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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA – DEPSI INSTITUTO DE


EDUCAÇÃO – IE

ÂNGULOS DA BRANQUITUDE:

Olhares emergentes sobre como o branco mobiliza sua identidade

REBECA SILVA FERNANDES

Seropédica | 2023
REBECA SILVA FERNANDES

ÂNGULOS DA BRANQUITUDE:

Olhares emergentes sobre como o branco mobiliza sua identidade

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à banca examinadora da
Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos
necessários para obtenção do título de
bacharel em Psicologia.

ORIENTADORA: MARIANA FERREIRA POMBO

Seropédica | 2023

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AGRADECIMENTOS

Àos sujeitos que assim como eu tentam se


reconectar com a esperança de que a
existência humana pode ser menos
destrutiva. Aos que me aquietam e
inquietam, acrescentam com a sua força e
afeto. Por ultimo, à todos que desejam unir
as vozes em nome da transformação.

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O verdadeiro foco da mudança
revolucionária não está nunca
meramente nas situações opressivas das
quais almejamos escapar, mas naquele
pedaço do opressor que está plantado
profundamente em cada um de nós.

Audre Lorde

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AGREDECIMENTOS
Agradeço profundamente aos encontros que possibilitam fissura de afeto nessa
dureza que é penetrar o mundo.
A minha família, minha mãe Kátia, meu pai Elieber, minhas irmãs Sara e Raquel
por estarem do meu lado sempre que preciso, pelo cuidado e pelo reconhecimento.
A todos os professores que passaram pela minha trajetória acadêmica pela
dedicação, suporte e lancinante desconstrução mas especialmente à minha
orientadora Mariana que sempre foi muito paciente e generosa. E também aos
professores supervisores Marcelo e Bernardo que me ensinaram tanto sobre como
o riso e o companheirismo são partes essenciais do trabalho, por terem acreditado
tanto em nós.
Às professoras que me acompanharam na infância e fizeram surgir o desejo pelo
conhecimento, por transitar o mundo com muita compaixão e honestidade.
Às minhas amigas da faculdade Thairiny, Débora, Nathália, Déborah, Carol que
são acolhimento, luz, espaço de reconhecimento e reconstrução de ideias de amor e
carinho que são aterradoras e leves. Por me mostrarem que espiritualidade é
amar, acompanhar sem julgamento a caminhada e cada conquista e cada queda.
Obrigada por confiarem em mim o afeto de vocês.
Às minhas avós, Maria e Sueli. Mulheres que seguiram seus próprios desejos,
apesar do grande esforço da sociedade em dizer que eram errantes, elas me
inspiraram e me fizeram entender que este é um caminho possível.
À Rafa, amiga-irmã-amor da vida que sustenta em mim o mais confortável
sentimento de enraizamento, obrigada por ser porta sempre aberta pro coração.
Aos meus amigos e amigas companheiras dessa caminhada durante a graduação e
na vida Maria Alice, Alex, Bruno, Elenir, Rosiany, Gabriela, Yuri e João
Guilherme agradeço imensamente pelo acolhimento e por me mostrarem o quanto
os vínculos são importantes e que amar é bem simples. Obrigada pelas risadas,
pelos abraços, pelos trabalhos que fizemos juntos e aprendizados.
Aqueles seres transcendidos que me acompanham e me protegem, me sinalizam o
caminho e aquietam a alma, se fazem presentes em formas distintas, são energias e
sentidos de existência pra além da corporeidade. Pedem um tanto de mergulho no
abismo de mim e do mundo, trazem os encontros cheios de afeto que salvam.
Através dos sons da natureza, dos assovios na mata, do bater de asas no céu
revelam as direções dos meus propósitos nessa encarnação.
Sat Nam
Que a gentileza dos nossos amores nos abençoem e nos guiem!

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RESUMO

A branquitude é uma identidade socio-histórica que está correlacionada com a


manutenção do racismo estrutural, o pacto narcísico e com o processo de outrificação. A
investigação acerca de como a brancura é mobilizada por pessoas brancas na sociedade
se tornou uma área de estudos há pouco tempo dentro das ciências sociais. Apesar da
evidente não-marcação de sua existência, os estudos sobre o racismo já demonstram há
bastante tempo que não se trata de uma construção racial invisível e que é preciso
quebrar com o paradigma do silêncio acerca de suas manifestações. Contudo, o objetivo
deste trabalho é promover um estado de ressonância com as proposições dos estudos
utilizados na pesquisa bibliográfica para possibilitar descobertas de uma existência e
prática profissional que seja antirracista. Assim, o presente trabalho descreve sobre os
aspectos da branquitude, seus atravessamentos na sociedade e na conformação do
discurso científico e as manifestações subjetivas de pessoas acerca do significado de ser
branco e de considerar ou não os impactos do racismo na práxis da psicologia. Deste
modo, a pesquisa promoveu principalmente um processo de exame da minha própria
branquitude e seus impactos em minha subjetividade, fazendo surgir novos olhares
sobre a identidade, a alteridade e a escuta.

Palavras-chave: branquitude, pacto narcísico, raça, discurso único, racismo.

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Sumário
INTRODUÇÃO...............................................................................................................9

1. BRANQUITUDE: ENTENDENDO SUA FORMAÇÃO NA HISTÓRIA....12

2.1 Pacto narcísico: principal suporte da branquitude..........................................20

2.1.1 Autorização discursiva: quem pode falar e o lugar de fala..........................23

3. IDEALIZAÇÃO DE SI E DO OUTRO: INTANGÍVEL E REQUERIDA -


A FALSA IDEIA DO REAL NA BRANQUITUDE.................................................26

3.1 Não marcação/nomeação da própria identidade racial...................................26

3. 1. 2 Vazio representacional da própria identidade racial.................................29

4. OUTRIDADE: O RACISMO E SENTIMENTOS ENVOLVIDOS....................32

4.1 Memória e afetos: formas de resgate da história e resistência........................32

4.2. O racismo estrutural..........................................................................................37

4.2.1 Psicologia e racismo..........................................................................................40

4.2.2 Atuação do psicólogo e a branquitude: dois casos.........................................42

Considerações finais: como pensar/praticar o antirracismo.....................................46

REFERÊNCIAS............................................................................................................50

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INTRODUÇÃO

Ao tentar compreender os fatores que estão envolvidos na perpetuação do


racismo, muitas pesquisadoras e pesquisadores negros denunciam as ações e atitudes de
sujeitos brancos dentro da estrutura social. Boa parte destes estudos apresentam a
falácia das produções de conhecimento engendrados por pessoas brancas, onde persiste
a descrição do sujeito negro ora como um outro monstruoso, ora como um outro nulo e
isso também sobre o grupo étnico como um todo. Esta constituição discursiva com que
a branquitude transita nas ciências, mas também nas interações cotidianas, se consolida
como a verdade única proclamada sob a égide do saber dito científico: apenas uma
dentre as tantas cartas-brancas utilizadas para silenciar, explorar, violentar, desumanizar
e expropriar.

Os estudos sobre o racismo abrangeram e propiciaram a investigação de


fenômenos importantes para compreender a estrutura da sociedade e possibilitar
enfrentamentos, tais como as relações raciais, o racismo estrutural e mais recentemente
a branquitude. Conforme mencionado nos diversos trabalhos que embasaram esta
monografia, os autores comentam quase em unanimidade o quanto os primeiros estudos
no Brasil que consideraram os efeitos negativos da escravidão, os quais comportaram
estudos sobre relações raciais, a situação do trabalhador negro e denotaram a fantasia da
ideia de uma democracia racial brasileira - os mais citados são os de Fernando Henrique
Cardoso e Octavio Ianni- , o fizeram ocultando a análise de como o branco estava
diretamente ligado a uma herança colonial que o coloca como agente direto de tais
desigualdades no presente (BENTO, 2016). Por isso, tais obras reforçaram um olhar de
inferiorização sobre o negro, legitimando a elite branca em um lugar de omissão. Sendo
assim, Bento pondera sobre a validade e os limites de tais teorias: “Isso pode significar
que esse negro fora de lugar, isto é, ocupando o lugar que o branco considera
exclusivamente dele, foi escolhido como alvo preferencial de análises depreciativas nos
estudos sobre branqueamento.”

Este é apenas um dos efeitos nefastos que a não nomeação ou falta de


consciencialização sobre a branquitude provoca nos diversos espaços de circulação da
palavra. Acerca disso Kilomba (2019) escreve tanto sobre o racismo que ela sofreu na
academia quanto afirmando o que se perde com essa normatividade coercitiva aderida

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ao fazer científico, destaca que uma sociedade que permanece na glorificação da
narrativa colonial não propicia que novas linguagens sejam criadas e ainda “não permite
que seja a responsabilização e não a moral a criar novas configurações de poder e
conhecimento”.

Contudo, os conceitos e relatos apresentados em sua obra permitem lançar um


olhar mais detido para a forma pela qual o/a branco (a) mobiliza sua identidade racial e
agencia problemas na estrutura social a partir dos pactos e mecanismos de projeção,
sendo assim, serão estes conceitos que tentarei correlacionar com a prática e formação
em psicologia.

Portanto, uma vez que que os(as) psicólogos e psicólogas brancas(os)


(importante considerar aqui que a maioria das pessoas que se formam em psicologia são
pessoas brancas) participam ativamente e amplamente da estrutura social e mobilizam a
branquitude em suas políticas, a partir de formações acadêmicas de cunho eurocêntrico.
Pensar como isso interfere no trabalho desses profissionais já que suas ações estão
ligadas a construção identitária racial da branquitude, requer questionamentos sobre
como essas pessoas estão e estarão interagindo com usuários e usuárias que circulam
por estes serviços? E mais, qual é a raça dessas pessoas? Como o/a psi branca/o
engendra suas ações e direcionamentos com essas pessoas?

Pretendo ir na direção contrária da negação/neutralização da minha branquitude,


para apreender modos de subjetivação problematizadores que possibilitem através da
conscientização uma atuação prática antirracista.

De todo modo, a confecção deste TCC como requisito para concluir o curso de
psicologia, cabe salientar que mesmo tendo entrado em contato com estudos críticos
sobre a sociedade, a saúde, e sobre as próprias instituições, os autores usados para
passar esses direcionamentos foram, em geral, homens brancos europeus. Eu não me
identificava pela questão de gênero, mas sim pelo lugar social da branquitude. Estava
sendo representada de alguma forma, no entanto, a maioria dos meus colegas e amigos
não estavam; mesmo que o questionamento sobre uma necessidade de descolonizar a
prática da psi tenha ocorrido, não houve por exemplo alguma apresentação e/ou
desenvolvimento de teorias e estudos que buscam colocar de forma bem definida quais

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são os possíveis sofrimentos específicos que a dominação ideológica impositiva de uma
cultura sexista-racista-LGBTQIAPN+fóbica provoca. Essas e outras observações
fizeram suscitar em mim a ideia de que preciso falar de cada uma dessas camadas, para
que não continuemos assujeitados pelo oculto. Todavia, o convite de todos os estudos
sobre racismo indica sobre a necessidade de a instituição também ser colocada em um
lugar de questionamento, pois não está isenta desses movimentos instituintes-
dominantes, mesmo que se considere, de modo geral, um olhar minimamente crítico
sobre essa estrutura. No entanto, ainda que este tenha sido o motivo inicial, no decorrer
do processo me deparei com novos atravessamentos, pois estudar branquitude em um
país que recusa este assunto, me fez rememorar momentos, interações e processos
acerca das relações raciais e da minha própria concepção identitária.

