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Conselho Editorial da UNICENTRO


Marcos Ventura Faria
Lucélia de Souza
Karina Worm Beckmann
Denise Gabriel Witzel
Augusto Bach
Carlos Eduardo França
Clayton Luiz da Silva
Diogo Lüders Fernandes
Gilberto Bertotti
Gilmar de Carvalho Cruz
João Francisco Morozini
Josiane Lopes
Kátia Cylene Lombardi
Luciene Regina Leineker
Marcos Antonio Quináia
Marcos Roberto Kühl
Maria Cleci Venturini
Níncia Cecília Ribas Borges
Rhuan Trindade
Willson Gerigk

Editora UNICENTRO
Rua Salvatore Renna, 875, Santa Cruz
85015-430 - Guarapuava - PR
Fone: (42) 3621-1019
editora@unicentro.br
www.unicentro.br/edunicentro
Angela Maria Moura Costa
Ana Cláudia da Silva Abreu
(Org.)

VIOLÊNCIAS CONTRA AS
MULHERES EM GUARAPUAVA
ANÁLISES CRÍTICAS A PARTIR DA AÇÃO/REFLEXÃO DO
NÚCLEO MARIA DA PENHA (NUMAPE)
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE

Reitor: Fábio Hernandes


Vice-Reitor: Ademir Juracy Fanfa Ribas

Editora UNICENTRO
Direção: Denise Gabriel Witzel
Coordenadora de Apoio à Divisão de Editoração: Renata Daletese
Assessoria Técnica: Beatriz Anselmo Olinto, Luis Marcelo Moreira
Rodrigues e Suelem Andressa de Oliveira Lopes
Secretaria: Stefane Katrini Koop
Correção: Ari José de Souza
Diagramação: Hellen Thaylane de Campos Ferreira
Estagiários: Hellen Thaylane de Campos Ferreira, João Vitor Lobo Lopes,
Maria Eduarda Godoi
Capa: Maria Eduarda Godoi

Catalogação na Publicação
Rede de Bibliotecas da UNICENTRO
Fabiano de Queiroz Jucá (CRB 9/1249)

Copyright © 2024 Editora UNICENTRO


Nota: O conteúdo desta obra é de exclusiva responsabilidade de suas autoras.
APRESENTAÇÃO 7
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO DO NÚCLEO MARIA DA
PENHA (NUMAPE): UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO NO
MUNICÍPIO DE GUARAPUAVA – PR 15
Angela Maria Moura Costa; Ana Cláudia da Silva Abreu ; Priscila Ferreira Fortini

CAPÍTULO 2
A VIOLÊNCIA COMO CATEGORIA ESTRUTURANTE
DO PATRIARCADO E A CONDIÇÃO DAS MULHERES
QUE PROCURAM O NUMAPE/GUARAPUAVA-PR 39
Ana Claudia Marochi

CAPÍTULO 3
O CICLO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
CONTRA MULHERES: DILEMAS E SUPERAÇÃO 75
Angela Maria Moura Costa; Micheli Souza Cordeiro; Bruna Almerinda
Santos de Carvalho

Sumário interativo: clique no capítulo desejado para ser direcionado à página.


CAPÍTULO 4
PERFIL DOS FEMINICÍDIOS OCORRIDOS NA
COMARCA DE GUARAPUAVA NOS ANOS DE 2015 A
2020 111
Ana Claudia da Silva Abreu; Kamila Dib Kaminski

CAPÍTULO 5
FACES E DETERMINANTES DA VIOLÊNCIA
CONTRA AS MULHERES: CONTRIBUIÇÕES
DA INTERDISCIPLINARIDADE A PARTIR DAS
REFLEXÕES DO NÚCLEO MARIA DA PENHA –
GUARAPUAVA 147
Rosângela Bujokas de Siqueira; Jully Annye Gallo Lacerda; Luana Maximo Gasperotto

CONSIDERAÇÕES FINAIS 177

SOBRE AS AUTORAS 180


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APRESENTAÇÃO

“Hoje, estamos dizendo juntas: basta!


Não queremos mais ser saco de pancada do mundo,
vítimas dos golpes e da embriaguez de companheiros.
Não queremos mais ouvir seus gritos
e estúpidas blasfêmias contra nós,
calúnias vazias e insultos constantes.
Não queremos mais que a morte seja a nossa solução,
pois nos uniram ao violador ‘até que a morte nos separe’.
Não queremos mais a eternidade nessa história”
(Diniz; Guebara, 2022, p. 34).

Hoje, sento-me para escrever esta apresentação e, por


coincidência, ou não, neste período estamos estudando o livro
“Esperança Feminista” de Diniz e Gebara (2022) em nosso Grupo
de estudos e pesquisas Feminismos e Violências de Gênero.
Hoje um dia chuvoso assim estão os meus olhos lembrando
como foi o início do Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) em
Guarapuava. Peço licença às leitoras e aos leitores e, também,
às minhas colegas pesquisadoras/autoras desta obra, para deixar
minhas lágrimas rolarem, para quem sabe refrescar a dor da saudade
que sentimos da Professora Cristiane Sonego (in memoriam).
Lembro-me como se fosse hoje o momento em que recebi
de suas mãos o edital para participar da seleção para implantar
o NUMAPE e, em seguida, o Departamento me designou para
assumir a tarefa. Minha base óssea se contorceu toda de medo,
mas a Professora Cristiane Sonego (in memoriam), disse-me:
“Eu vou com você! Eu te ajudo no início. Esse projeto é a sua
cara!” E nos primeiros embates, ela de fato foi comigo. Só para
constar: foi a Cristiane, carinhosamente chamada de Cris, que me
apresentou Saffioti (1987) e me deu o primeiro suporte para iniciar
tamanha empreitada. E foi envolvida em seu abraço, ouvindo a
sonoridade firme e terna de suas palavras que chorei todas as dores
experienciadas durante a vivência do NUMAPE.
Saffioti foi a primeira autora que estudamos no Grupo
de Estudos e Pesquisas Feminismos e Violências de Gênero, que foi
criado em 2018 por necessidade de estudar para desenvolver as
ações do Projeto de Extensão Núcleo Maria da Penha (NUMAPE).
O grupo de estudos contempla três linhas de pesquisa, sendo: 1)
Criminalização da violência de gênero; 2) Desigualdade e violência
de gênero; e 3) Psicologia e violência de gênero. Do núcleo
participam professoras, profissionais recém-formadas e estagiárias
das áreas do Serviço Social, Direito e Psicologia. Portanto, o grupo
possibilita um aprendizado constante da articulação de saberes.
Durante os quatro primeiros anos do NUMAPE em
Guarapuava, nossa equipe teve o núcleo de estudos como sua base
de formação, de pesquisas e de produção do conhecimentos. Depois
que o núcleo deixou de ser parte do Programa Universidade Sem
Fronteiras (USF) e passou a compor as ações do Unidade Gestora
do Fundo (UGF) do Estado do Paraná, o grupo de estudos passou
a funcionar separadamente do NUMAPE, mas manteve a antiga
equipe do núcleo em sua composição.
O grupo nos qualificou para atender às mulheres que
procuraram os serviços do núcleo durante todo esse tempo. E esta
obra é um dos frutos do processo vivido pela equipe. Foram quatro
anos de articulação núcleo e grupo de estudos. E são cinco anos de
tantas “Esperanças Feministas” alimentadas e vivenciadas entre a
equipe do grupo de estudos. O NUMAPE e o Grupo de Estudos
fez de nós mulheres mais livres que vislumbram um devir sem
violências e desigualdades de gênero.
Boa leitura!
Setembro de 2022
Angela Maria Moura Costa

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INTRODUÇÃO

“Mas o que escutamos e nos transforma em feministas?


Escutamos as verdades das mulheres fora dos dogmas do
patriarcado;
escutamos a criatividade, a paciência, a coragem e a
sobrevivência de mulheres
submetidas a um regime de poder cruel que as discrimina,
oprime e mata.
Precisamos de outras mulheres que nos ensinem a escutar,
por isso quanto mais diverso for o feminismo,
mais inclusiva será a nossa capacidade de transformação”
(DINIZ; GEBARA, 2022, p. 23).

No Brasil, assim como na América Latina, o


enfrentamento das desigualdades estruturais exige um olhar que
enxerga que essas relações sociais desiguais foram construídas
pelo processo de colonização e são mantidas na atualidade,
por intermédio de vários processos de desumanização. A
subalternização das mulheres é estruturante de uma sociedade
patriarcal, mas a colonialidade marca as sujeitas não só pela
divisão do gênero, ela as hierarquiza pela raça, classe social e
sexualidade, e são esses entrecruzamentos (e não a soma deles)
que permitem avaliar o desfazimento das mulheres, sobretudo
as mais vulnerabilizadas.
Desse modo, falar em violência contra as mulheres no
Brasil é pensar, primeiramente, em lugar de fala; e lugar aqui
não é usado no sentido de quem tem a fala mais autorizada para
tratar do tema e sim significa o lócus geográfico das autoras, ou
seja, estamos situadas no Sul Global, ocupamos as margens e
essas violências múltiplas que atravessam os corpos femininos
e feminizados só podem ser compreendidas desde e para as
margens. Violências que são perpetradas em corpos periféricos
que se desfazem, em um país construído como a periferia e
cujas práticas cotidianas, políticas, econômicas e culturais, nos
impõem e nos mantêm nesse lugar.
É preciso enxergar as origens coloniais da violência de
gênero, os processos que garantiram a domesticação das mulheres
brancas e a desumanização das mulheres negras e indígenas, com
o fim de controlar seus corpos e sua sexualidade e garantir o livre
acesso aos homens brancos dos privilégios do patriarcado, dentre
eles, o uso autorizado da violência.
A violência contra a mulher foi, durante muito tempo,
naturalizada e invisibilizada. Ela era considerada um assunto
da esfera íntima, até por ocorrer especialmente no âmbito das
relações domésticas, de parentesco e de conjugalidade e, por tal
razão, escondia-se sob o véu da privacidade e da intimidade. A
construção do lugar da mulher no âmbito da domesticidade serviu
como uma ferramenta para docilizar e controlar as mulheres, com
fundamento na naturalização do feminino como o sexo frágil,
socialmente inferiorizado. Essa base biológica garantiu a divisão
hierárquica entre homens e mulheres, assegurou a divisão sexual
do trabalho e delimitou os espaços público e privado, produzindo
reflexos na produção e percepção da violência contra a mulher.
A Lei nº11.340/06 (Lei Maria da Penha) rompeu essa
ordem ao visibilizar a violência doméstica ou familiar contra
as mulheres, torná-la uma questão política e um problema do
Estado, institucionalizar os direitos da mulher em situação de
violência e trazer mecanismos para assegurar a sua proteção.
No entanto, apesar da sua extrema relevância e a despeito de
tudo que ela representa, a Lei Maria da Penha foi construída a
partir de um conceito universal de mulher e tem uma concepção
colonizada da violência de gênero, pois a vincula aos âmbitos
doméstico, familiar e das relações íntimas de afeto, deixando

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de fora uma série de violências que perpassam o cotidiano das
mulheres, sobretudo as racializadas e as empobrecidas.
Portanto qualquer proposta de ação ou ideias para
aprimorar a aplicação da Lei e garantir uma maior proteção às
mulheres precisa estar ciente dos impactos patriarcais, racistas e
colonialistas, não só na perpetuação da violência contra as mulheres,
mas, também, nas ferramentas legais e judiciais de enfrentamento
a essas diversas formas de violência que atravessam os corpos
periféricos no Brasil.
Desse modo, cientes das múltiplas formas de opressão que
estruturam as sociedades modernas, a presente obra tem como
objetivo debater as violências doméstica e familiar praticadas contra
as mulheres numa perspectiva teórico-prática adquiridas a partir
das vivências das autoras no Núcleo Maria da Penha (NUMAPE),
enquanto um projeto de extensão universitária. Esta obra se
apresenta como um estudo preocupado com a interseccionalidade
e com a pluralidade, no sentido de um pluralismo que se faz
presente não apenas nas sujeitas das pesquisas, mas que se evidencia
pela diversidade de olhares teóricos sobre um mesmo tema.
Além disso, este livro está inserido em um contexto marcado por
desconstruções, subjetivas e coletivas, e por reconstruções pessoais
e teóricas que atravessam a vida das pesquisadoras.
Conforme se observará no Capítulo 1 do estudo: História
e construção do Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) no município de
Guarapuava – PR, a obra se desenvolveu como um projeto coletivo
que surgiu durante o atuar das autoras no atendimento às mulheres
em situação de violência, mas que se concretizou nas mobilizações e
reflexões do Grupo de Estudos e Pesquisas Feminismos e Violências
de Gênero, devidamente certificado pelo CNPq. Nas páginas do
capítulo inaugural, conhecemos a história do Projeto de Extensão
Núcleo Maria da Penha (NUMAPE), como foi construída a
identidade do Numape e como se deu o processo de formação

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profissional, marcado por encontros interdisciplinares, por trocas
de experiência e pela aprendizagem via vivência extensionista.
Passando por teorias e práticas, os capítulos seguintes
realizam o entrecruzamento entre a base teórica construída no
Grupo de Estudos e a realidade material vivenciada no cotidiano
do Projeto de Extensão, com o propósito de realizar um projeto
de pesquisa feminista, que enxerga as mulheres atendidas como
sujeitas de direito, não como vítimas, nem como objeto de pesquisa.
No Capítulo 2, nomeado A violência como categoria
estruturante do patriarcado e a condição das mulheres que procuram
o NUMAPE/Guarapuava-PR, a violência de gênero é analisada
como uma categoria estrutural do poder patriarcal que assegura a
sujeição das mulheres, em particular as pobres, pretas e pardas. A
partir dos relatos de mulheres atendidas pelo NUMAPE, assim
como do perfil social das usuárias, a autora analisa em que medida
o modelo de sociedade patriarcal e a divisão sociossexual produzem
as condições materiais e sociais que garantem a subordinação das
mulheres e a perpetuação das formas de violência contra elas.
Na sequência, no capítulo 3, intitulado O ciclo da
violência doméstica e familiar contra mulheres: dilemas e superação,
as pesquisadoras, com o fim de responder à tortuosa questão;
“por que as mulheres que vivem em situação de violência
doméstica e familiar não rompem com o relacionamento violento,
permanecendo junto aos seus agressores?”, realizam uma análise
aprofundada dos casos atendidos pelo Núcleo Maria da Penha para
compreender quais seriam os fatores que impedem ou dificultam
que as vítimas rompam com a situação de violência. Desse modo,
através de questionários respondidos pelas usuárias, são traçadas
as formas específicas de violência experienciadas pelas mulheres
e o tipo de relação com o agressor; e, por meio das entrevistas, as
autoras apresentam um cotidiano marcado por diversas formas de
violência que se intercalam em ciclos. Por fim, com o propósito

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de responder à pergunta de partida, são analisados os principais
obstáculos encontrados para a realização da denúncia contra os
agressores, perpassados por fatores sociais, econômicos e culturais
que cercam a vida dessas mulheres.
Considerando ainda que, caso não seja rompido, o
ciclo da violência pode ter como fim trágico o feminicídio,
no Capítulo 4, intitulado Perf il dos feminicídios ocorridos na
Comarca de Guarapuava nos anos de 2015 a 2020, são analisadas
não só as principais características dos assassinatos de mulheres,
como também em que medida o sexismo autoriza os homens
a controlar a vida das mulheres e decidir sobre a sua morte.
Apoiadas nos estudos feministas, as pesquisadoras traçam
um diagnóstico da violência feminicida e, baseadas nas várias
características comuns desses assassinatos, revelam um modo
misógino de matar as mulheres.
Por fim, no último capítulo, são investigadas as Faces
e determinações da violência contra as mulheres: contribuições da
interdisciplinaridade a partir das reflexões do Núcleo Maria da
Penha – Guarapuava/PR, com base em entrevistas realizadas
com usuárias do NUMAPE. As autoras verificaram que a
construção social dos papéis masculino e feminino e a divisão
sexual são fatores determinantes para a compreensão da violência
de gênero. Com base nesses relatos, elas pontuam os cuidados
com a casa e com os filhos como uma obrigação eminentemente
feminina, revelam a inferiorização das mulheres no âmbito dos
relacionamentos conjugais e descrevem um cotidiano permeado
por violências das mais diversas. Desse modo, destacam a
importância de uma atuação interdisciplinar para um melhor
enfrentamento da violência contra as mulheres.
Diante de todo o panorama traçado na obra, resta clara a
sua importância, pois se trata de um estudo que reflete a busca das
pesquisadoras, situadas em diversas áreas do saber, em construir

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conhecimento coletivamente. A proposta dos estudos visa à reflexão
sobre a violência contra as mulheres e toma como ponto de partida
a vivência na extensão universitária e os incômodos experienciados
pelas autoras, mas que têm a preocupação em escutar as narrativas
das mulheres em situação de violências, geralmente silenciadas.
Segundo María Lugones (2008), a resistência é um
processo dialógico que se opera tanto sob o âmbito formal
quanto informal e que é realizado pelas mulheres em situações
muito diversas, não apenas na prática acadêmica. Nesse diálogo,
para Diniz (2021) é preciso que nós, feministas, coloquemo-nos
no papel de escutadeiras. Essa foi a intenção das autoras, na sua
prática e na realização deste livro, como escutadeiras feministas,
resistir através do diálogo, não só entre as pesquisadoras, mas,
principalmente, com as sujeitas da pesquisa.
Conceição Evaristo, em Olhos D´água (2020), relembra um
verso que leu um dia: “Escrever é uma maneira de sangrar”. Sangramos
para contar a história de dor e sofrimento dessas mulheres, mas só
assim aprendemos que resistir é um processo coletivo.

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capítulo
HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO DO
NÚCLEO MARIA DA PENHA (NUMAPE):
UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO NO
MUNICÍPIO DE GUARAPUAVA – PR
Angela Maria Moura Costa1
Ana Cláudia da Silva Abreu2
Priscila Ferreira Fortini3

INTRODUÇÃO

O objetivo deste capítulo é relatar a vivência cotidiana da


construção do Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) no Município
de Guarapuava – PR que teve início em setembro de 2017 e
continua até a atualidade. Porém a participação do Serviço Social
1 Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
coordenadora do Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) e orientadora da área de Ser-
viço Social entre 2018 e 2021. Docente do Curso de Serviço Social da Universidade
Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO). E-mail amprates@unicentro.br.
2 Doutora e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná.
Professora em Direito Penal no Centro Universitário Campo Real e orientadora
do Núcleo Maria da Penha – Unicentro/Guarapuava nos anos de 2018 a 2021.
E-mail prof_anasilva@camporeal.edu.br.
3 Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Orientadora
de psicologia no Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) nos anos 2018 a 2021.
E-mail priscilafortini@gmail.com .
findou em julho de 2021. Esse relato refere-se ao período entre
2017 e 2021, quando a Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia
e Ensino Superior (SETI) mudou a modalidade dos núcleos,
alocando-os junto à Unidade Gestora do Fundo Paraná (UGF),
e com isso priorizou as áreas de Direito e Psicologia, extinguindo
portanto, a área do Serviço Social nesse núcleo em específico.
Aqui apresentamos um relato da vivência do tripé da Universidade
Pública: ensino, pesquisa e extensão, em que os membros da equipe
participaram de forma horizontal nessa construção.
Há menos de dois dias para fechar o prazo do edital
que abria concorrência interna para a implantação do núcleo
na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO),
o Departamento de Serviço Social recebeu o referido edital e
imediatamente o trouxe para a pauta da reunião do Conselho
Departamental. Foi então que o conselho, depois de inúmeras
discussões, designou-me para elaborar o projeto e participar do
processo de seleção.
Logo em seguida, agendamos uma reunião com a Secretária
da Secretaria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, a fim
de constituir parceria, pois esse é o serviço de referência do município
no que concerne ao atendimento e enfrentamento da violência
doméstica e familiar que é ofertado no Centro de Referência
de Atendimento à Mulher (CRAM). A parceria foi constituída,
porém, nesse processo, inúmeras construções foram necessárias,
como por exemplo, a identidade do núcleo (a quem atenderia,
sob quais critérios, que serviço prestaria, de onde receberia as
demandas, entre outros). As primeiras construções metodológicas
foram elaboradas no apagar das luzes do fechamento do edital.
Ocorreu todo o processo de seleção interna e depois externa e o
projeto foi aprovado. Depois disso, houve processos seletivos para
selecionar a equipe. O projeto iniciou em janeiro de 2018.

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O NUMAPE é um projeto de extensão inserido no âmbito
do programa “Universidade Sem Fronteira (USF)”, da SETI
do Governo do Estado do Paraná. Universidades do Estado já
desenvolviam o núcleo anteriormente, como: Universidade Estadual
de Londrina (UEL); Universidade Estadual de Maringá (UEM);
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) em Marechal Cândido
Rondon, Toledo e Francisco Beltrão; Universidade Estadual do
Centro-Oeste (UNICENTRO) – Campus Irati; Universidade
Estadual do Norte do Paraná (UENP); Universidade Estadual
do Paraná (UNESPAR). Os núcleos possuíam alguns elementos
em comum, mas também aspectos diversos, dado ao fato de que
as equipes de cada Universidade construíram a sua metodologia.
Faltava ainda uma unidade do núcleo no Campus Santa Cruz da
UNICENTRO. É então que a primeira proposta metodológica
do núcleo foi construída pelo Departamento de Serviço Social.
O NUMAPE teve como objetivo desenvolver ações
que promovessem o acolhimento e o atendimento gratuito a
mulheres que estivessem em situação de violência doméstica
e familiar. E buscava viabilizar ações de prevenção por meio de
práticas socioeducativas, articulação e mobilização social, visando
ao enfrentamento à violência contra as mulheres e o efetivo
cumprimento da Lei Maria da Penha (Brasil, 2006) na Comarca
de Guarapuava – PR.
Sendo um projeto de extensão universitária, a primeira
função do núcleo era capacitar profissionais e estudantes para
o exercício profissional competente dentro das prerrogativas
legais de cada área. E a segunda era realizar atendimento (Social,
Psicológico e Jurídico) de qualidade para as mulheres que se
encontram em situação de violência doméstica e familiar, além
de promover ações de prevenção. E assim, os primeiros meses

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foram de formação intensa da equipe ao mesmo tempo em que
as profissionais, professoras e estagiárias já atendiam algumas
mulheres e desenvolviam algumas ações de prevenção.
Nesse processo formativo, a equipe elaborou os Planos de
Trabalho Profissional, as metodologias de intervenção e prevenção,
com seus devidos instrumentais. Desenvolveu ainda um fluxo de
atendimento interno às mulheres, assim como, articulou-se junto à
rede de políticas públicas para mulheres, a inserção do NUMAPE
no fluxo de atendimento, em um movimento de referência e
contrarreferência.
A equipe do núcleo era multiprofissional, formada pelas
seguintes áreas do saber: Serviço Social, Direito e Psicologia.
Dentro dessas áreas, tivemos professora coordenadora, professoras
orientadoras,profissionais recém-formadas e estagiárias.Apenas um
membro do sexo masculino participou como estagiário do núcleo.
A equipe procurava promover e vivenciar a interdisciplinaridade
(Minayo, 2010) entre as áreas, adotando práticas que pudessem
torná-la uma estratégia de atuação profissional e de troca de
saberes entre as áreas.
A atuação da equipe foi organizada através de dois
eixos: 1) a INTERVENÇÃO, que se tratava do atendimento
individualizado à mulheres em situação de violência doméstica e
familiar que possuíssem os critérios para o acesso à justiça gratuita;
e 2) a PREVENÇÃO que se tratava de ações de prevenção e
combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres,
desenvolvidas junto à comunidade da comarca de Guarapuava, que
corresponde a quatro municípios, sendo: Guarapuava, Campina do
Simão, Candói, Foz do Jordão e Turvo e também cinco Distritos:
Entre Rios, Palmeirinha, Guairacá, Guará e Jordão.
Diante do exposto, organizamos o capítulo de forma
a discutir em um primeiro momento, a intervenção profissional
das três áreas do saber junto à situação de violência doméstica e

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familiar apresentadas pelas mulheres que eram encaminhadas da
rede de políticas públicas, como também que procuravam o serviço
de forma espontânea. Em um segundo momento, mostramos como
foi organizado o segundo eixo, a prevenção junto à comunidade, sua
metodologia, técnicas, instrumentos e estratégias para desenvolver
as ações de cunho preventivo.

A INTERVENÇÃO PROFISSIONAL JUNTO


À SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
FAMILIAR

No eixo INTERVENÇÃO, o público a que o projeto


atendia era de mulheres que viviam em situação de violência
doméstica e familiar, cujos perfis fossem compostos por três
características: a) estar vivenciando ou ter vivenciado situação de
violência doméstica e familiar; b) ter idade entre 18 e 60 anos; e c)
possuir renda familiar de até três salários-mínimos. A equipe definiu
essa faixa etária para não sobrepor ao serviço prestado pelo Centro
de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) que
atende esse público. Embora a equipe do núcleo tivesse clareza
que toda mulher que estivesse vivenciando a violência doméstica
e familiar tem direito ao atendimento, foi necessário limitar a
renda devido aos critérios adotados pela Justiça gratuita do Estado
que somente aceitava o ajuizamento de ações de mulheres que
estivessem dentro do referido corte de renda.
A intervenção era um conjunto de ações desenvolvidas
pela profissional em cada área do saber, que visava atender às
demandas trazidas pelas mulheres que estavam em situação
de violência doméstica e familiar. Esse conjunto de ações
poderia estar relacionado apenas a uma profissional (Serviço
Social, Direito, Psicologia) ou às três áreas; isso dependia das

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demandas que a mulher apresentava. As ações poderiam ser
disciplinares (por área do saber) ou interdisciplinares (pelas três
áreas do saber), de acordo com a complexidade das demandas.
Para essas intervenções, cada área do saber mobilizava seu
arcabouço de conhecimentos teórico-metodológicos, ético-
políticos e técnico-operativos (instrumentais), de acordo com
as especificidades de cada demanda.
O Serviço Social atuou como porta de entrada para o
NUMAPE, recebendo os encaminhamentos da rede de políticas
públicas, assim como, as demandas espontâneas. Essa estratégia
precisou ser construída, pois não se tinha o entendimento por
parte da equipe sobre a função do Assistente Social. Em seguida,
procedia com o acolhimento das mulheres e identificava a demanda
para o NUMAPE. Depois, realizava a entrevista (Lavoratti,
2016); (Lewgoy; Silveira 2007) e a escuta qualificada e o estudo
socioeconômico (Mioto, 2009) para perceber a totalidade das
demandas que a mulher vivia, que possibilitava fazer a tipificação
da violência e o diagnóstico da situação, para além da violência
doméstica e familiar (Queiroz; Diniz, 2014).
De acordo com cada caso, fazia as orientações e
encaminhamentos cabíveis, como: identificação de necessidade de
trabalho e renda, se a pessoa atendia a critérios para benefícios
sociais, levantamento de documentação básica para ajuizar causas
no sistema de justiça ou petição de documentos em órgãos
competentes, entre outros (Lisboa; Pinheiro, 2005). O Serviço
Social tinha a função de apresentar os serviços prestados pelo
núcleo, em cada área do saber, encaminhar a mulher para as áreas
específicas dentro do núcleo e para a rede de políticas públicas
do município, de acordo com cada caso particular. Se necessário,
realizava visitas domiciliares (Silva; Moura, 2016) para atender
a alguma situação específica. A área também coordenava uma

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das três frentes de trabalho para o desenvolvimento das ações de
prevenção junto à comunidade.
A assistente social do núcleo tinha ainda como função
a atribuição privativa de supervisionar o estágio curricular em
Serviço Social, obrigatório e não obrigatório (CFESS, 1993).
Nesse processo, supervisionava as estudantes de graduação
no desenvolvimento de suas atividades de campo de estágio.
Desenvolvia junto aos seus estagiários uma dinâmica de supervisão
direta e, para isso, tinha como atribuição participar dos encontros
formativos promovidos pelo Departamento de Serviço Social
da UNICENTRO, como fóruns de estágio, mostra de estágio,
capacitações, cursos, entre outros. A professora orientadora de
Serviço Social orientava a assistente social no desenvolvimento
de suas ações, inclusive, juntas, desenvolviam processos formativos
para aprenderem a supervisionar estágio.
A profissional graduada em direito tinha a função de atender
às mulheres que estavam em situação de violência doméstica e
familiar, tanto aquelas que requeriam apenas orientações jurídicas,
quanto aquelas que desejavam ajuizar as suas causas. Ao acolher
essa mulher, a profissional identificava as demandas jurídicas,
informava quais eram os seus direitos assegurados por lei e quais
eram as medidas legais cabíveis. Caso a pessoa atendida desejasse
ajuizar a causa, proveria a coleta de documentação necessária para
o protocolo no sistema de justiça, certificando-se de que a mulher
em situação de violência estivesse ciente da necessidade dessa
documentação para que a ação fosse ajuizada.
Após essas considerações, a partir do momento em que
estivesse de posse da documentação da usuária e da respectiva
procuração devidamente assinada, caberia à profissional,
elaborar a petição inicial, em que iria explicar os fatos e a partir
deles a fundamentação jurídica e o pedido da causa. Em seguida,
com a Petição Inicial finalizada, fazia o protocolo no sistema

21
de justiça (PROJUDI) através do qual monitorava a ação e
responsabilizava-se pelo cumprimento dos prazos processuais.
E continuava disponível para atualizar a mulher sobre seu caso,
sempre que ela lhe solicitasse informações. Durante o período
em que o seu caso estava tramitando, a profissional de direito
preparava a mulher para a audiência, com a participação da
profissional de Serviço Social e Psicologia.
Na audiência, a advogada defendia a mulher de acordo
com as prerrogativas da Lei Maria da Penha. Ao final de cada mês,
a advogada preparava um documento de contrarreferência, onde
constava a situação atual de cada processo e encaminhava ao Centro
de Atendimento à Mulher (CRAM) do Município de Guarapuava.
Como forma de exercer o controle social, a profissional
participava das reuniões do Conselho da Mulher. E ainda
participava das ações de prevenção e coordenava um eixo de ação
preventiva na comunidade.
A advogada também tinha como função supervisionar
estágio curricular em direito, tanto o obrigatório, quanto o não
obrigatório. Nesse processo, os acadêmicos eram supervisionados
pela profissional, que deveria acompanhá-los nos atendimentos
feitos, bem como realizava a correção das peças processuais
elaboradas, permitia o acesso ao Projudi. e o acompanhamento às
audiências, bem como incentivava a participação nas atividades de
formação profissional e de prevenção e fomentava a atuação no
grupo de estudos e realização de pesquisas.
Diante da situação de violência doméstica e familiar vivenciada
pelas mulheres e as consequências psíquicas dessa experiência, a
profissional graduada em Psicologia prestava atendimento e orientação
psicológica às mulheres que procuravam o núcleo de modo individual
ou grupal, após a avaliação de cada caso.
A violência produz alterações psíquicas independentemente
do tipo da violência, como alerta o Conselho Federal de Psicologia

22
(2013), entre elas, a alteração na percepção de si mesmo e de mundo,
insegurança e impotência, fragilidade das relações sociais, isolamento,
ansiedade, medo, ideações suicidas e de automutilação o que pode
levar ao desenvolvimento de quadros psicopatológicos, tais como
depressão, transtorno do pânico, estresse pós-traumático, entre outros.
As mulheres atendidas individualmente chegavam ao
NUMAPE por demanda espontânea ou encaminhadas pela
psicóloga do CRAM. Elas eram atendidas semanalmente, avaliadas
e quando necessário, encaminhadas para a rede de saúde mental do
município. Todos os casos geravam relatório de contrarreferência
para o CRAM, atualizando a situação e evolução do caso. A
mulher era atendida a partir de suas demandas, buscando resgatar
sua singularidade, uma a uma. Os atendimentos eram discutidos
em supervisão para o desenvolvimento de um plano terapêutico
individual com a profissional de psicologia, acadêmica e supervisora.
Dado que a violência contra a mulher ocorre
predominantemente no ambiente doméstico, era recorrente que as
mulheres trouxessem como demanda inicial o atendimento para
seus filhos. E, apesar das crianças e dos adolescentes não serem
público-alvo do NUMAPE, a profissional de psicologia realizava
uma entrevista diagnóstica com a mãe sobre as queixas e demandas
de seus filhos e os encaminhava para os setores responsáveis da
rede pela questão apresentada. Ponto nodal, para que se iniciasse
a manutenção dessas mulheres no atendimento, à medida que, sua
maior preocupação girava em torno do bem-estar de seus filhos.
Além disso, a psicóloga também desenvolvia um grupo
terapêutico com mulheres que já haviam passado pela situação de
violência e estavam no momento de reconstrução de projeto de
vida. Tratava-se de um grupo fechado de 30 mulheres por ciclo,
com participantes selecionadas pela psicologia do NUMAPE e
do CRAM, com duração de dez encontros, tendo como objetivo

23
estabelecer projetos de vida, discutir a percepção de si mesmo e do
outro e empoderamento feminino.
Dentro do trabalho com grupos, a profissional de
psicologia mapeou todos os grupos de gestantes que ocorriam nas
unidades básicas de saúde (UBS) do município e desenvolveu uma
metodologia de trabalho em grupo com esse público, que ao longo
do processo se estendeu para todas as mulheres que frequentavam
a unidade. Os agentes de saúde localizam e avisam as mulheres
sobre os encontros, que ocorriam no território da UBS. Eram
realizados sete encontros temáticos, com foco na prevenção da
violência contra a mulher e cuidado de si. Os encontros versavam
sobre os temas: minha trajetória, cuidado com os filhos, autoestima,
relacionamentos amorosos, cuidado de si e violência contra a
mulher. Após o estabelecimento de vínculos com as mulheres,
os dois últimos encontros eram mediados pela profissional de
direito e serviço social, que discutiam direitos e tiravam dúvidas
sobre a Lei Maria da Penha. Quando se identificava demandas,
as mulheres eram agendadas para o atendimento individual e
interdisciplinar do NUMAPE.
Por um período, também, a psicóloga acompanhou
mulheres que estiveram abrigadas na Casa Abrigo do município
de Guarapuava, na qual desenvolvia os seguintes procedimentos
técnicos profissionais: atendimento individual na forma de
aconselhamento, avaliação individual com crianças e adolescentes
para observar se havia alguma necessidade de encaminhamento
para a rede, grupo com crianças que estiverem na casa abrigo,
entrevista de anamnese com a mãe da criança e trabalho de grupo
com as mulheres. Os atendimentos ocorriam uma vez por semana
e geravam relatórios psicológicos para a Secretaria de Políticas
Públicas para Mulher prosseguir com a manutenção dos cuidados
com as famílias abrigadas.

