
zados por sua cor. No caso da mulher negra, tudo se agrava. Você certamente tem ciência das recentes e
tristes notícias sobre Neuza Borges, uma das maiores atrizes que temos, mas que por seu lugar de mulher
negra não encontra lugar na televisão brasileira. Vive na carne a falta da carne em seu prato porque a pró-
xima novela não acontecerá tão cedo. Vai depender da “boa vontade” de alguém, não do seu talento.

Você me pergunta se o problema é o sexo ou “as nega”, querendo desacreditar nossas críticas fundamen -
tadas não em pré-julgamento, mas em fatos veiculados na mídia. Notícias essas que agora dão conta que
de repente a Globo, antes tão entusiasmada com seu projeto, parece que já não está tão feliz assim. Você
argumenta que se trata de uma prosódia pura e simplesmente. Alega que o título da série veio de uma mu -
lher negra. Aliás, me pergunto se essa mesma mulher recebeu os devidos créditos e bufunfa por sua cola-
boração já que foi descrita por você como nada mais que um estereótipo, alguém que não merece nome,
muito menos sobrenome.

Não tem problema branco, vou enegrecer tudo novamente.

As negas, volto a explicar, não é uma questão de prosódia.

Tal expressão transforma o corpo da mulher negra em peça, como eram chamados os escravizados, a ser
consumida por uma sociedade racista. Nos coloca no lugar de mercadoria de segunda mão que não rece -
berá o mesmo tratamento da carne branca e delicada, aquela que não é “suas nêga”. A expressão é embu-
ída não apenas de pensamento escravocrata, mas também de machismo, cujas consequências sentimos
na pele por sermos mulheres negras. Trata-se portanto de uma dupla violência que categoriza mulheres de
acordo com sua cor de pele, qualidade que determinará qual o valor e o lugar que têm.

Ainda sobre o nome da série, temo que muitas pessoas não saibam a diferença entre um adjetivo racista e
um adjetivo comum. Na Bahia, nego e nega tem conotações diferentes das que tem em Recife, por exem-
plo. E dependendo do uso da frase, do tom com que se fala, de quem recebe e de quem envia a mensa -
gem, você ofende ou elogia. No entanto, a construção “não sou tuas nega” não permite outro significado
possível que não o racismo num contexto hediondo de 350 anos de escravização. E se alguém perpetua
adjetivo racista, que nome isso deve ter? Ah! Branco, me diga você!

Sua idéia, aos olhos poucos atentos ou interessados apenas em gerar lucro, pode até parecer de grande
monta. Porém, está longe de gerar visibilidade ou dignidade. Aliás, exatamente o contrário. Como quase
sempre acontece com literatura e dramaturgia feita por brancos sobre negros, nos trata como simples obje-
to de estudo, algo que pode ser manipulado e observado justamente como você faz, nos ensina a profes -
sora Lígia Fonseca Ferreira. Nada mais é que negrismo e não negritude, como tem insistido o escritor e
jornalista Oswaldo de Camargo.

Sim, estou dizendo com todas as letras que quem deve escrever para o negro e pelo negro deve ser ele
mesmo, não uma pessoa branca. Chame isso de racismo reverso se quiser. Para gente o nome disso é vi -
sibilidade, esta sim capaz de nos ter algum benefício, com poderes para mudar o modo como seremos re -
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tratadas na próxima novela, na próxima minissérie. Sem isso, nada mudará, seguiremos sendo uma socie-
dade estruturalmente racista e machista onde a mulher negra nada mais é que um estereótipo para racista
se divertir ou entreter.

Uma sociedade em que nós, mulheres negras, não somos protagonistas nem mesmo num seriado a quem
damos o nome. Sim, as notícias têm mudado, mas as primeiras davam conta de uma branca como a atriz
principal. Ela que, atrás de um balcão de bar, vai nos observar como animais num zoológico, ela quem fala
em nosso lugar. Nossa história, sofrimento e capacidade de discursar sobre nós mesmas são meros deta-
lhes. A narradora da trama, nesse caso narrador, é alguém isento desse mesmo sofrimento. Não é boba-
gem, nem caretice, nem ditadura do politicamente correto como alguns vão afirmar. É critica e zelo por
nossa memória e existência.

Você argumenta que “um programa que refletisse um pouco a dura vida daquelas pessoas, além de em-
pregar e trazer para o protagonismo mais atores negros” seria desejável. E na verdade seria mesmo. Des -
de que escrito, produzido e protagonizado por negros. Não por alguém que nem se deu ao trabalho de cre-
ditar a mulher negra que deu o título à série. Esse detalhe é causa e ao mesmo tempo consequência de to -
dos os outros: a fetichização de nossa sexualidade e corpos, a ênfase nos estereótipos, a violência simbó-
lica que a série representa.