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1. BRANQUITUDE: ENTENDENDO SUA FORMAÇÃO NA HISTÓRIA
Foi em 1748 que, pela primeira vez, os humanos se tornaram animais. Ao
menos, na sua própria concepção! Em seu livro, System of Nature (O sistema
da natureza), o botânico Carl von Linné (1707-1778) nos inclui num grupo
de espécies animais de Homo, e nos qualificou de Sapiens, ou seja “sábios”...
O Homo sapiens, que chamaremos mais familiarmente de Sapiens, é em
nossos dias a única forma humana. (CONDEMI, SILVANA. 2019, p. 10)

Para o começo deste capítulo considerei interessante transcrever a citação acima,


apesar de não ser um dos objetivos deste trabalho explorar a constituição histórica e
antropológica do que chamamos humano, pois isto nos informa sobre o início de uma
trajetória discursiva, descritiva e discriminativa disto que veio a se diferenciar dos
demais animais. É interessante atentar para o fato de que há uma localização histórica
que marca nossa tipificação. É em 1748, na Suécia, que um homem branco nomeia e
nos coloca uma especificidade, seríamos a única espécie representada pela sabedoria.
Como dito no começo deste parágrafo, a trajetória da definição científica do que seria o
humano com a qual temos mais contato em instituições educativas tem sido
predominantemente eurocêntrica e foi amplamente capilarizada no ocidente,
principalmente durante e a partir da colonização, com a ‘corrida para a África’. Deste
modo, funda-se uma narrativa que vai se consolidar hegemônica sobre o que
somos/fomos/vivemos, é claro que com muitos avanços para o entendimento de nossa
genealogia e de como nos modificamos de outros animais, porém esta narrativa se
tornará compulsiva ao ser adotada com demasiado rigor universalizante pela camada
detentora de impérios e força armada. Quase de forma concomitante, o advento do
humano como distinto entre tipos de hominídeos a partir de uma teorização científica,
vem acompanhado da criação da ideia de raças distintas entre os próprios humanos.

Apesar de considerar as propostas teóricas e teses de outros autores, tais como


Benjamin Issac e Carlos Moore, de que o racismo teria sido iniciado já em períodos
mais antigos da história da humanidade, haja vista os registros das inúmeras formas de
discriminação e hierarquização de povos e populações, a autora Schucman (2004)
percebe que ‘o racismo tal como se manifesta hoje é fruto das teorias racistas
produzidas pela ciência moderna’. Ademais, a autora compartilha uma das informações
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que Arendt (1989) expõe em sua obra, a afirmação calcada numa compreensão histórica
de que a ideia de raça aliada a uma suposta luta entre raças e à subsequente “corrida à
Àfrica”, acontece entre os séculos XVIII e XIX, sendo assim, torna-se o substrato
ideológico das políticas imperialistas.

Assim, os múltiplos processos de dominação que efetivaram a colonização


(empunhada por nações imperialistas) tais como expropriação de povos nativos,
escravização dos povos africanos, genocídios, encarceramentos entre outras violências
tiveram como influência a ideologia de raça. A psicóloga e autora de muitas produções
acadêmicas sobre branquitude e relações raciais Schucman (2004) ao falar sobre o que
se tem de conhecimento sobre as origens e a construção ideológica em torno do conceito
de raça afirma que o racismo tal como se manifesta hoje “é fruto das teorias racistas
produzidas pela ciência moderna” (ibid, p. 76). Logo adiante em um diálogo com
Guimarães, o qual detalha como o racismo foi racionalizado e praticado na colonização
alicerçado na biologia e no direito, coloca o seguinte:

O racismo, portanto, origina-se da elaboração e da expansão de uma doutrina


que justificava a desigualdade entre os seres humanos (seja em situação de
cativeiro ou de conquista) não pela força ou pelo poder dos conquistadores
(uma justificativa política que acompanhara todas as conquistas anteriores),
mas pela desigualdade imanente entre as raças humanas (a inferioridade
intelectual, moral, cultural e psíquica dos conquistados ou escravizados). Esta
doutrina justificava pelas diferenças raciais a desigualdade de direitos entre
colonizadores e colonizados, entre conquistadores e conquistados, entre
senhores e escravos e, mais tarde, entre os descendentes destes grupos
incorporados num mesmo Estado nacional. Trata-se da doutrina racista que
se expressou na biologia e no direito. (SCHUCMAN, 2004, p. 76 apud
Guimarães, 1999b, p. 104)

Tendo em vista estas noções básicas sobre como o racismo começa a ser
operado, é possível constatar que a adoção da racialização pelos sujeitos brancos
europeus está pautada numa colocação dos povos diferentes, exclusivamente pelo
fenótipo, em uma condição de humano inferior, enquanto eles se colocam em posição
de superioridade fazendo assim, uma ruptura dentro de uma mesma categoria: ser
humano. Ademais, com base no pensamento de Todorov (1993), Schucman apresenta
as principais premissas da ideologia racista: a existência das raças, continuidade entre o
físico e o moral, a predominância do grupo sobre o indivíduo, hierarquia única de
valores e política fundamentada no saber sobre as raças. Desta maneira, os europeus
instauram um modelo de dominação, a partir de um tipo de classificação única que

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desconsidera as diferenciações étnicas que outras nações construíram para elas mesmas,
em seus funcionamentos como cultura e sociedade.

A professora e pesquisadora em ciências sociais Luciana Alves, foi uma das


oradoras juntamente com Lia Schucman para uma das aulas no primeiro Seminário com
enfoque na temática psicologia e antirracismo organizado e publicado pelo CFP
(Conselho Federal de Psicologia) através do Youtube. No começo de sua fala, Luciana
explica como homens brancos reproduziram o conceito de raça a partir da utilização
arbitrária tautológica de classificações das espécies animais, conceitos sobre interações
de dominância e funcionalidades, as utilizando assim como justaposição para definir e
determinar ‘espécies’ diferentes entre os humanos, o que se assentou como justificativa
para legitimar um processo de dominação cultural. Desta forma, fecunda-se a identidade
racial branca, calcada na brancura, essa tal idealização de uma fictícia diferenciação
entre os humanos, como se houvesse espécies de humanos ‘adequados’ para ocupar
determinados espaços na configuração ‘civilizatória’ enquanto se produzia a ideia de
que os nomeados outros deveriam ser assujeitados, numa conveniência narrativa onde
estes poderiam ser explorados, tanto fisicamente, psicologicamente ou como
reservatórios de qualificações desumanas, de intolerâncias em benefício daqueles que
permaneceriam assim detentores de uma essência sublime. Portanto, os grupos passam a
não mais serem vistos a partir dos seus próprios marcadores étnicos, foram assim
uniformizados em uma única e estereotipada classificação racial.

Sendo assim, este processo nomeado como outrificação (KILOMBA, 2020), é


utilizado como uma das formas de o branco conjecturar a posição de superioridade
como um lugar onde apenas um grupo pode ocupar, com determinadas características
fenotípicas. Deste modo, destituiu os grupos ao designá-los como diferentes, inferiores,
ameaçadores aos quais para manutenção de privilégios, inferioriza e impõe
circunstâncias adversas. O modo operante que conduz ao racismo se dá através da
linguagem, principalmente quando nota-se o estabelecimento e a difusão das diversas
condições que este Outro teria e quase nunca estão postas as controvérsias constitutivas
e discursivas da branquitude, e por consequência, das instituições.

A branquitude pode ser considerada uma narrativa construída a partir do


colonialismo e por isso possui historicidade em relação às subjetividades que atravessa.
Ao citar o escritor e pensador Albert Memmi (2007) como uma referência para os

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estudos de branquitude, Schucman conta sobre seus escritos que falam dos efeitos da
colonização tanto nos colonizadores como nos colonizados, portanto disserta sobre
como a ideia de superioridade é apropriada pelos colonizadores e pelos que foram
colonizados, assim conclui que "dessa relação construída sócio-historicamente de
maneira hierárquica, os sujeitos se apropriam concretamente dessa desigualdade e
produzem subjetividades" (ibid p. 49-50). Sendo assim, engendra-se através dos efeitos
que provoca sob essas subjetividades e identidades uma vez que as circunscreve a partir
do acúmulo hereditário de privilégios, construção de valores, moralidades, costumes,
conjuntos grupais, regionalidades e demais processos sócio-subjetivos. Todos esses
vetores são verificados em duas pesquisas diferentes sobre a branquitude, mas que
buscam identificar como esses processos são subjetivados tanto por pessoas brancas
quanto por pessoas pretas, são os trabalhos de Schucman (2004) e Alves (2012). Ambas
as pesquisadoras, assim como outros que pesquisam racismo e negritude destacam de
forma unânime como a capilaridade institucional da branquitude atinge o sistema
econômico, a estrutura social, a cultura e a linguagem conforme estas vivências vão
fortalecendo o pacto narcísico -conceito que advêm das produções de Bento (2022)- de
manutenção de valores hegemônicos.

As produções teóricas que vão pensar a temática racial, buscam há anos


demonstrar que a história tal como é retratada pela branquitude comete vários equívocos
e assim os cientistas e estudiosos “conseguem investigar, problematizar e teorizar sobre
questões referentes aos indivíduos de nossa sociedade de forma completamente alienada
da história dessa sociedade” (CARONE,BENTO, 2007 p. 42). Entre essas produções, os
estudos e pesquisas sobre racismo e negritude apontam como as configurações
subjetivas consolidadas pelo modelo hegemônico produzidas em torno da branquitude
são reproduzidas e replicadas como se fossem já determinadas biologicamente e não
resultantes de uma construção ideológica. Esta redução serviu como justificativa da
divisão hierárquica. No entanto, com a ‘evolução’ dos mecanismos e técnicas de
dissolução do racismo como tentativa de provocar a paralisação dos avanços de
conquistas por direitos, a justificativa não se pauta mais pela dimensão biológica, mas
sim por uma dimensão cultural.

Em suas pesquisas, os estudiosos apontam como as configurações de


subjetividades hegemônicas são reproduzidas como se houvesse algum suporte típico
em suas manifestações, como também nas manifestações do chamado “Outro”. Nisso
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são fortalecidas marcações sobre uma diferença construída que funciona para favorecer
uns enquanto se explora outros. A autora Schucman (2004) em seu livro sobre a
branquitude baseia-se nos escritos de Arendt (1989) e Foucault (1992) para dizer que a
ideia de raça produzida por cientistas dos séculos XVIII e XIX se espalha como teoria
pelos países ocidentais através das instituições as quais baseiam suas ações na suposta
existência de uma luta de raças, na qual os brancos deveriam defender-se de ‘perigos
biológicos’ - a autora comenta que para Fanon, ter fobia de pessoas negras é ter fobia do
biológico, pois estes só são vistos como seres biológicos- que as raças inferiores
supostamente apresentariam. Deste modo, a ideologia racista é movimentada
politicamente pelos Estados- Nações como mais um dos grandes mecanismos de
dominação, controle, classificação, quantificação e reificação dentro do cenário do
biopoder. Sobretudo, olhando pelo ângulo dessas duas perspectivas a autora escreve
como o racismo em sua emergência, foi consequência dos interesses imperialistas em
um dado período histórico, mas também como tentativa de explicação do que seria a
‘natureza’ do humano:

O racismo, portanto, serviu nesse momento para que os Estados-Nações


exercessem um poder contra sua própria população, pois a ideia de
purificação permanente da população torna-se uma das dimensões essenciais
da normalização social. Essa visão constitui uma tomada de poder sobre a
vida humana, em que os discursos biológicos e médicos ganham extrema
importância, conduzindo a uma estatização do biológico. Assim, as
tecnologias de poder que têm como principal objetivo a manutenção da vida
também são aquelas que exercem o direito de matar, segregar, excluir os
indivíduos dentro da própria sociedade. (SCHUCMAN, 2004, p. 79)

Sobre o começo dos estudos acerca da branquitude, Bento (2022) afirma que “o
intuito dos trabalhos sobre branquitude é preencher a lacuna sobre as relações raciais
que por muito tempo ajudou a naturalizar a ideia de que quem tem raça é apenas o
negro”, assim sendo, são descritos pela autora o percurso destes trabalhos tanto nos
EUA quanto no Brasil. Outrossim, não apenas Bento como também Schucman e outras
autoras caracterizam o trabalho de Ramos (1995) como um dos precursores em denotar
a forma como o branco se constitui no nosso contexto. À vista disso, para descrever
como os intelectuais brasileiros transformaram o negro em um tema, o autor faz uma
comparação com o movimento de emergentes descrições sobre mulçumanos, ocorrido
um pouco antes da ascensão do nazismo. Deste modo, um pouco mais adiante no
desenvolvimento analítico Ramos (ibid) vai demonstrar como a tematização do negro é
uma forma de perseguição e analisa este movimento dizendo que se trata tanto de uma

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tentativa compulsiva de o branco efetivar a brancura quanto para inferiorizar pessoas
negras, entre outros processos, transformando-as em assunto. De acordo com o autor,
um dos vários exemplos desse paralelo evidencia este processo são os títulos de
manchetes de jornais e pesquisas tais como: “os judeus e a criminalidade”, “os judeus
como vultos da cultura alemã” e “a emancipação dos judeus”; e no Brasil títulos
extraídos de obras ‘antropológicas’ e ‘sociológicas’: “os negros da história das
Alagoas”, “grupos sanguíneos da raça negra” e “costumes e práticas do negro”.
Portanto, o autor inicia o pensamento dentro deste campo caracterizando a brancura
como esta identidade que enclausura a negritude de forma negativa. Atualmente no
brasil, alguns anos depois de Ramos, vindo de outra geração de pesquisas sobre a
brancura, Bento (2022) denota como a abertura deste campo está a favor de um avanço
do entendimento sobre os nossos problemas enquanto sociedade:

Ou seja, trata-se de compreender a perspectiva que emerge quando


deslocamos o olhar que está sobre os “outros” racializados, os considerados
“grupos étnicos” ou os “movimentos identitários” para o centro, onde foi
colocado o branco, o “universal”, e a partir de onde se construiu a noção de
“raça”. (BENTO, 2022, p. 10)

Assim sendo, ao evocar as raízes dos estudos sobre branquitude Bento diz que os
pesquisadores destacam três ondas que dividem este campo. Na primeira onda, os
estudos empunhados por intelectuais negros do século XIX e da primeira metade do
século XX descreveram e questionaram as estruturas da supremacia branca nos Estados
Unidos. Posteriormente, na segunda fase são colocados pesquisadores que analisaram o
papel das instituições legais que definem quem é branco e assim privilegiam o grupo de
brancos concebendo a branquitude como uma propriedade, um bem. Com relação a
terceira onda, a branquitude é apresentada enquanto locomoção reativa diante do
aumento da presença de negras e negros em lugares antes frequentados apenas por
brancos.