24
Na prevenção, a profissional de psicologia e estagiária
participavam junto às demais profissionais das oficinas, palestras e
grupos. Além disso, supervisionava a acadêmica de psicologia que,
por sua vez, participava dos grupos em parceria com a profissional
de psicologia, realizava palestras e triagem dos casos, integrava
as supervisões de caso clínico e auxiliava no desenvolvimento de
relatórios de avaliação psicológica.
No que tange ao controle social, a profissional de psicologia,
estagiária e supervisora de psicologia integravam a Rede de
Enfrentamento à violência contra a mulher de Guarapuava, bem
como, às ações desenvolvidas pela rede.
Durante o período de restrição de mobilidade urbana para
a contenção da pandemia de coronavírus, a Sociedade Brasileira de
Psicologia (2020) orientou para que, se possível, os atendimentos
presenciais fossem cessados, e os psicólogos iniciassem os
atendimentos de forma online. Os atendimentos psicológicos
foram adaptados e começaram a ser realizados por vídeo chamada
ou por ligação, com agendamento prévio.
O atendimento online ou remoto para a Psicologia foi
regulamentado no ano de 2000, de forma experimental pelo
Conselho Federal de Psicologia. Em 2018, o Conselho Federal
considerou a psicoterapia online como uma forma de atendimento
com benefícios comprovados cientificamente, desfazendo o cunho
experimental das resoluções anteriores. O atendimento psicológico
nessa modalidade pode ser assíncrono, ou seja, não simultâneo, e
síncrono, com contato imediato (Conselho Federal de Psicologia,
2018). Os atendimentos podem ocorrer por meio de ligação, vídeo
chamada, e-mail, troca de mensagens ou áudio.
Assim, a acadêmica de psicologia passou a realizar o
monitoramento de risco de suicídio e de violência contra a
mulher por atendimento assíncrono e a profissional de psicologia
o atendimento psicoterápico individual de forma síncrona. Para

25
os atendimentos online, o aplicativo escolhido foi o Whatsapp, a
partir da utilização do celular – doado – que a equipe já utilizava.
Também foi realizado atendimento por ligação, pela facilidade de
contato sem a necessidade do uso de internet.
Com a reestabelecimento das audiências, percebeu-se uma
nova demanda: as mulheres que iam para uma audiência online
não sabiam como operar os equipamentos eletrônicos (celular,
computador), estavam ansiosas pelo reencontro com o agressor
e tinham dúvidas sobre o funcionamento da audiência online.
Algumas delas, passaram por episódios de ansiedade generalizada e
tentativa de suicídio antes ou após as audiências. Frente a esse cenário,
a advogada e a psicóloga do NUMAPE iniciaram um processo de
atendimento interdisciplinar via online, antes das audiências.
Antes do acontecimento da audiência, era realizado um
atendimento interdisciplinar com a psicóloga e a advogada, no
qual, a usuária era instruída sobre o uso das tecnologias necessárias
para a audiência, questões relativas ao seu processo, esclarecidas
dúvidas e como ela estava se sentindo para dia da audiência.
Quando identificada uma demanda psicológica, a profissional de
psicologia atendia, individualmente, à mulher, focando a redução
da ansiedade e preparando-a para o processo. Após a audiência
uma nova consulta era realizada e, se necessário, iniciado o
tratamento psicológico. Verificamos que, com o desenvolvimento
desse trabalho, houve maior adesão das mulheres às audiências,
melhor compreensão do processo e redução de quadros ansiosos
nos casos acompanhados. Esse trabalho se tornou uma pesquisa
dentro do escopo da psicologia, aprovada pelo comitê de ética,
para além dos estudos, pesquisa e formação que ocorriam de forma
interdisciplinar no NUMAPE.
A equipe de profissionais tinha ainda como função proceder
com os registros das usuárias, tanto no prontuário que era um
documento de acesso coletivo, onde eram registradas informações

26
que poderiam ser acessadas pela equipe como um todo, quanto
em seus instrumentais profissionais de cunho sigilosos, também
eram registradas informações de cunho específico de cada área.
No prontuário, eram registrados todos os procedimentos técnicos
realizados por cada profissional.

A PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA


E FAMILIAR CONTRA MULHERES

As demandas por prevenção foram acolhidas da rede de


políticas públicas, como as mais urgentes e foram organizadas em
três frentes: a) área da saúde; b) área da educação; c) comunidade
em geral. A assistente social coordenava a frente Comunidade, a
Advogada coordenava a frente Educação e a Psicóloga coordenava
a frente Saúde. Cada profissional com suas estagiárias articulavam
junto às instituições e mobilizavam as forças da rede para as ações
de prevenção. Entretanto elas planejavam juntas essas ações e
juntas, também, as executavam, sempre se utilizando da estratégia
da interdisciplinaridade dos conhecimentos.
No eixo PREVENÇÃO o público era formado por
diferentes grupos, independente de idade, raça, orientação sexual
ou condição de classe social. As ações eram as seguintes: Trabalho
com Grupos (Vileirini, 2016); (Moreira, 2017) (com realização
a médio prazo, com ações de continuidade com o mesmo grupo
durante um período determinado); Palestras ministradas para
um público maior que demandasse uma atuação mais pontual e
informativa; Oficinas que eram realizadas com pequenos grupos,
específicos, como crianças e adolescentes, por exemplo, e que
demandasse ações pontuais, porém vivenciais; Rodas de Conversas,
quando o grupo já se relacionava e possuía confiança para o
diálogo; e ações esporádicas de Campanhas com temáticas alusivas

27
à violência doméstica e familiar, Curso de Formação, promoção e
participação em Eventos, Lives, entre outros.
A ação socioeducativa é a realização de práticas relacionadas
“[...] aos interesses da população, voltada para a perspectiva da
transformação social [...]” (Silva, 2002, p. 175). Nessa proposta,
a apreensão crítica do conhecimento e da realidade pelos sujeitos
envolvidos é condição essencial para garantir a transformação. Isso
porque permite a eles fortalecer a autonomia e a potencialidade
de organização e mobilização na luta e defesa de seus direitos.
Além disso, permite reconstruir concepções que perpassam e
interferem em sua realidade, como no caso da cultura da violência:
uma construção sócio-histórica que pode ser substituída por uma
cultura da não violência.
Cabe destacar que as ações socioeducativas se afirmam em
diferentes processos de intervenções, evidenciando características
específicas, conforme as demandas e objetivos estabelecidos.
Assim sendo, Lima e Mioto (2011) destacam dois processos
interventivos: o Processo Político-Organizativo, que direciona as
ações para a coletividade, promovendo o diálogo problematizador
e a coletivização de demandas e; o Processo Socioassistencial, que
volta as ações para promover, nos sujeitos, a mudança na forma de
ver e agir sobre mundo e sobre as relações sociais. Assim entendidas,
as ações socioeducativas refletem

[...] um processo dinâmico que remete a uma luta coletiva,


de organização política, mas que também acontece no
âmbito individual através da apropriação da informação
e dos caminhos de acesso a políticas e serviços sociais,
implicando no reconhecimento tanto das necessidades
individuais como coletivas. (Lima; Mioto, 2011, p. 231).

Dentre as ações socioeducativas, o destaque das ações era


para o trabalho com grupos que “[...] ocorrem mediante ações que
são motivadas pela necessidade, interesse, desejo, afeto, prazer, ou

28
seja, os grupos surgem diante de uma motivação, a fim de realizarem
ações em comum (Eiras apud Bonfim, Teixeira e Albiero, 2018, p. 81).
Os grupos somente poderiam ser desenvolvidos com
adultos, acima de 18 anos. Eles eram organizados entre 03 a 05
encontros, em que participavam as mesmas pessoas, com temáticas
programadas para cada grupo, de acordo com suas necessidades. O
trabalho com grupos contribuía com o despertar dos participantes
sobre um determinado assunto, com aprofundamento e poderia
provocar mudanças no seu modo de pensar e vivenciar aquele
assunto. “O trabalho com grupos aparece assim com o intento
de deslocar para o âmbito da coletivização questões que são
comumente individualizadas.” (Moreira, 2017, p. 124).
É no grupo que as pessoas ficavam cientes de que a violência
vivenciada no espaço doméstico não era problema individual, pois
inúmeras eram as mulheres que a vivenciavam. Portanto o trabalho
com grupo teve um potencial importante para provocar mudanças na
forma de pensar e até de comportamento. Por isso, ele era a principal
estratégia para prevenir a violência doméstica e familiar contra mulheres
e potencializar a construção de uma nova cultura, sem violência e
desigualdade de gênero. Nesse sentido, foi importante compreender
“[...] o grupo a partir da criação de vínculos de segurança e confiança,
ou seja, teremos um grupo quando seus membros possuírem um
vínculo entre eles no qual se mobilizam para satisfazerem interesses
individuais e coletivos.” (Bonfim; Teixeira; Albiero, 2018, p. 82).
Em cada uma dessas técnicas de intervenção, primava-se
pela participação efetiva dos participantes, por meio do diálogo, da
reflexão e da troca de saberes. E, ao final de cada ação, era realizada
uma avaliação que tinha a participação efetiva dos integrantes.Todas
as ações passavam por planejamento, execução, monitoramento e
avaliação, assim como, todas sofriam registros gerais, fotos e listas
de presença dos participantes. Todo esse material era berço fecundo

29
de pesquisas e subsidiava não só os relatórios mensais enviados à
SETI, mas também, as novas estratégias metodológicas de ações.

A ARTICULAÇÃO DO TRIPÉ: ENSINO,


PESQUISA E EXTENSÃO

Por ser projeto de universidade pública, obrigatoriamente,


o NUMAPE precisava articular o tripé da universidade: Ensino,
Pesquisa e Extensão (Forproex, 2012). Por conta disso, a gestão do
NUMAPE foi organizada por meio de três frentes de trabalho: a)
a administração técnica/burocrática; 2) a formação da equipe e; 3)
a pesquisa e a produção científica.
Quanto à administração técnica/burocrática, as atividades
eram as seguintes: Planejamento (plano de trabalho, plano de
aplicação, parcerias institucionais e interinstitucionais). Diálogo
interinstitucionais para definir, melhorar e/ou mudar o fluxo de
atendimento às demandas. Administração (estrutura, recursos
financeiros, materiais de consumo, entre outros). Recursos
humanos (seleção, contrato, demissão, pagamentos, ficha de
presença, certificados, declarações, orientação pedagógica
geral interdisciplinar). Reuniões (de equipe e tudo o que isso
acarreta - pautas, atas, encaminhamentos, entre outros). Relações
institucionais e interinstitucionais (reuniões, memorandos, ofícios,
convites, entre outros). Prestação de contas (resposta a solicitações,
relatórios mensais e anual – parcial ou final).
Quanto à formação, as atividades desenvolvidas eram
as seguintes: Identificação das necessidades de formação que
a equipe demandava. Plano de formação (capacitação, oficinas,
palestras, cursos, entre outros). Identificação e convite para
formadores. Declarações para participantes de formações.
Identificação de oportunidades de cursos e palestras ofertados

30
pelas universidades e/ou outras instituições e que possibilitavam
a participação da equipe. Mobilização da equipe para participar
dos momentos formativos. Coordenação dos momentos
formativos. Participação como formadora. Identificação de
eventos com temáticas importantes. Articulação e mobilização
para a participação da equipe nesses eventos.
Quanto à pesquisa e a produção científica, as atividades
desenvolvidas eram as seguintes: Criação, monitoramento,
manutenção e coordenação do Grupo de Pesquisa Feminismos e
Violências de Gênero no Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Elaboração, monitoramento
e ajustes do cronograma dos encontros mensais do grupo de
pesquisa. Articulação da equipe e demais participantes de fora
do núcleo para participar dos encontros. Identificação de eventos
e de revistas científicas para submissão de trabalhos. Incentivo,
acompanhamento e monitoramento da produção científica da
equipe – individual e/ou grupal. Identificação de demandas por
pesquisa no âmbito do núcleo e de seu público. Proposição de
projetos de pesquisa específicos para atender a essas demandas.

AS RELAÇÕES PROFISSIONAIS
INTERDISCIPLINARES DENTRO E FORA DO
NUMAPE

No que se refere à dinâmica interna de trabalho, a equipe


realizava mensalmente: uma reunião entre as profissionais e
estagiárias, para a discussão dos atendimentos; uma reunião geral
entre profissionais, estagiárias, orientadoras e coordenação, para
planejamento das atividades, divisão de tarefas e resolução de
impasses e conflitos cotidianos; um encontro geral de formação,
em que eram convidados pesquisadores ou profissionais que

31
atuavam em temas correlatos que traziam contribuições teóricas
e práticas ao Projeto; e um grupo de estudos, em que a equipe
estudava previamente uma obra, discutia sua contribuição para
a atuação do NUMAPE e, ao mesmo tempo, fundamentava a
produção dos trabalhos científicos (capítulos, artigos, resumos,
etc.) para serem apresentados em eventos e/ou publicados em
anais ou revistas científicas.
As atividades das estagiárias estavam ligadas às ações das
profissionais graduadas e estas eram orientadas pelas professoras
orientadoras do núcleo. Eram as profissionais recém-formadas
que determinavam, junto às suas estagiárias, quais atividades
participariam, com exceção das atividades coletivas, que eram
de participação obrigatória de todos os membros da equipe.
As estagiárias tinham suas atividades supervisionadas pelas
profissionais graduadas.
Cada orientadora tinha a função de orientar a profissional
graduada em seu exercício profissional de acordo com a legislação
vigente de sua profissão. Cada área possuía uma forma de
orientação profissional, que era planejada e vivenciada de acordo
com as necessidades de cada profissional. A coordenação orientava
suas companheiras de orientação, sobre a importância de manter
a orientação de demandas emergentes (que é aquela em que a
profissional contatava a orientada e precisava de sua resposta
urgentemente, independentemente de ser presencial ou não) e
a orientação proativa (aquela em que orientadora e graduada
planejavam os encontros quinzenais para debater/discutir temáticas
relativas ao exercício profissional), no intuito de continuar a
formação dessa profissional, aprofundando os conhecimentos
específicos da área para subsidiar o seu exercício profissional. A
orientadora tinha a função de selecionar os profissionais graduados
e ajudá-los e/ou orientá-los na seleção de seus estagiários. Quando
se tratava de desligamento de bolsista, a orientadora tinha a função

32
de realizar a primeira conversa, sendo que somente levava a questão
à coordenação quando a situação não fosse resolvida dentro da área.
Além das ações aqui pontuadas, a equipe também se dividia
para acompanhar sistematicamente os Conselhos, Conferências e
Reuniões da Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher,
como forma de qualificar a atuação do Projeto e estreitar parcerias,
especialmente com a Secretaria Municipal de Políticas Públicas
para Mulheres. E fazia o controle social da área da mulher junto
ao Conselho Municipal da Mulher.
A equipe desenvolvia estratégias para monitorar as suas
ações e proceder com os registros adequados. Fazia avaliação
sistemática, contínua e periódica de suas ações de forma coletiva e
individual. A partir desses registros, avaliava o impacto do projeto
sistematicamente, por meio da construção de relatórios mensais,
semestrais e anual e, ao fim, por meio do relatório final, com a
tabulação e análise de dados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

E foi assim que o Projeto de Extensão Núcleo Maria da


Penha (NUMAPE) foi criado, organizado e desenvolvido entre
os anos de 2018 e 2021. Foi uma construção coletiva, em que
cada membro da equipe teve participação criativa e propositiva.
A partir dos estudos realizados por meio do Grupo de Estudos e
Pesquisas, as nossas bases teóricas, metodológicas, ética e técnicas
foram sendo aprimoradas e nos ajudaram a prestar atendimentos
competentes às mulheres que estavam em situação de violência
doméstica ou familiar.
A equipe do núcleo passou por inúmeros desafios.
Entre os principais desafios estava o acúmulo das funções de
orientadora e coordenadora. O núcleo precisa das três áreas do
saber, no entanto, contava com apenas duas bolsas orientadoras,

33
sendo que uma era voluntária. No primeiro ano, o núcleo ofertou
seus serviços em um espaço cedido pela Secretaria de Políticas
Públicas para Mulheres, o qual não atendia às necessidades de
espaço, assim como não atendia às condições éticas e técnicas
para o exercício profissional de acordo com as prerrogativas
legais de cada profissão. A partir do segundo ano, a equipe
conquistou um espaço adequado dentro da Universidade.
Os recursos disponíveis não atendiam às necessidades do
núcleo como um todo, sendo que inúmeras vezes a coordenadora
fazia uso de recursos pessoais para supri-las. Por um lado, as
licitações para compra de materiais e equipamentos eram onerosas,
e por outro, o recurso nem sempre custeava os materiais que a
equipe necessitava para realizar as ações de prevenção.
A entrada efetiva do núcleo na rede de políticas públicas
de enfrentamento à violência doméstica ou familiar do município
passou por um processo difícil. Foi necessário a conquista da
confiança dos profissionais das políticas públicas e serviços por
parte das profissionais recém-formadas da nossa equipe. Elas
tiveram que provar junto à rede a sua competência para atender às
demandas das mulheres. Com o tempo, a rede passou a encaminhar
as demandas, certas de que seriam atendidas. E assim, a rede de
políticas públicas exigia uma atuação para além das capacidades e
recursos de um projeto de extensão. A equipe era demasiadamente
pequena para a demanda por esse serviço. Nesse sentido, era
extremamente desafiador conciliar: atendimento/prevenção,
formação, pesquisa e produção científica.
Entre os tantos desafios, destaca-se o período de pandemia
do Covid-19, vivenciada entre os anos de 2020-2021. Nesse
período, a equipe precisou reformular toda a sua metodologia de
trabalho, adaptando por um período, para atendimento remoto e
depois presencial, porém com os cuidados necessários.

34
Esse processo foi avaliado pela equipe e destacou-se,
no caso do trabalho remoto, a questão da separação do público
e do privado no mesmo ambiente. O que a equipe mais sofreu
nesse período foi a ausência das relações entre a equipe, do
vínculo, da troca, do compartilhamento diário de informações
acompanhado da presença, do vínculo e do afeto entre os
membros. E também, destaca-se ainda a necessidade do vínculo
e do desenvolvimento da confiança entre as profissionais e as
mulheres atendidas. De forma remota e online, foi muito mais
difícil desenvolver, estabelecer e manter o vínculo, elemento
essencial para o atendimento desse tipo de demanda.
Diante disso, uma preocupação central das profissionais foi
com relação ao sigilo profissional, pois quando as mulheres eram
atendidas de forma online, nem sempre elas estavam sozinhas e em
um local sigiloso. Porém, as profissionais não tiveram como controlar
isso. Embora as mulheres fossem detalhadamente orientadas sobre a
importância do sigilo, nem sempre suas residências possuíam essas
condições. Ou até mesmo porque algumas delas faziam uso da internet
alheia, o que dificultava ainda mais o sigilo.
Apesar de extremamente desafiador, esse processo não deixou
de ser pedagógico para a equipe. Despertou para novas possibilidades,
deu novas oportunidades, fez crescer pessoal e profissionalmente.
Fortaleceu ainda mais o compromisso de cada pessoa com as usuárias
que atendiam, assim como, a comunicação e a relação entre a equipe.
Conclui-se que, a gestão do núcleo foi organizada a partir da
articulação ensino,pesquisa e extensão (Forproex,2012) da universidade
que se constitui um tripé na formação de novos profissionais. Ele
proporcionou tanto às professoras e às profissionais recém-formadas,
como às estagiárias uma formação completa, porque articulou esse
tripé na organização das ações desenvolvidas. Vivemos durante esse
tempo entre a dor e a alegria de fazer extensão universitária!

35
REFERÊNCIAS

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Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/05/
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36
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38
voltar ao sumário

capítulo
A VIOLÊNCIA COMO CATEGORIA
ESTRUTURANTE DO PATRIARCADO
E A CONDIÇÃO DAS MULHERES
QUE PROCURAM O NUMAPE/
GUARAPUAVA-PR
Ana Claudia Marochi1

INTRODUÇÃO

A violência é uma das estruturas do sistema patriarcal


e atravessa a vida das mulheres de forma contundente e muito
particular. Ela está associada a outros elementos desse sistema
como a percepção do que é feminino e masculino, a divisão
sociossexual do trabalho, o controle, o poder, a hierarquização
e a família. O presente artigo discute a questão da violência no
sistema patriarcal e como esse elemento estrutural se apresenta
na realidade dessas mulheres, a partir dos estudos e reflexões de
Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, uma das pioneiras no Brasil a
estudar a situação das mulheres na classe trabalhadora e as relações

1 Doutora em Educação, IFPR, anacmarochi@hotmaill.com.


de dominação e opressão no capitalismo e as diversas formas de
violência que perpassam essas relações.
E para dar conta do que estamos propondo analisar, a
metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica e documental,
especificamente, os prontuários de atendimento preenchidos
pela equipe do NUMAPE/GUARAPUAVA, nos momentos de
atendimento às mulheres, bem como entrevistas com elas. Para as
entrevistas, foram convidadas 25 mulheres, mas somente 13 delas
aceitaram o convite e destas, 09 assinaram o termo de autorização
e consentimento (TCLE) e foram esses os relatos utilizados para a
construção deste capítulo2. Utilizou-se como método a teoria social
de Karl Marx (2017) que analisa a realidade social no contexto
do capitalismo, partindo de mediações concretas e abstratas que
dialeticamente compõem a totalidade desse modo de produção.
Segundo Hirata (2002, p. 276), as relações sociossexuais
são “[...] desiguais, hierarquizadas, assimétricas ou antagônicas de
exploração e de opressão entre duas categorias de sexo socialmente
construídas.” Essa desigualdade contribui para a exploração de
mulheres em diversos espaços. Além de ser incorporada ao processo
capitalista, ela ainda precisa cuidar dos filhos e da casa. A divisão
sociossexual do trabalho no capitalismo incrementou-se com a
maquinaria, a partir do século XIX. Nesse momento, o capitalista,
ao inserir a máquina na produção, aproveitou a força de trabalho
feminina e das crianças para produzir mais.
No contexto familiar, o homem, incitado pela necessidade
de ganhar melhores salários, passa a vender não somente a sua
força de trabalho, mas de toda a sua família, colocando nas mãos
do capitalista o labor da mulher e dos filhos, em troca de um
único salário (Marx, 2017) e a cadeia de opressão e exploração
ocorre em cascata. As práticas que diferenciam e colocam eles e
elas em condições desiguais são reproduzidas cotidianamente e a
2 Período das entrevistas setembro e outubro de 2020. Parecer de aprovação do
COMEP nº 4.144.790 no dia 09 de julho de 2020.

40
dominação-exploração-opressão de uma classe sobre outra e de
um indivíduo sobre outro se acentua com o capitalismo, sendo que
as relações sociais de sexo, com base na divisão sexual do trabalho
e na naturalização do que é ser homem e o que é ser mulher vêm
contribuindo para o controle exercido pelos homens sobre as
mulheres e para a perpetuação de grupos dominantes na sociedade.
Existe, portanto, uma verdadeira aliança entre patriarcado e capital.
A figura feminina na família vem ao longo de muito tempo
sendo responsável pelos cuidados dos outros, pela manutenção
das crianças, idosos, pessoas com deficiência, trabalho este que
coloca a mulher na condição de “improdutiva” perante a parcela
economicamente ativa da população. Ao realizarem esse trabalho
no interior de seus lares passam a ser peças estratégicas para o capital,
reproduzindo a lógica do patriarcado e da instituição familiar.
Essa posição ocupada pelas mulheres no seio familiar, no
qual é considerada como a responsável natural pela reprodução
social, é uma das formas de agressão contra elas. Mas não é a única.
Está acrescida também de violência física, psicológica e simbólica,
demarcada pelo processo de subordinação e de dominação do sexo
masculino ao longo da história e está presente em todos os espaços
dominados pelo homem, pelo capital e pelo patriarcado.
Todos os dias, milhões de mulheres/mães/trabalhadoras
são submetidas à exploração doméstica, a trabalhos precarizados,
degradantes, a salários inferiores aos dos homens no mesmo cargo,
com a mesma formação e precisam provar nos bancos escolares que
são melhores que eles para serem respeitadas. As relações de poder
estabelecidas pelo patriarcado e reforçadas pelo capitalismo são
determinantes nas relações sociais, especificamente, nas relações
sociossexuais (Souza-Lobo, 1991).
A dominação-exploração-opressão de um sexo
sobre outro tem sua origem na divisão sexual do trabalho,
na determinação de espaços públicos e privados destinados

41
a cada sexo e hierarquizados e na determinação do trabalho
remunerado e não remunerado. Dominada por todo o aparato
ideológico dos discursos sobre a posição da mulher na família,
há sempre uma tendência a reproduzir falas sobre o papel dado
a elas e a eles nos mais diversos espaços sociais.
Diante destes elementos, o capítulo abordará a questão
da violência no sistema patriarcal em três momentos: no primeiro,
apresentamos as bases teóricas que fundamentam nossa tese de
que as opressões pelas quais passam as mulheres têm sua raiz no
patriarcado e suas estruturas, no segundo conceituamos os diversos
tipos de violências de forma conceitual e contextualizada e, no
último, apresentamos as mulheres que procuram o NUMAPE/
GUARAPUAVA para relatarem suas vivências nas mais diversas
formas de violência, trazendo dados quantitativos e qualitativos,
colhidos ao longo dos atendimentos realizados pelo núcleo, no
período de setembro e outubro de 2020.

PATRIARCADO E SUAS ESTRUTURAS DE


DOMINAÇÃO E OPRESSÃO

Patriarcado e capitalismo são as bases da organização


social atual e que têm como fundamento relações de poder
estabelecidas entre homem/homem, homem/mulher, mulher/
mulher ou entre capital e trabalho. Tanto um quanto outro são
estruturalmente organizados a partir da correlação dominação-
exploração-opressão de uma classe sobre a outra, de homens sobre
outros homens, de homens sobre as mulheres e de mulheres sobre
outras mulheres. Como fio condutor dessas discussões, optamos
por explorar as faces dessa dominação-exploração-opressão sobre
o lado mais vulnerável da relação: as mulheres, especialmente as
formas de violência que as atingem de maneira muito particular.

42
No patriarcado, passam a ser conjugadas, sob o domínio
masculino, duas formas de propriedade que afetam diretamente a
sociabilidade e as mulheres: o controle sobre a propriedade privada
e sua transmissão e sobre a sexualidade feminina, já que desta
depende a reprodução. Engels (2009) afirma que essa reversão
do direito materno, na transição histórica para as sociedades
patriarcais, foi a grande derrota histórica do sexo feminino. Com
isso, a dominação-exploração-opressão da mulher passa por um
processo de naturalização, com consequências profundas nas
relações sociais e na divisão sociossexual do trabalho.
A família monogâmica, atualmente hegemônica, não
é nada mais que uma criação histórica, naturalizada por vários
institutos das sociedades ocidentais (mas não somente destas),
especialmente pela religião. A monogamia surge, portanto, não
como forma de expressão do amor entre o homem e a mulher,
mas por conveniência, tornando-se a primeira formação familiar
não baseada em condições naturais e sim nas relações econômicas,
ou seja, na valorização da propriedade privada em detrimento da
organização das famílias com base no amor (Engels, 2009).
A palavra patriarcado tem origem na “[...] combinação
das palavras gregas pater (pai) e arkhe (origem e comando)”
(Delphy, 2009, p. 174) e não se refere à designação do pai como
genitor, procriador, ou seja, não se refere à filiação biológica.
Designa composição da sociedade em que o poder é exercido
pelos homens, ou, quase que exclusivamente, o poder deles. Esse
poder passa a ser destacado por meio de dois fatores abordados
nos escritos de Engels (2009) e reforçados atualmente nas palavras
de Saffioti (2015): 1) por uma organização da produção capaz de
gerar excedentes e, dessa forma, a exploração do homem sobre o
homem/mulher e, mais acentuadamente, sobre elas e; 2) pelo fato
da descoberta de que o homem também colaborava na procriação
dos filhos. “Mas o valor central da cultura gerada pela dominação-

43
exploração patriarcal é o controle, valor que perpassa todas as áreas
da convivência social.” (Saffioti, 2015, p. 130).
Controle exercido pela figura masculina em todos os
espaços da sociedade, muito bem demarcados por uma perpetuação
dos interesses de grupos dominantes. Para as classes dominantes,
o patriarcado gera uma condição de subordinação da mulher que
favorece não somente as relações sociais de sexo/raça/etnia, mas
o machismo, o sexismo. Nesse sentido, o patriarcado apresenta,
nesse contexto, quatro formas de poder que estão diretamente
relacionadas: a) o sexismo, b) a dominação política, c) a dominação
social e d) a dominação biológica.
A ideologia sexista corporifica-se quando a sociedade
estabelece estereótipos masculinos e femininos, dando-lhes atributos
socialmente constituídos e determinantes de formas de hierarquização.
A construção do feminino e do masculino passa por uma concepção
do que é ser mulher e o que é ser homem desde a dimensão biológica
até a posição social de ambos nos diversos espaços públicos e privados.
A relação com o corpo mais forte, a voz mais imponente e a tomada
de decisão diante da família são exemplos disso, como afirma Saffioti
(2015). A ideologia sexista corporifica-se nos agentes sociais tanto de
um polo quanto de outro da relação de dominação-subordinação. O
sentido figurado da corporificação das ideologias em geral e da sexista
em especial reside no vínculo arbitrariamente estabelecido entre
fenômeno: voz grave significa poder, ainda que a pessoa fale baixo
(Saffioti, 2015).
Dar corpo e animação a essas ideologias contribui para
reforçar as demais relações de poder no patriarcado. Quando
o homem ou a mulher são obrigados a exercer funções ditas
“masculinas” e “femininas”, o jogo de dominação-exploração tem o
campo aberto para se reproduzir nas demais instâncias, em especial
nas relações de trabalho, seja ele assalariado ou não.

44
O poder político tem conexões diretas com o sistema
capitalista. Uma vez estabelecidas socialmente as funções sociais
distintivas dos sexos, as políticas de uma forma geral, podem ser
determinadas de formas diferenciadas, privilegiando os homens.
Saffioti (2013) traz à tona as contradições estabelecidas entre a
ocupação da mulher em postos de trabalho e sua real emancipação
econômica e diz que por mais que ela adquira sua liberdade
financeira, sua condição de inferiorização na sociedade a coloca
como ponto secundário nas políticas nacionais e internacionais.
Segundo a autora:

Desde seus inícios, a exploração econômica da


mulher faz-se conjuntamente com o controle de sua
sexualidade. É obvio que este fato preexistiu, de longe, à
emergência do capitalismo; mas este se apropriou desta
desvantagem feminina, procedendo com todas as demais
da mesma forma. Como se pode verificar facilmente
nas cadeias produtivas nacionais e internacionais, as
mulheres predominam nos estágios mais degradados da
terceirização e quarteirização. [...] Isto equivale a dizer
que, quanto mais sofisticado o método de exploração
praticado pelo capital, mais profundamente se vale da
dominação de gênero de que as mulheres já eram, e
continuam sendo, vítimas. (Saffioti, 2015, p. 138-139).

Na relação de poder vinculada à organização da sociedade,


o patriarcado se apropria de situações predeterminadas ao longo da
história para exercer sua forma mais vil, a dominação-exploração
dentro dos lares. O homem passa a ver e exercer sobre a mulher o
poder não só sobre o seu corpo e sobre a reprodução, mas também
sobre a sua condição enquanto indivíduo social. Estabelece-se
agora o que Saffioti (2015, p. 135, itálico no original) nominou de

45
“contrato sexual”3, e que este “[...] não se contrapõe ao patriarcado; ao
contrário, ele é a base do patriarcado moderno.”
A organização familiar monogâmica coloca a mulher em
condição de desigualdade nesse pacto. Enquanto ao homem cabe
a proteção e o sustento, a elas cabe o cuidado do lar e dos filhos
e a obediência. A autora ainda complementa o pensamento sobre
patriarcado e o contrato sexual:

O conceito de patriarcado, compreendido por meio


da história do contrato sexual, permite a verificação da
estrutura patriarcal do capitalismo e de toda a sociedade
civil. Focalizar o contrato sexual, colocando em relevo
a figura do marido, permite mostrar o caráter desigual
deste pacto, no qual se troca obediência por proteção.
E proteção, como é notório, significa, [...] exploração-
dominação [...] O contrato representa troca de promessas
por meio da fala ou de assinaturas. [...] A parte que
oferece proteção é autorizada a determinar a forma como
a outra cumprirá sua função no contrato. (Saffioti, 2015,
p. 136-137).

A última das relações de poder do patriarcado assenta-se


exatamente onde tudo começa: na natureza biológica, ou melhor,
na biologização do sexo feminino. A percepção social da mulher
enquanto ser naturalmente vinculado à reprodução e, portanto, à
maternidade, está intimamente ligada ao seu aparelho reprodutor,
3 Sobre o contrato sexual, Saffioti (2015, p. 132-133) afirma que a origem dessa
relação tem como base o sexismo: “Quando um povo conquistava outro, sub-
metia-o a seus desejos e a suas necessidades. Os homens [...] eram sumaria-
mente eliminados, assassinados. As mulheres eram preservadas, pois serviam a
três propósitos: constituíam força de trabalho, importante fator de produção em
sociedades sem tecnologia ou possuidoras de tecnologias rudimentares; eram re-
produtoras desta força de trabalho, assegurando a continuidade da produção e
da própria sociedade; prestavam (cediam) serviços sexuais aos homens do povo
vitorioso. Aí estão as raízes do sexismo [...] constitui uma prova cabal de que o
gênero não é tão somente social, dele participando também o corpo, quer como
mão de obra, quer como objeto sexual, quer, ainda, como reprodutor de seres hu-
manos, cujo destino, se fossem homens, seria participar ativamente da produção
e, quando mulheres, entra com três funções na engrenagem descrita..”

46
condição que a coloca como elemento determinante no processo de
perpetuação da espécie e, consequentemente, como garantidora da
força de trabalho para o capitalismo. Simone de Beauvoir (2016),
ao fazer uma abordagem de todo o desenvolvimento biológico da
mulher e do homem, traduz com precisão a utilização do corpo
feminino como meio de subsistência da espécie e da sociedade.

Vê-se que muitos desses traços provêm ainda da


subordinação da mulher à espécie. Tal é a conclusão
mais notável desse exame: é ela, entre todas as fêmeas de
mamíferos, a que se acha mais profundamente alienada
e a que recusa mais violentamente esta alienação; em
nenhuma, a escravização à função reprodutora é mais
imperiosa nem mais dificilmente aceita. (Beauvoir, 2016,
p. 59).