Como pretender que nos desumanizar é visibilidade? Desde quando nos tratar como a carne mais barata
do mercado como canta Elza, a Soares, é ser aliado? Ah! Branco, dá um tempo! Suas palavras apenas en-
fatizaram suas intenções, a cada parágrafo tivemos a certeza de que nossas críticas são fundamentais e
muito bem fundamentadas, por isso incomodam tanto. Seguiremos denunciando o racismo e o machismo
daqueles que se fiam no privilégio para destilar veneno e cometer tais violências contra a mulher negra.

Isso não é sobre sexo. É sobre denunciar um sistema perverso que exclui as mulheres negras de todas as
esferas e nos torna menos que humanas. Sistema esse que também incide sobre o homem negro, alvo pri-
meiro e preferencial da violência policial e da hipersexualização do seu corpo: o “homem do pau grande” é
resultado da brutal animalização do corpo negro, sempre pronto pro sexo. Onde está a crítica desse siste -
ma na televisão brasileira? De certo não está em seu seriado, muito menos em sua fala.

Repudiamos suas palavras porque fomos estupradas nas senzalas e continuamos a ser na dramaturgia
feita por brancos sobre nós através de imagens estereotipadas em seriados, novelas e minisséries. Esse é
um dos mecanismos que a aliança entre o racismo usa para se perpetuar: hipersexualizando a mulher ne-
gra que se torna desprezível para outros papéis sociais. Você fala da mulata quente, gostosa, fogosa. So-
mos muito mais que isso. Precisamos ser mostradas como as mulheres do dia-a-dia, que trabalham, dan -
çam, fazem festa e querem sexo sim, mas que não são apenas isso.

Não estamos aqui menosprezando nem dizendo que não somos camareiras, domésticas, cabeleireiras:
também somos trabalhadoras domésticas, cuidadoras. Mas sobretudo, com as nossas conquistas e a nos -
sa luta, galgamos lugares, posições: somos diretoras, bailarinas, advogadas, publicitárias, escritoras, pro-
fessoras e médicas. Onde elas estão no seu seriado? Será que elas não moram em Cordovil? Será que
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elas não estão nas periferias? Duvido muito. NÃO aceitaremos mais ser caricaturas! Por isso a critica vai
além do nome da série, o que por si só é deveras problemático.

Ah! Branco, dá um tempo! Nem queremos crer que você está se comparando e recorrendo a Spike Lee
para credibilizar seu trabalho. Não, nos recusamos. E não é somente porque Spike Lee é preto, é porque
não vemos nada, absolutamente nada de crítica racial em “Sexo e as Nega” como vemos em “Faça a coisa
certa”. O gueto é paisagem, mas também é a vida, é a teia, é o sangue do autor que não está só observan -
do e contando sua versão dos fatos: Spike Lee está no gueto, ele é o gueto. E não alguém que não é “as
nega”, alguém que pretende que nosso único objetivo de vida é ter um parceiro sexual.

E por favor, respeite nossa memória e retire suas palavras ao nos chamar de capitães do mato. Não esta-
mos perseguindo as atrizes negras desse seriado, muito menos as mulheres reais que são representadas
pelas suas personagens. Quem conhece um pouquinho de história e dela faz um uso bem intencionado,
sabe que existem outras versões além daquela em que fomos escravizados sem lutar, viemos sem resis-
tência num navio negreiro. Não se faça de desentendido, quem criou capitães do mato não foram os pró-
prios negros.

Acusar alguém de “se tornar capitão do mato” é algo muito mais complexo do que formular uma frase. É
impossível que sejamos algozes de nós mesmos, isso é falácia. Retire sua fala e reflita sobre o que signifi-
ca nosso boicote e critica que têm como alvo um modelo e um sistema historicamente racistas, em que
nem o direito de falar, contar nossas próprias histórias e tecer criticas nós temos. Repito: isso não é uma
caçada ao povo negro nem à mulher preta e pobre. É sobre o racismo enrustidamente manifesto, sem nem
se sentir ou admitir.

Manifestamos profunda oposição a esse mundo, de quem bate e finge entender a dor daquele que apanha.
Esse mundo onde racismo agrada, é piada pronta para gerar audiência e naturalizar o racismo. Estamos
fartas do seu discurso, de programas que usam blackface, que transformam toda mulher negra em empre -
gada doméstica ou mulata globeleza. Nossos corpos não são espaço para seu deleite, divertimento, lucro
ou usufruto. Nós somos mulheres negras de pena e teclado, ciosas e autoras de nossos próprios enredos
e objetivos de vida.

Ah! Branco, dá um tempo! Quem nos silencia é racista sim.

Disponível em: < http://blogueirasnegras.org/2014/09/10/ah-branco-da-um-tempo-carta-aberta-ao-senhor-


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