Para sua pesquisa a autora coloca atenção nos estudos sobre relações raciais
feitos no Brasil. De acordo com suas pesquisas estes foram realizados em meados do
século XIX e afirmavam uma inferioridade biológica dos negros como motivo para a
escravização. Já sobre os outros trabalhos feitos quase um século depois, diz a
pesquisadora que se tratava de intelectuais mais progressistas abandonando a defesa
dessa ideia de inferioridade biológica e passando a falar de um prejuízo psicológico
ocasionado pela escravização.

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Já Luciana Alves, cita numa entrevista concedida em um podcast que em sua
investigação teórica encontra nos teóricos dos EUA que tais eixos foram explorados na
origem da pesquisa em branquitude: a) começam a pensar na branquitude como uma
noção de si a partir das relações com os outros, como uma posição social, os quais
chegam a conclusão de que ser branco é menos se sentir branco e mais cobre ser tratado
como tal e gozar dos privilégios desse tratamento; b) outros vão dizer que é uma
condição corporal, carregar características que remetem uma ascendência europeia; c)
alguns tentam encontrar um núcleo cultural para a branquitude, relacionam aspectos
etnográficos ou etnológicos, com traços que estejam marcados em culturas que são
reconhecidas como brancas, tentando assim encontrar um centro que aproxima brancos
a uma etnia.

Isto posto, podemos dizer que em decorrência dos entendimentos alcançados


pelos estudos sobre relações raciais, negritude e racismo foi-se identificando a
necessidade de fazer uma recuperação do passado e permitir um olhar para a forma
como a história é contada a partir das diferentes perspectivas e expor como esta história
é oferecida para as pessoas, de que forma isso viabiliza uma acomodação aos moldes e
dificulta a insurgência de realidades mais igualitárias.

De modo geral, a branquitude resulta em uma identidade sócio-histórica, como


diz Luciana Alves (2012), a qual considerará como uma identidade que tem relação com
a construção da ideia de raça e das outras identidades étnicas. De todo modo, comenta
também que brancura tem implicação intensa com o poder estabelecido, portanto
sustenta-se pela complexidade de sua formação, pois “assume várias feições a partir dos
diferentes contextos em que a colonialidade foi estabelecida”. Assim sendo, por estes e
outros fatores, é também necessário observar como as identidades brancas são
mobilizadas nos diferentes espaços, onde diferenciam do que é entendido, o que se
repete, como são atravessadas pelo contexto e tomam formatos heterogêneos.

De todo modo, conforme a verificação bibliográfica mostra, a branquitude está


relacionada com um retrocesso científico, uma vez que marginaliza o grupo de pessoas
negras e acentua uma ficção identitária em brancos. Sua materialização na estrutura
social tem sido observada como um modo de operar uma falsa ideia do real. Esta
situação encontra-se influenciada pela manutenção dos pactos narcísicos, indefinição
racial, embranquecimento, e manutenção do cenário colonial, assim como busca do

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ideário eurocêntrico no fazer científico atual. As autoras que estarão permeando a
construção desta monografia identificam diversos processos que consolidaram esta
situação, as quais caracterizam a branquitude com os seguintes componentes: racismo
estrutural, pacto narcísico, influência da colonialidade, projeção de conteúdos negativos
na construção do outro enquanto imagem, problema de alteridade e conservação de uma
ordem normativa tanto como direcionamento subjetivo quanto como ação exigida do
mundo. Sendo assim, vale averiguar como este “poder absoluto” se expressa até hoje.
Tendo isto em vista, as complexidades dos fatores observados na construção da
branquitude pela indicação dos estudos recentes serão averiguadas nos próximos
tópicos.

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2. BRANQUITUDE COMO MONÓLITO: PACTO NARCÍSICO E DISCURSO ÚNICO

Após ter apresentado como as autoras discutem as origens dessa identidade


racial, torna-se importante salientar os conceitos desenvolvidos que ampliam o
entendimento sobre como ela funciona e se mantém. Logo, seu efeito no coletivo
envolve múltiplos fatores e é importante levarmos em conta análises que demonstram
como ela se atualiza nas subjetividades após a colonização. A fim de abrir os cenários, e
romper com o silêncio, pretende-se neste capítulo um compartilhamento das definições
acerca da noção de pacto narcísico e da autorização discursiva. Tentarei realizar esta
proposta através de um breve histórico dos termos e seu surgimento, seus significados.

2.1 Pacto narcísico: principal suporte da branquitude

No Brasil, a psicóloga e ativista Maria Aparecida Silva Bento (2016) cunha um


termo importante que nos ajuda a conceber uma das principais dimensões da
manifestação da branquitude, que é a aliança grupal formada e sustentada entre brancos
e brancas através de mecanismos inconscientes pelos quais recalca-se toda a brutalidade
cometida entre gerações, conduz-se assim o pacto narcísico da branquitude. Para tanto,
em sua pesquisa observou principalmente como o pacto aparece entre empregados de
grandes empresas, depois demonstra como as noções idealizadas pela branquitude são
engendradas hereditariamente apoiando-se no viés inconsciente para que a mobilidade
branca sustente os privilégios e mantenha a desigualdade ignorada e maquiada para
poder aplicar-se a ideia de meritocracia.

Deste modo, se torna evidente a necessidade de considerar o problema da


branquitude como um problema do grupo de brancos em si e, portanto, dos espaços
públicos e privados nos quais este grupo racial se concentra pela lógica dos lugares de
poder. Para exemplificar como isso continua, em um episódio do podcast informativo

20
divulgado pela Folha de São Paulo sobre os 10 anos de cotas no Brasil, a entrevistadora
diz que sua implementação foi extremamente importante como política social no sentido
do começo de uma reparação racial, pois foi significativa a diversificação racial nas
universidades, com mais pessoas pretas, indígenas e de classes sociais mais afetadas
pela desigualdade. No entanto, mesmo que seus desempenhos acadêmicos tenham sido
exitosos a despeito de toda a dificuldade imposta como a necessidade de trabalhar e
estudar ao mesmo tempo por falta de políticas de permanência estudantil, ao sair da
graduação e se depararem com o mercado de trabalho a ocupação de pessoas pretas não
acontece proporcionalmente ao de pessoas brancas, principalmente em cargos de poder.

Como a pesquisadora Bento aponta, isso precisa ser reconhecido coletivamente


para que a ideia de meritocracia tão difundida como suposta razão para a manutenção de
brancos em lugares melhores e negros afastados destes lugares seja questionada, pois na
verdade está pautada no mecanismo de projeção. Este mecanismo atua como um legado
do colonialismo, pois continua efetivando a discriminação, a desigualdade e a não
garantia de direitos para pessoas não brancas. Assim prevalece a conjectura de
dominação a partir da significação idealizada sobre o outro, sobre si e sobre os
considerados semelhantes na branquitude. Contudo, o branco institui a raça para
engendrar a dominação e depois, se sobrepõe como representante universal da norma e a
partir do momento que é apontado como agente da manutenção do racismo e da
discriminação destitui-se da identidade racial, destaca-se enquanto silencio e negação da
realidade. No próximo tópico irei desenvolver melhor como o branco faz este
movimento e sobre o ‘choque’ que acontece quando confrontado com a realidade da
própria branquitude.

Em diálogo com a linguagem psicanalítica presente nos trabalhos de Kaes, a


psicóloga Maria Aparecida Silva Bento (2016) associa essa aliança entre os brancos que
se transpõe em recalque coletivo da história e é fortalecida por motivos e interesses
superdeterminados, esse é o pacto narcísico da branquitude:

Talvez possamos ainda problematizar a noção de privilégio com a qual as


pessoas raramente querem se defrontar, transformando-a rapidamente num
discurso de mérito e competência que justifica uma situação privilegiada,
concreta ou simbólica. Quando se deparam com informações sobre
desigualdades raciais tendem a culpar o negro e, ato contínuo, revelar como
merecem o lugar social que ocupam. (BENTO, 2006, pg. 51)

21
Em seu livro “O pacto da branquitude”, Bento aprofunda em sua análise
exemplificando como este processo acontece dentro das instituições públicas, privadas e
da sociedade civil. Assim, a autora explica que é através de regulamentações, definições
e transmissões das práticas de atuação as quais favorecem uma fixidez nos processos, de
quais ferramentas serão utilizadas, sistemas de valores e recorrência de perfil dos
empregados e lideranças contratados, para cargos de posição de poder
predominantemente masculino e branco. Deste modo, a autora reitera: “essa transmissão
atravessa gerações e altera pouco a hierarquia das relações de dominação ali
incrustadas.” (BENTO, ano, p. 133).

Entretanto, a argumentação da autora vai desembocar numa análise da


meritocracia, avaliando-a como um enredo tão corriqueiro utilizado pela branquitude
como a (ir)racionalidade que legitima a ocupação massiva de brancos em posições de
privilégio negando todo o substrato histórico que condiciona tal composição
discriminatória e desconsidera o efeito de histórias e heranças opostas na vivência
contemporânea dos grupos prejudicados pela supremacia branca. Assim, falta a
identificação de que a facilidade de acesso às posições mais confortáveis na sociedade
que se instala na subjetividade e caracteriza as formas de mobilização no coletivo se
trata de uma herança histórica da colonialidade que é atualizada na subjetividade através
do coletivo. Por isso, enquanto irreconhecido e inquestionado publicamente nas
instuições, o acúmulo de mais recursos econômicos, políticos, sociais, de poder tornar-
se-á corrente de favorecimento dos brancos. Uma vez que são confrontados com a
explicita falta de pessoas pretas no quadro de funcionários, os discursos reiteram a
falácia da naturalização de características mais adequadas ou de habilidades adquiridas
a partir de esforços subjetivos, sobre isso Bento discute:

De fato, o conceito comum de meritocracia é o de um conjunto de


habilidades intrínsecas a uma pessoa que despende esforço individual e não
estabelece nenhuma relação dessas “habilidades” com a história social do
grupo a que ela pertence e com o contexto no qual está inserida [...] parte de
uma ideia falsa para chegar a uma conclusão igualmente falsa. (BENTO,
2022, P. 14)

Ainda, em paralelo com o que o pensador citado por Schucman considera em


suas análises, é importante entender como os efeitos da colonização se dá tanto no
colonizado quanto no colonizador, Bento afirma que os descendentes de escravocratas e
descendentes de escravizados precisarão lidar com heranças acumuladas em histórias de

22
muita dor e violência, que são representadas na vida concreta e simbólica das gerações
contemporâneas. Para cada grupo será diferente, sendo que o grupo privilegiado
possivelmente irá se beneficiar dessas explorações, então esconderá este passado, como
são guardados os ‘grandes segredos de família’. No entanto, o discurso, carregado pela
branquitude, que explica o suposto elemento meritocrático de suas ‘conquistas’ não
considera o impacto dessas histórias e heranças, sendo assim, deixa de “se lembrar de
que muitas vezes a “competência” exigida está ligada a um tipo de familiaridade com
códigos da cultura organizacional adquiridos ao frequentar instâncias mais estratégicas
das instituições” (BENTO, 2022, p. 14).