Mesmo travando lutas aguerridas contra a naturalização


do ato reprodutivo, destacando entre estas o direito ao aborto em
todo o mundo, os embates constantes contra a violência machista
entre outras, a mulher é ainda colocada como uma ferramenta desse
processo, ou seja, cabe a ela dispor de todo seu aparato biológico
para que a espécie sobreviva.
Da perspectiva dos movimentos conservadores, as mulheres
ainda são vinculadas ao seu aparato biológico e a ele deve subordinar
o restante de sua vida social. Todas as formas de poder exercidas no
patriarcado trazem em suas bases a dominação-exploração sobre
a mulher. Essa organização social que se estabelece muito antes
do capitalismo, mas que o integra e que contribui para reforçar
as formas de dominação das classes, precisa ser compreendida a
fundo nos estudos sobre as relações sociais de sexo, visto que:
1- não se trata de uma relação privada, mas civil;
2- dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamen-
te sem restrições [...];
3- configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos

47
os espaços da sociedade;
4- tem uma base material;
5- corporifica-se;
6- representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia
quanto na violência. (Saffioti, 2015, p. 60).

No capitalismo, o patriarcado encontrou e encontra


campo fértil para seu desenvolvimento e as formas de exploração
intrínsecas a essa forma de sociedade tem uma íntima ligação com
a exploração e apropriação da mulher (Cisne, 2014), configurada
desde a relação com o pai até o marido e com o capital. “O capital
não cria subordinação das mulheres, porém a integra e reforça.”
(Souza-Lobo, 1991, p. 29). O capitalismo, em estreita conexão
com o patriarcado, traduz outra face da exploração da mulher: a
força de trabalho mais precarizada.
É no modo de produção atual em que a relação entre
capital e trabalho se objetiva pela venda da força de trabalho
do trabalhador/trabalhadora. No processo de produção de
mercadorias, com a exploração da força de trabalho do homem/
mulher, acentuaram-se todas as formas de poder: do capital sobre
o trabalho, de uma classe sobre a outra e a dominação-exploração
da força de trabalho.
A primeira relação de poder acontece quando os capitalistas
exercem domínio sobre a classe produtora nas relações de trabalho
e, consequentemente, sobre a vida material dos indivíduos. Esse
modelo social ancora-se em um sistema econômico em que os
meios de produção são de propriedade privada e o trabalho é uma
mercadoria, que divide os que vendem sua força de trabalho e os
que compram essa força de trabalho.
A utilização da força de trabalho para a produção de um
valor excedente foi determinante na relação capital e trabalho no
sentido de uma maior exploração do trabalhador/trabalhadora e

48
o detentor dos meios de produção e dos produtos do trabalho,
o capitalista, passa a investir em todas as formas de opressão-
exploração para a obtenção de lucro. Corroborando os ensinamentos
de Marx (2017), Guiraldelli (2016, p. 42) afirma que no modo
de produção capitalista, “[...] a força humana de trabalho assume
um caráter sui generis, o de mercadoria, pois passa a ser fonte de
valor e criação de valor, constituindo a base de solidificação da
economia capitalista.” E aqui não somente o homem, mas também
a mulher, entranham-se nesse emaranhado de dominação, ficando
subordinados à lógica do capital. E, para elas, as relações firmadas
entre o capital e o trabalho aparecem na sua forma mais cruel, ou
seja, a condição do ser mulher torna a relação de trabalho mais
precarizada e explorada.
A segunda forma de poder estabelecida no sistema
societário capitalista está justamente na venda da força de trabalho
como mercadoria e a compra pelo capitalista, ou seja, quando
uma classe precisa dispor da sua força de trabalho4, para que a
classe dominante produza. Por mais que possamos pensar em uma
relação igualitária, justa e livre, tendo nos polos dessa relação duas
classes com “objetivos comuns”, nada tem de igualdade, justiça e
muito menos liberdade, já que a classe dominante possui o aparato
econômico e o poder político que determina as regras e normas
para a venda. O papel histórico da classe trabalhadora foi sempre
a resistência à dominação capitalista.
A terceira forma de poder pela qual o capitalismo se
apropria para progredir na sua empreitada pela autorreprodução
ampliada e incontrolável (Mészaros, 2011) se apresenta como a
mais aviltante, por estar mais intimamente relacionada à dominação
da vida: o tempo gasto para produzir valor rouba dos trabalhadores

4 “Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto


das faculdades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de
um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de
qualquer espécie.” (Marx, 2011, p. 197).

49
a vitalidade e as horas do seu dia que poderiam ser utilizadas com
outras atividades e nas relações sociais e familiares. Devido ao fato
inegável da tripla jornada, o avanço sobre o tempo das mulheres é
ainda mais avassalador. Para Cisne (2014, p. 26):

A análise da condição da mulher no mundo do


trabalho não é a questão de ordem linguística
ou meramente gramatical. Ou seja, não se trata,
apenas, de ressaltar que além de trabalhadores,
existem trabalhadoras na composição da classe.
Trata-se de analisar como as mulheres sofrem uma
exploração particular, ainda mais intensa do que
a dos homens da classe trabalhadora e que isso
atende diretamente aos interesses dominantes.

A autora alerta que a composição da classe trabalhadora não


é homogênea, bem como os efeitos do capital não são sentidos da
mesma forma por homens e mulheres e nos diferentes lugares do
mundo (especialmente no eixo norte-sul do planeta). “Assim, a classe
não é uma massa homogênea, mas tem “raça”/etnia e sexo.” (Cisne,
2014, p. 270). Acrescenta-se, aqui, a análise do sociólogo peruano
Aníbal Quijano que, ao discorrer sobre a “colonialidade do poder”, ou
seja, a forma específica de dominação-exploração-opressão realizada
na América Latina, afirma categoricamente que essa dominação
colonial é também patriarcal e racista, ou seja, suas análises levam
em consideração, tal como Cisne (2014), a tríade classe, raça/etnia e
sexo/gênero (Quijano 2005). No caso das mulheres, o elemento sexo
vem determinando ocupações de frentes de trabalho ditas femininas.
A elas cabem profissões “naturalizadas” como femininas ou em
trabalhos precarizados e com remunerações inferiores às dos homens.
Como lembra Saffioti (2013), o sexo como elemento historicamente
determinante na inferiorização da mulher na sociedade contribui para
determinação das classes sociais.
Tanto Marx (2011) quanto Saffioti (2013) admitem
e trazem nos seus estudos a relação de exploração-opressão da

50
mulher pelo sistema capitalista. Para os autores, a primeira forma
de exploração-opressão da mulher ocorreu exatamente no seio
familiar. A mulher vista pelo capitalista e pelo próprio marido
como uma força de trabalho a mais no processo de produção, foi
introduzida na roda do capital como força de trabalho5. Saffioti
(2013) acrescenta que para o capital não bastou somente o
incremento da tecnologia (introdução de máquinas na produção),
para que obtivesse lucros maiores e mais rápidos, precisou colocar
na roda do capital o lado mais frágil da relação capital-trabalho, a
força de trabalho feminina.
Para a trabalhadora o ingresso no mundo do trabalho
representou aumento da jornada diária de trabalho, tendo que
dar conta não somente das atividades laborais remuneradas, mas
também dos cuidados com a casa e filhos além de receber salários
mais baixos que dos homens. Essa situação gerou uma correlação
de forças desigual e uma dominação-exploração cada vez mais
acentuada sobre as mulheres, algo que começa a ser revertido, de
forma lenta e sem segurança, apenas no século XX, e de forma
desigual pelas regiões do Brasil e do mundo.
Parece-nos muito claro que a parcela da população
trabalhadora mais prejudicada desde a presença da máquina como
mecanismo de melhoria da produtividade, são as mulheres. Mesmo
atuando em conjunto com os homens, experimentam condições de
subemprego, precarização e desvantagens nos espaços de trabalho,
além da sobrecarga de trabalho doméstico não remunerado. Por
mais que a noção de classe e suas lutas possam ser consideradas
como determinantes para a manutenção do sistema capitalista, não
5 Ressalta-se aqui as análises de Marx, contidas no Livro I de O Capital, espe-
cialmente no Capítulo XIII, sobre a maquinaria e a indústria moderna, em que
descreve criticamente a introdução da força de trabalho feminina e infantil na
indústria (Marx, 2011). A contratação pelo capitalista de toda família para o tra-
balho trouxe enormes prejuízos tanto para a unidade familiar quanto para as re-
sistências dos trabalhadores contra o capital e, muitas vezes, ampliou o processo
de exploração até o seio familiar, ou seja, transformou o marido em intermediário
do capitalista na exploração das mulheres e filhos.

51
há como negar que dentro dessa classe encontramos desigualdades
relacionadas ao sexo, “raça”/etnia, fortemente marcadas pela
dominação-exploração do homem sobre a mulher e

O que é mais grave ainda é que não se poderia sem má-fé


considerar a mulher unicamente uma trabalhadora; tanto
quanto sua capacidade produtora, sua função de reprodutora
é importante na economia social como na vida individual;
há épocas em que ela é mais útil fazendo filhos do que
empurrando a charrua. (Beauvoir, 2016, p. 88).

Em complemento ao pensamento da autora francesa,


Saffioti (2013) sintetiza como a mulher torna-se fundamental
tanto para o capitalista como para a própria sobrevivência da
sociedade regida pelo capital que exige, não de modo uniforme e
institucionalizado, mas periodicamente, certos trabalhos tipificados
de trabalhos femininos. Mesmo que se pensem as atividades
que tradicionalmente vêm sendo exercidas pelas mulheres como
passíveis de execução por parte de outras categorias sociais
subprevilegiadas, há a necessidade do trabalho feminino, cujos
rendimentos são imprescindíveis para a sobrevivência social.
Trata-se aqui de uma sobrevivência da própria sociedade
por dois motivos: primeiro, porque o equilíbrio é incompatível com
a generalização dos problemas sociais e seus efeitos dismônicos;
segundo, porque as mulheres constituem metade da humanidade,
sendo, pois, mesmo que se atente apenas para a sua condição de
reprodutoras, imprescindível à conservação da sociedade (Saffioti,
2013). Assim, as ideias das autoras clarificam e direcionam para um
entendimento de um “nó teórico” (Saffioti, 2015), sobre a mulher
trabalhadora dentro da teoria social de Marx.
Para as autoras citadas, a manutenção do capitalismo, depende
sobremaneira do trabalho feminino, porém, sem a desconsideração do
ser mulher. Se a sua inserção nesse processo nada tem a ver com a
realização pessoal por meio do trabalho e sim com o fato do capitalista

52
almejar lucros maiores, a entrada e permanência no mercado de
trabalho, garante, também, a própria sobrevivência da sociedade
capitalista, ou seja, além da produção e reprodução da vida material,
o sexo tem papel relevante nessa relação e a violência nesse contexto
é um meio utilizado para dominação e opressão das mulheres, como
apontaremos no item seguinte do capítulo.

AS FORMAS DE VIOLÊNCIAS E A CONDIÇÃO


DAS MULHERES NO PATRIARCADO

Neste item, trataremos das violências como categoria


estruturante do patriarcado e incontornável nas análises sobre a
condição das mulheres que se apresenta como mais uma das faces
de dominação-exploração-opressão características desse sistema.
Optamos por colocar o termo violência no plural por tratar-
se de várias formas de agressões que colocam as mulheres em
condições de subordinação e de inferiorização diante do homem,
especificamente dentro de suas famílias.
A violência tem como fundamento a relação de poder
pelas figuras masculinas sobre as mulheres, refletindo uma
condição presenciada em muitas famílias. Tal subordinação
ancora-se, entre outras razões, nas “[...] desigualdades sociais, pela
hierarquização entre as duas categorias de sexo e até pela lógica da
complementaridade6 [que] traz a violência em seu cerne.” (Saffioti
2015, p. 146). Além dos fatores apresentados pela autora, as
violências estão embasadas pelo medo e pela afetividade, o que
6 A lógica da complementaridade trata-se, nas palavras de Maruani (2008, p. 351)
de que: “A defesa da diferença sexual em termos de complementaridade dos pa-
péis socialmente atribuídos a homens e mulheres, bem ao gosto da tradição do
pensamento funcionalista, é orientada pela preocupação com a instituição social
familiar. Em nome da defesa da família, como um suposto meio de se assegurar a
ordem social, postulam-se princípios políticos e teóricos que legitimam a subor-
dinação feminina e, portanto, a dominação masculina.”

53
torna mais difícil a aceitação, pelas mulheres, de que são vítimas
de agressão. Segundo Krug et al. (2002, p. 91):

O fato de as mulheres em geral estarem emocionalmente


envolvidas com quem as vitimiza, e dependerem
economicamente deles, tem grandes implicações tanto
para a dinâmica do abuso quanto para as abordagens para
se lidar com isso.

Podemos dizer, seguindo Portella (2005), que a violência


vivida pelas mulheres não é só produto da subordinação aos
companheiros, mas também um elemento que estrutura essa
relação. Por meio desse tipo de relacionamento, podemos inferir
que há uma violência contra a subjetividade das mulheres que,
assim, estruturam suas vidas não por sua própria vontade apenas,
mas levando em consideração o outro que a subordina por meio
da violência. A Organização Mundial da Saúde – OMS apresenta
uma definição de violência, ainda que precária:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em


ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra
um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha
grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano
psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.
(OMS, 2002 apud Krug et.al, 2002, p. 5).

Nessa conceituação, podemos destacar dois elementos que


aparecem nos relatos sobre violência das mulheres que procuram
o NUMAPE/GUARAPUAVA: o uso da força física ou do poder,
duas dimensões diferentes, mas que se complementam e, em cada
caso real se movem de formas e gradações variadas. O uso da força
física parece ser de mais fácil compreensão, e gera, quando acionado,
as lesões, aparentes, ou não, e inclusive a morte das mulheres.
O poder, por outro lado, faz parte de uma dimensão
menos visível e se move por tramas nem sempre objetivamente

54
expostas, como é o caso dos afetos, ou seja, o poder se expressa
pela dependência emocional, ou também por elemento mais
material, como a financeira em relação ao companheiro/a, que
leva à manutenção das situações de violência e subordinação. A
realidade ou a simples ameaça da violência são outras dimensões desse
fenômeno, o que significa na vida das mulheres o resultado material
ou a constante ameaça à sua vida, ou a perspectiva de que algo de ruim
ocorra a qualquer momento, sem motivação aparente para isso.
O conceito de violência expressa ainda as relações de
dominação-exploração-opressão, estabelecendo uma linha de
pensamento sobre violência que perpassa as relações sociossexuais
presentes nas sociedades patriarcais, e com isso, como afirma
Portella (2005), atravessa as demais relações sociais. A definição
de violência da OMS (apud Krug et al., 2002) apresenta outro
elemento importante para essa discussão: a intencionalidade. Nas
relações sociais de sexo e, em especial, em relação às mulheres, as
diversas formas de agressão sofridas por elas são efetuadas por seus
agressores com intenção.
Desde a violência de gênero presente em todas as relações
sociossexuais até a violência doméstica, associada ao poder do
macho diante da fêmea, todas são resultado de uma relação de
dominação-exploração-opressão de um indivíduo sobre o outro.
Saffiotti (1987) corrobora com o pensamento quando coloca que:

O poder do macho, embora apresentando várias nuanças,


está presente nas classes dominantes e nas subalternas, nos
contingentes populacionais brancos e não-brancos.Uma mulher
que, em decorrência de sua riqueza, domina muitos homens e
mulheres, sujeita-se ao jugo de um homem, seja seu pai ou seu
companheiro. Assim, via de regra, a mulher é subordinada ao
homem. Homens subjugados no reino do trabalho por uma ou
mais mulheres detêm poder junto a outras mulheres na relação
amorosa. (Saffioti,1987, p. 16).

55
A violência é um fenômeno presente nas relações
sociossexuais dentro e fora do ambiente doméstico e familiar e
se estabelece quando um ser humano, homem ou mulher, exerce
poder por meio da força física, psíquica ou emocional, ou seja,
pelo uso da força física ou do poder. Nos relatos das mulheres que
procuram o NUMAPE/GUARAPUAVA, a violência se apresenta
como resultados multicausais. As violências praticadas contra
as mulheres devido ao gênero assumem múltiplas formas. Elas
englobam todos os atos que, por meio de ameaça, coação ou força,
infligem-nas na vida privada/doméstica ou pública sofrimentos
físicos, sexuais, psicológicos com a finalidade de intimidá-las,
puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua
subjetividade (Alemany, 2009).
Para Safiotti (2015), no Brasil, ocorrem equívocos ao
definir os tipos de violência. Costuma-se tratar como sinônimo a
violência de gênero e violência contra a mulher, violência doméstica
e intrafamiliar, que para a autora são situações diferentes. “A
violência de gênero é, sem dúvida, a categoria mais geral” (Saffioti,
2015, p. 73, itálico no original) e, apesar de perpassar as demais,
não pode ser considerada somente como elemento fundante, pois
tem suas características próprias. Como gênero, Scott (1995)
traduz a relação de dominação-exploração como a base, porém,
não delimita quais sujeitos estão na ponta desse binômio, sendo
possível que o poder seja exercido também por uma mulher sobre
um homem ou sobre outra mulher.
Outro tipo de violência é a vivenciada no ambiente
profissional e é mais comum quando se trata da trabalhadora,
entretanto, por seu caráter sutil, quase não é denunciada. Pela
condição de inferiorização com base não apenas no sexo,
mas por uma relação de hierarquização e da condição das
mulheres no mundo do trabalho, ocupando postos de trabalho
superexplorados, são desconsideradas em suas funções e se

56
tornam um joguete nas mãos dos empregadores. A violência de
gênero “[...] se origina em uma matriz hegemônica de gênero,
num quadro de disputa de poder, reproduzindo um quadro de
controle social.” (Brasil, 2015, p. 21).
A violência contra a mulher, por outra parte, ocorre nas
construções sociais de sexo, mas: “Como se trata das relações
regidas pela gramática sexual, podem ser compreendidas pelas
violências de gênero” (Saffioti 2015, p. 75), e apresenta na outra
ponta dessa relação sempre uma figura masculina. Em relação
à violência doméstica e intrafamiliar, Saffioti (2015) define a
primeira como a agressão que ocorre dentro dos lares e a segunda
como aquela que “[...] extrapola os limites do domicílio.” (Saffioti,
2015, p. 75). Na acepção trazida pela autora, a violência doméstica
não está necessariamente embasada em laços consanguíneos, mas
praticada pelo agressor, que na maioria das vezes é a figura masculina,
sobre pessoas que residem sob o mesmo espaço, ou mesmo em espaços
distantes do domicílio, mas que são coagidos pela violência simbólica.
Os dados do balanço feito pela Central de Atendimento
à Mulher da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da
Presidência da República (2018), apontaram que o número de
mulheres que denunciam a violência sexual intrafamiliar é muito
pequeno, somente 3,01% das ligações realizadas para o número
180 era desse tipo de violência, sendo que o percentual geral é de
2,5%. No rol de agressões sexuais não é muito comum que a mulher
denuncie o assédio como uma das formas de violência sexual,
principalmente no âmbito doméstico. Segundo o documento,
foram denunciados nesse tipo de violência o estupro, com 86,43%
dos casos, a exploração sexual, com 5,67% e o assédio sexual, com
6,81% (Instituto Patrícia Galvão, 2015).
Venturi e Godinho (2013), em suas pesquisas sobre as
violências sofridas pelas mulheres, indicaram que 40% das entrevistadas
já tinham sofrido algum tipo de violência e, desse percentual, 10%

57
declararam já ter sofrido violência sexual e 7% apontaram o assédio
como uma das formas. A pesquisa revelou ainda que a cada quarenta
segundos uma mulher é violentada sexualmente e a cada trinta e dois
segundos uma mulher sofre assédio sexual.
A violência intrafamiliar, apesar de extrapolar os limites
do domicílio, estabelece-se por relações de parentesco. “Um avô,
cujo domicílio é separado do de seu (sua) neto (a), pode cometer
violência, em nome da sagrada família, contra o (a) pequeno (a)
parente (a).” (Saffioti, 2015, p. 75). No caso das entrevistadas
pelo NUMAPE/GUARAPUAVA, a violência doméstica e
intrafamiliar se complementam, pois as figuras masculinas
envolvidas tinham parentesco com as vítimas e também estavam
debaixo do mesmo teto.
A violência física dentro dos lares é a principal forma
registrada pelas mulheres e tem forte ligação com o uso de álcool.
Pesquisa realizada pelo Data Senado, em 2011 (Brasil, 2011),
apontou que: “Entre as mulheres que afirmaram já ter sofrido
algum tipo de violência e que citaram, espontaneamente, o motivo
da agressão, os mais citados foram o uso de álcool e ciúmes, ambos
com 27% cada.” (Brasil, 2011, p. 3). Para todas as entrevistadas
que denunciaram violência física, esta foi sofrida na presença
dos/as filhos/as, ou delas mesmas enquanto filhas em relação
à agressão do pai para com a mãe. Dados recentes sobre o tema
violência doméstica e álcool apontou que a situação foi agravada
ao longo dos anos e escancarada na pandemia da Covid-19. Antes
da crise pandêmica “[...] 243 milhões de mulheres e meninas,
entre 15 e 49 anos, sofreram algum tipo de violência. Depois do
isolamento, alguns países, como Argentina, Canadá, França,
Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos, já
registraram aumento de pedidos de ajuda, na Austrália, esse
número chega a 40%” (Ufmg, 2020). Segundo a pesquisa, no
período pandêmico, houve um aumento no consumo de bebidas

58
alcóolicas, refletindo diretamente no aumento dos casos de
violência física intrafamiliar, agravado consideravelmente pela
combinação consumo de álcool e isolamento social.
Por fim, talvez a forma de violência mais significativa seja
a simbólica. Primeiro, porque ela é compreendida e praticada por
meio de uma construção social do ser homem e do ser mulher e,
segundo, porque “O processo de territoriorização do domínio não
é puramente geográfico, mas também simbólico.” (Saffioti, 2015, p.
76). Bourdieu (2013) ao se referir à construção do poder masculino
sobre o feminino, alerta que:

A força especial da sociodiceia masculina provém do


facto de acumular e condensar duas operações: legitima
uma relação de dominação inserindo-a numa natureza
biológica que é, ela mesma, uma construção social
naturalizada. (Bourdieu, 2013, p. 38, itálico no original).

A violência simbólica ocupa lugar de destaque dentre


os tipos de violência por ser a que mais facilmente é aceita e/ou
ignorada na sociedade. Ela se constitui a partir de um conjunto
simbólico de atos e ações dos dominadores, os homens, sobre as
dominadas, as mulheres, com um relativo consentimento delas, e
se “[..] aplicam às relações de dominação categorias construídas
do ponto de vista dos dominadores, fazendo-as assim parecer
naturais.” (Bourdieu, 2013, p. 51).
Ao ser colocada na sociedade como um ser com menor
valor, com capacidades limitadas e como objeto de desejo
sexual do homem, portanto, tendo que se submeter aos padrões
estipulados pela cultura da beleza, as mulheres estão sofrendo
violência simbólica. A relação estabelecida entre o dominador
e o dominado nesse tipo de violência não é percebida tão
facilmente quanto a violência física, por exemplo, pois traz
consigo toda uma carga simbólica que reforça: “O mito do
‘eterno feminino’ (ou masculino) ou, o que é mais grave, de

59
eternizar a estrutura de dominação masculina descrevendo-a
como invariável e eterna.” (Bourdieu, 2013, p. 51).
Assim, na concepção do autor, a violência simbólica
estabelece-se e afirma-se por meio de uma relação construída
historicamente da condição feminina e sua subordinação não
só ao domínio masculino, mas também a um padrão social
dos quais muitos dos espaços frequentados pelas mulheres são
responsáveis pela constituição desse padrão. Dessa forma, as
violências contra a mulher têm seus fundamentos na relação
sociossexual, embasada na condição de inferiorização do ser
mulher na sociedade patriarcal, machista, sexista e acentuada
por relações econômicas do capitalismo, construídas ao longo
da história. As situações de violência vivenciadas por elas
formataram e formatam suas vidas, especialmente na relação
familiar, mas não somente nela, no trabalho remunerado e em
outras esferas da vida.

QUEM SÃO E QUAIS VIOLÊNCIAS


SOFREM AS MULHERES QUE PROCURAM O
NUMAPE/GUARAPUAVA

O Núcleo Maria da Penha – NUMAPE está presente


em várias cidades do estado7 e está vinculado às universidades
estaduais, atuando nos casos de violência familiar doméstica,
7 Universidade Estadual de Londrina (UEL); Universidade Estadual de Maringá
(UEM); Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Universidade Esta-
dual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE) em Marechal Cândido Rondon, Toledo e Francisco Bel-
trão; Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO); Universidade
Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO); Universidade Estadual do Norte
do Paraná (UENP); Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR).

60
acolhendo as mulheres vítimas, bem como no atendimento
jurídico, psicológico e social e na promoção de ações de prevenção
e combate às formas de violência contra elas. O NUMAPE tem
como objetivo contribuir para o cumprimento da Lei Maria da
Penha - Lei 11.340 de 2006 (Brasil, 2006) de forma efetiva.
As mulheres que procuram o NUMAPE têm como
característica fundamental e que aproxima todas, e se repetindo
em outros espaços sociais, a subordinação ao patriarcado e suas
estruturas de opressão e dominação, especialmente a violência.
Nosso recorte, neste estudo, são as mulheres que recorreram
ao NUMAPE/GUARAPUAVA-PR, entre os anos de 2018 e
2021. Em 2018, foram atendidas 30 mulheres; em 2019, 50; em
2020, 62 e 2021, 34, com idades entre 21 e 50 anos.
Em relação à escolarização, o perfil se repete assim como
em outras pesquisas sobre mulheres pobres vítimas, ou não, de
violência: possuem baixa escolarização (Ensino Fundamental
incompleto). No entanto, em 2019, 30% delas tinham Ensino
Médio completo. Em relação ao recorte de raça/cor, as brancas
são a maioria, seguidas das pardas. Entretanto, se somarmos
pretas e pardas o número ultrapassa as brancas em todos os anos
descritos e em relação à orientação sexual, a maioria se declarou
heterossexual, sendo que no ano de 2019, não foi informado
esse quesito por elas.
O gráfico 1 demonstra que a grande maioria não
possui renda em todos os anos pesquisados. Somente em
2021, a renda ficou maior que mil reais, devido à pandemia
e o recebimento do auxílio emergencial. Ainda, em relação
à situação econômica, nos anos de 2018 e 2019, a maioria
não recebia nenhum benefício, o que se inverte nos anos
seguintes, 2020 e 2021, anos de pandemia do Covid-19.

61
Gráfico 1 – Condição de renda das mulheres que procuram o NUMAPE/
GUARAPUAVA-PR por ano pesquisado

Fonte: Dados compilados pela autora com base nas informações fornecidas no
momento do atendimento.

Alguns pontos chamam a atenção para o ano de


2020, 59,7% não informaram sobre as/os filhas/os e, em 2021,
apresentou o maior percentual (40%) para 3 ou mais filhas/os.
Uma hipótese para o grande percentual de não informados em
2020, seria novamente a crise sanitária que dificultou o acesso a
esses serviços e o formato remoto contribuiu para que algumas
informações fossem suprimidas em detrimento de outras
mais relevantes, como a forma de violência e a agilidade no
atendimento e encaminhamento para o Boletim de Ocorrência
– BO e Medida Protetiva de Urgência - MPU.
Em relação à quantidade de filhas/os, temos a seguinte
situação, como exposto no gráfico 2, em relação a 1 filha/o e 2
filhas/os: em 2018, 40% e 36,6%; em 2019, o percentual ficou
26,2% e 31,2%, em 2020, temos 16,1% e 12,9% e, em 2021 os
percentuais foram de 20,6% e 29,4%, respectivamente.

62
Gráfico 2 – Quantidade de filhas/os por mulheres que procuram
o NUMAPE/GUARAPUAVA-PR por ano pesquisado

Fonte: Dados compilados pela autora com base nas informações fornecidas no
momento do atendimento.

Após traçado esse perfil preliminar, passaremos neste


momento a tratar, exclusivamente, das formas de violências e seus
agressores. Porém, os dados acima colocados não são tangenciais
à categoria violência, muitos estão correlacionados a ela, como a
condição e renda, principalmente. No momento do atendimento,
alguns marcadores são levantados junto às mulheres sobre a
violência, tais como o tipo de violência sofrida, quem foi o agressor
e se tem BO e/ou MPU. A tabela 1 apresenta a realidade em relação
ao BO e/ou MPU nos anos pesquisados.

63
Tabela 1 – Registro de Boletim de Ocorrência e/ou Medida Protetiva de
Urgência registrado pelas mulheres que procuraram o NUMAPE/GUARAPUAVA-
PR, por ano pesquisado

Não tem
Tem BO e Tem só BO nenhum dos NI TOTAL
MPU dois
2018 4 6 7 13 30
2019 25 12 13 11 61
2020 24 14 17 7 62
2021 21 5 8 0 34

Fonte: Dados compilados pela autora com base nas informações fornecidas no
momento do atendimento.

Os dados apresentados pela tabela 1, primeiramente,


demonstram que nos anos de 2019 e 2020, tivemos o dobro de
mulheres procurando o NUMAPE que 2018 e 2021, refletindo
também nos registros de BO e/ou MPU. Os estudos divulgados
pela ONUMulheres (2020), pela Câmara Legislativa (Brasil,
2021) e Cerqueira (2021), convergem em alguns pontos e com os
dados coletados no NUMAPE/GUARAPIAVA-PR.
Compilamos alguns deles: 1) Houve queda do percentual
de mulheres agredidas em 2019, seguindo a tendência de 2017 e
2018; 2) em 2020, houve aumento considerável do percentual de
mulheres que sofreram agressão; 3) dentre as formas de violência
perpetradas contra as mulheres, a que ocorreu em maior percentual
foram as psicológicas e verbais/morais. Alguns apontamentos
sobre esses três itens são necessários. Em relação à diminuição
de casos de violência contra as mulheres em 2018 e 2019, aponta
o Cerqueira (2021), em publicação do Atlas da Violência 2021,
(Cerqueira, 2021), que os dados podem ter sido camuflados em
virtude da não identificação correta do tipo de violências e mortes
das mulheres, como descrito no documento:

A notícia aparentemente positiva de redução da


violência letal que atinge as mulheres precisa, no entanto,

64
como já tratado acima, ser matizada pelo crescimento
expressivo dos registros de Mortes Violentas por Causa
Indeterminada (MVCI), que tiveram incremento de
35,2% de 2018 para 2019, um total de 16.648 casos no
último ano. Especificamente para o caso de homicídios
femininos, enquanto o SIM/Datasus indica que 3.737
mulheres foram assassinadas no país em 2019, outras
3.756 foram mortas de forma violenta no mesmo ano,
mas sem indicação da causa – se homicídio, acidente ou
suicídio –, um aumento de 21,6% em relação a 2018.
(Cerqueira, 2021, p. 36).

Quando fazemos o recorte do primeiro ano da pandemia,


temos um aumento considerável de mulheres vítimas de violência,
primeiro pelo contexto de confinamento, proporcionado pela crise
pandêmica, segundo pela perda de empregos e renda, agravando os
conflitos dentro dos lares e, na visão da Deputada Samira Nunes,
em entrevista à Najara Araújo na página da Câmara Federal dos
Deputados, há ainda outra explicação: o perfil da violência.

A quantidade de mulheres vítimas de violência no último


ano, durante a pandemia, pode ter sido reduzida levemente
em comparação com os anos de 2017 e 2019, mas o perfil da
violência mudou: a queda foi puxada por uma diminuição
da violência nas ruas. Por outro lado, a vitimização dessas
mulheres dentro de casa aumentou. (Brasil, 2021, s/p).

Na mesma entrevista, a deputada Érika Kokay (PT)


apontou as formas de violência que mais atingiram as mulheres na
pandemia, como segue:

O tipo de violência mais frequentemente relatado foi a


ofensa verbal, como insultos e xingamentos. Cerca de 13
milhões de brasileiras (18,6%) experimentaram esse tipo
de violência; 5,9 milhões de mulheres (8,5%) relataram
ter sofrido ameaças de violência física como tapas,
empurrões ou chutes; cerca de 3,7 milhões de brasileiras
(5,4%) sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de
manter relações sexuais; 2,1 milhões de mulheres (3,1%)

65
sofreram ameaças com faca ou arma de fogo; 1,6 milhão
de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de
estrangulamento (2,4%). (Brasil, 2021, s/p).

Na realidade do NUMAPE/GUARAPUAVA-PR, há uma


repetição dessas formas de violência, como mostrado no gráfico 3:

Gráfico 3 – Formas de violência sofrida por mulheres que procuraram o


NUMAPE/GUARAPUAVA-PR por ano pesquisado

Fonte: Dados compilados pela autora com base nas informações fornecidas no
momento do atendimento.

Vemos nos dados do gráfico 3 que o ano da pandemia da


Covid-19 teve considerável aumento dos casos de violência contra
as mulheres, sendo a psicológica a que mais apareceu nos relatos.
Em relação ao perfil dos companheiros, na realidade do NUMAPE/
GUARAPUAVA-PR, a grande maioria são de companheiros ou
ex-companheiros. Em todos os anos pesquisados, do total das
denúncias, o principal agressor é o ex-companheiro, nos seguintes
percentuais por ano: 63,33% (2018); 54,1% (2019); 37,1% (2020)

66
e 52,94%. Se tomarmos como referência atual companheiro e ex-
companheiro, o percentual sobe para 93,33% em 2018; 83,60% em
2019; 59,67% em 2020 e 85,3% em 2021.
Como em outros estudos, o percentual de agressores não
íntimos das vítimas é muito pequeno, representando menos de
5% nos anos pesquisados. Segundo Gedrata, Silveira e Almeida
Neto (2020, p. 353), “[...] geralmente o agressor é companheiro da
vítima, pai de seus filhos, o que dificulta o rompimento da relação
afetiva, mesmo em um contexto de violência.” Segundo os autores,
os agressores para além da relação íntima com as vítimas, possuem
baixa escolarização, são brancos, jovens (idades entre 32 e 38, 30%
deles) e possuem trabalho formal.
Os números são importantes para mapear a violência contra
as mulheres que procuraram o NUMAPE/GUARAPUAVA-PR,
mas são os depoimentos que revelam a crueldade desse processo. Nos
momentos de escuta dessas mulheres, foram percebidos, para além
dos dados, como elas são afetadas pelas diversas formas de violência
doméstica. Trazemos nove relatos destas mulheres e para manter o
anonimato e a segurança delas, daremos nomes fictícios a elas.
Ao serem perguntadas sobre tipo de violência sofrida,
muitas delas não conseguem perceber as várias formas, ficando
mais evidente quando a agressão é física. Estratégias criadas no
momento das escutas permitem perceber e elencar uma série de
formas de violências sofridas por elas. Solange8, no momento do
atendimento relata: “É violência que nem doméstica né assim,
ele me batia e me agredia, no pescoço, com chutes, me dizendo
palavras assim.” Todavia, ao ser questionada com exemplos, são
identificadas outras formas de violência, como a psicológica, moral
e patrimonial, como relatado em outra fala: “Ele sempre me dizia né
me chamava de puta, biscate e galinha que era de outros homens, mas eu
não tinha né, era esses xingamentos que ele sempre usava.”
8 Os nomes das entrevistadas foram substituídos por outros para preservar a iden-
tidade e os fatos relatados.

67
Marcela, relata que além das agressões físicas, sofreu
ameaças verbais e com arma e faca. Ao ser perguntada sobre
violência sexual, respondeu que a estratégia era sempre se
trancar no quarto, mas que quando negava ter relações com
ele era agredida: “Quando eu negava ele me batia, me dava soco.”
E que no planejamento familiar, foi obrigada a colocar o DIU
escondido dele porque não queria. Ela relata ainda a forma
cruel e planejada dos agressores:

Ele, me agredia na cabeça falando que era lugar que não


ia deixar hematomas e me sufocada e me dava murro na
cabeça, porque não ia ficar hematomas e eu não podia
fazer o corpo delito. E a última vez que eu tava dormindo
no chão ele foi com a arma e colocou na minha cabeça,
daí eu mandei ele parar e ele começou a jogar as balas
em cima de mim pra me ameaçar, essa foi as duas que eu
ainda sonho e às vezes não consigo dormir lembrando.

Outra estratégia dos agressores nas relações familiares


íntimas é a diminuição da mulher como sujeito, como indivíduo,
relacionada ao sexo/gênero, como relatado por Érica: “Sim ele fala
a última vez ele falou né que a mulher que ele tava era mais feia do
que eu né, mais velha do que eu tudo, mexe na autoestima da gente.”
A desconfiança e a degradação como mulher, principalmente na
questão sexual, foram também relatadas por Antônia:

É um tipo de violência que eu sofri foi tipo assim ele


ficar me xingando dizendo assim que não ia fazer nada
contra ele, mas que eu era pra mim me cuidar podia fazer
alguma coisa contra mim, ficava xingando falava que eu
saia com outros homens o que não é verdade, eu tenho
um problema no útero sabe e então daí eu quase não tinha
relação com ele, muito pouco mesmo, eu tenho mioma no
útero, daí eu passo quase o mês útero assim menstruada
sabe, daí ele falava que eu saia com outros homens sabe
ele ficava assim, ficava me xingando, daí eu chorava me
tratava super mal as vezes ia até para o hospital me ataca

68
os nervos […] Só psicológica mesmo, mas ele falava que
eu não valia nada, que eu era isso que eu era aquilo, falava
tudo aquelas barbaridades sabe.

As diversas formas de violência se somam nos episódios


relatados pelas mulheres, como apontado por Ana: “[...] ele
mostrava a mulher pelada, ele mostrava ela. Quando a gente ia
dormir ele dizia que ela era mais boa na cama. Ele mandava eu sair
da casa e eu não saia, não tinha pra onde ir [...] é ele forçava eu ter
relação com ele.” Nesse relato, constatamos pelo menos três tipos
de violência: a psicológica, a moral e sexual.
Mas para as mulheres que sofrem as agressões,
especialmente em relacionamentos afetivo, perceber que está
sofrendo violência, particularmente, aquelas que não deixam
marcas no corpo, é muito difícil, como relatado por Beatriz:
“Não, nunca eu tive muito moça, eu tive por oito anos e meio meu
marido fez isso, mas hoje eu sei que é considerado violência doméstica,
na época eu achava que não era.” Elas se sentem culpadas pelos
relacionamentos abusivos e violentos, dificultando a tomada de
decisão de denunciar ou a separação. Nos relatos de Beatriz,
percebemos, claramente, como a afetividade e dependência
emocional agem nesta relação:

Eu acredito que sim e de ambas as partes não só dele, sabe


porque cada vez quando a gente terminava eu também ia
atrás, sabe eu também dizia René eu não fico sem você, não
adianta volte, só que nunca ele havia me batido né, era briga
mesmo era aquela história pra eu emagreça e aquilo me
irritava eu ficava pra baixo, René então pelo amor de Deus
procure alguém mais não me conte quando você encontrar,
eu não preciso saber que você está com determinada fulana,
vá faça a vida com ela, aos poucos eu vou sofrer no começo
depois eu esqueço aí de tarde ele ia e eu mandava René eu
estou com saudade que ódio você não vai embora, você sabe
o que que eu quero então pode vim sabe, então era assim.

69
Encontramos nos depoimentos dessas mulheres o ciclo da
violência (lua de mel, aumento da tensão e ataque violento), mas há
uma relação muito clara e diretamente proporcional entre o tempo
de relacionamento e os espaços entre esses três momentos, via de
regra. Quanto mais duradouro o relacionamento mais prolongado
é o período de ataque violento e menor são os momentos de lua de
mel. No entanto, há casos como de Solange em que as agressões
iniciaram muito cedo, com um mês de casamento.
Todos os elementos que acabamos de apresentar traduzem
a lógica patriarcal de dominação, exercício de poder e violência
perpetrados contra as mulheres tendo esse sistema, como base,
relações determinadas pelo controle e subordinação delas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, discutimos as formas de violências


perpetradas contra as mulheres nesse modelo de sociedade mediado
pelo patriarcado, tendo como locus o NUMAPE/GUARAPUAVA
e como fonte para as nossas discussões os dados quantitativos e
qualitativos das mulheres em situação de violência que procuram o
Núcleo Maria da Penha.
O patriarcado se estrutura por meio do poder, da
dominação e da violência. Mas esse poder não está relacionado
com o pai ou o marido, mas na relação sociossexual. Embora tenha
surgido anteriormente ao capitalismo, ele o integra para reforçar a
dominação e opressão das mulheres.
A violência é estruturante tanto do capitalismo quanto do
patriarcado para a sujeição das mulheres em geral, em particular
as pobres, negras e pardas como é o caso das nossas pesquisadas.
Ao procurarem o NUMAPE, elas relatam as vivências das diversas
formas de violência dentro dos lares e a relação de subordinação

70
e poder que se estabelece nesse espaço, mediado pelo poder, pela
subordinação, opressão, dominação e dependência econômica.
Constatamos que a violência física e psicológica são as
mais recorrentes, mas encontramos também a sexual, moral e
patrimonial. Em seus relatos, as mulheres deixam claro que o ciclo
de violência tem início muito cedo na relação familiar e que é muito
difícil rompê-lo, pois muitas não têm condições psicossociais e
financeiras para quebrar a dependência criada. O que fica claro é
que o modelo de família e de sociedade produz todas as condições
materiais e sociais para a subordinação das mulheres e para a
perpetuação das formas de violência contra elas.

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para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe
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contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal
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74
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capítulo
O CICLO DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR
CONTRA MULHERES: DILEMAS E
SUPERAÇÃO
Angela Maria Moura Costa1
Micheli Souza Cordeiro2
Bruna Almerinda Santos de Carvalho3

INTRODUÇÃO

A violência doméstica e familiar contra mulheres é um


fenômeno antigo na trajetória histórica da humanidade que, ao
longo dos anos, foi se tornando comum entre as quatro paredes
dos afetos. Afetos? Sim! A violência doméstica e familiar é
um fenômeno que ocorre nas relações de afeto entre homens e

1 Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),


coordenadora do Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) e orientadora da área de Ser-
viço Social entre 2018 e 2021. Docente do Curso de Serviço Social da Universidade
Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO) E-mail amprates@unicentro.br .
2 Mestranda em Desenvolvimento Comunitário pela Universidade Estadual do
Centro Oeste (UNICENTRO), Assistente Social do Núcleo Maria da Penha
(NUMAPE) entre 2018 e 2021. E-mail michelisouzacordeiro@gmail.com
3 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Centro Oeste (UNI-
CENTRO) e estagiária de Serviço Social no Núcleo Maria da Penha (NUMA-
PE) entre 2018 e 2021. E-mail brunaa_carvalho@outlook.com
mulheres. A subjugação da mulher tem seu advento com a criação
do patriarcado (Lerner, 2019), em que os homens passaram a
subordiná-las, explorá-las e oprimi-las por uma questão de sexo.
A pergunta inicial que norteou esta pesquisa foi: por que as
mulheres que vivem em situação de violência doméstica e familiar
não rompem com o relacionamento violento, permanecendo
junto aos seus agressores? Uma pergunta que parece exigir
respostas óbvias, mas que acarreta um emaranhado de questões.
Para desvendar os limitadores que dificultam tal rompimento,
é necessário um olhar a partir da totalidade social que envolve
a vida dessas sujeitas. Diante disso, mediante a realidade social,
econômica e cultural que cerca a vida dessas mulheres, o objetivo
deste capítulo é compreender os fatores que dificultam ou as
impedem de romper com a situação de violência, fazendo com que
permaneçam no convívio com os seus agressores.
O método de análise do objeto de estudos é o materialismo
histórico-dialético (Marx, 1983) que ajuda a compreender as
conexões que o entrelaçam na realidade social em que se inserem as
mulheres que vivem em situação de violência doméstica e familiar.
E as principais categorias utilizadas para entender o fenômeno são
a totalidade e a contradição. Olhar o objeto a partir da totalidade
faz com que o conhecimento percorra as “[...] escalas necessárias
do intuitivo empírico ao abstrato e deste ao concreto pensado, que
retorna, enquanto totalidade de múltiplas determinações, ao concreto
real.” (Marx, 1982, p. XIII). Na contradição, existe um movimento
de negação. Um nega o outro e dessa negação surge uma síntese. Na
concepção de Marx (1983) trata-se da unidade dos contrários.
Veremos a violência doméstica e familiar a partir de uma
multiplicidade de determinações, não apenas geradas e mantidas pelo
patriarcado, mas reforçada e complexificada pelo sistema capitalista
e sua lógica de exploração, opressão e dominação. Ao analisar os
vários limitadores que dificultam ou também impedem a mulher de

76
romper com a situação de violência, percebe-se que “Suas diversas
partes precisam se articular de maneira a constituírem uma totalidade
orgânica e não um dispositivo em que os elementos se justapõem
como somatório mecânico.” (Marx, 1983, p. XXVII).
O objeto de estudos teve uma abordagem qualitativa
para a construção da análise, embasada em procedimentos
metodológicos coerentes. As metodologias da pesquisa qualitativa
são capazes de incorporar a questão do “[...] significado e da
intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e as estruturas
sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto
na sua transformação, como construções humanas significativas.”
(Minayo, 1998, p. 10).
A primeira técnica de pesquisa foi o questionário que é
um “Conjunto de questões, sistematicamente articuladas, que se
destinam a levantar informações escritas por parte dos sujeitos
pesquisados [...].” (Severino, 2007, p. 125). por meio dele, foi
possível identificar o perfil das mulheres, as violências sofridas e
outras informações relacionadas ao seu cotidiano.
A segunda técnica utilizada foi a entrevista aberta, que
é “Uma técnica de coleta de informações sobre um determinado
assunto, diretamente solicitadas aos sujeitos pesquisados [...] uma
interação entre pesquisador e pesquisado.” (Severino, 2007, p. 124).
A partir da técnica da entrevista aberta, desenvolveu-se uma conversa
sobre a situação de violência vivida, que fluiu tranquilamente entre as
sujeitas envolvidas. A técnica da entrevista aberta

[...] parte de certos questionamentos básicos, apoiados em


teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em
seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de
novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem
as respostas do informante. (Triviños, 2008, p. 146).

77
A pesquisa foi realizada com mulheres que estavam em
situação de violência doméstica e familiar e que foram atendidas
no Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) – UNICENTRO/
Guarapuava, no período de setembro a outubro de 2020. De um
total de 25 mulheres que buscaram o atendimento no núcleo,
13 aceitaram participar da pesquisa, mas apenas 09 assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)4. Portanto,
os dados que serão aqui analisados são de apenas 09 mulheres que
assinaram o TCLE. A identidade das mulheres foi suprimida por
prerrogativas éticas. Por isso, as participantes serão identificadas
por Sujeita A, B, C, etc., até atingir o número de 09 mulheres.
Optou-se por utilizar Sujeita para garantir o espaço de fala e a
identidade de gênero, que comumente não é identificada nos
escritos androcêntricos. E, com o mesmo objetivo, os trechos
de seus depoimentos foram marcados com letras diferentes do
restante do texto.
Utilizaremos uma linguagem mais próxima de nós
(pesquisadoras e pesquisadas) como sujeitas que somos do processo
de produzir o conhecimento. Essa linguagem quer retratar nosso
lugar, nossas experiências e vivências. Quer ser um espaço que
possibilite, principalmente às mulheres que viveram a violência,
empenhar sua voz para denunciar as violações de direitos humanos
que sofreram e ainda sofrem. Portanto utilizamos uma perspectiva
descolonial do saber, que contrapõe ao conhecimento eurocêntrico,
que deve ser (dizem) neutro, objetivo e positivo, elaborado por
homens héteros, brancos e de classe social abastada. Nossa opção é
simplesmente porque “[...] a reflexividade da visão descolonial não
é apenas sobre nos autodefinir na produção do conhecimento, mas
também sobre produzir um conhecimento que leve em conta a
geopolítica, a ‘raça’, a classe, a sexualidade, o capital social e outros
posicionamentos.” (Curiel, 2020, p. 131).
4 O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo COMEP que liberou o
parecer nº 4.144.790 no dia 09 de julho de 2020.

78
Analisamos os dados por categorias, que formam um
todo na compreensão de um objeto de estudo, pois elas são
“[...] referências fundamentais para sustentar o processo de
reflexão sobre o real e a sua reprodução intelectual [...] não são
categorias que possam ser tratadas isoladamente, ao contrário,
constituem-se de forma articulada em um mesmo processo de
investigação.” (Bourguignon, 2001, p. 45). Nós identificamos
essas categorias a partir dos dados coletados nas entrevistas
com as mulheres, como: violência doméstica e familiar; ciclo;
cotidiano; vivências e denúncia.
A partir desta pesquisa,aproximamo-nos da realidade vivida
pelas mulheres atendidas pelo NUMAPE e que protagonizaram
os dados analisados. Nesse caso, o papel das pesquisadoras foi o de
mediadoras (Pontes, 2007) entre o concreto figurado no caminho
em busca do concreto pensado. Nesse processo, nós caminhamos
do modo aparente como a realidade investigada se apresentou para
a sua essência, possível de ser captada naquele momento. Para isso,
promovemos aproximações sucessivas do real e descortinamos o
objeto de investigação, dentro daquilo que as nossas consciências
conseguiram captar.

A SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E


FAMILIAR VIVENCIADA PELAS SUJEITAS

A violência doméstica e familiar é um fenômeno que se


relaciona no âmbito da totalidade social. Ela pode não ter suas
raízes mais profundas no advento do capitalismo; é muito mais
antiga e mais complexa. Passa a ter legitimidade a partir da criação
do patriarcado, que possui uma combinação de palavras gregas,
pater (pai) e arke (comando), que significa o poder do pai, qual seja,
o poder dos homens sobre as mulheres (Delphy, 2009). Com ele,
os homens passaram a dominar, explorar e oprimir as mulheres, seja

79
no âmbito privado ou no público. É nele também que os homens
aprenderam a escravização de pessoas, começando pelas mulheres,
crianças e adolescentes (Lerner, 2019).
Para Saffioti (1987), o patriarcado não é apenas um
sistema de dominação masculina, mas também de opressão, porque
vincula-se a outros dois sistemas, o racismo e o capitalismo. Porém,
ao advento do capitalismo e à inserção da mulher na sociedade
de classes (Saffioti, 2013), somaram-se diversos elementos que
ampliaram as formas como se pratica a violência contra as mulheres.
Elas ocorrem tanto no espaço público, através da violência social,
simbólica, institucional, midiática (Cisne; Santos, 2018), quanto
privado, no âmbito das relações de afeto e convivência. É nessa
última modalidade que o presente estudo foca a sua atenção.
Para iniciar nosso entendimento sobre a violência sofrida,
elas responderam ao questionário contando que tipo de violência
já sofreram. E o resultado podemos visualizar no gráfico 1 abaixo.

Gráfico 1 - Tipos de violência sofrida

Fonte: Dados dos questionários e entrevistas (2020)


Organização: As autoras.

80
Das 09 mulheres que sofreram violência doméstica e
familiar, 100% delas relataram sofrer a violência psicológica;
88,89% violência moral; 77,78% a violência física; 55,56% violência
sexual e 55.56% violência patrimonial. Notamos que a violência
psicológica acompanha todas as demais violências; é como um
fermento que faz crescer as demais. De acordo com a Lei Maria
da Penha, a “[...] violência doméstica e familiar contra a mulher é
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial.” (Brasil, 2006). Esse tipo de violência pode ocorrer
em diversos ambientes, não apenas no espaço doméstico.

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida


como o espaço de convívio permanente de pessoas, com
ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como
a comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por
afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer
relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de
coabitação. (Brasil, 2006, Art. 5).

Essa lei apresenta a violência doméstica e familiar dividida


em cinco modalidades: física, psicológica, patrimonial, sexual e moral
(Brasil, 2006). As diversas formas de violências são praticadas por
meio de ações específicas e estratégicas que os agressores utilizam
para agredir. O quadro 1 revela esses tipos de ações.

81
Quadro 1 – Especificações e estratégias violentas

Violência Física Mulheres que sofreram


Empurrões 6
Puxão de cabelos 5
Socos, pontapés 5
Beliscões e mordidas 5
Enforcamento 4
Queimadura 0
Ameaça com faca, arma de fogo 5
Cárcere privado 0
Violência Sexual Mulheres que sofreram
Sexo sem consentimento 5
Impeça de usar método contraceptivo 0
Toques e carícias não desejadas 3
Violência Psicológica Mulheres que sofreram
Sempre depois das brigas e discussões coloca a culpa
9
em você
Te impede de romper a relação realizando ameaças 6
Faz você acreditar que ninguém vai te querer 9
Reclama do seu corpo 8
Te humilha 7
Chantageia que você vai perder a guarda do seu filho(a) 1
Te persegue nos lugares 1
Violência Moral Mulheres que sofreram
Fala mal de você para sua família e amigos 6
Te ofende na frente de outras pessoas 6
Inventa mentiras a seu respeito 7
Acusa a mulher de traição 6
Violência Patrimonial Mulheres que sofreram
Quebrou seu celular 2
Não te deixou usar uma roupa que você gostava 3
Escondeu seus documentos 2
Quebrou móveis que eram seus 1
Controla 3
Queimou seus documentos ou roupas 0
Fonte: Dados dos questionários e entrevistas (2020)
Organização: As autoras.

82
O quadro 1 foi elaborado para exemplificar as formas
de violências e auxiliar na identificação dessas pelas mulheres
entrevistadas, sem esses exemplos, alguns tipos de violências são
mais difíceis de serem nomeadas por quem sofre. Dessa forma,
segundo esses dados, empurrões, puxões de cabelo, socos, pontapés,
beliscões, mordidas, ameaças com faca e arma de fogo foram as
formas mais mencionadas. No que se refere à violência sexual,
o sexo e o toque sem consentimento foram os mais relatados.
Já a violência psicológica se sobressaiu, em que a culpabilização da
mulher nas brigas e reclamações sobre seu corpo foram as práticas
mais recorrentes. No que se refere à violência moral, nota-se que todas
as formas mencionadas na tabela foram vivenciadas pela maioria das
mulheres. Por fim, a violência patrimonial foi a forma menos relatada
pelas entrevistadas.
Dados oficiais do relatório elaborado pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública de 2021 apontam que a maioria
das agressões e morte de mulheres é praticada pelos companheiros,
comumente no ambiente doméstico.
[...] 72,8% dos autores das violências sofridas são
conhecidos das mulheres, com destaque para os cônjuges/
companheiros/namorados (25,4%), ex-cônjuges/
ex companheiros/ex-namorados (18,1%); pais/mães
(11,2%), padrastos e madrastas (4,9%), e filhos e filhas
(4,4%), indicando alta prevalência de violência doméstica
e intrafamiliar. (Bueno et al, 2021, p. 12).

Das 09 participantes desta pesquisa, o percentual de quem


cometeu a violência pode ser visualizado no gráfico 2.

83
Gráfico 2 - O autor da violência

Fonte: Dados dos questionários e entrevistas (2020)


Organização: As autoras.

É evidente que a violência ocorre nas relações de afeto


e convivência. Basta que o relacionamento inicie que o homem
almeja tomar posse da mulher, que em sua percepção passa a ser
seu objeto, sua propriedade. Isso é histórico, construído dentro de
um processo que vem desde a criação do patriarcado no decorrer
de 2.500 anos (Lerner, 2019). E, apesar de tanto tempo, de tantas
lutas das mulheres, a história continua se repetindo. Nesse caso, o
ambiente doméstico, que deveria ser o lugar seguro para as mulheres,
é exatamente o contrário. “A residência segue como o espaço de
maior risco para as mulheres e 48,8% das vítimas relataram que a
violência mais grave vivenciada no último ano ocorreu dentro de
casa, percentual que vem crescendo.” (Bueno et al; 2021, p. 12).
De acordo com Lisboa e Pinheiro (2005), existem diferentes
concepções para tratar da violência contra a mulher, entre elas está
a violência contra a mulher, doméstica, intrafamiliar e de gênero.
A violência contra a mulher é um debate que vem à tona no Brasil
na década de 1970, colocada em pauta por movimentos feministas

84
que denunciam a violência como violação dos direitos das mulheres
(Queiroz; Dinis 2014).Mas,também,tem outra forma de denominação
desse fenômeno como violência doméstica, porque essa prática é
comumente realizada pelos homens no ambiente doméstico. Por
violência doméstica compreende-se aquela que “[...] ocorre dentro de
casa, nas relações entre pessoas da família, entre homens e mulheres,
pais/mães e filhos, entre jovens e pessoas idosas.” (Teles; Melo apud
Lisboa; Pinheiro, 2005, p. 201).
Assim como, essa forma de dominação e controle
masculino sobre as mulheres é chamada em algumas literaturas
como violência intrafamiliar, que é “[...] toda ação ou omissão
que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a
liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro
da família.” (Brasil apud Lisboa; Pinheiro, 2005, p. 201). É assim
denominada, porque é um tipo de prática que ocorre entre os
membros da família. Essas são violências de gênero que

[...] deve[m] ser entendida[s] como uma relação de poder,


caracterizada pela dominação do homem e pela submissão
da mulher. [...] Assim, [...] é produzida e reproduzida nas
relações de poder e, quando a soberania masculina se
sente ameaçada, a violência aparece como um mecanismo
que tem o poder de manter a ordem estabelecida. (Lisboa;
Pinheiro, 2005, p. 201).

Nesse sentido, Santos e Izumino (2005) defendem


que é fundamental compreender que homens e mulheres têm
capacidade para disputar o poder. E nas relações violentas ambos
têm essa possibilidade, portanto, elas criticam a percepção
de que as mulheres se submetem à dominação dos homens.
Segundo elas, as mulheres também disputam o poder, constroem
estratégias para se desvencilhar da dominação e participam
dos conflitos. Em sua concepção, é importante considerar esse
lugar que as mulheres ocupam para visualizar perspectivas de
rompimento com o ciclo da violência.

85
Lisboa e Pinheiro (2005, p. 202) defendem esse mesmo
posicionamento e afirmam que é fundamental compreender
a relação homem/mulher como disputa de poder para “[...]
superar uma visão essencialmente vitimista da mulher.” Mesmo
em uma relação violenta em que a mulher enfrenta dificuldades
para desvencilhar-se, é fundamental entendê-la como sujeita,
capaz de protagonizar relações violentas também como resposta
na disputa pelo poder. Nesse contexto, é simplista conceber a
relação homem/mulher como um que é dominador e outra que
é apenas dominada. É preciso vislumbrar a possibilidade de as
mulheres empreenderem suas lutas para enfrentar, defender-se
e desvencilhar-se da situação de violência.

COTIDIANO, VIVÊNCIAS E VIOLÊNCIAS

O cotidiano é o espaço da vida comum. É onde as relações


ocorrem. É o espaço da repetição, da rotina, da vida comum
(Heller, 2014). Por um lado, o ambiente doméstico é comumente
tido como o ambiente seguro, o lar, onde as relações de afeto
se constroem. Por outro lado, esse mesmo ambiente é lugar de
exploração, de dominação, de submissão, de trabalho não pago,
realizado em nome do amor, entre outros - “valores” incubados
pelo patriarcado (Federici, 2019). Essa contradição se faz presente
na vida das mulheres que estudamos. É ali no ambiente doméstico,
lugar de vivências e rotinas que a violência ocorre. As participantes
da pesquisa relatam como sofreram as diversas modalidades de
violências por parte de seus companheiros e destacaram em seus
depoimentos as vivências da violência física, psicológica e sexual.
A violência física é a comumente mais reconhecida, tanto
pelas mulheres que a sofrem quanto pelas pessoas que as atendem.
Trata-se da violação da “[...] integridade física e da saúde corporal
[...]” (Cisne; Santos, 2018) da mulher, causando-lhe machucaduras,

86
podendo levar até a morte. O feminicídio é o ápice da violência contra
as mulheres. É quando o homem que se sente proprietário dela não
encontra outra saída para fazê-la continuar assim, a não ser dando
cabo de sua vida (Prado; Sanematsu, 2017).
Uma das participantes relata como ocorreu a violência
física, chegando próximo a uma situação de feminicídio:

[...] ele foi correr assim atrás de mim e daí acertou um


chute na minha mão sabe, daí eu fui indo nem calcei a
bota fui tava só de meia assim como eu tava eu fui indo
pro pasto que era mais pra baixo e tinha que passar pela
estrada sabe, onde já tem outros vizinhos. Daí eu fui e
eu estava tocando essas vacas daí de repente ele chegou
lá [...] ele estava com um facão na mão e ele vinha pro
meu lado eu falei pra né ele calma, vamos tirar o leite que
está tudo certo né, aí ele vinha e não parava eu comecei a
correr pro lado da estrada né e nisso ele me alcançou daí
assim ele acertou assim foi nas pernas mais sabe e acertou
no rosto e mais foi nas pernas assim, daí eu caí no pasto
ele continuou como se estive me surrando de chinelo de
cinta sabe, daí nessa hora daí ele me acertou assim na
perna e teve um corte perto da virilha sabe, deu assim
o médico falou foi sete pontos e daí eu tava gritando eu
pensei ele vai me matar, eu tava gritando bastante para
alguém ouvir mesmo. (Sujeita B, 2020).

Essa participante relatou que o agressor ficou irritado, porque


saiu de casa e a deixou para realizar as atividades do sítio e quando
retornou, ela ainda não tinha recolhido as vacas. Ela se justificou dizendo
que estava aguardando-o para ajudá-la na tarefa, mas, ele reagiu com
violência. Ocorre que os vizinhos ouviram a situação e denunciaram.

Quando as mulheres não cumprem a divisão sexual


do trabalho tradicional, deixando de fazer as tarefas
domésticas e/ou traindo o marido, cabe ao homem
agir, de alguma forma, para proteger a ordem de gênero
tradicional, como maneira de garantir uma vida
conjugal adequada aos princípios de tal ordem. (Santos;
Mendes, 2017, p. 03-04).

87
A violência psicológica acompanha todas as demais
violências. É como se ela funcionasse como um fio de ligação entre
todas as demais. Essa modalidade trata-se de

[...] qualquer conduta que lhe cause dano emocional


e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar
ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de
sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação
do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
(Brasil, 2006, Art. 7º).

Trata-se de um fermento na massa que vai dando


amplitude e desenvolvimento para as demais violências. Quando a
mulher resiste à situação de violência, esta tende a se intensificar,
pois o homem utiliza-se de outras estratégias para mantê-la sob
seu poder. Um exemplo relatado são as ameaças de morte. A
participante G relata que “[...] depois mandar áudio pra minha filha
dizendo Bianca eu vou me matar a sua mãe não podia ter feito o que fez
comigo, o que que ele quer? Claro que eu nunca mais vou ser a mesma,
nunca mais, não existe essa possibilidade.”(Sujeita G, 2020).
Inclusive uma das formas de amedrontar a mulher é
monitorá-la em suas atividades cotidianas. Ela conta que “[...]
tinha que trabalhar, pagar luz, água, tudo, comida colocar dentro da
casa, e ele ficava em uma rede deitado o dia todo, tipo me monitorando
me sondando [...].” (Sujeita F, 2020). O agressor faz de tudo para
que ela perceba que está sendo vigiada, no intuito de gerar medo.
A violência psicológica aparece em diversas situações,
entre elas, por uma questão geracional, ou seja, a mulher foi
rejeitada e humilhada pela idade que tem, como se ela fosse um
objeto descartável.

88
[...] dizer palavrão os tapas eu não tenho mais marca, mas
fica tudo guardado, véia dos couro caído, bisa porque eu sou
bisa sabe, [...] ele acha que eu sou propriedade dele daí ele
começa a chamar de palavrão que eu tenho gravado o recado
que ele deixou para minha filha [...], [...] dói palavra [...] os
tapas eu já esqueci, mas as palavras ainda não tá fácil de eu
tirar da minha cabeça. (Sujeita H, 2020).

É nítida a agressão psicológica na forma de desvalorização


do corpo da mulher. Esse corpo representa o tempo e suas histórias
de vida. Nele, estão retratadas todas as facetas de sua trajetória,
enquanto mulher, trabalhadora, mãe e responsável pela sobrecarga
de trabalho imposta pela cultura patriarcal. Essa violência marcou e
ainda marca a vida dessa mulher por muito tempo, segundo seu relato.
Os agressores também se utilizam de outras pessoas
para atingir suas companheiras, por exemplo, os filhos delas. A
participante relata que “[...] o que mais me deixou triste mesmo foi
dele falar da minha filha né que é encostada né e tal, isso me magoou
muito.” (Sujeita C, 2020). É cultural e acredita-se que a mulher
nasceu para ser mãe e proteger seus filhos. E assim, ela irá fazer
também diante da situação de violência. E o medo passa a fazer
parte da vida da mulher também por conta dos filhos, como no
caso abaixo, por conta da filha, como relata a Participante: “[...]
ele chegou até a ameaçar a minha filha [...] se eu se separasse dele ele ia
matar né minha filha, chegar matar minha filha [...] meu medo é esse só
[...].” (Sujeita I, 2020). Quando as mulheres se tornam resistentes
às ameaças sobre elas, os agressores utilizam-se de pessoas que
mantêm laços afetivos com as companheiras e normalmente, os
filhos são os primeiros a serem atingidos. “Neste sentido, os filhos
são as pontes que ligam as práticas ou a vontade de controlar as
ex-companheiras, consideradas por eles como ‘descontroladas’.”
(Santos; Mendes, 2017, p. 03).
Uma das violências menos comentada e identificada pelas
mulheres é a violência sexual que é

89
[...] entendida como qualquer conduta que a constranja
a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual
não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou
uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar,
de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de
usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação;
ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais
e reprodutivos; (Brasil, 2006, Art. 7º).

Essa modalidade de violência está ancorada na cultura


patriarcal, machista e sexista que impõe que o corpo da mulher
é de propriedade de seu marido. Portanto ela precisa cumprir as
obrigações sexuais dentro do casamento. Assim como, mesmo
fora de relações de afeto, a mulher pode sofrer violência sexual
pelo simples fato de o homem acreditar que por ser mulher deve
servi-lo sexualmente quando ele solicitar. É como se o homem
nascesse para ser o caçador e a mulher a presa que deve ser caçada
(Saffioti, 1987). Assim, percebe-se que a violência sexual pode
ocorrer dentro de relações afetivas, conjugais, como fora dela. Mas,
a lógica que conduz essa prática é a mesma, vinculada às relações
patriarcais e sexistas.
A participante D relata sobre a violência sexual sofrida “[...]
eu me trancava no quarto sempre. É, ele falava que eu era obrigada a
fazer. Quando eu negava ele me batia, me dava soco.” (Sujeita D, 2020).
Pelo viés patriarcal, constitui-se em uma obrigatoriedade de a mulher
servir também sexualmente ao ser marido. É dever da esposa (Santos;
Mendes, 2017). Portanto a mulher que se recusa a praticar sexo, porque
não é de sua vontade, não está cumprindo o seu papel social de esposa.
Na realidade, mesmo no casamento esse tipo de prática constitui-se
juridicamente como estupro.

Que nem se diz só uma vez porque ele não entendia falar
assim pra você sobre sexo se você não tivesse com vontade
você era obrigada né [...] ele tentou me sufocar, pra ele a

90
vontade era dele não importava a minha sabe, isso que dói
muito sabe, tinha que dar sem ter vontade, então isso a
gente escondeu muito sabe, ele foi ficando violento bebendo
e achando que né, eu tentei separar várias vezes, mas não
conseguia né, medo, ele me ameaçava muito ficava com
aquele medo tudo podia acontecer. (Sujeita H, 2020).

É ele queria que eu tivesse todo dia relação com ele, mas
eu com dor com sangramento como é que eu ia ter, por
isso como eu não tinha com ele, ele pensava que eu fazia
com outros homens na cabeça dele. (Sujeita A, 2020).

É um tipo de violência que eu sofri foi tipo assim ele


ficar me xingando dizendo assim que não ia fazer nada
contra ele, mas que eu era pra mim me cuidar podia fazer
alguma coisa contra mim, ficava xingando falava que eu
saia com outros homens o que não é verdade, eu tenho
um problema no útero sabe e então daí eu quase não tinha
relação com ele, muito pouco mesmo, eu tenho mioma no
útero, daí eu passo quase o mês útero assim menstruada
sabe, daí ele falava que eu saia com outros homens sabe
ele ficava assim, ficava me xingando, daí eu chorava me
tratava super mal as vezes ia até para o hospital me ataca
os nervos. (Sujeita A, 2020).

Esse direito sobre o corpo incide, inclusive, no controle


dos direitos reprodutivos da mulher, pelo marido ou companheiro.
Quando perguntada sobre o uso de algum método contraceptivo,
a Participante D afirma que “[...] eu fiz escondido, eu coloquei o
DIU escondido, ele falava que não precisava.” (Sujeita D, 2020).
Comumente os homens acreditam que a mulher existe para
reproduzir e quando ela se nega, ele pode pensar que está sendo
traído. Ter vários filhos é também uma forma de manter as
mulheres sob seu comando, sob sua dependência. Santos e Mendes
(2017) estudaram as masculinidades e mostraram como os homens
procuram preservar os papéis sociais, através da preservação do
cumprimento de tarefas que são atribuídas às mulheres.