2.1.1 Autorização discursiva: quem pode falar e o lugar de fala


A realidade vigente do pacto narcísico na branquitude, que promove a
manutenção da discriminação racial e encontra-se baseada na justificativa falsa da
meritocracia erige na medida em que o encadeamento discursivo é dirigido e fortalecido
em acordo com a negação das necessidades, o encobrimento do passado e suas marcas
atuais e atuantes.

De acordo com Ribeiro (2017), se faz necessário um olhar para o discurso como
algo que aloca dispositivos de poder e controle, que delineiam o imaginário social. A
autora sustenta em suas análises a indispensabilidade de considerar como o discurso se
desdobra para além de um “amontoado de palavras ou concatenação de frases que
pretendem um significado em si” (RIBEIRO, 2017 p.31) como também orienta as
diferentes construções sociais. Em sua obra vai explicar o surgimento do termo lugar
de fala que foi extensamente veiculado em debates formais e informais, trazendo a
ideia de que “falar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente
os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma
hegemônica sequer se pensem” (RIBEIRO, 2017, p.40).

Mesmo que não se possa afirmar concretamente a origem epistemológica do


termo, Ribeiro o relaciona com o conceito de standpoint theory cunhado pela autora
Patricia Hill Collins. Em sua argumentação teórica, Collins fornece ao movimento
feminista negro a proposta dessa perspectiva reivindicatória que possibilitou um
direcionamento de falas e construções dialógicas contrárias a autorização discursiva
circunscrita ao discurso hegemônico da branquitude, gerando assim um debate acerca da

23
estrutura social e das diversas formas de vivência da opressão pois “ao adotar uma
postura teórica de que fomos todos e todas afetadas pelas categorias de análise de raça,
classe e gênero que estruturaram nosso tratamento, nos abrimos para possibilidades de
usar esses mesmos construtos como categorias de conexão e ligação para construirmos
empatia” (COLLINS, 2015, pg. 37). Assim, podemos vislumbrar uma abertura mais
abrangente de falas, definições e redefinições da configuração estrutural da sociedade,
maior diversidade sobre o que precisa ser modificado.

A autora invoca-nos a repensar o modo como analisamos as categorias de


opressão, tanto teoricamente como cotidianamente em nossas relações mais próximas.
Assim, ela aponta que comumente partimos de um princípio disfuncional para a
superação das opressões de raça, classe e gênero, que concebe as experiências
separadamente quando elas acontecem de forma imbricada. Além disso, destaca a
natureza dupla da opressão:

Pensamentos dicotômicos do tipo ou/ou são especialmente problemáticos


quando aplicados a teorias da opressão, porque todo indivíduo deve ser
classificado ou como sendo oprimido ou como não oprimido. Se torna
conceitualmente impossível a posição “ambos/e”, em que o indivíduo é
simultaneamente oprimido e opressor. (COLLINS, 2015, p. 15)

Neste caminho ela cita alguns fatos históricos e exemplos pessoais que
demonstram a presença interligada de raça, classe e gênero no sistema de opressão.

Acerca disso, a filósofa ativista Djamila Ribeiro (2017) aborda a utilização e


emergente reestruturação política que se conformou a partir do termo lugar de fala, o
que permite romper com a autorização discursiva e promover exposições através do
ponto de vista, ou seja, o lugar social que os indivíduos ocupam. Por conseguinte, esta
e outras autoras e ativistas pretas com outros conceitos buscam explicitar realidades
empalecidas pela normatização hegemônica. Sendo assim, determinam como apenas a
partir de uma consciência discursiva sobre o lugar social ocupado as mudanças podem
acontecer, pois isso:

faz com que homens brancos, que se pensam universais, se


racializem, entendam o que significa ser branco como metáfora do poder,
como nos ensina Kilomba. Com isso, pretende-se também refutar uma
pretensa universalidade. Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se
quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se
pretende universal. (RIBEIRO, 2017, pg. 38)

Dessa forma, o locus social e as contingências as quais o/a enunciador (a) está
relacionado (a) ficam em evidência. Assim sendo, convém associar a importância dessa
24
ferramenta com o avanço de muitas pautas sobre as relações raciais, pois este conceito
serve como ferramenta que funciona para balizar a veracidade e/ou abrangência de
determinados discursos, conhecimentos, epistemologias etc. Como modo de afirmar e
reafirmar as diversas realidades apagadas pela autorização restrita ao discurso único, o
espaço de reivindicações promove a suspensão de ideais que restringem e aniquilam os
diversos saberes, assim como da hipótese de que a realidade seja apenas aquela
proferida pela supremacia branca.
Em seu livro “O perigo de uma história única” Chimamanda (2018) oferece uma
perspectiva que une as ideias colocadas sobre poder e discurso, em sua trajetória. Ao
compartilhar como se chocou quando percebeu que era sempre reduzida às noções
construídas pela branquitude sobre seu país de origem, que por associação sempre infere
o que o Outro é de acordo com o que se imagina de onde veio, ela propõe pensar a
presunção branca que destrói as possibilidades de enxergar o outro como aquilo que
pode sim compartilhar de uma existência parecida com a própria, através de um
substantivo igbo: a palavra nkali. De acordo com ela, esta palavra que significa “ser
maior do que o outro”, define bem as instituições da sociedade, mas não apenas isso,
pois define também como o sistema de compartilhamento da linguagem também carrega
este aspecto.

Contudo, a história única impede que haja a possibilidade de enxergar o outro


enquanto existência parecida com a própria, ou enfatiza isso quando não é bem verdade;
‘não há possibilidades de qualquer sentimento mais complexo que pena’ quando se
massifica uma história como cheia de percalços não abre espaço para um
reconhecimento entre duas pessoas ou mais. Divide-se o mundo em dois; não foge a
marcação em nenhum espaço, a imagem elegida terá sempre que ser reproduzida, esse é
o compromisso da branquitude com o pacto narcísico, que é diluído no cotidiano através
da linguagem, presa a autorização discursiva.

25
3. IDEALIZAÇÃO DE SI E DO OUTRO: INTANGÍVEL E REQUERIDA - A FALSA
IDEIA DO REAL NA BRANQUITUDE

No trânsito por estes caminhos das falácias constitutivas produzidas pela


branquitude, faz-se essencial abordar o conceito de não nomeação/marcação e seu
impacto nas relações raciais historicamente e atualmente. Contudo, esta exploração dos
caminhos epistemológicos da identidade que constrói raça e autofecunda-se, as autoras
discorreram sobre seu surgimento, sua grande importância como base ao colonialismo e
algumas de suas diferentes manifestações. Através destas discussões, a concepção sobre
o branco e sua formação pretende alcançar e difundir os modos como o racismo é
operado a partir do centro de sua formação.

3.1 Não marcação/nomeação da própria identidade racial

se neutralidade e “transparência” racial correspondem à marca mais evidente


da construção de uma identidade branca, o discurso sobre a alteridade, no
interior dos estudos sobre relações raciais, necessitaria ser reavaliado. A
constituição da alteridade é o reconhecimento de um outro, a partir de um
nós. Exige processos cognitivos de comparação, classificação, constituição
de semelhanças e de diferenciação, além de reciprocidade – eu sou o outro
para ele; ele é o outro pra mim. Porém, nos depoimentos, esses processos não
se evidenciaram. Não há com quem se comparar, a não ser consigo mesmo.
Só existem as semelhanças e é com estas que eu construo um universo
possivel de ser compreendido e nomeado. A não percepção de si é condição
para a não percepção do outro. As entrevistadas, em muitos casos, não
sabem, não lembram, não veem pessoas negras ao seu redor e há um visível
esforço de memória para incluir, no contexto do diálogo, um dado não
percebido: “Nossa! Minha memória se apagou para isso!” - declara com
espanto outra entrevistada. (CARNEIRO, PIZA, 2002, p. 86)

Um dos principais dilemas envolvidos na manifestação da branquitude é o que


as autoras Kilomba, Bento, Schucman, Piza e mais chamam de não marcação dessa

26
construção identitária. Dentro disso reside a dificuldade de se estabelecer o que é a
branquitude, considerando o fato de que os efeitos associados a essa construção não são
reconhecidos assim, mas como alguma coisa intrínseca, natural. Destarte, quando são
reconhecidos enquanto construção da estrutural de dominação, as afirmações tornam-se
carregadas de um discurso moral com justificativas deletérias, como a meritocracia.
Sobre isso, Kilomba (2015) traz exemplos seus e de suas entrevistadas e demonstra
como a branquitude por um lado aparece enquanto não marcação, e a negritude por
outro lado, é significada ativamente pela marcação. Então relata uma de suas
experiências acerca de seu contato com uma bibliotecária branca que trabalhava na
Universidade onde ela estudava na pós-graduação. Nesta ocasião, a mulher branca
questiona a presença de Grada naquele espaço, em suas reflexões sobre o racismo que
sofreu ela diz:

Estou imobilizada porque, como mulher negra, sou vista como “fora do
lugar”. A capacidade que os corpos brancos têm de se mover livremente
naquele recinto resulta do fato de eles estarem sempre “no lugar” – na não
marcação da branquitude (Ahmed, 2000). A negritude, por outro lado, é
significada pela marcação. Eu sou marcada como diferente e incompetente:
diferente – “Você não é daqui” –, incompetente – “somente para estudantes
universitárias/os” –, e assim imobilizada – “Você tem certeza de que quer se
registrar como aluna do doutorado?”. (KILOMBA, 2015, pg. 52).

Do mesmo modo, a autora Bento (2022) faz apontamentos sobre este aspecto
da branquitude. Todavia, em sua argumentação vai dizer que a não nomeação da
branquitude está diretamente ligada às suas origens. Com tal característica do silêncio, a
branquitude oculta e opera deste modo as práticas culturais: “ É um ponto de vista, um
lugar a partir do qual as pessoas brancas olham a si mesmas, aos outros e à sociedade”
(BENTO, 2022, p. 46). Esta ideia da não nomeação/marcação será melhor observada
nos trabalhos de Schucman (2014) e Alves (2012), as quais entrevistam pessoas brancas
e não brancas e questionam sobre o significado de ser branco. Bem como nos trabalhos
de Bento e Kilomba, os indícios são de que há um vazio representacional da própria
identidade racial para os brancos, pois é em alusão a um outro idealizado negativamente
que são extraídas as definições sobre si, do que se imagina ser e/ou deverá vir a ser.

Assim sendo, as identidades raciais construídas em resistência a branquitude não


podem ser utilizadas como correlatas na conceitualização daquela, que é uma identidade
socio-histórica de forte implicação com o poder e o surgimento da dominação colonial
europeia (ALVES, 2012, p.30). A pesquisadora conta em um podcast que conforme se
27
deparou com as propostas teóricas sobre as origens da branquitude, Alves escolhe
utilizar a concepção teórica de que se trata de um compilado de significados que nos
ajuda a compreender a realidade em sociedades multirraciais. Sendo assim, branco é um
termo processado para além de determinadas localizações, não está no corpo, nem
somente na cultura ou apenas nas instituições, está presente no cotidiano de forma
diluída. Por isso, torna-se um conjunto de significados expresso que mesmo antes de se
conhecer objetivamente alguém permite inferir capacidades, caráter. No entanto, Alves
salienta que ninguém possui a branquitude e que em sua pesquisa, descobre que há de se
lutar ativamente para adquiri-la. Sobre isso comenta que para construir ativamente os
sentidos associados a branquitude é preciso aplicar mecanismos que preservam o
racismo e efetivamente aderindo aos discursos racistas ou se beneficiando de uma
estrutura pregressa, a qual quando mantida sem contestação, termina por retornar a
pessoa ao lugar de privilegiado por carregar no corpo sinais, para o grupo daquele
contexto, denotam a brancura. Ou seja, conclui-se que a brancura não é experimentada
de forma homogênea, embora os significados sejam e com relação aos resultados de sua
pesquisa, os relatos demonstraram o seguinte:

brancura configurou-se como sinônimo de características que os


entrevistados não necessariamente reivindicaram para si, nem utilizaram para
se referir a suas próprias experiências, mas que pareceram se relacionar a um
“branco genérico”: positivamente retratado e, muitas vezes, descrito de
maneira distante. Além de bondoso, trabalhador e honesto, esse branco
genérico seria também belo, já que os docentes foram unânimes ao
mencionar a existência de um padrão de beleza que valoriza a brancura,
principalmente em se tratando de mulheres (...) Embora a existência de uma
estrutura que privilegia sujeitos brancos anteceda suas realizações concretas e
favoreça aqueles socialmente reconhecidos como tal, muitos dos docentes
entrevistados reconheciam pessoas brancas que não viveram os privilégios
que narraram, ou seja, que não tiveram a possibilidade de encarar a própria
brancura como vantagem, mas que nem por isso deixaram de construir essa
idealização. (ALVES, 2012, P. 33, 42)

A psicóloga Lia Schucman (2014) vai destrinchar a manifestação da branquitude


em entrevistados brancos e brancas no estado de São Paulo, a partir de análises sobre o
discurso das pessoas brancas buscou compreender as seguintes problemáticas: a) como
sujeitos brancos se apropriam da categoria raça e do racismo na constituição de suas
subjetividades; b) quais os significados que estes sujeitos atribuíam a ser branco; c)
como o racismo e a ideia falaciosa de raça, construída no século XIX, ainda fazem eco
nos modos de subjetivação de indivíduos brancos. Ao longo da pesquisa, Schucman
percebeu que os entrevistados conceberam “ser branco” como condição que determina
28
atributos morais, intelectuais e estéticas dos indivíduos. Ao serem questionados por
Schucman sobre os motivos que associavam ao fato de termos a conservação das
desigualdades após o fim do regime escravocrata, houve nas respostas dos entrevistados
recorrência do argumento de que haveria algo intrínseco na cultura dos brancos -calcada
na ideia de uma disposição trazida pelos imigrantes europeus- que confeririam a eles
atitudes intelectuais e morais superiores a dos não-brancos.