91
As mulheres não relataram suas vivências sobre a
violência patrimonial e moral, embora tenham dito ter sofrido.
E para completar as cinco modalidades, também expressamos
os seus significados na sequência. A violência patrimonial é
“[...] entendida como qualquer conduta que configure retenção,
subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades;” (Brasil, 2006 Art. 7º).
Por ódio da mulher ou simplesmente para confiná-la ao
ambiente doméstico ou às relações afetivas, o homem pode usar da
artimanha de destruir o patrimônio, pertences ou documentos da
mulher. O fato dela sofrer esse tipo de violência pode contribuir
para que ela tenha as possibilidades de desvencilhamento da
relação limitadas, por exemplo, para uma separação que envolva
ação judicial é necessário os documentos pessoais, não tendo eles,
o procedimento torna-se mais demorado.
A violência moral é “[...] entendida como qualquer
conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.” (Brasil,
2006, Art. 7º). Nessa relação violenta, o homem destrói a imagem
e a reputação da mulher, que pode ocorrer mediante familiares ou a
sociedade, porém, uma das formas mais graves é quando o homem
faz isso para os filhos, gerando outro tipo de violência, que seria
contra crianças e adolescentes, no caso a violência parental.
Para Cisne e Santos (2018, p. 74), “Todas essas formas
de violência contra a mulher, como a ocorrida em relações
interpessoais ou em relações sociais coletivas, encontram uma
determinação comum: o patriarcado.” Seja em qual ambiente
for, praticada a partir de relações afetivas, ou não, elas são
expressões da dominação e do controle masculino sobre os
corpos femininos. É assim que os agressores se utilizam de
“[...] mecanismos de controle, acusação, proibição, [...] [para]

92
fazer com que as mulheres trilhem por caminhos tradicionais
de gênero.” (Santos; Mendes, 2017, p. 06 acréscimos nossos).

A VIVÊNCIA DO CICLO DA VIOLÊNCIA

A violência doméstica e familiar ocorre dentro de um


ciclo formado basicamente por três momentos: a) tensão; b)
violência; c) lua-de-mel. Normalmente, esse ciclo inicia-se de
forma silenciosa e até imperceptível pelas maioria das mulheres,
uma vez que o agressor não se utiliza da violência física em um
primeiro momento.

Figura 1 – Ciclo da violência doméstica e familiar contra mulheres

Organização: As autoras.

É comum que durante um relacionamento comece a


aparecer a forma abusiva, quando o homem utiliza de artimanhas
para coibir a liberdade da mulher, impedi-la da vivência familiar

93
e social, dificultar a capacitação profissional, monitorar e ditar
normas para o seu comportamento, entre outros.
Na fase da tensão, o agressor pode apresentar crises de
ciúmes da companheira, independentemente se hajam razões para
isso ou não; começa a praticar a violência psicológica, primeiro de
forma sutil, podendo aumentar a intensidade. Na fase da violência,
passa a praticar todas as modalidades, com manifestações de raiva
e descontrole por parte do agressor. Nesse caso, poderá praticar
toda forma de agressões, podendo até chegar ao feminicídio.
Caso o feminicídio não seja consumado, tem-se a
terceira fase que é a lua-de-mel, em que o agressor diz estar
arrependido, pede desculpas, faz promessas de que aquilo não
mais se repetirá. É nessa fase que, muitas vezes, as mulheres
agredidas perdoam, pois acreditam nas promessas de mudanças.
Isso ocorre, porque elas pesam todas as questões que dificultam
o seu desvencilhamento do agressor e acabam por recomeçar o
relacionamento. As entrevistadas mostram-se cientes do ciclo
da violência e dão detalhes de como ele ocorre.

Bem isso, passa de um mês quinze dias, um mês bom,


agrada as pessoas que vão lá em casa família tudo, dali uns
dias vira as costas né […] eu vivo nesse ciclo aí de ficar
um mês, dois meses bem bom, tudo alegre passeando e
daí dali um pouco começa tudo sem mais nem menos.
(Sujeita C, 2020).

Ele fez promessa sim, se eu voltar vai ser tudo diferente,


vai ser assim e assim, mas, eu não quero mais sabe eu não
quero mais eu não quero voltar com ele. (Sujeita A, 2020).

Agora, entre entender que a violência ocorre dentro de um


ciclo, e que, portanto, repete-se, e encontrar as condições concretas
para o rompimento com a situação de violência existe uma longa

94
distância. Isso passa em primeiro momento pelo reconhecimento
da situação de violência, que não é uma tarefa simples.

É difícil para um homem, que espanca a mulher ou atira-a


contra uma parede, saber que ele é violento. É igualmente
difícil para uma mulher, com olho roxo e equimoses no
corpo, saber que ela foi vítima de violência, apesar de
ambos encontrarem justificativas para evitar a realidade
[...]. (Miller, 1999, p. 17).

Essa distância é mantida por diversos fatores sociais,


econômicos e culturais que dificultam o rompimento com a
situação de violência. Nesses casos, as mulheres ainda carregam
o peso da cultura patriarcal que colocou sob seus ombros uma
gama de responsabilidades que na realidade não são somente
delas, mas que acabam sobrando para elas. Assim, ao pensar em
romper com uma situação de violência, as mulheres pesam todas as
possibilidades com relação aos seus filhos, principalmente.

ROMPIMENTO OU NÃO COM A SITUAÇÃO


DE VIOLÊNCIA: QUAIS OS EMPECILHOS?

Por que uma mulher que sofre a situação de violência


não rompe com o relacionamento? Desde tenra idade, homens
e mulheres são inseridos nas relações sociais e sexuais de forma
diferente. Para eles, a permissividade, o acesso ao espaço público,
as relações sociais e sexuais mais livres; para elas, tudo o oposto.
Dentro dessa perspectiva, é delas o espaço privado, a submissão,
a obediência, a pureza, o cuidado e a serenidade (Beauvoir, 2009).
Como elas devem obediência e devem ser submissas aos homens,
um certo grau de violência é até permitido pelo viés da cultura
machista e patriarcal. Serve para manter os valores e costumes
patriarcais (Santos; Mendes, 2017).

95
Todas as entrevistadas vivem em constante reflexão sobre
a necessidade de construir estratégias para romper com a situação
de violência. Uma delas identifica como dificuldade para esse
rompimento o fato de não ter renda própria, mas depender da
renda do companheiro, conforme relata: “[...] medo de ficar sozinha,
o medo de não conseguir, que daí eu não estava trabalhando, ele não
queria que eu trabalhasse que depender, depender dele né, daí eu tinha
medo de sair e não conseguir me manter e manter a [...].” (Sujeita D,
2020). Ela tem noção que o agressor se utiliza disso para mantê-
la em sua dependência, mas sua preocupação central é de não
conseguir prover as necessidades da filha.

Quando ligada ao fator econômico, a violência


possibilita que as mulheres se sujeitem a relações
abusivas por conta da dependência em relação aos
companheiros. Na estrutura familiar assentada na
hierarquia patriarcal, o homem é o chefe da família,
a quem cabe o direito de tomar decisões e aplicar
medidas que considere necessárias para manter e
reforçar sua autoridade sobre a companheira e os
filhos. À mulher cabe um papel secundário, em muito
atrelado à dependência econômica do companheiro
‘provedor’. Nesse tipo de estrutura familiar é facilitada
a presença da violência, fenômeno tolerado pela
sociedade. (Cheron; Severo, 2010, p. 3).

Outra participante sentiu que seria o momento de romper


com o relacionamento quando o companheiro se envolveu com
outra mulher, como relata: “[...] para dormir com ele daí eu pensei,
não agora não dá mais. Ele tendo outra, não tinha mais como viver
com ele.” (Sujeita E, 2020). De acordo com Santos e Mendes (2017,
p. 04), as separações podem ocorrer em duas situações: quando
as mulheres traem ou quando elas “[...] não aguentam mais os
comportamentos masculinos: viver bêbado, ser muito mulherengo,
ser descuidado com a manutenção da ordem moral e econômica
da família, etc. [...].”

96
Outra participante mostra que manteve o relacionamento
violento por muito tempo, porque os filhos ainda eram crianças.
Depois que cresceram ela não vê mais sentido em continuar com
o companheiro. “Não era uma coisa muito boa, mas ainda dava
para encarar, daí como a gente tinha as crianças pequenas, a gente foi
levando, foi levando, levando e agora não tem porque eu ficar.” (Sujeita
C, 2020). Percebe-se, nesse sentido, que o fato de ter os filhos
ainda pequenos também é um dificultador para que as mulheres
rompam com os relacionamentos violentos.
A mesma cultura patriarcal e machista ensinou para as
mulheres que elas têm de suportar todas as adversidades, inclusive
um relacionamento abusivo por conta dos filhos. Uma delas relata
que “[...] até hoje minha mãe caçoando de mim, eu dizia pra mãe vocês
não sabem, nem que eu apanhe a vida é boa a gente tem que apanhar
e viver pelos filhos [...].” (Sujeita H, 2020). Através da ideologia
religiosa ensinou-se às mulheres que um casamento é para a vida
toda e ela vai mantendo, seja por uma questão de necessidade ou
por uma questão de valores religiosos (Sirelli; Sousa, 2017).
Diante da resistência dos homens à separação, as mulheres
tentam diversas estratégias para romper com a situação de violência.
Uma das participantes tenta a separação até com a proposta de
abrir mão dos bens que lhe são de direito, mesmo assim não obteve
o consenso do agressor.

[...] quando a gente brigava assim algumas vezes [...] eu


dizia que eu não gostava, eu até propunha pra ele vamos
se separar cada um vai viver sua vida, e eu não vou brigar
pelas coisas fique com tudo, [...] eu acho assim que ele
não aceitaria assim uma separação na boa assim [...].
(Sujeita B, 2020).

No geral, os homens agressores não entram em acordo no


caso de separação. Isso ocorre porque “Quando a separação é uma
decisão feminina os homens interpretam que eles estão perdendo o

97
poder de decisão. E aí se coloca o limite da aceitação masculina frente
à autonomia e liberdade feminina [...].” (Santos; Mendes, 2017, p. 04).
Aceitar a separação significa para eles admitirem seus fracassos de não
conseguir manter os valores morais da família. Esse também é um viés
oferecido pela religião e pela sociedade conservadora patriarcal.

A SAGA DA DENÚNCIA DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Identificou-se que das 09 mulheres que participaram da


pesquisa, 44,4% delas não denunciaram os seus agressores e 55,5%
denunciaram, conforme o gráfico 3.

Gráfico 3 - Percentual de mulheres que denunciam a violência

Fonte: Dados dos questionários e entrevistas (2020)


Organização: As autoras.

98
A denúncia da situação de violência é mais uma das
inúmeras sagas que as mulheres enfrentam em um país machista
e patriarcal como o Brasil. O medo lhes faz constante companhia.
Isso foi revelado pela pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado
“Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher — 2021,
dizendo que para 75% das entrevistadas é o medo que não as deixa
realizar a denúncia contra os seus agressores (Brasil, 2021).
Quantas vezes as mulheres agredidas chegam às delegacias
e são “aconselhadas” a se reconciliar com o companheiro, a dar-lhe
mais uma chance ou a voltar para casa e esperar mais alguns dias para
ter certeza de que deseja realizar a denúncia! Quanta saga atravessa
uma mulher que chega na decisão de denunciar o seu agressor!
Para que isso ocorra, ela já dimensionou todas as possibilidades de
sobrevivência sem ele, arcando com as responsabilidades enquanto
mãe e mulher separada em uma sociedade que a condena por isso.
Mas a denúncia não exige delas apenas o fato em si,
porém, um processo anterior de reflexão subjetiva e objetiva
para medir as possibilidades concretas de viver na ausência
dele, inclusive da capacidade de lidar com a ameaça e o medo
da morte. E também é relevante o fato da denúncia exigir um
processo durante e após, porque a situação de violência não
cessa com a separação. Ela relata que “[...] se eu enxergar ele na
rua eu me escondo eu me fecho eu tenho trauma dele eu tenho medo,
não gosto, tenho ódio, tenho tudo sabe [...].” (Sujeita H, 2020).
A denúncia da situação de violência sofrida é fundamental,
entretanto, na experiência cotidiana das participantes, acarreta
algumas consequências:

[...] como eu fui lá e fiz a queixa, eu fiquei impossibilitada


de falar com o [...] por causa da medida protetiva,
como é que eu ia pedir pra ele se afastar de mim e eu
falar com ele era brincar com a autoridade não dava,
então o que aconteceu ele recebeu medida protetiva,
[...] ninguém prendeu o [...] foi uma medida protetiva

99
e ele ficou terça, quarta, quinta, sexta, mandando áudio,
ligando [...]. (Sujeita G, 2020).

O relato demonstra que a medida protetiva, embora tenha


a sua importância, não garante que cessem as ameaças. O agressor
pode até não se aproximar da mulher, contudo, encontra outras vias
para continuar produzindo o medo, os traumas e os sentimentos ruins
em sua vida, como relata: “[...] não pensei que amor fosse virar em
ódio sabe, você tem ódio, você tem trauma, não consegue enxergar
ele em lugar nenhum, porque você tem medo, o medo, esse medo vai
continuar comigo [...] para o resto da vida [...].” (Sujeita H, 2020).
Após a separação, a mulher agredida não se liberta
do agressor de uma vez por todas. Ele ainda continua com o
entendimento de que ela é sua, seu objeto, sua propriedade.
Continua mantendo o seu poder de dominação sobre ela, mesmo
estando separado. Continua ciscando em seu terreiro, como no
metáfora utilizada por Safiotti (1997) em A lógica do galinheiro:

[...] ele diz que se me ver com outra pessoa ele me mata
me pica né que você fica com aquele trauma, você tem
medo de sair será que vai acontecer? Será que se eu achar
outra pessoa, será que vai matar? Eu não quero achar uma
pessoa assim sabe e ele tira a vida daquela pessoa que não
tem nada a ver com a nossa vida, porque se Deus por uma
pessoa um dia no meu caminho, para você eu vou dizer
até o fim eu vou querer. (Sujeita H, 2020).

Quando os agressores são denunciados junto à justiça


criminal, a violência contra as suas companheiras não cessa. Eles
encontram formas de pressioná-las a retirar a denúncia e reatar o
relacionamento. A participante relata que fez a denúncia e recebia
inúmeras ligações do agressor, porém não as atendia:

[...] eu tinha pedido medida protetiva como é que eu iria


responder ele ou atender a ligação, eu não podia, aí no dia 14
de agosto era um sábado de madrugada ele mandou pra minha

100
filha um áudio que estava se matando e que eu era culpada
porque eu não podia ter feito isso o que eu fiz pra ele e realmente
ele se matou. (Sujeita G, 2020).

Pode-se imaginar como esse fato abalou psicologicamente


tanto a mulher quanto a sua filha, porque a violência sofrida pela
mãe não isenta os filhos e filhas (Mizuno; Freaid; Cassab, 2010).
Percebe-se que a violência não atinge somente a mulher, mas a
filha do casal também. Ambas sofreram com o fato de seu suicídio.
São traumas que ambas vão carregar pela vida até que encontrem
um serviço prestado pelas políticas públicas que ajudem a trabalhar
e aliviar seu sofrimento.
As consequências da violência doméstica e familiar são
concretas, mas também subjetivas na vida das mulheres que sofreram:

[...] faz cinco anos que procuro emprego, já fui em


praticamente tudo em [...], [...] eu não consigo ver um
futuro pra mim, eu sou uma pessoa muito capacitada
para trabalhar, [...] eu queira trabalhar, eu queria fazer
meu mestrado e eu não tenho condição nem de sair de
casa, hoje eu dependo do meu irmão, eu dependo do
auxílio emergencial [...]. (Sujeita G, 2020).

[...] estou bem caída sabe eu quero ficar só deitada,


não quero fazer nada, eu estou bem pra baixo, daí ela
me mandou ir para o psiquiatra […] É eu preciso
né eu tenho uma criança pequena, eu tenho que me
fortalecer, tenho que me levantar, só que eu estou
muito caída sabe desanimada, não tá fácil pra mim não.
(Sujeita A, 2020).

Essas mulheres necessitam de acompanhamento psicológico


por um bom tempo para que aprendam a lidar com as situações
vivenciadas para construir uma vida nova, agora sem violência.
A denúncia configura-se como o primeiro passo para o
rompimento com a violência. Entretanto a pesquisa mostra que a

101
denúncia do agressor acarreta mais violência para a mulher, uma
vez que até a família dele passa a querer a vingança. “Muitas dessas
mulheres não sentem segurança para denunciar, elas sentem medo
e vergonha, porém a agressão que começou verbal pode acabar
em morte.” (Fonseca, 2016, p. 51). Mesmo assim, denunciar é
importante, uma vez que por meio dela, a violência deixa de
ser um fato de cunho privado e passa a ser um fato público, de
responsabilização pública.
As mulheres tentam encontrar um motivo para a agressão.
Nesse relato, ela atribui ao alcoolismo:

[...] a violência que eu sofri né, ele bebe o problema era


isso [...] mas de uns dois anos pra cá que foi obrigado a
denunciar ele, a gente brigava muito [...] mas, nunca ele
me bateu, daí nesse dia 29 de agosto que eu denunciei
ele na delegacia [...] porque ele me empurrou sabe, me
deu uns tapa pra cara assim e me jogou contra a parede,
então eu me obriguei a denunciar ele, porque eu não
aguentei né, com medo mesmo, mas fiz a denúncia, daí
pedi a medida protetiva. (Sujeita H, 2020).

Ela relatou o medo que sentiu e mesmo assim conseguiu fazer


a denúncia pela agressão sofrida. De acordo com Goleman (2003), é
comum que as mulheres que sofrem violência usem a racionalização
como estratégia comum que as ajude a negar os verdadeiros motivos
pelos quais o agressor pratica a violência. É uma forma de sobreviver
à situação de violência sem romper com ela.
A participante B relata que se obrigou a denunciar a
violência sofrida, porque os vizinhos chamaram a polícia na ocasião
em que o seu companheiro estava agredindo-a com arma branca.
Ela relata que

[...] a polícia chegou daí e foi aí que eles falaram que teve
denúncia e que eles precisavam me levar. Daí na hora eu
falei e depois porque assim a gente tem medo né, a polícia

102
falou não, pelo menos você vai para o atendimento.
Porque daí tava sangrando assim meu rosto por causa que
eu tenho a pele muito branca daí eu acho que por tanto
que marcou assim até que eu não sei de repente se foi
da mão no rosto e também da coxa sabe e levou para o
atendimento sabe. Daí falaram que era pra eu pensar um
lugar para eu ir né pra eu ficar pra lá eu não podia voltar
e que teria que fazer medida protetiva. (Sujeita B, 2020).

São várias as formas como as mulheres chegam a denunciar


a violência sofrida. Cada uma delas encontra uma maneira ou é
obrigada a denunciar devido às circunstâncias em que a violência
ocorre. Porém, elas sentem-se culpadas pelo ato:

A gente se sente né. [...] na verdade ele brigava com a


gente né, dizia que era eu que era culpada [...] por causa
de xingar ele, de brigar com ele. (Sujeita E, 2020).

Sempre, eu até dia de hoje que eu estou te contando que


faz dois anos, eu sou culpada desse casamento, eu sou
culpada de jogar esse casamento fora, só que a família dele
ele acha assim que eu sou culpada dele não ter família,
mas os filhos vai continuar sempre [...]. (Sujeita H, 2020).

Devido à convivência, as mulheres vão internalizando a


culpa, uma vez que são culpabilizadas pela violência sofrida, por
não atenderem ao papel social a elas determinado. E quando
ocorre a denúncia, tanto o agressor quanto a sua família procuram
descobrir de quem partiu a iniciativa:

[...] o irmão dele perguntou assim para o policial, foi a mulher


dele que denunciou? Daí o policial não respondeu sabe, aí
depois eu comentei com o policial eu quero deixar avisado a
intenção dele nessa pergunta foi pra saber se tinha sido eu pra
talvez já não sei se vingar ou ficar com raiva por eu ter feito
aquilo sabe, como se a culpa fosse eu. (Sujeita B, 2020).

103
Uma vez realizada a denúncia, a mulher agredida passa a
sofrer ameaças, a ser chantageada e constrangida. Outra participante
relata sentir-se culpada pelo suicídio do ex-companheiro. Ela carrega
as responsabilidades de zelar, cuidar do outro, inclusive de sua vida.
Esse jugo que lhe foi imposto pela cultura patriarcal e machista, a faz
pensar que poderia ter evitado o suicídio do agressor:

Eu [...] penso que eu sou culpada na seguinte coisa, quando


ele mandou o áudio que ia se matar eu não acreditei eu
deveria ter ligado pro filho dele na hora, quem sabe tinha
dado tempo de salvar ele, sabe, mas culpa dele se matar, cara
eu não ia deixar ele em um cadeião lá, eu não tenho coração
pra isso, claro que se eu visse que ia se fechar pra ele eu ia sei
lá eu ia dar um jeito da advogada dele ganhar, a advogada
dele iria me engolir inteirinha ali na hora eu não iria ter ação
quando visse ele, eu amo ele, eu amo ele, ele não entendeu
isso, era muito simples, eu amo ele, sabe a hora que eu vesse
ele tudo iria por água abaixo. (Sujeita G, 2020).

Os efeitos da culpabilização das mulheres continuam


tempo depois da agressão. “Eu me sinto muito mal, às vezes eu
acreditava que era culpa minha. Mas, agora assim eu trabalhando
ali (chorando diz): eu acho que eu não sei responder essa pergunta.”
(Sujeita D, 2020). Ela estava sendo acompanhada pelo serviço
de psicologia do NUMAPE. Mas tem também aquelas que não
se sentem culpadas pela violência sofrida, ou seja, romperam
com a ideia que comumente os agressores utilizam para fazê-
las culpadas. “Hoje eu não me sinto culpada, mas assim eu já me
senti sabe, eu já cheguei a pensar assim de repente se a gente ceder
um pouquinho como a mulher sempre faz né, [...] hoje eu sei que de
repente poderia ter sido pior.” (Sujeita B, 2020). E assim, ela segue
a saga imposta pela cultura machista e patriarcal de pensar
que somente ela deve ceder, que se ela o fizer, a violência pode
desaparecer. Mas não se trata disso: quanto mais cede, mais
submissa se torna, mais violência vivencia.

104
Tanto é verdade que outra participante mostra que
mesmo tendo cedido sempre, tendo feito todas as vontades do
agressor, a violência não cessou. Até que veio a separação. E
ela se mostra consciente disso. “Não, eu acho que a culpa não era
minha porque eu já pra não dar confusão nem da casa eu saía, ele
era muito ciumento, nem na mãe dele que era pertinho assim eu não
ia, porque ele era muito ciumento [...].” (Sujeita I, 2020). Então,
consegue ampliar o olhar e perceber que não é sua culpa, nunca
foi. Mesmo assim, entre isso, a concretização da separação e
a cessação da violência existem inúmeras fases da história a
serem contadas, reescritas e construídas em bases sólidas para
um devir sem desigualdades de gênero e sem violências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término de uma pesquisa, a sensação é sempre de


ter conhecido uma parte da realidade. O método dialético é
assim: quando mais se aproxima da realidade, mais se conhece
dela, é verdade. Porém, como a realidade é toda movimento, até
que as sujeitas pesquisadoras captem o real pela mediação da
consciência, o real já criou novas conexões e o objeto já ganhou
contornos ainda mais complexos.
Nesse estudo, foi possível perceber que é fundamental
compreender a violência doméstica e familiar como fruto de
vários sistemas enovelados, como o patriarcado, o racismo e o
capitalismo. Embora este fenômeno seja originário do patriarcado,
ganha contornos novos e mais complexos a partir do racismo, que
prefere mulheres negras para oprimir e explorar e do capitalismo,
que além de explorar e oprimir no espaço da fábrica, pagando
mal e subjugando as capacidades femininas, também mantém o
trabalho não pago dentro do espaço doméstico. Nele, a violência é
o fermento da massa da tripla opressão.

105
A violência doméstica e familiar enquanto violação dos
direitos humanos das mulheres, é parte e expressão de uma sociedade
que ainda não superou o processo de dominação, exploração e opressão
aprendido e desenvolvido desde a criação do patriarcado.
Embora as mulheres tenham travado históricas lutas,
a sociedade machista, racista e patriarcal encontra sempre
novas formas de continuar inferiorizando as mulheres tanto na
subjetividade (no imaginário social de uma sociedade que ainda
não superou o patriarcado) e na objetividade da vida em sociedade
(na concretude das relações de trabalho, sociais e de afeto).
Portanto, a luta das mulheres ainda é árdua. Enfrentamen-
tos subjetivos e objetivos ainda embalam nossa vontade e sonho
de viver em paz, de sermos ouvidas, respeitadas e tratadas como
humanas, que somos. Não somos objetos e nem propriedade de
ninguém! Ninguém tem o direito sobre a nossa vida, nossos corpos
e nossas decisões! Somos humanas! E como humanas que somos,
queremos ser e viver a nossa história, por nós construída em um
solo onde se aponte para um devir, em que a equidade entre ho-
mens e mulheres saia de um conto de fadas e materialize-se no real.
É a “Esperança Feminista”, não é mesmo Diniz e Gebara (2022)?

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha.


Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/95552/
lei-maria-da-penha-lei-11340-06 Acesso em 17 de julho de 2019.
BRASIL. Pesquisa DataSenado - Violência doméstica e familiar
contra a mulher. Brasília, DF, 2021. Disponível em https://www12.
senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/violencia-domestica-
e-familiar-contra-a-mulher-2021 Acesso em: 03 abr. 2022.

106
BOURGUIGNON, Jussara Ayres. O processo da pesquisa e suas
implicações teórico-metodológicas e sociais. In.: Emancipação.
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110
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capítulo
PERFIL DOS FEMINICÍDIOS
OCORRIDOS NA COMARCA DE
GUARAPUAVA NOS ANOS DE 2015 A
2020
Ana Claudia da Silva Abreu1
Kamila Dib Kaminski2

INTRODUÇÃO

A construção social do sexo (gênero), cria papéis


masculinos e femininos e reserva espaços aos homens e às mulheres,
subordinando-as. Essa hierarquização e maior vulnerabilização
das mulheres estabelecem formas específicas de violência de
gênero, sendo a violência doméstica ou familiar uma das suas mais
conhecidas expressões. Segundo dados do Atlas da Violência, no
ano de 2019, 3.737 mulheres foram assassinadas e, segundo a Nota
Técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, podendo-se
apontar um crescimento de 22,2% nos feminicídios entre 2019 e

1 Doutora e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná.


Professora em Direito Penal no Centro Universitário Campo Real e orientadora
do Núcleo Maria da Penha – Unicentro/Guarapuava nos anos de 2018 a 2021.
E-mail prof_anasilva@camporeal.edu.br.
2 Graduada em Direito pelo Centro Universitário Campo Real. E-mail kamila-
dk99@gmail.com .
2020 (Cerqueira, 2020). São índices que retratam a gravidade da
violência contra as mulheres no nosso país.
A Lei Nº. 13.104/2015 adicionou ao artigo 121 do
Código Penal a qualificadora do feminicídio, a qual prevê que
o homicídio terá pena de reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta)
anos quando cometido contra a mulher, por razões da condição
de sexo feminino. O parágrafo 2º-A desse artigo ainda elucida
que se considerará que há “razão da condição de sexo feminino”
quando o assassinato envolver violência doméstica e familiar ou o
menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Os motivos que levaram à elaboração dessa lei refletem
uma realidade em que mulheres são mortas simplesmente porque
são mulheres. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) foi
precursora e vem promovendo grande avanço na luta pelos direitos
das mulheres frente a essa realidade sexista e patriarcal que as
condiciona e submete a patamares inferiores aos dos homens. A
adição da qualificadora tem o escopo de proteger o direito à vida
da mulher e dar visibilidade a essas mortes e à violência contra a
mulher, por muito tempo naturalizada pela nossa sociedade.
Não podemos ignorar que o direito, sob o paradigma da
universalidade e neutralidade da norma, reflete a aplicação da
lei por meio da perspectiva daqueles que ocupam os espaços de
poder, ou seja, homens, brancos, heterossexuais e economicamente
favorecidos. Sob o manto da universalidade do homicídio, as
mortes de mulheres por razões de gênero eram invisibilizadas.
Desse modo, a partir da nova legislação, é possível saber em quais
condições as mulheres têm sido mortas, quais são as motivações
desses assassinatos, em que circunstâncias eles ocorrem, enfim,
a tipificação específica permite que seja traçado um diagnóstico
dessa violência letal.
Com a finalidade de avaliar o perfil dos feminicídios na
Comarca de Guarapuava, este capítulo foi dividido em três partes.

112
Na primeira seção, será apresentado o percurso metodológico eleito
para a sua realização. Em seguida, na segunda parte, será analisada a
Lei Nº. 13.104/2015 e traçados os elementos necessários para que o
assassinato de uma mulher seja enquadrado como feminicídio. Por
fim, a terceira parte, apresenta a investigação de nove processos de
feminicídios, ocorridos na Comarca de Guarapuava, no período de
2015 a 2020. Analisar-se-á as características pessoais das vítimas,
bem como sua relação com o autor, além dos elementos essenciais
relativos ao crime, tais como os motivos, o instrumento utilizado,
como se deu a sua execução, dentre outros.
A compreensão do fenômeno do feminicídio, suas causas
e seus efeitos, é uma das ferramentas que se apresentam para, a
partir do entendimento do crime se pensar em políticas públicas
para o enfrentamento do problema. Além disso, considerando que
o feminicídio se traduz em um alfabeto violento que se inscreve
no corpo da mulher (Segato, 2013), a presente pesquisa se propõe
a realizar, conforme preconiza a autora, uma escuta rigorosa das
mensagens dos feminicídios.

PERCURSO METODOLÓGICO

Para realizar o exame dos processos de feminicídio,


estabeleceu-se um recorte territorial e temporal.
A definição do início do marco temporal se deu pela ne-
cessidade de observar os assassinatos praticados após a entrada em
vigor da Lei do Feminicídio, que ocorreu em 09 de março de 2015.
A limitação do termo final, março de 2020, justifica-se porque a
decorrência de um período de 5 anos da vigência e aplicação da lei
permitiria abranger uma quantidade maior de processos, sobretu-
do considerando que a maioria deles se encontram em segredo de
justiça e não podem ser acessados.

113
A eleição da Comarca de Guarapuava se justifica, porque
esse artigo foi desenvolvido durante a atuação de uma das autoras3
como Orientadora no Núcleo Maria da Penha (Numape), projeto
de extensão desenvolvido pela Universidade Estadual do Centro-
Oeste (UNICENTRO), localizada na cidade de Guarapuava,
Estado do Paraná, e que tem como finalidade realizar o atendimento
social, jurídico e psicológico às mulheres em situação de violência
familiar e da realização de ações de prevenção à violência contra as
mulheres. O Numape desenvolve, também, atividades de pesquisa,
por meio do “Grupo de Estudos Feminismos e Violência contra
a Mulher”, cuja preocupação é o aprimoramento acadêmico das
extensionistas e a produção científica. O presente artigo é fruto das
atividades desenvolvidas pelo Projeto de Extensão e pelo Grupo
de Estudos, justificando-se o recorte espacial.
Para a realização da pesquisa, foi utilizado o sistema de
consulta processual Projudi (Processo Eletrônico do Judiciário do
Paraná), com login e senha própria das autoras, para acessar os
processos. De um total de 31 processos de feminicídios praticados
na Comarca de Guarapuava no período pesquisado, apenas nove
ações penais não estavam em segredo de justiça e puderam ser
acessadas. Em um desses processos, houve uma dupla imputação,
pois duas mulheres foram vítimas da violência letal, totalizando
dez feminicídios, cinco consumados e cinco tentados.
Os dados foram coletados no sistema Projudi nos anos
de 2020 e 2021. Após a leitura das peças processuais (denúncia,
resposta, alegações finais e sentença de pronúncia) e do inquérito
policial, foram eleitas as categorias de análise. Considerando o
objetivo de traçar um perfil da vítima, do agressor e dos delitos,
elegemos como categorias de análise: idade, escolaridade e raça/
cor da vítima, relacionamento com o agressor; modo e meio de
execução do delito; motivos declarados do crime; concessão de
3 Ana Claudia da Silva Abreu foi orientadora do Direito, no Núcleo Maria da
Penha, de janeiro de 2018 a agosto de 2021.

114
medidas protetivas de urgência e outros históricos de violência.
Definidas as categorias, os dados foram transcritos e organizados,
em tabelas, nos programas de computador, Word e Excel.
Para a realização do artigo, adotamos o método de análise
de conteúdo, o qual, segundo Bardin (2011, p. 47), consiste em:

[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações


visando a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos
de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores
(quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/
recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.

Esse método é composto por três fases: a pré análise dos


dados, a exploração do material e o tratamento dos resultado, por
meio da inferência e interpretação (Bardin, 2011). Neste artigo, a
partir do conjunto de documentos examinados (inquéritos policiais)
constituímos o que o autor denomina de corpus da pesquisa. Na
sequência, fizemos uma leitura inicial dos documentos, para
estabelecer um primeiro contato com os dados e as impressões
iniciais das mensagens neles contidas. Após, organizamos as
informações sobre o crime e os sujeitos do delito (autor e vítima)
em arquivos, para, em seguida, por meio da interpretação dos dados,
definir as categorias de análise, que serão apresentadas na sequência.
Esse método nos permitiu a realização de uma pesquisa
quantitativa e qualitativa, cujo ponto de partida foram os conteúdos
manifestos das peças acusatórias e das informações contidas no
inquérito policial, interpretados segundo uma perspectiva de
gênero e em conformidade com a categoria feminicídio.

115
A CATEGORIA FEMINICÍDIO

O feminicídio é uma categoria recente dos estudos


feministas4, que está ainda em construção e consolidação, mas que
pode ser conceituado como o assassinato de uma mulher, por razões de
gênero.Trata-se do fim letal que marca uma violência estrutural e reiterada,
caracterizada pelo menosprezo às mulheres e ao feminino, inserido no
contexto das relações desiguais impostas pelo poder patriarcal.
Na proposta deste artigo, tomamos o feminicídio como uma
categoria de análise, não apenas para evidenciar as causas das mortes
misóginas de mulheres em todo o mundo, como também assentar
as bases científicas necessária para dar visibilidade a esses crimes e
quantificá-los (Copello, 2012, p. 129).
A teoria do feminicídio é também responsável pela
reivindicação da tipificação do fenômeno, como uma forma de nomear
esse problema estrutural que mata as mulheres e que, durante muito
tempo, foi naturalizado. As crescentes produções teóricas das autoras
são responsáveis pela visibilização do feminicídio e a alteração desse
fenômeno no contexto social e político.
A palavra femicide foi usada pela primeira vez por Diana
Russell, no Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres,
em Bruxelas, na Bélgica, no ano de 1976. Esse termo novo foi
utilizado para se referir às opressões sexistas e patriarcais causadas
contra as mulheres e, assim, o feminicídio foi definido como um
crime de ódio contra as mulheres, passando a significar “a morte de
mulheres por homens porque elas são mulheres.” A autora elaborou
uma tipologia ampla de quais assassinatos configuram feminicídio,
não restringindo a sua concepção ao feminicídio íntimo, pelo
4 O feminicídio é uma categoria de análise a ser aplicada no âmbito das ciências
sociais, a fim de revelar os fatores discriminatórios que causam as mortes de
mulheres em todo o mundo e, ao mesmo tempo, assentar as bases científicas para
quantificar esses crimes, considerando que a sua verdadeira dimensão encontra-
se na obscuridade. (Copello, 2012, p. 129).

116
contrário, ela considera dentro desse conceito também as mortes
decorrentes de ações ou omissões estatais, como as políticas de
criminalização do aborto. Por fim, defende que o uso de um termo
novo para designar as mortes sexistas e misóginas era necessário,
para que as feministas começassem a se organizar e, assim,
desenvolver ações para o combate à violência contra mulheres e
meninas, até então naturalizadas (Russel, 2011).
Os feminicídios são assassinatos que ocorrem sob a ordem
patriarcal, uma forma de violência sexista que não deve ser vista
como um fato isolado, ou atribuído a uma patologia do agressor,
pelo contrário, expressa o ódio, o menosprezo às mulheres. Em regra,
são mortes evitáveis, pois grande parte delas representam o fim de
situações contínuas de violência (Nazareth Portella, 2017).
O estudo da categoria feminicídio é marcado também
pela construção de tipologias e classificações desses assassinatos.
A partir da análise da produção feminista latino-americana,
encontramos três tipologias distintas: uma genérica5, que
considera o conjunto de mortes violentas em razão do gênero; uma
específica6, a qual identifica a misoginia como a causa principal da
morte (e busca especificar e classificar essas mortes); e, por fim,

5 Para Diane Russell, Jill Radford e Jane Caputti, a maior parte dos assassinatos
de mulheres praticados por homens possuem uma motivação de gênero, que elas
denominam de terrorismo sexual, o qual, estando presente, configura um femi-
nicídio. Marcela Lagarde também faz uma definição genérica dos feminicídios,
incluindo no conceito a omissão do Estado, que faz com que essas mortes sejam
marcadas pela impunidade (Abreu, 2021, p. 47-48).
6 Dentre as tentativas classificatórias, aponta-se a tipologia desenvolvida pelas au-
toras Julia Monárrez, Ana Carcedo e Montserrat Sagot. A classificação mais
citada nos artigos sobre o feminicídio é a elaborada por Ana Carcedo, com a
colaboração de Montserrat Sagot. As autoras trazem três categorias: feminicídio
íntimo (quando há uma relação íntima, familiar ou de convivência), feminicídio
não íntimo (quando a morte é marcada por um ataque sexual prévio) e feminicí-
dio por conexão (quando uma mulher se coloca na linha de fogo ao intervir em
defesa da vítima). (Abreu, 2021, p. 48-49).

117
uma judicializadora7, centrada na discussão sobre a tipificação
ou não desse fenômeno (Gomes, 2018).
Ainda que não haja um consenso entre as autoras se o
conceito deve ser mais abrangente, de modo a incluir todas as
mortes de mulheres ou mais restrito, vinculando-se apenas aos
assassinatos misóginos, esses esforços teóricos representam uma
ferramenta útil para orientar o legislador à adequada criminalização
dos feminicídios. Além disso, para evidenciar os diversos contextos
em que as mulheres, por razões de gênero, são mais vulneráveis
à violência, é preciso entender que existem dimensões pessoais e
impessoais do delito.
Wânia Pasinato (2011, p. 221) informa que a expressão
“feminicídio” ganhou espaço no contexto latino-americano devido
a denúncias de assassinatos de mulheres ocorridos em Ciudad
Juarez, no México, “onde, desde o início dos anos 1990, práticas
de violência sexual, tortura, desaparecimentos a assassinatos de
mulheres têm se repetido em um contexto de omissão do Estado e
consequente impunidade para os criminosos.”
Apesar de a construção do conceito no contexto latino-
americano estar marcada por sua relação com os feminicídios
ocorridos do México, não é possível utilizá-lo em todos os países
latino-americanos, pois ainda que a violência contra as mulheres
seja um problema enfrentado em todos os lugares, ela apresenta
especificidades geopolíticas que precisam ser consideradas.

7 A proposta judicializadora localiza o debate sobre a necessidade e os limites


(argumentos contrários e favoráveis) à intervenção penal para o enfrentamento
desse fenômeno, destacando-se Rita Segato, que defende o direito de nomear o
sofrimento no direito, por meio da tipificação do feminicídio; Dora Munévar,
que utiliza três verbos que, segundo ela, são fundamentais para o tratamento do
feminicídio: nomear, visibilizar e conceituar; e, Patsilí Vásquez que trata o femi-
nicídio como uma evidente violação aos direitos humanos e defende a obrigação
do Estado de tipificar condutas violadoras desses direitos, dentre elas a violência
feminicida, para garantir uma vida livre de violência. (Abreu 2021, p. 52).

118
A tipificação do feminicídio no Brasil apresentou-se como
um imperativo, seja em razão dos altos índices de assassinatos de
mulheres no país, seja pela necessidade de previsão legal específica
que permitisse uma melhor quantificação dessas mortes, o que torna
possível construir, além de políticas públicas para o enfrentamento
do problema, alternativas contra a impunidade, melhoramento
dos instrumentos de investigação e traçar diretrizes para que os
estereótipos de gênero e a culpabilização da vítima não sejam o
norte das práticas investigativas e judiciárias.
No Brasil, o feminicídio é a morte de uma mulher, “por
razões da condição de sexo feminino”, e foi acrescentado ao Código
Penal como uma modalidade de homicídio qualificado, através da
Lei 13.104/2015. Segundo Izabel Gomes (2018), a resposta penal
ao feminicídio tem o condão de ampliar o debate sobre o sexismo
e a desigualdade de gênero, além disso, o conjunto de violências
que atravessam a vida de muitas mulheres e que termina com a sua
morte passa a ser nomeado penalmente. Nas palavras de Carmen
Hein de Campos (2015, p. 114), “nomear a violência feminicida
é reconhecer juridicamente uma forma de violência extrema
praticada contra mulheres e, por isso, simbolicamente importante.”
O feminicídio foi traduzido legalmente pela expressão
“contra mulher, por razões da condição de sexo feminino.” Com
o fim de explicar o que seriam essas razões da condição de sexo
feminino, o legislador faz referência à norma penal explicativa,
trazida pela Lei 13.104/2015, no artigo 121, §2ºA: “Considera-
se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime
envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou
discriminação à condição de mulher.”
O Projeto de Lei original, o PSL 292/2013, recebeu
dois substitutivos, um deles alterou as hipóteses ensejadoras dos
feminicídios. Eram três as circunstâncias: I – relação íntima de
afeto ou parentesco, por afinidade ou consanguinidade, entre a

119
vítima e o agressor no presente ou no passado; II – prática de
qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a
morte; III – mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após
a morte. O inciso I, que se referia apenas às relações de afeto e
de parentesco passou a conter a expressão “violência doméstica e
familiar”, mais ampla; e o inciso II descreve como um dos contextos
configuradores do feminicídio, o “menosprezo ou discriminação à
condição de mulher.”
Conforme adverte Carmen Hein de Campos (2015, p.
108), “esse substitutivo alterou substancialmente o projeto original
da CPMI, mantendo apenas a circunstância do feminicídio íntimo.
As demais foram substituídas e concentradas na expressão genérica
‘menosprezo ou discriminação à condição de mulher’.”
O contexto de violência doméstica ou familiar não exige
maiores esforços teóricos, visto que as suas definições estão dispostas
no artigo 5º da Lei Nº11.343/2006 (Lei Maria da Penha), que traz
três âmbitos em que se configura essa forma de violência: a unidade
doméstica, que é o espaço de convívio permanente de pessoas
(independe da existência ou não de vínculo familiar); o âmbito
da família, que abrange os sujeitos aparentados por laços naturais,
civis e por afinidade; e, as relações íntimas de afeto, abrangendo
aquelas em que o agente conviva ou tenha convivido com a vítima,
não havendo a exigência de coabitação.
Esses assassinatos são caracterizados,regra geral,por mortes
decorrentes de um desses contextos, visto que o feminicídio é o fim
letal de práticas reiteradas de violência que ocorrem nos âmbitos
doméstico, familiar ou nas relações de afeto. Os relacionamentos
conjugais despontam como os mais conflituosos: considerando as
mortes praticadas em relação de parentesco ou de afetividade, a
maioria é causada por esposos, companheiros, ex-companheiros
(95,2%), enquanto outros parentes representam apenas 4,8% dos
crimes (Brasil, 2018).

120
Já no tocante ao inciso II – menosprezo ou discriminação
à condição de mulher, não encontramos a definição na Lei Maria
da Penha, o que requer uma hermenêutica mais aprofundada e
fundada na teoria do feminicídio. Conforme argumenta Eugênia
Villa (2020, p. 98 e 103), as expressões “condição de sexo feminino” e
“menosprezo ou discriminação à condição de mulher” ultrapassam
o enquadramento legal da violência doméstica e familiar e
“demanda um esforço hermenêutico em virtude da imprecisão dos
termos que não oferecem interpretação unívoca sobre o assunto,
nem satisfazem à estrita legalidade do Direito Penal.”
A compreensão desse significante perpassa a análise das
condições históricas e culturais responsáveis pela criação da mulher
como um sujeito inferiorizado, as quais são moldadas por relações
de desigualdades entre homens e mulheres. Além disso, essas
relações hierárquicas não estão marcadas apenas pela desigualdade
de gênero, outras relações também são estruturantes dessa ordem
desigual, como a raça, a classe social, a sexualidade, dentre outras.
Para auxiliar na definição da discriminação à condição de
mulher, pode-se fazer uso do conceito de discriminação previsto
no art. 1º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher (Cedaw):

Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, a expressão


‘discriminação contra a mulher’ significará toda a
distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que
tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular
o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,
independentemente de seu estado civil, com base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e
liberdades fundamentais nos campos político, econômico,
social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Como o artigo não faz referência específica ao


menosprezo à mulher, podemos analisar como sendo a misoginia,
a qual, segundo Soraia da Rosa Mendes (2020) é caracterizada

121
pela repulsa e pelo ódio às mulheres. Para a autora, a aversão
ao feminino, socialmente inferiorizado, está diretamente
relacionada à prática de violência contra as mulheres, de tal
modo que a misoginia é a principal causa dos feminicídios,
assim como outras violências experienciadas pelas mulheres.
O Enunciado nº 25 da Comissão Nacional de
Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher (Copevid), restada as hipóteses que foram retiradas do
Projeto de Lei, o PSL 292/2013, explica o inciso II a partir de
condutas reveladoras do menosprezo ou discriminação, tais como:
o contexto de tráfico de mulheres, exploração sexual, violência
sexual, mortes coletivas de mulheres, mutilação ou desfiguração do
corpo, exercício de profissões do sexo, entre outras. O preconceito e
a discriminação são causados pelo lugar inferior que é atribuído ao
feminino e pelos estereótipos de gênero que reforçam esses papéis
sociais. Pode-se apontar algumas condutas caracterizadoras desse
menosprezo contra as mulheres,

[...] muitos homens acham que mulheres não devem


trabalhar fora e são violentos quando elas procuram
trabalho; na visão de que as adolescentes femininas são
promíscuas, por isso podem ser estupradas; nos ditos
populares mulher gosta de apanhar; em briga de marido
e mulher ninguém mete a colher; matou por amor, dentre
outros. (Campos, 2015, p. 112).

Na proposta inicial, o PSL 292/2013, trazia uma definição


de feminicídio como: “a forma extrema de violência de gênero que
resulta na morte da mulher”, (Brasil, 2013). O segundo substitutivo,
entretanto, retirou a definição de feminicídio em seu lugar colocou
a expressão “contra a mulher por razões de gênero.”
Na Câmara dos Deputados, o projeto sofreu somente uma
emenda de alteração: a expressão “razões de gênero” foi substituída
por “razões da condição de sexo feminino.” Conforme destaca

122
Machado (2016, p. 20): “O feminicídio apareceria textualmente
no Código Penal brasileiro como a morte das mulheres em razão
do gênero. Porém o que se vê na lei aprovada é a supressão da
categoria gênero e sua substituição por sexo feminino.”
O uso da categoria sexo pela Lei Nº13.104/2015 é um
retrocesso, sobretudo quando observamos que a Lei Maria da
Penha, que entrou em vigor 9 anos antes, define a violência contra
a mulher como a violência baseada no gênero, um conceito mais
amplo que a proteção da mulher a partir do sexo, um dado biológico.
A investigação do processo legislativo da Lei
nº13.104/2015 revela que a opção pela expressão “razões da
condição de sexo feminino” no lugar do significante “razões de
gênero” vem ao encontro de um pensamento conservador que
tem crescido no Brasil e que promove uma demonização do
gênero. Observa-se a clara intenção do legislador em proteger
uma bio-mulher e excluir da tutela penal aquelas vítimas que
não se adequam à categoria sexo feminino, porque não são
biologicamente mulheres, invisibilizando as violências contra
corpos femininos ou feminizados, como os assassinatos das
mulheres trans e das travestis.
Em que pese essa finalidade, a Lei do Feminicídio tem
sido aplicada também nos casos de transfeminicídios8, ou seja,
abrange as hipóteses de assassinatos de mulheres trans, que
ainda que não tenham nascido biologicamente do sexo feminino,
identificam-se com o gênero feminino e fizeram a alteração
de nome e de gênero em sua identificação civil, independente
de realização ou não de cirurgia de redesignação sexual. Esse
conceito jurídico de mulher,

8 No Estado de São Paulo, houve a primeira condenação por transfeminicídio, no


dia 10 de junho de 2021. Ministério Público do Estado de São Paulo. Denun-
ciado pelo MPSP, homem é condenado por feminicídio de mulher transexual.
Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/noticias/noticia?id_
noticia=24621283&id_grupo=118. Acesso em junho de 2021.

123
[...] amplia a tutela penal e abrange a mulher trans, no
entanto, mantém a exclusão da travesti, duplamente
invisibilizada, pois que não é considerada mulher pelo
discurso biológico e é excluída do conceito jurídico. Suas
mortes são apagadas nos dados relativos à violência sofrida
pelas mulheres e estão igualmente invisibilizadas quando os
homicídios são contabilizados como assassinatos de homens
gays, geralmente tendo confundidas as suas identidades de
gênero com orientação sexual. (Abreu, 2021, p. 89).

Notamos, portanto, a insuficiência dos conceitos,


biológico, porque tutela exclusivamente as mulheres cisgêneras;
e jurídico, pois, ainda que proteja a mulher trans, exclui as
travestis. Segundo a teoria do feminicídio, somente uma
definição que leve em conta a identidade de gênero da vítima
e não a sua genitália, é capaz de abarcar as violências letais
causadas contra corpos femininos e feminizados.
Quando analisamos o significante, razões da condição
de sexo feminino, precisamos considerar, conforme bem adverte
Berenice Bento (2016) que as múltiplas feminilidades possuem
uma unidade fundamental: são destinadas ao sofrimento, à dor, à
violência e à aversão ao feminino. Não é uma mera coincidência
o fato de que nos países em que há altos índices de feminicídios,
como é o caso do Brasil e do México, também são elevadas as
estatísticas de transfeminicídios. Disso, há uma conclusão lógica:
esses assassinatos são motivados pelo desprezo, pela aversão às
corporalidades trans e travestis porque elas performam o feminino.
Traçamos os principais contornos da categoria feminicídio,
a construção do seu conceito pela literatura feminista, assim como
a teorização sobre as tipologias e classificações, cujo fim é destacar
que existem outros contextos em que o feminicídio se manifesta,
como a violência sexual, as violências institucionais e as praticadas
por desconhecidos, podemos perceber, entretanto, que ainda que
a proposta judicializadora tenha sido ouvida e que essas mortes

124
estejam nomeadas e tipificadas, a legislação vai muito aquém dos
esforços construídos pela teoria do feminicídio.
A Lei nº 13.104/2015 expressa a tendência em limitar
o feminicídio à morte violenta de mulher praticada por parceiro
íntimo ou que tenha ocorrido no ambiente domiciliar, em uma
lógica simplista e reducionista, limitada ao feminicídio íntimo.
Ainda que, na prática, essa concepção familista do feminicídio seja
constatada, precisamos questionar se outras mortes violentas de
mulheres, que ocorrem em outros contextos têm recebido a mesma
resposta penal e quais são as mulheres tuteladas pela lei.

FEMINICÍDIO NA COMARCA DE GUARAPUAVA

Para investigar se os assassinatos de mulheres ocorridos na


Comarca de Guarapuava, seguem essa lógica do feminicídio íntimo
e com o fim de procurar definir, a partir dos elementos presentes
nos crimes, em que medida o menosprezo ou a discriminação à
condição de mulher se expressa, decidimos analisar os processos de
feminicídios e traçar um diagnóstico dessas mortes.
Foram analisados 9 processos e 10 feminicídios, o que não
corresponde ao número total de casos de feminicídio indiciados
ou denunciados no período escolhido, mas sim, o montante
classificado como de acesso a consulta pública pelo Projudi –
Processo Eletrônico do Judiciário do Paraná, conforme os autos
dos respectivos processos. Dos nove crimes, oito ocorreram em
Guarapuava e um na cidade de Candói, município pertencente à
Comarca de Guarapuava.
Optamos por iniciar o estudo pelo perfil da vítima (idade,
escolaridade e raça/cor) para, posteriormente, investigar o crime
em si, perscrutando a relação vítima-autor, local do crime, modo
de execução, motivo, dentre outras categorias.

125
Os dados demonstram que a uniformidade de características
pessoais de vítimas não é fator que pode ser observado quanto à
idade. Dos 10 crimes analisados, as idades das vítimas variam entre
15, 16, 18, 19, 28, 29, 32, 37, 45 a 50 anos.
Em relação ao recorte de raça/cor e etnia, identificamos
a predominância de vítimas brancas (5), duas mulheres foram
identificadas como pardas, sendo que em dois procedimentos,
incluindo o processo com duas vítimas, não foi possível obter os
dados referentes à raça ou cor, pois não houve a identificação.
Quanto às informações a respeito de classe social das
vítimas, a análise dos Boletins de Ocorrência e Inquéritos não nos
permitiram inferir essa informação. No tocante aos dados referentes
à escolaridade, contudo, constantes no tópico “Identificação de
envolvido” dos boletins de ocorrência, observamos uma das vítimas
com 1º grau incompleto, duas com 2º grau completo, duas com
2° grau incompleto, uma com 3º grau completo e quatro com
escolaridade não informada.
Em 2021, foi publicado o Dossiê “Feminicídio: por que
aconteceu com ela?” (Sá, 2021), um estudo realizado pelo Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná através da Coordenação Estadual da
Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), que
analisou 300 processos de feminicídio no Estado. Desses 300 casos,
somente 95 trazem informações sobre a escolaridade das vítimas,

[...] apenas 3,15% (3) das vítimas não possuem


escolaridade, 29,4% (28) apresentam Ensino Fundamental
Incompleto, 20% (19) Ensino Fundamental Completo,
8,4% (8) Ensino Médio Incompleto, 30,5% (29) Ensino
Médio Completo, 5,2% (5) Ensino Superior Incompleto
e 3,15% (3) possuem Ensino Superior Completo. (Sá,
2021, p. 74-75).

Em relação à idade, há uma variação de 8 (vítima mais


nova) a 70 anos (vítima mais velha), sendo que:

126
em 3,3% (10) deles a vítima tem de 0 a 17 anos, em 34,3%
(103) dos casos tem de 18 a 29 anos, em 31% (93) dos
casos tem de 30 a 39 anos, em 20% (60) dos casos tem de
40 a 49 anos, em 9,3% (28) dos casos tem de 50 a 59 anos,
em 1,3% (4) dos casos tem de 60 a 69 anos e em 2 deles a
vítima possui mais de 70 anos de idade, correspondentes a
0,7% dos processos analisados. (Sá, 2021, p. 75).

No tocante à identificação racial, no Dossiê verificou-


se o problema comum da inconsistência dos dados raciais e a
ausência dessa informação. Observou-se em 175 processos, em
que havia esse dado, que a maioria das vítimas são identificadas
como brancas (58,3%), sendo que em apenas 32,6% (98) dos
casos a mulher foi identificada como negra (preta ou parda)
e em apenas 3 casos como amarela, o que corresponde a
aproximadamente 1% dos processos analisados (Sá, 2021).
Segundo os dados do Altas da Violência 2020, no Brasil,
em relação à raça/cor/etnia, assim como os homens negros, as
mulheres negras são as vítimas prioritárias da violência no país,
destacando-se que, no ano de 2018, 68% das mulheres assassinadas
no Brasil eram negras. (Cerqueira et al.; 2020).
Contrariamente a esses dados nacionais, no Estado do
Paraná, observa-se que a maioria das vítimas dos assassinatos
são mulheres brancas. O Estado está entre os que registraram
as menores taxas de homicídios de negros em 2018 (17,7 –
dezessete vírgula sete por cento) e quando analisado o decênio
2008-2018 apresenta uma das maiores reduções (-30,8% -
trinta vírgula oito por cento). É, também, o único Estado que
em 2018 apresentou taxa de homicídios de não negros superior
a de negros. (Cerqueira et al.; 2020).
Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios), no período de 2015 a 2018, houve um aumento do
número de brasileiros que se declararam pretos. Apesar dessas
mudanças, os grupos majoritários não foram alterados na região

127
Sul, ou seja, os brancos continuam sendo a maioria (73,9% -
setenta e três vírgula nove por cento). O Paraná tem, portanto,
uma maioria da população branca, o que reflete nesses índices
de feminicídios. Na Comarca de Guarapuava, podemos observar
a repetição dessa tendência, visto que a maioria das vítimas dos
processos analisados foram identificadas como mulheres brancas.
Desse modo, a partir dessas informações obtidas,
podemos concluir que o perfil das vítimas, segundo o recorte
espacial e temporal eleito, é de uma maioria de mulheres brancas,
que cursaram o ensino fundamental e que são/eram jovens, com
idade entre 15 e 29 anos. Traçado o perfil das vítimas, passamos, na
sequência, à análise das características dos assassinatos.
Inicialmente, no tocante ao relacionamento entre a vítima
e o agressor, identificamos em 8 delitos que as vítimas eram
cônjuges/namoradas/conviventes ou ex-cônjuges/ex-namoradas/
ex-conviventes dos agressores, reforçando a noção, por muitas vezes
tida como única hipótese de ocorrência de feminicídio, de que ele
se dará sempre em âmbito doméstico ou de convivência, o chamado
feminicídio íntimo. Os outros 2 crimes também se encaixam no
feminicídio íntimo, pois em um deles a vítima era enteada do autor
e em outro ela tinha um relacionamento amoroso com o autor do
delito, ainda que não houvesse uma relação conjugal.
Ainda que se constate a ocorrência de assassinatos de
mulheres fora desse contexto íntimo ou intrafamiliar, em relação
à Comarca pesquisada e ao período dos dados analisados, o
feminicídio íntimo foi uma realidade constatada.
As relações de conjugalidade são caracterizadas por uma
pluralidade de sentimentos e de dinâmicas muito específicas.
Como essas relações desiguais são estruturantes da nossa
sociedade, as relações amorosas acabam permeadas pelos conflitos
derivados dessa estrutura hierárquica que se impõe entre homens
e mulheres. Desse modo, aos homens cabe o controle do corpo e

128
da sexualidade das mulheres e a elas a obediência. O controle da
sexualidade, fundado na reprodução como um destino feminino,
também estabelece os códigos de honra entre os homens e as
regras que impõem a fidelidade das mulheres.
A divisão sexual do trabalho, destinou às mulheres o
trabalho doméstico e de cuidado e, sob um discurso marcadamente
biológico, que naturaliza a maternidade, o trabalho reprodutivo é
imposto como um dever feminino. Aos homens, por sua vez, coube
o trabalho produtivo, exercido no âmbito público e socialmente
valorizado. Essa dicotomia público e privado, cultura e natureza,
trabalho produtivo e reprodutivo estabelece não só os papéis
sociais do homem e da mulher, como também as hierarquias entre
os sujeitos, constituindo as desigualdades entre os gêneros.

Feministas de diferentes tendências políticas, e em


uma variedade de disciplinas, revelaram e analisaram
as conexões múltiplas entre os papéis domésticos das
mulheres e a desigualdade e segregação a que estão
submetidas nos ambientes de trabalho, e a conexão entre
sua socialização em famílias generificadas e os aspectos
psicológicos de sua subordinação. (Okin, 2008, p. 313).

Todo esse caldo cultural causa um impacto nas relações


conjugais, gerando disputas de poder e conflitos, os quais podem,
em muitas vezes, resultar em violência. O fato, portanto, dos
feminicídios, na sua grande maioria, envolverem essas relações
de conjugalidade (presente e passada) revela o quanto esses
relacionamentos são conflituosos e não apenas isso, desvela em que
medida o poder patriarcal e o controle masculino sobre as mulheres
representam uma ordem que, se violada, pode ter como resposta a
violência e, em casos mais extremos, o feminicídio.
Precisamos enxergar a violência doméstica como
estruturante dessas relações amorosas, porque são relacionamentos
marcados por disputas. Nas brigas conjugais há agressões verbais

129
de ambos os lados e as mulheres também usam de violências em
alguns confrontos. No entanto o uso da violência física, como um
ato disciplinar ou como demonstração de poder, parece ser um
atributo preferencialmente masculino e que tem como ponto final,
a morte. (Machado, 1998).
No mesmo sentido, da dicotomia público/privado e a
divisão da esfera doméstica como o lugar do feminino e da esfera
pública e da vida política como o espaço ocupado pelos homens,
predomina nos feminicídios, de tal modo que a maioria das mortes
ocorrem no âmbito da domesticidade. Nos processos investigados,
identificamos que, quanto ao local dos crimes, a maioria dos delitos
ocorreram na residência da vítima ou do casal (6). Entretanto,
observamos um certo equilíbrio, pois 4 crimes foram praticados
em via pública.
Nos 300 feminicídios tentados/consumados reunidos no
Dossiê Feminicídio: Por que aconteceu com ela? (Sá, 2021), em 66%
dos processos, o local foi identificado como ambiente doméstico
ou íntimo, em 32%, as ocorrências se deram em vias públicas ou
em estabelecimentos abertos ao público, em 1%, em local não
identificado e em 1%, as agressões tiveram início em ambiente
doméstico e a morte ocorreu em espaço público.
A esfera doméstica, por muito tempo, foi compreendida
como o espaço da privacidade e que, por essa razão, não poderia
haver a intervenção do Estado. Essa concepção foi responsável pela
naturalização da violência doméstica ou familiar e, somente após
árdua luta dos movimentos feministas obtivemos o reconhecimento
de que a violência que ocorre dentro de casa não é um problema
privado, trata-se de uma questão pública, justificando a tutela e a
intervenção penal. Trata-se de descortinar uma violência que até
então se encontrava velada no âmbito doméstico.

O âmbito doméstico é conhecido socialmente como o


domínio do feminino. Não é à toa que temos expressões

130
tais como ‘rainha do lar’, ‘lugar de mulher é em casa’,
‘bela, recatada e do lar’, enfim, frases que associam a
mulher ao casamento, aos cuidados com a casa e com os
filhos, reproduzindo a naturalização desse locus caseiro
como um destino biológico das mulheres. Para reforçar
esse discurso, o aprisionamento das mulheres ao âmbito
privado é justificado na sua suposta fraqueza e fragilidade,
apresentando-se a casa como a sua fortaleza. A ironia é
que quando observamos os dados estatísticos da violência
contra a mulher o discurso muda para: ‘a casa não é
um local seguro para as mulheres’, ou seja, essa suposta
fortaleza não protege a donzela quando o seu algoz mora
nela. (Abreu 2021, p. 130).

Ainda que a maior parte dos casos analisados tenha


ocorrido na residência da vítima ou do casal, temos que tomar
cuidado para não reduzir os feminicídios às mortes que ocorrem
no âmbito doméstico. Essa visão restrita invisibiliza os assassinatos
que ocorrem em outros contextos, e que algumas mulheres, em
razão de outros marcadores, como a raça, classe social, sexualidade,
encontram-se em uma situação de maior vulnerabilidade.
Outro ponto a ser considerado é o histórico de violência,
o qual pode ser observado a partir dos relatos da vítima e de
testemunhas e do deferimento ou não de medidas protetivas de
urgência, anteriores à violência letal. O feminicídio é o fim mais
trágico de um continuum de uma violência cotidiana, do que
podemos concluir que geralmente há um histórico de agressões
que antecede a morte.
Essas informações têm como condão auxiliar a
interpretação de como a vida de vítima e autor se dava antes do
cometimento do delito. Em sua unanimidade, todos os casos
analisados demonstram histórico de violência; alguns deles
apresentando a relação como tendo essa característica, outros
como sendo esta atribuída ao autor. Em dois deles, há menção
da existência de medida protetiva concedida à vítima perante o
autor, o que evidencia o histórico de violência.

131
Nas Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar
os Feminicídios no Brasil (Onu Mulheres, 2016) a peça acusatória
dos feminicídios precisa informar não só o relacionamento entre
a vítima e seu agressor, como também o histórico de agressões do
autor do delito, tanto contra a mulher que sofreu a violência letal
como em relação a outras mulheres que ele tenha se relacionado. São
dados essenciais para entender as razões de gênero motivadoras do
delito e para deixar claro que o feminicídio não é um ato isolado.

Esse histórico deve compreender informações sobre


registros policiais ou processos anteriores apresentados
pela vítima contra o(a) agressor(a) ou o(a) suspeito(a)
da prática do crime, não devendo se restringir a essas
fontes de consulta. Além dos registros na esfera criminal,
dependendo do caso, é importante que sejam buscadas
informações sobre outras ações judiciais que contribuam
para conhecer a existência de litígios em torno da guarda
de filhos e fixação de alimentos, disputas por patrimônio,
reconhecimento de paternidade, entre outras situações
que também podem ter envolvido violência sem que
tenham sido noticiadas às autoridades policial e judicial.
(Onu Mulheres, 2016, p. 96).

Sugerimos uma escuta rigorosa desses assassinatos e,


para que ela seja possível, a narrativa fática da denúncia, peça
inaugural do processo criminal, deve trazer a reconstrução
detalhada desse histórico de violência. Na instrução processual,
as agressões anteriores aos fatos devem ser inqueridas quando
da oitiva da vítima sobrevivente e das testemunhas. Nas
alegações finais, deve-se buscar elementos reveladores de um
relacionamento abusivo, investigar a solicitação de medidas
protetivas de urgência, a ocorrência de ameaças de morte antes
do fato, enfim, todos os elementos que indicam esse continuum
de violência e a intenção letal do agressor.
Em um dos processos analisados, o promotor de justiça
relatou o histórico de violência e ameaças. Na peça acusatória, ele

132
descreve que, duas semanas antes do fato, o agressor dirigiu-se até
a residência da vítima e a ameaçou, dizendo “vou voltar para te
matar, não importa se você está grávida”, e atirou um celular no
rosto da sua ex-convivente. Ainda, um dia antes da tentativa de
feminicídio, o denunciado, mais uma vez foi até a casa da vítima
e então desferiu tapas em seu rosto e socos na sua cabeça. Além
disso, agrediu fisicamente a tia da sua ex-companheira, com uma
pedra. Essa narrativa fática é importante para a compreensão da
violência letal como um fim trágico de agressões anteriores.
Também identificamos uma ação penal em que a
representante do Ministério Público, com o fim de justificar as
razões da condição de sexo feminino, além de especificar que a
vítima era ex-companheira do agressor, enumerou os boletins de
ocorrência que haviam sido registrados por ela, contra seu ex-
convivente. Além disso, a promotora destaca que o denunciado já
havia proferido ameaça de morte à vítima, tendo afirmado “Eu não
quero que você traga outro homem para casa, se você trouxer eu
mato você e o Ricardo!.”
Como visto, além da finalidade de eliminar a vida da
mulher, o motivo ensejador do delito também ilustra a violência
letal como a representação do exercício de dominação masculi-
na. Nos processos investigados, observamos menções referentes
ao ciúme e ao inconformismo do agressor com o fim do relacio-
namento, as quais permeiam as descrições constantes na maio-
ria nas peças processuais. Identificamos três crimes motivados
pelo ciúme, três pelo inconformismo do sujeito com o término
do relacionamento, um em razão de um desentendimento do
agressor com a vítima, que queria que ele fosse embora da casa
dela; e os demais não há a especificação ou declaração da mo-
tivação do delito.
Vemos essas motivações declaradas pelos agressores
como reflexos de uma ordem que visa impor lugares e obrigações

133
aos homens e às mulheres, sendo que a elas cabe o papel de
domesticidade, passividade e fidelidade.
O inconformismo do agressor com o término do
relacionamento demonstra que aquele sujeito não admite que a
mulher, um ser socialmente inferiorizado, tenha autonomia da
vontade e que ela decida terminar a relação entre eles. Nessa
ordem marcada pela dominação masculina, a decisão do término
pertence unicamente ao homem, e a mulher que contesta essa
ordem deve ser punida.
Quanto à inconformidade em relação ao término do
relacionamento:

A decisão feminina de separar é, de certa forma,


um indicador de liberdade e autonomia feminina, o
fortalecimento disso pode levar a perdas de poder masculino
e quando isso acontece, muitas vezes, é a violência física ou
simbólica contra a (ex) companheira, um instrumento pelo
qual se busca o restabelecimento da ordem tradicional de
gênero no contexto conjugal, guiada por valores culturais
que conduzem suas práticas e percepções sobre a relação
conjugal, cujo papel feminino é de submissão e conformação.
(Mendes; Santos, 2017, p. 8).