Em vista disso, Schucman aplica uma das proposições de Todorov (1993), que
indica a crença numa continuidade entre o físico e o moral como um dos fatores
envolvidos na construção do discurso sobre as raças humanas. Similarmente, quando
indagados sobre o significado de ‘ser branco’ – com a seguinte pergunta: Você se dá
conta no seu dia a dia, de que é branca? Pensa sobre isso? Em que situações? – como
resposta a essa questão foi observado que os (as) entrevistados (as) sustentaram uma
ideia de superioridade estética, uma vez que se caracterizaram numa percepção de
contraste a partir da alteridade. Em uma das respostas a entrevistada colocou como
indicativo de sua identidade racial branca um aspecto de seu cabelo que, de acordo com
ela, não ficaria “ruim” nunca, outro entrevistado respondeu que percebia-se branco
quando se via em lugares periféricos que ele denominou como envoltos por ‘feiura das
pessoas, das construções, da pobreza. Ao comentar sobre essas falas Schucman examina
como a autopercepção e a percepção do nomeado como outro estão relacionadas na
concepção de identidade racial dessas pessoas brancas:

A diferença, no caso desta identidade racial branca, surge nas duas falas
associada a aspectos que são significados negativamente em relação à
alteridade. A identidade é sempre algo que define fronteiras entre quem
somos nós e quem são os outros; portanto, só existe em relação a uma
alteridade. Deste modo, a beleza associada nas falas ao cabelo que não é
ruim, ou a beleza que se contrapõe à feiura, quando lembra Marcelo ser “um
cara meio isolado” no território da periferia nomeada por ele como feia
aparece como um marco estético de igualar-se e diferenciar-se entre
“nós/brancos” e “outros/negros”. (SCHUCMAN, 2014, p. 89)

29
3. 1. 2 Vazio representacional da própria identidade racial

Este aspecto da não nomeação também é exposto por Ramos (1995) que
conceitua como um “desajustamento ao contexto étnico que acaba provocando uma
adesão a ficções”. O autor, citado pelos pesquisadores em seus trabalhos sobre o tema,
analisa a brancura como uma patologia. Para ele desencadeia bloqueios que impedem
que o brasileiro se entenda como sujeito pertencente a uma coletividade cultural, pois
“a auto-estimação nos indivíduos que protestam, com frequência, exprimem a
“coexistência de dois polos opostos – inferioridade sentida com excessiva intensidade e
superioridade, desejada mas fictícia” (ibid, p. 227). As associações entre história e
sentido não se realizam. Contudo, quando o branco fala para o branco e de si nas
entrevistas corrobora-se a ideia de quase sempre sustenta uma figura fictícia associada a
uma imagem eurocêntrica, condição que no Brasil a partir das heranças coloniais, se
expressa com peculiaridades. Sobretudo, Ramos vai dizer que “a idealização da
brancura, na sociedade brasileira, é sintoma de escassa integração social de seus
elementos, é sintoma de que a consciência da espécie entre os que a compõem mal
chegou a instituir-se" (ibid, p.231), porém afirma haver uma organicidade na ocorrência
deste processo de consciência que apenas foi atrapalhado pela situação colonial. De
todo modo, a branquitude ampara-se numa ideia artificial do real e pode-se dizer, com
base nas argumentações teóricas, que isso está ligado ao movimento instituinte de uma
normatividade que preserva a lógica da dominação excludente. Por conseguinte, a
branquitude acrítica mantém uma adesão ao pacto narcísico, como se isso fosse um
dever daquele que é identificado e identifica-se como branco. Sendo a história
legitimada e veiculada incumbida da tentativa assídua de mostrar a verdade, descortinar
o palco para mostrar o que supostamente estaria escondido enquanto se propõe tal
método, encobre-se ao reafirmar um único corpo enquanto o certo, o correto, o
adequado desconsiderando a arbitrariedade deste mecanismo.

O fato atroz que os estudos sobre racismo e colonialismo nos mostra é o


imperativo da dominação feita pelos brancos ao nos colocarmos como corpos universais
e continuar a propagar essa dinâmica nos diversos espaços da estrutura social. Como o
filósofo e advogado Silvio Almeida traz, “em resumo: o racismo é uma decorrência da
própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações
políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem
30
um desarranjo institucional. O racismo é estrutura.” (ALMEIDA, 2019, p. 40). Esta
noção pode nos indicar até uma atualização do que Ramos discute, pois Almeida não
coloca nos termos de um adoecimento coletivo. Para ele, é preciso enxergar como o
racismo se apresenta e é conduzido através de um processo que está alinhado aos
acordos sobre o que significaria a realidade. Tal perspectiva se assemelha ao que Bento
fala sobre pacto narcísico. Assim, o enfrantamento ao preconceito, a discriminação e
desigualdade poderão ser enfrentados quando a gente olha para as fissuras dos nossos
ideais de normal como Piza coloca:

Talvez uma metáfora possa resumir o que comecei a perceber: bater contra
uma porta de vidro aparentemente inexistente é um impacto fortíssimo e,
depois do susto e da dor, a surpresa de não ter percebido o contorno do vidro,
a fechadura, os gonzos de metal que mantinham a porta de vidro. Isto resume,
em parte, o descobrir-se racializado, quando tudo o que se fez, leu ou
informou (e formou) atitudes e comportamentos diante das experiências
sociais, públicas e principalmente privadas, não incluiu explícitamente nem a
mínima parcela da própria racialidade, diante da imensa racialidade atribuída
ao outro. Tudo parece acessível, mas, na realidade, há uma fronteira invisível
que se impõe entre o muito que se sabe sobre o outro e o quase nada que se
sabe sobre si mesmo. (PIZA, 2006, p. 66)
Outrossim, ao mesmo tempo que o branco aplica a ideia de raça para diferenciar,
classificar e inferiorizar outros grupos sociais e afirmar-se superior (princípio
marcadamente ligado a escravidão e ao apartheid) a notada indefinição identitária, faz
parecer que a raça para o sujeito branco é invisível ou dispensável. No entanto o branco
institui a raça para depois, quando se torna representante universal da norma e/ou a
partir do momento que é apontado como agente da manutenção do racismo e da
discriminação destituir-se da identidade racial. Por meio de observações empíricas
coletadas em entrevistas com mulheres brancas na cidade de Itapetininga, Edith Piza
tece descrições muito interessantes sobre como a branquitude se manifesta:

Não se trata, portanto, da invisibilidade da cor, mas da intensa visibilidade da


cor e de outros traços fenotípicos aliados a estereótipos sociais e morais, para
uns, e a neutralidade racial, para outros. As consequências dessa visibilidade
para negros é bem conhecida, mas a da neutralidade do branco é dada como
“natural”, já que é ele o modelo paradigmático de aparência e de condição
humana. (PIZA, 2006, pg. 77)

Conforme a autora avança na discussão, sugere que uma das principais os


estudos sobre relações raciais em sociologia e psicologia social precisam revisar e
reexaminar o conceito de alteridade, a luz de pesquisas que busquem compreender
aquilo que afigura-se em uma condição de invisibilidade. Podemos dizer que tanto a
visibilidade quanto a invisibilidade aparecem em momentos em que os sujeitos

31
adquirem privilégios por serem brancos. Deste modo, uma dimensão da branquitude,
pode ser designada como uma obsessão e fascínio pela normalidade/verdade
universalizante: “A ciência tem o poder de produzir um discurso de autoridade, que
poucas pessoas têm a condição de contestar, salvo aquelas inseridas nas instituições em
que a ciência é produzida.” (ALMEIDA, 2018, p. 45).

4. OUTRIDADE: O RACISMO E SENTIMENTOS ENVOLVIDOS

As existências prejudicadas pelo apagamento sistemático de suas epistemologias


seguem na luta pelo resgate de construções narrativas que permitam seus
pertencimentos, um dos tantos direitos que lhes foi retirado. Todavia, é possível
encontrar diversos registros históricos que contam das dores latentes e das resistências,
expõem o que foi negado, retirado em nome da imposição normativa discriminatória.
Neste capítulo irei me debruçar sobre o processo de outrificação mediado pela violência
e seu principal resultante, o racismo.

4.1 Memória e afetos: formas de resgate da história e resistência

Ao ler sobre as definições da branquitude fui atravessada pela surpresa, pela


tristeza, por lembranças sobre minhas ações racistas e de conhecidos, fui descobrindo
como a imaginação de um outro sempre esteve presente em minhas angústias, ora como
comparação, ora como alívio, por sentir que mesmo não correspondendo interiormente
às boas características almejadas na brancura, com jeito poderia performá-las e ser
aceita, me sentir parte do grupo de brancos, já que antes de entrar na Universidade, os
espaços que eu frequentava eram majoritariamente brancos. No entanto, fui resgatando
tanto memórias de momentos em que aderi aos estereótipos da brancura, quanto de
momentos em que tentei romper com eles, pois tinha como referências importantes em
32
minha história a presença de pessoas pretas como professoras, melhores amigas, amores
e familiares. Fui percebendo que durante a infância experimentava nestes espaços a
supressão do estado de não-lugar, porém sempre impelida a corresponder determinados
feitos. Algo inexplicável até poder fazer esse trabalho e compreender que a angústia
sempre foi sobre sentir que era inalcançável, a assimilação das tarefas da branquitude
são narrativas sufocantes. Eu sentia isso em mim e nas pessoas brancas próximas, que
sempre apresentavam questões tão recorrentes e parecidas. Essa urgência ansiosa pelo
encaixe definitivo nos parâmetros de normalidade, bondade, inteligência e beleza, nunca
sentindo segurança em distanciar-me dessa busca, mas sabendo que só assim, negando
tais ficções, poderia entrar em contato com a realidade crua do que apenas é. A
afirmação que intitula o artigo de Schucman (2014) “sim, nós somos racistas” ressoa em
meio ao silêncio da branquitude. Contudo, no texto traz a seguinte compreensão:

podemos dizer que sujeitos considerados brancos em nossa sociedade passam


por um processo psicossocial resultante das mediações que experienciam
durante a vida de identificação com os significados compartilhados em nossa
cultura sobre a supremacia racial branca. Portanto, podemos pensar que eles
também podem, por diversas questões, não se identificar com o lugar
simbólico da branquitude, e construir fissuras entre a brancura e a
branquitude, proporcionando-nos, desta forma, algumas indicações para
pensarmos em propostas sobre a desconstrução do racismo na identidade
racial branca (SCHUCMAN, 2014, p11)

Porém, sobre aderir ao racismo, uma recordação veio a tona, de quando senti que
precisava durante a adolescência, silenciar uma colega negra, que me irritava sempre
com suas zombações. Kilomba escreve sobre memória e resgata o simbolismo da
máscara, usada pelos senhores brancos para evitar que africanas escravizadas comessem
os produtos das plantações. No entanto, ela discute que a principal função era
‘implementar um senso de mudez e de medo’ e desta forma, a máscara representa o
colonialismo, pois seu uso diz sobre o mecanismo de controle que o branco deseja e
necessita, uma vez que silenciar o percebido como outro, que em suma cria-se como
categoria para transferir aquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo:

Dentro dessa infeliz dinâmica, o sujeito negro torna-se não apenas a/o
“Outra/o” – o diferente, em relação ao qual o “eu” da pessoa branca é medido
–, mas também “Outridade”– a personificação de aspectos repressores do
“eu” do sujeito branco. Em outras palavras, nós nos tornamos a representação
mental daquilo com o que o sujeito branco não quer se parecer. Toni
Morrison (1992) usa a expressão “dessemelhança”,6 para descrever a
“branquitude” como uma identidade dependente, que existe através da

33
exploração da/o “Outra/o”, uma identidade relacional construída por
brancas/os, que define a elas/es mesmas/os como racialmente diferentes
das/os “Outras/os”. Isto é, a negritude serve como forma primária de
Outridade, pela qual a branquitude é construída. A/O “Outra/o” não é
“outra/o” per se; ela/ele torna-se através de um processo de absoluta negação.
Nesse sentido, Frantz Fanon (1967, p.110) escreve: “O que é frequentemente
chamado de alma negra é uma construção do homem branco.” (KILOMBA,
2020, p. 30)

Deste modo, a cisão do eu e a composição de um ‘Outro’ através de processos


psíquicos está envolvida na constituição da branquitude, onde o ‘eu’ está inflado e é
representado como objeto a ser protegido em detrimento do ‘Outro’, que representa
ameaça, perseguição. Por conseguinte, esta é uma das principais fluências da brancura,
quando efetua o racismo utilizando o mecanismo de projeção invocada na encenação
colonial cotidiana.
De acordo com a autora, outra expressão do racismo é também a colocação do
corpo negro em um lugar do ‘exótico’ em associação com o ‘primitivo’. Nessa forma de
racismo, são comuns falas como ‘eu queria ter este tom de pele’, o que revela a inveja
racial que o branco se alimenta e passa a atuar a partir do desejo de possuir a negritude.
Ela explica que este desejo está embutido na fantasia de que as/os “Outros” raciais são
mais adjuntos a natureza e a autenticidade, no entanto, a qualquer momento pode ser
dirigido para a destruição/humilhação. Para enriquecer o raciocínio, cita os escritos de
hooks (1992) a qual diz que essa inveja racial demonstra que há um sentimento no(a)
branco(a) de que algo foi perdido, assim, as pessoas negras são transfiguradas em um
retrato daquilo que o coletivo conduzido que tem como dinâmica central a branquitude
tem ignorado e denomina como perigoso, ameaçador e proibido. Ademais, Kilomba
associa esta forma de racismo com um dos conceitos principais da psicanálise, através
dos escritos de Fanon:

Fanon usa o esquema do espelho de Lacan para explicar por que, no mundo
branco, pessoas negras são reduzidas a um corpo. Quando entendemos o
mecanismo descrito por Lacan, escreve Fanon (1967, p. 161), “não se pode
duvidar de que o verdadeiro outro para o homem branco é e continuará sendo
o homem negro”. O sujeito negro é usado como contrapartida para o sujeito
branco, como uma imagem espelhada que é reduzida à fisicalidade. Somos
percebidas/os como imagens de corpos – dançarinas/os, cantoras/es, artistas e
atletas de arenas brancas. (KILOMBA, 2020, p. 160)

Através de análises dos relatos de suas colaboradoras e de suas próprias


vivências, Kilomba (2020) enfatiza a magnitude categórica de falas e posturas da

34
branquitude que mantêm o mecanismo de destituir o lugar de pessoa – quando está em
contato com alguém visto e marcado como um outro em dessemelhança- e aponta como
o(a) branco(a) se envolve no que ela chama de reencenações coloniais, uma vez que este
sempre opera em um suposto lugar de superioridade e designa o Outro como inferior. A
autora mostra como as experiências de racismo se fazem presentes no dia-a-dia de
mulheres pretas. E com relação a pessoa branca, explica que este tipo de cena já foi
ensaiada e representada muitas vezes, até que passa a fazer parte do real num curioso e
equivoco lugar de ‘ingenuidade’, deturpa a violência, esta que também só é reconhecida
e significada a partir de pressupostos da branquitude. Dentre suas colaboradoras da
pesquisa, a Kathleen relatou uma de suas vivências onde estava com uma menina
branca, a mãe branca desta menina e o namorado branco e na ocasião de uma conversa,
a menina se dirige a ela usando repetidamente a palavra ‘Negerin’ - ao decorrer do texto
Kilomba (2020) deixa de usar a palavra em si e passa a colocar apenas a letra N. -
sempre acompanhada de algum ‘elogio’. No entanto, Kathleen sente uma dor física nos
momentos em que a menina branca se dirige a ela, e posteriormente Kilomba (ibid)
evidencia como a dor que o racismo inflige provoca toda uma complexidade para dar
sentido ao trauma, posto que este se apresenta no corpo e é em sua ativação,
experienciado enquanto marca da relação de opressão colonial. A respeito da dimensão
quase que primária e psicológica da violência a qual as pessoas negras são expostas
todos os dias, a autora explica:

No momento em que Kathleen é chamada de N., ela está sendo colocada em


uma cena colonial. O termo reafirma uma relação entre brancas/os e
negras/os que está enraizada em uma dicotomia entre senhor e escravizado;
Kathleen deveria ocupar o lugar de uma N. “A Negerin parece tão legal”, diz
a menina sobre Kathleen. Esse momento de surpresa e dor descreve o
racismo cotidiano como uma mise-en-scène, onde pessoas brancas, de
repente, se tornam sinhás/senhores simbólicas/os e negras/os através do
insulto e da humilhação tornam-se escravizadas/os figurativas/os.
(KILOMBA, 2020, pg. 134)

Gonzalez (1984) também fala de memória e de como ela é considerada no


movimento negro para recuperar aquilo que não foi registrado, mas se faz presente
através de um não-saber que conhece, que pode ser pela via do afeto, suponho. Ainda
de acordo com ela, a memória também é o lugar de onde eclode a verdade, e logo
aponta para um paradoxo diz que essa verdade ‘se estrutura como ficção’. Mas explica
35
que isso se dá em decorrência dessa negação da história recorrente que a branquitude
faz: “daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como
discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória,
mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade” (GONZALEZ,
ibid, p. 226). O que ela vai chamar de mancadas do discurso da consciência tem relação
com os conceitos explorados acima, como autorização discursiva e idealização da
branquitude, pois para possuir um deslumbre da própria bondade, preserva o retrato do
corpo negro como objeto muito diferente como imagem da dominação, onde o
dominante se enternece com a própria pureza, verdade. De todo modo, Bento define
memória quase da mesma maneira, porém sugere uma utilização dela a favor da
descolonização nas práticas e no cotidiano:

Memória é também construção simbólica, por um coletivo que revela e


atribui valores à experiência passada e reforça os vínculos da comunidade. E
memória pode ser também a revisão da narrativa sobre o passado “vitorioso”
de um povo, revelando atos anti-humanitários que cometeram — os quais
muitas vezes as elites querem apagar ou esquecer. (BENTO, 2022, p. 27)

Todavia, Alves revela que o motivo de pesquisar branquitude, para ela, se dá pela
possibilidade de uma compreensão mais afinada para observar como o racismo opera
em nossa sociedade. Assim, ao buscar compreender as concepções dos entrevistados
sobre os significados que construíram sobre o que é ser branco, ela observou que as
experiências traumáticas resultantes do racismo, fazem com que haja uma generalidade
da caracterização do branco, que pode tanto ser reforçada ou problematizada durante a
interação. Entretanto, no conteúdo das falas de seus entrevistados, aparece o sofrimento
decorrente de uma concepção traumática do contato pregresso com a brancura. Para
eles, há um sentimento de ameaça com relação a esse contato sentida mesmo sem
necessidade do diálogo:

Nesses excertos, a brancura foi relacionada não apenas à opressão, mas foi
tomada como ameaçadora. O medo do outro – branco – foi sintetizado pelo
poder de seu olhar. Um olhar nem sempre indicativo de preconceito, mas
que, a partir de vivências anteriores de opressão racial, os docentes
aprenderam a interpretar como uma discriminação em potencial, que pôde ou
não se concretizar, mas cuja percepção foi fonte de angústia e desconfiança,
chegando a ferir sua subjetividade: um olhar que te fere.
(ALVES, 2012, p. 39)

Contudo, em diálogo com hooks, Alves abrange a dimensão do medo do que o


branco possa fazer ou pensar que as pessoas negras e/ou estigmatizadas pela

36
branquitude de alguma forma, sentem, portanto coloca em cheque a associação entre
brancura e bondade. Tal associação não é possível para todos, “pelo contrário, no caso
dos depoimentos, a brancura pode ser percebida como algo a ser temido, dimensão para
a qual pessoas brancas dificilmente estão atentas”( ALVES, 2012, p. 40). Ou seja, a
forma como a branquitude se impõe à vida negra tem sido amedrontadora, exercendo
dor e tortura e isso “é o que, em realidade, rompe a fantasia da branquitude como
representativa da bondade.” (hooks, 1999, p. 169 apud ALVES, 2012, p. 40).

Sendo assim, há de se considerar o eco das interações interraciais em qualquer


espaço institucional como mediado por uma desconfiança básica. Sobretudo é este
sentimento que permite tradicionalmente necessária para a sobrevivência de grupos
subordinados, sendo assim os membros relutam para abandona-la, afirma Collins
(2015).

4.2. O racismo estrutural


Como dito no capítulo 1, o autor Almeida certifica que o racismo é estrutura,
está nos parâmetros do que é considerado normal, verdadeiro e comum.

As relações interpessoais assim como as intrapessoais são marcadas por


construções socio-históricas, as quais são estabelecidas a partir de poderes e saberes
estruturantes com a pragmática do racismo. E esta concepção é trazida pelo autor Silvio
de Almeida (2019) ao longo de sua obra “Racismo Estrutural”, na qual ele vai dizer que
o racismo possui dimensões institucionais e estruturais, cada qual apresenta
especificidades analíticas. Estas desvelam os fenômenos concretos que o racismo
provoca para além de uma concepção individualista, a qual mesmo sendo uma via
importante de combate, ainda não permite um olhar mais abrangente e apropriado sobre
a realidade. O autor define da seguinte maneira:

Não podemos deixar de apontar o fato de que a concepção individualista, por


ser frágil e limitada, tem sido a base de análises sobre o racismo
absolutamente carentes de história e de reflexão sobre seus efeitos concretos.
É uma concepção que insiste em flutuar sobre uma fraseologia moralista
inconsequente [...] e uma obsessão pela legalidade. No fim das contas,
quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos comportamentais, deixa-
se de considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo
foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes

37
políticos, líderes religiosos e dos considerados “homens de bem”.
(ALMEIDA, 2018, pg 25)

Assim, é preciso atentar-se para o horizonte civilizatório do conjunto da


sociedade, no como as regras pertencentes às diretrizes de funcionamento determinados
espaços e/ou práticas dificulta a ascensão de pessoas negras e/ou mulheres direta ou
indiretamente, não permitindo que assuntos sobre desigualdades e opressões sejam
pautas (ALMEIDA, 2018, p. 27). Ou seja, é nessa dependência que reside o domínio de
homens brancos.

No prefácio escrito para o livro de Fanon “Alienação e liberdade: Escritos


psiquiátricos”, o filósofo Renato Noguera expõe grandes observações, em uma delas vai
dizer sobre a abrangência sistemática do racismo no que se entende como civilizatório
pelo conjunto de brancos, que corrobora com o que escreveu Almeida: “o racismo é um
sistema que facilita a exploração por meio da identificação de gente ‘civilizada’ e
‘incivilizada’. Para a metrópole branca, esse modo de situar as populações é mas fácil,
uma vez que evidente” (FANON, 2020).