Ainda, para os autores, essa decisão feminina representa,


consequentemente, a perda da decisão por parte dos homens, fator
que questiona a legitimidade de seu poder, sendo que a violência
não é resultado de uma dominação, mas sim, de uma iminente
perda de poder (Mendes; Santos, 2017).
O ciúme traduz o sentimento de posse que permeia uma
relação em que há violência e objetificação da mulher. No código
de honra masculino, a honra da mulher toca diretamente a honra
do marido, de tal forma que o controle sexual da esposa é uma
forma não só de garantir a legitimidade da prole, como também
de demonstrar aos seus pares que a sua honra está protegida. A

134
mulher é vista não como um sujeito e sim como um objeto que
pertence ao cônjuge ou ao companheiro.
Lia Zanotta Machado (2001), a partir de pesquisa
realizada com autores de estupro, esclarece que a honra masculina
está ancorada em dois pilares fundamentais: ser o provedor da
casa e dos filhos e uma vez realizada essa função, ter o direito a
uma mulher respeitada. Dessa lógica decorrem responsabilidades
recíprocas (que não são iguais), na medida em que o homem
provê o lar a mulher deve ser fiel a ele. Em um dos processos
analisados, o agressor matou a vítima porque teria descoberto um
relacionamento extraconjugal, o que revela essa ordem patriarcal e
o exercício da violência justificado pela defesa da honra.
Nesse sentido, devemos destacar que em março de
2021, em julgamento Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental, ADPF nº779, o Supremo Tribunal Federal, por
unanimidade proibiu o uso da tese da legítima defesa da honra
nos julgamentos do Tribunal do Júri, sob o fundamento de que
contraria os princípios constitucionais da dignidade humana e
da igualdade de gênero.
Essa decisão está em conformidade com um julgamento,
segundo a perspectiva de gênero, para garantir o respeito à
democracia e aos direitos humanos. Não se trata de limitação ao
direito de defesa; é, na verdade, um alerta de que a atuação do
defensor perante o Conselho de Sentença deverá ser pautada pela
ética e pela defesa da vida e pelo compromisso com os demais
direitos fundamentais constitucionalmente previstos (Barboza,
Borges, Bonato, 2021).
Em contexto geral, depreendemos que o rompimento
com padrões normativos de gênero é substancial na análise de
motivos e da ocorrência de casos de violência contra a mulher.
A mulher que toma uma atitude capaz de retirar o poder da
mão do homem está quebrando com o esperado e, nessa toada,

135
“[...] a presença excessiva de comportamentos femininos fora
dos padrões tradicionais faz com que os homens se mostrem
desconfortáveis, buscando reparar a normatividade esperada
através de práticas violentas.” (Mendes; Santos, 2017, p. 10).
Na sequência, no tocante ao modo de execução do crime, a
violência intensa utilizada para o cometimento do delito também
é evidenciada na maioria dos casos analisados. Arma branca, arma
de fogo e tentativa de atropelamento são exemplos de meios
utilizados pelos autores. Identificamos a recorrência do uso de
arma branca (faca) que se deu em 6 dos processos analisados, um
crime foi praticado com o uso de um machado e copos, em um
feminicídio, a vítima foi asfixiada e depois arremessada da sacada
do apartamento, em um delito o sujeito tentou jogar o veículo
contra a vítima e um foi praticado com o uso de arma de fogo.
O uso preferencial da faca caracteriza uma execução em
que há contato corpo a corpo entre o agressor e a agredida,
assim como a asfixia também se enquadra nesse modo
executório, revelando o caráter pessoal dessas mortes. Assim, se
essa violência ostenta relações de poder dentro de uma ordem
social generificada, o corpo é um campo de disputa de poder
e a execução do crime, além de tirar a vida, quer demonstrar à
vítima quem controla o seu corpo (Abreu, 2021).
Rita Segato (2013) afirma que os feminicídios são
caracterizados por um alfabeto violento, ou seja, a sua forma de
execução, além de demonstrar o controle e a posse sobre o corpo
feminino, transmite uma mensagem não apenas para a vítima,
como também para as outras mulheres, ou seja, conforme aponta
Judith Butler (2020), subordinem-se ou morram.
Os dados relativos à forma de execução do delito, tais
como: instrumento utilizado, local do corpo atingido, modo de
execução, ferimentos e mutilações que tenham sido causados antes
ou após a morte, prática de violência sexual são todos elementos

136
que evidenciam um modo misógino de execução do delito (Abreu,
2021), ou seja, evidenciam os gestos simbólicos dos feminicídios
(Villa, 2020). O fragmento a seguir, retirado da narrativa fática
da peça acusatória de um dos delitos investigados, deixa claro o
menosprezo à mulher e o modo misógino de execução do crime:

O denunciado desferiu vários golpes de faca contra a


vítima, enquanto a segurava pelo pescoço, tentando
jogá-la no boeiro, atingindo-a por 13 (treze) vezes, em
várias partes do corpo como braços, tórax, costas e nuca
(conforme prontuário médico do mov. 11.5 e laudo de
exame de lesões corporais do mov. 11.18), provocando-
lhe intenso e desnecessário sofrimento físico, revelando
brutalidade fora do comum e completa ausência de
piedade ou compaixão, agindo, assim, por meio cruel.

Todas essas categorias – local dos assassinatos, relacionamento


entre vítima e agressor, modo de execução do crime, motivos declarados
pelo autor – explicam o significante “menosprezo ou discriminação à
condição de mulher”, pois revelam um “modo misógino de execução
do delito”, de tal modo que a “misoginia, traduzida na expressão ‘por
razões de gênero’, ultrapassa a motivação do agente: está presente nos
significados que o ato de matar revela.” (Abreu, 2021, p. 174).
Por fim, a última categoria analisada foi a relativa à
consumação ou não dos crimes. Dos 10 delitos pesquisados, 5 se deram
na modalidade consumada, enquanto os outros 5 (totalizando dez, já
que, em um dos procedimentos, mãe e filha foram vítimas) foram
crimes tentados. Essas mulheres que sobreviveram à essa violência
letal terão a sua vida marcada por uma experiência traumática que
mobiliza sentidos de dor, vergonha e medo.
A análise dos dados coletados permite a observação de
que o feminicídio é, por muitas vezes, a linha de chegada de um
caminho percorrido pela violência e discriminação ao sujeito mulher.
O histórico de violência que transpassa os casos analisados autoriza
que se chegue à lógica conclusão de sua não eventualidade e de que

137
ele possui motivação clara quando se observa o rompimento com
os papéis estabelecidos de gênero. As motivações determinantes à
ocorrência dos crimes, bem como o fato de que, em sua maioria, eles
se deram em âmbito doméstico demonstra o sentimento de posse que
o autor possui em relação à vítima. O controle sobre seus corpos e
vontades é exercido desde um relacionamento em que a subjugação
e discriminação é frequente, até sua morte, a qual é incitada pela não
conformidade com o esperado – o respeito à ordem patriarcal vigente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pretensão com este trabalho foi a de melhor elucidar


como ocorrem os crimes de feminicídio na comarca de Guarapuava,
buscando, com isso, encontrar possíveis padrões que possibilitem
uma melhor articulação quanto à elaboração de modos de
resolução de conflitos, punição dos agentes e, principalmente, com
esses mesmos padrões, revelar um sistema que, se não for freado,
continuará a exibir seus sinais, já que a violência contra a mulher é
estruturada e estruturante das relações desiguais de gênero.
De acordo com o Dossiê feminicídio: por que aconteceu
com ela?, que analisou 300 processos de feminicídio no Estado
do Paraná, podemos chegar à conclusão de que os assassinatos
investigados não destoam quando se faz um estudo comparado
ao Estado. Os dados levantados pelo Dossiê demonstram que
66% (sessenta e seis por cento) dos casos analisados se deram em
ambiente doméstico ou íntimo; 30% (trinta por cento) das vítimas
possuem a escolaridade de ensino fundamental incompleto;
35% (trinta e cinco por cento) possuem a idade de 18 (dezoito)
a 29 (vinte e nove) anos e em sua maioria são mulheres brancas
(58,3%, mas essa informação foi obtida a partir da análise de 175
processos, os que continham a identificação racial ou de cor). Esses
índices ainda informam que na maior parte dos casos havia prévio

138
relacionamento entre vítima e agressor, sendo esse relacionamento,
também em sua maioria, de cunho amoroso (SÁ, 2021).
Esse cenário permite concluir a necessidade de proteção
estatal, com a implantação de sistemáticas de saúde e segurança
pública que visem a um atendimento organizado e eficaz como
resposta à violência já ocorrida. Em termos ideais e não menos
urgentes, além dessas políticas públicas específicas, são necessários
esforços governamentais para a implementação de medidas mais
eficazes, voltadas à prevenção e à alteração desse quadro marcado
pela desigualdade de gênero.
Na cidade de Guarapuava, o trabalho realizado pela
Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, bem como pela
Polícia Militar e outros órgãos, tem encarado a violência de gênero
em um combate frequente.
Em 2013, foi criada a Secretaria Municipal de Políticas
Públicas para as mulheres no município de Guarapuava. No ano de
sua fundação, a cidade havia registrado 8 feminicídios, o que revelou
a necessidade de políticas públicas urgentes para o enfrentamento
do problema. Após três anos, esse número foi reduzido pela
metade e, no ano de 2017, nenhum feminicídio foi registrado no
município. Essa diminuição se deu em razão do fortalecimento
da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, assim
como um conjunto de políticas públicas implementadas para a
prevenção e atendimento às mulheres em situação de violência,
como a Casa Abrigo, o Projeto Lei Maria da Penha nas Escolas,
o Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação
de Violência (Cram) e a Patrulha Maria da Penha (Prefeitura de
Guarapuava, 2019).
No ano de 2018, o projeto de extensão Núcleo Maria da
Penha (NUMAPE), desenvolvido pela Universidade Estadual
do Centro-Oeste (UNICENTRO), passou a fazer parte dos
serviços de acolhimento, prevenção, atendimento jurídico, social

139
e psicológico às mulheres em situação de violência, uma iniciativa
universitária voltada à comunidade e que vem somar forças às
políticas públicas instituídas no Município.
Além disso, foi instituído no Estado do Paraná, através
de lei, o dia 22 de julho, como sendo o Dia D de combate
ao feminicídio, data estipulada em lembrança à advogada
guarapuavana Tatiane Spitzner, vítima de feminicídio em 2018
(Prefeitura de Guarapuava, 2019).
Resta claro que a violação de direitos fundamentais da
mulher não pode ser deixada de lado e que a elaboração de leis e
instrumentos que possibilitem o seu exercício, bem como a efetiva
punição de quem comete o crime é essencial para que se atinja a
tão sonhada equidade de gênero, temática amplamente discutida
diante desse cenário.
Foi possível observar que, na comarca de Guarapuava, local
objeto de estudo e no recorte temporal eleito, a influência do sexismo
e da dominação masculina está presente no modo de execução dos
crimes e nas manifestações de discriminação e violência prévias ao
acontecimento do delito. Ciúmes e inconformismo com o término
do relacionamento, permeados pelo desprezo à mulher vista como
um objeto da violência, são demonstrações do sentimento de posse
e controle do agressor que se opõe ao exercício de liberdade da
vítima inclusive após o término do relacionamento. Ela será sua,
mesmo que morta.
As formas como os crimes ocorreram demonstram
ainda que, além da influência patriarcal e do sentimento de
posse, na Comarca, os crimes são muito violentos, sendo, em
sua maioria, perpetrados através de instrumentos como armas
brancas, armas de fogo e até mesmo automóveis. O desprezo ao
ser mulher é tanto que até no momento de execução ele se dá
de forma vil e repugnante.

140
Finalmente, se esse ato de violência letal é uma mensagem,
decifrar esse alfabeto violento é uma tarefa fundamental, pois essa
mensagem não é dirigida apenas à mulher assassinada, ela visa às
outras mulheres e aos homens também. Para as mulheres o recado
é claro, subordinem-se aos limites dessa ordem patriarcal, caso
contrário, serão punidas. Para os homens, a mensagem é, vocês
estão autorizados a praticar a violência para reafirmar a validade da
ordem patriarcal. E, como acrescenta Judith Butler (2016, p. 40),
“esse poder de aterrorizar é, certamente, apoiado e fortalecido pela
polícia que se recusa a abrir processos, ou que violenta mulheres que
ousam efetivar uma queixa jurídica quando elas sofrem violência.”
Os achados da pesquisa empírica evidenciaram a parte
visível desses feminicídios e as mensagens que os agressores visam
transmitir. Dessa forma, cabe ao Estado dar uma resposta efetiva,
punir esses assassinatos e mudar esse alfabeto violento para uma
outra linguagem, fundada na igualdade e no respeito, que garanta
às mulheres uma vida segura, em suas casas e nas ruas.

141
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Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
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146
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capítulo
FACES E DETERMINANTES
DA VIOLÊNCIA CONTRA AS
MULHERES: CONTRIBUIÇÕES DA
INTERDISCIPLINARIDADE A PARTIR
DAS REFLEXÕES DO NÚCLEO MARIA DA
PENHA – GUARAPUAVA

Rosângela Bujokas de Siqueira1


Jully Annye Gallo Lacerda2
Luana Maximo Gasperotto3

INTRODUÇÃO

A violência contra as mulheres é um fenômeno


multifacetado e influenciado pela sociedade patriarcal em que
convivemos, sendo naturalizada como parte dos relacionamentos
conjugais. Entretanto a violência produz consequências para as
vidas das mulheres e de seus filhos e filhas, nesse sentido, a Lei
1 Graduada em Serviço Social, Mestre e Doutora em Ciências Sociais Aplicadas
(Universidade Estadual de Ponta Grossa); Docente do Departamento de Serviço
Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste; rsiqueira@unicentro.br.
2 Graduada em Psicologia, Especialista em Sexualidade Humana pela Universida-
de Positivo; psijullyannyegallo@gmail.com.
3 Graduanda em Psicologia pelo Centro Universitário UniGuairacá; luana.
mgasperotto@gmail.com.
Maria da Penha (Lei n° 11.340 de 2006) foi promulgada para
abranger situações que antes ficavam restritas à privacidade do
lar, responsabilizando agressores e destacando a importância da
prevenção a esse tipo de violência.
Neste capítulo, destacamos que a terminologia face é
referente ao fenômeno multifacetado da violência, com seus lados
e ângulos e também se refere aos rostos reais da violência: as
mulheres entrevistadas para a realização deste relato e as vivências
singulares da violência. Quanto aos determinantes, referem-se
aos aspectos sociais, fatores econômicos, políticos e culturais que
condicionam as relações sociais, como as questões étnico-raciais e
de gênero.
O Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) é um projeto de
extensão voltado à promoção de atendimento, orientação de direitos e
acolhimento gratuito para mulheres em situação de violência doméstica
e/ou familiar. Em Guarapuava - PR, é desenvolvido pela Universidade
Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) desde 2018. Em 2021,
ano em que a coleta dos dados foi realizada, o NUMAPE Guarapuava
contava com profissionais e estagiárias das áreas da Psicologia,
do Direito e do Serviço Social. Os dados apresentados aqui foram
coletados pela equipe de Psicologia e discutidos em parceria com uma
profissional do Serviço Social.
Tais dados compõem parte de uma pesquisa anterior, mais
ampla, realizada pela equipe de psicologia do Núcleo, que visava
analisar os benefícios do atendimento pré-audiência para as mulheres
que se encontravam em situação de violência. Todavia, durante a
realização desta pesquisa, foram encontrados vários elementos que
levavam à reflexão da complexidade do tema, seus ângulos diversos e
o desafio da atuação profissional nesse campo. Daí nasceu a proposta
deste capítulo.
Assim, nosso objetivo aqui é discutir as múltiplas
determinações e faces da violência contra a mulher e a contribuição dos

148
saberes interdisciplinares para seu enfrentamento, a partir da vivência
do Núcleo Maria da Penha, entre 2018 e 2021, em Guarapuava – PR.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, com um
instrumento de entrevista semiaberta. Das 50 (cinquenta) mulheres
atendidas pela Psicologia, foram entrevistadas 6 (seis), tendo
como obrigatoriedade para a inclusão no estudo a realização de
atendimento pré-audiência com a equipe de Psicologia e exclusão
daquelas que não aceitaram assinar o TCLE4. Considerando que
o atendimento pré-audiência somente foi ofertado às usuárias do
NUMAPE, todas as participantes desta pesquisa correspondiam ao
público-alvo do Núcleo: mulheres maiores de 18 anos, residentes
na comarca de Guarapuava, com renda familiar de até 3 salários-
mínimos, que estiveram em situação de violência caracterizada pela
Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). O nome das entrevistadas
foi alterado para nomes de flores para preservar a identidade delas. O
período da pesquisa foi de maio até julho de 2021.
A pesquisa contou com a revisão bibliográfica, que confere
o referencial teórico para as análises, também utilizou documentos
(como prontuários e relatórios dos anos de 2018 a 2021) para
complementar os dados obtidos nas entrevistas. Além disso, a
observação do cotidiano do atendimento no Projeto contribuiu
para o aprimoramento de nossas reflexões.
Destacamos também que, para a construção deste capítulo,
foi de grande importância o material teórico adquirido nas reuniões
do “Grupo de Estudos e Pesquisas: Feminismos e Violências
de Gênero”, assim como as leituras individuais, as pesquisas
realizadas dentro do NUMAPE e o trabalho interdisciplinar, pois
foram eles que proporcionaram o conhecimento necessário para a
identificação das faces e determinantes incluídos neste trabalho.

4 O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) seguiu o padrão exigi-


do pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNICENTRO, que aprovou por meio
do parecer nº 4.757.766 a pesquisa original que resultou neste trabalho.

149
O capítulo está organizado em três partes: na primeira,
mostramos as faces e os determinantes da violência contra as
mulheres; na segunda, está descrito o trabalho interdisciplinar com
mulheres em situação de violência; e na terceira parte apresentamos
a atuação do Núcleo Maria da Penha – Guarapuava, as faces da
violência, sua relação com os determinantes e a importância da
atuação interdisciplinar como uma estratégia de enfrentamento,
avaliada a partir das falas das participantes da pesquisa.
Ao fim, destacamos a centralidade da articulação dos
saberes e o compromisso ético-político como fundamentais para
o enfrentamento da violência contra as mulheres, fazendo da
interdisciplinaridade uma importante estratégia de ação.

VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES: UM


FENÔMENO DE MÚLTIPLOS DETERMINANTES
E FACES

A violência contra as mulheres é um tema que atravessa


o cotidiano das pessoas na sociedade brasileira, seja por meio dos
noticiários, das mídias sociais ou, infelizmente, pela experiência de
vida de muitas mulheres.
A presença constante desse fenômeno social no
dia a dia tende a naturalizá-lo. Por isso, compreender seus
determinantes e diferentes faces não é uma tarefa que se dê no
plano do imediato, pelo contrário, exige um olhar atento para as
relações sociais e os elementos mais estruturais que fazem com
que esse tipo de violência permaneça tão presente em nossas
vidas, mesmo diante do avanço dos direitos das mulheres e da
implementação de políticas públicas nesse campo.
É importante destacar que “[...] estruturas de dominação
não se transformam meramente através da legislação” (Saffioti,

150
1987, p. 15) e a persistência da violência contra as mulheres é
um exemplo disso, tendo como pano de fundo a desigualdade
de gênero.
Cisne e Santos (2018) explicam que se convencionou,
hegemonicamente, compreender gênero como o conceito que
designa a construção social do masculino e do feminino. Ou seja,
“[...] rigorosamente, os seres humanos nascem machos ou fêmeas.
É através da educação que recebem que se tornam homens e
mulheres. A identidade social é, portanto, socialmente construída.”
(Saffioti, 1987, p. 10).
É por meio da produção concreta da vida e das relações
sociais contraídas nesse processo que os seres humanos constroem
sua subjetividade, sua identidade social. Por isso, as condições
materiais de vida e as oportunidades (ou a falta delas) são
determinantes desse processo.
Neste sentido, Cisne e Santos (2018) nos alertam que
adotar a concepção de gênero demanda lançar mão de categorias
que dão à análise substância material, econômica e política em
torno dos antagonismos e hierarquias das relações sociais. Para
as autoras, o conceito de gênero deve ser utilizado à luz do
patriarcado e relacionado, necessariamente, com as categorias
classe social e raça/etnia.
De maneira geral, podemos considerar que patriarcado é
um sistema complexo heterogêneo, mas estruturado, de padrões
que implicam desvantagens para as mulheres e permitem aos
homens dispor do corpo, do tempo, da energia de trabalho e da
sua energia criativa. Esse sistema é ativado, de forma concreta, nas
instituições e nas relações cotidianas (Souza, 2015).
Embora os estudos mostrem que o patriarcado precede
o capitalismo, também apontam que nele assume características
singulares, implicando diretamente a vida das mulheres. Segundo
Souza (2015), nas sociedades pré-industriais já havia a divisão

151
sexual do trabalho, contudo, não ocorria a separação entre
homens e mulheres quanto ao local de trabalho. Com a nascente
indústria capitalista engendrou-se novas relações econômicas,
necessárias ao seu desenvolvimento, trazendo também novas
relações pessoais, modificando significativamente a vida das
mulheres. Portanto, “[...] se não houvesse o patriarcado, seria
necessário o desenvolvimento de novas formas de dominação
para escolher quem iria para a fábrica, quem ficaria em casa
e quem se responsabilizaria pelas tarefas da produção ou da
reprodução [...].” (Souza, 2015, p. 479). Com isso, acabou-se
por valorizar moralmente o mundo da produção, tornando o
da reprodução ideologicamente desvalorizado, conclui a autora.
A agudização da desigualdade social e da pobreza,
decorrentes das tensões entre o capital e o trabalho, empurraram
para o mercado de trabalho as mulheres e as relações desiguais
de gênero continuaram determinando aspectos da vida social,
pois além das funções no campo da produção, coube às mulheres
continuarem sendo as principais responsáveis pelas tarefas da
reprodução social da vida.
Para Biroli (2018), os interesses capitalistas e as formas
de exploração do trabalho incidem sobre a vida doméstica, a
conjugalidade, a divisão cotidiana das tarefas, a possibilidade de
fruição do tempo por mulheres e homens. Em suma, a alocação
das responsabilidades na vida cotidiana pode coibir ou facilitar a
atuação em outras esferas da vida, como as do trabalho e da política
institucional, por exemplo.

Mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5


bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado
não remunerado – uma contribuição de pelo menos
US$ 10,8 trilhões por ano à economia global – mais de
três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo.
(OXFAM, 2022, s.p).

152
É por isso que podemos concluir que a divisão sexual do
trabalho é um lócus importante da produção do gênero. No entanto
ela não incide igualmente sobre todas as mulheres, o que implica
o fato de que a produção do gênero ocorre de forma diferenciada,
considerando os aspectos raça e a dinâmica de classe, alertam
Cisne e Santos (2018) e Biroli (2018).
Ou seja, são as mulheres negras e periféricas que mais
sentem os impactos desse sistema opressor: estão mais expostas
às situações de violência, vivenciam condições mais precárias de
trabalho e têm menor renda, por exemplo.

De modo geral, [...] a supremacia masculina perpassa


todas as classes sociais, estando também presente no
campo da discriminação racial. Ainda que a supremacia
dos ricos e dos brancos torne mais complexa a
percepção da dominação das mulheres pelos homens,
não se pode negar que a última colocada na ‘ordem
das bicadas’ é uma mulher. Na sociedade brasileira,
esta última posição é ocupada por mulheres negras e
pobres. (Saffioti, 1987, p. 16).

A situação de dominação e opressão vivenciada


pelas mulheres tem determinantes de ordem estrutural que
configuram as condições materiais de produção da vida, como
a divisão social e sexual do trabalho e, nesse sentido, a família
permanece ainda como nexo na produção do gênero e da
opressão às mulheres (Cisne; Santos, 2018).
Saffioti (1987) destaca que, idealmente, considera-se a
família como sendo constituída de um homem e uma mulher que se
amam e que, através do ato de amor, reproduzem e devem oferecer
à sua prole meios materiais e afetivos para o desenvolvimento.
Entretanto, concretamente, a família é atravessada pelas relações
de poder que estruturam a vida em sociedade: os homens são
ensinados a competir, sendo a agressividade um componente
básico da personalidade competitiva; às mulheres se impõem a

153
necessidade de inibir a tendência agressiva, já que delas se espera
um comportamento dócil, cordato e até passivo.
De fato, nem sempre são os laços afetivos que sustentam
os arranjos familiares, há outros elementos que unem a família,
como: dependência financeira, dependência emocional, os
sentimentos de culpa, as cumplicidades estabelecidas e até mesmo
as chantagens (Saffioti, 1987). Não à toa a violência doméstica e/
ou familiar contra a mulher tem sido um dos maiores alvos de
políticas públicas na área de gênero.
No geral, podemos definir a violência “[...] como a
ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade
física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral.”
(Saffioti, 2004, p. 17). Cisne e Santos (2018) complementam
enfatizando que a violência contra a mulher é uma violação dos
direitos humanos, que não afeta apenas a integridade física, mas
também a sua integridade emocional e subjetiva.
Embora as situações de violência contra as mulheres não
ocorram somente no ambiente doméstico, aí se registram grande
parte dos casos. Além disso, os dados mostram também a alta
incidência do vínculo afetivo entre essas mulheres e seus agressores.
Visto que,

Em relação ao local de agressão e à relação da vítima com o


agressor, as especificidades da violência contra as mulheres ficam
evidenciadas. Entre as mulheres que sofreram agressão física em
2009, 43% (465.985) estavam em sua residência na ocasião; no
caso dos homens, apenas 12,3% (177.634) estavam na própria
residência. [...] Ao observarmos a distribuição percentual pelo
tipo de agressor [...], notamos que a maior parte das agressões
contra mulheres é perpetrada por pessoas conhecidas, cônjuges
e ex-cônjuges, e parentes; somadas, representam quase 70% dos
casos. (Engel, 2022, p. 16).

De acordo com o Artigo 5º da Lei Maria da Penha (Lei


n°11.340/2006) “[...], configura violência doméstica e familiar

154
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que
lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou patrimonial” (Brasil, 2006). Segundo o disposto
nessa Lei, são formas de violência doméstica e/ou familiar contra
a mulher: a física, a psicológica, a sexual, a moral e a patrimonial.
Assim, a violência contra as mulheres apresenta diferentes
faces e por não se tratar de um problema apenas de ordem privada,
uma vez que existem determinantes estruturais mais amplos, seu
enfrentamento exige ações de cunho social, econômico e político.
Para isso, são requisitadas diferentes medidas e saberes profissionais.

O TRABALHO INTERDISCIPLINAR NO
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER: CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS

A violência contra as mulheres é considerada um fenômeno


social complexo, uma vez que possui determinantes de ordem
político-econômica, social e cultural que, ao fim, têm reforçado a
desigualdade de gênero.
Além dessa multiplicidade de determinantes, outro fator
que faz da violência contra as mulheres um fenômeno social
complexo são as consequências geradas pelas situações vividas, que
trazem impactos significativos para a saúde das mulheres, para seu
bem-estar emocional, sendo também considerada uma violação de
direitos humanos, com rebatimentos a curto, médio e longo prazos.
Diante disso, a atuação profissional na área do
enfrentamento à violência contra as mulheres demanda qualificação
e especialização, sendo que a construção de uma relação de confiança
entre as usuárias dos serviços sociais e profissionais pode garantir a
adesão ao acompanhamento e o desvencilhamento da situação de
violência. Para tanto, são requisitados saberes multiprofissionais.

155
No Brasil, equipes multiprofissionais podem ser criadas
na área da saúde, da assistência social e do judiciário, visto que,
isoladamente, nenhum serviço provê resolução para a situação
da violência (Conselho Federeal de Psicologia, 2012). A maior
parte desses serviços envolve o acolhimento da mulher e a
judicialização para responsabilização do autor da violência,
havendo, ainda, pouco investimento em iniciativas mais amplas
de prevenção (Beiras, 2014).
É importante salientar que as diferentes regiões do país
possuem autonomia para definir como será estruturada a rede de
enfrentamento à violência, como também quais profissões serão
designadas para essa atuação. Na área da saúde, por exemplo, o
atendimento pode envolver médicos, enfermeiros, técnicos de
enfermagem, nutricionistas, educadores físicos, fisioterapeutas,
psicólogos, assistentes sociais e agentes comunitários. No
âmbito da assistência social, podem atuar pedagogos, assistentes
sociais, psicólogos e agentes sociais. Já no poder judiciário,
atuam advogados, psicólogos e assistentes sociais. Enfim, nas
três áreas citadas, as profissões mais recorrentes são a psicologia
e o serviço social.
Quanto ao acesso ao serviço, para que a mulher em
situação de violência receba atendimento, não deve ser obrigatória
a realização de uma denúncia formal, visto que a imposição da
denúncia afasta muitas mulheres do acolhimento proporcionado
pelos atendimentos, uma vez que é um direito da mulher receber
assistência (Conselho Federeal de Psicologia, 2012).
Considerando os determinantes ora apresentados,
entendemos que nas diferentes áreas e serviços sociais, é necessário
um atendimento multidisciplinar, intersetorial e, preferencialmente,
interdisciplinar, visto que o atendimento integral da mulher em
situação de violência só é possível a partir da articulação de diversos
saberes e técnicas, que envolvem aspectos mais subjetivos, como a

156
escuta e o acolhimento; o apoio material por meio das políticas
sociais, como renda, moradia, segurança alimentar, etc.; além, é
claro, das providências judiciais que responsabilizem o agressor e
promovam segurança para tais mulheres.
Somadas a essas medidas mais diretas, de assistência,
destacam-se ainda as ações de prevenção à violência contra
mulheres, que fazem parte das políticas públicas de enfrentamento.
De acordo com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência
Contra as Mulheres (2005), a prevenção prevê ações que
desconstruam estereótipos de gênero e que modifiquem padrões
sexistas, perpetuadores das desigualdades entre homens e mulheres
e da violência contra as mulheres. Inclui, portanto, ações educativas
e culturais que promovam atitudes igualitárias e valores éticos de
respeito às diversidades de gênero, raça/etnia e geracionais.
Pela complexidade do tema e pela abrangência das
ações de assistência e prevenção, destacamos o trabalho
multiprofissional como fundamental e a interdisciplinaridade
como uma meta da atuação profissional, já que aprofunda
a troca de saberes e práticas, podendo aprimorar as ações de
enfrentamento à violência contra mulheres.
A interdisciplinaridade ocorre a partir da desconstrução
da divisão rígida entre áreas do saber, compreendendo que a
discussão dos casos entre equipe e a integração dos conhecimentos
de outras profissões proporcionam um atendimento mais integral,
assim como a ampliação da consciência crítica (Munhoz, 2008).
Segundo Munhoz (2008), não é suficiente que os diferentes
profissionais estejam lado a lado, em um mesmo ambiente,
respeitando-se mutuamente em suas especificidades e diferenças,
mas cada um preso à sua cultura profissional, sem oportunizarem
diálogo para trocas e complementações que resultem em ampliação
de suas perspectivas frente à realidade e em ações mais efetivas
sobre as demandas sociais.

157
A partir de uma valorização da especialidade, as profissões
não aprendem a se enriquecer pelas diferenças, com compreensões
que possuam em comum sobre determinado aspecto da realidade.
E mais, não se exercitam no trato de fenômenos acima das
diferenças de compreensão, nem se preparam para o enfrentamento
de demandas a partir de sua explicitação como problemática a
ser analisada conjunturalmente e conjuntamente pelos diversos
profissionais e saberes envolvidos, conclui Munhoz (2008).
O problema da violência contra a mulher desafia
cotidianamente os diferentes profissionais e áreas de políticas públicas
afetas, uma vez que suas raízes envolvem determinações materiais de
produção da vida e as relações sociais tecidas pelos indivíduos, que
se expressam em valores e normas, como na construção do gênero.
Portanto, essa violência, como uma expressão da desigualdade de
gênero na sociedade capitalista, requer um conjunto de saberes que
possam desvelar os determinantes econômicos, sociais e políticos que
a produzem, além de estratégias e práticas de enfrentamento. Dada a
natureza desse fenômeno, a atuação interdisciplinar pode contribuir
para a apreensão das diferentes faces que o compõem e como se
expressa na atual conjuntura.
No campo da política e das ações de enfrentamento à
violência, as áreas “[...] articulam-se porque têm um objeto em
comum, que é a violência familiar ou doméstica contra mulheres,
e, portanto, um objetivo comum, que é a proteção, defesa e
prevenção dessa situação.” (PRATES, 2020, p. 469). Dessa forma,
são conhecimentos especializados, práticas e saberes diversos,
mas respaldados por um compromisso ético-político comum: a
construção de uma sociedade livre da exploração e dominação
baseadas nas relações de gênero, classe e raça/etnia.
O conhecimento especializado envolve a familiaridade com
a rede de atendimento à mulher da região, em que o profissional
está atuando e o fluxograma de atendimentos, visando à eficiência

158
nos encaminhamentos (Curia, 2020). Também envolve um
pensamento crítico em relação à classe social, gênero e raça, tendo
como base o feminismo5 para a reflexão crítica sobre a atuação
prática, sendo este, além de um movimento social, um campo do
saber. É necessário o conhecimento sobre as características da
região atendida e quais são as dificuldades e potencialidades da
comunidade, visto que essa, assim como a rede de apoio, possuem
uma grande importância na superação da violência.
O caminho para a construção de uma nova sociabilidade
que preze pela emancipação humana6 e promova o fortalecimento
dos grupos vulneráveis, como as mulheres, envolve o conhecimento
sobre leis, políticas públicas e serviços que atuam com as situações
de violência contra mulheres. Isso tudo sem perder de vista a
finalidade da ação profissional: a construção de uma sociedade
mais igualitária.
No cotidiano dos serviços, faz parte da atuação dos
profissionais ensinar a identificar os tipos de violência, as violações
de direitos humanos e seus direitos sociais. A instrução colabora
para que as mulheres tenham ciência de que estão passando por
um processo de violência e que tal situação pode ser rompida. Essa
intervenção pode ser realizada no formato de prevenção, a partir de
palestras, oficinas, debates e materiais informativos, ou no formato
de atendimento individual, diretamente com a mulher em situação
de violência, por meio de escuta e orientação (Conselho Federeal
de Psicologia, 2012).

5 Embora existam diferentes vertentes do feminismo, neste estudo, de maneira


geral, nossa compreensão é de que esse movimento se refere às lutas contra a
opressão e pela liberdade das mulheres, pautando questões como a sexualidade,
aborto, violência, autonomia, direitos civis, sociais e políticos (Cisne, 2018).
6 A emancipação humana tem primado sob a emancipação política, podendo levar
a uma sociedade verdadeiramente emancipada, eliminando a exploração de um
ser humano sobre outro ser humano. Esse processo pode conduzir ao múltiplo
desenvolvimento das possibilidades humanas e a criação de uma forma de asso-
ciação digna da condição humana (Bottomore, 2001).