Noguera prossegue na elucidação do pensamento de Fanon e apresenta o


contraponto que ele faz a teoria psicanalítica, no que teoriza sobre a constituição da
estrutura psíquica. De todo modo, há em sua teoria a proposta de que em decorrência da
atmosfera racista, o auto-ódio se faz presente como única oportunidade de fazer-se
humano (haja vista a imposição do embranquecimento como possibilidade de ser
considerado pessoa, para o negro). Sendo assim, a sociogênese é a perspectiva aplicada
por Fanon, segundo a qual o racismo ajusta o complexo sócio-histórico que para ele está
na base da composição subjetiva. Deste modo, o teórico da psicopatologia vai dizer
sobre o núcleo da cisão colonial que determina aqueles que pertencem e aqueles/aquilo
(enquanto características rejeitadas e fixadas no explorado) ao qual é permitido apenas o
lugar da recusa.
Portanto, referindo-se aos contextos afrodiaspóricos, a dinâmica social é
circunscrita por códigos muitas vezes opostos aos judaico-cristãos, seus mitos de
fundação apontam historicamente para formulações matrifocais. Embora a subjetividade
branca europeia abarque o complexo de Édipo, nas lógicas culturais de populações
negras e dos povos originários não há espaço para correspondência com os desarranjos
frequentemente estruturais das subjetividades eurocentradas, no que tange a
38
programação da modernidade ocidental. Em sua chamada para a transformação da
sociedade coloca a mudança ideológica como ponto central: “se Fanon nos fala da
revolução e ficou bastante conhecido por esse discurso, ele ressalva que nenhuma
revolução pode acontecer sem a descolonização do pensamento. Ele seria, pois, um
precursor daquilo que hoje chamamos de desintoxicação das subjetividades
colonizadas” (FANON, 2020).
A psicologia é um lugar de questionamento onde se pretende a suspenção da
ideia do que é considerado ‘normal’ mas não fala sobre quem construiu este parâmetro
de normalidade. Então qual é a importância de colocar quem construiu esse parâmetro?
Ao lançarmos um olhar para o cenário atual da psicologia, como ciência social,
podemos encontrar posições que buscam reconstruir o conhecimento que embasa as
atuações de forma que possa reconsiderar as marcas que a história impõe sobre os
processos de vidas humanas? Talvez seja crucial respondermos a essas questões, pois há
uma tangibilidade do que ocorreu no passado, segundo Kilomba, na agonia que ainda se
vive no presente.
De repente, o colonialismo é vivenciado como real – somos capazes de senti-
lo! Esse imediatismo, no qual o passado se torna presente e o presente
passado, é outra característica do trauma clássico. Experiencia-se o presente
como se estivesse no passado. Por um lado, cenas coloniais (o passado) são
reencenadas através do racismo cotidiano (o presente) e, por outro lado, o
racismo cotidiano (o presente) remonta cenas do colonialismo (o passado). A
ferida do presente ainda é a ferida do passado e vice-versa; o passado e o
presente entrelaçam-se como resultado. (KILOMBA 2020, p. 134).

Ou seja, neste momento, Grada aponta para a ideia de um trauma vivenciado por
mulheres negras e isso deve ser de interesse da psicologia, para que na ocasião da escuta
seja possível reconhecer a origem e contextualização histórica com que estes
sentimentos, sensações e experiências aparecem.

No relacionamento colonial a posição subordinada de uma (desonra/vergonha),


garante a posição de poder da outra (honra/orgulho). Outro aspecto da branquitude é
denominado como inveja racial, através disso, a projeção inconsciente sobre o corpo
negro, se expressa enquanto o fetiche de vir a possuir o que falta em si. Todavia, esse
desejo vem acompanhado pelo desejo de que a/o ‘Outra/o’ seja aniquilado, é sobre a
apropriação que se faz de conhecimentos, de vivências, símbolos da negritude. Se por
um lado, o branco começa o projeto de dominação tentando esvaziar a outridade de
sentidos positivos, nesse processo que só é possível pela projeção, refina-se no presente
onde a destruição se dá pelo fortalecimento de que aquilo de ausente no eu devera ser
39
restituído através da captura dos modos de existir do outro. hooks faz uma análise dos
atos de Madonna em sua carreira, pelos quais demonstra como através da inveja racial,
o sujeito branco permanece exercendo dominação cultural ao utilizar -se de atributos
associados a negritude. Então, hooks aponta:

A inveja racial branca na relação com o negro vai dizer de uma obsessão em
possuir o negro, na esperança de adquirir características que não se possui
passa despercebida pela proferencia de ingenuidade. Pois nós sempre
soubemos que a imagem de inocência da feminilidade branca construída
socialmente se baseia na produção contínua do mito machista/racista de que
mulheres negras não são inocentes e nunca poderiam ser. Uma vez que
sempre somos codificadas como mulheres “maculadas” na iconografia
cultural racista, nunca poderemos trabalhar nossa imagem como a damulher
inocente ousando ser má. (hooks, 2019)

Sobretudo, superar o imaginário racista requer uma reflexão crítica sobre a


sociedade e sobre o contexto interno-relacional de si, sendo negro ou branco
(ALMEIDA, 2018). Nessa direção, Grada sugere que um ato real de descolonização e
resistência política se faz quebrando o silêncio com a indagação e posterior escuta sobre
os efeitos do racismo nas histórias de pessoas negras.
O pensamento de Collins pode oferecer uma síntese do que as duas proposições
demonstram: “Cada um de nós vive com uma porção designada de privilégios ou
punições e com níveis variados de rejeição e sedução inerentes às imagens simbólicas a
nós atribuídas” (COLLINS, 2015, p. 27).

4.2.1 Psicologia e racismo


Bento ensina que o trabalho com a memória vai para além da recordação ou
interpretação, promove reconstrução simbólica da experiência passada e fortalece os
vínculos da comunidade. De todo modo, também nos lembra que rememorar o passado
pode ser também denotar os atos anti-humanitários que um coletivo cometeu e suscitar
uma revisão narrativa sobre o passado “vitorioso”. Ademais, perceber os limites dessa
narrativa - considerando que este trabalho não se trata apenas de recordação ou
interpretação, mas de questionar e demonstrar a suposta neutralidade da identidade
racial branca - assim como possibilitar reconstruções com base em outras epistemes,

40
mais inclusivas, pode resguardar um futuro no qual a escuta realmente possa abranger a
realidade de todos os corpos e suas vivências.

Em 2021 a APA constrói diversos documentos onde faz um extenso pedido de


desculpas ao grupo de pessoas negras e outros grupos étnicos que foram diretamente
atacados pela “ciência” em psicologia. Nestes documentos, além do pedido de desculpas
há também um resgate histórico que registra resumidamente exemplos de ações racistas
cometidas por psicólogos que ocuparam lugares administrativos importantes dentro
desta instituição, entre eles, muitos são citados nas disciplinas de psicologia e criaram
testes baseados em constructos racistas e utilizados no passado para violentar e
prejudicar pessoas negras, até hoje são ‘ferramentas’ legitimadas.
Todavia, as informações compartilhadas no documento destacam ocorrências
desde 1800 até pouquíssimo tempo atrás, onde estes psicólogos que ocupavam posições
de prestígio em grupos, comissões, associações criaram programas de trabalho para
efetivamente conduzir a eugenia. De modo geral, apoiaram, difundiram e promoveram:
segregação, esterilização em massa, bloqueio de oportunidades educacionais e
econômicas, chances de melhoramento etc. Com base no discurso científico esses
homens brancos conduziram um aprofundamento dos obstáculos, os quais já existiam,
de acesso a condições dignas de vida para pessoas não-brancas, incluindo crianças, as
quais foram repetidamente submetidas a testes psicológicos sobre desempenho e
habilidades cognitivas. A partir dos resultados estes psicólogos produziam pesquisas e
argumentos para determinar que eram menos desenvolvidas cognitivamente, que não
tinham aptidões para fazerem parte de um processo educacional, ocasionando até em
discursos de uma hierarquia racial. Para citar um exemplo, no caso das esterilizações em
massa, primeiro houve aplicações de testes em populações de homens negros, depois a
definição documental de que haveria a necessidade de impedir a procriação de pessoas
não-brancas, pois isso acabaria ocasionando no perigo da multiplicação de uma raça
humana inferior. Apoiaram ativistas eugenistas e neonazistas; definição ‘científica’ de
estereótipos negativos e inferiorizantes de pessoas não-brancas e o enraizamento da
ideia da superioridade racial branca; reforçaram a ideia de diferenças raciais, defesa da
hierarquia racial. Nomes como Lewis Terman, Madison Bentley, Garth, Henry Garret,
Raymond Cattell, Francis Galton, Granville Stanley Hall, Edward Thorndike entre
outros homens brancos foram citados no documento de denúncia.

41
Um dos impactos diretos na política foi o fato dessas pesquisas terem sido
utilizadas por líderes eugenistas para endossar suas decisões em aprovações de leis que
restringiram imigrações, por exemplo.
Só em meados de 1925, após a Segunda Guerra Mundial, com a expansão da
psicologia pelo mundo e a entrada de pessoas não-brancas na área é que houve um
enfraquecimento desses atos, as pessoas ocultaram suas pesquisas a partir do
questionamento de uma psicologia predominantemente branca proferido pelas pessoas
negras que adentraram o campo. Em 1933 psicólogos negros publicam vários estudos
contrariando as descobertas de psicólogos brancos e em 1936, Herman Canady
delineou o impacto que os examinadores brancos têm nos resultados dos testes que
colocam sobre o negro (CCHP, 2021, p. 8)
E mesmo assim, nos anos seguintes continuaram a surgir novas publicações de
trabalhos que reforçavam estereótipos de grupos não-brancos, associando a pretensa
‘hierarquia’ racial e diferenças raciais à uma causalidade genética intrínseca.
Porém, estudos como esses conduzidos por importantes psicólogos negros,
foram muitas vezes descartados e os testes continuaram a ser utilizados para apoiar
ideias sobre superioridade e inferioridade racial inata. Foram muitos os exemplos
citados de estudos conduzidos por cientistas sociais e comportamentais comparando
pessoas negras com populações brancas e usando branquitude como parâmetro de
padrão cultural, racial e normativo.
Tal cenário certamente se consolidou devido a sub-representação de pessoas
negras na APA e no campo em geral devido à marginalização e exclusão históricas,
aponta o próprio documento.

4.2.2 Atuação do psicólogo e a branquitude: dois casos

Em um programa de podcast organizado pelo Conselho Federal de Psicologia,


Schucman foi chamada para participar de um dos episódios que abordou as implicações
da branquitude na psicologia. Por conseguinte, ela contou sobre sua mais recente
pesquisa sobre o tema, a qual tem como foco os atravessamentos da branquitude na
prática cotidiana de psicólogas (os). No decurso das entrevistas realizadas, ela tem
observado que uma das principais consequências da branquitude na formação de
psicólogos é a ideia de que há uma transposição entre uma particularidade e o universal,
42
que faz esses profissionais se pautarem em generalizações sobre os fenômenos. Ela
chama de ‘dimensão cognitiva- avaliativa’ e define como o pensamento de que uma
vivência branca abarca a totalidade do coletivo. Esta perspectiva também é examinada
em sua obra, no momento em que ela se baseia na teoria de McIntsh (1990) para falar de
privilégios simbólicos:

As sociedades ocidentais ainda são em sua maioria sociedades eurocêntricas,


por isso tendem a ser “monoculturais”, ou seja, a constituição de uma
determinada perspectiva sobre o mundo que se baseia centralmente nos
padrões culturais dos grupos dominantes, mantendo uma visão única sobre as
formas de viver e ser no mundo, que não permite que os sujeitos consigam
perceber sua singularidade e seu próprio fechamento. (SCHUCMAN, 2004,
p. 63)

Do mesmo modo que realizou a pesquisa com pessoas brancas, a qual deu
origem ao livro e ao artigo citados neste trabalho de monografia, ela fez a seguinte
indagação aos psicólogos participantes da pesquisa: raça é uma questão no seu trabalho?
Isto posto, ela narra três casos. No primeiro, de acordo com Schucman, a
psicóloga branca que trabalha em um hospital responde que por ser um hospital
particular, não atende muitas pessoas negras. Schucman então faz um apontamento, de
que esse fato não é identificado como um problema pela psicóloga. De todo modo, ao
prosseguir a entrevistada relata uma ocasião na qual um paciente negro solicitou
morfina, queixando-se de dor. Entretanto, a equipe médica se recusou a administrar o
medicamento, pois chegaram a conclusão de que aquele paciente “gostaria de se drogar
no hospital”. Assim, a pesquisadora interpela a psicóloga perguntando se às mulheres e
pessoas brancas atendidas no estabelecimento em algum momento negaram a aplicação
de morfina. Ao responder que não, Schucman conta que a psicóloga percebe e admite
dizendo: “tem a ver com raça!”, durante a entrevista.
Em outro caso, um psicólogo clínico responde a pergunta dizendo que seu
trabalho tinha como foco o indivíduo e que raça só será um tema trabalhado se aparecer
ao sujeito. No entanto, diz Schucman, ao expor as principais queixas de uma paciente
negra que ele atende, a maioria das queixas são referentes a vivência de raça. Ele cita
questões que a paciente traz angústias sobre inadequação, que sente-se o tempo todo
‘fora do lugar’, reclama do cabelo etc.

43
Diante disso, a pesquisadora tece comentários e indicações para explicar tais
situações com as quais se deparou até então em suas investigações. Ela sugere que a
ineficiência desses profissionais se deve a uma formação eurocentrada, ou seja, o
racismo e a branquitude impossibilitam que o profissional tenha uma boa atuação e
realize aquilo que tem que ser feito. A escuta está obstruída referindo-se ao caso do
psicólogo clínico de acordo com ela: Como vamos ouvir raça num país que fala de raça
por metáforas?.
De todo modo, como a pesquisa ainda não foi publicada, alguns fatos e
pesquisas mencionados nos documentos da APA (CCHP, 2021, p. 14-15) que
coadunam com os apontamentos de Schucman:
 1990: Sue e Sue relatam que 50% das pessoas identificadas como membros de
grupos minoritários encerram o aconselhamento após a primeira sessão. Isso é
comparado a 30% das pessoas brancas. Outras pesquisas sugeriram que isso estava
relacionado a experiências negativas e falta de sensibilidade cultural por parte dos
terapeutas (Fukuyama, 1990). – os efeitos disso tudo para além dos obstáculos
causados nas vidas de pessoas negras.
 2003: A Comissão de Nova Liberdade do Presidente sobre Saúde Mental encontra
diferenças raciais e étnicas nas taxas de psicopatologia e aponta para a
inacessibilidade contínua e ineficácia das opções de tratamento. Ecoando relatórios
anteriores, a Comissão descobriu que os clientes de cor frequentemente consultavam
psicoterapeutas ou recebiam tratamentos que não consideravam as experiências dos
clientes, origens culturais e linguísticas e circunstâncias de vida baseadas na raça.
(Sue & Zane, 2006)
 2007: A pesquisa mostra que as experiências de microagressões de clientes negros
de terapeutas brancos têm um impacto significativo nas alianças terapêuticas e suas
classificações de satisfação tanto com o conselheiro quanto com o aconselhamento
em geral. Constantine observa que “em face das microagressões raciais percebidas
no aconselhamento, os clientes afro-americanos, de fato, podem se sentir muito
piores depois de suas experiências de aconselhamento do que antes”. (Constantine,
2007, p. 13; ver também Helms & Cook, 1999).
Ademais, em resposta às demandas do movimento negro para “a produção de
teorias que contribuam com a superação do racismo, do preconceito e das diferentes
formas de discriminação” cria um documento em 2017 com referências técnicas para a
44
atuação de psicólogas (os) em relação ao preconceito e discriminação racial onde
ressalta a necessidade de “um enfrentamento de uma divida histórica e de superação de
um abismo sociarracial, que impactam à todas/os e principalmente às mulheres negras”
(CFP, 2017).

Neste documento são colocados diversos eixos de enfrentamento ao racismo e


para a desconstrução do racismo dentro da atuação e formação em psicologia. No
capítulo “Atuação da(o) psicóloga(o) na desconstrução do racismo e promoção da
igualdade” são colocadas as seguintes questões: “considerando-se as relações raciais,
quem é essa sociedade? Você sabe os efeitos psicossociais do racismo na constituição
da subjetividade? Você já pensou que, como formador(a) de opinião, é uma pessoa
privilegiada para contribuir com a luta antirracista?”. Todavia, mesmo que sejam
questões importantes para a atuação em psicologia visto que a psicologia transita por
diversas instituições no Brasil, pouco refletimos sobre elas nos espaços acadêmicos de
aulas. Algumas das hipóteses destacadas para que isso ocorra são: decorrência de a
massiva presença na psicologia até alguns anos atrás foi de pessoas brancas, então, a
característica coletiva de se acreditar desracializado e de atribuir raça apenas ao outro,
assim como a manutenção da branquitude como identidade racial normativa, de acordo
com a cartilha, podem ser os principais motivos de isso não ser interesse de estudos
dentro da psicologia como também não seria cômodo o confronto com os privilégios
simbólicos e materiais que se obtém (CREPOP, p. 19, 2008).

45
Considerações finais: como pensar/praticar o antirracismo

Para além dessa proposta, que reflete uma conquista importante no debate
educacional voltado para o tratamento adequado da diversidade, as análises
ora realizadas sugerem que educar para o combate às desigualdades raciais é
também educar para que a idealização branca deixe de ser objeto de desejo
para negros e brancos, em outros termos, almejar que a adesão à ideia de
supremacia branca que os significados analisados pressupõem seja cada vez
menos viável e desejável. (ALVES, 2012, p. 43)

Em busca de compreender como pode acontecer o desenvolvimento de uma


possível identidade racial branca antirracista, Piza vai ao encontro da proposta de Janet
Helms (1990). Tal objetivo só pode ser alcançado se a pessoa aceitar a sua própria
branquitude, assim como as questões culturais, políticas, socioeconômicas de ser
branca. O papel dessa mudança é delinear uma visão do eu como ser racial
(CARNEIRO, PIZA, 2002 , p. 57-60 )

Contudo, esta proposta delimita seis estágios de condução da identidade racial


branca, são eles: contato, desintegração, reintegração, falsa independência,
imersão/emersão e autonomia.

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No estágio de contato, a pessoa branca investe seus esforços em reproduzir
estereótipos aprendidos com pessoas próximas. Nesse momento há uma curiosidade
primitiva ou medo racial, que suscitam negação de uma consciência sobre implicações
raciais e da interação com pessoas negras.

Em suas manifestações, uma pessoa dentro desse estágio pode fazer comentários
como a entrevistada Kathleen recebeu, o que é sentido pela pessoa negra como um
assédio. Em suma, é o estágio da recusa de reconhecer o outro em termos de igual-
semelhante, igual-igual, igual -diferente.

Todavia, o segundo estágio, ocorre na medida em que na interação crescente com


pessoas negras e novas informações sobre racismo surge uma nova compreensão da
presença do racismo nos diferentes espaços da sociedade. Nesta esfera o branco depara-
se com o desconforto da culpa, vergonha e, por vezes, raiva quando nota suas próprias
vantagens por serem brancos e a identificação do pacto narcísico do grupo de brancos.

O pacto é uma aliança que expulsa, reprime, esconde aquilo que é intolerável
para ser suportado e recordado pelo coletivo gera esquecimento e desloca a
memória para lembranças encobridoras comuns. O pacto suprime as
recordações que trazem sofrimento e vergonha, porque são relacionadas à
escravidão. (BENTO, 2022, p.17)

No estágio da desintegração as reações são reafirmação da ideia de que o racismo


não existe, ou responsabilização das vítimas pela sua existência. Bento faz uma crítica
aos sociólogos que no Brasil tentaram atribuir ao negro a ideia de que havia um prejuízo
cognitivo decorrente dos efeitos da escravização, por isso não eram admitidos no
trabalho. De acordo com ela, estes intelectuais, mesmo que admitiam e falavam do
problema do colonialismo no país, reforçaram os estereótipos negativos sobre a
negritude e abstiveram-se de uma análise da brancura. Algo muito parecido com a
tentativa, no estágio da desintegração, de transferir o sentimento de culpa ao oprimido
pelas injustiças vivenciadas na realidade social e cultural.

Ainda, nesta altura do desenvolvimento da identidade há o desejo de ser integrado


ao próprio grupo racial, pois quase numa volta a ideia de luta das raças, a crença
camuflada ou declarada na superioridade branca persistente pode mobilizar o branco a
regular seu sistema de crenças para acomodar a aceitação do racismo. De todo modo, o
olhar às pessoas pretas é de acusação, pois evoca a ideia de que seriam a causa do um
mal-estar emocional.

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Segundo Helms, usualmente brancos ficam paralisados no estágio de reintegração,
principalmente quando não convive com pessoas negras. No entanto, quando há
elementos que incentivam a continuidade da autorreflexão – como leitura de
autobiografias de pessoas brancas, participação de espaços inclusivos, terapia- a pessoa
impele-se a contestar sua definição de ser branco e a justificação do racismo. Nesse
ínterim o sujeito é acometido por uma desafeição em relação aos outros brancos que
não refletem sobre seu próprio racismo.

Ou seja, o movimento que promove uma estranheza àqueles que antes eram
vistos como únicos semelhantes pode também propiciar o rompimento com o pacto
narcísico da branquitude. Experimentar este processo, para mim, oportuniza a re-
imaginação do estar no mundo. Na relação cotidiana com as pessoas a visão parece
descortinar-se, passei a ver a desconfiança no olhar das pessoas negras. Decorre que o
antigo incômodo, medo com relação ao percebido-outro-negro (destaca-se o mito do
homem negro, taxado como abusador em potencial, sustentado em grande parte pelas
mulheres brancas que impede uma aproximação e é promotor de violentas difamações-
agora consubstancia-se na presença de pessoas brancas totalmente identificadas com a
própria brancura, é nítida a desatenção delas com a forma com que perpetuam o racismo
e o desespero em alinhar-se aos requisitos para obter o registro de adequação e
normalidade sublime. Logo, a proposta de Helms sobre os estágios da identificação
racial descreve uma linguagem pra que pessoas brancas pensem sobre si mesmas e
possam alcançar uma integração ativa e engajada na sociedade: “Desconfortável com
sua própria branquitude, ainda incapaz de ser verdadeiramente qualquer coisa, o
indivíduo pode buscar uma nova maneira, mais confortável, de ser branco. Esta busca é
a característica do estágio de desenvolvimento imersão/emersão” (CARNEIRO, PIZA,
2002 p. 44).

Collins defende uma proposição ativa, pela qual o foco na mudança se trata
viabilizar um olhar para si com novas visões sobre o que é opressão, novas categorias de
análise sobre raça, gênero e classe compreendendo-as como estruturas de opressão
distintas, mas imbricadas. Ela convoca-nos a alinhar o agir ao pensamento, com
mudanças de comportamentos diários. Suas recomendações pedem que sejam
administradas tanto no movimento de militância, quanto nas diversas instituições modos
de criação de novas categorias de conexão: “Nós temos que ver as conexões entre as

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categorias de análise (raça, classe e gênero) e as questões pessoais de nosso dia a dia,
particularmente na nossa construção de conhecimento, no nosso ensino e nas nossas
relações” (Collins, 2015, p. 15).

Enquanto a branquitude circunscreve as instituições e subjetividades numa


sorrateira e estrondosa cegueira e o desafio é encaminhar novas conexões, o amor –
lembra Fanon- continua a exigir a mobilização de instâncias psíquicas
fundamentalmente livres de conflitos inconsciente. Apenas o ato e o exercício de amar a
negritude, mostrará hooks, possibilitará o avanço e uma integração no mundo a sem o
ódio destrutivo e a raiva coletiva vigente.

Por fim, considero que este trabalho muito provavelmente tenha incorrido em um
ensaio demasiadamente descritivo, dada a caracterização das referências que foi em sua
maioria conteúdo teórico. Ainda não foram publicados artigos ou trabalhos que façam
essa correlação entre a psicologia e a branquitude, porém certamente este cenário está
mudando, pois cada vez mais se torna assunto nos diversos espaços. Afinal de contas, o
retorno daquilo que foi relegado apenas ao inconsciente sempre retornará de um modo
ou de outro. Que façamos este retorno de modo consciente e saibamos reelaborar este
passado tão deplorável, de forma que possamos afinar a escuta e adotar ações, falas,
comportamentos e vínculos em nome do respeito à cada existência e história que
atravessarem o caminho. Para tanto, é necessário que sejam rompidos os tratados de
silêncio, que outras referências de conhecimento sobre o ser humano sejam utilizadas
para que todos sejam representades e ouvides.

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REFERÊNCIAS
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