159
O profissional deve estar atento a compreender a mulher
em sua totalidade e singularidade, não focando apenas na situação
de violência e no relacionamento, visto que diferentes necessidades
e demandas podem aparecer. Por mais que existam pesquisas
que busquem tipificar a violência, cada mulher pode vivenciar o
relacionamento de uma forma diferente.
As intervenções voltadas para a situação de violência devem
considerar o desenvolvimento da autonomia e do protagonismo
da mulher, assim como a reparação de sua rede de apoio, muitas
vezes fragilizada durante o relacionamento. No entanto, deve-se
considerar os desejos e necessidades de cada mulher, elaborando
um plano de ação em conjunto com ela, respeitando suas escolhas.
Cabe aos profissionais investigarem se há um contexto de
vulnerabilidade social, gravidez precoce e casamento indesejado,
que podem influenciar em uma dependência financeira da mulher
em relação ao autor de violência, demandando uma atuação voltada
ao desenvolvimento profissional e algum benefício ou auxílio no
campo da assistência social.
É importante ter em mente que parte das mulheres que
participam de atividades de prevenção ou do atendimento não deseja
a separação de seu parceiro, mas possui apenas o desejo de cessar
com as situações de violência. Por vezes, pode não se reconhecer na
situação de violência, ou ter dificuldade para compreender alguns
comportamentos como violentos, dada a cultura e o estereótipo das
características ditas masculinas e femininas, como a agressividade
e a passividade, por exemplo.
Algumas mulheres passaram por diversas violências em
suas vidas, desde a infância com suas famílias até sua vida conjugal,
lembrando aqui que a família permanece como um nexo relevante
na produção do gênero e da opressão às mulheres. Nesse sentido, o
histórico de violências pode influenciar para que algumas atitudes
sejam normalizadas, assim como a violência pode ser utilizada

160
como ferramenta de comunicação entre os parceiros (Conselho
Federeal de Psicologia, 2012).
Em outros casos, a mulher pode separar-se de seu parceiro
que realizava a violência, buscar atendimento e, no futuro, perceber-
se em outra situação de violência, em um novo relacionamento.
Portanto, a atuação profissional não possui como meta a separação,
nem sequer acaba após ela, visto que as consequências da violência
podem acompanhar toda a vida da mulher.
Por isso tudo, além da perspectiva interdisciplinar, o
atendimento deve ser intersetorial, envolvendo mais de um serviço
ou política pública. É importante que os serviços possuam uma
ligação, tecendo um plano de intervenção em conjunto e discutindo
o caso com a frequência necessária para que seja efetivada a
integralidade do atendimento, respeitando a complexidade dessa
demanda. Todavia, algumas dificuldades são encontradas no
atendimento interdisciplinar e intersetorial que podem prejudicar
a resolução ou afastar a mulher dos serviços.
A própria interdisciplinaridade possui dificuldades
de se concretizar em um serviço que possui alta demanda
e que os profissionais não conseguem suprir. Isso porque a
interdisciplinaridade requer uma dinâmica de comunicação entre
os profissionais e troca de saberes, como as reuniões de equipe,
discussões sobre metodologia e conduta, estudos de caso, entre
outras técnicas, que são obrigatórias para o fazer interdisciplinar
e deixadas de lado quando o tempo é escasso (Mirim, 2006). Há
também a necessidade do investimento em supervisão técnica,
sendo um espaço para que os profissionais compartilhem em
equipe os sentimentos, emoções e comportamentos provocados
pelo trabalho, para além das reuniões técnicas (Mirim, 2006).
Outra dificuldade a ser mencionada se refere aos obstáculos
no estabelecimento de parcerias entre o sistema judiciário e
serviços de assistência social e saúde, visto que o judiciário busca

161
a responsabilização do autor da violência e a judicialização do
processo, já os outros serviços possuem como desafio a intervenção
com a mulher que esteve em situação de violência, o que pode
envolver aspectos emocionais, culturais e materiais, que caminham
com uma dinâmica diferente do processo judicial, mais formalizado
em termos de prazos.
Ainda no campo das dificuldades, merece atenção a
questão dos encaminhamentos: quando uma mulher em situação
de violência é encaminhada, seja dentro do serviço de referência
ou para a rede de enfrentamento à violência, seu atendimento deve
ser compartilhado entre profissionais ou entre equipes, evitando
que a mulher fique desassistida por um dos serviços, ou perca o
vínculo com os profissionais. Entretanto, esse acompanhamento
possui desafios. Em geral, os profissionais se deparam com uma
grande demanda, o que torna o atendimento moroso, dificultando
a atuação concomitante e articulada entre os diferentes serviços
e/ou profissionais. Por conta disso, os profissionais podem evitar
realizar encaminhamentos e o atendimento pode ficar centralizado
em um profissional ou em um serviço.
Além do que foi exposto, vale à pena mencionar que
poucos serviços oferecem atendimento aos filhos das vítimas
que presenciaram as situações de violência contra as mulheres.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (2002, p. 104), os filhos
“[...] estão sob risco maior de diversos problemas emocionais e de
comportamento, inclusive ansiedade, depressão, baixo rendimento
escolar, baixa autoestima, desobediência, pesadelos e reclamações
de saúde física”, sendo a escola o principal local em que essas
dificuldades aparecem, porém, muitas vezes, esses espaços não
possuem recursos para lidar com a violência. Da mesma forma,
Silva, Coelho e Caponi (2007, p. 102) identificam que “O fato de
uma pessoa crescer e desenvolver-se numa família violenta pode

162
repercutir na forma de aprendizado de solução de problemas,
produzindo um padrão de comportamento violento.”
Portanto a precarização dos serviços é uma grande
dificuldade tanto para o trabalho interdisciplinar quanto para o
aprimoramento das respostas às situações de violência contra as
mulheres, uma vez que não garantem uma equipe mínima para
abranger toda a demanda existente e ainda há pouco investimento
em infraestrutura física. O enfrentamento à violência contra as
mulheres, mesmo sendo uma política pública, vivencia ataques
diretos e indiretos à sua atuação, devido à discordância da prioridade
desses serviços pela atuação dos governos. Nos últimos anos, esses
serviços sofreram cortes de investimentos e desmontes, porém, a
violência contra as mulheres aumentou (Gomes, 2020). Outrossim,
com a mudança de gestões políticas, ocorrem descontinuidades de
ações estabelecidas nos serviços, impedindo a consolidação dessas
ações (Conselho Federeal de Psicologia, 2012).
Diante da multiplicidade de determinantes que geram a
violência contra as mulheres em nossa sociedade, consideramos
que a atuação interdisciplinar é uma estratégia fundamental para
seu enfrentamento, pois mobiliza saberes, práticas e técnicas que
abarcam os aspectos materiais, legais e emocionais que atravessam
essa problemática. No entanto, os desafios para sua concretização
envolvem a valorização da diversidade profissional nos serviços;
a disposição para o diálogo constante e para a troca de saberes,
superando a ênfase na especialização; e o aprimoramento dos
serviços, por meio de investimentos financeiros.
A experiência do Projeto NUMAPE-Guarapuava nos
traz elementos concretos para somarmos ao debate sobre a
contribuição dos saberes interdisciplinares no enfrentamento à
violência contra mulheres.

163
RETRATOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER NO NÚCLEO MARIA DA PENHA-
GUARAPUAVA

O NUMAPE Guarapuava foi inserido como um dos


atores da rede de enfrentamento à violência contra mulheres no
município, dessa forma, recebe encaminhamentos dos serviços de
referência e também na forma de demanda espontânea. Entre os
anos de 2018 e 2021, o Núcleo estruturou seu plano de trabalho e
construiu sua identidade de atuação, dentro da rede existente.
Desde então, a maior requisição tem sido a judicialização
das situações de violência contra as mulheres, contudo, a partir
da compreensão das múltiplas determinações desse fenômeno, o
Projeto atuou na perspectiva de valorizar a articulação dos saberes
e práticas. Uma das estratégias para essa articulação se deu por
meio do grupo de estudo e da produção de pesquisas científicas.
Diversas faces e determinações da violência contra
as mulheres emergiram a partir de entrevistas realizadas com
usuárias do NUMAPE durante a produção de conhecimento
realizada pela equipe do Projeto, aprimorando a compreensão
sobre a temática e fortalecendo a concepção da importância do
trabalho interdisciplinar.
Nesse processo, entre maio e agosto de 2021, com objetivo
inicial de avaliar o atendimento pré-audiência fornecido pelo
Núcleo, a equipe de psicologia entrevistou 6 (seis) usuárias do
NUMAPE. Contudo os temas trazidos pelas mulheres também
revelaram características das relações de gênero, especialmente
no ambiente doméstico. Sendo assim, o conteúdo das entrevistas
mostrou-se relevante para o presente estudo.
Para contextualizar a fala das mulheres, é relevante expor
dados estatísticos que caracterizam a atuação desse Projeto de

164
Extensão. Em agosto de 2021, foi realizado um levantamento
de prontuários do Núcleo, com o objetivo de identificar o perfil
das atendidas. Constatou-se que, entre os anos de 2018 e 2021,
a maioria dessas usuárias tinha Ensino Fundamental incompleto
e estava desempregada. No mesmo período, 42,9% das mulheres
atendidas eram pardas, e 41,57% eram brancas, as demais não se
identificaram (Lacerda; Gasperotto; Fortini, 2021).
Relembramos aqui que a Lei Maria da Penha
(n°11.340/2006) aponta cinco principais formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral. De acordo com o mesmo levantamento, o
tipo de violência mais frequentemente relatado pelas usuárias do
NUMAPE era a violência psicológica (32,47%). Em seguida,
estavam a violência física (25,47%), violência moral (17,41%),
violência patrimonial (15,54%) e violência sexual (9,11%).
É interessante observar que a violência psicológica vem
sendo reconhecida pelas mulheres, já que durante muito tempo,
apenas a dimensão física dessa violação de direitos era mais
comumente percebida. Isso aponta para o resultado do trabalho
de prevenção e orientação prestado pela rede de atendimento, que
vem atuando na divulgação e sensibilização da sociedade sobre as
diferentes formas de violência contra as mulheres.
Os dados também revelam que o componente econômico
agrava as situações de violência, sinalizando para a necessária
articulação do debate de classe e gênero. Nesse levantamento
específico, os dados não nos permitem analisar a dimensão raça/
etnia, embora a observação do cotidiano das ações do Projeto
indique que há uma relação entre essas dimensões.
O conteúdo das entrevistas dá visibilidade aos
componentes da construção social do masculino e do feminino,
que se convencionou a compreender como gênero (Cisne; Santos,
2018). Assim, foi possível perceber que as mães são tidas como

165
as responsáveis pelo cuidado dos filhos, enquanto o pai atua
como coadjuvante dessa tarefa, ou não a exerce de forma alguma.
Diante da ausência da mãe, a tarefa de cuidar dos filhos torna-
se responsabilidade da mulher mais próxima na rede afetiva. Isso
pode ser notado no trecho abaixo:

[...] eu trabalhei quatro anos quando tinha a menina


pequena, que eu precisava dele para me ajudar a cuidar
da menina, para ‘mim’ trabalhar na pizzaria que eu
trabalhava com meu irmão, ele não ficava cuidando, não
gostava de cuidar da menina, a menina ficava chorando.
A minha mãe tinha que cuidar, sendo que ele estava em
casa à noite, que era para ajudar na despesa e trabalhar né,
para ajudar na casa (Magnólia).

A mulher é responsável inclusive por manter os vínculos


afetivos entre o pai e os filhos após a separação. O relato de
Magnólia, transcrito a seguir, aponta que a mãe é não apenas o
epicentro de responsabilidades na dinâmica familiar, mas também
de culpa: “ele mandava perguntando, por que os meus filhos não querem
conversar com ele, [...] e ele jogava que eu que era culpada de tudo,
porque eu que jogo os filhos contra ele.”
Nota-se o peso da opinião dos filhos e da preocupação com o
bem-estar deles diante da decisão de separação. A fala de Margarida às
suas filhas exemplifica isso: “Quando ele adoeceu eu ia largar dele, vocês já
estavam casadas, eu esperei vocês casarem, eu voltei (com ele).” Conforme
o relato de Margarida, ela somente se separou depois que suas filhas
haviam se casado e saído de casa, evitando fazê-lo enquanto elas eram
financeiramente dependentes dos pais. Contudo, seu esposo adoeceu
enquanto eles estavam separados, e ela reatou o relacionamento para
cuidar dele, mantendo sua promessa do casamento, estando com
ele “na saúde e na doença.” Com frequência, o bem-estar da mãe
fica em segundo plano e prioriza-se a tentativa de manutenção do
relacionamento, mesmo quando a mulher já identificou a situação de

166
violência, acreditando que isso seria o melhor para os filhos. Nesse
caso, até mesmo o bem-estar do autor da violência é tido como mais
importante do que o da mulher.
Por outro lado, o apoio dos filhos à separação também
pode ser um potente motivador. Calêndula comentou que somente
conseguiu se separar quando sua filha a pediu: “[...] é que quando
um filho chega pra você e fala ‘mãe, por favor, alugue uma casa e vamos
sair daqui’. Ela falou que ela não suportava mais [...].” Isso pode
ser resultante do engessamento da mulher na posição de maior
responsável pelo bem-estar dos filhos, bem como no relato de
Margarida mencionado anteriormente. Dessa forma, a mulher
acredita que a presença do pai no ambiente doméstico é o melhor
para os seus filhos, até que um dos filhos lhe diga o contrário.
Além disso, a violência pode produzir consequências na
vida dos filhos. No caso de Calêndula, seu ex-esposo também
restringia as possibilidades de socialização da filha, e “mostrava cara
feia” quando ela trazia pessoas do seu convívio social para dentro
de casa. Em alguns casos, a filha também era vítima de violência
pelo pai. Mesmo nos casos em que a violência era exclusivamente
destinada à esposa, os filhos relataram sofrimento por presenciar as
violências contra suas mães. Isso pode resultar no pedido dos filhos
pelo rompimento do relacionamento, visando ao fim da violência.
Outro componente que atravessa o cotidiano da vida
familiar é a divisão sexual do trabalho. As tarefas domésticas e
familiares parecem ser compartilhadas entre as mulheres da família
(mãe, avó e filhas). Contudo tais tarefas são desempenhadas
ao mesmo tempo que as mulheres trabalham fora de casa,
para contribuir financeiramente com a economia familiar. A
“permissão” para trabalhar fora de casa não garante que a mulher
seja financeiramente independente.
Todas as mulheres entrevistadas trabalhavam fora de casa
durante o tempo em que estavam casadas. Mesmo assim, surgiram

167
relatos de dependência financeira e de conflitos na separação de
bens. No caso de Violeta, o controle das finanças da casa era feito
pelo seu esposo: “[...] eu sempre trabalhei, o dinheiro era sempre
para… para as despesas da casa, nunca sobrava o que era meu, mas o
dele sempre ele podia gastar no que quisesse.” Os relatos evidenciaram
que a contribuição financeira e material da mulher à economia
doméstica é tida como inferior à do homem. Isso fica evidente nos
relatos de separação de bens, quando frequentemente os homens
afirmam que têm direito à maior parte dos bens adquiridos
conjuntamente pelo casal.
O tempo e o esforço investidos pela mulher no cuidado
da casa e da família são tidos como “naturais” para seu papel de
gênero, por isso mesmo, indignos de reconhecimento. E mesmo
o dinheiro recebido pela mulher em trabalhos formais parece ser
de menor valor que o dinheiro recebido pelo homem. O esposo
de Calêndula tentou tomar posse da casa antes que a separação
de bens fosse realizada. Ela conta: “[...] ele tinha ido pra Bahia
e passou a casa, a nossa casa que eu moro hoje, ele passou pro nome
da irmã dele. Então ele tentou me dar um golpe.” À mulher fica
destinado um local secundário, ilegítimo de proprietária dos
bens. É como se ela estivesse alugando a casa, e o aluguel fosse
pago com cuidados domésticos, além de respeito e fidelidade ao
real proprietário da casa: o seu esposo.
Mesmo em lares onde a mulher também trabalha fora,
muitos homens ainda permanecem na posição de provedores. Para
exercer o papel de homem da casa, é necessário garantir habitação,
alimentação e necessidades básicas, mesmo que essas despesas
sejam custeadas com o dinheiro do casal. O excedente, se houver,
pode ser gasto com o lazer do homem. À mulher, destina-se apenas
o básico. Calêndula reafirma isso, ao dizer que seu esposo “nunca
deixava faltar comida em casa”, mas controlava excessivamente os
gastos (de tempo e dinheiro) das mulheres da casa.

168
Essas são nuances do sistema patriarcal que se ativa nas
relações cotidianas, estruturando-se por meio de padrões que
implicam desvantagens para as mulheres, permitindo aos homens
dispor do corpo, do tempo, da energia de trabalho e da energia
criativa delas, como bem afirmou Souza (2015).
A partir disso, torna-se claro o processo de construção
social da inferioridade das mulheres. Saffioti (1987) defende que a
construção social da inferioridade tem como correlato a construção
da superioridade, ou seja, como não há ricos sem pobres, não há
superiores sem inferiores:

Logo, a construção social da supremacia masculina exige


a construção social da subordinação feminina. Mulher
dócil é a contrapartida de homem macho. Mulher frágil é
a contraparte de homem forte. Mulher emotiva é a outra
metade do macho superior. (Saffioti, 1987, p. 29).

Portanto, se cada um se posiciona socialmente em polos


diferentes, não se pode abordar um esquecendo o outro. É a relação
na análise dos fenômenos sociais que importa, manifestando-se
aqui por meio da dominação-exploração (Saffioti, 1987).
Entre tantas nuances dessa relação, aparece também a
noção de que a dedicação da mulher deve ser integral à família
nuclear, reduzindo suas relações sociais externas. A possibilidade
de socialização extrafamiliar fica restrita ao homem. Em alguns
casos, isso vale tanto para a mãe quanto para a filha:

Ela [filha] falou que ela não suportava mais, porque nós
vivíamos assim em uma posição de nem poder trazer as
pessoas pra dentro de casa. Porque todos os amigos dele,
quem ele convidasse poderia vir, mas nós não podíamos
trazer ninguém aqui. Inclusive minhas irmãs não podiam vir
aqui na minha casa que ele mostrava cara feia. (Calêndula).

169
Isso dificulta a formação de uma rede de apoio à mulher. As
relações sociais são fundamentais para promover suporte emocional
à mulher em situação de violência e podem encorajá-la a romper
o relacionamento. Sendo assim, a restrição das possibilidades de
socialização das mulheres pode resultar não apenas no adiamento
da separação desejada, mas também na degradação das condições de
saúde mental da mulher. No mais, contribui para manter a posição
de inferioridade das mulheres dentro desse relacionamento.
Esse fator é tão presente nos relacionamentos observados
que, mesmo após a separação, algumas mulheres continuam tendo
suas possibilidades de socialização restringidas pelo ex-marido, ex-
companheiro. É o caso de Jasmim, que afirma: “Ele me ameaça até
hoje, diz que se algum dia eu achar uma pessoa ele vai matar os dois, ele
me ameaça direto.”
Por outro lado, foram notados vários casos de traição
por parte do homem. Nas entrevistas, a traição aparece como um
dos motivadores mais potentes à decisão de separação e também
um fator gerador de vergonha na mulher. Magnólia relata que,
mesmo após o fim do relacionamento, continua descobrindo novas
histórias de traição por parte de seu ex-companheiro. A violência
não necessariamente se finda no término do relacionamento, bem
como suas implicações na vida da mulher. Portanto, a família segue
como um lócus de reprodução do gênero (Cisne; Santos, 2018),
sendo a violência uma expressão da desigualdade e um mecanismo
de subalternização das mulheres.
No âmbito familiar, as violências físicas podem, ou não,
estarem restritas à companheira. Contudo, na maioria dos relatos,
as filhas mulheres eram envolvidas em outras formas de violência,
em especial a violência moral. Nas entrevistas, foram obtidos
vários relatos de humilhação da mulher diante de suas filhas e
filhos. Esse tipo de violência pode ser interpretado como uma

170
forma de consolidação dos papéis de gênero na dinâmica familiar,
evidenciando aos filhos que o homem é a “autoridade” da casa.
O homem pode estabelecer e reafirmar sua posição
de poder no âmbito familiar, sem necessariamente violentar as
filhas. No caso de Jasmim, seu ex-companheiro também praticou
violência física contra a sua filha, e mesmo assim a filha se opôs à
separação, defendendo o pai. Violeta relata que seu ex-companheiro
a humilhava diante das filhas, mostrando as roupas íntimas da
esposa às filhas e dizendo que ela estava tendo relações sexuais
com outros homens. Contraditoriamente, Violeta também diz que
“ele [o ex-companheiro] foi um excelente pai, um excelente avô, ele é.”
Posteriormente, a filha de Violeta também foi vítima de violência
doméstica em seu relacionamento.
Na maioria dos casos, a mulher é tratada como mentirosa
e dissimulada pelo seu esposo/companheiro, sendo retratada dessa
forma diante dos filhos, da família extensa, dos advogados do caso
etc. A violência moral envolvendo os filhos também apareceu nas
entrevistas como uma forma de descredibilizar a palavra da mulher.
O relato de Violeta evidencia isso:

[...] ele mandou 65 mensagens para meu filho. Falando


que eu não prestava, que eu não era bem isso, que eu não
era bem aquilo, que eu era louca, que eu era uma surtada,
que isso e que aquilo, que ele estava seguindo a vida dele,
que ele tava muito bem, que isso e que aquilo, e foi.

As tentativas de manipulação das filhas, apontando a


companheira como vilã, podem ser métodos de fixação dos papéis
de gênero. Isso pode ser ainda mais eficaz ao passo que a própria
mulher passa a questionar sua integridade e sanidade mental, por
consequência da violência psicológica. Os relatos de vergonha
também foram comuns. As mulheres afirmaram ter vergonha de
contar para amigos e familiares que estavam sendo vítimas de
violência doméstica. Isso pode estar relacionado à desqualificação

171
constante de suas versões da história, gerando a vergonha, o medo
de estar sendo injusta com o companheiro e o medo de ser tratada
como mentirosa, estando esse medo relacionado à violência
psicológica vivenciada no relacionamento.
As entrevistas com diferentes usuárias atendidas pelo
NUMAPE Guarapuava nos indicam que o enfrentamento da
violência contra as mulheres vai além das medidas judiciais
de responsabilização dos agressores, embora esta uma etapa
imprescindível do processo. As relações de poder e de desigualdade
que atravessam a vida social e se materializam no convívio cotidiano,
como, por exemplo, no ambiente doméstico, nos dão conta de que
o efetivo enfrentamento à violência contra as mulheres requer a
contribuição dos saberes interdisciplinares.
Para isso, é importante que os/as diferentes profissionais
e áreas de atendimento componham estratégias de discussão e
troca de informações, ultrapassando as barreiras da especialidade
e construindo algo novo na direção de ampliação da consciência
crítica. Isso porque toda intervenção profissional é composta
de uma dimensão técnica, do saber fazer, mas também de outra
dimensão menos evidente: a política. É por meio da dimensão
política que refletimos sobre a finalidade da nossa atuação, sobre o
que desejamos construir.
A dimensão política pode ser o mote para o trabalho
interdisciplinar no âmbito do enfrentamento à violência contra as
mulheres, lançando como horizonte para as atuações profissionais
a construção de uma sociedade livre das relações de dominação-
exploração de gênero, classe e raça, já que, como vimos, essa
violência é composta por uma diversidade de determinações e faces.

172
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho foi construído a partir de reflexões produzidas ao


longo da nossa experiência extensionista, nos anos de 2018 a 2021, no
Núcleo Maria da Penha de Guarapuava. Aqui, discutimos as múltiplas
determinações e faces da violência contra as mulheres e a importância da
interdisciplinaridade para seu enfrentamento, a partir dessa vivência na
extensão universitária.
No Núcleo, as diferentes áreas de atuação (Direito, Psicologia e
Serviço social) tiveram na categoria gênero um tema articulador para o
debate e produção de conhecimento. A estratégia das reuniões temáticas
pode contribuir para o diálogo interdisciplinar, que entendemos ser uma
exigência para o enfrentamento da violência contra mulheres, dada sua
natureza complexa, conforme expusemos aqui.
Além da representação no âmbito judicial, o NUMAPE
Guarapuava buscou atuar no fortalecimento individual das mulheres
atendidas e também articular-se com a rede intersetorial do município.
Ficou evidente que a responsabilização do agressor é fundamental, mas
que as ações precisam considerar outras faces da violência, inclusive as
que envolvem determinações mais estruturais, que se expressam no
sistema de dominação-exploração, resultando na desigualdade social e
nas relações desiguais de gênero. No cotidiano da vida das mulheres, essas
determinações mais amplas se materializam nas sucessivas tentativas de
inferiorização, que vão desde o âmbito econômico (“nunca sobrava o que
era meu, mas o dele sempre ele podia gastar”; “ele tentou me dar um golpe”) até o
emocional (“jogava que eu que era culpada de tudo”; “me ameaça direto”; “que
eu era louca, que eu era uma surtada”).
Portanto, a articulação dos saberes; a troca de experiências,
técnicas e práticas e o comprometimento político são fundamentais
para o enfrentamento da violência contra as mulheres, fazendo da
interdisciplinaridade uma estratégia para a atuação de ações extensionistas
e, especialmente, das políticas públicas.

173
REFERÊNCIAS

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grupal a homens autores de violência contra mulheres no contexto
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BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: limites da democracia no
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CISNE, Mirla. Feminismo e Consciência de Classe no Brasil. 2. ed.
São Paulo: Cortez, 2018.
CISNE, Mirla; DOS SANTOS, Silvana Mara de Morais. Feminismo,
diversidade sexual e serviço social. São Paulo: Cortez, 2018.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas
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em situação de Violência / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília:
CFP, 2012. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/
uploads/2013/05/referencias-tecnicas-para-atuacao-de-psicologas.pdf.
Acesso em: 27 jul. 2022.

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ENGEL, Cíntia Liara. A Violência Contra a Mulher. 2020. Disponível
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Revista Espaço Acadêmico, v. 20, n. 224, p. 119-129, 2020. Disponível
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SOUZA, Terezinha Martins dos Santos. Patriarcado e Capitalismo:
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view/10969. Acesso em: 17 fev. 2022

176
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
“[...] o patriarcado, como sistema histórico, tem um início na
história.
E que, por não ser natural – baseado no determinismo
biológico – ,
pode ser derrubado. Pode e vai, ouso dizer.
Porque, apesar desta fase conservadora que vivemos,
as mulheres não vão recuar” (ARONOVICH, 2019).

Criar, propor e desenvolver um projeto de extensão não


é tarefa simples. Ainda mais quando a proposta é vivenciar a
articulação do ensino, pesquisa e extensão, sem sobrepor quem é
o mais importante, mas na certeza da complementaridade e da
indissociabilidade dos três. Em tantos desafios vivenciados nesse
processo, um deles era ter que defender isso diante da instituição
financiadora do projeto. Enquanto defendíamos uma extensão
plenamente dialogante com o ensino e a pesquisa, a mantenedora
requeria uma prestação de serviços que obtivesse dados estatísticos.
Nós não estávamos preocupadas com os dados (não significa
que não os registrávamos). Estávamos preocupadas sim, com a
qualidade dos atendimentos às mulheres, com a profundidade da
compreensão de suas histórias, com a resolutividade competente
de suas demandas, no intuito de ajudá-las a romper com o ciclo
de violência, proteger-se para se manterem vivas. E nós vivemos
sim a extensão plenamente articuladas ao ensino e a pesquisa. Foi
dolorido! Foi desafiante! Porém foi lindo!
Alçamos um voo na história da humanidade e entendemos
que a violência doméstica ou familiar que hoje (e sempre) nós
mulheres vivemos, tem raízes profundas alicerçadas no patriarcado,
consolidadas no capitalismo e solidificadas pelo racismo, com face
própria do Brasil, localizado no Sul do mundo, onde a colonialidade
fez e faz morada, ainda. É diferente a violência que aqui sofremos.
Ela toma nossos corpos, nossa mente, nossa cultura e faz de nós
seres subalternizados, não só pela nossa sexualidade, por nossa cor
e classe social, embrutecida em um país colonizado e dependente
das economias, suas ciências e culturas dominantes.
Mergulhamos nas profundezas das histórias e vivências
violentas contadas pelas mulheres durante os atendimentos.
Sofremos com elas. Tivemos que disfarçar as lágrimas (quantas
vezes), tivemos que engolir um nó seco que desceu pela garganta,
dada à fúria e a revolta ao tomar conhecimento dos detalhes
da brutalidade com que seus amados (esposos, companheiros,
namorados) as trataram. Vemos pelos olhos da imaginação
seus sangues verterem, os detalhes dos cortes e os motivos
fúteis e banais que levaram seus amados a ceifarem suas vidas.
Revoltamo-nos! Lutamos! Resistimos e dissemos toda vez:
Basta! Nenhuma a menos!
Enfim, compreendemos que o fenômeno da violência
doméstica ou familiar contra mulheres não é tarefa de
uma profissão, mas de várias, dada a sua complexidade e
heterogeneidade de questões que a forma e mantém ainda
vigente na sociedade, que apesar de se dizer democrática,
moderna, é plenamente machista, sexista e classista e continua
matando mulheres por uma questão de sexo.
Não é só um BASTA de violência doméstica e familiar
que queremos dizer! Queremos romper com o silenciamento de
tantos anos! Silenciamento de nossas histórias, de nossas lutas, das
tantas vezes que lutamos nas guerras, que construímos a economia,
que derrubamos ditadores, que cuidamos do nosso filho doente,
que limpamos suas feridas, e que a história não nos retratou.
Basta de um sistema que oprime as mulheres e as colocam
sob sua inferior camada, como se fôssemos insignificantes sujeitas.

178
Se há outro mundo possível,
esse outro mundo está na barriga deste,
e temos de ajudá-lo a nascer.
Esse parto não vai ser fácil e para isto
a energia da indignação é fundamental.
Não aceitar esta realidade como a única realidade possível,
porque cada realidade contém muitas outras dentro dela.
É como se o mundo estivesse grávido de outros ‘mundinhos’,
de outros ‘mundinhos’ bem melhores que este.
Há que ajudá-lo a nascer
(Entrevista “O tempo e o modo” – Eduardo Galeano)

Tenham certeza: disso nós mulheres entendemos, e muito.


Aguardem-nos.

179
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SOBRE AS AUTORAS

ANGELA MARIA MOURA COSTA

Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual


do Centro-Oeste - UNICENTRO. Especialista em Formação de
Professores para a Docência no Ensino Superior - UNICENTRO.
Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual
de Ponta Grossa - UEPG. Doutora em Serviço Social pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente
é Professora efetiva do Departamento de Serviço Social da
Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO).
Foi coordenadora do Núcleo Maria da Penha (NUMAPE).
Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Feminismos e
Violências de Gênero certificado pelo CNPQ e Chefe de Divisão
de Projetos Sociais na Incubadora Social da Unicentro.

ANA CLAUDIA DE ABREU DA SILVA

Doutora e Mestre em Direito do Estado pela Universidade


Federal do Paraná – UFPR. Especialista em Ciências Criminais
pela UniCuritiba. Graduada em Direito pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Professora de Direito Penal no
Centro Universitário Campo Real. Orientadora na área do Direito
do Núcleo Maria da Penha – NUMAPE/UNICENTRO (2018
a 2021). Orientadora na área do Direito do Projeto de Extensão
Frente de Prevenção – UNICENTRO, 2022.
ANA CLAUDIA MAROCHI

Possui graduação em Pedagogia pela Universidade


Estadual de Ponta Grossa (2012) e graduação em Ciências
Biológicas - Licenciatura pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa (2005), Bacharel em Direito e Especialização em
Administração, Supervisão e Orientação escolar pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa (2004). Mestra em Educação pela
Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO/
PR. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa
Catarina - UFSC. Atuando como pedagoga do Instituto Federal
do Paraná em Irati, na área de orientação pedagógica junto ao
corpo docente e discente e professora da rede pública estadual
do Estado do Paraná, Professora colaboradora do Departamento
de Pedagogia - DEPED da Universidade Estadual do Centro-
Oeste - UNICENTRO e Advogada na área trabalhista. Atuei
como professora da Rede Estadual de Educação do Paraná por 22
anos. Linhas de pesquisa: trabalho e educação; políticas sociais e
mulheres trabalhadoras.

BRUNA ALMERINDA SANTOS DE CARVALHO

Graduada em Serviço Social pela Universidade


Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO (2021). Pós
Graduação Lato Sensu em Serviço Social - Gestão das
políticas e Projetos Sociais (UNIBF/2022). Pós graduanda
em Gerontologia (UEPG). Bolsista do Projeto de Extensão
Núcleo Maria da Penha de Guarapuava (2019-2021). Atuou
como assistente social no Hospital Regional de Guarapuava.
Atualmente, bolsista do Projeto de Extensão Organização
coletiva e economia solidária com Mulheres em situação de
vulnerabilidade social da Incubadora Social da Unicentro.

181
JULLY ANNYE GALLO LACERDA

Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário


Campo Real, pós-graduada em Sexualidade Humana - Educação
e Terapia pela Universidade Positivo, pós-graduanda em Psicologia
da Saúde e Políticas Públicas no Brasil pela Sanar Saúde/
Uniamérica. Psicóloga Clínica na área de Sexologia Clínica e
Relacionamentos, atuou como Psicóloga bolsista no Núcleo Maria
da Penha(NUMAPE) da UNICENTRO Guarapuava entre os
anos de 2020 e 2021. Participa do GEPEN: Grupo de Estudo e
Pesquisas: Feminismos e Violência de Gênero, e é Representante
Setorial da região Centro-Oeste no Conselho Regional de
Psicologia do Paraná.

KAMILA DIB KAMINSKI

Graduada em Direito (2021) pelo Centro Universitário


Campo Real. Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal
- Lato Sensu (2022) pela Faculdade Educamais. Pesquisadora no
Grupo de Estudos e Pesquisas: Feminismos e Violência de Gênero.
Advogada no escritório Lacerda Silvestri em Guarapuava/PR.

MICHELI SOUZA CORDEIRO

Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual


do Centro-Oeste (UNICENTRO). Especialista em Famílias e
Práticas profissionais também pela Unicentro. Atuou no Núcleo
Maria da Penha (NUMAPE).

182
LUANA MAXIMO GASPEROTTO

Graduada em Psicologia pela UniGuairacá em Guarapuava


- PR. Bolsista de graduação entre março e agosto de 2021 no
Núcleo Maria da Penha (SETI/UGF) da UNICENTRO.

PRISCILA FERREIRA FORTINI

Psicóloga (PUC-MINAS); Mestra em Psicologia Clínica


(UFPR); Especialista em Gestão Pública e Sociedade (UFTO).
Atua como psicóloga da Saúde no município de Guarapuava/
PR e em consultório particular. Foi orientadora em psicologia
dos projetos de extensão: Núcleo Maria da Penha - Guarapuava
(Unicentro) e Aliança de Mulheres Migrantes, Apátrias e
Refugiadas – Curitiba (UFPR/Cátedra Sergio de Mello) e
docente ensino superior. Possui experiência em atendimento e
treinamento de equipes nos temas: violência doméstica, violências
sexuais e violências de gênero.

ROSANGELA BUJOKAS DE SIQUEIRA

Professora do Departamento de Serviço Social da


Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO);
Mestre e Doutora em Ciências Sociais Aplicadas; atua nas áreas
de participação da sociedade civil na gestão das políticas sociais e
em estágio supervisionado; coordenou e participou de projetos de
extensão na área de gênero e violência contra as mulheres entre
2019-2022 na UNICENTRO.

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